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o sol

e as suas
flores
rupi kaur

o bestseller nº1 do new york times


o sol
e as suas flores
rupi kaur

WKHVXQDQGKHUÀRZHUV
traduzido do inglês por
maria santos nunes e
leonor santos nunes
TÍTULO
RVROHDVVXDVÀRUHV

TÍTULO ORIGINAL
WKHVXQDQGKHUÀRZHUV
© 2017, Rupi Kaur
Todos os direitos reservados.

Edição publicada por acordo com The Cooke Agency International,


CookeMcDermid Agency e International Editors’ Co. Publicado
RULJLQDOPHQWHHPLQJOrVSRU$QGUHZV0F0HHO3XEOLVKLQJ
e Simon & Schuster.

1.ª Edição/Setembro de 2018


ISBN: 9789892343013

Composição: José Domingues

[Uma chancela do grupo LeYa]


Rua Cidade de Córdova, n.o 2
2610 038 Alfragide
Tel.: (+351) 21 427 22 00
Fax: (+351) 21 427 22 01
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ZZZOXDGHSDSHOOH\DFRP
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Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor.


SDUDRVTXHPH¿]HUDP
kamaljit kaur e suchet singh
eu sou. graças a vocês.
espero que possam olhar para nós
e pensar
que os vossos sacrifícios valeram a pena

para os meus incríveis irmão e irmãs:


prabhdeep kaur
kirandeep kaur
saaheb singh
estamos juntos nisto

YRFrVVmRDGH¿QLomRGRDPRU
conteúdos

murchar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

cair. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

criar raízes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117

crescer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153

ÀRULU. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195
as abelhas chegaram à procura do mel
as flores soltaram risadinhas
enquanto se despiam para esse momento
o sol sorriu

– o segundo nascimento
murchar
rupi kaur

no último dia do amor


senti o meu coração a rachar dentro do meu corpo

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passei a noite inteira


a fazer feitiços para te trazer de volta

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rupi kaur

agarrei no último ramo de flores


que me deste
agora a murchar na jarra
flor
a
flor
arranquei-lhes a cabeça
e comi-as

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enfiei uma toalha aos pés de cada porta


vai disse ao ar
não me serves para nada
fechei todos os cortinados da casa
sai disse à luz
aqui ninguém entra
daqui ninguém sai

– cemitério

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foste-te embora
e eu ainda te queria
mas merecia alguém
que tivesse vontade de ficar

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passo os dias na cama sem forças por causa do que perdi


choro para que voltes atrás
mas as lágrimas já correram
e tu ainda não voltaste
belisco a minha barriga até fazer sangue
perdi a conta aos dias
o sol torna-se lua
e a lua torna-se sol
e eu torno-me fantasma
dezenas de pensamentos
devastam-me a cada segundo
deves seguir o teu caminho
talvez seja melhor que não sigas
eu estou bem
não
estou zangada
sim
odeio-te
talvez
não consigo seguir em frente
vou conseguir
perdoo-te
quero arrancar os meus cabelos
uma e outra vez e outra
até a minha cabeça se cansar e cair no silêncio

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ontem
a chuva tentou imitar as minhas mãos
tocando no teu corpo todo
rachei o céu ao meio por ter deixado a chuva cair

– ciúmes

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para conseguir adormecer


tenho de imaginar o teu corpo
colado às minhas costas
os nossos corpos em concha
e ouvir a tua respiração
tenho de recitar o teu nome
até responderes e
conversares comigo
só então
a minha mente consegue
cair no sono

– faz de conta

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rupi kaur

não são as coisas de que desistimos


que me deixam destroçada
é o que podíamos ter construído
se tivéssemos ficado

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os capacetes de proteção pousados


exatamente no mesmo sítio onde os deixámos
cones de sinalização sem saber o que proteger
escavadoras com o olhar na expetativa do nosso regresso
as madeiras hirtas deitadas nas suas caixas
ansiosas por serem pregadas
mas nenhum de nós volta atrás
para lhes dizer que acabou
com o tempo
os tijolos vão cansar-se de esperar e desfazer-se em pó
as gruas deixarão cair os seus pescoços com pesar
as pás ganharão ferrugem
achas que vão nascer aqui flores
quando tu e eu tivermos partido
para uma obra nova
com outra pessoa

– o empreendimento do nosso futuro

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rupi kaur

vivo para aquele primeiro segundo da manhã


quando ainda estou semiconsciente
ouço os colibris lá fora
a namorar as flores
ouço as flores com as suas risadinhas
e as abelhas a ficar com ciúmes
quando me viro para te acordar
começa tudo outra vez
as ansiedades
o soluçar
o choque
ao perceber
que te foste embora

– a primeira manhã sem ti

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os colibris dizem-me
que o teu cabelo está diferente
digo-lhes que isso não me interessa nada
enquanto os fico a ouvir
a descrever cada pormenor

– fome

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tenho inveja dos ventos


que te podem sentir

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podia ser tudo o que quisesse


na vida
mas quis ser dele

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rupi kaur

tentei ir-me embora muitas vezes mas


assim que ia
os meus pulmões encolhiam-se de aflição
sedenta de ar para respirar eu voltava
talvez tenha sido por isso que deixei
que fizesses de mim pele e osso
qualquer coisa
era melhor do que nada
o teu toque
mesmo que não fosse doce
era melhor do que não sentir as tuas mãos
aguentava os abusos
não aguentava a ausência
sabia que não levava a nada
mas que importava
aonde levava
quando pelo menos
eu ia

– dependência

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estreias mulheres como estreias sapatos

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amar-te era como respirar


mas o ar desaparecia
antes de chegar aos meus pulmões

– quando acaba antes do tempo

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o que é o amor

o que é o amor pergunta a psicóloga


uma semana depois da separação
não sei o que responder
tirando o facto de antigamente achar que o amor
era muito parecido contigo

foi então que me bateu


e percebi como tinha sido ingénua
ao pôr uma ideia tão bonita na figura de uma pessoa
como se alguém neste planeta
pudesse conter todo o amor
como se esta emoção que faz estremecer sete milhões de pessoas
se parecesse com um tipo moreno
de um metro e oitenta
que gosta de comer pizza congelada ao pequeno-almoço

o que é o amor pergunta novamente a psicóloga


desta vez interrompendo os meus pensamentos a meio das frases
e nesse momento quase me levantei
e saí porta fora
só que paguei uma pipa por aquela consulta
por isso lanço-lhe um olhar penetrante
como quando olhamos para uma pessoa
a quem estamos prestes a dar razão
os lábios apertadinhos a prepararem-se para a conversa
os olhos fincados nos dela
à procura dos pontos fracos

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rupi kaur

que ela esconde algures


o cabelo a ser enrolado atrás da orelha
como se tivéssemos de nos preparar fisicamente
para uma conversa
sobre as filosofias ou as desilusões
do que é o amor

bem digo-lhe
já não acho que o amor seja ele
se o amor fosse ele
ele estaria aqui não estaria
se ele fosse o tal
seria ele que estaria aí sentado à minha frente não seria
se o amor fosse ele teria sido simples
já não penso que o amor seja ele repito
acho que o amor nunca foi
acho que eu só queria alguma coisa
queria dar-me a qualquer coisa
que acreditasse ser maior do que eu
e quando vi uma pessoa
que provavelmente servia para o efeito
decidi
fazer dele meu companheiro

e eu perdi-me nele
ele usou e abusou
embrulhou-me na palavra especial
até eu ficar convencida de que só tinha olhos para me ver
mãos para me sentir
um corpo só para estar comigo
oh como me deixou vazia

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o que é que isso te faz sentir


interrompe a psicóloga
bem disse eu
faz-me sentir assim uma merda

talvez estejamos todos a ver mal


pensamos que é uma coisa que temos de procurar
uma coisa que vai esbarrar connosco
à saída de um elevador
ou sentar-se ao nosso lado num café
aparecer na outra ponta do corredor numa livraria
sexy e intelectual na proporção certa
mas acho que o amor começa aqui
tudo o resto não passa de desejos e projeções
de todas as nossas vontades carências e fantasias
mas essas coisas externas nunca poderiam resultar
se não nos virássemos para dentro e aprendêssemos
a amar-nos a nós próprios para podermos amar os outros

o amor não é uma pessoa


o amor são as nossas ações
o amor é darmos tudo o que pudermos
nem que seja só guardar-lhe a fatia maior do bolo
o amor é percebermos
que temos esse poder de nos magoarmos uns aos outros
mas que vamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance
para garantir que não o fazemos
o amor é perceber que merecemos todo o carinho
e quando aparecer alguém

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rupi kaur

a dizer que te dará carinho como tu dás


mas as suas ações te deixarem mal
em vez de te ajudarem a seres melhor
o amor é saber quem escolher

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não podes
entrar e sair de mim
como se eu fosse uma porta giratória
tenho muitos milagres
a acontecer dentro de mim
para ser a opção que mais te convém

– não sirvo para passatempo

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rupi kaur

levaste o sol contigo


quando partiste

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continuei a sentir-me comprometida


muito depois de teres partido
não conseguia levantar os olhos
e olhar para outra pessoa
se olhasse parecia que estava a trair
que desculpa ia arranjar
quando tu voltasses
e perguntasses por onde tinham andado as minhas mãos

– leal

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quando me espetaste uma faca


também começaste a sangrar
a minha ferida tornou-se a tua ferida
não sabias
que o amor é uma faca de dois gumes
sofres sempre da mesma maneira que me fazes sofrer

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acho que o meu corpo sabia que não ias ficar

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eu penso
em ti
mas tu pensas
noutra pessoa
não quero
quem me quer
porque quero outra pessoa

– a condição humana

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fico a pensar se sou


suficientemente bonita para ti
ou mesmo se sou bonita
mudo de roupa
cinco vezes antes de me ir encontrar contigo
a tentar descobrir que calças
tornam o meu corpo mais tentador para tu despires
diz-me
há alguma coisa que eu possa fazer
que te faça pensar
ela
é tão extraordinária
que perco a força nas pernas
escreve isso numa carta
e manda-a para todas as partes inseguras de mim
as lágrimas vêm-me aos olhos só de ouvir a tua voz
tu a dizeres-me que sou bela
tu a dizeres-me que não precisas de mais

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rupi kaur

estás em todo o lado


exceto aqui
e isso dói

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mostra-me uma fotografia


quero ver a cara da mulher
que te fez esquecer a que tinhas em casa
em que dia foi
e que desculpa me deste
costumava agradecer ao universo
por te ter trazido até mim
entraste nela
enquanto eu pedia a deus todo-poderoso
que te desse tudo o que quisesses
encontraste o que querias nela
saíste a rastejar de dentro dela
com o que não encontraste em mim

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rupi kaur

o que te atrai nela


diz-me o que gostas
para eu poder praticar

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a tua ausência é como um membro amputado

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perguntas

há uma lista de perguntas


que gostava de fazer mas que nunca hei de fazer
há uma lista de perguntas
que revejo na minha cabeça
sempre que estou sozinha
e a minha mente não consegue parar de te procurar
há uma lista de perguntas que queria fazer
por isso se por acaso estás a ouvir
aqui vãos as minhas perguntas

o que achas que acontece


ao amor que fica para trás
quando dois amantes se separam
a que ponto chega a mágoa
antes de o amor morrer
será que morre
ou será que continua a existir algures
à espera que voltemos
quando mentimos a nós próprios ao
chamar a isto incondicional e nos fomos embora
qual de nós sofreu mais
eu desfiz-me em mil bocadinhos
e esses bocadinhos desfizeram-se em mais mil
tornaram-se pó até
não restar mais nada de mim além do silêncio

conta-me amor
como é que a dor correu para ti
como é que o luto doeu

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como conseguiste manter os olhos abertos depois


de cada pestanejar
sabendo que eu não ia lá estar para te devolver o olhar

deve ser duro viver com os e se


sentir sempre aquela dor persistente
na boca do estômago
acredita
eu também a sinto
como é que viemos aqui parar
como é que sobrevivemos a isto
e como é que ainda vivemos

quantos meses foram precisos


para deixares de pensar em mim
ou ainda pensas em mim
porque se sim
então talvez eu também esteja
a pensar em ti
a pensares em mim
comigo
em mim
a meu lado
em todo o lado
tu e eu e nós

ainda te tocas quando pensas em mim


ainda me imaginas nua um corpo pequenino
colado ao teu
ainda pensas na curva da minha coluna
e em como a querias arrancar de mim
porque a maneira como se afundava
no meu rabo perfeitamente redondo
deixava-te louco

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rupi kaur

baby
meu doce
meu amor
desde que nos separámos
quantas vezes imaginaste
que era a minha mão a masturbar-te
quantas vezes me procuraste nas tuas fantasias
e acabaste a chorar em vez de te vires
não me mintas
eu consigo perceber quando mentes
porque tens sempre uma pontinha de
arrogância na tua resposta

estás zangado comigo


estás bem comigo
e dizias-me se não estivesses
e se alguma vez nos voltarmos a ver
achas que me puxarás para ti e abraçarás
como disseste que farias
a última vez que nos vimos e
falaste de quando nos víssemos novamente
ou achas que apenas nos olharíamos
estremecendo a nossa dor
para absorver tudo o que pudéssemos um do outro
porque nessa altura provavelmente teremos
alguém em casa à nossa espera
estávamos bem juntos não estávamos
e será que faço mal em perguntar-te estas coisas
diz-me amor
que também tu tens andado
à procura destas respostas

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ligaste a dizer que sentias a minha falta


eu volto-me para a porta
à espera de ouvir bater
dias depois ligas-me a dizer que precisas de mim
mas continuas sem aparecer
os dentes-de-leão do jardim
desviam o olhar desiludidos
a relva declarou que já passaste à história
que me importa a mim
se me amas
se sentes a minha falta
ou precisas de mim
quando não fazes nada em relação a isso
se não sou o amor da tua vida
serei a maior perda da tua vida

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rupi kaur

que fazemos agora meu amor


que tudo acabou e estou parada
a meio caminho entre ti e mim
para que lado me devo virar
quando cada nervo do meu corpo vibra por ti
quando me vem água à boca só de pensar
quando só de te ver me puxas para ti
como é que dou meia volta e me escolho a mim

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a cada dia que passa percebo


que tudo o que tinhas de que sinto falta
nunca existiu sequer

– a pessoa por quem me apaixonei era uma miragem

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rupi kaur

eles vão-se embora


e comportam-se como se nada tivesse acontecido
depois voltam
e comportam-se como se nunca nos tivessem deixado

– fantasmas

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tentei chegar a um
mas não houve respostas
no final da última conversa

– desenlace

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rupi kaur

perguntas-me
se podemos ser amigos
eu explico-te que uma abelha
não sonha em beijar a boca de uma flor
para depois se contentar com as suas folhas

– não preciso de mais amigos

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por que razão


quando a história acaba
começamos a sentir tudo

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rupi kaur

55

ergue-te
disse a lua
e o novo dia chegou
o espetáculo continua disse o sol
a vida não para para ninguém
puxa-te pelas pernas
quer queiras seguir em frente quer não
é essa a dádiva
a vida obriga-te a esquecer as saudades
a pele descama até não haver
nenhuma parte que por eles tenha sido tocada
os teus olhos finalmente só os teus olhos
não os olhos que os fixavam a eles
vais conseguir chegar ao fim
do que é apenas o princípio
vá lá
abre a porta para o que aí vem

– tempo

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cair
rupi kaur

reparo em tudo o que não tenho


e decido que é lindo

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fiquei calejada com a última desilusão que tive.


levou de mim uma parte humana. dantes era tão sensível
que me derretia à mínima coisa. mas agora o fio das
lágrimas encontrou outra saída. claro que me preocupo
com os que estão à minha volta. só que tenho de me
esforçar para o mostrar. ergueu-se uma parede no meio.
dantes só queria ser tão forte a ponto de nada me afetar.
agora. sou. tão forte. que nada me afeta.
e só quero amolecer.

– insensibilidade

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rupi kaur

ontem
quando acordei
o sol caiu e rolou pelo chão
as flores degolaram-se a elas próprias
a única coisa com vida aqui sou eu
e quase não sinto que vivo

– a depressão é uma sombra que vive dentro de mim

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porque é que és tão indelicada comigo


o meu corpo chora

porque não és parecido com o delas


digo-lhe

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rupi kaur

estás à espera de alguém


que não vai voltar para ti
ou seja
vives a tua vida
à espera que alguém chegue à conclusão
de que não pode viver a sua vida sem ti

– não é assim que se chegam a conclusões

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muitas vezes
zangamo-nos com outras pessoas
por não fazermos
aquilo que devíamos ter feito por nós

– responsabilidade

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rupi kaur

porque
deixaste uma porta
aberta
ali no meio das minhas pernas
foste preguiçoso
esqueceste-te
ou deixaste-me inacabada de propósito

– conversas com deus

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não me disseram que ia doer desta maneira


ninguém me avisou
do desgosto que experimentamos com os amigos
onde estão os álbuns pensei
não havia canções sobre o tema
não descobri nenhuma balada
nem vi livros dedicados à dor
em que caímos quando os amigos se vão
é uma angústia que
não te atinge como um tsunami
é um cancro lento
do género que não é visível durante meses
não apresenta sintomas
é uma dor aqui
uma enxaqueca ali
mas cancro ou tsunami
acaba tudo da mesma maneira
um amigo ou um amante
perder alguém é perder alguém é perder alguém

– o desgosto que é subvalorizado

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rupi kaur

ouço mil palavras simpáticas sobre mim


e tanto me faz
ouço um insulto
e toda a confiança se estilhaça

– foco no que é negativo

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casa

tudo começou como uma quinta-feira normal se bem me lembro


a luz do sol beijou-me os bons-dias nas minhas pálpebras
lembro-me perfeitamente
de saltar para fora da cama
fazer café ao som das crianças a brincar lá fora
de pôr música
de encher a máquina de lavar louça
lembro-me de pôr flores numa jarra
em cima da mesa da cozinha
só quando a casa ficou imaculada
é que fui para a banheira
lavar o ontem do meu cabelo
decorei-me
como as paredes da minha casa estavam decoradas
com quadros estantes de livros fotografias
pendurei um colar ao pescoço
preguei uns brincos
apliquei batom como se fosse tinta
varri o meu cabelo para trás – uma quinta-feira típica

encontrámo-nos por acaso numa festa de uns amigos


no fim perguntaste se precisava de boleia para casa e
eu disse que sim porque os nossos pais trabalhavam na mesma
empresa e já tinhas ido a minha casa jantar várias vezes

mas eu devia ter percebido


quando começaste a confundir

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rupi kaur

a conversa simpática com o flirt


quando me disseste para soltar o cabelo
quando em vez de me levares para casa
em direção ao cruzamento cintilante
de luzes e vida – viraste à esquerda
para uma rua que não ia dar a lado nenhum
perguntei onde íamos
perguntaste se eu estava com medo
a minha voz atirou-se do topo da minha garganta
aterrou no fundo da minha barriga e escondeu-se durante meses
todas as partes de mim
apagaram as luzes
fecharam as persianas
trancaram as portas
enquanto me escondia atrás de
um armário qualquer da minha mente e
alguém partia as janelas – eras tu
arrombava a porta da frente – tu
levava tudo
e depois alguém me usurpou
– foste tu.

que te atiraste a mim com garfo e faca


os olhos a lampejar de fome
como se não comesses há semanas
eu era cinquenta quilos de carne fresca
que esfolaste e estripaste com os teus dedos
como se raspasses a casca de uma meloa
enquanto eu gritava pela minha mãe
pregaste-me os pulsos ao chão
transformaste os meus seios em fruta pisada

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esta casa está vazia agora


sem gás
sem eletricidade
sem água
a comida está podre
da cabeça aos pés estou coberta de pó
moscas da fruta. teias de aranha. insetos
alguém que chame o canalizador
o meu estômago está entupido – tenho vomitado desde então
chamem o eletricista
os meus olhos não se acendem
chamem alguém da limpeza para me lavar e pôr a secar

quando assaltaste a minha casa


nunca mais a senti como minha
nem sequer consigo deixar entrar um amante sem ficar enjoada
perco o sono ao fim do primeiro encontro
perco o apetite
fico mais osso e menos pele
esqueço-me de respirar
à noite o meu quarto torna-se uma ala psiquiátrica
onde os ataques de pânico transformam homens
em médicos que querem acalmar-me
cada amante que me toca – parece que és tu
os dedos deles – tu
bocas – tu
até já não serem eles
em cima de mim – és tu

e eu estou tão cansada


de fazer as coisas à tua maneira

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rupi kaur

– não está a resultar


passei anos a tentar perceber
como é que o podia ter impedido
mas o sol não consegue impedir a tempestade
a árvore não impede o machado
tenho de parar de me culpar por ter um buraco
do tamanho da tua virilidade no meu peito
é muito pesado carregar a tua culpa – vou pôr os pontos nos is
estou farta de decorar esta casa com a tua vergonha
como se fosse minha
é demasiado carregar com
o que as tuas mãos fizeram
não foram as minhas mãos

a verdade chega-me de repente – depois de anos de chuva


a verdade surge como um raio de sol
a entrar por uma janela aberta
leva muito tempo a chegar até aqui
mas a vida é feita de círculos que se fecham
é preciso uma pessoa destroçada para vir à procura
de sentido entre as minhas pernas
é preciso uma pessoa completa. inteira. perfeita
para sobreviver a isso
é preciso ser-se um monstro para andar a roubar almas
e é preciso ser-se um lutador para as reclamar de volta
esta casa foi aquilo com que vim ao mundo
foi a primeira casa
será a última casa
não a podes roubar
não há espaço para ti
nenhum tapete de boas-vindas

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não há quarto de hóspedes


vou abrir todas as janelas
deixar o ar entrar
pôr flores na jarra
em cima da mesa da cozinha
acender uma vela
encher a máquina de lavar louça com todos os meus pensamentos
até ficarem imaculados
esfregar a bancada da cozinha
e depois
vou para a banheira
lavar o ontem do meu cabelo
decorar o meu corpo com ouro
pôr música
recostar-me
com as pernas para cima
e aproveitar
esta típica tarde de quinta-feira

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quando a neve cai


tenho saudades da relva
quando a relva cresce
ando pela relva toda
quando as folhas mudam de cor
imploro pelas flores
quando as flores dão flor
apanho-as

– ingrata

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diz-lhes que
eu fui o lugar mais quente que conheceste
e que me tornaste fria

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em casa nessa noite


enchi a banheira com água a escaldar
temperei-a com a hortelã do jardim
duas colheres de óleo de amêndoa
um pouco de leite
e mel
uma pitada de sal
pétalas de rosas do jardim do vizinho
afundei-me na água
desesperada para tirar toda a sujidade
durante a primeira hora
tirei agulhas de pinheiro do meu cabelo
contei-as uma duas três
alinhei-as uma a uma deitadas de costas
durante a segunda hora
chorei
um uivo escapou de mim
quem diria que uma miúda se podia tornar um animal
durante a terceira hora
encontrei bocados dele em bocados de mim
o suor não era meu
o branco entre as minhas pernas
não era meu
os chupões
não eram meus
o cheiro
não era meu
o sangue
era meu
na quarta hora rezei

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rupi kaur

foi como se me tivesses atirado


para tão longe de mim
tenho tentado encontrar o caminho de volta desde então

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resumi o meu corpo a uma questão estética


esqueci-me do trabalho que ele teve para me manter viva
com cada pulsar e respirar
considerei-o um grande falhanço por não se parecer com
o delas
procurei um milagre por todo o lado
uma tonta por não perceber
que já vivia num

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a ironia da solidão
é que todos a sentimos
ao mesmo tempo

– juntos

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na minha adolescência era muito peluda


tinha membros finos revestidos de veludo
era a tradição lá no bairro
que as raparigas eu incluída
frequentassem os salões de cabeleireiro todas as semanas
geridos por mulheres
que eram da idade da minha mãe
tinham a pele da minha mãe
mas não se pareciam nada com a minha simples mãe
tinham pele morena com
cabelo amarelo destinado a peles brancas
madeixas como zebras
fendas no lugar de sobrancelhas
olhei para as minhas lagartas envergonhada
e desejei que fossem fininhas como as delas

sento-me timidamente na sala de espera improvisada


desejando que não apareça nenhuma amiga da escola
HVWiXPYtGHRGHEROO\ZRRGDSDVVDUQXPDSHTXHQD
televisão a um canto
há quem faça a depilação e quem pinte o cabelo

quando a mulher me chama


entro na sala
e faço conversa fiada
ela sai por um momento
enquanto dispo a parte de baixo
tiro as calças e as cuecas
deito-me na marquesa e espero
quando ela volta, põe as minhas pernas a postos
como uma borboleta aberta
as solas dos pés juntas

80
rupi kaur

os joelhos a apontar para direções diferentes


primeiro a toalhita desinfetante
o gel frio
como vai a escola e o que estudas pergunta ela
liga o laser
encosta a cabeça da máquina no meu osso púbico
e sem mais nem menos começa
os pelos púbicos à volta
do meu clítoris começam a arder
a cada golpe
contraio-me
a tremer de dor

porque faço isto


porque castigo o meu corpo
por ser exatamente aquilo que tem de ser
paro a meio caminho arrependida
quando começo a pensar nele
e em como fico com vergonha de o mostrar
a não ser que esteja limpo

mordo os lábios
e pergunto se está quase a acabar

– salão de estética

81
RVROHDVVXDVÀRUHV

temos estado a morrer


desde que aqui chegámos
e nos esquecemos de apreciar a paisagem

– vive plenamente

82
rupi kaur

eras meu
e a minha vida era cheia
já não és meu
e a minha vida
é cheia

83
RVROHDVVXDVÀRUHV

os meus olhos
fazem de espelho
qualquer superfície refletora por onde passem
à espera de ver alguém belo a olhar para eles
os meus ouvidos pedem elogios
mas por mais longe que procurem
nada me satisfaz
vou a clínicas e a lojas
à procura de poções de beleza e novas técnicas
já tentei lasers
já tentei tratamentos faciais
já tentei micropigmentação e cremes caros
e por um minuto de esperança preenchem-me
fazem-me brilhar de orelha a orelha
mas assim que me sinto bonita
a magia desaparece de repente
precisamente onde a devia encontrar
estou disposta a pagar qualquer preço
por uma beleza que faça virar cabeças
a toda a hora noite e dia

– a busca interminável

84
rupi kaur

este sítio provoca em mim


o tipo de exaustão que não
tem nada a ver com falta de sono
e tudo a ver com
as pessoas à minha volta

– introvertido

85
RVROHDVVXDVÀRUHV

não penses que vales alguma coisa


se achares que valho menos
só porque me tocaste
como se a tuas mãos no meu corpo
te fizessem a ti maior
e a mim me reduzissem a nada

– o valor não é uma coisa transmissível

86
rupi kaur

não acordas simplesmente borboleta

– crescer leva tempo

87
RVROHDVVXDVÀRUHV

estou a passar um mau bocado


a comparar-me com outras pessoas
estico-me para ficar mais magra e me parecer com elas
a gozar com a minha cara como o meu pai costuma fazer
digo que é feia
a matar à fome esta papada antes que
se derreta nos meus ombros como cera
a tentar disfarçar as bolsas debaixo dos olhos
que carregam o peso da violação
a fazer bookmarks de cirurgias plásticas para o meu nariz
há tanta coisa que precisa de ser retocada
podem dizer-me qual a direção certa
quero despir este corpo
qual o caminho de volta ao útero

88
rupi kaur

como o arco-íris
depois da chuva
a alegria revelar-se-á
depois da mágoa

89
RVROHDVVXDVÀRUHV

um não era um palavrão na minha casa


um não era recebido à chicotada
apagado do nosso vocabulário
espancado nas nossas costas
até nos portarmos bem
obedientes a dizer que sim a tudo
quando se montava em mim
todas as partes do meu corpo o queriam rejeitar
mas não podia dizer que não se queria salvar a minha vida
quando tentei gritar
tudo o que saiu foi silêncio
ouvi um não a bater com os punhos
no teto da minha boca
implorando para o deixar sair
mas não tinha posto o sinal de saída
nem construído uma escada de emergência
não havia nenhum alçapão por onde o não pudesse escapar
queria fazer uma pergunta a todos os tutores
de que me servia ser obediente
quando havia mãos
que não eram as minhas dentro de mim

– como posso verbalizar o consentimento em adulta


se nunca mo ensinaram a fazer em criança

90
rupi kaur

apesar de saberem
que não vão durar muito
mesmo assim decidem viver
a sua vida esplendorosa

– girassóis

91
RVROHDVVXDVÀRUHV

quando a vires
diz-lhe que não há um dia que passe
em que eu não pense nela
aquela miúda que acha que tu és
tudo aquilo que ela sempre desejou
quando a empurras contra a parede
e ela chora
diz-lhe que choro com ela
o barulho da parede de gesso a partir-se aos bocados
quando é espancada com a cabeça dela
também vive nos meus ouvidos
diz-lhe para correr para mim
já tirei a porta das dobradiças
abri todas as janelas
lá dentro há um banho quente já preparado
ela não precisa desse género de amor que lhe dás
eu sou a prova de que ela se vai libertar
e encontrar o caminho de volta para ela
se eu consegui sobreviver a ti
também ela há de conseguir

92
rupi kaur

há partes do meu corpo que ainda doem


por causa da primeira vez em que foram tocadas

93
RVROHDVVXDVÀRUHV

a arte de crescer

até aos doze anos sentia-me muito bem


depois o meu corpo começou a amadurecer como a fruta
e de repente
os homens começaram a olhar para as minhas ancas novas
com saliva na boca
os rapazes já não queriam brincar à apanhada no recreio
só queriam tocar as partes novas do meu corpo
partes que eu não conhecia
partes que não sabia como vestir
que não sabia como usar
e que tentava esconder dentro das costelas

mamas
diziam
e eu odiava essa palavra
odiava ter vergonha de dizer essa palavra
que apesar de se referir ao meu corpo
não me pertencia
era deles
e eles repetiam-na como
se estivessem a meditar sobre ela
mamas
disse ele
deixa-me ver as tuas
não há nada para ver aqui a não ser a culpa e a vergonha
tentei apodrecer na terra que pisava com os pés
mas continuo a um palmo de distância
dos seus dedos obcecados
e quando ele investe para se babar nas minhas meias luas

94
rupi kaur

mordo-lhe o braço e decido que odeio este corpo


devo ter feito alguma coisa de horrível para o merecer

quando chego a casa digo à minha mãe


os homens lá fora andam esfomeados
ela diz-me
que não devo vestir-me a mostrar o peito
que os rapazes ficam com fome quando veem fruta
diz que devo sentar-me com as pernas cruzadas
como uma senhora
ou os homens ficam zangados e discutem
disse que eu podia evitar esses problemas
se aprendesse a comportar-me como uma senhora
mas o problema é que
isso não faz sentido nenhum
não consigo perceber como é que
tenho de convencer metade do mundo
de que o meu corpo não é a cama de ninguém
tenho de andar a aprender as consequências de ser mulher
em vez de aprender ciências e matemática
gosto de fazer a roda e de ginástica por isso não me imagino
a andar por aí com as minhas coxas apertadas
como se escondessem um segredo
como se ao aceitar as partes do meu corpo
estivesse a incitar na cabeça deles pensamentos de lascívia
não me vou sujeitar à ideologia deles
porque chamar puta a uma mulher é abuso cultural
elogiar a castidade é abuso cultural
não sou um manequim na montra
da tua loja preferida
não me podes vestir nem

95
RVROHDVVXDVÀRUHV

mandar-me fora depois de usada


não és um canibal
as tuas ações não são da minha responsabilidade
tens de te controlar a ti próprio

da próxima vez que for para a escola


e os rapazes se meterem comigo por causa do meu rabo
mando-os ao chão
piso-lhes o pescoço
e digo-lhes em provocação
mamas
só de imaginar a cara deles

96
rupi kaur

quando tudo desaba à tua volta


não faz mal deixares que os outros
te ajudem a apanhar os cacos
se podemos fazer parte da tua felicidade
quando tudo te corre bem
somos perfeitamente capazes
de estar a teu lado na tua dor

– comunidade

97
RVROHDVVXDVÀRUHV

não choro
porque sou infeliz
choro porque tenho tudo
e no entanto sou infeliz

98
rupi kaur

deixa ir
deixa partir
deixa que aconteça o que acontecer
nada
neste mundo
te foi prometido
nem nada te pertence

– só te tens a ti mesmo

99
RVROHDVVXDVÀRUHV

deseja um amor puro e uma paz suave


a quem
não foi gentil contigo
e segue o teu caminho

– ambos se sentirão libertos

100
rupi kaur

sim
é possível
odiar e amar alguém
ao mesmo tempo
faço isso todos os dias
a mim própria

101
RVROHDVVXDVÀRUHV

algures no caminho
perdi o amor-próprio
e tornei-me o meu pior inimigo
pensei que já tinha visto o demónio
nos tios que nos tocavam quando éramos crianças
nos gangues que pegaram fogo à nossa cidade
mas nunca vi ninguém com tanta fome
da minha carne como eu
arranquei a minha pele só para me sentir viva
vestia-a do avesso
deitei-lhe sal por cima só para me castigar
a agitação bloqueou os meus nervos
o meu sangue coalhou
tentei até enterrar-me viva
mas a terra mostrou repulsa
já apodreceste disse
não há nada que eu possa fazer

– ódio-próprio

102
rupi kaur

a maneira como falas de ti


a maneira como te menosprezas
é uma forma de abuso

– automutilação

103
RVROHDVVXDVÀRUHV

quando cheguei ao fundo do poço


que há depois do fundo do poço
e não apareceu nenhuma corda
nem nenhuma mão estendida
pensei
e se nada me quiser
porque eu não me quero

– sou ao mesmo tempo o veneno e o antídoto

104
rupi kaur

primeiro peguei nas minhas palavras


nos não posso. não faço. não presto.
alinhei-as a todas e fuzilei-as
depois passei aos meus pensamentos
invisíveis e espalhados por toda a parte
não havia tempo para os alinhar um a um
tive de os lavar muito bem
do meu cabelo teci um pano de linho
ensopei-o em água de limão e menta
carreguei-o na minha boca enquanto trepava
pela minha trança até à minha cabeça
de joelhos no chão comecei a esfregar a minha mente
levei vinte e um dias
os meus joelhos ficaram esfolados
não me importei
não me deram o fôlego
que tenho nos pulmões para o sufocar
era capaz de esfregar o ódio
de mim mesma até se ver o osso
até aparecer o amor

– amor-próprio

105
RVROHDVVXDVÀRUHV

já passei por muito para me ir embora discretamente


que um meteoro me leve
chamem um trovão para ajudar
a minha morte será em grande
a terra abrirá fendas
o sol comer-se-á vivo

– o dia em que partir

106
rupi kaur

quero ir de lua-de-mel comigo

107
RVROHDVVXDVÀRUHV

se sou a relação mais longa


que tive na minha vida
não estará na altura de
alimentar a intimidade
e o amor
com a pessoa
com quem me deito na cama todas as noites

– aceitação

108
rupi kaur

há alguma coisa mais forte


que o coração humano
estilhaça-se vezes sem conta
e continua vivo

109
RVROHDVVXDVÀRUHV

acordei a pensar que o trabalho estava feito


que não tinha de praticar mais
que ingenuidade a minha pensar
que curar-me era assim tão fácil
quando não há fim à vista
nem linha de meta para cruzar
a cura é um trabalho de todos os dias

110
rupi kaur

tens tanto
mas queres sempre mais
para de ansiar pelas coisas que não tens
e olha para aquilo que tens

– onde vive a satisfação

111
RVROHDVVXDVÀRUHV

podes imitar uma luz como a minha


mas não consegues ser essa luz

112
rupi kaur

e aqui estás tu a viver


apesar de tudo

113
RVROHDVVXDVÀRUHV

esta é a receita da minha vida


disse a minha mãe
que me pegava ao colo enquanto eu chorava
pensa nas flores que tu plantas
todos os anos no jardim
elas ensinam-te
que também as pessoas
têm de murchar
cair
criar raízes
crescer
para poderem florir

114
rupi kaur

115
criar raízes
rupi kaur

eles não fazem ideia do que é


perder a casa correndo o risco
de nunca mais a encontrar
ter a vida inteira
dividida entre duas terras
e tornar-se a ponte entre dois países

– imigrante

119
RVROHDVVXDVÀRUHV

olha só para o que eles fizeram


queixou-se a terra para a lua
toda eu sou uma ferida

– verde e azul

120
rupi kaur

és uma ferida aberta


e vivemos numa
poça de sangue teu

– campo de refugiados

121
RVROHDVVXDVÀRUHV

quando se tratava de ouvir


a minha mãe ensinou-me o silêncio
se confundires a tua voz com a deles
como é que os vais conseguir ouvir perguntou-me

quando se tratava de falar


disse-me para o fazer com integridade
cada palavra que dizes
é da tua responsabilidade

quando se tratava de ser


disse-me sê doce e dura ao mesmo tempo
tens de ser vulnerável para viveres plenamente
mas áspera o suficiente para sobreviveres a tudo

quando se tratava de opções


pediu-me que me sentisse agradecida
pelas oportunidades que eu tinha tido
e que ela nunca teve o privilégio de ter

– lições da mamã

122
rupi kaur

deixar o seu país


não foi fácil para a minha mãe
ainda hoje a apanho à procura dele
nos filmes de língua estrangeira
e nos supermercados de comida internacional

123
RVROHDVVXDVÀRUHV

pergunto-me onde o terá ela escondido. ao irmão, que


morreu ainda mal fez um ano. ali sentada vestida de seda
vermelha e dourada no dia do seu casamento. disse-me
que era o dia mais triste da vida dela. ainda não tinha
feito o luto completo, um ano não chegava. era impossível
fazer-se o luto assim tão rápido. o tempo passou a correr,
um piscar de olhos. ainda não tinha assimilado a notícia
da sua morte, já o cenário estava montado. os convidados
começavam a chegar. a conversa de fundo. a pressa. tudo
a fazia lembrar o funeral. parecia que o corpo dele tinha
acabado de ser levado para a cremação quando chegou o
meu pai mais a família para a cerimónia de casamento.

– amrik singh (1959-1990)

124
rupi kaur

lamento que este mundo


não tenha cuidado bem de ti
que a tua viagem para casa
seja suave e pacífica

– descansa em paz

125
RVROHDVVXDVÀRUHV

as tuas pernas arqueiam como as de um cavalo cansado


à procura de um abrigo
instiga-as com as ancas e corre mais depressa
não tens o privilégio de poder descansar
num país que te quer cuspir
não podes parar
tens de continuar
e continuar e continuar
até chegares à água
dá tudo o que tens em teu nome
por um bilhete para ires no barco
ao lado de centenas de outros como tu
como sardinhas em lata
dizes à mulher a teu lado
este barco não é suficientemente forte
para carregar tanta dor até terra
e que importa isso
se morrer afogado é melhor do que ficar aqui responde ela
quantas pessoas esta água já engoliu
não passa de um imenso cemitério
corpos enterrados sem um país
talvez o mar seja o teu país
talvez o barco vá ao fundo
porque é o único sítio que te aceita

– barco

126
rupi kaur

e se chegarmos à porta
e nos baterem com ela na cara perguntei

que mal nos podem fazer umas portas disse ela


se escapámos da boca do lobo

127
RVROHDVVXDVÀRUHV

as fronteiras
são feitas pelo homem
só nos separam fisicamente
não deixem que nos virem
uns contra os outros

– não somos inimigos

128
rupi kaur

depois da operação
diz-me
que estranho
terem acabado de me tirar
a primeira casa dos meus filhos

– histerectomia fevereiro 2016

129
RVROHDVVXDVÀRUHV

hoje bombas destruíram cidades inteiras


refugiados entraram em barcos sabendo
que talvez não voltassem a pisar terra firme
a polícia matou pessoas por causa da cor da pele
o mês passado visitei um orfanato
de bebés abandonados na rua como lixo
depois no hospital vi uma mãe
perder o filho e a cabeça
algures morreu uma pessoa amada
como posso recusar-me a acreditar
que a minha vida não é um autêntico milagre
se no meio de todo este caos
me deram esta vida

– circunstâncias

130
rupi kaur

talvez sejamos todos emigrantes


sempre a mudar de uma casa para outra
primeiro deixamos o útero em troca de ar
depois trocamos os subúrbios pelo centro sujo da cidade
na esperança de uma vida melhor
e depois há uns que deixam países inteiros, só isso

131
RVROHDVVXDVÀRUHV

o meu deus
não está parado à espera numa igreja
nem sentado ao cimo das escadarias de um templo
o meu deus
é o fôlego do refugiado quando vai a fugir
vive na barriga da criança faminta
no coração do protesto
o meu deus não mora entre páginas
escritas por homens santos
o meu deus
vive entres as coxas suadas
das mulheres que se vendem por dinheiro
a última vez que foi visto, lavava os pés de um sem-abrigo
o meu deus
não é tão inacessível
como eles queriam que pensássemos
o meu deus bate dentro de nós infinitamente

132
rupi kaur

conselhos que teria dado à minha mãe


no dia do casamento dela

1. podes dizer que não

2. há muitos anos o teu sogro espancou a linguagem


do amor
nas costas do teu marido
ele não saberá como to dizer
mas as ações dele hão de mostrar que te ama

3. vai com ele


quando ele entrar no teu corpo e chegar àquele sítio
o sexo não é nojento

4. por mais que a família dele fale no assunto


não abortes só porque sou uma menina
tranca a família dele numa sala e engole a chave
ele não te vai odiar

5. leva os teus diários e os teus desenhos


quando atravessares o oceano
assim lembrar-te-ás de quem és
quando te sentires perdida no meio das cidades novas
e os teus filhos vão ter consciência
de que já tiveste uma vida antes de eles nascerem

6. quando os maridos estiverem fora


a trabalhar nas fábricas
faz amizade com as outras mulheres
que estão sozinhas nos prédios
essa solidão arrasa as pessoas
vão precisar umas das outras para aguentarem

133
RVROHDVVXDVÀRUHV

7. o teu marido e os teus filhos hão de comer do teu prato


hão de matar-te mentalmente e emocionalmente à fome
e isso não está certo
não nos deixes convencer-te
de que tens de te sacrificar
para mostrares que nos amas

8. quando a tua mãe morrer


apanha o avião para ires ao funeral dela
o dinheiro vai e vem
uma mãe é uma vez na vida

9. podes gastar algum dinheiro num café


eu sei que houve um tempo em que
não podíamos dar-nos a esse luxo
mas agora estamos bem. respira.

10. não sabes falar bem inglês


nem percebes de computadores ou telemóveis
fomos nós que causámos isso. a culpa não é tua.
não és menos do que as outras mães
que exibem os seus telemóveis e roupas caras
confinámos-te às quatro paredes da nossa casa
e aproveitámo-nos de ti até ao tutano
há anos que não és dona de ti mesma

11. não tinhas nenhum manual que te ensinasse


a ser a primeira mulher da tua linhagem
a criar uma família sozinha numa terra estranha

134
rupi kaur

12. és a pessoa que mais admiro no mundo

13. quando estou quase a ir-me abaixo


penso na tua força
e torno-me rija

14. acho que fazes magia

15. quero encher de leveza o resto da tua vida

16. és a maior de todas as heroínas


és deus entre todos os deuses

135
RVROHDVVXDVÀRUHV

tive um sonho
vi a minha mãe
com o amor da sua vida
e não havia filhos
nunca a tinha visto tão feliz

– e se

136
rupi kaur

dividiste o mundo aos bocados


e chamaste-lhes países
declaraste-te dono
de coisas que nunca te pertenceram
e deixaste os outros sem nada

– colonizar

137
RVROHDVVXDVÀRUHV

os meus pais nunca se sentaram connosco a contar


histórias de quando eram jovens. havia sempre um que
estava a trabalhar. o outro muito cansado. talvez ser
imigrante transforme as pessoas nisto.

o terreno frio do norte engoliu-os. entregaram o corpo ao


trabalho e pagaram a cidadania com sangue e suor. talvez
o peso do novo mundo fosse demasiado. e o sofrimento e
tristeza do velho ficassem melhor enterrados.

mas tenho pena de não o ter desenterrado. quem me dera


ter aberto o silêncio deles como se faz a um envelope
fechado. quem me dera ter encontrado uma pequena
abertura na pontinha. ter enfiado lá um dedo e com
cuidado ir rasgando até abrir o envelope. tiveram um vida
inteira antes de mim em relação à qual sou uma estranha.
seria um grande desgosto se se fossem embora desta terra
antes de eu os poder conhecer.

138
rupi kaur

a minha voz
é o fruto
de dois países que chocaram um com o outro
qual é o mal
de o inglês
e a minha língua materna
terem feito amor
a minha voz
é o pai das suas palavras
e a mãe da sua pronúncia
qual é o mal
de a minha boca carregar dois mundos

– pronúncia

139
RVROHDVVXDVÀRUHV

durante anos viveram separados por mares


sem nada a não ser a fotografia de cada um deles
mais pequena do que a dos passaportes
a dela numa medalha dourada
a dele à solta dentro da carteira
no final do dia
quando o mundo deles podia finalmente descansar
estudá-las era a única intimidade

era um tempo em que não existiam os computadores


em que as famílias nessa parte do mundo
nunca tinham visto um telefone
ou posto os olhos de amêndoa numa televisão a cores
muito antes de ti e de mim

quando as rodas do avião tocaram no asfalto


perguntou-se se seria ali
se teria apanhado o voo certo
devia ter perguntado à hospedeira duas vezes
como o marido lhe aconselhou

a caminho de recolher as bagagens


o coração batia tão depressa
que teve medo que ele caísse
os olhos disparavam em todas as direções
à procura do que fazer a seguir
de repente
ali mesmo
em carne e osso
ali estava ele
não era uma miragem – era um homem
primeiro sentiu alívio

140
rupi kaur

depois desorientação
anos a imaginar aquele momento
a ensaiar as palavras
mas a boca parece que se esqueceu de tudo
sentiu um pontapé no estômago
quando viu as sombras que lhe cercavam os olhos
e os ombros que carregavam um peso que não se via
parecia que lhe tinham sugado a vida

onde estava a pessoa com quem tinha casado


pensou
pegando na medalha dourada
que tinha a fotografia do homem
com quem o marido já não se parecia nada

– o novo mundo sugou-o

141
RVROHDVVXDVÀRUHV

e se
não houver tempo suficiente
para lhe dar tudo o que ela merece
acham
que se eu pedir aos céus com muita força
a alma da minha mãe
podia voltar para mim como minha filha
para eu lhe poder dar
o conforto que ela me deu
toda a minha vida

142
rupi kaur

quero voltar atrás no tempo e sentar-me ao lado dela.


fazer um documentário sobre ela para os meus olhos
poderem passar o resto da vida a assistir a um milagre.
sobre aquela em cuja vida antes de mim nunca penso.
quero saber que coisas a faziam rir quando estava com
os amigos. na aldeia com casas feitas de barro e tijolo.
rodeada por hectares de planta da mostarda e açúcar
de cana. quero sentar-me ao lado da versão adolescente
da minha mãe. perguntar-lhe que sonhos tinha. ser a
trança dela. o lápis negro que lhe acaricia as pálpebras.
a farinha acumulada nas pontas dos dedos. uma página
do seu caderno de escola. ou até um fio do seu vestido de
algodão seria a melhor das prendas.

– testemunha de um milagre

143
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1790
ele tira menina acabada de nascer dos braços da esposa
leva-a até ao quarto ao lado
segura-lhe a cabeça com a mão esquerda
e gentilmente estala-lhe o pescoço com a direita

1890
uma toalha molhada para a embrulhar
em grãos de arroz e
areia no nariz
uma mãe conta o truque à nora
fui obrigada a isso diz ela
tal como a minha mãe
e a mãe dela

1990
uma notícia num jornal diz
foram encontradas cem recém-nascidas enterradas
nas traseiras da casa de um médico numa aldeia vizinha
a esposa fica a pensar se terá sido para ali que ele a levou
imagina a sua filha a tornar-se a terra
que aduba as raízes que alimentam este país

1998
a oceanos de distância numa cave de toronto
um médico dá assistência a um aborto ilegal
é uma mulher indiana que já tem uma filha
uma já é um fardo pesado diz ela

144
rupi kaur

2006
é mais fácil do que pensas dizem as minhas tias à minha mãe
elas conhecem uma família
que já o fez três vezes
conhecem uma clínica. se ela quiser arranjam-lhe
o número de telefone. o médico até receita comprimidos
para nascerem rapazes.
já trataram uma mulher que mora no fim da rua dizem
e agora ela tem três rapazes

2012
doze hospitais na área de toronto
só revelam o sexo do bebé às famílias
às 30 semanas de gravidez
os doze hospitais pertencem a zonas onde há
muita imigração do sul asiático

– infanticídio feminino / feticídio feminino

145
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lembra-te do corpo
da tua comunidade
respira as pessoas
que te teceram
foste tu que te tornaste tu próprio
mas os que vieram antes de ti
fazem parte da tua textura

– honrar as raízes

146
rupi kaur

quando me enterraram viva


escavei a terra com as mãos
até encontrar uma saída
uivei tão alto
que o solo se levantou de medo
a terra começou a levitar
a minha vida toda tem sido uma insurreição
enterro atrás de enterro

– também hei de encontrar a minha saída de ti

147
RVROHDVVXDVÀRUHV

a minha mãe sacrificou os sonhos dela


para eu poder sonhar

148
rupi kaur

inglês macarrónico

penso em como o meu pai


tirou a família da pobreza
sem saber o que é uma vogal
e a minha mãe criou quatro filhos
sem saber construir
uma frase decente em inglês
um casal desconcertante
que aterrou no novo mundo cheio de esperanças que
lhes deixaram o gosto amargo da rejeição na boca
sem família
sem amigos
só marido e mulher
duas licenciaturas que não valiam de nada
uma língua mãe agora derrotada
uma barriga inchada com um bebé
um pai preocupado com trabalho e rendas para pagar
porque independentemente de tudo o resto o bebé vinha a
caminho
e por uma fração de segundo perguntaram-se
valeu a pena investir todo o dinheiro que tínhamos
no sonho de um país
que nos engole vivos

o papá olha para os olhos da mulher


e vê a solidão a viver no sítio onde havia uma íris
quer dar-lhe uma casa num país que a vê
com a palavra visitante presa na língua
no dia do casamento deles

149
RVROHDVVXDVÀRUHV

abandonou um aldeia inteira para se tornar a sua mulher


e agora abandonou um país inteiro para ser uma guerreira
e quando o inverno chegou
só tinham o calor dos seus corpos
para afastar o frio

como dois parêntesis olharam-se de frente


para abraçarem juntinho a eles
as partes que lhe eram mais queridas – os filhos
de uma mala de roupa
fizeram uma vida com ordenados regulares
para garantir que os filhos dos imigrantes
não os odiariam por serem filhos de imigrantes
trabalharam ao máximo
pode ver-se pelas mãos
os olhos imploram por um sono descansado
mas a nossa boca implorava para ser alimentada
e isso é a coisa mas artística que vi na vida
é poesia para estes ouvidos
que nunca ouviram como soa a paixão
e a minha boca fica cheia de likes e de hummms quando
vejo a obra-prima que construíram
porque não há palavras em inglês
que possam expressar essa beleza
não consigo resumir a sua existência em vinte e seis letras
e chamar-lhe uma descrição
tentei uma vez
mas os adjetivos de que precisava
nem sequer existem
por isso acabei com páginas e páginas
cheias de palavras seguidas de vírgulas e

150
rupi kaur

mais vírgulas
para no fim perceber que há coisas
no mundo tão infinitas
que nunca podem ter um ponto final

por isso como te atreves a gozar com a tua mãe


quando ela abre a boca e
só sai um inglês macarrónico
não te envergonhes do facto
de ela se ter dividido em países para estar aqui
para que não tivesses de atravessar uma fronteira
a pronúncia dela é espessa como o mel
guarda-a com a tua vida
é a única lembrança que lhe resta da sua casa
não pises tamanha riqueza
pendura-a antes nas paredes dos museus
ao lado do dali e do van gogh
a vida dela é brilhante e trágica
beija a sua doce face
ela sabe bem o que é
ter uma nação inteira a rir-se dela quando ela fala
ela é mais do que a nossa pontuação e língua
podemos saber pintar quadros e escrever histórias
mas ela construiu um mundo inteiro a partir dela própria

que tal para uma obra de arte

151
crescer
rupi kaur

no primeiro dia do amor


embrulhaste-me na palavra especial

155
RVROHDVVXDVÀRUHV

também te deves lembrar


de como a cidade dormia
quando ficámos acordados pela primeira vez
ainda não nos tínhamos tocado
mas conseguimos entrar e sair
de cada um de nós com as palavras
o corpo a zumbir de tanta eletricidade
capaz de gerar meio -sol
não bebemos nada nessa noite
mas eu estava inebriada
fui para casa e pensei
seremos almas gémeas

156
rupi kaur

sinto-me apreensiva
porque apaixonar-me por ti
significa desapaixonar-me por ele
não estava preparada para isso

– seguir em frente

157
RVROHDVVXDVÀRUHV

como posso dar as boas-vindas com gentileza


quando só pratiquei
abrir as pernas ao que é assustador
o que devo fazer contigo
se a ideia que tenho do amor é violência
mas tu és doce
se o teu conceito de paixão é o contato visual
mas o meu é raiva
como posso chamar a isto intimidade
se anseio pelo perigo das arestas vivas
mas as tuas arestas nem sequer são arestas
são aterragens suaves
como posso aprender
a aceitar um amor saudável
se só conheci a dor

158
rupi kaur

será bem-vindo
um companheiro
que seja meu igual

159
RVROHDVVXDVÀRUHV

não sintas culpa por começares de novo

160
rupi kaur

estar a meio do caminho é estranho


a fase de transição entre eles e o que vem a seguir
é um despertar entre o que vias
e o que vais começar a ver
é nessa altura que o charme deles se começa a dissipar
quando deixam de ser
o deus que fizeste deles
quando o pedestal que esculpiste
dos teus ossos e dentes já não lhes assentar
são desmascarados e tornam-se mortais outra vez

– a meio do caminho

161
RVROHDVVXDVÀRUHV

quando começas a gostar novamente de alguém


ris-te da indecisão do amor
lembras-te de quando tinhas a certeza
de que o último era o tal
e agora aqui estás tu
a redefinir o tal mais uma vez

– um amor novo é uma bênção

162
rupi kaur

não preciso do amor


que desgasta
quero alguém
que me dê energia

163
RVROHDVVXDVÀRUHV

estou a tentar
não te cobrar pelos erros dos outros
estou a tentar aprender
que não és responsável
pelas minhas feridas
como posso castigar-te
pelo que não fizeste
usas as minhas emoções
como uma farda engalanada
não és frio nem
selvagem nem esfomeado
és medicinal
tu não és eles

164
rupi kaur

ele faz tenção de me olhar nos olhos


enquanto pousa os dedos elétricos na minha pele
sabe-te bem pergunta
ganhando a minha atenção
responder está fora de questão
estremeço por antecipação
excitada e aterrorizada com o que aí vem
ele sorri
sabe que é isto o rosto da satisfação
sou um quadro elétrico
e ele os circuitos
as minhas ancas mexem-se com as dele – ritmo
a minha voz não é minha quando gemo – é música
como dedos nas cordas de um violino
ele acende-me e sou capaz de iluminar uma cidade
quando acabamos olho para ele
e digo-lhe
foi mágico

165
RVROHDVVXDVÀRUHV

quando entrei no café e te vi. o meu corpo não reagiu


como da primeira vez. estava à espera que o meu coração
me abandonasse. que as minhas pernas paralisassem. que
caísse no chão a chorar mal te visse. não aconteceu nada.
não senti nenhuma afinidade nem nenhuma agitação
dentro de mim quando nos olhámos fixamente. não
passavas de um tipo normal vestido como os outros a
beber o seu café normal. não tinhas nada de profundo.
devia ter mais confiança em mim. o meu corpo com
certeza viu-se livre de ti há muito tempo, deve ter-se
cansado de mim a portar-me como se tivesse perdido
a melhor coisa que me podia ter acontecido na vida.
deve ter sacudido as minhas inseguranças enquanto eu
estava ocupada a ter pena de mim própria. nesse dia,
não estava maquilhada. o meu cabelo desgrenhado.
estava vestida com a t-shirt velha do meu irmão e as
calças de pijama. e contudo senti-me uma mulher fatal
resplandecente. uma sereia. pus-me a dançar no carro no
regresso a casa. apesar de estarmos debaixo do mesmo teto
daquele café, eu estava a sistemas solares de ti.

166
rupi kaur

as laranjeiras recusavam-se a dar flor


à espera que déssemos flor primeiro
quando nos conhecemos
choraram tangerinas
não vês
que a terra esperou a vida inteira por isto

– celebração

167
RVROHDVVXDVÀRUHV

porque ando sempre às voltas indecisa


quero que me desejes
e quando me desejas
não consigo viver
assim tão exposta emocionalmente
porque dificulto tanto a vida a quem gosta de mim
como se tivesse de te poupar
aos fantasmas que trago escondidos no peito
dantes era mais aberta
no que se referia a assuntos destes meu amor

– se nos tivéssemos conhecido quando eu estava para aí virada

168
rupi kaur

já não conseguia aguentar mais


corri para o mar
a meio da noite
e confessei à água o amor que tinha por ti
assim que lhe disse
o sal do seu corpo transformou-se em açúcar

(ode à sohni mahival de sobha singh)


169
RVROHDVVXDVÀRUHV

eu digo talvez isto seja um erro. talvez precisemos de


mais do que só amor para que isto resulte.

pões os teus lábios nos meus. quando os nossos rostos


fervilham do êxtase dos beijos dizes diz-me que isto não
está certo. e por mais que eu gostasse de pensar com a
cabeça. o meu coração acelerado é tudo o que faz sentido.
é isto. aqui tenho a resposta que procuro. quando fico
sem ar. quando fico sem palavras. o meu silêncio. o não
conseguir falar significa que provocaste tanto friozinho
na minha barriga que mesmo que isto seja um erro. só
pode estar certo estar assim tão errada contigo.

170
rupi kaur

um
homem
que chora

– uma bênção

171
RVROHDVVXDVÀRUHV

se vou dividir a minha vida com alguém


seria uma disparaste se não me perguntasse
daqui a vinte anos
será que vou continuar
a rir-me com esta pessoa
ou estarei só distraída com o seu charme
vejo-nos a evoluir
e a sermos novas pessoas passados dez anos
ou o crescimento chegará a um impasse
não quero distrair-me
com aparências físicas ou com dinheiro
quero saber se conseguem suscitar
o melhor e o pior que há em mim
se lá no fundo temos os mesmos valores
se daqui a trinta anos
saltaremos para a cama como se tivéssemos vinte
consigo imaginar-nos velhinhos
a conquistar o mundo
como se tivéssemos sangue novo
a correr nas veias

– checklist

172
rupi kaur

porque gostas tanto dos girassóis pergunta ele

aponto para o campo de amarelo lá fora


os girassóis veneram o sol digo-lhe
só quando ele aparece é que florescem
quando o sol se vai
curvam a cabeça em tristeza
é isso que o sol faz àquelas flores
é isso que tu me fazes

– o sol e as suas flores

173
RVROHDVVXDVÀRUHV

às vezes
proíbo-me
de dizer as palavras em voz alta
como se por saírem da minha boca muitas vezes
as gastasse

– amo-te

174
rupi kaur

as conversas mais importantes


que teremos serão com os dedos
quando os teus tocarem nervosamente os meus
pela primeira vez ao jantar
encolher-se-ão de medo quando me perguntares
se podemos voltar a ver-nos para a semana
mas assim que eu disser que sim
soltar-se-ão relaxados
e quando se agarrarem entre eles
quando estivermos debaixo dos lençóis
os dois vamos fingir
que os nossos joelhos não tremem
quando me zangar
gesticularão ressentidos
mas quando a tremer perdoarem
saberás o que é um pedido de desculpa
e quando um de nós estiver a morrer
numa cama de hospital aos oitenta e cinco
os teus dedos vão agarrar os meus
e dizer coisas que as palavras não conseguem

– dedos

175
RVROHDVVXDVÀRUHV

esta manhã
disse às flores
o que faria por ti
e elas abriram-se

176
rupi kaur

não há nenhuma ponta


onde eu acabe e tu comeces
quando o teu corpo
está no meu corpo
somos uma pessoa

– sexo

177
RVROHDVVXDVÀRUHV

se eu fosse a pé ter contigo


levava oitocentas e vinte e seis horas
nos dias maus penso nisso
no que faria se viesse o apocalipse
e os aviões deixassem de voar
há tanto tempo para pensar
tanto espaço vazio ansioso por ser preenchido
mas nenhuma intimidade à vista para o preencher
é a mesma sensação de se ficar especado na estação de comboios
à espera e à espera
de alguém que traga escrito o teu nome
quando a lua nasce deste lado
mas o sol ainda arde descaradamente do teu
desabo ao perceber que até os nossos céus são diferentes
estamos juntos há tanto tempo
mas será que estamos mesmo juntos se
o teu toque não me agarrou o tempo suficiente
para ficar gravado na minha pele
esforço-me ao máximo para continuar a teu lado
mas sem ti aqui
tudo parece
na melhor das perspetivas
simplesmente sem graça

– à distância

178
rupi kaur

sou
feita de água
claro que me emociono facilmente

179
RVROHDVVXDVÀRUHV

devia saber à tua casa


o lugar onde ancoras a tua vida
onde sabes que podes descansar

– o tal

180
rupi kaur

a lua é responsável
por sublevar as marés
da águas calmas
amor
eu sou as águas calmas
e tu és a lua

181
RVROHDVVXDVÀRUHV

a pessoa certa não


se atravessa no teu caminho
dá-te espaço
para poderes avançar

182
rupi kaur

quando estás
cheio
e eu estou
cheia
somos dois sóis

183
RVROHDVVXDVÀRUHV

a tua voz faz em mim


o que o outono faz às árvores
ligas para dizer olá
e as minhas roupas caem naturalmente

184
rupi kaur

juntos somos uma conversa sem fim

185
RVROHDVVXDVÀRUHV

quando a morte
me segurar na mão
seguro-te com a outra
e prometo encontrar-te
em todas as vidas

– compromisso

186
rupi kaur

foi como se
tivessem enfiado cubos de gelo
por dentro da minha t-shirt

– orgasmo

187
RVROHDVVXDVÀRUHV


estiveste
dentro de mim

– outra vida

188
rupi kaur

deus deve ter-nos feito aos dois


da mesma massa
amassou-nos aos dois e estendeu-nos na forma
de repente deve ter percebido
que injusto era
pôr tanta magia numa só pessoa
e infelizmente dividiu a massa ao meio
senão como é que
quando me olho ao espelho
te vejo a ti
e quando respiras
os meus pulmões se enchem de ar
como é que nos acabámos de conhecer
mas toda a vida nos conhecemos
se não tivéssemos sido feitos como um

– as nossas almas são espelhos

189
RVROHDVVXDVÀRUHV

ser
duas pernas
num só corpo

– uma relação

190
rupi kaur

deves ter
um favo de mel
no lugar do coração
senão
como podia um homem
ser tão doce

191
RVROHDVVXDVÀRUHV

se fosse possível seres mais lindo ainda


o sol saía do seu lugar
e iria atrás de ti

– a conquista

192
rupi kaur

tem sido um dos melhores e mais difíceis anos da minha


vida. aprendi que tudo é efémero. momentos. sentimentos.
pessoas. flores. aprendi que o amor é dar. tudo. e deixar
doer. aprendi que a vulnerabilidade é sempre o melhor
caminho porque é tão fácil ser-se frio num mundo que
torna tão difícil ser-se doce. aprendi que tudo vem aos
pares. vida e morte. dor e alegria. sal e açúcar. eu e tu.
é este o equilíbrio do universo. foi o ano de sofrer tudo
mas viver tanto. de estranhos que se tornaram amigos.
de aprender que gelado de menta com raspas de chocolate
cura tudo. e que para apaziguar a dor não posso contar
sempre com os braços da minha mãe. temos de aprender
a focar-nos na energia calorosa. sempre. apostar a nossa
vida nisso e tornarmo-nos melhores amantes para o
mundo. porque se não conseguirmos ser amáveis uns para
os outros como conseguiremos ser amáveis para as partes
mais desesperadas que temos em nós.

193
florir
rupi kaur

o universo empenhou-se em ti
esculpiu-te para oferecer ao mundo
uma coisa diferente de tudo e todos
quando duvidas
de como foste criado
duvidas de uma energia maior do que nós os dois

– insubstituível

197
RVROHDVVXDVÀRUHV

quando a primeira mulher afastou as pernas


para deixar entrar o primeiro homem
que viu ele
quando ela o levou pelo corredor
até ao quarto sagrado
o que o esperava
o que o abalou tanto
que toda a confiança se perdeu
a partir daí
o primeiro homem
vigiou a primeira mulher
noite e dia
construiu uma jaula para a pôr lá
para que ela não voltasse a pecar
pegou fogo aos livros dela
chamou-a bruxa
e gritou puta
até que a noite veio
e os seus olhos cansados o traíram
e a primeira mulher reparou
quando sem querer ele adormeceu
o doce gemido
o tamborilar
um bater à porta das suas pernas
uma campainha
uma voz
um pulsar
a pedir-lhe que as abrisse
e lá foi a sua mão a correr

198
rupi kaur

até ao fim do corredor


até ao quarto sagrado
onde encontrou
deus
a varinha de condão
a língua da cobra
dentro dela com um sorriso nos lábios

– quando a primeira mulher fez magia com os seus dedos

199
RVROHDVVXDVÀRUHV

nunca mais
vou comparar o meu caminho com o dos outros

– não vou prejudicar a minha vida

200
rupi kaur

sou o resultado dos meus antepassados se terem juntado


e decidido que estas histórias tinham de ser contadas

201
RVROHDVVXDVÀRUHV

muitos tentaram
mas não conseguiram apanhar-me
sou o fantasma dos fantasmas
em toda a parte e em parte nenhuma
sou truques de magia
na magia da magia
que ninguém conseguiu desvendar
sou um mundo envolto em mundos
dobrado em sóis e luas
podes tentar mas
não vais conseguir pôr-me as mãos em cima

202
rupi kaur

quando nasci
a minha mãe disse
tens deus em ti
consegues senti-lo a dançar

(ode à dança de matisse)


203
RVROHDVVXDVÀRUHV

sendo pai de três filhas


teria sido normal
arranjar-nos casamento
foi esta a história
durante centenas de anos
das mulheres da minha cultura
mas em vez disso arranjou-nos os estudos
sabendo que nos iam libertar
num mundo que nos quer prender
ele assegurou-se de que aprenderíamos
a ser independentes

204
rupi kaur

há demasiadas bocas por aqui


mas nem todas merecem
aquilo que lhes ofereces
dá-te a umas poucas
e a essas
dá muito

– investe nas pessoas certas

205
RVROHDVVXDVÀRUHV

sou da terra
e à terra voltarei outra vez
a vida e a morte são velhas amigas
e eu sou a conversa que elas têm
sou a tagarelice pela noite fora
as gargalhadas e as lágrimas
o que há a recear
se sou a dádiva que dão uma à outra
este lugar nunca me pertenceu
sempre fui delas

206
rupi kaur

odiar
é uma coisa fácil e para preguiçosos
mas amar
requer força
toda a gente tem
mas nem todos estão
dispostos a praticar

207
RVROHDVVXDVÀRUHV

linda morena
o teu cabelo espesso é um casaco de visom que nem todos
podem comprar
linda morena
detestas a hiperpigmentação
mas a tua pele não consegue evitar
sorver todo o sol que conseguir
és um íman para a luz
monocelha – a ponte entre dois mundos
vagina – muito mais escura do que as outras
porque quer esconder uma mina de ouro
as olheiras tê-las-ás muito cedo
– aprecia as auréolas
morena linda
consegues arrancar deus das entranhas deles

208
rupi kaur

olha para o teu corpo


sussurra
não há casa melhor no mundo

– obrigada

209
RVROHDVVXDVÀRUHV

aprender a não invejar


as dádivas dos outros
a isso chama-se graça

210
rupi kaur

sou a primeira mulher da minha família a ter liberdade de


escolha. a poder construir o seu futuro como lhe apetecer.
a dizer o que pensa sempre que quiser. sem a sombra do
chicote. há centenas de primeiras vezes pelas quais estou
grata. que a minha mãe e a mãe dela e a mãe da mãe dela
não tiveram o privilégio de viver. que honra ser a primeira
mulher da família a saborear o gosto dos seus desejos.
não admira que esteja desejosa de me atestar nesta vida.
tenho gerações de estômagos para comer por eles. as
minhas avós devem estar a rebolar de tanto rir. à volta
de um forno de lenha a vida toda. a bebericar de copos
fumegantes de chá indiano. que loucura não deve ser para
elas ver uma de nós a viver tão corajosamente.

(ode à cena da aldeia de marita sher-gil)


211
RVROHDVVXDVÀRUHV

confia no teu corpo


reage ao bom e ao mau
melhor do que a tua mente

– está a falar contigo

212
rupi kaur

estou
no topo dos sacrifícios
de milhões de mulheres antes de mim
a pensar
que posso fazer
para tornar mais alta esta montanha
para que as mulheres depois de mim
possam ver mais longe

– herança

213
RVROHDVVXDVÀRUHV

quando me for daqui embora


enfeita o alpendre com grinaldas
como se fosse um casamento meu amor
tira as pessoas de casa
e dança nas ruas
quando a morte chegar
como uma noiva que percorre a passadeira
embrulha-me no vestido mais bonito
serve gelado com pétalas de rosa aos convidados
não há motivo para chorar meu amor
esperei a minha vida toda
que tamanha maravilha
levasse o meu espírito
quando eu for
celebra
pois eu passei por aqui
vivi
venci neste jogo chamado vida

– funeral

214
rupi kaur

foi quando parei de procurar pela minha casa nos outros


e construí os alicerces da minha dentro de mim
que percebi que as raízes mais íntimas
são as que existem entre uma mente e um corpo
que decidiram ser um todo

215
RVROHDVVXDVÀRUHV

que deus sou eu


se não encho o prato
daqueles que me alimentaram
e encho o prato de estranhos

– família

216
rupi kaur

mesmo que tenham sido separadas


vão acabar juntas
não se consegue separar quem se ama
por mais que
as arranque e depile
as minhas sobrancelhas
conseguem sempre
voltar uma para a outra

– monocelha

217
RVROHDVVXDVÀRUHV

uma criança e um ancião sentaram-se numa mesa à frente


um do outro
um copo de leite e um chá diante deles
o ancião perguntou à criança
se estava a gostar da vida que tinha
a criança disse que sim
que a vida era boa mas
estava desejosa de crescer
e de fazer as coisas que os crescidos podiam fazer
depois a criança fez a mesma pergunta ao ancião
também ele disse que a vida era boa
mas que dava tudo para voltar atrás
ao tempo em que se podia mexer e sonhar
os dois pegaram nos copos e deram um golo
mas o leite da criança tinha azedado
e o chá do ancião tinha amargado
havia lágrimas a fugir dos olhos deles

218
rupi kaur

no dia em que tiveres tudo


espero que te lembres
de quando não tinhas nada

219
RVROHDVVXDVÀRUHV

não é do género porno


nem o tipo que procuras
numa sexta à noite
ela não é pobre nem fácil nem fraca

– os problemas do papá
não são brincadeira nenhuma

220
rupi kaur

queria tanto ser um nenúfar

221
RVROHDVVXDVÀRUHV

mudei isto e aquilo


em busca da perfeição
mas quando finalmente me comecei a sentir bonita
a definição que eles tinham de beleza
mudou de repente

e se isto nunca acaba


e se ao tentar acompanhar
eu perder os atributos com que nasci
em troca de uma beleza tão insegura
que não consegue nem confiar nela própria

– as mentiras que nos vendem

222
rupi kaur

não queres que vejam


o sangue e o leite
como se o útero e o peito
nunca te tivessem alimentado

223
RVROHDVVXDVÀRUHV

uma indústria de biliões colapsaria


se acreditássemos que já somos bonitas

224
rupi kaur

o conceito de beleza que promovem


é fabricado
eu não sou

– humana

225
RVROHDVVXDVÀRUHV

como é que afasto esta inveja


quando vejo que a vida te corre bem
irmã como é que consigo gostar de mim o suficiente
para saber que o teu sucesso não é o meu fracasso

– não competimos uma contra a outra

226
rupi kaur

é uma bênção
ser da cor da terra
sabes quantas vezes
as flores me confundem com a sua casa

227
RVROHDVVXDVÀRUHV

precisamos de mais amor


não dos homens
mas de nós próprias
e de umas das outras

– remédio

228
rupi kaur

és um espelho
se continuas a matar-te fome de amor
só irás conhecer pessoas que também
te vão matar à fome de amor
se te encheres de amor
o universo dar-te-á
os que te vão amar também

– contas simples

229
RVROHDVVXDVÀRUHV

por mais roupa


ou menos roupa
que ela tenha vestida
não tem nada a ver com o livre que é

– tapada/destapada

230
rupi kaur

há montanhas a crescer
debaixo dos nossos pés
que não podem ser detidas
tudo aquilo por que passámos
preparou-nos para isto
tragam os vossos martelos e punhos
temos muitos preconceitos para derrubar

– vamos acabar com os preconceitos

231
RVROHDVVXDVÀRUHV

não é o sangue que faz de ti minha irmã


é compreenderes o meu coração
como se o carregasses
no teu corpo

232
rupi kaur

qual é a maior lição que uma mulher deve aprender

que desde o primeiro dia


já tinha tudo o que precisava dentro dela
o mundo é que tentou convencê-la do contrário

233
RVROHDVVXDVÀRUHV

convenceram-me
de que só tinha mais uns anos pela frente
antes de ser trocada por uma rapariga mais nova
como se os homens ganhassem energia com a idade
e as mulheres se tornassem insignificantes
podem ficar com as mentiras deles
porque ainda agora comecei
parece que acabei de sair do útero
os meus vintes são o aquecimento
para aquilo que realmente vou fazer
espera até eu chegar aos trintas
verás uma bela exibição
da terrível. indomável. mulher que há em mim.
como me posso ir embora se a festa ainda nem começou
os ensaios começam aos quarenta
fico mais madura com a idade
não tenho prazo de validade
e agora
o grande evento
as cortinas abrem-se os cinquenta
o espetáculo vai começar

– intemporal

234
rupi kaur

para te curares
tens de
ir ao fundo
da ferida
e beijá-la até ao cimo

235
RVROHDVVXDVÀRUHV

atiraram-nos para um buraco


para acabarmos umas com as outras
para que eles não tivessem de o fazer
mataram-nos à fome de espaço tanto tempo
que tínhamos de nos comer umas às outras
se queríamos ficar vivas
olha para cima olha para cima
para os apanhares a olhar para baixo para nós
como podemos competir umas com as outras
quando o verdadeiro monstro é tão grande
que não o podemos derrubar sozinhas

236
rupi kaur

quando a minha filha estiver na minha barriga


vou falar com ela
como se ela já tivesse mudado o mundo
sairá de mim por uma passadeira vermelha
já preparada e a saber
que é capaz de fazer
tudo o que decidir que quer fazer

(ode a uma pequena viagem e adeus de raymond douillet)

237
RVROHDVVXDVÀRUHV

agora
não é altura
de ficarmos caladas
nem de vos dar espaço a vocês
quando não tivemos direito a espaço nenhum
agora
é a nossa hora
de denunciarmos
de falarmos tão alto quanto for preciso
até nos ouvirem

238
rupi kaur

a representação
é vital
de outra forma a borboleta
rodeada de traças
incapaz de se ver a ela própria
continuará a tentar ser como as traças

– representação

239
RVROHDVVXDVÀRUHV

aceita o elogio
não fujas com vergonha
de mais uma coisa que te pertence

240
rupi kaur

o nosso trabalho deverá preparar


as gerações seguintes de mulheres
para que cheguem mais longe do que nós em todas as áreas
este é o legado que deixaremos

– progresso

241
RVROHDVVXDVÀRUHV

o caminho para mudar o mundo


é sem fim

– mantém o passo

242
rupi kaur

a necessidade de te proteger levou a melhor


o meu amor por ti é tão grande
que não consigo ficar calada enquanto choras
olha como me ergo para chupar o veneno do teu corpo
resistirei à tentação
dos meus pés cansados
e continuarei a marcha
com o amanhã numa mão
e um punho na outra
conduzir-te-ei à liberdade

– carta de amor ao mundo

243
RVROHDVVXDVÀRUHV

alguma vez os teus olhos viram um monstro como eu


tenho a coluna de uma amoreira
o pescoço de um girassol
às vezes sou o deserto
outras a floresta tropical
mas sempre a natureza selvagem
a minha barriga transborda a cintura das minhas calças
cada fio de cabelo encrespado como uma linha da vida
levei muito tempo a tornar-me
esta doce rebelião
dantes recusava-me a regar as minhas raízes
mas depois percebi
se sou a única que posso ser
o deserto selvagem
então que seja o deserto selvagem
o tronco da árvore não pode tornar-se ramo
a selva não pode ser jardim
então porque haveria eu de o ser

– é tudo tão pleno aqui dentro de mim

244
rupi kaur

houve quem tentasse


mas não conseguiu perceber a diferença
entre uma calêndula e a minha pele
ambas são laranja sol
cegando os que não aprenderam a amar a luz

245
RVROHDVVXDVÀRUHV

se nunca ficaste
do lado dos oprimidos
ainda vais a tempo

– incentiva-os

246
rupi kaur

o ano está feito. espalhei no chão da minha sala os


trezentos e sessenta e cinco dias que passaram.

este é o mês em que decidi largar tudo o que não estivesse


profundamente ligado aos meus sonhos. o dia em que
recusei ser vítima da autocomiseração. eis a semana em
que dormi no jardim. a primavera em que torci o pescoço
à baixa autoestima. desisti da tua simpatia. mandei fora
o calendário. a semana em que dancei tanto que o meu
coração aprendeu novamente a flutuar sobre a água.
o verão em que tirei todos os espelhos das paredes. já não
precisava de me ver para ser vista. desembaracei todo o
peso do meu cabelo.

dobro os dias bons e ponho-os no meu bolso de trás para


ficarem bem guardados. acendo o fósforo. queimo o
desnecessário. a luz do fogo aquece os meus pés. sirvo-me
de um copo de água morna para me limpar para janeiro. aí
vou eu. mais forte mais sábia em direção ao que é novo.

247
RVROHDVVXDVÀRUHV

não tens
de te preocupar
com mais nada
o sol e as suas flores estão aqui.

248
rupi kaur

249
RVROHDVVXDVÀRUHV

e depois há dias em que o simples ato de respirar


nos deixa exaustos. parece mais fácil desistir desta
vida. a ideia de desaparecer dá-nos paz. durante
muito tempo senti-me perdida num lugar onde não
havia sol. onde não cresciam flores. mas de vez em
quando da escuridão saía alguma coisa de que eu
gostava e que me trazia de volta à vida. olhar para um
céu estrelado. a leveza de estar às gargalhadas com
amigos de longa data. uma leitora que me disse que os
meus poemas lhe tinham salvado a vida. e contudo ali
estava eu a lutar para salvar a minha. meus amores.
viver é difícil. é difícil para toda a gente. e é nesse
momento em que viver é tão difícil. que temos de
resistir à tentação de sucumbir às memórias más. que
não podemos render-nos aos meses maus ou aos anos
maus. porque os nossos olhos estão ansiosos por se
deliciarem neste mundo. ainda há imensas extensões
de água azul-turquesa onde podemos mergulhar.
há a família. de sangue ou a escolhida. a possibilidade
de nos apaixonarmos. por pessoas e lugares.
montanhas tão altas como a lua. vales que terminam
em novos mundos. viagens. acho que é extremamente
importante aceitarmos que não somos donos deste
espaço. somos visitas. e como qualquer convidado,
vamos apreciar este lugar como se fosse um jardim.
vamos tratá-lo com carinho. para que os que vierem a
seguir possam também usufruir dele. vamos descobrir
o nosso próprio sol. plantar as nossas próprias flores.
o universo deu-nos a luz e as sementes. por vezes,
nem sempre a ouvimos mas a música nunca para. só
temos de a pôr mais alta. enquanto houver fôlego nos
pulmões – havemos de dançar.

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rupi kaur. poeta. artista. e performer. quando


tinha cinco anos a mãe ofereceu-lhe um pincel e
disse – “expressa o teu coração”. aos dezassete
anos participou numa noite open mic onde
interpretou o seu primeiro poema. enquanto
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escrevia. ilustrava. e autopublicou a sua primeira
colectânea de poesia, leite e mel. desde então
leite e mel tornou-se um fenómeno internacional.
vendeu mais de três milhões de exemplares.
foi traduzido em mais de 35 línguas. e chegou
ao primeiro lugar da lista de bestsellers do
new york times – onde esteve durante mais de
cem semanas consecutivas.
a esperada segunda coletânea de poemas de
rupi, o sol e as suas flores, foi publicada em
2017 e tornou-se de imediato bestseller #1
a nível mundial. nos três primeiros meses
vendeu um milhão de exemplares e foi recebida
entusiasticamente por leitores de todo o mundo.
foi incluída na lista forbes 30 under 30. e na
antologia mays literary of new writing das
universidades de oxford e de cambridge e na
bbc 100 women.

– sobre a autora

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o sol e as suas flores é uma


coletânea de poesia sobre
a dor
autoabandono
honrar as raízes
o amor
emancipação
está dividido em cinco capítulos
murchar. cair. criar raízes. crescer. florir

– sobre o livro

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