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UNIVERSIDADE SALGADO DE OLIVEIRA

PRÓ-REITORIA DE POS-GRADUAÇÃO E PESQUISA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM
HISTÓRIA

BRUNO FREITAS CARNEIRO

A FÉ CRISTÃ NO ENCONTRO COM OS


DIFERENTES: INDÍGENAS E JESUÍTAS NA
AMÉRICA PORTUGUESA DO SÉCULO XVI

NITERÓI
2020
BRUNO FREITAS CARNEIRO

LINHA DE PESQUISA
SOCIEDADE, MOVIMENTOS POPULACIONAIS E DE CULTURAS

A FÉ CRISTÃ NO ENCONTRO COM OS DIFERENTES: INDÍGENAS


E JESUÍTAS NA AMÉTICA PORTUGUESA DO SÉCULO XVI

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Salgado de Oliveira, campus
Niterói, como parte dos requisitos para
obtenção do título de Mestre em História.

Orientadora: Marcia Sueli Amantino

NITERÓI
2020
FOLHA DE APROVAÇÃO

BRUNO FREITAS CARNEIRO

“A FÉ CRISTÃ NO ENCONTRO COM OS DIFERENTES: INDÍGENAS E JESUÍTAS NA


AMÉRICA PORTUGUESA DO SÉCULO XVI”

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em História da


Universidade Salgado de Oliveira, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em História, aprovada no dia 08 de dezembro de 2020 pela banca
examinadora, composta pelos professores:

_________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Marcia Sueli Amantino

Professor do PPG em História da Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO)

___________ ____________

Prof.ª Dr.ª Eliane Cristina Deckmann Fleck

Professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)

__________________________________________________

Prof. Dr. Diogo Pereira da Silva

Professor do PPG em História da Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO)


AGRADECIMENTOS

À professora Marcia Sueli Amantino, que com paciência e reconhecida competência me


orientou e incentivou, me possibilitando enxergar a História com novos olhos.

Aos professores Marly de Almeida Gomes Vianna, Mary Lucy Murray Del Priore e
Diogo Pereira da Silva, pelos valiosos conhecimentos adquiridos em suas aulas.

Aos demais professores e colaboradores do Programa de pós-graduação em História da


Universidade Salgado de Oliveira, pela participação no desenvolvimento de
enriquecedoras atividades acadêmicas.

Aos meus familiares, pelo amor e compreensão oferecidos em meio a minha constante
ausência para me dedicar às muitas leituras, escrita e revisões concernentes a este
trabalho, gerado a partir de tensões e alegrias.

Ao Criador.
RESUMO:

Nesta dissertação, busca-se compreender, através do diálogo entre a História e as


demais Ciências Humanas - como a Antropologia e a Ciência das Religiões - questões
ligadas ao contato inicial entre a Companhia de Jesus e as populações autóctones da
América portuguesa. Por meio de uma avaliação crítica, são analisados estes diferentes
sujeitos e grupos (indígenas e jesuítas), em seus processos de comunicação, conexão
cultural e conflitos iniciais, visando a compreensão de suas distinções, estranhamentos,
resistências e acordos mediados pela fé cristã, no contraste e processo de significação
entre costumes, ideias e crenças, fruto de um significativo deslocamento espacial ou
alargamento de horizonte geográfico-cultural. Busca-se, sobretudo, o entendimento de
como os jesuítas que pisaram em terras brasílicas no século XVI vivenciaram os
desafios impostos pela alteridade indígena à luz da crença religiosa cristão-católica que
possuíam, desenvolvendo a missão.

Palavras-chave: América portuguesa; Catequização; Culturas; Diferenças; Indígenas;


Jesuítas; fé; Crença Religiosa.
ABSTRACT:

This dissertation, we seek to understand, through the dialogue between History


and the other Human Sciences - such as Anthropology and the Science of Religions -
issues related to the initial contact between the Jesuits and the indigenous peoples of
Brazil. Through a critical evaluation, these different subjects and groups (Indians and
Jesuits) are analyzed, in their communication processes, cultural connection and initial
conflicts, in the search for the understanding of their distinctions, strangeness, resistance
and agreements mediated by the Christian faith, in the contrast and signification process
between customs, ideas and beliefs, the result of a significant spatial displacement or
widening of the geographical and cultural horizon. Above all, seeking to understand
how the Jesuits who set foot in Brazilian lands in the 16th century experienced the
challenges imposed by indigenous alterity in the light of their Christian-Catholic
religious beliefs, developing their mission.

Keywords: Brazil; Catechization; Cultures; Differences; Indians; Jesuits; faith;


Religious Belief.
Sumário

Introdução........................................................................................................................1

Capítulo I – Os jesuítas na América portuguesa quinhentista..................................17


1.1.A Companhia de Jesus no século XVI......................................................................17
1.2. A chegada dos jesuítas à América portuguesa e seus objetivos...............................32
1.3. Os indígenas que viviam na América portuguesa....................................................40
1.4. A Companhia de Jesus na América portuguesa do século XVI...............................51

Capítulo II - Significativos contrastes..........................................................................72


2.1. Nudez........................................................................................................................77
2.2. Poligamia..................................................................................................................83
2.3. Antropofagia.............................................................................................................90
2.4. Feitiçaria...................................................................................................................96

Capítulo III - O desafio da alteridade: Indisciplina, Constância, Subordinação,


Religiosidade e Fé.....................................................................................................................108

3.1. Indisciplina.............................................................................................................110
3.2. Constância..............................................................................................................120
3.3. Subordinação..........................................................................................................133
3.4. Religiosidade e Fé..................................................................................................147

Considerações finais....................................................................................................156
Fontes............................................................................................................................159
Bibliografia...................................................................................................................160
INTRODUÇÃO:

As relações entre os povos e as culturas são um fenômeno complexo. Encontros e


desencontros entre diferentes culturas são cada vez mais frequentes e rápidos no mundo
contemporâneo, gerando novos desafios (conflitos, choques culturais, choques
religiosos, estranhamentos), sendo necessário muitas vezes buscar no passado formas de
pensá-los, interpretá-los, compreendê-los e administrá-los.
Os séculos XV e XVI foram marcados por uma intensa atividade marítima pelo
além-mar - incomum aos séculos anteriores - que teria surgido de uma mistura de
fatores religiosos, econômicos, estratégicos e políticos, obviamente que não idênticos
em proporções, em nome de Deus e do lucro. Em uma “expansão marítima” na qual os
interesses comerciais - como parte de um contexto político-econômico em que os
europeus estavam se adaptando - carregavam consigo as crenças e símbolos do
Cristianismo. E já no final do século XVI quase todos os continentes formavam uma
imensa teia de contatos e relações entre as mais variadas, distintas e contraditórias
culturas, que apresentavam seus conjuntos de valores, tradições, religiosidades,
interesses e todos os demais segmentos representativos de uma cultura. 1
É possível dizer que desde que os portugueses chegaram ao que hoje é delimitado
como território brasileiro, o Brasil participa do processo chamado de globalização. A
globalização, que é um dos termos definidores da sociedade contemporânea, é entendida
como um processo histórico de integração social, cultural e econômica entre as
diferentes regiões globais. Para certos autores, os primórdios da globalização remontam
ao século XV, século que marca o início da expansão ultramarina empreendida pelos
portugueses e espanhóis. E segundo o historiador Serge Gruzinski, “a expansão ibérica
provocou reações em cadeia e, com frequência, choques que desestabilizaram
sociedades inteiras. Foi o que aconteceu na América.” 2
Neste contexto e processo, destacamos que as atuações dos jesuítas, em diferentes
partes do mundo, catequizando gente de línguas e costumes variados, relacionaram-se

1
COUTO, Ronaldo. Os Jesuítas na América portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 2013, p. 13, 15.
2
GRUZINSKI, Serge. A águia e o dragão: Ambições europeias e mundialização no século XVI. São
Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 16.

1
ao caráter supranacional da instituição. E de acordo com Serge Gruzinski, os jesuítas
teriam desenvolvido nessas diferentes regiões de atuações uma “rede internacional”. 3

O estudo das missões jesuíticas ocorre no diálogo com a globalidade, entrando na


complexa rede de relações políticas e construções de poder econômico e simbólico que
a Companhia de Jesus, em sua dimensão institucional, em suas missões e em suas ações
locais, entrelaçou com diversos poderes e atores sociais. É um estudo que conduz ao
posicionamento dentro de uma perspectiva multifocal que conecta trajetórias
missionárias, políticas colonizadoras, introdução de instituições civis e eclesiásticas,
estratégias geopolíticas e redes econômicas, transatlânticas e transpacíficas. Fatores
esses que apontam para a interligação entre as "quatro partes do mundo" (Europa,
África, América e Ásia) sob o domínio da monarquia católica, na união das coroas de
Espanha e Portugal entre os anos de 1580 e 1640 (embora a globalização ultrapasse esse
período). Essa unidade política, que buscava uma universalidade, também favorecia
uma conexão permanente entre os quatro continentes, alcançada a partir da contínua
circulação de pessoas, bens e ideias, contexto de integração no qual os jesuítas foram
agentes-chave. 4
Para se compreender a “rede internacional” montada pelos membros da
Companhia de Jesus, faz-se necessário que os jesuítas sejam identificados, obviamente,
como religiosos, mas acima de tudo como indivíduos que tinham consciência de
fazerem parte de um corpo cuja missão maior era levar a salvação a diferentes partes do
globo. Projeto maior que as monarquias europeias, mas como o poder dos reis e dos
aparatos administrativos ultramarinos eram concretos, para conviver nas possessões
coloniais era necessário aceitar e negociar com esse fator, no que os membros da
Companhia tiveram que administrar o tempo todo seus interesses com os das
monarquias que acabavam por representar. 5
Sempre surgem suposições e interrogações, em variados âmbitos, acerca dos
encontros ou vínculos que se estabeleceram entre os indígenas e os portugueses no

3
GRUZINSKI, Serge (2001, p. 180) apud AMANTINO, Marcia; FLECK, Eliane; ENGEMANN, Carlos
(orgs.). A Companhia de Jesus na América por seus colégios e fazendas: Aproximações entre Brasil e
Argentina (Século XVIII). Rio de Janeiro: Garamond, 2015, p. 14.
4
SALINAS, María Laura; QUARLERI, Lía (Orgs.). Espacios missionales em diálogo com la globalidad
Iberoamérica. Resistencia: ConTexto Libros. Universidad Nacional del Nordeste. Facultad de
Humanidades: Conicet. Instituto de Investigaciones Geohistóricas, 2016, p. 13 – 14.
5
AMANTINO, Marcia. A Companhia de Jesus e o comércio na Ibero-América (Rio de Janeiro e região
do Rio da Prata, séculos XVI-XVIII). In. AMANTINO; FLECK; ENGEMANN, A Companhia de Jesus
na América por seus colégios e fazendas: Aproximações entre Brasil e Argentina (Século XVIII)... p. 26.

2
momento conhecido como “do descobrimento do Brasil”, ou mesmo sobre os vínculos
que se estabeleceram posteriormente entre os indígenas e os jesuítas. Equívocos acerca
destes encontros emblemáticos são perpetuados há séculos, sejam por lacunas
documentais, construções ideológicas, imaginação ou mesmo por puro
desconhecimento. Obviamente, que, se destaca coletivamente a perspectiva europeia
(perspectiva dos que registraram) acerca destes momentos, no entanto, o olhar europeu
reflete julgamentos caracterizados por seus códigos culturais do período, levando a
algumas interpretações dos fatos que muitas vezes se distanciam da realidade, não
contribuindo, isoladamente, para o atual diálogo entre as diferenças, sejam elas
culturais, étnicas, religiosas etc.
O Brasil é um país formado pela mestiçagem de povos e etnias, desde o chamado
“descobrimento”, no contato entre a cultura europeia e as diferentes culturas indígenas e
africanas, até a atualidade multicultural. A primeira aproximação entre indígenas e
portugueses foi marcada pela estranheza para ambas as partes, representando um
verdadeiro contraste entre culturas bem distintas entre si, senão dizer, um contraste entre
mundos distintos. E quando os europeus entraram em contato com os vários povos
ameríndios surgiu a imprescindibilidade de classificá-los e adaptá-los à “cosmovisão”
europeia. Ademais, “a descoberta do Brasil, com a projeção da nova entidade na Europa
quinhentista, cedo concede ao homem europeu resposta para o mítico sonho de um
“mundo novo” e para as correspondentes derivações do grande mito central de uma
cultura ansiosa de renovação.” 6
De forma mais ampla, a descoberta da América, ou melhor, dos americanos, foi,
sem dúvida, marcada por encontros surpreendentes. De acordo com os registros
históricos, na descoberta dos outros continentes e dos outros homens não existiu,
realmente, este sentimento tão radical de estranheza. Os europeus nunca ignoraram
totalmente a existência da África, da Índia, ou da China. Parece que sua lembrança
7
esteve sempre presente, desde as origens. Conforme o entendimento de Todorov, a
história do globo, evidentemente, é feita de conquistas e derrotas, de colonizações e
descobertas dos outros, mas é a conquista da América que anuncia e funda nossa
identidade presente. 8

6
COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. São Paulo: Global, 1997, p. 244.
7
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p.
4.
8
TODOROV, A conquista da América: a questão do outro... p. 6.

3
Nos séculos XV e XVI a novidade no encontro de povos bem diferentes tornou-se
emblemática. Textos foram escritos9 expressando este encontro com o “outro” (o
diferente), nos quais os europeus se referiam ao “Novo Mundo” em contraste com a
Europa. Os valores das sociedades encontradas eram interpretados com referências
europeias, que eram julgadas superiores.
Os colonos que chegaram à América portuguesa procediam de uma sociedade de
homens que agasalhavam conflitos interiores produzidos por intensas mudanças sociais.
O emigrado partia de um mundo em processo de reafirmação, de um país em
transformações, onde as persistências culturais das idades anteriores tinham força
suficiente para travar as consciências que optavam pelos novos valores emergentes. A
sociedade de origem, que tentava reafirmar os tradicionais conceitos de hierarquia,
ordem e paz social, abrigava, contudo, a presença de uma burguesia em ascensão, com
novas formas de vida econômica que se instalavam. Fermentavam-se dúvidas quanto a
validade da autoridade e da hierarquia, o racionalismo, o individualismo e a sedução do
primado do particular sobre o universal. Desse modo, os homens que viajaram para o
Novo Mundo possuíam espíritos inquietos e titubeantes, temerosos e arrojados, e uma
tônica: a religião, denominador comum de suas consciências. 10
É inegável que, a chegada dos portugueses ao que hoje é conhecido como litoral
brasileiro, significou o início de “mudanças socioculturais” profundas na vida dos povos
nativos, no que podemos destacar ou localizar - quanto aos propósitos deste trabalho -
questões de ordem religiosa ou “espiritual” em meio às demais questões da vida.
Depois da “descoberta”, as vagas atlânticas ao se espraiarem nas costas
“brasileiras” derramavam sobre elas, de tempos em tempos, fluxos de civilização
europeia. Era a presença de uma Metrópole, a se fazer sentir em aportações humanas.
Com os homens ancorava todo um complexo conjunto de crenças, ideias e valores,
veículos da própria vida portuguesa. Transplantavam-se, a longas distâncias e ritmos
variados, ideias de um mundo branco e cristão, não raro exclusivista e intolerante.
Mundo hierarquizado conforme uma escala de valores que estava então sendo
restaurada, e que se procurava reafirmar constantemente. O colono era agente da cultura
portuguesa e eram canalizados para o mundo americano elementos espirituais e modos

9
Narrativas de viagem, diários e crônicas escritos por navegadores, conquistadores, religiosos e pessoas
pertencentes a outras categorizações. Como por exemplo: Os chamados “Diários de Cristóvão Colombo”,
as cartas de Hernán Cortés (no contexto da colonização espanhola da América), os relatos de Hans Staden
e o de Jean de Léry.
10
SIQUEIRA, Sonia Aparecida. A inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1987,
p. 19.

4
de vida: produtos da atividade mental, religiosa, artística ou técnica. Concepções de
vida, costumes, estruturas sociais acondicionadas em homens para exportação. Tudo de
modo mais ou menos experimental. 11
A partir do ano de 1549, os jesuítas se fizeram presentes na América portuguesa,
quase cinquenta anos depois do chamado “Descobrimento do Brasil”, contribuindo para
o avanço da colonização lusitana nas terras americanas. Fundada pelo basco Inácio de
Loyola em 1534, a ordem tinha o objetivo de levar a fé católica a novos povos, em
resposta à expansão da Reforma Protestante. E ela espalhou-se pela Europa em curto
espaço de tempo e rapidamente estabeleceram missões nos continentes asiático, africano
e americano, chegando ao solo “brasileiro” sob o comando do padre Manuel da
Nóbrega, sacerdote jesuíta português que chefiou a primeira missão jesuítica à América
(no século XVI). Em grande medida, a missão da Companhia de Jesus envolvia a
catequização nas Terras de Santa Cruz.
Dentro de um processo de “imposição cultural” no contexto da expansão europeia
ultramarina, com a missão oficial de converter os “gentios” à fé católica (missão dada
pela Coroa portuguesa e pela Igreja Católica) a Companhia de Jesus teria consideráveis
desafios pela frente, pois catequizar (ou educar) os nativos da América portuguesa
implicava em convivência, ensino e aprendizado, atividade complexa em virtude das
claras diferenças culturais e diferenças de interesses de ambos os povos. Também
consideramos que além desta missão, os jesuítas também exerceram a tarefa de ensino
para os filhos dos portugueses na América.
A catequese e a expansão ultramarina levaram a contradições profundas na
América portuguesa. Embora a catequese não tenha sido um monopólio da Companhia
de Jesus, acabou por confundir-se, ficando as demais ordens em segundo plano. Nos
primeiros tempos - com força no século XVI - nas áreas de colonização ibérica, foi
sobre os jesuítas que recaiu a quase totalidade do esforço catequético. 12
Os povos indígenas “encontrados” no século XVI, na América Portuguesa, não
raras vezes são lembrados e retratados quase que em total passividade, ou mesmo
“apatia”, desprovidos de emoções diante dos conquistadores, e, por outro lado, os
jesuítas pensados como religiosos que tinham como única atividade buscar converter os
pagãos ou atuarem como educadores neste “novo mundo.” Representações que se

11
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 17.
12
NEVES, Cylaine Maria das. A vila de São Paulo de Piratininga: fundação e representação. São Paulo:
Annablume; Fapesp, 2007, p. p. 150.

5
tornam simplificações de uma realidade muito mais complexa, por que não dizer
múltipla, com muito mais elementos, significados e significações, que ampliam o
entendimento acerca do encontro dos dois grupos.
A problematização ligada às diferenças culturais e estranhamentos, muitas vezes
desconhecida, entre indígenas e jesuítas (denominados “pagãos” e cristãos) está na base
da História do Brasil, podendo possibilitar reflexões diversas sobre as diferenças e
semelhanças na relação com o outro e de como a fé muitas vezes permeia conflitos.
O estranhamento inicial entre os jesuítas e os indígenas na América portuguesa do
século XVI foi evidente. Mas em que medida - para além da perspectiva da "imposição
cultural" ou de questões políticas - a religiosidade foi o combustível para a grande
adaptabilidade e resiliência dos jesuítas, levando-os a certa superação das instabilidades,
contrastes e conflitos na inicial concretização da missão?
Outro fato é, que além da “rebeldia” dos indígenas, distantes da metrópole, os
portugueses que viviam na América portuguesa “abandonaram” muitas práticas cristãs,
como por exemplo, de modo emblematicamente contrário aos preceitos da Igreja,
alguns cristãos possuíam várias mulheres neste novo mundo, distante da Europa. Porém,
é preciso que façamos uma ressalva: De fato havia um descuido para com a fé católica
na América portuguesa quando da chegada dos jesuítas, mas não podemos negar a
catolicidade dos portugueses do século XVI, ainda que não fosse exemplar e estivesse
abaixo do que podemos balizar como média, eles não eram o que hoje se entende como
pessoas totalmente secularizadas.
Adentrando este cenário, repleto de contradições e desafios à religião cristã e sua
propagação, os jesuítas teriam que demonstrar convicção na prática da fé católica para
alcançarem seus objetivos iniciais. E eles conseguiriam essa proeza ainda no século
XVI?
Na nova terra, muito diferente da europeia, inicialmente com poucos recursos,13 14
os jesuítas encontraram, além de florestas, o indígena, o europeu “desviado”, grandes
distâncias a serem percorridas e muitos trabalhos a serem realizados. Grandes eram seus

13
Conforme Paulo de Assunção mencionou em seu livro que trata da atuação econômica da Companhia,
com base em vasta bibliografia sobre as ações da Companhia de Jesus no Brasil e na Europa. Assunção
aborda que quando começou a desembarcar América portuguesa, a Companhia contava com poucos
membros e poucos recursos. ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios jesuíticos: O cotidiano da administração
dos bens divinos. São Paulo: EDUSP, 2004, p. 10.
14
O fato de inicialmente possuírem poucos recursos não significava que estivessem em estado de penúria
ou necessidade. A “pobreza” que afirmavam possuir tinha um peso muito mais retórico que propriamente
real. Os recursos eram poucos para a concretização de planos maiores na esfera religiosa e educacional.

6
desafios. Qual foi o motivo da constância ou persistência dos “soldados de Cristo na
15
terra dos papagaios”? A motivação destes homens de fato estava ancorada na fé?
Inegavelmente não há como medir com objetividade a fé de uma pessoa ou de um grupo
religioso, no entanto, é possível medir ações realizadas em nome da fé, por meio de
dados “concretos”.
Mediante isto, objetivamos analisar neste trabalho os fatores religiosos e culturais
relacionados a postura perseverante ou obstinada da ordem em um solo tão contrastante
e conflitante como o da América portuguesa quinhentista. A partir do pressuposto de
que a religiosidade cristã da ordem inaciana foi o componente central na relação com os
indígenas e na sua insistência com os mesmos. Paradoxalmente o elemento que gerou os
maiores conflitos e acordos, que os afastou, ao passo que os conectou e que elucidou a
obstinação da Companhia de Jesus em desenvolver a Missão no século XVI.
Em nosso estudo, partimos da hipótese de que a fé (que também denominamos
como “crença” ou “religiosidade”) dos jesuítas, acima dos interesses políticos,
econômicos ou da inclinação para empreender (fatores temporais que, para a
Companhia de Jesus, não se dissociavam de sua religiosidade), foi, no século XVI, a
maior causa da constância 16 da ordem na catequização dos ameríndios. Ou seja,
entendemos que, de certo modo, nas primeiras décadas de missão jesuítica na América
portuguesa, as aspirações místicas do fundador da Ordem estiveram refletidas e
enraizadas na obstinação dos missionários em “converter” os nativos. Aliás, chamou-
nos a atenção o modo ou modos como persistiram, como que genuinamente
fundamentados em concepções espirituais, ao passo que se movimentavam com notável
habilidade em meio às demandas temporais.
Esta pressuposição que liga (ou conecta) a fé católica e a constância jesuítica na
lida com esses “diferentes” perpassa todo este trabalho: a partir de seu gérmen, na
análise do surgimento da Ordem, até a chegada, desenvolvimento e estabelecimento
inicial dos aldeamentos na América portuguesa quinhentista, passando pelas
desafiadoras diferenças culturais entre os indígenas e os jesuítas - com ênfase para as
dificuldades que envolveram a “conversão” - bem como na abordagem das “soluções”
encontradas para a “indisciplina” ou “insubordinação” indígena.

15
Expressão utilizada por Luiz Felipe Baeta Neves no livro “O combate dos soldados de Cristo na terra
dos papagaios (colonialismo e repressão cultural)”.
16
A religiosidade dos jesuítas era desenvolvida por meio de uma rigorosa formação. Com base nisto,
podemos inferir que os padres eram, em grande medida, “constantes” na atuação missionária por conta do
rigor com que foram formados.

7
Ao abordarmos a fé católica do ponto de vista histórico, entendemos que a
“história da Igreja Católica” ou “Catolicismo”, a partir do final do século XIX, para
além de conceituações teológicas, passou a ser amplamente desenvolvida em termos
científicos. De forma abrangente, as denominações ou segmentos eclesiais passaram a
ser consideradas como um produto histórico, ligado às relações político-sociais vigentes
em cada período. Tal alteração se deve à considerável perda de hegemonia da religião
(em termos de dar sentido à vida social) nas sociedades ocidentais. Nessa mudança de
perspectiva historiográfica, a experiência religiosa passou a ser concebida como um
fenômeno cultural. 17 No início do século XX, as experiências eclesiásticas eram relidas
à luz das ciências sociais, com destaque para as fundamentações em Émile Durkheim e
Max Weber, em uma elaboração histórico-cultural e uma representação social das
relações e vivências coletivas, como um novo campo para a análise histórica, a
tendência inclusive conquistou espaço na Igreja Católica, sobretudo após o Vaticano II
(XXI Concílio Ecumênico da Igreja Católica, que durou de 1962 a 1965). 18
Com vistas ao contexto historiográfico brasileiro a partir do século XX, conforme
observou Georgina Silva dos Santos: os estudos sobre a vida religiosa no Brasil, ou as
pesquisas acadêmicas que analisaram credos, doutrinas, associações confraternais,
ordens religiosas ou o perfil socioeconômico dos sacerdotes e demais membros de uma
organização, geralmente identificaram-se com os estudos de História cultural, de
História das mentalidades ou de História social. Como percebeu a historiadora, a
justificativa se encontra no fato de ainda persistir uma superposição equivocada entre a
História religiosa e a História eclesiástica, tendo os historiadores que se debruçaram
sobre temas religiosos, como estratégia de neutralização, vinculado seus estudos àqueles
campos de investigação enriquecidos pelo diálogo fecundo com a Antropologia e a
Sociologia, nos estudos da Escola dos Annales, da História Social inglesa e da Nova
História francesa e americana. O que resultou na produção de obras clássicas sobre a
vida religiosa no Brasil colonial, inspiradoras para inúmeras teses e dissertações nas
últimas décadas. 19

17
BUARQUE, Virgínia Albuquerque Castro. A especificidade do religioso: um diálogo entre
historiografia e teologia. São Paulo: Projeto História (PUCSP), v. 37, p. 53-64, 2008, p. 52 – 53.
18
BUARQUE, A especificidade do religioso: um diálogo entre historiografia e teologia... p. 55.
19
SANTOS, Georgina Silva dos. Ordens e Congregações Religiosas no Mundo Ibero-Atlântico. Niterói:
Revista Tempo vol.18 no.32, 2012, p. 15.

8
Entre os séculos XIX e XX, a Companhia de Jesus foi abordada pela
historiografia basicamente através de dois paradigmas: o “antijesuítico”, de herança
pombalina, em que os membros da ordem foram interpretados como gananciosos e o de
protetores e interlocutores dos indígenas. No século XX, os historiadores que estudaram
o Brasil Colonial, inseriram os jesuítas como tendo importância, dentre muitos da
história nacional, no “nascimento do Brasil” e na articulação do marco da expansão
atlântica da “primeira globalização”. 20
A obra de padre Serafim Leite acerca da
Companhia de Jesus no Brasil, publicada entre 1938 e 1950, estabeleceu-se como
referência para a consideração dos jesuítas na história do Brasil. Posteriormente, nos
anos 1980, outros historiadores jesuítas, em uma perspectiva que fugia da “tentação”
apologética da sua Ordem - e também historiadores não jesuítas - abordaram o caráter
“seriado” de uma parte da correspondência entre os padres e o governo geral. 21
Desde
então os historiadores têm buscado a superação do estreito marco do paradigma
jesuítico e do antijesuítico, com vistas à complexidade de sua inserção histórica em
realidades que contemplam fatores de ordem política, econômica, social e cultural. De
modo que a historiografia sobre os jesuítas revela o dilema dos historiadores dos séculos
XX e XXI, ao se proporem dar conta de realidades complexas, atravessadas por
22
múltiplos processos, com desafios metodológicos através do diálogo interdisciplinar.
Acrescenta-se que na década de 1970, Luiz Felipe Baeta Neves identificou a
tendência ideológica envolvendo o indígena que passava pela ausência de estudos
críticos acerca da ação jesuítica na colônia, assim como pela repetição da fala e da ação
dos religiosos. Ele considerou o trabalho de Serafim Leite uma “intervenção poderosa”,
que forneceu aos apologistas vulgares da atuação da Ordem uma corroboração
“moderna” e “científica”, que se somou às justificativas “tradicionais” e “religiosas”.
Segundo ele, um “alimento generoso” para a manutenção do que seria denunciado,
produzindo sua própria crítica. 23
Em sua obra “O combate dos soldados de Cristo na
terra dos papagaios...” encontramos informações relevantes para esta proposta que
envolve as ações iniciais da Companhia de Jesus na América portuguesa, em que
destacamos a abordagem da perspectiva autocentrada do discurso jesuítico no “Brasil”
20
LONDOÑO, Fernando Torres. A historiografia dos séculos XX e XXI sobre os jesuítas no período
colonial. Projeto História – Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História. São Paulo: v.
64, pp. 10-40, Jan.-Abr., 2019, p. 11.
21
LONDOÑO, A historiografia dos séculos XX e XXI sobre os jesuítas no período colonial...p. 15.
22
LONDOÑO, A historiografia dos séculos XX e XXI sobre os jesuítas no período colonial...p. 33 – 34.
23
BARRA, Sérgio. Serafim Leite: A Companhia de Jesus, a Ocupação do Território e a Formação da
Nacionalidade. In. Assentamentos Jesuíticos Territórios e Significados. Cadernos de Pesquisa e
Documentação do IPHAN - COPEDOC/ IPHAN/ RIO DE JANEIRO – 2008, p. 45.

9
quinhentista mencionada pelo autor, na qual a Ordem se considerava portadora da
verdade, na medida em que era europeia e cristã. No entanto, embora consideremos
válida essa abordagem, nossa ênfase recai muito mais na concepção da crença - em
certa medida “sacrificial” 24
- que propriamente do autocentramento, sem, contudo,
desconsiderá-lo.
Outros nomes a serem mencionados quanto ao desenvolvimento deste trabalho
são Ronald Raminelli e Adone Agnolin. O primeiro contribui com a questão de como os
indígenas eram percebidos pelos colonizadores. Sua problematização teórica, entre
outras, é considerada por constatarmos os antagonismos que envolviam a imagem dos
25
indígenas (em uma pluralidade de representações) no período colonial. Agnolin é
referenciado em virtude de sua proposta que aponta para a problemática missionária
americana, na qual é possível constatar a difícil evangelização realizada pelos jesuítas
na América portuguesa, por envolver a tradução linguística e cultural. De modo que
havia no encontro das culturas não apenas a redução das práticas culturais nativas (da
alteridade ou identidade indígena) na literatura religiosa ocidental, como também sua
26
ampliação através da incorporação de instituições mítico-rituais dos indígenas. Neste
ponto, nosso destaque está na tradução cultural, relacionada à interpretação que os
padres fizeram dos nativos, como, por exemplo, observou Felipe Eduardo Moreau no
27
que diz respeito a Manuel da Nóbrega e José de Anchieta, interpretação, a nosso ver,
indissociável dos rumos tomados na Missão.
Evidentemente, os jesuítas, como inúmeros “grupos” ao longo da história
(religiosos ou não) trabalharam pela consolidação de seus interesses, em certa medida
podemos nos referir a esses interesses como “político-religiosos”. Porém, cabe
mencionarmos o necessário cuidado com propostas antijesuíticas, pessimistas ou
enviesadas sobre a atuação da Companhia na América. Procuramos, nesta abordagem,
não pender nossa análise nem para o pessimismo, nem para o idealismo. Ao

24
Um dos exemplos da dimensão sacrificial da Ordem (vinculada à crença), que exploramos em nossa
abordagem, se encontra nas palavras do padre João de Azpilcueta Navarro, em carta de 28 de Março de
1550, sem desconsiderarmos os elementos retóricos de sua escrita: “Por amor de uns e de outros,
padecemos muitos trabalhos e tributações corporaes e de espirito, as quaes tome para si Deus Nosso
Senhor, que com palavras e obras nos ensinou a ter paciência e que nos dê a graça de fazermos em tudo a
sua santa vontade.” ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568 (Cartas
Jesuíticas, Vol. II). Rio de Janeiro: Officina Industrial Graphica, 1931, p. 49.
25
Ver RAMINELLI, Ronald. Imagens da Colonização: A representação do índio de Caminha a Vieira.
Rio de Janeiro, Zahar Ed, 1996.
26
Ver AGNOLIN, Adone. Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual
americano-tupi (Séculos XVI – XVII). São Paulo: Humanistas Editorial, 2007.
27
Ver MOREAU, Filipe Eduardo. Os índios nas cartas de Nóbrega e Anchieta. São Paulo – SP:
Annablume, 2003.

10
trabalharmos em certos momentos com autores que tendem mais para a crítica e
também com aqueles com tendências mais idealistas buscamos o alargamento das
possibilidades em torno do tema proposto.
Paulo de Assunção, em sua abordagem envolvendo o período colonial e
notadamente os jesuítas, considerou o papel da Ordem no “Brasil” de forma crítica,
analisando suas práticas temporais atreladas a um complexo sistema produtivo, que
envolvia, entre outros fatores, a exploração da mão de obra. Sua análise nos interessa no
que diz respeito à dimensão da administração dos negócios empreendida pelos padres,
retratados pelo autor em termos sociais, econômicos e políticos, fatores que não
poderíamos nem desejaríamos ignorar, por compreendermos sua vinculação com a
religiosidade, além de permitirem sua maior compreensão. 28
Ensejamos que, o desenvolvimento do presente trabalho, de cunho histórico,
aproxima, no plano teórico-metodológico - interdisciplinarmente - as áreas da “história”
e da “antropologia”, alinhando-se deste modo, a pressupostos do campo teórico-
conceitual que recebe a intitulação de “História Antropológica” ou “Antropologia
Histórica”. José D’Assunção Barros entendeu que a dimensão cultural, suficientemente
rica, gera um grande número de modalidades historiográficas, da História Cultural
propriamente dita à História Antropológica e à História do Imaginário, bastando que se
lembre de que o próprio conceito de “cultura” que a atravessa é polissêmico, e que cada
um de seus sentidos pode se abrir a um enfoque distinto. 29
Constatamos que o desenvolvimento da historiografia no século XX foi marcado
pela guinada antropológica ou culturalista, em um diálogo que emergiu com mais
visibilidade na chamada história das mentalidades, um gênero historiográfico
predominante na França dos anos 60 e 70. A tendência crescente para o estudo histórico
de fenômenos culturais (ou seja, para a análise do conteúdo cultural de eventos e
processos de sociedades do passado), estimulou a transmigração de métodos e modelos
explicativos da antropologia, traduzidos e adaptados na perspectiva de análises
históricas. De modo que, a aliança com a antropologia - especialmente com a

28
Ver ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios jesuíticos: O cotidiano da administração dos bens divinos. São
Paulo: EDUSP, 2004.
29
BARROS, José D’Assunção. O campo da história: Especialidades e abordagens. Petrópolis – RJ:
Editora Vozes, 2004, p. 106.

11
antropologia social e cultural - ampliou o quadro de referências dos historiadores,
30
contribuindo para o esbatimento das fronteiras disciplinares.
A antropologia histórica, destacada a partir dos anos 70, foi um exemplo
de hibridização sob o signo da interdisciplinaridade. A vinculação entre a antropologia e
a história é uma das matrizes de caráter híbrido que não obedecem mais às fronteiras
disciplinares estabelecidas pela ciência moderna a partir do século XIX. Há quem
prefira se referir a “fusão” história-antropologia como uma das formas do pós-
modernismo no campo da historiografia, sendo de se notar que o contato crítico com os
conceitos antropológicos básicos (cultura, etnicidade, alteridade, identidade, diferença,
entre outros) possibilitou o nascimento de uma historiografia antropologicamente
orientada, permitindo a problematização, pelos historiadores, do conceito de cultura e,
31
assim, a afirmação da história cultural em novas bases. Deste modo, absorção do
olhar antropológico reforça e permite uma visão de história capaz de evidenciar, entre o
passado e o presente, toda uma série de descontinuidades e diferenças. E mais que
a utilização e adaptação de conceitos operatórios de uma ciência social vizinha, trata-se
de traduzir, transmigrar e transcriar um estilo, um questionário, um modo de olhar e de
inquirir as matérias sociais. 32
Além disso, conforme o entendimento de Cristina Pompa, o uso antropológico de
termos ou categorias que são fruto da história teológica do Ocidente (como a de
conversão, de fé, de religião), o "uso missionário" de conceitos antropológicos (como o
conceito de cultura na "teologia da inculturação") e, a identificação das novas
identidades indígenas a partir da concepção antropológico-religiosa de "ritual", são
fatores que evidenciam a necessidade de repensar historicamente a antropologia e suas
categorias. 33
Utilizamo-nos da abordagem histórico-antropológica por compreendermos o
caráter interdisciplinar do tema proposto, que, envolvendo o encontro/convivência de
culturas tão distintas, acaba por nos remeter a necessidade do diálogo ou certa
hibridização da História com a Antropologia.
Ao analisarmos os contatos iniciais entre indígenas e jesuítas, temas como
“identidade” e “alteridade” acabam por emergir. A questão das identidades passa pela

30
BENATTE, Antonio Paulo. História e antropologia no campo da Nova História. Revista História em
Reflexão: Vol. 1 n. 1 – UFGD - Dourados Jan/Jun 2007, p. 1 – 2.
31
BENATTE, História e antropologia no campo da Nova História... p. 9 – 10.
32
BENATTE, História e antropologia no campo da Nova História... p. 20.
33
POMPA, Cristina. Para uma antropologia histórica das missões... p. 142.

12
noção de pessoa como uma entidade social, revestindo a vida dos homens em sociedade
segundo direitos, religiões, costumes, estruturas sociais e mentalidades. O conceito de
identidade pode ser descrito, de modo genérico como a “consciência da continuidade”
34 35
que os sujeitos tenham a respeito destas formas que os revestem. Com isto, importa
mencionar que a Europa não era ou é, pela sua configuração, um continente geográfico,
nem o europeu se podia definir por uma raça ou por uma língua. A Europa só era
Europa por uma história comum, uma ideia, ou, caso de preferira, uma consciência 36e o
ensino dos jesuítas contribuiu para o desenvolvimento de modos de pensar europeus,
graças aos numerosos colégios com os ensinos de lógica, matemática, teatro,
humanismo etc. 37
Por muito tempo, a pouca importância dada às atuações indígenas e o
“apagamento” de suas identidades étnicas construíram-se com a supervalorização do
38
desempenho dos colonizadores em narrativas eurocêntricas. Mas com o olhar
antropológico sobre as fontes históricas somos levados a desvendar os diferentes
significados que os mesmos objetos, comportamentos, rituais e alianças podem ter
representado para grupos e indivíduos social e culturalmente distintos. Analisando os
documentos também com foco no indígena e nos significados próprios por eles
atribuídos aos novos artefatos, relacionamentos, condutas e instituições que passavam a
fazer parte de seu cotidiano no “pós-contato”, nos possibilitando compreender os
39
processos de conquista e ocupação da terra de forma mais ampla e complexa. Com os
avanços historiográficos nos vários campos de saber, a história indígena passou a ser
beneficiada pelo desenvolvimento de pesquisas em outras áreas, renovando-se
continuamente. 40

34
LOPES, José Rogério. Os caminhos da identidade nas Ciências Sociais e suas metamorfoses na
Psicologia Social. Psicologia & Sociedade; 14 (1): 7-27; jan./jun. 2002, p. 8.
35
“O conceito de Identidade está associado em grande medida ao conceito de cultura. Hoje em dia, os
principais debates em torno da identidade nos remetem com frequência à questão da cultura. [...] No
âmbito das ciências sociais, o conceito de identidade assume várias significações e suas fronteiras são
fluídas.” RODRIGUES, José Fernandes Corrêa. Identidade e imaginária jesuítico-missionária da
redução de São Francisco de Borja: Altares particulares, da idolatria ao fogo. Rio Grande do Sul:
Dissertação de Mestrado em Patrimônio Cultural – Universidade Federal de Santa Maria, 2019, p. 24.
36
MIRANDA, Margarida. Humanismo jesuítico e identidade da Europa: uma comunidade pedagógica.
Hvmanitas, Coimbra, v. 53, p. 83-111, 2001, p. 86.
37
MIRANDA, Margarida. Humanismo jesuítico e identidade da Europa: uma comunidade pedagógica.
Hvmanitas, Coimbra, v. 53, p. 83-111, 2001, p. 109.
38
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. A atuação dos indígenas na História do Brasil: revisões
historiográficas. Revista Brasileira de História, vol. 37, no 75, pp. 17-38, 2017, p. 19.
39
ALMEIDA, A atuação dos indígenas na História do Brasil: revisões historiográficas... p. 21.
40
ALMEIDA, A atuação dos indígenas na História do Brasil: revisões historiográficas... p. 34.

13
Pensar nos encontros de identidades ocorridos entre jesuítas e ameríndios abre
espaço para que se considere o tema da alteridade. A História é constituída pela
alteridade, a diferença, a relação com o Outro, e o encontro de culturas (muitas vezes
tensos e violentos) são temas recorrentes da prática do historiador. O conceito aparece
como um “instrumento interpretativo” na análise histórica, 41
em específico na
abordagem dos encontros mencionados: Na missão jesuítica houve a busca pela
salvação do Outro, o indígena, no que a experiência desses religiosos junto à alteridade
ameríndia serviu como base para compilação de um vasto epistolário, abordando esse
“outro” na tentativa incluí-lo no universo da reflexão ocidental, representando uma
complexa e problemática relação empírica do europeu com a alteridade encontrada na
América. 42 relação esta que buscamos neste trabalho analisar.
Ademais, foram adotados neste trabalho os recortes cronológico e espacial
seguintes: O recorte cronológico está no intervalo de 1549 a 1600, entre o ano da
chegada e início das atividades dos Jesuítas na América portuguesa e os anos próximos
à morte do padre José de Anchieta, ou seja, restringimo-nos a segunda metade do século
XVI. Já o recorte ou delimitação espacial está focado na própria América portuguesa,
envolvendo espaços como os da Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e
Pernambuco.
Destacamos que não nos restringimos a uma região ou área específica da América
portuguesa do século XVI, ou, do território que mais precisamente podemos denominar
América portuguesa, no período quinhentista. Nossa análise ultrapassa regionalidades,
na medida em que abordamos um fenômeno basicamente de encontro e estranhamento
que ocorreu na Bahia, em São Paulo e em outros espaços da luso-américa, um fenômeno
que, muito maior que a territorialidade, está relacionado à humanidade, ou seja, é mais
humano que propriamente territorial.
No decorrer da construção deste trabalho foram consultadas fontes que
evidenciam as relações entre os indígenas e os jesuítas. As cartas dos padres jesuítas
(José de Anchieta, Manuel da Nóbrega, João de Azpilcueta Navarro e outros),
constituem-se nas fontes que sustentam a pesquisa, pois formam um acervo referencial

41
SCHNEIDER, Alberto Luiz; FILHO, Amílcar Torrão. Alteridade e História: escritura e narrativa
como uma ética do Outro. São Paulo: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e
Crítica Literária da PUC-SP - nº 21 - dezembro de 2018, p. 24 - 24.
42
LIMA, Elda Cassia de. A correspondência jesuítica na construção de um Novo Mundo: Evangelizar,
Classificar, Informar (1553-1596). Goiânia: Dissertação de Mestrado em História - Programa de Pós-
Graduação em História - Universidade Federal de Goiás, 2010, p. 60.

14
para o estudo do passado da Ordem na América portuguesa. 43 Tal abordagem será feita
com a consciência de que a Companhia de Jesus em sua origem e expansão no século
XVI demonstrou significativo domínio das letras - o próprio Ignácio de Loyola,
fundador da Companhia, foi um homem da ação e da escrita - e que as cartas
significavam um importante elemento de união ou unidade da ordem na expansão em
territórios longínquos como a América.
As cartas, como fontes históricas, são documentos que ultrapassam a simples
comunicação que se estabeleceu entre remetentes e destinatários. São fontes
documentais que, partindo de perspectivas “pessoais” - ainda que não tenham sido
desprovidas de padrões culturais e temporais, em muitos casos institucionais - nos
permitem acessar informações a respeito de fatos e acontecimentos que vão além da
pessoalidade. No caso, as experiências jesuíticas transmitidas através da atividade
epistolar proporcionam possibilidades de compreensão das relações que se
estabeleceram entre os inacianos e os autóctones da América. Tendo em vista, além do
caráter místico-religioso, os aspectos informativos dessas cartas.
Para a análise das fontes (as cartas jesuíticas, que formam o fio condutor deste
trabalho) utilizamo-nos das cartas encontradas nas obras “Cartas Avulsas”, “Cartas,
Informações, Fragmentos históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta”, “Cartas
do Brasil (1549-1560)” e nas cartas reunidas pelo padre Serafim Leite. Embora a
atuação dos jesuítas na América portuguesa quinhentista também possua outras fontes
para a sua compreensão, optamos por dar destaque às cartas referentes ao território e
período analisados.
Para atendermos aos objetivos propostos, esta dissertação divide-se em três
capítulos. No primeiro, “Os jesuítas na América portuguesa”, procuramos analisar a
Companhia de Jesus em sua origem, vinda e estabelecimento inicial na então América
portuguesa no século XVI, bem como questões histórico-culturais referentes aos nativos
do território “brasileiro” deste período, aqueles que seriam encontrados pelos jesuítas,
denominados indígenas.
No segundo capítulo, “Significativos contrastes”, abordamos os elementos
emblemáticos (nudez, poligamia, antropofagia e feitiçaria) no que tange às diferenças
entre os indígenas e os jesuítas, expondo a conflitualidade dos costumes indígenas, no
contraste com o ideal doutrinário cristão dos jesuítas, conectado aos objetivos da

43
Considerando-se a produção de cartas relacionada ao estabelecimento da missão.

15
missão. Nele, procuramos compreender tais contrates ou oposições através de um maior
aprofundando
No terceiro e último capítulo, “O desafio da alteridade: indisciplina, constância,
subordinação e fé”, analisamos como os jesuítas “superaram”, com muito trabalho -
ainda que de forma incompleta e não generalizada - as diferenças, contrastes e conflitos
com os indígenas por meio dos aldeamentos (ainda em fase inicial) e como a fé ou
religiosidade dos inacianos contribuiu para a consolidação dessa intensa empreitada.
Procuramos no referido capítulo apresentar - como nos demais, tendo o suporte das
fontes (cartas) - os fatores que fizeram parte do processo.

16
Capítulo I - OS JESUÍTAS NA AMÉRICA PORTUGUESA
QUINHENTISTA

1.1. A COMPANHIA DE JESUS NO SÉCULO XVI

O século XVI, marcado pelo Renascimento, pelo Humanismo, pela Reforma e


Contrarreforma, foi o século do nascimento e expansão da Companhia de Jesus.
Enviados a diferentes partes do globo, seus missionários chegaram aos territórios
controlados pelas potências ultramarinas europeias, como no caso da América
portuguesa, disseminando a fé cristã no encontro com os diferentes.
Ao longo de sua história, a Igreja Católica autorizou a criação de diferentes
ordens religiosas. As ordens foram instituições que desenvolveram modelos próprios de
viver a fé cristã, além de terem sido úteis para a formação de religiosos e para inclusão
da fé cristã nas sociedades nas quais se fizeram presentes. Até as ordens mais
distanciadas dos centros urbanos e isoladas dentro de mosteiros ou conventos, como
ainda hoje é comum, influenciaram as regiões onde marcaram presença. Elas foram (e
são) tão influentes e possuem tamanha importância histórica, que não é preciso ser um
cristão católico para ter a noção, ainda que vaga, de quem são os franciscanos, os
vicentinos, os dominicanos, os capuchinhos e as carmelitas. Fato é que, boa parte do
poder e influência conquistados pelo catolicismo se deveram as ordens, e muitas delas
vieram para a América Portuguesa, desenvolvendo um modo próprio de vida e
propagação da fé católica.
O grande diferencial da Companhia de Jesus com as demais ordens religiosas já
existentes era a recusa ao isolamento em relação à sociedade. A Ordem pressupunha a
sua existência diretamente ligada às necessidades de uma ação ampla de revigoramento
espiritual, o que a identificava com as preocupações da humanidade, principalmente no
que tange à crise do comportamento das demais ordens. Na educação se fez presente sua
sensível contribuição para a difusão do espírito cristão, com o propósito de atingir a
salvação de toda a humanidade. Da formação educacional dependia a expansão da fé e a
conversão de toda humanidade. Outro aspecto diferencial da ordem era sua estrutura
coesa e extremamente hierarquizada em moldes militares, numa relação de sujeição e
obediência dos “soldados” (irmãos) subalternos aos seus chefes superiores. Mas não só

17
a sujeição e a obediência constituíram o esteio da formação jesuítica, que também
recebiam sólida formação humanística, com conhecimentos da língua antiga e da
filosofia. 44
Ao mencionar o funcionamento hierarquizado da Companhia, assim como seu
volume de documentos produzidos, Paulo Rogério Melo de Oliveira considera - em
conformidade com Charlotte de Castelnau-L’Estoile - a Companhia como uma
“instituição burocrática”, cujo exercício de poder “repousa sobre uma produção
ordenada e sistemática de documentos”, passando o poder burocrático por “sua relação
com a escrita”, e desta forma tratando-se de um poder regulado por regras formuladas e
escritas. 45
A Companhia de Jesus foi, e ainda é, uma das mais influentes ordens católicas.
Em vários sentidos, sua trajetória foi única e marcou para sempre a história do próprio
catolicismo, primeiramente na Europa, mas de maneira demasiado especial nos
continentes asiático e americano. Desde seu surgimento os jesuítas se destacaram. A
ordem foi capaz de conciliar a sólida formação religiosa e intelectual de seus membros
com a disposição para participar de missões que exigiam resistência física, capacidade
de articulação política e boas noções de administração e finanças. Motivos que apontam
para a rapidez com que os jesuítas se firmaram como a primeira ordem moderna do
catolicismo, na medida em que foram se distanciando dos padrões medievais de
comportamento.
José Eduardo Franco informa que,
Ao longo dos séculos XVI e XVIII, os jesuítas são a elite intelectual
por excelência do catolicismo romano. A Companhia de Jesus é a
instituição que melhor realiza a síntese entre a Igreja tradicional e os
novos desafios de mundos em conflito e separação, como os da
cristandade ocidental [...] Síntese contraditória entre a tradição e a
inovação, entre a herança e a mudança. Síntese que obriga a
Companhia de Jesus a constantes compromissos de limite, a jogos de
fronteira entre a ortodoxia e a heterodoxia, que faz com que haja um
uno plural com intensas oscilações e contradições, metamorfoses e
adaptações às condições locais de saber e de poder, intra e extra-
europeias.46

44
ASSUNÇÃO, Paulo de. A terra dos Brasis: a natureza da América Portuguesa vista pelos primeiros
jesuítas (1549-1596). São Paulo: Annablume, 2001, p. 61 – 62.
45
OLIVEIRA, Paulo Rogério Melo de. O encontro entre os guarani e os jesuítas na província do
Paraguai e o glorioso martírio do venerável padre Roque González nas tierras de Ñezú. Porto Alegre:
Tese de Doutorado em História – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010, p. 101 – 102.
46
FRANCO, José Eduardo. O Mito dos Jesuítas em Portugal, no Brasil e no Oriente (séculos XVI a XX).
Lisboa: Gradiva, 2007. p. 13.

18
A ordem nasceu no século XVI, em um momento de grandes transformações na
Europa. Estavam ocorrendo mudanças políticas, religiosas, econômicas e sociais que
abalavam consideravelmente a coesão da Igreja Católica e assinalavam a passagem ou a
transição da Idade Média para a Modernidade. Estabelecida em 1534 e aprovada pelo
papa Paulo III47 em 27 de setembro de 1540, como nova ordem religiosa, a Companhia
de Jesus foi a ordem mais importante em resposta à Reforma Protestante.
A Reforma Protestante48 significou uma verdadeira ameaça, na medida em que o
catolicismo perdia cada vez mais fiéis para o protestantismo. O Concílio de Trento
(1545-1563),49 com o objetivo de tomar posições referentes ao movimento da reforma,
foi uma reação50 da Igreja Católica ao protestantismo, condenando as novas doutrinas
dos reformadores, reafirmando os dogmas da fé católica, avançando em direção à
recuperação e conquista de seguidores e proporcionando a difusão do catolicismo pelas
terras mais longínquas. Neste contexto, o papel da Companhia de Jesus, com sua
disposição para difundir a fé católica, foi de fundamental importância para os objetivos
contrareformistas.
Trento foi um dos concílios mais marcantes da historia. Foram dezoito anos que
permitiram a reafirmação e redefinição de pontos basilares da doutrina e a composição
de um programa de reforma interna da Igreja Católica - centrada no papado, episcopado
e clero - que pautariam os rumos que se seguiram, e configurariam o clero e a
religiosidade dos fieis até a segunda metade do século XIX. Só então, passados quase
trezentos anos, se celebraria novo concílio, o Vaticano I (iniciado em 1869). Eis um
sinal inequívoco da importância de Trento: a sua durabilidade. E de certa forma, a
modernização do mundo católico europeu foi também uma das decorrências de Trento.
51

O concílio não se limitou apenas como resultado de transformações religiosas e


políticas que estavam alterando o mundo. Foi também uma das alavancas dessas
mudanças. Esse tempo de renovação, que produziu os conceitos de “Contra Reforma” e

47
Pela bula Regimini militantes Ecclesiae (“o governo da igreja militante”). Tratou-se do seu
reconhecimento oficial e não da sua criação.
48
Movimento político-religioso reformista cristão do século XVI liderado inicialmente pelo monge
agostiniano Martinho Lutero.
49
Concílio ecumênico da Igreja Católica. Realizado na cidade italiana de Trento e convocado pelo papa
Paulo III, no ano de 1542.
50
Também conhecida como Contrarreforma.
51
GOUVEIA, António Camões; BARBOSA, David Sampaio; PAIVA, José Pedro (orgs.). O Concilio de
Trento em Portugal e nas suas conquistas: olhares novos. Lisboa: Centro de Estudos de História
Religiosa (CEHR) - Faculdade de Teologia, Universidade Católica Portuguesa, 2014, p. 13 - 14.

19
de “Reforma Católica” (sendo este segundo termo mais apropriado), numa perspectiva
global e universal, assentou-se em quatro pilares: A reorganização da doutrina católica e
da Igreja Católica a partir do centro Romano; A interação profunda entre politica e
religião – uma das dimensões da noção de confessionalização; O disciplinamento e
vigilância da experiência religiosa e do comportamento dos fieis; O encontro entre o
catolicismo europeu e o resto do mundo (conquanto Trento não tenha levado em
consideração realidades extra-europeias, as decisões ali tomadas vieram a ter enorme
52
impacto também em África, na Ásia e na América). De acordo com Sonia Aparecida
Siqueira:

A propagação da fé nas novas terras era vital para a Igreja de Trento


que se voltava para o mundo com sua doutrina de expansão [...]
Embora a Igreja desde o primeiro instante de sua vida histórica tenha
sido missionária, no século XVI essa vocação tomou novo impulso. O
Concílio reafirmara os atributos da instituição eclesiástica: Una, Santa,
Católica e Apostólica [...] Católica e Apostólica. Com isso pusera a
descoberto os fundamentos teológicos da universalidade e do espírito
missionário. Cristo propiciara a redenção do gênero humano sem a
colaboração deste, mas exigira sua cooperação para que pudesse se
salvar. O mistério da catolicidade coincide com os mistérios dos
desígnios supranacionais de Deus sobre a história dos homens. A
Igreja tomara consciência que sua missão era a de unificar os homens
no Corpo Místico. Não podia manter-se fechada. Era de todos e para
todos. 53

Dentro dos propósitos do concílio tridentino, de reafirmação das doutrinas


tradicionais e reorganização do predomínio católico contra o avanço do protestantismo,
54
o projeto missionário e educativo jesuítico assumiu grande relevância. Na altura da
promulgação das decisões do Concílio de Trento, as ideias protestantes já estavam
espalhadas pela Europa Ocidental e Setentrional. E o surgimento da Companhia de
Jesus deve ser pensado, indissociavelmente, como fazendo parte desse contexto
histórico, tendo grande destaque na Reforma Católica, em parte devido à sua estrutura
relativamente livre (sem os requerimentos da vida na comunidade nem do ofício
55
sagrado), o que lhes permitiu certa flexibilidade de ação. Sem sombra de dúvida, a
Companhia de Jesus foi um tentáculo da Reforma Católica. Talvez seja a comunidade

52
GOUVEIA; BARBOSA; PAIVA, O Concilio de Trento em Portugal e nas suas conquistas: olhares
novos... p. 16.
53
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 27.
54
SANTOS, Fernanda. A Companhia de Jesus e o Concílio de Trento: aspectos pedagógicos da contra-
reforma. Revista Tempos e Espaços em Educação, 2014, p. 210.
55
SANTOS, A Companhia de Jesus e o Concílio de Trento: aspectos pedagógicos da contra-reforma... p.
215.

20
religiosa que mais bem aplicou as diretrizes reformadoras de Trento, tanto pela
formação rigorosa que era dada aos futuros jesuítas, quanto pela relação de submissão
ao centralismo romano da Igreja e dos Estados aliados. 56
Ao iniciar-se o século XVI, a situação do clero era particularmente dramática, a
começar pela frequente ausência de vocação sacerdotal e qualificação profissional dos
57
curas paroquiais. A Igreja Católica em Portugal estava inserida na avaliação de um
quadro geral de decadência moral feita (ou denunciada) pelos humanistas, como
consequência de um desgaste institucional observado ao longo do século XV. Muitos
eram os problemas enfrentados em território português (crise de vocação dos padres,
afastamento de suas paróquias, bispos pouco atuantes, fraco trabalho de evangelização
entre os fiéis), problemas que atingiam o clero secular e as ordens monásticas e
mendicantes existentes. Diante da crise institucional e sacerdotal instalada houve
58
distanciamento do rigor da doutrina cristã ocorrido na religiosidade popular, de forma
que somente com a chegada das ordens religiosas modernas - especialmente a
Companhia de Jesus – e com as repercussões do Concílio de Trento, foram detectadas
alterações graduais desse cenário. 59
Nesse período, a receptividade e participação de Portugal na Reforma da Igreja
Católica foram acompanhadas de sua predisposição para tal. Portugal nasceu da luta
contra os muçulmanos, a reconquista estava na subestrutura de sua história. O
significado religioso do empreendimento avivou o cristianismo nas etnias hispano-
visigóticas, primeiros elementos da nacionalidade portuguesa, um catolicismo belicoso
que se mantinha vivo, incorporou-se à própria visão da ação. Lá estavam homens que
eram produto de uma sociedade cristã militante. 60
A criação da Companhia de Jesus personificou a Reforma Católica, e também,
por outro lado, a cultura renascentista, assentando o seu ensino no estudo das
humanidades e das ciências. A ação jesuítica - marcada pela ousadia no contato com
outros povos e outras culturas, especialmente de regiões longínquas - expressou o

56
COSTA, Célio Juvenal. A Companhia de Jesus: racionalidade e civilização. Ponta Grossa: IX
Simpósio Internacional Processo Civilizador, Tecnologia e Civilização, 2005, p. 2.
57
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: Moral, Sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Campus, 1989, p. 9.
58
TAVARES, Célia Cristina da Silva. A Cristandade Insular: Jesuítas e Inquisidores em Goa (1540 -
1682). Niterói: Tese de Doutorado em História – Universidade Federal Fluminense, 2002, p. 98.
59
TAVARES, A Cristandade Insular: Jesuítas e Inquisidores em Goa (1540 - 1682)... p. 99
60
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 20.

21
modelo de homem renascentista idealizado pela cultura humanista que os missionários
jesuítas foram capazes de encarnar. 61
Na caracterização da Companhia de Jesus destaca-se seu fundador, Inácio de
Loyola, profundamente romanista e totalmente devotado ao papa. Inácio é descrito
como homem da ação e da escrita. Os membros da Ordem, como seu fundador,
valorizavam e estimavam a palavra escrita. A Companhia de Jesus em sua origem e
expansão no século XVI demonstrou significativo domínio das letras, as cartas
significavam um importante elemento de união ou unidade da ordem diante na expansão
em territórios longínquos.
Quanto ao seu fundador, Inácio de Loyola: Nascido em 1491, em Azpeitia, região
basca ao norte da Espanha. Era filho de família cristã da nobreza rural. Foi batizado
como Iñigo (posteriormente mudou seu nome, passando a assinar Inácio). Iñigo López
de Loyola ambicionava a glória militar, mas no ano de 1521, em uma batalha contra
tropas francesas na cidade espanhola de Pamplona, o soldado teve uma de suas pernas
estraçalhada após ser atingida por uma bala de canhão, ficando gravemente ferido.
Durante o longo período de invalidez e recuperação, a partir de leituras sobre a vida dos
santos teve início sua disposição em se dedicar a Deus. Sendo este episódio basilar para
o nascimento da Companhia de Jesus. O primeiro grupo era formado por Ignácio de
Loyola e seis estudantes da Universidade de Sorbonne, em Paris - Francisco Xavier,
Pedro Fabro, Diego Laínez, Alfonso Salmerón, Simão Rodriguez e Nicolás Bobadilla. E
possuía um rigor quase militar, em resposta à reforma protestante.
Ao fundar uma ordem religiosa diferente, ou seja, predominantemente
missionária, ao que parece, Inácio de Loyola entendia que cada um dos que formavam
aquele grupo inicial deveria ter disposição para ser enviado aos pontos mais “perdidos”
e distantes da terra e justamente nesta dispersão é que deveriam encontrar aquilo que os
mantinha unidos. 62 Segundo Adone Agnolin:

[...] a Companhia de Jesus se especializou na coleção, elaboração e


difusão de informações. Uma vasta literatura impressa, nascida da
seleção – rigorosamente prevista e fundamental para a estratégia
missionária dos jesuítas – de uma grande massa de informações
contidas nas cartas jesuíticas, alimentou uma duradoura relação entre a
Companhia e o público europeu, aumentando nesse último uma

61 61
SANTOS, A Companhia de Jesus e o Concílio de Trento: aspectos pedagógicos da contra-reforma...
p. 215.
62
BINGEMER, Maria; NEUTZLING, Inácio; DOWELL, João (orgs.). A Globalização e os Jesuítas:
origens, história e impactos. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 9.

22
curiosidade nunca apagada em relação a um exótico maravilhoso que
encontrava, todavia, seu lugar nos sonhos já tradicionais e já sonhados
pelas culturas europeias. Esta vasta literatura impressa alimentou,
também, as fantasias de gerações inteiras de jovens que, sonhando as
aventuras e o martírio em razão da fé, foram recrutados dessa maneira.
Mas, depois do Concílio de Trento, no movimento contra-reformista
de institucionalização geral dos impulsos de renovação da vida cristã,
se impôs uma canalização e um controle das aspirações místicas que
alimentavam o novo sonho missionário e seus projetos de tipo
utópico. Não foi uma institucionalização decidida de uma vez por
todas. Tratava-se, todavia, de um imperativo e de uma necessidade de
controle que revela, por outro lado, a intensidade dos sonhos e das
aspirações que caracterizavam certas ordens missionárias (e não só). 63

Loyola teve a atitude própria dos reformadores da época tridentina: Compreender


as necessidades, estudar os problemas da realidade, analisar a situação, e diagnosticar a
natureza da “enfermidade”. Sintonizado com o momento, demonstrava a preocupação
básica de que não se perdessem os valores perenes, e que estes passassem ao mundo em
formação, aceitando-se o novo sem se deixar arrastar por ele. E os inacianos buscavam
ir ao espírito das coisas, fixar-se no fim por que foi instituída cada coisa e depurá-la das
aderências do tempo, atacando pontos nevrálgicos de cada estado e grupo social. Com
uma teologia oposta ao luteranismo e ao calvinismo, ofereciam às almas uma nova
espiritualidade, não porque tenham inovado, mas no sentido de retorno às fontes da
tradição, conciliando progresso e fidelidade. Eram menos importantes os aspectos
exteriores da religião - dignidades, liturgia, usos eclesiásticos - que o interesse pela
reforma das almas e pela sua submissão a Deus, dando um novo acento à meditação e às
práticas. Daí parece que o sucesso de sua atuação e a rapidez com que ganhou o mundo
decorreu de sua própria estrutura: uma instituição moderna que sintetizava as tendências
dominantes na vida espiritual do tempo. Havia muito do idealismo, mas também,
paralelamente muito de realismo aceito e incorporado na sua organização e no seu modo
de atuar. 64
A Companhia de Jesus - por sua organização/estrutura e modo de atuar -
representa uma das congregações mais “enigmáticas” e mais controversas da história do
cristianismo, recebendo diferentes leituras e estereótipos que muitas vezes não se
harmonizam com os fatos históricos, limitando-se a ficcionalidade. Quanto a esta
questão, ao tratar da “diabolização” dos Jesuítas, José Franco informa que:

63
AGNOLIN, Adone. Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual
americano-tupi (Séculos XVI – XVII). São Paulo: Humanistas Editorial, 2007, p. 220.
64
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 33 – 34.

23
[...] o aspecto mais poderoso, em termos do impacto deformador, da
imagiologia produzida pelo processo de mitificação é precisamente a
figuração dos Jesuítas, no extremo, como a própria encarnação do
mal, de se terem deixado encantar pela força demoníaca,
transcorrendo para tal um longo e secreto percurso iniciático. São,
pois, a própria negação do nome pelo qual são chamados
qualificativamente: Companhia de Jesus. Com base neste axioma e
nesta crença que o mito afirma, os textos antijesuíticos pombalinos
passaram a referir o seu instituto religioso como Companhia
denominada de Jesus, de maneira a pôr em evidência precisamente a
ousadia, a astúcia desta pretendida nomeação por uma organização
que seria, na verdadeira essência, a antítese do nome sagrado que
ostentava como disfarce da sua onticidade. A companhia é dada como
a encarnação diabólica mais acabada, na medida em que todos os
males atribuíveis ou recenseáveis no mundo, todos os pecados e todas
as possíveis e imagináveis suspeitas afloradas ao pensamento humano
foram imputadas aos jesuítas. Tão sugestivo quadro, o de uma
instituição tão susceptível, tão permeável à incorporação de toda
ilicitude, de toda a desumanidade, não poderia deixar de ser visto, no
limite, como a manifestação proteiforme do mesmo mal. [...] Estamos
perante um produto acabado da construção de uma ficção que se faz
passar por indubitavelmente verdadeira, ficção construída no passado,
mas que apresenta uma virtualidade explicativa e uma função
mobilizadora no presente e para o futuro [...] o mito é dado como uma
proposta de explicação de uma realidade, no caso uma realidade
percepcionada na sua negatividade.” 65

Os jesuítas se destacaram pelo empenho (fruto de disciplina espiritual e


comportamental) que tiveram no empreendimento das missões, ocorridas em escala
global na era dos descobrimentos (ou das grandes navegações). Segundo de Paulo
Assunção, a ordem atuou de forma marcante “mesclando conservadorismo e
humanismo”. 66
Luiz Felipe Baeta Neves, em sua obra “O combate dos soldados de
Cristo na terra dos papagaios (colonialismo e repressão cultural)”, aponta que:

A Companhia de Jesus foi fundada para difundir a Palavra


especialmente a povos que não a conheciam – e por meio de uma
socialização prolongada. Dirige-se a homens que não são, por tanto,
iguais a si – e quer transformá-los para incorporá-los à cristandade.
Duas diferenças primeiras: não são padres e não são cristãos. Uma
semelhança: são homens. É esta semelhança somada àquelas
diferenças que dão a possibilidade e o sentido do plano catequético. A
catequese é, então, um esforço racionalmente feito para conquistar
homens; é um esforço para acentuar a semelhança e apagar as
diferenças (pelo menos a segunda delas).67

65
FRANCO, O Mito dos Jesuítas em Portugal, no Brasil e no Oriente (séculos XVI a XX)... p. 285 - 286.
66
ASSUNÇÃO, A terra dos Brasis: a natureza da América Portuguesa vista pelos primeiros jesuítas
(1549-1596)... p. 63.
67
NEVES, Luiz Felipe Baeta. O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios (colonialismo e
repressão cultural). Rio de Janeiro - RJ: Forense Universitária, 1978, p. 45.

24
Uma das principais marcas dos jesuítas (senão a principal) é a obediência. A
Ordem foi organizada de forma quase militar - em conformidade com o “espírito
militar” de seu fundador - e seus “combativos” membros sentiam-se “soldados de
Cristo” ou “soldados da igreja” em missão. Missão sem fronteiras que exigiria
adaptabilidade e resistência mental e física. E não faltaram jovens dispostos a
evangelizar e dar a própria vida por essa causa na África, Ásia e América.
Ao abordar questões relacionadas às posições políticas e militares conflitantes
entre os religiosos da Companhia de Jesus, o historiador Serafim Leite evoca que “os
jesuítas do Brasil defendiam a bandeira portuguesa, os jesuítas do Paraguai, a bandeira
espanhola”, entendendo também, complementarmente, que a Companhia estava acima
desse tipo de luta por bandeiras, sendo superior como corporação religiosa
internacional. E essa internacionalidade da ordem relacionava-se ao quarto voto, o voto
de obediência ao papa, no qual se encontrava o compromisso de mobilidade em direção
68
as terras ocupadas por populações que deveriam ser trazidas para a cristandade.
Segundo Marcia Amantino, “apesar de estarem ligados diretamente ao seu superior e ao
Papa em função de seu quarto voto, deviam, na medida do possível e de seus interesses,
obediência aos reis que representavam nas áreas das conquistas.” 69
No que tange à internacionalidade da Ordem, a “rede internacional” dos jesuítas
foi muito fortalecida durante os anos de 1580 a 1640, quando ocorreu a União Ibérica,
transformando-se no que Gruzinski denominou de “Monarquia católica”. Segundo o
autor, a partir daí, os continentes foram reunidos, aproximados, ou conectados
desenvolvendo “várias formas de governo, de exploração e de organização social;
confrontando, de maneira às vezes brutal, tradições religiosas totalmente distintas”. E,
para viver nas variadas sociedades coloniais e também para governa-las, entendeu-se
que cada qual tinha um papel dinâmico na estrutura imperial e através das redes
internacionais uma nova sociedade emergia. A Companhia de Jesus estava inserida
nessas estruturas e nessas redes até mesmo por conta de suas características
supranacionais. 70
A expansão ultramarina, com a descoberta de novas terras americanas e a abertura
de rotas comerciais na África e na Ásia, fazia parte de um cenário onde se desenvolvia

68
AMANTINO; FLECK; ENGEMANN. A Companhia de Jesus na América por seus colégios e
fazendas: Aproximações entre Brasil e Argentina (Século XVIII)... p 12-13.
69
AMANTINO, Marcia. A Companhia de Jesus na cidade do Rio de Janeiro: o caso do Engenho Velho,
século XVIII. Jundiaí – SP: Paco, 2018, p. 16.
70
GRUZINSKI, Serge (2001, p. 185) apud AMANTINO; FLECK; ENGEMANN, A Companhia de Jesus
na América por seus colégios e fazendas: Aproximações entre Brasil e Argentina (Século XVIII)... p. 14.

25
uma revolução comercial e cultural justificadora da ação de religiosos imbuídos de
profundo fervor religioso. A conjuntura social da transição do período feudal para a
modernidade transformara Inácio de Loyola e seus primeiros discípulos em “guerreiros
da fé”, que tinham como meta salvar o povo cristão do suposto abandono espiritual em
que viviam. A coroa lusitana estava preocupada com o domínio das vastas terras
coloniais e do controle social na metrópole e nas terras de além-mar, e os seguidores de
Inácio de Loyola, com uma ação pragmática junto aos fiéis europeus no que tangia à
assistência em hospitais e ao controle dos hereges, conseguiram demonstrar seu
comportamento virtuoso por meio da pregação e da prática dos exercícios espirituais.
Colaboravam fervorosamente para a construção do edifício cristão, facilitando a
71
necessária união de toda a cristandade. Um Império não se constrói e persiste só com
a força das armas, a Coroa-Estado português mobilizou, também com finalidades
políticas, instituições religiosas, como a própria Companhia de Jesus, para missionar
nas suas colónias. 72
Neste contexto, faz-se necessário que se tenha em mente que a escrita de cartas era
o único recurso de comunicação à distância dessa época, funcionando como importante
meio de compreensão do que estava acontecendo no âmbito da Missão. Ao examinar a
produção e troca de correspondência entre os missionários jesuítas do século XVI e seus
superiores, Londoño informa que:

Até a expulsão da Companhia, no Brasil e no Pará-Maranhão,


superiores, padres e irmãos não deixaram de escrever cartas, informes,
relatórios e crônicas em que se recolheu a vida e o cotidiano da
Companhia nas colônias portuguesas da América. Suas cartas foram
se acumulando em diversas casas de governo e hoje se encontram nos
arquivos de Roma, Lisboa, Évora, Rio de Janeiro e Madrid [...] Esse
acervo, mesmo espalhado, se constituiu na referência para a
recuperação do passado dos jesuítas no Brasil e da construção de sua
memória. Esta recuperação passou a ser feita depois da restauração, na
segunda metade do XIX. No caso do Brasil, o padre Serafim Leite,
consciente da importância destas cartas e do imaginário que elas
alimentavam a respeito da Companhia nos primeiros anos da
colonização lusa no Brasil, além de utilizá-las para a redação de sua
História da Companhia de Jesus no Brasil, continuou o trabalho já
iniciado por historiadores leigos do IHGB, como Capistrano de Abreu,

71
ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios jesuíticos: O cotidiano da administração dos bens divinos. São
Paulo: EDUSP, 2004, p. 90.
72
SANTOS, João Marinho. A escrita e as suas funções na missão jesuítica do Brasil quinhentista. Artigo
- Universidade de Coimbra, Departamento de História da Faculdade de Letras / História (São Paulo) v.34,
n.1, p. 109-127, jan./jun. 2015, p. 122.

26
que desde 1885 se tinha empenhado em localizar e publicar cartas dos
padres Nóbrega e Anchieta. 73

As cartas dos jesuítas provenientes da América portuguesa, sob as formas de


cópias e de traduções para línguas europeias, cumpriam inclusive ordens expressas de
Inácio de Loyola, e em finais de 1551, já se pensava em mandar imprimir as cartas dos
jesuítas da América portuguesa. 74
Por realizarem a comunicação entre pessoas afastadas por longas distâncias
(mensageiro e o destinatário), mediante as condições da época, ocorriam problemas
quanto à chegada da mensagem. Com as comunicações, no século XVI (e depois), que
recorriam aos transportes marítimos de energia eólica, os naufrágios, as retenções de
embarcações em portos de escala, as alterações das rotas (por vezes, devido às ameaças
da pirataria e do corso) suscitavam frequentes obstáculos à chegada das cartas. Retenha-
se que, então, não era só no Atlântico ou no Índico que as circunstâncias adversas da
navegação interferiam, passando-se o mesmo no Mediterrâneo, enquanto, por terra, as
dificuldades de transporte também não eram menores. O risco da correspondência
escrita se perder ou ser violada levou os jesuítas a usarem cifras e selos, além de outras
normas estabelecidas. Mesmo assim, muitas cartas se perderam, significando um
empobrecimento do manancial histórico. Causava sempre o desgosto a notícia da perda.
75

As cartas escritas na América portuguesa com destino ao superior em Roma e a


outros lugares do império revelam a necessidade que os padres tinham de se comunicar
com outros membros da Ordem. Nelas, encontramos relatos de acontecimentos,
agradecimentos, pedidos etc. Informações relevantes para a reconstrução histórica desse
período. Conforme se observa,
Os jesuítas, autores de inúmeras cartas, narraram as práticas religiosas,
os ensinamentos empreendidos e os êxitos ou fracassos obtidos.
Nesses relatos, surgem as primeiras informações detalhadas sobre a
terra dos brasis onde começavam a pregar, revelando uma consciência
histórica apurada [...] Responsáveis pela intermediação entre a vida
social e as representações simbólicas do cristianismo, os loiolanos
decodificaram um novo meio natural, desconhecido do europeu, e
participaram da concretização de uma formulação para o

73
LONDOÑO, Fernando Torres. Escrevendo Cartas. Jesuítas, Escrita e Missão no Século XVI. São
Paulo: Artigo – PUC-SP / Revista Brasileira de História, vol. 22, nº 43, 2002, p. 12.
74
SANTOS, A escrita e as suas funções na missão jesuítica do Brasil quinhentista... p. 115.
75
SANTOS, A escrita e as suas funções na missão jesuítica do Brasil quinhentista... p. 116.

27
entendimento do mundo natural e da existência humana na América
portuguesa, numa ótica cristã. 76

Segundo Charlotte de Castelnau-L’Estoile, “a correspondência tinha assim um


papel estrutural na organização da Companhia de Jesus: ela reforçava a identidade do
grupo disperso, permitia adaptar as regras às circunstâncias locais e dava ao centro o
meio de exercer uma forma de controle.” 77
E de acordo com Luísa Tombini Wittmann,
“a correspondência era elemento essencial da identidade inaciana, e também do controle
dos membros da Companhia de Jesus espalhados pelo mundo.” 78
Mais do que cartas, “oficiais ou oficiosas”, de carácter obrigatório, os jesuítas não
estavam impedidos de escrever cartas breves e espontâneas, como forma de romper com
a solidão e a saudade, apontando para a necessidade que os jesuítas tinham de se
corresponderem entre si. Tais cartas circulavam no exterior e também no interior da
“Província do Brasil”. 79
Naturalmente, estas “cartas de consolação” ou de “saudade”
eram lidas e relidas pelos destinatários. 80
José Eisenberg observa, a respeito da “reprodução e expansão das atividades
missionárias jesuíticas”, que elas “dependiam também da publicidade de seus feitos para
além dos limites da Companhia, buscando assim o reconhecimento daqueles que lhes
prestavam ajuda política e financeira: o papado e os reis católicos europeus.” 81
No que diz respeito ao uso do português por parte dos primeiros Jesuítas na
América portuguesa, é de se constatar que uma percentagem considerável das suas
correspondências ou são traduções ou são apógrafos, por se haver perdido grande parte
dos originais. Por outro lado, o estatuto social e cultural dos vários destinatários da sua
epistolografia também os obrigava a recorrer a outras línguas em uso na Europa, como o
latim e o castelhano. Predominantemente, Manuel da Nóbrega utilizava o português,
embora também soubesse o castelhano, por ter estudado alguns anos em Salamanca, e

76
ASSUNÇÃO, A terra dos Brasis: a natureza da América Portuguesa vista pelos primeiros jesuítas
(1549-1596)... p. 17.
77
CASTELNAU-L’ESTOILE (2006, p. 76) apud MELO, Hadassa Kelly Santos. Discursos da
construção do ‘outro’: Os povos indígenas nos Sermões do Padre Antônio Vieira (1652 -1662). João
Pessoa - PB: Dissertação de Mestrado em História – Universidade Federal da Paraíba – UFPB, 2013, p.
104.
78
WITTMANN, Luísa Tombini. Adaptabilidade jesuítica e tradução cultural nas aldeias da América
Portuguesa. Revista História e Cultura, Franca, v. 3, n. 2, 2014. p. 22.
79
Segundo Gilberto Freyre, na obra Casa-Grande & Senzala, “os jesuítas não só foram grandes escritores
de cartas - muitas delas tocando em detalhes íntimos da vida social dos colonos - como procuraram
desenvolver nos caboclos e mamelucos, seus alunos, o gosto epistolar”. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande
& Senzala, 48ª edição. São Paulo: Global Editora. 2003, 48.
80
SANTOS, A escrita e as suas funções na missão jesuítica do Brasil quinhentista... p. 17 – 18.
81
EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno. Belo Horizonte: UFMG,
2000, p. 50.

28
com frequência, citava em latim as Sagradas Escrituras. Conhecendo os padres jesuítas
bem o latim, com mais facilidade se expressariam num português culto e,
correspondendo-se os mais importantes com dignitários da corte portuguesa, seria
natural que se esforçassem por escrever bem. E, se é verdade que o português, como
língua, não bastava aos jesuítas para se comunicarem com o exterior e muito menos
para gerarem entendimento com os nativos de outras culturas, no âmbito da
82
missionação, não significa que lhe conferissem pouca importância. E podemos
observar que,

A cultura letrada no Brasil teve início no século XVI, com os


inúmeros depoimentos em diferentes línguas, que se seguiam à carta
de Caminha. Na virada para o século seguinte, já se contava com
volumosos tratados reunindo informações sobre a natureza da região,
os povos nativos, a colonização e seus conflitos. 83

A configuração missionária da Companhia de Jesus retirou sua primeira razão de


ser das Constituições, dos Exercícios Espirituais e demais provisões. Mas esta
genealogia conceitual esteve obviamente inserida num contexto histórico mais amplo e
num horizonte epistemológico mais abrangente, em uma perspectiva marcadamente
eurocêntrica, 84 sendo necessário afirmar que,

Logo depois do reconhecimento pelo papa em 1540, a Companhia de


Jesus foi identificada com as necessidades da coroa portuguesa, pois
para os membros daquela nova ordem, a conversão e a missionação
eram peças basilares de seus dogmas. Para o rei português, D. João III,
enviá-los a diferentes partes de seu império era a chance para atuar
efetivamente no cerne das justificativas da expansão: a conversão de
infiéis. 85
O poder político e o poder religioso eram indissociáveis para os portugueses, 86 o
Rei e o Papa convergiam em seus objetivos. De acordo com Luiz Felipe Baeta Neves87

82
SANTOS, A escrita e as suas funções na missão jesuítica do Brasil quinhentista... p. 112 – 113.
83
MOREAU, Filipe Eduardo. Os índios nas cartas de Nóbrega e Anchieta. São Paulo – SP: Annablume,
2003, p. 23.
84
RODRIGUES, Luiz; HARRES, Marluza. Experiência Missioneira: Território, cultura e identidade.
São Leopoldo - RS: Casa Leiria, 2012, p.15.
85
AMANTINO, A Companhia de Jesus na cidade do Rio de Janeiro: o caso do Engenho Velho, século
XVIII, p. 15.
86
“[...] na história do mundo ocidental, as relações entre Estado e Igreja variaram muito de país a país e
não foram uniformes no âmbito de cada país, ao longo do tempo. No caso português, ocorreu uma
subordinação da Igreja ao Estado através de um mecanismo conhecido como padroado real. O padroado
consistiu em uma ampla concessão da Igreja de Roma ao Estado português, em troca da garantia de que a
Coroa promoveria e asseguraria os direitos e a organização da Igreja em todas as terras descobertas [...]”
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006, p. 60.
87
NEVES, Luiz Felipe Baeta. O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios (colonialismo e
repressão cultural). Rio de Janeiro - RJ: Forense Universitária, 1978. p. 28.

29
“a expansão ocidental é, na realidade, bifronte. Supõe uma incorporação territorial, além
da incorporação espiritual”. Na primeira metade do século XVI, Portugal estava
avançando na conquista diversos territórios, era um período de grande progresso para
reino português. Desejando conciliar a expansão comercial e territorial com o avanço da
fé cristã, D. João III convidou a Ordem Inaciana para Portugal. Um dos objetivos era a
presença dos jesuítas nas terras recentemente conquistadas e eles fariam dedicado
trabalho no território português e em diversas regiões do globo para onde seriam
enviados. E, destacamos, em conformidade com Cylaine Neves, que “as tarefas da
Companhia variaram bastante de lugar para lugar, mas podem ser agrupadas em duas
áreas básicas: na Europa, o cuidado pedagógico; nas “colônias”, o missionarismo era o
objetivo principal.” 88
Referente à Companhia de Jesus em Portugal, sua instalação aconteceu em 1542,
tendo sido confirmado como provincial Simão Rodrigues em 1546, e já no século XVI,
foram fundados vários colégios: Em Coimbra (1547), em Évora (1553), em Braga e no
Porto (1560), em Bragança (1561), em Angra e Funchal (1570) e o número de
admissões crescia: em 1544, 26; em 1546, 38. No entanto, apresar da expansão, ou por
causa dela, surgiu uma crise: Como Simão Rodrigues ditou muitos procedimentos na
formação dos postulantes ao ingresso na Ordem - antes da consolidação das
“Constituições” elaboradas por Loyola - o fundador da Ordem tinha dúvidas sobre a
prudência do provincial dos jesuítas em Portugal. E foi em 1552 que as tensões
chegaram ao auge, através da destituição de Rodrigues, acusado de quebra de disciplina.
Logo depois foi chamado de volta a Roma, onde enfrentou Loyola e exigiu um tribunal
para julgar sua administração, e o resultado foi sua proibição de voltar a Portugal.
Apesar da perda de muitos discípulos e religiosos, em meio a essa crise, a tendência de
expansão da Ordem se manteve em Portugal: Em 1560 havia 350 jesuítas; em 1574,
552. 89
O colégio de Santo Antão (que começou a funcionar em 1553), em Lisboa,
principal instituição administrativa da Companhia em Portugal, juntamente com a Casa
Professa de São Roque, tornou-se um centro formador de jesuítas, atendendo alunos
externos e sendo responsável por envio de missionários. Aliás, os colégios jesuíticos em
Portugal tornaram-se centros de recrutamento para os trabalhos evangélicos no reino e
nos domínios portugueses, e ocorria que muitas vezes o número de candidatos superava

88
NEVES, A vila de São Paulo de Piratininga: fundação e representação... p. 130.
89
TAVARES, A Cristandade Insular: Jesuítas e Inquisidores em Goa (1540 - 1682)... p. 101 - 102.

30
a capacidade de treinamento desses colégios, ao menos no período inicial de formação
da Ordem. A Companhia também era responsável pelas universidades de Coimbra
(1555) e Évora (1559). Desse modo, os jesuítas rapidamente consolidaram sua presença
na educação e no ensino em Portugal, fomentando a ação evangelizadora e missionária
no próprio reino, na América, na África e no Oriente. 90
Em 1549, com o propósito de continuar a colonização na América, juntamente
com a sua evangelização, a Coroa de Portugal enviou à América aqueles que dariam
continuidade ao processo colonizador e também os primeiros jesuítas para trabalharem
religiosamente, seriam os primeiros da Ordem a pisarem na América. A Coroa
portuguesa, além de apoiar, financiou as primeiras missões jesuíticas no território
ultramarino “brasileiro”.
Na América portuguesa, o projeto de colonização estava determinado a desfazer a
condição indígena e refazê-la segundo duas tendências europeias que estavam unidas: a
teológica e a mercantil. Havia o interesse comercial, no qual o mercantilismo se impôs
como sistema econômico e também era real a oportunidade de espalhar o “poder” da
Igreja pelo mundo, amenizando com isso as perdas geradas pela Reforma de Martinho
91
Lutero, no que se utilizou para a conversão de novas almas a Companhia de Jesus.
Desse modo,

Conscientes como estavam aqueles religiosos da sua especial vocação,


não é maravilha que andassem continuamente acesos em vivo fervor
das missões, e sentissem os corações bater de santo alvoroço e
suspensão, quando chegava cada ano o momento de serem escolhidos
os que se haviam de embarcar nas ribeiras do Tejo, e seguir com o
rumo no Oriente ou no Ocidente à busca de almas para Deus e para o
céu.92

No século XVI, século de sua fundação, em meio à era das grandes navegações,
no contexto da Reforma e Contrarreforma, a Companhia de Jesus - fundada por Inácio
de Loiola - empreendeu missões pelo globo, basicamente como catequizadores e
educadores, e também exercendo influência em questões de ordem social. Neste âmago
encontrou-se a América portuguesa.

90
TAVARES, A Cristandade Insular: Jesuítas e Inquisidores em Goa (1540 - 1682)... p. 102.
91
NEVES, A vila de São Paulo de Piratininga: fundação e representação... p. 150 – 151.
92
RODRIGUES, Francisco. História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal. Porto:
Apostolado da Imprensa, 1931, p. 520.

31
1.2. A CHEGADA DOS JESUÍTAS À AMÉRICA PORTUGUESA E SEUS
OBJETIVOS

As Américas, também conhecidas como Índias, eram espaços


privilegiados para um jesuíta comprometido com sua salvação e a dos
demais. Ali estaria em contato permanente com povos selvagens,
desconhecedores das palavras sagradas, com naturezas também
selvagens e que precisavam, da mesma forma que os homens, de
alguém que as domassem por meio do conhecimento. 93

No ano de 1500, os navegadores portugueses chegaram ao território que


atualmente conhecido como Brasil, mais especificamente onde hoje se encontra a cidade
de Porto Seguro, na Bahia, marcando o início da conquista do território brasileiro. Ação
que nos leva a pergunta: O que queriam europeus nesse Novo Mundo?
Os primeiros europeus que chegavam destacavam-se do Portugal do decurso do
século XVI. Traziam - às vezes inconscientemente – impressas as formas culturais da
sociedade barroca em que se haviam formado, pois o ser humano tende a reproduzir os
elementos da cultura na qual foi formado. A cultura barroca na qual se ajustara a
personalidade portuguesa era uma mescla de ativismo e de sonho. A idealização da vida
e o chamamento irresistível para o mundo real eram paradoxos, parte da individualidade
psicossocial do português. A certeza de posse de uma verdadeira vida espiritual gerava
em muitos homens um cruzadismo difuso que se sublimava nas missões e se norteava
muitas vezes para a América, África ou para o Oriente. O dinamismo característico dos
homens desse tempo os impelia à aventura de atravessar o oceano e construir uma nova
sociedade onde nada havia. Esse espírito aventureiro era fruto, em boa medida, de um
espírito mercantil, que em grande parte possibilitou a existência de um Império
94
Português, Ultramares. Para quem? Para Deus e para o rei? A resposta parece se
entrelaçar entre essas duas esferas, a divina e a humana. Acerca da descoberta e
ocupação, Ronald Raminelli nos informa que:
Com a descoberta, os portugueses promoveram, de forma incipiente,
viagens de exploração e comércio para nomear, mapear e localizar
reservas de pau-brasil ao longo da costa. Antes de 1530, porém, não se
produziram escritos que ampliassem os conhecimentos para muito
além das cartas de Caminha. Sem ouro ou especiarias, a conquista era
de pouca monta, razão do descuido. O soberano investia esforços na

93
AMANTINO; FLECK; ENGEMANN, A Companhia de Jesus na América por seus colégios e
fazendas: Aproximações entre Brasil e Argentina (Século XVIII)... p. 13.
94
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 18 - 19.

32
rota inaugurada por Vasco da Gama, enquanto a Terra de Santa Cruz
permanecia como reserva de madeira corante, explorada tanto por
portugueses quanto por franceses. Além da cartografia, os portugueses
pouco se dedicavam a descobrir e a descrever as grandezas do Brasil.
No reinado de D. João III estabeleceu-se, de fato, uma política de
ocupação das novas terras, que se iniciava com a expedição de Martin
Afonso de Souza ao litoral americano. 95

Conforme a abordagem de Rodrigo Ricupero, em seu livro “A formação da elite


colonial: Brasil, c.1530-c. 1630” - obra que explora o período da colonização, tratando
da conquista e ocupação dos territórios americanos, cronologicamente situado à partir
1530 - destacamos que:

O contato inicial dos portugueses com as terras americanas foi


frustrante em pelo menos um aspecto: o comercial, como se percebe
nas palavras de Pero Vaz de Caminha, [...] "nela, ate agora, não
pudemos saber que haja ouro, nem prata", tampouco indicava outros
produtos passiveis de comercio na sua famosa carta. Para homens que
iam em breve atingir um dos maiores centros comerciais da Ásia, com
inúmeras mercadorias e diversos circuitos comerciais estabelecidos, as
terras recém-descobertas não passavam de escala aproveitável em tão
longa viagem. [...] Dessa maneira, não espanta o relativo descaso com
as terras dessa margem do Atlântico nos anos seguintes, quando
apenas a extração do pau-brasil atraiu certa atenção. 96

Posteriormente, em 1534, o território começou a ser povoada de forma mais


abrangente, num momento de efetiva colonização da América portuguesa, através do
sistema de Capitanias Hereditárias. O povoamento ocorria predominantemente e
vagarosamente ao longo da costa. Cenário que seria modificado em 1549, quando da
fundação de Salvador.
Como fracassava a colonização da América portuguesa por meio das capitanias
hereditárias, Tomé de Souza foi encarregado pelo monarca D. João III para vir ao
território americano e assumir o posto de governador-geral da “colônia”. 97 Com ordens

95
RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo:
Alameda, 2008, p. 33.
96
RICUPERO, A formação da elite colonial: Brasil, c.1530-c. 1630... p. 93 – 94.
97
Segundo Boris Fausto: “A decisão tomada por Dom João III de estabelecer o governo geral do Brasil
ocorreu em um momento em que alguns fatos significativos aconteciam com relação à Coroa portuguesa,
na esfera internacional. Surgiam os primeiros sinais de crise nos negócios da índia, sugeridos no uso da
expressão "fumos da índia" - ou seja, fumaça da índia, pondo em dúvida a solidez do comércio com o
Oriente. Portugal sofrerá várias derrotas militares no Marrocos, mas o sonho de um império africano
ainda não estava extinto. No mesmo ano em que Tome de Sousa foi enviado ao Brasil como primeiro
governador geral (1549), fechou-se o entreposto comercial português de Flandres, por ser deficitário. Por
último, em contraste com as terras do Brasil, os espanhóis tinham crescente êxito na exploração de metais
preciosos, em sua colônia americana, e, em 1545, haviam descoberto a grande mina de prata de Potosí.
[...] Se todos esses fatores podem ter pesado na decisão da Coroa, devemos lembrar que, internamente, o
fracasso das capitanias tornou mais claros os problemas da precária administração da América lusitana.

33
do rei, ele deveria organizar e fundar na Bahia uma cidade-fortaleza onde ficaria a sede
98
deste governo, São Salvador. Em seu já mencionado livro, sobre a formação da elite
colonial, Rodrigo Ricupero, dentre outros temas coloniais, também aborda o fracasso
inicial da colonização portuguesa, segundo o historiador:
A fase inicial da ocupação portuguesa, ou seja, entre a doação das
chamadas "capitanias hereditárias" e a criação do Governo-geral, foi
tradicionalmente avaliada como um fracasso, salvo as conhecidas
exceções de Pernambuco e São Vicente. Pondere-se, contudo, que
dadas as· condições limitadas e o tamanho da tarefa, não é de
desprezar que mesmo com todas as dificuldades, as capitanias
"primárias" conseguiram cumprir, mesmo que parcialmente, uma
etapa inicial da luta pela posse das terras, tornando-se assim, para usar
uma expressão militar, "cabeças de ponte", servindo de apoio a novas
investidas e ampliando o conhecimento sobre as terras e suas
possibilidades de aproveitamento. [...] A tarefa de ocupação e defesa
das novas terras exigia também a montagem de uma estrutura
produtiva, para além do extrativismo do pau-brasil, que viabilizasse
economicamente o empreendimento, para tanto se buscou ocupar as
terras e explorar a força de trabalho indígena, mais ou menos
compulsoriamente. Assim, nas palavras de Gandavo, "os moradores
desta costa do Brasil todos tem terras de sesmaria dadas e repartidas
pelos capitães da terra, e a primeira coisa que pretendem alcançar são
escravos", e foi exatamente esta busca desenfreada que rapidamente
turvou as relações estabelecidas com grande parte dos índios que
inicialmente haviam aceitado pacificamente a presença dos
portugueses. 99

Rodrigo Ricupero também informa que,

o novo sistema de governo adotado se sobrepôs ao regime anterior das


chamadas "capitanias hereditárias", sem extingui-lo, porem este foi
paulatinamente perdendo a importância que tivera ate então. A
desbaratada capitania da Bahia, sede do Governo-geral, foi comprada
pela Coroa aos herdeiros de Francisco Pereira Coutinho, tornando-se a
primeira capitania real. Portanto, a partir de 1549, ocorreu uma
reorganização político-administrativa, as capitanias passaram a ser de
dois tipos, particulares ou da Coroa, e acima delas a estrutura do
Governo-geral. Dessa forma, quando a colonização portuguesa
retomou a ofensiva, conquistando novas áreas ao longo da costa do
Brasil, essas conquistas foram organizadas como capitanias reais. No
fim do século XVI, a Coroa já contava com cinco capitanias contra
seis privadas e, trinta anos depois, após a conquista da Costa Leste-
Oeste, já eram oito reais contra seis privadas. 100

Assim, a instituição do governo geral representou, de fato, um passo importante na organização


administrativa da Colônia.” FAUSTO, História do Brasil... p. 46.
98
Chamada no tempo de sua fundação de São Salvador da Bahia de Todos os Santos.
99
RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial: Brasil, c.1530-c. 1630. São Paulo: Alameda,
2009, p. 100.
100
RICUPERO, A formação da elite colonial: Brasil, p. 104.

34
Tomé de Souza teve a incumbência de estabelecer as bases administrativas e
organizacionais da sociedade brasileira. Também faria de suas responsabilidades a
promoção de meios para cristianização dos nativos. O Governo Geral como modelo
administrativo utilizado pela metrópole seria uma grande força contra a resistência
indígena. Como observa Ricupero:

Pode-se dizer que os objetivos do Governo-geral no período, dentro


do contexto de defesa das terras, era derrotar a resistência indígena,
derrotar os inimigos externos e acabar com a instabilidade reinante ao
longo da costa, para tanto a administração colonial deveria impor a
justiça régia e aumentar a centralização e o controle do processo de
colonização por parte da metrópole, além de colaborar no
desenvolvimento das estruturas produtivas, criando ou consolidando
as bases para que a própria colônia pudesse garantir sua segurança.101

A capital da América portuguesa seria fundada em uma Bahia que se encontrava


102
em estado de abandono. Em 1549, existia uma vila onde hoje fica o Farol da Barra,
em Salvador, também uma capela, dedicada a Nossa Senhora da Graça, mantida por
Diogo Álvares, o Caramuru, e Catarina Paraguaçu, sua esposa. Viviam naquele lugar
cerca de cem homens brancos buscando sobreviver cercados por aproximadamente
cinco mil nativos tupinambás. Desenvolver sua tarefa em um lugar tão menos
importante do que, por exemplo, as Índias, não era uma atividade prazerosa para Tomé
de Souza.103 Convém acrescentarmos que,
Segundo as crônicas da época, Tome de Sousa era um fidalgo sisudo,
com experiência na África e na índia. Chegou à Bahia acompanhado
de mais de mil pessoas, inclusive quatrocentos degredados, trazendo
consigo longas instruções por escrito conhecidas como Regimento de
Tome de Sousa. As instruções revelam o propósito de garantir a posse
territorial da nova terra, colonizá-la e organizar as rendas da Coroa.
Foram criados alguns cargos para o cumprimento dessas finalidades,
sendo os mais importantes o de ouvidor, a quem cabia administrar a
justiça, o de capitão-mor, responsável pela vigilância da costa, e o de
provedor-mor, encarregado do controle e crescimento da arrecadação
[...]Vinham com o governador-geral os primeiros jesuítas - Manuel da
Nóbrega e seus cinco companheiros -, com o objetivo de catequizar os
índios e disciplinar o ralo clero de má fama existente na Colônia. [...]
O início dos governos gerais representou também a fixação de um
polo administrativo na organização da Colônia. Obedecendo às
instruções recebidas, Tome de Sousa empreendeu o longo trabalho de
construção de São Salvador, capital do Brasil até 1763. 104

101
RICUPERO, A formação da elite colonial: Brasil... p. 107.
102
Posteriormente a cidade do Salvador passou a ser o maior polo demográfico econômico do século
XVI.
103
CORDEIRO, A grande aventura dos jesuítas no Brasil... p. 51.
104
FAUSTO, História do Brasil... p. 46 – 47.

35
Neste contexto, mediante a vinda do primeiro governador geral, o jovem padre
jesuíta Manuel da Nóbrega foi nomeado para participar da fundação da Província do
Brasil. Juntamente com ele vieram os padres Antônio Pires, Leonardo Nunes, João de
Azpilcueta Navarro, e os irmãos Vicente Rodrigues e Diogo Jácome, posteriormente
ordenados. A comitiva portuguesa desembarcou na América, após 56 dias de viagem,
em 29 de março de 1549, já estabelecendo os primeiros contatos com os indígenas.
Pouco tempo depois, no dia 31 de Março do mesmo ano, o padre Nóbrega, superior do
grupo, realizou uma missa, pois as naus lusitanas carregavam sua cultura e religião
quando aportavam no litoral da América.

Acrescentamos, conforme Rodrigo Ricupero, que,

A Coroa portuguesa não possuía um modelo único de administração


para seus territórios ultramarinos, que foram sendo organizados
segundo modelos próprios e adaptando-se as realidades encontradas.
As opções administrativas adotadas devem, portanto, ser entendidas a
partir da analise de certos fatores como, por um lado, a realidade local
das diversas áreas, e, por outro, a dissidência em relação a Metr6pole
e as dificuldades de comunicação, como se percebe pela comparação
entre as várias partes do Império. [...] Assim, por exemplo, no
Marrocos as várias praças permaneceram por todo o período
governadas de forma independente, sem que surgisse um governo-
geral comum; o mesmo aconteceu com as áreas ocidentais da África
Negra, que se organizaram, contudo, em áreas administrativas mais
amplas, como o Reino de Angola ou o arquipélago do Cabo Verde. Ao
contrario, no Oriente, e criado, praticamente desde o início da
conquista, um governo único para todas as possessões situadas entre o
Cabo da Boa Esperança e o Extremo Oriente. [...] As soluções
administrativas adotadas não eram imutáveis, sofrendo alterações, de
maior ou menor vulto, que, em face das dificuldades encontradas,
tentavam dar conta das necessidades da empresa de conquista,
garantindo a dominação de largas áreas para a Coroa portuguesa.
Dessa maneira, as tentativas de delegar à administração dos novos
territórios para os vassalos, isentando a Coroa da responsabilidade
direta, fracassaram tanto no Brasil como, posteriormente, em Angola,
sendo substituídas por novas formas de gestão. [...] Na América, a
Coroa foi obrigada pelos acontecimentos a assumir um papel maior do
que até então tinha desempenhado na colonização do Brasil, criando,
em fins de. 1548, o chamado Governo-geral, com um objetivo
imediato: defender a presença portuguesa nas terras americanas frente
à reação indígena, ajudada ou não pelos franceses. 105

Quanto à missão neste contexto, ela foi o principal meio pelo qual “o espirito da

contra‑reforma” penetrou nas “colônias ibéricas”. As missões seriam “uma tática

105
RICUPERO, A formação da elite colonial: Brasil, c.1530-c. 1630... p. 103.

36
essencial da contra‑reforma como um todo”. A importância da missão para a

propagação do Catolicismo Tridentino na América portuguesa deveu‑se ao fraco poder

de controle dos poucos prelados diocesanos. Ou seja, tratava-se de uma consequência da


lenta e tardia criação de bispados, das longas vacâncias e da pouca qualificação do clero
local. Essa deficiência do clero diocesano teria assim sido atenuada pela ação
missionaria regular. O catolicismo local seria (se não fosse a influência dos religiosos,
sobretudo jesuítas) apenas uma “religião circunscrita à esfera das famílias poderosas”. A
gradual tridentinização - tanto na Europa quanto nas Américas - passaria essencialmente
pela demonização da vida cotidiana das populações, demonização que era ligada
diretamente a uma aculturação das populações locais por via da sua cristianização e
também a uma missão salvacionista. Traços fundamentais da Reforma Católica,
106
presentes tanto na Europa quanto nos domínios ibéricos do ultramar, e também
incluímos que,

Quando os primeiros jesuítas chegaram ao Brasil, em março e


1549, o Concílio de Trento estava prestes a encerrar sua
primeira fase. Reunira-se em 1545, e quatro anos depois seria
adiado em razão da peste que assolara a cidade-sede do
encontro; reconvocando em 1562, após várias tentativas
malogradas, concluiria seus trabalhos no ano seguinte. Muitos
anos se haviam passado desde a primeira reunião e outros eram,
em sua grande maioria, os sacerdotes presentes à sessão final,
mas pouco se modificara no ânimo dos conciliares:
aparentemente não tomaram qualquer resolução de afronta ao
protestantismo, já bem espalhado pela Europa, conservando a
Igreja numa posição defensiva, ou, como diria Delumeau, de
"cidade sitiada" [...] Defesa do catolicismo frente ao avanço dos
protestantes, eis o que parece ter marcado as decisões do
principal Concílio moderno, eixo da assim chamada Contra-
Reforma [...]. 107

É importante destacar que a missão religiosa nunca foi autônoma em terras


“brasileiras”, no sentido de que a decisão de ir ao território, o lugar de atuação, as ações
relacionadas ao trato dos indígenas etc., não eram prerrogativas exclusivas dos padres, que

106
GOUVEIA; BARBOSA; PAIVA, O Concilio de Trento em Portugal e nas suas conquistas: olhares
novos... p. 159 – 160.
107
VAINFAS, Trópico dos pecados: Moral, Sexualidade e inquisição no Brasil... p. 7.

37
eram, acima de qualquer coisa, súditos do rei, devendo remeter-se às decisões da Coroa.
108

Acompanhando o militar português Tomé de Souza na missão de reinício da


colonização, o missionário Manuel da Nóbrega chegou à cidade de Salvador aos 31
anos de idade. A anterior e emblemática chegada de Pedro Álvares Cabral à Bahia,
altamente significativa para as narrativas históricas futuras, não representou muita
diferença na vida dos nativos que habitavam a região (hoje conhecida como Brasil) há
séculos.
As novas realidades encontradas na América exigiriam modelos próprios de
administração e adaptação também para os jesuítas, que estavam interessados nas
viagens para locais como a China e o Japão. Ao que parece, a “colônia” do Atlântico
Sul inicialmente não despertou muito interesse, motivo pelo qual a Companhia não
enviou a Bahia Simão Rodrigues, mas um novato dedicado e de pouca utilidade para os
colégios europeus, devido a sua gagueira. Porém, Nobrega demonstraria competência e
dedicação na missão, que aliados à disposição e ao preparo de seus companheiros,
produziriam, por meio de esforço e constância, uma boa interação com os nativos,
levando a América Portuguesa a tornar-se rapidamente um dos centros mais importantes
para os jesuítas. 109
Em 1551 meninos órfãos de Portugal chegam à América portuguesa com um
grupo de padres jesuítas, sendo um encontro intercultural de meninos europeus
(educados nos moldes ocidentais, tidos como “civilizados”) com nativos vistos como
“selvagens” de um novo mundo. Chegando ao Brasil, os meninos foram distribuídos e
encaminhados para os colégios jesuítas da “colônia”, no que a escola da Bahia tornou-se
Colégio dos Meninos de Jesus. O Colégio havia sido fundado no final de 1549, e estre
os alunos internos estavam órfãos, indígenas e mamelucos, mas as aulas eram também
frequentadas por alunos externos, em geral filhos de colonos.
Os meninos órfãos estavam treinados para auxiliar os jesuítas na evangelização, e
foram importantes colaboradores dessa obra. Em carta escrita da Bahia pelo padre
Nóbrega,110 em Julho de 1552, selecionamos um dos registros das atividades dos
meninos: “Os meninos desta casa costumavam cantar, pelo mesmo tom dos índios e

108
COSTA, A Companhia de Jesus: racionalidade e civilização. p. 3.
109
CORDEIRO, A grande aventura dos jesuítas no Brasil... p. 16.
110
LEITE, Serafim. Novas cartas jesuíticas: De Nóbrega a Vieira. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1940, p. 32.

38
com seus instrumentos, cantigas na língua, em louvor de Nosso Senhor com que se
muito atraíam os corações dos índios”. De acordo com Luiz Sabeh:

Comparado à extensão territorial do Brasil quinhentista, e à


quantidade de índios com os quais os inacianos não conseguiram
estabelecer contato, o número de missionários nos trópicos era
considerado sempre reduzido e limitado para atender a todas as
necessidades espirituais da terra. Assim, os jesuítas fizeram inúmeras
solicitações de padres da Companhia para a missão e, mesmo com a
chegada de novos jesuítas, a quantidade era tida sempre como
insuficiente para acudir os silvícolas e os portugueses, ou para
obedecerem à determinação régia de sempre haver um padre da
Companhia nas expedições de entrada no sertão. Por esta razão, os
padres pediam também o envio de meninos órfãos de Portugal. Sob
os cuidados dos missionários, seriam educados para a vida religiosa
e, se não tivessem vocação religiosa, poderiam ser preparados para a
lide colonial aprendendo ofícios diversos. 111

A chegada do padre José de Anchieta à América portuguesa ocorreu em 13 de Julho


de 1553, em seus 19 anos de idade, quando o padre Nóbrega requisitou mais homens para
a missão na América e o provincial da Ordem, Simão Rodrigues, designou José de
Anchieta (de saúde frágil), juntamente com outros religiosos da Ordem. Anchieta
deixou os estudos religiosos e veio com seus companheiros na armada do segundo
governador-geral da América portuguesa, Dom Duarte da Costa (recém-nomeado pelo
rei dom João III), aportando em Salvador, fazendo parte de uma nova leva de jesuítas a
pisar em terras brasílicas.
O clero que se instalou na América portuguesa - desenvolvendo a catequese e
fortalecendo a frágil e inicial estrutura da Companhia de Jesus na “colônia” - fazia parte
de uma política mais ampla do governo português, que então estava associada ao
Padroado Régio. 112Verifica-se que,

A península ibérica mandou os primeiros jesuítas às suas colônias


americanas das duas Coroas em duas ocasiões [...] Em 1567 ficaram
formalmente estabelecidas a província lusitana do Brasil e a hispânica
das Índias Ocidentais. Tinham a clara tarefa de evangelização de
naturais e colonos. A primeira, através das “aldeias” brasileiras e as
reducciones hispânicas, que tendiam à concentração dos naturais, em
experiências já realizadas no continente por outras ordens religiosas e
com resultados variados. Os europeus, enquanto isso, receberam nas

111
SABEH, Luiz Antonio. Colonização salvífica: os jesuítas e a Coroa portuguesa na construção do
Brasil (1549-1580). Curitiba: Dissertação de Mestrado em História - Programa de Pós-Graduação em
História - Universidade Federal do Paraná, 2009, p. 130.
112
SILVA, Emãnuel Luiz Souza. O padre Luís da Gram e a Inquisição no Brasil colonial quinhentista.
Revista de História - Universidade Federal da Bahia - UFBA, 2012, p. 9.

39
cidades uma ampla educação que abrangia do ensino das primeiras
letras à educação superior universitária. 113

Baeta Neves entendeu que escrever sobre a história da Companhia de Jesus no


Brasil é escrever sobre a história de uma “missão”.114 De fato, ao abordarmos a história
da Companhia de Jesus na América Portuguesa, ou tratarmos das ações missioneiras
desenvolvidas por homens como José de Anchieta e Manoel da Nóbrega estamos nos
referindo uma missão, com objetivos definidos. Mas é preciso cuidado para que não seja
feita uma leitura uniforme deste conceito ou ideal, que além de atos religiosos (ou de fé)
que se expressaram coletivamente, também abarca conflitos por conta de diferenças.
Como observa Marcia Amantino:
É oportuno lembrar que no interior da ordem, tanto na Europa como
nas outras partes do mundo onde viviam, seus membros tinham
opiniões conflitantes e formas diferentes de encarar a fé e as práticas
cotidianas envolvendo ou não assuntos ligados à religião [...] Apesar
da formação única dada a todos os religiosos, cada um trazia em si sua
formação prévia, suas origens e vida pretéritas e estas influenciavam
sua forma de ver o mundo ou de tentar modifica-lo. 115

Os jesuítas chegaram à América portuguesa - alinhados ao espírito reformista e


mercantil - com uma missão e possuíam firmes objetivos relacionados à difusão do
Cristianismo. Na região “recém-descoberta” que estava muito longe da modernidade da
burguesia europeia, incutir os valores católicos da Coroa em meio às crenças dos
nativos era uma tarefa a ser cumprida. Como o próprio Manuel da Nóbrega revelava em
suas cartas, a instrução era pensada para os indígenas, muito embora tenha se estendido
também aos cristãos, os quais seriam formados como novos missionários e assumiriam
a função de catequizadores. 116

1.3. OS INDÍGENAS QUE VIVIAM NA AMÉRICA PORTUGUESA

De acordo com Maria Regina Celestino de Almeida, os povos indígenas “tiveram


participação essencial nos processos de conquista e colonização em todas as regiões da
América. Na condição de aliados ou inimigos, eles desempenharam importantes e

113
AMANTINO; FLECK; ENGEMANN, A Companhia de Jesus na América por seus colégios e
fazendas: Aproximações entre Brasil e Argentina (Século XVIII)... p. 54.
114
NEVES, O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios (colonialismo e repressão
cultural)... p. 25.
115
AMANTINO, A Companhia de Jesus na cidade do Rio de Janeiro: o caso do Engenho Velho, século
XVIII... p. 17 - 18.
116
CARLI, Ranieri. Educação e Cultura na História do Brasil. Curitiba: Ibepex, 2010, p. 15.

40
117
variados papéis na construção das sociedades coloniais e pós-coloniais.” Faremos
nesta etapa da dissertação uma abordagem abrangente acerca dos indígenas ou dos
grupos étnicos que os jesuítas encontrariam na América portuguesa quinhentista e com
os quais estabeleceriam relações de fé e negócios, no âmbito da atividade missionária.
Atualmente podemos lidar com novas perspectivas acerca dos indígenas do
século XVI, perspectivas que vão além do tradicionalismo e do positivismo. Nos textos
antropológicos, as sociedades indígenas já foram chamadas de “tribos” ou “grupos
tribais”, atualmente, de “grupos étnicos”, “comunidades indígenas” etc. Os povos
indígenas possuíam condições de vida muito diferentes do modo de vida dos europeus,
de forma que, no estudo destes povos, é prudente que se tenha cuidado com as
armadilhas interpretativas ou ideológicas, sendo que a maior delas talvez seja a ilusão
de primitivismo. Também é recorrente a tentativa de enquadrar os indígenas na pré-
história, enquadramento que também desconsideramos neste trabalho.
Quando nos referimos aos povos do “Novo Mundo”, não os visualizamos na
perspectiva do atraso ou do primitivismo, pois compreendemos que se tratava de povos
bastante estruturados, que, assim como os europeus, possuíam conjuntos inteiros de
práticas sociais, culturais e tecnológicas, práticas que deram forma e cor a tudo o que
fizeram. 118
Nesta abordagem acerca dos nativos da América portuguesa, a temática
eurocêntrica acaba sendo lembrada. Pois no eurocentrismo (que ainda estava em
desenvolvimento no período colonial) a Europa é colocada como modelo desejável de
civilização para as demais, criando uma relação de dualidade entre o europeu e o outro.
Inegavelmente, em pleno século XXI, ainda há o peso do olhar eurocêntrico,
preconceitos e superficialidades quanto à figura do indígena. Predominantemente,
parece que os indígenas do século XVI, no século XXI ainda são vistos de forma
apática, passiva, secundária, em função do poder e cosmovisão do colonizador, sem o
reconhecimento de seus costumes, ou de suas manifestações religiosas, de inegável
119
contribuição para a formação da cultura brasileira. Segundo Norma Telles, trata-se
de “uma história estanque, marcada por eventos, eventos significativos de uma
historiografia basicamente europeia,” sendo apropriado atentarmos para o seguinte fato:

117
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2010, p. 9.
118
SEHWARTZ, Stuart; LOCKHART, James. A América Latina na época colonial. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002. p. 17.
119
TELLES, Norma. A imagem do índio no livro didático: equivocada, enganadora. A questão indígena
na sala de aula: subsídios para professores de 1° e 2o graus. São Paulo: Brasiliense, 1987.

41
Em geral, os depoimentos do século XVI possuem um elevado grau de
etnocentrismo, o que leva a não preocupação com a complexidade (e
com a alteridade) cultural dos povos indígenas. Os europeus
construíram uma imagem dos índios à sombra de sua própria cultura,
selecionando informações e deixando de acreditar em eventos
contrários à lógica que procuravam impor. 120

Segundo Ronald Raminelli:


As imagens dos povos indígenas construídas pelos europeus nos
primeiros séculos da colonização constituem um tema [...] quase
inexplorado. A bibliografia sobre o período preocupou-se em estudar
as formas de dominação e os primeiros estabelecimentos agrícolas
voltados para o comércio europeu. Os historiadores não priorizaram os
temas teológicos e filosóficos em torno da “assimilação” dos
ameríndios ao imaginário ocidental. Descartaram, assim, uma análise
mais consistente sobre a relação entre brancos e índios, colonizadores
e colonizados.121

De acordo com Natalino,122 “as narrativas coloniais ainda constituem as


principais fontes de pesquisa utilizadas pelos historiadores, no estudo da América antiga
e colonial, dada a escassez de fontes indígenas”. Como podemos observar, de acordo
com Ronald Raminelli:
A vida cotidiana dos nativos encontra-se relatada nos documentos
administrativos, nas cartas jesuíticas e nas crônicas sobre o Brasil.
Inexistem, porém, tratados, debates ou querelas em torno da natureza
do gentio. O canibalismo, as cerimônias gentílicas e a nudez não
suscitam discussões moralistas ou teológicas na metrópole. Os lusos
abordaram os descobrimentos sob o prisma filosófico ou teológico
senão em raros momentos [...] Os portugueses procuraram conhecer os
costumes indígenas para melhor conquista-los e menosprezaram uma
discussão teológica em torno das práticas presentes no cotidiano
indígena. Os costumes exóticos não passaram despercebidos, mas
ganharam uma abordagem superficial. Na correspondência entre os
jesuítas, os ameríndios eram denominados de bárbaros, selvagens e
demoníacos. 123

Do ponto de vista literário - com o olhar voltado para a construção da identidade


indígena - em conformidade com Janice Cristine Thiél, percebemos que as narrativas
coloniais também podem ser pensadas nos seguintes termos:
O estudo da literatura envolve a leitura crítica de discursos
construtores de identidades e alteridades. Documentos históricos,
crônicas de viagem, textos legais ou textos literários são portadores de
juízos de valor por parte de cronistas, legisladores ou narradores,

120
MOREAU, Os índios nas cartas de Nóbrega e Anchieta... p. 25.
121
RAMINELLI, Ronald. Imagens da Colonização: A representação do índio de Caminha a Vieira. Rio
de Janeiro, Zahar Ed, 1996, p. 13.
122
NATALINO, Eduardo. As tradições históricas indígenas diante da conquista e colonização da
América: transformações e continuidades entre nahuas e incas. São Paulo: FFLCH/USP, 2004.
123
RAMINELLI, Imagens da Colonização: A representação do índio de Caminha a Vieira, p. 140 – 141.

42
valores formadores de uma comunidade interpretativa. Ler discursos
significa ler também lacunas discursivas resultantes de uma
construção de identidade que envolve inserções e exclusões. Neste
espaço lacunar encontramos os textos produzidos pelos indígenas.
Estes, construídos pela visão e pela voz do outro por vários séculos,
dialogam conosco por meio de contra-narrativas que desmistificam as
identidades a eles atribuídas. 124

Nas abordagens culturais existem críticas com relação à utilização indiscriminada


das crônicas europeias como fontes de pesquisa, sem que se descarte a importância de
utilizá-las para a compreensão das categorias que proporcionaram a apreensão de
antigas sociedades ameríndias. Entendemos ser equilibrada uma abordagem das
narrativas coloniais somadas a interpretações ou reconstruções posteriores que visam
ampliar criticamente as percepções e registros deixados pelos europeus quinhentistas.
Efetuar a análise das sociedades e dos costumes indígenas não é uma tarefa
simples, demanda excessivo trabalho, porque se lida com povos de culturas muito
diferentes da nossa e sobre as quais existiram e ainda existem fortes preconceitos. Isso
se reflete, em maior ou menor grau, nos relatos escritos por cronistas, viajantes e padres,
especialmente os jesuítas. São encontradas nesses relatos diferenciações entre indígenas
com qualidades ou características positivas (favoráveis) e indígenas com qualidades ou
características negativas (desfavoráveis), e isto, em grande mediada, de acordo com o
menor ou maior grau de resistência que ofereciam. Sendo necessário ressaltar também a
falta de dados, não decorrente nem da incompreensão, nem do preconceito, mas da
dificuldade de obtenção. 125 Acrescenta-se que,
Por diferentes que sejam as descrições de missionários e viajantes,
holandeses e franceses, protestantes, católicos, capuchinhos e jesuítas,
todas as primeiras crônicas do Brasil colonial constroem a alteridade
ameríndia ao passo que verificam a identidade europeia, no momento
em que as descobertas colocam em xeque as verdades consagradas
pelos eruditos e pelos santos. Em suas páginas os cronistas revelam o
grande debate que estava se travando na Europa a respeito da natureza
dos selvagens e, consequentemente, de seu "estado de natureza".
Trata-se, de fato, do processo de releitura da identidade ocidental
diante das novas humanidades que a descoberta apresentava, através
da construção das alteridades destas. O código religioso era,
obviamente, privilegiado: a distância entre o Eu e o Outro foi medida
pelo parâmetro da Fé, cuja presença ou ausência, ou, melhor, cujo
grau de intensidade marcava a distância entre a civilidade e a
barbárie. 126

124
THIÉL, Janice Cristine. Pele silenciosa, pele sonora: a construção da identidade indígena brasileira e
norte-americana na literatura. Curitiba: Tese de Doutorado em Letras - Universidade Federal do Paraná,
2006, p. 1.
125
FAUSTO, História do Brasil... p. 38.
126
POMPA, Cristina. Para uma antropologia histórica das missões... p. 118.

43
Os estudos arqueológicos evidenciam que os indígenas estavam presentes no
território brasileiro muito antes da ocupação portuguesa. Estimativas apontam a
presença de milhões de habitantes indígenas na época do chamado “descobrimento do
Brasil”. Neste período, a partir das faixas litorâneas, ocorreram os contatos entre os
europeus e os indígenas, predominantemente, genericamente e linguisticamente
denominados tupis-guaranis, povos que eram organizados em aldeias. Evidentemente
que,

Os europeus que começaram a se instalar na América a partir do final


do século XV não encontraram um continente vazio. Fazia milhares
de anos que estava [...] ocupado por uma população que se
apresentava distribuída por inúmeras sociedades, organizadas das mais
diferentes maneiras, fossem pequenos grupos de caçadores e coletores,
aldeias agrícolas autônomas ou politicamente articuladas ou, ainda,
estados sustentados por técnicas de plantio intensivo. Estavam
instaladas e adaptadas aos ambientes mais variados, como florestas e
savanas tropicais [...] Orientavam sua existência conforme as mais
diferentes maneiras de conhecer o homem e o universo [...] Todo esse
extenso mosaico cultural não tivera sempre a mesma feição. Era
resultado de um longo desenvolvimento histórico, que se iniciara com
a entrada dos primeiros povos da América. Os arqueólogos se
encarregaram da reconstituição desse passado pré-colonial das
sociedades indígenas. 127

Ajustados culturalmente ao ambiente no qual viviam, os habitantes originários


das terras do continente americano, hoje conhecidas como Brasil, não contavam com a
intensidade das relações que surgiriam com a chegada dos agentes da colonização.
Grandes eram os impactos e transformações que aguardavam essas culturas com
sistemas sociais, línguas e crenças não europeias, cognominados genericamente de
“índios” ou “indígenas”.
O termo “índios”, rotulação dos conquistadores se aplicava as populações mais
diversas, desde o norte até o sul do continente americano. A rotulação era uma
simplificação para populações que diferiam umas das outras, tanto no aspecto físico
como nas tradições. Um exemplo extremo e ilustrativo acerca das diferenças são os
incas (da colonização espanhola) e os tupinambás. Inicialmente foi fácil aos
colonizadores identificarem os indígenas: eram todos aqueles que tinham encontrado na
América. A necessidade posterior de definir com certa precisão os nativos da América

127
MELLATI, Índios do Brasil, p. 17 – 18.

44
128
se deu em grande medida por questões de ordem prática. No tocante à falta de
diferenciação que se tinha/fazia dos indígenas:

Em princípio, o indígena é visto como um grupo homogêneo, sem


diferenças significativas quer quanto à “raça”, cultura, origem ou
qualquer outro traço distintivo. Portanto, não há “índios” no sentido de
pluralidade e especificidades culturais ou “raciais” ou históricas.
Quando se fala de “índio”, o plural é relativo a uma coleção de
indivíduos que podem entre si nomear-se de maneira distinta, mas
que, para o português, é, no essencial, uma mesma e única realidade.
O colonizador português – ou, pelo menos o catequista jesuíta – tende,
coerentemente, a nominar os locais por um coletivo: gentio [...]
Apagam-se as diferenças culturais tribais e as diferenças
interindividuais. 129

A partir da constatação supracitada, surgem as seguintes questões: É apropriado


que o termo “índio” continue a ser usado? O termo deve ser substituído por outro mais
adequado? É fato que ele estava presente no imaginário europeu do século XVI e que
sofreu mudanças de conotação ao longo da história. Entendemos que o mesmo pode ser
utilizado (ou reutilizado) a partir de uma ressignificação, quando conectado a ideia de
povos ou nações originários e não ao entendimento de uma unidade étnica e cultural. No
livro “A América Latina na época colonial”, de Stuart Sehwartz e James Lockhart
encontramos as seguintes informações:

“índio” é, naturalmente, um nome equivocado para os povos


encontrados pelos ibéricos. Não só o nome originou-se de uma
concepção geográfica errônea por parte dos europeus, que se
imaginavam próximos da Índias Orientais; mas também, o que é
muito mais grave, ele não corresponde a nenhuma unidade percebida
pelos povos indígenas. Muitos grupos nada sabiam uns dos outros, e
os que estavam em contato sentiam apenas o tipo de identidade ditada
por afinidades (quando elas existiam) de língua, religião, estilo de vida
e unidade política. Nenhum dos povos tinha uma palavra em sua
língua que pudesse ser traduzida como “índio”; ou seja, era
desconhecido um conceito que distinguisse os habitantes do
hemisfério ocidental dos seres humanos de fora. Em consequência,
não havia tendência de se unirem na resistência comum aos invasores
europeus; em vez disso, cada unidade política buscou a situação mais
vantajosa para si. 130

128
MELLATI, Índios do Brasil... p. 31 – 32.
129
NEVES, O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios (colonialismo e repressão
cultural)... p. 45.
130
SEHWARTZ; LOCKHART, A América Latina na época colonial... p. 53.

45
Ainda de acordo com Stuart Sehwartz e James Lockhart, encontramos mais
informações relevantes que envolvem os indígenas e complementam a construção o
raciocínio anterior:

[...] apesar da variedade e da falta de autoconsciência, os povos do


hemisfério ocidental partilhavam não só o hábitat geográfico como a
experiência comum, que lhes dava algumas características especiais
marcantes em relação aos povos do resto do mundo. A chave é o
relativo isolamento. De todos os grandes ramos etnográficos da
humanidade, e com certeza entre todos os que tinham agricultura,
cidades e grandes unidades políticas, os índios eram os mais isolados
do resto da humanidade. Povos, técnicas e doenças continuaram a
passar de um lado para o outro em toda a grande massa da terra da
Europa-Ásia-África durante séculos incontáveis até os tempos
modernos, enquanto os povos índios, ainda que tenha havido algum
contato esporádico, ficaram por alguns milhares de anos sem contato
contínuo com o resto do mundo habitado. 131

O território a ser “descoberto” por Cabral (e seu grupo) e posteriormente


catequizado pelos jesuítas possuía diversidade de povos e costumes, era habitado por
pessoas que não deixaram registros escritos sobre seu passado por não possuírem a
competência da escrita, o que era, para os colonizadores, sinônimo de atraso. Um
contraste a ser mensurado quanto a isto, é que os jesuítas, que dominavam a escrita,
teriam quando de sua chegada ao novo território, que conviver com os iletrados, os
pertencentes a comunidades ou sociedades que por não possuírem a prática da escrita
seriam estigmatizadas pelo silêncio historiográfico. No entanto, conquanto não
dominassem a escrita, os indígenas possuíam conhecimentos ancestrais (transmitidos
oralmente ou por meio da arte) que transcendiam as letras, e algumas de suas
competências seriam aproveitadas pelos jesuítas. E neste ponto, mencionarmos o
seguinte trecho, do livro “A Globalização e os Jesuítas: origens, história e impactos”:

Nem por isso os evangelizadores deixaram de valorizar todos os


elementos indígenas que lhes pareciam compatíveis com a dignidade
humana e o estilo de vida cristão, em primeiro lugar as línguas
autóctones, estudadas [...] e utilizadas como instrumentos de
catequese, mas também as manifestações artísticas e a organização
comunitária. 132

No litoral da América lusa encontravam-se, com certa facilidade, os nativos do


Novo Mundo, os denominados “tupis”, divididos em diferentes grupos, ocupando

131
SEHWARTZ; LOCKHART, A América Latina na época colonial... p. 54.
132
BINGEMER; NEUTZLING; DOWELL, A Globalização e os Jesuítas: origens, história e impactos...
p. 18.

46
grande parte da costa brasileira, e tendo considerável contato e convivência com os
europeus que desembarcaram no Novo Mundo. Eles habitavam, inclusive, não somente
extensas áreas do litoral, mas também áreas interiores. Júlio Cezar Mellati, ao escrever
sobre “os índios do Brasil”, aponta para a abrangência do nome “tupi”:

O nome “tupi” pode ser usado com três níveis de abrangência. No


sentido mais estrito, é o nome da língua falada pelos indígenas do
litoral quando chegaram os europeus. Em um outro nível, este nome é
agregado ao “guarani”, para denominar uma família linguística, a tupi-
guarani, da qual faz parte a referida língua litorânea. E, num nível
ainda mais elevado, “tupi” é o nome de um tronco linguístico que
inclui a citada família tupi-guarani, além de outras mais. É, pois,
necessário cuidar para que não se confunda os diferentes sentidos do
termo “tupi” [...] O tronco tupi inclui as famílias tupi-guarani,
ariquém, tupari, ramarama, mondé, mundurucu, juruna, maué e aueti.
133

Os jesuítas tiveram consciência da diversidade de povos indígenas que habitavam


as terras coloniais portuguesas da América, estabelecendo desde o início a distinção
entre os tupis-guaranis – povos que falavam línguas de mesma família linguística e
praticavam os mesmos usos e costumes – e os tapuias, que significava o “outro”,
aqueles que não falavam a mesma língua e não praticavam os mesmos costumes, e que
também eram tratados como escravos. Eram distinguidos os grupos segundo o espaço
geográfico que ocupavam e que invariavelmente seguiam a divisão entre o litoral do
território e o sertão. Entre os missionários havia a percepção que o mundo indígena se
dividia em dois grandes grupos culturais, mas ao se referirem ao coletivo utilizavam o
substantivo brasis para designar aqueles grupos étnicos com as quais mantinham contato
regularmente. 134
Não é raro encontrar pessoas que acreditam que todos os indígenas da América
portuguesa falavam o tupi. Essa ideia se deve, provavelmente, a uma supervalorização
da língua e dos tupis em prejuízo dos demais. Na verdade tratava-se de uma língua
predominante no litoral da América Portuguesa, além de ter sido a primeira língua
nativa que os missionários aprenderam e a ela foram se afeiçoando em detrimento de
outras línguas não compreendidas, no que os povos que as falavam eram chamados de
povos de “língua travada”. A Língua tupi não foi somente aprendida, mas também
adotada na catequese pelos missionários, de modo que as populações indígenas

133
MELLATI, Índios do Brasil... p. 61.
134
ASSUNÇÃO, A terra dos Brasis: a natureza da América Portuguesa vista pelos primeiros jesuítas
(1549-1596)... p. 18.

47
possuidoras de outras tradições linguísticas chegaram a aprender o tupi. A primeira
classificação das línguas indígenas da América portuguesa foi aquela que distribuía as
línguas em tupis e tapuias, na medida em que os primeiros colonizadores e missionários
adotavam os próprios preconceitos dos tupis contra os demais, de modo que, enquanto
as línguas classificadas como tupis se relacionavam entre si, as classificadas como
tapuias eram as mais diversas, completamente diferentes umas das outras, e que não
interessava aos missionários conhecer. 135
A política linguística, aplicada pelos jesuítas e encampada pelos colonos
particulares e pelas autoridades régias, refletia estratégias que desabrochavam em outras
frentes coloniais. As “Constituições” da Companhia de Jesus, redigidas e revisadas por
Loyola, contemplavam o aprendizado das línguas não europeias como reforço à
propagação da fé. Nas missões orientais, sobretudo na Índia, a “ciência” das línguas
tornou-se rapidamente um dos focos das atividades dos missionários, alguns dos quais
passaram anos a fio debruçados sobre vocabulários, gramáticas e traduções de
catecismos e manuais de confissão. Esta produção de textos em tâmil, malaialam,
concani, português, latim e castelhano ganhou um considerável reforço com a existência
de uma imprensa em Goa a partir de 1556. Se, na Índia e depois no Extremo Oriente, os
jesuítas depararam-se com tradições literárias e com a escrita em caracteres não
ocidentais, na América portuguesa tanto as línguas quanto as tradições narrativas eram
basicamente orais e os inacianos “reduziram” estas línguas ao alfabeto romano e às
regras gramaticais latinas. Neste sentido, o tupi dos jesuítas, mesmo sendo baseado
concretamente nas variantes da língua falada por indígenas e mestiços sobretudo nas
capitanias de Pernambuco, Bahia, Espírito Santo e São Vicente, constituía, antes de
mais nada, um dialeto colonial. 136
Os motivos relacionados à aprendizagem das línguas vernáculas eram variados.
Um primeiro, frequentemente lembrado nos relatos jesuíticos, dizia respeito à confissão,
pois muitos padres com pouco conhecimento da língua ouviam-na através de
intérpretes. Inclusive o bispo D. Pedro Fernandes Sardinha estranhou, em 1552, que os
jesuítas ouviam a confissão não só de indígenas como também de mestiços por meio de
intérpretes, o que deu o que falar, por ser uma prática nova, nunca usada na Igreja.
Problema que evidentemente se agravou com o transcorrer do século, quando a

135
MELLATI, Índios do Brasil... p. 57 – 59.
136
MONTEIRO, John Manuel. Tupis, tapuias e historiadores: Estudos de História Indígena e do
Indigenismo. Campinas: Tese de Livre Docência – IFCH/Unicamp, 2001, p. 36 – 37.

48
desconfiança que os jesuítas tinham dos mestiços e indígenas desautorizava a mediação
destes em matérias religiosas. 137
Uma segunda questão refere-se à dimensão oral presente na conversão.
Diferentemente das missões orientais, onde a tradução da doutrina em línguas nativas
permitia a sua leitura pelos conversos, na América portuguesa a escrita não cumpria esta
mesma função, antes colocando à disposição dos leitores missionários as fórmulas e os
diálogos a serem postos em ação no encontro entre abarés, ou padres, e indígenas. A
prática da evangelização repousava, sobretudo, na oralidade. Entre os indígenas das
missões, conforme os relatos jesuíticos, a palavra falada em voz alta predominava sobre
a palavra escrita, muito embora os indígenas se mostrassem fascinados com o ato de
escrever. Os jesuítas prestavam atenção às formas retóricas adotadas pelos indígenas
“principais” e, em muitos casos, até imitavam o estilo na pregação do Evangelho. E,
evidentemente, ao adotarem estes métodos, os missionários ficavam expostos às
censuras, à semelhança dos jesuítas no Oriente que se apropriaram de estilos nativos
locais. 138
Ao tratar da etnia temiminó - uma etnia pouco definida pelos autores
quinhentistas - com base na abordagem do historiador John Monteiro, a historiadora
Maria Regina Celestino de Almeida faz menção a questão da etnicidade construída no
contexto de colonização, com um alerta para o fato de que alianças e inimizades
constroem não somente conjunturas, mas também etnias, que podem se definir e afirmar
de acordo com as circunstâncias e interesses dos grupos envolvidos. Segundo a autora,
as informações sobre os temiminós, além de muito limitadas e escassas, estão
praticamente restritas às relações de inimizade com os portugueses e tamoios,
respectivamente, numa situação de guerras intensas e que foi a partir de uma aliança
estreita estabelecida com os portugueses em 1555, quando se aldearam no Espírito
Santo, que começaram a surgir com certo destaque em documentos o termo temiminó
para designá-los. 139 Também, segundo Maria Regina, o historiador espanhol Adolfo
Morales de Los Rios, em seus estudos sobre os tupis, tapuias, tamoios e temiminós,

137
MONTEIRO, Tupis, tapuias e historiadores: Estudos de História Indígena e do Indigenismo... p. 38 –
39.
138
MONTEIRO, Tupis, tapuias e historiadores: Estudos de História Indígena e do Indigenismo... p. 39.
139
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: Identidade e cultura nas aldeias
coloniais do Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 68.

49
enfatiza que os dois últimos pertenciam ao mesmo grupo que se encontrava em rixa no
momento da chegada dos portugueses. 140
A maioria dos povos indígenas americanos concebeu a agricultura mais elementar
a cargo das mulheres e a caça como a principal atividade dos homens. A prática estava
entre as comunidades indígenas da América portuguesa, como os Bororos, cujas
mulheres cultivavam a mandioca. Alguns grupos nem praticavam agricultura elementar
e viviam da pesca, caça e coleta. Isso não significava necessariamente que seu nível de
vida era inferior. Tudo dependia da importância que era dada aos recursos. 141
Outro fator que destacamos são as habitações indígenas. Suas habitações e modos
de habitar eram muito diferentes dos padrões habitacionais encontrados da Europa,
altamente contrastantes. Segundo Jorge Couto, os tupis moravam em habitações
coletivas, grandes estruturas que podiam abrigar até dezenas de indivíduos. “As
habitações coletivas eram edificadas em círculo, dispostas à volta de uma praça central
ou terreiro – que tinha funções comunitárias e rituais – a algumas dezenas de metros
umas das outras.” 142.
O nativo encontrado na América portuguesa (ou no território que viria a se
chamar Brasil), não era propriamente o “índio” da literatura ou do olhar europeu (o
indígena da versão do outro), embora tivesse muitas das características e costumes
parcialmente retratadas por ambos. Saindo do maniqueísmo, 143 não nos cabe interpretá-
los como bons ou maus e até certos ou errados. Para nós, é suficiente neste momento - a
partir das evidências e registros históricos - perceber o ameríndio e o europeu ou o pajé
e o padre como participantes do processo histórico. E também compreendemos,
conforme Maria Almeida, 144
que “há ainda muitas histórias de índios para se escrever e
contar e há, principalmente, muito o que repensar sobre as histórias regionais e do
Brasil, quando se reconhece os índios como sujeitos dos processos nos quais se
inserem.”

140
ALMEIDA, Metamorfoses indígenas: Identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro...
p. 69.
141
BENNASSAR, Bartolomé. La América española y la América portuguesa, siglos XVI – XVIII.
Madrid: Ediciones Akal, 2001, p. 35 – 36.
142
COUTO, Jorge. A construção do Brasil. Ed. Lisboa: Cosmos, 1998, p. 90.
143
Dualismo entre dois princípios opostos, geralmente o bem e o mal.
144
ALMEIDA, Os índios na História do Brasil... p. 160.

50
1.4. A COMPANHIA DE JESUS NA AMÉRICA PORTUGUESA DO
SÉCULO XVI

As visitações realizadas por membros do clero, tanto bispos quanto


jesuítas, eram constantes no Brasil colonial do século XVI. Estas
visitas eram destinadas a observar como andava o estado das almas
em uma determinada localidade, a plantar as sementes do catolicismo,
e a propagar suas doutrinas nos territórios ainda não convertidos ao
seu jugo. Os jesuítas, como dito, ouviam confissões, admoestavam,
levavam os seus ensinamentos, realizavam casamentos, batizavam e
fiscalizavam se o proceder dos moradores estava de acordo com os
princípios cristãos [...] 145

É certo que o saber controlado pela Companhia estava relacionado à ordem de


ideias europeias, mas devemos considerar que o conjunto de ideias europeias vivia,
justamente nesta época, uma crise, e que diante dela e como parte dela, a Companhia
apresentou, incisivamente, um projeto de reforma da sociedade. E também, por outro
lato, a descoberta do Novo Mundo e a ação sobre ele gerou um novo impacto sobre este
universo de ideias. Além de ideias constituídas segundo padrões de reforma europeus,
era no novo espaço americano que transformações ocorreriam por conta da experiência
cotidiana, com as realidades que a América apresentava. 146
Pode-se afirmar que, na América portuguesa,

[...] Em 1549, os missionários encontraram uma região extremamente


carente de recursos materiais indispensáveis para a atividade
missionária. Tão logo se instalaram na terra, os padres começaram a
pedir vacas e escravos ao rei, porque, em muitas capitanias, os
moradores não podiam lhes ajudar a manter as casas da Companhia.
Para as atividades corriqueiras, requisitaram ferramentas, sementes e
livros; além de estanho lavrado para a confecção de caldeirões e
tachos necessários para o preparo da farinha. Às igrejas, foram
solicitados sinos, relógios e ornamentos como batistérios, imagens de
santos e crucifixos. As novas igrejas careciam também de outros
utensílios como cálices, pedras d’ara, retábulos, missais, vestimentas
frontais, toalhas, entre outros. Embora esses pedidos nos pareçam
simples, são um indicativo de que a extrema carência material da
colônia apontava, para os inacianos, que a evangelização dependia de
uma terra aparelhada materialmente [...]. 147

145
SILVA, O padre Luís da Gram e a Inquisição no Brasil colonial quinhentista... p. 18.
146
OLIVEIRA, Carla; MENEZES, Mozart; GONÇALVES, Regina (orgs.). Ensaios sobre a América
Portuguesa. João Pessoa: Ed. Universitária UFPB, 2009, p. 23 – 24.
147
SABEH, Colonização salvífica: os jesuítas e a Coroa portuguesa na construção do Brasil (1549-
1580)... p. 132.

51
Cabe lembrar que, conforme informado na introdução deste trabalho, não nos
restringimos a uma região ou área específica da América portuguesa no século XVI, por
fazermos a análise de um fenômeno que não possui propriamente um caráter fronteiriço
no âmbito da ocupação portuguesa quinhentista.

A atividade missionária na Bahia concentrou-se em torno da sede do governo


geral. Os missionários deslocaram-se para os povoados indígenas existentes nos
148
arredores de Salvador tentando converter e ensinar os nativos. Posteriormente, os
primeiros aldeamentos (lugares nos quais os indígenas seriam reunidos para tornarem-se
cristãos)149 seriam encontrados nas proximidades da cidade de Salvador, ainda no século
XVI. De modo geral, nesse tempo, para todos, a vida na América não era fácil, o
território que posteriormente seria conhecido como Brasil estava longe de ser um
paraíso. Segundo Mary Del Priore:

Viver na colônia nos primeiros dois séculos de ocupação significou


para todos os que aqui aportaram uma sucessão de dias nos quais se
sobrevivia, trabalhando e aprendendo gestos, aperfeiçoando-os e
repetindo-os com o fim de se manter vivo. [...] nossos antepassados
eram “desassistidos”, outra palavra de época para “desatendidos em
quem não se cuidava ou não se fazia caso”. Afinal, tudo parecia
confirmar a opinião de Américo Vespúcio sobre as terras achadas por
Cabral: “Pode-se dizer que nelas não encontramos nada de
proveito.”150

Os colonos vieram para a América portuguesa e se defrontaram com uma


paisagem em que tudo era superlativo: a vastidão dos horizontes, a extensão das praias,
a largura dos rios, a pluralidade dos perigos etc. Para os colonos recém-chegados, a
ocupação da terra significou um grande desafio. Desafio da imensidão. Desafio das
distâncias. Um punhado de homens versus milhares de quilômetros a serem ocupados,
151
defendidos, retidos. A ocupação da terra obrigou o homem a dispersar-se pelo litoral
para mantê-lo português. Dispersos estiveram no isolamento dos sertões por onde se
adentravam muitas léguas, sem concentrações urbanas. 152
Não raro a “solidão” (do
153
colono) deixava marcas profundas em sua espiritualidade. A ausência de centros

148
LEITE, Serafim. Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil. São Paulo: Comissão do IV Centenário da
Cidade de São Paulo - vol I, 1954, p. 46.
149
Através do empenho conjunto de Nóbrega e do governador-geral, Mem de Sá.
150
PRIORE, Histórias da gente brasileira: Volume 1, Colônia. p. 20.
151
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 94 – 95.
152
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 98..
153
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 99.

52
mais povoados, onde cada um seria ao mesmo tempo um freio e um exemplo para a
coletividade, foi extremamente negativa para a conservação da integridade da ortodoxia.
154

A relação dos portugueses com os indígenas era medida pela realização de seus
interesses, uns se tornavam “amigos”, outros “contrários”. Além de não poderem
oferecer perigo, os indígenas teriam que contribuir para a realização de seus objetivos,
os portugueses os queriam como mão-de-obra para todo tipo de trabalho que se
propunham e, mais ainda, como guerreiros contra os contrários, na afirmação da
conquista. No trato diário com os indígenas, os portugueses foram aprendendo, a sua
maneira, o modo de ser do indígena, sua organização familiar e comunitária, suas
ocupações, suas formas próprias de pensar, reagir, valorizar, sua língua, suas crenças,
etc. Ou seja, o português da “colônia” não vivia mais como em Portugal, vivia em um
contexto cheio de novidades geradoras de atitudes e ações novas. Novas terras, novas
gentes, novos empreendimentos. 155
Na América portuguesa, não houve efetivo esforço colonizador nas primeiras
décadas do século XVI, no entanto, a partir do trabalho realizado pelo governo geral, se
abririam novas possibilidades de modificações/transformações graduais mais
significativas. 156
Não há como relatar o início da chamada “colonização” portuguesa sem
mencionar Manoel da Nóbrega. Sua importância é vital nessa empreitada. Do momento
157
em que chegou à Bahia, até sua morte no Rio de Janeiro em 1570, o padre percorreu
grande parte do território que formava a América lusa, definiu a estratégia de conversão

154
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 100.
155
PAIVA, José Maria de. A doutrina feita aos índios: Brasil, século XVI. Ponta Grossa: IX Simpósio
Internacional Processo Civilizador, Tecnologia e Civilização, 2005, p. 7 – 8.
156
De acordo com Boris Fausto: “A instituição de um governo geral representou um esforço de
centralização administrativa, mas isso não significa que o governador geral detivesse todos os poderes,
nem que em seus primeiros tempos pudesse exercer uma atividade muito abrangente. A ligação entre as
capitanias era bastante precária, limitando o raio de ação dos governadores. A correspondência dos
jesuítas dá claras indicações desse isolamento. Em 1552, escrevendo da Bahia aos irmãos de Coimbra, o
Padre Francisco Pires queixa-se de só poder tratar de assuntos locais, porque "às vezes passa um ano e
não sabemos uns dos outros, por causa dos tempos e dos poucos navios que andam pela costa e às vezes
se vêem mais cedo navios de Portugal que das capitanias". Um ano depois, metido no sertão de São
Vicente, Nóbrega diz praticamente a mesma coisa: "Mais fácil é vir de Lisboa recado a esta capitania que
da Bahia"” FAUSTO, História do Brasil... p. 47.
157
Em “Novas páginas de história do Brasil” de Serafim Leite, há a informação de que Nóbrega faleceu
no Colégio do Rio de Janeiro, onde era o primeiro reitor, em 18 de outubro de 1570. Porém, só em 8 de
novembro de 1571 comunica o Provincial de Portugal, Jorge Serrão, a notícia da morte, assim como a
de outros, de Portugal, da Índia e do Japão, para o Vigário-geral (Jerônimo Nadal) ordenar em
Roma os sufrágios que se usam na Companhia pelos que vão falecendo. LEITE, Serafim. Novas
páginas de história do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965, p. 126.

53
que seria utilizada por muito tempo após sua morte, além de ter participado ativamente
da fundação de três importantes cidades do Brasil.
A cultura universitária de Manuel da Nóbrega, seus conhecimentos teológicos e
jurídicos, sua devoção, firmeza e perspicácia, o colocaram como grande nome, também,
na matéria ético-religiosa. Ao lado do carisma específico sacramental, surgem
158
circunstâncias que a integram na própria formação histórica do Brasil.
O missionário instalado na América portuguesa veio a se tornar o primeiro
provincial da ordem na América portuguesa, permanecendo no cargo até 1559 após ser
substituído por Luís da Gram (1559- 1569). Além de Salvador, em 1553, o padre
participou da fundação da aldeia de Piratininga, futura cidade de São Paulo (em 1554) e
também da fundação da cidade do Rio de Janeiro (1565) 159
e na área educacional,
comandou a fundação de escolas em Porto Seguro, Ilhéus, Espírito Santo, São Vicente e
São Paulo de Piratininga, e de colégios no Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia.
Sobre a mudança de provincial - Nóbrega sendo sucedido por Luís da Gram - fez a
mudança o padre Miguel de Torres, Provincial de Portugal, ordenando-a em 1559, sem
a prévia consulta de Diego Laynes, que, ao ser eleito o segundo Geral da Companhia de
Jesus em 1558, confirmou a Nóbrega no cargo para o qual tinha sido nomeado por
Inácio. Pode dizer-se que para Laynes, Nóbrega continuou a ser, se não o provincial, ao
menos o padre de maior consideração na América portuguesa, como se vê da carta do
mesmo Padre Geral a Nóbrega, de 16 de Dezembro de 1562, em que aprova a sua
orientação e as suas propostas. E sobre esta mudança, infere-se que mais que o motivo
de saúde, a mudança foi consequência de uma campanha organizada na Bahia por
clérigos e moradores, contra o provincial, dirigente espiritual do governador Mem de
Sá. Contra a recíproca amizade e mútua colaboração, a campanha tendia a separá-los
com o afastamento de Nóbrega da Bahia. A raiz do caso era a “defesa” dos indígenas, o
seu aldeamento e liberdade, as suas terras (que os moradores cobiçavam), a repartição
dos “índios” que Mem de Sá negara, o que todos atribuíam à direção espiritual do
Provincial da Companhia, e ainda a herança do Caramuru ao Colégio da Bahia, que o

158
LEITE, Novas páginas de história do Brasil... p. 95.
159
Podemos mencionar a influência exercida pela Ordem na América portuguesa quinhentista tomando
como um exemplo a fundação da cidade do Rio de Janeiro. Segundo Marcia Amantino, “a Companhia de
Jesus teve papel crucial na fundação da cidade do Rio de Janeiro e em seu processo de consolidação
territorial ao longo da segunda metade do século XVI”. AMANTINO, Marcia. A Companhia de Jesus na
cidade do Rio de Janeiro: o caso do Engenho Velho, século XVIII. Jundiaí – SP: Paco, 2018, p. 29.

54
cabido levou a mal. Clérigos e moradores queixavam-se de Mem de Sá, dando a
Nóbrega como seu “conselheiro”. 160
Nóbrega escreveu duas respostas indiretas, ambas do dia 5 de Julho de 1559, uma
carta a Torres, Padres e Irmãos de Portugal, em que expõe o apostolado da Companhia,
o estado moral da terra, e a pouca ajuda ou mesmo oposição dos clérigos e outra ao
antigo Governador do Brasil Tomé de Sousa, em que se refere sobretudo ao estado
social e político da terra, à profícua atividade de Mem de Sá e aos “murmuradores”
contra o Governador e contra os Padres da Companhia, por defenderem os indígenas e o
saneamento dos costumes privados e públicos. Já no teor das cartas de Miguel de
Torres, parece insinuar-se que o Provincial deveria ter cultivado a amizade dos cónegos
da Bahia, sem se preocupar com terras para os indígenas da catequese, nem com frades
egressos que aprovavam a antropofagia, nem se meter diretamente em nada no foro
externo, deixando as coisas locais correrem no seu próprio curso. Donde parece deduzir-
se que Torres não conhecia bem o ambiente da Bahia e o padre Nóbrega. 161
Durante o provincialato de Luís da Gram, nos anos a seguir a 1560, fizeram-se na
Bahia grandes batismos solenes, que administrava o bispo D. Pedro Leitão ou o mesmo
Provincial. Estes batismos em multidão foram antes desaconselhados por Nóbrega. Na
nova sociedade cristã, que se formava, o batismo exigia um lar monogâmico estável, e a
cultura nativa ainda estava próxima de recolher os indígenas já batizados e sem a
preparação lenta e provada que se entendia necessária por Nóbrega. Não obstante, os
fugitivos foram sempre menos do que os descidos das matas bravas do sertão para as
aldeias ou vilas; e com os velhos “gentios”, que ficavam nas aldeias, e com os que de
novo se desciam para elas, se dificultava o batismo, dilatando-o para a hora da morte,
exceto um ou outro que dava verdadeiras provas de maturidade. A estes batismos nas
aldeias, presidiam os Missionários; nas vilas e cidades, presidia o respectivo Vigário;
mas até nas vilas, para a recepção do sacramento, a prática mais comum era que os
gentios fossem doutrinados antes nas igrejas da Companhia de Jesus pelos seus padres
línguas. 162
Na América portuguesa, ao passarem os indígenas da “vida gentia” à “vida
cristã” da Igreja existiam duas modalidades de batismo, o batismo de crianças e o

160
LEITE, Serafim. Monumenta Brasiliae III (1558-1563) - Volume 81. Roma: A Patribus Eiusdem
Societatis Edita - Monumenta Historica Societatis Iesu, 1958, p.71 – 72.
161
LEITE, Monumenta Brasiliae III (1558-1563) - Volume 81... p. 72.
162
LEITE, Novas páginas de história do Brasil... p. 100.

55
batismo de adultos, além do batismo de novos e velhos no artigo da morte ou “in
extremis”. 163
E quanto à eucaristia, os indígenas podiam comungar? Comungavam, porém, o
meio de onde provinham, ligados à antropofagia e a poligamia, mesmo quando eram
admitidos ao batismo e à confissão não o eram facilmente à comunhão. Inácio de
Loyola, na regra dos Reitores, falando dos Irmãos Estudantes, de profissão religiosa e
não laica, determinou que a comunhão “mais amiúde que cada oito dias não se permita
senão por causas especiais, tendo mais respeito à necessidade que à devoção". Se assim
se procedia na Europa, não é de se estranhar que na América portuguesa com os
primeiros indígenas convertidos, criados ainda em ambiente “gentio”, não se facilitasse
a mesa da comunhão. O “Diálogo sobre a Conversão do Gentio”, de Nóbrega, referindo-
se a uma “índia”, que tinha sido casada com um “índio” da Capitania de São Vicente,
são reveladoras estas palavras: "Diga-o quem viu a virtude tão viva de sua mulher, quão
fora dos costumes que antes tinha, quão honesta viúva, e quão cristãmente vive, tanto
que pareceu a todos digna de lhe darem o Santíssimo Sacramento". Nos começos, a
comunhão aos indígenas significava um estímulo para a vida cristã já estável e segura.
164

A província jesuítica do Brasil se iniciou juridicamente em 1553 e se fundou a


aldeia de Piratininga (atual São Paulo), instituindo no ano seguinte o Colégio de São
Paulo, em coincidência com a morte dos primeiros mártires na América, os coadjutores
Pero Correia e João de Souza. E a partir de 1557, essas “aldeias” se expandiram pela
Bahia, com o apoio de Mem de Sá, chegando a onze em poucos anos e se tornando as
primeiras “aldeias” com participação dos jesuítas, mas sem muito sucesso. No entanto,
essa tentativa deu experiência aos missionários, que pacientemente foram absorvendo as
práticas dos jerônimos em Santo Domingo, dos franciscanos, dominicanos e agostinhos
em todo o continente, e de uma complexa legislação que surgiu com Nicolás de
Ovando, que foi o primeiro governador das Índias espanholas, indo até Francisco de
Toledo do Peru. Enquanto isso, Nóbrega insistia na América portuguesa com Diego
Laínez, afirmando a necessidade de colégios para a formação de professores, fazendo
faltos recursos financeiros para tal. 165

163
LEITE, Novas páginas de história do Brasil... p. 96.
164
LEITE, Novas páginas de história do Brasil... p. 104.
165
AMANTINO; FLECK; ENGEMANN, A Companhia de Jesus na América por seus colégios e
fazendas: Aproximações entre Brasil e Argentina (Século XVIII)... p. 37.

56
Podemos também mencionar as experiências missionárias no Espírito Santo.
Partindo da Bahia, em direção a São Vicente, no final de 1549, Leonardo Nunes e
Diogo Jácome passaram pelo Espírito Santo e Leonardo Nunes compreendeu que a
capitania se encontrava em estado de abandono religioso, havendo muita procura por
166
confissões, casamentos e sermões. Em 1555 os jesuítas fundariam sua primeira
aldeia para a conversão dos nativos na região, não com indígenas da capitania, mas com
os indígenas que tiveram problemas com os tamoios, aliados dos franceses no Rio de
Janeiro.
Evidentemente, um nome marcante quanto à atuação da Companhia de Jesus na
América portuguesa do século XVI é o nome de José de Anchieta. Conhecido como “o
apóstolo do Brasil”, Anchieta é popularmente lembrado como um homem dedicado à
obra missionária e um persistente educador colonial. Sua importância para a
consolidação da missão em terras brasílicas tornou-se inegável, inclusive,

No Brasil, José de Anchieta foi um dos primeiros jesuítas a escrever


para os índios cantigas, pequenos textos teatrais, além de um
catecismo em forma de diálogo, com perguntas claras e respostas
breves, mais fácil para o índios compreender e depois repetir de
memória. 167

Dentre os feitos de Anchieta, com sua notável capacidade intelectual revelada de


diferentes formas, incluindo sua habilidade para com a escrita, o padre escreveu “A arte
gramática da língua mais falada na costa do Brasil”, primeira obra publicada sobre a
gramática da língua tupi (apresentando os fundamentos da língua), que se tornou
cartilha para irmãos e missionários da Ordem que desejassem partir para a América
portuguesa. Como lembra Maria de Fátima Medeiros Barbosa:
Certamente o conhecimento da língua falada na costa do Brasil era de
suma importância para a evangelização dos índios. Aprender a língua
autóctone e sistematizar aquele saber adquirido, em regras e preceitos,
em modo a facilitar a sua aprendizagem foi um dos primeiros esforços
do irmão José de Anchieta. 168

Após sua chegada à América portuguesa, em Salvador, Anchieta permaneceu


menos de três meses na região e, sendo requisitado como evangelizador, partiu para

166
FREIRE, Mário. A Capitania do Espírito Santo: crônicas da vida capixaba no tempo dos capitães-
mores (1535-1822). Vitória: Flor e Cultura, 2006, p. 58.
167
BARBOSA, Maria de Fátima Medeiros. As letras e a cruz: Pedagogia da fé e estética religiosa na
experiência missionária de José de Anchieta, S.I. (1534 – 1597). Roma: Editrice Pontificia Università
Gregoriana, 2006, p. 28.
168
BARBOSA, As letras e a cruz: Pedagogia da fé e estética religiosa na experiência missionária de
José de Anchieta, S.I. (1534 – 1597)... p. 28.

57
a Capitania de São Vicente com o padre Leonardo Nunes, onde conheceu o padre
Nóbrega e permaneceu por mais de uma década. Observa-se que,
Na cidade da Baía estavam apenas o padre Salvador Rodrigues,
moribundo que só esperava a permissão do superior para passar à vida
melhor e Vicente Rodrigues, irmão da primeira leva de 49, que servia
de enfermeiro e ensinava a rezar. Um semestre bastara ao padre
Manoel da Nobrega para prever os tristes sucessos que não tardariam
a provocar o novo bispo e sua clerezia. Assim aproveitara-se do navio
em que Tome de Sousa ia visitar as capitanias de baixo e deixou-se
ficar na de São Vicente [...] Pouco depois chegou á capital, o padre
Leonardo Nunes, que por mandado de Nobrega conduziu a Anchieta e
quase todos os outros para o sul. [...] Na sua ausência Nobrega tinha
transposto a serra de Paranapiacaba e escolhido lugar para seus
subditos se recolherem e trabalharem na conversão dos índios sem os
inconvenientes da marinha. Deixando a borda da mata, com a vila de
Santo André, erigida pelo governador geral, procurou os campos de
Piratininga, já conhecidos de Martim Afonso. Atraia-o a proximidade
do rio Tietê, caminho do Paraguai, sobre o qual fundara e algum
tempo nutriu esperanças, levado de informações favoráveis quanto á
docilidade do gentio e facilidades de catequizá-lo. No dia da
conversão do apóstolo do gentio, a 25 de janeiro de 1554, lançaram-se
os fundamentos da atual cidade de São Paulo, em Piratininga.
Anchieta esteve presente. 169

Além de Nóbrega e Anchieta, os demais membros da Ordem, nem sempre


lembrados, foram essenciais para a história da Companhia de Jesus na América
portuguesa do século XVI, contribuindo de modo expressivo para desenvolvimento da
missão, afinal, a missão era um trabalho coletivo. Dentre eles, podemos mencionar João
de Azpilcueta Navarro e Vicente Rodrigues, importantes para a compreensão deste
desafiador trabalho missionário.
O padre João de Azpilcueta Navarro, de origem basca, como bom linguista,
contribuiu de forma eficaz para o contato na catequização dos indígenas. A competência
de Navarro é atestada pelo fato de que os jesuítas buscavam o auxílio de intérpretes para
realizar pregações e missas na aldeia onde se aprendia a língua, como fazia Azpilcueta
Navarro na Bahia, em 1550. Ele que, com a ajuda dos “línguas”, havia traduzido alguns
artigos da fé como a criação do mundo, a encarnação, os mandamentos da Lei e orações,
especialmente o Padre Nosso. Seu superior, na ocasião Nóbrega, demonstrava orgulho
no fato de Navarro ser o mais adiantado no aprendizado da língua, comparando sua
destreza com a de Francisco Xavier na Ásia. 170

169
ANCHIETA, José de. Cartas, Informações, Fragmentos históricos e Sermões do Padre Joseph de
Anchieta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 12.
170
SABEH, Colonização salvífica: os jesuítas e a Coroa portuguesa na construção do Brasil (1549-
1580)... p. 98.

58
Em carta de 1550, o padre Navarro declarou:

Agora está se acabando uma igreja perto d'eles, onde hei de lhes dizer
missa e ensiná-los na língua d'eles, para a qual traduzi a creação do
mundo e a encarnação e os demais artigos da Fé e 68 mandamentos da
Lei e ainda outras orações, especialmente o Padre Nosso, as quaes
orações de continuo lhes ensino em sua lingua e na nossa,
principalmente aos meninos que tão bem exhorto a reza-las pelos
enfermos, e com efeito por esse meio vão melhorando. 171

No mesmo ano, em carta destinada à Simão Rodrigues, Nobrega fez as seguintes


afirmações envolvendo o padre Navarro:

Na língua deste paiz alguns somos muito rudes e mal exercitados, mas
o padre Navarro tem especial graça de Nosso Senhor nesta parte,
porque andando pelas aldeias dos Negros, em poucos dias que aqui
estamos, se entende com eles e prega na mesma língua e finalmente
em tudo parece que Nosso Senhor lhe presta favor e graça para mais
poder ajudar as almas. A' sexta-feira quando fazemos a disciplina,
juntamente com muitos da terra e depois da predica sobre a Paixão de
Cristo, ainda elle se reúne a nós, nos outros dias visita ora um, ora
outro lugar da cidade e á noite ainda faz cantar aos meninos certas
orações que lhes ensinou em sua língua delles, em logar de certas
canções lascivas e diabólicas que d'antes usavam. [...] 172

Vicente Rodrigues, nasceu por volta de 1528 em São João da Talha (Portugal),
contava 21 anos (10 a menos que Nóbrega) quando embarcou para a América
portuguesa com Nóbrega e mais quatro companheiros. Não se tinham passado duas
semanas e Nóbrega dava esta informação: "O Ir. Vicente Rijo ensina a doutrina aos
meninos cada dia e também tem escola de ler e escrever; parece-me bom modo para
trazer os índios desta terra, os quais têm grandes desejos de aprender". Tratando-se da,
talvez, primeira menção positiva na história da instrução e educação do Brasil e da
história da pedagogia jesuítico-americana também. Com as funções de mestre-escola,
em que os meninos ainda não podiam ser muitos, Rodrigues acumulou outras que a
organização material da terra postulava. Sua contribuição para a missão foi expressiva,
com o ensino, na luta contra a antropofagia dos indígenas e em procurar fixá-los junto
173
da cidade. Conhecendo Nóbrega suas qualidades, o elevou ao sacerdócio, não tinha
estudos especiais de Letras e Teologia (estudou apenas algum Latim e Casos de

171
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568 (Cartas Jesuíticas, Vol. II)... p.
50.
172
NÓBREGA, Cartas do Brasil (1549-1560)... p. 105.
173
LEITE, Novas páginas de história do Brasil... p. 133 - 134 - 135.

59
Consciência), mas, mas suas habilidades supriam e, naqueles começos, eram
verdadeiramente os mais úteis, crendo-se que foi a primeira ordenação sacerdotal que se
realizou na América Portuguesa. 174 Demarcam-se da vida de Rodrigues (falecido em 20
janeiro de 1568, aos 52 anos) três períodos caracterizados e distintos: o da Bahia (fase
mais “heroica” em sua juventude), antes do sacerdócio; o do superiorado em
Residência; e, por fim, o de diretor espiritual. 175
O trabalho dos jesuítas também se desenvolvia em meio a perigosos conflitos,
pelo fato de que alianças e guerras pautaram as relações entre nativos e colonos. As
lutas pela conquista da Guanabara e a Confederação dos Tamoios exemplificam essa
questão relevante para a análise do contexto no qual os jesuítas estavam inseridos. A
Confederação dos Tamoios representou, ao contrário do que alguns imaginam acerca
dos indígenas, a dimensão não pacífica ou não passiva dos ameríndios.
É fato que os portugueses reconheceram a importância fundamental das guerras
nas relações intertribais. Procurando racionalizar o fenômeno perceberam que podiam
conseguir muito através de seu engajamento com elas. Considerando o estado de
fragmentação política que imperava entre os indígenas, as perspectivas de conquista,
dominação e exploração da população nativa dependiam necessariamente do
envolvimento dos portugueses nas guerras intestinas, através de alianças esporádicas.
Além disso, a presença de um número considerável de prisioneiros de guerra prometia
um possível mecanismo de suprimento de mão-de-obra cativa para os eventuais
empreendimentos coloniais. Os indígenas certamente percebiam outras vantagens
imediatas na formação de alianças com os europeus, particularmente nas ações bélicas
conduzidas contra os inimigos mortais, mas também seriam capazes de perceber os
efeitos prejudiciais de tais alianças. As guerras, agravadas pelos frequentes surtos de
doenças contagiosas, produziam sérias rupturas na organização interna das sociedades
indígenas. 176
Ainda sobre a Confederação dos Tamoios, esse conflito, que foi uma das maiores
ações de resistência indígena na América portuguesa até então (majoritariamente
tupinambá), e ocorreu nas áreas compreendidas entre o litoral norte paulista e sul
fluminense. A revolta se deu por conta das ações dos portugueses contra os tupinambás,

174
LEITE, Novas páginas de história do Brasil... p. 141 - 142.
175
LEITE, Novas páginas de história do Brasil... p. 145.
176
MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994... p. 29.

60
ações que produziam escravidão e mortes, e teve como pano de fundo a disputa pela
região da Guanabara entre franceses e portugueses.
A resistência de indígenas permanecia com o passar do tempo. Conquanto tenham
sido estabelecidas alianças - muitas vezes precárias - entre os portugueses ou outros
europeus com comunidades indígenas, o contexto era de diversidade cultural e disputas
territoriais constantes entre os nativos que, assim como os europeus, estavam
envolvidos em seus próprios interesses.
Segundo John Monteiro:

De modo geral, os jesuítas concentraram suas estratégias em três áreas


de ação: a conversão dos “principais”, a doutrinação dos jovens e a
eliminação dos pajés. Mas, a cada passo, enfrentavam resistências, em
maior ou menor grau. De fato, acompanhando os efeitos devastadores
das doenças, foi a resistência indígena o principal obstáculo ao êxito
do projeto missioneiro. 177

Além das resistências, retomando a questão das alianças que foram estabelecidas,
de acordo com o entendimento de Fernanda Sposito, “a inimizade ou aliança com os
índios não eram somente situações possíveis dentro do universo colonial, mas, antes,
foram categorias criadas pelos objetivos da conquista, baseada em intervenções e
manipulações das múltiplas identidades étnicas ameríndias em favor dos europeus.” 178

Valendo também novamente nos referirmos aos jesuítas nos conflitos da Guanabara, e
previamente mencionarmos e pensarmos - conforme Ronaldo Couto - “as populações
indígenas em suas relações de aliança e conflito com os europeus, a partir de seus
próprios interesses e objetivos, que se alteravam no decorrer do processo histórico”. 179

Segundo Marcia Amantino, “em função de sua participação nas lutas de conquista
da Guanabara, [a Companhia de Jesus] foi uma das maiores beneficiadas em apoio
político e em terras, participando na conjuntura geopolítica da região e exercendo o
papel ativo nos estabelecimentos de alianças entre europeus e indígenas.” 180
Conflitos e
acordos, alianças e resistências, encontros e desencontros eram constantes, pois tanto
europeus (jesuítas ou não), como indígenas tinham seus interesses e objetivos, algo

177
MONTEIRO, Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo... p. 47.
178
SPOSITO, Fernanda. Santos, Heróis ou Demônios? Sobre as relações entre índios, jesuítas e
colonizadores na América Meridional (São Paulo e Paraguai / Rio da Prata, séculos XVI – XVII). São
Paulo: Tese de Doutorado em História - Universidade de São Paulo, 2012, p. 110.
179
COUTO, Os Jesuítas na América portuguesa... p. 48.
180
AMANTINO, A Companhia de Jesus na cidade do Rio de Janeiro: o caso do Engenho Velho, século
XVIII... p. 29.

61
comum dos grupos sociais, que ultrapassa delimitações geográficas, etnicidades, e a luz
da história, épocas. Dessa forma, acrescentamos que,
Guerreiros indígenas e missionários tiveram encontros e desencontros
enquanto discutiam e aprendiam uns com os outros, a partir da
tradição cultural das práticas sociais indígenas e da cultura europeia
cristã, as novas formas que assumiriam as complexas realidades
sociais que emergiam. Estas complexas relações ocorreram em uma
série de oposições e continuidades, nestas fronteiras culturais entre as
sociedades em presença. 181

Outra questão ligada aos conflitos e interesses nas complexas relações coloniais
era a escravidão indígena. A escravatura dos ameríndios foi proibida pela Coroa em
1570, a não ser nos casos de captura numa “guerra justa” ou em comunidades indígenas
que praticavam a antropofagia. O decreto não foi levado muito a sério, mas houve
causas associadas a redução do número de ameríndios disponíveis nas plantações: A
dizimação de muitos grupos nativos através das guerras e da introdução de doenças
europeias (como por exemplo a varíola) e a elevada taxa de mortalidade entre os
escravos ameríndios que não podiam suportar a servidão nas plantações. O que forçou
os moradores a procurar uma solução alternativa para o fornecimento de escravos
durante a segunda metade do século XVI, através da intensificação do já existente
182
comércio de escravos negros da África Ocidental. Ao analisar a história da
Companhia de Jesus no Brasil, Serafim Leite constatou que:

[...] do mesmo modo que tôdas as entidades de relêvo, que tinham


grandes obras e muita gente a sustentar, campos para lavrar e
engenhos para moer, também a Companhia possuía escravos, tanto
índios como prêtos. Era um postulado do regime agrário da América
e das condições econômico-sociais daquele tempo no Brasil. No
entanto, aparecem inúmeros documentos, em que os Padres do
Brasil defendem a liberdade do índio, e não idênticos documentos
para defender a liberdade do negro. Por quê? A resposta não pode
recair sôbre a escravatura em si mesma, universalmente admitida;
recai sôbre o título dos escravos, que poderia ser justo ou injusto,
segundo as normas estabelecidas no Direito vigente. Ora os títulos dos
índios conheciam-nos os jesuítas no Brasil, pois tinham diante dos
olhos os casos particulares; quanto aos prêtos de África, não podiam
conhecer de maneira certa os casos particulares, porque já chegavam
ao Brasil escravos. 183

181
STEPHANOU, Maria; BASTOS, Maria (orgs.). Histórias e memórias da educação no Brasil: Vol I -
Séculos XVI – XVIII. Petrópolis: Editora Vozes, 2004, p. 109.
182
BOXER, O império colonial português (1415 – 1825)... p. 101 - 102.
183
LEITE, Novas páginas de história do Brasil... p. 352.

62
Nóbrega estrategicamente entendeu, apesar de sua defesa da liberdade da maioria
dos indígenas, que a escravidão indígena devia ser permitida e mesmo desejada em
determinados casos, não apenas para efeitos de defesa ou de castigo, mas também
porque a oferta de legítimos cativos atrairia novos colonos para o Novo Mundo. Para o
padre, a receita certa para o desenvolvimento recomendava que “o gentio fosse
senhoreado ou despejado...” Anchieta, por sua vez, “frustrado” com os resultados
contraditórios de seus esforços entre os nativos, igualmente mostrava-se favorável,
nesses termos, a escravidão. Os padres Luís e Anchieta participaram da junta de 1566,
organizada pela Coroa para definir a política indígena, a partir da qual surgiu a lei
(regulamentação) de 1570. A cláusula referente à guerra justa surgia como resposta à
demanda dos colonos por escravos, sendo ainda aceitável para os jesuítas. Este
dispositivo, bem conhecido na península Ibérica, havia sido invocado na América
portuguesa pela primeira vez pelo governador Mem de Sá em 1562. Nesta ocasião os
Caeté foram condenados ao cativeiro como castigo por terem, seis anos antes, trucidado
e supostamente comido o primeiro bispo do Brasil. A lei claramente refletia o tom
conciliatório adotado por uma Coroa ambivalente, indecisa entre os interesses de
184
colonos e jesuítas, onde percebe a influência da religião nos processos políticos, ou a
mescla entre os interesses religiosos e políticos.
Entretanto, ao abordarmos o tema da escravidão, não podemos confundi-la, neste
cenário, com passividade. Sabe-se que o protagonismo indígena, nas relações que se
estabeleceram na América portuguesa quinhentista, por muito tempo foi
desconsiderado. E, através das questões trazidas pela chamada “nova história indígena”,
houve uma recuperação ou redimensionamento do papel indígena nesse período.
Graças ao esforço de antropólogos, historiadores, arqueólogos e linguistas, surgiu
- a partir final da década de 1970 - a elaboração daquilo que é chamado de uma “nova
história indígena”. Muito embora o tema não fosse novo, nem para a historiografia, que
desde o século XIX enfocou o “índio Tupi” como matriz da nacionalidade, nem para a
etnologia indígena, que construiu uma parte importante de seu edifício nos alicerces
colocados por Alfred Métraux e por Florestan Fernandes, que se valeram das fontes
escritas nos séculos XVI e XVII para elaborarem sofisticados modelos para as
sociedades tupis-guaranis. No entanto, as questões postuladas a partir do final dos anos
setenta introduziram duas inovações importantes, uma prática e outra, teórica. Surgindo

184
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: Moral, Sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Campus, 1989, p. 41 – 42.

63
uma nova vertente de estudos que buscava unir as preocupações teóricas referentes à
relação história/antropologia com as demandas cada vez mais militantes de um
emergente movimento indígena. 185
A noção dos direitos indígenas enquanto direitos históricos e territoriais
estimulou importantes estudos que buscavam nos documentos coloniais os fundamentos
históricos e jurídicos das demandas posteriores dos indígenas ou, pelo menos, dos seus
defensores. 186
Fato é que, a presença dos jesuítas na América portuguesa contribuiu para
mudanças nas práticas e costumes indígenas e, em certa medida, nas práticas e costumes
dos próprios missionários. Os indígenas experimentaram transformações resultantes do
contato com o sistema cultural apresentado por estes europeus, e não precisou virar o
século para que a catequese gerasse transformações profundas no modo de viver dos
ameríndios.
Na obra “Cartas do Brasil”, com textos de Manoel da Nobrega, é possível
apreender informações a respeito da perspectiva jesuítica que emergiu da relação com
os indígenas, sobre como a Companhia de Jesus interpretava os nativos. O mesmo
ocorre na leitura de “Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões”, com textos
de José de Anchieta e em outras fontes documentais ligadas ao período. Cabendo
ressaltar que a escrita de cartas ou textos obedece a exigências de estilos históricos e
culturais, e as cartas dos jesuítas possuíam uma estrutura, ou seja, seguiam uma fórmula
tradicional, evidenciado sua parcialidade no registro dos fatos. A dimensão da
experiência é percebida nas cartas jesuíticas do período. Tais cartas também expressam
relações relação conflituosa entre as duas culturas, principalmente em virtude da
renitência dos indígenas a uma cultura que a eles estava sendo imposta, o que é possível
perceber na leitura das cartas de Anchieta e Nóbrega. É de se notar que,
Nóbrega e Anchieta foram responsáveis por ampla documentação
sobre o Brasil do século XVI. Suas anotações sobre os índios se
inserem nos balanços sobre a conversão e a colonização (no que esta
diz respeito àquela). Além das características particulares dos povos
nativos, esses jesuítas observaram os relacionamentos entre eles e os
colonos, entre eles e os padres. 187

Desde o começo da missão jesuítica no Brasil, a escrita constituiu-se, nas práticas


de ensino e catequese da ordem, segundo gêneros utilitários: tais como cartas, o auto, o

185
MONTEIRO, Tupis, tapuias e historiadores: Estudos de História Indígena e do Indigenismo... p. 5.
186
MONTEIRO, Tupis, tapuias e historiadores: Estudos de História Indígena e do Indigenismo... p. 5.
187
MOREAU, Os índios nas cartas de Nóbrega e Anchieta... p. 23.

64
poema didático, o sermão, o catecismo e a doutrina, até a própria gramática. Tratando-
se de uma escrita ordenada retoricamente, sempre revelando uma íntima fusão entre
retórica e letras antigas, entrelaçada com a teologia política da neoescolástica. 188
Conforme observou Fabricio Lyrio Santos:

A primeira manifestação escrita dos jesuítas no Brasil foi no género


epistolográfico e o primeiro nome a citar é o do Pe. Manuel da
Nóbrega. As suas cartas para destinatários vários no exterior do Brasil
distinguem-se pela curiosidade da primeva informação sobre uma
“Terra Nova”, mas também pela preocupação com a eficácia da
catequese e a boa governação do seu Instituto religioso. Nesta vertente
última, Nóbrega revela suficiente objectividade e capacidade
argumentativa, como adiante explicitaremos. Porém, a mesma missiva
poderia veicular assuntos vários, embora não deixasse de ser notório o
pendor ou a finalidade principal de cada carta: dar notícias e edificar
os Irmãos ou tratar dos negócios internos de gestão e da missionação.
189

Ao abordarmos o trabalho dos jesuítas na América portuguesa quinhentista,


também ganham espaço os seus colégios. Os colégios da Companhia foram o mais
importante objeto da ação pedagógico-institucional jesuítica, possuidora de formas
190
pedagógicas rigorosamente determinadas. Destacando-se que, quando Nóbrega, seus
companheiros e os portugueses do Governo Geral chegaram à América portuguesa, em
1549, não havia no território colégios nem universidades onde se cultivasse a ciência
ocidental, sendo somado a isso a ausência de leitura e a escrita por parte dos nativos.
Nesta questão, a América portuguesa diferia totalmente do Japão aonde também no
mesmo ano aportou Francisco Xavier. 191 Como podemos observar:

Os jesuítas chegaram ao Brasil em 1549, mas só em 1553 criaram


província com sua primeira casa na Bahia, onde no final do século se
criou o curso de humanidades, ou seja, filosofia, (três anos) e teologia
(quatro anos), e embora tenham solicitado a Roma autorização para
outorgar o título de doutor, esta não foi concedida. [...] o colégio do
Rio de Janeiro foi iniciado pelo segundo provincial Luís de Grã, em
1567, com o apoio do governador, que escolheu um lugar adequado
onde havia uma antiga capela de taipa, e mandou construir aposentos
de pedra e barro com piso, para servirem de albergue provisório.
Ficou como reitor o P. Nóbrega, que teve um difícil trabalho frente ao
assédio de franceses e tamoios. 192

188
AGNOLIN, Adone. Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual
americano-tupi (Séculos XVI – XVII). São Paulo: Humanistas Editorial, 2007, p. 77.
189
SANTOS, A escrita e as suas funções na missão jesuítica do Brasil quinhentista... p. 116.
190
NEVES, O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios (colonialismo e repressão
cultural)... p. 142.
191
LEITE, Novas páginas de história do Brasil... p. 117.
192
AMANTINO; FLECK; ENGEMANN, A Companhia de Jesus na América por seus colégios e
fazendas: Aproximações entre Brasil e Argentina (Século XVIII)... p. 45

65
A instrução ministrada pela Companhia de Jesus durante os seus dois séculos de
magistério na América portuguesa, pelo seu próprio fundamento e evolução, foi gratuita
193
e pública. Com os indígenas, o ensino popular revestia o significado de catequese,
mas a catequese dos índios, em matéria de instrução, não se limitava ao ensino religioso
do catecismo, com os meninos incluía-se também o ler, o escrever, ou elementos. Com
os brancos ou filhos dos brancos a instrução popular ministrava-se nos colégios, estando
à disposição dos que a procuravam, não sendo obrigatório aos pais manter seus filhos na
escola. 194 Ainda sobre a instrução gratuita, acrescentamos que,

A gratuidade do ensino era também um dos pontos básicos da


Companhia durante a permanência dos jesuítas na América portuguesa
(1549 – 1759). Até então, a diversificação das fontes de renda da
Companhia permitia a manutenção da gratuidade. Com o passar do
tempo este quadro mudou e o aumento da complexidade levou os
jesuítas à cobrança dos serviços educacionais prestados, visando
equilibrar os gastos crescentes. 195

No final do século XVI eram três os colégios jesuíticos: Bahia, Rio de Janeiro e
Pernambuco. Depois do ensino elementar (ler, escrever e contar) os “alunos” tinham o
curso denominado de Letras Humanas, que compreendia Gramática, Retórica, Poesia e
História. A língua que se estudava era o latim. No lugar do estudo do grego ou hebreu,
estudou-se o tupi, pois a língua era/é o instrumento apto e próximo para a conquista das
almas. 196
Nesta conjuntura quinhentista, as atividades do Tribunal do Santo Ofício
português (um instrumento de controle e ordenação de condutas) estavam em operação
na “colônia”, fiscalizando os moradores deste novo mundo, informando sua relação com
os jesuítas. É fato que houve um envolvimento de jesuítas com a Inquisição. As relações
entre a Companhia de Jesus e o Tribunal do Santo Ofício, apesar de terem
experimentado tensões ou ligações pouco amistosas, caminharam - no que diz respeito
ao século XVI - sem atritos diretos. Pode-se afirmar que a ocupação de cargos
inquisitoriais pelos jesuítas e a sua contribuição em vários momentos com o Tribunal do
197
Santo Ofício não representou uma total identificação e parceria entre ambos.
Acrescenta-se que,

193
LEITE, Novas páginas de história do Brasil... p. 197.
194
LEITE, Novas páginas de história do Brasil... p. 201.
195
NEVES, A vila de São Paulo de Piratininga: fundação e representação... p. 130.
196
NEVES, O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios (colonialismo e repressão
cultural)... p. 142.
197
SILVA, O padre Luís da Gram e a Inquisição no Brasil colonial quinhentista... p. 29 – 30.

66
A necessidade de combater a heresia e a apostasia, e de cristianizar os
homens, era problema da Igreja tridentina e do Trono absoluto. Era de
mister manter a Cristandade e a unidade do Império Ultramarino.
Autoridades civis e autoridades religiosas empenharam-se, nos
primeiros tempos da vida brasileira, em zelar pela ortodoxia da crença.
198

No primeiro século de colonização, a carência de funcionários inquisitoriais


acabou obrigando representantes da Igreja Católica que viviam na América portuguesa a
acumularem funções. Os bispos, que em alguns momentos do período colonial eram
incumbidos de realizar visitas eclesiásticas, e os padres jesuítas assim agiam por falta de
um apoio direto no combate às heresias, acabando por exercer este papel de
fiscalizadores dos pecados coloniais, muitas vezes até extrapolando as competências
concedidas pelo Tribunal do Santo Ofício. O padre Luís da Gram, por exemplo,
colaborou oficialmente com a Inquisição em alguns momentos, e paralelamente ao
estudo de sua participação em episódios inquisitoriais, são observadas a sua influência e
atuação na “colônia” enquanto missionário e evangelizador - um intérprete requisitado,
jesuíta bem visto perante seus companheiros, promovido a provincial pela sua postura -,
mas também as dificuldades pelas quais passou: padecimentos, inimizades, duras
entradas pelos sertões, entre outros obstáculos, até sua morte por enfermidade. 199
É também apropriado atentarmos para uma questão que fazia parte deste contexto
envolvendo os jesuítas na América portuguesa quinhentista, questão que nos auxilia no
trabalho de captação das percepções religiosas da Ordem na esfera em que estavam
inseridos: A lida com epidemias, doenças e mortes por doenças.
Assim como em outras partes do Novo Mundo no século XVI, as doenças
contagiosas surtiram efeito devastador sobre as populações indígenas do litoral da
200
América portuguesa. Quando se iniciava a missão evangelizadora dos padres da
Companhia de Jesus na América Portuguesa - na segunda metade do século XVI - as
epidemias de varíola, sarampo e gripe passaram a vitimar os Tupinambás da costa
atlântica. Os contatos e convivência com os europeus estimularam contágios e levaram
ao desenvolvimento de múltiplos surtos epidêmicos. Não sendo sem razão que os
escritos legados pelos primeiros inacianos apresentem diversos relatos e menções sobre

198
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 144.
199
SILVA, O padre Luís da Gram e a Inquisição no Brasil colonial quinhentista... p. 28 – 29.
200
MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 39.

67
o tema, abarcando o choque causado pelas novas enfermidades que afetavam as
sociedades indígenas no período quinhentista. Entre todos os registros produzidos pelos
jesuítas, nas cartas enviadas pelos padres da missão, as descrições sobre as epidemias
201
figuraram com maior recorrência. As cartas apresentavam concepções e fórmulas
teológico-político-retóricas que orientavam a construção de suas narrativas. Seguindo as
perspectivas da filosofia escolástica neo-tomista, os padres da Companhia interpretaram
homens, ações e eventos como componentes de uma narrativa já inscrita nas Sagradas
202
Escrituras e nas obras de filósofos e sábios da Antiguidade.
Havia interpretações providencialistas de casos de enfermidade presentes nas
cartas de Anchieta, e apesar de, para eles, possuírem, nos desígnios divinos uma origem
comum, diferenciam-se de acordo com a disposição que os indígenas mostravam em
receber e praticar os ensinamentos cristãos. De modo que, a mesma doença podia ser
interpretada, tanto como manifestação da Ira Divina a abater os pecadores quanto como
um sinal da benevolência de Deus que, por meio de enfermidades, abria a porta dos céus
aos indígenas conversos. Além disso, poderiam também configurar um aviso enviado
pela providência àqueles que, mesmo recebendo a mensagem cristã, insistiam em
práticas “bestiais”. Dessa forma, as narrações de doenças, epidemias e mortes,
construídas a partir de procedimentos retóricos e, interpretadas à luz da crença cristã do
poder de ação de Deus sobre os seres e coisas sensíveis, reafirmavam a conformidade
entre a missão jesuítica e os desígnios divinos. Nesta cosmovisão, mesmo um evento
trágico como a morte em grande escala dos Tupinambás, poderia constituir o conteúdo
de um texto consolativo, desde que concebido a partir de uma crença na orientação
providencialista da História. 203
Como exemplo epidêmico, no fragmento a seguir, de uma carta de Anchieta (de
Piratininga, em Abril de 1557) a “peste” que matou os indígenas foi interpretada como
castigo de Deus direcionado aqueles que agiram, no entender do padre, como “símios”
ao se voltarem contra os cristãos (“os castigou a dextra do Senhor”):

Porque se ofereceu fazer menção dos contrários, direi algumas cousas,


não fora do propósito. Veiu, poucos dias ha, grande cópia deles, e
combatendo um lugar de Portugueses, o roubou; acolheram-se á

201
ANZOLIN, André Soares. As doenças como exempla: epidemias e mortes nas cartas do jesuíta José
de Anchieta. Artigo: PUC Minas / Cadernos De História, 2016, p. 275.
202
ANZOLIN, As doenças como exempla: epidemias e mortes nas cartas do jesuíta José de Anchieta... p.
276.
203
ANZOLIN, As doenças como exempla: epidemias e mortes nas cartas do jesuíta José de Anchieta... p.
286 – 287.

68
fortaleza, sete ou oito Portugueses, que se acharam presentes, e como
quisessem entrar com eles os inimigos foram mortos muitos deles; por
outra parte acometeram uma casa onde estavam dois Cristãos e
saltando como simios no telhado, derrubando as telhas, os tomaram
por força e levaram com muitos dos escravos e demais presa. Não
muito depois se seguiu uma peste de que morreu grande número dos
contrários, tiravam os mortos de casa e deitavam-os ás onças, as quais
de noite vinham e os comiam. Desta maneira os castigou a dextra do
Senhor, e depois indo a eles os Portugueses em navios, tomaram mais
de 50, que estavam fazendo grandes festas com muito vinho e cantos
sobre a morte dos dois Portugueses Cristãos que já tinham comido. 204

Em carta de Vicente Rodrigues (da Bahia, em 17 de Março de 1552), como em


outras cartas jesuíticas, encontramos mais um exemplo da doença e morte interpretadas
como castigo de Deus (aos Brasis):

Aconteceu agora a um destes christãos que se amotinou que cahiu em


uma enfermidade elle e sua mulher e se tornaram seccos. Visitando-os
o padre Navarro, fizeram concerto donde se acharam muito bem, aos
quaes nós visitávamos e elles a nós e vinham á missa com seus
vestidos. E porque entre elles ha muitos feiticeiros, lhe metteram em
cabeça muitas imaginações do Demônio, entre as quaes lhe diziam
que nós lhe dávamos a morte, tornou a seus pensamentos do Demônio
e tornou a adoecer e de grande tristeza morreu [...] 205

Além de possuírem a concepção ou crença na possibilidade de castigo divino


através da morte por enfermidades ou “pragas”, os jesuítas também contribuíram com a
“área da saúde” na América portuguesa. A tarefa de cuidado com a saúde estava
inserida na conjuntura missionária e educacional. Segundo Daniela Buono Calainho:

Além de trabalharem incansavelmente na difusão da fé cristã, os


jesuítas também foram uma grande âncora da saúde na colônia,
atestada pela vastíssima documentação das correspondências que
mantiveram com seus irmãos em Portugal e no Brasil. Alguns deles
vinham de Portugal já formados nas artes médicas, mas a maioria
acabou por atuar informalmente como físicos, sangradores e até
cirurgiões, aprendendo, na prática, o ofício na colônia, como José de
Anchieta, João Gonçalves ou Gregório Serrão. Outros, em meio a
obras e cartas, onde comentavam sobre a natureza colonial, dedicaram
várias páginas à descrição de ervas e plantas curativas, inaugurando os
primeiros escritos sobre a farmacopéia brasileira. Fernão Cardim, por
exemplo, descreveu as propriedades curativas de várias espécies de
plantas e árvores em seu livro Tratados da terra e gente do Brasil,

204
ANCHIETA, Cartas, Informações, Fragmentos históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta...
p. 99.
205
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568 (Cartas Jesuíticas, Vol. II)... p.
109.

69
escrito entre 1583 e 1601, quando desempenhou o cargo de secretário
do padre visitador Cristóvão de Gouveia. 206

O benéfico envolvimento missionário no campo da saúde era também um


instrumento de “convencimento”, além da possibilidade filantrópica ou de caridade
cristã (que não cabe aqui julgarmos), os socorros médicos funcionavam como
importantes instrumentos de conversão dos sentidos, pois ao se mostrarem mais
poderosos que seus rivais indígenas, os religiosos os denunciavam como falsos
operadores do sagrado e se colocavam acima das práticas religiosas da pajelança o
sistema religioso cristão (o “verdadeiro”). 207
A importância da Companhia de Jesus para o processo de transformação ou de
adaptação cultural dos nativos da América portuguesa foi decisiva no século XVI e a
partir dele. Na América portuguesa quinhentista a Ordem desenvolveu sua missão e
manteve sua fé em meio a uma série de adversidades: 208
Poucos recursos, guerras,
conflitos, articulações políticas, retrocessos, avanços e outros fatores fizeram parte desta
realidade brasílica e quinhentista, quando do surgimento de colégios e aldeamentos.
Assim como os indígenas sofreram transformações, por influência dos jesuítas, a
própria Companhia de Jesus também as experimentou, por conta da resistência dos
indígenas, enquanto tinha que “reinventar” suas ações evangelizadoras em meio às
sinuosidades da Missão, e também se deparando com muitas novidades advindas dessas
novas culturas, ampliando seus horizontes de percepção.
Na América portuguesa, os rituais de pajelança e seus operadores - atores e
culturas envolvidos em relações de contato – se transformaram, e recentemente a
historiografia tem destacado as alterações nas consciências e catecismos dos
missionários, que em muitos momentos e circunstâncias tiveram que recuar seus
dogmas e promover concessões aos indígenas. Por outro lado, as lideranças políticas
também foram objeto de reflexão, ao se perceber que os principais indígenas buscavam
novos destaques, incorporando como seus, atributos e símbolos de poder e honra do

206
CALAINHO, Daniela Buono. Jesuítas e Medicina no Brasil Colonial. , Rio de Janeiro: Artigo -
Revista Tempo, nº 19, 2005, p. 64.
207
CRUZ, Carlos Henrique A. Inquéritos Nativos: os pajés frente à Inquisição. Niterói: Dissertação de
Mestrado - Universidade Federal Fluminense, 2013, p. 50.
208
O trabalho desenvolvido pelos padres chegou a ser retratado (pelo padre Ambrósio Pires) como o
trabalho de operários de uma vinha estéril: “Dois annos há que viemos para estas terras do Brasil e
achamos nossos Irmãos da Companhia, que com grande solicitude se affadigavam nesta vinha um tanto
esteril e que não compensou ainda os trabalhos e a diligencia dos operarios. Esperamos, todavia, que por
fim Dominus dabit benignitatem et terra dabit fructum suum [o senhor dará a sua bondade (ou bênção) e a
terra dará o seu fruto]” ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568 (Cartas
Jesuíticas, Vol. II)... p. 140.

70
mundo português. Cabe observar que desde o princípio de ocupação do Novo Mundo,
chamaram a atenção dos colonizadores os principais e os pajés, os primeiros
encarnavam o poder político (ou, o mais próximo disso), enquanto os últimos o domínio
cultural (mesmo que entendido como um “falso saber”). Muitos chefes se tornaram
importantes aliados para a expansão e manutenção dos territórios da Coroa, sendo-lhes
distribuídos cargos, títulos, patentes e situações privilegiadas, ao passo que as relações
entre os europeus e os pajés eram ainda mais complexas, na medida em que os
“feiticeiros índios” logo foram percebidos como ameaças ao projeto apostólico, mas,
contraditoriamente, serviram de modelo do que podia atrair os nativos para o caminho
da “verdadeira fé”. 209
Conforme o exposto no decorrer deste capítulo, no qual tivemos como principal
objetivo apresentar panoramicamente a trajetória dos jesuítas na América portuguesa
quinhentista, começando pela origem da Ordem na Europa - com foco no tema proposto
pela dissertação - foram reunidas informações abrangentes a respeito de quem eram os
jesuítas desse tempo e sobre a chegada e o estabelecimento da Companhia de Jesus na
América, no século XVI, ação que foi fundamental para expansão da fé católica ao
longo do território brasileiro.
Partindo do geral para o particular, ou do geral para - no nosso entender - algumas
importantes particularidades, no capítulo seguinte, haverá uma redução da escala de
observação, na qual analisaremos os contrastes culturais mais emblemáticos (entre
indígenas e jesuítas) e complicadores para o trabalho de expansão da fé através dos
jesuítas na América portuguesa.

209
CRUZ, Inquéritos Nativos: os pajés frente à Inquisição... p. 16 – 17.

71
Capítulo II - SIGNIFICATIVOS CONTRASTES

A Carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel é considerada a primeira obra


da literatura brasileira e um dos principais documentos históricos que explicam a
origem do Brasil, e também é vista como a principal fonte histórica sobre o dito
“Descobrimento do Brasil”. Nela, o escrivão português tem a preocupação de transmitir
os dados a respeito do que ocorria no chamado “descobrimento”, como eram os
habitantes da região e como foram os primeiros contatos entre os portugueses e os
nativos. O manuscrito - redigido no ano de 1500 e divulgado somente em 1817 – nos
leva a perceber a notória diferença cultural entre os povos indígenas e os europeus,
diferenças não somente culturais como também físicas. Conforme a narrativa, o choque
cultural210 entre os indígenas e portugueses ficou evidente, ocorrendo imediatamente no
primeiro momento de contato. Fazendo-se presente a estranheza ou estranhamento, no
qual um percebeu o outro como “diferente”. Segundo Todorov “no início do século
XVI, os indígenas da América estão ali, bem presentes, mas deles nada se sabe, ainda
que, como é de se esperar, sejam projetadas sobre os seres recentemente descobertos
imagens e ideias relacionadas a outras-populações distantes”. 211
Segundo Mary Del
Priore:

[...] Na faixa costeira timidamente incluída nos projetos da Coroa


portuguesa, se espalhavam indígenas vivendo do cultivo da roça,
complementado pela caça, a pesca e a coleta. Só em algumas regiões
se encontrariam cacicados. A língua de comunicação era o tupi, que se
transformou na língua franca. De “cor parda, em geral bem formados,
de nariz e rosto bonitos”, no relato do escrivão Caminha, os índios
andavam nus, o que foi percebido como uma forma de inocência e
estupidez. A ornamentação com penas coloridas e tatuagens, “espécie
de tecido assaz belo”, impressionou. Obviamente foi inserida no
imaginário por meio de classificações europeias. Mesmo pertencendo
a diferentes nações, tamoio, tupinambá, caeté ou potiguar, passaram a
ser “gentios”. Na Europa, as especulações sobre sua origem
interrogavam os sábios. Afinal, não eram mencionados na Bíblia...
Seriam uma das Dez Tribos Perdidas de Israel ou sobreviventes da
Atlântida? 212

210
Tensão no encontro de duas culturas diferentes ou opostas.
211
TODOROV, A conquista da América: a questão do outro... p. 6.
212
PRIORE, Mary Del. Histórias da gente brasileira: Volume 1, Colônia. São Paulo: LeYa, 2016, p. 21.

72
A consciência dessa realidade histórica brasileira contempla a questão da
descoberta do outro, daquele que é estranho a nossa cultura, mas que precisa ser
conhecido e também explicado. O estranhamento é o ato de estranhar, de se admirar, de
se espantar diante do desconhecido. Ocorre quando se percebe um novo costume ou
alguém de forma diferente do que se considera comum ou “normal”, provocando um
incomodo diante da nova realidade.
A antecipação portuguesa da concepção do “bom selvagem” dos filósofos
franceses do século XVIII foi muitas vezes citada por escritores modernos como prova
da ausência lusitana de discriminação racial e da tendência dos portugueses de se
juntarem com “mulheres de cor”, mas podia tratar-se de pura reação natural dos
marinheiros. Além disso, a comparação lisonjeira dos nativos com inocentes habitantes
de um paraíso terrestre, ou de uma idade de ouro desaparecida não durou muito tempo,
a semelhança do que ocorreu com Colombo e seus marinheiros na sua primeira viagem.
O estereótipo do indígena do novo território como filho da natureza no seu estado mais
puro foi rapidamente substituído pela convicção popular portuguesa de que era um
selvagem irremediável, “sem fé, sem rei, sem lei”. A mudança de atitude tornou-se mais
pronunciada - sem que tivesse chegado a ser universal – na segunda metade do século
XVI, e deveu-se em grande parte à substituição do pau-brasil pelo açúcar como
principal meio de exportação da região, que gerou a necessidade de uma força de
trabalho disciplinada (ou escrava). 213
Assim como Caminha e seus companheiros, em 1500, os jesuítas (imersos em
outro contexto e com mais tempo), a partir de 1549 passariam a se perceber diante de
uma nova realidade criada a partir do contato com os nativos da América portuguesa,
sendo produzidos, inevitavelmente, significativos contrates. Nas leituras das cartas
jesuíticas do período - desde que Tomé de Sousa, desembarcou no Porto da Barra, em
Salvador, para fundar a primeira capital da América lusa - é encontrado o choque
cultural ou estranhamento entre jesuítas e indígenas. Desde os primeiros documentos
produzidos sobre a América, o estranhamento cultural era algo que caracterizava o olhar
dos viajantes pioneiros sobre as populações nativas.
Fato é que, depois de Pero Vaz de Caminha há quase uma plêiade de atentos
observadores e exímios escritores quinhentistas que forneceram um manancial de
informações e noções da mais variada ordem. Da sua observação atenta do real irá

213
BOXER, Charles R. O império colonial português (1415 – 1825). Lisboa: Edições 70, 1969, p.70.

73
emergir uma consciência intuitiva, prática, mas também intelectualizada, sobre a
América portuguesa. Alguns eram mais antropológicos, outros mais etnográficos, outros
mais geográficos, cartográficos ou fizeram registros como simples nautas; poucos
escreviam a semelhança de filósofos ou psicólogos, preferindo serem quase todos
naturalistas, isto é, conhecedores e amantes da nova e surpreendente face natureza. Dos
quais, contar-se-ão alguns famosos jesuítas. Uma quantidade considerável de cartas
ânuas enviadas da América prova este interesse naturalista, porém, é apropriado
destacar os nomes dos quinhentistas Manuel da Nóbrega, José de Anchieta, Fernão
Cardim ou Francisco Soares, que ficaram associados, pela escrita, a outros famosos
como Pero Magalhães de Gândavo, Gabriel Soares de Sousa ou Ambrósio Fernandes
Brandão. 214
Francisco Xavier (no Oriente) e Manuel da Nóbrega (na América portuguesa)
eram homens mais da ação, pelo que os olhares de ambos se fixavam, de preferência,
mais nas pessoas do que nas paisagens. Seus escritos eram predominantemente
narrativos e patenteavam um menor pendor literário, ao passo que outros se
distinguiram de modo diferente, privilegiando o descritivo naturalista, entrando no
domínio pré-científico. 215
O imaginário dos jesuítas quanto aos nativos conectava-se com as percepções que
os europeus tinham sobre os ameríndios no período das descobertas, percepções
carregadas de dualismo, em que os indígenas aparecem como “anjos” e como
“demônios”. Para a compreensão acerca da presença da Companhia de Jesus na
América portuguesa do século XVI, faz-se necessário mencionar o imaginário do
colonizador que antecedeu a chegada da Companhia na América. Ao mencionarmos
esse “imaginário”, estamos nos referindo à complexa visão cultural e interpretativa dos
conquistadores no processo de colonização da América, na qual o medo ou a fascinação
pelo desconhecido fazia parte do cotidiano dos habitantes do denominado Velho
Mundo. A Carta de Pero Vaz de Caminha, como exemplo, é um documento que
proporciona claramente a percepção do imaginário dos europeus, revelando o
deslumbramento diante dos habitantes no Novo Mundo, diante da terra e das
possibilidades em um paraíso a ser explorado.

214
SANTOS, João Marinho. A escrita e as suas funções na missão jesuítica do Brasil quinhentista... p.
122.
215
SANTOS, João Marinho. A escrita e as suas funções na missão jesuítica do Brasil quinhentista... p.
122.

74
Sérgio Buarque de Holanda em sua obra “Visão do Paraíso” - que resulta de um
diálogo estabelecido com a historiografia europeia - descreveu as percepções de tempo,
de mundo, de vida daquela época de descobrimentos, buscando na visão escatológica a
“edenização” das Américas (A América como Paraíso Terreal) para espanhóis e
216
portugueses no período da das descobertas. Shohat e Stam217 evidencian como o
próprio imaginário europeu serviu de base para a transposição de todo um aparato
ideológico sobre o outro.
Como adentrar essa terra desconhecida, que ultrapassava a imaginação
e provocava ao mesmo tempo angústias e exaltação? Acreditava-se,
então, na existência de povos desconhecidos, descritos em relatos de
outras viagens, mas também saídos de imagens que a tradição supunha
existir nos confins da Terra. O Paraíso Terreal teria ali sua porta de
entrada? 218

Quando chegaram à costa brasileira, os navegadores tiveram a impressão de terem


atingido o paraíso terrenal: um território de eterna primavera, onde o tempo de vida
ultrapassava cem anos em perpétua inocência. Os portugueses eram o novo Adão
conferindo um nome para cada lugar descoberto, e a sucessão de nomes era também
uma crônica de uma gênese confundida com o momento vivido. Cada lugar recebia o
nome do santo do dia. A terra era batizada antes dos gentios, criando, de certa maneira,
simbolicamente o Brasil e também a História do Brasil, iniciando a crônica
invariavelmente pelo descobrimento.219 Mas tudo não se resumiu na visão de um
paraíso terrestre, a humanidade deste Novo Mundo seria posteriormente animalizada e
demonizada. A terra era um paraíso, mas seus habitantes - nos padrões do Velho Mundo
cristão - opostamente eram pecadores. O Céu e Inferno dividiam espaço nessa nova
realidade:
A infernalização da colônia e sua inserção no conjunto dos mitos
edênicos elaborados pelos europeus caminharam juntas. Céu e Inferno
se alternavam no horizonte do colonizador, passando paulatinamente a
integrar, também o universo dos colonos e dando ainda espaço para
que, entre eles, se imiscuísse o Purgatório. Durante todo o processo de
colonização, desenvolveu-se, pois uma justificação ideológica
ancorada na Fé e na sua negação [...]. 220

216
HOLANDA, Sérgio. Visão do Paraíso. Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do
Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1977.
217
SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2006.
218
PRIORE, Histórias da gente brasileira: Volume 1, Colônia... p. 16.
219
CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras /
FAPESP, 1992.
220
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no
Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 372.

75
As cartas jesuíticas registraram o espanto - como se observa no fragmento abaixo
221
- diante de certos costumes ou práticas dos indígenas. Os costumes indígenas eram
fortemente contrastantes com o ideal cristão. A antropofagia, a nudez, 222 a poligamia, a
“feitiçaria”, dentre outros costumes ameríndios, não eram práticas que consideravam
aceitáveis. A contrariedade e o assombro inicialmente eram constantes diante do modo
de viver de indígenas:

No outro dia nos fomos e passamos muitos despovoados,


especialmente um de vinte e três jornadas por entre uns Indios que
chamam Tapuzas, que é uma geração de Indios bestial e feroz; porque
andam pelos bosques como manadas de veados, nús, com os cabellos
compridos como mulheres: a sua falla é mui barbara e elles mui
carniceiros e trazem frechas ervadas e dão cabo e um homem n'um
momento. 223

Grande parte dos costumes ameríndios foram veementemente censurados pelos


jesuítas, que também tiveram que lidar, dentre uma série de fatores, com a categorizada
“inconstância” indígena, fator que inclusive produziu mudanças no olhar de Nóbrega
para os nativos, abrindo espaço para a tolerância à escravidão dos mesmos224 por meio
da “guerra justa”.
Na convivência com as sociedades indígenas da América portuguesa, sobretudo
no século XVI, a nudez, a poligamia, os rituais de antropofagia e a “feitiçaria” eram
constantemente percebidos e avaliados pelos jesuítas e representavam, para os padres,
um desafio aos princípios e a difusão do Cristianismo, fazendo parte de um conjunto de
práticas que entendemos terem sido as mais emblemáticas no que tange ao choque
cultural produzido no contato entre indígenas e jesuítas. Por este motivo, foram

221
Fragmento extraído e uma carta do padre João de Azpilcueta, escrita de Porto Seguro, em 24 de junho
de 1555.
222
Dentre as variadas diferenças culturais que foram percebidas pelos europeus, o tema “da nudez dos
índios, e especialmente das índias, já estava presente nos relatos de Colombo, como também nos de
Américo Vespúcio. Fazia parte dos momentos necessários a serem referidos pelo autor de uma carta de
descoberta. Era, por excelência, o tópico em que se configurava o exótico, aquilo que mais despertava a
curiosidade dos homens europeus” KOTHE, Flávio. O Cânone Colonial – ensaio. Brasília: UNB, 1997,
p. 221.
223
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568 (Cartas Jesuíticas, Vol. II)...
p.148.
224
Para Ronald, Raminelli, “o combate inaciano contra a escravização do índio e o discurso em torno da
inadaptação dos nativos à lavoura não impediram que os índios fossem empregados como força motriz
nos primórdios da exploração da cana de açudar [que se iniciou por volta de 1553] Os projetos coloniais
pretendiam inserir os povos indígenas no mundo mercantilista. Deste modo, a mão-de-obra nativa
contribuiria com a expansão marítima.” RAMINELLI, Ronald. Imagens da Colonização: A representação
do índio de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro, Zahar Ed, 1996, p. 15.

76
escolhidos, ou destacados esses quatro elementos dentre os demais, que entendemos
terem produzido significativos contrates.
Nesta abordagem, compreendemos que os estudos recentes que enfocam as
relações entre os indígenas e missionários vêm privilegiando o olhar histórico e a
análise processual como instrumento metodológico, seja para identificar a dinâmica
indígena da absorção, rejeição e reelaboração da mensagem cristã, seja para recuperar a
dinâmica interna do discurso missionário em suas diferentes facetas apresentadas. No
que concerne à denominada "antropologia histórica", ela é algo mais do que um olhar
antropológico sobre a história indígena e das missões, mas antes de tudo, uma tentativa
de historizar um objeto antropológico (o encontro de catequese) e principalmente certas
categorias analíticas (como os conceitos de religião, de fé, de conversão, e até de mito e
ritual) fruto da história desse encontro. 225

2.1. NUDEZ

A América do século XVI era repleta de práticas cotidianas heterodoxas aos


dogmas católicos. Para os colonizadores portugueses, dentre os costumes dos povos
nativos, a nudez era um dos que mais ganhava destaque. Maior do que o próprio corpo,
o costume não era bem compreendido pela moral católica, que não o enxergava - como
alguns na contemporaneidade interpretam a nudez corporal - como um fator cultural ou
uma expressão da liberdade humana. O corpo nu era uma imagem que simbolizava o
pecado. A nudez era considerada uma prática pecaminosa incorporada à luxúria, e na
perspectiva cristã, a luxúria, relacionada ao domínio das paixões, impossibilitava que o
homem se abstivesse dos prazeres carnais, ou que vivesse em castidade e pureza em
relação ao sexo e a nudez.
Os grupos, culturas e sociedades determinam os limites do corpo, pensar em
corpo é também pensar em cultura. As representações do corpo grego, por exemplo,
passavam pela idealização, exprimindo a beleza, já no cristianismo, contrariamente, o
corpo era “proibido” por relacionar-se ao pecado, devendo ser ocultado. As virtudes
espirituais, para o Cristianismo, deveriam estar acima dos desejos e da satisfações da
carne. Segundo Jocimar Daolio, “no corpo estão inscritas todas as regras, todas as
225
POMPA, Cristina. Para uma antropologia histórica das missões... p. 112.

77
normas e todos os valores de uma sociedade específica, por ser ele o meio de contato
primário do indivíduo com o ambiente que o cerca [...]” 226
Os religiosos europeus se questionavam se estariam os tupinambás vivendo ainda
o tempo da inocência, anterior ao pecado original, ou seriam eles pecadores imersos em
“apetites sensuais”? Nessa ótica, o corpo ameríndio era o que melhor expunha o caráter
ambíguo do Tupinambá visto pelos europeus: ora era o lugar privilegiado dos sinais
demoníacos (nudez, poligamia, antropofagia), ora era o espaço em que se vislumbra a
pureza das origens, a inocência primordial. Caráter ambivalente que foi acentuado pelas
discussões teológicas envolvendo a relação entre o corpo e o sagrado, que ocupavam
227
posição central no período das reformas religiosas. As vestes associavam-se a
quando Adão e Eva se vestiram em respostava ao pudor diante da desobediência ao
mandato divino. A vestimenta era, pelo olhar cristão, o sinal da vergonha diante do
pecado original. Porém, os ameríndios pareciam não observar a “Lei natural”, pois
andavam “sem pudores” e com suas partes íntimas expostas. 228
Os indígenas viviam em pecado de acordo com os parâmetros do ocidente cristão,
pois possuíam costumes e práticas não condizentes com os mandamentos do Deus do
Cristianismo. A identificação de suas “práticas pecaminosas” ou luxuriosas se dava por
meio da comparação entre o modo como viviam e os mandamentos cristãos. Tal
reconhecimento ocorria de modo quase que instantâneo, por meio de um evidente
contraste. Doutrinariamente, quem não segue as “regras divinas”, comete pecado, e está
desviado de Deus. Como convencer os indígenas de que estavam errados ou em pecado?
A nudez corporal, primeiro dos costumes indígenas a ser notado e comentado
pelos viajantes europeus, foi considerada um obstáculo à conversão das almas nativas,
conforme lamentou o padre Nóbrega, em carta de 1549, ao padre Simão Rodrigues de
Azevedo:
Parece-nos que não podemos deixar de dar a roupa que trouxemos a
estes que querem ser christãos, repartindo-lh'a até ficar-mos todos
eguaes com elles, ao menos por não escandalisar aos meus Irmãos de
Coimbra, si souberem que por falta de algumas ceroulas deixa uma
alma de ser christã e conhecer a seu Creador e Senhor e dar-lhe gloria
[...]. 229

226
DAOLIO, Jocimar. Da cultura do corpo. Campinas: Papirus, 1995. p. 39.
227
FLORENCIO, Thiago de Abreu e Lima. A busca da salvação entre a escrita e o corpo: Nóbrega, Léry
e os Tupinambá. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em História - Departamento de História da
PUC-Rio, 2007, p.28.
228
FLORENCIO, A busca da salvação entre a escrita e o corpo: Nóbrega, Léry e os Tupinambá... p. 81 -
82.
229
NÓBREGA, Cartas do Brasil (1549-1560)... p. 74.

78
Nóbrega não só demonstrou sua preocupação para com a nudez indígena, como
também, em outro momento, solicitou roupas a Simão, para cobrir os novos convertidos
com vistas à “honestidade da Religião Christã”: 230

Também peça Vossa Reverendissima algum petitorio de roupa, para


entretanto cobrirmos estes novos convertidos, ao menos uma
camisa a cada mulher, pela honestidade da Religião Christã,
porque vêm todos a esta cidade á missa aos domingos e festas,
que faz muita devoção e vêm resando as orações que lhes
ensinamos e não parece honesto estarem nuas entre os Christãos
na egreja, e quando as ensinamos. 231

Dentre as variadas diferenças culturais que foram percebidas pelos europeus, o


tema da nudez dos “índios”, e especialmente das “índias”, já estava presente nos relatos
de Colombo, como também nos de Américo Vespúcio. Fazia parte dos momentos
necessários a serem referidos pelo autor de uma carta de descoberta. Era, por
excelência, o tópico em que se configurava o exótico, aquilo que mais despertava a
curiosidade dos homens europeus.232 Os colonizadores descreviam os povos americanos
basicamente de duas maneiras, de forma depreciativa ou buscando compreender suas
características culturais. As informações acerca deste período baseiam-se
principalmente em relatos e descrições dos viajantes europeus que estiveram em
território brasileiro, como no relato deixado pelo fidalgo Pero Vaz de Caminha:

E dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete ou oito,
segundo disseram os navios pequenos que chegaram primeiro. [...].
Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas.
Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em
direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os
arcos. E eles os depuseram. 233

Para os europeus que pisaram neste novo mundo, segundo a compreensão que
inicialmente possuíam, os indígenas estavam nus não somente por ausência de
civilidade, mas também poderia ser questão de pureza. Já na chegada de Pedro Álvares
Cabral ao território brasileiro, após a superação do medo, a nudez indígena passou a
representar a falta de pudor e malícia. Esta interpretação não significaria ao longo do

230
KOK, Maria da Glória. Os vivos e os mortos na América portuguesa. Da antropofagia à água do
batismo. Campinas – SP: Editora Unicamp, 2001, p. 79.
231
NÓBREGA, Cartas do Brasil (1549-1560)... p. 85.
232
KOTHE, Flávio. O Cânone Colonial – ensaio. Brasília: UNB, 1997, p. 221.
233
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta ao rei Dom Manuel. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000, p. 01.

79
tempo a aceitação do costume, pois o mesmo seria combatido. Embora fosse natural
para o indígena em sua cultura e fizesse parte de suas práticas desde o nascimento, a
nudez era um elemento cultural desconfortante para os jesuítas, que ao vesti-los
entendiam contribuir para que se afastassem do pecado/mal.
Ameríndios e europeus (neste caso, religiosos europeus) estavam diante pessoas
ancestralmente desconhecidas e bem diferentes fisicamente e comportamentalmente,
evidenciando a diferença entre os protagonistas. Para os indígenas, no início da
colonização, foi uma novidade olhar para aqueles homens que cobriam totalmente o
corpo com panos pesados (por influência do renascimento) e o maior estranhamento
com relação à fisicalidade dos indígenas, para os europeus, começou pela forma como
estavam expostos, tratando-se do estranhamento enquanto categoria estética. Para eles,
provenientes de uma nação católica não habituada com o calor dos trópicos, o modo
como o nativo lida com sua corporalidade lhe causa profundo estranhamento. Neste
culturalmente complexo cenário, enquanto uns escondem seus corpos com vestimentas
pesadas, outros a expõem sem o pudor da religiosidade católica.
Em algumas perspectivas, o corpo indígena era percebido como rude, grosseiro,
animalesco e deformado em relação aos paradigmas europeus quinhentistas. Seus
adornos também não eram bem vistos. O pensamento cristão quinhentista acerca do
corpo supõe que haja um “corpo culto” que é o europeu, lugar do equilíbrio, de certas
lembranças gregas.234 Enquanto que para o indígena, a expressão da cultura se
manifestava no próprio corpo, que exibia os feitos de guerra e no qual estava impresso o
estatuto de homem, o que para os jesuítas significava escassa humanidade ou
animalidade, pois o corpo na tradição cristã só possuía valor quando mortificado, via
pela qual se alcançava a salvação da alma. Para esses cristãos o corpo abrigava o
pecado. Perspectiva conflitante com a cultura indígena, da qual foram desencadeados
uma série de desentendimentos e conflitos. 235
O Deus abstrato e incorpóreo apresentado pelos jesuítas era inadmissível no
universo religioso indígena, visto que não podiam apreender o banimento completo do
corpo. Para Nóbrega, os indígenas estavam apegados à corporeidade em sua dimensão
sensual, no que declarou: “Estão mui apegados com as cousas sensuaes. Muitas vezes
me perguntam si Deus tem cabeça e corpo de mulher, si como e de que se veste e outras

234
NEVES, O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios (colonialismo e repressão
cultural)... p. 134-135.
235
KOK, Os vivos e os mortos na América portuguesa. Da antropofagia à água do batismo... p. 80.

80
cousas similhares”. Tais perguntas emanam da perspectiva de que o Deus incorpóreo, a
castidade dos missionários e a tentativa de cobrir o corpo nu eram fatores de difícil
compreensão para o mundo indígena, ao passo que, por outro lado, era um aspecto
gerador de preocupação quanto ao sucesso missionário. O que levou Nóbrega a
escrever, em 1553, fazendo uma solicitação por orientação dos letrados de Coimbra a
respeito de como deveria agir. 236
[...] como nos haveremos acerca dos Gentios que nos vêm a pedirem o
baptismo e não tem camisas nem roupas para se vestirem: si, somente
por razão de andarem nus, tendo o mais apparelhado, lhes negarmos o
baptismo e a entrada na egreja á missa e doutrina, porque parece que
andar nu é contra a lei da natura, e, quem a não guarda pecca
mortalmente, e o tal não é capaz de receber o Sacramento, e por outra
parte eu não sei quando tanto Gentio se poderá vestir, pois tantos mil
annos andou sempre nu, não negando se bom persuadir-lhes, e prégar-
lhes que se vistam e mettel-os nistos quando puder ser?237

Percebe-se na leitura das cartas jesuíticas que a nudez dos indígenas incomodava.
Para estes religiosos, membros de uma sociedade em que se utilizavam roupas que
escondiam o corpo, tratava-se de uma prática “inaceitável” e constrangedora. Vemos, no
trecho a seguir, extraído de uma carta de Leonardo Nunes, do ano de 1550, que ao
relatar a hostilidade indígena nesta etapa da carta, o padre começou citando a nudez:

Neste tempo os índios não nos davam espaço nenhum, seguindo- nos e
accommettendo nos por todas as partes, e certo que pareciam diabos:
todos andavam nús, como elles todos costumam, delles tintos de
negro, outros de vermelho, outros cheios de pennas, e não cessavam
de atirar frechadas, com grande grita, e outros tangiam nos busios,
com que fazem alarde em suas guerras que parecia o mesmo Inferno e
assi nos perseguiram passante de três horas, de maneira que, si foram
contrairos e nos seguiram um pouco mais, nem um de nós escapara de
que não fizeram seu manjar. Frecharam-nos duas pessoas: uma dellas
morreu em sahindo em terra, porque as frechadas eram taes que
passavam as taboas do navio de uma parte a outra. 238

Em diversas ocasiões, os europeus exaltaram a beleza dos corpos e a perfeição


dos contornos femininos. Os corpos despertavam sentimentos, no que a beleza física das
nativas inclinava os nativos contra o voto de castidade. O padre Antônio da Rocha
confessou suas fraquezas em relação à nudez das índias. Desde sua chegada ao Espírito
Santo, o religioso não passava uma hora sem sentir “estímulos gravíssimos”. Em

236
KOK, Os vivos e os mortos na América portuguesa. Da antropofagia à água do batismo... p. 80-81.
237
NÓBREGA, Manoel. Cartas do Brasil (1549-1560). Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras -
Officina Industrial Graphica, 1931, p. 142.
238
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568 (Cartas Jesuíticas, Vol. II)... p.
60.

81
Portugal, fora acometido pelos mesmos arroubos, mas tratava-se de uma volúpia mais
branda, poia lá as mulheres andavam vestidas. 239 É fato que,
Para quem lê as cartas dos primeiros jesuítas no Brasil, dirigidas aos
seus superiores na Europa (Nóbrega, 1555; Luís da Grã, 1556;
Lourenço, 1554; Blázques, 1558), não resta sombra de dúvida: aos
olhos desses primeiros missionários (desde 1549), a maior dificuldade
da evangelização do Brasil não é de ordem doutrinária, mas sim de
ordem moral. São os “maus costumes da terra, que chegam a perverter
os colonos portugueses que vieram aqui antes dos missionários e que
professam a ‘grande heresia do Brasil’ (Nóbrega): a dizer que o ‘vício
da carne’ não é pecado. Reina no Brasil o espírito da fornicação’”,
numa terra cheia de perigos “onde as mulheres andam nuas e não
sabem negar-se a ninguém, mas elas mesmas importunam os homens
lançando-se com eles nas redes, pois consideram uma honra dormir
com cristãos”, “dormir com christianos” O irmão Antônio Brázques
diz o mesmo: “Estava toda esta terra até agora a mais perdida assim,
no eclesiástico como no regular, dominada pelos vícios que creio que
não se encontrará outra de seu tamanho no mundo todo.” 240

A prática inaceitável da nudez seria em parte corrigida com vestes. Partindo da


nudez para o seu contrário, o “vestir-se”, observamos que em dado momento o padre
Anchieta descreveu a maneira original e excêntrica de se vestir de alguns indígenas que
estavam em contato com a concepção de civilidade cristã:

[...] de vez em quando, vestem alguma roupa de algodão ou de pano


baixo e nisto usam de primores a seu modo, porque um dia saem com
gorro, carapuça ou chapéu na cabeça e o mais nu; outro dia com seus
sapatos ou botas e mais nu, outras vezes trazem uma roupa curta até a
cintura sem mais a outra. Quando casam vão ás bodas vestidos e á
tarde vão passear sòmente com o gorro na cabeça sem outra roupa e
lhe parece que vão assim mui galantes. 241

Na descrição de Anchieta vê-se, ao contrário de uma possível leitura humorística


de um leitor da atualidade, a força da recriação da cultura indígena, no que os indígenas
seguiam como sujeitos ativos capazes de muitas vezes frustrar os valores impostos pelos
“vencedores” 242
A nudez indígena, sem desconsiderarmos fatores culturais, parecia se
explicar pelo fato da América portuguesa ser tropical, por vezes quente, mas um bom
número de nativos foi paulatinamente incorporando as vestimentas dos homens
considerados “civilizados”, ainda que de forma inicialmente “desajeitada” para os
padrões europeus.
239
RAMINELLI, Imagens da Colonização: A representação do índio de Caminha a Vieira, p. 118 – 119.
240
MARCILIO, Maria Luiza (organizadora). Família, mulher, sexualidade e Igreja na história do Brasil.
São Paulo: Edições Loyola, 1993, p. 11.
241
ANCHIETA, Cartas, Informações, Fragmentos históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta... p.
426.
242
KOK, Os vivos e os mortos na América portuguesa. Da antropofagia à água do batismo... p. 81.

82
2.2. POLIGAMIA

Juntamente com a nudez, outro costume bastante combatido pelos jesuítas era a
poligamia, que inclusive não era praticada somente pelos nativos, mas curiosamente -
com semelhanças - por cristãos, constituindo-se em uma terrível adversária da
conversão. Conforme comentou Nóbrega: “A gente da terra vive em pecado mortal, e
não há nenhum que deixe de ter muitas negras das quais estão cheios de filhos e é
grande mal: nenhum delles se vem confessar ainda; queira Nosso Senhor que o façam
depois.” 243
Segundo Maria da Glória Kok:
Alguns jesuítas se aprofundavam na compreensão dos costumes
indígenas, e mais tarde expressavam suas impressões acerca deles,
através de cartas descritivas. Demonstravam conhecimento, apesar das
suas representações e visões de mundo, e da forma como visualizavam
estas práticas ameríndias. O tema da família e do matrimônio, bem
como outras características da cultura dos índios, era discutido e em
alguns momentos gerava discordâncias, bem como eram alvo de seus
estudos. 244

No universo cristão-católico, a sacramentalização do casamento consolidou-se


entre os séculos XI e XIII, evidentemente que seguindo o padrão doutrinário cristão
originário no primeiro século (da monogamia) no qual ele aparece, dentre outros fatores,
como uma solução ao desregramento moral. Acrescentamos, de acordo com Adone
Agnolin que:
A revisão tridentina do sacramento do matrimônio [...] produziu
efeitos profundos na relação entre religião e sociedade: significativas
foram as repercussões da nova normativa matrimonial, tanto no
terreno cultural quanto naquele social. [...] previa o acolhimento pleno
do casamento como contrato conjugal no contexto dos sacramentos:
foi isso que deslocou a prática matrimonial dos cenários familiares –
de sua economia de alianças e de interesses mundanos – para fazê-la
entrar num espaço eclesiástico rígico, determinado e sem resíduos. 245

O casamento, nos moldes cristãos, representava um verdadeiro contraste com o


modo indígena de encarar a união homem/mulher. Além de poderem ter muitas
mulheres, um tabu para os cristãos, para os indígenas não havia complicações para o

243
NÓBREGA, Cartas do Brasil (1549-1560)... p. 33.
244
SILVA, O padre Luís da Gram e a Inquisição no Brasil colonial quinhentista... p. 16.
245
AGNOLIN, Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi
(Séculos XVI – XVII)... p. 185.

83
“casamento”246 e a separação. Para que ocorresse a união, obviamente, não havia
contrato escrito, a legitimação dependia somente da permissão do pai da jovem,
enquanto a separação poderia ocorrer por motivos ocidentalmente irrelevantes. “Sem
dúvida, de todos os enfoques relativos à família, a questão da fidelidade conjugal foi a
mais enfatizada pela Igreja. Seu fundamento era a doutrina sacramental a respeito da
indissolubilidade do matrimônio, apresentada como uma verdade de fé.” 247
Na era dos descobrimentos, a sociedade portuguesa que se instaurou na América
possuía doutrinariamente padrões monogâmicos, e o casamento ocidental cristão
contrastou-se com os costumes matrimoniais “livres” e poligâmicos dos naturais no
novo mundo. Porém, ao abordarmos a conjugalidade no contexto apresentado, é preciso
que também se compreendam as dificuldades que foram enfrentadas pelos portugueses
na América.
Os portugueses chegavam à América quase todos solteiros, alguns casados,
poucos com as respectivas mulheres. Não havendo brancas na terra, ocorriam uniões
dos recém-chegados com as mulheres indígenas. O concubinato (ou mancebia) era
248
amplamente praticado. Muitos portugueses já viviam com índias argumentavam que
se casariam com portuguesas se as houvesse. Nóbrega propôs que de Portugal se
enviassem mulheres pobres com vistas ao “casamento honrado”, para evitar a corrupção
de costumes, que ameaçavam subverter a nova cristandade. Esse zelo de Nóbrega
dispunha da simpatia do Governador Tomé de Sousa e não descuidava admoestações
em público e em particular. Pode-se afirmar que, em certa medida, os portugueses
corresponderam bem. Uns puseram as concubinas fora de casa, não por motivo de
racismo, mas para ficarem livres e se poderem depois casar no Reino. Muitos eram
degredados e a esperança de todo o degredado é voltar; o deixarem as mancebias não
resolveria o seu caso pessoal, mas acabava o escândalo público. Outros aceitaram os
avisos de Nóbrega e logo levaram ao altar as índias, tomando-as com isso mães
legítimas dos filhos que em breve começariam a nascer. Inclusive, o pedido de mulheres
de Portugal foi ampliado por Nóbrega também para órfãs e teve aquiescência. As órfãs,

246
As uniões “matrimoniais” dos índios não eram consideradas legítimas por estarem fora dos padrões
ocidentais.
247
MARCILIO, Maria Luiza (organizadora). Família, mulher, sexualidade e Igreja na história do Brasil.
São Paulo: Edições Loyola, 1993, p. 107.
248
LEITE, Novas páginas de história do Brasil... p. 109.

84
que se enviaram à América portuguesa casaram-se, dando-se, por via de regra, aos que
as recebiam em matrimônio um emprego público. 249
Situação mais difícil era a dos homens casados em Portugal, que na América
portuguesa se juntavam com mulheres indígenas de quem tinham filhos, como a de João
Ramalho na Capitania de São Vicente. Tanto Ramalho como a mulher, com quem vivia,
e de quem tivera filhos, desejavam casar-se. Nóbrega empenhou- se pela regularização
conjugal do velho patriarca vicentino e procurou informações no Reino. A mulher
“legítima” decerto ainda vivia, razão pela qual o matrimônio não veio a efetuar-se.
Ramalho viveu ainda muitos anos e em grave doença confessou- se e comungou,
pondo-se em regra com a religião. Mas, a indígena, com quem viveu, apareceu depois
no testamento com o título de "criada". 250
No começo de sua empresa na América portuguesa, entendia Nóbrega que a
“nova Igreja” tinha que começar bem, devendo os portugueses casar com as mulheres
indígenas com quem viviam. Mas, como um bom começo nem sempre era prova de
continuidade, bastou afrouxar-se o prestígio da autoridade eclesiástica e sobrevir o mau
exemplo de alguns clérigos para, durante a ausência de Nóbrega na Capitania de São
Vicente, as casas dos moradores da Bahia se encherem de índias fora do matrimônio.
Como Provincial, só lhe restava o recurso de fechar (não totalmente), aos que assim
251
viviam fora dos parâmetros, as portas da confissão por Padres da Companhia.
Os dogmas cristãos estabeleciam uma forma de aliança conjugal diferente da
praticada por muitas sociedades indígenas (não todas) na América portuguesa, dentre
elas, os tupinambás, gerando uma impossibilidade de aceitação dessa prática por parte
dos Jesuítas. Todavia, no que tange à união entre um homem e uma mulher, a poligamia
não era o único ponto de preocupação dos jesuítas. Eles estavam também atentos aos
amancebamentos e a despreocupação dos indígenas quanto à separação do cônjuge.
Segundo Maria Luiza Marcilio:
Com penosa lentidão, nos séculos XVI, XVII e XVIII o casamento
erigia-se na Colônia por razões de Estado, pela necessidade de
povoamento das capitanias e por questões de segurança e controle
social. Na forma como fora imposto às populações, fazia lembrar a
ética loquaz da Reforma Católica, cujo discurso fomentava a
incubação de uma moral conjugal sóbria e vigilante. Sermões e
pastorais exaltando o sacramento do matrimônio serviam tanto para

249
LEITE, Novas páginas de história do Brasil... p. 110.
250
LEITE, Novas páginas de história do Brasil... p. 111.
251
LEITE, Novas páginas de história do Brasil... p. 111 – 112.

85
justificar a instalação de um aparelho burocrático e afirmar o poder da
Igreja no Novo Mundo [...]. 252

Os indígenas resistiam à ideia de que deveriam levar uma vida monogâmica


duradoura, a incorporação deste ideal não lhes parecia significativa como poderia ser a
um cristão europeu. Também não era fácil para eles a depreensão da fidelidade
conjugal. Não fazia parte se sua cultura a indissolubilidade, a monogamia e a
continência, ou seja, elaborações da moral cristã acerca do casamento, que
representavam a valorização do alicerce familiar ocidental. O casamento servia também
para frear os que não conseguiam ter uma vida de castidade, mas a realidade se
mostrava diferente deste ideal religioso. Não é atoa que era preciso grande empenho por
parte dos padres para estabelecer o casamento cristão entre os nativos. A orientação dos
nativos para a monogamia perpétua fazia parte de sermões que pareciam não surtir
efeito na vida prática dos indígenas. Vejamos as informações contidas no trecho a
seguir, de uma carta escrita por pelo jesuíta Antônio Blasquez, da Bahia no ano de
1558:
Um índio, deixando sua mulher de quem tinha muitos filhos e
tomando outra, com a qual estava, deixando a primeira com os filhos
padecer muita necessidade, e sendo advertido por seus mestres e
reprehendido não desistiu: succedeu adoecer a manceba e morrer de
morte súbita e muito espantosa a todos, porque morreu inchada, cousa
que mettia medo. Com a morte da qual, lhes fizeram uma predica
sobre a fidelidade do casamento, mandando que não a chorassem, pois
estava no inferno, e muitas diziam: Eu não tenho mais que um só
marido; de sorte que ganharam todos temor e foi-lhes muito bom, pois
elles têm em pouca conta os adultérios e os peceados da carne, porque
são de tal qualidade estes Gentios que parece que nunca tomam as
mulheres com o intento de as manter sempre; o que se conhece
claramente por serem fáceis em deixar uma e tomar outra, e ellas do
mesmo modo. 253

Observa-se neste trecho de uma carta do padre jesuíta português Antônio Pires,
escrita da Capitania de Pernambuco, no ano de 1551, o entendimento do casamento
como uma possibilidade de se evitar o pecado:
Evitaram-se grandes peceados, fizeram-se muitos casamentos a
serviço de Deus, e alguns foram com mulheres da terra, de que resulta
grande louvor a Christo Nosso Senhor, e será um grande principio de
se acrescentar a terra e a Santa Fé Catholica. De maneira que está este
porto tão reformado, que não sinto terra povoada de gente tão mal
acostumada em peceados, como esta, que possa estar tão reformada
em bons costumes e virtudes. O Governador, por suas virtudes, nos

252
MARCILIO, Família, mulher, sexualidade e Igreja na história do Brasil... p. 171.
253
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568 (Cartas Jesuíticas, Vol. II)... p.
184.

86
ajuda muito, e em tudo favorece nossa causa. Os escravos aqui viviam
gentilicamente, como antes, quando eram gentios, o faziam em suas
terras. Tem-se feito nelles grande fruito, porque sabem já as orações, e
ensinam-os a viver virtuosamente. Trabalhamos por pôr um costume
nesta terra, de casar os escravos com as escravas á porta da egreja.
Casaram-se muitos, e casar-se-iam muitos mais, si acabassem de crer
seus senhores que não ficam forros. 254

No seguinte fragmento de uma das cartas do padre Antônio Blasquez, escrita da


Bahia, no ano de 1564 (em um estágio mais avançado da Missão), vê-se que o horizonte
da atuação jesuítica entre os indígenas não se resumia ao pessimismo quanto aos
nativos, pois transformações - fruto de intensivo trabalho doutrinário - também
ocorriam, atenuando os contrastes culturais, no que se registraram palavras jubilosas
emanadas da uma devoção religiosa a Deus (o “Senhor”):
Aos Padres e Irmãos a quem isto á sua noticia vier, não pequeno
motivo será para se alegrarem no Senhor, saber que gente que tinha
posta a sua felicidade em matar homens e comer carne humana e em
ter muitas mulheres, tudo isto tem já esquecido e, assim, em uma
coisa como em outra, está muito emendada; de modo que os que os
nossos Padres doutrinam e têm a seu cargo se contentam com uma
só mulher, com quem vivem christãmente, e os que ainda não são
christãos, poucos se encontram que tenham mais de uma mulher,
pelo especial e particular cuidado que os nossos põem nisso. Isto que
digo entenda Vossa Revma. Que se observa com aquelles a quem os
da Companhia doutrinam e têm a seu cargo, que os outros que estão
longe de nós permanecem na sua ignorância e infidelidade. 255

O sacramento do matrimônio aos moradores das vilas e cidades era atribuição dos
párocos. O casamento dos indígenas fazia parte integrante da obra da conversão e
estabelecimento da vida cristã na América portuguesa e dele estavam encarregados os
padres da Companhia de Jesus. Nos primeiros começos, antes da organização estável
dos aldeamentos, os da Companhia se ocuparam dos indígenas nas vilas e cidades,
sobretudo onde não havia pároco ou enquanto ele não se fazia presente, como sucedeu
nas fundações da Bahia e do Rio de Janeiro, de modo particular em São Paulo, onde por
muitos anos foram eles os únicos padres residentes e, portanto, com o ofício de párocos
dos portugueses, mamelucos e indígenas. 256
Para combater esse “vício que contaminava a terra” e era capaz de interferir e
modificar a condição matrimonial, o batismo era tido como uma solução, conforme

254
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568 (Cartas Jesuíticas, Vol. II)... p.
81.
255
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568 (Cartas Jesuíticas, Vol. II)... p.
421 - 422.
256
LEITE, Novas páginas de história do Brasil... p. 112.

87
postulou Nóbrega: “[...] costumamos baptisar marido e mulher de uma só vez, logo
depois casando-os, com as admoestações daquillo que o verdadeiro matrimonio
reclama; com o que se mostram elles muito contentes [...]”.257
Segundo Maria da Glória Kok:
Aos olhos de Anchieta, as mulheres índias “andam nuas e não sabem
negar a ninguém, mas até elas mesmas cometem e importunam os
homens, jogando-se com eles nas redes porque têm por honra dormir
com os cristãos”. A mulher, comenta Mary Del Priore, tornou-se então
“o alvo preferido dos pregadores”, e contra ela e o sexo abatiam-se
numerosos discursos. [...] Os cristãos não aceitavam o matrimônio
com as índias, com as quais se amancebavam, temerosos de que elas
ficassem forras. E os índios se recusavam a manter casamento
monogâmico, fato completamente alheio à vida social indígena,
revoltando-se inúmeras vezes contra essa imposição. 258

Para Nóbrega, a poligamia obstruía o acesso ao batismo:

O Gentio desta terra, como não tem matrimônio verdadeiro, com


ânimo de perseverarem toda a vida, mas tomam uma mulher e
apartam-se quando querem, de maravilha se achará uma povoação,
apenas que estão ao derredor perto, quem se possa casar, dos que se
convertem legitimamente á nossa Fé, sem que haja impedimento de
consagüinidade ou affinitude , ou de pública honestidade, e este é o
maior estorvo que temos não os poder pôr em estado de graça e por
isso não lhe ousamos a dar o Sacramento do Baptismo, pois é forçado
a ficarem ainda servos do pecado. 259

Encontramos nos textos do padre Anchieta importante material para


compreendermos a rotina dos indígenas. No documento "Informação dos Primeiros
Aldeamentos na Bahia", é encontrado o seguinte fragmento, referente à catequização,
no que se percebem além do júbilo a ausência de tolerância para com as práticas
poligâmicas, ao que se batizava era permitida a escolha de uma só mulher, e as demais
estariam dispensadas para casarem-se de forma monogâmica:
Houve em todas estas igrejas muitos e mui solenes batismos, alguns
que passavam de 1.000 almas, achando-se o bispo Dom Pedro Leitão
a alguns deles, onde por sua mão batizava a muitos e crismava a
todos, e depois casava em lei da graça os que eram pera isso, e duas
vezes foi ás ditas igrejas, batizando os índios, que para isso estavam
aparelhados, e os que o não estavam, deixando as muitas mulheres,
casavam com uma em lei da natureza, e as outras se casavam com
outros índios, e com estas cousas vista do Padre se animavam e
alegravam muito os índios, vendo as festas que lhes o Padre em seus
batismos fazia.260

257
NÓBREGA, Cartas do Brasil (1549-1560)... p. 92.
258
KOK, Os vivos e os mortos na América portuguesa. Da antropofagia à água do batismo... p. 82.
259
NÓBREGA, Cartas do Brasil (1549-1560)... p. 148.
260
ANCHIETA, Cartas, Informações, Fragmentos históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta... p.
354 – 355.

88
Quanto mais batismos, mais grossa seria a fileira de novos cristãos na América
portuguesa. Com esse ideal cruzadista, e acompanhado pelo aval do monarca português,
mediante o Padroado Régio, os clérigos tinham como meta propagar os ideais do
catolicismo, batizando, ouvindo confissões, admoestando, ensinando doutrinas,
realizando casamentos, mas também se envolvendo em casos específicos e pontuais,
como a antropofagia. Havia ardor na evangelização e imposição de preceitos cristãos. E
o convívio entre jesuítas que colaboravam entre si para concretizar a evangelização,
apesar de ser, em sua maioria, convergente, não atravessou os anos com pleno
entendimento. 261
Dentre os jesuítas, Anchieta se destacou na análise dos relacionamentos
familiares dos nativos, com ênfase nos tupinambás. Um relevante quanto ao tema do
casamento é que o padre Anchieta enxergava como impossibilidade restringir
casamentos consanguíneos - um tabu para os europeus - especialmente o avuncular e o
de primos-cruzados (sistemas matrimoniais preferidos pelos Tupi-Guarani) e em 1554
fez a seguinte requisição:262

[...] que o direito positivo se afrouxe nestas paragens, de modo que, a


não ser o parentesco de irmão com irmã, possam em todos ao graus
contrair casamento, o que é preciso que se faça em outras leis da Santa
Madre Igreja, ás quais, se os quisermos presentemente obrigar, é fora
de dúvida que não quererão chegar-se ao culto da fé cristã; pois são de
tal forma bárbaros e indomitos que parecem aproximar-se mais á
natureza das feras do que á dos homens. 263

Indo para século XI, constatamos que as reformas gregorianas tiveram importante
papel na abordagem da Igreja sobre a sexualidade, fortalecendo a utilização do
casamento como um instrumento de controle. Fato é que, no ocidente, a concepção
cristã de união indissolúvel através de um sacramento, substituindo a antiga prática
“pagã” da poligamia na Europa e no mundo, foi defendida pelos padres jesuítas, que
levavam em conta a intensificação dada pela Igreja aos princípios da monogamia e da
indissolubilidade matrimonial no Concílio de Trento. Não é de se surpreender que a
constituição familiar e a moralidade sexual das sociedades indígenas eram fatores
bastante observados pelos padres da Ordem, que constantemente expressavam
incomodo com o “desregramento”, a “poligamia” e a “luxuria”.

261
SILVA, O padre Luís da Gram e a Inquisição no Brasil colonial quinhentista... p. 13 – 14.
262
KOK, Os vivos e os mortos na América portuguesa. Da antropofagia à água do batismo... p. 83.
263
KOK, Os vivos e os mortos na América portuguesa. Da antropofagia à água do batismo... p. 83.

89
2.3. ANTROPOFAGIA

As práticas antropofágicas são bem antigas na história da humanidade,


relacionadas a momentos de extrema escassez de alimentos (ligados à sobrevivência),
ou, de forma bem diferente, como ritual, em culturas antigas. Em algumas culturas, a
antropofagia baseava-se no consumo de alguma parte (ou partes específicas) do corpo,
como por exemplo, o cérebro ou o coração. Devendo ser mencionado o desejo de
incorporação/assimilação de atributos dos mortos, como a força e a coragem.

A antropofagia, ou seja, o hábito de comer carne humana sob várias


modalidades, verificou-se entre quase todos os povos ameríndios, com
maior destaque para os tupis. Esta prática revestia-se de caráter
exclusivamente ritual, ainda que recentemente seja também encarada
de outra forma pela historiografia. As notícias fornecidas pelos textos
quinhentistas e seiscentistas relatam a sua importância na organização
social indígena, como fator indispensável aos ritos de nominação e
iniciação. Os autores quinhentistas e seiscentistas, jesuítas ou não,
procuraram distinguir nos textos o canibalismo alimentar, em que era
evidente o gosto pelo consumo de carne humana, praticado sobretudo
por tribos caribes, aruaques, jês e outros, e a antropofagia ritual,
nobre, movida exclusivamente pelo desejo de vingança que ocorria
entre os povos tupis. [...] Para os etnólogos e antropólogos antigos e
atuais, a antropofagia praticada pelos tupis estava marcada por uma
função exclusivamente ritual. 264

As primeiras imagens ou representações europeias da América eram como um


clamor pela colonização e civilização. A cartografia portuguesa do século XVI também
elegia a guerra e a antropofagia (prática que consideravam “canibalismo”) como
motivos apropriados para caracterizar a Terra de Santa Cruz. A imagem da América
portuguesa era confundida com indígenas nus segurando artefatos bélicos ou em pleno
festim canibal. Nos mapas, muitas vezes eram encontradas as seguintes inscrições:
“Canibales, Brasil canibales e Canibales carnibus vivente.” Um mapa português dos
primeiros anos do século XVI retratava a costa leste da América do Sul e evidenciava
uma cena de antropofagia, na qual o corpo de um homem branco foi atravessado por um
longo espeto, encontrando-se em pleno cozimento. Um nativo nu, de pele marrom e
barba ajoelha-se junto a uma fogueira e cuida dos preparativos do festim antropofágico.

264
AZEVEDO, Ana Maria de. Fernão de Cardim: Tratados da terra e gente do Brasil. São Paulo: Hedra,
2009, p. 52.

90
Evidentemente, essa imagem se tratava de uma representação do evento, pois os
tupinambás recorriam ao moquém e não ao espeto, quando assavam os inimigos. 265
Conforme observa Adone Agnolin, em “A Antropofagia Ritual e Identidade
Cultural entre os Tupinambá”:
Selvagens e insaciáveis comedores de carne que habitam as margens
mais extremas da sociedade ocidental: até o fim do século XV o termo
“antropófago” manteve inalterado seu próprio significado clássico.
Mas, ao encerrar-se o século XV, a extraordinária descoberta dos
selvagens do Novo Mundo amplia, de maneira aparentemente
ilimitada, tanto as possibilidades das descobertas geográficas, quanto
o número dos selvagens, habitantes das novas, imensas fronteiras da
cultura. Além do mais, essa descoberta torna evidente o fato de que,
ao redor da prática antropofágica americana, começa a tecer-se um
sistema de traduções – tanto da alteridade americana em face da
Europa, quanto das novas e inquietantes alteridades culturais
europeias – que contribui para que as considerações sobre a
colonização da América se tornem, por exemplo, um pretexto para os
propagandistas da fé católica porem a nu os horrores da Reforma. De
fato, a Europa torna, na esteira da Antigüidade clássica, a falar de si
através da imagem dos gentios bárbaros que teimam em comer carne
humana. 266

No ano de 1551, foi publicado em Portugal o livro “Cartas dos jesuítas do Oriente
do Brasil – 1549-1551”, o texto dedicado aos ameríndios intitulou-se “Cópia de umas
cartas enviadas do Brasil”, eram as primeiras correspondências dos jesuítas remetidas da
América portuguesa. As cartas enviadas por Nóbrega e outros religiosos relataram os
esforços da catequese e mencionaram a antropofagia. Na primeira versão portuguesa das
cartas jesuíticas, a antropofagia foi abordada em algumas passagens que poderiam ter
auxiliado a confecção das cartas geográficas, porém, as cartas jesuíticas pouco, ou nada,
influenciaram a cartografia em relação ao Brasil, não havendo similitude entre o texto
dos jesuítas (com suas descrições) e as imagens presentes na cartografia (desenhos nos
mapas). As cartas marítimas lusitanas do final do século XVI representariam o ritual
antropofágico com maiores detalhes, mas comumente os mapas portugueses retratam
costumes indígenas amplamente difundidos no Velho Mundo e neste sentido as cenas
de “canibalismo” presentes na cartografia portuguesa não provêm da observação da
realidade americana, do mesmo modo que as cartas jesuíticas e as crônicas não
fornecem elementos precisos para a apresentação do indígena e da antropofagia. 267

265
RAMINELLI, Imagens da Colonização: A representação do índio de Caminha a Vieira, p. 60.
266
AGNOLIN, Adone. Antropofagia Ritual e Identidade Cultural entre os Tupinambá. São Paulo:
Departamento de História – USP, 2001, p. 132.
267
RAMINELLI, Imagens da Colonização: A representação do índio de Caminha a Vieira, p. 61, 62, 63.

91
É inegável que a difusão do Cristianismo na América foi a grande força
268
repressora da antropofagia praticada no continente. A antropofagia indicava para os
colonizadores que os indígenas viviam em estágios primários do processo civilizatório.
Embora não fossem os únicos, os tupinambás ficaram conhecidos entre os europeus (no
período inicial do processo de colonização) por esta prática,269 percebida como uma
verdadeira ameaça aos colonizadores, e que através conversão religiosa futuramente
extinguiriam tal prática.
Segundo Filipe Eduardo Moreau:
A repulsa que a antropofagia causou na Europa “pura e civilizada” do
século XVI não foi imediata. A oposição irredutível se deu em torno
da disputa da terra, pois quando os índios viraram obstáculos à
ocupação, os colonos e a Coroa resolveram alertar as consciências
cristãs para o grau de barbárie daquela prática. Por porta-vozes
oficiais e oficiosos, a antropofagia foi considerada obstáculo à
pregação da fé, isto é, à colonização e expansão territorial
portuguesa.270

Atos antropofágicos eram bastante habituais na América portuguesa do século


XVI, até missionários foram vítimas da prática, e de que modo a Companhia de Jesus
percebia a antropofagia praticada pelos ameríndios? Era um costume intrigante para os
padres. Como consequência das guerras, os inimigos capturados vivos eram levados
para as aldeias, a fim de serem ritualisticamente e publicamente executados e
devorados. Sem dúvida, para os europeus de modo geral, e para os jesuítas de modo
específico, tratava-se de uma prática que lhes despertava o horror acompanhado do
interesse. Não é atoa que o tema é recorrente nas cartas jesuíticas: 271

[...] é que muito arraigado está nelles o uso de comer carne humana,
de sorte que, quando estão em artigo de morte, soem pedil-a, dizendo
que outra consolação não levam sinão esta, da vingança de seus
inimigos, e quando não lha acham que dar, dizem que se vão o mais
desconsolados deste mundo. Gasto grande parte do tempo em
repreender esse vicio; replicam alguns que comem-na somente as
velhas; outros dizem que seus antepassados comeram e que elles
devem comer carne humana. Dizem outros que é o modo usual de
vingaremse, e que os contrários praticam o mesmo a respeito delles e
que eu não deveria arrancar-lhes este seu alimento. Uma vez, por estes
dias, foram á guerra muitos das terras de que fallo, e muitos foram
mortos pelos inimigos, donde, para se vingarem, outra vez lá voltaram

268
Do grego "antropos", que significa “homem” e "phagein", que significa “comer”.
269
Observa-se que os tupinambás não praticavam a antropofagia com membros de sua própria
comunidade, mas com homens guerreiros capturados em batalhas. A antropofagia era uma prática ritual e
cerimonial.
270
MOREAU, Os índios nas cartas de Nóbrega e Anchieta... p. 25.
271
A prática antropofágica não pode ser, em sentido amplo, compreendida somente através dos detalhes
narrativos das cartas jesuíticas, pois elas não contemplam seu sentido cultural.

92
e mortos muitos dos contrários, trouxeram grande abundância de carne
humana, e indo eu visitar uma aldêa, vi que daquella carne
cozinhavam em um grande caldeirão, e ao tempo que cheguei,
atiravam fora uma porção de braços, pés e cabeça de gente, que era
cousa medonha de ver-se, e seis ou sete mulheres, que com trabalho se
teriam de pé, dançavam ao redor, espevitando o fogo, que pareciam
demônios no Inferno (Azpilcueta Navarro, 28 de março de 1550).272

As guerras entre os ditos selvagens - intimamente relacionadas à antropofagia -


povoam as imagens pictóricas produzidas entre os séculos XVI e XVII. A cartografia, a
pintura e a literatura de viagem reproduzem em detalhes a ferocidade dos combates
travados entre os nativos da costa da América portuguesa. A visão europeia muitas
vezes aproximou os indígenas aos turcos, aos citas e aos normandos, pois, como
entendiam os europeus, o barbarismo atenua as fronteiras culturais dos povos ainda não
cristianizados. Em muitos momentos, os denominados bárbaros, os pagãos, os homens
selvagens e as bruxas tiveram suas identidades confundidas, quando funcionavam como
contraposto aos princípios da ortodoxia cristã. 273
Na realidade, as identidades são produzidas em momentos particulares no tempo,
274
e são fabricadas por meio da marcação da diferença, que ocorre tanto por meio de
sistemas simbólicos de representação, quanto por meio de formas de exclusão social. A
identidade não é o oposto da diferença, ela depende da diferença. Nas relações sociais,
essas formas de diferença – a simbólica e a social - são estabelecidas, ao menos em
parte, por meio de sistemas classificatórios. Um sistema classificatório aplica um
princípio de diferença a uma população de uma forma que seja capaz de dividi-la em ao
275
menos dois grupos opostos: nós/eles, eu/outro. A identidade, de acordo com Stuart
Hall, “está profundamente envolvida no processo de representação. Assim, a moldagem
e a remoldagem de relações espaço-tempo no interior de diferentes sistemas de
representação têm efeitos profundos sobre a forma como as identidades são localizadas
e representadas.” 276
Para Émile Durkheim, é por meio da organização e ordenação das coisas de
acordo com sistemas classificatórios que o significado é produzido. Os sistemas de
classificação dão ordem à vida social, sendo afirmados nas falas e nos rituais.

272
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568 (Cartas Jesuíticas, Vol. II)... 51
– 52.
273
RAMINELLI, Imagens da Colonização: A representação do índio de Caminha a Vieira, p. 56.
274
WOODWARD, Kathryn. “Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual”. In.
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 39.
275
WOODWARD, Kathryn. “Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual”... p. 40.
276
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006, p. 71.

93
Utilizando a religião como um modelo de funcionamento dos processos simbólicos,
Durkheim entendeu que as relações sociais são produzidas e reproduzidas por meio de
rituais e símbolos, os quais classificam as coisas em dois grupos: as sagradas e as
profanas. E desse modo não existe nada inerentemente ou essencialmente “sagrado” nas
coisas, no que os artefatos e ideias são sagrados apenas porque são simbolizados e
representados como tais. 277
Muitos eram os conflitos ou guerras intertribais e o sacrifício dos prisioneiros em
rituais antropofágicos vinculados a vingança, que, inclusive, é tradicionalmente vista
como elemento motivador das guerras entre essas sociedades indígenas. Os padres
pregavam contra esse “costume demoníaco” de comer carne humana, mas era uma
prática tão arraigada nessa na cultura guerreira, que a possibilidade de castigo divino
não era suficiente para erradicar essa prática anticristã. Mas, com a aniquilação do
inimigo, cancelava-se a vingança? Segundo Carlos Fausto isso não ocorria, no entender
do antropólogo, a vingança não era capaz de extinguir os ódios, eles eram confirmados
por ela. 278
Dois equívocos muito comuns ao se pensar na antropofagia ameríndia são:
imaginar que ela ocorria somente para matar a fome ou pensar que se tratava
unicamente de uma prática de aniquilação do inimigo. Os registros históricos apontam
para o fato de que a antropofagia não se resumia em comer carne para saciar a fome,
pensamento que é típico da atitude de considerar a antropofagia sem sua dimensão
ritualística, empobrecendo o panorama cultural e estético indígena. Ademais, os
indígenas que eram praticantes da antropofagia não desejavam apenas destruir seus
inimigos, desejavam também captar as propriedades deles, a nutrição também se
associava a admiração. Observemos alguns detalhes apresentados pelo padre Nóbrega
quanto ao prisioneiro de guerra a ser sacrificado:
Quando captivam algum, trazem-n'o com grande festa com uma
corda pela garganta e dão-lhe por mulher a filha do Principal ou
qual outra que mais o contente e põem-n'o a cevar como porco,
até que o hajam de matar, para o que se ajuntam todos os da
comarca a ver a festa, e um dia antes que o matem lavam-n’o todo, e
o dia seguinte o tiram e põem-n’o em um terreno atado pela cinta com
uma corda, e vem um delles mui bem ataviado e lhe faz a prática de
seus antepassados; e, acabada, o que está para morrer lhe responde,
dizendo que dos valentes é não temer a morte, e que elle também
matara muitos dos seus e que cá ficam muitos dos seus e outras coisas

WOODWARD, Kathryn. “Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual”... p. 41.


277
278
FAUSTO, Carlos. Fragmentos de História e Cultura Tupinambá in História dos Índios no Brasil.
Companhia das Letras. São Paulo, 1992, p. 393.

94
similhantes. E morto, cortam-lhe o dedo pollegar, porque com aquelle
tirava as frechas, e o demais fazem em postas para o comer, assado e
cozido. 279

Vejamos a seguinte informação, que quando ponderada amplia a percepção


acerca da antropofagia e da própria cultura indígena: “Após o ritual de chegada, o
capturado era tratado bem até sua execução (em ritual festivo) que podia demorar
alguns meses, nos quais era cuidado, geralmente por uma mulher que era filha de quem
o capturou”. Através desta informação, aqueles que não a conheciam, ou aqueles que
mesmo conhecendo não pararam para analisá-la podem perceber que o indígena
quinhentista não era tão “selvagem” como se concebia e se concebe, e que existia um
tipo de estética ou um sentido em sua cultura ou culturas, mesmo em uma prática tão
condenável e até assustadora para os nossos padrões ocidentais. Segundo Eduardo
Viveiros:
A pessoa do prisioneiro, que podia viver anos entre seus inimigos ate
ter a morte decidida, era simbolicamente apropriada por uma
quantidade de gente: O captor, as mulheres que recebiam e guardavam
o cativo, os homens a quem ele era presenteado pelo captor, o matador
ritual. Depois de executado, o inimigo era comido por centenas de
pessoas; uma só morte podia reunir diversas aldeias aliadas, que
compartilhavam uma espécie de sopa muito rala, onde se achava
diluída a níveis quase homeopáticos a carne do contrário. O corpo dos
inimigos era simbolicamente (se nem sempre realmente) escasso, pois
um contrário era comido ate a ultima unha, como diz Anchieta.280

Não podem ser ignoradas as inúmeras informações que sublinham o alto valor
atribuído à proeza guerreira, ao tema da vingança, a natureza iniciatória do homicídio, e
as conexões estabelecidas entre guerra e casamento. Embora talvez seja pertinente
rotular os Tupinambás de extremamente belicosos, isto não significa considera-los
particularmente violentos, pois os cronistas e missionários, paradoxalmente, também
representam sua vida cotidiana como marcada por afabilidade, generosidade e cortesia.
Deste modo, muitas interpretações acerca do ódio aos inimigos, da execução ritual e do
“canibalismo” devem ser relativizadas. 281
Além de ser contrária a ética do Evangelho, a prática tida como “irracional” era
ameaçadora. A possibilidade de a qualquer momento ser capturado e devorado era uma
preocupação para os europeus, no que prática antropofágica seria combatida de tal
modo pelos jesuítas que seus efeitos passariam a ser percebidos em atitudes concretas

279
NÓBREGA, Cartas do Brasil (1549-1560)... p.100.
280
CASTRO. Eduardo Viveiros de. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia.
São Paulo: CosacNaify, 2002, 247.
281
CASTRO. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia p. 248.

95
de abandono do costume. Em carta de Anchieta, do ano de 1555, o padre registra o fato
de indígenas em Piratininga estarem se comportando de modo diferente, como cristãos,
que não comiam carne humana:
Creio que sabereis estarmos alguns da Companhia em uma terra de
índios, chamada Piratininga, cerca de 30 milhas para o interior de São
Vicente, onde Nosso Senhor favorece, com a sua glória, a salvação
desta almas; e ainda que a gente seja mui desmandada, algumas
ovelhas ha do rebanho do Senhor. Temos uma grande escola de
meninos índios, bem instruídos em leitura, escrita e em bons
costumes, os quais abominam os usos de seus progenitores. São eles a
consolação nossa, bem que seus pais já pareçam mui diferentes nos
costumes dos de outras terras; pois que não matam, não comem os
inimigos, nem bebem da maneira por que dantes o faziam. No outro
dia em uma terra vizinha foram mortos alguns inimigos, e alguns dos
quais nossos conversos por lá andaram, não para comer carne humana,
mas por beber e ver a festa.282

Em carta do ano de 1558, o Padre Nóbrega expressou seu anseio para que a
prática “prejudicial” deixasse de continuar: “Desta maneira cessará a boca infernal de
comer a tantos cristãos quantos se perdem em barcos e navios por toda a costa; os quais
são todos comidos dos índios e são mais os que morrem que os que vem cada ano[...]”.
283
Anseio da ordem e dos europeus que habitavam essas terras, em certo nível,
“perigosas”.

2.4. FEITIÇARIA

No século XVI visões paradisíacas e infernais se alternavam no imaginário


europeu colonizador. Os desvios cometidos na metrópole eram purgados na “colônia”
através do degredo. Os categorizados como colonos desviantes, hereges e feiticeiros
eram duplamente estigmatizados por viverem em terra tida como propícia para a
propagação do Mal. 284

282
ANCHIETA, Cartas, Informações, Fragmentos históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta...
p. 79.
283
LEITE, Novas cartas jesuíticas: De Nóbrega a Vieira... p. 78.
284
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no
Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

96
A análise das crenças e práticas religiosas pode servir de exemplificação da
distância cultural que existia entre os brancos e os ameríndios. A maneira de
comportarem-se ambos diante do extraterreno (ou “espiritual”) evidencia a
dessemelhança entre eles. Quanto maior fosse essa dessemelhança, menor a
proximidade no espaço cultural. 285
O Cristianismo propagava e propaga ensinamentos sobre a eternidade que não
existiam na América pré-colombiana, doutrinas que tratam sobre o céu (ambiente
escatológico de descanso) e o inferno (ambiente de sofrimento eterno). O céu cristão é a
morada dos fiéis (os salvos) após a morte, é um lugar paradisíaco, onde os salvos
permanecerão por toda a eternidade juntamente com Deus, ao contrário do inferno. Mas
representações cristãs de céu, inferno ou salvação que faziam muito sentido para um
europeu quinhentista, não faziam parte do imaginário indígena.
O homem do século XVI possuía, em maior ou menor intensidade, a consciência
de um mundo visível e outro invisível, constituído por Deus e por Ele governado. O
homem encaixava-se nessa realidade como projeção da vontade criadora de Deus,
dotado de espírito e de liberdade, capaz de decaimento como de retorno ao seu Criador.
As ideias elaboradas pela teologia, reestruturadas pela restauração da Escolástica,
substantivavam o pensamento cristão do tempo. Pensamento que fortalecia a
consciência dualística dos planos natural e sobrenatural, e do homem como hóspede
provisório do mundo, caminhando para um fim eterno, 286 consequência da vida terrena.
A religião dos nativos estava ligada - essencialmente de forma animista - aos
elementos da natureza e ao culto dos antepassados. Ao adentrarmos a pluralidade do
universo indígena, observamos que os nativos, habitantes da América desde muito antes
da chegada dos portugueses, viviam suas crenças e costumes de modo que talvez nunca
tenha passado por suas mentes a ideia de que suas crenças não eram válidas frente a
uma cosmovisão exclusivista, como a cristã.
A noção de “dogma” era estranha aos nativos, embora a pajelança possuísse um
“foco virtual”, não era um “sistema de crenças”, como a estruturação ocidental pode
conceber. Os ameríndios não devotavam respeito aos seus pajés como os cristãos aos
sacerdotes, eram relações não vinculadas a valores fixos institucionais. De modo que,

285
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 39.
286
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 20.

97
entre os indígenas não poderia haver hereges, categoria implantada pelos missionários,
especialmente com a ação do Santo Ofício português. 287
Com sua visão crítica da ação missionária jesuítica, Riolando Azzi entende que “a
mentalidade de conquista gerava no missionário uma atitude de monólogo, refratária ao
diálogo com as outras religiões e culturas. Para ele, o discurso missionário passava a ser
único, exclusivo, monolítico”. 288
No entanto, é preciso cautela nesta análise, sobretudo
com as expressões “monólogo” e “refração”, que devem ser relativizadas no que tange a
ação dos jesuítas em meio aos indígenas, por não abarcarem a complexidades das
relações entre os missionários e os nativos. Diferente de Azzi, Carlos Henrique A. Cruz
entende que,

o exercício missionário colonial foi, sobretudo, um “campo de ação


comunicativa”, em seus processos de mediação, tradução e
convergência de horizontes simbólicos, sendo ideia simplista
considerar a cristianização dos indígenas comente como um trabalho
de imposição e força. O processo de evangelização comportou
concessões e tolerâncias, e nessa negociação os próprios
evangelizadores se transformaram. 289

A religião tupi-guarani era marcada pela crença central numa outra vida, em que a
morte, a dor e a miséria encontrar-se-iam conclusivamente banidas. A atenção dos vivos
era convergida para esta terra sem mal, partilhada pelos deuses e pelos antepassados,
terra da verdadeira felicidade. A experiência da morte e a negação completa da vida
social eram vias de ingresso a esta morada dos antepassados. O falecimento de um
membro da aldeia colocava em xeque o seu desempenho pessoal em vida, que
condicionava o acesso ao reino dos mortos. Os covardes e os homens que nunca
mataram nenhum inimigo tinham como destino a mortalidade da alma, o apodrecimento
do corpo seguido da necrofagia de Anhã, seguida de uma existência espectral, que não
conservava mais nada de humano, somente o “viver” na terra. Mas os valorosos
guerreiros que aprisionaram e mataram muitos inimigos, e as mulheres dedicadas ao
preparo da carne dos prisioneiros e à sua ingestão, permitia-se o ingresso a vida ideal,
na qual podia-se conviver com os antepassados, deuses e heróis. Outra perspectiva é a
que as almas dos que viveram dentro das normas consideradas certas, matando e
comento muitos inimigos, vão para além das montanhas dançar em lindos jardins com

287
CRUZ, Inquéritos Nativos: os pajés frente à Inquisição... p. 19.
288
AZZI, Riolando. Razão e fé: o discurso da dominação colonial. São Paulo: Paulinas, 2001, p. 165.
289
CRUZ, Inquéritos Nativos: os pajés frente à Inquisição... p. 44.

98
as almas de seus avós. Nesse estado pós-morte inexistiam inimigos e refaziam-se os
vínculos com os mortos mais antigos, em um cenário no qual os deuses e o mortos
desfrutavam de uma vida potencializada e sem divisão.290
O paraíso indígena

[...] possuía um forte parentesco com o Éden das Escrituras onde


“num horto de delícias cheio de árvores aprazíveis e boas para
comida, o homem se acharia não só isento de dor e da morte, mas
desobrigado ainda de qualquer esforço físico para ganhar o pão”. Se,
todavia, o Éden das Escrituras situava-se num passado remoto que
lançou o homem numa irremediável perdição, o paraíso indígena
delineava-se como uma promessa que poderia se concretizar a
qualquer momento vindouro, na amplidão do futuro, acenando para
uma vida ideal. [...] O paraíso indígena, que vem a ser a terra dos
antepassados, localizava-se num espaço geográfico que ora situava-se
a leste, ora a oeste da terra, conforme as visões tidas pelos profetas.
Eis, portanto, uma outra via de acesso à imortalidade, embora, nesse
caso, os índios fossem guiados por pajés que pretendiam encontrar
com vida esse lugar sagrado. [...] Os pajés, mais especialmente os
caraís, desempenhavam papel fundamental, pois seus olhos podiam
vislumbrar as terras desejadas, seus ouvidos recebiam mensagens dos
mortos, tornando-se verdadeiros porta-vozes das hordas indígenas.
Revestidos de poderes mágicos, os caraís, levavam os índios a longas
e penosas buscas a essa terra dos ancestrais [...] N’algum lugar da
terra, “além das montanhas”, estava demarcada a terra sem mal. 291

Cronistas, viajantes e missionários testemunharam nos séculos XVI e XVII certa


efervescência religiosa das comunidades tupis-guaranis, assinalando a preocupação da
busca da Terra sem Males. Ao que parece, a ânsia de evasão coletiva levava os
indígenas a convencerem-se da existência da terra sem mal e movia-os para encontrá-la,
assim que um elemento catalisador os imantava falando-lhes com a autoridade dos
heróis míticos. O retorno a uma situação de glórias e abastanças que já existira em
tempos passados era considerado possível. Em 1539, grande quantidade de tupis,
liderados por um “feiticeiro” partira buscando a "terra da imortalidade e do descanso
eterno". Em 1562, três mil indígenas da Bahia teriam acompanhado dois “feiticeiros”
para o sertão se missionários e autoridades portuguesas não os impedissem pela força.
No fim do século XVI milhares de indígenas deixaram em massa a região de
292
Pernambuco, em busca de uma terra de promissão. Os indígenas (assim como os

290
KOK, Os vivos e os mortos na América portuguesa. Da antropofagia à água do batismo... p. 34 – 35.
291
KOK, Os vivos e os mortos na América portuguesa. Da antropofagia à água do batismo... p. 35.
292
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 51.

99
europeus) eram capazes de evadirem-se de uma realidade incômoda, buscando
outros/novos espaços. 293
Mesmo confusos, os cronistas coloniais conseguiram identificar certa hierarquia
entre os “feiticeiros índios”, a mais obvia era observada entre pajés e caraíbas. Apesar
das variações, “Pajé” é o termo mais comum nas fontes históricas, inclusive, utilizado
entre os indígenas contemporâneos. O título caraíba celebrava os “grandes pajés”, os
que, na crença nativa, podiam se comunicar com os espíritos, frutificar plantas, produzir
alimentos de forma miraculosa e até ressuscitar mortos. Os caraíbas eram também
nômades que iam de aldeia em aldeia pregando mensagens ligadas aos valores
tupinambás (a honra, a guerra 294 e a vingança). Já a palavra xamã jamais foi usada nos
relatos coloniais, é pertencente ao círculo europeu das discussões acadêmicas do século
XX. 295
Acreditava-se entre os nativos que os pajés se comunicavam à distância com os
mortos e que eram frequentemente visitados pelos mesmos. O pajé seria o elo entre o
mundo dos vivos e o mundo dos mortos, quando em transe, vivenciava a separação da
alma e do corpo e antecipava, aos olhos de todos, a experiência da morte, tornando-a
familiar à comunidade indígena. As paisagens e personagens vislumbradas pelo pajé em
suas viagens extáticas no outro mundo são minuciosamente descritas por ele após o
transe, tornando conhecido o mundo dos mortos e valorizando a própria morte, acima de
296
tudo como rito de passagem para um modo de ser espiritual.
Como observa Ronald Raminelli:

[na perspectiva jesuítica] Os pajés constituíam o mais forte elo entre


os índios e os demônios. Os caraíbas eram os servidores do Diabo, não
permaneciam na aldeia e recusavam-se ao convívio diário com a tribo.
Viviam nas florestas e mantinham contatos com os espíritos [...] Os
denominados feiticeiros – denominação dada pelos padres aos pajés e
caraíbas – levavam uma vida errante. 297

293
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 52.
294
Em carta de 1555, José de Anchieta demonstra sua percepção acerca da relação existente entre o ritual
antropofágico e a guerra e a honra: “[...] Indios que têm por sumo deleite comer-se uns aos outros, e
muitas vezes vão á guerra e havendo andado mais de 100 léguas, se cativam três ou quatro, se tornam
com eles e com grandes festas e cantares os matam, usando de muitas ceremonias gentilicas, e assim os
comem, bebendo muito vinho, que fazem de raizes, e os miseráveis dos cativos se têm por mui honrados
por morrer morte, que a seu parecer, é mui gloriosa.” ANCHIETA, Cartas, Informações, Fragmentos
históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta... p. 74.
295
CRUZ, Inquéritos Nativos: os pajés frente à Inquisição... p. 66.
296
KOK, Os vivos e os mortos na América portuguesa. Da antropofagia à água do batismo... p. 36.
297
RAMINELLI, Imagens da Colonização: A representação do índio de Caminha a Vieira... p. 121.

100
Destaca-se que o mundo sobrenatural dos tupis-guaranis também era habitado por
espíritos malignos. Ocorriam frequentes intervenções de espíritos nefastos. Inúmeros
espíritos malignos povoavam a vida dos indígenas, proporcionando-lhes grande medo,
os quais chamavam de Curupira, Macaxeira, Jurupari, ou Anhangá, Maraguigana. Entre
esses espíritos podemos divisar aqueles que estavam imersos na natureza, movendo-se
na esfera da animalidade, e os que se inserem na Sobrenatureza, pertencentes ao
universo das divindades. Entre os antigos Tupis-guaranis, dois espíritos destacaram aos
olhos dos missionários, possivelmente pelo temor que infundiam nos nativos: Anhan
(Anhã ou Ãnã) para os Guarani e os Tupinambá, e Jurupari (ou Giropari) para os Tupi
do norte.298
Segundo Sonia Aparecida Siqueira:

[...] os selvícolas a consciência de terem sido criados, da existência do


Bem e do Mal antagonizando-se nos bons e maus espíritos que
coabitavam com os homens protegendo-os ou atormentando-os
conforme conseguissem ou não estes concitá-los para o Bem. Por
isso aceitavam temerosos a mediação dos pajés, que por terem
relações com os espíritos podiam pô-los ao próprio serviço. 299

Nas sociedades tupis-guaranis, os pajés possuíam um estatuto especial


relacionada à intimidade com os mortos da comunidade e com o mundo sobrenatural,
sendo-lhes conferida a condição de homens-deuses, tendo em suas mãos “a morte e a
vida”, o que lhes deixava à margem da sociedade, isolados em suas choças, não
precisando trabalhar para a garantia do sustento, recebendo viveres de toda a
comunidade. E como não eram pertencentes inteiramente ao mundo dos homens,
possuíam a liberdade de transitar pelo território inimigo sem granjear animosidades.
Mas sua liberdade mão era total, se fosse flagrado em erro a comunidade não hesitava
em mata-lo, por considera-lo indigno do título e da dignidade do cargo. 300
Enquanto a “função chefe” operava no plano físico/material, voltada para as
investidas guerreiras e para a antropofagia ritual, a função do pajé se destacava no
campo metafísico, no contato e controle das forças espirituais, no entanto, a pajelança
tinha orientação não só metafísica. No que tange a motivação pessoal de seus atores,
ocorria o destaque em meio aos seus pares. A pajelança era uma das principais
atividades entre os índios da América portuguesa, concomitante a atividade bélica, ela

298
KOK, Os vivos e os mortos na América portuguesa. Da antropofagia à água do batismo... p. 45 – 46.
299
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 40.
300
KOK, Os vivos e os mortos na América portuguesa. Da antropofagia à água do batismo... p. 37.

101
estava inserida em uma “economia e política de capacidades”, exercício de apropriações
exteriores aos seus grupos - físicas, sociais e cósmicas -, visando o destaque no interior
dos mesmos. 301
Conforme visto acima, entre os ameríndios os poderes mágicos de ordem
sobrenatural pertenciam aos pajés, que vistos pelos padres como feiticeiros eram
também percebidos como obstáculos para o Cristianismo na América, ao passo que a
missão parecia afrontar essa liderança espiritual nativa. Mas as práticas do que se
considerava “feitiçaria” não estavam restritas aos indígenas. Inclusive, muitos dos que
eram condenados pela metrópole por praticarem a feitiçaria, ao serem exilados no
Brasil, mantinham suas “práticas feiticeiras”. Havia todo um imaginário demonológico
em torno da questão, o que tornava a missão percebida como hostil não só do ponto de
vista material, mas também do ponto de vista espiritual, afinal, o diabo também estava
na América.
Acerca dos denominados “feiticeiros”, cabe ensejarmos neste momento que,

[...] o discurso iniciado no século XVI, reproduzido e acrescentado


nos dois séculos seguintes, é claramente detrator. O pajé é o
“feiticeiro”, sua radical alteridade religiosa para ser “entendida”, teve
que ser enquadrada em modelos e concepções europeias, nos quais a
presença marcante do cristianismo medieval reinou sobre a invenção
da América. Porquanto, ainda que a pajelança tenha sido assunto
constante ao longo de todo o período colonial, a maior parte de seus
atributos permaneceu nublada no olhar dos cronistas. O legado de
informações não esclarece satisfatoriamente a influência dos pajés no
social indígena, seu reconhecimento, iniciação, formas de atuação e
inferências políticas, com efeito, é preciso discutir as lacunas no
diálogo com a etnologia e reflexões históricas. 302

Outro fator é que, muitas vezes, a relação entre o cristianismo e a religiosidade


ameríndia é reduzida em termos de exclusão, mas segundo Stuart Schwartz, “o
cristianismo e a religião ameríndia não eram alternativas mutuamente excludentes entre
as quais os índios ou os europeus teriam de escolher e sim crenças que conviviam em
maior ou menor grau na sociedade colonial”. 303
Uma questão a ser mencionada,
conforme Carlos Henrique A. Cruz, é “que muitos “feiticeiros índios”, desde os

301
CRUZ, Inquéritos Nativos: os pajés frente à Inquisição... p. 18.
302
CRUZ, Inquéritos Nativos: os pajés frente à Inquisição... p. 61.
303
SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico.
São Paulo: Companhia das Letras; Bauru: 2006, p. 261.

102
primeiros contatos, desejaram a alteridade cristã, seus conhecimentos e indumentárias, e
para tanto, procuravam os religiosos e a seu Deus.” 304
No fragmento abaixo, extraído de uma carta escrita pelo jesuíta Antonio Pires, da
Capitania de Pernambuco, no ano de 1551, observa-se que os feiticeiros são
relacionados a Satanás, ou seja, vinculados a atividades demoníacas, havendo uma clara
oposição aos pajés.
Já agora, quando estão doentes alguns dos novos christãos, ou quando
morrem, chamam os Padres para que roguem a Deus por elles e para
que estêem á sua morte, e os enterrem depois de mortos. Mas Satanaz
que nesta terra tanto reina, ordenou e ensinou aos feiticeiros muitas
mentiras e enganos para impedir o bem das almas, dizendo que com a
doutrina que lhes ensinávamos os trazíamos á morte. E si algum
adoecia, diziam-lhe que tinha anzóes no corpo, facas ou tesouras, que
lhe causavam aquella dôr; e fingiam que lh'as tiravam do corpo com
suas feitiçarias.305

No trecho abaixo, extraído de um documento atribuído ao padre Anchieta, o


jesuíta se contrapõe aos “feiticeiros” (pajés) nativos, percebendo-os como enganadores
(pois para os padres somente a fé cristã continha a verdade) que atuavam por meio de
forças demoníacas, tirando-lhes o crédito:
[...] dizem que têm um espirito dentro de si, com o qual podem matar,
e com isto metem medo e fazem muitos discípulos comunicando este
seu espirito a outros com os defumar e assoprar, e ás vezes é isto de
maneira que o que recebe o tal espirito treme e súa grandissimamente.
De modo que bem se pode crer que ali particularmente obra o
demônio e entre neles, posto que comumente é ruindade, e tudo por
lhes darem os índios o que têm, como sempre fazem, ainda que muitos
não crêm cousa nenhuma daquelas, e sabem que são mentiras.306

Em carta do ano de 1555, é perceptível a hostilidade e rivalidade de Anchieta


expressas nas seguintes palavras: “Os que fazem estas feitiçarias, que disse são mui
apreciados dos índios, persuadem-lhes que em seu poder está a vida ou a morte; não
ousam com tudo isto aparecer deante de nós outros, porque descobrimos suas mentiras e
maldades.”307 Segundo Ronald Raminelli, “os religiosos combatiam um inimigo muito
poderoso, ou melhor, lutavam contra um adversário com plenos poderes sobre as
tribos”. 308

304
CRUZ, Inquéritos Nativos: os pajés frente à Inquisição... p. 17.
305
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568 (Cartas Jesuíticas, Vol. II)... p.
78.
306
ANCHIETA, Cartas, Informações, Fragmentos históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta... p.
331.
307
ANCHIETA, Cartas, Informações, Fragmentos históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta...
p. 73.
308
RAMINELLI, Imagens da Colonização: A representação do índio de Caminha a Vieira... p. 122.

103
Partindo de uma concepção do antagonismo irreconciliável entre o Bem e o Mal,
os jesuítas se percebiam como que encaixados nas hostes divinas para lutar contra as
forças infernais. Tratava-se de um combate (relacionado ao característico ativismo da
Ordem) - noção fundamental para a milícia inaciana – no qual se empregava todo um
código de estratégia. O prêmio era a Salvação. As armas para a Glória de Deus
309
deveriam ser sacrifício, a humildade e a caridade, além da inteligência e disciplina.
Como exemplo de antagonismo ou embate entre o Bem e o Mal na perspectiva
jesuítica, encontramos em carta de Vicente Rodrigues (escrita da Bahia, no ano de
1552), sua narrativa envolvendo um dos principais entre os nativos:

De outro grande Principal, muito soberbo, que se chamava Porta-


Grande, que não era christão, tive com elle grandes disputas, dizendo
elle que seus costumes eram os verdadeiros, e que seus Pa-gues, quer
dizer seus feiticeiros, lhes davam as cousas boas, seus
mantimentos. Indo nós por sua aldêa fallamo-lhe muitas cousas de
Deus e da morte. Disse elle que não havia de morrer, que os velhacos
morriam e não elle que era bom. Caminhando um pedaço, do
caminho com uma lança ás costas, fadando nestas cousas, dahi a três
ou quatro dias morreu de uma terrivel morte, de que estão mui
medrosos e muito nos temem, mormente a nosso padre Nobrega. 310

Através da leitura das cartas jesuíticas, detectamos que os padres pareciam


frequentemente identificar, ou sentir a maneira deles, o diabo em ação na vida dos
indígenas, e, sobretudo na vida dos feiticeiros indígenas, sendo o influenciador de uma
série de males na terra de Santa Cruz, podendo, inclusive, agir na vida dos religiosos
instruídos. Curiosamente, parece que os indígenas, nesta perspectiva, conquanto
tivessem a ação do diabo em suas vidas, não eram bem informados sobre esse inimigo
invisível, como de igual modo eram desconhecedores do Deus cristão.

A Terra de Santa Cruz seria, com efeito, desordenada por hordas


diabólicas que, emigrando do Velho Mundo, teriam se fixado na nova
colônia justamente pela adoção da cruz como símbolo de sua gente.
Obrando contra os preceitos de Deus, o Diabo inscreve a tensão
instalada em solo luso por meio do novo nome adotado para esta terra.
Nesse sentido, o Brasil lembraria sempre as chamas infernais que
supostamente ardiam entre seus habitantes, expostos constantemente

309
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 35.
310
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568 (Cartas Jesuíticas, Vol. II)... p.
109.

104
às tentações demoníacas experimentadas pela demonização dessa
extensão do Império português. 311

A tentativa de conversão dos gentios significava livrar almas do inferno, por isso
eram considerados legítimos os meios mais excessivos ou “agressivos” de levar as
almas a Cristo. Como para os padres não havia salvação à parte da Igreja, era
considerada ilegítima a prática da “feitiçaria”. Em suma, os jesuítas desejavam a
superação da crença nos pajés, 312
que consideravam bruxos ou feiticeiros (“algum de
seus feiticeiros a que chamam Pagés” 313). “Tirando-lhes, porém, ‘as matanças e o
comerem carne humana e tirando- lhes os feiticeiros e fazendo-os viverem com uma só
mulher, tudo o mais é nelles mui venial” 314.
A passagem abaixo, atribuído a Nóbrega (sendo sua versão dos fatos), apresenta
um embate entre o padre e um pajé. Entendemos que o fragmento deva ser lido com o
devido cuidado, por conta de sua parcialidade,315 a mesma que compõe todo um
imaginário em torno de pessoas que foram classificadas como “feiticeiras”. Segundo
Lynn Hunt316 “os documentos que descrevem ações simbólicas do passado não são
textos inocentes e transparentes; foram escritos por autores com diferentes intenções e
estratégias, e os historiadores da cultura devem criar suas próprias estratégias para lê-
los”. E para Le Goff, 317 o documento não é inócuo, sendo o resultado de uma montagem
“consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas
também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido,
durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio”.

Procurei encontrar-me com um feiticeiro, o maior desta terra, ao qual


chamavam todos para os curar em suas enfermidade; e lhe perguntei
em virtude de quem fazia elle estas cousas e se tinha comunicação
com o Deus que creou o Ceo e a Terra e reinava nos Céus ou acaso se
communicava com o Demônio que estava no Inferno? Respondeu-me
com pouca vergonha que elle era Deus e tinha nascido Deus e
apresentou-me um a quem havia dado a saúde, e que aquelle Deus dos

311
CRESSONI, Fábio Eduardo. A demonização da alma indígena: jesuítas e caraíbas na terra de santa
cruz. Franca: Tese de Doutorado em História - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho,
2013, p. 14.
312
O que não se tornou possível devido à resistência indígena.
313
ANCHIETA, Cartas, Informações, Fragmentos históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta...
p. 98-99.
314
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568 (Cartas Jesuíticas, Vol. II)... p.
14.
315
É evidente que documentos / textos eclesiásticos não foram escritos unicamente com a finalidade de
registrar os acontecimentos da Igreja.
316
HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1992, p. 18.
317
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: UNICAMP, 2003, p. 548.

105
céus era seu amigo e lhe apparecia freqüentes vezes nas nuvens, nos
trovões e raios; e assim dizia muitas outras cousas. Esforcei-me vendo
tanta blasphemia em reunir toda a gente, gritando em vozes altas,
mostrando-lhe o erro e contradizendo por grande espaço de tempo
aquilo que elle tinha dito: e isto, com ajuda de um língua, que eu tinha
muito bom, o qual fallava quento eu dizia em voz alta e com os
signaes do grande sentimento que eu mostrava. Finalmente ficou elle
confuso, e fiz que se desdissesse de quanto havia dito e emendasse a
sua vida, e que eu pediria por elle a Deus que lhe perdoasse: e depois
elle mesmo pediu que o baptisassse, pois queria ser christão, e é agora
um dos cathecumenos. 318

Na passagem acima é feita menção à “cura”, e também podemos mencionar a


partir dela que a atividade de cura despertava a atenção dos europeus. Havia uma crença
corrente de que os pajés possuíam a virtude de curar quase todas as enfermidades,
naturais ou provocadas por feitiços. As medicinas atuavam a base de receituários de
ervas, beberagens e emplastos (procedimento de interesse dos missionários) e também
por cerimônias e instrumentos como danças, fumo, fumaça de cachimbo, consulta e
orientação dos espíritos, sopros etc. Os indígenas comumente associavam a origem das
enfermidades às ações de espíritos ou indivíduos maus, de feiticeiros de grupos
319
inimigos ou de inimizades no interior do próprio coletivo, no que os socorros
médicos dos missionários confundiam-se com auxílios espirituais, funcionando, desse
modo, como instrumentos de conversão. 320
Por muito tempo os europeus representaram a América como antítese da Europa,
legitimando a luta entre religiosos e feiticeiros, dando respaldo teológico a colonização
e a expansão europeias. A representação dos indígenas como súditos dos demônios
persistiram de Anchieta a Vieira. No entanto, nessas narrativas, os nativos aparecem em
alguns momentos como vítimas das artimanhas de Satanás e em outros como
“monstros”, como se ressaltassem as marcas invisíveis do Mal. Nesta ótica, se o Diabo
não lhes furtasse o bem da salvação cristã, não provocasse conflitos e discórdias, não os
incitasse a matar e comer os outros, os nativos seriam homens felizes e sua natureza
poderia conduzi-los no caminho do bem. 321
Expusemos ao longo deste segundo capítulo alguns costumes dos nativos (que
mais contribuíram para o estranhamento com os jesuítas e que significaram a eles

318
NÓBREGA, Cartas do Brasil (1549-1560)... p. 95.
319
CRUZ, Inquéritos Nativos: os pajés frente à Inquisição... p. 48 - 49.
320
CRUZ, Inquéritos Nativos: os pajés frente à Inquisição... p. 50.
321
RAMINELLI, Imagens da Colonização: A representação do índio de Caminha a Vieira... p. 116 –
117.

106
verdadeiros desafios) mais grosseiros para os padrões da igreja cristã europeia e mais
desafiadores para os jesuítas, que propunham uma mudança radical no modo de viver
destes nativos. Mas seriam possíveis efetivas mudanças através da evangelização? A
ordem conseguiria impor aos que julgavam “selvagens” o modo de vida cristã
eficazmente? Abordaremos mais detalhadamente, no próximo capítulo, como os jesuítas
trabalharam com esse desafio da alteridade ameríndia.

107
Capítulo III - O DESAFIO DA ALTERIDADE: INDISCIPLINA,
CONSTÂNCIA, SUBORDINAÇÃO, RELIGIOSIDADE E FÉ

Assim como a “terra brasileira” não era somente conquistada pela tônica do poder
das armas, mas também, simplesmente ocupada, em muitos momentos permitia-se a
ereção de estruturas políticas sem maiores resistências. O “paganismo” não seria, por
sua vez, literalmente combatido, mas superado. A ausência de uma religião (ou
religiões) organicamente constituída não configurou para os colonizadores a
necessidade de batalhar pela própria crença. Converter os considerados “pagãos” do
Novo Mundo não seria o mesmo que o confronto com os hereges da Europa. O
problema seria pedagógico, não militar. Ensino, não lutas, pelo menos no sentido literal.
O que não significa afirmar que se tratou de algo pouco trabalhoso (ou ausente de
perigos), ao contrário. 322
O trabalho com os indígenas foi laborioso para os inacianos, a tentativa de extirpar
costumes julgados errôneos era difícil, as cartas jesuíticas fazem transparecer as
dificuldades inerentes a esse “trabalho”. No entanto, mesmo com todas as dificuldades,
complicações e contrariedades, os missionários não abandonaram seus objetivos,
fundamentados na crença religiosa demonstraram disposição de ir até as últimas
consequências pelo sucesso da missão. E este capítulo apresenta - conforme a proposta
do trabalho, que é abordar a fé cristã (dos jesuítas) no encontro com os diferentes (os
indígenas) na América portuguesa do século XVI - como a alteridade indígena se tornou
um desafio para a Companhia, e de que forma eles se comportaram ou reagiram diante
dela. Analisando como os jesuítas foram capazes de, em certa medida, superar as
diferenças e conflitos com os indígenas e como a fé ou religiosidade contribuíram para o
processo.
Na missão “o outro (a diversidade cultural) e o mesmo (a ortodoxia religiosa) se
encontram.” 323
Tratando da “alteridade” 324
referimo-nos à qualidade do que é Outro. O
encontro com esse outro (o jesuíta ou o indígena), que também pode ser classificado
como o encontro com o diferente, o desconhecido, naturalmente produziu a experiência

322
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 44 – 45.
323
AGNOLIN, Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi
(Séculos XVI – XVII)... p. 59.
324
O que é diferente, que é distinto, que se opõe à identidade.

108
do estranhamento (para ambos os lados). Tal expressão possui uma relação sinonímica
com a admiração, ou mesmo com o distanciamento, expressão que possibilita-nos
problematizar a ideia construída acerca do Outro, aquele que não é “familiar”. Neste
momento, abordamos esta ausência de familiaridade na relação que se estabeleceu entre
o indígena e o jesuíta, e sobre os problemas desta relação “incomum”, fazendo da
alteridade um desafio.
A construção do território passou pelo reconhecimento das
especificidades morfológicas e geográfica, através da observação,
identificação e exploração de recursos, num contexto de saber e de
saber-fazer. Enquanto que o encontro de culturas pressupôs o
problema do mesmo e do outro, contrastes antropológicos e
linguísticos, oposições de pensamento, modos de aculturação e
sistemas educativos, num contexto de saber e de conviver. 325

Quanto ao problema das relações entre indígenas e missionários, consideramos o


fato de que toda cultura, orientada por sua forma de ser, estabelece um modo de se
pensar, traduzir, descrever e, sobretudo, relacionar-se com o Outro, e a atividade
missionária se apresenta como chave de leitura para a percepção das condições
simbólicas e políticas das diferenças existentes na formação do mundo colonial luso
326
americano quinhentista. O universalismo cristão depende necessariamente do Outro,
vez que este se encontra imerso em uma rede de relações permeadas pela diferença. A
necessidade social e cultural de se repensar o mundo, a partir do contato com a
América, conduziu o homem ocidental a reafirmação de sua ação religiosa, destinada a
preencher esse espaço ocupado pela diferença. 327
Com as descobertas, a solução do problema do Outro amplia no plano laico o
conceito de religião para estendê-lo aos considerados "selvagens", recuperando na
esfera teológica a teoria dos Padres da Igreja acerca do "paganismo" grego e romano
como manipulação diabólica, pensamento desenvolvido quando da afirmação do
cristianismo como religião única e verdadeira. Desta forma, o código religioso - que
permitia pensar a civilização - era aplicado sistematicamente pelos missionários para
construir primeiro, e comunicar depois, com a alteridade. O ponto de partida e o de
chegada coincidia: A religião, a crença, é um fato humano universal e o problema será

325
RODRIGUES, HARRES, Experiência Missioneira: Território, cultura e identidade... p.16.
326
CRESSONI, A demonização da alma indígena: jesuítas e caraíbas na terra de santa cruz... p. 14 - 15.
327
CRESSONI, A demonização da alma indígena: jesuítas e caraíbas na terra de santa cruz... p. 18.

109
transformar a "crença" no que se acredita como "verdadeira fé", transformando ao
mesmo tempo a considerada "barbárie" em "civilização". 328
Em um primeiro momento a conversão indígena parecia não representar
dificuldades ou problemas, mas aos poucos, a nudez, a prática da antropofagia, da
poligamia, bem como a feitiçaria e o nomadismo representaram obstáculos que
chegaram a parecer intransponíveis. Converter o coração dos indígenas à considerada
“verdadeira fé”, eliminando ou erradicando práticas antropofágicas, feiticeiras e
poligâmicas, assim como fazê-los andarem vestidos, exigiria bem mais do que o
inicialmente esperado ou previsto acerca das ações jesuíticas naquelas novas terras. Na
tentativa de superar os primeiros fracassos missionários, a partir de visões de mundo tão
conflitantes, Nóbrega planejou a catequese, com uma proposta de criação dos
aldeamentos, subordinando os indígenas a uma constante rotina de aprendizados ligados
ao Cristianismo.

3.1. INDISCIPLINA

[...] o gentio era exasperadoramente difícil de converter. Não que


fosse feito de matéria refrataria e intratável; ao contrario, avido de
novas formas, mostrava-se entretanto incapaz de se deixar
impressionar indelevelmente por elas. Gente receptiva a qualquer
figura mas impossível de configurar, os índios eram - para usarmos
um símile menos europeu que a estatua de murta - como a mata que os
agasalhava, sempre pronta a se refechar sobre os espaços
precariamente conquistados pela cultura. Eram como sua terra,
enganosamente fértil, onde tudo parecia se poder plantar, mas onde
nada brotava que não fosse sufocado incontinenti pelas ervas
daninhas. Esse gentio sem fé, sem lei e sem rei não oferecia um solo
psicológico e institucional onde a Evangelho pudesse deitar raízes. 329

Semelhantemente ao fidalgo Pero Vaz de Caminha, Nobrega vislumbrou na


América portuguesa (no caso, na Bahia) inicialmente um lugar paradisíaco, um lugar de
paz. Embora existissem “estranhezas” nessa “terra de tranquilidade”, ambos
demonstraram sentirem-se acolhidos em suas cartas que registravam “o encontro”, por
que não dizer “a descoberta”. Segundo Serafim Leite:

Assim como aos primeiros Portugueses do Descobrimento em 1500, a


Terra do Brasil também impressionou vivamente aos Padres da
Companhia de Jesus, desde os contactos iniciais. Logo em 1549 dá
Nóbrega notícias da formosura do Brasil, dos animais que não

328
POMPA, Cristina. Para uma antropologia histórica das missõe.... p. 117.
329
CASTRO. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia... p. 184 - 185.

110
conheceu Plínio, e dos montes e campos que tudo pareciam jardins,
com ervas diferentes das de Europa, a revelarem a beleza do Criador
na variedade e beleza das criaturas. Noutros escritos seus, fala, aqui e
além, de coisas concretas: mandioca, milho, tabaco, conservas e
marmeladas de ananás, ibás e araçás ; do peixe boi, do piraiqué, das
formigas. E do mesmo modo, outros Padres e Irmãos tratam o Brasil
— algum o considera o «paraíso terreal» [...] — e se referem a coisas
naturais, quando de passo lhes vêm ao sabor da narrativa. 330

Ainda recém-chegado à Bahia de Todos os Santos, Manuel da Nóbrega escreveu


sua primeira carta missionária, provavelmente em 10 de Abril de 1549, na qual
identificamos sua impressão inicial acerca dos nativos:

Chegamos a esta Bahia a 29 dias de mês de março de 1549. Andamos


na viagem oito semanas. Achamos a terra de paz e quarenta ou
cincoenta moradores na povoação que antes era; receberam-nos com
grande alegria e achamos uma maneira de egreja, junto da qual logo
nos aposentamos os padres e Irmãos em umas casas a par delas, que
não foi pouca consolação para nós para dizermos missas e
confessarmos. E nisso nos occupamos agora. 331

Tratava-se de uma carta escrita com animação ao superior em Portugal, o padre


Simão Rodrigues. O texto escrito pelo padre expressa entusiasmo pela docilidade dos
indígenas à evangelização, fazendo das belezas naturais do novo mundo detalhes. O
missionário enxergava entusiasticamente nos nativos um desejo de apender os ensinos
cristãos. Mas o tempo mostraria que essa “visão do paraíso” por parte do padre não seria
permanente.

A natureza do ameríndio fazia dele um cristão em potencial. Em seu


coração, existia a semente da “verdadeira religião” plantada por Deus.
Aos padres, caberia cultivar o grão e esperar o florescimento da fé. As
erronias presentes entre as comunidades americanas seriam dissipadas
e os nativos encontrariam o caminho do Céu. 332

O superior da pequena missão que se iniciava logo escreveu para seu superior
contando-lhe como foi sua recepção, o lugar onde estavam alojados, o que encontraram
na terra, a entrega ao pecado e o abandono moral em que viviam os portugueses, os
primeiros contatos com os indígenas e o interesse que mostravam em adotar a fé, os
avanços na comunicação com estes e os planos de catequese e de ir a outras regiões

330
LEITE, Monumenta Brasiliae III (1558-1563) - Volume 81... p. 67.
331
NÓBREGA, Cartas do Brasil (1549-1560)... p. 71
332
RAMINELLI, Imagens da Colonização: A representação do índio de Caminha a Vieira... p. 41.

111
como Pernambuco.333 Sua narrativa se constitui num todo organizado (ou estruturado)
objetivando denotar o transcorrer da missão e seu progresso:

Trabalhamos de saber a lingua delles e nisto o padre Navarro nos leva


vantagem a todos. Temos determinado ir viver com as aldeias, como
estivermos mais assentados e seguros, e aprender com elles a lingua e
il-os doutrinando pouco a pouco. Trabalhei por tirar em sua lingua
as orações e algumas praticas de Nosso Senhor e não posso achar
lingua que m'o saiba dizer, porque são elles tão brutos que nem
vocábulos têm [...] Também achamos um Principal deles já christão
baptisado, o qual me disseram que muitas vezes o pedira, e por
isso está mal com todos os seus parentes [...] 334

Menos rebeldes ou “indomáveis” do que os colonos portugueses,335os ameríndios


pareciam não representar um grande desafio. Mas a “visão idealizada” 336
de Nobrega
quanto aos mesmos não durou muito tempo, devido a uma série de fatores que a
realidade evidenciou, como a questão da suposta inconstância indígena. Eles
aparentemente aceitavam com facilidade a fé cristã, mas juntamente e
contraditoriamente mantinham a disposição de permanecer em seus “velhos” costumes,
o que não representava para os missionários uma efetiva conversão. De acordo com
Mary Del Priore:
Para a Igreja Católica e os jesuítas que logo vieram para o Brasil, o
importante era destacar sua “humanidade” e seu pendor para a
cristianização. Entusiasmado com a perspectiva de convertê-los ao
catolicismo, padre Nóbrega [...] gravou que, como “papel branco”,
neles se poderia escrever à vontade. Muitos leigos ou religiosos
discordavam de tal interpretação. E as dúvidas sobre sua disposição
para abraçar a “verdadeira fé” veio logo depois. Para muitos, os índios
não pronunciavam as letras “f”, “r” e “l” porque desconheciam leis,
reis e fé. Canibalismo e feitiçaria alimentavam a crença de que eram
simplesmente selvagens. Se eram “criaturas de Deus”, não passavam
de seres inferiores que deveriam servir aos empreendimentos
coloniais. Para evitar a maior degradação desses quase “animaes”,
melhor seria escravizá-los.337

Mas, o que exatamente levou Nóbrega a se tornar, com o passar do tempo,


“tolerante” com a escravidão indígena?

333
LEITE, Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil... p. 109 – 115.
334
NÓBREGA, Cartas do Brasil (1549-1560)... p. 73.
335
Nóbrega observava no indígena a disposição para a conversão que justificava a missão e também
identificava problemas em relação à própria Cristandade, que, a seu ver, precisavam ser solucionados
(colonos reproduzindo os “pecados” dos nativos).
336
Vale mencionar que as missivas do inaciano não se resumem às observações favoráveis quanto aos
indígenas em aceitarem a fé católica. Também mostram o assombro diante de práticas dos nativos: A
nudez, a poligamia, a antropofagia etc. Costumes explanados no segundo capítulo deste trabalho.
337
PRIORE, Histórias da gente brasileira: Volume 1, Colônia... p. 21.

112
No Brasil, o debate em torno da escravidão indígena envolveu os
jesuítas e os colonos. Por princípio, os religiosos defendiam a
potencialidade dos índios para receber a conversão; ao contrário dos
senhores de engenho, que enfatizavam a inviabilidade da catequese e a
adequação dos nativos para o trabalho escravo. Para os colonos, os
silvícolas confundiam-se com feras brutas [...]. 338

Quando o Concílio de Trento terminou, a questão decisiva que ocupava as forças


da Igreja e da Coroa, num território que há pouco mais de três décadas tinha começado
verdadeiramente a ser “colonizado”, era a natureza dos indígenas, a admissibilidade da
sua redução à condição de escravos e a plausibilidade da sua cristianização, ou
conversão. Já o primeiro bispo do “Brasil”, D. Pedro Fernandes Sardinha, na década de
50, tinha enfrentado a matéria e contribuído para a criação de uma visão negativa dos
ameríndios, na linha que Pero Vaz de Caminha havia proposto a D. Manuel I, cerca de
meio século antes, ao declarar que os indígenas lhe pareciam “incapazes de toda a
doutrina”, dada a sua “bruteza e bestialidade”. 339
Torna-se evidente, através da leitura de cartas jesuíticas do período, que não
demorou muito e logo se esvaiu a simpatia que os missionários devotavam aos
indígenas, devido às expressivas diferenças entre ambos os grupos. Aos olhos de
Nóbrega, em determinado momento os indígenas:

[...] não passavam de cães em se comerem, e matarem e são porcos,


por vícios, e na maneira de se tratarem, e esta deve ser a razão, por
que alguns padres, que do reino vieram, os vejo resfriados, porque
vinham cuidando de converter a todo o Brasil em uma hora e vêm-se
que não podem converter em um anno por sua rudeza e bestialidade.
340

O Nóbrega que chegou à América portuguesa desejando ganhar as almas nativas


para a fé católica possuía ainda uma visão insipiente ou precária a respeito dos nativos e
entendia que se os indígenas eram capazes de receber a fé cristã, não mereciam ser
subjugados. Isso fez com que, inicialmente, ele fizesse firme oposição à escravidão
indígena. Mas com o passar do tempo à percepção do jesuíta foi se modificando e ele
passou a ser tolerante com a essa escravidão.
Os padres se sentiram frustrados, registrando sentimentos negativos acerca dos
indígenas, que passaram a chamar com os piores nomes: cães, porcos, corvos. “Pregar a

338
RAMINELLI, Imagens da Colonização: A representação do índio de Caminha a Vieira... p. 69.
339
GOUVEIA; BARBOSA; PAIVA, O Concilio de Trento em Portugal e nas suas conquistas: olhares
novos... p. 34 – 35.
340
KOK, Os vivos e os mortos na América portuguesa. Da antropofagia à água do batismo... p. 118.

113
estes é pregar no deserto a pedras”. Nóbrega suspirou: “não os entendo”. Reações que
exprimiram a ânsia jesuítica de ver os “índios”, e, sobretudo as “índias”, vestidos. A
resistência indígena não se manifestava através de palavras ou ações abertas de recusa,
mas através de uma surda resistência dos corpos. 341
Podemos também destacar como exemplo de otimismo inicial e “ilusório” com os
indígenas, pela aparente conversão dos mesmos, o caso do padre Pero Correia. Mas o
otimismo do padre durou pouco. Tempos depois de seu entusiasmo com os nativos,
encontraria a morte junto aos carijós, antes interpretados como “dóceis”. Ou seja, o
pendor dos nativos para a conversão era um tema polêmico, 342 de modo que,
Aos poucos, os missionários vão percebendo que estão engajados num
trabalho sem perspectiva. O primeiro a perceber isto foi, ao que
parece, o padre Luís da Grã, que em 1556 encaminha uma carta ao
padre Inácio de Loyola, na qual pondera se não seria melhor deixar de
batizar índios, pois, mesmo estando estes bem-dispostos e preparados,
tem-se, contudo, experiência de que chegando o tempo não só pecarão
carnalmente, mas tomarão concubinas. Luís da Grã percebe que a
“concubinagem” constitui uma cultura, uma realidade enraizada e
muito antiga, a ponto de dificultar o trânsito dos próprios padres pelos
caminhos, “que não os caminhos com frequentação... e é necessário
que andem todos num santo temor”[...] É por esse período que
Nóbrega começa a falar de forma mais drástica e elabora seu diálogo
da conversão do gentio” (1556 – 1557), baseado na experiência de que
o índio não se converte senão por medo. Não dá para converter índio,
ele não quer. Índio não ouve, escapa. “Com a mesma facilidade com
que dizem pâ (sim), dizem aani (não).” Esses textos exprimem um
sentimento generalizado que existe entre os missionários jesuítas no
Brasil por volta de 1555, após cinco anos de experiência. 343

A seguinte passagem de Nóbrega se refere aos “maus hábitos” (na perspectiva


jesuítica) dos indígenas, práticas que eram intoleráveis para a Ordem:

Esta gentilidad no tiene la calidad de fa gentilidad de la primitiva


Iglesia, los quales o maltratavan o malavan luego a quien les
predicava contra sus ídolos, o creían en el Evangelio; de manera que
se aparejavan a morir por Christo; pero esta gentilidad como no tiene
ídolos por quien mueran, todo quanto les dizen creen, solamente la
dificultad está en quitalles ladas sus malas costumbres...lo qual pide
continuación entr'ellos... y que vivamos con ellos y les criemos los
hijos dea pequeños en doctrina y buenas costumbres. 344

341
MARCILIO, Família, mulher, sexualidade e Igreja na história do Brasil... p. 13.
342
RAMINELLI, Imagens da Colonização: A representação do índio de Caminha a Vieira... p. 117.
343
MARCILIO, Família, mulher, sexualidade e Igreja na história do Brasil... p. 13.
344
CASTRO. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia... p. 189.

114
Em carta de 1551, o padre Affonso Braz entende como “inconstante” o
comportamento dos nativos, que segundo sua compreensão eram “mudáveis” e tinham
suas almas “perdidas”:

Não ouso aqui bautizar estes Gentios tão facilmente, ainda que o
pedem muitas vezes, porque me temo de sua insconstancia e pouca
firmeza, sinão quando estão em o artigo da morte. Tem-se cá mui
pouca confiança nelles porque são mui mudáveis, e parece aos
homens impossível poder estes vir a ser bons christãos, porque
aconteceu bautizar os christãos alguns, e tornarem a fugir para os
gentios, e andam depois lá peiores que d’antes, e tornam-se a metter
em seus vícios e em comer carne humana. [...] Nosso Senhor queira
por sua infinita misericórdia haver piedade de tantas almas perdidas e
tão apartadas e esquecidas de seu Creador. 345

De acordo com Serafim Leite:

Se os Padres se contentassem com percorrer as aldeias indígenas, além


dos possíveis riscos, tirariam precário fruto. O que ensinavam um
mês, por falta de exercício e de exemplo, estiolaria no outro. Quantas
vezes, com o nomadismo intermitente dos Índios, ao voltarem os
Padres a uma povoação, que deixaram animada pouco antes, em lugar
dela achavam cinza.346

Em Anchieta, como em Nóbrega e outros padres, observamos houve uma redução


do entusiasmo inicial de quando chegou ao Novo Mundo, o entusiasmo foi perdendo
espaço para a insatisfação. A paciência e a escrita de Anchieta mudaram mediante a
convivência com o indígena real, conforme observado no seguinte fragmento de uma
carta escrita a Inácio, em 1554, que contrastou com o regozijo do ano anterior:
“pregando-lhes continuamente e atraindo-os por quantas vias podemos, porque é gente
tão indômita e bestial, que toda sua felicidade tem posta em matar e comer carne
347
humana.” Ou como declarou em carta ao geral Diego Lainez, de São Vicente em
janeiro de 1565: “Quero acabar de escrever o fim desta paz, o qual foi verdadeiramente
fim de paz e princípio de nova guerra, qual se podia esperar de gente tão bestial e
carniceira, que vive sem lei nem rei [...]” 348
Convêm acrescentarmos que,

345
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568 (Cartas Jesuíticas, Vol. II)... p.
88.
346
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, Rio de Janeiro: Instituto Nacional do
Livro, 1950, p. 42.
347
ANCHIETA, José de. Cartas: correspondência ativa e passiva. São Paulo: Edições Loyola, 1984, p.
62.
348
ANCHIETA, Cartas, Informações, Fragmentos históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta...
p. 233.

115
Em algumas passagens, a ênfase da observação jesuítica recai sobre as
qualidades dos índios: amor, amizade, virtudes civilizadas. Em outras,
em maior número, na bestialidade e falta de amor e lealdade [...] os
jesuítas pensaram bem e mal dos índios. Nóbrega e Anchieta não
deixaram de expressar contentamento com a sociabilidade tradicional,
como a hospitalidade e a divisão de alimentos, e em algumas de suas
passagens poderiam mesmo embasar a teoria romântica do “bom
selvagem”. Mas, em linhas gerais, a parte luminosa foi ignorada
(permanecendo como mera observação casual) para o reforço da
sombria, à qual se adequavam os propósitos catequéticos. Limitados à
maneira de ver e expressar da época, os jesuítas não reconheceram nos
índios uma condição natural que não fosse [...] a de anjos ou demônios
(dualidade da qual se julgavam isentos). 349

Mas, de modo geral, o que emerge da leitura dos escritos dos jesuítas
quinhentistas? Com frequência, uma realidade pessimista ou até negativa, por
interferências, as mais variadas, de adversos agentes abióticos e bióticos presentes nos
novos espaços; mas, também, uma realidade esperançosa ou até sublime, sobretudo
quando entendiam, com inspiração na crença religiosa, o agir divino ou o milagre. De
qualquer modo, este sublime ou maravilhoso é mais real do que o medieval. Tal não
surpreende, porque o escriba quinhentista tende a lograr credibilidade, sem deixar de
lado o assomo da curiosidade que prevê existir no destinatário, individual ou coletivo.
Por outras palavras, sem minimizar o acontecimental, principalmente se vem a
propósito, procura construir um discurso narrativo-descritivo o mais próximo da
realidade. Sendo óbvio que nem todos os escritos dos jesuítas quinhentistas (incluindo
naturalmente os da América portuguesa) são literários, mas quase todos ou todos são
importantes fontes históricas. 350
O impacto cosmológico causado pela descoberta do Novo Mundo, a catequese
jesuítica e o papel da Companhia no chamado Brasil colonial são temas
consideravelmente explorados, e que sempre apresentam múltiplas nuances. Como
podemos elucidar o que era isso que os jesuítas e demais observadores chamavam de
'inconstância' dos Tupinambás. Trata-se sem duvida de alguma coisa real, mesmo que se
lhe queira dar outro nome; se não era um modo de ser, era um modo aparente da
sociedade tupinambá aos olhos missionários. O que exasperava os padres não eram
resistências ativas que os 'brasis' oferecessem ao Evangelho em nome de outra crença,
mas o fato de que sua relação com a crença era intrigante: dispostos a tudo engolir,
quando se os tinha por ganhos, eis que recalcitravam, voltando ao "vomito dos antigos

349
MOREAU, Os índios nas cartas de Nóbrega e Anchieta... p. 335.
350
SANTOS, A escrita e as suas funções na missão jesuítica do Brasil quinhentista... p. 118.

116
351
costumes", conforme expressão utilizada por Anchieta. Mesmo com todo o trabalho
de catequização desenvolvido e muitas vezes aparentemente consolidado, muitos
indígenas continuavam a praticar seus “feitiços” (rituais nativos) às escondidas dos
padres, por quem na aparência docilmente deixavam-se doutrinar. A doutrina cristã,
aliás, era aceita epidermicamente não só por indígenas, como foi também
epidermicamente concebida pelos negros. 352
O entusiasmo na aceitação seletiva de um discurso totalizante e exclusivo,
somado a recusa em seguir ate o fim o curso desse discurso, representavam um enigma
aos homens da missão. Os jesuítas escolheram os costumes como inimigo principal:
Vistos como bárbaros, os Tupinambás não tinham propriamente, na concepção
europeia, religião. Os missionários não viram que os “maus costumes” dos Tupinambás
eram sua verdadeira religião, e que sua suposta inconstância era o produto da adesão a
um conjunto de crenças religiosas. 353
No século XVI, a “religião” dos Tupinambás era tão diferente que se tornou um
enigma aos olhos dos jesuítas, e hoje o problema parece ser o de explicar como tal
cultura foi capaz de acolher de modo tão benevolente a teologia e a cosmologia dos
“invasores”. Efeito-demonstração suscitado pelo reconhecimento da superioridade
tecnológica dos estrangeiros? Coincidência fortuita de conteúdos entre a mitologia
nativa e alguns aspectos da sociedade invasora? Tais hipóteses tem um fundo de
verdade, mas exigem explicação. O problema é determinar o sentido desse misto de
volubilidade e obstinação, docilidade e recalcitrância, entusiasmo e indiferença com que
os Tupinambás receberam a boa nova. E compreender o que eram essa "fraca memoria"
e essa "deficiência da vontade" dos indígenas, esse crer sem fé; e compreender o objeto
desse obscuro desejo de ser o outro, mas este a mistério, segundo os próprios termos. 354
Embora os portugueses tenham alcançado o litoral sul-americano pela primeira
vez em abril de 1500, foi apenas no último quartel do século XVI que começaram a
produzir relatos sistemáticos com o intuito de descrever e classificar as populações
indígenas. Excetuando-se a sumária “História da província de Santa Cruz”, de Pero
Magalhães Gândavo, impressa em Lisboa em 1576, e algumas cartas jesuíticas
amplamente disseminadas na Europa em diversas línguas, os textos portugueses mais
significativos permaneceram inéditos por séculos. Tanto o tratado descritivo de Gabriel

351
CASTRO. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia... p. 190.
352
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 42.
353
CASTRO. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia... 192.
354
CASTRO. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia... 194 – 195.

117
Soares de Sousa, importante relato quinhentista, quanto os escritos do jesuíta Fernão
Cardim, circularam apenas em cópias manuscritas e, provavelmente, só começaram a ter
um grande impacto a partir do século XIX. Ainda assim, o intitulado “Tratado
Descritivo”, de Soares de Sousa, bem como os “Tratados da Terra e Gente do Brasil”,
uma compilação da obra de Cardim, proporcionam claros indícios das percepções e
imagens acumuladas ao longo do século XVI pelos portugueses no que diz respeito a
um universo indígena que se apresentava tão vasto e variado quanto incompreensível.
355

A progressão da colonização foi marcada pela presença de conflitos e resistências


por parte dos indígenas. Em 1554, ocorreu a primeira mobilização, que durou quase
dois anos e foi vencida por uma expedição punitiva, formada por mais de setenta
homens e seis cavaleiros, sob o comando do filho do governador, que encontraram no
caminho algumas armadilhas, e ausência de resistência ativa, capturaram o morubixaba,
e incendiaram duas aldeias vizinhas, que lhe teriam dado apoio. Pouco tempo depois,
surgiram notícias de que seis aldeias Tupinambás teriam se reunido e feito um cerco a
um engenho de um dos mais destacados colonos. A expedição punitiva partiu desta vez
com cerca de duzentos homens, e aproximadamente mil Tupinambás foram vencidos e
tiveram suas aldeias queimadas. No ano seguinte, em decorrência da persistência de
focos de conflito, o governador ordenou que fossem destruídas todas as aldeias em que
houvesse cercas (entendidas como preparativos bélicos voltados contra os portugueses).
Os Tupinambás se submeteram, jurando lealdade a El Rey e comprometendo- se ao
pagamento de tributos. A fixação dos Tupinambás em aldeias criadas pelos jesuítas, de
onde eles saíam para trabalhar nos engenhos ou integrar as novas expedições de guerra,
356
era outra consequência dessa modalidade de ação colonial.
Em 1558, reações negativas quanto às normas mais rígidas de catequese
juntaram-se à insatisfação dos Tupinambás pela progressiva perda de seus territórios.
Mem de Sá, no comando de trezentos portugueses e quatro mil indígenas das aldeias,
deu início à chamada “Guerra do Paraguaçu”, destruindo entre 130 e 160 aldeias
Tupinambás na região do recôncavo. Dessa vez, a submissão dos indígenas incluía a
plena aceitação dos novos princípios de catequese. Em 1662, uma epidemia de varíola
vitimou cerca de trinta mil pessoas na Bahia, em sua maioria nos aldeamentos

355
MONTEIRO, Tupis, tapuias e historiadores: Estudos de História Indígena e do Indigenismo... p. 13 –
14.
356
OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar
e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, p. 58.

118
missionários. Há notícias também de outro surto epidêmico ocorrido em 1584. As
doenças e as fugas resultantes do descontentamento com a nova situação acarretaram
uma enorme diminuição do contingente de indígenas da capitania. Segundo Gândavo
(1995), em 1576 seriam somente oito mil. O número de escravos africanos, em 1585,
segundo o padre Anchieta (1988) correspondia a pouco mais de um terço do número de
indígenas. 357
A imagem do “selvagem inconstante” é conspícua na historiografia, desde
Varnhagen: "eram falsos e infiéis; inconstantes e ingratos...". Na antropologia racialista
de Gilberto Freyre é encontrado o contraste entre africanos como possuidores de vigor e
os ameríndios de preguiça. Enquanto que autores talvez mais moderados exploraram a
oposição indígenas/africanos em termos da inconstância do gentio “brasileiro”. 358

Evidentemente os jesuítas encontraram na “inconstância” apresentada pelos indígenas


uma grande dificuldade. E a insubordinação indígena pode ser abordada de diversas
formas, nas guerras, na vingança, na antropofagia e outras.
Mas um fator a ser referido é que os nativos não manifestavam somente atitudes
relacionadas à chamada “inconstância”, entre eles também era possível perceber de
certa forma a “constância” ou a “continuidade”, porém, a “inconstância”, prevalecente
entre os adultos, obteve grande destaque nas cartas quinhentistas. Em 1551, o padre
Nóbrega mencionou a “constância” relacionada aos moços: “Principalmente
pretendemos ensinar bem os moços, porque estes bem doutrinados e acostumados em
virtude, serão firmes e constantes, os quaes seus Paes deixam ensinar e folgam com
isso”. 359
No ano anterior, em 1550, Nóbrega se referiu aos meninos, que ao contrário dos
mais velhos - na visão do padre - poderiam gerar mais frutos, isso por não resistirem aos
seus ensinos:

Visitei algumas aldeias delles e acho-lhes bons desejos de


conhecer a verdade; e instavam para que ficasse no meio delles,
e si bem que seja difficil fazer desarraigar aos mais velhos as
suas más usanças, com os meninos, porém, se póde esperar
muito fructo, porque não se oppõem quase nada á nossa lei e

357
OLIVEIRA, O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de
alteridades... p. 58 - 59.
358
CASTRO. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia... p. 187.
359
NÓBREGA, Cartas do Brasil (1549-1560)... p. 115.

119
assim me parece que esteja aberta a porta para muito ajudar as
almas nesta terra [...]. 360

3.2. CONSTÂNCIA

Para transformarem os índios em cristãos, os padres teriam que fazê-


los acreditar que falavam a verdade a respeito dos assuntos religiosos.
Com este propósito, Nóbrega e seus colegas buscaram novas táticas de
conversão além da mera pregação da palavra. 361

Os indígenas, em suas manifestações culturais (demonstradas no segundo capítulo


deste trabalho), ofensivas à religião cristã, foram percebidos em certos momentos como
que “acorrentados” por forças demoníacas. A demonização do indígena não parece estar
somente relacionada à ideia de superioridade dos europeus cristãos, concepção presente
em discursos sobre o eurocentrismo, mas também se associa ao espanto diante de
“costumes diabólicos”, o que se percebe no desejo de se ver livre da ação do mal dentro
do processo de “conquista espiritual”. O seguinte trecho da Carta do Padre João de
Azpicueta Navarro, do ano de 1551, demonstra isso: “Tem o Demônio muito dominio
nelles, o qual dizem que algumas vezes lhes apparece visivelmente e que lhes dá e
atormenta outras vezes asperamente. Nosso Senhor nos livre de suas mãos.”362
Os jesuítas realmente se encontravam diante de situações, na maioria das vezes,
desafiadoras para seus objetivos, verdadeiros “obstáculos” a serem superados, desafios
que demandariam deles constância e resiliência. Porém, esses homens disciplinados -
que tinham feito votos religiosos de pobreza, castidade e obediência – não se
mostrariam dispostos a abrir mão dos nativos da América, pois na condição de
“Soldados de Cristo”, as missões voltadas a todos os povos (“missões ad gentes”) não
poderiam fracassar, afinal, eram (para eles) para a maior glória de Deus (“Ad maiorem
Dei gloriam”) ainda que em meio a certos desfavorecimentos e hostilidades. Nesse
sentido, para Ronald Raminelli:

As cartas jesuíticas descrevem em exaustão os sofrimentos dos irmãos


e os contratempos da catequese; todo esforço era pouco frente à

360
NÓBREGA, Cartas do Brasil (1549-1560)... p. 107.
361
EISENBERG, As missões jesuíticas e o pensamento político moderno... p. 76.
362
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568 (Cartas Jesuíticas, Vol. II)... p.
71.

120
grandeza do projeto de conversão do gentio. A fome, os animais
selvagens e os canibais atormentavam o cotidiano dos religiosos e
valorizavam a missão e os votos dos enviados de Deus. 363

Entendemos que a “constância” dos padres jesuítas estava associada à formação


religiosa rígida que recebiam. A formação do futuro jesuíta era notavelmente rigorosa.
As Constituições previam que para o estudante se tornar professo e entrar de vez para a
Ordem, deveria ser examinado com muito rigor. Uma característica geral da educação
jesuítica e mais particularmente do futuro membro da Ordem era a disciplina como
meio de se obter o máximo de rendimento do estudante. A disciplina se aliava à punição
para dar o tom de seriedade necessário para a dedicação aos estudos. Os jesuítas
aprendiam o conteúdo cristão e a melhor forma de transmiti-lo. 364
A missão manifestava uma dimensão social do Cristianismo que devia ser
cumprida. Na missão, em sua significativa expansão ou abertura, há uma vontade de
inserção da Igreja em laços diferentes, mais amplos, profanos e sociais, que conectam o
“sagrado” ao “profano”, assumindo-se os riscos de dessacralizações em tal
ampliação.365 A capacidade adaptativa dos jesuítas foi uma forte característica da
missão. Revisões nas práticas de conversão foram necessárias frente à especificidade
cultural indígena, e de acordo com Eisenberg:

Uma vez que a especificidade cultural dos índios era, no fundo,


a justificativa para uma revisão das práticas de conversão, criou-
se a necessidade de informar os europeus das características da
cultura nativa que justificavam tal revisão. A etnografia dos
relatos edificantes dos jesuítas funcionava, portanto, como um
meio de legitimar a adoção de novas táticas de conversão e a
adaptação das normas a esse propósito. O uso instrumental da
etnografia para fins justificativos fica ainda mais claro na
maneira pela qual os jesuítas estrategicamente condenavam os
vícios e maus hábitos dos nativos, quando queriam explicar o
fracasso de uma determinada ação, e exortavam suas virtudes e
inocência quando queriam demonstrar o sucesso de sua empresa
evangélica. 366
No imperativo catequético-missionário, os missionários operavam com conceitos
e categorias – gramaticais, retóricas, teológicas, políticas e metafísicas – que não

363
RAMINELLI, Imagens da Colonização: A representação do índio de Caminha a Vieira... p. 76.
364
COSTA, Célio Juvenal. A formação do padre Jesuíta no século XVI. Série-Estudos – Periódico do
Mestrado em Educação da UCDB. Campo Grande-MS, n. 20, p. 79-96, jul./dez. 2005, p. 81.
365
NEVES, O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios (colonialismo e repressão
cultural)... p. 27.
366
EISENBERG, As missões jesuíticas e o pensamento político moderno... p. 56.

121
existiam nas línguas das culturas indígenas das terras controladas por Portugal. Para
realizar a difícil tarefa evangelizadora, os missionários viam a necessidade de produzir
uma “língua geral da costa” que devia assumir a função de se tornar o primeiro e
fundamental mecanismo destinado a permitir o empreendimento do árduo trabalho de
tradução cultural e linguística. Nesse processo, ao mesmo tempo em que valorizavam e
uniformizavam a língua tupi como instrumento de comunicação, os jesuítas trabalhavam
a própria língua indígena, tratando-a como uma matéria inerte sobre a qual fundar um
sentido que lhe era exterior: realizando uma descontextualização de significações
conforme os projetos catequistas. Porém, tal descontextualização linguística produziu
também ao mesmo tempo significações peculiares, do lado da outra perspectiva cultural,
a indígena. Significações não plenamente administráveis pelos missionários, às vezes
até impensadas à priori por eles, constituindo em certos momentos inevitável hibridismo
linguístico e cultural que caracterizam os escritos catequéticos em Tupi, “jesuíticos”,
mas até certo ponto.367 No que diz respeito à língua geral, segundo John Monteiro:
A língua geral dos jesuítas foi fruto de um longo processo de
construção, começando com a chegada dos padres em 1549 e
culminando com a publicação da Arte de Grammatica de José de
Anchieta, em 1595, e do Catecismo na Língua Brasílica, de Antônio
de Araújo em 1618. Na primeira década das atividades inacianas no
Brasil, os jesuítas Pero Correia, Juan de Azpilcueta Navarro e José de
Anchieta deram os primeiros passos decisivos em direção à
sistematização da língua. 368

Quanto à adaptabilidade dos jesuítas na América lusa, o ritual cristão da missa


esteve sujeito a várias adaptações à nova realidade. Nessas cerimônias, os padres muitas
vezes organizavam peças teatrais nas quais as crianças indígenas encenavam passagens
do evangelho. As peças eram escritas originalmente em latim ou português e depois
traduzidas para o tupi. Aos indígenas também era permitido que dançassem e cantassem
como faziam na comemoração de suas vitórias em guerras. Ademais, os nativos podiam
usar seus paramentos religiosos tradicionais, cantar em tupi e tocar seus próprios
instrumentos. Musica e drama associavam-se às palavras como instrumento de
persuasão 369 no caminho para a conversão e a “civilização.
Riolando Azzi entende que,
a grande meta dos colonizadores e dos missionários será a politização,
a civilização, a urbanização do índio. Em outras palavras, trazer o

367
RODRIGUES, HARRES, Experiência Missioneira: Território, cultura e identidade... p. 56.
368
MONTEIRO, Tupis, tapuias e historiadores: Estudos de História Indígena e do Indigenismo... p. 41 –
42.
369
EISENBERG, As missões jesuíticas e o pensamento político moderno... p. 84.

122
índio para a polis, para a civitas, para a urbs, por mais relativos que
sejam esses conceitos aplicados à sociedade colonial. [...] o local
ocupado pelos lusitanos, por mais precário que fosse, era visto sempre
como um polo de civilização. Por se terem afastado do mundo da
natureza, os europeus se consideravam dotados de características
típicas do próprio ser humano enquanto tal: a civilidade, a urbanidade,
a polícia, entendendo este último termo no sentido em que era
utilizado no idioma português de antanho, ou seja, polidez. Dotados
da perfeição da racionalidade, competia a eles a missão de compelir os
indígenas a se inserir em seu próprio mundo cultural, afastando-os
assim da barbárie e da selvageria.370

Dentro desse peculiar processo histórico de encontros culturais nasceram uma


nova gramática e uma nova semântica, tornando possível a pragmática do novo sistema
colonial sob o ponto de vista estruturante daquela que resulta ser a “redução” mais
significativa (a possibilidade interpretativa) da alteridade cultural para a cultura
ocidental. A alteridade indígena americana encontrava-se “reduzida” dentro dessa
perspectiva “religiosa” ocidental. E nesse processo de “transformação” e “rejeição”
ocorria um alargamento da perspectiva religiosa ocidental, não se tratando propriamente
de uma questão de desordem ou confusão, mas de dinamismo histórico-cultural.371
O fato de que a “descoberta da alteridade” americana é, na verdade,
sua “construção”, por oposição à identidade europeia, é quase uma
obviedade pelo menos desde a década de 1960. No debate que se trava
na Europa sobre a natureza dos selvagens ou, melhor, do “estado de
natureza” deles, o código religioso é, obviamente, privilegiado. No
início da Idade Moderna, o código religioso é ainda prioritário na
leitura e na interpretação da realidade, inclusive das alteridades
antropológicas; ele engloba todos os outros: o moral, o político, o
filosófico. Ou seja, qualquer manifestação social da alteridade que
descoberta apresentava é lido sub specie religionis e traduzindo na
linguagem religiosa.372

A relação estabelecida entre “colonizadores” e “colonizados” produziu ficções


sobre o outro “excêntrico” ou “estranho”, elaboradas através de versões discursivas da
alteridade. Entraram em jogo a linguagem da ambivalência (construtora da identidade) e
a linguagem da ambiguidade (construtora da alteridade). 373
O outro “colonizado” ou
“conquistado” era construído como bárbaro, como oposto ao que a cultura eurocêntrica
374
(cristã) via como civilizado. A colonialidade creditava para si a existência do outro,

370
AZZI, Razão e fé: o discurso da dominação colonial... p. 193.
371
RODRIGUES, HARRES, Experiência Missioneira: Território, cultura e identidade... p. 56 - 57.
372
RODRIGUES, HARRES, Experiência Missioneira: Território, cultura e identidade... p. 105.
373
THIÉL, Pele silenciosa, pele sonora: a construção da identidade indígena brasileira e norte-
americana na literatura, p. 36.
374
THIÉL, Pele silenciosa, pele sonora: a construção da identidade indígena brasileira e norte-
americana na literatura, p. 37.

123
pois o colonizador parecia crer que o outro só existia a partir do momento em que era
375
descoberto ou se tornava objeto de estudo. Além disso, o produtor etnocêntrico de
ficções sobre a alteridade raramente se colocava na posição de outro, como se a
alteridade existisse somente do outro lado da situação de poder. 376
O processo de apreensão do Outro e de tradução do Eu para esse Outro (esse
diferente) não foi uma via de mão única. Os indígenas também foram capazes de fazer a
leitura da alteridade europeia nos termos oferecidos por sua própria cosmologia, no que
a “evangelização” foi absorvida e transformada pelas culturas indígenas a partir de suas
próprias representações e significações. A leitura que os indígenas fizeram da alteridade
(especialmente a missionária) nos anos iniciais da catequese passou pelo código
xamânico. A leitura cosmológica da alteridade se deu em novos mitos, como os que
codificaram a superioridade dos brancos. Muitos mitos revelam o trabalho de constante
revisão das categorias cosmológicas para dar conta da nova realidade, a realidade
colonial. 377
Os padres precisavam ser homens que de fato acreditassem em sua missão,
acreditassem no que estavam fazendo ao atuarem, longe dos seminários europeus, na
inóspita e selvagem América portuguesa quinhentista, que além das dificuldades
naturais ou ambientais (como as doenças locais e o calor dos trópicos), apresentava
como maior dificuldade a lida com o Outro, por quem não eram apenas temidos e
respeitados, mas também odiados, precisando persistentemente resistir a situações
perigosas em todos os níveis da relacionalidade humana, tendo como pano de fundo os
desafios do mundo natural em sua face sul americana:

Desbravadores da natureza indômita do Brasil quinhentista, os


soldados da Companhia de Jesus enfrentaram duros desafios e árduas
condições de subsistência: um clima instável, exércitos de insetos,
animais selvagens, peçonhentos e mortíferos, como escorpiões,
aranhas e cobras e ainda violentos ataques de grupos de nativos
agressivos. Ao lado de um discurso edenizador acerca da natureza
colonial, inspiradora de tantos encantamentos, descritos pelas penas de
cronistas e viajantes, que louvaram à farta sua opulência e riquezas, os
terrores de se viver no Trópico foram também constantemente
lembrados. Mas a grandiosidade do projeto missionário de conversão

375
THIÉL, Pele silenciosa, pele sonora: a construção da identidade indígena brasileira e norte-
americana na literatura, p. 38.
376
THIÉL, Pele silenciosa, pele sonora: a construção da identidade indígena brasileira e norte-
americana na literatura, p. 41.
377
RODRIGUES, HARRES, Experiência Missioneira: Território, cultura e identidade... p. 108 – 109.

124
do gentio superaria as inúmeras dificuldades com que se depararam
estes clérigos. 378

Mesmo que aliados da Coroa, os inacianos encontraram opositores de toda ordem.


Enquanto trabalhavam na construção de uma autoimagem que os aproximavam de
santos, através de cartas missionárias que escreviam internamente para estimular os
colegas (as missivas) e de correspondências de circulação mais ampla, lidas na Europa
(as “cartas edificantes”) eles amargavam o ódio de muitos indígenas, sofriam - na
concorrência com colonizadores laicos - a oposição de autoridades locais e os
antagonismos no cenário europeu frente o papel que desempenhavam na “colônia”. 379
Em 1553, o padre Nóbrega chega a São Vicente, após deixar a província da Bahia,
desapontado com a volubilidade dos indígenas e com as condenações do bispo
Sardinha380 quanto ao seu método de evangelização.381A essa altura, compreendendo
que o método de lhes pregar e voltar para casa era ineficaz, o padre desejou viver entre
os nativos, o que o levou a uma convivência articulada entre eles na vila de Piratininga,
ocasionando um maior controle moral sobre os “maus costumes”. O êxito alcançado em
Piratininga levou Nóbrega a repensar o processo de conversão dos “gentios” e ele
passou defender a indispensabilidade da sujeição dos índios, para que pudessem ser
convertidos a fé cristã. Em 8 de maio de 1558, Nóbrega, em sua carta da Bahia ao
provincial da Companhia de Jesus afirmou:

A lei, que lhes hão de dar, é defender-lhes de comer carne humana e


guerrear sem licença do Governador; fazer-lhes ter uma só mulher,
vestirem-se, pois têm muito algodão, ao menos depois de cristãos,
tirar-lhes os feiticeiros, mantê-los em justiça entre si e para com os
cristãos; fazê-los viver quietos sem se mudarem para outra parte, se
não for para entre cristãos; tendo terras repartidas que lhes bastem e
com êstes Padres da Companhia para os doutrinarem. 382

Nóbrega entende, nesse momento, que a lei deve der imposta ao indígena porque
ele tem uma natureza sempre inclinada ao mal, regendo-se por inclinação como gente
sem conselho e sem prudência. Sua língua é própria de uma gente desmemoriada do
bem, por isso também demonstra a mesma falta de equidade observável no seu apetite
378
CALAINHO, Jesuítas e Medicina no Brasil Colonial... p. 63.
379
SPOSITO, Santos, Heróis ou Demônios? Sobre as relações entre índios, jesuítas e colonizadores na
América Meridional... p. 110.
380
Dom Pedro Fernandes Sardinha, o primeiro bispo do Brasil.
381
“Dentre os motivos geradores do fracasso da conversão, podemos enfatizar: a hostilidade dos
indígenas; os efeitos não duradouros dos batismos em massa; a escassez de missionários; o nomadismo
indígena; e a distância entre as aldeias.” KOK, Os vivos e os mortos na América portuguesa. Da
antropofagia à água do batismo... p. 118.
382
LEITE, Novas cartas jesuíticas: De Nóbrega a Vieira... p. 79.

125
sensual de guerra, carne humana e outras abominações, como a poligamia e a nudez. A
concepção que relaciona a ação e linguagem tem fundamento agostiniano, e pressupõe
que é da visão interior do que a alma sabe reminiscentemente de Deus que nasce a visão
do que ela pensa e, logo, daquilo que expressa. O padre entende que as práticas
indígenas são abomináveis porque impedem a visão do bem pela alma julgada
selvagem. Mas o indígena humano não consegue pensar segundo a ordem da verdade
eterna e necessária, o que fica evidente na falta de “letras” (= fonemas) de sua língua,
como F, L, R. Para convertê-lo, é preciso fazer com que reencontre a presença original
das coisas a partir da sua ideia eternamente co-presente no espírito. 383
A palavra das Escrituras (a Bíblia), principalmente a narrativa da Torre de Babel
do livro de Gênesis, fornece o modelo analógico de hierarquização dos sons da língua
tupi como um hieróglifo escuro e confuso. Ao mesmo tempo, é também a palavra das
Escrituras que suplementa falta de bem por meio da memória fornecida pelo padre. Uma
vez que os jesuítas defendem a tese tridentina de que o gentio tem alma, não classificam
a língua geral como total ausência da luz do bem, pois isso implicaria a heresia de
afirmar que o indígena não é gente. Eles a classificam como falta de bem, contudo, que
é explicitada sempre como a indeterminação dos modos da sua participação na causa
primeira. Segundo os jesuítas, também na alma bárbara Deus escreve a sua lei, mas de
modo obscuro, desde aquele dia em que orgulho humano foi confundido na Torre de
Babel. 384 Na compreensão de Michel Foucault:

A linguagem do século XVI - entendida não como um episódio na


história da língua, mas como uma experiência cultural global - foi sem
dúvida tomada nesse jogo, nesse interstício entre o Texto primeiro e o
infinito da Interpretação. Fala-se sobre o fundo de uma escrita que se
incorpora ao mundo; fala-se infinitamente sobre ela, e cada um de
seus signos torna-se, por sua vez, escrita para novos discursos; mas
cada discurso se endereça a essa primeira escrita, cujo retorno ao
mesmo tempo promete e desvia. 385

Após frustradas tentativas de organização dos aldeamentos, retomou-se a política


de isolar os indígenas cristãos dos indígenas pagãos. Tratava-se de “ajuntar” indígenas,
“doutrina-los”, para depois “reparti-los pelos moradores”. Após serem deslocados do
sertão para a região costeira, indígenas de diferentes comunidades eram reunidos em

383
COSTIGAN, Lúcia Helena. Diálogos da Conversão: missionários, índios, negros e judeus no contexto
ibero-americano do período barroco. Campinas – SP: Editora da UNICAMP, 2005, p. 17.
384
COSTIGAN, Lúcia Helena. Diálogos da Conversão: missionários, índios, negros e judeus no contexto
ibero-americano do período barroco. Campinas – SP: Editora da UNICAMP, 2005, p. 18.
385
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo:
Martins Fontes, 1999, p. 57.

126
aldeamentos para que fossem convertidos. O plano de subordinação encontra-se
esboçado em uma carta de Nóbrega de 1557: 386
E, todavia, com estes poucos, que nos ficaram, trabalhamos, e a
muitos baptisariamos e casaríamos já, si as cousas se puzessem em seu
logar; a ordem que desejamos era fazerem ajuntar ao Gentio, este que
está sujeito em povoações convenientes, e fazer-lhes favores em favor
de sua conversão e castigar nelles os males que forem para castigar e
mantel-os em Justiça e verdade entre si, como vassallos d'El-Rei, e
sujeitos á Egreja, como nesta parte são, e fazer-lhes também justiça
nos aggravos, escândalos dos Christãos [...] 387

A concepção de “missão civilizatória” estava presente no discurso missionário


dede os primeiros momentos da catequese jesuítica. São encontrados exemplos desse
pensamento nos textos “Diálogo sobre a conversão do gentio”. 388
de 1556 e “Plano
Civilizador”, de 1558, ambos de Nóbrega. A instituição dos aldeamentos (“aldeias
missionárias”) foi a solução para poder exercer a “necessária” educação, que precedia a
conversão.389 A educação era uma importante ferramenta de evangelização e os jesuítas
tiveram nela um dos principais meios de pregação.
O padre Navarro fez, em 1550, o seguinte comentário a respeito da educação dos
jovens, no caso, longe de seus pais:

só aos pequenos acho com boa inclinação, si os tirássemos de casa de


seus paes, o que não se poderá fazer sem que Sua Alteza faça edificar
um colégio nesta cidade com destino a essas crianças para as educar,
de maneira que com os maus costumes e malicia dos paes se não perca
o ensino que se ministra aos filhos. 390

Desde os seus primórdios, o Cristianismo possui um “projeto educacional” ou um


“projeto de ensino” destinado a homens e mulheres de todas as “etnias” e camadas
sociais. O ensino dos jesuítas, enraizado à “essência” de algumas vertentes do
cristianismo missionário, vinculava-se a um projeto educacional que não tinha como

386
KOK, Os vivos e os mortos na América portuguesa. Da antropofagia à água do batismo... p. 119.
387
NÓBREGA, Cartas do Brasil (1549-1560)... p. 173.
388
“O primeiro tratado teológico elaborado a partir da experiência missionária, O diálogo do padre
Nóbrega sobre a conversão do gentio (1556), de autoria do padre Manoel da Nóbrega, versa sobre o
fracasso da conversão dos índios e discute o árduo ofício de ser missionário numa terra em que “poucos
vêm a lume”. Das palavras dos dois personagens que compõem o diálogo, Matheus Nogueira, “o ferreiro
de Jesus-Christo”, e Gonçalo Alves, nota-se que, decorridos cinquenta anos de trabalho de catequese, os
poucos frutos colhidos entre os índios acarretaram descréditos e dúvidas com relação às estratégias
empregadas pelos jesuítas. Nogueira, ante aos frutos praticamente nulos da pregação, aludiu claramente
ao uso da violência: “Posto que com palavra não préga, fá-lo com obras e com marteladas” KOK, Os
vivos e os mortos na América portuguesa. Da antropofagia à água do batismo... p. 117 – 118.
389
RODRIGUES, HARRES, Experiência Missioneira: Território, cultura e identidade... p. 106.
390
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568 (Cartas Jesuíticas, Vol. II)... p.
51.

127
centro, o simples ensino de um novo ritual, uma nova forma de culto, ou um capricho
qualquer de uma nova divindade, mas seu ato de ensinar a fé é direcionado para uma
substancial mudança de vida, como resultado da mudança no crer. No que se observa
uma proposta educacional voltada para a mudança no modo de pensar, de agir, e das
relações de todo tipo, em variadas esferas, sejam espirituais, familiares ou sociais.
Observa-se na pedagogia jesuítica clássica a utilização de elementos da cultura
nativa como linguagem para veicular os conteúdos da fé católica, da mesma forma que
se utilizou o nome Tupã para indicar Deus e Jeropari ou Anhã para indicar o demônio.
O conceito de “conversão” - muitas vezes interpretada como transformação,
distinguindo-se de adesão, na qual o converso assume novas atitudes, práticas e
costumes, com novos esquemas de significação - deve ser analisado de forma mais
ampla no desenrolar da missão, com vistas à complexidade inerente aos
desdobramentos resultantes da ação missionária. Do ponto de vista analítico, coloca-se
o problema teórico da dicotomia resistência/adaptação, tradição/mudança,
identidade/diferença, ou de sua inutilidade (inutilidade de distinções). Se a “religião” é
interpretada como código de intercomunicação, as questões relativas ao “se” e “quanto”
aos indígenas que se converteram ao cristianismo são substituídas por questões relativas
aos significados multíplices que a noção de conversão foi assumida durante os séculos.
391

A língua tupi foi um importante instrumento de catequese. Assim que os jesuítas


começaram a aprender a língua tupi (língua falada pelas comunidades tupis que
habitavam a maior parte do litoral da América portuguesa no século XVI) eles notaram
que os nativos passaram a mostrar algum interesse em suas pregações. As habilidades
retóricas eram valorizadas pelos Tupis, que tinham grande respeito pelos membros de
sua comunidade que demonstravam tais habilidades, a quem eles chamavam de
“senhores da fala”, de modo que o domínio da oratória, portanto, tornou-se um possível
caminho para os padres conquistarem alguma autoridade perante os nativos. 392

“A MAIS PRINCIPAL CIÊNCIA PARA CÁ MAIS NECESSÁRIA”:


foi assim que o padre Manuel da Nóbrega descreveu o aprendizado da
língua tupi por parte dos missionários jesuítas, em meados do século
XVI. De fato, desde a chegada da primeira comitiva de inacianos à
costa sul-americana em 1549, os jesuítas defrontaram-se com a difícil
tarefa de traduzir o conteúdo e os sentidos da doutrina cristã para um

391
RODRIGUES, HARRES, Experiência Missioneira: Território, cultura e identidade... p.107.
392
EISENBERG, As missões jesuíticas e o pensamento político moderno... p. 70.

128
idioma que atingisse o maior número possível de novos catecúmenos.
Apesar da enorme diversidade linguística que se descobria pouco a
pouco, à medida que a expansão portuguesa avançava para além das
estreitas faixas litorâneas, estabeleceu-se desde cedo uma política
linguística que tornava “a língua mais usada na costa do Brasil” o seu
principal instrumento. Baseada, na verdade, num conjunto de dialetos
da família linguística tupi-guarani, a primeira “língua geral” foi
perdendo as suas inflexões locais e regionais em função da sua
adoção, sistematização e expansão enquanto idioma colonial. 393

A missão dos jesuítas se distinguiu e em parte se distingue até hoje pelo fato de se
aprender a língua do lugar aonde se é enviado e onde se viverá. Escutar a língua
394
completa implica entrar em situações que parecem proibidas pela religião. Esse
projeto exigiu a elaboração de uma linguagem de mediação, uma linguagem simbólica
negociada, inteligível para ambos os lados no encontro. Um exemplo dessa negociação
são os catecismos jesuíticos ou o teatro anchietano. 395 Nesse sentido,
Além da catequese escrita ou decorada por meio do canto, o teatro
desempenhou papel, igualmente, importante na missionação de
brancos, índios e negros, tendo sido escritos, pela primeira vez ou
adaptados, autos, éclogas, comédias, tragicomédias, dramas ou
diálogos em português, castelhano e tupi. Algumas destas produções
são bilingues ou até trilingues, tendo como referente, em certos casos,
o teatro de Gil Vicente. Anchieta, concretamente, distinguiu-se como
escritor no género teatral. O Auto da Pregação Universal, escrito em
português e tupi entre 1567-1570, por iniciativa de Manuel da
Nóbrega e José de Anchieta, é considerado a primeira peça do teatro
brasileiro. 396

Em meados do século XVI emergiram novas formas do fazer teatral. O teatro


jesuítico situou-se no movimento da teatralidade difusa ao teatro, da liturgia à
397
representação, como da condenação do teatro à sua cristianização. Entre o final do
século XVI e durante o século XVII, o teatro jesuítico foi consideravelmente
398
representado na Europa, alcançando as áreas sob sua influência. Ele representou uma
estratégia de controle do discurso e interface de dois sistemas de controle da palavra, o
da "sociedade de discurso" e o da "doutrina”. 399

393
MONTEIRO, Tupis, tapuias e historiadores: Estudos de História Indígena e do Indigenismo... p. 36.
394
RODRIGUES, HARRES, Experiência Missioneira: Território, cultura e identidade... p.86.
395
RODRIGUES, HARRES, Experiência Missioneira: Território, cultura e identidade... p.106.
396
SANTOS, A escrita e as suas funções na missão jesuítica do Brasil quinhentista... p. 114.
397
TORRES, Magda Maria Jaolimo. As práticas discursivas da Companhia de Jesus e a emergência do
“teatro jesuítico da missão” no Brasil do século XVI. Tese de Doutorado em História – Instituto de
Ciências Humanas da Universidade de Brasília, 2006, p. 120.
398
TORRES, As práticas discursivas da Companhia de Jesus e a emergência do “teatro jesuítico da
missão”... p. 1.
399
TORRES, As práticas discursivas da Companhia de Jesus e a emergência do “teatro jesuítico da
missão”... p. 41.

129
Na América portuguesa, os jesuítas desenvolveram sua considerada forma de
teatro tradicional, o "teatro de colégio". Entretanto, eles fizeram também outro tipo de
teatro, sem precedentes na Ordem e na América, o "teatro de missão”, que contou com a
preparação de atores indígenas e textos na língua dos nativos. E o surgimento pioneiro
do teatro na América portuguesa do século XVI, que também pode ser classificado
400
como "teatro de Anchieta", emergindo como um dos dispositivos relevantes da
"técnica do governo das almas", da pastoral. E mais, ao lado de outros dispositivos,
como as cartas jesuíticas, o teatro emergiu como um eixo ordenador e instituidor da
própria Companhia neste novo mundo e século: um espetáculo de criação de identidade.
401

De acordo com Baeta Neves, “com relação à ignorância (o vazio) selvagem, a


catequese teve que recorrer à estratégia de se apropriar dos instrumentos linguísticos
indígenas para transcrever neles um sentido novo, que permitisse colonizar,
propriamente, seu imaginário”. 402

[...] Na Espanha do século XV quanto no (s) Novo (s) Mundos (s)


americano (s) verificou-se um dado novo: enquanto, na Espanha,
mouros e hebreus tinham adquirido um novo estatuto de alteridade
(interna à Europa), a América havia desvendado uma alteridade
(externa) nova e desconhecida. Nos dois casos, num primeiro
momento, a ideia entusiástica da conversão, de marca profundamente
profética, foi causa de uma apressada realização de batismos em
massa de hordas de novos cristãos. Mas, de forma curiosamente
paralela à ocupação do território, desde logo se percebeu que a
simples marca de uma conquista/conversão, na sua representação do
processo de cristianização, criava mais problemas do que resolvia.
Para tentar resolver esses problemas foi necessário introduzir a
confissão, no lugar do batismo, como verdadeira porta de acesso ao
Cristianismo. Os sermões e os catecismos constituíram-se como
instrumentos fundamentais para a realização desse projeto, preparando
o homem para o conhecimento dos mandamentos cristãos e dos
preceitos aos quais era necessário obedecer. E o novo corretivo - de
uma catequese destinada a corrigir oferecendo uma adequada
consciência dos deveres, morais e civis, do (novo) cristão – apareceu
como o instrumento essencial para converter não somente as
populações selvagens americanas, mas também as massas de “infiéis”

400
TORRES, As práticas discursivas da Companhia de Jesus e a emergência do “teatro jesuítico da
missão”... p. 121.
401
TORRES, As práticas discursivas da Companhia de Jesus e a emergência do “teatro jesuítico da
missão”... p. 122.
402
AGNOLIN, Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi
(Séculos XVI – XVII)... p. 75.

130
e de camponeses não letrados que iam sendo descobertos, cada vez
com maior preocupação, dentro da própria Europa cristã.403

Inclusive, vale mencionar que os primeiros anos de produção literária brasileira


foram marcados pela literatura catequética, sendo sua produção desenvolvida na
segunda metade do século XVI, adentrando momentos posteriores do chamado período
colonial. Era o gênero literário religioso utilizado pelos jesuítas para a instrução cristã
dos indígenas e tinha como principal finalidade a conversão dos nativos a fé cristã. De
acordo com Adone Agnolin:

[...] a finalidade explícita da literatura catequética – não só daquela


católica – será a de se constituir como instrumento útil à confissão.
Com o Concílio de Trento, reforçaram-se as ligações recíprocas da
confissão com a consolação das almas aflitas pelo peso das culpas,
tornando-a exercício de um poder disciplinar sobre os cristãos
enquanto indivíduos [...] O momento da confissão se constituirá,
portanto, como resultado desse processo de individualização do exame
de consciência e como impulso (começo) de um processo
disciplinador do indivíduo. Neste percurso, o catecismo devia
representar o instrumento destinado a servir de formação – não por
acaso há uma “gradação” de textos catequéticos – até mesmo para os
indivíduos que compartilhavam do nível mais baixo da ignorância e
que, como destacava o grande jurista teólogo da Escola de Salamanca,
o dominicano Francisco de Vitória, mesmo assim podiam decorar os
elementos básicos da fé cristã [...] Do lado católico, as “verdades da
fé” - aqueles “conteúdos” em que consiste o imperativo catequético
pós-conciliar – encontravam sua garantia na aderência de certos
conteúdos a uma forma linguística, fixando assim uma interpretação
que se tornava a medida de uma ortodoxia indispensável: distante de
certas heterodoxias que, em plena época da Contra-reforma deveriam
ser prontamente identificadas para poderem ser imediatamente
combatidas.404

Apesar dos contínuos conflitos, os jesuítas eram constantes em seu propósito


catequizador. Embora fosse difícil a “tarefa” de transformação dos nativos, o trabalho
de catequização e conversão do “gentio” à fé cristã - que também era considerado um
trabalho “civilizatório” - não seria abandonado, permaneceria, sendo estrategicamente
aprimorado em adaptação a realidade apresentada, ou na medida em que tal realidade
exigia. A constância jesuítica achava-se atrelada a sua adaptabilidade (ou flexibilidade),
isto é, em suas reformulações em meio às dificuldades do Novo Mundo.
Como observa Breno Machado dos Santos:
403
AGNOLIN, Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi
(Séculos XVI – XVII)... p. 24 - 25.
404
AGNOLIN, Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi
(Séculos XVI – XVII)... p. 25 - 26.

131
O “modo de proceder” dos jesuítas tinha como uma de suas principais
características a “flexibilidade” e não a rigidez. [...] Outro elemento
importante encontrado no “modo de proceder” jesuítico originado nos
Exercícios Espirituais é a prudência. Por fim, é importante citar o
exame de consciência diário ao qual todos jesuítas estavam obrigados.
405

Quanto ao “modo de proceder” da Ordem, Segundo Eunícia Barros Fernandes:

A expressão “nosso modo de proceder” fora proposta por Inácio e


definia o ethos institucional da Ordem; ou seja, definia-lhes uma
identidade para si e frente aos outros: “Seus membros acreditavam que
a adoção de um mesmo ‘modo de proceder’ era o que os fazia
‘jesuítas’”. Sendo assim, seja por permitirem um exercício devocional
na escritura, consolidando individualmente o “ser jesuíta”, seja por
viabilizarem a comunicação entre religiosos, concretizando uma
identidade coletiva, as cartas podem ser referidas como parte do
“modo de proceder” da Companhia. 406

Da faculdade de adaptação às circunstâncias, do ajuste às mentalidades e da


flexibilidade de acomodação, resultou a ação direta dos jesuítas em diferentes camadas
407
sociais, entre o povo principalmente. A estratégia da adaptação como recurso para o
processo de evangelização e conversão foi uma das características que notabilizou a
atividade missionária dos padres jesuítas. A adaptação parecia inevitável, ocorrendo
tanto no discurso, como na metodologia empregada e até no comportamento exterior
dos padres em missão, resultava principalmente do enfrentamento de culturas e religiões
muito diferentes da cristã-ocidental. 408
Os missionários criaram e aceitaram o desafio de movimentar-se no “campo
inimigo” para que a conversão se tornasse eficiente. Trabalhando estrategicamente,
utilizando de seus conhecimentos na busca por desmascarar os pajés, acabaram, em
certa medida, confundidos com os mesmos. Sendo válido ressaltar que missionários e
pajés nem sempre eram antíteses. Além do exemplo da pregação, em certos contextos,
os missionários chegaram a se valer de ex-pajés como auxiliares na evangelização dos
neófitos.409 De modo que,

405
SANTOS, Breno Machado dos. Os Primeiros Jesuítas e o Trabalho Missionário No Brasil.
Universidade Federal de Juiz de Fora - Anais do I Colóquio do LAHES, 2005, p. 6.
406
FERNANDES, Eunícia Barros. Fernão Cardim: a epistolografia jesuítica e a construção do outro.
Niterói: Tempo, vol. 14, núm. 27, pp. 176-198 - Universidade Federal Fluminense, 2009, p. 188 – 189.
407
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 35.
408
COSTA, Célio Juvenal. A evangelização jesuítica e a adaptação. Revista Educação em Questão, v. 22,
n. 8, p. 82-112, jan./abr. 2005, p. 85 – 86.
409
CRUZ, Inquéritos Nativos: os pajés frente à Inquisição... p. 17.

132
[...] confrontados a novas situações, a dados desconhecidos do centro
romano, isolados de seus superiores, os jesuítas dispersos devem
poder agir segundo o seu discernimento, sem prescrições. A
adaptabilidade não é imposta pela prática a uma regra que teria sido
concebida de forma muito rígida e que se revelaria impossível de
aplicar; ao contrário, ela está prevista nas Constituições como sendo a
contrapartida necessária a toda regra. Cada regra remete o jesuíta à sua
capacidade de discernimento e à sua liberdade de agir. 410

3.3. SUBORDINAÇÃO

Era preciso criar-lhes uma redoma, aonde mal chegassem as más


influências. Foi a aldeia dos índios. A disciplina foi o estilo da nova
educação: o horário se achava distribuído, da manhã à noite. Também
as tarefas. Modifica-se o tipo de trabalho: antes, caça e pesca, talvez
um pouco de lavoura, de acordo sempre com as necessidades
imediatas. Agora, a agricultura, de acordo sempre com as
necessidades da colônia.411

Intencionamos, nesta etapa do trabalho, abordar a catequização não somente no


412
que tange à perspectiva da imposição cultural, na medida em que, no processo
catequizador, existe espaço para a perspectiva da interculturalidade (do diálogo
intercultural), no que os indígenas foram capazes de certa adaptação da cultura europeia
à própria cultura, o que também ocorreu com os jesuítas. Por este motivo, abordaremos
a subordinação abrangendo um de seus sinônimos, “acondicionamento”. Para Agustí
Nicolau Coll:413 “A noção de interculturalidade como a situação em que entram em
contato duas ou mais culturas não pode ser encarada com leviandade ou tratada como
um encontro fácil e tranquilo, pois pode trazer consigo, e de fato traz, uma intensa
exigência, em todos os níveis”.
A relação de interculturalidade é qualquer uma que ocorra entre pessoas ou
grupos sociais de culturas diferentes. E, também, por extensão, podemos chamar de
interculturais as atitudes de pessoas ou grupos de uma cultura que se referem a
elementos de outra cultura. Havendo também os que abordam a interculturalidade em

410
WITTMANN, Adaptabilidade jesuítica e tradução cultural nas aldeias da América Portuguesa, p. 5.
411
PAIVA, José Maria de. Colonização e Catequese, 1549-1600. São Paulo: Cortez, 1982, p. 91.
412
Utilizamos a expressão “imposição cultural” com restrições, entendendo conforme Carlos Henrique A.
Cruz que o exercício missionário na América portuguesa envolveu a comunicação, em processos de
“mediação, tradução e convergência” de horizontes simbólicos, comportando concessões e tolerâncias.
CRUZ, Inquéritos Nativos: os pajés frente à Inquisição... p. 44.
413
COLL, Agustí Nicolau. Propostas para uma diversidade cultural intercultural na era da globalização.
São Paulo: Instituto Pólis, 2002, p. 49.

133
termos mais abstratos, na comparação de diversos sistemas culturais, como, por
414
exemplo, a cosmovisão (visão de mundo) indígena e a ocidental. Verifica-se que,

A noção de interculturalidade não pode ser reduzida ao encontro entre


maiorias e minorias, nem ao simples contato interétnico [...] A
interculturalidade não pode significar o estudo de uma cultura, ou das
relações entre duas culturas diferentes, com base nos critérios e
valores de apenas uma delas [...] reservamos a noção de
interculturalidade unicamente para o encontro de culturas que se
realiza em cima de bases, fundamentos, matrizes ou lugares únicos de
cada uma das culturas, em presença ou a partir de um horizonte
comum que não pertença com exclusividade a nenhuma delas [...]A
interculturalidade é o encontro não só das categorias lógicas (logoi)
dos sistemas de signos e das representações de cada uma das culturas,
como também das práticas, crenças e matrizes, dos símbolos, rituais e
mitos e, em último lugar, da totalidade da realidade existencial que
cada uma delas, à sua maneira, constitui de forma única.415

Circunstâncias de primeiros contatos entre povos indígenas e missionários cristãos


têm sido uma constante em todo o tempo colonial. Efetivamente “têm sido” e não
“foram” no passado, restringindo-se a ele, porque esta situação tipicamente colonial não
terminou; o paradigma de colonizador e colonizado se perpetua até hoje. Encontros e
desencontros de universos simbólicos e sistemas de vida marcam a vida de quem quer
que apareça nessa região de fronteira. 416
No processo de colonização da América, por parte dos portugueses, era
fundamental a transposição do modelo civilizacional europeu para a manutenção do
controle das populações do Novo Mundo, ajustando a “colônia” aos interesses
metropolitanos na disciplina de seus habitantes, em um contexto caracterizado também
por disputas religiosas na Europa, destaca-se a presença dos jesuítas monopolizando a
educação colonial. De acordo com Ronaldo Vainfas, “mesmo não sendo a única, a
ordem jesuítica tornou-se hegemônica entre 1549 e 1759 no campo da educação e da
escolarização” 417
, preponderância que não deve se confundir com um total domínio da
situação.
Conforme mencionamos, inicialmente os jesuítas atuavam como pregadores
itinerantes, depois resolveram, por força das circunstâncias, fixarem-se, atuando num
mesmo lugar (aldeia) durante períodos mais duradouros. Segundo Ronald Ramilelli:

414
ALBÓ, Xavier. Cultura, interculturalidade, inculturação. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 47.
415
COLL, Propostas para uma diversidade cultural intercultural na era da globalização... p. 49, 50, 51.
416
RODRIGUES, HARRES, Experiência Missioneira: Território, cultura e identidade... p.85.
417
VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Editora Objetiva,
2000.

134
[...] Depois de alguns anos de convívio com os naturais da terra, o
padre Manuel na Nóbrega concluiu que a conversão pelo
convencimento era inviável. Por intermédio da palavra, jamais, os
missionários alcançariam suas finalidades. Nóbrega [...] encontrou na
sujeição o caminho apropriado para persuadir o gentio a abraçar o
cristianismo. E assim comentou: “Entendo por experiência o pouco
que se podia fazer nesta terra na conversão do gentio por falta de não
serem sujeitos, e ela ser uma maneira de gente de condição mais de
feras bravas que de gente racional e ser gente servil que se quer por
medo e sujeição.” Para o sacerdote, o combate ao “triste e vil gentio”
se faria por duas medidas: repressão implacável aos costumes
intoleráveis e concentração dos convertidos em aldeamentos
organizados pelos religiosos. 418

Esse lugar (ou lugares) administrado pelos missionários surgiu como solução para
a indisciplina, insubordinação ou resistência dos indígenas. 419 Destaca-se - retomando o
tema da “resistência indígena” - que ela era um problema que atingia tanto o projeto
colonial quanto o projeto missionário, isso se distinguirmos ambas as abordagens ou
atuações na Luso-América. Destarte, Jesuítas e colonos encontravam suas formas
próprias de lidar com a resistência nativa. Quanto à resistência ligada ao projeto
missionário, de acordo com Sonia Aparecida Siqueira:

A resistência do indígena à catequese - que muitas vezes se traduziu


na resistência à aceitação do jesuíta - ficou a testemunhar a
dificuldade da aceitação pelo índio das práticas religiosas do
Catolicismo. Talvez porque não lhes pudessem entender o significado
associável de tais práticas às ideias básicas do Bem e do Mal que
poderiam sofrer. A resistência ao Batismo, nos primeiros tempos da
catequização, é bem elucidativa. Associaram o sacramento à morte
(obviamente porque muitas vezes fora administrado in extremis),
fugindo dele, as velhas escondendo as crianças, Contra ele peroravam
os feiticeiros. 420

A resistência indígena - que se apresentava de diferentes formas e graus - quando


ligada ao projeto colonial de forma mais abrangente (ao representar uma ameaça à sua

418
RAMINELLI, Imagens da Colonização: A representação do índio de Caminha a Vieira... p. 73 - 74.
419
Os indígenas “resistiram às várias formas de sujeição, pela guerra, pela fuga, pela recusa ao trabalho
compulsório. Em termos comparativos, as populações indígenas tinham melhores condições de resistir do
que os escravos africanos. Enquanto estes se viam diante de um território desconhecido onde eram
implantados à força, os índios se encontravam em sua casa [...] Não por acaso, a partir da década de 1570
incentivou-se a importação de africanos, e a Coroa começou a tomar medidas através de várias leis, para
tentar impedir o morticínio e a escravização desenfreada dos índios. As leis continham ressalvas e eram
burladas com facilidade. Escravizavam-se índios em decorrência de "guerras justas", isto é, guerras
consideradas defensivas, ou como punição pela prática de antropofagia. Escravizava-se também pelo
resgaste, isto é, a compra de indígenas prisioneiros de outras tribos, que estavam para ser devorados em
ritual antropofágico.” FAUSTO, Boris. História do Brasil... p. 50.

420
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 41.

135
concretização), não estava imune às severas punições. Rodrigo Ricupero traz
informações sobre o castigo dos indígenas rebeldes após a fundação da cidade de
salvador, o castigo daqueles que não contribuíram para o sucesso do “projeto colonial”.
Os indígenas “pacíficos” seriam dignos de favorecimento, enquanto que os rebeldes não
seriam ignorados em sua rebeldia, pois representavam uma ameaça aos planos da
Coroa:

[...] As tarefas iniciais de Tome de Sousa seriam, em primeiro lugar, a


ocupação da capitania da Bahia, apoderando-se da primitiva cerca de
Francisco Pereira Coutinho, e, em seguida, a fundação da cidade do
Salvador. Com a segurança garantida, o passo seguinte seria castigar
os índios responsáveis pela destruição da capitania primitiva e pela
morte do antigo donatário. [...] Para tanto, era necessário saber quem
eram os culpados, porquanto parte dos índios não tinha
responsabilidade direta no levantamento, mantendo-se em paz e
ajudando os cristãos. Assim o rei mandava ao governador "pelo que
cumpre muito a serviço de Deus e meu, os que assim se alevantaram e
fizeram guerra serem castigados com muito rigor", e ainda lembrava a
necessidade de que a punição servisse de exemplo, pois "estes que ai
estão de paz, como todas as outras nações (tribos) da costa do Brasil
estão esperando para ver o castigo que se da aos que primeiro" fizeram
os danos. [...] Dessa forma, os índios que permaneceram em paz na
Bahia deveriam ser favorecidos pelo governador para que auxiliassem
na luta contra os outros. [...] Resolvida a situação na Bahia, com a
fundação da cidade do Salvador e os índios rebeldes castigados, o
próximo passo do governador deveria ser auxiliar a defesa das demais
capitanias, iniciando um processo de centralização político-
administrativo, materializada pela ação do governador, juntamente
com seus auxiliares imediatos, o provedor-mor e o ouvidor geral, que
deveriam reorganizar a estrutura administrativa da Fazenda e da
Justiça já existentes nos núcleos primitivos. 421

Para que pudessem ser considerados cristãos, os indígenas teriam que abandonar
a antropofagia, a poligamia, o nomadismo, a feitiçaria e outros elementos essenciais de
sua cultura. Com o apoio das autoridades civis da América portuguesa, os jesuítas
tornaram possível a realização de um trabalho continuado de catequização, sendo
evidente o fato de que os aldeamentos contribuíram para o fortalecimento da ocupação
lusitana. Os aldeamentos indígenas surgiram então da tentativa de superação da não
bem sucedida experiência missionária inaugural, também dificultada pelas migrações
periódicas dos grupos litorâneos que buscavam ocupar, segundo seus padrões, terras
com maior fertilidade. Nos aldeamentos, os missionários reuniam grupos étnicos e
obstruíam a ausência da rotina necessária à catequese.

421
RICUPERO, A formação da elite colonial: Brasil... p. 108.

136
Através do empenho conjunto de Nóbrega e do terceiro governador-geral da
“colônia”, Mem de Sá (1557-1572), os jesuítas foram pioneiros na prática de aldear ou
reunir os indígenas com o objetivo de torná-los cristãos, sendo os responsáveis pela
criação das primeiras aldeias missionárias ou aldeamentos situados nas proximidades da
cidade de Salvador. O método basicamente utilizado permaneceria por
aproximadamente dois séculos, e consistia, resumidamente, em três aspectos: a
instalação do aldeamento, que podia se dar pela construção de uma igreja e da
residência do missionário em uma aldeia indígena já existente ou em um novo sítio
destinado ao propósito; a catequese propriamente dita, que consistia no ensino dos
rudimentos da fé e na preparação para o batismo; e o deslocamento de novos grupos
indígenas para as povoações já estabelecidas, visando concentrar a catequese nesses
espaços. Sendo necessário destacar que esse método ou modelo catequético baseado no
aldeamento não foi trazido pelos religiosos para a América, foi fruto de um processo de
adaptação da catequese à realidade local. 422
Como os aldeamentos jesuíticos estavam originalmente localizados muito perto
das “colônias” e cidades, os jesuítas eram obrigados a permitir que seus “protegidos”
fizessem trabalhos manuais para os moradores, sob certas condições e garantias. No
entanto, esforçaram-se por limitar o máximo possível esses contatos, visando proteger
seus neófitos das influências desmoralizadoras dos colonos brancos e dos mestiços, o
que os levou a se absterem, em certas regiões, de ensinar o português aos conversos,
utilizando a língua geral do tupi nos aldeamentos. A Coroa também estava desejosa por
obter a cooperação amigável dos “índios mansos”, nome que caracterizava os
ameríndios entendidos como “domesticados” na defesa das “colônias” costeiras contra
dos ataques dos corsários estrangeiros, primeiro franceses, depois ingleses. Esses
ameríndios amigáveis eram também utilizados na captura de escravos negros fugitivos,
dado que os homens dessas duas etnias parece terem se detestado mutuamente. 423
A legislação do século XVI tratava explícita e detalhadamente das questões da
guerra e do cativeiro indígena, já a regulamentação e a distribuição da mão-de-obra
permaneceram bem mais vagas. As primeiras experiências missioneiras surgiram no
contexto da busca dos portugueses por caminhos alternativos à guerra, por conta de seus
impactos negativos. Quando implementaram um projeto de aldeamentos, os jesuítas

422
SANTOS, Fabricio Lyrio. Da catequese à civilização colonização e povos indígenas na Bahia (1750-
1800). Salvador: Tese de Doutorado em História Social - Universidade Federal da Bahia, 2012, p. 43 –
44.
423
BOXER, O império colonial português (1415 – 1825)... p. 107 – 108.

137
procuraram oferecer, através da reestruturação das sociedades indígenas, uma solução
articulada para as questões da dominação e do trabalho indígena. Apesar de nunca
atingir plenamente suas metas, o projeto jesuítico logo se tornou um dos sustentáculos
da política indigenista na América portuguesa. Essas novas aglomerações transferiram
para a esfera portuguesa o controle sobre a terra e o trabalho indígena e à medida que os
jesuítas subordinaram novos grupos à sua administração, os aldeamentos tornaram-se
concentrações improvisadas e instáveis de indígenas provenientes de sociedades
distintas, mesmo assim, nos anos iniciais de estruturação desse projeto, os padres
mostravam certo otimismo para com o potencial de crescimento dos aldeamentos. 424
Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que, apoiados pelas autoridades civis da
“colônia”, os aldeamentos permitiram aos missionários a realização de um trabalho
cotidiano de catequese, com evidentes vantagens à “conversão” indígena, eles também
provocaram sérios questionamentos por parte dos superiores jesuítas, na Europa, pois
enquanto adaptação à “realidade brasileira”, eles foram vistos como contrários ao ideal
missionário da Companhia de Jesus. No início da década de 1580, foi enviado à
América portuguesa o padre Cristóvão Gouvêa com o cargo de visitador geral da
Província, seu objetivo era adequar os aldeamentos às normas da Companhia de Jesus
para que pudessem ser aceitos e reconhecidos como espaços legítimos de atuação
missionária. Como resultado, Gouvêa elaborou um “regulamento das aldeias”, em 1586,
que foi observado pelos jesuítas, em linhas gerais, até sua expulsão no século XVIII. 425
O padre Gouveia registrou, em 1583, uma população superior a quinhentas
pessoas nos dois aldeamentos de São Miguel e Pinheiros, assim igualando-se à
população europeia da região, calculada em 120 lares. Dois anos depois, outro padre
escrevia entusiasmado ao provincial sobre um populoso grupo maromini recém-
“reduzido” e integrado a um aldeamento ao lado de “índios” guaianá, ao passo que
relatórios referentes a batismos, embora pouco específicos em termos numéricos,
também apontavam para um crescimento dos aldeamentos nas décadas de 1570 e 1580.
Informações que apontam a expectativa positiva que o projeto jesuítico suscitava,
empolgando não apenas os missionários como também a Coroa e até os colonos. 426

424
MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 42 - 43.
425
SANTOS, Fabricio Lyrio. Da catequese à civilização colonização e povos indígenas na Bahia (1750-
1800)... p. 48.
426
MONTEIRO, Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo... p. 43.

138
Mas, afinal, seriam os aldeamentos como cativeiros para os indígenas? Esses
espaços foram benéficos ou prejudiciais para os nativos? Aqui abrimos um espaço para
reafirmarmos (conforme a introdução deste trabalho) o necessário cuidado com
propostas antijesuíticas, pessimistas ou enviesadas sobre a atuação da Companhia na
América. Pois procuramos, nesta abordagem, não pender nossa análise nem para o
pessimismo, nem para o idealismo da historiografia tradicional acerca da Companhia de
Jesus, mesmo admitindo a estreita relação entre a História e as ideologias, pois, segundo
Michel Certeau 427
“é impossível eliminar do trabalho historiográfico as ideologias que
nele habitam”.
Até muito recentemente, além de pouco estudados, os aldeamentos eram vistos
pela historiografia apenas a partir dos interesses da Coroa, dos missionários e dos
colonos, como espaços onde os indígenas perdiam suas culturas e identidades,
anulando-se enquanto atores sociais. Não podemos desconsiderar os prejuízos dos
indígenas aldeados, em muitos casos espoliados em seus direitos. Porém, um aspecto,
que por muito tempo foi negligenciado pela historiografia é o interesse dos indígenas
nos aldeamentos e nas novas práticas culturais e políticas que ali aprendiam e
exercitavam. Também vistos como espaços de sobrevivência dos indígenas aldeados,
fizeram com que eles tivessem a possibilidade de reelaborar suas culturas e identidades.
E é fato que, os diferentes grupos indígenas que ingressaram nesses aldeamentos não
foram tão passivos como costumava ser sugerido pela historiografia, de modo que
muitos deles buscavam o aldeamento como opção pelo mal menor diante de situações
ameaçadoras e desfavoráveis. Estudos recentes revelam que apresar dos prejuízos e
subalternidade na qual se inseriam nas aldeias missionárias, os indígenas participaram
de sua construção como sujeitos ativos dos processos de ressocialização e catequese
nelas vivenciados. 428
À parte do pessimismo ou do idealismo, não há como negar nesta análise a
imposição de outra cultura sobre os nativos da Luso-América (a cristã) e que a
superação das culturas indígenas apontava para o sucesso dos aldeamentos, como
também não podemos rejeitar - sem entrarmos no mérito se os aldeamentos
resguardavam os indígenas da escravidão ou não - que além da sujeição e da
doutrinação, os aldeamentos também eram espaços de acolhimento e de novas
possibilidades de existência para os nativos. E que mudanças, transformações e

427
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982... p. 40.
428
ALMEIDA, Os índios na História do Brasil... p. 71, 72, 73.

139
reconstrução de identidades coletivas (com diferentes configurações, denotações e
intensidades) inevitavelmente ocorreram nos contatos e integrações entre os sistemas
culturais dos povos ao longo da história.
As antigas práticas da caça e da pesca seriam descartadas pela agricultura, que se
tornou a forma central de exploração econômica nos aldeamentos. Tida como a forma
ideal para se combater uma série de “vícios” que, no entendimento dos religiosos,
acompanhavam a caça e a pesca, ela se estabeleceu. O nomadismo também seria
superado na vida de muitos indígenas nos aldeamentos.
O nomadismo indígena deixava para trás os sinais de evangelização
impressos pelos jesuítas. Aldeias inteiras mudavam-se para outras
terras. Tendo em vista a disparidade dos dados das fontes consultadas,
torna-se difícil precisar a periodicidade com que os índios
abandonavam suas aldeias. Jean de Léry, por exemplo, afirmou que os
Tupinambá não se demoravam mais de seis meses no mesmo lugar,
enquanto frei Vicente Salvador registrou que o espaço de permanência
dos índios na aldeia variava de três a quatro anos, de acordo com a
duração de suas casas. [...] Quando Jean de Léry perguntou aos índios
tupinambás o motivo pelo qual mudavam para outras regiões com
tanta frequência, estes responderam apenas que “passam melhor
tricando de ares e que se fizessem o contrário de seus avós morriam
depressa” Note-se, dessa passagem, a perpetuação de tradições tribais
como condição de sobrevivência dos povos indígenas. [...] Segundo
Luís da Grã, o limite de permanência da aldeia era determinado pela
duração de suas casas ou pela escassez de recursos da terra. 429

Nos aldeamentos, que começaram a florir a roda do Colégio da Bahia, os meninos


não recebiam o batismo ao nascer, senão quando os pais “gentios” já viviam em lar
monogâmico e davam segurança de não fugir para a selva levando consigo os filhos
batizados. 430 Segundo observa Cylaine Maria das Neves:

Os primeiros meninos gentios catequizados pela Companhia de


Jesus, tanto na Bahia quanto nas outras capitanias, receberam o
batismo em pé. Na escola de Piratininga, o irmão Antônio
Rodrigues, tinha cerca de 20 meninos batizados em setembro de
1554. Em 1556 foram batizados no colégio da Bahia os
primeiros seis meninos recolhidos pelo padre João Gonçalves.
[...] Os seis meninos cuja doutrinação precedeu o batismo
receberam no Colégio da Bahia, onde residiam, o complemento
da educação religiosa e escolar; e um deles Ambrósio Pires,
deixaria, alguns anos mais tarde, o seu nome ligado às primeiras
representações teatrais na América portuguesa. 431

429
KOK, Os vivos e os mortos na América portuguesa. Da antropofagia à água do batismo... p. 87.
430
LEITE, Novas páginas de história do Brasil... p. 98.
431
NEVES, A vila de São Paulo de Piratininga: fundação e representação... p. 144.

140
Logo que os aldeamentos se estabilizaram, e se fixaram neles os indígenas, por
influência dos padres e autoridade do governador Mem de Sá, começou o batismo das
crianças ao nascer, como em qualquer Paróquia de Portugal. Assim, já em 1559, no
aldeamento de São Paulo da Bahia, residência então de Nóbrega, os meninos brasis
inscritos na escola de ler e escrever e cantar, eram 120, dos quais assistiam diariamente
à lição mais de oitenta. Dizendo-se: "Estes são já todos batizados, com todas as meninas
da mesma idade, e todos os inocentes e lactantes". A experiência mostrou aos padres
que o batismo dos adultos oferecia maiores dificuldades que o das crianças, porque
implicava uma renúncia a velhos “costumes gentílicos”, incompatíveis alguns com o
cristianismo, renúncia nada fácil, pois envolvia os costumes nos quais foram criados, 432
como no caso da poligamia.
O estado poligâmico pré-cristão dos indígenas e o conceito que eles faziam da
geração e parentesco foram obstáculos para os jesuítas entre os “gentios” à instituição
do lar monogâmico, base social da cristandade e da civilização do Ocidente. Nóbrega,
como jurista, estudou a condição social dos naturais da terra. Um indígena principal
queria casar-se na Bahia, mas vivia com muitas mulheres. Qual teria sido a primeira? Se
se averiguasse qual, teria o homem a intenção de se casar com ela para sempre? O
costume dos indígenas era tomá-las e deixá-las atentarem a isso. Os muçulmanos da
África também eram polígamos, mas observou Nóbrega que entre eles ao menos havia
contrato, o que não sucedia na América portuguesa. Aquele indígena principal da Bahia
antes de se batizar devia escolher uma, com intenção de com ela viver em matrimônio.
E por aí se começou, pelo estabelecimento do lar monogâmico na “lei da natureza”
antes do batismo. Os indígenas das aldeias estáveis, quando eram adultos e se duvidava
da sua preparação para o batismo, era desta maneira que se casavam, “na lei da
natureza”, para não originarem dúvidas ulteriores, que repercutissem em bigamias, e
também para realizarem as condições de contrato matrimonial, os casamentos na “lei da
natureza” começaram a efetuar-se em 1560 perante testemunhas, escrevendo-se num
livro a ata respectiva. O casamento dos indígenas na “lei da graça” operou-se a princípio
entre alguns adultos, que se tinham preparado e julgado dignos do batismo, mas em
breve a experiência provou que o batismo não era o melhor caminho. O caminho, que
logo se revelou seguro, foi o da prévia educação cristã dos meninos e meninas, com esse
método, encheram-se depois as aldeias de lares cristãos monogâmicos com a união das

432
LEITE, Novas páginas de história do Brasil... p. 98.

141
filhas e filhos dos indígenas, educados pelos padres, isto é, com os casamentos dos
"moços da escola" com as "moças da doutrina". 433
Cumpre-nos novamente mencionar que, no começo de suas atividades na
América, recém-chegados, os jesuítas realizavam uma ação missionária com maiores
limitações materiais, o que também não significava uma escassez tão grade como possa
transparecer na leitura das cartas do período. 434 Eles eram sustentados pela Coroa e pela
província jesuítica de Portugal, mas Nóbrega desejava uma maior autonomia enquanto
articulava o dispendioso empreendimento das aldeias missionárias, projeto que
ocasionaria divergências e oposições. Um exemplo dessas divergências era o padre Luís
da Gram defendendo o ideal de pobreza e o padre Nóbrega na defesa da posse de bens
materiais e também da utilização de escravos, contrariando Luís da Gram. No entanto, a
proposta de Nóbrega pareceu mais vantajosa ao projeto missionário, afinal, a
concretização dos “planos missionários” custaria caro.
Luís da Gram chegou à América portuguesa na mesma nau em que viajou o
segundo Governador Geral da “colônia”, Duarte da Costa, em 1553. Sua chegada,
juntamente com os outros membros do clero metropolitano que desembarcaram na
América portuguesa, foi muito esperada, devido à grande carência de padres que havia
no território, uma realidade que não se resolveria naquela ocasião, mas que se
prolongaria por todo o período colonial. Nessa embarcação (já mencionada) também
estavam os clérigos: José de Anchieta, Brás Lourenço e Ambrósio Pires e os irmãos
João Gonçalves, Antônio Blasques, Gregório Serrão. Ademais, o clérigo tinha boas
relações com o Governador Geral, sendo este um dos fatores que colaboraram para a
sua posse como reitor do Colégio da Bahia. 435
Gram desempenhou uma função de destaque na metrópole, sendo reitor do
colégio da Companhia de Jesus em Coimbra, o que fez com que sua chegada e
permanência tenham sido muito comemoradas pelo clero que aqui vivia, e que já havia
iniciado os trabalhos de catequese e conversão indígena. O próprio Manuel da Nóbrega
demonstrou contentamento por sua chegada. A sua vinda, com os demais clérigos,
significou um reforço aos quadros do clero colonial. Logo após o seu desembarque já se
inteirou dos problemas e avanços realizados nas novas terras e, juntamente com os
outros, iniciou as visitas e as obras missionárias. O jesuíta foi colateral de Nóbrega, uma

433
LEITE, Novas páginas de história do Brasil... p. 112 – 113.
434
Conforme já mencionado, a “pobreza” que afirmavam possuir tinha um peso muito mais retórico que
propriamente real.
435
SILVA, O padre Luís da Gram e a Inquisição no Brasil colonial quinhentista... p. 7 - 8.

142
espécie de vice-provincial, compartilhando de algumas decisões referentes à
Companhia, sobretudo nas capitanias do sul, em que atuavam inicialmente de forma
mais incisiva. Mas também havia divergências em algumas opiniões - o que é
importante destacar, para que os jesuítas sejam melhor percebidos, sem uniformizações,
em suas distinções, singularidades ou individualidades - como a questão de a
Companhia possuir bens, ao que Gram era contra, seguindo os preceitos do voto de
pobreza, e Nóbrega, favorável, para o sustento e manutenção no clero em terras
coloniais. Assim como a também mencionada questão da escravidão utilizada pela
Companhia, que era um ponto de divergência. Viam de forma diferente Nóbrega e
Gram, preponderando nesse debate a opinião realista de Nóbrega. 436
A administração e acúmulo dos ditos bens materiais (bens temporários) é uma das
grandes polêmicas em torno da atuação da ordem na América portuguesa, digamos que
o tema sempre despertou e desperta opiniões contraditórias. Por conta de fatores como a
possessão de bens e a dedicação a atividade agrícola (atividade econômica), sinalizando
um paradoxo diante de ideais de ascéticos437, paradoxo que se concretizou nos
aldeamentos. No entanto, destacamos que o enfoque da ordem não era “secular”, era
religioso e educativo, o que exigia recursos financeiros, não poucos. Por tal motivo, os
padres tinham que desenvolver atividades econômicas que garantissem a mantença da
missão.
Os jesuítas dependiam financeiramente da Coroa lusa. O estado, porém, nunca
teve condições para satisfazer todos os pagamentos que eram devidos ao clero
ultramarino, sobretudo, desde que a missionação militante provocou a rápida
multiplicação dos clérigos, tanto na América portuguesa como no Oriente. Assim, o
crescimento das missões passava necessariamente pela capacidade de se encontrarem
meios de financiamento alternativos, fazendo da análise da dimensão econômica da
missão uma tarefa relevante para uma compreensão abrangente do processo de
evangelização. 438 Segundo Paulo de Assunção:

Os jesuítas, em várias missivas, cartas ânuas, relatórios, e outros


documentos dirigidos aos padres superiores, produtores, prefeitos e
reitores, nos colégios de Lisboa, Porto, Coimbra e demais localidades
espalhadas pelo território português, registraram a forma como eram

436
SILVA, O padre Luís da Gram e a Inquisição no Brasil colonial quinhentista... p. 8 - 9.
437
COUTO, A construção do Brasil... p. 321.
438
COSTA, João Paulo Oliveira. O cristianismo no Japão e o episcopado de d. Luís Cerqueira. Lisboa:
Dissertação de doutoramento em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa - Universidade
Nova de Lisboa, 1998, p. 106.

143
administradas as diversas propriedades da Ordem, ao mesmo tempo
que destacavam a necessidades e a importância da manutenção das
propriedades produtivas para o bom funcionamento da Instituição [...]
Os documentos revelam um complexo jogo político e econômico que
envolvia jesuítas, nobreza, monarca, funcionários da coroa,
mercadores e escravos em relações nem sempre amistosas e tranquilas
[...] As cartas revelam que a Companhia de Jesus interagiu com o
universo produtivo colonial [...]. 439

Para João Pacheco de Oliveira:

[...] tanto os jesuítas quanto os colonos estão referidos a um mesmo


problema – a disputa sobre o controle do trabalho indígena – e
procedem de um mesmo solo jurídico e ideológico, no qual a
“civilização” do índio (entenda-se aqui sua submissão política, sua
utilização como trabalhador e a salvação de sua alma pela catequese)
era vista como um valor e uma necessidade. A convergência de
interesses entre jesuítas e colonos levou a uma aparente unidade das
fontes quanto à caracterização dos indígenas, que passaram a ser
vistos como “naturalmente” refratários ao trabalho, virtualmente
perigosos, e necessitando de tutela e de civilização. Isso permite
suspeitar da inexatidão de investigações históricas que tendem a ver
como secundário ou inexistente o papel dos indígenas na formação
nacional [...].440

Oliveira também atenta para o equívoco de perspectivas dualistas envolvendo ações e


decisões indígenas:

Equivocam-se igualmente as perspectivas dualistas que colocam os


indígenas de uma vez por todas diante do dilema de se submeter ou de
resistir, de aceitar a aculturação ou de serem exterminados. Aqui entra
o segundo ponto: a pax, objetivo da ação colonial, é um estado
jurídico-administrativo (isto é, militar, diplomático), não uma
descrição sociológica. Implica apenas o estabelecimento de uma
circunscrição territorial (administrativa) e, em termos muito gerais de
convivência, implica, sobretudo, a cessação dos enfrentamentos
armados. O ordenamento que introduz reflete o ponto de vista dos
colonizadores, mas nada diz sobre o modo como ocorre a recepção e a
utilização de tais normas pelos nativos. 441

Os aldeamentos tinham basicamente três propósitos ou finalidades


subordinativas: Propósitos Religiosos, que significavam a doutrinação dos indígenas,
para que os mesmos vivessem como cristãos (principal finalidade), Propósitos
Econômicos, que criou nos ameríndios o hábito do trabalho com finalidades produtivas /

439
ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios jesuíticos: O cotidiano da administração dos bens divinos. São
Paulo: EDUSP, 2004, p. 24 – 25.
440
OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar
e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, p. 68.
441
OLIVEIRA, O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de
alteridades... p. 68.

144
econômicas e Propósitos Políticos, nos quais os indígenas eram articulados mediante
dos adversários internos e externos à ocupação portuguesa.
Sintetizaremos o fenômeno da subordinação indígena da seguinte forma: Duas
culturas diferentes se encontraram. De um lado, homens com seus corpos cobertos,
cristãos, acompanhados de seus planos catequizadores. Do outro lado, pessoas com seus
corpos descobertos, “pagãos”, com seus costumes. Inicialmente parecia que os nativos
seriam convertidos sem maiores dificuldades. Eles possuíam estranhamos costumes (ou
mesmo “espantosos” para os padrões europeus), mas aparentavam propensão ao
Cristianismo, até que o indígena idealizado perdeu espaço para o indígena real.
Trabalhou-se persistentemente pela conversão dos nativos gentios, para a eliminação de
práticas antropofágicas, poligâmicas, para fazê-los andarem vestidos e percebeu-se que
a cristianização dos mesmos exigiria mais do que missões volantes, mais que o
inicialmente previsto. Ocorreu uma mudança de estratégia, entrou em vigor a
disciplinarização e doutrinação indígena em aldeamentos. De acordo com José Maria
de Paiva, referindo-se aos aldeamentos:

É-lhes dada uma lei, toda ela negadora de sua cultura: não podem
comer carne humana, não podem guerrear sem licença, não podem ter
mais que uma mulher, não podem andar nus, ao menos depois de
cristãos, não podem conservar seus feiticeiros, não podem mudar de
domicílio; devem viver em justiça e receber a doutrina. 442

Nos anos iniciais, a conversão através do amor e a persuasão pela semelhança


certamente constituíam estratégias importantes, porém, foram sendo substituídas ao
longo da segunda metade do século XVI por métodos que se pautavam pelo uso da
força. Com as tentativas de estabelecer missões entre as comunidades nativas
mostrando-se pouco viáveis ou frutíferas, com as frustrações cada vez maiores por conta
“inconstância” dos “novos cristãos” e com a instabilidade das aldeias nativas, sobretudo
nesses tempos de rápidas mudanças demográficas e de frequentes deslocamentos
espaciais, o uso da força pareceu inevitável aos jesuítas. As aldeias missionárias, que
logo se tornaram os principais focos da interação entre jesuítas e indígenas (interação
essa mediada pela língua geral), tiveram seu surgimento dentro desse contexto, também
marcado pela chegada do governador Mem de Sá, institucionalizando a
complementaridade entre a ação militar dos soldados d’el-rei, que reduziam os índios ao
443
domínio colonial, e dos soldados de Cristo, que reduziam os mesmos nativos na fé.

442
PAIVA, Colonização e Catequese... p. 91.
443
MONTEIRO, Tupis, tapuias e historiadores: Estudos de História Indígena e do Indigenismo... p. 41.

145
Segundo Sonia Aparecida Siquera, “com os colonizadores chegavam também traços da
fisionomia espiritual e moral do povo português.” 444
Embora os aldeamentos fossem povoados predominantemente por indígenas de
origem tupi, eles também abrigavam residentes provenientes de outras origens étnicas.
Na Capitania de São Vicente, por exemplo, os Tupi compartilhavam a experiência da
missão com grupos guaianás e guarulhos, cujas línguas em nada se assemelhavam ao
tupi. Por mais que os jesuítas tentassem, como Manuel Viegas, que chegou a elaborar
um vocabulário na língua dos Marumimins, dominar todas as línguas nativas tonou-se
impraticável. 445 Cabe também observarmos que,

A adesão ao uso dos símbolos cristãos (ou a cristianização dos


símbolos tradicionais) traduz a dinâmica histórica pela qual os
indígenas procuravam instrumentos de afirmação política no mundo
colonial, construindo um universo simbólico compartilhado por outros
atores sociais, e reconstruindo com estes uma nova hierarquia das
relações sociais e de poder. 446

Ao abordarmos o tema da “subordinação” não intencionamos afirmar que através


de ações estratégicas os jesuítas exerceram, de modo geral, domínio ou total controle
sobre os nativos. Entendemos que ocorreram progressos (muitas vezes tímidos) na
catequização e que mesmo com a existência dos aldeamentos ela não deixou de ser
trabalhosa. Em 1584, o padre José de Anchieta demonstrou sua compreensão sobre as
oscilações da missão na América, marcada por fracassos e progressos, o que nos leva a
constatação de que certamente a Missão não foi triunfal e se desenvolvia - mesmo com
avanços - em meio a instabilidades:

Nos batizados que se faziam, como não levavam nenhum aparelho


nem conhecimento das cousas da Fé, nem arrependimento de pecados,
não somente não recebiam graça, mas muitas vezes nem caráter pela
ignorancia deles que não sabiam o que recebiam e dos que lho davam
sem lho dar a entender, e desta maneira viviam e vivem ainda agora
muitos em perpétuas trevas sem terem mais que nomes de cristãos, de
maneira que assim se haviam com eles e ainda agora se hão, como que
não fossem suas ovelhas; nem os Bispos fazem muito caso disso, pois
com os índios livres visto está que se não faz diligência nenhuma no
que toca a sua salvação, quasi como de gente que não tem alma
racional nem foi criada e redimida para a Glória. 447

444
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 17.
445
MONTEIRO, Tupis, tapuias e historiadores: Estudos de História Indígena e do Indigenismo... p. 41
446
POMPA, Cristina. Para uma antropologia histórica das missões... p. 141.
447
ANCHIETA, Cartas, Informações, Fragmentos históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta...
p. 322.

146
3.4. RELIGIOSIDADE E FÉ

É também a esperança de um lugar no paraíso que traz inúmeros


missionários para as terras americanas. Salvar a alma de outras
pessoas constitui uma excelente maneira de garantir a própria
salvação, apregoa a teologia católica dessa época. Daí lançarem-se os
missionários com todo o ardor à salvação das almas dos índios. 448

Ao tratarmos da religiosidade e da fé que marcaram a atividade jesuítica na


América portuguesa quinhentista, não intencionamos uniformizar arbitrariamente os
membros da ordem, como se todos possuíssem o mesmo pensamento, intenção,
personalidade, temperamento, subjetividade e perspectiva estrita da missão que
desenvolviam.
No contexto apresentado o ofício missionário não era homogêneo, convergente e
linear como é comum se supor, era diferenciado por regiões e quebradiço por uma série
de interferências, como falta de recursos e de pessoal, epidemias, fugas, influências e
conflitos com autoridades e colonos, além de embates relacionados a métodos e
estratégias espirituais, dificuldades de comunicação com os nativos, maus entendidos
culturais, alterações políticas e toda sorte de contingências. Alguns eram mais
ortodoxos, outros menos. Tanto os indígenas quanto os europeus não eram blocos
homogêneos, inclusive, os indígenas que adotavam comportamentos e práticas alheios
agiam assim não só por imposição europeia, mas também guiados por suas próprias
motivações. 449
É claro que missionários e indígenas - no interior de seus grupos – eram
diferentes, nenhum ser humano foi/é igual (podendo apenas haver semelhanças), no
entanto, apontamos aqui um espaço de convergência, confluência ou de unidade (em
sentido lato, coletivo e vinculado às similitudes), ante aos desafios impostos pela
alteridade ameríndia: A religiosidade e a fé: “[...] como as cousas de nossa fé das mais
essenciaes, como são da Santissima Trindade, e que Deus se faz homem, e os mysterios
dos Sacramentos [...]”. 450
Mas cumpre a nós mencionarmos que não estamos analisando a religiosidade e a
fé dos jesuítas de modo apologético, o que compete à religião. Também entendemos ser
válido informarmos, de acordo com a pesquisa realizada, que os jesuítas não eram

448
AZZI, Razão e fé: o discurso da dominação colonial... p. 172.
449
CRUZ, Inquéritos Nativos: os pajés frente à Inquisição... p. 45 - 46.
450
NÓBREGA, Cartas do Brasil (1549-1560)... p. 241.

147
“ascetas”, pelo menos no sentido estrito da palavra. Eram habilidosos na arte de
administrar e manter bens terrenos, úteis à missão. Neste horizonte, interpretamos que a
fé, no contexto exposto, precisava do domínio sobre a matéria para se propagar.
A abordagem "científica" das religiões tem demonstrado ter como objeto os
produtos da fé religiosa, porém, é preciso atenção para a própria fé, que é considerada
"natural" no homem, estranha no devir, mostrando como o fideísmo cristão pautou a
cultura ocidental, bastando que se pense nos santos e nos mártires tidos como
"confessores", ou seja, testemunhas de sua fé. Ao recuperarmos as contingências
históricas que realizaram o cristianismo como algo inseparável da "profissão de fé" (ou
"confissão"), surge uma inversão, no lugar da fé identificar a religião, a religião (cristã)
que constrói conceitualmente a fé. 451
Um fator significativo, expressivo no que tange a devoção dos jesuítas era a
possibilidade do martírio, no que o fato de virem para a América portuguesa já era
pensado como uma disposição de morrer pela fé, ou seja, um martírio. Este martírio
para um leitor dito “pós-moderno”, talvez possa soar negativo, no entanto para os
padres era redentor. Surgem como referência dessa entrega: Os “40 mártires do Brasil”,
que destinados à missão na América portuguesa, morreram em 1570; Pero Dias e os
doze jesuítas que liderava a caminho da América portuguesa, no ano de 1571; Leonardo
Nunes, pego de uma emboscada em São Vicente e outros integrantes da ordem que se
dispuseram a levar a crença religiosa às últimas consequências para a conquista
espiritual da América portuguesa, padecendo em nome da fé como o personagem
central de sua religião (segundo o Cristianismo), que deu nome à ordem, Jesus Cristo.

Os jesuítas desbravaram sertões, enfrentaram animais perigosos e


nativos cruéis para levar a luz além das fronteiras da cristandade. O
controle dos corpos e dos prazeres tornava-se uma demonstração de fé
e um alimento espiritual. Somente a privação do conforto, as
intempéries dos trópicos e as ameaças dos canibais os conduziriam ao
céu e à verdade. O martírio era o caminho da perfeição e da
purificação espiritual. 452

Em uma carta já mencionada, escrita da Bahia por Vicente Rodrigues no ano de


1552, observa-se no fragmento destacado que a morte dos indígenas - ao contrário da
morte dos religiosos cristãos - podia ser percebida como castigo divino ante a
resistência à fé cristã. Vê-se no texto o entendimento que os jesuítas tinham de que

451
POMPA, Cristina. Para uma antropologia histórica das missões... p. 115.
452
RAMINELLI, Imagens da Colonização: A representação do índio de Caminha a Vieira... p. 77.

148
Deus estava ao lado deles na missão catequizadora, e que a resistência à pregação era
uma resistência ao próprio Deus no qual acreditavam:

Os dias passados fizemos alguns christãos, dos quaes depois alguns se


tornaram a seus costumes, e querendo-o o Senhor castigar foi a
mortandade nelles tanta que foi cousa de pasmo, mormente nos filhos
e filhas mais pequenas, os quaes parecem não ter culpa, mas querendo
o Senhor povoar a gloria e avisar os que quizerem lá ir que guardem
seus mandamentos; andam tão atemorizados que se tiram de seus
costumes.453

No fragmento abaixo, extraído de uma carta de Anchieta, do ano de 1555, nota-se


Anchieta fazendo a leitura de acontecimentos pela ótica do sobrenatural (do
transcendente), ao mencionar que esperavam na “infinita misericórdia de Cristo”454, se
referindo mais de uma vez a Jesus Cristo com a expressão “Nosso Senhor”, parecendo
lhe perceber como o “condutor espiritual” dos fatos, o ser de quem dependiam.

Esperamos em a infinita misericórdia de Cristo Nosso Senhor que


assim por os que cá estão, como por os que a santa obediência enviará,
se porá remédio á cegueira em que estão tantas nações de índios, e
creiam, caríssimos Irmãos, que ainda que em estas partes ha faltas das
cousas exteriores, que Nosso Senhor, a quem as quer assim, por seu
amor dá muita alegria interior, o que se vê bem aqui, que desde
Janeiro até agora estamos, sendo algumas vezes 20 pessoas, em uma
casa feita de madeira e palha, a qual terá de comprido 14 passos e 10
de largo, que nos serve de escola, dormitório e refeitório, enfermaria e
cozinha e despensa e com recordar-nos que N. Senhor Jesus Cristo
nasceu em um popre presepe, entre dous animais e morreu em outro
lugar mui mais estreito, estamos mui contentes nela e muitas vezes
lemos a lição de gramática no campo. 455

Nas Constituições, de Inácio de Loyola - que juntamente com suas cartas


constituem importantes fontes para compreendermos os ideais de devoção cristã dos
jesuítas - encontramos informações que nos remetem as motivações religiosas da
Ordem, motivações relacionadas a Deus, em uma atitude de entrega e devoção:

Motivados pelo amor de Cristo, assumimos a obediência como um


carisma dado por Deus à Companhia por meio de seu Fundador, que
nos une com mais constância e segurança à vontade salvífica de Deus
e constitui, ao mesmo tempo, o vínculo de nossa mútua união em
Cristo. Assim o voto de obediência converte a nossa Companhia em

453
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568 (Cartas Jesuíticas, Vol. II)... p.
107.
454
Segundo a ótica do Cristianismo, o mundo é resgatado através de Jesus Cristo.
455
ANCHIETA, Informações, Fragmentos históricos e Sermões / Padre Joseph de Anchieta... p. 73.

149
um instrumento mais eficaz de Cristo na Igreja para auxílio das almas
e maior glória de Deus. 456

A grande motivação do fervor missionário de muitos jesuítas estava numa certa


estrutura mental e afetiva consolidada e assimilada através dos Exercícios Espirituais,
através dos quais entendiam ser ajudados pela graça divina. O exercício mais nobre para
aqueles que combatiam sob a bandeira da cruz era a glorificação do Criador
reconduzindo a ele suas criaturas. 457
A “necessidade” de um deus ou deuses, logicamente, não é uma particularidade
ocidental, é uma necessidade que remonta às mais antigas civilizações do globo, e não
intencionamos qualquer crítica ou ataque a esta concepção, pelo entendimento de sua
importância. Aliás, a ideia de Deus é tão importante que o ocidente foi construído com
base nela e segundo o Cristianismo, Deus (o Deus dos cristãos) criou e governa o
mundo. Além disto, é crido como um deus que se comunica com sua criação.
A catequese desenvolvida pelos padres encontrou sua origem, fundamento e
instituição no evento originário dentro do qual se colocaria e se desprenderia toda a ação
histórica do homem. Seu evento originário era representado pelo “E Deus falou”,
conforme o texto do evangelista João. Esta “fala de Deus” tornou-se extremamente
significativa com a instituição do “verbum” de João na tradição evangélica (Evangelho
de João 1. 14). Nesta direção, Cristo, enquanto verbo de Deus (tido como o enviado
pelo pai), instituído pela tradição cristã, tornar-se-ia o impulso para a Igreja assumir sua
missão profética que se constituiu como “mistério da palavra”. Partindo desses
pressupostos, a “missio” adquiriu sua função característica de desvendar esses “mistério
da palavra”: ela teria a função de “anunciar a obra e a palavra do Mestre a todas as
gentes” (Evangelho de Mateus 28. 20). 458
Era justamente na missão que se entendia ser realizado, portanto, o encontro com
os “mistérios” desvendados por Deus em sua “fala”, a qual reivindicava um Povo no
Antigo testamento ou o Homem no Novo Testamento como interlocutor pessoal do
diálogo. Tratava-se, para os religiosos, da própria revelação de Deus para os homens.
Na perspectiva catequética, tratava-se de uma revelação feita (palavra) pelo próprio
Deus. E a revelação, nesta concepção, previa a necessária e imprescindível participação

456
Constituições da Companhia de Jesus: normas complementares. São Paulo: Editora Loyola. 2004, p.
285.
457
BARBOSA, As letras e a cruz: Pedagogia da fé e estética religiosa na experiência missionária de
José de Anchieta, S.I. (1534 – 1597)... p. 26.
458
AGNOLIN, Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi
(Séculos XVI – XVII)... p. 41.

150
do homem: Deus fala e funda o evento originário, mas para que essa fala se torne
desvendamento (dos mistérios), fazia-se necessária a resposta do homem, e neste
sentido, a catequese instauraria um “diálogo”, mais do que sentido hodierno, era “um
logos que passa através de”, isto é, através do próprio homem. 459

Ao fazermos uma análise da religiosidade e fé dos jesuítas na América portuguesa


do século XVI, além do tema da crença em Deus permeando a missão, vem à tona o
contraditório, ou seja, o questionamento acerca da legitimidade ou dignidade da atuação
da ordem, o que sintetizamos em uma pergunta: Era a religiosidade que movia as
decisões e atos da Companhia? Para Simão de Vasconcelos:
[...] nenhuma instituição humana há sido julgada com mais
parcialidade do que a dos jesuítas: para uns foram eles a
idealização do poder católico, o tipo mais perfeito do ministro
do Evangelho, numa palavra verdadeiros apóstolos, como em
sua aparição, os denominou o povo; para outros simboliza o
instituto de Loyola a falsificação da fé, o relaxamento das
máximas da moral cristã, a corrupção da disciplina eclesiástica,
quando exigiam-no os interesses de sua egoísta política. 460

Não raro, na atualidade (século XXI), pessoas questionam a religiosidade dos


jesuítas que vieram para a América portuguesa, por conta do envolvimento da ordem
com questões relacionadas à produção, vendas, lucros e outros elementos que
caracterizavam sua ação empreendedora em terras brasílicas, parecendo que
funcionavam simplesmente como uma empresa com fins lucrativos, ou que eram
mercenários, preocupados apenas com o poder e a autoperpetuação - É evidente que
com o passar das décadas que ultrapassaram o século XVI (lembrando que este trabalho
se restringe a este século), alguns padres da ordem não tiveram atitudes, por assim dizer,
doutrinariamente exemplares, recebendo a desaprovação da própria Companhia, mas
também comprometendo o nome da instituição - porém, parece que essa forma ou
formas de enxergar a ordem na América não abarcam seu horizonte de fé, pois estamos
nos referindo a uma ordem que estava disposta a diferentes manobras de ação para a
maior glória de Deus. E, ainda nos referindo as percepções sobre a Ordem, Paulo de
Assunção traz dados que interessam sobre como grande parte da população chegou a
contemplar os jesuítas dos séculos posteriores ao período que abordamos neste trabalho:

459
AGNOLIN, Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi
(Séculos XVI – XVII)... p. 41 - 42.
460
VASCONCELOS, Simão de. Crônica da Companhia de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 40.

151
Para a maioria da população os jesuítas eram “homens de negócio”,
pois fabricavam açúcar, vendiam gado, exploravam produtos naturais,
operando o sistema como uma empresa, assumindo riscos, além de
demonstrarem interesses de otimização dos lucros e redução das
perdas e agirem como agentes comerciais na venda de produtos. 461

Ainda de acordo com Assunção, encontramos a seguinte informação, com a qual


podemos fomentar parte do entendimento de que, para os jesuítas, empreender
temporalmente associava-se a fé:

A preocupação com o cultivo e a exploração das terras de forma a


garantir a estrutura da Companhia colocou-a em consonância com a
lógica da colonização da época moderna. O empreendimento jesuítico
era parte de uma ação colonizadora que almejava, por meio da
circulação de mercadorias, efetivar o poder da fé. 462

Para ampliarmos esta concepção horizontal, no livro organizado por Marcia


Amantino e Carlos Engemann “Santa Cruz: de legado dos jesuítas a pérola da Coroa”,
trabalho que trata da fazenda de Santa Cruz, ao abordar “a construção da ordem
escravista na fazenda de Santa Cruz (1569-1759)” são trazidas as seguintes
informações:

Existem trabalhos sobre fazendas jesuíticas da América espanhola no


período colonial. Eles explicitaram algumas características
particulares do patrimônio rural jesuíta, como sua forte tendência à
diversificação produtiva, a concomitância de umas atividades voltadas
para o mercado e outras para a manutenção das próprias unidades
produtoras, e o uso intensivo da mão de obra escrava. Fortemente
integradas, essas unidades produtivas tinham contínuo movimento de
trabalhadores e bens. Os objetivos de autossuficiência e diversificação
produtiva traçados pelos jesuítas buscavam limitar a dependência
dessas fazendas em relação aos mercados. 463

Outro fator que é válido mencionar, é que a própria Coroa Portuguesa em suas
conquistas mercantis enxergava a dilatação da cristandade, e com isso, o fator
econômico se unia ao sagrado:

Os colonizadores, de fato, partem de um conceito sagrado da atividade


econômica, exatamente porque ela é exercida a serviço do reino
lusitano, cuja missão religiosa é a expansão da fé. [...] O
empreendimento econômico se transforma assim numa missão
destinada à dilatação da cristandade. 464

461
ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios jesuíticos: O cotidiano da administração dos bens divinos. São
Paulo: EDUSP, 2004, p. 353.
462
ASSUNÇÃO, Negócios jesuíticos: O cotidiano da administração dos bens divinos... p. 251.
463
AMANTINO, Marcia; ENGEMANN, Carlos (orgs.). Santa Cruz: de legado dos jesuítas a pérola da
Coroa. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2013, p. 244.
464
AZZI, Riolando. Razão e fé: o discurso da dominação colonial. São Paulo: Paulinas, 2001, 265.

152
A expansão portuguesa foi um fenômeno multifacetado, que teve na sua origem
motivações variadas: político-militares, sociais, econômicas e religiosas. Nenhum destes
aspectos por si só a explica, assim como ela se torna incompreensível se não
465
considerarmos qualquer um desses elementos. Desse modo, a motivação religiosa
combinava-se, assim com outras e, tanto quanto se pode entender, foi assim ao longo
dos séculos XV e XVI: uma parte significativa dos homens que realizaram a expansão
lusa foram sensíveis a este problema e muitos, desde os monarcas, empenharam-se
realmente na cristianização dos povos ultramarinos; além disso, praticamente todos
aceitavam como natural que a expansão política e comercial possibilitasse a propagação
da Fé. 466
Nas bagagens dos colonos vinham sementes e charruas, nelas ocupavam lugar de
importância primordial cruzes e evangelhos (símbolos de um estado de espírito, de uma
necessidade da alma, de um estilo de vida). Clérigos e leigos vinham iniciar um Novo
Mundo, o mundo português, e quem dizia português, dizia cristão. O transplante
cultural alicerçava-se no da crença. Ocorria a emigração do Cristianismo
conscientemente, no ideal missionário de frades e padres, ou inconscientemente, na
religiosidade mais ou menos aguçada dos homens comuns em busca de novas
possibilidades de vida. A preocupação com o ganho era paralela ao objetivo religioso, a
crença e o lucro caminhavam juntos. Portugal levava consigo para as novas terras que
descortinava ao mundo o escopo da propagação da fé. A empresa marítima não
impossibilitava o sentido espiritual das ações dos povos ibéricos. O “espírito
apostólico” 467
marcava presença no grande movimento social e cultural dos
descobrimentos e da colonização. 468
Conforme José Maria de Paiva, “na mentalidade
então vigente, os portugueses só concebiam a possibilidade de um único mundo, o
mundo cristão, representando a única realidade possível e a qual, portanto, todos os
povos deviam reconhecer.” 469
A união entre Igreja e Coroa era indissociável, o império português estava a
serviço do cristianismo e a missão dos jesuítas na América portuguesa se colocava a
serviço do colonialismo. Arraigada no plano da fé sobrenatural, a missão estava dentro

465
COSTA, O cristianismo no Japão e o episcopado de d. Luís Cerqueira... p. 27.
466
COSTA, O cristianismo no Japão e o episcopado de d. Luís Cerqueira... p. 28.
467
Segundo Luísa Tombini Wittmann, “A Companhia de Jesus, inspirada nos primeiros discípulos de
Cristo, definiu a atividade apostólica como identidade jesuítica.” WITTMANN, Adaptabilidade jesuítica
e tradução cultural nas aldeias da América Portuguesa... p. 3.
468
SIQUEIRA, A inquisição portuguesa e a sociedade colonial... p. 23 – 24.
469
PAIVA, A doutrina feita aos índios: Brasil, século XVI... p. 2.

153
exatamente da finalidade da própria igreja, que é preparar já neste mundo a bem-
aventurança eterna para os homens. Tal é o seu escopo direto e primordial. Indireta e
secundariamente sua ação se desdobra no aperfeiçoamento e elevação do homem
também no plano natural ou terreno. 470

Independentemente do julgamento que se pode fazer sobre as


crenças que moviam os católicos do século XVI, ao avaliarmos
a missionação jesuítica na Ásia, África e América, fica evidente
que, ao chegarem a uma região, os inacianos identificavam as
estruturas sociais e os principais pecados cometidos por sua
população para delinear suas estratégias de conversão. Em
seguida, usavam a persuasão para despertar o desejo dos nativos
de receber o batismo, obedecendo, assim, ao preceito teológico
da salvação católica de que o indivíduo deveria manifestar sua
vontade de ser batizado. [...] No entanto, constatou-se também
nesse processo amplo de missionação, que a execução desses
planos de conversão dependia, fundamentalmente, das relações
político-administrativas que a Coroa portuguesa estabelecia com
um espaço de atuação da Companhia de Jesus. 471

Continuamos o raciocínio com a constatação de Lorenzo Luzuriaga, quanto ao


fato da Ordem, de modo singular, ter tido vida, expansão ou expressão secular, no
mundo, de modo empreendedor e combativo, no que constatamos a ausência de
passividade por parte destes homens que estavam com grande disposição para combater,
como soldados, as heresias e converter os gentios:

A Companhia, como se sabe, é composta de membros, que têm, a um


tempo, caráter regular e secular; são membros de uma ordem religiosa
com estatutos e autoridades próprias e do mesmo passo são sacerdotes
ordenados que exercem todas as funções dos demais sacerdotes. Ao
contrário das outras ordens religiosas, vivem no século, no mundo; e a
Companhia tem caráter sumamente empreendedor e combativo. Sua
mesma designação de Companhia já indica o caráter de milícia, assim
como a organização, disciplina e espírito de obediência, tudo para a
maior glória de Deus. 472

Em suma, conforme abordamos no transcorrer do capítulo, o padre Nóbrega e


seus companheiros, com capacidade empreendedora, souberam organizar as primeiras

470
TERRA, João Evangelista Martins. Catequese de Índio e Negros no Brasil Colonial. São Paulo:
Editora Santuário, 2000, p. 30.
471
SABEH, Colonização salvífica: os jesuítas e a Coroa portuguesa na construção do Brasil (1549-
1580)... p. 137.
472
LUZURIAGA, Lorenzo. História da educação e da pedagogia. São Paulo: Editora Nacional, 1975, p.
119.

154
estruturas reducionais, a partir da análise das desafiadoras circunstâncias encontradas na
conjuntura do Brasil de então. As adaptações às exigências locais que se deram nesse
período resultaram da constância e resiliência destes inacianos na lida com as diferentes
formas de resistir dos povos nativos em suas alteridades. E todo esse processo que
culminou na subordinação de muitos indígenas foi perpassado pela religiosidade e pela
fé. Também finalizamos este capítulo conscientes do que sucederia essa fase inicial na
qual centramos nossa análise:

Nos primeiros anos, os jesuítas são, sobretudo, apóstolos


arrebatados, magníficas personalidades no espiritual e no
humano, que num meio rude realizaram uma incrível obra de
renovação espiritual, sem outro meio que seu exemplo de uma
entrega ilimitada. [...] Mais tarde, já não são as grandes
personalidades – que também existem – o fundamental, senão o
sistema, a instituição: as regras e ordenações, as fundações
permanentes dos colégios, as formas feitas de apostolado como
as Aldeias e as missões. 473

Conforme as informações apresentadas ao longo deste terceiro e último capítulo,


constatamos que não foi fácil para a Companhia de Jesus, no desenrolar de sua Missão
na América portuguesa quinhentista, subordinar (sujeitar) os indígenas ao Cristianismo,
submetendo-os aos domínios da fé cristã. Essa empreitada, confrontada pela alteridade
indígena (com destaque para a chamada “insubordinação”), exigiu da ordem decisões e
posturas que traduzimos pela palavra “constância”, em atos de “perseverança” que
estiveram em grande medida vinculados a fé ou a religiosidade desses europeus
devotos.

473
BARBOSA, As letras e a cruz: Pedagogia da fé e estética religiosa na experiência missionária de
José de Anchieta, S.I. (1534 – 1597)... p. 288.

155
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme expusemos, a Companhia de Jesus nasceu e começou a se expandir no


século XVI. O surgimento da ordem se deu em um momento de significativas mudanças
na Europa, as quais abalaram a coesão da Igreja Católica. Em resposta à propagação da
Reforma Protestante, a ordem - fundada por Inácio de Loyola (em 1534) e aprovada
pelo papa Paulo III (em 1540) - levou a fé católica a novos povos. Espalhando-se pela
Europa em curto espaço de tempo, seus missionários foram enviados a diferentes partes
mundo, chegando aos territórios controlados pelas potências ultramarinas, como a
América portuguesa, onde chegaram em 1549, junto a Tomé de Souza, para contribuir
com a Coroa Portuguesa no avanço da colonização.
Inicialmente, nos primeiros contatos entre jesuítas e indígenas, a conversão
religiosa dos autóctones pareceu não representar um grande desafio para inacianos, mas
aos poucos, determinados costumes nativos (a antropofagia, a poligamia, o nomadismo
e outros) passaram a representar verdadeiros obstáculos ao desenvolvimento da missão,
e isso exigiu dos padres mais do que o esperado, fazendo com que tivessem que se
adaptar a nova realidade apresentada pela alteridade ameríndia.
Com base nos estudos sobre a presença da Companhia de Jesus na América
portuguesa, procurou-se nesta pesquisa o aprofundamento teórico do tema proposto,
tendo como linha mestra desta nossa análise os estranhamentos ocorridos no território
supracitado, por conta do contato/convivência entre povos claramente diferentes
(indígenas e europeus) e a crença religiosa cristã jesuítica diante deles. As questões
tratadas tiveram como premissa a busca pela compreensão da vida humana em
sociedade, ao recuperar e analisar os significados de determinadas experiências
474
humanas no tempo, neste caso específico, experiências perpassadas pela
religiosidade católica.
Tendo-se em vista o imenso campo da história indígena brasileira e também da
história da Companhia de Jesus, bem como o entrelaçamento de ambas, este trabalho
propôs um recorte, se restringindo ao contato inicial entre indígenas “brasileiros”
(ameríndios) e jesuítas, que se deu no século XVI, abordando com maior especificidade
a dinâmica do estranhamento (ou dos desentendimentos) neste contato envolto por uma
474
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história; os fundamentos da ciência histórica. Brasília:
UNB, 2001.

156
política civilizatória. Retratando os contrastes no vínculo estabelecido entre os dois
grupos, na busca por uma compreensão para além do senso comum (muitas vezes
estereotipada ou romanceada) e de parâmetros puramente ideológicos deste contato
complexo, marcado em suas representações por “mitos” e imaginações, porém, repleto
de significados ligados ao entendimento das raízes brasileiras, à construção da
identidade nacional e ao debate atual acerca “falta de entendimento” (ou compreensão)
entre grupos, culturas e religiões 475 distintos.
Foram analisadas as seguintes questões subordinadas ao tema central: Os jesuítas,
sua cultura e interesses, na conjuntura da expansão comercial e territorial portuguesa e
no contexto da Reforma e da Contrarreforma religiosa do século XVI. Conjuntura na
qual contribuíram com o avanço da colonização lusitana; O pensamento colonial
durante a chegada dos jesuítas à América portuguesa, no qual indissociavelmente a
Igreja e a Coroa estavam unidas, de modo que o império português estava a serviço do
cristianismo, ao passo que missão dos jesuítas se colocava a serviço do colonialismo;
Os indígenas da América portuguesa, dentro e fora da perspectiva e narrativa
eurocêntrica, constatando o “indígena idealizado” com o “indígena real”; As relações
entre indígenas e jesuítas, marcadas por resistências, tensões e acordos, dentro do
panorama do diálogo intercultural, rompendo com a concepção de que os ameríndios
eram passivos e dando ênfase ao “protagonismo indígena” nas relações que se
estabeleceram com os inacianos; Questões histórico-antropológicas, religiosas e
políticas ligadas ao contato destes grupos, em seus costumes, ideias e crenças
compartilhadas; Também, como os povos do litoral absorveram a cultura e religião
“ocidental-cristã” de forma própria, como sujeitos ativos, muitas vezes frustrando os
missionários que tentavam infundir-lhes seus valores religiosos; E por fim, como os
inacianos, afetados por esses desafios, com adaptabilidade e resiliência, de acordo com
seus objetivos, em certa medida lograram êxito através dos aldeamentos indígenas,
espaços organizados e controlados pelos padres.
É evidente, através da História da Companhia de Jesus na América portuguesa,
que a disciplina severa e rígida, o rigor e a hierarquia baseados na estrutura militar,
unidos à crença religiosa, representaram a “fórmula” da constância e perseverança da
Ordem nas terras brasílicas, permitindo aos jesuítas lidarem com a exposição a todos os
tipos de perigos e conflitos, levando-os a certa superação de desafiadores

475
Entendendo-se que a religião faz parte da cultura, refletindo-a.

157
estranhamentos oriundos da alteridade, e fazendo com que se deslocassem ousadamente
desbravando a América portuguesa em paralelo aos bandeirantes. Alguns, inclusive,
perderam (ou ganharam, na ótica no martírio cristão) a vida na Missão, morrendo em
nome dela.

158
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