Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
HISTÓRIA DAS RELIGIÕES
COMISSÃO ORGANIZADORA
Prof. Drª. Juciene Ricart Apolinário UFCG
Prof. Dr. Carlos Cunha Miranda - UFPE
Prof. Drª. Dilaine Soares Sampaio de França – UFPB
Prof. Drª. Fernanda Lemos - UFPB
Prof. Dr. Gilbraz de Souza Aragão UNICAP
Profª Drª Marinalva Vilar de Lima - UFCG
Prof. Dr. João Marcos Leitão Santos UFCG – Coordenador Geral
Prof. M.A. Mateus Andrade (UAAMI) UFCG
Profª. Gláucia de Souza Freire SEC/PB
Prof. Alisson Pereira Silva - UFCG
COMISSÃO CIENTÍFICA
Prof. Dr. Eduardo Hoornaert - CEHILA
Prof. Dr. José Oscar Beozzo - CESEP
Prof. Dr. Edson H. Silva – UFPE (Presidente)
Prof. Dr. Luciano Barbosa Justino - UEPB
Prof. Dr. Carlos Cunha Miranda - UFPE
Prof. Dr. Marcelo Ayres Camurça Lima - UFJF
Profª.. Drª Hulda Helena Coraciara Stádler – UFRPE
Profª. Drª Rosilene Dias Montenegro – UFCG
Prof. Dr. Paulo Donizéti Siepierski – UFRPE
Prof. Dr. Lyndon Araujo Santos – UFMA
Prof. Dr. Lauri Emílio Wirth - UMESP
Prof. Dr. Sérgio Ricardo da Mata - UFOP
Prof. Dr. Silas Guerriero - PUC/SP
Prof. Dr. Vasni de Almeida -UFT
Prof.ª Drª. Elizete da Silva - UEFS
Prof.ª Drª. Leila Marrach Basto de Albuquerque - UNESP
Prof. Dr.Arnaldo Huff Júnior - UFJF
Prof.ª Drª. Ester Fraga Vilas Boas Carvalho do Nascimento – UNIT
Prof. Dr. Antonio Carlos Magalhães Melo - UEPB
Arte
Lays Anorina Barbosa de Carvalho
Diagramação
Alisson Pereira Silva/Rodrigo Ribeiro de Andrade
SUMÁRIO
Estupros: uma mídia que nos massifica, uma cosmovisão que nos relativiza
O Simbolismo da Suástica
A dança dos Exus: As metamorfoses das práticas rituais afro brasileiras refletidas na
Quimbanda pelotense no advento da contemporaneidade.
Alma Devota, Corpo Doente: a Patologização da Religiosidade nos Tratados Médicos (séc.
XIX)
As Questões do corpo no final dos anos de 1960: o debate entre teólogos católico-romanos
e médicos acerca da sexualidade.
Ascetismo e contemporaneidade
A música sacra litúrgica nas igrejas batistas e presbiterianas históricas de Montes Claros:
entre a tradição e a inovação
Cultos para São Raimundo Nonato e alguns orixás na União Espírita de Umbanda de São
Raimundo Nonato em Bacabal-MA
Sob o Pálio do Salvador do Mundo: o Culto ao Santíssimo Sacramento na Vila de Simão Dias
Gideões e beatas do Pe. Ibiapina: papéis sociais de gênero no combate a seca de 1877
Religião, poder e gênero: consagração e ordenação feminina nas igrejas cristãs em Campina
Grande/PB
Da caixinha do diabo para instrumento de Deus: uma análise sobre o uso da mídia televisiva
pelos pentecostais
O candomblé sob as lentes da fotorreportagem: as imagens do candomblé dos anos 50 nas
páginas de O Cruzeiro e Manchete
GT 08 - Religião e política
A Política no Santo: Um Estudo acerca da Política no Terreiro Ilê Axe Oya Nirole Egbalê
As vitórias de 1996 como resultado do acúmulo das lutas políticas dos anos 70 e 80, e a
condução de um ex-agente pastoral para a Câmara de Belém
Casa de oxum, jardim das folhas sagradas e outras histórias: evangélicos e políticas
públicas para o povo de santo no governo Lídice da Mata
O entrelaçar dos poderes político e religioso: tramas do vigário António Soares Barbosa na
capitania da Parahyba (1741-1785)
Política e religião: as novas facetas da política espetáculo – o caso das eleições 2012 em
Campina Grande – PB
A Irmandade de São Gonçalo Garcia dos Homens Pardos da Villa do Penedo: notas sobre
documentação histórica das irmandades religiosas em Alagoas, século XIX
Não Pensamos em Política, Nossa Revolução será Espiritual: os batistas brasileiros e o Golpe
de 1964
Protestantismo e resistência aos Governos Militares no Brasil: Helder Câmara e a sua luta
pelos direitos humanos no Brasil
“Para quem acredita, nenhuma palavra é necessária; para quem não acredita, nenhuma
palavra é possível": um primeiro olhar sobre as curas espirituais do médium joão de deus
Optcha! Ciganos, Beija Flor, Globo e Nilópolis – debate sobre construção de identidade,
etnia, cultura e religião na tenda cigana Tzara Ramirez
Origens (ou não) da Umbanda e suas interfaces com outras Escolas Afro-brasileiras
O gênero dos santos e a agência dos devotos: A hagiografia e as orações direcionadas aos
santos católicos sob uma perspectiva de gênero
Padre Jonas Abib e uma nova canção: o carisma do líder e seu papel na comunidade Canção
Nova
Entre Santos e Encantados: um olhar sobre festas e rituais em Santo Antonio dos Sardinhas
Tenda São Jorge Guerreiro: “Maria Bonita”, a mãe-de-santo, a filha, a religião e a história
A recepção religiosa dos direitos humanos como caminho para a democracia – A perspectiva
cristã.
“Fé, carnaval e muito samba”: a lavagem de Senhora Santana toma as ruas da cidade.
Festa do carreiro como patrimônio imaterial do município Ibirajuba (PE): homem, história e
religiosidade.
O apocalipsismo em fins do século xix, o discurso que o circunscrevia aos “sertões” e a real
situação.
A incorporação do budismo zen n’O Livro dos Cinco Anéis de Miyamoto Musashi: entre o zen
e o ken(jutsu).
A representação do Medo no filme “As bruxas de Salem”: uma análise sobre o misticismo
religioso do século XVII
Aqui jaz os que não foram: quando os mortos são indesejáveis no mundo dos vivos
GT 24 - Religiosidades indígenas
Arilson Oliveira1
A Ásia weberiana
coexistências de cultos, escolas e ordens de todo tipo. Ele ressalva que também
principalmente na China, mas tudo isso não tira o encanto dos intercâmbios mútuos que
oferecem promessas apenas acessíveis àqueles que levam uma vida exemplar (no caso
participam de alguma forma, todos possuem uma esperança e um dever em torno dela.
No entanto, a intelectualidade tem sido sempre o guia de toda prática asiática, a mola
mestra das motivações, a categoria que eleva e transcende, a camada que detém os
certezas e nunca foram pensadores meramente teóricos, mas sempre os infantes de suas
teorias. Eles foram os modelos dos demais e sempre chegaram ao topo do possível e
desejado.
âmbito do pensamento sobre o ‘sentido’ do mundo e da vida que não tenha sido já
pensado de alguma forma na Ásia” (Weber, 1996, p. 528). Desta forma, no pensamento
weberiano, todo o sentido da vida, da libertação do mundo, dos afazeres cotidianos, das
1
Doutor em História Social pela USP, Pós-Doutorando em Religião e Sociedade pela PUC-SP, indólogo
e autor de Max Weber e a Índia. Prof. Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da UFCG. E-mail:
arilsonpaganus@yahoo.com.br
1
festas, dos anseios e dos devaneios são moldados pelo pensamento especulativo, pelo
caráter da gnose que agita intensamente o homem asiático. Toda a soteriologia asiática,
mesmo tempo em que um excepcional caminho para o reto agir; por isso, ela é sempre
mágico sobre si e sobre o mundo, como bem caracterizado pelo Yoga indiano.
Brasil, elucida que o alemão continua a ser conhecido como sociólogo, apesar de ter
escrito parte substancial de sua obra na condição de historiador – como bem expresso
explica que ela é historicista? Mata (2006, p. 125) explicará que, dos três volumes dos
conjunto dos trabalhos ali incluídos, bem como sua sequência de volumes, como obra
sociológica. Ao contrário, continua a explicar Mata, ele fala muito mais de abordagem
Religião] não tenha sido nomeado por Weber. Não sendo por acaso que a edição mais
2
da seção I, de Max Weber Gesamtausgabe [Edição Completa de Max Weber], de 1996,
próprios, dirá Mata. Muitos dos títulos das seções de Economia e Sociedade, por
exemplo, foram inventados por eles. De forma que há fortes indícios para se concluir que
1911 – para Turner (1981), em 1910 – e uma primeira versão de Hinduismus und
Buddhismus ficou pronta em 1913; tendo a elaboração final do mesmo em 1915 e início
de 1916, quando Weber residia em Berlim. Em 1919, a obra já estava pronta para ser
impressa, e em 6 de fevereiro de 1921, quase seis meses após a morte de Weber, eis
Tal obra será uma das investidas weberianas mais proeminentes, como singular
racionalismo que acompanha a literatura que as teoriza, a Arthashastra. Uma terra onde
3
das cidades (jana-padah) nada deviam ou se distinguiam do patrimonialismo ocidental;
Occident vor der allerneusten Zeit” [infinitamente maior que em qualquer parte do
Ocidente antes da Idade contemporânea] (1987, p. 13), e como em nenhum outro lugar
ou cultura. Além disso, continua o autor, a Índia também é a região onde o artesanato
como em nenhum outro lugar, apreciou-se tanto a riqueza (Lakshmi) sem, por outro
lado, cair nos ditames de uma ética econômica (com afã de lucro ou Erwerbstrieb) tipo
(Entzauberung der Welt), o qual – este último – caracterizado por Weber como o
Weber também nos apresenta uma Índia onde as éticas religiosas de negação do
mundo (como o budismo), seja teórica ou praticamente, e com a maior das intensidades,
2
Lembrando que a terminologia Yoga nada, ou quase nada, tem em relação com o que se observa nas
academias estéticas ocidentais atuais, pois Yoga, termo que designa a forma-propulsora do pensamento indiano
clássico, deriva da raiz sânscrita yuj, “ligar”, “manter unido”, “atrelar”, “jungir”, a qual originou o termo latino
jungere, jungum e o inglês yoke. Yoga designa, evidentemente, um liame; e a ação de ligar-se ao Absoluto
pressupõe como condição primeira à ruptura dos liames que unem o espírito ao mundo, ou seja, um estado
mental e corpóreo prévio, capaz de promover uma emancipação ou união de si com a metafísica (como coisa em
si ou representada numa personalidade ou energia transcendente).
4
o monasticismo, manifestando-se de forma mais coerente e dando início a um caminho
histórico que se espalhara por todo o mundo. Essa é a Índia de Weber: original, sempre
protestantismo, segundo Weber, não desenvolveu uma racionalidade “com sua ‘vocação
profissional’ entendida como missão, exatamente como dela precisa o [espírito do]
capitalismo” (Weber, 2004, p. 68). Mas ele não encara tal fato como desenvolvimento ou
desencanto, o qual provocará a retirada dos valores mais sublimes e essenciais da vida
pública, surgindo o que ele denomina de “especialistas sem espírito” e “gozadores sem
coração: esse Nada [homem moderno que] imagina ter chegado a um grau de
humanidade nunca antes alcançado” (Weber, 2004, p. 166). Para Weber, tal homem
moderno, esse Nada, em tais circunstâncias, está destinado a viver em uma época
a Índia deixará de ser uma matéria de especulação livre e passará a ser uma disciplina
ministrada com regras rígidas, não obstante, etnocentricamente hegelianas para os não-
3
Uma Índia que contradizia, e muito, aquela que Hegel apresentara; justificava a que Schopenhauer e os
românticos alemães ovacionavam; e se assemelhava muito com a Índia das castas e do código de leis de Manu
em Nietzsche: o qual resume as castas naquela que “formula a lei maior da própria da vida” (Nietzsche, 2007,
§57) e contrapõe o hinduísmo com o cristianismo: “é com o sentimento oposto [à Bíblia] que leio o código de
Manu [o mais antigo código de leis conhecido], uma obra inigualavelmente espiritual e superior, tanto que
apenas nomeá-lo juntamente com a Bíblia seria um pecado contra o espírito. Logo se percebe: ele tem uma
verdadeira filosofia atrás de si, em si, não apenas uma malcheirosa judaína [ópio judaico] de rabinismo e
superstição [...]” (2007, §56-57, grifos do autor).
4
Não-orientalista, no sentido de não ter o Oriente como foco principal, mas ao mesmo tempo tendo-o
como ambiente sócio-intelectual comparativo ao desencantamento do mundo na modernidade.
5
Na Filosofia, Schopenhauer e Nietzsche farão sua parte.
6
Muitos pensadores alemães, e em parte Marx, olharam para a Índia com preconceito e desdém; com um
olhar típico eurocêntrico, semelhante aos cristãos portugueses que a invadiram com suas prerrogativas
sentimentalistas. Tais pensadores não a compreenderam ou mal interpretaram-na, ora por não absorverem
5
desqualificava integralmente a Índia como sem qualquer fundamento de ideias
profundas. Tal desqualificação, como nos alerta Bermejo Barrera (1999), expressava
o caráter providencial que reflete a ideia de que vivemos no melhor dos mundos
históricos possíveis: onde tudo cumpre uma função e é necessário; e, por fim, o
Conclusão
cristão como o “outro”; ele não tratará o Oriente, por exemplo, como primitivo ou
europeu. Em seus estudos da Índia, por exemplo, o Ocidente aparecerá apenas como
contraste e sempre como a região do mundo que se desencantou, que perdeu valores
necessários para a sociedade. Até mesmo o uso dos termos “racional” e “irracional” não
através de conceitos abstratos cada vez mais precisos, e o segundo, num sentido de
Nas palavras de Laurent Fleury, Weber “compreende que o que pode ser
considerado racional a partir de determinado ângulo pode inversamente ser julgado como
significativamente o sistema social (varnasrama), a lógica (nyaya), a ciência (sankhya), a filosofia (darshana) e
a religião (dharma ou “dever ritual” hindu, budista ou jainista) indianas, ora por constatarem inúmeras
contradições e insuficiências entre a Índia como objeto e seus métodos analíticos.
6
irracional de outro. Por outras palavras, Weber não separa [em certo sentido] a
Isto para a época – e ainda para nós – representa uma verdadeira revolução
Andreas Buss (1985) também nos elucida que para analisarmos a posição
weberiana frente ao âmbito asiático, devemos ter em conta uma série de fatores.
Primeiramente, a atitude weberiana diante da sociedade moderna (com sua visão lúgubre
claro, portanto, segundo Buss, que por sua atitude ambivalente frente ao capitalismo, à
ciência e à sociedade ocidental em geral, Weber não havia usado nunca o Ocidente como
Em segundo lugar, muitos autores viram nas obras de Weber uma defesa do
7
menos subdesenvolvimento asiático ou indiano. Finalmente, Weber não queria passar
uma imagem acabada de cada Weltreligion, senão falar das peculiaridades que servem
seu esboço alternativo de sociedade. O que nos permite entender que Weber foi além
das teorias dos sistemas vigentes, construindo uma perspectiva da história que possui
indicadores sobre “como se podia afrontar o dilema da escrita histórica atual entre a Cila
p. 40).7 Vendo desta forma, Weber nos adverte que uma historiografia perspectiva não
só deixaria que entrassem em conflito várias imagens históricas, como também animaria
apontará que, “em um certo sentido, não só se pode denominar Max Weber como
também defendida por Astor Diehl: “em muitos sentidos, justifica-se citá-lo não apenas
universal” (Diehl, 2004, p. 23). E Diehl vai além, afirmando que a construção dos tipos
7
Cila e Caríbdis são divindades aquáticas presentes na mitologia grega. Da narração sobre Cila e
Caríbdis, surge a expressão: “estar entre Cila e Caríbdis”, o que equivale dizer: “estar entre a cruz e a espada” ou
“entre a espada e o muro”, ou seja, estar diante de um problema complicado ou de dificílima solução.
8
ideais de Weber é simultaneamente “história teórica e sociologia histórica com um
Referências Bibliográficas
BOURETZ, Pierre. Les Promesses du Monde: philosophie de Max Weber. Paris: Gallimard,
1995.
BUSS, Andreas. Max Weber and Asia. Contributions to the sociology of development.
Munich: Weltforum Verlag, 1985.
COHN, Gabriel (org.). Weber. Coleção Grandes Cientistas Sociais, n. 13, São Paulo:
Ática, 1999.
DIEHL, Astor Antônio. Max Weber e a História. Passo Fundo: UPF, 2004.
ELIADE, Mircea. Yoga, Imortalidade e Liberdade. São Paulo: Palas Athena, 1996.
GELLNER, David. “Max Weber, Capitalism, and the Religion of India”. In: HAMILTON, P.
Max Weber: critical assessments 2, vol. IV. London: Routledge, 1991, pp. 247-267.
GLASENAPP, Helmut von. Die Philosophie der Inder. Stuttgart: Kröner, 1985.
GUSMÃO, Luís. “A Concepção de Causa na Filosofia das Ciências Sociais de Max Weber”.
In: SOUZA, Jessé. A Atualidade de Max Weber. Brasília: UNB, 2000, pp. 235-259.
HEWA, Soma. “The Spirit of Religion and the Secular Interest: Sri Lanka Buddhism and
Max Weber’s Thesis Today”. In: SWATOS, W. H. Twentieth-Century World Religious
Movements in Neo-weberian Perspective. Lewiston: Mellen Press, 1992, pp. 61-73.
9
KANTOWSKY, Detlef (org.). Recent Research on Max Weber’s Studies of Hinduism.
Munich: Weltforum Verlag, 1986.
KEITH, Arthur. The Religion and Philosophy of the Veda and Upanishads. Cambridge:
Mass, 1925.
KULKE, Hermann. “Max Weber’s Contribution to the Study of Hinduization in India and
Indianization in Southeast Asia”. In: KANTOWSKI, D. (ed.), Recent Research on Max
Weber’s Studies of Hinduism. Munich: Weltforum Verlag, 1986, pp. 97-116.
LOVE, John. “Max Weber’s Orient”. In: TURNER, S. (ed.). The Cambridge Companion to
Weber. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, pp. 172-199.
MATA, Sérgio da. “O Mito de ‘A ética protestante e o espírito do capitalismo’ como Obra
de Sociologia”. In: LOCUS, revista de história, Juiz de Fora, v. 12, n.1, 2006, pp. 113-
126.
MOMMSEN, Wolfgang J. Max Weber, sociedad, política y historia. Buenos Aires: Alfa,
1981.
________. Max Weber. Gesellschaft, Politik und Geschichte. Frankfurt: Suhrkamp, 1982.
NANDY, S. K. “A Critique of Maw Weber’s Conception of the Ethic of India”. In: The
Visvabharati Qaurterly, v. XXXII, 1966-1967, pp. 277-304.
________. Max Weber e a Índia: o vaishnavismo e seu yoga social em formação. São
Paulo: Blucher Acadêmico, 2009a.
REIS, José Carlos. A História entre a Filosofia e a Ciência. São Paulo: Editora Ática, 1996.
RINGER, Fritz. Metodologia de Max Weber: unificação das ciências culturais e sociais. São
Paulo: EDUSP, 2004a.
RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Vol. I, São Paulo: Companhia Editorial
Nacional, 1957.
10
SCHLUCHTER, Wolfgang & ROTH, Guenther. Max Weber’s Vision of History: ethics and
methods. Berkeley: University of California Press, 1984.
________. Paradoxes of Modernity: culture and conduct in the theory of Max Weber.
Stanford: Stanford University Press, 1996.
________. “As Origens do Racionalismo Ocidental”. In: SOUZA, Jessé (org.). O Malandro
e o Protestante: a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília: Editora
UNB, 1999.
________. “Politeísmo dos Valores”. In: SOUZA, Jessé (org.). A Atualidade de Max
Weber. Brasília: Editora UNB, 2000, pp. 13-48.
SINGER, Milton. “Religion and Social Change in India: the Max Weber Thesis, Phase
Three”. In: Economic Development and Cultural Change, vol. XIV, 1966, pp. 497-505.
________. “Max Weber and the Modernization of India”. In: Journal of Developing
Societies, vol. 1, 1985, pp. 151-167.
TURNER, Bryan. For Weber. Essays on the sociology of fate. London: Routledge, 1981.
________. Weber: uma biografia. Rio de Janeiro: Casa Jorge Editorial, 2003.
WEBER, Max. The Religion of India: The Sociology of Hinduism and Buddhism. New York:
Glencoe, 1958.
________. Gesammelte Aufsätse zur Religionssoziologie. Tomo II, Tübinger: Mohr, 1978.
11
ESTUPROS: UMA MÍDIA QUE NOS MASSIFICA, UMA COSMOVISÃO QUE NOS
RELATIVIZA
RESUMO: Pensar sobre a outra cultura deve ser sempre um exercício pautado na
alteridade. Com isso, objetivamos analisar duas reportagens do portal de notícias do
G1 que tratam de dois estupros, um no Brasil e outro na Índia, considerando o
discurso preconceituoso para com o último caso. Para tanto, teremos como
pressupostos bases teóricas sobre estereótipos e Hinduísmo. Desse modo, vemos o
princípio etnocêntrico e um discurso ainda colonizador do Ocidente para tratar desta
situação, o que nos permite aferir a importância de se colocar no lugar do(a) outro(a)
para não cairmos em um discurso colonizador.
1Acadêmico bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) graduando em Ciências Sociais pela
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. E-mail: arthurnobrega@live.com
Além disso, há a discussão de Silva e Moura (2008) sobre formação da
subjetividade pelo saber/poder propagado pelos meios midiáticos, que influenciam as
ações sociais dos(as) indivíduos.
Ressalta-se a prática antropológica e sociológica da relativização cultural para
analisar objetos pretendidos. Assim, abarca-se teoricamente o Hinduísmo para pensar
o contexto no qual ocorreu o estupro na Índia.
Por fim, vamos inter-relacionar estes conceitos com a análise da mídia
etnocêntrica escolhida por nós, o G1. A escolha desse veículo midiático foi escolha
proposital, pois faz parte da considerada maior fonte de informações para a população
brasileira, principalmente por pessoas de classe mais populares.
Neste sentido, o discurso das reportagens massifica noç ões sobre duas culturas
diferentes, e salienta o caráter orientalista e brutal do caso de estupro na Índia,
porque a valoração ocidental naturaliza uma dominação sobre o Oriental, fruto
histórico da colonização europeia.
Esta afirmação vai, analogicamente, ao encontro da explicação de Pereira
(2009) sobre a invisibilidade histórica do homem pobre nas páginas de violência nos
jornais. Porque “os personagens só existem por causa da violência; a construção
cronotópica indica que até aquele momento nada significativo ocorreu em suas vidas.
[...] Descontextualizam-se o agressor e a vítima, suprimindo suas histórias de vida”
(Idem, p. 489).
Salienta-se então, que:
4. Alteridade e desconstrução
Frente a isso, reafirma-se a posiç ão da importância midiática para formaç ão
das subjetividades e visão de mundo. Mais ainda, o descompromisso ético (re)afirma
estigmas, tornando-se discursos de poder/saber.
Nestas reportagens, salienta-se uma dupla violência, uma relacionada ao
gênero e outra ao Oriente. Pois, segundo Pereira (2009), ao noticiar uma violência
contra mulher, ela torna-se anistórica e atemporal. O mesmo ocorre com a
desconsideração histórica e contextual do estupro ocorrido na Índia.
Por fim, v ê-se que a alteridade se faz necessária para se fazer jus ao sistema
simbólico em que se refere ao estupro na Índia, para situá-lo em tempo-espaço
respectivo, além destas reportagens trazerem uma massificaç ão cultural que
naturaliza a opressão do Ocidente para com o Oriente.
5. Considerações finais
As práticas culturais são plurais e partem do princípio de como o indivíduo
enxerga o local de onde fala, onde age e vivencia a interação social. E para não
cometermos um erro colonizador devemos acionar constantemente uma postura
consciente da alteridade.
Neste sentido, com artifícios cronotópicos, o discurso jornalístico se torna um
campo de saber/poder que utiliza a mídia como um dispositivo de viol ência simbólica
e invisível. Assim, pressupõem violentos os lugares tidos como exóticos e marginais e
excluem simbolicamente personagens femininos.
A mídia trabalhada neste trabalho comete este erro fundamental, agravado por
ser de fácil acesso, ou seja, com maior divulgaç ão de estereótipos. O compromisso
jornalístico de trazer a informação sobre um acontecimento para que se torne objeto
de reflexão não é cumprido – e talvez nem se queira que seja – por este veículo
midiático. Torna-se assim um discurso de viol ência cultural e de g ênero, por anular e
excluir personagens, histórias, biografias, religiões e gêneros.
Percebe-se a necessidade de se colocar no local dos(as) outro(as) e considerar
como eles(as) enxergam o mundo para não emitir juízos de valores etnocêntricos ou
orientalistas – pois não se acredita em neutralidade em nenhuma nuance da vida
social.
Nesta perspectiva, torna o estupro na Índia como anti-histórico e
descontextualizado, desconsiderando o Hinduísmo como formador de costumes,
crenças, sociabilidades e ações sociais. Acarretando assim, um etnocentrismo que é
injetado na população que desconhece a real situação.
Esta reportagem só reafirma o estereótipo orientalista para com os(as)
orientais, de bárbaros(as), incivilizados(as) e caóticos(as). Mas ao relativizar e ver
que as mudanças dos atos se alteram apenas na forma que eles s ão tratados pelos
discursos jornalísticos, vemos que, se seguirmos a mesma lógica de raciocínio, os(as)
ocidentais são bárbaros(as), incivilizados(as), caóticos(as), alterando apenas o fato
de sermos (des)informados(as) por uma mídia colonizadora.
6. Referências Bibliográficas
BHABHA, Hommi. Local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p. 105-128.
PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Viol ência e tecnologias de gênero: tempo e espaço nos
jornais. In: Estudos Feministas, Florianópolis, 17(2): 344, maio-agosto/2009.
SILVA, Marluce Pereira da; MOURA, Carmen Brunelli de. Mídia e a figura do anormal
na mira do sinóptico: a constituição discursiva de subjetividades femininas. In:
Estudos Feministas, Florianópolis, 16(3): 841-855, setembro-dezembro/2008.
Anexo I
17/12/2012 12h33 - Atualizado em 17/12/2012 13h05
Fonte: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/12/estudante-e-estuprada-e-jogada-de-um-
onibus-em-nova-delhi.html
Anexo II
26/08/2012 19h32 - Atualizado em 27/08/2012 23h52
Integrantes de banda de pagode são presos suspeitos de estupro
na Bahia
Duas garotas de 16 anos denunciaram dez homens por estupro à polícia. Situação teria ocorrido dentro de
banheiro de ônibus, após micareta.
Dez integrantes de uma banda de pagode estão detidos desde madrugada deste domingo (26),
na cidade de Ruy Barbosa, a 300 km de Salvador, depois de terem sido denunciados por
duas garotas de 16 anos por estupro. O abuso teria ocorrido dentro do ônibus da banda, após
show realizado em uma micareta na cidade.
O delegado Marcelo Cavalcanti afirma que as garotas acionaram a Pol ícia Militar, que foi até
o ônibus e autuou os suspeitos em flagrante, após reconhecimento feito pelas vítimas. Caso a
situação seja confirmada, eles serão enquadrados no crime de estupro, cuja pena é reclusão
varia entre seis a dez anos.
O delegado comenta que as garotas disseram que entraram no ônibus como fãs, após o
show, para registrar fotos e pegar autógrafos dos músicos. Tanto os suspeitos quanto as
vítimas já foram ouvidos em depoimento. "Dois [da banda] disseram que o sexo foi
consensual. Outros negaram participação. Na narrativa delas, enquanto um segurava, outro
praticava o sexo", afirma o delegado. Elas afirmaram que o abuso foi cometido dentro do
banheiro do veículo, em dupla.
As adolescentes foram conduzidas para fazer exames de corpo de delito no Departamento de
Polícia Técnica (DPT) de Feira de Santana e depois levadas para as suas casas, na cidade de
Itaberaba. Elas são acompanhadas por um representante do Conselho Tutelar. O delegado
aguarda o laudo pericial do exame para confirmar se houve ou não o crime.
Um advogado do grupo já se apresentou à unidade de polícia, segundo o delegado. O G1
entrou em contato com a produ ção da banda, que informou n ão ter tomado conhecimento do
ocorrido até as 13h deste domingo (26). Mais tarde, em novo contato, um produtor disse que
estava a caminho da cidade. Segundo ele, apenas seguran ças acompanharam o grupo na
micareta.
Fonte: http://g1.globo.com/bahia/noticia/2012/08/integrantes-de-banda-de-pagode-sao-presos-
suspeitos-de-estupro-na-bahia.html
A BAKTI-YOGA VAISHNAVA REDEFININDO A VIDA DOS DEVOTOS
Resumo
Considerações Finais
Entre os pontos explicitados, o serviço transpassa todos eles. A alma é
sempre ativa, essa é uma qualidade inerente a ela. Não somos extáticos nem no
mundo material nem no mundo espiritual. Por isso estamos sempre ocupados.
(PRABHUPADA, 2008).
A ação é um incentivo de Krsna. Esse é um processo religioso prático que diz
respeito ao modo de vida das pessoas. Todos precisam trabalhar para seu próprio
sustento, então, que ofereçam sua atividade em sacrifício a Krsna, com isso se
elimina o karma.
Na conduta do devoto vaishnava, suas ações não devem ser para a
satisfação de seus sentidos, mas para a satisfação da Suprema Personalidade de
Deus, Krsna. O objetivo dos vaishnavas é voltar para Krsna, entendendo que estão
como adormecidos nessa vida e que precisam acordar para a realidade
transcendental e isso só é possível ficando livre dos enredamentos materiais,
produzidos pelo karma, ou atividades materiais. Entende-se por melhor modo de
conduta a sugestão do livro sagrado: “Desse modo, você ficará livre do cativeiro do
trabalho e de seus resultados auspiciosos e inauspiciosos. Com a mente fixa em
Mim neste princípio de renúncia, você se libertará e virá a Mim.” (Prabhupãda,
2008, p. 490), (BG 9.28).
Os devotos entendem que quando se fala em renúncia não significa parar
com as atividades que uma pessoa precisa executar, mas refere-se à renúncia da
expectativa dos resultados, pois eles enredam o indivíduo nesse mundo material.
Estar com a mente fixa em Krsna é pensar nEle, no transcendente. Ao executar
atividades e a Ele oferecer essas atividades, esse é o princípio da bhakti-yoga.
Mas não é apenas no mundo material que se têm atividades. No planeta de
Krsna todos estão servindo a Ele, pois essa é a posição constitucional, eterna da
alma.
Na sociedade ocidentalizada costuma-se considerar que servir é uma
atividade menor. Essa é uma idéia deturpada para os devotos sobre o serviço. Um
servo da limpeza, por exemplo, em uma empresa é a pessoa menos notada. No
entanto, servir é natural à alma. Se não servimos a Deus, servimos a nosso patrão,
servimos nossos pais e eles nos servem nos sustentando. Servimos a nosso
cachorro, temos de alimentá-lo, dar banho. Estamos sempre servindo e sequer
notamos. Os devotos sabem da inclinação natural ao serviço, portanto servem
àquele que é superior a todos, a Suprema Personalidade de Deus, Krsna.
A atividade, o serviço e o relacionamento são inerentes à pessoa humana e
a alma de um modo geral. Os devotos sabem disso de um modo mais consciente
por orientação de seus livros sagrados e, portanto, procuram exercer esses pontos
da melhor forma possível, em função do divino.
Todos têm uma rasa, um tipo de relacionamento específico com Krsna. Não
é possível para nós não nos relacionarmos, somos seres sociais por natureza, já
nascemos em uma pequena sociedade, a família. Crescemos o tempo todo nos
relacionando e não seria diferente com Deus.
Não que Deus precise relacionar-se, os devotos explicam que Deus não
precisa de nada. Mas Ele se relaciona com seus devotos. Da mesma forma os
devotos crêem que todos têm um relacionamento eterno de serví-lo e isso causa
prazer longe de se configurar como algum tipo de escravidão, mas como uma
necessidade da alma por esse tipo de prazer.
Referências
CONVERSÃO
Alain Richard Griffiths (1906-1993) nasceu na Inglaterra, foi batizado e educado
como anglicano. Quando aluno de escola, em virtude de seu amor pela natureza e pela
poesia, passou por uma experiência mística ao ouvir o canto de pássaros em um pôr-do-sol.
Formou-se em jornalismo e teve como um de seus professores o intelectual C. S. Lewis,
que muito o influenciou esse tornou seu amigo. Jovem, insatisfeito com o modo de vida
ocidental, para ele extremamente material, consciente e racional, afastou-se da religião e da
sociedade em que vivia; porém, continuava a encantar-se com a poesia e a natureza. A fase
de ateísmo passou após novas experiências e a leitura da Bíblia. Superados os preconceitos
anticatólicos de sua educação, converteu-se ao catolicismo romano, adotou o nome de
Dom Bede Griffiths OSB (ordem beneditina) e viveu cerca de vinte anos em abadias na
Inglaterra e Escócia (GRIFFITHS, 1992).
A ÌNDIA
Todavia, novo período de mudanças sobreviria na vida de Griffiths (1992, 2000,
2011): ao buscar novas descobertas sobre Deus, Cristo e a Igreja, ele deparou-se com o
Vedanta indiano e percebeu como era significativo para a tradição da Igreja. Por tal
motivo, além de ansiar por um novo modo de vida, diverso do ocidental, e querer descobrir
o lado intuitivo de sua alma, decidiu dirigir-se à Índia e penetrar nos segredos de sua
sabedoria, integrar o racional com o intuitivo, casar o Ocidente com o Oriente em sua
própria vida. Lá aportou em 1955, adotou o nome devocional sânscrito Dhayananda (bem-
aventurança da compaixão) e viveu em ashrans cristãos; ajudou a implantar o Kristaya
Sanyasa Samaj, Montanha da Cruz, em Kurisumala (1958-1968), Kerala, depois se mudou
para Shantivanam (Floresta da Paz), em Tamil Nadu, sul da Índia (fundado pelos padres
franceses Monchanim e Le Saux, que procuraram integrar a tradição espiritual da Índia em
sua vida como cristãos), onde faleceu em 1993.
Embora tentasse, no início, preservar um modo de vida simples e monacal para os
padrões ocidentais, ainda vestir o hábito beneditino tradicional, utilizar talheres para comer
e uma capela no estilo de construção ocidental, Bede, para se adaptar melhor ao seu novo
lar, dispensou objetos que sentia serem desnecessários para o modo de vida das famílias
pobres a que atendia, em um padrão muito além de tudo que imaginara na Europa; passou
a utilizar o hábito alaranjado kavi do sannyasi (homem santo) hindu, a andar descalço,
alimentar-se com as mãos, sentado no chão, a habitar uma choupana de barro com teto de
folhas; no ashram, promovia leituras das escrituras de diferentes religiões (muçulmana,
sikh, hinduísta, etc.) junto com as do cristianismo, cedia a palavra a poetas místicos, além
de receber hóspedes (como o bioquímico e botânico Rupert Sheldrake).
Estudou sânscrito com Ramón Pannikar (filho de pai hindu e mãe católica), o
sentido da música clássica indiana (sempre religiosa) e de outras formas de arte, assim
como o profundo significado dos templos, dos épicos e dos arquétipos da religião hindu (a
dimensão cósmica, o homem e a natureza sustentados por um espírito onipresente, ou seja,
tudo é sagrado, e a dimensão contemplativa da existência humana). No Ocidente, o mundo
é dessacralizado, contudo sua degradação não decorre da substituição do Paganismo pelo
Cristianismo, no qual Deus, o Senhor transcendente da criação, está separado da natureza e
colocado acima dela, para gradualmente desvelar sua imanência; o aspecto sagrado do
mundo se manteve pelo menos até a Idade Média e esboroou-se a partir do Renascimento,
quando o Homem se colocou no centro de todas as coisas e passou a cultivar a Ciência
como único modelo válido de mundo. Por outro lado, a visão hindu tem como ponto fraco
a tendência a considerar o mundo material como ilusão, maya, produto da ignorância,
avydia; todavia, o mundo está impregnado por um espírito uno, eterno, indescritível
(brahman); em suma, o Hinduísmo parte da imanência de um Ser supremo na criação, que
habita o coração de cada criatura, e chega à percepção de sua transcendência infinita; não é
panteísta, não confunde Deus com cada manifestação da natureza, apenas afirma que ele
está presente em todas elas.
O CENTRO
Para Griffiths (1992), existe um fundo comum para todas as religiões; ele pesquisou
em profundidade as religiões orientais, em especial o hinduísmo, no qual se tornou perito,
conhecimento que lhe permitiu redigir vários livros comparando as religiões do Oriente e
Ocidente, em que destacou os seus pontos comuns, especialmente do cristianismo e do
hinduísmo. Preocupava-se sobremaneira não com o eu exterior (manipulado em um mundo
dessacralizado), mas com a unidade do verdadeiro Eu (que, inspirado em Mircea Eliade,
chamava de Centro) com o tudo e com todos, em especial com a natureza e Deus. Ao
criticar o esmaecimento do aspecto sagrado do mundo, e a consequente perda de sua
beleza, que despontou e cresceu com a Revolução Científica e a Reforma Protestante, ele
defendeu o ponto de vista de que a Ciência e a Tecnologia eram abstrações que fugiam do
verdadeiro “Eu”, que deveriam se voltar ao benefício do Homem, e preconizava a sua
integração com o conhecimento fundamental advindo das primeiras gerações humanas,
manifestado nos mitos e rituais e muito mais identificado com Deus e com a Natureza, para
o verdadeiro “Eu” se realizar plenamente nas pessoas, ou seja, nada mais que o conceito
hinduísta de Ioga (harmonização de todos os aspectos da pessoa).
SACCIDANANDA
Saccidananda, nome do ashram em Tamil Nadu, é um termo hindu usado como um
simbolismo da Trindade Cristã (o Pai como Ser, o Filho, ou o Verbo de Deus, como
Conhecimento do Pai, e o Espírito Santo como a Bem-aventurança do Amor, a unir Pai e
Filho). No ashram, um grupo de discípulos se reúne em torno de seu mestre (guru), para
partilhar uma vida de oração e a experiência de Deus. Há horários para a meditação em
comum, embora a vida se centre na prece pessoal de cada membro. Na meditação, vai-se
além das imagens e conceitos, da razão e da vontade, até a última instância da consciência;
o Último se experencia nas profundezas, na substância, no Centro de cada alma, como seu
próprio solo, fonte, seu próprio ser ou Si-mesmo (atman), experiência de Deus sintetizada
na palavra Saccidananda: o absoluto (sat), conhecido em pura consciência (cit), comunica
bem-aventurança absoluta (ananda). Os videntes e homens santos da Índia passam por tal
vivência, autotranscendência que propicia uma percepção intuitiva da Realidade; a mente
racional deixa de dominar para ultrapassar suas próprias limitações. No Ocidente, a própria
Ciência já supera o paradigma da racionalidade e abstração: percebe-se agora o universo
como um todo dinâmico, a incluir o observador, que interfere nos resultados de suas
observações, em uma aproximação com a visão da realidade oriental tradicional; a
realidade única, indivisivelmente ser e consciência (sat e cit), conhecida em sua origem, se
experencia como júbilo inefável (ananda). Contudo, no homem ocidental, separado de
Deus e da natureza, uma consciência dividida separa o mundo “objetivo” estendido no
espaço e no tempo, obediente a leis mecânicas, do mundo “subjetivo” de sentimentos,
imagens e ideias, enquanto o homem védico sentia uma realidade única, expressa nos seus
mitos e rituais. A própria Bíblia narra uma história mitológica e poética da origem humana
e de sua queda, do rompimento de um estado de unidade original com Deus. No atual
momento, deve-se valorizar o simbólico, o imaginativo e o poético para reaver tal unidade.
A poesia expressa o homem por completo, como um todo, é anterior e mais natural que a
prosa (GRIFFITHS, 2000).
VEDAS E UPANIXADES
No entender de Griffiths (2000), no hinduísmo há três mundos: o da matéria
(corpo), o da mente (alma) e o do Espírito. Os três constituem de fato um só, não se
separam. A ignorância e a ilusão (o Pecado e a Queda em termos cristãos) levam o ser
humano a se sentir internamente dividido. Toda religião procura refazer essa unidade, meta
chamada moksha (libertação) no Hinduísmo, nirvana no Budismo e Redenção do Homem
no Cristianismo.
O poder que impregna o universo e a mente do homem, intuído por poetas no
Ocidente, foi revelado nos Vedas (1500 AC – 500 AC), livros sagrados do Hinduísmo,
talvez a mais antiga literatura em um idioma indoeuropeu (o sânscrito). Prevaleceu na
Índia a verdade da imaginação, a verdade primordial, concreta, simbólica e intuitiva, não a
abstrata, lógica e racional. Os Vedas são tidos como shruti, “Revelação”, aquilo que foi
ouvido, e nitya, “eternos”, sem origem no mundo temporal (reflexos do eterno). Seus
autores humanos foram os rishis, videntes que viram a verdade, e os kavi, poetas de
expressão inspirada. A imaginação vincula mente e coração, intelecto e sentidos,
pensamento e sentimento, forma um elo, rompido pelo homem moderno e seu mundo da
ciência e razão, com linguagem em prosa, isolado das fontes do imaginário. O homem
antigo vivia no mundo da imaginação, da totalidade plena, expressado pelo mito, criado em
níveis profundos de consciência que ligam a natureza humana com o universo ao seu redor,
reflexo na imaginação humana de ideias arquetípicas, princípios e poderes, anjos e deuses
do mundo antigo; pelo mito, o homem se integra com a própria experiência interior e com
o mundo transcendente do espírito. Na linguagem dos Vedas, rica de significados, a
imaginação se expressa em símbolos, que refletem a multiplicidade de sentidos de uma
única palavra, algo comum na fala primitiva (a mente racional surgiu mais tarde para
distinguir vários aspectos de uma palavra, separar seus sentidos). Os Vedas trazem uma
compreensão da natureza tríplice do mundo, física, psicológica e espiritual, aspectos
interdependentes; a realidade física tem um aspecto psicológico e ambos se integram na
visão espiritual. O aspecto físico da matéria (prakriti) constitui o princípio feminino, do
qual tudo evolui; a consciência (purusha), o princípio masculimo da razão e da ordem no
universo; na tradição védica, toda a criação passa a existir pela interação entre ambos que,
por sua vez, provém do Espírito Supremo, Uno, além de toda mudança e multiplicidade.
Os deuses dos Vedas, aspectos do Uno, equivalem aos poderes cósmicos citados por São
Paulo; na teologia de São Tomás de Aquino (e para Bede) corresponderiam a anjos que
mantêm a ordem no mundo (GRIFFITHS, 2000).
São Paulo e os primeiro padres da Igreja defendiam a compreensão do homem
como corpo, alma e espírito (o Espírito é o pneuma de Paulo, correspondente ao atman
hindu), visão substituída visão de corpo e alma de Aristóteles, a partir do século XIV.
Para Griffiths (2000), nos Upanixades (a partir de 600 AC), base do Vedanta,
tratados filosóficos que tentam iluminar os Vedas, as visões intuitiva e racional se
integram, os conceitos vêm a tomar o lugar das imagens e o espírito humano emerge para a
autoconsciência. (Tal tipo de intuição também existe nos Evangelhos.) Para alcançar a
sabedoria suprema (jnana), era necessário partir para a floresta e meditar. Só o sannyasi, o
monge, poderia alcançar a libertação, moksha. Três palavras descrevem a Realidade
última: Brahman (o universo Uno, princípio de unidade a impregnar todas as coisas,
essência sutil de tudo, origem de toda a criação e da diversidade da natureza), Atman (Si-
mesmo, conhecimento de Si-mesmo, consciência de Ser, em que o espírito do homem toca
o espírito de Deus) e Purusha (homem cósmico e arquetípico, macrocosmo), aparentado ao
Adão Kadmon da tradição hebraica e ao Homem Universal da muçulmana. O pequeno
espaço dentro do coração humano é tão vasto quanto o universo (o homem, microcosmo,
com sua mente, o abarca por inteiro). Purusha contém toda a criação em si mesmo e a
transcende; como princípio espiritual, une corpo e alma, matéria e inteligência consciente
na unidade de uma consciência transcendente. Quem exclui o mundo dos sentidos, silencia
a mente discursiva (científica), passa ao intelecto ou inteligência pura (buddhi), onde se
unifica a personalidade e a mente humana, abre-se à luz divina, percorre parte da trilha que
leva à união com a consciência cósmica, isto é, Brahman = Atman = Purusha. Intelecto
puro, mente intuitiva, da buddhi derivam os princípios da razão e da moralidade; ela se
assemelha ao intellectus de São Tomás de Aquino, contraposto à razão; constitui o ponto a
partir do qual alguém se torna verdadeiramente humano.
Para Griffiths (2000), nos Upanixades também surge a noção de Deus pessoal. Dois
deuses, pouco citados nos Vedas, cujos mitos evoluíram, passam a assumir tal caráter:
Shiva e Vishnu. Eles passam a se constituir na Realidade última, unos com brahman, a
verdade absoluta. Shiva desvela-se como Deus de amor, mas com o poder de destruir e
renovar o mundo; Vishnu tem o caráter de preservador e, em momentos de profunda crise,
pode descer à Terra na forma de uma figura humana, o avatar, manifestação de Deus na
Terra, casos de Parashurama, Rama e Krishna. Cabe notar que ambos os deuses não
possuem uma origem ariana; Krishna costuma ser representado na cor azul.
BHAGAVAD GITA
Conforme Griffiths (2000, 2011), no Bhagavad Gita, parte do épico Maabárata
(composto entre IV AC e IV DC), o herói Arjuna sente seu Eu dividido e vê-se frente a
uma grande batalha: a de promover a própria integração como pessoa. Para conseguir
efetuá-la, ouve o discurso de Krishna. O livro, ligado à smriti, tradição, recordação (ao
contrário dos Vedas), resume a doutrina hindu e representa uma quebra quanto aos
Upanixades, associada ao fim do período védico e ao início do período heroico (500 AC),
quando se valoriza a classe dos kshatryas em detrimento dos brâmanes, outrora
predominantes; constitui uma resposta hindu ao surgimento do Budismo e do Jainismo
(onde não existe um princípio último, um Deus), dos quais incorpora elementos
(sobremaneira do budismo, como o conceito de Nirvana); transmite preceitos sobre as
formas de ioga (da ação, do conhecimento, da devoção), sobre cumprir o dever (dharma),
sobre a bhakti, entrega, devoção (superior à meditação), sobre o amor entre Deus e o
Homem, e a graça divina, vias para a libertação (Salvação cristã) da pessoa, desde que esta
se desapegue dos sentidos, dos sentimentos, da mente e do egoísmo, não vise às
consequências dos atos. A não-dualidade entre os deuses e entre deus e a pessoa devota se
apoia nas ideias do pensador Sankharacharya. Porém, o principal aspecto do Gita se refere
à devoção a um Deus pessoal, Vixnu, na forma de Krishna, de modo a se afirmar que
Krishna = Brahman = Atman = Purusha, ou seja, o deus cósmico e o pessoal se tornam um
único, o Senhor do Universo. Ao contrário do que citam os Upanixades, a pessoa comum
pode obter a sabedoria suprema, libertação, graças à bhakti, a devoção a deus; o caminho
de sacrifício (ligação com o universo) e meditação do sannyasi, tido como árduo, para
poucos, continua válido.
Griffiths (2011) analisou o Bhagavad-Gita sob o olhar das escrituras cristãs e
encontrou, entre outros, estes pontos de semelhança:
Os discursos de Krishna e o de Jesus nos Evangelhos pregam a Salvação.
O equilíbrio frente aos opostos, como prazer e dor (“sagrada indiferença” de Santo
Inácio de Loyola).
O jogo de deus (lila), do amor (transbordamento de bondade de São Boaventura de
Bagnoreggio).
A graça divina, que vem de Jesus e do deus pessoal hindu.
As três emoções básicas, paixão, ira e medo (concupiscentia, ira, timor, segundo
São Tomás de Aquino).
As dádivas provêm de Deus (Epístola de São Tiago).
O trabalho como forma de sacrifício (Santo Agostinho) e de contemplação (regra
de São Bento).
A pessoa participa da natureza divina (Epístola de São Pedro).
O amor de Deus vive, age e se movimenta nas pessoas (em São João da Cruz).
Observar inimigos e amigos com equanimidade (Evangelho de São Mateus).
Os sacrifícios de Purusha e de Jesus.
Além do aspecto não manifestado da natureza está a Pessoa Não Manifestada,
imperecível (brahman), que pode ser entendido a partir do conhecimento ligado à
doutrina da Trindade Cristã (O Pai como Fonte, Origem; o Filho, o Verbo, Pessoa
não manifestada, Suprema, além de todas as criaturas e fonte de toda a Criação).
O desapego do mundo (Evangelho de São Lucas).
A potencialidade da natureza, sementes no útero de prakriti (razões seminais de
Santo Agostinho).
Todo o universo encontra centro e apoio na Pessoa Cósmica (Epístola aos
Colossenses, São Paulo).
A não-dualidade (Epístola aos Romanos, São Paulo).
O poder dos espíritos do mal, forças do inconsciente (Epístola aos Gálatas, São
Paulo).
O mundo como imagem, reflexo de Deus (tradição bíblica, Padres Gregos).
Toda criatura participa da vida interior da divindade, comunhão de amor (Doutrina
do Corpo Místico de Cristo).
O termo OM se aproxima de “Verbo” (Evangelho de São João).
Deus imanente em toda a criação, sem se identificar com ela (Deus presente em
todas as coisas, por seu poder, sua presença, sua essência, conforme São Tomás de
Aquino).
Nada há na criação sem estar contido em Deus (Evangelho de São João).
O terceiro olho, identificado como o ajna chakra (terceiro olho de Cristo na
iconografia bizantina).
O aspecto terrível de Deus (Antigo Testamento).
A dissolução de todas as coisas pelo fogo (Apocalipse, segunda Epístola de São
Pedro).
A visão da forma cósmica de Krishna (glória de Yahweh no Antigo Testamento,
Transfiguração de Jesus no Evangelho de São Mateus, a visão de Jesus no
Apocalipse).
As cinco maneiras de se relacionar com Deus (devoção ao menino Jesus).
A oferenda da mente e do coração do devoto a Krishna (Jesus estabelece sua
morada no devoto, Evangelho de São João).
O caminho do serviço devotado a Deus (Madre Teresa de Calcutá).
O sannyasi sereno, em paz, sem ira ou medo (Padres do Deserto, Epístola aos
Colossenses de São Paulo).
O homem entende que o Deus em seu interior é o mesmo Deus no interior de tudo
que existe (Doutrina do Corpo Místico de Cristo, Epístola de São Paulo aos
Romanos).
O ato de ferir a outro é como ferir a si mesmo (Evangelho de São Mateus).
A relação entre brahman e o Deus pessoal interpretada pelo ideal de circuncessão
dentro da Trindade Cristã.
Deus presente no coração de tudo e todos (Doutrina Cristã do Sagrado Coração).
As virtudes do homem espiritualizado e os vícios (São Paulo, Epístola aos Gálatas).
A fé como fundamento de toda a ação (justificação pela fé, São Paulo).
A sabedoria que discerne (prudência, para São Tomás de Aquino).
O dharma, lei do universo como um todo (lex eterna, São Tomás de Aquino)
Deus transmite seu amor aos homens (primeira Epístola de São João).
Pontos de possível desacordo: a questão da transmigração, na qual Bede, dentro da
visão tripartite hindu, entende que o espírito, atman, transmigra, não a alma; o tempo
cíclico na religião hindu, com eras que se sucedem, em que deuses reencarnam como seres
humanos (avataras), enquanto a tradição hebraico-cristã sustenta uma orientação histórica,
escatológica; no cristianismo, somente Cristo se encarna como autorrevelação de Deus; na
tradição hindu, deus é pai e mãe (o segundo aspecto é muito descurado no cristianismo).
O Gita, para Griffiths (2011), pode ser um guia espiritual prático para um cristão ou
qualquer outro que esteja à procura de algum para seguir o caminho da espiritualidade; ele
lança novas luzes em diversos aspectos do Evangelho e adquire novos significados, se
analisado do ponto de vista do Evangelho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No entender de Griffiths (2000), atualmente, não é mais possível uma religião viver
isolada das outras; com sua estrutura de linguagem e pensamento semíticos, o Cristianismo
precisa aprender o que as religiões do Oriente, o Hinduísmo, o Budismo, o Taoísmo e o
Confucionismo, outros aspectos da verdade, têm a lhe ensinar. Qualquer religião precisa
sustentar a verdade fundamental de sua própria tradição e permitir que esta se desenvolva
pelo contato com outras. A religião em si está em julgamento no mundo hodierno; torna-se
necessário um movimento ecumênico entre as religiões, em que cada uma aprenda a aceitar
e valorizar a verdade e a santidade presente nas outras.
Para tanto, cada religião, cada Igreja, deve realizar profunda autorreflexão sobre
seus escritos, suas leis, seus dogmas e suas práticas; sobre sua intolerância com relação a
outras (postura mais arraigada naquelas oriundas do Oriente Médio, ou seja, Judaísmo,
Cristianismo e Islamismo); dialogar constantemente com outras para encontrar caminhos a
fim de superar as diferenças e valorizar as similaridades. Não há mais espaço no mundo
atual, a não ser entre fanáticos, para o fundamentalismo religioso e para as perseguições
inter-religiosas, formas de apego que recrudescem em vastas regiões do planeta, até mesmo
nas religiões antes tidas como relativamente tolerantes (como o Hinduísmo). Enquanto a
maioria dos seres humanos continuar dividida internamente, sem seguir realmente o que
pregam escrituras sagradas como o Gita, haverá tais conflitos e também aqueles entre os
portadores da mente discursiva, permeada pela razão, contra os de mente intuitiva, repleta
de imaginação. Os dois grupos precisam entender que ambos os tipos de mente devem se
integrar em uma só, para resgatar uma visão de mundo que inclua tanto o racional como o
imaginativo, em que as pessoas possam adquirir as capacidades de se desapegar de tudo o
que as limita, de superar dicotomias, de se autotranscender e de se tornar verdadeiramente
humanas, libertas, no sentido ensinado pelo Gita.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
GRIFFITHS, B. Casamento do Oriente com o Ocidente: Hinduísmo e Cristianismo. São
Paulo, Paulus, 2000.
GRIFFITHS, B. Retorno ao centro: o conhecimento da verdade; o ponto de reconciliação
de todas as religiões. São Paulo: IBRASA, 1992.
GRIFFITHS, B. Rio de compaixão: um comentário cristão ao Bhagavad Gita. São Paulo: É
Realizações, 2011.
1
1
Peter Demant é um historiador Holandês. Especialista em questões do Oriente Médio é atualmente
professor do departamento de história da USP.
2
Nicolau Copérnico foi um astrônomo Polonês. Desenvolveu a teoria heliocêntrica com base em dados e
estudos de cientistas islâmicos como os astrônomos Al Tusi e Al Battani.
3
Jonathan Lyons é um jornalista americano. Foi correspondente e editor chefe da REUTERS. Atualmente
participa do grupo de pesquisas sobre terrorismo global da Universidade Monash, na Austrália.
2
Ao longo das últimas décadas, porém, o islã vem sendo associado a práticas
terroristas. Grupos extremistas isolados vêm se utilizando dela, para justificar suas
ações, contribuindo para que essa religião seja erroneamente associada à violência
e a intolerância. O atentado de 11 de setembro é um dos claros exemplos que
geraram fobia e terror em todo o mundo, parte considerável da mídia ocidental é
responsável por essa associação, esta afirmativa se cristaliza na citação a seguir:
4
Edward Said - Intelectual Palestino, professor da Universidade de Columbia. Escreveu vários livros de
sucesso, entre eles está O Orientalismo, traduzido para mais de 36 idiomas. Said era defensor da causa
Palestina. Morreu em 2003 aos 68 anos em decorrência de um câncer raro.
5
Lorde Crommer - Administrador britânico do Egito durante o período de 1883 a 1907.
3
O Islã; religião monoteísta surgida na Península Arábica no século VII por volta
do ano 622 D.C; região onde hoje encontra-se a Arábia Saudita. Antes da
unificação das tribos beduínas por Maomé; os povos da região praticavam o
politeísmo: cultuavam divindades ligadas aos elementos naturais, objetos sagrados
e outras entidades “pagãs” "A história cita que a idolatria era a religião dominante
entre os árabes" (Alcorão, El Hayek, 7p.10). Foi a partir de uma visão do Anjo
Gabriel em um de seus retiros espirituais no monte Hira, que o profeta tomou
conhecimento dos propósitos de Deus para sua vida e seu povo
6
Bernard Lewis - Historiador britânico e professor emérito de estudos orientais na Universidade de
Princeton (EUA).
7
Samir El Hayek é um tradutor libanês. É dele a tradução da versão em português mais popular do
Alcorão.
4
África ocidental até a Indonésia, passando pelo Oriente Médio e a Índia. Em muitos
países desta vasta região, os muçulmanos constituem a maioria da população local
e, em outros, importantes minorias” (DEMANT, 2008, p.13).
língua árabe.
Outra grande obra da tradição oral originária dos povos do oriente (persas,
indianos e posteriormente árabes), é a atemporal- “As mil e uma noites”. Acredita-
se que a primeira transcrição na íntegra para o árabe tenha sido feita no século
VIII. Ao longo das épocas ela foi ganhando outras intervenções e só no Século XII,
recebeu o seu atual título. Foi no final do século XVII, entretanto; que ela ganhou o
mundo ocidental. Antoine Galland, orientalista francês, encontrou alguns de seus
fragmentos no Líbano; traduziu-os e logo depois os publicou. O sucesso foi
imediato. No século XIX, houve mais 3 traduções; agora para o Inglês. “As mil e
uma noites” permanece ainda hoje, depois da Bíblia, sendo o livro mais lido em
todo mundo, com traduções em praticamente todos os idiomas. Contudo, a
contribuição mais significativa trazida pela obra na Europa, foi à revolução causada
6
“As mil e uma noites”; por pertencer à tradição folclórica e literária oriental;
e ter tido o seu primeiro exemplar compilado em língua árabe; carrega em toda a
sua extensão, o teor religioso, inerente ao seu povo; parte fundamental de suas
vidas. Ao longo de toda a obra, (tradução de Mansour Challita, 2010) é
praticamente impossível não perceber a influência do Islão. O livro inclusive traz
em seu conteúdo claramente juízos de valor referentes à mulher, o seu papel na
sociedade e a aceitação natural de sua parte a prática da poligamia, permitida pela
crença: "As mulheres das Mi1 e uma noites aceitam a poligamia e o concubinato
como direitos naturais do homem" (p.5) ; o conceito que vigorava acerca das
demais religiões (Judaísmo e Cristianismo): "[...] cristãos e judeus são bastante
maltratados. É que a época das Mi1 e uma noites era uma época de guerras de
religiões, e cada religião procurava diminuir as outras (p.6); e até mesmo
descrições do paraíso e do inferno, tal o alcorão. A obra das mil e uma noites foi
preponderante para a divulgação e conhecimento por parte do Ocidente; da religião
Islâmica.
As ciências Islâmicas, apesar de hoje não obterem o devido
reconhecimento por parte do Ocidente; foram incontestavelmente, fundamentais
para a construção do que hoje chamamos de ciência moderna. Da astronomia a
8
Mansour Chalita é um escritor, tradutor e diplomata libanês. Radicado no Brasil; é o principal tradutor
das obras de Kallil Gibran.
7
Outro notável Califa foi Al Mamum. Apaixonado pelo céu e corpos celestes,
o sétimo califa da dinastia dos abassídas era astrônomo, astrólogo, versado em
filosofia; e foi, assim como os seus antecessores, os califas Al Mansur e Harunal-
Rashid (seu pai); um grande entusiasta e financiador das pesquisas científicas. O
movimento conhecido como "movimento da tradução", foi uma iniciativa de Al
Mamum, que consistia na busca indiscriminada por livros de todo o mundo e em
qualquer idioma; para que pudessem ser convertidos à nova língua da comunicação
e ciência.
de sua vida de pesquisa; e cujo legado estende-se até os dias atuais. Foi ele quem
adaptou o sistema decimal indiano para o árabe, levando-o ao ocidente. É também
mérito do cientista, a fusão das duas principais tradições matemáticas da geometria
e aritmética. Ele uniu a tradição grega; com a tradição hindu do sistema decimal; e
com base nisso criou a Álgebra: método de cálculo que une letras e números,
facilitando a contagem e obtendo um resultado satisfatório e mais rápido. A pedido
do seu principal financiador; o califa Al Mamum; Al Khwarizmi fabricou duas tabelas
estelares conhecidas como "Zij al- Sindhind", que foram utilizadas não apenas no
medievo islâmico, más também no Cristão. Mil anos depois da confecção, as
tabelas do cientista ainda eram utilizadas no Egito.
9
- Orientalismo - Nesta obra, Said mostra ao seu leitor que o Oriente foi por muito tempo ‘construído’ no
imaginário Ocidental a partir de relatos e estudos tendenciosos que visavam validar uma serie de ações no
mundo Oriental.
11
Neste breve excerto pode-se ver a maneira como o oriental era encarado,
como ele era recepcionado pelo Ocidente; de forma clara, ele é tido como inferior e
incapaz, o oposto do europeu dominador, raciocinador, sábio. Para Crommer, os
egípcios eram meros ‘objetos’ governados por ele, um povo incapaz de possuir um
auto-governo. Essa ideia não é somente restrita ao Egito, mas é modelo a ‘ser
seguido’ para todas as colônias, sejam elas britânicas, francesas, entre outras. Para
o Ocidente era necessário inferiorizar com o intuito de poder validar sua
intervenção. Transformar em ‘animal’ aquele povo faz ganhar o direito de subjugar,
explorar e massacrar sem nenhum constrangimento.
10
- Fadel An-Nabi - Engenheiro e arquiteto siríaco, foi um dos maiores responsáveis pelas construções
francas em território Palestino ocupado durante o período das cruzadas.
11
- Nûrad-Din - Foi o segundo soberano da dinastia dos Zengidas, governou a Síria e o Iraque entre 1146
e 1174.
13
algumas palavras árabes levam aos mais dessemelhantes equívocos, como exemplo
tem-se a palavra Jihad, que designa ‘Força e Empenho’ e não ‘Guerra Santa’ como
recentemente a mesma vem sendo apresentada pela mídia ocidental. Ataques
terroristas suicidas são de forma direta agregadas ao Islã, essa ideia é incorreta,
não concerne com a realidade.
A seita dos assassinos fora tida por muitos como sendo uma deturpação do
Islã, não se enquadrando de modo algum na fé dos sarracenos. As suas práticas
‘duvidosas’ permitiram que se levantassem os mais diversos questionamentos
acerca da crença na fé islâmica por parte dos integrantes deste grupo.
13
- Os assassinos de Alamut - Seita islâmica ismaelita fundada no século XI por Hassan ibnSabbah (O
velho da montanha), é conhecida com essa alcunha devida os seus serviços de assassinatos por ordem de
seu líder Hassan (Velho da montanha).
14
“Essa casta de homens vive fora da lei; eles comem carne de porco,
contra a lei dos sarracenos, e fazem uso de todas as mulheres, sem
distinção, inclusive mães e irmãs. [...] Muitos deles, ao se postarem
sobre um muro alto, saltam a um aceno seu e arrebentando os
crânios, tem morte estúpida.” (LEWIS, 2001, P. 13 e 14)
Bibliografia:
CHALLITA, Mansour. As mil e uma noites. Rio de Janeiro: Editora Gráfica LTDA,
2010.
DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. 2 ed. São Paulo: Editora Contexto, 2008.
AZIZ, Philippe. A Palestina dos Cruzados. Rio de Janeiro: Editora Ferni, 1978.
Link>>>http://www.scielo.br/pdf/rbef/v33n4/21.pdf
Link>>>http://www.icarabe.org/artigos/os-arabes-e-suas-contribuicoes-para-a-
ciencia-e-medicina
Link>>>http://www.wamy.org.br/index.php/civilizacao/ciencias-exatas-e-
biologicas/item/as-contribuicoes-dos-cientistas-muculmanos-para-a-medicina
Gira e baila comigo? O corpo na Umbanda e no Santo Daime
Resumo
1
Graduandas do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
O corpo moderno ocidental
Percebemos, então, que, tal como analisado por Birman (1985), de acordo
com a cosmologia umbandista, “há um nível dos acontecimentos que é determinado
por causas que vão além daquelas a que o homem pode prever ou controlar”
(1985:25), há um plano na vida que pode não ser explicado levando em
consideração causas de natureza universal. Segundo Birman (1985), o acaso que
figura nesse plano, para os umbandistas tem determinações sobrenaturais, ou seja,
as suas causas figuram no plano espiritual. Sendo assim, ainda segundo a mesma
autora, a relação com os santos confere a proteção nesse plano, o que exige de
seus médiuns a manutenção de uma boa relação com os seus guias2 a partir do
cumprimento de suas obrigações enquanto médiuns no terreiro.
2
É como se referem no centro às entidades, mentores espirituais, isto é, espíritos que são incorporados
pelos médiuns (chamados de “aparelhos” de tais entidades) e que, em sua maioria, oferecem consultas aos
visitantes.
3
Importante notar que esse é uns dos meios de se adquirir algum “entendimento”, mas não
necessariamente o único, a cosmologia daimista é rica de sentidos, existem várias formas de alçar
entendimento, o sofrimento por exemplo nem sempre está atrelado a doença, um sofrimento sentimental
por alguma perda, seria uma forma de compreensão de algo. Como a categoria de entendimento, é a priori
de fórum intimo, são múltiplas as formas de se chegar à compreensão, ao entendimento de algo, que não
se limitaria a doença.
melhor compreensão acerca da noção de merecimento o hino a seguir exemplifica a
concepção de doença e cura na doutrina daimista:
“LINHA DE ARROCHIM
Padrinho Wilson
Ter fé e esperança
No pedido
Pensar em Deus
E na nossa virgem mãe
A partir do trecho “As doenças que aparecer/É disciplina/Pra quem faz por
merecer” podemos perceber que a díade doença e cura faz parte de um processo
de evolução espiritual do indivíduo que deve ser percorrido através da disciplina.
Assim, somente através da busca interior pela resolução dos problemas que
incidem na vida de cada um, na particularidade de seus interesses, que pode se
processar a cura da doença. Logo, o indivíduo deve merecê-la e isso só acontecerá
se ele percorrer o caminho do entendimento de si mesmo.
4
Trata-se de um termo nativo utilizado no terreiro estudado para referenciar àqueles que prestam a
caridade no centro, incorporando entidades ou não. Enquanto médiuns, estes possuem obrigações com o
centro como o pagamento de mensalidades, participação regular nas atividades da casa, etc.
5
A defumação consiste na queima de ervas onde a fumaça obtida é “passada” pelo corpo dos médiuns a
fim de purificá-los.
1999:69). Assim, em ambas as religiões se objetiva uma aproximação do indivíduo
(profano) com o plano espiritual (sagrado) através dos cuidados com o corpo na
preparação deste para os rituais no intuito de construir uma “demarcação dos
parâmetros do sagrado” (GROISMAN, 1999:97). De acordo com Saraceni (2006),
os procedimentos anteriores ao ritual servem para que o médium purifique o seu
íntimo atuando da forma mais próxima da própria natureza divina dos Orixás que
são seres perfeitos. Logo, os homens, percebidos enquanto seres imperfeitos,
devem, segundo Negrão (1996), atuar no terreiro para aprender a teoria e a prática
da Umbanda junto aos seus pais-de-santo e guias para o alcance de uma evolução
espiritual.
6
O salão no Santo Daime possui entradas específicas: uma para a entrada das mulheres e uma para os
homens.
7
A configuração do salão varia conforme cada Igreja e seu espaço físico. As filas podem ser em formato
de círculo, hexágono e retângulo. Importa ressaltar que a metade do salão é composta por homens e a
outra metade por mulheres.
8
É o espaço no salão destinado ao culto das entidades na Umbanda e dos padrinhos, madrinhas e
fundadores da religião no Santo Daime (Metre Irineu, Padrinho Sebastião, etc). É composto por imagens
dos santos católicos e demais representações das entidades na Umbanda (exu, pombagira, marinheiro, etc)
e no Santo Daime por retratos em quadros e porta-retratos dos fundadores.
9
Além da divisão por gênero, os indivíduos se posicionam entre casados e solteiros na organização do
salão.
10
Ritual em que os daimistas bailam em compasso ritimado, dois passos para esquerda e dois passos
para direita.
ligação mental direta com todos os Orixás e recorrer àquele que sentir que
resolverá mais facilmente algum problema que se lhe apresente” (2006:28). Dessa
forma, a corrente umbandista não é formada apenas de médiuns de incorporação,
mas por todos os membros da corrente que estão igualmente sob a irradiação
direta dos Orixás (SARACENI: 2006).
1111
Ritual em que é engerido o Daime, onde em seguida canta-se uma sequencia de hinos e após realiza-
se uma concentração, silencia de uma hora e meia.
12
São os médiuns que no terreiro trabalham iniciando os pontos cantados e tocando os atabaques, assim,
não trabalham com a incorporação.
médium concede seu corpo integralmente à entidade construindo um canal entre o
mundo profano (plano material) e o mundo sagrado (plano espiritual). Assim, o
transe de possessão13 se trata de um fenômeno religioso importante nesse contexto
onde “o sagrado se manifesta de maneira a ser percebido pelos sentidos comuns,
entrando em contato com o profano” (NEGRÃO, 1996:289). Com efeito, o médium
significa “um meio”, um mediador entre dois planos de vida (SARACENI, 2006:28).
13
O termo possessão é empregado por BIRMAN (1985), ORTIZ (1999) e NEGRÃO (1996). O termo
nativo correspondente mais comumente associado a esse contexto é incorporação.
Não obstante, para a compreensão das práticas religiosas em questão,
devemos partir de uma análise que conceba o rito como formador de crenças e as
crenças como formadoras de ritos, entendendo, nesse contexto, o rito enquanto a
prática corporal realizada no ritual religioso e a crença enquanto ideias e
concepções que norteiam os atos desses indivíduos. Segundo Mauss (2003:56), “os
atos rituais (...) são, por essência, capazes de produzir algo mais do que
convenções; são eminentemente eficazes; são criadores; eles fazem”. Devemos
compreender, a partir da análise de Mauss (2003) que a ação dos indivíduos é
formadora de um campo de representações, e que um campo de representações é
formador da ação dos indivíduos. Somente a partir da relação entre rito e crença
que se criam significados que fornecem sentido às práticas e constroem, assim, um
campo simbólico compartilhado por estes indivíduos. Portanto, podemos conceber
as técnicas corporais e a performance ritual como criadoras de ritos
compreendendo que a manipulação dos símbolos não se dá apenas no campo
simbólico, mas na experiência real dos indivíduos.
BIRMAN, Patrícia. O que é Umbanda. São Paulo: Abril Cultural: Brasiliense, 1985.
NEGRÃO, Lísias Nogueira. “Entre a cruz e a encruzilhada”. São Paulo: Edusp, 1996.
INTRODUÇÃO
A questão levantada por Fleury (199, p. 21) sobre a existência de uma criança
dentro do professor é um ponto de debate do curso de formação para sensibilização
dos/as professores/as envolvidos em trazer para o espaço coletivo, o resgate da criança
concreta que existe em cada docente. Esta proposta visa relacionar experiências da
própria infância docente com as crianças, com as quais, os docentes atuam na prática
pedagógica. Este adentrar na situação permitirá uma visão mais ampla da compreensão
do diálogo corporal e da simbologia da criança-aluno.
Considerando a formação em Ciências da Religião, existem pontos importantes de
discussão que articulam o corpo a religião tais como: o corpo e os símbolos sagrados, a
relação de saberes entre ciências da religião e corpo e o papel da corporeidade4 na
história da religião. Herdamos ao longo da história, uma concepção de “corpo submisso”
proveniente do proselitismo em que a história construiu a cultura do reducionismo e
fragmentação corporal facetando a existência humana.
MÉTODO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ALVES, J.; ANCA, C.; MOLON, S.; SILVA, D. Oficinas de formação continuada: reflexões
sobre corpo na constituição do ser professor. UNIREVISTA, VOL. 1, N. 2, abril,
2006.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2002.
FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e Ousadia. O cotidiano do professor. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1990.
1
Dentre vários significados, o conceito de corpo abarca também as manifestações rituais do fenômeno religioso.
Segundo Maus, citado por Menezes (2007), a performance de uma técnica corporal está longe de ser somente um
processo de reprodução, pois a cada nova representação, nova significação pode ser atribuída à mesma. Eis a razão
principal de eficácia simbólica dos ritos.
2
De acordo com Lapierre e Aucouturier (1984, p.6) o termo fantasmas corporais é uma produção imaginária
inconsciente, isto é, capaz de motivar comportamentos sem que o indivíduo tenha deles consciência. Ao contrário
da pulsão que é pré-formada, ligada ao biológico, o fantasma se estrutura em referência a uma experiência vivida.
Essa experiência do tipo emocional (prazer ou desprazer), é anterior ao aparecimento da consciência e não pode
ser registrada senão no inconsciente. Constitui o quadro de referência da recusa ou de desejos inconscientes. É
assim que os autores entendem os fantasmas de devoração, de castração, de fusão, etc.
3
Nas experiências corporais com os docentes em formação utilizamos a técnica de observação participante.
4
A corporeidade nas ciências da religião é vista como um conceito complexo e polêmico. Considerando que a
corporeidade não é o foco pontual deste estudo, apenas cito três dimensões justapostas desse conceito envolvendo
corpo e espírito: o transcendental e o conhecimento de si e do outro na sua plenitude que compreende
interioridade, exterioridade e profundidade. Segundo Lowen citado por Brandão (2009) A espiritualidade do corpo
é um sentimento de ligação com o universo. O sentimento não é apenas uma ideia ou uma crença; ele envolve
também o corpo e, portanto, é mais ainda do que um processo mental. Ele é constituído por dois elementos: uma
atividade corporal e a percepção mental dessa atividade. Assim, o sentimento expressado nas vivências corporais.
Segundo a autora, o sentimento pode ser considerado a força unificadora entre mente e corpo, ligando a mente
consciente e inconsciente à atividade corporal.
Alma Devota, Corpo Doente:
a Patologização da Religiosidade nos Tratados Médicos (séc. XIX)
1
LÓPEZ-BARALT, 1996, p. 12, tradução nossa.
2
PACHEU, 1906, p. 22, tradução nossa.
3
MOREL, Benedict-Auguste. Notice sur l'hospice d'Eberbach (duché de Nassau); Statistique des aliénés du Grand-
Duché; Considérations générales sur le patronage des aliénés. Paris: Bourgogne et Martinet, 1846.
4
Cf. DUPRAT, 1900.
seguintes tratados oitocentistas: Bottex (1836), Revolat (1838), Brun-Sechaud
(1863), Auzouy (1859), Sentoux (1867), Dagonet (1862) e Berthier (1874).
Do ponto de vista referencial, estamos convencidos que o discurso médico
oitocentista em relação à religiosidade, diluído em uma profusão de especialidades,
só pode ser efetivamente compreendido a partir da instauração do corpo enquanto
realidade absoluta e finita. Aplica-se ao discurso médico em relação a mística o que
Foucault5 entendeu como um dos procedimentos de regularidade científica para
extrair confissões concernentes ao corpo e às suas práticas: “[...] codificação clínica
do “fazer falar”: combinar a confissão com o exame, a narração de si mesmo com o
desenrolar de um conjunto de sinais e de sintomas decifráveis; o interrogatório
cerrado, a hipnose com a evocação das lembranças, as associações livres”.
A adoção do pensamento de Foucault para a análise da literatura anticlerical
oitocentista brasileira, e mais especificamente da representação dos curas, devotos
e beatas, torna-se profícua à medida que, para ele, a produção de verdades em
relação ao corpo e a todos os elementos e fenômenos que o tocam, inclusive a
religião, está intimamente associada a discursos de poder que se entrelaçam,
digladiando-se e partilhando impressões. Procuraremos acompanhar o embate de
poderes e saberes no campo da literatura anticlerical, que propiciaram a construção
de personagens e tramas. Não se trata, evidentemente, de comprovar se
determinado enunciado na prosa é falso ou verdadeiro, mas tentar vislumbrar “[...]
como se produzem efeitos de verdade no interior de discursos que não são em si
mesmos verdadeiros e nem falsos".6
A corporeidade do personagem religioso é frequentemente associada ao
estado permanente de insanidade, ou, no mínimo, de latente alienação. Os
estigmas patológicos arrolados nos tratados médicos do século XIX para designar
estas figuras enfermiças, devotadas às práticas devocionais e pietistas, são
extremamente profusos. A maioria dos médicos as definem como monomania
religiosa7, teomania8, melancolia9, loucura10 e megalomania religiosa11.
Frequentemente estão associadas à própria histeria12, ou, pela similitude dos
sintomas, à demonomania,13 ambas enfermidades nervosas atribuídas a desordem
do ciclo menstrual14. Outros, ainda, destacam o tom simulador da doença,
agravando, assim, a culpabilidade do enfermo, por não se portar adequadamente15.
Conclui-se que todas as espécies e gêneros de patologias religiosas
aventadas, mapeadas, hierarquizadas e propostas como verdades absolutas,
estabelecem, como premissa comum, a aliança unívoca entre o caráter físico e
social da patologia. Nesse contexto, a leitura médica dirigida ao corpo-máquina é
uma espécie de prova inconteste de sua anomalia, do preço pago pelo seu desvio.
5
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. 12. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1997. v. 1, p. 64.
6
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p. 7.
7
Cf. BOTTEX, 1836; REVOLAT, 1838; BRUN-SÉCHAUD, 1863; AUZOUY, 1859; SENTOUX, 1867.
8
Cf. DAGONET, 1862.
9
Cf. SOLLIER, 1890.
10
Cf. MONIN, 1890b; BALL, 1890; SOLLIER, 1890.
11
Cf. DAGONET, 1862; NICOULAU, 1886; MARIE, 1906.
12
Cf. VIVIEN, 1907.
13
Cf. MARC, 1840; GILLET, 1843.
14
Cf. BERTHIER, 1874.
15
Cf. BOISSEAU, 1870.
VIVÊNCIAS CORPORAIS E RELATOS: O SIGNIFICADO DO CORPO NA
FORMAÇÃO DOCENTE EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO.
INTRODUÇÃO
1
Dentre vários significados, o conceito de corpo abarca também as manifestações rituais do fenômeno religioso.
Segundo Maus, citado por Menezes (2007), a performance de uma técnica corporal está longe de ser somente um
processo de reprodução, pois a cada nova representação, nova significação pode ser atribuída à mesma. Eis a razão
principal de eficácia simbólica dos ritos.
de interesses, desejos e potencialidades em movimento, pode assim construir
continuadamente ações pedagógicas. Ao reconhecer o entrelaçamento corpo-mundo,
Merleau-Ponty (1999) concebe a importância dos processos de percepção e Foucault
(2002), os processos de subjetivação. Ambos negam a concepção reducionista e
instrumental de corpo. A funcionalidade do corpo na tradição instrumental é vista por
Asmann (1995, p. 3) da seguinte forma: “aprendemos com o corpo, mas não um corpo
instrumental, e sim com o corpo relacional que constrói o mundo a cada momento, que
flui no tempo e que se abre para um horizonte de possibilidades”.
O presente estudo se justifica, em primeiro lugar, pela originalidade em investigar
o tema em questão considerando o desafio de tirar os docentes em formação da sala de
aula e promover uma alternativa que é frequentemente negligenciada pelos cursos de
licenciatura, qual seja, refletir sobre si e o outro, sobre o significado do corpo e suas
repercussões na qualidade da prática pedagógica. Em segundo lugar, é relevante
considerar que a violência crescente observada nas salas de aula, segundo resultados de
pesquisas, ocorre por dificuldades relacionais entre professores e alunos e entre esses
últimos.
O stress e as tensões do cotidiano são agravantes para o estado psíquico-
patológico dos docentes afastando também aqueles que desejam ingressar na profissão.
Assim, acreditamos que o docente deve ser concebido como sujeito social formador e
humanizador, necessitando estabelecer uma melhor compreensão de si e dos outros
principalmente em sala de aula; aspectos esses que serão experienciados nas vivências
corporais no presente estudo. Por ultimo, a relevância em propor uma discussão sobre
“corpo” no espaço de formação. Este aspecto nos parece importante considerando que
resultados de pesquisas de Alves e al. (2006) indicam que, a maioria dos docentes
pesquisada ainda tem uma concepção dualista e instrumental de corpo, ou seja,
separação corpo-mente e não uma concepção “una” e cultural do corpo como vimos
anteriormente. Essa concepção reducionista da maioria dos docentes em formação sobre
corpo tem, portanto, repercussões negativas nos conteúdos curriculares de licenciatura e
consequentemente na qualidade das práticas corporais oferecidas às crianças.
O objetivo principal desse estudo é compreender o significado do corpo para a
formação à partir de vivências corporais na disciplina de oficina VI considerando as
percepções de graduandos concluintes em Ciências da Religião. Em primeiro lugar
destacamos a importância da formação pessoal para a formação docente considerando os
conceitos e objetivos, as possibilidades de vivências corporais na formação em Ciências
da Religião. No capítulo dois abordamos a metodologia que caracterizada pela pesquisa
etnográfica envolvendo quinze participantes e a coleta de informações através de
questionários. Em seguida apresentamos a análise dos resultados e por último, as
considerações finais.
2
De acordo com Lapierre e Aucouturier (1984, p.6) o termo fantasmas corporais é uma produção imaginária
inconsciente, isto é, capaz de motivar comportamentos sem que o indivíduo tenha deles consciência. Ao contrário
da pulsão que é pré-formada, ligada ao biológico, o fantasma se estrutura em referência a uma experiência vivida.
Essa experiência do tipo emocional (prazer ou desprazer), é anterior ao aparecimento da consciência e não pode
ser registrada senão no inconsciente. Constitui o quadro de referência da recusa ou de desejos inconscientes. É
assim que os autores entendem os fantasmas de devoração, de castração, de fusão, etc.
3
Nas experiências corporais com os docentes em formação utilizamos a técnica de observação participante.
sessões de psicomotricidade relacional. Sabe-se que este tipo de formação traz a tona
conflitos para o praticante, pois o pressuposto básico para a evolução pessoal é trazer ao
conhecimento dificuldades, inseguranças e também domínios e facilidades pessoais.
Assim, pode-se afirmar que o adulto que realiza a Formação Pessoal através das
vivências corporais revive os fantasmas corporais, já que a memória afetiva e emocional
é registrada no cérebro.
A questão levantada por Fleury (199, p. 21) sobre a existência de uma criança
dentro do professor é um ponto de debate do curso de formação para sensibilização
dos/as professores/as envolvidos em trazer para o espaço coletivo, o resgate da criança
concreta que existe em cada docente. Esta proposta visa relacionar experiências da
própria infância docente com as crianças, com as quais, os docentes atuam na prática
pedagógica. Este adentrar na situação permitirá uma visão mais ampla da compreensão
do diálogo corporal e da simbologia da criança-aluno.
Considerando a formação em Ciências da Religião, existem pontos importantes de
discussão que articulam o corpo a religião tais como: o corpo e os símbolos sagrados, a
relação de saberes entre ciências da religião e corpo e o papel da corporeidade4 na
história da religião. Herdamos ao longo da história, uma concepção de “corpo submisso”
proveniente do proselitismo em que a história construiu a cultura do reducionismo e
fragmentação corporal facetando a existência humana.
MÉTODO
4
A corporeidade nas ciências da religião é vista como um conceito complexo e polêmico. Considerando que a
corporeidade não é o foco pontual deste estudo, apenas cito três dimensões justapostas desse conceito envolvendo
corpo e espírito: o transcendental e o conhecimento de si e do outro na sua plenitude que compreende
interioridade, exterioridade e profundidade. Segundo Lowen citado por Brandão (2009) A espiritualidade do corpo
é um sentimento de ligação com o universo. O sentimento não é apenas uma ideia ou uma crença; ele envolve
também o corpo e, portanto, é mais ainda do que um processo mental. Ele é constituído por dois elementos: uma
atividade corporal e a percepção mental dessa atividade. Assim, o sentimento expressado nas vivências corporais.
Segundo a autora, o sentimento pode ser considerado a força unificadora entre mente e corpo, ligando a mente
consciente e inconsciente à atividade corporal.
Quinze graduandos concluintes do Curso de Ciências da Religião. As vivências
corporais aconteceram na disciplina de Oficina de Pesquisa VI, onde oportunizamos
descobertas e possibilidades de conhecimento de si e do outro nas relações físico-sociais.
As sessões envolviam atividades espontâneas com bolas leves e tubos de espuma
(macarrões) e foram realizadas na sala de esporte e dança do Centro Cultural de Natal.
Optamos pela pesquisa qualitativa na modalidade de investigação etnográfica em
que o pesquisador é observador participante. De acordo com Bogdan e Biklen (1994) a
pesquisa qualitativa representa “a investigação que produz dados descritivos: as próprias
palavras das pessoas, faladas ou escritas, e a conduta observada“ (p.20). Para André
(2004, p.20), o pesquisador etnográfico lida com uma modalidade de pesquisa que se vê
“diante de diferentes formas de interpretações da vida, formas de compreensão do senso
comum, significados variados atribuídos pelos participantes às suas experiências e
vivências” (...).
Os questionários aplicados aos participantes ao final das quatro sessões destacam
seis temas: 1) Limites e possibilidades das vivências corporais como componente
curricular; 2) sensações de desconforto; 3) contribuições para a vida pessoal e
profissional; 4) concepção de corpo; 5) relação entre corpo e religião e, 6) transformação
pessoal.
Após cada sessão foram discutidas diversas sensações que os participantes
indagaram como medo, raiva, alegria, prazer, tranqüilidade, lembranças da infância,
brincadeiras de crianças e a formação docente. As sessões eram direcionadas por uma
psicóloga especialista em Psicomotricidade Relacional, aonde ela conduzia e norteava o
caminhar da discussão, enquanto o orientador-pesquisador e a orientanda participavam
das vivências.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ALVES, J.; ANCA, C.; MOLON, S.; SILVA, D. Oficinas de formação continuada: reflexões
sobre corpo na constituição do ser professor. UNIREVISTA, VOL. 1, N. 2, abril,
2006.
ARAÚJO, Marlene de. Faces do corpo na condição docente (um estudo exploratório).
Belo Horizonte, Minas Gerais: Programa de Pós – Graduação em Educação, Universidade
Federal de Minas Gerais – UFMG, 2004. 243 p. (Dissertação de Mestrado).
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2002.
FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e Ousadia. O cotidiano do professor. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1990.
Resumo
O corpo ao longo da história teve diversos significados e interpretações tanto no campo do
sagrado como no campo cultural. Ora visto como um receptáculo carnal onde reinava o mal,
ora como um lugar de identidade pessoal gerando o culto ao corpo. A história do corpo
desempenhou durante muito tempo um papel secundário dentro da historiografia e, no
Brasil, ela começa a aparecer com mais intensidade nas discussões acadêmicas, somente na
década de 1990. Quando se pensou em estudar o período pós guerra, foram deparadas
novas percepções, não só da sociedade, como também do corpo. Certa tradição cristã
envolveu o corpo em suspeita ou até mesmo em censura numa tentativa de não lhe dar
muita atenção para assim não o expor a carne. Isso acarretou diversos fatores até o século
XX entre eles a restrição da higiene. O período entre guerras muda a forma de se ver o
corpo levando-o a uma liberação. Em fins do século XIX e início do século XX, a relação entre
o indivíduo e seu corpo começou a ser definida em outros termos, havendo maior liberdade
em desvelar os corpos. Esse estudo se propõe a analisar o percurso no qual a visão sobre o
corpo teve mudanças significativas e suas influências na sociedade entre o final do século
XIX e inicio do XX. Refletindo sobre as seguintes problemáticas: o que gerou a mudança na
mentalidade e visão do corpo? Como esse era visto no campo religioso?. Para tanto, nos
muniremos dos conceitos utilizados por Mauss (2003), Prost (1992) e as formulações
teóricas de Vigarello (2008), Courtine (2005) dando especial destaque ao valor semiótico das
diversas descrições que esses autores dão ao corpo e ao modo como esse é visto e descrito
na sociedade do século XIX e XX. Utilizaremos como método o estudo qualitativo das fontes
que abordam a temática. Através dessa pesquisa notamos que durante as primeiras décadas
do século XX, não se trava mais apenas de mostrar o corpo, mas também de moldar e
exercitar os mesmo, e isto, vai acontecendo de forma constante durante todo o século. E
assim a sociedade conhece mudanças significativas no modo de se vestir, de se tratar e de
se alimentar.
Introdução
A história do corpo desempenhou durante muito tempo um papel
secundário dentro da historiografia e, no Brasil, ela começa a aparecer com mais
intensidade nas discussões acadêmicas, somente na década de 1990. Quando se
pensou em estudar o período pós-guerra, foram deparadas novas percepções, não
só da sociedade, como também do corpo, e o Brasil não estava alheio a estes
acontecimentos.
Os nossos objetos de pesquisa dentro da historiografia muitas vezes surgem
de achados, de novas fontes, de novas conexões entre as coisas, de comparações,
ou surgem também de insatisfações com os acontecimentos existentes
(ARÓSTEGUI, 2006: 470). Em se tratando da história do corpo, ela desempenhou
um papel secundário durante algum tempo dentro da historiografia, sendo
interpretada muitas vezes simplesmente como um mecanismo. Porém, em fins do
século XIX e início do século XX, a relação entre o indivíduo e seu corpo começou a
ser definida em outros termos, havendo maior liberdade em desvelar os corpos.
*
Mestranda em História-UFRN
Do corpo primitivo à cultura corporal clássica
Desde os primórdios da humanidade, a presença física foi fundamental e
requerida como tributo necessário à sobrevivência da raça. O homem primitivo
precisava de uma intensa participação corporal, essencialmente pelo predomínio
da linguagem gestual como principal meio de expressão e por sua interação com a
natureza. Os fenômenos naturais determinaram as relações sociais do homem
primitivo. Nesse contexto o domínio da natureza se inseriu como base da
organização social.
Não obstante, vale ressaltar que a importância corporal não era somente
concebida comoinstrumento de sobrevivência. O esteticamente belo, a perfeição e a
simetria eram considerados atributos essenciais ao corpo. Até mesmo “as relações
sociais eram construídas e consolidadas pelo corpo” (GONÇALVES, 1994, p. 18).
Nesse sentido, o povo grego como expoente civilizador de sua época instituiu as
competições esportivas como meio da celebração das qualidades corporais. A
presença corporal doutrinava o exercício do poder: o êxito nos torneios esportivos
exercia um enorme fascínio social, chegando a determinar o resultado de guerras e
disputas territoriais. A esse respeito Gonçalves comenta:
Nessas sociedades eram valorizadas as qualidades corporais como força,
destreza e agilidade, não somente em torneios e competições, também eram
importantes para a vida militar e política. Vencer uma competição significava não
somente a compreensão de uma superioridade física, mas muito mais: o
reconhecimento do vencedor como um elemento superior daquela sociedade (1994,
p.18).
As transformações que a estrutura social sofreu nessa fase da história humana
assinalaram a alternância do enaltecimento da guerra e dos valores coletivos para a
valorização do trabalho e do pensamento individual. A nova ordem social provocou
a desintegração dos laços familiares e a desvalorização das qualidades físicas
guerreiras, inutilizadas pela condição de existência já estabelecida: o trabalho
individual. Carlos Herold Junior seguindo a mesma linha de raciocínio complementa
a consideração acima, afirmando:
(...) o coletivismo, coragem, amizade, respeito aos familiares e a terra,
tornaram-se
sentimentos que não mais respondiam a nova forma de ser social,
corporalmente, a força,
destreza, habilidade com as armas e cavalos, tornaram-se adjetivos que
não eram mais
concretizados pelas novas sociedades (1997, p. 8).
O Olhar O Corpo
Durante as primeiras décadas do século XX, não se trava mais apenas de
mostrar o corpo, mas também de moldar e exercitar os mesmo, e isto, vai
acontecendo de forma constante durante todo o século. O culto ao corpo surge
como uma manifestação do primado da vida privada individual. Na burguesia a
aparência física contava muito, mas não se mostrava o corpo. A tradição cristã
envolvia o corpo em suspeita e censura, ele merecia respeito, mas o excesso de
atenção era expor ao pecado. A higiene, portanto era muito restrita: a água
amolecia o corpo, portanto a sujeira era sinal de saúde. Lavar o corpo todo ainda
não fazia parte dos cuidados higiênicos normais. O entre guerras é para a
burguesia uma época de libertação do corpo e de outra relação com o físico e as
roupas. As roupas se encurtam e as meias valorizam as pernas. A aparência física
passa a depender do próprio corpo por isso é preciso cuidar dele. Surge uma nova
preocupação a de se manter sedutora entre as mulheres.
As refeições se tornam mais leves. Tanto homens como mulheres começam
a praticar exercícios físicos, por surgirem oportunidades de mostrar o corpo.
Crescem a procura por esportes individuais. A reabilitação do corpo certamente
constitui um dos aspectos mais importantes da vida privada. Vemos a valorização
por exercícios físicos que tem como fim o próprio corpo sua aparência e bem-estar.
Tratar o corpo assume um lugar importante na vida privada. Mostra-se cada vez
mais o corpo ele não é apenas assumido e reabilitado, mas também reivindicado e
exposto à visão de todos. O corpo se tornou o lugar da identidade pessoal.
Tudo que ameaça o corpo se reveste de uma gravidade inédita. A
sensibilidade da violência aumenta. As ameaças da idade e das doenças preocupam
e o cuidado pelo corpo aumenta. A norma social dita à aparência jovem, as pessoas
não querem mais envelhecer. A morte não é vista mais como algo normal. Viver se
torna um direito. A saúde se torna uma preocupação constante. O Estado começa a
intervir por causa da saúde pública, as vacinas passam a ser obrigatórias. O Estado
torna a medicina acessível a todos. O hospital se torna um refúgio para os doentes.
Assim, o cuidado com o corpo sai do espaço privado para o público. As pessoas
passam a nascer e a morrer num mesmo local, o hospital.
No fim da década de 60, houve alguns movimentos que trouxeram consigo
um desempenho novo para o corpo, seus primeiros papéis foram nos movimentos
individualistas e igualitaristas “de protesto contra o peso das hierarquias culturais,
políticas e sociais, herdadas do passado”. As aspirações na esfera do individualismo
colocaram o corpo no centro de discussões culturais, transformando assim a sua
existência como objeto de pensamento. Desde então, ele traz consigo marcas de
gênero, classe ou de origem, e isto não pode mais ser apagado, quando se pensa
no corpo (CORBIN; et all, 2008: 7-8-9).
Um exemplo dentro da análise de gênero, pensando o âmbito da
masculinidade, é que durante a primeira metade do século XIX, a imagem do corpo
masculino se modifica e tomam outras formas, o homem romântico começa a ser
substituído pela potência muscular. Após este período, as atitudes americanas
perante os exercícios físicos, assim como sua percepção das formas corporais
ideais, vão mudar de modo significativo. É imposta a ideia de que os americanos
podem e devem transformar de modo ativo suas formas e modelos corporais
(COURTINE, 2005: 90-91). Esta mudança de pensamento com relação ao corpo
masculino não se aterá apenas aos Estados Unidos; no Brasil, no início do século
XX, o Rio de Janeiro começa um processo onde a cultura do corpo ganha lugar e o
homem romântico e erudito perde espaço para esta nova percepção masculina.
“Na construção da masculinidade, o homem passa por experiências que lhe
ensinam o que significa desempenhar seu papel. O masculino como categoria serve
para identificar comportamentos, e configurações em um campo de
representações” (NOLASCO apud MATOS, 2000: 27). Estas experiências explicam
muitas vezes comportamentos adotados pelos homens de determinado período. O
masculino durante muito tempo assume o papel principal em vários âmbitos da
sociedade, mas isto não quer dizer que as mulheres estavam alheias a este
processo. Pensando em um modelo familiar e social dominante na época de 1945 a
1964, período que engloba os anos deste estudo, a distinção entre gêneros divide a
autoridade: ao homem cabe o poder sobre as mulheres, ele era considerado “chefe
da casa”, responsável pelo sustento da esposa e do lar. Estas relações são
propostas por um conjunto de normas sociais do período, mas “aparecem em
termos de representações como naturais, desistoricisadas e válidas para todas as
classes” (BASSANEZI: 8).
A masculinidade é um ponto importante para entendermos o remo e as
posturas adotadas pelos remadores, pois de certa forma era no esporte onde se
podia extravasar as posturas e impor certa masculinidade nos gestos. No caso do
Remo, questão central neste trabalho, sua característica até pouco tempo atrás, era
de um esporte caracterizado pelo predomínio masculino. Na atualidade, os esportes
comportam integrantes femininos, porém na década de 1950, ele era um esporte
destinado aos homens. Devido a isto, que esta pesquisa se utiliza da masculinidade
como recorte de gênero para estudar o esporte de regatas.
O Esporte E O Remo
O termo Sport já era presente nos meios de comunicação do Rio de Janeiro
no século XIX, e neste período deve-se entender a diversidade deste termo, pois
neste escritos, a tourada, a patinação, o boxe, os primórdios do atletismo, enfim,
estas práticas esportivas tão díspares, que envolveram até mesmo banhos de mar,
eram assim considerados como “Sport” (MELO, 2001: 27). Os esportes modernos
como conhecemos na contemporaneidade diferem dos antigos “não apenas por
introduzir a noção de recorde, mas fundamentalmente no que se refere aos
respectivos „cimentos sociais e a concepção de corpo associada às tendências
dominantes nos respectivos modos de produção” Os esportes nascem na sociedade
industrial e são inseparáveis de suas estruturas e funcionamento (PRONI, 2002:
37). Uma mudança significativa que pode ser considerada está relacionada ao
desempenho, pois cada vez mais o esporte é medido e cronometrado, buscando
superar as marcas e potência dos corpos.
No século XIX, as preocupações em moldar o corpo através de instrumentos
corretores são deixadas de lado, a pedagogia esportiva buscava exercitar o corpo
para que ele fosse moldado e aperfeiçoado, melhorando as formas corporais e os
músculos. “Aqui também se especializam os aparelhos sobre os quais devem se
aplicar as forças previamente medidas, orientadas e contabilizadas” (VIGARELLO,
2005: 30). Estas pedagogias, que buscavam o rigor e precisão de cada evolução do
corpo, constituem-se em materiais que se encarregam de normalizar o trabalho:
pesos, bastões, sistemas de apoio e sustentações, e vários outros utensílios
especializados capazes de promover e guiar as forças. É a evolução deste tipo de
aparelhagem corretiva que melhor representa as visões de um treinamento novo,
em que o corpo pode se tornar ele mesmo um instrumento e que este período irá
formalizar (VIGARELLO, 2005: 31). Além deste tipo de aparelhagem, o próprio
corpo é condicionado e pensado com parte do esporte. No caso do remo ele é
pensado e moldado para o melhor desempenho da prática esportiva, porém antes
disso, falemos da história deste esporte.
O Remo no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, tem seus
remanescentes na metade do século XIX, com as primeiras corridas de canoa. As
mudanças significativas no que se refere a ocupação e utilização do mar e das
praias, passam a ser utilizadas para atividades de lazer, como piqueniques. É neste
momento que as primeiras corridas de canoa surgem, e vão se configurando ao
longo dos anos (MELO, 2001: 46-47). É claro que esta prática teve inicio também
no Rio Grande do sul, em finais do século XIX, e em São Paulo. A escolha do Rio de
Janeiro como o marco inicial do remo nesta pesquisa ocorre em função dos
registros das primeiras corridas de canoa serem nesta cidade e da difusão do remo
e da cultura do culto ao corpo no Brasil que se configura com o surgimento dos
clubes de regatas, com maior representatividade no Rio de Janeiro neste período.
O Rio possuiu uma experiência diferenciada de São Paulo, isto se deve em
parte ao processo de crescimento da cidade, que é bastante diferenciado do Rio de
Janeiro (MELO, 2001: 128). Além disso, a utilização do mar começa a se configurar
com o recuo ao pudor, que vai ganhando força já no início do século XIX e alavanca
seu processo com o século XX. Foi necessário superar a barreira de algumas
tradições seculares como a proibição de mostrar as pernas, proibição de urinar em
público, “a fim de não despertar pensamentos pecaminosos em relação a moral
religiosa. O corpo, no entanto, vai progressivamente se desvelar sob o efeito
combinado da moda e do turismo balneário” (SOHN, 2008: 110). O maiô é um
exemplo dos „progressos . Além disso, transformando-se na década de 1930 em
um lugar de ócio e de lazer, a praia, ainda por cima, convida a expor o corpo
desnudo para apresentar um bronzeado perfeito, símbolo agora de boas férias.
Esse desvelar que os corpos começaram a ter em público sofre um impacto
também na vida privada, acentuando uma dimensão mais sexuada, a nudez
começa a ser naturalmente desenvolvida nas relações íntimas. Desde então, os
homens e mulheres não podem mais disfarçar com seus corpos, os cânones de
beleza física se mostram muito exigentes. O recuo do pudor implica em um novo
trabalho sobre o corpo entre musculação e dietas para o emagrecimento, mas o
pudor oficial obedece a regras estritas até os anos de 1950, e a publicidade
também não se demora a liberar (SOHN, 2008: 110 – 111).
O Rio de Janeiro é palco para grandes transformações do corpo, devido a
sua experiência com o mar e a utilização dele para atividade de lazer e esportes, e
em Blumenau, embora o mar não tenha influências como na capital carioca,o remo
é uma pratica muito difundida, e tem início nas primeiras décadas do século XX.
Pensar no corpo destes esportistas na década de 1950 é importante para
analisarmos os corpos e suas posturas e entendermos como este esporte influencia
nas posturas corporais de seus atletas. Um mecanismo utilizado pelas equipes para
competição eram as Provas de Regata.
Referências
ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru: São Paulo:
Edusc, 2006, p.470.
BASSANEZI In CUNHA, Jorge Luiz da et all.Cartas de Homens: o discurso sobre
a masculinidade na seção “Da mulher para a mulher” na década de 50. In:
WWW.histedbr.fae.unicamp.br/acer_histedbr/seminário/seminário8/_files/hden92k
g.do. Acessado em 27 de outubro de 2010.
BORGES, Maria Eliza Linhares. História e Fotografia. Belo Horizonte: Autêntica,
2008. P. 37- 40.
COURTINE In, SANT ANNA, Denise Bernuzzi (org). Políticas do corpo: elementos
para uma história das práticas corporais. 2ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2005.
DAOLIO, Jocimar. A Cultura do corpo. Campinas: Papirus, 1995.
DUBY, Georges. A Idade Média na França . Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
ECO, Humberto. Arte e Beleza na Estética na Estética Medieval. Rio de Janeiro:
Editora Globo, 1993.
GALLO, Sílvio (org). Ética e Cidadania: caminhos da Filosofia. Campinas: Papirus
, 1997.
GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 1999.
GONÇALVES, Maria Augusta Salin. Sentir, Pensar, Agir, Corporeidade e Educ
ação. Campinas: Papirus,
1994.
HEROLD, Carlos Junior. Do corpo treinado pela necessidade à necessidade do trei
no: uma análise histórica docorpo no processo de construção da antiga sociedade g
rega. Revista da Educação Física. Maringá, v.8, 1997.
HOBSBAWM, Eric J. A era do capital, 1848-
1875. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996.
KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê
Editora. 2002.
LENHARO, Alcir. Sacralização da política. Campinas, São Paulo: Papirus, 1986.
MATOS, Maria Izilda dos Santos. Meu lar é o botequim: alcoolismo e
masculinidade. São Paulo: Companhia editora Nacional, 2000.
MELO, Victor Andrade de. Cidade esportiva: primórdios do esporte no Rio de
Janeiro. 2001.
PRONI, Marcelo. Brohm e a organização capitalista do esporte. In: PRONI, Marcelo.
Esporte: história e sociedade. Campinas: Autores associados, 2002.
RIAL In PEDRO, Joana Maria; GROSSI, Miriam Pilla. Masculino, feminino, plural:
gênero e interdisciplinaridade. Florianópolis: Editora Mulheres, 1998.
SANT ANNA In BUENO, Maria Lúcia; CASTRO, Ana Lucia de. (org.) Corpo
território da cultura. São Paulo: Anna blume, 2005.
SOHN In CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História
do corpo: as mutações do olhar, o século XX. Petrópolis: Rio de Janeiro: Vozes,
2008.
VIGARELLO In CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges.
História do corpo: as mutações do olhar, o século XX. Petrópolis: Rio de Janeiro:
Vozes, 2008.
VIGARELLO In SANT ANNA, Denise Bernuzzi (org). Políticas do corpo: elementos
para uma história das práticas corporais. 2ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2005.
Rabindranath Tagore: tradição e modernidade no pensamento indiano e em
diálogo com Cecília Meireles
1
Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), doutoranda em Letras pela Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP/Assis) e bolsista junto à Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
(viajou para muitos países, por exemplo, aos EUA e à China) pessoalmente e em
texto, ao mesmo tempo em que foi exposto a toda um repertório de literatura, de
Shakespeare à literatura sânscrita milenar, lhe imbuindo de um acervo tanto clássico
como contemporâneo, diverso em forma e gênero, o que lhe possibilitaria sua própria
produção tão vasta e variada; 2) pior, por ter sido exposto à educação nos moldes
ocidentais que se limitam a disciplinar o corpo e a mente, emprisionando a
imaginação, impondo a violência da punição física, castrando a liberdade que só o
conhecimento é capaz de proporcionar, num sistema educacional muito diferente
daquele praticado na Índia tradicional vislumbrado por ele na literatura. Dessa forma,
se a educação lhe proporcionou os subsídios necessários para se tornar um homem do
mundo, apto a se comunicar com pessoas das mais diferentes culturas, classes,
etnias, etc., ela também lhe ensinou a duras penas sobre suas deficiências, as quais o
motivaria a instituir sua própria escola, a Santiniketan (hoje, Patha Bhavana), e, mais
tarde, uma universidade, a Visva Bharati.
Por outro lado, seu nascimento lhe proporcionou um local privilegiado como
observatório da sua contemporaneidade e, assim, agente chave, posteriormente, no
campo da arte, da educação, da política, da ciência e da religião, tanto na Índia, como
em outras partes do mundo, como ícone de visão abrangente e sabedoria do seu
tempo.
Sua posição exaltada se confirmou pelos convites para viagens e palestras nos
mais diversos cantos do Ocidente (EUA, Inglaterra, França, Suíça, Alemanha, Áustria,
Tchecoslováquia, Holanda e América do Sul) e do Oriente (China e Japão), pela
tradução de sua obra para diversos idiomas, e, especialmente, sua condecoração com
o Prêmio Nobel para a Literatura, em 1913, a concessão do título de cavaleiro (Sir)
pela coroa britânica, em 1915, e o de Doctor Honoris Causa pela Universidade de
Oxford, em 1940.
Para Dr. Girija K. Mookerjee, Tagore foi inegavelmente, “entre os pensadores
sociais do século XX, um dos mais lúcidos e penetrantes” (1962, p. 39), cuja
“evolução mental e espiritual não se poderia, sem dúvida, realizar no vácuo, nem
tampouco inteiramente fora das correntes sociais e políticas do meio e do tempo em
que lhe foi dado viver” (Idem, p. 40).
Nesta perspectiva, Tagore foi instruído com o conhecimento tradicional indiano
e com o conhecimento ocidental advindo com a dominação britânica sobre a Índia, o
moldando de forma a, igualmente ao pai e ao avô príncipe, “sentir-se o representante
da consciência nova que o povo indiano começava a adquirir, [neste caso] graças ao
2
O termo sânscrito veda se origina da raiz VID que significa conhecer, saber. Os Vedas são o compêndio
textual da Índia antiga que contém todo conhecimento destinado à humanidade, abrangendo metafísica,
choque e à pressão das ideias da sociedade ocidental, mais dinâmica, mais tecnológica
e mais adiantada que o seu próprio sistema social” (Mookerjee, 1962, p. 41).
O ambiente intelectual, político e religioso em que viveu foi de muitas
mudanças e agitações. Primeiramente, ele cresceu no cerne do movimento revivalista
hindu sob a liderança de Raja Rammohan Roy (cf. Sen, 2010, p. 60). Paralelamente a
movimentos como o de Pandit Iswar Chandra Vidyasagar e Sri Ramkrishna
Paramahansa, ou do ortodoxo Prarthana Samaj e do Arya Samaj, Raja Rammohan
Roy, conhecido como o pai da Índia moderna, fundou o Brahmo Samaj, em 1828, com
total apoio do pai de Tagore, Debendranath Tagore.
Esses movimentos hindus tinham como missão repensar e resgatar a tradição
indiana, como antítese da dominação e do processo de aculturação exercidos pela
coroa britânica na Índia. O Brahmo Samaj, por sua vez, se apresentou como um
movimento que almejava restabelecer o monoteísmo upanishádico e rechaçar a
idolatria hindu.
Como rotina familiar, o pai de Tagore estabeleceu a prática de recitação dos
antigos textos das Upanishads e outros textos sânscritos. Além disso, aos 23 anos,
Tagore foi indicado como secretário do Brahmo Samaj, dentre cujas atividades se
encontrava responder a artigos de outros hindus que criticavam a religião deste
movimento (cf. Sen, 2010, p. 60). Uma das principais críticas de Tagore contra o
hinduísmo ortodoxo se voltavam às proibições, aos tabus, principalmente relacionados
ao sistema de castas.
A religião de Tagore
Como tentamos demonstrar pela breve biografia com dados selecionados por
nós, Tagore foi um indivíduo do seu tempo, o viveu e por ele foi fomentado. Em suas
memórias, há uma recorrente asseveração de que foi educado por seu pai para ser
autônomo intelectual e religiosamente. Além disso, seu senso e necessidade por
liberdade sempre foi a pedra de toque da sua própria personalidade. Seus embates
com o sistema educacional em que foi inserido, seu debate com e posterior
atualização do Brahmo Samaj estão relacionados com sua postura autônoma, com sua
fé na liberdade humana, como direito, característica e necessidade de toda e qualquer
pessoa.
Neste sentido, poderíamos dizer que Tagore autonomamente formulou e
praticou sua própria religião: uma síntese de tudo a que foi exposto, mais o exemplo e
ensinamentos de seu culto pai e uma seleção daquilo que presenciou numa época um
Fazendo uso de sua independência, Tagore, a partir dos 50 anos, recriará sua
religião. Sua religião seria guiada pelo objetivo de união entre as pessoas; se
apresentaria como um humanismo, uma religião da humanidade, uma religião do
homem (Cf. Sen, 1962, p. 63). Para Sen, essa religião tagoreana se formularia a
partir de uma seleção de preceitos de diversas religiões e suas escrituras: em
Santiniketan, ele organizou ou produziu a tradução de textos emblemáticos, como a
de um livro sufista, um texto sobre devoção budista, o Bouddhadharme Bhaktivada,
ambas publicadas no Tattvabodhini Patrika (publicação organizada pelo poeta), assim
como a do volume de Doha do sufista Kabir. Sen resumidamente nos fala mais da
seleção de Tagore:
Vê-se aqui um esboço de religião norteada por um ecletismo seletivo que busca
na ortodoxia védica (os Vedas sendo o primeiro extrato de literatura sânscrita
conhecido) os pressupostos que convergiriam para uma religião do homem, ou seja,
uma religião que permitisse ao homem a interação e realização do divino por meio do
contato, da relação para, com o mundo, e não pela renúncia deste. Sen acrescenta
outras adições:
Esse elogia à harmonia para com a natureza, a integração integral com ela,
com via de ascensão, de autorrealização espiritual, estará expressa no projeto
educacional (na própria estrutura da escola, cujas aulas são feitas embaixo das copas
das árvores), no seu estilo de vida e, principalmente, na obra de Tagore: “A vida
universal palpita em redor do poeta, deixando subir para o céu um hino à criação”
(Idem, p. 61).
Nesta perspectiva, reiteramos o comentário de Cecília Meireles sobre a obra
tagoreana citado aqui no início deste artigo: “tudo converge para um fim superior, na
obra de Tagore. É uma obra educativa, sem nenhuma aparência ou intenção didática”
(Meireles, 1980, p. 165).
Não há distinção entre as atividades de Tagore, tudo serve a esse fim superior:
3
Encenação que contou com a filha de Cecília, Maria Fernanda, no elenco, no papel do protagonista, o
menino Amal.
4
Victoria Ocampo hospedou Tagore em Buenos Aires, durante sua viagem à América do Sul, em novembro
de 1924 (cf. SILVA, 2012, p. 05).
5
Poema publicado na revista Para todos (Rio de Janeiro, n. 262, p. 49, 22 dez. 1923), conforme declaração
realizada por Dilip Loundo (informação verbal, em maio de 2012, apud SILVA, 2012, p. 05).
Cecília nos revela que, se poetas como Tasso da Silveira, Murilo Araujo,
Francisco Karam e Emílio Moura “apresentam em seus versos afinidades com a
sensibilidade do grande poeta da Índia”, da sua parte, “ou pelo contacto que desde
cedo mantínhamos com estudos orientais, ou por qualquer disposição peculiar,
freqüentemente eliminamos algum rascunho em que porventura descobríssemos eco
ou reminiscência de Tagore” (Meireles, 1961, p. 03). Por essa asseveração, nota-se o
profundo e longo diálogo entre Cecília e Tagore, a ponto dessa voz oriental ressoar em
seus próprios escritos: um doce eco do que a inspirou, a cativou de modo a fazer
parte de seu pensamento e, então, trespassar em sua própria produção.
Só podemos cogitar as emoções de Cecília e se deparar com alguém que,
primeiramente, teve uma infância em “silêncio e solidão” que serviu como vale
encantado onde suas primeiras experiências líricas se manifestam. Essa infância
mágica, iniciatória é aquela cantada, por exemplo, na seção “Dias felizes”, de Mar
Absoluto e outros poemas, em “Papeis”, de Dispersos, e em Olhinhos de Gato. A
infância em que o tapete oriental sobre o qual ouvia histórias de um tempo e local
longínquos, as louças que lhe inspiravam anedotas, os livros que foram desde sempre
lúdicos e exerceram fascínio sobre ela, os seres diminutos que lhe ensinaram a
imensidão da vida dispersa, a transitoriedade e a compaixão – tudo que
posteriormente fluiria dela em lírica, em recordação amorosa.
Semelhantemente Tagore, em suas memórias, nos conta, entre outras coisas,
que ao aprender a ler a primeira frase, “A chuva crepita e a folha palpita”, teve seu
primeiro encantamento poético: “Quando penso no prazer que essas palavras me
causaram, compreendo o papel que a rima representa na poesia” (Meireles, 1961,
s/p). Ou que, ao ouvir histórias, “o que prendia o pequeno ouvinte, o que lhe sugeria
imagens maravilhosas, era breve música das rimas e o sortilégio do ritmo embalador”.
Sua infância solitária e silenciosas foi aquela em que, enclausurado num círculo
de giz feito por um servo, em um cômodo da casa, passava os dias observando um
lago e seus visitantes banhistas, as variações da luz, das estações, das plantas:
Vê-se como o ócio contemplativo permitiu que o pequeno Tagore acionasse sua
imaginação e criasse mundos, personagens e eventos que mais tarde povoariam sua
produção tão diversa.
Cecília, semelhantemente, em Olhinhos de Gato, observa, escuta, cria:
V
Mas por que sempre lembrar essas coisas longínquas?
A verdade, porém, é que há uns dias inesquecíveis,
uns fatos inesquecíveis, dentro de nós.
Tudo o mais, que vivemos, gira em redor deles.
Toda uma vida se reduz, afinal, a umas poucas emoções,
por muitos anos que vivamos,
apesar de viagens, experiências, realizações, sonhos, saber...
Vivemos tudo – o humano e universal –
nuns pequenos instantes, obscuros e essenciais.
Setembro, 1955
(“Papéis”)
Nesses versos, como em muitas outras poesias, Cecília apresenta uma lírica
nos moldes teóricos de Staiger: sua poesia surge de uma inspiração subjetiva, senão
biográfica; de uma recordação. A recordação emerge de um sentimento, uma emoção
recorrente, a se dá novamente e, então, “um acontecimento passado de há muito
torna-se subitamente perceptível; o coração bate e finalmente a recordação instiga a
memória [...]” (1975, p. 56): “Todo os dias assim, de chuvinha fina,/penso em velhas
cenas da infância”.
Para ele, a criação lírica é íntima: “A lírica deve mostrar o reflexo das coisas e
dos acontecimentos na consciência individual” (Idem, p. 57): “Tudo isso vem à minha
memória, como visitantes inesperados”. Na recordação (e na lírica) não há
distanciamento entre o eu e a coisa rememorada (“um-no-outro”), apenas o intervalo
temporal entre o evento e o momento da inspiração. Porém, ao celebrar um momento
novamente, nem mesmo o tempo existe: torna-se o evento aquele que retorna e é,
assim, revivido; torna-se o sempre presente: “Mas por que sempre lembrar essas
coisas longínquas?/A verdade, porém, é que há uns dias inesquecíveis, /uns fatos
inesquecíveis, dentro de nós./Tudo o mais, que vivemos, gira em redor deles”.
Dessa forma, pensamos ser uma limitação na análise da poética ceciliana,
principalmente ao se tratar de poemas mais líricos, isto é, mais subjetivos ou
autobiográficos, acatar a dicotomia entre o eu poético, a pessoa de Cecília, e o eu-
lírico.
Isso não nos parece se reservar apenas à Cecília, mas a Tagore também. De
forma semelhante, em ambas produções pode-se puxar fios entre relatos (eventos)
em textos em prosa (crônicas, memórias, cartas) e poemas: raptos afetivos
transfigurados em palavra; são momentos consagrados pela recordação – “[...] o
êxito de uma festa depende mais do que nos vem do coração, do que de fatores
externos”, nos adverte Tagore em suas memórias (Meireles, 1961, s/p).
Mas para se tornar matéria recordatória de textos futuros, os momentos
precisam ser apreendidos, recolhidos e, como temos visto até aqui, esse levantamento
involuntário, inconsciente de instantes consagrados, como dia Octávio Paz (1996), é
realizado predominantemente pelo sentido da visão, pela contemplação. É relevante
observar aqui que algo tipicamente oriental quanto a isso parece ser comum em
Cecília e Tagore: a contemplação irrestrita da vida, a neutra absorção dos eventos
independente de sua natureza positiva ou negativa. Para Loundo:
6
“A pluralidade dos assuntos diz bem do interesse humano da autora e contraria juízos nem sempre
decorrentes de acurado exame da obra poética; do mesmo modo, as mais humildes manifestações da vida, os
seres mais diminutos, os episódios mais singelos são motivo de elevada reflexão por parte de quem,
sustentado por exigente filosofia, busca em tudo uma lição de vida” (DAMASCENO, 1983, p. 16).
Apreendendo isto, jamais cairás em ilusão, ó Pandava. Por isto
verás que, sem exceção, todos os seres repousam no Eu
[Atman], e, portanto, em mim [Pessoa Suprema] (BG 4.35).7
Não há mais nada superior a mim, ó Mahabaho. Sobre mim,
todo o universo repousa, como pérolas encetadas em um
cordão (BG 7.7).
Eu sou morte, que tudo aniquila, e sou o início de tudo que há
de existir (BG 10.34)
Este princípio implica ver todos os seres, toda manifestação material, toda
partícula atômica como sagrados, e, ao mesmo tempo, como pessoal, individual,
singular: tudo é um e ao mesmo tempo único. Tagore explica isso apresentando um
analogia entre o conhecimento das ciências naturais e o filosófico oriental: para o
primeiro, o importante é encontra um princípio impessoal de unificação, ou seja,
busca-se generalizações simplificadoras, como as categorias e espécies, enquanto
que, na filosofia oriental (e, por conseguinte, na arte por meio da visão de mundo),
busca-se a particularidade, a personalidade, a alma das coisas. Mais especificamente,
quanto ao pensamento:
7
As citações da Bhagavad-gita serão feitas do seguinte volume em inglês, com traduções nossas para o
português: BHAGAVAD-GITA (The beloved Lord’s Secret Love Song). Translation Graham M Schweig.
New York: HarperCollins Publ., 2007.
Visto as afinidades, coincidências e convívio afetuoso da Cecília para com
Tagore, nos é notória a inter-relação dos pensamentos e preceitos especialmente
quanto à educação e à arte (à literatura, mais especificamente) do “Sol” e da “Pastora
das nuvens”.
Referências Bibliográficas
ALBERT-ROULHAC, Georges. Sua vida e sua obra. In: TAGORE, Rabindranath.
Çaturanga. Tradução e apresentação Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Delta, 1962, p.
53-76.
BHAGAVAD-GITA (The beloved Lord’s Secret Love Song). Translation Graham M.
Schweig. New York: HarperCollins Publ., 2007.
BLOCH, Pedro. Cecília Meireles. In: Revista Manchete, Rio de Janeiro, n. 630,
16/05/1964, p. 34-37.
DAMASCENO, Darcy. Cecília Meireles: o mundo contemplado. Rio de Janeiro: Orfeu,
1967.
______. Poesia do sensível e do imaginário. In: MEIRELES, Cecília. Flor de poemas.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p. 09-40.
GOUVÊA, Leila C. V.-B. Pensamento e “lirismo puro” na poesia de Cecília Meireles. São
Paulo: Edusp, 2008.
LOUNDO, Dilip. Cecília Meireles e a Índia: viagem e meditação poética. In: GOUVÊA,
Leila V. B. (org.). Ensaios sobre Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas, 2007, p. 129-
178.
MEIRELES, Cecília. O que se diz e o que se entende. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1980.
MOOKERJEE, Girija K. Ensaio sobre Rabindranath Tagore. In: TAGORE, Rabindranath.
Çaturanga. Tradução e apresentação Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Delta, 1962, p.
39-52.
PAZ, Octávio. Signos em Rotação. 3ª ed. São Paulo: Ed. Perspectiva S. A., 1996.
SEN, Sabujkoli. A religião de Tagore. In: Índia perspectivas, vol. 24, n. 2/2010, p. 60-
65.
SILVA, Jacicarla Souza da. Cecília Meireles e Victoria Ocampo: (des)encontros no Cone
Sul. 2º CIELLI - Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários/ 5º CELLI -
Colóquio de Estudos Linguísticos e Literários [recurso eletrônico] / coordenação geral
Alice Áurea Penteado Martha. Maringá: UEM-PLE, 2012. Disponível em:
http://anais2012.cielli.com.br/pdf_trabalhos/721_arq_1.pdf. Acessado em fev. 2013.
SMITH, Huston. As religiões do mundo. Nossas Grandes Tradições de Sabedoria.
Tradução Merle Scoss. São Paulo: Cultrix, 2001.
TAGORE, Rabindranath. Meditações. Tradução Ivo Storniolo. São Paulo: Idéias &
Letras, 2007.
1
Resumo
Abstract
1
Mestre em Antropologia Social pela UFRN e docente da Faculdade de Excelência Educacional do Rio Grande
do Norte (FATERN) e da Faculdade de Natal (FAL).
2
A Igreja Pentecostal Deus é Amor será citada, a partir de agora, por meio da sigla “IPDA”, adotada pela própria
instituição.
2
O termo “pentecostalismo” tem sua origem numa festa religiosa anual judaica
designada de Pentecoste ou Festa das Semanas, que ocorria cinquenta dias após a
Páscoa, para comemorar a colheita dos cereais. A partir da Diáspora (dispersão dos
judeus da Palestina para outras partes do mundo) essa festividade passou a memorar o
recebimento do Decálogo ou da Torah (CHAMPLIN; BENTES, 1991, p.202). Já para os
cristãos pentecostais, tal celebração tornou-se o marco histórico da descida do Espírito
Santo sobre a igreja e da manifestação dos dons de glossolalia (o “falar em línguas”
estranhas), em cumprimento à palavra de Cristo.
O pentecostalismo foi a última expressão “protestante” a se instalar no Brasil.
Freston (1993, p.64-95) identifica basicamente três ondas ou fases distintas dessa
implantação. A primeira, conhecida como pentecostalismo clássico, compreendida entre
1910-1950, coincidiu com a expansão mundial do pentecostalismo e caracterizou-se pela
ênfase na glossolalia. Neste período surgiram: a Congregação Cristã do Brasil (1910); a
Missão da Fé Apostólica, que seis anos e meio depois (1918) mudou seu nome para
Assembleia de Deus e a Igreja de Cristo no Brasil (1932). A segunda fase, entre 1950 e
1970, distinguiu-se da anterior por estar centrada na cura. Passados mais de quarenta
anos, surgiram mais três grandes grupos pentecostais: a Igreja do Evangelho
Quadrangular (1951), a Igreja Evangélica Pentecostal o Brasil para Cristo (1955) e,
finalmente, a Igreja Pentecostal Deus é Amor (03 de junho de 1962), sendo esta a mais
rígida de todas, tendo como fundador o paranaense David Martins Miranda. A última fase
de expansão pentecostal, também nomeada de neopentecostal ou de pentecostalismo
autônomo3, iniciou-se no final dos anos 70, crescendo e se fortalecendo no decorrer das
décadas de 80 e 90, cuja ênfase estava centrada no exorcismo (ou na libertação das
forças malignas), reclamando, igualmente, um lugar para o fiel no mundo do consumo de
“bens místicos”4 e materiais, evidenciado em sua teologia da prosperidade5 (surgindo no
fundamento ético desta nova fase). A partir deste período, destacam-se a Igreja
Universal do Reino de Deus (1977) e a Igreja Internacional da Graça de Deus (1980)6.
Souza (2004, p.20-21) corrobora com Freston ao declarar:
3
Neopentecostalismo foi um termo empregado por Mendonça e Mariano, e pentecostalismo autônomo utilizado
pelo Centro Ecumênico de Documentação Informação – CEDI (apud CAMPOS, 1999, p.51). Ainda sobre o
Neopentecostalismo, Mariano (1999, p.33) declara que o prefixo “neo mostra-se apropriado [...] por remeter à
sua formação recente como ao [seu] caráter inovador”.
4
Lembrando o conceito de “mercado de bens simbólicos”, desenvolvido por Bourdieu (1996, p.157-197).
5
A teologia da prosperidade também pode ser denominada de “ideologia do sucesso”, na qual o fiel busca a
superação dos males e uma vida melhor não no além (no céu), mas no aquém (na terra, no aqui e agora). “O que
interessa é a vida antes da morte, neste mundo. O que se busca é a ‘bênção’. Deus é o poder mágico que, se
corretamente manipulado, conserta os estragos que o Diabo faz na vida de cada um” (ALVES, 2005, p.12).
6
Uma relevante informação diz respeito à produção intelectual na América Latina sobre pentecostalismo e
carismatismo, apresentado por Campos (1999, p.32). Antes de 1950 existiam apenas treze pesquisas; na década
de 70 já eram 191; e entre as décadas de 80 e 90 o número saltou para 457 trabalhos acadêmicos, decorrentes da
importância e visibilidade social de tal fenômeno.
3
Segundo a própria IPDA, atualmente, ela conta com mais de 11 mil igrejas
espalhadas pelo Brasil e em mais de 136 países. Em 01 de janeiro de 2004, a referida
igreja inaugurou, na capital paulista, a sua Sede Mundial, denominada de “Templo da
Glória de Deus”, com capacidade para mais de 60 mil pessoas. Seus principais meios de
comunicação são o rádio, com a programação intitulada de “Voz da Libertação”
(possuindo grande penetração entre as comunidades mais carentes) e a internet; já o
uso da televisão é terminantemente proibido. A face pública da IPDA, ainda, granjeia
notoriedade através dos seus projetos sociais, via Fundação Reviver (1994); a
instituição, também, iniciou o Projeto Anjos da Madrugada (1999) – assistindo moradores
de rua – e mantém o Projeto Aldeia Reviver (2000), onde abriga crianças desamparadas.
Porém, é a sua moralista e ascética visão doutrinária que aguça profundamente a
atenção, mormente, no que tange aos preceitos ligados à santificação do corpo e, por
seu turno, às decorrências desta noção sobre a elaboração da honra de seus fiéis. É a
partir destes ensinamentos que a presente reflexão se desenvolve.
Por outro lado, as igrejas da segunda fase (como no caso da IPDA) optaram,
prioritariamente, pela repressão do corpo – concebida como sinônimo de santificação8.
Então, o corpo continua desprezível por ser o receptáculo e o portador “de toda sorte de
males, o espaço da transgressão por excelência” (SOUZA, 2004, p.81). Ainda que a
terceira fase do pentecostalismo esteja em plena efervescência – tendo como
representante máximo a conhecida e polêmica Igreja Universal do Reino de Deus (IURD)
– os efeitos da segunda fase ainda caminham concomitantes, isto é, conservam-se
cristalizados e patentes no ethos religioso da IPDA. Noutros termos, a sua liderança
eclesiástica continua doutrinando o fiel a estabelecer uma relação de conflito e rejeição
ao próprio corpo frente ao mundo “carnal e pecaminoso”. Então, como o “corpo nada
mais [representa] do que um problema [...] a melhor maneira de resolvê-lo [é] mantê-lo
sob permanente disciplina” (SOUZA, 2004, p.81). Enquanto no pentecostalismo mais
recente há uma revalorização do corpo, na fase intermediária ele continua suspeito e
hostilizado. Inclusive, Cavalcanti (2008, p.48) ressalta que essa oposição tem uma
origem mais antiga:
7
Por exemplo, Freston apud César (2000, p.141,142) destaca que “vários elementos do culto da [IPDA] são
antecipações da Igreja Universal do Reino de Deus”: “as obreiras uniformizadas, os exorcismos na frente, as
entrevistas com os demônios”, dentre outros.
8
Esta questão será discutida adiante.
4
9
Tema não menos controverso para as Ciências Sociais. No que respeita ao propósito deste paper, cabe aqui a
elucidação de que essa proposição está intimamente ligada ao pensamento cristão.
10
No tocante às discussões bíblico-teológicas, ver as cartas atribuídas ao apóstolo Paulo: 1ª. Coríntios 7 e
Gálatas 5 – que discutem a noção cristã de “carne” (sarx). BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução: João
Ferreira de Almeida. Deerfield, EUA: Vida, 1995.
5
De repente, uma voz se fez ouvir [...] “Meu servo não temas as
lutas, pois te escolhi e grande obra tenho a fazer por teu
intermédio. Muitos se levantaram contra ti, mas não prevalecerão.
Aqueles que forem contigo, Eu serei com eles, mas aqueles que
forem contra ti, Eu serei contra eles [...] Eu enviarei povos e
nações para que, através de ti, eles sejam curados por Mim”.
Não usar gravata e O membro será impedido de fazer uso da Vestir paletó e
paletó. palavra. gravata.
Vestir roupa
Cobrir a nudez na igreja com avental ou
escandalosa, Usar roupa decente.
pano.
bermuda ou short.
Usar uniforme sem Uniforme
aprovação do modelo Caso insista, será afastado da atividade. respaldado pela
e tecido. liderança.
11
Expressão típica do ethos cristão. O representante legal, dotado da graça, carismas e autoridade divinas é o
pastor; portanto, desobedecê-lo implica em pecar contra o próprio Deus.
12
<http://www.ipda.org.br>.
6
com cor
extravagante
(exemplo: vermelha)
ou transparente.
Quadro Síntese do Manual Doutrinário da IPDA.
[Um] dos tópicos de mais interesse com que lidam [os estudiosos]
consiste nas maneiras como as pessoas tentam obter doutros a
ratificação da imagem que acalentam de si próprios [...] A honra
fornece, portanto, um nexo entre os ideais da sociedade e a
reprodução destes no indivíduo através da sua aspiração de os
personalizar. Como tal, implica não somente uma preferência
habitual por uma dada forma de conduta, mas, também, em troca,
o direito a certa forma de tratamento.
Para a IPDA, essa forma de tratamento tem suas facetas: pode representar uma
gloriosa conquista, tornando o “servo de Deus” apto ao exercício do “santo” ministério
(liderança); ou, ainda, refletir a punição (marginalização) do transgressor infiel,
mediante a sua incontinência aos dogmas “divinos”. Na cosmologia pentecostal, o fiel é
avaliado pela cúpula religiosa, pois ela detém a força política e reivindica o “direito de
conferir ‘honras’, decorrendo daí que os que essas honras recebem são ‘honrados’” (PIT-
RIVERS, 1965, p.14).
É relevante observar que todo e qualquer status social esbarra no risco iminente
das transgressões aos preceitos divinos, porque, na concepção da IPDA, ninguém é digno
de tais honras por ser, essencialmente, falho na vida santificada. Logo, a religião defende
que as qualidades pessoais, na verdade, são decorrentes de uma espécie de intervenção
transcendental (sobrenatural), habilitando o fiel ao cumprimento das ordenanças
religiosas. Contudo, se isto não ocorre, o negligente é, então, merecedor da respectiva
punição. Para cada profanação (desvio dos mandamentos sagrados), exige-se uma
retratação, do contrário não é restabelecida a normalidade. Nos casos mais severos
(conforme consta no Quadro Síntese do Manual Doutrinário da IPDA) o transgressor pode
até ser excluído, definitivamente, da instituição. Esta lógica interna é agravada quando
9
se percebe que há uma “honra coletiva de que os seus membros participam, a conduta
desonrosa de um reflete-se na honra de todos” (PIT-RIVERS, 1965, p.25).
Isto é muito significativo na IPDA, tendo em vista que o grupo se vê como uma
comunidade – todos são irmãos na fé, por isso partilham os mesmos dogmas e ideais.
Por conseguinte, se alguém esbarra num delito, todos se sentem atingidos. Mediante um
erro individual, a instituição é posta em risco, logo o pecador precisa ser punido em
nome da paz geral. A IPDA, ainda, ensina que todos os problemas devem ser, no
máximo, confidenciados ao pastor, evitando alvoroço entre os membros da igreja e para
além do seu reduto. Há algumas referências bíblicas a partir das quais as autoridades
eclesiásticas amparam essa postura. Por exemplo, orientando a igreja a ter uma vida
exemplar, o apóstolo Paulo declara: “Não damos motivo de escândalo a ninguém, em
circunstância alguma, para que o nosso ministério não caia em descrédito” (2 Coríntios
6:3). Ademais, o mesmo apóstolo adverte:
Ainda que este texto neotestamentário pareça referir-se a vários tipos de causas
judiciais, em torno de bens materiais, o mesmo princípio é aplicado a problemas de toda
ordem, especialmente, em se tratando de questões familiares. Portanto, é explícita a
preocupação de evitar uma imagem negativa perante a sociedade, além de orientar os
fiéis a tratarem seus problemas no contexto eclesiástico. “O significado político do
sagrado é que arbitra questões de valor, estabelece os limites do que pode ser feito ou
sustentado sem sacrilégio e define as lealdades incondicionais” (PIT-RIVERS, 1965,
p.26). Assim, a instrução da liderança eclesiástica sempre sinaliza o “ideal irrefutável”.
Neste sentido, ouvir a determinação de um líder é receber a ordem do próprio Deus.
Conclusão
castrado o prazer (sobretudo sexual), como os fiéis são orientados a uma vida penitente,
em prol do crescimento da espiritualidade. Agora, mesmo ultralegalista, seu avanço
institucional é um fenômeno em franca ascendência.
A repressão aos prazeres da carne, “naturalmente” tendenciosa e vulnerável aos
ataques malignos de toda ordem, está intimamente ligada ao que a IPDA concebe como
santificação e vida piedosa. A dualidade entre a matéria má e o espírito bom norteia o
conjunto arbitrário de mandamentos a serem observados por todos os fiéis; sendo a
mesma lógica aplicada à própria liderança, porém, caindo em transgressão, ela recebe
punição ainda mais severa. Ainda assim, é importante ressalvar que, paradoxalmente, a
palavra do líder é apreendida como a voz de Deus na terra. Esta compreensão denota
que o discurso hegemônico detém o poder político irrestrito de coerção sobre a
comunidade da fé.
Por fim, o mérito institucional estabelecido ao fiel santificado é a honra, sinônimo
do prestígio de galgar o status de verdadeiro servo de Deus, apto a exercer certas
funções de liderança na igreja e, ainda, digno de herdar o reino dos céus.
Frente a um campo religioso tão plural e enigmático, esta investigação jamais teria
a pretensão de esgotar a problemática proposta. Apenas, algumas luzes foram lançadas
e permanecerão abertas ao debate, às críticas e ao aprofundamento. O desafio está
lançado.
REFERÊNCIAS
1. Introdução.
Neste projeto pretendo dar continuidade à pesquisa iniciada por mim durante a
graduação. Um estudo etnográfico acerca de um médium espirita, Francisco Peixoto
Lins, a partir de dados coletados em um centro espírita fundado por seus familiares na
zona sul de Recife – PE, que culminou no trabalho de conclusão do curso de Ciências
Sociais na Universidade Federal de Pernambuco; englobando, além desse contexto,
um ambiente onde é realizada a prática do Espiritismo de uma forma um pouco
diferenciada – o Hospital Espiritual Maria Cláudia Martins.
Pretendo realizar um estudo comparativo entre os dois locais, colocando a questão
da mediunidade como o ponto central a partir do qual nortearei a análise dos rituais e
atividades das duas instituições kardecistas. O indivíduo que se caracteriza como
médium, para esse grupo religioso, é aquele que serve de intermediário entre o
mundo visível e o mundo invisível servindo como veículo pelo qual aqueles que não
estão mais encarnados possam agir no mundo material. Trata-se do membro do
movimento espírita responsável pela revelação e atualização dos preceitos dessa
doutrina, devido ao seu contato constante com os espíritos. Exige dele atitudes
características de um bom espírita: a prática da caridade, o estudo das obras mais
renomadas1, o exercício da paciência e o controle das emoções.
Há uma escassez de trabalhos produzidos sobre este tema, dentre os principais,
pode-se citar as pesquisas de Maria Laura Viveiros de Castro, Bernardo Lewgoy,
Sandra Stoll, Antoinette de Brito Madureira, Anselmo do Amaral Paes, porém nenhuma
delas enfoca nas semelhanças e divergências entre dois contextos existentes dentro
do movimento espírita: o centro espírita convencional2, e o hospital espiritual. Ante
esta carência de pesquisas sobre esse ponto, apresento este projeto como uma
proposta de compreender o papel do médium dentro das atividades e rituais desses
1
Os cinco livros editados por Allan Kardec - Livros dos Espíritos (1857),Livro dos Médiuns (1861),
Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), o Céu e o Inferno (1865) e A Gênese (1868) - mais as obras
psicografadas pelos médiuns brasileiros Francisco Candido Xavier e Divaldo Pereira Franco.
2
Entendido aqui como sendo um centro espírita que possui vínculo com a Federação Espírita Brasileira
(FEB) e a Federação Espírita Pernambucana (FEP) seguindo as prescrições de ambas.
1
dois locais da vivência religiosa do Espiritismo: centro espírita convencional e o
hospital espiritual.
2. Justificativa.
Apesar do aumento significativo de pesquisas sobre o Espiritismo, esse campo
ainda é pouco estudado. Sandra Stoll comenta que:
como assinalam Brandão (1988) e Giumbelli (1997), dentre as
religiões ditas brasileiras, o Espiritismo tem sido a menos
estudada. Observação válida, inclusive, para os artigos recentes
que tratam da dinâmica contemporânea do campo religioso na
sociedade brasileira: nestes são freqüentes as análises sobre as
mudanças que vêm ocorrendo no meio católico, no contexto das
tradições afro e no âmbito pentecostal. Raramente, porém,
esses textos se referem ao universo espírita. (STOLL, 2002, p.
364)
2
experiência do médium espírita, suas sensações, os esquemas de organização do
constante trabalho de educação e controle de si, os esforços de adequação às
expectativas típicas dos grupos espíritas” (p. 276, grifo do autor).
É preciso estudar o espiritismo dentro do seu contexto, utilizando como
referências trabalhos feito por pesquisadores que procuraram enfocar algum aspecto
dessa doutrina. O campo da religião espírita suscita diversas questões que ainda
necessitam ser abordadas, logo, este trabalho vai procurar estudar alguns aspectos
que ainda não foram pesquisados a fundo e que contribuirão para o entendimento não
só do contexto religioso kardecista, mas também de elementos da sociedade
brasileira.
3. Definição do Problema e Recorte Empírico.
A doutrina espírita, fundada pelo pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard
Rivail (que adotou o pseudônimo Allan Kardec), teve a sua origem em um movimento
norte-americano chamado modern spiritualism. Esse movimento nasceu, de acordo
com Marion Aubreé e François Laplantine (2009), em 1847, em uma cidade do estado
de Nova York, noroeste dos Estados Unidos. “Em poucos anos, conta com milhões de
adeptos nos Estados Unidos. Envia missões à Europa, primeiro à Inglaterra, depois à
Alemanha e à França.” (AUBREÉ & LAPANTINE, 2009, p. 22).
Os eixos principais do Modern Spiritualism eram a reencarnação e o progresso da
sociedade que serão apreendidos por Kardec e servirão como pontos de partida da
elaboração do Espiritismo.
Allan Kardec vai ter a sua atenção chamada, primeiramente, por um fenômeno
chamado de Mesas Girantes, nas quais se sentavam várias pessoas que, por meio de
códigos, entravam em contato com os espíritos presentes no recinto. Na tentativa de
verificar se esses fatos eram armação, Kardec e outros indivíduos procuraram assistir
e acompanhar essas sessões, e ao concordarem de que existia ali uma comunicação
com espíritos, o pedagogo teve a ideia de, juntamente com alguns colaboradores,
fazer várias perguntas aos seres que se manifestavam. As respostas deram origem a
um dos livros base do Espiritismo: O Livro dos Espíritos3, que teve a sua primeira
edição publicada em 1857. No livro O que é o Espiritismo, Kardec comenta como foi
feita essa pesquisa que deu origem às obras da codificação:
(...) Apliquei a essa nova ciência, como até então o tinha feito,
o método de experimentação: nunca formulei teorias
preconcebidas; observava atentamente, comparava, deduzia as
3
Além do Livros dos Espíritos (1857), mais quatro obras fazem parte da codificação feita por Allan Kardec,
são elas: Livro dos Médiuns (1861), Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), o Céu e o Inferno (1865) e A
Gênese (1868).
3
conseqüências, dos efeitos procurava remontar às causas pela
dedução e pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo
como válida nenhuma explicação senão quando ela podia
resolver todas as dificuldades da questão (...) Agi com os
Espíritos como teria feito com os homens: eles foram para mim,
desde o menor até o mais elevado, meios de colher informações
e não reveladores predestinados. (KARDEC apud CAVALCANTI,
1985, p.4)
4
fluidificação de água, atendimento fraterno, palestras, sessões de desobsessão, o que
demonstra um grande enfoque para os aspectos mediúnicos e ritualísticos.
4
Fraternidade Espirita Francisco Peixotinho Lins.
5
Hospital Espiritual Maria Cláudia Martins.
5
qual a Fraternidade realiza atividades sociais6. Possui uma estrutura física composta
por uma casa com dois andares e outra menor, contendo ao total onze ambientes7
para a realização de suas atividades.
Foi a partir deles, dos médiuns, que a doutrina espírita foi revelada e até mesmo
melhor esclarecida já que os chamados médiuns históricos brasileiros tiveram um
papel essencial na psicografia de obras doutrinárias e romances espíritas que trazem
elementos que servem tanto para endossar o que já havia sido escrito nos livros da
codificação, como para expandir e dar mais detalhes sobre o que Allan Kardec
catalogou.
4. Marco Teórico.
6
Dentre essas atividades estão aulas de reforço, de pintura, de costura, de musica, grupo de assistência a
gestantes.
7
Tratam-se de um salão principal para a realização das palestras, três ambientes do tamanho de um quarto
onde se realizam as atividades mediúnicas (passes, reuniões, estudos), uma biblioteca, uma livraria, uma
cozinha, uma sala para as atividades socioeducativas, uma cantina, e dois banheiros (um masculino e um
feminino)
6
Para abordar o Espiritismo, a pesquisa terá como base trabalhos seminais feitos
por antropólogos que trataram majoritariamente desse universo religioso. As
principais pesquisas que guiam este projeto são as de Marion Aubreé e François
Laplantine (2009), Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (2008), Bernardo Lewgoy
(2004), Antoniette de Brito Madureira, Aurenéa Maria de Oliveira.
Os pesquisadores franceses elaboraram uma obra que trata do movimento espírita
desde o seu início nos EUA, passando pelo desenvolvimento na França até a sua
chegada ao Brasil, contando, também, como ele se encontrava nos dois países no
período em que a pesquisa foi realizada. Trata-se, portanto, de um manual essencial
para qualquer pesquisa que trate sobre o Espiritismo.
Cavalcanti traz descrições e análises acerca da cosmologia, sistema ritual e noção
de pessoa a partir do seu estudo em um centro espírita do Rio de Janeiro. Nesse
trabalho a autora coloca questões relevantes no que tangem às sessões mediúnicas,
mediunidade e médiuns; ela aponta a presença nesse contexto de dois elementos
fundamentais da doutrina espirita: a caridade e o estudo. Portanto, os rituais espíritas
englobam a tríade estudo-caridade-mediunidade de tal maneira que para que sejam
bem sucedidos é indispensável a presença de todos três elementos.
Já Lewgoy contribui com uma pesquisa cujo enfoque é perceber, a partir da
biografia e trajetória de Chico Xavier, diversos elementos da cultura brasileira de
mediação e como esses aspectos são elaborados pelo médium mineiro dentro da
cosmovisão espirita kardecista.
Madureira e Oliveira elaboraram pesquisas sobre o Espiritismo tendo como
contexto estados do nordeste brasileiro – a primeira no Rio Grande do Norte, e a
segunda em Pernambuco - o que coopera no entendimento do movimento espírita na
sociedade em que este projeto visa a pesquisar. Antoinette Madureira (2010) faz uma
discussão sobre a constituição de emoções em grupos e indivíduos envolvidos com
práticas mediúnicas no campo religioso espírita tratando, também, da questão do
corpo; enquanto Aurenéa de Oliveira busca articular os conceitos de identidade,
verdade e tolerância religiosa ao analisar a prática religiosa espírita.
Partindo das leituras sobre mediunidade, nota-se a importância de pensar a sobre
como o Espiritismo lida com as categorias de corpo e das emoções dentro das suas
práticas religiosas. Logo, para trabalhar esses tópicos pretendo utilizar as analises
seminais De Marcel Mauss a respeito da noção de pessoa, técnicas corporais e a
expressão obrigatória dos sentimentos.
Eu digo as técnicas do corpo, porque se pode fazer a teoria da
técnica do corpo a partir de um estudo, de uma exposição, de
uma descrição pura e simples das técnicas do corpo. Entendo
7
por essa expressão as maneiras como os homens, de sociedade
a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu
corpo. (MAUSS, 2003, p.401)
8
No contexto deste projeto o lugar trata-se de uma comunidade religiosa.
8
Tadvald procura contextualizar historicamente o ambiente no qual o Kardecismo
surgiu para perceber a influencia das ideias dessa época na forma como a doutrina
espírita conceitua corpo e pessoa. O seu trabalho possui também uma discussão
relevante acerca da possessão no Espiritismo e traz algumas reflexões importantes
sobre a categoria do controle que para o autor deve ser relativizada já que em ultima
instancia o self que predomina no momento de tomar decisões é o do médium.
Contudo ele lembra que existe sempre uma “anterioridade, dada pelo sistema de
valores da doutrina espírita previamente internalizada por seus adeptos médiuns.”
(2007, p.131). Tentarei incorporar esses elementos no campo que farei os tendo em
mente no momento da coleta e da analise dos dados.
A questão das emoções também retrata um tema pertinente ao objeto que
pretendo estudar. Busco aprofundar a análise acerca desse tópico e ir além da
constante referencia ao controle da expressão de sentimentos sempre citado na
literatura antropológica acerca do Espiritismo. Apesar de ter em mente que as
emoções estão dentro do universo de noções inseridas pelo senso comum como
aspectos naturais e individuais dos seres humanos, seguirei a abordagem de Claudia
Rezende e Maria Claudia Coelho (2010) e as tratarei como representações que variam
de uma sociedade para a outra visto que diferentes culturas, grupos sociais e religiões
possuem teorizações diferentes para as emoções e tendem a valorizar e estimular
algumas, ao passo que outras devem ser controladas, reprimidas.
5. Objetivos.
9
Observar possíveis diferenças de comportamento, vestuário, habitus,
questões de gênero entre trabalhadores e frequentadores em ambas as casas
espíritas.
6. Metodologia.
De inicio uma revisão aprofundada da literatura sobre trabalhos que abordem
pontos que tangem de alguma maneira o objeto de estudo: caridade, transe
mediúnico, possessão, vivência religiosa, controle (e expressão) das emoções, corpo
como instrumento; e qualquer outro aspecto que possa surgir como relevante para o
entendimento do campo a ser estudado, incluindo, nesse levantamento bibliográfico,
autores e obras diversos dentro da grande temática da Antropologia da Religião.
Portanto, é relevante a procura de mais fontes que possam ajudar na pesquisa. Essa
etapa tem início desde a confecção do projeto, e deve perpassar todos os momentos
deste estudo, visto que se trata de uma atividade que merece ser revisitada
constantemente, a fim de manter-me atualizada e em contato com os trabalhos mais
recentes.
Por se tratar de uma pesquisa de cunho antropológico, faz parte deste projeto
o uso dos métodos característicos dessa área do conhecimento, em especial das
técnicas envolvidas nas práticas etnográficas, tais como observações, entrevistas
semiestruturadas, questionários. Para poder perceber como se dá a relação dos
médiuns com cada um dos contextos a serem estudados, considero plausível o uso
desses recursos qualitativos para a coleta dos dados. A aproximação com o campo
já está em processo, visto que visito esporadicamente a Fraternidade Espírita
Peixotinho desde a elaboração do meu trabalho de graduação, e, por indicação de
pessoas próximas, iniciei visitas às atividades do Hospital Espiritual Maria Cláudia
Martins, já tendo em mente a ideia de englobá-lo para uma pesquisa futura.
10
Possuo, portanto, contato com frequentadores dos dois locais. Como o
relacionamento com a Fraternidade Peixotinho é mais prolongado já conto com
interlocutores que são médiuns e trabalham no centro espírita e poderiam não só me
dar os seus próprios relatos acerca das questões que pretendo abordar nesta
pesquisa como também me indicar outros trabalhadores com os quais poderei
dialogar. Mesmo não sendo a minha proximidade com Hospital Maria Cláudia Martins
tão elaborada quanto a que construí na Fraternidade Peixotinho será possível
trabalhar também com o recurso de indicações de frequentadores e voluntários por
intermédio de pessoas conhecidas que ou já vivenciaram ou estão em processo de
tratamento espiritual.
7. Referências Bibliográficas
Citadas
11
CSORDAS, T. Corpo, Significado, Cura. 1ª edição. Porto Alegre: Editora da UFRGS,
2008, 463p.
Consultada
12
pernambucanos com os adeptos de outras religiões. Pensamento Plural. Pelotas,
v.2, jan/jun 2008. p79-103.
13
RITUAL E PROCESSOS DE CRIAÇÃO EM TEATRO E DANÇA
1
Vide o site www.artecruor.com.
Rio Grande do Norte, contribuindo para a alfabetização e formação estética
daqueles que atuam nas áreas educacionais e culturais, bem como na formação de
público a partir das problematizações inerentes à arte contemporânea. As ações
compreendem a realização de mini-residências, objetivando fomentar a arte e a
cultura, viabilizando o acesso da comunidade ao resultado de projetos de pesquisa e
ações de extensão universitárias, disciplinas da graduação e pós-graduação,
desenvolvidos nos anos de 2010 a 2012; mini-cursos focados nos processos
criativos em arte contemporânea; conferências com artistas de renome nacionais
como Regina Miranda, Maura Baiocchi, Wolfgang Pannek, Raimundo Áquila; curso de
formação continuada em interface com o Programa de Extensão Escambo de
Saberes: estágio e formação docente nas Licenciaturas em Artes/UFRN,
introdução ao cinema contemporâneo através de filmes, e debates e criação de Cine
Clube na instituição acolhedora do programa; execução de pintura mural artístico
com a comunidade. Como produtos culturais, confeccionar-se-á livro e DVD. Ainda
acontecerá a internacionalização do Programa no Escena Mazatlán 2013, Sinaloa,
México, que ocorrerá em outubro de 2013.
Artaud considerava que, como no teatro oriental, uma encenação deve ser
uma espécie de ritual, ligado ao sagrado e ao inconsciente, provocando
transformações na psique humana e, consequentemente, nas ações, não como no
teatro grego onde acontecia uma purificação, e sim com o intuito de:
Porque será que alguém tão louco e tão distante de seu tempo,
conseguiu influenciar toda a criação artística, filosófica e
intelectual deste século e ainda hoje é um dos maiores
referenciais para a atividade criadora? Possivelmente porque da
complexidade de seu trabalho e de sua vida não restaram
apenas obras de arte, mas uma presença singular, uma poética
social, uma estética do pensamento, uma teologia da cultura,
uma fenomenologia do sofrimento e principalmente um grande
desconforto no pensamento contemporâneo... concebeu um
teatro onde não haveria nenhuma distância entre ator e plateia,
todos seriam atores e todos fariam parte do processo, ao
mesmo tempo. Queria devolver ao teatro a mágica e o poder do
contágio. Queria que as pessoas despertassem para o fervor,
para o êxtase. Sem diálogo. O contágio estabelecido pelo
estado de êxtase. Uma vez abolido o palco, o ritual ocuparia o
centro da plateia.
Acreditamos que para um teatro dança com abordagem artaudiana, um mesmo
gesto ou ritual pode ter significados diversificados dependendo da forma como são
encadeados ou ligados entre si. Sua leitura depende também da vivência anterior do
espectador, que pode determinar alguma leitura de decodificação e sentido especial. O
mesmo ato ou gesto pode ter significados completamente diferentes, dependendo da
contextualização ritualística. Um dos atributos do ritual é ser presentificado e vivo aos
olhos dos espectadores, ou seja, daqueles que o vivenciam, assim os atuantes a
vivem no sentido de presentificar o ato.
Para Artaud, teremos que ser capazes de retornar a esta ideia superior da
poesia pelo teatro, que existe por trás dos ritos e compreender a ideia religiosa e
sagrada do teatro. É importante lembrar que o pensamento de Antonin Artaud sobre o
teatro foi vislumbrado e inspirado principalmente nas danças orientais balinesas, que
possuem um caráter altamente ritualístico. Ritual pode supor decodificações gestuais,
e remete imediatamente a mito, e segundo Claude Lévi-Strauss (1957, p. 267 ):
Este fato no olhar de Artaud deveria ser transposto para a cena e pode ser
compreendido, como o princípio do abandono da representação pela presentação ou
presentificação do ato cênico. Uma cena onde imagens comuns justapostas e
atravessadas, suscitariam outras leituras ultrapassando o que é óbvio e evidente. Com
esse pensamento pautando nossas ações encampamos uma rotina organizacional que
se dá a partir do trabalho prático corporal em laboratórios utilizando-nos das noções
de processos criativos colaborativos e de instaurações cênicas como procedimentos
metodológicos para a criação de encenações, e neste momento nos debruçamos na
criação da encenação “Carmin”. Nos anos de 2012 e 2013, criamos cinco instaurações
cênicas, a saber: 1 – “Carmin: Experimento Água”: consiste em uma série de ações
criadas a partir da observação dos líquidos presentes na obra de Frida Khalo e nos
filmes de Pedro Almodovar e suas reverberações a partir das memórias presentes no
corpo dos artistas criadores, nas apresentações existe uma interação com os
transeuntes; 2 – “Segredo”: criada a partir do filme A Flor do Meu Segredo do
cineasta Pedro Almodóvar, consiste em duplas de performers, tendo um com os olhos
vendados; que se colocam em determinado lugar da cidade e no momento em que o
performer vendado tocar o corpo de alguém que anda na rua, ou praça, lhe abraça,
estabelecendo um vínculo de comunicação tátil e verbal/sonora acerca de segredos e
solicita que o transeunte escreva e/ou desenhe em sua roupa branca palavras e
memórias de seus segredos. Esta roupa será parte integrante dos figurinos que irão
compor a encenação Carmin; 3 – “Unissex”: se constitui em uma instauração cênica
com caráter altamente político e voltado aos direitos humanos, enfoca e questiona os
direitos das pessoas transexuais ao uso de banheiros para seu gênero escolhido e não
para o de seu nascimento, e que tem como objetivo transformar alguns banheiros
separados por gêneros na universidade, em banheiros unissex, esta ação tem o apoio
do grupo GUDDES - Grupo Universitário de Defesa da Diversidade Sexual-, que tem
como objetivo divulgar e desenvolver ações que possibilite a prática da tolerância com
o outro e o respeito à diversidade sexual; 4 – “Tai”: Criado a partir das aulas do
professor Sol das Oliveiras Leão da técnica Tai Sabaki, que é um conjunto de técnicas
de movimentação corporal, praticado por várias artes marciais japonesas, sendo sua
maior finalidade, evitar o enfrentamento direto, evitando um ataque; 5 – “Corpo
Livre”: consiste em convidar artistas da cidade para que em determinado local e hora,
aqueles que desejarem construir uma partitura de três minutos, tendo o corpo pintado
com pasta d’água na cor branco por baixo do figurino inicial, e a cabeça coberta com
espécies de burcas2, saiam em cortejo ritualístico e silencioso de determinado local da
cidade e se dirijam a um local aonde houve algum tipo de repressão ao corpo e,
chegando ao local, sentem no chão, formando uma mandala e então aqueles que
desejarem, incluindo os participantes do projeto que, como já mencionado, trazem o
corpo pintando de branco como figurino, entram na mandala que em sua formação
tem músicos participantes do Projeto Pau e Lata, da UFRN3, estes iniciam o toque
musical, aqueles que entram no círculo, tiram seu figurino do cortejo e executam a
partitura de três minutos, logo após colocam o outro figurino e vão embora. Nosso
trabalho propõe uma discussão sobre o corpo do artista, o nu na cena, o direito de
usar a pele como figurino, a liberdade em nossas criações e que um corpo nu em cena
não seja motivo para indicativo de idade, pois é apenas um corpo nu, sem nenhuma
conotação nem a mínima alusão ao ato sexual. “Corpo Livre” será discutido mais
adiante neste artigo. Estas instaurações cênicas ocorrem em diversos locais -
principalmente em locais públicos, como: praças, ruas e praias - e destas serão
extraídas cenas que irão compor a encenação que será realizada em locais fechados
como salas, teatros, galerias.
2
A burca é uma veste feminina que cobre todo o corpo, até o rosto e os olhos. É de uso obrigatório para as mulheres do
Afeganistão e do Paquistão e em áreas próximas à fronteira com o Afeganistão. É o objeto que pode ser configurado
como o maior símbolo de repressão ao corpo. O seu uso deve-se ao fato de muitos muçulmanos acreditarem que o livro
sagrado islâmico, o Alcorão e outras fontes de estudos, como Hadith e Sunnah, exigem que homens e mulheres que se
vistam e se comportem modestamente em público. No entanto, esta exigência tem sido interpretada de diversas maneiras
pelos estudiosos islâmicos e comunidades muçulmanas; a burca não é especificamente mencionada no Corão e nem no
Hadith. A comunidade religiosa Talibã, que comandou o Afeganistão nos anos 2000, impôs seu uso no país.
A burca foi proibida, na França, em 17 de julho, de 2010, pela Lei nº 524, que entrou em vigor seis meses após sua
promulgação.
3
O Projeto Pau e Lata teve início na cidade de Maceió/AL, no ano de 1996 por Danúbio Gomes e no ano seguinte, na
cidade de Natal e Baia Formosa/RN. A partir do ano 2000, o Projeto Pau e Lata se transformou em Projeto de Extensão
pelo Departamento de Artes da UFRN, passando a ser denominado “Pau e Lata: Projeto Artístico – Pedagógico”,
desenvolvendo atividades com grupos nas cidades de Natal, Lajes do Cabugi, Mossoró urbano-rural, Pedro Velho e
Apodi, localizadas no Rio Grande do Norte. Desenvolve a partir de 2001, um núcleo de estudos rítmicos, na UFRN, com
jovens e adultos, alunos, professores, funcionários desta instituição e da rede pública de ensino e profissionais liberais.
Foi desvinculado do DEART/UFRN e hoje faz parte da Escola de Música da UFRN. Fonte:
http://pauelatarnn.blogspot.com.br/2010/02/trajetoria-pau-e-lata.html, acessado em 29/03/2013
Sobre o conceito de processos criativos colaborativos que norteiam nossas
criações artísticas o texto de Abreu (2006, p. 1) embora longo, deve ser citado por ser
extremamente esclarecedor:
O corpo por muitos séculos foi e ainda é visto como um veículo de dominação e
manipulação social, o qual deve seguir regras e adotar determinados tipos de
comportamentos. Há uma forte coerção sobre o corpo-sujeito, uma disciplina imposta
seguida de uma dominação. De acordo com Foucault (1987), essa coerção não faz
referência à escravidão ou à vassalidade - pois a primeira possui uma relação de
apropriação dos corpos e a segunda uma relação clara de submissão - mas sim a uma
adoção das “disciplinas”. Tais “disciplinas” - utilizadas com maior ênfase a partir dos
séculos XVII e XVIII - visam o aumento do comportamento obediente e dócil e a sua
utilidade através da coerção. Ainda de acordo com Foucault “ (...) em qualquer
sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem
limitações, proibições e obrigações. (FOUCAULT, 1987, p. 118).
Ainda hoje podemos perceber a forte repressão sobre corpo, sobretudo quando
este se apresenta compondo o figurino com a própria pele, como a que ocorreu no
Teatro Alberto Maranhão, em Natal, no Rio Grande do Norte, durante uma
apresentação de dança cuja bailarina apresentava como figurino sua forma natural.
Como este tema perpassa e transcorre a obra de Pedro Almodovar e Frida Kahlo e
está em conexão com os acontecimentos que ocorrem em nossos cotidianos, a partir
desse fato que aconteceu em nossa cidade, foi proposta uma discussão no grupo
Cruor Arte Contemporânea sobre a liberdade corporal, o corpo como arte, além de
fomentar a ideia da realização de uma instauração cênica, que abordasse tal temática.
Começaram a ser desenvolvidos laboratórios constituídos por exercícios psicofísicos
que pudessem dar o embasamento necessário à realização deste evento. Escolhemos
a frente desse teatro já citado, mais precisamente a Praça Augusto Severo, para
realizarmos a instauração cênica que foi denominada “Corpo Livre” no dia 26 de maio
de 2012, onde os participantes tiveram como figurino a pele pintada de branco,
dançando ao som do Pau e Lata, as partituras corporais construídas nos laboratórios,
por apenas três minutos. Tão pouco tempo para a dança está pautada na afirmação do
advogado Thiago Lauria, consultor jurídico do projeto JurisWay4, que a partir do Art.
233 do Código Penal, nos informa:
4
JurisWay é um projeto educacional, focado nos princípios de Responsabilidade Social avançada, cuja meta é apoiar a
formação do trabalhador, promover o desenvolvimento social e valorizar o sentimento de cidadania. O projeto contempla
a inserção do cidadão no mundo legal, na medida em que atua como suporte na compreensão de que a cidadania plena
pressupõe direitos, deveres e limites. Fonte: http://www.jurisway.org.br/v2/jurisway_eh.asp. Acessado em 26/03/2013.
e espaço, criaram ainda Seis Viewpoints Vocais: Altura; Dinâmica; Andamento;
Aceleração/Desaceleração; Timbre; Pausa (silêncio).
Esta técnica pode contribuir para o desenvolvimento de uma conduta mais
sensível, perceptível e compartilhada por parte do ator/atriz e do bailarino/bailarina na
geração de material improvisacional e compositivo. Os exercícios de Viewpoints
trabalham a criação de ações baseadas na consciência do tempo e do espaço na
relação entre os atuantes, coletivamente, ao invés de intenções prévias simuladas por
um viés excessivamente individual e subjetivo, nomeado por Bogart (2005) como
“psicológico”, viés este proposto inicialmente no âmbito do teatro por Constantin
Stanislavski5 para a criação e construção de personagem e desempenho de papéis na
cena. A isso acrescentamos a característica ritualística da repetição da ação e de
movimentos, criando atmosferas e um corpo em estado alterado de consciência, para
a criação das partituras corporais finais.
Muitos utilizam a técnica Viewpoints cotidianamente, porém de forma
inconsciente. Verifica-se isso, por exemplo, ao andarmos em uma rua, pois podemos
perceber a realização de um trajeto de variadas maneiras e formas, que ocorre em
uma determinada duração e tempo; a distância entre os corpos; e como estes se
relacionam e dialogam com espaço real. Quando essa técnica é trabalhada podemos
nos apropriar e nos tornar conscientes dos processos que ocorrem durante a
realização de um movimento. A conscientização é fundamental para os processos de
criação e improvisação, pois a exploração das ferramentas dadas pelo Viewpoints abre
a possibilidade para novas movimentações corporais no espaço, aumentando a
variação dos movimentos. Além disso, essa técnica não é praticada individualmente,
não é um trabalho introspectivo e sim expansivo, diretamente ligado com o “como
você se relaciona” – estruturando o tempo e o espaço e criando conexões com o
environment, é um trabalho de escuta permanente de si, do outro e do lugar aonde se
encontra com uma altíssima percepção.
5
Constantin Stanislavski, Pseudônimo de Konstantin Sergueievitch Alekseiev (17/1/1863 - 7/8/1938). Ator e diretor de
teatro russo, criador de um novo estilo de interpretação, o método Stanislavski, baseado em criação psicológica e física
do personagem, naturalidade, fidelidade histórica e busca de uma verdade cênica. In Biografia de Constantin
Stanislavski: Fonte: http://www.algosobre.com.br/biografias/konstantin-stanislavski.html. Acessado em: 25/11/12.
deixar a sua máscara de lado e se revelar como ele realmente é, na situação extrema
da ação que ele está interpretando” (SCHECHNER, 2009, p. 334). A partir desses
laboratórios, pode-se perceber que o grupo não estava mais ligado a imagem corporal
dos corpos pintados de branco na sala de ensaio, pois já haviam tirado a túnica de
voal branco, mas sim as sinestesias6 provocadas pelo ambiente e pela relação entre os
corpos. Assim, naturalmente, durante esse laboratório, iniciou-se o desenvolvimento
de uma partitura fixa de três minutos, que seria utilizada na instauração cênica “Corpo
Livre”. Essa partitura é composta por uma mandala formada pelos corpos dos
integrantes, onde todos podem ver uns aos outros e ter dentro da mandala formada,
livre movimentação para as suas partituras individuais criadas, as quais podem passar
por brevíssimos momentos de improvisação. Para Schechner (2009) a criação dessas
partituras individuais se torna parte fundamental do processo de criação física e coloca
o performer em um lugar que possibilita uma maior liberdade de experimentação
assim como em tradições teatrais que pressupões regras fixas de atuação. Para esse
autor “A liberdade que uma tradição propicia é a mesma que uma partitura propicia.
Uma partitura é uma tradição em miniatura” (SCHECHNER, 2009, p.336). Ainda
segundo este autor:
6
Sinestesia é diferente de Cinestesia (movimento e percepção muscular). Sinestesia se refere ao sensorial, a capacidade
de fundir ou misturar diferentes sentidos, por exemplo, conseguir ouvir (audição) um movimento visual (visão) ou sentir
cheiro (olfato) ou gosto (paladar) de uma imagem visual (visão) ou visualizar (visão) ao ouvir (audição) uma música,
sendo que um sentido pode evocar imediatamente um outro significando a relação subjetiva que se estabelece
espontaneamente, entre uma percepção e outra que pertence ao domínio de um sentido diferente. Por exemplo, um
perfume que evoca uma cor ou um som que invoca uma imagem, provocando comoção e emoção e produções de
sentidos. Para Bogart Kinesthetic Response, ou o “o movimento espontâneo que ocorre a partir da estimulação dos
sentidos” (2005, p.8)
Nos dias em que foram realizadas as instaurações foi perceptível a utilização
de diversos aspectos ritualísticos presentes na ação, desde a preparação até o
momento da apresentação, no sentido dado pela antropologia. Dessa forma, podemos
abordar a relação entre processo criativo, cena e ritual por diversas perspectivas. O
universo simbólico dos rituais, por exemplo, se apresentou como uma abordagem
interessante para pensarmos essa relação entre o ritual e a cena.
Além disso, esse corpo coberto por uma coloração branca posto na cena trás a
referência de que em muitas sociedades como a Ndembo, pintar o corpo com tinta
branca representa pureza, vida, fertilidade. Assim o corpo é o próprio símbolo, e esse
símbolo se apresenta na instauração cênica não com o intuito de chocar, ou ferir o
pudor dos observadores, mas sim para causar uma fruição artística, além de
questionar, indagar a negação da nudez do corpo “o primeiro e mais natural
instrumento do homem” (MAUSS, 2007, p. 407).
Segundo Turner:
Trabalhando então nesta esfera ritual, mítica e liminar o corpo em seu figurino
de pele pintada de branco, adquire um aspecto político, ao questionar as leis que
geram a moral social, se colocando entre o permitido e o não permitido. No ritual em
um mundo contemporâneo onde não se propõe uma unanimidade de fé ou crença a
arte pode transgredir as normas propondo se pensar e se questionar valores, assim
como expressar poeticamente o pensamento. O nu artístico aqui estaria assim
protegido por esta esfera liminar ao ser colocado como parte do ritual de celebração
de corpos libertos.
Finalizamos em concordância com FREIRE (2013, p. 1):
Bibliografia:
ABREU, Luís Alberto de. Raízes do Processo Colaborativo. In: Sarrafo no 09, março
2006. Disponível em www.jornalsarrafo.com.br/sarrafo/edicoes.htm. Acesso em
25/03/2012.
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Max Limonad, 1987.
ARTAUD, Antonin. Linguagem e Vida. São Paulo: Perspectiva, 1995.
BARBA, Eugenio. A arte secreta do ator. São Paulo: Hucitec/UNICAMP, 1995.
BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. Petrópolis: Vozes. 1970.
BOGART, Anne. The viewpoints book. New York: Theatre communications group,
2005.
FOUCALT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
LAURIA, Thiago. Nudez em peça teatral. Pode? 2013. Disponível em
http://www.jurisway.org.br/v2/drops1.asp?iddrops=243
LEVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1957.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Saõ Paulo: Cosacnaify, 2007.
NABUCO, Alex. Artaud. In: Cem anos de Artaud. Agosto 1996, Disponível em
http://www.quattro.com.br/passage/artaud.htm
PEIRANO, Mariza. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
SCHECHNER, Richard. Performer. In: Revista Sala Preta, v.9, n.1, p. 333-365, 2009.
Disponível em
http://www.revistasalapreta.com.br/index.php/salapreta/article/view/306.
TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petropolis: Ed Vozes,
1974.
ABREU, Luís Alberto de. Raízes do Processo Colaborativo. In: Sarrafo no 09, março
2006. Disponível em www.jornalsarrafo.com.br/sarrafo/edicoes.htm. Acesso em
25/03/2012.
1
I – Aspectos introdutórios
Com o advento da instalação da comitiva inquisitorial na Cidade de Salvador,
em 1591, muitos processos foram instaurados revelando o mundo cultural de
mamelucos que assumiram a posição de soldados e passaram a integrar as entradas
que partiram rumo ao sertão colonial para descerem os índios.
No século XVI, o conceito de sertão não possuía o significado atual, isto é, de
uma região que se estende desde as proximidades da margem direita do rio Parnaíba,
no seu extremo norte, até o rio Itapicuru no seu extremo sul, abrangendo as terras
centrais dos Estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco,
Alagoas, Sergipe e Bahia (CASTRO, 1965). Dicionários contemporâneos como o Novo
Dicionário Brasileiro, organizado por Adalberto Prado e Silva (1965) e o Pequeno
Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira
(1971), atribuem ao sertão significação de lugar distante de povoações ou de terrenos
cultivados, floresta no interior do continente ou longe da costa.
2
1
Ao realizar uma análise etimológica do vocábulo sertão, Gustavo Barroso (1983), apoiando-se no
Dicionário da Língua Bunda da Angola, organizado por Bernardo de Maria de Carnecatim (apud NEVES;
MIGUEL, 2007), confere a origem do vocábulo “sertão” a muceltão, corrompido em celtão e depois, certão,
cujo significado, em latim seria lócus mediterraneus, ou lugar entre terras. Ainda mencionou sua acepção
como interior, sítio longe do mar ou mesmo mato distante da costa, definição que se coaduna com o conceito
de sertão nesta pesquisa adotado. No tocante à língua portuguesa, Barroso (1983) nos elucida que essa
significação recebeu, indevidamente, a equivalência de “desertão” cujo correspondente seria deserto grande,
do qual surgiu “sertão” como forma contraída. Corroborando ao esclarecimento etimológico do termo
analisado, Goes (1991) cita que a palavra “desertão” traduz a ideia de amplitude geográfica de baixa
densidade populacional. Ainda sobre o assunto, Jerusa Pires Ferreira ([s.d] apud NEVES; MIGUEL, 2007, p.
10), propõe que se atribua a origem do vocábulo sertão a “sertanus, advinda de sertum, particípio e passado
de sero, serui, ser”, que se explica por “entrelaçar, entrançar”, com o sentido de “o que está entrelaçado”,
numa alusão à vegetação contínua.
3
2
Entende-se aqui por “indivíduos” não somente homens, mas todo tipo de “unidades” em que os fenômenos
sociais podem se decompor: ações, palavras, números, coisas materiais, símbolos culturais de qualquer
gênero, etc. (ARÓSTEGUI, 2006, p. 321, nota 21).
4
circunstâncias. Não o fazia somente por vontade, a sociedade colonial com suas
contradições exigia, indiretamente, tal comportamento.
Nas palavras de Luiz Henrique Dias Tavares, a sociedade baiana era “agrária,
escravista e mercantil, com estrutura social fortemente hierarquizada” (2001, p. 69).
Os status eram diferenciados a partir dos papéis desempenhados (SIQUEIRA, 1978).
Nesta perspectiva, para não se tornar apenas um lavrador ou alfaiate, assim como foi
a maioria dos soldados mamelucos, Domingos Tomacaúna teve que responder às
exigências da economia capitalista comercial em expansão: recorreu às expedições
sertanistas e, por meio delas, contribui, intensamente, na colonização dos sertões
brasileiros. Esperava auferir terras doadas, através de sesmarias, àqueles que
contribuíram na ocupação dos territórios, o que conseguiu na próspera Sergipe Del
Rei, mesmo sem ter participado de tal empreitada comandada por Cristóvão de Barros
(Carta de sesmaria de Domingos Fernandes Nobre – Livro 1, [fol. 34 – 34v]) – CD-
ROM, nº 0024).
O governo baiano incentivou a colonização do território por meio de entradas
militarizadas. Não foram apenas os elementos político-econômicos que incentivaram
essas expedições. Cabe aqui mencionar que a ocupação do sertão foi, do mesmo
modo, motivada por fatores religiosos cujo objetivo foi introduzir o catolicismo, como
uma forma de converter os indígenas, os quais, segundo Pe. Manuel da Nóbrega, em
carta de 1549, a nenhuma coisa adoravam e não tinham conhecimento “nem da glória
nem do inferno, somente dizem que depois de morrer vão descansar num bom lugar,
e em muitas coisas guardam a lei da natureza” (NÓBREGA, 1549, in: HUE, 2006, p.
39). Ressaltamos que os jesuítas de tudo fizeram para converter os gentios, uma vez
que havia uma satanização dos aspectos religiosos tanto desses povos, como dos
povos de origem africana (SILVA, In: BRANDÃO, 2002).
A religião era, na sociedade colonial, um fator de integração à medida que
contribuía para reforçar as normas vigentes pelo modelo cultural português, modelo
este que não foi tão bem compreendido pela mentalidade híbrida dos mamelucos.
Tomacaúna era, em alguns momentos, um descrente, um cético; em outros, um
homem preocupado em seguir os ensinamentos da doutrina católica. Sua identidade
híbrida cultual se revela em todas as atitudes manifestadas.
Compreendemos a identidade cultural híbrida à luz de Stuart Hall (2006), para
quem o sujeito é fragmentado, composto não só de uma única, mas de várias
identidades que se transformam numa celebração móvel que varia segundo o sistema
cultural que rodeia o indivíduo. É uma identidade “formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados
nos sistema cultural que nos rodeiam” (2006, p. 13).
6
anos. Disse que não recebia as índias por palavras da Igreja, “somente as tomava
como é costume entre os gentios para conservação de mulheres” (Idem).
No que concerne ao sacramento do casamento, a Igreja Católica defende que
todos devem respeitar o matrimônio e, por conseguinte, não desonrar o leito nupcial
para que não seja julgado por Deus como adúltero (Hb., 13:4, in: BÍBLIA SAGRADA,
1990). Esta orientação não despertou o interesse dos desbravadores que, estando nos
sertões, viviam à moda gentílica.
Outro comportamento que merece ser desvelado é o fato de os soldados
mamelucos riscarem os corpos à maneira tupi. Tomacaúna não fugiu ao costume. No
sertão de Arabó tingiu suas pernas com urucum e com jenipapo (VAINFAS, 1997).
João Gonçalves, mameluco integrante da expedição colonizadora de Sergipe,
confessou que, nessa região, deixou-se riscar o braço esquerdo (ANTT, IL, proc. nº 13
098). Com essas atitudes, os mamelucos, já batizados, passavam da condição de
cristãos à condição de índios, os quais não professavam, definitivamente, o
catolicismo segundo o qual é proibido fazer tatuagens (Lv., 19:28, in: BÍBLIA
SAGRADA, 1990). Imerso nessa cultura, os mamelucos indianizavam-se para obter
simpatia dos nativos. Tomacaúna, homem grande de corpo, era riscado nas coxas,
nádegas e braços (VAINFAS, 2005).
No sertão, Tomacaúna bailou, cantou e tangeu maracás durante a cerimônia
religiosa dos nativos: a Santidade. Conforme carta de Pe. Manuel da Nóbrega,
endereçada aos padres da Companhia de Jesus, em Coimbra, no ano de 1549, o chefe
da Santidade incitava os índios a não trabalharem, afirmando-lhes que chegaria o
tempo bom no qual nunca faltaria comida, pois o alimento cresceria sozinho e as
flechas iriam ao mato caçar (NÓBREGA, 1549, in: HUE, 2006, p. 36-37).
O chefe da Santidade denominou-se Antônio Tamadaré e iniciou sua pregação
contra os colonizadores. Suplicava suas mortes e suas escravidões, assim descreveu
Gonçalo Fernandes em sua confissão. Disse que “... tinham um ídolo de pedra o que
faziam suas cerimônias adoravam dizendo que vinha já o seu deus a livrá-los do
cativeiro em que estavam e fazê-los senhores da gente branca, e que os brancos iriam
virar seus cativos...” (ANTT, IL, proc. nº 17 762, fl. 01-02).
A participação dos mamelucos nos rituais da Santidade indígena revela que
uma ponte religiosa, entre as culturas ameríndia e portuguesa, levou muitos agentes
sertanistas a praticarem, assim como os nativos, hábitos católicos nas realizações das
cerimônias religiosas tupis, caracterizando o hibridismo religioso. Este ato superou, em
ordem de gravidade, todos os demais, seguido pela quebra do jejum.
A adesão à Santidade pareceu aos olhos do Visitador uma heresia, visto que
os mamelucos já havia sido batizados e submetidos aos ensinamentos católicos. Os
9
IV - Considerações Finais
As ações de Domingos Tomacaúna traduziram aspectos do cotidiano do sertão
colonial baiano. Seu comportamento expressa um desacordo com a maioria dos
valores de seu tempo apregoado pela doutrina católica. Ele trouxe à luz, com seu jeito
de ser mameluco, as incoerências dos homens que viveram pelos meandros do sertão.
Podemos afirmar ainda que ele foi um produto do sistema político-econômico em vigor
3
Na Colônia, os jesuítas reforçavam a existência de impedimentos alimentares aos fiéis. Davam o exemplo
da conduta esperada dos súditos cristãos como se observa na carta escrita pelo Provincial Inácio de Tolosa
(1569, fl. 02). Encontramos neste manuscrito que os religiosos davam esmolas e realizavam abstinência
para poder alcançar o favor de seu Deus e assim poderem agir contra os desleais inimigos da santa fé.
Podemos asseverar que todos os fiéis tinham ciência da obrigação das abstinências, visto que Tolosa
mandou publicar na cidade da Bahia que em todas as quartas-feiras, sextas-feiras e sábados era proibido
comer carne, mormente, na época da quaresma (TOLOSA, op. cit.).
11
V - Referência Bibliográfica
5.1. Fontes manuscritas
a) ANTT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, (APALS – Acervo
Particular do Prof. Dr. Antônio Lindvaldo Sousa).
Processos inquisitoriais:
17 762 (Gonçalo Fernandes);
13 098 (João Gonçalves).
b) BNP - Biblioteca Nacional de Portugal (APALS).
Correspondência jesuítica:
Carta do Provincial Inácio de Tolosa. Co. 41.532, fl. 164. Mo. doc. 2.909.
C) IHGS – Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
Carta de sesmaria de Domingos Fernandes Nobre – Livro 1, [fol. 34 – 34v]) – CD-
ROM, nº 0024.
b) Correspondência jesuítica:
“Carta do Pe. Manuel da Nóbrega aos padres da Cia. de Jesus, 1549”. In: HUE, Sheila
Moura (Org.). Cartas do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 31 a 41.
c) Cronista:
ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. 2 ed.
São Paulo: Melhoramentos; Brasília: INL, 1976, p. 81-201.
12
*
Giovana dos Anjos Ferreira
**
Leila do Socorro Araújo Melo
*
Graduada em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Pará, membro do Grupo de
Estudos Musicais da Amazônia- GEMAM. giovanaferreira8@yahoo.com.br
**
Mestre em Antropologia Social. Docente do curso de Ciências da Religião da Universidade do
Estado do Pará; da Secretaria Estadual de Educação do Pará e da Escola Superior da Amazônia.
leilamelo1@yahoo.com.br
Belém do Pará, a partir de reflexões feitas sobre o Louvor Norte, bem como as
transformações que ocorrem no meio evangélico. Ressaltando que
A dinâmica produtiva compreende a “música gospel” e apresenta
artistas, bandas musicais, empresários, bens e serviços, sendo muitos
vinculados às empresas presentes no meio evangélico. Também é
encontrada a modalidade black music gospel / “música negra” que
caracteriza uma esfera de produção musical e de eventos.
Determinadas musicalidades são reinterpretadas e apontadas como
componentes de uma comunicação específica entre os fiéis. Então, a
atividade musical estimula a discussão sobre a transformação do meio
evangélico, pois, de um lado, bens culturais são apropriados e novos
modos de participação são encontrados; de outro lado, alguns
produtores apresentam reflexões e concepções acerca da “cultura
negra” e do “negro” no meio evangélico.
Entre os formuladores de “música gospel” encontram-se aqueles que
produzem a black music gospel / “música negra”. Fazem parte dela
expressões como o rap, o rhythm and blues (r&b), o drum n’bass (db),
o reggae, e afirma-se que o pagode e o samba também são seus
componentes. (PINHEIRO, 2007, p. 164)
O Louvor Norte
O Louvor Norte ocorre na capital paraense, e é um festival de canção
1
gospel , tradicional na cidade, o mesmo ocorre sempre no terceiro fim de semana
do mês de maio, sua realização ocorre desde o ano de 1988 e é organizado e
produzido por um pastor e promotor de eventos, mas desvinculado da igreja.
1
[...] quando falarmos em gospel, utilizaremos canção ao invés de música. Apresentaremos a
canção gospel como um gênero poético-musical que abarca diversas vertentes, e mesmo que
estas possuam expressões variadas (axé e funk gospel, dentre outras), elas têm um mesmo
cerne, que é a música cristã negra, que tem sua origem entre o final do século XIX e o início do
século XX, nas celebrações das comunidades protestantes negras estadunidenses. (FERREIRA, G.
A., 2013, p. 13).
O Louvor Norte é um evento que foi projetado desde o início para reunir
o público jovem, em um espaço interdenominacional, utilizando-se da
música e da dança, ou seja, onde houvesse a possibilidade da
juventude, dançar, pular e cantar ao som de canções as quais as letras
falam de Deus.
É nos fim dos anos 80, no inicio do movimento gospel no Brasil, no dia
22 de maio de 1987, que ocorreu a primeira edição do Louvor Norte na
região metropolitana de Belém, no estado do Pará. (FERREIRA, G. A.,
2013, p. 39).
2
www.catedraldafamíliaieq.com
Fotografia 1: 25ª edição do Louvor Norte, maio de 2012.
Fonte: Arquivo pessoal de Giovana dos Anjos Ferreira
3
7 Taças é uma gravadora de música gospel brasileira pertencente ao grupo Apocalipse 16, cujo
líder Pregador Luo é o maior destaque. Atualmente, esse selo está sendo distribuído pela
gravadora Aliança Produções. Somados, todos os lançamentos da gravadora independente 7
Taças ultrapassam a marca de 900.000 cópias comercializadas
4 5
Incomparável” . Em 2011, Luo, foi indicado ao Troféu Promessas . Ele também se
utiliza do cyber espaço para divulgação de seu trabalho, onde se verifica que o
mesmo possui mais de 50 milhões de visualizações no Youtube e milhares de
6
seguidores nas redes sociais (Twitter e Facebook) .
Fotografia 2 Figura 1: Pregador Lou na 25ª edição do Louvor Norte, maio 2012.
Fonte: Arquivo pessoal de Giovana dos Anjos Ferreira
4
O CD “Único-Incomparável” tem 2 Volumes, com mais de 30 faixas inéditas e participações da
cantora Cassiane, do grupo KLB e do rapper Emicida. O novo CD marca uma nova fase na
carreira de Luo, em que ele usa uma sonoridade pop com arranjos mais refinados e também se
arrisca cantando e fazendo todos os backing vocals.
5
O Troféu Promessas é uma premiação realizada pela Geo Eventos com o apoio da Rede Globo
desde o ano de 2011 para premiar os melhores artistas da música gospel brasileira. Com o fim
do Trofeu Talento em 2009, a premiação se tornou logo em seu início como a maior premiação
da música evangélica, com indicações de cantores de grandes gravadoras gospel e seculares
como a MK Music, Graça Music, Sony Music, Som Livre e Line Records.
6
Disponível em: http://www.7tacas.com.br/ e https://www.facebook.com/luo7t. Acesso: 30.
Mar. 2013.
valorização da raça e da cultura afro e latino- americana, como pode ser percebido
nos trechos das canções abaixo:
Nesses dois trechos, de duas canções distintas, verifica que Pregador Luo faz
críticas sobre a sociedade e a desigualdade socioeconômica, e como esta sociedade
é capaz de moldar instituições para a sua manutenção no poder, onde o dinheiro é
o centro de tudo. Também alerta sobre os aspectos da escravidão social moderna,
fazendo paralelo com a necessidade de manutenção da liberdade, historicamente
conquistada com muita luta e que na atual conjuntura deve ser buscada através de
Deus, destaca ainda entre outros aspectos, a necessidade, o trabalho, a produção
de valor, a alienação e os fetiches. Dessa forma, ele expõe sua indignação ao
sistema que historicamente desumaniza a todos, isso tudo através da
expressividade do rapper.
E é em seus últimos álbuns que podemos observar uma análise do momento
social atual do país e do mundo, segundo a sua própria ótica, mas sem deixar de
lado o teor bíblico, o que deixa evidenciado sua crença, ou seja, nas letras das
canções do Pregador Luo, observamos que as belezas e as mazelas da pátria
brasileira são relatadas em cima de uma sonoridade embasada pela black music e
pela MPB.
A canção gospel expressa narrativas bíblicas, com interferências de Deus em
favor de seu povo. Tais narrativas são expressas nas músicas como forma de
adoração cristã. Assim a canção nos apresenta a visão dos fiéis e como eles se
utilizam da canção para ter contato com o transcendente, bem com, a trocar
experiências com outros fieis e possíveis novos adeptos. (PINHEIRO 2007).
Verifica-se, portanto que a canção também proporciona um bem-estar espiritual,
pois assim como a maioria das canções gospel, essa canção traz a mensagem de
consolo e ânimo, mas com um diferencial, pois a mesma aborda temas que outrora
não faziam parte do contexto cristão evangélico, como política, desigualdade
socioeconômica.
Em relação à posição dos jovens que participam do evento sobre as
releituras da questão negra nas produções artísticas e na proposta do evento,
assim como ocorre com outros estilos e tipos de festas e festivais gospels, os
posicionamentos não são unânimes, pois se muitos vão a alguns casos contrariando
os direcionamentos de suas igrejas, outros vão para reafirmar suas convicções
contrárias. Entretanto, através das conversas e observações em campo percebemos
que há, pela maioria, certa rejeição e aversão, com relação à inserção e utilização
de novos estilos, em festas e festivais gospels. Onde observamos discursos
proferidos por jovens, tais como: “Festa pagã no meio do povo de Deus?”. “Não
copie as novidades populares deste mundo”. A Bíblia diz em Romanos 12:2 “E não
vos conformeis a este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa
mente, para que experimente qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de
Deus”.
Entretanto há também uma pequena parte da juventude cristã evangélica,
que gradativamente cresce, a qual possui um discurso contrário ao exposto
anteriormente, ou seja, favoráveis a esses novos estilos de adoração ao sagrado.
Adotando discursos, tais como: “Evangelização com inteligência...”. “Se os crentes
não se misturarem com os nãos crentes, como irá ganhá-los? Jesus andava com os
pecadores... esse negócio da gente achar que crente não deve fazer isso, ou aquilo
é coisa de gente religiosa e hipócrita... apenas temos que ter temor e fizer pro
Senhor... não vejo o porquê de ser contra...”. “Jesus disse não sejam hipócritas e
religiosos! O povo de Deus não pode dançar ao som de outros estilos? Que pecado
tem? O pecado esta em não ter decência e ordem e se ajuntar a roda dos
escarnecedores. O povo de Deus tem que aprender a se divertir de maneira santa,
qual é o problema de estar no meio dos irmãos e se divertir e ainda dançar e ouvir
música de Deus?”.
Percebemos que através dos discursos e ações dos jovens durante o Louvor
Norte 2012 que relação com black music gospel ainda é de estranhamento e
aceitação parcial, um misto de novidade, e encantamento pela forma de
expressividade sonora e corporal que a mesma proporciona, porém seu cunho de
denúncia e ligação com uma identidade negra, em Belém, ainda é pouco
desenvolvido, fruto de iniciativas individuais que se encontram em espaços
alternativos como o Louvor Norte.
Considerações Finais
Referências
CAMURÇA, Marcelo Ayres ; UMBELINO, Tâmara Lis Reis . Rappers do Senhor: o hip
hop gospel como instrumento de afirmação social entre jovens negros da periferia
em MG. Debates do NER (UFRGS), v. 14, p. 01-23, 2008.
FERREIRA, Giovana dos Anjos. Juntos outra vez: canção gospel, espetacularização
da fé e marketing religioso no Louvor Norte. Trabalho de Conclusão de Curso
(Licenciatura Plena em Ciências da Religião), Universidade do Estado do Pará,
Belém, 2013.
PINHEIRO, Marcia Leitão. Música, religião e cor uma leitura da produção de black
music gospel. Religião & Sociedade, v. 27, p. 163-180, 2007.
A RELIGIÃO MARRANA: UM CASO DE SINCRETISMO NA AMÉRICA
PORTUGUESA
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo refletir sobre o sincretismo religioso que
se evidenciou na religião marrana, a partir do encontro entre as práticas judaicas e
cristãs, por ocasião da conversão dos judeus ao cristianismo no final do século XV.
Analisaremos as identidades fragmentadas dos chamados cristãos-novos judaizantes,
tomando como exemplo o caso de Antônio José da Silva, de alcunha o Judeu,
considerado pela historiografia o maior comediógrafo de origem luso-brasileira do
século XVIII. O estudo seguirá a perspectiva da História das Religiões e da Micro-
história, associada ao paradigma indiciário. Desvenda-se com esta pesquisa que o
Judeu, mesmo diante das perseguições empreendidas pelo Tribunal do Santo Ofício
aos cristãos-novos judaizantes, difundiu uma mensagem criptografada aos de seu
grupo.
INTRODUÇÃO
O decreto de Granada assinado, em 31 de março de 1492, pelos reis
Fernando de Aragão e Isabel de Castela, no contexto da unificação política e religiosa
da Espanha, provocou transformações sem precedentes na história dos judeus da
Península Ibérica, conhecidos como sefarditas. Este documento que ficou conhecido
como o édito de expulsão dos judeus dos domínios da atual Espanha, e levou de um
lado à dispersão de boa parte dos judeus, principalmente para Portugal e por outro à
conversão ao cristianismo, em troca da permanência no território espanhol.
No final de 1496, os judeus que seguiram para Portugal foram mais uma vez
levados a escolher entre a conversão ou a saída do reino. D. Manuel, pressionado pela
Espanha, estabelece um prazo para que os judeus deixem o território, no entanto,
antes de findar o prazo, proíbe a saída e ordena que todos se convertam ao
catolicismo pela força (NOVINSKY, 1992).
Este episódio fez surgir vários grupos, a saber: verdadeiros conversos que se
tornaram fiéis cristãos; conversos parciais que vacilavam entre Judaísmo e
Cristianismo ou tentavam uma acomodação sincrética entre as duas religiões;
conversos criptojudeus que, na medida do possível, mantiveram-se fiéis ao Judaísmo;
e conversos que rejeitavam ambos Cristianismo e Judaísmo à luz da contínua
perseguição religiosa e violência (Jacobs 2002, apud SILVA, 2009).
A opção neste trabalho é pelos cristãos-novos que resistiram à conversão de
fato e iniciaram um fenômeno conhecido como Criptojudaísmo – a prática secreta da
religião judaica. Uma nova religião, portanto, criada na fronteira entra o judaísmo e o
cristianismo, que foi denominada como Religião Marrana.
Entretanto, vale ressaltar que em uma estrutura social homogeneizante em
que qualquer desvio da fé e da moral, imposta como única e absoluta, era punido com
presteza. Essa resistência só pôde ser considerada devido ao aparato teórico-
metodológico da História Cultural que possibilita reduzir a escala de observação para
analisar documentos produzidos no contexto dos grupos dominantes, mas que
revelam sinais de culturas subterrâneas, a exemplo das óperas de Antônio José de
Antônio José da Silva e dos processos movidos contra ele pelo Tribunal da Inquisição.
Uma análise microscópica, e ao mesmo tempo, densa e intensiva das fontes utilizadas.
Entende-se que a micro-história serve como uma tentativa de corrigir os
aspectos que não funcionavam na história tradicional, uma alternativa para vincular
cultura e sociedade e ao mesmo tempo refutar o relativismo, o irracionalismo e a
redução do trabalho do historiador a uma atividade puramente retórica que interprete
os textos e não os acontecimentos. Além de ver toda ação humana como resultado de
constante negociação, manipulação, escolhas e decisões do indivíduo, diante de uma
realidade normativa, ou seja, a estrutura oferece brechas e contradições sob as quais
o indivíduo exerce uma relativa liberdade de criação (LEVI. In. BURKE, 1992, p. 135).
A opção por um caso particular não foi feita de forma aleatória, e sim por
entender que Antônio José seria um normal excepcional1, um acesso para se observar
as incoerências de grandes sistemas sociais e culturais, as brechas e as fendas na
estrutura que propiciam ao indivíduo um pouco de espaço livre (BURKE, 2002).
Assim, interessa-nos o detalhe revelador, as marcas residuais nos traços da
cultura material e, sobretudo imaterial, pois, “se a realidade é opaca, existem zonas
privilegiadas - sinais, indícios – que permitem decifrá-la” (GUINZBURG, 1989, p. 117).
Esse constitui o ponto central do paradigma indiciário ou semiótico, que
compara o historiador a um detetive, por ser ele responsável pela decifração de um
enigma, pela elucidação de um enredo e pela revelação de um segredo. O historiador
detetive não entende a realidade como sendo transparente, e por isso vai além
daquilo que é dito, vê além do que é mostrado, exercitando seu olhar para os traços
secundários, para os detalhes e para os elementos que, sob um olhar menos arguto e
perspicaz, passariam despercebidos (PESAVENTO, 2005).
A contribuição de Ginzburg vai além do método2, como indica Jacqueline
Hermann em seu ensaio sobre História das religiões e religiosidades. A autora salienta
1
Expressão cunhada pelo historiador italiano Carlo Poni.
2
Embora o método indiciário tenha se consolidado enquanto principal contribuição de Carlo Ginzburg,
Jacqueline Hermann destaca a importância do historiador italiano para a constituição da disciplina História
das Religiões, pelo fato de não aceitar as análises fenomenológicas que procura a essência da experiência
que o historiador italiano é um marco e uma referência fundamental para o
enfrentamento de questões surgidas no processo de construção da história das
religiosidades, sobretudo no campo temático da história das crenças: circularidades e
hibridismos culturais, no qual inserimos o presente estudo (HERMANN. In: VAINFAS;
CARDOSO, 1997).
Interessa-nos refletir sobre o sincretismo religioso que se evidenciou na
religião marrana, a partir das identidades fragmentadas dos chamados cristãos-novos
judaizantes, tomando como exemplo o caso de Antônio José da Silva, de alcunha o
Judeu, considerado pela historiografia o maior comediógrafo de origem luso-brasileira
do século XVIII, através de uma breve reflexão sobre a trajetória de vida deste
comediógrafo, inserido no contexto da cultura criptojudaica.
religiosa e adaptando o método comparativo a uma análise historiográfica para entender as relações históricas
entre mitos e ritos.
3
D. Esperança, descende da família materna de Antônio José da Silva e é natural do Brasil.
4
Ressaltamos que a ortografia original do traslado do processo foi mantida.
5
Paulo Roberto Pereira explica que a denominação “jocoséria” é utilizada na classificação das “óperas do
Judeu”, por lembrarem os recursos híbridos da tragicomédia, mistura entre a elevação do trágico e o realismo
do cômico (PEREIRA. In. SILVA, 2007, p. 28).
ou Collecção Das Operas portuguezas que se representarão na Casa do Theatro
publico do Bairro Alto de Lisboa. Trata-se de quatro peças teatrais, a saber: Vida de D.
Quixote de la Mancha, Esopaida, ou Vida de Esopo, Os Encantos de Medéa e
Amphitryaõ, ou Jupiter, e Alcmena comédias musicadas que eram apresentadas por
meio de marionetes.
Suas peças articularam o que havia de novo para a época: a prosa ao invés
do verso; a música, por inspiração das óperas italianas e a utilização de marionetes de
cortiça, mais leves que permitiam mutações rápidas de cena. O Judeu foi influenciado
ainda pelo estilo jesuítico da arte teatral, falado em latim e encenado, sobretudo na
Universidade de Coimbra, onde estudou direito canônico e pela grandiosidade do
teatro espanhol do ‘Século de Ouro’, influências, provenientes do movimento
iluminista, que representaram uma renovação no tradicional teatro nacional
português.
A liberdade, porém, duraria pouco, pois em 1737, foi preso pela segunda vez,
denunciado por práticas secretas de judaísmo por uma escrava de sua mãe, e mesmo
não havendo provas conclusivas que o pudessem condenar, mesmo negando as
acusações e com depoimentos favoráveis dos frades dominicanos, a sentença de
Antônio José da Silva já havia sido traçada pela legislação inquisitorial,6 pois, ele
representava um risco para a preservação das verdades absoltuas pregadas pela
cultura dominante.
O fato é que dois anos depois da prisão, em 1739, aos 34 anos de idade,
Antônio José recebeu a sentença de:
6
De acordo com o manual dos inquisidores a Igreja não podia perdoar o penitente relapso por acreditar que
não houve conversão sincera, no passado. “O crime reiterado (geminatus actus pravus) é particularmente
grave, dizem os juristas. É, portanto, absolutamente justo que a Igreja considere os relapsos como inúteis,
sempre infectos de heresia e, por isso, dignos de ser definitivamente expulsos e entregues ao braço secular”
(EYMERICH, 1993, p. 233).
Quase toda a família de Antônio José, de ascendência hebraica, pais, avós,
tios, primos, sobrinhos e esposa também saíram penitenciados em autos de fé
acusados de praticar secretamente o judaísmo (PEREIRA, 1998). Entretanto, a
notoriedade do Judeu, deve-se ao legado das óperas que compôs para apresentação
no Teatro do Bairro Alto em Lisboa, comédias classificadas pelo autor como jocosérias.
Essas, possivelmente, constituíram o agravante para a condenação7, pelo fato de ser
um instrumento de resistência a toda opressão sofrida pelos cristãos-novos, apesar de
não ser objeto de investigação pelo Tribunal do Santo Ofício, por terem sido
devidamente licenciadas.
Curiosamente, apesar de Antônio José haver sido o mais celebrado
comediógrafo de origem portuguesa do Século XVIII, a única referência que acontece
em todo o processo movido contra o mesmo pelo Tribunal do Santo Ofício, no período
entre outubro de 1737 a outubro de 1739, é no dia 15 de outubro de 1738, quando
frei Diogo Pantoja, mestre da Ordem de Santo Agostinho, atuando como testemunha
de defesa, declarou à Mesa da Inquisição que conhecia Antônio José:
... haverá quatro annos, pelo ver e lhe falar muitas vezes...” e
que “... depois que elle testimunha veio da India a ultima vez e
o comunicava por cauza das compozições, que elle fazia assim
no Bairro-alto, em caza de um irmão d’elle testimunha onde lhe
falou muitas vezes, como na caza do réo onde elle testimunha
ia.... (Traslado do segundo processo, 1896, p. 165).
7
Tese defendida por Nathan Wachtel em seu estudo sobre os “conversos” condenados como judaizantes pela
Inquisição lisboeta, que indica a respeito de Antônio José da Silva que: “um conjunto de argumentos
razoáveis permite sustentar a tese segundo a qual Antônio José da Silva teria sido condenado em razão das
ideias subversivas que o seu teatro passava para o público” [...] “o fato é que se podem extrair das peças do
‘Judeu’ muitas citações que, situadas no contexto histórico, parecem confirmar uma rara temeridade, como a
de fazer alusão à própria experiência nas prisões da Inquisição” (2001, p. 313, apud CHARTIER, 2012, p.
170).
em que Jasão chegou a Cólquida (atual República da Geórgia), se viu divido entre os
amores de Medeia e Creusa, porém decididamente apaixonado por Creusa.
Considerando que na simbologia religiosa tanto a assembleia cristã quanto a
judaica são representadas por mulheres, a metáfora de Jasão dividido entre o
interesse da igreja católica, representada por Medeia, e o amor pela Sinagoga judaica,
simbolizada por Creusa, representou perfeitamente a condição existencial de cristão-
novo judaizante durante os tempos modernos.
Além de caracterizar a condição do cristão-novo judaizante, a ópera de
Antônio José da Silva faz referência ao segredo, um dos requisitos para continuar
observante da religião marrana no contexto da imposição da prática da religião
católica aos sefarditas. Como pode ser evidenciado nas palavras de Sacatrapo:
“Senhor, em duas palavras: amar a Medeia por cerimônia, até lhe gadanhar o
Velocino, e ir conquistando em todo o caso o Velocino de Creuza.” (SILVA, 1759,
p.267). Noutro lugar, dirigindo-se a Teseu, Jasão explica: “Assim é, Teseu: mas as
cousas não se fazem como se dizem.” “... Uma mulher escandalizada e poderosa [A
Medeia/Igreja Católica] é muito para temer. Assim, pretendo encobrir, que por Creuza
é que me detenho” (Ibid, p. 288;289).
Toda a peça está permeada por críticas diretas à imposição da prática da
religião católica aos sefarditas, além dos costumes místicos abrangendo desde os
contra-feitiços, as mandingas, os encantamentos e desencantes, indícios que apontam
que o autor fazia referência cifrada à Cabala prática, um dos aspectos principais da
religiosidade dos judaizantes. Na ópera, além de Medeia, a sua criada, Arpia e o
“carneiro” são praticantes de feitiçaria. Além disso, o criado Sacatrapo afirma sobre o
reino da Cólquida: “... Sei que nesta terra há muita feiticeira” (SILVA, op. cit., p.257).
É grande o debate em torno deste indivíduo emblemático da nossa história,
principalmente acerca da relação entre a experiência de vida e a obra, da autoria de
algumas óperas atribuídas e publicadas após a morte, dos motivos que o condenaram
e da identidade8 que assumira de fato.
Apesar de ser considerado cristão em algumas biografias, como a de
Varnhagen e Sacramento Blake, existem fortes indícios que Antônio José da Silva
assumiria a identidade de cristão em público por uma questão de sobrevivência, mas
em seu interior prevalecia a identidade do judeu novo, sendo assim, um cristão-novo
judaizante cabalista9.
8
A identidade aqui deve ser pensada como uma construção histórica, e para entendê-la nos valeremos da
concepção de Stuart Hall, que mesmo refletindo sobre a identidade do sujeito pós-moderno formada na
diáspora negra afro-caribenha no pós-guerra, nos ajuda a pensar as identidades híbridas partindo do princípio
de que “Na situação da diáspora, as identidades se tornam múltiplas” (HALL, 2003, p. 26-27).
9
Essa perspectiva encontra-se em desenvolvimento em minha pesquisa no mestrado intitulada
provisoriamente Aspectos Cabalísticos na Obra de Antônio José da Silva.
A AMÉRICA PORTUGUESA COMO UM LUGAR DE ASILO PARA OS CRISTÃOS-
NOVOS JUDAIZANTES
O estabelecimento dos cristãos-novos na América portuguesa remete ao início
da colonização, na primeira metade do século XVI. Desde então, as comunidades de
judaizantes começaram a ganhar força, porquanto, a maioria dos conversos que
chegaram às terras do atual Brasil, não se tornaram cristãos de fato, mas sim de
aparência, pois, como indica Rodolfo Garcia:
10
A perseguição aos judeus no mundo ibérico se intensifica a partir de 1492, por ocasião da assinatura do
Edito de Expulsão na Espanha, pelos reis católicos Fernando e Isabel, obrigando os judeus a se dispersar pela
Europa, principalmente para Portugal onde viveram livremente, sem perseguições, mesmo com a existência
de leis como as do Concílio de Latrão que os obrigava a usar sinais em suas vestimentas. Em Portugal, o
problema do converso, conhecido como cristão-novo, surge quando D. Manuel (pressionado pela Espanha)
concorda em expulsá-los do país, no entanto, o rei consciente da importância econômica do grupo proibiu a
saída dos judeus através da prática da conversão forçada em 1497 (NOVINSKY, 1992, p.30).
Dentre estes, um monitório publicado no início dos trabalhos da visitação
define como sendo práticas judaizantes, as seguintes, ainda que muitas delas não
tenham sido típicas do Brasil, mas da península ibérica:
11
A data faz referência à Inquisição portuguesa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para efeito de conclusão, um aspecto essencial da produção deste trabalho
precisa ser destacado, a saber: a natureza introdutória da pesquisa, pois o estudo da
religião marrana constitui um aspecto dentro da temática em desenvolvimento no
programa de mestrado. O texto tem o objetivo de situar Antônio José da Silva, o
Judeu, em um contexto mais amplo da cultura sefardita que se desenvolveu a partir
da diáspora atlântica. Sendo assim, o conteúdo será revisado à medida que o estudo
for aprofundado.
No momento, considera-se que esta religião marrana, na perspectiva da
história das religiões e religiosidades, corrente da História Cultural, deve ser
compreendida como um produto cultural, e, portanto, ser analisada a partir das
contingências históricas.
Um produto contextualizado e enraizado na sociedade em todos os seus
setores: político, social, econômico e principalmente religioso. Fenômeno
eminentemente ibérico e latino-americano, criado como defesa contra a imposição de
uma cultura estranha à do judaísmo.
No processo de criação e consolidação da religiosidade característica do
marrano, a América portuguesa, recém-conquistada, serve de pátria para esse novo
grupo de indivíduos, divididos entre a crença dominante e a crença ancestral,
geradores comportamentos incompatíveis a esses dois universos culturais. Homens
divididos e de identidades fragmentadas, que encontram no sincretismo uma maneira
de subsistir culturalmente, evitando um etnocídio ainda maior.
O fenômeno do sincretismo constituiu uma característica fundamental neste
processo, porquanto, os costumes dos marranos eram transmitidos de geração em
geração pela oralidade, e mesmo na condição do segredo do interior dos seus lares, os
costumes judaicos se mesclaram aos cristãos ao ponto de, mesmo aqueles que
retornaram ao judaísmo posteriormente, continuarem com uma prática religiosa
misturada.
FONTES:
SILVA, Antônio José da. Theatro Comico Portuguez, ou Colecção das Operas
Portuguezas, que se representarão na Casa do Theatro Publico do Bairro Alto de
Lisboa. 4ª impressão. Lisboa. Na Of. Patriarcal de Franc. Luiz Ameno. 1759.
BLAKE. Augusto Victorio Alves Sacramento. Antonio José da Silva. In: Diccionario
Bibliographico Brazileiro. Primeiro Volume. Rio de Janeiro. Typographia Nacional.
1883, p. 225-229.
BURKE, Peter. O microscópio social. In: História e Teoria Social. São Paulo: Unesp,
2002, p. 60-66.
DINES, Alberto. Vínculos do Fogo I: Antônio José da Silva, o Judeu, e outras histórias
da Inquisição em Portugal e no Brasil. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter. A Escrita da História: novas
perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora Unesp, 1992, p. 133-161.
ROTH, Cecil. História dos Marranos. Porto: Livraria Civilização Editora, 2001.
SILVA, Antônio José da. As comédias de Antônio José, O Judeu: Vida de D. Quixote,
Vida de Esopo, Anfitrião e Guerras do Alecrim. [introdução, seleção e notas de] Paulo
Roberto Pereira. São Paulo: Martins, 2007.
SOUZA, Grayce Mayre Bonfim. Uma Trajetória Racista: O Ideal de Pureza de Sangue
na Sociedade Ibérica e na América Portuguesa. Politeia: Hist. e Soc. Vitória da
Conquista. V. 8 n. 1, p. 83-100. 2008.
VARNHAGEM, Francisco Adolfo de. Biographia dos brazileiros distinctos por letras,
armas, virtudes, &c. Antonio José da Silva. Revista Trimestral de Historia e
Geographia ou Jornal do Instituto Historico e Geographico brazileiro. t. IX. Rio de
Janeiro. 1847. Disponível em: http://www.ihgb.org.br/rihgb.php
RENUNCIAR A UMA HERANÇA TEOLÓGICA? OS CORINHOS
Ele é exaltado,
Pra sempre exaltado
O seu nome louvarei
Ele é o Senhor
Sua verdade vai sempre reinar
Terra e céus glorificam seu santo nome
Ele é exaltado, o Rei é exaltado nos céus
1
Ademar de Campos foi engajado com a causa do evangelismo desde 1974. Cursou teologia por três anos e é
músico, compositor e pastor auxiliar na Igreja Comunidade da Graça do Brasil da cidade de São Paulo. É
autor de várias canções que são conhecidas por todo o país, a exemplo de “Grande é o Senhor”. Realizou
vinte trabalhos musicais desde 1985, e já escreveu três livros: “Adoração e Avivamento”, “O Poder da
Música a Serviço da Adoração” e “Adoração um Estilo de Vida”. Ver:
http://www.adhemardecampos.com.br/
2
Conforme: http://letras.terra.com.br/adhemar-de-campos/205379/
primeiro, que se distinguiria de sua criação. Silas Daniel afirma que tudo teve um
começo e terá um fim, e que o Senhor também está além do tempo, que foi criado
para dimensionar a existência da humanidade, de maneira que quando o ser morre
fisicamente sua alma passa a estar inscrita na eternidade (DANIEL, 2001).
Na terceira parte do cântico encontramos mais uma reafirmação de trechos da
Escritura que abordam a noção de fundamento eterno: “Sua verdade vai sempre
reinar”. “Passará o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão” (Mateus
24.35). Numa associação entre texto revelado e promessas para uma realidade
vindoura, alguns pesquisadores da Bíblia interpretam que os trechos da Escritura
seriam uma enunciação da proposta do Senhor para orientar a humanidade “Toda
Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para
corrigir, para instruir em justiça” (II Timóteo 3.16). E também a materialização das
verdades desta Voz, deste Verbo que desde o princípio estava (GITT, 2005).
Logo em seguida o cântico apresenta o seguinte trecho: “Terra e céus
glorificam seu santo nome”, que no nosso entender seria uma retomada do discurso
elaborado até então, abordando novamente a ideia de que no plano terreno
(humanidade) e no plano celestial (neste inominável espaço espiritual) glórias são
constantemente rendidas a este Nome. O compositor conclui a canção sugerindo que
uma contínua exaltação é realizada ao “Rei”.
O filósofo Cornelius Castoriadis alega que Deus só pode ser referido pela
humanidade a partir de símbolos, nem que seja o Nome, mas Ele também ultrapassa
este Nome, é outra coisa, pois, está além de nossas definições (CASTORIADIS, 2007).
Apesar de utilizar uma linguagem mais coloquial para expressar sua relação
com o sagrado podemos perceber que o compositor lança mão da mesma natureza
confessional dos cânticos dos hinários, onde a diferença estaria na maneira de
comunicar o seu sentimento.
A canção “Jesus em Tua Presença”, de autoria de Asaph Borba 3, é outro
exemplo de composição que não rompe com as propostas teológicas presentes em
muitos hinos evangélicos.
Jesus em Tua presença, reunimo-nos aqui,
Contemplamos Tua face, e rendemo-nos a Ti,
Pois um dia Tua morte, trouxe vida a todos nós,
E nos deu completo acesso, ao coração do Pai.
O véu que separava já não separa mais,
A luz que outrora apagada, agora brilha,
E cada dia brilha mais.
3
Asaph Borba é um cantor, músico e compositor evangélico que se converteu no ano de 1974, e em 1978
gravou o seu primeiro disco, “Celebremos com Júbilo”. Nas últimas décadas muitos dos seus trabalhos
musicais têm tido notoriedade no segmento. Ver:
http://www.asaphborba.com.br/noticia_tour.asp?COD_MENU=102
Só pra Te adorar,
E fazer Teu Nome grande,
E te dar o louvor que é devido.
4
Estamos nós aqui.
4
Conforme: http://letras.terra.com.br/asaph-borba/172299/
preocupação maior do que as harmonias e os ritmos das canções, conforme atesta o
senhor Abner Jorge de Andrade:
“... Agora vieram novas músicas. Eu não sou contra as músicas
não, agora, eu sou contra o conteúdo que aparece em certas
músicas. Eu não aceito determinadas mudanças. Outra coisa
que ta prejudicando a igreja é que estas músicas novas, muitas
vezes a letra é fraca e o auditório não tem condição de ouvir a
letra, só ouve os instrumentos...” (ANDRADE, 2006).
Restitui!
Eu quero de volta o que é meu
Sara-me!
E põe teu azeite em minha dor
Restitui!
E leva-me às águas tranqüilas
Lava-me!
E refrigera mina alma
Restitui!
5
Conforme: http://letras.terra.com.br/toque-no-altar/185328/
mensagem em que a ênfase é a preocupação com os problemas dos seus
espectadores (HUSTAD, 1986).
Com a canção “Restitui” vemos que até o término da primeira parte do
corinho as expressões utilizadas não se distanciariam excessivamente de outras
canções evangélicas de sua época, mas com o trecho “Eu quero de volta o que é meu”
a composição toma um rumo que enfatiza o seu lugar teológico de fala, pois
demonstra um entendimento que tem sido motivo de muita polêmica entre
evangélicos, trata-se da chamada Teologia da Prosperidade.
A Teologia da Prosperidade é uma corrente doutrinária surgida nos EUA nas
décadas de 1960 e 70 em meio ao movimento de renovação pentecostal que prometia
saúde perfeita, prosperidade e triunfo. O teólogo e escritor Ricardo Gondim alega que
em toda a história do cristianismo encontram-se relatos acerca da cura divina, mas,
que a partir do século XIX, e especialmente a partir do século XX, passa-se a haver
uma maior ênfase no dom da cura divina em alguns grupos do segmento evangélico
(GONDIM, 1993).
Gondim informa que o principal nome na divulgação da Teologia da
Prosperidade foi Keneth Erwin Hagin, nascido em 1917, que iniciou o seu ministério
como pastor batista entre 1934-37 em uma pequena igreja na cidade de Roland,
Texas. Sua ênfase em pregar acerca da cura divina o afastava da proposta doutrinária
dos batistas. Em 1937 passou a ser pregador das igrejas da denominação da
Assembléia de Deus, até 1949, quando inicia o seu próprio trabalho, alegando
inclusive que seu ministério chegou a um nível super-espiritual, e que,
posteriormente, Jesus o teria “levado aos céus oito vezes” (SIC!) entre os anos de
1950 à 1959. Hagim escreveu livros e foi muito influente em algumas igrejas do
segmento evangélico, inclusive no Brasil.
Além das ideias de saúde perfeita e sucesso profissional, financeiro, etc.,
alguns dos propagadores de tais entendimentos afirmam que os filhos de Deus,
“salvos”, não podem adoecer, nem deixar de “prosperar”, uma vez que estas
situações demonstrariam incredulidade, imaturidade espiritual ou pecado. Pedir para
Deus curar e esperar que Ele faça a Sua vontade seria falta de fé, pois, crêem que
têm direitos para com o Senhor, e que o “crente” deve ordenar/decretar que seu
pedido seja realizado (GONDIM, 1993).
Gondim afirma que no que diz respeito a questão da cura “Deus permite o
sofrimento para que o socorro seja buscado, e o arrependimento venha”, de maneira
que toda teologia acerca da cura e dos milagres precisa considerar a possibilidade do
Senhor não curar. E que as compreensões acerca da Teologia da Prosperidade são um
perigo, pois, quando pessoas se acham muitos especiais e o que desejam não
acontece elas ficam deprimidas. Informa-nos também que alguns dos propagadores
de tais teologias foram hospitalizados escondidos. Afirma ainda que com estas ordens
e sentenças do tipo “Eu decreto, Ta amarrado...” seus praticantes se distanciam da fé
que confia na misericórdia e graça do Deus “que não nos dá o que merecemos,
(morte, infelicidade, inferno)”, mas que por Sua graça nos presenteia com o que não
merecemos: Suas bênçãos sem medidas (GONDIM, 1993, 93, 104).
Diante das questões expostas por Gondim nos perguntamos: por que esta
inquietação com estes discursos que se distanciam das compreensões teológicas dos
protestantes históricos e pentecostais? Silas Daniel alega que vivemos uma atual crise
onde novas teologias têm tentado relativizar os dogmas dos cristãos, desconstruindo
os antigos sistemas de interpretação, e pregado um cristianismo hedonista. E muitos
têm divulgado estas ideias não só em algumas igrejas, mas também através da
internet (DANIEL, 2007).
Uma das principais críticas que Silas Daniel faz é a “Teologia Narrativa” que
propõe que a Bíblia seja lida conforme as necessidades do leitor, que pode tirar as
lições que desejar. E que os teólogos que defendem tais ideias sentem-se
incomodados com os conceitos de “autoridade, inerrância, infalibilidade, revelação
objetiva, absoluta e literal” relacionados à Escritura. Pois crêem que qualquer
interpretação é possível, e que este Texto seria apenas inspirativo para boas obras e
para se agir de maneira politicamente correta, uma vez que esta Palavra seria um
documento datado e motivacional, onde o papel da religião se restringiria a tornar as
pessoas melhores. Daniel entende que tais maneiras de proceder refletiriam o temor
que esses teólogos têm de serem impopulares em meio aos diversos segmentos da
sociedade (DANIEL, 2007, 78).
McMahon acredita que tais modificações na maneira de se pensar a relação
com o sagrado seriam fruto da influência da psicanálise e de determinadas filosofias
na teologia. Pois, cada vez mais têm-se disseminado o discurso de que a natureza
humana é boa, e que para se tratar problemas mentais, emocionais e
comportamentais a Bíblia não seria suficiente, de maneira que nos EUA vários
pastores incorporaram o curso de psicologia a seus currículos. O escritor alega que
tais compreensões têm levado muitos cristãos a divinizarem seu ego, de modo a
crerem que podem agir conforme quaisquer que forem suas vontades, nas suas
palavras: agindo em rebelião contra Deus, desconsiderando as orientações bíblicas
para o fiel negar-se a si mesmo e abraçar as verdades do evangelho, “e os teus
ouvidos ouvirão a palavra do que está por detrás de ti, dizendo: Este é o caminho,
andai nele; quando vos desviardes para a direita ou para a esquerda” (Isaías 30.21)
(MCMAHON, 2007).
Na obra Aconselhamento: integrando a psicoterapia e a Bíblia? Bobgan e
McMahon atentam para o fato de que com a associação entre a psicoterapia e a
teologia os textos bíblicos são adaptados por intermédio das interpretações. Onde por
influência da psicanálise alguns cristãos têm buscado resolver seus problemas pondo a
culpa nos demais a sua volta, de maneira que se consideram sempre vítimas que
precisam de cura, e nunca pecadores que precisam do perdão e da ação de Deus.
Num evangelho que quer libertar o que chamam de “maravilhoso eu”. Maneiras de
pensar que, para os escritores, difeririam da proposta bíblica para a morte da velha
natureza, tornando-se, o convertido, uma “nova criatura”, e referenciam: “Enganoso é
o coração, mais do que todas as coisas, e perverso; quem o poderá conter?” (Jeremias
17.9). De modo que possam proceder, a partir deste momento, conforme “a Palavra
de Deus”, “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me
ama; e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei
a ele” (João 14.21) (BOBGN e MCMAHON, 2005).
Citando o escritor francês André Malraux Daniel acredita que vivemos um
momento único na história em que a sociedade se pergunta: “A vida tem um sentido?”
e a resposta é: “não sei”. Período onde a relativização e desconstrução das verdades e
valores têm levado alguns a crerem na ideia de que não há referentes, não há
absolutos a serem seguidos. Discursos estes que têm afetado a teologia (DANIEL,
2007, 22).
Mas, apesar de tal panorama há muitos teólogos e fiéis que não concordam
com a relativização da Escritura. Baseando-se em vários trechos desta Werner Gitt
afirma que a Bíblia é o único livro – ou conjunto de livros – revelados/autorizados por
Deus, e não há revelações suplementares, e nem se pode acrescentar nem retirar
nada. Sendo necessário permanecer nesta Palavra, que não se contradiz e é completa.
Faz críticas aos que pregam outro evangelho “Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo
do céu vos pregasse outro evangelho além do que já vos pregamos, seja anátema”
(Gálatas 1.8). Para Gitt qualquer pessoa pode selecionar trechos conforme sua
vontade, por isto, é preciso avaliar, sobretudo o contexto, e não ultrapassar o que
está escrito nesta “Revelação”, “Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a
vida eterna; e são elas que dão testemunho de mim” (João 5.39) (GITT, 2005).
Com a exposição dos discursos teológicos que realizamos ao longo deste
artigo desejamos traçar um breve panorama da atual situação do segmento
evangélico, onde apesar de existirem múltiplos discursos, que defendem vários
posicionamentos, os antigos sistemas de interpretação hermenêuticos que crêem na
Escritura enquanto “revelação” de verdades desta Voz, e, portanto um conjunto de
orientações para a humanidade ainda são adotados por muitos fiéis, especialmente
nas igrejas vinculadas ao protestantismo histórico. Com esta alegação não estamos
afirmando que os participantes têm uma mesma opinião, circunscrita pela visão da
denominação e do pastor, mas, que é preciso considerar as interpretações teológicas e
doutrinárias que circulam em cada comunidade eclesiástica. Salientando que não
tivemos nenhum constrangimento em mencionar tais falas, uma vez que elas estão
presentes em nosso texto enquanto discursos do grupo que pesquisamos.
Um questionamento que o leitor pode estar se fazendo é: qual a relevância de
se avaliar canções que não são compostas por cantores ou grupos vinculados ao
protestantismo histórico? Questão que pode ser facilmente compreendida, pois, com a
emergência da “música evangélica contemporânea” as igrejas evangélicas (em sua
maioria) passaram a adotar cânticos de várias denominações, conforme nos informa o
colaborador Afonso Joaquim Silva de Oliveira (OLIVEIRA, 2008).
Urgél Rusi Lotá enuncia que em se tratando da música nas igrejas evangélicas
muitos problemas (SIC!) seriam causados pelas lideranças que permitem a entrada de
uma quantidade excessiva dos corinhos em seu repertório musical, causando, uma
perda de identidade doutrinária nas denominações. Afirma também que muitas vezes
são escolhidos cânticos que não têm a ver com a unidade temática dos cultos (LOTÁ,
1993).
Referindo-se ao período em que pastoreou a Primeira Igreja Batista de
Campina Grande o Prof. Eli Brandão da Silva nos informa:
“Em geral o repertório foi sempre escolhido pelo antigo diretor
de música, ou o Ministro de Música, sendo que era sempre uma
combinação com o culto, pois o culto era visto como uma
unidade. As canções não podiam ser escolhidas aleatoriamente,
elas faziam parte de um todo. As músicas que eram
selecionadas no boletim eram de acordo com o tema central do
culto. Sendo que quando um grupo ia cantar isso nem sempre
era possível, pois às vezes nem o repertório deles
contemplavam as temáticas que iam ser adotadas no conjunto,
e isto escapava, pois não havia um controle disto. Às vezes o
grupo cantava, e cantava um repertório completamente
aleatório, e o culto acontecia de uma outra maneira, era como
se fosse um culto dentro de um outro culto” (SILVA, 2006).
1. Fontes orais
ANDRADE, Abner Jorge de. Entrevista concedida a Daniel Ely Silva Barbosa.
Campina Grande 02 de mai 2006.
ARAÚJO, Carlos Renato Siqueira de. Entrevista concedida a Daniel Ely Silva
Barbosa. Campina Grande 19 de jul de 2008.
BATISTA, Boanerges Rodrigues. Entrevista concedida a Daniel Ely Silva Barbosa.
Campina Grande 22 de jul de 2008.
LIMA, Vamberto. Entrevista concedida a Daniel Ely Silva Barbosa. Campina
Grande 02 de mai de 2008.
MESSIAS, Joseilton da Silva. Entrevista concedida a Daniel Ely Silva Barbosa.
Campina Grande 04 mai 2006.
OLIVEIRA, Afonso Joaquim Silva de. Entrevista concedida a Daniel Ely Silva
Barbosa. Campina Grande 23 de abr de 2008.
SILVA, Eli Brandão da. Entrevista concedida a Daniel Ely Silva Barbosa. Campina
Grande 23 ago 2006.
2. Fontes Impressas
3. Livros
4. Artigo
LÓTA, Urgél Rusi. A Música na Igreja. In: FERREIRA, Ebenézer Soares. Revista
Teológica. Publicação do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil. Rio de Janeiro.
Ano VIII, nº12, Dezembro de 1993.
http://www.adhemardecampos.com.br/
http://letras.terra.com.br/adhemar-de-campos/205379/
http://www.asaphborba.com.br/noticia_tour.asp?COD_MENU=102
http://letras.terra.com.br/asaph-borba/172299/
http://letras.terra.com.br/toque-no-altar/185328/
A ritualidade presente na performance Ritos1
Melo.ritos@hotmail.com
Resumo
Nadam Guerra
Cada item desses está diretamente ligado a vida cotidiana, rituais diários que
todos realizam, nos mais variados meios sociais, onde qualquer um pode exercer
está ação, mas o que vale ressaltar, é que a performance não pode ser entendida
como algo que é realizado de qualquer forma, um improviso mal feito, muito pelo
contrário, estas são elaboradas, e ensaiadas, o fato de ser algo livre de amarras,
não a faz ser um ato livre de preparação, sendo que o que realmente conta para
3
“Acontecimeto”, um evento, uma ação, movimentação. Termo que surgi pouco antes do nome
performence.
4
Termo utilizado, para mostrar que há limitações na maior parte das linguagens artísticas, porém a
performance busca romper com estas.
ser uma performance é o “aqui agora!”, tudo sendo feito a frente do publico,
utilizando o corpo em cena, a poesia falada, musica, vídeos, projeções, body art.
“Qualquer comportamento, evento, ação ou coisa pode ser estudado como se fosse
performance e analisado em termos de ação, comportamento,
exibição”.(SCHECHNER, 2003, p. 39).
5
Tribo indígena, localizada ao norte do México, que em 1936 foi alvo da pesquisa do teatrólogo francês
Antonin Artaud que quando finalizada teve como titulo, Lês Tarahumaras. Livro este que detalha toda a
caminhada desenvolvida por Artaud.
6
Michele Campos de Miranda, mestra em artes cênicas pela Unirio. Criadora da performance Ritos.
espetáculo que agora é realizado em 1 hora, em sua passagem por Paris, outro
ponto a ser comentado é que agora mais colaboradores surgiram, a pianista e
estudante de musicologia Judith Romero-Porras que também reside na Cité
Internationale Universitaire, o compositor contemporâneo Ignacio Baca-Lobera que
também é mexicano e o filosofo brasileiro Leon Farhi Neto, a performance foi
apresentada em dois locais pertencentes a Cité Internationale Universitaire, a
Maison du Brésil e na Maison Du Mexique. No período em que a performer Michele
Campos estive em Paris, foram realizadas mais pesquisas para aquisição de mais
referencial bibliográfico, onde foram encontrados mais textos de Antonin Artaud e
textos que estão relacionados à filosofia, sociologia, estudos sobre o Tarot de
Marseille, textos do pesquisador e cineasta chileno Alejandro Jodorowsky, que bebe
em fonte artaudiana.
7
Projeto criado em 2012 pelo grupo Cuíra, financiado pela FUNARTE. Tem como um de seus objetivos
principais, divulgar espetáculos criados por artistas paraenses e também aproximar o publico da cidade a
eventos ligados as artes cênicas.
ritualística sem barreiras com os participantes (MIRANDA,
2012, p. 1-2)
Todo este mistério que cerca um rito mágico, a performance Ritos traz
consigo, a partir do momento que nem tudo o que esta em cena, é de fato
explicito, o momento em que isto fica mais evidente é quando a performer sai do
circulo sagrado, vai até algum espectador, o convida para tirar cartas de tarot para
o mesmo, ambos vão até o centro do ritual, uma vela é acesa, a performer pega as
cartas, três cartas são retiradas pelo “convidado”e a partir deste momento todo o
restante do publico apenas observa, o que a performer interpreta em cada carta,
somente é dito para aquela pessoa que esta diante da mesma, ou seja, a questão
do mistério está presente na performance ritos, porém este elemento é utilizado
pela performer de uma forma toda pessoal, pois por de traz da utilização de todos
os elementos do espetáculo, há explicações pessoais, coisas que a mesma viveu,
coisas que fazem parte da raiz cultural, uma infinidade de explicações que apenas
ela sabe, o ritual que ela criou para si e que compartilha com o publico, fazendo
assim uma espécie de junção entre ritual religioso e secular, unindo o cotidiano ao
sagrado. O simbolo é a menor unidade do ritual. (TURNER, p. 69. 2005 ), nesta
performance a todo momentos os simbolos (cachaça, caxixis, pena, cabelo e etc.)
estão em cena, são manipulados, e também manipulam a performer, é então feita
a relação do jogo em cena, onde a performer joga com a utilização dos simbolos e
também com o público.
Um ritual pessoal, que é dividido com poucos que rodeiam a cena, um ritual que
busca despertar certas lembranças, causar transportações8 , nos espectadores.“A
performance ritualística é um recurso estético usado para evidenciar o sincretismo
cultural brasileiro e suas contradições, oposições e pontos de tensão”. (MIRANDA,
2009. p.4). Por meio dos inúmeros meios de comunicação, o ritual se torna mais
8
Termo utilizado por Richard Schechner, para dar compreensão a ação que o performer realiza em seu
ritual/performance. Não há transformações fixas, mas sim transportações, utilização de energia e após o
termino da performance o corpo do performer “esfria” e então volta ao seu corpo cotidiano.
um modo de repasse de conhecimento. “Em princípio, passa a ser “ritual” o que
nossos interlocutores em campo definem ou vivem como peculiar, distinto”.
(PEIRANO, 2006). Partindo disto o que fica visível na performance Ritos, é que a
representação feita, conseguiu captar estas peculiaridades, um pouco da pertença
da cultura indígena, que é o principal elemento cultural em cena, aquilo que é
diferente, tratar com elementos que pertencem ao “outro”, é algo delicado, pois
nunca se sabe se estará no caminho certo, mas em Ritos, a representação, os ritos,
que foram feitos no palco conseguiram passar a noção de como o ritual é algo que
realmente reflete a identidade cultural de um grupo social. A magia é portadora de
uma significativa qualidade performativa que parece inscrita nos rituais da prece,
nas danças xamânicas, nos processos simbólicos de trocas. (ROCHA, 2008. p. 137)
A questão da magia que é representada, a encantaria, as lendas, as
sutilezas, a construção do circulo mágico/sagrado, tirar cartas de tarot para alguém
do público, oferecer cachaça ao santo e compartilhar da mesma com o público,
9
este jogo (playing ) feito, quase uma espécie de brincadeira, representações
distintas, mas que conseguem se comunicar, mesmo que sejam inúmeros
elementos, algumas vezes distintos demais.
Vôos em campo
9
Termo utilizado por Richard Schechner, o “jogando/brincando” da performance,ou seja, o jogo e/ou
brincadeira deve continuar.
Dezembro de 2012, deu-se inicio a pesquisa de campo, deste trabalho, a
performance Ritos. A pesquisa de campo realizada ocorreu a partir do dia
04/12/2012 a 16/12/2012, sendo que, os ensaios foram realizados em dois
ambientes, os ensaios menos técnicos, ainda em fase de maturação do trabalho
foram realizados na residência da iluminadora Patricia Gondim e da cenógrafa
Oriana Bitar, de 04 a 09 de dezembro, posteriormente os ensaios foram feitos no
local onde o espetáculo entraria em cena, o Teatro Cuíra.
Os ensaios no porão
Chego lá, a convite de Michele Campos, para assim dar inicio a pesquisa de
campo, fazer os registros fotográficos, anotações, gravar vídeos para assim analisar
melhor o trabalho que esta sendo realizado. A priori não sabia o que esperar do
trabalho, pois só o que sabia, eram alguns detalhes que me foram fornecidos
através de conversas com a performer criadora do trabalho. Tudo era novo, a
curiosidade que tomava conta, as expectativas e até mesmo receio de saber se
realmente poderia transformar algo assim em um trabalho acadêmico.
10
Morte, carta numero 13 do tarot de Marseille.
11
Temperança carta número, 14 do tarot de Marseille.
12
Diabo, carta número, 15 do tarot de Marseille.
13
Torre carta número, 16 do tarot de Marseille.
ocorria ali, alguém chegou a dizer-me “mas o espetáculo já começou antes que nós
entrássemos!”, era curioso observar a reação das pessoas que sentavam no palco
presenciando a cena de perto, enquanto alguns preferiam ficar na “segurança” de
suas poltronas fixas. O momento em que a performer torna-se um fantoche, e a
passos aparentemente mecânicos, mais duros, segue até o altar, sobre e com o
cordão de miçangas transforma-se várias vezes, ora na figura da justiça, ora no
conquistador, no enforcado, para cada mudança da partitura corporal alguém pinta
seu corpo, a dita body art14, tudo isto ocorre com música ao fundo, esta marca o
tempo das metamorfoses, até que em um salto, a performer se torna onça,
“antigamente o dono do fogo era onça.”, “o homem só comia carne crua, pois o
dono do fogo era a onça”, em sussurros ela repetiu algumas vezes, ate que com
uma voz forte e estridente, conta mais uma lenda. Observar a reação do público,
quando notavam as transformações que ocorriam diante de seus olhos, foi algo
interessante, pois é perceptível que cada um conclui coisas distintas para cada
momento do espetáculo. Algumas cenas depois, a que mais despertou curiosidade
e aparente inquietação no público, é a cena em que Michele Campos, conta a lenda
“A Origem da Noite”, usando um colar de sementes, que ela sempre estava
mexendo, batendo as sementes umas nas outras, fazendo uma dança circular, com
passos bem marcados no chão, seguindo a melodia vinda do curimbó tocado por
Marcelo, a lenda é contada, “antigamente só existia o dia, certa vez um menino
muito curioso, resolveu abrir o pote proibido e de dentro deste pote saíram a
escuridão da noite com todos os seus bichos...”, a partir disso Marcelo toca e canta,
enquanto Michele dança, empregando muita energia e força em seus passos, como
em um transe sem fim, o publico que esta sentado no palco ao redor da cena a
observa, alguns pude perceber que ficar “hipnotizados” de certo modo, as reações
foram as mais variadas possíveis.
As trocas de energias foram feitas de formas distintas para cada dia, o playing
ocorrendo a cada momento, o grito, o tiro, a pintura, a cachaça dada ao santo, e
compartilhada com o publico, quando a noite chega, e a performer transforma-se
em coruja, depois diz as 10 pragas judaicas15, chega a “escuridão”, as estrelas são
jogadas ao chão, e o fim/começo de tudo é mostrado ao publico.
Considerações Finais
14
“Arte no corpo”, utilização como meio para a execução da performance, com pinturas corporais, dor,
cortes,entre outros elementos que já puderam ser observados em diversos espetáculos desde o surgimento
do gênero performance.
15
Águas em sangue, rãs, piolhos, moscas, peste nos animais, sarna que rebentava em ulceras, saraiva com
fogo, gafanhotos, trevas e morte dos primogênitos.
Por meio da pesquisa que ainda está em desenvolvimento, pretendo
contribuir para expandir as fronteiras de aplicação das ciências da religião em meio
social, utilizando recursos que estão diretamente ligados ao fenômeno religioso, um
espetáculo, um ritual, uma celebração, uma missa, não importa o que seja e de
que forma seja feita, mas sempre as várias linguagens artísticas estão diretamente
ligadas a este fato social, por conta disso optei por desenvolver uma pesquisa de
certo modo ampla sobre o gênero performance contido no espetáculo Ritos, para
assim mostrar e demonstrar de forma teórica e prática como isto pode ser utilizado
em relação ao fenômeno religioso, com ênfase na ritualidade contidas em distintas
grupos culturais representados neste espetáculo. A religiosidade, que esta atrelada
a cultura, discursos sobre identidade cultural também podem ser percebidos por
meio do que foi desenvolvido neste artigo.
Bibliografia
COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002.
LIGIÉRO, Zeca. Corpo a corpo: estudo das performances brasileiras/ Zeca Ligiéro,-
Rio de Janeiro: Garamond, 2011.
Introdução
O presente ensaio visa apontar as articulações entre religiosidade e cura feitas por
alguns corredores do Bola Running Floripa (BRF), ministério da Bola de Neve
Church Floripa (BDNF), adicionando a esta reflexão dois assuntos correlatos, o
esporte e o marketing religioso, especialmente o marketing de guerra santa
(MARANHÃO Fº, 2012a, 2012b, 2012d).3 Para tal, o texto se divide em duas
partes: A primeira contextualiza, sinteticamente, a Bola de Neve Church, enquanto
a segunda, aponta para a mencionada articulação.
1
Este ensaio é uma versão bastante reduzida do artigo Correndo para Jesus à Beira-Mar: Esporte,
religiosidade e cura na Bola de Neve Church, encaminhado para avaliação à revista Civitas, Revista de
Ciências Sociais da PUC-RS.
2
Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em História pela
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), especialista em Marketing e Comunicação Social
pela Fundação Cásper Líbero. Contato: edumeinberg@gmail.com. Mestranda em Antropologia Social
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Contato: talitasene@gmail.com.
3
Inspirada no método da observação participante e no uso de entrevistas, tal pesquisa foi realizada através
de aproximadamente três meses de visitas contínuas à Célula UFSC, aos cultos dominicais, eventos de
evangelismo e um mês no ministério BRF (Bola Running Floripa), todos da BDNF (Bola de Neve Church
Floripa), bem como em referencial bibliográfico, especialmente de Maranhão Fº (2009 a 2013).
4
O termo agência de características majoritariamente neopentecostais é entendido aqui como expressão
sob rasura – não dando conta dos múltiplos agenciamentos tanto da instituição como de seus fiéis
(MARANHÃO Fº, 2012a, 2012b, 2012c).
5
Quem Somos. Bola de Neve Church. Disponível em < www.boladene.com.br/index2.php?secao=quem>
Acesso em: 10 ago. 2012.
O público-alvo inicial da BDN era formado por “jovens” de classe média e média alta
da capital e litoral paulista. Grande parte destes, surfistas, skatistas e atletas em
geral. Em maioria, fãs de gêneros poético-musicais como o reggae e o rock e
conectados à internet.6 Com a midiatização sofrida pela agência, seu público
ampliou e tornou-se mais heterogêneo, ainda que houvesse um esforço da mesma
em reverberar uma identidade religiosa de “igreja de surfistas” (MARANHÃO Fº,
2009).
Os eventos esportivos promovidos pela BDN, bem como a participação de seus fiéis
em eventos seculares, representam uma das principais formas da mesma
conquistar adeptos através de um marketing religioso (MARANHÃO Fº, 2010c).
Como veremos adiante, as competições de corridas, bem como os treinos realizados
pelos fiéis participantes do Ministério BR exemplificam claramente tal fato.
6
O ciberespaço, aliás, é a principal plataforma de midiatização da BDN, o que a distingue da maioria das
agências religiosas, inclusive das consideradas neopentecostais (MARANHÃO Fº, 2010b).
7
A história sobre a origem do BR nos foi contada por Giovani, em entrevista realizada no dia 25/11/2012,
na igreja sede da BDNF. Todas as outras referências feitas às falas de Giovani dizem respeito a esta
mesma entrevista.
Segundo Adalto, um dos runners de tal igreja, os corredores da BDN
evangelizariam com os pés por terem o slogan In Jesus we trust na camiseta.8 O
slogan em destaque no peito e nas costas atesta a presença de Jesus para os que
desconhecem a Palavra de Deus, tanto nos treinos como nas corridas. Porém, esta
não seria a única forma dos mesmos evangelizarem através dos pés. Além do uso
da camiseta, o BRF conta com fotógrafo profissional durante as competições, e as
imagens dos que correm para Jesus é reproduzida no grupo do Facebook e em
telões da agência durante um ou outro culto. Nestas imagens, transparecem não só
os esportistas do BRF, como também atletas seculares – muitos deles avisados
posteriormente de que suas imagens estarão disponíveis no grupo do ministério no
Facebook.
Para Adalto, fotografar gera uma interação, já que os corredores seculares “entram
no facebook, vêem as fotos e pegam”. Assim, na concepção do mesmo eles
evangelizariam em silêncio, “mas os outros corredores sabem que é uma equipe
cristã de uma igreja evangélica”. Além das referidas estratégias, os atletas do BRF
usam gestos para mostrarem para quem estão correndo, como apontar ou olhar
para o céu depois de passar pela linha de chegada.
De acordo com o exposto pode-se perceber claramente que evangelizar com os pés
é uma forma de trazer fiéis para a igreja sem necessariamente pregar através de
palavras. Esta forma de evangelizar coloca em evidência a própria BDNF,
caracterizando uma das muitas formas de marketing de guerra santa de tal agência
evangélica.
8
Os nomes aqui mencionados, salvo o de Rina, são fictícios.
Porém, além de escutar testemunhos semelhantes ao do líder, quase sempre que
questionávamos os corredores sobre a relação do ministério com a cura, estes
faziam uma oposição entre drogas e corrida cristã, enfatizando que a última tiraria
as pessoas das drogas. Qual a relação que eles estavam fazendo entre doença e
cura ao articularem corrida e droga?
Tudo ficou um pouco mais claro quando Giovani, ao falar dos propósitos do BR
disse que a corrida era um “meio não só de liberação, de promoção de cuidados
saudáveis, mas também uma forma de evangelizar e levar Jesus Cristo num
ambiente onde as pessoas aparentemente são saudáveis” (grifo nosso). Giovani,
com “aparentemente saudáveis” quis dizer de forma sutil que “muitos atletas são
consumidores e dependentes de drogas que aumentam e melhoram a performance,
o que geraria nas mesmas uma prisão”, pois “a pessoa só consegue, ou acha que
consegue chegar a determinados pontos se consumir drogas”.9 O mesmo faz uma
oposição clara entre saúde e drogas, sendo que a última representaria o mal a ser
combatido.
Já Adalto, ao falar sobre o assunto, aponta para a ligação do ministério BRF com o
ministério Nova Vida da BDNF, que cuida de adictos. Tanto Giovani quanto Adalto
colocam droga em oposição à saúde, porém o que cada um percebe como droga
não parece ser exatamente a mesma coisa. Adalto a concebe como substâncias tais
quais cocaína e crack, ao passo que para Giovani drogas também são certos
estimulantes hormonais. Esta ambivalência de sentido corresponde à reflexão que
aparece em Os corpos intensivos, de Eduardo Viana Vargas, sobre o que se entende
por drogas ilegais e legais.10 Para Vargas, é necessário se precaver contra uma
distinção natural entre drogas lícitas e ilícitas, e reconhecer que as drogas não são
somente
9
Entrevista com Giovani, 25/11/2012.
10
Vargas propõe analisar o problema do consume de drogas – lícitas ou ilícitas – sob uma ótica
epistemologicamente positiva, não recriminando-as, nem fazendo sua apologia, sim fazendo um
deslocamento de perspectivas, onde fosse possível “tanto avaliar a ‘doença’ ou a droga sob o ponto de
vista da ‘saúde’, quanto avaliar a ‘saúde’ do ponto de vista da ‘doença’ ou da droga”. Segundo o autor,
essa mobilidade é essencial para que se permita fazer a crítica da ‘doença’ ou da droga através da ‘saúde’
e a crítica da ‘saúde’ através da ‘doença’ e da droga, em nome, diríamos [...] nem da ‘doença’ e das
drogas paramedicamentosas ou não, nem da saúde e das drogas medicamentosas, mas de uma ‘grande
saúde’ sem todas essas ‘drogas’”.
Nesse sentido, entram para a categoria de drogas outras substâncias tidas como
lícitas, como as prescritas pela ordem médica “que visam produzir corpos
saudáveis” – remédios – e “drogas autoprescritas em virtude dos ideais de beleza –
anoréticos –, de habilidade – esteróides e anabolizantes –, e de estado de espírito –
ansiolíticos e antidepressivos” (VARGAS, 1998, p. 123).
O que Adalto concebe como droga, corresponde ao que a sociedade coloca como
ilícito, ao passo que Giovani junta à categoria de droga também algumas das
substâncias tidas como lícitas, substâncias hormonais, por exemplo. Como já dito,
ambas se opõem à noção de saúde, e neste caso, tanto física quanto espiritual.
Sendo assim, quando relacionada ao consumo de drogas – lícitas e ilícitas -, a
corrida aparece como restauração e incentivo à produção de corpos saudáveis física
e espiritualmente. No primeiro caso, ela ajudaria, segundo Giovani, “na parte de
liberação da serotonina e endorfina, hormônios que suprem a necessidade da
droga, ou daquilo o qual a pessoa tinha uma dificuldade”, enquanto no segundo,
“do princípio da restauração espiritual” que livra de prisões e cadeias “que impedem
que as pessoas atinjam seus objetivos e que as pessoas cumpram aquilo que Deus
a chamou para cumprir”. A relação entre cura e corrida mostra que “tem coisas que
precisa lidar não somente no campo físico, mas também no campo espiritual”.
Na relação estabelecida entre corrida e cura exposta acima, a corrida aparece como
meio de cura, embora o processo de curar muitas vezes não se inicie
necessariamente na corrida, o que aponta para um circuito de curas ou um sistema
de prestações totais (MAUSS, 2004) iniciado com a história de origem da BDN.11
11
Desenvolvemos mais aprofundadamente esta parte no artigo encaminhado para análise da Civitas.
12
Entre as experiências de Rina e Igor, outras se configuram como mediadoras, midiatizadoras e
agenciadoras da consolidação da agência, como os processos de cura de Denise Seixas – esposa de Rina,
líder do ministério das Mulheres do Bola, do ministério de Louvor e Adoração, líder dos conjuntos Tribo
de Louvor e Ruth’s – , e Rodolfo Abrantes – ex-cantor dos Raimundos, convertido após episódio de cura,
e atualmente líder e missionário da BDN (MARANHÃO Fº, 2010a).
(In) conclusão
Este ensaio não pretende-se conclusivo, mas apenas traçar alguns dos pontos
tratados em artigo a ser publicado posteriormente. Novos percursos, com outras
saídas e chegadas em campo, se farão necessários. No entanto, esperamos que
algumas das ideias contidas no mesmo possam fomentar novos debates.
Referências
Introdução
Nesta breve comunicação, analiso alguns dos múltiplos discursos de homens transexuais
brasileiros através de mapeamento de inspiração etnográfica fundamentado em análise e
observação participante em fóruns e grupos do Facebook.
Esta pesquisa foi feita por conta de minha pesquisa de doutorado em História, em que
analiso os diferentes itinerários religiosos de pessoas que se identificam em trânsitos
identitários de gênero.2 Dentre estas múltiplas autodeclarações, destacam-se mulheres
trans, homens trans, travestis, e em alguns casos, drag queens, drag kings, intersexuais.
Tenho pensado no termo entre-gêneros para refletir sobre os agenciamentos quase infinitos
relativos às mobilidades de gênero (MARANHÃO Fº, 2012).
Transhomem é uma das muitas autodesignações adotadas por pessoas que “nasceram
mulheres”3 – ou explicando melhor, foram designadas como tal a partir da gestação ou
nascimento – e se identificam homens. Tais pessoas costumam identificar-se de outras
1
Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em História pela
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), especialista em Marketing e Comunicação Social pela
Fundação Cásper Líbero. Contato: edumeinberg@gmail.com.
2
Comentei sobre o assunto em ocasiões anteriores (MARANHÃO Fº, 2011a, 2011b, 2012a, 2012b).
3
Utilizo-me de aspas neste trecho e em outros com o objetivo de marcar o sentido irônico referente a tais
termos.
formas também: homens trans, FTMs (female to male), homens transexuais,
transmasculinos.
A pessoa identificada transhomem mais conhecida no Brasil é João Walter Nery.4 Realizei
com o mesmo, em 2013, um trabalho de inspiração etnográfica em que peregrinamos por
grupos e fóruns do Facebook em busca de experiências autobiográficas de outros
transhomens.5
Foram analisadas discussões em grupos como FTM Brasil, FTMS, Homens Trans Heteros,
FTM´s Bi e Gays e ABHT – Associação Brasileira de Homens Trans. Tal trabalho de
etnografia digital foi complementado através de conversas com integrantes desta rede
social.
A média de idade dos transhomens identificados nos fóruns do Facebook varia dos 16 aos
40 anos.Há diversas demandas pessoais e coletivas de transhomens. Algumas dizem
respeito à inserção e participação no ativismo trans, tanto masculino, como feminino; às
relações afetivas e sexuais; à permanência e evasão escolar; à inclusão no mercado de
trabalho, ao uso do nome social e à retificação de prenome; às preferências esportivas e
culturais.
A maioria se reconhece de início como lésbica (para não assustar muito os pais ou por falta
de apoio e maiores informações). Muitos começaram a se hormonizar recentemente e estão
preocupados com questões puramente pessoais de como contar para os pais, como adquirir
a receita obrigatória para se comprar o hormônio ou que dosagem tomar. Discutem os
efeitos diferentes que a testosterona causa, procuram por órteses6 (binder, packer, pump e
4
Nery foi o primeiro transhomem a ser operado no Brasil, em 1977, durante a ditadura militar. Publicou duas
autobiografias, Erro de Pessoa: João ou Joana?, em 1984, e Viagem Solitária - Memórias de um transexual
trinta anos depois, releitura atualizada de sua história, em 2011.
5
Esta pesquisa teve como produto um artigo conjunto, a ser publicado em 2013.
6
Aparelhos ou dispositivos ortopédicos de uso provisório ou não, destinados a alinhar, prevenir ou corrigir
deformidades ou melhorar a função das partes móveis do corpo.
STP)7 e tem dúvidas de como se apresentar no trabalho, na escola ou nas suas relações
afetivas. Outro dos assuntos que perpassam o cotidiano de pessoas transhomens refere-se à
importância das religiões e religiosidades em suas vidas.
Neste fórum, André perguntou: “qual a religião de vcs e como ela interfere nas questões de
ser transhomem?”
Pedro contou que “eu particularmente não tenho religião e nem gostaria de seguir uma,
porém tenho uma fé em Deus independente de tudo.” Para Paulo, “minha religiao nao
interfere em nada no fato de ser trans.. sou budista e eles nao falam nada sobre isso
especificamente...”. Breno narra que
Lucas, por sua vez, narra que “não tenho religião acredito em deus apenas e nos anjos”.
Marcos explica: “nao tenho religião, mas uma religiao que eu gosto é o candomblé, se um
dia eu for seguir uma religião que seja essa”. Sérgio conta que “desde pequeno sou
Adventista, mas tô bem afastado devido mudanças e tals... mas pretendo terminar a
mudança e voltar pra igreja... apesar que nunca me afastei de Deus independente de estar
dentro da igreja ou não acho que é o que importa! Mas sinto falta sim...”
Mateus comenta sobre sua escolha religiosa: “eu sou asatrú, é um tipo de paganismo
politeísta nórdico, e não diz nada sobre trans, mas fala sobre ser verdadeiro consigo
mesmo...”. Edson define-se como “sem religião ... (ser ateu não é religião,apesar de ter
7
Respectivamente colete para esconder as mamas, pênis flácido ou rijo, bomba para aumentar o clitóris e
dispositivo para urinar em pé.
gente q coloca isso no face ..oh zeus!) e logicamente nao interfere em nada na questão de
ser trans.” Gabriel conta ter
Formação religiosa católica, fiz catequese e tudo haha. Mas sou meio que
cristão apenas, sei lá, sou um grande fã de Jesus. Acredito em Deus,
tenho muita fé. Mas não nesse Deus palpável que serve de "alimento"
para muitos...
Dário é sintético: “não tenho religião, acredito em Deus e acho que isso q importa”, assim
como Silas: “não tenho religião... Tenho uma admiração muito grande pela Asatru, e
pretendo estudar mais sobre ela, e quem sabe segui-la. (:” Gérson comenta:
Leandro contou:
Marcos explica “sou candomblecista e católico ao mesmo tempo, e acredito nas duas
coisas. Na minha casa tenho um altarzinho com estátuas de santos negros e brancos”. E
Vítor conta que: “misturo tudo. Sou espírita, mas gosto de anjos, da cabala, dos orixás. E
dos santinhos católicos. Prá mim tá bom assim”.
Os próximos comentaristas foram sintéticos: Érico disse “sou ateu”, Lúcio, “kardecista”,
Peter, “sou católico não praticante”, e Flávio, “candomblé”. Otávio narrou:
Otávio explica que pretende retornar à Igreja Adventista quando avançar em seu processo
de adaptação corporal à sua identidade de gênero, explicando ser necessária a retirada dos
“invasores”. Tal expressão se refere aos seus seios (costumeiramente apelidados por
transhomens de “alienígenas”, “intrusos” ou “monstros” – de modo semelhante, a
menstruação costuma ser referida como “monstruação”). Ao que parece, Otávio só se
sentiria à vontade indo à Adventista quando adaptado esteticamente: de outro modo
provavelmente seria passível de discriminação.
Sérgio também se narrou adventista, aguardando pelo término de sua adaptação corporal
para retornar a igreja. Ambos demonstram sentirem falta da Adventista. Otávio, neste meio
tempo, frequentou a Igreja Contemporânea, uma das agências evangélicas brasileiras que
se identificam como inclusivas LGBT, ou seja, que procuram acolher pessoas que se
identificam lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneras. 8
8
Comentei sobre a questão da inclusão nas inclusivas LGBT em outras oportunidades (MARANHÃO Fº,
2011a, 2011b, 2012c).
Alguns narradores identificaram-se de modo mais fixo: Érico é ateu, Peter, católico não
praticante, Lúcio é kardecista, Flávio, candomblecista. Gérson também demonstra uma
religiosidade menos fluida, marcada pela adesão ao kardecismo e necessidade de distinguir
o mesmo do candomblé.
Já Breno argumenta ter transitado pelo catolicismo e espiritismo, mas hoje “estar na sua”.
Vítor argumenta que gosta de misturar elementos religiosos: cabala, anjos, orixás e
“santinhos católicos”, assim como Marcos, que destaca sua dupla pertença entre o
catolicismo e o candomblé. São exemplos de uma religiosidade própria, autogerida,
(re)composta e derretida. Leandro demonstra uma peregrinação religiosa por paisagens
diversas: católica, evangélica, espírita kardecista e pelo candomblé. Enquanto vai
transitando, faz também suas bricolagens.
Como percebemos, as narrativas de transhomens não parecem diferir muito das falas que
poderiam vir de pessoas que não se identificam em trânsitos identitários de gênero – com
exceção aos poucos comentários referentes à transexualidade. Isto se dá por uma razão:
pessoas transgêneras e pessoas cisgêneras não possuem distinções ontológicas entre si,
com exceção das diferentes concepções a respeito de suas próprias identidades de gênero.
As primeiras apresentam discordância em relação às expectativas sociais de gênero a
pessoas designadas “mulheres” ou “homens”, e as segundas, encontram-se em consonância
com tais expectativas.
Entretanto, parece haver uma outra distinção: pessoas trans são, em muitos casos, vítimas
de preconceitos, discriminações e atos de intolerância religiosa mesclada à de gênero, ao
contrário das pessoas cisgêneras. Em alguns casos, sofrem de dupla intolerância, referente
à confusão que costumeiramente se faz entre identidade de gênero e orientação sexual.
Muitas pessoas trans, especialmente as transmulheres e as travestis, sofrem ainda das
consequências de uma segunda confusão feita pela sociedade em geral: são entendidas/os
como profissionais do sexo, colocando-as em situação de tríplice intolerância.
Considerações inconclusivas
Muito poderia ser dito, nesta comunicação, a respeito dos itinerários religiosos e
identitários de transhomens e de pessoas trans em geral. Entretanto, deixo esta discussão
germinando, pronta a florescer em ocasião mais conveniente, ciente de que muitas
contribuições ainda podem ser recebidas de outros/as observadores/as.
Referências bibliográficas
__________. “Falaram que Deus ia me matar, mas eu não acreditei”: intolerância religiosa
e de gênero no relato de uma travesti profissional do sexo e cantora evangélica. História
Agora, dossiê Gênero em Movimento, vol. 3, n. 12, São Paulo, 2011a, p. 198-216.
NERY, João W. Erro de Pessoa: João ou Joana? São Paulo: Record, 1984.
RESUMO
A Lapinha ou Pastoril é um folguedo que integra o ciclo das festas natalinas do Nordeste
brasileiro, que conta a história de um grupo de pastorinhas que viaja até Belém à
procura do menino Jesus. Divide-se em dois cordões de cores distintas, o Cordão
encarnado e o Cordão Azul. Esta pesquisa tem como objetivo fazer um levantamento
histórico da Lapinha, uma dança popular de tradição religiosa do Nordeste brasileiro. É
uma pesquisa qualitativo-descritiva e bibliográfica. Foram aplicadas entrevistas aos
coordenadores das Lapinhas, e realizadas observações das suas apresentações. As
Lapinhas investigadas são: Lapinha Bom Jesus e a Lapinha Jesus de Nazaré. As
manifestações culturais populares, tais como as Lapinhas estavam presentes em meados
do século XX, a Lapinha tornou-se uma das mais animadas atividades da cultura popular.
INTRODUÇÃO
Desta forma, percebemos que a religião está comumente nos diversos momentos
da vida das comunidades. Sendo a religião um fenômeno humano, suas causas podem
ser encontradas no mundo social. “A religião nasce com o poder que os homens têm de
dar nomes às coisas, fazendo uma discriminação entre coisas de importância secundária
e coisas nas quais seu destino, sua vida e sua morte se dependuram” (ALVES, 1990, p.
24).
Sendo assim, a religião para os povos apresenta certo tipo de discurso, uma rede
simbólica, bem como seus fenômenos religiosos, construindo uma proteção que recobre
e interfere no seu meio social. Um desses fenômenos que leva o povo às ruas, às igrejas,
é a dança. Ela é uma forma de expressar a religiosidade, em que a coreografia é o meio
pelo qual os mitos e ritos são encenados.
As Lapinhas investigadas são: Lapinha Bom Jesus, no Bairro De Cruz das Armas e
a Lapinha Jesus de Nazaré, do Bairro do Rangel. As Lapinhas investigadas foram
escolhidas de acordo com o cadastramento realizado pela FUNJOPE (Fundação Cultural
de João Pessoa), as Lapinhas que estivessem cadastradas e ativas no ano de 2012
(ensaiando e se apresentando).
Segundo Lopes Neto (2011, p. 49) esse culto aos personagens religiosos teria
origem na Europa, por meio de trabalhos hagiológicos (estudo da vida dos santos) nos
tempos medievais, esses estudos preocupavam-se em exaltar os mártires, seus
sacrifícios, sua pureza. Por isso os pastoris estão intrinsecamente ligados ao culto
religioso do nascimento do salvador.
No Brasil, o trabalho religioso que era realizado pelos jesuítas e a imigração foram
os responsáveis pela difusão da Lapinha, incorporado ao catolicismo popular, tornou-se
parte das canções religiosas devocionais, sendo identificados como tradição natalina.
Sabemos que o ciclo de Natal é um dos principais períodos das festividades do
catolicismo brasileiro. “Os natais provieram dos mistérios; transpuseram resumidamente
as cenas da Natividade que ali se encontravam, retornando o modelo e muitas vezes as
melodias das canções profanas” (DELUMEAU, 2003, p. 255).
De acordo com Pimentel (2005) foi no final do século XIX que se deu a passagem
do pastoril religioso para o pastoril profano. Nesse instante da história os antigos
presépios, Lapinhas ou pastoris sagrados tiveram que conviver com esse bailado profano.
Apesar do surgimento dessa característica mais popular, não implicou na eliminação dos
autos natalinos, sendo estes encontrados ainda em sua forma religiosa em alguns
estados do Nordeste do Brasil.
Lapinha no Brasil
No Brasil, foi trazido pelo teatro dos padres da Companhia de Jesus, tendo o
aparecimento do presépio que se deu por volta do século XVI (RIBEIRO, 1993), no
convento dos Franciscanos em Olinda, tendo como precursor frei Gaspar de Santo
Antônio. Já a referência a pastoris é creditada a Fernam Cardim, ele escreve sobre as
origens do pastoril brasileiro datada de 1584, citado por ANDRADE (1959, p. 35)
“debaixo da ramada se representou pelos índios um diálogo pastoril, em língua basílica,
portuguesa e castelhana e têm eles muita graça em falar línguas peregrinas, maximé a
castelhana”.
Nos séculos XVII e XVIII não existem relatos sobre apresentações de pastoris no
Brasil. Apenas no século XIX houve grande quantidade de bailes pastoris, principalmente
no Nordeste do país, em especial nos estados de Pernambuco, Bahia, Alagoas e Paraíba.
As pastoras se apresentavam em frente aos presépios cantando louvores para que fosse
compreendido o nascimento do Menino Jesus.
Em Pernambuco foi onde tudo começou, foi lá que Frei Gaspar de Santo Antônio
relatou sobre os presépios. De acordo com Valente (1995) o aparecimento da Lapinha
pernambucana deu-se em 1840, com apresentações teatrais. Assim como nas outras
cidades nordestinas, antes de se tornar um pastoril profano, as apresentações eram
realizadas em frente ao presépio, segundo Borba Filho (2007) essa dramatização foi
influenciada pelo auto sacramental, na forma literária.
Não se pode deixar de abordar o cunho religioso para explicar o partidarismo das
cores azul e encarnada. O primeiro é devido ao manto da imagem do coração de Maria, e
o segundo por causa do coração de Jesus cristo (LOPES NETO, 2011, p. 48).
Segundo Andrade (1959, p. 23) as cores dos cordões representam a luta entre
cristãos e mouros (população islâmica do Noroeste da África), bem como denota a
Virgem Maria e Nosso Senhor. Para Brandão (1973, p. 149) são essas disputas entre os
dois cordões que fazem com que o Auto da Lapinha seja aceito por todas as classes
sociais e sua extraordinária persistência e difusão nos dias atuais.
Além dos cordões, as canções também tem grande importância no Pastoril. Para
Brandão (1961, p. 150), elas são cantadas e interpretadas pelas pastoras, que são
acompanhadas por instrumentos como violões, cavaquinhos, pandeiros, violas tocados
por homens.
Para o autor supracitado essa brincadeira popular surgiu não apenas com a
intenção de diversão e entretenimento, mas também como uma forma de propiciar uma
maior sociabilidade entre os moradores dos bairros. Alguns Bairros de João Pessoa
tinham até quatro Lapinhas se apresentando ativamente e todos abriam as suas casas
para o Pastoril entrar. A popularidade dessa tradição foi tamanha, que além de simples
ato de fé e louvação ao nascimento de Jesus Cristo, também passou a ter grande
importância como manifestação artística.
A cultura da Lapinha chegou a ser tão intensa na cidade de João Pessoa que,
algumas de suas ruas tinham os nomes dos cordões do folguedo. De acordo com Aguiar
(1992) uma delas chamava-se cordão Azul, atualmente, é a Rua Branca Dias, localizada
no Bairro das Trincheiras. Hoje a Rua recebe este nome por que ela foi um símbolo que
lembra os paraibanos perseguidos e torturados pelo tribunal, criado pela Igreja católica.
Também existia a Rua cordão Encarnado, atual Rua Martim Leitão. O cordão
encarnado é toda a área que se situa a partir do Pavilhão do Chá (Praça Venâncio Neiva)
até as proximidades do Cemitério Senhor da Boa Centença. Fica próxima da que se
chamava Rua cordão Azul. Nela se realizavam as apresentações dos Pastoris ou Lapinha
por ocasião das festividades natalinas. Hoje a Rua tem esse nome por homenagear
Martim Leitão, que foi ouvidor-geral do Brasil e responsável pela conquista da Paraíba e
pelo começo da construção da capital em 1585 (AGUIAR, 1992, pp. 301 – 302).
Essas Ruas são muito próximas, pode-se até imaginar que existia uma relação
entre as Lapinhas daquela localidade, mas não há registro sobre isso. No mapa abaixo
podemos perceber a proximidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil. São Paulo: Livraria Martins, 1959.
DELUMEAU, Jean. O que sobrou do paraíso? São Paulo: Cia das Letras, 2003.
HANNA, Judith Linne. Dança, sexo e gênero: signos de identidade, dominação, desafio
e desejo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
LOPES NETO, Antônio. Viva o azul, viva o encarnado: o pastoril de Marechal Deodoro.
Repertório. n. 16, p.p. 46 - 69, 2011.
PIMENTEL, Altimar de Alencar. Lapinha. João Pessoa: FIC, Governo da Paraíba, 2005.
Resumo:
1
Graduando em História pela Faculdade José Augusto Vieira – FJAV.
2
Graduanda em História pela Faculdade José Augusto Vieira – FJAV.
as punições para quem não o seguisse ou respeitasse, nele estava contido os deveres e
obrigações de seus membros. Bahy, ainda aponta que outro motivo para tamanho
desenvolvimento das confrarias ou irmandades era a questão das: “migrações em busca
por melhores condições de vida a partir do século XI. As famílias que se mudavam
possuíam a necessidade de se integrarsocialmente e o faziam através das irmandades”.
Ainda sobre essa questão Célia Borges comenta: ”A propagação das Irmandades do
Santíssimo Sacramento na Colônia deve ser vista como um prolongamento do grande
movimento ocorrido na Europa em torno ao culto eucarístico”
Não fugindo a regra de origem das Irmandades, a da antiga vila de Simão Dias
possuía o seu compromisso aprovado pela Resolução N. 1.018 de 1 de Maio de 1875 e
originada na matriz de Senhora Sant’Anna sob os cuidados do Santíssimo Sacramento.
Dentro do seu compromisso, eram estabelecidas sua organização, função e deveres
dentro da irmandade e dentro da sociedade simão-diense. Criada dentro de um universo
dominado por coronéis, barões e senhores do açúcar, as mulheres ficavam sempre em
segundo plano, prova disto é que em seu Artigo 2º do Capitulo I “fica estabelecido que
mulheres não poderiam exercer nenhum cargo administrativo dentro da irmandade”.
Art.2º “A Irmandade será composta de pessoas de ambos os sexos, não podendo o sexo
feminino ocupar cargos administrativos.” (Compromisso da Irmandade – 1875)
Para assegurar que a imagem de entidade promotora dos bons costumes cristãos
fosse preservada socialmente, existiam condições expressas no seu compromisso para a
aceitação de novos membros no corpo de irmãos da irmandade, assim segue o artigo 12:
Art. 12. Para ser irmão é preciso: § 1.º Ter boa conducta civil e
moral. § 2.º Ser catholico, apostolico, romano.§ 3.º Ter meios de
viver com decencia. § 4.º Ter meios de sustentar as obrigações do
compromisso. § 5.º Ser maior de 21 annos. § 6.º Sendo menor,
com acquiescencia de seu pai ou tutor. § 7.º O que estiver na
posse e livre administração de seus bens.
Art. 13. Para ser irmão é preciso ser proposto perante a meza
administrativa por qualquer irmão indistinctamente, e depois de
correr o escrutinio secreto vencerá pela maioria de votos. Art. 14.
O cidadão que for eleito irmão, comparecerá perante a meza
administrativa e ahi lançará o secretario da meza o termo de
comparecimento e acceitação, que será assignado por elle e todos
os mezarios no livro destinado para esse fim.
E quais os deveres que os membros da mesa teriam para com cada solenidade
como demonstra o artigo 10º: “A festa de Corpus Christi será feita pelo juiz provedor e
quando por qualquer circunstancia, se limite a imposição da joia, será auxiliado pelo
cofre da irmandade.” (Compromisso da Irmandade - 1875). É possível perceber nos seus
primeiros artigos e capítulos que sua influência social e financeira eram questões que
denotavam uma forte importância e presença, quando observamos o artigo 9º fica claro
a independência e o poder social exercido pela a Irmandade, pois a mesma determinava
quais solenidades litúrgicas deveriam ocorrer e quando ocorreriam, assim como também
deixa claro a necessidade de membros que sejam católicos apostólicos romanos
(art.12,§2º) e que gozem de meios para sustentar as obrigações do compromisso, assim
cita o artigo 12,§4º.
Art. 60. Aos irmãos compete:§ 1.º Dar 10$ rs. de entrada e 5$ rs.
Anualmente § 2.º As irmãs pagarão 20$ rs. de entrada e 5$ rs. por
anno por estarem isentas doserviço administrativo.§ 3.º Os
honorarios darão sessenta mil réis de entrada e cinco mil réis
annualmente por estarem tambem livres do serviço da irmandade.
(Compromisso da Irmandade – 1875)
Ainda no Capitulo XIII, encontramos por meio do artigo 62 que: “Todos os irmãos
efecctivos são obrigados a dar a quantia de cinco mil réis para auxiliar o cofre da
irmandade na celebração dos actos da Semana Santa”.
(...) Cuja terra e gados dão eles doadores a fazer dote para a
ereção de uma Capela de Santa Anna, que nas ditas terras querem
levantar, cuja doação fazem de hoje para todo o sempre, com
todas as suas matas, fontes, e rios, enseadas; cujas terras são
livres e desembaraçadas, digo: desembargadas; sem penhoras,
hipotecas, encapelados; (...) (DÉDA, 2008, p. 47)
De todo o modo, tal ideia serve para povoar o imaginário das pessoas que se
deparam com tais documentos referentes ao Compromisso da Irmandade e da doação
das terras para a construção da antiga capela que hoje é a atual matriz.
Conclusão
DÉDA, José de Carvalho. Simão Dias: fragmentos de sua história. 2. ed. Aracaju:
Gráfica Editora J. Andrade, 2008.
SANTOS, Dijalma Oliveira Trindade dos. Devoção e assistência: compromissos de
irmandades sergipanas no século XIX. Monografia apresentada ao Departamento de
História da Universidade Federal de Sergipe. São Cristovão, Agosto de 2008.
Permanência do objeto ex-votivo na Peregrinação da Cidade de
Monte
Santo - Bahia
Genivalda Cândido da Silva1
José Cláudio Alves de Oliveira2
Resumo
Este trabalho tem como interesse apresentar como a manifestação de
cultura popular, no caso estudado a Peregrinação de Monte Santo no interior
da Bahia, a permanência da cultura ex-votiva se faz presente, mantendo o
diálogo cultura popular-cultura de elite, podendo considerar que o ex-voto
objeto muito utilizando durante a romaria, também pode ser reconhecido como
um veículo de comunicação presente, mesmo passando por mudanças
temporais, evolutiva da forma de agradecimento. A singularidade comum a
tantas romarias faz despertar o olhar para o objeto que é tido como fonte de
renda local, desmistificando assim a perda do fazer, e que se coloca na
perspectiva de uma história de longa duração, registrando mudanças das
mentalidades coletivas e das criações do imaginário dentro da continuidade da
cultura local.
O Catolicismo no Brasil
1
1 Graduanda em Museologia pela Universidade Federal da Bahia, atualmente cursando o último
semestre. Bolsista
IC-PIBIC - UFBA. No Projeto Ex-votos das Américas: etapa Américas do Norte e Central.
v.bridacandido@gmail.com
2
2 Professor da Universidade Federal da Bahia. Pesquisador do CNPq. Doutor e Orientador no Grupo de
Pesquisa em
ex-votos – GRECNPE - claudius@pesquisador.cnpq.br
instruções educativas e difusão das artes, e apresentação assim de uma nova
manifestação.
A religião popular é uma manifestação coletiva, geradora de fortes sentimentos
de identidade entre seus membros. Não é apenas um meio de repassar sua fé,
mas, de criar e recriar meios de difundir e perpetuar seus valores, crenças,
memórias.
A palavra grega Physis pode ser traduzida por natureza, mas seu
significado tem uma conotação mais ampla. Refere-se também à realidade,
não aquela pronta e acabada, mas a que se encontra em movimento e
transformação, a que nasce e se desenvolve, o fundo eterno, perene, imortal e
imperecível de onde tudo brota e para onde tudo retorna. Nesse sentido, a
palavra significa Gênese, origem, manifestação. A necessidade que se
manifesta no Movimento, Spinelli cita que;
Referências
ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense,
2004, p. 21.
CANCLINI, Nestor Garcia. As culturas populares no capitalismo. São Paulo:
Brasiliense, 1983. p. 55.
Cidade de Monte Santo. Disponível em:
http://montesantonoticias.webnode.com.br/.
Acesso em 29 de março de 2013.
DA MATTA, Roberto. O que faz do brasil, Brasil. 12. Rio de Janeiro: Rocco,
2001.
Dicionário Houaiss: Disponível em
http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=exvoto&
stype=k&x=7&y=12 . Acesso em 20 de fevereiro de 2013
CORRÊA, Roberto Lobato. O espaço Urbano. São Paulo: Ática, 1995. p. 9.
Projeto Ex-Votos do Brasil: Disponíel em: http://ex-
votosdobrasil.blogspot.com.br/ .
Acesso em 29 de março de 2013.
ROSENDAHL, Zeny. Espaço e religião: uma abordagem geográfica. Rio de
Janeiro:
UERJ,
1996. p. 30.
SPINELLI, Miguel. Questões Fundamentais da Filosofia Grega. São Paulo:
Loyola,
2006, pp.36-37.
ANEXOS
Placa Informativa
Vista geral da subida e o Santuário no cume.
Placa informativa da Procissão
Placa colocada no interior do santuário para
informação sobre histórico do local.
Pagadores de Promessas.
Vista geral da Sala de Milagres
Altar com variedades ex-votivas
Ex-votos de madeiras.
Todas as imagens foram da bolsista,
Genivalda Cândido da Silva.
CANTAR, DANÇAR E REZAR: A HISTÓRIA RELIGIOSA DO GUERREIRO
ALAGOANO.
Em 1958 foi criada a campanha de defesa do folclore brasileiro, que tinha como
objetivo a defesa, preservação e divulgação das manifestações folclóricas brasileiras,
diante do avanço da industrialização, que na concepção dos folcloristas era uma
provável ameaça a identidade cultural nacional. Dentro dessa linha de pensamento os
folguedos tiveram uma atenção especial a partir do ano de 1952, ano que aconteceu a
IV semana do Folclore em Maceió, capital do Estado de Alagoas, evento este
organizado por folcloristas engajados no movimento que acontecia nacionalmente. A
concepção de folguedo foi a partir daí definida como fato folclórico completo – canto,
danças, interpretações, sendo um dos principais interesses dos folcloristas. Em
Alagoas o folguedo visto como completo foi o Guerreiro, tão estudado e enaltecido por
diversos folcloristas, e aclamado como símbolo da identidade alagoana.
O cantar e rezar do Guerreiro são evidentes nas cantigas cuja letra pede
proteção aos santos católicos. O sagrado, a todo o momento, se faz presente, desde a
entrada, momento em que os brincantes pedem permissão a Nossa Senhora, até a
saída, momento que além da despedida, a benção dos céus é mais uma vez aclamada.
Durante as apresentações do Guerreiro, o profano e o sagrado andam lado a lado e
muitas vezes se misturam. As letras profanas possuem em seu contexto assuntos
referentes às brigas, fofocas e piadas sobre alguém ou algum fato.
Duas temáticas principais compõem o Guerreiro: nascimento do menino Jesus
e a Guerra dos Reisados. A primeira é composta de louvações cantadas, com pedidos
de proteção aos participantes do auto.
Brandão ainda observa como se deu o processo de conversão dos negros, que
foram obrigados a adotar a doutrina cristã, representados durante as apresentações.
Sobre o cantar, Brandão, com base em suas pesquisas empíricas, observou que
existia um entrosamento entre os brincantes, enquanto o mestre fazia o solo de uma
estrofe, na estrofe seguinte os demais personagens/brincantes respondiam o que foi
cantado antes.
Na letra da estrofe acima podemos perceber o caráter religioso. Quando se
canta e se reza, a dança no Guerreiro é uma conseqüência. A principal característica
do dançar no Guerreiro tem sua influência nas danças realizadas nos centros afro-
religiosos. As batidas fortes no chão, as rodas organizadas dependendo da
coreografia, e os instrumentos usados (ganzá, tambores), mostram aquilo que Théo
Brandão chamou como o “Tom Xangô” no Guerreiro. Dentro do espaço do canto e da
dança o rezar esteve sempre presente.
BARBOSA, Andréa & CUNHA, Edgar. Antropologia e Imagem. Rio de Janeiro: Ed.
Jorge Zahar, 2006.
BEAUD, Stéphane & Weber, Florence. Guia para a pesquisa de campo: produzir e
analisar dados etnográficos. Tradução: Sérgio Joaquim de Almeida. Petrópolis: Ed.
Vozes, 2007. pp. 10-43.
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2º Ed. Tradução: Viviane
Ribeiro. Bauru: EDUSC, 2002. pp. 146-157.
DESLANDES, Suely & GOMES, Romeu. Pesquisa Social: teoria, método e
criatividade. 26º ed. Petrópolis: Vozes 2007.
LEVI- STRAUSS, Claude. De perto e de longe. São Paulo: ed Cosac e Naifej, 2008.
LIMA, Rosseni Tavares. A ciência do folclore. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes,
2003
PEIRANO, Mariza. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
Resumo:
As três primeiras décadas do século XX foram marcadas por mudanças significativas na
forma de celebrar o São João no Recife. As elites atuaram como o principal fomentador
de tal prática e por isso como coautora de um processo que resultou num novo modelo
de festa junina na cidade, incentivando diferentes padrões de consumo. Uma relação
ambígua, que envolveu, em princípio, duas situações distintas, mas dialéticas: a política
de modernização das práticas culturais e sociais vivenciadas na cidade nas primeiras
décadas do século passado e o fomento de organizações festivas com caráter rural, que
valorizavam sotaques, danças e outras formas de expressão historicamente relacionadas
ao campo, mesmo aquelas caricaturadas criadas pelo olhar estereotipado do intelectual
urbano. As comemorações ultrapassaram as fronteiras dos largos e lares e alcançaram
outros espaços de sociabilidade, a exemplo dos clubes sociais. De casa para a rua, as
festas sanjoanescas passaram a fazer parte do cotidiano das atividades das comissões
dos moradores espalhadas pelas comunidades, que organizavam à sua maneira,
celebrações para os santos da época. Diferentes modos de fazer e formas de expressão
atribuíram novos sentidos à celebração, conquistando novos públicos e espaços. Nas
primeiras décadas do século XX, ocorreu a descentralização dos festejos, que
acompanhou o processo de mudanças na geografia da cidade, isto é, a expansão do
espaço urbano para os subúrbios, antes concentrado nos quatro bairros centrais. Atento a
esse contexto no qual, a festa surgiu como o instrumento de mediação entre a cidade, a
política e a tradição, recorremos aos principais periódicos que circulavam na cidade
(Revista da Cidade, Folha da Manhã, Jornal Pequeno, Jornal do Recife e Diario de
Pernambuco), com a garantia de que constituem indícios históricos favoráveis ao
processo de construção desse estudo.
1
Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Bolsista da Fundação de
Amparo à Ciência e Tecnologia (FACEPE). E-mail:mariorisan@yahoo.com.br.
2
A expressão “sanjoanesca” aparece com frequência nos periódicos da época para designar os
acontecimentos festivos do mês de junho. No texto, é utilizada com o mesmo sentido de festas juninas,
festa de São João.
(práticas), que se estendem nas proximidades no entorno do templo e que aos poucos
tornar-se-ão o principal atrativo. Nesse sentido, buscaremos compreender por meio dos
indícios, a variedade dos significados, que os diferentes grupos sociais emitiam nas
noites de junho do Recife, nos diferentes espaços de sociabilidade.
A intenção é apresentar ao leitor a movimentação na forma de celebrar a festa
nesses quarenta anos. Aonde se reuniam nas noites festivas de junho? Como se
divertiam? O que comiam e bebiam? São questões, cujas tentativas de respostas nos
levará a entender por dentro os múltiplos significados das festas, distanciando-se da
ideia possuidora de sentido único.
Para melhor organizar a análise, dividimos o conteúdo em dois momentos: o
primeiro diz respeito às festas de largo em homenagem a Santo Antônio e São Pedro,
que aconteciam no centro da cidade. No segundo momento,direcionamos nossos olhares
para as festas nos clubes, como principal espaço de sociabilidade das elites nessa época
do ano.
Essas práticas nos chamaram atenção, pelo fato de aparecer constantemente nos
periódicos do mês de junho, durante as décadas de 1910 e 1920, e no período que segue
(anos 1930 e 1940), surgem praticamente isoladas, em meio à programação profana dos
clubes e associações, que ocupava cada vez mais o espaço da imprensa, quase
diariamente. Entretanto, isso não significa que não houvesse mais solenidades nas
igrejas para os santos no mês de junho. Havia sim, mas os ares cosmopolitas da cidade e
os desejos de consumo das elites direcionavam seus interesses para outros espaços de
sociabilidade, bem mais animados do que as sagradas salas dos templos com cheiro de
velas, incensos, angélica, cravo e outras flores vindo dos andores dos santos.
Em geral, a programação dessas festas contava com missas solenes, ladainhas,
novenas, te-déuns, sermões, além das esperadas ornamentações pomposas preparadas
pelos irmãos da ordem, a iluminação a gás, os fogos de artifício e as apresentações
musicais das orquestras ou bandas militares no coreto armado no largo da igreja. O
horário para iniciar as solenidades não se tinha ao certo. Alguns templos iniciavam suas
atividades nas primeiras horas da manhã; em outros, reservava-se o final da tarde,
estendia-se pela noite, encerrando aproximadamente 21 horas.
Um dos locais mais frequentados nessa época do ano era o Arco da Ponte 07 de
setembro ou o Arco de Santo Antônio como também era conhecido. O Arco ficava na
cabeceira dessa ponte (atual Maurício de Nassau), voltado para a rua 1º de março, no
bairro de Santo Antônio. Na outra extremidade, ficava o Arco da Conceição, dedicado a
Nossa Senhora e voltado para o bairro do Recife (atual Av. Marquês de Olinda).3 A
partir do dia 1 de junho, quando se iniciava a trezena para o santo, até o dia 13 as
expectativas da população eram intensas nesse local.
A Festa do Arco ou a Festa de Santo Antônio do Arco da Ponte do Recife, como
também era chamada, tinha uma pompa tradicionalmente conhecida pela população. O
nicho era artisticamente decorado, o trecho da rua compreendido entre a subida da ponte
e a praça da Independência era “galhardamente empavesado de folhagens e bandeirolas”
e uma iluminação de gás, cuidadosamente preparada pelos comerciantes da rua 1º de
março era distribuída pelo entorno.4 Essa festa alterava a rotina do centro da cidade,
principalmente nas proximidades da ponte. O comércio fechava as portas mais cedo, o
bonde tinha o seu caminho desviado e o trafego pela ponte 7 de Setembro era
interrompido a partir das cinco e meia, por determinação da Companhia de Ferro Carril.
Num intervalo de nove anos (1901 a 1910), a festa da capela do Arco teve
praticamente o mesmo formato: iniciava-se entre quatro e cinco horas da tarde. Os
devotos que chegavam, integravam-se com outros que largavam do trabalho e todos se
aglomeravam para assistir as apresentações que se realizariam no coreto armado na
cabeceira da ponte. Em geral, as bandas de música da Polícia Militar e do 4º Batalhão
da Infantaria do Exército apareciam com frequência na programação. Por volta das 7
horas da noite, havia uma parada nas músicas para o momento das ladainhas, voltando
em seguida até às 9 horas. O encerramento das solenidades era marcado por variados
fogos de artifício.5
A documentação não revela explicitamente, mas os indícios nos leva a inferir
que a ocasião, certamente, reunia pessoas de diferentes estratificações sociais,
considerando ser um evento público, num dos bairros mais populosos do centro e
3
Os arcos ou portais, como também são chamados, marcaram o cenário do Recife nos tempos de Colônia
e Império. Eles tinham a função de proteger a cidade dos invasores, uma espécie de defesa. A expressão
“fora de portas” designava a região para além das entradas do espaço fortificado. Os arcos desaparecem
desse cenário em meados da década de 1910, fruto do processo devastador de modernização que se
estendeu pelas principais capitais nacionais nesse período. Ver: REZENDE, Antônio Paulo. O Recife:
histórias de uma cidade. 2 ed. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2005. p 152.
4
Cf. JORNAL PEQUENO. Recife, 14 de junho de 1902 e 12 de junho de 1905.
5
Sobre a programação da festa do Arco consultar as edições do Jornal PEQUENO e Jornal do RECIFE
(1901-1910). Sobre o repertório dessas bandas, os indícios não nos possibilita conhecer, porém, os
estudiosos da área, registram que nessas ocasiões era comum executar marchas, criadas especialmente
para as procissões, diferentes da marcha militar e do dobrado. Eram marcadas pelas pancadas cadenciadas
do surdo e o retinir dos pratos. Algumas Bandas utilizavam flautas, fagote, clarinetes, bombos e trompas,
num total de aproximadamente 12 integrantes, num formato acompanhado desde o século XIX. Cf.
BINDER, Fernando Pereira. Bandas Militares no Brasil: difusão e organização entre 1808-1889.
Programa de Pós-Graduação em Música. (Dissertação de Mestrado). São Paulo:Universidade Estadual
Paulista (UNESP), 2006.vol 1. BRUSCKY, Paulo. Marchas de Procissão. Recife: Sette, 1998.
acontecer no principal caminho por onde passavam os trabalhadores do porto após um
dia exaustivo de trabalho. Será que todos que estavam ali eram devotos do santo? Será
que o principal atrativo para a parada do público, a desaceleração dos pedestres, era o
som das bandas militares e das orquestras convidadas para o evento? Ao término das
solenidades proferidas pelos sacerdotes, será que todos os fieis ficavam para a festa ou
iam embora?
A presença das bandas de música na programação das festas dos santos traduz
outro sentido para as solenidades católicas de junho. Elas ultrapassam o significado de
ser simplesmente o “exercício público de piedade”, mas, sim, transforma-se “numa
ocasião propícia aos divertimentos e à interligação entre o sagrado e o profano”
(COUTO, 2010:71).6 A banda permite ampliar o tempo de duração da festa e dos fieis
no largo. Ela transfigura, temporariamente, em profano, o que antes era sagrado. Ao
fazer a leitura interpretativa dos signos, o devoto “toma conhecimento do sagrado
porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano
(ELIADE, 2008: 17).” Para Mircea Eliade, o espaço sagrado é “por consequência forte e
significativo, e há outros espaços não-sagrados, e por consequência sem estrutura nem
consistência, em suma, amorfos (ELIADE, 2008: 25)”.7 Essa ideia de ordem diferente,
de integrar outra realidade distinta do cotidiano, no culto a Santo Antônio pode ser
identificada, entre outras ocasiões, nas novenas, nas missas e nas procissões.
As homenagens aos santos de junho na cidade não se resumiam à festa do Arco.
Elas se estendiam ao interior dos templos católicos, onde as irmandades dedicavam-se
para celebrar, cada uma a seu estilo, os santos da época. No convento de São Francisco,
por exemplo, na Rua do Imperador, a solenidade tinha início às 9 horas da manhã e se
estendia até às cinco horas da tarde. Os mais nobres nomes do clero se faziam presente
no evento, que sempre terminava com a parte musical realizada pela orquestra do
Círculo Católico.8 Na Igreja do Divino Espírito Santo, também no bairro de Santo
Antônio, missas solenes eram presididas por padres carmelitas, diáconos e sub-
diáconos; girândolas em profusão iluminavam os ares; no interior do templo,
ornamentação caprichosa iluminada com eletricidade, totalizando 30 mil velas; no pátio
e adjacências, bandeiras e festões patrocinados pela loja “Gallo Preto”, marcavam a
6
COUTO, Edilece Souza. Tempo de festas: homenagens a Santa Bárbara, Nossa Senhora da Conceição
e Sant’Ana em Salvador (1860-1940). Salvador: EDUFBA, 2010.p 71
7
Idem. p 25. Sobre essa relação do sagrado e do profano nas festas de largo, ver SERRA, Ordep.
Rumores de Festa: o sagrado e o profano a Bahia.2.ed. Salvador: EDUFBA, 2009.
8
JORNAL do Recife. Recife, 14 de junho de 1913.
noite de festa e ficava nas lembranças dos que ali se encontravam. Mantedo a tradição,
os organizadores do evento armaram um coreto na praça, onde o som da banda militar
do 2º Corpo da Polícia se fazia ouvir nas principais ruas do centro. Os comerciantes do
bairro deveriam estar satisfeitos com o brilhantismo da festa que organizaram para o
santo, cujo bairro tem especial devoção.
No bairro vizinho a Santo Antônio, em São José, 16 dias depois das celebrações
para o santo que inicia os festejos de junho, os devotos organizavam a festa de São de
São Pedro. No Pátio da igreja do apóstolo, as solenidades que aconteciam no dia 29 de
junho, alterava a rotina do centro da cidade e provocava mudança de comportamento.
Nos Pátios de São Pedro e do Livramento, na Praça da Independência, Rua Nova,
Concórdia, Carmo e das Hortas (itinerário da procissão), as pessoas se arrumavam e as
ruas recebiam atenção especial das autoridades e dos comerciantes locais. Nas calçadas
e esquinas, os devotos se espremiam para ver o santo no andor conduzido nos ombros
dos homens da Igreja. Braços erguidos pedindo bênçãos, momento de preces e
adoração, mas também propícios para aumentar os boatos, para namorar, paquerar,
mostrar as roupas, sapatos, bolsas, entre outras novidades que vinham da capital - Rio
de Janeiro.
As solenidades para São Pedro, como de costume, tinham início às 5 horas da
manhã, com missas celebradas a cada hora e contava com a presença de nomes
importantes do clero secular e regular, a exemplo do Monsenhor Dr. Fernando Rangel
de Melo, vindo do Rio de Janeiro, e religiosos do Seminário de Olinda, das Ordens
Terceiras, confrarias e irmandades do Recife. O ponto alto da celebração, com exceção
da “vistosa ornamentação a estilo romano, iluminada a eletricidade”, acontecia à tarde,
por volta das 16 horas, quando se tinha a saída da procissão do Pátio de São Pedro,
seguindo pelas ruas estreitas dos bairros irmãos São José e Santo Antônio.9
As ruas por onde passava a procissão se localizavam na área central do Recife -
lugares que constitíam o foco das festividades públicas no período estudado. As
solenidades do mês de junho, que aconteciam nesses espaços apareciam na imprensa
com mais frequência. Isso não significa dizer, que nos bairros afastados do centro não
existissem celebrações saojoanescas com caráter religioso. Pensar dessa forma seria
reduzir a complexidade dessa festa. No entanto, as artérias centrais da cidade
constituíam os espaços mais procurados para a realização dos acontecimentos, em
9
DIARIO de Pernambuco. Recife, 29 de junho de 1929. p 3
virtude de concentrar a movimentação da vida social do Recife, os principais templos
católicos, o comércio elegante, os bancos, as casas de negócios, a Faculdade de Direito,
a Escola de Engenharia, as redações dos jornais, os teatros, os cinemas, entre outros
espaços de sociabilidade.
Nesse trânsito da década de 1920, as celebrações religiosas organizadas pelos
templos do centro da cidade não constituíam a totalidade da festa. Ela incluía a
realização de outros acontecimentos (práticas), que se estendiam pelas proximidades do
entorno da igreja e que aos poucos, tornar-se-ia, o principal atrativo. Esses
acontecimentos eram as festas realizadas pelos devotos no interior de suas residências,
cada um a seu modo. Reuniam vizinhos, familiares, padres amigos, todos convidados
com antecedência para o grande evento da rua.
Os preparativos para a noite do dia 12 de junho de 1923, no trecho da residência
de Dona Laurentina Silva, começaram cedo na Rua Padre Floriano, número 11, bairro
de São José. Às 18 horas teria que estar tudo pronto, com “uma vistosa ornamentação”,
para o hasteamento da bandeira de Santo Antônio.10 A promotora dos festejos havia
preparado tudo com antecedência: convites às senhoritas do bairro para cantar as
ladainhas, uma banda de música para animar a noite, e como não há festa sem comida,
preparou um farto banquete para a ocasião.11
Provavelmente, a iniciativa de Dona Laurentina em organizar a festa para Santo
Antônio tenha nascido de alguma promessa alcançada sob a intercessão do santo, por
sinal, um dos mais populares da Igreja Católica e homenageado do ciclo junino. Essa
expressão de devoção é fruto de uma relação contratual entre o santo e o devoto, na qual
se localiza a maioria das festividades religiosas católicas. Novenas, procissões,
foguetório, banquetes e até mesmo bailes populares são exemplos concretos desse
10
As irmandades religiosas têm seus estandartes assim como os santos padroeiros. O levantamento da
bandeira, cerimônia realizada no início de certas festas votivas, consiste em içar o estandarte da
irmandade religiosa ou do santo padroeiro até a extremidade de um mastro enfeitado, entre música e salva
de foguetes. O arreamento da bandeira ocorre com solenidade idêntica, assinalando o fim da festividade
religiosa. Cf. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. p.45. Dessas festividades
religiosas com seus desdobramentos profanos, foram célebres, no Recife, as bandeiras do Poço da Panela,
de Santo Amaro, do Carmo (Olinda) e outros arrabaldes. As bandeiras saíam das residências das juízas e
eram conduzidas processionalmente até a frente do templo, levadas por moças entre cânticos. Houve no
Recife do século passado bandeiras carregadas por via fluvial: lindos cortejos noturnos pelo Capibaribe
afora, entre balõezinhos, fogos de bengala, foguetes e música. Cf. MORAIS FILHO, Melo. Festas e
Tradições Populares do Brasil. Op. Cit. p 164.
11
DIARIO de Pernambuco. Recife, 13 de junho de 1923. p 2
“acordo”, como “se ambos conseguissem cumprir suas obrigações a contento”, e a
devota comemorou o fim do acordo com exuberante festa. (COUTO, 2010: 71)12
A popularidade dos santos celebrados nesse período aumentava a cada ano
devido a grande quantidade de milagres que seus devotos lhes atribuíam: o fim do
caritó para as moças com idades avançadas ou as jovens temendo a solidão da velhice
era o motivo mais comum para homenagear Santo Antônio, que durante os treze
primeiros dias de junho, recebia das moças orações para “arranjar um marido”. Segundo
Gilberto Freyre, Santo Antônio é mais indicado para “as afeições perdidas, ou seja, os
noivos, maridos ou amantes desaparecidos. Os amores frios ou mortos” (FREYRE,
2006: 326). O sociólogo chega a classificar as “funções” de São João como
“afrodisíacas”, sendo o seu “culto ligado a práticas e cantigas sensuais”. Para o autor, é
o santo casamenteiro por excelência. “Dai-me noivo, São João, dai-me noivo, dai-me
noivo, que me quero casar” (FREYRE, 2006: 326). Até mesmo São Pedro, tem suas
orações relacionadas aos assuntos do coração. A ele, cabe à especialidade de “arrumar
marido ou amante para as velhas e de casar as viúvas” (FREYRE, 2006: 326).
Nesse sentido, pensamos que o episódio do hasteamento da bandeira de Santo
Antônio, da casa de Dona Laurentina e as simpatias praticadas nas noites de junho
surgem como um bom pretexto para reforçar a ideia do significado diverso e
multifacetado das solenidades nas noites de junho. Reproduzíamos as tradições
religiosas herdadas do tempo de Colônia. Uma espécie de teatralização do sagrado, com
a participação dos diferentes atores, das diversas classes sociais, incluindo traços e
signos festivos próprios de cada grupo, impregnando a celebração de múltiplos sentidos.
Essas múltiplas apropriações que constituem as celebrações em homenagem aos
santos juninos, aproximam-se da concepção de festa defendida por Guy Debord em A
Sociedade do Espetáculo. Para o autor, “a festa não é um conjunto ordenado de
imagens, mas uma relação social entre participantes mediada por imagens” (DEBORD,
1997: 14). Essa mediação formadora de metáforas que produzem efeitos de sentidos
variados entre os devotos, subvertem as regras de existência de uma única maneira de
interpretar e vivenciar a festa.
Partindo desse pressuposto, chamamos atenção do leitor para o modo de como as
elites celebravam essas datas nas décadas de 1920 e 1930. Os espaços de diversão nesse
período festivo se ampliaram e os clubes sociais se popularizaram entre as elites,
12
COUTO, Edilece Souza. Tempo de festas: homenagens a Santa Bárbara, Nossa Senhora da Conceição
e Sant’Ana em Salvador (1860-1940). Salvador: EDUFBA, 2010.p 71
passando a constituir um dos principais espaços de vivência das festas. No Bairro do
Recife, na Av. Rio Branco, por exemplo, um dos lugares mais frequentados era o
Britshi Club; na Rua do Imperador, bairro de Santo Antônio, o Club Brasil e o
Cavalheiros da Época dividiam a preferência da clientela. Nas áreas afastadas do centro
da cidade, merecia destaque o Country Club e o Club Alemão, ambos na Av. Rui
Barbosa, que disputavam entre si, as mais pomposas decorações nas noites de festa. O
Jockey Club, o Internacional e o Português eram os clubes mais evidenciados pela
imprensa da época, atraindo políticos, jornalistas, filhos da “açucarocracia”, entre outros
representantes da alta sociedade pernambucana, que ali se encontravam para conversar,
ouvir música, dançar, tratar de negócios, falar e fazer política e até mesmo namorar e
ensaiar (concretizar) traições conjugais. Esses novos espaços de divertimento, em geral
noturnos e aos finais de semana, contrastava com os formatos primeiros de festas de
largo (pátio), organizadas pelas igrejas e fieis para celebrar os santos do ciclo junino.13
Esse tipo de festa em ambientes fechados, organizados para as elites, que ganhou
mais espaço no Recife na segunda metade dos anos 1920, trouxe uma maneira de
celebrar o nascimento do Batista inovadora e atraente para uma parcela da sociedade
antenada com as novidades da Capital Nacional. Um dos propósitos era combater
“velhos hábitos” considerados desviantes diante do novo parâmetro de diversão
moderna, interferindo, assim, na dinâmica e na forma de celebrar o São João.
No entanto, é importante frisar, que o aparecimento de novos espaços de
sociabilidade não anula as outras práticas festivas já existentes. Uma coisa não encerra a
outra. As mudanças aconteciam em paralelo com as permanências. Não há uma
hierarquização temporal nos modos de celebrar o São João, o formato religioso da festa
não é um capítulo introdutório que desapareceu com as festas nos clubes.
De acordo com as fontes pesquisadas, no decorrer de uma década, o formato de
celebrar o São João nos clubes passou por mudanças significativas, desde a
programação ao tipo de traje dos associados e a organização do espaço. A fotografia
publicada na Revista da Cidade, em 1929, de “um grupo que tomou parte nas festas de
São João do Club Alemão”14, possibilita-nos identificar, que os participantes do baile
13
Sobre a funcionalidade dos clubes sociais e a sua localização geográfica na cidade, ver
CAVALCANTI, Carlos Bezerra. O Recife e seus bairros. Recife: Câmara Municipal do Recife, 1998.
1414
REVISTA da Cidade. Edição 162. Recife, 1929. Ver também a edição 110 da mesma revista, ano
1928. Acervo Fundação Joaquim Nabuco. Este periódico, como o próprio subtítulo anuncia, é o
semanário da vida mundana do Recife. Circula em todo o norte do país e se dedica a registrar fatos sociais
da semana, a exemplo de festas em ambientes fechados, novidades da moda, aniversários, casamentos,
espetáculos teatrais, o “footing”, entre outras formas de entretenimento das elites recifenses. A oficina do
estão todos trajados a rigor – importante marcador de distinção social. Os homens,
aproximando-se do modo de vestir dos ingleses e norte-americanos, usavam paletó (a
maioria na cor branca com gravata borboleta preta) e sapatos fechados pretos e
envernizados. As mulheres, elegantemente trajadas com vestidos em tons claros (das 29,
apenas 4 com tons escuros), cabelos cortados à lá garçon e joias. A única criança que
aparece na imagem também veste traje a rigor apropriado para a idade.
Observamos que os tipos rurais não eram associados, ainda nesse momento, ao
tipo de traje das festas juninas (pelo menos os registros imagéticos não nos possibilita
identificar). Fato que difere, entretanto, com a realidade da década seguinte, quando a
festa revestiu-se, completamente, de um caráter caipira. A ruralização traduziu-se,
principalmente, na ambientação efêmera criada para a ocasião, o tipo de traje dos
participantes e as atrações artísticas. Os fogos de artifício, a fogueira, o balão e as
comidas à base do milho são elementos comuns a essa celebração desde as primeiras
referências no século XIX.
A programação dançante também atendia aos padrões de modenridade da época.
As orquestras que ficavam responsáveis pelas danças, que em geral, começavam entre
magazine, onde se realizava a redação e os serviços de arte gráfica, ficava localizada na rua Imperador
Pedro II, 207.
21h e 22 horas. A Jazz do Grande Hotel, a Amadores do Recife, a Barreto Andrade, o
Bando Acadêmico, a Huracab, entre outras orquestras Jazz que se apresentavam nos
clubes, constituíam o surto jazzístico que se espalhou pelo país, principalmente entre os
integrantes da classe média, em geral estudantes de cursos universitários antenados com
as novidades culturais do eixo sul do país e as notícias norte-americanas. 15 Esses grupos
eram formados com o intuito de negar todo e qualquer elemento que pudesse macular a
imagem civilizada da sociedade dominante.
Na mentalidade das elites, saber dançar e cantar músicas no estilo norte-
americano era sentir-se e perceber-se como pessoas modernas, as quais condenavam
hábitos e costumes ligados pela memória às sociedades colonial e imperial. Nesse
sentido, parece contraditório que os organizadores dos bailes de São João dos clubes
contratassem para a mesma festa, grupos de violeiros e Jazz Band. Será mesmo uma
única festa ou eram duas festas em uma? É importante destacar, que o fato dessas
atrações dividirem a programação da festa, o mesmo não acontecia com os espaços de
apresentação. As Bandas realizavam seus shows nos salões oficiais pomposamente
decorados para a ocasião, enquanto os violeiros e repentistas ocupavam os arraiais
armados na área externa (terreiro) do clube, conforme registra a Folha da Manhã de
1939. Na programação do Clube Internacional, por exemplo, três atraçõesmeros de
sucesso foram pensados para a noite de festa, entre eles a presença de violeiros
interpretando músicas “tipicamente” nordestinas: “o Bando Acadêmico, o Grupo
Pernambucano e os violeiros, representados pelos repentistas sertanejos contratados
para apresentar cantigas e desafios à viola.”16
Essa relação da festa com o universo do campo, pensada pelos diretores dos
clubes para atrair públicos cada vez maiores, vai além da escolha das atrações artísticas.
Uma arquitetura efêmera era projetada por artistas reconhecidos no estado e até mesmo
no país, de modo que despertasse na sociedade a curiosidade e atraísse um número
15
É importante frisar que a cultura do jazz nos Estados Unidos está relacionada às práticas de lazer e
entretenimento das crescentes massas urbanas das classes média e baixa, desde o final do século XIX. A
difusão da música negra norte-americana está relacionada à tecnologia do rádio, que em poucos anos
espalhou grupos em turnês pela Europa, América do Sul e outras localidades do globo, sobretudo, nas
áreas urbanas da sociedade industrial do ocidente. Não demorou, e rapidamente foi absorvido pelos
intelectuais, aristocratas e artistas letrados não apenas como música exótica e não-burguesa, mas
principalmente como símbolo da modernidade. Sobre o assunto ver: HOBSBAWM, Eric. Pessoas
Extraordinárias: resistência, rebelião e jazz. São Paulo: Paz e Terra, 1998. Sobre este processo de
mudança da mentalidade da sociedade brasileira com a chegada dos tempos modernos, conferir o trabalho
de SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, entre outros.
16
FOLHA da Manhã. Recife, 20 de junho de 1939.
significativo de associados. A decoração reunia aspectos típicos da cultura caipira com
o que havia de mais moderno na época. A fachada, o dancing e o jardim apresentavam
vistosa iluminação com luzes distribuídas por todo o espaço.17
O Clube Internacional, por exemplo, preparou uma programação que reunia
desde elementos da nossa “broadcasting” até “autênticos cantadores sertanejos”,
apresentando “interessantes números regionais com desafios e emboladas.”18 Na área
externa, uma reconstituição dos “terreiros matutos” fora projetado para reunir outros
símbolos regionais e algumas performances, a exemplo das “três fogueiras
monumentais que seriam tomadas de assalto por um grupo armado de bacamartes”.
Balões, fogos, uma fonte para adivinhações e a montagem de três cabanas: uma para Pai
Joaquim, outra para Mãe Preta e outra para o Rancho Fundo também contribuíram para
a ambientação regional. Dos atrativos da noite, ganhou destaque na imprensa, a
performance do casal de negros velhos: Pai Joaquim e Mãe Preta. Os personagens,
sedimentados no imaginário do Nordeste colonial, despertaram a curiosidade dos
convidados, que estendiam as mãos para serem lidas e escutarem prognósticos
relacionados à vida amorosa, trabalho, dinheiro, felicidades, saúde.
Essas festas eram esperadas com ansiedade pelas elites. Os ingressos eram
vendidos e as mesas reservadas cerca de um mês antes do evento. A imprensa contribuía
com a divulgação semanal, chegando a publicar diariamente a programação, quando da
proximidade do São João. A ideia era que os associados se organizassem para reservar
os melhores lugares e providenciar o traje mais original. Essas reuniões festivas
reafirmavam a condição socioeconômica dos seus associados e referendava para toda a
sociedade recifense que o seu espaço dos clubes era um “ambiente de ordem”. Fazer
exigências quanto ao traje, típico ou passeio também impedia que pessoas de outros
grupos sociais não desejadas pelos organizadores, entrassem, participassem e se
ficassem à vontade no evento, até porque o preço do ingresso era proibitivo para boa
parcela da população que não tinha como pagar pelo ingresso.
A análise das fontes nos possibilita identificar, cada vez mais, o distanciamento
de uma possível interação social. No ambiente festivo dos clubes, mesmo representando
elementos das expressões populares, as diferenças sociais e econômicas se repetiam,
tendo em vista que o evento não era um movimento de unificação coletiva. O pobre, o
negro, o trabalhador, enquadrava-se no mesmo patamar de caricatura do matuto, do
17
Idem. Recife, 15 de junho de 1939.
18
Idem. Recife, 18 de junho de 1939.
brejeiro, do supersticioso. O período de comemoração do São João não anulava a rígida
estratificação que vigora no convívio social no resto do ano.
Diante dessas circunstâncias, que nos levaram por diferentes caminhos a analisar
momentos específicos nos contextos da festa, as reflexões tecidas sinalizaram para as
diferentes formas de abordagem do tema, afastando-nos da possibilidade da existência
de uma única versão para a história do São João no Brasil. Por intermédio de diferentes
indicadores, as mudanças na forma de celebração e vivência da festa foram
evidenciadas, possibilitando-nos distanciar da ideia de um único pensamento norteador
da sua escrita. Outros discursos existem e são possíveis de proporcionar outros
contornos, revelar novos sujeitos, novas falas e experiências possíveis de desenhar uma
nova trama sobre o acontecimento em foco. Nesse sentido, é importante sairmos do
nível de generalidade do tratamento dado ao tema e ir mais fundo nestes deslocamentos
de sentidos dados à festa nas abordagens e pesquisas históricas.
Fontes:
Jornais
DIARIO DE PERNAMBUCO: jun. 1923; jun.1929.
Periódicos:
Referências
REZENDE, Antônio Paulo. O Recife: histórias de uma cidade. 2 ed. Recife: Fundação
de Cultura Cidade do Recife, 2005.
RESUMO
A Festa do Morro da Conceição em Recife – PE é uma das maiores manifestações do
catolicismo popular brasileiro. O ápice da festa, que acontece há 108 anos, são as
promessas. A penitência é uma das mais tradicionais e legítimas formas de expressão das
emoções, culturalmente aceita e legitimada pelas práticas religiosas cristãs, especialmente
as católicas. Entre os pagadores de promessas estão as crianças. Demonstrando seriedade
ao performar a atividade, suscitam questionamentos a respeito do seu grau de autonomia na
decisão e pagamento da promessa. Este trabalho traz uma interface entre antropologias da
religião, criança e emoções para compreender a penitência infantil na Festa do Morro. Em
fase inicial de realização, a investigação busca nesse momento trazer uma discussão teórica
acerca dos resultados encontrados numa primeira incursão no campo proposto de estudo,
através da observação participante e realização de entrevistas.
INTRODUÇÃO
A partir de 1904, o dia 8 de dezembro passou a ter um novo significado para a
cidade do Recife. Seu então bispo, Dom Luiz Raimundo da Silva Brito, trouxe uma
imagem de Nossa Senhora da Conceição em comemoração ao cinquentenário do dogma da
Imaculada Conceição no Brasil e deste momento em diante, o antigo Outeiro da Bela Vista
se transformou em Morro da Conceição e, assim, passou a moldar a identidade cultural de
uma cidade. Nossa Senhora da Conceição tornou-se padroeira do local. Oito de dezembro,
feriado no município. Azul e branco se estenderam para além do manto Mariano, tingindo
vestimentas de fieis, fitas de promessas, terços de oração.
Caminhando para sua 108ª edição, a “Festa do Morro”, como é popularmente
conhecido o evento anual que se realiza no local em homenagem à Santa, é uma das
grandes celebrações atuais do Catolicismo Popular, diversamente abordada como
manifestação religiosa e cultural recifense. Em todas as festas, desde os primórdios, é
possível observar uma grande quantidade de fieis em peregrinação à imagem da santa, no
ponto mais alto do morro. Desde o uso de roupas específicas às mais variadas formas de
subir o morro, o pagamento das promessas é uma demonstração de fé e/ou agradecimento
por pedidos (futuramente) alcançados.
1
Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia da mesma instituição.
É comum ver famílias com crianças entre os penitentes, fato que seria curioso se
não fosse tão comum. Crianças com cabelos enormes, vestindo azul e branco, fantasiadas
de anjo, segurando algum ex-voto para deixar aos pés da santa... A pergunta que fica no ar
é: O que sentem essas crianças? O que estão pensando?
Tais questionamentos levam o pesquisador a um caminho recentemente
pavimentado pela antropologia, onde Cohn, Toren, Pires e Campos são algumas das
pesquisadoras que trabalharam na legitimação de uma Antropologia da Criança. Fazer uma
antropologia com crianças significa tomá-las como sujeitos capazes de produzir falas com
sentido, de serem agentes dentro de seus grupos sociais e, por que não, de comunicarem
suas emoções de forma clara e sensível.
Este artigo é parte de uma investigação ainda em curso e visa propor a compreensão
do ponto de vista da criança através de uma interligação entre antropologia da religião, da
criança e das emoções, a fim de entender como estes sujeitos representam e vivenciam os
processos emocionais e religiosos ligados à condição de pequeno penitente.
COMPREENDENDO O PROBLEMA
Até o século dezenove, o catolicismo era a religião oficial brasileira, o que torna a
experiência da multiplicidade religiosa algo relativamente recente. A herança do
colonizador português ultrapassou o momento de conquista de um novo território
chegando até os dias atuais2, onde mais da metade da população ainda se declara católica
(63,3%). No entanto, a identidade religiosa brasileira está cada vez mais diversificada, em
plena mutação (SANCHIS, 2003), entendendo-se por isso não só a modificação do mapa
das religiões, mas a própria transformação de seus sentidos e funções (HERVIEU-LÉGER,
1993). Atualmente, o grupo das religiões evangélicas é o que mais cresce no território
nacional, despontando em números e ameaçando a hegemonia católica. Para Menezes
(2012), não é mais possível falar no catolicismo como a religião do Brasil, e sim como a
religião da maioria dos brasileiros.
Na contramão do declínio que atinge o país como um todo, o Nordeste ainda se
enquadra como a região mais católica, apesar de acompanhá-lo em números durante os
últimos dez anos (de 79,9% em 2000 para 72,4% em 2010). Se (ainda) faz sentido para o
Brasil falar de uma cultura católica, no Nordeste esta é uma realidade viva do que Sanchis
(2001) chama de matriz cultural católica expressa em formas de feriados santos, dias
santos e elementos desta religião. Uma das maiores celebrações da fé católica no Brasil é a
Festa do Morro, em homenagem a Nossa Senhora da Conceição, no Morro da Conceição,
em Recife - Pernambuco.
O símbolo-mor da festa é a procissão que ocorre no fim da tarde do dia 8 de dezembro,
encerrando um ciclo de novenas, missas e procissões menores nos arredores do bairro.
Uma réplica da imagem de Nossa Senhora da Conceição que fica no topo do morro e tem
5,5m, é carregada desde o ponto mais baixo e seguida por fieis, geralmente pagando
promessas feitas anteriormente ou no momento da festa, constituindo uma espécie de
tradição que ocorre durante todo o dia. As promessas também são cumpridas em forma de
orações ou de formas distintas de subir o morro ou qualquer outra ação que o fiel atribua
um significado específico de devoção e compromisso.
“A penitência é uma prática religiosa muito antiga e foi uma maneira bem comum de
atividade milenarista entre os séculos XIII e XIV. Nesses tempos medievais, a penitência
era um ritual tradicional performado em procissões promovidas e organizadas pela Igreja
Católica, que o prescrevia como uma forma de indulgência” (CAMPOS, 2008:8). Elas são
realizadas de forma voluntária e não há restrições por parte da igreja para a realização de
algum tipo específico de penitência no Morro da Conceição, o que gera uma situação de
liberdade de escolha por parte do fiel e de sua fé.
É comum ver crianças de várias idades seguindo a procissão acompanhadas de seus
responsáveis, muitas vestindo as cores da santa, rezando junto com os demais fieis, enfim,
participando ativamente da penitência na Festa do Morro.
CRIANÇA X EMOÇÕES
Pesquisar crianças é um campo em recente exploração. Este sujeito gerou certa
resistência por parte dos acadêmicos, existindo assim poucos trabalhos que incluíssem os
pequenos. Houve algumas tentativas na Antropologia clássica de trabalhar esta temática
(com Margaret Mead, George Bateson, Ruth Benedict, Malinowski, etc.), mas apenas
recentemente, em meados dos anos sessenta, quando a Antropologia contemporânea se
dedicou a questões de estrutura/agência, práticas sociais/culturais, a infância passou a ser
uma fase da vida, enfim, ouvida. Apenas a partir deste momento, o fazer antropológico se
abriu à criança como agente cultural (CAMPOS, 2011).
Parece existir, segundo alguns autores, uma resistência ao testemunho
infantil como fonte de pesquisa confiável e respeitável. Mesmo a
abordagem etnográfica e a história oral tendo certa aceitação
metodológica no estudo das crianças, a entrevista possui ainda uma
condição menor nas pesquisas com os pequenos. Por parte dos
pesquisadores parece haver uma certa resistência ou dificuldade para
ouvir e dar o tratamento adequado às vozes desse novo e pequeno sujeito
empírico” (CAMPOS, 2011:3)
3
Esta criança era um ogã (masculino)/ekedi (feminino), e abiaxé. Explico: O ogã tem múltiplas funções no
terreiro: é responsável pela recepção de convidados em festas, realiza o sacrifício dos animais e toca os
atabaques para o santo. Abiaxé é aquele que recebeu ainda na barriga da mãe os fundamentos de iniciação e
obrigação, por isso, não precisa passar pelos rituais de iniciação, “já nasce feito” (FALCÃO, 2011, p.3).
Importa aqui perceber que ambas as posições podem e são ocupadas por crianças, conferindo-as alto grau de
autonomia, prestígio e posição privilegiada na hierarquia do candomblé.
4
A autora faz uma distinção da idade biológica com a idade do santo, que é o tempo em que se tem de
iniciado no terreiro e nas obrigações do candomblé.
especial o católico. Pires (2011), em seu livro “Quem tem medo de mal-assombro?
Infância e Religião no Semi-árido Nordestino” aborda crianças e a construção da ideia de
mal-assombro entre elas na cidade de Catingueira. O componente do catolicismo aparece
como fator de destaque devido ao alto número de fieis católicos na cidade, no entanto, as
crianças não estão em posição de destaque na religião dentro da pesquisa da antropóloga, e
sim, suas perspectivas acerca de ideias de mal-assombro que remetiam a elementos
religiosos.
Nas pesquisas atuais, muito se discute a respeito da autonomia infantil e, embora as
crianças caracterizem um grupo particular, estão longe de possuírem uma liberdade que
lhes garanta autonomia (CAMPOS, 2011). No entanto, este grupo possui um diálogo com
diversas esferas do mundo em que vivem, com as pessoas e as coisas, e “negociam suas
possibilidades de ação de acordo com o que lhes é dado pelas interações e contextos
sociais dos quais estão inseridas” (CAMPOS, 2011:6). Clarice Cohn (2010) destaca o
papel de agência infantil em relação a suas rotinas. Para a autora, a ideia presente no senso
comum de que este sujeito possui uma postura passiva diante das relações sociais e a
sociedade é errada. Cohn enfatiza o fato de que as crianças são decisivas no processo de
estabelecimento e manutenção de algumas relações sociais que são apresentadas a eles
(p.28). A criança tem sua forma própria de ver o mundo, atribuindo-lhe significado
diferentemente da forma que o adulto o faz. Desta forma, é possível trazer o argumento de
Cohn que crianças são, de fato, produtoras de cultura. Tal afirmação é reveladora, mas
possui limites, como a autora mesmo aponta (p.35) – é necessário relativizar esta
compreensão de autonomia porque crianças adquirem significados quando postas em
contraste com o sistema simbólico adulto.
Marchi (2011) trata desta posição de invisibilidade do objeto infantil dentro da
epistemologia das ciências sociais, não existindo assim uma Sociologia da Infância5 que
estudasse as crianças como um objeto de estudo autônomo, já que ela era sempre estudada
“a partir das instituições que a acolhem” (p.396), e teve seu status de ator social geralmente
negado nas investigações. A autora faz um paralelo com a exclusão que o objeto infantil
passou e o processo dos estudos de gênero no caminho de legitimação dos mesmos. Ortner
(1979) comparou a disputa entre mulher e cultura à disputa clássica do paradigma
antropológico de natureza e cultura, aproximando o feminino à natureza, ao ‘indomado’, a
algo inferior. Tal analogia pode ser estendida ao local da infância, comumente associada ao
paradigma da natureza, que termos douglasianos, seria um “perigo” à organização social.
Marchi (2011) aponta o local das crianças como o “reino da natureza” (p.400), o que as
coloca numa posição culturalmente inferior e socialmente inacabada e apenas com os
processos de socialização e educação, desempenhados pela família e a escola, é que podem
ser introduzidas à sociedade e à cultura. Para a autora, o argumento de Prout (2005) de que
as crianças são um objeto híbrido, entre a natureza e a cultura, é que as coloca na posição
de subordinação e invisibilidade. A socialização, então, seria o caminho para inserção da
criança na sociedade, o que não significa que é um processo passivo – elas também têm
consciência de seus desejos, sentimentos, ideias e expectativas, e são perfeitamente
capazes de expressá-los (MARCHI, 2005).
No entanto, a questão dos sentimentos e emoções nas ciências sociais é também um
campo que ganhou força na Antropologia a partir dos estudos americanos da década de
19706 e apenas em 1980 uma abordagem relativista dos sentimentos surgiu, tratando-os
como conceitos culturais que produzem a experiência afetiva. Uma das grandes teóricas
deste campo, Catherine Lutz (1988), propôs a noção de que emoção implica negociar com
uma gama de aspectos da vida social, tornando-se “um idioma que define e negocia as
relações sociais entre uma pessoa e outras” (LUTZ e WHITE, 1986 in REZENDE e
COELHO, 2010). O caminho epistemológico da antropologia das emoções foi em direção
a uma abordagem mais contextualista, onde em meados de 1990 passou-se a compreender
também a dimensão das emoções em relações de poder, as consequências dos sentimentos
nas relações sociais, o que Rezende e Coelho (2010) chamam de micropolítica das
emoções.
Dentre as várias abordagens, destaca-se o que Lutz (1988) chamou de etnopsicologia,
um conceito que se refere ao sistema de conhecimentos que define e explica a pessoa,
permitindo que ela monitore a si mesma e aos outros, possibilitando uma antecipação aos
comportamentos e adequando-os às mais variadas situações sociais. Seu pressuposto inicial
é a dualidade corpo e mente e pode ser estendida para razão e emoção, num caminho quase
evolucionista e hierárquico de organização destas categorias; onde corpo/razão seriam mais
regrados e seguros e mente/emoção, o extremo oposto. Essas dualidades não excluem o
papel da biologia na demonstração das emoções, como por exemplo, as cargas hormonais
5
E aqui eu estendo à Antropologia da Criança.
6
Refiro-me a quando o tópico passou a ser mais explorado, e não quando a temática surgiu nas ciências
sociais. Sobre isto, há referências na década de 1930 em Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, por
exemplo.
que alteram os comportamentos, mas, compreende-se inclusive a grande participação do
fator cultural no produto das ações emotivas, que seria o conceito de “embodiement” 7 de
Michelle Rosaldo (1984), onde as emoções seriam “embodied thoughts”, que engloba a
ideia de emoção muito mais como prática do que uma essência pessoal. Ela é treinada
através dos agentes sociais e culturais que legitimam as práticas comuns da sociedade,
quando e como expressar os sentimentos. Mauss (1979), num ensaio sobre os ritos
funerários australianos, demonstra esta sobreposição do social sob o individual. Em suas
palavras, “não só o choro, mas toda uma série de expressões orais de sentimentos não são
fenômenos exclusivamente psicológicos ou fisiológicos, mas sim fenômenos sociais,
marcados por manifestações não espontâneas e da mais perfeita obrigação” (MAUSS,
1979:147), e Lutz reitera dizendo que: “A emoção pode ser vista como um processo
cultural e interpessoal de nomeação, justificativa e persuasão de pessoas em relação com
outras. O significado emocional é assim, uma realização muito mais social que individual,
um produto emergente da vida social” (LUTZ, 1988:5, tradução livre).
A penitência, então, é uma das mais tradicionais e legítimas formas de expressão de
emoções, culturalmente aceita e legitimada pelas práticas religiosas cristãs, e
especificamente para este caso, católicas. Campos (2001) tem sua tese de doutorado sobre
os Ave de Jesus, grupo de penitentes que atua em Juazeiro do Norte – CE. Em linhas
gerais, a autora explora a relação dos sentimentos de misericórdia e sofrimento com a
identidade dos penitentes e da formação da identidade do Juazeiro como um todo. Essa
relação ‘penitência x localidade x grupo’ interessa a esta pesquisa por se adequar ao caso
proposto na forma de ‘pagamento de promessas x Morro da Conceição x crianças’. A
penitência em forma de pagamento de promessas acontece num local legitimador dessa
prática, o Morro da Conceição, que assim como Campos (2002) coloca, “a emoção tem um
importante destaque em um cenário em que o sofrimento físico é a forma mais comum de
expressão da religiosidade local. Juazeiro recebe todos aqueles que vem para chorar, se
consolar, se compadecer e serem misericordiosos” (p.117). No Morro da Conceição o
sofrimento nem sempre se configura como uma penitência de dor física, mas físico por ser
demonstrado de forma corporificada, além do discurso e palavras, mas também por
7
Numa tradução livre, corporação das emoções, no sentido de dar-lhes forma e corpo.
atitudes. Dessa forma, o sofrimento8 é concreto, visto e aprovado socialmente dentro do
contexto da Festa do Morro, mesmo que por uma criança.
Campos (2002) traz o trabalho de Kleinman & Lock (1997) para tratar do sofrimento
como uma experiência social: “Uma vez que o sofrimento ganha significado através de
representações culturais, ele é ao mesmo tempo performance e representação da realidade.
Portanto, o modo como o sofrimento é descrito nos leva a uma forma particular de como
ele é vivenciado” (p. 118). R.Campos nos lembra que a forma de expressão varia de acordo
com o grupo, pois as formas de apropriação cultural variam, sendo as crianças um grupo
específico que pode desenvolver sua forma específica de expressão e representação do
sofrimento e, por que não, da penitência.
A ETNOGRAFIA9
A metodologia de pesquisa consiste em realização de etnografia da Festa do Morro,
realizada em oito de dezembro de 2012, a fim de observar a dinâmica da festa e as crianças
que dela participam dentro do ambiente em foco. A partir dessa observação, entrei em
contato com doze crianças que estavam pagando promessas e seus pais, onde realizei
rápidas entrevistas semiestruturadas e peguei seus contatos para posterior entrevista e
observação mais aprofundadas, estágio este que se encontra em curso no momento da
escrita deste artigo. Busquei crianças com idade aparente10 acima dos sete anos, não
importando sexo ou classe social, pois a partir desta fase da vida, de acordo com as teorias
em psicologia de Vygostky e Piaget, é a fase da infância onde as outras esferas da vida,
além da família, passam a ter importância para a criança de forma essencial.
Para este artigo, escolhi focar num caso específico que instigou os questionamentos da
pesquisa como um todo; o de Alexandre e sua avó. Iniciei a incursão em campo já antes da
subida ao Morro, quando procurei me aproximar de uma avó que caminhava com seu neto
de 7 anos, em direção à parada do ônibus para ir à Festa do Morro. Foi fácil identificar que
estávamos indo para o mesmo lugar pois ambos vestiam branco e levavam fitas de Nossa
8
No momento de elaboração de projeto, traz-se apenas o sofrimento por falta de dados etnográficos,
buscados na realização da pesquisa em si, mas, admitem-se outros sentimentos que com a pesquisa de campo
aparecerão como emoções sentidas descritas pelas crianças.
9
Nesta seção será explorada de forma inicial, a primeira fase da etnografia da pesquisa, que está em curso,
que foi a incursão em campo no dia da festa. Pretendo expor minhas impressões advindas da confecção do
diário de campo e dos contatos primários com as crianças (que estão sendo estudadas mais a fundo) durante a
realização da festa.
Senhora da Conceição, que seriam amarradas aos braços quando chegassem perto da Santa,
no alto do Morro. Senti-me profundamente encantada por aquela criança que, caminhava
de braços dados com sua avó e possuía uma expressão séria. A avó estava de pés descalços
e dividia o calor nos pés com o pequeno penitente. Desde que ele completou dois anos que
ambos vão juntos para a festa e à medida que o tempo foi passando, parece que passaram a
dividir o peso da promessa que caleja. Os motivos da promessa de Alexandre11 foram
relatados pela avó, que disse que ele pedia para “passar de ano e ser um bom menino
durante o ano todo, não dar trabalho aos pais”. Alexandre confirmava as falas da avó e
falou pouco durante o trajeto do ônibus até o local de pagamento da promessa, que
consistia em percorrer o caminho descalço juntamente com sua avó e rezar aos pés da
santa.
Fingi não saber o caminho até a santa para que fosse guiada por eles e assim, ouvisse
Alexandre relatar um pouco mais de sua experiência como penitente. Sem reclamar
nenhuma vez dos pés no chão, ora de terra, ora de asfalto, o calor castigou cada um dos
fieis que foi honrar sua promessa no alto do Morro da Conceição. Alexandre suava, e só
soltava a mão de sua avó para enxugar as gotas de suor que molhavam as vestes brancas.
Ao passar por um pedinte, ele olhou para a avó com um olhar que só entendi quando ela
depositou em suas mãos alguns centavos, que ele repassou para o pedinte. “Caridade é
importante”, disse ela, explicando a Alexandre que este era um ato cristão e justificando
para mim o porquê de ter dado dinheiro. Notei que a comunicação do neto era basicamente
através de olhares e sorrisos tímidos. Perguntei-lhe se gostava de ir à festa e ele disse que
sim.
Pouco mais de dez minutos que estávamos juntos subindo o morro, Alexandre puxa a
blusa da avó, olha para ela e pergunta: “Quando é que eu vou ganhar a minha bola?”. A
avó responde: “Quando a gente acabar aqui”. Neste momento, perguntei por que ele queria
ganhar uma bola e ele respondeu “Sempre que eu venho, eu ganho uma bola”. Tal relato
foi um tanto revelador para a pesquisa como um todo, pois, a criança que a princípio se
portava, através de suas ações, como sendo levado pela avó/ sem voz, por não responder
diretamente às minhas perguntas, mostrou-se um menino autônomo, que negociou suas
possibilidades de ação com a avó. “Sempre que eu venho, eu ganho uma bola” – Se não
10
Aparente porque não tinha como, à primeira vista, saber a idade certa da criança. Após a abordagem, uma
vez que a idade era confirmada, a criança passava a fazer parte da pesquisa com o seu consentimento e de
seus pais.
11
Todos os nomes utilizados neste artigo são fictícios.
houvesse a bola ao final do ciclo da promessa, Alexandre não iria querer ir à Festa pagar a
promessa que sua avó disse ter sido prometida por ele mesmo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste momento, pude compreender que o pagamento de promessas, para Alexandre12,
tinha a dimensão lúdica da brincadeira, de assumir um papel de agradar a avó para depois
ganhar o seu agrado. Foi a partir deste dado etnográfico que a penitência infantil se
desenhou para mim de uma forma além do sofrimento, onde a criança re-significa o ato de
sofrer para sua realidade de brincadeira, mas ainda assim respeitando a expressão correta
da penitência, numa confluência do que Mauss (1979), no seu “Expressão Obrigatória dos
Sentimentos” descreve como a forma de expressar o luto através do choro e aqui eu
descrevo uma situação análoga da forma de expressar o sofrimento através da seriedade e
da mensagem que o corpo emite ao vestir-se de branco e se autoflagelar com os pés
descalços. Mas tudo isso, para Alexandre, possuía um significado diferente do imaginado
pelo adulto que observa. Entra em cena a autonomia infantil, discutida por Cohn (2010) e
demonstrada através da negociação do menino – Alexandre ganhou a bola13.
12
E outras crianças observadas/entrevistadas, mas que escolhi não trazer para esta discussão devido ao
caráter inicial da investigação e do recorte dado a este artigo.
13
Ciente de que há muito a ser explorado no caso de Alexandre e dos outros pequenos penitentes, este artigo
se encerra com a intenção de provocar reflexões sobre este fenômeno novo para a academia.
1
RELIGIÃO E GÊNERO:
A ELEIÇÃO EPISCOPAL NA DIOCESE MERIDIONAL DA IEAB.
Bacharel, Mestra e Doutoranda em Teologia (área: Religião e Educação), pela
Escola Superior de Teologia (EST), bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES). Título da dissertação de Mestrado: As ações educativas do Centro
Ecumênico de Cultura Negra (CECUNE), sob a orientação do Prof. Dr. Evaldo Luis Pauly.
Especialista em Gênero pela Organização do Trabalho e pela ONU Mulheres; bem como
estudante de Licenciatura em Educação do Campo pela Universidade Federal de Pelotas
(UFPEL), e da Especialização em Educação de Jovens e Adultos (EJA) na Diversidade; ambos
na modalidade EaD, no Pólo Santo Antônio da Patrulha da Universidade Aberta do Brasil.
Atualmente orientanda dos Professores Dr. Roberto E. Zwetsch e Dr. André S. Muscopf, e a
atual pesquisa de doutorado tem como tema: Igbasilé: Acolhimento às Mulheres Negras em
Situação de Violência Doméstica no Projeto Ajeunbó. Contato: liliancsilva13@gmail.com.
Bacharel em Teologia, com Integralização em curso pela Escola Superior de
Teologia e Espiritualidade Franciscana (ESTEF). Contato: marinez.bassotto@uol.com.br.
2
11
Carta Aberta à IEAB. Itaara, 2005. Disponível em:
http://iawn.anglicancommunion.org/resources/docs/Brazil_ConfReport_2005_Portuguese.pdf).
3
2
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Tradução de Christine Rufino
Dabat e Maria Betânia Ávila. Nova Iorque: Columbia University Press, 1989, p. 21. Disponível
em: http://wesleycarvalho.com.br/wp-content/uploads/G%C3%AAnero-Joan-Scott.pdf. Acesso
em: 04 jan. 2013.
3
SCOTT, 1989, p. 21.
4
SCOTT, 1989, p.19.
5
VALDES, Teresa. Identidad feminina y transformación en América Latina: A modo de
presentación. In: ARANGO, Luiz Gabriela; LEON, Magdalena; VIVEROS, Mara. Género e
Identidad: Ensayos sobre lo feminino y lo masculino. Colombia: Ediciones Uniandes, Género,
Mujer e Desarrollo e TM Editores, 1995, p. 22. Disponível em:
http://www.bdigital.unal.edu.co/1384/2/01PREL01.pdf. Acesso em: 04 jan. 2013.
5
6
VALDES, 1995, p. 23.
7
Sobre o poder em questão, a teóloga feminista alemã Catharina Halkes defende o que ela
denomina “a sisterhood of men”, uma solidariedade entre as pessoas, mulheres e homens,
promotora de inclusão e humanização, em substituição ao modelo de poder como dominação.
HALKES, Catharina. Gott hat nich nur starke Söhne: Grundzüge einer feministischen Theologie.
Gütersloh: Gerd Mohn, 1985. Apud TABORDA, Francisco. Feminismo e Teologia Feminista no
Primeiro Mundo. Breve panorâmica para uma primeira informação. In: Perspectiva Teológica
XXII, n. 58 set/out 1990, p. 319.
8
SCOTT, 1989, p.21.
9
COULOURIS, Daniella Georges. Ideologia, dominação e discurso de gênero: reflexões possíveis
sobre a discriminação da vítima em processos judiciais de estupro. Revista Humanidades MNEME.
Publicação do Departamento de História e Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Centro de Ensino Superior do Seridó – Campus de Caicó. V. 05, nº 11, p. 4, jul./set. de
2004.
10
GEBARA, Ivone. Rompendo o Silêncio: a fenomenologia feminista do mal. Petrópolis: Vozes,
2000, p. 106.
11
SOJO, Ana. Mujer y Política. Ensayo sobre el feminismo y el sujeito popular. San José-Costa
Rica: Departamento Ecuménico de Investigaciones (DEI), 1985, p. 43.
6
12
SCOTT, 1989, p.20. Apud FOUCAULT, Foucault. The History of Sexuality. vol I, An
Introduction, New York, 1980; FOUCAULT, Michel. Power/Knowledge: Selected Interviews and
other Writings, 1972-77.
13
BASSOTTO, Marinez Rosa dos Santos. Extrato do relato elaborado por ocasião do processo
eleitoral espicopal da Diocese Meridional. Porto Alegre, 2012.
7
14
Carta ao 120 Concílio da Diocese Meridional. Porto Alegre, 2012.
15
Bíblia Sagrada. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no
Brasil. 2ª ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993, p. 249.
9
16
Carta Aberta à Diocese Meridional. Apoio à candidatura da Revda. Deã Marinez Rosa dos
Santos Bassotto. Porto Alegre, 2012.
10
Resumo:
Abstract:
his work intends to analyze the representation of women in the context of messianic
millenarian movement "Borboletas Azuis", as well, gender relations observed in that. Our
goal will be to examine, from the perspective of the social relations of sex, female
influence inside the religious context of this movement. This article will be delimited in
three parts: first, we will present a sociological definition of religion, through the "lens" of
Marx Weber and Peter Berger, an explanation of the messianic millenarian movements,
on second, we will take a brief history of the movement in question, and finally, in the
third, we will analyze the power relations between men and women, members of the
movement and the role played by them around the re-signification and maintenance of
the movement.
Keywords: Religion, Messianism, Millenarianism, Gender.
Introdução
Para a compreensão das relações de gênero e da influência feminina presente no
movimento messiânico milenarista Borboletas Azuis1, torna-se necessário entender o
contexto sociorreligioso no qual as mulheres estão inseridas, pois este pano de fundo nos
trará base de elucidação para compreensão das relações de poder e influência
desempenhada por elas no âmbito do movimento.
1
Os Borboletas azuis foi um movimento religioso popular de raízes católicas. Suas práticas e ritos associavam
concepções espíritas como curas, passes e incorporações, mas se mantinha fiel à tradição católica não aceitando
as doutrinas kardecistas de karma e reencarnação e os espíritos incorporados eram representações de ícones do
catolicismo, como santos, padres e freiras. Os Borboletas Azuis apregoavam a instauração de um novo mundo
após um evento cataclísmico diluviano com data prevista por uma adepta do movimento. Por suas características,
é entendido como um movimento messiânico milenarista. Araújo, pp. 44 – 64. Negrão, p. 125 – 127.
2
Roldão Mangueira de Figueiredo foi o líder carismático de tradição católica que, após receber influência e
contato com as doutrinas e práticas do espiritismo, incorporando o espírito de Padre Cícero Romão e São
Francisco de Assis, estabeleceu seu carisma por meio de curas e milagres na cidade de Campina Grande, no
estado da Paraíba. Posteriormente Roldão desponta como líder e fundador da Casa de Caridade Jesus no Horto,
local onde se reunia o grupo que posteriormente foi denominado de borboletas Azuis pela mídia e população por
decidir vestir timões azuis e brancos, simbolizando um meio de separação dos escolhidos que sobreviveriam ao
dilúvio por meio da purificação do corpo e da alma. Araújo, pp. 28 – 40. Carneiro, pp. 21 e 22.
3
Luciene Diniz foi uma profetisa com a idade de dezessete anos, que participava ativamente do grupo e que
lançara a profecia do dilúvio. Seu carisma foi estabelecido pela mesma ter sofrido um acidente automobilístico
onde faleceram todos os passageiros, incluindo seus familiares, sobrevivendo somente ela e o motorista. Após
conhecer a Casa de Caridade e ser liberta por Roldão do espírito de um de seus tios mortos que a atormentava,
passa a ser entendida como uma liderança interna do movimento, incorporando figuras como as de Jesus e
Maria. É Luciene que por meio de seus guias, estabelece o uso das vestimentas características do movimento.
Araújo, pp. 40 - 42. Carneiro, pp. 22 e 23.
de Maria Isaura Pereira de Queiroz e Maurício Vinhas de Queiroz, Messianismo no Brasil e
no Mundo e Messianismo e Conflito Social, respectivamente, avanços no estudo e
pensamento acadêmicos se deram em torno do assunto. Suas obras se tornaram
referências obrigatórias para pesquisadores que buscassem desenvolver pesquisas
dessacralizadas, entendendo-os como movimentos sociopolíticos.
De acordo com Arruda (1993, p. 23), teóricos como Weber, Engels, Lanternari e
Beer, compartilham da mesma ideia de que, para que um fenômeno messiânico
aconteça, é preciso haver uma crise sociopolítica generalizada que desperte uma
necessidade de salvação em contraposição à desgraça política de um povo. Para ele, o
messianismo ocorre em situações nas quais os menos privilegiados são submetidos a
fortes pressões internas, elementos subjetivos religiosos imbuídos de uma ética de
salvação que anuncie a inversão das estruturas hierárquicas da sociedade, privilegiando
as classes dominadas. O reino messiânico passaria necessariamente, pela inversão da
hierarquia social vigente. (Arruda, 1993, p.41).
Para Weber (1964, p. 489), isto acontece com frequência em classes oprimidas,
camadas desprivilegiadas nas quais, através do sofrimento e falta de esperança, acabam
por ceder aos encantos de um apelo mágico de missões religiosas onde prosperam
elementos emotivos. Para ele, era em momentos de opressão extrema que povos
subjugados, em contrapartida à opressão sofrida, constroem apelos religiosos. Como o
movimento da física, de ação e reação, quanto maior a ameaça e a opressão, maior seria
a resposta e a esperança salvífica desencadeada por meio do apelo religioso. A análise de
Weber demonstra que o messianismo delimita-se numa luta de classe em busca de novas
perspectivas, tendo como base de discurso e legitimidade, a religião.
4 BERGER, Peter L. O Dossel Sagrado. Elementos para uma Teologia Sociológica da Religião. (Berger usa a
terminologia nomos para denominar uma estrutura cultural ou religiosa vigente, uma cultura).
apresentam-se dissociados do sistema por não encontrar nele mais nenhum sentido.
Deslocados da cultura, tornam-se párias, que não encontrando participação, ou lutam
desesperadamente contra o nomos estabelecido ou isolam-se criando estruturas radicais
que expressem sua inconformidade, o que se denomina como o fenômeno da “anomia”
por Berger 5.
6
Para Berger, a religião torna-se um “escudo contra a anomia” e o caos gerado
pela ruptura social que a mesma desencadeia. Por meio da religião, o homem pode
exteriorizar seus desejos não alcançados e transcender a exclusão gerada pela anomia.
Pode assim, combater o “caos” por meio do novo “cosmos” 7 gerado, o religioso. Este cria
um processo contrário ao da anomia, pois, além de proteger o indivíduo do caos,
reforçando o “nomos” já existente, denotando força e estruturação ao memo.
Outra característica importante é que o movimento ainda vive e tem sido re-
significado por meio de dois únicos adeptos, duas mulheres, a irmã Maria Tereza e
Helena Fernandes8. As mesmas continuam a manter a Casa de Caridade Jesus no Horto e
“a manter os ensinamentos propagados pelo fundador”. (LOPES, 2010, p.8)
5 Termo usado por Berger que representa a separação radical do indivíduo do mundo social.
6 Idem, p. 40
7 Ibdem. Cosmos e caos. p.40
8
Estas duas personagens participam do movimento desde seus primórdios. A irmã Teresa reside na Casa de
Caridade Jesus no Horto e tomou a característica de guardadora do templo e da tradição, enquanto Helena
Fernandes reside com seus familiares, mas auxilia no mantenimento da casa e das reuniões regulares. In:
LOPES, S. A resistência das borboletas azuis. Jornal Diário da Borborema, Campina Grande,
28 mar. 2010.
9
CG - Campina Grande, Paraíba.
apenas duas seguidoras. Irmã Maria Tereza (foto) 10
vive enclausurada na casa construída pelo líder.
Helena Fernandes só aprece alguns dias da semana. 11
Como estrutura de base religiosa, o grupo, em suma, utilizava orações e hinos dos
livros de orações e hinário católico, tendo oito orações e dois hinos de própria autoria.
Respeitavam o Decálogo13 e um estatuto próprio, denominado por eles como, catecismo,
instituído pelo seu fundador. Os princípios são: Não comer carne de animais, não praticar
esportes, não portar vestes de cores berrantes, não consultar médicos, não fazer sexo
fora do matrimônio, não transformar o templo num comércio de curas, não aderir ao
10
Ver Anexo foto de capa do Jornal Diário da Borborema, Campina Grande, 28 mar. 2010.
11
LOPES, S. A resistência das borboletas azuis. Jornal Diário da Borborema, Campina Grande, 28 mar. 2010.
12
A “bricolagem” é um termo usado para descrever o uso e a associação de ritos de diferentes religiões num
mesmo movimento religioso. Araújo, p. 98.
13
Decálogo: Os dez mandamentos de Abraão.
modernismo, cobrir o corpo inteiro, andar com os pés descalços, ouvir e respeitar os
espíritos de luz.
Existem ainda três ritos especiais dentro do Borboletas Azuis: o ofício de limpeza,
o banho de sereia e o batismo dos pagãos. As duas primeiras são cerimônias de
descarrego, ou seja, de limpeza dos pecados, já o último, um sinal de adesão ao grupo,
um rito de iniciação e salvação, o batismo das almas pagãs.
A mulher, por outro lado, é entendida como uma figura frágil, fraca e emotiva; ou
seja, um deus menor, inferiorizado. As representações artísticas sempre demonstram a
figura feminina em sofrimento, muitas vezes chorando e com olhar triste, submissa,
muitas vezes ajoelhada, representando esta sujeição em detrimento ao homem;
características de um deus fraco e sensível (Idem, pp. 54 e 55).
Como Carneiro (1995, p. 36) alega, o grupo dos Borboletas Azuis sempre foi
bastante arredio e recluso em ceder informações sobre os adeptos e os serviços da casa
de Caridade, o que dificulta o trabalho dos pesquisadores. Nenhuma informação é
encontrada delimitando o número de adeptos dos sexos, masculino e feminino. A
ocupação dos demais participantes é de natureza totalmente popular e a maioria não
tinha nenhum tipo de formação especializada ou que necessitasse de um nível de
escolaridade acima do básico. Ao entrevistar o sucessor de Roldão - o senhor Antônio
Rodrigues de França14 - Carneiro traça um perfil dos membros da comunidade que é
formada por ferramenteiros, padeiros, barbeiros, pedreiros, encanadores, comerciantes
de frutas, cereais e verduras, motoristas, vigilantes, carroceiros, e pessoas que
cumpriam atividades domésticas.
15
SOUZA, Edmundo. Mulher em cena, a condição da mulher no catolicismo de Juazeiro do Norte. p. 56
afeto pessoal do súdito. [...] a dominação é exercida
pelo sexo masculino e está ancorada no imaginário
coletivo de tal forma que não é percebida, pois faz
parte de uma estrutura subjetiva, em que a
organização social se estrutura através de princípios
androcêntricos.16
Luciene revelava através de seus guias que a vaidade feminina não era aceita no
movimento O fato é que o carisma de Luciene crescia a cada dia, sendo legitimada
também para a sua missão por meio de Antônio de França, através de uma visão que o
mesmo tivera. Com isto Luciene, por meio de incorporação, enfoca atos de “purificação”
e de luta contra a “vaidade”, como a mudança das vestimentas para timões azuis e
brancos e o desapego feminino em relação a adornos e maquiagens.
16
SOUZA, Edmundo. Mulher em cena, a condição da mulher no catolicismo de Juazeiro do Norte. p. 80
para reforçá-lo. De acordo com Araújo (2008, p 41) após as repetidas revelações de
Luciene sobre o uso de artífices de vaidade, pintura de unhas, cortes de cabelo e o uso
de calças compridas por parte das mulheres, numa das sessões, Roldão obrigara os
participantes a colocarem seus artífices de vaidade numa bacia, purificá-los com sal e
jogá-los fora.
Luciene também entrega uma revelação através de Jesus Cristo, afirmando que
todos os seguidores deviam seguir seu exemplo e usar as mesmas vestimentas que o
mesmo usara. Luciene não parou por aí, a profecia de um dilúvio, expurgando a terra,
destruindo os maus e fazendo com que somente os que ouvissem a mensagem
sobrevivessem, vem através de si, e não de Roldão, como ainda hoje imaginam muitas
pessoas que tem conhecimento do movimento. Ela data este acontecimento apocalíptico
para o dia 13 de maio de 1980.17
17
Ver em “Anexos” recorte de jornal.
18
SOUZA, Edmundo. Mulher em cena, a condição da mulher no catolicismo de Juazeiro do Norte. pp. 84-85.
atribuídas a deus que é masculino. Os homens devem
expressar sua masculinidade assim como deus, pois
são representação dele aqui na terra.19
19
LEMOS, Fernanda. Religião e masculinidade, identidades plurais na modernidade. p. 88.
20
LOPES, S. A resistência das borboletas azuis. Jornal Diário da Borborema, Campina Grande.
28 mar. 2010.
Conclusão
Num primeiro momento, através de uma análise sociológica por meio de clássicos,
elucidamos o entendimento do que são estes modelos de movimentos religiosos
populares e por meio de uma descrição das práticas internas e ritos, trazemos luz sobre
o cotidiano, escolaridade e esclarecimento dos adeptos, seu relacionamento interno e
social na cidade de Campina Grande.
Bibliografia
ANDRADE, M.O. Milenarismo e Utopias: a busca do quinto império. João Pessoa. Ed.
Manufatura. 2003
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. 1 ed. São Paulo. Martins
Fontes 1996. 512 p.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Messianismo no Brasil e no mundo. II Ed. São
Paulo. Editora Alfa e ômega. 1976. 448 p.
1 A Pastoral Popular
O processo de nascimento de uma igreja3 preocupada com o povo e com os
problemas socioeconômicos, no início da década de 1960 é resultado de um processo
que frutificou inicialmente por iniciativa de lideranças de base, conscientes da
realidade de dependência e dominação latino americana. O Movimento de Ação
Católica, organizado a partir do laicato e dos problemas dos diferentes segmentos da
sociedade, foi vanguarda no processo de conscientização na América Latina, colocando
em prática o método ver, julgar e agir, como instrumento de análise da realidade.4
Com este método foi possível ajudar na superação do dualismo espiritual-temporal,
fé-política, comprometendo-se com os setores populares, numa dimensão
comunitária, favorecidos pela abertura provocada Concílio Ecumênico Vaticano II
(1962-1965) (Perani, 1984, p. 55). A Ação Católica será mediadora, no interior da
igreja, de uma reflexão cristã a partir de um engajamento e de uma consciência social
de “classe”.
1
Bolsista CAPES – Brasil. Mestranda em Teologia pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdades EST –
São Leopoldo/RS. Participante do Núcleo de Pesquisa de Gênero (NPG) e do Grupo de Pesquisa
Interculturalidade na América Latina. Advogada. E-mail: mariabrendali@hotmail.com
2
Diocese é um termo eclesiástico usado pela igreja católica, que serve para designar uma porção de povo e
de território confiada ao governo de um bispo. A Diocese de Caxias do Sul compreende uma área de 11.892
Km2 e uma população de aproximadamente 865.691 hab. (IBGE 2011). Sua jurisdição abrange 30
municípios.
3
Ao citar o termo “Igreja” quer dizer a Igreja Católica Apostólica Romana, embora nas décadas de 1960-
1990 a referência pode ser ao conjunto das Igrejas cristãs que se inserem no meio popular.
4
Deveríamos falar de Teologias da Libertação, assim dos diferentes instrumentos de análise da realidade ou
dos diferentes métodos teológicos da Teologia da Libertação que foram referência na América Latina nas
décadas de 1950 em diante.
Nesse período a ditadura militar na América Latina ficava cada vez mais
violenta contra a população e as lideranças. A reação à ditadura começa a ganhar
espaço na sociedade através da reorganização do movimento popular, sindical,
estudantil, das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs e dos Centros de Direitos
Humanos, para conquistar a anistia e a implementação da democracia. Foram longos
anos de luta e sofrimento em todo o Brasil.
A Igreja passou do apoio incondicional a questionar as práticas utilizadas pela
ditadura. Em todo o Brasil a repressão militar teve profundas implicações neste
processo. Os movimentos sindical, estudantil e popular foram praticamente dizimados.
Os partidos políticos foram fechados, para dar lugar à ARENA e MDB, partidos criados
pela ditadura militar. Qualquer reação popular era duramente perseguida.
Neste cenário floresce uma Igreja mais popular, após o golpe de 1964. É o
momento em que inúmeras lideranças, freiras, seminaristas e padres mudam de lugar
social e vão para o interior ou para as periferias das cidades, para viver no meio do
povo. É o tempo das ‘inserções’. Presença esta que tinha como objetivo o
compromisso com a vida e luta do povo, presença vivencial e de testemunho.
Este período histórico se caracteriza por grande criatividade teórica,
criatividade prática, compromisso dos cristãos no processo de libertação latino
americano. Era necessário dar uma nova explicação do porque comprometer-se.
Deste modo uma igreja popular vai acontecendo através da prática de uma
pastoral popular. Então, pastoral é a face prática da igreja (Libanio, 1983, 118).
Pastoral popular: constitui-se de todas as iniciativas de Igreja
no âmbito das classes populares, nas quais o povo encontra um
espaço para assumir sua responsabilidade na vivência de uma
fé comprometida com os problemas da justiça. Abrange,
portanto, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a Pastoral
Operária (PO), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), e outros
movimentos e pastorais que possuem (em âmbito geral ou
local) uma dinâmica semelhante. (Galetta, 1986, p. 7)
5
A sigla PPU será utilizada, nesse texto, para identificar a expressão “Pastoral Popular Urbana”.
Fazer teologia a partir da experiência das mulheres significa ter
que adotar posturas metodológicas que analisam as mulheres
como sujeitos subordinados em estruturas sociais patriarcais e
sexistas, por um lado; por outro, como sujeitos ativos que
interagem com a realidade, que resistem e a transformam.
(Neuenfeldt, 2008, p. 122)
Maria José Rosado Nunes pesquisou a questão desde uma perspectiva crítica
e feminista. Com relação à prática das mulheres na Igreja Católica em meados de
1980, traz à tona situações concretas vividas a partir de uma experiência e realidade
específicas. Sua avaliação é reveladora de um tempo de mudanças, pois tempos atrás,
as mulheres estavam em tradicionais associações católicas, tipo Filhas de Maria ou
Apostolado da Oração. Atualmente mulheres das classes populares estão nas CEBs,
onde exercem destacada influência, muitas vezes em posições de liderança. O fato das
mulheres poderem atuar em Comunidades de Base representou uma oportunidade
única de participação social. Nas reivindicações locais por creches, postos de saúde,
água ou melhoria no serviço de ônibus, é freqüente que a liderança seja exercida por
mulheres (Rosado, 1984, p. 27).
Cora Ferro, esclarece que em meados da década de 1980, “a mulher popular
na América Latina é aquela que pertence à classe explorada, por ter nascido nela ou
por opção, ou seja, a maioria das mulheres”. Mas como a igreja é uma estrutura
patriarcal aliada ao poder, a mulher não tem participação em nível de decisão na
Igreja. “A estrutura eclesial, hierárquica e masculina é um modelo de relação
opressiva homem-mulher, onde o homem dita em nível de consciência e fé o que a
mulher deve crer e praticar.” Então “a mulher é quem mais assiduamente participa em
tudo o que a Igreja organiza: culto, assistência social, catequese ...”, contudo
“transmite os valores e crenças religiosas, mas com o sentido fatalista que ela mesma
recebeu, assumindo-os em sua atitude de passividade e resignação”. Cora enfatiza
que a “mulher é mão-de-obra eficaz na infra-estrutura pastoral”, mas no “nível
teológico, negou-se à mulher a participação como sujeito de sistematização, porque
nas categorias do homem, a pessoa vale pelo que sabe à maneira masculina.” “No que
se refere à mulher nas comunidades cristãs populares, ela está presente de forma
maciça, mas completamente ausente na orientação e direção da instituição” (Ferro,
1982, p. 53-59).
A Igreja Popular assume uma perspectiva classista e incorpora a
mulher na vida e na ação evangelizadora das comunidades de
base. Porém, continuará limitada em seu desenvolvimento
enquanto não considerar, explicitamente, a questão feminina
como desafio específico para a construção da Igreja, os
ministérios, sua organicidade etc. Não desenvolve nem
sistematiza uma reflexão teológica que seja reformulada a
partir das alternativas propostas pela perspectiva feminina.
(Ferro, 1980, p. 59)
6
Área e Setor de Pastoral são usados aqui como sinônimos e significa uma divisão territorial da periferia da
cidade e sua respectiva localização em Caxias do Sul. Um conjunto de paróquias situadas na mesma região,
fazem parte de uma área ou setor de pastoral.
Desde o início da organização do Setor Sul,7 ainda em 1969 e depois com a
criação das áreas de pastoral, um dos aspectos que a PPU tem muito claro é um
trabalho colegiado com padres, religiosos, religiosas, leigos e leigas. Não só o trabalho
prático, mas a reflexão da ação que acontece através do processo coletivo de análise
da realidade, da opção por uma prática comum de organização e do retorno à reflexão
(autocrítica). Com esta presença de homens e mulheres, de leigos e leigas não havia
diferenças de tratamento.
Também na assessoria se podia contar com um quadro de lideranças
preparadas e capacitadas na leitura e análise da realidade, em sua maioria militantes
oriundos dos movimentos de Ação Católica.
7
Em janeiro de 1969 foi iniciado o Setor Sul de Pastoral, na periferia de Caxias do Sul-RS. Características
completamente novas: sem matriz; sem canônica; comunidades a partir de base leiga, grupos de lideranças;
equipe sacerdotal; equipe pastoral com religiosas e lideranças leigas. Alternativa para a paróquia.
infraestrutura pastoral. Contudo a atuação ainda é como um serviço e geralmente este
serviço é voluntário e gratuito.
Entre as lideranças participavam mulheres leigas, junto com religiosas de
diferentes congregações, que estavam inseridas nas comunidades de periferia. As
mulheres estão presentes nas equipes de coordenação da PPU, no processo de
reflexão e trabalhando em conjunto com os homens na condução do processo. São
elas as responsáveis pelo registro e elaboração dos relatórios das reuniões.
Neste período no contexto da Diocese de Caxias do Sul estão as CEBs
querendo e articulando um novo jeito de toda a igreja ser. A Pastoral Operária que
realiza trabalho de dinamismo sócio eclesial na organização de grupos, nas oposições
sindicais e na conscientização dos direitos trabalhistas. Também a Pastoral da
Juventude do Meio Popular – PJMP, na organização da juventude da periferia.
Interessante registrar que estas ações tem uma forte organização e estrutura com
lideranças que são remunerados para este trabalho. São os chamados liberados e
liberadas. Neste trabalho as mulheres assumem esta função em pé de igualdade com
os homens, descobrindo formas de sustento econômico para garantir dentro da
instituição um trabalho de base. Outro fator digno de nota é que foi conquistado um
local de fácil acesso no centro da cidade de Caxias do Sul, que se chamava “porão”,
pois de fato era o porão da casa do bispo que abrigava a sede destes grupos. Muita
gente se encontrava neste local, muitas reuniões são feitas. Ali se davam as
articulações pastorais e políticas, de homens e mulheres.
Uma experiência organizada e articulada a partir da metade da década de
1980 é a Pastoral das Mulheres Urbanas - PMU. Esta proposta agregou e mobilizou
mulheres que atuavam numa diversidade de iniciativas tais como: Clubes de Mães,
Saúde alternativa, organizações do Movimento Comunitário, alfabetização de adultos,
grupos de mulheres e outros. É um grupo que abrange mulheres das mais diferentes
denominações religiosas e das mais variadas ações para poder partilhar e refletir a
prática como mulher nos bairros da periferia de Caxias do Sul. Este grupo mesmo se
intitulando como ‘pastoral’, sofreu alguns questionamentos por parte da instituição,
justamente por sua diversidade e por ter nascido fora do espaço institucional. Se
poderia ousar dizer que nesta proposta há uma semente de elaboração e
sistematização teológica. Existe a tentativa de elaboração da mística de mulheres que
sonhando com um mundo novo, mas conhecendo a realidade de sua “aldeia”, tentam
encontrar motivação para criar uma rede de ação na periferia. Acreditam na ação local
das mulheres, mas querem que todas estas ações superem as barreiras de credos, de
opções políticas e ideológicas. É um grupo que dá sustento e motivação para muitas
mulheres que atuam fora do espaço eclesial, mas que se sentem cristãs no processo
de libertação. Embora grande parte das mulheres que coordenavam a PMU fosse
integrantes da PPU, este grupo não teve representação reconhecida na PPU. No inicio
da década de 1990 a causa da PMU foi declinando na medida em que algumas
mulheres começaram a se inserir em outros espaços de participação: nos sindicatos,
nos partidos, nas instâncias de governo e outros espaços da sociedade civil.
As mulheres exerceram destacada influência em comunidades, pastorais e
movimentos populares, muitas vezes em posições de liderança o que representou uma
oportunidade única de participação social. Não foram poucas as mulheres que
aprenderam a dar a própria opinião, a falar em público, a coordenar e exercer sua
liderança, a criar consciência da realidade que vivia como mulher cidadã. É freqüente
que a liderança seja exercida por mulheres organizando reivindicações locais por
creches, escola, postos de saúde, água ou melhoria no serviço de ônibus. Com o
avançar do tempo algumas começaram a perceber e a denunciar o caráter
androcêntrico, patriarcal e demasiado racional do discurso teológico e da prática
eclesial.
O estudo da Bíblia ajudou muitas mulheres na consciência de serem mulheres
e do seu papel na igreja e sociedade, movidas pela fé em Jesus e no seu projeto do
Reino de Deus. A Bíblia nas mãos das mulheres foi um instrumento de libertação e de
empoderamento. A leitura popular da Bíblia feita na visão das mulheres favoreceu
uma espiritualidade de resistência e de esperança de um mundo novo. A mulher
começa a fazer teologia de outro jeito.
A tentativa de uma leitura feminista por parte de algumas mulheres criou
situações constrangedoras de aversão ao discurso e à postura destas mulheres sendo
taxadas de feministas. Certamente algumas mulheres para sobreviverem no espaço
de atuação onde estavam começaram a adotar um estilo mais racional e ao “estilo dos
homens”. Não se conseguiu avançar na reflexão e elaboração feminista que fosse
própria da causa das mulheres que atuavam na década de 1980 dentro ou fora do
espaço da religião.
A questão crucial, porém, permaneceu nas relações de poder internas na
Igreja. Provisoriamente, podemos concluir que, embora o discurso no campo popular
fosse de libertação e de inclusão das minorias, este espaço de sistematização ainda se
apresentava como de preponderância masculina e clerical. Não se conseguiu
transformar as relações de gênero também na Pastoral Popular Urbana.
De fato e na prática, o poder das mulheres aconteceu na produção de
cuidados.
A Pastoral Popular Urbana historicamente mudou seu lugar social de inserção,
ou seu lugar teológico e a opção foi viver na periferia, no mundo dos operários.
Todavia a cosmovisão e a antropologia cristã continuaram as mesmas. Neste período
não houve a elaboração de um novo conhecimento teológico também das mulheres.
As mulheres não se sentiram autorizadas a elaborar sua experiência de fé.
Questões e causas que ainda precisam ser aprofundadas.
Referências
Livro:
GALETTA, Ricardo. Pastoral Popular e política partidária. São Paulo: Paulinas, 1986.
RUETHER, Rosemary Radford. Sexismo e religião: rumo a uma teologia feminista. São
Leopoldo: Sinodal, IEPG, 1993.
SERBIN, Keneth P. Padres, celibato e conflito social: uma história da Igreja católica no
Brasil. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
Organização de livro:
ALTHAUS-REID, Marcella María. Demitologizando a teologia da libertação. Reflexões
sobre o poder, pobreza e sexualidade, p. 455-470. In: SUSIN, Luiz Carlos (Org.).
Teologia para outro mundo possível. São Paulo: Paulinas, 2006.
BRUNELLI, Delir. Teologia e gênero. In: SUSIN, Luiz Carlos (Org). Sarça ardente. São
Paulo: Paulinas, 2000.
Artigo:
LAU, Ephrem Else. Religiosas e mulheres leigas como colaboradoras na igreja.
Concilium, Rio de Janeiro, n. 214, p. 93-98, 1987.
LESSA, Marina. A Mulher nos movimentos de igreja na América Latina. Concilium, Rio
de Janeiro, n. 111, p. 102-105, 1976.
Artigo na internet:
STROHER, Marga J. A história de uma história: o protagonismo das mulheres na
teologia feminista. História Unisinos. Vol. No 9(2), p. 116-123, ago. 2005. Disponível
em:
<http://www.unisinos.br/publicacoes_cientificas/images/stories/sumario_historia/vol9
n9/art04_stroher.pdf>. Acesso em: 28 jul. 2012.
A família feliz: representações de família entre as Testemunhas de Jeová
em Santo Estevão/Ba (1970-2001)
1
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação pela Universidade Estadual de Feira de Santana – Bahia
2
Os adventistas cresceram e se fortificaram nesse período da Guerra Civil Norte-Americana, principalmente, por
causa de seu discurso fortemente milenarista.O milênio de Cristo é um dos eventos mais aguardados pelas
Testemunhas de Jeová, pois representa para eles o fim da violência e de todos os males que assolam a
humanidade, sendo um começo de um tempo de paz e alegria.
3
(PUGA e LÓPEZ, 2010)
4
(BORNHOLDT, 2004)
Conforme o relato da Exposição Histórica5, desde o final do século XIX já existia
Testemunhas de Jeová no País. Uma dessas Testemunhas era Sarah Bellona Ferguson.
Entretanto a primeira assembléia do grupo no Brasil aconteceu em 1922, quando o então
presidente do grupo, Rutherford, passou a ver o Brasil como um País em que o trabalho
do grupo poderia ter um bom êxito, devido ao número crescente de assinaturas da
revista The Watch Tower (que mais tarde passou a se chamar Sentinela), a qual era
traduzida em espanhol. O primeiro batismo foi realizado em 10 de outubro do ano em
questão.
5
Exposição Histórica da Obra das Testemunhas de Jeová no Brasil (1997)
(ou das imagens) que dão a ver e a pensar o real. (CHARTIER,
1990, p. 24)
Chartier demonstra como a apropriação dos discursos afeta a vida do leitor, pois
esses discursos podem produzir mudanças na própria compreensão deste sobre si
mesmo e sobre o mundo. No entanto, é preciso salientar que Chartier não descarta o
caráter autônomo da cultura, ele não coloca o texto como algo extremamente
condicionante sobre o pensamento do leitor. Portanto, falar nos discursos produzidos pela
Associação Torre de Vigia e de como eles influenciam na vida de seus fiéis, não isenta
estes da responsabilidade e consciência daquilo que estão aceitando como verdade.
As Testemunhas de Jeová estão inseridas num contexto social, no caso específico
deste trabalho, na cidade de Santo Estevão, situada à 40 km de Feira de Santana, com
características e dinâmicas próprias, das quais, mesmo com todo o discurso
homogeneizador produzido numa realidade diferente – Estados Unidos – não pode ser
deixado de lado, pelas peculiaridades da sociedade santo-estevense.
A Sociologia da Religião também se constitui numa importante contribuição para
os estudos históricos. Em se tratando de simbolismos, linguagens e representações o
pensamento do sociólogo Pierre BOURDIEU em Economia das Trocas Simbólicas (1999)
se faz necessário para esse trabalho, principalmente, para análise das trocas simbólicas
que acontecem com o grupo estudado, como e para quem ela é produzida, distribuída e,
digamos assim, consumida, já que BORDIEU trata essas trocas como uma relação
econômica e simbólica ao mesmo tempo; dentro do campo religioso de uma cidade
majoritariamente católica e conservadora. A linguagem apresentada pelo grupo, a
padronização de um estilo de roupa para irem à cultos, entre outras características são
reproduzidos pelo discurso escrito pela Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados
Como este discurso contribuiu para a construção de um modelo de família e as relações
de gênero existentes nela, para os fiéis Testemunhas de Jeová em Santo Estevão, essa é
uma das questões discutidas.
6
Bíblia Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas, 1986
7
Infelizmente, o presente trabalho não teve acesso às fontes escritas do grupo, como Atas, que relatassem a
respeito desta chegada a Santo Estevão e nem em relação à congregação de Salvador, que começou o trabalho
nesta localidade.
8
Dados colhidos em entrevista com dona Célia, publicadora, em 2009 e em conversas com outros membros do
grupo
9
A presente pesquisa se concentrou apenas o estudo das Testemunhas na zona urbana de Santo Estevão, por
questão de tempo e de fontes também.
10
A Primeira Igreja Batista em Santo Estevão é fruto do trabalho da Primeira Igreja Batista em Feira de Santana.
Cerqueira e Silva, no período de 1977 a 198211. Segundo os censos do período, nas
décadas de 1970 e 1980, a população santo-estevense possuía, respectivamente, 25.410
e 30.869, sendo que mais de 80% da população vivia na zona rural. A economia tinha na
agricultura o seu principal sustentáculo, com a produção dos seguintes gêneros
agrícolas: feijão, milho, fumo, mandioca, laranja e castanha de caju. Já os censos de
1991, 1996 e 200012 revelaram uma diminuição crescente entre moradores da zona rural
e moradores da zona urbana. No censo realizado em 2002, dos 41.138 habitantes,
19.844 viviam na zona urbana do município, enquanto que 21.294 viviam na zona rural.
Durante todo o período estudado, entre resistências e adesões, já na década de
1990, o Salão do Reino em Santo Estevão contava com duas congregações, que se
reuniam em dias diferentes, devido ao aumento do número de membros: a Congregação
Central e a Congregação Progresso. A criação das duas congregações colaborou para que
o grupo construisse um Salão do Reino maior e num lugar melhor localizado, o que
resultou na construção do Salão do Reino, em 2001, na Avenida Teixeira de Freitas, com
capacidade de 200 pessoas, mais ou menos, em cada reunião. Hoje são três
congregações existentes: Central, Progresso e Nova Esperança. A construção do novo
salão durou cerca de 21 dias, com a colaboração de outros irmãos de cidades diferentes
da Bahia, que trabalharam em mutirão. O dinheiro para essa construção foi cedido pela
Organização Torre de Vigia, que faz empréstimos para a construção de templos. Esse
dinheiro é devolvido depois para que outros templos sejam construídos em outras
localidades, segundo contou dona Célia e demais membros consultados a respeito disso.
11
Livro do médico e memorialista Ivan Claret Marques Fonseca, intitulado, Introdução à História de Santo
Estevão do Jacuípe, 1983.
12
Segundo o IBGE, o censo de 1991, 1996 e 2000 Santo Estevão possuía, respectivamente, 37.006, 40.548 e
41.118 habitantes dos quais 12.660, 15. 696 e 19.674 estavam no espaço urbano e 24.346, 24.762 e 21.444,
respectivamente, na zona rural.
conservação do modelo patriarcal. Dessa maneira, elas estão unidas de forma consciente
ou não, através de um diálogo que envolve a sobrevivência de ambas, uma união
duradoura e que muito as beneficia. Ao estudar a relação família e religião, o objetivo
central é tentar perceber esse apoio mútuo e como a religião, ou, as práticas religiosas
influenciam na construção de habitus na família. O modelo familiar ideal produzido pelo
discurso da Organização Torre de Vigia, tendo como base principal a Bíblia, resulta em
representações e práticas entre os fiéis.
Esse discurso produzido numa realidade distante13 culturalmente da sociedade
brasileira, que por se só já possui peculiaridades regionais, tenta ser homogeneizante, a
partir de seu caráter fundamentalista, transformando numa verdade absoluta e
atemporal aquilo que é construído histórico e culturalmente.
Segundo a socióloga Maria das Dores Machado (1996): “A religião e a família
funcionam como uma espécie de mecanismo de equilíbrio, oferecendo ao indivíduo uma
ordem integradora e cheia de significados para sua vida em sociedade.” Dessa forma,
elas se oferecem como um referencial sob os quais o indivíduo pode se desenvolver de
forma completa e segura.
No que diz respeito às Testemunhas de Jeová, a família é vista como responsável
pela preservação e propagação dos ensinamentos do grupo, ou melhor, de Deus, e para
que isso aconteça, ela mesma deve lutar pela sua própria sobrevivência, apoiando-se no
discurso religioso. E o que o discurso religioso produzido pela Organização Torre de Vigia,
através do Corpo Governante tem a dizer a respeito da família? Quais são as
representações e hábitus que este discurso busca produzir?
Em seu principal livro sobre a família, intitulado O Segredo de uma Família Feliz
(1996) a família é mostrada como a mais antiga e principal instituição terrena,
responsável pelo desenvolvimento do ser humano e por uma sociedade bem estruturada.
Sendo assim, trabalhar para a preservação e o bem-estar da família torna-se algo
fundamental para o fiel Testemunha e para obter isso, é preciso refugiar-se na Bíblia, ou
nos discursos produzidos a partir dela. Segundo o mesmo livro:
Conselhos sobre conseguir uma família feliz aparecem de todos os
lados (...) Onde, então, podemos encontrar orientação familiar
confiável? (...) Essa fonte é a Bíblia. Segundo todas as evidências,
ela foi inspirada pelo próprio Deus. Se estiver inclinado a descartar
a possibilidade de que a Bíblia possa ajudar a produzir famílias
felizes, considere o seguinte: Aquele que inspirou a Bíblia é o
Originador do casamento. (Gênesis 2:18-25). A Bíblia diz que seu
nome é Jeová. (Salmo 83:18) Ele é o Criador e ‘Pai a quem toda
família deve seu nome’. (Efésios 3: 14,15) Jeová observa a vida
familiar desde o começo da humanidade. Ele conhece os
13
A Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados possui sua sede administrativa em Nova York, EUA, local
onde é produzido todo o material de áudio, vídeo e literário do grupo e repassado para as Casas Betel, filiais da
organização nos países em que eles possuem congregações – mais de 200 locais, desde o período estudado por
este trabalho. (BORNHOLDT, 2004)
problemas que podem surgir e dá conselhos para resolvê-los. Por
toda a História, aqueles que sinceramente aplicaram os princípios
bíblicos na sua vida familiar foram os que encontraram maior
felicidade. (TORRE DE VIGIA, 1996, pp. 10-11)
Esta passagem bíblica acima, escrita pelo apóstulo Paulo aos Efésios, no primeiro
século da era cristã é, talvez, o principal texto que embasa o pensamento cristão a
respeito da relação entre homem e mulher, marido e esposa. Papéis bem definidos
podem ser observados nesta passagem, em que, à mulher, cabe a subserviência e
submissão e ao homem o papel de chefe. Dois versículos usados para construir
representações e práticas familiares, pautado na diferenciação e hierarquização entre os
sexos.
A analogia com o corpo humano, sendo a cabeça, parte responsável pelo comando
e direcionamentos, representada por Cristo e pelo marido, procura estabelecer uma
relação assimétrica entre homens e mulheres, em que, simbolicamente, o homem é
aquele que toma as decisões, quem orienta, quem guia os passos de sua família, assim
como Cristo faz com sua congregação. Assim, através da fé e de interpretações de
trechos bíblicos, escrito em contexto social, cultural e histórico diferentes, procura-se
naturalizar as desigualdades de direitos entre homens e mulheres.
No texto Mulheres protestantes: uma trajetória nem sempre submissa15, das
historiadoras Elizete da Silva e Bianca D’Aebs Almeida (2011), uma das questões
abordadas é sobre essas interpretações feitas aos textos bíblicos que legitimam o poder
masculino sobre a mulher, e a desconstrução através da busca de teólogas feministas,
no final do século XIX e início do século XX, em trazer à cena, a participação feminina na
14
Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas, 1986.
15
“Fiel é a Palavra”: leituras históricas dos evangélicos protestantes no Brasil, 2011, p. 337-384.
“historiografia cristã primitiva”. O feminismo protestante, segundo elas, teve como
principal motivo de luta, ampliar o espaço feminino dentro do protestantismo.
A mensagem evangélica, difundida pelo protestantismo, colocou
homens e mulheres em igualdade de condições perante Deus e
nas relações religiosas. No entanto, mantinha-se intacto o primado
masculino quanto ao ministério da pregação e a direção
administrativa da comunidade. (ALMEIDA e SILVA, 2011, p. 341)
A Bíblia nos informa que o homem foi criado com atributos que o
capacitaram a ser um bom chefe de família. Como tal, o homem
seria responsável perante Jeová pelo bem-estar espiritual e físico
de sua esposa e de seus filhos. Teria de fazer decisões equilibradas
que refletissem a vontade de Jeová e ser bom exemplo de conduta
piedosa.(TORRE DE VIGIA, 1996, p.31)
16
Entrevista realizada com Marcela Guimarães em 07 de fevereiro de 2013, na casa da entrevistada
há um limite para essa sujeição ao poder masculino, ele é, conforme Dona Nitinha,
relativo, ou seja, o poder masculino sobre a mulher é limitado pelo próprio tratamento
que o homem dá a ela – se a maltrata verbal ou fisicamente – podendo assim perder seu
efeito, quando o homem deixa de suprir o sustento de sua família, estando a mulher,
inclusive, livre para pedir o divórcio nesses casos.
Além disso, a necessidade de ouvir a opinião dela é algo salientado pelas
entrevistadas, pois, apesar da chefia do homem sobre o lar, pregado pelo grupo, no final
as decisões são tomadas em comum acordo. Se a mulher não tem o poder, ela tem os
poderes, como afirma Perrot, ou seja, ela se utiliza de estratégias para conseguir seu
espaço, ou mesmo, para influenciar nas decisões e atitudes masculinas de formas
múltiplas, sem demonstrar abertamente que está fazendo isso. Segundo Dona Jailza17,
em entrevista, afirma que: o homem é a cabeça, mas a mulher é o pescoço. Ao mesmo
tem pó que ela reconhece e respeita a autoridade masculina, porque essa é dada pelo
próprio Jeová, ela entende também que, através do diálogo, sedução, por exemplo, a
mulher pode fazer com que sua vontade prevaleça.
17
Entrevista realizada com Jailza Borges, em 27 de agosto de 2009, na casa da entrevistada
como verdade. Ela procurou adequar seus pensamentos e, de certa forma, suas próprias
vivências, como o divórcio dos pais, ao que é entendido pelo grupo como uma relação
saudável entre homem e mulher. Quando perguntada se faz parte de seu projeto de
vida, casar, formar uma família nos moldes tradicionais – pai, mãe e filhos – ela afirma
que: Sim, eu penso que sim. Ter filhos, eu não sei, mas casar eu penso que sim18.
Embora a família com a qual ela sonha, possa não incluir filhos, devido, segundo ela, à
própria falta de tempo que se tem em criá-los, o casamento, é uma possibilidade real.
18
Entrevista realizada com Renata Conceição, em 23 de fevereiro de 2013, na casa da entrevistada
Referências Bibliográficas:
ANJOS, Sara Silva dos. O papel da mulher na expansão e consolidação da Assembléia de
Deus em Feira de Santana (1949-1980). (Dissertação de Mestrado), UFBA, Bahia, 2008.
BORNHOLDT, Suzana Ramos Coutinho. "Proclamadores do Reino de Deus": Missão e as
Testemunhas de Jeová. (Dissertação de Mestrado em Antropologia Social), UFSC,
Florianópolis, 2004.
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas simbólicas. São Paulo. Perspectiva, 1999.
BOURDIEU, Pierre. O poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações, Memória e
Sociedade. São Paulo: Difel, Editora Bertrand Brasil, 1990.
D’AEBS, Bianca Almeida e SILVA, Elizete da. Mulheres protestantes: uma trajetória nem
sempre submissa. In: ALMEIDA, Vasni de, SANTOS, Lyndon Araújo dos, SILVA, Elizete
da, (Org). “Fiel é a palavra”: leitura histórica dos evangélicos protestantes no Brasil. Feira de
Santana: UEFS Editora, 2011, p. 337-384.
MACHADO, Maria das Dores. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera
familiar. Campinas: Ed. Autores Associados/ANPOCS, 1996
PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Paz e Terra,
SP: 2010.
SOUZA, Sandra Duarte de (Org). Gênero e religião no Brasil: ensaios feministas. São
Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2006.
SOUZA, Sandra Duarte e LEMOS, Carolina Teles. A casa, as mulheres e a Igreja: relações de
Gênero e Religião no contexto familiar. São Paulo: Fonte Editorial, 2009.
masculino. Conforme Bourdieu (1999), o objetivo dessa, como de outras representações
religiosas, é manter uma estrutura já existente, através de sua legitimação
Em uma sociedade dividida em classes, a estrutura dos sistemas
de representações e práticas religiosas próprias aos diferentes
grupos ou classes, contribui para a perpetuação e para a
reprodução da ordem social (no sentido de estrutura das relações
estabelecidas entre os grupos e as classes) ao contribuir para
consagrá-la, ou seja, sancioná-la e santificá-la. (BOURDIEU, 1999,
pp. 52, 53)
Considerações finais
ABSTRACT
This article is part of the project of scientific initiative: "Rescuing the history of the
secular state, guaranteeing religious freedom." The research aims to identify and
analyze the key differences in the treatment of religious education in Brazil and
Guinea-Bissau focusing on the educational foundations of public policies aimed at
the moral and ethical citizen. For the development of this research, we used the
comparative study, based on a questionnaire among Brazilian students and the
Guinean public administration course at the University of International Integration
Lusophone African-Brazilian-UNILAB. This study is the continuation of previous
research, including new ticket at the University. The results show that unlike Brazil,
where public schools are required to offer religious education in Guinea-Bissau this
practice occurs only in private schools. Other findings allow us to relate data
showing changes in the religious practices of both countries.
Introdução
A religião, principalmente a católica, está indiscutivelmente ligada à
educação brasileira desde seus primórdios. As primeiras escolas públicas nacionais
se originaram dos colégios implantados pelos jesuítas no século XVI.
____________________________________
1-Discentes do curso de Administração Pública da UNILAB (Universidade da
Integração Internacional Lusofonia Afro-Brasileira). Bolsistas de Iniciação Científica
– PIBIC/UNILAB. Trabalho orientado pela Profª Drª Marilia Domingos. E-mail:
glaucianessouza@gmail.com; 2-E-mail: ritchassanca@hotmail.com
Na época das grandes navegações, em que se “descobriu o Novo Mundo”, os
jesuítas já empreendiam campanhas por todo o mundo inclusive na África. Os
colégios jesuítas estavam presentes em todos os continentes, formando
missionários e intelectuais. No Brasil não foi diferente, os inacianos chegaram ao
1
país em 1549, criaram instituições de ensino, e instalaram uma estrutura
educacional fundamentada no catolicismo.
Expulsos em 1759, por motivos políticos, os jesuítas levaram consigo sua
estrutura educacional própria, mas o caráter pedagógico religioso instalado e
implementado por eles durante 210 anos não foi totalmente suprimido.
Os países africanos de língua portuguesa, como Guiné-Bissau, objeto deste
estudo, tem seu contexto histórico educacional semelhante ao do Brasil. A chegada
dos missionários católicos em solo africano significou doutrinação e conversão dos
habitantes por meio da educação formal, no entanto o tratamento do ensino
religioso no país - embora guarde algumas semelhanças - difere do Brasil em
muitos aspectos.
Com este trabalho pretendemos abordar alguns pontos acerca da maneira
como acontece o ensino religioso (ER) ofertado no Brasil e em Guiné-Bissau. Para
entendermos as principais diferenças e semelhanças no tratamento do ensino
religioso nos dois países, analisamos a legislação e políticas educacionais vigentes,
o PCNER, elaborado pelo Fonaper, a influencia do contexto sócio-politico no campo
educacional, em particular no que concerne ao ER, e a utilização do ensino religioso
como instrumento de formação ética e moral.
A pesquisa se desenvolveu em três etapas: levantamento da legislação e
base teórica referente ao tema; aplicação de questionário composto de questões
abertas e de múltipla escolha a uma amostra de alunos do curso de Administração
Pública da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(UNILAB), a qual é composta de guineenses e brasileiros; e uma entrevista
exclusivamente com alunos guineenses.
2
Nessa perspectiva, o ER se apresenta como uma ferramenta eficaz para o
combate à intolerância, visto que os princípios do pluralismo e respeito à
diversidade estão resguardados.
No outro extremo há os que defendem uma educação pública laica, livre de
qualquer intervenção de cunho religioso, alegando que o Estado só deve interferir
no campo religioso quando o objetivo for à proteção e segurança moral do
individuo, quando sua liberdade de crença estiver ameaçada.
A ética de fundo religioso, que cada um terá (ou não)
de acordo com a própria escolha, é relevante para ser
compatibilizado no plano individual, no intimo da
consciência de cada um, embora não possa ser
abordado por um Estado que deve, por natureza laica,
ignorar os assuntos da fé como forma de proteger a
liberdade de consciência, de crença e de culto.
(FISCHMANN, 2011, p.09)
3
No entanto, não institui um “padrão”, modelo ou método de ensino a ser seguido
pelas escolas ou pelos docentes. A tarefa de fixar as diretrizes curriculares para o
ensino religioso acaba ficando a critério das escolas, tendo em vista que a lei prevê
que “Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos
conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e
admissão dos professores.” (Art. 33 §1º, LDBEN/97), mas esse, na maioria dos
estados, se abstém de seu papel.
Definido como disciplina curricular, assim como as demais ministradas nas
instituições de ensino, o ER guarda duas interessantes peculiaridades, a saber, é a
única disciplina expressa na Constituição Nacional, e, ao mesmo tempo é aquela na
qual a responsabilidade de habilitar profissionais para lecionar é retirada do poderio
do Estado e repassada para a sociedade civil, configurando uma inversão de papeis.
De acordo com o parecer divulgado pela Câmara de Educação Superior/DF,
na pessoa da conselheira Eunice Durham, “é impossível prever a diversidade das
orientações estaduais e municipais e, assim, estabelecer uma diretriz curricular
uniforme para uma licenciatura em ensino religioso que cubra as diferentes
opções.”
A inexistência de um parâmetro curricular nacional para o ensino religioso,
apesar de prontamente explicada pela Câmara Superior de Educação, abre espaço
para diversas disparidades e inconstitucionalidades no tratamento do ER,
principalmente quanto aos critérios de seleção de professores, e definição de
conteúdos e temas usados para ministrar a disciplina nas escolas públicas.
Em geral, os critérios para seleção dos professores, são preenchimento da
carga horária dos docentes, identificação e interesse do profissional por teologia.
Ficando a critério do professor a escolha do material didático, métodos e técnicas
de ensino, onde se identifica a possível intervenção da crença (ou não crença),
pessoal do professor.
Em resposta a um pedido de autorização para o funcionamento do curso de
Licenciatura em Ensino religioso, que seria ministrada pela Faculdade de Ciências
Religiosas e Teologia Eurípedes Barsanulfo, e mantida pela Associação Aliança de
Assistência ao Estudante, a Secretaria de Educação Superior, afirmou que não cabia
à União, determinar, direta ou indiretamente, conteúdos curriculares que orientam
a formação religiosa dos professores, o que interferiria tanto na liberdade de crença
como nas decisões de Estados e municípios referentes à organização dos cursos em
seus sistemas de ensino, completando que não lhe compete autorizar, reconhecer
ou avaliar cursos de licenciatura em ensino religioso, cujos diplomas tenham
validade nacional.
4
Diante desta posição da Secretaria de Educação Superior, surge o
questionamento:
Como o Estado pode assegurar que o ER ministrado nas escolas públicas de
todo país seja baseado no respeito á diversidade cultural religiosa do Brasil, sem
qualquer forma de proselitismo?
Em um país laico, a proteção da liberdade de consciência é dever eminente
do Estado. Quando este se omite, mesmo sob a alegação de que “é preciso evitar
que o Estado interfira na vida religiosa da população e na autonomia dos sistemas
de ensino”, fica a critério de terceiros, mesmo com preparo pedagógico, garantir ou
não integridade da formação cidadão e seguridade de direitos configurados
fundamentais.
5
capazes de abranger a maioria das confissões, fundamentando-se no conhecimento
e no dialogo.
Os aspectos referentes à Cultura e Tradições religiosas apresentavam uma
visão voltada para a relação da ética e os valores da tradição religiosa, analisando o
sentido da existência humana em diferentes concepções culturais.
A vertente Escrituras Sagradas/Tradições Orais consistia em “textos que
transmitem, conforme a fé dos seguidores, uma mensagem do Transcendente,
onde pela revelação, cada forma de afirmar o Transcendente faz conhecer aos seres
humanos seus mistérios e sua vontade, dando origem às tradições.” (PCNER,
1997).
O estudo das Teologias, remetem ao repasse através dos preceitos religiosos
do conhecimento do Divino, -tratado no PCNER, como Transcedental-, através da
religião.
Ritos e Ethos são baseados respectivamente nas práticas, crenças e formação
moral do ser humano. Onde a moral é fruto dos valores obtidos pela religião.
No primeiro momento, tem-se que a proposta não é ensinar os princípios ou
dogmas das religiões, mas sim tomar como base seus princípios e valores para
imputar ética e moral aos cidadãos. Mas, quem não é adepto de nenhuma religião?
Em momento algum se menciona a liberdade de consciência ou de crença, o
conteúdo do PCNER se baseia apenas na liberdade religiosa.
Ora, a liberdade consciência é maior do que a liberdade religiosa, visto que
essa “É o direito de “escolher entre crenças”. Já a liberdade de crença ou de
consciência é o direito de escolher entre crer ou não crer em uma divindade (ou
divindades ou ser supremo), cultuando-a (ou não) através de uma religião ou grupo
de pertencimento.” (DOMINGOS, 2010, p.54)
Por vezes se menciona a “fé dos cristãos”, se dirigindo aos educandos como
fiéis. Fica a impressão que frequentam as escolas apenas aqueles que pertencem a
algum tipo de religião; os ateus e agnósticos são visivelmente excluídos. Na
percepção apresentada pelo Fonaper, quem não pertence a nenhuma confissão, ou
seja, não mantêm contato com nenhum valor doutrinário não goza de plenos
princípios éticos e morais.
O valor moral tem ligações com um processo dinâmico da
intimidade do ser humano e, para atingi-lo, não basta deter-se á
superfície das ações humanas. Essa moral está iluminada pela
ética, cujas funções, por sua vez são muitas, salientando-se a
crítica e utópica. (...) A função utópica projeta e configura o ideal
normativo das realizações humanas. (PCNER, 1997)
6
A religião de âmbito privado passa a ser pública, com o intuito de formar
cidadãos éticos e capazes de viver em sociedade, visto que as ações do ser humano
por si só não são capazes de configurar o Ethos adequado à vivência humana.
O ER se configura “laico”, à medida que não privilegia diretamente nenhuma
confissão, no entanto a laicidade não consiste apenas na igualdade de direitos entre
as religiões, há também o aspecto relacionado à liberdade de consciência,
suprimido no texto do PCNER.
7
Além disso, os responsáveis legais dos educandos são convidados a assinar um
documento no momento da matricula, onde se comprometem que o aluno em
causa, cursará o ER e consequentemente respeitará as normas estabelecidas pela
instituição religiosa.
Mesmo quando o ER se encontra resguardado no campo privado,
inevitavelmente surgem conflitos. É comum ocorrerem “choques” de crenças entre
os alunos de outras confissões religiosas, contrária à da escola na qual estão
matriculados. Aqui há uma incontestável perda de princípios e direitos
fundamentais, visto que é comum neste tipo de situação, o educando modificar sua
pratica religiosa enquanto está nos limites da escola, caso contrário não poderá
permanecer na instituição.
A formação moral, também constitui disciplina escolar em Guiné,
denominada Educação Moral. Seus conteúdos e metodologia de ensino são
similares aos do ER, ou seja, são fundamentados na religião. Tanto a Educação
Moral, quanto o Ensino Religioso, constituem métodos de evangelização de alunos,
professores e funcionários que decidem ingressar na escola.
O Ministério da Educação Nacional, não interfere na educação religiosa. O
Estado se detém em questões pertinentes à promoção da educação e criação de
políticas públicas com vistas a reduzir e combater o alto nível de analfabetismo
nacional.
8
se educava, se doutrinavam as crianças, propagando a fé católica e tornando o
catolicismo a religião do Estado, fato que se confirma no 5º artigo da primeira
Constituição Política do Império do Brasil, em 1824. “A Religião Catholica
Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras
Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para
isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo. (Art. 5, Constituição
Federal/1824)
No entanto a primeira lei que tratava do ensino religioso foi instituída três
anos depois. Promulgada por D. Pedro I a lei de 15 de outubro de 1827,
determinou a criação de “(...) escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas
e lugares mais populosos do Império”. E no Art. 6º determinava que
“Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro
operações de aritmética, prática de quebrados,
decimais e proporções, as noções mais gerais de
geometria prática, a gramática de língua nacional, e os
princípios de moral cristã e da doutrina da religião
católica e apostólica romana, proporcionados à
compreensão dos meninos; preferindo para as leituras
a Constituição do Império e a História do Brasil”.
9
Somente na Constituição de 1934, o ensino religioso ganhou um aspecto
regulatório especifico. No qual o ensino religioso confessional de matricula
facultativa era oferecido em horários normais em todas as instituições de ensino,
incluindo as de educação profissional.
O golpe militar de 1937 que manteve Vargas na presidência anulou a
constituinte de 34, e instituiu uma nova Constituição, onde
“A educação física, o ensino cívico e o de trabalhos
manuais serão obrigatórios em todas as escolas
primárias, normais e secundárias, não podendo
nenhuma escola de qualquer desses graus ser
autorizada ou reconhecida sem que satisfaça aquela
exigência.” (Art. 131, Constituição Federal/1937).
10
É notória a interferência da religião, na perspectiva educacional, no contexto
histórico-administrativo do país, por vezes acompanhando o regime político
vigente. Desde o Brasil colônia a Igreja se fez presente, outrora ativamente, outras
vezes de maneira tímida. Este aspecto não foi observado no estudo realizado no
contexto histórico educacional e administrativo de Guiné-Bissau.
Cristãos
Instituição Católicos Protestantes Outros
Escola Pública 45,5% 27,2% 27,2%
Escola Privada 35,7% 25% 37,5%
Menos da metade dos participantes receberam ensino religioso, sendo que
desses somente 20% não receberam ER na escola, o que mostra uma visível
inconstitucionalidade a respeito do art. 210 da Constituição Federal/88 e do Art. 33
11
da LDBEN/71 (obrigatoriedade do ER nas escolas públicas fundamentais). Contrário
ao esperado, já que a disciplina não é obrigatória nas escolas privadas, todos os
que estudaram nessas escolas no Brasil tiveram o ensino ER, sendo que 87,5%
afirmam tê-lo recebido na escola (Ver tabela 2).
Tabela 2: Tipo de formação recebida - Estudantes brasileiros
Cristãos
Instituição Católicos Protestantes Mulçumanos Outros
Escola 50% 12,5% 12,5% 25%
Pública
Escola 37,5% 12,5% 12,5% 37,5%
Privada
Todos os estudantes guineenses oriundos da escola privada tiveram ensino
religioso no currículo escolar, enquanto os provenientes da escola pública 57,14%
receberam orientação religiosa na igreja e os demais em casa.
Tabela 4: tipo de formação recebida – Alunos Guineenses
Nenhuma
Receberam Predomin
Instituição crença
Ensino ância
predominant
Religioso Católica
e
A Escola 87,5% 71,4% 14,3%
Pública
Escola 100% 50% 12,5%
Privada
12
Bissau - Liceu João XXIII (Católica), Escola Adventista Betel (Adventista Do Sétimo
Dia) e Attadamun (Muçulmana).
Os relatos obtidos com a entrevista nos confirmou que o ER em Guiné-
Bissau é ministrado de acordo com os critérios de cada religião. Em geral o
responsável pelas aulas são pessoas indicadas pela igreja, podendo ser um pastor
(IASD), padre ou irmã (Igreja Católica) e Imame (religião muçulmana). As aulas
são constituídas de orações, cantos e estudos de livros sagrados das respectivas
confissões.
Houve consenso entre os entrevistados em relação à importância do ER, na
vida dos educandos. Justificaram este posicionamento afirmando que a educação
religiosa é indispensável na formação do caráter da pessoa e contribui para
transformação de vidas, a fim de formar pessoas mais educadas, capazes de se
interagir com outros indivíduos na sociedade, porque o objetivo do ER, de acordo
com os entrevistados é ensinar o aluno a se relacionar melhor com o próximo.
Cada indivíduo guineense pertence a um dos três grupos religiosos
existentes no país: cristãos, muçulmanos e animistas. O animismo, uma antiga
crença africana ainda praticada no continente africano foi citada durante a
entrevista: uma estudante católica revelou que quando chegou ao Brasil, a pouco
mais de cinco meses, teve alguns problemas de saúde não diagnosticados e, ao
comunicar aos pais em Guiné-Bissau, estes de imediato realizaram uma cerimônia
religiosa para livra-la do mal que a atingiu. Todos confirmaram que essas práticas
são comuns entre os mais velhos.
Além desse relato, um outro também nós chamou a atenção: uma estudante
adepta da religião Muçulmana relatou a maneira como as pessoas reagiam quando
a mesma falava que era islamita. Segundo ela a maioria das pessoas acredita que
todos os islamitas são terroristas.
A Educação Religiosa tem grande influência na vida dos estudantes
guineenses, por isso a defesa deles, ao serem inquiridos a respeito do tema. É
comum que alguns estudantes acabem aderindo às praticas da religião a que a
escola pertence, na realidade a educação pode ser considerada como uma forma de
trazer conhecimento para sociedade e como resultado interfere na atitude de quem
a recebeu. Uma das entrevistadas, inclusive, citou que apesar de praticar com a
família uma religião (católica), se comprazia com as práticas da religião da sua
escola e participava de atividades dessa religião fora da escola, escondida da sua
família
Considerações finais
13
O tratamento do ER se dá de maneira diferente nos dois países estudados -
Brasil e Guiné-Bissau. Os pontos mais notáveis, se referem ao profissional
responsável pela disciplina ER; à maneira como é ministrada - conteúdo métodos e
técnicas- e, ao tipo de instituição de ensino na qual o ER é oferecido, como já
havíamos abordado no estudo anterior em 2011, a saber, enquanto no Brasil a
prática do ER acontece nas escolas públicas e confessionais, em Guiné somente as
instituições de ensino privadas tem educação religiosa no currículo escolar.
O ER na perspectiva brasileira manifestada nos argumentos dos seus
defensores é muito parecido com aquele ministrado em Guiné-Bissau. A disciplina
deve apresentar um conteúdo voltado para a formação moral e ética do individuo,
tomando como base os valores e princípios da religião.
No entanto, os professores da disciplina no Brasil não precisam
necessariamente ter uma formação religiosa para dar aulas de religião, situação
contrária ao registrado em Guiné-Bissau. Daí surge a diferença no modo como o ER
é lecionado nos dois países. No Brasil há maneiras diversificadas, desde a efetiva
orientação religiosa, em seus aspectos doutrinários, até a utilização do horário da
disciplina para tratar de assuntos paralelos. No modelo de educação religiosa, em
Guiné, os educandos estudam os livros sagrados e aprendem a orar.
Na sociedade guineense é difícil encontrar uma pessoa que não professe
uma religião. Essa cultura é transmitida de geração em geração, entretanto, as
práticas religiosas mais convencionais, como a animismo estão se perdendo ao
longo do tempo, em particular nas zonas urbanas. Os jovens estão incorporando
cada vez mais costumes europeus e americanos, e abandonando os traços culturais
do grupo étnico de origem.
Diferente do caso brasileiro, o ER em Guiné-Bissau não é alvo de discussões
ou ataques. No país o ensino religioso faz parte das disciplinas obrigatórias
ministradas em escolas privadas cujos proprietários são instituições religiosas
cristãs ou muçulmanas, o que evita qualquer discussão ou intervenção, na maneira
como é concebida o educação religiosa.
Referencia Bibliográfica
BRASIL, Constituição Federal do Brasil-10 de Novembro de 1937. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao37.htm>.
Acesso em 10/02/2013.
BRASIL. Constituição da República- 18 de setembro de 1946. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao46.htm>.
Acesso em: 04/03/2013.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil- de 5 de Outubro de 1988.
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao>.
Acesso em 06 de jan. de 2013.
14
BRASIL. Constituição da República-16 de Julho de 1934. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao34.htm>.
Acesso em: 03/03/2013.
BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil - de 25 de Março de 1824.
Disponível em: <https://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao> Acesso em:
05 de jan. 2013.
BRASIL. Constituição Republicana- de 24 de Fevereiro de 1891. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao>. Acesso em: 10
de fev. de 2013.
BRASIL. Decreto Nº 119-A, de 07 de Janeiro de 1890, Proíbe a intervenção da
autoridade federal e dos estados federados em matéria religiosa, consagra a plena
liberdade de cultos, extingue o padroado e estabelece outras providencias. 2º da
República, sala do Governo Provisório.
BRASIL. Decreto Nº 19.941, de 30 de abril de 1931, Dispõe sobre a instrução
religiosa nos cursos primário, secundário e normal. Disponível em:
<http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/fontes_escritas/5_Gov_Vargas/d
ecreto%2019.941-1931sobre%20o%20ensino%20religioso.htm>. Acesso em:
27/02/2013
BRASIL. Lei Complementar nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional, 1996.
BRASIL. Lei de 15 de outubro de 1827. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38389-15-outubro-
1827-566674-publicacaooriginal-90212-pl.html>. Acesso em: 05/03/2013.
BRASIL. Lei nº 4.024, de 20 de Dezembro de 1961, Fixa as diretrizes e Bases da
Educação Nacional, 1961.
BRASIL. Lei nº 9.475, de 22 de julho de 1997. Dá nova redação ao art. 33 da Lei nº
9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, 1997.
BRASIL. Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação. Parecer nº
12, de 8 de outubro de 1997. Esclarecer dúvidas sobre a Lei nº. 9.394/96 (Em
complemento ao Parecer CEB nº. 5/97). Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/cne/aequivos/pdf/PCB1297.pdf>. Acesso em
24/02/2013
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer nº 1.105, de 23 de novembro de
1999. Autorização (projeto) para funcionamento do curso de Licenciatura em
Ensino Religioso. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/1999/pces1105_99.pdf. Acesso em:
24/02/2013.
CAVALIERE, Ana Maria. Quando o Estado pede socorro à religião. IN: Revista
Contemporânea de Educação. UFRJ. 2006, p. 11. Disponível em:
<http://www.revistacontemporanea.fe.ufrj.br/index.php/contemporanea/article/vie
w/20>Acesso em 01/03/2013.
CUNHA, Luis Antônio. A Laicidade em Xeque: religião, moral e civismo na educação
brasileira - 1931/97. Disponível em <http://www.nepp-
dh.ufrj.br/ole/textos_equipe2.html>. Acesso em 12/02/2013.
DOMINGOS, Marília de Franceschi Neto. Laicidade: o direito à liberdade. Revista
Horizonte. Vol.08, n. 19, Belo Horizonte, 2010, p. 53-70.
FONAPER. PCNER. Ensino Religioso: Referencial curricular para a proposta
pedagógica da escola. São Paulo: Ave Maria, 1997.
FIGUEIRA, Eulálio. O Ensino Religioso e a Educação Humanista numa Era Secular.
IN: Anais dos Simpósios da ABHR, 2012. p.12. Disponível em:
<http://www.abhr.org.br/plura/ojs/index.php/anais/article/view/440>. Acesso em:
20/03/2013.
FISCHMANN, Roseli. Ainda o Ensino religioso em escolas públicas: subsídios para a
elaboração de memória sobre o tema. IN: Revista Contemporânea. UFRJ, 2011,
p.09. Disponível em:
15
<www.revistacontemporanea.fe.ufrj.br/index.php/contemporanea>. Acesso em:
13/03/2013.
GUINÉ-BISSAU. Constituição da República da Guiné-Bissau- de 04 de Dezembro de
1996. Assembleia Nacional popular. Disponível em:
<http://www.didinho.org/Constituicao>. Acesso em: 23 de jan. de 2013.
16
VIO L ÊN CIA D E GÊN E RO NA S O CIEDADE FA RAÔ N I CA
E N A AT UA LID A DE
Resumo
Abstract
This study will examine gender violence in society Pharaonic and today. Egyptian
women are described in the literature as having equal rights with men, despite the
opposition of scholars on the subject of equality. Controversy aside, despite the talk
about equality, is the fact that the woman was denied a secondary position. To
them it was not for occupying administrative positions and government - except for
the queens who ruled Egypt - because his role "principal" was that of wife and
mother, but played an important role in the religious sphere: they were initiated
into the mysteries of the temple. The difference in gender and violence also extends
to the wedding, because if female infidelity was frowned upon and condemned, the
man was allowed to have other wives. But ultimately, what was the role of women
in ancient society? What has changed, if changed, nowadays as gender-based
violence?
Keywords: Work, religion, gender,violence, Ancient Egypt and contemporary.
Resumen
1
Glória Maria D. L. Pratas é mestre em Ciências da Religião, na área de Bíblia (Antigo Testamento) e
Teóloga pela Universidade Metodista de São Paulo.
Palabras clave: Trabajo, la religión, el sexo, el género, la violencia, el antiguo
Egipto y contemporâneo.
Introdução
Para se fazer teologia, hoje, é necessário estudar a história e essa se faz não
somente por intermédio de seus escritos, mas, também, por meio de imagens que
vão desde pinturas rupestres à obras de arte, uma expressão da cultura e da
vivência humana. A arte é uma forma de escrita e já foi vista como uma abstração,
quase que desconectada dos interesses historiográficos. Porém, um dos desafios da
moderna historiografia é o estudo das “representações”, ou seja, o sentido e as
configurações simbólicas, expressas em forma de arte, que abarcam a relação
entre o ser e o mundo em suas práticas socioculturais e religiosas. Os simbolismos
tecem o seu mundo e marcam de forma diferente a história.
Assim, a análise deste tema é voltada para a iconografia histórico-religiosa,
expressa nas pinturas e nos relevos murais encontrados nas tumbas do Egito, uma
das civilizações mais extraordinárias que o mundo já conheceu. Inscrições em
forma hieroglífica – um conjunto de sinais pictográficos e um dos primeiros
sistemas de escrita da humanidade, criados pela civilização egípcia2 –, também
fazem parte dessa iconografia. Eles vão de simples desenhos coloridos aos
revestidos em ouro, retratando a vida dos faraós, seus feitos, o dia a dia de seu
povo e simbolismos religiosos e ritos de passagem para o outro mundo.
2
O francês e egiptólogo Jean-François Champollion (1790-1832), foi quem os decifrou, a partir de 1822,
e um dos primeiros a perceber a sua importância.
(lascas de calcário contendo escritos) utilizados como forma de comunicação entre
o povo egípcio.
A arte no Egito Antigo, segundo Robins (1996, p. 5) “era produzida com uma
finalidade específica, frequentemente para preencher funções particulares nos
cultos domésticos, funerários ou divinos” e “manteve suas características principais
ao longo do período faraônico” (CARDOSO, 1992, p. 99). Porém, a riqueza de
detalhes dessa arte revelou muito mais, e com precisão de detalhes, a história de
uma das mais ricas e prósperas civilizações que a humanidade já pode vislumbrar.
Souza (2010, p.6), citando a metodologia utilizada por Richard H. Wilkinson,
afirma que “os gestos das figuras podem ser lidos e interpretados como a
representação simbólica de uma ação”. Assim, a base teórica para a escolha e
análise das imagens para este artigo, embora de forma limitada, se dará nas
relações de gênero e violência, numa leitura do papel das mulheres socialmente
inseridas em uma estrutura altamente hierarquizada.
A leitura desse universo imagético se fundamentará nos seguintes pontos: (1)
demonstrar o papel da mulher nas relações de gênero numa das mais antigas
civilizações da humanidade; (2) seu papel social, visto como sujeito social
autônomo, porém, historicamente, vitimado pelo controle social e patriarcal
masculino; (3) seu status na sociedade antiga e na atualidade: o que mudou e “se”
mudou.
Deste modo, é impossível abordar questões históricas do Egito Antigo sem
atentar para as imagens que, de forma envolvente, retrataram o universo dessa
civilização carregada de mistérios e beleza.
3
Na religião egípcia Maat é a filha do deus solar Ra. Deusa da Justiça, do equilíbrio e da ordem do
mundo que combatia o caos e a desordem, responsável pela manutenção da ordem cósmica e social. É
representada com uma pena na cabeça com a qual pesava as almas de todos que chegassem ao Salão de
Julgamento subterrâneo com a pena da verdade. A pluma era colocada num prato da balança e, no prato
oposto, o coração do falecido. Se os pratos ficassem em equilíbrio, o morto podia festejar com as
divindades e os espíritos dos mortos. Entretanto, se o coração fosse mais pesado, ele era devolvido para
Ammit para ser devorado. Fonte: http://www.all-about-egypt.com/maat.html. Acesso em 27 mar. 2013.
4
Texto retirado de All-About-Egypt. Fonte: http://www.all-about-egypt.com/maat.html. Acesso em 27
mar. 2013.
Figura 2: Maat. Fonte: http://www.all-about-egypt.com/maat.html
É fato, conforme Souza (2010, p.8) “que um dos pilares da sociedade egípcia
foi, sem dúvida, a instituição da realeza”. A personificação de faraó como deus na
Terra, lhe rendeu culto, poder divino, respeito e adoração, mas, apesar de tudo,
não o desvinculou da sua humanidade e da morte. A autora descreve que a função
de faraó como o mediador entre os mundos divino e humano, o visível e o invisível,
era o de fortalecer os deuses através das oferendas de alimentos e bebidas para
manter a renovação da ordem cíclica para que tudo funcionasse evitando, assim, a
desordem e o caos. (SOUZA, 2010, p.8)
Essa personificação de faraó, como descendente direto do deus criador Ra,
como relata ainda Souza (2010, p.6) “fazia com que o reinado de uma mulher fosse
percebido como algo contrário à Maat e à ordem cósmica e social que permeava o
cosmos, conceito central para os antigos egípcios”. Sob esse aspecto importante se
faz lembrar que Hatshepsut (a primeira e única mulher-faraó que reinou por 20
anos e obteve conquistas notáveis) ao assumir o reinado, tornando-se faraó, teve
sua imagem sempre representada como um faraó varão e suas vestes femininas
suprimidas pela masculina.
A utilização das vestes masculinas tem sua representação dentro da
religiosidade mágica egípcia, pois a rainha-faraó, simbolicamente, coagiria os
deuses ao utilizar tais vestes (que simbolizam e identificam o masculino).
Os egípcios professavam uma crença no poder criador da palavra e esta
estendia-se em forma de imagens, gestos e símbolos em geral, pois acreditavam
que com estes coagiriam os deuses e o cosmos; ou seja, com a magia. Cardoso
(1992) como segue:
A extensão de tal princípio a outros sistemas de signos abria
o caminho a formas variadas de ações mágicas. Se a
palavra, o gesto, a escrita, a imagem etc. geram a realidade,
podia-se agir sobre esta através de fórmulas verbais,
gesticulação ritual, textos, desenhos. A representação do rei,
nos relevos dos templos, dominando os inimigos do Egito,
garantiria a segurança do país através da constante vitória
sobre tais inimigos. Se um dado rito exigia o sacrifício de um
hipopótamo - ação bastante incômoda e complicada -,
quebrar uma estatueta de hipopótamo magicamente
consagrada surtiria o mesmo efeito. Se os encarregados do
culto funerário se descuidassem do oferecimento de vitualhas
ao morto, a representação pictórica de pães e outros
alimentos nas paredes da tumba teria efeito equivalente. E
assim por diante. (CARDOSO, 1992, p.86)
Wiedemann (2007, p.85) esclarece que estas são obras literárias destinadas
aos mais altos postos da hierarquia egípcia como um conjunto de regras de
comportamento, etiqueta, obediência, fidelidade aos superiores e os inferiores e de
julgamento, bem como as questões privadas como a esposa, filhos e filhas e os
amigos.
A clareza dos textos mostra que a condição de dominância, violência e poder
na relação de gênero permanecem no Egito atual. Parafraseando o primeiro ponto,
apresentado na literatura sobre “as paixões na vida pessoal”, o nível de
5
“lhe fará um canal” significa: lhe vestirá e alimentará. (WIEDEMANN, 2007, p. 84)
comparação entre o Antigo e o atual Egito, agora de dominância islâmica, fica claro
que: a proximidade entre homem e mulher é fator de risco e cautela, ou seja, tanto
no antigo como no atual o preço é pago com a morte!
Atualmente, embora o ato de sair de casa para trabalhar, possa ter libertado
algumas mulheres do passado e do estigma do passado como “senhoras da casa”,
as mulheres egípcias não encontraram nenhum reconhecimento e estão optando
por retomar a tradição. Apesar de a mulher ser classificada com igualdade no Egito
Antigo, atualmente, o Egito está entre 120 dos 128 países quanto à igualdade entre
os sexos quanto à emancipação política e oportunidades reais para o sexo feminino
na economia, conforme relatório do Fórum Econômico Global.
Tal situação não difere dos tempos faraônicos conforme nos relata Iman
Bibars, presidente da Associação para o Desenvolvimento e Valorização da Mulher,
com sede no Cairo: “mais mulheres estão trabalhando, mas nem todo trabalho é
libertador"6.
Bibars (2010) acrescenta: “apenas as mulheres de classe mais abastada
podem se dar ao luxo de ter ambição". Por serem, em sua maioria, pertencentes à
classe média ou baixa, Bibars acrescenta que “o analfabetismo feminino continua a
ser elevado”. A mais recente Pesquisa do Mercado de Trabalho Egípcio concluiu,
segundo ela, que “47% das mulheres rurais e 23% das mulheres urbanas não
sabem ler nem escrever”7.
O jornal “The New York Times” publicou que para as mulheres, na opinião
feminina, retornar à tradição faraônica as levará a caminhos destinados apenas aos
homens: “Eles é que devem carregar o fardo e prover para sua família. Uma mulher
se destina a dar amor, carinho e ser protegida. Ela não deveria estar fora de casa o
tempo todo”.
Um estudo recentemente realizado pelo Centro de Pesquisas “Pew”, em
associação com o “International Herald Tribune”, declarou que o Egito surgiu como
um país onde as mulheres têm uma posição secundária no mercado de trabalho em
relação aos homens e a igualdade de direitos é um “objetivo” muito mais do que
uma realidade. Dos entrevistados no Egito, 61% disseram que as mulheres devem
poder trabalhar fora de casa. Mas 75% disseram que, quando os empregos são
escassos, os homens deveriam ter mais direito ao trabalho.
6
Jornal Último Segundo. Notícia anunciada no “The New York Times” em 19/07/2010 16h29. Pesquisa
efetuada em 22 mar.2012 no site:
http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/nyt/trabalho+mas+nao+liberdade+para+as+egipcias/n12377229
55758.html.
7
Jornal Último Segundo. Notícia anunciada no “The New York Times” em 19/07/2010 16h29. Pesquisa
efetuada em 22 mar. 2012 no site:
http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/nyt/trabalho+mas+nao+liberdade+para+as+egipcias/n12377229
55758.html.
Segundo as estatísticas no “The New York Times”, as mulheres no Egito
ocupam apenas oito das 454 cadeiras do Parlamento e cinco delas foram indicadas
pelo presidente. Há apenas três ministras e nenhuma mulher entre os 29
governadores do país. A notícia vai um pouco além:
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAINES, J.; MALIK, J. Cultural Atlas of Ancient Egypt, revised. Oxford: Ed.
Andromeda Oxford Limited, 2004, 2008.
EL-NAGGAR, M.. “Trabalho, mas não liberdade para as egípcias”. In: The New
York Times (19/07/2010). Pesquisa efetuada em 02 de Junho de 2010 no site:
http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/nyt/trabalho+mas+nao+liberdade+para+a
s+egipcias/n1237722955758.html.
Introdução
Apesar das mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas, que levaram à
contestação dos tradicionais papéis atribuídos aos homens e às mulheres, estes ainda
vivem uma relação altamente hierarquizada. Em meio as nossas atividades mais
triviais, a situação privilegiada do homem aparece como algo natural, uma vez que o
cotidiano é formado pela dominação de gênero. Esta dominação se exerce nas esferas
privada e pública, atribuindo aos homens privilégios materiais, culturais e simbólicos.
Assim, a situação privilegiada do sexo masculino aparece como algo natural,
convertendo a diferenciação de gênero em desigualdade.
A opressão das mulheres pelos homens é um sistema dinâmico no qual as
desigualdades vividas pelas mulheres são os efeitos das vantagens dadas aos homens.
Não somente homens e mulheres não percebem da mesma maneira os fenômenos,
mas, sobretudo, não percebem que o conjunto do social está dividido segundo o
mesmo simbólico que atribui aos homens e ao masculino as funções nobres e às
mulheres e ao feminino as tarefas e funções afetadas de pouco valor.
Segundo Scott (1990), o masculino é tomado, historicamente, como o normativo
para a humanidade, o que proporciona a elaboração de uma espécie de contrato
sexual nas relações sociais. Esse contrato estabelece o patriarcado moderno e a
dominação dos homens sobre as mulheres.
As relações de gênero têm como transversal em sua dinâmica a dominação e o
poder. O poder necessariamente implica numa relação de dominação, no nosso caso
especifico, de homens sobre mulheres. Entretanto, pensar esta dinâmica como
unilateral, ou seja, como uma barbárie masculina é incorrer no erro da vitimização. A
mulher também é sujeito nesta relação, sujeito dominado, heterônomo, não
autônomo, mas o é (Chauí, 1985).
Já há várias décadas, inicialmente as mulheres e depois alguns homens, têm
lutado e/ou produzido análises que procuram dar visibilidade e explicar essa questão.
Mostram como a dominação é apresentada como óbvia, como um fenômeno natural,
integrado de algum modo à divisão social e hierárquica por sexo. Da análise crítica da
opressão das mulheres, nasceram às lutas contra o sexismo e o patriarcado.
O movimento feminista, em suas várias vertentes, provocou um profundo
questionamento sobre o lugar e a função social das mulheres na cultura patriarcal. Ao
estabelecer uma divisão rígida de papéis e de trabalho entre os sexos, o
patriarcalismo aprisionou homens e mulheres em estereótipos e funções que não
podem mais ser vistos como parte da natureza humana, mas sim como produtos de
processos e interesses históricos, econômicos e culturais.
As relações sociais que se tecem entre os sexos - relações de poder - dizem
respeito a toda a sociedade e a todas as suas instituições, inclusive as religiosas.
Entretanto, não se pode contestar o fato de que o campo religioso também sofreu o
impacto dessas transformações, principalmente com a difusão das idéias feministas
que incidiram diretamente sobre as relações de gênero (Rosado-Nunes, 2001).
Conforme Lucila Scavone (2008) o contexto de desenvolvimento dos movimentos
feministas abriu caminhos para que em todos os campos do social, as questões de
gênero fossem difundidas e “o campo religioso, em seu aspecto institucional,
tradicionalmente antifeminista, não ficou imune aos efeitos sociais e culturais das
idéias feministas contemporâneas” (Scavone, 2008, p. 07).
Assim, a dominação masculina, no ocidente contemporâneo, não se impõe mais
com a proeminência de algo que é indiscutível. Após séculos de aceitação
aparentemente passiva, o cenário vem mudando. Os efeitos se fazem sentir em todas
as esferas, até mesmo no âmbito religioso.
Pesquisas apontam um aumento no que tange à insatisfação por parte de
algumas mulheres dedicadas à vida religiosa nas igrejas cristãs quanto à
impossibilidade de participação em atividades e cargos tradicionalmente reservados
para homens, bem como uma maior participação destas em cargos de liderança.
Nesse sentido, o presente artigo se propõe a analisar, mesmo que brevemente,
a condição feminina no discurso religioso e no interior de algumas instituições
religiosas cristãs de Campina Grande - PB.
A partir das análises feministas da religião essa situação vem mudando, embora
muitos valores simbólicos continuem estagnados, principalmente no Brasil. É fato que
para que a ordem social e eclesial permaneça imutável, a hierarquia masculina das
Igrejas, em sua grande maioria, recusa a análise feminista. No entanto, as estruturas
hierárquicas masculinas e os pronunciamentos da hierarquia masculina não são mais
identificados, sem crítica, com “vontade de Deus” ou com a comunidade cristã.
Ao estabelecer um diálogo entre gênero e religião Sandra Duarte de Souza
(2006) observou que a ascensão pública das mulheres representa uma ameaça,
principalmente, no caso das organizações religiosas, onde tem sido cada vez mais
crescente a participação das mulheres nas esferas de poder institucional. Para essa
autora, tais mudanças, ainda que lentas, evidenciam um processo de ruptura com a
concentração androcêntrica do poder na sociedade (Souza, 2006, p.34).
1
Projeto PIBIC 2011-2012 “A consagração feminina nas igrejas cristãs em Campina Grande/PB: estudo
comparativo entre as Igrejas Católica e evangélicas”. Participaram do estudo três instituições católicas
(Mosteiro de Santa Clara, Associação das Damas Hospitaleiras e Instituto São Vicente de Paulo) e três
evangélicas (Igreja Batista, Assembléia de Deus e Verbo da Vida). Nestas, entrevistamos mulheres e homens
consagrados ao serviço religiosos e realizamos observação participante de cultos, eventos e cerimônias
religiosas.
Isso nos possibilita inferir que a hegemonia masculina na Igreja Católica é explicita e
sua internalização é parte da aprendizagem, diríamos mesmo, obrigatória.
No que diz respeito às atividades, as religiosas católicas, na prática, podem dar a
comunhão, ocupar cargos de coordenação e de alguns ministérios em algumas
dioceses brasileiras, dependendo da autorização do bispo de cada região. Mas, é
importante destacar que se trata de lugares concedidos. Os homens da igreja
permitem e regulam que as mulheres ocupem lugares previamente determinados por
eles. (Fernandes, 2005, p. 429). No geral, suas atividades dizem respeito a serviços
sociais, como as obras sociais e de caridade mantidas pela Igreja.
No caso da Igreja Católica, a posição de freira indica a principal oportunidade
que as mulheres têm para participar “ativamente” na instituição religiosa, já que se
percebe na história que a mulher tem sido alijada da participação nas esferas do poder
e da administração.
A existência de ordens de mulheres nunca garantiu nenhum tipo de poder direto
das mulheres afora dos conventos e instituições ligadas a estes. Enquanto as igrejas
protestantes vêm dia após dia aumentando o número de mulheres em seus
ministérios, a instituição católica permanece radical com relação ao gênero. O papel
da mulher se mantém imutável desde sua fundação, perpetuando a submissão
feminina dentro da instituição e entre seus fiéis.
A hierarquia da Igreja Católica permanece firme em sua decisão de vedar os
espaços das altas hierarquias, que possui três graus: os diáconos, os padres e os
bispos, às religiosas. O Papa João Paulo II, na “Encíclica Da Dignidade da Mulher”, fala
sobre o papel “fundamental” das mulheres na história do Cristianismo, argumentando
que há papéis femininos e masculinos na Igreja, uma divisão de tarefas diferenciada
entre os gêneros. Segundo esta, as mulheres religiosas são consagradas a Deus, e a
diferença entre os dois papéis está na função sacerdotal ministerial, que é destinada
apenas aos homens. Prosseguindo, ele afirma que o paraíso não é destinado aos
ministros, mas antes aos santos, homens ou mulheres, um discurso que pode indicar
um não desmerecimento do papel das mulheres na igreja, e, de certa forma, evitar
maiores contestações.
O Papa João Paulo II demonstrou publicamente nítida inclinação para as posições
mais conservadoras, utilizando condenações consideradas já ultrapassadas.
Condenava a nudez, o homossexualismo e a participação das mulheres em cargos de
liderança na igreja. Em 1994, reafirmou o não ordenamento de mulheres a
sacerdotes, dando o tema por encerrado. Consoante Fernandes (2005, p.425), de
acordo com a carta apostólica Ordinatio Sacerdotalis, os argumentos de caráter
teológico apresentados por ele podem ser sintetizados em:
a) a missão sacerdotal foi confiada apenas aos homens por Cristo
que chamou 12 apóstolos; b) a necessidade ou valorização da
preservação da tradição ou da prática da Igreja ao longo dos
séculos nesse tema; c) como conseqüência do segundo item,
aborda-se a irrevogabilidade do Magistério da Igreja.
2
Na Igreja Evangélica Verbo da Vida as mulheres recebem a mesma formação que os homens, podendo
inclusive ser mestres ou ministras e, portanto, ministrar a Palavra no púlpito. Porém, ela não pode liderar uma
igreja, função exclusivamente masculina.
Referências Bibliográficas
Considerações Finais
Tudo indica que a tradição cristã mantém seu poder frente a uma realidade cada
vez mais desafiadora, apesar da tênue reflexividade que, de alguma ou de várias
formas, tenta penetrar este contexto hostil de inflexividade. Nessa direção, mantém-
se ainda, as configurações tradicionais do masculino e feminino, como muralha de
contraposição a ordenação feminina.
Em geral, as mulheres ocupam posições subalternas na organização mais ampla
da vida social e também nas religiões cristãs. Constata-se que o poder ainda é
desigualmente distribuído entre os sexos. A interpretação da visão hierárquica eclesial
desconsidera solenemente a recente inclusão social da mulher. Fruto da reflexão dos
homens ligados às Instituições Religiosas, não correspondem ao que as mulheres
sentem, suas reivindicações, quer em teologia, quer no interior das Igrejas, embora
nos cultos, missas e no serviços religiosos estas sejam a maioria. Percebe-se que as
diferenças estão integradas num discurso igualitário, abstrato e global, mas que visa
tão somente desautorizar a atuação.
É possível verificar que as relações sociais que se tecem entre os sexos -
relações de poder - dizem respeito a toda a sociedade e à história, bem como a todas
as suas instituições, as religiosas inclusive, e nesse sentido, a refletem. A Igreja, além
se ser um dos pilares sobre o qual se assenta a relação hierárquica entre os sexos,
contribui para a manutenção da ordem política reforçando-a simbolicamente,
inculcando em seus membros que a submissão feminina ao homem é algo natural e
necessário. Ela inculca explicitamente uma moral familiarista completamente
dominada pelos valores patriarcais e principalmente pelo dogma da inata inferioridade
das mulheres.
Através dos vários estudos e pesquisas realizados acerca da temática em
questão, percebemos um duplo movimento de permanências e mudanças. Entretanto,
os resultados da nossa pesquisa indicam que apesar das conquistas ensejadas pela
eclosão do movimento feminista, a situação da mulher consagrada ao trabalho
religioso no âmbito da hierarquia da Igreja Católica como um todo, em Campina
Grande não sofreu alterações significativas. Porém, em relação à condição pessoal,
acesso à informação através da mídia, os conventos hoje são muito diferentes da
rigidez e severidade de vinte ou trinta anos atrás. No contexto evangélico, as poucas
mudanças por nós constatadas em relação à ascensão da mulher consagrada ao
serviço religioso aparecem de forma ambígua e contraditória no discurso das
evangélicas e na prática religiosa. Assim, é admissível concluir que a situação da
mulher cristã consagrada no Brasil, e, portanto, neste município, ainda enfrenta
barreiras poderosas. As mudanças neste setor são muito lentas e de difícil
assimilação, até mesmo por parte das próprias mulheres.
Trata-se de um universo complexo, repleto de nuances, sobre o qual ainda há
muito a pesquisar. A esse respeito, cabe ressaltar ainda, que se trata de uma questão
mais sociocultural do que, propriamente, espiritual. Vivemos ainda sob a égide da
cultura patriarcal, e a quebra de paradigmas e preconceitos no campo religioso
demanda tempo e muito diálogo. As concepções de gênero e religiosidade dos
indivíduos estão intimamente relacionadas à sociedade na qual vivemos e somos
socializados. E se pensarmos que as concepções de gênero não têm origem na
natureza biológica, mas numa construção sociocultural bem urdida e bem nutrida ao
longo de séculos no campo simbólico que visa regular relações de poder entre os
sexos, precisamos reconhecer que este campo impregna nossos atos, afetos e
identidades e por isso mesmo, são muito mais difíceis de serem mudados.
A MAGIA COMO INSTRUMENTO DE EMPODERAMENTO DA MULHER
Introdução
Segundo autoras feministas (GEBARA, 1997; GRIFFIN, 1978; KING, 1997; PLUMWOOD,
1993; RUETHER, 1992; WARREN, 2000), o pensamento ocidental foi culturalmente
construído por um sistema dualista de “[...] pares de conceitos, objetos ou sistemas de
crenças opostos [...] em alguma forma de argumento hierárquico.” (FAUSTO-STERLING,
2001, p. 60), que se manifestam nas relações religiosas, políticas, domésticas e em
todas as outras áreas da vida social.
1
Segundo Joan Scott (1990, 21) gênero é “[...] um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas
diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder.” Ainda
segundo Scott (1990), entre os elementos do gênero relacionados entre si na configuração de relações sociais
estão os símbolos culturais; os conceitos normativos desses símbolos através da limitação de interpretações de
seus sentidos; uma noção do político, por meio das instituições sociais;e as identidades subjetivas.
à sistematização racional da religião que leva à institucionalização e à formação de um
discurso ético (WEBER, 2004).
Assim, o que define a relação entre mulher e magia é a subordinação social a que ambos
estão submetidos com base no mesmo sistema de pensamento. Dessa forma, as
religiões, particularmente as ascéticas, têm criado e legitimado identidades masculinas e
femininas baseadas em um sistema hierárquico que inferioriza tudo o que é tido como
feminino, seja a própria mulher ou a magia. “É a habilidade da religião de sacralizar os
homens que os torna masculinos. Através da definição que especifica que as pessoas do
sexo feminino não são homens, são criadas a mulher e sua identidade feminina. Todos os
indivíduos tidos como uma ameaça à masculinidade recebem uma identidade feminina.”
(ERICKSON, 1996, 211).
Assim, o objetivo deste trabalho é analisar a conexão entre práticas mágicas e o feminino
para investigar como a magia pode servir como instrumento de empoderamento das
mulheres, porém não como um poder de dominação que busque apenas reverter quem é
inferior ou superior, mas um empoderamento que gere ganhos para si sem gerar perdas
para outros, através dos modelos de poder-de-dentro, poder-para e poder-com. E para
isso será analisado a bruxaria contemporânea de origem europeia, um sistema mágico
que tem permitido o empoderamento feminino enquanto categoria inferiorizada.
Masculino-feminino, religião-magia
As características duais relativas ao feminino e ao masculino são visíveis nos atributos
divinos construídos culturalmente ao longo da história. Divindades femininas geralmente
são definidas como terrestres, de caráter mais local e popular; enquanto divindades
masculinas são, em sua maioria, deuses do céu, senhores de tudo o que tem regras fixas
e regularidade rígida, tendo, assim, um caráter mais universal e racional (ELIADE, 1992;
WEBER, 2004).
Weber reproduz essa dualidade, pois para Victoria Lee Erickson (1996, p. 203) “A luta
entre o masculino e o feminino veio à tona em Durkheim e Weber como uma luta entre a
magia e a religião”. Ela vê na sociologia da religião weberiana um preconceito de gênero
implícito2 ao constatar que Weber sugeria um caminho para grandeza nacional através do
racionalismo e ascetismo religioso, e segundo Erickson (1996, p. 117):
2
Segundo Erickson (1996, 13), “O preconceito sexual inexplorado é perigoso, pois permite o uso de definições e
suposições que mantêm as teorias ancoradas no pensamento patriarcal”. Assim, apesar desta pesquisa fazer uso
da sociologia da religião weberiana em alguns trechos, buscou-se estar atento ao preconceito implícito e evitar as
definições e suposições ancoradas nesse pensamento.
Ainda segundo Erickson (1996), a religião mágica das massas atrai as mulheres e o papel
destas é diversificado e mais igualitário se comparado à religião burocrática, racional e
ascética das elites em que a mulher é mais inferiorizada, como também são
inferiorizadas a sexualidade e a arte, vistas como forças irracionais e sem controle,
portanto femininas. No entanto, na religião mágica elas são fortalecidas. Um exemplo
disso, na questão da sexualidade, é dado por Keith Thomas (1991, p. 459) sobre a
repressão à bruxaria na Inglaterra no fim da Idade Média e início da Idade Moderna:
Por fim, Erickson (1996, p. 187) afirma que “Weber considerava as mulheres, as
crianças, os idosos, os homens desmasculinizados ou desmilitarizados e os oprimidos
como atentos à magia. Por conseguinte, a defesa da magia pode significar a defesa dos
oprimidos”. Tal perspectiva reafirma a noção de que a relação subalterna é o que vincula
determinados grupos sociais destituídos das positivas características masculinas.
Também indica que a magia pode ser usada como um meio de empoderamento dessas
categorias consideradas subalternas.
Segundo Rai (2002), a noção de empoderamento largamente usada nas ciências sociais,
por exemplo, é de exercer poder sobre instituições, recursos e pessoas. Esse modelo de
poder, o poder-sobre, se baseia em relações de dominação e submissão. Nesse tipo de
empoderamento, quando um ganha, o outro sempre perde, mesmo que aquele que
ganha não tenha consciência disso (MOSEDALE, 2005). Porém, desde a década de 80,
feministas têm contribuído na crítica e na expansão da noção de poder para além do
poder-sobre, formas de poder em que o ganho de um não é necessariamente a perda do
outro. Esses são o poder-de-dentro, poder-para e poder-com.
Por ser um saber eminentemente técnico, que ensina o indivíduo a lidar com desafios do
cotidiano (PIERUCCI, 2001), a magia também é poder-para. Por exemplo, ela capacita o
praticante a fazer “[...] vários serviços [...] desde a cura de doentes e a localização de
objetos até a leitura da sorte e todos os tipos de adivinhação.” (THOMAS, 1991, p. 156).
Sociologicamente, tais capacidades servem para empoderar o magista dentro de seu
grupo social, o tornam útil ou, até mesmo, um líder no caso de comunidades mágicas.
Por último, sobre o poder-com, Starhawk (2005, p. 7, tradução nossa) vê a magia como
fomentadora de “[...] aquisição de poder pessoal e coletivo, por ser um modelo de poder
compartilhado”. Erickson (1996), em sua análise da sociologia da religião weberiana, vê
que a magia se desenvolve mais em grupos comunitários, onde há maior atividade da
ação coletiva, enquanto que a religião se desenvolve melhor na sociedade-polis, porém
na medida em que a sociedade-polis fortalece seus mecanismos de controle social,
reprime a magia, por ser fonte de poder individual e compartilhado. Keith Thomas (1991,
p. 542), ao analisar o declínio da magia no mundo contemporâneo, afirma que uma das
razões para tanto foi o crescimento urbano e suas relações impessoais. Assim:
Bruxaria contemporânea
Segundo Keith Thomas (1991, p. 355), a definição de bruxa para a religião cristã na
Idade Média e início da Idade Moderna era: “Uma bruxa é uma pessoa de qualquer sexo
(mais com maior frequência uma mulher) que podia ferir outras pessoas por meios
misteriosos”. À parte da crença teológica daquele período, em que a bruxa é a que fere,
o maior número de mulheres é correto. Estima-se que entre os executados por bruxaria
pela Inquisição Católica, 85% eram mulheres3 (TOMITA, 2002). Entre as mulheres
consideradas bruxas estavam, sobretudo, as mais secundarizadas, como velhas e viúvas,
3
Embora muitas dessas mulheres apenas tenham “confessado” serem bruxas devido ao uso de tortura (TOMITA,
2001, 38).
que passam a se valer e se empoderar através da magia quando a tradição de auxílio de
paróquias e vizinhos gradualmente deixa de existir. Por sua vez, outros grupos
secundarizados da sociedade, como os mais pobres, buscavam com frequência os
serviços das bruxas (THOMAS, 1991, p. 431).
Porém, o crescente ceticismo contra a bruxaria contribuiu com o seu declínio, resistindo
por mais tempo apenas nas aldeias de zona rural europeias até o século XIX (THOMAS,
1991). No entanto, ocorre, a partir do final da década de 1950, o reflorescimento da
bruxaria (ERICKSON, 1996), isso se dá, em parte, quando feministas, primeiramente,
intensificam as críticas ao androcentrismo judaico e cristão e, em seguida, passam a
analisar e aderir a movimentos espiritualistas fora dessas tradições que estavam sendo
criados e recriados naquela época (GROSS, 1996).
‘Faça o que quiser, desde que não faça mal a nada, nem ninguém’.
Esta é seguramente a principal diretriz Wiccaniana e é levada em
consideração todas as vezes que realizamos um ato mágico e no
nosso comportamento diário. Assim como em muitas religiões a
Wicca também pratica Magia. Nós Bruxos acreditamos que a
mente e o corpo humano possuem o poder de efetuar mudanças
nos acontecimentos de maneiras ainda não compreendidas pela
ciência. Em nossos rituais, onde honramos nossos Deuses,
realizamos diversos feitiços para inúmeros propósitos como cura e
superação de problemas. No entanto, a Magia sempre é praticada
de acordo com um código de ética que afirma que só podemos
ajudar outros, ou a nós mesmos, respeitando o livre arbítrio das
pessoas envolvidas e quando isso não prejudicar ninguém. Não
fazer mal a nada nem NINGUÉM significa não prejudicar a
natureza, as pessoas ao nosso redor e nós mesmos. (PIETRO,
2009, p. 20)
Considerações finais
É importante ressaltar que a magia, inserida nos modelos de poder-de-dentro, poder-
para e poder-com, não necessariamente anula a dominação de um grupo sobre outro –
um exemplo disso é que as tradições mágicas na Europa dos séculos XVII e XVIII
analisados por Thomas não anularam a dominação cristã – contudo, permite aos
subordinados o acesso a fontes de poder que não dependam dos dominadores, possibilita
capacidades e maior autonomia sobre a própria vida que dependam apenas de si. Assim,
em face à falta de poder do individuo no meio coletivo, a magia possibilita o
empoderamento deste mesmo indivíduo em relação a si mesmo.
Referências bibliográficas
BATLIWALA, Srilatha. The meaning of women’s empowerment: new concepts from
action. In. SEN, Gita; GERMAIN, Adrienne; CHEN, Lincoln (Org.) Population policies
reconsidered: health, empowerment and rights. Boston: Harvard University Press, 1994,
p. 127-138.
CLIFTON, Chas; HARVEY, Grahan (org). The Paganism Reader: An introduction. New
York: Routledge, 2004.
ERICKSON, Victoria Lee. Onde o Silêncio Fala: Feminismo, teoria social e religião. São
Paulo: Paulinas, 1996.
GRIFFIN, Susan. Women and Nature: the roaring inside her. New York: Harper & Row,
1978.
GROSS, Rita. Feminism and Religion: an Introduction. Boston: Beacon Press, 1996.
MARIZ, Cecília Loreto. A sociologia da religião de Max Weber. In: TEIXEIRA, Faustino
(org.). Sociologia da religião: enfoques teóricos. Petrópolis: Vozes, 2003.
OLIVEIRA, Rosalira. Em nome da Mãe: o arquétipo da Deusa e sua manifestação nos dias
atuais. Ártemis, vol. 3, João Pessoa, 2005. Disponível em:
<http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/artemis/article/view/2200/1939>. Acesso em:
22/01/13
PARPART, Jane L.; RAI, Shirin M.; STAUDT, Kathleen (org.). Rethinking empowerment:
Gender and development in global/local world. Londres: Routledge, 2002.
PLUMWOOD, Val. Feminism and the mastery of nature. London: Routledge, 1993.
RUETHER, Rosemary Radford. Dualism and the Nature of Evil in Feminist Theology.
Studies in Christian Ethics. vol. 5, n. 1, abril, 1992, p. 26-39.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Educação & Realidade,
vol. 20, n. 2, Porto Alegre, 1995, p. 71-99.
TOMITA, Luiza E. A Inquisição e a Caça às Bruxas: Uma página tenebrosa da história das
mulheres. Mandrágora, ano 8, n. 7-8, 2001-2002, p. 37-51.
WEBER, Max. Ética protestante e o espírito do capitalismo. 2ª ed. São Paulo: Pioneira,
2001.
Introdução
O aktismo é a religião indiana cuja divindade central é a akti, ou seja, a Podero-
sa, a Dev (deusa) suprema. Nesta tradição, a deusa que era inicialmente apenas uma
companheira de iva foi adquirindo importância cada vez maior e acabou por ser con-
siderada uma síntese de todas as formas divinas femininas, chegando depois a ser
considerada como superior às divindades masculinas (devas).
Essa abordagem já estava presente no Hinduísmo durante o período medieval, mas
é difícil determinar quando se estabeleceu. O estudo acerca das origens e consolida-
ção do aktismo na Índia se depara com enormes dificuldades por falta de informa-
ções históricas, em função das características próprias da estrutura de transmissão
oral na tradição indiana, pela extensão territorial e pela falta de documentação escrita,
entre outros tantos fatores.
Há duas correntes de pensamento acerca da origem do culto a Deusa, uma no qual
se atribui suas origens em torno das deusas das vilas e outra que recorre às divinda-
des femininas existentes nos Vedas2 e estudo de artefatos arqueológicos que retratam
imagens femininas encontrados em diversos sítios arqueológicos, que indicariam um
antigo culto da Deusa Mãe em terras indianas (Agrawala, 1984, pp. 23-38). Estamos
ainda longe de ter certeza absoluta sobre a origem desse culto. O que podemos abor-
dar com mais segurança é o período em que se deu a sua consolidação de forma inde-
pendente, com base nas escrituras encontradas. Esse é o propósito do presente texto.
Abordaremos as fontes escriturais nas quais podemos verificar fatos, mitos, aconteci-
mentos e registros em torno do culto à deusa na Índia e sua apresentação como di-
vindade suprema. Daremos principal atenção aos Pur a e por isto faremos uma breve
apresentação sobre a estrutura e história destas obras. A culminação do culto à deusa
é evidente nos Pur a, onde ela aparece ocupando uma posição única e central como
a Realida Última, no Dev Bh gavata Pur a.
Pur a
A palavra Pur a significa “antigo” e é aplicada a textos contendo uma narrativa
tradicional cuja origem dificilmente pode ser datada. Existem referências sobre os
Pur a no Atharvaveda, nos Br hma as e outras obras muito anteriores à era cristã
(Kumar, 2010, p. v). Mas não é claro se naquele tempo eram obras com um conteúdo
1
Especialista em Yoga pela UNIBEM; Mestranda em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da
Paraíba (UFPB). E-mail: flaviabianchini@gmail.com
2
Os Vedas são as quatro escrituras sagradas indianas mais antigas conhecidas como gveda, S maveda,
Yajurveda, e Atharvaveda respectivamente.
1
determinado ou apenas uma tradição indeterminada. Tanto Itih sa quanto Pur a de-
signam histórias e ambos são mencionados juntos na literatura vêdica, às vezes sepa-
rados e às vezes como uma palavra composta (Pargiter, 1922, p. 35). Atualmente
identificamos como Itih sa as obras Mah bh rata e Ram yana, distinguindo-as dos
Pur a (Pruthi, 2005, p. 1).
Os Pur a foram transmitidos oralmente durante um longo tempo e a única data
que lhes pode ser atribuída é a época aproximada de sua compilação escrita. Os mais
antigos parecem datar do primeiro milênio da era cristã, e tradicionalmente atribui-se
sua compilação ao sábio Veda Vy sa3. Amarasi ha, em sua definição clássica do ter-
mo, em 500 d.C., indicou cinco características (pañcalak ana) para definir uma obra
como sendo um Pur a, a saber: sarga (criação), pratisarga (dissolução e recriação),
vam a (genealogias divinas), manvantara (eras dos vários Manus), vam anucarita
(genealogias dos reis) (Pruthi, 2005, p. 2; Coburn, 2002, p. 21). Essa caracterização
antiga dos Pur a não leva em conta diversos outros aspectos que vemos nas obras
que conhecemos hoje em dia. Praticamente todos os Pur a apresentam aspectos de-
vocionais sectários, dando especial atenção às divindades Vi u e iva. Esses Pur a
atualmente existentes constituem verdadeiras enciclopédias, e compreendem um vas-
to corpo de informações religiosas e culturais contendo narrativas que tratam sobre as
origens das coisas e dos mais variados assuntos, como: mitos; histórias; tradições; as
interações entre deuses, demônios e seres humanos; a natureza de Brahman e de
vara; a relação entre o Eu ( tman) e Brahman; a natureza da libertação (mok a) e
os meios para alcançá-la; os ritos, cerimônias e modos de adoração; as genealogias
das dinastias reais; a evolução do universo, desde sua criação à destruição, etc. (Par-
giter, 1922, p. 22; Kumar,1983 pp. 19-20; Krishnamachariar, 1937, p. 72).
3
Distintos questionamentos são realizados sobre o mítico Veda Vy sa. Algumas pesquisas sugerem que o
nome Vy sa se refere a um único compilador, outros apontam que esta designação corresponde a vários es-
critores (Gonçalves, 2009, p. 37).
2
Vi u Pur a, que podem datar dos séculos II e III d.C. (Pruthi, 2005, p. 128). Naren-
dra Nath Bhattacharyya considera que os Pur a mais antigos seriam V yu, Brah-
m nda, Vi u e Bh gavata, e como mencionam a dinastia Gupta entre as suas dinasti-
as reais, sugere que não teriam sido compilados antes do século IV d.C. (Bhatta-
charyya, 1996, p. 100).
Mackenzie Brown considera que os Pur a seriam uma continuação da grande tra-
dição épica, pois muitas vezes narram histórias já encontradas no Mah bh rata, o
grande épico Hindu. Para ele, os paur ikas – os compositores dos Pur a – foram
influenciados cada vez mais pelos novos movimentos religiosos personalistas, devoci-
onais e teístas, conhecidos como bhakti (Brown, 1999, p. 6). No período purânico o
movimento devocional adquiriu grande força e influência, atingindo sua plenitude por
volta de 1.200-1.700 d.C., redefinindo em muitos aspectos o hinduísmo (Dhawan,
1997, p. 85). A atenção dada às batalhas épicas do Mah bh rata e Ram yana cedeu
espaço para manifestações devocionais e o culto de um grande Deus ou Deusa. É nes-
se contexto que, em alguns dos Pur a, a Grande Deusa ou akti passa a ser apresen-
tada como a divindade suprema.
4
Bhimasthana próximo a Pañcananda (Punjab), na colina Udyataparvata e na montanha Gaur ikhara.
5
Matsya XXI.31; K rma I.35.3; P dma I.37.3; Mah -Bh gavata III.84.94-95; P dma I.38.15I
3
a crescente popularidade do princípio feminino durante esse período às mudanças nos
padrões sociais decorrentes das novas condições econômicas e ao novo conjunto soci-
al que se institui, que possivelmente permitiu e fez com que a Deusa Mãe dos
agricultores encontrasse caminho para os níveis mais elevados da sociedade sob as
condições históricas resultantes da expansão do comércio, do crescimento urbano e da
estruturação das classes sociais (Bhattacharyya, 1996, p. 80; Wangu, 2003, p. 64). As
eras Gupta e pós-Gupta foram caracterizados por uma sofisticação das crenças e prá-
ticas religiosas, pela institucionalização sob a forma do estabelecimento de organiza-
ções monásticas e de outras; construção de templos, edifícios e estruturas gigantes-
cas; produção de uma desconcertante variedade de imagens custeadas por generosas
doações dos príncipes e da nobreza; elaborado nível de institucionalização, sacerdócio
organizado, codificação rígida e sectarismo (Bhattacharyya, 1996, p. 110; Wangu,
2003, pp. 65-68; Trautmann, 2011, pp. 72-80).
Bhattacharyya sugere que inicialmente existia um aktismo dependente: havia ce-
rimônias de culto das imagens de Vi u, iva e das divindades dos budistas e jainistas,
junto com suas respectivas consortes, instalados em numerosos templos de propor-
ções magníficas, tornou-se uma característica muito importante da vida religiosa, sen-
do a instalação de tais templos e imagens evidentemente resultantes do desenvolvi-
mento econômico. O culto do princípio feminino estava subordinado ao manto das
correntes vai ava, iva, budista e jainista, e a colocação das deusas ao lado dos
deuses de todos esses sistemas, como seus cônjuges e símbolos de sua energia ou
akti, foi importante para o passo seguinte (Bhattacharyya, 1996, p. 108). Essa situa-
ção evoluiu para um aktismo independente, no qual a deusa assumiu papel principal
(Bhattacharyya, 1996, p. 96).
Surgem no período Gupta inúmeros templos, inscrições em pilares e cavernas as-
sociados à Grande Deusa. Em diferentes partes do país, ela parece ter sido cultuada
tanto em seus aspectos individuais quanto coletivamente, em um círculo de sete deu-
sas. As inscrições no pilar de pedra em Bihar, do período de Skandagupta, mencionam
as mães divinas conhecidas como Mat s (Bhattacharyya, 1996, p. 102; Coburn, 1992,
p. 21; Pattanaik, 2007, pp. 80-81). Algumas esculturas do período Gupta representam
as deusas associadas às religiões vai ava, aiva, budista e jainista; retratam as popu-
lares deusas dos rios Ga ga, Yamun e Sarasvat ; e a imagem mais importante deste
período é encontrada em um relevo esculpido na fachada de uma caverna em Udaya-
giri perto de Bhilsa, Madhya Pradesh, que mostra a deusa Durg matando o búfalo-
demônio Mahi sura (Wangu, 2003, p. 73) – um tema que será apresentado com mais
detalhe em outra seção deste trabalho. Há esculturas da deusa que mata Mahi sura
(Mahi amardin ), com oito ou dez braços providos de armas, espalhadas por toda a
4
Índia, e tudo indica que elas se tornaram bastante populares a partir deste período
(Bhattacharyya, 1996, pp. 104, 125). Um templo da deusa Durg foi erguido em Aiho-
le pelos reis Calukya entre os anos 550 e 642 d.C. O principal monumento de Calukya
é a série de templos cavernas de Badami, a varanda de pilares que apresenta algumas
das melhores figuras da deusa em suas diferentes formas (Parthasarathy & Parthasa-
rathy, 2009, pp. 104-106). Tudo isso indica que nos primeiros séculos da era cristã, a
divindade feminina já havia adquirido grande importância, na Índia.
Mah -Pur a
Tradicionalmente são reconhecidos dezoito Mah -Pur a6 e dezoito Upa-Pur a
(uma expressão que significa Pur a secundário), embora possam ser encontrados
referências a quase uma centena destes (Feuerstein, 1998, p. 366). A grande maioria
dos Mah -Pur a exalta as glórias de Vi u ou de iva como sendo os grandes devas,
nas duas principais correntes devocionais indianas conhecidas como Vai ava e aiva,
respectivamente. Dentre os muitos Pur a e Upa-Pur a, encontramos diversas obras
onde a Dev aparece em destaque, além do grupo de kta Upa-Pur a, onde ela é a
divindade principal.
Em muitos dos Maha-Pur a constatamos o crescimento do número de nomes e
formas da deusa, aumento do número de lugares sagrados de adoração (Mat -t rthas,
Dev -t rthas ou kta-p thas), a repetição em vários Pur a das histórias acerca da
destruição do sacrifício de Dak a por iva em função da morte de sua consorte S t
(Bagchi, 1980, p. 1). Constatamos uma evolução em torno da concepção e mitologia
da deusa. Nos Pur a, muitas deusas locais passam a ser identificadas com a Suprema
Deusa, que passa a ser considerada a personificação do Princípio Feminino ativo que
tudo permeia, a fonte primordial da criação. Ela passa a ser vista como sendo tudo em
todos, a criadora de Brahm , Vi u e iva, sendo todos eles subordinados a ela (Bhat-
tacharyya, 1999, p. 119).
O Matsya Pur a afirma que Dev pode ser adorada com 108 nomes e em 108 lu-
gares por toda a Índia (Dasgupta, 2011, p. 38). O capítulo 13 dessa obra declara que
ela tudo permeia e sustenta todas as formas, que os devotos desejosos de alcançar a
perfeição devem adorá-la em lugares diferentes, por meio de diferentes formas e no-
mes conforme enumerados no texto. Essa lista é encontrada em alguns outros Pur a
como, por exemplo, no P dma (Dasgupta, 2011, p. 55). Considera-se que os mais
importantes Pur a do ponto de vista kta são o M rka eya Pur a, Brahm a
6
São eles: Brahm , Padma, Vi u, Agni, V yu, Bh gavata, N rada, M rka eya, Bhavi ya, Var ha, Skan-
da, Garu a, K rma, Brahma-Vaivarta, Li ga, Matsya, Brahm a, Vam na; mas há listas diferentes.
5
Pur a, e o Dev Bh gavata Pur a7, pois eles se constituem em escrituras-chave no
desenvolvimento das concepções centrais do aktismo (Bhattacharyya, 1996, pp.
163-166). É nos kta Upa-Pur a que a glória da deusa é relatada em toda a sua
extensão (Bhattacharyya, 1999, p. 119).
O sacrifício de Dak a
kta-p thas
7
Há controvérsias acerca da classificação do Dev Bh gavata Pur a como um Mah -Pur a ou um Upa-
Pur a, mas este ponto não será debatido aqui.
6
ciação com lugares de peregrinação específicos encontra-se pela primeira vez no Mat-
sya Pur a (XIII.26-53) e, depois, no Dev Bh gavata Pur a (Bhattacharyya, 1999, p.
124; Sircar, 2004, p. 25).
7
te da Índia (Payne, 1997, p. 40). Aqui a deusa Durg se manifesta como Mah -Kal
(capítulo I), Mah -Lakshm (capítulos II e IV),e como Mah -Sarasvat (capítulos 5 ao
8) (Rahi, 2008, p. 103).
O Dev M h tmya é considerado o livro-texto dos adoradores da deusa conhecida
como Kal , Cha , ou Durg em Bengala. Ele é lido diariamente nos templos de Durg ,
e fornece a base do grande festival hindu, o Durg puja, ou adoração pública daquela
deusa (Ghosha, 1997, p. xiii; Wilson, 1840, p. xxxv). Nesta obra, a deusa Durg apa-
rece pela primeira vez como divindade central. Nesta escritura ela surge da união da
energia de todos os deuses e recebe destes todas as suas armas e poderes para salvar
o mundo do demônio-búfalo Mahi a-asura. Este momento é assim descrito por Hein-
rich Zimmer:
8
nino como ser supremo, independente e superior às divindades masculinas, com uma
filosofia distinta. Geralmente, nos Maha-Pur a, o princípio feminino aparece ao lado
dos devas masculinos dos quais são cônjuges, como símbolo de sua energia ou akti.
Embora este texto faça parte de Mah -Pur a, aqui ela surge como sendo superior aos
grandes devas da trim rti, Brahm , Vi u e iva. Todo o período de 550-900 d.C. pa-
rece ser permeado por concepções do poder personificado como uma Deusa (Payne,
1997, p. 42). Pela primeira vez, os vários elementos mítico, cultual e teológico relati-
vos a diversas divindades femininas começaram a ser reunidos no que tem sido cha-
mado mais recentemente de “cristalização da tradição da Deusa” por Chiver Macken-
zie Brown e Thomas B. Coburn (Brown, 1992, p. 2; Coburn, 2002). Este texto é de
vital importância para avaliar o crescimento do aktismo no contexto da história da
Índia. De modo geral, foi datado entre os séculos V e VII d.C. mas, segundo M. C.
Joshi, a ausência de quaisquer referências a Ga e a sugere que foi composto durante
um tempo em que os br hma as ainda não reconheciam Ga e a como um deva; por
isso, o texto deve ser anterior ao século V d.C. (Joshi, 2002, p. 46).
Outra consideração importante a se fazer é que, embora o Dev M h tmya seja um
texto purânico, nele temos as diversas características de uma obra literária tântrica,
na medida em que nele se encontram muito bem desenvolvidos temas relativos à total
devoção à Deusa, à realização de sacrifícios com fogo em sua honra, apresenta um
sistema de japa (repetição de mantras místicos) dedicados a ela, falando sobre ofere-
cimentos diversos que incluem a própria carne e sangue do devoto; e nele há referên-
cias à combinação entre o gozo ou prazer (bhukti) e a libertação (mukti). O texto
menciona também a forma tripla do Poder Supremo que simbolicamente está baseada
nos três gu as: tamas (trevas), rajas (poder) e sattva (pureza), que são representa-
dos por seus aspectos chamados de Tamas ou Yoganidr , Mahi amardin e Sarasvat
(Joshi, 2002, p. 47).
A teologia da deusa é cristalizada no Dev M h tmya, que a exalta como a fonte de
toda a criação. Tracy Pintchman aponta que a grande deusa, no Dev M h tmya, é
representada de formas que a comparam a Brahman – por exemplo, quando é
descrita como a realidade final mais elevada – embora tal associação não seja feita de
forma explícita no texto. A identificação com Brahman só vai se dar no Dev
Bh gavata Pur a. No Dev M h tmya, quando ela se revela, diz-se que ela só parece
ter nascido, mas na verdade é eterna; que ela, portanto, nunca nasceu, e que ela
realmente nunca morre (Pintchman, 1997, p. 119).
A importancia desta obra para o aktismo e sua expansão se dá também pela
influência que o Cha M h tmya teve sobre a produção de outras obras, pois ele se
9
constitui na base do Cha ataka de B abha a (início do século VII d.C.), uma ode
à deusa Cha , com uma centena de versos (Payne, 1997, p. 41).
Upa-Pur a
Os Upa-Pur a são considerados textos secundários em relação aos Mah -Pur ae
supõe-se que foram escritos em um período posterior. Os Upa-Pur a existentes po-
dem ser divididos em seis grupos, de acordo com as visões sectárias encontradas ne-
les: Vai ava, kta, aiva, Saura (associados a S rya), Ga apatya (associados a
Ga e a); e também os não-sectários. Rajendra Chandra Hazra apresenta a seguinte
lista de kta Upa-Pur a: Dev , K lik , Mah -Bh gavata, Dev -Bh gavata, Bhagavat ,
Ca (ou Ca k ), S t , Dev -Rahasya, e um segundo K lik (que é também chamado
K l ou S t ) diferente do K lik mencionado antes (Hazra, 1963, p. 1). Há listas simi-
lares de 18 Upa-Pur a no K rma Pur a (I.1.17-23) e no Garu a Pur a (capítulo
227) (Shastri, 1991, p. 9).
Nos kta Upa-Pur a os conceitos e concepções de Dev são desenvolvidos ple-
namente. Eles elaboram e incrementam as façanhas de Dev mencionados nos Mah -
Pur a, e dão uma imagem dos seus lugares sagrados e das deusas locais que passam
a ser identificadas com a Deusa Suprema dos kta (Bhattacharyya, 1999, 125).
A concepção da deusa, a sua criação a partir da energia de todos os deuses pre-
sente no Dev M h tmya tornou-se popular entre os kta, que recontam a história de
modo mais elaborado nos Upa-Pur a (Bhattacharyya, 1996, p. 101; 1999 p. 123). Os
kta Upa-Pur a nos fornecem informações importantes sobre a natureza da deusa,
o método de seu culto, sobre a iconografia, sobre os votos kta, sobre os lugares
sagrados e cerimônias em sua homenagem, e descrições de algumas partes da Índia
(Santideva, 2000, p. 191).
10
solução (namittika-pratisarga), no qual todos os elementos retornariam à sua origem,
seriam novamente incorporados na substância primária (Pruthi, 2005, p. 7).
A criação a partir de uma fonte primária e a dissolução e reabsorção nessa mesma
fonte assumiram interpretações novas dentro do aktismo. No Dev Bh gavata Pur a
(I.2.6-8) considera-se que, embora a divindade Brahm seja denominada como sendo
o criador do universo no Veda e nos Pur a, deve-se também considerar o papel da
deusa:
11
mesmo nível, mas iva é declarado como o criador, preservador e destruidor do
universo, a fonte de Brahm e Vi u, identificado a Brahman. Por outro lado, no Vi u
Pur a a situação se inverte: é Vi u quem é identificado ao Brahman imperecível,
sendo a causa da criação, preservação e destruição do universo (Carpenter, 1921, p.
283). Os devotos da deusa seguiram uma linha semelhante. As três aktis associadas
à Trim rti foram identificadas entre si, e depois uma delas foi exaltada como a fonte
de tudo e como correspondente a Brahman. Desde o período do Mah -Bh rata, Saras-
vat e Lak m já tinham ficado em segundo plano em relação a Um -P rvat -Durg , a
companheira de iva. Ela passa a ser chamada de Dev – ou seja, “a” Deusa – e é
elevada no Dev M h tmya à posição de divindade mais elevada, sendo descrita pelo
próprio Brahm como a criadora, sustentadora e destruidora do universo (Carpenter,
1921, p. 284). O passo seguinte foi identificá-la a Brahman, o que ocorre de forma
clara no Dev Bh gavata Pur a.
12
O Dev Bh gavata Pur a reconta os acontecimentos do Dev M h tmya em muito
maior extensão e detalhes, como também traz reflexões filosóficas de natureza kta,
esclarecendo e elaborando a natureza da deusa. O Dev G t (cântico da deusa), que é
a parte mais conhecida do Dev Bh gavata Pur a, é um texto fundamental neste sen-
tido, na medida em que nele ocorre uma mudança em relação à concepção da nature-
za de Dev : nele a deusa torna-se menos guerreira e mais educadora e consoladora
dos seus devotos. O Dev G t repetidamente sublinha o caráter devocional amoroso
da relação com a divindade, ressalta a natureza única e suprema dela, e revela todos
os ideais devocionais de natureza bhakti kta (Brown, 1999, p. 21). Assim a própria
deusa se expressa no Dev G t :
13
Natureza primordial) e divide-se a si mesma em Puru a e Prak ti (consciência e natu-
reza, os dois princípios cósmicos do S khya); ela é Mah -m y (a grande Magia) e
cria Vi u, iva e Brahm fora de si, permitindo que eles realizem suas funções; ela é
a Mãe de todo o universo e a akti (o Poder) de tudo; ela é tanto dotada de atributos
quanto sem atributos, e tem a natureza da consciência universal; ela cria o mundo em
sua forma de Mah -m y ou Yoga-m y (a magia da união) atando os seres ao mun-
do, e ela mesma os liberta em sua forma de Brahmavidy (o conhecimento de Brah-
man) (Jyotirmayananda, 2005, pp. 28-29); ela esta além dos gu as (os três poderes
básicos da natureza, tamas, rajas e sattva); ela é o receptáculo de todas as coisas;
ela é a vida (pr a) dos seres vivos; ela é a Prak ti primordial que permeia os três
mundos (lokas), ela é todo o universo móvel e imóvel; ela é Dev , ela é akti, o poder
inerente em todos os corpos individuais, divinos ou mortais; ela assume três formas:
Mah -Lak m , Mah -Sarasvat e Mah -K l ; ela é M y , composta pelas três qualida-
des no tempo da criação do mundo e ela é Nir k r (aquela que não tem forma) ou
Nirgu a Brahman (o Absoluto sem qualidades) enquanto libera os indivíduos da escra-
vidão do mundo; ela é eterna, omnipresente, sem mudanças e é alcançada pelo Yoga;
ela é o refúgio do universo e sua natureza é chamada Tur ya Caitanya (a quarta forma
da consciência); ela é o mais elevado poder primordial; ela é o conhecimento no Ve-
da; ela cria o universo e sua natureza é tanto real quando irreal; ela cria, preserva e
destrói o universo por meio de seus poderes rajas, sattva e tamas, e absorve tudo em
si mesma (Kumar, 2010, pp. x-xv). Todas essas descrições da Dev , que a identificam
explicitamente a Brahman, não têm paralelo em nenhuma obra anterior que tenha
chegado até nós.
O Dev Bh gavata Pur a é também um marco importante por ser a primeira gran-
de obra teísta kta de natureza devocional (bhakti) onde é enfatizado o aspecto be-
nigno da Deusa – muito diferente da abordagem sanguinária e destrutiva como ela é
representava em algumas partes do K lik Pur a, ou da deusa guerreira (Durg ) do
Dev M h tmya. Esta obra é dedicada à deusa em seu modo icônico mais elevado:
como a suprema Governante do Mundo, Bhuvane var , apresentada como uma divin-
dade autônoma, sem qualquer subordinação possível a iva, estando muito além do
nascimento e do casamento. Este Pur a é a contribuição mais significativa para a
tradição teológica kta em seu ideal de uma deusa suprema, única e benigna
(Brown, 1999, p. 10).
Considerações finais
Como assinala o estudioso Ushas Dev (1987), o estudo dos Pur a, especialmente
dos kta Upa-Pur a, tem revelado que as ideias dispersas sobre o conceito de akti
que já estavam presentes no Veda, nos épicos Mah bh rata e Ram yana, nos Mah -
14
Pur a e na literatura clássica e filosófica, foram reunidas e elaboradas e formaram
uma seita separada e independente no período em que vieram à existência os kta
Upa-Pur a, provavelmente entre os séculos VI e XII d.C.
A popularidade e desenvolvimento do aktismo podem ser constatados ao avaliar-
mos o aumento do número de referências a lugares sagrados dedicados à Dev , os
kta-p has; pela descrição detalhada de rituais, vratas, cerimônias dedicados ao cul-
to da Deusa; elaboração e sofisticação das mitologias e iconografia; construção de
imagens e templos; elaboração dos princípios filosóficos do culto; e pela composição
de Pur a específicos que tratam da deusa. A conceituação da Deusa como Realidade
Última, que tem raízes no Dev M h tmya, adquire forma completa no Dev Bh gavata
Pur a.
Referências bibliográficas
AGRAWALA, Prithvi Kumar. Goddesses in ancient India. Delhi: Abhinav Publications,
1984.
BAGCHI, Subhendugopal. Eminent Indian kta centres in eastern India. Calcutta:
Punthi Pustak, 1980.
BHATTACHARJI, Sukumari. Legends of Devi. Mumbai: Disha Books, 1998.
BHATTACHARYYA, Narendra Nath. History of the kta religion. New Delhi: Munshiram
Manoharlal, 1996.
BHATTACHARYYA, Narendra Nath. The Indian Mother Goddess. New Delhi: Manohar,
1999.
BROWN, Chiver Mackenzie. The triumph of the Goddess: the canonical models and
theological visions of the Dev Bhagavata Pur a. Albany: State University of New
York Press, 1992.
BROWN, Chiver Mackenzie. The Dev G t . The Song of the Goddess: a translation,
annotation, and commentary. Delhi: Indian Books Centre, 1999.
CARPENTER, Joseph Estlin. Theism in medieval India. London: Williams & Norgate,
1921.
CHATURVEDI, B. K. Dev Bhagwat Pur a. Delhi: Diamond Books, 2009.
COBURN, Thomas B. Encoutering the Goddess. A translation of the Dev M h tmya
and a study of its interpretation. Delhi: Sri Satguru Publications, 1992.
COBURN, Thomas B. Dev M h tmya: The crystallization of the Goddess tradition.
Delhi: Motilal Banarsidass, 2002.
DASGUPTA, Sashi Bhusan. Evolution of mother worship in India. Kolkota: Advaita
Ashrama, 2011.
DEV, Usha. The concept of akti in the Pur a. Delhi: Nag Publishers, 1987.
DHAWAN, Savitri. Mother goddesses in early Indian religion. Delhi: National Publishing
House, 1997.
FEUERSTEIN, Georg. A tradição do Yoga. História, literatura, filosofia e prática. São
Paulo: Pensamento, 1998.
GONÇALVES, João Carlos Barbosa. Dizeres das Antiguidades – a arquitetura discursiva
da literatura sânscrita purânica exemplificada pelo mito da Grande Deusa. Tese de
Doutorado em Semiótica e Linguística – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009.
HAZRA, Rajendra Chandra. Studies in the Upapuranas. Sakta and non-sectarian
Upapuranas. Vol. II. Calcutta: Sanskrit College, 1963.
JYOTIRMAYANANDA, Swami. Mysticism of the Devi Mahatmya. Worship of the Divine
Mother. Delhi: International Yoga Society, 2005.
15
JOSHI, M. C. Historical and iconographical aspects of Shakta tantrism. In: HARPER,
Katherine Anne; BROWN, Robert L. (Orgs.). The Roots of the Tantra. New York:
University of New York, 2002, p. 39-55.
KRISHNAMACHARIAR, Madabushi. History of classical Sanskrit literature. Madras:
Tirumalai-Tirupati Devasthanams Press, 1937.
KUMAR, Pushpendra. The Mah bh gavata Pur a. Delhi: Eastern Book Linkers, 1983.
KUMAR, Pushpendra. akti and her episods. Delhi: Eastern Book Linkers, 1997.
KUMAR, Pushpendra. Preface. In: R CHANDRA, Rai Bahadur.
Sr maddev bh gavatapur am. Delhi: Eastern Book Linkers, 2010, vol. 1, p. iv-xix.
PARGITER, Eden Frederick. Ancient Indian historical tradition. London: Oxford Univer-
sity Press, 1922.
PARTHASARATHY, Indu; PARTHASARATHY, V. R. Devi goddesses in Indian art and
literature. Delhi: Bharatya Kala Prakashan, 2009.
PATTANAIK, Devdutt. Devi. The Mother-Goddess. Mumbai: Vakils, Feffer and Simons,
2007.
PAYNE, Ernest A. The aktas. In introductory and comparative study. New Delhi: Mun-
shiram Manoharlal, 1997.
PINTCHMAN, Tracy. The rise of the Goddess in the Hindu tradition. Delhi: Sri Satguru
Publications, 1997.
PRUTHI, Raj Kumar. An introduction to Pur a. New Delhi: UBS Publishers, 2005.
RAHI, Onkar. The Devi. Shakta cult. Delhi: National Publishing House, 2008.
RENOU, Louis. Foreword. In: SIRCAR, Dines Chandra. The akta p has. Delhi: Motilal
Banarsidass, 2004, p. vii-viii.
SANTIDEVA, Sadhu. Ascetic mysticism. Puranic records of iva & akti. Delhi: Cosmo
Publications, 2000.
SHASTRI, Biswanarayan. The K lik Pur a. Delhi: Nag Publishers, 1991. 2 vols.
SIRCAR, Dines Chandra. The kta p has. Delhi: Motilal Banarsidass, 2004.
SIVANANDA, Swami. The Devi Mahatmya. Uttaranchal: The Divine Life Society, 2006.
R CHANDRA, Rai Bahadur. Sr maddev bh gavatapur am. Delhi: Eastern Book
Linkers, 2010. 2 vols.
TRAUTMANN, Thomas R. India. Brief history of a civilization. New York: Oxford
University Press, 2011.
VIJÑANANANDA, Swami. The Srimad Dev Bhagavatam. New Delhi: Munshiram
Manoharlal, 2007.
WANGU, Madhu Bazaz. Images of India goddesses. Myths, meanings and models. Del-
hi: Abhinav Publications, 2003.
WILSON, Horace Hayman. The Vi u Pur a. London: John Murray, 1840.
ZIMMER, Heinrich. Mitos e símbolos na arte e na civilização da Índia. São Paulo: Palas
Athena, 2002.
16
Transmigração da alma e reencarnação: uma análise comparativa entre o
Hinduísmo e o Espiritismo
Palavras chave:
Alma, Espiritismo, Hinduísmo, reencarnação, transmigração.
Abstract:
In this work, we propose to analyze the concept of transmigration of the soul in
Hinduism based on the teachings of Bhagavad-gita and see how this concept is
interpreted in a different historical period: Spiritism in the second half of the XIX
century, which presents the theme of reincarnation through the text of The Spirits'
Book by Allan Kardec and other works subsidiaries. Present and interpret the historical
context of the era in which these works came to light. We aim to list the similarities,
differences and ideas added to this concept in these two different contexts (India
ancient and modern Spiritism). We conducted this work, in order to establish a
comparative analysis regarding the understanding of the subject, from the point of
view of these two philosophies.
____________________________________
¹ Doutora em História pela Unicamp. Vice-coordenadora do Programa de Pós-
Graduação em Ciências das
Religiões da Universidade Federal da Paraíba; e-mail: marialucia.ufpb@gmail.com
²Bacharelando em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba; e-
mail: paulocavalcantecrufpb@gmail.com
Key words:
Soul, Spiritism, Hinduism, reincarnation, transmigration.
Introdução
jatasya hi dhruvo mrtyur / dhruvam janma mrtasya ca / tasmadapariharye
'rthe / na tvam socitumarhasi.
“Para os nascidos, a morte é certa; e para os mortos, não há dúvida do
nascimento. Portanto, você não deve chorar por essa inevitável consequência”
(Bhagava-gita. II. 27).
Será que existe alma? Se sim, qual o seu destino após a morte? Será que ela
retornará a nascer em outros corpos ou não? Muitos indivíduos preferem não pensar
no assunto, vivem como se não fossem morrer um dia, ou sentem temor do
desconhecido e evitam a temática fatal. Os materialistas afirmam que após a cessação
definitiva dos batimentos cardíacos e a anóxia cerebral nada mais existe, a matéria
orgânica que constitui o corpo irá se decompor, alma é ilusão, a inteligência provem
apenas do cérebro. Outros admitem a existência de algo que sobrevive após a morte,
e o seu destino no além-túmulo depende do sistema soteriologico de cada religião, céu
ou inferno é o que a aguarda. Mas existem os que creem na existência da alma, na
vida depois da vida, que ela pode voltar e comunicar-se com os vivos, e também
retornar a nascer em outras existências. Uma breve análise comparativa das tradições
pertencentes a este terceiro grupo, especialmente o hinduísmo e espiritismo, constitui
o nosso objeto de estudo neste artigo.
Segundo o verso do Bhagavad-gita citado anteriormente, para quem está vivo
existe a certeza da morte, e a alma liberta da matéria voltará a nascer. Querendo ou
não, crendo ou descrendo neste conceito, segundo estes ensinamentos todos
inevitavelmente estão presos neste ciclo de renascimentos, a roda do samsara por
conta do karma (fruto das ações), até o momento em que o atma (alma) evolui
espiritualmente e consegue a moksa (liberação) e liberta-se definitivamente. Este
assunto da transmigração da alma, que faz parte da crença da maior parte da
população da Índia e de outros países próximos é bastante conhecido no ocidente
como reencarnação. A concepção indiana não corresponde exatamente a este termo
cunhado, sobretudo no âmbito da tradição espírita que se desenvolve no século XIX.
No entanto, existem importantes pontos em comum e outros pontos divergentes, que
analisaremos mais adiante neste artigo.
Esta obra de 700 versos “que remontam a uma tradição oral do século X a.C.”
(GNERRE, 2011, p.65), está contida no Mahabharata no livro III, LXIII capítulo da
obra.
Este livro de 1857 que contém 1019 perguntas e respostas é a primeira obra
basilar da doutrina espírita, que foi codificada por Allan Kardec na segunda metade do
século XIX. Mas Allan Kardec é um pseudônimo, o seu verdadeiro nome era Hippolite
Léon Denizard Rivail. Rivail nasceu em 03 de outubro de 1804 na cidade de Lyon,
França. Este período histórico que foi consolidado após a revolução francesa de 1789,
era influenciado pelos pensamentos iluministas de homens notáveis como Rousseau e
Montesquieu. Também se destaca Napoleão Bonaparte, figura imponente.
O que mais enreda a alma neste ciclo de retornos é o apego a maya (ilusão),
isto é, o corpo e os bens materiais são perecíveis, mas a alma, as virtudes e o reino
espiritual são eternos. Quem busca agir no modo da bondade (sattva) buscando aquilo
que é contrário a maya liberta-se da roda do samsara mais rapidamente.
O Espiritismo diverge com o Hinduísmo no tocante a encarnação em corpos de
animais, justamente porque a reencarnação se dá apenas em corpos humanos e a
transmigração da alma pode realizar-se em corpos humanos, animais e vegetais.
Vejamos o que diz Allan Kardec: “A encarnação dos espíritos ocorre sempre na
espécie humana; seria erro acreditar-se que a alma ou Espírito possa encarnar no
corpo de um animal. As diferentes existências corporais do Espírito são sempre
progressivas e jamais retrógradas; mas a rapidez do progresso depende dos esforços
que faça para chegar à perfeição” (KARDEC, 2007, p.38-39). Vemos aqui, que para os
espíritas este conceito da alma encarnar em um corpo animal é considerado um
retrocesso, embora, eles acreditem que o princípio espiritual primeiro encarne no
reino mineral, depois passando para o vegetal, animal e conquistando o raciocínio no
estado hominal, sendo aí considerado alma. As ideias de Kardec estão também em
sintonia com o pensamento positivista de sua época, para o qual a noção de progresso
é algo fundamental, e por isso também esta possibilidade do retrocesso ao animal não
é condizente com sua concepção.
No Bhagavad-gita o futuro nascimento da alma está relacionado ao apego dos
gunas: “Quando alguém morre no modo da paixão (rajas), nasce entre os que se
ocupam em atividades fruitivas; e quando morre no modo da ignorância (tamas),
nasce no reino animal” (Bhagavad-gitta XIV. 15). Para o Hinduísmo isto não é um
retrocesso, mas apenas consequência das ações do indivíduo durante a sua vida.
Considerações finais
Referência
AGUIAR, Sebastião. Personagens que Marcaram Época, Allan Kardec. São Paulo:
Editora Globo, 2007.
ALBANESE, Marilia. Índia Antiga. Barcelona: Folio, 2006.
AMARAL, Jesus S. F. Enciclopédia Mirador Internacional. São Paulo: Enciclopédia
Britânica do Brasil,1995.
ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Ideias Religiosas. Tomo I. Rio de Janeiro:
Zahar, 1978.
GNERRE, Maria Lucia Abaurre. Religiões Orientais. João Pessoa: Editora Universitária
UFPB, 2011.
KARDEC, Allan. Obras Póstumas. Trad. Guillon Ribeiro. Rio de Janeiro: FEB, 2002.
_____________. O Livro dos Espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. Rio de Janeiro:
FEB, 2007.
LAGARDE, André e MICHARD, Laurent. XIX e Siècle, Les grands auteurs Français Du
Programme. Paris: Editions Bordas, 1964.
PRABHUPADA, A. C. Bhaktivedanta Swami. O Bhagavad-gita Como Ele É. São Paulo:
The Bhaktivedanta Book Trust, 2011.
SARGEANT, Winthrop. The Bagavad Gita. Nova York: Excelsior Editions, 2009.
VALERA, Lucio. Revista Religare V. 2. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2012.
WERNERT, Paul. Histoire Générale des Religions. Tomo I. Paris: Quillet, 1948.
A CONSTITUIÇÃO DO TEXTO SAGRADO NO BUDISMO
PARA UMA HISTÓRIA DO CÂNONE PÁLI
Deyve Redyson1
Universidade Federal da Paraíba
RESUMO
Este trabalho tem como principal objetivo esclarecer a formação histórica do que no
budismo é entendido como texto sagrado ou as palavras do Buddha Sakyamuni.
Corroborando com a ideia de que o Buddha nada escreveu e que seus
ensinamentos foram transmitidos por discípulos através de sermões diferenciados
por cada uma das escolas e tradições existentes, apresentamos a história da
constituição do principal cânone de escrituras budistas denominado de cânone Páli,
entendido como o mais antigo e mais completo veiculo Theravada em sua tríplice
divisão Tripitaka: Vinaya Pitaka, Sutta Pitaka e Abhidharma. Também fará parte de
nosso trabalho o processo de reconhecimento deste cânone como o mais antigo
através dos três concílios budistas da roda do Dharma e a formação dos outros
cânones, sânscrito, tibetano e chinês, como complementariedade da mensagem do
Buddha pelos veículos Mahayana e Vajrayana.
Introdução
1
Doutor em Filosofia. Professor de Filosofia da Religião no Programa de Pós-Graduação em Ciências das
Religiões da Universidade Federal da Paraíba – dredyson@gmail.com
1
Os três são considerados as três jóias que estão além de todo preço”
(YOSHINORI, 2006, p. xi). Encontrar refúgio nas três joias é o que diferencia os
budistas dos não-budistas. O Buda que alcançou a iluminação no último de seus
muitos nascimentos efetivou uma grande tradição no cultivo da clareza do bem-
estar.
O texto do cânone mais antigo, o cânone páli, evidencia praticamente todos
os oitenta e quatro mil ensinamentos proferidos pelo Buda Shakyamuni, o Buda
histórico, em sua inteireza. Estes textos são os conhecidos sermões do Buda das
quatro nobres verdades, do nobre caminho óctuplo e da originação interdependente
2
O Sutta Pitaka, segunda divisão da Tripitaka, é composto da doutrina
praticada e ensinada pelo Buda. Será no Sutta que encontraremos os discursos e
principais passagens dos ensinamentos do Buda expostos acima. O Sutta (Sutra em
sânscrito) contém os discursos proferidos pelo Buda e pelos discípulos do Buda
mais próximos durante quarenta e cinco anos de transmissão através da palavra. O
Sutta Pitaka é dividido em cinco nikayas (coleções): Digha Nikaya, Majjhima
Nikaya, Samyutta Nikaya, Anguttara Nikaya e Khundaka Nikaya. Estes representam
os registros mais importantes da doutrina do Buda. Estudiosos afirmam que todo o
Sutta tem uma única lógica de formação, a de que os sutras mais extensos formam
o digha, os medianos o Majjhima e os curtos no Samuytta e no Anguttara2.
O Digha Nikaya são os discursos longos (digha = longo) e são compostos de
34 sutras e estão divididos em três outras classes: Silakkhandha-vaga, Maha-vagga
e Patika-vagga. Nele está o grande sutra da Originação Dependente (DN15), o
Grande discurso do parinirvana (DN16), o maior sutra de todo o cânone, Os
fundamentos da atenção plena (DN22) e o Rugido do Leão ao girar a roda (DN26).
O Majjhima Nikaya, segunda divisão do Sutta, são os discursos médios (Majjhima =
médio) e consistem em 152 discursos divididos em três partes, cada uma destas
partes tem dez outras divisões: Mulapannasapali, Majjhimapannasapali e
Uparipannasapali. É nesta coleção que encontramos alguns dos sutras mais
importantes da doutrina do Buda, como por exemplo, o MN9 que expõe as quatro
nobres verdades e o nobre caminho óctuplo, os cinco agregados e as seis
perfeiçoes. O Samyutta Nikaya, a terceira divisão do Sutta, é composto de 7.762
sutras divididos em cinco seções: Sagatha-vagga, Nidana-vagga, Khandha-vagga,
Salayatana-vagga e Maha-vagga, cada uma destas seções tem uma infinidade de
Samyuttas (pequenos) textos do Buda que variam de situações vividas pelo Buda
em seus ensinamentos, conselhos aos monges e exortações a reis. A quarta divisão
do Sutta é o Anguttara Nikaya que é organizado em onze seções (nipatas) por
ordem numérica, cada nipata estabelece um tema e todos os discursos nele contido
dizem respeito a esse tema. Os títulos destes nipatas é estabelecido por seu
número: Livro do Um, Livro dos dois, Livros dos três etc.
O Khunddka Nikaya é a quinta e última divisão do Sutta Pitaka, sua
formação é de discursos curtos (khundda = menor/pequeno), contém discursos
muito pequenos e outros longos, versos e fragmentos de ensinamentos do Dharma.
O Khuddka subdividido em dezoito nikayas e contém 9.550 sutras. O
Dhammapada, um dos mais conhecidos e mais antigos textos sagrados budistas,
está composto no Sutta Pitaka. “O nome Dhammapada é uma palavra composta:
2
Ver: RHYS-DAVIDS, T. W. Pali-English Dictionary. London, The Pali Text Society. 1952; RAHULA,
Walpola, What the Buddha taught. London. Gordon Fraser, 1978 e CONZE, Edward (Ed.) Buddhist
Scriptures. London, Peguin. 1968.
3
dhamma + pada; dhamma significa, entre outras coisas, virtude, ensinamento,
doutrina, lei, verdade, retidão, etc; pada tem o significado de senda, caminho,
trilha, traço, pé, passo, etc. Aqui o nome que a presente tradução recebeu foi A
Senda da Virtude; este nome se harmoniza com o caráter geral da obra” (COHEN,
2004, p. 259). O Dhammapada reúne 423 estrofes em 26 capítulos. Segundo Rhys
Davids, os textos que integram o Khunddka Nikaya, foram muito apreciados e
memorizados pelos budistas em todo o mundo, Alguns são versos inspirados no
despertar dos primeiros monges e tiveram uma grande apreciação no ocidente.
Será também no Khunddka que encontraremos as histórias Jatakas, mais de
quinhentas histórias de renascimentos do Buda.
O Abhidharma Pitaka, terceira e última divisão da Tripitaka contém os livros
psicológicos da doutrina do Buda. Recebe esta expressão psicológicos por serem os
mais difíceis e complexos textos da doutrina búdica. Estão relacionados aos
processos dos comportamentos mentais e físicos. Enquanto o Vinaya e o Sutta
estabelecem os ensinamentos práticos relativos ao caminho budista para a
iluminação, os livros do Abhidharma expõem uma análise mental e cientifica dos
mesmos conhecimentos. Soa textos densos, de características filosóficas que
abordam uma essência mais intima com a mente. O Abhidharma é composto de
sete livros: Dhammasangani que trata dos fatores e estados mentais, apresenta os
quatro elementos primários físicos, os vinte e oito fenômenos físicos e o nirvana;
Vibhanga, Dhatukatha, Puggalapannati, que são continuações do primeiro livro;
Kathavatthu que compreende perguntas e respostas remontando a possíveis
controvérsias que podem surgir durante o ensinamento do Dharma; Yamaka,
continuação do livro anterior e Patthana, o livro mais extenso de todo a Tripitaka
(na edição tailandesa tem mais de 6.000 páginas), onde descreve os 24 paccayas,
ou leis de condicionalidade, através dos quais o Dharma interage. Este livro
demonstra todas as experiências possíveis de serem conhecidas.
I – Vinayapitaka
1. Suttavibhanga Os regulamentos do Sangha
a) Mahavibhanga Divisão relativa aos monges: 227
regulamentos dividido em:
- Pacittiya: penitências;
- Patimokkha: fórmulas de confissão
b) Bhikkhunivibhanga 331 regulamentos as monjas
3
Seguimos as listagens em COHEN, Nissim. Ensinamentos do Buda. São Paulo. Devir, 2008, p. 545-546,
WOLPIN, Samuel. Diccionario de Filosofia Oriental. Buenos Aires, Editorial Kier, 1993, p. 289-291 e
Buddhist Scriptures. (Org. Edward Conze). Londres. Peguin Books. 1959, p. 11-16. Um bom comentário
seria: HUAI-CHIN, Nan. Breve história do Budismo. Rio de Janeiro. Gryphus. 1999, p. 60-67.
4
Assuntos concernentes à organização do
Sangha
2. Khandhaka - Mahavagga: regulamentos para
ordenação, retiros, vestuário,
alimentos;
- Cullavagga: Assuntos processuais e a
história dos primeiros dois concílios
3. Parivara (Parivarapatha) Recapitulação
Recapitulação de todos os regulamentos
II – Suttapitaka
1. Digha Nikaya Coleção de 34 discursos longos
5
III – Abhidhammapitaka
1. Dhammasangani Análise psicológica da ética
Estes vinte e nove livros que compõe o cânone páli budista chegam a dez
mil páginas. Ainda existe o cânone sânscrito composto de livros reconhecidos e
livros não reconhecidos que chegam a vinte e cinco livros, esta listagem é aceita
pelo budismo de tradição Hinayana e Theravada, existindo ainda os cânones
referentes às traduções destes textos para o tibetano e para o chinês, dando forma
ao cânone tibetano e ao cânone chinês.
2) Os concílios budistas
6
“desenvolveram-se” a partir daqueles que o Buda histórico
transmitiu originalmente e consideram as pregações
posteriores – a ideia de novos giros – simplesmente como
criações das escolas filosóficas em surgimento. Por outro
lado, os praticantes do Mahayana e Vajrayana consideram
fundamentais os ensinamentos originais do primeiro giro,
mas incompletos, e acham que só por meio das
manifestações mais místicas da natureza do Buda chegamos
a entender inteiramente a realidade” (GOLDSTEIN, 2004, p.
34).
4
Uma verdadeira antologia do cânone Páli se encontra em: Ensinamentos do Buda, que traz uma boa
introdução ao Buda e a esta expressão ocidental Budismo. Segundo Nissim Cohen “Este termo
(Budismo), a exemplo de outros com sufixo – ism, é uma invenção dos estudiosos ocidentais (isto ocorreu
por volta dos anos 1830), e não tem correspondente nas línguas páli e sânscrito. Prefácio, in
Ensinamentos do Buda, op. cit, p. 19. Pode-se conferir também no mesmo livro a bela introdução
intitulada Uma visão panorâmica do Ensinamento do Buda, p. 33-157. Outro texto referência é o já
clássico livro Textos Budistas e Zen-Budistas traduzido por Ricardo Mario Gonçalves.
7
No século I a. C. 18 escolas budistas do ramo Theravada disputavam entre
si o mah sanghikas (integrantes da grande comunidade), todas elas
desempenhavam características próprias mas seguiam a mesma doutrina. A sangha
original, após a realização de um concílio no século IV a.C, dividiu-se em duas
escolas de pensamento: Mahasanghika e Sthaviravada. Desses dois troncos, a
única escola remanescente é a Theravada. Os três veículos principais são: Escolas
mais antigas (Hinayana/Theravada), Escolas Mahayana e Escolas Vajrayana.
3) O cânone tibetano
5
Podemos encontrar alguns destes textos no volume XAVIER, Raul (Org.) Textos Sagrados do Tibete.
Rio de Janeiro. Livros do Mundo Inteiro. 1973.
8
4) O cânone chinês
5) Conclusão
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUDA. Os Ensinamentos do Buda. Trad. Nissim Cohen. São Paulo. Devir. 2008.
_____. Textos Budistas e Zen-Budistas. Trad. R. M. Gonçalves. São Paulo. Cultrix.
1967.
_____. Dhammapada. Trad. Nissim Cohen. São Paulo. Palas Athena. 2004.
BUSWELL, Robert (Ed.) Encyclopedia of Buddhism. New York. Thompson Gale.
2004.
COHEN, Nissim. Fundamentos da grámatica páli. Jacareí. CEB, 2001.
ECKEL, Malcom David. Conhecendo o Budismo. Petrópolis. Vozes. 2009.
GOLDSTEIN, Joseph. Dharma. O Caminho da libertação. Rio de Janeiro. Bertrand do
Brasil. 2004.
GOWANS, Christopher. Philosophy of the Buddha. New York. Routledge. 2003.
PERCHENRON, Maurice. O Buda e o budismo. Rio de Janeiro. Agir. 1958.
9
REDYSON, Deyve. Schopenhauer e o Budismo. A impermanência, a
insatisfatoriedade e a insubstancialidade da existência. João Pessoa. Ideia/Ed.
Universitária. 2012.
RHYS DAVIDS, Thomas W. Pali-English Dictionary. London. Pali Text Society. 1952.
YOSHINORI, T. (Org.). A Espiritualidade Budista I. São Paulo. Perspectiva. 2007.
10
QUE TIPO DE CONCEPÇÃO RELIGIOSA EXISTIA NA ÍNDIA ANTIGA?
Introdução
Desde o século XIX se discute a respeito da natureza do pensamento religioso in-
diano: trata-se de um tipo de politeísmo, ou monoteísmo, ou algum outro tipo? Foram
propostas novas categorias para a religião dos Vedas, como henoteísmo e catenoteís-
mo, mas não há unanimidade sobre como classificar esse pensamento.
A questão é difícil de ser respondida, por vários motivos. Há afirmações aparen-
temente contraditórias nos textos indianos antigos; esses textos não são claros, preci-
sando ser interpretados, e as interpretações são variadas; o próprio conceito de divin-
dade das religiões de tipo monoteísta Abraâmico, que é a referência utilizada por pra-
ticamente todos os autores ocidentais, não se aplica às concepções indianas antigas.
Este trabalho analisa essa problemática, descrevendo alguns aspectos da religião
dos Vedas e apresentando as opiniões de diversos autores. Conclui-se que o pensa-
mento religioso indiano antigo não se enquadra estritamente em nenhuma das cate-
gorias propostas.
1
Há um enorme número de devas que são mencionados nos Vedas. Alguns estão
associados a fenômenos naturais, como Agni, que é o deva associado ao fogo, e
S rya, o deva associado ao Sol. Outros, como Indra, são personagens que realizam
grandes feitos, destruindo demônios e beneficiando os homens. Há também devas que
possuem nomes abstratos, como a dev Aditi – a infinita, ou ilimitada (Nigal, 1986, p.
25). Há enormes dificuldades na compreensão do significado dos Vedas e grande con-
fusão nas suas interpretações (Klostermaier, 2007, p. 54).
Uma interpretação usual dos Vedas é de que eles teriam sido produzidos por pes-
soas “primitivas”, “almas poéticas”, que inicialmente se maravilhavam com a natureza
interpretando seus fenômenos mais marcantes como divindades. Alguns poetas poste-
riores criaram divindades guerreiras, como Indra, porque esse era um período de con-
quistas e batalhas. Apenas ao final do período de composição dos Vedas teria começa-
do a existir uma reflexão mais profunda e filosófica, que se manifestaria nos hinos
mais recentes (Radhakrishnan, 1989, vol. 1, p. 71).
A religião primitiva dos Vedas é compreendida por Radhakrishnan e outros autores
como sendo antropomórfica e baseada nas forças naturais: “Interpretamos todas as
coisas por analogia com nossa própria natureza e supomos vontades por trás dos fe-
nômenos físicos” (Radhakrishnan, 1989, vol. 1, pp. 73-74). Daí surgiria um politeís-
mo, pela divinização dos fenômenos naturais que despertam mais a atenção. “Os pri-
meiros estágios da religião dos Vedas parecem ser naturismo e antropomorfismo”
(ibid., p. 74). A partir dessa base, segundo Radhakrishnan, os poetas que compuse-
ram os Vedas foram elaborando concepções mais refinadas sobre as divindades, intro-
duzindo elementos éticos e, por fim, elaborando concepções mais abstratas:
Quando o pensamento progrediu do material para o
espiritual, do físico para o pessoal, tornou-se fácil conceber
divindades abstratas. A maioria dessas divindades ocorre no
último livro do gveda, indicando assim sua origem
relativamente tardia. (Radhakrishnan, 1989, vol. 1, p. 73)
A multidão de deuses e deusas dos Vedas levou a tentativas de sistematização,
distribuindo todos eles, por exemplo, em três categorias (terrestres, atmosféricos e
celestes).
Eles [os deuses] algumas vezes são unificados em um
conceito amplo de um panteão, ou vi ve dev . Esta tendência
à sistematização teve seu fim natural no monoteísmo, que é
mais simples e mais lógico do que a anarquia de uma multidão
de deuses e deusas opondo-se uns aos outros. O monoteísmo é
inevitável em qualquer verdadeira concepção de Deus. O
Supremo só pode ser um. Não podemos ter dois supremos e
seres ilimitados. [...] Com a crescente compreensão do
funcionamento do mundo e da natureza da divindade, os muitos
deuses tenderam a se fundir em um. (Radhakrishnan, 1989,
vol. 1, p. 90)
2
Essa transformação de um politeísmo para um monoteísmo teria passado, segun-
do Radhakrishnan, por uma fase intermediária de henoteísmo:
A demanda implícita da consciência religiosa por um Deus
supremo se manifestou naquilo que é caracterizado como o
henoteísmo dos Vedas. De acordo com Max Müller, que cunhou
esse termo, ele é o culto de uma divindade por vez, como se ela
fosse o maior e até mesmo o único deus. Mas essa posição é
uma contradição lógica, onde o coração mostrava o caminho
correto do progresso e a crença o contradizia. Não podemos ter
uma pluralidade de deuses, pois a consciência religiosa se opõe
a isso. Henoteísmo é um tatear inconsciente para o
monoteísmo. (Radhakrishnan, 1989, vol. 1, p. 90)
Assim, nos hinos, algumas vezes Agni é o maior de todos os deuses, em outros é
Indra, em outros é Varu a. Esse processo teria levado à transformação de um polite-
ísmo antropomórfico em um monoteísmo espiritual, passando através de uma fase
intermediária com o estabelecimento de um ser supremo, ao qual os deuses ficariam
subordinados. Cada deus mantinha apenas o poder no seu próprio domínio.
Os deuses caprichosos de um culto confuso à natureza se
tornaram as energias cósmicas cujas ações eram reguladas por
um sistema harmonioso. Mesmo Indra e Varu a se tornaram
divindades departamentais. A posição mais elevada, na parte
mais recente do gveda,é concedida a Vi vakarman. Ele é o
deus que tudo vê, que tem olhos, faces, braços e pés por todos
os lados, que produz o céu e a terra pelo uso de seus braços e
asas, que conhece todos os mundos, mas está além da
compreensão dos mortais. B haspati também tem suas
indicações para o nível supremo. Em muitos lugares é Praj pati,
o senhor das criaturas. (Radhakrishnan, 1989, vol. 1, p. 92)
De acordo com Radhakrishnan, mesmo esse monoteísmo foi apenas um passo in-
termediário, pois nesse período a divindade suprema ainda era vista de um modo an-
tropomórfico. Em seguida, os pensadores indianos teriam aplicado a Deus o nome
neutro Sat (Ser, Existência), para mostrar que estava acima das distinções de gênero.
Esse ser seria único, impessoal, e Agni, Indra, Varu a etc. seriam apenas formas ou
nomes dele. Assim teria surgido a intuição do “verdadeiro Deus” (Radhakrishnan,
1989, vol. 1, pp. 94-95). Esse Deus Único é chamado por diferentes nomes, conforme
os seus âmbitos de manifestação ou as preferências dos devotos. Com o fim do antro-
pomorfismo, segundo Radhakrishnan, o pensamento indiano teria atingido uma visão
monística, no final do período dos Vedas. Assim, de acordo com esse autor, houve
inicialmente diversos deuses naturalísticos, e deuses antropomórficos, mas nenhum
deles atingia a concepção mais elevada de divindade, até que se chegou à ideia do
Deus Uno sem nome.
O progresso dos Vedas não cessou até atingir essa realidade
última. O progresso do pensamento religioso incorporado nos
hinos pode ser apresentado pela menção dos deuses típicos: (1)
3
Dyaus [céu], indicativo do primeiro estágio do culto à natureza;
(2) Varu a, o deus altamente moral posterior; (3) Indra, o deus
egoísta da era da conquista e dominação; (4) Praj pati, o deus
dos monoteístas; (5) Brahman, a perfeição de todos esses
quatro estágios inferiores. Esta progressão é tanto cronológica
quanto lógica. Mas nos hinos dos Vedas nós os encontramos
colocados lado a lado, sem qualquer concepção de arranjo
lógico ou sucessão cronológica. Algumas vezes o mesmo hino
tem sugestões de todos eles. Isso apenas mostra que quando o
texto do gveda chegou a ser escrito, todos esses estágios de
pensamento já haviam se passado, e as pessoas estavam se
prendendo a alguns ou a todos eles sem qualquer consciência
de sua contradição. (Radhakrishnan, 1989, vol. 1, pp. 98-99)
4
encontrar uma cronologia interna aos Vedas (Bloomfield, 1900), não há acordo sobre
isso.
Em terceiro lugar, o modo pelo qual Radhakrishnan utiliza as categorias religiosas
como monoteísmo, politeísmo e henoteísmo é problemático, como vamos analisar
abaixo.
O conceito de henoteísmo
Comecemos pelo conceito de henoteísmo, que será central em toda nossa discus-
são.
Radhakrishnan afirma que Max Müller criou esse conceito, o que não é verdade:
ele foi formulado por Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling em 1842 (Yusa, 1987, p.
266; Pettazoni, 1960, 112). O termo, cuja etimologia é = heis theos (um
deus), representa o culto de uma única divindade em um contexto em que se aceita a
possibilidade de existência de outras divindades.
Müller introduziu nas suas obras o termo henoteísmo para discutir a história das
religiões e como se sucedem várias fases religiosas diferentes. Ele considerava que “A
intuição primitiva da divindade não é nem monoteísta nem politeísta” (Müller, 1867, p.
353).
Se, portanto, tivesse sido dada uma expressão a essa
intuição primitiva da Divindade, que é a fonte de toda religião,
posterior, teria sido “Há um Deus”, mas não ainda “Existe
apenas Um Deus”. A última forma de fé, a crença no Um Deus,
é chamada propriamente de monoteísmo, enquanto o termo
henoteísmo exprimiria a fé em um deus individual. (Müller,
1867, p. 354)
Para Müller, há uma hierarquia de religiões, com o monoteísmo no topo (Yelle,
2012, p. 65). O pensamento religioso dos Vedas é mais primitivo do que o monoteís-
mo dos judeus e cristãos, e também é mais primitivo do que o politeísmo dos gregos e
dos romanos. “O Veda, por sua linguagem e pensamento, supre aquela base distante
na história de todas as religiões da raça Ariana [...]” (Müller, 1867, p. 26). Já que não
dispomos de informações sobre como era o pensamento religioso dos gregos e dos
romanos antes do período histórico, podemos reconstruir esse passado por compara-
ção com o pensamento religioso dos indianos, pois nesse caso “estamos mais perto da
fonte” (ibid., p. 26). Segundo Müller, a maior parte dos hinos dos Vedas não tem va-
lor:
Mas, ocultas neste lixo [rubbish], há pedras preciosas. Para
apreciá-las de modo justo, devemos tentar nos despir das
noções comuns sobre o Politeísmo, tão repugnante não apenas
para nossos sentimentos, mas também para nosso
entendimento. Sem dúvida, se devemos empregar termos
técnicos, a religião do Veda é Politeísmo, não Monoteísmo. As
5
divindades são invocadas por diferentes nomes, alguns claros e
inteligíveis, como Agni, fogo; Surya, o sol; [...] outros, como
Varu a, Mitra, Indra, que se tornaram nomes próprios, só
revelam vagamente sua aplicação original aos grandes aspectos
da natureza, o céu, o sol, o dia. Mas sempre que um desses
deuses individuais é invocado, ele não é concebido como
limitado pelos poderes dos outros, como superior ou inferior em
nível. Cada deus é, na mente do suplicante, tão bom quanto
todos os deuses. Ele é sentido, no momento, como a divindade
real – como supremo e absoluto – sem uma suspeita dessas
limitações que, na nossa mente, uma pluralidade de deuses
deve implicar em cada deus individual. Todo o resto desaparece
por um momento da visão do poeta, e apenas aquele que deve
preencher seus desejos permanece em plena luz diante dos
olhos daqueles que o cultuam. (Müller, 1867, pp. 27-28)
Essa atitude que Müller descreveu como henoteísmo está presente não apenas nos
Vedas, mas também na tradição indiana recente:
Dentro das tradições Hindus, a forma mais comum de
prática espiritual é bhakti – devoção completa a uma única
divindade. [...] A tradição compreende que é a prática de
devoção em si e por si própria que é essencial; assim, a
divindade particular escolhida como objeto de devoção é
relativamente sem importância. Ciente das muitas divindades
Hindus, o devoto tende a associar todos os atributos das várias
divindades a uma única divindade que é o seu objeto de
devoção. Isso não é uma relação de exclusividade: o devoto
fará oferecimentos às outras divindades quando estiver na
presença de seus templos e santuários. Mas para o devoto, em
essência, existe apenas uma única divindade. (Paper, 2005, p.
123)
Müller deu também o nome de catenoteísmo (kathenotheism) a esse tipo de reli-
gião dos Vedas – uma palavra construída a partir de kath’hena+theos, significando um
deus de cada vez (Yelle, 2012, p. 65). Posteriormente, ele desistiu dessa denomina-
ção, e passou a utilizar o termo mais curto henoteísmo, que teve maior aceitação
(Müller, 1883, p. 147). A diferença central entre o henoteísmo dos Vedas e o politeís-
mo dos gregos é que, neste último, há uma hierarquia bem definida de deuses e um
deus supremo (Zeus), com uma estrutura semelhante a uma monarquia – algo que
poderia ser denominado também politeísmo monárquico (Müller, 1879, p. 263). A reli-
gião dos Vedas seria algo mais primitivo, com várias divindades lado a lado (no mes-
mo nível), nenhuma delas sendo realmente suprema (ou qualquer uma podendo ser
considerada superior às outras), e comparável à situação social anárquica de um con-
junto de vilas aglomeradas, sem um governo centralizado superior (Müller, 1883, pp.
145-146; Müller, 1879, p. 263; Yelle, 2012, p. 102).
O que eu desejo que vocês observem em tudo isso é a
perfeita liberdade com que esses Devas ou assim chamados
deuses são manipulados, e particularmente a facilidade e
naturalidade com a qual primeiro um, depois outro, emerge
6
como supremo nesta teogonia caótica. Esta é uma característica
peculiar da religião antiga dos Vedas, totalmente diferente tanto
do Politeísmo quanto do Monoteísmo que nós vemos nas
religiões Grega e Judaica; e mesmo se o Veda não nos tivesse
ensinado nada mais além desta fase henoteísta, que deve em
todos os lugares ter precedido a fase mais altamente
organizada do Politeísmo que vemos em Grécia, em Roma e em
outros lugares, o estudo do Veda não teria sido em vão. (Müller,
1883, pp. 162-163)
Portanto, ao contrário do que Radhakrishnan afirma, o henoteísmo não seria uma
fase intermediária entre o politeísmo e o monoteísmo, mas anterior ao politeísmo,
sendo a mais “primitiva” possível. Note-se que a palavra henoteísmo não é uma sim-
ples descrição “neutra”, mas carrega certa bagagem intelectual, pois representaria um
estágio no esquema de desenvolvimento na história da religião (Smith, 2010, p. 167;
Yelle, 2012, p. 64).
O termo henoteísmo tem sido comparado ao de monolatria – uma palavra propos-
ta também no século XIX para indicar o culto de uma única divindade, embora admi-
tindo a existência de outras (Mackintosh, 1908, p. 810; Yusa, 1987, p. 266). Alguns
autores recentes, como Christoph Elsas, indicam que o termo henoteísmo já não é
mais utilizado como descrição de um estágio na evolução das religiões, mas sim em-
pregado na fenomenologia da religião para descrever uma atitude que pessoas religio-
sas podem ter, dedicando-se a uma manifestação divina em particular (Elsas, 2001, p.
524; Yusa, 1987, p. 267).
Vamos rever, agora, a análise de Radhakrishnan. Segundo ele, teria havido um
politeísmo, seguido de um henoteísmo que conduziria ao monoteísmo. Porém, aquilo
que este autor chama de monoteísmo é o que Müller denomina politeísmo: uma varie-
dade de deuses, mas com uma divindade suprema. Para Max Müller, o pensamento
dos Vedas nunca ultrapassou a fase mais primitiva, a do henoteísmo; não chegou ao
politeísmo, e muito menos ao monoteísmo, que afirma a existência de uma divindade
única e nega a existência de uma variedade de deuses. Radhakrishnan, como outros
autores indianos, procurou identificar um monoteísmo no pensamento indiano antigo
porque aceitava, como os europeus, que essa era a melhor visão religiosa possível
(Smith, 2010, p. 128). Apresentar esse suposto monoteísmo era um modo de tornar
essa tradição indiana aceitável aos ocidentais.
Não estou pressupondo, é claro, que a análise de Müller é correta ou que é a única
possível. Podemos encontrar também muitos problemas na abordagem de Müller. Ele
também tinha ideias preconcebidas sobre qual era o tipo “perfeito” de religião (o cris-
tianismo monoteísta) e considerava a priori que a religião dos Vedas teria que ser in-
ferior às mais antigas religiões conhecidas da Europa, que eram politeístas (Smith,
2010, p. 167; Yelle, 2012, pp. 64-65). Foi a partir desse ponto de vista eurocêntrico e
7
preconceituoso que Müller estudou o “lixo” constituído pelos hinos dos Vedas e inter-
pretou o seu tipo de religião.
Os problemas de interpretação
A partir dos exemplos de Radhakrishnan e Müller, podemos apontar alguns dos
problemas centrais em qualquer tentativa de caracterização da religião indiana no pe-
ríodo dos Vedas. Em primeiro lugar, é necessário dispor de categorias bem definidas,
uma conceituação clara que possa ser aplicada de modo inequívoco a cada exemplo
histórico e identifica-lo como pertencendo a um ou outro tipo de religião. Em segundo
lugar, é necessário tentar deixar de lado ideias preconcebidas sobre as conclusões às
quais se vai chegar na análise. Em terceiro lugar, é necessário dispor de um conheci-
mento histórico bem fundamentado, para aplicar essas categorias.
O primeiro requisito é o mais fácil de preencher, pois muitos autores se dedicaram
a esclarecer de forma bastante satisfatórias os vários tipos existentes de concepções
da(s) divindade(s) existentes em vários tipos religiosos.
O segundo requisito é um desideratum que nunca pode ser totalmente atingido –
é fácil perceber os preconceitos dos antigos, mas muito difícil perceber os nossos.
O terceiro requisito constitui uma barreira muito grande, no caso do estudo dos
Vedas. Pois há uma grande variedade de interpretações sobre o próprio conteúdo dos
hinos, e as interpretações divergentes influem nas conclusões que se possa querer
tirar sobre o status da religião vêdica. Esse problema se torna ainda mais agudo por
vários fatores. Em primeiro lugar, a distância cronológica – há pelo menos 3.500 anos,
talvez muito mais, entre a época dos Vedas e o nosso tempo. Em segundo lugar, o
tipo de fonte disponível – os hinos dos Vedas não constituem uma descrição doutriná-
ria sistemática; é necessário interpretar o que está por trás desses hinos. Em terceiro
lugar, encontramos uma grande variedade de interpretações para o pensamento dos
Vedas, mesmo no caso de intérpretes nativos antigos.
No caso específico do período vêdico, há também algumas questões centrais:
(1) Existe um único tipo de religião presente nos Vedas, ou uma mistura de tipos reli-
giosos correspondentes a diversos períodos?
(2) Se existir uma mistura de tipos religiosos, será possível isolá-los, interpretar cada
um deles e atribuir-lhes uma sequência?
(3) Se existir um único tipo de religião, será possível dar uma interpretação coerente
sobre ela, a partir do conteúdo dos hinos vêdicos?
Muitos autores, como Radhakrishnan, respondem “sim” às duas primeiras pergun-
tas. Infelizmente, todas as análises que procuram distinguir diferentes estratos no
pensamento dos Vedas são altamente conjeturais e caem em argumentos circulares,
8
justificando as distinções e a cronologia com base nas diferentes ideias identificadas e
postulando que alguns tipos de concepções devem ter vindo antes de outros, por se-
rem mais simples e primitivos. E todas essas interpretações entram em conflito com a
tradição indiana, que nunca apontou a existência de diferentes estratos religiosos nos
Vedas.
Há autores que procuram dar uma interpretação única, coerente, a todo o conteú-
do dos Vedas. E devemos nos lembrar de que um dos princípios hermenêuticos fun-
damentais é o de que se deve pressupor sempre que o texto diante do qual estamos é
coerente. Parece-me que essa é a melhor atitude a adotar, a menos que ela se mostre
inviável.
Consideremos primeiramente, como categorias mais básicas de análise, as de mo-
noteísmo e politeísmo. Conceitua-se o monoteísmo como uma religião que apenas
admite a existência de um único deus. Conceitua-se o politeísmo como uma religião
que admite a existência de dois ou mais deuses. Cada um desses grandes tipos pode
ser subdividido em outros. Por exemplo, o politeísmo de Max Müller pode ser conside-
rado como um politeísmo monárquico, e o henoteísmo como outro tipo de politeísmo.
Parece facílimo verificar se a religião dos Vedas pertence a uma dessas categorias
ou à outra. Há referência a vários deuses nos Vedas? É difícil negar isso. Interpretan-
do-se deva como deus, vemos que existe uma grande variedade de deuses menciona-
dos nos hinos dos Vedas, como Soma, Indra, Agni, Savit , Sarasvat e tantos outros.
Assim, o problema pareceria se reduzir a determinar qual tipo de politeísmo está pre-
sente. No entanto, a solução não é tão simples assim. Afinal de contas, podemos con-
siderar que os devas são deuses? Ou deveríamos classificá-los de outra forma?
O pensador indiano Ananda Kentish Coomaraswamy, em seus estudos e traduções
dos Vedas, traduzia sistematicamente devas por anjos (Coomaraswamy, 1935). Ora, a
religião judaica admite uma multiplicidade de anjos, mas é monoteísta. Se Soma, In-
dra, Agni, Savit , Sarasvat e os outros devas não são deuses e sim equivalentes a
anjos, então a religião dos Vedas não é um politeísmo.
A questão pode ser colocada de outra forma: a multiplicidade de devas nos Vedas
é equivalente à multiplicidade de deuses nas mitologias grega e romana? Se puder ser
estabelecido um paralelo entre os devas indianos e os deuses da Antiguidade clássica,
poderemos considerar que a religião indiana antiga era politeísta. E isso nos remete a
questões de religião comparada e também de linguística, que serão tratadas a seguir.
9
termo sânscrito deva é derivado de div ou dyu, que significa brilho, dia, céu diurno.
Deva significa celeste, divino, luminoso, podendo também ser aplicado a qualquer coi-
sa excelente – por exemplo: um sacerdote, um rei (Monier-Williams, 1979, pp. 478,
492).
Costuma-se procurar obter uma visão mais clara sobre o significado de deva a
partir de sua análise etimológica. Considera-se que o termo sânscrito deva se origina
de uma palavra do idioma Proto-Indo-Europeu1: *deiwo-, que seria a designação ge-
nérica para deus (Mallory & Adams, 2006, p. 408; Winn, 1995, p. 22; Snyder, 2001,
p. 10), significando também celeste ou brilhante.
Há outros termos do Proto-Indo-Europeu associados a este: *dei-, com seus vari-
antes *deye-, *d - e *dy - tinha o significado básico de brilhante, radiante (Snyder,
2001, pp. 10-12). Daí se originaram vários termos sânscritos, tais como d (brilhar),
d ti (esplendor, brilho), div (durante o dia), divam (um dia), divedive (dia a dia, dia-
riamente), div ou dyu ou diva (céu), divi (que mora no céu), divya (celeste).
Dessa mesma origem Proto-Indo-Européia vieram o latim deus e o grego Zeus
( ) (Snyder, 2001, p. 12; Winn, 1995, p. 23)2. À primeira vista, portanto, se deva,
deus e Zeus vieram da mesma origem, deve ser possível traduzir deva por deus. Mais
ainda: se tanto na Grécia como em Roma as religiões eram politeístas, a associação
entre deva, deus e Zeus poderia indicar que os devas são deuses no sentido politeísta
da palavra. Essa é a interpretação etimológica usual (Müller, 1867, p. 25).
Esse tipo de análise, no entanto, não permite esclarecer nada. Ele pressupõe que
não pode ter surgido nada de radicalmente novo na cultura indiana, a partir da cultura
primordial Proto-Indo-Européia. Tal pressuposto é limitador, empobrecedor, e não tem
qualquer justificativa. Vejamos um exemplo que mostra o perigo de tal tipo de análise.
Do mesmo termo Proto-Indo-Europeu *deiwo- de onde se originaram o sânscrito de-
va, o latim deus e o grego Zeus, surgiu o termo avéstico daeva, que significa demônio
(Mallory & Adams, 2006, p. 408; Snyder, 2001, p. 12; Winn, 1995, p. 23). Ora, se
não tivéssemos informações muito claras sobre o significado de daeva no Zend-
Avesta, concluiríamos da sua etimologia que devia significar uma divindade... uma
conclusão totalmente falsa.
Neste caso específico, há uma explicação histórica para a mudança de significado.
Acredita-se que no período pré-histórico, na Pérsia como em outras regiões de tradi-
ção indo-européia, as palavras derivadas de *deiwo- significariam uma divindade. No
entanto, quando Zoroastro (aproximadamente no século VII a.C.) reconheceu Ahura
Mazdah como o único deus verdadeiro, declarou que todos os outros antigos deuses
1 Supõe-se que a cultura Proto-Indo-Européia pode ter florescido no 5º ou 4º milênio antes da era cristã (Winn, 1995, p. 265).
2 O fonema *dy do Proto-Indo-Europeu se torna z em grego, e j ou i no latim (Winn, 1995, p. 23).
10
(daeva) eram demônios (Trubeckoj, 1996, p. 101). É relevante também mencionar
que a palavra ahura, que no avéstico significa divindade, é correlata a asura, em
sânscrito, que pode significar tanto um ser divino quando demoníaco (Moulton, 1911,
p. 34). A partir desse exemplo, não poderíamos também nos perguntar se os devas
dos Vedas mantiveram o significado Proto-Indo-Europeu ou sofreram uma transforma-
ção de significado?
Vejamos outro ponto. Considera-se que uma das mais antigas divindades dos an-
cestrais Indo-Europeus era um deus celeste cujo nome foi reconstruído como *Dyeus,
significando “céu brilhante” ou “céu iluminado” (Winn, 1995, pp. 20, 23; 31). Ele foi
identificado, no sânscrito, como o deva Dyaus, que está associado ao céu, e identifica-
do ao Zeus grego e ao Júpiter romano. O nome Ju-piter significa literalmente “céu
pai”, e existem também as expressões Zeu-pater e Dyau -pit , com o mesmo signifi-
cado (Fortson, 2010, p. 25; Winn, 1995, pp. 21-22; Snyder, 2001, pp. 10-12; Beekes,
2011, p. 40). O deus do céu, para os gregos e romanos, se tornou também o deus do
trovão, patrono dos guerreiros, correspondente a Thor, entre os vikings (Winn, 1995,
p. 23); e o aparecimento da palavra “pai” seria uma prova de que a religião Indo-
Européia primitiva era inerentemente patriarcal, centrada na autoridade masculina.
Essa parece ser a única divindade comum aos diferentes ramos da cultura Indo-
Européia (Macdonell, 1897, pp. 8, 20; Beekes, 2011, p. 40; Snyder, 2001, p. 26).
Toda essa tentativa de reconstrução é, no entanto, repleta de problemas. Os auto-
res costumam focalizar sua atenção nas semelhanças, deixando de lado importantes
diferenças. No caso em questão, é relevante assinalar que na tradição vêdica o deva
Dyaus não é o deus do trovão – é Indra quem está associado aos raios e ao trovão, e
este não é um deva relacionado à região celeste e sim à região atmosférica (Macdo-
nell, 1897, p. 55).
Há outras diferenças. Na tradição vêdica, raramente Dyaus é mencionado sozinho;
aparece quase sempre associado à devi P thv (associada à Terra), que é também
chamada de P thv -m t (Terra-mãe). Muitos hinos fundem os dois devas em uma
unidade, Dy v p thv (céu-terra), e apenas em uma única passagem ( igveda
VI.51.5) aparece a expressão tão mencionada, céu-pai ou Dyau pitar (Macdonell,
1897, p. 22). Ele é considerado o progenitor de muitos devas, como U as, os dois
A vins, Agni, S rya, os dityas, os Maruts (Macdonell, 1897, p. 21). Curiosamente,
em 20 passagens Dyaus aparece como feminino (ibid., p. 22).
Na tradição grega, o céu e a terra também formam um casal, mas neste caso o
céu não tem nenhuma relação com Zeus, e sim é denominado Ouranos, o céu noturno
11
(e não diurno)3. A palavra Dyaus é usada para se referir ao céu, cerca de 50 vezes no
igveda, e também significando dia, cerca de 50 vezes; apenas em um único ponto há
uma indicação simbólica de Dyaus associado à noite (Macdonell, 1897, pp. 21-22).
Portanto, o casal Dyaus-P thv não pode ser considerado como equivalente ao casal
Ouranos-Gaia da mitologia grega. Além disso, como é bem sabido, na Teogonia de
Hesíodo há uma sucessão de deuses supremos, começando com Ouranos, seguido de
Kronos e depois por Zeus, portanto Zeus e Ouranos são bem distintos. Devemos tam-
bém mencionar que Dyaus não é considerado uma divindade suprema, nos Vedas
(Moulton, 1911, p. 36; Macdonell, 1897, p. 22), nem há qualquer evidência de que
seja considerado mais antigo do que os outros devas. Portanto, a correlação com Zeus
e Júpiter é muito fraca.
3 Tentou-se, durante muito tempo, identificar Ouranos com o deva indiano Varu a, mas tal correlação foi muito criticada e
acabou por ser abandonada (Beekes, 2011, p. 40).
12
aparecem nas três regiões (embora P thiv seja a dev associada à Terra); Agni e U as,
tanto na região terrestre quando na atmosférica (embora Agni seja o deva do fogo e
U as a dev associada à aurora); e Varu a, Yama e Savit nas regiões atmosférica e
celeste (embora Varu a seja associado muitas vezes ao céu e Savit seja um deva
solar) (Macdonell, 1897, p. 19).
Como há muitos atributos comuns aos vários devas, e poucos específicos, em di-
versos hinos ocorre uma identificação entre os vários devas (Macdonell, 1897, p. 16).
Alguns deles são descritos como possuindo ou assumindo todas as formas (vi var pa),
e surge em alguns hinos a afirmação de que os vários devas são apenas diferentes
formas de um único ser divino. A ideia é encontrada em mais de uma passagem do
igveda, como por exemplo neste famoso verso ( igveda I.164.46; Atharvaveda
X.8.28, XIII.4.15): “Os sacerdotes falam sobre o ser uno de muitas formas; eles o
chamam de Agni, Yama, M tari van” (Macdonell, 1897, p. 16).
Há devas peculiares nos Vedas, que não podem ser associados a nenhum fenôme-
no natural específico, que não possuem características antropomórficas e que indicam
um alto grau de elaboração filosófica, como Aditi. Esse nome é proveniente da raiz
sânscrita d (prender), de onde também vem d (amarrar, atar). Diti é aquilo que
prende ou limita; a-diti é a ilimitada, a liberta, sem limitações, a infinita (Monier-
Williams, pp. 18, 136, 474). Ela é invocada especialmente para a libertação do devoto.
Não há nenhum hino dedicado apenas a ela, mas seu nome aparece cerca de 80 vezes
no gveda. É chamada muitas vezes de dev e caracterizada como brilhante, luminosa,
sustentáculo das criaturas, pertencente a todos os homens. Seus filhos, os dityas,
são devas celestes, solares. Algumas vezes Aditi é identificada com o céu, ou com a
terra, ou com ambos (Macdonell, 1897, pp. 120-121). Em certos hinos ela representa
a natureza universal, a base de tudo: “Aditi é o céu; Aditi é a atmosfera; Aditi é mãe e
pai e filho; Aditi é todos os devas e as cinco tribos; Aditi é tudo o que nasceu; Aditi é
tudo o que nascerá” ( gveda I.89.10). É importante mencionar que Aditi não aparece
apenas nas partes dos Vedas consideradas “mais recentes”, e sim ocorre de forma
geral na coleção toda (Macdonell, 1897, p. 120).
Por causa de todas essas características dos devas vêdicos torna-se difícil classifi-
car a religião indiana antiga em qualquer das categorias comuns. Macdonell se viu
levado a utilizar diversas delas simultaneamente:
Assim, parece que no final do período do gveda, havia-se
chegado a um tipo de monoteísmo politeísta. Encontramos até
mesmo a concepção panteísta incipiente de uma divindade que
representa não apenas todos os deuses mas também a
natureza. Pois a deusa Aditi é identificada não apenas com
todos os deuses, mas com os homens, tudo o que já nasceu ou
nascerá, a atmosfera e o céu ( gveda I.89.10). [...] Essa visão
13
panteística se torna plenamente desenvolvida no Atharva Veda
(X.7.14,25) e é aceita explicitamente na literatura vêdica
posterior. (Macdonell, 1897, p. 16)
É claro que uma religião não pode ser simultaneamente monoteísta, politeísta e
panteísta... A citação acima, de Macdonell, exemplifica a dificuldade de enquadrar a
religião dos Vedas em qualquer categoria usual.
A conceituação de “deus”
A partir da descrição sucinta dos devas, apresentada na seção anterior, podemos
nos perguntar se eles são deuses ou não. Mas o que é um deus?
O conceito ocidental de deus está baseado nas três principais religiões Abraâmicas
(Judaísmo, Cristianismo, Islamismo). Nessas religiões, e em todas as análises filosófi-
cas derivadas das mesmas, considera-se que Deus é um ser espiritual (não material),
eterno, auto-existente, pessoal, digno de culto (o objeto supremo de devoção religio-
sa) superior a qualquer outro ser, ativo, criador de todas as coisas (exceto de si pró-
prio), onipresente em sua criação (mas sem corpo), dotado de supremo poder (onipo-
tente), conhecimento (onisciência) e bondade (Evans & Manis, 2009, pp. 38-42). A
descrição do conceito de deus apresentada em obras didáticas sobre filosofia da reli-
gião também costuma se concentrar no deus do monoteísmo Abraâmico: um ser su-
premamente bom, independente do mundo, onipotente, onisciente, criador do univer-
so, auto-existente, eterno (Rowe, 2007, p. 6).
Essa conceituação implica na existência de um único deus, pois não podem existir
vários deuses correspondendo simultaneamente a essa descrição. Qual é, então, a
conceituação de deus aplicável ao politeísmo? Esse tema nem costuma ser analisado.
Por exemplo, em uma obra recente que aborda as religiões de uma forma muito am-
pla (Tagliaferro, Draper & Quinn, 2010), nenhum dos 85 ensaios apresenta qualquer
discussão a respeito de um conceito de deus compatível com o politeísmo. Um dos
capítulos introduz o conceito básico de deus das religiões Abraâmicas, que é o de per-
feição – um ser planejador e criador do mundo, bondoso (providencial), que possui
excelência máxima sob todos os aspectos, como onipotência, onisciência e perfeição
moral (Webb, 2010, p. 27). Outros capítulos expandem essa caracterização do deus
monoteísta.
Quando se tenta encontrar uma caracterização de divindade compatível com todas
as variedades de religiões, chega-se a algo muito vago, como por exemplo: “pode-se
definir um deus como um ser que é ou pode ser cultuado apropriadamente” (Smart,
1996, p. 35). Mas tal conceituação não distingue os deuses de demônios, espíritos,
antepassados, santos, heróis, ninfas e outros seres que também são cultuados em
diversas civilizações.
14
Edgar Sheffield Brightman tentou proporcionar uma definição de divindade compa-
tível com todos os tipos de religiões. Ele considerou que toda religião é, em algum
sentido, uma forma de culto, e sem um objeto de culto não existiriam religiões: “o que
diferencia a religião de outros fenômenos sociais é a atitude de devoção reverente
para com alguma coisa divina” (Brightman, 1940, p. 133). O conceito básico de deus
seria o de objeto de culto, como na obra de Ninan Smart citada acima; mas Brightman
desenvolveu mais detalhadamente essa ideia. Para ele, o objeto de culto é aquilo que
é considerado pelo praticante como sendo a fonte dos seus valores mais elevados, é
um ser do qual ele quer se aproximar. Assim, ser objeto de culto é apenas uma condi-
ção necessária, mas não suficiente, para considerar algo como um deus. Devem tam-
bém ser atribuídos os valores mais elevados a esse objeto de culto; e deve haver o
objetivo de se aproximar dele (ibid., pp. 134-135). Está incluída aqui a ideia de algum
tipo de perfeição – mas não uma perfeição que impeça a multiplicidade. Obviamente,
esses valores devem variar de uma religião para outra, e em algumas os diversos va-
lores mais elevados não estarão associados a um único ser, mas a vários – é o caso
do politeísmo (Brightman, 1940, p. 138).
A análise de Brightman é interessante e pode ser aplicada a um grande número de
concepções religiosas diferentes. Note-se que ela permite diferenciar um deus de um
anjo e de outras entidades, pois um deus representa os valores mais elevados aceitos
pelo praticante daquela religião, e os seres espirituais inferiores não satisfazem tal
condição.
Vimos que os devas possuem diversas características que podem ser consideradas
como valores positivos, dentro da cultura vêdica: são poderosos, são imortais, são
benéficos, são autênticos e não enganadores, são grandiosos, etc. Além disso, não há
dúvidas de que eles eram cultuados, no período antigo. Mas serão realmente deuses?
Há uma dificuldade para classificar os devas como deuses, usando essa conceitua-
ção. Seria necessário que os devas fossem os seres mais perfeitos, em relação aos
valores considerados, para poderem ser considerados como deuses. No entanto, além
da multiplicidade dos devas, os Vedas mencionam uma unidade subjacente, que supe-
ra os devas individuais. Vejamos esse aspecto, a seguir.
15
dos devas: “Eles o chamam de Indra, Mitra, Varu a, Agni e ele é Garutman, de asas
celestes. Os sábios dão muitos nomes àquilo que é um” (ibid., p. 103). Esse ser uno é
denominado Brahman, nas Upani ads e obras posteriores.
Seria essa unidade um Deus supremo? Alguns autores consideram que sim. Sahe-
brao Genu Nigal, por exemplo, cita diversos trechos dos Vedas que falam a respeito
desse Um e, seguindo a interpretação de Swami Dayananda (Nigal, 1986, pp. 26-27)4
defende uma interpretação monoteísta:
Os sábios dos Vedas nunca foram politeístas, isto é, eles
nunca acreditaram na realidade de vários Deuses. Eles também
não foram henoteístas, porque o henoteísmo aceita a posição
do politeísmo e adiciona a ela a visão de que um dos Deuses ou
das Divindades é considerada como tendo alta estima no
momento do culto. Os sábios dos Vedas afirmam explicitamente
que a Realidade é uma, e a chamam por vários nomes: Ekam
sat viprah bahudha vadanti ( gveda I.164.46 e Atharvaveda
IX.10.28). Isso nos dá o conceito de uma Existência Absoluta.
De modo semelhante, outro hino diz: Ekam santam bahudha kal
payanti ( gveda X.114.15), Uma Realidade é concebida de
várias formas. Em outro verso, o vidente afirma enfaticamente
a existência do um sob várias formas e nomes: Mahat devanam
asuratvamekam ( gveda III.55.1), grande é a Divindade única,
ou a Divindade de todos os deuses. Assim, os sábios e filósofos-
poetas falam sobre um Deus de muitos modos. (Nigal, 1986, p.
97)
Há, no entanto, uma grande dificuldade para identificar esse Um subjacente aos
devas como sendo um deus, pois ele não é cultuado. E, de acordo com as definições
usuais, um ser que não é cultuado não pode ser considerado um deus.
Diversos autores recentes negam a possibilidade de aplicar à religião vêdica qual-
quer classificação como monoteísmo, politeísmo ou outros “ismos”. Raimon Panikkar,
por exemplo, considera que tentar aplicar o conceito ocidental de deus e dos vários
tipos de teísmos ao pensamento indiano é forçar o uso de categorias surgidas dentro
de um tipo de religião (cristianismo, judaísmo) em religiões com visões totalmente
diversas.
Os Vedas, eu proponho, não são teístas – e, assim, nem
monoteístas, nem politeístas, muito menos ateístas. [...]
Mesmo chamar a doutrina vedântica posterior sobre Brahman
de (mono)teísta é forçar o significado desta palavra além dos
seus limites. O que eu estou contestando aqui é um método
excessivamente monocultural de interpretar outras culturas.
(Panikkar, 2013, III.A.3) 5
4 Swami Dayananda Saraswati (1824-1883) foi um importante pensador indiano, fundador do Arya Samaj, um movimento de
reforma da tradição vêdica que depois se fundiu à Sociedade Teosófica.
5 As páginas do livro de Panikkar não são numeradas; assim, só é possível identificar a posição das citações pela indicação de
suas partes, capítulos e seções.
16
O mesmo autor afirma: “Deus ou Não-Deus não é considerado como um dilema
último pela culturas externas ao domínio teísta. Nem o Tao nem Brahman são Deus ou
Deuses” (Panikkar, 2013, III.A.3).
Roderick Ninian Smart também considera que a tendência dos autores ocidentais
de classificar qualquer religião como monoteísta, politeísta, etc. é um abuso. No Bu-
dismo, por exemplo, “há muitos deuses, mas o objetivo mais elevado transcende to-
dos eles” (Smart, 1993, p. 34), por isso o autor o descreveu como transpoliteísta. Ele
também cunhou outro termo, transteísta, assim descrito: “Prefiro utilizar transteístico
para sistemas de crenças que enfatizam que existe um Brahman ou um X impessoal
que está além de deus”.
Max Müller estava perfeitamente ciente da existência de hinos dos Vedas que des-
crevem um ser único subjacente a todos os devas, mas comentou: “A consciência de
que todas as divindades são apenas diferentes nomes de uma mesma divindade apa-
rece realmente aqui e ali no Veda. Mas está longe de ser geral” (Müller, 1867, p. 28).
Ou seja: ele não deva muita importância a esses hinos específicos, considerando que
eram tardios e não descreviam o espírito geral dos Vedas.
Nos tempos antigos, e durante um período de uma
literatura incipiente, tal como o período dos Vedas parece ter
sido, temos o direito de dizer que, geralmente falando, hinos
celebrando a aurora e o Sol eram anteriores aos hinos dirigidos
a Aditi; que esses, por sua vez, eram anteriores aos cânticos
em honra a Prajapati, o senhor único de todas as coisas vivas; e
que tais odes que tentei traduzir agora mesmo, nas quais o
poeta fala sobre “o Um respirando por si mesmo sem respirar”
vieram ainda mais tarde. (Müller, 1879, p. 339)
Assim como a análise de Radhakrishnan que serviu de ponto de partida deste arti-
go, a ideia de Max Müller sobre essas etapas sucessivas no desenvolvimento dos con-
ceitos religiosos dos Vedas não tem justificativa histórica; baseia-se em uma precon-
cepção sobre o que deve ter vindo antes ou depois, sob o ponto de vista da evolução
do pensamento “primitivo”. É curioso que o próprio Müller às vezes se contradiz, como
quando reconhece, na mesma obra, que Aditi, a infinita, não é uma divindade “recen-
te”, pois aparece lado a lado com os devas “antigos” (relacionados aos fenômenos
naturais) em vários hinos (Müller, 1879, p. 227).
Considerações finais
A religião dos Vedas não é um politeísmo, pois não pode ser reduzida a uma mul-
tiplicidade de divindades distintas. Também não é um monoteísmo, pois o Um subja-
cente a todos os devas não é um deus, já que não é cultuado.
A ideia de que o pensamento expresso nos Vedas é “primitivo” e que não pode ter
atingido o grau de sofisticação filosófica encontrado nas Upani ads e outros textos
17
posteriores é totalmente gratuita. Não há dúvidas de que a civilização indiana, na épo-
ca dos Vedas, havia atingido um alto nível de sofisticação, que pode ser identificado,
por exemplo, na estrutura gramatical do idioma, na riqueza das formas poéticas, no
processo extremamente cuidadoso de transmissão dos hinos vêdicos e muitos outros
aspectos (Martins, 2011). Há quase um século, Franklin Edgerton já apontou: “Toda
ideia contida pelo menos nas Upani ads mais antigas, quase sem exceção, não é uma
novidade das Upani ads, mas pode ser encontrada exposta ou, pelo menos sugerida
muito claramente, nos textos vêdicos mais antigos” (Edgerton, 1917, p. 197).
Parece perfeitamente possível interpretar todo o conteúdo dos Vedas sem tentar
dividi-lo em “fases” ou “estratos” de diferentes épocas, correspondendo a diferentes
concepções religiosas. Tal interpretação nos obriga a considerar seriamente todos os
pontos onde os Vedas apontam para uma unidade dos devas e para uma realidade
única subjacente a todos eles. Quando se adota esse ponto de vista, percebe-se que é
impossível aplicar as categorias religiosas ocidentais ao pensamento vêdico, como vi-
mos.
Referências bibliográficas
BEEKES, Robert S. P. Comparative Indo-European linguistics: an introduction. 2. ed.
Amsterdam: John Benjamins, 2011.
BIANCHINI, Flávia. A origem da civilização indiana no vale do Indo-Sarasvati: teorias
sobre a invasão ariana e suas críticas recentes. In: GNERRE, Maria Lucia Abaurre;
POSSEBON, Fabricio (Orgs.). Cultura oriental: língua, filosofia e crença. João Pessoa:
Editora Universitária da UFPB, 2012, vol. 1, p. 57-108.
BLOOMFIELD, Maurice. On the relative chronology of the Vedic hymns. Journal of the
American Oriental Society, vol. 21, 1900, p. 42-49.
BRIGHTMAN, Edgar Sheffield. Philosophy of religion. New York: Prentice-Hall, 1940.
COOMARASWAMY, Ananda Kentish. Angel and titan: an essay in Vedic ontology. Jour-
nal of the American Oriental Society, vol. 55, n. 4, 1935, p. 373-419.
EDGERTON, Franklin. Sources of the filosofy [sic] of the Upani ads. Journal of the
American Oriental Society, vol. 36, 1917, p. 197-204.
ELSAS, Christoph. Henotheism. In: FAHLBUSCH, Erwin (Org.) The encyclopedia of
Christianity. Trad. Geoffrey William Bromiley. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans; Brill,
2001, vol. 2, p. 524.
EVANS, Charles Stephen; MANIS, Robert Zachary. Philosophy of religion: thinking
about faith. 2. ed. Downers Grove: InterVarsity Press, 2009.
FORTSON, Benjamin W. Indo-European language and culture: an introduction. 2. ed.
Chichester: John Wiley & Sons, 2010.
HAWLEY, Michael. Sarvepalli Radhakrishnan (1888-1975). Internet Encyclopaedia of
Philosophy. 2006. Disponível em <http://www.iep.utm.edu/radhakri/>. Acesso em
18/01/2013.
KLOSTERMAIER, Klaus K. A survey of Hinduism. 3. ed. Albany: State University of
New York Press, 2007.
MACDONELL, Arthur Anthony. Vedic mythology. Grundriss der indo-arischen Philologie
und Altertumskunde, Vol. 3.l.A. Strassburg: Karl J. Trübner, 1897.
MACKINTOSH, Robert. Monolatry and henotheism. In: HASTINGS, James; SELBIE,
John Alexander; GRAY, Louis Herbert (Orgs.) Encyclopaedia of Religions and Ethics.
New York: Charles Sbribner's Sons, 1908, vol. 8, p. 810-811.
18
MALLORY, James Patrick; ADAMS, Douglas Quentin. The Oxford introduction to Proto-
Indo-European and the Proto-Indo-European world. Oxford: Oxford University Press,
2006.
MARTINS, Roberto de Andrade. As dificuldades de estudo do pensamento dos Vedas.
In: FERREIRA, Mário; GNERRE, Maria Lucia Abaurre; POSSEBON, Fabricio (Orgs.). An-
tologia Védica. Edição bilíngue: sânscrito e português. João Pessoa: Editora Universi-
tária UFPB, 2011, p. 113-183.
MONIER-WILLIAMS, Sir Monier. A Sanskrit-English dictionary. Oxford: Clarendon
Press, 1979.
MOULTON, James Hope. Early religious poetry of Persia. Cambridge: Cambridge Uni-
versity Press, 1911.
MÜLLER, Friedrich Max. Chips from a German workshop. London: Longmans, Green
and Company, 1867.
MÜLLER, Friedrich Max. Lectures on the origin and growth of religion as illustrated by
the religions of India. London: Longmans, Green and Co., 1878.
MÜLLER, Friedrich Max. India: what can it teach us? A course of lectures delivered
before the University of Cambridge. London: Longmans, Green and Company, 1883.
NIGAL, Sahebrao Genu. Axiological approach to the Vedas. New Delhi: Northern Book
Centre, 1986.
PANIKKAR, Raimon. The rythm of being: the Gifford lectures. Maryknoll: Orbis Books,
2013.
PAPER, Jordan D. The deities are many: a polytheistic theology. Albany: State Univer-
sity of New York Press, 2005.
PETTAZONI, Raffaele. Der Allwissende Gott. Zur Geschichte der Gottesidee. Frankfurt:
Fischer, 1960.
RADAKRISHNAN, Sarvepalli. Indian Philosophy. New Delhi: Oxford University Press,
1989. 2 vols.
ROWE, William L. Philosophy of religion: an introduction. 4. ed. Belmont: Wadsworth,
2007.
SMART, Roderick Ninian. Dimensions of the sacred: an anatomy of the world’s beliefs.
Berkeley: University of California Press, 1996.
SMITH, Mark S. God in translation: deities in cross-cultural discourse in the biblical
world. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 2010.
SNYDER, William H. Time, being, and soul in the oldest Sanskrit sources. Binghamton:
Global Publications, 2001.
TAGLIAFERRO, Charles; DRAPER, Paul; QUINN, Philip L. (Orgs.). A companion to phi-
losophy and religion. Chichester: Wiley-Blackwell, 2010.
TRUBECKOJ, Nikolaj Sergeevi . L’Europe et l’humanité. Écrits linguistiques et paralin-
guistiques. Trad. Patrick Seriot. Liège: Mardaga, 1996.
WEBB, Mark Owen. Perfect being theology. In: TAGLIAFERRO, Charles; DRAPER, Paul;
QUINN, Philip L. (Orgs.) A companion to philosophy and religion. Chichester: Wiley-
Blackwell, 2010, p. 227-234.
WINN, Shan M. M. Heaven, heroes, and happiness: the Indo-European roots of West-
ern ideology. Lanham: University Press of America, 1995.
YELLE, Robert A. Protestant literalism and colonial discourse in British India. Oxford:
Oxford University Press, 2012.
YUSA, Michiko. Henoteism. In: ELIADE, Mircea (Org.) The encyclopaedia of religion.
New York: Macmillan, 1987, vol. 6, p. 266-267.
19
1
História, Gomes (2002, p. 21) aborda a relação entre o historiador e seu objeto
afirmando que essa relação não se apresenta de forma neutra:
Para Mainwaring (1989, p. 33) a Crise da Igreja brasileira teve início após a
segunda Guerra Mundial sendo o resultado de uma rápida transformação na sociedade
sem que o mesmo ocorresse com a Igreja acarretando assim uma série de prejuízos para
a Instituição, pois, as manifestações de crise incluíram uma resistência à secularização, o
alarmante crescimento do protestantismo e do espiritismo, menor comparecimento à
missa, uma crise de vocações, o crescimento da esquerda, e uma perda de influência
entre as classes dominantes e entre a classe operária urbana.
número caiu para 1607”. Por que tantas desistências? Era a pergunta que inquietava os
líderes religiosos. Consoante as informações repassadas no jornal o Secretário da CNBB
estava pedindo para que os Bispos de todo o Brasil tomassem as seguintes providências
para resolver o problema das vocações sacerdotais: um trabalho urgente para animar em
todos os sentidos, os padres atuais; definição do verdadeiro sentido teológico e tarefa
pastoral do padre; uma série reflexão para que num mundo da técnica e da secularização
não se perca a capacidade de compreender e de aprender os valores transcendentais.
De acordo com a oficialidade do Clero cratense as determinações de Roma
deveriam ser seguidas e para isso divulgava as determinações de Paulo VI e dos
defensores do Celibato consagrado, que em um Sínodo ocorrido em finais de 1971
confirmou mais uma vez a obrigatoriedade do Celibato consagrado afirmando ainda que
se mantiver eunuco é um dom de Deus, é um chamado do altíssimo para trabalhar em
seu Reino.
Segundo Coutrot (2003, p. 348) a imprensa Cristã tem como principal objetivo
penetrar nas realidades do mundo contemporâneo, mantendo estreita relação com seus
leitores. O jornal cristão é lido em família. Coutrot ainda observa que, a partir dos anos
60 tem-se uma queda do voto católico nos partidos de direita.
O que vai fazer com que a Igreja Católica, especialmente no espaço ora analisado
intensifique seus trabalhos pastorais. Suas divulgações na imprensa procura demonstrar
o “perigo que a sociedade sofria estando sob o comando vermelho”, ou seja, os partidos
de esquerda em especial o partido comunista. Este era associado ao mundo do demônio.
A segunda metade do século XX marcou um momento de efervescência social e
cultural a nível mundial. É interessante destacar que esse período é marcado, sobretudo
no Brasil, de Regime Militar, perseguição aos Comunistas e de ascensão dos ideais da
Teologia da Libertação. Consoante Coutrot (idem, p. 331) as ligações íntimas entre
religião e política durante muito tempo foram desprezadas, sendo reavaliadas a partir da
primeira metade do século XX. Ainda analisando as mediações de interdependência entre
religião e política afirma:
Marcado por uma ascensão de novas ideias o contexto de finais dos anos de 1960
e ao longo da década de 1970, teve no cenário político, cultural, econômico e social a
recepção de profundas transformações. O mundo religioso também estava inserido
nessas discussões. O pós-Concílio será marcado por uma maior efervescência de ideais
que já vinham sendo gestados desde o início dos anos de 1950 entre elas podemos citar
a Teologia da Libertação que acabou causando muita polêmica principalmente por
defender ideias de cunho marxista, que era bastante combatido por alguns setores da
Igreja Católica.
Entretanto é preciso destacar que para Lowy (2000, p.64) a Teologia da
Libertação não fora um movimento efetivamente político, não tinha um programa, nem
formulou objetivos econômicos e políticos precisos, se inseria basicamente no campo
ideológico. Admitindo a sua autonomia da esfera política, ela deixou essas questões para
os partidos políticos da Esquerda, limitando-se em fazer uma critica social e moral à
injustiça, a aumentar a consciência da população, a espalhar esperanças utópicas e
promover iniciativas “de baixo para cima”.
7
A Teologia da Libertação teve uma ampla aceitação por parte de alguns grupos da
Instituição Católica o que acabou fazendo com que houvesse uma grande mobilização
inclusive com a participação de laicos.
Nosso intuito imediato é compreender como a Diocese do Crato-CE fez com que
as determinações de Roma fossem prontamente seguidas. Interessante observar que
enquanto o mundo Católico presenciava a Crise dos Padres no decorrer da segunda
metade do Século XX, a Diocese do Crato procurou sanar tal conflito em seu território,
logo após seu surgimento, ainda na década de 1960 e nos anos posteriores. Poderemos
destacar um dos Encontros Pastorais realizado com esse fim. Foi um Encontro realizado
no período de 16 a 20 de fevereiro de 1970 e teve como ministrante o Padre Paulo Ponte,
professor do Seminário de Fortaleza.
Este, na ocasião, concedeu uma entrevista ao Jornal A AÇÃO falando sobre a Crise
dos Padres, afirmando que aqueles que se mostram contra o valor do Celibato
Consagrado deveriam ser desvinculados do cristianismo, como podemos observar na
reportagem do A AÇÃO em 21 de fevereiro de 1970: “ se um padre ou um bispo negasse
9
o valor do celibato, ele estaria indo de encontro à palavra do Cristo e não sei se ele
merecia mais o nome de cristão”.
Conforme Silva (2005, p.89) “[...] a identidade e a diferença estão estreitamente
associadas a sistemas de representação”. Utilizamos a ideia de Representação a partir da
perspectiva de Roger Chartier (1990, p. 17) onde ele estabelece que representar é fazer
presente algo que se estar ausente. Dessa forma pretendemos perceber como as
determinações do Concílio Vaticano II e as determinações do Papa Paulo VI se faziam
presentes na Diocese do Crato-CE, mesmo estando ausentes.
Assim sendo, os recursos de comunicação da Diocese cratense, enquanto lugar de
produção de discurso representava os ditames da mais alta cúpula clerical dando a ver
um ausente, como nos demonstra Chartier (idem, p. 20): a representação como dando a
ver uma coisa ausente, o que supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e
aquilo que é representado; por outro a representação como exibição de uma presença,
como apresentação pública de alguém.
Nesse sentido, para Chartier, representação se dar em um determinado lugar e
acaba gerando outras representações, ou seja, uma coisa que é gerada acaba sendo
geradora de outras coisas. Sendo assim, as representações são geradoras de outras
práticas.
Ao longo das discussões para tentar implantar o Celibato opcional passou-se a
discutir a possibilidade de ordenação de homens casados o que faria com que muitas
pessoas passassem a vivenciar a realidade religiosa resolvendo o problema da falta de
Sacerdotes e amenizando assim a Crise.
Nesse intento, foi realizado um retiro espiritual do Clero cratense no período de 07
a 11 de julho de 1969, tendo como palestrante o Diretor do curso Christus Sacerdots, do
Rio Grande do Sul, Padre Oscar Mueller e como assunto de pauta “A Missão do Padre na
Igreja de Hoje”. Na ocasião o Padre Muller em entrevista ao jornal A AÇÃO afirma que
uma das saídas para resolver a Crise dos Padres seria a ordenação de homens casados:
“A solução que se projeta para todo o povo de Deus é que se possa ordenar homens
casados para presidirem uma comunidade menor” (Jornal A AÇÃO em 19 de julho de
1969).
Através das análises feitas no jornal A AÇÃO, as palavras do Padre Muller foram
às únicas proferidas no contexto da Crise dos Padres no Cariri cearense e que não
comungavam diretamente com os ditames da norma instituída por Paulo VI e a alta
cúpula do poder Católico. Ao cogitar a possibilidade de ordenação de homens casados
para resolver o problema da Crise dos Padres Padre Muller se mostrou como Sujeito
praticante de novas práticas.
A Diocese do Crato-CE se utilizou de vários esforços para, através de seu poder
instituído afastar as Crises que a Igreja estava vivenciando no contexto da segunda
10
metade do século XX e utilizava seu jornal para representar o sagrado, para fazer com
que as determinações de Roma fossem prontamente seguidas e obedecidas.
BIBLIOGRAFIA
REVISTA UTILIZADA
SOUZA, Ney. Revista Teologia e Cultura, ed. Nº 02, dezembro de 2005, p. 31.
DA CAIXINHA DO DIABO PARA INSTRUMENTO DE DEUS: UMA ANÁLISE SOBRE O
USO DA MÍDIA TELEVISIVA PELOS PENTECOSTAIS
Polyanny Lílian do Amaral1
Resumo: O uso da mídia por pentecostais está a cada dia mais evidente. Ao longo dos
anos é possível perceber como o pentecostalismo resignificou o uso da mídia,
especialmente a televisão, outrora tão demonizada. A partir do uso da televisão os
líderes pentecostais ocupam agora um status de "celebridade" advindo da grande
visibilidade obtida. Este artigo aponta como se deu, historicamente, a passagem da mídia
de elemento profano para elemento litúrgico, mediando as práticas e rituais religiosos,
através de uma análise teórica. Também apresentamos alguns exemplos etnográficos
resultados de uma pesquisa realizada na Igreja Internacional da Graça de Deus, sede,
em Recife e dos dados coletados ao assistir os programas, transmitidos na TV aberta, por
esta mesma igreja. Com isto, mostramos que a mídia televisiva atua como "mediadora"
entre pastores e fieis, ultrapassando o caráter proselitista.
Introdução
A religião como um todo tem desempenhado grande influência na sociedade, e
quando se tratando do pentecostalismo, essa influência torna-se mais forte e
perceptível. De um lado, o fato de que o Brasil tem atravessado um momento de declínio
do catolicismo e um crescimento exacerbado dos evangélicos, sobretudo dos
pentecostais (MARIANO, 2004 e CAMURÇA, 2006). Por outro lado, a mídia brasileira tem
aberto espaço para programas religiosos desde a madrugada até o horário nobre. A
partir disso, esse união entre religião e mídia permite sugerir um curioso fenômeno: o
líder religioso, de alguma forma, se torna um "ídolo da TV", consequentemente, o fiel
passa a ser uma "audiência".
Com a Reforma Protestante, as práticas católicas como a adoração de imagens,
canonização dos santos, legalização da penitência por dinheiro e o abandono das
Escrituras Sagradas foram veementemente combatidas. Atualmente, com o movimento
pentecostal, podemos perceber uma espécie de retorno a algumas dessas práticas,
1
Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), discente do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da UFPE, bolsista CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior), ligada ao Núcleo de Estudos de Religiões Populares (NERP - PPGA - UFPE). E-
mail: poly_lilian@hotmail.com
1
especialmente a "mediação" entre Deus e humanos, outrora tão criticada, mesmo que
essa mediação não seja reconhecida ou legitimada explicitamente e que se manifeste
com intensidades diferentes de acordo com as denominações. Porém, o mediador agora
passa a ser o líder protestante.
Os líderes pentecostais utilizam performances2 peculiares para determinados fins que
tocam diretamente os fieis. Alguns desses líderes são tidos como celebridades3 e
utilizam-se dos meios de comunicação para disseminar seus preceitos, conquistar
adeptos e mostrar a realização de atos milagrosos. Diante disso, os fieis autorizam uma
intervenção do pastor na sua relação para com Deus e suas práticas religiosas. O líder
carismático torna-se, portanto, um "mediador" agindo como canal para a manifestação
sobrenatural, estabelecendo sistematicamente a relação “fiel – pastor – Deus” e essa
mediação se acentua pela utilização da mídia televisiva.
2
Entenda-se performance como fluxos energéticos corporais e emocionais transmitidas pelo líder.
3
Ao se utilizar da mídia, o líder carismático adquiri visibilidade, se torna "inalcançável", o fiel admira e quer ser
como o líder. Ou seja a relação entre líder carismático e mídia produz a celebridade da fé.
2
utilitarista da tecnologia. Perceber a religião como mediação entre o ser humano e o
divino seria de fundamental importância para compreender que a mídia possibilita outros
meios ao qual a religião pode se aliar para realizar uma nova forma de mediação. Nesta
perspectiva o meio utilizado para realizar esta mediação também faz parte da realização
transcendental de contato com o divino. (AMARAL; SOUZA 2011). A autora tem uma
visão da mídia não só como definida por tecnologia modernas particulares, antes,
defende uma visão mais ampla da mídia: "como transportadores de conteúdo que
conecta as pessoas e o divino"4 (p. 27)
Simon Coleman aponta algumas características básicas do líder carismático. Dentre
elas está a capacidade de se estender até os ouvintes numa interação e provocação da
emoção do público. É neste ponto em que a mídia se faz um instrumento útil. Uma vez
que o líder se torna distante ou mesmo há uma impossibilidade do fiel de se locomover
ao local das reuniões da igreja, os programas religiosos transmitidos pelos canais de
televisão agem como uma espécie de “ponte”, uma ligação entre o fiel e sua crença. Mas
que para a mídia televisiva se tornasse uma aliada da religião foi necessário um exercício
de desconstrução da ideia de televisão como sendo um meio de comunicação que fere os
princípios cristãos.
Meyer (2011) chama atenção que a mídia, por privilegiar a imagem, o ícone, foi (e,
em menor grau, ainda é) negada pelo protestantismo histórico que não admite qualquer
espécie de adoração e é um crítico ferrenho da idolatria católica. A ideia protestante se
baseia no fato de que a mídia, por ser algo humano, não pode levar a Deus, pois isto é
feito apenas pela leitura da Bíblia Sagrada que proporciona uma ligação pessoal e
imediata com Deus, sem interferência de autoridades eclesiásticas.5
As igrejas protestantes históricas e das primeiras vertentes do pentecostalismo no
Brasil se posicionavam de forma contrária a televisão, pois afirmavam que esta última
apresentava apenas “o pecado” para a sociedade e que os adeptos dessas religiões não
deviam se contaminar com a “caixinha do diabo”. Foi um processo lento e ainda
inacabado, mas com o evento da modernidade podemos notar o quanto essas
4
"Our understanding of media moved from a view of media as defined by particular modern technologies
towards a broader view of media as transporters of content that connect people with each other and the divine."
(MEYER, 2011, p.27)
5
Meaning, content and inward belief are privileged above media, form and outward behaviour. Such a view
reflects Protestant self-descriptions as developed in reaction to Catholicism’s emphasis on sacraments and the
use of images. The Protestant charge of iconoclasm can fruitfully be analysed as a clash between competing
visions on media. Importantly, the Protestant critique of the power attributed to media in the Catholic church and
its own emphasis on reading the Bible did not simply yield a plea for substituting one medium (icons) for
another (biblical text). At stake was a move out of media, towards immediacy. The Protestant vision dismissed
religious media as human-made and hence misguided in getting close to God. Only by reading the Bible – the
living word of God – could believers achieve a personal and immediate link with God without the interference of
church authorities. (MEYER, 2011, p. 28,29)
3
concepções mudaram, pelo menos para algumas vertentes. Atualmente percebemos uma
forte presença do protestantismo na mídia em geral e especialmente na televisão.
O uso da televisão é muitas vezes reduzido ao desejo desesperado dos líderes de
converter indivíduos ou mesmo ao simples intuito capitalista de angariar lucro às custas
de patrocínios, vendas de produtos e pedidos de doações. Chamamos atenção, neste
artigo, que a inserção dos protestantes na mídia se dá por uma adequação da filosofia
religiosa para manutenção e extensão de suas práticas. Esta reformulação, admitimos,
tem um intuito de converter novos adeptos e caráter mercadológico, mas também tem
por objetivo alcançar espiritualmente seus adeptos em lugares “extra-muros da igreja”.
Campos (2011) reflete a transformação do pastor em celebridade, a forma de
autoridade do carisma pentecostal, sua circulação e transmissão do carisma. A autora
aponta que o carisma que "emana" do líder, circula entre os fieis. A mídia é acrescentada
por mim à essa circulação do carisma que acontece de três formas (comodificação do
carisma; parentesco; propagação coletiva), de forma que esses fluxos estão presentes na
comodificação apontada pela autora.
Assim, a mídia é um dos principais meios pelo qual esse carisma e circula e é
transmitido. No caso neopentecostal brasileiro é principalmente na TV e no rádio que os
lideres carismáticos estabelecem primeiro contato com o "futuro fiel" e mantêm o
"contato" com os seus seguidores. Por sua vez, este fiel fica admirado com os fenômenos
milagrosos ocorridos através do Pastor. Confinante a esse processo a figura do pastor se
destacada e, dotado do carisma, utilizam suas qualidades carismáticas para
determinados fins que tocam diretamente nos fieis. É assim que estes líderes
carismáticos terminam por ocupar um status de "celebridade" e de maior virtude, capaz
de ser mediador das intervenções divinas na vida dos fieis. Esses líderes dirigem várias
igrejas a nível nacional e internacional, através da TV e Internet levam sua mensagem
por todo o mundo e são capazes de conduzir e, em certo sentido, até controlar centenas
de seguidores que os tem, nas palavras de Coleman, como verdadeiros "santos
protestantes" (CAMPOS, 2011).
Assim, podemos constatar que a mídia é utilizada nos processos caracterizados por
estas teorias. A mídia televisiva passa a ter papel importante para a rotinização do
carisma, o pastor utiliza a mídia para reafirmar sua autoridade como líder carismático
(como apontou Weber, 2000) e angariar um quadro fixo de fieis, cotidianizando sua
atuação, mas também garantindo seu status de “celebridade”. Entretanto, é importante
perceber que a performance midiática do líder pode ser mimetizada, ou mesmo tornada
tema de conversas pelos fieis que querem demonstrar a amplitude de seu capital
religioso (de acordo com a teoria bourdieusiana).
Religião e mídia no Brasil: o caso dos Neopentecostais
4
Ricardo Mariano (2005), concordando com Freston, divide o pentecostalismo
brasileiro em três vertentes ou ondas denominadas pelo autor de "pentecostalismo
clássico", "deuteropentecostalismo" e "neopentecostalismo". Nos deteremos nesta
última.
O Neopentecostalismo constitui a vertente pentecostal mais influente e a que mais
cresce hoje no Brasil. Esta expansão está para além dos templos e denominações. Seus
adeptos estão presentes na mídia, na política, no comércio de produtos religiosos. Dentre
estes, a mídia é um expressivo meio de propagação de ideias religiosas.
O campo midiático tem interferido nas religiões e vice-versa. Ora os meios de
comunicação se debruçam, de forma informativa e crítica, sobre a questão religiosa, ora
os próprios religiosos se utilizam dos veículos midiáticos a fim de divulgar suas tradições
e crenças. Assim, não se torna tão absurdo assistir a um programa evangélico na
televisão, escutar pregações de pastores e sermões dos padres no rádio, rituais religiosos
na Internet e produções cinematográficas referentes ao Espiritismo.
A mídia em geral passou, ao longo do tempo, de um elemento demoníaco para um
canal para transmitir Deus. Os meios de comunicação são agora necessários para
propagação e reafirmação da crença. E se tratando do contexto pentecostal, a relação
religião e mídia se estreitam uma vez que o movimento neopentecostal desenvolveu os
primeiro passos para esta união.
Comumente o primeiro contato com os "futuros fieis" é mediado por um parente,
como mãe ou esposa6. Porém, com a larga atuação na TV e no rádio, os líderes
carismáticos passam a estabelecer também um primeiro contato com os fieis através
destes meios. Estes fieis por sua vez ficam admirados com as curas, libertações e
prosperidade emitidas através dos Pastores. Confinante a esse processo a figura do
pastor tem se destacado nitidamente. Dotado de carisma, os pastores utilizam suas
qualidades extraordinárias acompanhadas por performances peculiares para
determinados fins que tocam diretamente nos fieis. No entanto, estes líderes
carismáticos terminam por ocupar um status de "celebridade" e de maior virtude, capaz
de ser mediador das intervenções divinas na vida dos fieis. Esses líderes dirigem várias
igrejas a nível nacional e internacional, e através da TV e Internet levam sua mensagem
por todo o mundo e são capazes de conduzir e, em certo sentido, até controlar centenas
de seguidores que os tem como verdadeiros "santos protestantes".
No Brasil, são vários os exemplos de líderes pentecostais atuantes na mídia,
especialmente os que aderem aos meios de comunicação para propagação de suas
crenças. Dentre eles, o pastor Silas Malafaia, que, desde janeiro de 2010, é líder da
6
Ver: Mariz (1994); Mariz e Machado (1998); Campos e Gusmão (2008)
5
Assembleia de Deus Ministério Vitória em Cristo (antiga Assembleia de Deus na Penha)
com programas diários pela Rede Bandeirantes, como o programa Vitória em Cristo
(anteriormente chamado de "Impacto") que está na televisão há mais de trinta anos e é
transmitido em inglês e português para cerca de 137 países; o apostolo Valdemiro
Santiago, fundador da Igreja Mundial do Poder de Deus que, em parceria com a Rede
Bandeirantes, possui seu próprio canal de televisão7; o Bispo Edir Macedo, que em 1977
fundou a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), proprietária de várias empresas
como Rede Record, 62 emissoras de rádio no Brasil, gráficas, gravadora entre outras;
Romildo Ribeiro Soares, conhecido como Missionário R. R. Soares, desligou-se da IURD e
fundou a Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) em 1980 e hoje apresenta o
programa “Show da Fé”. O Missionário possui também empresas como Graça Artes
Gráficas e Editora Ltda. (adquirida em 1983), da Graça Music (uma gravadora gospel),
da Graça Editorial (uma editora) e da Graça Filmes, lançada em 2010 (distribuidora e
produtora de longas). As outras, tais como STB (Superior Technologies in Broadcasting),
RIT, Nossa Rádio e Nossa TV (TV por assinatura), pertencem à IIGD.
7
Em agosto de 2008, foi feito um acordo para pregarem na Rede 21 por 22 horas e outras 2 horas produzidas
pela rede.
6
bíblico para o presente através de um desenvolvimento íntimo com a vida de Jesus, que
tem uma ligação direta com a queda original do Espírito Santo. Assim, a ideia de
mediação parece ser anátema, uma barreira desnecessária.
A justaposição de precedente bíblico, formação da igreja e a natureza da vida célebre
do pregador não se constituem por acidente. "A busca generalizada pelo carisma tem os
seus vencedores. Aqueles que atingiram o sucesso carismático", ou seja, os santos
protestantes são "como resultado desta cultura da corrida pelo carisma assentada na
oralidade da Bíblia" (MAURICIO JUNIOR, 2011:91). A "agência de pregadores" não é
expressa apenas em seu próprio corpo, mas também na capacidade de cura espiritual,
êxtase, profecias, cumprimento das profecias, entre outros. As figuras dos santos são
modos de "encapsular" o sagrado. O corpo e a performance do santo é a chave para a
construção do sujeito religioso, ou seja, a formação (e manutenção) do líder carismático
e principalmente com a expansão, com aqueles que emergem na interação.
Diante disto, o trabalho "Transgressing the self: making charismatic saints" de Simon
Coleman (2009) que trata sobre os "santos carismáticos" apresenta algumas questões a
respeito dos elementos constitutivos da santidade: (1) como articular moral e espaço
geográfico combinando poder local e expansão da fé? (2) Qual o papel da narrativa, ao
invés de apenas textos na produção de santidade? (3) Qual a conexão entre a pessoa do
santo e as mais gerais construções do sujeito religioso? (4) como é o "milagroso" e como
se relaciona com a ontologia? Em resumo: localidade, narrativa e subjetividade.
Assim, Simon Coleman aponta algumas características básicas que o líder carismático
precisa ter para se tornarem realmente homens escolhidos por Deus. O primeiro princípio
é o da "mobilidade". De modo geral, o imaginário de viagens está centrado
principalmente num discurso protestante. A linguagem religiosa cristã deve ser cercada
dentro de fronteiras espaciais e temporais da comunidade face a face para que tenha
efeito completo. O pastor, líder carismático, deve atuar como mediador entre os
territórios e sua presença física é fundamental. O poder dos "pregadores móveis" não
reside apenas na sua capacidade de transcender barreiras culturais e políticas, mas
também de fazer parte da construção da personalidade espiritual. Mobilidade é a chave
para a grandeza carismática. Todo aspiram a santidade, mas apenas alguns são
chamados de "grandes homens de Deus".
"Narrativa" é o segundo princípio para a formação de um líder carismático. Sobre a
linguagem, Coleman percebe que é de extrema importância indicar a presença do texto
no movimento pentecostal, além da performance, bem como a ideia de não separar texto
do corpo, pois esse texto, seja lido, cantado ou dançado, está presente em tudo,
inclusive numa técnica de justaposição em que o pregador se coloca no lugar dos heróis
bíblicos. A linguagem falada, embora divina, emerge do corpo do pregador e também é
7
assimilada pelo corpo do ouvinte. O pregador, como pessoa pública, espera que suas
palavras sejam estudadas, discutidas e assimiladas. A oratória do pregador é reforçada
pela linguagem corporal, pela performance do líder. O pregador é a sua história, como se
as histórias dos grandes heróis bíblicos fossem transpostas para a história de vida do
pregador. Os pregadores usam a técnica verbal e corporal para a conversão. A ideia da
Palavra de Deus como "semente", não só remete a um "nascimento", como também a
um crescimento interno. O fiel concebe o líder como um exemplo a ser seguido, para tal
desenvolvem a mesma retórica, mesmo que em menor grau. Assim, segundo o autor,
para obter o título de "pregador", "santo protestante" ou "líder carismático" é preciso ser
um mestre da oratória.
A tentativa do pregador de estabelecer uma relação envolvem práticas corporal e
verbal que sugerem a possibilidade de construir um vão entre o poder do pregador e os
crentes comuns, de forma que o pregador ocupe um status de "mais santo" que outros.
O pregador deve alcançar seus ouvintes, a palavra e a performance deve tocar, atingir, é
a capacidade de se estender até os ouvintes numa interação e provocação da emoção do
público.. É isso que o diferencia de outros pregadores: o princípio de "reaching out".
Neste terceiro ponto, Coleman aborda a capacidade de extensão que o pregador tem.
Esta extensão é provada quando a interação entre pregador e crente comum gera um
"fluxo espiritual" que passa do pregador para o crente comum e deste para outro e assim
por diante, numa espécie de cadeia. Campos (2011) sugere em seu artigo que a mídia é
parte ou elemento fundamental para a potencialização do reaching out e este trabalho
pretende contribuir com esse argumento apresentando as análises dos dados
etnográficos.
Assim, Coleman analisa como a relação de dominação surge em termos práticos,
performáticos, procurando os mecanismos sociais e coletivos da produção do líder,
focando a perspectiva do fiel.
Durante este trabalho analisamos que o pastor ocupa um status de celebridade por
estar presente na mídia, utilizando-a para expor suas crenças e exibir seus feitos, em
outras palavras "mantendo seu posto de carismático", rotinizando o carisma. Abordamos
ainda que, de acordo com Coleman, uma das características para torna-se um pregador é
o princípio de "reaching out" em que o pregador deve ter a habilidade de envolver o
ouvinte na pregação tocando-o, chegando até ele, estendendo-se até atingir o público.
8
Vimos também esta interação entre pregador e crente comum deve gerar um "fluxo
espiritual", ou seja, um momento de efervescência coletiva8.
Neste ponto nos voltamos para Durkheim (1968) quando ele trata sobre a vida
religiosa. Segundo o autor um grupo religioso tonifica "periodicamente o sentimento que
tem de si mesmo e de sua unidade. Ao mesmo tempo, os indivíduos são reafirmados na
sua natureza de seres sociais" (p. 536). Nestes momentos de reanimação, através de
uma festa (ou no caso neopentecostal, uma "reunião avivada"9), a energia do coletivo
8
Agitação do espírito, excitação, exaltação, comoção, movimento, desde que manifestos por um grupo, ou seja,
coletivamente. No caso pentecostal, esse momento de efervescência coletiva é caracterizado pelo manifestação
do Espírito Santo.
9
Faço uma ressalva neste ponto, pois Durkheim usa a terminologia 'festa' para tratar do momento de
efervescência, porém, não é do interesse deste trabalho discutir a definição de 'festa'. Diante disto, preferi usar o
termo nativo (reunião ou culto avivado) para as reuniões em que ocorre a efervescência.
Bibliografia
performance do líder e sua interação com os fieis" Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel
reflexão sobre a atuação dos líderes pentecostais na mídia televisiva.” Anais: Encontro de
___________. A Economia das Trocas Simbólicas. 6ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva,
2007a. p. 27-98.
___________ Sobre o poder simbólico. In: ______. O poder simbólico. 11ª edição. Rio de
9
CAMPOS, Roberta Bivar Carneiro. Para além da Dominação: carisma e modo de vida entre
e confiança, na IURD. Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 12, volume 19(1): 91-122 (2008)
CAMURÇA, Marcelo Ayres (2006). “A realidade das religiões no Brasil no censo do IBGE-
COLEMAN, Simon. Transgressing the self: making charismatic saints. Critical Inquiry:
Faith without bordes: the curious category of the saint. v. 35, n. 3, p. 417-439, 2009
http://www.scielo.br/pdf/ea/v18n52/a10v1852.pdf
ROBBINS, Joel. Pentecostal networks and the spirit of globalization: on the social
10
atingiria o seu apogeu no momento de maior "efervescência" dos participantes. Ele
observa que esta efervescência "muda as condições da atividade psíquica. As energias
vitais são superexcitadas, as paixões mais vivas, as sensações mais fortes" (Ibid, p.603).
Além disto, para que ocorra, este fenômeno pressupõe um coletividade.
Porém, quando a mídia é utilizada para fins religiosos, dois fenômenos ocorrem: 1) o
fiel torna-se audiência; 2) o pastor ocupa o cargo de "celebridade", ao mesmo tempo que
obedece ao princípio de "reaching out" observado por Coleman. O primeiro ponto nos
possibilita refletir sobre o fato de que, uma vez mudado o lugar do fiel, muda-se também
o lugar do líder carismático e a performance deste último. Já o último ponto permite-nos
afirmar que a mídia age como "mediadora", um canal, entre o pastor, celebridade tão
distante, e o fiel, audiência admiradora do líder. A mídia proporciona ao pastor, a
extensão, o "deslocamento" que é fisicamente impossível. Com o líder celebridade, o
fiel, por vezes age como fã, querendo tocar, tirar fotos, receber uma oração especial,
frequentar a igreja do líder carismático mesmo que não seja a sua congregação habitual.
Existe então um paradoxo: por um lado a mídia cria a distância ao transformar o pastor e
em celebridade e por outro aproxima na medida que funciona como um canal, uma
mediação com o divino a partir do líder. Aqui o que se tem é a vivencia afetiva do
carisma. A potencialização se dá em um paradoxo. (Campos 2011)
Desta maneira, o fiel reconhece que o "poder que há no pastor" pode alcançá-lo -
através da mídia - mesmo que ele não esteja presencialmente na igreja. O depoimento
(ou testemunho) de duas fieis na IIGD, sede, em Recife, nos permite verificar na prática
como este fenômeno se dá. A primeira mulher diz: "Pastor, eu estava com artrose e não
podia ir à igreja. Mas assisti o seu programa cedinho... Me acordava e ligava logo a TV...
Quando o senhor disse que era pra colocar o copo com água que o senhor iria orar, eu
corri, peguei o copo com água e coloquei perto da televisão. Depois que o senhor orou eu
tomei com muita fé e minha artrose melhorou" (Diário de Campo, 25/11/2011). A
de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: Editora da UnB, vol. II, 1999.
de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: Editora da UnB, vol. I, 2000.
11
segunda fiel nos exemplifica melhor o que chamamos de "efervescência coletiva
imaginária": "Pastor, eu sou da IIGD, sede, mas não estava mais com vontade de ir na
igreja... Estava com um frieza e não queria sair de casa. Assisti o seu programa e vi os
testemunhos e apareciam. Comecei a dar glória Deus... Abri a Bíblia, como se estivesse
na igreja, orei junto com o senhor... De repente, comecei a me alegrar, parecia que o
fogo da igreja estava na minha casa." (Diário de Campo, 13/01/2012)
Nos dois depoimentos, podemos perceber a extensão do pastor, do culto e da palavra
através da mídia. Proponho, então, refletirmos uma continuação do conceito de
efervescência apresentado por Durkheim. No segundo depoimento houve uma
efervescência coletiva, porém de forma "virtual", "imaginária" ou mesmo "solitária", pois
a mulher que prestou o testemunho estava em casa, provavelmente sozinha, mas se
imaginou dentro da igreja, realizando os mesmos rituais e "sentindo o mesmo fogo" da
igreja.
Portanto, podemos concluir que quando o fiel é uma audiência, que participa
isoladamente da pregação (pela TV, rádio ou outro meio que faz o pregador estar longe
fisicamente), é possível uma "efervescência solitária" (quanto ao físico) que transcende a
coletividade material imprescindível para Durkheim. Afirmo, assim, que faz-se uma
"coletividade imaginária" que faz o fiel-audiência sentir-se imerso no ambiente do
pregador. Esta "fantasia" do indivíduo proporciona um "êxtase espiritual" que independe
do local ou da coletividade presente.
Considerações Finais
Perceber o entrelaçamento entre mídia e religião não é mais tão obscuro. Na
atualidade esta relação se torna cada vez mais forte e visível. Este trabalho propôs a
fazer uma reflexão sobre o papel da televisão na construção do espaço religioso
pentecostal e apontar suas interferências na interação do fiel com este espaço. Porém
refletimos que, como ressaltou B. Meyer, não devemos cair numa visão utilitarista e
admitir apenas o caráter comercial, acusando os líderes e igrejas de utilizarem a mídia
com objetivos principal de "merchandagem" e colocar o objetivo religioso de forma
reducionista. Neste trabalho não eliminamos o caráter comercial, mas fazemos uma
reflexão que, para além deste, existem muitos outros fatores de âmbito religioso.
A religião que um dia foi inimiga mortal da mídia condenando-a ferreamente, com o
movimento neopentecostal inverteram-se os polos e de "caixinha do diabo" a mídia foi
transformada em "instrumento de pregação". Junto com este processo, os líderes das
igrejas que se apropriaram da mídia se tornaram celebridades e graças a divulgação
midiática dos fenômenos sobrenaturais apresentados, o pastor passou a ser também
mediador desses milagres. Este trabalho se propôs a fazer uma reflexão sobre a
12
transformação do uso da mídia e o papel exercido por ela no posicionamento do pastor
como "celebridade" e do fiel "audiência". A descrição etnográfica, embasada
teoricamente, apresenta de forma empírica como se dão estes processos na prática,
tendo em base as observações feitas na Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) na
cidade do Recife.
A mídia televisiva torna-se um canal de mediação entre o fiel e o pastor, assim como
a religião é um canal entre o fiel e o divino. (Meyer, 2011). Como nos demonstra
Coleman (2009) é de essencial importância a extensão do líder ao fiel, assim os
programas de televisão como mediadores entre estes possibilitariam esta extensão
aproximando líderes e fieis. Concluímos, portanto, que há um paradoxo: por um lado a
mídia cria a distancia ao transformar o pastor e em celebridade e por outro aproxima na
medida que funciona como um canal, uma mediação com o divino, com o carisma do
líder. (Campos, 2011)
Assim, deve-se considerar que o uso da mídia pelas igrejas e pastores pentecostais
envolve objetivos que superam as dimensões mercadológicas e/ou de dominação. Este
uso envolve características de cunho espiritual e material os quais muitas vezes se
confundem e não implicam na negação de um pelo outro.
13
1
Resumo
Introdução
1
Professora do curso de Comunicação Social da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Doutora em
Educação. rnadia@terra.com.br.
2
Graduando de Comunicação Social da Universidade Estadual da Paraíba. emilson.garcia@bol.com.br
2
suas crenças e alimentando a efervescência que cerca esse debate. Desse modo,
entendemos que trazer esta discussão para o campo da comunicação social significa
propor um cenário de pensamento que busque compreender a convergência do
pluralismo religioso com a presença imperativa que a mídia tem assumido no nosso
cotidiano.
Assim, precisamos considerar e atentar para a mundialização de ideias típicas
da modernidade, num momento em que as diversas religiosidades ganham cada vez
mais espaços na mídia sob a forma de telenovelas e produções cinematográficas (as
surpreendentes bilheterias dos filmes Chico Xavier, Bezerra de Menezes, Nosso Lar e
As mães de Chico Xavier, investimentos da Globo Filmes, ilustram essa perspectiva),
bem como artigos na imprensa diária e revistas semanais. Reportagens especializadas
abordam temas ligados à expansão evangélica, aos fundamentalismos religiosos, à
crise institucional do catolicismo, às religiões mediúnicas e aos movimentos da Nova
Era, identificando as matrizes transversais que perpassam essa relevante discussão
nas suas interações com os campos da Sociologia, da Comunicação, das Ciências da
Religião, da Antropologia, da Filosofia, aliadas às vivências pessoais dos sujeitos que
se deparam com os impactos dessa conjuntura. Cursos em nível de pós-graduação
sobre Ciências das Religiões também são criados em várias universidades do país, a
fim de perscrutar esse universo. Verificamos, desse modo, que o pluralismo religioso
instiga uma série de debates em diversos âmbitos da sociedade que buscam analisar o
atual significado da religiosidade na época contemporânea.
Esse contexto “espectral” (Burity, 2005) no horizonte do debate religioso, uma
vez que as interferências de cunho doutrinário não são percebidas com nitidez nos
espaços sociais e mostram-se “opacas e nebulosas” em suas expressões, reflete um
processo de longa duração e de apropriação dos processos da dinâmica cultural numa
sociedade intensamente permeada pela influência midiática. Vivenciamos, pois, um
paradigma de religiosidade profundamente afetado pela ruptura das tradições
acompanhado de uma crise do pertencimento institucional de matriz religiosa.
Trata-se de uma época de mutação, marcada pela liberdade de crença e de
pensamento, influenciada pela descartabilidade das escolhas dos grupos sociais.
Momento histórico em que o pluralismo acena com a perspectiva de assimilação de
novas vertentes, talvez trazendo de volta a dimensão emocional da fé, atrelada à
exteriorização das práticas, a ausência de fé, ou a evidência da diluição de qualquer
crença. Neste sentido, entendemos que tanto a intensidade do vínculo entre religião e
mídia como sua percepção e avaliação por diferentes atores sociais tornam-se
oportunas nesses novos tempos de transição em que as pessoas mudam de
pensamento religioso como mudam de canal televisivo.
3
3
Para Weber (1991), o homem moderno perderia a magia da religiosidade. Ao invés de conviver com o mistério,
buscaria explicações racionais e científicas para a vida, num processo denominado de “desencantamento do mundo”. O
retrocesso desse fenômeno seria, portanto, o “reencantamento do mundo”. In: WEBER, Max. Economia e sociedade:
fundamentos da sociologia compreensiva. Vol.1. Brasília: UNB,1991.
5
negação advinda desse processo pode ser viabilizada a partir dos enquadramentos
produzidos e apresentados no programa Sagrado.
Interessa-nos, desse modo, investigar se os conteúdos expostos no programa
instigam rearranjos identitários entre o público receptor e como o fazem, o que nos
parece justificar a vinculação do estudo com a vertente dos Estudos Culturais. Essa
pretensão temática emerge, sobretudo, da percepção da pluralidade religiosa que
permeia o país, considerado lugar multicultural, privilegiado pela “tolerância” em
diversas crenças. Tal conjuntura, por sua vez, permite que a comunicação televisiva
busque criar momentos de discussão sobre as diferentes expressões da fé do povo
brasileiro. De acordo com Martino (2003), esse fato pode ser considerado o ponto de
partida para a “inserção da religião no contexto midiático, suscitando relações
complexas no entorno social e muitas vezes sendo o canal que diversas igrejas
utilizam para se manter no horizonte da visibilidade” (Martino, 2003, p. 8).
Conclusão
A compreensão das mensagens de cunho religioso passa necessariamente
pelas possibilidades de recriação social e não somente pelas ações de receber e
decodificar determinados conteúdos. No processo de midiatização, o ato de
significação cultural atrela-se às diferentes maneiras de se ler, ver e ouvir mensagens,
requerendo atitudes e reações. As visões que o discurso religioso do Sagrado desperta
na audiência implicam, portanto, construções de outros discursos, daí a necessidade
de se conhecê-los, mediante uma pesquisa de recepção sobre possíveis formações
identitárias.
O estudo da literatura existente sobre a temática aponta que as novas
dinâmicas do campo religioso fazem circular no espaço social diferentes bens
simbólicos na perspectiva do ecumenismo. À luz desse fato, torna-se válido indagar:
como as diferentes discussões religiosas são recebidas e (re)interpretadas, e quais as
lacunas e as conexões de sentido que são sugeridas pelo discurso do pluralismo
religioso na contemporaneidade?
Nesse processo, entendemos que as narrativas de caráter religioso requerem
mais habilidades e competências interpretativas do público receptor, porque
mobilizam aspectos que vão além do ato de ver ou ler a realidade mostrada,
sensibilizando a audiência para determinados ângulos dos fatos: estas requerem, na
verdade, a compreensão daquilo que constitui significativamente as intencionalidades
das mensagens. Ponderamos, pois, que esse ato de significação midiatizado produz as
interações que se materializam no cotidiano e influencia as escolhas do público por um
8
Referências
BURITY, Joanildo A.. Mídia e religião: os espectros continuam a rondar. Revista Com
Ciência, nº 65, Maio, 2005.
______. Midiatização e processos sociais na América Latina. São Paulo: Paulus, 2008.
GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005.
1
Esse artigo é parte da dissertação Adolescer em um Contexto Fundamentalista Pentecostal Gaúcho
apresentado pelo mestrando Luciano de Carvalho Lirio, sob a orientação da professora: Dr. Gisela I.W.
Streck no PPG – EST, com apoio CAPES.
2
Bacharel em Teologia (SETECERJ) e (Faculdades EST); Licenciado em História (UERJ); especialista em
História Moderna (UFF); associado à Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR). Atualmente
Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Teologia ( EST ), com apoio CAPES – Brasil, contatos :
lucianomission@yahoo.com.br.
referência e apoio capaz de tranqüilizá-lo. A Igreja e as redes sociais são balizas
sociais para esses adolescentes. É o retorno à segurança primeira, perdida com o fim
da infância, mas readquirida através dos ensinamentos, da afetividade do grupo e do
carisma do líder. A sensação de desamparo oriunda da falta de parâmetros na pós-
modernidade leva o adolescente ao isolamento proveniente do individualismo
exacerbado. O ciberfundamentalismo não pretende a modernização da religião, mas a
fundamentação religiosa e explícita da modernidade. No ciberfundamentalismo ele
encontra outros adolescentes que se identificam através de símbolos e imagens e
percebem-se como parte integrante de uma missão maior, que transcende à sua
própria existência. No site oficial da Igreja Batista Conservadora é possível encontrar
uma mensagem bíblica de encorajamento do líder da denominação, testemunhos de
membros e uma seção para postar pedidos de oração.
Se no passado da humanidade a adolescência poderia representar apenas o
período preparatório para o ritual de passagem, na pós-modernidade a entrada em
grupo na internet tem o mesmo valor para um adolescente. O ciberfundamentalismo
acolhe o adolescente, através de um grupo de adolescentes e jovens, por perceber
que os rituais de passagem na contemporaneidade se dão entre os jovens e não mais
na sociedade no coletivo. A valorização do adolescente pelos seus pares passa a ser
encontrada através da sua inserção em um grupo identitário.
O adolescente se identifica com os padrões comportamentais e doutrinários do
grupo, pois estes lhe oferecem respostas que lhe proporciona uma razão social para
existir. O processo de adultez precoce também lhe cai bem, pois ele passa a ser
reconhecido pelo grupo como um jovem adulto e não mais como uma criança. O
adolescente é um ser em busca do sentido da vida e nesta caminhada procura a
integração das várias dimensões que constituem o seu existir humano.
Segundo Fowler, durante o estágio de fé sintético-convencional, Deus ainda é
visto de maneira antropomórfica, sendo a sua imagem a síntese daquilo que foi
ensinado a respeito da divindade com aquilo que a pessoa mesma imagina a respeito
de Deus. Os símbolos estão ligados nessa fase, aos seus sentidos. (FOWLER, 1992, p.
202-3)
Existe uma demanda religiosa nas redes sociais. Nos primeiros doze anos do
Século XXI percebe-se tanto o previsível crescimento dos evangélicos quanto o
inusitado aumento do número dos sem religião nas pesquisas do Censo/IBGE que
incluem ateus e agnósticos. O Brasil está deixando de ser um país majoritariamente
católico e se tornando predominantemente pluralista. O embate religioso se faz nas
mídias e no ciberespaço. A religiosidade virtualiza-se no “espaço de comunicação
aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias informáticas, isto
é, o chamado ciberespaço”. O termo ciberespaço foi criado pelo escritor Willian
Gibson, no livro de ficção científica Neuromancer, de 1984 e segundo Lévy :
3
VALLE, E. Psicologia da Religião. In: USARSKI, F.(org). O espectro disciplinar da Ciência da
Religião. São Paulo: Paulinas, 2007.
também o universo oceânico de informações que ela abriga,
assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse
universo.4
Pierre Lévy fala que embora pareça que há uma oposição entre o virtual e a
realidade, o virtual não se opõe ao real. O mundo digital não é uma saída, uma opção
de fuga da realidade, mas um plano de existência palpável ao contato físico através
dos dispositivos que podem ser tocados, transportados e manipulados pelo ser
humano. As mídias digitais enriquecem as vidas, possibilitam novas formas de
comunicação e constroem uma nova compreensão do mundo ordinário.
No ciberespaço a realidade é virtual, mas não é uma realidade paralela, ela faz
parte da vida de muitas pessoas; a internet está integrada ao cotidiano
contemporâneo. É um espaço desterritorizado, sem presença física, habitado tanto
pelo sagrado quanto pelo profano. É um espaço de informações alimentadas pelas
tendências da sociedade. Ele não é um campo estéril, é preciso saber que semente
plantar no espaço virtual e ser criterioso ao escolher os seus frutos. Um ambiente
culturalmente construído e antropologicamente concebido.
4
LÈVY, 2000, p.91.
5
BOFF, Leonardo. Fundamentalismo: a globalização e o futuro da humanidade. Rio de Janeiro:
Sextante, 2002. p.64.
através das quais os objetos técnicos são concebidos e
utilizados pelos homens que os inventam, produzem e usam.6
6
LÉVY, 2000, p. 26.
7
JUNIOR, Milton. Pensando Alto sobre o UFC e afins... Disponível em:
< http://bibliacomisso.blogspot.com.br>. Acesso em: 14 jul. 2012.
8
BEALE, David O. Quem São os Cristãos Fundamentalistas e Por Que Estão Sendo Insultados
por Outros Grupos 'Cristãos'? Disponível em: <http://www.espada.eti.br/n1861.asp>. Acesso em
O triunfalismo gospel pode afirmar que “a internet é dominada por
religiosos” e os ateus blogueiros da Tropa dos Lanternas Verdes declaram
explicitamente que a internet é dominada pelos ateus. Ambos têm razão a respeito
do ciberespaço ocupado por cada um. A rede proporciona, conforme os interesses,
uma leitura parcial da realidade que leva o usuário a pensar dessa maneira. A
sociedade moderna é fragmentada em diversos grupos sociais e esses grupos lutam
pela supremacia simbólica para imporem a definição que se acredita. O ciberespaço
virou também um campo de lutas simbólicas pela hegemonia cultural nas
sociedades. As novas tecnologias de informação, neste caso o surgimento das redes
sociais, criaram várias comunidades virtuais, com identidades próprias.
20 fev. 2013.
9
BOFF, Leonardo. Fundamentalismo: a globalização e o futuro da humanidade. Rio de Janeiro,
Sextante, 2002.p.63.
posição "eclética" (ou self-service – ou “escolha a Bíblia que
você gostar mais”) de usar ou tolerar a Bíblia Almeida
Corrigida e Fiel (ou até mesmo o Texto Recebido) nas classes,
mas usam / toleram / não condenam as Bíblias corruptas
como a Atualizada, NVI ou Linguagem de Hoje. Além disso,
há o uso do Texto Crítico, ou do outro falso Majoritário (de
Hodges-Farstad - 1982). Isso é o fermento que tem levedado
a massa do fundamentalismo e deve ser tenazmente
combatido pelo remanescente fiel.10
10
ALMEIDA, José Pedro M. Seminários Fundamentalistas no Brasil que apostataram para
o texto crítico. Disponível em <http://www.baptistlink.com>. Acesso em 12 jul. 2012.
11
SILVA, Hélio de Menezes. Sites Batistas Fundamentalistas. Disponível em:<http://solascriptura-
tt.org>. Acesso em 12 jul. 2012.
12
BERNARD, Arthur. Templo de Salomão – Ultraje ao Evangelho. Disponível
em:<http://umremanescente.blogspot.com.br>. Acesso em 12 de jul. 2012.
13
BURITI Davi. O Movimento Fundamentalista Bíblico. Disponível em
<http://selecoesbiblicasfundamentalistas.blogspot.com.br>. Acesso em 12 jul. 2012.
Os ciberfundamentalistas brasileiros encontram munição para os seus
ataques em sites fundamentalistas estrangeiros, sobretudo norte-americanos. São
perfis individuais, páginas de conteúdo ou sites oficiais de igrejas que se
preocupam, sobretudo, em demonstrar porque são fundamentalistas e não apenas
evangélicos. Nos sites em que o referencial estadunidense é ressaltado é possível se
conectar com as matrizes e conhecer a indústria do mercado fundamentalista
cristão. É possível perceber que praticamente todo o material utilizado no
ciberespaço fundamentalista brasileiro provêm da língua inglesa. Os sites brasileiros
são vitrines em língua portuguesa do material produzido nos Estados Unidos. Devido
à sua matriz norte-americana, o ciberfundamentalismo difunde algo que é típico dos
Estados Unidos; as teorias da conspiração. São teses com base em fatos ou sinais
que aparentam ações de uma entidade, governo, pessoas, empresas, sociedades
que em benefício próprio seria capaz de provocar uma hecatombe mundial. Os
fundamentalistas não são os inventores das teorias da conspiração, mas alimentam
esse ciclo porque continuam fazendo sempre as mesmas perguntas e não
concordam com as respostas plausíveis para as suas indagações. Através da mídia
promovem campanhas contrárias e boicotes a empresas supostamente
financiadoras de organizações e sociedades secretas.
Para os que acreditam somente nas teorias da conspiração estas são o
verdadeiro motor da história. Pessoas, instituições e governos têm sido vítimas
dessas teorias. Essas teorias trazem benefícios para os ciberfundamentalistas. Eles
se sentem privilegiados por conseguirem decifrar um plano secreto contra a
humanidade. O compartilhamento desse saber transmite a sensação de pertencer a
um grupo seleto da humanidade. Eles se vêem como seres únicos.
Quando o Anti – Cristo encenar sua aparência, ele vai alegar ser
um mestre ascensionado de outra dimensão, ou seja, um ser
alienígena. Ele é apenas tão amigável quanto os estrangeiros
que você tem visto na TV e filmes. Ele tem apenas os melhores
interesses no coração... Líderes da nova era acreditam que as
pessoas ficarão muito mais inclinadas a aceitar as reivindicações
do Anti-Cristo, se eles já acreditam em Aliens.14
14
SKIBA, Rob. Archon Invasion: The Return of the Nephilim. Disponível em:<
http://www.cuttingedge.org/index.html>. Acesso em 21 jan. 2013.
criacionistas, separatistas. Assumem em tempos do politicamente correto, seu aspecto
não denominacional, anti-carismático, anti-G12, anti-"igreja com propósito", anti-CMI,
antidivorcista, anti-arminianismo.
15
ALMEIDA, José Pedro M. Biblioteca Batista Independente Online. Disponível em
<http://www.baptistlink.com>. Acesso em 12 jul. 2012.
16
http://selecoesbiblicasfundamentalistas.blogspot.com.br/2007/11/movimento-fundamentalista-
bblico.html
enquanto a versão ARA foi compilada a partir da mistura dos
manuscritos do TR e do TC (TEXTO CRÍTICO),de Westcot, e a
versão BLH,a mais prostituída de todas, é baseada apenas
nos manuscritos do TC, que não existiam quando Almeida
traduziu a Bíblia p/ o nosso idioma. Qualquer versão que
modifique, altere ou acrescente qualquer coisa à Santa
Palavra de Deus, é obra do maligno, é prostituição da
Verdade, e como tal, deve ser desprezada por quem ama a
Palavra de Deus.17
17
ASSUERO, Moderador. Qual é a versão correta da Bíblia? Disponível em:<http://gospel-
semeadores-da.forumeiros.com> Acesso em 10 jul. 2012.
18
ASHBROOK, John E. Separação Eclesiástica. Disponível em: < http://solascriptura-tt.org>.
Acesso em 10 jul. 2012.
ilustrações que reforçam valores e conceitos doutrinários da teologia cristã protestante
conservadora.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
3. O Criacionismo sustenta que todos os seres vivos existentes foram criados por
um ou mais entes inteligentes. Esta é a hipótese de maior recepção em todo o
planeta, elaborada em oposição à teoria evolucionista.
Resumo
Este trabalho tem por objetivo pensar a criança pastora como ator social,
observando o conteúdo midiático gerado através desse fenômeno. Irei citar ao
longo do texto algumas questões levantas em sites falando sobre crianças que
pregam, como também, vídeos da internet que tem crianças pastoras e programas
de televisão que falam sobre esse evento. Os métodos utilizados foram: leitura
bibliográfica sobre a criança como ator social, como: Ariès (1981), Belloni (2009),
Cohn (2005), Corsaro (2005), Fernandes (2004), Hirschfeld (2002), James (2005),
Prout (2005), Mauss (2010), Mead (1932), Pires (2010), Schildkrout (2002), Nunes
(2002); observações de campo em igrejas evangélicas com crianças pregando;
analises de vídeos da internet e programas de televisão que falam sobre um
assunto. Observando a repercussão das crianças pregando na mídia, alguns sites
da internet como: “Dilma na rede”, diz que crianças que pregam são vistas como
um crime da moda, protestando pelos direitos delas, considerando esse ato como
um trabalho infantil. Considerando os discursos apresentados pelos sites e
programas de televisão, junto com os comentários da sociedade, é possível
observar o embate entre essas opiniões. No intuito de refletir sobre a imagem
dessas crianças na mídia, a opinião das pessoas que assistem, tendo como
finalidade uma reflexão sociológica sobre as crianças que pregam e os vídeos.
Introdução
Este trabalho tem por objetivo pensar a criança pastora como ator social,
observando o conteúdo midiático e cultural gerado através desse fenômeno. Irei
citar ao longo do texto algumas questões levantas em sites falando sobre crianças
que pregam, como também, vídeos da internet que tem crianças pastoras e
programas de televisão que falam sobre esse evento. O ensaio será dividido em
quatro partes: como é pensada a infância; as crianças que pregam e a imitação; a
mídia e as crianças que pregam; e o conceito de cultural no sentido diferencial.
Ou seja, nas palavras da autora, a infância é uma categoria que por si só,
pode e deve ser estudada, tanto quando as questões de gênero e classe. Pois, é a
partir da década de 70 que inicia essa preocupação de tornar dependente esse
conceito de criança, abrindo espaço para ser construída na categoria de geração.
Neste sentido, a infância é pensada pelos adultos como a idade imatura não
apenas biologicamente falando, mas socialmente também; a infância significaria a
preparação para um “mundo” adulto, ou seja, somente na fase adulta se tornaria
um ser social. Neste ponto, Ariès mostra como eram vistas as crianças desde a
Idade Média, e através de seu relato histórico podemos observar a “insignificância
da infância”:
2. A agência infantil
As crianças tem um papel dentro dessa sociedade dos adultos, elas podem
até serem pensadas em independência, mas não são separadas, é do conjunto
entre crianças e adultos que podemos ver as suas expressões, as suas vozes, é
através do contexto que podemos falar que as crianças são agentes sociais. Autores
como James (2005), Cohn (2005), Nunes (2002), Corsaro (2005) estarão presentes
nessa sessão no intuito de reafirmar o papel da criança na sociedade dos adultos, o
papel de agente social.
James e Prout na construção do novo paradigma nos proporciona ter um
olhar diferenciado para a questão da criança:
O autor lança uma nova ideia, a questão de que as crianças possuem sua
própria sociedade, nesse ponto não concordo com ele, por que como já indaguei, as
crianças podem ser independentes, ser agentes, mas não possuem uma sociedade,
por que elas não podem ser separadas do contexto comunitário em que vivem. Elas
possuem normas e regras próprias, mas não uma conduta que produz sociedade.
As crianças fazem sentidos e está interpretando sentidos. A grande questão é
pensar que a criança pode produzir informações para além da infância.
Esse texto tem também a intenção de pensar nas crianças que tem vídeos e
entrevistas na mídia; a maioria de textos, artigos que falam sobre criança e mídia
tem relação com o consumo, ou seja, com o consumo das crianças através da
televisão. Esse texto faz o movimento inverso, sai da mídia que fala e mostra as
crianças pregando, e entra em um estudo sociológico na busca de analisar a
repercussão das crianças na mídia, pretendo colocar o que eu observo em lócus
sobre a face da formação das crianças na igreja.
1
http://dilmanarede.com.br/ondavermelha/blogs-amigos/criancas-pastoras-e-o-crime-da-moda-em-
algumas-igrejas.
No programa “Pregadores Mirins”2, do canal National Geografic exibiu no ano
de 2011 e 2012, um programa com três crianças diferentes que “promovem uma
guerra contra os pecadores”. A reportagem da emissora apontava o crescimento
desse fenômeno, e a aposta das igrejas nessas crianças, que muitas vezes não
sabem nem ler. Fora os inúmeros vídeos exibidos pelo site youtube, com crianças
pregando.
Nesse espetáculo, as crianças são vistas como pessoas que tem um dom,
que já nasceu com esse dom. De acordo com a literatura sócio-antropológicas nada
é inato, tudo é construído socialmente, se a criança tem tendências a pregar e
possui a retórica, isso foi sendo construído na sua formação dentro da unidade
religiosa que ela foi colocada.
Certas igrejas tem um culto especial uma vez por mês para que as crianças
preguem, isso acontece em muitas igrejas. O caso é que colocar as crianças
pregando na rede é problemático por que a sociedade vai olhar para isso com maus
olhos, mesmo que saibam ou não, que esse mesmo conteúdo também é usado nas
igrejas, mas a partir do momento que isso ganha espaço, vira um “crime da moda”,
expondo a ideia da criança como um “adulto em miniatura”, causando espanto.
2
http://www.natgeo.com.br/br/especiais/pregadores-mirins.
Para pensar sobre o que acontece com crianças que pregam, estou
realizando um trabalho de campo na igreja Adventista, que possui crianças que
pregam, onde, até o presente momento não assisti nenhum culto que essas façam.
Observo a formação dessas crianças na Escola Sabatina, que são aulas que
as crianças têm todos os sábados, com lições que são lidas a semana inteira com a
família, essa Escola é dividida em idade, e por isso, os adolescentes e adultos
também tem essas aulas, o que significa que, não são só as crianças que estão em
formação, os adultos também. Por isso partilho com Pires que “compreender a
religiosidade infantil pode levar-nos a melhor compreender a religiosidade nos
moldes adultos”. (2011, p.23)
Considerações finais
Referências
Livros:
ARIÈS, Philippe. 1981 [1962] (2a. edição brasileira). História Social da Criança e
da Família. Rio de Janeiro: LTC Editora.
NUNES, Ângela; Aracy Lopes da Silva; Ana Vera Lopes da Silva Macedo
(organizadoras). Crianças indígenas: ensaios antropológicos. SP: Global, 2002 –
(Coleção antropologia e educação).
Artigos:
FERNANDES, Florestan. As “Trocinhas” do Bom Retiro. Pro-Posições, v. 15, n.
1(43)- jan-abr; 2004.
MEAD, M. 1932. “An investigation of the thought of primitive children, with special
reference to animism”. Journal of the royal anthropological institute, 62,
173-190.
Sites:
Site do Youtube:
http://www.youtube.com/results?search_query=crian%C3%A7as+pastoras&oq=cri
an%C3%A7as+pastoras&gs_l=youtube.3...18272.21932.0.22420.17.17.0.0.0.0.32
6.2463.7j5j4j1.17.0...0.0...1ac.1.6OoEIF0RfBE. Visualizado em 13 de março de
2013
LAICIDADES E SECULARIZAÇÕES: BREVE DISCUSSÃO TEÓRICA
*
Adriana Gomes
*
Mestre em História Política (UERJ); Integrante do Grupo de Pesquisa Políticas, Direitos e Éticas; e
Professora da SEEDUC/RJ.
A religião foi considerada como um campo de múltiplas tensões e
possibilidades. Essas tensões seriam frutos de circunstâncias específicas e conflitos de
interesses de ordem material e ideal. Os embates em busca da dominação e os
conflitos de interesses de valores foram centrais no arcabouço teórico e metodológico
de Max Weber em suas análises acerca da religião (Mariz, 2011, p.76).
†
Afinidade eletiva, para Max Weber, compreende-se como um estilo de vida, um ethos, que sob o prisma
protestante levaria os fiéis a se dedicarem de forma ascética ao trabalho secular, criando uma mão de obra
que se motivava para a criação de riquezas e para a poupança antes mesmo do sistema capitalista ter uma
força e autonomia para gerar a sua própria motivação.
separação jurídica entre o Estado e a Igreja. Sua crítica fundamentou-se na
pressuposição que “uma vez que a secularização foi concebida como um processo
teleológico universal, cujo resultado era conhecido de antemão (o declínio religioso e
sua privatização), os cientistas sociais não se interessaram em estudar os diferentes
caminhos que as ciências tomam” (Casanova, 1994, p. 25).
No entanto, vale ressaltar que a partir do século XVIII, através das concepções
de Habermas, outra diferenciação surgiu nessas esferas. A esfera das pessoas
privadas reunidas em público, a esfera pública burguesa ou a sociedade civil, que tem
como consequência mais expressiva a inserção da família no espaço privado
(Habermas, 2007, pp. 129-167).
‡
A definição de religião para Habermas através da denominação “visões de mundo”, foi refutada por Eliane Moura da
Silva em seu artigo História das Religiões: algumas questões teóricos e metodológicas (2011, p. 20) In Religião, Cultura
e Política no Brasil: Perspectivas Históricas. Sob o olhar da historiadora, definir “religião” como “visões do mundo”,
pressuporia que todas as “visões de mundo” fossem religiosas, que é uma falácia, pois essa definição seria vaga e
ambígua para atender a compromissos religiosos específicos.
Os modos de pensar, as expectativas e os comportamentos dos cidadãos não
podem ser impostos mediante o direito. Faz-se necessário que os cidadãos se
respeitem reciprocamente como membros de uma mesma comunidade política,
“apesar de seu dissenso em questões envolvendo convicções religiosas e visões de
mundo” (Habermas, 2007, p. 137). O entendimento recíproco deve basear-se na
racionalidade, em que as possíveis diferenças devam ser apresentadas umas às outras
fundamentadas em argumentos.
Referências Bibliográficas
§
Termo utilizado por Ari Pedro Oro (2005, p. 441), ao se referir as religiões que tiveram os seus direitos de
crença cerceados na secularização republicana. Ele referiu-se ao espiritismo e as religiões afro-brasileiras.
MARIZ, Cecília Loreto. A Sociologia da Religião de Max Weber. In: TEIXEIRA, Faustino
(Org.). Sociologia da Religião – Enfoques Teóricos. Petrópolis: Vozes, pp. 67-93, 2003.
PIERUCCI, Antônio Flávio. Secularização segundo Max Weber. In: SOUZA, Jessé
(Org.). A atualidade de Max Weber. Brasília: UNB, pp. 105 – 162, 2000.
1
apreciação de elementos religiosos afro-brasileiros, através da ação do poder público.
Os vereadores evangélicos protestaram contra a instalação do monumento dos Orixás,
que se apresentavam como símbolo da remodelação do Dique.1
O outro conflito ocorreu em novembro de 1998 quando o prefeito de Salvador
Antonio Imbassahy baixou uma portaria na qual determinava a padronização da venda
de acarajés no município. Os grupos evangélicos que consumiam os “bolinhos de
Jesus” e não os “acarás” do candomblé questionaram o ato do Executivo Municipal,
pois mais uma vez acreditavam que as religiões de origem africana estavam de uma
forma camuflada sendo impostas à população. Os evangélicos consideravam impuros
os alimentos vendidos pelas “baianas autênticas” e preferiam consumir estes produtos
em locais que julgavam imunes ao “contágio”.
Apesar desta maior visibilidade durante o governo de Imbassahy no governo de
Lídice da Mata (1993-1996) foram observadas algumas iniciativas semelhantes as do
prefeito carlista na apreciação de grupos religiosos de origem africana sem que se
percebessem grandes contestações dos setores evangélicos. No governo de Lídice a
valorização do patrimônio cultural afro-brasileiro não agradou muitos vereadores
ligados a grupos evangélicos. Apesar das dificuldades enfrentadas pela prefeita que
administrava a cidade na época com parcos recursos, fruto apenas das transferências
obrigatórias feitas pelo governo estadual, dirigido por Antonio Carlos Magalhães,
houve uma política pública voltada para a valorização do candomblé, principalmente
através do projeto Jardim das Folhas Sagradas que realizou a melhoria de instalações
físicas de alguns terreiros de candomblé de Salvador.2
O Projeto Jardim das Folhas Sagradas foi um projeto ligado a Secretaria
Municipal do Meio Ambiente cujo diretor era Juca Ferreira, sociólogo com histórico de
participação no Movimento Estudantil durante os anos 1960, tendo participado
também da resistência à Ditadura Militar instalada em 1964. Ele foi um dos
idealizadores do Projeto Axé3, cuja qualidade da proposta fez furar o cerco criado por
1
Situado no centro da cidade de Salvador, o Dique de Tororó é uma zona de tráfico intenso, entre a
Estação Central da Lapa e o Estádio de futebol da Fonte Nova, comunicando o centro histórico com os bairros
pobres do norte. O Dique tinha se transformado num esgoto a céu aberto, e a remodelação visava higienizar as
águas e formar um parque com equipamentos nas suas imediações, funcionando como mais uma opção
turística de Salvador.
2
A derrota do grupo de ACM nas eleições de 1990 custou à cidade de Salvador quatro anos de
abandono e perseguições a então candidata do PSB. (ALMEIDA, 1999, p. 524)
3
Foi um programa responsável pela educação e assistência a jovens e adolescentes em situação de
risco social implantado durante a gestão de Lídice da Mata na cidade de Salvador.
http://lidice.com.br/?page_id=50 Acesso em 20/03/2015
2
Antonio Carlos Magalhães em torno das realizações da prefeitura de Lídice da Mata.4 A
relação do Candomblé com a natureza inspirou o projeto que tinha como um dos
objetivos principais preservar as áreas de mata presentes nos terreiros:
4
http://pt.goldenmap.com/Juca_Ferreira Acesso em 24/03/2013.
5
DOM (Diário Oficial do Município), 31/01/1994, p. 8.
6
DOM, 07/02/1994, p. 1.
3
relação próxima com este grupo. Já em 1989 denunciava o risco que esta comunidade
sofria uma vez que parte de suas terras estava sendo ocupada irregularmente por um
posto de gasolina, apesar desta área já ter sido desapropriada em favor do terreiro,
pelo governador Waldir Pires:
7
DCD (Diário da Câmara dos Deputados), 06/04/1989, p. 1865
8
DOM, 22/06/1993, p. 1.
9
DOM, 07/02/1994, p. 10.
4
brasileiro por conta da decoração oficial da festa que tinha como tema “Salvador,
Terra dos Orixas”. Esta atitude desagradou segmentos do culto afro que viram como
um desrespeito religioso a presença de imagens dos Orixás como elementos
decorativos.
10
DOM, 27/01/1993, p. 1.
11
DOM, 27/01/1993, p. 1.
5
de forma direta através da sugestão de isenções fiscais, além da solicitação de
concessão de utilidade pública a grupos ligados a sua prática religiosa. Já o Pastor da
Igreja Universal do Reino de Deus, Domingos Bonifácio, teve longa carreira como
vereador soteropolitano. Atuou de 1989 até 2002 e já em seu segundo mandato fez
parte da mesa diretora da Câmara, continuando a ocupar esta posição na legislatura
seguinte. Quando se elegeu pela primeira vez em 1988 foi o segundo vereador mais
votado da capital, perdendo apenas para o cantor Gilberto Gil. O assembleiano Pedro
Melo também foi eleito pela primeira vez em 1988 com o voto dos evangélicos.
Já no grupo dos novatos da legislatura 1993-1996 estavam os vereadores
Geraldo Alves Ferreira e Eliel Santana. Eliel Santana e Pedro Melo eram
representantes oficiais da Assembleia de Deus na Câmara Municipal e agiam como
verdadeiros prepostos dos assembleianos, defendendo os interesses do grupo.
Geraldão ou Super Geraldo, forma como era designado o vereador do Partido Social
Democrata Brasileiro Geraldo Alves Ferreira, fazia parte da base de sustentação da
prefeita Lídice da Mata. Durante seu primeiro mandato se tornou membro da Igreja
Universal do Reino Deus e passou a partir deste momento a compor o quadro de
“defensores” do grupo em Salvador. Outro convertido durante o mandato foi Beto
Gaban que se tornou um árduo defensor dos interesses batistas na Câmara.
Ainda não havia uma identidade de grupo entre estes evangélicos e eles
atuavam de forma individual para atender aos interesses dos seus grupos. A força dos
evangélicos em todas as esferas do legislativo brasileiro pareceu estar diretamente
ligada à sua capacidade de agir como um bloco unido por interesses comuns, em
razão de sua condição minoritária na sociedade. As demandas de cada grupo foram
mais atendidas à medida em cresceu sua participação, quando estes passaram a agir
em conjunto com outros grupos religiosos ligados ao seu credo. Ou seja, não existia
uma bancada evangélica durante a prefeitura de Lídice da Mata, mas vereadores
batistas, assembleianos e iurdianos. Esta condição ocasionou limitações a sua
oposição às políticas públicas desenvolvidas pelo governo municipal em relação ao
povo de santo. Alvaro Martins, por exemplo, acreditava que estaria ocorrendo uma
negação de um Estado laico e se contradizendo o principio da liberdade religiosa.
Como uma contestação da política de preservação e promoção do candomblé em
1996, o batista Alvaro Martins apresentou o projeto de lei 75/96. Este tinha como
finalidade proibir que espaços públicos recebessem nomeação religiosa. Assim ele o
justifica:
6
e da Democracia, pertinentes à nossa sociedade. A
denominação de logradouros, escolas, creches ou qualquer bem
público, não deve ter nenhuma tendência religiosa, haja vista
que um patrimônio de toda coletividade com a denominação
com cunho religioso tende a agradar a um segmento e
desagradar outros.
Queremos citar, como exemplo, a denominação que
recentemente foi dada ao abrigo para meninas carentes da
Prefeitura de “Casa de Oxum”, que se constituiu claramente em
homenagem ao culto afro, trazendo, desta forma, um
desagrado aos evangélicos, católicos, carismáticos e outros
segmentos que não coadunam com a filosofia religiosa praticada
pelo candomblé.
Por estas razoes, e também por sabermos que todos os
segmentos merecem ser respeitados em suas convicções
religiosas, apresentamos este Projeto que acreditamos ser
justo, para apreciação dos nobres pares.12
12
PL 75/96 de 03/06/1996. DOM, DL (Diário do Legislativo), 28/11/1996, p. 7.
13
DOM, 20/11/1992, p. 15 e 29/12/1995, p. 3, respectivamente.
14
Como já foi obervado durante a legislatura 1992-1996 dois vereadores se tornaram políticos
evangélicos: Geraldo Ferreira se tornou iurdiano e Beto Gaban, batista.
7
afro-brasileiras, a despeito dos demais edis tentarem afirmar que apenas estavam
reconhecendo o papel dos africanos para a formação da cultura brasileira.15
A atuação dos evangélicos e as transformações que sofreu ao longo de sua
trajetória na política não seriam possíveis sem as modificações discursivas que ao
mesmo tempo em que refletiram as mudanças ajudaram a disseminar e justificar
diante dos fiéis a necessidade desta ampliação. A sua presença nos espaços
legislativos esteve de certa forma articulada a construção de um “reino na terra”, uma
“administração pública à luz do Evangelho”. Aliás, este foi o título bastante sugestivo
de um seminário organizado, em 1995, por vereadores evangélicos no legislativo
soteropolitano para discutir a relação entre os cristãos e a política:
Não seria leviano imaginar, a partir das relações estabelecidas entre Lidice da
Mata e o povo de santo, quais seriam as pessoas que estariam sendo agraciadas, na
visão de Bonifácio, com privilégios no governo municipal. Assim é compreensível que
dois anos depois, em 1997, tenha lançado o projeto de Lei 188/97 de 20/10/1997 que
autorizava o chefe do Poder Executivo a promover liberação, permissão e concessão
de obras de arte a diversos segmentos sociais, inclusive religiosos. Garantir o direito
aos “católicos de reivindicar a instalação de santos em locais públicos”, dos budistas
pedirem “a colocação de estátuas do seu líder maior (Buda)" e quem sabe dos
evangélicos construírem praças com imagens de Bíblias estava subentendido na
justificativa do projeto: “Nada mais justo é permitir que todos os segmentos sociais
tenham os mesmos direitos, construindo seus símbolos, suas obras de arte e
expondo-os nos diversos logradouros públicos da cidade, sem que haja nenhuma
15
DOM, DL, 19/04/1996, p. 5.
16
DOM, DL, 28/11/1995, p. 1.
8
discriminação”.17 Neste momento o incomodo se dava em função da instalação das
esculturas de orixás no Dique do Tororó e o prefeito era outro, Antonio Imbassahy,
mas a referências aos supostos privilégios dos demais grupos religiosos, notadamente
os de origem africana, permaneciam as mesmas. O jornal Folha de São Paulo
registrou a indignação dos evangélicos com os planos de urbanização do Dique do
Tororó e como o vereador iurdiano Domingos Bonifácio assumiu a liderança do
movimento, com o argumento de que a Constituição Federal os protegeria:
17
DOM, DL, 22/10/1997, p. 4.
18
Folha de São Paulo, 10/10/1997. Disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff101023.htm Acesso em 10/01/2009.
9
comunidade negra baiana, aliado as boas relações que esta mesma comunidade
mantinha com o então governador Antonio Carlos Magalhães possibilitaram um
relativo destaque às políticas públicas destinadas ao povo de santo.
Os grupos religiosos de matriz africana tiveram no governo de Lídice da Mata um
maior espaço político, seja através da valorização de seus terreiros, seja através da
promoção de suas práticas religiosas na sociedade de uma forma geral. Condenando
iniciativas de outros vereadores como a sugestão de criação de uma Casa da Cultura
Africana, questionando as ações da prefeita no sentido de promover terreiros de
candomblé tradicionais, os vereadores evangélicos iniciaram no governo de Lídice da
Mata a base para a construção de uma bancada evangélica atuante na Câmara
Municipal de Salvador, que veio a se consolidar nas legislaturas seguintes.
Bibliografia
10
11
A BAKTI-YOGA VAISHNAVA REDEFININDO A VIDA DOS DEVOTOS
Resumo
Considerações Finais
Entre os pontos explicitados, o serviço transpassa todos eles. A alma é
sempre ativa, essa é uma qualidade inerente a ela. Não somos extáticos nem no
mundo material nem no mundo espiritual. Por isso estamos sempre ocupados.
(PRABHUPADA, 2008).
A ação é um incentivo de Krsna. Esse é um processo religioso prático que diz
respeito ao modo de vida das pessoas. Todos precisam trabalhar para seu próprio
sustento, então, que ofereçam sua atividade em sacrifício a Krsna, com isso se
elimina o karma.
Na conduta do devoto vaishnava, suas ações não devem ser para a
satisfação de seus sentidos, mas para a satisfação da Suprema Personalidade de
Deus, Krsna. O objetivo dos vaishnavas é voltar para Krsna, entendendo que estão
como adormecidos nessa vida e que precisam acordar para a realidade
transcendental e isso só é possível ficando livre dos enredamentos materiais,
produzidos pelo karma, ou atividades materiais. Entende-se por melhor modo de
conduta a sugestão do livro sagrado: “Desse modo, você ficará livre do cativeiro do
trabalho e de seus resultados auspiciosos e inauspiciosos. Com a mente fixa em
Mim neste princípio de renúncia, você se libertará e virá a Mim.” (Prabhupãda,
2008, p. 490), (BG 9.28).
Os devotos entendem que quando se fala em renúncia não significa parar
com as atividades que uma pessoa precisa executar, mas refere-se à renúncia da
expectativa dos resultados, pois eles enredam o indivíduo nesse mundo material.
Estar com a mente fixa em Krsna é pensar nEle, no transcendente. Ao executar
atividades e a Ele oferecer essas atividades, esse é o princípio da bhakti-yoga.
Mas não é apenas no mundo material que se têm atividades. No planeta de
Krsna todos estão servindo a Ele, pois essa é a posição constitucional, eterna da
alma.
Na sociedade ocidentalizada costuma-se considerar que servir é uma
atividade menor. Essa é uma idéia deturpada para os devotos sobre o serviço. Um
servo da limpeza, por exemplo, em uma empresa é a pessoa menos notada. No
entanto, servir é natural à alma. Se não servimos a Deus, servimos a nosso patrão,
servimos nossos pais e eles nos servem nos sustentando. Servimos a nosso
cachorro, temos de alimentá-lo, dar banho. Estamos sempre servindo e sequer
notamos. Os devotos sabem da inclinação natural ao serviço, portanto servem
àquele que é superior a todos, a Suprema Personalidade de Deus, Krsna.
A atividade, o serviço e o relacionamento são inerentes à pessoa humana e
a alma de um modo geral. Os devotos sabem disso de um modo mais consciente
por orientação de seus livros sagrados e, portanto, procuram exercer esses pontos
da melhor forma possível, em função do divino.
Todos têm uma rasa, um tipo de relacionamento específico com Krsna. Não
é possível para nós não nos relacionarmos, somos seres sociais por natureza, já
nascemos em uma pequena sociedade, a família. Crescemos o tempo todo nos
relacionando e não seria diferente com Deus.
Não que Deus precise relacionar-se, os devotos explicam que Deus não
precisa de nada. Mas Ele se relaciona com seus devotos. Da mesma forma os
devotos crêem que todos têm um relacionamento eterno de serví-lo e isso causa
prazer longe de se configurar como algum tipo de escravidão, mas como uma
necessidade da alma por esse tipo de prazer.
Referências
emanuelffreitas@gmail.com
(Roger-Gérard)
1-INTRODUÇÃO
Opera-se, assim, incessantemente, uma ação por parte dos agentes no sentido
de “acumular o crédito” e também de “evitar o descrédito”, ação essa que requer
“todos os silêncios, todas as dissimulações” que são impostas àqueles que pautam sua
ação pelas regras do jogo do campo, aderindo a elas pelo envolvimento. Este é, pois,
o espaço em que se operam as disputas pelas mais legítimas formas de notoriedade
dentro do campo político.
4-A gravação de um DVD e a releitura de fatos políticos: as “contaminações”
entre a religião e a política; ou, como legitimar práticas políticas com
elementos religiosos?
Micarla é apresentada como “um sinal de deus”, uma vez que ela “vale mais
do que muitas almas”, sendo sua conversão “uma das coisas mais lindas” vivenciada
pela banda em todos os anos de gravações. Logo depois, é a própria prefeita quem faz
uso da palavra. Começa por dizer que “nasceu de novo” há menos de 40 dias e
demonstra seu medo de “falar para tanta gente”, logo ela que já havia “falado tanto
em comícios” e em tantos outros “países, representando Natal”. Mas, segundo ela, “o
senhor disse assim pra mim: ‘você já falou em vários idiomas, você já levou o nome
da cidade em vários lugares, mas agora você vai falar a minha língua’ ”. Depois disso,
Micarla passa a inserir-se como portadora de uma missão divina, comparando seu
trabalho com o trabalho de pastores, sendo ela mesma uma pessoa “de bem”,
portanto alguém que pode gerar as transformações tão almejadas pelos homens, uma
vez que tais transformações só podem vir, segundo ela, da política:
As pessoas olhavam pra mim e diziam: “você não tem cara de política”.
Eu fico imaginando o que que as pessoas acham que é ser uma prefeita.
Será que é como algumas pessoas imaginam que sejam os evangélicos,
gente que de forma preconceituosa acham que é assim e assim e
acabou? Será que nós políticos não somos agredidos, sofremos bullying
muitas vezes só porque optamos e escolhemos uma missão? Eu entrei
na política em 2004. [...] Quando eu estava grávida de três meses, meu
marido acorda e diz assim: “amor, eu tive um sonho com você. Eu
sonhei que você era prefeita”. Nunca havia pensado entrar na política.
Meu pai foi o mais jovem senador [...] filho de uma costureira e de um
fiscal de trem [...] “eu tive um sonho, uma revelação, e eu tenho
certeza que e deus que tá querendo”. Eles fizeram pesquisa e eu já
aparecia bem colocada. [...] toda transformação do planeta passa pela
transformação da política, não existe outra forma. Se não for gente de
bem, se não for gente comprometida, quem serão os eleitos? Quem
serão as autoridades constituídas por deus? A missão da política eu
encaro como ministério, eu encaro como a missão de um pastor [...]
para político, deus diz: “vai lá e cuida da educação, da saúde, da vida do
meu rebanho”. São missões muito dignas, que têm que ser encaradas
por gente digna.
A Ezenete disse que entrou e pensou: quem é essa pastora? Era eu!! E
ela começou a conversar comigo e eu não escutava. Era uma luz, uma
coisa tão sublime que eu não conseguia escutar. Eu flutuava....eu quero
que o grupo venha para cá, porque vai ser de fundamental importância
para Natal.
Depois, Ana Paula toma a palavra para contar os feitos materiais que a
gravação do DVD em Natal havia trazido à cidade: Ana: os principais shoppings de
Natal venderam mais do que nos dias das mães, a ocupação dos hotéis de Natal
estava quase 100%, não tinha vagas nos aviões. E ela ainda salienta: “a gravação
movimenta financeiramente a cidade. Muita gente não sabe o bem que nossas
gravações fazem às cidades, sem contar o bem espiritual, sem vandalismo, sem uma
lata de cerveja, sem uma ocorrência policial”.
Se todo governante tivesse um pouco de senso, enxergaria que é um
momento próspero e de bênçãos. Foi nesse instante que eu disse sim. A
Ezenete me disse: “olha prefeita, todoso os lugares que nós vamos
temos problemas, porque as trevas elas se levantam de tal forma que
agente pensa que não vai conseguir”.
5-REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU, Pierre. O campo político. Revista Brasileira de Ciência Política, v.5, pp.
193- 216, 2010.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. Trad: Fabiana Komesu. São Paulo: Contexto,
2006.
GEERTZ, Clifford. Nova Luz sobre a Antropologia. Trad.: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2001.
SPINELLI, José Antônio. Natal: novos cenários, velhos atores. A disputa pela prefeitura
em 2008. Nordeste: 2008. O voto das capitais II. Natal/RN: EDURN, 2010.
chicofagundes@gmail.com
Por isso entre 1870 e 1929 o conflito entre o Estado Italiano e a Igreja manteve-se
presente, sendo solucionado durante o período fascista, através do Tratado de Latrão.
Conforme Manfrói (1999, p. 50): “Os católicos se isolaram da sociedade civil criando
um mundo à parte” devido a “onda de anticlericalismo, a legislação liberal do governo,
a laicização do Estado, o confisco dos bens de ordens religiosas contribuíram para
reforçar a oposição entre católicos e italianos”. Assim, a construção do Estado italiano
deu-se em meio a um conflito com uma instituição religiosa, a Igreja, necessitando de
uma série de manobras com o fim de pacificar os respectivos partidários.
Contudo, devemos atentar para o fato de que essa relação do regime fascista com a
Igreja, quanto aos seus conflitos, mesmo com o pacto político de 1929. Esse olhar nos
permitirá perscrutar a Igreja como uma instituição centralizada no Papa, mas
demarcada por conflitos internos e, no caso em questão, por questões de ordem
geopolítica e regional, que são inerentes aos interesses religiosos/estatais do Vaticano
em relação a outras sociedades. A presença de católicos em diversos Estados
nacionais foi inclusive vista por Antonio Gramsci como sendo a Igreja uma sociedade
civil dentro de outras sociedades civis, dando ao Papa a possibilidade de influir nos
debates políticos de outras nacionalidades.
A quebra do tratado de não agressão firmado entre Hitler e Stalin com a invasão
alemã ao território soviético (1941) representou uma nova fase na guerra, pois
ganhou um componente político e militar inesperado (HOBSBAWN, 1995, p. 165).
Surgiu a nível internacional uma curiosa aliança entre o capitalismo dos Estados
Unidos e o comunismo da URSS, que nos campos de guerra semeou coalizões de
resistência, de um lado a outro, balizadas pelo aspecto de combater as forças da
Alemanha, da Itália e do Japão, principalmente.
1
As Resistências foram constituídas por grupos civis e militares de várias tendências políticas, cujo esforço
se orientou pelo combate ao nazifascismo.
(LEWIS, 2003). Avaliando a atividade da Resistência italiana, Hobsbawn (Op. cit., p.
165-166) considerou:
Um dos primeiros grupos sociais católicos a ter sofrido as pressões dos políticos pré-
fascistas foram os camponeses do Piemonte, devido ao surgimento do Partido dos
Camponeses (imediatamente após o fim da IGM), que assumiu contornos de uma
agremiação sustentadora do fascismo em gestação. Nessa fase, o movimento
camponês foi contido, enquanto foi restaurado o monopólio do poder nas mãos dos
grupos oligárquicos rurais (MOLA, 1994, p. 26). Nas décadas posteriores a crise
econômica foi superada, por meio dos sacrifícios sofridos pelas populações rurais
(MOLA, Op. cit., p. 28). Para os membros da AC, os camponeses foram um grupo
importante no sentido de combater os fascistas, considerando as condições políticas
de opressão e a forte presença do catolicismo nas áreas rurais.
A Igreja na Itália estava dividida diante do fascismo. A hierarquia clerical dava sinais
de fissuras, sendo seguida pelos leigos. No caso de Alba os religiosos faziam uma
oposição, através do trabalho nas paróquias. No bispado de D. Grassi2 em Alba
2
Em março de 1933, Pio XI nomeou-o bispo de Alba, chamando-o para suceder D. Francis King. Assumiu
aa diocese em 11 de junho de 1933.
ocorreu uma franca oposição ao regime fascista, tendo por base o trabalho
anteriormente realizado na AC, quando havia sido padre. Alguns narradores italianos
colaboraram com a nossa pesquisa sobre a atuação de D. Grassi na Diocese de Alba.
Para Maggi ao ser indagado sobre a resistência dos religiosos ao fascismo:
No mês de julho de 1944 a guerra civil tomou um corpo mais robusto no Piemonte.
O então bispo de Alba, D. Grassi, politicamente monárquico, deparou-se com uma
realidade de guerra marcada pela presença de três grupos: os aliados, o Reino do Sul
e os partigiani; os alemães e os republicanos (partidários de Mussolini); por fim os
republiquinos (ligados ao dissidente fascista Pietro Badoglio, que se associou aos
Aliados). Em 1944 os conflitos tornaram-se mais agudos, devido a contraofensiva dos
3
Entrevista realizada por Andrea Cane com Gianfranco Maggi, março de 2010. Tradução nossa. O
historiador Andrea Cane franqueo-nos a possibilidade de realizar as entrevistas na Itália, a partir da
intermediação do seu filho e nosso amigo, Daniele Cane.
4
O padre Demetrio foi fuzilado no Castelo de Polenzzo (25/08/1944), junto a dois homens, pelos nazistas,
sob a acusação de “cumplicidade e consciência” de uma emboscada partisan contra os alemães. O próprio
bispo de Alba, Dom Grassi, esteve profundamente envolvido com os jovens participantes da Resistência,
demonstrando que não é fácil atribuir uma análise generalista sobre a hierarquia da Igreja, em relação à
política, por causa das identidades dos membros do próprio clero ou pelas demandas dos próprios fiéis.
nazifascistas as tropas aliadas, que desde o mês de junho haviam ocupado Roma,
rumando para o norte e nordeste do país.
Por sua vez, a experiência da luta dos católicos entre os partigiani demonstrou a sua
importância na formação de uma área liberada da influência nazifascista. Porém,
reafirmamos a percepção de que muitos componentes das forças nazifascistas eram
também católicos, alguns convictos e outros submetidos aos rigores do serviço militar,
não excluindo a prática de resistência pela deserção, por sabotagens materiais ou
ainda pelo trânsito de informações privilegiadas, importantes para o conhecimento das
estratégias e objetivos visados pelos inimigos. Sobre essa questão nos foi respondido
sobre a composição das forças partigiani, incluindo os militares desertores por
Gianfranco Maggi:
A narração sobre o conflito no Piemonte tem outro aspecto que não pudemos
ignorar, desde o momento da realização das entrevistas. Trata-se da perspectiva de
revelar os sofrimentos decorrentes da guerra, porém sem se esquecer do papel
político da resistência (mesmo antes de 1944) aos nazifascistas, bem como o sentido
de pertencimento a uma família colaboradora dos partigiani. Assim, a narrativa sobre
um passado de dor e de congregação de pessoas, em grupos identificados com a
Resistência, situa a importância do espaço de Canale d’Alba no tempo das primeiras
ações armadas dos guerrilheiros. Canale como um dos focos da Resistência tem um
significado de um tempo de dor, de padecimento, mas também da disposição de
grupos piemonteses em combater o fascismo. Nas entrevistas, percebemos a
importância da geografia local e do tempo da guerra para constituição de uma noção
de pertencimento social, pois o narrador nos falou da sua origem familiar, cujos
vínculos com a Resistência eram definidos por uma experiência cotidiana de
participação política. Essa questão nos remete a uma discussão sobre a questão do
tempo, do espaço, das identidades sociais, da rememoração e da própria narrativa
(PORTELLI, 1996). Todos esses elementos demarcam um espaço, a partir de balizas
de suma importância para o pesquisador e para o narrador: o lugar de onde os
acontecimentos foram experimentados pelos indivíduos para posteriormente ser
transmitidos pela memória, permitindo o acesso a situações sociais e as estratégias
dos indivíduos em conflito (BOUTZOUVI, 1994, p. 2)
5
Entrevista realizada a nosso pedido por Andrea Cane ao senhor Gianfranco Maggi, Idade: 64, profissão:
aposentado em Sommariva, Itália, primeiro semestre de 2010. Tradução nossa.
Os membros da Resistência (anteriormente, camponeses, operários, professores,
religiosos, dentre outras profissões) traziam as demandas das vítimas do nazi
fascismo pelo exercício de pacificar, por meio da sua doação aos combates contra
exército bem treinados (o italiano e o alemão), regiões até então sob o domínio
fascista. Outro narrador, o monsenhor Pescarmona , durante a entrevista que
realizamos evitou comentários sobre memórias incômodas como mortes e a destruição
material provenientes dos bombardeios ou dos conflitos (Entrevista ao autor: Junho de
2009). O aspecto da memória como uma força ativa entre o esquecer e o lembrar foi
avaliado por Samuel na sua dinamicidade: “o que ela sintomaticamente planeja
esquecer é tão importante quanto o que ela lembra” (1997, p. 44).
Outro aspecto com relação à população de Alba e a sua cultura política voltou-se
para a presença de alguns trabalhadores, politicamente socialistas, que frequentavam
missas. Essa questão desponta como um aspecto interessante sobre a religiosidade
entre os militantes ou adeptos da esquerda associados ao catolicismo. Esse fator
colaborou igualmente ao recrutamento da Resistência. Em alguns estudos realizados
por Hobsbawn foi possível constatar que a secularização e as posturas antirreligiosas
ou de indiferença religiosa eram mais comuns entre os operários das metrópoles,
enquanto nas pequenas cidades os trabalhadores cultivavam uma prática religiosa
mais participativa entre fins do século XIX e primeiras décadas do século XX (2000,
p.60). Essa questão pode ser explicada pela permanência de aspectos comunitários
associados às práticas religiosas.
6
Segundo Hobsbawn mesmo entre pessoas devotas, supersticiosas ou ortodoxas votavam na esquerda
“ateia”. Cerca de 40% das pessoas na Sicília e Sardenha, nos polarizados anos 50, não viam
incompatibilidade entre o catolicismo e o comunismo. Ver: HOBSBAWN, E. A religião e a ascensão do
socialismo..., p. 60.
7
Cultura política refere-se às ações e representações relacionadas ao fazer político. Ver: MOTTA, R. P. Sá
(ORG). Culturas políticas na história...
esquerda. Percebemos pelas narrativas sobre os assuntos referentes às relações entre
socialismo, monarquia e catolicismo faziam parte de uma experiência específica de
classe. Durante a formação da classe operária inglesa no século XIX ocorreu a divisão
dos operários em uma diversidade de denominações cristãs. O Metodismo, por
exemplo, assemelhou-se bastante com a Igreja Católica na Itália, especificamente em
relação às questões de ser praticado por patrões e trabalhadores, enquanto se
enfrentavam politicamente (THOMPSON, 1987).
Apesar das relações políticas do Papa com o regime fascista, o nordeste italiano
destacou-se por um movimento de resistência ao regime. Esse fato implicou inclusive
na participação ativa do bispo da Diocese de Alba, região do Piemonte, junto aos
guerrilheiros antifascistas. As manobras políticas da burguesia do norte italiano não
tardaram a limitar o poder político da monarquia e, posteriormente a sua abolição, na
década de 1940, após a queda fascista (MOLA, 1995, p. 14).
FONTES UTILIZADAS:
MOLA, Aldo A. Introduzione: continuità e innovazione nella storia civile italiana dalle
pagine di Mons. Luigi M. Grassi sulla chiesa d’Alba e dell’Albense nella resistenza. In:
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política
pela historiografia. In: ________ (Org.). Culturas políticas na história: novos estudos.
Belo Horizonte: Argumentvm, 2009, p. 13-37.
SAMUEL, Raphael. Teatros de memória. In: Projeto história, São Paulo, no. 15, abril
1997, p. 41-81.
Entrevistas:
Entrevista realizada a nosso pedido por Andrea Cane, historiador italiano, ao senhor
Gianfranco Maggi, Idade: 64, profissão: aposentado em Sommariva (Perno), Itália,
primeiro semestre de 2010. Tradução nossa.
APRESENTAÇÃO
Este artigo resulta de pesquisa realizada nas campanhas eleitorais para a Prefeitura
Municipal de Campina Grande /PB, em 2012. Buscamos analisar as estratégias de
candidatos a prefeitos que se utilizaram da religião para promover sua própria imagem
ou mesmo denegrir a imagem dos adversários. Religião e política são dimensões
distintas que se inter-relacionam no espaço público, onde podemos compreender que
a política é disputa de poder, mas também de símbolos e significados que se
incorporam na maneira de se fazer política na contemporaneidade que pode se
originar do campo religioso. Podemos destacar alguns fatos que chamaram atenção, o
candidato Romero Rodrigues (PSDB) foi acusado de ser contra os evangélicos, Tatiana
Medeiros (PMDB) foi chamada de “mãe de santo”. Reconhecemos que na política a
religião tem seu peso e interfere na vida política, seja no sistema de crenças, moral,
bons costumes e nos valores políticos que se incorporam nas campanhas.
INTRODUÇÃO
Nesse aspecto o candidato utilizou o seu tempo de propaganda para relatar que
seu nome estava envolvido em tramas por parte dos adversários, ao mesmo tempo,
que se defendia ao dizer ser uma pessoa católica praticante, sua mãe evangélica e
que tem uma família unida, segundo os preceitos religiosos. Por sua vez, a candidata
Tatiana Medeiros aproveitou seu tempo de propaganda para afirmar que Romero
Rodrigues era contra os evangélicos, criticando sua postura de intolerante as religiões,
como também para apresentar a sua família, que mesmo sendo uma mulher
divorciada, ela tinha uma família unida, demonstrando em suas palavras a força da
mulher e de ser mãe. A estratégia do candidato foi passar para os eleitores que ele
era tolerante em relação às religiões e que não demonstra nenhum preconceito. Já a
candidata se utilizou da imagem de intolerante do candidato para desconstruir sua
imagem pública e sua credibilidade política e o colocar em contradições entre o que
ele dizia e a denúncia contra os evangélicos.
Quando falamos em personagens políticos temos a noção de que eles são uma
representação, seja de um candidato que traz em sua imagem a figura do pai, bom
marido ou filho, ou se nos referirmos às mulheres pode ser acionada a figura da mãe,
boa esposa ou filha. Enfim, vários elementos que podem compor uma imagem pública,
que o político deve acreditar, e as pessoas devem ter uma boa impressão. Um
indivíduo representa e desempenha um papel, os sujeitos observadores tem uma
impressão da imagem que está sendo representada, acreditando ser verdade, mas
não de um modo determinante que não possa ser questionado, de um modo geral, as
coisas são como parecem ser.
Weber apresenta que “a imagem pública dos sujeitos políticos vai sendo
formada, individual e simultaneamente, a partir da combinação das representações
visuais e das representações mentais.” (Weber, 2004, p. 261). Para que uma imagem
seja difundida são necessários canais que permitam o acesso a estas. Candidatos
recorrem às mídias sociais e digitais para garantir que as pessoas os percebam, a
propaganda política e o Horário Eleitoral Gratuito – HGPE se somam a materiais
impressos de campanha e o uso das redes sociais como espaços de divulgação de
atividades e informações sobre os candidatos.
Lembramos que essa cena também fez parte da campanha para governador na
Paraíba em 2010. O candidato ao governo do Estado, Ricardo Coutinho do Partido
Social Brasileiro (PSB) foi vítima do mesmo tipo de situação. Mas o que deixa claro é a
tentativa de defesa da candidata ao atribuir a ela a imagem de cristã, tolerante e que
respeita as religiões. Enquanto seu adversário era atacado por parte de sua equipe
apresentando-o como um candidato preconceituoso e intolerante as religiões.
No mesmo guia aparece o Pastor Geraldo Máximo dizendo que “esse projeto
ajudou muito, porque, se não fosse assim, esse evento não teria a magnitude que
tem.” E ainda é apresentado que Romero é também autor do projeto de lei que tornou
de utilidade pública a AMPLA – Associação Multi-Assistencial em Plena Ação, localizado
em Campina Grande/PB que tem por objetivo difundir o evangelho. E mais uma vez é
destacado que Romero é uma pessoa cristã, assim é apresentado:
Após essa participação, Fábio Medeiros Ministro Igreja Verbo da Vida afirma,
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebemos que a política não pode ser entendida apenas por questões
administrativas e voto. Diante do que foi exposto, tivemos o esforço de apresentar
que numa campanha eleitoral muitas estratégias são utilizadas pelos candidatos, por
isso nosso interesse se fez em levantar algumas questões sobre a relação entre
religião e política nas eleições municipais de Campina Grande. Por mais que se diga
que religião e política são campos distintos e não deveriam ser confundidos, como se
religião fosse sagrado, e política profano, quando nos referirmos às campanhas dos
candidatos Romero e Tatiana essa relação se apresentou tênue. Os dois candidatos
fizeram uso de questões religiosas para atacar e se defender diante público eleitor.
Romero se apresentou como uma pessoa cristã, que respeita as religiões e que
tinha família. No seu guia ao apresentar sua família e dizer que sua mãe era
evangélica, a mensagem que estava sendo passada era de que como alguém que tem
mãe evangélica pode ser intolerante e atacar os evangélicos. O candidato aproveitou
seu tempo no guia para deixar essas reflexões para seus possíveis eleitores, pois são
eles que interpretam essas informações e avaliam quem melhor representou.
Nosso esforço se fez em levantar algumas questões sobre essa relação tão
complexa entre religião e política. Sabemos que esses campos são distintos, mas
quando se trata de campanha eleitoral eles se inter-relacionam. A nossa pesquisa
durante o processo eleitoral nos ajudou a compreender que a política faz parte de
estratégias, representação, construção de imagem pública, avaliação, escolha e voto
dos eleitores, e não apenas uma mera disputa pelo poder. A política faz parte de uma
rede de símbolos e significados que são incorporados pelos candidatos para compor
sua imagem pública. É nesse aspecto que a religião se destaca, pois reconhecemos
que questões morais e de bons costumes serão levados em consideração na escolha
de um candidato, e, portanto, religião interfere na vida pública.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PESQUISA NA INTERNET:
http://www.pbagora.com.br/conteudo.php?id=20120926124302&cat=paraiba&keys=t
atiana-medeiros-minha-historia-politica-alicercada-minha-vida-profissional
http://pensamentomultiplo.blogspot.com.br/2012/02/campina-veneziano-e-
tatiana.html
http://gilberguessantos.blogspot.com.br/2012/03/analisando-as-pre-candidaturas-
tatiana.html
http://devir.wordpress.com/2012/10/22/ggg/
www.votetatiana15.com.br
www.romero45.com.br
AS VITÓRIAS DE 1996 COMO RESULTADO DO ACÚMULO DAS LUTAS DOS
ANOS 70 E 80 E A CONDUÇÃO DE UM EX-AGENTE PATORAL PRA A CÂMARA
MUNICIPAL DE BELÉM.
RESUMO:
De sua área total, mais da metade está distribuída entre suas 39 ilhas. Entre a
metade do século passado e o começo deste, Belém viveu o ciclo borracha. São dessa
época construções de grande porte preservadas no seu centro histórico. Igrejas
magníficas, palácios, sobrados com azulejos portugueses, mercados, praças com
coretos de ferro... O Teatro da Paz, na Praça da República, e o Palácio Antonio Lemos,
sede da prefeitura, são exemplos de um patrimônio arquitetônico admirável.
3 - O QUE MUDOU?
1
Liderança sindical rural, vindo do Rio Grande do Sul para o Pará em na década de 1970, durante o processo
de colonização da Transamazônica, eleito Deputado Estadual em 1986, pelo Partido dos Trabalhadores, eleito
Deputado Federal, também pelo PT, em 1994, pelo mesmo partido, candidato ao Governo do Estado, em
1998 se elegeu Deputado Federal pelo PT, em 2000 se elege vice-prefeito de Belém, em 2002 e em 2006 e
em 2010 se elege Deputado Estadual.
2
Liderança sindical em Santarém, foi eleito Deputado Estadual pelo PT em 1990, em 1994 concorre à
Câmara Federal, ficando na primeira suplência, assumindo a vaga dois anos depois, em 1998 concorre a vice-
governador do Estado pela chapa PT, PSB e PC do B, em 2004e 2008 se elege prefeito d Belterra, PA.
3
Vereador eleito pelo ainda PMDB, em 1982, e candidato á prefeitura de Belém pelo PT em 1985 e 1988.
4
Liderança agrária vinda do Espírito Santo para a Transamazônica na década de 70, eleito deputado estadual
pelo PT em 1994 e em 1998 e deputado federal também pelo PT e 2002, 2006 e 2010.
Carlito naquele momento conseguia unir todo mundo, o pessoal
lá do PT do bairro, a turma da igreja, as lideranças comunitárias
e ainda tinha o fato de ele ser professor do Rutherford, que
tinha muitos alunos e possibilitou uma grande quantidade de
votos. E te confesso que a campanha foi única pra gente e que
nunca houve outra igual.
5 - CONCLUSÃO
5
Ex-agente pastoral da paróquia de São Sebastião, foi presidente municipal do PT durante o biênio de 1988 a
1989, fez pte da coordenação de campanha de Luís Inácio Lula da Silva em 1989, foi da executiva estadual
do PT durante a década de 90 e foi assessor parlamentar dos deputados federais Valdir Ganzer e Geraldo
Pastana, dos deputados estaduais Zé Geraldo, Valdir Ganzer, Nonato Guimarães e Raimundo Marques.
6
Engenheiro sanitarista, é liderança do PT no bairro da Sacramenta, coordenou a campanha de Carlito
Aragão para Vereador em 1996, foi diretor geral da SESAN na primeira gestão de Edmílson Rodrigues de
1996 a 2000, coordenou a campanha Arlison Miranda para vereador em 2000 e foi diretor geral do Centro de
Perícias Científicas Renato Chaves no período de 2007 a 2008, durante o governo de Ana Júlia Carepa, de
2007 a 2010.
enfrentar Ramiro Bentes, o professor Carlito do PT alcança 4.210 votos, destes 3.000
no bairro da Sacramenta, garantindo assim sua vaga no legislativo municipal e o
colocando como terceiro mais votado da Frente Belém Popular. Como disse Cláudio
Bordalo, “a eleição do Carlito não foi a vitória de uma pessoa, mas de todo um
processo histórico, iniciado na luta pelo direito de morar e nas atividades pastorais e
políticas na década de 1980”.
Por fim, fazendo uma breve referência à fala do pesquisador Imerson Alves
Barbosa, em seu trabalho de dissertação de mestrado, sobre a tarefa dos cristãos, que
seria a de construir uma sociedade justa, uma vez que o compromisso sociopolítico é
inerente à fé cristã, e a luta contra a pobreza só será eficaz se superarmos os limites
da visão caritativa tradicional da igreja. E nesse contexto, o bairro da Sacramenta, e
em especial a paróquia de São Sebastião, tiveram um papel fundamental nas lutas
populares do bairro, na construção da memória da Sacramenta e nas eleições
municipais de 1996.
REFERÊNCIAS
ALVES, Márcio Moreira. A igreja e a política no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979.
PETIT, Pere. A Esperança Equilibrista. São Paulo: Jinkings e Belém: NAEA, 1996.
"Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus." (Mc 12, 17)
1. Introdução
Como é sabido, o Brasil diz-se ser um país laico, isto é, não eclesiástico, cujo
ordenamento jurídico é legislado sem a participação nem a interferência religiosa.
Em um país plural no que concerne à religiosidade, contudo, é fácil constatar que a
maioria da população brasileira pratica um credo de origem cristã, mais
especificamente, católica.
5. Considerações Finais
Através da análise dos PLs, podemos afirmar que a Câmara Municipal de
João Pessoa não aplica, em sua amplitude, o Princípio da Laicidade no processo das
atividades legislativas. A inobservância do princípio se apresenta de inúmeras
formas, algumas com alcance social maior e outras tão singelas que a princípio não
percebemos o quão estão violando o princípio em tela. Contudo, é importante para
um Estado Democrático de Direito, que cada vez mais tenta se legitimar por sua
ampla democracia, respeitar irrestritamente o Princípio da Laicidade. Tal medida
deve ser expressa até mesmo nas ações consideradas ínfimas, com o escopo de
que a sociedade enxergue no poder estatal uma referência de respeito aos direitos
da coletividade.
Como já mencionado, é legítimo o Estado se unir às Instituições Religiosas
com o intuito de realizar atividades em prol do interesse público. Essa cooperação
entre o poder público e as entidades religiosas pode ser realizada de diversas
formas. Pode haver a cooperação entre as duas entidades, quando, por exemplo,
uma das partes decide fazer eventos sociais e a outra, interessada na finalidade
social desse evento, participa. Esse tipo de parceria entre Estado e Instituições
Religiosas não viola o Princípio da Laicidade, desde Laicidade no Ordenamento
Jurídico Pessoense Paula Katherine Tarquino e Felix Augusto Rodrigues 12:15 que,
a entidade religiosa participante se limite a executar apenas atividades em prol do
interesse público, não incorrendo em atividades evangelizadoras de seu próprio
interesse.
Seja quando atua em favor do interesse público através dos seus
legisladores, seja quando afasta a interferência das Instituições Religiosas para se
manter cada vez mais Laico, o Estado deverá legislar sempre desvinculado de
dogmas e crenças religiosas para que, assim, o povo seja cada vez mais respeitado
e legitimamente representado.
NOTA
1. A teoria do Estado laico se baseia, especialmente, em um conceito secular, não
sagrado, do poder político como atividade autônoma com relação as crenças
religiosas, as quais, entretanto, sendo consideradas dentro de um mesmo plano de
igualdade jurídica, podem exercer uma influência política de acordo com a sua
relevância social. O Estado laico não professa, pois, uma ideologia religiosa ou anti-
religiosa. A laicidade, a secularidade, consiste fundamentalmente em reconhecer a
racionalidade do Estado, a autonomia das realidades terrestres, e em nenhuma
hipótese mesclá -las com o que representa uma decisão individual. O Estado deve
atuar apenas como Estado. [Tradução Livre de Ortega, 2006, p. 250]
REFERÊNCIAS
ADRAGÃO, Paulo Pulido. A Liberdade Religiosa e o Estado. Coimbra: Almedina,
2002. Bíblia Sagrada: Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1990.
BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brazil de 1824.
Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm> Acesso
em: 13/05/2012.
_______. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do
Brasil de 1891.
Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm> Acesso
em: 13/05/2012.
_______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de
1988. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>
Acesso em:
13/05/2012.
BUENO, Eduardo. Brasil: Uma História. São Paulo: Leya. 2010.
CANOTILHO, J. J. Gomes. e MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa
Anotada.
Vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
FUNARI, Pedro Paulo (Org.). As Religiões que o Mundo Esqueceu. São Paulo:
Contexto, 2009.
GAARDER, Jostein. et. al. O Livro das Religiões. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
HOORNAERT, Eduardo. A Igreja no Brasil-Colônia (1550-1800). São Paulo: Editora
Brasiliense,
1994.
LOREA, Roberto Arriada. (Org.). Em Defesa das Liberdades Laicas. Porto Alegre:
Livraria do
Advogado, 2008.
MIRANDA, Jorge. e MEDEIROS, Rui. Constituição Portuguesa Anotada. Coimbra:
Coimbra
Editora, 2005.
ORTEGA, Abraham Barrero. La Liberdad Religiosa en España. Madrid: Centro de
Estudios
Políticos y Constitucionales, 2006.
SENNET, Richard. Carne e Pedra: O Corpo e a Cidade na Civilização Ocidental. Rio
de Janeiro:
BestBolso, 2010.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo:
Malheiros, 2005.
WEINGARTNER NETO, Jayme. Liberdade Religiosa na Constituição. Porto Alegre:
Livraria do
Advogado, 2007.
Laicidade no Ordenamento Jurídico Pessoense
Paula Katherine Tarquino e Felix Augusto Rodrigues 13:15
ANEXOS
ANEXO 1: Projeto de Lei 608/2006
Dispõe sobre o uso da Bíblia Sagrada nas Bibliotecas e
Escolas Públicas Municipais e dá outras providências.
A MESA DA CÂMARA MUNICIPAL DE JOÃO
PESSOA DECRETA:
Art. 1º Fica incluída a inserção da Bíblia Sagrada nas
Bibliotecas e Escolas Públicas Municipais, como forma
de que se ensine a criança, o jovem e o adolescente a
aprender a manejar, estudar e discutir sobre o Livro
Sagrado.
Parágrafo único. Evidencia-se o uso da obrigatoriedade
referida no caput do artigo como forma de se
reverenciar os ensinamentos do Livro Divino por
pessoas qualificadas, que realmente possam ministrar
tais ensinamentos.
Art. 2º A disposição de que trata o artigo anterior visa
inserir no meio social e cultural os ensinamentos do
Mestre sobre toda uma vida pautada em lisura e amor
ao próximo.
Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua
publicação.
Art. 4º Revogam-se as disposições em contrário.
JUSTIFICATIVA
A presente propositura tem a primazia de
levar ao conhecimento de nossos estudantes a realidade
do Estatuto Bíblico a crianças, jovens e adolescentes no
tocante a conhecimentos direcionados a fé e aos
costumes basilares da Sagrada Família.
Não se pode negar o conhecimento àqueles
que são o epicentro do tema em causa.
Temos que demonstrarmos a nossa
responsabilidade diante de fatos inegáveis e de fácil
correção diante das notícias de jornal, rádio e televisão
sobre o que de pior acontece com os jovens e
adolescentes em nossa Capital, como forma de
jogarmos um bom exemplo a todos os municípios do
Estado da Paraíba.
Desta forma espero receber de meus pares
nesta Casa Legislativa a devida aprovação a esta
proposição, como forma de contribuirmos para o
conhecimento formal, legal e do cotidiano de nossos
jovens.
Muito obrigado.
Sala das Sessões da Câmara Municipal de João Pessoa,
“Casa de Napoleão Laureano”, em João Pessoa, 1 de
agosto de 2006.
PASTOR
MIGUEL ARCANJO
VEREADOR – PRB
“FELIZ A NAÇÃO CUJO DEUS É O SENHOR”
www.prmiguelarcanjo.com
ANEXO 2: Projeto de Lei 1304/2008
RECONHECE DE UTILIDADE PÚBLICA À
ASSOCIAÇÃO MENINO JESUS, E TOMA OUTRAS
PROVIDENCIAS.
Art. 1º Fica reconhecida de Utilidade Pública à
ASSOCIAÇÃO MENINO JESUS, tendo como nome de
fantasia Comunidade Lírios do Vale, é uma Entidade sem fins
lucrativos, fundada em 30 de Maio de 2002, devidamente
inscrita no CNPJ n. 05.165.677/0001-01, registrada no Serviço
Notarial e Registral “ Toscano de Brito “, Registro de Títulos
e Documentos e Registro Civil das Pessoas Jurídicas,
protocolado no Livro A-38, e registrado sob n. 223.107, livro
A-24, de 19 de Junho de 2002, e toma outras providências.
Art. 2º A presente Lei entra em vigor, na data de sua
publicação, revogadas as disposições em contrário.
JUSTIFICATIVA
O nosso objetivo é de reconhecer de Utilidade
Pública à ASSOCIAÇÃO MENINO JESUS, é uma entidade
sem fins lucrativos, fundada em 30 de Maio de 2002, tendo
como nome de fantasia Comunidade Lírios do Vale, é uma
obra de caráter religioso e social que busca resgatar jovens e
famílias não só para a igreja mas também sociabilizá-la
através das artes e da doutrina Católica. Fundamentada em seu
Carisma, “ministrar o amor misericordioso de Deus no
coração da humanidade vem durante todo esse tempo, através
de retiros. Louvor-shows, aulas de dança de salão, de balé
técnica vocal, palestras, sopão entres outras formas dando uma
nova esperança de vida melhor a população não só nesta
Capital, como também no alto sertão do nosso Estado.
A comunidade em epígrafe é guiada pela inspiração
divina do seu fundador Nilton Claudio Tavares Lima, e
dirigida por um conselho composto de fundador. Cofundadores
e lideres de diversas atividades da Entidade.
Ante o exposto, esperamos a aprovação unânime
deste Projeto de Lei, no Plenário desta Egrégia Casa, pelos
nobres Pares, para que seja reconhecido de Utilidade Pública,
uma entidade que visa exclusivamente beneficiar seus
associados.
CÂMARA MUNICIPAL DE JOÃO PESSOA, EM 19 DE
MARÇO DE 2007.
DURVAL FERREIRA DA SILVA FILHO
Vereador
Laicidade no Ordenamento Jurídico Pessoense
Paula Katherine Tarquino e Felix Augusto Rodrigues 14:15
ANEXO 3: Projeto de Lei 1409/2008
RECONHECE DE UTILIDADE PÚBLICA A
ASSOCIAÇÃO EVANGÉLICA PRIMEIRA IGREJA
BATISTA BESSAMAR, E TOMA OUTRAS
PROVIDÊNCIAS.
Art. 1º Fica reconhecida de Utilidade Pública à
ASSOCIAÇÃO EVANGÉLICA PRIMEIRA IGREJA
BATISTA BESSAMAR, é uma entidade religiosa sem fins
lucrativos ou econômicos, com sede e foro na cidade de
João Pessoa, Capital do Estado da Paraíba, sito a Av.
Argemiro de Figueiredo, n. 1470, Jardim Oceania, que
desde sua criação vem atendendo e dando assistência a
todos os associados, devidamente inscrita no CNPJ
n.06.014.769/0001-45, registrada no Serviço Notarial e
Registral “Toscano de Brito”, Registro de Títulos e
Documentos e Registro Civil das Pessoas Jurídicas,
protocolado no Livro A-52, e registrado sob n. 296.726,
livro A-171, de 25 de Novembro 2003, e toma outras
providências.
Art. 2º A presente Lei entra em vigor, na data de sua
publicação, revogadas as disposições em contrário.
JUSTIFICATIVA
O nosso objetivo é de reconhecer de Utilidade
Pública à ASSOCIAÇÃO EVANGÉLICA PRIMEIRA
IGREJA BATISTA BESSAMAR, fundada aos 05 dias do
mês de dezembro do ano de dois mil e dois, é uma entidade
sem fins lucrativos, que já vem trabalhando a vários anos
em prol de toda coletividade, tem como objetivo a
celebração de cultos e atos evangélicos com
fundamentação a luz da Bíblia Sagrada, bem como
edificação moral espiritual de seus membros através da
ministração da Santa palavra de Deus, contida na Bíblia
Sagrada, educação religiosa e doutrinária de seus membros
com estudos bíblicos ministrados em Escolas Bíblicas
dominicais e de férias em caráter curricular ou não,
evangelização da comunidade bem como
desenvolvimentos de obras sociais.
Ante o exposto, esperamos a aprovação unânime
deste Projeto de Lei, no Plenário desta Egrégia Casa, pelos
nobres Pares, para que seja reconhecido de Utilidade
Pública, uma entidade que visa exclusivamente beneficiar
seus associados.
CÃMARA MUNICIPAL DE JOÃO PESSOA, EM 20 DE
MAIO DE 2008.
DURVAL FERREIRA DA SILVA FILHO
Vereador
ANEXO 4: Projeto de Lei 912/2011
Incorpora a Rede Municipal de Ensino, a área de Educação
Doméstica, vinculada a disciplina de ensino religioso e dá
outras providências.
A Câmara Municipal de João Pessoa, aprova:
Art. 1º Fica incorporada a área de educação doméstica,
vinculada à disciplina de ensino religioso no âmbito da
rede Municipal de Educação.
Art. 2º Deverão ser trabalhados nesta área de educação os
valores humanos, o respeito à cidadania, valorização de
vida, hábitos e virtudes familiares.
Art. 3º A matéria de que fala a ementa e o Artigo 1º será
implantada nas Escolas Municipais a partir do ano letivo
2012.
Art. 4º Dentro das atividades propostas na área de
educação doméstica ora em questão será comemorado o
dia da família na Escola (2ª sexta-feira do mês de maio de
cada ano).
Art. 5º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 6º Revogam-se decisões em contrário.
JUSTIFICATIVA
Hoje em dia tem se tornado cada vez mais
frequente a questão da violência nas escolas, bem como o
crescente desrespeito do estudante ao seu professor e as
outras pessoas que convivem no seio da escola e até
mesmo dos filhos para com os seus pais e até hoje a escola
tem feito pouco para resgatar os valores básicos da família;
tais como: obediência, respeito, temor a Deus,
religiosidade, fraternidade, caridade, verdade, amor e
sobretudo valorização da vida, do corpo e do próximo.
Nossa justificativa é feita no sentido da
necessidade de termos na escola um espaço didático e
pedagógico para discutirmos e elegermos junto com as
famílias dos alunos valores que irão nortear estes jovens
para todas suas vidas.
Sala das Sessões da Câmara Municipal de João Pessoa, 17
de maio de 2011.
BENILTON LUCENA
Vereador – PT
Laicidade no Ordenamento Jurídico Pessoense
Paula Katherine Tarquino e Felix Augusto Rodrigues 15:15
ANEXO 5: Projeto de Lei 1386/2012
Institui o dia 30 de dezembro como do Dia Municipal da Família
Art. 1º Institui o dia 30 de dezembro como o Dia Municipal da
Família
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogandose
as disposições em contrário.
JUSTIFICATIVA
Venho propor este projeto de Lei fundamentado na minha
crença na família como “lugar sagrado”, “Igreja doméstica” que é
capaz de realizar sua missão mesmo sob fortes tensões, inúmeras
transformações e enfrentando dificuldades de todas as ordens:
“guardar, revelar e comunicar ao mundo o amor e a vida”.
A família deve ser a responsável pelo desenvolvimento
integral dos filhos e, consequentemente, para uma vida social mais
equilibrada.
O Catecismo da Igreja Católica assim exp licita o valor
extraordinário da família: “A família é a comunidade na qual, desde a
infância, se podem assimilar os valores morais, em que se pode
começar a honrar a Deus e a usar corretamente da liberdade. A vida
em família é iniciação para a vida em sociedade” (CIC, 2207).
Consideramos que as referências masculinas e femininas
presentes numa família são fundamentais para a formação, a educação
e ainda pelo equilíbrio emocional dos filhos: “toda criança, seja ela
menina ou menino tem necessidade de absorver e introjetar o caráter
masculino normalmente relacionado pela psicologia à agressividade,
entendida como uma função importante no relacionamento do sujeito
com o mundo exterior”. (...) A mulher tem um papel fundamental na
educação e formação da personalidade. É ela que transmite à criança
– menino ou menina - as características naturais do sexo feminino
como delicadeza, compreensão, receptividade, acolhimento,
bondade”. (Pai e mãe, diferentes e complementares. Virgínia
Aparecida dos Santos e Fernanda Pompermayer, Revista Cidade
Nova, p. 17, agosto de 2011.)
Certamente a família precisa ter garantida a condição
necessária para exercer o papel que lhe cabe. De acordo com José
Antonio Faro, Diretor da Redação da revista Cidade Nova, “... a
sociedade só tem a ganhar se garantir as condições para que pai e mãe
possam exercer plenamente os seus papéis na educação dos filhos e
na consolidação da família. Nesse sentido, proteger a família é uma
demonstração de maturidade social e política de um povo e de
maturidade democrática do Estado”.
O dia 30 de dezembro como o Dia Municipal da Família faz
referência A Sagrada Família, A Família de Nazaré, modelo de
unidade, amor mútuo, simplicidade, humildade, generosidade, onde
Jesus entrou na história da humanidade.
Plenário da Câmara Municipal de João Pessoa, 19 de março de 2012.
RAONI MENDES
Vereador/PDT
FESTA DE REIS E(M) LARANJEIRAS:
RELAÇÕES ENTRE POLÍTICA E RELIGIOSIDADE
RESUMO
Palavras-chave: festa de reis, Laranjeiras, resistência.
2 Termo utilizado por Alceu Araújo para designar os devotos e participantes da dança na zona rural
paulista.
Observo que a mariposa traja uma saia branca, um bolero branco aberto sobre uma
blusa de mesma cor e porta uma faixa branco-prateada nos cabelos além de
alguns acessórios (anel, cordão, pulseira e brincos); os tocadores vestem blusa
pólo azul e calça branca ou preta; o patrão traja sua indumentária ritual habitual
(trajes de marinheiro) com sua caixa atravessada no ombro; os dançantes o
seguem em numero de nove (provavelmente pelo fato de alguém n
ão ter
conseguido chegar a tempo da saída da procissão) e, logo após, o grupo mirim
(com quatorze meninos dançantes) coordenado pelo patrão mirim.
Ambos os grupos cantam e dançam com o escopo de chegar a Igreja S ão
Benedito, porém, cada qual possui uma jornada3 diferente para o momento;
enquanto os adultos cantam “Quizamba” 4, as crianças cantam “Suzanê”. Os grupos
de dançantes se deslocam, ent ão, em fila saltando e requebrando-se; porém, ao
alcançarmos a Praça Augusto Maynard o grupo dos veteranos dá início a um
desenvolvimento coreográfico onde cada fila de dançantes realiza voltas que se
encontram no meio e seguem à frente (novamente em fila); os homens pulam e
gingam estabelecendo aí um jogo de negociação, conflito e sensualidade.
“Brincando com o desequilíbrio, o corpo oscila nas direções laterais, fazendo da
ginga ‘uma zona intermediária e ambígua, situada entre o lúdico e o combativo’”
(COUTO, 2003: 64-5).
Às vezes, quando os guias se encontram a meio caminho, retornam por trás
da roda (con)fundindo o olhar do espectador que busca o encontro das formas
simples; tais entrelaçamentos são motivos para (trans) ou (con)fusão de cores e
arranjos que geram a alegria, o riso espontâneo, a fé e(m) remelexo. Percebo que
as crianças param suas brincadeiras para observarem pais, tios, primos e desse
modo, desenvolver aquela propriedade gestual promovendo a (in)cor poração e
assimilação daqueles saberes coletivos encarnados na gestualidade mussuquense.
Os meninos, entre seis e treze anos, rejubilam-se e apreendo, ent ão, que o
processo de inserção das crianças no universo ritual atende e revela-nos, antes de
mais nada, a preocupação da comunidade e dos devotos com o porvir das práticas
e sistemas de fé da Mussuca e a implementação atual de um projeto de sucessão
dos atores sociais envolvidos no ritual.
3 Segundo Cascudo (1984: 365), as jornadas consistem em uma s érie de versos cantados sem interrupção,
estruturando-se, deste modo, como ato onde percebemos quadras decoradas e algumas improvisadas
alusivas ao culto.
4 Segundo Dona Nadir (Depoimento: 2010), a jornada Quizamba, não deve ser cantada senão em
procissões.
Aí, percebemos a gestualidade como lugar de produção de conhecimento e
examinamos as resultantes das aç ões humanas como técnicas do corpo, isto é
“maneiras como os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional,
sabem servir-se de seu corpo” (Mauss, 2011: 401): uma educação do corpo.
Em todos esses elementos da arte de utilizar o corpo
humano os fatos de educaç ão predominavam. A noção de
educação podia sobrepor-se à de imitação. Pois há crianças,
em particular, que têm faculdades de imitação muito
grandes, outras muito pequenas, mas todas se submetem à
mesma educação, de modo que podemos compreender a
sequência dos encadeamentos (...). É precisamente nessa
noção de prestígio da pessoa que faz o ato ordenado,
autorizado, provado, em relação ao indivíduo imitador, que
se verifica todo o elemento social (MAUSS, 2011: 405).
A propósito Neilton Santana, (Depoimento: 2010) nos esclarece:
Aí, né, essa idéia que teve de botar os meninos pequenos
para dançar o São Gonçalo foi uma boa idéia (...) onde
assim, não vai poder acabar, né?! (...) Porque assim, eu já
vim de mirim, aí veio meu primo, veio meu irmão (...) É
como se fosse uma escala (...) dos menores para os
maiores. Isso aí vai até quando não der mais porque isso vai
facilitar o resgate do S ão Gonçalo (...) e os que v êm depois
aí, vai surgir mais forte (...) Q uem era mirim vai ficar
jovem, quem era jovem vai ficar adulto (...) Para não
morrer o São Gonçalo.
Seguimos pela Rua Direita, enquanto as crianças seguem caminhando em
silêncio, os veteranos ( à frente) cantam a jornada “Vosso Reis Pediu uma Dança”.
Ali, nas proximidades do Museu Afro-brasileiro já se escuta as canções
provenientes da igreja, mas os dançantes persistem em suas manifestações de fé
realizando pequenos giros pela dimensão estreita da rua. Então cantam e dançam e
somente quando estamos em frente à igreja eles param; outros grupos, porém
continuam em os quadros de expans ões de fé em festa, dentre os quais se
destacam os Cacumbis.
O relógio já aponta 16h40min quando chegamos à igreja, a canção
eclesiástica reclama bênçãos para toda a naç ão brasileira em tons maviosos,
graciosos e singulares:
Protege o povo brasileiro
Que vem feliz te agradecer
Oh Nosso São Benedito
A fé não lhes deixe perder
REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS
COUTO, Patrícia Brandão. Festa do Rosário: Iconografia e Poética de um Rito.
Niterói: EdUFF, 2003.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: A Ess ência das Religiões. São Paulo:
Martins Fontes, 1992.
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira & Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense,
2006.
CASTELO INTERIOR: EDUCAÇÃO MÍSTICA PARA O ENCONTRO COM DEUS
Introdução
O presente trabalho procura apresentar a obra Castelo Interior, de Santa
Teresa d'Ávila, escrito no século XVI, com o objetivo de apresentar as etapas que a
alma trilha em direção a Deus1. É um livro que apresenta a metáfora do castelo
dividido em sete moradas, e cada uma delas retrata um estágio no qual a alma
percorrerá para chegar até Deus. Além disso, a obra mescla planos autobiográficos e
doutrinais. Este livro transmite também a doutrina espiritual da reformuladora da
Ordem do Carmelo e, ao mesmo tempo, reflete sua experiência pessoal. As sete
moradas da vida interior em que se divide a obra representam as etapas da santidade
que o ser humano tem de alcançar até chegar à perfeição, segundo Teresa d'Ávila.
A metodologia do trabalho centra atenção na pesquisa bibliográfica que
aproxima a questão da religiosidade, da mística com a questão da cultura e da
educação. Por fim, o resultado da pesquisa mostrou a presença imaginária dos quatro
elementos naturais na escrita da obra Castelo Interior, que são categorias primordiais
para a educação mística do Cristão Católico.
1
Entende-se Deus a partir da concepção Cristão-Católica do século XVI, sobretudo em uma atmosfera
espanhola.
1
entre outros feitos, a experiência de seu contato direto com Deus, numa prosa que
mistura conversa de freira, romance de cavalaria e teologia mística; na obra Caminhos
da perfeição, ela deixa um roteiro para a santidade, aponta o caminho da perfeição
com muita acuidade psicológica, baseando-se na introspecção, na experiência pessoal
e na exemplaridade de outras pessoas.
A autora apresenta o texto Castelo interior com metáfora do castelo dividido
em várias moradas para descrever os sucessivos estágios que a alma percorre no seu
caminho em direção a Deus.
O livro pode ser compreendido da seguinte maneira: a primeira morada centra-
se na conversão, é o momento de entrada no castelo, ou seja, da busca de conhecer a
si mesmo. A segunda morada simboliza a luta - a tensão entre o pecado e a graça2.
Na terceira morada, o ser humano presencia a prova do amor. Assim explica Patrício
Sciadini: “Terceira morada: a prova do amor. Estabelecimento de um programa de
vida espiritual e de oração; manter-se nele; surgimento do zelo apostólico; mas
sobrevêm a aridez e a impotência como estados de prova. ‘prova-nos, Senhor, que
sabes as verdades’ ”. (Sciadini, 2009, p. 437)
Na quarta morada, a autora apresenta o simbolismo da água associada à
imagem da fonte. Uma fonte interior que representa, para alguns autores, o amor
místico-passivo.
Na quinta morada, a alegoria presente é o bicho-da-seda, “... a alma renasce
em Cristo; estado de união por conformidade de vontades, manifesta especialmente
no amor ao próximo” (Sciadini, 2009, p. 437)
O crisol do amor está presente na sexta morada. Por fim, na sétima morada,
acontece o casamento místico.
2
Entende-se por graça Deus.
2
como um castelo todo de diamante ou cristal muito claro onde há muitos aposentos,
tal como no céu há muitas moradas” (Ávila, 2009, p. 441). Neste pequeno trecho,
além de associar a alma ao castelo, ela dialoga com o seguinte texto bíblico: “Na casa
de meu Pai há muitas moradas. Se não fosse assim, eu vos teria dito; pois vou
preparar-vos um lugar.” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, Jô 14, 2, 1879).
O castelo é a alma humana com sua inteligência e formosura (Ávila, 2009)
sendo imagem e semelhança de Deus, como se pode encontrar na Sagrada Escritura
(Bíblia), coletânea de escritos revelados aos homens conforme a cosmovisão cristão:
3
Não que a alma esteja fora da alma ou em outro lugar, ela simplesmente está
perdida nela mesma. Não tem força e age como um paralítico ou um tolhido quando
não existe oração. Pois a alma faz um mergulho em si mesma via oração. Consoante
Teresa d’Ávila, “... as almas que não têm oração são como um corpo paralítico ou
tolhido, que, embora tenha pés e mãos, não os pode mover. (...) Há almas tão
enfermas e tão habituadas às coisas exteriores que não há remédio nem parecem
poder entrar em si mesmas.” (Ávila, 2009, p. 443-444).
Aquele mergulho, ou seja, o encontro da alma com a alma segundo Teresa
d’Ávila, só acontece mediante a oração. Assim escreve: “Pelo que posso entender, a
porta para entrar nesse castelo é a oração e reflexão. Não digo oração mental mais do
que vocal; para haver oração, é necessário a reflexão.” (Ávila, 2009, p. 444).
A mística
O encontro da alma com Deus pela oração podemos chamar de mística. Isto é,
o conhecimento de nós mesmos somente acontecerá, de acordo com Teresa d’Ávila,
quando se conhece Deus. Em um movimento de grandeza e de pequenez, de pureza e
de impureza, de humildade e de arrogância. Quando a pessoa conhece Deus,
imediatamente se depara com Sua grandiosidade, Sua pureza e Sua humildade, e,
como ser humano, descobre o quão é pequeno, sujo.
Esse movimento é uma infusão mística. A palavra mística nos estimula a
pensar em mistérios, magias, encantos. A aproximação, portanto, está correta como
podemos encontrar no dicionário3 de Filosofia, que afirma que a mística estar ligada
ao movimento de atingir o sagrado. O dicionário4 de língua portuguesa apresenta o
significado de mística como estudo associado as coisas sobrenaturais e à vida
contemplativa. Na mesma linha conceitual, Brugger (1969), em seu dicionário5 de
Filosofia, afirma que a mística é toda união interior com Deus.
Além disso, entendemos mística por totalidade o que nos remete a Plotino (Cf.
BAL, 2007), o qual afirmava que a experiência mística não conhece o abismo entre ele
(o indivíduo) e a respiração cósmica. Tudo é uno. Recordando o místico cristão,
Ângelus Silesius, em seus mergulhos no oceano infinito de onde tudo provém, diz: “A
3
Etim: grego mystikos, quer dizer respeito aos mistérios. A) Conjunto de processos ou movimentos
espirituais pelos quais pensa atingir diretamente o divino. B) Parte da teologia que estuda os fenômenos
místicos, isto é, os que pretendem atingir, pela apreensão não racional, uma ordem de realidade superior. (
RUSS, 1994, 186)
4
“Mística: s.f 1. Estudo das coisas divinas e espirituais. 2 Vida religiosa e contemplativa; misticismo.”
(LAROUSSE, 1992: 752).
5
(“fechar os olhos”), designa etimologicamente uma vivência profundamente interior, misteriosa,
principalmente no domínio religioso. Em acepção muito ampla, entende-se por mística toda espécie de união
interior com Deus; em sentido restrito, só a união extraordinária com Deus. (BRUGGER, 1969: 274)
4
pequena gota se transforma em mar quando chega até ele; e assim a alma se
transforma em Deus, quando é nele acolhido.” (apud GAARDER, 1995:154).
A infusão mística é necessária, pois o ser humano, como orienta Teresa d’Ávila,
deve primeiro entrar em si mesmo, “entrar no aposento próprio” (Ávila, 2009, p. 448)
para, somente depois, percorrer outros caminhos e aposentos. Ela afirma tanto que é
necessário conhecer a si mesmo que escreve: “... a questão de nos conhecer é tão
importante que eu gostaria que não houvesse nisso nenhuma negligência...” (Ávila,
2009, p. 448). Podemos entender que a mística e a educação espiritual tem uma
relação estreita na obra Castelo interior, em que os quatro elementos naturais que
estimulam a mente humana para a dimensão do sagrado.
6
Mesmo que Deus na concepção Cristã.
5
É possível encontrar traços dos quatro elementos naturais na obra Castelo
Interior, como pode ser lido no trecho: “... a nossa alma como um castelo todo de
diamante ou cristal muito claro onde há muitos aposentos, tal como no céu há muitas
moradas” (Ávila, 2009, p. 441). Os termos castelo, diamante e cristal podemos
associar ao imaginário da terra, e o termo claro, ao imaginário da água e do fogo. Pois
o termo claro consegue trazer em seu bojo a ambiguidade dos quatro elementos
naturais; enquanto associado ao elemento água, provoca a memória dos riachos e das
águas claras, e, quando nos fazer lembrar o fogo, está ligado a fenômeno de olhar, já
que só é possível ver quando há luz, e a luz é quente, é fogo.
Bibliografia
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. Ensaios sobre a imaginação da matéria.
São Paulo: Martins Fontes, 2002.
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso. Ensaios sobre as imagens da
intimidade. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos. Ensaios sobre a imaginação do movimento.
São Paulo: Martins Fontes, 2001.
6
BAL, Gabriela. Silencio e contemplação: uma introdução a Plotino. São Paulo: Paulus,
2007.
BAL, Gabriela. Silêncio em Plotino. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião),
PUC/SP, São Paulo, 2003.
BARBOSA, Luciana Ignachiti. De amor e de dor: a experiência mística de Santa Teresa
d’Ávila. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), UFJF, Juiz de Fora, 2006.
BASTIDE, Roger. Os problemas da vida mística. Lisboa: Europa-América, 1959.
BASTIDE, Roger. O sagrado selvagem e outros ensaios. São Paulo: Companhia das
letras, 2006.
BASTOS, Isabel da Conceição Ribeiro Soares. Iconografia de Esposas na pintura
portuguesa. Dissertação (Mestrado em Historia da Arte Portuguesa), Universidade do
Porto, Porto, 2011.
BIBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2011.
BOFF, Leonardo; BETTO, Frei. Mística e espiritualidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
CARVALHO, José Jorge de. A tradição mística afro-brasileira. Religião e Sociedade, vol.
2, n. 18, Rio de Janeiro, 1997, p. 93-122.
CASSIRER, Ernst. Ensaios sobre o homem – introdução a uma filosofia cultural
humana. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 7ª ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1993.
ELIADE, Mircea. Imagem e Símbolos: ensaios sobre o simbolismo mágico-religioso.
São Paulo: Martins Fontes, 2002.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2004.
ELIADE, Mircea. Mitos, sonhos e mistérios. Lisboa/Portugal: Edições 70, 2000.
ELIADE, Mircea. Sagrado e profano. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
ESPINDOLA, Dulce Pansera. Libro de la vida, de Teresa de Jesus: a autobiografia como
manifestação literária feminina. Dissertação (Mestrado em Ciências da Linguagem),
Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, 2003.
FELICIO, Vera Lucia. A imaginação Simbólica. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1994.
GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
GARCIA, Miriam Verri. Liberdade em clausura: trajetória pessoais e religiosas de
monjas descalças. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), PUC/SP, São
Paulo, 2006.
GIORDANO, Alessandra. Contar histórias: um recurso arteterapêutico de
transformação. São Paulo: Artes Médicas, 2007.
7
MARIANI, Ceci Maria Costa Baptista. Marguerite Porete, teologa do século XII.
Experiência mística e teologia dogmática em O Espelho das Almas Simples de
Marguerite Porete. Tese (Doutorado em Ciências da Religião), PUC/SP, São Paulo,
2008.
MATTOS, Solange Missagia. Imaginário Mítico: o simbolismo do herói à luz de Joseph
campblell e Carl Gustav Jung. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião),
PUC/MG, Belo Horizonte, 2011.
MENEZES, Adélia Bezerra. As portas do sonho. São Paulo: Ateliê editorial, 2002.
MENEZES, Adélia Bezerra. Do poder da palavra: ensaios de literatura e psicanálise.
São Paulo: Duas Cidades, 2004.
MIGUEL, Roberto Pereira. A visualização do Invisível: beleza e mística em santo
Agostinho. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), , PUC/SP, São Paulo,
2009.
ORAZEN, Roberta Bacellar. A representação de Santa Teresa d”Ávila nas igrejas da
Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira/Bahia e São Cristóvão/ Sergipe. Dissertação
(Mestrado em Historia da Arte Brasileira), Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2009.
PARIZI, Vicente Galvão. Encruzilhadas e Travessias. O encontro do humano e do
divino na casa de Candomblé Ilê Kalamu Funfum sob o olhar Psicológico da Psicologia
Transpessoal e da poética de Gaston Bachelard. Dissertação (Mestrado em Ciências da
Religião), Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2005.
PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 2000, Coleção Os Pensadores.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos. vol. 5, n. 10, Rio de
Janeiro, 1992, p. 200-212.
RAMOS, Denise Gimenez. A vivência simbólica no desenvolvimento da consciência. In:
BRITO, Ênio José da Costa. et al. Religião ano 2000. São Paulo: Edições Loyola, 1998,
p. 63-75.
ROCHA, Everardo. (Org.). Cultura e imaginário: interpretações de filmes e pesquisas
de idéias. Rio de Janeiro: Mauad,1998.
RUSS, Jacqueline. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Scipione, 1994.
SANTOS, Luciana Lopes. “Femina Inquieta y Andariega”: Valores e símbolos da
literatura cavaleiresca nos escritos de Santa Teresa de Jesus (1515-1582).
Dissertação (Mestrado em História), UFRGS, Porto Alegre, 2006.
STRAUSS-LÉVI, Claude. Antropologia estrutural dois. 4. ed. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1993.
STRAUSS-LÉVI, Claude. O pensamento selvagem. 2. ed. Campinas/SP: Papirus, 1997.
8
TERESA DE JESUS, Santa. Castelo Interior. In:________. Obras Completas. 4. ed. São
Paulo/SP: Edições Loyola, 2009.
TERESA DE JESUS. Obras Completas. 4. ed. São Paulo/SP: Edições Loyola, 2009.
VAZ, Henrique C. de Lima. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental. São
Paulo, Edições Loyola. 2000.
9
CONGREGAÇÃO DS FILHAS DO AMOR DIVINO: BREVE ABORDAGEM DA
EDUCAÇÃO CATÓLICA ATRAVÉS
DO CENTRO EDUCACIONAL CRISTO REDENTOR (1944-2010)
1
Graduada em Pedagogia e Estudos Sociais- CESMAC e UNEAL
Coordenadora do Centro Educacional Cristo Redentor- Congregação das Filhas do Amor Divino
1
CONGREGAÇÃO DS FILHAS DO AMOR DIVINO: BREVE ABORDAGEM DA
EDUCAÇÃO CATÓLICA ATRAVÉS
DO CENTRO EDUCACIONAL CRISTO REDENTOR (1944-2010)
2
MOURA, Laércio Dias de. A educação católica no Brasil: presente, passado e futuro. São Paulo:
Loyola, 2000.p.23.
3
Ibidem p.19
2
O trabalho missionário foi posto em prática, tendo como ponto de partida o
processo educacional, implantação de escolas e construção de igrejas que começaram a
fazer parte do espaço que estava sendo ocupado e transformado.
Ao ato de ensinar incluía-se a preparação para a vida como cristão. Em tal
perspectiva, o público alvo eram as crianças indígenas. Para essa clientela fundaram as
missões e, simultaneamente, foi implementada a educação para a elite colonial, o que
perdurou até o Império, período marcado pela ruptura do sistema colonial a partir das
medidas tomadas por D. João, que também incluíam a estrutura geral do ensino.
Enquanto o Brasil passava por todos esses períodos de transições, a fundadora da
Congregação das Filhas do Amor Divino, Madre Francisca Lechner, intensificava seu
grande desafio, que era a fundação de casas para abrigar órfãs e desempregadas e
escolas. Em 1884 o Papa Leão XIII aprovou a Regra da Congregação e a partir daquela
data, as religiosas puderam fazer votos perpétuos. Naquele tempo, a Madre Francisca já
externava sua preocupação com as escolas e, consequentemente, com suas professoras
e todas freiras; para tanto, elaborou um plano educativo que continha 17 itens, nos quais
destacava a importância do exemplo de vida de cada uma, principalmente para as
crianças.
Os ensinamentos de Madre Francisca ultrapassaram a barreira do tempo,
perpetuando-se até os dias atuais, onde naquela época a Madre deixava explícito o
processo de inclusão quando falava as suas orientandas que “Deus não deu dotes iguais
a todos;” em virtude disso, lembrava que as professoras passassem a ter cuidado
principalmente com os que fossem fracos de intelecto, bem como cautela com os
elogios pois esses também podem ajudar ou prejudicar, a depender da intensidade e
veracidade, bem como a importância da formação que a criança iria receber na escola.
No entanto, nas preocupações hodiernas, a ênfase recai sobre o processo de
inclusão que tem a sociedade como ponto de referência, pois ela é a responsável pela
formação e construção do homem. Nesse contexto Berger ressalta:
A sociedade é constituída e mantida por seres humanos em ação.
Não possui ser algum, realidade alguma, independente de tal
atividade. Seus padrões, sempre relativos no tempo e no espaço,
não são dados da natureza e de nenhum modo específico podem
4
ser deduzidos da “natureza do homem”.
4
BERGER, Peter Ludwig. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São
Paulo: Paulus, 1985. p.20
3
O tripé sociedade, educação e religião é visto como os pilares que sustenta a
estrutura social, em todo o momento a religião apresenta-se com poder de direcionar
ou mesmo ditar normas, porém é a sociedade que acata e põe em prática, atitude capaz
de mudar ou redirecionar os rumos da história.
Esses fatos contribuiriam para que as Filhas do Amor Divino viessem para o Brasil
na certeza de que a Educação predominante no Brasil era a Católica, trazida pelos
jesuítas que perdurou durante 230 anos. As irmãs Teresina Werner, Irmã Constantina e
5
OLIVEIRA, Vilma Lúcia de. A obra de Ir. Teresina Werner para instaurar a Congregação das
Filhas do Amor Divino no Brasil: análise crítico-histórica. Pontifícia Universidade Gregoriana.
Faculdade de História Eclesiástica. Roma, 1999.
4
duas postulantes desembarcaram em São Paulo e seguiram em direção a Hamburgo-RS,
local que mantiveram contato com o Padre Schimmöller pároco desse lugar e um dos
responsáveis em solicitar atuação das Filhas do Amor Divino que na ocasião tinham
destino para Serro Azul (Cerro Largo) onde ficaram hospedadas no colégio Santa
Catarina.
No entanto a chegada das irmãs ao Brasil pode-se dizer em metáfora que foi
tortuosa. Sabe-se que era o sonho de Irmã Teresina Werner trazer a Congregação, mas
os obstáculos foram inúmeros desde a aceitação da Madre a chegada ao país. Após a
estadia no Rio Grande do Sul, e alguns entraves enfrentados a irmãs se deslocaram para
o Nordeste do Brasil onde fundaram várias casas destinadas a educação. Na sede do
Nordeste a Província do Norte, instalaram suas escolas em várias localidades como:
Caicó, Assu, Areia Branca, Patos na Paraíba, Natal (atual sede), Taguatinga em Brasília e
Palmeira dos Índios em Alagoas o Centro Educacional Cristo Redentor objeto de estudo
dessa pesquisa.
6
AZZI, Riolando. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo. Tomo
II/3-2 – Terceira época – 1930-1964. Petrópolis: Vozes, 2008 p.219.
6
Pode-se dizer, portanto, que a religião desempenhou uma ponte
estratégica no empreendimento humano da construção do
mundo.A religião representa o ponto máximo da auto
exteriorização do homem pela infusão, dos seus próprios sentidos
sobre a realidade.7
7
BERGER, Peter Ludwig. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião.
São Paulo: Paulus, 1985. p.41
8
WLASTINIK, Cristina. Livro de Tombo do Educandário Cristo Redentor. Palmeira dos Índios,
1944 a abril de 1995. (Manuscrito
9
LIMA, Severina Alves (Coord.). Caminhos novos na educação. São Paulo: FTD, 1995.p.48.
7
Em 1946, vivia-se o pós-guerra, período marcado pela Guerra Fria, quando a
educação passou a ser considerada um direito de todos, inspirada nos princípios da
liberdade e nos ideais de solidariedade humana, bem como era posta como livre à
iniciativa privada. As famílias das classes média e alta assumiram a responsabilidade pela
educação de seus filhos, conduzindo-os para as melhores escolas, dentre as quais se
incluíam as escolas católicas, uma vez que nos anos 1930 a Igreja Católica, que tentara
assumir o controle da educação pública do país, limitou-se a administrar apenas as suas
escolas. Não foi diferente em Palmeira dos Índios, onde as famílias de classe média e alta
contribuíram para a implantação do Educandário Cristo Redentor, com o propósito de que
suas filhas tivessem uma educação de qualidade.
Em fevereiro de 1948, aconteceram os exames para o curso Ginasial, tendo
prestado exame 25 alunas para a primeira turma. Na mesma ocasião a Madre Ângela foi
a Maceió, acompanhada da secretária, Irmã Júlia, para tratar da equiparação do Curso
Ginasial, tendo sido necessária a sua permanência por mais alguns dias na capital
alagoana para providenciar, de forma urgente, a planta do Educandário que deveria ser
enviada para o Rio de Janeiro e ser oficializado como Ginásio, o que ocorreu através da
Portaria nº. 206, de 12 de abril de 1948, que concedeu o reconhecimento ao Ginásio
Cristo Redentor.10
Na década de 1950 foi criada a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
e Juscelino Kubitscheck, eleito Presidente do país, não se comprometeu com o ensino
básico. Em 17 de maio de 1952, o Ginásio recebeu a visita de uma Comissão de fiscais
que veio inspecionar o estabelecimento de ensino com o propósito de conceder a
inspeção definitiva, segundo ata assinada em 26 de agosto de 1952, por Madre Maria
Imaculada Widder. Em março de 1953, foi inaugurado o Jardim de Infância, sob a
direção de Ir. Antonia, que passou a funcionar em uma casa anexa ao Colégio e
pertencente à paróquia. Em 1955, em 13 de setembro, foi realizada a benção da pedra
fundamental do novo edifício do Ginásio Cristo Redentora, por Dom Frei Felício da Cunha
Vasconcelos, OFM e Monsenhor Francisco Xavier de Macedo. Estavam também presentes
no evento a madre superiora da comunidade religiosa do Amor Divino, com outras
freiras, alunas e autoridades da cidade.
Em 1960, as religiosas que viviam em países comunistas estavam sendo
perseguido, fato que era comunicado às comunidades religiosas instaladas no Brasil. No
mesmo período, a Irmã Superiora solicitou a oficialização do curso Pedagógico, no já
então chamado Ginásio Cristo Redentor. Nesse mesmo período (1961) foi promulgada a
10
Idem
8
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBN 4.024 – que enfatizava as
reivindicações da Igreja Católica.
Os anos 1970 foram marcados por uma série de fatos, dentre eles registra-se
através da Portaria nº 283, de 27 de abril de 1970, da Inspetora da Seccional de Maceió
e da Diretoria do Departamento de Ensino Fundamental que, de acordo com o Parecer do
Setor de Prédios e Aparelhamento Escolar, resolveu conceder o reconhecimento definitivo
do Curso Secundário, 1º ciclo (Curso Ginasial), do Colégio Cristo Redentor, em 02 de
julho do mesmo ano. Em 1971 deu-se a promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases –
LDB 5692/71. Outro fato marcante foi a fundação da Escola Dom Bosco, dentro das
instalações do Colégio Cristo Redentor, para alunos com idade entre 7 e 14 anos, de
classe baixa, cujo objetivo, além de ministrar aulas, era fornecer merenda através do
Ministério da Educação e Cultura (MEC). Naquela década o colégio já estava funcionando
em prédio novo. Em 1973, a escola passou a ser chamada oficialmente de Centro
Educacional Cristo Redentor.11
Na década seguinte (1980), considerada perdida para a Geografia Econômica, já
como Centro Educacional Cristo Redentor, foi feita opção pela intensificação dos
esportes, quando foi iniciada a construção do Ginásio de Esportes graças a campanhas e
ajudas de particulares; destacou-se, também, a abertura da Feira de Ciências que foi o
primeiro passo para incluir ciência, cultura, religião e tecnologia em suas dependências,
através de um projeto interdisciplinar apresentado pelos alunos dos Ensinos Fundamental
e Médio.
Nos anos 1990 foi promulgada outra Lei de Diretrizes e Bases, (LDB 9394/96),
que apresentou um novo referencial para a educação de base, principalmente a
flexibilidade. Foi comemorado o centenário de morte da Madre Francisca Lechner,
fundadora da Congregação.
No espaço de tempo entre 2000 e 2010, o colégio sediou os Jogos da Província,
que contaram com a participação de jovens de várias escolas do Nordeste. Obteve a
melhor nota do Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM), como escola privada da cidade
e com uma das melhores notas do Estado de Alagoas, ficando acima da média do país.
Pode ter contribuído também na formação de vários alunos que tornaram-se padres,
jovens da cidade e da região que tornaram-se freiras.Durante toda sua trajetória, o
Centro Educacional Cristo Redentor vem tentando acompanhar a evolução tecnológica,
não ficando alheio aos fatos sociais e históricos para, assim, cumprir a sua missão que é
11
WLASTINIK, Cristina. Livro de Tombo do Educandário Cristo Redentor. Palmeira dos Índios,
1944 a abril de 1995. (Manuscrito
9
a de promover a humanização através da valorização do conhecimento, formando
cidadãos coerentes com a sua origem divina e seus ideais cristãos.
Pretende-se desenvolver essa pesquisa de cunho social, religioso, histórico e
educacional como uma forma de contribuição para a História da Educação no Brasil após
a vinda dos jesuítas desvinculada de Portugal e Espanha, porém, com os mesmos ideais
de implantar a educação católica em território brasileiro, envolvendo o processo
migratório, a sociedade e a Igreja, tripé responsável pela formação social no território
brasileiro podendo o pluralismo ser evidenciado como palavra chave de todo esse
contexto, os dialetos da civilização indígena, a língua portuguesa e a educação escolar
parceiras para difusão do cristianismo, a riqueza cultural, a variedade de cores
(pigmentação da pele), o credo religioso (cristianismo) como a base em uma sociedade
de politeístas (índios), de religião afro e evangélicos.Para tanto o ponto de partida está
no trabalho realizado pelos religiosos e religiosas que aqui chegavam responsáveis pela
catequização e instrução daquelas pessoas sendo destacado o trabalho da Irmãs da
Congregação das Filhas do Amor Divino.
Referências
ALMEIDA, Madre M. Auxiliadora Nóbrega de. Livro das Crônicas do Colégio Cristo
Redentor – Palmeira dos Índios – Alagoas. 2º volume (1966 a 2007). Manuscrito.
BERGER, Peter Ludwig. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica
da religião. São Paulo: Paulus, 1985.
COTRIM, Giberto. Educação: para uma escola democrática. São Paulo: Saraiva, 1987.
10
FÁVERO, Osmar et al. A educação nas constituintes brasileiras (1823-1988).
Campinas: Autores Associados, 1996.
LIBÂNIO, João Batista. Educação católica: atuais tendências. São Paulo: Loyola, 1983.
LIMA, Severina Alves (Coord.). Caminhos novos na educação. São Paulo: FTD, 1995.
MOURA, Laércio Dias de. A educação católica no Brasil: presente, passado e futuro.
São Paulo: Loyola, 2000.
OLIVEIRA, Vilma Lúcia de. A obra de Ir. Teresina Werner para instaurar a
Congregação das Filhas do Amor Divino no Brasil: análise crítico-histórica. Pontifícia
Universidade Gregoriana. Faculdade de História Eclesiástica. Roma, 1999.
SANTOS FILHO, Onofre Guilherme dos (Org.). Igreja Mãe e Mestra: documentos do
magistério da Igreja sobre a educação. Goiânia: Editora da UCG, 2008.
11
12
ENTRE A CRUZ E A TORAH: AS EXPERIÊNCIAS “INTELECTUAIS” DE BENTO
TEIXEIRA
Ainda mais recentemente podemos identificar novos estudos que possuem como
objeto de investigação grupos e práticas ainda não tão abordadas pela historiografia,
como os negros e suas religiosidades que foram também interceptados pela atuação
inquisitorial. O comércio e o contrabando1 além dos agentes que se inseriram nesses
circuitos também têm sido objetos de estudo de pesquisadores que trabalham com a
documentação gerada pela Inquisição. Entretanto, não é apenas nas práticas e grupos
perseguidos pelo Tribunal do Santo Ofício que os estudos inquisitoriais tem se
concentrado. A dimensão institucional da Inquisição tem gerado também trabalhos
historiográficos, apesar de apenas recentemente. Um dos autores que consideramos mais
significativos nesta perspectiva é Bruno Feitler que em sua crítica à historiografia da
Inquisição no Brasil, afirma que os estudos inquisitoriais tem se especializado apenas nos
grupos perseguidos pelo Santo Ofício sem levar em consideração os aspectos estruturais
de funcionamento do Tribunal no Brasil:
*
Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura Regional da Universidade Federal
Rural de Pernambuco (PPGHISCR – UFRPE). Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES).
1
Ver os trabalhos de Janaína Silva (SILVA, Janaína Guimarães da Fonseca. Cristãos novos nos negócios da
Capitania de Pernambuco: relacionamentos, continuidades e rupturas nas redes de comércio entre os anos de
1580 e 1630. Tese de Doutorado, UFPE – CFCH, Recife, 2012) e Daniela Levy (LEVY, Daniela. O estudo do
contrabando através das fontes inquisitoriais. In: Anais Eletrônicos do I Simpósio Internacional de Estudos
Inquisitoriais: História e Historiografia. 2011. Disponível em http://www.ufrb.edu.br/simposioinquisicao/wp-
content/uploads/2012/01/Daniela-Levy.pdf. Acesso em 20/01/2013).
2
Entretanto, Thaís Fonseca sinaliza para a escassez de pesquisas que tratem dos
processos educativos e experiências letradas existentes na América Portuguesa para além
2
Ver o artigo clássico de Carlo Ginzburg: “O Inquisidor como Antropólogo. Revista Brasileira de História. v.
1, nº 21. São Paulo, 1991, p. 09-20”.
3
O processo inquisitorial contra Bento Teixeira (5.206)3 contém uma série de dados
sobre este personagem histórico que viveu na capitania de Pernambuco na segunda
metade do século XVI, ensinando moços filhos da elite açucareira que se formou neste
contexto. O processo contém informações sobre uma série de práticas cometidas por
Bento Teixeira e foram as causas que o levaram a ser preso durante a primeira visitação
inquisitorial na América Portuguesa na década de 1590.
Entretanto, não é apenas através do processo inquisitorial contra Bento Teixeira
que alguns autores tem analisado a atuação do letrado no final do século XVI. As
confissões da Bahia e as denunciações de Pernambuco4 se constituem também como
fontes, pois nesses documentos existem depoimentos contra o letrado, como também
suas confissões. Além disso, podemos fazer referência ao poema épico de autoria do
letrado, Prosopopéia5, que tem gerado análises tanto de historiadores como de
especialistas em literatura.
Sobre a figura de Bento Teixeira a produção historiográfica é relativamente
escassa. E podemos elencar algumas obras que nos são referência. José Antônio
Gonsalves de Mello dedica um capítulo à vida social e familiar além das práticas
criptojudaicas do poeta em questão em seu clássico Gente da Nação (Mello, 1990). Tais
dados, reunidos a partir de um forte aparato documental, nos são úteis na medida em
que tentamos compreender a teia de relações sociais a qual Bento Teixeira estava
inserido, além de constituir um manual cronológico acerca da vida do mestre de moços.
Sônia Siqueira (1972) nos concede um importante estudo sobre o criptojudaísmo
de Bento Teixeira, partindo de uma análise interpretativa do poema Prosopopéia. Muito
mais do que a exposição de informações sobre a vida de Bento Teixeira, Siqueira adorna
seu discurso por meio de uma análise significativa acerca da atmosfera cultural que forjou
o poeta em questão, considerando-o um desajustado pelo fato de abrigar em torno de
sua pessoa múltiplas identidades, às quais foram bem utilizadas pelo poeta quando da
necessidade de camuflar suas práticas judaizantes aos olhos da Igreja Católica.
3
Este processo consiste nas denúncias sobre Bento Teixeira, como também em suas confissões. Atualmente, todo
o processo inquisitorial (de número 5.206) se encontra disponível no site do Arquivo Nacional da Torre do
Tombo (ANTT) de Portugal: : http://antt.dgarq.gov.pt/
4
Ver alguns documentos da primeira visitação inquisitorial à América Portuguesa no século XVI que já foram
editados: Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil – Denunciações e Confissões de Pernambuco
1593-1595. Recife: FUNDARPE, 1984; Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil – Denunciações
da Bahia - 1591-1592. São Paulo: Ed. Paulo Prado, 1925; Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil.
Confissões da Bahia (1591-92). Edição da Sociedade Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro: Liv. Briguiet, 1935.
5
Podemos citar também o importante trabalho de Eneida Ribeiro que a partir dos
textos escritos pelo poeta Bento Teixeira, nos revela dados importantes sobre o cotidiano
dos cárceres da Inquisição de Lisboa e a corrupção existente na estrutura inquisitorial
(RIBEIRO, 2006). Este trabalho também aborda as estratégias textuais utilizadas por
Bento Teixeira na composição de sua defesa diante do Santo Ofício.
Trabalhos como os de Luiz Alves (1983) e Kênia Pereira (1998) nos presenteiam
com análises sobre o aspecto poético-literário de Bento Teixeira, analisados a partir de
sua produção textual no momento em que esteve preso nos cárceres da Inquisição de
Lisboa como também do seu principal poema Prosopopéia, considerado sua obra prima.
Apesar da relevância desses trabalhos, consideramos que o processo contra Bento
Teixeira ainda nos oferece possibilidades diversas de abordagens, e aspectos que nos
chamam a atenção para referenciarmos experiências de cultura letrada alternativas aos
colégios da Companhia de Jesus. Consideramos que a trajetória de indivíduos como Bento
Teixeira nos revela que vivências letradas significativas podem ser percebidas sob o
manto de certas generalizações presentes na historiografia.
I. Primeiro, a acusação.
De maneira geral podemos perceber que o processo contra Bento Teixeira é
constituído por partes que devem ser compreendidas, e que foram produzidas
paralelamente à trajetória de Bento Teixeira desde quando começou a ser denunciado
durante a primeira visitação inquisitorial a Pernambuco no século XVI, até o momento em
que o réu chega a falecer nos cárceres do Santo Ofício de Lisboa em julho de 1600. As
denúncias, em sua maioria, geraram relatos que se transformaram nos documentos da
visitação do Santo Ofício a Pernambuco, e se formam a partir das acusações dos inimigos
do réu, como também das pessoas que conviveram com ele e acharam conveniente
denunciá-lo, entretanto, deve-se considerar que desde a visitação da Inquisição à Bahia,
já havia denúncias contra Bento Teixeira. Ainda no tempo da graça o próprio réu se
apresenta diante do inquisidor para confessar suas culpas e denunciar outros mais.
Entretanto, mesmo se confessando no período concedido pela Inquisição para que os
colonos pudessem por si mesmo irem confessar suas culpas, os inquisidores Diogo Sousa
e Marcos Teixeira mandaram prender Bento Teixeira em 1595, pela relevância das
denúncias que foram dirigidas ao réu. A historiadora Eneida Beraldi Ribeiro (2006) lista o
5
Bento Teixeira foi consagrado pelos manuais de literatura como o primeiro poeta do Brasil pelo fato de ser o
autor do poema Prosopopéia, uma narrativa épica sobre os feitos do nobre Jorge da Albuquerque na batalha da
Alcácer Kibir junto ao rei D. Sebastião.
6
Nos textos dessas cartas Bento Teixeira buscou utilizar com esmero as letras que
tanto fizeram parte de sua vida desde quando estudou nos colégios jesuítas das
capitanias do Espírito Santo, Rio de Janeiro e da Bahia (onde chegou perto de se tornar
um clérigo), até quando viveu em Pernambuco e lecionava para os filhos da elite,
escrevendo um poema épico em homenagem a Jorge de Albuquerque, chegando inclusive
a discutir questões teológicas com um clérigo do mosteiro de São Bento de Olinda.
A estrutura das cartas de defesa de Bento Teixeira pode ser caracterizada pelo
domínio do latim e pela utilização de figuras bíblicas como elemento retórico que
adornaram e compuseram sua narrativa. Não podemos apenas mencionar este aspecto
sem considerar que dentre as acusações que levaram Bento Teixeira a ser preso pelo
Tribunal do Santo Ofício está o fato dele ter traduzido do latim textos bíblicos para alguns
cristãos novos judaizantes, especificamente textos do Antigo Testamento em troca de
pagamento. (Ribeiro, 2006, p. 102) Ao analisar o texto dessas cartas pudemos perceber
que utilizando figuras bíblicas, predominantemente do Antigo Testamento, e
demonstrando conhecimentos em latim Bento Teixeira estaria, na verdade, mostrando
aos inquisidores que ele, para escrever sobre personagens bíblicos, provavelmente lia a
Bíblia, prática proibida pela Igreja para os leigos e só permitida aos clérigos. Figuras
como as de Adão, Esaú, Jacó, Moisés, Psalmista (Davi) e o Sábio (Salomão) aparecem na
narrativa composta por Bento Teixeira aos Inquisidores, sem esquecer também da
analogia utilizada pelo letrado ao comparar sua mulher à Arca de Noé “por não lhe ficar
animal que não entrasse”, se referindo aos diversos amantes de Felipa Raposo7. Vejamos
alguns trechos em que Bento Teixeira emprega personagens bíblicos em sua narrativa:
Para a Inquisição, Bento Teixeira poderia ser interpretado como uma figura
perigosa, pois dispunha de conhecimentos que poderiam ser úteis aos judaizantes,
traduzindo textos do Antigo Testamento e com um rico conhecimento bíblico, poderia
inclusive assumir certa liderança entre os cristãos novos que judaizavam. Isto adquire
certo relevo quando consideramos que não havia uma literatura nem liderança religiosa
que pudesse perpetuar o judaísmo entre os cristãos novos, pois segundo o historiador
Charles Boxer:
Não foi apenas entre os judaizantes que Bento Teixeira demonstrou ser alguém
perigoso pelo Tribunal da Inquisição. Dentre as denúncias efetuadas contra o letrado, e
em suas próprias confissões no período da Graça, estavam certas posturas que se
dirigiam especialmente à Igreja Católica: pronunciou juramento desonroso à Virgem
Maria mencionando a ‘humanidade de Nossa Senhora’ e negou tijolos para uma reforma
numa Igreja de Olinda afirmando ser a sua casa também sagrada. Na visão inquisitorial
estas duas atitudes de Bento Teixeira poderiam ser enquadradas como sendo um caso de
blasfêmia e proposição herética, respectivamente. Mas na abordagem destas denúncias
optamos por seguir a interpretação do historiador Marco Nunes Silva de não entender
9
situações de blasfêmia e proposições heréticas apenas pelo viés dos efeitos de bebida
alcoólica, ou em momento de grande fúria e descontrole emocional. Os que afirmavam
proposições heréticas conscientemente atraíam especial atenção do Tribunal do Santo
Ofício, pois “para os inquisidores, eram estes que verdadeiramente representavam
ameaça à fé”. (Silva, 2012, p. 51) Segundo à linha de interpretação de Marco Nunes
Silva:
Alguém tão perigoso e ameaçador para a ordem estabelecida como foi Bento
Teixeira deveria ser subjugado pelos órgãos de dominação social, papel muito bem
assumido pela Inquisição. É interessante notar que, além de tudo o que já ressaltamos
anteriormente, havia o fato desse letrado, judaizante e herege, atuar na capitania de
Pernambuco como mestre de moços, e principalmente, moços da elite. Bento Teixeira
atuava numa iniciativa individual, não estava a serviço de instituições que serviam ao
controle social do Estado e da Igreja, tal como o Tribunal da Inquisição e a Companhia de
Jesus, através de seus colégios, que, além de catequizar os indígenas, cuidava da
educação dos colonos. O que é interessante, e precisa ser bem ressaltado é que uma
figura como Bento Teixeira foi forjada dentro da própria estrutura institucional montada
no Império Português para submeter os indivíduos ao poder do Estado e da Igreja. Foi o
contexto dos colégios jesuítas existente na América Portuguesa que forjaram Bento
Teixeira. Isso demonstra as próprias contradições internas de um sistema que criava as
10
condições para seu próprio questionamento, e nos faz refletir sobre determinadas
posturas historiográficas que abordam o período colonial como um período de intenso
controle social a partir das instituições do Estado Português, sem, no entanto, perceber
certos casos em que este controle foi afrontado com posturas como as de Bento Teixeira.
Em suas cartas aos inquisidores Bento Teixeira utiliza seu papel de mestre de
moços como algo a ser usado em sua defesa, mas talvez a percepção dos inquisidores
fosse precisamente a inversa. Vejamos o que nos informa o próprio réu:
século XVI. Além da formação adquirida nos colégios jesuítas, através de textos da
tradição clássica, Bento Teixeira buscou trilhar seus próprios caminhos como um letrado,
lendo inclusive livros proibidos no Império Português, como foi o caso de Diana de Jorge
de Montemayor que circulava clandestinamente na colônia nas mãos de letrados como
Bento Teixeira. As leituras da Bíblia por si só nos chamam atenção para se analisar e
compreender esta prática num período em que não havia condições para sua leitura por
leigos.
REFERÊNCIAS
Fontes
BLUTEAU, Rafael (1638-1734). Vocabulario Portuguez e Latino. Lisboa: Officina de
Pascoal da Sylva, Impressor de Sua Magestade, Volume 5, 1716.
PRIMEIRA Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil; Denunciações e Confissões de
Pernambuco 1593-1595. Prefácio de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife, FUNDARPE.
Diretoria de Assuntos Culturais 1984. 509+158 p. Il (Coleção pernambucana – 2ª fases.
14)
PROCESSO Inquisitorial contra o cristão novo Bento Teixeira de número 5206. Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, Lisboa. (Disponível em http://antt.dgarq.gov.pt/)
Bibliografia
ALVES, Luís Roberto. Confissão, Poesia, Inquisição. São Paulo: Editora Ática, 1983.
BOXER, Charles R.. O império marítimo português. São Paulo: Companhia das Letras.
2002.
FEITLER, Bruno. Nas malhas da Consciência: Igreja e Inquisição no Brasil (Nordeste
1640-1750). São Paulo: Alameda; Phoebus, 2007.
FONSECA, Thaís Nívea L.. Historiografia da Educação na América Portuguesa: balanço e
perspectivas. Revista Lusófona de Educação, v. 14, número 14. 2009.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. 1ª reimpressão. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
12
Resumo
Este trabalho analisa a postura do Papa João Paulo II em relação ao diálogo inter-
religioso: paradoxos, ambiguidades e contribuições. A metodologia utilizada é de natureza
bibliográfica: livros e outros textos encontrados em sites confiáveis. Apresentar-se traços da
relação de Jesus de Nazaré com os povos não cristãos; gestos e pronunciamentos de João
Paulo II no campo do diálogo entre o cristianismo e os não cristãos; ressalta-se ainda uma
avaliação da postura do Papa João Paulo II em direção as outras religiões como relevante
contribuição para o diálogo inter-religioso na atualidade. Sobre suas reflexões, é possível
apoiar novas discussões em vista da urgente necessidade da aproximação respeitosa entre
as diferentes religiões.
Introdução
*
Mestre em Ciências da Religião pela UNICAP - Universidade Católica de Pernambuco;
Especialista em Ciências da Religião pela PUC Minas - Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais; Licenciado em Filosofia pelo ISEP - Instituto Superior de Ensino de Pesqueira – PE.
1
Diante da religião tradicional dos judeus, Jesus enfrentou sérias
consequências por romper, em muitos momentos, com as normas e preceitos
religiosos observados pelo povo judeu. Contudo, quis fazer com que sua mensagem
de vida e liberdade, ultrapassasse as fronteiras religiosas e chegasse a todos os
povos.
Na tentativa de prolongar na história, os ensinamentos de Jesus, seus
seguidores também experimentam sérias perseguições e rejeições no confronto
com outras religiões. No entanto o compromisso assumido com seu Mestre, Jesus
de Nazaré, foi levado adiante. Observa-se que não foi passivo o caminho percorrido
pelos cristãos ao longo da história, até chegarem a ser reconhecidos como religião
oficial, mas é interessante igualmente saber que, sua maneira de reconhecer os
valores das outras religiões também levou muitos anos. Nesse processo, notam-se
posturas acolhedoras e exclusivistas por parte dos cristãos. Somente no Concílio
Vaticano II (1962-1965) é que a Igreja chegou a emitir formalmente juízos
positivos sobre as religiões e reconhecer que elas comportam valores evangélicos.
Frente a esse processo histórico da Igreja Cristã Católica e levando em
consideração às rápidas mudanças da sociedade atual, a pessoa de Papa João Paulo
II que governou a Igreja Católica entre os anos 1978 a 2005, transparece como
figura central dessa pesquisa. Por meio do seu empenho à frente da Igreja, sua
postura diante das necessidades da humanidade e inserção na realidade social do
seu tempo é possível apresentá-lo como grande expoente no âmbito do diálogo e,
sobretudo, em sua aproximação às outras religiões.
Pode-se observar que o Papa João Paulo II, ao longo de seu pontificado,
demonstrou notável empenho no campo do diálogo inter-religioso. Seus gestos e
discursos em direção aos membros de outras religiões sinalizaram sua intenção de
inserir a Igreja em um novo processo de evangelização, levando em consideração a
realidade social moderna. Diante das várias necessidades pelas quais passam os
seres humanos, o Papa justificou a necessidade das religiões manterem-se unidas
na resolução de problemas que afetam a dignidade da pessoa humana. O diálogo
apresentado por João Paulo II ainda sugere a superação de divisões, intolerâncias e
preconceitos vivenciados entre as diferentes religiões, ao longo da história.
Nessa perspectiva observar-se-á a opinião de alguns autores que emitem juízos
positivos sobre a contribuição do referido Papa em sua relação com as religiões.
Teixeira (2005, p. 6), escrevendo sobre os 25 anos do pontificado de João Paulo II,
afirma que “os gestos de abertura do papa incidem sobre duas questões
particulares: o testemunho em favor da paz e a abertura ecumênica e inter-
religiosa”. O reconhecimento da atuação do Papa na área do diálogo inter-religioso
foi destacado mais pelo impacto dos seus gestos, desse modo é possível observar
2
que a realidade gestual de João Paulo II despertou importante curiosidade durante
seu pontificado. O próprio Cardeal Ratzinger1 (2000, p. 10) escreveu: “quem se der
ao trabalho de estudar atentamente todos os escritos do papa João Paulo II logo
entenderá que ele sabe diferenciar muito bem as opiniões pessoais de Karol Wojtyla
e o seu ensinamento magisterial como papa”. Com isso, o Cardeal acena sobre a
possibilidade de se perceber certa distinção entre as atividades papais e as atitudes
de Karol Wojtyla, enquanto homem inserido na sociedade com seus anseios e
projetos. Contudo, não nega sua capacidade de conduzir seus trabalhos, deixando
refletir sua firme personalidade: “ele sabe reconhecer também que as duas coisas
são reciprocamente heterogêneas, mas refletem uma única personalidade
embebida na fé da Igreja” (Ibid., p. 10). Nessa visão, o Papa demonstra sua
capacidade de conduzir a Igreja harmonizando seus objetivos pessoais às
atividades do Magistério tradicional da Igreja.
Segundo Alemany, “O pontificado de João Paulo II vem marcar um novo avanço
pelo que indicam as tomadas de postura do magistério da Igreja em torno das
religiões e no diálogo do cristianismo com elas” (2001, p. 89, tradução nossa)2 .
Mesmo que tenham ocorrido outras manifestações sobre o diálogo antes de João
Paulo II, é cabível dizer que o referido Papa, através de suas atividades pontificais,
proporcionou maior abertura do cristianismo católico em direção às outras religiões.
Também Dupuis, (1999, p. 243) reconhece em João Paulo II um indicativo
positivo no processo de reflexão sobre a teologia das religiões. Em uma de suas
afirmações declarou: “a contribuição peculiar do papa João Paulo II para uma
‘teologia das religiões’ está na ênfase com que ele afirma a presença operante do
Espírito de Deus na vida religiosa dos não-cristãos e em suas tradições religiosas”.
Segundo ele, o acento recai sobre a presença do Espírito Santo nas religiões, o
Papa conseguiu acentuar o Espírito Santo como ponto de unidade, onde cada
religião é conduzida pela mesma força espiritual. Essa ação operante indica uma
visão mais ampliada de valores espirituais nas tradições religiosas, em geral. Ainda
nessa perspectiva, foi feita uma comparação entre o pontificado de Paulo VI3 e o de
João Paulo II:
1
Atualmente Bento XVI, Papa Emérito da Igreja Católica.
2
Cf. (El pontificado de Juan Pablo II va a marcar um nuevo avance por lo que respecta a las
tomas de postura del magistério de la Iglesia em torno a las religiones y al dialogo Del
cristianismo com ellas).
3
Nascido a 26 de set. de 1897, em Concesio, Itália, foi o 262 Papa da Igreja Católica e governou
a Igreja de 1963 a 1978. Faleceu a 6 de agosto de 1978.
3
Mesmo obedecendo às orientações do Vaticano II sobre a presença de
valores nas religiões, a afirmação leva a entender que João Paulo II avança na
percepção das ações do Espírito Santo dentro das práticas religiosas. Há uma sutil
diferença, uma vez que a teoria do cumprimento4 leva a compreensão de que os
valores presentes entre os não cristãos terão seu cumprimento em Jesus Cristo e
no Cristianismo. Numa colocação assim, pode-se entender aquilo que fora dito
anteriormente sobre João Paulo II: enquanto Papa, se coloca em sintonia com
aquilo que rege a doutrina e os ensinamentos em geral da Igreja, mas, enquanto
Karol Wojtyla sugere pelos seus gestos, maior avanço em alguns setores,
especialmente no campo do diálogo inter-religioso. Pode-se dizer positivamente que
João Paulo II conseguiu equilibrar sua atuação entre a doutrina tradicional da Igreja
e a necessidade de se avançar diante das interpelações da sociedade.
Segundo Svidercoschi (2011, p. 103), “aquilo que mais impressionava em
Karol Wojtyla era a tenacidade com a qual ele fazia de tudo para manter unidas as
fileiras daquela comunhão fraterna, recém-descoberta, entre as religiões, entre as
Igrejas”. Assim o Papa indicou um itinerário positivo de diálogo entre as diversas
religiões.
Na visão de Teixeira (2005, p. 8), “os passos mais decisivos de abertura de
João Paulo II acontecem no campo do diálogo inter-religioso. O evento que serviu
como paradigma desta abertura foi a Jornada de Oração pela Paz realizada no ano
de 1986, na cidade de Assis”. Nesse direcionamento o encontro de Assis sinalizou
de maneira mais pertinente a intenção do Papa em atuar no campo do diálogo com
as outras religiões, indicando um novo rumo na história da Igreja. Observa-se que
“o evento de Assis resultou numa iniciativa histórica de grande alcance, um gesto
sem precedente, extraordinário e único, portador de um explosivo poder simbólico”
(Ibid., p. 8). Assumindo valor histórico, abriu espaço na Igreja para o
aprofundamento das reflexões, no tocante às outras tradições religiosas. Seu
projeto universal levou ao mundo uma nova ideia em favor da paz. Também Araújo
(2011, p. 60) comentando sobre a atuação de João Paulo II, reconhece que “sua
reputação de grande profeta e operário da paz é comprovada por meio de sua
trajetória, que representou a abertura de novos diálogos, como o grande encontro
de Assis (Itália)”. É interessante perceber, como as atitudes do Papa caracterizaram
sua pessoa. Os substantivos profeta e operário da paz indicam a sua atuação, a
coragem de assumir, durante seu governo eclesial, a desafiadora promoção da paz,
contando com o ajuda das outras tradições religiosas.
4
Sobre a referida teoria encontra-se uma substanciosa contribuição em Dupuis, 1999, p. 188 et.
Seq.
4
Na perspectiva de Frisotti (1996, p. 33), Assis representou “um símbolo
também da nova preocupação que o diálogo ecumênico e inter-religioso carrega:
unir os esforços para que o mundo viva na paz e na justiça, como um chamado do
Deus único para os fiéis de todas as religiões”. A afirmação do autor levanta uma
questão complexa: pensar a construção de um mundo de justiça e paz como
chamado do Deus único requer maior aprofundamento na reflexão. João Paulo II,
no seu discurso conclusivo, no encontro da cidade de Assis, (L’OSSERVATORE
ROMANO, 1986, p. 1, n. 4) fez o caminho inverso: mostrou que as religiões podem
ser consideradas como expressões do desejo dos seres humanos em direção ao Ser
Absoluto. Embora a expressão tenha aparecido no singular, o Ser, a questão
acenada pelo Papa não define isso como um desafio a ser enfrentado, algo que
difere da postura de Frisotti, quando se refere ao Deus único. Provavelmente, João
Paulo II, ao optar pelo conceito de Ser Absoluto, busca propor uma terminologia
mais inclusiva, tendo em vista a complexidade das diferentes concepções de Deus
entre as religiões monoteístas e politeístas.
Segundo Teixeira (1997, p. 140), “Ao convidar os líderes das várias
tradições religiosas para unirem-se aos cristãos na oração pela paz, João Paulo II
sinaliza através de tal gesto simbólico a aceitação da legitimidade salvífica das
outras tradições religiosas”. Ao sublinhar a legitimidade da salvação das religiões
não cristãs, fez referência a um tema pertinente na direção do diálogo, indicando
uma reflexão mais aprofunda. Contudo, pode-se dizer que, mesmo reconhecendo
valores salvíficos nas outras religiões, João Paulo II não as define como caminhos
absolutos de salvação. Conforme o próprio Papa expressou em seus
pronunciamentos, trata-se de um estar juntos em oração pela paz, cada qual
segundo sua liturgia própria, algo que é possível realizar num encontro inter-
religioso, favorecendo o respeito ao modo particular com o qual cada religião se
relaciona com o sagrado.
O evento não deseja abrir discussões teológicas ou doutrinais, como se
expressa o próprio Papa: “considero o encontro de hoje como sinal eloquente do
compromisso de todos vós em favor da paz” (L’OSSERVATORE ROMANO, 1986, p.
1, n. 3). Em outra citação, referindo-se ainda a Assis, Teixeira (1997, p. 140-141)
destacou que o evento: “representou uma luz de esperança para a paz no mundo
[...], um primeiro sinal de profunda ruptura com uma longa e triste história de
intolerância entre as religiões”. Assim, o encontro das religiões em Assis pode ser
compreendido como um indicativo importante para todos os povos que anseiam
pela paz. Sugere ao mundo que a paz também pode acontecer mediante o esforço
do ser humano na superação de suas limitações, muitas vezes excludentes.
5
O reconhecimento da legitimação da salvação das outras religiões, como
propõe Teixeira, a nosso ver, deve ser entendida como uma interpretação do autor
no que tange o significado simbólico dos gestos do Papa. Diante dos vários
discursos de João Paulo II em seus encontros com os líderes das principais religiões
da humanidade, observa-se que ele sempre evita entrar em discussão sobre a
legitimidade ou não de salvação nas religiões. Certamente, em consonância com as
ideias do Concílio Vaticano II o Papa destacou o que há de bom nas outras
tradições religiosas como manifestação da graça de Deus (Cf. NOSTRA AETAE, N.
2). Observa-se que o Papa não aborda aspectos que envolvam o lugar da salvação
das outras religiões no mistério de Cristo, no qual a Igreja está centrada. Em seus
discursos sobressai um esquema básico: ele parte sempre da riqueza espiritual e
ética das tradições religiosas para, em seguida convidá-las a um engajamento
conjunto em favor da paz e da justiça no mundo.
Ainda nessa direção vale ressaltar o documento Diálogo e Anúncio, emitido
durante o pontificado de João Paulo II pelo Secretariado para os não cristãos a 10
de junho de 1985. O documento foi escrito na perspectiva do Concílio Vaticano II e
faz referência aos 25 da promulgação da Nostra Aetate. Ao longo do texto do
Diálogo e Anúncio ficou claro que o diálogo inter-religioso faz da missão da Igreja.
6
trabalham os temas do ecumenismo e do diálogo inter-religioso”. A declaração
contraria os passos que vinham sendo dados por João Paulo II. Barros (2005, p.
13) afirma: “A Dominus Iesus não parece ter sido nem uma coisa nem outra. Ela
surpreendeu por vir na contramão do esforço de João Paulo II de fazer do Jubileu
do ano 2000 um acontecimento ecumênico e encerra-lo em um encontro inter-
religioso”. Muitos outros posicionamentos foram emitidos sobre a referida
Declaração na intenção de mostra o seu aspecto negativo frente a necessidade do
diálogo entre as religiões na atualidade.
7
cristianismo? A quem se haverá de estar orando? Como colocar o
catolicismo no mesmo plano que o budismo e o animismo? Pode o
sucessor de Pedro misturar-se, por uma questão de respeito por seus
convidados, num grupo indistinto de líderes religiosos que por sinal, em
sua maioria, não são do seu nível? Todas essas questões têm
fundamento (LECOMTE, 2005, p. 550).
8
Tratou-se provavelmente da decisão mais audaz, mais corajosa, de João
Paulo II. E também a mais discutida, a mais contestada, inclusive por
parte de cardeais renomados, pelo temor de que essa iniciativa
acabasse produzindo sincretismo ou mal – entendido entre o povo
cristão.
É relevante frisar o aspecto corajoso do Papa que não se limitou àquilo que
já vem sendo afirmado pela Tradição da Igreja, mas provocou um novo horizonte
na Igreja, mesmo enfrentando resistências dentro da própria Instituição. Seu
testemunho revelou sua intenção de avançar no campo do diálogo, sugerindo uma
maior inserção da Igreja nas situações emergentes da sociedade e, sobretudo, seu
compromisso diante das grandes causas que ameaçam o processo vital da
humanidade.
Outro acontecimento importante, na linha das controvérsias, foi a explicação
de João Paulo II aos membros da Cúria Romana, no dia 22 de dezembro de 1986,
por ocasião do encontro inter-religioso de Assis.
Em seu discurso, o Papa, além dos cumprimentos natalinos aos presentes,
citou o evento de Assis pela sua expressividade popular e religiosa. Durante seu
discurso, insistiu na importância da oração como caminho para a paz no mundo e
como motivo principal do encontro. Além disso, destacaram-se em sua fala, de
maneira explicativa, as bases onde ele se apoiou para a realização do evento: os
ensinamentos do Concílio Vaticano II, a revelação bíblica da criação, como unidade
originária da pessoa humana e a redenção, como elementos que indicam a unidade
da humanidade, e o plano salvífico de Deus pela encarnação de Cristo5. Parte do
discurso revelou sua convicta consciência sobre a importância do diálogo entre as
religiões:
O evento de Assis pode muito ser considerado como uma ilustração
visível, uma classe de coisas, uma catequese de todo inteligível, do que
significa e exige o compromisso com o diálogo ecumênico, inter-religioso
recomendado e promovido pelo Vaticano II 6.
5
Discurso do Papa João Paulo II à Cúria Romana para cumprimentos de Natal, 22 de dezembro de
1986, n. 2;3;4. Disponível em:
<http://www.vatican.va/holy_father/jonh_paul_ii/speeches/1986/december/documents/hf_ip-
ii_spe_19861222_curia-romana_it.html>.
Acesso em 30 de mar de 2012.
6
Ibid., n. 7
7
Ibid., n. 9
9
ao mundo o valor do diálogo entre a diversidade de crenças presentes na
sociedade.
Vale salientar, ainda, no que tange as controvérsias, o discurso de João
Paulo II ao corpo diplomático acreditado junto à Santa Sé, no qual ele defendeu a
legitimidade do Encontro de Assis, a 10 de janeiro de 1987, por ocasião da troca de
cumprimentos do ano novo. Diante das autoridades presentes o Papa, retomou
aspectos importantes para se alcançar a paz: a oração como símbolo da unidade da
humanidade, por meio da qual é possível afastar do coração humano o egoísmo, a
agressão, a ganância e, ao mesmo tempo pode levar à conversão do coração
humano; a paz como realidade de natureza ética, e ainda a importância do respeito
em todos os direcionamentos da vida humana e como caminho para a paz; o
diálogo como requisito importante nas relações diversas do mundo e a fraternidade
como imperativo significativo para se afastar a competição, o poder, e a guerra. Do
mesmo modo, ele destacou a solidariedade como chave para a paz, por meio da
qual a humanidade pode afastar do seu meio a violência sem sentimentos de
derrota8. Em outra parte do discurso onde o Papa é ainda explícito na defesa sobre
o encontro de Assis:
Da parte dos representantes das grandes religiões, não se tratava mais
de negociações de convicções de fé para se chegar a um consenso
religioso sincrético. Mas para olhar junto ao mesmo, tão desinteressado,
objetivo fundamental da paz entre os homens e entre os povos. [...] a
oração é o primeiro dever dos homens religiosos, sua expressão típica9.
Considerações finais
8
Discurso do Papa João Paulo II ao corpo diplomático acreditado junto a Santa Sé para troca de
cumprimentos de ano novo, 10 de janeiro de 1987. Disponível em:
<http://www.vatcan.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/1987/january/documents/hf_jp_ii_spe
_19870110_corpo-diplomatico_it.html>. Acesso a 1 de abr de 2012.
9
Ibid., n. 3: (Da parte dei reppresentanti delle grnadi religioni non se trattava più de negoziare
delle convinzioni de fede per giugere a um consenso religioso sincretista. Ma de guardare, insieme
nello stesso momento, in modo disiteressato, al’obiettivo cruciale della pace tra gli uomini i tra i
populi. [...] La preghiera è il primo dovere degli uomini religiosi, la loro spressione tipica).
10
espiritual, faz compreender questões significativas não somente para o
Cristianismo, como para todas as religiões que se interessam por um mundo
melhor.
Vale ressaltar que os gestos de João Paulo II, longe de apontar dicotomia na
sua personalidade, indicaram forte abertura em sua relação com os não cristãos.
Sua atuação na relação com os líderes de outras religiões indicou fortemente o
desejo de refazer as divisões entre os seres humanos, na maioria delas, causadas
pela indiferença das religiões.
A palavra diálogo apareceu na maioria de seus discursos levando a entender
sua capacidade de compreender a necessidade de relações dialógicas mais eficazes,
frente às diferenças notáveis na sociedade atual. Essa relação dialógica, muitas
vezes indicada por ele, sempre esteve ligada à dimensão da fraternidade, com o
objetivo de levar as religiões a compreenderem sua origem e destinos comuns e a
se unirem por um mundo melhor, tendo em vista os males que podem afetar ou
aniquilar a vida humana sobre a terra.
Nessa direção, ele fez entender que todas as religiões podem contribuir para
o bem da humanidade, a partir de suas dimensões ética e espiritual. Realçando a
dimensão ética, despertou em todos o dever de preservar a vida em todas as suas
expressões, de cuidar para que possam viver com dignidade exercendo direitos e
deveres, como responsáveis pela organização da sociedade. No que tange à
espiritualidade, soube reconhecer a dimensão espiritual do ser humano e, nesse
sentido, refletiu sobre a importância da liberdade religiosa, do respeito às
diferentes formas que a humanidade procura viver em relação com o
Transcendente. Nesse ínterim, seu testemunho é positivo na luta pela superação
dos preconceitos que afastam os seres humanos uns dos outros.
Ainda vale destacar a capacidade do Papa em reconhecer a paz como sendo
de natureza divina, como dom que pode ser alcançado mediante a oração de todos
os seres humanos, unidos cada qual a seu modo, mas na mesma intenção em
busca da paz. Seu convite a todas as religiões a orarem pela paz (1986 e 2002) foi
um exemplo de quem acreditou que a paz é possível mediante a súplica dos
homens e mulheres religiosos.
Diante dos paradoxos, ambiguidades e controvérsias que emergiram na
trajetória de João Paulo II, pode-se justificar seus limites humanos, pois foi passivo
de erros, contudo, é relevante enfatizar que sua contribuição no campo do diálogo
sinalizou positivamente aquilo que é preciso se fazer para tornar o mundo mais
justo, fraterno e solidário. Os pronunciamentos, as atitudes que em algum
momento contrariaram a atuação do Papa em direção ao diálogo, pouco significam
diante do seu esforço frente ao cenário pluralista das culturas e religiões em busca
11
de um mundo mais pacífico, essa realidade continua refletindo a importância do
diálogo. Nesse direcionamento, os testemunhos de vários autores sobre sua
atuação positiva, como se pode verificar, permitem apresentar a postura do Papa
João Paulo II como uma efetiva contribuição para o diálogo inter-religioso na
atualidade.
Sobre suas reflexões, é possível apoiar novas discussões em vista da
urgente necessidade da aproximação respeitosa entre as diferentes religiões. Seus
escritos e gestos sublinhados durante seu governo podem contribuir eficazmente
para novas discussões nos mais variados setores da sociedade, especialmente nos
meios acadêmicos onde homens e mulheres de religiões diferentes buscam
responder às interpelações do mundo moderno e se interessam por referências
positivas que apontem caminhos, pelos quais é possível alcançar a paz e a justiça
entre os povos.
REFERÊNCIAS
12
em:<http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/1987/january/documents/hf_jp-
ii_spe_19870110_corpo-diplomatico_it.html>. Acesso em 25 de mar de 2012.
L’OSSERVATORE ROMANO. Roma, 22 de out. 1986.
13
REFLEXÕES SOBRE AS CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES E A PSICOLOGIA: ANÁLISE
DA AUTOTRANSCENDÊNCIA NA VIVÊNCIA DO HOMEM RELIGIOSO
RESUMO
Ao longo da história da civilização, a relação entre ciência e religião foi marcada por
momentos conflituosos. Há quem acredite que ambas caminham juntas, como
também existem aqueles que as consideram temas totalmente incongruentes. Hoje,
percebe-se cada vez mais a importância de um diálogo entre os dois campos para a
construção de ideias, reflexões e principalmente novas percepções que corroborem a
necessidade de suprimir as tensões que foram cravadas e que perduram nos dias
atuais. Portanto, o seguinte estudo objetiva tecer uma reflexão a fim de contribuir
para uma ponderação acerca de discussões entre cientistas da religião e da psicologia
sobre o homem religioso e o fenômeno da autotranscendência. Para tal estudo, foi
realizada uma revisão da literatura, a qual se constituiu em três momentos: primeiro,
foi realizado um resgate histórico dos traços básicos destes discursos acadêmicos
confrontando os elementos que fizeram parte do processo de construção das Ciências
das Religiões, assim como divergências e convergências apontadas ente os referentes
autores; o segundo referiu-se à Psicologia da Religião, sua contextualização histórica e
seu embasamento epistemológico e, em um terceiro momento, foi realizada uma
reflexão sobre os principais fundamentos da Logoterapia (terceira escola vienense de
Psicoterapia) para a compreensão da autotranscendência na vida do homem religioso.
Concluiu-se que a partir da releitura de estudiosos das Ciências das Religiões,
percebe-se que as ciências das religiões não constituem uma disciplina à parte
fundada na unidade do objeto (a religião) e na unidade do método (a compreensão
hermenêutica). Pelo contrário, consiste em um campo disciplinar, com uma estrutura
aberta e dinâmica. Quanto ao homem religioso, percebe-se a existência de um leque
de possibilidades diante se seu ser-no-mundo, e com isto a vivência religiosa se
manifesta de muitas maneiras no existir humano. Para Viktor Frankl, o fundador da
Logoterapia, é possível encontrar o sentido da vida, uma vez que esqueçamos e
deixemos de lado nosso modo egoísta de viver e passarmos a buscar algo que
realmente valha a pena, além de nós mesmos. Isto é, as autênticas decisões
existenciais não se apoiam definitivamente em algo impessoal, mas provém daquilo
que constitui a parte mais humana do homem, o Eu-espiritual. Frankl concebe que o
cerne da existência humana consiste na sua disposição à autotranscendência, a qual
significa a capacidade do homem de sair de si mesmo e voltar-se para algo ou alguém
que está além de si próprio.
ABSTRACT
Throughout the history of civilization, the relationship between science and religion
was marked by conflicting moments. Some believe that the two go together, as there
are also those that consider themes totally incongruous. Today, we see more and
1
Psicóloga Clinica, graduada em Psicologia (UNIPÊ), Especialista em Saúde Mental (FIP) e Mestranda em
Ciências das Religiões (UFPB).
2
Graduada em Psicologia (UEPB), Mestranda em Ciências das Religiões (UFPB).
more the importance of a dialogue between the two fields to construct ideas,
reflections and insights primarily to corroborate the need to eliminate the tensions
that have been spiked and that endure today. Therefore, the following study aims to
weave a reflection in order to contribute to a weight of about discussions between
scientists of religion and psychology of man and the phenomenon of religious
transcendence. For this study, we performed a literature review, which was formed in
three stages: first, we conducted a historical review of the basic traits of these
academic discourses confronting the elements that were part of the construction of the
Science of Religions, as well as differences and convergences being pointed referents
authors, the second referred to the Psychology of Religion, its historical context and its
epistemological basis, and a third time, was held to reflect on the key foundations of
Logotherapy (third Viennese school of psychotherapy) to understanding of
transcendence in the life of the religious man. It was concluded that from the
rereading of scholars Science of Religions, one realizes that the science of religions are
not a separate discipline founded on the unity of object (religion) and the unity of
method (a hermeneutic understanding). In contrast, consists of a disciplinary field,
with an open structure and dynamics. As for the religious man, realizes that there is a
range of possibilities before if your being in the world, and with it the religious
experience manifests itself in many ways in human existence. For Viktor Frankl, the
founder of Logotherapy, you can find the meaning of life, and forget that once we put
aside our selfish way of living and move to get something really worthwhile, beyond
ourselves. This is the authentic existential decisions definitely not based on something
impersonal, but what comes is the most human of man, the I-spiritual. Frankl
conceives that the core of human existence is its willingness to self-transcendence,
which means man's capacity to stand outside yourself and turn to someone or
something that is beyond himself.
INTRODUÇÃO
Ao longo da história da civilização, a relação entre ciência e religião foi marcada por
momentos conflituosos. Há quem acredite que ambas caminham juntas, como
também existem aqueles que as consideram temas totalmente incongruentes. Hoje,
percebe-se cada vez mais a importância de um diálogo entre os dois campos para a
construção de ideias, reflexões e principalmente novas percepções que corroborem a
necessidade de suprimir as tensões que foram cravadas e que perduram nos dias
atuais. Nascida no campo da rejeição às suas antecessoras, a Filosofia e, em especial, a Teologia, a
Ciência da Religião tinha enforme conceptual positivista e era acima de tudo cientifista, contudo
Ciência e Religião tem sido um dueto problemático em algumas áreas da cultura
ocidental moderna e o acréscimo da Psicologia a esse dueto tem o sentido de destacar
a extensão da ciência natural e biológica para a ciência humana e de apontar a
dimensão psicológica que vincula o cientista à religião e o religioso à ciência.
Desde cedo a Psicologia teve algum contato com a questão ciência/religião, e
partindo do principio que a Psicologia da Religião é o estudo da experiência vivida pela
pessoa no que tange às questões da imortalidade, da liberdade de vontade, da relação
corpo-alma, dos sentimentos, afetos e finitude, tais questionamentos produzem um
sentimento de procura de respostas entre a visão e a fé, entre a realidade humana e
Deus, e ao nos depararmos com estas reflexões entendemos que a vida é
A natureza passional do homem, que luta, ama, odeia, admira,
conhece o espanto ingênuo e a reverência numinosa, que
mostra capacidade de diálogo, de esperança e de
transcendência (JASPERS, citado por DORSCH, HACKER &
STAPF, 2001, p.746-747).
O caminho percorrido e que foi sendo construído nas Ciencia(s) da(s) Religião,
levantam muitas questões, algumas questões aqui discutidas neste artigo, onde é
possível perceber que se trata de um campo inesgotável de conhecimento onde se
permite essa possibilidade para as distintas reflexões. A releitura de autores citados
neste artigo nos proporciona uma percepção que sugere uma mudança na postura
científica, enfatizando a ruptura dualista, e consequentemente abandonando as
posturas unilaterais.
No que se refere a Ciências das Religiões e a Psicologia da Religião, foram
analisados em seu contexto historico juntamente com os grandes respresentantes e as
aproximações existentes entre estes estudos,com isto recomenda-se pensar que
Psicologia e Religião são apenas mais dois componentes de uma realidade repleta de
sistemas interdependentes. Ainda neste estudo foi possivel pontuar aspectos sobre a
transcedencia divina dentro da Abordagem da Logoterapia, observando que o homem
possui infinitas possibilidades dentro de seu ser-no-mundo, e com isto a vivência
religiosa se manifesta de muitas maneiras no existir humano. Concluímos esta
resumida apresentação de algumas descrições ressaltando que esta busca a
religiosidade não ocorre de forma linear, parte-se do pressuposto de que viver os
aspectos religiosos e espirituais é valorizar as ações solidárias, o respeito a
diversidade e as diferenças.
Para Viktor Frankl, o fundador da Logoterapia, só encontraremos o sentido da
vida se nos esquecermos, e deixarmos de lado nosso modo egoísta de viver e
passarmos a buscar algo que realmente valha a pena, além de nós mesmos.
REFERÊNCIAS
FILORAMO, G.; PRANDI, C. Para um estudo científico da religião. In: As Ciências das
Religiões. São Paulo: Paulus, 1999, p. 5-25.
RESUMO
ABSTRACT
This paper gives a contribution to the process of training teachers and researchers
of religious education at research FIDELID, which is linked to the Federal University
of Paraíba and UFPB-graduate course in Science of Religions. The overall goal of
this work is to promote the objectives of the research training group, Identity,
Leadership and Development of Teachers of Religious Education (FIDELID) as a
complement to the training of researchers and teachers of religious education.
Currently attending the group master teachers and doctors in Sciences of Religions,
religious education teachers, undergraduates and graduate in Science of Religions,
and students of pedagogy. The authors are highlighted Junqueira (2009), Soares
(2012), Candide (2010), Silva (2011), Alves (1981), Latour (2004) among others,
all linked to the field of Science of Religions.
Key Words: science of religions, religious education, teacher training
Introdução
1
Pedagoga e mestranda da pós-graduação em ciências das religiões na Universidade Federal da Paraíba-
UFPB. E- mail: narjaralins@hotmail.com
2
Professor doutor do programa de Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba- UFPB.
E- mail: marinilson_rs@ig.com.br
LDB de nº9394/96 no seu Art. 33 este surge como disciplina obrigatória nos
currículos escolares de forma não confessional e nem proselitista. Com a finalidade
de atender a diversidade religiosa do povo brasileiro; não cabendo mais a formação
teológica pura deste profissional.
O objetivo geral deste trabalho é divulgar os objetivos do grupo pesquisa
Formação, Identidade, Desenvolvimento e Liderança de Professores de Ensino
Religioso (FIDELID) como complemento para a formação de professores e
pesquisadores do ensino religioso. Este grupo está situado na Universidade Federal
da Paraíba (UFPB), mais especificamente na pós-graduação do curso de Ciências
das Religiões/CE.
Para melhor compreendermos a que visão de religião o grupo de estudo em
foco está situado já que este assunto engloba o ensino religioso, farei uma breve
introdução dos pensamentos de autores da área, dentro do campo das ciências da
religião como Alves (1981), Latour (2004), Prandi (1999), Hock (2010), Usarski
(2006), Dreher (2001), Camurça (2008) entre outros.
Logo em seguida, discutirei a questão da formação docente de acordo como a
visão de autores como a do coordenador do grupo professor Dr. Marinilson Barbosa
e a professora Dr. Viviane Cândido ambos da UFPB; Junqueira (2012); Soares
(2009).
A pesquisa deste trabalho é descritiva e bibliográfica e será desenvolvida com
base em as minhas participações neste grupo de pesquisa, que já dura cerca de
dois anos. Como também do levantamento feito durante as aulas no mestrado no
curso de Ciências das Religiões.
Outro autor Asad (1993) considera a religião como condição primeira. Acredita
que se as instituições se transformam a religião também se transforma, tanto no
que é visível como na sua natureza. Para este autor, a religião teria uma autonomia
diferente da sociologia e da política; ela é transhistorica e transcultural e não um
fenômeno.
Este também é contra a universalidade e essencialidade da religião, afirma que
até mesmo os elementos que constroem um contexto histórico específico é produto
de conceitos históricos, entre estes a própria definição “universal” de religião. Ou
seja, todo conceito é um sistema de símbolos, que formam conceitos e se tornam
reais. Por trabalhar a questão do poder e liberdade, defende que não há um
sistema simbólico separado da prática. (ASAD, 1993a)
De acordo este autor, o discurso teológico é diferente do discurso religioso. Para
ele o primeiro não induz necessariamente um discurso religioso. O discurso é a
prática e o agir social. Os discursos mais autoritários redefinem o discurso religioso,
onde na prática se sujeitavam a uma autoridade central, que negava as linhas de
pensamentos desconectadas com a sua e não o fenômeno religioso. É a partir deste
contexto que surge o discurso universalista da religião. (ASAD, 1993b)
Ele não defende um conceito de religião, apenas afirma que o conceito de
religião esta interligado ao sócio-histórico, os símbolos religiosos estão ligados a
vida social e mudam com ela; podendo apoiar ao poder político dominante e pode
se opor a ele.
Continua afirmando que diferentes tipos de práticas e discursos são intrínsecos
ao campo das representações religiosas, ajudando a criar as identidades. No
entanto, o conceito de religião esta atrelado a disciplinas e autoridades ao longo do
processo histórico. E o seu principal interesse é buscar a geologia (essência) da
religião. Mostrar como foi construída antropologicamente e não em definir um
conceito de religião. (ASAD, 1993c)
Para Usarski (2006) religião é um sistema repleto de sentido e o termo sagrado
possui uma larga utilização, isto é, o plural da palavra religião indica vários
métodos, por isso não devem ser usados no plural.
Greschat (2005, p.17-20) acrescenta um novo pensamento, segundo este
existe uma tendência em materializar a “religião” como cristã. Porém, a religião é
uma espécie (essência), repleta de especialidades, não tem como ser comparada a
uma ciência exata e nem ter um conceito universal.
Já Dix (2007) narra que os estudiosos acreditavam que com a secularização
haveria o desaparecimento da religião ou o desencantamento do mundo ao
contrário do que acontecia na idade média.
Este autor ainda destaca que para falar de religião existem duas perspectivas a
“perspectiva interior” e a “perspectiva exterior”; a primeira é uma perspectiva
confessional e advém do crente e a segunda é a perspectiva do autor que fala
sobre o assunto. Para ele o contexto sócio- histórico é determinante na construção
do conceito de religião, e acrescenta que no século 21 esta se volta para a esfera
pública e cientifica. (DIX, 2007a)
Continua seu pensamento afirmando que é necessário descrever o fenômeno
religioso num determinado contexto cultural e não ter uma visão sobrenatural; mas
o lado humano e social da fé religiosa. Por isso, é necessário definir como ira
prosseguir com seus estudos.
Pois ao contrário a definição pode causar confrontos ao pesquisador, mas são
importantes para certo coletivo. É preciso respeitar e ter alteridade, como também
refletir e reavaliar o nosso trabalho constantemente. E ter um foco meta- teórico,
ou seja, de acordo com sua área de estudo. (DIX, 2007b)
Segundo Filoramo Prandi (1999, p.5) existem dois riscos que pode ocorrer no
estudo das religiões na parte metodológica: a Cacofonia metodológica que consiste
em usar várias metodologias, às vezes sem conexões; e a Miopia Especialista, que
ocorre quando o pesquisador fica muito fechado em apenas uma metodologia. O
ideal é buscar o equilíbrio.
Acredita que a religião não é diferente de outra realidade, por isso não pode ser
autônoma, absoluta e sim relativa. Desta forma, religião não é um estado puro,
separado da cultura ou da história; estão entrelaçados. (PRANDI, 1999a)
E finalmente Camurça (2008) descreve que as denominações de ciência ou
ciências religião ou religiões dependem da quantidade de objetos que for abordado.
A idéia é polissêmica, ou seja, não tem como se alcançar a “essência da religião”.
Para este autor a religião é uma via de mão dupla entre ciência e religião, que
permite afetar e deixar- se afetar pelo objeto, ou seja, pensar o objeto e não com o
objeto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem (1981). O que é religião. São Paulo: edições Loyola, 2010.
ASAD, Talal. The construction of religion as an anthopological category. In:
ASAD, Talal. Genealogies of religion: discipline and reasons of power in Christianity
and Islam. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 1993, p.27-
54. Tradução: REINHARDT, Bruno; DULLO, Eduardo A construção da religião como
uma categoria antropológica. Cadernos de campo, São Paulo, n.19, p.263-384,
2010.
ARAÚJO, Narjara. O ensino religioso: representações de estudantes do Curso de
Pedagogia da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. João Pessoa: UFPB, 2011.
BRANDENBURG, Laude E. A Interação Pedagógica no Ensino Religioso. São
Leopoldo RS: Sinodal, 2004.
CAMURÇA, Marcelo. Ciências sociais e ciência das religiões: polemicas e
interlocuções. São Paulo: Paulinas, 2008. (Coleção Repensando a Religião), p.9-67
CÂNDIDO, Viviane Cristina. Educação e Religião: a busca de uma epistemologia.
In: Ferreira- Santos, Marcos; Gomes, Eunice Simões Lins. (Org.). Educação e
Religiosidade: imaginários da diferença. Educação e religiosidade: imaginários da
diferença. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2010, P.87-117.
DIX, Steffen. O que significa o estudo das religiões: uma ciência monolítica ou
interdisciplinar? Working Papers. Instituto de Ciências Sociais (Universidade de
Lisboa), 2007, p. 2-28.
FILORAMO, Giovani; PRANDI, Carlo. Para um estudo cientifico da religião. In:
As Ciencias das Religiões. São Paulo: Paulus, 1999, p.5-25
GRESCHAT, Luís Henrique. Ciência (s) da Religião: Teoria e Pós- Graduação no
Brasil. In: TEIXEIRA, Faustino (org.). A(s) ciências (s) da religião no Brasil.
Afirmação de uma área acadêmica. São Paulo: Paulinas, 2001, p.1510178.
JUNQUEIRA, Sérgio. A presença da religião nos processos educacionais. In:
HUFF JÚNIOR, Arnaldo Érico e RODRIGUES, Elisa. Experiências e Interpretações do
Sagrado: interfaces entre saberes acadêmicos e religiosos. São Paulo: Paulinas,
2012 (Coleção ABHR, v.9)
HOCK, Klauss. O que é religião? In: Introdução a Ciência da Religião. SP: Loyola,
2010, p.17-30
____________. Introdução a Ciência da Religião. SP: Paulinas, 2005. (Coleção
Repensando a Religião), p.5-28
LATOUR, Bruno. “Não congelarás a imagem”, ou: como não desentender o
debate ciência- religião. Mana, 10(2), 2004, PP.349-376.
SILVA, Marinilson Barbosa da. Em busca do significado do ser professor de
ensino religioso. João Pessoa: Ed. Universitária UFPB, 2010. 108P
SOARES, Afonso Maria Ligorio. Ciência da Religião, Ensino Religioso e
Formação Docente. Rever: Revista de Estudos da Religião, setembro de 2009,
p.1-18.
PRENDI, Carlo. As religiões: problema de definição e de classificação
(Apêndices). In: FILORAMO, Giovanni; PRANDI, Carlo. As Ciências das Religiões.
São Paulo: Paulus, 1999, p. 253-275/p.282-284.
USARSKI, Frank. Constituintes da Ciência da Religião: cinco ensaios em prol de
uma disciplina autônoma. São Paulo: Paulinas, 2006. (Coleção Repensando a
Religião), p.9-28; p.55-78.
WIEBE, Donald. A natureza do estudo da religião: é possível uma ciência da
religião? In: Religião e verdade. Rumo a um paradigma alternativo para o estudo
da religião. São Leopoldo: Sinedal, 1998, p.38-52
1
Resumo:
APRESENTAÇÃO
O presente artigo discorre sobre a modalidade educacional que é própria do
Ensino Religioso (ER), o reconhecimento e promoção do respeito à diversidade cultural
país.
Durante os primeiros séculos no Brasil, destacou-se na educação a postura ativa
e permissiva diante da discriminação e do racismo que atinge a população
afrodescendente até os dias atuais, incluindo indígenas, migrantes, pessoas com
deficiências, entre outros.
No âmbito cultural religioso não foi diferente, a adesão religiosa à religião oficial
era o requisito para cidadania, pois enquanto primeira disciplina do currículo brasileiro, o
ensino da religi ão romana consistia do modelo catequético, com obj etivo da conversão
dos colonizados, não respeitando as outras culturas.
Esse processo de não reconhecimento às diferenças étnico-culturais perdurou por
muito tempo, e vem sofrendo mudanças a partir do século XX, superando a fase de
hegemonia da Igreja (século XVI a XVIII) e do Estado (século XX), ainda vinculados à
cultura eurocêntrica e a religião Católica, mesmo diante da concepção do Estado laico.
1Graduando em Letras – Habilitação Língua Alem ã (UFPA) e Mestrando em Educa ção (PPGED/UFPA), na
Linha de Pesquisa Educação: Currículo, Epistemologia e História. Líder do Grupo de Pesquisa em Educação e
Religião na Amazônia (GPERA). Bolsista da CAPES. E-mail: naumamos@yahoo.com.br
2
identidade pedagógica. Por esse motivo, era a única disciplina submissa a “dois
senhores”: autoridades escolares e autoridades religiosas, permitindo, assim que a
escola fosse espaço de contínuo proselitismo.
É importante destacar a ausência de cursos de formação para professores de ER,
o que favoreceu as tradições religiosas hegemônicas no preparo de professores por meio
de cursos e da elaboração de materiais didático-pedagógicos que, em sua grande
maioria, continuaram atrelados aos princípios catequéticos.
Para imprimir ao ER o enfoque pedagógico, a nova redação do art. 33 da
LDB/1996, a Lei nº 9.475/1997, declara que o Ensino Religioso é parte integrante da
formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normai s das escolas
públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do
Brasil, sendo vedadas quaisquer formas de proselitismo, além da organização curricular
dos conteúdos com a participação da entidade civil representada p elas diferentes
denominações religiosas e habilitação dos professores para atuar na disciplina a partir da
responsabilidade dos sistemas de ensino.
A esse enfoque, cria-se uma nova concepção de ER, tendo como base o respeito
à diversidade cultural religiosa do Brasil, sendo vedadas quaisquer formas de
proselitismo e a sinalização de que os sistemas de ensino devem regulamentar os
procedimentos sobre os conteúdos e, inclusive, as normas para habilitaç ão e admissão
desses professores.
Essa alteração mudou profundamente os rumos da disciplina, ressaltando o
caráter pedagógico do ER aponta para a necessidade da formação de um profissional de
nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e
institutos superiores de educação (art. 62, da LDB/1996).
O ER, na atualidade da educação brasileira, manifesta-se com um dos lugares e
espaços em se destacam e discutem posições sobre o sentido da vida, do ser humano,
na perspectiva da liberdade do ensino, como forma de construção da liberdade humana,
sendo esta uma das maiores dificuldades que a humanidade enfrenta: permitir ao outro
ser sujeito de sua cultura e de seus interesses, de modo especial quando os interesses
dele interferem na vontade e nos interesses do outrem.
O ER, nesses termos, precisa compreender essa quest ão, pelo fato de haver nas
escolas, diferentes opções e dimensões de fé. Saber respeitar o diferente e as diferenças
e com eles interagir é, para esse componente curricular, um marco referencial. Por outro
lado, não se pode perder de vista a contextualização do ser humano no tempo e no
espaço em que ele atua e existe, tanto como professor quanto como aluno, já que a
visão da pessoa influencia profundamente sua postura face à sociedade e garante ou
questiona a relação com a divindade.
6
estabelecidos pelas instituições de ensino e seus professores, com o a poio e supervisão dos sistemas de
ensino, entidades mantenedoras e coordenações pedagógicas, atendidas as indicações,
recomendações e diretrizes explicitadas no Parecer CNE/CP nº 003/2004.
Esses conteúdos serão ministrados no âmbito de todo o currículo da educação
básica, destacando as áreas de Educação Artística, Literatura e História Brasileiras, não
isenta as outras áreas de conhecimento da responsabilidade. A Lei 11.645/2008, § 1º, do
Art. 1º destaca algumas especificidades desses conteúdos:
O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá
diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a
formação da população brasileira, a partir desses dois grupos
étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a
luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e
indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade
nacional, resgatando as suas contribuiç ões nas áreas social,
econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
Nessa acepção, de que a verdade não é própria de uma cultura o u outra é que o
ER desenvolve-se, considerando a pluralidade e a diversidade do fenômeno religioso na
sociedade, como abertura do homem para o sentido fundamental de sua exist ência, seja
qual for o modo como é percebido esse sentido, valorizando assim, a
Transcendência/Imanência, como conhecimento enraizado em toda em qualquer
produção cultural, logo não pode ser negado. O conhecimento religioso, mesmo
revelado, é uma produção humana nos tempos histórico-culturais, sendo considerado um
patrimônio da humanidade, por isso, deve estar disponível aos alunos, como afirma os
PCNER (2009, p. 33-34) “Nesses termos, básico para a construção da paz na sociedade é
a humildade para reconhecer que a verdade não é monopólio da própria fé religiosa ou
política. E, no Ensino Religioso, pelo espírito da reverência às crenças alheias (e não só
pela tolerância), desencadeia-se o profundo respeito mútuo que pode conduzir à paz”.
11
Logo, há de se considerar que muitos obstáculos ainda est ão postos a essa área
de conhecimento, destacando-se a formação na área, para que haja essa compreensão
de que o modelo fenomenológico é que melhor atende essa perspectiva (OLIVEIRA et
al., 2008).
Nesses termos, as contribuiç ões do ER são sólidas e consistentes para essa
modalidade educacional, quando considera em sua práxis pedagógico-didática a
diversidade cultural religiosa do Brasil, não permitindo quaisquer formas de proselitismo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escola brasileira possui de forma intrínseca a diversidade cultural, pois: “A
escola apresenta a diversidade, nasce na diversidade e continuará na diversidade.
Durante muito tempo, porém, a educação na ótica europeia omitiu a religião, os
valores, a ética e a moral das diversas culturas do povo brasileiro” (SANTOS, 2010, p.
33).
Essa constatação, embora em algumas vezes ficasse na invisibilidade e negação,
não pode ser mantida por muito tempo. Desde o Humanismo do século XIV busca-se o
melhor reconhecimento do ser humano enquanto produto sociocultural, nos tempos e
espaços históricos.
Enquanto ser político, permeado por relaç ões econômicas, o ser humano,
também, vincula-se ao Sagrado e as relações de Transcendência/Imanência com os
quais vem convivendo desde os tempos mais remotos.
Reconhecer e aceitar o outro, o diferente, sempre fora uma dificuldade para os
humanos, mesmo em tempos da contemporaneidade. No Brasil, esse traço marcante
presente é recente e marcado por inúmeras polêmicas, principalmente na educação.
Nesses termos, a partir do século passado, as ciências humanas destacam-se
nessa promoção e no combate à intolerância, ao preconceito, o racismo e a
discriminação, assegurando a desconstrução de muitos estereótipos contra as populaç ões
afro-indígenas.
Nesse cenário, o ER na sua práxis didático-pedagógica assegura esse combate,
desenvolvendo ações de promoção dessa identidade étnico-cultural religiosa plural, ao
lado da Educação das Relações Étnico-Raciais, garantindo a formaç ão integral do
cidadão, na perspectiva dos direitos humanos, da liberdade religiosa e do direito à
diferença.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DIÁRIO DO PARÁ. Cidades A5: Seduc vai convocar concursados. Belém/PA, 18/07/2008.
LOPES, Véra Neusa. In: MUNANGA, Kabengele. Superando o racismo na escola. 2. ed.
rev. Brasília: MEC/SECAD, 2008, p. 181-200.
OLIVEIRA, Lilian Blanck de et al. Ensino religioso no ensino fundamental. São Paulo:
Cortez, 2007. (Coleção docência em formação. Série ensino fundamental)
SANTOS, Rodrigo Oliveira dos. Da resist ência a consci ência. In: Diálogo. Revista de
Ensino Religioso. Ano XIV – nº 58 – maio/julho de 2010, p. 60-63.
Nesta pesquisa analisamos como o ensino “Leigo” fez parte das preocupações
pedagógicas da direção do Instituto Pedagógico campinense durante os anos de 1919
a 1932. O Instituto Pedagógico foi criado em 1919 na Rua Barão do Abiaí no centro de
Campina Grande, com ensino exclusivo para o primário e secundário, com educadores
de ambos os sexos, sendo composto de duas cadeiras oferecidas por seu fundador
Tenente Alfredo Dantas Correa de Góis e a professora normalista Ester de Azevedo.
Durante a primeira metade do século XX, a instituição passa a ganhar destaque
perante as demais instituições de ensino de Campina Grande-PB, pelas varias
disciplinas que oferecia a seus discentes inclusive o ensino “Leigo”. O desenvolvimento
econômico, político e intelectual de Campina Grande contribuíram para o avanço e
melhorias nas instalações de ensino da cidade. O ensino “Leigo” tinha como objetivos
práticos contribuir para a formação harmoniosa entre os indivíduos; “aproximar os
homens, pelo respeito mútuo, sem distinção de raças, nacionalidade de dogmas
sociaes e religiosos”. As crianças educadas seguindo os dogmas religiosos se
tornariam cidadãos mais amorosos, compreensíveis com familiares e pessoas mais
próximas, deixando de lado os preconceitos de raça, físico, moral e religioso tidos
como desvios de conduta. A documentação consultada para o desenvolvimento desse
trabalho consta dos jornais A Batalha e o Brasil Novo e da Revista Evolução produzida
pelo Instituto Pedagógico durante os anos de 1931 e 1932 que se encontram na
biblioteca Átila de Almeida na sede da reitoria da UEPB. Essa revista merece atenção
especial na escrita desse trabalho por discutir em seus oito exemplares o cotidiano do
referido instituto trazendo em suas paginas uma diversidade de temas e noticias do
cotidiano da instituição de ensino, além de abordar temas da história da Paraíba e
Campina Grande durante as primeiras décadas do século XX. Para melhor
fundamentar nossas analises nos utilizaremos dos pressupostos teórico-metodológicos
relacionados ao tema do ensino das religiões nas salas de aula a exemplo de
Ranquetar Jr. (2007) e também Junqueira e Wagner (2011), que nos possibilitar
compreender como ocorreu ao longo dos anos o ensino das religiões nas diferentes
1
(Graduando do curso de História e Bolsista do PET-História UFCG, SESu/MEC)
2
(Graduando do curso de História e Bolsista do PET-História UFCG, SESu/MEC)
instituições de ensino no Brasil. Nessa pesquisa foram importantes as contribuições
teóricas formuladas pelo historiador Frances Michel de Certeau (2011) sobre as
sutilezas, táticas e operações do fazer e saber.
3
Para maiores informações a respeito da história do Instituto Pedagógico ver o trabalho: ANDRADE, Vivian
Galdino de. A COMPREENSÃO DE UMA MODERNIDADE PEDAGÓGICA ATRAVÉS DO
INSTITUTO PEDAGÓGICO CAMPINENSE (1919 – 1950). IX Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas
‘História, Sociedade e Educação no Brasil’, Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa – 31/07 a
03/08/2012 – Anais Eletrônicos – ISBN.
exemplo, os ensinos “Comercial”, “Militar”, “Gymnastica”, “Ensino Domestico” e
também o ensino “Leigo” que tinha por finalidade “... aproximar os homens, pelo
respeito mútuo, sem distinção de raças nacionalidade de dogmas sociais e religiosos”.4
É com esses objetivos que os diretores do Instituto Pedagógico, inserem o ensino
“Leigo” na instituição com a estratégia de tornar seus discentes homens e mulheres
mais amáveis e compreensivos da realidade social em voga na época. Michel de
Certeau define estratégia como sendo “... o cálculo (ou a manipulação) das relações
de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e
poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser
isolado...” A partir do conceito formulado por De Certeau, podemos entender que os
diretores do Instituto Pedagógico, implantaram na instituição o ensino “Leigo” com a
intenção de tornar os discentes, pessoas, entendedoras das mais diferentes crenças
religiosas do país, sendo que o responsável pelo a administração do educandário o
Tenente Alfredo Dantas, seguia a religião Evangélica, fica claro compreender que no
instituto existia a plena liberdade religiosa, “Religião – O Instituto Pedagógico
mantém, em toda sua plenitude, a positiva liberdade de consciência, deixando aos
pais, a orientação religiosa dos seus filhos”. (A União, 1920, p. 7).
4
Ver Revista Evolução, 1931, Nº 2, “Escola Leiga”.
5
Ver os trabalhos; SANTOS, A. EDUCAÇÃO “GYMNASTICA” E FÍSICA NO INSTITUTO
PEDAGÓGICO: UM OLHAR A PARTIR DA REVISTA EVOLUÇÃO”. II COLÓQUIO NACIONAL
HISTÓRIA CULTURA E SENSIBILIDADES na UFRN – Caicó – RN. / NASCIMENTO, Regina Coelli
Gomes. Disciplina e espaços: construindo a modernidade em Campina Grande no início do século XX.
Recife, 1997. Dissertação de Mestrado em História apresentado ao PPGH da UFPE. / Cidade e região:
múltiplas histórias / Eugenia Dantas e Iranilson Buriti (Orgs.). – João Pessoa: Ideia, 2005.
6
A biblioteca Atila de Almeida se encontra na cede da reitoria da UEPB, e conserva em seu acervo
documental uma variedade de fontes referentes à história de Campina Grande, principalmente do inicio do
século XX, além da maior coleção de Cordéis já catalogada no mundo, alguns exemplares pertenceu ao
próprio Atila de Almeida que dá nome a biblioteca atualmente.
encontra a Revista Evolução7, em suas paginas notamos que entre os cursos
oferecidos no Instituto Pedagógico, o ensino “Leigo” estava entre as preocupações dos
diretores do instituto. Segundo o historiador Josemir Camilo de Melo: “Em 1931,
portanto, brindava a cidade com mais um serviço de comunicação e sociabilidade, a
revista Evolução, cujo primeiro número saiu em setembro daquele ano”. A Revista
Evolução tinha a importância de disponibilizar a sociedade campinense e cidades
próximas a exemplo do estado do Rio Grande do Norte, inúmeros temas sociais e
políticos de destaque na cena política nacional e estadual da época. Outra
característica da revista é a forma como a mesma homenageia em suas capas8
pessoas ilustres da cena estadual como, por exemplo, o criador do Instituto
Pedagógico o Tenente Alfredo Dantas, Antenor Navarro, João Pessoa ex-governador
do estado, o professor Clementino Procópio, o prefeito Lafaete Cavalcante, Dr. Arlindo
Correia até então diretor do posto de higiene e profilaxia rural de Campina Grande, Dr.
Severino Cruz diretor de higiene municipal, Heronides Mathias de Oliveira professora
normalista da “Escola Normal João Pessoa” anexada ao Instituto Pedagógico e o
professor José Batista de Melo diretor de ensino primário da Paraíba.9 Para Josemir
Camilo de Melo,
7
Revista produzida pelo Instituto Pedagógico entre os anos de 1931 e 1932. Para mais informações sobre
essa revista ver: MELO, Josemir Camilo de. “Evolução”. Revista Pedagógica e Magazine na Paraíba dos
Anos 30. II Seminário Nacional Fontes Documentais e Pesquisa Histórica: Sociedade e Cultura de 07 a 10 de
Novembro de 2011. Campina Grande-PB.
8
Lembrando que a Revista Evolução foi produzida em 08 exemplares sendo que os últimos se encontram em
apenas um único numero o 8 e o 9.
9
SANTOS, A. EDUCAÇÃO “GYMNASTICA” E FÍSICA NO INSTITUTO PEDAGÓGICO: UM OLHAR
A PARTIR DA REVISTA EVOLUÇÃO”. II COLÓQUIO NACIONAL HISTÓRIA CULTURA E
SENSIBILIDADES na UFRN – Caicó – RN.
exemplo do Colégio Imaculadas Conceição10 (conhecido por Colégio das Damas com
ensino exclusivamente para mulheres), e o Colégio Diocesano Pio XI, criado pelo
vigário José Delgado, dedicado ao ensino religioso11. (CAMARA, 1947, p.87-93).
10
Sobre a criação do “Collégio da Imaculada Conceição”, ver o jornal “Brasil Novo”, que no ano de 1931,
traz em suas páginas uma nota informando a seus leitores da inauguração do presente colégio: “Inaugura-se
amanhã nesta cidade, mais um estabelecimento de ensino denominado “Colégio da Imaculada Conceição. A
direção deste educandário está entregue as Damas Christãs, anciosas e competentes religiosas que muitos
serviços têm prestado ao ensino no Brasil. O referido Colégio manterá os cursos: INFANTIL, PRIMARIO,
PREPARATORIO E SECUNDARIO e aulas de Piano, Pintura, desenho e flores”.
11
SANTOS, A. EDUCAÇÃO “GYMNASTICA” E FÍSICA NO INSTITUTO PEDAGÓGICO: UM OLHAR
A PARTIR DA REVISTA EVOLUÇÃO”. II COLÓQUIO NACIONAL HISTÓRIA CULTURA E
SENSIBILIDADES na UFRN – Caicó – RN. / CAMARA, Epaminondas. Datas Campinense. Campina
Grande: Ed. Caravela, 1988.
[...]
As primeiras palavras veiculadas no artigo publicado pela revista Evolução, até parece
uma resposta aos críticos do Ensino Leigo que descreve bem o ambiente que estava
sendo evidenciada na cidade de Campina Grande no ano 1931, como já abordado
nesse trabalho. A cidade tinha recebido duas instituições educacionais ligadas à igreja
Católica, que aumentaram o embate contra o ensino que era aplicado pelo Instituto
Pedagógico. O artigo veiculado pela Revista Evolução do Instituto Pedagógico tem
como papel de expressar uma opinião a favor do ensino leigo, mostrando as
qualidades do ensino que incentivava a combater o ambiente de discórdia que era
gerado em razão do ensino religioso, que tornava excludente para aqueles que não
compactuavam com os preceitos emitidos pelas instituições que possuíam o ensino
religioso. Como também tinha a função de construir o sentido de tolerância nas
mentes dos jovens.
Essa tolerância veiculada pelo artigo publicado pela revista Evolução não
corrobora apenas para afirmação do Ensino Leigo, que era exercido pelo Instituto
Pedagógico na cidade de Campina Grande. Mas, também possuía o interesse de
derrubar das instituições de ensino do Brasil a influência religiosa, que teria sido a
razão de muitos males, que pode ser evidenciado nessa passagem que dar
continuidade ao artigo sobre o Ensino Leigo publicado pela revista Evolução
Como pudemos ver, o Ensino Leigo abriu espaço para a formação de jovens
campinenses no começo do século XX, em razão da ascensão do Instituto Pedagógico
que se apresentaria como referência educacional na cidade de Campina Grande-PB. Já
que desde sua inauguração, em 1919, buscou introduzir na sua prática pedagógica tal
ensino, que geraria, por sua vez, muitas discussões por parte dos religiosos da cidade,
que ficariam muito visíveis, com o surgimento dos educandários Imaculada Conceição
(Damas) e o Pio XI no ano de 1931. Nesse sentido, a Revista Evolução, por parte do
Instituto Pedagógico, procurou defender os ideais da escola leiga: “Sendo a Evolução o
reflexo pedagógico do Instituto e da escola normal João Pessoa” (Evolução, 1931,
p.9), já que a revista buscava difundir seus interesses. E desse modo, o ensino Leigo
será observado até o fim da revista Evolução, em 1932, sendo muito presente nos
artigos publicados pela mesma, desenvolvendo uma prática de ensino que visava
valorizar o respeito mútuo entre os seus discentes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Cidade e região: múltiplas histórias / Eugênia Dantas e Iranilson Buriti (Orgs). – João
Pessoa: Idéia, 2005.
FONTES:
Jornal União
Evolução-Jornal
Revista Evolução
VIOLÊNCIA NO ESPAÇO ESCOLAR E A NECESSIDADE DA CULTURA DE PAZ: UM
ESTUDO A PARTIR DA REALIDADE DO 9º ANO DE UMA ESCOLA ESTADUAL EM
LUZIÂNIA (2013)
INTRODUÇÃO
1
Doutorando do Programa de Ciências da Religião da PUC-Goiás, Mestre em Educação, Mestre
em Infância e Juventude pela EST-RS, Especialista em Docência do Ensino Superior e Gestão
Educacional, Graduado em Matemática, Pedagogia, Filosofia e Teologia. Email:
marcelomaximo.edu@bol.com.br
de análise: as formas de sociabilidade, as modalidades de violência e os mecanismos
individuais e sociais presentes nas concepções dos estudantes.
Como hipótese de trabalho e guia de argumentação, proponho considerar que a
composição conceitual de violência dos alunos do ensino fundamental é influenciada
pelas significações sociais e que determinados contextos propiciam o desenvolvimento
de manifestações de violência, e essa, quando colocada em ação, revela aos atores
sociais o poder de seu uso. Assim, uma violência que, inicialmente, se organiza a
partir de um contexto favorável produz, ou pode produzir a violência como lógica de
intervenção.
O modelo teórico-metodológico se pautará na pesquisa de natureza qualitativa,
na expectativa de ampliar as possibilidades de aproximação do pesquisador com o
universo a ser investigado.
Para efeitos desta análise, compreendemos por violência atos que não se
restrigem a sanção penal, mas são caracterizados pelo não reconhecimento do outro,
tais como: desrespeito, descaso e humilhação. Violência, que explícita ou simbólica, é
definida como incivilidades por Debarbieux (1997, p. 87).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As razões que justificam essa pesquisa tem seu alicerce em dois aspectos: o
primeiro, refere-se aos meus interesses educacionais. Como professor de Matemática
da Secretaria do Estado de Educação de Goiás observo que a violência entre os alunos é
um fato constante no cotidiano escolar. A violência aqui entendida na concepção de
Zaluar e Leal (2001) como o aniquilamento dos corpos e arruína da mente dos
indivíduos. Caracterizada, portanto, pelo não reconhecimento do outro. “A violência,
nessa concepção, relaciona-se com o desaparecimento do sujeito da argumentação ou
da demanda, estando preso e esmagado pela força (física ou moral) de seu oponente
que lhe nega diálogo” (Ibidem, p.30).
A reflexão teórica acima evidencia que diversas manifestações podem ser
identificadas como violências: atos físicos, insultos, humilhações, olhares, silêncios,
isolamento do grupo e etc. Entretanto, muitas das violências citadas são ignoradas
pelos professores e gestores da escola. Em alguns casos, sobretudo atos de insultos e
agressões físicas como: empurrões e tapas, a função educativa das instituições de
ensino cedem espaço para as ações de vigilância, denúncia e punição, o que Lopes et al
(2008) denomina de “educação pelo medo”. Tal postura, demonstra que os sujeitos
responsáveis pelo processo de ensino aprendizagem ainda não sabem quais as ações
pedagógicas que devem ser tomadas para combater as violências nas escolas. Pois, no
momento em que os profissionais de educação adotam instrumentos de controle
enfraquecem as boas relações sociais de convivência e restrigem as estratégias
pedagógicas a práticas disciplinares.
Assim sendo, com o intuito de produzir dados que embasassem práticas
pedagógicas de prevenção e enfrentamento da violência é que escolho investigar o
conceito dos alunos da 9º ano fundamental. Comungando das ideias de Hernándes e
Seem (2004) acredito que a missão educativa da escola só será cumprida se tivermos
um ambiente agradável que proporcione aos estudantes interesse pelo que está
fazendo, inclusive nas questões relacionadas a aprendizagem. Pois, “as relações
positivas são responsáveis pela diminuição de comportamentos violentos e
pertubadores”.
Sposito (2002) afirma que mesmo depois do advento da democratização do
país, quando o tema impetrou o espaço público, a produção científica ainda é
embrionária e apenas nos últimos anos é que ela tem sido fomentada, sobretudo nas
instituições de ensino superior e em algumas organizações não governamentais. Outro
dado, que fundamenta a razão de darmos continuidade aos estudos sobre violência e
educação.
Pensar a questão da violência demanda um alargamento teórico do fenômeno
que possibilite embasar a compreensão do processo em que a violência escolar está
inserida, seus reflexos na interação entre alunos, aluno e professores, e alunos e
demais profissionais da educação. Uma vez que, “não basta, porém, coletar dados;
deve-se saber exatamente o que procura. E isso é ainda mais necessário quando se
aborda uma questão antiga de uma forma relativamente nova” (CHARLOT, 2000, p.9).
Nessa ótica, consideramos fundamental compreender o que os estudantes identificam
como ação de violência, e quais as associações que eles estabelecem com as práticas
de violência. Para chegar a essas respostas precisamos adentrar a escola e conhecer
esses estudantes, assim como o lugar que a escola ocupa na vida desses alunos.
A importância de se investigar o conceito de violência dos alunos está pautada
também na relevância das interações na construção da subjetividade humana. Essa
posição fundamentada nos pressupostos da teoria sócio-histórica a respeito do
desenvolvimento humano assevera que, “a criança, desde seus primeiros anos de vida,
está imersa em um sistema de significações sociais (FONTANA, 1996). Sistema que irá
incorporá-la as ações e significados produzidos e acumulados historicamente. Nessa
perspectiva, a composição humana é resultado de um processo de desenvolvimento que
está densamente enraizado nas ligações entre história individual e história social
(VYGOTSKY, 1984).
REFERÊNCIAS
ABRAMOVAY, Miriam; CUNHA, Anna Lúcia; CALAF, Priscila Pinto. Revelando tramas,
descobrindo segredos: violência e convivência nas escolas. Brasília: Rede de
Informação Tecnológica Latino-Americana – RITLA, Secretaria de Estado de Educação
do Distrito Federal – SEEDF, 2009.
CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre:
Artmed. 2000.
DUSSEL, Inês; CARUSO, Marcelo. Sala de aula? Genealogia? Definições para iniciar o
percurso. In: A invenção da sala de aula. São Paulo, Moderna, p.29 – 46, 2003.
GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1999.
LOPES, R. et. al. Juventude pobre, violência e cidadania. In: Saúde e sociedade,
vol.17, nº 3, 2008.
ZALUAR, Alba; LEAL, Maria Cristina. Violência extra e intramuros. Revista Brasileira de
Ciências Sociais. São Paulo: ANPOCS, v.16, nº 45, fev, 2001, p.145 a 164.
Secretário nega alto índice de violência. Correio Braziliense, Brasília, 23 jul. 2009.
Disponível em:
http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2009/07/23/interna_cidade
sdf. Acesso em: 20 out. 2012.
ORAR E CONTROLAR: A DISCIPLINARIZAÇÃO
Resumo: O artigo problematiza uma pesquisa que aborda a infância sob a ótica da
religiosidade cristã no século XVI. A investigação teve o objetivo de mapear e analisar
os elementos indicativos das relações sociais protagonizadas por crianças e padres
jesuítas no Brasil colônia. A pesquisa envolveu quatro procedimentos metodológicos:
Leitura e seleção das fontes (cartas avulsas); Mapeamento das fontes, buscando
identificar a representação das crianças nas cartas; Articulação e cruzamento das
fontes a fim de aproximar perspectivas e identificar diferenças estruturais e
discursivas; 4 - Análise documental e produção textual do artigo. A partir dos
pressupostos teóricos formulados por Michel Foucault buscamos perceber como essa
relação foi permeada por um desejo de poder e disciplinarização dos corpos dos
chamados “cunumins”, as crianças indígenas, para fins de uma dominaç ão cultural. O
texto visa fortalecer uma abordagem interdisciplinar, na medida em que dialoga
formulações do campo da Filosofia com análises historiográficas presentes nas obras
de Mary Del Priore e Philippe Ariès.
Abstract: The article discusses a study that addresses the childhood from the
perspective of Christian religiosity in the sixteenth century. The research aimed to
map and analyze the factors indicative of social relationships starring children and
Jesuits in colonial Brazil. The research involved four instruments: Reading and
selection of sources (spare cards); Mapping the sources, trying to identify the
representation of children in the letters; Linkage and crossing of sources in order to
approach prospects and identify structural differences and discursive; 4 - Analysis
textual production of documentary and article. From the theoretical assumptions
made by Michel Foucault sought to see how this relationship was permeated
by a desire for power and the disciplining of bodies called " cunumins" indigenous
children for purposes of a cultural domination. The text aims to strengthen an
interdisciplinary approach, in that dialogue formulations of the field of philosophy with
historiographical analysis in the works of Mary Del Priore and Philippe Ariès.
1 Graduando em Hist ória na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Bolsista do Programa de
Educação Tutorial de História da UFCG. E-mail: jose.junior010@gmail.com
2
Graduanda em História na UFCG. Técnica em pesquisa no Projeto “Catálogo Geral dos Manuscritos
avulsos e em códices referente a História Indígena e Escravidão Negra no Brasil” financiado pela Petrobrás.
E-mail: laisafrancisco@gmail.com
1
Keywords: Children, Discipline, Catechesis, Religion.
3
No Brasil o período da Constituinte, entre 1987 e 1988, foi marcado por intensa participa ção de segmentos
sociais em defesa dos direitos humanos de crian ças e adolescentes. Essas lutas sociais foram incorporadas na
nova Carta Magna de 1988, que através de seus artigos 227 e 228 possibilitou a criação de uma nova agenda
política para tratar da infância. Com base nestes artigos da Constitui ção Federal foi sancionada a lei nº 8.069
de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma importante conquista do povo
brasileiro na busca de um novo modo de olhar as crian ças e os adolescentes, bem como pautar novos modos
de conviver com eles e garantir-lhes os meios necessários para uma boa qualidade de vida.
2
entre 1550 e 1559 e será a partir deste recorte temporal que buscaremos tecer
reflexões sobre a infância no período colonial.
Inicialmente, cabe pensar um pouco sobre em que momento o tema da
infância passou a fazer parte do conjunto de objetos e prob lemas da investigação
histórica. Deste modo, é preciso que consideremos o surgimento de uma nouvelle
histoire francesa, que se configurou de modo mais acentuado e significativo a partir
do final da década de 1960 e início da de 1970 e que possibilitou a emerg ência de
novos temas, problemas e abordagens, como afirmam Jacques Le Goff e Pierre Nora,
ao campo da História.
O profissional que foi pioneiro na construç ão de análises históricas acerca da
infância foi Philippe Ariès4, responsável por realizar um conjunto de reflexões sobre a
emergência do sentimento da infância e da família a partir do século XVII. Em sua
obra, apresenta um amplo conjunto de informações históricas sobre as mudanças
ocorridas desde o século XIII até o século XVIII, apontando os diferentes níveis de
socialização, especialização de tarefas e funç ões sociais envolvendo a criança e a
família. Enfatiza o surgimento da escola e sua influência na formação do sentimento
de família, bem como a importância dada à criança após as novas configurações
familiares e domésticas que se constituíram . Outro dado importante refere-se ao fato
de que a pesquisa desenvolvida por Ariès esteve fortemente alicerçada em fontes
como imagens, pinturas, diários, documentos religiosos, etc.
Embora não fosse um historiador propriamente dito, tendo em vista que era
demógrafo histórico por formação, ele marcou de maneira relevante a postura
adotada na terceira geração da Escola dos Annales5, pois se posicionou contrário aos
métodos quantitativos e buscou realizar suas análises a partir de fontes novas para o
4
É considerado um pioneiro ao tratar a infância numa perspectiva histórica. Sua obra é de forte relevância
tendo em vista que se insere na terceira gera ção dos Annales, na França, e incorpora algumas tend ências dos
novos postulados teórico-metodológicos que a História nova adotava. Para mais informações, Cf. ARIÈS,
Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaksman. Rio de Janeiro: LTC, 2006.
5
A terceira geração dos Annales foi responsável por um conjunto de renovações e reformulações de caráter
teórico-metodológico no campo da história a partir do final da d écada de 1960 e come ço da de 1970. A
principal característica dessa fase é apontada como tendo sido a ocorrência de uma virada da história em
direção a antropologia, na medida em que foi a partir do intenso contato com essa disciplina que a hist ória
renovou seus métodos, abordagens, perspectivas teóricas e mesmo ampliou o campo de objetos e
problemáticas de estudo. Embora tenha sido marcada por um conjunto de renovações substanciais para a
história, esta nova fase (também chamada de nouvelle histoire) possibilitou a retomada de três elementos já
presentes na história tradicional e que foram alvo de fortes críticas com as transformações ocorridas na
história a partir do começo do século XX. Esta retomada refere-se ao retorno da política, da narrativa e do
fato, ou acontecimento, como aspectos relevantes para a escrita da história. Contudo, mesmo havendo a
retomada destes três aspectos t ão duramente criticados na história tradicional , a diferença está no modo como
essa nova história tratou destas três questões. Cf. REIS, José Carlos. Escola dos Annales: a inovação em
História. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
3
historiador, tendo em vista que seu objeto (a história da criança e da família) exigiu
também que ele pensasse a partir da perspectiva dos sentimentos, das mentalidades,
das representações criadas socialmente para tratar da formação de um conjunto de
ideias sobre a infância e sobre o sentimento da família.
Peter Burke (1997) aponta Ariès como um “historiador domingueiro”, isto é,
um profissional que desenvolveu interessantes análises históricas sem fazer parte,
propriamente, do grupo destes profissionais. Suas análises foram cruciais tanto para a
consolidação do programa da terceira geração dos Annales como também para os
novos horizontes que a História buscava trilhar.
4
século XX, o referencial teórico necessário para pensar como estas relações foram
construídas a partir de um desejo, por parte dos padres jesuítas, de disciplinar a
infância e fazer com que os corpos infantis servissem aos objetivos e valores
europeus.
Inicialmente é possível apontar que as cartas dos padres jesuítas 6 têm a
intencionalidade de trocar informações sobre como estava sendo desenvolvida a
empreitada missionária, isto é, como estavam sendo realizadas as aç ões de
catequização dos índios e como eles estavam lidando com isso, quais as dificuldades
enfrentadas, etc. Desde logo podemos notar como os padres que aqui estavam
precisaram prestar contas de suas atividades e empreendimentos para aqueles que
estavam na Europa e que precisavam saber como estava sendo efetivada a missão de
difundir o evangelho de Jesus Cristo na nova terra. A estrutura das cartas é
basicamente a mesma, sendo iniciadas quase sempre com uma saudação e apontando
o objetivo da correspondência, ou seja, informar o andamento das ações missionárias.
Um trecho da carta do padre Ruy Pereira, de 1560, demonstra a necessidade de
intercambiar informações:
5
O cuidado com as crianças estava alicerçado no conhecimento que os jesuítas
tinham do ambiente em que a catequização era operada. Sabiam bem o quanto era
arriscada aquela conviv ência e como havia resist ências7 de alguns indígenas em
relação aos costumes e à imposição religiosa dos europeus. O trato com as crianças
apresenta-se como um mecanismo de dominação8 e subjugação que não se operava a
partir da lógica de uma violência física, ou pelo menos nem sempre era assim.
As crianças podiam inclusive ser vítimas de viol ência, represálias, dos próprios
índios que não haviam se convertido à fé crist ã. Era também por isso que era preciso
guardar estas crianças a salvo de toda e qualquer tentativa de fazê-las retornar aos
seus antigos costumes e hábitos. Eram muitos os desafios para que a catequese se
efetivasse no Brasil, pois para além das dificuldades práticas como a quantidade de
padres para atender a quantidade de índios, a escassez de recursos financeiros e
materiais para o desenvolvimento das atividades e a necessidade de um espaço
propício para a educação religiosa, havia ainda as limitações imateriais. Isso é
demonstrado nas cartas quando os padres referem-se ao risco das crianças voltaram a
praticar os rituais 9 e os hábitos nos quais haviam sido criadas. Era preciso construir
formas de isolamento da criança em relação aos seus pais, por exemplo, pois eles
representavam risco para ela. “Assim, não se tratava apenas de aprender a doutrina e
as coisas da fé. Para os padres, o mais difícil era justamente perseverar nos bons
costumes” (Id., ibid., p. 60).
6
evangelização dos adultos, levaram os padres a optar cada vez
mais por uma conversão pela ‘sujeição’ e ‘temor’, como
escreviam em seus textos. Fortalecia-se aos poucos a
convicção de que os índios só se converteriam se fossem
sujeitos a alguma autoridade, daí o constante apelo ao poder
da Coroa, para a consecução da conversão dos índios. Inclusive,
do ponto de vista do ensino dos meninos índios, essa
perspectiva coincidia com a estruturação de um rígido sistema
disciplinar [...], que, no mesmo sentido que o próprio repensar
da disciplina desde o século XV, dependia de uma vigilância
constante, da delação e dos castigos corporais”
(Chambouleyron, 2007, p. 69).
10
Cf. FOUCAULT, Michel. Apresentação. In. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto
Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
7
tradição cultural desses povos era definida como uma cegueira que impedia o
entendimento espiritual necessário para que abraçassem as práticas cristãs.
Essa percepção servia como justificativa para que os crist ãos reafirmassem o
seu discurso de que tinham a missão de levar o evangelho e a sabedoria cristã para
estes povos atrasados e que precisavam ser civilizados e conduzidos para o caminho
da verdade. Considerando todas as dificuldades vivenciadas os jesuítas voltaram-se
para os pequenos cunumins como uma forma de garantir que as novas gerações que
surgissem fossem capazes de alcançar as finalidades civilizadoras e crist ãs que eles
julgavam essenciais para o desenvolvimento desse povo desconhecido e de práticas
culturais tão distintas.
O padre Antonio Rodrigues foi um dos correspondentes que escreveu cartas
cuja finalidade era prestar contas aos seus superiores de como vinha sendo realizada
a catequese. Nele é possível perceber um tipo de imagem criada para representar a
criança indígena.
“[...] logo fiz assentar o numero dos Indiozinhos innocentes, os
quaes me deram de mui boa vontade, e os baptizámos todos
para gloria do Senhor. Eram ao todo 31. Acabado o officio,
préguei-lhes o melhor que pude sobre a creação do mundo e
nossa, da gloria, etc., o que tudo o foi de tanta edificaç ão para
os circunstantes christãos que se acharam, que choraram pelas
barbas, segundo me disse o Patrão e outros Christãos que
presentes se achavam: gloria e louvores ao Senhor”
(Rodrigues, 1559, p. 242).
8
individuais que pudessem servir a uma ordem pensada e formulada a partir dos
interesses dos jesuítas. O discurso religioso prescrevia um conjunto de práticas e
atitudes que os sujeitos, neste caso crianças, podiam realizar. Deste modo, elas
estariam de acordo com o modelo de comportamento estipulado e com o novo modo
de vida que teriam. É possível compreender que “... a evangelização das crianças
tornara-se uma forma de viabilizar uma difícil conversão, já que [...], nos meninos se
poderia esperar muito fruto, uma vez que pouco contradiziam a lei cristã” (Id., ibid.,
p. 58).
O padre João de Azpilcueta Navarro aponta que “[...] só aos pequenos acho
com boa inclinação, si os tirassemos de casa de seus Paes, o que não se poderá fazer
sem que Sua Alteza faça edificar um collegio nesta cidade com destino a essas
crianças para as educar, de maneira que com os maus costumes e malicia dos Paes
se não perca o ensino que se ministra aos filhos” (Navarro, 1550, p. 6 1). Notamos
assim que uma estratégia apontada para vencer a dificuldade da catequizaç ão, isto é,
os costumes dos pais das crianças indígenas como sendo empecilhos ao processo de
formação delas, foi a institucionalização da educação jesuítica através dos colégios.
9
O trecho evidencia a intenção dos jesuítas de construírem discursivamente
sujeitos que pudessem atuar do modo como lhes foi autorizado. Deste modo, é
possível afirmar que houve uma construção social dos corpos infantis a partir de uma
lógica da “docilidade” e “utilidade” destes gestos individuais no contexto social em
que se inseriam. Podemos notar como o poder era fruto das relações estabelecidas
entre os padres jesuítas e as crianças indígenas e, neste sentido, vale considerar o
poder não apenas no seu aspecto negativo, destrutivo, mas percebendo-o e lendo-o
como dotado de aspectos positivos. O poder11, como o compreendemos aqui, tem
uma função produtiva e transformadora na medi da em que possibilita a criaç ão e a
construção de modos de sociabilidade, bem como possibilita a construção de
individualidades que são forjadas para servir a determinados interesses e objetivos.
Os padres solicitam para Bahia em várias cartas a construção de um colégio,
um espaço específico para o letramento e o ensino da doutrina. Este espaço útil
rompia a comunicação dessas crianças com as práticas cotidianas da aldeia “... a
rotina dos meninos das vilas, principalmente do colégio, era muito diferente daquela
vivenciada nas aldeias” (Chambouleyron, 2007, p. 78) já que ali estavam com as
práticas cotidianas dos jesuítas, o colégio era um espaço de disciplinarização onde
elas viviam de acordo com as regras dos jesuítas e os valores da religião da qual
estavam se tornando prosélitos. O padre Francisco Pires menciona que todas as
práticas tinham seu tempo, o tempo da leitura, da doutrina, da missa e o aprendizado
de outros ofícios, pois “ [...] para cada movimento [era] determinada uma direç ão,
uma amplitude, uma duração; [era] prescrita sua ordem de sucessão. O tempo
penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder” (Foucault, 2012,
p. 146). O padre Serafim Leite afirma que “ [...] a política de instrução dos padres
consistia em abrir sempre uma escola onde quer que erigissem uma igreja” (Leite,
apud Chambouleyron, 2007, p. 59) onde se aplicava a pedagogia do ler e doutrinar,
as duas bases da disciplinarização dos jesuítas.
O corpo foi alvo de uma relação de poder específica vivenciada entre os
jesuítas e as crianças indígenas. Foi objeto de um conjunto de ações dos padres e,
assim, pode-se compreender que aqueles corpos infantis, dóceis, foram forjados a
partir dos interesses da ordem religiosa: controlar, disciplinar e autorizar os modos de
utilização desse próprio corpo no tecido social tendo em vista que “[...] em qualquer
sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe
impõem limitações, proibições ou obrigações” (Foucault, 2012, p. 132).
11
A condução da análise sistematizada neste texto foi realizada a partir das considera ções do filósofo Michel
Foucault sobre o poder. Para mais informações sobre sua perspectiva de análise, Cf. FOUCAULT, Michel.
Op. cit.
10
Buscando pensar o poder para além do aspecto negativo e destrutivo com o
qual ele sempre é relacionado, podemos refletir como “[...] o poder produz; ele
produz o real; produz domínios de objetos e rituais de verdade. O poder possui uma
eficácia produtiva, uma riqueza estratégica, uma positividade. E é justamente esse
aspecto que explica o fato de que tem como alvo o corpo humano, não para supliciá-
lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo” (Foucault, 1979, p. 14).
O corpo humano passa a ser pensado não apenas como um dado natural,
biológico, anatomicamente pronto e finalizado, mas como uma produção cultural e
social. O jogo de relações que se estabelecem em uma determinada sociedade
possibilita a construção do corpo a partir de uma malha de interesses, de jogos de
poder e formas de coação, controle, disciplina e possibilidades de liberdade e
satisfação. Deste modo, vemos como o corpo humano pode assumir , em diferentes
sociedades e em diferentes épocas, estatutos diferenciados, tendo em que vista a
mutabilidade dos valores culturais, dos dogmas ou crenças religiosas e dos padrões de
comportamento socialmente determinados e aceitos.
A criança no Brasil colonial era vista pelos jesuítas como uma aposta, uma
promessa de futuro, pois todos sabiam que os objetivos das ordens12 religiosas no
Brasil só seriam alcançados dentro de um longo espaço de tempo. “Os procedimentos
disciplinares revelam um tempo linear cujos momentos se integram uns aos outros, e
que se orienta para um ponto terminal e estável” (Foucault, 2012, p. 154). As ações
eram diárias, como apontam as cartas de alguns padres que estiveram na colônia
naquele período. A atividade evangelizadora se dava diariamente com o intuito de
que fossem formados sujeitos capazes de interiorizarem cada vez mais os valores, os
costumes e as crenças do povo europeu e do discurso cristão, especificamente.
Podemos compreender ainda o processo de catequização como o de um
treinamento das crianças indígenas, pois a educação religiosa era baseada também
num conjunto de objetivos práticos como , por exemplo, fazer com que estes novos
cristãos fossem responsáveis pelo processo de civilização da terra nova. Os cunumins
eram a aposta para o mundo novo. Eram eles que deveriam, como os crist ãos que se
tornariam, contribuir para a formação da nova sociedade de modo que ela fosse a
mais semelhante possível ao modelo europeu que eles aprendiam diariamente a
vivenciar, experimentar e exercitar.
Aquelas crianças eram treinadas diariamente para ocuparam um lugar social
que, muito possivelmente, elas nem sabiam qual era. Serviriam aos interesses de um
12
No Brasil não houve o monopólio de uma ordem apenas para desenvolver o processo de catequização.
“Ordens tão importantes como a dos Frades Menores se ocuparam da convers ão no s éculo XVI, e também do
ensino dos filhos dos portugueses. Cf CHAMBOULEYRON, Rafael. Jesuítas e as crianças no Brasil
quinhentista. In: DEL PRIORE, Mary. (Org). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007.
11
grupo que não havia perguntado quais seus interesses e quais as suas motivações
para o futuro. O que houve foi um processo de dominação cultural e religiosa que
objetivou fazer com que aquelas crianças, tidas como “cera branca” pudessem
assimilar os valores e credos vistos pelos católicos como essenciais. Tal operação
dava-se com o intuito de minimizar as possibilidades de resist ência e fazer com as
crianças compreendem e atribuíssem importância para este processo, até certo ponto
silencioso, que se configurava e que as envolvia. Neste aspecto notamos a lógica
docilidade-utilidade presente nesta relação de controle, pois “é dócil um corpo que
pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e
aperfeiçoado” (Foucault, 2012, p. 132). A formação religiosa das crianças pode ser
vista como a construção social e cultural de corpos maleáveis, capazes de servir aos
interesses de um determinado grupo social sem que estes sujeitos, necessariamente,
soubessem ou percebessem a condição de dominação e controle em que se
encontravam.
“O controle social são as formas pelas quais a sociedade inculca
os valores do grupo na mente de seus membros, para evitar
que adotem um comportamento divergente. O principal
objetivo do controle social é fazer com que cada indivíduo
tenha um comportamento socialmente esperado” (Oliveira,
2003, p. 151).
12
É interessante notar ainda como os jesuítas lançaram mão de várias estratégias para
poder desenvolver a conversão dos indígenas à fé crist ã. Segundo Chambouleyron
(2007) eles trouxeram para o Brasil um considerável número de órfãos de Lisboa, que
faziam parte do Colégio de Jesus dos Meninos Órf ãos, em 1550 e 1551. Estas crianças
aprenderam com rapidez o idioma dos nativos e foram importantes colaboradores do
processo de cristianização no Brasil colonial.
Entretanto, esta estratégia enfrentou alguns desafios como, por exemplo, a
oposição do primeiro bispo do Brasil, Dom Pero Fernandes. Ele chegou ao Brasil em
1552 e com sua chegada a atuação das crianças portuguesas na catequização foi
reduzida, pois ele era contrário ao fato de que os órfãos portugueses “cantassem
músicas gentílicas e tocassem os instrumentos que os índios usavam nas festas em
que matavam e ingeriam seus inimigos” ( Id., ibid., p. 64). Mesmo com a
argumentação dos padres afirmando que os órfãos estavam ajudando muito na
conversão e que o fato deles haverem aprendido a língua nativa havia sido
importante na aproximação com as crianças indígenas, ainda assim Dom Pero
Fernandes resistiu. No entanto, aos poucos o ensino de música foi retomado, embora
a prática dos cânticos indígenas tenha sido cada vez mais minimizada, o que aos
poucos provocou seu abandono. “O ensino musical era de suma importância n ão só
para o aprendizado da doutrina, mas também para a participação nas mais variadas
formas da vida religiosa” (Id., ibid., p. 65).
O canto foi uma modalidade pedagógica usada pelos jesuítas na catequização e
teve uma importância crucial no processo de doutrinação dos cunumins. “Além de
cantarem nas procissões, as crianças das escolas e dos colégios se disciplinavam, o
que comovia muito os padres. Havia que aprender a ter uma outra relação com o
corpo, agora macerado e domado” (Chambouleyron, 2007, p. 66). Outra estratégia
pensada pelos jesuítas foi desenvolver catecismos dialogados em que havia a prática
de perguntas e respostas e nesse jogo as crianças indígenas acabavam por indicar aos
padres o quanto tinham aprendido da doutrina crist ã através da memorização dos
princípios doutrinários.
Portanto, as reflexões aqui tecidas tiveram como objetivo reiterar a
importância de pensar o passado a partir de questões que possam problematizá-lo,
indagá-lo, de modo que as fontes documentais possam ser caminhos possíveis para
um diálogo com outras temporalidades, outros modos de ver, ler e viver a
experiência humana. Este texto buscou apontar como a religião foi usada no período
colonial como um instrumento estratégico para a construção da nova sociedade que os
portugueses desejavam montar. Os jesuítas foram atores importantes no processo de
conquista do Brasil, na medida em que construíram relações de poder com os índios e
os fizeram, mesmo considerando os entraves, as resist ências e as dificuldades
13
ocorridas, assimilar os valores da religião cristã e com isso tornaram-se indivíduos
moldados a partir dos valores de outro povo, com outros modelos de pensamento e
de interpretação sobre a vida. A criança indígena foi tida como uma “cera branca” e
“mole” sobre a qual poderiam ser impressos todos os interesses, valores e códigos
morais dos europeus. O corpo infantil foi considerado como um instrumento sobre o
qual seriam inseridos os modelos de comportamento aceitos para a “nova
cristandade” que os jesuítas queriam formar.
Deste modo, buscamos contribuir para que a história da infância possa ser um
campo temático renovado a partir de novos olhares, perspectivas e modos de
trabalho. Pensar as crianças como sujeitos dotados de características específicas, em
qualquer sociedade e temporalidade histórica, exige que pensemos como elas foram
alvo de interesses e de modos distintos de controle social difundidos a partir da
educação (seja ela religiosa ou laica) ou de outros instrumentos de formação de
comportamentos, mentalidades e modos de agir no tempo e no espaço.
Fontes
Cartas I, XIV, XXX, XXXI e XXXIX, pp: 59-66; 136-143; 242-243; 244-245 e 265-
283, respectivamente.
Disponíveis em: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/search?q=dc.subject:%22Jesuitas+-
+S%C3%A9c.+XVI++Brasil%22 acesso em 10 de jan. 2013, às 21h48, p. 242-243.
Referências bibliográficas
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2006.
FOUCAULT, Michel. Corpos dóceis. In. Vigiar e punir. História da viol ência nas
prisões. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução à sociologia . São Paulo: Editora Ática,
2003.
14
ENSINO RELIGIOSO – TRILHANDO A NOVA ABORDAGEM EM NATAL
Resumo
O Ensino Religioso (ER) não é mais refém das referências confessionais e
moralizantes. Passou para o modelo fenomenológico (LONGUI, 2004), das Ciências da
Religião ou ainda pluralista, como trata Benevides (2009), exigindo agora professores
com nível superior, possuidores de conhecimentos pedagógicos sobre a docência. Com
base na exploração do conceito da diversidade religiosa no ambiente escolar,
trilhamos, através dos discursos de dois grupos de professoras do município de
Natal/RN, a sua formação inicial e as vivências nos diferentes modelos dessa
disciplina. Os resultados indicam a constituição dos conhecimentos do antigo e do
novo modelo de ER e as transformações que devem acontecer nas esferas das práticas
escolares para um modelo voltado à pluralidade.
INTRODUÇÃO
Quando o Ensino Religioso³ foi legalizado com ônus ao governo, através Lei
9.475/97, dando nova redação do artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDBEN) 9.394/96, surgiu grande preocupação em acompanhar o processo
de inserção dessa nova abordagem dentro do ambiente escolar brasileiro e,
consequentemente, em relação aos agentes que ministrariam esse novo tipo de
ensino, tendo em vista os diversos aspectos anteriores que contrariavam essa
disciplina.
Essa mudança contribuiu para uma abordagem de ER no Brasil que visa a um
enfoque mais aberto, voltado aos conhecimentos das Religiões e seus Fenômenos,
necessitando, assim, de profissionais devidamente capacitados para coordenar as
aulas desse componente curricular (CORTELLA, 2007; PASSOS, 2007; USARSKI,
2007). Porém, ainda há um desconhecimento desse fato por parte da maioria dos
gestores públicos, dos acadêmicos e da sociedade em geral.
Assim sendo, pretendemos dar prosseguimento à atividade de mapeamento
iniciadas por Benevides (2008a) dentro do projeto Saberes da prática docente no
contexto do Ensino Religioso – entrecruzando a multidisciplinaridade, leituras e
*
Valdicley Euflausino da Silva (PIBIC/CNPq/UERN)
**
Araceli Sobreira Benevides (UERN)
experiências na construção de identidades docentes (PIBIC/CNPq/UERN), no qual
investigamos as lembranças iniciais desses profissionais nas esferas das práticas do
ER na região metropolitana de Natal/RN, os discursos desses docentes sobre seus
conhecimentos, com a finalidade de entendermos a construção das identidades
docentes (PIMENTA, 2008; CATANI; BUENO; SOUSA, 2000).
Para tanto, realizamos a interpretação e reinterpretação de discursos recolhidos
através de entrevistas e relatos pessoais elaborados durante a primeira fase de
preenchimento de um questionário investigativo realizado com professoras de ER que
atuam na região metropolitana de Natal. Além de analisar se/como os conhecimentos
construídos no curso de graduação estão sendo levados para o contexto da sala de
aula com o intuito de conhecermos (FREITAS, 2002, 2003) seus saberes (Pimenta,
2008), pois, como veremos adiante, suas práticas refletem os ideais impostos na
época de formação.
Analisamos, através da transcrição de dados realizados anteriormente4, os
discursos desses agentes educacionais, amparando-nos, nessa fase da pesquisa, em
autores como Catani, Bueno e Sousa (2000) e Pimenta (2008). Essas autoras
discutem em seus trabalhos o processo de construção das identidades docentes,
valorizando suas lembranças iniciais e os saberes construídos ao longo da vida do ser
professor.
Para Catani, Bueno e Sousa (2000, p. 152), as “[...] relações que os indivíduos,
homens e mulheres (alunos e professores), mantêm com a escola e com as diferentes
disciplinas, e os significados dessas relações em histórias de escolarização e na
formação da identidade dos professores [...]” são valorizados pela importância da
natureza desses esses atores em suas próprias formações identitárias. Já Pimenta
(2008, p. 18) entende que a Identidade “[...] é um processo de construção do sujeito
historicamente situado [...]”, que emerge no decorrer da história pessoal e
profissional, pois estão implicadas as formas de compreensão dos significados sociais,
da(s) cultura(s), da (s) teoria(s) e prática(s) relacionada(s) às realidades desses
sujeitos. Sua concepção identitária assemelha-se ao processo de edificação da
identidade docente, tendo em vista que o profissional docente está implícito dentro do
contexto da constituição da identidade, para aqueles que resolvem seguir esta
carreira. Dessa forma, entendemos que identidade de um indivíduo não é algo finito,
acabado ou fechado. Como descreve esta última autora, estão envolvidas uma gama
de circunstâncias, que não por acaso, estamos a vivenciar continuamente no contexto
histórico. Destacamos que a formação do profissional docente na é construída
exclusivamente na sociedade ou em um curso de formação. Através destes
enunciados queremos chegar ao entendimento/compreensão de que
A Formação de Professores é a área de conhecimentos, investigação e de
propostas teóricas e práticas que, no âmbito da Didática e da Organização
Escolar, estuda os processos através dos quais os professores – em
formação ou em exercício – se implicam individualmente ou em equipa, em
experiências de aprendizagem através das quais adquirem ou melhoram os
seus conhecimentos, competências e disposições, e que lhes permite
intervir profissionalmente no desenvolvimento de seu ensino, do currículo e
da escola, com o objectivo de melhorar a qualidade da educação que os
alunos recebem. (GARCIA, 1999. p. 26).
Considerações Finais
Ao longo desse trabalho, percebemos que a pesquisa nos redimensionou
para a história da abordagem das práticas pedagógicas existentes no interior do
Ensino Religioso. A restrição desse componente curricular, como muitos defendem,
apresenta-se como cisão entre mundo, vida e conhecimento, contribuindo para a
fragmentação da sociedade (ipseidade) e do conhecimento, gerando uma não-
contextualização total para a construção do cidadão.
Nosso esforço é de conceber o respeito pelo entendimento e compreensão dos
diversos aspectos religiosos (psicológicos, sociais, históricos e filosóficos), pois
entendemos que o objeto desconhecido, no nosso caso, os fenômenos das diversas
religiões (GRESCHAT, 2005), torna-se abstrato e uma barreira a qualquer indivíduo,
assim como em qualquer outra área de conhecimento, quando o que estão em jogo
são contribuições para a sociedade.
Destarte, percebemos que as experiências mais recentes com o ER indicam
práticas pedagógicas que assumem percursos auspiciosos, mas também antagônicos,
por ainda encontrarmos – no contexto escolar – o ensino confessional, apesar das
exigências legais que orientam para um modelo fenomenológico, pluralista ou das
Ciências da Religião, em que o ensino baseia-se nos conhecimentos epistemológicos
das Ciências da Religião, como vistos em Benevides (2008b) e Silva e Benevides
(2012b). Quando percebemos que os educadores possuem a devida qualificação,
como é o caso de P4, a abordagem de ensino permite a aprendizagem em uma
perspectiva mais aberta, voltada para os conteúdos propostos pelos PCNER, que
indicam como foco principal os Eixos Temáticos: Culturas e Tradições Religiosas,
Escrituras Sagradas, Teologias, Ritos e Ethos. (FONAPER, 2009), possibilitando as
transformações necessárias nas esferas das práticas escolares para um modelo
voltado à pluralidade.
Para que isso seja possível, indicamos que somente profissionais formados em
Ciências da Religião devem atuar nas escolas. É preciso ainda a elaboração de
materiais didáticos apropriados para a transposição didática dos conteúdos. Por fim,
solicitamos maior atenção dos gestores públicos, para que se mobilizem em convocar
concursos para esses profissionais, principalmente por possuírem os conhecimentos
epistemológicos da área, tendo em vista que as experiências mais recentes com o ER
indicam práticas pedagógicas que assumem percursos condizentes, quando os
docentes possuem a devida qualificação, permitindo aos discentes uma aprendizagem
na perspectiva mais aberta e compreensiva (SILVA, BENEVIDES, 2012c).
Notas
1
Discente do Curso de Ciências da Religião – UERN. E-mail:
valdicley_bambucha@yahoo.com.br
2
Docente do Departamento de Ciências da Religião - UERN, CAN. E-mail:
aracelisobreira@yahoo.com.br
3
Doravante utilizaremos ER para denominar a disciplina Ensino Religioso.
4
Conferir Benevides (2011).
5
A realização dessa entrevista aconteceu em 03 de maio de 2012 e ficou registrada
em vídeo. Esses dados encontram-se arquivados na sala de pesquisa do Curso de
Licenciatura em Ciências da Religião, com a coordenadora do projeto, estando à
disposição para quaisquer esclarecimentos. Também foram seguidos os procedimentos
de preservação da identidade dos sujeitos participantes da entrevista, conforme posto
na proposta encaminhada para o Comitê de Ética da UERN, protocolo 098/10.
6
Escola Superior de Educação Religiosa que era mantida pelo ITEPAN.
REFERÊNCIAS
AMORIM, Marilia. O detetive e o pesquisador. Documenta. Eicos/Cátedra Unesco
de Desenvolvimento Durável/UFJF. v. 6, n.8, p.127-141, 1997.
BENEVIDES, Araceli Sobreira. Saberes da prática docente do Ensino Religioso –
Referências para a formação sobre a construção/constituição da identidade da
identidade do/a professor de Ensino Religioso. Projeto de Pesquisa. Departamento
de Ciências da Religião. Campus de Natal, UERN, 2008a.
BENEVIDES, Araceli Sobreira. As diferenças na constituição dos saberes de
Professores/as de ensino religioso do RN – um olhar sobre o desconhecido. Anais do
Encontro Internacional Texto e Cultura, Fortaleza: UFC, 2008b.
BENEVIDES, Araceli Sobreira. O discurso sobre a prática docente de professores de
ensino religioso: contrastes sobre as experiências atuais. In: I Colóquio Discurso e
Práticas Culturais (DIPRACS), 2009, Fortaleza, p. 1-15. Disponível em:
https://docs.google.com/file/d/0B7qm8b37MKUMZjBhMWRlNjgtODgxOC00ZGY0LTlhO
TUtYzRiZmNhY2I3NWI5/edit?pli=1&hl=en#. Acesso em: 14 mar 2013, 21:15:15.
BENEVIDES, Araceli Sobreira. Identidades de professores de Ensino Religioso –
mapeando os/as profissionais de ER a partir do discurso sobre si mesmos e sobre os
saberes da docência. Relatório Final de Projeto de Pesquisa. Natal: Departamento
de Ciências da Religião, FAPERN/UERN, 2011.
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista
Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, jan./fev./mar./abr. 2002.
BRASIL. Lei n. 9.475, de 22 de Julho de 1997. Dá nova redação ao art. 33 da Lei
n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional.
CATANI, Denice Barbara; BUENO, Belmira A. O.; SOUSA, Cynthia P. de. “O amor dos
começos”: por uma historia das relações com a escola. Cadernos de Pesquisa
Nº111, p. 151-171, dezembro de 2000.
CORTELLA, Mário Sergio. Educação, Ensino Religioso e formação docente. In: SENA.
Luzia (org). Ensino Religioso e Formação Docente: Ciências da Religião e Ensino
Religioso em diálogo. 2. ed, São Paulo, Paulinas, 2007. p.11-20.
FREITAS, Maria Teresa de Assunção. A pesquisa na perspectiva sócio-histórica: um
diálogo entre paradigmas. Texto da Sessão especial – 26ª ANPED, 2003.
FREITAS, Maria Teresa de Assunção. A abordagem sócio-histórica como orientadora da
pesquisa qualitativa. Cadernos de Pesquisa, n. 116, p. 21-39, julho/2002.
FÓRUM NACIONAL PERMANENTE DO ENSINO RELIGIOSO. Parâmetros Curriculares
Nacionais: Ensino Religioso. 9ª ed. São Paulo: Mundo Mirim, 2009.
GARCÍA, Carlos Marcelo. Estrutura conceptual da formação de professores. In:
GARCÍA, Carlos Marcelo. Formação de professores: para uma mudança educativa.
Porto Editora. Portugal, 1999. p. 15-68.
GRESCHAT, Hans-Jürguen. O que é ciência da religião? Tradução de Frank Usarski.
São Paulo: Paulinas, 2005.
KRAMER, S. Entrevistas coletivas uma alternativa para lidar com a diversidade,
hierarquia e poder na pesquisa em Ciências Humanas. In: FREITAS, M. T; JOBIM e
SOUZA, S; KRAMER, S. Ciências Humanas e pesquisa: leitura de Mikhail Bakhtin.
São Paulo: Cortez, 2007. p.11-25.
LONGHI, Miguel. O Ethos no currículo de ensino religioso. Dissertação (Mestrado
em Educação). Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2004.
MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Pesquisa Interpretativista em Linguística Aplicada: a
linguagem como condição e solução. D.E.L.T.A., Vol. 10, Nº 2, 1994, p. 329-328.
NAGAMINE, José Massafumi. Licenciatura. In: SENA, Luzia (org.). Ensino Religioso e
Formação Docente: Ciências da Religião e Ensino Religioso em Diálogo. 2. ed. São
Paulo: Paulinas, 2007. p.79-90.
PASSOS, João Décio. Ensino Religioso: mediações epistemológicas e finalidades
pedagógicas. In: SENA, Luzia (org.) Ensino religioso e formação docente: ciências
da religião e ensino religioso em diálogo. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2007. p. 21-45.
PIMENTA, Selma Garrido. Formação de professores: identidade e saberes da docência.
In: PIMENTA, Selma garrido (org.). Saberes pedagógicos e atividade docente. 6º
ed. São Paulo: Cortez, 2008. p. 15-34.
SILVA; Valdicley E. da; BENEVIDES, Araceli S.. Do Ensino de Religião ao Ensino
Religioso – rememorando as trajetórias docentes em Natal Título. Anais Seminário
Epistemológico de Estudo de Religião – 02: espiritualidade e vida social. 2012b.
p. 1-15.
SILVA; Valdicley E. da; BENEVIDES, Araceli S.. A pesquisa sobre o percurso e os
saberes da docência em Ensino Religioso. In: Anais VIII Salão de Iniciação
Cientifica. I Encontro de Pesquisa e Pós-Graduação. Mossoró, 2012c, p. 384 –
391.
SOUZA, Elizeu Clementino de. Modos de narração e discurso da memória:
biografização, experiência e formação. In: PASSEGGI, Maria da Conceição; SOUZA,
Elizeu Clementino. (Auto)Biografia: formação, territórios e saberes. Natal, RN:
EDUFRN. São Paulo: Paulus, 2008. p. 85-100.
USARSKI, Frank. Ciência da Religião: uma disciplina referencial. In: SENA, Luzia
(org.). Ensino religioso e formação docente: Ciências da Religião e Ensino
Religioso em diálogo. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2007. p. 47-62.
COM SEU HABITO FRANCISCANO PELAS RUAS DE ARACAJU: Trajetória biográfica
do frei Michelângelo Serafini
RESUMO
Em 2013, Frei Michelângelo completou 104 anos, o que deixa claro que haveria
muito de sua vida para se contar. Diante disto, faz-se necessário esclarecer que muitas
informações não estão contidas neste trabalho, porém não há a pretensão de esgotar
toda a existência do biografado, sendo este o resultado de uma seleção de apenas
alguns aspectos de sua vida, emblemáticos para o entendimento sobre a construção da
imagem do frade enquanto religioso venerado como santo ainda em vida. Pois, como
explica Borges (2006) “(...) não há outra forma para narrar uma vida a n ão ser
selecionando o que nos parecer significativo” (p. 220).
No entanto, este trabalho não se propõe a ser uma narrativa hagiográfica1, uma
vez que não procura simplesmente enaltecer a vida de um “santo” para que esta sirva
de exemplo, mas sim realizar uma breve narrativa biográfica com a pre tensão de situar
o indivíduo no contexto em que está inserido. Pois, como afirma Certeau (2010): “A
vida de santo se inscreve na vida de um grupo, Igreja ou comunidade. Ela supõe que o
*Universidade Federal de Sergipe (UFS). Licenciada em História. Especialista em Docência do Ensino Superior.
Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente.
1
A Hagiografia é um gênero literário que privilegia os atores do sagrado. Ex.: mártires, santos
patronos, fundadores de uma abadia, fundadores de ordens religiosas ou de uma igreja (Cf.
CERTEAU, 2010).
2
grupo já tenha uma exist ência. Mas representa a consciência que ele tem de si mesmo, associando uma
imagem a um lugar.” (CERTEAU, 2010, p. 269).
A missão estava posta e eis que não seria das mais fáceis, uma vez que estava
tudo por fazer. A construção do convento, do santuário, da escola que os frades viriam a
construir, entre outros serviços que passaram a ser prestados à comunidade no decorrer
dos anos.
Os frades capuchinhos que vieram para Aracaju pertenciam (e assim é até hoje) à
Província da Ordem Capuchinha da Bahia e Sergipe, Nossa Senhora da Piedade. Segundo
Peccorari (2003) a atuação destes missionários pode ser dividida em quatro momentos,
de acordo com o tipo específico de pastoral exercido ao longo de sua história.
O primeiro vai de 1642 a 1703 com a chegada dos primeiros frades ao Brasil, em
Pernambuco. Estes capuchinhos eram franceses e substituíram os Jesuítas na catequese
indígena em aldeamentos do médio e baixo São Francisco.
Falar da construção da Igreja São Judas Tadeu, é falar dentre outras figuras
humanas, de um homem em especial. Seu nome de batismo é Serafini Césare, nasceu
em Cíngoli (Itália) a 30 de outubro de 1908 e aportou no Brasil em 1935. Para os
sergipanos, ele é simplesmente o frei Miguel.
Frei Michelangelo Serafini – como passou a chamar-se quando se tornou frade –
chegou ao Bairro América em 1961 para auxiliar outro frade capuchinho que já se
encontrava na referida missão, frei Faustino de Ripratansone, também italiano.
O então prefeito da cidade, José Conrado de Araújo e o governador do estado
Luís Garcia eram simpáticos à presença dos capuchinhos em Aracaju, tendo contribuído
no início das construções. No entanto, a participação da comunidade foi bastante efetiva
para a construção do templo. Foram diversas campanhas, leilões e rifas para conseguir
recursos para a construção do santuário, além dos pedidos que os frades faziam
diretamente aos moradores, a exemplo do relato abaixo:
3CASSAJUTA – Centro de Assistência Social São Judas Tadeu. Reconhecido como utilidade
pública estadual pela Lei 1197/63 de 09/10/1963. Utilidade p ública municipal pela Lei 215/71 de
18/11/1971; Utilidade pública federal pelo Decreto 71209 de 05/10/1972. C ertificado como
Entidade de Fins Filantrópicos em 1974. Sede rua Bolívia S/N, anexo ao Convento São Judas
Tadeu.
4
UM FRADE CENTENÁRIO
Uma das características mais marcantes deste religioso era o fato de estar
sempre caminhando pelas ruas da cidade, atendendo enfermos, abençoando casas
comerciais, ouvindo confissões na Catedral Metropolitana, entre outras atividades.
Aquela imagem do frade de longa barba branca com seu hábito franciscano pelas ruas da
cidade ficou marcada na me mória dos aracajuanos, que vêem nele, além de exemplo de
santidade, ícone do ser missionário.
Por ocasião do seu aniversário de 99 anos, foi-lhe prestada uma homenagem na
sessão de 31 de outubro de 2007 da Câmara dos Deputados, em que as palavras de um
dos membros daquela casa são bastante representativas da imagem que a população
aracajuana tem com relação ao frade. “A sua figura de barbas brancas, curvada pela
idade, o seu jeito humilde e serviçal, o caminhar lento e seguro, a simplicidade de
gestos, tem atraído um incomensurável número de admiradores e amigos, tanto entre
os que mais possuem, quanto entre os mais carentes da comunidade.” 5
Frei Miguel não é o primeiro religioso capuchinho a ter sua imagem cristalizada
no imaginário popular como um santo venerado ainda em vida. Miranda (2002) aponta
4
“Mas foi pela generosidade de toda a população que pode ser aumentado o Convento, o qual
em 9 de abril de 1962, foi lan çada a pedra fundamental. O trabalho de constru ção, porém, foi
iniciado somente em 23 de setembro do ano seguinte e continuaram lentamente, Frei Inacio de
Loyola buscava de porta em porta obter ajuda da popula ção. Em 7 de mar ço de 1964 foi
lançada a pedra fundamental da constru ção da igreja, que se deu sob um brilhante desenho do
padre Michelangelo Serafini e do padre Berniamino Cappelli.”
5
MACHADO faz homenagem a Frei Miguel. Disponível em:
http://www.deputadomachado.com.br/imprimir.php?id=14&tipo=noticia. Acesso em: 26 jun 2010.
5
para dois religiosos, chamados “frades barbados italianos” cuja notoriedade junto a
população merece destaque: Frei Caetano de Messina no século XIX e Frei Dami ão de
Bozzano no século XX.
Sobre este último o autor afirma: “Frei Dami ão (...) foi o ultimo representante
desses ‘frades barbados italianos’ que, segundo o dito popular, ‘o Diabo tinha mais medo
deles que de outros religiosos” (MIRANDA, 2002, p. 206). No entanto, Sergipe tem
também seu representante deste tipo de religioso.
Estes missionários, especialmente Frei Dami ão6, ainda são lembrados pelo povo
das cidades por onde passaram, pelos sermões proferidos nas Santas Missões populares
pelo Nordeste do país7.
6 Nascido de família camponesa, Frei Damião foi soldado na Primeira Guerra Mundial e, em
seguida, participou das tropas italianas que ocuparam uma região da Croácia. Após prestar o
serviço militar retornou ao convento e ao concluir os estudos e ser ordenado foi enviado para o
Nordeste do Brasil, percorrendo-o em todas as direções (cf. ANDRADE, 1992).
7Os sermões das Santas Missões eram normalmente voltados para os seguintes temas: perigos
dos pecados da carne; os castigos divinos; a morte; o juízo final; o inferno, etc. (MIRANDA, 2002)
6
8Texto contido na web Page na Arquidiocese de Aracaju, onde constam os feitos de Dom José
Vicente Távora. em: http://www.arquidiocesedearacaju.org/?pg=bispoanterior_domjosetavora.
Acesso em: 26 jun 2010.
7
Por ocasi ão do seu aniversário de 101 anos, em 2009, o portal Infonet fez alusão
à data:
(...) Mas é na comunidade do Bairro América em que Frei Miguel
é considerado o pai, protetor, conselheiro, o que acode os mais
necessitados, os aflitos, os doentes. Ele já não vai mais até as
residências e os hospitais levar suas palavras de conforto, mas
continua agindo como um anjo protetor, abençoando e acolhendo a
todos na Igreja dos Capuchinhos (SOUZA, 2009).
9
Disponível em: http://www.jornaldacidade.net/noticia.php?id=17549. Acesso em: 13 jul 2010.
10
Disponível em: http://www.jornaldacidade.net/noticia.php?id=16563. Acesso em: 13 jul 2010.
8
direcionadas. Esta devoção instantânea já era esperada, uma vez que o mesmo era
considerado por muitos um santo ainda em vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A começar pelos adjetivos a ele atribuídos – venerável, humilde, guia, anjo, pai,
protetor, “o confessor”, conselheiro, “santo vivo” – percebe-se o peso que a figura do
religioso possuía e que perdura após seu falecimento . Em vida, era muito visitado por
personalidades políticas do estado, tendo sempre cultivado a simpatia das famílias mais
influentes de Sergipe, cujos membros podiam ser vistos corriqueiramente nas
dependências da Igreja, na busca de bênçãos, confissões e aconselhamentos.
Num primeiro olhar voltado sobre a veneração que a população do Bairro América
nutre por Frei Miguel, poder-se-ia concluir que isto se dá pelo fato de se tratar de uma
comunidade periférica. Pela condição da maioria de sua população ser de baixa renda,
estariam mais suscetíveis a valorização da pessoa do frade por dois motivos: o primeiro
seria o próprio fato deste ser uma autoridade religiosa local; o segundo s eria suas obras
caritativas.
No entanto, observa-se que esta extrema admiração não parte apenas dos
moradores do bairro, nem somente de pessoas menos favorecidas economicamente.
Empresários, políticos e membros das mais variadas classes sociais buscam o frade
constantemente, sendo que muitas destas pessoas tinham frei Miguel como conselheiro e
confessor.
Isto nos remete ao texto anteriormente citado onde o autor afirma que: “Não
tem partido que lhe faça mudar sua forma de agir. É apartidário (...)” de fato, o frade
não apóia abertamente nenhum partido político, no entanto, cultivava a simpatia das
famílias de maior tradição política do estado. Assim sendo, percebe-se que a influência
que o frade conquistou ao longo de sua história desde a chegada a Aracaju, deve-se a
fatores que vão além da situação socioeconômica dos moradores do Bairro América.
Seu caráter acolhedor, sempre disposto a ouvir os que o procura vam, seja para
confissões, benção de objetos e bens diversos, celebrações e etc. Possuía grande
facilidade de transitar por diversos ambientes, desde as casas dos paroquianos mais
humildes aos recintos de grandes empresários e gestores de órg ãos públicos, certamente
devido ao respeito que a sociedade aracajuana lhe legou.
Percebe-se, por fim, que uma imagem ficou cristalizada no imaginário dos
aracajuanos: a de um frade italiano, de longa barba branca, caminhando a pé com seu
habito franciscano pelas ruas de Aracaju.
REFERÊNCIAS
9
AZZI, Riolando. Do amparo aos indigentes ao Serviço Social. IN.: ____; GRIJP, Klaus
van der. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo.
Terceira época (1930-1964) Tomo II/3-2. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
CRUZ, Carlos Rodrigues Porto da. O tempo de um anjo. Jornal da Cidade. Aracaju, 30
out 2008. Disponível em:
http://www.jornaldacidade.net/noticia.php?id=17549.net/noticia.php?id=17549. Acesso
em: 13 jul 2010.
PECCORARI, Francesco. As missões populares dos capuchinhos nos sertões baianos nos
fins do século XIX. Cadernos UFS – História, São Cristóvão, v. 4, n. 5, 2003. p. 53 –
68.
TELES, Edvaldo Santos Rocha. A primazia urbana de Aracaju (1940-1970). In.: ARAÚJO,
Hélio Mário de. (Org.) O ambiente urbano: visões geográficas de Aracaju. São
Cristóvão: UFS, 2006.
SITES CONSULTADOS:
10
http://www.arquidiocesedearacaju.org/?pg=bispoanterior_domjosetavora
UM PRECURSOR DO PROTESTANTISMO EM MOSSORÓ: JOSÉ DAMIÃO DE
SOUZA MELO E A PROPAGAÇÃO DA DOUTRINA PROTESTANTE NAS PÁGINAS
DO JORNAL MOSSOROENSE.
Introdução
que nos forneceu mais informações foi Raimundo Nonato, em sua História Social da
Abolição em Mossoró. Câmara Cascudo, no seu livro Notas e Documentos para a
História de Mossoró, traz alguns complementos.
Português nascido em Aveiro, Souza Melo é descrito como “poeta, jornalista,
sacerdote e apóstata” (NONATO, 1983, p.71). O autor cita um relato de Romualdo
Galvão, registrado pelo escritor João Batista Galvão, segundo o qual Souza Melo era
padre em Portugal, quando abandonou o sacerdócio e migrou para o Brasil. Isso se
deu no ano de 1862. Não nos foi possível precisar quando e onde Souza Melo se
converteu ao protestantismo, porém uma fonte situa esse acontecimento antes da
vinda do missionário Wardlaw ao Ceará, no ano de 1881 (ALENCAR, 2005, p. 88).
No Brasil, teve uma vida itinerante, residindo nas cidades de Mossoró, Acari,
Jardim do Seridó, Fortaleza e Manaus. Em Mossoró, instalou uma casa comercial no
ano de 1866 (CASCUDO, 2010, p. 127).
No entanto, suas atividades não se restringiam ao comércio. Foi um dos
fundadores, juntamente com Jeremias da Rocha Nogueira e Ricardo Vieira do Couto,
do jornal Mossoroense, cuja primeira edição data de 17 de outubro de 1872. Também
foi um dos fundadores da Loja Maçônica 24 de Junho, no ano de 1873.
Os memorialistas supracitados apresentam Souza e Melo como um homem
comprometido com ideais humanitários e progressistas, especialmente com o
movimento abolicionista. “Jornalista dos mais brilhantes, sempre esteve empenhado
nas campanhas das grandes idéias da fraternização humana (...). Grande exemplo de
estrangeiro-brasileiro de idéias novas e de espírito avançado, que deixou seu nome
incluído na galeria dos abolicionistas mossoroenses, em cuja campanha foi um
militante de primeira linha.” (NONATO, 1983, p.221).
Esse registro memorial sobre Souza Melo classifica-o como integrante do grupo
de homens esclarecidos que lutaram contra o atraso que a Mossoró escravocrata,
provinciana e conservadora mantinha em relação ao mundo civilizado. Câmara
Cascudo não se furtou de emitir seu juízo de valor acerca do ex-sacerdote português
acrescentando, porém, um dado a respeito de sua confissão religiosa. “Homem de
inteligência clara, poeta, um dos jornalistas históricos de Mossoró (...). Foi um dos
animadores da Religião Reformada em Mossoró. Sua participação no movimento
abolicionista foi direta e alta”. (CASCUDO, 2010, p. 221).
Consideremos, agora, as interações sociais de Souza Melo. Seu pertencimento
à Maçonaria e envolvimento com a causa abolicionista, inclusive escrevendo para o
jornal cearense O Libertador, davam-lhe acesso a uma rede de relacionamentos que
possibilitava uma difusão de suas convicções, incluindo sua fé protestante.
3
Quanto aos seus contatos com o missionário Wardlaw, vale salientar que Souza
Melo recepcionou o norte-americano em sua chegada à Fortaleza e provavelmente fez
o convite para que o mesmo estivesse presente em Mossoró no dia da libertação
oficial dos escravos (NONATO, 1983, p. 144).
Junte-se a esses fatos a militância de Souza Melo no jornal O Mossoroense e
assim, temos elementos para levantarmos uma hipótese. José Damião de Souza Melo
desempenhou a função de precursor do protestantismo em Mossoró. Servindo-se de
suas relações interpessoais, de seu lugar social, facilitou a atuação evangelizadora do
pastor Wardlaw, permitindo-lhe o trânsito entre setores elitizados mais predispostos a
renegarem a religião tradicional, minimizando a rejeição à mensagem protestante,
enfim, criando condições para a conquista de novos seguidores.
Não se deve ignorar que nos primeiro anos da década de 70 do século XIX, a
cena política e religiosa do Brasil estava agitada pelos debates e embates provocados
pela Questão Religiosa. Em dezembro de 1872, o bispo D. Vital lançou seu ultimato
contra a Irmandade do Santíssimo Sacramento, em Pernambuco, intimando-a para
excluísse os maçons da agremiação, a menos que eles abjurassem a Maçonaria
(BARROS, 2004, p. 395). Tal fato se deu dois meses após a fundação do jornal
Mossoroense. Em 1873, os maçons de Mossoró fundaram sua própria Loja,
regularizando-a no ano seguinte.
Quando da oficialização da Loja, publicou-se no “Mossoroense” um discurso
proferido na ocasião. Nele, faz-se uma apologia da Maçonaria diante da oposição
movida pela cúpula da Igreja Católica. Um trecho nos permite dimensionar a
intensidade do repúdio que os redatores maçons do jornal manifestavam pelos seus
adversários. “O inimigo é grande, o inimigo é forte e não poupa meios para conservar
suas fontes pecuniárias, as vítimas da superstição e da cegueira, a pobre humanidade
emfim sepultada no charco immundo d’uma ignorância eterna. Ente supremo, luz,
luz”. (MOSSOROENSE, 28 de junho de 1874, p. 1).
Na ótica do autor, as posições na batalha entre Maçonaria e Igreja Católica
estavam bem demarcadas. Eles, os maçons, eram portadores da luz, do
conhecimento, do esclarecimento. Ao contrário, seus oponentes promoviam as trevas,
5
Montanha. O quarto não está assim subscrito, mas como é um ataque ao dogma
católico do purgatório, não o descartamos.
Dos artigos do Velho da Montanha, dois têm na sua epígrafe versículos bíblicos.
Todos se dirigem ao povo, são intitulados missão abreviada e se iniciam com o
vocativo meus caros irmãos ou meus dilectíssimos irmãos, lembrando aspectos de um
sermão.
Os textos foram publicados em edições do jornal do ano de 1874. Eles serão
apresentados e discutidos de acordo com a ordem cronológica em que foram
publicados. O primeiro artigo é aberto com uma sentença em latim e a sua respectiva
tradução, que é se acompanhaes os jesuitas, não ides com Jesus. Os principais
assuntos comentados pelo autor são o dogma da infalibilidade papal e a separação
entre Igreja e Estado.
Eis-me de novo entre vós para mais uma vez do alto desta
tribuna dizer-vos as palavras da verdade e convencer-vos do
8
Atentemos para o modo como o autor vê a sua missão. Ele está acima, como
um mestre a falar de sua tribuna, dotado da verdade, pronto a iluminar as crédulas
almas que estão na escuridão e no erro. Não é difícil deduzirmos quem são os
espíritos malignos aos quais se refere o sábio da montanha; eram os jesuítas.
O autor reforça o argumento liberal da não ingerência do Estado e da Igreja
nas funções peculiares de cada instituição; para muitos, esta era a única solução para
os conflitos da Questão Religiosa (VIEIRA, 1980, p. 285). Seguindo uma tradição
doutrinária que remonta à Reforma Protestante do século XVI, ainda nos dias de
Martinho Lutero, o jornalista não considera o casamento como um sacramento 9 ,
classificando-o como um contrato civil, sujeito às circunstâncias mundanas, devendo
ser regulamentado pelo Estado.
Os protestantes e seus aliados também pressionavam pela instituição do
casamento civil, visando à plena legalização da condição dos casais protestantes no
Brasil. O que havia, conforme já mencionamos, era a lei promulgada em 1861 que
reconhecia o casamento de protestantes, desde que fosse realizado por um pastor
credenciado como tal junto ao governo brasileiro.
Porém, Vieira aponta algumas limitações dessa lei. Nem sempre havia um
ministro protestante disponível, especialmente nas colônias de imigrantes mais
isoladas dos centros urbanos. Para os liberais, ainda que legalizado, o casamento dos
protestantes e de outros acatólicos estava numa condição inferior, servindo apenas
para legalizar questões de propriedade e de herança. Além disso, havia o temor de
que as restrições religiosas no Brasil contribuíssem para a diminuição do fluxo
imigratório de protestantes para o Brasil (VIEIRA, 1980, pp. 226-227).
Sobre o texto que discorre a respeito do dogma do purgatório 10 , pinçamos
alguns fragmentos que nos permitem concluir que, ainda que não tenha sido escrito
pelo Velho da Montanha, o foi por alguém bastante alinhado com o protestantismo.
9
Esse discurso denota que o seu autor militava ativamente contra o catolicismo
e os valores que, na sua visão, estavam a ele interligados. Manifesta nitidamente
concepções de cunho protestante. A principal razão para não se crer na veracidade do
purgatório é a ausência de referência direta do texto bíblico sobre sua existência,
demonstrando o princípio protestante segundo o qual o texto sagrado está acima da
tradição. O autor arremata seu argumento afirmando que a Bíblia detém o verdadeiro
atributo de ser infalível em questões de religião. Ora, é uma contraposição ao dogma
da infalibilidade papal.
A auto-imagem do protestantismo em fins do século XIX pode ser aqui
vislumbrada. Seus ministros eram os portadores de uma mensagem que se coadunava
com os novos tempos da razão, do predomínio das luzes. Sua missão consistia em
libertar os povos do engano, oferecendo-lhes em troca a verdade evangélica. Nesse
raciocínio, o dogma do purgatório representava um fardo, um resquício do medievo a
ser superado. O autor também manifesta uma visão triunfalista quanto à vitória do
Evangelho, ou seja, do protestantismo sobre o catolicismo, classificado como um
neopaganismo.
O último sermão proferido pelo Velho da Montanha que iremos analisar é
uma apologia do protestantismo, elevando-o à condição de verdade única, suprema e
universal.
Considerações Finais
11
1
Graduando em História (Licenciatura) pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN),
Campus Avançado de Assú.
2
Este artigo foi elaborado com base no terceiro capítulo da monografia de graduação Incursões protestantes
na cidade de Mossoró: a construção de um espaço de diversidade religiosa (1874-1885), defendida junto ao
Curso de História da Universidade do Estado do Rio Grande, Campus Avançado de Assú.
3
O missionário fundou uma igreja presbiteriana na cidade de Fortaleza no ano de 1882. No ano seguinte,
realizou sua primeira visita à cidade de Mossoró. Como resultado do seu trabalho evangelizador, organizou
em 1885 uma igreja presbiteriana na cidade de Mossoró.
4
O cerne do dogma consiste na afirmação de o Papa, enquanto chefe maior da Igreja e ocupante do trono
apostólico, é infalível nas suas declarações quanto à fé e a moral cristãs. Nessa condição, sua autoridade é
tida como inquestionável.
5
Sobre a razão do uso desse pseudônimo podemos conjecturar, ao menos acerca do segundo termo. No artigo
já citado, o autor diz estar “uzando da palavra divina da imprensa” e anuncia seu objetivo: “(...) daqui desta
montanha, vou publicamente fallar, soltando aos quatro ventos as mais indestructiveis verdades”. A
montanha pode significar, então, a condição do jornal como um observatório dos acontecimentos, uma torre
de vigia, um baluarte da verdade.
6
Giovanni Maria Mastai-Ferreti governou a Santa Sé entre 1848 e 1878. Seu pontificado foi marcado pela
reação da Sé romana às idéias da modernidade iluminista, num processo conhecido como romanização.
7
Com propostas republicanas e anticlericais, essa agremiação se diferenciava do Grande Oriente do
Lavradio, este mais afeito à filantropia do que às reformas políticas, mais simpático à Monarquia do que à
República.
12
8
Mesmo não sendo a única ordem religiosa ligada ao ultramontanismo no Brasil, pois havia também
lazaristas e capuchinhos, o termo jesuíta passou a designar genericamente todos os religiosos ultramontanos.
Segundo David Vieira, tal expediente era usado pelos adversários dos ultramontanos para direcionar contra
estes as leis de expulsão anteriormente aplicadas aos jesuítas (VIEIRA, 1980, pp. 36-37).
9
A doutrina católica sobre os sacramentos, baseada na teologia de Agostinho (354-430 d. C), define-os como
meios de transmissão da graça divina, suficientes e eficazes em si mesmos, independente das ações de quem
os receba. Para Lutero, os sacramentos legítimos são aqueles explicitamente ordenados nas Escrituras, e
somente o batismo e a Eucaristia (ou Ceia do Senhor para alguns protestantes) se enquadram nesse critério.
Além disso, os cristãos que os recebem devem participar ativamente com sua fé, a fim de que os sacramentos
sejam válidos (OLSON, 2001, pp. 270, 402-403).
10
A doutrina do purgatório foi sistematizada pelo papa Gregório I, que governou a Igreja Romana entre 590
e 604 d.C. O purgatório é entendido como o estado ou lugar no qual as almas dos cristãos são purificadas dos
pecados menos graves, chamados de veniais, antes de serem conduzidas ao Juízo Final (LATOURETTE,
2006, p. 457).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FONTE
Introdução
Nas últimas décadas do século XX as biografias de indivíduos tanto
“desconhecidos” ou “marginalizados”, quanto de personagens ilustres retornaram ao
cenário historiográfico. As críticas surgidas ao estruturalismo e as mentalidades
permitiram o ressurgimento dos indivíduos, a discussão sobre a possibilidade de
liberdade individual, seu reflexo na sociedade e na história. Candido Mendes de
Almeida é um importante personagem do império, mas apesar de ilustre no seu tempo
é pouco conhecido e pesquisado pela historiografia.
O reduzido número de trabalhos sobre Cândido Mendes possibilita a utilização
de técnicas da micro-história, mesmo trabalhando com um indivíduo que na sua época
era um personagem público, e ao mesmo tempo possibilita a elaboração de uma
“biografia-problema”, muito utilizada para as atuais biografias de personagens
ilustres, como o fizeram historiadores dos Annales e da História Social Inglesa. O fato
de Candido Mendes de Almeida ser um personagem ilustre no seu tempo, apresenta a
pesquisa uma ulterior problemática ao se tentar traçar sua biografia: ele já foi objeto
de uma “construção” da sua própria imagem a partir do seu tempo e também objeto
de “construção” da sua memória, por meio dos seus biógrafos, homenagens e elogios
fúnebres. Atualmente venho pesquisando aspectos bibliográficos de Cândido Mendes,
no entanto, nesta comunicação, pretendo ressaltar a sua importante contribuição
intelectual, e até mesmo política, à causa ultramontana. Mas antes disso, temos de
conhecer um pouco de sua biografia e de seu tempo.
A vida de Cândido Mendes percorre importantes fases da história do Brasil
Império, até 1881, ano do seu falecimento. Sua vida pública foi testemunho de
importantes fatos políticos e eclesiásticos tais como: o regresso conservador; a
consolidação da Monarquia e início da sua crise, o controle do episcopado por parte
dos ultramontanos; a tentativa de retomada de autoridade sobre a igreja no Brasil,
por parte da Santa Sé; os conflitos entre os poderes secular e espiritual na década de
60, envolvendo a questão matrimonial, as ordens religiosas, os benefícios
eclesiásticos, a formação do clero; e o posterior acirramento desse conflito na Questão
Religiosa e suas conseqüências.
Todos os trabalhos sobre Candido Mendes de Almeida, até o momento
publicados, apresentam um homem sem fratura, integro, sem contradições, linear na
sua conduta moral, política e intelectual. Todos foram produções encomendadas por
ocasiões comemorativas, relembrado suas morte ou suas obras, ora pelo Instituto
Histórico Geográfico Brasileiro (Sá Vianna, 1918), ao qual ingressou nos últimos anos
de vida, ora por seus descendentes (Villaça, 1981), ora pelo Senado (Rodrigues,
1982).
Tais trabalhos, todavia, são lacunares, demonstrando muito mais um intento
laudatório que crítico. Não são uma produção biográfica problematizada. As pesquisas
sobre sua vida, principalmente antes do sucesso na política e no campo religioso, vêm
demonstrando um homem muito mais dinâmico, mais multifacetado, com seus medos
e contradições, ou seja, um Candido Mendes mais de carne e osso.
[...] com uma face imperiosa, cara rapada, tinha linhas solenes
e marmóreas do busto de um César, forma romana, dentro da
qual habitava um espírito rígido de doutrinário representando
no Governo a tradição; era o contrapeso conservador do
ministério de que fazia parte, e onde estava como bloco de
granito constitucional para impedir que os outros ministros se
adiantassem muito pela grande estrada da Revolução, e tinha
por isso essa ampla solenidade de maneiras [...] de quem se
honra em guardar as coisas supremas – a Coroa, a Igreja, os
privilégios [...], a integridade do Império (Sá Viana, 1918, pp.
513-514).
A Igreja católica era a religião oficial de acordo com a Constituição, e por meio desta
Cândido Mendes buscou defendê-la. Perseguiu a “legalidade enquanto expressão e
encarnação de uma vontade que transcendia o próprio homem”, sempre preocupado com a
sobrevivência legal dos valores e proposições do pensamento católico. (Almeida, 1982, t. I,
pp. 12-13).
João Camilo de Oliveira Torres afirma que em todas as manifestações públicas,
parlamentares e nos escritos, Cândido Mendes foi um jurista de altos méritos e
ultramontano consciente. (Torres, 1968, pp. 169-173). A sua adesão ao catolicismo
ortodoxo, colocando-se do lado da Igreja perante o Estado, foi claramente desenvolvida na
sua obra jurídico-histórica intitulada Direito Civil Eclesiástico Brasileiro antigo e moderno em
suas relações com o direito canônico. Esta obra foi elaborada em dois volumes de
aproximadamente 1800 páginas. No primeiro volume, nas primeiras 424 páginas, Cândido
expõe suas teses históricas e jurídicas sobre a formação do padroado e do regalismo
português e brasileiro, elaborando suas críticas ao sistema que, segundo ele, sufocava a
liberdade da Igreja e usurpava-lhe poderes e direitos. No restante dos volumes ele
apresenta a documentação que reuniu, sendo que vários delas se achavam inéditas e
escondidas nos arquivos de Portugal e Brasil.
Cândido Mendes critica severamente todas as medidas da coroa lusitana e brasileira
que prejudicavam a liberdade da Igreja e a autoridade pontifícia, principalmente as
introduzidas com o Código Filipino, com as reformas pombalinas e com a Constituição
brasileira de 1824. Ele não esconde sua posição e a apresenta logo no prólogo, ao acusar o
poder temporal de reduzir, pela legislação vigente, a liberdade e autonomia da Igreja
Católica. (Almeida, 1866, p. 4). As práticas regalistas que ele critica mais ferozmente são o
Beneplácito Régio, o Recurso a Coroa e a implementação do Padroado Civil por meio da
Constituição de 1824, que ele denomina de “padroado a força”.(Almeida, 1966, p. 29).
Cândido Mendes, alinhado com as diretrizes do Concílio de Trento, defende a
autonomia da Igreja como sociedade dentro do Estado, com uma organização executiva,
legislativa e judiciária que lhe é própria. A Igreja não só seria autônoma, como superior ao
Estado. Aproveita a ocasião para criticar a doutrina que ele chama de Galicana e que na sua
opinião se inseriu em Portugal por meio do governo do Marquês de Pombal. Segundo ele tal
concepção defendia que a autoridade teria origem no Direito Divino e que o rei teria
recebido o seu poder diretamente de Deus. (Almeida, 1866, p. 42).
Cândido Mendes, atacando o regalismo e o galicanismo, deixa claro qual seria a sua
posição: o ultramontanismo. Ao diferenciar a sua doutrina daquela que critica, faz questão
de demonstrar que aquela que defende carrega um germe revolucionário. Mas como uma
doutrina conservadora como a ultramontana poderia ser revolucionária? Estes conceitos são
por vezes difíceis de serem utilizados quando se analisam algumas doutrinas em ambientes
diferenciados. O ultramontanismo é sim um movimento de conservação da Igreja a nível
mundial, no entanto, no Brasil ele é novidade, já que o tradicional era a Igreja luso-
brasileira baseada no padroado e no regalismo. No Brasil imperial, no que se refere à
Igreja, quem procura conservar é o governo, é parte da maçonaria, são os membros dos
partidos, que buscavam de todas as formas manter a Igreja sobre o rígido controle do
Estado. Cândido Mendes não teme em demonstrar que os ultramontanos teriam o direito de
se revoltar contra tal governo em casos extremos:
Conclusão
Seria fácil continuar relatando vários outros exemplos de ações que ligam Cândido
Mendes ao movimento ultramontano no Brasil. Seria possível continuar citando trechos de
suas obras ou discursos, ou analisá-los de forma sistemática, todavia, isso seria impossível
num espaço tão pequeno como o de uma comunicação. O objetivo aqui proposto era
demonstrar a vinculação do autor com o ultramontanismo e sua convicção católica, e não
fazer uma exaustiva analise de suas idéias. O que foi até aqui apresentado é mais que
suficiente para demonstrar a sua ortodoxia e a sua importância para o movimento de
reforma ultramontana católica no século XIX.
Bibliografia
Fontes:
Arquivo Secreto Vaticano:
Nunciatura Apostólica – Brasil, Despacho, 17 de outubro de 1873, Cx. 39, fasc. 178,
doc. 60, f. 46r-47r.
Negócios Eclesiásticos Extraordinários (Affari Ecclesiastici Straordinari), Br., Officio, 8
de março de 1881, Fasc. 10, pos. 203, f. 55r-56r.
Bolsista do Programa Nacional de Pós Doutorado – PNPD – CAPES. Inserido no projeto de pesquisa: Testamentos
e hierarquias em sociedades escravistas ibero-americanas (Séculos XVI-XVIII), na UFRRJ.
1
Arquivo Secreto Vaticano, Nunciatura Apostólica – Brasil, Despacho, 17 de outubro de 1873, Cx. 39, fasc. 178, doc.
60, f. 46r-47r.
2
Negócios Eclesiásticos Extraordinários (Affari Ecclesiastici Straordinari), Br., Officio, 8 de março de 1881,
Fasc. 10, pos. 203, f. 55r-56r.
IGREJA E POLÍTICA NA TRAJETÓRIA DE DOM MARCOS ANTONIO DE SOUSA
(1820-1842)
Introdução
O Império brasileiro herdou da antiga metrópole portuguesa uma cultura
política marcada por uma forte imbricação entre as esferas temporais e espirituais,
não podendo prescindir das instâncias eclesiásticas durante o seu processo de
organização e institucionalização. Reflexo disso foi o estabelecimento do Catolicismo
como a religião do Estado por meio da Constituição de 1824, promulgada sob a
invocação da Santíssima Trindade, bem como a participação ativa dos clérigos nos
conflitos que resultaram na emancipação política do Brasil e pleitos que marcaram o
período de transição entre o Reino Unido e o Império (NEVES, 2009; SILVA, 2012;
SOUZA, 2010).
Um dos mais destacados desses clérigos foi Marcos Antonio de Sousa,
deputado eleito às Cortes de Lisboa de 1820 e para a Assembleia Geral e Legislativa
de 1826, o primeiro bispo do Brasil independente, indicado pelo Imperador D. Pedro I
ainda durante aqueles trabalhos legislativos. Ele participou ativamente de importantes
debates na Assembleia sobre a relação que se estabeleceria, a partir da emancipação
política brasileira, entre o Estado e a Igreja. Ficou conhecido na historiografia, por
suas ações no bispado do Maranhão e defesa das prerrogativas da Cúria Romana em
assuntos ligados a religião, e como um dos precursores do ultramontanismo nestes
territórios (SILVA, 2012).
Entendendo que “[...] cada indivíduo é uma síntese individualizada e ativa de
uma sociedade, e uma reapropriação singular do universo social e histórico que o
envolve.” (GOLDENBERG, 2004, 36) é possível, por meio da mediação entre a
trajetória religiosa e política de D. Marcos Antonio de Sousa, e o contexto no qual ele
estava inserido, apreender as mudanças na relação da Igreja com o Estado no
processo de construção do Império no Brasil. Bem como pensar sobre a Reforma
Católica de inspiração tridentina e ultramontana que começou a ser operacionalizada
pelos bispos no Brasil, especificamente no Primeiro Reinado e Regências.
* Graduada em História e Mestra em Ciências Sociais, professor do IFMA – Campus Santa Inês e do
Programa Darcy Ribeiro – UEMA.
1
O Voto de Graças era o discurso oficial que a Assembleia Legislativa formulava e proferia ao Imperador
como resposta da Fala do Trono, que era proferida deste para a Assembleia, na abertura dos seus trabalhos
legislativos [N. A.].
2
O Padroado significava uma troca de obrigações e direitos entre a Igreja e um indivíduo, ou instituição, que
assumia assim a condição de seu padroeiro. O Padroado Régio e a função de padroeiro do Grão-mestre da
Ordem de Cristo foram concedidos e unificados pela Santa Sé na figura do monarca português, o que
implicou em uma série de obrigações entre a Igreja e o Estado, em Portugal e nas suas colônias. Tratava-se
país e a elevação das prelazias de Goiás e Mato Grosso à condição de bispados
(NEVES, 2009; SANTIROCCHI, 2010; SOUZA, 2010).
A primeira resposta de Roma foi a Bula papal Solicita Catholicae Gregis Cura,
que elevou as prelazias de Goiás e Mato Grosso à condição de dioceses, indicando
também a criação e manutenção dos cabidos e seminários, bem como nomeava
vigários capitulares, sendo um estrangeiro, fixando os seus benefícios (SANTIROCCHI,
2010).
Em julho de 1827, a Bula foi examinada na Câmara dos Deputados pela
comissão eclesiástica, composta por clérigos, e pela comissão da Constituição,
composta por laicos, como previsto na Constituição de 1824, no artigo 102. As duas
chegaram a pareceres semelhantes, aprovando a criação, extensões e limites das
dioceses, mas discordando da indicação de seus bispos, bem como da nomeação de
um vigário estrangeiro, julgando sem nenhum efeito as orientações dadas quanto ao
cabido e ao seminário episcopal (Brasil, 1827).
Em defesa da execução de todas as cláusulas previstas na Bula, por não ver
nela ofensa alguma às leis do Império, estando em conformidade total com os
cânones e regras religiosas, D. Marcos se colocou contrário ao posicionamento da
maioria dos integrantes da Câmara, afirmando que “A creação das novas dioceses é
da competência da Sé Apostolica em confomidade da presente disciplina geralmente
recebida em toda igreja catholica.” (BRASIL, 1827,129). Alegou ainda que o
Imperador teria somente o exercício de “[...] um direito annexo ao seu poder de
jurisdição na igreja catholica.” (BRASIL, 1827, 129).
As comissões desaprovaram a concessão do beneplácito completo a referida
Bula alegando que o direito de nomear bispos pertencia ao poder temporal. O parecer
afirmava ainda a falta de jurisdição do Papa para taxar o valor dos benefícios e
determinar a criação de seminários no Brasil, pondo em questão o tradicional
entendimento da origem do Padroado enquanto uma concessão pontifícia. Os clérigos
liberais de tendência regalista sustentavam que o direito do monarca sobre a Igreja no
Brasil advinha da Constituição do Império e ele não deveria requerer nem admitir a
intervenção de um poder externo (BRASIL, 1827).
D. Marcos, não se conformando com o parecer da Câmara, apresentou um voto
separado onde empreendeu a defesa dos direitos da Cúria Romana. O bispo
de um instrumento jurídico que possibilitava um domínio direto da Coroa nos negócios religiosos,
especialmente nos aspectos administrativos, jurídicos e financeiros. Os aspectos religiosos também eram
afetados por tal domínio, pois padres, religiosos e bispos eram também funcionários da Coroa portuguesa no
Brasil colonial. Nesse sentido, religião e religiosidade eram também assuntos de Estado, e vice-versa. No
Império, além do Padroado Régio, a Constituição de 1824 estabeleceu um Padroado civil, submetendo ao
poder temporal toda a instituição eclesiástica católica no Brasil, fonte potencial de diversos conflitos entre a
Igreja e o Estado no século XIX. O fim do regime de padroado no Brasil se deu com a Proclamação da
República em 1889. (SANTIROCCHI, 2010; VIEIRA, 1980).
demonstrou sua fidelidade ao Pontífice Romano ao afirmar a sua primazia em assuntos
ligados à Igreja, por entender que “[...] o poder temporal é inteiramente
independente do espiritual, assim como este daquelle.” (BRASIL, 1827, 128). Afirmou
ainda que de forma alguma a Igreja no Brasil era apartada da de Roma, ao colocar
qual era o lugar do Papa e o do Imperador nessa relação de poder. Considerava o
Papa como o “[...] supremo pastor e centro da unidade catholica.” (BRASIL, 1827,
124), demarcando sua posição de superioridade em relação ao Imperador, pois este
era somente o “[...] padroeiro das igrejas do Brasil.” (BRASIL, 1827, 124).
Em 30 de maio de 1827, o Monsenhor Vidigal conseguiu, em vez da concordata
solicitada pelo governo, a concessão da Bula Pontifícia Praeclara Portugaliae, que
confirmou o Padroado e o Grão-mestrado da Ordem de Cristo no território brasileiro
ao Imperador D. Pedro I e seus descendentes, com todos os direitos com que os
exerciam os reis de Portugal (SANTIROCCHI, 2010). O Imperador, por sua vez, ficava
responsável pela propagação da fé católica e catequização dos pagãos, em especial os
índios brasileiros.
A Bula Praeclara Portugaliae foi enviada para as comissões da Constituição e
Eclesiástica, na Câmara dos Deputados. Desta vez as comissões deram parecer
contrário a todas as suas disposições, manifestando-se contrárias a aprovação do
beneplácito por considerar que ela propunha uma causa injusta (NEVES, 2009;
SOUZA, 2010).
Quanto a esta questão, Santirocchi ressalta que “Havia algumas motivações
menos explícitas para o parecer negativo à bula Praeclara Portugalliae, dado pelas
Comissões, que eram: o conflito entre a Assembleia e o Imperador e as diferentes
opiniões sobre a fonte e limites da soberania da Coroa.” (2010, 74).
Contrário a esse parecer se posicionou novamente D. Marcos, apresentando
outro voto separado onde expôs os motivos de sua discordância. Em defesa da Bula e
da autoridade do pontífice romano afirmou, em sessão da Assembleia, que o Padroado
não era intrínseco à figura do imperante, mas condicionado pela dotação das igrejas,
sustento dos serviços eclesiásticos e expansão da fé (BRASIL, 1827).
Nesse ponto tem-se uma divergência fundamental quanto à compreensão de D.
Marcos, em relação à natureza do Padroado, e a dos demais clérigos que formavam a
Comissão Eclesiástica na Legislatura de 1826. Para os clérigos de maior influência
liberal e regalista, o artigo 5º da Constituição, em si mesmo, já dotava o Imperador
como padroeiro da Igreja no Brasil, sendo interna a autoridade que o investia.
Segundo o bispo do Maranhão, com esse artigo, a nação brasileira havia tomado para
si a obrigação de proteger e sustentar a Instituição, e somente essa situação fazia
com que o Imperador fosse legitimamente investido pelo Papa como padroeiro, posto
que o reconhecimento, a concessão dos privilégios, direitos e títulos seriam externos.
Os limites entre a fidelidade ao Papa e ao Imperador geraram polêmicas e
demonstram uma lógica dúbia, mas pertinente a corrente conservadora católica na
qual o bispo se inseria. Para ele, a relação de complementaridade entre o poder
político e o poder religioso, estando bem demarcados os limites de ingerência de
ambos, era essencial para a defesa das tradições, ordem, hierarquia, comunidade e fé.
Apesar da oposição de D. Marcos, o parecer das duas comissões foi aprovado em 29
de outubro de 1827 (BRASIL, 1827).
Outro aspecto relacionado à religião que ganhou destaque nos da Legislatura
de 1826 foi à crença partilhada, entre os padres deputados, na necessidade de uma
reforma da Igreja no Brasil, visando uma moralização das práticas de leigos e do
clero. No entanto, não havia um projeto comum sobre como essas reformas deveriam
ser conduzidas. Souza (2010) polariza as diretrizes para essa regeneração, nesse
período, em dois grupos: o paulista e o conservador.
Como a maioria dos políticos do período, os padres pertencentes ao grupo
paulista, liderado por Feijó, acreditavam que a religião era a fonte primeira de moral
pública e tranqüilidade do Estado (AZZI, 1992). Mas, devido à situação de despreparo
e imoralidade em que o clero se encontrava, era necessário primeiro reformar a Igreja
e regenerar o corpo clerical para que ele assumisse seu papel de educador do povo.
Esse processo, porém, não partiria da Instituição Eclesiástica, e sim do Estado,
seguindo a tradição regalista do Catolicismo luso-brasileiro (NEVES, 2009).
Os conservadores também demonstraram o desejo de transformação da
religião e da Igreja no Brasil, mas entendiam que cabia à Instituição, e não ao Estado,
a função de pensar sobre as soluções para os problemas que se abatiam sobre a
mesma. Para esse grupo o Estado deveria apenas apoiar a Igreja naquilo que lhe fosse
necessário, visto que, enquanto instituição autônoma, não deveria sofrer ingerências
do poder temporal.
As propostas de reforma apresentadas pelos padres liberais regalistas
encontraram forte resistência por partes daqueles de orientação católica
conservadora, principalmente do Arcebispo da Bahia, D. Romualdo Antonio de Seixas,
e do Bispo do Maranhão, D. Marcos Antonio de Souza, que diversas vezes reagiram e
colocaram obstáculos aos projetos liberais de modernização da religião apresentado
da Assembleia de 1826 (VIEIRA, 1980).
Lutando contra os projetos que tencionavam abrasileirar a Igreja, D. Marcos
empreendeu na Assembleia Legislativa uma enfática defesa das Ordens religiosas,
uma das principais características da atuação de grande parcela dos bispos
ultramontanos no período imperial (VIEIRA, 1980). Quando o deputado Paula e Souza
propôs, na sessão de 17 de maio de 1828, que fosse proibida a admissão e residência
no Império de frades ou congregados estrangeiros de qualquer denominação, instituto
ou hábito, bem como qualquer nova ordem ou corporação religiosa, D. Marcos se
colocou desfavorável a essa proposição, declarando que não entendia nem admitia
que se excluíssem do território os frades estrangeiros pelo motivo de seguirem uma
ordem religiosa e que a catequização dos índios era um elemento que tornava
indispensável à sua presença e atuação no Brasil (BRASIL, 1828).
A ofensiva tridentina sustentada por D. Marcos gerou duras críticas de seus
colegas de deputação, tanto dos leigos quanto dos clérigos, amplamente influenciados
pelo liberalismo e tradicional regalismo luso-brasileiro. Acusaram-no de
inconstitucional, por defender a separação entre o poder civil e religioso e ser
contrário à ingerência do Estado nos assuntos da Igreja; de “jesuitista”, por defender
as ordens religiosas e, por vezes, utilizar o jesuíta Antonio Vieira como exemplo de
conduta clerical; e mesmo de “transmontano”, por afirmar a supremacia do Papa em
assuntos da religião (BRASIL, 1828).
Considerações finais
O espaço da religião e a política no Brasil imperial não eram autônomos,
estavam ligados histórica e culturalmente, bem como por determinações jurídicas,
influenciando-se mutuamente e tornando possível a existência de trajetórias de padres
para quem o duplo pertencimento e a associação entre prática religiosa e prática
política fossem naturais, como a de D. Marcos Antonio de Sousa, que culminou em
conflitos com outros clérigos e com o poder civil.
Utilizando sua posição política como oportunidade de pensar e atuar sobre a
Igreja, apropriando e integrando os preceitos tridentinos de reforma religiosa às suas
condições de possibilidade dentro do sistema de subordinação do Regime do
Padroado, D. Marcos contribuiu para o início de uma nova fase da prática clerical no
Brasil e das relações que o seriam estabelecidas a partir de então entre a Igreja e o
Império. Ações que fizeram o primeiro bispo do Brasil independente ser reconhecido
pela historiografia como um dos precursores do ultramontanismo no Brasil
Fontes
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO MARANHÃO. Acervo da Arquidiocese do Maranhão.
Autos da Câmara Eclesiástica. Autos de Visita Pastoral, caixa 20, 1727-1842.
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO MARANHÃO. Inventário de avulsos (manuscritos),
vol. 1. Secretaria do Governo. Ofícios do bispo diocesano do Maranhão ao Presidente
de Província do Maranhão. 1728 -1850.
BRASIL. 1826 – 1829. Anais da Câmara dos Deputados. Brasília: Câmara dos
Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br>.
COORDENADORIA DO ARQUIVO E DOCUMENTOS HISTÓRICOS. Tribunal de Justiça do
Maranhão. Livros de Registro de Testamento 1840-1842. São Luís.
FARINHA [et al.], Maria do Carmo Jasmins Dias. Guia Geral dos Fundos da Torre do
Tombo: Colecções, Arquivos de Pessoas Singulares, de Famílias, de Empresas, de
Associações, de Comissões e de Congressos. Lisboa: IAN/TT, 2005.
Bibliografia
ALVES, Francisco José. Contribuição à arqueologia de Sergipe colonial. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, n. 34, Sergipe, 2003-2005, p. 39-54.
BEOZZO, José O. (Coord.). História da igreja no Brasil: Segunda Época – século XIX.
Rio de Janeiro: Vozes, 1992.
BLAKE, Augusto Vitorino Alves Sacramento. Dicionário bibliográfico brasileiro. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1883- 1902.
BOTELHO, Joan. Conhecendo e debatendo a história do Maranhão. São Luís: Fort
Gráfica, 2007.
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial. Teatro de
Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2011.
CARVALHO, M. E. Gomes de. Os deputados brasileiros nas Cortes Geraes de 1821.
Porto: Livraria Chardron, 1912.
COUTINHO, Milson. O poder Legislativo do Maranhão (1830-1930). São Luís:
Assessoria de comunicação social da Assembleia Legislativa do Maranhão, 1981.
GOLDENBERG, Mirian. 2004. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em
Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Editora Record.
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 1997.
HAUCK, João Fagundes. A Igreja na emancipação (1808-1840). In: História da Igreja
no Brasil: Segunda Época – século XIX. Rio de Janeiro: Vozes, 1992, p. 7-139.
MARQUES, César Augusto. Dicionário histórico-geográfico da Província do Maranhão.
São Luís: Edições AML, 2008.
MEIRELES, Mário Martins. História da Arquidiocese de São Luís do Maranhão. São Luís:
SIOGE, 1977.
______. História do Maranhão. São Paulo: Siciliano, 2001.
MELLO MORAES, A. J. de. Historia do Brasil-Reino e Brasil-Imperio. Rio de Janeiro:
Typografia de Pinheiro, 1871.
NEVES, Guilherme P. das. A religião do Império e a Igreja. In: O Brasil Imperial. Vol.
1. 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 337-428.
PACHECO, D. Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís:
Departamento de Cultura do Estado – Maranhão, 1968.
SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Os ultramontanos no Brasil e o regalismo do Segundo
Império (1840-1889). Tese (Doutorado em História), Pontifícia Universidade
Gregoriana, Roma, 2010.
SERBIN, Kenneth P. Padres, celibato e conflito social: uma história da Igreja Católica
no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
SILVA, D. Francisco de Paula. Apontamentos para a História Eclesiástica do Maranhão.
Bahia: Typographia de São Francisco, 1922.
SILVA, Joelma Santos da. Por Mercê de Deus: Igreja e Política na trajetória de Dom Marcos
Antonio de Sousa (1820-1842). Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). UFMA, São
Luís, 2012.
SOUZA, Françoise Jean de Oliveira. Do Altar a Tribuna: Os padres políticos na
formação do Estado Nacional brasileiro (1823 – 1841). 2010. 438 f. Tese (Doutorado
em História), UERJ, Rio de Janeiro, 2010.
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História da independência do Brasil. Brasília:
Senado Federal, Conselho Editorial, 2010.
VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo a maçonaria e a questão religiosa no Brasil.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980.
UM PRECURSOR DO PROTESTANTISMO EM MOSSORÓ: JOSÉ DAMIÃO DE
SOUZA MELO E A PROPAGAÇÃO DA DOUTRINA PROTESTANTE NAS PÁGINAS
DO JORNAL MOSSOROENSE.
Introdução
O texto que ora apresentamos está inserido no contexto de uma pesquisa
relacionada ao processo de inserção do protestantismo no Rio Grande do Norte1, mais
especificamente na cidade de Mossoró. Um dos agentes dessa inserção foi o pastor
norte-americano e presbiteriano DeLacy Wardlaw, que também atuou como um dos
pioneiros do proselitismo protestante na então Província do Ceará. 2 No entanto,
concentraremos nosso estudo noutro sujeito e suas interações sociais, políticas e
religiosas.
Num primeiro momento, discorremos sobre o lugar social de José Damião de
Souza Melo, destacando sua vinculação com o movimento abolicionista em Mossoró,
bem como suas relações com a elite liberal da cidade já mencionada. No segundo
tópico, abordamos a propagação de ensinamentos de cunho protestante através de
artigos publicados no jornal Mossoroense. Por meio de inferências baseadas em
indícios internos e externos aos artigos, identificamos Souza Melo como o provável
autor desses textos.
Utilizamos como fontes bibliográficas textos de memorialistas, tanto daqueles
vinculados ao presbiterianismo quanto de autores que elaboraram uma historiografia
oficial de Mossoró, permeada de seus heróis e vultos. Além desses, também nos
baseamos em bibliografia acadêmica em duas categorias: uma de caráter geral, que
nos proporcionou o suporte teórico e metodológico; e no âmbito específico, obras que
tratam mais especificamente do processo de inserção do protestantismo no Brasil e
seus diversos contextos históricos.
*
Elioenai de Souza Ferreira
2
Não se deve ignorar que nos primeiro anos da década de 70 do século XIX, a
cena política e religiosa do Brasil estava agitada pelos debates e embates provocados
pela Questão Religiosa. Em dezembro de 1872, o bispo D. Vital lançou seu ultimato
contra a Irmandade do Santíssimo Sacramento, em Pernambuco, intimando-a para
excluísse os maçons da agremiação, a menos que eles abjurassem a Maçonaria
(BARROS, 2004, p. 395). Tal fato se deu dois meses após a fundação do jornal
Mossoroense. Em 1873, os maçons de Mossoró fundaram sua própria Loja,
regularizando-a no ano seguinte.
Quando da oficialização da Loja, publicou-se no “Mossoroense” um discurso
proferido na ocasião. Nele, faz-se uma apologia da Maçonaria diante da oposição
movida pela cúpula da Igreja Católica. Um trecho nos permite dimensionar a
intensidade do repúdio que os redatores maçons do jornal manifestavam pelos seus
adversários. “O inimigo é grande, o inimigo é forte e não poupa meios para conservar
suas fontes pecuniárias, as vítimas da superstição e da cegueira, a pobre humanidade
emfim sepultada no charco immundo d’uma ignorância eterna. Ente supremo, luz,
luz”. (MOSSOROENSE, 28 de junho de 1874, p. 1).
Na ótica do autor, as posições na batalha entre Maçonaria e Igreja Católica
estavam bem demarcadas. Eles, os maçons, eram portadores da luz, do
conhecimento, do esclarecimento. Ao contrário, seus oponentes promoviam as trevas,
escravizando os povos na ignorância. Luz e trevas correspondem, nessa lógica, à bem
e mal, respectivamente.
5
Dos artigos do Velho da Montanha, dois têm na sua epígrafe versículos bíblicos.
Todos se dirigem ao povo, são intitulados missão abreviada e se iniciam com o
vocativo meus caros irmãos ou meus dilectíssimos irmãos, lembrando aspectos de um
sermão.
Os textos foram publicados em edições do jornal do ano de 1874. Eles serão
apresentados e discutidos de acordo com a ordem cronológica em que foram
publicados. O primeiro artigo é aberto com uma sentença em latim e a sua respectiva
tradução, que é se acompanhaes os jesuitas, não ides com Jesus. Os principais
assuntos comentados pelo autor são o dogma da infalibilidade papal e a separação
entre Igreja e Estado.
Não admira portanto que a chamada Egreja queira também nos escravisar
e aviltar (...) com seu Syllabus, e com sua louca infalibilidade. (...) Como
pois pode-se crer que a fragil humanidade possa ser inerrante e divina?
(...) O poder civil nada tem com as consciencias, os seus codigos não
punem o erro que cada um possa ter no intimo de seu pensamento (...). O
peccado só tem de se haver com a Egreja, o crime com o Estado.
(MOSSOROENSE, 3 de maio de 1874, pp. 1-2).
Atentemos para o modo como o autor vê a sua missão. Ele está acima, como
um mestre a falar de sua tribuna, dotado da verdade, pronto a iluminar as crédulas
almas que estão na escuridão e no erro. Não é difícil deduzirmos quem são os
espíritos malignos aos quais se refere o sábio da montanha; eram os jesuítas.
O autor reforça o argumento liberal da não ingerência do Estado e da Igreja
nas funções peculiares de cada instituição; para muitos, esta era a única solução para
os conflitos da Questão Religiosa (VIEIRA, 1980, p. 285). Seguindo uma tradição
doutrinária que remonta à Reforma Protestante do século XVI, ainda nos dias de
Martinho Lutero, o jornalista não considera o casamento como um sacramento 8 ,
classificando-o como um contrato civil, sujeito às circunstâncias mundanas, devendo
ser regulamentado pelo Estado.
Os protestantes e seus aliados também pressionavam pela instituição do
casamento civil, visando à plena legalização da condição dos casais protestantes no
Brasil. O que havia, conforme já mencionamos, era a lei promulgada em 1861 que
reconhecia o casamento de protestantes, desde que fosse realizado por um pastor
credenciado como tal junto ao governo brasileiro.
Porém, Vieira aponta algumas limitações dessa lei. Nem sempre havia um
ministro protestante disponível, especialmente nas colônias de imigrantes mais
isoladas dos centros urbanos. Para os liberais, ainda que legalizado, o casamento dos
protestantes e de outros acatólicos estava numa condição inferior, servindo apenas
para legalizar questões de propriedade e de herança. Além disso, havia o temor de
que as restrições religiosas no Brasil contribuíssem para a diminuição do fluxo
imigratório de protestantes para o Brasil (VIEIRA, 1980, pp. 226-227).
Sobre o texto que discorre a respeito do dogma do purgatório 9 , pinçamos
alguns fragmentos que nos permitem concluir que, ainda que não tenha sido escrito
pelo Velho da Montanha, o foi por alguém bastante alinhado com o protestantismo.
De facto, desde que essa invenção diabolica se não apoia em texto algum
da biblia, unica autoridade infallivel em materia religiosa, hade evaporar-
se, como sonho monstruoso que é (...). Mas o seculo XIX não pode mais
supportar uma semilhante impostura, e o espirito do Evangelho, que os
seus ministros começão a propagar, hade cedo ou tarde aliviar a pobre
humanidade d’esse fardo horrendo de mentiras. (...) O tempo é chegado; a
palavra do Divino Mestre, interrompida pelos papas e jesuitas hade afinal
faze-se ouvir, e o relâmpago da verdade illuminando o coração das massas
dissipará o fanatismo dos povos e exterminará para sempre as superstições
do moderno paganismo (MOSSOROENSE, 21 de junho de 1874, p. 2)
Esse discurso denota que o seu autor militava ativamente contra o catolicismo
e os valores que, na sua visão, estavam a ele interligados. Manifesta nitidamente
concepções de cunho protestante. A principal razão para não se crer na veracidade do
purgatório é a ausência de referência direta do texto bíblico sobre sua existência,
demonstrando o princípio protestante segundo o qual o texto sagrado está acima da
9
tradição. O autor arremata seu argumento afirmando que a Bíblia detém o verdadeiro
atributo de ser infalível em questões de religião. Ora, é uma contraposição ao dogma
da infalibilidade papal.
A auto-imagem do protestantismo em fins do século XIX pode ser aqui
vislumbrada. Seus ministros eram os portadores de uma mensagem que se coadunava
com os novos tempos da razão, do predomínio das luzes. Sua missão consistia em
libertar os povos do engano, oferecendo-lhes em troca a verdade evangélica. Nesse
raciocínio, o dogma do purgatório representava um fardo, um resquício do medievo a
ser superado. O autor também manifesta uma visão triunfalista quanto à vitória do
Evangelho, ou seja, do protestantismo sobre o catolicismo, classificado como um
neopaganismo.
O último sermão proferido pelo Velho da Montanha que iremos analisar é
uma apologia do protestantismo, elevando-o à condição de verdade única, suprema e
universal.
O que vou dizer-vos, para ser comprehendido, não precisa se não da rasão
natural, e esta o Ser, que creou a vós, aos sabios doutores da Igreja e aos
papas infalliveis, soube-a destribuir com egualdade (...). Não há povo sem
religião porque tambem não há homem que não tenha noções do Ser da
creação (...). Como jà vos disse, meus irmãos, todas as religiões tem o
principio universal e verdadeiro – o conhecimento da divindade (...) em
outra ocasião me ocuparei de mostrar quanto são incomparaveis as sabias
doutrinas com que o divino Mestre, deu-nos a mais sublime das religiões,
que nos aperfeiçoa para o mundo e nos purifica para a eternidade (...). No
entretanto, meus caros e piedosos irmãos, vos recommendo que deixeis de
uma vez as beaticas cartilhas, entupidas de rezas banaes e mal compostas,
que nada podem doutrinar, e fartai vosso espírito, bebendo com os olhos
do entendimento dia e noite a toda hora a todo o instante da única fonte de
sabedoria e de verdade – o Evangelho (MOSSOROENSE, 12 de julho de
1874, p. 1).
Considerações Finais
Como já afirmamos anteriormente, um elemento inesperado com o qual
nos deparamos na pesquisa foi a atuação preparatória de Souza Melo para a
introdução da igreja presbiteriana em Mossoró. Apesar de não podermos
rigorosamente, no sentido cartesiano e científico do termo, identificar o Velho da
Montanha com a pessoa de Souza Melo, propomos que os sinais evidenciados nos
permitem considerar tal relação provável.
Portanto, desejamos fazer dois apontamentos resultantes da nossa pequena e
superficial pesquisa. Primeiro, acreditamos que os produtores da historiografia que
trata acerca do Rio Grande do Norte podem e devem dirigir seus olhares para o estudo
das diversas expressões do protestantismo presentes nesse território, descobrindo
sujeitos e objetos que foram esquecidos pela História oficial e unilateral. Dessa forma,
haverá uma contribuição salutar para a compreensão histórica do fenômeno da
pluralidade religiosa.
A segunda sugestão que aqui fazemos diz respeito a estudos mais
aprofundados sobre a configuração da Questão Religiosa no Rio Grande do Norte,
tendo em vista que uma das dioceses diretamente envolvidas, a de Olinda, exercia
sua jurisdição sobre a província norte-rio-grandense. O nosso trabalho já indicou que
havia em Mossoró um grupo que se posicionava contra as propostas ultramontanas
dos bispos de Olinda e Belém e seus aliados jesuítas. A principal arma da qual esse
grupo dispunha para os embates ideológicos era o jornal Mossoroense. Também não
11
se deve ignorar a presença do elemento protestante nesse contexto, uma vez que dele
participou ativamente (VIEIRA, 1980, p. 377)
1
Este artigo foi elaborado com base no terceiro capítulo da monografia de graduação Incursões
protestantes na cidade de Mossoró: a construção de um espaço de diversidade religiosa (1874-1885),
defendida junto ao Curso de História da Universidade do Estado do Rio Grande, Campus Avançado de
Assú.
2
O missionário fundou uma igreja presbiteriana na cidade de Fortaleza no ano de 1882. No ano
seguinte, realizou sua primeira visita à cidade de Mossoró. Como resultado do seu trabalho
evangelizador, organizou em 1885 uma igreja presbiteriana na cidade de Mossoró.
3
O cerne do dogma consiste na afirmação de o Papa, enquanto chefe maior da Igreja e ocupante do
trono apostólico, é infalível nas suas declarações quanto à fé e a moral cristãs. Nessa condição, sua
autoridade é tida como inquestionável.
4
Sobre a razão do uso desse pseudônimo podemos conjecturar, ao menos acerca do segundo termo.
No artigo já citado, o autor diz estar “uzando da palavra divina da imprensa” e anuncia seu objetivo:
“(...) daqui desta montanha, vou publicamente fallar, soltando aos quatro ventos as mais
indestructiveis verdades”. A montanha pode significar, então, a condição do jornal como um
observatório dos acontecimentos, uma torre de vigia, um baluarte da verdade.
5
Giovanni Maria Mastai-Ferreti governou a Santa Sé entre 1848 e 1878. Seu pontificado foi marcado
pela reação da Sé romana às idéias da modernidade iluminista, num processo conhecido como
romanização.
6
Com propostas republicanas e anticlericais, essa agremiação se diferenciava do Grande Oriente do
Lavradio, este mais afeito à filantropia do que às reformas políticas, mais simpático à Monarquia do
que à República.
7
Mesmo não sendo a única ordem religiosa ligada ao ultramontanismo no Brasil, pois havia também
lazaristas e capuchinhos, o termo jesuíta passou a designar genericamente todos os religiosos
ultramontanos. Segundo David Vieira, tal expediente era usado pelos adversários dos ultramontanos
para direcionar contra estes as leis de expulsão anteriormente aplicadas aos jesuítas (VIEIRA, 1980,
pp. 36-37).
8
A doutrina católica sobre os sacramentos, baseada na teologia de Agostinho (354-430 d. C), define-
os como meios de transmissão da graça divina, suficientes e eficazes em si mesmos, independente
das ações de quem os receba. Para Lutero, os sacramentos legítimos são aqueles explicitamente
ordenados nas Escrituras, e somente o batismo e a Eucaristia (ou Ceia do Senhor para alguns
protestantes) se enquadram nesse critério. Além disso, os cristãos que os recebem devem participar
ativamente com sua fé, a fim de que os sacramentos sejam válidos (OLSON, 2001, pp. 270, 402-
403).
9
A doutrina do purgatório foi sistematizada pelo papa Gregório I, que governou a Igreja Romana
entre 590 e 604 d.C. O purgatório é entendido como o estado ou lugar no qual as almas dos cristãos
são purificadas dos pecados menos graves, chamados de veniais, antes de serem conduzidas ao Juízo
Final (LATOURETTE, 2006, p. 457).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALENCAR, Francisco Alves de (Org.). Igreja Presbiteriana de Fortaleza: 120 anos
transformando vidas. Fortaleza: Nacional, 2005.
BARATA, Alexandre M. A maçonaria e a ilustração brasileira. História, Ciências, Saúde
– Manguinhos, Rio de Janeiro, 1994, p. 78-99. Disponível em: www.scielo.br. Data de
acesso: 22/08/2012.
BARROS, Roque Spencer M. de. Vida religiosa. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de
(Org.) História Geral da Civilização Brasileira: o Brasil monárquico. Declínio e queda
do Império. Tomo II. Vol. 6. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2004.
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar,
2001.
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de
sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
CASCUDO, Luís da Câmara. Notas e Documentos para a história de Mossoró. Mossoró:
Fundação Vingt-un Rosado, 2010.
COSTA, Wiclife de Andrade. A inserção do protestantismo no Rio Grande do Norte. In:
BUENO, Almir de Carvalho (Org.). Revisitando a História do Rio Grande do Norte.
Natal: EDUFRN, 2009.
12
FEITOZA, Pedro Barbosa de Souza. “Que venha o teu reino”: estratégias missionárias
para a inserção do protestantismo na sociedade monárquica (1851-1874). Dissertação
(Mestrado em História), UNB, Brasília, 2012. Disponível em: repositorio.bce.unb.br.
Acesso em 29/o8/2012.
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e história. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
GLÉNISSON, Jean. Iniciação aos estudos históricos. São Paulo: Difusão Européia do
Livro, 1977.
LATOURETTE, Kenneth Scott. Uma história do cristianismo. Vol. I: até 1500 a.D. São
Paulo: Hagnos, 2006.
_____________________________Vol. II: 1500 a 1975. São Paulo: Hagnos,
2006.
NONATO, Raimundo. História Social da Abolição em Mossoró. Mossoró: Edição do
Centenário. Coleção Mossoroense. Vol. CCLXXXV, 1983.
OLSON, Roger. História da Teologia Cristã: 2 000 anos de tradição e reformas. São
Paulo: Editora Vida, 2001.
REILY, Duncan Alexander. História Documental do Protestantismo no Brasil. São
Paulo: ASTE, 1993.
SOUZA, Robério Américo do Carmo. “Vaqueiros de Deus”: a expansão do
protestantismo pelo sertão cearense nas primeiras décadas do século XX. Tese
(Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008. Disponível
em: www.historia.uff.br. Acesso em: 09/01/2012.
THOMAS, Keith. Religião e o Declínio da Magia – crenças populares na Inglaterra,
séculos XVII e XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980.
FONTE
Jornal Mossoroense. 04.10.1873 a 24.01.1874. Coleção Mossoroense Série E
(Periódicos). Volume 3, s.d. Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado.
(Pertence ao arquivo pessoal da senhora Maria Lúcia Escóssia).
O ABACIADO DE D. TIMÓTEO E A DITADURA MILITAR NA BAHIA (1965-
1
1968)
1
Autoria do artigo da mestranda Eva Carvalho dos Anjos, Bolsista da FAPESB, aluna do Programa de
Pós-Graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia.
2
Trecho do texto de Apresentação no site do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil,
denominado "Memórias Reveladas". Disponível em:
http://www.memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1&sid=2
O abaciado de D. Timóteo foi o período em que ocorreram mudanças
importantes na instituição religiosa, a exposição de alguns fatos e eventos
históricos anteriores à sua direção no Mosteiro são importantes, afim de,
compreender posturas e atitudes tomadas por ele enquanto abade. O recuo no
recorte temporal na pesquisa em desenvolvimento é necessário visto que, a série
de episódios corridos na capital baiana entre 1965-1968 tem influência direta dos
anos anteriores.
Após a leitura de algumas obras e entrevistas de pessoas que viveram boa
parte do século XX, se tivesse que defini-lo em apenas uma palavra, seria:
incerteza(s). A primeira metade do século passado foi repleta de ideologias, crises,
revoluções e guerras que produziram grande instabilidade em todo mundo. O
tempo parece ter sido acelerado, a chegada de continuas tecnologias e a expansão
da mídia deram essa sensação às pessoas: de ter vivido tanta coisa em tão pouco
tempo.
Em tempos de contemporaneidade a Igreja Católica, embora permanecesse
unitária, encontrava-se desarticulada, algo que comprometia sua estrutura porque
as ações em prol de avivamento espiritual eram urgentes, contudo o que havia
eram ações isoladas. Inúmeros líderes religiosos católicos levantaram-se na defesa
dos mais pobres, carentes de fé e de justiça social. A pesquisa desenvolvida é
pautada na vida e obra de um abade beneditino, Dom Timóteo, por acreditarmos
que ele representa uma geração, composta de pessoas que vivenciaram boa parte
do século XX e suas transformações.
Pretendemos contribuir para a história social e religiosa da Igreja Católica
escrevendo sobre os atos, a participação social e o ecumenismo de D. Timóteo,
religioso que esteve à frente de alguns movimentos sociais que buscavam apoiar
pessoas que viviam na pobreza na cidade de Salvador, independente da crença ou
posição política. Hoje percebemos que a temática que essa pesquisa aborda é de
grande contribuição para os estudos da História Religiosa Local, uma vez que D.
Timóteo foi um cidadão soteropolitano3, embora tivesse um cargo que o deixava
bastante atarefado com a Ordem da qual fazia parte, se envolveu bastante com os
problemas sociais da cidade que habitou por vinte e nove anos.
A escolha de um objeto de estudo exige predileção e delimitações. Os
estudos sobre a cultura religiosa, especialmente sobre catolicismo e suas
influências na cidade de Salvador na segunda metade do século XX compõem o
cenário escolhido para essa pesquisa. A escolha de um indivíduo para representar
3
D. Timóteo nasceu em 1910 na cidade de Barbacena-MG, título de cidadão soteropolitano foi concedido
em 1987 pela Câmara Municipal de Salvador.
aspirações e inquietudes comuns a inúmeros religiosos de outrora é uma ação
baseada na redução de escala de observação. Este artifício é bastante utilizado
pelos historiadores, visto que “(...) a abordagem micro-histórica se propõe
enriquecer a análise social tornando suas variáveis mais numerosas, mais
complexas e também mais móveis”.4
Com o surgimento dos Annales em 1929, a relação entre o historiador e
suas fontes mudou bastante com o tempo. Novos ventos sopraram a respeito da
escrita do outro, a biografia é um exemplo disso. Nos anos 80 do século passado
surgiram contribuições para novas formas de se encarar temas como excluídos e
personagens comuns. Os autores Carlo Ginzburg e João José Reis, produziram
obras consagradas, consideradas referências baseados no período citado com
destaque para O queijo e os vermes e Domingos Sodré um sacerdote africano,
respectivamente. Os historiadores trabalham com fontes, eles se apropriaram delas
com maestria através de métodos diferentes, abordagens específicas e de uma
escrita ímpar, essas são características de quem desenvolve seus objetos baseados
na Micro-história5.
As relações entre História Religiosa, Micro-história e Biografia são
indispensáveis na trajetória dessa pesquisa, estas correntes historiográficas,
compõem a modalidade de escrita do trabalho em desenvolvimento, é a base
empírica dessa pesquisa historiográfica.
Boa parte dos escritos que foi lido sobre o abade, foram redigidos por
jornalistas muitos deles não fizeram contextualizações adequadas, alguns fatos são
simplesmente narrados, eventos ocorridos no período não foram citados e
depoimentos importantes não foram colhidos . Quando um historiador se propõe a
escrever uma biografia em sua escrita constam as hesitações do personagem,
4
REVEL, Jacques (Org.) Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1998, p.23.
5
REVEL, Jacques (Org.) Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1998.
6
Idem, p.21.
reflexões contra factuais visando o entendimento do mundo através daquele
personagem. Dentro da biografia é necessária a clareza da história do indivíduo,
seu legado, sua representação e seu papel na sociedade. Nesse gênero os
historiadores costumam:
7
BORGES, Vavy Pacheco. Grandezas e misérias da biografia. In: Pinsky , Carla Bassanezi, (org.).
Fontes históricas . — 2ª.ed., Iª reimpressão.— São Paulo : Contexto, 2008.
8
A TARDE, 13 de abril 1964 - Marcha da Família com Deus.
9
Título do Livro: SIMÕES, Solange. Deus, Pátria e Família – As Mulheres no Golpe de 64. Petrópolis,
Editora Vozes, 1985.
Poucos dias após o golpe, o cardeal dom Álvaro
Augusto da Silva oficiava um Te Deum e liderava uma
“Marcha da Família com Deus pela Democracia”, do terreiro
de Jesus até o Campo Grande, como agradecimento a Deus e
aos comandantes militares pela salvação do país da “ameaça
comunista.”10
Em 1965 foi encerrado o Concílio Vaticano II, poucos meses após o primeiro
aniversário do regime militar, o monge Timóteo Amoroso foi eleito septuagésimo
sétimo Abade do Mosteiro de São Bento de Salvador. Um dos motivos para escolha
de D. Timóteo para a direção do Mosteiro de São Bento foi a sua especialização em
liturgia. Foi na sua especialidade que ocorreram as primeiras mudanças. Quando
assumiu a abadia, as missas passaram a ser realizadas em português, substituindo
o latim, e os cânticos em português foram incorporados à celebração das missas,
estas medidas práticas foram orientações do Concílio Vaticano II.
Não é uma tarefa fácil, pensar novas possibilidades e atores que
antecederam o abaciado do beneditino, algo inexplorado pelas biografias
jornalísticas publicadas até então.
10
FERREIRA, Muniz Gonçalves O Golpe de Estado de 1964 na Bahia. Clio, Revista de Pesquisa
Histórica, nº22, 204. Disponível em http://www.fundaj.gov.br/licitacao/observa_bahia_02.pdf Pg. 7.
Acessado 5 de Julho de 2011.
11
ALBUQUERQUE Júnior, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de Teoria
da História. Bauru, São Paulo, Edusc, 2007, p. 60-61
Os arquivos do Mosteiro de São Bento contêm atas, cartas, artigos e
poesias. O arquivo da Cúria da Arquidiocese, os arquivos do Centro de Estudos e
Ação Social – CEAS, instituição jesuíta da qual D. Timóteo pertenceu ao corpo
jurídico, são arquivos que até então não haviam sido explorados. Outra fonte rica
são as entrevistas com pessoas que frequentavam o Mosteiro ou que em algum
momento vivenciaram ao lado do abade eventos importantes na história de
Salvador.
Os novos arquivos e fontes pesquisadas permitem hipóteses e reflexões
inovadoras sobre a temática escolhida. O diferencial de um trabalho historiográfico
são os questionamentos aos documentos. O material pesquisado em arquivo é o
que orienta e limita a escrita do historiador, “(...) de todo o labor histórico que num
processo de diálogo contínuo entre o objecto de estudo e o corpus documental não
pode negligenciar a problematização, a conceptualização que conferem
significabilidade aos modelos obtidos”.12
Os sermões, a atuação e os posicionamentos de D. Timóteo tiveram grande
repercussão. O primeiro acontecimento que tomou proporções nacionais foi a “A
Missa do Morro”. O próprio nome já foi bastante incomum para a época e direto
para quem ela se destinava. A Missa do Morro ocorreu em 11 de dezembro de
1965, realizada no Mosteiro de São Bento por Dom Timóteo, O evento foi noticiado
pelos jornais durante meses, o motivo de tanto estardalhaço foi uma missa
celebrada ao som de berimbaus, pandeiros e atabaques, instrumentos tipicamente
utilizados nas celebrações do Candomblé.
O Concílio libertou a liturgia do imobilismo contraditório. A
rígida uniformidade anterior deu lugar a formas flexíveis que,
sem prejuízo do fundo inalienável dos ritos, tornam possível
uma celebração encarnada. O gênio próprio do povo e sua
língua, o seu modo de expressão e de representação e a sua
sensibilidade, a sua música, os seus instrumentos, o seu
mundo intelectual – eis valores culturais chamados a
contribuir ativamente para exprimir a vinda de Deus e a
resposta do homem, na unidade simbólica do rito. A liturgia é
por definição popular. É, pois, evidente a importância da
Missa do morro para concretização dessas intenções mais
profundas do Concílio e da aspiração por uma liturgia
reconstituída nas fontes e da criatividade popular.13
12
PEREIRA, Maria da conceição Meireles. História Local e Regional – singularidades de uma história
plural. In: FARIAS, Sara oliveira; LEAL, Maria das graças de Andrade. História Regional e local II: o
plural e o singular em debate. Salvador, EDUNEB, 2012, p.23.
13
ANASTÁCIO, D. Timóteo Amoroso, OSB. Apresentação do disco Missa do Morro e cantigas da Boa
Terra, Rio de Janeiro, Philips; Companhia Brasileira de Discos, 1969, (Coleção de Pesquisa de Músicas
Brasileiras).
Os anos 60 foram impulsionados por uma força libertadora que se alastrou
em um movimento de norte-sul para todo o globo. Em todas as esferas, na política,
nos hábitos na vida cotidiana, na cultura, as formas de dominação tidas por
opressivas foram combatidas. Com a Igreja Católica não foi diferente, um novo
contexto é apresentado uma igreja múltipla, universal um exemplo disso é a
Teologia da Libertação14.
A abertura do Mosteiro de São Bento, por intermédio de D. Timóteo,
transcendeu o diálogo e passou para o campo da ação. Em 1968 ocorreu o episódio
mais temeroso que o beneditino se envolveu. O abade deu asilo a estudantes que
protestavam em uma passeata, quando eles se depararam com a polícia. Enquanto
os estudantes se encaminhavam para uma rua atrás do Mosteiro, os policiais
invadiram o recinto.
14
Teologia da Libertação é um movimento de várias correntes denominacionais do cristianismo,
engajadas em novas interpretações dos escritos cristãos baseadas em uma libertação de injustas condições
econômicas, políticas ou sociais.
15
HOORNAERT, Eduardo (org.). D. Timóteo: Presença Histórica – Documento organizado a partir do
5º Seminário Religião e Sociedade, 1996. (sem dados de publicação)
16 O Ato Institucional nº 5, AI-5, decretado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general
Costa e Silva, foi a expressão mais dura da ditadura militar brasileira (1964-1985). Vigorou até dezembro
de 1978 e produziu inúmeras ações arbitrárias de efeitos sentidos até os dias atuais. Definiu o momento
de maior perseguição do regime, dando poder de exceção as autoridades para punir arbitrariamente os que
fossem inimigos do regime ou como declarados como tal
Neste período, o Mosteiro de São Bento da Bahia ainda possuía uma
tipografia é sabido que houve produção de panfletos e afins, autorizados por Dom
Timóteo. Acreditamos que esse material não era autorizado pelos órgãos
responsáveis pela censura, ou seja, os possíveis documentos produzidos no
Mosteiro pode ser considerado clandestino. Essa não era a única atividade
subversiva que ocorria nas dependências no Mosteiro de São Bento da Bahia, era
comum perseguidos políticos se esconderem no recinto, bem como reuniões de
sindicatos e organizações civis ocorrerem lá.
Em tempos em que os indivíduos e grupos não podiam se expressar ou serem
ouvidos diante de tanta opressão e censura durante boa parte dos vinte e um anos
de regime militar, o Mosteiro de São Bento e seu abade puderam auxiliar muitas
pessoas neste momento sombrio. Tempos em que telefones eram grampeados e
correspondências eram violadas, as tomadas de decisões geralmente eram feitas
pessoalmente. Somente através da realização de entrevistas é possível
compreender e esclarecer certos fatos através da vivência de certos indivíduos do
período em questão.
As entrevistas representam o uso da história oral17 como método histórico,
ferramenta para compreensão do contexto social, da vida cotidiana sob os olhares
de pessoas que vivenciaram eventos ou conviveram com uma determinada pessoa.
Por meio de suas memórias é possível detectar relações de poder, apoio, ou ter
acesso às revelações que não foram disponibilizadas nas fontes escritas.
A história oral no passado já foi pensada como limitada pelo seu cunho
subjetivo, hoje se tornou um instrumento para o entendimento de processos
históricos. “(...) nada se grava, nada se guarda na memória, nenhuma lembrança
se enternece, nenhum feito se salva, se a escrita da história não consegue articular
17
Discussões na obra: THOMPSON, P. A Voz do Passado: História Oral. Rio de Janeiro: 1992.
18
BORGES, Vavy Pacheco. Grandezas e misérias da biografia. In: Pinsky , Carla Bassanezi, (org.).
Fontes históricas . — 2ª.ed., Iª reimpressão.— São Paulo : Contexto, 2008, p. 111.
as ligações essenciais entre o vivido e o relato – problemática da relação entre
narrativa e história.”19
Alguns dos métodos utilizados na execução dessa pesquisa são: análise dos
jornais dos diversos eventos que Dom Timóteo esteve envolvido como A Missa do
Morro e a invasão do Mosteiro de São Bento da Bahia pelos militares. Suas
declarações em assuntos polêmicos ou fatos relevantes quando era convidado a
fazê-lo em jornais de grande circulação são indispensáveis. Bem como, uma série
de entrevistas com pessoas que vivenciaram o período abordado que serão
realizadas na execução do projeto, que contempla amigos, frequentadores do
Mosteiro, intelectuais e artistas que tiveram destaque e participação ao longo do
período que o religioso foi abade do Mosteiro de São Bento.
Construir novos caminhos da história significa também aprender a cruzar
fontes, a produção de embates e conflitos, sobretudo de interpretações sobre elas.
Não há receitas prontas, contudo é necessário levantar novas questões diante de
fontes já utilizadas. O caminho da pesquisa é esse o levantamento de perguntas,
sem esperar certezas ou respostas definidas “significa, em suma assumir o caráter
detetivesco do historiador”20.
A imprensa teve um papel de destaque em momentos políticos decisivos, um
exemplo disso foi o golpe de 1964. Neste período a imprensa e a mídia
promoveram juntas as disseminações de mitos, personalidades foram
transformadas em heróis ou bandidos, porém, “... os mitos não devem ser
desprezados, mas também não se recomenda sua leitura em termos literais.
Escrevê-los e imprimi-los, portanto, ajuda a resistência da memória à manipulação”
21
.
19
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Memória e relato histórico. Clio – Revista de Pesquisa
histórica, Recife, nº 23, p. 107, 2005.
20
Idem, p. 29.
21
Burke, Peter. História como memória social. In ___. Variedades da história cultural. Rio de janeiro:
Civilização brasileira, 2000. p. 67-89.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALBUQUERQUE Júnior, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de
Teoria da História. Bauru, São Paulo, Edusc, 2007, p. 60-61
ANJOS, Eva Carvalho dos. Dom Timóteo: A Poesia e a Política de um abade amoroso
1965-1981. Monografia do curso de Bacharelado em História da Universidade federal
da Bahia, 2012.
BACELLAR, Carlos. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassanezi
(organizadora). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2006, p. 23-79.
BENEVIDES, Sílvio César Oliveira. Aventuras estudantis em tempos de opressão e
fuzis In: Zachariadhes, Grimaldo Carneiro (org); Ditadura militar na Bahia : novos
olhares, novos objetos, novos horizontes - Salvador : EDUFBA, 2009. v. 1.
BORGES, Vavy Pacheco. Grandezas e misérias da biografia. In: Pinsky , Carla
Bassanezi, (org.). Fontes históricas . — 2ª.ed., Iª reimpressão.— São Paulo : Contexto,
2008.
BARROS, José D’ Assunção. O lugar da história local na expansão dos campos históricos In;
OLIVEIRA, Ana Maria Carvalhos dos Santos; REIS, Isabel Cristina Ferreira dos (Org.).
História Regional e Local: Discussões e Práticas. Salvador: Quarteto, 2010.
BOFF, Leonardo. Quarenta anos da Teologia da Libertação. Disponível em:
http://leonardoboff.wordpress.com/2011/08/09/quarenta-anos-da-teologia-da-libertacao.
Acessado em 17 Outubro de 2011.
BURKE, Peter. História como memória social. In ___. Variedades da história cultural.
Rio de janeiro: Civilização brasileira, 2000. p. 79-80.
CARNEIRO, César Oliveira. Aventuras e desventuras: A peça proibida que desafiou a
ditadura em 1966. Dissertação em História Social na Faculdade de Filosofia E Ciências
Humanas da Universidade Federal da Bahia, 2008.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2007.
FERREIRA, Maria. de M. AMADO, Janaína. (Orgs.) Usos e Abusos da História Oral.
Rio de Janeiro, 2001.
FERREIRA, Muniz Gonçalves. O Golpe de Estado de 1964 na Bahia. Clio, Revista de
Pesquisa Histórica, nº22,2003. Disponível em
http://www.fundaj.gov.br/licitacao/observa_bahia_02.pdf Acessado em 5 de Julho de
2011.
FICO, Carlos, Versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar Revista
Brasileira de História, SP, v. 24 nº 47 – Disponível em: scielo.br. Acessado em 05 de
Julho de 2011.
FRISOTTI, Heitor. Timóteo, o amoroso. Sem Fronteiras: A Igreja no Brasil aberta ao
mundo. Nº 244 – Setembro de 1996.
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Memória e relato histórico. Clio – Revista de
Pesquisa histórica, Recife, nº 23, 2005.
HOORNAERT, Eduardo (org.). D. Timóteo: Presença Histórica – Documento
organizado a partir do 5º Seminário Religião e Sociedade, 1996. (Sem dados de
publicação).
LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY,
Carla Bassanezi (organizadora). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2006.
VENTURA, Zuenir. 1968: O ano que não terminou – Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1988.)
ZACHARIADHES, Grimaldo Carneiro (org); Ditadura militar na Bahia: novos olhares,
novos objetos, novos horizontes - Salvador: EDUFBA, 2009. v. 1.
______________. CEAS: Jesuítas e o Apostolado Social durante a ditadura militar.
Salvador: Edufba, 2009.
acréscimo de fontes não utilizadas. No decorrer das leituras, pouco foi mencionado
à respeito da regra de São Bento, ou seja, sobre as normas de convivência na
comunidade beneditina e os votos que D. Timóteo fez ao abraçar a vida religiosa.
A compreensão dos escritos beneditinos é essencial para o entendimento da
atuação, dos sermões, das poesias de D. Timóteo, escritos durante sua vida
dedicada à Ordem de São Bento. A Regra de São Bento orienta as posturas dos
monges e do abade, aborda como deve ser a relação entre eles e que posturas
devem ter com a sociedade no dia-a-dia ou em situações difíceis.
Algumas relações D. Timóteo não foram estabelecidas ou abordadas pelas
biografias escritas até o presente. O ecumenismo cristão foi estimulado e praticado
primariamente entre as Igrejas e denominações cristãs sendo apoiado durante e
posteriormente ao Concílio Vaticano II. O trabalho ecumênico do abade não se
restringiu apenas ao Candomblé, alguns seguimentos evangélicos estiveram
presentes no diálogo ecumênico de D. Timóteo. A impressão que se tem, após as
leituras biográficas, é que a pregação de D. Timóteo foi exclusivamente para
militantes, ecumênicos, ex-políticos. E o povo, e as pessoas comuns que
frequentavam suas missas?
A pesquisa historiográfica em desenvolvimento propõe análise de uma rica
documentação com destaque para as fontes eclesiásticas, jornalísticas e orais. A
investigação da atuação do Abade beneditino é um trabalho de vanguarda no
campo da história baiana. D. Timóteo participou de eventos e presenciou fatos
importantes que marcaram a capital soteropolitana. Esses acontecimentos
permitiram a aproximação da abadia beneditina, durante o regime opressor, com
excluídos e perseguidos, militantes católicos, estudantes secundaristas e
universitários, ativistas políticos, mães-de-santo e pastores evangélicos de
Salvador, muitos destes personagens foram considerados subversivos pelo regime
autoritário.
“Estar no mundo sem ser mundanos/as”: Pentecostais em Eunápolis
(1988-2011)
1
Professora da Universidade Estadual da Bahia (UNEB) Campus XVIII.
2
Graduando do curso de História pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Campus XVIII.
quando os munícipes estão buscando definir e organizar sua comunidade, que
analisamos, buscamos entender como se deu o processo de inserção do pentecostalismo,
como, difundiram suas práticas religiosas, como conviveram nesse momento com as
outras denominações religiosas, e buscando através das memórias dos moradores
antigos que presenciaram tal fato como se deu esse processo.
Um dos desdobramentos da Nova História é a interdisciplinaridade e a
aproximação da História com a Religião. Essa junção entre a religião e a história está no
centro do debate atual e caracterizou a transição do século XX para o XXI, a crise dos
paradigmas de análise da realidade e o fim da crença em uma única verdade. Assim, a
tão proclamada ordem dos Annales, em criar novos objetos, problemas e abordagens,
ganhou fôlego e também marcou um ecletismo teórico e, na maioria das vezes, uma
ausência de distinção, de apego ou definição por uma matriz teórico-metodológica.
Sustentamos que a produção historiográfica não pode ser confundida com a
literária. O que interessa como especificado anteriormente é discutir o diálogo da
história com a religião, como um caminho que se percorre contínuo com o imaginário,
com as representações, campo de pesquisa que passou a se desenvolver
significativamente no Brasil a partir dos anos 80.
A chamada “terceira geração” dos Annales voltou-se para a história cultural e
tem representação como um conceito central que, a rigor, foi incorporada pelos
historiadores no início do século XX, a partir das formulações de “representações
coletivas” (formas de percepção, de classificação e de julgamento) de Marcel Mauss e
Émile Durkheim.
Trabalhamos com o conceito de representação não vista como uma cópia fiel do
real, uma imagem perfeita, um reflexo e sim uma composição feita a partir dele com
elementos históricos. Salientamos quanto à possibilidade de se chegar ao conhecimento
histórico a partir da representação, desde que mediada pelos instrumentos de pesquisa, e
pelo estudo dos fatos históricos, em uma apurada contextualização. Como na
perspectiva de Chartier (1991, p. 185), a representação “mascara, em vez de pintar
adequadamente, o que é seu referente.”.
Na noção de representação trabalhada por Chartier ele lança mão para designar o
modo pelo qual em “diferentes lugares e momentos uma determinada realidade é
construída, pensada, dada a ler”, por diferentes grupos sociais. A partir daí, faz-se
necessário considerar as classificações e as percepções próprias de cada grupo ou meio
como as instituições sociais atuam, sob a forma de categorias mentais e de
representações coletivas. (CHARTIER, 1990, p.16).
A construção das identidades sociais seria o resultado de uma “luta entre as
representações impostas por aqueles que têm poder de classificar e nomear e as
definições que cada comunidade então produz de si mesma (seja docilmente, seja
resistindo às representações impostas).” (CHARTIER, 1991, p. 183). Nesse ponto,
consideramos importante buscar as percepções e definições, bem como a construção das
identidades pentecostais presentes em Eunápolis, suas interpretações sobre suas
atividades, e como a cidade os percebem.
Portanto será imprescindível a aquisição de depoimentos de pentecostais e suas
memórias, os quais apresentam suas versões sobre sua chegada em Eunápolis,
dificuldades e caminhos/estratégias para se firmarem enquanto grupo religioso de
destaque.
Ao propormos a utilização das memórias pentecostais como uma das fontes
desta pesquisa, pretende-se contribuir para a discussão de problemas postos à
historiografia contemporânea, no que diz respeito a sua preocupação, com a relação
entre a história e a memória. As lembranças individuais e coletivas do viver cotidiano,
as representações do real desses evangélicos se chocarão com o quadro de
representações “mundanas”.
Novamente nos parece viável, para nossa pesquisa, levar em consideração as
observações de Roger Chartier (2002), ‘quando afirma que os leitores interpretam ou se
apropriam dos textos de acordo com as capacidades de leitura, os códigos e as
convenções próprias de cada comunidade. Isto é, a leitura tem uma história e essa
história se faz na produção de sentido, que acontece pela interação entre leitor, obra e
comunidade de leitura.
Assim, as representações do social variam conforme o contexto em que são
produzidas e os interesses partilhados pelo grupo que as forjou, ou seja, uma realidade,
assim, não pode ser apreendida de forma pura, sempre é apropriada e simbolizada,
consciente ou inconscientemente. E neste sentido, percebemos que as representações
não são “ingênuas”.
As percepções do social, segundo Chartier (1990), não seriam discursos neutros,
elas produzem estratégias e práticas sociais, escolares e políticas. Tudo isso,
naturalmente para afirmar que as práticas e representações são sempre resultados de
motivações e necessidades sociais.
Para precisarmos em período histórico a mudança de enfoque do
pentecostalismo como propulsor de uma nova perspectiva para discutir as relações
políticas, diríamos que surge aproximadamente no final dos anos 80, quando uma
linguagem acadêmica traz à tona discussões em torno da competição religiosa em nosso
país.
Aqui pastores, ministros e profetas, “herdeiros do princípio do sacerdócio
universal, através do qual cada adepto é um pastor em potencial” (Fernandes, 1998:8),
promovem uma espécie de duelo espontâneo no qual grupos adventistas, testemunhas
de Jeová, espíritas, católicos da linha carismática e representantes de religião sem tanta
tradição, realizam um duelo discursivo que tem por objetivo provar que o Deus de cada
credo é o mais verdadeiro. Não podemos esquecer que a História deve problematizar e
possibilitar debates, buscar as diferenças e perceber que os fatos, as histórias não estão
prontas e fora de uma realidade. Ao contrário, elas precisam sair de um modelo pronto e
acabado e ser analisadas à luz de um tempo e espaço específicos. Longe de querer fazer
apologia ao pentecostalismo, a pesquisa busca analisar como nos comportamentos
tradicionais pode-se encontrar um leque de possibilidades e estratégias de convivência e
socialização.
A priori é necessário situar a cidade de Eunapolis, município este que em sua
fase de surgimento cresceu e prosperou, ficando famoso como o maior povoado do
mundo, até o plebiscito realizado em 1988. Localizado no Extremo Sul da Bahia, sua
área estar situada no portal de entrada do Sitio Histórico do Descobrimento do Brasil.
Sendo que antes de sua emancipação era parte integrante dos municípios de Porto
Seguro e Santa Cruz Cabrália. Estabelecido às margens da BR 10, atualmente Eunapolis
possui 102.628 habitantes, sendo então a 16ª cidade mais populosa do estado em 2012,
segundo o IBGE. Sua base econômica é à agricultura, extração e pecuária. É também o
terceiro produtor baiano de pimenta do reino, 4º de mandioca, 5º de mamão, e possui
importante rebanho bovino.
É importante salientar que povoado que em 1953 foi denominado de Eunápolis
teve dois períodos de muito desenvolvimento. O primeiro, na década de 60, com a
chegada dos sertanejos de Ribeira do Pombal - o pioneiro foi o comerciante José Dantas
-, que, com os seus “atacados”, tornaram o povoado um grande centro comercial.
Depois, na década de 70, após a construção da BR 101, que propiciou o ciclo madeireiro
- tendo os capixabas, principalmente, como principais personagens – e a consolidação
de Eunápolis como principal centro comercial e de serviços da região.
Tornou-se então um lugar fértil para a propagação do evangelho.
Foi nesse auge que a Assembleia de Deus criou raízes. Desde 1950 a referida
denominação existe em Eunápolis, antes mesmo da Igreja Católica cujo templo foi
construído quatro anos depois, da chegada dos missionários assembleianos. Porem era
um trabalho pequeno, que não tinha uma organização institucional, e templo próprio.
No inicio se reuniam em um casebre que pertencia a um dos poucos membros que se
converteram através da evangelização. Esse trabalho ainda modesto foi iniciado com o
missionário e pastor Eugenio, que não ficou muito tempo na região. Em 1958 assume o
pastor Antonio Francisco dos Santos vindo da cidade de Itamaraju, Bahia onde começa
um novo trabalho de apregoação da palavra de Deus, construção do templo sede e
organização da igreja Assembleia de Deus.
Com isso, houve tanto um aumento de fieis bem como a construção de mais
templos nos bairros da cidade. No processo de emancipação não há indicativos da
participação direta da igreja, já que era fechada para as questões políticas, portanto, não
houve envolvimento de assembleianos nesse evento histórico da cidade. No entanto,
podemos perceber através de outras fontes (cf. os registros da Câmara de Vereadores de
Eunápolis) que houve dois vereadores membros da assembleia de Deus eleitos no pleito
da 2ª legislatura no ano de 1993 – 1996. Porem não há indícios de que esses vereadores
foram candidatos indicados p ela instituição assembleiana, o que de certa forma nos leva
a acreditar que se candidataram de forma autônoma.
Visando a continuidade de nossa pesquisa, estamos contatando outras fontes
primordiais para a coleta de dados, a saber: o Pastor José Carlos, filho do pastor
Antonio Francisco, um dos primeiros pastores da Assembléia de Deus em Eunapolis;
desde 1958 até 1996; Edna e Adelice ambos os membros da Assembleia que
acompanharam e ajudaram no crescimento da instituição no município de Eunápolis
fazendo parte de grupos de evangelismos bem como exercendo alguns cargos dentro da
Igreja, nos fornecerá dados preciosos para o objeto em estudo, de acordo com o
levantamento que estamos fazendo, muitos documentos dentre eles fotos da 1ª igreja e
dos primeiros membros estão sobre os cuidados dessas senhoras, que são esposa e filha
respectivamente do pastor Antonio Francisco dos Santos.
Podemos assegurar que esta pesquisa tem despertado cada vez mais nosso
interesse em estudá-la, aprofundá-la. Lembramos que as análises apresentadas não são
conclusivas, elas fazem parte de mediações aptas a levar-nos paulatinamente a
resultados operantes que vislumbrem necessariamente diretrizes inalienáveis ao objeto
em estudo.
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
SITES PESQUISADOS
http://www.brasilchannel.com.br/municipios/mostrar_municipio.asp?nome=Eun%E1po
lis&uf=BA
http://www.sitepopular.com.br/paginassitepop/historiadeeunapolis/br101.htm
IGREJA BATISTA NAZARETH: IDEIAS E TENSÕES NO MOVIMENTO ECUMÊNICO
ENTRE BATISTAS PROGRESSISTAS (1974 A 1990)
Até a década de 1950, sendo acentuado ainda mais com o Golpe Civil-Militar de
1964, o meio protestante manteve a imagem de um posicionamento de não
interferência nas questões políticas desde que suas ideias e princípios não fossem
ameaçados de algum modo. Na verdade o principio tão tradicional de não participação
política não passava de um argumento retórico (Silva, 2009, p. 31), pois desde a
década de 1940 os evangélicos ofereciam a obediência e o respeito às autoridades
constituídas e recebiam em troca apoio e manutenção das liberdades de consciência e
religiosa. Essa foi a tática utilizada por muitas denominações evangélicas para se
estabelecerem no Brasil. Entretanto, isso começa a ser modificado com a inserção de
novas linhas teológicas na ambiência protestante, como a teoria do Evangelho Social
1
Para maior compreensão do tema ler a Dissertação do mestrado de Luciane Silva de Almeida: ALMEIDA,
Luciane S. de. A Igreja Anticomunista: Representações dos Batistas e dos Fundamentalistas sobre o Regime
Militar em Feira De Santana (1964-1980). Relatório Final. PROBIC/ UEFS, Feira de Santana, 2008.
em 1950, associando-se a isso “uma nova geração de jovens reformados começava a
se inquietar com a realidade brasileira, de forma sistemática e organizada” (Silva,
2010, p. 20,66).
3
“Primeira Igreja” – Referência à Igreja Batista Dois de Julho. Foi um termo recorrente utilizado nas
entrevistas que fiz por muitos membros da Igreja Batista Nazareth.
sendo agravadas no mês de abril de 1974, quando a Igreja proibiu a participação de
visitantes às reuniões da Mocidade, uma forma de restringir o espaço e influência das
ideias defendidas por esse grupo. Cerceou a liberdade de expressão do grupo vetando
toda e qualquer circulação de material impresso por esses jovens, tendo agora a
necessidade da aprovação da Igreja (Pastor e Diretoria) para a realização das
atividades do grupo, veto da divulgação em órgãos da imprensa de seus projetos,
além da retirada do irmão Agostinho J. Muniz Filho do rol de membros da igreja,
acrescentado da ameaça a outros jovens de serem afastados de igual forma4.
Aqui vale a pena fazermos um parêntese a essa situação e informar que essa
postura de distanciamento das questões sociais e de critica a ações ecumênicas não
eram atitudes recorrentes da Igreja Batista Dois de Julho. As entrevistas realizadas
com antigos membros informam que houve uma ruptura com as posturas
progressistas da Igreja após o seu Pastor, Ebenézer Cavalcanti, ter passado por
alguns problemas de saúde, sendo assessorado e influenciado por membros que
tinham grande simpatia, quando não algum tipo de relação com o Governo Militar,
além de possuírem uma leitura da bíblia mais conservadora5.
Liane ainda destaca que o pastor Ebenézer Cavalcanti já havia até recebido aos
Padres Dom Gerônimo e Dom Timóteo para pregarem na Igreja Dois de Julho e que
fazia convites para membros de diferentes Igrejas para entrarem no Coral da
Mocidade da Igreja Batista Dois de Julho. “(...) ele trazia essas pessoas para o coral e
ele aceitava, não pergunta a origem, não perguntava nada.”
Esses jovens estavam também muito indignados pela Igreja Dois de Julho ter
decidido pela Carta Compulsória a Agostinho e Balbino, que faziam criticas ao governo
militar.9 Chegou-se ao ápice desse conflito no dia 10 de Outubro de 1974, quando,
numa reunião muito tensa, aproximadamente 25 jovens da União da Mocidade da
Igreja Batista Dois de Julho teve a sua fala cerceada, indignados, foram forçados a
10
requererem suas cartas demissórias (espécie de documento de expulsão da Igreja) .
Liane foi a primeira a fazer o pedido, e foi prontamente seguida por parte dos
integrantes do Coral.
A relação com as questões sociais sempre foi uma característica do grupo de jovens,
que encontrou nas mudanças de pensamentos teológicos as fontes necessárias para o
seu posicionamento, que apoiava transformações na sociedade, transformações que
ultrapassassem o assistencialismo tradicional protestante. Em grande medida essas
correntes eram elaboradas na Europa e nos EUA e adaptadas a realidade brasileira
7
Entrevista gravada na Igreja Batista Nazareth, no dia 10 de março de 2013, em comemoração ao 38º
aniversário da Igreja.
8
Carta do diácono Adlair de F. Pacheco à Igreja Batista Dois de Julho em resposta ao Manifesto da
Mocidade. Salvador, 16 de outubro de 1974. Documentação da IBN.
9
Carta de Agostinho Muniz em comemoração aos 15 anos da IBN. In Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não
paginado.
10
Carta de Miriam Guerra Pinillos ao Presidente da Convenção Batista Baiana. 11 de setembro de 1974 in
Igreja Batista Nazareth, op. cit., Anexo I. Não paginado.
11
Carta de Paulo Rosa Torres ao Pastor Djalma Torres. Salvador, 12 de outubro de 1974. Documentação IBN
como o Evangelho Social que apontava como característica necessária ao
protestantismo a ação social e política (Silva, 2009, p. 76-77).
Esses jovens não queriam romper com a Igreja Batista, mas sim com a
Igreja Batista Dois de Julho por considerar impossível a convivência. Em carta enviada
à Convenção Batista Baiana no dia 12 de Outubro de 197412, Paulo Torres afirma o
interesse do grupo em “organizar uma nova igreja com base neotestamentária e em
consonância com os princípios Batistas.”
A princípio o grupo realizava as reuniões nas suas casas e nas casas de amigos,
sem um ponto fixo. No dia 31 de dezembro de 1974, o Reverendo Enoque Sena,
Pastor presbiteriano e Diretor do Colégio Dois de Julho, instituição educacional de
caráter ecumênico, ligada à Igreja Presbiteriana, ofereceu as dependências do Colégio
para o encontro do grupo enquanto lhes fossem necessárias.15 Logo em seguida, sob o
auxilio do Pastor Djalma Torres, a Igreja Batista Moriá acolheu a esses jovens, “já
sabendo que esse grupo não ia se integrar na igreja, mas ia fazer reuniões
12
Carta de Paulo Rosa Torres ao Pastor Djalma Torres. Salvador, 12 de outubro de 1974. Documentação IBN
13
Carta de Miriam Guerra Pinillos ao Pastor Djalma Torres. Salvador, 11 de outubro de 1974. Documentação
IBN
14
Entrevista com o Pastor Djalma Torres no dia 08 de julho de 2012
15
Carta à Igreja Batista Moriá, 31 de dezembro de 1974. In Igreja Batista Nazareth, op. cit., Anexo I. Não
paginado.
separadamente das reuniões normais da igreja até se organizarem também em uma
comunidade religiosa, ou seja, numa Igreja Batista”16.
A Igreja Batista Nazareth (IBN) negou ter enviado uma carta com tal teor,
onde detratava pessoas sob o pretexto de solicitar reconsideração dessa junta sobre o
pedido de filiação.24. Por esse motivo, a Convenção Batista Baiana (CBBa) pediu à
Nazareth permissão para publicar no Jornal Batista a carta de negação sobre o
documento anônimo, pois esse documento tinha sido enviado a muitos pastores como
circular.25 Prontamente a IBN aceitou a publicação de seu pronunciamento a respeito
da carta anônima26 sendo parabenizada pela Convenção Batista Brasileira por terem
demostrado “um louvado espirito conciliador, de coragem e prudência.”27 A Igreja
Batista Dois de Julho, nesse interim, também lança um documento informando não ter
nenhuma relação com a negação de pertencimento de Nazareth à CBBa e que nem
mesmo tem algum conhecimento da existência do referido grupo. 28
22
Entrevista com o Pastor Djalma Torres no dia 08 de julho de 2012
23
Carta anônima à Junta Geral da Convenção Batista Baiana. in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não
paginado.
24
Carta do Pastor da IBN, Djalma Torres, à Junta Executiva da Convenção Batista Baiana, em 25 de Agosto
de 1975, in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
25
Carta da Junta Executiva da Convenção Batista Baiana, Itapetinga, 29 de Agosto de 1975, in Igreja Batista
Nazareth, op. cit., Não paginado.
26
Carta da Igreja Batista Nazareth à Junta executiva da Convenção Batista Baiana. Salvador, 15 de setembro
de 1975, in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
27
Carta da Junta Executiva da Convenção Batista Brasileira, Rio de Janeiro, 27 de Novembro de 1975, in
Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
28
Carta da Igreja Batista Dois de Julho à Denominação Batista, Salvador, 3 de Setembro de 1975, in Igreja
Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
Após uma solicitação verbal do Pastor Djalma Torres à CBBA, no dia 20 de
maio de 1975, esta decidiu q enviaria “uma comissão da Junta para estudar o assunto
com a comissão da Igreja”, contudo o próprio pastor da IBN recusou a forma como
seria analisada a questão29. Finalmente, em 23 de julho de 1976 a Igreja Batista
Nazareth é aceita para ingressar no Rol Cooperativo da Convenção Batista, sendo
oficializado na primeira sessão da 53ª assembleia da CBBa.30
Um mês após o envio da Carta da Junta Executiva da CBBa, Nazareth encaminha uma
carta documento representando a posição da Igreja. É clara ao afirmar que não abdica
do direito de ser considerada uma Igreja Batista e que tem por fundamentação
29
Carta da Junta Geral da Convenção Batista Baiana à Igreja Batista Nazareth, Salvador, 8 de abril de 1976,
in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
30
Carta da Junta Geral da Convenção Batista Baiana à Igreja Batista Nazareth, em 23 de Julho de 1976. in
Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
31
Artigo 2º, Capitulo VIII da Declaração Doutrinária do Estatuto Batista. In Igreja Batista Nazareth: Uma
história de resistência, luta e fé, 1975 – 2000. Salvador/Ba: [s.n.], 2000. Não paginado.
eclesiástica a “Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira”, salientando
que houve uma interpretação duvidosa e parcial dessa Declaração por parte da
CBBa.33 Nessa mesma carta, Nazareth enumera uma serie de tópicos destacando suas
crenças. Algumas delas:
Foi exatamente nesse período, entre a rejeição e a aceitação pela Junta (1975/76),
continua a carta, que Nazareth começou a estabelecer relacionamentos mais estreitos
com demais grupos evangélicos, o que possibilitou “a descoberta da grande riqueza
doutrinária, teológica, litúrgica e fraternal dessas igrejas (...) Deus transformara,
32
Carta da Junta Geral da Convenção Batista Baiana à Igreja Batista Nazareth, em 03 de junho de 1988, in
Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
33
Carta da Igreja Batista Nazareth à Junta executiva da Convenção Batista Baiana. Salvador, 4 de Julho de
1988, in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
34
Documento da Igreja Batista Nazareth em resposta à Carta da Junta Executiva da Convenção Batista
Baiana, Salvador, 4 de Julho de 1988, in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
assim, a marginalização batista numa grande e concreta manifestação de apoio,
compreensão e ajuda no meio evangélico.
Considerações finais
De inicio, a liberdade não era violentada abertamente pela força, mas sim
conquistada de forma ideológica e discursiva. Contudo, em meio a esse período, as
práticas inquisitoriais permaneceram vivas no seio protestante. Essas práticas
punitivas e excludentes faziam parte de um conjunto de procedimentos institucionais
cuja função era identificar e eliminar o pensamento divergente, pois ameaça a sua
unidade politica e teológica. Para tal havia os controles de pensamentos, de
comportamento moral (desviante) e de comportamento intelectual, que seria o mais
perigoso, pois trazia criticas ao sistema. (Alves, 2004, p.96, 112 e 114).
Como bem salientou Rubem Alves, esse conflito ideológico não se dá no campo
do debate, mas sim do poder, da força. “A decisão é feita por um processo politico.”
Nesse embate, o discurso dos vencidos é transformado ou tido como heréticos e dos
ortodoxos os vencedores, a verdade, cabendo então aos hereges a represália e
exclusão. Pensam os ortodoxos: Porque toleraríamos o pensamento divergente se
nossa instituição é possuidora da verdade? Porque um diálogo ecumênico se nada há
para aprender? (Alves, 2004, p.114-116).
35
Jornal A Tarde. Salvador (Ba), Terça-feira, 26 de julho de 1988.
O ecumenismo tem em sua origem uma proposta de aproximação entre os
cristãos para a ampliação da obra missionária, porém “(...) no Brasil passou de um
esforço de colaboração entre as igrejas para ser um agente histórico de transformação
política e social no país.”36. Em grande medida esse é um dos motivos que explicam o
porquê da maioria das igrejas evangélicas, aqui me refiro em especial à igreja batista,
mantiveram uma postura de recusa a participar desse movimento ecumênico
buscando reafirmar os seus princípios denominacionais como verdade bíblica a ser
seguida (Silva, 2010, p.59).
Referências Bibliográficas
ALVES, Rubem. Dogmatismo e tolerância. São Paulo, Edições Loyola, 2004, 174p.
BOURDIEU, Pierre, A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2009.
361p.
MATA, Sérgio da. História e Religião. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. 155p.
Elaine Santana do Ó
RESUMO
O Brasil passou por grandes mudanças no que diz respeito à medicina, durante
a década de 1930. A medicina nesse momento entende que é através da observação
da sociedade que se pode “curar” seus males, por isso a prática de determinadas
religiões passaram a ser estudadas, e em sua maioria foram entendidas como algo
negativo a sanidade do homem. Dessa forma muitas dessas instituições passaram a
ser fiscalizadas pelo Estado, onde este fornecia ou não uma licença de funcionamento.
Os espaços que conseguiam conquistar a licença recebiam com freqüência
funcionários do Serviço de Higiene Mental (SHM), que observavam seus rituais, e
elaboravam artigos, que atualmente se encontram no arquivo de assistência aos
psicopatas. Disponho-me nesse artigo, a analisar estes documentos que atendem
diretamente ao Espiritismo e a uma “Seita” Panteísta própria desta época, com o
objetivo de compreender a relação existente entre religiosidade e doença mental na
década de trinta, sob o ponto de vista da medicina.
Introdução
Graduanda em História pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e em Museologia pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
analisei os artigos sobre religião e psiquiatria que se encontram publicados na revista
“Arquivo da Assistência a Psicopatas” o que nos possibilitou compreender melhor a
relação entre estas religiões e a medicina nesse período. Entendo essa pesquisa,
portanto, como sendo extremamente necessária para a historiografia brasileira pela
sua complexidade, necessária a sociedade porque memória é poder e a sociedade
precisa conhecer, e devido à escassez de estudos nesse sentido.
Este período pode ser classificado como um dos mais sanguinários de toda a
história mundial. Foi na década de 30 que o mundo conheceu a política de Hitler, e
junto com ela assistiu ao genocídio do que ele denominava "raças inferiores", e ai
podemos entender como judeus, muçulmanos, gays e etc. No final da década de 30
em 1939 tem inicio a Segunda Guerra Mundial. Nos Estados Unidos, tem início o New
Deal, plano econômico de recuperação devido à quebra da bolsa de Nova York,
em 1929. Frente a todos esses acontecimentos é muito comum ouvir que essa foi a
pior década do século XX, já que teve inicio com a grande crise e terminou com
a guerra.
No Brasil, acontece a Revolução de 30, movimento comandado pelo Getúlio
Vargas. A Revolução Constitucionalista tem seu inicio em 1932, e em 1934 é
promulgada a nova Constituição. Chega ao fim a política do café-com-leite e tem início
o Estado Novo, em 1937. Só ocorrendo eleições no ano de 1945 com o fim do Estado
Novo. O Nordeste nessa época era uma região recém “reconhecida”, já que foi
formada no inicio dos anos 20. Era, portanto uma fase de afirmação de identidade
política, econômica, social, e cultural. Podemos identificar diversos trabalhos que
ajudaram a afirmar essa identidade, como “Casa Grande e Zenzala” e “Nordeste” de
Gilberto Freyre, sendo o primeiro escrito em 1933 e o segundo em 1937. Frente a
esses aspectos a região Nordeste reproduzia o autoritarismo e o controle que o Brasil
como um todo vivia nesse momento, e é o que veremos a seguir, tendo a religião
como elemento principal para percebemos esses aspectos.
O Espiritismo e sua relação com a medicina na década de trinta
Essas religiões eram vistas pelo Serviço de Higiene Mental como um afronto a
medicina, pois em sua maioria eram criadas para o exercício ilegal da mesma e dá-se
a praticas mágico-fetichistas, determinando principalmente fenômenos de possessão,
o que era de grande interesse para o psiquiatra. Para os centros espíritas obterem
licença de funcionamento, tinham que submeter seus médiuns a exames. As Seitas
Africanas para obterem sua licença também tinham que submeter seus babalorixás a
testes psicológicos e exames clínicos.
Portanto, fica claro que não foram apenas as religiões afrodescendentes que
foram perseguidas e vigiadas durante a década de 30 como constantemente ouvimos,
geralmente, entre senso comum. Várias outras religiões foram controladas pela
medicina com o apoio do governo, dentre elas o espiritismo como vimos, e uma seita
panteísta que vamos conhecer adiante. E é válido acrescentar ainda que não eram
apenas as religiões os elementos que a medicina estudava durante esse período, mas
diversas outras aspectos que o recorte deste artigo não nos permite explorar. Mas
para situar o leitor, é importante informar que o Professor Ulysses Pernambucano
fazia critica frequentes as estatísticas feitas pelos psiquiatras. Pois ele enxergava dois
defeitos nas estatísticas, o primeiro é que só se fazia para atender aos pedidos das
repartições de estatísticas, e o outro defeito das estatísticas é que elas só forneciam
informações sobre a frequência das doenças segundo o numero de doentes
internados. A multidão de problemas que fervilha em torno desses doentes e dessas
doenças nem se quer era levado em conta. O papel de fatores biológicos como a
hereditariedade, tóxicos, e infecciosos (alcoolismo e sífilis em certas psicoses), sociais
(condições de vida, estudo do meio, influencia de religiões, fetichismo,etc.), muito
raramente faziam parte das estatísticas.
Seita “misteriosa”
Considerações Finais
O que vimos nesse artigo é que o serviço de higiene mental durante a década
de 30 se interessou em estudar algumas religiões, principalmente as por eles tidas
como “inferiores”. Acreditava-se que essas religiões desenvolviam anormalmente a
cultura do subconsciente, causando manifestações mórbidas do “automatismo
psicológico”. Portanto para eles, conhecer essas religiões que se desenvolviam e
cresciam rapidamente nas cidades, principalmente no seio da população inculta, é ter
informações seguras sobre a probabilidade de verdadeiras epidemias que povoavam
os asilos e, às vezes faziam correr o sangue. De qualquer modo conhecê-las
significava ficar armado de elementos para uma intervenção profilática em momento
oportuno. Logo o objetivo maior desse artigo, é informar ao leitor o pensamento que
assolava a medicina e o governo brasileiro em 1930, e dessa forma contribuir com a
história e com a memória de nossa sociedade, já que memória é poder. Portanto
busquei dar poder ao leitor desse estudo, para que ele use quando achar devido,
afinal é essa a função da história, dar conhecimento de um passado para que se
compreenda se mude, ou pelo menos, se questione o presente. Uma sociedade sem
memória é um sociedade sem identidade.
Referências Bibliográficas:
Livro:
CARNEIRO, Edison. Religiões Negras- Negros Bantos. São Paulo:
Edições Civilização Brasileira, 1981.
RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Edições Madras,
2008.
Tese:
DANTAS, Zuleica. O Combate ao Catimbó: práticas repressivas às
religiões afro-umbandistas nos anos trinta e quarenta. Tese (doutorado em
História) UFPE, Recife, 2001.
Artigo:
CAMPOS, Helena. As Doenças Mentais Entre os Negros de Pernambuco.
Assistência a Psicopatas, 1932,p. 120.
CAVALCANTI, Pedro. Contribuição ao estudo do estado mental dos
médiuns. Assistência aos Psicopatas, 1934, p. 135.
LIMA,Dinice.Investigações sobre as religiões no Recife “O espiritismo”.
Assistência aos Psicopatas, 1932, p. 138.
NETO, Gonsalves de Mello. Do Negro. Assistência aos Psicopatas, 1933, p.
177.
PERNAMBUCANO, Ulysses. Ideas e Realizações. Assistência aos Psicopatas,
1932, p. 3.
CAMPOS, Helena. As Doenças Mentais Entre os Negros de Pernambuco.
Assistência aos Psicopatas, 1932, p. 120.
FERRAZ, Álvaro. Raça e Constituição individual. Assistência aos Psicopatas,
1935, p. 189.
Protestantismo e Resistência aos Governos Militares no Brasil
Elizete da Silva
“E Não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação das
vossas mentes.”
(Bíblia Sagrada)
INTRODUÇÃO
A relação entre religião e política tem sido destacada por diversos estudiosos a
exemplo de François Houtart, quando ressaltou o papel das utopias religiosas nos
movimentos messiânicos e na Teologia da Libertação. (HOUTART, 1994) Na
perspectiva de Pierre Bourdieu (1974), o conceito de campo religioso, preconizou as
correlações entre a religião e as estruturas sociais. As instituições religiosas e os
seus agentes buscam a transcendência, a salvação e as práticas espirituais, porém
vivem as injunções do cotidiano e das disputas de poder que ocorrem em qualquer
grupo social.
A repressão externa ao grupo progressista também foi muito forte. Convém salientar
que a movimentação da Comissão de Igreja e Sociedade, desde os anos 1960,
levantou a suspeita dos órgãos militares de repressão, afinal de contas os “crentes”
deixavam de ser respeitosos e submissos às autoridades constituídas. Recordou um
dos organizadores da comissão: “A visita de um agente do Departamento de Ordem
Política e Social (DOPS) e o interrogatório a que submeteu Waldo Cesar indicavam o
quanto nosso trabalho ultrapassara os limites eclesiásticos e instigava as autoridades
da chamada segurança nacional” (SHAULL, 2003, p. 180).
Nas fontes consultadas ficou claro que a linha de atuação seguida pelo CMI norteou
desde as origens a Coordenadoria Ecumênica de Serviço. Em junho de 1973 as
igrejas nacionais que participavam do CMI organizaram, formalmente, a
Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) com uma proposta corajosa de
cooperação, recusando o assistencialismo e o proselitismo dominante entre as
instituições eclesiásticas evangélicas. Buscava-se um serviço social aos
empobrecidos, com uma visão ecumênica de respeito à diversidade religiosa
reinante no País.
Com o golpe militar de 1964 muitos líderes leigos e pastores progressistas foram
perseguidos pela Ditadura e os setores da Confederação Evangélica do Brasil que se
dedicavam às intervenções sociais e políticas foram desativados. Conforme a
documentação pesquisada podemos afirmar que as preocupações sociais e políticas
do setor protestante progressista persistiram, numa tentativa de resistência e
organização coletiva. A CESE é a legítima herdeira desse grupo, especificamente do
setor de Projetos da CEB.
A entidade foi criada e sediada no Nordeste, em Salvador, por razões muito claras.
As desigualdades e as distorções regionais que assolavam o território brasileiro
adentraram também nos arraiais protestantes, especialmente na divisão do “bolo”
da ajuda financeira que era enviada pelas instituições eclesiásticas da Europa e dos
EUA. Os nordestinos ficavam sempre com a menor fatia. Segundo Enilson Rocha,
primeiro secretário executivo da CESE, a escolha da sede em terras soteropolitanas
foi uma forma de reverter “o pecado da má distribuição dos recursos cooperantes
aportados no País. Cerca de 82% eram destinados na década de 60 à Região Sul”(
SOUZA, Enilson.CESE-1997).
Embora sediada no Nordeste brasileiro e priorizando essa região bem como a Norte
do País, a CESE ao longo de sua trajetória também tem apoiado projetos oriundos
das demais regiões do País. “Em entrevista concedida aos autores o Rev. Josué
Mello referiu-se à escolha da Bahia para sediar a CESE de forma semelhante. “Era
preciso acabar com as distorções na administração dos recursos que vinham das
agências estrangeiras...” na sua concepção a criação da Coordenadoria Ecumênica
de Serviço resolveria o problema. Convém destacar que o Rev. Mello já tinha uma
razoável experiência com projetos e a ajuda das instituições eclesiásticas
estrangeiras. Tanto a Associação Feirense de Ação Social (AFAS) (1967) e o Serviço
de Integração de Migrantes, (1972) fundados em Feira de Santana, sob a liderança
de Mello, recebiam tais recursos financeiros do CMI e da EZE alemã (ENTREVISTA,
MELLO, 2007).
b) que tipo de ação você ou seu grupo poderia desenvolver para diminuir ou
preferivelmente, eliminar estas violações? (CESE, DECLARAÇÃO UNIVERSAL dos
DIREITOS HUMANOS .2000 p. 3).
Num momento em que o Brasil vivia sob o arbítrio dos governos militares, a
eficácia de tal campanha, inclusive o caráter formador de construção de cidadania e
resistência política, certamente incomodou os defensores do golpe. Além de
orações e reflexões bíblicas, incentivava-se a criação de grupos organizados e
atuantes. “Para as circunscrições eclesiásticas (dioceses, presbitérios, paróquias
etc) criar centros de Defesa dos Direitos Humanos”, recomendava a sugestão de
número 3. Aos grupos não eclesiásticos sugeriam reuniões, teatro, concurso de
cartazes, poesias e a denúncia de violações dos Direitos humanos de que
tomassem conhecimento. (CESE, DECLARAÇÃO UNIVERSAL dos DIREITOS
HUMANOS .2000 p. 3).
O processo de conscientização deveria culminar com ações práticas de conotação
política.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora não se constitua como entidade de caráter político, podemos afirmar que a
CESE deu uma relevante contribuição no processo de abertura política na década de
1980, apoiando projetos de organizações sindicais, realização de seminários de
discussões políticas, bem como na formação de quadros atuantes em defesa dos
Direitos Humanos no País.
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Vasni. SANTOS, Lyndon. SILVA, Elizete da. Fiel È A Palavra Leituras Históricas
do Protestantismo Brasileiro.Feira de Santana,UEFS Editora, 2011.
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo. Perspectiva. 1974.
JARDILINO, José Rubens. Paulo Freire retalhos biobibliográficos. São Paulo: Pulsar, 2000.
LEONARD, Émile. O protestantismo brasileiro. São Paulo: ASTE, 1963.
LÖWY, Michael. Marxismo e Cristianismo na América Latina. In: Revista Lua Nova no.
19.1989.
LÖWY, Michael. O Catolicismo latino-americano Radicalizado. In: Estudos Avançados, nº
5, USP, 1989.
SILVA, Elizete da. Engels e a Abordagem científica da religião. In: MOURA, M.C.B;
FERREIRA, M; MORENO, R. (orgs.). Friedrich Engels e a ciência contemporânea.
Salvador, EDUFBA, 2007.
Fábio Pereira
Ao longo do século XX, a Igreja esforçou-se para restabelecer laços sólidos com
o Estado, e sob a liderança do cardeal dom Sebastião Leme da Silveira Cintra,
1
arcebispo de Olinda e Recife (1916-21) e, mais tarde, do Rio de Janeiro, a Igreja
recuperou seus privilégios por meio de um pacto informal com o Estado. (SERBIN,
2001, p.82). Dom Leme foi indicado por Getúlio Vargas, líder do movimento
revolucionário que pôs fim a chamada República Oligárquica, para persuadir o então
presidente Washington Luiz a abrir mão do poder sem oferecer resistência, o que de
fato veio a acontecer (CANCIAN, 2011, p.23).
2
à realização do Concílio Vaticano II, o mesmo que tinha como objetivo discutir uma
visão mais aberta da Igreja. O Vaticano II é tido por muitos como a mais ampla
reforma da história da Igreja. Segundo Zachriadhes: “O Concílio enfatizou a missão
social da Igreja Católica, defendeu a importância do laicato dentro da instituição,
valorizou o diálogo ecumênico, modificou a liturgia para torná-la mais acessível e
desenvolveu a noção de Igreja como povo de Deus”. (ZACHRIADHES, 2010, p.132). O
Vaticano II veio legitimar algumas tendências renovadoras já existes na Igreja
Católica.
Para muitos autores o nordeste é apontado como sendo o centro irradiador das
mudanças ocorridas no interior da Igreja Católica no Brasil. De acordo com
Mainwaring foi à pobreza que impulsionou a Igreja nordestina a mudar, na medida em
que a sua Doutrina Social se desenvolvia, seria mais provável que a mesma viesse a
ser implantada onde houvesse maiores injustiças. A Igreja do nordeste foi a primeira a
lançar críticas radicais ao regime militar implantado em 1964.
O ano de 1964 no Brasil foi marcado por intensos confrontos políticos. Naquele
ano a alta cúpula militar das Forças Armadas juntamente setores conservadores da
sociedade civil, apoiados pela Agência de Inteligência estadunidense (CIA) uniram-se
com o objetivo de depor o então presidente da República, João Goulart. O mesmo
eleito democraticamente pelo voto popular. Goulart defendia a importância de
reformas profundas nas estruturas do país, tais reformas ficaram conhecidas como:
“Reformas de Base”, as mesmas abarcavam toda a sociedade, existiam planos para
diferentes áreas, como: eleitoral; administrativa; tributária; urbana; bancária;
cambial; universitária, sendo a mais polêmica a que se referia à reforma agrária
(CHIAVENATO, 2004, pp. 21; 22). Na visão dos golpistas, Jango, simbolizava aquilo
3
que havia de “negativo” na vida política brasileira: era demagogo, subversivo e
implacável inimigo da ordem capitalista. (TOLEDO, 1994, p.12).
4
verificou-se uma sensação de alivio e de esperança, sobretudo
porque, em face do clima de insegurança e quase desespero em
que se encontravam as diferentes classes ou grupos sociais (...)
Ao rendermos graças a Deus, que atendeu as orações de
milhões de brasileiros e nos livrou do perigo comunista,
agradecemos aos militares que se levantaram em nome dos
supremos interesses da Nação”. (apud. MAINWARING, 2004,
p.102).
Por meio desta nota emitida pela hierarquia episcopal, fica evidenciado o total
apoio e o sentimento de “gratidão” da ala conservadora em relação à ação dos
militares no Brasil em 1964. De 1964 a 1968 a postura da Igreja em relação ao
governo militar foi de completa aceitação. A maioria da hierarquia episcopal deu apoio
ao golpe militar e integrou-se aos setores dominantes da sociedade. A mentalidade
conservadora e anticomunista da época predominou entre os membros do episcopado
que apoiaram o golpe militar de 1964. Porém é de suma importância afirmar que o
apoio dado pela alta hierarquia ao golpe não representava a totalidade do pensamento
católico brasileiro naquele período, prova disto é que em 13 de abril de 1964, 17
bispos do nordeste em um manifesto intitulado: Declaração dos Bispos do Nordeste,
afirmavam que: “A Igreja, em sua missão, não está vinculada a regime ou a governo,
mas dentro de suas possibilidades colabora com o bem comum, a Igreja não se
identifica com vitórias ou derrotas, e sim com o evangelho”. (ARAÚJO, 2012, pp.144;
147). Os bispos também pediam o justo tratamento para com os presos políticos.
5
ataques verbais por parte das autoridades ligadas ao regime, às mesmas que iam
desde reclamações contra as suas atividades políticas até as acusações de
imoralidades sexuais. (SERBIN, 2001, pp.24; 48; 109).
6
(ARAÚJO, M. Edvaldo, 2012, pp. 47; 58; 53). Em sua primeira reunião com o cardeal
Leme, padre Helder recebeu a ordem de abandonar o integralismo, tendo em vista
que o engajamento político de padres naquela diocese era proibido. Padre Helder
atendeu prontamente a ordem do cardeal Leme.
Padre Helder foi eleito bispo pelo Vaticano após indicação de dom Jaime
Câmara, arcebispo do Rio de Janeiro, em 1952. Como bispo dom Helder fundou a
CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e o CELAN (Conselho Episcopal
Latino-americano). Outros empreendimentos de destaque de Dom Helder Câmara
foram: A Cruzada São Sebastião; O Banco da Providência e a Comunidade de Emaús.
Dom Helder é considerado por muitos como sendo um dos bispos mais atuantes nos
bastidores do Concílio Vaticano II.
No ano de 1952, por iniciativa de dom Helder foi criada no Rio de Janeiro a
Cruzada São Sebastião, a mesma que tinha como objetivo encontrar soluções
humanas e cristãs para os problemas das favelas do Rio de Janeiro. Para alcançar tal
objetivo dom Helder teve a ideia inicial de transferir os moradores das favelas para
prédios construídos em terrenos cedidos pelo Governo Federal. Segundo Edvaldo M.
Araujo, a Cruzada São Sebastião, com o apoio financeiro do Governo Café Filho e
Juscelino Kubitscheck, com donativos e com o planejamento de autofinanciamento, ela
realizou: a construção de uma escola em Lins Vasconcelos; o financiamento de água
em 13 favelas; a construção de um centro de abastecimento; a construção de 910
apartamentos na praia do Pinto e de 46 apartamentos no Morro Azul. Pela a iniciativa
da Cruzada São Sebastião dom Helder recebeu ferrenhas acusações de
assistencialismo e de incoerência por apoiar politicamente o Governo. (ARAÚJO, 2012,
pp.95; 96; 97).
7
de dom Helder em sua nova arquidiocese ocorreu em plena ebulição do regime militar.
No dia 12 de abri de l964, em cerimônia realizada na Basílica do Carmo, dom Helder
tomou posse oficialmente da diocese de Olinda e Recife, em seu pronunciamento de
posse o mesmo deixou claro que estaria aberto ao diálogo com quem quer que fosse,
como ficou evidenciado em um dos trechos de seu discurso, no qual ele afirma:
Por meio deste trecho do discurso de dom Helder, é possível afirmar que o
mesmo foi extremamente corajoso ao proferir tais palavras, tendo em vista que
naquele momento vivia-se um clima de extrema tensão na vida política do Brasil,
mesmo diante de tal situação, dom Helder teve coragem de afirma-se aberta ao
diálogo com todos, independentemente de rótulos impostos por terceiro. O discurso
proferido por Dom Helder em sua posse, é interpretado por muitos estudiosos como
sendo um dos marcos iniciais da resistência da chamada Igreja popular ao regime
ditatorial. (PILETTI; PRAXEDES, 1997, p.303)
O ano de 1966 é apontado por muitos autores como sendo o ano que marca a
ruptura entre dom Helder e o Governo Militar. Edvaldo M. Araujo, afirma que o
episódio responsável por tal rompimento ocorreu no dia 14 de junho daquele ano,
após a emissão do documento “Manifesto dos Bispos do Nordeste”, tendo sido o
mesmo elaborado e assinado pelos arcebispos do Nordeste II. Neste documento o
episcopado nordestino afirmava ter conhecimento do manifesto da Ação Católica
8
Operária (ACO) sobre as situações desumanas nas quais os trabalhadores nordestinos
eram submetidos, e do relatório apresentado pela Ação Católica Rural (ACR) e pela
Juventude Agrária Católica (JAC) referente ao meio rural. (ARAÚJO, 2012, pp.147;
148). Os órgãos de segurança o consideraram “subversivo” e de inspiração marxista,
diante de tais acusações, dom Helder protesta e propõe um debate na televisão entre
os bispos e militares. Após a publicação do “Manifesto dos Bispos do Nordeste”, as
autoridades militares do Recife passaram a acusar dom Helder, abertamente por
conluio com comunistas e o ameaçar de prisão. A visão das autoridades militares
sobre dom Helder fica evidenciada em uma circular emitida e distribuída a leigos e
padres, pela X Região Militar, na qual se afirma:
9
Ação, Justiça e Paz não nasce para ser um movimento cinza,
acomodado e contemporizador . [...] quer ser e será, com a
graça divina, a violência dos pacíficos. Ação, Justiça e Paz tem
como objetivo a humanização daqueles a quem a miséria pões
em estado infra-humano e aqueles a quem o egoísmo
desumaniza. E para sua execução propões: A) A transformação
gradual, porém efetiva, das estruturas socioeconômicas,
políticas e culturais do Brasil e da América Latina. B)
Integração nacional, de maneira que se liberte da existência de
áreas infra-humanas de nosso país. C) a integração latino
americana sem imperialismo internos externos. (apud. ARAÚJO,
2012, pp.191; 192)
No inicio da década 1970, dom Helder já era reconhecido como uma liderança
na luta em defesa dos direitos humanos e da manutenção da paz mundial. Prova disso
é que em maio daquele mesmo ano o jornal estadunidense Sund Times chegou a
mencioná-lo como “o homem de maior influência na América Latina, depois de Fidel
Castro” o mesmo editorial afirmava que dom Helder representava uma “grande e
importante corrente dentro da Igreja Católica”. Como sinal de seu grande prestigio
internacional, dom Helder recebeu em Recife a visita de Ralph David Abernathy,
pastor batista norte-americano sucessor do líder pacifista Martin Luther King. O pastor
Ralph David em conjunto com dom Helder lançou uma nota em defesa das lutas pela
justiça e por métodos pacíficos. (PILETTI; PRAXEDES, 1997, p.378).
10
Helder conhecia pessoalmente casos de torturas, e inclusive chegou a denunciá-las
por meio de um oficio enviado ao governador de Pernambuco, em agosto de 1969,
assim como no Boletim Arquidiocesano, mas não havia se pronunciado abertamente
sobre tal tema fora do país. (PILETTI; PRAXEDES, 1997, p.381).
Atendendo aos pedidos de seus amigos, dom Helder modificou o tema de sua
conferência, a mesma foi intitulada de: “Quaisquer que sejam as consequências”.
Nessa conferência dom Helder apresentou a realidade brasileira demonstrando a
existência das torturas a partir de dois exemplos: O primeiro do estudante Luiz
Medeiros de Oliveira, preso e torturado em Recife, o segundo exemplo, foi o do jovem
Tito de Alencar Lima, frade dominicano de 24 anos, preso e torturado, que após ser
libertado, cometeu suicídio:
11
os seus objetivos, entre eles, chegar ao arcebispado; era explorador da pobreza e
mau caráter por não cumprir seus compromissos. Apesar de todas essas criticas dom
Helder continuava firme na luta pelos direitos humanos no Brasil, e era visto pelo
embaixador estadunidense Chales Elbrich como sendo o candidato ideal para a
presidência do Brasil. (ARAÚJO, 2012, pp.164; 165; 171).
Entre todos os membros do episcopado brasileiro, dom Helder foi sem dúvida
um dos mais que sofreram calunias e perseguições durante o regime militar em nosso
país. Desde meados de 1964, ele era frequentemente convidado a proferir palestras e
conferências ao redor do mundo. Dom Helder foi acusado de estar recebendo dinheiro
proveniente de assaltos a bancos para pagar as suas viagens ao estrangeiro. Em
resposta a essas denúncias dom Helder escreveu uma extensa carta na qual prestava
contas de todas as suas ultimas viagens, com as respectivas entidades que o
convidara e que financiaram suas passagens e estadias. Para Nelson Piletti e Walter
Praxedes, atacar dom Helder tornou-se uma credencial que representava a apoio
irrestrito ao governo militar. (PILETTI, PRAXEDES, 1997, p.386). Até esse momento
dom Helder conseguia se defender das acusações por da mídia, porém isso muda a
partir de 9 de outubro de 1970, quando o então Ministro da Justiça lança a seguinte
nota: “De ordem do Sr. Ministro da Justiça ficam proibidos em todos os órgãos de
imprensa, rádio e televisão,publicações e divulgação de entrevista, artigos e
reportagens de D. Helder Câmara. Tal proibição é extensiva aos horários reservados à
propaganda política”. (apud. PILETTI; PRAXEDES, 1997, pp. 382; 382)
Devido à censura imposta pelos militares a dom Helder, o mesmo entre os anos
de 1970 a 1977 comunicou-se com o povo apenas pelo boletim arquidiocesano, um
informativo mimiografado restrito apenas a arquidiocese de Olinda e Recife e pelo
programa de rádio na emissora local, onde muitas vezes foi obrigado a mudar de
horário.
12
candidato mais cotado ao prêmio, prova disso é que o próprio consultor do Nobel,
Jakob Serdrup em seu relatório manifestou-se claramente favorável à concessão do
Prêmio a dom Helder, ele afirmava:
No ano de 1971, novamente dom Helder foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz. A
fim de evitar a sua vitória a embaixada brasileira em Oslo arquitetou uma campanha
de bastidores contra o arcebispo, para isso buscou ampliar o leque de colaboradores
na Noruega. Naquele ano o prêmio foi entregue ao alemão, Willy Brand. No ano de
1972 o comitê responsável pelo prêmio não escolheu nenhum ganhador. No ano de
1973, dom Helder novamente foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz, naquele ano o
prêmio foi dado a Henry Kissinger (EUA) e Le Duc Tho (Vietnã) que receberam o
prêmio em virtude das negociações pelo fim da guerra do Vietnã. Segundo Edvaldo M.
Araujo a repercussão da politização política do Prêmio da Paz gerou protestos em
grande escala, fazendo com que Le Duc Tho renunciasse ao prêmio e Henry Kissinger
mandasse um representante para receber o prêmio. (ARAÚJO, 2012, p.174). Em
protesto, a Associação da Juventude Norueguesa lançou uma campanha pela criação
do “Prêmio Popular da Paz”. A iniciativa foi prontamente apoiada pela Suécia,
Dinamarca, Finlândia, Holanda, Bélgica, Áustria e Itália, que arrecadam em torno de
um milhão e meio de coroas norueguesas. Nesse mesma época a Alemanha Ocidental
também criou o seu prêmio Popular da Paz. Em 1974, dom Helder recebeu em Oslo o
Prêmio Popular da Paz.
13
Somente a partir da década de 1980, com o processo de abertura política, dom
Helder começou a deixar de ser considerado um “mau elemento” na sociedade
brasileira. Dom Helder Câmara durante e após o Concílio Vaticano II foi um dos
principais entusiastas das mudanças proposta pela Igreja. Por sua militância em
defesa da justiça social e em nome dos direitos humanos ele passou a ser conhecido
como o “Profeta do terceiro mundo”. Ao longo de sua trajetória dom Helder recebeu
inúmeros títulos e Prêmios, todos ligados ao seu compromisso com a justiça e com a
paz.
14
BIBLIOGRAFIA
GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
MORAIS, Dênis. A esquerda e o golpe de 1964. São Paulo: Expressão Popular 2011
TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
15
A CATOLICIZAÇÃO DA POLÍTICA NO ESTADO NOVO
Marco A. Baldin*
RESUMO: A era Vargas serviu de apoio para que a Igreja Católica soubesse encontrar
seu caminho na República Brasileira: aliment ar e dar espírito de nacionalidade ao
país, catolicizando os espaços públicos, as instituições mais importantes, as
consciências cidadãs que, a partir dali, deveriam se submeter a uma nova ordem
política, dentre aquela que apregoava o governo autoritário, qual seja, o limite entre
ser cidadão-cristão e cristão-cidadão.
Proclamada a República, tudo levava a crer que a Igreja Católica iria perecer
sob o plano sorrateiro de posit ivistas, maçônicos e protestantes que, supostamente,
iriam aniquilar ou extinguir a Igreja . Ao contrário , ela sobrevive e, além disso, se
sobrepõe aos níveis anteriores de relação estabelecidos no padroado. A Igreja, junto
ao Exército, acabam se tornando as instituições de maior influência na Primeira
República. Ambas as instituições iriam despertar na nação um papel que lhe daria
legitimidade, identidade e sentido político de ser. O Exército se apresenta como órgão
vital de manutenção da ordem pública e, por isso, exigia ser tratado como braço
direito do governo estabelecido, embora quisesse muito mais nas manifestações dos
tenentes e dos sargentos, isto é, reestruturar a instituição para controlar o Estado,
apodrecido pelos maus costumes da corrupção endêmica (CARVALHO, 2006). A
Igreja, mesmo que estivesse convencida de que era a religi ão predominante da
maioria dos brasileiros, não agia como tal, timidamente espremida pela ausência de
lideranças no episcopado, um clero altamente arredio, distante dos ideais do povo,
como apregoava o padre Júlio Maria (VILLAÇA, 1975, p. 72) e, principalmente, com
* Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” e doutorando pela
mesma instituição.
um discurso e uma doutrina quase que obsoletos e tremendamente anacrônicos, pois
não causavam mais impactos diante do avanço massivo da ci ência, do
desenvolvimento do cinema, do rádio, da imprensa escrita, enfim, da secularização
violenta do início do século XX que pôs em xeque a existência da predominância de
um pensamento expresso na ideia de que o mundo era governado por uma força
sobrenatural em detrimento do mundo natural (MANOEL, 1999).
Frente a esse quadro, a Igreja procurou se organizar para tentar novamente ser
uma presença decisiva no cerne do poder, mas com ações simultâneas junto às
organizações sociais, tanto as já existentes no país, como também presente naquelas
que ela própria iria criar: Centro Dom Vital, LEC, Liga das Senhoras Católicas,
Instituto Católico de Estudos Superiores, Coligação Católica, Ação Universitária
Católica, dentre outras. Sem dúvida, todas essas organizaç ões foram criadas com o
fim preciso de interferir na política do país, n ão apenas no nível do Estado, mas
também nos grupos empresariais, nas Forças Armadas, na condução da educação em
todos os níveis, na imprensa, na cultura (PIO XI, 1960), na família, nos clubes.
Referências Bibliográficas
CAPELATO, Maria Helena Rolim; PRADO, Maria Lígia. O Bravo matutino – imprensa
e ideologia no jornal ”O Estado de S ão Paulo”. S ão Paulo: Editora Alfa-Omega, 1980,
p. 52.
LEÃO XIII, (Papa) Rerum Novarum . Sobre a condiç ão dos operários , 4ª Ed.
Petrópolis: Vozes, 1954; BOSI, Alfredo. Rerum Novarum. Uma encíclica entre a
reação e o progresso. Folha de São Paulo, 11/maio/1991, p. 6-2.
LEME, Sebastião (Dom). Acção Catholica . 2ª Ed. Rio de Janeiro: Livraria Catholica,
1935.
LIMA, Alceu Amoroso. O Cardeal Leme. Rio de janeiro: Livraria José Olympio
Editora, 1943, p. 166-167.
MAISTRE, Joseph De. Considerações sobre a França . Trad. Rita Sacadura Fonseca.
Coimbra: Edições Almedina, 2010.
SANTO ROSÁRIO, Irm ã Maria Regina do. O Cardeal Leme . Rio de Janeiro: José
Olympio, 1962, p. 61.
TOUCHARD, Jean (org.). História das Ideias Políticas. Trad. Mario Braga. Vol. 3,
Lisboa: Publicações Europa-américa, 1970, p. 104.
Esta pesquisa integra uma análise mais ampla que vem sendo
desenvolvida pela Professora Célia Santana, partindo de suas indagações e
questionamentos, resolvemos dar um novo recorte para o tema sem perder o
seu direcionamento. Nessa pesquisa partimos de alguns conhecimentos sobre
a Instituição Histórica Tradicional Assembleia de Deus, como a sua distancia
quanto às questões políticas.
1
Graduando do Curso de História VIII Semestre, pela Universidade do estado da Bahia. (UNEB – Campus
XVIII.
eleições para a assembleia Nacional constituinte. Nas eleições de 1982 haviam
sido eleitos 12 deputados federais evangélicos, sendo apenas dois
pentecostais, no pleito de 1986 foram eleitos 32 parlamentares desse
seguimento religioso, sendo 18 deles pentecostais. No expressivo crescimento
da representação pentecostal o destaque foi para a Igreja Evangélica
Assembleia de Deus com 13 deputados eleitos. Em 2012, a representação
evangélica em Brasília cresceu muito, chegando a 51 parlamentares, com 49
deputados federais e 3 senadores eleitos (SOUZA, André Ricardo, OS
EVANGÉLICOS NAS ELEIÇÕES MUNICIPAIS. Pag. 28. Revista Eletrônica
Correlatio n. 17 – Junho 2010.
Resumo:
Este trabalho se propõe a discutir a produção de verdades no Espiritismo kardecista, o
processo de legitimação das mesmas através do "Controle Universal do Ensino dos
Espíritos", a disputa do monopólio da produção dos bens simbólicos espíritas e as
controvérsias existentes entre a obra de Kardec e Jean Baptiste Roustaing, tomando
por inspiração o conceito de controvérsia de Bruno Latour e utilizando a metodologia
de análise do discurso de Michel Foucault para compreender a produção do discurso
da doutrina, seus modos de legitimação e rejeição desse discurso.
1. Introdução
Este artigo relaciona-se ao trabalho de dissertação em andamento3 e é fruto do
interesse na gênese do Espiritismo kardecista, notadamente no que se refere à sua
produção de verdades e como se dá a legitimação das mesmas. Com essa finalidade,
serão analisadas as controvérsias entre Allan Kardec, o codificador da Doutrina
Espírita, e o advogado francês Jean Baptiste Roustaing, adepto do Espiritismo que se
propôs a publicar uma obra denominada Os Quatro Evangelhos - A Revelação da
Revelação que, em sua visão, daria continuidade à obra de Kardec, sendo-lhe um
complemento necessário. Utilizaremos neste artigo o trabalho de Iracilda Gonçalves
(2010) sobre a produção de verdades no Espiritismo, as teses de Michel Foucault
sobre a produção do discurso e de Bruno Latour sobre as controvérsias.
Como nosso trabalho foi construído a partir do referencial das Ciências Sociais
das Religiões, faremos num primeiro momento a contextualização histórica das
Ciências das Religiões, dos seus primórdios à discussão de sua emancipação no meio
acadêmico como disciplina e de ser ou não uma ciência própria.
Na segunda parte, é realizado um breve histórico do contexto em que surge o
Espiritismo na França, através do fenômeno das mesas girantes, como Allan Kardec
surge nesse cenário com seus estudos e como se dá o processo de seleção e aceitação
ou não das verdades que farão parte do corpo doutrinário do Espiritismo, e como esse
critério de seleção rejeita as teses de Jean Baptiste Roustaing, cuja obra Os Quatro
*
Mestrando em Ciências das Religiões (PPGCR/UFPB). E-mail para contato:
fabianovidal.ufpb@hotmail.com.br
**
Professora Adjunta do Departamento de Ciências das Religiões da UFPB e de seu Programa de Pós-
Graduação em Ciências das Religiões – PPGCR.
3
A dissertação, em construção, a ser defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da
UFPB intitula-se Em torno do Nosso Lar: Uma análise das controvérsias e discursos produzidos no
Movimento Espírita.
Evangelhos se apresenta como complementar à obra kardequiana, mas sendo
rejeitada posteriormente pelo codificador do Espiritismo, o que irá causar um cisma na
nova doutrina.
4
Greschat cita como exemplos arqueólogos, historiadores, sociólogos, médicos, psicólogos e juristas.
diferença entre as duas disciplinas é que na Ciência da Religião o cristianismo não é
tomado como referência, o que a leva a posicionar-se de forma irrestrita quanto aos
objetos por ela tidos como dignos de investigação e em sua motivação pelos objetos
estudados, apresentando um interesse primário isento de motivos apologéticos ou
missionários. Para Usarksi, esta capacidade de abstração religiosa e sua “indiferença”
quanto às contraditórias pretensões de verdades com as quais o pesquisador se
defronta são competências-chave que caracterizam a Ciência da Religião (Usarksi,
2006, p. 17).
Acerca do uso do termo Ciência da Religião ou Ciências das Religiões, Filoramo
e Prandi assim se posicionam:
Quem fala de ciência da religião tende, de um lado, a pressupor a
existência de um método científico e, do outro, de um objeto unitário.
Quem, ao contrário, (...) prefere falar de ciências das religiões, o faz
porque está convencido tanto do pluralismo metodológico (e da
impossibilidade de reduzi-lo a um mínimo denominador comum) quanto do
pluralismo do objeto (e da não-liceidade e até impossibilidade, no plano da
investigação empírica, de construir sua unidade) (Filoramo; Prandi, 2007,
p.12).
Conforme este autor, as ciências das religiões não podem ser consideradas
uma disciplina a parte, fundada, do modo como idealizaria a tradição
hermeneuticamente orientada, sob a unidade do objeto e do método. As ciências das
religiões são, antes de tudo, um campo disciplinar e, consequentemente, uma
estrutura aberta e dinâmica (Filoramo; Prandi, 2007, p.13).
O uso da palavra “ciência”, no sentido específico do qual provém a expressão
“ciência da religião”, de acordo com Dreher, é oriundo de uma íntima relação com o
termo alemão Wissenschaft, que possui, segundo ele, o significado de um
conhecimento sistemático e coerente, um saber (Wissen) regrado e controlado,
explicitador dos seus pressupostos e que controla e justifica seus procedimentos
(Dreher, 2001, p. 162-163).
Em relação à institucionalização da ciência(s) da religião(ões) como uma
disciplina acadêmica autônoma, Usarski considera que a mesma teve início nas
últimas três décadas do século XIX, quando surgiu a primeira cátedra de “Histoire dês
Religions” em 1873 na Facultè dês Lettres na Universidade de Genebra (Usarski, 2006,
p.24-25). O desenvolvimento da ciência(s) da religião(ões) enquanto disciplina teve
um grande progresso a partir de 1886, quando, através de decreto governamental, foi
fechada a Faculdade de Teologia da Sorbonne para dar lugar à Section dês Sciences
Religieuses da École dês Hautes Études, caracterizada pelo então ministro responsável
como um “centro de pesquisa crítica” (Usarksi, 2006, p. 26).
No entanto, outros indicadores além da “oficialização” da Ciência da Religião
nas universidades explicam sua progressão enquanto disciplina no meio acadêmico: o
surgimento de periódicos e publicações e organização de congressos, que por sua vez
refletiam nas comunidades científicas relacionadas e ofereceram a oportunidade para
o fortalecimento da consciência de integridade da própria comunidade científica
(Usarksi, 2006, p. 27).
No Brasil, a proposta da(s) ciência(s) da religião como uma nova área
acadêmica, surge, segundo Dreher, a partir de uma concepção de que o objeto
“religião/religiões” tem muito a ganhar através de uma melhor compreensão e
aclaramento científico, se este for estudado de forma interdisciplinar e autônoma. Este
estudo interdisciplinar em solo brasileiro, destaca o autor, foi moldado baseado em um
modelo ora de aliança, ora de complementaridade com as ciências sociais, que deram
uma contribuição significativa no tocante ao desenvolvimento de uma agenda para o
estudo acadêmico da religião. Para Dreher, deve-se a este fato o maior interesse
atualmente manifestado pela questão do diálogo inter-religioso que, apesar de ainda
estar atrelado à teologia no país, possui um potencial próprio dentro da(s) ciência(s)
da religião (Dreher, 2001, p. 159-160).
Kardec, então, assume que os fenômenos por ele estudados não poderiam ser
explicados pelas leis já conhecidas, e adota o método experimental utilizado pelas
ciências positivas (Gonçalves, 2010, p. 36). Sua decisão é assim explicada:
Apliquei a essa nova ciência, como o fizera até então, o método
experimental; nunca elaborei teorias pré-concebidas; observava
atentamente, comparava, deduzia as consequências; dos efeitos eu
procurava remontar às causas, pela dedução e o encadeamento lógico dos
fatos, só admitindo como válida uma explicação quando ela pudesse
resolver todas as dificuldades da questão. (Kardec, 2002, p. 394)
5
Para Allan Kardec, a Doutrina Espírita é a Terceira Revelação das leis de Deus. A primeira revelação
estava representada na figura de Moisés; A segunda, personificada na figura de Jesus; e a terceira, o
Espiritismo, que seria o Consolador Prometido por Jesus, não estando personificado por alguém, mas
é o produto do ensinamento dado pelos espíritos.
6
As teses defendidas por Jean Baptiste Roustaing, assim como seus adeptos, são denominadas de
roustainguistas, rustenistas ou rustanistas.
consideradas como partes integrantes da Doutrina Espírita (Kardec, 1993,
p.129).
Para Latour, uma sentença dependerá da forma como está inserida em outras
para ser considerada mais fato ou ficção: “Por si mesma, uma sentença não é nem fato
nem ficção; torna-se um ou outra mais tarde graças a outras sentenças” (Latour, 2011,
p.35). Conforme o autor, a sentença será tornada mais fato desde que esteja “inserida
numa premissa fechada, óbvia, consistente e amarrada, que leva a alguma outra
consequência menos fechada, menos óbvia, menos consistente e menos unificada”. De
acordo com o filósofo e antropólogo francês, ao olharmos uma controvérsia mais de
7
Conforme relato do autor espiritual na obra Brasil Coração do Mundo, Pátria do Evangelho,
psicografada pelo médium Francisco Cândido Xavier.
perto, perceberemos que “metade do trabalho de interpretação das razões que estão por
trás da crença já está feita!” (Latour, 2011, p. 37).
A continuação de um debate implica no aprofundamento do objeto estudado, o
que geraria um maior número de novas condições de produção a serem atacados, uma
vez que a cada nova contestação a ser adicionada ao debate da controvérsia, o status da
descoberta original será modificado. Consequentemente, o destino da afirmação (sua
definição como fato ou ficção) dependerá dos debates ulteriores:
Seu grau de certeza aumenta ou diminui, dependendo da sentença seguinte
que a retomar; essa atribuição retrospectiva se repete na nova sentença, que,
por sua vez, poderá ser tornada mais fato ou ficção por força de uma terceira,
e assim por diante (Latour, 2011, p. 39-40).
O que Latour denomina por debates ulteriores aconteceu, de fato, entre Allan
Kardec e Roustaing. Em 1868, apenas dois anos após o lançamento de Os Quatro
Evangelhos, Kardec publica A Gênese, onde procura implodir, de forma definitiva, a tese
central roustainguista acerca do corpo fluídico de Jesus:
Como homem, [Jesus] tinha a organização dos seres carnais; mas como
Espírito puro, destacado da matéria, devia viver na vida espiritual mais que na
vida corporal, da qual não tinha as fraquezas. A superioridade de Jesus sobre
os homens não era relativa às qualidades particulares de seu corpo, mas à de
seu espírito, que dominava a matéria de maneira absoluta, e ao seu perispírito
alimentado pela parte a mais quintessenciada dos fluidos terrestres (Kardec,
2003, p.263).
Foucault fecha seu raciocínio sobre as doutrinas ao considerar que estas ligam os
indivíduos a certos tipos de enunciação e, ao mesmo tempo, sujeita seus seguidores à
sujeição “dos sujeitos que falam aos discursos e dos discursos ao grupo, ao menos
virtual, dos indivíduos que falam” (Foucault, 2011, p. 43).
Desta forma, concordamos com Vilhena, quando esta autora afirma que, em
decorrência de críticas acirradas entre grupos representativos de posturas antagônicas e
concorrentes, o diálogo se torna mais áspero e, muitas vezes, praticamente impossível,
originando cismas e rupturas no interior da mesma religião, conduzindo ainda à formação
de dissensões dos grupos disputantes que arvoram para si a pretensão da correta
interpretação dos princípios doutrinários e práticas a eles correlatas (Vilhena, 2008, p.
14).
4. Considerações finais
Cremos ser esta discussão acerca da produção e legitimação de verdades
doutrinárias espíritas de suma importância para uma maior compreensão das várias
correntes existentes no seio do movimento espírita brasileiro, uma vez que através do
estudo da temática aqui abordada poderemos chegar a um entendimento de como se
deu os momentos de implantação, consolidação e de legitimidade social ou
doutrinária. As Ciências das Religiões, em nosso entender, é o meio mais propício para
tal estudo, face às suas pretensões de abstração religiosa e isenção missionária.
Ressalte-se que o Espiritismo dentro do campo religioso brasileiro é relevante não
apenas pelo expressivo número de adeptos8, mas também em decorrência de seus
princípios básicos serem aceitos por muitos brasileiros, incluindo aqueles adeptos de
outras religiões.
Como exemplo da importância do estudo desta temática, citamos Giumbelli:
No Brasil, Os Quatro Evangelhos, traduzido em 1883 por Ewerton Quadros,
influenciaram livros como A divina epopeia de João Evangelista, de
Bittencourt Sampaio, 1882 (...); e Elucidações evangélicas, de Antonio
Sayão (1897) – este último muito usado em substituição ao original de
Roustaing, tido como de difícil compreensão (Giumbelli, 1996, p.75).
8
Dados do Censo 2010 indicam que a doutrina de Kardec possui 3,8 milhões de seguidores, o que faz
do Brasil o maior país espírita do mundo. De 1,3% da população em 2000, o número de adeptos sobe
para 2,0% em 2010.
Mas a influência da obra de Roustaing não teria ficado limitada às obras citadas
por Giumbelli. Sérgio Aleixo, vice-presidente da Associação de Divulgadores do
Espiritismo do Rio de Janeiro (ADE-RJ), denomina a obra roustainguista de
“deturpação perigosa” que não seria divulgada apenas por sua obra principal,
concorrente de Kardec, “mas mediante livros psicografados por Chico Xavier” (Vidal,
2012, p. 72). Arribas credita a aceitação e divulgação das teses roustainguistas no
Brasil ao fato desta se conciliar às predisposições católicas de muitos espíritas, que
deram origem em solo brasileiro a um Espiritismo catolicizado que segue dominante
no movimento espírita brasileiro até a atualidade (Arribas, 2010, p. 235). Desta
forma, consideramos que o presente trabalho será capaz de dar sua parcela de
contribuição às questões aqui propostas na busca da compreensão das controvérsias
espíritas.
Referências
ABREU FILHO, Júlio; PIRES, José Herculano. O Verbo e a Carne. São Paulo: Edições
Cairbar, 1973.
ARRIBAS, Célia. Afinal, Espiritismo é religião? A doutrina espírita na formação da
diversidade religiosa brasileira. São Paulo: Alameda, 2010.
DREHER, Luís Henrique. Ciência (s) da Religião: Teoria e Pós-Graduação no Brasil. In:
TEIXEIRA, Faustino (org). A(s) ciência(s) da religião no Brasil. Afirmação de uma área
acadêmica. São Paulo: Paulinas, 2001.
FILORAMO, Giovani; PRANDI, Carlo. Para um estudo científico da religião. In: As
Ciências das Religiões. São Paulo: Paulinas, 2007. (Coleção Repensando a Religião).
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2011.
GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história da condenação e
legitimação do espiritismo / Emerson Giumbelli – Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
1997.
GONÇALVES, Iracilda Cavalcanti de Freitas. Psicografia: verdade ou fé? João Pessoa:
Editora Universitária UFPB, 2010.
_____________________. Na discursivização de Nosso Lar: as verdades do
Espiritismo. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2011.
GRESCHAT, Hans-Jürgen. O que é ciência da religião? / Hans-Jürgen Greschat;
[tradução Frank Usarski]. – São Paulo: Paulinas, 2005. – (Coleção repensando a
religião)
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Allan Kardec; tradução de José Herculano Pires.
66ª edição. São Paulo: Lake, 2009.
_______________. Obras Póstumas. Tradução de Maria Lúcia Alcântara de Carvalho.
1ª ed. Rio de Janeiro: CELD, 2002.
_______________. A Gênese. Allan Kardec: tradução de Victor Tolendal Pacheco. 21ª
edição. São Paulo: Lake, 2003.
_______________. Revista Espírita. Quarto Ano – 1861. Tradução de Salvador
Gentile, revisão de Elias Barbosa. Araras, SP, IDE, 1ª edição, 1993.
LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade
afora / Bruno Latour; tradução Ivone C. Benedetti; revisão de tradução Jesus de Paula
Assis. – 2. ed. – São Paulo: Ed. Unesp, 2011.
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras. Tese (Doutorado em Antropologia) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2000.
USARSKI, Frank. Constituintes da ciência da religião: cinco ensaios em prol de uma
disciplina autônoma. São Paulo: Paulinas, 2006. (Coleção Repensando a Religião).
VIDAL, Fabiano. Breve História do Espiritismo. Florianópolis: Bookess Editora, 2012.
VILHENA, Maria. Espiritismos: limiares entre a vida e a morte / Maria Angela Vilhena.
– 1.ed. – São Paulo: Paulinas, 2008. (Coleção temas do ensino religioso. Série
tradições religiosas).
OPTCHA! CIGANOS, BEIJA FLOR, GLOBO E NILÓPOLIS – DEBATE SOBRE
CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE, ETNIA, CULTURA E RELIGIÃO NA TENDA
CIGANA TZARA RAMIREZ
Um convite no lanchinho
1
Mestrando do PPGCS da UFRRJ.
2
Todos os nomes usados nesse trabalhosão os nomes ciganos de batismo recebidos pelos
médiuns após efetivação de sua relação com a Tenda, optei por não usar seus nomes civis, já
que com essa opção os resguardo, sendo seus nomes ciganos usados somente lá dentro ou entre
os médiuns em ocasiões especiais como no caso da Beija Flor.
3
G.R.E.S Beija Flor de Nilópolis - http://www.beija-flor.com.br
1
uma grande ala de ciganos, mas dependeria do apoio que a escola ofereceria e a
aceitação de Juan, liderança da Tzara, e sua espiritualidade4.
Logo que Juan Ramirez e Arimar foram apresentados aos representantes da
Beija Flor, pelas professoras e médiuns da Tzara, explicaram quem eram e suas
condições para participar. Durante a primeira conversa logo encontraram
conhecidos em comum: a Tzara Ramirez é bem conhecida na Baixada Fluminense
(Nova Iguaçu e Nilópolis, Mesquita e municípios vizinhos), ligados aárea de política,
artes, cultura, dança e religiões afro-mediúnicas, mas esse conhecimentoexplicarei
mais adiante. O primeiro convite era somente para a noite de escolha do samba
enredo, conforme fosse essa noite seriam apresentados às lideranças de
coreografias, alas e o carnavalesco da escola:Layla.
Após entender o que verdadeiramente estava acontecendo, e que convite
tinha aceitado, liguei com certo desespero e desconforto para Arimar; já que ter de
me vestir de cigano não sai da minha cabeça, e de certa maneira ecoava e
martelava em minha cabeça tem que ir vestido de cigano; pedindo maiores
explicações e entender como me posicionar. Arimar me explicou que lembraram de
mim por ter trabalhado muito na festa de Santa Sara de Kali com eles, ter ficado o
ano todonos rituais e principalmente por minhas fotografias, e fez questão de falar:
quanto a roupa, não se preocupa não, agente já separou uma blusa, um lenço e
cinto para você – só vai de calça jeans e tênis, não esqueça da câmera. Te espero
lá as 22:30 horas, me liga e te encontro em frente ao portão principal, não sei se
ela desligou rápido ou meu raciocínio congelou quando disseram que já tinham
minha roupa separada, mas o importante é que ela desligou sem que eu pudesse
responder.
Já eram quase 21 horas e eu tinha de decidir se iria ou não, calculando o
deslocamento, e não posso negar que durante banho, escolha de roupa e garagem
mudei de ideia várias vezes e tive de ligar para alguns amigos antropólogos,
familiares antropólogos e professores para me encorajar, em sua maioria riam
muito antes, mas depois destacavam a importância do evento e sua singularidade,
e determinar ir.
Cheguei uns 20 minutos antes do previsto e comecei a procurar lugar para
estacionar, apesar de ser uma moto, tal tarefa parecia impossível, e só consegui
encontrar vaga uns três quarteirões acima da quadra da escola e por isso comecei a
me preocupar com a segurança da moto e a minha segurança quando voltasse para
ir embora. Mas logo fui abordado por um guardador que,após indagado sobre
segurança, sorriu e me afirmou algumas certezas e algumas perguntas, as
4
Desde o primeiro momento os adeptos da Tzara Ramirez apresentaram seu envolvimento com
o mundo cigano.
2
certezas: Tu nunca foi na noite de escolha de samba enredo! e Cê nunca veio a
beija flor! e as perguntas foram: Vai ficar até o final? e não conhece as relações?
Ele acertou tudo.
Graças ao telefonema de Arimar, avisando do atraso que ocorreria,
remarcando para 23 no nosso ponto de encontro, e abertura oferecida pelo
guardador comecei a entender a mistura que se concretizaria ao entrar na quadra
da escola de samba. Desenvolvendo a conversa com o guardador pude entender as
suas perguntas e afirmações, a noite de escolha de samba enredo é um marco que
se fechaum ciclo e se abreoutro ciclo. Está se fechando a escolha do samba enredo
que a escola irádefender/cantarno próximo carnaval, e essa escolha é um
processo/concurso longo, demorado e sério, lembrou ele de histórias contadas por
familiares mais velhos, de tempos que era uma bagunça e os bicheiros5, segundo
ele, acabavam com os concursos, mudavam o samba e “coisas desse tipo”,
contrastando com hoje em dia que segundo ele é sério: a Globo até filma6. E o
novo ciclo que se abre é o de ensaios técnicos que começam na semana seguinte a
escolha do samba enredo e termina com os dois ensaios marcados na avenida ou
ensaio geral, e quando perguntei do carnaval em si, achei que seria o encerramento
do segundo ciclo, ele sorriu e respondeu: o carnaval é a prova de fogo7.
Quando perguntei novamente se ali era seguro e porque era seguro, ele
explicou as afirmações e perguntas feitas acima. Aqueles quarteirões, segundo ele,
seriam o lugar mais seguro de Nilópolis aquela noite, ninguém quer estragar a
festa, é bom pra todo mundo. Após essa declaração e no desenrolar da conversa e
posteriormente andando para meu ponto de encontro entendi as relações
estabelecidas ali e devidamente detalhadas por aquele humilde guardador de carro,
nascido e sempre morador de Nilópolis, como ele mesmo se identificava. Durante
as noites de eventos relacionados ao carnaval da Beija-Flor, período de Novembro a
Fevereiro de cada ano, o policiamento acontece em toda a região da quadra (um
raio de 5 quarteirões), mas de maneira mais intensa nos 3 primeiros quarteirões
onde ficam as barracas de comidas e que vendem blusas e coisas mais e por isso
acontece maior intensidade de concentração de pessoas e polícia. A própria
comunidade está extremante envolvida com os eventos, seja como vendedores,
guardadores de carros, integrantes da escola e outras funções mais, explicando a
colaboração desses para a manutenção da ordem e segurança. Além das alianças
paralelas entre Beija–Flor, políticos locais, moradores e polícia, que impossibilita
5
Como ficaram conhecidos os contraventores ligados ao Jogo do bicho.
6
Conferindo ao ato de filmar e a presença da Rede Globo de televisão a legitimação da seriedade
do concurso e seu desenvolvimento, quase em um padrão Globo de qualidade.
7
Lembrando que essas observações não resumem o trabalho desenvolvido durante todo o ano
nas escolas de samba, que começa muito antes disso e não pode ser descartado.
3
pequenos furtos, bagunça, reboque de carros estacionados de forma proibida e o
fechamento de 3 quarteirões mais próximos a quadra para o transito.
4
último camarote antes da área nobre/VIP onde em um grande salão com ar-
condicionado ficam os diretores da Beija Flor e políticos influentes de Nilópolis, com
baldes de cerveja e água e alguns brindes como: bandeiras com o número do
samba enredo que defenderiam, blusas e echarpes de caubói. O tema Amigo fiel:
do cavalo do amanhecer ao manga-larga marchador. O enredo conta a história da
relação entre o cavalo e a história do homem Sou Mangalarga Marchador! Um
vencedor, meu limite é o céu! Eu vim brilhar com a Beija-Flor...Valente guerreiro,
amigo fiel!..., onde em um determinando momento do samba conta a importância
da relação do cavalo com o povo cigano nas caravanas, batalhas e uma busca de
purificação do sangue desses animais ...Cigano... Buscando a purificação!
Mostrando elegância e bravura, A minha aventura se torna canção!, o que
justificava o convite dos ciganos da Tzara Ramirez ali. No primeiro momento não
entendi o porquê dessa estrofe no meio do samba enredo e a relação que
justificasse um convite com tanta força, somente depois de um estudo e conversas
pude compreender, mas tratarei disso mais a frente.
Assim que me coloquei um pouco mais na lateral do grupo de deixei de ser o
centro das fotos comecei a observar a interação do grupo com aqueles que
estavam a margem do espaço para eles separado. Muitas pessoas encostavam,
quase entrando, pedindo para tirar fotos com os ciganos e eles de maneira solicita
atendiam, posando e performatizando olhares obscuros e danças, o que chamava
cada vez mais atenção e de maneira direta aumentava o pedido de fotografias a
serem tiradas. Por estar àmargem entre eles e os seus admiradores era
constantemente questionado com a pergunta: são ciganos? E só balançava com a
cabeça de maneira positiva, sem questionar ou problematizar. Até que um dos
grupos de admiradores me surpreendeu conversando com 3 ciganos, um homem e
duas mulheres, com o pedido para tirar uma foto. Muitas vezes ouvi isso na Tenda
e me retirava ou até oferecia para bater a foto da pessoa com ele, mas dessa vez a
pergunta era para mim, quer dizer nós 4, e apesar de tentar disfarçar, sair ou tirar
a foto não consegui e fui fotografado como cigano algumas vezes. Ainda antes de
sair essa jovem, após observar minha dificuldade com a situação, fez a seguinte
pergunta: Você não é cigano?, sei que ela esperava uma resposta, mas não eu e
sim os ciganos que me acompanhavam imediatamente responderam positivamente
para acabar com a situação, e eu mudo só conseguia me perguntar: Posso virar
cigano? Existe essa possibilidade? Hoje sou cigano por uma noite? A identidade do
grupo se tornou um problema a ser pensado como pesquisador e a identidade
somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe
como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza
(HALL, 2011, p. 9).
5
Minha primeira fotografia da beira do camarote se tornou um objeto de
observação etnográfica pela observação que fiz de imediato em meus
pensamentos:quanta mistura 8 ,lembrando de um texto que já foi muito debatido
entre grupo de amigos do programa de PPGCS e me dava a mesma impressão ao
observar a foto, unindo com os relatos do guardador de carro e minhas indagações
quando recebi o convite para assim como o meu grupo estar ali. Balões, bandeiras,
faixas e símbolos mais variados e diferentes se congelaram no viso da câmera,
assim como pessoas e personagens mais variados que eram símbolos importantes
a serem analisados também. Ali Globo, Beija Flor, Ciganos e Nilópolis se
misturavam e representavam interesses diferentes, mas é a Tenda Tzara e seus
ciganos que se são o foco de minhas observações e minhas análise nesse trabalho.
Como os ciganos foram parar ali, o que representam ali e como interagem com os
demais grupos ali representados?
A Rede Globo estava ali como principal patrocinadora da Beija Flor naquele
ano, por causa da relação do enredo com a novela Salve Jorge 9 da Globo, que
mostra a região de origem do povo cigano e os cavalos mais importantes e valiosos
e a relação estabelecida no início da história cigana com esse animal. E os políticos
de Nilópolis mantêm uma longa e estreita relação com a presidência da Beija Flor
desde sua fundação, o que explica a força da escola de samba na comunidade e
relação com os moradores e comunidade e muitas vezes se misturando com esfera
pública. Mas como os ciganos da Tenda chegaram até ali?
Alguns minutos antes da execução do sambar enredo de número 70, um
homem chamado Jorginho da Beija Flor foi correndo chamar os ciganos da Tzara;
era ele um dos compositores e responsável pelo convite que resultou naquela noite;
e pediu que eles se posicionassem na frente do palco, entre a bateria e a plateia,
de frente para Layla, carnavalesco da Beija Flor. Logo pedi a Arimar que explicasse
que iria fotografar10 e ele de imediato me mostrou onde ficar e tirar minhas fotos
no palco e no chão, disse que falaria com os seguranças para liberar meu trânsito,
e assim fez. Todos desceram e se posicionaram onde foi pedido e assim que o
samba enredo começou os ciganos da Tenda começaram a dançar, rodando e
balançando saias e chapéus, em coreografia de dança cigana, às vezes um ou outro
dava uma sambadinha balançando a saia ou chapéu, rindo e brincando de misturar
dança cigana com samba. Sempre sorrindo e se apresentando para a bateria,
público e Layla, tirando gritos, aplauso e comentários de admiração de ambos os
8
“É muita mistura”: religião, música, política, dengue, beleza e saúde no Complexo do Alemão
– Carly Barboza Machado PPGCS – UFRRJ, Trabalho apresentado 28° Reunião ABA – 2012.
9
http://tvg.globo.com/novelas/salve-jorge/index.html
10
Também tinha medo que quisesse que sambasse ou dançasse igual cigano, e não sei fazer
nenhum dos dois.
6
três, ao final os membros da bateria e público demoraram o retorno para o
camarote por causa da grande quantidade de fotografias tiradas com a surpresa da
noite. Apesar de naquela noite o samba enredo que a Tenda defendia não ter
ganho,a Tenda saiu como vitoriosa, pois conseguiu encantar todos presentes,
reproduzir o ethos cigano(GEERTZ, 1989, p.104)e o convite do próprio Layla de
participar de uma Ala de Ciganos, e uma reunião para resolver isso durante
semana.
No domingo seguinte fui ansioso ao atendimento da Tenda esperando
noticias daconversa que ocorreria durante a semana e até então não tinha noticias,
assim que cheguei fui direto a sala de Arimar, e pedi que me contasse sobre sua
reunião com Layla. Ela me contou que foram recebidos por ela durante a semana,
assim como outros representantes da Beija Flor, e que participariam mesmo do
carnaval em uma ala de ciganos. Disse que os três (Juan, Arimar e Morgana – uma
das professoras de dança que é médium na Tenda) falaram com ele e esclareceram
e acertaram algumas coisas sobre participação, roupa e coreografia. Após deixá-la
falar por quase uma hora ela comentou Aí o Layla perguntou se agente era cigano
mesmo, eu disse que sim, de coração, de espírito! Ele perguntou se tinha algum
cigano de sangue, família. Eu disse que sim, mas se fosse para a Tenda ir teríamos
de ir todos, todos somos ciganos, senão estaríamos fora!. O ser cigano para o
grupo da Tenda parece ser um só, onde real (sangue) e imaginado
(espiritualidade), que eles entendem ser e existir assim, na avenida – assim como
em qualquer momento que estão como Tenda Tzara Ramirez, ritualístico ou não – é
um só (GEERTZ, 1989, p.129) os critérios de pertencimentos são do grupo e
independentes do olhar de fora, seja pesquisador ou não(BARTH, 2000, p. 25-67).
11
A brincadeira do título é referencia ao ato de se descobrir “seu cigano” – como chamam os
adeptos da Tenda quando uma pessoa joga cartas para descobrir que cigano incorpora e que
trabalhos esses ciganos fazem.
7
e de candomblé diferentes, pudessem cuidar 12 de seus ciganos, já que uma
característica da Tenda é o duplo pertencimento dos adeptos em umbanda e
candomblé, que os mesmos chamam de outro lado. Juan começou abrir no mesmo
espaço dias só para trabalhos com espíritos ciganos e em outros dias para rituais
de candomblé, mas o espaço de ciganos começou a se tornar conhecido pela
propaganda dos próprios adeptos e pessoas da comunidade. Três anos depois Juan
foi orientado a procurar outro lugar, que tivesse um espaço maior para as
atividades ritualísticas e principalmente houvesse a separação da Tenda Tzara
Ramirez do barracão de candomblé – pedido feito ao Cigano Juan Ramirez.
Esse pedido teria sido feito pelo cigano, pois os espíritos ciganos queriam
um espaço só para eles, já que não se sentiam a vontade de dividir um espaço
onde acontece sacrifício de animal, já que isso não existe na tradição cigana. Entre
os trabalhos, feitiços e magias dos espíritos ciganos não existe o pedido de sangue
vermelho 13 , somente de sangue verde 14 . Esse pedido fez com que a região da
Chacrinha fosse trocada para uma região mais ampla e que as especialidades
fossem separadas, a opção foi o bairro de Santa Eugenia que é mais distante do
centro de Nova Iguaçu, onde hoje em dia se localiza a tenda – nessa região foram
comprados dois terrenos, um para a Tenda Cigana Espiritualista Tzara Ramirez15 e
outro para o Barracão de Candomblé.
O espaço que chamo de Tenda está em um terreno de 700 m² onde se
encontram a tenda, que é um barracão ocupando a metade do terreno, pintado
com desenhos de ciganos e de forma bem colorida, um tablado de madeira central,
telhado simples e que usa como divisórias um conjunto de biombos móveis, que
são colocadas e tiradas com facilidade – dependendo das cerimônias. Na região de
trás da tenda temos algumas salas que são usadas para trabalhos espirituais como
banhos, cirurgias espirituais, sala dos potes e vestiários. No espaço à frente da
Tenda encontramos o pátio central, onde a salamandra está localizada ao centro, e
a região de espera dos pacientes, com o número de sete bancos onde mais de
setenta pacientes se revezam quinzenalmente sentados ou em filas enormes em pé
para algum dos trabalhos que são ali oferecidos.
Assim apresentado o local e como surgiu a Tenda Cigana Espiritualista Tzara
Ramirez esclareço que esse trabalho tem como campo somente esse grupo
12
Expressão que é usada quando o médium adepto da casa usa para explicar que na Tenda
direciona sua atenção espiritual para trabalhar com seu espírito cigano, já que no candomblé e
na umbanda eles podem dar uma atenção melhor aos outros espíritos.
13
Referência que os espíritos ciganos fazem ao sacrifício de animal.
14
Quando é feito um trabalho com ervas, flores e elementos da natureza os espíritos fazem uma
associação com sacrifício de sangue verde.
15
Começou a usar esse nome a partir desse momento, onde os espaços espirituais estavam
separados.
8
religioso, sendo assim essa tenda e os espíritos que incorporam nos médiuns desse
local o centro de minhas atenções, observações etnográficas e sobre eles
debruçarei minhas analises metodológicas. É sobre esses médiuns que se chamam
de ciganos de coração e ciganos de espírito16. O duplo pertencimento é comum na
Tenda Tzara Ramirez, todos os adeptos que conversei têm uma segunda religião ou
outro lado, como eles mesmos nomeiam, e em sua maioria umbanda e candomblé.
O diferencial da Tenda é que após a separação do espaço físico, na Tenda Tzara
Ramirez só existe incorporação de espíritos ciganos, o que será um importante
ponto para essa análise. E são esses médiuns/espíritos que se chamam de ciganos,
e são foco nesse trabalho. Como esse grupo religioso constrói sua identidade e
como se posicionam perante outros grupos, sendo religiosos, sociais, comunidade e
a própria Beija Flor.
Essa relação da Tenda com outros grupos já tinha chamado minha atenção
em momentos diferentes, como eles mesmos fazem questão de ressaltar: somos
ciganos de coração, espírito, porém essa relação é muito mais complexa do que me
pareceu nos primeiros momentos, pude presenciar momentos em que essa
identidade foi acionada e legitimada com fatores diferentes e forças diferentes,
onde ora são ciganos, ora são grupo religioso, ora são ciganos da Tzara, ora
oriundos de umbanda e candomblé, ora totalmente diferentes de umbanda e
candomblé, dependendo do grupo ou relação com o grupo envolvido. Muitas vezes
se tornando conflitivo entre os próprios adeptos dentro do grupo e conflitivo quando
em referência a outros grupos, no caso dos ciganos de sangue, como os adeptos
chamam a etnia cigana e conflitivo também, em alguns momentos, com outros
grupos religiosos como umbanda e candomblé. O que Stuart Hall (2011,
p.11)chama de Sujeito pós-modernonão possui uma identidade fixa, permanente e
essencial. Trata-se de uma identidade móvel, definida historicamente e não
biologicamente, não é unificada como no Iluminismo, tão pouco coerente. Nesse
entendimento, um indivíduo pode possuir diversas identidades em si, utilizando-as
de acordo com os sistemas culturais que o rodeia (HALL, 2011. p. 11)
Uma das primeiras situações importantespara entender um desses conflitos
foi em maio, quando fui chamado para assistir a uma mesa que o ISER promoveria
um dia após o Dia Nacional do Cigano com o título Ciganos: Desafios para
entendimento, e se propunha a trabalhar a presença dos ciganos em vários países
do mundo, principalmente o Brasil, e suas características culturais e situação social
no mundo hoje em dia. Estavam compondo a mesa Hélio R. S. Silva (Presidente do
16
Essas duas nomenclaturas são comumente usadas entre os adeptos para explicar e diferenciar
dos ciganos de “sangue” – etnia cigana – e é comum ver essa expressão até tatuada em alguns
médiuns.
9
ISER e mediador da mesa), Marco Antônio da Silva Mello (Doutor, Professor da UFF
e UFRJ, Coordenador do LeMetro e especialista em História e Cultura Cigana),
Felipe Berocan Veiga (Doutro, Professor da UFF e membro do LeMetro e especialista
em Cultura Cigana), Greta Persico (Doutorando da Universitádi Milano-Bicocca,
pesquisadora de Ciganos e sua relação com a educação/escola) e Mio Vacite
(Presidente da União Cigana do Brasil).
A mesa aconteceu no dia 25 de maio e os pesquisadores Marco, Felipe e
Greta apresentaram seus papers destacando a presença cigana pelo mundo e
Brasil, e comosua cultura se relaciona e diverge em muitos momentos dos países
que estão. Após as apresentações Mio Vacite foi convidado a dar uma palavra como
representante dos Ciganos no Brasil e encerrar a mesa, que posteriormente seria
aberta para perguntas. Em sua fala ou crítica demonstrou um discurso fervoroso e
defensor radical de uma Cultura Cigana extremamente ligada a etnicidade, e que
segundo ele, estaria sendo corrompida e misturada no Brasil gerando perigo a sua
identidade (DOUGLAS, 2012, p. 118), inclusive pela própria data que estávamos ali
reunidos de certa maneira para comemorar, como uma vitória da etnia cigana.
Além do Dia Nacional do Cigano, também fez severas criticas a adoção de Santa
Sara de Kali como padroeira dos Ciganos no Brasil, a Cartilha de direitos da etnia
Cigana e principalmente aos cultos afro-mediúnicos, sendo foco desse trabalho, que
reivindicam valores e identidades da cultura ciganas. A fala de Mio Vacite e a
repercussão que causou no decorrer da mesa me fez começar a pensar nessa
identidade cigana, o que me levou a buscar entender essa relação de ciganos na
religião/religiosidade,que é exatamente onde a Tenda estaria nesse primeiro
momento de análise. A identidade étnica que Mio defendia ali é definida como
Sujeito do Iluminismopor Stuart Hall(2011, p. 20)sendo umaconcepção de sujeito
humano centrado, racional, unificado, consciente. A identidade nesse sujeito
aparece no seu nascimento – biológica e sanguínea - e desenvolve-se ao longo da
vida em um processo contínuo/culturais(2011, p. 20).O que seria comum a um
grupo étnico, mas sinceramente me confundiu, já que em 2008 na ALERJ durante a
comemoração do centenário da umbanda Mio e sua companhia apresentaram um
musical o que parecia revelar forte interação étnico-racial (PEREIRA, 2009,p. 152).
A segunda vez que pude observar esse conflito foi na V Caminhada em
Defesa da Liberdade Religiosa do Rio de Janeiro, ocorrida em 16 de setembro de
2012 na Praia de Copacabana reunindo 210 mil pessoas17, segundo a impressa. Fui
com o intuito de fotografar e observar não só o religioso que estudo e que não
esteve presente, ou não os encontrei,mas também recolher dados que fossem
17
http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/09/caminhada-em-defesa-da-liberdade-
religiosa-leva-milhares-copacabana.html(acesso 18-01-2013).
10
relevantes a minha analise. Quase desistindo da caminhada tive meu olhar
direcionado por minha companhia a uma senhora vestida, muito bem vestida, de
cigana se direcionando para o que seria o final da caminhada, onde apressando o
passo observei que se direcionava para um grupo de em média uns 25 ciganos,
incluindo homens e mulheres de todas as faixas etárias, vestidos de ciganos.
Bastante preocupado com que ciganos eram esses, sabendo do conflito e certo
receio com a recepção caso errasse, resolvi observar de perto e esperar ouvir algo
que me possibilitasse a entrada, mas nem foi necessário, logo identifiquei Mio
Vacite bem ao centro, o que logo os identificou como ciganos de etnia, mas colocou
uma dúvida ainda maior em minha cabeça: O que estavam fazendo ali?
Principalmente depois da mesa do ISER.
Depois de alguns minutos reunidos conversando sobre coisas variadas
resolvi pedir para ser fotografado com alguns dos membros do grupo e assim fazer
elogios as belíssimas roupas e acessórios e conversar com aqueles que dessem
abertura. Logo fui muito bem recepcionado para as fotografias, onde a câmera
profissional mais uma vez me abriu campo, muitas vezes acham que sou fotógrafo
profissional ou repórter, o que abre a conversa e esclarecimentos sobre minha
pesquisa18e conversas. Todos explicaram sua origem cigana dizendo a que família e
subgrupo faziam parte e sua ligação com União Cigana do Brasil, quase todos eram
familiares de Mio, sendo assim Calon, e participavam do seu grupo musical de
dança e música cigana19, muitos me entregaram cartões com contatos para aulas
de música,e algumas mulheres de quiromancia. Assim que a caminhada começou o
grupo abriu uma faixa com o nome da União Cigana do Brasil em cima e embaixo
uma única frase: Em defesa da liberdade cultural e liberdade religiosa, e quando
perguntado do porque de sua presença ali sempre respondiam apoiamos a
liberdade religiosa, todos tem direito de manifestar sua opção religiosa – nós
ciganos não temos uma religião cigana, adotamos a religião do país onde estamos e
somos livres para escolher20, o que me fez pensar no caso do Brasil e a variedade
de opções que teriam, inclusive religiões afro-mediúnicas. Seria possível ideia de
mudança constantedeStuar Hall na cultura cigana, rápida e permanente. E é este
caráter de mudança permanente que as distingue das sociedades tradicionais que
os ciganos parecem estar? O autor chama atenção para o processo de
descontinuidades, processo que libertou os indivíduos das amarras da tradição,
18
E após o esclarecimento, por mais que não seja o que esperavam, em sua maioria das vezes,
gera interesse. Mas de qualquer forma já é uma abertura para contatos.
19
Mio tem um grupo de dança e música cigana que toca profissionalmente em eventos diversos
no Brasil chamado “Encanto Cigano”.
20
Frase dita por um cigano do grupo, o qual tirei foto e anotei frases em meu caderno, mas não
escrevi seu nome. Mas pelas fotos o chamo de “Cigano da saia” – pela capa de toureiro que
usava e posava com ela como uma saia para as fotografias.
11
promovendo uma ruptura com o passado, sendo assim possível dentro da liberdade
de escolha religiosa dos ciganos de sangue um deles incorporar um espírito cigano,
caso venha optar por religiões mediúnicas? (2011, p. 49), indo de confronto no
discurso de Mio. Lembrando que WlaviraTurczyneck 21 me disse que tem cigano
Judeu, protestante, católico e por ai vai...
Antes de me despedir do grupo e acompanhá-lo do lado de fora da
caminhada, me achou atenção a quantidade de pessoas, principalmente mulheres e
algumas vestidas de ciganas, pediam para fotografar com os membros do grupo,
comecei direcionar minha atenção e abordagens a esses, dos quais consegui
fotografar alguns e conversar com duas. A primeira jovem vestida de cigana disse
que era da umbanda e tinha uma cigana também, o que explicava a vestimenta,
incorporava a algum tempo e estava ali com um grupo de umbanda, viu os ciganos
e quis tirar fotos com eles. A segunda jovem sentiu um certo desconforto com a
minha pergunta, porque quis fotografar com eles22, falou que por causa da beleza e
fazia dança, mas depois de um tempo disse que “tinha uma cigana” que só tinha
decido uma vez e estava trabalhando para isso acontecer mais. Os ciganos de
espírito/coração que me eram comuns na tenda agora voltavam e se apresentavam
como linha 23 na umbanda e em vários outros momentos pude observar outras
pessoas com roupas de ciganos ou que lembravam ciganos andando na caminhada.
Terceiro momento importante foi à festa de Nossa Senhora Aparecida, onde
uma grande festividade de dois dias envolveu não só os médiuns da tenda, mas
também os moradores da comunidade em que a tenda está localizada e alguns
políticos da região que cederam material de grande importância para o
acontecimento do evento em 12 de outubro de 2012. Acompanhei os
procedimentos para a festa durante o dia de seu acontecimento e o dia anterior
com seus preparativos, onde pude acompanhar os médiuns e suas internações
durante um dia inteiro fora do ritual e precedendo o principal ritual anual deles,o
que me possibilitou observar e presenciar fatos e conversas essenciais para
entender algumas das observações aqui feitas.
Ao chegar na Tenda no dia de arrumação que precedia a festa percebi que o
evento acontecia na rua que já estava sendo fechada, o que proporcionaria um
espaço quase de um quarteirão, já que a rua de trás da Tenda é sem saída. Logo
que estacionei indaguei sobre o fechamento e recebi algumas respostas como a
festa é grande e precisa de espaço grande, e quando indagado sobre a comunidade
21
Cigana de sangue de família importante em Cascadura – RJ, professora e Dona de um estúdio
de dança.
22
Que foi a mesma a todos os que isso faziam.
23
Referência dada a grupo em que entidade que se manifestou está dentro da cosmologia da
umbanda, mais referencia ver Ortiz, 2011.
12
e pessoas das ruas todos gostam e participam, é um grande evento, mas mesmo
assim continuei preocupado até que Arrimar chegou, me cumprimentou e quando
indagada pelo mesmo motivo me respondeu temos autorização da Prefeitura (nesse
caso Nova Iguaçu), temos amigos lá, sempre que precisamos eles apoiam e
colaboram, como hoje na autorização para fechar a rua, autorização para o som,–
que foram eles que deram o carro de som, e autorização para fazer um procissão
mais tarde dando a volta em alguns quarteirões da vizinhança, surpreso resolvi
aprofundar sobre esses amigos lá que Arimar destacou com orgulho.
A Tenda Tzara Ramirez tem um certo reconhecimento na cidade de Nova
Iguaçu e em alguns bairros da Baixada Fluminense por sua relação com a dança,
arte e cultura cigana24. Desde seu surgimento tem se empenhado em promover a
cultura cigana com aulas de aulas de dança e música, é forte a tradição de
professoras profissionais de dança na casa, como citado anteriormente, o que faz
com que exista uma divulgação muito grande da Tenda em eventos de prefeituras
relacionado à cultura cigana e aespiritualidade cigana, essa divulgação faz com que
a Tenda seja chamada para festas em outros grupos religiosos como umbanda e
candomblé com muita frequência.
Essa relação com a dança se deve muito ao médium Juan, que é líder da
Tenda e tem uma relação muito grande com a dança e espetáculos. Juan é um
excelente dançarino – o melhor da Tenda, seja entre homens e mulheres e essa
opinião é partilhada por médiuns, adeptos e o pesquisador que escreve, e
ultimamente tenho percebido que na Beija Flor também, o que lhe faz ser
constantemente o destaque quando dança. Essa colaboração com a cultura fez com
que Juan recebesse um premio pela colaboração com a divulgação da cultura
cigana no ano de 2008 concedido pela Prefeitura de Nova Iguaçu, e organizado pela
secretaria de cultura de Nova Iguaçu no Sesc da cidade, onde após uma noite
inteira de homenagens, dança e canto, Juan recebeu um diploma das mãos do
próprio prefeito e secretário de cultura da cidade. Segundo as próprias palavras de
Juan foi uma noite e tanto, já viu as fotos? O SESC lotado de ciganos, o pessoal da
umbanda, lá do barracão... Muito lindo.
Destaco aqui na fala de Juan lá do barracão para aprofundar uma questão já
mencionada acima e que darei um destaque maior em minha abordagem, o fato de
Juan ser pai de santo num terreiro de candomblé onde é conhecido com M.de
OniraBabalorixa 25 . Acompanhei Juanalgumas vezes nesse terreiro em festas,
obrigações, saídas de santo e outras mais, acompanhando sua relação com o
24
O que explica o convite feito pela Beija Flor, principalmente depois de entrar em contato coma
Liderança da Tenda.
25
Não usarei o nome civil de Juan, por motivos anteriormente citados.
13
candomblé e destaco que lá a musica e dança são destaques principais do terreiro,
proporcionando convites diversos para acompanhar outros grupos e festas, assim
como na Tenda, e com a secretaria de cultura de Nova Iguaçu também, agora na
propagação e eventos da cultura afro. Um evento de destaque esse ano contado a
mim pelo próprio Juan durante o acontecido, foi um convite em que ele foi a
Salvador – BA para lecionar um culto de dança afro, bancado pelo governo da Bahia
e mediado por gente de lá da Prefeitura de Nova Iguaçu.
Esse terreiro fica na rua de trás da Tenda, menos de 150 metros, se der a
volta no quarteirão andando, o que proporciona uma grande força desses grupos no
local e junto a comunidade, onde suas festas, frequência de atendimento, força
perante a prefeitura proporciona um certo destaque. Aos bares e barraquinhas de
cachorro quente da região se localizam mais próximos dos templos em dias de
atividades, assim como nos dias de Tenda, quando o próprio dono me falou que
aumenta o número de frangos para botar para assar na padaria, por sabe que eles
não comem carne vermelha em dia de trabalho, o que ajuda a ele vender mais,
demonstrando a relação que a comunidade tem com a Tenda e o barracão de Juan.
Essa relação foi comprovada na Festa de Nossa Senhora Aparecida, onde a
procissão demonstrou essa interação devido a grande quantidade de pessoas que
estavam presentes, as pessoas que saiam no portão para observar e o respeito
sempre zelado. Mostrando como a Tenda desenvolve os jogo das identidades e
como as identidades tornaram-se politizadas, na medida em que mudam de acordo
como são interpelados pela sociedade (grupos), sendo assim, a identidade do grupo
não é automática (HALL, 2011, p. 78). Segundo Stuart Hall, com o surgimento de
poderes, contestou a divisão público/privado, também a política da identidade, cada
movimento social vai reivindicar uma identidade própria (2011, p. 78), e assim a
tenda faz.
14
da existência da Associação de Preservação da Cultura Cigana (APRECI) e União
Cigana do Brasil (UCB).
A defesa da etnia cigana tem como base principal na construção de sua
cultura e elementos tidos como da cultura cigana o dialeto romani – que tem como
estrutura central para variações (romanó, caló, sintó) (HILKNER, 2008, p.40),
sendo a transmissão da língua elemento fundante e essencial para se manter a
cultura e práticas do povo, já que é por meio dela que a tradição cigana é mantida
e passada, já que o romani não tem escrita e por isso é somente oral(PEREIRA,
2009, p.23). A origem da língua, assim como a da etnia, é de comprovação
extremante questionável – contendo vários mitos fundantes – e até antão pouco
comprovável, sendo mais aceito a origem Indiana (pré-castas) como demonstram
estudos linguísticos do Centro Cigano de Paris, aproximação semântica com as
línguas védicas/sânscritas (PEREIRA, 2009, p.23), o que exclui outras origens como
Egito, Israel, Mesopotâmia e outros muitos (PEREIRA, 2009, p.22).
Apesarda dificuldade de se marcar uma origem cigana, sua presença é
registrada em fontes históricas desde o século XII, com registro em toda a Europa,
Ásia, Oriente, África e América, apesar do sedentarismo marcante de sua cultura
até século XVIII quando surgem os primeiros grupos sedentários (HILKNER, 2008,
p. 74), caracterizados como povos de cultura esponjosa,vivencias culturais diversa
e malditos. Essas características foram atribuídas por terem uma singularidade no
modo de se vestir, língua própria, hábitos culinários artísticos e cerimoniais
religiosos singulares, que em alguns momentos foram positivos e negativos na sua
história. Essa afeição pela dança, música e artes abriram portas na Europa -sendo
os ciganos muitas vezes contratados da alta aristocracia como artistas dos palácios
e suas festas – durante os séculos XV – XVII, porém suas práticas singulares de
cerimônias religiosas, quiromancia, língua e sectarismo26 foram muito mal vistas e
construíram uma imagem negativada de um povo que seria de práticas trapaceiras
– enrolando em seu dialeto nas trocas comerciais, feiticeiros – quiromancia –
boêmios, mendicantes e vagabundos – por viverem de artes – e amaldiçoados –
várias lendas sobre os ciganos se propagaram nesse período – por serem
causadores de epidemias, pacto com o diabo ou terem negado leito ao recém
nascido cristo em Belém (PEREIRA, 2009, p.30-31, HILKNER, 2008, p.89).
A chegada dos primeiros grupos ciganos no Brasil aconteceu no século XIX
com a chegada da comitiva de D. João VI - apesar de Adolfo Coelho em seu livro A
origem do povo cigano em Portugal tem destaco alguns ciganos (presença pontual
26
Apesar de hoje em dia em grande maioria dos grupos não ser assim, o sectarismo era prática
obrigatória entre o povo cigano, tornando os casamentos entre comuns uma forma de
manutenção da cultura e tradição.
15
como João Torres) durante os séculos XVI e XVII nas bandeiras e comércio, e
outros que teriam sido degradados (em maioria por pequenos furto, mendicâncias,
feitiçaria) – e foram os primeiros oficiais de justiça do pais (MELLO, 2009, p. 251) e
foram retratados em obras de Debret os retratou em quadros como artistas,
comerciantes, oficiais de justiça e comerciantes de escravos. João Dornas Filho em
Os ciganos em Minas Gerais destaca os ciganos brasileiros como originários de
Portugal e Espanha de famílias Calons, Romá e Roms, que são famílias destacadas
como comerciantes, metalúrgicos e comerciantes de cavalos (PEREIRA, 2009, p.59,
DORNAS FILHO, 1948, p.96) o que explicaria a associação da relação de ciganos e
cavalos que originou o convite para uma ala inteira explicando essa relação e sua
força no Brasil durante quase quatro séculos.
Um grande marco na mudança de hábitos e inicio de busca por direitos seria
a Revolução Industrial nos séculos XIX e XX, que no Brasil fez os ciganos
começarem um processo de sedentarização(MELLO, 2009, p. 243), abandono de
práticas comerciais que dependiam do nomadismo como a venda de cavalos, e
busca de direitos para a continuidade da tradição e práticas ciganas e
reconhecimento como etnia perante o estado. Cristina da Costa Pereira em seu livro
Os ciganos ainda estão na estrada destaca que em 1980 Àtico Vilas-Boas da Mota,
professor da UFG e membro do Centro de estudos Ciganos de Paris participou junto
com o governo federal da tentativa frustrada de elaborar um estatuto cigano, que
continha três pontos básicos: direitos a estacionamento em todas as localidades
brasileiras, evitando o conflito dos grupos nômades com as autoridades municipais;
direito a assistência médica em todas as campanhas e alfabetização emromani e
em português.
O documento não foi a frente por divergências entre as lideranças ciganas
que não aceitariam o enquadramento do seu povo/cultura, por ser uma faca de dois
gumes, os anos de história nômade ciganos geraram a formação de um mosaico
étnico (HILKNER, 2008, p.102) que muitas vezes quanto a uma variedade de
assuntos, grupos como Calé e Roms (principais no Brasil), encontram na língua um
elemento de singularidade e coesão, ao mesmo tempo que em assuntos culturais
(religião, política, costumes) não conseguem por muitas vezes chegar a um
consenso como vimos em na comissão de 1980 e opiniões divergentes ao decreto
de 2007 conforme exposto na opinião de Mio anteriormente, isso devido a
multiforma da identidade étnica do grupo cigano (BARTH, 2000, p .27 e PINTO,
2005, p. 34), que só se mantém sua união identitária por meio da língua e convívio
social (PINTO, 2005, p. 44).
Apesar da divergência entre esses grupos alguns elementos são
considerados essenciais para construção da identidade e cultura cigana, entre eles
16
o romani e o sangue cigano (família cigana), onde a cultura encontraria uma forma
de resistência e manutenção de todos os elementos tidos como essências para o
povo. Seria na família e relação familiar que o cigano passaria suas leis, práticas
religiosas, hábitos e ofícios de geração em geração (PEREIRA, 2009, p.59), ofícios
como artes circenses, comércio, metalurgia, quiromancia, musica e dança.
17
2003, p.248) e sua análise documenta entre os anos de 1890 – 1940 no processo
da institucionalização política que norteiam a definição do que é religião, nesse caso
mediúnicas. No caso do espiritismo (GIUMBELLI, 1995, p. 120) onde mostra a
socialização do baixo espiritismo e produção de agentes sociais falsos e verdadeiros
na definição do que é religião quanto as práticas mediúnicas, normatizando o que é
espiritismo(GIUMBELLI, 2003, p. 250-251)
Nesse processo Renato Ortiz em A morte branca do feiticeiro negro diz que a
umbanda sofre o processo contrário que ele chama de empretecimento, nessa
ruptura dentro do baixo espiritismo, enquanto o espiritismo se normatiza e
embranquece a umbanda é difundida nas camadas mais pobres (2011, p. 32). O
que junto a perseguição dos anos de 30 no Brasil possibilitou um dinamismo da
umbanda (TURNER, 2007, p.50)com o imaginário brasileiro (BARROS, 2010, p. 41,
VAN DE PORT, 2012, p. 137), as dificuldades que o candomblé constrói com sua
africanização e o espiritismo com a sua normatização encontra na umbanda nesse
momento a possibilidade de estabelecer por meio da mistura o que muitos
estudiosos se tornou um problema para entender e estudar como destaca
reconhecer que a flexibilidade de fronteiras diz respeito a concepções do que seja
religiões diferentes daquelas operadas pelos antropólogos (BIRMAN, 1995, p. 16).
Ou seja, na umbanda um mesmo símbolo possui multivocalidade, podendo vir a
representar diferentes significados de acordo com a performance ritual (TURNER,
2007, p.77).
Na ruptura com o Kardecismo a missão se torna uma herança importante, e
os espíritosconsiderados pouco evoluídos - e em alguns casos proibidos de
incorporar -ganhar maior lugar como preto velho, caboclo, negros e mestiço
(BARROS, 2010, p. 43). Segundo alguns autores a umbanda se torna uma tradição
presente, uma comemoração criativa do Brasil atual (BAIRRÃO 2002, p.58) com
interação sem limites étnicos, geográficos e sociais, gerando uma intenção de
mestiçagem que por meio da bricolage (MEYER, 1993, p. 132) possibilita a inclusão
e acolhimento de atores sociais (BARRROS, 2010, p. 43) com atenção as dinâmicas
sociais e necessidades dos homens(BAIRRÃO 2004, p.73) como prostitutas
(pombas giras), bandidos (malandros), boiadeiros (cangaceiros) e ciganos,
personagens (modelos/arquétipos) da vivencia brasileira (BARROS, 2010,p. 46)
como símbolos dominantes (TURNER, 2007, p.77).
A prática de quiromancia - leitura de mão - que durante anos foi associada a
feitiçaria ou charlatanismo e perseguida no Brasil pela Igreja Católica e Estado
Novo(MIRANDA,2010, p.127)foi o símbolo comum encontrado entre a identidade
cultura cigana e espírito cigano (PEREIRA, 2009, p. 94-95), causando as primeiras
associações entre as duas identidades, principalmente depois da década de 70
18
quando no Brasil grande grupos de famílias ciganas se tornaram sedentárias e
muitas mulheres ciganas liam mãos em praças públicas e em salas de quiromancia.
E as primeiras quiromantes não-ciganas (médiuns) que já estavam começando a
desenvolver essa prática (PEREIRA, 2009, p. 96).
27
Termo nativo que corresponde a que grupo essa entidade está ligada, designando
características, que vão ser usadas para enquadrar na cosmologia da umbanda, para saber mais
ler Renato Ortiz (2011).
19
começaram a receber explicação de como seria o ritual e a função de cada objeto a
ser utilizado, chegando na vez da pemba a Cigana Arimar – assim como fez com
todos os objetos – pergunta em voz alta: E a pemba serve pra que?, quase de
maneira uníssona responde para riscar o ponto e caem na gargalhada. Arimar
imediatamente responde se tivessem do outro lado sim, mas aqui não! promovendo
um grande constrangimento. Na Tzara Ramirez por ser, desde sua fundação um
lugar para as entidades/espíritos ciganos, é proibido incorporar outros espírito, é
um espaço pedido pelos ciganos e só de ciganos como referido por Cigana
Carmencita.
Essa singularidade é muitas vezes um motivo de invocação e distinção desse
grupo em relação a outros que incorporam ciganos também, agente é cigano-
incorporamos só ciganos e muitas vezes é referencial de pureza/impureza e
hierarquia(DOUGLAS, 2012, p. 118)entre o próprio grupo aquela ali – se referindo
Sibilain – uma vez pegou champanhe e derramou na cabeça igual pomba gira, não
pode, agente é só cigano!(Cigana Carmencita). Esse limiar (TURNER 2007, p.139) é
sempre observado e cuidado entre o grupo – lideranças e os próprios adeptos –
vigiam essa difícil tarefa de não deixar o outro lado encostar28, já que todos tem o
seu outro lado.
Os puros?
28
Quando uma entidade está querendo incorporar - baixa, ou usar – um médium -
aparelho/cavalo.
29
Vou optar por usar esse nome e guardar o nome dessa cigana, já que só me deu seu nome de
batismo até agora.
30
A maioria dos atendimentos do Cigano Juan é em uma sala separa do público ou em festas.
20
BIBLIOGRAFIA:
21
prosperidade e cura. Em uma de nossas poucas conversas me disse que o cigano
LÉVI-STRAUSS, Claude. O suplício do Papai Noel. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
MAGGIE. 1992
MAGGIE, Yvone. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. In:
ESTERCI, N.; FRY, P.; GOLDENBERG, M. (orgs.). Fazendo antropologia no Brasil.
Rio de Janeiro, DP & A, 2001.b
MELLO, A. S. M. VEIGA, F. B. SOUZA, M. A. e COUTO, P. B. Os ciganos do
Catumbi: de “andadores do Rei” e comerciantes de escravos a oficiais de justiça na
Cidade do Rio de Janeiro. In: Cidades, comunidades e territórios. N° 18. Lisboa: CET –
MEYER, M. Maria Padilha e toda a sua quadrilha: de amante de um rei de Castela a
pombagira da umbanda. São Paulo: Duas cidades, 1993.
MIRANDA. A. P. M. Entre o privado e o público: considerações sobre a (in)
criminação da intolerância religiosa no Rio de Janeiro. In: Anuário Antropológico/ 2009
– 2, 2010: 125 – 152.
ORTIZ, R.A morte branca do feiticeiro negro: umbanda e sociedade brasileira. São
Paulo: Brasiliense, 2° impressão, 2011.
PEREIRA, C. C. Os ciganos ainda estão na estrada. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
PINTO, P. G. H. R. Ritual, etnicidade e identidade religiosa nas comunidades
mulçumanas no Brasil. In: São Paulo: Revista USP, n° 67, p 228-250,
setembro/novembro 2005.
SANTOS, Jocélio Teles dos. O dono da terra. O caboclo nos candomblés da Bahia.
Salvador: Sarah Letras, 1986.
TURNER, V. Floresta de símbolos. Niterói: EdUFF, 2007.
VAN DE PORT, M. Candomblé em rosa, verde e preto: recriando a herança religiosa
afro-brasileira na esfera publica de Salvador, na Bahia. In: Debates do NER, Porto
Alegre, ano 13, n. 22, p. 123-164, jul/dez, 2012.
VERGER, Pierre. Orixás, deuses Iorubás na África e no novo mundo. Salvador:
Corrupio, 1981.
22
tem a religião que quiser, é livre e a que ele escolheu era aquela ali, e que o povo
cigano tem uma espiritualidade natural, por isso aquele trabalho, de ajudar o
próximo, ali era mais fácil para ele. Declarações que me fizeram lembrar Mio – na V
Caminhada e na Mesa do ISER – e a Cigana WlaviraTurczyneck (cigana de sangue
de família importante em Cascadura – RJ, professora e dona de um estúdio de
dança).
O sangue cigano é um elemento de pureza, e de grande importância na
hierarquia para os membros da Tzara, tanto como marcadores dentro do grupo ou
como para aprendizado de suas funções culturais para uso ritualístico das
entidades. A Cigana Sibilainem conversa me disse: a minha cigana – espiritualidade
– joga cartas, mas eu ainda não sei. Vou aprender, fazer um curso para ela me
usar no jogo, mas não vou fazer com qualquer um desses que dá curso não, vou
fazer com uma cigana mesmo, de sangue sabe. Eles que sabem mesmo. Quando
questionada sobre o cigana mesmo ela me explicou, Tá vendo aquela ali! –
apontando para a Cigana do chá – ela é cigana de sangue sabe, ela que faz o chá,
o chá cigano! Ela sabe a magia, o encantamento, tá no sangue...
Conclusão
O cigano está mesclado à cultura brasileira, e a figura do cigano foi
assimilada a crença do povo brasileiro. Um olhar desatento sobre identidade cigana
pode gerar uma confusão sobre etnia cigana e espírito cigano, principalmente
quando percebemos esses grupos em total interação do espaço público – como
festas, passeatas, apresentações culturais ou manifestações de interesses comum –
o que é muito comum na realidade brasileira. No caso da Tzara Ramirez esses dois
universos não só se apresentam configurados de forma separada, os ciganos de
sangue, os ciganos de espírito, mas também os ciganos de sangue e espírito, que
dentro da opção de escolha livre de uma religiosidade comum à cultura cigana –
proporcionaram na Tenda o encontro dessas duas identidades.
Essas característica proporciona por muitas vezes que o grupo – como vimos
-reivindique sua identidade dependendo da melhor adequação. Algumas vezes
como ciganos de sangue, no caso da Beija Flor, e em outras como ciganos de
espírito, perante outros grupos religiosos e pacientes, ou como ciganos de sangue e
espírito no caso de alguns ciganos da tenda que encontram nessa possibilidade um
maior destaque.
23
"PARA QUEM ACREDITA, NENHUMA PALAVRA É NECESSÁRIA; PARA QUEM
NÃO ACREDITA, NENHUMA PALAVRA É POSSÍVEL": UM PRIMEIRO OLHAR
SOBRE AS CURAS ESPIRITUAIS DO MÉDIUM JOÃO DE DEUS1
1
Este artigo foi desenvolvido sob a orientação e supervisão da Profª. Drª. Dilaine Soares Sampaio
de França (DCR-PPGCR-UFPB).
toda a família: João, o filho mais novo; seus quatro irmãos: Americano, José, Francisco e
Abílio; e uma irmã, América. Todos os irmãos dele já faleceram. A irmã vive em Anápolis
e já passa dos 80 anos (Cumming, 2008, p. 23 - 24).
Explica a autora quando foi o primeiro registro da habilidade mediúnica de João de
Deus:
De acordo com Alves, com idade de quinze anos João deixou o lar para trabalhar
em outras cidades, mudando-se para Campo Grande, hoje capital do Estado de Mato
Grosso do Sul. Com grande vontade de trabalhar montou uma alfaiataria e ficou
esperando a clientela. Porém, transcorreu um mês e não lhe apareceu nenhum cliente,
devido ao clima quente da região. João, um tanto desanimado, foi então em busca de um
emprego e conseguiu um trabalho de pipeiro numa olaria, mas no primeiro dia o
mandaram embora (Alves, 2012, p. 15). Procurou, então, abrigo embaixo de uma ponte,
planejando banhar-se no rio antes de seguir sua busca. Ao se aproximar do rio, uma
mulher o chamou, convidando-o a aproximar-se. Conversaram a tarde inteira e após
algum tempo, o médium descobriu que a mulher era o espírito de Santa Rita de Cássia.2
Relata ainda Alves (2012) que no outro dia, retornou ao local na esperança de
encontrá-la novamente, entretanto, no lugar onde ela estivera sentada havia apenas
focos de luz e naquele momento ouviu a voz, interpretada como pertencente à Santa Rita
de Cássia, que recomendou ao médium a ida ao Centro Espírita Cristo Redentor, ali
mesmo em Campo Grande. Cumming relata que João seguiu as instruções explícitas da
visão e, ao chegar, o presidente do Centro se aproximou e perguntou se o nome dele era
“João Teixeira de Faria”. O presidente explicou que sabia que João viria e estava
esperando por ele. Nesse mesmo instante, João desmaiou e quando recobrou os sentidos
horas depois, pediu desculpas, constrangido, atribuindo o desmaio à fome. Havia um
aglomerado de pessoas em torno dele e alguém lhe disse que havia incorporado a
Entidade Rei Salomão e, por seu intermédio, mais de cinquenta pessoas haviam sido
2
Informações obtidas na página oficial da casa Dom Inácio de Loyola. Disponível em: <
http://www.joaodedeus.com.br/ >. Acesso em 15 jan.2013.
curadas. Os frequentadores do Centro ficaram admirados com a mediunidade de João e
com as curas realizadas (CUMMING, 2008.p. 25).
Segundo Kardec, toda pessoa que sente a influência dos Espíritos, em qualquer
grau de intensidade, é médium. Essa faculdade é inerente ao homem. Por isso mesmo,
não constitui privilégio e são raras as pessoas que não a possuem pelo menos em estado
rudimentar. Segue o codificador afirmando que todos são mais ou menos médiuns.
Usualmente, porém, essa qualificação se aplica somente aos que possuem uma faculdade
mediúnica bem caracterizada, que se traduz por efeitos patentes de certa intensidade, o
que depende de uma organização mais ou menos sensitiva (Kardec, 2005, p.180).
Durante os primeiros anos da prática desse extraordinário trabalho de cura, o
médium João de Deus foi muitas vezes vítima da perseguição de membros da igreja e da
comunidade médica, que se sentiam ameaçados com sua presença na cidade. Ele perdeu
a conta de quantas vezes foi preso e acusado de praticar a medicina clandestina.
Constantemente perseguido, ele vivia se escondendo das autoridades (Cumming, 2008,
p. 27).
3
Segundo Cumming, na década de 1960 o Brasil passou por uma “revolução” e
os militares tomaram o poder. Em 1964, Brasília, começou a dar os seus primeiros
passos como capital do país. João viajou para lá e ofereceu aos militares os seus serviços
de alfaiataria. Como era muito jovem, não conseguiu ser comissionado para confeccionar
uniformes, mas lhe deram a oportunidade de costurar uma remessa de calças. A
competência impressionou os patrões e ele logo foi promovido a alfaiate e contratado
para fazer uniformes para o exército (Cumming, 2008.p. 27).
Depois de passar muitos anos em Brasília, sob a proteção dos militares, o médium
João de Deus ansiava por um santuário onde as pessoas pudessem procurá-lo em busca
de tratamento. Em 1978, as Entidades transmitiram ao médium João, por intermédio do
seu venerado amigo e mentor Francisco “Chico” Cândido Xavier, uma mensagem que
transformou a vida dele (Cumming, 2008.p. 89).
Segundo Eliade, o espaço sagrado tem um valor existencial para o homem
religioso; porque nada pode começar, nada se pode fazer sem uma orientação prévia – e
toda orientação implica a aquisição de um ponto fixo (Eliade, 2011, p. 26). A mensagem
de Bezerra de Menezes designava a cidadezinha de Abadiânia como o local apropriado
para o santuário (Cumming, 2008.p. 89). A pequena cidade de Abadiânia está situada na
BR que liga Goiânia à Capital Federal, a cerca de 120 km de Brasília e bem próximo a
Anápolis, cerca de 40 km de distância (Alves, 2012, p. 33). Era indispensável que
3
Respeitamos aqui o pensamento da autora, embora numa perspectiva historiográfica, o conceito
de “revolução” já tenha sido bastante questionado quando aplicado a processos históricos
brasileiros, de modo que a subida dos militares ao poder é vista com grande consenso entre os
historiadores como um “golpe de estado” e não como “revolução”.
houvesse uma cachoeira nas cercanias. Seguindo meticulosamente essas instruções, o
médium João começou a procurar o terreno (Cumming, 2008.p. 89).
O médium João Teixeira de Faria, sendo portador de um grande carisma, quando
interpelado pelos casos de cura, faz a seguinte afirmação: “Eu não curo ninguém. Quem
cura é Deus, que, em sua infinita bondade, permite as Entidades (bons espíritos) que me
assistem proporcionar cura e consolo aos meus irmãos, ao passo que sou apenas um
instrumento em suas divinas mãos”. Segundo Weber a autoridade carismática não se
configura segundo preceitos gerais, quer racionais quer tradicionais, mas, em princípio,
segundo revelações e inspirações concretas e, de acordo com essa pauta, é irracional e
revolucionária na medida em que não está ligada à ordem existente. (Weber, 2010, p.
41).
No inicio de seus trabalhos João de Deus atendia em locais variados, pois não
possuía um local fixo. Afirma Póvoa que João de Deus recebera uma mensagem através
do médium Chico Xavier, tomado pelo espírito Bezerra de Menezes, lhe aconselhando a
fundar uma casa onde pudesse praticar a caridade, indicando na cidade de Abadiânia o
exato lugar onde atualmente se encontra a “Casa de Dom Inácio de Loyola” (Póvoa,
2012, p.46). Para Eliade, uma irrupção do sagrado que tem como resultado destacar um
território do meio cósmico que o envolve o torna qualitativamente diferente (Eliade,
2011, p. 30). Ainda, segundo Póvoa, numa determinada ocasião pensou o médium em
sair de Abadiânia, entretanto, recebeu uma carta de Chico Xavier pedindo-lhe que
permanecesse lá (Póvoa, 2012, p.46).
A Casa de Dom Inácio, criada por João de Deus no ano de 1976, na cidade de
Abadiânia – GO é o local onde o médium cumpre sua missão de cura
espiritual. Mesmo seguindo os princípios da Doutrina Espírita, a Casa funciona
como hospital espiritual e templo ecumênico, onde todos são bem vindos,
independentemente de suas convicções ou crenças religiosas. Trabalham na
Casa diferentes Entidades espirituais que ajudam aos filhos físicos, emocional
e espiritualmente. O atendimento não tem custo e não é necessário marcar
um horário para ser atendido (Casa Dom Inácio de Loyola, 2012).
Além da Casa Dom Inácio há outras casas onde as atividades de João de Deus são
desenvolvidas e que ele visita esporadicamente, como a Casa Sul em Canela - RS e a
Casa de Caridade Cristã Dr. Oswaldo Cruz – ES.
Retratam os seguidores do médium João que em janeiro de 1998, durante os
trabalhos da Casa de Dom Inácio em Abadiânia – GO, a entidade Dr. Augusto falou da
necessidade de construção de uma Casa no Sul, indicando o local na cidade de Canela –
RS e encarregando um dos filhos da Casa para liderar a construção. A partir de então,
houve a mobilização de uma equipe de colaboradores que iniciaram os trabalhos, na
tentativa de adquirir a área escolhida, o que se realizou no ano de 2001, através de
doações dos filhos da Casa de Dom Inácio. Segundo Eliade (2011) a casa é santificada,
em parte ou na totalidade, por um simbolismo ou um ritual cosmológico e se instala em
qualquer parte, construir uma aldeia ou simplesmente uma casa representa uma decisão
grave. Em 05 de fevereiro de 1996 foi fundada a Casa de Caridade Cristã Dr. Oswaldo
Cruz que está localizada em Cariacica – ES. Em 1994, o Médium João fez o primeiro
atendimento em Vitória-ES.
A Casa Dom Inácio de Loyola recebe, nos dias de atendimento, milhares de
pessoas dos mais variados locais com diversas enfermidades, e muitas desenganadas
pela medicina. As ruas são tomadas por uma multidão vestida de branco com destino a
“Casa de João de Deus”. Segundo Estrich, o centro de curas abre às oito da manhã. Os
doentes reúnem-se para receber a senha com o seu número. Fotógrafos preparam o
material para filmagem da atividade do dia. Em algum lugar da casa, num quarto
anônimo, João descansa, faz meditação sozinho, preparando-se para um novo dia de
curas.
Relata Alves que quando o médium encontra-se preparado, por ele são realizadas
no salão principal operações visíveis, de cortes, com ou sem instrumentos, estando o
médium João de Deus incorporado pelas entidades (Alves, 2012, p. 34 - 35). O
pesquisador Estrich afirma que o centro dá a impressão aos que chegam de ser um
pequeno hospital. Todo branco por dentro e por fora, exceto por uma faixa azul alta, de
cerca de um metro, que decora a parte interna, sendo resultado de um projeto indicado a
João pela entidade principal, Dom Inácio.
A sala dos médiuns é o local onde tem início os trabalhos todos os dias, com todos
os médiuns reunidos em concentração. Durante os trabalhos, é nesta sala que é efetuada
a limpeza espiritual dos pacientes como também a desobsessão e o desenvolvimento
mediúnico (Alves, 2012, p. 43). A sala de entidades é o local de atendimento dos
consulentes pelos mentores espirituais incorporados no médium, individualmente (Alves,
2012, p. 46).
A Casa da Sopa foi inaugurada em 2004, sendo construída a pedido das Entidades
da Casa de Dom Inácio e está localizada em Abadiânia – GO. Diariamente, são servidos
em torno de mil pratos de sopa/almoço para aqueles que têm fome. Além de fornecer
alimento, existem projetos de apoio às crianças e famílias da comunidade.4 É importante
ressaltar ainda que a sopa é utilizada como uma das terapêuticas de tratamento após as
cirurgias espirituais.
Segundo Nicacio (2012) a Casa de Dom Inácio tem área de descanso com vistas
para um mirante, livraria, lanchonete, farmácia e sala de banho de cristal. Além da
cirurgia, os visitantes também podem participar do banho de cachoeira, uma bica d’água
natural a aproximadamente um quilômetro do prédio principal.
Muitos são as Entidades que incorporam no Médium. Segundo ele, são trinta e
três entidades conhecidas, todavia, há aquelas que têm frequente atuação na Casa,
revelando-se constantemente nos trabalhos. Mas há aqueles que não se revelam mesmo
estando trabalhando e ainda aqueles que participam constantemente, mas no plano
espiritual (Alves, 2012, p. 47). Afirma Póvoa (2012) que embora o médium receba mais
de 30 entidades diferentes, algumas das raríssimas vezes incorporam as que estão quase
diariamente atendendo o povo. Através dele, ocorre a presença espiritual do Rei
Salomão, de Dom Inácio de Loyola, Dr. Osvaldo Cruz, Augusto de Almeida e Dr. José
Valdivino (Póvoa, 2012, p.49).
Segundo Estrich, as entidades são espíritos de falecidos médicos, cirurgiões,
psicólogos e teológos cujas almas são de nível altamente elevado e não necessitam mais
reencarnar no mundo. No entanto, continuam a se elevar no plano espiritual, graças à
amplitude de sua benevolência e obras de caridade. Usando o corpo de João como
instrumento, são capazes de executar milagosas operações, assim como curar os
doentes e os aleijados (Estrich, S/D, p.56 -57).
4
Informações coletadas na página oficial da Casa Dom Inácio de Loyola, disponível em:
http://www.joaodedeus.com.br/.
suposta. Segue o mesmo autor afirmando que “autoridade carismática” aludirá a um
poder sobre os homens, quer seja primordialmente interno ou externo, ao qual se
subordinam os governados em virtude de sua fé na qualidade excepcional da pessoa
específica (WEBER, 2010, p. 40). E esse poder extraordinário de curar leva as pessoas à
busca pela cura e pelo conforto fazendo com que uma multidão de pessoas vestida de
branco, passe horas sentada em profunda meditação, se alimente de sopa, passe por
várias filas, tome banho de cristais e se submeta a cirurgias sem nenhum tipo de
esterilização.
Para Eliade sente-se a necessidade de mergulhar por vezes nesse Tempo sagrado
e indestrutível, pois é o Tempo sagrado que torna possível o tempo ordinário, a duração
profana em que se desenrola toda a existência humana (Eliade, 2011, p. 79).
Afirma Nicacio que são necessárias algumas poucas horas em Abadiânia para
colecionar relatos de pessoas que mudaram suas vidas sob o impacto do encontro com
João de Deus (Nicacio, 2011, p.1). Segue relatando que é comum encontrar médicos
renomados que largaram consultórios na Europa para se tornarem assistentes espirituais
e executivas de alto escalão que viraram donas de pequenos estabelecimentos
comerciais na cidade apenas para ficar perto de João de Deus (Nicacio, 2011, p.1).
Nicacio conclui afirmando que a saga do líder espiritual goiano já atravessou
fronteiras e foi tema de programa da apresentadora americana Oprah Winfrey (Você
acredita em milagres?) e do canal fechado Discovery Channel, entre outros. Sua fama e
seu poder ganharam dimensões continentais e são infinitamente maiores do que o local
que ele escolheu para exercê-los (Nicacio, 2011, p.1).
Em nossas visitas foi possível confirmar as observações de Nicacio (2011) sobre o
impacto provocado por João de Deus na vida daqueles que o procuram. Devido ao
caráter incipiente da pesquisa, optamos em apresentar para este trabalho os resultados
de apenas dez entrevistas, realizadas a partir do instrumento sócio-demográfico
elaborado. Com o intuito de facilitar a compreensão, os dados coletados foram
esquematicamente reunidos no quadro abaixo:
2. Sexo: foram
1. Idade dos(as) entrevistados 3. Escolaridade: médio e
entrevistados homens e
(as): entre 38 e 80 anos superior
mulheres
2. Diante da pergunta: Tem religião? Nove responderam que sim e apenas uma
respondeu que não possuía nenhuma religião.
5. Para a pergunta: Qual o grau de importância da religião para a sua vida?, obtivemos
os seguintes resultados para a escala de valores feita:
7. Para a questão: Que motivos o levam a procurar esta instituição?, tivemos respostas
bastante variadas:
3. Insuficiência Cardíaca
5. Problema no estômago
6. Problema na bexiga. Seu esposo fez tratamento com João de Deus em virtude de um
problema renal e ficou totalmente curado.
7. Hérnia Umbilical
8. Frequenta o local há 20 anos. A Casa Dom Inácio é vista como um lugar de paz.
Primeira visita feita teve como motivação uma infecção na pele de seu pai. Após um
primeiro contato com João de Deus já se sentia melhor.
10. Câncer na garganta há 15 anos. Foi curada, vive na casa Dom Inácio de Loyola,
tornou-se “filha da casa”.
Os dados coletados revelam que João de Deus é procurado por pessoas de várias
idades, diferentes níveis de escolaridade, incluindo homens e mulheres e, nesta pequena
amostragem, a maioria declara possuir uma religião. Entre os nossos entrevistados, a
maioria declarou-se católica, embora apenas duas pessoas afirmassem ser frequentes
semanalmente a uma comunidade religiosa. Todos os participantes, inclusive aquele que
afirmou não ter religião, mostraram-se crentes em Deus. As motivações para a procura
de João de Deus se mostraram bastante diversificadas, apesar da maioria das pessoas
com quem conversamos apresentarem como razão algum problema “aparentemente”
“orgânico”. Nem todos os entrevistados realizaram cirurgias espirituais haja vista que tal
indicação não ocorre para todos os casos. Os pacientes que receberam a indicação de
cirurgia puderam optar entre a “cirurgia visível” (com incisões) e a “cirurgia invisível”
(permanecem em grandes salões sentados ou deitados em meditação). O médium afirma
não ser necessária a “cirurgia visível”, sendo realizada apenas naqueles que não
acreditam na “invisível” e desejam comprovação do tratamento através de cortes.
No que tange ao modo de ação, João de Deus relata que permanece inconsciente
durante os procedimentos, permitindo a manifestação de um dos inúmeros espíritos de
sua “equipe espiritual”. Dentre os espíritos que trabalham na falange da Casa está Dr.
Augusto de Almeida, Rei Salomão, Osvaldo Cruz, Dom Inácio de Loyola dentre outros.
Como a questão das cirurgias espirituais é um fenômeno extremamente
intrigante, desperta o olhar acadêmico não apenas nas Ciências Humanas, mas também
na área das Ciências da Saúde, que na posição da “medicina oficial”, buscam atualmente
compreender o fenômeno João de Deus. A.M. de Almeida ,T.M. de Almeida e Gollner,
autores vinculados a Faculdades de Medicina da USP e da UFJF, respectivamente, há
mais de 10 anos atrás acompanharam em torno de trinta cirurgias realizadas pelo
médium João de Deus. Em artigo intitulado Cirurgia espiritual: uma investigação
apresentaram os seguintes resultados e conclusões, que transcrevemos abaixo:
REFERÊNCIAS
5
Informações obtidas através de transcrição da reportagem exibida no Programa Fantástico em
01/04/2012. Disponível em: <http://www.partidaechegada.com/2012/04/joao-de-deus-recebe-
afagos-e-acusacoes.html>. Acesso em 20/02/2013.
ALMEIDA, A.M. de; ALMEIDA,T.M. de e GOLLNER, A.M. Cirurgia espiritual: uma
investigação. Ver. Ass. Med. Brasi, 46(3), 2000, p. 194-200. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ramb/v46n3/3076.pdf>. Acesso em 20 fev.2013.
ALVES, C. J. C. João de Deus a serviço da luz. Minas Gerais, 2012, gráfica Bom
Pastor.
CASA DOM INÁCIO DE LOYOLA. Casa de Dom Inácio. Disponível em: <
http://www.joaodedeus.com.br/casa-de-dom-inacio>. Acesso 09/12/2012.
*
Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Programa de Pós-Graduação
em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.
outro objeto de ferro. Ao agitar esses instrumentos, ela marcava com os pés e os
braços o compasso da música ao som dos tambores e atabaques tocados por seus
escravos. (ANTT, 1744, processo 252)
Ao som dos instrumentos e do canto de suas escravas, Luzia começava a
pular, tremer e gritar palavras e frases desconhecidas, entrando em uma espécie de
transe. A partir daí, suas auxiliares soltavam uma cinta antes amarrada em sua
barriga e Luzia colocava alguns penachos coloridos na orelha dizendo receber “ventos
de adivinhar”. Nesse momento, os participantes eram convidados a se ajoelhar e
passavam a ser cheirados e assoprados, como forma de diagnóstico das doenças e
queixas. Aqueles identificados como pessoas enfeitiçadas recebiam pós ou ervas ora
sobre suas cabeças ora em suas bocas, sempre ao som dos gritos da oficiante que
muitas vezes precisava ser acalmada pelos seus auxiliares. (ANTT, 1744, processo
252)
Em algumas ocasi ões, Luzia também oferecia vinho ou outras bebidas
alcóolicas aos seus assistidos. Na sequência, ela ordenava que todos se deitassem de
bruços no chão e imediatamente começava a passar por sobre seus corpos
gesticulando de modo ininterrupto. Havia casos em que muitos assistidos, após
ingerirem as substâncias oferecidas no ritual chegavam a vomitar, ato que era
interpretado como eliminação dos males espirituais. Em geral, dentro de certas
variantes, procedia-se assim ao ritual de adivinhação e cura, realizado geralmente à
noite e que chegava a durar em torno de duas horas. Seus atendimentos n ão eram
oferecidos exclusivamente aos africanos ou afrodescendentes, nem tampouco eram
voltados apenas para cativos. Luzia era procurada tanto por escravos quanto por
alforriados e também por homens e mulheres brancos, inclusive portugueses. (ANTT,
1744, processo 252)
Os atendimentos espirituais de Luzia Pinta tiveram início após uma experi ência
sobrenatural, espécie de êxtase que ela classificou como doença em seu depoimento à
inquisição. Segundo o registro do escrivão do Santo Ofício, certa vez,
na vila de Sabará ouvindo missa em dia santo, lhe sobreveio repentinamente a
dita doença, de que ficou muito mal, por não saberem os remédios que se
haviam de aplicar, até que sendo chamado um preto por nome Miguel, escravo
de Manuel de Miranda, morador na dita vila, lhe disse este que a dita queixa
era a do calandus e que só a havia de curar e ter remédio mandando tocar
alguns instru mentos e fazendo (algumas coisas) mais, por ser este o meio e
modo porque se costuma curar a dita doença, o que com efeito ela fez e
experimentou melhora. (ANTT, 1744, processo 252)
Luzia, ao que tudo indica, passou pelo padrão de uma iniciação religiosa
centro-africana, recriada e adaptada em Minas Gerais do século XVIII. Em um
primeiro momento, na infância, ela vivenciou a reclusão ritual que a colocou em
contato com o mundo dos mortos (brancos) do outro lado do rio e com seus espíritos
ancestrais. Ao cruzar o Atlântico, faltava-lhe ainda desenvolver essa potencialidade
latente, completada pelo atendimento que lhe foi prestado pelo escravo Miguel em
sua aflição espiritual. (MARCUSSI, 2006, p. 110-112)
Já os gastos financeiros, embora não sejam evidentes, podem ser
inferidos por meio de dois indícios apontados por Alexandre Marcussi (2009, p.15) no
trecho transcrito abaixo:
Miguel muito provavelmente recebeu pagamento pelos serviços de cura
executados, como era habitual entre os curandeiros coloniais, que muitas vezes
extraíam seu sustento ou acumulavam dinheiro para alforrias empregando seus
poderes sobrenaturais a serviço de clientes pagantes (...) Além disso, Miguel
afirmou que Luzia Pinta devia mandar fazer alguns procedimentos rituais,
fórmula que muito possivelmente indica que Luzia pagou pelos materiais
usados do ritual, como comidas, bebidas ou as oferendas necessárias para
restabelecer relações adequadas com os espíritos.
Nesse sentido, esse texto tem como objetivo analisar os conflitos entre a
africana Luzia Pinta e seus inquisidores portugueses em torno da interpretação de
suas práticas mediúnicas. O texto investiga o significado das associações e relações
estabelecidas por Luzia entre elementos de sua herança cultural e religiosa centro-
africana e o Deus Cristão da tradição católica. Nesse sentido, serão observadas as
estratégias de mediação simbólica operadas pela acusada no intuito de demonstrar
que seus rituais religiosos e transes eram inspirados pelo Deus Cristão e não pelo
diabo.
Em seus rituais, Luzia era acompanhada por três auxiliares, duas “negras
angola” e um escravo de origem desconhecida. É curioso notar que seus ajudantes
eram todos escravos de sua propriedade, o que revela a capacidade de certo acúmulo
de recursos financeiros, gerados talvez da prestação de seus serviços religiosos, como
era comum nessas situações. No caso de Luzia, não há indícios de enriquecimento ou
formação de grande fortuna. No entanto, ao que parece, parte de seu sustento
financeiro após a conquista da alforria vinha dos serviços religiosos que ela passou a
oferecer em Sabará.
*
Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Programa de Pós-Graduação
em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.
uma espécie de altar cujo dossel era composto por tecidos, Luzia permanecia
assentada em uma cadeira, segurando nas mãos um espadim, uma machadinha ou
outro objeto de ferro. Ao agitar esses instrumentos, ela marcava com os pés e os
braços o compasso da música ao som dos tambores e atabaques tocados por seus
escravos. (ANTT, 1744, processo 252)
Como um especialista, esse escravo deve ter sido responsável por uma etapa
do processo de iniciação ritual que transformou Luzia Pinta em uma líder espiritual ou
sacerdotisa, possuidora de poderes e segredos que a habilitaram posteriormente a
oferecer serviços religiosos. Nas sociedades banto da África Centro-Ocidental, havia
rituais específicos de formação de sacerdotes que se tornavam mediadores entre o
mundo visível, habitado pelos vivos e o mundo invisível, habitado pelos antepassados
e pelos espíritos ancestrais. A formação do sacerdote passava assim pela iniciação
ritual que envolvia, necessariamente, o pagamento de uma taxa e a reclusão ritual por
meio da qual o iniciado entrava em contato com o mundo dos mortos, era possuído
por eles e retornava posteriormente ao mundo visível, capacitado a prestar
atendimento espiritual, tornando-se oficiante do culto do espírito ancestral.
(MARCUSSI, 2006, p.108-109)
Luzia, ao que tudo indica, passou pelo padrão de uma iniciação religiosa
centro-africana, recriada e adaptada em Minas Gerais do século XVIII. Em um primeiro
momento, na infância, ela vivenciou a reclusão ritual que a colocou em contato com o
mundo dos mortos (brancos) do outro lado do rio e com seus espíritos ancestrais. Ao
cruzar o Atlântico, faltava-lhe ainda desenvolver essa potencialidade latente,
completada pelo atendimento que lhe foi prestado pelo escravo Miguel em sua aflição
espiritual. (MARCUSSI, 2006, p. 110-112)
Já os gastos financeiros, embora não sejam evidentes, podem ser inferidos por
meio de dois indícios apontados por Alexandre Marcussi (2009, p.15) no trecho
transcrito abaixo:
Segundo sugere Luiz Mott (1994, p. 76-77), essa espécie de visão foi
interpretada pela menina como uma premonição de sua travessia do oceano rumo ao
Brasil. O autor, infelizmente, não segue adiante nem detalha sua análise. Mas,
seguindo sua sugestão, pode-se conjecturar que a visão de Luzia trazia várias nuances
em relação a uma visão espiritual de sua experiência no tráfico atlântico, de seu
enfrentamento e de sua superação. A análise dessa que parece ter sido a primeira
experiência espiritual da menina de Angola pode nos ajudar a desvendar a bagagem
que ela silenciosamente transportou para o Brasil.
Para os povos banto, habitantes da costa da África Central na região do
Congo e Angola, a linha divisória que separava o mundo dos vivos do mundo dos
mortos era representada por um rio ou pelo mar. (SLENES, 1992, p.53-54) Em sua
cosmologia, concebiam o universo dividido em duas metades: o mundo dos vivos e o
mundo dos mortos. Essas esferas estabeleciam entre si relações de
complementaridade ou mesmo de oposição. Enquanto o mundo visível dos vivos era
habitado pelos negros, o mundo invisível era dominado pelos brancos, que
simbolizavam a morte. Ainda nessa perspectiva, era corrente a crença de que - após
sofrerem a travessia do Oceano rumo ao mundo branco dos mortos que os
escravizavam em uma espécie de encantamento sobrenatural - esses cativos
voltariam fisicamente ou espiritualmente à sua terra natal, junto de seus familiares
vivos e seus descendentes. A volta física estaria, no entanto, condicionada à
capacidade de se guardar uma pureza espiritual, capaz de reverter a prisão fruto de
um encantamento. (MACGAFFEY, 1986, p. 107-112; 1972, pp. 49-74 )
Entendendo que aquela visão pode ter sido lida como premonição pela menina
escrava, é possível interpretá-la como uma etapa de uma iniciação ritual que a
habilitaria espiritualmente a enfrentar o cativeiro sob uma condição diaspórica. Nesse
sentido, Luzia pode ter partido de Luanda carregando silenciosamente um aprendizado
religioso significativo. Sua travessia, embora perigosa, seria certa e segura se
acompanhada pelos guias espirituais. O local de desembarque do outro lado do
Atlântico era desconhecido e guardava um destino inevitável. O contato com o mundo
dos brancos - espiritualmente preparado em sua visão e vivenciado na diáspora -
poderia ser tomado como parte de um processo de iniciação ritual que a habilitaria
como uma futura especialista religiosa, responsável por auxiliar e socorrer sua
comunidade em suas dificuldades no Novo Mundo. Enfim, seu retorno esfumaçava-se
em meio a uma promessa que, embora interrompida, permanecia em seu horizonte.
Em todo caso, com base nessas premissas, o seu caminho de alguma forma
continuava. E para que fosse bem sucedido, precisava ser conduzido pela incorporação
do Deus do mundo dos brancos.
Por meio de seu texto próprio, espécie de enigma movente, Luzia apresenta-se
ao Tribunal do Santo Ofício, perturbando seus inquisidores em Lisboa. Tal situação nos
remete à noção de hibridismo, conforme apresentado pelo crítico pós-colonial Homi
Bhabha (1998). Para o autor, o híbrido não é o resultado da mistura entre dois
elementos que preexistiram de modo puro, mas sim um terceiro espaço, que nomeia
intersticial, construído nos atos de deslocamento entre eles. Tanto colônia quanto
metrópole só existem em relação. Nesse sentido, as colônias, forçadas a espelhar-se
em suas metrópoles, produzem imitações distorcidas, gerando diferenças
perturbadoras que circulam no interior dos sistemas coloniais, desestabilizando-os por
meio da inserção de um “outro” na imagem de um “mesmo”. (BHABHA, 1998, p. 129-
138) Por meio de uma apropriação e adaptação, bastante livre, das proposições desse
autor, é possível perceber no discurso de Luzia Pinta uma mímica da religião do
colonizador, representação construída na relação deslizante que assume a condição
simultânea de semelhança e ameaça. É interessante observar que, em seu
depoimento ao Santo Ofício, antes da sessão de tortura, Luzia argumentou que suas
práticas
De um modo não explícito, Luzia Pinta fazia a mesma crítica ao gritar pelo
santo. Como vimos anteriormente, os movimentos de renovação religiosa na África
Central passavam pela incorporação e acréscimo de crenças, processo entendido como
estratégia eficaz no enfrentamento da adversidade e no alcance da boa fortuna.
(PARÉS, 2007, p. 111). Pela ótica centro-africana, a devoção de Luzia ao Deus cristão
e aos santos católicos era um meio legítimo que, ao mesmo tempo em que
subordinava o catolicismo àquelas tradições africanas, passava a considerá-lo como
novo e principal elemento de fundamentação de seus rituais, modificando e re-
significando suas antigas práticas religiosas sem contudo excluí-las. Nesse sentido,
mais uma vez, é importante destacar que o discurso de Luzia não pode assim ser
tomado como mero simulacro, disfarce ou estratégia. A seu ver, era perfeitamente
possível associar e inserir o Deus cristão em seus calundus de matriz centro-africana,
sobretudo a partir daquelas experiências que culminaram em sua iniciação ritual.
REFERÊNCIAS
CRAEMER, Willy de; VANSINA, Jan; FOX, Renée C. Religious Movements in Central
Africa: A Theoretical Study. Comparative Studies in Society and History.
Cambridge: Cambridge University Press, v. 18, n. 4, p. 458-475, oct. 1976.
DINES, Alberto. Vínculos de fogo: Antônio José da Silva, o Judeu e outras Histórias
da Inquisição em Portugal e no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
MACGAFFEY, Wyatt. The west in Congolese experience. In: CURTIN, Philip D. (org.)
Africa & the West. Madison: University of Wisconsin Press, 1972.
MACGAFFEY, Wyatt. Religion and Society in Central Africa: the Bakongo
of Lower Zaire. Chicago/London: The University of Chicago Press, 1986.
MACGAFFEY, Wyatt. Dialogues of the deaf: europeans on the Atlantic coast of Africa.
In: SCHWARTZ, Stuart. (org.) Implicit Understandings: observing, reporting, and
reflecting on the encounters between europeans and other people in early modern era.
Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
ROSA, Guimarães. Grande sertão, veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958.
SLENES, Robert Wayne Andrew . Malungu, Ngoma Vem!: África coberta e descoberta
no Brasil. Revista USP, São Paulo, v. 12, p. 48-67, 1992.
SWEET, James. Recreating Africa: culture, kinship, and religion in the African-
Portuguese World, 1441-1770. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2003.
ESPIRITISMO: MÉDIUNS, PACIENTES E PROCESSOS DE CURA DENTRO DA
DOUTRINA ESPÍRITA.
Importante salientar que mesmo com as afirmações sobre plano espiritual, curas,
fluidificação, cirurgias espirituais, o Espiritismo nega qualquer tipo de misticismo ou do
sobrenatural. Allan Kardec em artigo escrito para a Revue Spirite, afirma que as
superstições nada mais são do que uma verdade que foi ampliada pela imaginação. Assim
sendo, se fosse retirada a parte fantasiosa das superstições, seria uma forma de destruir o
que há de falso nas crenças populares, pois a explicação lógica anularia o fantástico e o
1
Graduanda em História pela Universidade Federal de Alagoas, membro do Laboratório Interdisciplinar
de Estudo das Religiões - LIER.
2
Ver: ARRIBAS, Célia da Graça. Afinal, Espiritismo é religião? – A doutrina espírita da formação da diversidade
religiosa brasileira. São Paulo, Alameda, 2010.
impossível, deixando a realidade explicada à luz da ciência3. No Brasil essa lógica de Kardec
não teve tanta força inicialmente, onde o fantástico está presente em diversas crenças e se
incorporou ao Espiritismo em diversos pontos de sua instalação no país.
Quanto aos motivos que levam o homem a sofrer de males físicos ao longo da vida,
geralmente coincidem na obra original e na seguida hoje pelos religiosos adeptos do
Espiritismo as mesmas causas. A doença segundo a doutrina espírita pode ser vista como
uma expiação4 por algum mal causado em encarnações anteriores e que, por justiça divina,
o homem reencarnaria com problemas relacionados com essa falha que teria cometido,
passando assim por certas dificuldades que o fizessem entender o mal que causou. Nesta
lógica espírita, quanto maior a falha cometida pelo homem, maior a expiação que o mesmo
sofreria na mesma encarnação ou na subsequente. A doença poderia também ser causada
por males provocados pelo próprio indivíduo, por não ter os cuidados necessários com seu
corpo – que é considerado pelos espíritas como um invólucro temporário do espírito
enquanto encarnado. As obsessões5 de espíritos sobre o indivíduo igualmente - e não raro -
seriam motivo de doenças mentais e físicas. Estas seriam as causas mais prováveis, porém
não únicas, do acometimento do homem por doenças de diversos tipos.
Pode ser observado que na doutrina espírita os problemas – sejam eles de saúde ou
psicológicos – tem suas razões geralmente explicadas pela crença de que há existências
anteriores e que as ações não são isentas de reação, mesmo que em encarnações
diferentes. A partir dessa ideia, a expiação e a más tendências morais são um problema
individual a ser combatido, o que reafirma a ideia espírita da necessidade constante de
busca do melhoramento moral6 e do afastamento de vícios e comportamentos divergentes
3
KARDEC, Allan. Revue Spírite – jornal de Estudos Psicológicos. Ano II. 1859. 3ª ed.Rio de Janeiro, FEB, 2009.
p. 11-19
4
Allan Kardec afirma que “Até que os últimos vestígios de falta desapareçam, a expiação consiste nos sofrimentos
físicos e morais que lhe são consequentes, seja na vida atual, seja na vida espiritual após a morte, ou ainda em nova
existência corporal.” KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno – ou a justiça divina segundo o Espiritismo. 52ª edição.
São Paulo, IDE, 2008. Cap.7
5
A obsessão é um distúrbio espiritual, a ação persistente que um espírito exerce sobre o indivíduo. Pode apresentar
diversas características, desde a influência moral, desordem do organismo, problemas mentais, etc. Regra geral, a
obsessão é praticada por espíritos considerados moralmente inferiores. CAMPETTI SOBRINHO, Geraldo (org.). O
Espiritismo de A a Z - Dicionário de termos. Rio de Janeiro, FEB, 2010. p. 625-630.
6
Os espíritas costumam chamar de reforma moral ou reforma íntima as mudanças que o indivíduo deve conseguir
alcançar em nome do seu bem estar e do próximo. CAMPETTI SOBRINHO, Geraldo (org.). O Espiritismo de A a Z
- Dicionário de termos. Rio de Janeiro, FEB, 2010. p. 759
da lógica cristã. A reforma íntima, como é chamada a busca do aperfeiçoamento moral, é
considerada como um requisito indispensável para a saúde do homem.
A negligência com o corpo físico, o abuso do álcool e do cigarro por exemplo, são
problemas que, segundo a ciência convencional, comprometem a expectativa de vida do
homem. A prática desses atos ou de tantos outros que trouxessem males ao organismo, são
entendidos pelo Espiritismo como o motivo de determinadas doenças ou ainda como a
causa do agravamento de algum mal que já estaria “destinado” ao indivíduo, mal este que
seria potencializado pelos hábitos destrutivos cometidos ao longo da vida.
7
O abuso de drogas, álcool, cigarro, vícios adquiridos ao longo da vida, o mau cuidado do corpo e que diminuem a
expectativa de vida do indivíduo são uma morte a longo prazo, considerado como suicídio involuntário. “O suicídio
não consiste somente no ato voluntário que produz a morte instantânea, mas em tudo quanto se faça
conscientemente para apressar a extinção das forças vitais.” KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno – ou a justiça
divina segundo o Espiritismo. 52ª edição. São Paulo, IDE, 2008.
atrairia assim os espíritos que teriam a mesma frequência de pensamentos considerados
moralmente inferiores. O homem falha de forma recorrente, resulta na atração do espírito
que o incentiva a continuar cometendo a mesma falha e assim se cria, segundo o
Espiritismo, um ciclo do qual só com a mudança de postura moral, o homem estaria livre. A
lógica se assemelha, em partes, a noção da Samsara budista, o ciclo de renascimentos e
mortes do indivíduo, onde o homem de acordo com o desenvolvimento de sua sabedoria,
consegue ultrapassar esse ciclo de reencarnações e se tornar um iluminado, livre do
sofrimento comum ao homem que ainda não conseguiu chegar à iluminação. Guardadas as
devidas diferenças, a lógica é semelhante. Somente com o conhecimento, segundo ambas
as doutrinas, o homem pode “evoluir”, sendo esse conhecimento adquirido ao longo de
existências e com um fim comum: o bem estar do espírito, que estaria livre dos males,
doenças, privações, dificuldades em geral.
8
O passe magnético é a imposição de mãos do médium sobre o ‘paciente’ seja ele carente de melhora espiritual ou
física. “Na liturgia atual da Igreja Católica o passe também pode ser identificado na imposição de mãos dos
padrinhos, em certos momentos das cerimônias de casamento e batismo. Vamos encontra-los, também, nos
exorcismos e nas bênçãos de um modo geral.” GURGEL, Luiz Carlos de M. O passe espírita. 5. ed. Rio de Janeiro,
FEB, 2006.
Kardec – alguns centros também orientam o estudo de obras de Chico Xavier. Outra
orientação é que o médium na proximidade do atendimento ao público não cometa excessos
de qualquer ordem, para que esteja em equilíbrio na hora de auxiliar os pacientes em
tratamento.
9
Água fluidificada é o líquido levado pelo paciente, que passaria por um processo de magnetização onde a
espiritualidade coloca os fuidos que o indivíduo necessita para o auxílio de sua doença.
10
A codificação da doutrina espírita é constituída por cinco obras, todas da autoria de Allan Kardec: O Evangelho
Segundo o Espiritismo, O Livro dos Espíritos, O Céu e Inferno, O Livro dos Médiuns e A Gênese, sendo os dois
últimos com aspectos mais científicos e os demais com ensinamentos morais e com os conceitos básicos.
lógica, o sofrimento traz inquietação e a vontade de que ele cesse é um dos motivos que
levam as pessoas a procurarem auxilio nas práticas religiosas11. A salvação não
necessariamente é procurada com um fim para além desta vida. A necessidade da cura e do
alívio das dores físicas, assim como a busca da riqueza também o é, são bens por vezes
almejados e a serem alcançados na presente existência. As religiões, desde as mais
primitivas, pareciam entender e oferecer tais bens, o que pode ser visto ainda hoje em
diversas ideologias religiosas. Portanto mesmo que o Espiritismo traga a noção de que
existe uma vida pós-morte, onde as dores cessarão, o indivíduo que sofre de um mal físico
pode entender na doutrina um local de cura e de alívio psicológico/físico imediato. É comum
ouvir de membros das casas espíritas a afirmação de que o indivíduo busca o Espiritismo
“por amor ou pela dor”, no sentido de que ocorre de aceitar a doutrina por se identificar
com a mesma e virar adepto ou então o indivíduo vê, num momento de angústia e
desespero, a saída ou a chance de amenizar seus males – sejam eles por doença ou não -
com os tratamentos alternativos e o alívio de saber que há para além do plano material, um
possível auxílio, que no imaginário popular, tem mais força.
11
Ver WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. LTC, Rio de Janeiro, 5ª edição, 2002. p. 193.
12
Dr. Fritz teria sido um médico alemão que cuidava de doentes durante a segunda guerra mundial e que hoje
incorpora em médiuns para que possa fazer cirurgias espirituais. Atualmente há um templo do Dr. Fritz em Maceió,
onde pude assistir a cirurgias, conversar com pacientes e ajudantes do médium.
oftalmológicos. Para ele, o homem e a ciência são limitados e, portanto, não poderiam
alcançar esse tipo de ação sem que houvesse infecções – já que o ambiente não é
esterilizado -, dores durante o procedimento – que não leva anestesia –, entre outras
consequências que uma cirurgia pode ocasionar.
No final do século XIX era comum encontrar médiuns receitistas. Eram chamados
assim os espíritas que, em atendimento e afirmando serem mediadores do espírito de um
médico ou de algum espírito ‘evoluído’ passavam geralmente receitas homeopáticas ou os já
citados passes magnéticos. Médiuns curadores era outra modalidade conhecida no período,
que também aplicavam passes e buscavam a cura da chamada obsessão.13 Além desses
médiuns que não possuíam educação formal na área da medicina, vários médicos aderiram
à causa espírita, tornando-se referência no meio, como Adolfo Bezerra de Menezes, que
chegou a presidência da Federação Espírita Brasileira, foi um dos grandes nomes da
13
Revista de história da Biblioteca Nacional. Ano 3, nº 33. Junho, 2008. p. 16.
unificação doutrinária do Espiritismo no Brasil14 e ainda hoje é bastante citado e em grandes
reuniões da religião, tendo seu nome relacionado a auxílios médico-espirituais.
As chamadas práticas mágicas foram assunto tratado no código penal de 1890 nos
artigos 156, 157 e 158, que não permitiam misticismos, feitiçarias ou o que pudesse ser
interpretado como tal, como a prescrição de remédios naturais ou hipnotismo. Os espíritas,
sempre fundamentados em homeopatia, magnetismo, fluidificação e curas espirituais,
tiveram problemas, sendo perseguidos judicialmente, além das perseguições religiosas de
14
Ver: ARRIBAS, Célia da Graça. Afinal, Espiritismo é religião? – A doutrina espírita da formação da diversidade
religiosa brasileira. São Paulo, Alameda, 2010.
15
Revista de história da Biblioteca Nacional. Ano 3, nº 33. Junho, 2008. p. 14-19
16
A ressurreição é a ideia de que o espírito retornaria ao corpo que já está morto, não aceita pelos espíritas, mas
reivindicada como verdadeira pelos católicos. Já a reencarnação é a volta da alma à vida corpórea, porém num outro
corpo, fato que ocorre tantas vezes sejam necessárias afim de que o indivíduo possa cumprir suas sucessivas
existências. CAMPETTI SOBRINHO, Geraldo (org.). O Espiritismo de A a Z - Dicionário de termos. Rio de
Janeiro, FEB, 2010. p. 753 e 772.
outras doutrinas que combatiam as ideias espíritas e também consideravam as curas
espirituais como charlatanismo.17 O código penal trazia o seguinte texto:
17
ARRIBAS, Célia da Graça. Afinal, Espiritismo é religião? – A doutrina espírita da formação da diversidade
religiosa brasileira. São Paulo, Alameda, 2010. p. 119 – 130.
18
Informativo Espírita – Órgão do Centro Espírita Alagoano Melo Maia. Ano I – Outubro de 1976 – nº4.
Bibliografia
Livro:
GURGEL, Luiz Carlos de M. O passe espírita. 5. ed. Rio de Janeiro, FEB, 2006.
KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno – ou a justiça divina segundo o Espiritismo. 52ª edição.
São Paulo, IDE, 2008.
KARDEC, Allan. Revue Spírite – jornal de Estudos Psicológicos. Ano II. 1859. 3ª ed.Rio de
Janeiro, FEB, 2009.
Organização de livro:
Tese ou Dissertação:
FRADE DA CRUZ, Inácio Manoel Neves. Doutor Fritz andou de disco voador: hibridizações e
sincretismos na terapia espiritual de Chico Monteiro. Dissertação. Juiz de Fora, 2007.
Informativo Espírita – Órgão do Centro Espírita Alagoano Melo Maia. Ano I – Outubro de
1976 – nº4.
Introdução
Gostaria de iniciar chamando a atenção para os seguintes elementos: Vaticano II;
inculturação; Corpo Místico de Jesus Cristo. Para que eu pense Vaticano II, preciso
tomar em conta a conquista colonial do mundo, sua pretensa conquista espiritual a
partir da Europa, e tomemos como locus central o Vaticano, tensões face a um
potencial cânone policêntrico. Transito pela lógica de que Cristo não é europeu, mas
foi incorporado por seus Estado-Nações e serviu de estandarte da Colonização, do
assujeitamento dos ditos “quatro cantos do mundo” ao longo dos processos colonial e
neo-colonial do mundo – e tem ainda servido nos processos de assujeitamento pós-
guerras de libertação, mas este não é o enfoque central desta reflexão.
Se eu estou a pensar inculturação, penso interculturalidade, contato, contágio,
encontro, rotas de colisão ou rotas compartilhadas, condição de encruzilhada, trocas,
feixes relacionais, oposições. A palavra encruzilhada já se faz marcada quando se
menciona religião e quando se relaciona com a vida cotidiana, não apenas cruzamento
de caminhos, mais que isso, possibilidade plural de caminhos. Uns podem preferir
sincretismos, outros hibridização, outros em construção identitária, entre-lugar: do
local e transnacional, fronteira “inatingível”, trânsitos.
E ao trazer à baila o Corpo Místico de Cristo, dogma eclesiástico - unidade do Corpo
místico sem a qual não pode haver salvação (Lumen Gentium, 1964, p. 21) – tendo
como cabeça deste Corpo a própria Instituição Igreja Católica; pondero aqui também
o campo de poder em meio a trânsitos, como “organização ou ordenamento do caos”
(Schieffelin, 1985), se o “símbolo ritual transforma-se em fator de ação social, em
uma força positiva, num campo de atividade” (Turner, 2005, p. 49), então pondero
considerar o campo, que, segundo Bourdieu, constitui um sistema de linhas de força
que se opõem e se agregam, conferindo sua estrutura específica num momento dado,
e por outro lado, cada uma destas linhas está determinada por seu pertencimento a
este campo, suas propriedades de posição, e um tipo determinado de participação no
campo cultural (Bourdieu, 2002, p. 9-10); assim sendo, cabe investigar esta entidade
dinâmica (Turner, 2005, p. 50) e sua polarização do significado (Turner, 2005, p. 59-
62), seja no polo ideológico – normas, valores, ordem moral e social - , assim como a
ordem sensorial aí intercalada, quiçá refletir o corpo, como se vem abstraindo o corpo
como conteúdo e componente de marcas identitárias, suas concepções e trânsitos
semânticos que perfilam este processo também ritual; campo da interpretação e da
tradução, e por assim dizer o deslocamento (Ricœur, 2011, p. 7).
Os eixos confluem ou afluem no que Estermann (2007, p. 267) traz como paradigma
da “missão inter gentes” correspondente ao espírito do Vaticano II, e destaco: “It
admits to reciprocity and mutual conversion between agents and receivers of mission,
recognizes the Church on six continents, and values intercultural and interreligious
dialogue”; e “It highlights mission, not as an activity between individuals, but between
communities”. O mesmo autor alerta “It will be important that the old Latin American
Christianity prepare for the new religious situation, which presents itself concurrently
as an inherited popular religiosity and as a diaspora of an already small flock”.
Eis um possível dilema: o catolicismo polimorfo (Bastián, 2005; 1997, p. 40) e “uma
articulação do juízo crítico dos ‘vencidos’ ou ‘convertidos’ frente ao cristianismo
ocidental que se lhes impõe” (Fornet-Betancourt, 2007, p. 16), um cristianismo
policêntrico (Fornet-Betancourt, 2007, p. 31) a evidenciar as encruzilhadas culturais
por onde transita o catolicismo a se (re)modelar conforme tessituras culturais, e que
poriam em risco o Corpo Místico de Jesus Cristo.
Várias foram as formas pelas quais o catolicismo foi adotado por populares, por
comunidades afrodescendentes, adverte Souza (2002, p. 144-146), de conexão entre
este mundo e o outro, a relação dos homens com o além, permitida pelo objeto
mágico-religioso, seja o um santo católico, um nkisi, um Orixá, ou um produto
mestiço do encontro entre diferentes culturas, utilizando-se dos espaços permitidos
pela sociedade, sejam espaços permitidos, senão criando meios de negociação ou
formas de permanência.
Uma Missa cujo roteiro concertante põe como predicador a própria comunidade em
atuação. A abertura da missa se faz com o cântico Estamos chegando, das margens
do mundo e a semantização do estar e ser periférico, do historicamente subalterno, do
deslocado que (re)constrói lugares e alianças, negativizado e negado que vem ao som
de todos os tambores, dançar e cantar sua memória atualizada, não apenas a
travessia, mas a condição pós-travessia, clamam em louvor. Trazem contradições
sociais e evocam em sua memória o porvir de outro Palmares, que mescla o valor
histórico da resistência colonial e anuncia uma Terra Prometida.
Aqui não temos o rito nos terreiros, mas na igreja e espaços correlatos destes bens
culturais hegemônicos numa liturgia do e para o negro (Ferretti, 1995) –
posteriormente proibida, portanto colocada numa potencial diáspora. Faço uso do
raciocínio de Abdias do Nascimento, para quem embora não houvesse a igualdade ou
paridade religiosa, condição prévia do verdadeiro sincretismo (Nascimento, 1980, p.
94), refletindo a relação catolicismo e identidades africanas: quase todas as ordens
possuíam escravos, ao que Sant’Ana (2005, p. 49) pontua: “associado ao tráfico e ao
sistema escravista. elaboradas doutrinas com falsa base bíblica e filosófica, bem como
tentativas de comprovação de teorias com uma falsa base científica”. Traz-se a
memória perigosa já advertida por Casaldáliga quando da Missa da Terra Sem Males
(1980, p. 14).
Há algo que subsiste e persiste e parece ter ganho vida para além dos documentos do
Sínodo dos Bispos que trouxe a preocupação de ampliar e manter a hegemonia
católica no continente americano. A condição de interculturalidade, da igreja católica
latino-americana que historicamente foi construída pelos braços escravos e de outros
subalternos que então fora aberta à celebração negra, mesmo que suas portas
fisicamente se fechem, como é frequente em determinadas comemorações populares,
a fé na sua condição imaterial tem poder de convocação histórica para o adro da
Igreja ou outro lugar que se possa fazer locus cerimonial e se exibir em sua
performance histórica, depende sim de a que rede social esta fé se faz instrumento,
qual forma de oprimido: se a vítima, quem carrega a mácula, ou se quem busca
superar as adversidades transformando a si e quiçá o seu entorno, ou mesmo
ocupando o lugar e a forma dos seus opressores. Algumas CEBs sinalizaram Grupos
Catalisadores, do uso do rádio1, com esta conduta, se escutam as memórias
comunitárias, assim teciam redes, malhas sociais (Conceição; Oliveira, 2007, p. 147-
148), mobilidades e mobilizações nem sempre bem vistas pelo centralismo.
A Missa termina com o proferir do “Quilombo Novo” e a saudação yorubá Ony Saurê –
que por alguma razão ainda não conhecida gravou-se “saruê” - (Abril Coleções, 2012,
p. 44). A Missa se põe como entre-lugar, encruzilhada identitária e define seu trajeto
no cruzamento noutra direção que a do centralismo romano, e reafirma sua opção
pelos pobres, potencializando “redes dos oprimidos” (Castro-Pozo, 2011).
1
Conceição e Oliveira (2007, p. 147-148): The basis for the process that guides the work of the Catalyst
Group is explained by Ho Chi Minh: People who do not count with their own forces, and only wait for the
help of others, do not deserve to be independent. According to Bogo (2003), the Catalyst Group can be
described by using a metaphor based on two radios: the wall radio and the portable radio. The wall radio is
internal to the community and is composed of leadership within the community, people who live the social
problem on a daily basis. The portable radio represents the leadership en route because they take the
messages to the radio station.
legalizados pela sociedade dominante; do outro lado da lei se erguem os quilombos
revelados que conhecemos (1980, p. 255)”.
Como fronteira e trânsito está a Missa, espaço que se tornara território cênico,
superando as portas fechadas das igrejas para o popular, ou portas abertas para a
entronização (Silva, 2010: 25) popular da autoridade que circula na igreja e nas ruas
e ali também se cultua, aí transitam na divindade outros componentes do poder
pastoral como complexo de significações, práxis afro-brasileira, que não significa
escravo fugido, mas ali transita liminarmente como reunião fraterna e livre,
solidariedade, convivência, comunhão espiritual (Nascimento, 1980, p. 255-263). A
religião como um tipo particular de ação social (Silva, 2010, p. 31).
Bibliografia
ABRIL COLEÇÕES. Missa dos Quilombos – 1982. São Paulo : Abril, 2012. 48p; + CD
(Coleção Milton Nascimento; v. 17) ISBN 978-85-7971-530-3
BASTIAN, Jean-Pierre La mutación religiosa de América Latina. Para una sociología del
cambio social en la modernidad periférica. México, DF: Fondo de Cultura Económica.
1997.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo : Perspectiva. 1974
CANCLINI, Néstor García. Consumidores y ciudadanos: conflictos multiculturales de la
globalización. Introducción a la edición en inglés. México: Grijalbo. 1995. 365p.
CANDAU, Vera Maria (ORG) Cultura(s) e educação: entre o crítico e o pós-crítico. Rio
de Janeiro : DP&A, 2005. 165p.
CASALDÁLIGA, Pedro; TIERRA, Pedro, COPLAS, Martin. Missa da Terra sem Males. Rio
de Janeiro-Brasil: Tempo e presença. 1980.
DE GRANDIS, Rita. Processos de hibridação cultural In: BERND, Zilá & DE GRANDIS,
Rita. (ORG) Imprevisíveis Américas: questões de hibridação cultural nas Américas.
Porto Alegre: Sagra: DC Luzzatto: ABECON, 1995.
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos: arqueologia das ciências e história dos sistemas
de pensamento. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2004, v.II.
LÖWY, Michael. The war of gods. Religion and Politics in Latin America. London: New
York: Verso, 1998.
SANT’ANA, Antonio Olimpio de. “História e Conceitos Básicos sobre o Racismo e seus
Derivados”. In: Munanga, Kabengele (Org.). Superando o Racismo na escola. Brasília :
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, 2005.
SCHILLER, Nina Glick, BASCH , Linda, BLANC , Cristina Szanton. From immigrant to
transmigrant: theorizing transnational migration. Anthropological Quarterly, Vol. 68,
No. 1 (Jan., 1995), pp. 48-63
SILVA, Rubens Alves da. Negros católicos ou Catolicismo Negro? Um estudo sobre a
construção da identidade negra no Congado mineiro. Belo Horizonte: Nandyala. 192p.
2010.
1
– Bolsista CAPES/CNPq, do mestrado em Antropologia e Arqueologia, PPGGAArq/CCHL/UFPI
e-mail: amparo_ribeiro@ymail.com
1. INTRODUÇÃO
2
Na Umbanda, o chamado “ponto cantado” refere-se a cantigas que falam dos Orixás e/ou das entidades
espirituais que trabalham/atendem no terreiro. Estes pontos funcionariam como evocações de determinadas
energias, servindo tanto para trazer as entidades como para se despedir delas.
assim como o cumprimento de regras que direcionem a uma mudança de
comportamentos e de hábitos que favoreçam o entrecruzamento entre tratamento e
cura. Como pode ser observado na foto abaixo, onde presenciei uma festa no
terreiro/tenda espírita onde me proponho fazer esta pesquisa. (FOTO 01)
FOTO 01 – Festa de Seu Raimundo Légua na tenda espírita São Jorge Guerreiro, em
03/11/2012.
Isso condiz com o que Yvonne Maggie (2001) afirma sobre a própria
denominação de religião afro-brasileira que explica o caráter sincrético da Umbanda,
refletida não apenas em sua diversidade, mas numa multidiversidade:
FOTO 03: Oferendas para as entidades que representam o “povo de Légua”, na festa
de Seu Francisco Légua, na tenda espírita São Jorge Guerreiro, em 03/11/2012.
Assim, o momento da escuta da cultura, como fala Geertz, no seu texto Estar
Lá: a antropologia e o cenário da escrita será:
A capacidade dos antropólogos de nos fazer levar a sério o que
dizem tem menos a ver com uma aparência factual, ou com um ar
de elegância conceitual, do que com sua capacidade de nos
convencer de que o que eles dizem resulta de haverem realmente
penetrado numa outra forma de vida (ou se preferir (...), de terem
sido penetrados por ela), de realmente haverem, de um modo ou
de outro, “estado lá”. E é aí, ao nos convencer de que esse milagre
dos bastidores ocorreu, que entra a escrita (2009, p.15)
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
7. REFERÊNCIAS
MALINOWSKI, B. Baloma: the spirits of dead in the Trobriand island. The Journal of
the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland. 46: 353-430,
1916.
Arlindo J. de S. Netoii
RESUMO
As mudanças ocorridas na história interferiram diretamente na formação de novos
padres. Do Concílio Vaticano II, a Igreja colheu a idealização do Optatum Totius, um
decreto que sancionou a reforma educacional dos seminários no mundo todo. Desde sua
fundação, o Seminário Maior Nossa Senhora da Graça, fundado pelo Bispo de Olinda
Dom Azeredo Coutinho (1742-1821), de Olinda e Recife, atuou nas transformações
sociais, culturais e políticas, não apenas do estado, mas em todo o país. A partir da
importância deste Seminário para a formação sacerdotal, o presente trabalho buscou
analisar, descrever e compreender como é a atual formação dos seminaristas da
Arquidiocese de Olinda e Recife e como ela dialoga com as estruturas sociais. Indo
além, buscou-se compreender como se dá o processo ritual (Van Gennep e Victor
Turner), especificamente, o rito de passagem na vida desses seminaristas.
INTRODUÇÃO
Os atuais estudos antropológicos sobre o catolicismo são muitos, e tem como objeto
de estudo o laicato. Para citar alguns, temos Cecília Mariz (2003 e 2009), Marcelo
Ayres Camurça (2009) e Mísia L. Reesink (2005 e 2009). Os autores, a partir dos leigos
católicos, tratam temas como renovação carismática, morte e milagre. A Igreja Católica,
como objeto histórico, também foi bastante estudada em variadas dimensões. Alguns
trabalhos podem ser citados, como os de Flávio Pierucci (1984), Renata Menezes
(2004), Pierre Sanchis (1992) e Sérgio Miceli (2009). A história da formação sacerdotal
não ficou fora dessas análises, mas antropologicamente, como dito, não é encontrada em
nenhuma obra que se debruce primariamente sobre os seminários. Indo além da
formação sacerdotal masculina, existem algumas etnografias referentes ao noviciado
feminino ou a vida religiosa feminina, como por exemplo, Ângela Berlis (1999) e Sílvia
1
R. A. Fernandesiv (2005), mas nada antropologicamente referente à formação sacerdotal
masculina.
2
Brasil: o Seminário Maior Nossa Senhora da Graça, fundado pelo Bispo de Olinda Do m
Azeredo Coutinho (1742-1821), igualmente, repercutiu sobre a formação seminarística.
Dom Hélder Pessoa Câmara (1909-1999), Bispo de Olinda e Recife (1964-1985), tentou
reestruturar o modelo de formação sacerdotal. Este modelo buscaria um bom diálogo
entre leigos e sacerdotes e ampliaria a liberdade dos seminaristas durante a formação.
Sem apoio do Papa e do clero local, o novo modelo apenas permaneceu como projeto. A
reação conservadora foi contra a implantação e os seminários permaneceram presos às
suas origens.
Convivi com doze seminaristas durante todo o ano de 2012. Esses seminaristas,
durante o ano de 2011, antes de ingressarem no Seminário, foram acompanhados por
seus respectivos párocos. Uma vez por mês se reuniam com o reitor do Seminário para
3
se integrarem na dinâmica da instituição. Só assim, tornaram-se aptos para ingressarem
ao Seminário. Ainda não estava em campo quando esses encontros ocorreram. Portanto,
não pude observa-los. Mas, posteriormente, pude ter acesso, através da fala dos meus
informantes, do que ocorria e como era a dinâmica desses encontros. Segundo M, 16
anos, “são nesses encontros que o “chamado de Deus” fica mais forte”; ou, B, 19 anos,
“esse momento nos ajuda a discernir o que realmente queremos”; ou ainda, P, 19 anos,
“os encontros eram legais, é bom porque a gente vai percebendo como vai ser a nossa
nova vida”vi.
Dos doze seminaristas, dez são pardos e dois são negros. O mais jovem do grupo
tem 16 anos e o mais velho 31. Mas a idade média é de 19 anos. Todos vêm de famílias
compostas por pai, mãe e pelo menos um irmão ou irmã. Nenhum deles era filho único.
Quando questionados se os familiares os apoiavam, sempre respondiam
afirmativamente. Apenas um disse-me que a família não tinha “gostado da ideia”, mas
se era o “gosto” dele, apoiariam. O que chamou minha atenção é que 2/3 dos
seminaristas tinham algum parente próximo que era padre, seja um tio, um primo ou
padrinho. E todos eles, desde criança, eram vinculados à igreja do bairro, exercendo
alguma atividade, seja como coroinha ou algo relacionado com os jovens que
frequentam a instituição (grupo de jovens).
Para entender melhor quem são e quais são as reais motivações, entrevistei-os
tendo como base duas perguntas principais. A primeira era, “Por que decidiu entrar para
o seminário?”; e a segunda, “O que você espera depois de ser ordenado padre?”.
Encontrei quase o mesmo padrão de resposta: “um desejo que não sei como explicar”
(Jvii 20 anos), “acho que Deus tem planos pra mim dentro da Igreja” (P. 19 anos),
“algo começou a mexer no meu coração referente a isso” (T. 31 anos), “fui chamado e
eu respondi a esse chamado” (J. 21 anos). Mesmo sendo “esse chamado” o motriz para
a decisão de tornar-se padre, foi comum ouvir em seguida, que o seminário iria ajudar a
discernir “esse chamado de Deus”. Dando sentido ou (re)significando “esse chamado”.
4
Na segunda questão, as respostas foram sempre à mesma: “estar inserido numa
comunidade” (F. 20 anos), “sentir-me realizado e integrado no meio do povo, sendo
para eles um bom pastor” (K. 18 anos), “fazer a vontade de Deus no meio do povo” (L.
anos), “realizar a vontade de Deus e conduzir o povo a encontra-la” (T. 31 anos). Esta
perspectiva pastor-povo esta presente no discurso desses seminaristas, muito
provavelmente, porque a própria liderança (Arquidiocese) tomou essa posição e por
consequência seus pastores também.
5
Os sentimentos em questão certamente são os mesmos
(humilhação, sofrimento, piedade, etc), mas também é certo que
os significados desses sentimentos assumem diferentes contornos
e sombras. Em um a humilhação e o sofrimento são rejeitados e
até mesmo insuportáveis; no outro, desejados. Não só desejados,
mas motivos de orgulho pois fundam toda uma moralidade, um
modo de ser e de sentir (Campos, 2002, p.260).
É comum ter uma ideia geral para os rituais, imagina-los como algo formal,
rígido e arcaico ou que estão diretamente ligados a determinados cultos ou ao meio
religioso. Essas ideias gerais se mostram, muitas vezes, presentes no cotidiano. Mas na
realidade, os rituais, especialmente os ritos de passagem, estão presentes nos mais
variados espaços de nossa sociedade e de formas múltiplas, desde os mais complexos
aos mais ordinários. E a repetição é o ponto comum de suas variedades. Estes rituais
ajudam a estruturar e organizar a sociedade. Eles conferem status, troca de valores e
posições, controla e legitima a vida social, sejam eles religiosos ou não ix.
6
A antropóloga Mariza Peirano no livro, Rituais ontem e hoje, evita uma
definição de ritual que tenha um caráter rígido e absoluto. Com a intenção de sempre
dar voz ao nativo, Peirano diz que a definição de ritual “precisa ser etnográfica, isto é,
apreendida pelo pesquisador em campo junto ao grupo que ele observa” (2003, p. 9).
Desse modo, suscita a importância do etnógrafo não observar os rituais com os critérios
de sua sociedade, não se deixando levar pelos valores de racionalidade, já que não são
os mesmos para todos os grupos. Deve-se assim, considerar como importante o dia-a-
dia ou ao que é comum a um grupo, já que os rituais ressaltam essas peculiaridades.
É a partir desses pontos chaves que Mariza Peirano x tenta conceituar o que é um
ritual e através deles observar como uma sociedade vive, se pensa e se transforma, pois
“consideramos o ritual um fenômeno especial da sociedade, que nos aponta e revela
representações e valores de uma sociedade, mas o ritual expande, ilumina e ressalta o
que já é comum a um determinado grupo” (ibidem, p. 10).
Esses ritos estão presentes em todas as sociedades. Seja um rito religioso, social,
econômico ou fisiológico ele é um estopim para mudança. Consequentemente, mudança
sempre exige uma resignificação. Suscitando-nos que os ritos de passagem organizam a
sociedade e lhe dão significado. Para vivenciá-lo é preciso estar inserido em um grupo
ou comunidade, ao mesmo tempo em que se pode entendê-lo pela dimensão individual.
7
Mas, necessariamente, um rito de passagem só consolida-se se existir a participação
dessas duas esferas, o indivíduo e o grupo. E deste modo nos diz que “para os grupos,
assim como para os indivíduos, viver é continuamente desagregar-se e reconstituir-se,
mudar de estado e de forma, morrer e renascer. É agir e depois parar, esperar e repousar,
para recomeçar em seguida a agir, porém de modo diferente” (ibidem p. 160).
8
Uma dentre outras características que Victor Turner atribui a esse estado de
invisibilidade é a dos neófitos não possuírem nada nesse momento. “Não têm status,
propriedade, insígnia, vestimenta secular, graduação, posição de parentesco, nada que
possa distingui-los, estruturalmente, de seus companheiros” (ibidem, p. 143). É nesse
sentido que Turner descreveu o que chamou de “communitas”. Esse termo pode ser
entendido como um grupo, uma comunidade, uma comunhão homogênea de indivíduos
submetidos ao mesmo processo ou conjunto de ordens e a uma autoridade.
9
Porém, na imagem abaixo, o propedêutico, num segundo momento, assume as
características do estado liminar.
É a partir da liminaridade dos ritos que o individuo é rebaixado para, logo após,
ser readmitido em um novo status. Então, para o seminarista ser admitido para a
próxima etapa de formação, o noviciadoxiii, ele invariavelmente teria que passar pela
liminaridade. Mas como dito antes, numa visão geral do rito de passagem de formação
de um seminarista, o noviciado é que representa essa liminaridade. Portanto, as etapas
rituais se recompõem segundo a posição que ocupam no momento ritual, ou seja,
“existem inúmeras modalidades de separação e de agregação, e, portanto, variadas
situações de margem” (ibidem, p.369).
10
[...] um lugar de residência e de trabalho onde um grande
número de indivíduos, colocados numa mesma situação, cortados
do mundo exterior por um período relativamente longo, levam em
conjunto uma vida reclusa segundo modalidades explícita e
minuciosamente regulamentadas (Goffman, 1974, p.41).
Utilizo o conceito de instituição total como modelo de interpretação, uma vez que, é
possível identificar, características que evidenciam o tipo de instituição à que estão
submetidos os seminaristas. Embora, entendo que a realidade pode ou não se aproximar
deste modelo.
11
Igualmente, pode ser demonstrado por uma situação observada nas primeiras visitas
ao seminário, logo após a chegada dos seminaristas à instituição. Dos doze seminaristas,
três tinham medo de dormir sozinhos em seus quartosxiv, já que a instituição tem
alojamento individual para todos. De tal modo, o padre-reitor designou que os que
estavam com medo de dormi sozinhos escolhessem outro seminarista para dormirem no
mesmo quarto, até que o medo fosse perdido. A justificativa é que em suas casas eles
não possuíam um quarto para si, sempre dividindo com irmãos, parentes ou os pais. E
como deveriam desenvolver a união, o companheirismo e a caridade, teriam que
sacrificar a intimidade dividindo o quarto para ajudar o “irmão” de formação.
12
integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz
de percepções, de apreciações e de ações” (2000, p, 65). Seria, então, o princípio
gerador e estruturador das práticas e das representações.
Partindo disso, pode-se dizer que os seminaristas estão imersos num sistema de
disposições socialmente constituídas. E esse sistema é o princípio que gera e unifica as
práticas e as ideologias que caracterizam esse grupo. Portanto, seria esse sistema
subjetivo que conduz toda a visão de mundo e o estilo de vida desses seminaristas.
Por fim...
Assim, partir das observações, pude perceber que os ritos de passagem se dão numa
microestrutura (rituais cotidianos), nos pequenos acontecimentos do dia. E sendo os
macroacontecimentos (as cerimônias) os marcadores sociais de grande escala,
necessários para sinalizar e demarcar o novo status – seria uma espécie de “termômetro
social”.
13
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1999.
14
GENNEP, Arnold Van. Os ritos de passagem. Tradução Mariano Ferreira. 2ª edição,
Petrópolis, Vozes, 2011.
MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira. São Paulo, Companhia das Letras,
2009.
PEIRANO, Mariza. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro, Editora Jorge Zahar, 2003.
PIERUCCI, Antônio Flávio. “Igreja católica: 1945-1970”, in: FAUSTO, Bóris. (Org.).
História Geral da Civilização Brasileira: o Brasil republicano. São Paulo, DIFEL,
1984.
15
SANCHIS, Pierre (org.). Catolicismo: modernidade e tradição. São Paulo, edições
Loyola, 1992.
SERBIN, Kenneth P. Padres, celibato e conflito social: uma história da Igreja Católica
no Brasil. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras, 2008.
i
O presente artigo nasceu de algumas reflexões oriundas de minha monografia de conclusão de curso.
ii
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco, mestrando em An tropologia
pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da mesma Universidade e integr ante do Núcleo das
Religiões Populares – NERP/UFPE. E-mail: ar lindo.n etto@hotmail.com
iii
A segunda fase consiste no noviciado, esse não sendo abordado aqui, mas com intenções futur as.
iv
Fernandes (2005), por exemplo, aborda a não ordenação feminina no catolicismo a partir da ótica de
jovens seminaristas e moças que desejam ingressar em conventos. Trata-se de um estudo sociológico e
qualitativo que analisa comparativamente as percepções de rapazes e moças sobre as relações de gên ero
na Igreja Católica. A autora, mesmo não tendo os seminaristas como foco exclusivo de análise, é a que
mais se aproxima dessa perspectiva.
v
Segundo o CERIS (Centro de Estatística e Investigações Sociais) em números absolutos, havia, no ano
de 2000, um total de 8.659 seminaristas ligados às dioceses brasileiras e 3.393 vinculados aos institutos
religiosos. No momento não existem dados atuais.
vi
Dessa maneira, esses encontros podem ser considerados, levando em consideração a perspectiva de
flexibilidade das etapas dos ritos de passagem, como os momentos de separação antes de ingressarem no
Seminário. Dando, por assim dizer, ao propedêutico, um caráter de margem. Mais uma vez, a perspecti va
de Reesink (2012) mostra-se de acordo com os dados coletados, destacando que a estrutura dos ritos de
passagem (aqui observados), pode ser considerada como polivalen te.
vii
Os nomes foram suprimidos, mantendo apenas as in iciais.
viii
Minha intenção, aqui, se resume a demonstrar qual a perspectiva do conceito de ritual eu assumo. Não
tendo como objetivo fazer uma discussão sobre a literatura especializada.
ix
Por exemplo, Claude Rivière, em seu livro, Os ritos profanos (1977), foge à regra e não estuda os r itos
considerados sagrados. O autor analisa os ritos profanos, os ritos que estão presentes no cotidiano. En tr e
eles estão os ritos escolares, os ritos de ordem, os ritos de atividades, etc. Rivière destaca a impor tân cia
desses ritos para a formação da identidade da criança. Na contemporaneidade esses rituais podem ser
observados claramente, por exemplo, os trotes aos novos alunos que entram na universidade ou a
formatura escolar. Todos esses ritos marcam a perda de um status e a aquisição de outro, trazendo com
eles novas r esponsabilidades.
16
x
Organizadora da coletânea O dito e o feito: ensaios de Antropologia dos Rituais (2002). Na pr imeir a
parte do livro, Peirano, através de trabalhos do antropólogo Stanley Tambiah, enuncia na discussão o
ritual como instrumental analítico e como manifestação nativa, que deve ser percebida pelo antropólogo e
por uma tradição de renovação da antropologia pelo diálogo com as etnografias clássicas e r efer en ciais
teóricos diversos.
xi
A autora busca, a partir dos moradores de Casa Amarela, em especial, compreender a cosmologia
católica, conjugada à representações e aos rituais de morte.
xii
“Compreendendo este tanto ritos de passagem, quanto de ‘oblação’” (Reesink, 2012, p.368).
xiii
Estudo da Filosofia e Teologia.
xiv
Segundo o reitor, a quantidade de seminaristas serem a mesma quantidade de quartos não foi
intencional, foi apenas uma coincidência. Visto que no seminário maior, eles dividem quartos. Para o
reitor, isso não representa, necessariamente, um problema. Apenas obra do acaso.
xv
Segundo o reitor, a quantidade de seminaristas serem a mesma quantidade de quartos n ão foi
intencional, foi apenas uma coincidência. Visto que no seminário maior, eles dividem quartos. Par a o
reitor, isso não representa, necessariamente, um problema. Apenas obra do acaso.
xvi
Dependendo do ponto de vista de quem analisa, poderiam ser usados termos como: coagido,
constrangido, imposto, etc.
17
1
Resumo:
Este artigo pretende apresentar relações entre o papel exercido pelo líder e fundador
da Comunidade Canção Nova, o Padre Jonas Abib, e os fundamentos da Sociologia da
Religião, com ênfase nos conceitos de carisma desenvolvidos por Max Weber. O
objetivo principal será compreender como e se é possível encontrá-los no
comportamento do religioso, através da análise de mensagens selecionadas em seu
sítio eletrônico e da observação de sua trajetória. Num primeiro momento, um breve
histórico de sua atuação pastoral, sobre seu ingresso no movimento carismático, o
início da comunidade fundada por ele e a escolha pelo setor das comunicações para o
aparato de evangelização. Segue-se uma breve contextualização sociocultural da
igreja no século XX no que diz respeito ao incentivo do trabalho pastoral da renovação
carismática católica e sua aceitação por parte desta instituição. Num segundo
momento, faremos uma análise em busca de conexões entre as falas do religioso e os
conceitos weberianos sobre o tema, objetivando confrontar as orientações e posturas
do religioso com os conceitos de “carisma” e “líder carismático”.
1. Introdução
Numa tarde de domingo, ao acompanhar a programação da televisão aberta
brasileira, deparei-me com uma cena interessante – para não dizer diferente. Tratava-
se de um ginásio repleto de fiéis em louvor e oração, durante um acampamento de
oração na comunidade carismática Canção Nova3, liderada pelo Padre Jonas Abib.
Numa música de sua autoria, os presentes entoavam a letra em escalas musicais
diversas e até desafinadas, porém, com o entusiasmo de liderados e seguidores do
carisma emanado pelo interlocutor, que entre uma fala de motivação e outra, narrava
os seguintes versos, que eram cantados em sua totalidade pela assembleia:
*
Mestrando em Ciências das Religiões – UFPB. Graduado em Comunicação Social com Habilitação em
Publicidade e Propaganda (IESP).
**
Professora Adjunta do Departamento de Ciências das Religiões da UFPB e de seu Programa de Pós-
Graduação em Ciências das Religiões – PPGCR.
1
Este artigo é fruto de um trabalho de aproveitamento realizado para a disciplina Sociologia Clássica
da Religião, ministrada pela Profª. Drª. Fernanda Lemos, no segundo semestre de 2012, no Programa
de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba. O texto sofreu
modificações, através do trabalho de orientação da co-autora para ser apresentado neste evento.
2
Sobre os acampamentos de oração na comunidade Canção Nova, ver informações disponíveis em:
http://www.cancaonova.com/portal/canais/eventos/novoeventos/ac_estrutura.php?cod=6&ti=Acamp
amento%20de%20ora%E7%E3o Acessado em 10/12/2012
3
Sobre os acampamentos de oração na comunidade Canção Nova, ver informações disponíveis em:
http://www.cancaonova.com/portal/canais/eventos/novoeventos/ac_estrutura.php?cod=6&ti=Acamp
amento%20de%20ora%E7%E3o Acessado em 10/12/2012.
2
Em meio à emoção latente dos presentes ao ginásio, aos closes das câmeras de
televisão e aos agudos pronunciados pelo líder da assembleia, a letra da música cria
vida e fala diretamente de alguém que largou tudo o que possuía e se fez “livre” para
o trabalho na Igreja – devemos compreender que neste caso, especificamente, na
comunidade carismática em questão –, e como bom fiel, entrega sua vida e suas
orações através de juras de amor a Deus, por meio de uma canção. Percebe-se
claramente o discurso dionisíaco6 de uma figura religiosa que fundou uma comunidade
católica e ergueu um “império” no ramo das comunicações, com representações fortes
nas mídias eletrônicas, impressas e audiovisuais, além de gráfica, produção
fonográfica7 e casas de missões instaladas em diversas localidades do planeta.
O carisma do Padre Jonas Abib pronuncia-se claramente em sua postura de
fundador, líder e pregador à frente da Comunidade Canção Nova, sediada no interior
de São Paulo, na cidade de Cachoeira Paulista, diocese de Lorena. O talento de
arrebanhar multidões com eloquentes pregações, que versam sobre temas atuais,
históricos ou simplesmente conselhos dados aos diversos grupos da sociedade,
através dos acampamentos de oração ou de suas publicações mensais no sítio
eletrônico da comunidade, é digno de apreciação e estudos.
Diante desse quadro, se fez necessário alimentar a curiosidade benéfica de
conhecer sua interação com os fiéis e liderados, bem como a história de vida e
formação religiosa em questão, dentro dos preceitos de carisma discutidos pelos
teóricos das Ciências Sociais.
Vale salientar que o papel de líder carismático exercido pelo Padre Jonas o
coloca no centro de importantes questionamentos, o que se percebe nos
acampamentos de oração e nas pregações em celebrações eucarísticas ou mesmo nas
revistas, livros e sítio eletrônico. Ao tratar de temas polêmicos, como aborto, métodos
contraceptivos, relações sexuais e identidade de gênero, o líder carismático, que
“vende” uma “Canção Nova”, apresenta as mesmas “canções antigas” já conhecidas,
isto é, seu discurso não apresenta grandes distinções daquele presente na “igreja
4
Letra extraída do site http://letras.mus.br/. Acessado em 10/12/2012.
5
Grifos meus.
6
Dionisíaco refere-se ao apelo da emoção, contudo não pretendemos aprofundar este conceito neste
artigo.
7
Disponível em: http://cancaonova.com/. Acessado em 07/12/2012.
3
8
Não se deve aqui confundir a expressão “renovação carismática” com a figura do “líder carismático”,
esta última se aplica nesse artigo unicamente através da análise e estudo dos conceitos weberianos.
9
Ver www.padrejonas.com , acessado em 10/12/2012.
4
10
Deve-se compreender como Renovação Carismática Católica o movimento surgido em 1967 nos
Estados Unidos, durante retiro espiritual realizado na Universidade de Duquesne, em Pittsburgh,
Pensylvania. O movimento conta com a fé de seus adeptos e seguidores aos dons do Espírito Santo.
Fonte: http://rccbrasil.org.br, acessado em 13/12/2012.
11
CANÇÃO NOVA: Como Nascemos? Disponível em: http://comunidade.cancaonova.com/como-
nascemos/, acessado em 10/12/2012.
12
Ver PADRE JONAS. Disponível em: http://www.padrejonas.com/, acessado em 10/12/2012.
5
vivenciado por nós. É o presente que o mundo mais almeja, porque isso
corresponde à sua maior necessidade (ABIB, 2008).
Buscando esta revitalização dos movimentos leigos, ao final dos anos 70, foi
construído um sobrado numa faixa de terreno que fora doada e a partir daí foram
adquiridos mais lotes e construída a estrutura que se configura atualmente como a
comunidade religiosa em questão, situada na cidade de Cachoeira Paulista, interior de
São Paulo (CANÇÃO NOVA, 2008). De acordo com informações da própria
comunidade:
Depois de alguns anos, com a Divina Providência, foram adquiridas mais
terras e hoje o local conta com cerca de 372 mil m², onde fica o Centro de
Evangelização Dom João Hipólito de Moraes (para 70 mil pessoas); o
Rincão do Meu Senhor (para 4 mil pessoas); e o Auditório São Paulo (para
700 pessoas). Além de capelas; posto médico; escola; restaurante;
padaria; postos bancários; lojas de artigos religiosos; pousada; área de
camping e, no entorno, prédios administrativos e obras sociais (CANÇÃO
NOVA, 2008).
Percebe-se com isso que foi edificada uma grande obra e sobre o poder
alcançado pelo carisma em relação à vida cotidiana e, por conseguinte, ao alcance da
comunicação, se faz necessário compreender por que razão pode ter sido escolhida a
comunicação como o “diferencial” desta comunidade, conforme afirmam Breton &
Proulx:
A emergência da ideia de comunicação foi, portanto, inseparável de uma
vontade de redefinir as relações do homem com o mundo material e com a
criação. A comunicação tornava-se de imediato um modo de definição
universal que servia para descrever toda atividade organizada (BRETON &
PROULX, 2002, p, 89).
13
Ver a esse respeito: SALESIANOS DE DOM BOSCO. Disponível em: http://www.sdb.org/pt,
acessado em 10/12/2012.
14
Ver MEIOS DE COMUNICAÇÃO. Disponível em: http://comunidade.cancaonova.com/meios-de-
comunicacao/, acessado em 10/01/2013.
15
Embora o termo secularização seja bastante controverso, possuindo definições distintas, vinculados
a diferentes teorias, ele foi usado inicialmente para designar “a perda do controle de territórios ou
8
propriedades por parte das autoridades eclesiásticas”, no contexto das guerras religiosas. Segundo
Berger, alguns estudiosos chegaram a propor o seu abandono em função do quão controvertido se
apresenta o vocábulo. Não concordando com essa postura, para o autor secularização “refere-se a
processos disponíveis empiricamente de grande importância na história ocidental moderna” e, embora
considere difícil um definição simples, entende que se trate do “processo pelo qual setores da
sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos (BERGER,
1985, p.117-119).
16
CEBs são Comunidades Eclesiais de Base, pertencentes ao movimento da Teologia da Libertação.
Ver Negrão (2005).
17
Ver Montero & Almeida (2000).
18
Denominamos “igreja romana” em diferenciação à igreja católica no Brasil, envolvida em parte com
a teologia da libertação. Com esta distinção pode-se compreender a ação da ordem pontifícia diante
do movimento eclesial popular.
9
relações entre o indivíduo e seu contexto social, que podem ser frutos da influência de
um líder, Negrão acrescenta:
Diria que somente uma interpretação em que se rompa com qualquer
continuidade entre o indivíduo e seu contexto social, visto estrutural ou
conjunturalmente, poderia desconectar o profeta de seu tempo, de sua
época, de sua situação. (...) O líder só o é porque tem liderados seguidores
que acreditam em suas virtudes excepcionais e em suas mensagens
(NEGRÃO, 2005, p. 26).
19
Ver CANÇÃO NOVA (2008). Disponível em: http://www.cancaonova.com, acessado em
05/01/2013.
20
Disponível em: http://www.cancaonova.com/portal/canais/pejonas/, acessado em: 05/01/2013.
12
E prossegue:
O "reconhecimento", mais ativo ou mais passivo, conforme as
circunstâncias, e puramente efetivo da missão pessoal do
senhor carismático pelos dominados, sobre o qual se
fundamenta o poder deste, tem sua origem na entrega fiel ao
extraordinário e inaudito, alheio a toda regra e tradição e por
isso considerado divino, tal como nasce do desespero e do
entusiasmo (WEBER, 1999, p.326).
convertam – voltem para a igreja, o líder busca mais fieis e membros para sua obra
através deste discurso .
Ao discutir os fundamentos em relação ao carisma, a respeito da atuação,
trajetória e posturas adotadas, bem como as características principais de seu
desenvolvimento à frente do carisma, Weber complementa que o líder: “deve fazer
milagres, se pretende ser um profeta, e realizar atos heróicos, se pretende ser um
líder guerreiro. Mas sobretudo deve "provar" sua missão divina no bem-estar daqueles
que a ele devotamente se entregam (WEBER, 1999, p.326).
Em relação a esta característica primordial à execução do carisma no sentido
weberiano, no que diz respeito ao chamado do patriarca aos dominados – vale aqui
salientar o fundamento acerca da necessidade de provar a missão divina em questão
através do bem-estar dos que o rodeiam e seguem seus preceitos – surge uma fala
interessante, datada de fevereiro de 2011, na qual o Padre afirma:
Portanto, ser bom demais para nós é mais que uma campanha para
motivar nossos sócios evangelizadores, embora nossos passos tenham
recebido mais sentido e a presença de cada um tenha se tornado mais forte
e generosamente comprometida de todas as formas. Ser bom demais
também é mais que um slogan que nos coloca em alguma posição
privilegiada, embora nos tenha concedido a grandeza de um desafio sem
igual, colocando-nos em destaque na Igreja do Brasil e do mundo. Ser bom
demais ganhou proporções de missão, e, portanto, incitou nossa
missionariedade e fecundou-nos com os valores mais sublimes e pungentes
do Evangelho, transformando-nos em semeadores e sementes deste
mundo novo pelo qual lutamos cotidianamente e que, acima de tudo, nos é
dado pela graça de Deus (ABIB, 2011).
21
O slogan da comunidade Canção Nova é “Ser Canção Nova é Bom Demais,”
inclusive é este o título da mensagem da qual foi retirado o trecho acima. Com esta
declaração, é deixado claro, implícito, subliminarmente ou mesmo expressamente,
que aderir aos conceitos e desígnios do carismático em questão faz do liderado “bom
demais”, isto é, o torna em comum bem-estar aos demais. Mostra também que só se
está “bem demais” quando se está na Canção Nova, e quem faz parte da comunidade
é feliz e goza de muitas alegrias e realizações, buscando atrair para sua comunidade
cada vez mais adeptos.
Também na fala acima, o Padre Jonas insere a informação de que há os “sócios
evangelizadores” – que na verdade são pessoas leigas que se organizam para enviar
donativos à obra, bem como seguir os passos dos participantes da comunidade e
disseminar seus valores e carismas, entendendo-o sob o ponto de vista religioso –
pelo mundo, alcançando notoriedade. Sobre isso, Weber aponta:
Por isso, a dominação carismática genuína desconhece disposições
jurídicas, regulamentos abstratos e a jurisdição "formal". Seu direito
"objetivo" é o resultado concreto da vivência extremamente pessoal de
graça celestial e força heróica semelhante àquela dos deuses e significa
21
Ver CANÇÃO NOVA (2013). Disponível em: http://www.cancaonova.com, acessado em
07/01/2013.
14
22
A comunidade Canção Nova possui programas denominados “Dai-me Almas”, e “Clube do Ouvinte”,
através dos quais os fiéis são cadastrados como sócios arrecadadores, e incentivados a organizarem
campanhas extraoficiais para obtenção de recursos e doações. As quantias são apresentadas
mensalmente e o liderado recebe em sua residência uma revista intitulada “Revista Canção Nova”,
que possui um editorial multidisciplinar. Uma característica importante de seu sistema de
comunicação é a inexistência de horários patrocinados, isto é, não há propagandas, exceto quando
surgem campanhas nacionais, como a do voto consciente, por exemplo. A obtenção de recursos é
única e exclusivamente destinada à manutenção da estrutura existente, confirmando assim o que
Weber afirma por inexistência de ganhos privados. Disponível em:
http://www.comunidade.cancaonova.com, acessado em 07/01/2013.
15
4. Considerações finais
Podemos concluir que o papel do líder carismático apresentado pelo Monsenhor
Jonas Abib configura-se como um parâmetro de análise válido, principalmente no que
diz respeito às coerências e divergências sob o ponto de vista sociológico dos autores
apresentados, principalmente ao que compete o estudo criterioso acerca do que Max
Weber apresenta em relação ao carisma.
A musicalidade inicialmente transcrita para introduzir nosso tema de estudo
perpassa os sentidos práticos e ao concluir este levantamento podemos acrescentar
que ao dizer: “hoje eu sou feliz assim, tenho a ti meu Deus”, o Padre Jonas Abib
destaca que a forma de alcançar a felicidade dentro de sua vivência é alcançar um
estado pleno de satisfação de acordo com o aprofundamento de seu carisma. Não foi
nossa intenção fundamentar a existência de um líder religioso católico, tampouco de
justificar suas intenções ou habilidades.
Entretanto, ao analisar a fala do líder católico e procurar fundamentar seu
carisma desempenhado no âmbito religioso de acordo com o que os teóricos afirmam
se tratar de carisma, contextualização sociocultural ou mesmo histórica, percebeu-se
algumas relações bastante próximas com o levantamento bibliográfico em questão.
Pode-se concluir que, obviamente, há muito que aprofundar acerca do tema da
vivência do carisma, líder carismático ou simplesmente, atuação do carisma na
sociedade. Contudo, o estudo dos conceitos inerentes ao carisma e a busca por sua
aplicação nas posturas de um líder carismático da religiosidade popular na atualidade
mostra-se eficaz e condizente com a proposta de aproximar academia e vida social, e
neste âmbito, estabelecer pontos de confluência entre o que se teoriza e o que é visto
na prática popular.
Observar a mudança de paradigmas de um movimento religioso diante da
hierarquia da igreja, bem como as estratégias efetivadas para sua inserção e
contenção de outro movimento de forte influência popular, auxilia no aprendizado e
compreensão acerca dos valores inerentes ao imanente mundo na esfera religiosa.
17
Referências
ABIB, Jonas. Comunidade Canção Nova - Sistema de Comunicação Canção Nova.
Disponível em:< http://comunidade.cancaonova.com/>. Acesso em 14/12/2012.
____________. Pregações. Sistema Canção Nova de Comunicação. Disponível em:
<http://www.padrejonas.com/>. Acesso em 10/12/2012.
BERGER, Peter. O dossel sagrado. São Paulo: Paulus, 1985.
BOURDIEU, Pierre. “Gênese e estrutura do campo religioso”, in Sergio Miceli (org.), A
economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.
BRETON, Philippe, PROULX, Serge. Sociologia da Comunicação. São Paulo: Loyola,
2002.
CANÇÃO NOVA. Sistema Canção Nova de Comunicação. Como nascemos, 2008.
Disponível em <http://comunidade.cancaonova.com/como-nascemos/>. Acesso em
14/12/2012
CHALITA, Gabriel. Eu acredito em milagres! : a história de Padre Jonas Abib. Vol. I
.São Paulo : Canção Nova, 2006,.
MONTERO, Paula & ALMEIDA, Ronaldo R.M, “O Campo Religioso Brasileiro no Limiar do
Século: Problemas e Perspectivas”. In: RATTNER, Henrique (org). Brasil no Limiar do
Século XXI: Alternativas para a Construção de uma Sociedade Sustentável. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2000 (Coleção Estante USP – Brasil 500 Anos).
NEGRAO, Lísias Nogueira. Nem "jardim encantado", nem "clube dos intelectuais
desencantados". Revista Brasileira de Ciências Sociais [online], vol.20, n.59,2005, p.
23-36.
RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA - BRASIL. Histórico da RCC, 22 de novembro de
2011. Disponível em: <http://www.rccbrasil.org.br/institucional/historico-da-
rcc.html>. Acesso em 04/01/2013.
WEBER, Max. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva.
[Livro] / trad. Barbosa Regis Barbosa e Karen Elsabe. Vol. II. Brasília : Editora
Universidade de Brasilia, 1999.
HISTÓRIA E TRANSFORMAÇÕES DO OPUS DEI NO BRASIL:
A TRAJETÓRIA DE FÉLIX
Asher Brum
Doutorado em Ciências Sociais – IFCH/Unicamp
Orientador: Prof. Dr. Ronaldo de Almeida
Bolsista FAPESP
Resumo:
O objetivo do trabalho proposto é discutir, através do recurs
o da narrativa, a
trajetória de Félix, um dos quatro primeiros membros do Opus Dei no Brasil. Desse
modo, é possível analisar as interpretações individuais de Félix no fluxo de uma
experiência social compartilhada – o Opus Dei –, o que nos informa sobre processos
sociais que ultrapassam o sujeito. A partir dessa narrativa, é possível ensaiar uma
história do Opus Dei no Brasil. O método utilizado para chegar aos resultados
expostos foi a análise de entrevistas com Félix, uma vez que ainda não existe em
nossas produções bibliografia sobre o tema. O trabalho está organizado em dois eixos
que seguem a narrativa de Félix: a pré-história e a história do Opus Dei no Brasil.
1
possível ler o relato de acordo com o encadeamento que lhe atribuiu o entrevistado. A
partir disso, abre-se margem para que o pesquisador faça uma interpretação própria
dessa narrativa. Visto dessa forma, a narrativa de Félix sintetiza a singularidade
desse sujeito – suas interpretações e interesses – e que, através da inteiração com o
pesquisador, transcende o sujeito e informa sobre o social.
Nesse sentido, a narrativa de Félix, além de transmitir a dimensão
interpretativa e subjetiva do sujeito e de conter uma reflexão pessoal sobre a
experiência vivida, também pode ser compreendida como fonte de informação que
remete a experiências que transcendem o sujeito narrador. Esses elementos, por
certo, não podem ser dissociados na análise, uma vez que estão profundamente
imbricados no fluxo da experiência vivida, onde não existem fronteiras estritas entre
subjetividade e objetividade. Meu propósito é o de analisar a narrativa de Félix,
levando em conta suas próprias interpretaç ões e subjetividade, no fluxo das
transformações que ocorreram no Brasil a partir de 1957 e que constituíram essas
experiências que vão além do sujeito narrador – mais do que isso, que o engloba.
Trata-se, aqui, de entender como esses elementos externos ao sujeito são
compreendidos por ele ao ser tomado em seu fluxo, mais do que a preocupaç ão de
entender como se configuraria uma modernidade brasileira. Trata-se da interpretação
individual de experiências sociais que se condensam em narrativa.
Entendo por narrativa a prática de contar uma história. Desse modo, quando
se formula uma narrativa, existem contextos históricos, interesses e motivações que
devem ser levados em consideração – interesses por parte de quem conta e de quem
ouve. Tanto quem conta, quanto quem ouve, preserva, omite, isola e enfatiza
determinados elementos, de acordo com seus interesses particulares e com a ocasi ão
(HERRSTEIN, 1980). Pensando a partir de Suely Kofes (1994 ), considero, aqui, a
narrativa a partir de três aspectos: como fontes de informaç ão (falam de uma
experiência que ultrapassa o sujeito que relata); como evocação (transmitem a
dimensão interpretativa e subjetiva do sujeito); como reflexão (contém uma análise
sobre a experiência vivida). Entender a narrativa a partir desses elementos permite,
não só interpretar a relação entre subjetividade e a realidade objetiva, externa ao
sujeito, mas, também, entender o mundo que o sujeito constrói a partir dessa
interação. De fato, o mundo do sujeito é a interação da subjetividade com a realidade
externa, objetiva. Ao mesmo tempo, essa forma de entender a narrativa permite
entender o sujeito como narrador da sua própria história e, desse modo, como
narrador de processos históricos no qual está inserido.
Entendo, como experiência, alguma coisa da qual saímos transformados
(FOUCAULT, 2006). Ao mesmo tempo, ainda pensando com Foucault, é algo que se
expande para além do sujeito. Embora a experiência tenha uma dimensão individual,
2
solitária, ela somente é plena na medida em que escapa à pura subjetividade, ou
seja, outros podem cruzá-la e atravessá-la (REVEL, 2005). Creio, nesse sentido, que
podemos falar em uma experiência social, em cujo fluxo o sujeito se insere e, desse
modo, podemos pensar em processos de subjetivação. A experiência individual,
portanto, é a forma particular com que o sujeito se insere na experiência social
compartilhada. Tim Ingold (2011) nos ajuda a pensar a relação entre experiência e
narrativa: só se pode contar algo que já se experimentou, que se conheceu. O
conhecimento que pode ser narrado, para Ingold, surge na jornada de cada pessoa ; a
jornada, por sua vez, é constituída pelas experiências do sujeito. Essa jornada não é
estática, mas é movimento, e o conhecimento é o próprio movimento. O
conhecimento que adquirimos em nossas jornadas é aquilo que pode ser narrado.
3
homem pode reconciliar-se com Deus e devolver o mundo a Ele. Através do seu
trabalho, santificado e santificador, é que o homem pode tomar parte no projet o
redentor de Cristo.
Desse modo, os centros e casas do Opus Dei surgem como legítimos
ambientes de formação espiritual e, mais do que isso, oferecem aos seus
frequentadores orientações de conduta em suas vidas profissionais e familiares. No
Brasil, a formação espiritual do Opus Dei é oferecida nos Centros Culturais, que são
as células de organização da Prelazia nesse contexto e onde, claramente, se
justapõem o discurso científico-acadêmico e o discurso religioso, adotando uma
estratégia de inserção no espaço público chamada de científico-educacional.
Diferentemente dos outros grupos leigos da Igreja católica, o Opus Dei possui
membros dedicados exclusivamente à formação espiritual nos Centros Culturais: os
numerários. Os numerários são membros leigos, celibatários, que moram e
administram os Centros e que, além de se dedicarem ao Opus Dei, êm
t empregos
comuns. Existem padres entre os numerários, mas s ão poucos, e sua funç ão é
administrar os sacramentos (principalmente a Eucaristia e a Confissão) nos Centros
Culturais. Os numerários são os membros que, por excelência, vivem o espírito do
Opus Dei.
2. A história de Félix
Comecei a entrevista com a pergunta “como o senhor conheceu o Opus
Dei?”, ao que Félix respondeu:
4
primeiro contato, fui lá, falei com ele [com o diretor] (...) e
perguntei se poderia voltar. (...). Me disseram que voltasse
quando quisesse, que poderia usar a sala de estudos à vontade
e tal. Então, comecei a ir e fui conhecendo diretamente o que
era o Opus Dei. Não supunha nenhuma surpresa. Era gente
normal, que circulava normalmente, que estudava... um
ambiente sadio. Eu achava ótimo. Comecei a ter também uma
certa direção espiritual com um padre que era do Opus Dei
(...). Então foi assim. Cá nos meus botões pensava – já sabia
o que era o Opus Dei – que calhava tudo bem para mim,
porque o que eu queria era ser advogado (...) e então soube
que essa seria a mensagem, a novidade do Opus Dei. Soube
que eu poderia santificar advogando, trabalhando. (...). Vi que
poderia ser um cidadão comum, porém, poderia santificar a
Deus advogando.
1
Utilizo o termo símbolo fazendo referência à forma como Talal Asad (2010), em crítica a Geertz, o entende.
Para aquele autor, os s ímbolos não podem ser separados dos contextos hist óricos e das práticas de poder nas
quais surgem. Dito de outra forma: os símbolos s ão intrínsecos às práticas históricas de organização e
significação. Muito foucaultianamente, Asad afirma que são relações de poder que criam as condições para
que certas verdades, discursos e símbolos possam ser experimentados. Existem, portanto, processos
históricos e materiais através dos quais s ímbolos e significados s ão construídos e em torno dos quais se
configuram experiências. Os símbolos, portanto, são um conjunto de relações entre objetos e eventos
agregados cuja formação é condicionada por relações sociais e, principalmente, por processos de poder.
Entendo, segundo Asad, que os símbolos não são mais elementos universais de significados trans-históricos,
mas são, ao contrário, constituídos historicamente e envolvem processos de poder e de subjetivação.
5
explícita, a santificação do trabalho perpassa toda a sua narrativa, uma vez que esse é o cerne da mensagem
do Opus Dei e, em se tratando de Félix, sua trajetória pessoal se confunde com a história do Opus Dei no Bras il.
A santificação do trabalho ordena todo o seu relato: a história de uma vida dedicada
a santificar o mundo, as outras pessoas e a si mesmo pelo trabalho e, mais do que
isso, levar essa mensagem ao Brasil através do Opus Dei. Em suma, as lembranças
das condições que o levaram a entrar para o Opus Dei, conectadas em uma mesma
narrativa, ganham um encadeamento lógico no relato de Félix, onde, evidentemente,
aparece a articulação da santificação do trabalho – o que o atraiu ao Opus Dei – com
a chegada do Opus Dei no Brasil como portador dessa mensagem. O encadeamento
lógico das ações do passado, na narrativa de Félix, apresenta como eixo comum a
santificação do trabalho.
Em comparação com as narrativas de outras pessoas que compartilham com
Félix a experi ência de ser membro numerário do Opus Dei, a narrativa deste é única,
embora apresente semelhanças e interconexões com essas outras narrativas. Essas
semelhanças expressam-se na evocação comum do símbolo da santificaç ão do
trabalho, mas cada um dos sujeitos narradores, claramente, interpreta sua
experiência individual com esse símbolo de forma única, particular. N ão se trata, a
princípio, da santificação do trabalho como escolha lógica e racional, mas, antes de
tudo, configura-se como predicação, pois suscita sentimentos específicos. A
experiência da vocação para a santificação do trabalho, própria do Opus Dei, tem
como elemento central a predicaç ão, ou seja, a capacidade de suscitar sentimentos
capazes de conectar a interpretação individual à experiência social.
Ainda em se tratando da santificação do trabalho, a narrativa de Félix toca
em um elemento fundamental interconectado àquele: diz ele que na época em que
conheceu o Opus Dei era um estudante e que no Centro que ele frequentava, convivia
com outros estudantes, com pessoas que estudavam. Esse aspecto é central, pois
permite que o Opus Dei, enquanto instituição, seja capaz de formular discursos de
justificação pública através da justaposição de discursos científico-acad êmicos e
religiosos. Não se trata, no entanto, de uma estratégia maliciosa de ocultação e
enganação, pelo contrário, é uma nova configuração do religioso frente às novas
regras de afirmação nos espaços públicos modernos. O Opus Dei criou uma forma
sofisticada de transição e de interação nesses espaços. Por conseguinte, a vocação à
santificação do trabalho impulsiona os sujeitos aos espaços públicos.
Tendo em conta a dimensão da interpretação individual por parte dos sujeitos
que são construídos e englobados no fluxo da experi ência social do Opus Dei, pode-se
dizer que cada sujeito santifica o seu trabalho de maneira própria, pessoal. Cada qual
é capaz de colorir a realidade externa, o mundo dos elementos objetivos, com a sua
subjetividade. Na narrativa de Félix, a santificaç ão do trabalho se de u por meio da
6
profissão de advogado e da rede de relações que essa profissão específica lhe
permitiu. Em dado momento de sua narrativa, que não foi transcrito no trecho acima,
Félix relata o seu trabalho apostólico entre juízes e advogados, já no Brasil, em um
campo de atividade profissional já bem desenvolvido. Essa investida audaciosa
resultou em várias vocações para o Opus Dei e para a vida crist ã. O ideal de
santificação do trabalho (e pelo trabalho), portanto, permeia toda a estruturação da
narrativa de Félix e pode ser lido em seu relato, mesmo que secundariamente.
O início do relato Félix, como experiência e como narrativa, remente a uma
experiência social compartilhada: o Opus Dei. Trata-se de uma experiência que
engloba vários sujeitos em seu fluxo , sujeitos esses capazes de interpretações
individuais sobre essa experi ência social e, também, de experi ências individualizadas.
Félix, através do relato da sua trajetória de vida, oferece-nos margem para
pensarmos esses elementos gerais e mais amplos que envolvem a experi ência do
Opus Dei e, ao mesmo tempo, colore e interpreta essa experiência social com sua
própria subjetividade. O Opus Dei se afigura, aqui, como uma experiência que
transcende o sujeito que relata, mas que, ao mesmo tempo, é transmitida pela
dimensão interpretativa e subjetiva do sujeito, é interpretada por ele como
experiência vivida.
2 Os membros do Opus Dei utilizam o termo Obra para referir-se àquela instituição.
3O termo tertúlia é utilizado para designar as reuniões di árias dos frequentadores dos centros e residências do
Opus Dei. Essas reuniões são regulares e, às vezes, tem apresentações musicais, ou simplesmente conversas
informais.
4 O termo Nosso Padre é utilizado, internamente, para referir-se ao fundador, São Josemaria Escrivá.
5 O Colégio Romano da Santa Cruz foi erigido em Roma, em 1948, por Josemaria Escrivá. Era um centro
internacional de formação de membros do Opus Dei.
7
em primeiro lugar, ir formando e ir fazendo gente da Obra; em
segundo lugar, ir preparando pessoas para fazerem a expansão
da Obra. Começar o Opus Dei em distintos países. (...). Ent ão,
alguns anos antes de começar [ o Opus Dei no Brasil] , ele
preparou o começo com este cidadão que com você fala. E foi
assim.
Essa é uma das passagens que considero mais belas e delicadas da narrativa
de Félix. Por parte das pessoas do Opus Dei, existe um carinho muito grande em
relação ao fundador, que vei o a ser canonizado em 2002. Ter conhecido S ão
Josemaria, e mais, ter convivido com ele, que veio a se tornar santo, é considerado
um grande privilégio. Esse carinho torna-se patente durante o relato de Félix, pois
percebi trato e delicadeza ao chegarmos ne ssa parte da sua narrativa. Ao rememorar
essa passagem, Félix deu um encadeamento lógico ao seu relato : só foi possível o
Opus Dei no Brasil por conta daquela apresentação musical, naquele dia de festa.
Desse modo, fica clara a intervenção direta de São Josemaria para que o Opus Dei
chegasse ao Brasil por intermédio de Félix e dos três outros membros que o
acompanharam na viajem. A devoção a São Josemaria faz parte da experiência social
compartilhada que é o Opus Dei. Félix, por sua vez, conectou-se subjetivamente a
essa experiência e, desse modo, foi capaz de construir uma experiência própria,
pessoal e individualizada.
São Josemaria Escrivá é uma figura simbólica. Além de santo, ainda antes
disso, é o fundador do Opus Dei – que é uma forma de estar no mundo comunicada
diretamente por Deus a Josemaria Escrivá. Esse fato, entendido dessa forma, o
colocou no topo da hierarquia como líder pastoral, posiç ão que ele vivenciou com
sofisticação. Foucault (2008), delimita, no plano teórico-abstrato, tr ês elementos
constituintes do poder pastoral: conduzir os indivíduos para a salvação; fazer com que
observem a lei de Deus, pois só dessa forma poderão alcançar a salvação; professar
a verdade, pois só pela verdade é que alcançar ão a salvação e observarão a lei de
Deus. Esses elementos são evidentes, não só em se tratando de Josemaria Escrivá,
mas no caso de qualquer líder religioso com alguma representatividade. A função do
pastor, por certo, é guiar a ovelha para a salvação, não por meio de ordens, mas pelo
exemplo. São Josemaria Escrivá, não raro, declarava-se um pecador, cheio de
misérias e fraquezas, e, por isso, ensinava pelo exemplo. Mais do que isso, dizia que
não deviam tê-lo como modelo, mas tomar como modelo o próprio Cristo. Nesse
caso, podemos ver exemplos de fraqueza e humildade configurando-se em
tecnologias de poder. O líder pastoral tem legitimidade para governar, justamente,
porque expõe suas fraquezas e misérias – expõe sua alma às ovelhas, ao invés de
colocar-se em posição superior a elas. Em suma: pel o fato de São Josemaria ser um
líder pastoral, envolto em simbolismo e devoç ão, sempre o que ele pede é mais
8
legítimo de ser pedido, n ão por um sentimento de imposiç ão por parte de quem
obedece, mas por uma devoção carinhosa à sua pessoa e ao que ela representa.
Relacionada à questão do poder pastoral, surge a obediência como tecnologia
de poder (FOUCAULT, 2008). Várias ordens religiosas, e também o Opus Dei,
enunciam o esquecimento próprio como forma de tornar-se melhor instrumento de
Deus; para melhor servir aos desígnios divinos, os próprios vícios, gostos e prazeres
terrenos devem ser esquecidos, abandonados, através da mortificação. Desse modo,
paradoxalmente, o esquecer-se a si mesmo implica em um constante voltar-se para
si mesmo, de modo a mapear os próprios vícios e imperfeições, os quais impedem o
indivíduo de ser puramente um instrumento de Deus. Justamente por isso, o exame
de consciência e a confiss ão são t ão enfatizados pelo Opus Dei. Por conseguinte,
quando Josemaria Escrivá vai a Félix e pergunta se ele gostaria de levar o Opus Dei
para o Brasil, ele responde: “sim”. Estar envolto pela experi ência do Opus Dei
implica, necessariamente, em um esquecer-se a si mesmo em prol dos desígnios
divinos, nesse caso, mediados por Josemaria Escrivá. Trata- se de ser instrumento
perfeito de Deus. Lembro-me de ter perguntado a Félix, em dado momento: “não
deu nenhum frio na barriga [quando decidiu vir para o Brasil]? ”. Ao que ele
respondeu: “Não... não me deu nenhum frio. Pareceu-me uma tarefa interessante,
nada mais do que isso”. Confesso que me senti surpreendido com a resposta, pois
denotava uma entrega total aos desígnios do Opus Dei e, portanto, à vontade de
Deus. Era, para mim, uma postura difícil de compreender, justamente por eu não
estar mergulhado na mesma experi ência que Félix. Preocupava-me com o doutorado,
em ter um diploma, em ter prestígio e ganhar dinheiro, de modo que me pareceu
assustadora a possibilidade de largar uma vida estabelecida e partir para uma
aventura como essa, a qual Félix tratou com tanta naturalidade.
9
para as paróquias, uma vez que a diocese de Marília havia recém sido criada.
Josemaria Escrivá viu, aí, a oportunidade de começar o Opus Dei no Brasil e enviou
quatro membros para a cidade de Marília, onde surgiu a primeira residência do Opus
Dei, sendo dois padres e dois leigos, em 1957. Sobre isso, Félix comenta:
10
profissionais implica em uma codificação moral que aponta para o mundo como um
lugar de pecado, que precisa ser santificado. Desse modo, Félix evoca esse símbolo,
ao longo de sua narrativa, para classificar os lugares pelos quais transita (e transitou)
como ambientes que necessitam de santificação. Essa forma de colorir o mundo,
muito própria do Opus Dei, ganhou na narrativa de Félix traços muito pessoais, uma
vez que ele estava como que desbravando um território ainda intocado, uma vez que
era um dos quatro primeiros a estar ali, construindo o Opus Dei em S ão Paulo. Ao
refletir sobre sua própria experiência, no entanto, Félix não se refere, em momento
algum, ao mundo como um lugar desgraçado; não demonstra nenhum tipo de
desânimo com relação à sua experiência. Pelo contrário, o mundo aparece como o
lugar onde cada um deve estar, santificando e levando a palavra de Deus, cada qual
com seu ofício, porque, afinal, Deus quis cada um justamente onde está.
Segundo o relato de Félix, o Opus Dei no Brasil, após chegar a S ão Paulo,
em 1958, foi se consolidando com poucos membros, timidamente, até 1974. Esse foi
o ano em que o fundador, Josemaria Escrivá, esteve na América Latina e,
naturalmente, passou pelo Brasil. Félix relata:
11
fôlego especial para que o Opus Dei prosseguisse até os dias de hoje. Os elementos
encadeados dessa forma, no relato de Félix, conferem uma sincronicidade aos
eventos descritos, compreendidos como a Providência atuando no mundo e,
naturalmente, valendo-se de meios humanos para realizar Sua vontade. A leitura da
narrativa de Félix, portanto, me permite sugerir que não se trata, simplesmente, de
um relato histórico comum, mas de uma história protagonizada por Deus no mundo,
na qual os homens são instrumentos. Deus é o ator por trás dos eventos relatados.
Em uma passagem belíssima e evocativa de sua narrativa, onde Félix
interpreta e reflete sobre a experi ência vivida, após eu ter perguntado “hoje, olhando
para trás, o senhor diria que valeu a pena?”, ele responde:
12
desaparece, ao longo da narrativa, para dar espaço à Providência. O sujeito, em sua
singularidade, olha para a experiência vivida e a interpreta à luz de uma experiência
social que configura processos de subjetivação. Os atores individuais, no fluxo das
experiências sociais, colorem o mundo com a sua subjetividade.
Desse modo, ao olhar o mundo por meio de uma experiência mais ampla,
Félix relata a construção de espaços nos quais é possível se deslocar: as
universidades e os meios profissionais. O eixo desse deslocamento é a santificação do
mundo pelo trabalho. Desde 1958 até os dias atuais, naturalmente, esses espaços
foram se sofisticando e se ampliando de forma a abranger mais campos profissionais,
universidades, etc. Mais crist ãos surgiram nesses meios, se converteram e, alguns, se
aproximaram do Opus Dei. As formas de trabalho apostólico também foram se
transformando. A partir do relato de Félix, percebo que o Opus Dei, no Brasil, surgiu
como uma alternativa diferenciada aos grupos tradicionais católicos que exi stiam
nesse contexto até então. Não havia, nesse país, alternativas católicas que
apontassem para formas de ser cristão no meio do mundo, santificando-o através do
trabalho profissional e do estudo. Mais do que isso, nenhum outro grupo católico,
antes do O pus Dei, formulou enunciados de justificação pública capazes de transitar
tão bem pelos espaços públicos da modernidade brasileira.
Portanto, a narrativa de Félix remete-nos a relações, interpretações,
subjetividades e experiências sociais. Muito além de exemplificar processos mais
amplos, o relato de Félix traz singularidade e subjetividade – é uma interpretação
pessoal, muito própria, da experiência vivida. É um relato de uma trajetória de vida,
com seus entrecruzamentos e relações, cujo conhecimento adquirido é interpretado e
organizado em forma de narrativa. A narrativa, creio, é a melhor forma de
compreender a conex ão de subjetividades individuais com experi ências sociais
compartilhadas.
Bibliografia
Livros:
INGOLD, Tim. Being Alive. London and New York: Routledge, 2011.
REVEL, Judith. Foucault: Conceitos Essenciais. São Carlos: Clara Luz, 2005.
RHONHEIMER, Martin. Transformación del mundo: la actualidad del Opus Dei. Madrid:
Rialp, 2006.
13
Artigos:
MONTERO, Paula. “Talal asad: para uma crítica da teoria do símbolo na antropologia
religiosa de Clifford Geertz”. Cadernos de Campo, 19, p. 259-262, 2010.
Site:
14
O GÊNERO DOS SANTOS E A AGÊNCIA DOS DEVOTOS: A HAGIOGRAFIA E AS
ORAÇÕES DIRECIONADAS AOS SANTOS CATÓLICOS SOB UMA PERSPECTIVA
DE GÊNERO
Este trabalho tem por objetivo analisar (i) a hagiografia1 e (ii) as tradicionais
orações direcionadas aos santos católicos sob uma perspectiva de gênero. Os papéis
mitológicos de gênero dos santos retirados de suas biografias serão analisados
primeiramente. Depois disto, focaremos nas orações e pedidos que os fiéis
direcionam aos seus santos de devoç ão. Pretendo mostrar q ue estas orações (mesmo
elas), podem revelar a prática de uma “agência de projetos nas margens do poder”,
para utilizarmos um termo de Ortner (2007), que será explicado em seus detalhes
mais adiante.
Notas
1
sf. 1. Relato ou biografia da vida de um santo. 2. Estudo sobre esse relato ou biografia (Fonte: Dicionário
Aulete)
Bourdieu afirma realizar em A dominação masculina o que chama de “um
trabalho de sócio-análise do inconsciente androcêntrico, capaz de operar a objetivação
das categorias deste inconsciente ” (p. 13), ou seja, de t razer à tona o inconsciente
dominado, e os mecanismos que engendram tal dominação, a fim de des-naturalizar
esta situação de desigualdade. Neste intuito de apreender os meandros da dimensão
simbólica da dominação masculina, escolhe a Cabília para fazer, como ele mesmo nos
diz, sua experiência de laboratório. Tal escolha se dá porque, segundo ele, “a região
apresenta uma forma paradigmática da visão falo-narcísica e da cosmologia
androcêntrica” (p. 14). Visão que seria, além disso, comum às sociedades do
mediterrâneo europeu, sobrevivendo até hoje, mesmo fragmentada e em estado
parcial, “em nossas estruturas cognitivas e estruturas sociais” (p. 14).
A tese principal do autor francês neste trabalho consiste em afirmar que a divisão
entre os sexos, além de esta r “na ordem das coisas ” (termo utilizado para dizer
que algo é normal, natural, a ponto de ser inevitável) encontra-se “em estado
objetivado nas coisas ”, ou seja, gravada em todo o mundo social. O que significa
dizer que a divisão entre os sexos encontra- se em estado incorporado, nos corpos e
nos habitus dos agentes, funcionando como esquemas de percepção, de pensamento e
de ação. Para Bourdieu, então, a mulher, enquanto ser social que vive em um
mundo orientado por uma cosmologia androcêntrica, pode-se dizer, “dorme com o
inimigo”, na medida em que esta cosmologia - e o que nosso autor chama de“as
estruturas sociais de dominação” - estão incorporadas nela mesma, como já
dissemos, na forma de esquemas de percepção, pensamento e ação. A inculcação do
habitus dominado na mulher faz com que ela aja inexoravelmente de acordo com
estas estruturas. Esta concordância entre estruturas cognitivas e estruturas objetivas
(entre representações e práticas) perpetrada pelo embodiment do habitus dominado,
torna possível o que Bourdieu chama de “experiência dóxica”, ou seja, a atitude de
apreender o mundo social e suas divisões arbitrárias como naturais e evidentes.
Bourdieu afirma ainda, no trabalho que venho analisando até aqui, a necessidade
de reconhecer os sistemas de agentes que contribuíram para arrancar da História (e,
por conta disto, responsáveis por naturalizar) as relações de dominação masculina. O
trabalho de reprodução desta dominação estaria garantido por três instituições
principais, segundo o autor. Seriam elas: a Família, a Igreja e a Escola. Caberia à
Igreja (foco de análise deste trabalho), instituição marcada por um antifeminismo
profundo, o papel de construir uma visão pessimista das mulheres e da feminilidade.
Mais especificamente, Bordieu afirma que a Igreja
Para Bourdieu, então, estudar a hagiografia, bem como as orações dirigidas aos
santos, faria parte do seu programa de “restituir à doxa seu caráter paradoxal e, ao
mesmo tempo, demonstrar os processos que são responsáveis pela transformação da
história em natureza, do arbitrário cultural em natural” (p. 7). Ou seja, des-
naturalizar o mecanismo engendrado pela igreja católica que, a partir do princípio de
exemplaridade de fé devotado aos seus santos, inculcaria nas mulheres fiéis um
habitus dominado. A mitologia dos santos católicos, e a incorporação dos papéis
míticos de gênero nos esquemas de percepção dos fieis produziriam, seguindo o
modelo de Bourdieu, modos de pensamento que são eles próprios produtos da
dominação.
É o caso de Santa Gianna. Ela decidiu morrer, ao invés de abortar, para salvar a
vida de seu filho. A crescente devoç ão a esta santa, sobretudo, segundo Pinto &
Soares, entre os jovens adeptos da Renovação Carismática Católica, cultua um ideal
de mulher que se realiza na maternidade dentr o do casamento e, a partir deste ideal
de mulher, elabora-se um modelo feminino para a boa conduta cristã. E, para além
disso, uma forte postura anti-aborto dos adeptos católicos na esfera pública. Voltando
a Bourdieu, o modelo de um cosmologia androcêntrica incorporada nos esquemas de
percepção das fiéis católicas, conformando-as a uma posição que abdica do controle
de seus próprios corpos encaixaria aí como uma luva.
No entanto, os autores afirmam haver ainda outro elemento que deixaria mais
complexo (e complicado) a análise do fenômeno da canonização de Santa Gianna. A
miraculada que, através do recebimento desta ‘graça’ serviu de confirmação da
santidade de Gianna Beretta Molla, a leiga Elisabete Comparini 2, tornou-se divulgadora das obras de
sua santa de devoção através de pregaç ões em eventos da RCC. Os autores
reconhecem estar diante de um empoderamento feminino ao se depararem com a
liderança de Elisabete. Mas isto ocorre ao mesmo tempo em que ela proclama os
valores de mulher cuidadora, mãe dócil e sacrificadora de si (PINTO & SOARES,
2010).
2 O milagre de ter escapado da morte ao decidir ter o beb ê de uma gravidez que a condenava, foi reconhecido
pelo Vaticano como sendo devido a Santa Gianna. Elisabete recebeu, enquanto estava internada entre a vida e
a morte, das m ãos de um bispo que pleiteava a santidade de Gianna Molla, um livro contando a biografia da
então beata. A partir daí, Elisabete, identificada com a hist ória que chegou at é ela, passa a pedir a Santa
Gianna o milagre de escapar da morte, o qual é concedido (PINTO & SOARES, 2010).
humanismo estéril e etnocêntrico que ignora a força das estrutur as sociais. Sua
discussão, felizmente, vai mais além. Vejamos.
O primeiro elemento importante na definição de agência de Ortner é a distinção
que ela faz entre práticas de rotina, de um lado, e os atos de ag ência “que intervêm
no mundo com algo em mente (ou no coração)”, do outro, a partir do foco
dispensado à questão da intencionalidade. E Ortner não admite o que chama de
abordagem soft da intencionalidade. Para ela, a intencionalidade deve ser entendida
como “metas conscientemente mantidas no foco de atenção”. Não menos do que isto.
Quando se é soft demais em relação à intencionalidade, diz Ortner, “perde-se a
distinção... entre práticas de rotina, por um lado, e, por outro lado, “agência”, vista
precisamente como ação mais intencionalizada” (ORTNER, 2007, p. 53).
Sem passar ao largo das quest ões de poder, Ortner vai mais além do que
equiparar agência à resistência, afirmando que “agência de oposição” é apenas uma
de muitas formas de ag ência. Além disso, existe uma multiplicidade de formas pelas
quais o que Ortner chama de recursos são distribuídos entre os indivíduos inseridos
em uma determinada estrutura social. Por mais desigual que seja a sociedade, diz
Ortner, há uma distribuição de “recursos” e alguma parte deles é controlada pelos
indivíduos, por mais destituídos que eles sejam. Caso contrário, não se poderia falar
de agência. Com isso, ela enfatiza a universalidade da ag ência e esclarece que ela
não se opõe à estrutura, mas é um componente desta. O cerne da questão é que
diferentes estruturas distribuem diferentemente seus recursos, empoderando
diferentemente seus agentes, portanto. Pode-se dizer, enfim, que agência é, em
certo sentido, uma capacidade de todos os seres humanos, ao passo que sua forma e,
por assim dizer, sua distribuição sempre são construídas e mantidas culturalmente.
Políticas da Agência
Ortner procede, a partir daí, com um exercício que, segundo ela, permitirá
vislumbrarmos o que ela chama de política da agência: “o trabalho cultural
envolvido na construção e na distribuição da agência como parte do processo que cria
pessoas apropriadamente definidas em termos de g ênero e, assim, entre outras
coisas, diferencialmente empoderadas” (ORTNER, 2007, p. 58, 59).
Analisando as personagens femininas dos contos dos Irmãos Grimm, Ortner diz
estar interessada em “examinar o que poderia ser chamado de políticas narrativas
envolvidas na construção de agência em um corpus particular de histórias”. Se
Bourdieu procurava nos sistemas mitológicos os mecanismos da dominaç ão simbólica,
a postura de Ortner é, desde o início, discutir o que chama de políticas narrativas
de construção de ag ência. A conclusão da autora é que as heroínas das histórias
dos Grimm, mesmo exercendo agência (no caso específico destas histórias, uma
postura ativa), são punidas just amente devido às suas ações em busca de autonomia,
o que não acontece com os personagens masculinos. Se não são castigadas
definitivamente, tais personagens precisam passar por provaç ões que envolvem
sempre símbolos e práticas de profunda passividade e/ou total inatividade.
Seguindo o esforço reflexivo realizado por Ortner a partir dos contos dos Irmãos
Grimm, podemos analisar a hagiografia dos santos que comp õem a cosmogonia
católica verificando como a agência é distribuída nestas histórias e como se
constroem papéis de gênero “catolicamente” apropriados. Iremos contrapor as
hagiografias de São Jorge, Santa Catarina e Santa Bárbara perseguindo este intuito.
São Jorge
De acordo com a tradição, Jorge da Capadócia3 era soldado no exército romano
do imperador Diocleciano. Conta a história que mudou-se para a Palestina com a m ãe
após a morte do pai. Privilegiadamente educado, ao chegar à adolescência, torna-se
militar, sendo rapidamente promovido à condição de capit ão do exército romano. Aos
23 anos passa a viver na Nicomédia, a corte imperial, onde exerce a funç
ão de
tribuno militar. Quando o imperador decide estabelecer decreto a fim de matar todos
os cristãos do Império, Jorge se levanta contra a decisão e exorta os presentes a
converterem-se ao Cristianismo, deixando a todos atônitos por tal atitude vir de um
tribuno de Roma. Acredita-se que devido a este ato foi preso e torturado sob as
ordens do imperador, e ainda assim não renegava sua fé. Após cada tortura, era
levado perante o imperador, que lhe perguntava se renegaria a Jesus em favor dos
deuses pagãos romanos. Todavia, Jorge reafirmava sua fé, tendo seu martírio aos
poucos ganhado notoriedade ao ponto de muitos romanos terem se convertido ao
Cristianismo por intermédio de seu testemunho, inclusive a própria esposa do
imperador. Finalmente, diz-se que Diocleciano, não tendo êxito no intento de vencer
a fé de Jorge, mandou degolá-lo.
3 As informações sobre a vida de S ão Jorge foram retiradas da enciclopédia virtual Wikipedia no endereço
http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_Jorge [Acessado em 19 de Agosto de 2012].
4 As informações sobre a vida de Santa Catarina foram retiradas do website
http://biografiadossantos2.wordpress.com/2010/07/22/santa-catarina-de-alexandria/ [Acessado em 19 de
Agosto de 2012].
Catarina converte-se ao Cristianismo a partir de um sonho, tido ao mesmo tempo em
que sua mãe Sabinela, onde rejeitava pretendentes diversos a fim de casar somente
com o Imperador da Glória. Porém, este se nega a casar com a jovem pelo fato dela
ser pagã. Ananias, sábio responsável pela anterior conversão de Sabinela, interpreta o
sonho para Catarina, revelando-a que o Imperador da Glória seria Jesus Cristo e que
para unir-se a Ele deveria converter-se ao Cristianismo, o que ela faz prontamente.
Os grandes do reino continuam a cortejar-lhe, mas Catarina continua negando,
afirmando agora ser esposa do Altíssimo e mostrando, como prova do que afirmava,
o anel recebido do próprio Cristo no sonho que teve após sua convers
ão. Já em
Alexandria, cuida da herança deixada pelo pai há tempos falecido, e que passou a
administrar com a morte da mãe, ajudando os pobres com suas posses.
Em uma ocasi ão em que o imperador Max êncio organiza um grande sacrifício
coletivo aos deuses pagãos, e intentando defender os cristãos da crescente
perseguição por ele imposta, Catarina decide enfrentar o Imperador. Acusa-o de, ao
invés de adorar o Deus verdadeiro, sacrificar aos ídolos. Max êncio, não conseguindo
argumentar contra a sabedoria de Catarina, aprisiona-a e oferece riquezas aos sábios
que conseguirem convencê-la a adorar os deuses de Roma. Cinqüenta sábios
entraram em debate público contra a intrépida jovem, mas todos foram derrotados,
convertendo-se ao cristianismo através das palavras de Catarina. Max êncio enfurecido
diz a Catarina que, se ela não se curvasse aos deuses dele, seria decapitada.
Desdenhando da possibilidade de adorar outros deuses além do verdadeiro, Catarina
aceita a condenação e é entregue aos seus algozes
Santa Bárbara
De acordo com a hagiografia, Bárbara nasceu na Nicomédia, no século III, filha
de uma família que n ão professava o Cristianismo. Os textos hagiográficos ressaltam
a tentativa dos pais de iniciá-la na “religião pagã” e a sua persistência em tornar-se
uma serva de Cristo. A jovem era considerada muito bela e tinha “grandes qualidades
de espírito”. O pai temia que a tendência religiosa da filha prejudicasse o seu plano
de encontrar um bom pretendente para a realização do casamento. Resolveu, então,
trancá-la numa torre para receber aulas de Ciências e melhor conhecesse os deuses.
Porém, essa reclusão serviu para Bárbara se dedicar mais à religião Cristã e receber o
batismo (COUTO, 2004).
A crença popular revela que, após receber uma proposta de casamento de um
jovem de “posição e alta linhagem”, Bárbara, mesmo insatisfeita, aproveitou a
ocasião e pediu ao pai para ser instalada num balneário. Dioscoro, antes de partir
para uma viagem, atendeu aos apelos da filha. A jovem começou a realizar encontros
com os cristãos em sua nova morada e provocou a ira paterna. Depois de uma
discussão na qual o pai a ameaçou com uma espada, ela refugiou-se numa gruta. A
partir do momento em que esse esconderijo foi descoberto, começou o seu martírio.
Ela foi encarcerada e torturada. Como resistisse às sessões de tortura, foi condenada
à morte e conduzida nua pelas ruas da cidade, para ser insultada pela multidão. O pai
foi o responsável pelo golpe de espada que a matou, sendo em seguida surpreendido
por um temporal e morto por um raio (COUTO, 2004).
5 A tradição também conta que o imperador ofereceu-se em casamento à Catarina antes de ordenar sua morte.
Não se pode, porém, esquecer que a desigualdade de gênero ainda se faz
presente no que diz respeito à sexualidade. Um dos contos que popularizaram a
devoção a São Jorge versa sobre sua luta, e vitória, contra um dragão, a fim de
salvar, e posteriormente desposar uma princesa. Enquanto isso, o ideal de pureza
sexual perpassa as histórias de Catarina e Bárbara, mantidas imaculadas até a morte,
requisito indispensável às suas canonizações.
Ortner, em trabalho anterior (Life and death on Mt. Everest, 1999) tem o objetivo
de mostrar como as pessoas mant êm uma vida culturalmente significativa em
situações de dominação em larga escala por parte de outros poderosos – escravidão,
colonialismo, racismo, etc. Ela discute nesta obra, especificamente, o modo como os
Sherpas, embora muitíssimo afetados por um século de estreito envolvimento com
alpinismo no Himalaia, mantêm âmbitos de vida culturalmente “autêntica” e resume
esta idéia por meio da expressão vida cultural nas margens do poder. Ficam
distinguidas assim, duas modalidades de agência, como já esboçamos ao longo do
texto:
Portanto, não é apenas pelo que o santo fez pelo devoto que este se vinculaàquele,
“mas também porque o próprio devoto identifica características comuns entre ele e o
6
Vale ressaltar que, na contemporaneidade, o Vaticano tende a refor çar a dimens ão exemplar do santo, como
vimos no caso da canonização de Santa Gianna (PINTO & SOARES, 2010).
santo, uma certa afinidade que estimula o culto” (p. 236) . Ser devoto implica,
portanto, ligar elementos da vida do santo a elementos de sua própria vida (p. 238).
Isto abre precedente, no meu entendimento, para nos questionarmos se o
empoderamento verificado nos exemplos das vidas de Santa Catarina e Santa
Bárbara pode reverberar no comportamento de seus devotos, mais especificamente,
das mulheres devotas. Não estou propondo uma ligação simples e imediata entre a
mitologia dos santos e a prática dos devotos. Entre as representaç ões e as práticas
existe a intermediação, a necessidade da incorporação das primeiras no habitus dos
fiéis. É necessário que tais valores sejam produzidos nas performances dos rituais
católicos, tanto nos momentos de efervescência coletiva (DURKHEIM, 2008), quanto
nas interações rituais de menor intensidade (ROBBINS, 2009) responsáveis pelo
processo de socialização difusa e continuada destes valores (BOURDIEU, 1999 ).
Também não estou reivindicando para os devotos uma “agência de poder” (no sentido
de resistência que reverta a desigualdade de g ênero vigente na sociedade mais
ampla). O que pretendo mostrar, enfim, é que mesmo em meio a uma ideologia de
gênero mais ampla onde as mulheres aparecem como a parte dominada, e, além
disso, fazendo parte de uma ideologia específica onde elas ainda não conquistaram
uma autonomia definitiva, elas têm possibilidade de realizar projetos culturalmente
constituídos que infundem vida com significado e propósito. Há a possibilidade de
realizar coisas valorizadas dentro de seus contextos, em seus próprios termos, com
suas próprias categorias de valor, “nas margens do poder” (ORTNER, 2007) e, eu
acrescentaria, com a ajuda dos seus santos de devoção.
Verifiquemos as tradicionais orações que os devotos fazem às santas que já
conhecemos neste trabalho. Menezes (2004) esclarece que os pedidos aos santos
também tem a ver com suas especialidades. Estas por sua vez s ão criadas a partir
das de episódios das histórias dos santos. Santa Bárbara teria o poder de controlar os
raios e as tempestades devido ao fato de que seu algoz, seu próprio pai, teria
morrido fulminado por um raio após matá-la. Santa Catarina, por sua vez, tornou-se
padroeira, além de outras coisas, dos estudantes e professores, por ter vencido os
sábios do imperador romano nos debates acerca dos deuses, como vimos. Estas
referências podem ser encontradas nas orações abaixo, mas estamos em busca de
questões mais profundas:
Santa Bárbara7, que sois mais forte que as torres das fortalezas
e a violência dos furacões, fazei que os raios não me atinjam,
os trov ões não me assustem e o troar dos canhões não me
abalem a coragem e a bravura. Ficai sempre ao meu lado para
que possa enfrentar de fronte erguida e rosto sereno todas as
tempestades e batalhas de minha vida, para que, vencedor de
8
Retirado de http://magnificat-umbelina.blogspot.com.br/2010/12/santa-catarina.html [Acessado em 15 de
Julho de 2012].
9Retirado de https://www.facebook.com/pages/Santa-B%C3%A1rbara/49927044432 [Acessado em 10 de
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Maria da Conceição Lafayette. Mulheres no início do Século XX: Agência,
resistência e empoderamento. In: ALMEIDA, Maria da Conceição Lafayette & LONGHI,
Márcia Reis. Etapas da Vida: Jovens e Idosos na Contemporaneidade. Recife: Ed.
Universitária UFPE, 2011.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, Rio de
Janeiro, 1999.
COUTO, Edilece Souza. A mártir, a virgem mãe e a avó: figuras da devoção popular
católica. In: Tempo de festas: homenagens a Santa Bárbara, N. S. da Concei ção e
Sant’Ana em Salvador (1860 – 1940). Tese (Doutorado em Hist ória), Universidade
Estadual Paulista, São Paulo, 2004.
DE THEIJE, Marjo. São metade macho, metade fêmea: sobre a identidade de gênero dos
homens católicos. ANTHROPOLÓGICAS, v. 13, n.1, p. 47-56, 2002.
ORTNER, Sherry B. Poder e Projetos: reflexões sobre a agência. In: GROSSI, Miriam Pilar
(et.alli). Conferências e Diálogos: saberes e pr áticas antropológicas. Blumenau : Nova Letra,
2007.
PINTO, F. S & SOARES, H. R. Santa Gianna Beretta Molla: um estudo sobre os novos
modelos de santidade no catolicismo contemporâneo. Trabalho apresentado na 27ª
Reunião Brasileira de Antropologia - Brasil Plural: Conhecimentos, Saberes
Tradicionais e Direitos à Diversidade. Belém: 2010.
ROBBINS, Joel. Pentecostal networks and the spirit of globalization: on the social
productivity of ritual forms. Social Analysis, v.53, n. 1, p. 55-66, 2009.
concurso público que fiz e passei com boas notas e estou precisando muito, pois
sou pai e mãe de uma adolescente, eu Jannací te louvo e venero, minha amada
mãe, protege minha filha Alana Karolyne, dos olhos maus, sucesso nos estudos,
saúde, que cada dia ela seja mais interessada nas tarefas da
escola, e tenha sempre essa calma que Deus a premiou, assim
seja, paz ao mundo e à minha família e a essa amada
comunidade. Amém!!!!!
Estas mulheres est ão em busca de poder através de suas crenças nos santos para
jogarem seus “jogos sérios” e atingirem suas metas culturalmente constituídas.
Podemos fazer coro com Ortner e afirmar que estas mulheres est ão, com a ajuda dos
santos, e através deles, tentando sustentar seus próprios projetos culturalmente
constituídos, procurando fazer ou sustentar certo tipo de autenticidade cultural “nas
margens do poder” (p. 69).
Considerações finais
Pode-se dizer que, de acordo com Menezes (2004), quando se passa de um
simples fiel que apenas “testou um santo” invocando suas especialidades, para um
devoto verdadeiro deste santo, abre-se a possibilidade de pensar uma “agência de
projetos” baseada nesta devoção com qualquer dos santos que compõem a
cosmogonia católica, não somente com os santos das histórias analisadas até aqui e
que exerceram em sua biografia uma agência ativa. Isto se daria porque o
aprofundamento da relação com o santo, ou seja, a transformação de uma relação
baseada em um pedido fortuito em uma relação de devoção, faz com que o devoto
tenha garantida uma proteção mais ampla do que a relacionada com a especificidade
do santo. Toda a vida do devoto “que se agarrou com o santo” estaria envolvida por
esta devoção, não dizendo mais respeito ao que a tradiç ão considera como
especialidades do santo em questão.
Mas o que eu quis realmente enfatizar aqui, e espero ter deixado claro, é que,
apesar de estarem inseridas em uma ideologia de g ênero mais ampla na qual se
encontram dominadas, e, além disso, fazendo parte de uma instituiç ão cuja ideologia
específica de gênero é promotora de estruturas patriarcais seculares, as mulheres
podem exercer uma “agência de projetos nas margens do poder ”. E isto,
paradoxalmente, manuseando o próprio sistema simbólico desta instituiç ão. Tal
fenômeno acontece porque, Sahlins nos l embra, as categorias, quando em uso, s ão
colocadas em risco. A realidade não tem a obrigação de se conformar à mitologia. De
Theije segue a trilha de Sahlins ao dizer que “nenhuma ordem simbólica pública é
totalmente coerente e a hegemonia relativa ao g ênero da sociedade mais ampla só
pode ser parcial ” (Todavia, a influência dessa hegemonia parcial é indiscutível).
Ortner, por sua vez, questiona o efeito totalizador de formações como o colonialismo
e o racismo enfatizando, como vimos, a agência dos dominados.
Não quero, mais uma vez, negar a desigualdade de gênero nas representações e
práticas católicas. Quero apenas lembrar que a realidade é mais complexa do que o
simples enquadramento das relações sociais no eixo dominantes-dominados. Mais,
ainda que constrangidos por poderes que tentam demover os indivíduos de realizarem
seus projetos, há espaços simbólicos e efetivos para ir adiante. No caso aqui
analisado, o poder dos santos, ao meu ver, tem a capacidade de contribuir com a
construção de uma vida cultural significativa para seus devotos.
O ITINERÁRIO CATÓLICO:
DE UM TRADICIONALISMO INSTITUCIONAL AOS NOVOS PARADIGMAS DE
UMA PRÁTICA RELIGIOSA “MODERNA”
Resumo: O presente artigo tem por objetivo fazer uma breve análise de como o
concílio Vaticano II possibilitou ao catolicismo perceber que se prender a um
tradicionalismo institucional significaria perder o controle da própria sociedade já que
uma das expressões da modernidade é o principio da secularização. A literatura já
produzida acerca desse assunto possibilitará compreendê-lo melhor, bem como munir-
se de subsídios para a reflexão e discussão do tema de pesquisa proposto. Hoje, o
catolicismo se vê completamente implicado diante da necessidade de ter que se
articular por meio de seus movimentos, como é o caso da RCC, com esta mesma
modernidade, isto, porém, não significa dizer que o catolicismo aderiu a todos os
princípios da modernidade, apenas que ele encontrou uma estratégia de seguir o seu
itinerário visando o controle absoluto na construção cultural da sociedade.
1. Introdução
1
Graduado em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Graduando do curso de
licenciatura em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Email:
elenilsondelmiro@gmail.com
desse mesmo catolicismo, sobretudo, em um período que se coloca no pré e no pós-
concílio vaticano II.
Essa abertura vai ser o suficiente para garantir que a Igreja, mesmo sob o risco
da secularização, demande por parte da sua cúpula esforços no sentido de garantir
direitos, conquistar espaços na nova ordem estabelecida e limitar influência de outras
religiões aos fiéis do Estado (Serpa, 2008, p.86). Assim, a proclamação da república,
não necessariamente representou o fim da hegemonia católica, pois, mesmo
considerando que o fim do vinculo com o Estado provocou um abalo no catolicismo em
decorrência da abertura para outras matrizes religiosas, diferentemente do que
aconteceu na Europa, em que ocorreu uma forte perseguição ao clero; no Brasil, a
educação, que por sinal foi um dos grandes pontos estratégicos da Igreja, continuou
sendo fortemente influenciada pelo catolicismo ao ponto do Estado colocar o tesouro
público a disposição das escolas particulares, em especial, às católicas (Manoel, 2008,
p.55).
2
O termo romanização é um conceito que tem provocado entre os pesquisadores amplas discussões teóricas,
no entanto, para esta pesquisa adotaremos o conceito de romanização de Bastide que entre varias situações,
consiste na afirmação da autoridade de uma Igreja institucional e hierárquica.
No entanto, foi a tradição da Igreja, que não exatamente tem haver com a
tradição bíblica, e sim enquanto uma instituição que se caracteriza por estar a serviço
de suas próprias estruturas internas e seus interesses políticos, que a Igreja católica
conseguiu traçar suas novas linhas de ação contra os ventos trazidos pela
modernidade. Porém, por causa destas características, a instituição corre o risco de
perder o ritmo da história, de bastar-se a si mesma, de olvidar-se de sua
funcionalidade, de gerar passividade, monotonia e alienação (Boff, 2005, p.115).
3
A questão social, seu aparecimento, diz respeito diretamente à generalização do trabalho livre numa
sociedade em que a escravidão marca profundamente seu passado recente. (Iamamoto, 2003, p.125).
O período que passou para a história conhecido como Estado novo foi, a um só
tempo, de fato novo, principalmente no que se refere à legislação trabalhista, porém,
ao mesmo tempo velho, pois, mais uma vez abriu espaço para que a Igreja se
colocasse novamente na disputa pelo controle do imaginário social, ocupando todos os
espaços sociais, culturais e políticos; estabelecendo vínculos mais próximos com o
Estado, no campo social.
A nova conjuntura política, ditada pelo regime militar provoca uma crise no
interior da Igreja. De um lado existe uma ala de direita que procura de todas as
formas demonstrar o seu interesse de contribuir com o novo regime político, porém,
não recebiam qualquer manifestação de interesse por parte dos novos donos do
poder, até mesmo porque, estes só queriam ter a Igreja ao seu lado, legitimando suas
medidas em nome do anticomunismo, mas sem conceder-lhe real influência na
definição dos rumos do país (Oliveira, 1992, p.44). Do outro lado, uma ala de
esquerda encabeçada por clérigos e leigos que manifestavam abertamente apoio aos
movimentos sociais, inclusive fazendo parte deles.
Neste sentido, de que se faz necessário uma ação concreta é que as CEBs vão
encontrar na teologia da libertação o respaldo teórico e teológico necessário para
impulsioná-las a buscarem a união entre fé e a vida (Boff, 1986, p.96). É no enlace
destes dois princípios que muitos fiéis vão acreditar que a santidade na terra vai
começar pela política.
Se a Gaudium et Spes, foi uma constituição que abriu caminho para a vocação
do homem e da Igreja no mundo contemporâneo fosse discutida, possivelmente as
CEBs conseguiriam perfeitamente tirar do papel um dos principais documentos que
surgiram como fruto do Concílio Vaticano II. Nesta perspectiva, quando o documento
pontua que a Igreja deve marcar sua presença no mundo, a meu ver, dar-se a
entender que este mundo estar além dos próprios muros da Igreja enquanto
instituição. Assim, o preceito de que sua vitalidade estava estritamente condicionada à
manutenção de suas tradições, foi completamente superada.
Como não seria diferente o catolicismo, com sua eficácia de sempre, abri por
meio da midiatização mais uma página de seu longo percurso histórico. Hoje, por meio
de um catolicismo midiático (Carranza, 2006, p.74) a Igreja católica consegue dar
continuidade a sua busca constante pela hegemonia religiosa dentro da sociedade,
hegemonia esta ameaçada pelo pluralismo religioso e pelas próprias subjetividades
criadas pela própria modernidade.
É notório que a mídia eletrônica deu uma nova vida a religião, porém, se torna
ainda mais notório pensar no risco que esta mesma midiatização pode estar
reservando para o futuro desta mesma religião. Se hoje, ela se estende para novos
endereços: Rádio, TVs, Casa de Shows, é bem provável que com o passar dos tempos
a religião corra um sério risco de ser vista sob uma nova perspectiva, e não mais
como uma agregação de cultos e doutrinas que direciona o homem para um elemento
sagrado. Não se pode deixar de considerar que este maneira de se viver a religião
talvez esteja se dirigindo para um grande vazio.
6. Considerações finais
REFERÊNCIAS
___________ . E a Igreja se fez povo, a Igreja que nasce da fé do povo. São Paulo:
Vozes, 1986.
COMBLIN, José. Cristãos rumo ao século XXI, nova caminhada de libertação. São
Paulo: Paulus, 1996.
FONSECA, Alexandre Brasil. Relações e privilégios, Estado, secularização e diversidade
religiosa no Brasil. Rio de Janeiro: Novos diálogos, 2011.
IAMAMOTO, Marilda. CARVALHO, Raul de. Relações sociais e serviço social no Brasil,
esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez, 2003.
LOPES, Geraldo. Gaudium et Spes, texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2001.
SERPA, Élio Cantalício. Igreja e poder na primeira república. In: SOUZA, Rogério Luíz
de; OTTO, Clarícia. (Orgs.) Faces do catolicismo. Florianópolis: Insular, 2008.
Já no século XX, o então Dom Manoel Antônio Lopes, segundo bispo da Diocese das
Alagoas, retorna ao histórico de atitudes pioneiras e tem por iniciativa a criação do
que viria ser o primeiro diário católico do Brasil, sendo o mesmo atualmente o mais
antigo jornal em circulação no estado. Vale aqui salientar algumas mudanças
ocorridas durante a vida do jornal, mudanças estas que expressa à expansão da
publicação. Desde que iniciou a sua circulação em 1913, o jornal sofreu várias
1
Graduando em História Bacharelado pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL.
2
Dias de Moura, Pe. Laércio. A educação católica no Brasil: passado, presente e futuro, -2ª ed, São
Paulo: Edições Loyola, p. 100.
mudanças, principalmente no tocante à diagramação. Inicialmente era produzido de
forma artesanal perdurando esta forma até meados de 1940 circulando com quatro
páginas, com um número crescente de noticias e anúncios se fez necessário que a
sua diretoria decidisse mudar a forma de diagramação, que agora passaria de
tipográfica para linotipo, vencendo assim, a lentidão da composição dos textos
executada na tipografia. Esta forma perdurou até 1982 tendo o acréscimo de mais
quatro páginas. Com as constantes mudanças tecnológicas, o linotipo vai sendo
substituído em todos os centros de publicações pela impressão offset, que se
tornou principal forma de impressão de grandes tiragens, desta forma em 1982 a
direção do jornal faz mais uma mudança agora de linotipo para impressão offset
circulando agora com 16 páginas, forma que perdura até hoje. Com estas
observações podemos compreender que o jornal sofreu ao longo de sua existência
vários investimentos, pois sendo ele um órgão de circulação oficial da Arquidiocese
de Alagoas, expressava a opinião segura da mesma para os seus fiéis.
3
SAMANES, Cassiano Floristán & TAMAYO-COSTA, Juan-José (Orgs.). Dicionário de Conceitos
Fundamentais do Cristianismo. São Paulo: Paulus, 1999.
4
Vaticano II, mensagens, discursos e documentos / tradução: Francisco Catão. – 2. ed. São Paulo:
Paulinas, 2007, p.32.
Um dos pontos muito tocado no concílio foi o ecumenismo, este por sua vez, se
construirmos uma linha de início para o movimento ecumênico dentro da Igreja,
poderemos entender que ele surge à margem dela, fruto de parte do trabalho de
leigos e alguns poucos clérigos.
Dizia Le Goff:
5
Wolff, Elias, Igrejas e ecumenismo: uma relação identitária. pp. 19-20.
6
Le Goff, Jacques, O Deus da Idade Media; conversas com Jean-Luc Pouthier; tradução de Marcos de
Castro, -2ª ed.- Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p.27.
definitivamente. O contexto bipolar do mundo apresentava uma angústia para
Igreja.
A primeira nota sobre tal evento no O Semeador data de nove de março de 1962,
que tinha como titulo a Autoridade do Concílio assinada pelo Pe. Humberto Costa,
nota esta que traz uma análise dos ecos que um concílio pode ter. Mesmo que a
autoridade do concílio não seja superior ao do papa, este pode até ter mais
prestigio e se tornar mais eficaz junto aos fiéis e ao mundo não católico. O padre
também faz uma análise de que o cenário mundial, segundo ele, estava
completamente arregrado de ateísmo, representando um momento árduo na
história da humanidade, cabendo à igreja contribuir para a formação mais solene e
mais vigorosa da verdade.8
Tal nota mostra que o concílio Vaticano II não apenas se mostrava como
importante por apresentar a Igreja de uma forma, digamos, mais “próxima do fiel”.
O cenário mundial foi totalmente importante. Em todo momento o discurso do clero
tenta apresentar como turbulento o contexto social em que passa a humanidade na
contemporaneidade do concílio.
7
Alberigo, Giuseppe. Breve historia do concilio Vaticano II; Tradução de Clóvis Bovo-Aparecida, SP:
Editora Santuário, 2006, p. 23.
8
Porto, Humberto. A autoridade do Concílio. O Semeador, Alagoas, 9 de março, 1962, p. 1.
Mundo este que após a segunda grande guerra vive uma situação bipolar onde as
duas nações que tiveram papel altamente relevante na guerra e que se saíram
vitoriosas passam agora a se confrontar. Os Estados Unidos e União Soviética,
disputam tecnologicamente, ideologicamente e politicamente, áreas de influência
em todo o mundo. É neste tempo que a Igreja se encontra inserida, neste mundo
que diferentemente da idade media que tinha como grande voz a Igreja Católica.
Com esta situação ela precisa se reinventar e se dinamizar para que desta forma
ela possa construir laços mais reais com este novo tempo. Então ela rapidamente
escolhe o seu lado, atuando como agente da afirmação da ameaça comunista,
representado neste tempo pela União Soviética, de tal forma que O Semeador
também participa desta situação, visto que esta zona de possíveis influências
destas duas potências é sentido em todo o mundo, incluindo Brasil, logo em
Alagoas não é diferente. O Semeador vai ser no estado a ferramenta da igreja local
para demostrar quão perigoso é a “ameaça vermelha”.
No ano de 1962, ano este do início das atividades do concilio o Brasil passa por
uma situação conflituosa onde o presidente João Goulart9 é temido pela elite
brasileira no sentido de uma possível aproximação com setores comunistas no país,
representando perigo para os interesses da burguesia, isso se agrava com certas
posturas populares do presidente como o ato de sancionar a lei que instituiu o 13º
salario mês (abono de natal).
Dentro deste contexto O Semeador cumpre muito bem o papel de propagar a ideia
da Igreja perante o comunismo, que nesta conjuntura estaria aventando o Brasil,
então é constante manchetes e notas sobre á vida politica do país, sempre
relacionando a atuação dos “vermelhos” como um perigo para a paz da nação
podendo trazer miséria, insegurança, fome e outros males sociais.
Entre uma nota e outra que diariamente saia nas páginas do O Semeador, podemos
ler:
9
Goulart repele a denuncia de golpe. Folha de São Paulo, São Paulo, 14 julho, 1962, p.1.
10
Em vista da grande repulsa do povo mineiro contra a realização do Congresso Sindical Comunista em
Belo Horizonte, esse certame vermelho será feito em Brasília. O secretário de segurança de Porto
Alegre, afirma que o Governo Federal é conivente com a pregação subversiva. O Semeador, Alagoas, 25
Janeiro, 1962, p. 1.
(...) Múltipla é a finalidade do próximo Concílio Segundo do
Vaticano, conforme esclareceu o Santo Padre gloriosamente
reinante:
Dois objetivos são básicos: união e adaptação aos tempos
modernos.
Entre outros, destacam-se no pensamento e no coração do
Papa: novo vigor e novas energias; incremento da fé;
renovação dos costumes; a unidade de um só rebanho e
Pastor.11
O O Semeador no ano do início dos trabalhos do concilio, trazia quase sempre uma
manchete referente ao contexto da política brasileira quando não internacional,
sempre com os seus alertas e reflexões sobre o comunismo, limitando-se a trazer
pequenas notas sobre o concílio relevantes à organização, importância, história,
além de notícias gerais, como a nota trazida na sua edição de 20 de março de 1962
com o titulo “os Bispos irão para o concilio” 12. Até então não é possível encontrar
nenhuma manchete relevante ao concílio, sendo elas somente direcionadas para a
situação política do Brasil, raramente direcionadas para o mundo católico em si,
como se no momento este perigo “vermelho” merecesse uma atenção urgente, no
sentido das ameaças para o povo brasileiro fazendo uma clara e explicita oposição
ao comunismo tanto no âmbito internacional e nacional. Em uma nota do mês de
julho de 1962 intitulada “o que devemos fazer para que o Brasil não se torne
comunista” 13o jornal aponta várias atitudes que deveriam ser tomadas pelos
católicos.
11
O Concilio Ecumênico. O semeador, Alagoas, 8 Maio, 1962, p. 1.
12
Os Bispos irão para o Concílio. O semeador, Alagoas, 20 Março, 1962, p. 1.
13
O que devemos fazer para que o Brasil não se torne comunista. O semeador, Alagoas, 24 Julho, 1962,
p. 1.
14
O que devemos fazer para que o Brasil não se torne comunista. O semeador, Alagoas, 24 Julho, 1962,
p. 1.
também explicações sobre a importância de tal evento visto o momento em que a
humanidade esta passando de perda de valores morais.
Esta abordagem vai mudando no momento em que a data prevista para a abertura
dos trabalhos do concílio vai se aproximando, as notas vão ficando mais longas e
mais pomposas, aclamando o concílio e o atribuindo perspectivas de um catolicismo
novo, uma nova situação para igreja, um diálogo centrado na união, não só com os
não católicos mais com os irmãos separados, enfim, com todo o mundo. É este o
discurso do O Semeador, um discurso voltado pra a importância de tal momento
na igreja, contrapondo a situação do mundo dividido, como já foi apontado aqui. A
Igreja caracterizava este momento da história humana como crítico, sendo então
ela uma ajudadora dos mais humildes, atuando para a divulgação da paz e da
justiça social, tal imagem pretendia o concilio criar.
No dia 20 de outubro de 1962, foi aprovado pelo concílio uma pequena mensagem
apresentando o que seria a missão da Igreja, se colocando com solidariedade aos
problemas que afligiam a contemporaneidade:
15
Diario del concilio Vaticano II, aos cuidados de A. Melloni, Bologna, 1996 , 20 outubro de 1962.
evidentemente se encontraria desta forma por conta da ação vermelha pelo mundo,
trazendo manchetes como “Em Cuba impera a fome. Fracassou o plano soviético de
produção com a coletivação dos campos. Como na Alemanha dominado pelo
consumismo, o povo cubano deseja fugir em busca da liberdade.”16
Faz-se compreender que a visão da equipe editorial era tão somente única de que a
Igreja estaria trazendo novos ventos para um mundo sem paz, obviamente fazendo
tal discurso com maestria de quem representava a voz oficial da Igreja no estado.
Faz-se lembrar que no O Semeador em todas as capas compreendidas entre 1960 a
1964 vinha estampado “Órgão Católico” acontecendo antes e posteriormente
também, mais aqui exemplificada neste período, pois é o que aqui estamos a trazer
referencias, deixando evidente que suas opiniões estavam em conformidade com as
orientações do clero superior.
Esta situação faz pensar em algo que só com uma análise muita ampla, com um
panorama impossível de se obter pode conseguir, que é como estes ecos do
Vaticano II foram sendo encarados por outros órgãos católicos e suas preposições.
Faz-se crer que o O Semeador não seja o único, mais o que com maior maestria o
fez no sentido de realizar um discurso de um momento histórico difícil para a
humanidade, de um processo de desvalorização do ser, de dúvidas e de agonias,
criando no imaginário católico local um processo de legitimação do Concílio, no
sentido de que a Igreja como representante de Cristo na terra, estaria cumprindo
fielmente as palavras de Cristo, indo e pregando o evangelho, a palavra da
libertação não só da alma, mais do corpo, libertação esta que traria paz. Os
humilhados, oprimidos, e os escravos de um mundo material, eram submetidos aos
“vermelhos” agentes da destruição, fazendo sempre estes laços, O Semeador lança
questões internacionais deste cenário bipolar com o contexto nacional aqui já
tratado.
16
Em Cuba impera a fome. Fracassou o plano soviético de produção com a coletivação dos campos.
Como na Alemanha dominada pelo consumismo, o povo cubano deseja fugir em busca da liberdade. O
semeador, 22 março, 1962, p. 1.
(...) Mas faz parte do apostolado cristão, a formação de um
ambiente propício a virtude e a tranquilidade social, dai a
razão pela qual os bispos brasileiros se entregam ao árduo
trabalho da criação de um meio, onde não reine a miséria,
para melhor eficácia da missão apostólica (...)17
Todo este discurso reflete esta visão que se passa no seio de Roma, esta
preocupação com este mundo bipolar, em guerra ideológica, onde os valores que
antes se embebedavam nas fontes da Igreja já os não faz ao bom tempo,
precisando a Igreja se renovar, se reinventar, criando possibilidades de mais uma
vez se sentir com mais vigor no meio dos seus fiéis, se fazia necessário superar os
problemas que se carregava desde a reforma protestante, do iluminismo, e agora
com á modernidade que sempre foi colocando novas demandas a Igreja, era
preciso se pensar como se apresentar neste contexto, estava claro e evidente que a
cada década o ultramontanismo não se apresentava mais como uma questão
plausível, não era mais o momento de preferir reagir utilizando-se de velhas
ferramentas incapazes de adaptar-se com destreza aos acontecimentos do século,
isso fica claro a cada momento do concílio.
17
A Igreja e o Momento Atual. O semeador, 22 maio, 1962, p. 1.
18
Hoje em Roma, em hora correspondente ás 10 horas no Brasil, se abriu sob as luzes do Espirito Santo,
e presidência do Papa João XXIII, o Concílio Vaticano II. Toda a cristandade cooperando na fé e na oração
com os seus Pastores, pede a Deus que traga uma renovação crista de unidade e fraternidade humana.
O semeador, 11 outubro, 1962, p. 1.
com relação a sua posição doutrinaria as praticas litúrgica e
as relações com o mundo em seu conjunto. 19
É notório que as preposições do Vaticano II são cada dia mais reais e necessárias
para a manutenção de tal instituição no sentido de renovação e abertura para a
comunicação com este mundo, com estas identidades. Poderia até se pensar o
quanto mais o Vaticano II poderia avançar , mais aqui fica exemplificado como o O
Semeador tratou de informar aos seus fies e a toda a sociedade alagoana o
Concilia, fazendo-o de forma simplória até a data de sua abertura pós como já foi
afirmada, a preocupação até então era outro os perigos do eminente comunismo
que estava “solto” no Brasil.
19
Concilio vai apressar a união dos cristãos. O semeador, 5 Novembro, 1962, p. 1.
Referências Bibliográficas
Passos, João Décio. Como a religião se organiza: tipos e processos – São Paulo:
Paulinas, 2006.
A gênese feminina
“Eis aqui a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra7”. São
com essas palavras bíblicas que Maria aceita a maternidade do Cristo anunciada pelo
anjo de nome masculino, Gabriel8, e são essas mesmas palavras que irão influenciar
as mulheres no cristianismo. É notório que mulheres e homens vivem diferentemente
seus vínculos com a religião, isso porque tanto sociedade quanto Igrejas “os tratam de
forma diferenciada e esperam deles e delas comportamentos distintos” (NUNES 2001).
No Brasil, acreditamos que a “ordem cultural relativa aos gêneros parece intimamente
ligada à religião” (THEIJE 2002), nesse sentido, esta ordem cultural “cria, sustenta e
legitima simbólica e socialmente os papéis para homens e mulheres” (THEIJE
2002:48). Para os adeptos do catolicismo, e sua maioria de gênero feminino, a
“Virgem Maria” tornou-se um “protótipo ideal de mulher”, onde parte de seu valor
“reside no fato de ser santa, modesta, silenciosa, humilde e, fundamentalmente, de
ser mãe sem ter tido o gozo de seu corpo – a mãe ideal” (CONCLA 1981 apud ARY
2000).
De acordo com o Catecismo da Igreja Católica, a Virgem Maria “realiza de
maneira mais perfeita a obediência da fé”9. Os cultos marianos, fomentados pela
Igreja, tem como principal propósito exaltar a figura feminina enquanto virtude de
humildade e obediência; a própria Igreja, sendo mãe, precisa da obediência de seus
filhos para que suas normas sejam cumpridas. O item nº 963 do Catecismo da Igreja
Católica coloca Maria em um lugar de destaque, ela “é reconhecida e honrada como a
verdadeira Mãe de Deus e do Redentor (...) porque cooperou pela caridade para que
na Igreja nascessem os fiéis que são os membros desta Cabeça. (...) Mãe de Cristo,
Mãe da Igreja”. Esta “Cabeça” institucional é masculina, a Igreja é comandada por
homens que buscam (assim como os “nativos” estudados pelos antropólogos)
organizar suas “experiências segundo suas tradições, suas visões de mundo, as quais
carregam consigo também a moralidade e as emoções inerentes ao seu próprio
processo de transmissão” (SAHLINS 2007:48). Percebê-los dessa forma é considerar
que as “estruturas” são habitadas por indivíduos que acreditam no poder herdado
pelos homens e reproduzem este mesmo poder evocando uma maternidade humilde e
obediente, isso é parte de suas visões de mundo.
No Brasil, onde o patriarcalismo exerceu forte influência, o culto a Maria foi
interpretado por Gilberto Freyre como uma compensação “dos excessos do
patriarcalismo em nossa formação. Excessos identificados com o despotismo ou a
tirania do homem sobre a mulher, do pai sobre o filho, do senhor sobre o escravo, do
branco sobre o preto” (FREYRE 1951:87). Entendemos que os argumentos de Gilberto
Freyre não se voltam para a questão da relação de poder entre os gêneros; sua maior
preocupação é como o exemplo de Maria, seu amor materno suaviza a violência
própria da dominação patriarcal. Nesse sentido, é esse amor materno (abrangente e
envolvente) que se revela numa moralidade entre mulheres e homens, crianças e
adultos, pobres e ricos; e que tem em sua fonte alimentadora o exemplo de Maria.
Sugerimos aqui que o Amor Materno pode funcionar como ideia-valor (DUMONT 2000)
que perpassa todo um sistema simbólico e moral, que orienta e ordena a ação dos
indivíduos. Nesse sentido estamos falando de uma ordem hierárquica, isto é, uma
ordem simbólica resultante do emprego do valor e não do poder e do comando. Dada
a bidimensionalidade da hierarquia, como concebida por Louis Dumont, há de se
analisar não a entidade em si mesma, mas a sua relação com o todo, e ainda que o
ordenamento hierárquico pode sofrer inversões de acordo com as situações (DUMONT
2000). É também nesse aspecto que interpretamos o marianismo à luz da
maternidade, ou seja, em consonância com a ideia do “amor materno” de Maya
Mayblin (2010). Esse amor transcende as emoções, ele “precede tudo e não pode ser
derivado de nada” (MAYBLIN 2010).
Nessa concepção cultural cristã há um sentimento comum que une mãe e filhos
e esse sentimento é evidenciado no marianismo. Maria é o modelo de amor para com
os seus filhos, tal reconhecimento reforça e dá sentido ao mesmo amor. Em muitos
países da América Latina10, “a maternidade carrega certo status social que exige um
alto nível de respeito”, os filhos devem reconhecer o amor materno e corresponder a
ele. Amar a mãe e ser amado por ela faz parte de uma comunhão com Deus. “A
comunhão com Deus só é possível porque o ágape vem primeiramente, fornecendo o
impulso, e o amor que se repercute dos homens e volta a Deus e do ser humano para
o ser humano, de formas várias” (MAYBLIN 2010). Esse amor materno “estabelece
novas fontes, novas trajetórias relacionais no mundo”. Dessa forma estamos
pensando mais com Dumont do que com Bourdieu, ainda que o segundo nos sirva
como parâmetro para o debate, através da idéia de luta cognitiva, a respeito da
possibilidade de um feminismo mariano.
Para DULLO (2008), a compreensão da figura de Maria passa,
fundamentalmente, pela relação entre mãe e filho, essa relação representa um modelo
a ser seguido. O autor considera “que o núcleo axial [do modelo familiar] é a relação
mãe-filho, relação de cuidado e afeto, de dedicação e altruísmo, cujo objetivo é a
promoção do filho em detrimento da mãe” (DULLO 2008:44). Partilhamos desse ponto
de vista, ao mesmo tempo, consideramos que nem sempre o protagonista é o filho,
como defende o autor: “(...) tal qual Maria, a ‘Boa Mãe’ não é a protagonista, o
protagonista é Cristo" (DULLO 2008:44). Em nosso caso etnográfico (como veremos
na última parte) iremos interpretar, a partir de um trabalho de campo, que o
protagonismo pode ser o de Maria em detrimento do filho. Dona Sebastiana nos
revelou (em suas palavras e também em suas práticas) que Maria representa
autonomia, força e poder nos destinos da humanidade. O filho, por sua vez, não se
revela por si, mas é apresentado e conduzido pela mãe, que esclarece e orienta qual o
caminho a ser seguido. Dona Sebastiana defende que, acima de tudo, devemos
reconhecer o fundamento das coisas a partir da figura materna:
Após dois meses do atentado, João Paulo II pediu o envelope com a terceira
parte do segredo de Fátima, revelado por Nossa Senhora às crianças pastoras nos idos
13 de julho de 1917. O Papa providenciou logo a “consagração do mundo ao
Imaculado Coração de Maria” e solicitou a publicação da terceira parte do segredo.
João Paulo II estava convencido de que a última parte do segredo de Fátima falava
dele próprio. Abaixo, trecho da transcrição da terceira parte do segredo:
Deus Mãe
Dona Sebastiana reconhece seu jeito explosivo e está tentando não se exaltar,
como forma de conviver melhor com a hierarquia da Igreja: “Eu não sei falar. É o meu
defeito. Uma guerra dentro de mim. Estraga. Eu evito. Não é pra gente se exaltar”.
Conclusões
Para Dona Sebastiana, há uma revelação mariana que evidencia uma nova
configuração: a face feminina de Deus como condutora da Igreja Católica. Sebastiana
acredita que essa ideia é capaz de reconstruir a Igreja, ela seria alguém que esclarece
as mensagens de Maria, a partir de livros e também de maneira intuitiva, e revela aos
frequentadores da capela. Dona Sebastiana traça outros sentidos inspirados num
caráter de autonomia e de questionamentos do poder masculino.
Mesmo conscientes de que a Igreja é “marcada pelo antifeminismo profundo de
um clero pronto a condenar todas as faltas femininas à decência” (BOURDIEU
2008:103), consideramos que o exemplo de Dona Sebastiana se enquadra numa
“possibilidade de resistência contra o efeito de imposição simbólica” (BOURDIEU
2008:22), ainda que essa postura não receba tanta atenção desse autor. Marshall
Sahlins nos ajuda com a noção de “mudança cultural”, que reconhece a cultura
enquanto algo historicamente produzido e alterado na ação dos indivíduos (SAHLINS
1990). Nesse sentido, as pessoas envolvidas numa determinada cultura possuem
compreensões preexistentes da ordem cultural onde estão inseridas e essas
compreensões as norteiam em relação ao sentido que fazem de suas vidas; ao mesmo
tempo, os significados desses agentes são reavaliados quando realizados na prática e
isso altera seus esquemas convencionais. Para Sahllins, essas alterações podem
representar uma “mudança sistêmica” ou até mesmo uma “transformação estrutural”
(SAHLLINS 1990:07). Cabe aqui o esforço de Victor Turner (2008) em defender que a
mudança não deve ser interpretada à luz de modelos estruturais estáticos, que limita
as ações dos indivíduos. O autor nos alerta para os “perigos inerentes quando
consideramos o mundo social ‘um mundo em devir’, se, ao invocar a ideia de ‘devir’,
você estiver inconscientemente influenciado pela antiga metáfora de crescimento e
decadência orgânica” (TURNER 2008:26). Concordamos com o autor no sentido de
que a mudança não deve ser encarada como “cíclica”, “repetitiva”, como uma seta que
aponta o “devir”; mas como situações que envolvem, “movimento tanto quanto
estrutura, persistência tanto quanto mudança e, na verdade, persistência enquanto
um notável aspecto de mudança” (TURNER 2008:27). É importante não desprezarmos
“o poder exercido pelos leigos nesta modalidade religiosa [...] onde a “ideologia do
Marianismo [...] tem proporcionado a adequação das mulheres ao modelo patriarcal
vigente e gerado algumas dessas práticas” (CAMPOS & CAMINHA 2009:279-280) e,
também, significados e sentidos.
Dona Sebastiana frequenta a Paróquia de São Francisco, organizada pelos
padres de uma congregação estrangeira. Ela frequenta missas e festas paróquias e é
considerada uma leiga engajada nos trabalhos pastorais. Nesses espaços institucionais
ela evita comentários que possam comprometer sua visão de empoderamento
feminino em suas atividades na Capela de Nossa Senhora Rainha da Paz. Ela
identifica, claramente, aliados na própria Igreja local (padres que são simpáticos à
devoção de Nossa Senhora Rainha da Paz) e desenvolve seus trabalhos usufruindo das
lacunas abertas na estrutura católica. Trabalhando nos interstícios, Dona Sebastiana
vai abrindo possibilidades para outras ideias, visões em que se alinham, talvez, mais a
ideia de ágape, do amor materno em sua exemplaridade moral do que ao modelo de
subordinação feminina. Visão que muitas vezes pode romper com as nossas
concepções de gênero e santidade. Por exemplo, Campos (2001) observou que entre o
grupo de penitentes Ave de Jesus, também de Juazeiro do Norte, Padre Cícero é Nossa
Senhora e Jesus ao mesmo tempo. Dona Sebastiana lança mão de uma base cultural e
religiosa não autorizada, mas que é parte do mundo em que nasceu, a que foi
apresentada e que hoje ajuda a reconstituí-lo. Esse mundo contesta a Igreja e se
confronta com as versões já estabelecidas na academia.
Por isso, tomar Dona Sebastiana como exemplo de “um feminismo mariano”
não pode ser apenas a confirmações de teorias antropológicas que focam as formas de
opressão e poder como sendo de ordem principal. Essas formas também possuem
suas porções de equívoco. A escolha dessas referências de hegemonia acadêmica não
reconhece que todos os acusados também buscam organizar suas “experiências
segundo suas tradições, suas visões de mundo”, e que “carregam consigo também a
moralidade e as emoções inerentes ao seu próprio processo de transmissão” (SAHLINS
2007:48). Tais modelos teóricos não oferecem abrigo aos opressores, eles não
entram, por razões diversas, na categoria nativos, eles não merecem chances, isso
poderia manchar uma pureza construída. Aqui nos é bastante útil as interpretações de
Maya Mayblin que considera “a maioria dos comentários populares e acadêmicos sobre
o sacrifício da maternidade (...) névoa de culpa edipiana ou afronta politizada e que é
frequentemente denominada com um incontestável mitologia machista (MAYBLIN
2002)”.
Não queremos, com isso, negar os aspectos de opressão presentes no caso
etnográfico de Dona Sebastiana. Mas defendemos que a escolha de seu
posicionamento é menos uma afronta ao poder masculino da Igreja, e mais uma forte
obediência à Maria mãe de Jesus. “O amor de mãe também é, em termos ideais, o
iniciador e catalisador de todas as relações, porque é o seu amor que ensina à criança
o que é o amor e como, o que e quem amar e a quem retribuí-lo (MAYBLIN 2002)”. A
partir do caso de Dona Sebastiana, interpretamos que o amor materno, e não as
formas de opressão e poder por si só, “estabelece novas fontes, novas trajetórias
relacionais no mundo, mesmo onde o próprio amor é parte de algo muito maior e
originário: um processo divino (MAYBLIN 2002)”. Dona Sebastiana é guiada por esse
amor materno e sua relação com Maria é de extrema intimidade: “Eu chamo ela de
mãe, converso com ela, pergunto”.
Em um momento de tensão, em que foi perseguida e questionada em suas
ideias, Dona Sebastiana passou uma noite em claro, “agoniada”, implorando uma
“prova” na própria Bíblia, de que Nossa Senhora representa o próprio Deus: “Me dê
uma luz!”, disse ela com intimidade e súplica de uma filha para uma mãe. Abriu a
Bíblia no Livro dos Cânticos, capítulo 6, versículos 7, 8 e 9:
Dona Sebastiana não cansa de dizer que as respostas estão na própria Bíblia e
não só em sua literatura “revelada”, na maioria das vezes rechaçada pela Igreja
Católica. É necessário provar com o livro aceito pela instituição, ele é o status de
verdade que deve ser acionado e argumentado. Depois cita a passagem do Livro do
Apocalipse, capítulo 12, versículos 1 e 2:
Somente uma filha que conhece tão bem a própria mãe pode saber os seus
segredos. Dona Sebastiana considera João Paulo II o Papa “mais santo e mais sábio
que a Igreja teve”, o “Papa Peregrino” foi perseguido pela própria Igreja Católica até a
morte: “o papa morreu de eutanásia, remédios, ninguém aguentava mais ele não,
santo na terra ninguém aguenta não”. Para Dona Sebastiana, o último segredo de
Fátima ainda não pôde ser revelado porque os homens da Igreja não permitiram. João
Paulo II sabia, mas não teve condições de revelar, morreu antes. Bento XVI também
não o fará. Para Dona Sebastiana, o próximo Papa é que irá revelar o último segredo
que ainda resta: “NOSSA SENHORA É DEUS MÃE”.
Notas
1
O feminismo, em sua verve mais teórica, adotou o conceito de gênero “como
maneira de referir-se à organização social da relação entre os sexos” (SCOTT 1989).
Masculino e feminino passaram a ser construções sociais, enquanto homem e mulher
foram interpretados enquanto categorias “naturais”. A ideia de “natural” foi
problematizada enquanto uma dimensão que atribuía ao fator biológico o motivo das
diferenças (MOORE 1997). O próprio conceito de Gênero foi fortemente criticado por
Judith Butler em sua importante obra Problemas de gênero.
2
Todos os nomes utilizados na etnografia são fictícios, com a intenção de proteger o
anonimato.
3
Mesmo sendo considerada um dos mais importantes centros de peregrinação do
Brasil, Juazeiro do Norte não se resume aos aspectos religiosos. A segunda maior
cidade do estado do Ceará, com uma população de quase 250.000 habitantes (Censo
2010), cresce a passos largos ano após ano e modifica constantemente seu cenário
urbano, gerando uma diversidade de formas e conteúdos culturais. Nesse artigo
optamos em privilegiar os elementos que tocam o caráter religioso da cidade por
entendermos que tais elementos ainda norteiam condutas morais de muitos de seus
habitantes.
4
As referências dessa página, entre aspas, foram retiradas do Livro do Gêneses,
capítulos dois e três.
5
Catecismo da Igreja Católica. Artigo 3, Parágrafo 2. Item 494. Página 53. Pia
Sociedade Filhas de São Paulo – São Paulo, 1998.
6
Catecismo da Igreja Católica. Artigo 3, Parágrafo 2. Item 507. Página 54. Pia
Sociedade Filhas de São Paulo – São Paulo, 1998.
7
Evangelho Segundo São Lucas, Capítulo 1, versículo 38.
8
Os anjos são considerados seres “assexuados”, contudo, é curioso notar que sempre
recebem nomes masculinos.
9
Catecismo da Igreja Católica. Capítulo 3, Artigo 1, Item 148, Página 17. Pia
Sociedade Filhas de São Paulo – São Paulo, 1998.
10
Ainda com relação às questões de gênero, o marianismo é encarado em muitos
contextos da América Latina como “um edifício secular de crenças e de práticas
relativas à posição das mulheres na sociedade”, como nos esclarece STEVENS (1973);
nesses casos, “o marianismo é tão presente como o machismo...” (ibid:72).
11
Informações retiradas do documento “A mensagem de Fátima”, da Congregação
para doutrina da Fé. Vaticano. Pia Sociedade Filhas de São Paulo – São Paulo, 2000.
12
“A mensagem de Fátima”. Congregação para doutrina da Fé. Vaticano. Pia
Sociedade Filhas de São Paulo – São Paulo, 2000. p. 39
13
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Paulo_II Apub Memória e Identidade.
Weidenfeld & Nicolson 2005:184.
14
“A mensagem de Fátima”. Congregação para doutrina da Fé. Vaticano. Pia
Sociedade Filhas de São Paulo – São Paulo, 2000. p. 28.
15
A comunidade Obra de Maria foi fundada em 1990 pelo psicanalista Gilberto Gomes
Barbosa, egresso da Renovação Carismática Católica. No ano de 2007 a comunidade
contava com 35 casas de missão no Brasil e 03 no exterior.
16
Medjugorje é uma pequena região na Bósnia e Herzegovina, composta por cinco
vilas (Me ugorje, Bijakovi i, Vionica, Miletina e Šurmanci), onde alegadamente estão a
ocorrer as mais recentes aparições da Santíssima Virgem Maria. Estas aparições
tiveram início a 24 de Junho de 1981, tendo tido, nos primeiros meses, uma
frequência diária, e posteriormente passado a aparições mensais ou anuais
(dependendo dos videntes). Entre os videntes, encontram-se seis pessoas nascidas
nos arredores da localidade e a quem a Santíssima Virgem Maria se terá apresentado
como "Eu sou a Rainha da Paz". Em 1991, a Conferência Iugoslava de Bispos
determinou que não havia nada de sobrenatural nessas ocorrências. A Igreja Católica
continua, no entanto, a estudar estas aparições, a fim de determinar a sua veracidade
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Me%C4%91ugorje)
17
Lugar em que se guardam os paramentos, adornos da igreja e em que os padres se
paramentam.
18
Acreditamos que pode estar relacionado com os acontecimentos de João Paulo II,
narrados anteriormente.
19
A Santíssima Trindade, de acordo com a Igreja Católica, é composta pelo Pai
(Deus), o Filho (Jesus Cristo) e o Espírito Santo. Dona Sebastiana não explicou se com
a presença de Maria seria quatro o número total, ou se haveria algum tipo de
substituição.
Referências Bibliográficas
CAMPOS, Roberta B.C. (2001), When Sadness is Beautiful: the place of rationality and
the emotions within the social life of the Ave de Jesus- Juazeiro do Norte-CE, Brazil.
Tese de Doutorado, defendida na Universidade de St. Andrews-Escócia.
CAMPOS, Roberta B. C. & REESINK, Mísia Lins. (2011), Mudando de eixo e invertendo
o mapa: para uma antropologia da religião plural. In Religião e Sociedade, Rio de
Janeiro, 31(1): 209-227.
MOORE, Henrietta. (1997), Understanding sex and gender, in Tim Ingo (ed.),
Companion Encyclopedia of Antrhropology. Londres, Routledge, p. 813-830.
NASCIMENTO JR, Joaquim Izidro do. (2011), Rogai por nós: religião, antropologia e
morte. Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da
Universidade Federal de Pernambuco. Recife/PE.
NUNES, Maria José Rosado. (2001), Freiras no Brasil In História das mulheres no
Brasil. Mary del priori (org). São Paulo: contexto.
SAHLLINS, Marshall. (1990), Ilhas de História. Jorge Zahar Editor Ltda. Rio de Janeiro.
SCOTT, Joan. (1989), Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the
politics of history. New York, Columbia University Press.
THEIJE, Marjo de. (2002), Tudo que é de Deus é bom: uma antropologia do
catolicismo liberacionista em Garanhuns, Brasil. Recife: FJN: Massangana, 384 p.
Introdução
A Doutrina Social da Igreja (DSI) consolidou entre os anos de 1960 e 1980 sua
concepção de ser humano. No período aludido, determinados setores católicos
lançaram mão, como forma de justificar suas opções políticas – grosso modo
progressistas –, de ideias provenientes do catolicismo social, cuja base teórica se
prende ao princípio de pessoa humana1. Essa caminhada tem como norte a proposta
de uma tentativa católica de modernidade2. Sustentamos que esse conceito se
incorporou às práticas sociais do laicato em dois momentos distintos daquele período,
porém complementares: 1. O primeiro momento ocorreu durante a efêmera existência
do movimento social e semanário Brasil, Urgente (1961-1964). 2. A segunda ocasião
sobreveio na década de 1970, ao tempo das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). A
*
O conteúdo deste artigo faz parte da pesquisa que venho desenvolvendo no doutorado.
*
Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” e doutorando pela
mesma instituição.
1
Esse conceito representa para a Igreja Católica a segunda pessoa de Cristo – sua face humana. Essa
concepção de ser humano, cuja origem remonta à filosofia helenista, foi aprofundada pela matriz romana e,
seguidamente, pelo cristianismo, quando a Igreja procurou debater a respeito da Santíssima Trindade. A
pessoa humana é o núcleo a partir do qual a instituição eclesiástica orienta todo o seu ensino social e avalia
as diferentes realidades temporais. Com base nesse preceito de ser humano, a Igreja reprovou dois sistemas
de ideias diametralmente opostos – capitalismo de um lado, e, do outro o comunismo: “é exatamente em
nome da pessoa humana que se condena o “materialismo capitalista”, na medida em que celebra a cobiça e
transforma o homem em coisa, ou o ‘materialismo ateu dos comunistas’, que suprime as liberdades
humanas” (Mello; Novais, 1998, p. 610).
2
O conceito de tentativa católica de modernidade ilustra duas práticas eclesiais distintas que, todavia, se
entrecruzaram ao longo das décadas de 1960 e 1970. Segundo o teólogo Pablo Richard (1982), as práticas
da Igreja Católica, posteriores aos anos de 1960, se dividem em duas categorias. Para o autor, a Igreja
socialmente engajada tem na mensagem evangélica a justificativa para sua ação sociopolítica; esse
conceito ilustra as posições da Esquerda Católica dos anos de 1960 onde não se percebe, claramente, uma
opção política do grupo pelo socialismo – o que não significa dizer que o grupo não seja simpático a esse
sistema econômico; a Igreja politicamente engajada faz o caminho inverso, o agir antecede a reflexão
evangélica, a práxis redefine a fé e a interpretação que se tinha, até então, acerca das Sagradas Escrituras.
Essa forma ou tipo de Igreja adere declaradamente a um projeto político socialista. Segundo Richard, esse
modo de ser Igreja teria se consolidado ao longo da década de 1970. Para nós, esses dois tipos de práticas
eclesiais não existiram separadamente, de modo que em um mesmo grupo, ou movimento católico, podem
ser contempladas essas duas formas de ser Igreja – as Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) demonstram
isso. O conceito por nós elaborado, embora tenha em Richard seu principal referencial, funciona, ao mesmo
tempo, como crítica à separação cronológica de práticas eclesiais feita pelo autor e dá conta de historicizar,
igualmente, a experiência vivenciada pelo laicato católico progressista nas décadas de 1960 e 1970, pois
sinaliza as práticas eclesiais das Igrejas – socialmente e politicamente engajada –, como duas matrizes de
um movimento mais amplo: a tentativa católica de modernidade. O conceito em itálico, no sentido que está
sendo empregado neste artigo, indica a opção da Igreja, em sua busca por defender os direitos da pessoa
humana, de dialogar com valores não utilitários da modernidade que problematizavam a própria
modernidade – podemos refletir, nesse sentido, a respeito da crítica feita pelo socialismo, de filiação
marxista, ao sistema capitalista.
busca por colocar em prática, ideias provenientes do catolicismo social, é entendida
nesse artigo como uma aposta de muitos fiéis da Esquerda Católica e mesmo de
frações significativas da hierarquia eclesiástica, de se resolver – unindo teoria à
prática social – o “problema da pessoa humana”, inconcluso pelo ensino social
católico3.
3
Muito embora o nome de Michel de Certeau não tenha aparecido no corpo do trabalho, a questão que vem a
seguir, pensada a partir da leitura do seu clássico A Escrita da História, orientou a construção teórica do
nosso artigo: Qual o tipo de relação seria passível de se estabelecer entre o conceito-chave para se
compreender a doutrina social da Igreja – a pessoa humana – e as estruturas socioculturais ou a dinâmica
do período estudado? Segundo Certeau, a resposta a esse ou qualquer outro mote, que se pretenda histórico,
será determinado pelo período, o objeto e o lugar de onde fala o historiador (CERTEAU, 1982, p. 34).
Período marcado por uma intensa politização, os quatro primeiros anos da
década de 1960 se mostraram fecundos em produzir manifestações de diferentes
setores da sociedade civil, que mesclavam elementos culturais, econômicos e
sociais, cujo conteúdo propunha reformas dos mais variados matizes, não estando
a implantação do socialismo na agenda política de alguns desses grupos, dos quais
podemos destacar o Partido Comunista Brasileiro (PCB). A luta por reforma agrária,
moradia digna e melhor distribuição de renda, se dava dentro da legalidade
(GORENDER, 1964, p. 111), assim, a inexistência de um projeto específico e bem
fundamentado, que pretendesse romper de fato com o capitalismo, não se
restringia apenas aos movimentos sociais ligados à Igreja Católica, muito embora o
discurso combativo de alguns deles, alusão seja feita ao movimento Brasil,
Urgente, fosse tão incisivo quanto o que rezavam os documentos das esquerdas
revolucionárias.
Em direção oposta a essa plêiade de grupos afinados com a ideia de
transformar as estruturas sociais e econômicas do Brasil, encontravam-se os setores
da sociedade que propunham um desenvolvimento dependente do capital externo.
Essa frente reunia parcela significativa da classe média, militares ligados à Escola
Superior de Guerra (ESG), o empresariado vinculado à União democrática Nacional
(UDN) e segmentos conservadores da Igreja Católica. Refletindo o contexto histórico
da Guerra Fria e a intensa polarização da sociedade brasileira, os estratos sociais
mencionados atribuíram a efervescência política dos movimentos sociais à influência
comunista.
Situada na fronteira de três campos (BOURIDEU, 2003) – o religioso, o social e
o político –4, a dinâmica do movimento social e semanário Brasil, Urgente expressava
não apenas a conjuntura daquele período, mas, de maneira incisiva, sua pertença a
uma longa tradição cristã, que tinha na filosofia tomista e no ensino social da Igreja
seu arcabouço teórico. Frei Carlos Josaphat, dominicano da ordem dos pregadores e
fundador de Brasil, Urgente, corrobora nossa afirmação. A ação social do frade, que
marca, precisamente, o início do movimento, se deu em setembro de 1961. Nessa
ocasião, Carlos Josaphat ofereceu um curso, nas dependências do Salão da Cúria
Metropolitana, sobre a encíclica Mater et Magistra (1961), do pontífice João XXIII
(1958-1963). O curso se efetivou em dez aulas, ministradas a um público calculado
em dois mil alunos.
4
A opinião de Lucilia Delgado e Mauro Passos caminha na mesma direção, quando afirmam que “o
pensamento religioso não evolui sozinho no espaço simbólico. Ele interage com outras formas de
pensamento e outras esferas de organização social, política e cultural” (DELGADO; PASSOS, 2003, p.
102).
O sacerdote procurou destacar, nesse curso, as grandes linhas da Bíblia e da
história da Igreja, para depois situar o pensamento social da instituição. Estabelecendo
diálogo com Maritain e Mounier, Josaphat analisa a posição da religião católica no
alvorecer dos anos 1960, concluindo que “Hoje, na fidelidade ao Evangelho e atendendo
ao apelo da Igreja, é a nossa vez de trabalhar pela vitória daquele HUMANISMO
PERSONALISTA COMUNITÁRIO, que é o corolário da Encarnação Redentora” (JOSAPHAT,
1961, s/p). Refletindo em sua escrita a renovação teológica de setores estratégicos da
hierarquia eclesiástica e do apostolado leigo da década de 1960, avalia como legítima, a
prática religiosa interessada não apenas em harmonizar o mundo, mas quando necessária
– e a fase conturbada daquele período assim exigia – propor uma revolução social
(JOSAPHAT, 1961, s/p). Nessa perspectiva, os diversos grupos ligados ao movimento
Brasil, Urgente – formado por leigos, estudantes, trabalhadores da indústria e do campo –
, estavam dispostos a ir além das Reformas de Base propostas durante o governo de João
Goulart, tendo por fito substituir o sistema capitalista por outro modelo alternativo de
sociedade (MENEZES. et al., 2002, p. 461-462).
Luiz Gómez de Souza (1984), ex-militante da JUC, define os anos de 1960, como
a fase em que estavam em jogo dois projetos de Brasil. Segundo o autor –
diferentemente de Gorender –, a contenda presente em diversos setores da sociedade
se dava entre as esferas defensoras do capitalismo, que procuravam remediar os pontos
contraditórios do sistema e, do outro lado do campo, os grupos e movimentos sociais
cujo ideário propunha o fim do regime vigente, apostando na implantação de um
modelo socialista alternativo. Weffort (1980) aponta que após a renúncia de Jânio
Quadros, em agosto de 1961, surgem formas de contestação e ação popular que
ultrapassam o feito paternalista dos movimentos anteriores, propondo por meio de
greves e mobilização da opinião pública, a necessidade premente de reformas
estruturais, que incluíssem, simultaneamente, os trabalhadores rurais (WEFFORT, 1980,
p. 77). Na mesma senda, as vanguardas culturais e políticas do período vislumbravam a
possibilidade de superação do atraso econômico, social e político brasileiro, mediante a
conscientização e apoio ao povo, sendo esse subsídio prestado à população oprimida,
uma alternativa possível no processo de emancipação política.
Atento à conjuntura histórica apresentada no parágrafo precedente – todavia
arraigado, ao mesmo tempo, em uma cultura católica cuja matriz é o tomismo–,
Josaphat apresenta, sucintamente, as fontes e as particularidades teológicas de Santo
Tomás de Aquino, objetivando adequá-las aos anos de 1960. Na tentativa, grosso
modo, de historicizar os escritos tomistas, o frade chama a atenção – no curso que
marca o início do movimento Brasil, Urgente – para o fato de o pensamento do
Aquinate estar
em comunhão com a mentalidade universitária da Europa
medieval. A Summa Theologica está longe de ser uma obra
isolada ou de explicar-se por geração espontânea: ela vem a
ser a realização genial, preparada e ajudada por tôda uma
amplíssima rêde de homens e equipes de talento [...] Sua moral
não pretende ser um sistema de normas abstratas, mas inserir-
se concretamente nas estruturas, em comunhão vital com as
instituições (JOSAPHAT, 1961, s/p).
5
Michael Löwy faz um interessante estudo sobre a preferência, dos teólogos da libertação, pelos textos do
Antigo Testamento. Sobre o assunto, confira o artigo de Michael Löwy, O catolicismo latino-americano
radicalizado, 1989. A sugestão bibliográfica não indica a pertença do movimento Brasil, Urgente à
Teologia da Libertação, já que o segundo acontecimento ocorreu na década de 1970, quando Brasil,
Urgente, não mais existia.
6
17 de março de 1963 é a data de fundação do jornal, tendo sido publicado até dia 28 de março de 1964.
Com apenas um ano de existência e 55 exemplares – no formato de tabloide – Brasil, Urgente estabeleceu
fecundo diálogo com o seu tempo. A relevância do estudo dessa imprensa se deve ao fato de suas matérias
– sobretudo as de cunho doutrinal – terem levantado problemáticas que seriam, na década de 1970,
retomadas e ampliadas pelos teólogos da libertação e pelas CEBs.
a posterior Teologia da Libertação, a qual retoma e amplia muitas das discussões
presentes nas matérias veiculadas pelo tabloide.
O jornal, continuando o movimento social que o antecedeu, se preocupou em
difundir o ensino magisterial da Igreja Católica, atualizado pelas encíclicas sociais
Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963), do pontífice João XXIII (1958-
1963). Para ilustrar as diretrizes do hebdomadário, vejamos o conteúdo do seu
primeiro editorial:
7
Foge dos propósitos desse artigo, aludir os antecedentes que possibilitaram o surgimento das CEBs no
Brasil. Há uma extensa bibliografia que trabalhou essa temática.
as portas da Igreja Católica ao sujeito moderno, o qual haveria de trazer para dentro
da instituição, os conflitos e desafios característicos da modernidade. O universo
religioso pensado a partir da experiência – discurso que se defende nos movimentos
da AC da primeira metade do século XX – se materializaria nas CEBs durante a década
de 1970. A teorização e o tom abstrato das discussões, característica muito forte nos
setores mais intelectualizados do laicato, cederia espaço, com as comunidades, a uma
teologia mais prática, que teria no contexto de opressão o ponto de partida para o
refletir teológico.
Não escapa a essas provocações típicas da modernidade, a concepção cristã de
ser humano. Tendo incorporado valores da cultura moderna, como o diálogo, “a
abertura ao diferente, [a] aceitação do pluralismo” (LIBÂNIO, 2005, p. 31), o conceito
de pessoa humana abriu para si, infinitas possibilidades de leitura. Dentre as diversas
interpretações acerca do ser, uma adquiriu – referência seja ao contexto de
exploração capitalista – posição destacada: o pobre, dito de outro modo, a classe
oprimida. Assim, as frações dominadas (BOURDIEU, 1983) encarnaram, no contexto
histórico dos anos 1960, o conceito de pessoa humana. Como arquétipo da visão
cristã de homem, o pobre se torna o predileto do Reino de Deus, e é para ele que
deveriam ser voltados os planos pastorais. Partindo-se dos grupos marginalizados,
social e politicamente, determinados setores da Igreja8 organizaram seu trabalho, cuja
meta seria fazer o oprimido falar por si mesmo. O mundo abstrato não integra,
portanto, a lide desses grupos, mas sim a realidade tangível dos seus integrantes,
com todas as “suas grandezas e debilidades, angustias e esperanças, tendências e
dramas” (LIBÂNIO, 2005, p. 131).
D. Cláudio Hummes, em artigo veiculado pelo jornal O São Paulo9 em janeiro
de 1980, retrata um pouco do que se afirmou nas últimas linhas do parágrafo
precedente. Escrito no período de franca expansão das CEBs, o texto, apresentado na
forma de tópicos, traz como terceira resposta de uma única pergunta que abre e
orienta o artigo, considerações referentes à prática dessa parcela do laicato católico:
8
Nos referimos aqui, à pastoral desenvolvida por alguns padres e bispos da CNBB; entre os leigos podemos
destacar os fiéis vindos das antigas ramificações da AC. O trabalho das CEBs, muito embora tenha sido
orientado, inicialmente, por estratos intelectualizados da Igreja, tomou vida própria, cumprindo, por
extensão, os objetivos iniciais do movimento.
9
Jornal da Arquidiocese de São Paulo.
empenha todos os seus membros a buscar juntos a
transformação dessa realidade (AS CEB’S..., 1980, p. 3).
O boletim Vida e Missão da Igreja caminha na mesma direção. Divulgado em
novembro de 1980, a publicação trouxe, em sua última página, um resumo do 2º
Encontro das CEBs do Setor Capão Redondo, do qual participaram 85 representantes
das comunidades do município de Itapecerica da Serra. Segundo a reportagem, três
objetivos orientaram o encontro: 1. Refletir o vínculo entre Evangelho e vida; 2.
Confrontar a mensagem de Jesus Cristo à realidade cotidiana; 3. Avaliar o grau de
união do povo de Deus na prática da evangelização (ENCONTRO DAS..., 1980, p. 4). O
evento, que fora dividido em dois momentos, contou, primeiramente, com a
participação dos leigos, os quais se reuniram em grupos para discutirem assuntos
pertinentes à catequização, juventude, lutas populares, animadores e pastoral. De
grande relevância se assenta o exame dos leigos sobre a terceira temática: “Lutas
populares: Participar nas lutas reivindicatórias é viver o Evangelho, hoje, viver a
justiça e a fraternidade; é criar a paz, e ver Cristo dentro da própria realidade. Os
cristãos têm responsabilidade de ajudar os outros a acordarem para esta realidade, e
não somente rezar por eles” (ENCONTRO DAS..., 1980, p. 4). Tomou a palavra, no
segundo momento do encontro, o padre Guilherme. Expressando em seus dizeres a
compreensão moderna de sujeito – o que implica responsabilidade e participação –,
defendeu uma concepção menos absoluta das escrituras – o que traz à tona a ideia de
relatividade. Conforme a reportagem, o sacerdote teria, acerca do tema
evangelização, assim se colocado:
10
O Plano de Emergência da CNBB (1962) já previa um trabalho mais condizente com as particularidades de
cada comunidade eclesial. Em 1966, com a elaboração do Plano de Pastoral de Conjunto para o quadriênio
de 1966 a 1970, os bispos endossam a ideia de se criar meios e condições para que a Igreja se ajustasse, no
Brasil, às diretrizes emanadas do Concílio Vaticano II.
11
Citamos como documentos posteriores ao surgimento das CEBs os seguintes textos: Diretrizes Gerais da
Ação pastoral da Igreja no Brasil para o triênio de 1975 a 1978, Subsídios para Puebla (1978) e do ano de
1982, As Comunidades Eclesiais de Base no Brasil.
atores de tudo o que aí acontece. Não é mero cenário, mas está
marcado pelo esforço do homem em seus triunfos e fracassos.
Como sujeito da história, o ser humano inter-relaciona-se
dialeticamente com o mundo, construindo-o e sendo construído
por essa mesma relação de agente. O homem transforma e
humaniza o mundo. E quando o faz à luz da fé dá-lhe um
sentido teológico que subsume o sentido cosmológico e
antropológico histórico (LIBANIO, 2005, p. 132).
12
Essa documentação diz respeito a uma ampla variedade de textos que informam a respeito dos encontros
regionais das CEBs na região metropolitana de São Paulo. No Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) da
UNICAMP, encontra-se um farto material sobre o trabalho dessas comunidades, para além da capital
paulista, nas seguintes Dioceses: Goiânia (GO), Vitória (ES) e Rio de Janeiro (RJ).
hegemonia no movimento sindical durante a redemocratização
parcial do país nos anos 1980 [...] enquanto o PT, o novo
partido operário portador de uma perspectiva socialista, ganhou
centenas de milhares de eleitores (LÖWY, 1991, p. 57).
Considerações finais
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas
à luta armada. São Paulo: Editora Ática, 1987.
HUMMES, D. Cláudio. As CEB’s são a esperança da Igreja. O São Paulo, São Paulo,
25 abr., 1980, p. 3.
MESQUITA, Luís José. As encíclicas sociais de João XXIII. 2 ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1963. 2v.
PEREIRA, Leonardo Lucas. A preparação para a urgência dos tempos: entrevista com
frei Carlos Josaphat. In: MENESES, Adélia. et al. Utopia urgente: escritos em
homenagem a frei Carlos Josaphat nos seus 80 anos. São Paulo: EDUC/Casa Amarela,
2002.
Referências Bibliográficas
.
Capitulo de livro:
Capitulo de livro:
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Abril.
1973.
Capitulo de livro:
HERVIEU-LÉGER, Danielle. O peregrino e o convertido. A religião em
movimento. Petrópolis: Vozes, 2008.
Monografia:
Capitulo de livro:
PIERUCCL, Antônio Flávio & PRANDI; Reginaldo. A Realidade Social das Religi ões
no Brasil. São Paulo: HUCITEC, 1996.
Artigo:
STEIL, Carlos Alberto. Pluralismo, modernidade religiosa e tradiç ão. Transformação
de campo religioso. In Ciências Sociais e religião. Porto Alegre, 2001.
Sites consultados
Disponível em: http://www.diariodonordeste.com.br acesso 23 de outubro de 2012.
Disponível em: http:// www.opovo.com.br acesso em 19 de março de 2013.
A TRAJETÓRIA E OS SABERES DE UMA XAMÃ NA AMAZÔNIA
Resumo:
Abstract:
Introdução
1
Graduando em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Pará (UEPA) e bolsista de
Iniciação Científica pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
“Diálogos de saberes: processos educativos não escolares e práticas docentes”,
inserido no contexto do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica (PROCAD),
estabelecido entre a Universidade do Estado do Pará (UEPA) e a Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC – RS).
2
A microregião do Salgado, localizada na mesoregião do Nordeste paraense, corresponde a uma
extensa área em que predomina, entre as populações tradicionais, a atividade de artesanato, associada à
pesca artesanal e à cata do caranguejo (Fonte: http://www.icmbio.gov.br/portal/o-que-
fazemos/populacoes-tradicionais/producao-e-uso-sustentavel/uso-sustentavel-em-ucs/251-regiao-do-
salgado-paraense.html - acessado em 23/03/2013).
3
Para maior conhecimento, conferir Villacorta (2000; 2011).
pelo fato de que esta xamã atraiu diversos seguidores, muitos dos quais, guardadas
suas especificidades, se dizem discípulos e seguidores dos seus ensinamentos até
os dias de hoje. Neste artigo, busco, portanto, apresentar os resultados parciais
acerca da trajetória de vida desta xamã, bem como os seus saberes.
4
Villacorta (2000) observa que “esta feiticeira da Amazônia é geralmente descrita enquanto uma
mulher que possui um pássaro homônimo, seu ‘xerimbabo’, que usa o silêncio da noite como horário
principal para realizar seus ‘malefícios’, sendo identificada a sua presença por um longo assobio”.
os relatos de ataques extraterrestres5 que, a partir da década de 1970, têm
tornado essa ilha internacionalmente conhecida.
Esses são alguns dos principais motivos pelos quais a ilha de Colares é
bastante procurada tanto por pessoas oriundas das imediações do Estado do Pará
quanto de outras localidades do país, conforme aponta Villacorta (2011, p.36). No
entanto, o fascínio de pessoas pela ilha não é algo somente existente na
atualidade, mas remonta à própria história da colonização da Amazônia. Os
primeiros relatos de missões jesuíticas na Amazônia revelam que os padres
missionários que estiveram na ilha de Colares ficaram encantados com a sua
beleza.
5
O fenômeno ficou conhecido como “chupa-chupa” e faz referência às aparições de luzes que
chupavam o sangue de alguns colarenses, conforme aponta Silva (2012, p.24). Na década de 1970, a
Força Aérea Nacional (FAB), através do Comando Regional Aéreo de Belém, esteve no município de
Colares realizando uma operação que ficou conhecida como Prato, e foi montada para investigar o
fenômeno. A partir deste evento, a ilha de Colares passou a ser o ponto de busca de vários ufologistas
oriundos de diferentes localidades do país. Posteriormente, a prefeitura do município passou a utilizar a
figura do extraterrestre para atrair turistas, espalhando-a por vários pontos locais, inclusive em uma
imagem localizada na entrada da cidade, onde o típico “E.T.” (isto é, uma criatura verde com cabeça e
olhos grandes) está dando boas-vindas a quem chega à ilha, como pude constatar em minha primeira
pesquisa de campo na ilha de Colares, que se deu em dezembro de 2012.
A forte herança indígena deixada pelos índios Tupinambás pode ser
considerada como o principal fator responsável pela presença de práticas
xamânicas na ilha de Colares na atualidade. Em pesquisa de campo na cidade, tive
a oportunidade de entrevistar Tereza Miranda, que já foi Secretária de Cultura e
Turismo do município. Ela afirma que todos os nativos da ilha estão de alguma
forma envolvidos com a chamada pajelança cabocla6. Para Tereza:
6
A pajelança cabocla é identificada como uma forma de xamanismo na Amazônia por estudiosos
como Galvão, Maués e Villacorta (cf. GALVÃO, 1955; MAUÉS, 1990; VILLACORTA, 2011). Para
Maués “o pajé rural, parcialmente herdeiro de uma prática de cura dos antigos pajés tupis, sincretizada
com o catolicismo e as religiões de matriz africana, bem como com laivos de espiritismo kardecista, pode
ser importante personagem da medicina popular de povoados rurais ou mesmo de cidades amazônicas
onde essa prática é costumeiramente exercida” (MAUÉS, 2008, p.5-6).
Roseana Gil e o nomadismo religioso
7
Até o momento, três pessoas foram formalmente entrevistadas, são elas Tereza Miranda, Zé Caeté e
Benedita Ana. No entanto, estou considerando também as informações que obtive sobre a Rose através de
conversas informais que tive com moradores de Colares, bem como com pessoas da cidade de Belém que
a conheceram.
8
Esta parte da trajetória de Rose será melhor analisada em um outro momento deste artigo.
Desde os sete anos de idade eu trabalho com a linha da
encantaria. Eu sempre fui uma criança diferente das outras,
eu chorei no ventre da minha mãe, e aí com sete anos uma
amiga da minha mãe foi quem me orientou sobre os meus
dons de cura. Como você sabe, eu sou de Belém, eu tinha
vinte e seis anos quando isso aconteceu, eu trabalhava como
funcionária pública e tinha uma boa remuneração, eu
conhecia Colares já há algum tempo, através de um amigo
que tinha um sítio aqui. No caminho pra chegar no sítio do
meu amigo, tinha um outro sítio, só estar nesse caminho eu
já sentia alguma coisa diferente, a mata, os sons dos
pássaros, eu sentia a presença de todas as energias. Mas
quando eu passava em frente desse sítio, ele me chamava a
atenção pela energia forte que eu sentia, era um aperto no
coração, uma saudade, uma lembrança. Foi quando numa
das vezes que eu ia passando na frente desse sítio, eu vi
numa árvore a primeira letra do meu nome, entendi logo a
mensagem. No local daquele sítio, havia sido habitado pela
tribo Tupinambá. Voltei pra Belém com a certeza de que eu
ia comprar esse sítio. Conheci a dona do sítio, nos tornamos
amigas, um belo dia ela me diz que quer vender o sítio.
Voltei pra Belém, vendi tudo o que eu tinha, juntei minhas
economias, e comprei o sítio. Foi quando eu vim morar em
Colares. Na época as pessoas não entenderam toda essa
mudança na minha vida, mas eu sabia, são vinte anos
morando em Colares, trabalhando com a cura, ajudando o
meu povo. As pessoas aqui são descendentes diretos dos
índios Tupinambás. Eu estou aqui para resgatar as minhas
raízes indígenas, conscientizando as pessoas para a
preservação da natureza.
Para Maués & Villacorta (2004, p.17), a figura do encantado faz parte da
crença fundamental da pajelança cabocla amazônica. De acordo com estes autores:
Pode-se afirmar que durante sua curta permanência neste plano material –
de 1953 a 2006 – Rose transmitiu seus saberes a diversas pessoas. Tanto seu
estilo de vida na ilha de Colares, pautado numa ética anticapitalista e
anticonsumista e na solidariedade com os doentes e necessitados, bem como os
trabalhos espirituais que realizava, atraíram diversas pessoas ao seu sítio em
Colares.
9
Zé Caeté era amigo de Rose. Além de poeta, é corretor de seguros e conheceu Rose em meados da
década de 1980. Após seu falecimento, Caeté tem se dedicado a direcionar o grupo criado por ela, o
Circulo Esotérico Estrela do Oriente, que trabalha a espiritualidade a partir dos ensinamentos da Grande
Fraternidade Branca.
pensares como uma pessoa tá vivendo pra ti poder
realmente procurar compreendê-la. Até no que diz respeito
às pessoas que se agitam, porque ela tá mal humorada,
alguma coisa, alguma energia tá acontecendo com ela. Em si
o ser humano é perfeito, é maravilhoso, é lindo (entrevista).
Considerações finais
Desta forma é possível concluir que Rose era uma xamã, com fortes traços
de modernidade e no contexto daquilo que alguns estudiosos denominam de
neoxamanismo, mas ainda assim uma xamã. Esta nova forma de interpretar o
xamanismo, a partir do ponto de vista pós-moderno de Stuart Hall, tem sido
encontrada nas grandes metrópoles brasileiras desde a década de 1990, a partir de
estudos antropológicos acerca do neo-esoterismo. No entanto, Rose se destacou
por ter sido uma religiosa pós-moderna que se diferenciava dos xamãs urbanos
encontrados nestas metrópoles, isto é, ela mesclava elementos deste circuito neo-
esotérico com práticas culturais de sua região, como a pajelança cabocla
amazônica, sendo desta forma um sujeito singular.
REFERÊNCIAS
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Tomo III,
Imprensa Nacional, 1943.
__________. O Brasil da Nova Era. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
__________. Xamãs na Cidade. In: Revista USP, São Paulo, n.67, p. 218-227,
setembro/novembro 2005.
SILVA, Dayana D.S. Plantas poderosas: magia, práticas de cura e saberes de uma
curandeira em Colares. Trabalho de Conclusão de Curso (Ciências da Religião)
apresentado ao Centro de Ciências Sociais e Educação. Belém: Universidade do
Estado do Pará, 2012.
VILLACORTA, Gisela M. Mulheres do Pássaro da Noite: pajelança e feitiçaria na
região do Salgado (nordeste do Pará). Dissertação de mestrado em Antropologia da
Religião, apresentada no Departamento de Antropologia da UFPA. Belém, 2000.
ABSTRACT
Entende-se pois, que o mito faz parte do universo subjetivo, o mundo que se
percebe; no entanto, necessita ser encarnado, e essa encarnação é manifestada por
meio da ação ritual.
2. Povo Potiguara
Há portanto, uma estreita relação do índio com o cosmos, o qual ele atribui
significado de valor. Pois “ No divino,todos esses atributos são pensados como sendo
‘absolutos’, ou seja, como perfeitos.” (OTTO, 2007, p.34). É sobre esta perspectiva
que se manifestam afeto e sentimento na relação do índio com a natureza, a qual
considera como uma mãe de útero fértil que cuida de seus filhos promovendo vida.
Percebe-se que em qualquer lugar a espiritualidade Potiguara se manifesta.
Uma vez que, “As furnas, a oca, o terreiro são espaços sagrados onde os Potiguara
invocam seus ancestrais e praticam o ritual do Toré”. (NASCIMENTO, FARIAS E
BARCELLOS, 2012, p.42). O indígena também vivencia experiências místicas em seu
cotidiano através de práticas, como visitar as matas para cortar lenha, ir ao rio para
tomar banho, sair para pescar e plantar, tudo possui um caráter de transcendência,
revestindo-se de valor espiritual e promovendo o fortalecimento da tradição.
Neste sentido, vale dizer que o mito tem valor de crença, de fé na tradição
Potiguara, de forma que, a crença que sustenta a maneira de agir no cotidiano, está
no fundamento dos rituais e na espiritualidade da etnia Potiguara.
Os mitos são razão para a constituição de determinadas práticas ritualísticas
como o Toré, a partilha do bejú e da evocação nas furnas, ações dos Potiguara que se
baseiam em crenças. Afirma (BARCELLOS, 2005, p.27-28) que, entre os indígenas que
habitam o Litoral Norte da Paraíba,
[...] O mito é fonte interpretativa[...] e a espiritualidade, o
resultado de uma consciência grupal[...] São os mitos os
responsáveis pela descrição da realidade cultural, social,
histórica e da espiritualidade da aldeia, uma vez que provêm da
sabedoria coletiva. São conhecimentos tidos como verdadeiros
porque atualizam os acontecimentos do passado cheios de
sentidos para o presente. Explicam como surgiu o mundo, o
povo, o lugar, os festejos, a identidade e a espiritualidade.
(BARCELLOS, 2005, P.27-28)
Por meio dessa realidade, podemos notar que, o Potiguara possui uma
maneira própria de manifestar suas crenças, e isso independe de construções ou
templos ornamentados pela ação humana ou de regras pré-estabelecidas. Os rituais
dentro do universo indígena Potiguara são sinais da experiência religiosa, ou por não
dizer assim, a expressão dessa experiência e a linguagem dela. Experiência religiosa
que, embora vivenciada de forma estranha, traz em si, um fundo de razão. Por essa
razão, os indígenas constroem uma lógica de argumentação fundamentada em duas
realidades, onde mito e realidade integram-se para explicar a existência de suas
tradições. De tal forma que, os mitos e os ritos no universo Potiguara, podem ser
considerados como essência manifesta da espiritualidade da referida etnia.
REFERÊNCIAS:
CAMPBELL, Joseph com Bill Moyers. O Poder do Mito/ São Paulo: Palas Athena,
1990.
DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa/ Fundação Editora
da UNESP,1996
Introdução
As práticas culturais religiosas afro-brasileiras vivenciadas e reconstruídas pelos
sujeitos, sobretudo negros e negras, moradores do município de Amargosa, localizado no
Recôncavo Sul da Bahia, no período em estudo, territorializaram expressões e influências
no meio social, marcando ritmos nas relações que eram estabelecidas no cotidiano da
população. Os adeptos dessa religiosidade (Candomblé) exerciam seus saberes religiosos
a partir do legado dos seus antepassados e das experiências compartilhadas entre os
pares, que estavam pautadas no poder, nas trocas culturais e na (re)configuração das
práticas sociais.
Nessa perspectiva, a partir das primeiras evidências apontadas pelas fontes,
pode-se identificar que as práticas religiosas afro-brasileiras, como também, os seus
praticantes, principalmente se estes fossem mulheres, conhecedoras dos mistérios e
segredos do universo religioso afro-brasileiro tiveram seus costumes questionados,
rejeitados e em alguns momentos perseguidos, por parte da população da cidade, que
tinham o catolicismo como parâmetro de fé, fator que foi intensificado com a instalação
da Diocese - Instituição Religiosa Católica, que teve como sede a cidade de Amargosa,
sendo de grande influência na região1.
Desse modo, essas mulheres adeptas do culto afro (conhecidas como “guardiãs”
do segredo), ao exercerem esta função e ao desenvolverem suas práticas religiosas, o
que de certa forma proporcionava prestígio, e atraia pessoas da região, que buscavam
cura de seus males era fator que incomodava parte da população da cidade, que as via
de forma pejorativa como “perigosas” e “feiticeiras”. Percebe-se que esta postura
assumida por parte da população de Amargosa tinha como objetivo impedir, que as
pessoas se aproximassem dos adeptos dos Terreiros de Candomblé. Era passado para a
Este texto é resultado de parte da pesquisa de Mestrado intitulada “Visões e Imagens sobre as práticas
religiosas afro-brasileira em Amargosa (1940-1960)”, que está em fase de conclusão.
1
A implantação da diocese na cidade de Amargosa ocorreu em 15 de Agosto de 1941 e teve o apoio da elite
local, que se mobilizaram através de doações ou angariando fundos para a instalação dessa instituição religiosa
católica na cidade.
população que os seguidores do Candomblé labutavam com coisas do mal, tal atitude
pode ser considerada como uma forma de controle, ou seja, impedir que as pessoas
freqüentassem os terreiros. Entretanto, muitos daqueles que discriminavam as práticas
religiosas afro-brasileiras, em vários momentos buscavam os serviços das mesmas no
intuito de aliviar seus males.
O presente texto tem como objetivo analisar como as mulheres negras,
mestiças e pobres adeptas da religiosidade afro-brasileira, atuavam na cidade de
Amargosa e como desenvolviam suas práticas religiosas, bem como, a imagem que lhes
era atribuída já que aos olhos da classe dominante desviava dos padrões impostos na
época.
Assim, as questões relacionadas à cultura afro-brasileira no município estiveram
relacionadas com a representatividade que parte da sociedade tinha para com ela,
perpassando por uma trama de discursos e visões construídas, muitas vezes a partir do
lugar em que ocupava e da realidade social que vivenciava. Produzindo concepções que
na maioria das vezes eram reelaboradas e transmitidas como verdade, emergindo uma
memória coletiva negativa com relação aos cultos afros, o que permitiu a construção do
medo de cada indivíduo, fundamentado naquilo que eles carregam na formação remota
das suas almas ou a partir da figura simbólica a que essas práticas mágicas foram
relacionadas, como a bruxaria e ações demoníacas.
2
A Nova Historiografia refere-se a produção de uma história dinâmica, não se atendo apenas a uma
historiografia linear e factual, apresentando um leque de abrangência com relação a concepção de fonte,
passando a utilizar não apenas os documentos oficiais, mas outras vertentes até então desconhecidas, ou até
mesmo, ignoradas. Para compreender essa dimensão, cf. CARDOSO, Ciro Flamarion. Domínios da História:
Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
economicistas, dentro de uma estreita relação entre a História Social e Cultural3. O
estudo da religiosidade integra esse processo de mudanças nos campos teórico e
metodológico, os pesquisadores ao assumirem a diversidade cultural como objeto de
investigação histórica, submeteu a revisão crítica os vários universos e contextos
religiosos, dando ênfase aos estudos sobre crenças, mitos e rituais ( HERMAN, 2002,
p.45).
Este estudo além de trabalhar numa perspectiva social, também segue uma
linha cultural, ao pensar nas relações desenvolvidas por meio das práticas religiosas afro-
brasileiras na cidade de Amargosa, permitindo relacioná-las como elemento cultural
recriadas pelos grupos que experimentaram essa religiosidade. Nesse contexto
Thompson (2002, p. 32), embora seu estudo esteja voltado para a classe operária
inglesa no século XVIII, trouxe outras perspectivas e noções para o campo da
historiografia, pensar a cultura corresponde colocá-la em articulação com o social,
trazendo as experiências humanas, mas observando, de outro lado que a própria
experiência é o lugar da resistência às forças produtivas determinantes. Sendo assim, ao
tratar das práticas culturais, que nesse caso são as práticas religiosas afro-brasileiras, é
necessário ter em vista, os contextos sociais e específicos de cada tempo e as relações
de força de cada grupo. Sem, contudo, perder de vista as interferências que ajudam a
compor as diversas culturas.
O recorte temporal do objeto de pesquisa, definido a partir de 1940, se refere às
evidências apontadas no contato com as fontes, em especial, num processo crime
encontrado, referente a esse período na cidade de Amargosa, no qual se percebe, que a
repressão às práticas religiosas afro-brasileiras, se dava a partir do processo de
criminalização das mesmas, sendo classificadas em alguns momentos como
“curandeirismo”, previsto no art. 258 do Código Penal de 1940, como crime contra a
saúde pública. Este era um dos caminhos trilhados pela polícia e justiça para condenar e
perseguir os adeptos do Candomblé, outras práticas religiosas afro-brasileiras e, por
conseguinte, a própria religião. Demonstrando, dessa maneira a visão e o papel
desempenhado pela força policial e outras autoridades com relação às práticas culturais
da população negra.
Contudo, o estudo provocou investigar a presença das práticas religiosas afro-
brasileiras e suas relações sociais para com os vários setores da sociedade local até a
década de 60 do século XX. As evidências apontadas através das entrevistas de pessoas
que vivenciaram o contexto social da época, fotografias e alguns jornais que circularam
3
Para uma discussão ampla em torno das abordagens da Historia Social. Cf.: TOMPSON, E.P. Costumes em
comum: estudos sobre cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. No Brasil, existe
uma vasta produção historiográfica em tono da História Social da Cultura, por exemplo, na Bahia se destacam:
REIS, J, J. A Morte é uma Festa: Ritos Fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, entre outros.
no município, indicam que as manifestações religiosas afro-brasileiras na cidade de
Amargosa, apesar de serem perseguidas e reprimidas, se mantiveram vivas e presentes
em vários espaços da cidade. Sendo assim, pode-se evidenciar que se por um lado houve
por parte de certos setores da sociedade a prática da repressão, por outro, é possível
identificar que as pessoas ligadas às práticas religiosas afro-brasileiras, souberam
resistir, a exemplo da presença do cortejo afro na cidade. A década de 60 se torna um
referencial, sendo esse período, o último momento em que a mãe de santo Raquel,
promoveu o cortejo afro4. Para o período, o cortejo afro era considerado um desafio, uma
forma de resistência, uma afronta às outras religiões e uma forma de ocupar o espaço
público. Apesar das perseguições, dos preconceitos por parte da população de Amargosa,
os adeptos do Candomblé ocupavam o espaço público e mostravam que sua religiosidade
estava viva e que eles continuavam realizando suas práticas culturais, que foram
passadas pelos seus antepassados.
Desse modo é imprescindível salientar o importante papel que a fonte oral
assume para esta pesquisa. Pois proporciona uma relação mais próxima com o tema e os
sujeitos históricos em estudo e seu cotidiano. A oralidade abre alternativa de captar o
vivido, provoca a relativação de qualquer verdade pronta, acabada e universal e nos
apresenta diversas problemáticas que adquire centralidade no estudo ( SANTANA, 1998,
p. 21).
A memória ocupa um papel de grande relevância na construção da narrativa,
pois através dela será possível lidar com imagens do passado que vão se reconstruindo
no presente. A memória em outros termos contém elementos básicos para construção
de uma concepção histórica. A memória, entre lembranças e esquecimentos seleciona a
partir dos anseios individuais e coletivos do presente, os fatos que devem e podem ser
lembrados e ou esquecidos (LE GOFF, 1985, p. 32).
Buscaremos também estabelecer um diálogo com o discurso dos jornais que
circulavam na época, que dão conta das complexas interações sociais entre a pretensa
elite dominante que desejava disciplinar a população dentro dos ditames de uma cidade
em processo de urbanização e fervorosamente católica, em contraponto as experiências
religiosas negras, que em muitos momentos eram desenvolvidas por mulheres.
Na segunda seção do texto, discutimos sobre a trajetória das mulheres negras,
mães, esposas, trabalhadoras, muitas delas, na condição de “guardiãs” dos segredos e
saberes, que souberam vivenciar o sagrado e desenvolveram relações de sociabilidades
nos momentos de festas, cultos, trabalhos, como também, nos momentos de resistência
e conflitos.
4
De acordo com o relato da sua filha de sangue Idália Santos, sua mãe não deu continuidade, devido a
problemas de saúde.
Os diferentes conflitos enfrentados pelos Adeptos da Religiosidade Afro-
Brasileira
Minha filha, minha vida foi de luta e ainda é. (risos) eu desde nova
trabalhava na enxada, torrava farinha, era um tempo difícil, mas
todo mundo vivia [...] junto com o trabalho da roça, eu também
tinha minha função dentro de uma casa de candomblé daqui, que
eu frequentava, era a cozinheira de lá, eu ajudava em tudo. O
povo daqui não gostava muito da gente não, dizia que a gente
lutava com o diabo, às vezes quando a gente ia à missa, as outras
mulheres ficavam perguntando o que essas “feiticeiras” vieram
fazer na igreja [...]. Mas, somos nós que zelamos pelos orixás,
caboclos, pelos fundamentos do Candomblé, conhecemos os
segredos e os saberes5.
5
Depoimento concedido por Dominga Santos, iniciada no Candomblé de Angola – localizado em Amargosa.
Trabalhadora rural, moradora da zona rural do município de Amargosa. Entrevista concedida, em 14 de Março
de 2011.
6
Sobre os diversos tipos de trabalho exercido pelas mulheres negras no século XIX, cf: SOARES, Cecília
Moreira. Mulheres negras na Bahia do século XIX. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da UFBA, 1994, p.22.
trabalhava num armazém de fumo e que nos apresentou a partir da sua vivência o dia-a-
dia de muitas mulheres pobres que viviam na mesma condição que ela.
7
Depoimento concedido por Antônia dos Santos, moradora da cidade de Amargosa, trabalhou no armazém de
fumo, devota de São Cosme e Damião e Santa Bárbara. Entrevista concedida em 18 de abril de 2011.
Nessa perspectiva, o periódico “Liderança” de circulação na cidade de Amargosa,
traz uma nota em destaque sobre como era visto o papel da mulher dentro das
convenções sociais.
A mulher tem, no lar, o papel de tornar a atmosfera agradável,
calma, e harmoniosa, embalsamada pelo perfume do bom
exemplo!Esse ambiente de virtude criará nela quase uma
necessidade de ser boa e temente a Deus. Do contrário
considerar-se-ia uma mulher dissonante do exemplo de uma vida
cristã, no conjunto do convívio doméstico. 8
8
Jornal de circulação na cidade no período em estudo, vinculado a Igreja Católica. Arquivo particular de
Berlamina dos Santos. “Liderança”, ano I, nº. 1 de 13 de Outubro de 1963.
9
Depoimento concedido por Derneval da Silva, morador da cidade de Amargosa, era comerciante no período em
estudo. Entrevista concedida em 22 de abril de 2011.
se “mulheres que sabem” os fundamentos, “dos mistérios dos mistérios”, os segredos
das ervas. Tem nos seus saberes e fazeres uma forte herança ancestral, e em alguns
momentos ao colocar em prática o que aprenderam eram reconhecidas como mães-de-
santo, mãe preta, “curandeira”.
Dentro do contexto social da cidade era Raquel uma das mulheres, mãe e
trabalhadora que se dedicava aos filhos e aos orixás, e ao ter o conhecimento religioso,
somado ás experiências cotidianas, tinha a valorização e admiração do ser feminino e da
sua ação, aos olhos de alguns, a exemplo do senhor Derneval. Em contrapartida sofria
com a opressão da elite dominante que a marginalizava, por defender e praticar uma
cultura afro-brasileira.
O autor (ARRUTI, 2006, p.104), informa-nos como o terreiro de Candomblé,
assim como o quilombo, surge como um grande símbolo de resistência política e cultural
da população negra, que está diretamente associada a uma territorialidade, organização
sócio-territorial que a população negra pobre e marginalizada criou para viabilizar
alternativa ao espaço urbano.
Nesse sentido, a convivência e as relações estabelecidas dentro do ambiente
religioso do Candomblé potencializavam a capacidade de muitas pessoas em resistir e
sobreviverem em ambientes adversos a sua cultura ou a sua religiosidade, pois o fato de
os terreiros serem um espaço público acolhedor e agregador das pessoas da rua, dos
becos, de fora, como também de longe, sem fazer distinção de cor e/ou classe social
dentro de uma estrutura religiosa, na qual os indivíduos conseguiam salvaguardar seu
referencial religioso.
A presença de traços africanos, na cidade de Amargosa, era explicitada por
mulheres como Raquel e por tanto outros indivíduos que ofereciam caruru em sua casa,
que desenvolviam cultos domésticos, que tinham terreiro, além das que transitavam nas
ruas e becos da cidade de Amargosa, com seus tabuleiros de doces, vendendo iguarias
como acarajé, cocada e abará. A venda de comida na rua, fez com que a influência
africana determinasse essas modalidades, quer no tipo de iguaria comercializada ou na
indumentária. Todas elas faziam com que a cultura afro-brasileira permeasse o cotidiano
da cidade de Amargosa, quando não, faziam com que alguns lugares cheirassem a azeite
de dendê.
Assim, o senhor Florisvaldo, morador da cidade de Amargosa, homem negro, 82
anos, rememorou como Jacy, mulher negra e mãe-de-santo buscava a todo momento
afirmar-se como tal.
Ah!Eu me lembro de Jacy curandeira, quando ela vinha para
cidade sempre era acompanhada dos seus filhos-de-santo, ela
nunca vinha sozinha, [...] sempre vinha vestida com aquelas
roupas, cheia de colar. Quando as pessoas que não gostavam
dessas coisas, viam passar, diziam já vem esse povo do
candomblé com essas coisas10 [...]
10
Depoimento concedido por Florisvaldo Ferreira, trabalhou como operário da construção civil, morador da
cidade de Amargosa, devoto de Santo Antônio. Entrevista realizada, em 16 de março de 2011.
Referências Bibliográficas
CASTRO, Yêda A. Pessoa & CASTRO, Guilherme A. de Souza. Culturas africanas nas
Américas: um esboço de pesquisa conjunta na localização dos empréstimos. AFRO-ÁSIA,
Salvador: CEAO, n.13,1990.
FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Quem pariu e bateu, que balance!: mundos
femininos, maternidade e pobreza: Salvador, 1890-1940. Salvador: CEB, 2003.
LE GOFF, Jacques. Memória. In: Enciclopédia Einaudi, Lisboa: Imprensa Nacional, 1985.
SIQUEIRA, Maria de Lourdes. Agô Agô Lonan. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1998.
Considerações Finais
Por fim, a religiosidade afro-brasileira em Amargosa representou para muitos
dos seus seguidores a possibilidade de viver o sagrado e desenvolver relações de
sociabilidades nos momentos de festas, como também nos momentos de divergências,
pois sendo ela uma religião que agrega todos que compartilham dessas experiências
religiosas, possibilitava aos indivíduos se reconhecerem detentores de uma religião e
identidade afro-brasileira. Assim, é essencial evidenciar que algumas mulheres que na
condição de “guardiãs” dos segredos e mistérios, ao terem consciência da
responsabilidade que lhe foi concedida, seguiam com suas práticas religiosas, crenças,
ainda que em meio a negociações e conflitos. Essas mulheres ao superar os percalços
impostos pela sociedade com relação a sua religião ousavam em alguns momentos,
ultrapassar os limites do terreiro e adentravam as ruas da cidade.
Apesar da opressão e dos preconceitos, essas mulheres conseguiram impor sua
religiosidade, suas práticas sociais, suas posturas, suas formas de sobrevivência, enfim
sua cultura, demarcando território na cidade de Amargosa.
“O ETNÓGRAFO, A REZADEIRA E A CERCA DE CIPÓ”: Autoridade
etnográfica e iniciação xamânica de rezadeiras Amazônicas
Introdução
O ato de rezar está associado a uma evocação, uma petição revestida de
rituais, no caso das rezadeiras, temos elementos da pajelança indígena, cultura
afro brasileira (umbanda, candomblés e xangôs) associadas às orações e santos do
catolicismo devocional (Prandi, 2004:146-159). Durante desenvolvimento da
pesquisa de campo verifiquei a existência de rezadeiras oriundas de vários estados
do nordeste, como, Maranhão, Ceará e Paraíba, além das rezadoras locais. Esses
sujeitos históricos construíram representações identitárias através da bagagem
cultural acumulada em seus locais de origem, adquiridos através de saberes orais.
Essas narrativas descrevem as curandeiras, não apenas como gênero majoritário
na prática da cura no cenário de Capanema2, mas tangenciam para um diálogo
entre experiências religiosas que acenam para o cotidiano das relações familiares,
do trabalho agrícola e doméstico.
Essas mulheres explicavam suas histórias de vida e práticas de reza
mediante o contato com as entidades ou encantados da floresta, que através de
1
Doutorando em Antropologia Social (PPGA/UFPA). Líder do Grupo Estudos Culturais na Amazônia
(GECA/CNPq/UFPA); Assessor especial no Arquivo Público do Estado do Pará (APEP/SECULT);
Professor Adjunto na Universidade da Amazônia. Este texto foi pensado como atividade parcial para
obtenção de conceito na disciplina Teoria Antropológica Contemporânea, ministrada pela Drª Cristina
Donza Cancela. Email: prof-jeronimo@hotmail.com
2
A cidade de Capanema está localizada no nordeste Paraense, na microrregião Bragantina, têm relações
limítrofes com Traquateua, Maracanã, Salinópolis, Bragança, Peixe-Boi e Ourém, tendo distância em
linha reta de Belém o equivalente a 160 km pela rodovia BR 316. Abrange uma área de 614, 026 km²,
população de 63. 628 hab. Densidade de 103,62 hab./km², um clima equatorial úmido, atualmente uma
vegetação voltada para a criação de gado e agricultura. IBGE. Enciclopédia dos municípios Brasileiros.
Capanema-PA.
1
possessões, “atuações”, visões, desmaios e diversas outras formas de sofrimento
adquiriram a capacidade para realizar rezas, curas, benzeções ou partos. A
existência desse panteão cosmológico foi denominada genericamente por Prandi
(2004:7-9) de “Religião Brasileira dos Encantados”.3
O poder de rezar é um dom, mas a pluralidade de experiências que levam
as benzedeiras4 a “desenvolver” o ofício é múltipla. Segundo Trindade (2008), os
rituais de iniciação, aceitação e aprendizado depende da forma como os encantados
se apresentam: ataques, ameaças ou equilíbrio e harmonia, onde cabe ressaltar o
papel da comunidade na elaboração social da vocação xamânica de laços e níveis
de hierarquia diferenciados – proteção, medo, preconceito, respeito – no trato
dessas mulheres, reforçando estrategicamente o papel social, já notado por Lewis
(1971) e Figueiredo (1979).
Muitas rezadeiras afirmaram que, na maioria dos casos, só conseguem
desenvolver o dom de rezar graças à ajuda de velhos rezadores e experientes, isto
é, homens/mulheres dotados dos saberes da floresta e poderes de comunicação
com o reino das encantarias. Vamos acompanhar a narrativa de uma rezadeira em
particular que fora iniciada dessa forma e atribui aos rezadores “experientes” a
capacidade de interpretar e mediar à inserção dos iniciados em práticas religiosas
diversas.
Pretendo problematizar as questões evocadas acima, questionando,
sobretudo, a minha presença na casa de D. Fátima como aspecto contíguo à voz da
narradora. Seguindo o pressuposto de Crapanzano (1991: 62-63) percebemos que
uma conversa não se trata de simples troca de informação, nem tão pouco do ato
de ouvir/falar alternadamente, mas exige o entendimento de “um” com o “outro”
no manuseio da percepção tematizada, criando, não um ambiente de concordância
ou confronto de ideias e sim um espaço engajado de criação.
Nas trilhas apontadas por Clifford (1998) considero que, se inicialmente as
experiências agregadas na pesquisa de campo – vozes, gestos, ambientes,
memórias e afetividades – desvelam campos múltiplos de interpretação cultural
entre o pesquisador e suas alteridades, esta vive o drama de, ao traduzir o diálogo
com o outro para a linguagem textual, emergem outras vozes, relações de poder,
3
Para o caso Amazônico, Maués (1990: 196) define os encantados como “seres que normalmente
permanecem invisíveis aos nossos olhos, mas não se confundem com espíritos, manifestando-se de modo
visível sob forma humana ou de animais e fazendo sentir sua presença através de vozes e outros sinais
(como o apito do curupira, por exemplo). Além disso, incorporam-se nos pajés e nas pessoas que tem o
dom para pajelança. Entre os encantados, os do fundo são muito mais significativos para os habitantes da
região. Habitam nos rios e Igarapés, nos lugares encantados onde existem pedras, águas profundas
(fundões) e praias de areia, em cidades subterrâneas e subaquáticas, sendo chamado de encante o seu
lugar de morada”
4
Termos como “rezadeira”, “benzedeira” ou “puxadora de criança” são descritos alternadamente pelos
narradores locais, sem especificidade alguma. Adoto a mesma perspectiva.
2
e, eventualmente, a recepção do leitor – tirano e fonte de inspiração irresistível da
intencionalidade que sombreia o pesquisador.
Reconhecer que a presença e voz do pesquisador provocam e produzem,
simultaneamente, imagens e recortes na textualização da pesquisa, inaugura, para
Clifford, o dilema de, no ato da escrita, fragilizar formas de autoridade. O texto que
segue, de certa forma, alimenta essa pretensão.
3
Estávamos calados, mas a sala continuava com muito barulho, os
equipamentos da borracharia e as conversas do lado de fora, contrastavam com o
nosso silêncio. Muito embora, com o passar do tempo tive a impressão de que as
sonoridades eram um componente rítmico de nossas vozes. Disse não ter muito a
contar, e que estava com pouco tempo. Por isso, ia me responder algumas dúvidas,
mas nada de demorado. Perguntei se podia voltar depois, ela fez sinal negativo
com a cabeça emitiu secamente um “Melhor não...”. Resolvi então aproveitar a
“meia horinha”, que tinha me oferecido. Inicialmente estávamos bastante tensos.
Como é possível constatar acima, creio que alimentava receio diante da imagem
negativa que teria a seu respeito.
Ameaçada, utilizou o silêncio e com relutância escapou para outros assuntos
aparentemente sem importância, talvez como estratégia de defesa. Ao mesmo
tempo em que mantive o respeito, convertendo o silêncio como parte da narrativa,
pensando sobre a importância do pesquisador de história oral não ser apenas um
ouvinte, mas aprendiz de vozes silenciosas (Portelli, 1997:22). Também,
estrategicamente, enveredei por temas que pudessem convergir à temática de meu
interesse, como saúde e memórias de infância.
Dona Fátima esperou apenas pelas primeiras perguntas, depois, começou a
falar aleatoriamente sobre vários assuntos. Tentei ordenar, sequenciar por meio de
perguntas, mas ignorando a maior parte das intervenções, narrou como se
estivesse “descarregando” as situações vividas. Passei então a ouvir e, quando
possível, perguntar, questionar ou reforçar algumas experiências:
Professor, num acredito muito nessas reza que faço não, sabe!? Faço
porque pedem, mas num levo muito a sério não (risos), sou católica,
sirvo a Deus, acredito nos santos, principalmente Nossa Senhora de
Nazaré. Acho que esse mundo é só ilusão, o mundo de verdade mesmo
é o espiritual, por isso me apego em Deus. Sabe, eu num curo, não faço
nada, é Deus que faz. Eu falo pro povo que bate na minha porta: Vou
rezar, se der certo bem, se não... Fazer o quê, né? Outra coisa, não
incorporo espírito, nem caboclo e oiara, não tomo cachaça nem faço
adivinhação.
(D. Fátima, entrevista realizada em Outubro de 2011)
4
mesmo esta não sendo consumida em certas ocasiões5. No entanto, a apreciação
de bebidas foi adotada no imaginário popular como sinal dessas crenças. Assim
como a adivinhação, amplamente divulgada e igualmente procurada por populares,
porém, jamais assumida por essas pessoas, bem como pela maioria dos próprios
“adivinhos”.
A tentativa desesperada de organizar as narrativas da rezadeira esteve
atrelada a pretensão de estabelecer recortes de acordo com o contexto da
pesquisa. Recordo atualmente que ignorei, por exemplo, como D. Fátima
apresentou afetividades distintas ao recordar preconceitos religiosos em tempos
diversos: a zombaria de outras crianças, na infância, em tom humorístico; na
juventude com melancolia e aqueles vivenciados na vida adulta, com rispidez e
sarcasmo. Obviamente ao ignorar essa multiplicidade de afetos, creio ter perdido a
oportunidade de compreender a forma com que D. Fátima se relacionou com o ato
de rezar em sua história de vida. Resultado da apropriação tanto da palavra como
da contextualização da pesquisa, Crapanzano (1991: 76,79) alerta que, apesar do
pesquisador amordaçar o seu recorte temático na “tirania da citação”, a este lhe
escapa um domínio irrestrito, pois “qualquer que seja a resistência daqueles com
quem conversamos, eles sempre são um pouco nossa criação, assim como nós
somos a deles”.
Com o passar do tempo a rezadeira pareceu relaxar e durante uma fala
levantou-se. Ao voltar disse que tinha ido diminuir o fogo do fogão para não
“queimar tudo”. A forma rápida com que retornou da cozinha, retomando
automaticamente o fio da narração, demonstra como a benzedeira estava imersa
nos domínios da memória, priorizando este momento em detrimento de outros
afazeres.
Hoje eu quase num rezo mais, às vezes um e outro vem e diz: “D.
Fátima reza aqui, reza ali, tira um quebranto, uma crista de galo”, [...]
mau olhado, bruxarias, essas coisas de espírito desgraçado... Do diabo
mesmo, né? Pelo amor de Deus! Por Nossa Senhora! Eu tinha sossego,
não. Era dia e noite, um amontoado de povo na minha calçada querendo
reza. Muitos anos de aperreio... Esses municípios tudinho, tudinho... Era
só afobação.
(D. Fátima, depoimento citado)
5
As práticas de pajelança, benzeduras ou reza, dependendo do local e dos saberes das populações
amazônicas adquirem particularidades. Um exemplo é o consumo de chás, caldos e em determinadas
comunidades, bebidas alcoólicas nos rituais de cura. Em diversas religiões o consumo de bebidas
(alcoólicas ou não) é um componente ritualístico poderoso “uma das principais características da
barquinha é o uso da ayahuasca, denominada localmente de Daime, como uma bebida típica de índios
amazônicos que teve seu uso difundido entre seringueiros e hoje é consumida em diversas religiosidades
conforme assevera Mercante (1980: 48). A esse respeito, em conversa informal, o Antropólogo Heraldo
Maués define que consumo de bebidas nos rituais religiosos pode ser conceituado como “Empeógenas”
ou “Deus dentro”; a fim de percebermos que o uso do vinho na eucaristia católica e em determinadas
religiões protestantes também comungam dessa definição.
5
A Recordação do sofrimento ao atender tantas pessoas oriundas de vários
municípios, o aglomerado nas calçadas são imagens que não apenas sintetizam a
“época de aperreio” como convivem com a representação de “feiticeira” e “pajé”. O
reconhecimento social e a conversão de olhares e interesses em suas rezas
agregam, portanto, relações identitárias que dissolvem a compartimentação entre
individual e coletivo. Isso explicar, em parte, a construção do argumento de que
“só reza por causa do povo”, pois durante muito tempo juntavam-se na porta de
sua casa.
6
da imaginação”, no “mundo de sombras”, denominado por Crapanzano (2005) de
“cena”; isto é, um episódio originado em dramas interlocutórios, onde a
subjetividade vive a metáfora do ator na peça de teatro: a percepção da existência
do público pelo ator oscila ante o aspecto “interno” da própria cena.
As memórias de infância são abandonadas por um tempo associado a
“doenças inexplicáveis”, desmaios e pesadelos diversos, descritos pela narradora
como parte do gradativo processo de desenvolvimento do dom:
Mas o brabo mesmo na minha vida começou lá pelos vinte dois, vinte
três anos. Era casado novo – meu marido era um homem muito bom,
Deus me deu de presente, paciente, aguentou muita coisa, muita
doidice minha – tinha dois filhos, aí eu vi o inferno. De um dia pro outro
comecei a ter pesadelo, desmaiava todo dia, parecia o Cão! De dia só
dava tempo de dá de comer pros meus filhos, depois caí mesmo, minha
mãe me acudiu muito. Tinha moleza no corpo, preguiça braba, fartio,
tava seca em vida, tava morrendo viva... Às vezes parecia que saia de
mim [do próprio corpo] na calada da noite, sonhava com coisa do nosso
mundo e do mundo da banda de lá. O povo da antiga dizia que era os
encanti, né? Sei não! Os filhos perambulando pela casa tudo sujo,
maltratado, ficava no fundo do quintal de coca olhando pro tempo.
Marido chegava hum... Não tinha nada feito pra ele, comida, roupa,
nada... Nem sossego pro pobre.
(D. Fátima, depoimento citado)
Dona Fátima é uma rezadeira que tem experiências com visões, presságios,
experiências com espíritos de noite, andanças nos cemitérios e idas a outros
mundos. Experiências religiosas envolvendo sonhos, transes, visões e sentimentos
de isolamento indicam, no caso de êxtases xamânicos, a possibilidades que essas
forças – os encantados no contexto Amazônico – têm ao transportar certas pessoas
para o seu mundo, a exemplo da iniciação e hierarquia de Mestres na pajelança
marajoara, descritos por Cavalcante (2008) e representações de reinos aquáticos
presentes no imaginário de literatos paraenses, estudados por Figueiredo (2008).
A preocupação com a família foi constante em suas narrativas, o ser
rezadeira é um desdobramento do “ser mãe” e “ser esposa”, os papéis sociais se
imiscuíam, intensificando as preocupações. Como não conseguia desempenhar as
atividades domésticas e não cuidava dos filhos, o fundo do quintal era o único lugar
que buscava, afirma que ficava olhando para a mata, não conseguindo nem pensar
direito.
Enfatizou o distanciamento da casa, o isolamento da família, e o estado de
absorção ante o movimento das folhas nas árvores às memórias de infância. A
descrição de como brincava sozinha na mata, muitas vezes isolada da família, e de
como as folhas caíam das árvores constituíram um cenário adotado por mim como
símbolo da iniciação xamânica da benzedeira.
De noite, bem na boca da noite (madrugada) hum... O senhor não vai
acreditar; um cavalo grande passava a noite toda se esfregando na
7
parede, roçando ao redor da casa a noite toda, comendo capim sabe?!
Dava pra ouvir o barulho dele puxando capim com a boca (imita o som).
E se eu lhe disser que não tinha e nunca teve um só pé de capim no
meu quintal! Quase fico doida. Se não fosse um homem bom, tinha me
deixado, vixe! Eu via coisas, vulto... Os ventos falavam comigo.
(D. Fátima, depoimento citado)
Conforme Maués & Villacorta (2004) nas pessoas que tem o dom de viajar a
outros mundos, abre-se a possibilidade de manifestações dos encantados no espaço
físico em corpos de animais aquáticos, terrestres e aves de agouro de todo gênero.
Eliade (1960) em clássico estudo sobre xamãs na Sibéria aventava a ida desses
escolhidos a outros mundos, o céu e inferno transpareciam como locais de conflito
com entidades diversas para obtenção da cura e proteção. Estudando a cura
xamânica em São Caetano de Odivelas, Trindade (2007: 127-137) analisa
narrativas sobre encantados associados ao vento em Pajés. Em minha dissertação
de mestrado, penso D. Fátima como emblemática nesse sentido, pois apresenta,
dentre outras, fartas narrativas a respeito das experiências que intitulo de
“Encantados do Ar” (Silva, 2011).
No cercado de Zé de Deus
6
Na época um Ramal de terra batida, cercada de mata fechada localizada na estrada Capanema-Salinas.
8
A narrativa de dona Fátima é tomada por um clima de intensa agitação.
Sentada no sofá, ergue e baixa os braços como se estivesse realizando exercícios
físicos, olha para todos os lados, no intervalo das frases. O humor oscila entre
risadas e lamentações altamente melancólicas. O desempenho performático da
narradora ao reviver essas experiências é reforçado, no final, pela imagem de uma
senhora suada com respiração ofegante e fisionomia angustiada.
Particularmente a imagem de uma mulher jovem, correndo, rolando no
chão, se escondendo no meio das árvores, com vestido sujo, unhas dos pés e mão
fincadas de terra e casca de árvore, cabelos desgrenhados e vigiada pelo marido
em quase todo o percurso, despertou lembranças de experiências religiosas vividas
por mim, ainda hoje bem significativas.
Entre 15 e 17 anos de idade fui evangélico de uma Igreja Batista local,
nesse período, tanto na cidade como em comunidades mais afastadas promovíamos
os chamados “cultos de libertação”. A presença de mulheres se debatendo no chão,
homens “incorporados” passando horas em cima de árvores, foram maximizadas
pela crença de que o Diabo e seus asseclas visitavam esses corpos sob o signo de
Exu, Pomba-Gira, Caboclos, Índios mortos e assombrações diversas.
Deixando de lado a história de preconceito e demonização rememorada por
mim, em meio a práticas religiosas que, na verdade, gostaria muito de esquecer,
chamo atenção para questões que penso não sucumbir: Ao tentar compreender as
práticas culturais dessas rezadeiras, não estaria, na verdade, em busca de
redenção? Tendo em vista o passado outrora apresentado! Em perspectiva oposta,
na ânsia de descrever essas religiosidades como portadora de dinâmicas internas e
isoladas, não estaria negligenciando as representações cristãs? Será que o jovem
“exorcista” apenas mudou de ferramentas? Não duvido de que, em alguns casos, o
etnógrafo é um exorcista em potencial! (Ginzburg, 2006). E por fim, apesar do
esforço associativo entre o percurso da rezadeira na Sétima travessa e minhas
pelejas contra as “possessões diabólicas”, cabe perguntar se há algum sentido
nessa elucubração.
Talvez todas essas questões não sejam pertinentes, talvez ainda esteja sob
a batuta de todas. Ainda há a possibilidade de ter perdido a oportunidade de propor
questões, de fato relevantes. Pois, conforme atesta Tedlock (1986: 200), “as
implicações máximas do diálogo podem ser adiadas, ao se escutar às escondidas, o
discurso dos outros, mas se tal discurso vai ser traduzido e interpretado, então o
etnógrafo da fala, deverá, mais cedo ou mais tarde, se tornar um etnógrafo
falante”.
Voltemos ao encontro com Zé de Deus. Quando chegaram à vila,
perguntaram pelo rezador, as pessoas se olhavam, depois olhavam para ela toda
9
suja, cansada e todo tempo com o marido e a irmã segurando-a nos braços, então
indicaram um ramal de uns cento e vinte metros e lá no fim estava à casa do
rezador. Era um local pequeno, com paredes de barro, coberta de palha e com
muitas imagens de santos.
Ele ficou me olhando um tempo, disse pra me soltarem que eu num ia
correr não, ia ficar sentada de qualquer jeito, aí falou pro meu marido
que me acompanhava: “A doença dela não é pra doutor não, é doença
pros Santo curar, com a ajuda de S. Benedito e os incante vou tirar esse
espírito de bruxagem que fizeram pra ti menina”. Fiz quarenta dias de
reza, tomei erva e nunca, NUNCA saía de casa meio dia (12 horas) e fim
de tarde (18 horas), pois senão os bichos do vento ficam valentes de
novo. No último dia ele falou assim: “Deus te curou e S. Benedito
também, não quero nada, mas você é médium, recebe mensagem e vai
de agora em diante ajuda os outros”. Não sabia dizer nada, fiquei
olhando assim, égua! Não sei rezar direito, não entendo de remédio,
não sei de nada disso, ele só riu e disse que eu ia aprender que minha
força ia aumentar com tempo, me fez comprar baralho e tudo, não sabia
nem dobrar carta, ele teimava que ia aprender, pois bem... Assim foi.
(D. Fátima, depoimento citado)
10
uma cerca de cipó e falava: “não sai daí pra nada, se quiser saí me
chama que eu desfaço o cercado [...] se tu pular vai morrer em três
dias”. Num tinha um dia que não trabalhasse. Mesmo depois que
aprendi a rezar, ainda depois de um tempão ainda ia com ele pra
explicar os meus sonhos, sabe? Às vezes eu não dizia nada, mas era só
chegar na porta da casa que ele já abria sorriso com canto da boca
(risos), porque da outra era o cachimbo, né?
(D. Fátima, depoimento citado)
11
discorria sobre inúmeros relatos de desaparecimentos, malineza e manifestações
dos encantados, mortos-vivos e demônios. Achava curioso quando narrava enredos
semelhantes com personagens e locais distintos repetidamente, assim como, após
longas narrativas, procurava dar-lhes sentido, isto é, discorria sobre regras locais
nos horários de caça e pesca, modos de portar-se nos dias santos, lições de moral
e coisas do gênero. Certa vez levei fotos antigas da cidade e conheci outras versões
sobre a história de Capanema. O meu interesse em descrever essas situações tem
como objetivo perceber que as narrativas de D. Fátima sobre acontecimentos aqui
esquadrinhados, foram, paulatinamente, adquirindo feições que permitem abrir
outras formas compreensivas.
Um exemplo é a leitura de D. Fátima sobre a armação de cipó em formato
circular posta por Zé de Deus. No inicio interpretei a cena como uma forma de
proteção contra o assédio dos encantados, pelo menos enquanto não fosse capaz
de controlar as entidades. Em conversa realizada no início de Novembro, minha
sugestão interpretativa é questionada por outros contextos narrativos.
Ah! A história do cipó, né? Eu era teimosa demais! Ele dizia que era
porque eu não sabia o meu lugar, e como perambulava muito pelo
terreiro marcou um lugar pra mim [...] era engraçado ver que o velho
fazia isso com um cachorro que ele tinha, sabia? E não é que o pequeno
obedecia?! O senhor já viu passarinho nascido em gaiola, né? Depois de
um tempo aquilo ali é a casa dele, mesmo se sair não voa mais. Esse
cachorro levava era muita cipuada. Ele tirava os cipós dava uma peia no
bicho e depois colocava esse mesmo cipó de volta, que é pra justamente
não esquecer. Um dia eu quase levo umas também (risos), nesse dia me
disse assim: “se tu não sabe o teu lugar como é que o teu povo (os
encantados) vão saber os dele”. No inicio era um cercadinho [...] depois
foi aumentando, aumentando até que não colocou mais.
(D. Fátima, entrevista realizada em Novembro de 2011)
12
Palavras Finais
A mensagem que nomeia é percebida pela interpretação das “vozes do
vento” enquanto preço pela consolidação da identidade de ser rezadeira, isto é, não
se tratava da perda do contato com os encantados, mas de estabelecer outras
formas de comunicação. Os laços de cumplicidade do “fazer-se” dos sujeitos
históricos em questão apontavam para a afirmação das tradições, sem negar suas
(re) atualizações (Thompson, 1998).
As encantarias eram o suporte identitário, os agenciadores, modus operanti
do fazer-se dessa rezadeira. O processo “terapêutico” de reconhecimento do dom e
autocontrole deste implicou no reconhecimento de uma identidade que passa não
apenas pela iniciação nas rezas ou na aquisição dos saberes da floresta, mas
também pelos mínimos aspectos do cotidiano, dos múltiplos signos que transitam
na tessitura do “eu”
No momento do tempo passado, houve uma relação entre seu Zé de Deus,
o intérprete, e, concomitantemente, dona Fátima, que interpretava as mensagens
enunciadas por ele. Atualmente a rezadeira (re) constrói o episódio interpretando
não apenas as palavras dele, mas a relação entre ela e o rezador naquele instante.
E finalmente, a forma e o tempo como sua memória e narrativa chegam até mim,
produzem outros significados.
A consciência da narradora, isto é, a maneira de experimentar a
compreensão de si no horizonte da temporalidade tem uma relação critico-reflexiva
com elementos que, advindos da tradição e das vozes do passado, chegam até nós.
Esse movimento do discurso identitário não se fecha apenas como memória; ao
preocupar-se com o juízo que seus pares sociais pudessem ter a seu respeito,
projeta expectativas, denota um esforço titânico para recortar, transfigurar,
costurar as relações entre o aquém (passado memorial) e além (projeto rumo a
possibilidades) na comunidade (Soares, 1988).
Pretendemos através do narrar e ouvir, contextualizar essas vozes, com o
intuito de perceber os significados dados no encontro da “fusão de horizontes”
(Cardoso de Oliveira, 1997). Essa tarefa da consciência histórica é denominada de
interpretação (Gadamer, 2003:18-19). O intérprete estaria, portanto, sempre na
tensão entre o seu olhar do passado e a percepção de elementos denotativos de
uma temporalidade experimentada.
Nesse sentido, a relação mediadora e fronteiriça entre Deus, os santos e os
encantados perpassam outros pólos de tensão. Experiência individual,
transformação social e representação do mundo natural (florestas, rios, ventanias e
animais) são experiências que atravessam a percepção identitária da rezadeira, ao
13
mesmo tempo em que molda e cria sentidos na percepção do etnólogo. Dona
Fátima não “faz” apenas o seu sentido/destino na comunidade, mas, através do
poder conferido por seus pares e pelo acúmulo de sabedorias de matrizes oriundas
de tradições orais, coloca-se como portadora e responsável pela mensagem do
destino em relação ao Outro. É o discurso que anuncia, na medida e contexto que
escuta e deixa-se falar.
O sentido dado à memória narrada é uma interpretação da mensagem, um
modo particular de transmissão. Pensar narrativas, discursos e mediações na
Amazônia, significa perceber que, para além das construções exógenas, exóticas e
estereotipadas impostas pelo saber racional romanizador e/ou mercantilização de
práticas culturais, há, sem dúvida, vozes dissonantes, homens e mulheres que
entre juncos, vilas, canoas e estradas atravessadas por árvores, animais e Deuses
da floresta, pretendem conquistar o direito de voz e escuta nos espaços de
afirmação negociação e luta, onde “todo compreender acaba sendo um
compreender-se” (Gadamer, 1997: 394).
Referências:
Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, IBGE, vol. XIV, 1957, pp. 334-335-337-
339.
14
_________________ A cidade dos Encantados: Pajelança, feitiçaria e religiões
afro-brasileiras na Amazônia, Belém: EDUFPA, 2008.
15
Silva, J. S. “No Ar, na Água e na Terra”: Uma Cartografia das Identidades nas
Encantarias da Amazônia Bragantina (Capanema-PA). Dissertação de Mestrado.
UNAMA, 2011.
16
Tenda São Jorge Guerreiro: “Maria Bonita”, a mãe-de-santo, a filha, a religião e a
história.
Panorama afro-brasileiro
várias matrizes religiosas também tem linguagem própria as mais conhecidas são o ioruba,
fon e bantu. Cada região do país tem uma matriz religiosa correspondente, na Bahia o
Candomblé, no Recife e Alagoas o Xangô, no Maranhão e Pará o Tambor de Mina, e no
Rio Grande do Sul o batuque.
Candomblé
No terreiro de D. Maria Bonita pode-se notar ponto riscado3 para Oxalá – orixá
sincretizado com Jesus Cristo. As paredes internas do terreiro são cobertas de quadros de
entidades e santos católicos, tais como Indaiá (cabocla indígena), Pai João (preto velho),
Janaína (nome brasileiro de Iemanjá), Jesus, Santo Antônio, São Lázaro. No altar estão
expostas várias imagens e esculturas de gesso como a de Santo Antônio, São Jorge, Nossa
Senhora da Consolação, Bom Jesus da Lapa, Padre Cícero, Iemanjá e uma infinidade de
entidades indígenas e caboclas. Todo o altar é decorado com muitas fitas envoltas nas
imagens, bola de cristal e muitos jarros de flores. Em baixo do altar, do lado esquerdo,
discretamente, há pratos com oferendas para os Exus, e do lado direito existem oferendas
dedicadas aos encantados que não trabalham na chamada linha “negra”4. Embora os exus
sejam ali alimentados, não existem cerimon ias de consagração para eles e para as
Pombagiras, no começo do culto, algo que é característico em outras práticas afro-
brasileiras como o candomblé e a umbanda.
Também diferentemente das religiões mencionadas acima, no terreiro de D. Maria
não há rit ual de iniciação das médiuns. Conforme nos foi relatado, elas chegaram ao
terreiro através da busca pela cura ou tratamento de alguma doença e descobriram que seus
infortúnios seriam em decorrência a sua mediunidade e, portanto, para livrarem-se destes
males teriam que ‘trabalhar’ no terreiro. Já a mãe-de-santo nos relatou que fora iniciada
por Pai Denilson, no Pará. Segundo D. Maria Bonita, em seu ritual de iniciação ela teve a
cabeça raspada e sofreu várias incisões por todo o corpo, o que nos faz supor tratar-se de
um ritual do candomblé, embora a mesma não confirme.
Tambor de mina
Umbanda
Embora a umbanda tenha em sua origem uma forte contribuição do kardecismo,
doutrina que dá atenção especial à vida após a morte, onde se recebe espíritos de mortos
com o intuito de mostrar-lhes o “caminho da luz”, da transcendência, ou para estabelecer
comunicação entre os mortos e seus parentes, a umbanda, ao longo do tempo agregou
outras crenças brasileiras. De modo que no terreiro onde realizamos nossas observações, a
comunicação com os mortos não é nem de longe a principal preocupação do grupo. Ali é a
relação com os encantados que assume lugar de destaque e estes não são apenas espíritos
de pessoas mortas, mas diferentemente, possuem matéria e até podem sair da condição de
encantado. Conforme nos relata Dona Maria Bonita:
[...] Bem aqui na Pira, um homem pegou uma Mãe D’água desencantou e
casou. Ela não falava, aí disse que um dia ela teve um filho dele. Ele
matou uma galinha e passou o sangue na rede da criança, aí pegou a
menina, afirmando: - Olha eu matei. Levou a faca assim, disse que ela
gritou, os búzios caíram lá no pé dele. Elas [as mães d’água] têm os
búzios, saiu os búzios que tinha na goela dela, aí ela ficou falando. O
homem já era velho e morreu. Ela ficou. Ficou no mundo com uma
filhinha, não entrou mais na água.
A pajelança é uma herança de nossos ancestrais indígenas, mas hoje agrega tanto
características do catolicismo popular quanto de práticas africanas. É tanto uma religião
quanto uma prática terapêutica. O pajé no momento dos rituais usa como instrumentos, o
maracá, o tauari6, penacho7 e glanchamas8, bem como uma mesa rodeada de santos
católicos e entidades caboclas e indígenas. São várias as linhas de encantados e seus
encantes relacionados à pajelança, a entidade que trabalha com o pajé chama-se mestre, as
diferentes linhas são: a de água doce, salgada, das matas, dos igarapés. Eduardo Galvão
nos diz que:
os casos e as descrições dos sobrenaturais, “encantados” como os
companheiros do fundo ou os botos, bichos visagentos, currupiras e
anhangas, acentuam as concepções entre estes seres e o homem. [...] São
como que entidades protetoras que guardam a natureza contra sua
depredação pelo homem (Galvão, 1976, p. 79-80).
em outras simbologias, que aí sim se assemelham com as descritas pelos pajés estudados
por Galvão (1976).
Quem começa contando onde morava e quem eram; a avó, e a mãe de Maria
Bonita é a entidade Cabocla Aninha. A entidade disse que: Maria Bonita é natural de Serra
da Cinta no Maranhão, sua mãe é Maria Gomes e seu pai Legitimá. Ouvimos também da
própria mãe-de-santo esses dados.
Maria Bonita também é do signo de Libras. Aos quatro anos de idade já ouvia as
Mães D’águas. Morava no sertão, o sertão da casa de sua avó, pois além da narrativa de
“Aninha” (como as filhas costumam se referir a Cabocla Aninha), há também outra que ela
se refere a um sertão maior, “eu fui criadinha no sertão sem vê televisão, sem vê nada,
nada, nada. Era só coisas (encantados) que eu via”, possivelmente Maria Bonita se refere a
toda Serra da Cinta. Fugiu das ameaças do segundo marido de sua mãe, Pedro Panagá,
onde partiu para a casa da avó, Nenesia, que também sabia curar. Aos quatro anos achava
que: “se metesse o dedo dentro d’água a Mãe D’água sarava os dedos dela. Ela pensou que
ela fosse uma deusa mesmo. Mas não, elas são poderosas, mas, não são também isso tudo,
não é?” (relato contado em dia de culto por Cabocla Aninha). Aos doze anos, pagou
professores para lhe darem aula, pois, se não fosse isso teria ficado burra. Tentou fazer um
curso pela SUCAM, onde Mãe Marina já lhe puxava, mas não conseguiu trabalhar nos
navios, na Marinha, por que morava muito longe.
Maria Bonita queria ficar parecida com sua entidade espiritual, assim como outros
agentes mágico-religiosos presentes nas pesquisas de Maués e Villacorta (1998) e Rachel
Barros (2007). Mãe Marina é a chefe espiritual do terreiro São Jorge, segundo suas ordens,
Maria Bonita colocou Caboclo Sete Flechas para fora do terreiro. Maria Bonita não
construiu um salão da forma como Cabocla Jurema pediu, pois, na época as pessoas teriam
queimado o salão, isso porque o mesmo teria que ser feito de palha e de forma
arredondada, típico dos terreiros de pajelança. Cabocla Jurema não ocupa no panteon do
terreiro uma posição tão prestigiosa quanto Mãe Marina. Maria Bonita também tinha a
intenção de ir embora de Tocantinópolis, mas, Mãe Marina e os outros encantados não
deixaram. Maria Bonita brigou com um doutor do CESP chamado, Ezio. Ela era solteira e
6
tinha que criar os filhos. O doutor estava acompanhado dos colegas de profissão e amigos,
e jogou conversa naquela mulher fácil.
Maria Bonita trabalhou vendendo comida caseira e cervejas em sua casa, que era
de palha na época, isso para criar os filhos. A sua casa era frequentada por prostitutas que
tinham relações com homens casados ali mesmo, as prostitutas também eram casadas,
Maria Bonita diz que ajudou muita mulher a sair dali sem ser reconhecida. Apesar de não
vender o corpo, Maria Bonita era amiga de prostitutas. Vivia numa situação promíscua,
porque além de vender cervejas, era mãe solteira. Sabemos que no Brasil essa situação é
ainda pior, pelo fato da moral católica está arraigada em nossa cultura. O ideal do período
Colonial onde as mulheres deveriam casar-se virgens, ainda vigora na sociedade brasileira.
Ela brigou com as pessoas que não queriam que ela implantasse o terreiro, diziam
que ela teria que fazer casa pra ela e não para espirito. A mãe-de-santo nos contou que
quem é médium e não obedece ao chamado, ou morre, ou mata, fica preso ou acaba os dias
numa cadeia. D. Maria Bonita dá exemplos de pessoas que debochavam dela e que hoje
estão em más condições. Ela foi vítima de feitiço, dentro de oito dias o que era dela
acabou, foram dois, um enterrado e outro colocado em cima da casa, mas, Maria Bonita
recebeu ajuda de um baiano que segundo ela vem com mais força. Maria moeu um dos
ossos jogados em sua casa e colocou no pote onde o feiticeiro iria beber, ele bebeu, a filha
dele falou para ele pedir desculpas a mãe-de-santo, mais ele não pediu e morreu. D. Maria
exortou que o homem morreu porque bebeu demais.
Por conta de estar gravida de um filho, e a gravidez ser de risco, ou melhor, Maria
havia dado a luz a um filho, mas ao outro não, então fez uma promessa a Nossa Senhora da
Conceição. D. Maria fez a promessa mais não acreditava em espírito na época, disse que:
“se a santa fizesse o parto com segurança, ela passaria a acreditar que os espíritos
existem”. Porém, como uma mulher que já havia visto tanta coisa, não acreditava em
espirito? Maria Bonita sofreu por um tempo influência do catolicismo popular mais do que
da umbanda e da pajelança? Entretanto, D. Maria também era parteira e será que por isso
teria mais chances de receber o milagre? Não nos importamos com o que é verdade ou
mentira, segundo Leach, “as contradições são muito mais importantes do que as
uniformidades” (Leach, 1996, p. 308) o antropólogo tem que se utilizar da melhor maneira
possível dos dados que dispõem, traçando afirmações e generalizando se possível. O que
tiramos de tudo isso, é que D. Maria era uma crente descrente, vivia uma condição de
7
um feitiço para que ela perdesse ele. Tudo que ela aprendeu, ela perdeu com as
incorporações, assim como D. Maria que tem que se pinicar para saber se esta vestida.
Mas, há também o lado bom das incorporações, Pacílicia, por exemplo, quando baia
ninguém percebe que ela manca de uma perna, mas quando o santo sobe tudo volta ao
normal. A entidade comentada por D. Jesus é Zé Pelintra, ela considera-o como o seu pai,
diz que ele está assentado em Goiânia e Brasília, nesse mundo todo. Zé Pelintra segundo
Ligiéro,
corpo coberto por incisões, 21 no total, principalmente na cabeça. Mas algumas tiveram
que abdicar de suas vidas conjugais como Narcisa e De Jesus, bem como foi na Tenda São
Jorge Guerreiro que encontraram solução para as suas demandas.
o médium que cura é alguém que, na maior parte das vezes, vem do
mesmo grupo social de seu ‘cliente’, sendo capaz, portanto, de
compreender e incorporar a experiência vivida do indivíduo que a
procura. Neste sentido, pode-se dizer que a cura mágica representa, para
as camadas populares, um universo de conhecimento alternativo ao saber
médico (Montero, 1990, p.68-69).
Marcel Mauss fala que nestes casos, “é mais seguro intercambiar com os deuses,
pois, são os primeiros habitantes do mundo e também que é mais seguro não intercambiar,
caso as solicitações destes não sejam cumpridas” (Mauss, 2003, p. 206). Neste ponto cabe
expor um relato onde não houve o cumprimento da promessa oferecida ao santo. O
cavalheiro medieval Jordan-Fritiz ao ver que o filho mais novo sofria fortes dores por
causa de uma doença, resolve da água benta do relicário de São Tomás trazido por
peregrinos, o rapaz então fica curado, e o cavalheiro promete que vai em peregrinação até
o relicário, mas passam os anos e ele não vai, São Tomás até o avisa das intempéries, no
entanto, o cavalheiro não liga, daí o santo perde a paciência e mata o filho mais velho de
Jordan. Neste ponto ele resolve pagar a promessa. (BBCfour, por dentro da mente
medieval. http: //www.youtube.com/user/bleogeo/, domingo 20/ 03/2011, 13:08).
Na tenda São Jorge ocorreu o mesmo drama, notamos que Maria da Conceição até
tinha intenção de pagar uma promessa a padre Cícero. Neste caso, a mãe de Ricardo ficaria
lavando as roupas das médiuns por um bom tempo, mas passados alguns dias, aparece uma
mulher e diz que aquilo é uma besteira, pois, Maria Bonita já é rica, e não há necessidade
da mulher fazer aquele serviço. Maria da Conceição interrompe a promessa e cai em
castigo. É possuída por um espirito mal. Maria Bonita mais uma vez socorre a mulher em
apuros. Vemos então que os santos são bons, mas, devem ser retribuídos. Nas relações
sociais vê-se que a obrigação de “dar, receber e retribuir”, descrita por Marcel Mauss
(2003) no Ensaio sobre a dádiva não foi respeitado neste ponto e as pessoas antes
agraciadas com a benção dos santos agora sofrem suas punições. Para melhor entendermos
a força mágica dessa relação, ou a fé que a paciente teve em Maria Bonita utilizamos o
conceito de mana, que pode ser compreendido como uma força espiritual advinda dos
deuses a partir do bom cumprimento das prerrogativas antes salientadas, diz-se de uma
pessoa rica, inteligente que está tem mana, isso também está presente em todas as relações
sociais. A casa de D. Maria, sua oração, seu prestígio tudo isso comprova a legitimidade de
11
suas práticas, isso através do bom trato com as entidades. Vemos que algumas pessoas ao
passarem perto da casa de Maria até sentem medo, isso comprova ainda mais seu prestígio.
Agora partimos para a descrição de outras narrativas onde o bispo Dom Cornélio
é a personagem principal. Ele foi por muitos anos, padre em Tocantinópolis, ajudou a
impulsionar muitos movimentos católicos, mas neste trabalho ele aparece como santo. D.
Maria Bonita conta que numa igreja de São Sebastião; estavam ela, sua filha e a família
que criava sua filha. Ela deu a criança para adoção, no entanto, após querer se aproximar
de sua filha, o possível pai adotivo não havia deixado e pior, estava com a posse de um
revólver. D. Maria diz que depois daquele instante não viu mais nada, ou seja, ela
incorporou pela primeira vez, Mãe Marina. Todavia ainda não sabia controlar a entidade,
foi preciso que o Bispo segurasse ela e dissesse que “todos os bichos brigam por seus
filhos”, com ela não seria diferente. O bispo ainda disse que a coroa (ou crôa) de Maria
Bonita era a mesma dele. Depois o bispo aproximou a cabeça dele à de Maria tocando-a,
“chega faiscou”. Maria fala que o bispo pegou o revólver do homem e colocou em sua
batina e ainda fez com que ela voltasse a si.
Este relato além de ser surreal deve ser melhor compreendido. Por que D. Maria
fala que o bispo conhecia a coroa dela? Então o bispo conhecia Mãe Marina. Ele também
era médium? Por que D. Maria fala que o homem estava armado em plena igreja, seria este
o pai adotivo da criança em verdade, ou o revólver apenas aumentou a façanha do bispo?
Sabemos que D. Maria considera o bispo muito mais do que um homem comum, e que
estes são irmãos-de-santo, porque compartilham dos mes mos conheciment os e da mesma
madrinha espiritual. Logo depois, Maria cita outra narrativa onde o bispo aparece como
apoio na fundação do terreiro, pois, se não fosse ele “a Assembleia de Deus não teria
deixado”. D. Maria também fala que é filha do bispo e que ele antes de morrer, prometeu
que ninguém iria lhe ameaçar, nem mesmo depois de morrer. Diferente dos orixás e
encantados, o bispo não pode ser vist o depois de sua morte, apenas pode-se fazer pedidos a
ele. Mergulhamos na communitas dos relatos de D. Maria algo que está escondido e
embaralhado, também recorremos ao conceito, polissemia, para entendermos as palavras
nos seus muitos sentidos. Quem antes era irmão no santo, agora passa a ser pai, Maria
também usufrui de seu prestígio para se reafirmar enquanto agente mágico-religiosa.
Segundo Brandão “a relação que se estabelece entre a mãe-de-santo e a umbanda deve ser
relegada a segundo plano, já que esta busca na figura do bispo sua legitimação” (Brandão,
1986, p.54-55). Mas sabemos também que Maria Bonita tirou um espírito mal de um
12
Análise de ritual
Neste sistema classificatório, temos que nos ater principalmente aos símbolos que
possam ter mais de um significado. Diante dessa premissa, podemos elencar certos
elementos como: o ponto riscado, o fogo e a oração. O ponto riscado pode ser oferecido
para diferentes entidades em favor de uma cura, ou outra espécie de trabalho, no caso em
questão, o ponto foi oferecido a um Caboclo. O fogo está presente em dois momentos
nesse ritual: nas velas, que são nove e estão em cima do ponto riscado e quando é colocado
logo depois na porta dentro do salão. Segundo a doutrina, o fogo não deixa contrário
entrar. Já a oração tem seu poder efetivado quando realizada dentro do salão, pelo chefe do
terreiro. Sua efetividade fica comprometida quando uma pessoa sem fé, ou que não tenha
mediunidade execute essa ação. Como mencionamos em capítulo anterior (Santos ou não,
mas aqui estão), a força espiritual advinda da entidade, o que chamamos de mana (fazendo
alusão à significação empregada a essa palavra na literatura antropológica, principalmente
em trabalhos sobre os melanésios), pode também servir de base para o entendimento do
prestígio da mãe-de-santo para a realização de seus trabalhos.
O ponto riscado é feito a esquerda do congá, ou altar do terreiro, será que é em
respeito a Exus e Pombagiras? Mas, vimos que estas entidades não são reverenciadas no
começo do culto. São recitadas doutrinas antes e depois do ritual. É colocado fogo na porta
para afastar o mal. É preciso que o paciente também reze, não há ninguém da família do
paciente no terreiro. Para entendermos o comportamento do paciente, usamos o conceito de
magia de contágio de James Frazer, “uma coisa que em certo momento estiver ligada a
outra, e por acaso vier a ser separado mesmo assim o que for feito sobre uma afetará a outa
14
parte” (Frazer, 1982, p. 105). Neste caso o sangue do homem em questão serve para que o
ritual sirva para todos os seus.
Sabemos que é legítima a prática de Maria Bonita e de suas médiuns, pelo fato das
pessoas terem fé e acreditarem veementemente que serão curadas ou receberão a ajuda
necessária que solicitam das mesmas. Com Lévi-Strauss (2008) percebemos o quanto é
importante a “crendice” de ambas as partes envolvidas na cura: o agente mágico-religioso,
o paciente, a família do paciente e a sociedade circundante, todos tem que ter fé e acreditar
que a cura se realizará, algo que nos dizeres do antropólogo, constitui a “eficácia
simbólica”.
Notas:
1
Graduado em Ciências Sociais pela UFT de Tocantinópolis.
2
Mestre em Antropologia Social pela UFRS. Orientou a monografia que deu corpo a este artigo.
3
Desenho feito geralmente em forma de circulo, com diversas características que lembram o orixá que
se quer representar ou que se deseja invocar ou saldar. São inúmeros os pontos riscados.
4
Caracterizada por agregar entidades ditas ambíguas, que tanto podem fazer o bem quanto o mal, dependo da
solicitação de quem pede. São representantes desta linha Exus e Pombagiras que são associados aos
sentimentos promíscuos e obscenos de seus filhos. Também associados com o diabo católico.
5
Guma, principal lugar sagrado do terreiro. Lugar onde encontra-se todo o assentamento espiritual de uma
casa de mina. Também pode se referir ao salão, ou seja lugar destinado para se executar a dança ritual dos
encantados (FERRETI, 2001).
6
Líber de uma arvore da família das Lecitidáceas, utilizado para mortalha de cigarros. Apenas os pajés
utilizam cigarros enrolados em tauari. (GALVÃO, 1976, p.149)
7
Objeto feito de penas de aves, geralmente de araras que são bem coloridas. Lembra muito os rituais feitos
por alguns indígenas.
8
Faixas coloridas usadas para representar o santo respectivo do médium. É um adereço fundamental, assim
como as guias servem para identificar o médium.
9
Grande cobra encantada, que habita os rios. O nome vem da fusão do nome boi com una, de única. Maria
Bonita tem medo deste ser, pois fica muito tempo sem banhar no rio. Temos duvidas sobre isso, mas
acreditamos que deve ser porque a Boiuna estranha sua presença depois de tanto tempo sem vê-la.
10
Mas, o que dificilmente se fala é que padre Cícero não deu o título de capitão a Lampião.
Referências Bibliográficas:
BARROS, Rachel Rocha de Almeida. O filho de uma rainha – reflexões sobre
parentesco ritual e seus paralelos com a vida terrena. ICS/ UFAL, artigo, 2007.
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo: Ensaio sobre a noção de poluição e tabu. Rio de
Janeiro, Edições 70, 1991.
15
FRAZER, James George. O ramo de ouro, versão ilustrada. Tradução; Waltensir Dutra,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1982.
LEACH, Edmund. Sistemas políticos da alta Birmânia. São Paulo: Ed. da Universidade
de São Paulo, 1996.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão das trocas nas sociedades
arcaicas. Sociologia e Antropologia. Tradução; Paulo Neves. São Paulo, Cosac Naify,
2003.
MONTERO, Paula. Magia e Pensamento Mágico. São Paulo: Editora Ática, Serie
Princípios, 1990.
VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem: estudo sistemático dos ritos da porta e
da soleira, da hospitalidade, da adoção e etc.; Petrópolis: Vozes, 1976.
ZAYDAN, Alkmin. Zé Pelintra: dono da noite, rei da magia. Editora Pallas, 1992.
Tenda São Jorge Guerreiro: “Maria Bonita”, a mãe-de-santo, a filha, a
religião e a
história.
Bruno Barros dos Santos1
Cleides Antônio Amorim2
Na busca por entender o universo simbólico, material e espiritual do Outro, este
universo que é constituído pela mãe-de-santo, Maria Bonita e suas filhas-de-
santo, que
trabalham no terreiro Tenda São Jorge Guerreiro é que toda nossa investida se
faz
necessária. Nosso objetivo é entender o comportamento religioso das pessoas
da Tenda
São Jorge Guerreiro a partir do comportamento ritual que é sempre pleno de
gestos, falas,
danças, doutrinas e etc... Em outras palavras, é a partir de uma análise
comparativa que
buscaremos encontrar onde os discursos e práticas cerimoniais do mencionado
terreiro se
distanciam e se encontram com as outras religiões afro-ameríndio-brasileiras, a
fim de
descobrirmos os elos de significação que permitem que essas práticas se
comuniquem a tal
ponto que possamos classificá-las como pertencentes a um ethos geral.
Panorama afro-brasileiro
Não é nossa intenção enquadrar a manifestação religiosa das médiuns em
nenhum
tipo ideal, queremos sim, analisar os ritos e as narrativas, para que possamos
fazer um
diálogo entre as diversas práticas religiosas como o candomblé, a umbanda e o
tambor de
mina, visualizando onde as práticas de nossas entrevistadas se aproximam e
se distanciam
das mesmas. Queremos também observar o que de novo existe na prática de
nossas
entrevistadas, algo que não ocorre em nenhuma outra religião, mas temos
certeza de que
nenhuma religião hoje é pura, nem o candomblé jeje, nem a mina nagô.
Foram usadas muitas estratégias para que as religiões afro pudessem se
manter
ativas, uma dessas foi a associação de seus deuses, os orixás, com os santos
católicos, algo
que para muitos pesquisadores e mesmo sacerdotes não seria possível graças
as similitudes
arquetípicas. O sincretismo de práticas religiosas começa bem antes da
escravidão no
Brasil, entre as próprias tribos africanas aconteciam assimilações de
características
culturais. Houve uma perfeita junção das práticas de religiões afro no Brasil,
mas segundo
Prandi, “as que mais se propagaram foram as matrizes queto (ioruba) e angola
(bantu)”
(Prandi, 2001, p.2). Existem divindades para o santuário, as tarefas
domésticas, as formas
lúdicas, para a agricultura e etc. Não que isso represente um preservasionismo
maior. As
2
várias matrizes religiosas também tem linguagem própria as mais conhecidas
são o ioruba,
fon e bantu. Cada região do país tem uma matriz religiosa correspondente, na
Bahia o
Candomblé, no Recife e Alagoas o Xangô, no Maranhão e Pará o Tambor de
Mina, e no
Rio Grande do Sul o batuque.
Candomblé
No terreiro de D. Maria Bonita pode-se notar ponto riscado3 para Oxalá – orixá
sincretizado com Jesus Cristo. As paredes internas do terreiro são cobertas de
quadros de
entidades e santos católicos, tais como Indaiá (cabocla indígena), Pai João
(preto velho),
Janaína (nome brasileiro de Iemanjá), Jesus, Santo Antônio, São Lázaro. No
altar estão
expostas várias imagens e esculturas de gesso como a de Santo Antônio, São
Jorge, Nossa
Senhora da Consolação, Bom Jesus da Lapa, Padre Cícero, Iemanjá e uma
infinidade de
entidades indígenas e caboclas. Todo o altar é decorado com muitas fitas
envoltas nas
imagens, bola de cristal e muitos jarros de flores. Em baixo do altar, do lado
esquerdo,
discretamente, há pratos com oferendas para os Exus, e do lado direito existem
oferendas
dedicadas aos encantados que não trabalham na chamada linha “negra”4.
Embora os exus
sejam ali alimentados, não existem cerimonias de consagração para eles e
para as
Pombagiras, no começo do culto, algo que é característico em outras práticas
afrobrasileiras
como o candomblé e a umbanda.
Também diferentemente das religiões mencionadas acima, no terreiro de D.
Maria
não há ritual de iniciação das médiuns. Conforme nos foi relatado, elas
chegaram ao
terreiro através da busca pela cura ou tratamento de alguma doença e
descobriram que seus
infortúnios seriam em decorrência a sua mediunidade e, portanto, para
livrarem-se destes
males teriam que ‘trabalhar’ no terreiro. Já a mãe-de-santo nos relatou que fora
iniciada
por Pai Denilson, no Pará. Segundo D. Maria Bonita, em seu ritual de iniciação
ela teve a
cabeça raspada e sofreu várias incisões por todo o corpo, o que nos faz supor
tratar-se de
um ritual do candomblé, embora a mesma não confirme.
Tambor de mina
No Tambor de Mina é comum à incorporação dos encantados retratados nos
mitos, diz-se que eles não morreram, mas simplesmente se encantaram. Vale
ressaltar que
os encantados classificados como turcos não são exclusivamente desta
origem, pois
3
segundo as histórias desses encantados eles ao chegarem às terras brasileiras
entraram em
contato com índios e caboclos que os adotaram como membro de suas
famílias. Um bom
exemplo disso é Caboclo Velho, conhecido nos terreiros de mina do Maranhão
como o
mais velho índio a descer na ‘guma’5, mas que geralmente é recebido nos
terreiros quando
estes homenageiam, ou apenas cantam, para as entidades afiliadas ao Rei da
Turquia.
Também é comum ouvir das pessoas de mina que algumas entidades foram
adotadas por
Rei da Turquia devido estas terem aderido à causa moura contra os cruzados.
Exemplo
disso é a chamada Rainha Douro ou Dodô, que no Maranhão é associada à
Joana D´Arc e
no terreiro que estudamos é chamada de Mãe Marina. Segundo D. Maria
Bonita, Mãe
Marina teria trabalhado nos navios negreiros e lutado na guerra vestida de
homem. Assim
sendo, D. Maria associa Mãe Marina à santa católica Joana D’Arc.
Umbanda
Embora a umbanda tenha em sua origem uma forte contribuição do
kardecismo,
doutrina que dá atenção especial à vida após a morte, onde se recebe espíritos
de mortos
com o intuito de mostrar-lhes o “caminho da luz”, da transcendência, ou para
estabelecer
comunicação entre os mortos e seus parentes, a umbanda, ao longo do tempo
agregou
outras crenças brasileiras. De modo que no terreiro onde realizamos nossas
observações, a
comunicação com os mortos não é nem de longe a principal preocupação do
grupo. Ali é a
relação com os encantados que assume lugar de destaque e estes não são
apenas espíritos
de pessoas mortas, mas diferentemente, possuem matéria e até podem sair da
condição de
encantado. Conforme nos relata Dona Maria Bonita:
[...] Bem aqui na Pira, um homem pegou uma Mãe D’água desencantou e
casou. Ela não falava, aí disse que um dia ela teve um filho dele. Ele
matou uma galinha e passou o sangue na rede da criança, aí pegou a
menina, afirmando: - Olha eu matei. Levou a faca assim, disse que ela
gritou, os búzios caíram lá no pé dele. Elas [as mães d’água] têm os
búzios, saiu os búzios que tinha na goela dela, aí ela ficou falando. O
homem já era velho e morreu. Ela ficou. Ficou no mundo com uma
filhinha, não entrou mais na água.
Este relato contado por Maria Bonita demonstra qual a importância e a
significação empregada em relação aos encantados, a proximidade se faz
notar muito mais
do que em outras religiões aqui descritas. Mas sabemos também que essas
entidades do
relato podem incorporar e, conforme D. Maria, só incorporam as encantadas
mais velhas.
Pajelança
4
A pajelança é uma herança de nossos ancestrais indígenas, mas hoje agrega
tanto
características do catolicismo popular quanto de práticas africanas. É tanto
uma religião
quanto uma prática terapêutica. O pajé no momento dos rituais usa como
instrumentos, o
maracá, o tauari6, penacho7 e glanchamas8, bem como uma mesa rodeada de
santos
católicos e entidades caboclas e indígenas. São várias as linhas de encantados
e seus
encantes relacionados à pajelança, a entidade que trabalha com o pajé chama-
se mestre, as
diferentes linhas são: a de água doce, salgada, das matas, dos igarapés.
Eduardo Galvão
nos diz que:
os casos e as descrições dos sobrenaturais, “encantados” como os
companheiros do fundo ou os botos, bichos visagentos, currupiras e
anhangas, acentuam as concepções entre estes seres e o homem. [...] São
como que entidades protetoras que guardam a natureza contra sua
depredação pelo homem (Galvão, 1976, p. 79-80).
As práticas africanas de pajelança são tidas por pesquisadores como uma
representação da pajelança indígena e não uma herança dos mesmos. Muitos
curadores
foram perseguidos e presos, por conta de suas práticas, uma das
características mais
perseguidas foram às possessões, muitos curadores se tornaram umbandistas
por conta
disso. Nina Rodrigues (2008) foi um dos pesquisadores que ajudou a diminuir
esse
preconceito, apesar de explicar o transe a partir de um viés médico, para ele a
possessão
era um sonambulismo provocado.
As semelhanças com a pajelança indígena ou africana são grandes em relação
às
práticas das filhas-de-santo da Tenda São Jorge Guerreiro. No princípio de
suas práticas
Maria Bonita também utilizava uma mesinha onde colocava os santos e
praticava suas
rezas, viajava para as localidades com essa mesa, isso antes de construir o
salão. A mãe-desanto
também nos conta do receio que tem quando passa muito tempo sem ir tomar
banho
no rio, isso por que ela tem medo da Boiuna9, e dos males provocados por ela.
Maria
Bonita também nos contou sobre o Boto que tem relações com outra mãe-de-
santo de
Tocantinópolis, relações essas que não se assemelham com a descrita por
Galvão (1976),
tendo em vista que a relação entre o Boto e a mãe-de-santo do relato de Maria
Bonita é de
cunho sexual e ela não nos conta nenhum mal provocado por isso. Ainda
segundo Maria
Bonita, a mãe-de-santo em questão é empautada com o Boto. Não sabemos se
o relato
descrito por Maria Bonita é pejorativo, isto é, que tenta atingir as práticas da
outra agente,
ou se apenas ela está chamando atenção para algo que lhe surpreendeu, o
que importa notar
é que D. Maria vive em um universo cosmológico próprio e suas interpretações
se baseiam
5
em outras simbologias, que aí sim se assemelham com as descritas pelos
pajés estudados
por Galvão (1976).
Estórias da vida de Maria Bonita, ouvidas dos encantados, das filhas-de-
santo e da
própria
Quem começa contando onde morava e quem eram; a avó, e a mãe de Maria
Bonita é a entidade Cabocla Aninha. A entidade disse que: Maria Bonita é
natural de Serra
da Cinta no Maranhão, sua mãe é Maria Gomes e seu pai Legitimá. Ouvimos
também da
própria mãe-de-santo esses dados.
Maria Bonita também é do signo de Libras. Aos quatro anos de idade já ouvia
as
Mães D’águas. Morava no sertão, o sertão da casa de sua avó, pois além da
narrativa de
“Aninha” (como as filhas costumam se referir a Cabocla Aninha), há também
outra que ela
se refere a um sertão maior, “eu fui criadinha no sertão sem vê televisão, sem
vê nada,
nada, nada. Era só coisas (encantados) que eu via”, possivelmente Maria
Bonita se refere a
toda Serra da Cinta. Fugiu das ameaças do segundo marido de sua mãe,
Pedro Panagá,
onde partiu para a casa da avó, Nenesia, que também sabia curar. Aos quatro
anos achava
que: “se metesse o dedo dentro d’água a Mãe D’água sarava os dedos dela.
Ela pensou que
ela fosse uma deusa mesmo. Mas não, elas são poderosas, mas, não são
também isso tudo,
não é?” (relato contado em dia de culto por Cabocla Aninha). Aos doze anos,
pagou
professores para lhe darem aula, pois, se não fosse isso teria ficado burra.
Tentou fazer um
curso pela SUCAM, onde Mãe Marina já lhe puxava, mas não conseguiu
trabalhar nos
navios, na Marinha, por que morava muito longe.
Maria Bonita queria ficar parecida com sua entidade espiritual, assim como
outros
agentes mágico-religiosos presentes nas pesquisas de Maués e Villacorta
(1998) e Rachel
Barros (2007). Mãe Marina é a chefe espiritual do terreiro São Jorge, segundo
suas ordens,
Maria Bonita colocou Caboclo Sete Flechas para fora do terreiro. Maria Bonita
não
construiu um salão da forma como Cabocla Jurema pediu, pois, na época as
pessoas teriam
queimado o salão, isso porque o mesmo teria que ser feito de palha e de forma
arredondada, típico dos terreiros de pajelança. Cabocla Jurema não ocupa no
panteon do
terreiro uma posição tão prestigiosa quanto Mãe Marina. Maria Bonita também
tinha a
intenção de ir embora de Tocantinópolis, mas, Mãe Marina e os outros
encantados não
deixaram. Maria Bonita brigou com um doutor do CESP chamado, Ezio. Ela era
solteira e
6
tinha que criar os filhos. O doutor estava acompanhado dos colegas de
profissão e amigos,
e jogou conversa naquela mulher fácil.
Maria Bonita trabalhou vendendo comida caseira e cervejas em sua casa, que
era
de palha na época, isso para criar os filhos. A sua casa era frequentada por
prostitutas que
tinham relações com homens casados ali mesmo, as prostitutas também eram
casadas,
Maria Bonita diz que ajudou muita mulher a sair dali sem ser reconhecida.
Apesar de não
vender o corpo, Maria Bonita era amiga de prostitutas. Vivia numa situação
promíscua,
porque além de vender cervejas, era mãe solteira. Sabemos que no Brasil essa
situação é
ainda pior, pelo fato da moral católica está arraigada em nossa cultura. O ideal
do período
Colonial onde as mulheres deveriam casar-se virgens, ainda vigora na
sociedade brasileira.
Ela brigou com as pessoas que não queriam que ela implantasse o terreiro,
diziam
que ela teria que fazer casa pra ela e não para espirito. A mãe-de-santo nos
contou que
quem é médium e não obedece ao chamado, ou morre, ou mata, fica preso ou
acaba os dias
numa cadeia. D. Maria Bonita dá exemplos de pessoas que debochavam dela
e que hoje
estão em más condições. Ela foi vítima de feitiço, dentro de oito dias o que era
dela
acabou, foram dois, um enterrado e outro colocado em cima da casa, mas,
Maria Bonita
recebeu ajuda de um baiano que segundo ela vem com mais força. Maria moeu
um dos
ossos jogados em sua casa e colocou no pote onde o feiticeiro iria beber, ele
bebeu, a filha
dele falou para ele pedir desculpas a mãe-de-santo, mais ele não pediu e
morreu. D. Maria
exortou que o homem morreu porque bebeu demais.
Por conta de estar gravida de um filho, e a gravidez ser de risco, ou melhor,
Maria
havia dado a luz a um filho, mas ao outro não, então fez uma promessa a
Nossa Senhora da
Conceição. D. Maria fez a promessa mais não acreditava em espírito na época,
disse que:
“se a santa fizesse o parto com segurança, ela passaria a acreditar que os
espíritos
existem”. Porém, como uma mulher que já havia visto tanta coisa, não
acreditava em
espirito? Maria Bonita sofreu por um tempo influência do catolicismo popular
mais do que
da umbanda e da pajelança? Entretanto, D. Maria também era parteira e será
que por isso
teria mais chances de receber o milagre? Não nos importamos com o que é
verdade ou
mentira, segundo Leach, “as contradições são muito mais importantes do que
as
uniformidades” (Leach, 1996, p. 308) o antropólogo tem que se utilizar da
melhor maneira
possível dos dados que dispõem, traçando afirmações e generalizando se
possível. O que
tiramos de tudo isso, é que D. Maria era uma crente descrente, vivia uma
condição de
7
promiscuidade, ou seja, na religião, era chamada de feiticeira, macumbeira e
pajoa, e fora
dela, era chamada de prostituta, mulher fácil.
Relatos que tratam dos encantados e das filhas-de-santo
Colocamos os relatos das filhas com os encantados porque estão
entrelaçados. A
primeira filha-de-santo descrita por nós é Pacílicia também conhecida como
Cílicia.
Natural de Caxias no Maranhão, mas que morou em Vitorino Freire, morou
ainda em
Mearim. Passou algum tempo em um sitio chamado Lago da Pedra, em
Muncuiba e em
Paulo Ramos, até que em 8 de dezembro de 1978 veio para Tocantinópolis.
Tem um filho,
já trabalhou de lavadeira e vendedora de feira. Descobriu que tinha
mediunidade com
quarenta e poucos anos. Pacílicia conta que desde novinha, via uma mulher
morena de
cabelo longo. Depois de algum tempo ela descobriu que a mulher se tratava na
verdade de
uma Mãe D’água. Todo dia de tardizinha a menina (Pacílicia) ia pescar no rio
Mearim, e
via a Mãe D’água, certa vez ela pensou em presentear a Mãe D’água com
legumes e
hortaliças, pois, sabia que não teria condição daquela mulher (Mãe D’água)
criar tais
alimentos dentro d’água, no entanto, ela queria algo em troca, que seria os
peixes. Nesse
momento estabelece-se a troca, a dádiva e a contra dádiva, Pacílicia ia
presentear mais
queria algo em troca, é o “dar, receber e retribuir” clássico de Marcel Mauss
(2003).
Pacílicia conta que as Mães D’água moram numa loca de pedra. Maria Bonita
afirma que “elas” são crianças que jogaram na água, afirma também que elas
podem se
desencantar e que quem faz uma pauta com elas fica rico. Pacílicia conta
também
narrativas sobre os Légua-Bogis que também teriam se encantado numa loca
de pedra, na
época do Dilúvio Bíblico. As duas narrativas tem pontos em comum, pois as
Mães D’água
mais velhas também teriam vivido na época do Diluvio. Hoje algumas Mães
D’água
incorporam, mas, só as mais velhas. Já os Légua-Bogis, são muitos os que
incorporam na
tenda São Jorge Guerreiro. Segundo Mundicarmo Ferreti, “Légua-Bogi é um
preto-velho, a
mais velha entidade a vir ao mundo” (Ferreti, 2001, p. 163)
De Jesus, também filha-de-santo, mora em Araguaína, começou a frequentar o
terreiro com 37 anos, hoje ela tem 78 anos. É prima de Maria Bonita. Ela está
com Maria
Bonita muito antes da mãe da mesma morrer. Raimunda Assunção dos Santos
é o nome de
D. Jesus. Ela fala que nasceu crua no espírito, porque nasceu de bruços, todo
homem nasce
de bruços. E ela nasceu que nem um homem. Fala também que sofreu por
conta de sua
mediunidade, perdeu seu marido por conta da religião, porém, afirma também
que foi feito
8
um feitiço para que ela perdesse ele. Tudo que ela aprendeu, ela perdeu com
as
incorporações, assim como D. Maria que tem que se pinicar para saber se esta
vestida.
Mas, há também o lado bom das incorporações, Pacílicia, por exemplo, quando
baia
ninguém percebe que ela manca de uma perna, mas quando o santo sobe tudo
volta ao
normal. A entidade comentada por D. Jesus é Zé Pelintra, ela considera-o
como o seu pai,
diz que ele está assentado em Goiânia e Brasília, nesse mundo todo. Zé
Pelintra segundo
Ligiéro,
se faz justiceiro a sua maneira, ajudando de graça os excluídos de nossa
sociedade, é aliado com os caboclos harmonizados às forcas da natureza,
é herdeiro de pajés e catimbozeiros, que usam as folhas para tratar as
doenças, e ajudar os doentes e necessitados. (Ligiéro, 2004, p.22)
Zé Pelintra também, “agrega a figura do bom malandro aquele que em vida
provocou amor e ódio nas pessoas e hoje vem para atender quem lhe procura,
mediante
oferendas” (Zaydan, 1993, p.2).
Narcisa é a mais velha filha-de-santo de Maria Bonita, nasceu em Canto do
Buriti
no Piauí. Passou a frequentar o terreiro quando sua filha estava doente. Ela
sabia que
também teria que trabalhar, porque tem uma crôa como toda médium. Tem um
filho que
mora em Araguaína, que é protestante, dentre outros. Maria Antônia sua filha
que ela
acompanhou em outros terreiros, só veio encontrar a cura na Tenda São Jorge,
com a ajuda
da Cabocla Aninha. “Aninha” ajudou Antônia a ficar boa. Mãe Marina nos
contou uma
narrativa onde um homem ao não respeitar o dia desta santa teve a vida
ceifada, uma
árvore que estava em sua terra, veio a quebrar uma lasca e atravessou o
homem, entretanto,
Aninha ajudou a criar os filhos dele, a lasca daquele dia em diante passou a ser
considerada
milagrosa. Antônia filha de Narcisa, desde nova benze e trata de quebranto,
arca-caída
dente outros males, muitas mães trazem seus filhos para serem tratados por
ela.
Maria Antônia é natural de Teresina no Piauí. Narcisa fala que sua filha entrou
nos trabalhos pela dor, por causa da doença, já ela entrou por amor, porque
realmente gosta
da religião. Cabocla Aninha é considerada a filha de Maria, já que não teve
apenas Jesus
ele era somente seu primogênito e ainda porque Maria é considerada mãe de
todos os
cristãos. Em suma, na tenda São Jorge Guerreiro não existe ritual de iniciação,
assim como
no sentido de ritos de passagem, trabalhado por Van Gennep (1977). As filhas-
de-santo
entraram no salão por conta de doenças, não fizeram raspagem de cabeça,
como no
candomblé e nem foi derramado sobre elas sangue sacrificial de animais, nem
tiveram o
9
corpo coberto por incisões, 21 no total, principalmente na cabeça. Mas algumas
tiveram
que abdicar de suas vidas conjugais como Narcisa e De Jesus, bem como foi
na Tenda São
Jorge Guerreiro que encontraram solução para as suas demandas.
Santos ou não, mas aqui estão
Esta parte do trabalho é fruto de entrevistas com D. Maria Bonita. Apesar de no
seu terreiro haver uma adoração a entidades como: caboclos, orixás, princesas
entre outros,
neste momento abriremos espaço para os santos católicos, pelo menos na
concepção de
nossas entrevistadas. O primeiro “santo católico”, padre que aparece em nosso
trabalho é o
padre Cícero, que nasceu em Crato-CE em 3 março de 1844. Lutou junto aos
cangaceiros
para defender Juazeiro contra a força oficial10. Durante uma missa, uma beata
teria ingerido
uma hóstia e está se converterá em sangue. Todavia, o próprio padre Cícero
teria duvidado
do milagre. Os boatos chegaram ao Vaticano e após muitos anos de
investigação não
deram a Cícero a beatificação. Mas, sabemos que santo ou não, o padre
Cícero é adorado
por grande parte da população brasileira.
Na tenda São Jorge Guerreiro ele apareceu a um rapaz que foi vítima de
acidente
automobilístico. Segundo os médicos, a situação do rapaz era crítica tanto que,
ele foi
despachado pelos mesmos. A mãe de Ricardo, Maria da Conceição, então
trouxe o rapaz
para a casa de Maria Bonita. “Ele estava só roncando” (dando os últimos
suspiros) como
relata a mãe-de-santo. D. Maria Bonita rezou e a pedido de Maria da
Conceição, ofereceu
as orações para padre Cícero, passados uma semana, a mãe de Ricardo disse
que ia até sua
casa, então Maria ficou sozinha cuidando do rapaz, ela sentiu vontade de ir ao
banheiro, e
no momento que retornou o rapaz já não estava mais no colchão “quem nem
mexia”. D.
Maria se dirigiu para o salão e lá estava Ricardo, conversando com alguém,
Maria diz que:
“a pessoa que conversava com ele tem a voz grossa”. D. Maria ouve da pessoa
que é para o
rapaz fazer assim com a mão, uma espécie de prece. Então quando a
“entidade” vai
embora, Maria pergunta a Ricardo: “quem era que estava conversando com
você?”.
Ricardo diz que foi o padre Cícero, que ele veio mesmo visitar ele, então o
rapaz apresenta
melhoras, e Maria agradece a presença do santo em sua humilde casa.
Através de uma leitura mais aprofundada, vemos que a medicina alopática não
teve subsídios para curar o rapaz em questão, pois, a cura não se restringia ao
plano
10
material. Neste momento abre-se uma brecha para a intervenção da
curandeira/benzedeira,
que segundo Paula Monteiro,
o médium que cura é alguém que, na maior parte das vezes, vem do
mesmo grupo social de seu ‘cliente’, sendo capaz, portanto, de
compreender e incorporar a experiência vivida do indivíduo que a
procura. Neste sentido, pode-se dizer que a cura mágica representa, para
as camadas populares, um universo de conhecimento alternativo ao saber
médico (Montero, 1990, p.68-69).
Marcel Mauss fala que nestes casos, “é mais seguro intercambiar com os
deuses,
pois, são os primeiros habitantes do mundo e também que é mais seguro não
intercambiar,
caso as solicitações destes não sejam cumpridas” (Mauss, 2003, p. 206). Neste
ponto cabe
expor um relato onde não houve o cumprimento da promessa oferecida ao
santo. O
cavalheiro medieval Jordan-Fritiz ao ver que o filho mais novo sofria fortes
dores por
causa de uma doença, resolve da água benta do relicário de São Tomás
trazido por
peregrinos, o rapaz então fica curado, e o cavalheiro promete que vai em
peregrinação até
o relicário, mas passam os anos e ele não vai, São Tomás até o avisa das
intempéries, no
entanto, o cavalheiro não liga, daí o santo perde a paciência e mata o filho mais
velho de
Jordan. Neste ponto ele resolve pagar a promessa. (BBCfour, por dentro da
mente
medieval. http: //www.youtube.com/user/bleogeo/, domingo 20/ 03/2011,
13:08).
Na tenda São Jorge ocorreu o mesmo drama, notamos que Maria da
Conceição até
tinha intenção de pagar uma promessa a padre Cícero. Neste caso, a mãe de
Ricardo ficaria
lavando as roupas das médiuns por um bom tempo, mas passados alguns dias,
aparece uma
mulher e diz que aquilo é uma besteira, pois, Maria Bonita já é rica, e não há
necessidade
da mulher fazer aquele serviço. Maria da Conceição interrompe a promessa e
cai em
castigo. É possuída por um espirito mal. Maria Bonita mais uma vez socorre a
mulher em
apuros. Vemos então que os santos são bons, mas, devem ser retribuídos. Nas
relações
sociais vê-se que a obrigação de “dar, receber e retribuir”, descrita por Marcel
Mauss
(2003) no Ensaio sobre a dádiva não foi respeitado neste ponto e as pessoas
antes
agraciadas com a benção dos santos agora sofrem suas punições. Para melhor
entendermos
a força mágica dessa relação, ou a fé que a paciente teve em Maria Bonita
utilizamos o
conceito de mana, que pode ser compreendido como uma força espiritual
advinda dos
deuses a partir do bom cumprimento das prerrogativas antes salientadas, diz-
se de uma
pessoa rica, inteligente que está tem mana, isso também está presente em
todas as relações
sociais. A casa de D. Maria, sua oração, seu prestígio tudo isso comprova a
legitimidade de
11
suas práticas, isso através do bom trato com as entidades. Vemos que
algumas pessoas ao
passarem perto da casa de Maria até sentem medo, isso comprova ainda mais
seu prestígio.
Agora partimos para a descrição de outras narrativas onde o bispo Dom
Cornélio
é a personagem principal. Ele foi por muitos anos, padre em Tocantinópolis,
ajudou a
impulsionar muitos movimentos católicos, mas neste trabalho ele aparece
como santo. D.
Maria Bonita conta que numa igreja de São Sebastião; estavam ela, sua filha e
a família
que criava sua filha. Ela deu a criança para adoção, no entanto, após querer se
aproximar
de sua filha, o possível pai adotivo não havia deixado e pior, estava com a
posse de um
revólver. D. Maria diz que depois daquele instante não viu mais nada, ou seja,
ela
incorporou pela primeira vez, Mãe Marina. Todavia ainda não sabia controlar a
entidade,
foi preciso que o Bispo segurasse ela e dissesse que “todos os bichos brigam
por seus
filhos”, com ela não seria diferente. O bispo ainda disse que a coroa (ou crôa)
de Maria
Bonita era a mesma dele. Depois o bispo aproximou a cabeça dele à de Maria
tocando-a,
“chega faiscou”. Maria fala que o bispo pegou o revólver do homem e colocou
em sua
batina e ainda fez com que ela voltasse a si.
Este relato além de ser surreal deve ser melhor compreendido. Por que D.
Maria
fala que o bispo conhecia a coroa dela? Então o bispo conhecia Mãe Marina.
Ele também
era médium? Por que D. Maria fala que o homem estava armado em plena
igreja, seria este
o pai adotivo da criança em verdade, ou o revólver apenas aumentou a façanha
do bispo?
Sabemos que D. Maria considera o bispo muito mais do que um homem
comum, e que
estes são irmãos-de-santo, porque compartilham dos mesmos conhecimentos
e da mesma
madrinha espiritual. Logo depois, Maria cita outra narrativa onde o bispo
aparece como
apoio na fundação do terreiro, pois, se não fosse ele “a Assembleia de Deus
não teria
deixado”. D. Maria também fala que é filha do bispo e que ele antes de morrer,
prometeu
que ninguém iria lhe ameaçar, nem mesmo depois de morrer. Diferente dos
orixás e
encantados, o bispo não pode ser visto depois de sua morte, apenas pode-se
fazer pedidos a
ele. Mergulhamos na communitas dos relatos de D. Maria algo que está
escondido e
embaralhado, também recorremos ao conceito, polissemia, para entendermos
as palavras
nos seus muitos sentidos. Quem antes era irmão no santo, agora passa a ser
pai, Maria
também usufrui de seu prestígio para se reafirmar enquanto agente mágico-
religiosa.
Segundo Brandão “a relação que se estabelece entre a mãe-de-santo e a
umbanda deve ser
relegada a segundo plano, já que esta busca na figura do bispo sua
legitimação” (Brandão,
1986, p.54-55). Mas sabemos também que Maria Bonita tirou um espírito mal
de um
12
católico conhecido do bispo, ou seja, ouve uma reciprocidade. D. Maria se
utilizou da
relação com o bispo, para em meio a sociedade circundante poder se levantar
e respirar
dizendo que é uma espírita. Podemos ainda dizer que ouve uma solidariedade
durkheiminiana em relação à importância que cada agente religioso
reconheceu na figura
do outro.
Análise de ritual
Os rituais públicos ocorrem as terça-feira com começo as 21:00h. Neste ritual,
chamado de fortalecimento D. Maria faz um círculo no chão e coloca nove
velas no
mesmo, após canta uma doutrina se referindo ao símbolo de Salomão, que
segundo os
místicos, exerce a força de Deus sob todas as criaturas, também é a forma que
o planeta
Vênus exerce em sua órbita quando vista da Terra. Maria pede que o paciente
ajoelhe e
reze, depois D. Maria incorpora uma Cabocla Braba e um Caboclo Sete-
Estrelas. Notamos
que o ponto no chão se refere a um Caboclo. A mãe-de-santo pede que
coloquem fogo na
porta, e canta uma doutrina, se referindo “a não deixar contrário entrar”.
Segundo Douglas
, “nossos costumes estão solidamente ancorados na higiene; nós afastamos os
germes eles
mandam embora os espíritos” (Douglas, 1991, p. 47).
Para analisar o ritual de fortificação usaremos o esquema de Turner (1974)
fundamentado em “oposições binarias cruzadas”. Primeiro fazemos o
contraponto entre o
terreiro e a sociedade circundante, ou local de cura e local de contágio ou
impureza. Feito
isso, partimos para outros agrupamentos feitos em três séries estabelecidas no
esquema
logo abaixo:
Quadro 1: Esquema explicativo do ritual de fortalecimento.
Longitudinal Latitudinal Atitudinal
Ponto riscado / Canto do
Salão
A esquerda da entrada / à
direita
Doutrina antes / Doutrina depois
Fraco / forte
Morte / vida
Filhas-de-santo / Mãe-de-santo
13
Desgraça mística / cura
Paciente / Família do paciente
Divindade / seres humanos
Mediunidade / sem mediunidade
Fogo / sem fogo
Não deixa passar o mal /
Passa o mal
Oração do paciente / oração da
mãe-de-santo
Oração no terreiro / oração
fora do terreiro
Fé no santo / fé na mãe-de-santo
Neste sistema classificatório, temos que nos ater principalmente aos símbolos
que
possam ter mais de um significado. Diante dessa premissa, podemos elencar
certos
elementos como: o ponto riscado, o fogo e a oração. O ponto riscado pode ser
oferecido
para diferentes entidades em favor de uma cura, ou outra espécie de trabalho,
no caso em
questão, o ponto foi oferecido a um Caboclo. O fogo está presente em dois
momentos
nesse ritual: nas velas, que são nove e estão em cima do ponto riscado e
quando é colocado
logo depois na porta dentro do salão. Segundo a doutrina, o fogo não deixa
contrário
entrar. Já a oração tem seu poder efetivado quando realizada dentro do salão,
pelo chefe do
terreiro. Sua efetividade fica comprometida quando uma pessoa sem fé, ou que
não tenha
mediunidade execute essa ação. Como mencionamos em capítulo anterior
(Santos ou não,
mas aqui estão), a força espiritual advinda da entidade, o que chamamos de
mana (fazendo
alusão à significação empregada a essa palavra na literatura antropológica,
principalmente
em trabalhos sobre os melanésios), pode também servir de base para o
entendimento do
prestígio da mãe-de-santo para a realização de seus trabalhos.
O ponto riscado é feito a esquerda do congá, ou altar do terreiro, será que é em
respeito a Exus e Pombagiras? Mas, vimos que estas entidades não são
reverenciadas no
começo do culto. São recitadas doutrinas antes e depois do ritual. É colocado
fogo na porta
para afastar o mal. É preciso que o paciente também reze, não há ninguém da
família do
paciente no terreiro. Para entendermos o comportamento do paciente, usamos
o conceito de
magia de contágio de James Frazer, “uma coisa que em certo momento estiver
ligada a
outra, e por acaso vier a ser separado mesmo assim o que for feito sobre uma
afetará a outa
14
parte” (Frazer, 1982, p. 105). Neste caso o sangue do homem em questão
serve para que o
ritual sirva para todos os seus.
Sabemos que é legítima a prática de Maria Bonita e de suas médiuns, pelo fato
das
pessoas terem fé e acreditarem veementemente que serão curadas ou
receberão a ajuda
necessária que solicitam das mesmas. Com Lévi-Strauss (2008) percebemos o
quanto é
importante a “crendice” de ambas as partes envolvidas na cura: o agente
mágico-religioso,
o paciente, a família do paciente e a sociedade circundante, todos tem que ter
fé e acreditar
que a cura se realizará, algo que nos dizeres do antropólogo, constitui a
“eficácia
simbólica”.
Notas:
1 Graduado em Ciências Sociais pela UFT de Tocantinópolis.
2 Mestre em Antropologia Social pela UFRS. Orientou a monografia que deu corpo a este
artigo.
3 Desenho feito geralmente em forma de circulo, com diversas características que lembram o
orixá que se
quer representar ou que se deseja invocar ou saldar. São inúmeros os pontos riscados.
4 Caracterizada por agregar entidades ditas ambíguas, que tanto podem fazer o bem quanto o
mal, dependo da
solicitação de quem pede. São representantes desta linha Exus e Pombagiras que são
associados aos
sentimentos promíscuos e obscenos de seus filhos. Também associados com o diabo católico.
5 Guma, principal lugar sagrado do terreiro. Lugar onde encontra-se todo o assentamento
espiritual de uma
casa de mina. Também pode se referir ao salão, ou seja lugar destinado para se executar a
dança ritual dos
encantados (FERRETI, 2001).
6 Líber de uma arvore da família das Lecitidáceas, utilizado para mortalha de cigarros. Apenas
os pajés
utilizam cigarros enrolados em tauari. (GALVÃO, 1976, p.149)
7 Objeto feito de penas de aves, geralmente de araras que são bem coloridas. Lembra muito os
rituais feitos
por alguns indígenas.
8 Faixas coloridas usadas para representar o santo respectivo do médium. É um adereço
fundamental, assim
como as guias servem para identificar o médium.
9 Grande cobra encantada, que habita os rios. O nome vem da fusão do nome boi com una, de
única. Maria
Bonita tem medo deste ser, pois fica muito tempo sem banhar no rio. Temos duvidas sobre
isso, mas
acreditamos que deve ser porque a Boiuna estranha sua presença depois de tanto tempo sem
vê-la.
10 Mas, o que dificilmente se fala é que padre Cícero não deu o título de capitão a Lampião.
Referências Bibliográficas:
BARROS, Rachel Rocha de Almeida. O filho de uma rainha – reflexões
sobre
parentesco ritual e seus paralelos com a vida terrena. ICS/ UFAL, artigo,
2007.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo: um estudo sobre
religião popular.
São Paulo: Brasiliense. 1986.
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo: Ensaio sobre a noção de poluição e
tabu. Rio de
Janeiro, Edições 70, 1991.
15
FERRETI, Mundicarmo Maria Rocha. Encantaria de Barba Soeira. Codó,
capital da
magia negra? São Paulo: Ed. Siciliano, 2001.
FRAZER, James George. O ramo de ouro, versão ilustrada. Tradução;
Waltensir Dutra,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1982.
GALVÃO, Eduardo. Santos e Visagens: Um estudo da vida religiosa de Itá,
Baixo
Amazonas. Coleção Brasiliana. São Paulo: Nacional, 1976.
LEACH, Edmund. Sistemas políticos da alta Birmânia. São Paulo: Ed. da
Universidade
de São Paulo, 1996.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O feiticeiro e sua magia. In: Antropologia
Estrutural. São
Paulo: Cosac e Naivy, 2008.
LIGIÉRO, Zeca. Malandro divino. Rio de Janeiro: Nova Era, 2004.
MAUÉS, Raimundo Heraldo. Pajelança e encantaria amazônica. In.
VILLACORTA,
Gisela Macambira. Artigo, São Paulo, 1998.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão das trocas nas
sociedades
arcaicas. Sociologia e Antropologia. Tradução; Paulo Neves. São Paulo,
Cosac Naify,
2003.
MONTERO, Paula. Magia e Pensamento Mágico. São Paulo: Editora Ática,
Serie
Princípios, 1990.
PRANDI, Reginaldo. O candomblé e o tempo: concepções de tempo, saber
e
autoridade da África para as religiões afro-brasileiras. RBCS (Revista
Brasileira de
Ciências Sociais), Vol. 16, n° 47, outubro/ 2001.
TURNER, Victor W. O Processo Ritual: Estrutura e anti-estrutura.
Petrópolis: Vozes,
1974.
VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem: estudo sistemático dos ritos
da porta e
da soleira, da hospitalidade, da adoção e etc.; Petrópolis: Vozes, 1976.
ZAYDAN, Alkmin. Zé Pelintra: dono da noite, rei da magia. Editora Pallas,
1992.
ANÁLISE DA BUSCA PELA CURA NOS TERREIROS DE UMBANDA:
Representações e Significados
Maria do Amparo Lopes Ribeiro1
1
– Bolsista CAPES/CNPq, do mestrado em Antropologia e Arqueologia, PPGGAArq/CCHL/UFPI
e-mail: amparo_ribeiro@ymail.com
1. INTRODUÇÃO
2
Na Umbanda, o chamado “ponto cantado” refere-se a cantigas que falam dos Orixás e/ou das entidades
espirituais que trabalham/atendem no terreiro. Estes pontos funcionariam como evocações de determinadas
energias, servindo tanto para trazer as entidades como para se despedir delas.
assim como o cumprimento de regras que direcionem a uma mudança de
comportamentos e de hábitos que favoreçam o entrecruzamento entre tratamento e
cura. Como pode ser observado na foto abaixo, onde presenciei uma festa no
terreiro/tenda espírita onde me proponho fazer esta pesquisa. (FOTO 01)
FOTO 01 – Festa de Seu Raimundo Légua na tenda espírita São Jorge Guerreiro, em
03/11/2012.
Isso condiz com o que Yvonne Maggie (2001) afirma sobre a própria
denominação de religião afro-brasileira que explica o caráter sincrético da Umbanda,
refletida não apenas em sua diversidade, mas numa multidiversidade:
FOTO 03: Oferendas para as entidades que representam o “povo de Légua”, na festa
de Seu Francisco Légua, na tenda espírita São Jorge Guerreiro, em 03/11/2012.
Assim, o momento da escuta da cultura, como fala Geertz, no seu texto Estar
Lá: a antropologia e o cenário da escrita será:
A capacidade dos antropólogos de nos fazer levar a sério o que
dizem tem menos a ver com uma aparência factual, ou com um ar
de elegância conceitual, do que com sua capacidade de nos
convencer de que o que eles dizem resulta de haverem realmente
penetrado numa outra forma de vida (ou se preferir (...), de terem
sido penetrados por ela), de realmente haverem, de um modo ou
de outro, “estado lá”. E é aí, ao nos convencer de que esse milagre
dos bastidores ocorreu, que entra a escrita (2009, p.15)
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
7. REFERÊNCIAS
MALINOWSKI, B. Baloma: the spirits of dead in the Trobriand island. The Journal of
the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland. 46: 353-430,
1916.
1 – Introdução
Ciência e religião estiveram separadas por muito tempo, principalmente aqui no
Ocidente. No entanto, nos dias atuais torna-se mais aceita a ideia que o corpo
humano sofra influências da religiosidade desenvolvida pelo indivíduo (SOUSA et al,
2004, p.55). Bertani (2006, p.133) chama a atenção para a integralidade do cuidado
com o doente, não devendo o médico deter-se somente ao órgão afetado, à dor, à
emoção. Nesta visão ampliada pode-se considerar que deve haver uma sinergia entre
a Medicina e a Religião, ajudando o homem na busca pela saúde física e pelo seu bem
estar psicológico. Esta nova perspectiva terapêutica pode ser chamada de Medicina
Teossomática (LEVIN, 2011, p.27). O mundo científico parece dividido quanto a esta
questão: de um lado estão os que não acreditam na influência benéfica da fé sobre a
saúde, como o professor Richard Sloan, da Universidade de Colúmbia; do outro estão
cientistas como Harold Koenig, da Universidade de Duke, que tentam provar que a
religião é um importante instrumento de cura, devendo ser explorada na prática
clínica (PESSINI, 2007, p.193).
Muitas das pessoas com boas condições de saúde se dizem integradas com o
divino. Alguns doentes também compartilham desse sentimento enquanto que outros
se sentem abandonados por Deus. Independentemente de afiliar-se a uma
determinada religião, o ser humano possui necessidades espirituais, que o levam a
procurar conectar-se a um ser superior, podendo vir a manifestar sua fé através da
espiritualidade/religiosidade (ELIOPOULOS, 2010, p.151). Alguns estudiosos vêem a
espiritualidade como a preocupação com o sentido da vida (ROCHA; FLECK, 2004,
p.184), ou como senso humanitário, sem ligar-se obrigatoriamente à religião
(PESSINI, 2007, p.188).
2 – Metodologia
3 – Resultados e Discussão
“Sim. O paciente se sente mais à vontade porque sabe que ele tem fé” (E 14,
católica).
“Sim. Para passar a medicação do paciente. Você fica mais confiante” (E 16, católica).
“Sim. Em minha opinião, existem tantas coisas que podem afetar nossa saúde. A falta
de dinheiro, o relacionamento com as pessoas e com Deus, por exemplo, pode ser
uma delas. Dependendo de sua qualidade de vida, sua saúde pode estar sendo
afetada. Acredito que, tanto a presença quanto a ausência de Deus em nossa vida,
pode interferir em nossa saúde física e espiritual. É necessário que o médico tenha
acesso a determinadas informações sobre nossa vida. Como nossa religião; só assim,
ficará mais fácil para ele detectar onde está a solução para algumas doenças” (E 101,
católica).
“Sim. Só assim o médico poderá avaliar melhor seu paciente” (E 152, católica).
Pessini (2007, p.192, 194) ressalta a importância que está sendo dada a
abordagem religiosa nas faculdades de medicina nos Estados Unidos. Segundo ele, o
número de pacientes que pedem orações a seus médicos aumentou. Além de que 72%
dos americanos são favoráveis que seus médicos conversem com eles sobre religião e
acreditam em curas pela fé.
Levin (2011, p.145-153) chama a atenção para o fato de que a saúde das
pessoas também sofre influência do seu relacionamento com Deus. Segundo um dos
estudos citados em seu livro “Deus, fé e saúde: explorando a conexão espiritualidade-
cura” as pessoas que enxergam Deus como um remédio, um ser que as liberta dos
problemas em suas vidas, eram mais felizes e satisfeitas com sua saúde. Pessini
(2007, p.194) apresentou em artigo de revisão o seu ponto de vista e o de outros
pesquisadores, que como ele, acreditam no potencial curador da fé.
Koenig (2007, p.15) enumera seis razões pelas quais se devem incluir a
espiritualidade no cuidado com os pacientes que são: muitos são religiosos ou
espiritualizados; a religião ajuda o paciente a enfrentar uma doença mental; devido o
isolamento a que fica submetido o paciente, ao ser hospitalizado; a religião pode
influenciar decisões terapêuticas, e até entrar em conflito com as mesmas; o
envolvimento religioso está relacionado tanto com saúde física quanto com a mental;
e por fim, a religião influencia os cuidados de saúde na comunidade.
4 – Considerações Finais
Referências
BERTANI, I. F. Saúde, sofrimento e sociedade. Serviço social & realidade, vol. 15, n.
1, Franca, 2006, p. 131-158.
KOENIG, Harold G. Spirituality in patient care: why, how, when, and what. 2ª ed.
Conshohocken: Templeton Press, 2007.
TOSTA, Carlos Eduardo. Prece e cura. In: TEIXEIRA, Evilázio Francisco Borges;
MÜLLER, Marisa Campio; SILVA, Juliana Dors Tigre. da (Orgs.). Espiritualidade e
Qualidade de Vida. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 105-124.
Por outro lado, percebe-se que o sujeito que recebe da sociedade o elemento
cultural, adquirindo assim crenças religiosas, inseridas em contextos éticos, que se
condensam em princípios morais, critérios estéticos modulados pela sociedade, “se
expande e se enriquece” (Cf. RAMPAZZO, 2010, p. 42). Além de expandir com
proporções globalizadas por meio das comunicações que eleva a dimensão da
riqueza e diversidade social no qual ao mesmo tempo apresentam as dificuldades de
1
Autor é Advogado, Pedagogo e Mestre em Educação (UFPE).
2
Co-autora é Historiadora, Bióloga e Mestre em Ciências da Religião (UNICAP).
2
ocultar e/ou tornar vulneráveis os pensamentos alheios passando ser acessível sem
o seu devido consentimento.
Entende-se que a religião é, na sua essência, um elemento social, conforme
complementa o sociólogo francês Durkheim:
3
Nota-se que há distinção entre a moral e a ética sendo o primeiro seria esse conjunto de regras
estabelecidas numa sociedade, que diz à pessoa de que modo ela deve se comportar, agir. No caso, a
ética é caracterizada pela reflexão que o humano faz dessas regras em relação à situação em que,
normalmente, essas regras deveriam ser empregadas.
4
Hans Küng menciona sobre a ethos mundial como um sistema de coordenadas para encontrar o caminho
da consciência no qual foi realizado , em 1993, o Parlamento das Religiões Mundiais, em Chicago. (Idem,
p.29).
3
5
No Brasil Colônia e Imperial, a religião Católica desempenhou normas na sociedade (luso)brasileira.
6
O Censo2010 apresentou o quadro da diversidade cultural e religiosa no Brasil; e ainda está instituído o
dia 21 de janeiro, O Dia Nacional de Combate a Intolerância Religiosa foi oficializado pela Lei nº 11.635,
em 2007. A data referente homenageia a sacerdotisa Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda. Ialorixá
do terreiro Axé Abassá de Ogum, em Salvador, Mãe Gilda morreu de enfarte, após ver sua foto publicada
no jornal de uma igreja evangélica, acompanhada de texto depreciativo. Semanas antes, o terreiro de Mãe
Gilda fora invadido por evangélicos. A Igreja Universal do Reino de Deus, responsável pela publicação da
Folha Universal, foi condenada a indenizar a família da Ialorixá. Disponível em <
http://www.generoracaetnia.org.br/sala-de-imprensa/calendario/item/457-21/01-dia-nacional-de-combate-
a-intoler%C3%A2ncia-religiosa.html > . Acessado em: 17 mar. 2013.
4
religião? Por exemplo, é preciso ter respeito acima das leis, para com outras
religiões, sua existência, o fim que elas indicam às pessoas com as regras que criam
e como fazem isto – até porque, não respeitar o modo de alguém viver de acordo
com sua religião é dito antiético.7
O fundamentalismo é uma forma de (con)viver sobre uma religiosidade
desprovida das leituras hermenêuticas, ou mesmo, cultural; uma forma
desnecessária à vivência religiosa. Diante disso, ocorre no cenário entre cristãos e
católicos e, de maneira notável, no meio dos protestantes, onde a falta de reflexão
sobre essas leituras, por vezes, causa exatamente o oposto da intenção primeira
destas regras: o respeito ao outro – ao próximo, se desejar.8
O Cristianismo, em relação à postura religiosa, na maioria das vezes, é
fundamentalista9, no qual se entende que não há espaço para a reflexão sobre as
regras de procedimento moral e a dificuldade para o diálogo, principalmente o inter-
religioso.
Lançando o olhar para os ensinamentos de personalidades tais como: Jesus
Cristo, Buda e Maomé, entre outros, nota-se que são ensinamentos reflexivos, que
foram cristalizados em algum momento. Diante disso, esses ensinamentos fazem
emergir o valor da preservação da vida como lei universal, bem como o bem-estar
do sujeito e a sua inclusão como outros sujeitos sociais.
Considera-se que as leituras hermenêuticas se tornariam elementos para
qualquer livro sagrado inserido nas mais diversas culturas. Observa-se que não se
trata de abandonar sua cultura, seus costumes, mas de admitir e até somar. Seria,
para tanto, necessário uma compreensão de religião como modo cultural.
Entendermos que leis de preservação da vida são universais e que religião é
uma necessidade cultural, social, e que a medida que a sociedade muda, suas
convicções, seus valores, seu parâmetro de normalidade também mudam, deverá
haver, então, um movimento também na religião.
Além de tudo, esses movimentos indicam que nossa cultura já não é tão
cristã, pois, se fosse, não haveria tantas manifestações diversas – pelo menos
públicas –; e perante esse tipo de lei não ganharia visibilidade somente a doutrina
pentecostal.
7
Muitos brasileiros ainda se lembram do pastor evangélico que agrediu a santa padroeira do País, para os
católicos.
8
No final do século XX houve a guerra entre católicos e protestantes na Irlanda. A banca Pop U2, contém
a música Sunday bloody sunday “domingo de sangue” a música denúncia à guerra e anuncia a indignação
por intolerância religiosa no seu país.
9
Entende-se como o pressuposto do membro religioso de acreditar que a verdade de sua religião é
absoluta, por exemplo, para o cristão, só há salvação em Jesus Cristo e para aproximar-se dele deve-se
seguir as orientações bíblicas literalmente.
5
Isso nos faz concluir que, em qualquer âmbito social, laico ou religioso, em
que se pretenda um agir com o diálogo inter-religioso, a reflexão e a
interdisciplinaridade como a Educação em Direitos Humanos são pressupostos
necessários. Do contrário, em algum momento haverá um conflito moral, que, por
vezes, tem implicações terríveis.
10
Os temas [...] existem nos homens, em suas relações com o mundo, referidos a fatos concretos
(FREIRE, 2005, p. 115).
9
REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. São Paulo: Paz e Terra,
1977.
14
_______. Pedagogia do oprimido. 44ª Edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
_______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo, Paz e Terra, 1996.
HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
SOUZA, João Francisco de. ¿¿ E a educação popular: que?? Uma pedagogia para
fundamentar a educação, inclusive escolar, necessária ao povo brasileiro. Recife:
Bagaço, 2007.
RESUMO
1 RELIGIÃO
1
Josefa Vênus de Amorim: Economista - Psicóloga – Especialista em Direitos Humanos - Especialista e
Mestre em Ciências das Religiões - UFPB
2
A interdependência biológica ou a
fraternidade religiosa de todos os seres
humanos transmudam-se, assim, em
autentica solidariedade jurídica, que cria
direitos e gera obrigações. (Fábio Konder
Comparato)
2 IN/TOLERÂNCIA RELIGIOSA
visam justamente reduzir as diferenças usando-se a força como meio de coerção por
falta de aceitação dessas diferenças.
No contexto histórico percebemos que no Brasil, o histórico de colonização
também revela um retrato de intolerância e de dominação, utilizando princípios
religiosos como justificativa para a opressão. O cidadão podia ser privado de sua
liberdade de expressão dentro da comunidade em que vivia indo-se ao extremo de
privar os sujeitos da própria liberdade, ou seja, esta temática vem marcando nossa
história.
É possível identificar que mesmo com a diversidade de expressões religiosas
na atualidade, por conta da herança colonial, “o Brasil ainda se constitui como um país
essencialmente cristão” (CRUZ, 2004, p.16). O que significa afirmar que, ainda que
exista uma variedade significativa de cultos e religiões, essa herança ainda é tão forte,
que mesmo essas novas manifestações trazem resquícios do cristianismo ou mais
precisamente da religião oficial no Brasil colônia, que era o catolicismo.
Essa influência é sentida da mesma forma no contexto escolar através do
Ensino Religioso que, “ao longo da história [...] esteve e desconfiamos que ainda está
sobre o controle da Igreja Católica, enquanto instituição religiosa hegemônica”
(PASSOS, 2007, p.16). E estando sobre o controle da igreja, era cumpridor dos
parâmetros fornecidos por ela, tendo caráter catequético e teológico, repassando
unicamente os princípios e ideologias católicas.
Desconfiamos que essa forma de exercer e educação religiosa era excludente,
visto que adotava uma denominação religiosa em detrimento das demais. Na medida
em que a religião hegemônica obtinha dos sistemas de ensino o consentimento para
reproduzir a sua doutrina, tornavam-se instrumento de discriminação religiosa.
Nesse sentido, ao impedir o alunado de conhecer outras religiões, promoviam a
uniformização e, como “a uniformidade alimenta a conformidade e a outra face da
conformidade é a intolerância” (BAUMAN, 1999, p.54), acabavam por promover essa
última, pois dava a impressão equivocada que somente essa religião continha
elementos morais válidos para a conduta dos indivíduos em sociedade.
Por também ter sido muitas vezes realizado de forma impositiva, o Ensino
Religioso deixou de colaborar para a composição de uma educação integral e
integradora. Por sua vez, o Estado entrando em concordância com os atos da igreja,
permitindo-lhe agir conforme lhe aprouvesse, contribuiu para a manutenção dessa
situação.
decisões da lei. Dessa forma, a escolha pela laicidade apresenta-se como uma
alternativa válida para assegurar o direito de escolha e liberdade de religião.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 traz em seu artigo 18, o
ideal à liberdade na diversidade, igual respeito a cada um nas diferenças. Declara a
respeito da questão religiosa que,
NOTAS CONCLUSIVAS
REFERÊNCIAS
Resumo
O presente trabalho busca mostrar como o fenômeno da romaria e ex-votos na
Serra do Pedro localizada na cidade de Lagoa do Ouro- PE ganhou força através da
oralidade e como a crença influencia na vida dos fiéis. O tipo de fé praticada no
local se caracteriza como catolicismo popular, comum no Brasil. Se trata de um
fenômeno que ocorre no âmbito regional e se inicia, em geral, através da oralidade.
Dessa forma, o trabalho foi desenvolvido em sua maior parte através das entrevistas
orais feitas com romeiros e moradores dos arredores do local.
1
Autora –Graduanda em Licenciatura em História (UPE-Campus Garanhuns)
² Coautora – Graduanda em Licenciatura em História (UPE – Campus Garanhuns)
³ Orientadora – Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História (UFPE)
I Simpósio Regional Nordeste da Associação Brasileira da História das Religiões – Campina Grande
– 28 a 31 de maio, 2013
Sumário
1. Introdução
2. Romaria
3. Peregrinação até a Serra do Pedro
4. Profanação sacralizada
5. Relatos sobre milagres e ex-votos na Serra do Pedro
6. História oral
7. Memória e história
I Simpósio Regional Nordeste da Associação Brasileira da História das Religiões – Campina Grande
– 28 a 31 de maio, 2013
1. Introdução
2. Romaria
O ato da romaria consiste em caminhar até o local tido como sagrado objetivando
alcançar uma união com Deus. O romeiro ou peregrino costuma fazer essa caminhada para
agradecer ou pedi algo para um deus ou para algum santo, no caso dos católicos. Blainey,
2012, diz que: Para os devotos, a peregrinação representava a concretização da esperança
cultivada por toda a vida. (pg. 164)
Deve-se entender o local sagrado como o lugar onde se encontram referenciais que
remetam a uma determinada divindade religiosa, ou local onde determinado grupo de
pessoas atribui acontecimentos “milagrosos” que acabam por se popularizar ao longo do
tempo e o lugar assim se sacralizar através do popular.
Dessa forma, ex-votos são deixados na capela e romarias são feitas até a Serra,
assim os milagres continuam a acontecer e a fé nesses milagres continua a ser repassada.
Por haver uma presença muito forte do catolicismo na cidade, grande parte das
festividades da cidade é realizada em comemoração a alguns santos, com isso, não poderia
ser diferente a festa em homenagem ao santo que operou e opera segundo as narrativas dos
moradores uma série de milagres na cidade, São Pedro.
Não há uma história precisa que conte o início das romarias e promessas até a Serra
Pedro, porém os relatos de milagres atribuídos ao Santo são dados pelos mais diversos
I Simpósio Regional Nordeste da Associação Brasileira da História das Religiões – Campina Grande
– 28 a 31 de maio, 2013
moradores das mais variadas idades. O que podemos concluir pelos relatos recolhidos, é de
que essa devoção tem mais de cem anos.
Conta-se que por volta de 1900 ocorreu uma doença que estava matando muitas
pessoas. Nos relatos, ela foi denominada com os seguintes nomes: peste do rato, bubônica
e febre espanhola. Quanto ao nome dado à doença, os entrevistados se mostraram
confusos, mas a história contada sobre o milagre que deu origem a capela foi unânime. A
doença assolava a cidade e muitas pessoas estavam morrendo.
(...)o pai dessa minha mulher minha aqui, quando ia pro enterro de um
bem cedo, quando chegava, às vezes nem ia almoçar ,almoçava, pra
levar outro cadáver de outro morto. É doença triste. (José Francisco
Filho, conhecido como Seu Xito com 77 anos)
A crença na história é tão forte que fica perceptível até mesmo conversando com os
entrevistados. A presença do mal para os cidadãos da localidade se encontra até mesmo
nos relatos sobre doença. Durante o trabalho de campo, algo que chamou atenção ao
entrevistar Seu Xito, foi a presença da sua esposa, Dona Olívia, 75 anos, que juntamente
com o esposo nos cedeu algumas informações, essa sempre que falava o nome da doença
ou sobre a doença, falava antes “ave maria, ave maria”, comportamento esse que pode ter
sido repetido por ela quando reproduzido em outra geração. O que nos lembra do que
Hobsbaw fala sobre ritualização e repetição dos costumes.
Seu Xito mora na Serra há 75 anos, é um dos bacamarteiros vivo mais antigo da
cidade, e comemora a festa de São Pedro juntamente com outros bacamarteiros atirando
com suas riunas2. Geralmente na região do Nordeste o ritual do Bacamarte tem caráter
religioso, neste caso acontece com intenção de celebrar e agradecer os milagres realizados
pelo santo. Sobre Festas e atos religiosos Egidio Vittorio Segna 1977 diz que: “Em
correlação a falta de padres na área rural, a prática religiosa dá ênfase a ritos não-sacramentais
e menos ligados à ortodoxia da Igreja oficial. As grandes festas religiosas atraem a populações
dispersas.[...]As praticas religiosas que refletem o alto nível da sacralidade da cultura local,
podem ser assim resumidas em: procissões, promessas, acender velas, atos de devoção a santos,
rezas, romarias ao santuários, mandar rezar missas, depor ex-votos nas igrejas, devoção aos
2
De cano curto e largo, também conhecida como granadeira, reiuna, reuna ou riuna. As granadeiras ou bacamarte foram
usados pelos soldados Nordestinos na Guerra do Paraguai, em 1865. Elas foram modificadas para que as armas se
adaptassem ao uso dos bacamarteiros nos festejos.
I Simpósio Regional Nordeste da Associação Brasileira da História das Religiões – Campina Grande
– 28 a 31 de maio, 2013
defuntos, bênção de objetos etc.” O meio social cristão encontram suas maneiras para
manifestar a gratidão, culturalmente as festas carregam esse poder ritualístico.
Na Serra havia somente um cruzeiro que foi posto no local por haver uma lenda de
que São Pedro apareceu naquele local. E por esse motivo, a Serra recebe o mesmo nome do
santo. Não conseguimos saber por meio dos relatos e pesquisas a média de tempo em que o
cruzeiro foi erguido na Serra. Mas, sabe-se que a construção da capela levou a remoção do
local primeiro do cruzeiro para outro ponto da serra, onde está localizado atualmente.
Imagem 1 ( Cruzeiro e a capela que foi construída posteriormente ao cruzeiro por causa de uma promessa.)
A construção da capela deu-se através de uma promessa ao santo, por volta dos
anos de 1900 por causa das várias mortes que estavam ocorrendo por causa da doença já
citada. A família de Maria Xingó e Sr. Odilon foi uma das que sofreram com a doença e
I Simpósio Regional Nordeste da Associação Brasileira da História das Religiões – Campina Grande
– 28 a 31 de maio, 2013
assim fizeram uma promessa para que São Pedro ajudasse no combate daquela doença,
para as pessoas parassem de morrer; se assim o santo ajudasse, eles ergueriam uma capela
no alto da Serra com o nome do santo. E assim foi feito.
Não há registro sobre o ano de construção da capela, nem quanto tempo essa levou
para ser erguida, mas sabe-se que Maria do Xingó e Sr. Odilon construíram a capela
juntamente com outros fiéis. Com relação à construção da capela, o Sr. Pedro Barbosa de
Lima, com 74 anos, sobrinho de Dona Maria Xingó e Sr. Odilon, relatou que a capela foi
construída por Sr. Odilon depois que seu pai (do senhor Pedro), irmão de Sr. Odilon,
falecido por causa da doença, apareceu em sonho para ele (Sr. Odilon) pedindo para que
esse construísse uma capela na Serra em homenagem a São Pedro, pois assim a doença
deixaria de assolar a região. Dessa forma, a capela foi construída com a ajuda de outros
habitantes, mas o Sr. Odilon e Maria do Xingó como os personagens principais dessa
construção.
4. Sacralização profanada
Mircea Eliade diz que; O homem toma conhecimento do sagrado porque este se
manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. (pg. 17) O autor dá o nome
de hierofania a questão da sacralização de algo dito como profano; uma árvore, uma pedra,
um lugar.
Dona Maria do Carmo Ferreira, conhecida como Carminha tem 67 anos e mora aos
arredores da Serra faz 40 anos em média. Relatou que sempre que está com algum
problema faz uma promessa para o santo. Certa vez, ela havia levado uma pancada na
perna, onde a ferida estava incomodando muito e não sarava há tempos. Prometeu que se
fosse curada irei levar fogos para soltar no alto da Serra e velas para acender na capela. A
mesma já levou ex-votos quando estava com um problema na mão, entre outras promessas
que ela disse sempre fazer.
Alikaely de Araújo Barros com 18 anos de idade, mora na Serra faz 14 anos e ajuda
a cuidar da capela. Relatou sobre sua promessa:
Outros entrevistados relataram não fazer promessas, mas dizem que veem muitas
pessoas que fazem.
6. História oral
Trabalhar com oralidade requer muito cuidado pelo fato de tratar-se de relatos de
memória. É comum a pessoa que está sendo entrevistado apresentar alguma dificuldade
para lembrar-se do fato corretamente, além do que, os mesmos fatos podem apresentar
I Simpósio Regional Nordeste da Associação Brasileira da História das Religiões – Campina Grande
– 28 a 31 de maio, 2013
versões diferentes se for descrito por mais de uma pessoa, pois o entrevistado trará consigo
não só o relato do fato, mas suas crenças e formações pessoais. Logo, o trabalho com
entrevista oral deve ser cuidadoso quanto à análise do que virá a ser o fato histórico
contado na pesquisa.
Podemos perceber que com o passar do tempo a história oral vai ganhando ou
perdendo elementos. Podemos demonstrar isso de forma simples: na brincadeira do
“telefone sem fio”; é dita uma frase para uma pessoa e essa passa para a próxima e assim
por diante até chegar à última pessoa do jogo. Ao termino, podemos notar que a frase não
chegará da mesma forma que a primeira pessoa havia falado. Essa frase terá perdido ou
ganhado alguma(s) palavra(s) ou poderá ter sido totalmente modificada, de forma que o
seu sentido também possa vir a sofrer modificações.
Assim acontece com a história oral, ao longo do tempo e do contexto vivido por
determinado povo, ela sofre modificações. A história se modifica, sem que possamos
analisar ao certo como o fato ocorreu. Por isso, é necessário que se faça pesquisas com
mais de uma pessoa, se possível. Pois, o entrevistado tende a falar a história do seu ponto
de vista e de suas memórias lembradas, o que pode se torna perigoso de se trabalhar com
somente uma fonte oral, dependendo do fato. Diz José Carlos Sebe, 2011: A história oral ao
valer-se da memória estabelece vínculos com a identidade do grupo entrevistado e assim remete à
construção de comunidades afins.
7. Memória e história
A memória tem se tornado uma das fontes de pesquisa para se fazer história, mas
quando memória é história é um ponto que tem sido posto em debate e deve-se ter cuidado
ao usar a memória como um recurso para se fazer história, para que o parecer do
pesquisador não se sobreponha ao relato do entrevistado. A tradição oral é uma das formas
de preservação histórico-cultural que caracteriza um mecanismo usado por determinados
grupos para manter uma história viva.
Fonte oral é mais que história oral. Fonte oral é o registro de qualquer
recurso que guarda vestígios de manifestações da oralidade humana.
Entrevistas esporádicas feitas sem propósito explícito, gravações de
músicas, absolutamente tudo que é gravado e preservado se constitui em
I Simpósio Regional Nordeste da Associação Brasileira da História das Religiões – Campina Grande
– 28 a 31 de maio, 2013
8. Considerações Finais
Quando essa crença passa a interferi na vida de uma pessoa de forma mais ampla, e
não mais somente no campo religioso, como é o caso de pessoas que pagam promessas
para se curar de alguma doença, isso deve ser um ponto importante para o estudo das
religiões. A cura acontecendo por causa da promessa ou não, a crença nisso faz com que a
pessoa sinta-se melhor por saber que há algo ou alguém mais poderoso que vela por ela.
Portanto, registrar os fatos culturais, mesmo os que ainda não tenham um registro
documentado, se faz importante para manter viva a memória dessas tradições, ajudando
assim a construir novas fontes historiográficas na tentativa de não deixar que a memória da
tradição morra com seus personagens.
3
As entrevistas orais foram realizadas no ano de 2012.
I Simpósio Regional Nordeste da Associação Brasileira da História das Religiões – Campina Grande
– 28 a 31 de maio, 2013
Referências
BLAINEY, Geoffrey
Uma breve história do cristianismo / Geoffrey Blainey; [versão brasileira da editora] –
1.ed. – São Paulo – SP: Editora Fundamento Educacional Ltda., 2012.
Disponível em:<http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/501/526>
O Cristianismo, apesar de ser uma das mais antigas religiões do mundo, é também
uma das mais dinâmicas e que mais tende a crescer, principalmente no sul global,
em especial na África e América Latina, como demonstra Philip Jenkins (2002,
p.17). Entretanto, quanto mais a fé cristã cresce nessas áreas do globo, menores
são os números de fies no Oriente Médio, onde surgiu a religião. De acordo com
dados recentes, como um estudo do Pew Forum on Religion and Public Life (2012),
de todos os 2,2 bilhões de cristãos espalhados pelo mundo, apenas 6% deles estão
no Oriente Médio, menos de 13 milhões. Dentre os quais apenas 154.000
permanecem em Israel e nos territórios ocupados; sendo 35.000 na Cisjordânia e
menos de 3.000 na Faixa de Gaza, segundo o jornal online israelense Israel Today
(2012).
1
Neste trabalho o termo Palestina refere-se apenas aos territórios ocupados pelo Estado de Israel, a saber: a
Faixa de Gaza e a Cisjordânia.
A Palestina ocupa a 36º posição entre os 50 países mais intolerantes ao
Cristianismo, segundo a última World Watch List (2013) da ONG Open Doors e isso
se dá principalmente, devido à crescente perseguição aos cristãos da Faixa de
Gaza. A Palestina passou a ocupar um lugar entre os 50 países que mais
perseguem os cristãos em 2008, ocupando a 42º posição.
De acordo com o relato de Ibrahim, a morte de Ayyad se deu pelo fato dele
trabalhar em conjunto com a Igreja Batista de Gaza, que é frequentemente
relacionada ao Ocidente, por sempre receber auxílio de clérigos americanos. Os
extremistas, assim, esperavam receber algum tipo de legitimidade pelo Hamas, o
qual, por sua vez, condenou o homicídio.
Toda essa onda de ataques contra cristãos após o Hamas assumir o controle de
Gaza, fez com que grande parte dos cristãos da região emigrasse, temerosos de
que o Hamas não lhes assegure os seus direitos como minoria ou que implantasse
aos poucos a agenda jihadista, segundo a qual os cristãos deveriam se converter
ao Islã ou deixar Gaza, como afirma Sana al-Sayegh, cristã palestina professora da
Universidade Palestina que foi sequestrada, convertida à força ao Islã e obrigada a
casar-se com um muçulmano (Jones, 2007).
Hoje o número de cristãos que reside em Gaza é cada vez menor e as informações
ainda mais escassas. Algumas notícias recentes afirmam haver hoje apenas 1.500
cristãos em Gaza, os quais tem sido severamente perseguidos por extremistas
islâmicos, sendo muitas vezes forçados a tonarem-se muçulmanos e sem nenhuma
garantia de seus direitos por parte do Hamas (Fund, 2012). O que parece
confirmar as terríveis previsões de al-Sayegh.
4 O CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES
Assim, por não se encaixarem na civilização islâmica, foi a vez dos cristãos
palestinos de redescobrirem a sua identidade e buscarem a civilização a qual
deviam pertencer, e nessa busca por identidade os elemento mais importantes
foram a religião e a história dos seus antepassados, levando-os a se identificarem
principalmente com a Civilização Ocidental, a única majoritariamente “cristã” e
com a qual, seus antepassados haviam mantido vínculos durante o século XIX.
Isso tornou a migração para o Ocidente como a melhor saída para os cristãos
palestinos. Sendo possível, encontrar hoje diversas comunidades de cristãos
palestinos que falam árabe em países da Europa e América do Norte.
Soma-se a isso o fato de que grande parte dos ataques contra cristãos,
sobretudo na Faixa de Gaza, são movidos principalmente por essa divisão de
“civilizações” já que os extremistas islâmicos ao associarem os cristãos palestinos
que se identificam com o Ocidente como seus inimigos, e não como integrantes de
uma mesma sociedade.
5 CONCLUSÃO
Os principais Direitos Humanos dos cristãos palestinos que tem sido violados
tanto na Faixa de Gaza quanto na Cisjordânia, são os direitos do Artigo 18 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, segundo os quais todo ser
humano tem o direito de ter uma fé e de professá-la publicamente sem ser
submetido a nenhum tipo de ação coercitiva que restrinja a sua liberdade de
escolher a religião que deseja seguir.
Assim, é possível concluir que grande parte dos fatores responsáveis pelo
desaparecimento do Cristianismo da Palestina é de ordem cultural e de identidade,
podendo ser analisada e explicada à luz do paradigma do “Choque de Civilizações”
de Samuel Huntington.
1
Reflexões iniciais
1
2
2
3
3
4
4
5
5
6
pela religiosidade.
O candomblé, na atualidade considerada como uma religião é uma
comunidade detentora de uma diversificada herança cultural, no qual se mesclam
elementos provenientes, sobretudo, da África Ocidental. Caracteriza-se como uma
religião onde o valor das coisas profanas está centrado no indivíduo. Por não
utilizar a lógica do pecado, está bem mais afinado com a sociedade
contemporânea. Sua popularização tem se dado através da música (samba e
carnaval), dos meios de comunicação, jogo de búzios, dentre outros (CONSORTE,
2006).
Desde os anos de 1960, o caminho foi preparado para o crescimento e o
reconhecimento da cultura e da religi ão afro-brasileira e africana, atraindo a classe
média branca aos centros de candomblé, contribuindo para a sua legitimação e sua
popularização (PRANDI, 2006).
Assim, a espiritualidade produzida por esta religião se ajusta à sociedade
pós-moderna de hoje . O reconhecimento dessas religi ões desponta como espaços
importantes de apoio para acolher sentimentos e sofrimentos decorrentes das
desigualdades sociais de seus fiéis. Esse processo histórico influenciado
diretamente pelo campo religioso converge para um novo paradigma que busca
sentido para a existência, mediado pela expressão do sagrado. Isso reforça a
presença da espiritualidade correlacionada às questões de produção de propósito de
vida para justificar a exist ência, podendo ou não incluir a participação religiosa
formal.
Cortez (2009) aponta que a espiritualidade responde a questões
existenciais, conforta, alivia ansiedade, dá segurança emocional e espiritual para
as pessoas que compartilham seus significados, auxilia na autoestima, na
automotivação, no enfrentamento de doenças físicas, transtornos psíquicos,
sofrimentos e limitações.
Ponderando o exposto, consideramos ser preciso estar aptos a entender e
interpretar as diversas manifestações de crenças e práticas religiosas que nos
cercam e, dessa forma, exercitar uma compreensão respeitosa frente às religiões
com seus valores. Temos a consciência de que lidamos com sistemas vivos, em
fluxo contínuo, em relação ao qual o valor da experiência subjetiva é tão precioso
quanto à avaliação racional.
Reflexões finais
6
7
7
8
Referências bibliográficas
8
9
9
A ESCRITURA SAGRADA, UMA ARMA, UMA PRISÃO OU SALVAÇÃO?!
RESUMO
1
Aluna de Graduação do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.
quando suas facetas são descobertas temem a mão de Deus sobre eles, mas a perda de
autoridade frente a seus inimigos.
As Escrituras Sagradas está sendo o alicerce de tanta discórdia, ódio, guerras e
tragédias entre os seres humanos ao longo da história, legitimam suas atitudes com o
discurso de que é ordem de Deus. A religião deixou de ser o amor a Deus e passou a ser
uma prática de crenças e preconceitos, obscurecendo a religião e se rodeia de mistérios
para obter mais poder.
[...] a ambição e o crime foram tão longe que a religião acaba por
consistir menos em obedecer aos ensinamentos do Espírito Santo
que em defender humanas fantasias, e por não se traduzir pela
propagação da caridade, mas pela disseminação das discórdias e
do ódio mais feroz entre os homens, disfarçado embora de zelo
divino e fervor ardente (Espinosa, 2003, pag.115).
2
Voltaire, O túmulo do fanatismo, São Paulo, 2006.
possibilidade de ter sido escrito por juízes já que o próprio escrito relata não haver
naquele tempo nem mesmo reis.
No livro de Samuel foi escrito séculos depois de sua existência e o livro dos Reis
são descrição dos feitos de Salomão; crônicas dos reis de Judá; crônicas dos reis de
Israel são escritos de um mesmo historiador como pode ser observado pela forma da
narrativa e temporalidade.
Então esses livros tinham apenas um objetivo ensinar os decretos e doutrinas,
entretanto Voltaire coloca que esses livros são para enganar os tolos, a gentalha, pois
não possuem nenhuma coerência entre eles. Não são nem ao menos escrito por quem se
intitula ser escrito, evidentemente são escritos forjados com claro objetivo de obtenção
de poder.
Essas divergências não ficam apenas nesses livros, abrangem muitos outros livros
como Daniel, Esdras, Ester e Neemias com erros de temporalidade, nos nomes das
localidades, na ordem dos fatos ocorridos e muitas vezes repetem as fábulas de formas
diferentes em vários livros.
Há explicações para esses fatos, dentre elas acreditam se que os livros foram
transcritos dos originais que já obtinha erros, que há falhas nas traduções; que são as
próprias interpretações dos originais, a substituição de palavras que acabam causando
divergências nos significados, tendo as Escrituras Sagradas que adotar anotações à
margem devidas o fato de que alguns termos terem caindo em desuso ou mesmo ficando
inapropriado para uma leitura pública.
Para Voltaire o que temos então é uma Escritura Sagrada cristã forjando verdades
e as promovendo como verdade absoluta que por sua vez é utilizada pelo poder político
como Lei. Há uma forte união entre religião e política, onde a religião prega verdades e a
política utiliza dessas verdades para fazer Leis e ambas se beneficiam do poder.
Espinosa defende que as Escrituras Sagradas se tornaram vitima de preconceitos
e de superstição onde a adoração a Deus passa para seus livros, mas adorar a Deus não
significa adorar as Escrituras Sagradas e sim praticar a justiça, o amor na sua concepção.
RAZÃO X SOBRENATURAL
São notáveis as diferenças nos escritos dos profetas para com os dos apóstolos,
isso segundo Espinosa devido os profetas escreverem por revelação divina e os apóstolos
pelo raciocínio. Assim os profetas buscam profetizar e os apóstolos discutirem.
Os profetas não se utilizam da luz da razão para compreensão das ações divinas,
isto é visível quando analisamos racionalmente as Escrituras Sagradas e percebemos as
divergências existentes diante dos escritos dos profetas que são movidos pela
imaginação.
Para a seleção dos livros que formariam o antigo e o novo testamento, devemos
compreender que suas seleções foram realizadas em épocas diferentes com peritos e
doutores diferentes, mas com apenas um critério sobre os livros A PALAVRA DE DEUS.
Para maior compreensão de seus fiéis foram escolhidos os livros mais claros de
interpretar. Entretanto Espinosa coloca que o novo testamento é repetitivo em seus
escritos, tentando formular uma obscuridade em contos tão simples.
Portanto os livros da Escritura Sagrada que são tidos como divinos dentro da
religião, como instrumento sacralizado não poderia haver erros ou falhas no significado
da mensagem que vem sendo repassada há séculos, são pautados de uma incoerência
com sua linguagem, época e povos. Contudo não alterou o sentido, que é a obediência e
amor o próximo.
O mandamento “amar ao próximo como a ti mesmo” é o único critério da fé cristã
e em cima deste molda outros dogmas da fé para o/a fiel. Mas como saber quem é fiel,
quem tem fé se não são visíveis? Espinosa declara que apenas as obras poderão
demonstrar, e ainda coloca que quem faz obras boas é fiel ainda que não concorde com
os dogmas religiosos.
Todavia aqueles/as que faz obras más é infiel mesmo concordando com os
dogmas religiosos. Para haver obediência há fé e quando há fé há obras é uma
consequência ligada uma a outra. A caridade é o próprio Deus, então quem a possui tem
o espírito de Deus, se pressente Deus através da caridade para com o próximo, se
conhece Deus através da obediência e em função do amor ao próximo.
Cada indivíduo está em Deus e Deus está em cada indivíduo. Diante dos
diferentes indivíduos se veem que o que é devoção para uns muitas vezes não é para
outros, causando controversas sobre os dogmas religiosos. A salvação se dá a quem é
obediente, adora a Deus, pratica a justiça e a caridade para com o próximo, conforme
determina a Escritura Sagrada.
Portanto essas atitudes ditadas pela Escritura e seguidas pelos seres humanos ao
longo dos anos esculpiu a cultura dos cristãos. Para Eliade, todos os costumes, as
culturas e a vida descendem de uma sociedade religiosa que está impregnada no
inconsciente dos indivíduos. Entretanto o autor esclarece que essa perca de atividades,
conhecimentos e práticas tidas como sagradas para o profano ocorreu por causa da
modernidade (desencantamento).
Segundo a análise de Eliade, o homem religioso crê no sagrado e no
transcendente que vai além da razão dando significado a sua existência, porém o homem
a-religioso é descrente e sua existência vem de muitos anos atrás, mas é na
modernidade que começam a ganhar maior espaço, para este o sagrado é uma prisão a
sua ideia de liberdade.
“O único evangelho que se deve ler é o grande livro da natureza, escrito pela mão de
Deus e marcado por sua chancela. A única religião que se deve professar é a de adorar a
Deus e ser um homem honesto.” (Voltaire, 2006, pag. 157).
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
ELIADE, Mircea. O sagrado e o Profano. São Paulo. Martins Flores, 1999, pp163 – 175.
ESPINOSA, Baruch. Tratado Teológico.São Paulo, Martins Fontes, 2003, pp. 114 – 233.
3
Poder simbólico é um tema apresentado e discutido por Pierre Bourdieu em seu livro: O PODER SIMBÓLICO.
VOLTAIRE, O túmulo do Fanatismo. São Paulo, Martins Fontes, 2006.
ENTRE O MODERNO E O SAGRADO: ORDEM FAMILIAR NO DISCURSO
CRISTÃO (1931-1945)
1
O jornal ao longo de seus anos de atividade enfrentou inúmeros fechamentos (ora, por falta de verbas
para manutenção e em último episódio por atritos políticos). A manutenção do jornal ocorria através da
arrecadação das verbas e de pedidos em massas de ajuda da sociedade paraibana. O primeiro
encerramento ocorreu no ano de 1903 voltando a serem editados dez anos depois no dia 05 de agosto de
1912.
2
Ao longo do jornal é impossível não perceber os inúmeros anúncios/propagandas que convidam o leitor
para o comparecimento em estabelecimentos e esclarecimentos oportunos para o dia-a-dia. Pode-se
destacar entre os anúncios presentes no jornal – propagandas de advogados, médicos, hotéis, casas de
costura, tabelas da cesta básica, horários dos ônibus e trens, do preço da moeda, remédios milagrosos,
óculos entre outros.
intensamente através desta coluna, sendo algumas vezes representantes oficiais
desta parte do jornal. Os relatos literários variam desde poemas românticos,
códigos de condutas, religiosidades até receitas de comidas. A grande nuance desta
coluna era sua ingerência sobre a família, em resguardá-la dos pecados e das
futilidades (A Imprensa, 1934).
Ao falar sobre família é relevante esclarecer qual é o entendimento sobre
esta instituição. Neste sentido recorre-se a textos que versem sobre família na
primeira metade do século vinte com o intuito de verificar e compreender as
mudanças e permanências acerca desta instituição que se formou a partir de
modelos pré-concebidos. Contudo, apresento a definição de alguns tipos de família
para captação dos mecanismos que operaram (e operam), fazendo desta entidade
“pulsante” lugar permanente de transição.
A família pode ser pensada a partir de diversos aspectos como: unidade
doméstica, instituição, sobrevivência, laços fraternais e consanguíneos. É válido
ressaltar que inúmeros teóricos já perpassaram seus olhos por este campo que
para muitos é o princípio da nação. O termo família é conceituado diferentemente
nas mais variadas ciências como a Antropologia, Sociologia e não obstante na
História.
Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é um conjunto
de pessoas conectadas por vínculos de parentesco, sujeição doméstica, convivência
ou que reside em um único domicilio. A família passou por alterações, a figura
materna que era única e exclusivamente feita para o lar passou a protestar por
novos postos.
Segundo Freyre (1951 e 1953) que escreveu sobre família brasileira no
período colonial e concluiu-a como sendo família extensa e patriarcal. Esta família
versava a partir do regime patriarcal e a miscigenação das três raças3. Guiada pelo
patriarca, sendo função deste prover e defender a honra de todos os envolvidos.
Como esteio desta família o patriarca regulava, desde a família escrava até o
capataz e seus parentes. A casa grande era o palco central desta grande família.
Diferindo de Freyre, para Samara (2000) a família brasileira foi o resultado
do transplante e adaptação da família portuguesa e suas especificidades como:
normas, costumes e tradições às peculiaridades do Brasil – colônia. Logo o que
seguiu foi uma família patriarcal e conservadora. Samara ainda afirmou que o
modelo concebido a partir da estrutura Freyriana não se aplica a outras áreas do
Brasil que não seja o Nordeste, a exemplo de São Paulo que diferiu da estrutura
supracitada. A autora defendeu que este modelo aplicava-se a uma parte da
3
Ver FREIRE, Gilberto. Casa Grande e senzala (1980); Sobrados e Mocambos (1951).
população “o casamento era uma opção para apenas uma parcela da população”,
ou seja, nem todos tinham acesso aos padrões pregados por Freyre.
O que ocorreu foi à generalização de um único ideário de família para todos
os lugares do Brasil, sem reconhecer as especificidades de cada região (CORRÊA:
1993). Segundo Teruya (2000) outra teoria oriunda na década de vinte do século
passado nos Estados Unidos foi a Família nuclear, alicerçada principalmente nos
movimentos de urbanização e industrialização. Este novo pensamento fomentou um
novo modelo de família que constitui-se como padrão de modernização da
sociedade.
Para Cândido (1951) uma série de transformações ocorreram no seio
familiar e social alterando o modelo existente. Contudo, práticas de cunho
conservadoras continuaram a configurar-se na sociedade. O enfraquecimento do
modelo Patriarcal Extenso para o Nuclear Burguês ocorreu devido à urbanização e
industrialização. O controle a que restringia-se as famílias passou para as mãos dos
produtores econômicos e concomitantemente ao estado, comprometendo a relação
estável que existia entre os agregados da família.
Já no fim do século vinte, Almeida (1987) enfatizou dizendo que o modelo
de Freyre foi de suma importância como referencial para a sociedade brasileira, e
este modelo possibilitou confluir para o novo arquétipo nuclear, ou seja, esta “nova
– velha” família adaptou-se.
É acerca da organização familiar que inquire e perpassa a pesquisa, pois
compreender como a família paraibana vivenciou a transformação social e
econômica possibilita uma analise da abrangência ou limitação deste processo de
modernização. Algo corroborou para que o discurso conservador investisse sua
atenção, pois o núcleo noelista “levantou a bandeira” para proteger a família da
modernidade “o progresso do século vinte e a sua organização de vida vai cedendo
lugar os direitos que a muito lhe são devidos. A mulher apenas não deve se iludir
com a futilidade, ela deve ser caridosa e amável com todos, deve proteger a
instituição formadora da nação 4”.
É válido ressaltar que desde o século cinco a família deixou de ter o poder
em suas mãos, deslocando para Igreja Católica o poder de resguardar os princípios;
O Direito Canônico foi um modo utilizado pela igreja para normatizar as atividades
e contestar em nome de Deus quem operasse de forma contrária. Existindo assim,
uma dualidade que corroborava para que os chefes católicos investissem atenção e
cuidado. Segundo Fachin (2001) o casamento e a união familiar ganhou conotação
de respeito, ascensão e segurança, contrapondo assim a qualquer união familiar
que não tivesse as bênçãos clericais.
4
A IMPRENSA. Cultura Feminina. João Pessoa, pg. 8, 04/10/1936.
Logo, os dogmas católicos inferiram diretamente nas uniões e nas relações
pessoais. A sociedade do século vinte passou a aceitar os vínculos pessoais
remetendo-os como uniões estáveis, transformando os valores e costumes a uma
nova ideologia para o estado e sociedade. É a partir destas mudanças que o grupo
supracitado comprometeu-se em resguardar a moralidade Cristã.
Certeau (2002) foi de suma importância para utilizar e analisar os
documentos, pois torna-se necessário analisar quem o produziu, para quem
produziu e quais suas intenções, portanto fomenta-se neste trabalho a criticidade
e/ou problematização das fontes. Ao utilizar os textos foi possível compilar
resultados de negociações ou transações entre a invenção literária e os discursos
ou práticas do mundo social, ou seja, a literatura anuncia e difunde as mudanças
ocorridas na sociedade (CHARTIER; 1999).
Ao usar os textos dos periódicos supracitados abordam-se as tessituras
familiares e os embates com o processo de modernização social e cultural que
emergiu no século vinte. Utilizo a historiografia contemporânea, pois possibilita
formar narrativas e debates que foram “esquecidos” pela sociedade. Segundo
Hobsbawm (1997) o passado é uma extensão constante e permanente da
consciência humana, “um componente inevitável das instituições, valores e outros
padrões da sociedade humana”. Para o autor o passado e presente formam uma
continuação em que os seres humanos estão elados com os movimentos
transcorridos.
Entendimento como estes são frutos das transformações historiográficas
que coincidiram com as mudanças de percepções do mundo do presente, visto que
é a partir deste que se levantam questionamentos ao passado. A denominada “crise
intelectual” fomenta inéditos discursos, a emergência de outros olhares e com eles
novas problematizações. Com a emergência destes diferentes objetos, os
historiadores puderam deliberar sobre distintos campos do saber, para além da
hegemônica história econômica e social e, principalmente, medraram as
possibilidades de se pensar a história não mais como um todo, como um grupo
homogêneo, mas de investigá-la tomando como exemplo e exercício, casos
reduzidos. É a emergência da micro-história. O enfoque estava na redução da
escala de analise para poder investigar minuciosamente o objeto, “tal escolha
implica o recurso do uso da metonímia como figura metodológica de ação, o que
permite que, a partir do fragmento, consiga obter um espectro mais amplo de
possibilidades de interpretação” (PESAVENTO, 2005), ou seja, vendo no “micro”
possíveis respostas ao “macro”, sendo este representativo de um contexto mais
amplo.
A família paraibana conserva este arquétipo de preservação social? Na
contemporaneidade comumente encontramos na sociedade paraibana o apreço
religioso impregnado na essência social, o casamento, a família, a reprodução
marital alicerceis constantemente valorizados. Porém, para compreender esta
tradição marital e familiar torna-se necessário verificar/analisar como foi o processo
que fomentou esta “tradição” familiar. Segundo D’Assunção Barros (2009), o
arquivo tem voz própria que faz o historiador interagir e compreender dimensões
ainda desconhecidas sobre o homem no tempo.
Para estudarmos as tessituras acerca da família na Paraíba dispomos de
algumas fontes como: as estatísticas que são os registros paroquiais, civis e o
censo; as literárias que podem ser periódicos, livros, diários e cartas; as
normativas como: regras familiares e modelos de etiquetas e modelos religiosos.
Utilizamos em especial nesta pesquisa os periódicos, pois representam um vasto
campo de pesquisa que em sua maioria continuam intactos.
A partir disto perquirimos esta pesquisa através de três periódicos
substanciais, pois encontramos em suas narrativas vestígios e estigmas do tempo e
lugares sociais relevantes a pesquisa. Não consideramos as fontes literárias como
copia fiel daquele passado, contudo avaliamos e analisamos como algo que
possibilita a compreensão e a representação de um ideário de família.
Enfim, a seleção dos periódicos ocorreu em consonância com o acervo
sobre o movimento pesquisado e os discursos liberais e modernizadores que
“afastava-se” da moral vigente. Entre as fontes destaca-se em um grau mais
utilitário como já foi supracitado o jornal A Imprensa.
As outras duas fontes são os periódicos A União5 e Era Nova6. Para uma
maior compreensão das características do período a utilização do jornal estatal A
União, pois através de suas campanhas publicitárias destacava o que era e o que
deveria ser consumido por esta sociedade. Em face desta pesquisa desenvolver-se
no campo da sensibilidade e representatividade, elencar a revista Era Nova foi
oportuno, pois esta tinha um posicionamento noticioso e ilustrativo e trazia em sua
escrita um caráter moderno, aludindo às novas práticas da mulher e da família
moderna.
A renovação historiográfica desencadeada no século vinte possibilitou
novos olhares sobre a forma de ver o passado. Possibilitando uma versatilidade
sobre as fontes e os mecanismos para entrar em contato com passado. Para Bloch
(2001) a sociedade é dinâmica de acordo com seu tempo e suas especificidades;
5
Começou a circular em 1893, ocorrendo algumas interrupções devido a problemas políticos, porém
circula até os dias atuais.
6
Circulou entre os anos de 1921 1926.
existindo possibilidades múltiplas. Segundo Chartier (2002) a utilização de novos
objetos/fontes nas problemáticas históricas, representou uma gama de novos
territórios ao historiador.
Neste sentido, “Os objetos e as marcas deixadas pelo passado não traziam
em sim mesmo seu sentido”, Albuquerque Jr.(2007, 53; 54), nos incitou a pensar
quando em seu texto “História: A arte de inventar o passado” nos levou a refletir
como a história vem se constituindo enquanto ciência, como a mesma possibilitou e
possibilita o historiador a se questionar quanto à fonte que ele deve usar, ou seja,
“o passado não era o documento, nem os vestígios por ele deixado”. Neste sentido
torna-se imprescindível analisar como o historiador deve percorrer suas tessituras,
já que a fonte não é a história em si e que é tarefa do historiador é reavivar e
remover as memórias ocultas pelo silenciamento do tempo, memórias que foram
estigmatizadas, e que só poderão conhecer a “luz” da contemporaneidade através
de um historiador que tenha o “saber histórico e uma erudição previamente
adquirida”.
Desta forma, nos conduzimos por uma história problema tal como
denominada por L. Febvre marcada por questionamentos em relação ao fato, pela
formulação de hipóteses e indagações. Segundo Le Goff (1994) não existe
documento – verdadeiro; é necessário analisa-lo a partir de sua produção,
“desmontar, demolir” e desmistificá-lo sem esquecer da força inerente ao mesmo.
Logo, recorro aos textos produzidos pelo Núcleo Noelista para “desmonta-lo” e
analisa-lo em seu lócus e todas as reminiscências oriundas deste para adentrar a
essência de sua produção. Porém é válido ressaltar quando Le Goff afirma:
O documento não é inócuo. É antes de mais nada resultado
de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história,
da época, da sociedade que o produziram, mas também das
épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez
esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado,
ainda que pelo silêncio.
No que tange a nossa pesquisa as três fontes são de suma importância, pois
estas possibilitam enveredar através de sua escrita a códigos, condutas e práticas
que revestiram a família paraibana de preceitos. A representatividade da imprensa
no cenário nacional e local torna o jornal potencialmente importante, pois guarda
as memórias e as legitimam como verdade.
Ao analisarmos os periódicos é de suma importância compreender as
estratégias na qual ele foi formado, pois este foi escrito a partir de um propósito,
ou seja, a imprensa trata-se de um exercício político – ideológico que é influenciada
pelo seu meio social e histórico. Portanto, nos escritos jornalísticos não existe
imparcialidade, mediante que esta prática é substancialmente influenciável por
fatores externos. Mediante estas premissas este trabalho ocorrerá analisando os
aspectos sociais, culturais e econômicos desta sociedade em processo de
transformação.
BIBLIOGRAFIA
RESUMO
O Brasil define-se como Estado laico desde 1891. Até então, o catolicismo era a
religião oficial, e a única a ter permissão para manifestações públicas, uma vez que às
demais crenças só eram permitidos os cultos domésticos. Desde então, o tratamento
dado ao ensino religioso variou historicamente. O presente estudo é uma alternativa
ao ensino religioso, que não assuma cultos em particular, mas que se paute no
respeito à alteridade, constituindo-se como instrumento hábil para a promoção da
cidadania e reconhecimento da diversidade religiosa. Este trabalho insere-se no
contexto dos estudos acerca da viabilidade de um novo ensino religioso, nos moldes
acima relatados, em contraposição ao recorrente modelo confessional e tem como
objetivos demonstrar a importância do ensino religioso na formação cidadã dos
indivíduos, Analisar a atual situação do ensino religioso no contexto da rede pública de
ensino brasileira e propor ferramentas de efetivação dos parâmetros constitucionais e
legais para o ensino religioso brasileiro. O trabalho consistirá em pesquisa
bibliográfica, assentada na literatura específica e jurídica, somada ao levantamento de
dados para dar mais consistência ao estudo.
1. INTRODUÇÃO
1
Graduando em Ciência das Religiões pela UFPB. Membro do Grupo de Estudos FIDELID: Formação,
Identidade, Desenvolvimento e Liderança de Professores de Ensino Religioso. Email:
thalisson_pinto@hotmail.com.
2
Graduando em Direito pela UEPB. Membro do Grupo de Estudos Direito, Tecnologia e Realidade Social:
Paradoxos, Desafios e Alternativas. Estagiário do Ministério Público na Promotoria da Educação em
Campina Grande – PB. Email: camilo_diniz@hotmail.com.
Um dos temas mais sensíveis no que se refere à educação pública brasileira é,
sem dúvidas, a oferta do ensino religioso num Estado Laico. Embora a previsão
Constitucional vede a adoção de uma crença oficial por parte do Estado,
frequentemente este ensino encontra-se vinculado a uma doutrina religiosa específica,
apresentando cunho catequético, em detrimento da enorme diversidade cultural
presente em nosso território, contribuindo para o desconhecimento acerca da mesma
e para a perpetuação das opressões religiosas.
3
Ainda, por exemplo, eram inelegíveis aqueles que não professassem a fé católica.
decretada a laicidade do Estado (1890), como uma espécie de ruptura com a antiga
estrutura de vinculação entre a Igreja e o poder público.
Segundo Domingues:
3. CONSIDENRAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 2002.
1. Introdução
Inscrito num conjunto de pesquisas que têm renovado o interesse de estudo das
devoções e festas religiosas no Brasil (COUTO, 2008), o objetivo central deste trabalho
consiste em analisar os significados, as continuidades e rupturas do festejo do padroeiro
do município de São Bernardo, Estado do Maranhão, como também os acontecimentos,
personagens e lugares que marcaram a memória coletiva por meio da socialização
histórica ocorrida como um fenômeno de projeção ou de um determinado passado que
arrolam na memória lembranças, que podem ser uma lembrança pessoal, mas também
pode ter apoio no tempo cronológico. O material mobilizado como fonte de informação é
constituído fundamentalmente de entrevistas em profundidade realizadas com lideranças
comunitárias, moradores mais antigos, devotos e organizadores da referida festa,
contando ainda com pesquisa documental em livros, artigos, registros fotográficos,
documentos arquivados no Fórum municipal e documentário sobre essa festa religiosa.
Na medida em que a pesquisa avança, diversos outros materiais têm sido levantados de
arquivos pessoais, bem como novas entrevistas vêm sendo realizadas. De maneira geral,
este trabalho se situa em uma agenda de pesquisas sobre as configurações do espaço
religioso na Microrregião Baixo Parnaíba, região que abrange diversos outros municípios
além de São Bernardo3, e que vem sendo desenvolvida no Curso de Ciências
Humanas/Campus São Bernardo/UFMA.
No presente trabalho, parte-se do pressuposto de que a festa é uma produção
humana, submetida a diferentes visões, perspectivas e representações (ALBUQUERQUE
JR., 2007), que podem ocorrer em relação a eventos, lugares e personagens. Além disso,
há também o problema dos vestígios datados na memória, ou seja, aquilo que fica
gravado como data precisa de um acontecimento. Os relatos dos entrevistados sobre o
festejo fornecem, nesse sentido, um aporte fundamental tanto para apreensão das
1
Graduando do quinto semestre do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas na Universidade Federal do
Maranhão
2
Graduanda do quinto semestre do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas na Universidade Federal do
Maranhão
3
Microrregião do Baixo Parnaíba maranhense é uma das microrregiões do estado do maranhão pertencente à
mesorregião Leste Maranhense. Sua população foi estimada em 2006 pelo IBGE em 129.381 habitantes e está
dividida em seis municípios. Possui uma área total de 6.872.865 Km. Municípios: Água Doce do Maranhão,
Araioses, Magalhães de Almeida, Santa Quitéria do Maranhão, Santana do Maranhão, São Bernardo. Etc.
2
vínculos mantidos com o sagrado e a memória através das lembranças sobre dois
acontecimentos que os entrevistados associam à história do festejo: o roubo do santo e o
assassinato do padre Nestor. Ao término, voltaremos à questão da mediação entre
sagrado e profano.
dinheiro”. Nessa hora, são jogados bolos, biscoitos e pipocas para as pessoas que se
encontram no local onde o mastro é fincado.
Ao longo dos dias de festejo, e especialmente no dia 20 de agosto, nos quais se
concentram os momentos mais cerimoniais (missas, romarias, novenário, procissões),
desde a manhã pode-se ouvir as batidas da bandinha de música, animadas por pessoas
mais idosas (que, segundo os relatos, mantêm viva a tradição do “Padre Nestor, Senhora
Semíramis Coelho Lima (dona Mimi), Dona Nilza Coêlho, Francisco Coutinho de Almeida,
Bernardo Onésimo de Almeida, Adalberto Alves da Costa, dona Magnólia, dona Zina, José
Coutinho de Almeida e tantos outros”), e que demarcam a fusão da sacralização do
espaço festivo. O movimento se intensifica aos arredores do Santuário: a igreja fica
lotada de fiéis e romeiros para assistirem as três missas que acontecem pela manhã na
igreja Matriz. È nesta ocasião que os romeiros, fiéis e devotos pagam suas promessas e
acendem suas velas. No dia 20 também ocorre a esperada “Procissão”. Trata-se de um
dos momentos de maior afloramento da emoção. O objeto simbólico de maior
importância na procissão sai de seu Santuário em um andor ornamentado e conduzido
pelo próprio povo. As cantigas são as tradicionais do festejo: “Ó Santo Glorioso São
Bernardo, Padroeiro Sagrado desta Terra...” Uma multidão irmanada em torno do andor
acompanha todo o trajeto. Pagadores de promessas são vistos com suas túnicas beges
ou roupas brancas; pessoas descalças, crianças vestidas de anjos e pessoas rezando com
velas na mão são mais comuns. Ao longo da procissão, pode-se ver diversas casas
enfeitadas com flores, balões e panos brancos em suas portas e janelas, demarcando a
diluição das fronteiras entre vida pública e particular. Tendo percorrido o trajeto, na
chegada em frente ao seu Santuário, o andor pára por um instante: é o momento de
ouvir as palavras do Bispo, dos Padres e de um dos “Filhos da terra”. Findo o espetáculo
de fogos, a imagem é conduzida novamente ao altar. Nesse momento, diversos fiéis
aproveitam a ocasião para tirar as flores do arranjo para guardarem como lembrança em
suas residências.
Portugal. Porem, essa versão também conta com peculiaridades, como aquela na qual os
Jesuítas teriam escondido a imagem de São Bernardo numa “moita” e que, após a
mesma ter sido encontrada pelos índios gamelas da tribo Tupinambá, que habitavam a
região, foi interpretada pelos religiosos como um milagre. Para alguns dos entrevistados,
essa representação se apóia, inclusive, no próprio peso da transmissão memorialística
dos antepassados: “Todas essas histórias dos Jesuítas, vocês podem ter como verdade,
porque quem me contou foi meu pai, ele era autoridade, era de uma cultura fora do
comum, e ele passava tudo pra mim” (M.E.A.L). Tal acontecimento teria demarcado a
origem da devoção e da festa ao padroeiro para alguns. Para outros, no entanto, essa
origem é inverossímil como no seguinte depoimento:
Para Clifford Geertz (1989; p. 93), a religião nunca é apenas metafísica: em todos
os povos, as formas, os veículos e os objetos de culto são rodeados por uma aura de
profunda seriedade moral. Nessa perspectiva, qualquer ato ou ação que atinja tais
símbolos religiosos, sobretudo aqueles dramatizados em rituais e celebrações nas quais
detêm uma centralidade, afetam a coletividade como um todo e a dimensão simbólica e
afetiva que perpassa esses símbolos. Tal concepção ajuda a entender o porquê do roubo
da imagem de São Bernardo ser rememorado pelo viés traumático para os fiéis que
testemunharam tal acontecimento. Conforme a narrativa dos entrevistados, a trama se
desenvolve da seguinte maneira:
versão recai sobre o acusado a respeito do qual se dizia que “há uma semana praticava
nas carnaubeiras a pontaria da arma e que na hora em que mais precisa lhe havia
falhado”. Todas essas palavras teriam sido ditas logo após o ataque a vitima. No entanto,
essas versões não se reproduzem da mesma forma nas demais representações e relatos
de outros contemporâneos. Um dos suportes das demais explicações sãs as cartas que
foram enviadas pelo réu, após sua prisão, para duas supostas namoradas que o mesmo
teria. Sem adentrar em meandros que não nos interessam diretamente, ao que parece o
padre teria intervido anteriormente nessa dinâmica relacional, o que teria acionado a
cadeia de causalidades. O que fica evidenciado, em todo caso, é que na memória dos
entrevistados as explicações para o crime estão divididas: para alguns a memória das
testemunhas, de fato, nunca teria coincidido com o discurso e versões apontadas mais
tarde pelo próprio réu. Para outros, a narrativa oficial se confunde pelo próprio fato de
não explicar ou esclarecer a história. Uma outra hipótese explicativa desdobra-se pelo
estabelecimento de conexões entre dimensões da personalidade do padre (atributos
como “forte”, “veemente” são mencionados), suas tomadas de posição sobre diversas
questões (sociais, políticas, religiosas) e os riscos disso em um período crítico, como
aquele que caracterizou as décadas de 1960/1970.
Tudo isso que permite, enfim, atribuir uma aura enigmática ao acontecimento, a
reiteração narrativa do personagem nos relatos e a associação desses aspectos à
memória do festejo que é transformada, a um só golpe, em memória do lugar, de um
grupo, da matriz, da paróquia, da comunidade, etc. Assim, se por um lado essas
narrativas fazem parte do processo histórico-social de definição e gestão da memória,
por outro elas se encarregam de oficializar intencionalmente uma narrativa mítica na
qual se sobressai a própria importância do sujeito vitimado que representaria a própria
comunidade em todos os seus aspectos, sociais, culturais e políticos. Tal qual a imagem
do santo, o padre Nestor incorporaria toda a comunidade. Ademais, cabe ressaltar,
finalmente, que essas representações não deixam de ser o produto de agentes que eram
próximos ao pároco, que mantiveram relações mais ou menos diretas com o sacerdote e
que, atualmente na organização do festejo, estimam dar continuidade ao legado e
exemplo do estimado cônego Nestor.
Como nas demais festas religiosas cristãs que acontecem no Brasil a relação entre
o Sagrado e o Profano se estabelece em uma dinâmica indissociável. As manifestações
sagradas revelam-se nos ritos e cerimoniais que tentam transcender a fé do homem,
criando as dimensões entre o homem e o divino. Através das representações sagradas o
13
homem busca consolidar uma intimidade com aquilo que ultrapassa o humano. Ao
mesmo tempo nessa intima relação que o homem estabelece com o sagrado através de
ritos e ações de festejar divindades, o ambiente é transpassado pelo sagrado e pelo
profano. A religiosidade enraizada na cultura brasileira fez criar e recrear as
representações festivas em homenagens aos Santos. O modelo do cristianismo
encaminhado no processo de colonização fez florescer um ambiente embebido pelo
Sagrado e pelo Profano. A comunicação mística por meio de cerimônias sacras e outros
rituais buscam ultrapassar as barreiras do profano que se cristaliza tanto no individual
quanto no coletivo. Segundo Mircea Elíade (1992 p. 17) a relação entre o que é Sagrado
e o que se manifesta como contrário é o fato de que este se mostra como algo
completamente diferente. Dessa forma, o Sagrado e o Profano coexistem de diferentes
posições que são tomadas pelos indivíduos no ato festivo.
Um marco que mantêm viva as tradições festivas populares no município de São
Bernardo, identifica-se com aspectos culturais e costumes de manutenção da
religiosidade por meio do festejo de São Bernardo. Esta festa religiosa atrai milhares de
romeiros e devotos que alimentam a tradição e mantêm viva a ritualização e a fé
ocasionando transformações espaciais e culturais. São momentos de grandes vivencias
para os moradores da região que contemplam momentos da representação do sagrado
(missas, novenário, pagamentos de promessas e procissão) e do profano (festas
dançantes, leilões e outros) que acontece de maneira simultânea e não separados um do
outro.
REFERÊNCIAS:
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A história em jogo: a atuação de Michel Foucault
no campo da historiografia. In: História a Arte de inventar o passado. Bauru, EDUSC,
2007.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.
PRADO, Regina Paula dos Santos. Todo Ano Tem. As Festas na Estrutura Social
Camponesa. São Luís: PPGCS/GERUR/EDUFMA, 2007. 200 p.
PORTELLI, Alessandro. Ensaios de história oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010. 258p.
1
Ver: SANTOS, Cícero Joaquim dos. No entremeio dos mundos: Tessituras da morte da Rufina na
tradição oral. Fortaleza: UECE, 2009. (Dissertação de Mestrado em História).
5
Cacá Araújo em uma nota para o blog do Cariri conta que (BLOG DO CARIRI,
2011) vinha um vaqueiro de Pernambuco para a Floresta do Araripe. Ao chegar à Baixa
Rasa parou para descansar, este já estava exausto, fraco e faminto, e ficou por ali a
espera de alguém para lhe ajudar, aguentou ainda alguns dias com sua valentia de
sertanejo. O homem mesmo sem forças e com a vista turva, viu uns comboieiros
passando, gritou mais sua voz não foi ouvida. Um dos comboieiros lembra e comenta
com o colega que viu um homem caído a beira da estrada e voltam para ajudá-lo. Mas,
quando chegaram já era tarde, e o indivíduo tinha morrido,
o homem teve uma morte silente, testemunhada pelos pássaros e pelas plantas
que pareciam chorar diante daquele quadro de desventura. Encontram-no
sobre folhas secas, a cabeça escorada numa raiz de árvore, os olhos abertos
ainda reclamando um sopro de misericórdia. Fecharam-lhe os olhos.
Libertaram sua alma. Seu corpo foi enterrado ali mesmo, no encantado teatro
da agonia. Com varas da mata fizeram a cruz que cravaram em sua cova
(ARAÚJO, 2011).
Não se sabe se o indivíduo era vaqueiro ou não, e não cabe a nós tomarmos um
partido. Concordamos com a assertiva de Alessandro Portelli (2006, p. 106) que a
“tarefa do especialista, após recebido o impacto, é se afastar, respirar fundo, e pensar,
com o devido respeito nas pessoas envolvidas, nossa tarefa é interpretar criticamente
todos os documentos e narrativas...”.
De acordo com a família Firmino, hoje residente na Cidade do Crato, a
peregrinação à Cruz da Baixa Rasa se deu quando uma senhora conhecida por Pretinha,
moradora do Sítio Luanda – Barbalha/CE em 1914 fez uma promessa que, se a peste
(doença que assolava a região naquele momento) não atacasse sua família, faria uma
peregrinação ao espaço da Cruz todo dia 25 de janeiro. Daí, a sitiante obteve a graça e
até hoje seus descendentes celebram o monumento, já estando na quarta geração.
A celebração era organizada com um caráter bem simples, as pessoas iam bem
cedo à Cruz, rezavam o terço e voltavam para suas casas. Como relata Elvira Gadelha,
Com o passar dos anos, as pessoas foram tendo informações sobre o evento, e a
6
festa foi se ressignificando. Com a nova roupagem dada pelos vaqueiros, as pessoas
começam a se reunirem para a festa ainda de madrugada, por volta de cinco horas da
manhã, todos se reúnem em um bar, conhecido por todos como o bar do Wilson do
Lameiro, os vaqueiros vão chegando, todos vestidos com seus chapéus, botas e gibões
de couro. Músicas e aboios alegram a manhã destes que querem festejar. Os
organizadores da festa distribuem pães e caldo aos devotos e visitantes.
Parte dos vaqueiros começa a consumir bebidas alcoólicas antes mesmo de subir
a serra, é uma verdadeira festa, som ligado, as pessoas dançando músicas apaixonadas,
mostrando que o vaqueiro é um homem forte, guerreiro, se rendendo apenas quando
está apaixonado por uma mulher.
De acordo com a historiografia brasileira o termo vaqueiro é em geral
especializado no manejo do gado vacum. No Brasil o espaço para o surgimento do
vaqueiro ocorreu com a instalação das fazendas de gado no interior do Nordeste, no
século XVII. Entretanto, foi no longínquo sertão que essa figura adquiriu importância
social. Esta se efetivou graças à concentração da propriedade fundiária e do absenteísmo
próprios da economia local desde o período colonial (BRANDÃO, 2008, p. 127).
No interior do Nordeste nos meandros do século XVII, as fazendas
compreendiam ao mesmo tempo unidade de produção e espaço de residências dos
habitantes, as fazendas eram administradas por vaqueiros que, eram pessoas
juridicamente livres e trabalhavam sob a forma de parceria.
Nesta configuração de parceria o vaqueiro podia “sonhar” em elevar-se
socialmente, podendo comprar através de seus ganhos, uma porção de escravos e vir a
possuir um curral de gados, mas, na prática isso não acontecia. Neste período o
“vaqueiro tinha como função distribuir entre os moradores da fazenda as terras para a
agricultura de subsistência, também cabia a ele definição do local de residência dos
mesmos” (idem, p. 127). Ou seja, o vaqueiro conduzia o patrimônio do senhor sendo
responsabilizado pela manutenção e ordem da fazenda.
No campo o vaqueiro montado em seu cavalo era dono de seu tempo livre,
podendo se dirigir a lugares diferentes. “A ideia construída de vaqueiro é difusora da
liberdade de locomoção e possibilidades de “elevação social”. O vaqueiro é neste caso,
a personificação da liberdade que se admite grassar no sertão” (idem, 2008, p. 128).
Percebe-se na historiografia que aos poucos foi se construindo uma identidade
para o homem “bravo” do sertão, pelos seus traços marcantes. E, é nesse
direcionamento que a romaria da Baixa Rasa se torna diferentes de tantas outras.
7
Destacamos como a principal diferenciação a forma de vestirem-se; alguns dos devotos vão
com trajes de vaqueiros (calça jeans, botas, chapéu, pára-peito ou peitoral, perneiras, e
gibão de couros). Percebe-se neste sentido que, “a identidade é uma construção imaginária
que produz a coesão, permitindo a identificação da parte com um todo”
(PENSAVENTO, 2008, p. 90).
Para Joaquim de Sousa Teixeira (2011, p. 15) à identificação é o elemento
formal da festa, (as representações e crenças) os imperativos ou o porquê do rito, o para
quê, ou porquê da celebração, o objeto intencional da festa tem a primazia sobre o seu
elemento material (os ingredientes da festividade). Ou seja, a forma como as pessoas
vão à celebração ajudam nos processos de identificação.
Seguindo as prerrogativas de Kathryn Woodward (2005, p. 10-11) a identidade é
marcada por meios simbólicos e pela construção social. E, estes meios simbólicos são
assinalados pela diferença, ou seja, podemos associar uma pessoa pelo que ela usa, pelo
lugar que ela frequenta. Logo, constata-se que, a construção da identidade é tanto
simbólica quanto social.
Kathryn Woodward (idem, p. 12) pontua duas definições para identidade. A
primeira, uma definição essencialista é aquela onde todos partilham e que não se altera
ao longo do tempo. Já a segunda definição a não-essencialista está centrada na
diferença, ou seja, as pessoas mudam de acordo com o tempo.
Partindo por este viés, a romaria da Baixa Rasa está localizada nesta segunda
definição, onde a romaria em si se relaciona com a organização social, e, por sua vez,
seu tempo não é cíclico, “a função hermenêutica de inovação e tradição é, pois essencial
na questão da identidade” (TEIXEIRA, 2011, p. 22).
Outro fator que torna a romaria da Baixa Rasa diferente de tantas outras é a
cavalgada, a cavalgada deve ser entendida não apenas por que os devotos são vaqueiros,
mas também, uma forma de locomoção, visto que, a Floresta Nacional do Araripe é
situada a 20 km do Crato, um percurso considerado distante para as pessoas que vão a
pé. Pois, poucos são os carros que pode adentrar a floresta.
Neste caso, ir a cavalo também, é uma estratégia para chegar até o espaço
religioso, pois, nem todos que vão montados em cavalos são realmente vaqueiros, ou
tem a crença que ali se realiza milagres, há que ressaltar que muitos, em conversas ou
entrevistas, vão para o evento depois de conhecer através do intermédio de alguém a
história, e querem conferir o fato. Buscam também uma forma de divertimento.
8
Por volta de nove ou dez horas da manhã, além dos vaqueiros, sobem a serra,
devotos e grupos de cultura popular. O percurso é realizado a cavalo, a pé ou de carro.
O local da romaria encontra-se inserido na área que recobre a Floresta Nacional do
Araripe (FLONA). Este órgão visando a uma melhor organização da festa proibiu o uso
de bebidas alcoólicas naquela proximidade, desde o ano de 2005.
9
Meu pai fez uma promessa com a cruz quando teve um problema na perna,
sentiu uma dor na perna dele que estourou o osso mais ou menos em 1967 ou
1968 por ai, a perna doía totalmente, ele fez a promessa que se ficasse bom,
todo ano ele faria a limpeza do caminho da cruz e levaria os zabumbeiros...
essa promessa ele fez para levar uma perna de madeira se ficasse bom, levou
e ficou sendo devoto (Entrevista em julho de 2011).
Mirian uma das narradoras destaca que é devota da Cruz da Baixa Rasa há
vários anos, esta pediu uma graça e alcançou, quando perguntamos qual foi o motivo de
sua promessa. Ela ressalta que esqueceu, mas, sabe que alcançou a graça. “Tu acredita
que eu nem me lembro mais, o que foi, eu me esqueci o que foi, já pelejei muito pra me
lembrar mas eu alcancei a graça e fui durante dois anos...” (ENTREVISTA EM 2011).
Nesse sentido, é evidente o aspecto fragmentário da memória, Segundo Beatriz
Sarlo esse aspecto fragmentário decorre do vazio entre a lembrança e aquilo que se
lembra. Beatriz Sarlo acrescenta:
Essas razões evidenciam que na memória existem lacunas, que são incapazes de
reconstituir os relatos como um todo. Verena Alberti (2004, p. 16) pontua que não
“existe filme sem cortes, edições, mudanças de cenário. Como em um filme, a entrevista
nos revela pedaços do passado, encadeados em um sentido do momento em que são
contados e em que perguntamos a respeito”.
Alberti continua expondo que “ao combinar “vivido” e “concebido”
“concebemos” o mundo sempre de modo descontínuo, agrupando e relacionando
12
É através de uma visão que leva em conta uma inter-relação deste com o
“outro mundo que podem situar-se esperanças para rupturas de quadros
sociais fortemente hierarquizados no mundo dos vivos: “o outro mundo” é
13
BIBLIOGRAFIA
ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
ARIÈS, Philippe. História da morte no ocidente. Tradução Priscila Viana de Siqueira.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti (Org.) ; CAMURCA, M. A. (Org.) ;
DANTAS, R. (Org.) ; PINHO, M. F. M. (Org.) ; RAMOS, F. R. L. (Org.) . Padre Cicero
Romão Baptista e o fatos do Joaseiro Autonomia Politico - Administrativa. 01. ed.
Fortaleza: Senac Ceará, 2012. v. 02. 520p .
BRANDÃO, Tanya Maria Pires. O Vaqueiro: Símbolo da liberdade e mantenedor da
ordem no sertão. In: MONTENEGRO, Antônio Torres de. História, Cultura e
Sentimento: outras histórias do Brasil. Pernambuco: Editora UFPE, 2008.
CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 3.ed. Brasília:
INL/MEC, 1972.
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano:1. Artes de fazer. Tradução Ephraim
Ferreira Alves. 3ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução:
Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
______. Cultura Popular: revisitando um conceito historiográfico. Estudos históricos,
Rio de Janeiro, vol.8, n. 16, 1995, p. 179-192.
______. A Beira da Falésia: a história entre incertezas e inquietude: Porto Alegre:
UFRGS, 2002.
CORDEIRO, Maria Paula Jacinto. Entre chegadas e partidas: dinâmicas das romarias
em Juazeiro do Norte. 1. ed. Fortaleza: Imeph, 2011. v. 1000. 280p .
15
Nesta fala além dos códigos da Igreja propostos aos seus fiéis, podemos
observar uma imagem de gênero. A partir do padre, figura masculina, a mulher é
adjetivada como faladeira, que fala demais. Na medida que o homem tinha outros
espaços de falas, estabelecimentos de conversas, como a bodega, o bar, muitas vezes
restava a mulher o lugar da missa, espaço público, para estabelecer conversas e
relacionamentos com as amigas, até porque muitas não podiam vir ao eventos do
terraço de Zé Lourenço, nem frequentavam os forrós nos sítios circunvizinhos as
Braúnas/Baraúnas.
Também fica evidente na narrativa acima a marcação de um lugar para a
missa: o do silêncio dos fiéis, ainda possibilitando perceber que este lugar podia ser
burlado, podia ser movimentado para além da ordem estabelecida, mesmo correndo o
risco de ser chamado(a) a atenção diante de todos os participantes da celebração. A
saída da missa era o momento propício de encontrar e contar as últimas novidades
aos conhecidos, familiares e amigos, estabelecendo assim vínculos com a coletividade;
todavia, principalmente no que se refere ao gênero feminino, nem todas tinham esta
possibilidade, pois necessitavam de voltar urgentemente para casa para concluir com
os afazeres domésticos, o almoço ou a janta do marido. Além disso, a exposição ao
público podia ser considerada, por parte de alguns homens, um perigo a honra da
família.
Mas voltando um pouco no tempo, antes das missas e sociabilidades durante e
depois dela, convém notar uma prática das pessoas que vinham dos sítios
circunvizinhos. Para adentrar a missa, a capela, alguns destes sujeitos usavam do
lugar e do modo de vida que lhes era imposto cotidianamente, criando suas astúcias,
suas práticas do espaço. Propomos aqui um exemplo interessante das astúcias da
população que vinha de outros sítios/fazendas. Como o meio de transporte era muito
raro, nos finais da década de 1950 e início de 1960, até mesmo a bicicleta não era tão
comum, as pessoas tinham que ir, na maioria das vezes, a pé do seu sítio até a
capela, onde se realizaria a missa, chegando a percorrer, muitas vezes, quilômetros.
Como as estradas eram de areia ou barro, período de seca, e com lamas e
águas no período chuvoso, caso as pessoas já viessem com os sapatos de participar
da missa, ou de outro evento, chegariam com eles cobertos de poeira ou de lama.
Deste modo, a senhora Socorro de Zé Lourenço remete-nos a inventabilidade dos
sujeitos, aos usos do lugar que lhes era proposto,
Era no espaço fora da capela, ao redor da fogueira que moças e rapazes sob
suspeita de olhos vigilantes podiam estabelecer o flirt8. Os namorados e noivos
podiam estabelecer conversas com suas namoradas sob a vigilância dos pais ou de
uma senhora casada e ‘de respeito’. Os familiares e amigos conversavam entre si, e
ainda quem estava ali para cumprir os rituais sagrados até o fim, iria entoar os hinos a
Nossa Senhora. Não cessavam também os pedidos de casamento junto a Maria, já que
se estava no mês das noivas. Nada melhor do que pedir para que naquele ou no
próximo ano estivessem realizando o matrimônio.
A troca de alianças e a construção de uma família era um desejo a ser
alcançado por homens e mulheres no Povoado das Braúnas/Distrito de Baraúnas nas
décadas de 1950 e 1960, as últimas em maior intensidade que os primeiros. Neste
campo de atuação, o modelo de família seguia os padrões da sociedade brasileira dos
chamados anos dourados, como nos convida a perceber Bassanezi (2004, p.608-609):
Não, só pagava os zome, mulé não. Mulé vei pagá festa aqui
quisso é muito errado, viu. Olhe é muito errado esse negócio de
numa festa... eu quero vê qual é a festa que funciona sem tê
mulher. Num tem não, pruquê inté mesmo uma currida de gado
só vai si tiver mulher, né não?13
A partir desta narrativa, podemos notar que este senhor negocia os usos das
temporalidades a partir de um lugar socialmente estabelecido. Ele, na sua fala, produz
uma comparação de temporalidades distintas a partir de seu lugar hierárquico de
provedor do divertimento. Deste modo, é importante refletir que nos usos das
narrativas de memória há confluência de temporalidades diferentes, o que também
possibilita refletirmos que identidades foram construídas nesta sociedade ao longo das
décadas de 1950 e 1960, que ainda estão presentes junto às sensibilidades de seus
narradores.
Na fala do senhor José Galdino, outra colocação chama a atenção, no instante
em que ele diz “qual é a festa que funciona sem tê mulher”. Nisto podemos notar a
categoria relacional dos gêneros no espaço em festa, no momento que percebemos
que um gênero, o masculino, deseja ocupar o espaço festivo interessado na presença
do oposto. Desta forma, tanto o masculino quanto o feminino elabora a si na e através
da produção do outro.
Seguindo o caminho da fala do senhor José Galdino, para os homens a figura
feminina colocava-se como importante na festa, sobretudo pelo desejo da relação
entre os corpos14 durante o dançar e da expectativa do namoro, já que neste espaço
havia a possibilidade de um momento privilegiado para o contato físico entre os
gêneros, entre os corpos masculinos e femininos, ao contrário do que ocorria no dia-a-
dia da convivência social.
No caso das festas da padroeira, algumas moças destacavam-se ainda por
outro motivo. Era comum no dia-a-dia do universo feminino servir ao homem. Na
festa da padroeira não era diferente, contudo, algumas delas se destacavam aos olhos
do público nesta atividade, era o caso das garçonetes. Observemos a fotografia
abaixo, e em seguida a descrição dela feita por Socorro de Zé Lourenço:
A capela aparecerá como um lugar que adquirirá a partir dos sujeitos que a
usam histórias plurais, dependendo também dos eventos e práticas desenroladas
nela17, sejam elas sagradas e/ou profanas. Desta forma, passa a existir enquanto
espaço praticado pelos sujeitos, durante os atos de religiosidade e/ou sociabilidades.
Costumeiramente, definimos o sagrado como algo ‘santo’, ligado as coisas
divinas, a religião; em contrapartida, o profano seria o não sagrado, o que não
pertence à religião. Para Eliade (1992, p.14-15) “[...] o sagrado e o profano
constituem duas modalidades de ser no Mundo, duas situações existenciais assumidas
pelo homem ao longo de sua história.” Duas posições assumidas pelos sujeitos, que
necessariamente não precisam estar separadas no cotidiano, muito pelo contrário, no
caso das festas da padroeira relatadas aqui, o profano abraça o sagrado no espaço
praticado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BASSANEZI, Carla. Mulheres dos anos dourados. In: DEL PRIORE, Mary (org.).
História das mulheres no Brasil. 7.ed. São Paulo: Contexto, 2004. p.607-639.
BOURDIEU, Pierre. Sobre o poder simbólico. In: _____. O poder simbólico. Lisboa:
DIFEL, 1989. p.7-15.
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.).
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes,
2000.
REIS, José Carlos. O tempo histórico como “Representação cultural”. In: Revista
Sophie: A História Cultural em foco: Cultura, sociedade e sensibilidades. Recife – PE,
n.1, 2011. p.8-29.
SILVEIRA, Paulo Webber da. Guia dos namorados. São Paulo: Prelúdio, 1959.
1
Aluno da 1ª série da EEEM de Baraúna (2011).
2
Entrevista realizada em 02 de Agosto de 2011.
3
Entrevista realizada em 23 de Agosto de 2011.
4
No sentido de elegante; todavia, dentro de suas possibilidades econômicas.
5
Como a senhora Maria Amélia de Araújo Dantas (Socorro de Zé Lourenço) não se lembra da maioria das
datas das fotos que nos cedeu para digitalização, mas afirmou que foi do período que morava em Baraúna,
consideremos as que estão sem datação entre os anos de 1956 e 1968.
6
Entrevista realizada em 9 de Julho de 2011.
7
Entrevista realizada em 23 de Agosto de 2011.
8
“O flirt é uma troca de olhares. E’ talvez o início normal de quase todos os namorados, ou melhor, da
maioria deles. Muitas vezes, um homem atraído por uma mulher segue-a olhando insistentemente. Se o olhar
é correspondido, ele pode atrever-se a dirigir a palavra à mulher, e daí talvez resulte o namoro. Isso é o flirt.”
(SILVEIRA, 1959, p.5)
9
O pai da noiva era responsável direto pela maioria dos gastos do casamento, inclusive no que se refere à
festa.
10
Entrevista realizada em 02 de Agosto de 2011.
11
Entrevista realizada com Otília Mariano da Silva Souza em 09 de Julho de 2011.
12
Era como chamavam a quantia em dinheiro paga pelos homens ao mestre-sala, e/ou organizador da festa
(forró, bale ou samba), destinada a pagar o tocador e/ou sanfoneiro.
13
Entrevista realizada em 15 de Outubro de 2007.
14
“A produção do corpo se opera, simultaneamente, no coletivo e no individual. [...] Por essa razão, podemos
pensar no corpo como algo que se produz historicamente [...]” (GOELLNER, 2007, p.39)
15
Entrevista realizada em 23 de Agosto de 2011.
16
Devido a observação de que há nesta fotografia pontos luminosos, como que lâmpadas a iluminar o terraço
preparado para este evento, acreditamos que esta festa da padroeira seja entre os anos de 1966 e 1968, já que
66 foi o ano que chegou o motor para iluminar as Braúnas, e 68 foi o ano que Dona Socorro e seu Zé
Lourenço foram morar em Picuí, e Dona Socorro afirmou em entrevista que estas fotografias foram da época
que ela residia em Baraúna (nas Braúnas).
17
Aqui serve como referência os usos da capela enquanto espaço interno, porta adentro, quanto para além
deste, o lado de fora, a exemplo do terraço.
FESTA DO CARREIRO COMO PATRIMÔNIO IMATERIAL DO MUNICÍPIO
IBIRAJUBA (PE): HOMEM, HISTÓRIA E RELIGIOSIDADE
Resumo
A Festa do Carreiro no município de Ibirajuba (PE), tem sido buscada historicamente na
evocação de memórias, simbolismos e práticas culturais do homem do campo que faz uso do
carro de boi, haja vista que marca presença do plantio à colheita, à cultura festiva, a
religiosidade, à manutenção da vida com a básica produção agrícola no interior do
Estado, vinculando à tradição, sem perder de vista os impactos vivenciados. O carreiro,
nesse locus, se inter-relaciona à alimentação da população no cultivo do feijão e do milho,
ao transporte campo--cidade, à construção civil, às comemorações, às crenças. Na pesquisa,
busca-se compreender a relação passado-presente que envolve o carreiro, o carro de bois, a
relação como patrimônio imaterial no envolvimento sociocultural que ao tratar do labor no
campo traz continuidade à vida , atribuindo múltiplos significados que se revelam na
cultura festiva. Metodologicamente, buscamos registros de jornais locais, eletrônicos,
imagens em pintura, fotografias, poesias, assim como fizemos uso da metodologia oral, em
busca de memórias com entrevistas de sujeitos nessa história com a cultura local,
articuladas ao estudo bibliográfico. Neste cenário, a festa aproxima os carreiros de modo
mais visível na identificação religiosa com o padroeiro da cidade, conhecido no seio da
Igreja Católica como Santo Isidro, o lavrador, de modo a ser entendido que a Festa do
Carreiro possibilita uma revitalização das práticas socioculturais na mediação trabalho
homem-natureza e religiosidade. Essas práticas as representam, as identificam e reinventam
o passado, tornando-se bastante visível na primeira semana de dezembro, anualmente, no
espaço de religiosidade, ampliando no lugar o Carreiro em suas relações, com o
simbolismo religioso no Brasil em sua representação no Agreste Pernambucano.
Introdução
A palavra homem deriva deHúmus, chão fértil, cultivável. (Ecléa Bosi)
*
Licenciando em História UPE-Campus Garanhuns
**
Professora do Curso de História da UPE-Campus Garanhuns
formada por agricultores, decidiu trazer ao local a imagem de São Isidro da
Espanha, visto que é natural desse país, e padroeiro dos fazendeiros e
trabalhadores do campo (JORNAL TRIBUNA DO AGRESTE, 2013) . Foi denominado
padroeiro de Ibirajuba, São Isidro, Lavrador, portanto Patrono dos lavradores.
Situar o espaço econômico de Ibirajuba é também compreender que nesse
município é basilar no campo a produção agrícola, especialmente do feijão e do
milho, que são presentes na alimentação cotidiana local, além de pequena
comercialização que se expande pelos municípios vizinhos. No conjunto dos
trabalhadores de atividades agropecuárias, nesse cenário, há aqueles que vivem
de empregos públicos, assim como os pensionistas ou aposentados de maneira
geral. No campo, especificamente, estão os carreiros com os seus carros de bois
que fazem parte integrante de uma economia de subsistência, cujas relações
sociais são mediadas pela interação do homem com a natureza, a referida
produção.
Neste sentido, os carreiros se encontram também como agentes sociais que
atuam ainda no transporte para revenda e compra de produtos para sua
sobrevivência, apesar de identificados nos grupo de classes subalternas valorizam
as suas crenças, costumes, tradições, atribuindo significados à cultura do lugar.
Ginzburg vai interpretar que todos os povos mesmos que tardiamente reconhecidos
são portadores de cultura, assim expressando
Todavia, o emprego do termo cultura para definir o conjunto de
atitudes, crenças, códigos de comportamento próprios das classes
subalternas num certo período histórico é relativamente tardio e foi
emprestado da antropologia cultural. Só através do conceito de ‘cultura
primitiva’ é que se chegou de fato a reconhecer que aqueles indivíduos
outrora definidos de forma paternalista como ‘camadas inferiores dos
povos civilizados” possuíam cultura.’ (GINZBURG, 2006,p. 12).
Assim, a festa busca reviver tais tradições inventadas, uma vez que o
coletivo social evoca uma ligação de passado e presente por meio da Festa do
Carreiro, ao expressar a reafirmação das práticas culturais perante a sociedade,
numa ligação do homem com a História e natureza, quer seja pela sua ligação e ou
identificação direta com seu carro de boi, dentre outras práticas sociais
correlacionadas ao campo – cidade, mesmo que par isto não necessite de uma
longa duração na História.
Por sua vez, Hobsbawm vai defender que
O termo ‘tradição inventada’ é utilizado num sentido amplo, mas nunca
indefinido. inclui tanto as ‘tradições’ realmente inventadas, construídas
e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira
mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo –
às vezes coisa de poucos anos apenas – e se estabeleceram com
enorme rapidez. (Hobsbawm, 1997, p.9)
A relação cidade campo mediada pela crença religiosa: São Isidro Lavrador
na representação local de trabalhadores
Além do reconhecimento e identificação por parte da sociedade e do próprio
carreiro, em relação ao padroeiro da cidade, Santo Isidro, homem do campo,
humilde e simples (Séc.XI-XII) como madrilenho que teve uma vida honesta
ajudando ao próximo. Esse reconhecimento, tanto pelo carreiro como pela
sociedade, se imbricam durante os atos religiosos, formando uma identidade deste
homem do campo com o padroeiro do município de Ibirajuba Isidro, que em sua
história de vida, também fora agricultor.
No decorrer de outro depoimento de Justino Izidoro, já referido entre os
entrevistados, morador residente no município de Ibirajuba, este diz sobre essa
relação do Santo Isidro com os Carreiros:
A história de Santo Isidro, se agente for atrás, ele nasceu... ele era na
verdade um carreiro da Espanha ele era um carreiro, né Santo Isidio,
vivia da agricultura e trabalhou muito... e acho não sei, é um dom a
vida da gente, e eu tive a felicidade de estar nessa festa, onde ele é o
padroeiro, onde ele foi uma das pessoas, que foi agricultor e que
trabalhava também com o carro de boi. (JUSTINO IZIDORO,56
ANOS(sic)
Portanto, percebe-se que a relação do padroeiro, São Isidro, Lavrador, com
os carreiros não foi premeditada pelo fundador da festa, na origem do berço do
padroeiro, o que bem revelou ao certo foi que este era agricultor. O carreiro
Geraldo Paulo Ferreira, em seu depoimento mostra que a festa é muito importante
para a categoria de carreiros, quando diz
Na festa, todos nós carreiros ficamos com bastante alegria, na
passeata com todos carros de bois, pra mim é muito importante. Santo
Isidio era agricultor, nós comemoramos essa Festa do Carreiro
colocando Santo Isidro, também [. ]seguindo a tradição de São Isidro,
(GERALDO, 62 anos).
1
Poema cedido: Por Padre Ednaldo Alves da Silva da Paróquia de Santo Isidro-Ibirajuba (PE),
presente em seu acervo no período.
Portanto, nesse verso se pode perceber que tanto no campo como na
cidade, o carro de boi, foi transporte principal da sociedade ibirajubense em sua
fundação. O jornal do município de Lajedo (PE), denominado de O Jornal, traz
pequena reportagem que fala obre a Festa do Carreiro, e a importância do
carreiro, mesmo antes da fundação do município de Ibirajuba (PE), que diz: “A
presença do carreiro no município é muito antiga, pois mesmo antes da
emancipação e quando ainda não existiam veículos motorizados, o carro de boi já
fazia parte do cotidiano local, seja na zona urbana quanto na zona rural sendo o
principal meio de transporte” (O JORNAL, nov. 2010: 09).
2
Documento Código do Carreiro cedido: Por Padre Ednaldo Alves da Silva da Paróquia de Santo
Isidro-Ibirajuba (PE), presente em seu acervo no período.
, que caminha como Patrimonio imaterial a ser compreendido aos ibirajubenses,
também aos pesquisadores e assim ao público.
Referências
ALVES, Isidoro M. da Silva. O Carnaval devoto. Um estudo sobre a Festa de
Nazaré, em Belém. Petrópolis, Vozes, 1980.
AMARAL, R.C.M.P. Festa à Brasileira Significados do festejar, no país que
“não é sério”. São Paulo: Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas Departamento de Antropologia, 1998.
BRASIL,Constituição Federativa do Brasil.Brasííia, 1988.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis
(RJ): Vozes, 1994.
CENSO DO IBGE, 2010.
CHAUI, Marilena. Público privado, despotismo. In: Ética. Org. Adauto Novaes. SP,
Cia das letras, 1992.
DELGADO, Lucília Delgado Neves. História, memória e e identidades.
DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiografia: memória, identidade e
representação. BAURU (SP): Edusc, 2002, p.342.
FUNARI,Pedro.
GASPAR, Lúcia. Carro de boi. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim
Nabuco, Recife. Disponível em: < http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/>.
Acesso em: 04 de Julho de 2012.
GINZBURG, Carlo, 1939. O queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um
moleiro perseguido pela inquisição/ Carlo Ginzburg; tradução Maria Betânia
Amoroso; tradução dos poemas José Paulo Paes; revisão técnica Hilário Franco jr. –
São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
MACHADO, Tomaz Maria Clara. (Re)significações culturais no mundo rural
mineiro: o carro de boi – do trabalho ao festar (1950-2000). Revista
Brasileira de História. São Paulo, V.25, n°51, p.25-45 – 2006. Disponível em:<
http://scielo.br/pdf/rbh/v26n51/03.pdf>. Acesso em: 04 de Julho de 2012.
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e
Terra, 1997.
RESUMO:
Este ensaio é parte da Dissertação de Mestrado que busca historiar os diversos momentos
festivos que ocorriam em Santo Antônio de Jesus/BA entre 1910 e 1950. Tem-se por
objetivo estudar as festas religiosas como espaços de sociabilidade e solidariedade, visa
ainda analisar a participação da população nos diferentes espaços dedicados a estas festas.
Utilizamos como fontes jornais e entrevistas. Observamos ate o momento que a realização
dessas festas envolvia o espaço religioso e o espaço adaptado ao seu contexto, que estão
vinculados a um espaço social, convencionalmente chamado de sagrado e profano, que são
o local de comunicação da festividade religiosa, pois, quando há oportunidade estes
espaços interagem. Assim, estas festas eram também espaços onde os rituais sacros
interagiam com outras manifestações, e, constituíam-se em um momento no qual os
costumes cotidianos se reelaboravam e subvertiam determinadas ordens e fronteiras
sociais.
Ensejamos pensar que sim, claro que este é um exemplo maravilhoso do festejar,
com a presença de quase todos os elementos que compõem uma festa, entretanto podemos
considerar outros momentos de divertimento e gozo como festa, como as conversas de fim
tarde, a campanha eleitoral, o cinema, futebol, o jogo, o almoço em família, e quem sabe
até o trabalho, pois ao observarmos atentamente estes momentos podemos encontrar a
maioria dos componentes festivos; a música, a comida, a reunião de pessoas, o riso fácil, o
grotesco, as sociabilidades, a bebida, os conflitos, os lugares preestabelecidos e as
diferenças sociais.
Desta forma, propomos pensar a festa, sem pretensão de generalizar ou reificar
termo tão polissêmico, as inúmeras formas de se divertir, de festejar, que nos momentos
fúlgidos em que ocorrem contemplem a maioria dos elementos que acreditamos ser a
própria festa, oportunidade de descanso, distrações, contentamento, confraternização,
sociabilidades e até conflitos. Além de fornecerem importantes informações sobre o
fenômeno de circularidade cultural e da sociedade estudada.
Portanto, em Santo Antônio de Jesus, o cotidiano era composto por várias formas
de festejar; entretanto, é importante destacar que alguns espaços eram mais elitizados, onde
apenas os mais abastados podiam frequentar e outros, mais populares, como as festas de
momo e religiosas, que atraíam várias pessoas e representavam a convivência entre os
diversos grupos sociais que compunham a cidade.
É importante destacar que neste trabalho daremos destaque apenas às festas
religiosas em comemoração a São Benedito, Santo Antônio e São João que ocorriam em
Santo Antônio de Jesus, abordaremos ainda de forma breve a festa de Cosme e Damião.
“As atividades religiosas eram as mais ordenadas. Os presépios de Guilhermina, que
morreu em 1940, despertavam interesse dos roceiros e dos cidadãos” (ALVES, 1967,
p.295).
As atividades religiosas faziam parte do calendário festivo de Santo Antônio de
Jesus. Como observamos na citação acima as festas eram ansiosamente esperadas pelos
moradores, Dona Venância, em seu depoimento, afirma a sua preferência pela festa de
Reis,
Quando mocinha, nós morava na roça, eu gostava era da festa de Reis,
papai levava a gente para a casa de um compadre dele que era aqui na
cidade... e não me alembro mais onde ele morava, e nós ficava lá a
semana toda, tinha baile, quando os rapazes queria dançar com a gente
jogava um lencinho no chão, ai se a gente pegasse estava liberado podia
dançar (risos) e se deixasse o paninho lá caído eles voltavam pega o pano
e se entufava6.
Nota-se, que, nas festas religiosas, o espaço era compartilhado por todos: pobres e
ricos, pretos e brancos. Entretanto, em um ambiente de suposta liberdade, as diferenças
sociais estavam bem delimitadas, “À frente do cortejo, o pároco e demais eclesiásticos,
dividiam espaço com a elite local que geralmente eram os escolhidos para fazerem parte da
comissão da festa a cada ano” (SANTOS, 2007, p. 128). Mesmo diante desta realidade, a
população pobre não deixava de comparecer nesses festejos, cada um marcava seu lugar na
luta pela conquista do seu espaço.
Assim sendo, se em alguns momentos as festas religiosas simbolizavam a
participação de todos, algumas ações, em contraposto, caracterizavam-se por reproduzir
dependências, conflitos e diferenças sociais.
A festa de São João era mais uma das festas do calendário religioso que agitava o
cotidiano dos santoantonienses, para Maria Rosa, a festa era boa tanto na cidade quanto na
roça:
Para as pessoas da igreja todos os esforços eram para São João, todas as
homenagens prestadas era para ele, até pular a fogueira. Às vezes quando
eu era criança nós íamos para a festa de São João na roça. Era uma
fartura, tinha milho, amendoim, galinha cozida, a gente não ficava só em
uma casa visitava também a casa dos outros amigos. Depois de um tempo
nos não íamos mais para roça, mas aqui na cidade tinha tudo isso
também. Mais também tinha algumas pessoas que iam pra missa e depois
ia atrás de dançar, beber e jogar. Ia mesmo era para fuzarca11.
É válido ressaltar que estes espaços que envolvem o templo e o entorno estão
sempre vinculados a um espaço social, onde os sujeitos ali presentes, em sua maioria não
demarcavam fronteiras entre estes espaços, convencionalmente chamado de sagrado e
profano, categorias que sugerem oposição e dualidade, sendo que estes espaços são, ao
mesmo tempo, o local de comunicação da festividade religiosa, visto que, quando há
oportunidade estes espaços interagem entre si, pois os participantes ali presentes viviam a
festa em sua totalidade, com todos os elementos que a constituem.
A festa de Cosme e Damião também apresentava este misto constituinte das festas
religiosas. A celebração em homenagem a esses santos ocorre no mês de setembro, e na
festa, havia o costume de distribuir doces para as crianças, oferecer caruru e rezar
ladainhas. De acordo com Santos:
A festa das Rezas de Cosme muitas vezes durava toda a noite e se
estendia até a manhã do dia seguinte com sambas, batucadas, às vezes
incorporações de santos e caboclos e outros signos e emblemas que fazem
parte do universo das religiões brasileiras de matrizes africanas ou
indígenas. Essa dinâmica reafirmava as diferentes convicções religiosas
dos vários sujeitos que faziam aquela festa, ao passo que balizava
fronteiras e ligava possíveis oposições entre o mundo profano e sagrado
daqueles indivíduos. (Santos, 2007. p. 138)
O anúncio acima nos traz várias informações sobre a festa na cidade, no período
estudado, a exemplo do local onde seria realizado o caruru; na Rua Maria Nunes,
conhecida na cidade como morada de negros e alvo de constantes batidas coercitivas.
Outra característica observada na programação é que, após a ladainha, haverá modinhas
cantadas pelos jovens Manoel Jambeiro e Alvorino Vargas, além do Candomblé.
Como os jornais também funcionavam como agentes moralizadores e as práticas
religiosas da população negra eram comumente vistas como incivilizadas e perigosas, era
comum a perseguição e a repressão às pessoas que professavam essas religiões14.
Por isso, é possível que o anúncio não tenha sido escrito por um morador da Rua
Maria Nunes; Gracindo poderia ter sido apenas o pseudônimo de um jornalista do
periódico que tivesse exagerado na dose de humor colocado no anúncio ou estivesse
estigmatizando as manifestações religiosas da população negra santoantoniense. Não
obstante, independente de o anúncio ter sido verídico ou não, através dele podemos
verificar algumas características das festas dedicadas a Cosme e Damião.
Notamos ainda, que havia nas festas dedicadas aos Santos gêmeos, a possibilidade
de uma intensa imbricação de outras religiões como o Candomblé, demonstrando que os
indivíduos ali presentes experimentam diferentes formas pertencimento a religião - ou
religiões -, assim, ao ser candomblecista não significava rejeitar alguns preceitos do
catolicismo, ou de outra religião, e vice e versa, e sim, a possibilidade de imbricar dois
saberes religiosos, através de uma relação de complementaridade, sem uma relação de
dualidade ou oposição.
É valido ressaltar, que essas possibilidades de imbricamento existiam, entretanto,
muitas vezes os rituais católicos foram utilizados como formas de resistência, ou seja, a
população negra sabia como eram vistas as suas práticas e muitas vezes se apropriavam
destes rituais para poderem manter viva, mesmo que reconfigurada as suas manifestações
religiosas.
Outra comemoração de rito religioso que atraía muita gente eram os batizados,
ocasiões especiais em que compadres, comadres, familiares, vizinhos e amigos se reuniam
para celebrar o acontecimento com muita comida e bebida.
Segundo Venância:
Quando nós éramos convidados para um batizado, nós íamos para ficar
na casa da pessoa que convidou. A festa começava num dia e terminava
no outro. Todo mundo dançava e se divertia até de manhãzinha. O dono
da casa dava café e até almoço. As festas daquele tempo não eram como
as festa de hoje15.
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local/UNEB-CAMPUS V. Graduada
em Licenciatura em História pela Universidade do Estado da Bahia-Campus V. Orientador: Raphael
Rodrigues Vieira Filho. Bolsista CAPES. liulimab@hotmail.com.
2
Sobre estes termos consultar AMARAL, Rita. Para uma antropologia da festa: Questões metodológico-
organizativas do campo festivo brasileiro. Festa como perspectiva e em perspectiva. Org.: Lea Freitas Perez,
Leila Amaral, Wania Mesquita, Editora: Garamond, 2012, p. 69-86.
3
Para Sigmund Freud festa é um excesso permitido, ou melhor, obrigatório, a ruptura solene de uma
proibição. (Freud, 1974: 168). Segundo Durkheim, as principais características de todo tipo de festa são: (1)
— a superação das distâncias entre os indivíduos, (2) — a produção de um estado de “efervescência coletiva”
e (3) — a transgressão das normas coletivas. De acordo com Jean Duvignaud festa é ruptura, anarquia total,
poder subversivo, negador, que perpassa todas as culturas como grande destruidor. Festa como perspectiva e
em perspectiva. Org: Lea Freitas Perez, Leila Amaral, Wania Mesquita, Editora: Garamond, 2012.
4
O Dicionário Eletrônico Aurélio Eletrônico Século XXI, versão 3.0 , registra os verbetes: festa, festas,
festança, festão, festarola, festim, festejo, festival, festividade, festivo, festo, folguedo, folgança, folia, fufia,
fuzuê, banga, banzé, brincadeira, brinquedo, comemoração, refestelo, zambê e mais os verbos festejar, foliar,
enfestar e festar. O Dicionário Eletrônico Houaiss, versão 3.0, registra, além dos mencionados acima os
verbetes balacobaco, bochinchada, esbórnia, evento, furdunço, jiquipanga, oba-oba, e solenidade como
sinônimos de festa.
5
Para saber mais sobre o assunto ler REIS, João José. A Morte É uma Festa: Ritos Fúnebres e Revolta
Popular no Brasil do Século XIX.
6
Dona Venância Maria dos Santos, 95 anos, aposentada, moradora do Bairro Irmã Dulce. Depoimento
concedido no dia 01/10/2011.
7
Maria Rosa Soares, 90 anos, aposentada, moradora do Bairro Irmã Dulce, Santo Antônio de Jesus.
8
Maria Gonçalves, conhecida como Maria de Xangô, 92 anos, aposentada, moradora da URBIS 02, Santo
Antônio de Jesus - Bahia.
9
Festividade religiosa. O Palládio. 02 de Jun. 1939. AP.
10
A Festa do Padroeiro. O Paladio. 11 de Jun. de 1949. AP.
11
Maria Rosa Soares, 90 anos, aposentada, moradora do Bairro Irmã Dulce, Santo Antônio de Jesus.
12
A festa do padroeiro. O Paladio. 14 de Jun. 1945. AP.
13
Festa de Cosme e Damião. O Detetive. Santo Antônio de Jesus. 09 de Setembro de 1950. AP.
14
Sobre as perseguições às pessoas que professavam religiões de matrizes africanas ver o trabalho SANTOS,
Denílson Lessa. Nas encruzilhadas da cura: crenças, saberes e diferentes práticas curativas – Santo Antônio
de Jesus- Recôncavo Sul – Bahia (1940-1980). 2004. 241p. Dissertação (Mestrado) - Programa de pós-
graduação em História na FFCH, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004.
15
Venância Maria dos Santos, 95 anos, aposentada, moradora do Bairro Irmã Dulce. Santo Antônio de Jesus
– Bahia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Livro:
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. Santos, deuses e heróis nas ruas da Bahia:
identidade cultural na primeira república. Revista Afro – Ásia, Salvador, n. 18. CEAO –
UFBA. 1996.
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da folia: Uma história social do Carnaval
carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Capítulo de livro:
GUARINELLO, Norberto Luiz. Festa. Trabalho e Cotidiano. In: JANCSÓ István;
KANTOR, Iris (org.). Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo:
Hucitec/ Editora da USP/Fapesp/Imprensa Oficial, v, v 1, 2001.
Artigo:
AMARAL, Rita. Festa à Brasileira - Sentidos do festejar no país. Ed. e-books Brasil,
2001.
Tese ou dissertação:
SANTOS, Hamilton Rodrigues dos. Vidas nas fronteiras: práticas sociais e experiências de
feirantes no Recôncavo Sul da Bahia: Santo Antônio de Jesus 1948-1971. Dissertação de
Mestrado. Santo Antônio de Jesus, 2007.
Artigo na internet:
FRESSATO, Soleni Biscouto. Cultura popular: reflexões sobre um conceito complexo. In:
O sagrado é profano na Bahia. Imagens e representações da cultura popular. Oficina
Cinema-História Núcleo de Produção e Pesquisas da Relação Imagem-História. 2009.
www.oficinacinemahistoria.org. Acesso em 24/02/2013.
I Simpósio Regional Nordeste da Associação Brasileira da História das Religiões – Campina Grande
– 28 a 31 de maio, 2013.
Resumo
O presente trabalho busca mostrar como o fenômeno da romaria e ex-votos na
Serra do Pedro localizada na cidade de Lagoa do Ouro- PE ganhou força através
da oralidade e como a crença influencia na vida dos fiéis. O tipo de fé praticada
no local se caracteriza como catolicismo popular, comum no Brasil. Se trata de
um fenômeno que ocorre no âmbito regional e se inicia, em geral, através da
oralidade. Dessa forma, o trabalho foi desenvolvido em sua maior parte através
das entrevistas orais feitas com romeiros e moradores dos arredores do local.
Sumário
1. Introdução
1
Autora –Graduanda em Licenciatura em História (UPE-Campus Garanhuns)
² Coautora – Graduanda em Licenciatura em História (UPE – Campus Garanhuns)
³ Orientadora – Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História (UFPE)
I Simpósio Regional Nordeste da Associação Brasileira da História das Religiões – Campina Grande
– 28 a 31 de maio, 2013.
2. Romaria
3. Peregrinação até a Serra do Pedro
4. Profanação sacralizada
5. Relatos sobre milagres e ex-votos na Serra do Pedro
6. História oral
7. Memória e história
1. Introdução
2. Romaria
Dessa forma, ex-votos são deixados na capela e romarias são feitas até a
Serra, assim os milagres continuam a acontecer e a fé nesses milagres continua a ser
repassada.
Por haver uma presença muito forte do catolicismo na cidade, grande parte das
festividades da cidade é realizada em comemoração a alguns santos, com isso, não
poderia ser diferente a festa em homenagem ao santo que operou e opera segundo as
narrativas dos moradores uma série de milagres na cidade, São Pedro.
Não há uma história precisa que conte o início das romarias e promessas até a
Serra Pedro, porém os relatos de milagres atribuídos ao Santo são dados pelos mais
diversos moradores das mais variadas idades. O que podemos concluir pelos relatos
recolhidos, é de que essa devoção tem mais de cem anos.
Conta-se que por volta de 1900 ocorreu uma doença que estava matando
muitas pessoas. Nos relatos, ela foi denominada com os seguintes nomes: peste do
rato, bubônica e febre espanhola. Quanto ao nome dado à doença, os entrevistados se
mostraram confusos, mas a história contada sobre o milagre que deu origem a capela
foi unânime. A doença assolava a cidade e muitas pessoas estavam morrendo.
A crença na história é tão forte que fica perceptível até mesmo conversando
com os entrevistados. A presença do mal para os cidadãos da localidade se encontra
até mesmo nos relatos sobre doença. Durante o trabalho de campo, algo que chamou
atenção ao entrevistar Seu Xito, foi a presença da sua esposa, Dona Olívia, 75 anos,
que juntamente com o esposo nos cedeu algumas informações, essa sempre que
falava o nome da doença ou sobre a doença, falava antes “ave maria, ave maria”,
comportamento esse que pode ter sido repetido por ela quando reproduzido em outra
geração. O que nos lembra do que Hobsbaw fala sobre ritualização e repetição dos
costumes.
Seu Xito mora na Serra há 75 anos, é um dos bacamarteiros vivo mais antigo
da cidade, e comemora a festa de São Pedro juntamente com outros bacamarteiros
atirando com suas riunas2. Geralmente na região do Nordeste o ritual do Bacamarte
tem caráter religioso, neste caso acontece com intenção de celebrar e agradecer os
milagres realizados pelo santo. Sobre Festas e atos religiosos Egidio Vittorio Segna
1977 diz que: “Em correlação a falta de padres na área rural, a prática religiosa dá
ênfase a ritos não-sacramentais e menos ligados à ortodoxia da Igreja oficial. As
grandes festas religiosas atraem a populações dispersas.[...]As praticas religiosas que
refletem o alto nível da sacralidade da cultura local, podem ser assim resumidas em:
procissões, promessas, acender velas, atos de devoção a santos, rezas, romarias ao
santuários, mandar rezar missas, depor ex-votos nas igrejas, devoção aos defuntos,
bênção de objetos etc.” O meio social cristão encontram suas maneiras para
manifestar a gratidão, culturalmente as festas carregam esse poder ritualístico.
Na Serra havia somente um cruzeiro que foi posto no local por haver uma
lenda de que São Pedro apareceu naquele local. E por esse motivo, a Serra recebe o
mesmo nome do santo. Não conseguimos saber por meio dos relatos e pesquisas a
média de tempo em que o cruzeiro foi erguido na Serra. Mas, sabe-se que a
2
De cano curto e largo, também conhecida como granadeira, reiuna, reuna ou riuna. As granadeiras ou bacamarte foram
usados pelos soldados Nordestinos na Guerra do Paraguai, em 1865. Elas foram modificadas para que as armas se
adaptassem ao uso dos bacamarteiros nos festejos.
I Simpósio Regional Nordeste da Associação Brasileira da História das Religiões – Campina Grande
– 28 a 31 de maio, 2013.
construção da capela levou a remoção do local primeiro do cruzeiro para outro ponto
da serra, onde está localizado atualmente.
Não há registro sobre o ano de construção da capela, nem quanto tempo essa
levou para ser erguida, mas sabe-se que Maria do Xingó e Sr. Odilon construíram a
capela juntamente com outros fiéis. Com relação à construção da capela, o Sr. Pedro
Barbosa de Lima, com 74 anos, sobrinho de Dona Maria Xingó e Sr. Odilon, relatou
que a capela foi construída por Sr. Odilon depois que seu pai (do senhor Pedro), irmão
de Sr. Odilon, falecido por causa da doença, apareceu em sonho para ele (Sr. Odilon)
pedindo para que esse construísse uma capela na Serra em homenagem a São Pedro,
pois assim a doença deixaria de assolar a região. Dessa forma, a capela foi construída
I Simpósio Regional Nordeste da Associação Brasileira da História das Religiões – Campina Grande
– 28 a 31 de maio, 2013.
com a ajuda de outros habitantes, mas o Sr. Odilon e Maria do Xingó como os
personagens principais dessa construção.
4. Sacralização profanada
Mircea Eliade diz que; O homem toma conhecimento do sagrado porque este se
manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. (pg. 17) O autor
dá o nome de hierofania a questão da sacralização de algo dito como profano; uma
árvore, uma pedra, um lugar.
Dona Maria do Carmo Ferreira, conhecida como Carminha tem 67 anos e mora
aos arredores da Serra faz 40 anos em média. Relatou que sempre que está com
algum problema faz uma promessa para o santo. Certa vez, ela havia levado uma
pancada na perna, onde a ferida estava incomodando muito e não sarava há tempos.
Prometeu que se fosse curada irei levar fogos para soltar no alto da Serra e velas para
acender na capela. A mesma já levou ex-votos quando estava com um problema na
mão, entre outras promessas que ela disse sempre fazer.
I Simpósio Regional Nordeste da Associação Brasileira da História das Religiões – Campina Grande
– 28 a 31 de maio, 2013.
Alikaely de Araújo Barros com 18 anos de idade, mora na Serra faz 14 anos e
ajuda a cuidar da capela. Relatou sobre sua promessa:
Outros entrevistados relataram não fazer promessas, mas dizem que veem
muitas pessoas que fazem.
6. História oral
Trabalhar com oralidade requer muito cuidado pelo fato de tratar-se de relatos
de memória. É comum a pessoa que está sendo entrevistado apresentar alguma
dificuldade para lembrar-se do fato corretamente, além do que, os mesmos fatos
podem apresentar versões diferentes se for descrito por mais de uma pessoa, pois o
entrevistado trará consigo não só o relato do fato, mas suas crenças e formações
pessoais. Logo, o trabalho com entrevista oral deve ser cuidadoso quanto à análise do
que virá a ser o fato histórico contado na pesquisa.
Podemos perceber que com o passar do tempo a história oral vai ganhando ou
perdendo elementos. Podemos demonstrar isso de forma simples: na brincadeira do
“telefone sem fio”; é dita uma frase para uma pessoa e essa passa para a próxima e
assim por diante até chegar à última pessoa do jogo. Ao termino, podemos notar que
a frase não chegará da mesma forma que a primeira pessoa havia falado. Essa frase
terá perdido ou ganhado alguma(s) palavra(s) ou poderá ter sido totalmente
modificada, de forma que o seu sentido também possa vir a sofrer modificações.
Assim acontece com a história oral, ao longo do tempo e do contexto vivido por
determinado povo, ela sofre modificações. A história se modifica, sem que possamos
analisar ao certo como o fato ocorreu. Por isso, é necessário que se faça pesquisas
com mais de uma pessoa, se possível. Pois, o entrevistado tende a falar a história do
I Simpósio Regional Nordeste da Associação Brasileira da História das Religiões – Campina Grande
– 28 a 31 de maio, 2013.
seu ponto de vista e de suas memórias lembradas, o que pode se torna perigoso de se
trabalhar com somente uma fonte oral, dependendo do fato. Diz José Carlos Sebe,
2011: A história oral ao valer-se da memória estabelece vínculos com a identidade do
grupo entrevistado e assim remete à construção de comunidades afins.
7. Memória e história
A memória tem se tornado uma das fontes de pesquisa para se fazer história,
mas quando memória é história é um ponto que tem sido posto em debate e deve-se
ter cuidado ao usar a memória como um recurso para se fazer história, para que o
parecer do pesquisador não se sobreponha ao relato do entrevistado. A tradição oral é
uma das formas de preservação histórico-cultural que caracteriza um mecanismo
usado por determinados grupos para manter uma história viva.
8. Considerações Finais
Quando essa crença passa a interferi na vida de uma pessoa de forma mais
ampla, e não mais somente no campo religioso, como é o caso de pessoas que pagam
promessas para se curar de alguma doença, isso deve ser um ponto importante para o
estudo das religiões. A cura acontecendo por causa da promessa ou não, a crença
I Simpósio Regional Nordeste da Associação Brasileira da História das Religiões – Campina Grande
– 28 a 31 de maio, 2013.
nisso faz com que a pessoa sinta-se melhor por saber que há algo ou alguém mais
poderoso que vela por ela.
Referências
BLAINEY, Geoffrey
Uma breve história do cristianismo / Geoffrey Blainey; [versão brasileira da editora] –
1.ed. – São Paulo – SP: Editora Fundamento Educacional Ltda., 2012.
3
As entrevistas orais foram realizadas no ano de 2012.
I Simpósio Regional Nordeste da Associação Brasileira da História das Religiões – Campina Grande
– 28 a 31 de maio, 2013.
A invenção das tradições / Eric Hobsbawn e Terence Ranger /Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997. Coleção Pensamento Crítico; v. 55.
Disponível
em:<http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/501/526>
Resumo
A cada dia novas definições nascem, para complementar, ou para ratificar o que já
foi dito, bem como para refutar ideias, que tentam definir o que é o período
histórico-cultural que vivemos hoje. O termo para designar a fluidez da atualidade
varia de autor para autor: pós-industrial, modernidade líquida, pós-modernidade.
Nesse contexto, os meios de comunicação são fundamentais para disseminar ideias
e reflexões sociais, e é através de seus produtos que realizam tal atividade. As
séries televisivas contribuem de maneira significante para visualizarmos como
aspectos contemporâneos estão sendo representados. A religião e a religiosidade
não estão livres de tais representações. O presente artigo pretende analisar como é
apresentado o conceito de fé na sexta temporada da série de tv norte americana
Dexter. Tendo como pano de fundo a pós-modernidade e suas contradições.
1
Graduado em Ciências da Religião, na Universidade do Estado do Pará (UEPA), em 2012.
2
Graduada em Comunicação Social, habilitação em jornalismo pela UFPA, em 2011. Graduanda em Ciências da
Religião, na Universidade do Estado do Pará.
que demoram algum tempo para gerar frenesi. Outros mantêm a audiência pelos
atores, trilha sonora, figurino. Enfim, são diversos os porquês da crescente
quantidade e ousadia desse formato televisivo. Dexter é uma série televisiva
estadunidense, centrada em Dexter Morgan (Michael C. Hall), assassino em série,
que trabalha como analista forense, especialista em padrões de dispersão de
sangue, no Departamento de Polícia do Condado de Miami-Dade. Com seis
temporadas já produzidas, a série caminha para a sétima e oitava temporadas, em
2012 e 2013, respectivamente.
O personagem nasceu no livro Darkly Dreaming Dexter, lançado em 2004,
do escritor Jeff Lindsay. O autor teve a idéia de escrever sobre um serial killer
quando fez uma palestra para um grupo de executivos em Miami, com o tema: “A
importância da arte”. Em entrevista ao site Brainstorm9 (2011), Jeff Lindsay contou
que após observar, por algumas horas, homens de negócios, pensou: “Assassinatos
em série não precisam ser sempre algo ruim…”. Anotou em guardanapos o que
pensou, e retornou para casa com os rascunhos que formavam o conceito básico do
personagem. As temporadas seguintes apresentam uma evolução diferente das
obras de Lindsay. O livro foi adaptado para a televisão pelo roteirista James Manos
Jr., que escreveu o episódio piloto. O programa estreou em 1° de outubro de 2006,
no canal Showtime. Situado em Miami, sua primeira temporada contém 12
episódios.
3
Harry Morgan considera o filho adotivo um serial killer e constrói uma forma de deter seus impulsos. Preocupado
com o futuro de Dexter, Harry formula alguns códigos de conduta e ensina ao menino que matar uma pessoa não é
apenas assassiná-la, mas privá-la de tudo que ela pode se tornar um dia. Harry aproveita os desejos de Dexter para
transformá-lo em um serial killer de serial killers, um ‘monstro’, cujo distúrbio é regulado por um código de
normalidade, já que, para o policial, a essência perturbada do filho não poderia ser transformada.
4
Episódios da sexta temporada: Those Kinds of Things; Once Upon a Time...; Smokey and the Bandit; A Horse of
a Different Color; The Angel of Death; Just Let Go; Nebraska; Sin of Omission; Get Gellar; Ricochet Rabbit; Talk to
the Hand; This is the Way the World Ends.
Pós-Modernidade?Onde?
Dexter e a Fé
5
Termo usado pelo irmão Sam para denominar os outros bandidos que estão saindo do mundo do crime,
por causa da religião.
Brother Sam: Ele está usando o nome de Deus. O diabo é culpado.
Dexter: Acha que ele está usando o nome de Deus como desculpa para matar?
Brother Sam: Usam Deus como desculpa para várias coisas. Só porque ele
acredita em coisas malucas não quer dizer que a fé dele é falsa.
Dexter: Se a fé faz as pessoas fazerem loucuras, por que ter?
Brother Sam: É a natureza humana. Temos que acreditar em algo. Não é?
Conclusões
O presente artigo buscou apresentar de maneira sucinta a possibilidade de
representação de elementos religiosos, em especial a Fé, na sexta temporada da
série televisiva norte-americana Dexter. Mas não apenas isso, trazendo para o
diálogo conceitos que podem representar o contexto atual que vivemos: a
contemporaneidade. Mesmo fazendo isso de maneira tímida, o texto desenvolvido
considera o personagem Dexter como possível representante de muitas
características do indivíduo pós-moderno, no que tange sua capacidade de
fragmentação, adaptação, solidão e na sua habilidade mais que apurada em simular
situações, realidades e emoções. Nesse sentido, tentou-se observar como esse
indivíduo contemporâneo, representado pelo personagem Dexter, dialoga com a
representação da Fé religiosa, tanto a fundamentalista como a que “produz
resultados positivos”. Além de perceber que existem mais características do Dexter
no indivíduo contemporâneo do que se queria perceber, foi possível identificar que
a relação do personagem com a Fé é antiga, uma vez que, mesmo sem ter
convicções religiosas, acredita no código criado por seu pai para que possa conviver
em sociedade e continuar alimentando sua doença (matar pessoas). No aspecto
religioso da Fé, Dexter não faz julgamentos sobre como ela pode acontecer, apenas
transita e questiona as duas formas apresentadas na temporada: a do fanatismo
religioso (vivida pelo Assassino do Apocalipse, que acaba tendo sua vida ceifada por
Dexter na última cena do último episódio da temporada) e a do ex-bandido (irmão
Sam) que, após entrar em contato com o “chamado divino”, largou o mundo do
crime e passou a tentar salvar outras “ovelhas” (o irmão Sam acaba sendo
assassinado por uma de suas ovelhas, mas antes de morrer, perdoa seu assassino
e pede para Dexter fazer o mesmo. Dexter não perdoa e mata a “ovelha” afogada).
Referências
RUIVO, Miguel. Repensar a televisão: uma visão positiva sobre o papel da televisão
como elo social, veículo de cultura e espaço de lazer. Universidade da Beira
Interior, 2006. Disponível em: http://www.labcom.ubi.pt/agoranet/04/ruivo-
miguel-repensar-a-televisao.pdf> Acesso em: 4 de mar.2011.
1
Comunicação produzida por Rennan Pinto de Oliveira, mestrando na Universidade Estadual de Feira de
Santana-UEFS no Mestrado de História, cultura e poder
2
Minha anotação.
Esse dia pode ser comparado a uma grande manifestação carnavalesca, não com
um caráter de inversão como aponta Da Matta (1986) em seus estudos sobre Carnaval,
também não parece se apresentar hermeticamente como um rito de reforço como discute
o autor. A Lavagem de Santana parece ser composta por manifestações de caráter
polissêmico apresentado pelas suas multivivências, produtoras de significados para seus
partícipes.
Eles se apropriavam da Festa para revelar seus sentimentos e representar, mesmo
por um curto tempo, a sua fé na padroeira da cidade, participar da Festa podia ter um
sentido muito mais amplo de compartilhamento, cumplicidade, curtição e até mesmo de
homenagem, sendo possível também unir todos esses sentidos.
A Festa da Lavagem com bandinhas, em outros momentos com trio elétrico,
acontecia na Praça da Matriz. Esta festa, dita profana, devia e acontecia fora dos muros
da Igreja, imageticamente o templo religioso deveria ser resguardado da profanação,
sendo possível apenas a Lavagem de seu chão e santuários no turno oposto à Lavagem
“carnavalesca” que acontecia sempre à tarde normalmente depois das 16h.
A separação e divisão de espaços evidenciam as fronteiras desses dois
universos - o sagrado e o profano - proibidos pela Igreja Católica de se imiscuirem,
porém o grande paradoxo é saber que a Lavagem também fazia parte da festa em
homenagem a Santana e era indissociável dela. Essa separação não aconteceu apenas
nos anos 60-80, a Igreja Católica já assumia essa postura desde as primeiras décadas do
século XX quando proibiu os batuques e festança nos espaços considerados sagrados e
no interior da Igreja Matriz.
Aquela proibição seguia o Concilio Plenário Brasileiro e as determinações de
Pio X, o qual “proibi[a] as bandas de músicas tocar dentro das igrejas. Fora delas são
permitidas nas procissões, contanto que os músicos se comportem com respeito e
edificação cristã e se abstenham de executar composições profanas e ligeiras3”. Essa
postura da Igreja Católica seguia a perspectiva de neocristandade, esta tinha como base
os princípios do ultramontanismo que desejava o fortalecimento da doutrina e a criação
de zonas para separar as expressões de religiosidade oficiais da religiosidade popular
considerada como práticas de profanação. Silva (2009a) 4, Mainwaring (1985) 5 e Azzi
(1994) 6.
3
Idem. p. 55 Apud,, Livro tombo I da Catedral de Santana, Feira de Santana( 1930-1968) f.97.
4
. Segundo Cândido da Costa a romanização se iniciou no século XIX e seu objetivo era a criação de um
clero ilustrado e probo, ligando-se diretamente à Santa Sé e afastando-se da órbita política e de
As determinações de proibição da Igreja representavam também uma
reformulação da sua estrutura que passava por uma crise, após a laicização do estado
durante a proclamação da república. O rompimento entre o Estado e a Igreja provocava,
naquela antiquíssima instituição, novas perspectivas e formulas de autogerenciamento e
sobrevivência no Estado brasileiro republicano como aponta Silva(2009b). E os
primeiros anos do século XX ainda sentiam as reverberações das mudanças nas suas
estruturas, isso parecia ressoar também na Feira de Santana dos anos vinte e trinta.
O desejo da Igreja Católica por normatizar esse ritual segue praticamente todo o
século XX, ganhando mais força nos finais dos anos oitenta. Este período é o marcador
do fim da festa considerada profana e realocação da festa apenas religiosa do mês de
janeiro para o mês de julho considerado pela Igreja Católica como o mês original de
comemorações em homenagens a Senhora Santana. A lavagem de Santana, assim como
a Festa, sofreu profundos processos de remodelamento e organização, alterando, com
isso, as relações produzidas para sua sustentação e reprodução até o final das décadas de
1980. No entanto, as mudanças mais marcantes e definidoras do seu ordenamento
ocorreram entre os anos 1960- 1987, período estudado pela comunicação.
A Lavagem de Santana parecia se organizar em seus diferentes momentos
históricos de forma muito parecida, sofrendo algumas alterações ou inclusões de novos
elementos folclóricos ao longo do século XX. Ela se organizava em um grande cortejo
composto pelo que poderíamos chamar de alas ou grupos partícipes distribuídos nas
ruas, os quais ocupavam as artérias do centro comercial para cumprir seu trajeto, em um
espaço que em dias normais tinha outras funções. Este cortejo era possuidor de
características próprias e se diferenciava da procissão religiosa efetuada pela Igreja
Católica como última etapa das homenagens à Padroeira.
A Lavagem era um lugar de participação de todos, inclusive dos mais abastados
da cidade. Os filhos de empresários, comerciantes, médicos, populares, homens,
mulheres, crianças e outros que estudavam na capital vinham se fantasiar para se
subordinação do Império, com intuito de influenciar a vida nacional, tendo como principais características
a “espiritualização” do clero, distanciando-o da realidade social e de seus problemas. In Segadores e a
messe.
5
Conforme Scott, as fronteiras cronológicas da Neocristandade podem ser fixadas entre os anos de
1916 e 1955, tendo seu apogeu durante o governo Vargas (1930- 1945), sendo seu percussor Dom Leme.
6
Segundo AZZI (1994) nesse período, a Igreja católica começou a dar mais atenção a seus problemas
institucionais, relativo às suas fragilidades, deficiência nas práticas religiosas populares, sua falta de
padres, precariedade da educação religiosa na sociedade brasileira, ausência de intelectuais católicos,
limitada influência política da Igreja e frágil situação financeira.
entregar à diversão e saírem pelas ruas. O universo da Lavagem era composto por
agentes fixos e outros flutuantes, misturados em prol de um interesse comum: a
diversão e a fé. Puxando a Lavagem, tradicionalmente, estavam as porta-bandeiras.
7
Sua presença na Lavagem é narrada nas memórias de Lajedinho em seu livro de memórias: A Feira na
década de 30 (memórias); [s.n] Feira de Santana, 2004.p.24
8
A presença dessas duas figuras é comentada nos jornais Feira Hoje e Folha do Norte durante anos de
1960 a 1987.
9
Essas discussões sobre o risco de pisoteamento foi noticiado no Feira Hoje entre os anos de 1960-19787.
A.R- Eles pediam beijo, davam beijos, diziam piadas, declaração de
amor era uma brincadeira gostosa viu! A verdade é que era gostosa 10.
10
Entrevista concedida pelo Senhor Antonio Ramos em (05/02/13). Ele também é conhecido por Antonio
Feirense. Católico ativo participava de eventos da Igreja Católica se destacando em especial no ano de
1979, ao renunciar a presidência da Festa de Santana.
11 Mestre Muritiba esteve presente na Lavagem até o ano de 1986 após seu falecimento sua esposa
assumiu o grupo que desfilou no ano de 1986 e 1987. Como assinala o jornal Feira Hoje, 24/06/1986.
era só isso, era uma expressão cultural resistente ao tempo e às mudanças de hábitos
culturais presente no século XX.
A Lavagem pode ser lida como um texto no qual estava presente uma linguagem
com códigos próprios. Este texto trazido por ela pode ser passível de compreensão,
assim como fizeram Darnton (1986), ao buscar interpretar as procissões que
aconteceram em Montpellier no século XVIII e Ryan (2001a), ao investigar sobre a
Parada Norte-Americana. Ryan (2001p.180b) concorda com Darnton quando interpreta
o seu objeto de pesquisa como “um texto especial, intricadamente emaranhado em seu
contexto histórico e social. Tendo múltiplos autores: os milhares de participantes que
levaram, para uma cerimônia composta, dos símbolos que eles próprios escolheram”,
sendo passíveis de leitura pelos historiadores.
Assim como a Parada estudada por Ryan (2001c), considero a Lavagem de
Santana uma espécie de performance cultural. Esta, segundo Geertz (1989) é encenada
publicamente também como rituais religiosos, sendo
“unidades de ação discrimináveis, caracterizadas por ocorrerem
durante um determinado período de tempo; englobando ainda, um
programa organizado de atividades, um conjunto de performers, uma
audiência e um lugar ou ocasião para realizar a performance12”.
12 SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes, com base nos estudos do antropólogo americano Milton Singer,
criador do termo Performance cultural; e de Geertz. In Performances culturais nas Festa de Largo da
Bahia.Depois apresentada como paper no GT: Performance, Drama e Sociedade, durante o 30º Encontro
Anula da Anpocs, Caxambu, out de 2006, com o Título: Performances culturais nas Festas de Largo da
Bahia. Site http://www.antropologia.com.br/arti/colab/a40-esantos.pdf acesso 02 de fevereiro de 2012, às
21h00.
tornarem públicos os conteúdos, valores e símbolos13”, e no transcorrer do cortejo era
possível “impor um panorama móvel”, uma espécie de imagem pública, repleta de
significados14.
Assim como a Lavagem do Bonfim, a Lavagem de Santana também possuía seu
panorama móvel marcado pelas práticas dos participantes em suas performances,
constituído por uma forma de ser e acontecer singularizando-se diante das outras
manifestações presentes nas homenagens a Santana15. As condutas dos participantes os
identificam a partir de suas práticas expressas através de seu jogo corporal e dança
cadenciada pela energia rítmica e sonora do som das bandinhas e zabumbas. Nesse
movimento se exalava sensualidade e outras simbologias aceitas no universo da
Lavagem, mas totalmente rejeitadas em outro universo social-moral.
Essa expressão corporal simbolizante da Festa era uma marca de
representatividade transmitida e reproduzida pelos participantes nos seus ciclos de
mudanças e transformações da Festa. Ela tinha práticas e formas verticalizantes ao
longo de sua existência tais como a presença das baianas, as músicas com tom de
ambigüidade e ironia, as brincadeiras e as irreverências.
Muitas práticas vivenciadas e vista no festejo não deixaram de serem,
representações apropriadas e reproduzidas pela comunidade feirense ao longo dos anos
na festa. Essas práticas eram transmitidas e reinventadas de geração em geração. Em
alguns momentos acreditamos que a forma da Lavagem estava posta, quem mudava
eram seus personagens e à medida que aconteciam as mudanças, muitas práticas eram
redefinidas e resignificadas, sejam pelos seus participantes ou até mesmo pelos seus
espectadores.
Havia uma fusão e interação muito forte entre ambos, pois, ir à Festa da
Lavagem mesmo que apenas para olhar, não podia deixar de ser em certa medida
aprovação a esse tipo de manifestação cultural. As performances apresentadas não se
ligavam somente ao corpo, mas, por meio dele, ao espaço não delimitado - apenas as
ruas e a Praça da Matriz – no qual os ecos da festa parecia se arrastar e fixar-se nas
memórias tanto dos participantes como dos espectadores, que, possivelmente, levavam
13 Ibidem p.12
14 Ibidem p.12
15
Para Paul Zumthor (2007), a performance “ está marcada por sua prática –manifestação cultural lúdica
não importa de que ordem ( conto, canção, rito, dança), a performance é sempre constituída de forma.
p.30.
para suas casas lembranças marcadas no corpo, nos ouvidos e na memória,
comportamentos e práticas vistas e vivenciadas durante a Festa e que, em certa medida,
era reproduzida em outros espaços. Um sinal disso é fala de seu Antonio Ramos.
È difícil avaliar, mas também não é possível deixar de acreditar que esses
sujeitos ouvintes ou partícipes não levassem para casa um pouco da Lavagem dentro de
si. A narrativa de seu Antonio Ramos sobre a repreensão de seu pai ao reproduzir em
casa uma música que deveria ser restrita às ruas e à Lavagem, negava a prática de cantar
músicas ambíguas e de duplo sentido fora de espaços definidos. A sua fala nos permite
fazer essa dedução e reflexão do quanto àquela manifestação se desdobrava e ecoava em
outros espaços.
Podemos considerar que esses tipos de músicas em sua dimensão material,
foram elaborados, transmitidos e apropriados pelos indivíduos mediante os processos de
produção, circulação e recepção. Pois elas se propagaram e se reproduziram durante
longos anos na Festa, sendo ouvidas e repetidas em muitas Lavagens, em diferentes
épocas.
Levados pelas músicas de duplo sentido logo atrás das baianas, das carroças, das
bandinhas e zabumbas vinham os travestidos17, transitando entre sua ala e as das
baianas, pois muitas vezes eles se fantasiavam de baianas, mas eram facilmente
16
Entrevista com seu Antonio Ramos (em 05/02/13).
17
O jornal os coloca como travesti, porém os diferenciam dos travestidos que ganham a vida usando
roupas de mulher, denominando eles de Travesti de carnaval pois tinham outros objetivos. Discussão
travada no jornal Feira Hoje (26/01/82). Ano XII, n.2305.p.5-6
reconhecidos por destoarem delas pelos tons de cores extravagantes estampado nas suas
roupas e enfeites.
18
Tomo emprestado o conceito explicitado pela Marlene Soares Pinheiro (1995) em seu estudo sobre o
carnaval-“em termos sócio-culturais, a noção de avesso se prende a toda e qualquer linguagem,
principalmente a comportamental, que contradiga as “boas normas” da moral vigente. P. 21. Avesso é
toda e qualquer linguagem que - de inusitada-, de súbito, perverte o hábito de estar e de ser, instaurando
uma nova interrogação, captação pura, ao textualizar ou ler um nascedouro nuança do mundo. P.21
embalando “bebês” de trapos, fantasias de “velhas’, quase 400
travestis continuaram a velha tradição da Lavagem, com seus trajes
pitorescos, destacando-se da multidão em ritmo de samba e
arrancando aplausos pela ousadia de muitas de suas criações.
O predomínio foi das “mães” e dos travestis caricatos. Eles
espalharam-se atrás da procissão de carroças. Estavam animados,
sorridentes, posavam para fotografia e nada traziam que o
escondesse o rosto. (Jornal Feira Hoje, 20/01/1985, Ano XV,
nº3213, p.05)
19 Noticia publicada no Jornal Feira Hoje, 20/01/1985, Ano XV, nº3213, p.05.
20 Noticia publicada no Jornal Feira Hoje, 23/01/1987 ,Ano XVI, nº3611, p.03.
grupos pastoris. O mestre Muritiba solicitava dos órgãos públicos uma maior
valorização das manifestações folclóricas na Festa e na conservação da tradição.
Após percorrer seu itinerário, o cortejo sempre voltava para o largo da Catedral,
apesar da Lavagem ter cumprido seu percurso, a Festa no Largo da Matriz continuava
como uma extensão dela. O público transitava entre as barracas e o coreto para assistir
as apresentações dos grupos folclóricos com seus sambas de roda e se entregar ao samba
ou ser apenas um mero espectador para escutar os sons mecânicos das barracas ou
shows, quando aconteciam no palco da Praça Padre Ovídio ou para acompanhar os trios
elétricos.
No seu panorama móvel a Lavagem levava para seus participantes e
espectadores imagens e representações repelidas e negadas pela Igreja Católica em
especial nos anos 70 e 80. O resultado foi o choque de representações21 entre o que se
expressava na Lavagem e como a Igreja desejava ser representada. Nesse momento o
jogo de equilíbrio e sustentação da Lavagem é posto em risco. Os interesses do Clero,
dos organizadores e participantes da Lavagem parecem não entra mais em negociação e
conciliação, por conseguinte, ela parece apresentar sinais de que poderia acabar. Em
alguns momentos essa ordem se tensionou e quase rompeu, mas se recriaram novas
relações ou se tirou de linha o objeto tensionado, destarte o ponto de equilíbrio dura até
1987, quando ela é extinta juntamente com o Bando, a Levagem e todas outras
manifestações consideradas profanas pela Igreja Católica feirense.
Referências:
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. Tradução Denise Bottmann. 2ª Ed.
São Paulo, SP: Companhia das Letras,2010.
21
Discussão baseada nos estudos de Roger Chartier.
______. Roteiro da Vida e da Morte. São Paulo, Ática, 1982.
______. Religião e sociedade Baiana do século XIX. In BINA, Eliene Dourado et al.
Memórias da Bahia, palestras. Salvador, Bahia. V.1. 2009.
CHARTIER, Roger. A “nova” história cultural existe? In: LOPES, Antonio Herculano,
LOPES, Antonio Herculano, VELLOSO, Monica Pimenta e PESAVENTO, Sandra
Jatahy (org.). História e linguagens: textos, imagem, oralidade e representação. Rio de
janeiro: 7Letras, 2006, p.29-44.
______. O mundo como representação. Estudos Avançados. São Paulo, v. 11, n. 5, jan-
abril 1991. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-
40141991000100010&script=sci_arttext. Acesso em: 20 ago. 2010.
COX, Harvey. A festa dos foliões. Petrópolis, RJ. Ed. Vozes, 1974
DA MATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
MAGALHÃES, Antônio Ferreira et al. História nas lentes: Feira de Santana pelo olhar
do fotógrafo Antônio Magalhães- Feira de Santana: UEFS Editora, 2009.
MAINWARING, Scott. A Igreja da Neocristandade, 1916 – 1955. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
1
Mestre (2010) e doutoranda em Ciências da Religião pela PUC-SP. Professora da Universidade Estadual
de Montes Claros- UNIMONTES. E-mail: socorroisis@yahoo.com.br.
Congado
O Congado é uma importante expressão da religiosidade popular brasileira. Os
termos usados para nominar a manifestação variam entre Congados, Congo ou
Congadas, conforme a região. As festas congadeiras têm como marco em praticamente
todas as regiões, as figuras representativas de reis e rainhas negros, em referência a reis
congos ou do Congo, país africano localizado ao sul do deserto do Saara. Três quartos
dos africanos que vieram da África para o Brasil, via escravidão, eram provenientes do
Congo - Angola.
Estas manifestações rememorativas aconteciam em forma de coroações de
rainhas e reis negros, que para os escravos das áreas urbanas eram permitidas de tempos
em tempos. Dito de outro modo, em sua origem o congado foi uma manifestação
cultural religiosa de raiz africana vivenciada festivamente no País, como um meio de os
africanos não perderem suas referências humanas. Performaticamente, Queiroz (2005)
acresce que, no fundo, “Os Congos são uma dança dramática, de origem africana,
rememorando costumes e fatos da vida tribal. Na sua manifestação mais primitiva e
generalizada, não passam dum simples cortejo real (...)”. (P. 30). Além disso, é uma mostra
da capacidade criativa e de sobrevivência desse povo, que fez sobressair um frondoso
sincretismo cultural - religioso que arquitetou um modo de ser brasileiro.
Sobre este aspecto Queiroz apresenta o seguinte:
Essa festa de devoção (...) pode ser identificada como uma expressão da
religiosidade negra que sobreviveu ao processo de imposição cultural,
presente no sistema escravista brasileiro, pela reinterpretação e reelaboração
de valores alheios à concepção de mundo dos negros. Para Brandão (1976;
1985), o Congado combina simbolicamente a memória de acontecimentos e
costumes “tribais” com valores da devoção católica aprendidos na catequese.
(QUEIROZ, 2005, p. 28).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ritual dos Catopês em Montes Claros instala e dinamiza uma atmosfera
religiosa que atrai inúmeras pessoas em torno de si, estruturando um chão que torna
diferentes em iguais, derrubando muros de convenções sociais. A junção das pessoas,
religiosas ou não, acontece de forma tal, que no momento do ritual parece haver uma
comunhão entre todos e um forte religare. Ritual que revela um frondoso simbolismo
religioso.
Em contato com os integrantes dos catopés, buscamos extrair os sentidos dos
festejos e suas indumentárias, numa tentativa de vislumbrar os seus simbolismos. O que
vimos e ouvimos foi exprimido em linguagem simbólica, conduzida por uma lógica
transcendental, que nos mostrou que para além de explicações teóricas ou científicas, há
uma compreensão profunda do vivido. Do seu simbolismo.
O sentido de expressão que buscamos capturar refere-se a uma força que se
exprime (sentimentos) e uma forma que a exprime (um ritual, uma indumentária, etc.).
É uma enunciação do espírito por meio de uma linguagem (simbólica) que denota
sentimentos; é uma representação de algo (através de ritos, Imagens, performances,
músicas, danças, cores, cantos, vestes, olhares, inflexão, etc.). Na dinâmica da
expressão, há uma inseparabilidade entre exterior e interior, tudo se funde _ no canto,
nas orações, nas pautas, nos gestos, os afetos vividos estariam em conexão bastante
forte. Foi a essa dinâmica expressiva e simbólica que buscamos nos voltar para dialogar
com essa encarnação da experiência sensível, esse “existir sensível”.
BIBLIOGRAFIA
QUEIROZ, Luiz Ricardo. Perfomance musical dos Ternos nos Catopês de Montes
Claros. Tese de Doutorado em Etnomusicologia. Universidade Federal da Bahia. 2005.
1
Jailson da Silva1
Profª. Pós Drª Eunice Simões Lins Gomes2
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1
Jailson da Silva. Historiador, Professor do Ensino Religioso. Mestrando em Ciências das Religiões pela
Universidade Federal da Paraíba – UFPB, e-mail: jailsondasc@gmail.com
2
Profª Pós Drª do departamento e no programa de Pós Graduação em Ciências das Religiões da UFPB, e-
mail euniceslgomes@gmail.com grupo de estudo e pesquisa em Antropologia do Imaginário - gepai
http://gepai.yolasite.com/
2
Esse estudo faz parte da pesquisa do mestrado que estamos desenvolvendo assim
apresentamos um recorte do estudo como primeiro resultado da pesquisa. A
metodologia utilizada consistiu na pesquisa descritiva com abordagem qualitativa e
bibliográfica. Entendemos o rito como sistema simbólico onde as experiências exigem
significados entre aquilo que é vivido e o imaginado.
Partindo de situações concretas do cotidiano no dia a dia dos seres humanos mais
próximos, nos fez entender a real valor que o rito tem para o ser humano.
Originalmente, o termo “rito” significa ato ou ação ligado à prática de comportamentos
repetidos, tanto individuais como coletivos, cumprindo regras pré-estabelecidas.
Segundo Benveniste, rito vem do latim ritus, que indica a ordem estabelecida e, mais
atrás, liga-se ao grego artýs, como o significado também de “prescrição, decreto”.
(BENVENISTE, 1969, apud TERRIN, 2004, p. 18).
Compreendemos que o termo rito é empregado para denominar uma regra, ordem
e método, ou seja, os ritos orientam, pois carregam em si os hábitos necessários que
comprometem a vida. Portanto, as cerimônias ampliam o conhecimento que educa
para a vida pessoal e coletiva. As orientações para a vida seja ela em que esfera for,
são inseridas por rituais carregados de grande valor, através de normas pré-
estabelecidas pelo grupo no sentido de manter viva a memórias, a tradição, a cultura.
É importante notar que o rito passa a inserir nas pessoas o hábito cerimonial, um
sentimento preconizado, de compromisso, ligados a conduta humana, seja pela
orientação, ordem, sentido, método, diretriz. Os ritos na medida em que são
externados através dos eventos, os elementos que o compõe o ritual se reveste de um
teor simbólico. Dessa forma, o rito estabelece uma conexão entre os objetos
4
Justifica-se essa escola no sentido que Terrin classifica o rito a partir de vários
critérios, como a operatividade e a formalidade do rito, bem como, sua essência no
nível histórico, fenomenológico, religioso. Aldo Natale Terrin nos chama a atenção
para o fato que o rito perpassa os tempos, continuando vivo, estabelecendo ordem e
sentido.
Consideramos assim, que o rito seja ele religioso ou não possui proposições
cerimoniais que estão ligados às raízes humanas em um tempo que não pode ser
determinado, mas traz em si implicações ontológicas do ser, tendo em vista todo um
sistema simbólico de que os ritos de um modo geral estão carregados.
Como vemos no texto acima, o corpo tem uma importância muito significativa na
prática do rito. O corpo é a via de acesso para que o homem exista no mundo.
Portanto, através das ações corporais encontramos expressos anseios, necessidades,
emoções, conflitos, necessidade de ser bem-querido, de pertencer a um grupo e
construir uma identidade social.
Dessa forma, todas as ações dos ritos são desenvolvidas para um determinado
objetivo, para uma finalidade. Nessa direção há ritos que podem ser conscientes ou
inconscientes, de forma explícita ou implícita, ações essas que acontecem em algum
5
lugar e em algum tempo. “Os ritos, portanto, para serem vividos e compreendidos,
devem ser localizados em suas dimensões espaciais e temporais”. (VILHENA, 2005, p.
22).
O rito traz consigo a convergência harmoniosa do homem com ele mesmo, com os
outros, com a natureza, com o cosmo e o sagrado. Algo que é vivido e realizado em
determinada religião ou cultura. Considerando a indicação de uma ordem cósmica que
vem da etimologia mais antiga do rito. Esse conceito de ordem é muito importante,
pois revela a força organizadora do rito.
O rito cadencia o dia-a-dia, estando presente no tempo, nas estações do ano, cada
lugar é marcado por um determinado ritmo, cada pessoa age de acordo com seu estilo
de vida, portanto seu ritmo. Assim, dentro do meio sociocultural ou religioso, se
estabelece um campo simbólico que viabiliza acréscimo de valores e estabelece
relações. Justamente associando a esta ideia buscamos relacionar a finalidade do rito
no espaço escolar com uma abordagem simbólica do primeiro dia de aula. Segundo
Aldo Natale Terrin:
Desde o início dos tempos históricos, sabe-se que todas as culturas e civilizações
criaram seus próprios ritos. Nas culturas ágrafas que não tinham um sistema de
escrita, nas religiões primitivas encontramos os ritos de passagem com aspectos
sociais nas mais variadas culturas. Um exemplo contundente do que estamos falando
é dos povos tribais, através de um processo alongado, que vai desde a concepção e só
termina quando a criança é admitida na tribo. A mãe, que se torna impura pelo fato
de ter dado à luz, passa por uma série de ritos de purificação para então ser inserida
novamente no convívio com os demais.
A ação do rito está atrelada a sua utilidade social, dessa forma a sua efetivação é
indispensável para recriar periodicamente o ser moral, ético. Os ritos ocorrem em
todas as sociedades humanas atuais e passadas, basta ressaltar as civilizações em
suas respectivas épocas, por meio das tradições orais e escritas. Logo, deve estar
profundamente direcionado para um determinado objetivo ou fim, partindo sempre de
situações concretas apresentadas diariamente no cotidiano. Justamente, mais uma
vez lembrando, que essa utilidade social do rito, está evidenciada no terceiro capítulo,
onde falamos do rito no espaço escolar.
É possível também compreender o rito como sendo aquilo que fazemos todos os
dias, como o ato de acordar e escovar os dentes, tomar banho, alimentar-se, ir à
escola ou ir ao trabalho. São atos repetitivos que fazemos sem nos perguntar o
porquê, mas sempre repetimos todos os dias. Os ritos, com seus rituais são uma
espécie de sinal do grupo. É certo que indivíduo sem sociedade, isolado, fica com sua
formação comprometida, tendo em vista que o ser humano está sempre sendo
construído e para viver em grupo harmonizar-se às exigências do grupo.
De tal modo podemos entender o rito como fenômeno humano que estrutura todas
as dimensões do indivíduo e da sociedade em que está inserido. É nesse espaço social
em que o ser humano é construído. Durkheim (1989) explica as regras entre indivíduo
e sociedade. O indivíduo é antes da sociedade, mas é um ser social quando passa a
7
viver em grupo de forma racional, desta forma segue as regras estabelecidas pelo
grupo. As regras são construídas pelo grupo e para o grupo.
Os ritos estão presentes em todas as religiões do mundo, não existe religião sem
rito. São os ritos que dão cadencia as liturgias, e credibilidade às instituições, através
dos festejos, as danças, do batismo, da iniciação, das orações, dos sacrifícios,
consagração de pessoas ou lugares, passando a certeza de pertença daquela tradição
religiosa, criando laços e identidade. Fazendo com que o indivíduo sinta-se bem
consigo, com o próximo e com o transcendente. No rito é possível reviver um
acontecimento sagrado, tornar presente, ser vivenciado.
8
Ao observamos a grandeza que é o rito e sua dimensão simbólica foi que pensamos
em retratar tais dimensões a partir das imagens das celebrações religiosas no
contexto escolar. Nada mais significativo que a semana santa culminando com o dia
de páscoa. Partimos então no sentido de descrever de forma mais apurada as imagens
que foram mais evocadas, usando a analise das imagens captadas nessa celebração, e
interpretando cada imagem segundo o que Gilbert Durand, Mircea Eliade, Mardones e
outros autores que trabalham com símbolo.
O rito da páscoa no contexto escolar desvela imagens que nos esclarece mensagens
que traduzem a cultura brasileira. Os ritos são práticas que fazem o homem
compreender a si mesmo e o mundo ao seu redor. Desta forma pode-se no rito da
páscoa ainda que um rito religioso perceber sua função social.
No imaginário da dor e sofrimento de Jesus Cristo quando ele percorre a via sacra e
sobe a cruz; depois desce ao calvário e em seguida ressurge para a nova vida.
“Veremos que os símbolos constelam porque são desenvolvidos de um mesmo tema
arquetipal, porque é variações sobre um arquétipo” (DURAND, 2001, p. 43) O que no
dizer de Pitta (2005) é a representação do schèmes, que são imagens inatas e
coletivas, toda uma representação que faz aparecer um sentido.
A condição humana do contexto escolar brasileiro com relação ao rito da páscoa foi
formada por imagens que são valorizadas pela cultura, da sensibilidade da própria
cultura brasileira. A descida de Jesus Cristo, filho de Deus a terra se junta ao
sofrimento do peso da cruz traz presente o schèmes da descida que corresponde ao
gesto de engolir, que denota divisão. Ai percebeu-se a separação de Jesus Deus na
tradição cristã, agora figura de Jesus homem, uma descida, uma humilhação extrema,
um profundo sofrimento.
3.1 A crucificação
Na multidão que caminha atrás de Jesus e deseja sua morte pode-se compreender
o caos. Pessoas, multidão, gente por todos os lados. Gente como formigas querem a
morte de Jesus. A serpente ataca veloz e cruelmente. “Uma das primitivas
manifestações é o formigamento, ‘imagem fugida, mas primeira’. Não retenhamos
pela etimologia da palavra o trabalho das formigas que aparenta a imagem destas
últimas à da serpente” (DURAND, 2001, p. 73). Formigas na terra! Serpentes na terra!
Elas estão em seu habita-te.
dentes e aqui a presença do leão como diz Pitta (2005) terror e morte temas
negativos do simbolismo animal.
Das trevas no próprio monte gólgota e do barulho pelas pessoas que gritavam para
que o crucificasse conforme o texto bíblico. “Eles, porém, clamavam: Fora! Crucifica-o!
[...]” (JOÃO, 19.15a). Nesse momento de sofrimento ante da morte e crucificação, o
terror se aproxima. Aqui se faz presente o arquétipo das trevas, quando o dia já
estava passando e a tarde chegando, assim o crepúsculo se aproximava e assim a
noite chegaria. “E era a parasceve pascal, cerca da hora sexta...” (JOÃO 19.14a)
3.2 A morte
Na morte uma situação de trevas se faz presente. “Já era quase a hora sexta, e
escurecendo-se o sol, houve trevas sobre toda a terra até a hora nona [...] então,
Jesus clamou em alta voz: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espirito! E, dito isto,
expirou.” (LUCAS 23. 44 e 46). Compreendemos a morte como a maior, piore a mais
grave queda que qualquer mortal inevitavelmente passará. Algo que a humanidade
não pode fugir: Nem o tempo, nem a morte são imagens da queda humana. “A queda
resume e condensa os aspectos temíveis do tempo.” (DURAND, 2001, p.113).
3.3 A ressurreição
Senhor Jesus [...] Ele não está aqui, mas ressuscitou. Lembrai-vos de como vos
preveniu, estando ainda na Galileia, [...].” (LUCAS 24. 2-3; 6).
Outra imagem que traduz a ressurreição é a do chefe que reconquista uma potência
perdida. Ele perdeu para a morte, perdeu a vida. Com a implacável morte e fim de
tudo, foi-se o reinado. Entretanto com a ressurreição a vida, o reino, o lugar, a
posição é recuperada imagem expressa do cetro e do gladio, em que temos o bastão
simbólico.
Até bem pouco tempo eram bem duras às renuncias na quaresma, período em que
os cristãos da tradição católica reservam para as comemorações da chamada semana
santa que inicia no último dia de carnaval, e rememora-se simbolicamente na semana
da páscoa: a via sacra, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo. É como se os cristãos
católicos quisessem vivenciar um pouco das dores de Cristo.
O mito do Herói ressoa na páscoa. Um herói como Noé “É o herói que escuta a voz
da vida, e obedecem-lhe as estratégias de combate contra a morte. Suas ações não
são decorrentes da raiva ou da excitação do combate, mas da obediência. Ele não é
símbolo de coragem, mas da bondade.” (GOMES, 2009, p. 148).
13
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como resultado de nosso olhar investigativo sobre o rito da páscoa foi possível
analisar os costumes presentes no contexto escolar e o processo de convivências e
sociabilidades que este rito suscita. O ato teatral, o cenário, os figurinos e os atores
(alunos), criam um clima de ansiedade, nervosismo, preocupação e desejo que tudo
venha sair como ensaiado, planejado. Chegado o grande dia da encenação todos na
escola direta ou indiretamente se envolve, uns ajudando os outros na ornamentação,
nos preparativos, criando um ambiente singular na socialização dos alunos,
professores, direção, enfim, a comunidade escolar, a escola de braços dados para
celebrar a páscoa. Está celebração que emociona até mesmo aqueles que se dizem
indiferentes quando se trata a respeito de religião. Cada cena, cada passagem, é
visível a comoção dos participantes, dos ouvintes, dos que assistem ao espetáculo.
14
REFERÊNCIAS
BÍBLIA SAGRADA. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e
Atualizada no Brasil. 2 ed. Barueri – SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário, introdução a
arquetipologia geral. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas,
1989.
GIRARD, Marc. Os símbolos na Bíblia, ensaio da teologia bíblica enraizada na
experiência humana universal. São Paulo: Paulus, 1997.
GOMES, Eunice Simões Lins. A catástrofe e o imaginário dos sobreviventes, quando a
imaginação molda o social. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2009.
______. A palavra de Jesus, uma mitocrítica do Evangelho de Marcos. In
Fabrício Possebon (Org.) O Evangelho de Marcos. João Pessoa: Editora Universitária
da UFPB, 2010. .p. 9-23
MARDONES, José Maria. A vida do símbolo, a dimensão simbólica da religião. São
Paulo: Paulinas, 2006.
MIRCEA, Eliade. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
PITTA, Danielle Perin Rocha. Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand. Rio de
Janeiro: Atlântica, 2005.
SILVA, Iêda de Oliveira. A árvore na torá, uma análise simbólica e mítica. Dissertação
(mestrado em Ciências das Religiões), UFPB, João Pessoa, 2011.
TERRIN, Aldo Natale. O rito, antropologia e fenomenologia da ritualidade. Sao Paulo:
Paulus, 2004.
USARSKI, Frank. Constituintes da ciência da religião, cinco ensaios em prol de uma
disciplina autônoma. São Paulo: Paulinas, 2006.
VILHENA, Maria Ângela. Ritos, expressões e propriedades. São Paulo: Paulinas, 2005.
OS BEATOS E O CATOLICISMO DEVOCIONAL, MÍSTICO DO
SÉCULO XIX NOS SERTÕES NORDESTINOS.
RESUMO
Este trabalho é parte de uma pesquisa ainda em andamento, cujo objeto de estudo é
um alagoano “o beato Franciscano”, cujo nome era Antônio Fernandes Amorim.
.Esta pesquisa será pautada em análise textual, documental e entrevistas. O
aparecimento do ‘Franciscano’ em 1936, no sertão de Alagoas, se deu logo após a
morte do Padre Cícero Romão Batista, no Ceará. Pretende-se abordar a formação
dos beatos e sua tipificação, dentro do Catolicismo devocional, místico e beato que
tem sua expressão mais forte no século XIX, e que com a chamada Romanização
da Igreja Católica e seus interesses antagônicos, são perseguidos, desautorizados e
alguns eliminados. Pretende-se, ainda, investigar a existência de ‘comunidades
fraternais’ em torno destes beatos, com suas ‘comunidades fraternais’, construídas a
partir de mutirões, romarias e festas no Nordeste brasileiro.
1. O Capitalismo Agrário:
1
Graduado em Filosofia e Teologia.
Mestrando em Ciências da Religião – Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
1
(Lei 1850), o nascimento do regime liberal-republicano (1889). Isto é, todas as
instituições da ordem burguesa, que irão desenvolver-se no decurso do século XX.
A implantação do regime republicano não modificou a situação das
famílias de trabalhadores do campo, que representava naquela época mais de dois
terços da população nacional. As grandes propriedades continuavam imperando
tanto no litoral, quanto no interior do país (onde predominavam os latifúndios
improdutivos). Eram eles a razão principal da miséria e da submissão da massa
rural.
Como diz Pedro Oliveira:
No sistema feudal houve uma forte e muitas vezes brutal dominação; ela
foi porém, tolerada: “Tal dominação funda-se nos laços de lealdade entre
dominantes e dominados”, dentro de uma “aliança que se exprime pelo código
familial: poderosos e fracos constituem uma única família espiritual” (OLIVEIRA, p.
239).
NO Catolicismo popular aparece, assim, a relação entre fazendeiro e
camponês como espelho da relação entre Santo e fiel, ou a dominação como
espelho da hegemonia, enquanto na verdade, as relações são invertidas: A relação
2
entre Santo e fiel é espelho da relação entre fazendeiro e camponês, e a hegemonia
espelho da dominação. A mudança de dominação (estrutura) provoca a crise da
hegemonia (superestrutura). A nova ordem social não tem uma legitimidade em que
poderia se apoiar.
3
Juntando tudo isso, a Igreja via a decadência moral do clero e a falta de
preparação intelectual do mesmo. Confiscam os bens das ordens religiosas, proíbem
o ingresso de noviços nas mesmas. Restando a Igreja a importação de religiosos
para o trabalho de educação, catequese, orientação nos seminários de formação
sacerdotal.
Os pobres sempre objeto da caridade da Igreja e nunca de justiça. Mas,
isoladamente apareceram grandes Apóstolos que apontavam para um outro
caminho: Fr. Caetano de Messina e Padre Ibiapina, exemplos de uma alternativa de
lidar com o povo e sua religião.
“De repente ele (o povo, ndA) se viu separado dos seus santos,
impedido de cumprir suas típica promessas. E o clero passou a
reprovar suas atitudes e seus costumes religiosos. Não, é pois, de
estranhar que alguns desses grupos marginalizados vissem no
sacerdote um inimigo de sua religião e de sua fé”.
4
2.3 O Catolicismo do povo – declínio do Catolicismo sertanejo:
A poeira é atroz; / por nossos pecados, / tão grande são eles / que
fomos castigados”.
6
2.3.1 O exemplo do Padre Ibiapina:
7
3. Os Beatos: vocação e vivência:
8
1. O radicalismo itinerante: o autor nos lembra que se trata de “uma
estrutura muita antiga na história do cristianismo” (p. 107). Porque,
Jesus não organizou nenhuma comunidade e sim o seguimento de
pessoas que percorriam o ‘caminho’. “Estamos diante de um
cristianismo de pobres, vivido no meio da pobreza”(p. 108). Mas, o
autor não o considera como um movimento superficial. É o que brota
dessa itinerância dos beatos é a lucidez. Ele desconstrói uma pseudo
imagem do beato como uma pessoa ‘tola’, ‘ignorante’ retratadas em
diversos estudos. E quando o beato uso esse artificio,” é por motivos
táticos” (p.108).
2. A continência sexual: o autor situa histórico e culturalmente a vida dos
beatos como herança de uma corrente que influenciou o início do
Cristianismo até o século IV, o encratismo, que se colocava contra
qualquer manifestação erótica, inclusive o casamento. Isso fazia parte
do chamado ‘caminho da perfeição’. O autor vê essa mentalidade
compartilhada pelos beatos “que encaram a mulher como ocasião
próxima ao pecado”(p. 108).
3. O zelo pela casa de Deus: “reina entre os beatos um zelo inegável pela
casa de Deus”(p. 108). Isso é manifestado através do “esforço do
beato em tirar esmola para a Igreja” (p. 109). Também na
preocupação em construir, reformar Igrejas, cemitérios com a ajuda de
mutirão popular.
4. A questão da violência: Apesar de toda violência deflagrada e
respondida por Antônio Conselheiro, em Canudos, José Lourenço, no
Caldeirão, “normalmente os beatos optaram pela não-violência. As
comunidades eventualmente formadas por beatos tinham algo de
convento, (...) Foi pelo trabalho honesto que muitos beatos
enfrentavam as dificuldades, congregavam em torno de si uma
comunidade e evitavam ficar no pedestal acima dos demais membros
da comunidade”(p.110).
5. A formação da Comunidade: “Uma consequência sociológica do modo
de vida dos beatos no mundo rural foi a formação de
comunidades”(p.110). O carisma do beato influenciava na organização
9
da comunidade “por causa da abundância dos alimentos que
conseguiam produzir em pouco tempo”(p.110). O autor chama atenção
para o estudo de Max Weber que “chama a atenção para a
importância das ‘comunidades fraternais’, nas quais reinaria a mística
e a fraternidade” (p.111). A base da comunidade fraternal seria a
solidariedade. “O elo que unia os camponeses não era no fundo, o
outro do que o espírito de fraternidade e solidariedade, o entusiasmo
de realizar algo em benefício de todos”(p.111).
Como vimos, o beato vive de esmola, se faz casto e a sua função é ser
útil ao próximo: é um tipo de serviço social, que se faz principalmente nas rezas
pelos vivos e pelos mortos. Somente depois de algum tempo de exercício de sua
vocação que o mesmo é reconhecido pelo povo como ‘beato’.
Essa característica “leiga” da religião do povo fazia que “a sua atuação
(do beato) prescindia da do padre, não se necessitava de um padre na presença de
um beato: o relicário do beato substituía a missa do padre e a imagem do santo
substituía o sacrário, enquanto a capela substituía a matriz:
Muita reza, pouca missa,
Muito santo, pouco padre.
Ainda, segundo Hoornaert (1983) foi instalada desta maneira uma
alternativa de poder na Igreja do Brasil: o poder era dividido entre a instituição
eclesiástica, ligada ao sistema colonial, e o livre caminhar para os santuários que
surgiram por toda a parte. Claro que nestas condições, a instituição começou a
perceber a importância das romarias e a tentar a recuperar as forças vivas que nelas
se manifestavam (pp. 339-340).
4. Considerações finais:
10
Bispos da América Latina invocaram na Terceira Assembleia Geral em Puebla, se
articularam muitas vezes, ao longo da história, na rejeição do progresso. Assim,
nossos beatos e Conselheiros expressam a desconfiança dos pobres contra o
progresso que, a despeito das promessas contrárias, não costumam trazer nenhuma
vantagem para os pobres, aumentando somente o seu sofrimento. Neste sentido,
eles representam a tradição que normalmente é conectada pelos sociólogos à
conformidade. Sociedades tradicionais são vistas como sociedades da passividade,
e para Karl Marx é o Deus Onipotente que deixa o homem passivo. No caso do
Conselheiro e nossos beatos, acontece o contrário, é o Deus Onipotente suas
maravilhas que o fazem, como força propulsora criar espaços de sobrevivência. É a
tradição que deve ser reativado, como algo operante”, como diz Balandier:
11
precisa ser resgatada como um grande desafio para a História e as Ciências da
Religião.
REFERÊNCIAS:
AZZI, Riolando. A Teologia no Brasil: considerações históricas. In: VV. AA. História da
Teologia no Brasil e na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1981.
BALANDIER, Georges. Antro-pológicas. São Paulo: Cultrix, 1976.
BASTIDE, Roger. Brasil, terra de contrastes. Série Corpo e Alma do Brasil, tomo 2, Rio de
Janeiro: Difel, 8ª edição, 1978.
CAMPINA, Maria C. L. Voz do Padre Cícero e outras memórias. São Paulo: Paulinas,
1985.
CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1986.
FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos: gênese e lutas. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978.
HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1974.
______ . Introdução - Nota do Organizador. In: CAMPINA, Maria C. Lima. Voz do Padre
Cícero e outras memórias. São Paulo: Paulinas, 1985.
______ . Ambientes e movimentos alternativos. In: História da Igreja no Brasil.
Tomo II/1, Petrópolis :Vozes, 1983.
______ . O cristianismo moreno do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1991.
_______ A Devoção dos Beatos Negros. In: Revista de Ciências Sociais. Fortaleza:
EUFC, vol. 18/19, no. 12, pp.15-36, 1987/1988.
OLIVEIRA, Pedro A. R. Religião e dominação de classes. Petrópolis: Vozes, 1985.
OTTEN, Alexandre. Só Deus é Grande. São Paulo: Loyola, 1990.
12
13
CONGREGADOS MARIANOS: MILITANTES DE CRISTO A
SERVIÇO DO ESTADO NOVO EM PERNAMBUCO (1937-1945)
Prof. Carlos Alberto Cunha Miranda*
1
concordata que nunca chegou a ser feita. Algumas dessas ordens mandaram os noviços estudar em
seus seminários na Itália, quando um aviso do governo Imperial, datado de outubro de 1870, proibiu a
repatriação desses religiosos, o que mostra o propósito firme do Estado em manter uma política
rigorosamente regalista. ³ (AZZI, 1976, p. 117)
Em Pernambuco, os bispos Dom Medeiros, Dom Cardoso Ayres e, principalmente, Dom Vital
estavam muito envolvidos com a teologia ultramontanista de Roma e tendiam a julgar que somente
estes eram os verdadeiros católicos, desprezando o catolicismo luso-brasileiro. (AZEVEDO, 1983, p.
76)
Quando o Papa Pio IX resolveu definir a condenação aos erros modernos, principalmente ao
espírito do liberalismo, na encíclica Quanta Cura, de 1864, e no anexo Syllabus, alguns bispos
formados na Europa inevitavelmente entraram em choque com a coroa e, consequentemente, com a
ideologia regalista e liberal, pois neste momento aflorou na consciência católica o elemento de respeito
à autoridade da Igreja . O Syllabus condenava violentamente o liberalismo e a maçonaria e, nessa
época, no Brasil, os padres mais importantes e o próprio Imperador pertenciam às lojas maçônicas.
Apressaram-se então os bispos em excluir os maçons das irmandades e reivindicar a autonomia da
Igreja na gerência de seus negócios, o que implicou para os estadistas do império um atentado à
soberania da coroa. O conflito dos bispos com o Estado tinha necessariamente de chegar a um
desfecho. A motivação jurídica surgiu com a suspensão, por parte de várias irmandades e ordens
terceiras que se negaram, em desobediência formal às exigências do bispo, a afastar de seus quadros os
membros maçons. A suspensão era acompanhada do interdito das capelas das referidas associações
religiosas. Houve, então, recursos ao conselho de Estado que deu ganho de causa às irmandades que
queriam ser católicas e maçons ao mesmo tempo. D.Vital, contestando e rejeitando a decisão do
conselho de Estado, respondeu a importância de obedecer antes a Deus que aos homens e concluiu
que, em matéria religiosa, o poder civil não era autoridade, mas pelo contrário: “tem estrita obrigação
de obedecer à Igreja”. (BEOZZO, 1981, p. 187) D. Macedo Costa, bispo do Pará, acompanhou a
posição de D. Vital na referida questão. Diante da atitude dos dois bispos, foi expedido contra eles um
mandato de prisão pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Os dois foram presos, julgados e
condenados a quatro anos de prisão com trabalhos forçados, sendo anistiados dois anos depois.
Com a Proclamação da República, realizou-se a separação entre a Igreja e o Estado. A atitude
dos bispos brasileiros perante o novo regime foi de expectativa. Não defenderam a Monarquia porque
entre esta e a Igreja não se havia restabelecido um clima de compatibilidade desde a prisão dos bispos
D. Vital e D. Macedo Costa decorrente da “Questão dos Bispos”. Não opinaram sobre a organização
política do novo Estado, mas quando foi promulgado o Decreto, de 07 de janeiro de 1890, foram
2
veementes na sua condenação. Este Decreto introduziu a liberdade religiosa e privou a Igreja Católica
que havia gozado até então como a religião oficial do Estado. Em 19 de Março de 1890, os bispos do
Brasil publicaram a primeira Pastoral Coletiva da República, na qual condenavam os seguintes
dispositivos da nova legislação: a) a obrigatoriedade do ato civil antes do casamento religioso; b) a
plena laicização dos cemitérios; c) a inelegibilidade dos cléricos; d) o impedimento dos religiosos
votarem nas eleições; e) a proibição do ensino religioso nas escolas públicas; f) e a conservação das
leis referentes aos bens de “mão- morta”.
Os bispos brasileiros, desde então, iniciaram um combate acirrado sistemático à filosofia da
secularização instaurada com a República. O que eles pretendem, de acordo com a doutrina da Igreja, é
a distinção entre os poderes temporal e espiritual, mas não a sua separação ou ideia de oposição. A
posição da Igreja na final do século XIX, por um lado combatendo a interferência do poder político
que se exercia sob pretexto de proteção, por outro, defendendo a aliança entre Igreja e Estado,
apresentou uma aparente paradoxo. Na realidade, a Igreja afirma que não havia contradição, na medida
em que pretendia uma união respeitada da liberdade das esferas de competência entre o poder temporal
e o espiritual. (RODRIGUES, 1981, pp. 4-5)
Visando fortalecer a posição da Igreja nesses novos tempos, após a questão Religiosa e a
Proclamação da República, D. Macedo Costa, em 1890, apresentou um documento intitulado “Pontos
das Reformas na Igreja do Brasil”, cujo objetivo maior foi a reformulação do aparelho eclesiástico.
Neste documento, D. Macedo salienta a necessidade dos bispos atuarem em perfeita unidade e que, nas
suas dioceses, garantam a união do clero devendo reforçar sua autoridades e seu controle sobre as
atividades da Igreja, mantendo-se informado do que se passa nas paróquias, especialmente através
das visitas pastorais.
Sugere D. Macedo que os bispos sejam rigorosos na vigilância do clero de modo a curar seus
males e recomenda que os poderes ampliem seu campo de atividade pastoral, exortando-os
especialmente a se dedicarem à: pregação dominical, promoção de festa religiosas, visita à hospitais,
criação e direção de conferência vicentino e difusão da boa imprensa católica. Sugere ainda que os
seminaristas recebessem um ensino religioso e ortodoxo visando à preparação do futuro sacerdote
“exemplar”. Apresenta também D. Macedo outros meios para a reforma do clero: estimular o estudo
da moral, promover excursões espirituais e fazer reuniões mensais do clero. Ainda nesse documento, o
bispo reformador estimula a vinda da Europa de congregações religiosas masculinas e femininas para
fundar e dirigir escolas católicas. Os pontos de reforma assinalados por D. Macedo são como súmula
do processo de Romanização do catolicismo Brasileiro.
3
A ação dos bispos reformadores pautou-se também no que Pedro Ribeiro chamou de
desvalorização do catolicismo leigo das irmandades e confrarias, substituindo-o por um catolicismo
romanizado. Isto foi feito, principalmente, por meio da transferência das devoções aos Santos
tradicionais como: Santo Antônio, São José, São Sebastião, Santa Bárbara, São Benedito e as diversas
denominações Marianas de origem portuguesas por devoções em voga na Europa, especialmente as
devoções Marianas e a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, na época em grande florescimento na
Europa, inclusive servindo como instrumento de Luta contra o “modernismo” e o liberalismo anti-
clerical. Aqui, desempenham papel de grande importância as novas congregações religiosas que tratam
de difundir suas devoções próprias (como os Salesianos e a devoção de Nossa Senhora das graças, os
Redentoristas e a devoção a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, São Geraldo Magella e Santo
Afonso) fazendo com que os “ novos” Santos ocupassem o lugar dos tradicionais. (RIBEIRO, 1995,
pp 278-280)
O resultado prático deste trabalho religioso foi a desarticulação das antigas irmandades e
confrarias voltadas para os santos “tradicionais” e sua substituição por novas organizações leigas,
voltadas para a devoção aos “novos” Santos. Neste ponto, a introdução da devoção ao Sagrado
Coração de Jesus assumiu grande importância uma vez que se efetivou um novo organismo leigo: o
“Apostolado da Oração”, que se difunde com enorme rapidez, no final do século XIX, seguindo quase
passo a passo a ação dos Bispos Reformadores”. O Apostolado da Oração, bem como as outras
associações religiosas para leigos, como a Pia Associação das Filhas da Maria, a Liga Católica, a
Cruzada Eucaristica, a Congregação Mariana e as Conferências Vicentinas, para citarmos as mais
atuantes, distinguem-se radicalmente das antigas irmandades e confrarias pela posição nelas ocupadas
pelos leigos. Embora sejam associações de leigos, sua direção esteve diretamente subordinada ao
pároco que, estatutariamente, faz parte da diretoria e, de fato, tinha sob seu controle as decisões
concernentes a essas associações. (RIBEIRO, 1978, pp 19-20) O centro D. Vital tornou-se uma fonte
inspiradora de novas tendências de afirmação e defesa dos princípios católicos. Em Pernambuco,
surgiram vários outros movimentos católicos, dentre os quais a Congregação Mariana da Mocidade
Acadêmica, iniciativa do arcebispo de Olinda e Recife, D. Miguel de Lima Valverde. Dois aspectos
vão destacar essa Congregação no âmbito deste trabalho:
1º Trata-se de um movimento atrelado à Igreja, seguindo a linha do catolicismo reformado;
2º É dos quadros da Congregação Mariana que saem os futuros dirigentes do Estado Novo, o
qual mantinha intima relação com a Igreja.
Era intenção de D. Valverde estimular na sua arquidiocese um movimento cujos bons
resultados foram observados no Estado da Bahia. Em 1923, demonstra ao Pe. João Batista Gonçalves,
4
Reitor do Colégio Nóbrega, seu decidido empenho em implantar o movimento mariano na sua
arquidiocese. Nessa época, o colégio não contava com vastas acomodações, sendo impossível ceder
um local para as reuniões.
No ano seguinte, o novo diretor, Pe. Domingos Gomes, destinou à Congregação Mariana
um amplo salão do antigo Palácio da Soledade para o seu funcionamento. Em março do mesmo ano, o
Pe. Antônio Magalhães iniciou os trabalhos, convidando jovens para a primeira reunião preparatória
que aconteceria no dia 16 de março, à qual compareceram treze rapazes que, em comum, evocavam a
proteção da Virgem Maria. Em seguida, o Pe. Magalhães expôs os motivos da reunião e descreveu o
objetivo maior do movimento: o de acabar com o indiferentismo religioso dos católicos e combater as
ideias consideradas até então “pagãs”. Os congregados passaram a se reunir semanalmente na capela
do antigo Palácio da Soledade, onde recebiam instruções para a luta contra as ideias consideradas
liberais. É desses encontros que surge, em 31 de agosto de 1924, o Círculo de Estudo da Mocidade
Acadêmico, cujos sócios pertenciam aos quadros da Congregação Mariana. (ARQUIVO, vol I, pp 30-
31)
Nesses círculos eram discutidos temas religiosos, filosóficos e científicos dos quais surgem
as primeiras lideranças católica, dentre as quais destacamos: Luiz delgado, Nilo Pereira, Arnóbio
Tenório, Willy Lewin, Manuel Lubambo, Tadeu Rocha, José Colier, Milton Pontes e Ruy Marques.
É Também desse grupo que, em 1931, nasce a Revista Fronteiras, sob a orientação de Manuel
Lubambo, seguindo a mesma linha de luta em defesa das tradições cristãs, exercendo uma forte
influência nos meios conservadores, pelos seus temas nacionalistas religiosos e anticomunistas.
(ARQUIVO, vol II, p. 11).
Segundo, ainda, orientação do Arcebispo D. Manuel Valverde, foi criada, em 1929, uma
nova organização para os jovens: “A Liga para Restauração das Ideias”. Esta associação tinha o intuito
“patriótico- religioso e anti-comunista” de combater as doutrinas de esquerda, bem como o espiritismo,
protestantismo e a maçonaria. Visavam também a formação de futuros dirigentes católicos para
exercerem uma ação opositora a tudo o que fosse de encontro aos princípios cristãos, principalmente
junto à imprensa e à intelectualidade.
No primeiro ano de existência, a Liga organiza-se no sentido de realizar dois ideais: o
primeiro de incentivar e praticar o ensino da Doutrina Cristã, sendo para isso realizados vários cursos
sobre apologética cristã; o segundo, de intensificar a prática de retiros espirituais, adotada pelos
membros da Congregação Mariana, os quais fortaleciam ainda mais suas convicções sobre os
princípios católicos.
5
Fazia parte de Congregação Mariana, a Associação Desportiva Acadêmica (ADA), fundada
em 1929. Em sua bandeira e escudo, havia as cores azul e vermelho que simbolizavam Nossa Senhora
e o Sagrado Coração de Jesus. Foi criada com a finalidade de seus associados, paralelamente ao
desenvolvimento do físico, através da prática de esportes, cultivassem ideias que fortalecessem os
princípios religiosos da Congregação. A ADA chegou a contar com 150 rapazes filiados mas, devido à
severa disciplina e obediência dos mesmos às normas norteadoras da ADA, este número decaiu para
50 (ARQUIVO, vol II, pp. 80-82). A preocupação com a “moral” era uma constante na Associação,
como exemplo dessa rigidez, observa-se o artigo 4º do Estatuto da ADA que diz ser proibido na sede e
nos jogos, toda e qualquer palavra, gesto ou brincadeira que destoasse da boa educação cristã e da
moralidade a que se propunha o Estatuto da Congregação.
O Dr. Andrade Bezerra, falando em nome da congregação, na Páscoa de 1929, a cerca dos
ideais de desportos na vida dos acadêmicos ressaltou: a natureza exige da mocidade o movimento dos
músculos para o desenvolvimento e robustecimento do organismo. Os estudantes, de um modo
particular, os das Faculdades, necessitam de interromper os seus trabalhos com jogos, e de preferência
ao ar livre, para não se cansarem demais e pra tirarem maior proveito dos estudos. Há ainda vantagens
morais. Na sua idade de exuberância juvenil, há necessidade de fazer cansar o corpo, sacudir e expedir
os humores. Esta profilaxia diminui os estímulos da carne. A preocupação entusiástica dos jogos e das
competições moderadas absorve a mente e afasta o pensamento dos objetos maus. Existe ainda a teoria
moderna das glândulas endócrinas que explica a razão da diminuição da concupiscência em virtude do
exercício físico. É motivo porque todos os colégios católicos fazem tanta questão de jogos para os
seus alunos” .¹² (ARQUIVO, vol.II, p.95)
No início dos anos 30, iniciava a congregação Mariana uma campanha em prol da
implantação do ensino religioso no Estado de Pernambuco. Em janeiro de 1931, tendo à frente o Profº
Laurindo Oliveira, é iniciada a propaganda com distribuição de boletim pró-ensino religioso. Um
incidente porém radicalizou a campanha: os congregados, em número de vinte, resolveram assistir a
uma sessão da loja Maçônica Conciliação, situada na atual Conde da Boa Vista, na qual falava o Sr.
Nilo Câmara, presidente do Instituto da Ordem dos Advogados. Os congregados interromperam a
reunião com o grito “de não apoiado”, gerando assim um conflito de grandes proporções, o que levou
maçons e marianos aos hospitais.
Após este episódio, os congregados decidiram criar sua tropa de choque obtendo do Pe.
Fernandes, diretor da congregação, total apoio. Foi criada então a UNICDP – União Nacional Católica
por Deus e pela Pátria, com o objetivo de reunir seus membros, com maior rapidez possível, em caso
6
de embate. A UNICDP organizou um minucioso fichário no qual contavam nome, residência, telefone,
entre outros dados, de seus associados.
Os membros da União dos Moços Católicos eram chamados “Soldados de Cristo” e, como
faltasse um hino de guerra, o Prof. Laurindo Oliveira e Silva acomodou às circunstância do momento a
marcha de Cristo Rei que os Católicos Mexicanos tinham composto para o seu movimento.
Nos estatutos da UNCDP, ficam explícitas as reivindicações dos católicos para a
Constituinte de 34, conforme observa-se: Que a constituição seja promulgada em catolicismo como
religião do povo brasileiro; que se mantenha a indissolubilidade do casamento; que seja incorporado
aos cursos primário e secundário o ensino religioso; e que seja oficialmente autorizada a assistência
religiosa às classes armadas, às penitenciárias, aos hospitais e asilos ao Estados etc. (ARQUIVO, vol.
III, pp.188-190)
A campanha feita pelos católicos em prol do ensino religioso se intensificou com a prática
de comícios realizados pela UNCDP nos bairros e cidades vizinhas. Dentre esses comícios destacamos
o realizado em Paudalho, onde houve violência física e recursos às armas de fogo, ferindo várias
pessoas. Os comícios ocorriam geralmente aos domingos à tarde. Imprimiam-se milhares de folhas de
volantes apropriadas a cada comício. Na tarde de sábado e manhã de domingo, os próprios
congregados e outros sócios da UNCDP distribuíam pessoalmente às portas das Igrejas, nas praças e
bondes. Na tarde de domingo, à hora marcada, juntavam-se todos na Avenida Rio Branco, onde
tomavam o bonde e seguiam cantando “Queremos Deus” e outros hinos mas, principalmente, o Cristo
Rei”. (ARQUIVO, vol III, pp. 126-127)
É dos quadros da UNCDP que saem os principais elementos que vão compor a
“inteligentzia” totalitária do interventor Agamenon Magalhães, dentro os quais destacamos: Etelvino
Lins, na Secretaria da Segurança; Manuel Lubambo, na Secretaria da Fazenda; Arnóbio Tenório, na
Secretaria da Justiça; Apolônio Sales, na Agricultura; e Nilo Pereira no setor de Imprensa e Educação.
Ao analisarmos a Congregação Mariana como uma organização ligada à Igreja Católica, constatamos:
A sua total dependência da hierarquia eclesiástica, uma vez que o sentido do seu apostolado
estava na firme disposição de ajudar os padres a seguirem as diretrizes estabelecidas pelos
Bispos;
Era tarefa da congregação Mariana, a formação, dentro de seus quadros, de uma elite
intelectual cujo objetivo maior era defender a hegemonia da Igreja Católica perante as outras
religiões e contribuir, decisivamente, para ortodoxia da doutrina católica;
Colaborar junto à Igreja em sua campanha anticomunista, tão acentuada na década de 30;
7
Uma total ausência de propostas e preocupações para com as questões sociais. A atividade da
congregação Mariana, junto aos pobres, limitava-se, tão somente, a instituir a prática de retiro
espiritual junto à classe operária;
Por último, ressaltamos as relações de cooperação dos dirigentes da Congregação Mariana para
com as forças da Segurança. Em Pernambuco, a partir dos anos 30, a congregação Mariana passou
a organizar e promover a páscoa das cerimônias religiosas, nas quais eram realizados discursos de
ambas as partes, enaltecendo o “espírito ordeiro e religioso do povo brasileiro”. (MIRANDA,
1988, pp. 65-66)
8
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARQUIVO da Congregação Mariana da Mocidade Acadêmica. Recife: [s.n], 1938- 1939. 3v.
AZZI, Riolando. Elementos para a História do Catolicismo Popular. Petrópolis: Editora Vozes, 1976.
AZZI, Riolando. Catolicismo Popular e Autoridade Eclesiástica na Evolução Histórica do Brasil Religião e
Sociedade. São Paulo: Gráfica das Revistas dos Tribunais S.A., 1977.
AZZI, Riolando. O Movimento Brasileiro de Reforma Católica Durante o Séc. XIX. Rio de Janeiro: Reb.
Petrópolis, 1974.
BEOZZO, José Oscar (Coordenador). História da Igreja no Brasil. 2ª Ed., Petrópolis: Edições Vozes.
1981.
MIRANDA, Carlos Alberto Cunha. Igreja Católica do Brasil: Uma Trajetória Reformista (1872-1945).
Recife, 1988.
RODRIGUES, Anna Maria Moog. A Igreja na República. Brasileira: Editora Universidade de Brasília,
1981.
9
1
RESUMO
Este artigo analisa o processo de implantação das igrejas evangélicas na Zona da Mata Norte
de Pernambuco, entre 1890 e 1910, quando os batistas, os congregacionais e os presbiterianos
abriram suas primeiras frentes missionárias na região. Examinamos a relação da dinâmica de
criação e organização destas igrejas com o processo de integração territorial da Zona da Mata
à capital, através da construção da ferrovia que ligou o Recife a Campina Grande; as
estratégias de difusão da fé e o enfrentamento dos protestantes com a cultura popular católica
e o próprio clero; a articulação, incluindo confrontos e acomodações, dos líderes missionários
com a nova ordem republicana, para garantir direitos ou inserir-se, voluntariamente ou não,
nas disputas políticas locais; as estratégias de formação de líderes locais; e as relações entre as
próprias denominações, que atuavam naquele momento, na região.
INTRODUÇÃO
Macapá e São Vicente Férrer eram, àquela época, distritos do município de Timbaúba, uma
região localizada na região de fronteira da Zona da Mata Norte de Pernambuco com a Paraíba
cuja economia estava ligada ao comércio, ao algodão, ao café e, no caso de Timbaúba, à
tecelagem do algodão. Antes da Igreja Evangélica Congregacional, fundada na cidade em
1911, os batistas haviam fundado a sua igreja em 1901, a partir de uma frente missionária
aberta pela Igreja Batista em Nazaré da Mata e pelo pastor Salomão Ginzburg. Este último era
um judeu polonês que se converteu ao evangelho na Inglaterra e emigrou para os EUA, onde
se tornou missionário da Igreja Congregacional, destacado para trabalhar em Portugal, de
onde veio ao Brasil em 1891. Aqui, ligou-se aos batistas e à Junta de Missões de Richmond,
sul dos EUA, passando a desenvolver suas atividades por todo o território nacional,
radicando-se em Pernambuco entre 1900 e 1909.
Detalhe da Carta Chorographica do estado de Pernambuco, indicando os quatro municípios da Zona da Mata
Norte (Timbaúba, Itambé, Goiana e Nazareth). A linha amarela indica o roteiro da ferrovia, que saía do Recife,
atravessa a região e seguia para Campina Grande.
A Zona da Mata Norte de Pernambuco é uma extensa área formada no início do século XX
por quatro grandes municípios, quais sejam, Goiana, Nazaré da Mata, Itambé e Timbaúba.
Estas quatro cidades envolviam os distritos que se emancipariam ao longo do século.
Vicência, Aliança e Tracunhaém eram distritos de Nazaré da Mata; Camutanga, Ferreiros,
Serrinha eram distritos de Itambé; Macapá e São Vicente Férrer eram distritos de Timbaúba; e
Condado e outra parte do que viria a ser Aliança, eram distritos de Goiana. Juntos, os quatro
municípios possuíam cerca de 100 mil habitantes. Até há um pouco de tempo, toda a faixa
fronteiriça com a Paraíba era o município de Goiana, até que houve a criação da vila de
Itambé em 1867, que passava a ter jurisdição sobre o território que abarcava os atuais
municípios de Serrinha, Camutanga, Ferreiros, Timbaúba, Macaparana e São Vicente Férrer.
Doze anos depois, em 1879, Timbaúba foi separada de Itambé, ficando até 1928 com o
controle sobre Macapá e São Vicente Férrer. O desmembramento de todas elas está associado
à existência de atividades econômicas que proporcionaram um dinamismo e o desejo de
autonomia nas elites locais. No caso de São Vicente Férrer, a região é de uma altitude
elevada, com temperaturas bem mais baixas, com um perfil fisiográfico muito diferente de sua
sede original (Goiana) ou mesmo de Timbaúba, a quem ficou posteriormente jurisdicionada.
É uma área fronteiriça com o Agreste que teve nas últimas décadas do XIX o
desenvolvimento de uma importante cultura cafeeira. A região entre Nazaré da Mata e
Timbaúba era largamente ocupada por algodoais, pequenos proprietários, pela fruticultura,
4
A implantação das ferrovias e o traçado que elas seguiram foi outro fator importante que
contribuiu para o surgimento de diferenças econômicas no interior de vilas, promovendo o
crescimento de certas localidades e o seu futuro desmembramento. Contribuiu mesmo para a
alteração econômica das relações entre os municípios já estabelecidos, possibilitando o
dinamismo de uns em detrimento de outros. Mas, não apenas isso. As relações sociais e a
cultura seriam dinamizadas pelo contato com o elemento externo, o estrangeiro, o caixeiro,
que agora tem o seu deslocamento facilitado, a viagem e o contato com a capital levando
menos tempo, os jornais circulando mais rapidamente, as ideias circulando mais
intensamente. O mundo religioso é um dos melhores exemplos dessa interação cultural
provocada e acelerada pela ferrovia. Os missionários seguem a rota da estrada de ferro na
abertura de seus pontos de pregação, de suas bases de atuação. Isso é claramente perceptível
através da relação entre as datas de abertura das estações ferroviárias e das igrejas na região,
conforme a tabela abaixo.
A segunda metade do século XIX assistiu, portanto, ao surgimento e criação de uma rede de
ferrovias, a maior parte sob a direção da Great Western do Brasil, que detinha inicialmente
um ramal que ia do Forte do Brum até Limoeiro, início do Agreste. À altura da atual cidade
de Carpina, a GWBR começou a construção de outro ramal em direção ao norte para
encontrar-se com a Estrada de Ferro Conde D’Eu, que seguia em direção a Natal, Rio Grande
do Norte. A construção do ramal norte da ferrovia seguiu o roteiro Carpina (1881),
Tracunhaém (1882), Nazaré da Mata (1882), Upatininga/Aliança (1882), Baraúna/Aliança
(1883), Centro de Aliança (1883), Pureza/Timbaúba (1883), Centro/Timbaúba (1888) e Rosa
e Silva/Timbaúba (1900), de onde seguiu para a Paraíba, ligando-se aos ramais de Campina
Grande e de Natal. As igrejas evangélicas surgiram seguindo esta rota e datas, um fato que foi
evidenciado pelo reverendo Ginzburg em seu livro de memórias, quando relembra os fatores
que ajudaram a ampliação do trabalho missionário na região. Segundo o reverendo, tratando
sobre a igreja de Limoeiro, mas com um arrazoado que pode perfeitamente ser estendido para
o restante da região,
A nova forma de exercício da fé cristã que se propaga pela Zona da Mata Norte, na década de
1890, possui as diferenças doutrinárias óbvias com o catolicismo romano, que diz respeito às
devoções aos santos, aos sacramentos, o papel do clero na relação entre o crente e Deus, na
6
organização eclesial, na leitura da bíblia. Mas, podemos perceber essas diferenças como parte
de algo maior, que é a forma de compreender o próprio mundo, as relações culturais, o papel
de si, como indivíduo, diante da vida e das coisas do sagrado. Nesse sentido, o choque entre
católicos e evangélicos, as conhecidas ‘perseguições religiosas’ que estes sofrem, não
ocorrem apenas por uma mera diferença doutrinária, mas porque esta diferença acende um
debate sobre as diferenças culturais mais amplas entre estes sistemas de mundo, estas
cosmovisões. Desta forma, podemos compreender como os conflitos ocorrem, mesmo com o
país estando já sob o signo da constituição republicana de 1891, que havia separado
oficialmente a religião e o Estado, que havia criado instrumentos de secularização das
relações sociais e políticas para reger o próprio Estado. Mesmo que a legislação garantisse a
liberdade religiosa e a liberdade plena de culto, nas vilas, cidades, distritos e fazendas do
interior, o que está em jogo não é apenas o cumprimento da lei, mas o confronto entre dois
conjuntos de padrões culturais religiosos que trazem diferenças marcantes nos seus exercícios
religiosos, mas, também nos relacionamentos sociais mais amplos.
Os relatos de confrontos podem ser encontrados facilmente nos livros de memórias das igrejas
e dos missionários que atuaram na região. Neste artigo, servimo-nos dos relatos de
perseguição consignados no livro de memórias do reverendo Ginsburg, na sistematização
procedida pela professora Joyce Every-Clayton e pelos professores Zaqueu Moreira Reis e
Caleb Soares em seus livros que tratam, respectivamente, do início da Igreja Evangélica
Pernambucana, das perseguições religiosas aos batistas e aos presbiterianos, especificamente,
os capítulos destas duas últimas obras que tratam de Pernambuco. Evidente, que tais relatos
precisam sempre ser conferidos com uma documentação produzida fora do âmbito eclesial,
para evitar a armadilha de um discurso hagiológico e de vitimização destinado a criar heróis
da fé. A imprensa secular, entretanto, registra também com assiduidade relatos de diversos
tipos de confrontos entre os evangélicos e os católicos, e para este artigo examinamos o jornal
diário A Província, onde a os capuchinhos e a Liga contra o Protestantismo escreviam com
frequência e divulgavam as ações de resistência ao avanço dos ‘nova-seita’.
Encontramos um conjunto de enfrentamentos que poderíamos dizer que são conduzidos por
um debate de natureza ideológica entre os dois sistemas, o católico e o evangélico, a exemplo
de quando os capuchinhos recolheram bíblias distribuídas por colportores e as incendiaram
numa fogueira em frente à Igreja da Penha, em Recife (ARAUJO, 1906: VII-X). Outros
relatos dão conta de agressões aos templos construídos ou que eram utilizados para esse uso.
Foi o caso da Igreja Batista de Nazaré da Mata, incendiada em 1896, logo depois de iniciado o
7
trabalho batista neste município (PIMENTA, 1994: 80). Há relatos de conflitos internos
familiares, como no caso do ministro congregacional Júlio Leitão de Mello, que depois de sua
conversão em 1896 foi expulso de casa (entrevista do neto do reverendo ao autor).
E, ainda, situações inusitadas que levaram a catástrofes, como a que ocorreu em Bom Jardim,
no agreste de Pernambuco, no dia 15 de abril, o domingo de páscoa de 1900. Ali, o trabalho
batista resultou na conversão de um político local, que passou a organizar cultos em sua
fazenda, levando a luta política que travava com o coronel local a travestir-se em conflito
religioso, resultando em um choque armado e na morte de dezenas de pessoas. O relato feito
pelo reverendo Ginsburg em seu livro de memórias inicia descrevendo Bom Jardim como
“rodeada de ricos plantios de cana de açúcar e criação de gado bovino, um centro de riquezas
e com um grande futuro, principalmente se o plano para [a construção de] uma ferrovia
chegar a ser feito”. O pastor destaca um elemento desprezado na crônica de diversos outros
evangelistas, tratando do comportamento assumido pelos conversos à nova fé em suas
relações cotidianas com a comunidade, marcado pelo ímpeto proselitista, decorrente da
percepção dos evangélicos sobre a necessidade de conversão da alma e do comportamento
social para a salvação da alma. Segundo o pastor, “como acontece muitas vezes, os conversos
neófitos, cheios de zelo e falta de prudência, começaram a rir e zombar dos católicos e dos
padres”. Tal enfrentamento evoluiu gravemente por “ser aquele convertido de influência e
alguns fazendeiros interessados pertencentes ao partido político da oposição e em cujas
fazendas estavam havendo as pregações”. Pelo mando do chefe político,
O relato feito por Ginsburg é um tanto confuso, não faz referências aos nomes dos
personagens, não especifica os nomes das fazendas nem das autoridades. Um ponto que
merece atenção é a invocação a Nossa Senhora de Santana, por parte do chefe daqueles que
estão atacando os protestantes. A narração cria uma sensação de estarmos diante de uma
guerra religiosa, e era esta a intenção do autor, considerando ainda que o seu livro foi escrito
mais de uma década depois da tragédia. O episódio de Bom Jardim ganha mais luzes a partir
da identificação do pároco local, padre João Bezerra, que ocupava o cargo de senador
estadual, do fazendeiro Antonio Marques, que fazia oposição ao pároco também nas questões
políticas, trazendo para a questão religiosa, que já não era algo simples, um ingrediente
potencialmente explosivo, que era a sua interação com o mundo das relações de poder
clientelistas e lideradas por chefes políticos poderosos (REIS, 1999, 100-105).
O chefe político local teria armado uma emboscada para o seu adversário porque agora, a
expansão dos evangélicos estava sendo interpretado pelo coronel como um desafio ao seu
poder. O confronto está repleto de elementos da cultura religiosa de ambos os grupos. ,
resultaram No relato do missionário, o fazendeiro converso não estava com tais intenções,
mas a hipótese de uso da nova fé para algum tipo de mobilização política não é implausível
(GINZBURG, 1970, 123-126).
4. AS IGREJAS.
Procedemos a um breve balanço sobre a abertura de igrejas na região, situando os locais, datas
e personagens envolvidos. Estes dados são coletados de memórias eclesiais e pessoais dos que
estiveram envolvidos no processo e não são exaustivos, mas apontam importantes tendências
para compreender a presença e as estratégias de implantação dos evangélicos na região.
O trabalho batista em Nazaré teve início em março de 1895 e em 12 de janeiro 1896, foi
organizada como Igreja, com dezesseis membros. A instituição da Igreja foi presidida pelo
pastor William Edwin Entzminger, e secretariado pelo pastor Mello Lins. Na mesma ocasião,
foi eleito como pastor o missionário William Entzminger e o converso local João Borges da
Rocha, para o diaconato. João Borges foi posteriormente, ordenador pastor, tendo sido pastor
da Igreja Batista em Timbaúba e da Primeira Igreja Batista em Recife.
10
Timbaúba foi um dos pontos centrais de difusão do protestantismo no extremo da Mata Norte,
em decorrência de sua estação da Great Western. Por ela, os missionários da Igreja
Evangélica Pernambucana chegaram à região do Vale do Sirigi, já no começo do século, com
a abertura de congregações em Orobó, no Sítio Cavunga, nas proximidades da atual Vila de
Sirigi, um distrito de São Vicente Férrer; também, em Balanço e Monte Alegre, além de
vários pontos de pregação, espalhados nas redondezas. O trabalho era conduzido sob a
liderança do missionário Alexander Telford, escocês, e Charles Kingston, inglês,
ambos obreiros mantidos pela entidade britânica HELP FOR BRAZIL, e auxiliados pelo
presbítero português Manoel de Souza Andrade, e pelos evangelistas nacionais Pedro
Campelo e Hermenegildo Sena, alunos do Seminário Presbiteriano em Garanhuns aos quais
se juntaria o jovem Júlio Leitão de Melo, natural da região de São Vicente e um dos primeiros
pastores congregacionais da região.
A Igreja Batista de Goiana foi organizada em 1892, pelo trabalho missionário de dois alunos
da classe teológica de William Edwin Entzminger, Emigdio Bento Alves e Juvêncio Índio do
Brasil. O missionário Entzminger fez duas visitas, realizou o batismo vários convertidos, o
que devia ser um evento, no mínimo estranho para a cultura religiosa predominante. Afinal, o
ritual possui uma dimensão estética que não é nem um pouco desprezível. Imaginemos um
grupo que se dispunha a dirigir-se às margens do rio local, vestidos com longas túnicas
brancas a fim de serem mergulhados sob a condução de religiosa de um pastor de sotaque
inglês, em um ambiente com a prevalência até bem pouco tempo dos rituais religiosos
católicos romanos e podemos imaginar as discussões que o evento pode ter entre a
comunidade local.
f) Batistas em Aliança
A narrativa consignada pelo reverendo Antonio Mesquita sobre a chegada dos batistas em
Aliança traz outro capítulo da narrativa evangélica acerca das perseguições religiosas. Um
11
Desde o início, ficou clara a intenção dos missionários em trabalhar a formação de lideranças
locais, que pudessem conduzir as congregações e futuras igrejas. Todas as igrejas possuíam os
seus jornais que funcionavam como fonte de informação sobre as diversas frentes de atuação
denominacional, quanto para a divulgação de estudos doutrinários. As duas principais
denominações criaram, rapidamente, seus próprios seminários, ambos já seculares. O
Seminário Batista e o Seminário Presbiteriano, em Recife, mas os presbiterianos foram além e
criaram um seminário em Garanhuns, que serviu de centro de formação de lideranças locais
tanto para os próprios presbiterianos, quanto para os congregacionais. No caso dos
congregacionais de Macapá e Pirauá, sua principal liderança, Júlio Leitão de Mello, foi
formado naquele seminário. O recrutamento e formação de pastores autóctones era uma tarefa
urgente, parece que não apenas para o interior, mas também para a própria capital. João
Borges da Rocha, converso de Nazaré da Mata em 1895, foi diácono em 1896, pastor da
igreja de Nazaré e Timbaúba em 1900 e 1901, e depois, pastor da Primeira Igreja Batista no
12
Recife, na década de 1910. Júlio Leitão de Mello, converso em 1896, pastor em Pirauá em
1912, pastor na década de 1940 em Caruaru, influente na abertura dos trabalhos
congregacionais em Campina Grande e egresso do Seminário Presbiteriano em Garanhuns.
BIBLIOGRAFIA
MELO, Josemir Camilo de. Ferrovias Inglesas e Mobilidade Social no Nordeste (1850-
1900). Campina Grande-PB: EDUFCG, 2008.
MESQUITA, Antônio Neves de. História dos Batistas do Brasil: 1907 até 1935. Rio de
Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1940.
1
Soneto à lei de 25 de Maio de 1773, que aboliu a distinção de cristãos velhos e cristãos novos, pela qual
se disse ter dado os Judeus 500 mil cruzados.
Embora este capítulo tenha iniciado com um tema audacioso ao anunciar “Do Papel em
Branco às Memórias Registradas”, procuramos problematizar e perceber como as vidas dos
judaizantes vão se inscrevendo em meio ao fim do Tribunal do Santo Ofício e à formação de um
Brasil Independente.
Sendo assim, não partimos de fato de um ponto em branco, onde o nada impera e as
incertezas são o que acompanha. Partimos de uma aquarela que fora adormecida pelos Tribunais
Inquisitorias e pela cultura antijudaica que se perpetuou durante séculos, mas que a simples
existência de um povo se fez pintar traços marcantes que merecem compor não uma história de
silenciados e vencidos, porque os judaizantes jamais foram calados. Mas de se pintar algumas
páginas para entender a riqueza e a pluralidade da cultura brasileira que começa a ganhar novas
linhas com a emancipação em relação a Portugal.
Não temos uma descrição clara, direta e objetiva que mostre que tais sociedades secretas
fossem pertencentes a judaizantes, porém o documento verbaliza que eram considerados
sociedades secretas todo e qualquer grupo que se opusesse à ordem cristã, sendo assim os
judeus pertencentes à outra religião poderiam estar inseridos dentro deste Alvará, mesmo não
sendo concebidos como sociedades secretas.
2
Para podermos mapear melhor a vida nos primórdios do Império, investigamos uma série de livros
intitulada “O Clero no Parlamento Brasileiro, que trata das discussões prévias para elaboração da Carta
Constitucional de 1824 no Brasil. os livros por nós analisados é uma série distribuída em quatro volumes,
versando acerca da participação do clero no construto da primeira constituição do Brasil.
3
Trata-se do Alvará de D. João VI mandando fechar todas as sociedades secretas, isto é, a maçonaria, que
estava difundindo na própria Corte. Entretanto as sociedades secretas descritas neste Alvará foram além
da maçonaria, pois em seu Artigo 4º estabelecia que: serão consideradas sociedades secretas as que não
participarem ao Governo a sua existência, os fins gerais da associação, com protesto de que não se opõem
à ordem social, ao sistema constitucional estabelecido neste Império, à moral e à religião cristã, etc.” (
BRASIL. Congresso . Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e Informação. 1978:52).
Em outro momento, temos uma opinião contrária em relação à revogação do Alvará que
punia as sociedades secretas. O parlamentar Antonio da Rocha Franco retoma a discussão,
entretanto sobre ponto de vista antagônico, deliberando total desprezo em relação a aceitação a
sociedades secretas.
O impasse estava assim decretado e neste mesmo dia dois de junho, sob prescrição do
parlamentar Belchior Pinheiro de Oliveira, fora adiada a proposta de qualquer revogação, seja
contra ou a favor das sociedades secretas, porém, nas sessões subsequentes, encontraremos
debates acalorados acerca destas sociedades, evidenciando fortemente a existência das mesmas
e as preocupações que se tinha em manter o Estado completamente arraigado ao poder do
Estado Régio e da proteção Imaculada da Igreja Católica como religião oficial da Nação recém
emancipada 4.
Para tanto, foram inúmeros debates com opiniões divergentes, mas com um ponto
marcante em comum. A manutenção da Igreja Católica como Instituição pilar e oficial do
Império brasileiro. A grande questão então que se esboçará fora no tocante aos limites impostos
aos demais segmentos religiosos e até onde iria a permissão às outras crenças. Tendo mais de 30
intervenções.
Segundo Guilherme Pereira Neves na obra o Brasil Imperial organizado pela Keyla
Grinberg e pelo Ricardo Salles quase todos os debates acerca das liberdades religiosas eram
unânimes ao conclamar a superioridade da Igreja e a manutenção dessa Instituição como
majoritária nos destinos religiosos e culturais do Brasil.
4
Ao longo da Obra BRASIL, Congresso. Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e
Informação. O Clero no parlamento brasileiro. Brasília; Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa,
1978, temos todas as passagens e discussões referentes ao trato com as sociedades secretas.
Nenhum deles pretendia abrir mão da condição de fiéis depositários da
tradição católica, ainda que, para alguns poucos, já contaminados pela
literatura antireligiosa do século XVIII, se possa desconfiar de atitude ditada
por conveniências políticas do momento. Da mesma maneira, ambos os
grupos continuavam a ver na religião o fundamento moral da sociedade,
ainda mais quando esta continha uma parcela considerável tão pouco
cultivada, como era o caso da população brasileira no período. (2009:388).
“Na verdade estabelecer-se entre nós como artigo constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado. Se não tivéssemos uma religião
revelada, pela qual Deus nos fez conhecer como o devemos adorar, tanto
interior quanto exteriormente, poderia admitir-se esta liberdade; porém nós
temos essa religião revelada que devemos manter. ( BRASIL. Congresso .
Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e Informação. 1978:262).
“Eu quero que o homem tenha uma religião. Se for a católica romana,
melhor. Mas, ainda que não seja, quero sempre que observe exatamente,
porque da sua observância pende a boa moral e com ela formam-se os bons
cidadãos.” 8 de outubro de 1823, t. VI, p. 43. (idem:263).
Este artigo 5º da Constituição de 1824 estabelece liberdades, fazendo com que pela lei
muitos judaizantes secretos possam pleitear certas prerrogativas. No entanto, as leis não farão
apagar séculos de perseguição que se entranharam na cultura lusitana e, consequentemente, no
Brasil.
Assim como em Portugal em fins do século XVIII e início do século XIX, a expulsão
dos judeus, as perseguições do Tribunal do Santo Ofício, o confisco de sua religião, de seus
costumes e de seus bens não mais caberia nas transformações que a nação independente
almejava. Entretanto, como eliminar um Tribunal que por mais de dois séculos esteve enraizado
na mente de um povo?
O artigo 5º ampliou-se ainda para interpretações que desembocariam num controle mais
contundente de outras Igrejas e religiões não católicas, sendo proibido o proselitismo, a tentativa
de conversão de católicos a outros credos, bem como críticas ao catolicismo e manifestações
religiosas não católicas.
Os judeus, assim, foram beneficiados com tal liberdade de culto, todavia o campo em
que os judeus mais irão se destacar não será na religião propriamente, mas sim nos campos
sociais e econômicos, e isso será auferido aos nos reportarmos para os primeiros jornais do
Império dando destaque a um conjunto de atividades exercidas por judeus dentro desta
temporalidade.
Com a transformação do Tribunal do Santo Ofício em uma Instituição Política nas mãos
do Marquês de Pombal, e o fim da distinção entre cristãos novos e cristãos velhos, promulgada
e abolida nas terras lusitanas pela Lei de 25 de Maio de 1773, os cristãos novos praticamente
desaparecerão nas décadas subsequentes. Assimilados pela cultura heterogenia e pela distância
de instituições rabínicas, aqui no Brasil, suas práticas judaizantes caminharam gradativamente
para uma diminuição.
Logo, encontrar os sinais, as marcas, os vestígios de descendentes de cristãos novos e
judeus no início do Império brasileiro, não é uma tarefa de fácil execução. Os anos de
perseguição aos cristãos novos e a convivência com os cristãos velhos, alinhados a força do
tempo e do esquecimento, fizeram com que muitos desaparecessem no advento de um novo
tempo.
Será a partir do século XIX, que os primeiros Judeus chegaram ao Brasil, com o intuito
não apenas de fazer negócios passageiros, mas de se fazer morada, numa terra que lhes podia
legar tranquilidade e ao mesmo tempo liberdades. (religiosa social e econômica).
Keila Grinberg nos aponta que, grande parte dos judeus que imigraram para o Brasil,
vinha em busca de melhores condições de vida e, consequentemente, de maior liberdade de
culto. O que não nos impede de ampliar a ideia de uma busca de vida com maior liberdade e
sem preconceito, onde nem sempre a fuga religiosa se fará presente, mas a fuga para uma vida
mais próspera em todos os aspectos sociais.
Boa parte da diversidade étnica vislumbrada por João do Rio está relacionada
à imigração de judeus marroquinos, iniciada ainda na década de 1820,
quando começaram a cruzar o Oceano Atlântico em busca de melhores
condições de vida e da liberdade religiosa de que não dispunham em seu país
de origem. A seu favor, tinham o conhecimento do espanhol e do português,
por serem descendentes diretos das comunidades expulsas da Península
Ibérica em fins do século XV. (Grinberg, 2005:03).
5
Ver Egon e Frieda Wolff. Judeus no Brasil Imperial. In ROTH, Cecil, A STANDARD JEWISH
ENCYCLOPEDIA. Doubleday & C., Garden City, N. Y. 1962.
“Há judeus franceses, quase todos da Alsácia e Lorena, marroquinos, ingleses, turcos,
árabes...” ( WOLFF, 1979:31).
A cidade do Rio de Janeiro foi, no século XIX, uma das principais portas de
entrada dos judeus no Brasil. Outra foi Belém. Antes de 1808, essa hipótese
era impossível, uma vez que era vedada a presença de judeus em todo o
Império Português. Após o Tratado de Amizade com a Inglaterra, em 1808,
chegaram, à, então, sede do reino, os primeiros comerciantes judeus a quem
foram estendidos os mesmos privilégios dados aos cristãos não católicos.
Eram sefarditas (de origem ibérica) ingleses ou franceses e ashquenazitas (de
origem germânica) alemães ou russos. Considerando o levantamento feito,
esta leva de imigrantes que durou mais de cinco décadas, teve uma efetiva
predominância ashquenazita6.
Fatores ainda como, a abertura dos portos as nações amigas traz um grande número de
imigrantes e consequentemente aumenta o fluxo de pessoas no Brasil a partir de 1808, também
o Tratado de 1810 que assegurava em seu artigo 12 liberdade de culto aos súditos britânicos
livrava-os de uma eventual perseguição por parte da Inquisição, e isto se fará perceber pela
quantidade de imigrantes ingleses que despontam no Brasil no início do Século XIX7.
[...], a maioria das famílias judaicas que emigraram para o Brasil no século
XIX, veio da Alsácia-Lorena, da Alemanha, da Holanda e de Marrocos. Os
de Marrocos (judeus sefardins) estabeleceram-se na região do Amazonas. Os
da Alsácia-Lorena, da Alemanha, da Holanda estabeleceram-se no sul do
Brasil8.
6
HELLER, Reginaldo Jonas. In - Judeus nos primórdios do Brasil República. Biblioteca Bialik, Rio de
Janeiro, 1979.
7
[...] Artigo 12 do Tratado, Portugal concedia aos súditos britânicos completa liberdade religiosa “dentro
de suas igrejas e capelas particulares” desde que estas igrejas e capelas “tivessem sempre o aspecto
exterior de residências”. Não poderiam também falar mal da Igreja Católica e nem fazer proselitismo.
(DREHER: 1993, 134).
8
VIEIRA, David Gueiros, 1929 – O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília,
Editora Universidade de Brasília, c1980. P. 55
maior proporção em fins do século XVIII e durante grande parte do século XIX. E, o Brasil,
será um grande convite a muitos imigrantes de partes diversas do globo. Para Martin Dreher,
diversos são os fatores para se explicar as imigrações no Brasil do século XIX, a exemplo
destaca:
“os israelitas residentes nesta corte celebraram hontem num sallão particular
a primeira ceremonia do seu culto, o Kipour ou Dia do grande perdão.”
(Diário do Rio de Janeiro em 1-10-1965).
É-nos evidente, a presença judaica no Império, porém, vale salientar, que a falta de
conhecimentos, em relação às práticas culturais mais aparentes dos judeus, no que se refere aos
seus costumes, principalmente em relação aos seus cultos, tornará muitas vezes ignorante o
9
Martin Dreher, em sua obra: Migrações e História da Igreja no Brasil, publicado em 1993, enumera os
fatores que contribuíram para a presença imigrante no Brasil Oitocentista. Mesmo dando destaque a
questão protestante, o contexto pode ser aplicado à onda migratória como um todo. “Foram vários os
contextos dentro dos quais o sistema brasileiro usou o imigrante [...] 1. O branqueamento da raça; 2. A
eliminação das nações indígenas; 3. A segurança nacional; 4. A valorização fundiária; 5. A mão-de-obra
barata; 6. A construção e conservação de Estradas; 7. A criação de uma classe média brasileira.
(DREHER: 1993,112-118)
conhecimento do povo, tratando não raras vezes, os imigrantes de modo generalizado e
associando práticas de outros credos aos judeus.
Os imigrantes eram aceitos pelas necessidades que o Império imputava, porém ser
judeu, ainda não significava de fato poder ser um judaizante, mesmo amparados pela nova
legislação, os olhares preconceituosos legados de alguns séculos, não legitimavam a liberdade
de culto.
Num mesmo dia, os dois Jornais de maior circulação no Império, publicam uma notícia,
acerca das reuniões da casa do Dr. Kalby, provável judeu que acolhera outros judaizantes para
reunião de cultos. Porém, antes de conferirmos se aqui se tratava realmente de judeus ou
judaizantes, faz-se importante perceber, a forma como os códices tratam das reuniões.
10
WOLF, Frieda e Egon. Judeus no Brasil Imperial. Uma Pesquisa nos Documentos e Noticiários
Carioca da Época. Centro de Estudos Judaicos, Rio de Janeiro. 1975, pag. 8-9.
Dado importante, também para se notar e questionar, é o fato de que, de alguma forma
aqueles cultos incomodavam, seja pelo fato da diferença na condução do rito, seja pela questão
de que se trata de uma religião e de um espaço não Oficial, quer dizer, não Católico.
O Diário do Rio Janeiro, já havia mencionado os cultos, associados aos judeus em datas
bem anteriores, apresentando-os como ações de incômodo social e um caso no qual a polícia
deveria interferir.
Mesmo cientes da prerrogativa aplicada no Artigo 179, contido no Título 8º, Das
Disposições Gerais, e Garantias dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros,
presente na constituinte de 1824, dizendo que, ninguém pode ser perseguido por motivo de
Religião, uma vez que respeite a do Estado, e não ofenda a Moral Pública 11, os cultos, estranhos
aos católicos, era culturalmente relegados e marginalizados. Contribuindo para se criar uma
certa clandestinidade.
Sendo assim, os cultos vociferantes na casa do Dr. Kalby, como são delatados no Jornal
do Commercio, não poderia ser colocado como crimes, entretanto, as notícias soam como
denúncias, e o próprio termo dar cabo, exposto no noticiário do Diário do Rio de janeiro, nos
evocam uma ação um tanto excludente, de interesse social, para por fim a tais manifestações.
11
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a
liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira
seguinte. Constituição política do império do Brasil (de 25 de março de 1824).
Segundo Wolf e Frieda Egon12, ocorreram nestas notícias um erro de interpretação
quanto aos indivíduos que se encontravam as centenas, pois tratava-se na verdade, não de
notícias acerca de judeus e judaizantes, mas de cultos evangélicos, uma vez que, o nome Kalby,
fora confundido, com Robert Reid Kalley13, pioneiro nas missões protestantes que chegara ao
Brasil em meados do século XIX.
12
Wolf e Frieda Egon, 1975:9.
13
Robert Reid Kalley é um dos primeiros missionários protestantes a virem para o Brasil no início do
século XIX, sendo responsável por um vasto projeto, dentre eles a fundação da primeira comunidade
protestante lusitana. Chegou aqui no Brasil em 1855. Fundou a Igreja Evangélica Fluminense, e foi
responsável por um vasto projeto de evangelização e sanitarização na capital do Brasil.
14
Martin Dreher, enfatizando a questão do imigrante protestante vai complementa exata ótica de
marginalidade ao pontuar que: “O protestante é cidadão de segunda categoria, pois é inelegível, vive em
concubinato, pois seu matrimônio não é reconhecido, seus filhos são filhos naturais. (1993:119)
Em 1861, [...], morava em Belém do Pará um certo rabino chamado Elias,
que foi solicitado por Tito Franco de Almeida a da opinião numa questão
sobre o Decálogo, suscitado pelo missionário episcopal Richard Holden.
Encontra-se também no diário do Dr. Kalley que “100 judeus tinham se
reunido no Rio, no sábado transato, que foi o Dia da Expiação, e que
esperavam conseguir um cemitério”. (VIEIRA, 1980:55).
Egon e Frieda Wolff encontraram passagens dos Nathan em todo o período Imperial
brasileiro, inclusive uma nota na qual se tem conhecimento de que a família Nathan, possuía um
jazigo no Cemitério dos Ingleses.
Outro elemento, que seria análogo a judeus e protestantes, seria o fato de que no plano
da vida cotidiana, o Império ainda trazia heranças de uma Colônia forjada na Cruz, o direito de
viverem e estabelecerem suas vidas nesta Nova Nação que se constitui em forma de lei em
1824, não lhes dava um status de igualdade em relação aos cristãos católicos, merecendo dos
imigrantes, uma contínua e infinda ‘negociação’ de sobrevivência e aceitação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico sul
(séculos XVI e XVII). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
ASSIS, Angelo Adriano Faria de. João Nunes, Um rabi escatológico na Nova
Lusitânia: Sociedade colonial e inquisição no nordeste quinhentista. São Paulo:
Alameda, 2011.
AZZI, Riolando. A Cristandade Colonial: um projeto autoritário. São Paulo Paulinas. 1987.
CASCUDO, Luís da Câmara, 1898-1986. Mouros, franceses e judeus: três presenças no Brasil.
– 3ª Ed. – São Paulo: Global, 2001.
CUCHE, Denys, A noção de cultura nas ciências sociais, Lisboa, Fim de Século, 1999.
DE LUCA, T. R. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, C. B. (org.). Fontes
Históricas. São Paulo; Contexto, 2005. p. 111-153.
DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente 1300 – 1800: Uma cidade sitiada.
Tradução: Maria Lúcia Machado; Tradução de notas: Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
Diário das Cortes da Nação Portugueza nº 17, Lisboa, 18 de fevereiro de 1821, assim
como era chamado na época está disponível também no site: Debates Parlamentares
Cortes Geraes e Extraóridinarias da nação portugueza apresentado sob o número 17, na
Acta de 17-02-1821, nas páginas do diário referente a 111 e 114 e no site na página 113.
http://debates.parlamento.pt/page.aspx?cid=mc.c1821&diary=a1821m02d170113&type
=texto
Édito de Expulsão dos Judeus de Portugal, em 5/12/1496. Apud David Augusto Canelo. Os
últimos criptojudeus em Portugal. Belmonte, Câmara Municipal de Belmonte / Marques &
Pereira Lda, 2001, pp. 206-207.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 23ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008.
GORENSTEIN, Lina. A Inquisição contra mulheres: Rio de Janeiro, séculos XVII e XVIII. São
Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp. 2005.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo, SP: Cia. das Letras, 2006.
GRINBERG, Keila. Judeus, judaísmo e cidadania no Brasil Imperial. In: GRINBERG, Keila
HELLER, Reginaldo Jonas. In - Judeus nos primórdios do Brasil República. Biblioteca Bialik,
Rio de Janeiro, 1979.
HOLANDA, Sergio Buarque de. “Sobre uma doença infantil da historiografia” In: Marcos
Costa (org.) Para uma nova história – textos de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2004.
KAYSERLING, Meyer. História dos Judeus em Portugal. Livraria Pioneira Editora. São Paulo,
1971.
KUPER, Adam. Cultura – a visão dos antropólogos. Bauru: EDUSC, 2002.
LE GOFF, Jacques. História e memória. /tradução Bernardo Leitão [ET AL.] 5. ed. Campinas,
SP: Editora da UNICAMP, 2003.
LOEWENSTAMM, Kurt. Vultos Judaicos no Brasil. Uma contribuição a história dos judeus
no Brasil. Tempo Colonial. 1500 – 1822. Livraria – Editora a Noite. Rio de Janeiro 1949.
LUSTOSA, Fernanda Mayer. Raízes judaicas na Paraíba colonial: séculos XVI-XVIII. São
Paulo: FFLCH-USP, 2005.
MATTOS, Yllan de. A última Inquisição: Os meios de ação e funcionamento do Santo Ofício
no Grão-Pará pombalino (1750-1774). Jundiaí, Palco editorial:2012.
NEVES, Guilherme Pereira das. A religião do império e a Igreja. In. O Brasil Imperial, volume
I: 1808:1831. Org.: Keyla Grinberg e Ricardo Salles Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2009.
NAZARIO, Luiz. Autos-de-fé como espetáculos de massa. São Paulo. Associação Editorial
Humanitas: Fapesp. 2005
NOVINSKY, Anita W. Cristãos Novos na Bahia: 1624-1654. São Paulo: Edusp; Perspectiva,
1972.
___________________. Inquisição: Rol dos Culpados: fontes para a história do Brasil (século
XVIII). Rio de Janeiro: expressão e Cultura, 1992.
__________________. Gabinete de Investigação: uma “caça aos judeus” sem precedentes. São
Paulo. Humanitas Editorial/Fapesp. 2007.
PINSK, Carla Bassanezi (ORG.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
REIS, José Carlos. O Conceito de Tempo Histórico em Ricoeur, Koselleck e “Annales”: Uma
Articulação Possível. Revista de Filosofia, Vol. 23, No 73 (1996). Disponível no site:
http://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/Sintese/article/view/989/1428, acessado em 20 de
outubro de 2012.
RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações
fúnebres no Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de
Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, Rio de Janeiro, 1997.
RONALDO, Vainfas. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
ROTH, Cecil, A Standard Jewish Encyclopedia. Doubleday & C., Garden City, N. Y.
1962.
SODRÉ. Nelson Werneck, História da Imprensa no Brasil, Rio de Janeiro, Ed. Civilização
Brasileira, 1966.
WOLF, Frieda e Egon. Judeus no Brasil Imperial. Uma Pesquisa nos Documentos e Noticiários
Carioca da Época. Centro de Estudos Judaicos, Rio de Janeiro. 1975.
_____________________. Nossas três vidas e outras histórias. Rio de Janeiro, Sette Letras,
1999.
Dissertações e Teses:
Periódicos:
Diário Mercantil;
Jornal do Commercio;
Jornal O Annunciador;
1
1
Entende-se por Oligarquia, um sistema de domínio político por uma ou mais pessoas, representando um
clã ou grupo consangüíneo ou não, mantido unido por metas econômicas comuns, interesses políticos e
crenças ideológicas e religiosas, ou pelo desejo coletivo de glorificação de um líder carismático, tudo para
promover e defender o bem comum.
2
Coelho Lisboa e Albino Meira, não residiam aqui, este fato provavelmente, tenha
prejudicado a expansão de idéias e discussões acerca da republica em solo paraibano.
Por isso, ao ser proclamada a república, não tínhamos naquele momento subsídios e
intelectuais ligados a causa republicana para a organização do novo regime que se
implantara no Brasil. Este fato vai dar inicio as disputas de poder na Paraíba.
Na Paraíba a dificuldade se centrava na ausência do Partido Republicano,
reconhecendo-se apenas a existência de elementos republicanos infiltrados
dispersamente nos partidos existentes. O paraibano Aristides Lobo, que fazia parte da
cúpula nacional como Ministro do Interior e da Justiça do Governo Provisório, chegou a
indicar o nome de Albino Meira para a presidência do Estado. Albino era um declarado
republicano, propagandista do movimento, que atuava no Recife, onde era professor da
Faculdade de Direito.
Mas, como os militares estavam com mais força na cúpula, deu-se a intervenção
dos generais Almeida Barreto, João Neiva e Tude Neiva. Em dezembro de 1889 saiu a
nomeação de Venâncio Augusto de Magalhães Neiva para governar a Paraíba, então
juiz de Direito de Catolé do Rocha, apesar dele ser considerado conservador foi
nomeado Presidente da Província da Paraíba do Norte.
Durante o primeiro período republicano o poder passou a ser exercido pelos
coronéis e as oligarquias que controlavam a Paraíba. Como as coisas não mudaram
muito e a Província agora convertida em Estado, continuou pobre com a população
ainda mais carente, as oligarquias assumiram o lugar do Império unitário. Com isso, a
chamada República Velha de 1889 a 1930, é também denominada na Paraíba como no
Brasil, de república oligárquica, isto é, de predomínio das oligarquias. Nesta fase o
Estado passou por três oligarquias: o venancismo (Venâncio Neiva), o alvarismo
(Álvaro Machado), epitacismo (Epitácio Pessoa).
Durante toda a República Velha (1889 – 1930) a Paraíba vivenciou um fenômeno
social e político chamado “coronelismo”. Essa estrutura de poder se sustentava em três
colunas basilares: no domínio político por meio da formação de grupos de base familiar,
na formação de uma força paramilitar (os jagunços) e no comprometimento da Igreja
como doutrinadora de almas e mantenedora do status quo.
Baseado na propriedade rural, o coronelismo atuava nos mesmos moldes do
feudalismo – com poucas variantes –, dadas as semelhanças pela forma como mantinha
o homem atrelado à terra por dívidas, e se assegurando do poder local mediante
ameaças e violências. E assim as parentelas se uniam em torno de objetivos comuns:
4
2
Ficou convencionado na historiografia brasileira que o texto do Decreto 119-A de 7 de janeiro de 1890
foi elaborado em conjunto por Rui Barbosa e Dom Macedo Costa. No entanto, há também a defesa da
participação de Dom Esberard como um dos mentores intelectuais do referido decreto. Cf. PIVA, Elói
Dionísio. Transição Republicana: desafio e chance para a Igreja (I). Revista Eclesiástica Brasileira. V. 49,
nº 195. Petrópolis, 1989. p. 620-639, [jul./set.]; PIVA, Elói Dionísio. Transição Republicana: desafio e
chance para a Igreja (II). Revista Eclesiástica Brasileira. V. 50, nº 198. Petrópolis, 1990. p. 415-432,
[abr./jun.].
8
Campos Sales teve sua sugestão aceita e incorporada ao texto final. (BRASIL. Leis,
Decretos, etc., 1931).
Vejamos o que diz alguns artigos do decreto que causou dissabores entre Igreja e
Estado;
“O Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, chefe do Governo
Provisório constituído pelo Exército e Armada, em nome da Nação,
decreta:
Art. 1º - É proibido à autoridade federal, assim como à dos estados
federados, expedir leis, regulamentos ou atos administrativos
estabelecendo alguma religião ou vedando-a e criar diferenças entre os
habitantes do país ou nos serviços sustentados à custa do orçamento,
por motivo de crenças ou opiniões filosóficas ou religiosas.
Art. 2º - A todas as confissões religiosas pertence por igual a
faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não
serem contrariadas nos atos particulares ou públicos que interessem o
exercício deste decreto.
Art. 3º - A liberdade aqui instituída abrange não só os indivíduos por
atos individuais, senão também as igrejas, associações e instituições
em que se acharem agremiados, cabendo a todos o pleno direito de se
constituírem e viverem coletivamente, segundo o seu credo e a sua
disciplina, sem intervenção do poder público.
Art. 4º - Fica extinto o padroado com todas as suas instituições,
recursos e prerrogativas.
Art. 5º - A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a
personalidade jurídica para adquirirem bens e os administrarem sob os
limites postos pelas leis concernentes à propriedade de mão - morta,
mantendo-se a cada uma o domínio de seus haveres atuais bem como
de seus edifícios de culto.
Art. 6º - O governo federal continua a côngrua, sustentação dos atuais
serventuários do culto católico e subvencionará por um ano as
cadeiras dos seminários, ficando livre a cada estado o arbítrio de
manter os futuros ministros desse ou de outro culto, sem contravenção
do disposto nos artigos antecedentes.
Art. 7º - Revogam-se as disposições em contrário.
9
3
O Padroado foi criado através de um tratado entre a Igreja Católica e os Reinos de Portugal e de
Espanha. A Igreja delegava aos monarcas destes reinos ibéricos a administração e organização da Igreja
Católica em seus domínios. O rei mandava construir igrejas, nomeava os padres e os bispos, sendo estes
depois aprovados pelo Papa.
4
Doutrina que defende a ingerência do chefe de Estado em questões religiosas.
12
era um encanto, as viagens, a visão dos campos cultivados, o contato com aquela gente
laboriosa e honesta de mãos calejadas e alma pura, a ingenuidade das crianças, a atitude
curiosa das mulheres, enfim nada escapava aos olhos atentos do Bispo. Para ele, as
visitas pastorais eram conforto e higiene do corpo e da alma, conforme confessava.
(LIMA, 2007, 171).
Esta pesquisa ainda em fase preliminar tem nos mostrado as varias facetas da
primeira Republica, em particular na Paraíba, assim como os arranjos políticos, as
relações de parentela para conseguir e permanecer no poder, o uso da violência como
demonstração de força e poder nos municípios em que a justiça não operava ou que era
subordinada a autoridade dos coronéis, enfim uma fase de instabilidade política e
também religiosa, visto que, a separação entre Igreja e Estado, também marcaria
profundamente a primeira Republica, pois a Igreja na Paraíba capitaneada pelo Bispo
Dom Adauto buscou medidas de implementação e reforma religiosa alinhada ao
processo de romanização proposto pela Igreja para seu fortalecimento ante as mudanças
que o sistema republicano provocaria. Tal esforço corporativo e doutrinário se
manifestou de varias maneiras, desde a firme disposição em implantar o estilo de mando
episcopal europeizado, passando pela adoção das pastorais como instrumento de difusão
religiosa das ordens eclesiásticas, pelas visitas pastorais regulares e a criação de novas
dioceses e um Jornal (A Imprensa) para a divulgação da propaganda religiosa e o
combate aos maus costumes, leia-se - valores morais - segundo o clero, trazido pela
Republica.
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS.
BEOZZO, José Oscar. Padre José Marchetti: trabalhos, sonhos e morte no Brasil –
1894-1896. In: BRANDÃO, Sylvana (org.). História das religiões no Brasil. Recife-PE,
Editora da UFPE, 2006. pp. 19-84.
_________________. A Igreja entre a Revolução de 1930, o Estado Novo e a
Redemocratização, In: Antônio F. Pierucci et alii. O Brasil Republicano, v. 11. 2.ed.
Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003. pp. 273-341. (Coleção História Geral da
Civilização Brasileira)
_________________. (orgs.). Os religiosos no Brasil: enfoques históricos. São Paulo,
Editora Paulinas, 1986.
Celso Mariz. Apanhados Históricos da Paraíba, João Pessoa, Editora
Universitária/UFPB, 2a edição, 1980;
DIAS, Roberto Barros. “Deus e a Pátria”: Igreja e Estado no processo de romanização
na Paraíba (1894 – 1930). João Pessoa, 2008. Dissertação de Mestrado – PPGH – 2008.
Edgard Carone. A República Velha, vol. II, Difel, 3a edição, 1977;42.
EPISCOPADO BRASILEIRO. Pastoral Coletiva. Rio de Janeiro: Tip. Montenegro,
1890. In: RODRIGUES, Anna Maria Moog. A igreja na republica / seleção e
introdução: Anna Maria Moog Rodrigues. Brasília: Câmara dos Deputados: Editora
Universidade de Brasília, 1981.
FORTUNATO, Maria Lucinete. O conceito de coronelismo e a imagem do coronel: De
simblo a simulacro do poder local. Campina Grande, EDUFCG, 2008.
GOMES, Edgar da Silva. A separação Estado-Igreja no Brasil (1890): uma análise da
pastoral coletiva do episcopado brasileiro ao Marechal Deodoro da Fonseca.
Dissertação de Mestrado. São Paulo: Centro Universitário Assunção – Pontifícia
Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, 2006.
GURJÃO, Eliete de Queiroz. Morte e Vida das Oligarquias: Paraíba 1889 – 1945. João
Pesoa: Ed. Universitária / UFPB, 1994.
Horácio de Almeida. História da Paraíba, vol. 2, João Pessoa, Editora
Universitária/UFPB, 1978.
HERMANN, Jacqueline. “Religião e Política no alvorecer da República: os
movimentos de Juazeiro, Canudos e Contestado”. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO,
Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo excludente –
da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003, pp. 121-160.
15
LIMA, Cônego Francisco. Dom Adauto – Subsídios Biográficos – Tomo I e II. João
Pessoa: Editora UNIPÊ, 2007. (Coleção Água Fria)
LEWIN, Linda. Política e Parentela na Paraíba. Tradução de André Villa Lobos. Rio de
Janeiro: Ed. Record, 1993.
LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. A Igreja Católica no Brasil Republicano. São Paulo:
Edições Paulinas, 1991.
MANOEL, Ivan Aparecido. O Pêndulo da História: tempo e eternidade no pensamento
católico (1800-1960). Maringá, PR: Eduem, 2004.
MICELI, Sergio. A elite eclesiástica brasileira. (1890 – 1930). São Paulo: Editora
Companhia das Letras, 2009.
MOURA, Sérgio L. de & ALMEIDA, José Maria Gouvêa de. A Igreja na primeira
República. In: FAUSTO, Boris. O Brasil Republicano. Vol. 02: Sociedade e Instituições
(1889 – 1930). São Pulo: DIFEL, 1985. (Coleção História Geral da Civilização
Brasileira, Tomo III).
SERBIN, Kenneth P. Padres, Celibato e conflito Social: Uma historia da Igreja católica
no Brasil. Tradução Laura Teixeira Motta – São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
PANG, Eul-Soo. Coronelismo e Oligarquias – 1889 – 1943. Rio de Janeiro, Ed.
Civilização Brasileira, 1979.
KLOPPENBURG, Dom Boaventura. Igreja e Maçonaria: conciliação possível?;
Petropolis, Rio de Janeiro; Ed. Vozes, 1992.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. O Mandonismo Local na Vida Política Brasileira e
outros ensaios. São Paulo: Alfa-Omega, 1976.
VIEIRA, Dilermando Ramos. O processo de reforma e reorganização da Igreja no
Brasil (1844-1926). Aparecida, SP, Editora Santuário, 2007.
AQUI JAZ OS QUE NÃO FORAM: QUANDO OS MORTOS SÃO INDESEJÁVEIS NO
MUNDO DOS VIVOS
Resumo
A morte sempre foi temida pelos vivos na história da humanidade, seja por
instinto de vida em alguns momentos, seja pela incapacidade humana de
2
Considerando que a morte é o destino final da vida, e que cada ser humano,
inevitavelmente morrerá, é que durante a sua existência homens e mulheres
desenvolvem culturalmente, vivendo em sociedade, seus sistemas de crenças, de
idéias etc. sobre sua própria existência e também sobre o fim da vida, e é entorno
desse fim que se concentram os sistemas religiosos e filosóficos funcionando como
uma preparação do homem para seu fim.Talvez a principal dessas crenças seja a da
imortalidade da alma e da existência de outra vida após a morte, que sofre variações
de acordo com o sistema religioso e cultural das sociedades ao longo do tempo e dos
vários espaços percorrido pela humanidade no curso de sua história.
insepultos da fictícia Antares, a representação dos vários setores sociais, que são
reflexos da realidade brasileira, que descreveremos aqui brevemente por ordem de
importância dentro dessa ótica social.
E para a sociedade antarense o que seria a morte? O que acontece após o fim
da vida? Existiria uma vida após a morte? Recorreremos ao diálogo entre os
representantes da elite, ao deliberarem em busca de solução para o problema dos
mortos de Antares, afim de buscarmos uma resposta a essas indagações.
Para o filósofo esse medo do não ser não faz sentido, pois ocorre a morte da
consciência, assim como não existe uma consciência do antes da vida, de quando
ainda não éramos. No entanto a inexistência do não ser antes da vida perde o sentido
exatamente pela falta da consciência, pois essa se manifesta apenas com o
nascimento e desenvolvimento do ser humano, porém durante essa existência
efêmera é que homens e mulheres desenvolvem culturalmente e vivendo em
sociedade, essa certeza desse processo irreversível de caminhar com destino a morte.
No grupo dos sete mortos observa-se três tipos de mortes com diferentes
perspectivas a luz do imaginário religioso cristão. A morte natural, a exemplo de Dona
Quitéria, que tinha convicção de sua preparação para esse momento, tendo em vista
suas atitudes religiosas, como a própria narrou ainda em vida uma conversa com seu
amigo Coronel Vacariano no leito de morte de seu esposo Zózimo Campolargo:
De fato para o pensamento religioso cristão, esse tipo de morte vai contra os
ensinamentos de Deus, pois somente a Ele cabe o poder de dá e tirar a vida, aquele
que tirava a própria vida, excluíra-se da comunidade cristã, se isentaria do perdão
divino (Delumeau, 2009).
E finalmente temos a morte de João Paz e Pudim de Cachaça, que tiveram suas
vidas interrompidas, porém de uma forma diferente da morte do professor, pois
foram assassinados, portanto sofreram uma ruptura brusca de vida fora dos desígnios
de Deus. João Paz, com menos intensidade que Barcelona, não acreditava em uma
vida após a morte, como declarou para o segundo Padre de Antares, Pe. Pedro Paulo,
que por sua vez registrou em seu diário, os acontecimentos daquele dia:
7
Como não foram enterrados e levantaram de seus caixões, não se pode dizer
que seriam espíritos ou almas, porém, perderam a vida e estão mortos, portanto uma
situação em que se apresentam na fronteira entre a vida e a morte, e através da
licença poética da ficção, Érico Veríssimo ainda os dotou de consciência, como falou
João Paz na citação acima e como podemos observar no diálogo entre Dona Quitéria e
Cícero Branco;
estado de choque emocional o vigário anuncia para os fiéis o que seus olhos
presenciaram . O que se sucedeu foi narrado em prosa barroca pelo jornalista Lucas
Faia.
Nesse momento Veríssimo, através do jornalista Lucas Faia, e com uma pitada
de humor, narra na ficção o que de fato faz parte do imaginário cristão acerca do fim
do mundo. O julgamento dos vivos e dos mortos no Juízo final, que seria o momento
de prestar contas com Deus sobre as ações aqui na terra, é responsável por esse
imaginário, crenças, ideias e comportamentos diante da possibilidade de um
julgamento final. Nota-se no decorrer da história da humanidade, em que o
cristianismo desempenhou o papel de responsável pela vida espiritual das sociedades,
que o seu discurso, variando de acordo com o tempo, o espaço e a sensibilidade de
cada época foi responsável por esse medo que permeia a imaginação social sobre o
fim da vida e a eternidade, amparada em um discurso de um Cristo Juiz.
as pessoas passam a refletirem sobre a vida, a morte, o que é importante e o que não
é para sua existência.
Referências
2. Milenarismo Cristão
Um exemplo do que a religião fez à obra de Tolkien pode ser visto em sua saga
mais famosa, O Senhor dos Anéis. É comum a ideia de um reino futuro que
perserverará pela eternidade afora – Reino de Deus, Quinto Império, Sebastianismo,
Rei Arthur de Avalon, Enéias e Roma de Mil Anos – compartilhando um conjunto
básico de motivos (CAMPBELL, 2000) ao aguardar a chegada de uma nova Idade de
Ouro, quando se harmonizarão o homem selvagem e o civilizado. Tal ideologia, apesar
de antiga, é ainda hoje cultivada pelo homem moderno. Pois “apesar de se ter tornado
tão erudito, o Homo sapiens não deixou de ser um macaco pelado e, embora tenha
adquirido motivações muito requintadas, não perdeu nenhuma das mais primitivas e
comezinhas” (MORRIS, 1967, p. 7).
Somos uma espécie que é, por vezes, compelida a crer na continuidade em
outro plano no pós-morte (JUNG, 2000). Isso interfere na ideia de civilização, como
aquela que segue viva após seu termo, num progresso ininterrupto, numa esfera
diferente. Toda obra milenarista reflete a ânsia pelo Reino Milenar, quando,
aprisionado o Diabo, o Cristo reinará por mil anos com cetro de ferro (Apocalipse 19).
E a literatura de fantasia é uma apropriação pela indústria cultural dos processos
motivacionais do mito e da arte (ADORNO, 2002, p. 18), ou:
3. A cosmogonia de Tolkien
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Theodor. Indústria Cultural e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
Coleção Leitura.
ARMSTRONG, Karen. Breve história do mito. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
BARRETO JR., Felipe. “O mais antigo dos testamentos: o mundo de Tolkien e seu
delicado equilíbrio”, in Herói, número 1. Coleção Livros.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: E.P.Maltese, s/d.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.
__________________. Para viver os mitos. 9 ed. São Paulo: Cultrix, 2000.
__________________. Mitologia da modernidade: ensaios selecionados de Joseph
Campbell. Rio de Janeiro: Record / Rosa dos Ventos, 2002.
CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque: histoire
des mots. Paris: Éditions Klincksieck, 1968.
CROATTO, José Severino. As Linguagens da Experiência Religiosa: Uma
introdução à fenomenologia da religião. São Paulo: Paulinas, 2010.
DEBRAY, Régis. Deus, um intinerário: material para a história do Eterno no
Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
DURAND, G. A imaginação simbólica. Lisboa: Edições 70, 1993.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972. Série Debates.
_____________. Aspectos do mito. Rio de Janeiro: Edições 70, 1976.
_____________. Imagens e símbolos. Lisboa: Arcádia, 1979.
_____________. O mito do eterno retorno. São Paulo: Mercuryo, 1992.
_____________. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Série
Tópicos.
_____________. Tratado da história das religiões. 2 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
ELIADE, Mircea; COULIANO, Ioan P. Dicionário das Religiões. 2 Ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
JUBAINVILLE, H. D’Arbois de. Os Druidas: os deuses celtas com formas de animais.
São Paulo: Madras, 2003.
JUNG, C.G. Os Arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000.
MARTINS FILHO, Ives Gandra. O Mundo do Senhor dos Anéis. São Paulo: Madras,
2000.
MORRIS, Desmond. O Macaco Nu. São Paulo: Círculo do Livro, 1967.
NOGUEIRA, Paulo Augusto Souza. “Religião como texto: contribuições da semiótica da
cultura”, in: NOGUEIRA, Paulo augusto de Souza (org.). Linguagens da Religião:
desafios, métodos e conceitos centrais. São Paulo: Paulinas, 2012.
ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita. Campinas: Papirus, 1998.
PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1997.
PETERS, F.E. Os monoteístas: judeus, cristãos e muçulmanos em conflito e
competição: volume 1 : os povos de Deus. São Paulo: Contexto, 2007.
SCHAEFFER, Francis. A morte da razão. 8 ed. São José dos Campos / São Paulo:
ABU / Fiel, 2001.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva,
1975.
TOLKIEN, J.R.R. O Silmarillion. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
______________. O Senhor dos Anéis: Volume 1: A Sociedade do Anel. 2 ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
_____________. O Senhor dos Anéis: Volume 2: As Duas Torres. 2 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
_____________. O Senhor dos Anéis: Volume 3: O Retorno do Rei. 2 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
TORELLI, Eduardo. “Mundos de Fantasia”, in: Herói, número 1. Coleção Livros.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.
1
BARRETO JR., Felipe. “O mais antigo dos testamentos: o mundo de Tolkien e seu delicado equilíbrio”, in
Herói, número 1. Coleção Livros.
2
BARRETO JR, Felipe. Op. Cit.
3
TORELLI, Eduardo. “Mundos da Fantasia”, in: Herói, número 1. Coleção Livros.
A REPRESENTAÇÃO DO MEDO NO FILME “AS BRUXAS DE SALEM”: UMA
ANÁLISE SOBRE O MISTICISMO RELIGIOSO DO SÉCULO XVII
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é analisar as relações de poder de ordem religiosa
presentes no filme As Bruxas de Salem, buscando compreender a conjuntura social da
época de sua produção a partir das representações simbólicas do contexto histórico
em que ele é ambientado. Dentro desta proposta avaliaremos as representações
sociais, signos e gestos trabalhados como forma de compor o imaginário da
população, presentes na película, a fim de entender as estruturas e os recortes do
medo presentes no filme, como forma de apresentar o contexto estudado, sob a óptica
do diretor sobre a sociedade.
Buscando entender as representações do medo social, bem como as relações de
poder evidenciados no filme As Bruxas de Salem, tornou-se necessário fazer o
seguinte questionamento: Quais as representações do medo social presentes no filme
As Bruxas de Salem possíveis de serem mensuradas historicamente a partir de uma
analise da realidade social e religiosa nos fins do século XVII e inicio do século XVIII
nas colônias inglesas da América Norte?
Partindo deste mote, percebemos que o medo do sobrenatural presente no
imaginário social da época foi utilizado pelas autoridades eclesiásticas como
ferramenta de adequação e de controle social da população e dos subordinados nas
colônias da Nova Inglaterra. Medo este envolto não só das práticas de bruxaria, da
demonização e do infortúnio, como também das duras penalidades empreendidas
pelas autoridades religiosas sobre aqueles considerados infiéis aos preceitos
dogmáticos do protestantismo puritano, por serem suspeitos de praticar feitiçaria.
Graduando do curso em Licenciatura de Historia pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Campus
XVIII (Eunápolis-Ba)
AS BRUXAS DE SALEM: POSSIBILIDADES DE ANÁLISE HISTORICA
Ambientado num pequeno vilarejo Norte americano do século XVII, o filme As
Bruxas de Salem, que é baseado na obra “Livro Perdido das Bruxas de Salem” de
Katherine Howe, descreve em seu enredo um episódio verídico que sucedeu num
povoado chamado Salem, localizado no Estado de Massachusetts, EUA, em 1692. A
história trata de um julgamento coletivo e sumário envolvendo dezenas de pessoas
acusadas de bruxaria. A narrativa, do longo dirigido por Nicholas Hytner, começa com
um ritual realizado por algumas jovens do referido povoado, que se reuniram numa
floresta, sob orientação de uma escrava africana chamada Tituba. A finalidade das
jovens era obter o amor dos homens com os quais as mesmas desejavam casar.
Assim durante o ritual, que aparentemente era uma simples manifestação de
simpatias de algumas culturas africanas, passa a ter um caráter de magia negra,
quando uma das jovens por nome Abigail, ao matar e beber o sangue de uma galinha
pede a morte da mulher de John Proctor, o homem que a mesma tinha um caso. Em
êxtase, as respectivas jovens dançam e correm pela floresta, quando são
surpreendidas pelo tio de Abigail, o Reverendo Parris, que é autoridade religiosa do
vilarejo. Mediante a surpresa as jovens começam a gritar e a correr pelo bosque, e
uma das garotas, a filha do próprio reverendo, por ocasião do susto fica paralisada.
Descobertas no seu “ritual”, as jovens são acusadas de bruxaria, e provocam uma
histeria coletiva, ao simularem que estão inconscientes em razão do medo de seus
pais. Aproveitando a situação algumas das garotas passa a culpar várias pessoas
inclusive Elizabeth, mulher de John Proctor, de praticarem feitiçaria. O comportamento
das meninas assusta todo povoado. Assim, acreditando que as jovens estariam sob os
feitiços de uma bruxaria ligada ao demônio, os membros influentes do povoado de
Salem se reúnem e decidem chamar o Reverendo Hale que aparece no filme como um
exorcista. A partir daí começa o desenrolar e o desfecho da trama com acusações
alheias, julgamentos e sentenças. Quase 20 pessoas foram condenadas à morte por
praticarem feitiçaria após as jovens terem feito acusações de envolvimento com o
demônio contra outras pessoas. É um filme dramático, que suscita tristeza e
questionamentos sobre a perda da razão de algumas pessoas que motivaram
consequências terríveis.
1
KARNAL, 2007, pg.46-47
2
KARNAL, 2007, pg. 51
3
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada. Tradução Mª Lucia
Machado: tradução de notas Heloisa Jahn - São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
eclesiásticos. Todas as práticas consideradas subversivas, como paganismo, heresias,
sobretudo bruxaria eram duramente reprimidas. Nesta última, a maior parte dos
acusados eram mulheres. Conforme Delumeau a mulher, vem sendo relacionada ao
demoníaco e distanciada do “bem” desde tempos remotos4. Como avalia o
medievalista, a afirmação do temor da mulher por autoridades religiosas e
relacionadas à lei fez com que um medo espontâneo se propagasse. Medo que
“naturalmente” encontraram justificativas e fundamentações religiosas e legais.
Delumeau afirma que a emergência da modernidade na Europa Ocidental foi
acompanhada de um inacreditável medo do diabo e que a Renascença havia herdado
conceitos e imagens demoníacas que foram definidos e paulatinamente difundidos no
medievo. Para Karnal “As acusações de bruxaria, uma constante em todo o mundo
cristão da época, existiam desde o início da colonização”5 . É neste contexto que os
episódios que marcaram o ano de 1692 em Salem encontram ecos sobre o imaginário
e as práticas inquisitórias, ainda que sobre os arquétipos do protestantismo puritano,
cujas, consequências foram desastrosas, culminando na prisão de 200 pessoas e a
execução de 14 mulheres e 06 homens.
É nessa perspectiva que se faz necessário examinar e avaliar o quanto a
representação do medo e suas variáveis estão presentes no mundo ocidental, em
especial nas colônias da Nova Inglaterra do século XVII, partindo do entendimento de
que a mentalidade da sociedade medieval cristã influenciou profundamente o coletivo
universal ao longo da história.
4
DELUMEAU Jean. História do medo no Ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada. Tradução Mª Lucia
Machado: tradução de notas Heloisa Jahn - São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
5
KARNAL, 2007, pg. 51
6
BARROS, 2008, pg.16
sociólogos e antropólogos, que acreditava que a partir da utilização dos instrumentos
de reprodução visual e sonora poderia estudar sobre uma dada realidade social.
O exímio cronista, Marc Ferro, um dos primeiros historiadores a utilizar como
fonte documental a obra fílmica, concluiu a partir de suas análises, que a produção
fílmica trás em si um status de revelador político, ideológico, social e cultural de uma
determinada sociedade, que às vezes não são evidenciados de modo explícito, mas,
que podem ser sujeitos às observações nas entrelinhas das representações presentes
no filme. Nesta perspectiva o cinema trouxe em sua essência uma importância
significativa para estudo da realidade histórica, onde o historiador ao analisar as
etapas da produção fílmica, como a narrativa, o cenário, o texto, e as relações do
filme com o autor, a produção, o público e a crítica, descortina a intencionalidade da
respectiva obra e identifica o tipo de percepção que a sociedade absorve e revela
sobre seu modo de existência.
Segundo Barros “O cinema não é apenas uma forma de expressão cultural, mas
também um ‘meio de representação’. Através de um filme representa-se algo, seja
uma realidade percebida e interpretada, ou seja, um mundo imaginário livremente
criado pelos autores de um filme” 7.
Os Annales e os novos marxismos estenderam o conceito de fonte histórica,
considerando, por exemplo, que a iconografia, o Cinema, a cultura material enfim uma
variedade de produção humana poderia ser utilizada como tal. A partir de então,
fontes de natureza, visual, oral e sonora foram incorporadas ao conjunto de
compreensão do passado. Por conta disso, estabeleceram-se novos posicionamentos
teóricos e metodológicos para os historiadores, como se sucedeu com os
antropólogos. Nesta perspectiva ampliou-se o entendimento de que o cinema, assim
como qualquer produção midiática podem ser consideradas, em termos de ilustração e
difusão de pesquisas, como ferramentas de observação, de transcrição e de
interpretação de realidades diversas.
Mediante ao respectivo pressuposto e tratando-se de uma obra fílmica de
ambientação histórica, acredita-se que, o estudo e a análise da respeitante obra,
como fonte documental, induzirão a uma interessante visão acerca do medo, das
relações de poder, bem com o discurso ideológico presente nas esferas sociais de
dominação representados na trama. Para Barros “(...) A partir de uma fonte fílmica,
(...) dos discursos e práticas cinematográficas relacionadas aos diversos contextos
contemporâneos, os historiadores podem apreender de uma nova perspectiva da
própria história do século XX e da contemporaneidade (...) 8.
7
BARROS, 2008, pg.10
8
BARROS, 2008, pg.06
A partir dessa perspectiva, procuramos embasar nossa análise percebendo a
relevância da história do medo para a acadêmica. Haja vista que a história do medo
ocupa lugar de destaque na história das mentalidades, corrente esta que ampliou
consideravelmente uma série de temas concernente à vida cotidiana.
Para a efetivação do presente trabalho, fez-se necessário recorrer às ideias de
autores que trouxeram uma grande contribuição para a Nova História, em sua
essência para a História das Mentalidades, dando assim ênfase a estudos que antes
não tinha significado para Historiografia. Portanto para entender as representações
individuais e coletivas e as estruturas mentais sociais ante ao medo tomaremos como
acepção de “medo” as ideias de Jean Delumeau (2009), que consideram o medo
com um dos sentimentos mais negativos do ser humano. O autor afirma que não
apenas o individuo, mas também o coletivo está em constante diálogo com o medo.
Nosso autor procura captar um complexo de medos que faziam parte da constituição
da mentalidade coletiva do homem europeu, ao apresentar as aflições sentidas pela
civilização ocidental cristão, durante o medievo e no final da modernidade, diante dos
infortúnios sociais presentes na respectiva sociedade. Delumeau acredita que a
história do medo é um instrumento não só de mudança, como também é um meio de
revelar novos campos de investigação, derrubando barreiras que existem entre as
gerações Ocidentais. Ele afirma ainda que “Em nossos dias, são incontáveis as obras
científicas, os romances, as autobiografias, os filmes que trazem no título o medo.
Curiosamente, a historiografia, que em nosso tempo deslindou tantos novos domínios,
o negligenciou”9. Outros autores que nos serviram como fundamento teórico quanto
ao conceito de medo será Claudia Barcellos Rezende In. Mª Claudia Coelho
(2010), que define, em consonância com as ideias de Elias (1993) o medo como
“(...) um canal de transmissão das estruturas sociais às estruturas psicológica
individual(...)”10. Para as mesmas “O potencial de sentir medo em sua visão, faz parte
da natureza humana. Entretanto as formas pelas quais cada grupo dará vida a essa
capacidade são fruto de circunstâncias históricas e culturais (...)”11
Na noção de representação utilizaremos como referencial as ideias Roger
Chartier (1990), que assevera que as representações são sempre motivadas por
interesse de grupos que as forjam, assim “(...) as percepções do social não são de
forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e praticas (sociais, escolares,
politicas) que tende impor uma autoridade a custa de outros, por elas menosprezados
12
(...)” . Chartier afirma ainda que em “diferentes lugares e momentos uma
9
DELUMEAU, 2009, pg. 18
10
REZENDE In. COELHO, 2010, pg.13
11
REZENDE In. COELHO, 2010, pg.14
12
CHARTIER, 1990, pg.17
determinada realidade é construída, pensada, dada a ler por diferentes grupos sociais”
13
. Segundo o mesmo a constituição das identidades sociais implicaria em uma “(...)
relação de força entre as representações impostas por aqueles que têm poder de
classificar e de nomear e a definição, submetida ou resistente, que cada comunidade
produz de si mesma” 14.
Quanto às representações constituídas a partir de ferramentas midiáticas, em
especial através do cinema, procuraremos trabalhar com os conceitos de Marc Ferro
que trás em eu seu desígnio a relação entre cinema e historia, afirmando que é tão
antiga como o próprio cinema. Para o autor, o filme “(...) possui uma tensão que lhe
é própria, trazendo à tona elementos que viabilizam uma análise da sociedade diversa
da proposta pelos seus segmentos, tanto o poder constituído quanto a oposição (...)”
15
. É nessa conjuntura que a obra cinematográfica é tratada como “novo objeto”, bem
como uma fonte preciosa, dentro dos domínios da chamada História Novo. Isto se
deve ao fato de que a obra fílmica na sua magnitude ,seja, ela ficção, documentário
ou cinejornal é carregado por representações, que refletem, para quem o analisar,
visões de mundo, valores, comportamentos, identidades e ideologias de uma
determinada sociedade num determinado contexto histórico e social. Nesse sentido
Ferro acredita que o cinema:
13
CHARTIER, 1990, pg.16
14
CHARTIER, 2002, pg. 73
15
MORETTIN, 2003, pg.13
16
FERRO, 1976, pg.202-203
O Cinema mostra-se um ‘agente histórico’ importante no
sentido de que interfere direta ou indiretamente na História. Ou,
mais propriamente, poderíamos acrescentar que o Cinema tem
se mostrado como instrumento particularmente importante ou
como veículo significativo para a ação dos vários agentes
históricos, para a interferência destes agentes na própria
História. O Cinema, então, mostra-se como poderoso
instrumento de difusão ideológica, ou mesmo como arma
imprescindível no seio de um bem articulado sistema de
propaganda e marketing. Por isso mesmo, em uma primeira
instância já se mostra muito interessante para os historiadores
a possibilidade de examinar sistematicamente as relações entre
Cinema e Poder, o que – como se verá adiante – fará da arte
fílmica e das práticas cinematográficas importante objeto de
estudo para a História Política e igualmente complexa. Desde
cedo, as diversas agências associadas aos poderes instituídos
compreenderam a importância do Cinema como veículo de
comunicação, de difusão e até de imposição de ideias e
ideologias 17
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
É relevante salientar a importância do estudo desses autores, pois a obra em
análise possibilita o estudo do medo no espaço coletivo onde as representações e as
relações de poder, tem um papel preponderante em evidenciar a tipicidade de medo a
partir de uma análise, de uma perspectiva da micro historia para o macro, de uma
sociedade capitalista forjada pelos valores e costumes cristã.
Cabe aqui ressaltar que o nosso trabalho se encontra no processo inicial de
investigação com possibilidades de estudos e usos de outras fontes direcionada ao
Ensino de História em sala de aula.
REFERÊNCIAS:
FONTES
Filme: As Bruxas de Salem Título “The Crucible”, Fox Filmes. EUA, 1996
http://www.historia.uff.br/nec/materia/grandes-processos/cinema-e-hist%C3%B3ria-
abordagens-e-metodologia. Acessado em 16 de julho de 2012.
http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/historia/article/viewFile/2713/2250. Acessado
em 16 de julho de 2012
BIBLIOGRAFIAS
17
BARROS, 2008, pg.16
BARROS, José D’Assunção. Cinema e história: entre expressões e representações. In
NÓVOA, Jorge e BARROS, José D’Assunção (org.). Cinema-História: teoria e
representações sociais no cinema. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
CAMPOS, Thiago, In. PEIXOTO, Carolina, e SERRANO, Ana Paula. Cinema e História:
abordagens e metodologia, 2009.
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada.
Tradução Mª Lucia Machado: tradução de notas Heloisa Jahn - São Paulo: Companhia
das Letras, 2009, 700 páginas.
KARNAL, Leandro. Et. al.: História dos Estados Unidos: das origens ao século
XXI. 2. Ed. São Paulo, Contexto, 2007.
.
A REPRESENTAÇÃO DO MEDO NO FILME “AS BRUXAS DE SALEM”: UMA
ANÁLISE SOBRE O MISTICISMO RELIGIOSO DO SÉCULO XVII
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é analisar as relações de poder de ordem religiosa
presentes no filme As Bruxas de Salem, buscando compreender a conjuntura social da
época de sua produção a partir das representações simbólicas do contexto histórico
em que ele é ambientado. Dentro desta proposta avaliaremos as representações
sociais, signos e gestos trabalhados como forma de compor o imaginário da
população, presentes na película, a fim de entender as estruturas e os recortes do
medo presentes no filme, como forma de apresentar o contexto estudado, sob a óptica
do diretor sobre a sociedade.
Buscando entender as representações do medo social, bem como as relações de
poder evidenciados no filme As Bruxas de Salem, tornou-se necessário fazer o
seguinte questionamento: Quais as representações do medo social presentes no filme
As Bruxas de Salem possíveis de serem mensuradas historicamente a partir de uma
analise da realidade social e religiosa nos fins do século XVII e inicio do século XVIII
nas colônias inglesas da América Norte?
Partindo deste mote, percebemos que o medo do sobrenatural presente no
imaginário social da época foi utilizado pelas autoridades eclesiásticas como
ferramenta de adequação e de controle social da população e dos subordinados nas
colônias da Nova Inglaterra. Medo este envolto não só das práticas de bruxaria, da
demonização e do infortúnio, como também das duras penalidades empreendidas
pelas autoridades religiosas sobre aqueles considerados infiéis aos preceitos
dogmáticos do protestantismo puritano, por serem suspeitos de praticar feitiçaria.
Graduando do curso em Licenciatura de Historia pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Campus
XVIII (Eunápolis-Ba)
AS BRUXAS DE SALEM: POSSIBILIDADES DE ANÁLISE HISTORICA
Ambientado num pequeno vilarejo Norte americano do século XVII, o filme As
Bruxas de Salem, que é baseado na obra “Livro Perdido das Bruxas de Salem” de
Katherine Howe, descreve em seu enredo um episódio verídico que sucedeu num
povoado chamado Salem, localizado no Estado de Massachusetts, EUA, em 1692. A
história trata de um julgamento coletivo e sumário envolvendo dezenas de pessoas
acusadas de bruxaria. A narrativa, do longo dirigido por Nicholas Hytner, começa com
um ritual realizado por algumas jovens do referido povoado, que se reuniram numa
floresta, sob orientação de uma escrava africana chamada Tituba. A finalidade das
jovens era obter o amor dos homens com os quais as mesmas desejavam casar.
Assim durante o ritual, que aparentemente era uma simples manifestação de
simpatias de algumas culturas africanas, passa a ter um caráter de magia negra,
quando uma das jovens por nome Abigail, ao matar e beber o sangue de uma galinha
pede a morte da mulher de John Proctor, o homem que a mesma tinha um caso. Em
êxtase, as respectivas jovens dançam e correm pela floresta, quando são
surpreendidas pelo tio de Abigail, o Reverendo Parris, que é autoridade religiosa do
vilarejo. Mediante a surpresa as jovens começam a gritar e a correr pelo bosque, e
uma das garotas, a filha do próprio reverendo, por ocasião do susto fica paralisada.
Descobertas no seu “ritual”, as jovens são acusadas de bruxaria, e provocam uma
histeria coletiva, ao simularem que estão inconscientes em razão do medo de seus
pais. Aproveitando a situação algumas das garotas passa a culpar várias pessoas
inclusive Elizabeth, mulher de John Proctor, de praticarem feitiçaria. O comportamento
das meninas assusta todo povoado. Assim, acreditando que as jovens estariam sob os
feitiços de uma bruxaria ligada ao demônio, os membros influentes do povoado de
Salem se reúnem e decidem chamar o Reverendo Hale que aparece no filme como um
exorcista. A partir daí começa o desenrolar e o desfecho da trama com acusações
alheias, julgamentos e sentenças. Quase 20 pessoas foram condenadas à morte por
praticarem feitiçaria após as jovens terem feito acusações de envolvimento com o
demônio contra outras pessoas. É um filme dramático, que suscita tristeza e
questionamentos sobre a perda da razão de algumas pessoas que motivaram
consequências terríveis.
1
KARNAL, 2007, pg.46-47
2
KARNAL, 2007, pg. 51
3
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada. Tradução Mª Lucia
Machado: tradução de notas Heloisa Jahn - São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
eclesiásticos. Todas as práticas consideradas subversivas, como paganismo, heresias,
sobretudo bruxaria eram duramente reprimidas. Nesta última, a maior parte dos
acusados eram mulheres. Conforme Delumeau a mulher, vem sendo relacionada ao
demoníaco e distanciada do “bem” desde tempos remotos4. Como avalia o
medievalista, a afirmação do temor da mulher por autoridades religiosas e
relacionadas à lei fez com que um medo espontâneo se propagasse. Medo que
“naturalmente” encontraram justificativas e fundamentações religiosas e legais.
Delumeau afirma que a emergência da modernidade na Europa Ocidental foi
acompanhada de um inacreditável medo do diabo e que a Renascença havia herdado
conceitos e imagens demoníacas que foram definidos e paulatinamente difundidos no
medievo. Para Karnal “As acusações de bruxaria, uma constante em todo o mundo
cristão da época, existiam desde o início da colonização”5 . É neste contexto que os
episódios que marcaram o ano de 1692 em Salem encontram ecos sobre o imaginário
e as práticas inquisitórias, ainda que sobre os arquétipos do protestantismo puritano,
cujas, consequências foram desastrosas, culminando na prisão de 200 pessoas e a
execução de 14 mulheres e 06 homens.
É nessa perspectiva que se faz necessário examinar e avaliar o quanto a
representação do medo e suas variáveis estão presentes no mundo ocidental, em
especial nas colônias da Nova Inglaterra do século XVII, partindo do entendimento de
que a mentalidade da sociedade medieval cristã influenciou profundamente o coletivo
universal ao longo da história.
4
DELUMEAU Jean. História do medo no Ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada. Tradução Mª Lucia
Machado: tradução de notas Heloisa Jahn - São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
5
KARNAL, 2007, pg. 51
6
BARROS, 2008, pg.16
sociólogos e antropólogos, que acreditava que a partir da utilização dos instrumentos
de reprodução visual e sonora poderia estudar sobre uma dada realidade social.
O exímio cronista, Marc Ferro, um dos primeiros historiadores a utilizar como
fonte documental a obra fílmica, concluiu a partir de suas análises, que a produção
fílmica trás em si um status de revelador político, ideológico, social e cultural de uma
determinada sociedade, que às vezes não são evidenciados de modo explícito, mas,
que podem ser sujeitos às observações nas entrelinhas das representações presentes
no filme. Nesta perspectiva o cinema trouxe em sua essência uma importância
significativa para estudo da realidade histórica, onde o historiador ao analisar as
etapas da produção fílmica, como a narrativa, o cenário, o texto, e as relações do
filme com o autor, a produção, o público e a crítica, descortina a intencionalidade da
respectiva obra e identifica o tipo de percepção que a sociedade absorve e revela
sobre seu modo de existência.
Segundo Barros “O cinema não é apenas uma forma de expressão cultural, mas
também um ‘meio de representação’. Através de um filme representa-se algo, seja
uma realidade percebida e interpretada, ou seja, um mundo imaginário livremente
criado pelos autores de um filme” 7.
Os Annales e os novos marxismos estenderam o conceito de fonte histórica,
considerando, por exemplo, que a iconografia, o Cinema, a cultura material enfim uma
variedade de produção humana poderia ser utilizada como tal. A partir de então,
fontes de natureza, visual, oral e sonora foram incorporadas ao conjunto de
compreensão do passado. Por conta disso, estabeleceram-se novos posicionamentos
teóricos e metodológicos para os historiadores, como se sucedeu com os
antropólogos. Nesta perspectiva ampliou-se o entendimento de que o cinema, assim
como qualquer produção midiática podem ser consideradas, em termos de ilustração e
difusão de pesquisas, como ferramentas de observação, de transcrição e de
interpretação de realidades diversas.
Mediante ao respectivo pressuposto e tratando-se de uma obra fílmica de
ambientação histórica, acredita-se que, o estudo e a análise da respeitante obra,
como fonte documental, induzirão a uma interessante visão acerca do medo, das
relações de poder, bem com o discurso ideológico presente nas esferas sociais de
dominação representados na trama. Para Barros “(...) A partir de uma fonte fílmica,
(...) dos discursos e práticas cinematográficas relacionadas aos diversos contextos
contemporâneos, os historiadores podem apreender de uma nova perspectiva da
própria história do século XX e da contemporaneidade (...) 8.
7
BARROS, 2008, pg.10
8
BARROS, 2008, pg.06
A partir dessa perspectiva, procuramos embasar nossa análise percebendo a
relevância da história do medo para a acadêmica. Haja vista que a história do medo
ocupa lugar de destaque na história das mentalidades, corrente esta que ampliou
consideravelmente uma série de temas concernente à vida cotidiana.
Para a efetivação do presente trabalho, fez-se necessário recorrer às ideias de
autores que trouxeram uma grande contribuição para a Nova História, em sua
essência para a História das Mentalidades, dando assim ênfase a estudos que antes
não tinha significado para Historiografia. Portanto para entender as representações
individuais e coletivas e as estruturas mentais sociais ante ao medo tomaremos como
acepção de “medo” as ideias de Jean Delumeau (2009), que consideram o medo
com um dos sentimentos mais negativos do ser humano. O autor afirma que não
apenas o individuo, mas também o coletivo está em constante diálogo com o medo.
Nosso autor procura captar um complexo de medos que faziam parte da constituição
da mentalidade coletiva do homem europeu, ao apresentar as aflições sentidas pela
civilização ocidental cristão, durante o medievo e no final da modernidade, diante dos
infortúnios sociais presentes na respectiva sociedade. Delumeau acredita que a
história do medo é um instrumento não só de mudança, como também é um meio de
revelar novos campos de investigação, derrubando barreiras que existem entre as
gerações Ocidentais. Ele afirma ainda que “Em nossos dias, são incontáveis as obras
científicas, os romances, as autobiografias, os filmes que trazem no título o medo.
Curiosamente, a historiografia, que em nosso tempo deslindou tantos novos domínios,
o negligenciou”9. Outros autores que nos serviram como fundamento teórico quanto
ao conceito de medo será Claudia Barcellos Rezende In. Mª Claudia Coelho
(2010), que define, em consonância com as ideias de Elias (1993) o medo como
“(...) um canal de transmissão das estruturas sociais às estruturas psicológica
individual(...)”10. Para as mesmas “O potencial de sentir medo em sua visão, faz parte
da natureza humana. Entretanto as formas pelas quais cada grupo dará vida a essa
capacidade são fruto de circunstâncias históricas e culturais (...)”11
Na noção de representação utilizaremos como referencial as ideias Roger
Chartier (1990), que assevera que as representações são sempre motivadas por
interesse de grupos que as forjam, assim “(...) as percepções do social não são de
forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e praticas (sociais, escolares,
politicas) que tende impor uma autoridade a custa de outros, por elas menosprezados
12
(...)” . Chartier afirma ainda que em “diferentes lugares e momentos uma
9
DELUMEAU, 2009, pg. 18
10
REZENDE In. COELHO, 2010, pg.13
11
REZENDE In. COELHO, 2010, pg.14
12
CHARTIER, 1990, pg.17
determinada realidade é construída, pensada, dada a ler por diferentes grupos sociais”
13
. Segundo o mesmo a constituição das identidades sociais implicaria em uma “(...)
relação de força entre as representações impostas por aqueles que têm poder de
classificar e de nomear e a definição, submetida ou resistente, que cada comunidade
produz de si mesma” 14.
Quanto às representações constituídas a partir de ferramentas midiáticas, em
especial através do cinema, procuraremos trabalhar com os conceitos de Marc Ferro
que trás em eu seu desígnio a relação entre cinema e historia, afirmando que é tão
antiga como o próprio cinema. Para o autor, o filme “(...) possui uma tensão que lhe
é própria, trazendo à tona elementos que viabilizam uma análise da sociedade diversa
da proposta pelos seus segmentos, tanto o poder constituído quanto a oposição (...)”
15
. É nessa conjuntura que a obra cinematográfica é tratada como “novo objeto”, bem
como uma fonte preciosa, dentro dos domínios da chamada História Novo. Isto se
deve ao fato de que a obra fílmica na sua magnitude ,seja, ela ficção, documentário
ou cinejornal é carregado por representações, que refletem, para quem o analisar,
visões de mundo, valores, comportamentos, identidades e ideologias de uma
determinada sociedade num determinado contexto histórico e social. Nesse sentido
Ferro acredita que o cinema:
13
CHARTIER, 1990, pg.16
14
CHARTIER, 2002, pg. 73
15
MORETTIN, 2003, pg.13
16
FERRO, 1976, pg.202-203
O Cinema mostra-se um ‘agente histórico’ importante no
sentido de que interfere direta ou indiretamente na História. Ou,
mais propriamente, poderíamos acrescentar que o Cinema tem
se mostrado como instrumento particularmente importante ou
como veículo significativo para a ação dos vários agentes
históricos, para a interferência destes agentes na própria
História. O Cinema, então, mostra-se como poderoso
instrumento de difusão ideológica, ou mesmo como arma
imprescindível no seio de um bem articulado sistema de
propaganda e marketing. Por isso mesmo, em uma primeira
instância já se mostra muito interessante para os historiadores
a possibilidade de examinar sistematicamente as relações entre
Cinema e Poder, o que – como se verá adiante – fará da arte
fílmica e das práticas cinematográficas importante objeto de
estudo para a História Política e igualmente complexa. Desde
cedo, as diversas agências associadas aos poderes instituídos
compreenderam a importância do Cinema como veículo de
comunicação, de difusão e até de imposição de ideias e
ideologias 17
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
É relevante salientar a importância do estudo desses autores, pois a obra em
análise possibilita o estudo do medo no espaço coletivo onde as representações e as
relações de poder, tem um papel preponderante em evidenciar a tipicidade de medo a
partir de uma análise, de uma perspectiva da micro historia para o macro, de uma
sociedade capitalista forjada pelos valores e costumes cristã.
Cabe aqui ressaltar que o nosso trabalho se encontra no processo inicial de
investigação com possibilidades de estudos e usos de outras fontes direcionada ao
Ensino de História em sala de aula.
REFERÊNCIAS:
FONTES
Filme: As Bruxas de Salem Título “The Crucible”, Fox Filmes. EUA, 1996
http://www.historia.uff.br/nec/materia/grandes-processos/cinema-e-hist%C3%B3ria-
abordagens-e-metodologia. Acessado em 16 de julho de 2012.
http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/historia/article/viewFile/2713/2250. Acessado
em 16 de julho de 2012
BIBLIOGRAFIAS
17
BARROS, 2008, pg.16
BARROS, José D’Assunção. Cinema e história: entre expressões e representações. In
NÓVOA, Jorge e BARROS, José D’Assunção (org.). Cinema-História: teoria e
representações sociais no cinema. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
CAMPOS, Thiago, In. PEIXOTO, Carolina, e SERRANO, Ana Paula. Cinema e História:
abordagens e metodologia, 2009.
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada.
Tradução Mª Lucia Machado: tradução de notas Heloisa Jahn - São Paulo: Companhia
das Letras, 2009, 700 páginas.
KARNAL, Leandro. Et. al.: História dos Estados Unidos: das origens ao século
XXI. 2. Ed. São Paulo, Contexto, 2007.
.
COSMOGONIA E LITERATURA DE FANTASIA: O CASO TOLKIEN
2. Milenarismo Cristão
Um exemplo do que a religião fez à obra de Tolkien pode ser visto em sua saga
mais famosa, O Senhor dos Anéis. É comum a ideia de um reino futuro que
perserverará pela eternidade afora – Reino de Deus, Quinto Império, Sebastianismo,
Rei Arthur de Avalon, Enéias e Roma de Mil Anos – compartilhando um conjunto
básico de motivos (CAMPBELL, 2000) ao aguardar a chegada de uma nova Idade de
Ouro, quando se harmonizarão o homem selvagem e o civilizado. Tal ideologia, apesar
de antiga, é ainda hoje cultivada pelo homem moderno. Pois “apesar de se ter tornado
tão erudito, o Homo sapiens não deixou de ser um macaco pelado e, embora tenha
adquirido motivações muito requintadas, não perdeu nenhuma das mais primitivas e
comezinhas” (MORRIS, 1967, p. 7).
Somos uma espécie que é, por vezes, compelida a crer na continuidade em
outro plano no pós-morte (JUNG, 2000). Isso interfere na ideia de civilização, como
aquela que segue viva após seu termo, num progresso ininterrupto, numa esfera
diferente. Toda obra milenarista reflete a ânsia pelo Reino Milenar, quando,
aprisionado o Diabo, o Cristo reinará por mil anos com cetro de ferro (Apocalipse 19).
E a literatura de fantasia é uma apropriação pela indústria cultural dos processos
motivacionais do mito e da arte (ADORNO, 2002, p. 18), ou:
3. A cosmogonia de Tolkien
4. Conclusão
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Theodor. Indústria Cultural e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
Coleção Leitura.
ARMSTRONG, Karen. Breve história do mito. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
BARRETO JR., Felipe. “O mais antigo dos testamentos: o mundo de Tolkien e seu
delicado equilíbrio”, in Herói, número 1. Coleção Livros.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: E.P.Maltese, s/d.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.
__________________. Para viver os mitos. 9 ed. São Paulo: Cultrix, 2000.
__________________. Mitologia da modernidade: ensaios selecionados de Joseph
Campbell. Rio de Janeiro: Record / Rosa dos Ventos, 2002.
CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque: histoire
des mots. Paris: Éditions Klincksieck, 1968.
CROATTO, José Severino. As Linguagens da Experiência Religiosa: Uma
introdução à fenomenologia da religião. São Paulo: Paulinas, 2010.
DEBRAY, Régis. Deus, um intinerário: material para a história do Eterno no
Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
DURAND, G. A imaginação simbólica. Lisboa: Edições 70, 1993.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972. Série Debates.
_____________. Aspectos do mito. Rio de Janeiro: Edições 70, 1976.
_____________. Imagens e símbolos. Lisboa: Arcádia, 1979.
_____________. O mito do eterno retorno. São Paulo: Mercuryo, 1992.
_____________. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Série
Tópicos.
_____________. Tratado da história das religiões. 2 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
ELIADE, Mircea; COULIANO, Ioan P. Dicionário das Religiões. 2 Ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
JUBAINVILLE, H. D’Arbois de. Os Druidas: os deuses celtas com formas de animais.
São Paulo: Madras, 2003.
JUNG, C.G. Os Arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000.
MARTINS FILHO, Ives Gandra. O Mundo do Senhor dos Anéis. São Paulo: Madras,
2000.
MORRIS, Desmond. O Macaco Nu. São Paulo: Círculo do Livro, 1967.
NOGUEIRA, Paulo Augusto Souza. “Religião como texto: contribuições da semiótica da
cultura”, in: NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza (org.). Linguagens da Religião:
desafios, métodos e conceitos centrais. São Paulo: Paulinas, 2012.
ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita. Campinas: Papirus, 1998.
PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1997.
PETERS, F.E. Os monoteístas: judeus, cristãos e muçulmanos em conflito e
competição: volume 1 : os povos de Deus. São Paulo: Contexto, 2007.
SCHAEFFER, Francis. A morte da razão. 8 ed. São José dos Campos / São Paulo:
ABU / Fiel, 2001.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva,
1975.
TOLKIEN, J.R.R. O Silmarillion. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
______________. O Senhor dos Anéis: Volume 1: A Sociedade do Anel. 2 ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
_____________. O Senhor dos Anéis: Volume 2: As Duas Torres. 2 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
_____________. O Senhor dos Anéis: Volume 3: O Retorno do Rei. 2 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
TORELLI, Eduardo. “Mundos de Fantasia”, in: Herói, número 1. Coleção Livros.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.
1
BARRETO JR., Felipe. “O mais antigo dos testamentos: o mundo de Tolkien e seu delicado equilíbrio”, in
Herói, número 1. Coleção Livros.
2
BARRETO JR, Felipe. Op. Cit.
3
TORELLI, Eduardo. “Mundos da Fantasia”, in: Herói, número 1. Coleção Livros.
A INCORPORAÇÃO DO BUDISMO ZEN N’O LIVRO DOS CINCO ANÉIS DE
MIYAMOTO MUSASHI: ENTRE O ZEN E O KEN(JUTSU)
RESUMO: O artigo “A incorporação do budismo zen n’O Livro dos Cinco Anéis de
Miyamoto Musashi: entre o zen e o ken(jutsu)” procura entender como o renomado
samurai japonês do século XVI, Miyamoto Musashi, incorporou o budismo zen em sua
obra mor chamada “O livro dos cinco anéis” mesmo afirmando na obra que seu livro não
tratava do budismo, e sim apenas da técnica de espadas criada por ele (o Ni Ten Ichi
Ryu: o estilo das duas espadas). A partir disso iremos mostrar como o Budismo Zen,
através do famoso mestre zen Takuan Soho, influenciou através do seu grande livro
“Mente Liberta”, Musashi que em outrora teve contato com o monge e recebeu seus
ensinamentos do Zen e através disso o incorporou, mesmo inconscientemente, em sua
filosofia e técnica espadachim. Para isso utilizaremos a teoria da recepção e apropriação
de Roger Chartier para identificar os pontos da filosofia budista que foram incorporados
na obra de Musashi e como o samurai, em si, acaba sendo moldado por essa filosofia.
Nesse período o qual Musashi viveu, ser samurai não era mais como se foi nos
primórdios de seu surgimento em meados do século IX, onde muitos deles eram
agricultores mal treinados e mal armados em sua maior parte. Ser samurai no tempo de
Miyamoto Musashi era desfrutar de regalias sociais, ser altamente prestigiado,
enobrecido e geralmente sinônimo de conhecimento e técnica com espada(s). Com o
passar do tempo, eles aprimoraram seus métodos de luta, aperfeiçoaram suas armas, “e
mais que isso, os samurais se tornam uma casta com seu código de valores próprios, o
bushido [1].” (SAKURAI, Célia. 2010, p. 79)
1
Graduando em História pela UFCG.
2
Graduando em História, bolsista do Programa de Educação Tutorial e integrante do grupo de estudo de Teoria
e Metodologia da História.
Aos 13 anos já derrota seu primeiro oponente, e aos 16 ao derrotar devido sua
força bruta e grande tamanho, um conhecido samurai chamado Tadashima Akiyama,
Musashi tona-se um ronin [2] e passa a vagar por terras inóspitas e desconhecidas onde
passou por dificuldades e onde botou em prática sua grande habilidade de esculpir e
desenhar para ganhar algo que pudesse o manter vivendo nessa vida de andarilho.
Outro grande duelo que ficou eternizado na história do samurai foi a luta contra
Sasaki Kojiro onde ele improvisou uma espada de madeira utilizando um remo de barco.
Ao descer do barco o samurai logo correu na direção de Kojiro, que estava com uma
excelente espada forjada pelo famoso Nagamitsu e deu seu primeiro golpe; Miyamoto
com um salto para esquivar-se do golpe, acertou-o bem na cabeça ganhando a batalha
de forma magistral, tendo rasgado apenas sua camisa e a toalha que havia na cabeça
segundo as histórias.
Após uma série de outras vitórias, Musashi continua vagando pelo Japão e nessa
jornada acaba conhecendo e tornando-se amigo e discípulo de um grande monge budista
zen: Takuan Soho, que irá passar vários ensinamentos do zen budismo ao samurai, os
quais o mesmo irá acabar incorporando em sua filosofia (marcial) [5] e mais
precisamente na sua própria técnica também: o Ni Ten Ichi Ryu [6].
Com isso os anos vão se passando e o grande samurai vai conseguindo, com o
passar do tempo, maiores conquistas até que chega à terceira idade onde decide viver
numa caverna conhecida como Reigendo, aos 59 anos onde escreveu poucas semanas
antes de morrer, um livro para seu pupilo Teruo Nobuyuki. Dois anos após esse fato, em
19 de Maio de 1645, Musashi morre.
Foi justamente esse livro, O Go Rin No Sho ou Livro dos Cinco Aneis, umas das
principais obras do samurai, escultor, desenhista e escritor [7] que o consagrou como o
grande mestre do Kenjutsu [8]/Kendo [9] e da estratégia de combate. E mais, não é só
isso; hoje em dia “os empresários japoneses têm usado o Go Rin No Sho como guia de
prática empresarial, realizando campanhas de vendas como se fossem operações
militares, usando os mesmos métodos estratégicos.” (MUSASHI, Miyamoto. 2008, p.36)
É inegável a influência que o modo de vida dos samurais e sua doutrina tiveram
grande influência do budismo zen – que já possuía grande força no Japão desde o século
XII - em suas vidas e muitos deles passaram isso a frente, utilizando este para guiar seu
estilo de luta e suas vidas, Myiamoto Musashi não difere disto, que foi extremamente
influenciado pelo zen do mestre Takuan Soho, o qual influenciou, também, outros
espadachins japoneses com seus escritos, gerando pela primeira vez uma genuína união
entre o zen e o Ken-Justu.
Musashi, que teve contato direto com Takuan Soho que influenciou seu estilo de
luta em associação com uma doutrina filosófica samurai, a qual foi passada para o livro
escrito por ele, descrevendo seu estilo de luta e passando seus ensinamentos – o Go Rin
No Sho - , o qual fora ensinar as técnicas aprendidas durante a vida dele, trás em si
grande influência zen do próprio Takuan Soho, apesar do próprio Musashi escrever que
tenta se manter racional e dizer que seu livro não é uma obra zen, mesmo que alguns
estudiosos afirmem o mesmo, como o autor do documentário sobre a vida deste
samurai, o diretor Mizuho Nishikubo que afirma exatamente que Musashi não se utiliza
do zen budismo em sua obra, o que vemos ser uma teoria de difícil sustentação quando
analisamos sua obra e a comparamos com obras da doutrina zen, inclusive sendo um dos
capítulos do seu livro exatamente com uma reflexão interna daquele que quer seguir,
como ele mesmo fala, O caminho da estratégia (MUSASHI, 2008, p. 39) no chamado O
Livro Do Vazio, parte final da sua obra.
O próprio nome do livro já esta remetido aos Go Dai (os Cinco Grandes) do
Budismo e que são justamente os cinco elementos que compõem o cosmo: terra,
água,fogo,vento e vazio.
Não só n’O Livro do Vazio e no título da obra que vemos influência do zen no Ni
Ten Ichi Ryu. O Livro da Água - segundo capítulo da obra - trás logo no seu início como
primeiro ponto, o tópico: “A Relevância Espiritual na Estratégia” o qual trás logo no início
o seguinte: Em estratégia, sua disposição espiritual não deve ser diferente da normal.
Tanto em luta quanto em vida cotidiana, esforce-se para permanecer calmo. Aborde a
situação sem ficar tenso, porém sempre alerta, e com espírito apaziguado e imparcial.
(MUSASHI, Miyamoto. 2008 p. 62)
Embora não seja escrito por um historiador e seja na verdade um romance, a obra
de Eiji Yoshikawa, intitulada Musashi, que é dividida em três enormes livros, onde o
primeiro volume conta com incríveis 905 páginas de uma narrativa não só bem elaborada
como também mostra ser fruto de uma cautelosa pesquisa quando o mesmo fala da vida
do samurai. E é neste primeiro volume que vemos o marcante primeiro encontro entre o
mestre zen budista e o áspero espadachim que já em seus primeiros momentos começa
aprendendo lições acerca de sua própria maneira violenta e instintiva de ser e que é
apontada por Takuan enquanto Takezo (como Musashi era chamado em sua juventude)
está pendurado numa árvore durante dois dias e se quando o monge chega perto da
árvore para falar com ele, o mesmo se agita fortemente na árvore: “Céus, que força
impressionante! Você está conseguindo balançar até a árvore! Mas veja a terra: nem se
abala, reparou? Sabe por quê? Porque não há força em seu ódio — seu ódio é pequeno, é
privado, tem origem em rancores pessoais. A indignação de um homem deve ser
desprovida de interesses pessoais, devotada à causa pública. Encolerizar-se levado por
mesquinhas emoções pessoais é histeria feminina.” (YOSHIKAWA, 1999, p. 119).
Sendo assim a partir do momento em que Musashi se apropria desta filosofia zen
budista para aplicá-la – mesmo que de forma inconsciente – n’ O livro dos cinco anéis,
tem por objetivo inscrever práticas específicas a partir de sua própria posição de samurai
onde tem por objetivo trazer o aprendizado através de um caminho de iluminação
pessoal e técnica apurada onde alma e espada estão interligados um ao outro para que o
bushido possa ser vivido pelo samurai. É uma resignificação do zen budismo pregado e
ensinado por Takuan Soho para elevar a alma do samurai de forma que este não deixe
sua mente ser levada pela cegueira da ambição, pelo medo, pela impaciência, pelo ódio
ou pela matança. É Miyamoto Musashi e Takuan Soho mostrando suas preocupações com
o tempo em que viviam e o rumo que o caminho dos samurais se encaminhavam através
de um caminho de matanças, crimes, cobiça e livre de quaisquer princípios e muitas
vezes desconhecendo até do próprio bushido. Desta forma o zen budismo aparece com
um papel fundamental para trazer novamente a religião para dentro da prática do
kenjutsu, unindo-as novamente entretanto estreitando mais ainda os laços entre o Zen e
o Ken (espada).
NOTAS:
[1] O bushido, que significa “Caminho do guerreiro”, era um código de honra não escrito
que era seguido pelos samurais. O bushido tem influência budista, xintoísta e
confucionista que dá valor a uma série de valores como lealdade, fidelidade, auto-
sacrifício, justiça, modos refinados, humildade, espírito marcial, honra acima de tudo e
morrer com dignidade.
[2] Ronin é o termo designado para denominar aqueles samurais que não possuíam
senhor, que eram andarilhos e faziam trabalhos pagos para trabalhar geralmente
protegendo quem o pagou ou algo similar.
[3] Sobre “Tempo de Guerras”, ver com mais detalhes em Sakurai (2010, p. 92 – 98).
[4] O Xogun que dominou o Japão e fez sua dinastia durar de 1603 até 1867.
[5] Não deixando de lembrar que de forma sutil e indireta o próprio Musashi já era
influenciado pelo Budismo só pelo fato de ser samurai, e subsequentemente, seguir o
bushido (que possui, também, raízes budistas).
[6] Estilo criado por Musashi onde se usam principalmente as duas espadas em mãos
(uma katana grande e a katana “companheira”, uma espécie de katana de tamanho
menor) com técnicas criadas pelo próprio Musashi.
[7] Dizem que além de ter escrito livros, Musashi também provavelmente escrevia
canções e poemas, entretanto eles não conseguiram ser achados até hoje.
[8] Arte samurai da espada com uma série de técnicas com katana(s). Para maiores
esclarecimentos, consultar: http://www.niten.org.br/kenjutsu.
[9] Criado no século XX a partir do Kenjutsu, é uma forma mais simplificada do mesmo
onde se usa como arma a bogu, uma espada de madeira a qual inclusive Musashi
costumava usar várias vezes, tanto quanto a katana. Ver mais em:
http://www.niten.org.br/kendo.
[10] “Quando o olho não se volta para nenhuma folha em particular e tu olhas a árvore
com a mente absolutamente vazia, o olho é capaz de captar um número ilimitado de
folhas. Mas quando uma única folha prende o olhar, é como se as demais folhas não
estivessem lá.” (SOHO,Takuan. p.25).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
- www.niten.com.br
- YOSHIKAWA, Eiji. Musashi. Musashi. Trad.: Leiko Gotoda. São Paulo: Estação
Liberdade, 1999.
- MUSASHI, Miyamoto. O Livro dos Cinco Aneis. Tradução: Marcos Malvezzi Leal – 9ª
edição – São Paulo: Madras, 2008.
A CASA:
MISTICISMO RELIGIOSO QUE ATRAVESSA GERAÇÕES
Resumo
Nosso objeto de estudo trata-se da obra A Casa da autora cearense Natércia Campos,
uma narrativa de 89 páginas com escrita simples, porém, rica em descrições.
Natércia, autêntica cearense da gema, viveu a maior parte de sua vida em Fortaleza,
principalmente na praia de Iracema, sempre teve encantos pelas contações de
histórias dos mais velhos, e pelas fantasias, crenças e superstições vivenciados pelo
povo cearense. Nessa narrativa extremamente poética a autora faz um resgate da
cultura de seu povo dando voz a uma casa que se mostra narrador-espaço-
personagem; uma casa antropomorfizada que vai tecendo as histórias de três
gerações que passam por suas dependências, como também os anseios e
pensamentos dos humanos e sua participação na vida de cada geração, ou seja, ela é
uma verdadeira contadora de histórias. O referido trabalho tem como objetivo discutir
o misticismo religioso que acompanha as pessoas dessas gerações perante suas
ações, bem como as crenças e superstições que se entrelaçam na fé dessas mesmas
pessoas. Percebemos a fusão do sobrenatural com o humano, as pessoas seguem ritos
religiosos e acreditam na força sobre-humana da natureza; seres, até então
inanimados, ganham presença constante na rotina diária e a Vida e a Morte são temas
indiscutíveis dentro da narrativa. Em um trabalho que se encontra em andamento
apresentamos como aparato teórico-metodológico, assim como apoio fundamental, os
escritos do autor, pesquisador e sociólogo Câmara Cascudo, tendo em vista que a
própria autora o cita em depoimentos como inspiração e grande contribuição para sua
busca em função das raízes do povo cearense.
1
Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Ceará (UECE); Pós-Graduanda em Literatura e
Formação do Leitor pela mesma instituição e Professora substituta da Universidade Regional do Cariri
(URCA).
2
uma novela, por causa de suas 89 páginas, mas que nas palavras da própria autora
tem “segredos múltiplos de reminiscência, o mundo que vive em nós, obscuro e
palpitante”; descrevendo, impecavelmente, imagens, personagens e histórias de um
sertão de lendas e superstições que entrelaçam à vida humana por intermédio de uma
uma voz primeira que é da própria Casa.
Desde o início dos tempos o homem sente a necessidade de ter uma casa, um
lugar seu que guarda e condensa todas as histórias ali passadas. Gaston Bachelard
fala muito bem dessa significação da casa para o homem em A poética do espaço
(1993) quando diz que “a casa é, evidentemente, um ser privilegiado” (p.23)
complementando que “todo espaço realmente habitado traz essência da noção de
casa.” (p.25). Porém, o grande diferencial da Casa de Natércia Campos, é que ela
além de ser o espaço ocupado por seus habitantes mostra-se ser a voz dominante
dentro da obra como também o elo de ligação entre as pessoas. Bachelard exemplifica
bem o que a casa representa para o homem:
de crer em superstições é uma forma antiga em que o humano precisa para ter
sustentação em seu meio material e espitual. Neves, em seu Dicionário de
Superstições afirma essa questão:
Casa sua estrutura foi levantada em um local de águas enfeitaçadas “Meus alicerces
foram feitos muito depois que a lagoa de aguás salinas se evaporou. A causa foi o
aprisionamento da fonte por gigantesca pedra ali colocada com magia e silêncio pelos
índios cariris” (Campos, 2004, p. 11); no entanto ela tinha ciência que um dia tais
águas iriam voltar a sua origem, sentindo-se parte daquele espaço mágico “Esta a
única a ouvir dia e noite o fragor das águas contidas, que um dia retornarão à luz do
sol e das estrelas apossando-se do seu antigo leito. Certa noite, escutei este fragor e
deu-me a sensação de que deste mundo marinho, latente, faço parte” (Campos, 2004,
p. 12).
E falando em batismo, assim como todas as crianças que ali nasceram, a Casa
também fora batizada ganhando o nome de Trindades “Foi em junho, na Hora-Aberta
e solene do toque das Aves-Marias (...) que fui batizada pela chuva repentina e
alvissareira, molhando e avivando a cor das minhas grossas telhas-canais de barro
cozido. Sorvi e senti-me renascer. Encantei-me com aquelas gotas de água vindas do
céu” (Campos, 2004, p. 15). O foco do seu batismo como em outras situações ao
longo dos anos é a superstição das horas do meio-dia e meia-noite, também
conhecidas como Horas-Abertas, que segundo os antigos são as horas para pragas e
rezas de grande força “Meu dono falou aos homens sobre esta Hora-Aberta, a
meridiana, hora sem defesa em que os demônios do meio-dia libertam-se. Hora grave
de ameaças, já que pragas e rogos são atendidos pelos céus” (Campos, 2004, p. 10).
Abertas e a hora meridiana do meio dia “As horas abertas são quatro: meio-dia, meia-
noite, anoitecer e amanhecer. São as horas em que se morre, em que se piora, em
que os feitiços agem fortemente, em que as pragas e as súplicas ganham expansões
maiores. Horas sem defesa, liberdade para as forças malévolas, os entes ignorados
pelo nosso entendimento e dedicados ao trabalho da destruição” (2009, p. 49).
Encontramos nas próprias palavras da autora Natércia Campos que Luís de Câmara
Cascudo foi sua grande inspiração, afinidade e influência “Através de seus livros,
aprofundei-me nos costumes, tradições populares, fábulas, cantigas, acalantos,
assombros, jogos, danças de roda (a milenar ciranda), artesanatos, superstições de
antigas culturas que nos procederam e as que nos colonizaram” (Gutiérrez; Moraes,
2007, p. 37).
A própria Casa diz que “as superstições do além-mar, logo aliaram-se às que
aqui existiam” (Campos, p.13). Uma crença que atravessa gerações e que também
atravessou esse além-mar da narradora que remete a Portugal são as metamorfoses
da Morte. A palavra metamorfoses é utilizada dentro da narrativa para demonstrar as
facetas e as situações que a Morte se posta na vida dos humanos. Vida e Morte são
tratados como entidades sobrenaturais que ganham espaço dentro da narrativa, até
porque fazem parte da existência humana na terra. Cascudo fala: “O povo acredita
que a Morte tenha forma e limitações somáticas” (2009, p. 105) e ainda ressalta que
“A crendice fixa um conceito popular sobre a personificação da Morte. (2009, p. 106).
A Morte é vista como aquela que invade as dependências da casa sempre com
uma missão a realizar. Observemos a primeira vez que a Casa sentiu a sua visita:
“Lembro-me da primeira vez, e havia de ser nas Trindades, quando Ela aqui chegara
em missão. Uma das portas abriu-se sem que ninguém a empurrasse e nem a frágil
aragem a tocasse. Os ventos haviam me alertado que a Morte assim entra nas casas
quando, silenciosas e inexplicáveis, as portas se abrem” (Campos, 2004, p. 15). Ela
lhe daria o nome de Moça Caetana para designar-lhe o pavor e a sangrenta morte do
sertão, como também em situações de mau agouro, vista na narrativa pela aparição e
6
No sertão a morte também vem acompanhada pelo flagelo da seca, que traz a
fome como sua representante. Assim como a Morte possui um nome para designá-la a
fome é conhecida como a Velha-do-Chapéu-Grande, esta que assiste o padecer dos
viventes e leva os sertanejos em tempo de seca a tornarem-se retirantes, deixando
sua moradia e só voltarem quando os céus mandarem chuva. Tal situação também é
percebida na narrativa, a Casa aos poucos fora entendendo o porquê de seu
abandono: “Longo foi o tempo sem chuva e de estranha solidão de sons, pios e vozes.
As cigarras eram as únicas a continuarem a cantar, chamando o sol e provocando o
sono. Os vaga-lumes apagaram-se na Grande-Seca, e quando isto ocorreu, soube que
fora abandonada.” (Campos, 2004, p. 23)
O dia de São José eram sua terceira e última tentativa de mudanças no tempo;
sabiam que se não chuvesse nesse dia seria tempo de seca e assim se fez. Padroeiro
do Ceará e patrono da Igreja Católica, São José é visto, principalmente, pelos
nordestinos como o santo para um bom período de chuva. Em várias tradições
religiosas, trabalhadores da terra desenvolvem mitos, ritos e louvores a santos para
conseguirem boas colheitas.
A Casa, assim como um humano, vai aprendendo as coisas pelo o que chega a
ouvir e vivenciar por seus habitantes. Suas primeiras lições sobre manifestações
religiosas veio do seu primeiro dono “Aprendíamos com ele, por suas histórias, sobre
os Santos do Dia, das estrelas cadentes que eram as lágrimas de São Lourenço, morto
em braseiro de fogo ardente” (Campos, 2004, p. 19); porém foi com Tia Alma que
aprendera as histórias de vida dos santos, as superstições das almas penadas que
vagueiam na terra e períodos santos como a Quaresma, Semana Santa e Natal.
demonstrou sua veia religiosa sempre ligada as superstições da terra “Sorria tia Alma
ao dizer que não se deve passar a mão nos cabelos ao despertar de um bom sonho,
pois este virá a se perder, esfumaçado e esquecido nas voltas da memória” (Campos,
2004, p. 27-28) e ainda dizia “Não se deve pronunciar o nome de alguém que já
morreu para não interromper seu repouso, fazendo-o voltar. Antes do nome ponham a
palavra – finado -, pois ele ao ouvi-la saberá sua nova condição” (Campos, 2004, p.
29).
O belo espelho oval citado acima é uma das superstições fortes dentro da casa.
Feito por um artesão chamado de o mago dos espelhos, chegou na Trindades já com a
superstição que o seu criador não viu o próprio reflexo, sinal que a morte estava por
vir. O espelho não é um mero objeto/refletor de imagens, em momentos chaves da
narrativa percebemos que ele está sempre ligado à figura da morte como na parte em
que seu próprio criador não consegue ver seu refleto que anunciava a chegada de sua
morte. Após, há o momento em que a Casa vê a entrada da morte pelo espelho às
vezes repentina e em outras demorada: “Presenciei durante várias gerações a
chegada Dela abrindo portas, refletindo-se no grande espelho ao invadir meus espaços
e muito aprendi sobre suas metamorfoses e disfarces” (Campos, 2004, p. 17). E
finalizando quando acontece a morte do Bisneto, o responsável por trazer o espelho a
Trindades: “Ele a viu chegar pelo espelho. Seus olhos a fixaram levemente surpresos.
Enfrentou-a sem medo. O espelho trincou de alto a baixo e só notaram quando mais
velas foram acesas naquela sala onde o velaram.” (Campos, 2004, p. 83).
Para a Casa o espelho era também uma fonte de visão externa que ao abrir
portas e janelas lhe dava a possibilidade de ampliar sua visão: “Nas noites do Senhor
São João Batista, na sua festa de superstições, de plantas e águas purificadoras, as
labaredas da fogueira dançavam no espelho, e quando portas e janelas eram cerradas,
só a luz das velas e das candeias dava-lhe vida” (Campos, 2004, p. 31); ou seja, a
Casa só conhece o que se passava em seu interior, ficando a escuta o que dizem os
Ventos e os outros contadores de histórias.
O tempo de Trindades durou alguns séculos, seus donos foram mudando e com
eles o cuidado com sua estrutura “Há muitos anos, quando fui doada de porta cerrada,
o novo dono mandou ferrar o tabuado da minha grande porta com o seu ferro. Posse
vã”. A mudança geográfica do sertão também é descrita “O sertão não era mais a
vastidão de terras sem limites, começara a ser demarcado com cercas e arames
farpados”; como também as atitudes humanas “Muitos foram os que furaram meu
chão, cavaram ao meu redor à procura de botijas” (Campos, 2004, p. 84). Ao findar-
se a Casa encontra-se submersa no mundo das águas de uma bacia hidrográfica, as
mesmas águas aprisionadas do tempo de sua criação e que tanto sentia fazer parte.
Referências
10
CASCUDO, Luis da Câmara. Coisas que o povo diz. 2ª ed. São Paulo: Global, 2009.
*
Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
Campina Grande (PPGH-UFCG). Atuou na Graduação como aluno bolsista-PIBIC do Cnpq, pesquisador
na área de história das religiões, realizando estudos sobre o protestantismo no Brasil Império.
1
Lemos as seguintes palavras escritas por Daniel P. Kidder: “[...] Como é lindo admirar-se o seu
resplendor, quer quando em Julho e Agosto se reveste de folhas novas, quer no outono nordestino,
quando se cobre de folhas rosadas e brancas [...]” (KIDDER, 1980, pág. 122. Grifo nosso).
2
2
Nordestinidade essa que não se pode confundir com o que Durval propõe para o Nordeste. Durante
nosso trabalho preferimos deixar as nomenclaturas nordeste e nordestinos, a fim de que nossa
compreensão do contexto espacial torne-se mais fluido. Essa nota de rodapé torna-se necessária para que
não recorramos a mais uma explicação acerca do que estamos nos referindo quando falamos de nordeste.
3
nesta obra, selecionamos alguns aspectos que julgamos importantes para percebermos a
maneira como este viajante constrói uma identidade religiosa para os nortistas – futuros
nordestinos. Em outras palavras, como este inventa o seu Nordeste.
Um lugar de idolatria
Chegando à Província de Pernambuco, Daniel Kidder visitou alguns lugares
acompanhados de amigos e acompanhantes. Sua intenção era conhecer o local para ver
se porventura acharia condições favoráveis à distribuição de materiais religiosos. Ao
chegar no povoado de Pombal, ele descreve a paisagem desta maneira: “À extremidade
ocidental da ponte erguia-se o que o Sr. Sourtey chamaria um ‘idol house’, ou melhor,
uma capelinha [...]” (KIDDER, 1980, pág. 98).
Percebamos então nesta passagem a caracterização que ele faz do lugar, em
especial o espaço religioso. Kidder reproduz a fala de um estrangeiro – que inferimos
ser também um protestante – que mencionava a capela do povoado como sendo uma
casa do ídolo. Na mentalidade protestante, o uso de imagens com fins de culto era uma
profanação à divindade expressa na pessoa de Jesus Cristo. Logo, só ele deveria ser
adorado ou venerado. Na qualidade de cristão reformado, Daniel Kidder desqualifica o
espaço religioso de quem não é seu páreo. O nordeste, então, é um lugar da idolatria,
que precisava ser evangelizado por aqueles que detinham a verdade libertadora dos
enganos.
Em outra feita, Kidder parece pasmar-se com a atitude de uma das várias
pessoas que o acolheram em suas andanças pelo Nordeste. Trata-se do Sr. Martinho.
Este possuía em sua residência um armário que continha uma imagem de Nossa
Senhora, e juntamente com ela inúmeros rosários destinados à oração. Ao tratar do
assunto com o Sr. Martinho, Kidder menciona que ele “deu-nos a impressão de ter sobre
ele ideias tão claras e enradicadas quanto os que se acham que se devem fazer
reverências a imagens de madeira, de barro ou de pedra” (idem, pág. 121).
Daniel Kidder estranha a atitude do Sr. Martinho, uma vez que em sua mente
paira no ar uma possível leitura de que a mentira não se sustentaria face a verdade, dado
que não se apoiaria em argumentos – coisa que o Sr. Martinho mostraria o contrário.
Convidado para ver o objeto de veneração do dono da casa, Kidder menciona que
declinou o oferecimento, o que nos aponta para outro aspecto: em um momento,
enquanto protestante, ele recusa-se a compactuar com algo tão estranho ao seu lugar
religioso. Esta ação nos possibilita pensar sobre a afirmação da identidade protestante.
5
Se por um lado, Daniel Kidder começa a inventar o Norte do Brasil como um lugar da
idolatria, ele se afirma como o diferente, aquele que não se amolda aos padrões
oferecidos diante dele e para ele, oportunidade essa que seria utilizada por ele para
deixar marcas identitárias no Outro3.
Nesta mesma ocasião, seu estranhamento em relação à religiosidade alheia
torna-se detectável nas entrelinhas do comentário que ele faz da seguinte prática: “Á
tarde, passou uma imagem de Nosso Senhor Bom Jesus, à qual o dono da casa não deu
esmola, mas beijou reverentemente. Depois, passou-a às outras pessoas da família,
ordenando as crianças que fizessem o mesmo, a fim de ganhar o céu” (Ibid., pág. 121).
Este comentário poderia soar para Kidder como algo estranho – e porque não dizer
reprovável – para alguém protestante, uma vez que o protestantismo não admitiria que a
salvação se desse através de um ato de veneração a imagens, mesmo que ela seja a do
próprio Jesus Cristo.
Lutero havia afirmado que apenas a fé subjetiva na morte de Cristo salvaria os
homens, como podemos atestar em suas palavras: “Não é pelas obras, mas pela fé em
Cristo, que nos redimiremos, nem pela crença no valor das obras, isto é, pela suposição
insensata de que estaremos justificados por meio das obras. A fé redime as nossas
consciências [...]” (LUTERO apud DUNSTAN, 1964, pág. 37). Logo, a leitura
protestante do que seria a fé, excluiria as outras manifestações, que também são atos de
fé. Para o protestantismo, existiria uma só fé, como está escrito nas cartas paulinas. É
interessante pensar nesta articulação de pensamento, pois percebemos como o
protestantismo se afirma perante o universo religioso de sua época, e em especial, nos
dias em que Daniel Kidder esteve visitando o Brasil.
3
Isto nos lembra o que Stuart Hall fala acerca das identidades enquanto construção fluida, processo
dinâmico que conta com a interação entre dois modelos de identidades diferentes. Cada grupo social, cada
indivíduo, imprimem suas marcas nos outros, o que nos faz pensar as identidades como resultado das
relações interpessoais e intersociais.
6
Tal relato é bastante emblemático, uma vez que nos permite pensar em alguns
aspectos. Para Kidder, o povo aplaudia em honra ao que não sabia, pois se soubesse
quem eles estariam homenageando, teriam preparado algo mais solene. É claro que
Daniel Kidder se espanta com tal atitude. Afinal, além de ser protestante, ele tinha
contato com um tipo de catolicismo que não se configura no catolicismo desenvolvido
no Brasil.
Ainda mencionando os juízos de valores que ele expõe em seu relato, vejamos o
que ele diz:
De acordo com a leitura que Kidder faz da religiosidade nordestina, não havia
um conhecimento preciso, por parte dos adoradores, do que eles estavam venerando.
Seria como se ele estivesse revivendo os dias em que Paulo de Tarso visitou a cidade de
7
Atenas e se deparou com uma divindade que os atenienses haviam intitulado de O Deus
Desconhecido4. Daniel Kidder ironiza a confusão que os habitantes faziam em relação à
Nossa Senhora, mencionando que a mitologia greco-romana seria mais racional do que
a lógica católica. Logo, percebemos a detratação que ele faz da religiosidade da região.
Região essa que lhe é estranha e que, segundo o seu olhar, precisaria de salvação.
A situação fica acentuada quando Kidder discorre sobre as festas que eram
realizadas após as novenas – movimentos estes que supracitamos parcialmente. De
acordo com seu raciocínio, tais festejos propiciavam a perda de valores morais,
chegando a ser adjetivados por ele como ridículos5. Tais atos consistiriam no pecado de
profanação do Domingo, conhecido como o Dia do Senhor. Todo este comportamento
de estranhamento esboçado por Kidder precisa estar relacionado com o seu lugar
religioso, enquanto um metodista. O metodismo, uma das ramificações do
protestantismo, fora fundado pelo Inglês John Wesley. Este pregava um padrão de
moral rígido, reminiscências da moral puritana. Portanto, as práticas em nome da
religião deveriam ser feitas com a maior discrição possível, pois o relaxamento destas
práticas era interpretado como falta de respeito a Deus. Logo, não é de se estranhar que
Daniel Kidder, um missionário metodista, reproduza esse tipo de discurso, fazendo uso
deste para inventar uma identidade alheia.
4
Esta narrativa encontra-se escrita em um dos livros da Bíblia. Cf. Atos, capítulo 17, versículos 16-31.
5
Ele diz: “Uma das maiores impressões que colhemos foi ver famílias inteiras, inclusive senhoras e
senhoritas, ao ar úmido da noite, admirando cenas que não só tocavam às raias do ridículo, mas, ainda,
eram acentuadamente imorais – e dizer-se que tudo isto se fazia em nome da religião!” (KIDDER, 1980,
pág. 133).
8
nele não houvesse ligação evidente com a religião que aprenderam” (KIDDER, 1980,
pág. 132).
Para um protestante, o conhecimento das Escrituras é algo bastante fundamental.
Quase em todas as chamadas Confissões de Fé produzidas no contexto da Reforma
Religiosa do século XVI evidenciavam a importância da Bíblia em questões de fé e
prática. Em uma destas confissões, elaborada em meados do século XVII na Abadia de
Westminster, Inglaterra, lemos a seguinte declaração: “Todo o conselho de Deus
concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida
do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser, lógica e claramente,
deduzido dela”6.
Percebamos, então, o lugar que as Escrituras ocupavam no pensamento
protestante. Para este, a Bíblia seria como um manual daquilo que o ser humano deveria
crer e praticar, um regrador de costumes e culturas7. As tradições deveriam estar
submetidas pelo crivo das Escrituras, e neste sentido observamos um contraponto que o
pensamento protestante faz em relação à ideia que o catolicismo desenvolveu sobre as
mesmas tradições.
É farto desta percepção que Daniel Kidder fará suas observações sobre os
nordestinos e o hipotético papel que a Bíblia exerceria no meio deste povo. Para ele, a
distribuição de Bíblias e sua consequente leitura faria com que os nordestinos fossem
libertos da falsidade que a religião católica oferecia. Citando o exemplo de certo
indivíduo nomeado por ele como Reverendo R. ele menciona que “em sua opinião
nenhuma outra ocasião seria melhor que a presente para a divulgação da verdade e do
culto puro, nesta região brasileira” (Ibid, pág. 110). O curioso desta observação de
Kidder é o fato dele citar a disseminação do que ele chama de verdade e de culto puro
logo após fazer uma narração de um ato que foi taxado por ele de fanatismo. Logo, era
de suma importância distribuir Bíblias e panfletos entre o povo nordestino, a fim de que
o Nordeste deixasse de ser uma região idólatra e palco de atos fanáticos.
Daniel Kidder transparece alegria e satisfação ao citar exemplos de pessoas –
principalmente clérigos – que se interessavam em estudar a Bíblia. Kidder constrói a
6
Capítulo I, 6. Confissão de Fé de Westminster. In.: Bíblia de Estudo de Genebra. 2ª Ed. Barueri:
Sociedade Bíblica do Brasil; São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2009.
7
Aspecto esse que poderia ser alvo de outras ponderações que não caberiam neste estudo, pois se trataria
da pluralidade de leituras que o protestantismo proporcionou da Bíblia. As denominações protestantes, em
certo grau, foram filhas destas múltiplas leituras sobre a Bíblia, o que nos faz problematizar sobre a frágil
unidade do protestantismo.
9
imagem destas pessoas como contentes e alegres por terem conhecido a verdade, quase
como que protestinizando-os. Em visita a uma destas pessoas, ele narra que
Considerações finais
Este breve ensaio nos foi bastante importante, uma vez que nos ajuda a
compreender como as identidades vão sendo forjadas. Além do mais, em se tratando da
invenção do Nordeste, este estudo nos permitiu pensar em pelo menos três aspectos:
primeiramente, no fato de que as identidades também são forjadas externamente,
movimento esse que complementa – pelo menos timidamente – a leitura que Durval
Muniz faz da construção da identidade nordestina, enquanto construção interna. Em
segundo lugar, percebemos que há uma possibilidade de trabalharmos com a ideia de
Nordestes. O que falamos foi de um Nordeste possibilitado no relato feito por Daniel
Kidder, muito embora ele não tivesse pensado neste sentido. Em terceiro lugar,
pudemos verificar o lugar do protestantismo como elemento construtor de mais uma
identidade para o Nordeste. Protestantismo este que se configura não apenas como
corpus religioso, mas, sobretudo, como ideologia, cosmovisão. Pensando a sociedade
através de padrões e categorias diferentes do catolicismo, o protestantismo deixou suas
10
Referências Bibliográficas
Até a década de 1950, sendo acentuado ainda mais com o Golpe Civil-Militar de
1964, o meio protestante manteve a imagem de um posicionamento de não
interferência nas questões políticas desde que suas ideias e princípios não fossem
ameaçados de algum modo. Na verdade o principio tão tradicional de não participação
política não passava de um argumento retórico (Silva, 2009, p. 31), pois desde a
década de 1940 os evangélicos ofereciam a obediência e o respeito às autoridades
constituídas e recebiam em troca apoio e manutenção das liberdades de consciência e
religiosa. Essa foi a tática utilizada por muitas denominações evangélicas para se
estabelecerem no Brasil. Entretanto, isso começa a ser modificado com a inserção de
novas linhas teológicas na ambiência protestante, como a teoria do Evangelho Social
em 1950, associando-se a isso “uma nova geração de jovens reformados começava a
se inquietar com a realidade brasileira, de forma sistemática e organizada” (Silva,
2010, p. 20,66).
Inconformados com a postura da maioria das igrejas evangélicas, de silêncio,
apoio e até conivência frente ao Governo ditador, um grupo de jovens da Igreja
Batista Dois de Julho se movimentou recriminando tal atitude2, ainda que ela viesse
da Convenção Batista Baiana ou Brasileira (maiores instâncias organizacionais da
denominação Batista), que buscavam no apoio ao Governo o espaço necessário para a
autoafirmação no país, à época majoritariamente católico. Esse grupo, tido como
inconformado e rebelde, seria expulso de sua igreja e viria a organizar a Igreja Batista
Nazareth.
Liane ainda destaca que o pastor Ebenézer Cavalcanti já havia até recebido aos
Padres Dom Gerônimo e Dom Timóteo para pregarem na Igreja Dois de Julho e que
fazia convites para membros de diferentes Igrejas para entrarem no Coral da
Mocidade da Igreja Batista Dois de Julho. “(...) ele trazia essas pessoas para o coral e
ele aceitava, não pergunta a origem, não perguntava nada.”
Esses jovens estavam também muito indignados pela Igreja Dois de Julho ter
decidido pela Carta Compulsória a Agostinho e Balbino, que faziam criticas ao governo
militar.9 Chegou-se ao ápice desse conflito no dia 10 de Outubro de 1974, quando,
numa reunião muito tensa, aproximadamente 25 jovens da União da Mocidade da
Igreja Batista Dois de Julho teve a sua fala cerceada, indignados, foram forçados a
10
requererem suas cartas demissórias (espécie de documento de expulsão da Igreja) .
Liane foi a primeira a fazer o pedido, e foi prontamente seguida por parte dos
integrantes do Coral.
A relação com as questões sociais sempre foi uma característica do grupo de jovens,
que encontrou nas mudanças de pensamentos teológicos as fontes necessárias para o
seu posicionamento, que apoiava transformações na sociedade, transformações que
ultrapassassem o assistencialismo tradicional protestante. Em grande medida essas
correntes eram elaboradas na Europa e nos EUA e adaptadas a realidade brasileira
como o Evangelho Social que apontava como característica necessária ao
protestantismo a ação social e política (Silva, 2009, p. 76-77).
Esses jovens não queriam romper com a Igreja Batista, mas sim com a
Igreja Batista Dois de Julho por considerar impossível a convivência. Em carta enviada
à Convenção Batista Baiana no dia 12 de Outubro de 197412, Paulo Torres afirma o
interesse do grupo em “organizar uma nova igreja com base neotestamentária e em
consonância com os princípios Batistas.”
A princípio o grupo realizava as reuniões nas suas casas e nas casas de amigos,
sem um ponto fixo. No dia 31 de dezembro de 1974, o Reverendo Enoque Sena,
Pastor presbiteriano e Diretor do Colégio Dois de Julho, instituição educacional de
caráter ecumênico, ligada à Igreja Presbiteriana, ofereceu as dependências do Colégio
para o encontro do grupo enquanto lhes fossem necessárias.15 Logo em seguida, sob o
auxilio do Pastor Djalma Torres, a Igreja Batista Moriá acolheu a esses jovens, “já
sabendo que esse grupo não ia se integrar na igreja, mas ia fazer reuniões
separadamente das reuniões normais da igreja até se organizarem também em uma
comunidade religiosa, ou seja, numa Igreja Batista”16.
A Igreja Batista Nazareth (IBN) negou ter enviado uma carta com tal teor,
onde detratava pessoas sob o pretexto de solicitar reconsideração dessa junta sobre o
pedido de filiação.24. Por esse motivo, a Convenção Batista Baiana (CBBa) pediu à
Nazareth permissão para publicar no Jornal Batista a carta de negação sobre o
documento anônimo, pois esse documento tinha sido enviado a muitos pastores como
circular.25 Prontamente a IBN aceitou a publicação de seu pronunciamento a respeito
da carta anônima26 sendo parabenizada pela Convenção Batista Brasileira por terem
demostrado “um louvado espirito conciliador, de coragem e prudência.”27 A Igreja
Batista Dois de Julho, nesse interim, também lança um documento informando não ter
nenhuma relação com a negação de pertencimento de Nazareth à CBBa e que nem
mesmo tem algum conhecimento da existência do referido grupo.28
Um mês após o envio da Carta da Junta Executiva da CBBa, Nazareth encaminha uma
carta documento representando a posição da Igreja. É clara ao afirmar que não abdica
do direito de ser considerada uma Igreja Batista e que tem por fundamentação
eclesiástica a “Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira”, salientando
que houve uma interpretação duvidosa e parcial dessa Declaração por parte da
CBBa.33 Nessa mesma carta, Nazareth enumera uma serie de tópicos destacando suas
crenças. Algumas delas:
Foi exatamente nesse período, entre a rejeição e a aceitação pela Junta (1975/76),
continua a carta, que Nazareth começou a estabelecer relacionamentos mais estreitos
com demais grupos evangélicos, o que possibilitou “a descoberta da grande riqueza
doutrinária, teológica, litúrgica e fraternal dessas igrejas (...) Deus transformara,
assim, a marginalização batista numa grande e concreta manifestação de apoio,
compreensão e ajuda no meio evangélico.
Considerações finais
De inicio, a liberdade não era violentada abertamente pela força, mas sim
conquistada de forma ideológica e discursiva. Contudo, em meio a esse período, as
práticas inquisitoriais permaneceram vivas no seio protestante. Essas práticas
punitivas e excludentes faziam parte de um conjunto de procedimentos institucionais
cuja função era identificar e eliminar o pensamento divergente, pois ameaça a sua
unidade politica e teológica. Para tal havia os controles de pensamentos, de
comportamento moral (desviante) e de comportamento intelectual, que seria o mais
perigoso, pois trazia criticas ao sistema. (Alves, 2004, p.96, 112 e 114).
Como bem salientou Rubem Alves, esse conflito ideológico não se dá no campo
do debate, mas sim do poder, da força. “A decisão é feita por um processo politico.”
Nesse embate, o discurso dos vencidos é transformado ou tido como heréticos e dos
ortodoxos os vencedores, a verdade, cabendo então aos hereges a represália e
exclusão. Pensam os ortodoxos: Porque toleraríamos o pensamento divergente se
nossa instituição é possuidora da verdade? Porque um diálogo ecumênico se nada há
para aprender? (Alves, 2004, p.114-116).
1
Para maior compreensão do tema ler a Dissertação do mestrado de Luciane Silva de Almeida: ALMEIDA,
Luciane S. de. A Igreja Anticomunista: Representações dos Batistas e dos Fundamentalistas sobre o Regime
Militar em Feira De Santana (1964-1980). Relatório Final. PROBIC/ UEFS, Feira de Santana, 2008.
2
IGREJA BATISTA NAZARETH. Igreja Batista Nazareth: Uma história de resistência, luta e fé, 1975 –
2000. Salvador/Ba: [s.n.], 2000, p. XI
3
“Primeira Igreja” – Referência à Igreja Batista Dois de Julho. Foi um termo recorrente utilizado nas
entrevistas que fiz por muitos membros da Igreja Batista Nazareth.
4
Manifesto da União da Mocidade da Igreja Batista Dois de Julho, in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Anexo
I; Ata nº 1005 de 12 de Setembro de 1974. Não paginado
5
Entrevista gravada na Igreja Batista Nazareth, no dia 10 de março de 2013, em comemoração ao 38º
aniversário da Igreja.
6
Entrevista gravada na Igreja Batista Nazareth, no dia 10 de março de 2013, em comemoração ao 38º
aniversário da Igreja.
7
Entrevista gravada na Igreja Batista Nazareth, no dia 10 de março de 2013, em comemoração ao 38º
aniversário da Igreja.
8
Carta do diácono Adlair de F. Pacheco à Igreja Batista Dois de Julho em resposta ao Manifesto da
Mocidade. Salvador, 16 de outubro de 1974. Documentação da IBN.
9
Carta de Agostinho Muniz em comemoração aos 15 anos da IBN. In Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não
paginado.
10
Carta de Miriam Guerra Pinillos ao Presidente da Convenção Batista Baiana. 11 de setembro de 1974 in
Igreja Batista Nazareth, op. cit., Anexo I. Não paginado.
11
Carta de Paulo Rosa Torres ao Pastor Djalma Torres. Salvador, 12 de outubro de 1974. Documentação IBN
12
Carta de Paulo Rosa Torres ao Pastor Djalma Torres. Salvador, 12 de outubro de 1974. Documentação IBN
13
Carta de Miriam Guerra Pinillos ao Pastor Djalma Torres. Salvador, 11 de outubro de 1974. Documentação
IBN
14
Entrevista com o Pastor Djalma Torres no dia 08 de julho de 2012
15
Carta à Igreja Batista Moriá, 31 de dezembro de 1974. In Igreja Batista Nazareth, op. cit., Anexo I. Não
paginado.
16
Entrevista com o Pastor Djalma Torres no dia 08 de julho de 2012
17
Carta à Igreja Batista Moriá, 31 de dezembro de 1974. In Igreja Batista Nazareth, op. cit., Anexo I. Não
paginado.
18
Carta convite para a cerimônia de organização da Igreja Batista Nazareth. Documentação IBN
19
Nota do Autor.
20
Ata de organização da Igreja Batista Nazareth, 14 de fevereiro de 1975, In Igreja Batista Nazareth, op. cit.,
Anexo I. Não paginado.
21
Entrevista com o Pastor Djalma Torres no dia 08 de julho de 2012
22
Entrevista com o Pastor Djalma Torres no dia 08 de julho de 2012
23
Carta anônima à Junta Geral da Convenção Batista Baiana. in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não
paginado.
24
Carta do Pastor da IBN, Djalma Torres, à Junta Executiva da Convenção Batista Baiana, em 25 de Agosto
de 1975, in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
25
Carta da Junta Executiva da Convenção Batista Baiana, Itapetinga, 29 de Agosto de 1975, in Igreja Batista
Nazareth, op. cit., Não paginado.
26
Carta da Igreja Batista Nazareth à Junta executiva da Convenção Batista Baiana. Salvador, 15 de setembro
de 1975, in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
27
Carta da Junta Executiva da Convenção Batista Brasileira, Rio de Janeiro, 27 de Novembro de 1975, in
Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
28
Carta da Igreja Batista Dois de Julho à Denominação Batista, Salvador, 3 de Setembro de 1975, in Igreja
Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
29
Carta da Junta Geral da Convenção Batista Baiana à Igreja Batista Nazareth, Salvador, 8 de abril de 1976,
in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
30
Carta da Junta Geral da Convenção Batista Baiana à Igreja Batista Nazareth, em 23 de Julho de 1976. in
Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
31
Artigo 2º, Capitulo VIII da Declaração Doutrinária do Estatuto Batista. In Igreja Batista Nazareth: Uma
história de resistência, luta e fé, 1975 – 2000. Salvador/Ba: [s.n.], 2000. Não paginado.
32
Carta da Junta Geral da Convenção Batista Baiana à Igreja Batista Nazareth, em 03 de junho de 1988, in
Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
33
Carta da Igreja Batista Nazareth à Junta executiva da Convenção Batista Baiana. Salvador, 4 de Julho de
1988, in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
34
Documento da Igreja Batista Nazareth em resposta à Carta da Junta Executiva da Convenção Batista
Baiana, Salvador, 4 de Julho de 1988, in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
35
Jornal A Tarde. Salvador (Ba), Terça-feira, 26 de julho de 1988.
36
Agemir de Carvalho Dias. O ECUMENISMO : Uma ótica protestante.
Professor da FEPAR. Este texto foi apresentado no I Simpósio Internacional de Religião, Religiosidades e
Cultura, promovido pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, p.1.
37
Filosofia da igreja Nazareth, outra abordagem in Igreja Batista Nazareth op. cit.. Não paginado.
Referências Bibliográficas
RESUMO:
Este artigo pretendeu apresentar o processo de rupturas e permanências na
construção da identidade feminina evangélica através da análise das trajetórias de
vida de pastoras da cidade de Fortaleza. O presente trabalho é fruto da construção da
dissertação da autora sobre “mulheres pastoras”. A pesquisa é qualitativa e utilizou-se
de entrevistas narrativas com dez pastoras, de diferentes segmentos denominacionais,
realizadas no ano de 2012. As mulheres que estão à frente de ministérios continuam
reproduzindo os discursos fundamentalistas, porém a participação destas como líderes
coopera para maior participação destas na esfera pública representando assim uma
conquista para as mulheres. Esta aparente contradição aponta para uma mudança
morfológica cultural de gênero ocorrida na sociedade e que se reflete no campo
religioso, onde convivem mudança e adequação.
Palavras-chave: identidade feminina evangélica; mulheres pastoras; mudança e
adequação.
1. Introdução
1
Em que momento da história do protestantismo uma mulher invoca para si o direito
de liderar a igreja?
2
Harold Edwin Williams que, auxiliado pelo Pastor Jesus Hermirio Vasquez Ramos
fundaram a primeira congregação quadrangular no Brasil. Esta denominação foi
responsável pelo alastramento dessas “tendas de cura” nas regiões do sudeste e
centro-oeste na década de 80, dando os alicerces para a criação de outras igrejas
evangélicas neo-pentecostais brasileiras (MARIANO, 1999; FRESTON, 1993). Nesse
período há emergência de mulheres no Brasil com títulos de pastoras, fundando novas
denominações pentecostais com estilo diferenciado e usando a mídia televisiva para a
propagação de suas mensagens. Citarei dois exemplos: Bispa Sônia Hernandes e
Valnice Milhomens, conhecidas nacionalmente como pastoras evangélicas.
Valnice Milhomens Coelho é fundadora e presidente do Ministério Palavra da
fé e da Igreja Evangélica INSEJEC (Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo). Valnice
nasceu na cidade de Carolina, Maranhão, em 16 de julho de 1947. Converteu-se ao
protestantismo aos 15 anos de idade. Após fazer um seminário, em janeiro de 1971 é
enviada como a primeira missionária da Convenção Batista Brasileira à África. Retorna
ao Brasil e em 5 de dezembro de 1987 funda em Recife o Ministério Palavra da Fé,
uma organização interdenominacional. Valnice foi a primeira mulher evangélica a usar
a televisão como ferramenta para o proselitismo. No dia 24 de junho de 1989 entra no
ar o programa “A Palavra da Fé” no canal que hoje é a RedeTV. Mas foi somente em
30 de abril de 1993 a pastora Valnice Milhomes Coelho foi ordenada pastora.iv
Sônia Haddad Morais Hernandes nasceu em São Paulo no dia 22 de novembro
de 1958. Mais conhecida como Bispa Sônia é fundadora e líder da Igreja Apostólica
Renascer em Cristo, onde foi consagrada com tal título. É casada com Estevam
Hernandes, fundador da mesma igreja, autoproclamado apóstolo. No final da década
de 1980, ela e sua família deixaram a antiga denominação evangélica da qual faziam
parte e começaram a organizar reuniões informais com algumas famílias, o que mais
tarde se tornaria uma das maiores igrejas neo-pentecostais do Brasil.v
Em Fortaleza, a primeira mulher a ser consagrada pastora foi a Pastora
Arildes Guimarães, fundadora da Igreja Batista Peniel de Fortaleza, consagrada
pastora em 1985. Sua trajetória de vida foi objeto da minha primeira pesquisa na área
culminando na construção da monografia de título: “Entre a doutrina e o chamado de
Deus: História de vida da pastora Arildes Guimarães, da Igreja Batista Peniel de
Fortaleza” (2010). Neste trabalho eu descrevo os passos da trajetória da pastora
fundadora da igreja a que pertenço, desde a sua criação dentro de um ambiente
evangélico, seu casamento, seu “chamado” para pregar, seus conflitos com a
liderança de sua igreja (presbiteriana), seu contato com o pentecostalismo, sua saída
da igreja presbiteriana e a fundação da nova igreja e posterior consagração.
3
Algumas questões sobre o tema foram tratadas no trabalho acima citado, tais
como:
4
posteriormente, a Presbiteriana Unida, não vetavam o
pastorado feminino (SANTOS, 2002). Este quadro começa a
mudar consideravelmente na década de 1980, pois, neste
período, inicia-se o crescimento das vertentes pentecostal e
neopentecostal e, simultaneamente a tal crescimento, a
abertura para o surgimento de novas lideranças religiosas
femininas no âmbito das igrejas evangélicas . (SILVA, 2010, p.
154).
Pentecostal 1ª e 2ª onda
(Assembleia de Deus, Deus é Amor, Somente a quadrangular consagra
Congregação Cristã no Brasil e pastoras. Não tenho nenhuma entrevista.
Quadrangular)
5
Pra. Arildes (Batista Peniel)
Pra. Ruth (Betel para as Nações)
Pra. Fernanda (Novidade de Vida)
Pentecostais independentes e/ou novas Pra. Ilzinha (Batista Peniel)
comunidades Pra. Nenem (Comunidade Cristã Videira)
Pra. Rosenir (Igreja Apóstolica da
Restauração)
Bispa Simone (Ministério Leão de Judá)
6
machistas” e algumas mulheres também) enquanto lidera uma igreja da IPI, mesmo
sem poder dar a ceia ou batizar ninguém. Pastora Rosângela possui a qualificação
técnica (seminário teológico, com uma monografia de nota 10), mas não possuía a
“autoridade” para realizar tais sacramentos. Mas em 2000, a IPI permite a
consagração de mulheres e ela foi uma das que se tornaram pastoras. Segundo ela,
só foi a permissão ser dada, no ano seguinte, metade da liderança já era formada por
mulheres (nacionalmente). Trabalhou na área acadêmica-profissional até a gestação
de seu filho, recebia uma espécie de salário da igreja, mas não era o suficiente para
sua renda. Porém, depois do nascimento do filho, trabalha integralmente na igreja e
recebe salário da igreja.
Pastora Fernanda: 39 anos, casada com um pastor, paulista, nascida em
uma família classe média alta. Os pais acabaram por se separar, pois o pai era muito
violento. Foi criada pela mãe católica, que “acreditava no espiritismo”. Sua mãe decide
ficar sozinha mesmo separada. Passaram por uma situação complicada
financeiramente depois do divórcio. Ela começou a trabalhar com 13 anos, auxiliando
a professora do colégio que a mãe era dona (“Eu queria ganhar dinheiro”). Começou a
estudar alemão. Com 15 anos entra na Mercedez Benz, passando por um concurso e
foi a mais nova estagiária desta empresa. Namorou um rapaz por 5 anos, chegando a
ficar noiva. Mas, quando ela viajou para Alemanha e voltou , não quis mais namorar
com este rapaz. Fez faculdade de Direito e conheceu um jovem que seria o seu futuro
marido. Ela era envolvida com o que ela chamou de “bruxaria” (ocultismo) e seu
futuro marido era muito católico. Eles ficavam juntos, mesmo o futuro marido tendo
uma noiva. Então ele foi a um acampamento da igreja Metodista (de um amigo dele) e
se converteu. Segundo ela, “ela era bem envolvida com as coisas de bruxaria” e ele
“bem envolvido com as coisas da igreja”. Mas mesmo assim, eles ficavam juntos. Ele
então rompe o noivado e eles começam a namorar sério. Ela começa a frequentar a
igreja dele, mas diz que “escutava as coisas do diabo” e reconhecia “pessoas
endemoniadas” dentro da igreja. Em 1995, ela vai a um acampamento da igreja do
namorado e se converte. O líder de jovens da igreja sai da igreja, por causa de uma
“profecia” dada a ele de um pastor do Instituto Shekinah, e eles resolvem sair junto
com este líder. No último ano da faculdade de Direito, uma amiga das “festas
doideira” sofre um acidente de carro e quando Fernanda vai visitá-la, a jovem
acidentada já pergunta quando seria a próxima saída para festa. Esse evento a deixou
“chocada” e quando chega em casa, ela faz uma oração no quarto dela, renunciando
a vida “do mundo”. Ela afirma que “um homem de branco” (para ela, Jesus) a visitara
naquele dia. Então, eles (ela e o namorado) ficam frequentando a igreja do líder de
jovens (eles mais seis pessoas), que foi o núcleo da igreja em que ela é líder hoje
7
(Igreja Novidade de Vida). Eles decidem se casar. Eles se mudam por conta do
emprego do marido e ela resolve ser dona de casa porque “Deus queria a tratar para
ser submissa ao marido”. “Deus falou assim: Eu quero que você seja dona de casa”.
Eles fundam um núcleo da igreja Novidade de Vida em Uberlândia. “Quando eu vi já
estava trabalhando”. O marido foi consagrado pastor primeiro. E quando eles tinham
um “rebanho de 60 pessoas”, ela foi “consagrada” também. Ela tinha vergonha de
dizer que era pastora, e segundo ela, o marido que a apresentava como sendo uma:
“Aqui é a minha esposa, Fernanda, mas ela é pastora também”. O marido se
transferiu novamente para Fortaleza e eles fundaram a Igreja Novidade de Vida em
Fortaleza em 2003. É pastora em tempo integral, recebe salário. O marido tem outra
profissão também. Tem mais de 25 igrejas em Fortaleza. São pastores de outros
pastores, seis casais na sede. Não tem pastor solteiro, nem divorciado, nem viúvo,
muito menos mulher separada. “A gente espera que o casal tenha a mesma visão”,
“na mesma unção”. “Quem não governa bem a sua casa, não governa bem a igreja”.
Bispa Simone: Tem 50 anos, é divorciada, tem um filho de 21 anos.
Seus pais eram católicos. Os pais se separam quando tinha 8 anos.Estudou em colégio
católico, fez escola técnica (Curso de Turismo) e tem graduação em Administração
pela Unifor. Casou com um marroquino e se mudou para o Marrocos com 24 anos.
Trabalhou na embaixada do Brasil em Marrocos. O marido era muçulmano. “A familia
dele tinha muito preconceito com os ocidentais”. “Eles acham que as mulheres
brasileiras são amorais”. “Mas depois a minha sogra era louca por mim”. Seis meses
depois de estar casada ela já estava arrependida, ela atribui isso pela cultura que era
muito diferente da dela. Mas o casamento durou 6 anos. Então, ela voltou ao Brasil
“fugida”, o filho de 1 ano e meio ficou preso no aeroporto, porque o pai tinha o
“pátrio-poder” e ela ficou sem o filho por três anos. Segundo ela, a família do ex-
marido, apesar de muçulmana, praticava a feitiçaria. Ela conta que se sentia muito
mal quando voltou ao Brasil e frequentou a umbanda, para “desfazer” as “macumbas”
da família do marido. Até que conheceu uma pessoa evangélica que a apresentou a
uma igreja e ela começou a frequentar um grupo de oração da Primeira Igreja Batista.
Depois de três meses convertida, “consegui recuperar meu filho”. Conseguiu uma
autorização para tratamento de doença do filho aqui no Brasil, pois o marido escrevia
cartas dizendo que o filho estava muito doente. Segundo ela, era chantagem. Além
disso, ele cobrava dinheiro para pagamento de um apartamento que eles tinha lá no
Marrocos. Ao final, a Bispa conseguiu a guarda provisória. Enquanto o ex-marido veio
no aeroporto pegar as malas, ela com auxilio da policia foge com o filho. “Passei três
meses fugida”. A Bispa só voltou para Fortaleza quando o marido voltou para o
Marrocos. O filho era muito inquieto, “me mordia, cuspia na minha cara”. A criança
8
não sabia que a Bispa era a sua mãe, o marido deixou que a criança achasse que a
irmã dele fosse a mãe da criança. Depois que o filho foi ao colégio, com pouco tempo
falava o português, no inicio ele só falava árabe e ela respondia em francês para ele.
Ela se emocionou ao falar da gratidão que sente por ter seu filho em casa. “Não peço
nada [a Deus] além do que ele já fez que foi trazer meu filho”. Depois de alguns
meses, ela consegue a guarda definitiva do filho. Ela é convidada a participar de um
retiro de carnaval de uma igreja diferente da que pertencia. Lá uma “uma profeta de
Deus” falou que a partir daquele momento “eu era escolhida de Deus para uma
grande obra”. Segundo a mesma, nesse retiro ela se converteu “realmente”. Segundo
ela deixa de “praticar fornicação”. Rompe com um namorado. “Já tem 12 anos que
estou em santidade”. No mesmo acampamento, ela conhece outra evangélica que se
tornaria uma espécie de sócia (“Deus fez uma aliança no reino espiritual”) no que
seria o núcleo do “Ministério Leão de Judá”.Ela lidera a 10 anos um centro de
recuperação de dependentes químicos. E o tratamento envolve muita oração, o dia
todo com eles, e segundo ela “libertação”. Ela foi consagrada Bispa por esse ministério
que é uma instituição interdenominacional fundada primeiramente em Brasília. Ela é
voluntária, e vive da renda da família, pois faz parte da classe média alta de Fortaleza
e tem muitos bens.
As quatro histórias individuais deste trabalho não são “representativas” no
sentido típico-ideal de Weber (1991), mas representam as graduações de rupturas e
permanências do modelo feminino dentro do campo, o quanto cada uma delas percebe
sua conquista como independente ou não da relação conjugal e/ou familiar e que tipo
de sociabilidade se estabelece a partir daí entre os seus liderados. Considero os quatro
trajetos principais como tendências do campo, do que como regras ou exemplos a
serem encontrados.
Este escolha também revela o tempo cronológico do aparecimento destas
pastoras. Primeiro, emerge a primeira pastora de Fortaleza (Arildes) protagonista do
movimento de renovação na cidade, funda uma igreja, consagra-se pastora e mantém
uma igreja, enquanto educa seus filhos com a “disposição” de fundadores de igrejas.
Há aí neste caso, a formação de uma corporação religiosa, capitaneada por uma
mulher, o que é fato inédito no campo religioso evangélico. Inédito, pois no campo a
que me refiro, é comum ter famílias de crentes dedicados, e até mesmo de pastores,
mas estas famílias têm como referência sempre um homem (patriarca) iniciador do
carisma familiar. Que tipo de igreja surge desta fundação familiar? Segundo, nas
igrejas evangélicas é quase “natural”, no sentido sociológico do termo, a consagração
de uma mulher ao pastorado, quando esta já é casada com um pastor (Pastora
Fernanda). Também há nesse tipo de modelo, o fato de que muitas vezes os dois são
9
consagrados juntos. Qual o modelo de comunidade se tem aqui? Terceiro, nas
trincheiras do protestantismo histórico (Pastora Rosângela), onde é mais difícil a
aceitação às mudanças litúrgicas e /ou doutrinárias. Tudo é discutido racionalmente
pelos conselhos hierarquicamente postos. Mesmo nas igrejas autogovernadas (como
as batistas), as mudanças são permitidas, mas somente legitimadas de cima para
baixo. Qual o caminho a percorrer da mulher que se diz “vocacionada” neste
ambiente? Qual o significado destas “rachaduras” dentro do protestantismo histórico?
O interessante dos dois casos encontrados no campo do protestantismo histórico
(Pastora Betinha e Pastora Rosângela) é o da não vinculação do marido ao ministério.
Por último, mulheres solteiras, separadas e/ou divorciadas, cujo carisma não tem
relação alguma com o cônjuge ou com uma tradição familiar não eram muito comuns
nas igrejas evangélicas. Geralmente, estas mulheres “sem marido” eram (e são)
estigmatizadas dentro e fora das igrejas. Como elas construíram seu capital religioso?
Quem as legitimo? Qual tipo de comunidade elas assistem?
As novas comunidades e/ou igrejas neo-pentecostais são o ambiente propicio
da emergência e aceitação destas pastoras (Bispa Simone). Estas igrejas têm portas
mais largas para a aceitação desta categoria de pastora, pois elas possuem uma
compreensão mais aberta teologicamente ou simplesmente não veem a necessidade
de discutir o assunto, já que as pastoras já apresentam perfis necessários para o
pastoreio nestas igrejas: um carisma reconhecido pela comunidade através do
discurso e do trabalho religioso intenso.
3. Considerações sobre o tema “mulheres pastoras”
A tendência de consagração de mulheres é que a partir do último caso haja
um retorno ao primeiro caso. Explicando melhor: de um pastorado ligado ao cônjuge
ou a família (primeiras pastoras) para um pastorado cujo carisma é de posse somente
da mulher enquanto individuo (pastora divorciada e/ou solteira), possibilitando a
existência de um modelo de liderança feminino reproduzível a homens e a mulheres,
como é o caso da Pastora Arildes, que tem sete filhos pastores, seguidores do modelo
materno de liderança.
Também é preciso observar que há rupturas e permanências no carisma
pastoral evangélico pela emergência de mulheres pastoras.
Cada retrato individual, que não tinha a função de ilustrar
culturas de grupos, de classes ou de frações de classe,
mostrava bem que, longe de se limitar a um registro cultural
único, as pessoas entrevistadas manifestavam ambivalências,
oscilações ou alternâncias dentro de cada campo e/ou de um
campo cultural a outro(LAHIRE,p. 18, 2006).
10
encaixa na pesquisa com as pastoras. Segundo este autor, as múltiplas expressões de
socialização formariam possibilidades de ação que o individuo iria utilizar em diversas
situações. Não havendo então que a necessidade do pesquisador construir
ficcionalmente uma narrativa fictícia para colocar coerência nas escolhas que os
indivíduos fazem. Além disso, a escolha dos casos não se referiria a “pessoas
singulares”, mas por elas revelarem parte daquilo que o social refletiu nelas (LAHIRE,
2004).
11
feminino, desse modo, torna-se o elemento subversivo para mudanças nas relações
de gênero dentro das igrejas.
Para as mulheres conquistarem seu próprio nome e novos
espaços sociais, elas precisaram muitas vezes, subverter e
reinterpretar as convenções sociais, desenvolvendo um
processo de empoderamento, a partir das relações entre
família, casamento e igreja. Afinal, elas estavam excluídas das
tomadas de decisões, do acesso aos recursos e do exercício de
suas capacidades. [...] Enquanto as mulheres estavam no
“palco”, foi possível apontar a presença de lógicas hegemônicas
e a maneira delas subverterem, por meio da criação de
“cunhas” capazes de cavarem espaços de poder na estrutura
religiosa, predominantemente masculina. [...] Tais
comportamentos e pensamentos coletivos e individuais tornam-
se possíveis porque as mulheres pentecostais estão construindo
“buracos no poder”; estão ocupando espaços e tendo voz em
âmbitos legitimados, pelo sagrado e pelo social, como espaços
predominantemente masculinos. (BANDINI, 2009, p.273).
4. Referências
12
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva,
1992.
BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. 7ª Edição. Campinas,
São Paulo: Papirus, 1996.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 2ª edição. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1982.
FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao impeachment.
Tese de doutorado em Sociologia, UNICAMP, São Paulo, 1993.
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil.
São Paulo: Edições Loyola, 1999.
LAHIRE, Bernard. Retratos Sociológicos: disposições e variações individuais. Porto
Alegre: Artmed, 2004.
LAHIRE, Bernard. O homem plural: as molas da ação. Porto Alegre: Instituto
Piaget, 2004.
LOPES, Augustus Nicodemos. Ordenação Feminina: O que o Novo Testamento tem a
dizer?. Fides Reformata. Volume II. 1997. Disponível em:
<http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/revista/VOLUME_II__1997__
1/ordenacao....pdf> Acesso em: 26 de julho de 2010.
RICOEUR, Paul. Escritos e Conferencias 1: em torno da psicanálise. São Paulo:
Loyola, 2010.
ROLIM, Francisco Cartaxo. Pentecostais no Brasil. Uma interpretação Sociológica.
Petrópolis: Vozes, 1985.
SCOTT, Joan. Experiência. In: (org) SILVA, Alcione Leite; LAGO, Mara Coelho; RAMOS,
Tânia Regina Oliveira. Falas de gênero: teorias, análises, leituras. Florianopolis:
Editora Mulheres, 1999.
SANTOS, Maria G. A mulher na Hierarquia Evangélica: O pastorado feminino.
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio de Janeiro:
Rio de Janeiro, 2002.
SILVA, Eliana Coelho. Entre a doutrina e o chamado de Deus: História de vida da
pastora Arildes Guimarães, da Igreja Batista Peniel de Fortaleza. Monografia
(Bacharelado em Ciências Sociais) –Universidade Federal do Ceará: Ceará, 2010.
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia
compreensiva. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 1991.
i
Dados do Censo IBGE 2010 e informações extraídas por um informante dentro da ORMECE (Ordem dos
Ministros Evangélicos do Ceará).
ii
Faço um recorte no protestantismo, mas precisamente o protestantismo brasileiro para tornar a análise
exequível, mesmo observando que na história do cristianismo há controvérsia sobre participação feminina na
liderança da igreja primitiva em seus primórdios. Mas apesar desta divergência, a Igreja Católica Apostólica
Romana ainda não consagra mulheres ao sacerdócio.
13
iii
Meu trabalho de dissertação visa apresentar um levantamento mais apurado da história da proibição de
mulheres ao sacerdócio, mas devido ao tamanho do artigo, decidi expor diretamente a realidade brasileira.
iv
Fonte: http://www.insejec.com.br/pastores.php.
v
Fonte: http://www.renasceremcristo.com.br/.
vi
A Igreja Batista Peniel de Fortaleza não está elencada na lista exposta por Silva neste artigo, porque essa
denominação só existe aqui no Ceará, não sendo conhecida nacionalmente.
vii
Movimento de renovação foi a pentecostalização de algumas denominações antes de confissão reformada
ocorrida no Brasil na década de 1980. Várias denominações protestantes que eram tradicionais
experimentaram movimentos internos, com manifestações pentecostais. “O fogo pentecostal não ardeu
apenas no arraial do pentecostalismo. Penetrou parcialmente em algumas igrejas protestantes históricas,
dando assim origem a um duplo movimento – o de restauração e o da renovação. As igrejas denominadas “da
renovação” são formadas por grupos de batistas e metodistas wesleyanos. Adotam o estilo pentecostal,
embora conservem a organização de suas igrejas de origem. Incorporam as orações espontâneas, o batismo
no Espírito Santo, o acesso dos leigos à pregação, os depoimentos, os cânticos populares” (ROLIM, 1985, p.
59).
14
AS CRENÇAS RELIGIOSAS NOS SÍMBOLOS LITÚRGICOS DA IGREJA ANGLICANA
RESUMO
1 – Considerações iniciais
1
Graduanda do Curso de Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba – josileneufpb@gmail.com
2
Profª Pós Drª no Departamento e no Programa de Pós Graduação em Ciências das Religiões da UFPB –
euniceslgomes@gmail.com - Grupo de estudo e pesquisa em Antropologia do Imaginário – gepai
http://gepai.yolasite.com/
simbolismo e sua relevância. Assim o objetivo de nossa pesquisa consistiu em selecionar
alguns dos símbolos presentes no culto litúrgico da Igreja Anglicana para desenvolver
uma análise através da teoria do imaginário.
Corroboramos com muitos dos teóricos que utilizamos no referencial da nossa
pesquisa e ressaltamos a proposição de Mardones (2006) que vai tratar a relação com o
símbolo como algo que contém vida, e que dentro das religiões esta vivência simbólica se
concretiza. Na prática religiosa de forma geral o símbolo se manifesta conforme o grupo
que está inserido e como algo que pode remeter à vários significados ele alcança seu
maior objetivo dentro das religiões, ao transcender e conduzir comungantes de várias
vertentes religiosas à fazer esta conexão com o sagrado.
Com o intuito de contextualizar nosso grupo de investigação apresentaremos a
seguir uma pequena síntese de sua história e presença em nosso país. E posteriormente
relacionar as principais teorias utilizadas como pressupostos teóricos em nossa análise.
A Igreja Anglicana presente em nosso país desde o séc. XIX (a partir de 1819
sendo a 1ª igreja protestante presente em nosso país), teve sua “origem” inicialmente na
Inglaterra após o rompimento do Rei Henrique VIII com a Igreja Católica, que se deu por
não ter conseguido a anulação de seu casamento pelo Papa da Igreja Romana, porém
não se resume a este fato. Segundo a exposição do Bispo Robinson “De seus
casamentos, o Rei Henrique VIII, ao falecer, deixara três filhos, de três esposas
diferentes, que seguiam a religião de suas mães: Eduardo, o mais velho e Elizabeth, a
mais nova, eram protestantes; e Maria, a do meio, era católica romana.” (CAVALCANTI,
2009) trazendo para o anglicanismo a herança histórica de seus líderes sempre ligados à
coroa inglesa.3
Localizada na cidade de João Pessoa (PB), a Igreja por nós selecionada encontra-
se no estado desde a década de 80, sendo formada majoritariamente por mulheres, mas
3
A Igreja Anglicana é também conhecida como a Igreja Católica Inglesa.
com presença marcante de homens e crianças. Em sua liderança encontram-se as figuras
dos Reverendos (dentro de algumas Igrejas da Comunhão Anglicana permite-se a
ordenação de mulheres, mas no nosso grupo seus líderes eram apenas homens).
É uma paróquia emancipada, ou seja, possui mais de sessenta membros
confirmados4 é formada por um número aproximado de cento e vinte membros tem
como principal fonte de fé: a Bíblia. Os Sacramentos presentes em sua liturgias são
Batismo e a Ceia do Senhor (Comunhão), realizam Batismo de crianças (assim como
Luteranos, Presbiterianos e Católicos Romanos) costumam apresentar uma identidade:
Cristãos Anglicanos. Seus líderes religiosos podem ser denominados de Reverendos,
Pastores, entre outros termos, tendo como representante maior a figura do Bispo.
Sua organização está vinculada ao que eles denominam de Comunhão Anglicana
que consiste na submissão aos chamados instrumentos de unidade: o Arcebispo de
Cantuária, a Conferência de Lambeth, o Encontro dos Primazes e o Conselho Consultivo
Anglicano (ACC), o conjunto destes instrumentos de unidade denomina-se “Quadrilátero
de Lambeth”. Além da chamada Comunhão existe também a organização em Províncias,
Dioceses e Comunidades. As Províncias constituem entidades regionais que
correspondem à junção de três Dioceses; as Dioceses são as chamadas Igrejas Locais,
que se constituem em unidade eclesiástica básica do Anglicanismo; as comunidades são
representadas por suas Paróquias, Missões e Ponto Missionário, que são como uma
espécie de extensão da Diocese. (CAVALCANTI, 2009, p. 66-73)
4
Membros confirmados são aqueles que passaram pelo rito da confirmação, que diferentemente de católicos
romanos consideram como sacramento, é uma espécie de renovação do batismo e amadurecimento da fé.
(CAVALCANTI, 2009 - Grifo nosso)
Para onde vamos? O que é que nos identifica e fundamenta o
nosso consenso social? Donde vêm o mundo e o homem.
(DURAND, 1996, p. 133-134, apud GOMES, 2009, p. 80)
considerado ‘muito importante’ entre jovens e adultos que colaboraram com a pesquisa.
Conforme a imagem coletada ela se encontra sobre o altar sempre aberta o que nos
remete à um sentido conforme a indicação de Aldazábal (2005)
Esse livro aberto, à vista do povo, continua sendo o que ilumina o
restante da celebração eucarística e toda a vida da comunidade.
Foi uma palavra comprometedora, cheia de força, que tem por
finalidade continuar sendo, em todos os momentos, a luz e o
estímulo de uma vida conforme o Evangelho. [...] Os gestos
simbólicos foram introduzidos para isto: para nos recordar e nos
tornar mais fácil a sintonia com o mistério que celebramos, a
Palavra viva de Deus nesta ocasião, a comunhão com o Cristo que
nos fala. (p. 278)
Assim se fizermos uma comparação com o sentido das duas exposições acima,
uma baseada no sentido teológico do uso da bíblia e a outra convergindo-a dentro da
classificação das estruturas do imaginário, a que nos propomos em nosso estudo,
perceberemos a semelhança de sentido sendo a palavra entendida como luz, como aquilo
que ilumina o caminho. E neste sentido também encontramos na própria escritura a
menção a esta luz na passagem do Salmo (Sl 119, 105-106), que diz
105
Tua palavra é lâmpada para os meus pés,
e luz para o meu caminho.
106
Jurei, e sustento:
observar as tuas normas justas.
(BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2003, p. 994)
De igual modo temos a Âmbula (Figura 2 – imagem à esquerda) que assim como
o cálice contém o outro elemento simbólico mais representativo que representa o corpo
de Cristo. Conforme a exposição acima é um símbolo tão significativo quanto o cálice,
por serem os símbolos que contém as substâncias mais importantes da Comunhão. A
âmbula também é conhecida como píxide ou cibório e é também uma espécie de cálice
de tamanho maior e com tampa. É nela que é feita a consagração das obréias5.
Na relação com a teoria durandiana estes símbolos (Figura 2) podem ser
classificados no regime noturno no grupo dos símbolos da intimidade mais
especificamente à moradia e à taça, pois são aqueles que contém e no isomorfismo6
trazido por Pitta (2005) temos
5
As obréias são os elementos que representam o corpo de Cristo e que no rito católico romano (Missa) são
conhecidas como hóstias, constituídas de farinha de trigo e água.
6
Isomorfismo equivale a uma correspondência biunívoca entre os elementos de dois grupos que preserva as
operações de ambos (FERREIRA, 1997)
engolimento, conduzindo às fantasias da profundidade e aos
arquétipos da intimidade, subtendiam todo simbolismo noturno.
(DURAND, 2002, p. 256)
Talvez esta imagem tenha sido escolhida por levar os anglicanos a uma referência
Fonte: CRUZ, 2011.
tanto a sua identidade como cristãos anglicanos como também às
(Foto da própria autora)
origens desta ramificação cristã. Sobre o simbolismo da cruz
celta trazemos a exposição de Chevalier (2009) dizendo que
Na explicação da cruz celta, é necessário remeter o leitor ao
simbolismo geral da cruz. Mas a cruz celta se inscreve num círculo
que suas extremidades ultrapassam, de modo que ela conjuga o
simbolismo da cruz e do círculo. Poder-se-ia acrescentar um
terceiro: o do centro, pelo fato da existência de uma pequena
esfera no centro geométrico da cruz e no meio dos braços de
inúmeros exemplos arcaicos de cruz. (CHEVALIER, 2009, p. 313)
Ainda sobre o simbolismo da cruz recorremos a Aldazábal que nos indica que
A cruz é o símbolo radical, primordial para os cristãos: um dos
poucos símbolos universais, comuns a todas as confissões.
Durante os três primeiros séculos, a cruz parece não ter sido
representada plasticamente: as figuras do pastor, do peixe, da
âncora e da pomba eram as preferidas [...] A cruz resume toda
teologia sobre Deus, sobre o mistério da salvação em Cristo, sobre
a vida cristã. (ALDAZÁBAL, 2005, p.147-148)
7
Informação verbal dada pelo Reverendo Deão da Igreja Concatedral Anglicana em João Pessoa.
história da salvação. Ela é um dos símbolos existentes desde a antiguidade em lugares
como a China, Egito, Creta entre outros. (CHEVALIER, 2009)
Podemos ainda destacar sobre a representação da cruz seus aspectos de
horizontalidade, colocando o Cristo numa condição de igualdade humana, e na
verticalidade apontando para cima e para o alto, indicando sua condição divina e
soberana. E na relação que estamos fazendo com a Teoria do Imaginário podemos
associar a cruz ao grupo dos símbolos de ascensão que se encontram no regime diurno
ligados a elevação. Este grupo se subdivide nos grupos dos símbolos da verticalidade,
asa e angelismo, a soberania uraniana e o chefe, e nas palavras de Bachelard “é mesma
operação do espírito humano que nos leva para a luz e para o alto”. Assim ressaltamos a
representação da cruz no grupo dos símbolos ascensionais ligados à verticalidade como
uma referência à subida e à elevação.
5 – Considerações finais
REFERÊNCIAS
ALDAZÁBAL, José. Gestos e símbolos. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.
CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CAVALCANTI, Robinson. Anglicanismo: identidade, relevância, desafios. Recife: Edição
do Autor, 2009.
CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à
fenomenologia da religião. Trad. Carlos Maria Vásquez Gutiérrez. São Paulo: Paulinas,
2001.
CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,
figuras, cores, números. Trad. Vera da Costa e Silva. 24 ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2009.
DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, Editora da Universidade
de São Paulo, 1993.
DURAND, Gilbert. O imaginário: Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem.
RJ: DIFEL, 1994.
ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso.
Trad. Sonia Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
FERREIRA-SANTOS, Marcos. ALMEIDA, Rogério de. Aproximações ao Imaginário: bússola
de investigação poética. São Paulo: Képos, 2012.
GOMES, Eunice Simões Lins. A catástrofe e o imaginário dos sobreviventes: quando
a imaginação molda o social. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2009.
JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. 15 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2005.
MARDONES, José Maria. A vida do símbolo: a dimensão simbólica da religião. Trad.
Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulinas, 2006.
NASSER, Maria Celina Rocha. O uso de símbolos: sugestões para a sala de aula. São
Paulo: Paulinas, 2006.
PITTA, Danielle P. R. Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand. Rio de
Janeiro: Atlântica Editora, 2005.
ROSA, Maria Cecília Amaral de. Dicionário de símbolos: o alfabeto da linguagem
interior. São Paulo: Editora Escala, 2009.
TERRIN, Aldo Natale. Introdução ao estudo comparado das religiões. Trad.
Giuseppe Bertazzo. São Paulo: Paulinas, 2003.
VILHENA, Maria Angela. Ritos: expressões e propriedades. São Paulo: Paulinas, 2005.
WHITMONT, Edward C. A busca do símbolo: conceitos básicos de psicologia analítica.
São Paulo: Ed. Cultrix, 2006.
8
Informação verbal dada pelo Reverendo Deão da Concatedral Anglicana de João Pessoa.
Protestantes em confronto na Era Vargas: Um era de discussões através da
imprensa
Resumo
Palavras-chaves
Introdução
1
Graduando do curso de Historia pela Universidade Federal de Campina Grande, como também Bolsista
PIBIC, tendo como orientador o Professor doutor, João Marcos Leitão Santos. Email:
Junia_lima_@hotmail.com
2
Professor doutor da Unidade Acadêmica de História, da Universidade Federal de Campina Grande,
email: tmejph@bol.com.br
nossas investigações, por seu caráter tardio, como também pela conjuntura social o
qual estava inserido. E como forma de se sobressair nesta conjuntura social, o
protestantismo usou de vários mecanismos, pré se fazer presente na sociedade.
Logicamente que o uso de tais mecanismos não levou o protestantismo à condição
de sujeito social do dia para noite, isto se deu de forma lenta e gradual, pois a
partir de 1855 as missões protestantes começam a chegar ao Brasil, graças ao
movimento de imigração, apenas no sec.XIX é que ele ganhará caráter definitivo,
pois todas as missões protestantes já se encontravam em atividade no Brasil. E a
partir desta definição o protestantismo começa a ganhar espaço não apenas na
religião, mas também no que se diz tocante a atuação na sociedade contribuindo
até mesmo com a educação no Brasil. E tratando-se de alguns mecanismos
utilizados pelos protestantes não só como objetos difusor de sua doutrina e religião,
mas também como objetos de divulgação de opinião. É a partir destas estratégias
de resistência que a imprensa terá um importante papel na historia do
protestantismo isto desde a reforma. A imprensa desde a reforma teve um papel
preponderante, pois atingir os grupos mais amplos os protestantes irão se utilizar
da distribuição de panfletos é bom também entendermos que esta questão de
publicação leva em consideração a questão da subjetividade do sujeito, a partir
desta afirmativa podemos observar o que Asa Brigs dia a respeito da importância
da imprensa na reforma protestante, sobre a aquela ele diz:
Desenvolvimento
3
IPB trata-se da Igreja Presbiteriana no Brasil fundada em 1862
são justamente estas diferentes vertentes teológicas que irão fomentar a maioria
dos confrontos entre eles, confrontos que na maioria das vezes eles usarão a
imprensa, ou seja, o jornal impresso como objeto de difusão destes confrontos. São
justamente estes confrontos que irão mostrar a heterogeneidade do grupo fundador
da IPI, do qual o Eber Ferreira4 irá declarar:
Estas diferenças irão tomar corpo após a morte do ver. Eduardo, um grande
conservador, pois aderiu ao liberalismo dizendo ele ser um liberalismo conservador.
E após a sua morte em 1923 surgem às tensões entre os conservadores mais
velhos e os liberais, o que será ainda mais notável durante a Era Vargas. Onde
havia uma tensa relação entre o governo Vargas e a imprensa, pois era controlada
pelo DIP, mas embora a historiografia busque negar a autonomia da imprensa no
Brasil, haviam revistas de caráter literário,como também jornais de cunho religioso
que circulava no Brasil. E foi justamente na Era Vargas que ocorre uma grave crise
da IPIB,pois a partir deste momento irão se intensificar os confrontos entre os
liberais e conservadores.Pois em 1938 cria-se um coligação conservadora tendo
como principal líder Bento Ferraz.Ao lado dele lideres da coligação conservadora
subscreveram uma plataforma e publicaram no Jornal O Presbiteriano em 15 de
Março de 1938 este jornal fora justamente criado pelos conservadores para se
oporem aos liberais.O jornal não era utilizado apenas para publicar suas posições
pessoais teológicas ,mas também para publicarem,opiniões que respondiam as
“ofensas dos liberais”,dentre os quais podemos destacar a figura de Themudo Lessa
e Othoniel Motta, líderes que estiveram a frente da segunda geração de
presbiterianos.Foram justamente estes lideres que estiveram á frente de muitas
confrontos teológicos e doutrinários, e dentre estes confrontos poderemos destacar
a questão da doutrina das penas eternas5,esta polemica se deu quando um aluno
recém formado do seminário presbiteriano é interrogado á respeito desta questão,
e ao responder ele mostra uma certa duvida.Esta declaração levou a Igreja ao
Sínodo Ordinário em 1938,para assim fazer uma revisão de profissão de fé.O que
levara a expulsão de Othoniel Motta,fruto de um velho problema entre ele e Bento
Ferraz. E um editorial de O Estandarte Themudo Lessa irá apontar o grave perigo
das ofensas pessoais dirigidas pelos conservadores, podemos ver esta declaração a
partir de um fragmento do Jornal O Estandarte:
4
Pastor da IPI do Brasil e professor Seminário Teológico em São Paulo, é graduado em Teologia e
história, pós graduado em Filosofia, Mestre em Ciências Sociais e doutorando em Historia pela UNESP,
Campus de Assis, São Paulo
5
Esta doutrina baseava-se em textos que dizia que o homem que não alcançasse a salvação estaria
sujeito a condenação eterna.
“A prudência e a caridade nos aconselham a
fugir do labirinto das invetivas, das ironias, das
reticências, dos sofismas, das provocações, da
desvirtuação do significado das frases, das insinuações
malévolas, das alusões e referências pessoais que
muitas vezes nada tem haver com a discussão de idéias
e princípios sem diminuir o adversário. Com isso nada
lucra a defesa de uma coisa boa ou má. No caso da
vertente serve apenas para desprestigiar a causa do
evangelho e atrair o desrespeito para com o ministério
sagrado. Mais do que tudo redunda em prejuízo para os
que se deleitam no cultivo desse gênero literário. Causa
tristeza e magua nos piedosos” (Themudo Lessa, Notas
e comentos, O estandarte, 1938, p.1)
Conclusão
Referências Bibliográficas
LIMA, Éber Ferreira Silveira. Protestantes em confronto: conservadores e liberais
na época de Vargas (1930-1945). São Paulo: Editora Pendão real, 2005.
BRIGGS, Asa, 1921. Uma historia da mídia: Rio Janeiro: Jorge Zahar Ed.2004.
SEPARADOS POR UM ATLÂNTICO DE IDEIAS: Cosmologias e
traduções culturais na América Portuguesa do Século XVI
Resumo
Introdução
outro personágem até então estranho para o primeiro, o qual não negava um interesse
na absorção do outro, só que segundo os seus costumes e práticas. Essa relação, por
exemplo, pode ser associada ao fato de os indígenas terem certo interesse de perceber
o missionário como seu pajé, traduzindo-o conforme o papel social do lider religioso na
aldeia.
A nebulosidade das fontes em revelar o ponto de vista do indígena é uma
constante. Essa relação de mediação cultural proposta pelos missionários permitiu
alguns apontamentos de como esse lado indígena pode se manifestar. Entretanto, o
problema da definição do universo de pertencimento das práticas culturais que o
missionário põe em circulação, ou, dito de outro modo, uma vez que a construção
simbólica do outro não é prerrogativa da cultura ocidental, será preciso construir uma
abordagem que, de algum modo, incorpore à análise o ponto de vista nativo.
Trabalhos apoiados no ponto de vista do “perspectivismo” proposto por Eduardo
Viveiros de Castro são apontamentos hipotéticos de como podemos perceber a
dinâmica cultural dos povos tupis com os missionários. O exemplo do Mármore e a
Murta – usado por Antônio Vieira para explicar o quão volúvel era a natureza daquele
gentio – e a inconstância da alma selvagem é um significativo avanço da
inteligibilidade do documento: a apropriação dos rituais católico-cristãos por parte do
índio e a relação de alteridade dos significados destes rituais é um exemplo de como a
apropriação e a ressignificação de práticas, signos e outros mecanismos de uma
cultura foi, pelo menos até certo ponto, uma real constante naquela vida de “mundos
numa mesma terra” (Viveiros de Castro, 2002).
Outro ponto que é interessante ressaltar é o de que, ainda segundo Viveiros de
Castro, muitos povos do continente americano compartilham do pressuposto de que a
humanidade é a “matéria primordial”, ou a forma originária de virtualmente todo ser
(Viveiros de Castro, apud Monteiro, 2006): do mesmo modo que concebemos o
substrato animal de nossa humanidade, o pensamento indígena concebe o substrato
humano dos seres do cosmos como condição universal, ainda que esta não possa ser
percebi da de maneira imediata. Esse pode ser considerado um importante filtro para
entender as representações do ponto de vista do indígena, pois os sentidos cosmogônicos
do indígena podem (ou não) estarem evidentes dentro dos relatos dos missionários, pois:
novo mundo via a necessidade de combate às religiões xamânicas, necessidade esta que
estava tanto entrelaçada a um dever material – o progresso e real ‘controle’ da colônia e da
sua extensão humana e natural – quanto sobrenatural – propagar a doutrina cristã a fim de
trazer mais adeptos para a religião e para seus representantes na terra: o rei e o papa.
Todo esse movimento se deve ao fato de que no Brasil não havia uma “religião pagã
única”, como entre os incas e os cultos mesoamericanos de outros povos. Os portugueses
do contato, até certo ponto, perceberam o sucesso da conquista espanhola, e a tomaram
como uma espécie de modelo a ser compartilhado no tocante à questão dos índios do
Brasil.
Por outro lado, como dito anteriormente, os indígenas mostraram-se dispostos
a aceitar essas doutrinas e construções messiânicas. Contudo, isso tudo tinha um
preço: as interpretações estavam associadas segundo os seus sentidos, executando-os
segundo suas práticas e termos. Essa prática fazia com que o missionário tivesse
interpretações possíveis segundo suas tradições9; essa relação começa a se
reconfigurar no decorrer dos contatos posteriores, possuindo outras características e
outros encontros (lembrando que o encontro é um conceito que deve ser
problematizado segundo o contexto/forma pelo qual se deu).
Inclusive quem descreveu – destaque para a nacionalidade; pertencia a qual
instituição eclesiástica etc. – também traz consigo características de uma ótica
diferenciadora, com perspectivas e interesses que muitas vezes podem ser singulares.
Tomando como exemplo disto, temos a ideia de que os cronistas associavam o
demônio como o estopim que alimentava as idolatrias ameríndias.
10
Considerações Finais
A construção da fonte no tocante a quem a produziu revela o valor por trás das
representações das práticas dos indígenas. Seja no campo das relações de mediação
cultural, seja no ponto de vista da tradução cultural, passando pelos planos teórico-
metodológicos da história cultural – como o de representação, por exemplo –, os
filtros metodológicos para discutir as relações de contato entre indígenas e europeus
são importantes mecanismos para o historiador que estuda esse período – e outros
também, ainda que trabalhe com outros imensuráveis contextos – que tem como
protagonista, para aquela época, um confuso e ‘selvagem’ espaço simbólico. Os
trabalhos como de Cristina Pompa sobre tradução cultural e o de Paula Monteiro sobre
mediação cultural são importantíssimos aportes teórico-metodológico dentro desse
leque de possibilidades da leitura do outro no viés religioso, problematizando desde
pequenos detalhes que pertencem ao cotidiano produzido durante as fontes (não em
seus mínimos detalhes, mas como articular aquilo que se produziu –
documentalmente falando - numa conjuntura espacial/temporal a partir destes aportes
teórico-metodológicos) até perceber o quão importante é entender a questão do
imaginário cosmológico de ambas as partes – como, em parte, propõe Viveiros de
Castro.
Em suma, a exigência de maior número de trabalhos no campo é uma
constante para qualquer tema historiográfico. No que diz respeito a essa nova história
indígena (seja ela no período colonial, imperial e contemporâneo), ainda temos muito
que avançar, principalmente na formação dos profissionais; é interessante formar
profissionais que possuam uma bagagem teórica que percorra entre a história e a
antropologia, permitindo um dialogo interdisciplinar mais próximo e um
desenvolvimento historiográfico mais rico. Estreitar o diálogo entre as duas áreas
humanas e dialogar com outras (como a sociologia e a filosofia, por exemplo) deve ser
uma constante neste debate.
Referências
BELLUZZO, Ana Maria Moraes de. O Brasil dos Viajantes. Rio de Janeiro, Objetiva,
2000.
SILVA, Aracy Lopez da. Mitos e cosmologias indígenas no Brasil: Breve introdução. In:
GRUPIONI, Luiz Donisete Benzi (org). Índios no Brasil. São Paulo, Globo, 2005.
Graduando em História pela Universidade Federal da Paraíba, sob orientação da Profª. Drª. Regina Célia
Gonçalves no grupo de pesquisa Estado e Sociedade no Nordeste Colonial.
2
Os trabalhos do John Manuel Monteiro (2001) e de Maria Regina Celestino (2010) são ótimas referências
para apreciar essas discussões sobre a nova história indígena.
3
Para Paula Monteiro, o termo “encontro” deve apresentar um caráter simbólico/metafórico para designar
um espaço (que não é físico), aonde o jogo das mediações vai sendo permanentemente feito e refeito (2006).
4
Utilizamos o conceito de ocidentalização formulado por Serge Gruzinski. Para ele, a ocidentalização não é,
de modo algum, um processo fixo. Ela reajusta continuamente seus objetivos. (...) a ocidentalização iniciada
no século XVI não estava à altura de suas ambições e era atormentada por interesses e objetivos
contraditórios, que representavam um obstáculo considerável para os projetos de integração à sociedade
colonial. (2003).
5
Essa discussão nasceu de um processo longo e bastante detalhado de debates dentro da Espanha, tendo
como desfecho principal a famosa disputa de Valladolid, ocorrida entre 1550 e 1551, no qual o imperador
Espanhol, em resposta às críticas da igreja e a violência do desbravamento espanhol nas Américas, só dava
continuidade nas conquistas após o desfecho do debate entre os teólogos Bartolomeu de Las Casas e
Sepúlveda; debate esse que discutia a relação da humanidade indígena: se este possuía alma, ou seja, e
consequentemente, se poderia ser escravizado segundo as leis da escravidão por natureza de Aristóteles ou
não (TOSI, 2003).
6
Segundo Aracy Lopez da Silva, cosmologias são teorias do mundo. Da ordem do mundo, do movimento no
mundo, no espaço e no tempo, no qual a humanidade é apenas um dos muitos personagens em cena.
Definem o lugar que ela ocupa no cenário total e expressam concepções que revelam a interdependência
permanente e a reciprocidade constante nas trocas de energias e forças vitais, de conhecimentos, habilidades
e capacidades que dão aos personagens a fonte de sua renovação, perpetuação e criatividade. Na vivência
cotidiana, essas concepções orientam, dão sentido, permitem interpretar acontecimentos e ponderar decisões.
São, de modo sintético, expressas com clareza exemplar através da linguagem altamente simbólica da
10
dramaturgia dos rituais. Música, gestualidade estereotipada mas sempre criadora, ornamentos corporais mais
ou menos exuberantes, entre outros recursos, permitem o contato com outras dimensões cósmicas que aquela
habitualmente ocupada pelos humanos e com momentos outros do mundo e do processo da vida (e da morte).
(In: GRUPIONI, 2005, p. 75.)
7
As representações, segundo Roger Chartier (1990), são sempre determinadas pelos interesses dos grupos
que a forjam.
8
Acreditavam-se, como nos mostra Sérgio Buarque em Visão do Paraíso (2002), que no continente
americano se encontra o paraíso terreal, produzindo interpretações e visões daquele mundo de acordo com
cada experiência colonizadora. No caso Português, por exemplo, o mito de São Tomé revela a ideia de que os
apóstolos haviam se espalhado no restante do mundo para fim de propagar a fé cristã. E este mito foi tratado
de forma diacrítica quanto a outros mitos Tupinambá (POMPA, 2003).
9
Para Maria Regina Celestino, o conceito de tradição (...) tem sido repensado, prevalecendo, hoje, o
pressuposto de que ela sempre se modifica ao ser transmitida. Tudo que se transmite é recebido conforme a
maneira do recebedor, o que implica em valorizar mais a apropriação do que a transmissão.
10
Imagem retirada do livro “Andanças pelo Brasil colonial” (2008), de Jean Marcel Carvalho França &
Ronald Raminelli.
1
Dávila Andrade
Sheila Accioly
Resumo:
A bebida ritual conhecida como ayahuasca tem sido utilizada ritualísticamente por
povos amazônicos desde tempos pré-colombianos. Das práticas xamânicas das
florestas equatoriais da América do Sul, a ayahuasca passou a ser utilizada por
populações não-índias no século XX, tendo como referência mais conhecida a
doutrina do Santo Daime. O artigo propõe uma análise inicial acerca da
reconfiguração daimista do milenar culto xamânico vegetalista e da consequente
divulgação global de elementos da identidade cultural indígena amazônica. Tece,
ainda, sob uma perspectiva compreensiva, considerações sobre os deslocamentos
resultantes de contínuos fluxos de hibridismo e sincretismo, sobre as movências
discursivas e sobre o ethos nômade, forjado nos trânsitos entre tradição e
modernidade.
Introdução
A ayahuasca1 é uma bebida ritual presente entre muitos povos indígenas da
Amazônia central. O uso tribal remete ao xamanismo, às práticas de cura e aos
mitos de origem dos grupos sociais que a produzem e consomem. A referência,
milenar, remonta às origens da religiosidade tribal. O uso sagrado das plantas de
2
poder ou de substâncias enteógenas para fins ritualísticos ou religiosos é
referenciado, desde tempos remotos, nas mais diferentes culturas. A experiência do
sagrado ou ligação com o divino manifestado no sacramento mostra-se como algo
absolutamente diferente do profano, hierofania: algo de sagrado se nos revela
(ELIADE, 2008, p. 17).
Antes restrita aos povos da floresta e periferias de capitais nortistas, a
bebida aportou nos meios urbanos de outras regiões do Brasil há cerca de 30 anos,
“descoberta” no Acre por andarilhos da chamada contracultura dos anos 1970, em
plena onda de misticismo, a caminho de Machu Picchu. Da Amazônia, saiu para
grandes centros urbanos como Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, mais conhecida
na forma do Santo Daime, impelido pela adesão de muitos artistas nacionalmente
conhecidos, como Lucélia Santos, Ney Matogrosso e Maitê Proença.
Ao longo do tempo, os cultos ayahuasqueiros passaram a disputar espaço no
cenário religioso nacional, posteriormente redimensionando sua abrangência e
alargando suas fronteiras para além do território brasileiro, como nos casos mais
notórios do Santo Daime e da União do Vegetal. Atualmente, o chá é consumido
ritualisticamente em 21 países, em quatro continentes. Além disto, pesquisas
registram entre 50 e 70 comunidades indígenas produtoras e consumidoras de
ayahuasca, concentradas, principalmente, nas florestas amazônicas do Brasil, Peru,
Bolívia, Equador, Venezuela, Colômbia, Guiana Francesa e Suriname (STEWARD,
1949; BOLSANELLO, 1995, p. 40). Interessante notar que apenas no Brasil
emergiram religiões de matriz vegetalista institucionalizadas e adaptadas à
realidade urbana, fora do contexto nativo de uso dos povos da floresta. Mesmo
assim, enquanto no Peru, por exemplo, a ayahuasca encontra-se, hoje, no patamar
de patrimônio imaterial do povo daquela nação, no caso brasileiro, o que assegura
o uso ritual por populações urbanas está garantido apenas na lei que institui a
liberdade de culto. No Brasil, o projeto de tombamento que, inicialmente, abarcaria
apenas as regiões onde foram fundadas as doutrinas, está em andamento e
possível ampliação.
A tradição vegetalista brasileira nasceu na região amazônica, de onde se
originam as espécimes botânicas utilizadas na produção da bebida, em um contexto
de uso popular de plantas enteógenas, vastamente empregadas pelas populações
3
locais, costume possivelmente inflenciado por pueblos andinos que, por sua vez,
herdaram da cultura incaica (RIBEIRO, 2005). A ayahuasca, à qual são atribuídos
poderes transcendentais, é mais um elemento amazônico que, na lógica da
globalização, através de processos de expansão de algumas vertentes doutrinárias,
chega à Europa, Ásia, África e Estados Unidos. A religião cabocla figura como
difusora de uma identidade cultural claramente brasileira, afirmada nos patrimônios
materiais e imateriais, além da língua portuguesa.
O artigo em tela, como pesquisa em andamento, discute, em caráter
preliminar, a ressurgência e reconfigurações da identidade indígena através de
diálogos e alianças com comunidades e lideranças daimistas. Tece, ainda, sob uma
perspectiva compreensiva, considerações sobre os deslocamentos resultantes de
contínuos fluxos de hibridismo e sincretismo, sobre as movências discursivas e
sobre o ethos nômade, forjado nos trânsitos entre tradição e modernidade.
Mapa da ayahuasca
Fonte: http://www.ayahuasca.com/spirit/primordial-and-traditional-culture/what-
indigenous-groups-traditionally-use-ayahuasca/3
No berço acreano, por exemplo, além do uso indígena, tem-se, nos meios
urbanos, que a ayahuasca é cultura de classes populares, repassada entre
familiares. Neste contexto nortista, a maior parte dos adeptos são pessoas pobres
ou de classe média. Muitos jovens acreanos desprezam a tradição, que consideram
“coisa de gente velha”. Já no Sul e Sudeste, ao contrário, jovens formam a maioria
dos adeptos dos cultos vegetalistas, vistos como movimentos transgressores e
contraculturais. Pois, no bojo do seu discurso contra-hegemônico, a contracultura
trouxe, na busca por estéticas alternativas, a revalorização de antigos saberes
(ROSZAK, 1972, p. 33) e a intensificação dos trânsitos entre sagrado e profano
5
Ethos nômade
Aliança Yawanawá
Os Yawanawá, da etnia Pano (que significa povo da ‘queixada', denominação
local para os javalis, caça abundante na região, próximo ao município acreano de
Tarauacá), passaram por um período de dominação branca, primeiro pelos
seringalistas, depois por missionários protestantes norte-americanos, expulsos pelo
cacique e pajé Biraci Brasil (Nixiwaca), responsável pelo revigoramento da cultura,
a partir da construção da aldeia Nova Esperança, em 1982, reempoderando as
forças de liderança pela união de fé e política. O próprio Biraci conta que
Não foi a primeira vez que daimistas foram chamados a auxiliar retomadas
culturais indígenas em território acreano. Em 1993, um grupo liderado por Wilson
Carneiro de Souza, patriarca da Colônia Cinco Mil, saiu das proximidades de Rio
Branco (AC) rumo ao município de Boca-do-Acre (AM), para realizar um trabalho
espiritual dedicado à cura do cacique dos Apurinãs, pois o pajé da tribo havia
10
morrido sem repassar seus saberes, posto que os jovens, encantados com a cultura
branca, não se interessavam pelos valores tradicionais. Na avaliação de Bolsanello
(1995, p. 31),
Pluralismo e hibridismo
Há estudos que discutem a apropriação de referenciais indígenas pelos
cultos umbandistas, notadamente os do catimbó, como é o caso do culto da Jurema
(SALLES, 2010). Por outro lado, o uso urbano da ayahuasca tem resultado em
religiosidades híbridas e múltiplas, seguindo uma tendência apontada pelo Censo
2010 do IBGE (2010) e pela antropóloga Beatriz Labate (apud ARRAES, 2010), que
confirmam o diálogo entre práticas vegetalistas e tradições “orientalistas,
hinduístas, umbanda e terapias humanísticas como meditação, yoga, expressões
artísticas diferentes”. Como um dos resultados destes diálogos, surge o
umbandaime, fusão do Daime com umbanda, incorporando o uso ritual
da ayahuasca.
12
Outra liderança daimista, Leo Artese, foi dos primeiros a levantar a bandeira
do xamanismo em moldes indígenas, realizando jornadas xamânicas concorridas.
Seus hinos são fartos de referências:
Reflexões finais
Referências
ARTESE, Leo. Águia Dourada. In Hinário da Lua Cheia, n. 61. s/d-a. Disponível
em:
http://soundcloud.com/retrocoli/a-guia-dourada-l-o-artese. Acesso em: 03 mar
2013.
______. Canto das três medicinas. In Hinário Curandeiro, s/d-c. Disponível em:
http://soundcloud.com/marcelo-freitas-1/l-o-artese-medicinas-sagradas. Acesso
em: 03 mar 2013.
BARTH, Fredrik. Ethnic groups and boundaries. Long Grove, Illinois: Waveland
Press Inc., 1969.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
______. Indigenous and mestizo use of ayahuasca. An overview. In: Santos, R.G.
The ethnopharmacology of ayahuasca, 2011: 1-21 Research Signpost,
Trivandrum. Disponível em
http://www.trnres.com/ebook/uploads/rafael/T_12998349951%20Rafael.pdf.
Acesso em: 20 mar 2013.
MARQUES, Ge. Tribo do Astral. In Hinário Reinado do Sol, n. 99. s/d. Disponível
em http://www.escoladarainha.org.br/reinado-do-sol/204-099-tribo-do-astral.
Acesso em: 22 mar 2013.
SOUZA, Paulo Roberto Silva e. Quem chamou foi Yawá. In Hinário Nova Aliança,
julho de 2009. Disponível em:
http://www.nossairmandade.com/hymn.php?hid=2916. Acesso em 02 mar 2013.
1. Bebida ritual, também denominada yagé, caapi, huasca. Palavra da língua quéchua. De acordo com
Luna (1986, p. 57), aya quer dizer ‘pessoa morta, “alma”, “espírito” e waska significa “liana”, “cipó”.
Assim, poder-se-ia traduzir ayahuasca como “liana dos espíritos”.
2. O termo “enteógeno” significaria, literalmente, “manifestação do interior divino”. É um neologismo
proposto por investigadores como Gordon Watson, que, na década de 70, estudaram estados alterados de
consciência e plantas de poder (FERREIRA; GNERRE; POSSEBON, 2011, p. 60).
18
3. Na área vermelha do mapa, todas as tribos usam a ayahusca. A área rosa demarca o território de
diversas tribos vegetalistas da floresta amazônica. A bebida é usada também, tanto fora quanto dentro
deste traçado, por povos mestiços e brancos, notadamente nas cidades peruanas de Iquitos e Pucallpa.
Além de tribos esparsas, como os Tsachila e os Chachi no Equador; os Embera e os Choco colombianos.
[tradução das pesquisadoras]
4. P. 15 [paginação atribuída pelas pesquisadoras]
5. A secreção produzida pelo kambô (Phyllomedusa bicolor) é aplicada como vacina, através de discretas
lesões na pele, produzidas artificialmente.
6. Pó medicinal para inalação, feito de raspas vegetais.
MISSÕES PROTESTANTES NA ALDEIA INDÍGENA PATAXÓ HÃ-HÃ-HÃE
RESUMO
INTRODUÇÃO
1
Licenciada em Historia pela universidade Estadual de Feira de Santana 6º semestre
participante do CPR( Campo de pesquisa da Religião). Bolsista do PIBID- Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência)
2
Depoente Midian Oliveira Reis Indígena Pataxó-Hã-Hã-Hãe.
não desistem por que: - a Bíblia diz que a missão dos cristãos é divulgar a palavra
de Deus pelo mundo3.
3
Depoente Midian Oliveira Reis, 18 anos Indígena Pataxó-Hã-Hã-Hãe missionária na Igreja Assembleia
de Deus.
decidiu dar a madeira para a construção. Na inauguração eles tentaram derrubar
entrando em conflitos, e alguns desistiram de frequentar a igreja, mas os cultos
continuaram. Então quando viram que os Assembléianos não iriam desistir não
insistiam mais.
4
CONSTRUÇÃO ASSEMBLEIA DE DEUS ALDEIA SÃO VICENTE. Disponível em: http:/www.
youtube.com/watch?v=ZD8Nmo_ghws. Acesso em 16 de janeiro de 2013.
5
Valeriano Ferreira Lima, 76 anos Pataxó-hã-hã-hãe fundador da Metodista Weslyana
dificuldades de aceitar o evangelho, pois dizem que quando o índio se converte ao
protestantismo perde sua cultura.
A partir dai a igreja decidiu parar com as obras sociais por que o verdadeiro
interesse estavam nas doações e não na palavra de Deus diz o Presbítero
Valdivino. Segundo ele essa decisão foi tomada porque o intuito da igreja é
aproximar a pessoas por causa de Tupã que é Deus e não por interesse em bens
matérias. De acordo com Valdivino os verdadeiros interessados continuam na
igreja mas outros só frequentava interessados só vão em ocasiões especiais como
por exemplo: aniversário do templo, festa dos jovens etc.
Considerações Finais
6
Presbítero Valdivino Timóteo Cardoso Pataxó 62 anos fundador da Assembleia de Deus
Pahae Tupã.
7
Monica vieira de Azevedo, 30 anos Indígena Pataxó-hã-há-hãe membro da Igreja Metodista
Weslyana
Ambas as denominações enfrentaram e enfrentam dificuldades para manter
a denominação na localidade, o trabalho é árduo mais os missionários indígenas e
brancos continuam pois eles tem o propósito de evangelizar todos na Aldeia. Este
trabalho é uma preliminar, pois ainda encontra em andamento no inicio da
pesquisa. Pretendo ver as versões das indígenas que não apoiam a presença dos
evangélicos na aldeia e sim finalizarei a pesquisa.
Referencias:
ALMEIDA, Vasni de. A Igreja metodista no Brasil. In: SILVA, Elizete de (org.).
SANTOS, Lyndow Araujo dos, (org.). ALMEIDA, Vasni de. Fiel é a Palavra
UEFS/editora. Ed.2011.
Vídeos:
Resumo
Com cultos muito concorridos e entusiásticos, leitura de textos bíblicos, uso de
linguagem e músicas populares, o pentecostalismo tornou-se, na segunda metade do
século XX, o movimento religioso de grande expansão no mundo ocidental. No Brasil,
o desenvolvimento do protestantismo foi constante durante todo o século XX e o
número de protestantes está ainda em contínuo aumento, devido, sobretudo, ao
grande incremento que tiveram as igrejas pentecostais nas últimas décadas por meio
da mídia e da divulgação do movimento. Há três tipos principais de protestantismo no
Brasil: Protestantismo de imigração: começou em 1823 com a vinda dos colonos
protestantes, na maioria alemães, mas que ficou limitado às regiões de cultura alemã;
Protestantismo trazido pelos missionários estrangeiros: em geral veio através dos
anglo-saxões, a partir de 1853. Também nesse caso os resultados foram limitados.
Protestantismo pentecostal: iniciado em 1910, começou a ter uma difusão maior a
partir de 1950, com o nascimento das primeiras denominações brasileiras. Trata-se de
uma verdadeira “explosão”, como se constata nos últimos 30 anos. Durante metade
do século XX, o protestantismo no Brasil observou o inicio do sucesso das igrejas
pentecostais que pode ser, em parte, explicado também pelas diversas crises pelas
quais passaram as igrejas históricas e tradicionais, especialmente a católica e será
sobre esse movimento que trataremos nesse trabalho. Algumas características dele
são claras: dar muita importância a avisos, revelações e sonhos que influenciam o
comportamento futuro e as escolhas que seus adeptos fazem. A religiosidade que
propõem dá muita importância ao aspecto afetivo, à sugestão, às emoções.
Interpretam com muita facilidade os acontecimentos como intervenções milagrosas de
Deus, mesmo assim, essas igrejas estão em constante crescimento e se proliferam
dando origem a outros movimentos e congregações. O que nos leva a refletir: Como
essas igrejas ganharam tanto espaço? Como se proliferaram com tanta rapidez no
Brasil? Qual os espaços que a envolve e as identidades que se formam a partir dela?.
Dessa forma, a pesquisa tem como objetivos analisar a influência do protestantismo
no século XX na mentalidade e na elaboração de novas identidades no Brasil e na
construção de novos espaços, assim como, também analisar os principais meios que
possibilitaram sua proliferação. Para tanto nos muniremos CERVEIRA (2008),
GOLDMAN (1972), CAIRNS (1988) e MENDONÇA (2008) que trataram de como se deu
esse movimento e sua repercussão no Brasil e no mundo. Dessa forma, traremos uma
pesquisa que mostrará a importância da atuação e influencia do pentecostalismo na
mentalidade dos brasileiros.
Introdução
O termo "evangélico" na América Latina designa as religiões cristãs originadas
ou descendentes da Reforma Protestante Europeia do século XVI. Está dividido em
duas grandes vertentes: o protestantismo tradicional ou histórico, e o
pentecostalismo. Os evangélicos que hoje representam 17% dos brasileiros, ou mais
de 32 milhões de pessoas, vem tendo um crescimento notável (no Censo de 1991
eram apenas 9% da população - 13,1 milhões). As denominações pentecostais são as
responsáveis por esse aumento.
Antes de adentrarmos no protestantismo no Brasil, julgamos
importante dar uma definição de protestante. Cerveira afirma
que “Em suma, o protestante é o homem que se sente liberto
por Cristo, segue exclusivamente a Bíblia “como única regra de
fé e prática”, cultiva uma ética racional de desempenho para
contribuir para a glória de Deus e vive moralmente segundo os
“10 mandamentos” e os padrões da moral burguesa vitoriana.”
(Mendonça, 2008, p. 51)
O Pentecostalismo
Até 1950, o protestantismo de matriz pentecostal estava reduzido, no Brasil, a
três organizações religiosas de matriz americana: Assembléia de Deus, Congregação
Cristã do Brasil e Igreja do Evangelho Quadrangular.
A partir dessa data, começou a se impor um pentecostalismo autônomo, com
matriz brasileira e independente do exterior. As quatro Igrejas que mais se impuseram
foram:
A Igreja Brasil para Cristo, fundada em 1956 por Manoel de Mello,
substituído depois da morte pelo filho, Paulo Lutero de Mello e Silva;
A Igreja Deus é Amor, fundada em 1962 por Davi Miranda;
A Igreja Casa da Bênção, presumivelmente fundada em 1974;
A Igreja Universal do Reino de Deus, fundada em 1977 por Edir Macedo.
O sucesso das igrejas pentecostais pode ser, em parte, explicado também
pelas diversas crises pelas quais passaram as igrejas históricas e tradicionais,
especialmente a católica.
A migração de fiéis da Igreja católica para as evangélicas atingiu 64% de todos
os que ultimamente a elas aderiram. Parece haver algo nas Igrejas tradicionais que
faz com que as pessoas não se sintam mais atraídas por elas.
A seguir, neste artigo, apresentamos duas destas igrejas pentecostais.
A Assembléia De Deus
Foi a primeira a originar-se do pentecostalismo. Nos primeiros anos do século,
formaram-se comunidades (ou congregações) pentecostais não organizadas em
movimentos. Foi em 1914 que, em Hot Spring (EUA), reuniram-se em assembléia
geral centenas dessas comunidades pentecostais, até então independentes, e seus
pastores decidiram formar uma só entidade que passou a ser chamada de “Assembléia
de Deus”.
Gunnar Vingren e Daniel Berg, suecos, foram os primeiros missionários dessa
Igreja que vieram ao Brasil. O primeiro, na Suécia, pertencia à Igreja batista mas,
quando foi para os Estados Unidos, recebeu o batismo no Espírito Santo e o dom das
línguas, conforme suas próprias palavras. Gunnar tinha a viva sensação da presença
de Deus dentro de si.
Os membros do movimento recém-formado, exatamente como Paulo e
Barnabé em Antioquia, sentiram-se chamados a anunciar Cristo entre as nações.
Durante uma reunião, Gunnar e Daniel ouviram insistentemente, em língua estranha,
a palavra “Pará”. Será que se tratava do lugar para onde o Espírito Santo queria
enviá-los? Consultaram vários mapas e descobriram que a palavra indicava um Estado
no Brasil, na Amazônia. E foi para o Pará que, em 1910, vieram para anunciar a
mensagem pentecostal.
Pelo que foi dito até aqui e pelo que se encontra nos depoimentos dos
primeiros missionários da Assembleia no Brasil, tornam-se evidentes algumas
características desse movimento: dar muita importância a avisos, revelações e sonhos
que influenciam o comportamento futuro e as escolhas que seus adeptos fazem.
A religiosidade que propõem dá muita importância ao aspecto afetivo, à
sugestão, às emoções. Interpretam com muita facilidade os acontecimentos como
intervenções milagrosas de Deus. Isso pode ser visto na narração que Daniel Berg faz
de algumas circunstâncias a respeito de sua viagem ao Brasil: “Deus confirmou que
devíamos ir para o Pará.” Se ainda houvesse qualquer dúvida, esta desapareceria dias
mais tarde, quando o irmão Vingren, durante um de seus longos passeios de
meditação, ouviu claramente uma voz que lhe falava ao ouvido, dizendo: “Se forem,
nada lhes faltará”.
A Congregação Cristã Do Brasil
A Congregação Cristã do Brasil é outro movimento do grupo pentecostal,
fundada pelo italiano Luigi Francescon, imigrante nos Estados Unidos. Antes de aderir
ao movimento pentecostal, o fundador foi presbiteriano e batista. Suas atividades
religiosas começam com a organização de comunidades entre os colonos italianos dos
Estados Unidos.
Em 1909 e 1910, fez uma viagem à Argentina e ao Brasil e aqui fundou sua
primeira congregação pentecostal, em Santo Antônio da Platina (Paraná), sempre
entre imigrantes italianos. Até 1935 a Congregação Cristã do Brasil ficou restrita às
pessoas dessa origem, só em seguida abriu-se a outros.
A Congregação Cristã do Brasil apresenta algumas características que a
distingue de todas as Igrejas de matriz pentecostal:
Há menos participação emotiva, menos agitação em suas reuniões;
Seus membros evitam o título de pentecostais e também a colaboração
com outras correntes do protestantismo;
São muito severos quanto ao comportamento das mulheres e sua
apresentação exterior, não permitindo roupas curtas e que cortem os cabelos;
Não gostam dos membros que se sobressaem; preferem os humildes e
até os pouco instruídos, pois dizem que Jesus pregou a humildade e a simplicidade;
Chamam o batismo no Espírito Santo de “promessa do Espírito Santo”;
Não gostam de manifestações, tais como: pregação nas ruas, pelo rádio
ou pela TV.
Sua prática se limita aos seus cultos e sua missão consiste em convidar
parentes, amigos e outras pessoas que encontram nas ruas, no trabalho e em
viagens, para que frequentem o culto em suas igrejas.
Muitas denominações do ramo pentecostal têm facilidade em interpretar, como
intervenções divinas ou até mesmo milagres, os fatos comuns de suas vidas.
Retomando, o protestantismo histórico no fim do século XX, se defrontou com o
movimentos carismáticos que arrebataram muitos fiéis, por sua maneira diferente de
agir e congregar. Assim como os movimentos carismáticos surgidos dentro da Igreja
Católica. Os carismáticos fizeram frente às igrejas tradicionais, protestantes e
católicas, ao conquistarem grande número de fiéis, identificados com o movimento.
Sendo assim cabe afirmar que “O último e grande desafio às igrejas protestantes
históricas nesse período foi o avanço do movimento carismático no interior delas
mesmas gerando divisões que produziram as chamadas igrejas “renovadas”. O
neopentecostalismo, como se sabe, provocou verdadeira devastação nessas igrejas.”
(Mendonça, 2005, p. 65)
É, nesse período também, que as igrejas conseguem maior espaço dentro da
sociedade brasileira, num cenário novo no país e na América Latina. A afirmação a
seguir, ilustra este momento:
Na América Latina dois acontecimentos iriam centralizar o grande
debate em torno da situação social, econômica e política. A
ideologia desenvolvimentista seria questionada pela tese da
dependência elaborada por Fernando Henrique Cardoso e Enzo
Faletto (Dependência e Desenvolvimento na América Latina,
1965-67). A teoria se completava com a obra de Celso Furtado,
já citada, sobre as origens do subdesenvolvimento. Nesse ponto,
tanto alguns setores das igrejas protestantes quanto da Igreja
Católica avançaram mais ou menos na mesma direção, isto é, no
sentido de envolver as igrejas na luta pela conquista de uma
sociedade mais justa diante de um cenário aberto a profundas
mudanças. (Mendonça, 2005, p. 64)
Considerações finais
Como discorremos ao longo do texto, o protestantismo surgido séculos atrás,
ao chegar ao Brasil encontrou um cenário muito adverso. Uma cultura embasada no
catolicismo e uma postura social patriarcalista escravista, vamos colocar assim.
Contudo os movimentos foram ganhando força e forma com o passar dos anos, nos
territórios nacional e continental. Sendo hoje, um movimento com inúmeros adeptos
no Brasil, que vem aumentando a cada dia, de acordo com os censos, principalmente
graças aos movimentos pentecostais e neopentecostais.
Seguindo isto, podemos utilizar da afirmação de Cerveira, ao dizer que “Ser
evangélico, portanto, é uma identidade social e historicamente elaborada. As diversas
denominações brasileiras, mesmo autóctones, foram influenciadas, de maneiras
diferentes, por diversos movimentos históricos do protestantismo internacional.”
(Cerveira, 2008, p. 47). Nesta afirmação, Cerveiro aponta dois aspectos do
“evangélico” no Brasil. Primeiro e inegável, é a questão de identidade social, elaborada
historicamente, como demonstramos anteriormente. Segundo, a influência dos
movimentos históricos internacionais do protestantismo, como congressos e reuniões,
que afetaram os segmentos nacionais.
As igrejas protestantes, a partir de meados do século XX, com o início de sua
expansão, passam a exercer um papel na questão social do Brasil. Assim como
passam a serem responsáveis por uma nova postura e mentalidade na sociedade
brasileira.
Referências bibliográficas
CAIRNS, Earle E., O Cristianismo através dos Séculos: Uma História da Igreja Cristã
(São Paulo: Vida Nova, 1988).
DOWLEY, Tim, ed., Atlas Vida Nova da Bíblia e da História do Cristianismo (São Paulo:
Vida Nova, 1997).
GAY, Peter. A Paixão Terna. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
GONZÁLEZ, Justo L., Uma História Ilustrada do Cristianismo, 10 vols. (São Paulo: Vida
Nova).
TUCKER, Ruth A., “... Até aos Confins da Terra”: Uma História Biográfica das Missões
Cristãs, 2ª ed. (São Paulo: Vida Nova, 1996).
VESTINDO UMA NOVA RELIGIÃO: A INDUMENTÁRIA COMO SÍMBOLO DE
ADESÃO A IDENTIDADE ASSEMBLEIANA.
1. Considerações Iniciais
A fiel afirma que não foi pressionada de forma direta, mas desejava se
sentir igual a todas as outras e obtiver destaque no grupo, participando dos grupos de
jovens e adoração, ou seja, mesmo depois de convertida, não podia participar
ativamente do cotidiano da Igreja por se vestir de maneira diferente. O desejo de ser
aceita e ter os mesmos privilégios que as irmãs de fé, fez com que ela mudasse sua
aparência.
Portanto, no jogo entre as aparências, a relação entre aquela que se
converte e logo muda sua forma de trajar e aquela que tarda a se adaptar a um novo
hábito indumentário, revela algumas práticas e relações sociais dentro da Igreja. Estas
vão para além de uma mudança espontânea pelo trabalho de Deus, na vida da nova
convertida como muitas de nossas entrevistadas afirmam. É também uma maneira de
ser aceita dentro do grupo. Sobre isso Silva (2012) fala das relações de poder
existentes na construção de identidades, pois para ele “a afirmação da identidade e a
marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e de excluir” (p.82).
Isso porque “traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente
situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais.” (p.81).
Acreditamos que a busca pelo consenso, pelo equilíbrio no grupo, e pela
autoafirmação de uma nova identidade é o que leva a nova convertida a investir na
transformação de suas vestes, deste modo, observemos a fala da fiel Edina Ferreira9,
Você é um novo convertido, o pastor ele fala lá na pregação
dele, ele mostra as passagens da bíblia, mas ele nunca chega
pro novo convertido e diz, você tem que mudar sua roupa se
não você não fica na nossa Igreja. Em nenhum momento ele
chega e fala isso. Você vai mudando conforme você vai sentindo
a necessidade. Entendeu? Porque todo mundo ta ali vestido de
saia, todo mundo ta ali vestido com roupa de manguinha, e só
você vai ta com uma camiseta e com uma bermuda, ou com
uma calça. Você passa a se sentir mal. Poxa se eu faço parte da
membrezia e só eu sou diferente, porque que só eu sou
diferente. Entendeu? Por isso que você vai transformando.
Segundo a fiel, o pastor não obriga a nova convertida a mudar suas vestes,
mas prega sobre a necessidade de mudança para concretizar a conversão e obter a
salvação, tanto que vai mostrando os textos bíblicos, que segundo ele, pregam
importância do trajar decente. Ela diz ainda que a nova convertida vai mudando
porque vê todas as outras mulheres do mesmo jeito, decentes de acordo com a igreja,
e segundo ela, a fiel que estiver diferente vai se sentir constrangida por pertencer ao
grupo e ser a única que se veste diferente do que é pregado como doutrina.
Crane (2006) destaca que “Em geral à medida que as redes sociais do
indivíduo se expandem, ou que seus contatos se tornam mais variados, ele é exposto
a novas formas de cultura e torna-se propenso a adotá-las” (p.33). Com base nisso as
lideranças masculinas da Instituição também acreditam que quando a mulher passa a
conviver na Igreja, com os membros da instituição, e através dos próprios estudos
realizados em grupo ou individualmente, a mudança na maneira de ver o mundo vai
acontecendo gradativamente, já à mudança na forma de vestir é mais rápida e
evidente, para se tornar visivelmente igual as “irmãs” de fé, é o que vem afirmar
ainda o co-pastor da Igreja, Edson Moura10:
4. Considerações Finais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CRANE, Diana. A Moda e seu papel social: Classe, Gênero e identidade das
roupas. Tradução: Cristiana Coimbra. São Paulo: Editora Senac, 2006.
1
Aluna do Mestrado Acadêmico em História da Universidade Estadual do Ceará, com a pesquisa intitulada
“O Militar de Cristo Todo Mundo Conhece Pelo Uniforme”: A indumentária da Neoconvertida
Assembleiana, Milhã- CE(1990-2011). Bolsista FUNCAP- Fundação Cearense de Apoio ao
Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
2
A cidade de Milhã é localizada no Sertão Central do Ceará, situada a margem direita do rio denominado
Capitão Mor, e distante cerca de 301 km da capital Fortaleza. Conta com uma população de
aproximadamente 13.086 mil habitantes, e uma área de 502, 036 km22. A cidade é povoada por pequenos
agricultores, comerciantes e criadores de espécies diversas, tendo na pecuária a principal fonte de renda e
desenvolvimento econômico. O lazer da cidade se constitui basicamente de shows de forró que acontecem
em pequenos clubes e bares. O município é constituído pela sede (Milhã) e mais 05 distritos, são eles:
Carnaubinha, Monte Grave, Baixa Verde, Ipueiras, e Barra. Fonte IBGE. Disponivel em www.ibge.org.br.
Acesso em: 20/03/2013.
3
Com relação a este assunto, o fieis legitimam a necessidade do uso dessas palavras de aceitação, através da
Carta aos Romanos, capítulo 10, versículo 08 e 09, segundo o qual, “Mas, afinal o que diz a Escritura? A
palavra esta perto de você, em sua boca e em seu coração. Isto é: a palavra que nós pregamos. Pois se você
confessa com sua boca que Jesus é o senhor, e acredita com seu coração que Deus o ressuscitou dos mortos,
você será salvo”.
4
Este artigo faz parte de uma pesquisa maior, intitulada “O militar de Cristo Todo Mundo Conhece pelo
Uniforme: A indumentária da Neoconvertida Assembleiana de Milhã- CE(1990-2011). Nesta tomamos a
indumentária como objeto, e as mulheres da Igreja Assembleia de Deus, como sujeitos da pesquisa.
Buscamos portanto entender como a maneira de trajar dessas mulheres é algo diferenciado, marcado pelas
ideologias religiosas do grupo e pela busca de uma nova identidade. Mudar o estilo indumentário significa
ainda uma nova relação com o corpo, com os espaços e com os hábitos. Já que além da aparência as mulheres
são cobradas por seu comportamento, onde deve dar exemplo de conduta, discrição e respeito para com as
legitimadas submissões que existem dentro do corpo da Igreja. A Assembleia de Deus de Milhã, surgida na
cidade desde meados de 1960, é uma das mais tradicionais no que se refere a conduta feminina. A hierarquia
masculina é visivelmente percebida, tendo credibilidade através de um forte fundamentalismo bíblico. Para a
realização desta pesquisa nos pautamos em fontes orais, onde realizamos entrevistas como lideranças
masculinas da Igreja e principalmente com as mulheres da congregação. Utilizamos ainda fotografias, atas de
conversões da Igreja, e algumas revistas lições bíblicas trabalhadas nas escolas dominicais.
5
Para compreendermos toda a simbologia empreendida no ritual do batismo utilizaremos as reflexões
realizadas por Eliade (1996). Segundo o autor, para o homem religioso a natureza não é puramente natural,
ela é carregada de valores, exprimindo sempre algo relacionado ao transcendente. No que se refere ao
batismo das águas o autor nos chama a compreender melhor os valores religiosos que a água possui, a fim de
perceber sua estrutura e sua função simbólica. Segundo ele, “As águas simbolizam a soma universal das
virtualidades: são fonsetorigo, o reservatório de todas as possibilidades de existência; precedem toda forma e
sustentam toda criação”. Os rituais da água estão presentes na ideia de morte e nascimento simbólico, o
contato com a água proporciona regeneração, fertiliza e multiplica o potencial da vida, dissolve (no caso
assembleiano podemos pensar que a água dissolve os pecados daquele que se converte) e em seguida cria um
no ser (com relação a Assembleia de Deus, esse novo ser é considerado um renascido em Cristo). O batismo,
é pois, uma morte iniciática, faz parte de um rito de passagem. (CF. ELIADE, 1996)
6
Daniel Roche utiliza o termo “Metamorfose” quando se refere à indumentária como uma possibilidade de
transformar a aparência e assumir um novo personagem a cada vez que se troca de roupas.
7
Trecho retirado da entrevista com Marcos Pereira (Nome fictício)- 64 anos, Pastor da Assembleia de Deus
até fins do ano de 2010. Entrevista realizada no dia 10/09/2010.
8
Marcia Pinheiro (Nome Fictício), 26 anos. Estado civil- Solteira. Converteu-se para a Assembleia de Deus;
Templo Central de Milhã, em 17 de junho de 2007. Participa ativamente dos trabalhos da congregação, é
membro do grupo de jovens “rosa de saron”, participa aos domingos da escola dominical e das demais
orações. Entrevista realizada em 08/01/2012.
9
Edina Ferreira (Nome fictício)-41 anos. Estado civil- Solteira. Converteu-se para a Assembleia de Deus
Templo Central no dia 08 de março de 2008. Possui o cargo de “Acomodadora” da instituição. Segundo ela
esse é um cargo novo que foi criado apenas na Assembleia de Deus de Milhã. Sua função é esperar os
membros e visitantes na porta de entrada do templo, e posteriormente auxiliar para que nenhuma pessoa fique
sem lugar para sentar e acompanhar o culto de maneira confortável. Além disso, ela faz trabalhos de
evangelização em hospitais, em residências de enfermos e etc. Entrevista realizada no dia 09/01/2012.
10
Edson de Moura (Nome fictício). Entrevista realizada no dia 11/02/2010. Co-pastor da Igreja Assembleia
de Deus: Templo Central de Milhã, sendo ainda grande conhecedor da trajetória dessa denominação
protestante no município.
11
(nome fictício) Entrevista realizada em 08/01/2012.
RUPTURAS E INOVAÇÕES: UMA ANÁLISE DA RECONFIGURAÇÃO EVANGÉLICA
PELOS NEOPENTECOSTAIS NO JUAZEIRO DO NORTE.
Esse novo crente por sua vez, não necessita, por exemplo, esperar a vinda
de um paraíso, pois ele pode fazer desse mundo o próprio paraíso. A teologia da
prosperidade vem corroborar com essa perspectiva, Deus é desejoso de ver os seus
filhos prosperarem, tanto financeiramente como espiritualmente aqui na terra, não
necessitam esperar a vida nesse lugar.
Além disso, o crente neopentecostal não é caracterizado como um filho
submisso, uma vez que ele pode até mesmo exigir de Deus. O velho princípio da
igreja católica e de uma boa parte das igrejas evangélicas de que as coisas devem
acontecer no tempo de Deus também vem sendo desconstruída pela vertente
neopentecostal. Visto que, para essas denominações o crente não apenas é merecedor
de graças, como deve exigir de Deus que a graça aconteça, com uma praticidade e
imediatez nunca antes imaginada. O que percebemos nesse sentido é a providência
divina sendo “questionada” por valores mundanos, como a
mercantilização/mercadorização da fé e dos bens e serviços religiosos,
fluidez/volatilização das relações, consumo individualizado de bens. .
Essas praticidades na realização de graças podem ser bem interessantes
de serem compreendidas considerando, sobretudo, a questão dessa nova forma de se
entender como evangélico. Se pensarmos que um fiel pode ser agraciado com um
milagre, por exemplo, tomando apenas água consagrada e fazendo uso de um azeite
ungido estamos sim falando de mudanças significativas. Se considerarmos que esse,
digamos, que o novo crente não apenas rompe com certos hábitos, mas também se
apropria de outros. Podemos perceber essas mudanças no perfil do crente se
observarmos que esse novo evangélico não apenas quer fazer uso de uma graça como
também quer fazer isso na hora em que ele achar pertinente.
Sendo assim, aquele evangélico que acreditava fielmente que deveria ser
submisso as ordens de Deus, por exemplo, esperando a atuação de Deus na vida dele,
não se ver então no dever de esperar, mas sim de cobrar essa atuação. Cobrar uma
postura mais rápida e mais eficiente do ser divino, que aconteça no tempo desejado e
oportuno para o fiel e não considerando a vontade do Deus Supremo.
A partir de elementos como esses, vemos uma forma bastante peculiar de
atuação das igrejas neopentcostais. Vale considerar também uma outra questão que
caracteriza essas especificidades na performance dessas denominações religiosas,
visto que, a atuação dessas igrejas é de uma forma bem interessante de abertura, ela
abre para o dependente de drogas, para a prostituta, para o homossexual.
Para, além disso, ela abre para as mulheres que vão vestidas de forma não
muito discreta, para homens que vão de brinco na orelha, de bermuda. No caso da
igreja Universal, particularmente ela deixa de fazer uso pelo menos com uma maior
intensidade da bíblia. Desse modo, o crente convertido a igreja Universal vai para as
reuniões sem uma bíblia na maioria das vezes, justamente pelo fato de que na igreja
a liderança muitas das vezes nem se utiliza dela e, quando usa, é apenas para ler um
versículo. Desse modo, as igrejas neopentecostais recebem as pessoas da forma como
elas se encontram trajadas, com seus hábitos e modos de vida sem nenhuma crítica,
sem nenhuma discriminação e faz dos seus fiéis um público bastante específico.
Esse público, por sua vez, encontra na igreja certas rupturas com o universo
evangélico pensando de uma forma mais geral e estereotipada. Encontra um pastor
que não olha as pessoas que, muitas vezes, não se encontram em um padrão digamos
que evangélico com um olhar de reprovação. Ao contrário disso encontram aceitação,
acolhimento e um discurso que muitas vezes rompe com toda e qualquer perspectiva
não apenas pensando em um cenário evangélico, mas pensando em um cenário
religioso de uma forma mais geral. Como está bem explícito na fala desse fiel da
igreja Universal: “porque eles não me conheciam e sabiam do meu passado e não me
criticaram não, não olharam pro meu passado, eles me ajudaram”. (Roberto. 23 anos.
Entrevista realizada por Itamara Meneses em Juazeiro do Norte, 01/12/12).
Dessa forma, os neopentecostais têm causado rupturas no momento em que rompem
com uma forma tradicional de se pensar em evangélicos. No momento em que eles
colocam dentro da igreja o homossexual, o usuário de drogas, a prostituta, é certo
que se trata de uma estratégia para converter essas pessoas, mas no momento em
que a igreja aceita essas pessoas sem nenhuma restrição, sem nenhuma cobrança,
vemos mudanças significativas acontecendo. E para, além disso, trazem inovações no
tempo que se utilizam das mais diversas estratégias para se chegar a um público que
não é um público exclusivo.
O que quero afirmar argumentado que não é um público exclusivo é no sentido
de dizer que as igrejas neopentecostais ofertam bens de todas as espécies, seja de
solução para problemas de ordem afetiva, financeira, familiar, até mesmo na busca de
conseguir um parceiro ou orientação para a manutenção de casamentos, pois essa
seria a função da terapia do amor que é uma das reuniões ofertadas pelas igrejas.
Visto que, são igrejas que ofertam todo e qualquer serviço desde a cura de uma
doença até as estratégias para que o crente encontre um parceiro, ou seja, os
neopentecostais se colocam de forma diferenciada no cenário religioso porque
rompem com ordens estabelecidas e propõem outras nunca antes imaginadas.
Essas rupturas e inovações citadas mais acima podem ser mais bem
aprofundadas e compreendidas numa análise feita da atuação dessas igrejas, nesse
caso em particular da atuação específica das igrejas neopentecostais no Juazeiro do
Norte. É sabido que o município é um dos maiores centros de romarias populares do
país, entretanto, esse fato não têm intimidado essas igrejas, que atuam de forma bem
enfática no combate ao santo popular da localidade, como forma de marcação de
terreno e de identidade.
Devido a isso, o que penso é que os neopentecostais pensando numa
realidade localizada que é, portanto Juazeiro do Norte tem incomodado os católicos
justamente por conta desse mercado religioso em Juazeiro ter um certo monopólio,
sobretudo, pela presença simbólica do Padre Cícero. Considerando, portanto, que os
neopentecostais dentro de um contexto predominantemente católico são vistos como
um grupo inferior, me utilizando também da perspectiva de Norbert Elias, quando o
mesmo evidencia a relação dos estabelecidos e os outsiders.
Livro:
ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a
partir de uma pequena comunidade/Norbert Elias e John L. Scotson; tradução, Vera
Ribeiro; tradução do posfácio à edição alemã, Pedro Sussekind; apresentação e
revisão técnica, Federico Neiburg – Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
Capítulo de livro:
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cultura e Patrimônio: Um guia. Rio de Janeiro. FGU, 2008.
Artigo:
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Rio de Janeiro: Estudos Históricos,
1989.
1
consolidou, ainda mais, a supremacia das três casas “tradicionais”: Engenho Velho,
Gantois, o Opo Afonjá.
O discurso que ressaltava o étnico passou a dar maior destaque ao
Candomblé como uma religião que representava inclusive certo status e foi
crescentemente reconhecida como legítima pela intelectualidade local.
Como estratégia discursiva das narrativas identitárias está a ênfase nas
origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade. Um dos elementos
mais realçados na narrativa da baianidade (NETO, 1998, p. 54) refere-se à
demarcação da territorialidade como origem da nação, aspecto que seria central na
definição dos traços espaciais e culturais, responsáveis pela diferenciação do seu
povo em relação ao restante do país. Parte destes aspectos cria, em torno da
baianidade, expectativas que muitas vezes assumem um caráter prescritivo que,
por sua vez, se manifesta não apenas na eleição dos elementos que devem integrá-
la, bem como na maneira como estes servem para orientar posturas e um modo
particular de viver (SAMPAIO, 2010, p. 32).
Se até os anos 1950, a baianidade era associada à idéia da “terra mãe” e
todos os elementos que lembrassem à Africa deveriam ser esquecidos, a partir de
então acontece uma redefinição dessa narrativa, isto é, nesse contexto a Bahia
deveria ser singularizada à herança africana
A partir da década de 1970, o discurso da baianidade passou a ser adotado
pelo Estado, tornando mais evidente sua utilização com finalidades políticas. Foi a
partir desse período que o governo estadual, através da BAHIATURSA, começou a
promover a imagem de uma “Bahia feliz”, seja para incrementar a força do turismo
no Estado, seja para construir legitimidade política.
A utilização de um discurso sobre a baianidade, com ênfase nos seus aspectos
festivos e como estratégia política e turística, foi consolidada, no primeiro mandato
do governador Antônio Carlos Magalhães, entre 1971 e 1975. Nesse contexto, ACM
foi visto como um político que se relacionou diretamente com a narrativa da
baianidade e que entendeu a sua dimensão cultural, mas, sobretudo, o seu
potencial estratégico, dentre outras possibilidades, em servir como uma
“gramática” para aqueles que pretendem exercer a política na Bahia.
Apesar do contexto favorável para o reconhecimento do Candomblé, para
exercer o culto, os terreiros ainda necessitavam de um alvará de funcionamento
expedido pela Delegacia Especial de Jogos e Costumes, órgão subordinado à
Secretaria de Segurança Pública. Contudo, a licença policial não oferecia nenhum
tipo de proteção, pois mesmo sendo obrigados a comunicar quando iam realizar
9
seus cultos, a polícia aparecia nos terreiros, quando não destruía os instrumentos e
demais objetos, e levava os religiosos para a delegacia (ALVAREZ, 2006, p. 138).
Provavelmente influenciado por este momento, em 1976 o então governador
Roberto Santos assinou o ato administrativo que garantiu a liberdade de culto para
as religiões de matriz africana no Estado. Só a partir daí os terreiros deixaram de
ser obrigados a pedir licença para funcionarem. Entretanto, independente da
projeção individual e/ou política que tal ato daria ao governador, não podemos
desconsiderar a importância do feito, como um momento favorável para o diálogo
sobre a diversidade de cultos na Bahia.
Coincidindo com um novo momento de reconhecimento social do
Candomblé, a década de 1970 marca o início da terceira fase do processo de
nagoização, embora este processo deva ser entendido como contínuo e não como
fragmentado. Por um lado, o estado político baiano parece dar-se conta do valor da
cultura negra como produto exportável e do seu potencial para projetar uma
atraente imagem da Bahia para o mercado do turismo nacional e internacional.
Reciclando representações da cultura negra baiana, elaboradas desde os anos
1940, por artistas como Jorge Amado, Carybé, Pierre Verger, Dorival Caymmi,
instituições como a Bahiatursa começam a promover Salvador como uma “cidade
mística” e o Candomblé como uma atração turística e um espetáculo exótico. Por
outro lado, nos anos 1970, a organização política negra cresceu de forma
significativa com a fundação do Movimento Negro Unificado e outras associações. A
formação de uma identidade racial negra de natureza étnica encontrou no
Candomblé uma rica fonte de referências culturais, condizentes com a unidade
necessária para atingir os objetivos políticos de adquirir poder e igualdade social. A
noção de uma pureza religiosa africana pode ter se iniciado como parte da dinâmica
interna da comunidade de Candomblé na procura de legitimidade. Porém, desde os
anos 1980, o Movimento Negro participou de forma ativa na sua articulação e na
sua disseminação, inserindo-a num conceito mais amplo de uma Africa mitificada,
como emblema da identidade e do orgulho negro. Certamente, as casas de culto
mais prestigiosas atraíram com maior facilidade os ativistas negros, na procura de
emblemas e valores que dessem contorno à sua identidade diferenciada.
O Candomblé, independentemente da nação, se apresenta de modo que é
possível perceber semelhanças no desenvolvimento do culto, como a crença nas
divindades, o transe, a presença de hierarquias, os sacerdotes do culto, o culto aos
ancestrais e o processo iniciático, entre outros procedimentos e preceitos.
Entretanto, mesmo que pertençam a uma mesma nação e possuam laços de
parentesco com sua família-de-santo, os terreiros guardam entre si um grau
10
Referências Bibliográficas
REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos malês em
1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SANTOS, Jocélio Teles dos. O dono da terra: o caboclo nos candomblés da Bahia.
Salvador, BA: Sarah Letras, 1995.
VERGER, Pierre Fatumbi. Notas sobre o culto aos orixás e voduns na Bahia de
Todos os Santos, no Brasil e na antiga costa de escravos na Africa. São
Paulo: Editora da USP, 2000.