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SIMPÓSIO REGIONAL NORDESTE DA

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
HISTÓRIA DAS RELIGIÕES

RELIGIÃO, A HERANÇA DAS


CRENÇAS E AS DIVERSIDADES
DO SER
ANAIS – TEXTOS COMPLETOS

Volume 1, Número 1, Ano 2013


Universidade Federal de Campina Grande
28 a 31 de maio de 2013

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE HISTÓRIA DAS RELIGIÕES


Presidente: Wellington Teodoro da Silva (PUC Minas)
Secretário Geral: Vasni de Almeida (UFT)
Secretário de Divulgação: Daniel Rocha (UFMG)
Tesoureiro: Ítalo Domingos Santirocchi (UFMA)

UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE


José Edilson Amorim – Reitor
Vicemário Simões – Vice Reitor
Ricardo Barosi – Pró-Reitor de Ensino
Diretor do Centro de Humanidades – Luciênio Teixeira

Coordenador-Geral: Dr. João Marcos Leitão Santos

COMISSÃO ORGANIZADORA
Prof. Drª. Juciene Ricart Apolinário UFCG
Prof. Dr. Carlos Cunha Miranda - UFPE
Prof. Drª. Dilaine Soares Sampaio de França – UFPB
Prof. Drª. Fernanda Lemos - UFPB
Prof. Dr. Gilbraz de Souza Aragão UNICAP
Profª Drª Marinalva Vilar de Lima - UFCG
Prof. Dr. João Marcos Leitão Santos UFCG – Coordenador Geral
Prof. M.A. Mateus Andrade (UAAMI) UFCG
Profª. Gláucia de Souza Freire SEC/PB
Prof. Alisson Pereira Silva - UFCG

COMISSÃO CIENTÍFICA
Prof. Dr. Eduardo Hoornaert - CEHILA
Prof. Dr. José Oscar Beozzo - CESEP
Prof. Dr. Edson H. Silva – UFPE (Presidente)
Prof. Dr. Luciano Barbosa Justino - UEPB
Prof. Dr. Carlos Cunha Miranda - UFPE
Prof. Dr. Marcelo Ayres Camurça Lima - UFJF
Profª.. Drª Hulda Helena Coraciara Stádler – UFRPE
Profª. Drª Rosilene Dias Montenegro – UFCG
Prof. Dr. Paulo Donizéti Siepierski – UFRPE
Prof. Dr. Lyndon Araujo Santos – UFMA
Prof. Dr. Lauri Emílio Wirth - UMESP
Prof. Dr. Sérgio Ricardo da Mata - UFOP
Prof. Dr. Silas Guerriero - PUC/SP
Prof. Dr. Vasni de Almeida -UFT
Prof.ª Drª. Elizete da Silva - UEFS
Prof.ª Drª. Leila Marrach Basto de Albuquerque - UNESP
Prof. Dr.Arnaldo Huff Júnior - UFJF
Prof.ª Drª. Ester Fraga Vilas Boas Carvalho do Nascimento – UNIT
Prof. Dr. Antonio Carlos Magalhães Melo - UEPB

Programa de Pós-Graduação em História/UFCG


Drª Juciene Ricarte Apolinário – Coordenadora
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião/UFPB
Drª Fernanda Lemos – Coordenadora
Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade/UEPB
Dr Luciano Barbosa Justino – Coordenador
Programa de Pós-Graduação em História/UFPE
Dr. Jorge Felix Cabral de Souza – Coordenador
Departamento de História/UFRPE
Dr. Paulo Donizetti Siepierski – Coordenador
Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões/UNICAP
Dr Gilbraz de Souza Aragão – Coordenador

Arte
Lays Anorina Barbosa de Carvalho
Diagramação
Alisson Pereira Silva/Rodrigo Ribeiro de Andrade
SUMÁRIO

GT 01 - A Herança das Religiões Orientais: entre diversidades, “invenções” e


“realidades”

A Bakti-Yoga Vaishnava Redefinindo A Vida Dos Devotos

Aspectos do processo de romanização da igreja observados no trato quanto ao exercício do


sacerdócio por mulheres

Bede Griffiths: sua participação no diálogo religioso entre Oriente e Ocidente

Diversidade cultural Entre os Hare Krisna no evento Encontro da Nova Consciência

Estupros: uma mídia que nos massifica, uma cosmovisão que nos relativiza

Islamismo e negação: O legado ignorado pelo ocidente

Max Weber: um orientalista?

O Simbolismo da Suástica

Rabindranath Tagore: tradição e modernidade no pensamento indiano e em diálogo com


Cecília Meireles

GT 02 – Corpo, cultura e religião

“Mãe do corpo”: análise do cuidado das parteiras com o útero na perspectiva da


espiritualidade.

“Papel dos médiuns espíritas nas atividades e rituais da Fraternidade Peixotinho e do


Hospital Espiritual Maria Cláudia Martins.”

A dança dos Exus: As metamorfoses das práticas rituais afro brasileiras refletidas na
Quimbanda pelotense no advento da contemporaneidade.

Alma Devota, Corpo Doente: a Patologização da Religiosidade nos Tratados Médicos (séc.
XIX)

As dimensões performáticas da possessão

As plantas e o sagrado no contexto da medicina popular no Brasil, considerando seu papel


na eficácia das terapias aplicadas.

As Questões do corpo no final dos anos de 1960: o debate entre teólogos católico-romanos
e médicos acerca da sexualidade.

Ascetismo e contemporaneidade

Caboclos, Preto-Velhos e Pacientes: As consultas mediúnicas no Vale do Amanhecer

Corpos Odara no carnaval baiano.


Entre Planos: o corpo como um elo de mediação entre sagrado e o profano

Ex-votos: Culturas, Patrimônios e Museus.

Gira e baila comigo? O corpo na Umbanda e no Santo Daime.

Linguagem e gestos na glossolalia: observações em uma Comunidade da Renovação


Carismática Católica

O fenômeno da estigmatização: corpo e santidade nos místicos

O Transe entre Senhores e Caboclos

Pensando e desfazendo o gênero nas religiões pagãs

Representações Sociais da Maternidade Segundo Mães de crianças com Deficiência: a


Dimensão Religiosa da Maternidade.

Ritual e processos de criação em teatro dança

Santificação do corpo e honra: a Igreja Pentecostal Deus é Amor em foco

Vivências corporais: o significado do corpo na formação docente em Ciências da Religião

GT 03 - Espetáculo, canção, corpo, mídia e marketing em situações de trânsitos e


hibridismos religiosos

A música sacra litúrgica nas igrejas batistas e presbiterianas históricas de Montes Claros:
entre a tradição e a inovação

A religião marrana: um caso de sincretismo na América portuguesa no século XVIII

A ritualidade presente na performance ritos

Canção gospel, negritude e espetáculo: reflexões a partir do louvor norte em Belém

Corpos Odara no carnaval baiano

Evangelizando com os pés: esporte, religião, cura e marketing no Bola RunningFlorianópolis.

Hibridismo religioso no sertão colonial: confessando-se, riscando-se, bailando e cultuando a


Santidade indígena (1564-1593)

Ma(l)niqueísmo imagético: entre Vodu e catolicismo no videoclipe da música no light, no


light, da banda Florence And The Machine

Renunciar a uma herança teológica? Os Corinhos.

Trânsitos e bricolagens religiosas de pessoas transexuais e travestis: peregrinando no


Facebook

GT 04 - Festas e tradições do Nordeste brasileiro

29 de junho, Dia de São Pedro: Religiosidade e performance nos grupos de bumba-meu-boi


no Maranhão

Cantar, dançar e rezar: a história religiosa do Guerreiro Alagoano

Cultos para São Raimundo Nonato e alguns orixás na União Espírita de Umbanda de São
Raimundo Nonato em Bacabal-MA

Ex votos: uma análise da devoção à Menina sem Nome

Festa de Carreiro como Patrimônio Imaterial do Município de Ibirajuba-PE: Homem, História


e Religiosidade

Festa de reis e(em) Laranjeiras: Relações entre Política e Religiosidade

Festas e Cultura Popular em Lagarto-SE: Possibilidades Didáticas para o Ensino de História

Festas e Tradições do Catolicismo Popular em Sergipe no Século XIX

Festas e tradições sanjoanescas: um estudo sobre as mudanças na forma de celebrar o São


João no Recife (1920-1940)

Hoje tem Lovariê nas casas de Umbanda - Terecô em Bacabal-Ma

Lapinha: uma dança de Tradição Religiosa do Nordeste Brasileiro

O Teatro Barroco na Aldeia de Geru: Aspectos do Discurso Jesuítico Presentes na Capitania


de Sergipe Del Rey (1683-1758)

Permanência do objeto ex-votivo na Peregrinação da Cidade de Monte Santo – Bahia

Religião e Política Festejam o Sagrado Coração de Jesus

Rezadeiras do Rio Grande do Norte

Sob o Pálio do Salvador do Mundo: o Culto ao Santíssimo Sacramento na Vila de Simão Dias

Sofrer ou Brincar?: a Penitência Infantil no Morro da Conceição

Swing, Axé e Liturgia: Encontros e Desencontros na Festa da Padroeira do Brasil na Periferia


de Aracaju no Século XXI

GT 05 - Gênero, Violência e Religião

A família feliz: representações de família entre as Testemunhas de Jeová em Santo


Estevão/BA (1970 à 2001)

A homossexualidade em cena: as práticas e discursos homofóbicos na cidade de Campina


Grande

A magia como instrumento de empoderamento da mulher

A representação da mulher no movimento messiânico milenarista borboletas azuis

A violência de gênero nas religiões afro-brasileiras


Gênero e violência na sociedade faraônica e na atualidade

Gênero, religião e sexualidade: análise do cordel “a chegada da prostituta no céu"

Gêneros encarcerados: a desnaturalização das diferenças sexuais binárias

Gideões e beatas do Pe. Ibiapina: papéis sociais de gênero no combate a seca de 1877

Mulheres na pastoral popular urbana

Relações de gênero, religião e violência no discurso midiático paraibano

Religião e gênero: a eleição episcopal na diocese meridional da ieab

Religião, poder e gênero: consagração e ordenação feminina nas igrejas cristãs em Campina
Grande/PB

Uma análise do discurso religioso católico e a produção de violência simbólica no contexto


da cultura paraibana

GT 06 - História do pensamento oriental


Coordenadores: Deyve Redyson (UFPB) / Maria Lucia Abaurre Gnerre (UFPB)

“Que budismo é esse?”

A constituição do texto sagrado no budismo para uma história do Cânone Páli

A história do desenvolvimento do Shaktismo nos puranas

A influência do Bhagavad-gita na música de Raul Seixas

A ordem dos Kapalikas e o contexto do tantrismo na Índia medieval

Águas deusas: leitura e comentário do Hino VII-49 do Rig-veda

O apelo à ignorância nos ensinamentos budistas

O filosofo a kar ch rya

Que tipo de concepção religiosa existia na Índia antiga?

Transmigração da alma e reencarnação: uma análise comparativa entre o hinduísmo e o


espiritismo

GT 07 - Mídia e Religião: Dinâmicas, Representações e Transfigurações

Análise do discurso sobre o sobrenatural nos filmes da franquia Paranormal Activity:


unidade e dispersão

Ceberfundamentalismo: o Senhor é meu provedor, minha rede não cairá

Criança pastoras e a mídia

Da caixinha do diabo para instrumento de Deus: uma análise sobre o uso da mídia televisiva
pelos pentecostais
O candomblé sob as lentes da fotorreportagem: as imagens do candomblé dos anos 50 nas
páginas de O Cruzeiro e Manchete

O Jornal A Ação e as representações da encíclica Sacerdotalis Caelibatus na Diocese do


Crato-CE

O pluralismo religioso e a midiatização contemporânea

Perspectivas hermenêuticas acerca da representação religiosa nas histórias em quadrinhos

Religião e Pós-modernidade: Dexter e a representação da fé na era da fragmentação

Representações Religiosas em Happy Feet

Uma análise do discurso midiático sobre a religiosidade

Uma ebgé virtual: sociebilidade religiosa no facebook

GT 08 - Religião e política

A igreja em Alba (Cuneo/Itália) e a resistência ao Fascismo

A imposição da Shari’a e a intolerância política ante uma sociedade plural

A Ordem dos Ministros Evangélicos do Cariri (OMEC): um estudo da atuação evangélica na


política em Juazeiro do Norte

A Política no Santo: Um Estudo acerca da Política no Terreiro Ilê Axe Oya Nirole Egbalê

A religião como mobilizadora da identidade nacional.

Água benta era aguardente: os padres e a Revolução Pernambucana na História de Campina


Grande

As vitórias de 1996 como resultado do acúmulo das lutas políticas dos anos 70 e 80, e a
condução de um ex-agente pastoral para a Câmara de Belém

Bharat Mata: faces do nacionalismo indiano

Casa de oxum, jardim das folhas sagradas e outras histórias: evangélicos e políticas
públicas para o povo de santo no governo Lídice da Mata

De Prefeita à Pastora: as “contaminações” entre os campos político e religioso na cidade de


Natal

Entre o púlpito e o palanque: fé e política na eleição municipal de catalão-go 2012.

Festa de reis e(m) laranjeiras: relações entre política e religiosidade

Inacreditável Andrés: as muitas traduções de um cristão da libertação

Interações entre Estado e religião no processo de regulamentação da ayahuasca no Brasil

Laicidade no Ordenamento Jurídico Pessoense: Um Estudo dos Projetos de Lei da Câmara


Municipal da Cidade de João Pessoa

Laicidades e Secularizações: breve discussão teórica

Moral, aristocracia antiga e cristianismo no percurso histórico ocidental - algumas


considerações de F Nietzsche

O clero sob vigilância: a expulsão dos religiosos portugueses no momento da Proclamação


da República (1910 - 1920)

O entrelaçar dos poderes político e religioso: tramas do vigário António Soares Barbosa na
capitania da Parahyba (1741-1785)

O Rei Negro do Brasil: apontamentos para o estudo histórico do candomblé em Alagoas,


1970-1980.

Política e religião: as novas facetas da política espetáculo – o caso das eleições 2012 em
Campina Grande – PB

Religião e política entre sacerdotes do candomblé angola em Belém, Pará.

Religião e Política na trajetória de Dom Marcos Antonio de Sousa (1820-1842)

Revolução e Religião: A atuação da Igreja Católica em Cuba - passado e presente.

Sobre a Religião Civil no Contrato Social de Rousseau

GT 09 – Religião, Educação e Sociedade

A contribuição do grupo fidelid e da ciências das religiões na formação do professor do


ensino religioso

A diversidade religiosa na perspectiva do ensino religioso nas escolas públicas de Marabá.

A transdisciplinaridade no ensino religioso

As Ciências das Religiões e a Psicologia da Religião: Levantamento das Possíveis Relações e


Semelhanças enquanto área Acadêmica

As ciências das religiões um conhecimento científico

Castelo Interior: educação mística para o encontro com Deus

Congregação ds filhas do amor divino: breve abordagem da educação católica através do


centro educacional cristo redentor (1944-2010)

Doença e religiosidade nas sociedades Africanas

Enredando nas teias do desconhecido Universo Religioso: Repensando os paradigmas do


Ensino Religioso nas Escolas Públicas

Ensino “leigo” no instituto pedagógico campinense 1919 – 1932

Ensino religioso - trilhando a nova abordagem em natal


Ensino religioso: a importância das memórias docentes para a atuação de futuros
professores em sala de aula

Entre a Cruz e a Torah: as experiências intelectuais de Bento Teixeira (Pernambuco, século


XVI)

Estudo Comparado: Prática do ensino religioso no Brasil e em Guiné-Bissau.

Estudo Hermenêutico dos Símbolos Religiosos Presentes na Educação Básica.

Multiculturalismo e ensino religioso na escola

O ensino religioso e a educação das relações étnico-raciais

O Ensino Religioso: À construção de uma cultura de paz em uma sociedade hipermoderna

Orar e controlar: a disciplinarização da infância pela catequese no Brasil quinhetista (1550-


1568)

Reflexões sobre as ciências das religiões e a psicologia: análise da autotranscendência na


vivência do homem religioso

Religião e Escola: entre o real, o ideal e o imaginário

GT 10 - Religião, cultura e política no século XIX

A Congregação da Missão: os lazaristas franceses e sua atuação no Ceará na segunda


metade do século XIX

A Irmandade de São Gonçalo Garcia dos Homens Pardos da Villa do Penedo: notas sobre
documentação histórica das irmandades religiosas em Alagoas, século XIX

Cândido Mendes de Almeida, um intelectual ultramontano.

Erasmo Braga: um ator polivalente

Presença e participação dos cristãos leigos na Diocese de Amargosa: O caso D. Conceição


(1950-1960)

Religião e política na trajetória de Dom Marcos Antonio de Sousa (1820-1842).

Um precursor do protestantismo em Mossoró: José Damião de Souza Melo e a propagação


da doutrina protestante nas páginas do jornal “Mossoroense”

Uniões cativas e desagregações católicas: o universo do casamento de escravos no sul de


Minas Gerais – século XIX

GT 11 - Religiões e governos autoritários no Brasil do século XX

“Estar no Mundo sem ser mundano/as”: Pentecostais em Eunápolis (1988-2011)

A catolicização da política no Estado Novo

A medicalização do espiritismo e de uma Seita “misteriosa” na década de 1930


Concepções sobre história e conflitos de representações entre teólogos católicos (1971-
1989).

Igreja Batista Nazareth: ideias e tensões no movimento ecumênico entre batistas


progressistas (1974 a 1990).

Manoel da Conceição: a trajetória de um camponês protestante no interior do Maranhão


durante a ditadura civil-militar no Brasil.

Não Pensamos em Política, Nossa Revolução será Espiritual: os batistas brasileiros e o Golpe
de 1964

O abaciado de D. Timóteo e a Ditadura Militar na Bahia (1965-1968)

O desafio marxista e a resposta cristã: Protestantismo e engajamento político na abertura


(1974-1994)

Os Batistas e o processo de Redemocratização na Bahia e Feira de Santana (1979 – 1995).

Pentecostalismo e política: algumas aproximações

Protestantismo e resistência aos Governos Militares no Brasil: Helder Câmara e a sua luta
pelos direitos humanos no Brasil

GT 12 - Religiões mediúnicas: trânsito religioso, diálogo e interlocuções

“Para quem acredita, nenhuma palavra é necessária; para quem não acredita, nenhuma
palavra é possível": um primeiro olhar sobre as curas espirituais do médium joão de deus

A produção de verdades no Espiritismo: as controvérsias entre Allan Kardec e J.B.


Roustaing.

Análise do discurso espírita sobre as noções de sociedade e economia

Dinâmica e estrutura das religiões afro-brasileiras no mercado religioso em João Pessoa e


Natal.

Do Catimbó à Umbanda: circularidades nas religiões afro-brasileiras

Médiuns, magnetizadoras e sonâmbulas no Brasil do século XIX

O estudo dos fenômenos mediúnicos na terapia de vida passada

Optcha! Ciganos, Beija Flor, Globo e Nilópolis – debate sobre construção de identidade,
etnia, cultura e religião na tenda cigana Tzara Ramirez

Origens (ou não) da Umbanda e suas interfaces com outras Escolas Afro-brasileiras

Prática mediúnica kardecista: um discurso racionalizado e com linguagem controlada

Serviços religiosos e relações de gênero em duas searas de umbanda em Belém do Pará

Trabalho, Riqueza e Propriedade: estudo da economia espírita a partir da análise da obra


‘Nosso Lar’

GT 13 - Catolicismo: entre a tradição e a modernidade

“O Santo Social”: Uma Análise Antropológica Sobre a Formação Sacerdotal

Arquidiocese de Maceió na conjuntura conciliar do Vaticano II (1962-1980)

Catolicismo devocional, entre a tradição e a modernidade

Do Corpo Místico de Cristo e Inculturação nas encruzilhadas do Vaticano II

Em Juazeiro do Norte Nossa Senhora é Deus Mãe: Um feminismo mariano?

História e transformações do Opus Dei no Brasil: A trajetória de Félix

Missão Resgate: uma análise a cerca do movimento carismático em Crato-CE

Modelos de santidade juvenil dos Intercessores da Jornada Mundial da Juventudeno Brasil

Notas sobre o catolicismo em Catalão-GO: instituição católica, religiosidade popular e


revitalizações conservadoras

O Belo como estratégia de evangelização para os Arautos do Evangelho

O gênero dos santos e a agência dos devotos: A hagiografia e as orações direcionadas aos
santos católicos sob uma perspectiva de gênero

O itinerário católico: de um tradicionalismo institucional aos novos paradigmas de uma


prática religiosa “moderna”

O Semeador: A voz anunciadora do Vaticano II em Alagoas

Padre Jonas Abib e uma nova canção: o carisma do líder e seu papel na comunidade Canção
Nova

Pe. Alberto Antoniazzi e a recepção do Vaticano II na igreja de Belo Horizonte- MG.

Plano de combate: restauração católica e antiprotestantismo no Brasil

Santa Montanha: as várias faces do catolicismo

Tentativa católica de modernidade: o conceito de pessoa humana e sua realização histórica


(1960-1980)

GT 14 - Religiosidades, Simbolismos e Territorialidades dos Povos e Comunidades


Tradicionais

“Crenças e ritos do povo potiguara: dimensões da espiritualidade”

“Ficam persuadidos a não ver o verdadeiro caminho”: transgressão religiosa em torno do


ritual da Jurema Sagrada na capitania da Paraíba

“Guardiãs do Segredo: Conflitos e Resistências dos Adeptos da religiosidade Afro-brasileira


Amargosa (1940-1960)”

“Tambor de Mina: Uma abordagem a partir de seus elementos visuais”

A trajetória e os saberes de uma xamã na Amazônia

As artes da benzeção de Mãe Neta na comunidade quilombola de Castainho(Garanhuns-PE)

Comunidade quilombola de Coqueiros: fé e simbolismo

Entre Santos e Encantados: um olhar sobre festas e rituais em Santo Antonio dos Sardinhas

Festa de Santa Bárbara: Etnografia de um ritual afro marabaense

La Religión Brasileña: Candomblé em território “porteño”. Influências baianas nas práticas e


ritos afro descendentes em Buenos Aires no final da déc.de 80 do séc XX

Os Caminhos da Religiosidade Afro na Cidade de Limoeiro, PE

Religião e Identidade – O Dia dos Mortos no México

GT 15 - Imaginários religiosos, itinerários terapêuticos e curas espirituais

“O etnógrafo, a rezadeira e a cerca de cipó”: autoridade etnográfica e iniciação xamânica de


rezadeiras Amazônicas

A Abordagem Religiosa na Prática Clínica: ampliando os horizontes do relacionamento


médico-paciente

Análise da busca pela cura nos terreiros de umbanda: representações e significados

Espiritismo: médiuns, pacientes e processos de cura dentro da doutrina espírita

Saúde, Cultura e Antropologia: um diálogo a partir das práticas afro-brasileiras

Tenda São Jorge Guerreiro: “Maria Bonita”, a mãe-de-santo, a filha, a religião e a história

GT 16 - Religião e direitos humanos no Brasil

A recepção religiosa dos direitos humanos como caminho para a democracia – A perspectiva
cristã.

Diversidade Religiosa, Identidades e Cidadania

Entre a memória e o perdão: discussões sobre religião e direitos humanos no Brasil.

Ética das Religiões e Educação em Direitos Humanos

Religiões de Matriz Africana e Direitos Humanos no Brasil.

Representações de identidade e tolerância entre os eventos religiosos no carnaval de


Campina Grande

Tessituras entre: religião, in/tolerância, dignidade e direitos humanos no Brasil.


Trânsito Religioso entre eventos Crescer e Consciência Cristã em Campina Grande

GT 17 - Diversidade Religiosa e Intolerância: nas interfaces entre Ciências e


História das Religiões

“A filosofia Hermética”: estrutura imagética e simbologia hermética nos Símbolos Secretos


dos Rosacruzes dos séculos XVI e XVII.

“É maconha ô”! Exú da Maconha na Jurema de Pernambuco – Etnografia, história e


discussões correlatas

A escritura sagrada cristã, uma arma, uma prisão ou caminho da salvação.

A igualdade na Diversidade: Laicidade, Pluralismo e Ensino Religioso

A Retomada do Hermetismo como Enfrentamento à Intolerância Religiosa na Renascença e


na Atualidade.

Contribuições do ensino religioso no contexto escolar: possibilidades e limitações sobre dois


pontos de vista

Diversidade Religiosa: reflexão necessária

Ensino religioso como instrumento de promoção da cidadania e diversidade

Entre história e práticas: os trabalhos de pós-graduação e o fenômeno religioso

Entre o moderno e o sagrado: Ordem Familiar no discurso cristão (1931-1945)

Influenciado pelas ideias iluministas, um ex-prisioneiro da Inquisição

Intolerância e religião no vale do São Francisco: A questão do outro (1895-2000).

Intolerância Religiosa em Pernambuco no Início do Século XX entre Históricos e Pentecostais

O desaparecimento do cristianismo da Palestina, a violação dos direitos humanos e o


“choque de civilizações”

O fenômeno religioso na academia potiguar: mapeamento nos cursos de graduação

O preconceito religioso na formação da nova identidade social brasileira

GT 18 - Religiosidades, celebrações e festejos: as relações entre o sacro e o


profano na História das religiões

“Fé, carnaval e muito samba”: a lavagem de Senhora Santana toma as ruas da cidade.

A festa à cruz da baixa rasa e suas dimensões religiosas

A trezena na consagração de um taumaturgo.


Das novenas com balões às garçonetes da padroeira

Festa do carreiro como patrimônio imaterial do município Ibirajuba (PE): homem, história e
religiosidade.

Imagens das celebrações religiosas no contexto escolar

O imaginário simbólico da congada dos catopês: expressão de uma religiosidade afro -


sertaneja do sertão das gerais.

Romarias e ex-votos na Serra do Pedro.

Todo ano tem: devoções, ritos e memórias no festejo de São Bernardo.

Viva! São Benedito, Santo Antônio e São João.

GT 19 - Do ocaso do Império ao alvorecer da República: Religião, Cultura e


Sociedade no Brasil

Congregação mariana: formadora de dirigentes do Estado Novo em Pernambuco.

Do papel em branco as memórias registradas: histórias judaicas no brasil oitocentista.

O apocalipsismo em fins do século xix, o discurso que o circunscrevia aos “sertões” e a real
situação.

Os beatos e o catolicismo devocional, místico do século xix nos sertões nordestinos.

Para uma história do protestantismo na zona da mata norte de Pernambuco – 1890/1910

Política e religião na paraíba republicana (1889-1930).

Por uma discussão do filme “guerra de canudos”: misticismo e sociedade na transição


império-república.

GT 20 - Literatura, religiosidade, misticismo

A Casa: misticismo religioso que atravessa gerações

A incorporação do budismo zen n’O Livro dos Cinco Anéis de Miyamoto Musashi: entre o zen
e o ken(jutsu).

A representação do Medo no filme “As bruxas de Salem”: uma análise sobre o misticismo
religioso do século XVII

Aqui jaz os que não foram: quando os mortos são indesejáveis no mundo dos vivos

Bertrand Russell: um homem sem religião

Brás Cubas e Kierkegaard: a personalidade irônica e o paradoxo da fé.

Cosmogonia e Literatura de Fantasia: o caso Tolkien

Fé e literatura: uma análise dos elementos teológicos da obra “O Coração Disparado” de


Adélia Prado

GT 22 - Protestantismo e sociedade no Brasil

Andanças de Daniel P. Kidder: as identidades nortistas sob o espectro do protestantismo

As crenças religiosas nos símbolos litúrgicos da Igreja Anglicana

Mulheres pastoras: Rupturas e permanências na construção da identidade feminina


evangélica no Brasil

Novos tempos, novas ações: as representações cristãs contemporâneas ante as


reivindicações identitárias contemporâneas

Protestantes em confronto na Era Vargas, uma Era de discussões através da imprensa

Reduzidos ao silêncio: o manifesto da Ordem dos ministros batistas e o Estado


Revolucionário – 1964

GT 23 - Geografia, território e patrimônio cultural religioso

A importância da comida nos cultos afro-brasileiros: uma análise a partir da Festa de


Olubajé

Construção de identidade católica carismática nas romarias de Juazeiro do Norte

GT 24 - Religiosidades indígenas

“Brancos por fora, Vermelhos por dentro”

A política indigenista pombalina e a religiosidade indígena

A política indigenista pombalina e a religiosidade indígena

Festa na Jurema: Tradição e Resistência para Saudar a Coroa do Rei Malunguinho

Missões protestantes na aldeia indígena pataxó hã-hã-hãe

Separados por um 'Atlântico' de ideias: Cosmologias e traduções culturais na América


Portuguesa do séc. XVI

GT 25 - Cultura e identidades nos movimentos protestantes (Brasil, século XX)

“Os jovens na onda: A Bola de Neve Church em Natal".

A Nova Era Apostólica: a trajetória do MAIS em São Luis/MA

As Fases do Protestantismo: o Pentecostalismo e sua influência na construção da


mentalidade cultural do Brasil - século XX

Rupturas e Inovações: uma análise da reconfiguração evangélica pelos neopentecostais no


Juazeiro do Norte.
Teologia da Prosperidade: Uma justificativa religiosa da lógica capitalista

Vestindo uma nova religião: a indumentária como símbolo de adesão a identidade


assembleiana

GT 26 – Religiosidade e questões étnicas

Algumas reflexões sobre Iemanjá no Maranhão

As heranças da religiosidade africana no Brasil

As religiões afro-ameríndias nas espacialidades da cidade: delineações de fronteiras em


Campina Grande-PB.

As religiões afro-descendentes (ou afro-brasileiras) na atualidade

Catolicismo e Candomblé: Sincretismo e fluxos interculturais no Brasil

Intolerância Religiosa: o que o Estatuto da Igualdade Racial diz e o que de fato é


vivenciado?

O congado mantendo viva a memória da ancestralidade negra

O processo de nagoização e a legitimação de uma identidade étnica em Salvador


MAX WEBER, UM ORIENTALISTA?

Arilson Oliveira1

A Ásia weberiana

A Ásia é para Weber um verdadeiro jardim encantado, uma terra de livre

convivência entre as religiões, de tolerância no sentido helênico e de um real conjunto de

coexistências de cultos, escolas e ordens de todo tipo. Ele ressalva que também

aconteceram as disputas armadas, os conflitos políticos e as perseguições religiosas,

principalmente na China, mas tudo isso não tira o encanto dos intercâmbios mútuos que

cultivaram diversas formas de soteriologias, para as diversas camadas sociais.

Weber acrescenta que, com pouquíssimas exceções, as soteriologias asiáticas

oferecem promessas apenas acessíveis àqueles que levam uma vida exemplar (no caso

indiano, acessíveis de acordo com o cumprimento do dever ritual específico). Todos

participam de alguma forma, todos possuem uma esperança e um dever em torno dela.

No entanto, a intelectualidade tem sido sempre o guia de toda prática asiática, a mola

mestra das motivações, a categoria que eleva e transcende, a camada que detém os

modelos extremados do agir religioso e o desabrochar das inquietações sociais e

filosóficas. Os intelectuais na Ásia sempre deram os primeiros passos quando munidos de

certezas e nunca foram pensadores meramente teóricos, mas sempre os infantes de suas

teorias. Eles foram os modelos dos demais e sempre chegaram ao topo do possível e

desejado.

A Índia, em particular, diz Weber, é o país típico dessa luta intelectual e

inquietante, única e exclusivamente, por uma cosmovisão no sentido próprio da palavra:

por um sentido da vida no mundo. E acrescenta ele: “não há absolutamente nada no

âmbito do pensamento sobre o ‘sentido’ do mundo e da vida que não tenha sido já

pensado de alguma forma na Ásia” (Weber, 1996, p. 528). Desta forma, no pensamento

weberiano, todo o sentido da vida, da libertação do mundo, dos afazeres cotidianos, das

1
Doutor em História Social pela USP, Pós-Doutorando em Religião e Sociedade pela PUC-SP, indólogo
e autor de Max Weber e a Índia. Prof. Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da UFCG. E-mail:
arilsonpaganus@yahoo.com.br

1
festas, dos anseios e dos devaneios são moldados pelo pensamento especulativo, pelo

caráter da gnose que agita intensamente o homem asiático. Toda a soteriologia asiática,

portanto, está no âmbito do saber e é a porta de entrada para a libertação suprema, ao

mesmo tempo em que um excepcional caminho para o reto agir; por isso, ela é sempre

vista como a guia que conduz toda a sociedade.

Só o saber, diz Weber, dá ao homem asiático poder ético e mágico sobre si

mesmo e sobre os demais. E este é um saber geralmente irracional e algumas vezes

relativamente racional – como no caso da doutrina indiana do karma e do saàsära –, mas

nunca um estudo de conhecimento típico ocidental, senão um meio de domínio místico e

mágico sobre si e sobre o mundo, como bem caracterizado pelo Yoga indiano.

A Índia aporta à compreensão das ideias de Weber

Sérgio da Mata (2006), um dos maiores defensores do Weber historiador no

Brasil, elucida que o alemão continua a ser conhecido como sociólogo, apesar de ter

escrito parte substancial de sua obra na condição de historiador – como bem expresso

em Hinduismus und Buddhismus –, assim como de analista de complexos problemas

relativos à lógica do conhecimento histórico.

Mas se tal obra foi intitulada Religionssoziologie [sociologia da religião], como se

explica que ela é historicista? Mata (2006, p. 125) explicará que, dos três volumes dos

mencionados ensaios, exclusivamente o primeiro foi efetivamente organizado por Weber.

E na nota preliminar do primeiro volume, em nenhum momento Weber caracteriza o

conjunto dos trabalhos ali incluídos, bem como sua sequência de volumes, como obra

sociológica. Ao contrário, continua a explicar Mata, ele fala muito mais de abordagem

“histórico-cultural” ou “histórico-universal”. O que implica confirmar, a priori, que o título

Gesammelte Aufsätse zur Religionssoziologie [Ensaios Reunidos de Sociologia da

Religião] não tenha sido nomeado por Weber. Não sendo por acaso que a edição mais

completa de Hinduismus und Buddhismus seja recolhida com o título: Die

Wirtschaftsethik der Weltreligionen [A ética econômica das religiões mundiais], tomo 20

2
da seção I, de Max Weber Gesamtausgabe [Edição Completa de Max Weber], de 1996,

elaborada com o apoio de Karl-Heinz Golzio.

Todavia, a esposa de Weber (Marianne) juntamente com o editor Paul Siebeck

interferiram profundamente na edição da obra weberiana, guiando-a por critérios

próprios, dirá Mata. Muitos dos títulos das seções de Economia e Sociedade, por

exemplo, foram inventados por eles. De forma que há fortes indícios para se concluir que

seja de responsabilidade de ambos, e não de Weber, a “sociologia” incluída no título dos

Ensaios. Mata (2006, p. 125) apontará um indício neste sentido:

Numa carta a Siebeck, 24 de maio de 1917, Weber diz estar


retrabalhando os textos que deveriam ser publicados, após a
guerra, em suas “obras completas” [Gesamtausgabe]. E
acrescenta, numa clara menção ao título da futura obra: “ou, se
você preferir: os ‘ensaios reunidos’” [Gesammelten Aufsätze]. Nem
uma palavra, portanto, sobre sociologia da religião.

Segundo Marriane (2003, p. 396), Weber iniciou suas análises indológicas em

1911 – para Turner (1981), em 1910 – e uma primeira versão de Hinduismus und

Buddhismus ficou pronta em 1913; tendo a elaboração final do mesmo em 1915 e início

de 1916, quando Weber residia em Berlim. Em 1919, a obra já estava pronta para ser

impressa, e em 6 de fevereiro de 1921, quase seis meses após a morte de Weber, eis

que surge a primeira versão em livro.

Tal obra será uma das investidas weberianas mais proeminentes, como singular

demonstração de seu método histórico comparativo e diagnóstico de um particular

desencanto (racionalização burocrática e tecnocrática) ocidental e puritano versus a

Índia, sua “encantadíssima Índia”.

A Índia, no arguto olhar weberiano, é a terra natal do atual sistema racional

(fundamento de toda calculabilidade, matemática e gramática) ocidental, o qual

manifestou na condução da guerra, da política e da economia – todas circundadas de um

racionalismo que acompanha a literatura que as teoriza, a Arthashastra. Uma terra onde

tanto a guerra cavalheiresca (yuddham) como os exércitos disciplinados (danda) tiveram

sua época; onde o arrendamento dos impostos (kara-dandayoh) e o desenvolvimento

3
das cidades (jana-padah) nada deviam ou se distinguiam do patrimonialismo ocidental;

bem como o cultivo da ciência racional (sankhya), de escolas filosóficas (darshanas) e da

consequente metafísica profunda (Yoga).2

Dirá Weber (1987, p. 13):

O atual sistema numérico racional, fundamento técnico de toda


‘calculabilidade’, é de origem indiana. Os indianos [...] cultivaram
a ciência racional (e entre ela, a matemática e a gramática).
Também tiveram a experiência do desenvolvimento de numerosas
escolas filosóficas e religiosas, de quase todos os tipos sócio-
historicamente possíveis. Em boa medida, surgiram estas sobre o
substrato de uma poderosa tendência ao intelectualismo e à
racionalidade sistemática que se apoderaram dos mais diversos
domínios da existência.

Em todo caso, afirma Weber: “jedenfalls ungleich größer als irgendwo im

Occident vor der allerneusten Zeit” [infinitamente maior que em qualquer parte do

Ocidente antes da Idade contemporânea] (1987, p. 13), e como em nenhum outro lugar

ou cultura. Além disso, continua o autor, a Índia também é a região onde o artesanato

(karu) e a especialização dos ofícios (vanijyam) alcançaram estágios grandiosos; onde,

como em nenhum outro lugar, apreciou-se tanto a riqueza (Lakshmi) sem, por outro

lado, cair nos ditames de uma ética econômica (com afã de lucro ou Erwerbstrieb) tipo

capitalista (particular da modernidade protestante) ou do desencantamento do mundo

(Entzauberung der Welt), o qual – este último – caracterizado por Weber como o

mecanismo desdivinizado do mundo, através do qual (do protestantismo à ciência

profissionalizante moderna) se chega ao reducionismo do mundo com seu mecanismo

causal desmagicizante, tecnocrata e burocrata.

Weber também nos apresenta uma Índia onde as éticas religiosas de negação do

mundo (como o budismo), seja teórica ou praticamente, e com a maior das intensidades,

deram margem, originaram e desenvolveram a contemplação extramundana, a ascese e

2
Lembrando que a terminologia Yoga nada, ou quase nada, tem em relação com o que se observa nas
academias estéticas ocidentais atuais, pois Yoga, termo que designa a forma-propulsora do pensamento indiano
clássico, deriva da raiz sânscrita yuj, “ligar”, “manter unido”, “atrelar”, “jungir”, a qual originou o termo latino
jungere, jungum e o inglês yoke. Yoga designa, evidentemente, um liame; e a ação de ligar-se ao Absoluto
pressupõe como condição primeira à ruptura dos liames que unem o espírito ao mundo, ou seja, um estado
mental e corpóreo prévio, capaz de promover uma emancipação ou união de si com a metafísica (como coisa em
si ou representada numa personalidade ou energia transcendente).

4
o monasticismo, manifestando-se de forma mais coerente e dando início a um caminho

histórico que se espalhara por todo o mundo. Essa é a Índia de Weber: original, sempre

cobiçada e ao mesmo tempo racional e mágica; uma verdadeira terra de filósofos e

pensadores inquietos, sempre inquietos!3

Todavia, a Índia, como todo o passado humano antes do advento do

protestantismo, segundo Weber, não desenvolveu uma racionalidade “com sua ‘vocação

profissional’ entendida como missão, exatamente como dela precisa o [espírito do]

capitalismo” (Weber, 2004, p. 68). Mas ele não encara tal fato como desenvolvimento ou

evolução, pelo contrário, vê nessa empreitada única do ocidental puritano um

desencanto, o qual provocará a retirada dos valores mais sublimes e essenciais da vida

pública, surgindo o que ele denomina de “especialistas sem espírito” e “gozadores sem

coração: esse Nada [homem moderno que] imagina ter chegado a um grau de

humanidade nunca antes alcançado” (Weber, 2004, p. 166). Para Weber, tal homem

moderno, esse Nada, em tais circunstâncias, está destinado a viver em uma época

desencantada: sem Deuses nem profetas.

Com o advento da indologia na Europa, principalmente na Alemanha romântica,

a Índia deixará de ser uma matéria de especulação livre e passará a ser uma disciplina

ministrada com regras rígidas, não obstante, etnocentricamente hegelianas para os não-

orientalistas. Weber será o único intelectual não-orientalista4 ligado à investigação

histórica5 que tentará transgredir as barreiras impostas pelo academicismo indológico

alemão com raízes hegelianas,6 combatendo intelectualmente a Filosofia da História que

3
Uma Índia que contradizia, e muito, aquela que Hegel apresentara; justificava a que Schopenhauer e os
românticos alemães ovacionavam; e se assemelhava muito com a Índia das castas e do código de leis de Manu
em Nietzsche: o qual resume as castas naquela que “formula a lei maior da própria da vida” (Nietzsche, 2007,
§57) e contrapõe o hinduísmo com o cristianismo: “é com o sentimento oposto [à Bíblia] que leio o código de
Manu [o mais antigo código de leis conhecido], uma obra inigualavelmente espiritual e superior, tanto que
apenas nomeá-lo juntamente com a Bíblia seria um pecado contra o espírito. Logo se percebe: ele tem uma
verdadeira filosofia atrás de si, em si, não apenas uma malcheirosa judaína [ópio judaico] de rabinismo e
superstição [...]” (2007, §56-57, grifos do autor).
4
Não-orientalista, no sentido de não ter o Oriente como foco principal, mas ao mesmo tempo tendo-o
como ambiente sócio-intelectual comparativo ao desencantamento do mundo na modernidade.
5
Na Filosofia, Schopenhauer e Nietzsche farão sua parte.
6
Muitos pensadores alemães, e em parte Marx, olharam para a Índia com preconceito e desdém; com um
olhar típico eurocêntrico, semelhante aos cristãos portugueses que a invadiram com suas prerrogativas
sentimentalistas. Tais pensadores não a compreenderam ou mal interpretaram-na, ora por não absorverem

5
desqualificava integralmente a Índia como sem qualquer fundamento de ideias

profundas. Tal desqualificação, como nos alerta Bermejo Barrera (1999), expressava

aqueles elementos que constituem a ideia clássica da história universal: a

unidimensionalidade política, o caráter linear do progresso, o caráter sexista que exclui a

mulher da história, a supressão ou rebaixamento do “outro” não-ocidental e não-cristão,

o caráter providencial que reflete a ideia de que vivemos no melhor dos mundos

históricos possíveis: onde tudo cumpre uma função e é necessário; e, por fim, o

etnocentrismo que sustentou o discurso – por meio de inúmeras ciências, inclusive da

História – do colonialismo e da superioridade do homem branco e europeu.

Conclusão

Frente à história universal, portanto, Weber não verá o não-ocidental ou não-

cristão como o “outro”; ele não tratará o Oriente, por exemplo, como primitivo ou

subdesenvolvido, o qual permanecerá estancado até seu encontro com o Ocidente

europeu. Em seus estudos da Índia, por exemplo, o Ocidente aparecerá apenas como

contraste e sempre como a região do mundo que se desencantou, que perdeu valores

necessários para a sociedade. Até mesmo o uso dos termos “racional” e “irracional” não

estará associado a uma dicotomia: Ocidente (racional) e Oriente (irracional); pois, a

própria ideia weberiana de “racionalidade” se divide em racionalismo conceitual e

racionalismo pragmático – o primeiro relacionado com o domínio teórico da realidade

através de conceitos abstratos cada vez mais precisos, e o segundo, num sentido de

artifício metódico de um objetivo prático, determinado através de um cálculo cada vez

mais conciso dos meios adequados. Ambos são muito diferentes.

Nas palavras de Laurent Fleury, Weber “compreende que o que pode ser

considerado racional a partir de determinado ângulo pode inversamente ser julgado como

significativamente o sistema social (varnasrama), a lógica (nyaya), a ciência (sankhya), a filosofia (darshana) e
a religião (dharma ou “dever ritual” hindu, budista ou jainista) indianas, ora por constatarem inúmeras
contradições e insuficiências entre a Índia como objeto e seus métodos analíticos.

6
irracional de outro. Por outras palavras, Weber não separa [em certo sentido] a

racionalidade e a irracionalidade” (Fleury, 2003, p. 35).

Ou seja, conclui Fleury (2003, p. 33),

Apesar da ideia da especificidade ocidental, Weber evita a


armadilha do etnocentrismo. De fato, estuda estas civilizações com
neutralidade, qualificando o elo que une o comportamento dos
indivíduos às formas econômicas, às estruturas sociais e às
instituições políticas. Adota uma posição anti-evolucionista pela
sua recusa da ideia de progresso e de leis dialéticas de uma
história universal, linear e necessária. Insiste num encadeamento
de circunstâncias, nos cruzamentos recíprocos de fatores e na
simultaneidade das contingências temporais. Este pluralismo
causal elimina tudo o que é unívoco [...].

Isto para a época – e ainda para nós – representa uma verdadeira revolução

intelectual e uma alternativa à Filosofia da História.

Andreas Buss (1985) também nos elucida que para analisarmos a posição

weberiana frente ao âmbito asiático, devemos ter em conta uma série de fatores.

Primeiramente, a atitude weberiana diante da sociedade moderna (com sua visão lúgubre

do capitalismo e do suposto progresso ocidental) pode resultar surpreendente para a sua

época, pois o mesmo já combatia as teorias etnocêntricas, as quais etiquetavam de

irracionais as religiões orientais. Weber estava convencido da originalidade e da

importância universal da sociedade ocidental européia e moderna, caracterizando-a como

racional e burocrática, ao mesmo tempo em que observa o efeito do hinduísmo e do

budismo sobre a vida econômica indiana, atribuindo, concomitantemente, um alto grau

de racionalidade a suas teodicéias, práticas religiosas, modo de vida e filosofia. Parece

claro, portanto, segundo Buss, que por sua atitude ambivalente frente ao capitalismo, à

ciência e à sociedade ocidental em geral, Weber não havia usado nunca o Ocidente como

exemplo para o Oriente.

Em segundo lugar, muitos autores viram nas obras de Weber uma defesa do

colonialismo e do domínio imperialista ocidental, o qual havia amparado sua suposta

superioridade racional. No entanto, Weber em nenhum momento considerou o “outro”

como irracional; nem sequer utilizou o termo “subdesenvolvido” ou “despótico”, e muito

7
menos subdesenvolvimento asiático ou indiano. Finalmente, Weber não queria passar

uma imagem acabada de cada Weltreligion, senão falar das peculiaridades que servem

de contrastes em relação a outras religiões, as quais, ao mesmo tempo, ajudam a

entender as mentalidades econômicas.

Em suma, Weber nos previne ante o otimismo do progresso presente no

hegelianismo e marxismo, assim como diante da teoria da modernização, e se motiva a

escrever uma história do processo da racionalização ocidental como uma perspectiva da

patogêneses da modernidade, tendo como extremo comparativo intercultural: a Índia e

seu esboço alternativo de sociedade. O que nos permite entender que Weber foi além

das teorias dos sistemas vigentes, construindo uma perspectiva da história que possui

indicadores sobre “como se podia afrontar o dilema da escrita histórica atual entre a Cila

do enciclopedismo sem limites e a Caribdis das construções teleológicas” (Peukert, 1989,

p. 40).7 Vendo desta forma, Weber nos adverte que uma historiografia perspectiva não

só deixaria que entrassem em conflito várias imagens históricas, como também animaria

e permitiria um pluralismo de relações de valor.

Um dos aspectos mais originais da visão peukertiana é a importância que

concede a perspectiva histórico-universal de nosso autor. Weber, reconhecida e

consagradamente um dos nomes mais representativos da análise da história ocidental,

especialmente da gêneses do capitalismo, aparece, nos últimos tempos, também como o

pensador dos desenvolvimentos sociais e culturais asiáticos. Nesse ínterim, Mommsen

apontará que, “em um certo sentido, não só se pode denominar Max Weber como

historiador da cultura ou historiador social, mas também como historiador dedicado à

história universal [Universalhistoriker]” (Mommsen, 1982, p. 182). Opinião semelhante

também defendida por Astor Diehl: “em muitos sentidos, justifica-se citá-lo não apenas

como historiador da cultura e historiador social, mas também como historiador do

universal” (Diehl, 2004, p. 23). E Diehl vai além, afirmando que a construção dos tipos

7
Cila e Caríbdis são divindades aquáticas presentes na mitologia grega. Da narração sobre Cila e
Caríbdis, surge a expressão: “estar entre Cila e Caríbdis”, o que equivale dizer: “estar entre a cruz e a espada” ou
“entre a espada e o muro”, ou seja, estar diante de um problema complicado ou de dificílima solução.

8
ideais de Weber é simultaneamente “história teórica e sociologia histórica com um

extraordinário grau de abstração” (Diehl, 2004, p. 45).

O que leva Ringer (2004, p. 162) a concluir:

É deveras significativo que alguns dos estudantes de Weber mais


comprometidos na Alemanha atual sejam historiadores, e que
tenha sido Weber quem inspirou a nova direção mais significativa
na historiografia alemã contemporânea, historiografia que deu
seguimento à análise comparativa da mudança estrutural.

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11
ESTUPROS: UMA MÍDIA QUE NOS MASSIFICA, UMA COSMOVISÃO QUE NOS
RELATIVIZA

Arthur da Nóbrega Santos1

RESUMO: Pensar sobre a outra cultura deve ser sempre um exercício pautado na
alteridade. Com isso, objetivamos analisar duas reportagens do portal de notícias do
G1 que tratam de dois estupros, um no Brasil e outro na Índia, considerando o
discurso preconceituoso para com o último caso. Para tanto, teremos como
pressupostos bases teóricas sobre estereótipos e Hinduísmo. Desse modo, vemos o
princípio etnocêntrico e um discurso ainda colonizador do Ocidente para tratar desta
situação, o que nos permite aferir a importância de se colocar no lugar do(a) outro(a)
para não cairmos em um discurso colonizador.

Palavras-chave: Estupro; Mídia; Alteridade.

Geralmente, as notícias de violência reservam


às mulheres o espaço que o ato violento
abarca, e pequenas informações são
adicionadas à margem, como que para atestar
que aquele personagem se limita ao ato de
violência sofrido. (Pereira, 2009, p. 496)
1. Introdução
O estupro é uma prática presente em diversas culturas. Trata-se de uma ação
violenta, em sua maioria remetida a sexo não consensual, mas possui variação no
modo de entendê-lo.
O estupro carrega em si uma noção de alteridade, o que, aqui, nos remete a
pensar o discurso jornalístico como massificador, considerando que a própria noção
penal sobre este variar de acordo com legislações e costumes.
Nesta perspectiva, neste trabalho discutir-se-á a repercussão e o tratamento
discursivo de dois estupros: um ocorrido no Brasil e outro na Índia. Neste, uma
estudante é estuprada em um ônibus por seis homens na periferia da capital indiana.
Já naquele, duas adolescentes brasileiras foram estupradas por dez homens
integrantes da banda New Hit. Para tanto, di scute-se a mídia G1 como reprodutora de
estigmas e estereótipos – característica dos discursos colonizadores.
Vale-se do conceito de cronotopo de Pereira(2009) para analisarmos o discurso
jornalístico a partir do tempo-espaço, considerando assim a formaç ão imaginária
dos(as) envolvidos(as) de frente a esta fonte de informação.
Discutem-se também categorias antropológicas do Exótico e do Familiar. Estas
são de utilização antropológica para se pensar a etnografia e, assim, apresentam-se
as discussões metodológicas de Giberto Velho e Roberto Da Matta.

1Acadêmico bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) graduando em Ciências Sociais pela
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. E-mail: arthurnobrega@live.com
Além disso, há a discussão de Silva e Moura (2008) sobre formação da
subjetividade pelo saber/poder propagado pelos meios midiáticos, que influenciam as
ações sociais dos(as) indivíduos.
Ressalta-se a prática antropológica e sociológica da relativização cultural para
analisar objetos pretendidos. Assim, abarca-se teoricamente o Hinduísmo para pensar
o contexto no qual ocorreu o estupro na Índia.
Por fim, vamos inter-relacionar estes conceitos com a análise da mídia
etnocêntrica escolhida por nós, o G1. A escolha desse veículo midiático foi escolha
proposital, pois faz parte da considerada maior fonte de informações para a população
brasileira, principalmente por pessoas de classe mais populares.

2. Formação de subjetividades pela mídia


A pós-modernidade é marcada pela fluidez das personalidades, pela forma de
ver o mundo e vivenciá-lo. Assim, a formação das subjetividades deriva da rapidez de
informação. Logo, a tecnologia é um vetor que propicia constituições dos diversos
eus, pois “a constituição de subjetividades na contemporaneidade está cada vez mais
sendo difundida pela mídia, cujas imagens apresentam modelos e padr ões para a
construção de novos sujeitos.” (Silva; Moura, p. 842, 2008)
Neste sentido, as mídias televisivas, a Internet, os jornais online são fontes
formadoras de visões de mundo. Portanto, estes veículos liderados por uma elite
conservadora pode gerar um acesso não-democrático ao conhecimento, produzindo
um discurso colonizador sobre os lugares tidos como exóticos, como, por exemplo, a
Índia.
Ou seja, “na sociedade de controle e, principalmente, na mídia, que produz
seu discurso de verdade, há certa definição pelos vigilantes sobre quem será vigiado e
quais os discursos que irão proliferar ou não” (Idem, 2008).
Assim, segundo Silva e Moura (2008) a mídia é um campo de poder controlado
por uma elite vigilante que escolhe qual discussão deve aparecer e como isso vai se
construir enquanto discurso.
Estas autoras valem-se de discussões de Fischer para pensar a mídia como
campo de saber/poder:
Fischer ressalta o papel que a TV, como meio de comunicação
social, exerce na produção histórico-cultural de modos de
subjetivação, por meio de uma linguagem audiovisual que
veicula significados relacionados a modos de ser e habitar na
contemporaneidade. Fundamentada na noção de dispositivo da
sexualidade de Foucault, a pesquisadora reconhece também a
mídia, enquanto aparato discursivo, como um dispositivo
pedagógico quando produz saberes que, de certo modo, se
voltam para a formação e interpelação de sujeitos pertencentes
a diferentes segmentos sociais (Idem, 2008, p. 851).
Vemos assim, que fontes de acesso comum, como o G1, são importantes
fontes de formação de visão de mundo da população. E o discurso jornalístico
influencia a forma como são inteligíveis alguns estigmas e estereótipos.
Hommi Bhabha se preocupou com os estereótipos e a dominação que eles
causam em um discurso colonizador. Pois, para ele, o estereótipo é naturalizado e
absorvido pela reafirmação discursiva.
O autor diz que os estereótipos são imagens, símbolos, representações que o
discurso colonial utiliza para dominação, uma vez que constroem modelos que
definem claramente a diferença das culturas, tradições, povos, costumes do
colonizador e do colonizado.
E esse discurso colonial que reafirma a diferença entre o dominante e o
dominado(a) é uma estratégia política e simbólica para reafirmar a dominaç ão. E são
construídos, segundo Bhabha, através de uma ordem fixa de padrões dos
colonizadores. Entretanto, estes estereótipos n ão passam de construções falsas da
realidade:

Através dos estereótipos, o discurso colonial emprega um


regime de verdade estruturalmente similar ao realismo,
tornando-se assim apreensível e visível. Tal discurso possui
uma intencionalidade política, na medida que é formulado pelo
dominador com o intuito de justificar a conquista e estabelecer
sistemas de administração e instrução sobre o colonizado
(Mauro, 2002, p. 122).

Esta análise sobre estereótipos e estigmas levantados por Bhabha encaixa-se


com a estrutura das reportagens do G1 ao tratar, no discurso jornalístico, o caso da
Índia como uma grande viol ência, por ser um lugar exótico e caótico. Já na narrativa
do estupro ocorrido no Brasil possui outros enredos, tratando os autores dos crimes
apenas por suspeitos, mesmo após os laudos médicos comprovarem que de fato
houve o ato.

3. Mídia: o diferente tratamento do estupro, entre o exótico e o familiar


Para melhor compreensão deste capítulo, sugere-se primeiro a leitura dos
Anexos I e II deste trabalho. Assim, propõe-se discutir o exótico e o familiar,
estereótipos e estigmas nas duas reportagens, tiradas da mesma fonte jornalística de
comum acesso à sociedade brasileira.
Para o antropólogo Da Matta, o exercício do etnólogo é tornar o familiar
exótico, e transformar o exótico em familiar. Ou seja, o estranhamento do(a)
pesquisador(a) para com os(as) pesquisados(as) deve ser necessário para melhor
visualização da alteridade. Assim, esse exercício se torna de distanciamento, mesmo
que emocional, para melhor análise.
Transformar o exótico em familiar trata de buscar naquele sistema simbólico
do pesquisado(a) a compreensão dada por aquela cultura. Dessa forma, é o método
mais recorrente nos escritos antropológicos sobre as Sociedades Tradicionais. Já a
prática de tornar o familiar em exótico é relacionada à Antropologia urbana, quando
os(as) pesquisados(as) são da própria sociedade em análise. Ou seja, trata-se de
problematizar questões já naturalizadas pelo meio social.
Giberto Velho, em seu texto, Observando o Familiar (1978) vai desmistificar e
criticar esse distanciamento proposto por Da Matta. Pois para ele é possível observar
o familiar, pois nem tudo que nos é familiar nos é conhecido. Por isso, não há a
necessidade de tornar algo exótico; apenas é necessário a problematização do que
nos é familiar.
Neste sentido, a distância social e a distância psicológica são interculturais, ou
seja, não significa que as proximidades de indivíduos da mesma sociedade façam com
que possuam o mesmo gosto, sejam familiares, ao mesmo tempo em que a distância
territorial não torna necessariamente a outra cultura estranha.
Ent ão, para Velho(1978) há um artificialismo nas separaç ões e limites de
culturas e sociedades, o que não significa que ele as negue, mas apenas as questiona
quanto à sua construção cultural e histórica.
Estas categorias são definidas claramente nas reportagens trabalhadas, pois ao
tratar do estupro do estranho, aqui, na Índia, que nos parece alheio e distante e ao
mesmo tempo bárbaro, não estranha-se o do familiar, no Brasil. Assim, vemos um
limite tênue entre os(as) outros(as) e o nós sendo apagado por um etnocentrismo
ocidental.
Em outras palavras, no discurso da reportagem do caso na Índia, toma-se o
estupro como prática brutal e distante da realidade brasileira, ou seja, exótica.
Entretanto, nota-se na outra reportagem que a mesma prática é familiar, e não tão
distante como se propõe na primeira narrativa.
Outro fator que correlaciona as duas reportagens é a linguagem utilizada. Para
tratar do estupro no Brasil, mesmo após os laudos que confirmam o estupro, eles s ão
tratados ainda como suspeitos, e as meninas procuraram o delito ao estarem lá. Já
no caso na Índia, é uma “vítima de um violento estupro coletivo” (Fonte G1, 2012)
em que os homens são grandes monstros que destroem o direito feminino de
liberdade.
Neste sentido, PEREIRA (2009) afirma que essa express ão de dominação faz
parte do discurso jornalístico que diz ter, contraditoriamente, comprometimento em
sua escrita com uma neutralidade axiomática, mas que, na verdade, é também um
instrumento de violência. Ou seja, para o autor os jornais – principalmente as páginas
policiais – produzem uma violência de gênero e de classe.

A imprensa grava e ressalta determinadas dimensões de forma


mais ou menos consciente. Embora esses discursos se
construam com base em representaç ões coletivas, condensando
emoções vivenciadas coletivamente nas imagens e nas letras
reproduzidas pela mídia, existe certo grau de consciência nos
jornais que indica a dimensão ideológica. Os jornais n ão são
apenas portadores de eficácia mágica que consolidam a
reciprocidade entre editores e leitores; são discursos
posicionados e valorados (Pereira, 2009, p. 487).

Neste sentido, o discurso das reportagens massifica noç ões sobre duas culturas
diferentes, e salienta o caráter orientalista e brutal do caso de estupro na Índia,
porque a valoração ocidental naturaliza uma dominação sobre o Oriental, fruto
histórico da colonização europeia.
Esta afirmação vai, analogicamente, ao encontro da explicação de Pereira
(2009) sobre a invisibilidade histórica do homem pobre nas páginas de violência nos
jornais. Porque “os personagens só existem por causa da violência; a construção
cronotópica indica que até aquele momento nada significativo ocorreu em suas vidas.
[...] Descontextualizam-se o agressor e a vítima, suprimindo suas histórias de vida”
(Idem, p. 489).
Salienta-se então, que:

Se o cronotopo é uma forma de percepção ideológica, um


modo de compreender a vida humana simultaneamente dentro
de um espaço e num ponto específico do tempo histórico, a
própria violência não pode ser distanciada de seu caráter
ideológico, nem de sua dimensão espaço-temporal (Idem, p.
489).

Este é o mesmo distanciamento cronotópico que se configura dentro da


linguagem tida como neutra axiologicamente nas reportagens trabalhadas, pois
desconsidera-se um contexto cultural e religioso indiano em um determinado tempo,
e o traz arbitrariamente para o discurso etnocêntrico brasileiro. Assim, da mesma
forma que o homem pobre não possui biografia e história, a Índia também não.

O espaço, à semelhança do tempo, também é abstrato. Para


descrever o ato violento se faz necessária a delimitação do
espaço. Contudo, os jornais apresentam os acontecimentos num
espaço determinado unicamente pelo acaso, ‘pela coincidência
ou pela não coincidência fortuitas em dado lugar no espaço’. Os
fatos podem se passar em qualquer lugar: Ceilândia,
Samambaia, Taguatinga, Sobradinho ou Plano Piloto [ou a
Índia]. Existe, evidentemente, a suposição de que algumas
localidades na cidade são mais violentas do que outras, mas,
mesmo nesses sítios, não se propõe descrição espacial ou
vinculação entre espaço-personagem. O ato de violência
ocorreu aqui, como poderia ter acontecido em qualquer lugar.
As localidades consideradas de maior índice de violência
recebem, entretanto, motivo cronotópico diferente, o de lugar
distante e desconhecido, o que serve para consolidar a vis ão de
que a violência ocorre nos espaços marginais da sociedade
(Idem, p. 493).

Ou seja, inclui-se neste discurso de naturalizaç ão da viol ência um espaço


marginalizado por etnocentrismo ocidental (e pelo orientalismo). Então cria-se no
imaginário dos(as) leitores(as) um local – a Índia – como se n ão possuísse costumes,
regras, religião, sociedade ordenada.
Nesta perspectiva, o próprio veículo informativo possui em sua narrativa um
discurso de violência invisível, que naturaliza estigmas e massifica crenças, populaç ão
e territórios. Logo, forma subjetividades que estereotipam o Oriental como exótico e
caótico.
Neste sentido, “as relações espaço-tempo nos textos de jornal que noticiam a
violência, ocorrem de forma a criar locais civilizados e pacificados e espaços
marginais, distantes e estrangeiros, que se configuram num outro da sociedade
hegemônica.” (Pereira, 2009, p. 497).
Assim, há uma necessidade do comprometimento jornalístico com a verdade,
apesar de ele não ser seguido na grande – e esmagadora – parte das vezes.
Inegavelmente a cultura colonizadora do Ocidente cria estereótipos.
E é esse papel de criaç ão de estereótipos que a mídia se encarrega de fazer
com o discurso etnocêntrico e colonizador – sem a redundância dos termos. E para
desmistificar devemos ter noção de algumas bases conceituais da cultura do(a)
outro(a), para, então, tomarmos posição efetivas com os fatos.

4. Alteridade e desconstrução
Frente a isso, reafirma-se a posiç ão da importância midiática para formaç ão
das subjetividades e visão de mundo. Mais ainda, o descompromisso ético (re)afirma
estigmas, tornando-se discursos de poder/saber.
Nestas reportagens, salienta-se uma dupla violência, uma relacionada ao
gênero e outra ao Oriente. Pois, segundo Pereira (2009), ao noticiar uma violência
contra mulher, ela torna-se anistórica e atemporal. O mesmo ocorre com a
desconsideração histórica e contextual do estupro ocorrido na Índia.

Os discursos jornalísticos, quando descrevem a violência contra


mulheres desconhecem qualquer localização histórica do tempo
dos acontecimentos. A história é excluída dos textos
jornalísticos. Assim, as datas fornecidas são referenciais,
exteriores ao curso do acontecimento, em geral se limitando à
própria data do jornal diário, tratando-se, simplesmente, de
instrumental técnico de informação, mas que, no essencial, não
guardam nenhuma vinculação com o fato ocorrido (Idem, p.
493).

Desconsiderar um contexto cultural e massificar aspectos das culturas são


artifícios de uma dominação etnocêntrica e, aqui, orientalista. Pois, com instrumentos
de violência invisíveis se constroem em indivíduos(as) noções estigmatizadas da real
face intercultural.
Um exemplo disto é o tratamento homogêneo da cultura da Índia e do Brasil
para se falar dos estupros. Principalmente, dentro do prisma ocidental, no qual
sempre se buscou categorizar o caos do mundo, visualizar a dimensão do Hinduísmo
indiano é uma tarefa difícil, porque esta n ão é uma crença unificada: é de fato plural
devido às divisões de casta, diversidade baseada na dimensão regional, puralidade de
línguas, intervenções de outras culturas por invasão e domínio político, como aqueles
do Islã e dos britânicos, e outros.
Mais especificamente, deve-se ter em mente uma diferenciaç ão básica entre
os ocidentais e a postura oriental hindu para se tratar de um crime – que infelizmente
ocorre cotidianamente –, qual seja, a divis ão estabelecida entre o Sagrado e o
Profano. Na crença hindu o sagrado é ad continuum, ou seja, todas as práticas diárias
são destinadas ao divino. Por exemplo, desde preparar uma comida, oferecimento de
água, flores e comida para as divindades.
Com isso, para pensarmos a Índia temos que pensar as crenças religiosas que
a envolvem, já que “o hinduísmo é uma religi ão, uma cultura e um modo de vida.
Pois aquilo que no ocidente pode ser considerado como fronteira entre a esfera
sagrada e a esfera profana não se aplica às tradições hindus” (NARAYANAN, 2009, p.
9)
Assim, o alcance social e as suas repercussões do caso de estupro da mulher
indiana devem ser interpretados dentro de seus códigos culturais e religiosos, para
não desconsiderar aspectos simbólicos importantes para decodificação do mesmo nas
normas vigentes.
Nesta perspectiva, falta a análise a partir da cosmovis ão indiana, que define o
feminino por meio de outro código simbólico e teórico e suas interfaces com a religião
que conceitua as ações sociais.
Dessa forma, o discurso jornalístico torna-se um veículo de viol ência cultural e
de gênero, anulando mulheres como indivíduos e/ou tornando exóticos os lugares.

Seja pela distância denunciada pela objetividade e assepsia dos


textos de jornal, seja pela forma de interligar tempo e espaço,
ao relatar a viol ência de alguma forma relacionada ao
feminino, as páginas policiais a colocam num mundo estranho e
estrangeiro. E nele não se verifica familiaridade com o autor –
familiaridade com o de onde veio e o de onde observa o autor.
Esse caráter de ‘estranho’ é dado também pela forma
descontextualizada de se colocar os fatos (Pereira, 2009, p.
494).

Por fim, v ê-se que a alteridade se faz necessária para se fazer jus ao sistema
simbólico em que se refere ao estupro na Índia, para situá-lo em tempo-espaço
respectivo, além destas reportagens trazerem uma massificaç ão cultural que
naturaliza a opressão do Ocidente para com o Oriente.

5. Considerações finais
As práticas culturais são plurais e partem do princípio de como o indivíduo
enxerga o local de onde fala, onde age e vivencia a interação social. E para não
cometermos um erro colonizador devemos acionar constantemente uma postura
consciente da alteridade.
Neste sentido, com artifícios cronotópicos, o discurso jornalístico se torna um
campo de saber/poder que utiliza a mídia como um dispositivo de viol ência simbólica
e invisível. Assim, pressupõem violentos os lugares tidos como exóticos e marginais e
excluem simbolicamente personagens femininos.
A mídia trabalhada neste trabalho comete este erro fundamental, agravado por
ser de fácil acesso, ou seja, com maior divulgaç ão de estereótipos. O compromisso
jornalístico de trazer a informação sobre um acontecimento para que se torne objeto
de reflexão não é cumprido – e talvez nem se queira que seja – por este veículo
midiático. Torna-se assim um discurso de viol ência cultural e de g ênero, por anular e
excluir personagens, histórias, biografias, religiões e gêneros.
Percebe-se a necessidade de se colocar no local dos(as) outro(as) e considerar
como eles(as) enxergam o mundo para não emitir juízos de valores etnocêntricos ou
orientalistas – pois não se acredita em neutralidade em nenhuma nuance da vida
social.
Nesta perspectiva, torna o estupro na Índia como anti-histórico e
descontextualizado, desconsiderando o Hinduísmo como formador de costumes,
crenças, sociabilidades e ações sociais. Acarretando assim, um etnocentrismo que é
injetado na população que desconhece a real situação.
Esta reportagem só reafirma o estereótipo orientalista para com os(as)
orientais, de bárbaros(as), incivilizados(as) e caóticos(as). Mas ao relativizar e ver
que as mudanças dos atos se alteram apenas na forma que eles s ão tratados pelos
discursos jornalísticos, vemos que, se seguirmos a mesma lógica de raciocínio, os(as)
ocidentais são bárbaros(as), incivilizados(as), caóticos(as), alterando apenas o fato
de sermos (des)informados(as) por uma mídia colonizadora.
6. Referências Bibliográficas

BHABHA, Hommi. Local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p. 105-128.

MAURO, Victor F. Estigma e reelaboração identitária e cultural no filme Yasmin. In:


PASSAMANI, Guilherme R. ( Org). Ciclo de cinema: Entre histórias, teorias e
reflexões. Campo Grande: 2012, p. 111- 131.

NARAYANAN, Vasudha. Conhecendo o Hinduísmo. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.

PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Viol ência e tecnologias de gênero: tempo e espaço nos
jornais. In: Estudos Feministas, Florianópolis, 17(2): 344, maio-agosto/2009.

PRABHUPADA, A. C. Bhaktivedanta Swami. A Ci ência do autoconhecimento. São


Paulo: Editora Vida, 2008.

BHAGAVAD-Gita como ele é. Tradução e comentários A. C. Bhatkivedanta Swami


Prabhupada. São Paulo: Editora Vida, 1998.

SILVA, Marluce Pereira da; MOURA, Carmen Brunelli de. Mídia e a figura do anormal
na mira do sinóptico: a constituição discursiva de subjetividades femininas. In:
Estudos Feministas, Florianópolis, 16(3): 841-855, setembro-dezembro/2008.

Anexo I
17/12/2012 12h33 - Atualizado em 17/12/2012 13h05

Estudante é estuprada e jogada de ônibus na Índia


Motorista e cobrador estariam entre os agressores em Nova Déli. Amigo da vítima foi espancado com

barras de ferro, disse polícia.


Uma jovem de 23 anos vítima de um violento estupro coletivo na capital da Índia, Nova Déli,
já passou por cirurgias, mas continua internada e corre risco de morrer, informa a equipe do
hospital local onde ela recebe tratamento.
Os médicos dizem que a seriedade dos ferimentos decorre do fato de que a estudante de
medicina e um amigo que a acompanhava foram atacados e surrados com barras de ferro
após a mulher ter sido estuprada.
'Isto foi mais do que um estupro, havia muitos ferimentos. Parece que um objeto muito
grosso foi usado repetidamente [pelos responsáveis pelo ataque]', conta um dos médicos,
acrescentando que este é um dos casos mais graves de estupro que já viu.
Mas, de acordo com o correspondente da BBC na capital indiana,Soutikl Biswas, há pouca
esperança de que o caso motive mudanças concretas na cidade, que vinha contabilizando uma
incidência cada vez maior deste tipo de violência.
A mulher, que estava acompanhada por um amigo, embarcou em um ônibus na noite de
domingo e foi atacada e estuprada pelo seis homens, segundo a polícia.
Alguns relatos da imprensa informaram que entre os atacantes estavam o motorista e o
cobrador do ônibus.
O amigo da vítima foi espancado com barras de ferro antes dos homens se revezarem para
estuprá-la, informaram policiais.
‘Até agora, podemos confirmar o envolvimento de quatro homens', disse, acrescentando que
especialistas da polícia prepararam retratos-falados dos atacantes a partir de descri ções
fornecidas pelas vítimas.
O ataque provocou novos apelos por uma maior segurança para as mulheres em Nova D élhi,
que registrou 568 estupros em 2011, em comparação com os 218 da capital financeira
indiana de Mumbai no mesmo ano.

Fonte: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/12/estudante-e-estuprada-e-jogada-de-um-
onibus-em-nova-delhi.html
Anexo II
26/08/2012 19h32 - Atualizado em 27/08/2012 23h52
Integrantes de banda de pagode são presos suspeitos de estupro
na Bahia
Duas garotas de 16 anos denunciaram dez homens por estupro à polícia. Situação teria ocorrido dentro de
banheiro de ônibus, após micareta.

Dez integrantes de uma banda de pagode estão detidos desde madrugada deste domingo (26),
na cidade de Ruy Barbosa, a 300 km de Salvador, depois de terem sido denunciados por
duas garotas de 16 anos por estupro. O abuso teria ocorrido dentro do ônibus da banda, após
show realizado em uma micareta na cidade.
O delegado Marcelo Cavalcanti afirma que as garotas acionaram a Pol ícia Militar, que foi até
o ônibus e autuou os suspeitos em flagrante, após reconhecimento feito pelas vítimas. Caso a
situação seja confirmada, eles serão enquadrados no crime de estupro, cuja pena é reclusão
varia entre seis a dez anos.
O delegado comenta que as garotas disseram que entraram no ônibus como fãs, após o
show, para registrar fotos e pegar autógrafos dos músicos. Tanto os suspeitos quanto as
vítimas já foram ouvidos em depoimento. "Dois [da banda] disseram que o sexo foi
consensual. Outros negaram participação. Na narrativa delas, enquanto um segurava, outro
praticava o sexo", afirma o delegado. Elas afirmaram que o abuso foi cometido dentro do
banheiro do veículo, em dupla.
As adolescentes foram conduzidas para fazer exames de corpo de delito no Departamento de
Polícia Técnica (DPT) de Feira de Santana e depois levadas para as suas casas, na cidade de
Itaberaba. Elas são acompanhadas por um representante do Conselho Tutelar. O delegado
aguarda o laudo pericial do exame para confirmar se houve ou não o crime.
Um advogado do grupo já se apresentou à unidade de polícia, segundo o delegado. O G1
entrou em contato com a produ ção da banda, que informou n ão ter tomado conhecimento do
ocorrido até as 13h deste domingo (26). Mais tarde, em novo contato, um produtor disse que
estava a caminho da cidade. Segundo ele, apenas seguran ças acompanharam o grupo na
micareta.

Fonte: http://g1.globo.com/bahia/noticia/2012/08/integrantes-de-banda-de-pagode-sao-presos-
suspeitos-de-estupro-na-bahia.html
A BAKTI-YOGA VAISHNAVA REDEFININDO A VIDA DOS DEVOTOS

Jaqueline Gomes Ribeiro*

Resumo

O presente trabalho discute as atividades da corrente religiosa vaishnava em Natal.


Nessa cidade inexiste uma sede da comunidade e todas as atividades do grupo são
realizadas nas casas dos adeptos. A filosofia, os textos sagrados e a teologia do
grupo são orientados a partir de interpretações de Sua divina Graça A.C.
Bhaktivedanta Swami Prabhupada, cujo papel foi fundamental no sentido de
promover uma cultura religiosa pautada em aspectos culturais e históricos da Índia.
Essa cultura religiosa transforma os modos de vida dos devotos nos aspectos
alimentares, de relacionamentos e diversões, ao mesmo tempo em que a vida para
eles passa a ser mais ritualística. A pesquisa mostra a redefinição de postura do
praticante da bhakti-yoga, em três aspectos: a compreensão sobre o amor, o
trabalho e a felicidade. A pesquisa de campo foi realizada principalmente na casa
de uma devota que realiza o festival de domingo, aberto a visitantes. Concluo que
essa tradição é um meio de educação para os adeptos.

Palavras-chave: Pesquisa, Krsna, Bhakti-yoga.

Reflexões iniciais acerca dessa pesquisa

A pesquisa de campo que fundamenta esse trabalho foi realizada na casa da


devota Avatara, em Natal/RN, onde acontece um culto de domingo aberto a
visitantes (chamado pelos devotos de festival de domingo). Na cidade não existe
uma sede da religião e todas as atividades do grupo Hare Krsna acontecem ou em
ambientes domésticos, como no caso da residência da devota, ou em espaços de
fins coletivos, quando se realizam atividades mais públicas, como é o caso do
Festival de Radhastami que se trata do aniversario da Deusa Radharani, face
feminina e namorada do Deus Krsna (SWAMI, 2001).
____________________________
* Jaqueline Gomes Ribeiro, Graduada em Ciências da Religião pela Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
A pesquisa teve início a partir da realização de um trabalho de graduação
para a disciplina Antropologia Religiosa que eu cursava àquela altura. Com esse
objetivo,
busquei o grupo através de um colega de curso que era devoto e já tinha uma
vasta experiência e relação dentro da comunidade. Desde então, há pelo menos
quatro anos, frequento a comunidade e, desse período, há pelo menos dois anos
me encontro na condição de pesquisadora-devota. Essa experiência tornou-se
importante para a pesquisa, pois vem proporcionando perceber as peculiaridades
das relações que se processam no interior da comunidade.
Considerando que esta comunicação busca tratar a redefinição da vida dos
devotos, é importante ressaltar que a experiência enquanto devota favorece a
percepção das implicações que a adesão à religião gera no plano das vivências
cotidianas dos devotos em relação aos princípios religiosos Hare Krsnas. Além
disso, a condição de pesquisadora-devota me introduz no âmbito das relações e
conflitos internos da comunidade, experiência que nem de longe é possível a um
mero visitante ou expectador-pesquisador.
O acesso à informação como pesquisadora ou como devota é bastante
diferente. Diz-se muita coisa ao pesquisador pelo status que essa posição lhe
assegura. Qualquer devoto de qualquer religião orgulha-se de uma pesquisa que
resultará num livro sobre sua casa, mas isso tem implicações diretas na forma
como essa comunidade e suas práticas são apresentadas ao pesquisador.

Como se vê, a presença em muitos terreiros de cientistas e


intelectuais provenientes das classes dominantes brancas foi
impostas por eles, mas também foi incentivada pelas
comunidades religiosas como forma de divulgar suas
tradições, estabelecer alianças com as elites, desqualificar
inimigos e angariar legitimidade dentro do próprio campo
religioso. (SILVA, 2000, p. 78).

Na condição de membro partilhante da comunidade é possível perceber


movimentos que estão para além daqueles selecionados com o intuito de que se
tornem públicos. No mesmo sentido, também permite distinguir até que ponto há
uma verossimilhança entre o que está prescrito nos conceitos, princípios e rituais
daquilo que se observa efetivamente no comportamento dos devotos.

Certamente, o pesquisador-devoto se coloca num plano de dilema ético


bastante superior ao pesquisador comum, posto que, ao mesmo tempo em que
enxerga mais que o outro, não lhe cabe revelar os elementos religiosos que a
comunidade considera segredo. Assim, enquanto o pesquisador comum não tem as
mesmas oportunidades de acesso às informações para que decida se publica ou não
(SILVA, 2000) o pesquisador-devoto as conhece, mas não as pode revelar sob pena
de trair a confiança de seu próprio grupo. Desse modo, um pesquisador-devoto
nunca é um devoto igual aos outros, pois ele não chega ao espaço religioso com as
mesmas intenções e pelos mesmos caminhos que um devoto comum. Por outro
lado, ele também não é um pesquisador comum, pois embora alcance o patamar de
conhecimento profundo da comunidade tão almejado por um investigador, ele
precisa triar aquilo que pode ser dito e aquilo que precisa ser silenciado. Nas seções
que apresento adiante busco apresentar a comunidade e suas dinâmicas, mas sem
dúvida alguns silêncios estão marcados nas entrelinhas.

A Religião e o grupo de Natal.

Para se entender o movimento Hare Krsna é necessário lembrar seu berço, o


espaço e a cultura de onde veio o movimento, a Índia. Nesse país, variadas
manifestações religiosas passaram a ficar conhecidas como hinduísmo. É
equivocado pensar que se trata de uma religião apenas. Na verdade, o hinduísmo
abraça diversas correntes religiosas que estão sob essa nomenclatura.
Weber (apud OLIVEIRA, 2008) esclarece que a expressão hinduísmo foi
atribuída aos habitantes da Índia pelos islâmicos, por ocasião de sua dominação
perante esse povo, que não convertidos ao islamismo foram chamados de
hinduístas.
Dentre as várias correntes religiosas existe a corrente vaishnava, que em
sânscrito se traduz como devoto de Visnu, que é o próprio Krsna, personalidade
divina na visão dos devotos vaishnavas. A corrente também é conhecida como Hare
Krsnas e seus hábitos cotidianos foram pesquisados para esse trabalho. Essa é uma
corrente religiosa embasada nos livros sagrados hindus, os vedas, que se definem
como as primeiras grandes obras escritas em sânscrito da literatura e da religião
hindu. A palavra veda significa conhecimento, daí a denominação de religião védica
– religião que busca o conhecimento. E é nos vedas que se baseiam muitas das
diversas tradições religiosas que se costumam pensar como hinduísmo.
Para os seguidores destas correntes, o conhecimento védico só deve ser
transmitido aos discípulos através dos mestres por uma sucessão discipular
chamada parampara. Relembrando a variedade de correntes dentro do hinduísmo,
vale a pena salientar que o conhecimento é passado numa idéia de linha
ininterrupta entre os seguidores de cada corrente. Elas têm suas peculiaridades,
suas variações no que concerne à visão teológica, exercício de seus rituais e
segmentos filosóficos de acordo com cada corrente.
A linha sucessória do parampara seguida pelos vaishnavas começa com a
própria divindade, Krsna, seguido por outros mestres ou gurus, até chegar a Sri
Caitanya Mahaprabhu, há 526 anos. Seu aparecimento ocorreu na região da
Bengala, Índia, na cidade de Nawadiwpa. Na visão dos devotos, Caitanya
Mahaprabhu é o próprio Krsna, ou Deus. Nesta última vinda a esse planeta, Krsna
como Caitanya com sua autoridade suprema estabeleceu o cantar dos santos
nomes do Senhor (Hare Krsna Hare Krsna Krsna Krsna Hare Hare Hare Rama Hare
Rama Rama Rama Hare Hare) como o yoga-dharma (método recomendado para se
alcançar o divino, para cada era) para essa era.
Seguindo o parampara chega-se à Sua Divina Graça A.C. Bhaktivedanta
Swami Prabhupada, Acarya fundador da Sociedade Internacional para a Consciência
de Krsna, a ISKCON, e também difusor do movimento Hare Krsna no ocidente.
O movimento Hare Krsna difundiu quatro princípios como seus pilares, a
saber, não comer carne, peixes e ovos para o desenvolvimento da não violência,
não praticar sexo ilícito (fora do casamento) para manter uma consciência e hábitos
puros, o não uso de tóxicos entorpecentes para manter uma mente sóbria e a não
prática de jogos de azar para desenvolver a honestidade. O propósito dessa religião
é a prática de bhakti-yoga, que significa construir uma relação pessoal com Deus, e
estar sempre consciente de Krsna. Bhakti-yoga é o processo de se unir à Suprema
Personalidade de Deus através do serviço devocional amoroso ao Senhor, de
maneira que: “Tudo o que você fizer, tudo o que comer, tudo o que oferecer ou der
para os outros, e quaisquer austeridades que você executar – faça isto, ó filho de
Kunti, como uma oferenda a Mim.” (PRABHUPADA, 2008, p. 489), (BG 9.27). Isso é
serviço devocional, isso é bhakti-yoga, essa é a vida dos devotos.

O culto bhakti, via de libertação máxima para o


vaishnavismo, define-se, portanto, como uma participação
direta e sentimental do fiel (em corpo, fala e mente) na
relação pessoal com Deus, nesse caso, com Krishna. Isso nos
leva a entender que a meta máxima desse culto é a união
(Yoga) amorosa e mística com Krishna; um amor que
prepara o amante para a libertação e a perfeição dele
mesmo. (OLIVEIRA, A. S. 2008, p. 106).

E esse processo se concretiza quando o devoto oferece, para Deus, todos os


seus atos pessoais e propostos pela religião, a saber, o cantar dos santos nomes, a
prática de adoração às deidades (imagens dos altares dos devotos sob variadas
formas de Krsna), entre outros. Há também a prática do estudo constante das
escrituras sagradas que instruem o devoto sobre como viver nesse mundo de modo
a alcançar o supremo, ou o planeta de Krsna, ou ainda o paraíso.
Os devotos de Krsna chegaram ao Brasil em 1974 e permanecem como uma
das mais sólidas instituições religiosas de origem oriental não vinculada a grupos
étnicos. A primeira impressão levava os desavisados a compreender os hare krsnas
como um grupo de vivência exótica divulgadores da espiritualidade oriental. Hoje
eles compõem o cenário religioso brasileiro mais amplo disputando espaço com
outras denominações. Esta transformação fez com que a ISKCON se adaptasse ao
modo de ser ocidental e também contribuísse com seus traços culturais para a
composição do quadro cultural religioso da sociedade brasileira. (GUERRIERO,
2001).
Um grupo pequeno compõe o cenário religioso dos hare krsnas em Natal. A
devota mais velha, Avatara Devi Dasi é também a responsável por difundir a
religião referida nessa cidade desde 1981, quando se mudou do Rio de Janeiro para
Natal. Hoje se tem um grupo de mais ou menos vinte pessoas.
Em Natal não há templo. Os devotos costumam se reunir na casa da devota
Avatara que realiza com a colaboração dos hare krsnas de Natal o festival de
domingo e costuma receber, além dos devotos que moram na cidade, visitantes
locais que acabam por se tornarem freqüentadores com níveis variáveis de
assiduidade. Esse ambiente onde se congrega pessoas em torno de práticas
religiosas também é espaço de conflitos, disputas internas, confusões em relação à
delimitação de relacionamento religioso (ou o que se chama nesse âmbito religioso
de associação devocional) e conduta/privacidade na vida pessoal das pessoas que
lá freqüentam. Isso, por vezes, acaba levando simpatizantes e devotos a
distanciarem-se do convívio sócio religioso nesse espaço.
Esses conflitos, por sua vez, não condizem com o que seria coerente em
âmbito religioso como se ilustra na citação a seguir: “Um mestre fidedigno deve
sempre pensar: “Eu mesmo sou um mero servo de Deus, o meu discípulo também
é um servo dEle, e estou simplesmente ajudando essa pessoas a servi-lo”.”
(GOSWAMI, 2012, p.98).
É perceptível que esses conflitos se dão com tal intensidade, nesse espaço,
por não se tratar de um espaço neutro e público como é nos casos de templos em
outros lugares e religiões. Mesmo que se realize o Festival de domingo aberto a
visitantes, o espaço é propriedade privada residencial, um espaço particular onde a
autoridade é a da senhora do lar e os convidados devem comportar-se de acordo
com o ponto de vista da anfitriã e não apenas estritamente com os pontos de vista
do comportamento ético religioso. Nesse caso, qualquer discordância gera conflitos.
Importa relatar aqui que a devota Avatara, que promove e abre sua casa
aos visitantes para o festival de domingo, o faz com seus próprios recursos e a
colaboração dos devotos de Natal, com o intuito primeiro de dar às pessoas a
oportunidade de conhecer Krsna e exercer sua própria fé, desejo comum entre
pessoas religiosas.
A existência de conflitos em espaço religioso é um retrato comum das
relações humanas, o conceito de Deus traduz perfeição, mas seus pregadores são
humanos, o conceito de humano é antagônico ao de Deus no se refere à perfeição.

Krsna: A Pessoa Suprema


Para os devotos vaishnavas, o Deus Krsna é uma pessoa. Longe de ser uma
pessoa comum ele é a Pessoa Suprema. Assim, os hare krsnas são personalistas e
entendem a Suprema Personalidade de Deus como sendo uma pessoa com a cor de
nuvens azuladas, adornado com muitas jóias e com traços da arte indiana.

O vaishnavismo defende irrevogavelmente que o Absoluto é


uma pessoa e que o homem é eternamente individual, sendo
a união (Yoga) entre ambos uma realidade possível, baseada
em uma forma amorosa de relacionamento, e não em uma
simples imersão na energia impessoal do Absoluto.
(OLIVEIRA, A. S. 2008, p. 102).

A relação pessoal que os devotos mantêm com Krsna, o processo de bhakti-


yoga, que tem origem nos termos: devoção pura (bhakti) e exercício da devoção
(yoga), não permite pensar em Deus como sendo uma energia, pois ninguém se
relaciona com uma energia. Para eles, Krsna é palpável, tem forma, é belo.

Ao compreendermos a Pessoa Suprema, visualizamos por


completo esses aspectos da Verdade Absoluta. Vigraha
significa “forma”. Logo, o Todo Completo não é desprovido
de forma. Se Ele não tivesse forma, ou se houvesse algum
aspecto de Sua criação que fosse superior a Ele, Ele não
poderia ser completo. O Todo Completo deve conter tudo o
que está dentro do limite de nossa experiência, bem como o
que ultrapassa; caso contrário, Ele não pode ser completo.
(PRABHUPADA, 1999, p. 2).

O nome Krsna significa, em sânscrito, o todo atrativo. Ele é o aspecto


pessoal da verdade absoluta, a pessoa mais atrativa, mais bela, fonte de todas as
qualidades dos seres humanos, o Deus cultuado pelos devotos do movimento Hare
Krsna.

Inteligência, conhecimento, estar livre da dúvida e da ilusão,


clemência, veracidade, controle dos sentidos, controle da
mente, felicidade e aflição, nascimento, morte, medo,
destemor, não-violência, equanimidade, satisfação,
austeridade, caridade, fama e infâmia – todas essas várias
qualidades dos seres vivos são criadas apenas por Mim.
(PRABHUPADA, 2008, p. 507), (BG 10.4-5).

Para os devotos, Krsna possui ilimitadas qualidades não sendo possível de


ser descritas todas, no entanto, também é o dono de seis opulências (que são
características que também lhe conferem qualidades), as quais o caracterizam
como o todo atrativo, a saber: o poder, o conhecimento, a beleza, a riqueza, a
fama e a renúncia.
O próprio nome Krsna é revelador de qualidade em relação à divindade: “Na
verdade, o próprio nome “Krsna”, que não é um nome sectário, significa “o prazer
maior”. Krs significa “o maior”, e na significa “prazer”.” (PRABHUPADA, 2011b, p.
10). Conforme a tradição, ele próprio se descreve no livro sagrado dos devotos, o
Bhagavad-Gita. Há também outras literaturas que fazem referência a Ele e que são
descritos pelos seus devotos, como o Srimad Bhagavatam.
A leitura de livros sagrados é chamada de sacrifício, pois se entende que ao
ler os livros sagrados uma pessoa está se oferecendo em sacrifício a Krsna. Sua
inteligência, que comumente usa para qualquer outro tipo de estudo que não o
estudo sagrado acerca do divino, portanto, essa atividade é considerada como
serviço devocional amoroso ao Senhor ou uma das práticas de bhakti-yoga.

Quanto mais servimos, mais rendidos a Krsna estaremos;


por conseguinte, uma pessoa deve utilizar quaisquer talentos
que tenha a serviço de Krsna. Há nove processos de serviço
devocional – ouvir, cantar, lembrar, servir, adorar a deidade,
orar, cumprir ordens, fazer amizade com o Senhor e
sacrificar tudo por Ele – e devemos nos manter sempre
ocupados em pelo menos um destes nove processos.
(PRABHUPADA, 2011a, p. 67).

A atividade de ler, ouvir, falar e ver Krsna na forma das deidades é


chamada por seus devotos de Krsna Katha.

A Casa como Espaço Sagrado: A Prasadam e os Mantras.


Os devotos têm uma conduta religiosa tal que essa não se separa de suas
vidas pessoais. Suas casas são as casas de Krsna e, portanto, um espaço sagrado.
Ser um devoto de Krsna significa, em razão de cumprir os quatro princípios já
relatados: não comer carne, peixes e ovos, não praticar sexo ilícito, não jogar jogos
de azar e não usar entorpecentes. Esses princípios se desdobram em aspectos
cotidianos, como por exemplo, não usar bolsas e sapatos de couro ou ainda conferir
todos os ingredientes nas compras de supermercados e restaurantes. Como suas
casas são os espaços principais onde devem exercer as atividades sagradas a
preparação dos alimentos é aspecto singular no cumprimento dos mandamentos
religiosos. Assim, como tudo que se cozinha se oferece a Krsna, as panelas, por
exemplo, não podem ser contaminadas cozinhando nada que contenha carne, ovos
ou peixes. Todas essas situações demonstram como a conduta cotidiana dos
devotos implica numa postura ideológica/prática diante da vida.
A prasadam é o alimento oferecido ao Deus Krsna, e, portanto, considerado
como o próprio Krsna em forma de alimento. Essa oferenda se dá com a pessoa
recitando o mantra (mantras são canções/orações sagradas em sânscrito) do seu
mestre espiritual,pois cada mestre ou guru tem um mantra diferente. Quem não foi
iniciado por nenhum guru, faz a oferenda recitando o mantra de Sua Divina Graça
A. C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada, que é considerado o mestre espiritual de
todo o ocidente, já que foi ele que difundiu o movimento Hare Krsna fora da Índia.
Depois de pronta a prasadam, os devotos costumam cantar um mantra
glorificando a prasadam antes de comerem. Eis o mantra que glorifica a prasadam,
Krsna em forma de alimento:

Ó irmãos! Este corpo material é um lugar de ignorância, e os


sentidos são uma rede de caminhos que seguem em direção
à morte. De alguma forma, caímos neste oceano de desfrute
dos sentidos materiais, e de todos os sentidos a língua é
muito voraz e incontrolável; é muito difícil conquistar a
língua neste mundo.
Porém, o Senhor Krsna é muito bondoso conosco e deu-nos
essa prasadam tão saborosa, só para que possamos
controlar a língua. Agora, tomemos esta prasadam até
ficarmos plenamente satisfeitos e glorifiquemos a Radha e
Krsna, e com amor peçamos a ajuda do Senhor Caitanya e
Nityananda (PRABHUPADA, 1996, p. 46-47).

Os devotos normalmente são ótimos cozinheiros. Esse interesse culinário se


dá pela peculiaridade das comidas que um devoto pode comer e oferecer a Krsna:
“Se alguém Me oferecer, com amor e devoção, uma folha, uma flor, frutas ou água,
Eu as aceitarei.” (Prabhupada, 2008, p. 486), (BG 9.26). Fundamentados nesse
verso de seu livro sagrado, o Bhagavad-Gita, os Hare Krsnas nada comem que
possa conter carne, ovos e peixes, pois são lacto – vegetarianos. O próprio Krsna
disse suas preferências culinárias nesse livro conforme citação acima. A prasadam
“(só se come prasada, comida oferecida primeiramente a Krsna,)” (Prabhupada,
2011a, p. 16) tem um valor muito especial entre os Hare Krsnas, valor oposto ao
valor de um alimento profano ou não sacralizado.
Os devotos do Senhor libertam-se de todas as espécies de
pecados porque comem alimentos que primeiramente são
oferecidos em sacrifício. Outros que preparam o alimento
para a satisfação dos próprios sentidos, na verdade, comem
apenas pecado. (Prabhupada, 2008, p. 179), (BG 3.13).

Assim, a prasadam é um dos elementos essenciais que compõem as


atividades cotidianas dos devotos em suas casas. Interferindo em suas escolhas e
em suas opções de consumo.
Outro elemento que está intimamente ligado as práticas cotidianas dos
devotos é o cantar de mantras. Não apenas o cantar de Hare Krsna marca a
musicalidade nessa tradição, tudo que se canta é em sânscrito. Os instrumentos
usados para tocar os mantras são o harmonium, que é um instrumento de cordas
como um mini teclado e com fole acoplado, a mrdanga que é um instrumento
percussivo e karatalas que são como pratos pequenos de metal. Sem o cantar de
mantras não poderia haver a maioria dos rituais no âmbito vaishnava, pois essa
tradição está intimamente ligada à musicalidade.
Os mantras também podem ser recitados, como ocorre no caso do cantar do
maha-mantra (grande hino védico) Hare Krsna no que se chama de japa mala. A
japa é uma espécie de rosário de 108 contas que são recitadas pelos integrantes da
ISKCON, 16 vezes por dia. A japa é feita em geral de tulace, uma planta sagrada
dos vaishnavas, planta essa da qual é feita também a kante dos devotos, a saber, o
colar de contas de madeira que todos os devotos usam para sua proteção e
identificação espiritual.

Alegria, Conhecimento, Amor e Serviço.


É nítida a alegria, a felicidade de um devoto Hare Krsna em seus cultos
alegres. Talvez por isso sejam chamados de festivais. Ele é facilmente reconhecido
na multidão, não apenas pelos tão conhecidos trajes açafrão e cabeças raspadas
dos monges, mas pelos entusiasmados festivais realizados nas ruas, nos quais se
canta, toca e dança o maha mantra hare krsna com muito entusiasmo, para seu
querido Deus Krsna. Essa postura se relaciona com a ideia de que é incompatível
sentir-se pobre e infeliz diante do Senhor da Riqueza e da Renúncia, que não deixa
seu devoto perecer jamais. O amor e a benevolência de Krsna são infinitos para
com seus devotos e, portanto, não há motivo para tristeza.
Em entrevista concedida pelo devoto Udharana Dasa, em 25/02/12, ele
explica que é uma ofensa chorar na frente da deidade, pois se alguém está com
sede perante uma cachoeira só choraria se não compreendesse aquilo como água,
mas ao compreender o sentido profundo da situação a atitude do devoto seria bem
outra. Então uma pessoa só chora na frente de uma deidade se não consegue
realizar o conhecimento, se não compreende que lá está Deus.

Deus é perenemente feliz, porque é belo, bom, verdadeiro. A


aquisição da natureza divina é progressiva no tempo e
definitiva no eterno. O homem se torna feliz à medida que
encarna em si os pensamentos e o agir de Deus, assumindo
a maneira de ser da Divindade, revestindo-se da Verdade,
Bondade e Beleza divina. O desejo de felicidade, no homem,
é o desejo de voltar gradativamente para a sua origem e o
seu útero, que é o Criador e Pai Perfeito. (MARCHIONII,
2008, p. 73-74).
Suas cerimônias religiosas são festivais com música, prasadam e muita
alegria. Os devotos costumam falar poeticamente do mundo espiritual como sendo
um lugar onde cada passo é uma dança e cada palavra uma canção.
Todos precisam de um sentido na vida para escapar da infelicidade. “A
plenitude feliz consiste na entrega de si a um ideal, isto é, idéia-guia, um projeto
nobre a ser alcançado com paixão e afinco” (MARCHIONII, 2008, p. 76). As pessoas
para serem felizes procuram por um sentido na vida. Os devotos sabem que as
misérias existem, porém, eles têm um sentido em suas vidas, Krsna.
Para os devotos de Krsna o conhecimento é elemento que permite lidar
melhor com as misérias desse mundo material, afim de alcançar Krsna. É através
do conhecimento que se adquire equilíbrio de si e com o meio. Sua fonte de
inspiração são as escrituras sagradas, os vedas. Estes textos apresentam um
processo de compreensão espiritual profundo e prático. Neles são encontrados
respostas às perguntas eternas: Quem sou eu? Por que estou aqui? Qual é o
objetivo da vida? Como posso alcançá-lo? Ao mesmo tempo, esses textos tratam de
assuntos como psicologia, amor, drama, música, cosmologia, yoga, saúde.
Segundo Dhanvantari Swami (s.d) a palavra veda significa conhecimento, o
qual materializa-se nos livros sagrados compilados pelo grande sábio Vyasadeva.
Como é comum nas sociedades antigas o conhecimento era transmitido de forma
oral, porém, com a chegada da era de kali-yuga, (a era da hipocrisia, discórdia e
mentira na qual para os hare krsnas vivemos atualmente) quando o homem perde
o poder de concentração, inteligência e memória, se fez necessário codificar os
vedas em forma escrita. Os quatro vedas são Rg, Yajur, Sama e Atharva, mas
também se considera como literatura védica toda aquela que esteja de acordo com
o sidhanta védico, o qual poderia ser resumido na descrição sobre conhecimento
encontrada no Bhagavad-Gita, (13.8-12): "aceitar a importância da auto-
realização; e empreender uma busca filosófica da Verdade Absoluta." O objetivo
dos vedas, portanto, é proporcionar respostas plausíveis para o candidato em busca
filosófica acerca da Verdade Absoluta, no caso dos vaishnavas, Krsna.
Dhanvantari Swami descreve o homem como ser limitado, com sua alma
condicionada, está sujeito a quatro tipos de limitações. 1- Pramada: tem a
tendência a cometer erros. Isto ocorre até mesmo por simples falta de atenção. 2-
Bhrama: tendência a se iludir especialmente sobre sua própria identidade. A alma
condicionada pensa ilusoriamente que é o corpo material no qual está habitando. 3-
Vipralipsa: tendência a enganar outros. Devido a nossa vasta experiência, esta
limitação do homem dispensa aqui maiores comentários; E, 4- Karanapatava: tem
sentidos imperfeitos. Nossos olhos, por exemplo, são tão incapazes de ver o que se
encontra por trás de uma parede como de nos revelar Deus.
Para seus devotos, Krsna ensina a não apegar-se e nem identificar-se com o
mundo material, trabalhando sem apego ao fruto da ação, pois as aflições não
provêem das obras, e sim do apego ao fruto dessas mesmas ações (LELOUP,
2001). Assim eles consideram o dinheiro, a fama, a família, como meios do
propósito de cumprirem seus deveres sociais e espirituais, mas não como absolutos
fins da vida.
O conhecimento é poder e um dos poderes que o conhecimento védico
propicia ao sujeito lhe permite entender para que serve o trabalho (sustentar o
corpo) e como deve ser realizado (oferecendo-o a Krsna). Esse conhecimento
confere ao devoto a segurança necessária para as atividades cotidianas do
trabalho. Qualificados sobre os saberes, muitas vezes proporcionados pela vivência
religiosa do serviço devocional a Krsna, tais como cozinhar, tocar, costurar, entre
outros, os devotos vaishnavas realizam essas tarefas também para o seu sustento.
Contudo, isso não funciona como uma via de mão única. Os saberes da vida são
trazidos para o serviço devocional, mas aprendendo os saberes do serviço
devocional também se aprende para a vida. O conhecimento, o saber, é uma
dádiva especial de Krsna, que incentiva seus devotos a serem responsáveis por seu
próprio sustento que é uma exigência do próprio corpo. “Execute seu dever
prescrito, pois este procedimento é melhor do que não trabalhar. Sem o trabalho,
não se pode nem ao menos manter o corpo físico.” (PRABHUPADA, 2008, p. 172),
(BG 3. 8). Então se se têm algum tipo de conhecimento, de saber, como o saber de
um ofício, por exemplo, esse foi dado por Krsna que afirma sobre o próprio
conhecimento transmitido no livro sagrado Bhagavad-Gita: “Este conhecimento é o
rei da educação, o mais secreto de todos os segredos. É o conhecimento mais puro
e por conceder uma percepção direta do eu, é a perfeição da religião. Ele é eterno e
é executado alegremente.” (PRABHUPADA, 2008, p. 449), (BG 9. 2).
Como senhor da riqueza krsna é o mantenedor de seu devoto e mesmo
aqueles cuja única propriedade é Krsna são considerados os mais ricos, pois Ele é o
maior de todos os bens. “Ele logo se torna virtuoso e alcança a paz duradoura. Ó
filho de Kunti, declare ousadamente que o Meu devoto jamais perece.”
(PRABHUPADA, 2008, p. 495), (BG 9. 31). Assim, essa tradição religiosa ensina um
tipo de conhecimento que conscientiza para o serviço e sobre a finalidade do
trabalho que muito tem a dizer para qualquer pessoa seja ela devoto ou não. O
próprio Krsna dá o exemplo: “Ó filho de Prtha, não há trabalho prescrito para Mim
dentro de todos os três sistemas planetários. Nem sinto falta de nada, nem tenho
necessidade de obter algo – e mesmo assim me ocupo nos deveres prescritos.”
(PRABHUPADA, 2008, p. 189), (BG 3. 22). Então, se pode dizer que os vaishnavas
incentivam e valorizam o trabalho e mais que isso, o trabalho como serviço
devocional.
É sabido que entre os seguidores de Krsna o serviço é um dos princípios de
maior repercussão.

Deve-se realizar o trabalho como um sacrifício a Visnu; caso


contrário, o trabalho produz cativeiro nesse mundo material.
Portanto, ó filho de Kunti, execute seus deveres prescritos
para a satisfação dEle, e desta forma você sempre
permanecerá livre do cativeiro. (PRABHUPADA, 2008, p.
173), (BG 3.9).

O serviço é amor a Ele. Por serviço se entende admirar Sua beleza, se


dedicar a Seu conhecimento, desenvolver amor por Deus e outras atividades.
O que é o amor? “O amor começa com este intercâmbio. Damos algo ao ser
amado, ele nos dá algo, e dessa forma o amor se desenvolve.” (PRABHUPADA,
2011a, p. 40). Não funciona como um pensamento interesseiro, mas é uma
questão de reciprocidade. Os devotos também costumam dar o exemplo de que se
alguém pensa em outrem de modo agradável, favorável, constantemente, isso é
amor.
Muitas pessoas se perguntam o que é o amor. Essa tradição religiosa traz
como respostas para essa pergunta:

Os seis sintomas de amor que os devotos compartilham


entre si são: dar presentes em caridade, aceitar presentes
caridosos, revelar os pensamentos com confiança, indagar
confidencialmente, aceitar prasada e oferecer prasada.
(PRABHUPADA, 1978, p. 39).

Considerações Finais
Entre os pontos explicitados, o serviço transpassa todos eles. A alma é
sempre ativa, essa é uma qualidade inerente a ela. Não somos extáticos nem no
mundo material nem no mundo espiritual. Por isso estamos sempre ocupados.
(PRABHUPADA, 2008).
A ação é um incentivo de Krsna. Esse é um processo religioso prático que diz
respeito ao modo de vida das pessoas. Todos precisam trabalhar para seu próprio
sustento, então, que ofereçam sua atividade em sacrifício a Krsna, com isso se
elimina o karma.
Na conduta do devoto vaishnava, suas ações não devem ser para a
satisfação de seus sentidos, mas para a satisfação da Suprema Personalidade de
Deus, Krsna. O objetivo dos vaishnavas é voltar para Krsna, entendendo que estão
como adormecidos nessa vida e que precisam acordar para a realidade
transcendental e isso só é possível ficando livre dos enredamentos materiais,
produzidos pelo karma, ou atividades materiais. Entende-se por melhor modo de
conduta a sugestão do livro sagrado: “Desse modo, você ficará livre do cativeiro do
trabalho e de seus resultados auspiciosos e inauspiciosos. Com a mente fixa em
Mim neste princípio de renúncia, você se libertará e virá a Mim.” (Prabhupãda,
2008, p. 490), (BG 9.28).
Os devotos entendem que quando se fala em renúncia não significa parar
com as atividades que uma pessoa precisa executar, mas refere-se à renúncia da
expectativa dos resultados, pois eles enredam o indivíduo nesse mundo material.
Estar com a mente fixa em Krsna é pensar nEle, no transcendente. Ao executar
atividades e a Ele oferecer essas atividades, esse é o princípio da bhakti-yoga.
Mas não é apenas no mundo material que se têm atividades. No planeta de
Krsna todos estão servindo a Ele, pois essa é a posição constitucional, eterna da
alma.
Na sociedade ocidentalizada costuma-se considerar que servir é uma
atividade menor. Essa é uma idéia deturpada para os devotos sobre o serviço. Um
servo da limpeza, por exemplo, em uma empresa é a pessoa menos notada. No
entanto, servir é natural à alma. Se não servimos a Deus, servimos a nosso patrão,
servimos nossos pais e eles nos servem nos sustentando. Servimos a nosso
cachorro, temos de alimentá-lo, dar banho. Estamos sempre servindo e sequer
notamos. Os devotos sabem da inclinação natural ao serviço, portanto servem
àquele que é superior a todos, a Suprema Personalidade de Deus, Krsna.
A atividade, o serviço e o relacionamento são inerentes à pessoa humana e
a alma de um modo geral. Os devotos sabem disso de um modo mais consciente
por orientação de seus livros sagrados e, portanto, procuram exercer esses pontos
da melhor forma possível, em função do divino.
Todos têm uma rasa, um tipo de relacionamento específico com Krsna. Não
é possível para nós não nos relacionarmos, somos seres sociais por natureza, já
nascemos em uma pequena sociedade, a família. Crescemos o tempo todo nos
relacionando e não seria diferente com Deus.
Não que Deus precise relacionar-se, os devotos explicam que Deus não
precisa de nada. Mas Ele se relaciona com seus devotos. Da mesma forma os
devotos crêem que todos têm um relacionamento eterno de serví-lo e isso causa
prazer longe de se configurar como algum tipo de escravidão, mas como uma
necessidade da alma por esse tipo de prazer.
Referências

PRABHUPÃDA, Swami. Bhagavad-Gita. São Paulo: AGA Estúdio, 2008.


PRABHUPÃDA, Swami. O Upadesamrta: O néctar da Instrução. São Paulo:
Bhaktivedanta Book, Trust, 1978.
PRABHUPADA, Swami. Karma: A justiça infalível. São Paulo: Bhaktivedanta Book
Trust, 2011a.
PRABHUPADA, Swami. Além do nascimento e da morte. São Paulo: Bhaktivedanta
Book Trust, 2011b.
PRABHUPADA, Swami. Canções Vaishnavas. São Paulo: Bhaktivedanta Book Trust,
1996.
PRABHUPADA, Swami. Sri Isopanisad. São Paulo: Bhaktivedanta Book Trust, 1999.
SWAMI, Chandramukha. Quem é a Mocinha que está com Krishna? Editoração
Eletrônica: Editora OM TAT SAT, 2001.
GOSWAMI, Hridayananda Dasa. A Meta da Vida. Sankirtana Books, 2012.
OLIVEIRA, A. S. A Índia muito além do incenso: um olhar sobre as origens,
preceitos e práticas de vaishnavismo. In: Horizonte, Belo Horizonte, v. 6, n. 12,
jun. 2008, p. 93-111. Disponivel em:
http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/viewArticle/441. Acesso
em: 16/05/11.
SILVA, Vagner Gonçalves da. O Antropólogo e sua magia. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2000.
MACHIONNI, Antonio. Ética: a arte do bom. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
LELOUP, Jean-Yves. Além da Luz e da Sombra: Sobre o viver, o morrer e o ser.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
GUERRIERO, Silas. O Movimento Hare Krishna no Brasil: uma interpretação da
cultura védica na sociedade ocidental. In: Revista de Estudos da Religião,
Nº.1/2001/ pp. 44-56. Disponível em:
http://www.pucsp.br/rever/rv1_2001/p_guerri.pdf. Acesso em: 04/03/12.
SWAMI, Dhanvantari. O que são Vedas? In: Krishna.com, 2011. Disponível em:
http://pt.krishna.com/o-que-s%C3%A3o-os-vedas. Acesso em: 03/03/12.
BEDE GRIFFITHS: SUA PARTICIPAÇÃO NO DIÁLOGO
RELIGIOSO ENTRE ORIENTE E OCIDENTE

Márcio Quaranta – ICMBio


mlqg0207@gmail.com

CONVERSÃO
Alain Richard Griffiths (1906-1993) nasceu na Inglaterra, foi batizado e educado
como anglicano. Quando aluno de escola, em virtude de seu amor pela natureza e pela
poesia, passou por uma experiência mística ao ouvir o canto de pássaros em um pôr-do-sol.
Formou-se em jornalismo e teve como um de seus professores o intelectual C. S. Lewis,
que muito o influenciou esse tornou seu amigo. Jovem, insatisfeito com o modo de vida
ocidental, para ele extremamente material, consciente e racional, afastou-se da religião e da
sociedade em que vivia; porém, continuava a encantar-se com a poesia e a natureza. A fase
de ateísmo passou após novas experiências e a leitura da Bíblia. Superados os preconceitos
anticatólicos de sua educação, converteu-se ao catolicismo romano, adotou o nome de
Dom Bede Griffiths OSB (ordem beneditina) e viveu cerca de vinte anos em abadias na
Inglaterra e Escócia (GRIFFITHS, 1992).

A ÌNDIA
Todavia, novo período de mudanças sobreviria na vida de Griffiths (1992, 2000,
2011): ao buscar novas descobertas sobre Deus, Cristo e a Igreja, ele deparou-se com o
Vedanta indiano e percebeu como era significativo para a tradição da Igreja. Por tal
motivo, além de ansiar por um novo modo de vida, diverso do ocidental, e querer descobrir
o lado intuitivo de sua alma, decidiu dirigir-se à Índia e penetrar nos segredos de sua
sabedoria, integrar o racional com o intuitivo, casar o Ocidente com o Oriente em sua
própria vida. Lá aportou em 1955, adotou o nome devocional sânscrito Dhayananda (bem-
aventurança da compaixão) e viveu em ashrans cristãos; ajudou a implantar o Kristaya
Sanyasa Samaj, Montanha da Cruz, em Kurisumala (1958-1968), Kerala, depois se mudou
para Shantivanam (Floresta da Paz), em Tamil Nadu, sul da Índia (fundado pelos padres
franceses Monchanim e Le Saux, que procuraram integrar a tradição espiritual da Índia em
sua vida como cristãos), onde faleceu em 1993.
Embora tentasse, no início, preservar um modo de vida simples e monacal para os
padrões ocidentais, ainda vestir o hábito beneditino tradicional, utilizar talheres para comer
e uma capela no estilo de construção ocidental, Bede, para se adaptar melhor ao seu novo
lar, dispensou objetos que sentia serem desnecessários para o modo de vida das famílias
pobres a que atendia, em um padrão muito além de tudo que imaginara na Europa; passou
a utilizar o hábito alaranjado kavi do sannyasi (homem santo) hindu, a andar descalço,
alimentar-se com as mãos, sentado no chão, a habitar uma choupana de barro com teto de
folhas; no ashram, promovia leituras das escrituras de diferentes religiões (muçulmana,
sikh, hinduísta, etc.) junto com as do cristianismo, cedia a palavra a poetas místicos, além
de receber hóspedes (como o bioquímico e botânico Rupert Sheldrake).
Estudou sânscrito com Ramón Pannikar (filho de pai hindu e mãe católica), o
sentido da música clássica indiana (sempre religiosa) e de outras formas de arte, assim
como o profundo significado dos templos, dos épicos e dos arquétipos da religião hindu (a
dimensão cósmica, o homem e a natureza sustentados por um espírito onipresente, ou seja,
tudo é sagrado, e a dimensão contemplativa da existência humana). No Ocidente, o mundo
é dessacralizado, contudo sua degradação não decorre da substituição do Paganismo pelo
Cristianismo, no qual Deus, o Senhor transcendente da criação, está separado da natureza e
colocado acima dela, para gradualmente desvelar sua imanência; o aspecto sagrado do
mundo se manteve pelo menos até a Idade Média e esboroou-se a partir do Renascimento,
quando o Homem se colocou no centro de todas as coisas e passou a cultivar a Ciência
como único modelo válido de mundo. Por outro lado, a visão hindu tem como ponto fraco
a tendência a considerar o mundo material como ilusão, maya, produto da ignorância,
avydia; todavia, o mundo está impregnado por um espírito uno, eterno, indescritível
(brahman); em suma, o Hinduísmo parte da imanência de um Ser supremo na criação, que
habita o coração de cada criatura, e chega à percepção de sua transcendência infinita; não é
panteísta, não confunde Deus com cada manifestação da natureza, apenas afirma que ele
está presente em todas elas.

O CENTRO
Para Griffiths (1992), existe um fundo comum para todas as religiões; ele pesquisou
em profundidade as religiões orientais, em especial o hinduísmo, no qual se tornou perito,
conhecimento que lhe permitiu redigir vários livros comparando as religiões do Oriente e
Ocidente, em que destacou os seus pontos comuns, especialmente do cristianismo e do
hinduísmo. Preocupava-se sobremaneira não com o eu exterior (manipulado em um mundo
dessacralizado), mas com a unidade do verdadeiro Eu (que, inspirado em Mircea Eliade,
chamava de Centro) com o tudo e com todos, em especial com a natureza e Deus. Ao
criticar o esmaecimento do aspecto sagrado do mundo, e a consequente perda de sua
beleza, que despontou e cresceu com a Revolução Científica e a Reforma Protestante, ele
defendeu o ponto de vista de que a Ciência e a Tecnologia eram abstrações que fugiam do
verdadeiro “Eu”, que deveriam se voltar ao benefício do Homem, e preconizava a sua
integração com o conhecimento fundamental advindo das primeiras gerações humanas,
manifestado nos mitos e rituais e muito mais identificado com Deus e com a Natureza, para
o verdadeiro “Eu” se realizar plenamente nas pessoas, ou seja, nada mais que o conceito
hinduísta de Ioga (harmonização de todos os aspectos da pessoa).

SACCIDANANDA
Saccidananda, nome do ashram em Tamil Nadu, é um termo hindu usado como um
simbolismo da Trindade Cristã (o Pai como Ser, o Filho, ou o Verbo de Deus, como
Conhecimento do Pai, e o Espírito Santo como a Bem-aventurança do Amor, a unir Pai e
Filho). No ashram, um grupo de discípulos se reúne em torno de seu mestre (guru), para
partilhar uma vida de oração e a experiência de Deus. Há horários para a meditação em
comum, embora a vida se centre na prece pessoal de cada membro. Na meditação, vai-se
além das imagens e conceitos, da razão e da vontade, até a última instância da consciência;
o Último se experencia nas profundezas, na substância, no Centro de cada alma, como seu
próprio solo, fonte, seu próprio ser ou Si-mesmo (atman), experiência de Deus sintetizada
na palavra Saccidananda: o absoluto (sat), conhecido em pura consciência (cit), comunica
bem-aventurança absoluta (ananda). Os videntes e homens santos da Índia passam por tal
vivência, autotranscendência que propicia uma percepção intuitiva da Realidade; a mente
racional deixa de dominar para ultrapassar suas próprias limitações. No Ocidente, a própria
Ciência já supera o paradigma da racionalidade e abstração: percebe-se agora o universo
como um todo dinâmico, a incluir o observador, que interfere nos resultados de suas
observações, em uma aproximação com a visão da realidade oriental tradicional; a
realidade única, indivisivelmente ser e consciência (sat e cit), conhecida em sua origem, se
experencia como júbilo inefável (ananda). Contudo, no homem ocidental, separado de
Deus e da natureza, uma consciência dividida separa o mundo “objetivo” estendido no
espaço e no tempo, obediente a leis mecânicas, do mundo “subjetivo” de sentimentos,
imagens e ideias, enquanto o homem védico sentia uma realidade única, expressa nos seus
mitos e rituais. A própria Bíblia narra uma história mitológica e poética da origem humana
e de sua queda, do rompimento de um estado de unidade original com Deus. No atual
momento, deve-se valorizar o simbólico, o imaginativo e o poético para reaver tal unidade.
A poesia expressa o homem por completo, como um todo, é anterior e mais natural que a
prosa (GRIFFITHS, 2000).

VEDAS E UPANIXADES
No entender de Griffiths (2000), no hinduísmo há três mundos: o da matéria
(corpo), o da mente (alma) e o do Espírito. Os três constituem de fato um só, não se
separam. A ignorância e a ilusão (o Pecado e a Queda em termos cristãos) levam o ser
humano a se sentir internamente dividido. Toda religião procura refazer essa unidade, meta
chamada moksha (libertação) no Hinduísmo, nirvana no Budismo e Redenção do Homem
no Cristianismo.
O poder que impregna o universo e a mente do homem, intuído por poetas no
Ocidente, foi revelado nos Vedas (1500 AC – 500 AC), livros sagrados do Hinduísmo,
talvez a mais antiga literatura em um idioma indoeuropeu (o sânscrito). Prevaleceu na
Índia a verdade da imaginação, a verdade primordial, concreta, simbólica e intuitiva, não a
abstrata, lógica e racional. Os Vedas são tidos como shruti, “Revelação”, aquilo que foi
ouvido, e nitya, “eternos”, sem origem no mundo temporal (reflexos do eterno). Seus
autores humanos foram os rishis, videntes que viram a verdade, e os kavi, poetas de
expressão inspirada. A imaginação vincula mente e coração, intelecto e sentidos,
pensamento e sentimento, forma um elo, rompido pelo homem moderno e seu mundo da
ciência e razão, com linguagem em prosa, isolado das fontes do imaginário. O homem
antigo vivia no mundo da imaginação, da totalidade plena, expressado pelo mito, criado em
níveis profundos de consciência que ligam a natureza humana com o universo ao seu redor,
reflexo na imaginação humana de ideias arquetípicas, princípios e poderes, anjos e deuses
do mundo antigo; pelo mito, o homem se integra com a própria experiência interior e com
o mundo transcendente do espírito. Na linguagem dos Vedas, rica de significados, a
imaginação se expressa em símbolos, que refletem a multiplicidade de sentidos de uma
única palavra, algo comum na fala primitiva (a mente racional surgiu mais tarde para
distinguir vários aspectos de uma palavra, separar seus sentidos). Os Vedas trazem uma
compreensão da natureza tríplice do mundo, física, psicológica e espiritual, aspectos
interdependentes; a realidade física tem um aspecto psicológico e ambos se integram na
visão espiritual. O aspecto físico da matéria (prakriti) constitui o princípio feminino, do
qual tudo evolui; a consciência (purusha), o princípio masculimo da razão e da ordem no
universo; na tradição védica, toda a criação passa a existir pela interação entre ambos que,
por sua vez, provém do Espírito Supremo, Uno, além de toda mudança e multiplicidade.
Os deuses dos Vedas, aspectos do Uno, equivalem aos poderes cósmicos citados por São
Paulo; na teologia de São Tomás de Aquino (e para Bede) corresponderiam a anjos que
mantêm a ordem no mundo (GRIFFITHS, 2000).
São Paulo e os primeiro padres da Igreja defendiam a compreensão do homem
como corpo, alma e espírito (o Espírito é o pneuma de Paulo, correspondente ao atman
hindu), visão substituída visão de corpo e alma de Aristóteles, a partir do século XIV.
Para Griffiths (2000), nos Upanixades (a partir de 600 AC), base do Vedanta,
tratados filosóficos que tentam iluminar os Vedas, as visões intuitiva e racional se
integram, os conceitos vêm a tomar o lugar das imagens e o espírito humano emerge para a
autoconsciência. (Tal tipo de intuição também existe nos Evangelhos.) Para alcançar a
sabedoria suprema (jnana), era necessário partir para a floresta e meditar. Só o sannyasi, o
monge, poderia alcançar a libertação, moksha. Três palavras descrevem a Realidade
última: Brahman (o universo Uno, princípio de unidade a impregnar todas as coisas,
essência sutil de tudo, origem de toda a criação e da diversidade da natureza), Atman (Si-
mesmo, conhecimento de Si-mesmo, consciência de Ser, em que o espírito do homem toca
o espírito de Deus) e Purusha (homem cósmico e arquetípico, macrocosmo), aparentado ao
Adão Kadmon da tradição hebraica e ao Homem Universal da muçulmana. O pequeno
espaço dentro do coração humano é tão vasto quanto o universo (o homem, microcosmo,
com sua mente, o abarca por inteiro). Purusha contém toda a criação em si mesmo e a
transcende; como princípio espiritual, une corpo e alma, matéria e inteligência consciente
na unidade de uma consciência transcendente. Quem exclui o mundo dos sentidos, silencia
a mente discursiva (científica), passa ao intelecto ou inteligência pura (buddhi), onde se
unifica a personalidade e a mente humana, abre-se à luz divina, percorre parte da trilha que
leva à união com a consciência cósmica, isto é, Brahman = Atman = Purusha. Intelecto
puro, mente intuitiva, da buddhi derivam os princípios da razão e da moralidade; ela se
assemelha ao intellectus de São Tomás de Aquino, contraposto à razão; constitui o ponto a
partir do qual alguém se torna verdadeiramente humano.
Para Griffiths (2000), nos Upanixades também surge a noção de Deus pessoal. Dois
deuses, pouco citados nos Vedas, cujos mitos evoluíram, passam a assumir tal caráter:
Shiva e Vishnu. Eles passam a se constituir na Realidade última, unos com brahman, a
verdade absoluta. Shiva desvela-se como Deus de amor, mas com o poder de destruir e
renovar o mundo; Vishnu tem o caráter de preservador e, em momentos de profunda crise,
pode descer à Terra na forma de uma figura humana, o avatar, manifestação de Deus na
Terra, casos de Parashurama, Rama e Krishna. Cabe notar que ambos os deuses não
possuem uma origem ariana; Krishna costuma ser representado na cor azul.

BHAGAVAD GITA
Conforme Griffiths (2000, 2011), no Bhagavad Gita, parte do épico Maabárata
(composto entre IV AC e IV DC), o herói Arjuna sente seu Eu dividido e vê-se frente a
uma grande batalha: a de promover a própria integração como pessoa. Para conseguir
efetuá-la, ouve o discurso de Krishna. O livro, ligado à smriti, tradição, recordação (ao
contrário dos Vedas), resume a doutrina hindu e representa uma quebra quanto aos
Upanixades, associada ao fim do período védico e ao início do período heroico (500 AC),
quando se valoriza a classe dos kshatryas em detrimento dos brâmanes, outrora
predominantes; constitui uma resposta hindu ao surgimento do Budismo e do Jainismo
(onde não existe um princípio último, um Deus), dos quais incorpora elementos
(sobremaneira do budismo, como o conceito de Nirvana); transmite preceitos sobre as
formas de ioga (da ação, do conhecimento, da devoção), sobre cumprir o dever (dharma),
sobre a bhakti, entrega, devoção (superior à meditação), sobre o amor entre Deus e o
Homem, e a graça divina, vias para a libertação (Salvação cristã) da pessoa, desde que esta
se desapegue dos sentidos, dos sentimentos, da mente e do egoísmo, não vise às
consequências dos atos. A não-dualidade entre os deuses e entre deus e a pessoa devota se
apoia nas ideias do pensador Sankharacharya. Porém, o principal aspecto do Gita se refere
à devoção a um Deus pessoal, Vixnu, na forma de Krishna, de modo a se afirmar que
Krishna = Brahman = Atman = Purusha, ou seja, o deus cósmico e o pessoal se tornam um
único, o Senhor do Universo. Ao contrário do que citam os Upanixades, a pessoa comum
pode obter a sabedoria suprema, libertação, graças à bhakti, a devoção a deus; o caminho
de sacrifício (ligação com o universo) e meditação do sannyasi, tido como árduo, para
poucos, continua válido.
Griffiths (2011) analisou o Bhagavad-Gita sob o olhar das escrituras cristãs e
encontrou, entre outros, estes pontos de semelhança:
 Os discursos de Krishna e o de Jesus nos Evangelhos pregam a Salvação.
 O equilíbrio frente aos opostos, como prazer e dor (“sagrada indiferença” de Santo
Inácio de Loyola).
 O jogo de deus (lila), do amor (transbordamento de bondade de São Boaventura de
Bagnoreggio).
 A graça divina, que vem de Jesus e do deus pessoal hindu.
 As três emoções básicas, paixão, ira e medo (concupiscentia, ira, timor, segundo
São Tomás de Aquino).
 As dádivas provêm de Deus (Epístola de São Tiago).
 O trabalho como forma de sacrifício (Santo Agostinho) e de contemplação (regra
de São Bento).
 A pessoa participa da natureza divina (Epístola de São Pedro).
 O amor de Deus vive, age e se movimenta nas pessoas (em São João da Cruz).
 Observar inimigos e amigos com equanimidade (Evangelho de São Mateus).
 Os sacrifícios de Purusha e de Jesus.
 Além do aspecto não manifestado da natureza está a Pessoa Não Manifestada,
imperecível (brahman), que pode ser entendido a partir do conhecimento ligado à
doutrina da Trindade Cristã (O Pai como Fonte, Origem; o Filho, o Verbo, Pessoa
não manifestada, Suprema, além de todas as criaturas e fonte de toda a Criação).
 O desapego do mundo (Evangelho de São Lucas).
 A potencialidade da natureza, sementes no útero de prakriti (razões seminais de
Santo Agostinho).
 Todo o universo encontra centro e apoio na Pessoa Cósmica (Epístola aos
Colossenses, São Paulo).
 A não-dualidade (Epístola aos Romanos, São Paulo).
 O poder dos espíritos do mal, forças do inconsciente (Epístola aos Gálatas, São
Paulo).
 O mundo como imagem, reflexo de Deus (tradição bíblica, Padres Gregos).
 Toda criatura participa da vida interior da divindade, comunhão de amor (Doutrina
do Corpo Místico de Cristo).
 O termo OM se aproxima de “Verbo” (Evangelho de São João).
 Deus imanente em toda a criação, sem se identificar com ela (Deus presente em
todas as coisas, por seu poder, sua presença, sua essência, conforme São Tomás de
Aquino).
 Nada há na criação sem estar contido em Deus (Evangelho de São João).
 O terceiro olho, identificado como o ajna chakra (terceiro olho de Cristo na
iconografia bizantina).
 O aspecto terrível de Deus (Antigo Testamento).
 A dissolução de todas as coisas pelo fogo (Apocalipse, segunda Epístola de São
Pedro).
 A visão da forma cósmica de Krishna (glória de Yahweh no Antigo Testamento,
Transfiguração de Jesus no Evangelho de São Mateus, a visão de Jesus no
Apocalipse).
 As cinco maneiras de se relacionar com Deus (devoção ao menino Jesus).
 A oferenda da mente e do coração do devoto a Krishna (Jesus estabelece sua
morada no devoto, Evangelho de São João).
 O caminho do serviço devotado a Deus (Madre Teresa de Calcutá).
 O sannyasi sereno, em paz, sem ira ou medo (Padres do Deserto, Epístola aos
Colossenses de São Paulo).
 O homem entende que o Deus em seu interior é o mesmo Deus no interior de tudo
que existe (Doutrina do Corpo Místico de Cristo, Epístola de São Paulo aos
Romanos).
 O ato de ferir a outro é como ferir a si mesmo (Evangelho de São Mateus).
 A relação entre brahman e o Deus pessoal interpretada pelo ideal de circuncessão
dentro da Trindade Cristã.
 Deus presente no coração de tudo e todos (Doutrina Cristã do Sagrado Coração).
 As virtudes do homem espiritualizado e os vícios (São Paulo, Epístola aos Gálatas).
 A fé como fundamento de toda a ação (justificação pela fé, São Paulo).
 A sabedoria que discerne (prudência, para São Tomás de Aquino).
 O dharma, lei do universo como um todo (lex eterna, São Tomás de Aquino)
 Deus transmite seu amor aos homens (primeira Epístola de São João).
Pontos de possível desacordo: a questão da transmigração, na qual Bede, dentro da
visão tripartite hindu, entende que o espírito, atman, transmigra, não a alma; o tempo
cíclico na religião hindu, com eras que se sucedem, em que deuses reencarnam como seres
humanos (avataras), enquanto a tradição hebraico-cristã sustenta uma orientação histórica,
escatológica; no cristianismo, somente Cristo se encarna como autorrevelação de Deus; na
tradição hindu, deus é pai e mãe (o segundo aspecto é muito descurado no cristianismo).
O Gita, para Griffiths (2011), pode ser um guia espiritual prático para um cristão ou
qualquer outro que esteja à procura de algum para seguir o caminho da espiritualidade; ele
lança novas luzes em diversos aspectos do Evangelho e adquire novos significados, se
analisado do ponto de vista do Evangelho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No entender de Griffiths (2000), atualmente, não é mais possível uma religião viver
isolada das outras; com sua estrutura de linguagem e pensamento semíticos, o Cristianismo
precisa aprender o que as religiões do Oriente, o Hinduísmo, o Budismo, o Taoísmo e o
Confucionismo, outros aspectos da verdade, têm a lhe ensinar. Qualquer religião precisa
sustentar a verdade fundamental de sua própria tradição e permitir que esta se desenvolva
pelo contato com outras. A religião em si está em julgamento no mundo hodierno; torna-se
necessário um movimento ecumênico entre as religiões, em que cada uma aprenda a aceitar
e valorizar a verdade e a santidade presente nas outras.
Para tanto, cada religião, cada Igreja, deve realizar profunda autorreflexão sobre
seus escritos, suas leis, seus dogmas e suas práticas; sobre sua intolerância com relação a
outras (postura mais arraigada naquelas oriundas do Oriente Médio, ou seja, Judaísmo,
Cristianismo e Islamismo); dialogar constantemente com outras para encontrar caminhos a
fim de superar as diferenças e valorizar as similaridades. Não há mais espaço no mundo
atual, a não ser entre fanáticos, para o fundamentalismo religioso e para as perseguições
inter-religiosas, formas de apego que recrudescem em vastas regiões do planeta, até mesmo
nas religiões antes tidas como relativamente tolerantes (como o Hinduísmo). Enquanto a
maioria dos seres humanos continuar dividida internamente, sem seguir realmente o que
pregam escrituras sagradas como o Gita, haverá tais conflitos e também aqueles entre os
portadores da mente discursiva, permeada pela razão, contra os de mente intuitiva, repleta
de imaginação. Os dois grupos precisam entender que ambos os tipos de mente devem se
integrar em uma só, para resgatar uma visão de mundo que inclua tanto o racional como o
imaginativo, em que as pessoas possam adquirir as capacidades de se desapegar de tudo o
que as limita, de superar dicotomias, de se autotranscender e de se tornar verdadeiramente
humanas, libertas, no sentido ensinado pelo Gita.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
GRIFFITHS, B. Casamento do Oriente com o Ocidente: Hinduísmo e Cristianismo. São
Paulo, Paulus, 2000.
GRIFFITHS, B. Retorno ao centro: o conhecimento da verdade; o ponto de reconciliação
de todas as religiões. São Paulo: IBRASA, 1992.
GRIFFITHS, B. Rio de compaixão: um comentário cristão ao Bhagavad Gita. São Paulo: É
Realizações, 2011.
1

Islamismo e negação: O legado ignorado pelo Ocidente

Mariana Barreto de Araújo


Rafael Oliveira Sousa

O Islã; religião monoteísta é a que mais cresce no mundo, com


aproximadamente 1/5 de toda a população mundial (DEMANT1, 2008, p.13),
seguindo os preceitos da fé teorizada por Mohammed ou Maomé; o seu revelador e
profeta. O islamismo foi o responsável pelo avanço e disseminação da língua árabe;
já que o seu livro de conduta e adoração ao Deus Allá, o Corão; é escrito nesse
idioma. Alguns estudos mostram que os vários campos das ciências exatas e
humanas, receberam influência do Islã. As Ciências Médicas, a Astronomia, e a
Matemática (álgebra, trigonometria), devem grande parte do seu conhecimento aos
cientistas Islâmicos (como Nicolau Copérnico2) e aos exércitos que, a época ao
adentrarem em outras culturas, as absorviam e assimilavam, traduzindo-as para o
árabe tudo que já tinha sido construído a respeito destas ciências.

"[...] O Islamismo, em seu início, estimulou e promoveu a


investigação intelectual de todos os tipos. Em certa
ocasião, Maomé disse, a respeito da procura por
conhecimento: "Busquem a ciência, até mesmo na
China". [...] Os cientistas e filósofos árabes
encontraram prontamente um suporte divino para a ciência
na palavra revelada de Deus. [...] Muitos dos rituais e das
obrigações do Islamismo, tal como estabelecidos pelo
Profeta, exigiam uma compreensão relativamente
sofisticada do mundo natural. [...] Os muçulmanos
deviam saber os momentos certos das cinco orações
diárias, a direção a Meca, e o início do mês lunar de Jejum do
ramadã." (LYONS3, 2011, p. 7,8 e 9)

1
Peter Demant é um historiador Holandês. Especialista em questões do Oriente Médio é atualmente
professor do departamento de história da USP.
2
Nicolau Copérnico foi um astrônomo Polonês. Desenvolveu a teoria heliocêntrica com base em dados e
estudos de cientistas islâmicos como os astrônomos Al Tusi e Al Battani.
3
Jonathan Lyons é um jornalista americano. Foi correspondente e editor chefe da REUTERS. Atualmente
participa do grupo de pesquisas sobre terrorismo global da Universidade Monash, na Austrália.
2

Ao longo das últimas décadas, porém, o islã vem sendo associado a práticas
terroristas. Grupos extremistas isolados vêm se utilizando dela, para justificar suas
ações, contribuindo para que essa religião seja erroneamente associada à violência
e a intolerância. O atentado de 11 de setembro é um dos claros exemplos que
geraram fobia e terror em todo o mundo, parte considerável da mídia ocidental é
responsável por essa associação, esta afirmativa se cristaliza na citação a seguir:

“Na demonização de um inimigo desconhecido, em


relação ao qual a etiqueta ‘terrorista’ serve ao propósito
geral de manter as pessoas mobilizadas e enraivecidas, as
imagens da mídia atraem atenção excessiva e podem ser
exploradas em épocas de crise e insegurança do tipo
produzido pelo período pós Onze de Setembro. [...]
Constituem as ideias centrais, debatidas incansável e
empobrecedoramente por uma mídia que se arroga o papel
de fornecer supostos “especialistas”. (SAID4, 2007, P.22 e
33)

O fragmento reproduzido acima, afirma que o Islã vem sendo associado


rotineiramente as ações de grupos terroristas, com o intuito de validar intervenções
e dominações em território do Médio Oriente. Semelhantes aos discursos de Lorde
Crommer,5vemos a tentativa de tornar inferior o ‘outro’ para que se valide uma
série de ações que visam única e exclusivamente atender os interesses de
potências ocidentais. Diferente do que se é passado pela mídia, o Islã fora
responsável por disseminar a cultura Árabe, fez florescer a península arábica,
estimulou as artes e ciências, basta ver a imensa contribuição que fora passada ao
Ocidente.

Diante desta realidade o nosso trabalho, tem por objetivo, evidenciar a


importância do islão para o mundo, na tentativa de: - mostrar a sua contribuição o
seu legado histórico/cultural; - buscar entender o porquê de toda essa deturpação

4
Edward Said - Intelectual Palestino, professor da Universidade de Columbia. Escreveu vários livros de
sucesso, entre eles está O Orientalismo, traduzido para mais de 36 idiomas. Said era defensor da causa
Palestina. Morreu em 2003 aos 68 anos em decorrência de um câncer raro.
5
Lorde Crommer - Administrador britânico do Egito durante o período de 1883 a 1907.
3

em torno da sua doutrina e ensinamentos; - desassociá-lo de processos e atos


fundamentalistas, os quais não fazem parte dos seus preceitos. "O Islã, como o
cristianismo e o judaísmo, é uma religião que tem ética, não havendo lugar para o
terror e a chantagem em suas crenças e mandamentos." (LEWIS6, 2001, p. 9).

1. Fragmentos Históricos da Religião Islâmica.

O Islã; religião monoteísta surgida na Península Arábica no século VII por volta
do ano 622 D.C; região onde hoje encontra-se a Arábia Saudita. Antes da
unificação das tribos beduínas por Maomé; os povos da região praticavam o
politeísmo: cultuavam divindades ligadas aos elementos naturais, objetos sagrados
e outras entidades “pagãs” "A história cita que a idolatria era a religião dominante
entre os árabes" (Alcorão, El Hayek, 7p.10). Foi a partir de uma visão do Anjo
Gabriel em um de seus retiros espirituais no monte Hira, que o profeta tomou
conhecimento dos propósitos de Deus para sua vida e seu povo

Mohamed já contava com 40 anos e uma considerável bagagem cultural,


quando da aparição do mensageiro Gabriel. Nascido na cidade de Meca; Maomé,
oriundo de uma família de comerciantes; viajou boa parte da sua juventude, tendo
assim, contato com diversas religiões e culturas. Sua vida transforma-se
radicalmente, porém; após, no intuito de unificar as tribos de acordo com o
monoteísmo; encontra forte resistência principalmente por parte dos comerciantes
de Meca, receosos de perderem sua hegemonia econômica (oriunda das
peregrinações das festividades pagãs realizadas na época).

Passaram a persegui-lo e direcionar-lhe represálias. É nesse momento


então que acontece a Hégira: a peregrinação do profeta a cidade de Yathrib (ou
Medina) no ano de 622. Esse acontecimento marca o início do calendário
muçulmano. Após tal evento, a vida de Maomé e os rumos da nova religião passam
a ganhar novos contornos. Mohamed consegue fazer a unificação das tribos árabes
e a implementação do novo credo. A partir daí, o islã inicia a sua expansão por toda
a Península Arábica. Hoje, a religião faz-se presente em todas as regiões ao redor
do globo: “Eles se encontram concentrados num vasto arco, que se estende da

6
Bernard Lewis - Historiador britânico e professor emérito de estudos orientais na Universidade de
Princeton (EUA).
7
Samir El Hayek é um tradutor libanês. É dele a tradução da versão em português mais popular do
Alcorão.
4

África ocidental até a Indonésia, passando pelo Oriente Médio e a Índia. Em muitos
países desta vasta região, os muçulmanos constituem a maioria da população local
e, em outros, importantes minorias” (DEMANT, 2008, p.13).

Como religião dogmática e de preceitos, o islã também dispõe de um livro


de conduta pelo qual os seus praticantes devem orientar-se. O Alcorão; composto
por 14 capítulos (ou suras) é um dos livros mais influentes da história, tal qual a
Bíblia ou a Torá. Para os muçulmanos, o livro representa a revelação da palavra de
Deus aos homens. Ao longo de 14 séculos, o Alcorão influenciou líderes, reis,
artistas e cientistas; moldou e ditou as regras da sociedade árabe oriental e
inspirou suas leis, servindo como sua principal fonte de jurisprudência. Hoje, todos
os país ditos islâmicos, tem suas leis baseadas nos seus preceitos. A sharia, seria o
nome dado ao código de leis que vigora nas sociedades de maioria islâmica. O Islã,
forma juntamente com o Cristianismo e o Judaísmo, a tríplice religiosa monoteísta.
A religião inclusive teria em sua raiz as mesmas origens das outras duas; o profeta
Abraão. Todas, portanto, deteriam a mesma procedência histórica.

2. O Legado científico do Islã

Na literatura as Obras como "As mil e uma noites"; o famoso compilado de


histórias dos povos do Oriente Médio e Sul da Ásia (persas, indianos e árabes) teve
neste idioma o seu primeiro exemplar definitivo; possui várias referências e apelos
ao Credo muçulmano, como se pode perceber nos seguintes fragmentos,
aleatoriamente escolhidos: "Li o Alcorão e os livros dos mestres e aprendi as
ciências e os segredos dos astros." (p. 34); "Conta-se - mas só Alá sabe tudo - que
havia nas dobras do tempo e dos séculos um rei da dinastia dos Sassan que reinava
nas ilhas da Índia e da China"; (p. 8); "Em nome de Alá Todo-Poderoso, volta à tua
primeira forma! [...] Juro que não há Deus senão Alá e que Maomé é o mensageiro
de Alá." (p. 16).
As Ciências Médicas, a Astronomia, e a Matemática (álgebra, trigonometria),
devem grande parte do seu desenvolvimento, aos cientistas islâmicos (como
Nicolau Copérnico) e aos exércitos islâmicos, que, ao adentrarem em outras
culturas, as absorvia e assimilava, traduzindo-as para o árabe.
O ano 622, ano que marca o início do calendário Islâmico; marca também o
começo da marcha dos beduínos - agora unificados - rumo aos demais territórios
do planeta. Especula-se que a civilização árabe tenha pelo menos 4000 mil anos;
más é com o advento do islã, no século VII; que percebe-se por parte deles, uma
expansão efetiva. Expansão essa, que ocorre num primeiro momento através da
5

língua árabe.

Como consequência da sua ampliação geográfica, os árabes adentraram em


outras culturas como a Hindu, a Persa, a Grega e a chinesa e iniciaram um
processo de catalisação de suas produções intelectuais e a tradução desse material.
Invenções tecnológicas como o papel - pelos chineses - favoreceram o repasse e
aumento quantitativo dessas informações. Acredita-se que a técnica da produção
de papel tenha sido trazida a região onde hoje fica o Uzbequistão, e em pouco
tempo os livros tornaram-se parte fundamental do cotidiano árabe. E a religião,
naturalmente, também se fazia presente nesse contexto.

Assim como os gregos discutiam os principais aspectos de sua sociedade na


ágora - a praça central da Pólis - os árabes tinham como principal ponto de
encontro; a mesquita: "Tal como muitos outros aspectos da vida pública
muçulmana, grande parte da indústria do livro árabe girava em torno da mesquita.
Palestras, debates e discussões sobre uma ampla gama de questões religiosas,
científicas e filosóficas da época eram comuns nessas casas de culto [...]" (LYONS,
2011, p.44).

Nos primórdios, o livro sagrado tinha como único meio de divulgação a


tradição oral. Essa era a prática de Maomé, que ao receber as mensagens divinas;
pedia aos seus seguidores que as memorizasse e seguissem passando-as adiante. A
tradição permaneceu, e até hoje, os muçulmanos aprendem desde cedo a
memorizá-las e recitá-las, como no início. Com a importação da tecnologia do
papel, porém; o alcorão deixou de ser apenas um privilégio dos muçulmanos
árabes que detinham o costume; e passou a ser finalmente escrito e publicado;
fortalecendo e divulgando além da fé, a língua, que até hoje, permanece viva
justamente por ser a língua mãe do credo; a língua do profeta.

Outra grande obra da tradição oral originária dos povos do oriente (persas,
indianos e posteriormente árabes), é a atemporal- “As mil e uma noites”. Acredita-
se que a primeira transcrição na íntegra para o árabe tenha sido feita no século
VIII. Ao longo das épocas ela foi ganhando outras intervenções e só no Século XII,
recebeu o seu atual título. Foi no final do século XVII, entretanto; que ela ganhou o
mundo ocidental. Antoine Galland, orientalista francês, encontrou alguns de seus
fragmentos no Líbano; traduziu-os e logo depois os publicou. O sucesso foi
imediato. No século XIX, houve mais 3 traduções; agora para o Inglês. “As mil e
uma noites” permanece ainda hoje, depois da Bíblia, sendo o livro mais lido em
todo mundo, com traduções em praticamente todos os idiomas. Contudo, a
contribuição mais significativa trazida pela obra na Europa, foi à revolução causada
6

pelo seu conteúdo impessoal e fictício. O continente passava por um aumento


significativo na demanda de seus leitores, que pediam - ávidos - por algo inovador
e que fugisse do padrão clássico habitual.

"Não é temerário supor," diz o orientalista britânico H. A. R.


Gibb, "que As mil e uma noites revelaram os
horizontes que os escritores buscavam e que, não fossem
As mil e uma noites, não teriam existido nem
Robinson Crusoe nem talvez As viagens de Gulliver."
Victor Hugo escreveu: "Na época de Luís XIV todo o mundo
era helenista; hoje, todo o mundo é orientalista”. Na sua
biografia de Balzac, o maior criador de romances
da literatura francesa, André Maurois relata que ele lia As mil
euma noites. E André Gide chama As mil e uma noites "um
livro fundamental e necessário". (CHALLITA8, 2010, p. 4).

“As mil e uma noites”; por pertencer à tradição folclórica e literária oriental;
e ter tido o seu primeiro exemplar compilado em língua árabe; carrega em toda a
sua extensão, o teor religioso, inerente ao seu povo; parte fundamental de suas
vidas. Ao longo de toda a obra, (tradução de Mansour Challita, 2010) é
praticamente impossível não perceber a influência do Islão. O livro inclusive traz
em seu conteúdo claramente juízos de valor referentes à mulher, o seu papel na
sociedade e a aceitação natural de sua parte a prática da poligamia, permitida pela
crença: "As mulheres das Mi1 e uma noites aceitam a poligamia e o concubinato
como direitos naturais do homem" (p.5) ; o conceito que vigorava acerca das
demais religiões (Judaísmo e Cristianismo): "[...] cristãos e judeus são bastante
maltratados. É que a época das Mi1 e uma noites era uma época de guerras de
religiões, e cada religião procurava diminuir as outras (p.6); e até mesmo
descrições do paraíso e do inferno, tal o alcorão. A obra das mil e uma noites foi
preponderante para a divulgação e conhecimento por parte do Ocidente; da religião
Islâmica.
As ciências Islâmicas, apesar de hoje não obterem o devido
reconhecimento por parte do Ocidente; foram incontestavelmente, fundamentais
para a construção do que hoje chamamos de ciência moderna. Da astronomia a

8
Mansour Chalita é um escritor, tradutor e diplomata libanês. Radicado no Brasil; é o principal tradutor
das obras de Kallil Gibran.
7

cartografia, passando pela matemática, a química (alquimia e magia); à literatura e


filosofia: todas elas foram objetivamente aperfeiçoadas e desenvolvidas por estes
homens, que tinham na fé, sua maior motivação na busca pelo saber.
Os Califas abàssidas Al Mansur e Al Mamum; foram dois dos grandes
incentivadores e impulsionadores da era conhecida como "era de ouro" da ciência
muçulmana. Al Mansur, segundo Califa da dinastia e fundador da cidade de Bagdá;
foi o pioneiro dos novos tempos. O próprio califa era um exímio astrônomo; e na
ânsia de expandir o conhecimento já existente, incentivou o acúmulo e tradução de
várias importantes obras gregas, persas, e hindus, por exemplo. O ápice do seu
empenho materializou-se no que viria a ser conhecida como "A casa da Sabedoria"
ou "A casa do saber", que era nada menos que uma suntuosa biblioteca, erguida
sob os padrões persa, e que incutia em seu interior espaços para discussão,
tradução de livros e claro, armazenamento.

Outro notável Califa foi Al Mamum. Apaixonado pelo céu e corpos celestes,
o sétimo califa da dinastia dos abassídas era astrônomo, astrólogo, versado em
filosofia; e foi, assim como os seus antecessores, os califas Al Mansur e Harunal-
Rashid (seu pai); um grande entusiasta e financiador das pesquisas científicas. O
movimento conhecido como "movimento da tradução", foi uma iniciativa de Al
Mamum, que consistia na busca indiscriminada por livros de todo o mundo e em
qualquer idioma; para que pudessem ser convertidos à nova língua da comunicação
e ciência.

"Ao longo de 150 anos, os árabes traduziram todos os


livros gregos disponíveis de ciência e filosofia. O árabe
substituiu o grego como à língua universal da pesquisa
científica. [...] A ascensão dessa nova tradição científica e
filosófica gerou uma demanda por mais e melhores traduções
do grego e de outras fontes; ao contrário do que a tradição
ocidental costuma dizer, que deram a origem a ciência e a
filosofia árabes". (LYONS, 2011, p. 6, 17 e 19).

Os abàssidas eram grandes entusiastas do conhecimento científico.


Praticamente a totalidade do que foi traduzido, descoberto ou aperfeiçoado, teve a
contribuição financeira e logística direta da elite muçulmana que se alto proclamava
descendente direta do profeta. Altas quantias em dinares de ouro eram oferecidas
8

em troca de livros diversos; e aqueles pesquisadores que não detinham condições


de manter e levar adiante suas pesquisas eram financiados por eles. No geral, o
interesse do clã Islâmico era variado e tudo o que pudesse ser considerado
produção científica, era indiscriminadamente abarcado. Algumas áreas em especial,
porém, obtiveram maior interesse: na medicina na matemática e na astronomia.

No campo da medicina e farmacologia, nomes como Ibn Sina (Avicena), Al


Zahrawi, e Ibnal-Baytar destacam-se pelo conjunto da obra e legado. Avicena,
como é conhecido no Oriente; foi considerado o "pai da medicina Islâmica" da
época. Nascido no ano de 1025 d.C, é o autor da obra conhecida como "Cânone da
medicina"; um audacioso compilado de 3 volumes com todo o conhecimento da
época (majoritariamente grego e indiano) a cerca da ciência. O livro é tido como
fundamental pelo fato de ter sido, meticulosamente organizado por especialidades e
pela sua abrangência. De enfermidades crônicas à infecções: o que houvesse de
medicina conhecida, havia na obra. Depois do "Cânone", todos os outros livros e
textos sobre o tema foram deixados para trás - a coletânea de Avicena era a obra
médica mais completa de que se havia tido notícia; e as noções contidas nele
vigoraram até meados do século XIX.

O médico e cirurgião Al Zahrawi - ou Albucasis, como ficou conhecido no


Ocidente - também deixou importantes pesquisas e avanços destacadamente no
ramo da medicina oftalmológica. O método que ele desenvolveu, conhecido como
"couching"; curava a catarata e tinha um índice de assertividade de mais de 60%.
Até hoje, em alguns países do mundo, a técnica do "couching" é utilizada; embora
ela já seja ultrapassada e existam métodos modernos e precisos para o mal. É
atribuído a Albucasis, invenções cirúrgicas como o bisturi e a tesoura cirúrgica.

E finalmente o farmacologista Ibn al-Baytar, que foi o mais destacável dos


farmacologista do medievo Islâmico. O farmacêutico elaborou pelo menos 1400
fórmulas de medicamentos; para os mais variados tipos de moléstia. Desenvolveu
também conceitos a cerca de higiene (grande preocupação dos árabes) e nutrição.
Muitos dos medicamentos formulados pelo cientista são utilizados até hoje no
Oriente Médio. Etambém atribuída a medicina Islâmica, a criação dos conceitos de
"hospital" e "centro médico". Noções de higiene e atendimento médico-hospitalar
também são atribuídas à medicina Islâmica.

Já no campo da Matemática, dentre os vários nomes que contribuirão para o


seu progresso e aperfeiçoamento, nenhum deles obteve tanto destaque e
importância quanto Al Khwarizmi. Nascido por volta de 783, potencialmente no
Uzbequistão, o matemático e astrônomo conseguiu verdadeiras façanhas ao longo
9

de sua vida de pesquisa; e cujo legado estende-se até os dias atuais. Foi ele quem
adaptou o sistema decimal indiano para o árabe, levando-o ao ocidente. É também
mérito do cientista, a fusão das duas principais tradições matemáticas da geometria
e aritmética. Ele uniu a tradição grega; com a tradição hindu do sistema decimal; e
com base nisso criou a Álgebra: método de cálculo que une letras e números,
facilitando a contagem e obtendo um resultado satisfatório e mais rápido. A pedido
do seu principal financiador; o califa Al Mamum; Al Khwarizmi fabricou duas tabelas
estelares conhecidas como "Zij al- Sindhind", que foram utilizadas não apenas no
medievo islâmico, más também no Cristão. Mil anos depois da confecção, as
tabelas do cientista ainda eram utilizadas no Egito.

Na Astronomia, também foi de grande desenvolvimento e destaque para as


ciências árabe/islâmicas. Talvez essa tenha sido a ciência que obteve maior
produção e empenho por parte dos cientistas, e interesse por parte da elite
financiadora. Dentre as principais figuras que despontaram, destacam-se: Al
Battani, Al Tusi e Al Shatir. Foi das teorias e conclusões de Al Battani, por exemplo;
que o astrônomo Polonês Nicolau Copérnico baseou a sua teoria heliocêntrica
acerca do sistema solar e movimento dos astros

O Astrônomo AlTusi, por sua vez, foi o criador do maior observatório já


construído pelo homem, até então. Através das suas observações, ele começou a
desconstruir aos poucos as teorias gregas contidas principalmente na Obra de
Ptolomeu "Almagesto", que sugeria a terra como o centro do universo e que era até
a época, a teoria vigente a cerca do universo. E finalmente, Al Shatir, também
pesquisador e desenvolvedor da teoria heliocêntrica do universo; que teve como
um dos seus legados, um magnífico relógio solar, na mesquita omíada de Damasco,
com todos os cálculos exatos para o acompanhamento das cinco orações diárias da
religião.

"Os nomes de Al-Khwarizmi, Avicena [...] - gigantes da


cultura árabe e figuras dominantes na Europa medieval
durante séculos - provocam hoje pouca ou
nenhuma reação do leitor leigo instruído. [...]
Contudo, eles foram apenas alguns dos protagonistas
de uma extraordinária tradição científica e filosófica árabe
que jaz escondida sob séculos de ignorância e franco
preconceito anti- muçulmano do Ocidente. (LYONS, 2011,
p.8)
10

O início do século XXI foi marcado por menções e ‘queixas’ a respeito do


‘fechamento’ do Oriente, em especial o mundo Árabe, para com o Ocidente. A essa
mínima receptividade atribuiu-se uma culpa e ela recai sobre o Islã e suas
tradições. O Ocidente durante parte de sua história atribuiu o rótulo de excêntrico e
não civilizado a tudo aquilo que dele se distinguisse; a falsa ideia do ‘Fardo do
homem branco’ soa quase como verdade nos discursos do século XIX.

Para entendermos esse ‘fechamento’ oriental, se é necessário fazer um


pequeno apanhado histórico. Durante o século XIX vê-se uma aproximação entre o
mundo oriental e o Ocidente, esse contato foi visto de maneiras distinta por ambos
os povos, o que poderia ser uma fusão de elementos tanto políticos quanto
culturais, virou um jogo de dominador e dominado. É leviano afirmar que o Oriente,
o mundo árabe em particular, via no Ocidente um exemplo a ser seguido, mas
também seria de extrema má fé afirmar que não existia um interesse político-
cultural. É possível evidenciar esse tipo de afirmação observando o translado de
orientais que iam rumo ao Ocidente em busca de uma formação intelectual e um
acréscimo cultural. Do mesmo modo, não se pode afirmar que o Ocidente fitava o
Oriente com os mesmos olhos, isso a história e os eventos históricos que marcaram
esse período falam por si só.

O olhar ocidental era marcado por uma superioridade, seja cultural,


econômica e até racial. Não se é difícil encontrar relatos a respeito desse tipo de
visão; Edward Said explicita esse comportamento em seu livro Orientalismo9 ao
publicar relatos de Lorde Crommer a respeito de como ele (Crommer) via os
orientais.

“O europeu é um bom raciocinador; suas afirmações factuais


não possuem nenhuma ambigüidade; ele é um lógico
natural, mesmo que não tenha estudado lógica; é por
natureza cético e requer provas antes de aceitar a verdade
de qualquer proposição; sua inteligência trinada funciona
como um mecanismo. A mente do oriental, por outro lado,

9
- Orientalismo - Nesta obra, Said mostra ao seu leitor que o Oriente foi por muito tempo ‘construído’ no
imaginário Ocidental a partir de relatos e estudos tendenciosos que visavam validar uma serie de ações no
mundo Oriental.
11

como as suas ruas pitorescas, é eminentemente carente de


simetria. Seu raciocínio é dos mais descuidados. [...] São
muitas vezes incapazes de tirar as conclusões mais óbvias de
quaisquer premissas simples, das quais talvez admitam
verdade. Procure extrair uma simples declaração de fatos de
qualquer egípcio comum. Sua explicação será geralmente
longa e carente de lucidez. É muito provável que se
contradiga meia dúzia de vezes antes de terminar sua
historia. Ele com freqüência sucumbirá sob o processo mais
ameno de acareação.”(SAID, 2007, P.71)

Neste breve excerto pode-se ver a maneira como o oriental era encarado,
como ele era recepcionado pelo Ocidente; de forma clara, ele é tido como inferior e
incapaz, o oposto do europeu dominador, raciocinador, sábio. Para Crommer, os
egípcios eram meros ‘objetos’ governados por ele, um povo incapaz de possuir um
auto-governo. Essa ideia não é somente restrita ao Egito, mas é modelo a ‘ser
seguido’ para todas as colônias, sejam elas britânicas, francesas, entre outras. Para
o Ocidente era necessário inferiorizar com o intuito de poder validar sua
intervenção. Transformar em ‘animal’ aquele povo faz ganhar o direito de subjugar,
explorar e massacrar sem nenhum constrangimento.

Como anteriormente já fora mencionado, o Ocidente acusa o Islã de ser o


responsável pelo ‘fechamento’ do Oriente para o mundo ocidental, essa acusação é
calamitosa, atribui culpa a uma religião isenta de culpabilidade. No mundo
ocidental, existe a necessidade de transformar em bode expiatório tudo aquilo que
não é de acordo com seu modo de vida ou conduta, com o Islã não poderia ser
diferente. Existe um motivo por trás dessas acusações, suprimir a culpa de parcela
do Ocidente pelos eventos que resultaram nesse ‘fechamento’. Durante quase dois
séculos o mundo oriental, em particular o mundo Árabe, viu-se subjugado pelo
Ocidente, grande parte dos contatos resultavam em dominações em sua maioria
diretas, a única defesa era se ‘fechar’ e passar a proteger-se dos interesses e
investidas ocidentais.

Os movimentos anti-imperialistas e revolucionários que surgiram no século


XIX, conseguiram ‘por fim’ a empresa do neo-colonialismo. Após rechaçarem esse
avanço, seu próximo passo foi à formação de um governo, este mesmo integrado
quase em sua totalidade por membros que pregavam o isolamento e uma proteção
12

de sua cultura e valores, o que resultou nessa diminuição de contato entre o


Oriente e o Ocidente.

Pode-se afirmar que o mundo ocidental ‘bebeu na fonte’ do Oriente; de


forma semelhante o Oriente viu-se influenciado pelo mundo ocidental; de fato
temos aí uma ‘via de mão dupla’. Desde escritos traduzidos e preservados pelos
muçulmanos, como escritos gregos, até a fusão arquitetônica; esse último deixa
explícito em que grau se deu essa mescla cultural. Durante as cruzadas é possível
perceber que a arquitetura islâmica deixou os cruzados extasiados com tamanha
beleza e funcionalidade, logo não tardou para que os mesmos a imitassem. É de
extrema importância destacar a participação do engenheiro árabe Fadel An-Nabi10
nas construções francas em território palestino ocupado pelos cruzados. Fadel fora
um dos responsáveis por iniciar esse processo de fusão, pelo simples fato de ser ele
a mão árabe que colaborou com os cruzados na construção de fortalezas e demais
obras militares. A respeito da colaboração de Fadel para com os francos o soberano
siríaco Nûrad-Din11diz: “Que Deus o mal diga! Pois sua traição custou caro aos
muçulmanos: graças a ele, nossos inimigos aperfeiçoaram sua arte arquitetural”.
(AZIZ, 1977, P.127)

Durante um milênio o cristianismo, na figura da Igreja Católica Romana,


controlou os pensamentos e ações do mundo Ocidental, cerceou leituras, produções
artísticas e científicas; coube ao Islã desenvolve-las, por em prática ensinamentos
como os do grego Aristóteles, que durante o medievo fora proibido. O Ocidente não
pode negar as contribuições do Islã para a cultura Ocidental, as mesmas foram
infinitas, cabe a nós (Ocidentais) quebrar a arrogância e a falsa ideia de
superioridade.

Uma parcela da contemporaneidade ocidental ainda guarda um ranço das


instituições políticas do mundo oriental e de sua religião; por vezes o Islã foi
‘destrinchado’ negativamente perante o Ocidente. Eventos históricos como a
Revolução Iraniana em 1979, foram tidos como expressão máxima da interferência
religiosa nos meios estatais, de fato, os imperialistas ocidentais nuca aceitaram a
emancipação proporcionada pela Revolução Iraniana.

O desconhecimento acerca do Islã leva as mais diversas e deturpadas


associações dessa religião com práticas terroristas. Traduções etimológicas de

10
- Fadel An-Nabi - Engenheiro e arquiteto siríaco, foi um dos maiores responsáveis pelas construções
francas em território Palestino ocupado durante o período das cruzadas.
11
- Nûrad-Din - Foi o segundo soberano da dinastia dos Zengidas, governou a Síria e o Iraque entre 1146
e 1174.
13

algumas palavras árabes levam aos mais dessemelhantes equívocos, como exemplo
tem-se a palavra Jihad, que designa ‘Força e Empenho’ e não ‘Guerra Santa’ como
recentemente a mesma vem sendo apresentada pela mídia ocidental. Ataques
terroristas suicidas são de forma direta agregadas ao Islã, essa ideia é incorreta,
não concerne com a realidade.

“O suicídio , ao contrário, é um pecado mortal e leva a


danação eterna, mesmo para aqueles que, de outra forma, teriam
garantido um lugar no paraíso. Os juristas clássicos distinguem
claramente entre defrontar a morte nas mãos do inimigo e matar-se
com as próprias mãos. A primeira leva ao céu, a outra, ao inferno.”
(LEWIS, 2004, P. 52)

No fragmento citado, vemos a desassociação do Islã as práticas suicidas


empregadas pelos mais diversos grupos extremistas, tendo em vistas que para o
islamismo o suicídio representa a danação eterna, as práticas extremistas estão
totalmente em desacordo com os preceitos islâmicos; esse é só um dos mais
simples exemplos; uma análise mais profunda do Corão desmitificaria essas falsas
ideias.

A associação Islã/Terrorismo por vezes fora combatida, em sua maioria sem


sucesso. O historiador britânico Bernard Leiws12 em seu livro “Os assassinos, os
primórdios do terrorismo no Islã”, combate esse falso ideário. Lewis aventa a
possibilidade de que os primeiros casos de ‘terrorismo’ foram praticados por uma
‘seita’ islâmica composta por assassinos profissionais; esse grupo mais tarde seria
chamado de “Os assassinos de Alamut”13.

A seita dos assassinos fora tida por muitos como sendo uma deturpação do
Islã, não se enquadrando de modo algum na fé dos sarracenos. As suas práticas
‘duvidosas’ permitiram que se levantassem os mais diversos questionamentos
acerca da crença na fé islâmica por parte dos integrantes deste grupo.

13
- Os assassinos de Alamut - Seita islâmica ismaelita fundada no século XI por Hassan ibnSabbah (O
velho da montanha), é conhecida com essa alcunha devida os seus serviços de assassinatos por ordem de
seu líder Hassan (Velho da montanha).
14

“Essa casta de homens vive fora da lei; eles comem carne de porco,
contra a lei dos sarracenos, e fazem uso de todas as mulheres, sem
distinção, inclusive mães e irmãs. [...] Muitos deles, ao se postarem
sobre um muro alto, saltam a um aceno seu e arrebentando os
crânios, tem morte estúpida.” (LEWIS, 2001, P. 13 e 14)

No fragmento acima, vê-se relatos de um missionário cristão enviado ao


Egito e a Síria pelo imperador Frederico Barba-Roxa em 1175; esse cristão fica a
par das mais diversas práticas dos integrantes da seita dos Assassinos; em seus
escritos é possível evidenciar inúmeros descumprimentos as tradições muçulmanas
por parte desses homens. Atitudes condenáveis como a ingestão de carne suína, o
incesto e o suicídio estão intimamente presentes na vida dos integrantes da seita
dos assassinos; com base nessas praticas pode-se sugerir que o Islã não faz parte
do credo verdadeiro desses homens, pois os mesmos o deturpam em sua essência.
Vemos reconfirmada a teoria de que o Islã é utilizado como plano de fundo para
grupos extremistas desde os primórdios. O Islã foi renegado e taxado pela mídia
ocidental como sendo a máxima representação do terror. De fato, Edward Said
tinha razão ao afirmar:

“Historicamente, os meios de comunicação Americanos, e talvez os


ocidentais de maneira geral, têm sido extensões sensoriais do
contexto cultural predominante [...] Todo o sistema gigantesco dos
meios de comunicação de massa que é ubíquo, deslizando através de
inúmeras fronteiras e instalando-se em quase todas as partes [...] A
mídia não é apenas uma rede prática totalmente integrada, mas um
modo de articulação eficientíssimo [...] Possui uma tendência
institucionalizada de gerar imagens transnacionais desproporcionais
que agora estão reorientando o discurso e o processo social
internacional.” (SAID, 2011, Pág. 451, 471 e 472)

O legado Árabe-islâmico é por vezes negado no mundo ocidental, essa


prática é oriunda do ranço historiográfico que as nações européias e os Estados
Unidos têm de admitir a mescla cultural oriunda do contato desses dois pólos de
poder mundial. De fato, pode-se até negar a influência, mas jamais conseguirão
15

esconde-la, o mundo árabe está impregnado no Ocidente. A cultura é fluida,


impregna até os seus algozes.

Bibliografia:

CHALLITA, Mansour. As mil e uma noites. Rio de Janeiro: Editora Gráfica LTDA,
2010.

DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. 2 ed. São Paulo: Editora Contexto, 2008.

LYONS, Jonathan. A casa da Sabedoria. Tradução da 1º edição original Inglesa:


Rio de Janeiro: Editor Jorge Zahar, 2011.

LEWIS, Bernard. Os assassinos: os primórdios do terrorismo no Islã. Rio de


Janeiro: Editor Jorge Zahar, 2011.

EL HAYEK. Samir. Os significados dos versículos do Alcorão Sagrado.


Tradução Samir El Hayek. Federação das associações islãmicas do Brasil,
Link>>>http.www.gratisquran.com/index.php

SAID, Edward. Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente. São


Paulo: Editora Companhia das Letras, 2007.

SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Editora Companhia das


Letras, 2011.

AZIZ, Philippe. A Palestina dos Cruzados. Rio de Janeiro: Editora Ferni, 1978.

LEWIS, Bernard. A crise do Islã: Guerra Santa e Terror Profano. Rio de


Janeiro: Editora Jorge Zahar.

Link>>>http://www.scielo.br/pdf/rbef/v33n4/21.pdf

Link>>>http://www.icarabe.org/artigos/os-arabes-e-suas-contribuicoes-para-a-
ciencia-e-medicina

Link>>>http://www.wamy.org.br/index.php/civilizacao/ciencias-exatas-e-
biologicas/item/as-contribuicoes-dos-cientistas-muculmanos-para-a-medicina
Gira e baila comigo? O corpo na Umbanda e no Santo Daime

Ana Paula de Souza Campos & Stephânia da Motta Stefanon1

Resumo

Este trabalho visa compreender os dispositivos que envolvem a produção social do


corpo no contexto religioso a partir da análise de duas religiões que têm no corpo
seu elemento central: a Umbanda e o Santo Daime. Baseando-nos em um trabalho
etnográfico nestas duas religiões, interessa-nos analisar comparativamente a
relação corpo-pessoa-experiência religiosa nestes dois contextos, destacando suas
aproximações e distanciamentos. Em ambas o corpo é moldado e posicionado,
recebe roupas e se situa no meio do salão para o ritual. Mas, enquanto na gira da
Umbanda se espera concentração e disciplina do corpo para que se realize a
incorporação e consulta, no bailado das igrejas daimistas aqui pesquisadas se
espera disciplina e concentração para que não se expressem entidades, ou seja,
para que a incorporação não se realize, e se alcance a miração.

Palavras-chave: incorporação, cura, ritual, religião, miração.

“(...) toda sociedade implica a ritualização


das atividades corporais. A todo instante o
sujeito simboliza por meio de seu corpo (...)
a totalidade de sua relação com o mundo.”
Le Breton, 2011:193.

1
Graduandas do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
O corpo moderno ocidental

De acordo com Le Breton (2011), existe uma concepção hegemônica acerca


do corpo na vida moderna ocidental, segundo a qual este é percebido como a
“fronteira que delimita perante os outros a presença do sujeito” (2011:32). É no
corpo que a pessoa se encontra, é onde ela começa e onde termina. O corpo é a
sua expressão na realidade material, é um fim em si mesmo. Nesta perspectiva, o
corpo é um “fator de individuação”, é o limite da pessoa no plano social. Esta
percepção do corpo faz com que haja o “encerramento do sujeito em si mesmo”
(2011:33). Logo, o ser humano é percebido enquanto indivíduo e segundo essa
noção ele é autônomo, independente, autossuficiente, aquele que alcança seus
objetivos por conta própria e seu corpo é “dissociado do sujeito e percebido como
um de seus atributos” (2011:33).

Ainda segundo Le Breton (2011), essa compreensão individualista do ser


humano se sustenta na concepção “anatomofisiológica” do corpo, em uma
concepção “biomédica” dualista que separa constantemente o homem de seu corpo
(2011:128). Segundo essa lógica o corpo é um isolamento ou uma inexistência. O
corpo é dissolvido nos rituais cotidianos da vida moderna, ele se transforma em um
“automatismo” em meio a um entremeado de relações (2011:192). De acordo com
este autor, o corpo se enquadra em regras e normas que limitam a sua expressão,
ele se torna o lugar do “silêncio”, da “discrição”, do “apagamento” e a consciência
do corpo só é tomada na doença (2011:192). Enquanto saudável o corpo é
reprimido, esquecido e há um “evitamento de seu uso” (2011:194).

Nesse sentido, Le Breton (2011) afirma que há um isolamento do sujeito em


três âmbitos diferentes: “em relação aos outros” Ð na medida em que a estrutura
social exige uma concepção individualista do corpo Ð, “em relação ao cosmo” Ð o
corpo é formado por uma matéria-prima única Ð e “em relação a ele mesmo” Ð o
corpo é algo que se tem, mas do que algo que se é (2011:09).

Interessa-nos pensar, apoiando-nos na argumentação de Le Breton (2011)


acerca dos saberes populares do corpo, que enquanto uma percepção moderna de
corpo, baseada em uma concepção “racional”, “positiva” e “laica” (2011:09),
separa o homem do resto do mundo, dos demais sujeitos e até de si mesmo, a
cosmologia umbandista e daimista interpreta o corpo como um “continuum” entre a
pessoa e o cosmo (2011:130). Ambos são feitos da mesma matéria, da mesma
substância, as mesmas “matérias-primas” (2011:130) compõem o homem e o
mundo, isto é, há a “integração do homem no holismo do universo” (2011:133).
Assim, tal como discutido por Le Breton (2011), é através do corpo que o homem
dialoga com os “diferentes campos simbólicos que dão sentido à existência coletiva”
(2011:37). Dessa forma, os saberes veiculados ao corpo são saberes sobre o
homem, não apenas saberes sobre o corpo, isto é, são saberes que estão
imbricados em visões de mundo e, nesse contexto, estão associadas a perspectivas
religiosas e dependem de tais concepções para fazerem sentido.

O corpo a partir da noção de cura

Segundo Le Breton (2011), o momento em que o corpo é notado na vida


moderna é o momento da doença. No entanto, a instituição biomédica não tem sido
capaz de “mobilizar uma eficácia simbólica” em torno das práticas médicas
(2011:305). Assim, a doença e as explicações que giram em torno da mesma não
são suficientes para preencher de sentido a existência dos indivíduos. Logo, a
religião preenche esse espaço tornando a compreensão da existência humana
passível de sentido. Dessa forma, para a compreensão do corpo na cosmologia
umbandista e daimista é necessário entender como essas religiões constroem
diferentes percepções da ideia de cura, a partir da noção de doença e saúde em
cada uma delas.

No campo de pesquisa da Umbanda, realizado em um terreiro específico na


Zona Oeste do Rio de Janeiro, foi muito comum ver visitantes freqüentarem esse
espaço buscando a cura para as suas doenças. A busca por um terreiro de
Umbanda para a cura de seus males evidencia uma concepção de doença diferente
da concepção biomédica moderna. O corpo não é visto pelos participantes dos
rituais da Umbanda neste terreiro apenas como uma estrutura funcional que, caso
pare de funcionar direito, precisa dos instrumentos médicos incidindo na causa do
problema para que se reestruture a saúde do indivíduo. As causas dos males não
são explicadas biologicamente e fisiologicamente, mas espiritualmente. Se o
indivíduo está doente, podem ter feito um trabalho contra ele, ele pode possuir um
carma relacionado às suas experiências em outra vida, ele pode ter desejado e feito
o mal a outras pessoas, etc. Nesse sentido, há inúmeras situações mobilizadas para
a explicação da doença que não as explicações que acionam o saber biomédico.

Percebemos, então, que, tal como analisado por Birman (1985), de acordo
com a cosmologia umbandista, “há um nível dos acontecimentos que é determinado
por causas que vão além daquelas a que o homem pode prever ou controlar”
(1985:25), há um plano na vida que pode não ser explicado levando em
consideração causas de natureza universal. Segundo Birman (1985), o acaso que
figura nesse plano, para os umbandistas tem determinações sobrenaturais, ou seja,
as suas causas figuram no plano espiritual. Sendo assim, ainda segundo a mesma
autora, a relação com os santos confere a proteção nesse plano, o que exige de
seus médiuns a manutenção de uma boa relação com os seus guias2 a partir do
cumprimento de suas obrigações enquanto médiuns no terreiro.

Logo, não são os métodos da medicina tradicional que podem curar a


pessoa, que podem fazer com que o seu corpo funcione novamente em equilíbrio,
mas terapêuticas não convencionais, estas que agirão com as forças espirituais.
Assim, é no terreiro de Umbanda estudado que os indivíduos encontram eficácia
terapêutica a partir de tratamentos alternativos como rezas, cromoterapia,
trabalhos com ervas, cristais, etc. Breton (2011:305) argumenta que “as
medicinas paralelas oferecem respostas que não se atêm ao órgão ou à função
doente, mas se comprometem em restaurar equilíbrios orgânicos e existenciais
rompidos”. Nesse sentido, é nas medicinas paralelas que o indivíduo encontra um
sentido e um valor que reestruturam a eficácia simbólica que é negligenciada pela
instituição médica. Assim, na Umbanda, “o diálogo com os Orixás da noite dá ao
homem das grandes cidades a parte de símbolo que falta à sua vida cotidiana e que
constitui nela mesma uma medicina.” (BRETON, 2011:305).

A cura no Santo Daime também é percebida através de uma concepção que


destoa da abordagem biomédica moderna do funcionamento do corpo. Na
cosmologia daimista, confirmada na pesquisa em igrejas específicas abordadas por
este trabalho, as doenças não são entendidas apenas como um desequilíbrio
orgânico, como um mal funcionamento do corpo, mas sim como alguma coisa a que
o individuo precisa passar, por algum motivo, para que ele adquira o entendimento3
de algo que está errado em sua vida.

É importante notar que a compreensão de algo nem sempre tem como


resultado a cura, pois a doença para os daimistas também passa pela noção de
merecimento. De acordo com Groisman (1999:52), “é a pessoa que conhece a vida
espiritual e não trabalha para evoluir que sofre”, assim, “o sofrimento é uma prova,
um desafio que dá oportunidade da pessoa evoluir espiritualmente”. Para uma

2
É como se referem no centro às entidades, mentores espirituais, isto é, espíritos que são incorporados
pelos médiuns (chamados de “aparelhos” de tais entidades) e que, em sua maioria, oferecem consultas aos
visitantes.
3
Importante notar que esse é uns dos meios de se adquirir algum “entendimento”, mas não
necessariamente o único, a cosmologia daimista é rica de sentidos, existem várias formas de alçar
entendimento, o sofrimento por exemplo nem sempre está atrelado a doença, um sofrimento sentimental
por alguma perda, seria uma forma de compreensão de algo. Como a categoria de entendimento, é a priori
de fórum intimo, são múltiplas as formas de se chegar à compreensão, ao entendimento de algo, que não
se limitaria a doença.
melhor compreensão acerca da noção de merecimento o hino a seguir exemplifica a
concepção de doença e cura na doutrina daimista:

“LINHA DE ARROCHIM
Padrinho Wilson

Harmonia, verdade e perdão


São os três pontos
Que seguram esta união

Eu peço meus irmãos


Prestem atenção
Que o mestre do astral
Está olhando a seção

As doenças que aparecer


É disciplina
Pra quem faz por merecer

Pedir aos espíritos curadores


Da linha de Arrochim
A Jesus Cristo Redentor

Ter fé e esperança
No pedido
Pensar em Deus
E na nossa virgem mãe

Não ter medo de morrer


E se sair correndo
É pior para você

Com calma e tranquilidade


O seu caminho
Vai se iluminar

Te lembra do velho Juramidam


Ele está sempre presente
E segura a sua mão.”

A partir do trecho “As doenças que aparecer/É disciplina/Pra quem faz por
merecer” podemos perceber que a díade doença e cura faz parte de um processo
de evolução espiritual do indivíduo que deve ser percorrido através da disciplina.
Assim, somente através da busca interior pela resolução dos problemas que
incidem na vida de cada um, na particularidade de seus interesses, que pode se
processar a cura da doença. Logo, o indivíduo deve merecê-la e isso só acontecerá
se ele percorrer o caminho do entendimento de si mesmo.

É importante notar que a concepção de doença no Santo Daime representa a


“desarmonia da pessoa com a realidade espiritual nessa vida ou em encarnações
passadas” (FERNANDES,1986:76), ou seja, a doença pode se tratar de um carma
adquirido pelo indivíduo em outra vida. Logo, o daime enquanto substância pode
curar o indivíduo, mas pode também proporcionar-lhe a possibilidade de alcançar o
entendimento e, assim, merecer a cura obtendo um desenvolvimento espiritual.

De acordo com Groisman (1999:46) “A cosmologia daimista é sintetizada em


dois campos que, articulados, representam a sistematização principal das
concepções sobre o mundo material e sobre o mundo espiritual: a doutrina e a
espiritualidade”. Portanto, uma análise da concepção de cura nessas duas religiões
é fundamental para compreender suas cosmologias e como elas concebem a
espiritualidade e, logo, o corpo. A busca pela cura em ambas as religiões preza pelo
equilíbrio do corpo e da alma para o alcance do desenvolvimento e da evolução
espiritual, objetivo primordial de um adepto. Logo, é na religião que os adeptos
encontram meios para agir no plano espiritual já que tem primazia sobre o corpo do
indivíduo oferecendo-o sentido, significado e conduta.

O corpo no salão: o corpo no mundo

Uma demonstração da centralidade do corpo na cosmologia umbandista e


daimista é a sua preparação para o ritual religioso que se dá anterior e/ou
posteriormente da execução deste. Os médiuns da Umbanda e os participantes do
ritual daimista preparam-se fisicamente, mentalmente e espiritualmente para as
sessões. Dias antes da realização do trabalho religioso, o indivíduo segue
prescrições importantes para que o trabalho seja bem sucedido: como uma dieta
específica, abstinência sexual e de bebidas alcoólicas. Saraceni (2006:80)
argumenta que a ingestão de alimentos de difícil digestão ou a ingestão de bebidas
alcoólicas “entorpecem a mente e anula a percepção extra-sensorial, assim como
abrem o campo mediúnico às vibrações negativas e estimulam o emocional dos
médiuns”, sendo assim, devem ser evitados visando a concentração dos médiuns
na participação do ritual.

Antes da entrada no salão o médium4 umbandista emprega ações visando a


“limpeza espiritual” de seu corpo. Ele se banha com ervas, defuma5 o seu corpo e
veste a sua roupa branca e o fardado daimista veste a sua farda branca ou azul
conforme o trabalho. As mulheres vestem saias e homens, calças. Não obstante, a
preparação para o ritual é fundamental para a construção de uma comunicação
entre o mundo sagrado dos deuses e o mundo profano dos homens (ORTIZ,

4
Trata-se de um termo nativo utilizado no terreiro estudado para referenciar àqueles que prestam a
caridade no centro, incorporando entidades ou não. Enquanto médiuns, estes possuem obrigações com o
centro como o pagamento de mensalidades, participação regular nas atividades da casa, etc.
5
A defumação consiste na queima de ervas onde a fumaça obtida é “passada” pelo corpo dos médiuns a
fim de purificá-los.
1999:69). Assim, em ambas as religiões se objetiva uma aproximação do indivíduo
(profano) com o plano espiritual (sagrado) através dos cuidados com o corpo na
preparação deste para os rituais no intuito de construir uma “demarcação dos
parâmetros do sagrado” (GROISMAN, 1999:97). De acordo com Saraceni (2006),
os procedimentos anteriores ao ritual servem para que o médium purifique o seu
íntimo atuando da forma mais próxima da própria natureza divina dos Orixás que
são seres perfeitos. Logo, os homens, percebidos enquanto seres imperfeitos,
devem, segundo Negrão (1996), atuar no terreiro para aprender a teoria e a prática
da Umbanda junto aos seus pais-de-santo e guias para o alcance de uma evolução
espiritual.

No salão os médiuns umbandistas entram com pés descalços e formam duas


filas de acordo com o sexo do médium; no Santo Daime, os fardados entram no
salão separados por sexo6 e se posicionam também em filas7 sempre separadas
pelo sexo dos indivíduos. Em ambas as religiões os indivíduos se posicionam no
centro do salão, voltados para o altar8 e se alocam hierarquicamente. Na Umbanda
os médiuns mais experientes se posicionam com maior proximidade do altar em
uma escala de graduação espiritual, enquanto no Santo Daime as filas se
configuram em uma divisão de fardados e não fardados. O padrinho e a madrinha
da Igreja se situam de frente para o altar e compõem a mesa que circula o mesmo
juntamente aos músicos e enfermos, os fardados iniciam as fileiras em torno do
altar conforme a altura e os visitantes se posicionam atrás deste se organizando
também por altura9.

Durante os rituais de incorporação na Umbanda, denominados “giras”, e os


rituais bailado10 no Santo Daime os corpos se organizam e obedecem a uma
“corrente”. No Santo Daime, a performance e a disciplina corporal são partes
fundamentais para a “sintonização da energia oriunda do plano espiritual”
(GROISMAN, 1999:70). Acerca da Umbanda Saraceni (2006) aponta que “um
médium de Umbanda, se esclarecido e ensinado, pode, e deve, estabelecer uma

6
O salão no Santo Daime possui entradas específicas: uma para a entrada das mulheres e uma para os
homens.
7
A configuração do salão varia conforme cada Igreja e seu espaço físico. As filas podem ser em formato
de círculo, hexágono e retângulo. Importa ressaltar que a metade do salão é composta por homens e a
outra metade por mulheres.
8
É o espaço no salão destinado ao culto das entidades na Umbanda e dos padrinhos, madrinhas e
fundadores da religião no Santo Daime (Metre Irineu, Padrinho Sebastião, etc). É composto por imagens
dos santos católicos e demais representações das entidades na Umbanda (exu, pombagira, marinheiro, etc)
e no Santo Daime por retratos em quadros e porta-retratos dos fundadores.
9
Além da divisão por gênero, os indivíduos se posicionam entre casados e solteiros na organização do
salão.
10
Ritual em que os daimistas bailam em compasso ritimado, dois passos para esquerda e dois passos
para direita.
ligação mental direta com todos os Orixás e recorrer àquele que sentir que
resolverá mais facilmente algum problema que se lhe apresente” (2006:28). Dessa
forma, a corrente umbandista não é formada apenas de médiuns de incorporação,
mas por todos os membros da corrente que estão igualmente sob a irradiação
direta dos Orixás (SARACENI: 2006).

Nos trabalhos de concentração11 daimista os indivíduos ao invés de


bailarem, compõem a corrente sentados, obedecendo ao mesmo posicionamento do
bailado. Na corrente realizada nos trabalhos umbandistas e daimistas os corpos
obedecem o ritmo ditado pela música e pela dança. Na Umbanda os corpos dançam
ao som dos atabaques regido pelos Ogãs12 e dos pontos cantados “puxados” pelos
mesmos. No Santo Daime os corpos se movimentam ao som ritmado dos maracás
e do canto dos hinos executado em uníssono.

Na Umbanda a corrente exige concentração dos seus médiuns para que


ocorra a incorporação e disciplina para que a consulta seja realizada com a
participação consciente mínima do aparelho. Na Umbanda o médium é percebido
como um “cavalo dos deuses”, como o “receptáculo da divindade” (ORTIZ,
1999:69). Nesta religião valoriza-se a mediunidade inconsciente no fenômeno do
transe onde “o médium cede não só o seu corpo, mas também sua mente para o
guia, desaparecendo a sua própria personalidade, a ponto de não se recordar do
que ocorreu quando estava incorporado, uma vez cessado o transe” (NEGRÃO,
1997:289). Em oposição, no Santo Daime a concentração e a disciplina servem
para evitar a incorporação objetivando a elevação espiritual da corrente, ou seja, a
miração que se trata de um elemento central na cosmologia religiosa da religião.
De acordo com Groisman (1999:55), a miração é:

“o estado de consciência no qual é possível ter contato com a


espiritualidade ou percebê-la. Ela se manifesta através de um
conjunto de percepções que proporcionam uma sensação de
transcendência. Paralelamente a esta sensação de transcendência,
a miração revela as experiências mais profundas da
espiritualidade, ou seja, o mergulho ou a ascensão aos planos
superiores (...). Este mergulho ou ascensão pode ser o encontro
da luz divina, ou pode ser um insight sobre o cosmos, ou sobre o
próprio eu”.

Não obstante, o resultado da disciplina e da concentração em ambas as


práticas religiosas é a construção de uma relação ambivalente entre o sagrado e o
profano na medida em que na Umbanda a consulta é mais bem realizada quando o

1111
Ritual em que é engerido o Daime, onde em seguida canta-se uma sequencia de hinos e após realiza-
se uma concentração, silencia de uma hora e meia.
12
São os médiuns que no terreiro trabalham iniciando os pontos cantados e tocando os atabaques, assim,
não trabalham com a incorporação.
médium concede seu corpo integralmente à entidade construindo um canal entre o
mundo profano (plano material) e o mundo sagrado (plano espiritual). Assim, o
transe de possessão13 se trata de um fenômeno religioso importante nesse contexto
onde “o sagrado se manifesta de maneira a ser percebido pelos sentidos comuns,
entrando em contato com o profano” (NEGRÃO, 1996:289). Com efeito, o médium
significa “um meio”, um mediador entre dois planos de vida (SARACENI, 2006:28).

Sendo assim, em relação à representação da pessoa na Umbanda se


emprega a fórmula “vários espíritos numa só cabeça”, tal como analisado por
Birman (1985:23). Este paradigma se expressa na discussão acerca da possessão,
ou seja, o ato do médium receber entidades espirituais em seu corpo para, em
nome da caridade, oferecer a ajuda dos espíritos aos homens. Assim, temos a
noção de que há várias pessoas em uma só pessoa, ou seja, um único médium
pode, em diferentes momentos, ter em seu corpo espíritos diferentes.

No Santo Daime se percebe a relação entre o sagrado e o profano no


momento em que o daimista ingere o daime, concebido como um ser divino, e
alcança a miração. A partir desse fenômeno, se estabelece uma relação entre o
astral (plano espiritual) e os daimistas (plano material). Assim, tanto a doutrina
daimista quanto a umbandista concebe o corpo como um aparelho, isto é, o corpo
funciona como um elemento indiviso, parte fundamental que interliga dois mundos
que só se concebem através dessa relação.

O sentido do corpo: o sentido do mundo

Para uma análise da corporeidade à luz da antropologia é extremamente


relevante trazer à tona a performance ritual que oferece sentido à cosmologia
umbandista e daimista nos contextos estudados. É a partir da relação corpo-
pessoa-experiência religiosa que se pode compreender os sentidos e significados
que fazem parte da visão de mundo desses indivíduos.

Segundo Csordas (2008), é através da performance corporal que podemos


perceber a retórica segundo a qual os símbolos moldam o significado no ritual.
Somente segundo esta concepção que podemos conceber a materialidade do
simbólico e, a partir disso, compreender as cosmologias religiosas que percebem o
corpo segundo um continuum entre mundo material e espiritual.

13
O termo possessão é empregado por BIRMAN (1985), ORTIZ (1999) e NEGRÃO (1996). O termo
nativo correspondente mais comumente associado a esse contexto é incorporação.
Não obstante, para a compreensão das práticas religiosas em questão,
devemos partir de uma análise que conceba o rito como formador de crenças e as
crenças como formadoras de ritos, entendendo, nesse contexto, o rito enquanto a
prática corporal realizada no ritual religioso e a crença enquanto ideias e
concepções que norteiam os atos desses indivíduos. Segundo Mauss (2003:56), “os
atos rituais (...) são, por essência, capazes de produzir algo mais do que
convenções; são eminentemente eficazes; são criadores; eles fazem”. Devemos
compreender, a partir da análise de Mauss (2003) que a ação dos indivíduos é
formadora de um campo de representações, e que um campo de representações é
formador da ação dos indivíduos. Somente a partir da relação entre rito e crença
que se criam significados que fornecem sentido às práticas e constroem, assim, um
campo simbólico compartilhado por estes indivíduos. Portanto, podemos conceber
as técnicas corporais e a performance ritual como criadoras de ritos
compreendendo que a manipulação dos símbolos não se dá apenas no campo
simbólico, mas na experiência real dos indivíduos.

A partir dessa fórmula chegamos à conclusão de que as práticas religiosas


produzem significados que fornecem sentido à existência para aqueles que
compartilham de suas crenças. De acordo com Mauss (2003), “todo rito é uma
espécie de linguagem, (...) ele traduz uma idéia”. Portanto, a performance ritual se
apresenta como uma linguagem que expressa ideias formadoras de um campo
simbólico que constitui visões de mundo específicas nos dois contextos analisados,
apesar das aproximações e distanciamentos aqui apresentados. Assim como aponta
Le Breton (2011:193) “toda sociedade implica a ritualização das atividades
corporais. A todo instante o sujeito simboliza por meio de seu corpo (...) a
totalidade de sua relação com o mundo.”. Logo, a partir da análise acerca do corpo
em ambas as religiões é possível compreender visões de mundo aparentemente
complexas construídas a partir do sincretismo formador de tais cosmologias
religiosas.

Dessa forma, para a compreensão do corpo é indispensável que o


consideremos como “base existencial da cultura e do sujeito em vez de o simples
substrato biológico de ambos” (CSORDAS, 2008:19). Assim, compreendemos o
corpo como “não apenas essencialmente biológico, mas igualmente religioso,
linguístico, histórico, cognitivo, emocional e artístico” (CSORDAS, 2008:19). Logo,
somente pelo desprendimento da concepção individualista ocidental moderna que é
possível a compreensão da construção do corpo segundo uma noção de
coletividade, de conexão com planos materiais e espirituais, da continuidade entre
o homem e o cosmo.
Bibliografia

BIRMAN, Patrícia. O que é Umbanda. São Paulo: Abril Cultural: Brasiliense, 1985.

CSORDAS, Thomas J. Corpo/Significado/Cura. Porto Alegre: Editora da UFRGS,


2008.

FERNANDES, Vera Fróes. História do Povo Juramidan: Introdução à cultura do


Santo Daime. Manaus, SUFRAMA, 1986.

GROISMAN, Alberto. Eu venho da floresta: um estudo sobre o contexto simbólico


do uso do Santo Daime. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1999.

LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis, Rj: Vozes,


2011.

MAUSS, Marcel. Os elementos da magia. In. Sociologia e antropologia. São Paulo:


Cosac Naify, [1950], 2003.

NEGRÃO, Lísias Nogueira. “Entre a cruz e a encruzilhada”. São Paulo: Edusp, 1996.

ORTIZ, Renato. “A morte branca do feiticeiro negro: umbanda e sociedade


brasileiro”. São Paulo: Brasiliense, 1999.
SARACENI, Rubens. “Código de Umbanda / Espíritos diversos”. São Paulo: Madras,
2006.
VIVÊNCIAS CORPORAIS E RELATOS: O SIGNIFICADO DO CORPO NA
FORMAÇÃO DOCENTE EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO.

INTRODUÇÃO

Na década de1990, novas abordagens e paradigmas surgiram no contexto


pedagógico brasileiro na tentativa de compreender a formação e a prática pedagógica, os
saberes docentes e epistemológicos relativos ao conteúdo escolar a ser ensinado. Entre
essas novas abordagens destaca-se a importância das articulações entre as dimensões
pessoais e profissionais para a formação docente.
Mais recentemente, as pesquisas sobre a formação pessoal vêm ganhando espaço
no contexto da formação e identidade docente onde as vivências corporais são
privilegiadas. Ao contrário da sala de aula onde o docente utiliza frequentemente a
linguagem verbal, é no espaço das vivências onde ele vai utilizar mais a linguagem
corporal. Qual seria, então, a importância do corpo1 na formação docente? Verificando o
conteúdo das disciplinas que constituem a formação docente de muitos cursos de
licenciatura observamos a necessidade de atualizá-los à realidade sócio-cultural.
Constata-se que, daquelas instituições que priorizam o corpo principalmente nas diversas
disciplinas nos cursos de licenciatura, poucas evidenciam claramente uma preocupação
com o significado do “corpo”. A maioria concebe um corpo racional ou instrumental e não
um corpo que expressa espontaneamente o desejo, o conhecimento e sua história.
Destacamos essa preocupação considerando a necessidade da relação do corpo na
educação como “ator social” que tem uma história e vive numa cultura tendo algo a nos
dizer.
Segundo Brito (2009, p.10) tenta-se romper com a dicotomia corpo/mente e com
o seu adestramento na instituição escolar e dialogar com a expressividade humana,
postulando que essa via possibilita o resgate do corpo nas teorias da educação. O
objetivo é compreender o seu significado e tentar encontrar indicadores para repensar a
formação docente atual que deve reconhecer o potencial expressivo do corpo e a
contribuição dessa expressividade para a construção de saberes na Educação e mais
especificamente na formação docente.
O corpo na educação pode avançar e encontrar possiblidades na expressão
espontânea sendo mais flexível que as normas escolares porque e dotado de percepção,
de interesses, desejos e potencialidades em movimento, pode assim construir
continuadamente ações pedagógicas. Ao reconhecer o entrelaçamento corpo-mundo,
Merleau-Ponty (1999) concebe a importância dos processos de percepção e Foucault
(2002), os processos de subjetivação. Ambos negam a concepção reducionista e
instrumental de corpo. A funcionalidade do corpo na tradição instrumental é vista por
Asmann (1995, p. 3) da seguinte forma: “aprendemos com o corpo, mas não um corpo
instrumental, e sim com o corpo relacional que constrói o mundo a cada momento, que
flui no tempo e que se abre para um horizonte de possibilidades”.
O presente estudo se justifica, em primeiro lugar, pela originalidade em investigar
o tema em questão considerando o desafio de tirar os docentes em formação da sala de
aula e promover uma alternativa que é frequentemente negligenciada pelos cursos de
licenciatura, qual seja, refletir sobre si e o outro, sobre o significado do corpo e suas
repercussões na qualidade da prática pedagógica. Em segundo lugar, é relevante
considerar que a violência crescente observada nas salas de aula, segundo resultados de
pesquisas, ocorre por dificuldades relacionais entre professores e alunos e entre esses
últimos.
O stress e as tensões do cotidiano são agravantes para o estado psíquico-
patológico dos docentes afastando também aqueles que desejam ingressar na profissão.
Assim, acreditamos que o docente deve ser concebido como sujeito social formador e
humanizador, necessitando estabelecer uma melhor compreensão de si e dos outros
principalmente em sala de aula; aspectos esses que serão experienciados nas vivências
corporais no presente estudo. Por ultimo, a relevância em propor uma discussão sobre
“corpo” no espaço de formação. Este aspecto nos parece importante considerando que
resultados de pesquisas de Alves e al. (2006) indicam que, a maioria dos docentes
pesquisada ainda tem uma concepção dualista e instrumental de corpo, ou seja,
separação corpo-mente e não uma concepção “una” e cultural do corpo como vimos
anteriormente. Essa concepção reducionista da maioria dos docentes em formação sobre
corpo tem, portanto, repercussões negativas nos conteúdos curriculares de licenciatura e
consequentemente na qualidade das práticas corporais oferecidas às crianças.
O objetivo principal desse estudo é compreender o significado do corpo para a
formação à partir de vivências corporais na disciplina de oficina VI considerando as
percepções de graduandos concluintes em Ciências da Religião. Em primeiro lugar
destacamos a importância da formação pessoal para a formação docente considerando os
conceitos e objetivos, as possibilidades de vivências corporais na formação em Ciências
da Religião. No capítulo dois abordamos a metodologia que caracterizada pela pesquisa
etnográfica envolvendo quinze participantes e a coleta de informações através de
questionários. Em seguida apresentamos a análise dos resultados e por último, as
considerações finais.

1 A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO PESSOAL PARA A FORMAÇÃO DOCENTE

Vimos anteriormente a importância que vários autores enfatizam sobre a estreita


relação entre a formação pessoal e profissional na formação docente. Neste capítulo
apresentamos a formação pessoal, seus conceitos e objetivos, as possibilidades de
vivências corporais na formação pessoal em Ciências da Religião e o significado do corpo
para a formação.

1.1 Conceito e objetivos da formação pessoal

A formação pessoal objetiva promover o autoconhecimento corporal do futuro


docente a partir das vivências corporais que promovem a conscientização das limitações,
facilidades e potencialidades que cada um apresenta na relação consigo, com os objetos
e com os demais, no grupo de formação. Negrine (1998, p.16) explica que esta formação
se dá pela via corporal e tem como elemento pedagógico um rol de vivências onde cada
participante se volta para si mesmo, fala de suas expectativas, de suas decepções, de
seus desejos e anseios, enfim, deixando fluir sentimentos e emoções pessoais.
A Formação Pessoal é pautada num processo de participação que tem como foco a
evolução pessoal, pois traz a tona o conhecimento de conflitos e prazeres que
acompanham a ser humano desde a infância. Estas sensações sejam elas de dificuldade,
medo, tristeza, alegria, prazer, quando descobertas podem ocasionar as mais diversas
reações que podem ser explicitadas tanto por via corporal quanto por via verbal. Saber
lidar com estas situações e sensações gera um grande aprendizado e um entendimento
de si próprio.
Bertherat (2000) explica que o modo de viver o corpo é a base do modo de viver
o mundo. A autora com esta afirmação ressalta a ideia de que o corpo é um mediador,
facilitador e até mesmo um mostruário de tudo que se sente, aprende e, de como se
vive. Aucouturier e colaboradores (1986, p.21) explica que a Formação Pessoal visa
essencialmente à mudança da pessoa. A mudança atribuída ao âmbito relacional, do
exercício de relacionar-se consigo, com o outro, com os objetos. O exercício relacional
torna a Formação Pessoal um desafio, pois propõe que a pessoa seja ou se torne apta a
aceitar mudanças, reconhecer fragilidades e se tornar forte a ponto de encará-las,
tornando-se assim um ser humano mais certo de si, mais “dono” de seu corpo e de tudo
que este lhe proporciona.
Bertherat (2000, p. 16) compara o corpo a uma casa e coloca que este é a casa
onde não moramos. A autora diz que nunca é tarde para assumir o próprio corpo e
descobrir possibilidades até então inéditas. Ou seja, assumir o próprio corpo é se assumir
como pessoa. Ela cita que somos o nosso corpo, pois nosso modo de parecer é o nosso
modo de ser.
Lapierre e Aucouturier são psicomotricistas que por significativo tempo trabalharam
e estudaram juntos na qualificação da Formação Pessoal. Segundo o pensamento destes
autores os princípios teóricos da Formação Pessoal estão alicerçados em uma abordagem
corporal e se fundamenta no fato de que o movimento espontâneo manifesta de modo
mais claro o inconsciente. Podem ser gestos não percebidos por quem os realiza, mas
não “escapam” dos olhos dos outros e representam mais do que o momento, pois são
ligados à infância e as relações primárias.
Lapierre e Aucouturier (1984, p.18) afirmam que todas as relações humanas se
articulam da ambivalência de dois desejos. O primeiro é chamado de “desejo fusional”,
ou seja, é mais ou menos consciente e se manifesta através da sedução física, afetiva. O
segundo é o “desejo de identidade” que se caracteriza pelos impulsos de independência,
liberdade, acima de tudo ligada ao eu consciente, esse desejo se manifesta por
comportamentos agressivos, de oposição.
Ao se relacionar as pessoas começam a participar de um processo que no final
resulta em crescimento pessoal e aprendizagem. Enquanto se relaciona se está sujeito a
lidar com fantasmas corporais2 que acompanham a pessoa desde a infância, rompe-se
com aversões, desafia-se o medo, o anseio, ou seja, é levado a modificar
comportamentos simbólicos, o que possibilita um novo reconhecimento da personalidade.
Falkenbach (1999, p.12) explica que a pessoa só pode existir se tornar possível
uma comunicação com os seres e com tudo que a cerca. Isso envolve a relação com ela
mesma, com o outro e com o meio. Lapierre e Aucouturier (1984, p.18) reforçam que
qualquer ventura perturbação de personalidade que a pessoa vir a apresentar, nada mais
é que resultado das perturbações dessas relações, ou seja, relação com ela mesma, com
o outro e com tudo que a rodeia. A autora acima considera que a Formação Pessoal
sugerida por Lapierre e Aucouturier pretende devolver no adulto o conhecimento de si,
da própria gestualidade, para também conseguir ser capaz de auxiliar as crianças em
sessões de psicomotricidade relacional. Sabe-se que este tipo de formação traz a tona
conflitos para o praticante, pois o pressuposto básico para a evolução pessoal é trazer ao
conhecimento dificuldades, inseguranças e também domínios e facilidades pessoais.
Assim, pode-se afirmar que o adulto que realiza a Formação Pessoal através das
vivências corporais revive os fantasmas corporais, já que a memória afetiva e emocional
é registrada no cérebro.

1.2 Possibilidades de vivências corporais na formação pessoal

A maneira de se relacionar torna a Formação Pessoal um grande desafio, pois


propõe que a pessoa seja ou se torne abertos às mudanças, reconhecer as fragilidades e
potencialidades pessoais existentes, preparando o docente para uma ação pedagógica
mais humanizada.
As vivências corporais aparecem como uma das alternativas pedagógicas de
“expressividade espontânea” na formação pessoal docente onde as relações são
elaboradas com seus pares e com os objetos envolvendo discussões pessoais e
profissionais. Negrine (1994) explica que é essa formação que vai permitir que o adulto
passe a ter mais disponibilidade corporal, conheça melhor suas limitações e ao mesmo
tempo possa refletir sobre ela. O autor destaca ainda que a Formação Pessoal é dolorosa
e exige empenho e verdade. É realmente doloroso enfrentar fantasmas do passado,
saber de si, conviver com situações que trazem sentimentos de angustia e apreensão,
porém aprender a conviver com estas situações e disponibilizar o corpo a ponto de
superar e aprender; promove uma ação de satisfação pessoal e profissional. Assim, a
formação pessoal com essas práticas corporais habilita o profissional mais capaz para
conviver consigo mesmo, que enfrenta seus limites psicológicos e corporais. Para
Falkenbach (1999, p.61):

Os professores que interagem com crianças em atividades


lúdicas devem ser preparados. Deverão possuir, além de
conhecimentos teóricos e didático-pedagógicos, formação
pessoal que lhes dê suporte para interagir com segurança para
desenvolver as crianças.

É através destas intervenções, feitas com segurança e domínio que fazem a


criança desenvolver seu nível de aprendizagem. Um professor bem preparado, com
formação adequada certamente fará diferença na vida escolar e afetiva da criança, pois
saberá intervir, questionar, solucionar e interagir com a criança de modo que ela consiga
elucidar algumas inquietações, dúvida ou até mesmo dificuldades que possam vir à tona
verbal ou corporalmente. Geralmente inquietações são explicitas por gestos ou
comportamento corporal, que se o professor for bem preparado logo notará e saberá
compreender o que esta se passando com aquela criança, fazendo assim uma
intervenção adequada à situação.
Brito (2012, p.8) sugere nas relações teoria e prática dos componentes
curriculares dos cursos licenciatura, inclusive dos Cursos de Ciências da Religião a
discussão sobre corpo-corporeidade considerando as aproximações existentes entre
corpo e ensino religioso pluralista.

Sabemos dos desafios de uma prática docente transformadora: significar as


demandas do corpo, observar e compreender suas ações, ser observador participante3
das experiências corporais e resgatar a memória de infância nas vivências de formação
pessoal. Nessa perspectiva Sayão (2000, p.2) afirma que:

Como primeira proposta de discussão para o curso de formação


propõe-se um levantamento da memória de infância dos/as
participantes, a fim de inserirmos o debate em torno das
características da infância que vão sendo pouco a pouco
esquecidas por nós adultos, que atuamos com as crianças
pequenas.

A questão levantada por Fleury (199, p. 21) sobre a existência de uma criança
dentro do professor é um ponto de debate do curso de formação para sensibilização
dos/as professores/as envolvidos em trazer para o espaço coletivo, o resgate da criança
concreta que existe em cada docente. Esta proposta visa relacionar experiências da
própria infância docente com as crianças, com as quais, os docentes atuam na prática
pedagógica. Este adentrar na situação permitirá uma visão mais ampla da compreensão
do diálogo corporal e da simbologia da criança-aluno.
Considerando a formação em Ciências da Religião, existem pontos importantes de
discussão que articulam o corpo a religião tais como: o corpo e os símbolos sagrados, a
relação de saberes entre ciências da religião e corpo e o papel da corporeidade4 na
história da religião. Herdamos ao longo da história, uma concepção de “corpo submisso”
proveniente do proselitismo em que a história construiu a cultura do reducionismo e
fragmentação corporal facetando a existência humana.

MÉTODO

Quinze graduandos concluintes do Curso de Ciências da Religião. As vivências


corporais aconteceram na disciplina de Oficina de Pesquisa VI, onde oportunizamos
descobertas e possibilidades de conhecimento de si e do outro nas relações físico-sociais.
As sessões envolviam atividades espontâneas com bolas leves e tubos de espuma
(macarrões) e foram realizadas na sala de esporte e dança do Centro Cultural de Natal.
Optamos pela pesquisa qualitativa na modalidade de investigação etnográfica em
que o pesquisador é observador participante. De acordo com Bogdan e Biklen (1994) a
pesquisa qualitativa representa “a investigação que produz dados descritivos: as próprias
palavras das pessoas, faladas ou escritas, e a conduta observada“ (p.20). Para André
(2004, p.20), o pesquisador etnográfico lida com uma modalidade de pesquisa que se vê
“diante de diferentes formas de interpretações da vida, formas de compreensão do senso
comum, significados variados atribuídos pelos participantes às suas experiências e
vivências” (...).
Os questionários aplicados aos participantes ao final das quatro sessões destacam
seis temas: 1) Limites e possibilidades das vivências corporais como componente
curricular; 2) sensações de desconforto; 3) contribuições para a vida pessoal e
profissional; 4) concepção de corpo; 5) relação entre corpo e religião e, 6) transformação
pessoal.
Após cada sessão foram discutidas diversas sensações que os participantes
indagaram como medo, raiva, alegria, prazer, tranqüilidade, lembranças da infância,
brincadeiras de crianças e a formação docente. As sessões eram direcionadas por uma
psicóloga especialista em Psicomotricidade Relacional, aonde ela conduzia e norteava o
caminhar da discussão, enquanto o orientador-pesquisador e a orientanda participavam
das vivências.

ANÁLISE DOS RESULTADOS

Para analisar os relatos dos participantes é relevante considerar os aportes de


Negrine (1998); Lapierre & Aucouturier (2002, p.21); Wagner &Falkenbach (2009, p.16)
e Brito (2009, p.15). Diante da quantidade de informações priorizamos, para a análise,
cinco questões relacionadas aos aspectos seguintes: 1) limites das vivências corporais
para a formação 2) possibilidades das vivências corporais para a formação; 3)concepções
de corpo nas Ciências da Religião; 4) concepção de corpo após vivências corporais e, 5)
Aspectos positivos das vivências.

3.1 Limites das vivências corporais para a formação

Os limites em forma de recortes foram relatados por alguns participantes da


seguinte forma:

O cansaço, o barulho, o medo de se machucar durante as


vivências corporais, resistência em me aproximar para brincar
com algumas pessoas do sexo oposto, mas ao longo da sessão
fui perdendo o medo (...) (A1).
Medo de me machucar, alguns colegas me bateram com os com
os tubos, mas serviu para resolver conflitos, pois fui brincar
com a bola com outra colega (A3).
Medo de me machucar com a luta dos tubos porque os colegas
batiam muito com os tubos. (A8).
No começo me senti só, mesmo diante de tanta gente e de
tantos objetos. Sensação de inibição no começo, mas depois
aproveitei a liberdade que a vivência nos proporcionou (...)
(A5).
Desconforto em ficar deitado e tocar o outro (...). A
impossibilidade de usar a linguagem verbal. Reprimi-me em
expressar o meu eu, com medo do que os outros iam pensar
sobre mim (A12).

De acordo com os primeiros relatos acima, os participantes revelaram sensações


de medo, conflitos, falta de limites dos colegas, entre outros aspectos nas primeiras
sessões. É importante observar que foi informado para os participantes que os materiais
utilizados nas vivencias não machucavam. Todos eles estavam participando pela primeira
vez de vivências corporais utilizando a Psicomotricidade Relacional. Segundo Lapierre
&Aucouturier (2002, p.20) esse tipo de vivência é importante para a formação pessoal do
docente e traz à tona conflitos para o praticante, pois o pressuposto básico para a
evolução pessoal é trazer ao conhecimento dificuldades, inseguranças e também
domínios e facilidades pessoais.
Lapierre (2002) afirma que as sensações indesejadas como o medo, a inibição, o
desprazer em ficar deitado ou tocar o outro, entre outras, são tão importantes quanto
qualquer outro tipo de sentimento ou sensação para a formação da personalidade, para o
conhecimento de si mesmo, para a aprendizagem e também para as relações com o
outro. Assim, trabalhar com vivências novas ou desconhecidas para os participantes pode
gerar sofrimento de desconforto, de medo e de fragilização. Nesse contexto, o desprazer
em ter que inibir a expressão verbal na vivência, leva alguns indivíduos ao desconforto
nas primeiras sessões. Para Negrine (1998, p.11) este tipo de vivência pela via corporal
exige que o formador coloque os participantes em situações não verbais que lembram
aquelas que teriam vivido quando bebês no seu prazer do movimento e nas capacidades
de comunicar e investir o corpo no espaço oferecido.

3.2 Possibilidades nas vivências corporais para a formação

Com relação às possibilidades das vivências com repercussões positivas para a


formação pessoal dos alunos concluintes, alguns relatos revelam contribuições nas
relações consigo mesmo e com os outros, no resgate da criança que existe no formando,
na discussão dos problemas da formação, na liberação das tensões, da agressividade e
do stress e nas transformações pessoais, entre outras, que contribuirão para a formação
pessoal e profissional. Os relatos manuscritos foram recortados da seguinte forma:

Familiarização com os colegas da formação para juntos nos


sentirmos próximos e discutirmos os problemas da formação
(A4).
(...) e reviver a infância para nos conhecermos melhor.
Possibilidades de práticas corporais para realizar com nossos
alunos na vida profissional proporcionando prazer e melhorando
as relações com eles (A11).
As vivencias são possibilidades de nos ensinar como tratar a
agressividade em sala de aula destruindo o medo da relação
entre professor e aluno (A15).
Lembranças de momentos felizes da infância revivida na
vivência para a formação pessoal e que levaremos para a vida
profissional (A13).
(...) liberar a agressividade melhorando nossa relação. É
Importante para a relação afetiva com o outro (A14).
(...) reviver momentos de vida pessoal trazendo a memória
algumas experiências que estavam esquecidas e que ajudou a
compreender determinadas atitudes que podem ajudar a
melhorar minha relação com os outros (A6).
(...) aproximar mais dos alunos e contribuir para o crescimento
emocional deles. Contribuiu para liberar a agressividade sem
culpas servindo para descobrir o significado de algumas atitudes
que nós temos e não sabemos justificar, sendo importante para
nossa formação pessoal e compreendermos nossos futuros
alunos (A9).
As vivências práticas nos mostraram que a formação pessoal e
profissional não pode ser apenas técnica e teórica, mas,
necessita ser humanizada através das vivências corporais
práticas, permitindo o auto-conhecimento e o conhecimento do
outro; é o que necessitamos também na nossa vida profissional
(A2).
As vivencias serviram para a evolução e mudança pessoal de
cada participante conhecendo os limites e as possibilidades de
cada um, o que favorece conhecermos melhor a si mesmo e ao
outro (A3).
As vivências foram importantes para relembrar que nas relações
existe a agressividade, mas, também, a afetividade entre
professores e alunos (A12).
As vivências permitem conhecer melhor os outros através de
gestos, olhares e toques corporais contribuindo para a evolução
pessoal na alegria e nas dificuldades (A5).
(...) expressar e compreender nossas raivas e angústias,
alegrias e tristezas que vamos sentir no nosso espaço de
trabalho. É importante para conhecer a personalidade do outro
(A1).

De acordo com Wagner & Falkenbach (2009), as vivências favorecem as


mudanças pessoais à partir das mudanças nas relações com o outro, deixando os
participantes mais livres, mais ousados, menos limitados. Segundo os autores com a
evolução nas sessões os participantes não sentem medo em tocar o corpo do outro,
permitem troca de toques, de olhares, sentem prazer ou desprazer com as vivências,
mas sabem como lidar com o que as mesmas os despertam. Segundo os autores
“aprender sobre as diferentes sensações das vivências e respeitar a forma como cada
participante interpreta e sente é um processo de aprendizagem do indivíduo e do grupo”
(p.5). Essa aprendizagem contribui assim para as mudanças pessoais que ocorrem
durante o processo de conhecimento de si e dos outros que envolvem novos
sentimentos, sensações, fragilidades, potencialidades e posturas considerando que o
movimento dos participantes nas vivências é espontâneo (Brito, 2009, p.12).
Nessa perspectiva, Lapierre &Aucouturier (2002) revelam que o movimento
espontâneo manifesta de modo mais claro o inconsciente. Segundo eles, podem ser
gestos não percebidos por quem os realiza, mas não escapam aos olhos do observador e
representam mais do que o momento (o aqui agora), pois são ligados à infância e as
relações primárias. Assim, nas vivências corporais, muitos conflitos da infância se
evidenciam como os medos, aversões, os desejos que podem assim ser desafiados nas
vivências modificando comportamentos e possibilitando um novo reconhecimento da
personalidade. É importante lembrar que esses comportamentos foram relatados pelos
participantes das vivências nesse projeto quando expressaram seus desejos, medos,
agressividades, desconfortos, aversões, inibições, entre outros.
Dessa forma, podemos considerar que as vivências corporais podem evidenciar
limites e possibilidades na formação pessoal dos docentes em formação do curso de
Ciências da Religião. O autoconhecimento em interação social, revivendo, medos,
desejos, desafios, escolhas e o resgate da história de vida, nos aparece como uma
possibilidade de contribuição para a dimensão pessoal dos docentes em formação.
Consideramos ainda que o processo de formação docente inicia-se principalmente nas
interações afetivas desde a infância, na vida familiar e escolar e que podem ser
resgatados e atualizados nas vivências permitindo um desbloqueio de certas resistências
e possibilitando a evolução pessoal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Objetivo principal deste estudo foi identificar, através de vivências corporais


e relatos, o significado do corpo na formação dos graduandos do curso de Ciências da
Religião da UERN. Em relação aos limites e possibilidades das vivências para a formação
em ciências da Religião a minoria dos graduandos relatou que os limites das vivências
foram condicionados pelos medos, ansiedades e desconfortos. Entretanto, observamos,
com base nos autores da área, que a participação em situações novas ou desconhecidas
em vivências de formação pode gerar nos participantes, sofrimento de desconforto, de
medo e de fragilização. Nesse contexto, o desprazer em ter que inibir a expressão verbal
e, se expressar corporalmente, levou alguns deles, ao desconforto nas primeiras sessões.
Com relação às possibilidades das vivências corporais para a formação em
Ciências da Religião, os graduandos relataram evoluções nas relações consigo mesmo e
com os outros, o prazer nas lembranças do tempo de criança promovendo sentimentos e
emoções. Outra possibilidade de contribuição foi a discussão dos problemas da formação
no final das vivências possibilitando também a liberação das tensões, da ansiedade e do
stress. Por último, relataram as mudanças pessoais, que podem contribuir para a
formação pessoal e profissional.
Foram situações difíceis nas vivências, em um primeiro momento, mas com o
passar das atividades constamos ser natural o graduando tornar-se conhecedor de si, de
seus medos e passar a desafiá-los, passar a respeitar o outro e permitir que as relações
interpessoais façam parte do processo formativo.
Podemos destacar que as vivências favoreceram uma mudança pessoal de
acordo com os relatos dos graduandos. Estas mudanças ocorreram porque durante as
vivências se passou a conhecer sentimentos, sensações, fragilidades e potencialidades,
posturas que até então eram desconhecidas por eles. Ficou mais claro saber do que se
tem medo, o que faz sentir bem, o que gera desconforto e quem somos de fato.
A academia não deve formar pessoas apenas no seu aspecto profissional, mas
também para justificar a sua existência, o seu aspecto humanitário. Avaliamos que a
Formação Pessoal tem como um dos aspectos, as vivências corporais que possibilitam ao
graduando o repensar de suas atitudes, seus valores, se descobrindo como pessoas e
reflitam sua sobre sua conduta, sobre o seu eu e sobre seu futuro como profissional.
Além disso, há uma mudança favorável nestas reflexões pessoais, pois envolvem
questões de relacionamento com o outro, como por exemplo, respeito, ética, limites e
possibilidades.
Observamos pelos relatos dos graduandos questionados a possibilidade de as
vivências corporais na disciplina de Oficina VI, serem uma alternativa do componente
curricular na Formação Pessoal do curso de Ciências da Religião.
Os limites do estudo são caracterizados pelo pequeno número de vivências
corporais e que seus resultados não podem ser generalizados para outros cursos de
licenciatura ou instituições considerando a natureza das vivências, os aspectos físicos,
sociais e culturais. Mas, ao mesmo tempo consideramos que a riqueza das informações
obtidas, desde que, observados os limites estabelecidos, podem contribuir para o avanço
das discussões na área da formação docente.

REFERÊNCIAS

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Wagner, Patrícia & A. Falkenbach. As vivências de formação pessoal e suas


repercussões na formação dos acadêmicos do curso de Educação Física da
UNIVATES. Revista Digital - Buenos Aires - Ano 14 - Nº 136 - Septembro de 2009.

1
Dentre vários significados, o conceito de corpo abarca também as manifestações rituais do fenômeno religioso.
Segundo Maus, citado por Menezes (2007), a performance de uma técnica corporal está longe de ser somente um
processo de reprodução, pois a cada nova representação, nova significação pode ser atribuída à mesma. Eis a razão
principal de eficácia simbólica dos ritos.
2
De acordo com Lapierre e Aucouturier (1984, p.6) o termo fantasmas corporais é uma produção imaginária
inconsciente, isto é, capaz de motivar comportamentos sem que o indivíduo tenha deles consciência. Ao contrário
da pulsão que é pré-formada, ligada ao biológico, o fantasma se estrutura em referência a uma experiência vivida.
Essa experiência do tipo emocional (prazer ou desprazer), é anterior ao aparecimento da consciência e não pode
ser registrada senão no inconsciente. Constitui o quadro de referência da recusa ou de desejos inconscientes. É
assim que os autores entendem os fantasmas de devoração, de castração, de fusão, etc.
3
Nas experiências corporais com os docentes em formação utilizamos a técnica de observação participante.
4
A corporeidade nas ciências da religião é vista como um conceito complexo e polêmico. Considerando que a
corporeidade não é o foco pontual deste estudo, apenas cito três dimensões justapostas desse conceito envolvendo
corpo e espírito: o transcendental e o conhecimento de si e do outro na sua plenitude que compreende
interioridade, exterioridade e profundidade. Segundo Lowen citado por Brandão (2009) A espiritualidade do corpo
é um sentimento de ligação com o universo. O sentimento não é apenas uma ideia ou uma crença; ele envolve
também o corpo e, portanto, é mais ainda do que um processo mental. Ele é constituído por dois elementos: uma
atividade corporal e a percepção mental dessa atividade. Assim, o sentimento expressado nas vivências corporais.
Segundo a autora, o sentimento pode ser considerado a força unificadora entre mente e corpo, ligando a mente
consciente e inconsciente à atividade corporal.
Alma Devota, Corpo Doente:
a Patologização da Religiosidade nos Tratados Médicos (séc. XIX)

Dr. Cristian José Oliveira Santos

No curso dos oitocentos, elementos configuradores do universo religioso


católico são ressignificados à luz dos discursos científicos que vão sendo forjados
em torno do corpo. Especialistas médicos qualquer pretensão em outorgar sentido
sobrenatural a sonhos e espasmos místicos, particularmente os produzidos pelo
corpo feminino, tão propício a múltiplas afecções. A religiosidade, tantas vezes
evocada como “realidade mística”, é permanentemente elevada a estado psíquico
de suspeição, fábrica de desajustados; o céu se fecha definitivamente ao homem, e
o corpo é a única via de conhecimento.
Esse contexto opositor entre os elementos constitutivos do homem — corpo
e alma –, ou se preferirmos, entre realidade física e metafísica, é recorrente na
literatura cientificista do século XIX. Sob o viés modernizante, ao desessencializar o
mundo físico, o homem alçaria seus olhos para os céus em busca de explicações
encontradas, apenas, na natureza. Portanto, negar o caráter absoluto do mundo
físico enquanto medida de todas as coisas, bem como do instrumento proposto pela
razão, imporia ao homem viver num profundo estado de alienação. Desse modo,
seria inconciliável a experiência mística à racionalidade. Reconhece-se que fora dos
limites de nossa razão, o terreno é de suspeição. O reconhecimento do caráter
sobrenatural das experiências tidos por místicas, representaria um desprezo às leis
naturais, bem como, à sua condição de ser apreendida pelo intelecto. Falando de
outro modo, a mística se oporia ao principal atributo do método positivista, a saber,
a objetividade, ou seja, a capacidade de ser submetida à análise. A característica
que os místicos partilham entre si e com os outros é a certeza da
incomunicabilidade de suas experiências: “Os contemplativos de todas as épocas e
culturas resultam assombrosamente parecidos. [...] os místicos permanecem
irmanados porque sabem que é impossível traduzir adequadamente o que de
verdade lhes aconteceu para além da razão e dos sentidos.”1
Sob o olhar do positivista, o místico é sempre um indivíduo adventício,
inadequado ao seu tempo. Move-se sempre nas veredas do grande e seguro
caminho da ciência, motor do progresso. Porta-se como alguém que detém um
conhecimento, mas a intransmissibilidade do seu mistério o converte num ser
imprestável para a humanidade, à medida que gira sempre em torno de si. Sua
religiosidade intimista, ao invés de produzir harmonia, causa perturbações na
malha social. Portanto, a defesa dos valores coletivos implicaria na supressão da
individualidade mística: “Não é Deus, é a Humanidade que é o centro desta religião,
como ela é o princípio de toda a reorganização positivista. No fundo, somente a
humanidade é real, a realidade não pertence ao indivíduo.”2
Os oitocentos é o século das monomanias homicidas, eróticas, religiosas,
dos prognósticos que apontavam qualquer sinal de orgulho, exaltações e
alucinações como possíveis quadros de desordem mental3. É um tempo marcado
pela aspiração de tornar racionalmente eternizado o vínculo entre corpo e meio,
num ciclo intermitente de ação e reação. É o ciclo das políticas sanitárias, das
especulações científicas a respeito da etiologia da loucura, incluso a religiosa,
discussão que se arrastou até meados do século XX4. Analisaremos, no presente
trabalho, o discurso médico em relação ao corpo devoto, restringindo-nos aos

1
LÓPEZ-BARALT, 1996, p. 12, tradução nossa.
2
PACHEU, 1906, p. 22, tradução nossa.
3
MOREL, Benedict-Auguste. Notice sur l'hospice d'Eberbach (duché de Nassau); Statistique des aliénés du Grand-
Duché; Considérations générales sur le patronage des aliénés. Paris: Bourgogne et Martinet, 1846.
4
Cf. DUPRAT, 1900.
seguintes tratados oitocentistas: Bottex (1836), Revolat (1838), Brun-Sechaud
(1863), Auzouy (1859), Sentoux (1867), Dagonet (1862) e Berthier (1874).
Do ponto de vista referencial, estamos convencidos que o discurso médico
oitocentista em relação à religiosidade, diluído em uma profusão de especialidades,
só pode ser efetivamente compreendido a partir da instauração do corpo enquanto
realidade absoluta e finita. Aplica-se ao discurso médico em relação a mística o que
Foucault5 entendeu como um dos procedimentos de regularidade científica para
extrair confissões concernentes ao corpo e às suas práticas: “[...] codificação clínica
do “fazer falar”: combinar a confissão com o exame, a narração de si mesmo com o
desenrolar de um conjunto de sinais e de sintomas decifráveis; o interrogatório
cerrado, a hipnose com a evocação das lembranças, as associações livres”.
A adoção do pensamento de Foucault para a análise da literatura anticlerical
oitocentista brasileira, e mais especificamente da representação dos curas, devotos
e beatas, torna-se profícua à medida que, para ele, a produção de verdades em
relação ao corpo e a todos os elementos e fenômenos que o tocam, inclusive a
religião, está intimamente associada a discursos de poder que se entrelaçam,
digladiando-se e partilhando impressões. Procuraremos acompanhar o embate de
poderes e saberes no campo da literatura anticlerical, que propiciaram a construção
de personagens e tramas. Não se trata, evidentemente, de comprovar se
determinado enunciado na prosa é falso ou verdadeiro, mas tentar vislumbrar “[...]
como se produzem efeitos de verdade no interior de discursos que não são em si
mesmos verdadeiros e nem falsos".6
A corporeidade do personagem religioso é frequentemente associada ao
estado permanente de insanidade, ou, no mínimo, de latente alienação. Os
estigmas patológicos arrolados nos tratados médicos do século XIX para designar
estas figuras enfermiças, devotadas às práticas devocionais e pietistas, são
extremamente profusos. A maioria dos médicos as definem como monomania
religiosa7, teomania8, melancolia9, loucura10 e megalomania religiosa11.
Frequentemente estão associadas à própria histeria12, ou, pela similitude dos
sintomas, à demonomania,13 ambas enfermidades nervosas atribuídas a desordem
do ciclo menstrual14. Outros, ainda, destacam o tom simulador da doença,
agravando, assim, a culpabilidade do enfermo, por não se portar adequadamente15.
Conclui-se que todas as espécies e gêneros de patologias religiosas
aventadas, mapeadas, hierarquizadas e propostas como verdades absolutas,
estabelecem, como premissa comum, a aliança unívoca entre o caráter físico e
social da patologia. Nesse contexto, a leitura médica dirigida ao corpo-máquina é
uma espécie de prova inconteste de sua anomalia, do preço pago pelo seu desvio.

5
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. 12. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1997. v. 1, p. 64.
6
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p. 7.
7
Cf. BOTTEX, 1836; REVOLAT, 1838; BRUN-SÉCHAUD, 1863; AUZOUY, 1859; SENTOUX, 1867.
8
Cf. DAGONET, 1862.
9
Cf. SOLLIER, 1890.
10
Cf. MONIN, 1890b; BALL, 1890; SOLLIER, 1890.
11
Cf. DAGONET, 1862; NICOULAU, 1886; MARIE, 1906.
12
Cf. VIVIEN, 1907.
13
Cf. MARC, 1840; GILLET, 1843.
14
Cf. BERTHIER, 1874.
15
Cf. BOISSEAU, 1870.
VIVÊNCIAS CORPORAIS E RELATOS: O SIGNIFICADO DO CORPO NA
FORMAÇÃO DOCENTE EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO.

INTRODUÇÃO

Na década de1990, novas abordagens e paradigmas surgiram no contexto


pedagógico brasileiro na tentativa de compreender a formação e a prática pedagógica, os
saberes docentes e epistemológicos relativos ao conteúdo escolar a ser ensinado. Entre
essas novas abordagens destaca-se a importância das articulações entre as dimensões
pessoais e profissionais para a formação docente.
Mais recentemente, as pesquisas sobre a formação pessoal vêm ganhando espaço
no contexto da formação e identidade docente onde as vivências corporais são
privilegiadas. Ao contrário da sala de aula onde o docente utiliza frequentemente a
linguagem verbal, é no espaço das vivências onde ele vai utilizar mais a linguagem
corporal. Qual seria, então, a importância do corpo1 na formação docente? Verificando o
conteúdo das disciplinas que constituem a formação docente de muitos cursos de
licenciatura observamos a necessidade de atualizá-los à realidade sócio-cultural.
Constata-se que, daquelas instituições que priorizam o corpo principalmente nas diversas
disciplinas nos cursos de licenciatura, poucas evidenciam claramente uma preocupação
com o significado do “corpo”. A maioria concebe um corpo racional ou instrumental e não
um corpo que expressa espontaneamente o desejo, o conhecimento e sua história.
Destacamos essa preocupação considerando a necessidade da relação do corpo na
educação como “ator social” que tem uma história e vive numa cultura tendo algo a nos
dizer.
Segundo Brito (2009, p.10) tenta-se romper com a dicotomia corpo/mente e com
o seu adestramento na instituição escolar e dialogar com a expressividade humana,
postulando que essa via possibilita o resgate do corpo nas teorias da educação. O
objetivo é compreender o seu significado e tentar encontrar indicadores para repensar a
formação docente atual que deve reconhecer o potencial expressivo do corpo e a
contribuição dessa expressividade para a construção de saberes na Educação e mais
especificamente na formação docente.
O corpo na educação pode avançar e encontrar possiblidades na expressão
espontânea sendo mais flexível que as normas escolares porque e dotado de percepção,

1
Dentre vários significados, o conceito de corpo abarca também as manifestações rituais do fenômeno religioso.
Segundo Maus, citado por Menezes (2007), a performance de uma técnica corporal está longe de ser somente um
processo de reprodução, pois a cada nova representação, nova significação pode ser atribuída à mesma. Eis a razão
principal de eficácia simbólica dos ritos.
de interesses, desejos e potencialidades em movimento, pode assim construir
continuadamente ações pedagógicas. Ao reconhecer o entrelaçamento corpo-mundo,
Merleau-Ponty (1999) concebe a importância dos processos de percepção e Foucault
(2002), os processos de subjetivação. Ambos negam a concepção reducionista e
instrumental de corpo. A funcionalidade do corpo na tradição instrumental é vista por
Asmann (1995, p. 3) da seguinte forma: “aprendemos com o corpo, mas não um corpo
instrumental, e sim com o corpo relacional que constrói o mundo a cada momento, que
flui no tempo e que se abre para um horizonte de possibilidades”.
O presente estudo se justifica, em primeiro lugar, pela originalidade em investigar
o tema em questão considerando o desafio de tirar os docentes em formação da sala de
aula e promover uma alternativa que é frequentemente negligenciada pelos cursos de
licenciatura, qual seja, refletir sobre si e o outro, sobre o significado do corpo e suas
repercussões na qualidade da prática pedagógica. Em segundo lugar, é relevante
considerar que a violência crescente observada nas salas de aula, segundo resultados de
pesquisas, ocorre por dificuldades relacionais entre professores e alunos e entre esses
últimos.
O stress e as tensões do cotidiano são agravantes para o estado psíquico-
patológico dos docentes afastando também aqueles que desejam ingressar na profissão.
Assim, acreditamos que o docente deve ser concebido como sujeito social formador e
humanizador, necessitando estabelecer uma melhor compreensão de si e dos outros
principalmente em sala de aula; aspectos esses que serão experienciados nas vivências
corporais no presente estudo. Por ultimo, a relevância em propor uma discussão sobre
“corpo” no espaço de formação. Este aspecto nos parece importante considerando que
resultados de pesquisas de Alves e al. (2006) indicam que, a maioria dos docentes
pesquisada ainda tem uma concepção dualista e instrumental de corpo, ou seja,
separação corpo-mente e não uma concepção “una” e cultural do corpo como vimos
anteriormente. Essa concepção reducionista da maioria dos docentes em formação sobre
corpo tem, portanto, repercussões negativas nos conteúdos curriculares de licenciatura e
consequentemente na qualidade das práticas corporais oferecidas às crianças.
O objetivo principal desse estudo é compreender o significado do corpo para a
formação à partir de vivências corporais na disciplina de oficina VI considerando as
percepções de graduandos concluintes em Ciências da Religião. Em primeiro lugar
destacamos a importância da formação pessoal para a formação docente considerando os
conceitos e objetivos, as possibilidades de vivências corporais na formação em Ciências
da Religião. No capítulo dois abordamos a metodologia que caracterizada pela pesquisa
etnográfica envolvendo quinze participantes e a coleta de informações através de
questionários. Em seguida apresentamos a análise dos resultados e por último, as
considerações finais.

1 A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO PESSOAL PARA A FORMAÇÃO DOCENTE

Vimos anteriormente a importância que vários autores enfatizam sobre a estreita


relação entre a formação pessoal e profissional na formação docente. Neste capítulo
apresentamos a formação pessoal, seus conceitos e objetivos, as possibilidades de
vivências corporais na formação pessoal em Ciências da Religião e o significado do corpo
para a formação.

1.1 Conceito e objetivos da formação pessoal

A formação pessoal objetiva promover o autoconhecimento corporal do futuro


docente a partir das vivências corporais que promovem a conscientização das limitações,
facilidades e potencialidades que cada um apresenta na relação consigo, com os objetos
e com os demais, no grupo de formação. Negrine (1998, p.16) explica que esta formação
se dá pela via corporal e tem como elemento pedagógico um rol de vivências onde cada
participante se volta para si mesmo, fala de suas expectativas, de suas decepções, de
seus desejos e anseios, enfim, deixando fluir sentimentos e emoções pessoais.
A Formação Pessoal é pautada num processo de participação que tem como foco a
evolução pessoal, pois traz a tona o conhecimento de conflitos e prazeres que
acompanham a ser humano desde a infância. Estas sensações sejam elas de dificuldade,
medo, tristeza, alegria, prazer, quando descobertas podem ocasionar as mais diversas
reações que podem ser explicitadas tanto por via corporal quanto por via verbal. Saber
lidar com estas situações e sensações gera um grande aprendizado e um entendimento
de si próprio.
Bertherat (2000) explica que o modo de viver o corpo é a base do modo de viver
o mundo. A autora com esta afirmação ressalta a ideia de que o corpo é um mediador,
facilitador e até mesmo um mostruário de tudo que se sente, aprende e, de como se
vive. Aucouturier e colaboradores (1986, p.21) explica que a Formação Pessoal visa
essencialmente à mudança da pessoa. A mudança atribuída ao âmbito relacional, do
exercício de relacionar-se consigo, com o outro, com os objetos. O exercício relacional
torna a Formação Pessoal um desafio, pois propõe que a pessoa seja ou se torne apta a
aceitar mudanças, reconhecer fragilidades e se tornar forte a ponto de encará-las,
tornando-se assim um ser humano mais certo de si, mais “dono” de seu corpo e de tudo
que este lhe proporciona.
Bertherat (2000, p. 16) compara o corpo a uma casa e coloca que este é a casa
onde não moramos. A autora diz que nunca é tarde para assumir o próprio corpo e
descobrir possibilidades até então inéditas. Ou seja, assumir o próprio corpo é se assumir
como pessoa. Ela cita que somos o nosso corpo, pois nosso modo de parecer é o nosso
modo de ser.
Lapierre e Aucouturier são psicomotricistas que por significativo tempo trabalharam
e estudaram juntos na qualificação da Formação Pessoal. Segundo o pensamento destes
autores os princípios teóricos da Formação Pessoal estão alicerçados em uma abordagem
corporal e se fundamenta no fato de que o movimento espontâneo manifesta de modo
mais claro o inconsciente. Podem ser gestos não percebidos por quem os realiza, mas
não “escapam” dos olhos dos outros e representam mais do que o momento, pois são
ligados à infância e as relações primárias.
Lapierre e Aucouturier (1984, p.18) afirmam que todas as relações humanas se
articulam da ambivalência de dois desejos. O primeiro é chamado de “desejo fusional”,
ou seja, é mais ou menos consciente e se manifesta através da sedução física, afetiva. O
segundo é o “desejo de identidade” que se caracteriza pelos impulsos de independência,
liberdade, acima de tudo ligada ao eu consciente, esse desejo se manifesta por
comportamentos agressivos, de oposição.
Ao se relacionar as pessoas começam a participar de um processo que no final
resulta em crescimento pessoal e aprendizagem. Enquanto se relaciona se está sujeito a
lidar com fantasmas corporais2 que acompanham a pessoa desde a infância, rompe-se
com aversões, desafia-se o medo, o anseio, ou seja, é levado a modificar
comportamentos simbólicos, o que possibilita um novo reconhecimento da personalidade.
Falkenbach (1999, p.12) explica que a pessoa só pode existir se tornar possível
uma comunicação com os seres e com tudo que a cerca. Isso envolve a relação com ela
mesma, com o outro e com o meio. Lapierre e Aucouturier (1984, p.18) reforçam que
qualquer ventura perturbação de personalidade que a pessoa vir a apresentar, nada mais
é que resultado das perturbações dessas relações, ou seja, relação com ela mesma, com
o outro e com tudo que a rodeia. A autora acima considera que a Formação Pessoal
sugerida por Lapierre e Aucouturier pretende devolver no adulto o conhecimento de si,
da própria gestualidade, para também conseguir ser capaz de auxiliar as crianças em

2
De acordo com Lapierre e Aucouturier (1984, p.6) o termo fantasmas corporais é uma produção imaginária
inconsciente, isto é, capaz de motivar comportamentos sem que o indivíduo tenha deles consciência. Ao contrário
da pulsão que é pré-formada, ligada ao biológico, o fantasma se estrutura em referência a uma experiência vivida.
Essa experiência do tipo emocional (prazer ou desprazer), é anterior ao aparecimento da consciência e não pode
ser registrada senão no inconsciente. Constitui o quadro de referência da recusa ou de desejos inconscientes. É
assim que os autores entendem os fantasmas de devoração, de castração, de fusão, etc.
3
Nas experiências corporais com os docentes em formação utilizamos a técnica de observação participante.
sessões de psicomotricidade relacional. Sabe-se que este tipo de formação traz a tona
conflitos para o praticante, pois o pressuposto básico para a evolução pessoal é trazer ao
conhecimento dificuldades, inseguranças e também domínios e facilidades pessoais.
Assim, pode-se afirmar que o adulto que realiza a Formação Pessoal através das
vivências corporais revive os fantasmas corporais, já que a memória afetiva e emocional
é registrada no cérebro.

1.2 Possibilidades de vivências corporais na formação pessoal

A maneira de se relacionar torna a Formação Pessoal um grande desafio, pois


propõe que a pessoa seja ou se torne abertos às mudanças, reconhecer as fragilidades e
potencialidades pessoais existentes, preparando o docente para uma ação pedagógica
mais humanizada.
As vivências corporais aparecem como uma das alternativas pedagógicas de
“expressividade espontânea” na formação pessoal docente onde as relações são
elaboradas com seus pares e com os objetos envolvendo discussões pessoais e
profissionais. Negrine (1994) explica que é essa formação que vai permitir que o adulto
passe a ter mais disponibilidade corporal, conheça melhor suas limitações e ao mesmo
tempo possa refletir sobre ela. O autor destaca ainda que a Formação Pessoal é dolorosa
e exige empenho e verdade. É realmente doloroso enfrentar fantasmas do passado,
saber de si, conviver com situações que trazem sentimentos de angustia e apreensão,
porém aprender a conviver com estas situações e disponibilizar o corpo a ponto de
superar e aprender; promove uma ação de satisfação pessoal e profissional. Assim, a
formação pessoal com essas práticas corporais habilita o profissional mais capaz para
conviver consigo mesmo, que enfrenta seus limites psicológicos e corporais. Para
Falkenbach (1999, p.61):

Os professores que interagem com crianças em atividades


lúdicas devem ser preparados. Deverão possuir, além de
conhecimentos teóricos e didático-pedagógicos, formação
pessoal que lhes dê suporte para interagir com segurança para
desenvolver as crianças.

É através destas intervenções, feitas com segurança e domínio que fazem a


criança desenvolver seu nível de aprendizagem. Um professor bem preparado, com
formação adequada certamente fará diferença na vida escolar e afetiva da criança, pois
saberá intervir, questionar, solucionar e interagir com a criança de modo que ela consiga
elucidar algumas inquietações, dúvida ou até mesmo dificuldades que possam vir à tona
verbal ou corporalmente. Geralmente inquietações são explicitas por gestos ou
comportamento corporal, que se o professor for bem preparado logo notará e saberá
compreender o que esta se passando com aquela criança, fazendo assim uma
intervenção adequada à situação.
Brito (2012, p.8) sugere nas relações teoria e prática dos componentes
curriculares dos cursos licenciatura, inclusive dos Cursos de Ciências da Religião a
discussão sobre corpo-corporeidade considerando as aproximações existentes entre
corpo e ensino religioso pluralista.

Sabemos dos desafios de uma prática docente transformadora: significar as


demandas do corpo, observar e compreender suas ações, ser observador participante3
das experiências corporais e resgatar a memória de infância nas vivências de formação
pessoal. Nessa perspectiva Sayão (2000, p.2) afirma que:

Como primeira proposta de discussão para o curso de formação


propõe-se um levantamento da memória de infância dos/as
participantes, a fim de inserirmos o debate em torno das
características da infância que vão sendo pouco a pouco
esquecidas por nós adultos, que atuamos com as crianças
pequenas.

A questão levantada por Fleury (199, p. 21) sobre a existência de uma criança
dentro do professor é um ponto de debate do curso de formação para sensibilização
dos/as professores/as envolvidos em trazer para o espaço coletivo, o resgate da criança
concreta que existe em cada docente. Esta proposta visa relacionar experiências da
própria infância docente com as crianças, com as quais, os docentes atuam na prática
pedagógica. Este adentrar na situação permitirá uma visão mais ampla da compreensão
do diálogo corporal e da simbologia da criança-aluno.
Considerando a formação em Ciências da Religião, existem pontos importantes de
discussão que articulam o corpo a religião tais como: o corpo e os símbolos sagrados, a
relação de saberes entre ciências da religião e corpo e o papel da corporeidade4 na
história da religião. Herdamos ao longo da história, uma concepção de “corpo submisso”
proveniente do proselitismo em que a história construiu a cultura do reducionismo e
fragmentação corporal facetando a existência humana.

MÉTODO

4
A corporeidade nas ciências da religião é vista como um conceito complexo e polêmico. Considerando que a
corporeidade não é o foco pontual deste estudo, apenas cito três dimensões justapostas desse conceito envolvendo
corpo e espírito: o transcendental e o conhecimento de si e do outro na sua plenitude que compreende
interioridade, exterioridade e profundidade. Segundo Lowen citado por Brandão (2009) A espiritualidade do corpo
é um sentimento de ligação com o universo. O sentimento não é apenas uma ideia ou uma crença; ele envolve
também o corpo e, portanto, é mais ainda do que um processo mental. Ele é constituído por dois elementos: uma
atividade corporal e a percepção mental dessa atividade. Assim, o sentimento expressado nas vivências corporais.
Segundo a autora, o sentimento pode ser considerado a força unificadora entre mente e corpo, ligando a mente
consciente e inconsciente à atividade corporal.
Quinze graduandos concluintes do Curso de Ciências da Religião. As vivências
corporais aconteceram na disciplina de Oficina de Pesquisa VI, onde oportunizamos
descobertas e possibilidades de conhecimento de si e do outro nas relações físico-sociais.
As sessões envolviam atividades espontâneas com bolas leves e tubos de espuma
(macarrões) e foram realizadas na sala de esporte e dança do Centro Cultural de Natal.
Optamos pela pesquisa qualitativa na modalidade de investigação etnográfica em
que o pesquisador é observador participante. De acordo com Bogdan e Biklen (1994) a
pesquisa qualitativa representa “a investigação que produz dados descritivos: as próprias
palavras das pessoas, faladas ou escritas, e a conduta observada“ (p.20). Para André
(2004, p.20), o pesquisador etnográfico lida com uma modalidade de pesquisa que se vê
“diante de diferentes formas de interpretações da vida, formas de compreensão do senso
comum, significados variados atribuídos pelos participantes às suas experiências e
vivências” (...).
Os questionários aplicados aos participantes ao final das quatro sessões destacam
seis temas: 1) Limites e possibilidades das vivências corporais como componente
curricular; 2) sensações de desconforto; 3) contribuições para a vida pessoal e
profissional; 4) concepção de corpo; 5) relação entre corpo e religião e, 6) transformação
pessoal.
Após cada sessão foram discutidas diversas sensações que os participantes
indagaram como medo, raiva, alegria, prazer, tranqüilidade, lembranças da infância,
brincadeiras de crianças e a formação docente. As sessões eram direcionadas por uma
psicóloga especialista em Psicomotricidade Relacional, aonde ela conduzia e norteava o
caminhar da discussão, enquanto o orientador-pesquisador e a orientanda participavam
das vivências.

ANÁLISE DOS RESULTADOS

Para analisar os relatos dos participantes é relevante considerar os aportes de


Negrine (1998); Lapierre & Aucouturier (2002, p.21); Wagner &Falkenbach (2009, p.16)
e Brito (2009, p.15). Diante da quantidade de informações priorizamos, para a análise,
cinco questões relacionadas aos aspectos seguintes: 1) limites das vivências corporais
para a formação 2) possibilidades das vivências corporais para a formação; 3)concepções
de corpo nas Ciências da Religião; 4) concepção de corpo após vivências corporais e, 5)
Aspectos positivos das vivências.

3.1 Limites das vivências corporais para a formação


Os limites em forma de recortes foram relatados por alguns participantes da
seguinte forma:

O cansaço, o barulho, o medo de se machucar durante as


vivências corporais, resistência em me aproximar para brincar
com algumas pessoas do sexo oposto, mas ao longo da sessão
fui perdendo o medo (...) (A1).
Medo de me machucar, alguns colegas me bateram com os com
os tubos, mas serviu para resolver conflitos, pois fui brincar
com a bola com outra colega (A3).
Medo de me machucar com a luta dos tubos porque os colegas
batiam muito com os tubos. (A8).
No começo me senti só, mesmo diante de tanta gente e de
tantos objetos. Sensação de inibição no começo, mas depois
aproveitei a liberdade que a vivência nos proporcionou (...)
(A5).
Desconforto em ficar deitado e tocar o outro (...). A
impossibilidade de usar a linguagem verbal. Reprimi-me em
expressar o meu eu, com medo do que os outros iam pensar
sobre mim (A12).

De acordo com os primeiros relatos acima, os participantes revelaram sensações


de medo, conflitos, falta de limites dos colegas, entre outros aspectos nas primeiras
sessões. É importante observar que foi informado para os participantes que os materiais
utilizados nas vivencias não machucavam. Todos eles estavam participando pela primeira
vez de vivências corporais utilizando a Psicomotricidade Relacional. Segundo Lapierre
&Aucouturier (2002, p.20) esse tipo de vivência é importante para a formação pessoal do
docente e traz à tona conflitos para o praticante, pois o pressuposto básico para a
evolução pessoal é trazer ao conhecimento dificuldades, inseguranças e também
domínios e facilidades pessoais.
Lapierre (2002) afirma que as sensações indesejadas como o medo, a inibição, o
desprazer em ficar deitado ou tocar o outro, entre outras, são tão importantes quanto
qualquer outro tipo de sentimento ou sensação para a formação da personalidade, para o
conhecimento de si mesmo, para a aprendizagem e também para as relações com o
outro. Assim, trabalhar com vivências novas ou desconhecidas para os participantes pode
gerar sofrimento de desconforto, de medo e de fragilização. Nesse contexto, o desprazer
em ter que inibir a expressão verbal na vivência, leva alguns indivíduos ao desconforto
nas primeiras sessões. Para Negrine (1998, p.11) este tipo de vivência pela via corporal
exige que o formador coloque os participantes em situações não verbais que lembram
aquelas que teriam vivido quando bebês no seu prazer do movimento e nas capacidades
de comunicar e investir o corpo no espaço oferecido.

3.2 Possibilidades nas vivências corporais para a formação


Com relação às possibilidades das vivências com repercussões positivas para a
formação pessoal dos alunos concluintes, alguns relatos revelam contribuições nas
relações consigo mesmo e com os outros, no resgate da criança que existe no formando,
na discussão dos problemas da formação, na liberação das tensões, da agressividade e
do stress e nas transformações pessoais, entre outras, que contribuirão para a formação
pessoal e profissional. Os relatos manuscritos foram recortados da seguinte forma:

Familiarização com os colegas da formação para juntos nos


sentirmos próximos e discutirmos os problemas da formação
(A4).
(...) e reviver a infância para nos conhecermos melhor.
Possibilidades de práticas corporais para realizar com nossos
alunos na vida profissional proporcionando prazer e melhorando
as relações com eles (A11).
As vivencias são possibilidades de nos ensinar como tratar a
agressividade em sala de aula destruindo o medo da relação
entre professor e aluno (A15).
Lembranças de momentos felizes da infância revivida na
vivência para a formação pessoal e que levaremos para a vida
profissional (A13).
(...) liberar a agressividade melhorando nossa relação. É
Importante para a relação afetiva com o outro (A14).
(...) reviver momentos de vida pessoal trazendo a memória
algumas experiências que estavam esquecidas e que ajudou a
compreender determinadas atitudes que podem ajudar a
melhorar minha relação com os outros (A6).
(...) aproximar mais dos alunos e contribuir para o crescimento
emocional deles. Contribuiu para liberar a agressividade sem
culpas servindo para descobrir o significado de algumas atitudes
que nós temos e não sabemos justificar, sendo importante para
nossa formação pessoal e compreendermos nossos futuros
alunos (A9).
As vivências práticas nos mostraram que a formação pessoal e
profissional não pode ser apenas técnica e teórica, mas,
necessita ser humanizada através das vivências corporais
práticas, permitindo o auto-conhecimento e o conhecimento do
outro; é o que necessitamos também na nossa vida profissional
(A2).
As vivencias serviram para a evolução e mudança pessoal de
cada participante conhecendo os limites e as possibilidades de
cada um, o que favorece conhecermos melhor a si mesmo e ao
outro (A3).
As vivências foram importantes para relembrar que nas relações
existe a agressividade, mas, também, a afetividade entre
professores e alunos (A12).
As vivências permitem conhecer melhor os outros através de
gestos, olhares e toques corporais contribuindo para a evolução
pessoal na alegria e nas dificuldades (A5).
(...) expressar e compreender nossas raivas e angústias,
alegrias e tristezas que vamos sentir no nosso espaço de
trabalho. É importante para conhecer a personalidade do outro
(A1).

De acordo com Wagner & Falkenbach (2009), as vivências favorecem as


mudanças pessoais à partir das mudanças nas relações com o outro, deixando os
participantes mais livres, mais ousados, menos limitados. Segundo os autores com a
evolução nas sessões os participantes não sentem medo em tocar o corpo do outro,
permitem troca de toques, de olhares, sentem prazer ou desprazer com as vivências,
mas sabem como lidar com o que as mesmas os despertam. Segundo os autores
“aprender sobre as diferentes sensações das vivências e respeitar a forma como cada
participante interpreta e sente é um processo de aprendizagem do indivíduo e do grupo”
(p.5). Essa aprendizagem contribui assim para as mudanças pessoais que ocorrem
durante o processo de conhecimento de si e dos outros que envolvem novos
sentimentos, sensações, fragilidades, potencialidades e posturas considerando que o
movimento dos participantes nas vivências é espontâneo (Brito, 2009, p.12).
Nessa perspectiva, Lapierre &Aucouturier (2002) revelam que o movimento
espontâneo manifesta de modo mais claro o inconsciente. Segundo eles, podem ser
gestos não percebidos por quem os realiza, mas não escapam aos olhos do observador e
representam mais do que o momento (o aqui agora), pois são ligados à infância e as
relações primárias. Assim, nas vivências corporais, muitos conflitos da infância se
evidenciam como os medos, aversões, os desejos que podem assim ser desafiados nas
vivências modificando comportamentos e possibilitando um novo reconhecimento da
personalidade. É importante lembrar que esses comportamentos foram relatados pelos
participantes das vivências nesse projeto quando expressaram seus desejos, medos,
agressividades, desconfortos, aversões, inibições, entre outros.
Dessa forma, podemos considerar que as vivências corporais podem evidenciar
limites e possibilidades na formação pessoal dos docentes em formação do curso de
Ciências da Religião. O autoconhecimento em interação social, revivendo, medos,
desejos, desafios, escolhas e o resgate da história de vida, nos aparece como uma
possibilidade de contribuição para a dimensão pessoal dos docentes em formação.
Consideramos ainda que o processo de formação docente inicia-se principalmente nas
interações afetivas desde a infância, na vida familiar e escolar e que podem ser
resgatados e atualizados nas vivências permitindo um desbloqueio de certas resistências
e possibilitando a evolução pessoal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Objetivo principal deste estudo foi identificar, através de vivências corporais


e relatos, o significado do corpo na formação dos graduandos do curso de Ciências da
Religião da UERN. Em relação aos limites e possibilidades das vivências para a formação
em ciências da Religião a minoria dos graduandos relatou que os limites das vivências
foram condicionados pelos medos, ansiedades e desconfortos. Entretanto, observamos,
com base nos autores da área, que a participação em situações novas ou desconhecidas
em vivências de formação pode gerar nos participantes, sofrimento de desconforto, de
medo e de fragilização. Nesse contexto, o desprazer em ter que inibir a expressão verbal
e, se expressar corporalmente, levou alguns deles, ao desconforto nas primeiras sessões.
Com relação às possibilidades das vivências corporais para a formação em
Ciências da Religião, os graduandos relataram evoluções nas relações consigo mesmo e
com os outros, o prazer nas lembranças do tempo de criança promovendo sentimentos e
emoções. Outra possibilidade de contribuição foi a discussão dos problemas da formação
no final das vivências possibilitando também a liberação das tensões, da ansiedade e do
stress. Por último, relataram as mudanças pessoais, que podem contribuir para a
formação pessoal e profissional.
Foram situações difíceis nas vivências, em um primeiro momento, mas com o
passar das atividades constamos ser natural o graduando tornar-se conhecedor de si, de
seus medos e passar a desafiá-los, passar a respeitar o outro e permitir que as relações
interpessoais façam parte do processo formativo.
Podemos destacar que as vivências favoreceram uma mudança pessoal de
acordo com os relatos dos graduandos. Estas mudanças ocorreram porque durante as
vivências se passou a conhecer sentimentos, sensações, fragilidades e potencialidades,
posturas que até então eram desconhecidas por eles. Ficou mais claro saber do que se
tem medo, o que faz sentir bem, o que gera desconforto e quem somos de fato.
A academia não deve formar pessoas apenas no seu aspecto profissional, mas
também para justificar a sua existência, o seu aspecto humanitário. Avaliamos que a
Formação Pessoal tem como um dos aspectos, as vivências corporais que possibilitam ao
graduando o repensar de suas atitudes, seus valores, se descobrindo como pessoas e
reflitam sua sobre sua conduta, sobre o seu eu e sobre seu futuro como profissional.
Além disso, há uma mudança favorável nestas reflexões pessoais, pois envolvem
questões de relacionamento com o outro, como por exemplo, respeito, ética, limites e
possibilidades.
Observamos pelos relatos dos graduandos questionados a possibilidade de as
vivências corporais na disciplina de Oficina VI, serem uma alternativa do componente
curricular na Formação Pessoal do curso de Ciências da Religião.
Os limites do estudo são caracterizados pelo pequeno número de vivências
corporais e que seus resultados não podem ser generalizados para outros cursos de
licenciatura ou instituições considerando a natureza das vivências, os aspectos físicos,
sociais e culturais. Mas, ao mesmo tempo consideramos que a riqueza das informações
obtidas, desde que, observados os limites estabelecidos, podem contribuir para o avanço
das discussões na área da formação docente.

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ENTRE O CORPÓREO E O SAGRADO: REFLEXÕES SOBRE ACEPÇÕES CORPORAIS NO
CAMPO RELIGIOSO E CULTURAL E SUA INFLUÊNCIA NA MENTALIDADE E HÁBITOS DA
SOCIEDADE

Débora Quezia Brito da Cunha*

Resumo
O corpo ao longo da história teve diversos significados e interpretações tanto no campo do
sagrado como no campo cultural. Ora visto como um receptáculo carnal onde reinava o mal,
ora como um lugar de identidade pessoal gerando o culto ao corpo. A história do corpo
desempenhou durante muito tempo um papel secundário dentro da historiografia e, no
Brasil, ela começa a aparecer com mais intensidade nas discussões acadêmicas, somente na
década de 1990. Quando se pensou em estudar o período pós guerra, foram deparadas
novas percepções, não só da sociedade, como também do corpo. Certa tradição cristã
envolveu o corpo em suspeita ou até mesmo em censura numa tentativa de não lhe dar
muita atenção para assim não o expor a carne. Isso acarretou diversos fatores até o século
XX entre eles a restrição da higiene. O período entre guerras muda a forma de se ver o
corpo levando-o a uma liberação. Em fins do século XIX e início do século XX, a relação entre
o indivíduo e seu corpo começou a ser definida em outros termos, havendo maior liberdade
em desvelar os corpos. Esse estudo se propõe a analisar o percurso no qual a visão sobre o
corpo teve mudanças significativas e suas influências na sociedade entre o final do século
XIX e inicio do XX. Refletindo sobre as seguintes problemáticas: o que gerou a mudança na
mentalidade e visão do corpo? Como esse era visto no campo religioso?. Para tanto, nos
muniremos dos conceitos utilizados por Mauss (2003), Prost (1992) e as formulações
teóricas de Vigarello (2008), Courtine (2005) dando especial destaque ao valor semiótico das
diversas descrições que esses autores dão ao corpo e ao modo como esse é visto e descrito
na sociedade do século XIX e XX. Utilizaremos como método o estudo qualitativo das fontes
que abordam a temática. Através dessa pesquisa notamos que durante as primeiras décadas
do século XX, não se trava mais apenas de mostrar o corpo, mas também de moldar e
exercitar os mesmo, e isto, vai acontecendo de forma constante durante todo o século. E
assim a sociedade conhece mudanças significativas no modo de se vestir, de se tratar e de
se alimentar.

Introdução
A história do corpo desempenhou durante muito tempo um papel
secundário dentro da historiografia e, no Brasil, ela começa a aparecer com mais
intensidade nas discussões acadêmicas, somente na década de 1990. Quando se
pensou em estudar o período pós-guerra, foram deparadas novas percepções, não
só da sociedade, como também do corpo, e o Brasil não estava alheio a estes
acontecimentos.
Os nossos objetos de pesquisa dentro da historiografia muitas vezes surgem
de achados, de novas fontes, de novas conexões entre as coisas, de comparações,
ou surgem também de insatisfações com os acontecimentos existentes
(ARÓSTEGUI, 2006: 470). Em se tratando da história do corpo, ela desempenhou
um papel secundário durante algum tempo dentro da historiografia, sendo
interpretada muitas vezes simplesmente como um mecanismo. Porém, em fins do
século XIX e início do século XX, a relação entre o indivíduo e seu corpo começou a
ser definida em outros termos, havendo maior liberdade em desvelar os corpos.

*
Mestranda em História-UFRN
Do corpo primitivo à cultura corporal clássica
Desde os primórdios da humanidade, a presença física foi fundamental e
requerida como tributo necessário à sobrevivência da raça. O homem primitivo
precisava de uma intensa participação corporal, essencialmente pelo predomínio
da linguagem gestual como principal meio de expressão e por sua interação com a
natureza. Os fenômenos naturais determinaram as relações sociais do homem
primitivo. Nesse contexto o domínio da natureza se inseriu como base da
organização social.
Não obstante, vale ressaltar que a importância corporal não era somente
concebida comoinstrumento de sobrevivência. O esteticamente belo, a perfeição e a
simetria eram considerados atributos essenciais ao corpo. Até mesmo “as relações
sociais eram construídas e consolidadas pelo corpo” (GONÇALVES, 1994, p. 18).
Nesse sentido, o povo grego como expoente civilizador de sua época instituiu as
competições esportivas como meio da celebração das qualidades corporais. A
presença corporal doutrinava o exercício do poder: o êxito nos torneios esportivos
exercia um enorme fascínio social, chegando a determinar o resultado de guerras e
disputas territoriais. A esse respeito Gonçalves comenta:
Nessas sociedades eram valorizadas as qualidades corporais como força,
destreza e agilidade, não somente em torneios e competições, também eram
importantes para a vida militar e política. Vencer uma competição significava não
somente a compreensão de uma superioridade física, mas muito mais: o
reconhecimento do vencedor como um elemento superior daquela sociedade (1994,
p.18).
As transformações que a estrutura social sofreu nessa fase da história humana
assinalaram a alternância do enaltecimento da guerra e dos valores coletivos para a
valorização do trabalho e do pensamento individual. A nova ordem social provocou
a desintegração dos laços familiares e a desvalorização das qualidades físicas
guerreiras, inutilizadas pela condição de existência já estabelecida: o trabalho
individual. Carlos Herold Junior seguindo a mesma linha de raciocínio complementa
a consideração acima, afirmando:
(...) o coletivismo, coragem, amizade, respeito aos familiares e a terra,
tornaram-se
sentimentos que não mais respondiam a nova forma de ser social,
corporalmente, a força,
destreza, habilidade com as armas e cavalos, tornaram-se adjetivos que
não eram mais
concretizados pelas novas sociedades (1997, p. 8).

Assim, no contexto de profundas transformações sobre as formas de conceber


o corpo surgiu o pensamento dicotômico. Este, hipoteticamente, dividiu o homem
em duas subunidades: corpo e mente. De acordo com Silvio Gallo, Sócrates
inaugurou essa atividade sugerindo um repensar sobre a “unidade do ser”,
terminando por percebê-lo como “corpo perecível e alma imortal” (2000). Nesses
termos, o autor assinalou que também Platão intensificou essa relação,
negligenciando ainda mais o valor do corpo. Surgiria desse entendimento a
afirmação de que a alma seria eterna, pura, sábia, ao passo que o corpo seria
imortal, impuro, degradante. Nessa linha de pensamento, o corpo era encarado
como “uma verdadeira prisão capaz de obstruir a ascensão da alma ao plano ideal
perfeito” (2000, p. 62).
No início do século III a.C. as percepções sobre o corpo reveladas através da
escultura demonstraram a preocupação com a mobilidade corporal. As
representações artísticas adquiriram maior dramaticidade, buscando o contraste
entre o nu e o vestido, a vida e a morte, a força e a debilidade física. Todavia, no
momento em que a dominação política do Império Romano se impôs, a construção
do pensamento filosófico, e por conseqüência, as acepções corporais instituídas por
ele foram alteradas. Embora tenha sido atribuído ao culto do corpo um valor pagão,
sendo até mesmo abolidas as Olimpíadas (pelo imperador Teodósio - séc.IV), a arte
romana manteve-se orientada pela expressão do ideal de beleza grego-helenísitica,
adotando também referenciais etruscos (registros de manifestações do cotidiano).
Nos períodos posteriores, as representações do corpo adquiriram outras dimensões,
subjugando-o a temas que potencializaram as questões místicas e religiosas
(GOMBRICH, 1999).

O Corpo Coberto Na Idade Média E A Padronização Dos Movimentos Da


Modernidade
Na Idade Média o corpo serviu, mais uma vez, como instrumento de
consolidação das relações sociais. A característica essencialmente agrária da
sociedade feudal, justificava o poder da presença corporal sobre a vida cotidiana,
características físicas como altura, cor de pele e peso corporal, associadas ao
vínculo que o indivíduo mantinha com a terra eram determinantes na distribuição
das funções sociais. Os homens eram submetidos a ordens rígidas e ao sistema de
castas que impossibilitava qualquer tipo de ascensão social. O homem medieval era
extremamente contido, seus impulsos individuais eram proibidos. A presença da
instituição religiosa restringia qualquer manifestação mais criativa. A moral cristã
tolhia qualquer tipo de prática corporal que visasse o culto do corpo. A concepção
dualística do homem foi retomada e reacendeu a visão do corpo corrupto e
pecaminoso, considerada empecilho ao desenvolvimento da alma. Nas artes
plásticas, como destacou Gombrich (1999), ficava evidente a projeção do “corpo
coberto”, aparentemente exaurido de preocupações estéticas.
No entanto, o crescimento e aperfeiçoamento da produção agrícola e dos
meios de transporte da sociedade feudal e o conseguinte acúmulo do excedente
produzido geraram a necessidade de ampliação do comércio entre os feudos, dando
origem a importantes feiras ou centros comerciais que mais tarde originaram as
cidades medievais. Essas modificações provocadas pelo acréscimo da produtividade
agrícola aliado à expansão comercial, promoveram algumas das condições
necessárias para o desenvolvimento e instalação da indústria moderna. Esse
fenômeno somado a outras modificações sociais, segundo o historiador Georges
Duby (1992), marcou uma série de transformações que desembocaram no
surgimento do sistema capitalista, os costumes e tradições foram substituídos pelo
mercado e pela busca de lucros monetários, sobretudo no que tange a
determinação da divisão e execução das tarefas produtivas e da disponibilização
das oportunidades de trabalho.
Na Renascença, as ações humanas passaram a ser guiadas pelo método
científico. O avanço técnico - cientifico produziu nos indivíduos do período moderno
um apreço sobre o uso da razão científica como única forma de conhecimento. O
corpo, agora sob um olhar “cientificista”, serviu de objeto de estudos e
experiências. A disciplina e o controle corporais eram preceitos básicos. Todas as
atividades físicas eram prescritas por um sistema de regras rígidas, visando à
saúde corpórea.
A obtenção do corpo sadio circundava a dominação do indivíduo: a prática
física domava a vontade, contribuindo para tornar o praticante subserviente ao
Estado. O dualismo corpo - alma norteava a concepção corporal do período,
demonstrando a influência das concepções da antiguidade clássica.

O Olhar O Corpo
Durante as primeiras décadas do século XX, não se trava mais apenas de
mostrar o corpo, mas também de moldar e exercitar os mesmo, e isto, vai
acontecendo de forma constante durante todo o século. O culto ao corpo surge
como uma manifestação do primado da vida privada individual. Na burguesia a
aparência física contava muito, mas não se mostrava o corpo. A tradição cristã
envolvia o corpo em suspeita e censura, ele merecia respeito, mas o excesso de
atenção era expor ao pecado. A higiene, portanto era muito restrita: a água
amolecia o corpo, portanto a sujeira era sinal de saúde. Lavar o corpo todo ainda
não fazia parte dos cuidados higiênicos normais. O entre guerras é para a
burguesia uma época de libertação do corpo e de outra relação com o físico e as
roupas. As roupas se encurtam e as meias valorizam as pernas. A aparência física
passa a depender do próprio corpo por isso é preciso cuidar dele. Surge uma nova
preocupação a de se manter sedutora entre as mulheres.
As refeições se tornam mais leves. Tanto homens como mulheres começam
a praticar exercícios físicos, por surgirem oportunidades de mostrar o corpo.
Crescem a procura por esportes individuais. A reabilitação do corpo certamente
constitui um dos aspectos mais importantes da vida privada. Vemos a valorização
por exercícios físicos que tem como fim o próprio corpo sua aparência e bem-estar.
Tratar o corpo assume um lugar importante na vida privada. Mostra-se cada vez
mais o corpo ele não é apenas assumido e reabilitado, mas também reivindicado e
exposto à visão de todos. O corpo se tornou o lugar da identidade pessoal.
Tudo que ameaça o corpo se reveste de uma gravidade inédita. A
sensibilidade da violência aumenta. As ameaças da idade e das doenças preocupam
e o cuidado pelo corpo aumenta. A norma social dita à aparência jovem, as pessoas
não querem mais envelhecer. A morte não é vista mais como algo normal. Viver se
torna um direito. A saúde se torna uma preocupação constante. O Estado começa a
intervir por causa da saúde pública, as vacinas passam a ser obrigatórias. O Estado
torna a medicina acessível a todos. O hospital se torna um refúgio para os doentes.
Assim, o cuidado com o corpo sai do espaço privado para o público. As pessoas
passam a nascer e a morrer num mesmo local, o hospital.
No fim da década de 60, houve alguns movimentos que trouxeram consigo
um desempenho novo para o corpo, seus primeiros papéis foram nos movimentos
individualistas e igualitaristas “de protesto contra o peso das hierarquias culturais,
políticas e sociais, herdadas do passado”. As aspirações na esfera do individualismo
colocaram o corpo no centro de discussões culturais, transformando assim a sua
existência como objeto de pensamento. Desde então, ele traz consigo marcas de
gênero, classe ou de origem, e isto não pode mais ser apagado, quando se pensa
no corpo (CORBIN; et all, 2008: 7-8-9).
Um exemplo dentro da análise de gênero, pensando o âmbito da
masculinidade, é que durante a primeira metade do século XIX, a imagem do corpo
masculino se modifica e tomam outras formas, o homem romântico começa a ser
substituído pela potência muscular. Após este período, as atitudes americanas
perante os exercícios físicos, assim como sua percepção das formas corporais
ideais, vão mudar de modo significativo. É imposta a ideia de que os americanos
podem e devem transformar de modo ativo suas formas e modelos corporais
(COURTINE, 2005: 90-91). Esta mudança de pensamento com relação ao corpo
masculino não se aterá apenas aos Estados Unidos; no Brasil, no início do século
XX, o Rio de Janeiro começa um processo onde a cultura do corpo ganha lugar e o
homem romântico e erudito perde espaço para esta nova percepção masculina.
“Na construção da masculinidade, o homem passa por experiências que lhe
ensinam o que significa desempenhar seu papel. O masculino como categoria serve
para identificar comportamentos, e configurações em um campo de
representações” (NOLASCO apud MATOS, 2000: 27). Estas experiências explicam
muitas vezes comportamentos adotados pelos homens de determinado período. O
masculino durante muito tempo assume o papel principal em vários âmbitos da
sociedade, mas isto não quer dizer que as mulheres estavam alheias a este
processo. Pensando em um modelo familiar e social dominante na época de 1945 a
1964, período que engloba os anos deste estudo, a distinção entre gêneros divide a
autoridade: ao homem cabe o poder sobre as mulheres, ele era considerado “chefe
da casa”, responsável pelo sustento da esposa e do lar. Estas relações são
propostas por um conjunto de normas sociais do período, mas “aparecem em
termos de representações como naturais, desistoricisadas e válidas para todas as
classes” (BASSANEZI: 8).
A masculinidade é um ponto importante para entendermos o remo e as
posturas adotadas pelos remadores, pois de certa forma era no esporte onde se
podia extravasar as posturas e impor certa masculinidade nos gestos. No caso do
Remo, questão central neste trabalho, sua característica até pouco tempo atrás, era
de um esporte caracterizado pelo predomínio masculino. Na atualidade, os esportes
comportam integrantes femininos, porém na década de 1950, ele era um esporte
destinado aos homens. Devido a isto, que esta pesquisa se utiliza da masculinidade
como recorte de gênero para estudar o esporte de regatas.

O Esporte E O Remo
O termo Sport já era presente nos meios de comunicação do Rio de Janeiro
no século XIX, e neste período deve-se entender a diversidade deste termo, pois
neste escritos, a tourada, a patinação, o boxe, os primórdios do atletismo, enfim,
estas práticas esportivas tão díspares, que envolveram até mesmo banhos de mar,
eram assim considerados como “Sport” (MELO, 2001: 27). Os esportes modernos
como conhecemos na contemporaneidade diferem dos antigos “não apenas por
introduzir a noção de recorde, mas fundamentalmente no que se refere aos
respectivos „cimentos sociais e a concepção de corpo associada às tendências
dominantes nos respectivos modos de produção” Os esportes nascem na sociedade
industrial e são inseparáveis de suas estruturas e funcionamento (PRONI, 2002:
37). Uma mudança significativa que pode ser considerada está relacionada ao
desempenho, pois cada vez mais o esporte é medido e cronometrado, buscando
superar as marcas e potência dos corpos.
No século XIX, as preocupações em moldar o corpo através de instrumentos
corretores são deixadas de lado, a pedagogia esportiva buscava exercitar o corpo
para que ele fosse moldado e aperfeiçoado, melhorando as formas corporais e os
músculos. “Aqui também se especializam os aparelhos sobre os quais devem se
aplicar as forças previamente medidas, orientadas e contabilizadas” (VIGARELLO,
2005: 30). Estas pedagogias, que buscavam o rigor e precisão de cada evolução do
corpo, constituem-se em materiais que se encarregam de normalizar o trabalho:
pesos, bastões, sistemas de apoio e sustentações, e vários outros utensílios
especializados capazes de promover e guiar as forças. É a evolução deste tipo de
aparelhagem corretiva que melhor representa as visões de um treinamento novo,
em que o corpo pode se tornar ele mesmo um instrumento e que este período irá
formalizar (VIGARELLO, 2005: 31). Além deste tipo de aparelhagem, o próprio
corpo é condicionado e pensado com parte do esporte. No caso do remo ele é
pensado e moldado para o melhor desempenho da prática esportiva, porém antes
disso, falemos da história deste esporte.
O Remo no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, tem seus
remanescentes na metade do século XIX, com as primeiras corridas de canoa. As
mudanças significativas no que se refere a ocupação e utilização do mar e das
praias, passam a ser utilizadas para atividades de lazer, como piqueniques. É neste
momento que as primeiras corridas de canoa surgem, e vão se configurando ao
longo dos anos (MELO, 2001: 46-47). É claro que esta prática teve inicio também
no Rio Grande do sul, em finais do século XIX, e em São Paulo. A escolha do Rio de
Janeiro como o marco inicial do remo nesta pesquisa ocorre em função dos
registros das primeiras corridas de canoa serem nesta cidade e da difusão do remo
e da cultura do culto ao corpo no Brasil que se configura com o surgimento dos
clubes de regatas, com maior representatividade no Rio de Janeiro neste período.
O Rio possuiu uma experiência diferenciada de São Paulo, isto se deve em
parte ao processo de crescimento da cidade, que é bastante diferenciado do Rio de
Janeiro (MELO, 2001: 128). Além disso, a utilização do mar começa a se configurar
com o recuo ao pudor, que vai ganhando força já no início do século XIX e alavanca
seu processo com o século XX. Foi necessário superar a barreira de algumas
tradições seculares como a proibição de mostrar as pernas, proibição de urinar em
público, “a fim de não despertar pensamentos pecaminosos em relação a moral
religiosa. O corpo, no entanto, vai progressivamente se desvelar sob o efeito
combinado da moda e do turismo balneário” (SOHN, 2008: 110). O maiô é um
exemplo dos „progressos . Além disso, transformando-se na década de 1930 em
um lugar de ócio e de lazer, a praia, ainda por cima, convida a expor o corpo
desnudo para apresentar um bronzeado perfeito, símbolo agora de boas férias.
Esse desvelar que os corpos começaram a ter em público sofre um impacto
também na vida privada, acentuando uma dimensão mais sexuada, a nudez
começa a ser naturalmente desenvolvida nas relações íntimas. Desde então, os
homens e mulheres não podem mais disfarçar com seus corpos, os cânones de
beleza física se mostram muito exigentes. O recuo do pudor implica em um novo
trabalho sobre o corpo entre musculação e dietas para o emagrecimento, mas o
pudor oficial obedece a regras estritas até os anos de 1950, e a publicidade
também não se demora a liberar (SOHN, 2008: 110 – 111).
O Rio de Janeiro é palco para grandes transformações do corpo, devido a
sua experiência com o mar e a utilização dele para atividade de lazer e esportes, e
em Blumenau, embora o mar não tenha influências como na capital carioca,o remo
é uma pratica muito difundida, e tem início nas primeiras décadas do século XX.
Pensar no corpo destes esportistas na década de 1950 é importante para
analisarmos os corpos e suas posturas e entendermos como este esporte influencia
nas posturas corporais de seus atletas. Um mecanismo utilizado pelas equipes para
competição eram as Provas de Regata.

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Rabindranath Tagore: tradição e modernidade no pensamento indiano e em
diálogo com Cecília Meireles

Gisele Pereira de Oliveira1

Rabindranath Tagore (1861-1941) foi escritor (poeta, dramaturgo, romancista,


contista, ensaísta, tradutor), compositor, pintor, ator, folclorista, educador, pensador.
Entretanto, a tônica de sua produção vária é específica: “tudo converge para um fim
superior, na obra de Tagore. É uma obra educativa, sem nenhuma aparência ou
intenção didática” (Meireles, 1980, p. 165).
Este trabalho tem o objetivo de, por um lado, apresentar a confluência entre a
tradição filosófica indiana, pautada na literatura sânscrita védica2 e clássica, e o
pensamento de Rabindranath Tagore, numa tentativa de vislumbrar este fim superior
de sua obra na perspectiva do pensamento filosófico-religioso com o qual teve
contato, ou seja, o indiano, ou védico.
Por outro lado, vislumbramos o diálogo entre o primeiro laureado asiático e
Cecília Meireles, principalmente sobre o fazer poético e a educação, ambos
perpassados pela espiritualidade oriental.
O trabalho foi desenvolvido por meio da análise textual comparativa entre os
textos normativos sânscritos, especialmente aqueles que apresentam preceitos
filosófico-religiosos, como a Bhagavad-gita, e os textos de Tagore, assim como, num
segundo momento, os textos deste e de Cecília Meireles; neste caso, aproximamos
ora poesias, ora ensaios ou crônicas.
Conclui-se que ambos, Tagore e Cecília, partiram das circunstâncias históricas
correntes para a seleção e atualização de temas essenciais, principalmente quanto à
educação e à poesia.

Rabindranath Tagore: uma breve biografia


Tagore nasceu em uma família tradicional da Bengala. Sua família se constituía
de brâmanes de casta, ou seja, de uma linhagem de intelectuais, professores e
sacerdotes, legitimados pela tradição indiana para exercer estes papeis na sociedade.
Por um lado, tal nascimento lhe proporcionou a melhor (e a pior) formação
intelectual que se poderia adquirir na Índia (e duas estadias na Inglaterra para
estudos) sob o domínio britânico no século XIX: 1) melhor, por ser instruído em
sânscrito, bengali e inglês, o que mais tarde lhe possibilitaria transitar pelo mundo

1
Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), doutoranda em Letras pela Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP/Assis) e bolsista junto à Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
(viajou para muitos países, por exemplo, aos EUA e à China) pessoalmente e em
texto, ao mesmo tempo em que foi exposto a toda um repertório de literatura, de
Shakespeare à literatura sânscrita milenar, lhe imbuindo de um acervo tanto clássico
como contemporâneo, diverso em forma e gênero, o que lhe possibilitaria sua própria
produção tão vasta e variada; 2) pior, por ter sido exposto à educação nos moldes
ocidentais que se limitam a disciplinar o corpo e a mente, emprisionando a
imaginação, impondo a violência da punição física, castrando a liberdade que só o
conhecimento é capaz de proporcionar, num sistema educacional muito diferente
daquele praticado na Índia tradicional vislumbrado por ele na literatura. Dessa forma,
se a educação lhe proporcionou os subsídios necessários para se tornar um homem do
mundo, apto a se comunicar com pessoas das mais diferentes culturas, classes,
etnias, etc., ela também lhe ensinou a duras penas sobre suas deficiências, as quais o
motivaria a instituir sua própria escola, a Santiniketan (hoje, Patha Bhavana), e, mais
tarde, uma universidade, a Visva Bharati.
Por outro lado, seu nascimento lhe proporcionou um local privilegiado como
observatório da sua contemporaneidade e, assim, agente chave, posteriormente, no
campo da arte, da educação, da política, da ciência e da religião, tanto na Índia, como
em outras partes do mundo, como ícone de visão abrangente e sabedoria do seu
tempo.
Sua posição exaltada se confirmou pelos convites para viagens e palestras nos
mais diversos cantos do Ocidente (EUA, Inglaterra, França, Suíça, Alemanha, Áustria,
Tchecoslováquia, Holanda e América do Sul) e do Oriente (China e Japão), pela
tradução de sua obra para diversos idiomas, e, especialmente, sua condecoração com
o Prêmio Nobel para a Literatura, em 1913, a concessão do título de cavaleiro (Sir)
pela coroa britânica, em 1915, e o de Doctor Honoris Causa pela Universidade de
Oxford, em 1940.
Para Dr. Girija K. Mookerjee, Tagore foi inegavelmente, “entre os pensadores
sociais do século XX, um dos mais lúcidos e penetrantes” (1962, p. 39), cuja
“evolução mental e espiritual não se poderia, sem dúvida, realizar no vácuo, nem
tampouco inteiramente fora das correntes sociais e políticas do meio e do tempo em
que lhe foi dado viver” (Idem, p. 40).
Nesta perspectiva, Tagore foi instruído com o conhecimento tradicional indiano
e com o conhecimento ocidental advindo com a dominação britânica sobre a Índia, o
moldando de forma a, igualmente ao pai e ao avô príncipe, “sentir-se o representante
da consciência nova que o povo indiano começava a adquirir, [neste caso] graças ao

2
O termo sânscrito veda se origina da raiz VID que significa conhecer, saber. Os Vedas são o compêndio
textual da Índia antiga que contém todo conhecimento destinado à humanidade, abrangendo metafísica,
choque e à pressão das ideias da sociedade ocidental, mais dinâmica, mais tecnológica
e mais adiantada que o seu próprio sistema social” (Mookerjee, 1962, p. 41).
O ambiente intelectual, político e religioso em que viveu foi de muitas
mudanças e agitações. Primeiramente, ele cresceu no cerne do movimento revivalista
hindu sob a liderança de Raja Rammohan Roy (cf. Sen, 2010, p. 60). Paralelamente a
movimentos como o de Pandit Iswar Chandra Vidyasagar e Sri Ramkrishna
Paramahansa, ou do ortodoxo Prarthana Samaj e do Arya Samaj, Raja Rammohan
Roy, conhecido como o pai da Índia moderna, fundou o Brahmo Samaj, em 1828, com
total apoio do pai de Tagore, Debendranath Tagore.
Esses movimentos hindus tinham como missão repensar e resgatar a tradição
indiana, como antítese da dominação e do processo de aculturação exercidos pela
coroa britânica na Índia. O Brahmo Samaj, por sua vez, se apresentou como um
movimento que almejava restabelecer o monoteísmo upanishádico e rechaçar a
idolatria hindu.
Como rotina familiar, o pai de Tagore estabeleceu a prática de recitação dos
antigos textos das Upanishads e outros textos sânscritos. Além disso, aos 23 anos,
Tagore foi indicado como secretário do Brahmo Samaj, dentre cujas atividades se
encontrava responder a artigos de outros hindus que criticavam a religião deste
movimento (cf. Sen, 2010, p. 60). Uma das principais críticas de Tagore contra o
hinduísmo ortodoxo se voltavam às proibições, aos tabus, principalmente relacionados
ao sistema de castas.

A religião de Tagore
Como tentamos demonstrar pela breve biografia com dados selecionados por
nós, Tagore foi um indivíduo do seu tempo, o viveu e por ele foi fomentado. Em suas
memórias, há uma recorrente asseveração de que foi educado por seu pai para ser
autônomo intelectual e religiosamente. Além disso, seu senso e necessidade por
liberdade sempre foi a pedra de toque da sua própria personalidade. Seus embates
com o sistema educacional em que foi inserido, seu debate com e posterior
atualização do Brahmo Samaj estão relacionados com sua postura autônoma, com sua
fé na liberdade humana, como direito, característica e necessidade de toda e qualquer
pessoa.
Neste sentido, poderíamos dizer que Tagore autonomamente formulou e
praticou sua própria religião: uma síntese de tudo a que foi exposto, mais o exemplo e
ensinamentos de seu culto pai e uma seleção daquilo que presenciou numa época um

ritualística, ética, moral, jurisprudência, arte, arquitetura, medicina, etc.


tanto conturbada política e intelectualmente na Índia, senão no mundo das duas
grandes guerras.

Pediram-me falar-lhes sobre a minha própria opinião de


religião. Uma das razões pelas quais estou relutante a falar
sobre esse assunto é porque não cheguei à minha própria
religião através das portas de uma aceitação passiva de uma
crença particular devido a um acidente de nascimento. Nasci
numa família que foi pioneira no processo de ressuscitar uma
grande religião no nosso país, baseada nas palavras dos textos
dos upanisadas. Todavia, devido à excentricidade do meu
temperamento, foi-me impossível aceitar qualquer ensinamento
religioso simplesmente porque as pessoas ao meu redor
acreditavam que fosse verdade... Assim, minha mente cresceu
num ambiente de liberdade, liberdade da dominância de
qualquer religião que é justificada pela autoridade definitiva de
qualquer escritura ou pelos ensinamentos de um grupo
organizado de seguidores (Tagore apud Sen, 1962, p. 61).

Fazendo uso de sua independência, Tagore, a partir dos 50 anos, recriará sua
religião. Sua religião seria guiada pelo objetivo de união entre as pessoas; se
apresentaria como um humanismo, uma religião da humanidade, uma religião do
homem (Cf. Sen, 1962, p. 63). Para Sen, essa religião tagoreana se formularia a
partir de uma seleção de preceitos de diversas religiões e suas escrituras: em
Santiniketan, ele organizou ou produziu a tradução de textos emblemáticos, como a
de um livro sufista, um texto sobre devoção budista, o Bouddhadharme Bhaktivada,
ambas publicadas no Tattvabodhini Patrika (publicação organizada pelo poeta), assim
como a do volume de Doha do sufista Kabir. Sen resumidamente nos fala mais da
seleção de Tagore:

A viagem de Tagore na direção da “Religião do Homem”


começou com os versos dos Upanisadas que recitava na sua
infância. Foi enriquecida pela filosofia do [Bhagavad] Gita [...],
diferente escolas de vedanta e a filosofia dos santos medievais.
Vedanta era a sua herança natural mas como o seu pai
Debendranath, Rabindranath não aceitou inteiramente a
interpretação advaitica. “Brahma satya jagat mithya” nunca lhe
foi aceitável. Como Debendranath ele também tinha uma
reverência para o mundo. Disse que a salvação através da
renúncia não lhe servia. Quis saborear a liberdade da alegria de
inúmeros laços (1962, p. 63-64).

Vê-se aqui um esboço de religião norteada por um ecletismo seletivo que busca
na ortodoxia védica (os Vedas sendo o primeiro extrato de literatura sânscrita
conhecido) os pressupostos que convergiriam para uma religião do homem, ou seja,
uma religião que permitisse ao homem a interação e realização do divino por meio do
contato, da relação para, com o mundo, e não pela renúncia deste. Sen acrescenta
outras adições:

Aquilo que o atraiu no vaixnavismo, especialmente o


Visistadvaita de Ramanuja (1017-1137). O vaixnavismo é um
culto da divindade e do devoto e o amor entre os dois atraiu-o.
Rabindranath aprendeu a significância interior da criação e do
amor das escritas medievais em bengali conhecidas como
Vaisnava Padavali. O conceito vaixnavita de beleza foi absorvido
pelo poeta, como a beleza e o amor são as chaves dos textos de
Tagore (Idem, p. 64).

Se para Tagore a meta da religião do homem é aproximar o indivíduo de Deus


neste mundo, o vaishnavismo, cuja prática é a bhakti yoga, ou a yoga da devoção,
seria um bom adendo na colcha de retalhos em que sua religião vai se tornando. Para
Huston Smith, diferentemente da yoga do conhecimento, como método de
autorrealização espiritual no hinduísmo, que pode ser muito difícil para a maioria das
pessoas, a bhakti yoga aciona as emoções, as quais dinamizam mais a vida do que a
razão (2001, p. 47). Smith dirá que “as pessoas tendem a se tornar semelhantes ao
que amam, levando impresso na testa o nome do objeto amado. A meta da bhakti
yoga é direcionar para Deus o amor que repousa na base de todo coração” (Idem).
Em outras palavras, amar o divino, torna a pessoa divina e, além disso, o amor seria o
sentimento mais arrebatador que experimentamos e ao direcionarmos este para Deus,
selaríamos nosso destino no além mundo a partir da vivência amorosa aqui e agora;
na verdade não faria diferença este ou aquele mundo, pois a consciência já estaria em
estado extático ou louca de amor, não sendo diferente daquilo que ama em essência,
ou seja, seria espiritual.
Tagore, ao enfatizar o vaishanavismo em sua religião do homem, foca na
relação entre o indivíduo e o divino, desmistificando a distância e a hierarquia que
separaria o humano de Deus: “A missão de Rabindranath era de fazer o homem mais
divino e o Deus mais humano” (Sen, 1962, p. 64).
Além do vaishnavismo, Tagore adotou algumas premissas do budismo, quais
sejam, o princípio da não violência, ou ahimsa, e a compaixão, ou karuna, ambos
corroborando outro princípio budista, ou seja, a irmandade, maitri. Ademais, fascinou-
se com a ideia da felicidade em tudo, mudita, e indiferença (para com o sofrimento
próprio), upeksa. Todas as noções do budismo que o atraíram se voltavam ao que
seria o mais humano, ou humanitário, pois visaria a união entre os indivíduos, a
harmonia, a fraternidade. Quanto a Buda, Tagore dirá:
Essa sabedoria não foi transmitida através dos textos das
escrituras nem pelos símbolos das divindades, nem através de
práticas religiosas consagradas ao longo dos séculos mas
através da voz de um homem vivo e o amor que saiu de um
coração humano (Tagore apud Sen, 1962, p. 65).

Nas palavras do escritor francês Georges Albert-Roulhac, que escreveu a


biografia de Tagore para uma publicação do Prêmio Nobel, por seu centenário, o
coração humano, ao qual Tagore investe sua atenção e fé de superação das
precariedades humanas, será movido, encantado, na grandeza divina ocultada na
pequenez da vida, na simplicidade, nos seres diminutos:
É então que se esboça em seu espírito uma nova forma de
humanismo, e que ele começa a desenvolver uma das ideias
que mais lhe interessam – inspirada aliás pelas convicções
panteístas hauridas na família – a saber: que a verdadeira
grandeza deve ser procurada na pequenez, ou seja, que a
verdade de Deus se realiza na mais humilde ou minúscula
criatura! Uma criança, um pássaro, uma folha de erva, uma
flor... Ao mesmo tempo, descobre que é no amor –
espiritualizado e místico – que se desenvolve a liberdade eterna
da alma (1962, p. 57-58).

Esse elogia à harmonia para com a natureza, a integração integral com ela,
com via de ascensão, de autorrealização espiritual, estará expressa no projeto
educacional (na própria estrutura da escola, cujas aulas são feitas embaixo das copas
das árvores), no seu estilo de vida e, principalmente, na obra de Tagore: “A vida
universal palpita em redor do poeta, deixando subir para o céu um hino à criação”
(Idem, p. 61).
Nesta perspectiva, reiteramos o comentário de Cecília Meireles sobre a obra
tagoreana citado aqui no início deste artigo: “tudo converge para um fim superior, na
obra de Tagore. É uma obra educativa, sem nenhuma aparência ou intenção didática”
(Meireles, 1980, p. 165).
Não há distinção entre as atividades de Tagore, tudo serve a esse fim superior:

A missão suprema do poeta é, portanto, colocar-nos em relação


intima com as coisas, iluminar os mistérios da vida e da morte,
fazer-nos perceber a união profunda do belo e do bom, da
verdade e do amor, e conduzir nossas almas inebriadas até os
pés de Deus (Albert-Roulhac, 1962, p. 68).

Na obra tagoreana, seja em prosa ou em verso, a humanidade e sua


diversidade são contempladas na apresentação de uma gama de caminhos para a
autorrealização espiritual: seja pela renúncia, seja pelos ritos, ou pela própria vida
material e prosaica, cada indivíduo teria sua trilha pessoal, singular, de interagir com
Deus e ascender, contemplando o que há de mais humano: a diversidade. E o que se
exige, na verdade, é apenas a busca, a entrega, a tentativa.
Tagore e Cecília Meireles
Conforme ampliamos a leitura dos escritos de ambos Rabindranath Tagore e
Cecília, mais estes se configuram como brother and sister in arms, ou seja, pessoas
que passaram por experiências intensas e semelhantes em âmbitos compartilhados
(tragédias, alegrias, feitos e eventos quanto à família, à arte, educação, ao estilo de
vida, etc.), ou como um match perfeito: uma parceria, uma combinação, um dupla –
que dupla! As coincidências e semelhanças são profundas e abarcam, dentre diversas,
atividades ocupacionais e similitudes em visão de mundo. Aproximá-los, para nós, se
tornou imprescindível para a compreensão dos vínculos entre a poetisa e a Índia.
Tagore, ao falar sobre a natureza da arte e do seu valor, apresenta sua visão da
importância da universalidade:

Comecemos perguntando a nós mesmos se as criações


artísticas não deveriam ser julgadas conforme sua virtualidade
de serem universalmente compreendidas, ou segundo sua
interpretação filosófica da vida, ou por sua utilidade para a
solução de problemas atuais, ou porque expressam alguma
peculiaridade do gênio do povo ao qual pertence o artista.
(2007, p. 25)

Tagore elabora um pensamento acerca de arte pautado na ideia de necessidade


e excedente, juntamente com o contraponto entre vida humana e vida animal:
enquanto os animais e os homens têm necessidades de consumo para a
sobrevivência, os primeiros se satisfazem e pronto, e os homens, por sua vez, seja
pela criatividade, pela maior abrangência emotiva que possuem, ou pela sede de
conhecer as coisas a fundo, vão além da pura exigência da manter a vida, e, assim,
produzem e desfrutam da arte por meio do excedente de material que possuem à
disposição. Mais do que isso, para o poeta, ao investir em um objeto, a pessoa pode
infundir ali maior sentimento daquele que o objeto comporta e a “ressaca” proveniente
do movimento para com ele reflete no indivíduo levando-o a aprofundar-se em si
mesmo, em sua própria consciência: “apenas o homem tem a faculdade de conhecer a
si mesmo, e isso pelo fato de que a ressaca daquilo que possui em excesso estimula
seu afã de se conhecer a fundo. [...] Essa efusão da consciência de sua personalidade
requer “algo mais” em que possa expressar-se” (Tagore, 2007, p. 30). Portanto, a
arte geraria um conhecer-se em contraposição ao ocultar-se que naturalmente ocorre,
por exemplo, nas obras de informação e nos tratados científicos. Por exemplo, para
Tagore:
Repetir o fato de que o sol é redondo e a água é líquida, ou que
o fogo queima, seria intolerável. Contudo, uma descrição da
beleza do amanhecer tem para nós um interesse eterno,
porque, nela, o que constitui o objeto de interesse perene não é
o fato de que amanheça, e sim a emoção que experimentamos
ao contemplá-lo (Idem, p. 33).

Para nós, leitores da Cecília cronista e poetisa, ela não só reconhece a


capacidade de Tagore de acionar essas emoções profundas que levariam ao
autoconhecimento (valor último da arte), como tentou afiliar-se a esse ideal artístico
com sua obra. Darcy Damasceno ao descrever a posição do livro Viagem, considerado
por Cecília livro inaugural de sua carreira poética, como exemplar sui generis do
modernismo brasileiro, nos dá o eco suficiente para comparação da lírica tagoreana e
a ceciliana:

Viagem estava não só dentro das linhas tradicionais, como


também aspirava a ser – e o foi – a primeira obra acima de
fronteiras que haja aparecido no modernismo. Cumpria-se nela
a preceptiva dos espiritualistas, quando reclamavam para a
renovação de nossas letras encadeamento com a tradição,
sustentáculo filosófico e intenção de universalidade.
Mais do que a temática explorada ou a revalorização do sistema
versificatório, influía nos equívocos de julgamento o tecido
filosófico da autora, que lhe determinava a ascética disciplina e
lhe propunha indagações essenciais, cujas respostas era forçoso
buscar. (Damasceno in Meireles, 1983, p. 18)

Dentre as questões filosófica que Cecília parece tentar responder em sua


produção, ela fala sobre sua realização pessoal quanto à natureza das coisas nos
apresentando um de seus postulados: “A noção ou sentimento da transitoriedade de
tudo é fundamento mesmo da minha personalidade. Creio que isso explica tudo
quanto tenho feito, em Literatura, Jornalismo, Educação e mesmo Folclore” (1983, p.
58).
Para Loundo, a sintonia entre o poeta e a poetisa fica explícita no tocante à
conceituação e realização da beleza estética:

Ao descrever, com a sensibilidade que só os parceiros de


destino possuem, os meandros da proposta estética de Tagore,
Cecília revela uma consciência surpreendente com relação às
implicações específicas que estruturam e potencializam
teleologicamente a fruição estética do “universal” enquanto
purificação ritual das emoções cotidianas. Em outras palavras,
numa sintonia surpreendente com a herança sânscrita do poeta
bengali, Cecília se afez, acuidadamente, à teleologia da rasa
(2011, p. 53).

Rasa, termo sânscrito, é traduzida como “experiência estética”, ou seja, “o


esforço do leitor qualificado de replicar em si mesmo essa experiência fundamental
enquanto degustação prazerosa, purificação estético-ritual das emoções cotidianas e
vivência do universal” (Idem, p. 48). Para Tagore, o mundo é o mundo das
aparências, isto é, não apreendemos o mundo como ele é de forma objetiva, mas o
degustamos de acordo com os “sucos gástricos” que possuímos na medida em que
encontramos alimentos próprios no mundo e compatíveis com os nossos sucos: rasa
seria o encontro entre pathos inerentes ao mundo que, selecionados, filtrados, pelas
nossas emoções, se compactuariam com o pathos pessoal, e, nessa correspondência,
um poema, por exemplo, se torna aquilo que estimula nossa emoção – “Ele [o poema]
nos traz ideias vitalizadas por sentimentos e dispostas a se incorporarem à substância
vital da nossa própria natureza. [...] Tudo o que suscita nossa emoção aprofunda o
sentimento que temos de nós mesmos” (Tagore, 2007, p. 32-33).
Cecília também considerava a arte (talvez especialmente a poesia) como
instrumento de formação do homem – formação no sentido mais amplo do termo,
muito além da instrução formal, do alfabetizar: “Acordar a criatura humana dessa
espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em
profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação – mas por uma contemplação
poética afetuosa e participante” (Meireles, 1994, p. 80).
Aquele a quem Cecília dedica a crônica “O Gurudev” (“o mestre divino”) foi, para
ela “o grande intérprete da sua terra, naquele momento [início do século XX], e do
que ela possui de mais alto e puro, em força delicada, poder espiritual, serenidade e
inspiração” (Idem, p. 163-164). Nota-se que Tagore foi um intérprete do repertório
indiano filosófico, espiritual, artístico para o mundo ocidental e especialmente para a
Cecília:

[...] a Rabindranath Tagore se chamou o Gurudev, o ‘Professor’


– não no sentido mais ou menos aleatório de mero transmissor
de conhecimentos, mas com o significado profundo de um
formador de almas, de um Poeta atuante, capaz de abrir para
os discípulos – ou simples leitores – caminhos largos e claros de
pensamento, de sentimento, de compreensão da vida, de
entendimento das nações, com o instrumento da Beleza, que
também não é mais que o esplendor da Verdade [...] se
recordarmos os poetas da Europa que se comoveram com sua
pessoa e com seus poemas, sentimos que ele foi o grande
intérprete de sua terra, naquele momento, e do que ela possui
de mais alto e puro, em força delicada, poder espiritual,
serenidade e inspiração (Meireles, 1980, p. 163-164).

Primeiro não-europeu a receber o prêmio Nobel, em 1913, tem suas obras


traduzidas para o português publicadas no Brasil a partir de 1915, de acordo com
Cecília (1961, p. 01). Dilip Loundo resume a importância da voz de Tagore na
literatura: “uma personalidade cuja importância no contexto continental da língua
bengali (a Índia e Bangladesh, em especial) assume proporções semelhantes ao papel
desempenhado por um Shakespeare, por um Goethe, por um Cervantes, ou por um
Machado de Assis” (2011, p. 46). Para Cecília:
Por suas origens, por seu ambiente, por sua formação, por seu
destino de artista, caberia a Tagore essa importante missão de
fascinar o mundo: traduzidos nos mais diversos idiomas, seus
versos animam leitores desconhecidos, servem de alimento
espiritual a pessoas que nem o conheceram e, por mais que
estejam vivendo de suas palavras, muitas vezes nem sabem
muita coisa a respeito de sua vida, de sua pessoa, de seus
desígnios artísticos (Meireles, 1980, p. 150-151).

Diferentemente dela, que, pelo contrário, não só o conhecia, como trabalhou em


prol de divulgar sua produção: responsável pela organização do volume de
homenagem ao laureado no Brasil pelo seu centenário, em 1961, apresenta uma
breve biografia, um histórico da introdução e abrangência da obra tagoreana em
português aqui, e traduções de excertos de textos do poeta com traduções de diversos
indivíduos.
No Brasil, Cecília, que “poderia ser apontada como uma excepcionalidade rara no
continente da América Latina no que tange à profundidade de seu conhecimento da
obra de Rabindranath Tagore” (Loundo, 2011, p. 50), nos conta que a leitura dos
escritos de Tagore se intensificou na década de 1920, pelo menos entre aqueles
escritores que “se interessavam pelo aspecto espiritual da poesia”, ou para “os que se
preocupavam com a formação do “homem interior” (Meireles, 1961, p. 02).
Dentre as obras tagoreanas, Cecília traduzirá a peça “O carteiro do rei” (“The
post office”), encenada no Rio,3 em 1949, o romance Çaturanga e uma série de
poemas intitulada “Puravi”, dedicados à Madame Victoria Ocampo,4 publicada no
volume em homenagem ao poeta pelo Ministério da Educação e Cultura, organizado
por Cecília, em 1961.
Leitora assídua dos escritos de Tagore, primeiramente, dedicará ao poeta, aos
22 anos de idade, poema – ausente de sua Poesia Completa (2001) – “Diviníssimo
poeta”.5 Décadas depois, escreverá “Cançãozinha para Tagore”, no livro Poemas
escritos na Índia, em 1953, após viagem à Índia. Além disso, produzirá diversas
crônicas em que o pensador indiano será tema, como “Rabindranath, pequeno
estudante”, “Canções de Tagore”, “O Gurudev”.

3
Encenação que contou com a filha de Cecília, Maria Fernanda, no elenco, no papel do protagonista, o
menino Amal.
4
Victoria Ocampo hospedou Tagore em Buenos Aires, durante sua viagem à América do Sul, em novembro
de 1924 (cf. SILVA, 2012, p. 05).
5
Poema publicado na revista Para todos (Rio de Janeiro, n. 262, p. 49, 22 dez. 1923), conforme declaração
realizada por Dilip Loundo (informação verbal, em maio de 2012, apud SILVA, 2012, p. 05).
Cecília nos revela que, se poetas como Tasso da Silveira, Murilo Araujo,
Francisco Karam e Emílio Moura “apresentam em seus versos afinidades com a
sensibilidade do grande poeta da Índia”, da sua parte, “ou pelo contacto que desde
cedo mantínhamos com estudos orientais, ou por qualquer disposição peculiar,
freqüentemente eliminamos algum rascunho em que porventura descobríssemos eco
ou reminiscência de Tagore” (Meireles, 1961, p. 03). Por essa asseveração, nota-se o
profundo e longo diálogo entre Cecília e Tagore, a ponto dessa voz oriental ressoar em
seus próprios escritos: um doce eco do que a inspirou, a cativou de modo a fazer
parte de seu pensamento e, então, trespassar em sua própria produção.
Só podemos cogitar as emoções de Cecília e se deparar com alguém que,
primeiramente, teve uma infância em “silêncio e solidão” que serviu como vale
encantado onde suas primeiras experiências líricas se manifestam. Essa infância
mágica, iniciatória é aquela cantada, por exemplo, na seção “Dias felizes”, de Mar
Absoluto e outros poemas, em “Papeis”, de Dispersos, e em Olhinhos de Gato. A
infância em que o tapete oriental sobre o qual ouvia histórias de um tempo e local
longínquos, as louças que lhe inspiravam anedotas, os livros que foram desde sempre
lúdicos e exerceram fascínio sobre ela, os seres diminutos que lhe ensinaram a
imensidão da vida dispersa, a transitoriedade e a compaixão – tudo que
posteriormente fluiria dela em lírica, em recordação amorosa.
Semelhantemente Tagore, em suas memórias, nos conta, entre outras coisas,
que ao aprender a ler a primeira frase, “A chuva crepita e a folha palpita”, teve seu
primeiro encantamento poético: “Quando penso no prazer que essas palavras me
causaram, compreendo o papel que a rima representa na poesia” (Meireles, 1961,
s/p). Ou que, ao ouvir histórias, “o que prendia o pequeno ouvinte, o que lhe sugeria
imagens maravilhosas, era breve música das rimas e o sortilégio do ritmo embalador”.
Sua infância solitária e silenciosas foi aquela em que, enclausurado num círculo
de giz feito por um servo, em um cômodo da casa, passava os dias observando um
lago e seus visitantes banhistas, as variações da luz, das estações, das plantas:

Fechado no meu círculo, junto à janela, eu passava horas


inteiras a contemplar esse quadro pelas frestas das venezianas
abaixadas, como se estivesse diante de um livro de figuras que
nunca cansava e ver. [...] Quando a solidão reinava no lago,
minha atenção se desviava para as sombras movediças
projetadas pela enorme figueira. Várias de suas raízes
adventícias desciam-lhe pelo tronco e, entrelaçando-se,
formavam em torno da árvore um esquisito emaranhado, que
se me afigurava cheio de mistérios, como uma visão de sonho
que fugisse às leis comuns – vestígio de um estranho mundo
desaparecido (Meireles, 1961, s/p).
A poesia para ambos parece ter surgido da contínua contemplação do mundo
combinada com a imaginação criativa aguçada nestes longos momentos de solidão
silenciosa. Para Tagore, seu exercício criativo de configurou como a imaginação do
mendigo que bate à porta do palácio enquanto sonha com os tesouros e prazeres
ocultos pelos muros:
Das profundezas do céu resplandecente de sol, chega-me aos
ouvidos, o grito de um milhafre. Eleva-se, da ruazinha contígua
ao “busti” de Singhi, ao longo das coisas adormecidas à sesta, o
pregão sonoro do vendedor de braceletes – Chai, choori, chai!...
– e todo o meu ser se evade para um mundo que desconheço
(Meireles, idem).

Vê-se como o ócio contemplativo permitiu que o pequeno Tagore acionasse sua
imaginação e criasse mundos, personagens e eventos que mais tarde povoariam sua
produção tão diversa.
Cecília, semelhantemente, em Olhinhos de Gato, observa, escuta, cria:

Na cadeirinha de vime continuava a menina a olhar para a rua e


a ver o mundo. Diziam-lhe: “Entra, que já está muito
mormaço!” Ela se levantava e arrastava a cadeira, as ciganas, o
cego, o perna-de-pau. Andava com eles por dentro da casa.
Conversava com eles. E fazia-os conversar uns com os outros.
[...]

O mundo inventariado pela contemplação infantil será amorosamente recolhido


para ressurgir posteriormente em sua lírica:

V
Mas por que sempre lembrar essas coisas longínquas?
A verdade, porém, é que há uns dias inesquecíveis,
uns fatos inesquecíveis, dentro de nós.
Tudo o mais, que vivemos, gira em redor deles.
Toda uma vida se reduz, afinal, a umas poucas emoções,
por muitos anos que vivamos,
apesar de viagens, experiências, realizações, sonhos, saber...
Vivemos tudo – o humano e universal –
nuns pequenos instantes, obscuros e essenciais.

Todo os dias assim, de chuvinha fina,


penso em velhas cenas da infância [...]

Tudo isso vem à minha memória, como visitantes inesperados.


Interrompo o que estou fazendo, tenho imensa pena de mim.
Depois, penso em velhos poemas chineses, curtos e leves.

Sou como quem mira uma antiga coleção de cartões-postais.

Setembro, 1955
(“Papéis”)
Nesses versos, como em muitas outras poesias, Cecília apresenta uma lírica
nos moldes teóricos de Staiger: sua poesia surge de uma inspiração subjetiva, senão
biográfica; de uma recordação. A recordação emerge de um sentimento, uma emoção
recorrente, a se dá novamente e, então, “um acontecimento passado de há muito
torna-se subitamente perceptível; o coração bate e finalmente a recordação instiga a
memória [...]” (1975, p. 56): “Todo os dias assim, de chuvinha fina,/penso em velhas
cenas da infância”.
Para ele, a criação lírica é íntima: “A lírica deve mostrar o reflexo das coisas e
dos acontecimentos na consciência individual” (Idem, p. 57): “Tudo isso vem à minha
memória, como visitantes inesperados”. Na recordação (e na lírica) não há
distanciamento entre o eu e a coisa rememorada (“um-no-outro”), apenas o intervalo
temporal entre o evento e o momento da inspiração. Porém, ao celebrar um momento
novamente, nem mesmo o tempo existe: torna-se o evento aquele que retorna e é,
assim, revivido; torna-se o sempre presente: “Mas por que sempre lembrar essas
coisas longínquas?/A verdade, porém, é que há uns dias inesquecíveis, /uns fatos
inesquecíveis, dentro de nós./Tudo o mais, que vivemos, gira em redor deles”.
Dessa forma, pensamos ser uma limitação na análise da poética ceciliana,
principalmente ao se tratar de poemas mais líricos, isto é, mais subjetivos ou
autobiográficos, acatar a dicotomia entre o eu poético, a pessoa de Cecília, e o eu-
lírico.
Isso não nos parece se reservar apenas à Cecília, mas a Tagore também. De
forma semelhante, em ambas produções pode-se puxar fios entre relatos (eventos)
em textos em prosa (crônicas, memórias, cartas) e poemas: raptos afetivos
transfigurados em palavra; são momentos consagrados pela recordação – “[...] o
êxito de uma festa depende mais do que nos vem do coração, do que de fatores
externos”, nos adverte Tagore em suas memórias (Meireles, 1961, s/p).
Mas para se tornar matéria recordatória de textos futuros, os momentos
precisam ser apreendidos, recolhidos e, como temos visto até aqui, esse levantamento
involuntário, inconsciente de instantes consagrados, como dia Octávio Paz (1996), é
realizado predominantemente pelo sentido da visão, pela contemplação. É relevante
observar aqui que algo tipicamente oriental quanto a isso parece ser comum em
Cecília e Tagore: a contemplação irrestrita da vida, a neutra absorção dos eventos
independente de sua natureza positiva ou negativa. Para Loundo:

A contemplação ativa dos destinos paralelos de personagens


indianos de “carne e osso”, em especial Mahatma Gandhi
(1869-1948) e Rabindranath Tagore, deu-lhe [à Cecília]
indicações seguras da pertinência e da correção de uma lírica
eminentemente filosófica, marcada por uma ascese espiritual
que objetivava a positividade do conhecimento do mundo,
jamais a evasão do mesmo. De Tagore, em particular, ela
herdou indicações precisas sobre a exequibilidade de um
verdadeiro ascetismo enquanto contemplação lírica das “belezas
e crueldades” do mundo. Se isso é correto, o lirismo filosófico
de Cecília Meireles constitui uma expressão das mais
significativas de uma presença orgânica – e porque não dizer
antropofágica? – do pensamento indiano na América Latina. E,
quanto mais orgânica, mais difícil é reconhecê-la a olhos nus.
Suas manifestações mais explícitas estão longe de esgotar a
narrativa de um diálogo que permeia toda a sua obra (2011, p.
51).

A poesia ceciliana, apesar de diversa em motivos, é aquela que abarca os


opostos, os extremos, sem hierarquias ou preferências: tudo é passível de ser
transposto em lírica – “a capacidade de perscrutar singularmente o mundo físico,
captando neste o rasgo imperceptível, a qualidade oculta” (Damasceno, 1983, p. 20).
Dentre seu vasto repertório temático encontramos seres diminutos, flores, paisagens,
objetos pessoais, domésticos, banais, e, ao mesmo tempo, cadáveres, sombras, a
noite, os fantasmas, etc.6
O aqui e agora, independente de sua intrínseca qualidade para a generalizada
noção maniqueísta das coisas, lhe é bem-vindo: nada é rejeitado e tudo se apresenta
em relação a algo mais, em contínua conexão e mutação. Sua lírica é a das
transformações, e não a dos finais, das extinções: há um ciclo em que as coisas estão
inseridas; uma roda posta a girar, na qual tudo está inter-relacionado, e “suas
notações da natureza são esboços de quadros metafísicos, com objetos servindo de
signos de uma organização espiritual onde se consuma a unidade do ser com o
universo” (Drummond, 1964, apud ).
Exatamente nesta noção de unidade universal nos parece transparecer um dos
diálogos de Cecília com o Oriente, com Tagore e outras vozes do Leste. Um dos
princípios filosóficos básicos do acervo védico indiano, em especial nas Upanishads e
na Bhagavad-gita, os textos mais populares, abrangentes e sintéticos desta tradição,
é a concepção de que tudo se origina, é mantido, e contém uma realidade sobre-
humana, metafísica, que se centraliza na Pessoa Suprema:

6
“A pluralidade dos assuntos diz bem do interesse humano da autora e contraria juízos nem sempre
decorrentes de acurado exame da obra poética; do mesmo modo, as mais humildes manifestações da vida, os
seres mais diminutos, os episódios mais singelos são motivo de elevada reflexão por parte de quem,
sustentado por exigente filosofia, busca em tudo uma lição de vida” (DAMASCENO, 1983, p. 16).
Apreendendo isto, jamais cairás em ilusão, ó Pandava. Por isto
verás que, sem exceção, todos os seres repousam no Eu
[Atman], e, portanto, em mim [Pessoa Suprema] (BG 4.35).7
Não há mais nada superior a mim, ó Mahabaho. Sobre mim,
todo o universo repousa, como pérolas encetadas em um
cordão (BG 7.7).
Eu sou morte, que tudo aniquila, e sou o início de tudo que há
de existir (BG 10.34)

Este princípio implica ver todos os seres, toda manifestação material, toda
partícula atômica como sagrados, e, ao mesmo tempo, como pessoal, individual,
singular: tudo é um e ao mesmo tempo único. Tagore explica isso apresentando um
analogia entre o conhecimento das ciências naturais e o filosófico oriental: para o
primeiro, o importante é encontra um princípio impessoal de unificação, ou seja,
busca-se generalizações simplificadoras, como as categorias e espécies, enquanto
que, na filosofia oriental (e, por conseguinte, na arte por meio da visão de mundo),
busca-se a particularidade, a personalidade, a alma das coisas. Mais especificamente,
quanto ao pensamento:

O Ocidente talvez creia na alma do Homem, mas, na realidade,


não crê que o universo tenha alma. Essa, porém, é a crença do
Oriente, e sua contribuição mental para a humanidade está
penetrada por essa ideia. É por isso que nós, no Oriente, não
necessitamos descer aos pormenores e neles nos obstinarmos;
porque o mais importante é essa alma universal que manteve
os sábios orientais abstraídos em profunda meditação, ao passo
que os artistas se lhes igualavam em criações (Tagore, 2007, p.
40)

Dessa forma, se tudo é permeado de uma substância espiritual, a Beleza, o


Poder, a Verdade pode ser apreendida, intuída, nas coisas mais simples, em todos os
seres, no cotidiano, orquestrados conjuntamente pelo ritmo e harmonia universais: os
deuses dançam e cada passo (no universo) é uma dança e cada palavra, uma canção
(ditos populares indianos).
Cecília, como Tagore, apreendeu esta noção e a permitiu fluir em sua lírica:

O conjunto de seres e coisas que latejam, crescem, brilham,


gravitam, se multiplicam e morrem, num constante fluir,
perecer ou renovar-se, e, impressionando-nos os sentidos,
configuram a realidade física, é gozosamente apreendido por
Cecília Meireles, que vê no espetáculo do mundo algo digno de
contemplação – de amor, portanto (Damasceno, 1983, p. 17).

7
As citações da Bhagavad-gita serão feitas do seguinte volume em inglês, com traduções nossas para o
português: BHAGAVAD-GITA (The beloved Lord’s Secret Love Song). Translation Graham M Schweig.
New York: HarperCollins Publ., 2007.
Visto as afinidades, coincidências e convívio afetuoso da Cecília para com
Tagore, nos é notória a inter-relação dos pensamentos e preceitos especialmente
quanto à educação e à arte (à literatura, mais especificamente) do “Sol” e da “Pastora
das nuvens”.

Referências Bibliográficas
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Çaturanga. Tradução e apresentação Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Delta, 1962, p.
53-76.
BHAGAVAD-GITA (The beloved Lord’s Secret Love Song). Translation Graham M.
Schweig. New York: HarperCollins Publ., 2007.
BLOCH, Pedro. Cecília Meireles. In: Revista Manchete, Rio de Janeiro, n. 630,
16/05/1964, p. 34-37.
DAMASCENO, Darcy. Cecília Meireles: o mundo contemplado. Rio de Janeiro: Orfeu,
1967.
______. Poesia do sensível e do imaginário. In: MEIRELES, Cecília. Flor de poemas.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p. 09-40.
GOUVÊA, Leila C. V.-B. Pensamento e “lirismo puro” na poesia de Cecília Meireles. São
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LOUNDO, Dilip. Cecília Meireles e a Índia: viagem e meditação poética. In: GOUVÊA,
Leila V. B. (org.). Ensaios sobre Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas, 2007, p. 129-
178.
MEIRELES, Cecília. O que se diz e o que se entende. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1980.
MOOKERJEE, Girija K. Ensaio sobre Rabindranath Tagore. In: TAGORE, Rabindranath.
Çaturanga. Tradução e apresentação Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Delta, 1962, p.
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PAZ, Octávio. Signos em Rotação. 3ª ed. São Paulo: Ed. Perspectiva S. A., 1996.
SEN, Sabujkoli. A religião de Tagore. In: Índia perspectivas, vol. 24, n. 2/2010, p. 60-
65.
SILVA, Jacicarla Souza da. Cecília Meireles e Victoria Ocampo: (des)encontros no Cone
Sul. 2º CIELLI - Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários/ 5º CELLI -
Colóquio de Estudos Linguísticos e Literários [recurso eletrônico] / coordenação geral
Alice Áurea Penteado Martha. Maringá: UEM-PLE, 2012. Disponível em:
http://anais2012.cielli.com.br/pdf_trabalhos/721_arq_1.pdf. Acessado em fev. 2013.
SMITH, Huston. As religiões do mundo. Nossas Grandes Tradições de Sabedoria.
Tradução Merle Scoss. São Paulo: Cultrix, 2001.
TAGORE, Rabindranath. Meditações. Tradução Ivo Storniolo. São Paulo: Idéias &
Letras, 2007.
1

SANTIFICAÇÃO DO CORPO E HONRA:


A IGREJA PENTECOSTAL DEUS É AMOR EM FOCO

Jean-Claude Rodrigues da Fonseca1

Resumo

Partindo do método bibliográfico e da observação documental, a presente pesquisa


objetivou compreender como a noção da “santificação do corpo” relaciona-se com a
elaboração da honra dos fiéis da Igreja Pentecostal Deus é Amor (IPDA). A devoção
cotidiana da IPDA gira em torno da noção de santificação do corpo, que, por seu turno,
necessita a todo custo ser reprimido, separado das tendências da “natureza humana”
decaída. Assim, as aspirações do fiel estão voltadas não para o aqui, mas para o além-
celestial. Mediante a observância irrestrita e contínua aos dogmas institucionais, o fiel
adquire, portanto, a devida credencial de servo do Deus altíssimo, concorrendo ao
exercício de determinadas funções na hierarquia eclesiástica.

Palavras-chave: Santificação, Corpo, Honra, Pentecostalismo.

Abstract

With a bibliographic method and documented observations, the present qualitative


research has as its objective to understand how the notion of the "sanctification of the
body" relates to the notion of honour among the faithful from Igreja Pentecostal Deus é
Amor (IPDA). Daily devotional life among the IPDA centres on the notion of sanctification
of the body, which in turn, must at all costs be suppressed, separating the tendencies of
the fallen "human nature". As such, the aspirations of the faithful are turned not to the
here and now, but to the celestial beyond. By means of unrestricted, continuous
observation of institutional dogmas, the faithful acquire, therefore, the deserved
credential of servant of God almighty, eligible to apply to exercise determined functions
within the ecclesiastical hierarchy.

Keywords: Sanctification, Body, Honour, Pentecostalism.

Breve contextualização histórica e peculiaridades da Igreja Pentecostal Deus é


Amor

Partindo da análise do discurso normativo da Igreja Pentecostal Deus é Amor


(IPDA)2, formalizado em seu Manual Doutrinário, este paper versa sobre a “santificação
do corpo” e as implicações desta noção sobre a construção da honra dos fiéis da referida
instituição eclesiástica.
O fenômeno pentecostal brasileiro tem mais de cem anos e possui milhões de
adeptos, englobando dezenas de centenas de denominações – organizações religiosas de
todos os portes, inseridas nos mais diversos segmentos sociais, especialmente nas
camadas menos favorecidas, e ramificadas em todo o território nacional. Templos,
modestos ou suntuosos, se espalham rapidamente pelos bairros e esquinas; o discurso
propagado nos púlpitos, nas praças e, notadamente, nos meios midiáticos reconfigura
paulatinamente o quadro religioso nacional. Realidade verificada, inclusive, a partir dos
dados do Censo do IBGE 2010, sinalizando que a população evangélica chegou a 22,2%,
dentre os quais 60,0% se declararam de origem pentecostal. Por estas e outras razões,
não menos importantes, o pentecostalismo avança a passos largos como um dos grandes
desafios aos estudos das Ciências Sociais.

1
Mestre em Antropologia Social pela UFRN e docente da Faculdade de Excelência Educacional do Rio Grande
do Norte (FATERN) e da Faculdade de Natal (FAL).
2
A Igreja Pentecostal Deus é Amor será citada, a partir de agora, por meio da sigla “IPDA”, adotada pela própria
instituição.
2

O termo “pentecostalismo” tem sua origem numa festa religiosa anual judaica
designada de Pentecoste ou Festa das Semanas, que ocorria cinquenta dias após a
Páscoa, para comemorar a colheita dos cereais. A partir da Diáspora (dispersão dos
judeus da Palestina para outras partes do mundo) essa festividade passou a memorar o
recebimento do Decálogo ou da Torah (CHAMPLIN; BENTES, 1991, p.202). Já para os
cristãos pentecostais, tal celebração tornou-se o marco histórico da descida do Espírito
Santo sobre a igreja e da manifestação dos dons de glossolalia (o “falar em línguas”
estranhas), em cumprimento à palavra de Cristo.
O pentecostalismo foi a última expressão “protestante” a se instalar no Brasil.
Freston (1993, p.64-95) identifica basicamente três ondas ou fases distintas dessa
implantação. A primeira, conhecida como pentecostalismo clássico, compreendida entre
1910-1950, coincidiu com a expansão mundial do pentecostalismo e caracterizou-se pela
ênfase na glossolalia. Neste período surgiram: a Congregação Cristã do Brasil (1910); a
Missão da Fé Apostólica, que seis anos e meio depois (1918) mudou seu nome para
Assembleia de Deus e a Igreja de Cristo no Brasil (1932). A segunda fase, entre 1950 e
1970, distinguiu-se da anterior por estar centrada na cura. Passados mais de quarenta
anos, surgiram mais três grandes grupos pentecostais: a Igreja do Evangelho
Quadrangular (1951), a Igreja Evangélica Pentecostal o Brasil para Cristo (1955) e,
finalmente, a Igreja Pentecostal Deus é Amor (03 de junho de 1962), sendo esta a mais
rígida de todas, tendo como fundador o paranaense David Martins Miranda. A última fase
de expansão pentecostal, também nomeada de neopentecostal ou de pentecostalismo
autônomo3, iniciou-se no final dos anos 70, crescendo e se fortalecendo no decorrer das
décadas de 80 e 90, cuja ênfase estava centrada no exorcismo (ou na libertação das
forças malignas), reclamando, igualmente, um lugar para o fiel no mundo do consumo de
“bens místicos”4 e materiais, evidenciado em sua teologia da prosperidade5 (surgindo no
fundamento ético desta nova fase). A partir deste período, destacam-se a Igreja
Universal do Reino de Deus (1977) e a Igreja Internacional da Graça de Deus (1980)6.
Souza (2004, p.20-21) corrobora com Freston ao declarar:

[Em princípio] o pentecostalismo desenvolveu a busca dos


carismas do Espírito Santo como sendo recursos indispensáveis
para a igreja. Depois, a ênfase foi direcionada para a cura e a
libertação como efeitos da operação do Espírito Santo. Nesse
período, foram notáveis as grandes concentrações públicas de cura
divina acompanhadas de sessões de exorcismo. Já o
pentecostalismo da década de 80 adicionou ao leque variado de
“prestação de serviços”, a prática advinda da crença de que a
operação do Espírito Santo liberta da pobreza, da miséria e da
opressão demoníaca que provocam distúrbios na vida das pessoas
e nas relações sociais.

3
Neopentecostalismo foi um termo empregado por Mendonça e Mariano, e pentecostalismo autônomo utilizado
pelo Centro Ecumênico de Documentação Informação – CEDI (apud CAMPOS, 1999, p.51). Ainda sobre o
Neopentecostalismo, Mariano (1999, p.33) declara que o prefixo “neo mostra-se apropriado [...] por remeter à
sua formação recente como ao [seu] caráter inovador”.
4
Lembrando o conceito de “mercado de bens simbólicos”, desenvolvido por Bourdieu (1996, p.157-197).
5
A teologia da prosperidade também pode ser denominada de “ideologia do sucesso”, na qual o fiel busca a
superação dos males e uma vida melhor não no além (no céu), mas no aquém (na terra, no aqui e agora). “O que
interessa é a vida antes da morte, neste mundo. O que se busca é a ‘bênção’. Deus é o poder mágico que, se
corretamente manipulado, conserta os estragos que o Diabo faz na vida de cada um” (ALVES, 2005, p.12).
6
Uma relevante informação diz respeito à produção intelectual na América Latina sobre pentecostalismo e
carismatismo, apresentado por Campos (1999, p.32). Antes de 1950 existiam apenas treze pesquisas; na década
de 70 já eram 191; e entre as décadas de 80 e 90 o número saltou para 457 trabalhos acadêmicos, decorrentes da
importância e visibilidade social de tal fenômeno.
3

Segundo a própria IPDA, atualmente, ela conta com mais de 11 mil igrejas
espalhadas pelo Brasil e em mais de 136 países. Em 01 de janeiro de 2004, a referida
igreja inaugurou, na capital paulista, a sua Sede Mundial, denominada de “Templo da
Glória de Deus”, com capacidade para mais de 60 mil pessoas. Seus principais meios de
comunicação são o rádio, com a programação intitulada de “Voz da Libertação”
(possuindo grande penetração entre as comunidades mais carentes) e a internet; já o
uso da televisão é terminantemente proibido. A face pública da IPDA, ainda, granjeia
notoriedade através dos seus projetos sociais, via Fundação Reviver (1994); a
instituição, também, iniciou o Projeto Anjos da Madrugada (1999) – assistindo moradores
de rua – e mantém o Projeto Aldeia Reviver (2000), onde abriga crianças desamparadas.
Porém, é a sua moralista e ascética visão doutrinária que aguça profundamente a
atenção, mormente, no que tange aos preceitos ligados à santificação do corpo e, por
seu turno, às decorrências desta noção sobre a elaboração da honra de seus fiéis. É a
partir destes ensinamentos que a presente reflexão se desenvolve.

Santificação do corpo e honra

Há um acentuado contraste entre a mentalidade do pentecostalismo da segunda e


terceira fase, embora esta tenha aprimorado algumas características daquela7.
Referindo-se a última fase, Souza (2004, p.80, 81) declara:

Amparadas em padrões contemporâneos de consumo [as


instituições eclesiásticas põem] no centro da questão uma
redefinição de lugares da alma e do corpo e afastam-se
sensivelmente daquela visão mítica que transfere para o pós-
morte as maiores aspirações do fiel [para] extrair o máximo da fé
em termos de benefícios revertidos para a melhor fruição possível
do mundo temporal. [Nessa] nova ordem de valores [...] o corpo
tem preeminência em relação aos interesses da alma.

Por outro lado, as igrejas da segunda fase (como no caso da IPDA) optaram,
prioritariamente, pela repressão do corpo – concebida como sinônimo de santificação8.
Então, o corpo continua desprezível por ser o receptáculo e o portador “de toda sorte de
males, o espaço da transgressão por excelência” (SOUZA, 2004, p.81). Ainda que a
terceira fase do pentecostalismo esteja em plena efervescência – tendo como
representante máximo a conhecida e polêmica Igreja Universal do Reino de Deus (IURD)
– os efeitos da segunda fase ainda caminham concomitantes, isto é, conservam-se
cristalizados e patentes no ethos religioso da IPDA. Noutros termos, a sua liderança
eclesiástica continua doutrinando o fiel a estabelecer uma relação de conflito e rejeição
ao próprio corpo frente ao mundo “carnal e pecaminoso”. Então, como o “corpo nada
mais [representa] do que um problema [...] a melhor maneira de resolvê-lo [é] mantê-lo
sob permanente disciplina” (SOUZA, 2004, p.81). Enquanto no pentecostalismo mais
recente há uma revalorização do corpo, na fase intermediária ele continua suspeito e
hostilizado. Inclusive, Cavalcanti (2008, p.48) ressalta que essa oposição tem uma
origem mais antiga:

Desde que Alexandre o Grande chegou à Índia, a Grécia foi


influenciada por conceitos emanados do bramanismo, inclusive o

7
Por exemplo, Freston apud César (2000, p.141,142) destaca que “vários elementos do culto da [IPDA] são
antecipações da Igreja Universal do Reino de Deus”: “as obreiras uniformizadas, os exorcismos na frente, as
entrevistas com os demônios”, dentre outros.
8
Esta questão será discutida adiante.
4

dualismo entre uma matéria “má” e um espírito “bom”, o que abre


caminho para os excessos ora da permissividade, ora de
repressão. O pensamento cristão foi fortemente influenciado por
esse dualismo.

Já no primeiro século da era cristã, a filosofia grega gnóstica disseminou o referido


pensamento dualista entre as igrejas da época, postulando que toda matéria – incluindo
a “carne” (corpo humano) – era uma emanação deformada, repugnante, caracterizada
como pecaminosa, portanto distante dos propósitos divinos. Assim, o “mundo seria
regido pelo embate de duas forças cósmicas iguais, porém opostas entre si, o bem e o
mal” (LOPES, 2001, p.72). Porém, esse dualismo foi veementemente combatido pelos
primeiros líderes cristãos. Paulo, um dos pais apostólicos do cristianismo, contrariou o
gnosticismo utilizando o termo grego sarx (carne) – cujo significado é “natureza9 humana
não regenerada” – algo relacionado a uma dimensão imaterial, contudo traduzido em
atos imorais ou devassos, muitas vezes, instrumentalizados pelo corpo físico. Agora, é
preciso observar que o mesmo apóstolo distinguiu as más ações do próprio agente10.
Posteriormente, essas ideias também foram absorvidas por Mani, no século III, o
fundador daquilo que passou a ser denominado de “maniqueísmo”, sendo igualmente
refutado por “Orígenes e depois por Agostinho” (LOPES, 2001, p.72).
Esse pensamento dualista, recorrente ao longo da história cristã, encontra lugar
comum em quase toda a trajetória pentecostal – constatação, igualmente, evidenciada
em nosso recorte analítico. Nesta perspectiva, Souza (2004, p.82) assevera que o “corpo
apresenta-se primeiramente como entidade que precisa ser exorcizada”. E acrescenta:

Distante de Deus, o corpo é o locus do mal; este o destrói e o


submete a privações, por isso precisa ser expurgado, a fim de que
o corpo desocupado seja posteriormente reocupado pelo bem.
Nesse particular, a doutrina pentecostal anula a possibilidade dos
seres humanos como entidades livres e donas de si. Os indivíduos
não têm posição própria. Tudo o que fazem está sob a influência
de Deus ou do diabo. [...] Segundo tal visão doutrinária, aqueles
que não professam a fé pentecostal ou os que a exercem
deficientemente estão sob o domínio do mal. Em consequência
disso, a desapropriação do corpo é o estado número um para os
que se iniciam no rito pentecostal – nesta etapa, o corpo é
concebido como que estando sob prisões malignas e das quais
deve ser liberto como condição do usufruto da bênção divina
(SOUZA, 2004, p.82).

Diante do exposto, urge observar que os preceitos moralistas e doutrinários da


IPDA entram em contradição com o próprio pensamento cristão por ela reivindicado,
dentre os quais, a noção de igreja e santificação, sobretudo, no que tange ao tratamento
dado ao corpo e a sua pretensa (não) relação com o mundo (material).
O vocábulo “igreja” (do grego Eclésia) denota a ideia de um grupo que é chamado
para fora. Originalmente, “era apenas uma convocação dos cidadãos de uma cidade
grega fora de suas casas pela trombeta do arauto para reuni-los em assembleia”
(TAYLOR, 1991, p.68). Portanto, o sentido mais adequado para igreja é “assembleia do

9
Tema não menos controverso para as Ciências Sociais. No que respeita ao propósito deste paper, cabe aqui a
elucidação de que essa proposição está intimamente ligada ao pensamento cristão.
10
No tocante às discussões bíblico-teológicas, ver as cartas atribuídas ao apóstolo Paulo: 1ª. Coríntios 7 e
Gálatas 5 – que discutem a noção cristã de “carne” (sarx). BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução: João
Ferreira de Almeida. Deerfield, EUA: Vida, 1995.
5

povo” – este era o entendimento cristão. Não obstante, a concepção pentecostal de


mundo perpassa a ótica “dúplice aplicada ao cosmo em geral: tudo, inclusive o corpo, se
insere ou na ordem do mal ou na ordem do bem” (SOUZA, 2004, p.82). Isto levou o
pentecostalismo a reinterpretar o conceito de igreja não, apenas, como uma congregação
ou ajuntamento solene de pessoas, mas, principalmente, como uma entidade
divinamente chamada para fora do mundo material, pois este se conserva sob a
influência maligna. Visto como campo das tentações e de toda sorte de males, em nome
da fé, o mundo deve ser hostilizado pelos fiéis. Exemplos de como isto ocorre (em
termos práticos) estão registrados adiante no Quadro Síntese do Manual Doutrinário da
IPDA – um conjunto rígido de dogmas ou ordenanças procedente de sua cúpula
eclesiástica.
Além da releitura conferida ao termo igreja, tanto a IPDA, como o pentecostalismo
em geral revestiram o vocábulo “santificação” com uma nova acepção. Mesmo que
santificação (do grego hagiasmós) signifique “separação [do uso profano] e consagração
para a possessão divina” (TAYLOR, 1991, p.9), os cristãos primitivos entendiam haver,
igualmente, um imperativo para que, a partir dos novos valores adquiridos, a pessoa
santificada se tornasse um agente capaz de influenciar benéfica e positivamente o seu
antigo contexto social. Entretanto, para o pentecostalismo oriundo da segunda fase, em
hipótese alguma o fiel deve retornar ao mundo. Tal visão termina por suscitar posturas
fundamentalistas, justificando o isolamento ou a clausura pessoal como condição
essencial para a manutenção da vida santificada.
A respeito das prescrições pastorais da IPDA, esta reflexão se reporta ao tipo ideal
de dominação carismática de Weber (2002), isto é, em virtude da crença atribuída à
vocação espiritual do líder religioso, a sua palavra é decisiva no posicionamento da
clientela da fé. A orientação da liderança tem conotação divina, pois o pastor é
reconhecido como o “anjo da igreja”11, de modo que ele jamais deve ser questionado. Tal
realidade pode ser exemplificada com o principal testemunho do missionário David
Miranda, presidente da IPDA, exibido no site oficial desta instituição12:

De repente, uma voz se fez ouvir [...] “Meu servo não temas as
lutas, pois te escolhi e grande obra tenho a fazer por teu
intermédio. Muitos se levantaram contra ti, mas não prevalecerão.
Aqueles que forem contigo, Eu serei com eles, mas aqueles que
forem contra ti, Eu serei contra eles [...] Eu enviarei povos e
nações para que, através de ti, eles sejam curados por Mim”.

O quadro a seguir é uma síntese do Manual Doutrinário da IPDA. Refere-se ao que


a liderança pastoral sinaliza como pecado. Também, são postuladas suas respectivas
punições e os dogmas alistados à noção de santificação.

PECADO PUNIÇÃO SANTIFICAÇÃO

Não usar gravata e O membro será impedido de fazer uso da Vestir paletó e
paletó. palavra. gravata.

Vestir roupa
Cobrir a nudez na igreja com avental ou
escandalosa, Usar roupa decente.
pano.
bermuda ou short.
Usar uniforme sem Uniforme
aprovação do modelo Caso insista, será afastado da atividade. respaldado pela
e tecido. liderança.

11
Expressão típica do ethos cristão. O representante legal, dotado da graça, carismas e autoridade divinas é o
pastor; portanto, desobedecê-lo implica em pecar contra o próprio Deus.
12
<http://www.ipda.org.br>.
6

Ser batizado e orar


Querer participar de
durante 3 meses
um grupo de música Não será integrado no referido ministério.
(no mínimo, 4 dias
sem consagração.
por semana).
Solteiros, separados e viúvos: 2 anos de
prova (exige-se várias privações,
penitências ou ritos de purificação);
casados: 3 anos de prova; noivos: ficarão Vigiar para não cair
Adultério.
fora da comunhão (embora presente na em tentação.
igreja, fica impedido de participar
diretamente das liturgias) e 1 ano de
prova após o casamento.
Membro: 5 anos de prova; obreiros e
obreiras (líderes): 10 anos de prova,
Vigiar para não cair
Homossexualismo. perdendo definitivamente a função.
em tentação.
Reincidência em ambos os casos:
exclusão da igreja.
Fumar ou ingerir Membro: 6 a 1 ano de prova. Obreiro: 1 a Guardar-se
bebida alcoólica. 2 anos. incontaminado.
Tomar banho, assistir os banhistas ou Cobrir a nudez e
Ir à praia ou piscina
ficar no traje normal. De afastamento a não ver a nudez de
pública.
exclusão. outrem.
Não se contaminar
Jogar futebol, assistir Membros: 3 meses a 1 ano de prova.
com o mundo.
televisão, ler revistas Para o obreiro a pena dobra. Nenhum fiel
Assistir somente os
ou ouvir rádio. poderá possuir televisão.
programas da IPDA.
Homem deixar o
cabelo cobrir a De advertência verbal a exclusão. Usar cabelo curto.
orelha.
Mulher cortar ou
aparar Deixar o cabelo
as pontas do cabelo, De 6 meses de prova a exclusão. crescer
usar peruca ou naturalmente.
aplicar cosmético.
Mulher usar calça
Fora da comunhão, até deixar de usar Usar vestido ou
comprida, mesmo
calça. saia.
embaixo do vestido.
Salto fino: no
máximo 3 cm; salto
Mulher usar salto alto Fora da comunhão, até usar dentro das
grosso: até 4.
ou cinto exagerado. especificações.
Cinto: no máximo 2
cm.
Fora da comunhão, até encerrar tal
Usar métodos prática. Evitar esta
contraceptivos. Exceção: Ordem médica ou ter o marido transgressão.
descrente.
De advertência verbal a exclusão.
Costeleta, barba ou
Exceção: Ordem médica ou defeito físico Fugir das vaidades.
bigode.
nos lábios.
Usar de jóias, depilar
as pernas, aplicar
De advertência verbal a exclusão. Fugir das vaidades.
maquiagem ou pintar
as unhas.
Usar roupa
pecaminosa: De advertência verbal a exclusão. Fugir das vaidades.
apertada, decotada,
7

com cor
extravagante
(exemplo: vermelha)
ou transparente.
Quadro Síntese do Manual Doutrinário da IPDA.

A partir deste quadro, o aspecto da honra é analisado entendendo-a como algo


além da demonstração de aprovação ou reprovação. A honra pode ser compreendida
como o valor que um fiel tem aos seus próprios olhos e perante a comunidade religiosa.
É a apreciação de quanto vale a sua aceitação no grupo, sua pretensão ao status, mas,
também, é o “reconhecimento dessa pretensão” (PIT-RIVERS, 1965, p.13).
Conforme relato anterior, a devoção cotidiana da IPDA gira em torno da noção de
santificação do corpo, que, por seu turno, precisa a todo custo ser reprimido, separado
das tendências da “natureza humana” decaída. Assim, as aspirações do fiel (referentes
ao corpo) estão voltadas não para o aqui (mundo temporal – efêmero), mas para o além
(mundo celestial – eterno). Segundo a IPDA, desprezar esteticamente o corpo,
penitenciá-lo e privá-lo de entretenimentos – apresentados como prazeres carnais ou
mundanos – isentam o fiel das transgressões contra a igreja e contra próprio Deus,
garantindo o passaporte para a vida eterna. Por outro lado, voltar ao mundo, mesmo de
modo discreto e trivial, revela vulnerabilidade para o pecado e atesta a sentença de
morte espiritual.
O Manual Doutrinário da IPDA adverte que a vigilância contra as tentações desta
terra, isto é, a castração do prazer; a irrestrita observância aos dogmas (interdições
reguladoras da conduta); a oração perseverante e a prática do jejum são condições
imperativas ao processo de santificação (compreendida como o desenvolvimento da
espiritualidade e maior intimidade com o divino). Tal ascetismo é imprescindível ao
exercício de qualquer função eclesiástica, notadamente, de liderança na IPDA.
Essa condição está pautada em seu conjunto doutrinário institucional. São regras
alimentares (como a proibição da ingestão de sangue animal ou de bebidas alcoólicas);
ditames estéticos (medidas do salto das sandálias e demais adereços; tipo, modelo e cor
do vestuário; estilo e tamanho do cabelo para homens e mulheres); impedimentos
quanto ao lazer e atividades físicas; até interdições voltadas para a conjugalidade e a
sexualidade, por exemplo, diferença máxima de idade entre os cônjuges; tempo limite
para a realização do matrimônio; distinção entre relações sexuais santas ou profanas,
etc. Para a IPDA, o “instinto sexual” sempre está passivo aos impulsos da “carne
pervertida”, por isso domar a sua terrível manifestação é o grande desafio imposto à
comunidade da fé.
Sobre a “cultura ocidental moderna e a invenção da sexualidade”, Duarte (2003,
p.45) fornece oportunos esclarecimentos, ressaltando que, no decurso do século XIX,
determinados processos ideológicos reaproximaram a questão da fisicalidade ao campo
da moral.

A própria doutrina das igrejas cristãs estabelecidas adaptou-se


estrategicamente a esse horizonte imanentista, fisicalista e
determinista. Boa parte da intensa pastoral das famílias (e da
moralidade) no âmbito da Igreja Católica passou a se nutrir desses
saberes “científicos” [...] O conceito de “natureza” dada, com
implicações diretas sobre a vida humana, sob as espécies de um
“direito natural” e de uma “natureza humana” sustenta esses
desenvolvimentos doutrinários, tanto quanto todos os demais
hegemônicos em nossa cultura nesse período (DUARTE, 2003,
p.46,47).

Não somente a Igreja Católica Romana, mas o pentecostalismo brasileiro, do século


passado e da atual conjuntura, também, absorveu, vigorosamente, a mesma orientação.
8

Nesta perspectiva, certas instituições eclesiásticas, herdeiras da segunda fase


pentecostal, elaboram doutrinas extremistas, objetivando combater tais “inclinações”
humanas, antagônicas ao equilíbrio espiritual. A IPDA, por exemplo, relega a sexualidade
a um plano inferior, marginal, restrito à prática sexual no espaço intradomiciliar do
matrimônio. A relação é uma estreita e delicada situação que precisa ser minimizada, a
ponto de conduzir os cônjuges ao simples ato reprodutivo. Heilborn (1999) declara que
os roteiros específicos de socialização elaboram o valor no grau de importância da
sexualidade para os sujeitos em cada nicho social. E ela conclui:

A cultura (em sentido lato) é a responsável pela transformação dos


corpos em entidades sexuadas e socializadas, por intermédio de
redes de significados que abarcam categorizações de gênero, de
orientação sexual, de escolha de parceiros. Valores e práticas
sociais modelam, orientam e esculpem desejos e modos de viver a
sexualidade [...] (HEILBORN, 1999, p.40).

Quanto à honra, ela se entrelaça, igualmente, na configuração da noção de


santificação do corpo, sujeitando-se a certos preceitos do ethos pentecostal. Mediante a
observância irrestrita e contínua à arbitrariedade das normas de conduta, apregoada pela
religião, o fiel adquire, então, a devida credencial de servo do Deus altíssimo. Por
conseguinte, concorre ao exercício de determinadas funções na hierarquia eclesiástica.
De outra forma, seria impedido tanto do usufruto das “benesses sagradas”, como vedada
a sua “livre” participação nos atos litúrgicos de sua comunidade de fé, conforme se
evidencia no inventário de punições estabelecidas pela IPDA. Versando sobre a atribuição
de honra e de seus desdobramentos na relação sociedade/indivíduo, Pit-Rivers (1965,
p.13) trafega numa linha análoga:

[Um] dos tópicos de mais interesse com que lidam [os estudiosos]
consiste nas maneiras como as pessoas tentam obter doutros a
ratificação da imagem que acalentam de si próprios [...] A honra
fornece, portanto, um nexo entre os ideais da sociedade e a
reprodução destes no indivíduo através da sua aspiração de os
personalizar. Como tal, implica não somente uma preferência
habitual por uma dada forma de conduta, mas, também, em troca,
o direito a certa forma de tratamento.

Para a IPDA, essa forma de tratamento tem suas facetas: pode representar uma
gloriosa conquista, tornando o “servo de Deus” apto ao exercício do “santo” ministério
(liderança); ou, ainda, refletir a punição (marginalização) do transgressor infiel,
mediante a sua incontinência aos dogmas “divinos”. Na cosmologia pentecostal, o fiel é
avaliado pela cúpula religiosa, pois ela detém a força política e reivindica o “direito de
conferir ‘honras’, decorrendo daí que os que essas honras recebem são ‘honrados’” (PIT-
RIVERS, 1965, p.14).
É relevante observar que todo e qualquer status social esbarra no risco iminente
das transgressões aos preceitos divinos, porque, na concepção da IPDA, ninguém é digno
de tais honras por ser, essencialmente, falho na vida santificada. Logo, a religião defende
que as qualidades pessoais, na verdade, são decorrentes de uma espécie de intervenção
transcendental (sobrenatural), habilitando o fiel ao cumprimento das ordenanças
religiosas. Contudo, se isto não ocorre, o negligente é, então, merecedor da respectiva
punição. Para cada profanação (desvio dos mandamentos sagrados), exige-se uma
retratação, do contrário não é restabelecida a normalidade. Nos casos mais severos
(conforme consta no Quadro Síntese do Manual Doutrinário da IPDA) o transgressor pode
até ser excluído, definitivamente, da instituição. Esta lógica interna é agravada quando
9

se percebe que há uma “honra coletiva de que os seus membros participam, a conduta
desonrosa de um reflete-se na honra de todos” (PIT-RIVERS, 1965, p.25).
Isto é muito significativo na IPDA, tendo em vista que o grupo se vê como uma
comunidade – todos são irmãos na fé, por isso partilham os mesmos dogmas e ideais.
Por conseguinte, se alguém esbarra num delito, todos se sentem atingidos. Mediante um
erro individual, a instituição é posta em risco, logo o pecador precisa ser punido em
nome da paz geral. A IPDA, ainda, ensina que todos os problemas devem ser, no
máximo, confidenciados ao pastor, evitando alvoroço entre os membros da igreja e para
além do seu reduto. Há algumas referências bíblicas a partir das quais as autoridades
eclesiásticas amparam essa postura. Por exemplo, orientando a igreja a ter uma vida
exemplar, o apóstolo Paulo declara: “Não damos motivo de escândalo a ninguém, em
circunstância alguma, para que o nosso ministério não caia em descrédito” (2 Coríntios
6:3). Ademais, o mesmo apóstolo adverte:

Não devem vocês julgar os que estão dentro? [...] Se algum de


vocês tem queixa contra outro irmão, como ousa apresentar a
causa para ser julgada pelos ímpios, em vez de levá-la aos santos?
[...] Portanto, se vocês têm questões relativas às coisas desta
vida, designem para juízes os que são da igreja (1 Coríntios 5:12;
6:1,4).

Ainda que este texto neotestamentário pareça referir-se a vários tipos de causas
judiciais, em torno de bens materiais, o mesmo princípio é aplicado a problemas de toda
ordem, especialmente, em se tratando de questões familiares. Portanto, é explícita a
preocupação de evitar uma imagem negativa perante a sociedade, além de orientar os
fiéis a tratarem seus problemas no contexto eclesiástico. “O significado político do
sagrado é que arbitra questões de valor, estabelece os limites do que pode ser feito ou
sustentado sem sacrilégio e define as lealdades incondicionais” (PIT-RIVERS, 1965,
p.26). Assim, a instrução da liderança eclesiástica sempre sinaliza o “ideal irrefutável”.
Neste sentido, ouvir a determinação de um líder é receber a ordem do próprio Deus.

Se a honra sentida pelo indivíduo se transforma na honra prestada


pela sociedade, acontece também que a honra prestada pela
sociedade fornece os padrões segundo os quais o indivíduo deve
sentir. As transações de honra servem, assim, dois propósitos: não
só fornecem, do lado psicológico, um nexo entre os ideais da
sociedade e a sua reprodução nas ações dos indivíduos – a honra
obriga os homens a agir como deviam (mesmo que as opiniões
divirjam sobre como deviam agir) – mas, do lado social, ligam a
ordem ideal com a ordem terrestre, validam as realidades do
poder e fazem com que a ordem santificada de precedência lhes
corresponda (Pit-Rivers, 1965, p.27).

Conclusão

Evidentemente, haveria muitas outras questões a serem apreciadas, entretanto


foram elencadas aquelas ponderadas como mais relevantes. Neste sentido, a IPDA foi
situada num contexto histórico mais amplo, sublinhando algumas de suas peculiaridades,
na tentativa de relacionar a idealização entre a santificação do corpo e questões ligadas à
noção da honra.
Como a IPDA está vinculada ao pentecostalismo da segunda fase, além de estar
centrada na cura e em longas sessões de exorcismo, também apela ao extremo
ascetismo. Debaixo de ininterrupta vigilância, oposta às tentações terrenas, tanto é
10

castrado o prazer (sobretudo sexual), como os fiéis são orientados a uma vida penitente,
em prol do crescimento da espiritualidade. Agora, mesmo ultralegalista, seu avanço
institucional é um fenômeno em franca ascendência.
A repressão aos prazeres da carne, “naturalmente” tendenciosa e vulnerável aos
ataques malignos de toda ordem, está intimamente ligada ao que a IPDA concebe como
santificação e vida piedosa. A dualidade entre a matéria má e o espírito bom norteia o
conjunto arbitrário de mandamentos a serem observados por todos os fiéis; sendo a
mesma lógica aplicada à própria liderança, porém, caindo em transgressão, ela recebe
punição ainda mais severa. Ainda assim, é importante ressalvar que, paradoxalmente, a
palavra do líder é apreendida como a voz de Deus na terra. Esta compreensão denota
que o discurso hegemônico detém o poder político irrestrito de coerção sobre a
comunidade da fé.
Por fim, o mérito institucional estabelecido ao fiel santificado é a honra, sinônimo
do prestígio de galgar o status de verdadeiro servo de Deus, apto a exercer certas
funções de liderança na igreja e, ainda, digno de herdar o reino dos céus.
Frente a um campo religioso tão plural e enigmático, esta investigação jamais teria
a pretensão de esgotar a problemática proposta. Apenas, algumas luzes foram lançadas
e permanecerão abertas ao debate, às críticas e ao aprofundamento. O desafio está
lançado.

REFERÊNCIAS

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BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução: João Ferreira de Almeida. Deerfield, EUA:
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11

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1991.
WEBER, Max. Os três tipos puros de dominação legítima. In: COHN, Gabriel (Org.).
Sociologia. São Paulo: Ática, 2002.
PAPEL DOS MÉDIUNS ESPÍRITAS NAS ATIVIDADES E RITUAIS DA
FRATERNIDADE PEIXOTINHO E DO HOSPITAL ESPIRITUAL MARIA CLÁUDIA
MARTINS.

Emmanuelle Vieira de Melo Leite.

Aluna de Pós-graduação em Antropologia - Universidade Feral de Pernambuco.

1. Introdução.
Neste projeto pretendo dar continuidade à pesquisa iniciada por mim durante a
graduação. Um estudo etnográfico acerca de um médium espirita, Francisco Peixoto
Lins, a partir de dados coletados em um centro espírita fundado por seus familiares na
zona sul de Recife – PE, que culminou no trabalho de conclusão do curso de Ciências
Sociais na Universidade Federal de Pernambuco; englobando, além desse contexto,
um ambiente onde é realizada a prática do Espiritismo de uma forma um pouco
diferenciada – o Hospital Espiritual Maria Cláudia Martins.
Pretendo realizar um estudo comparativo entre os dois locais, colocando a questão
da mediunidade como o ponto central a partir do qual nortearei a análise dos rituais e
atividades das duas instituições kardecistas. O indivíduo que se caracteriza como
médium, para esse grupo religioso, é aquele que serve de intermediário entre o
mundo visível e o mundo invisível servindo como veículo pelo qual aqueles que não
estão mais encarnados possam agir no mundo material. Trata-se do membro do
movimento espírita responsável pela revelação e atualização dos preceitos dessa
doutrina, devido ao seu contato constante com os espíritos. Exige dele atitudes
características de um bom espírita: a prática da caridade, o estudo das obras mais
renomadas1, o exercício da paciência e o controle das emoções.
Há uma escassez de trabalhos produzidos sobre este tema, dentre os principais,
pode-se citar as pesquisas de Maria Laura Viveiros de Castro, Bernardo Lewgoy,
Sandra Stoll, Antoinette de Brito Madureira, Anselmo do Amaral Paes, porém nenhuma
delas enfoca nas semelhanças e divergências entre dois contextos existentes dentro
do movimento espírita: o centro espírita convencional2, e o hospital espiritual. Ante
esta carência de pesquisas sobre esse ponto, apresento este projeto como uma
proposta de compreender o papel do médium dentro das atividades e rituais desses

1
Os cinco livros editados por Allan Kardec - Livros dos Espíritos (1857),Livro dos Médiuns (1861),
Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), o Céu e o Inferno (1865) e A Gênese (1868) - mais as obras
psicografadas pelos médiuns brasileiros Francisco Candido Xavier e Divaldo Pereira Franco.
2
Entendido aqui como sendo um centro espírita que possui vínculo com a Federação Espírita Brasileira
(FEB) e a Federação Espírita Pernambucana (FEP) seguindo as prescrições de ambas.

1
dois locais da vivência religiosa do Espiritismo: centro espírita convencional e o
hospital espiritual.

2. Justificativa.
Apesar do aumento significativo de pesquisas sobre o Espiritismo, esse campo
ainda é pouco estudado. Sandra Stoll comenta que:
como assinalam Brandão (1988) e Giumbelli (1997), dentre as
religiões ditas brasileiras, o Espiritismo tem sido a menos
estudada. Observação válida, inclusive, para os artigos recentes
que tratam da dinâmica contemporânea do campo religioso na
sociedade brasileira: nestes são freqüentes as análises sobre as
mudanças que vêm ocorrendo no meio católico, no contexto das
tradições afro e no âmbito pentecostal. Raramente, porém,
esses textos se referem ao universo espírita. (STOLL, 2002, p.
364)

Existe, então, a necessidade de trabalhos antropológicos que abordem aspectos


dessa doutrina, e que saiam um pouco do eixo convencional que tende a estudar o
catolicismo, os movimentos pentecostais, e as religiões afro-brasileiras. Isso se
estende à própria antropologia, que enriqueceria com estudos que abordem o
contexto espírita kardecista, os quais poderão servir como lugares para observar como
os brasileiros estão lidando com o contexto religioso na atualidade.
Além disso, com a abordagem de cunho antropológico, espero dar continuidade às
reflexões iniciadas na graduação acerca da mediunidade dentro do contexto religioso
espírita, de modo a contribuir para aumentar a produção de conhecimento acadêmico
sobre esse assunto.
Outro aspecto que levou ao interesse por essa religião em especifico é algo que
Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (2004) comenta sobre a sua pesquisa na
década de 1980. A bibliografia, por ela levantada para pesquisar o Espiritismo
Kardecista, emergiu em proximidade com os estudos sociológicos sobre religiões afro-
brasileiras. Isso se deu ao ponto dela propor no seu livro uma

visão do Espiritismo como um sistema simbólico integrado, e


dotado de uma cosmologia e um sistema ritual característicos.
Uma religião urbana e letrada que se expandia discretamente
entre as camadas médias e cuja lógica interna exercia ativa
pressão sobre a incorporação de elementos provenientes de
outras matrizes religiosas. (CAVALCANTI, 2004, p.1)

A ênfase na figura do médium decorre também de uma carência de trabalhos


antropológicos que tenham esse ator especifico como foco e tema principal. Anselmo
Paes (2011) comenta na sua tese sobre esse aspecto lembrando que existem
pesquisas acerca da mediunidade e do transe no Espiritismo, mas não “sobre a

2
experiência do médium espírita, suas sensações, os esquemas de organização do
constante trabalho de educação e controle de si, os esforços de adequação às
expectativas típicas dos grupos espíritas” (p. 276, grifo do autor).
É preciso estudar o espiritismo dentro do seu contexto, utilizando como
referências trabalhos feito por pesquisadores que procuraram enfocar algum aspecto
dessa doutrina. O campo da religião espírita suscita diversas questões que ainda
necessitam ser abordadas, logo, este trabalho vai procurar estudar alguns aspectos
que ainda não foram pesquisados a fundo e que contribuirão para o entendimento não
só do contexto religioso kardecista, mas também de elementos da sociedade
brasileira.
3. Definição do Problema e Recorte Empírico.
A doutrina espírita, fundada pelo pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard
Rivail (que adotou o pseudônimo Allan Kardec), teve a sua origem em um movimento
norte-americano chamado modern spiritualism. Esse movimento nasceu, de acordo
com Marion Aubreé e François Laplantine (2009), em 1847, em uma cidade do estado
de Nova York, noroeste dos Estados Unidos. “Em poucos anos, conta com milhões de
adeptos nos Estados Unidos. Envia missões à Europa, primeiro à Inglaterra, depois à
Alemanha e à França.” (AUBREÉ & LAPANTINE, 2009, p. 22).
Os eixos principais do Modern Spiritualism eram a reencarnação e o progresso da
sociedade que serão apreendidos por Kardec e servirão como pontos de partida da
elaboração do Espiritismo.
Allan Kardec vai ter a sua atenção chamada, primeiramente, por um fenômeno
chamado de Mesas Girantes, nas quais se sentavam várias pessoas que, por meio de
códigos, entravam em contato com os espíritos presentes no recinto. Na tentativa de
verificar se esses fatos eram armação, Kardec e outros indivíduos procuraram assistir
e acompanhar essas sessões, e ao concordarem de que existia ali uma comunicação
com espíritos, o pedagogo teve a ideia de, juntamente com alguns colaboradores,
fazer várias perguntas aos seres que se manifestavam. As respostas deram origem a
um dos livros base do Espiritismo: O Livro dos Espíritos3, que teve a sua primeira
edição publicada em 1857. No livro O que é o Espiritismo, Kardec comenta como foi
feita essa pesquisa que deu origem às obras da codificação:
(...) Apliquei a essa nova ciência, como até então o tinha feito,
o método de experimentação: nunca formulei teorias
preconcebidas; observava atentamente, comparava, deduzia as
3
Além do Livros dos Espíritos (1857), mais quatro obras fazem parte da codificação feita por Allan Kardec,
são elas: Livro dos Médiuns (1861), Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), o Céu e o Inferno (1865) e A
Gênese (1868).

3
conseqüências, dos efeitos procurava remontar às causas pela
dedução e pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo
como válida nenhuma explicação senão quando ela podia
resolver todas as dificuldades da questão (...) Agi com os
Espíritos como teria feito com os homens: eles foram para mim,
desde o menor até o mais elevado, meios de colher informações
e não reveladores predestinados. (KARDEC apud CAVALCANTI,
1985, p.4)

Aqui temos um dos pontos principais do Espiritismo kardecista, a ênfase na


agência dos espíritos na elaboração dos preceitos da doutrina. Os médiuns foram os
veículos utilizados para que a mensagem chegasse até os encarnados, e Allan Kardec
foi o escolhido para ajudar na catalogação e organização dos ensinamentos que
formam as bases do Espiritismo.
Para a elaboração das obras seminais da codificação feita por Kardec os dados
provieram dos próprios Espíritos, que através de diversos médiuns respondiam às
inúmeras questões elaboradas pelo pedagogo francês, e dessa maneira eles
mantinham o controle sobre o livro que estava sendo escrito. Portanto, a doutrina
espírita foi revelada, de acordo com os seus seguidores, pelos Espíritos, tendo sido
Kardec e os seus colaboradores indivíduos investidos da missão de codificá-la e
divulgá-la.
Já no Brasil o Espiritismo vai ser difundido por volta da segunda metade do séc.
XIX, ainda durante o Império, quase simultaneamente à sua divulgação na Europa.
Essa entrada é vista como “um entre outros modismos importados da França, potência
largamente hegemônica no imaginário intelectual e estético das elites brasileiras da
época” (LAPLANTINE & AUBRÉE, 1990, apud LEWGOY, 2008, p.87). Contudo, os
autores ressaltam que o espiritismo brasileiro possui uma singularidade, posto que ele
dá maior ênfase aos aspectos religiosos e místicos ligados às noções mágicas. Já na
França foca-se mais na dimensão experimental e científica da doutrina.
Coube à Federação Espírita Brasileira a unificação e divulgação do movimento
espírita no país. Bernardo Lewgoy afirma “o Espiritismo da FEB congregava uma
alternativa religiosa minoritária ao catolicismo, dentro de um espírito ‘associativista’.
(...) Historicamente, a FEB moveu-se numa dialética de oposição e sincretismo com a
Igreja Católica” (2008, p.87). A ênfase na caridade, o assistencialismo, a procura por
uma religiosidade interior, uma menor valorização dos rituais e o incentivo dos cultos
familiares colocam a FEB em posição de trocas sincréticas com a Igreja Católica. Com
o passar dos anos, a essas características foram associadas, pela FEB, outros
elementos que são hoje encontrados nas casas espíritas: terapia de passes,

4
fluidificação de água, atendimento fraterno, palestras, sessões de desobsessão, o que
demonstra um grande enfoque para os aspectos mediúnicos e ritualísticos.

Outro ponto que diferencia o espiritismo brasileiro da sua matriz francesa é o


enfoque dado aos médiuns espíritas. Na verdade isso pode ser visto de uma forma
mais ampla, como uma característica da própria sociedade brasileira na qual os
indivíduos possuem intimidade com as entidades dos seus contextos religiosos, sejam
elas santos, eguns, ou orixás. Aubreé e Laplantine resumem bem essa noção:

O espiritismo à brasileira funda-se essencialmente na crença


nas relações permanentes entre o mundo visível e o invisível
que podem, em quase todas as circunstâncias, ser mediadas
por um terceiro. Essa ideia não é exclusiva do espiritismo. Ela
nos parece, pelo contrario, constitutiva da cultura brasileira,
cultura da mediação, que nunca opõe duas entidades (como
dualidades de que os europeus são tão ciosos), mas procura, ao
contrário, reuni-las. (AUBREÉ & LAPANTINE, 2009, p. 225)

Pretendo, neste trabalho, observar nos aspectos ritualísticos desta doutrina o


papel dos médiuns dentro de dois contextos: em um centro espírita4 e em um hospital
espiritual5. Ambos se enquadram dentro da vertente kardecista, utilizando-se
amplamente dos livros da codificação nas suas palestras e cursos, porém possuem
diferenças nas praticas religiosas. Enquanto um está mais voltado para a divulgação
dos ensinamentos doutrinários através de palestras públicas realizadas diariamente
(Fraternidade Peixotinho), o outro direciona os seus eventos para os finais de semana
nos quais realizam diversos atendimentos médico-espirituais (HESMCM), nos quais os
preceitos espíritas são passados como parte do tratamento.

A Fraternidade Espírita Francisco Peixoto Lins, mais comumente citada como


Fraternidade Peixotinho, e na maioria das vezes é referida simplesmente como
Peixotinho, foi local de pesquisa do trabalho de conclusão do curso de Ciências Sociais
que realizei. Fica situada no bairro de Boa Viagem, zona sul da cidade de Recife, em
Pernambuco. É frequentado majoritariamente por moradores do próprio bairro em que
se encontra, tratando-se de um público em grande parte composto por pessoas da
classe média – mais especificamente os membros desse setor que se enquadram na
parte média e alta – contendo eventualmente membros da comunidade carente com a

4
Fraternidade Espirita Francisco Peixotinho Lins.
5
Hospital Espiritual Maria Cláudia Martins.

5
qual a Fraternidade realiza atividades sociais6. Possui uma estrutura física composta
por uma casa com dois andares e outra menor, contendo ao total onze ambientes7
para a realização de suas atividades.

Já o Hospital Espiritual Maria Cláudia Martins (HESMCM) apresenta um contexto


diferente. Está localizado no bairro de Prazeres, Centro da cidade de Jaboatão dos
Guararapes, em Pernambuco. Os seus frequentadores não se restringem a moradores
da redondeza, trata-se de indivíduos de diversas partes do Grande Recife que
souberam da existência desse hospital através de indicações de conhecidos que já
frequentavam o local. Apesar de entre eles encontrarmos, também, pessoas da classe
média, contudo, o público que frequenta é diferente daquele do Peixotinho (cujos
participantes encontram-se nos estratos mais superiores dessa classe social).
Enquanto no contexto de Boa Viagem encontramos médicos, pessoas da área jurídica,
comerciantes, dentre os frequentadores; em Prazeres são funcionários em posições
mais baixas em seus serviços, donas de casa, profissionais técnicos na área de saúde.
Além disso, no primeiro caso o número de homens e mulheres não difere tanto quanto
no segundo, onde o sexo feminino representa a maioria.

O foco desta pesquisa é analisar divergências e semelhanças em termos de


conteúdos e formas nas atividades e rituais, majoritariamente nas palestras e
tratamentos espirituais, realizados nos dois locais a serem estudados - o centro
espírita Fraternidade Espírita Peixotinho e o Hospital Espiritual Maria Cláudia Martins -
a partir da atuação dos médiuns dentro desses contextos.

Foi a partir deles, dos médiuns, que a doutrina espírita foi revelada e até mesmo
melhor esclarecida já que os chamados médiuns históricos brasileiros tiveram um
papel essencial na psicografia de obras doutrinárias e romances espíritas que trazem
elementos que servem tanto para endossar o que já havia sido escrito nos livros da
codificação, como para expandir e dar mais detalhes sobre o que Allan Kardec
catalogou.

4. Marco Teórico.

6
Dentre essas atividades estão aulas de reforço, de pintura, de costura, de musica, grupo de assistência a
gestantes.
7
Tratam-se de um salão principal para a realização das palestras, três ambientes do tamanho de um quarto
onde se realizam as atividades mediúnicas (passes, reuniões, estudos), uma biblioteca, uma livraria, uma
cozinha, uma sala para as atividades socioeducativas, uma cantina, e dois banheiros (um masculino e um
feminino)

6
Para abordar o Espiritismo, a pesquisa terá como base trabalhos seminais feitos
por antropólogos que trataram majoritariamente desse universo religioso. As
principais pesquisas que guiam este projeto são as de Marion Aubreé e François
Laplantine (2009), Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (2008), Bernardo Lewgoy
(2004), Antoniette de Brito Madureira, Aurenéa Maria de Oliveira.
Os pesquisadores franceses elaboraram uma obra que trata do movimento espírita
desde o seu início nos EUA, passando pelo desenvolvimento na França até a sua
chegada ao Brasil, contando, também, como ele se encontrava nos dois países no
período em que a pesquisa foi realizada. Trata-se, portanto, de um manual essencial
para qualquer pesquisa que trate sobre o Espiritismo.
Cavalcanti traz descrições e análises acerca da cosmologia, sistema ritual e noção
de pessoa a partir do seu estudo em um centro espírita do Rio de Janeiro. Nesse
trabalho a autora coloca questões relevantes no que tangem às sessões mediúnicas,
mediunidade e médiuns; ela aponta a presença nesse contexto de dois elementos
fundamentais da doutrina espirita: a caridade e o estudo. Portanto, os rituais espíritas
englobam a tríade estudo-caridade-mediunidade de tal maneira que para que sejam
bem sucedidos é indispensável a presença de todos três elementos.
Já Lewgoy contribui com uma pesquisa cujo enfoque é perceber, a partir da
biografia e trajetória de Chico Xavier, diversos elementos da cultura brasileira de
mediação e como esses aspectos são elaborados pelo médium mineiro dentro da
cosmovisão espirita kardecista.
Madureira e Oliveira elaboraram pesquisas sobre o Espiritismo tendo como
contexto estados do nordeste brasileiro – a primeira no Rio Grande do Norte, e a
segunda em Pernambuco - o que coopera no entendimento do movimento espírita na
sociedade em que este projeto visa a pesquisar. Antoinette Madureira (2010) faz uma
discussão sobre a constituição de emoções em grupos e indivíduos envolvidos com
práticas mediúnicas no campo religioso espírita tratando, também, da questão do
corpo; enquanto Aurenéa de Oliveira busca articular os conceitos de identidade,
verdade e tolerância religiosa ao analisar a prática religiosa espírita.
Partindo das leituras sobre mediunidade, nota-se a importância de pensar a sobre
como o Espiritismo lida com as categorias de corpo e das emoções dentro das suas
práticas religiosas. Logo, para trabalhar esses tópicos pretendo utilizar as analises
seminais De Marcel Mauss a respeito da noção de pessoa, técnicas corporais e a
expressão obrigatória dos sentimentos.
Eu digo as técnicas do corpo, porque se pode fazer a teoria da
técnica do corpo a partir de um estudo, de uma exposição, de
uma descrição pura e simples das técnicas do corpo. Entendo

7
por essa expressão as maneiras como os homens, de sociedade
a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu
corpo. (MAUSS, 2003, p.401)

Já Thomas Csordas traz elementos interessantes no que diz respeito ao campo


empírico das terapias religiosas, à maneira como os indivíduos vivenciam seus
processos de cura e a relação com aqueles indivíduos que os auxiliam nessa
experiência. Utilizaremos, então, a sua contribuição a partir do paradigma da
corporeidade, que se trata de uma análise complementar à antropologia simbólica e
interpretativa, no qual o autor tem como argumento principal “colapsar as dualidades
metodológicas, mas, ao contrário de grande parte da literatura acadêmica
contemporânea que destaca a dicotomia cartesiana de corpo e mente, eu focalizo as
relações entre sujeito e objeto e entre estrutura e prática” (CSORDAS, 2008, p. 21).
Como coloca Miriam Rabelo (2011), o termo “corporeidade (embodiment)
estabeleceu-se na literatura para enfatizar a dimensão encarnada – corporificada – da
cultura e das práticas sociais (do conhecimento, das emoções, da moral, etc.)” (p.
15). Em outro momento a autora comenta que “apenas quando tomamos a
experiência sensível como um modo total de envolvimento significativo no mundo,
podemos escapar da oposição entre sensibilidade e discurso.” (2005, p. 34), e atribui
à reflexão fenomenológica a inclinação para reestabelecer a ligação entre
percepção e movimento – mostrando como a experiência
sensível é tanto uma exploração ativa do mundo quando uma
resposta (passiva) a seus apelos – e entre o corpo e o espaço-
como-lugar – enfatizando, assim, não apenas a unidade dos
sentidos no corpo próprio, como também a pertença e contínua
orientação deste ao lugar8... (2005, p. 34).

Trazendo a discussão para a concepção de corpo no Espiritismo procuro utilizar as


colaborações de Paes (2011) e Tadvald (2007). Ambos abordam a representação
espírita do corpo comentando sobre a sua proximidade com a concepção de corpo na
modernidade, influenciada pelo individualismo. Paes adentra também na visão espírita
de saúde e discute brevemente acerca da forma como é concebida a sexualidade
nesse contexto e como resumo das ideias expostas pelo autor enfatizo o comentário
no qual diz que “o corpo, como espelho do social que é, também no Espiritismo será
requisitado como palco da expressão do domínio de si: suas palavras comedidas (se
não puder optar pelo silêncio), os gestos mínimos e controlados, o rosto sereno, a
evitação cuidadosa de movimentos bruscos, a boa aparência e higiene.” (p. 209)

8
No contexto deste projeto o lugar trata-se de uma comunidade religiosa.

8
Tadvald procura contextualizar historicamente o ambiente no qual o Kardecismo
surgiu para perceber a influencia das ideias dessa época na forma como a doutrina
espírita conceitua corpo e pessoa. O seu trabalho possui também uma discussão
relevante acerca da possessão no Espiritismo e traz algumas reflexões importantes
sobre a categoria do controle que para o autor deve ser relativizada já que em ultima
instancia o self que predomina no momento de tomar decisões é o do médium.
Contudo ele lembra que existe sempre uma “anterioridade, dada pelo sistema de
valores da doutrina espírita previamente internalizada por seus adeptos médiuns.”
(2007, p.131). Tentarei incorporar esses elementos no campo que farei os tendo em
mente no momento da coleta e da analise dos dados.
A questão das emoções também retrata um tema pertinente ao objeto que
pretendo estudar. Busco aprofundar a análise acerca desse tópico e ir além da
constante referencia ao controle da expressão de sentimentos sempre citado na
literatura antropológica acerca do Espiritismo. Apesar de ter em mente que as
emoções estão dentro do universo de noções inseridas pelo senso comum como
aspectos naturais e individuais dos seres humanos, seguirei a abordagem de Claudia
Rezende e Maria Claudia Coelho (2010) e as tratarei como representações que variam
de uma sociedade para a outra visto que diferentes culturas, grupos sociais e religiões
possuem teorizações diferentes para as emoções e tendem a valorizar e estimular
algumas, ao passo que outras devem ser controladas, reprimidas.
5. Objetivos.

5.1 Objetivo Geral.

Compreender os rituais e atividades realizadas por dois centros espíritas,


a partir de um trabalho etnográfico, visando a estabelecer comparações
acerca da atuação dos médiuns em cada um dos contextos.

5.2 Objetivos Específicos.

Fazer um levantamento das principais atividades do HESMCM e da


Fraternidade Peixotinho.

Descrever a performance e os significados contidos nos rituais analisados


de ambas as instituições.

Identificar, nas práticas e nos discursos, as representações espíritas


kardecistas acerca da questão da mediunidade: suas implicações, legitimidade
e prestígio dentro da doutrina.

9
Observar possíveis diferenças de comportamento, vestuário, habitus,
questões de gênero entre trabalhadores e frequentadores em ambas as casas
espíritas.

Abordar o processo de construção do self do médium tentando perceber


como se dá a trajetória desde o momento da descoberta desse novo status,
passando pela doutrinação e eventual adesão a um centro espírita como
trabalhador do local.

Perceber se existem diferenças no tipo de mediunidade praticada em cada


um dos contextos, assim como uma eventual gradação de valoração –
pensando na escala usada pelos espíritas de mais evoluído a menos evoluído
– e quais seriam as explicações para essas distinções.

6. Metodologia.
De inicio uma revisão aprofundada da literatura sobre trabalhos que abordem
pontos que tangem de alguma maneira o objeto de estudo: caridade, transe
mediúnico, possessão, vivência religiosa, controle (e expressão) das emoções, corpo
como instrumento; e qualquer outro aspecto que possa surgir como relevante para o
entendimento do campo a ser estudado, incluindo, nesse levantamento bibliográfico,
autores e obras diversos dentro da grande temática da Antropologia da Religião.
Portanto, é relevante a procura de mais fontes que possam ajudar na pesquisa. Essa
etapa tem início desde a confecção do projeto, e deve perpassar todos os momentos
deste estudo, visto que se trata de uma atividade que merece ser revisitada
constantemente, a fim de manter-me atualizada e em contato com os trabalhos mais
recentes.

Por se tratar de uma pesquisa de cunho antropológico, faz parte deste projeto
o uso dos métodos característicos dessa área do conhecimento, em especial das
técnicas envolvidas nas práticas etnográficas, tais como observações, entrevistas
semiestruturadas, questionários. Para poder perceber como se dá a relação dos
médiuns com cada um dos contextos a serem estudados, considero plausível o uso
desses recursos qualitativos para a coleta dos dados. A aproximação com o campo
já está em processo, visto que visito esporadicamente a Fraternidade Espírita
Peixotinho desde a elaboração do meu trabalho de graduação, e, por indicação de
pessoas próximas, iniciei visitas às atividades do Hospital Espiritual Maria Cláudia
Martins, já tendo em mente a ideia de englobá-lo para uma pesquisa futura.

10
Possuo, portanto, contato com frequentadores dos dois locais. Como o
relacionamento com a Fraternidade Peixotinho é mais prolongado já conto com
interlocutores que são médiuns e trabalham no centro espírita e poderiam não só me
dar os seus próprios relatos acerca das questões que pretendo abordar nesta
pesquisa como também me indicar outros trabalhadores com os quais poderei
dialogar. Mesmo não sendo a minha proximidade com Hospital Maria Cláudia Martins
tão elaborada quanto a que construí na Fraternidade Peixotinho será possível
trabalhar também com o recurso de indicações de frequentadores e voluntários por
intermédio de pessoas conhecidas que ou já vivenciaram ou estão em processo de
tratamento espiritual.

Darei continuidade à observação participante nas reuniões públicas – e


qualquer outra atividade a qual me seja concedido acesso – complementado com
conversas e entrevistas a serem realizadas com no mínimo sete (7) trabalhadores de
cada local, cujas formas de aproximação estão supracitadas – Fraternidade
Peixotinho e Hospital Maria Cláudia Martins, além dos seus respectivos dirigentes. As
duas instituições disponibilizam informações em seus sites onde se encontram vídeos
e áudios de diversas palestras, assim como textos produzidos pelos seus membros,
histórico, horários e descrições de atividades realizadas. Todos os dados coletados
serão anotados em um diário de campo, juntamente com as minhas impressões e
sensações.

7. Referências Bibliográficas

Citadas

AUBREE, M. ; LAPLANTINE, F. A mesa, o livro, e os espíritos: gênese, evolução e


atualidade do movimento espírita entre França e Brasil. Maceió: Editora da
UFAL,2009 403p.

CAVALCANTI, M. L. V. C. Vida e Morte no Espiritismo. Relig. soc., Rio de Janeiro, v.


1, 2006 .Disponível em
<http://socialsciences.scielo.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-
85872006000100003&lng=en&nrm=iso>. Acessado em 25 Mar. 2010.

CAVALCANTI, M. L. V. C. O Mundo Invisível: cosmologia, sistema ritual e noção


de pessoa no espiritismo. Disponível em <
http://www.bvce.org/LivrosBrasileiros.asp>. Acessado em Dezembro 2010.

CAVALCANTI, M. L. V. C. O que é o Espiritismo: Segundo a visão antropológica.


Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, 37p.

11
CSORDAS, T. Corpo, Significado, Cura. 1ª edição. Porto Alegre: Editora da UFRGS,
2008, 463p.

LEWGOY, B. A transnacionalização do espiritismo kardecista brasileiro: uma discussão


inicial. Relig. soc., Rio de Janeiro, v. 28, n. 1, July 2008 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-
85872008000100005&lng=en&nrm=iso>. Acessado em 17 Maio 2010.

MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. 4ª reimpressão. São Paulo: Cosac Naify,


2011, 535p.

PAES, A. O Corpo da Alma: Cosmos, casa e corpo espírita kardecista. 2011.


315p. Tese. UFPA.

RABELO, M. C. M. ESTUDAR RELIGIÃO A PARTIR DO CORPO: algumas questões


teórico-metodológicas. Caderno CRH, Salvador, v. 24, n. 61, p. 15-28, Jan/Abr. 2011

RABELO, M. C. M. RODANDO COM O SANTO E QUEIMANDO NO ESPÍRITO:


POSSESSÃO E A DINÂMICA DE LUGAR NO CANDOMBLÉ E PENTECOSTALISMO.
Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 7, n. 7, p. 11-37, setembro de
2005.

STOLL, S. J. Religião, ciência ou auto-ajuda? Trajetos do Espiritismo no Brasil. Rev.


Antropol., São Paulo, v. 45, n. 2, 2002 . Disponível em
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TADVALD, M. Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 9, n. 9, p. 117-139,


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Consultada

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1997.

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Antropológicos, Porto Alegre, ano 9, n.19, julho de 2003. p247-281.

LEWGOY, B. Representações de ciência e religião no espiritismo kardecista: antigas e


novas configurações. Civitas-Revista de Ciências Sociais, v.6, n.2, jul-dez 2006.
p151-167.

LEWGOY, B. O grande mediador: Chico Xavier e a cultura brasileira. Bauru:


EDUSC, 2004, 135p.

MADUREIRA, A. B. Vassouras, ciganas e extraterrestre: médiuns e emoções no campo


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Pernambuco. 386p.

OLIVEIRA, A. M. Pluralismo religioso e identidade: as concepções de ciência, verdade e


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12
pernambucanos com os adeptos de outras religiões. Pensamento Plural. Pelotas,
v.2, jan/jun 2008. p79-103.

REZENDE, C. B. ; COELHO, Maria Claudia . Antropologia das emoções. 1. ed. Rio de


Janeiro: Editora FGV, 2010. v. 1. 136p .

STOLL, S. J. Encenando o Invisível: a construção da pessoa em ritos mediúnicos e


performances de “auto-ajuda”. Religião e Sociedade. Rio de Janeiro, v.29, n.1,
2009. p13-29.

STOLL, S. J. Narrativas biográficas: a construção da identidade espírita no Brasil e sua


fragmentação. Estudos Avançados, 18 (52), 2004, p181-199.

13
RITUAL E PROCESSOS DE CRIAÇÃO EM TEATRO E DANÇA

Yasmin Rodrigues Cabral/UFRN


Dra. Nara Salles/UFRN
Resumo

O artigo apresenta os procedimentos metodológicos relativos às investigações para a


cena, do “Cruor Arte Contemporânea” (vide www.artecruor.com), no projeto de
pesquisa, ensino e extensão “Arte Contemporânea e Cultura Investigadas Para
Conhecer, Apreender e Transformar”, edital PROEXT 2013. Como resultado parcial,
apresentamos uma reflexão da instauração cênica “Corpo Livre”, descrevendo o
processo de sua criação e em quais aspectos rituais, sagrados e míticos está
fundamentada, tendo como eixo norteador os estudos do corpo a partir do
pensamento de Victor Turner, Marcel Mauss, Antonin Artaud, Richard Schechner,
Renato Cohen, Anne Bogart. Demonstramos as práticas de criação da cena com
criação colaborativa, envolvendo a preparação corporal como desencadeadora de
processos sinestésicos, fundamentados em rituais, tendo como principal metodologia
de pesquisa os laboratórios práticos corpóreo/vocais e instaurações cênicas realizadas
com a finalidade da criação da encenação “Carmin”.

Palavras-chave: ritual, instauração cênica, arte contemporânea

A coligação Cruor Arte Contemporânea1 é resultado de uma ação integrada de


pesquisa e extensão intitulada: Processos de Criação em Arte: Vivenciando e
Apreendendo Cinema, Dança Flamenca, Cultura Espanhola e Teatro, desenvolvida no
ano de 2012 e do Projeto PIBIC em andamento, desde 2011, intitulado Almodovar e
Kahlo: Estéticas Constituintes Para Processos Criativos.

Atualmente desenvolve um programa de Ações Integradas de Ensino, Pesquisa


e Extensão do Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, denominado Arte Contemporânea e Cultura Investigadas Para Conhecer,
Apreender e Transformar, que foi contemplado com o edital PROEXT/2013, cujo
objetivo é articular ações nas dimensões de extensão, ensino e pesquisa congregando
cinco áreas artísticas: teatro, dança, performance, cinema, artes visuais, mantendo
relação com cursos de graduação e pós-graduação e com envolvimento em
diversos contextos sociais que concorre na formação pedagógica dos discentes
envolvidos e na consecução das diretrizes assumidas pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte no Plano de Gestão e de Desenvolvimento Institucional no que se
refere a ações articuladas no campo da arte e da cultura que proporcionem a
elaboração e a difusão de processos e obras em integração com segmentos sociais do

1
Vide o site www.artecruor.com.
Rio Grande do Norte, contribuindo para a alfabetização e formação estética
daqueles que atuam nas áreas educacionais e culturais, bem como na formação de
público a partir das problematizações inerentes à arte contemporânea. As ações
compreendem a realização de mini-residências, objetivando fomentar a arte e a
cultura, viabilizando o acesso da comunidade ao resultado de projetos de pesquisa e
ações de extensão universitárias, disciplinas da graduação e pós-graduação,
desenvolvidos nos anos de 2010 a 2012; mini-cursos focados nos processos
criativos em arte contemporânea; conferências com artistas de renome nacionais
como Regina Miranda, Maura Baiocchi, Wolfgang Pannek, Raimundo Áquila; curso de
formação continuada em interface com o Programa de Extensão Escambo de
Saberes: estágio e formação docente nas Licenciaturas em Artes/UFRN,
introdução ao cinema contemporâneo através de filmes, e debates e criação de Cine
Clube na instituição acolhedora do programa; execução de pintura mural artístico
com a comunidade. Como produtos culturais, confeccionar-se-á livro e DVD. Ainda
acontecerá a internacionalização do Programa no Escena Mazatlán 2013, Sinaloa,
México, que ocorrerá em outubro de 2013.

Trabalhamos com a firme convicção de que “O teatro é antes de tudo ritual e


mágico, isto é, ligado a forças, baseado em uma religião, crenças efetivas, e cuja
eficácia se traduz em gestos, está ligada diretamente aos ritos do teatro que são o
próprio exercício e a expressão de uma necessidade mágica espiritual” (Artaud, 1995,
p. 75).

Artaud considerava que, como no teatro oriental, uma encenação deve ser
uma espécie de ritual, ligado ao sagrado e ao inconsciente, provocando
transformações na psique humana e, consequentemente, nas ações, não como no
teatro grego onde acontecia uma purificação, e sim com o intuito de:

...criar uma metafísica da palavra, do gesto, da expressão, com


o objetivo de tirá-lo de sua estagnação psicológica e humana
(...) uma invocação de certas ideias não comuns cujo destino é
exatamente o de não poderem ser limitadas (...) essas ideias
são todas de natureza cósmica fornecem uma primeira noção de
um domínio em relação ao qual o teatro se desacostumou. Elas
podem criar uma espécie de equação apaixonante entre o
homem a sociedade, a natureza e os objetos (...) o humor com
sua anarquia, a poesia com seu simbolismo e suas imagens
fornecem como que uma primeira noção dos meios para
canalizar a tentação dessas ideias. Importa que a sensibilidade
seja colocada num estado de percepção mais aprofundada e
mais apurada, é esse o objetivo da magia e dos ritos, dos quais
o teatro é apenas um reflexo. (ARTAUD,1987, p. 116)
Dessa forma o teatro seria um delírio provocado pela desarmonia criada
entre forças físicas e espirituais contrárias, fazendo com que o verdadeiro eu ou o
outro venha à tona, o duplo, que vem provocar transformações. Esta suposição
cênica foi a que Artaud nomeou Teatro da Crueldade, que para ele tinha o
significado de um rigor cego desencadeado pela vida, pela tensão que provoca no
espírito das pessoas. A vida por si traz uma tortura diária e um constante
espezinhar de tudo. Nessas bases podemos encontrar, desde o nosso nascimento,
uma estrutura cultural pronta a que devemos nos adaptar. Na maioria das vezes,
esta adaptação é permeada por questionamentos sobre as estruturas encontradas
durante o exercício da vida, causando um sofrimento físico ou espiritual. Este
inquietamento pode ser apaziguado também pelo teatro na teoria de Artaud e
entendido com eficácia mágica, próxima do ritual religioso ligado, portanto, ao
sagrado e ao que as religiões são capazes de operar na vida das pessoas.

Nabuco (1996, p. 1) escreve sobre a atitude e a obra de Artaud, vista sob o


olhar da contemporaneidade, formulando uma indagação e ao mesmo tempo dando a
resposta:

Porque será que alguém tão louco e tão distante de seu tempo,
conseguiu influenciar toda a criação artística, filosófica e
intelectual deste século e ainda hoje é um dos maiores
referenciais para a atividade criadora? Possivelmente porque da
complexidade de seu trabalho e de sua vida não restaram
apenas obras de arte, mas uma presença singular, uma poética
social, uma estética do pensamento, uma teologia da cultura,
uma fenomenologia do sofrimento e principalmente um grande
desconforto no pensamento contemporâneo... concebeu um
teatro onde não haveria nenhuma distância entre ator e plateia,
todos seriam atores e todos fariam parte do processo, ao
mesmo tempo. Queria devolver ao teatro a mágica e o poder do
contágio. Queria que as pessoas despertassem para o fervor,
para o êxtase. Sem diálogo. O contágio estabelecido pelo
estado de êxtase. Uma vez abolido o palco, o ritual ocuparia o
centro da plateia.
Acreditamos que para um teatro dança com abordagem artaudiana, um mesmo
gesto ou ritual pode ter significados diversificados dependendo da forma como são
encadeados ou ligados entre si. Sua leitura depende também da vivência anterior do
espectador, que pode determinar alguma leitura de decodificação e sentido especial. O
mesmo ato ou gesto pode ter significados completamente diferentes, dependendo da
contextualização ritualística. Um dos atributos do ritual é ser presentificado e vivo aos
olhos dos espectadores, ou seja, daqueles que o vivenciam, assim os atuantes a
vivem no sentido de presentificar o ato.
Para Artaud, teremos que ser capazes de retornar a esta ideia superior da
poesia pelo teatro, que existe por trás dos ritos e compreender a ideia religiosa e
sagrada do teatro. É importante lembrar que o pensamento de Antonin Artaud sobre o
teatro foi vislumbrado e inspirado principalmente nas danças orientais balinesas, que
possuem um caráter altamente ritualístico. Ritual pode supor decodificações gestuais,
e remete imediatamente a mito, e segundo Claude Lévi-Strauss (1957, p. 267 ):

Postula-se entre mito e rito, uma correspondência ordenada,


uma homologia: dos dois qualquer que seja aquele ao qual se
atribua o papel original ou de reflexo, mito e rito se reproduzem
um ao outro, um no plano da ação, o outro no plano das
noções... Se o mito tem um sentido, este não pode se ater aos
elementos isolados que entram em sua composição, mas à
maneira pela qual estes elementos se encontram combinados.

Este fato no olhar de Artaud deveria ser transposto para a cena e pode ser
compreendido, como o princípio do abandono da representação pela presentação ou
presentificação do ato cênico. Uma cena onde imagens comuns justapostas e
atravessadas, suscitariam outras leituras ultrapassando o que é óbvio e evidente. Com
esse pensamento pautando nossas ações encampamos uma rotina organizacional que
se dá a partir do trabalho prático corporal em laboratórios utilizando-nos das noções
de processos criativos colaborativos e de instaurações cênicas como procedimentos
metodológicos para a criação de encenações, e neste momento nos debruçamos na
criação da encenação “Carmin”. Nos anos de 2012 e 2013, criamos cinco instaurações
cênicas, a saber: 1 – “Carmin: Experimento Água”: consiste em uma série de ações
criadas a partir da observação dos líquidos presentes na obra de Frida Khalo e nos
filmes de Pedro Almodovar e suas reverberações a partir das memórias presentes no
corpo dos artistas criadores, nas apresentações existe uma interação com os
transeuntes; 2 – “Segredo”: criada a partir do filme A Flor do Meu Segredo do
cineasta Pedro Almodóvar, consiste em duplas de performers, tendo um com os olhos
vendados; que se colocam em determinado lugar da cidade e no momento em que o
performer vendado tocar o corpo de alguém que anda na rua, ou praça, lhe abraça,
estabelecendo um vínculo de comunicação tátil e verbal/sonora acerca de segredos e
solicita que o transeunte escreva e/ou desenhe em sua roupa branca palavras e
memórias de seus segredos. Esta roupa será parte integrante dos figurinos que irão
compor a encenação Carmin; 3 – “Unissex”: se constitui em uma instauração cênica
com caráter altamente político e voltado aos direitos humanos, enfoca e questiona os
direitos das pessoas transexuais ao uso de banheiros para seu gênero escolhido e não
para o de seu nascimento, e que tem como objetivo transformar alguns banheiros
separados por gêneros na universidade, em banheiros unissex, esta ação tem o apoio
do grupo GUDDES - Grupo Universitário de Defesa da Diversidade Sexual-, que tem
como objetivo divulgar e desenvolver ações que possibilite a prática da tolerância com
o outro e o respeito à diversidade sexual; 4 – “Tai”: Criado a partir das aulas do
professor Sol das Oliveiras Leão da técnica Tai Sabaki, que é um conjunto de técnicas
de movimentação corporal, praticado por várias artes marciais japonesas, sendo sua
maior finalidade, evitar o enfrentamento direto, evitando um ataque; 5 – “Corpo
Livre”: consiste em convidar artistas da cidade para que em determinado local e hora,
aqueles que desejarem construir uma partitura de três minutos, tendo o corpo pintado
com pasta d’água na cor branco por baixo do figurino inicial, e a cabeça coberta com
espécies de burcas2, saiam em cortejo ritualístico e silencioso de determinado local da
cidade e se dirijam a um local aonde houve algum tipo de repressão ao corpo e,
chegando ao local, sentem no chão, formando uma mandala e então aqueles que
desejarem, incluindo os participantes do projeto que, como já mencionado, trazem o
corpo pintando de branco como figurino, entram na mandala que em sua formação
tem músicos participantes do Projeto Pau e Lata, da UFRN3, estes iniciam o toque
musical, aqueles que entram no círculo, tiram seu figurino do cortejo e executam a
partitura de três minutos, logo após colocam o outro figurino e vão embora. Nosso
trabalho propõe uma discussão sobre o corpo do artista, o nu na cena, o direito de
usar a pele como figurino, a liberdade em nossas criações e que um corpo nu em cena
não seja motivo para indicativo de idade, pois é apenas um corpo nu, sem nenhuma
conotação nem a mínima alusão ao ato sexual. “Corpo Livre” será discutido mais
adiante neste artigo. Estas instaurações cênicas ocorrem em diversos locais -
principalmente em locais públicos, como: praças, ruas e praias - e destas serão
extraídas cenas que irão compor a encenação que será realizada em locais fechados
como salas, teatros, galerias.

2
A burca é uma veste feminina que cobre todo o corpo, até o rosto e os olhos. É de uso obrigatório para as mulheres do
Afeganistão e do Paquistão e em áreas próximas à fronteira com o Afeganistão. É o objeto que pode ser configurado
como o maior símbolo de repressão ao corpo. O seu uso deve-se ao fato de muitos muçulmanos acreditarem que o livro
sagrado islâmico, o Alcorão e outras fontes de estudos, como Hadith e Sunnah, exigem que homens e mulheres que se
vistam e se comportem modestamente em público. No entanto, esta exigência tem sido interpretada de diversas maneiras
pelos estudiosos islâmicos e comunidades muçulmanas; a burca não é especificamente mencionada no Corão e nem no
Hadith. A comunidade religiosa Talibã, que comandou o Afeganistão nos anos 2000, impôs seu uso no país.
A burca foi proibida, na França, em 17 de julho, de 2010, pela Lei nº 524, que entrou em vigor seis meses após sua
promulgação.
3
O Projeto Pau e Lata teve início na cidade de Maceió/AL, no ano de 1996 por Danúbio Gomes e no ano seguinte, na
cidade de Natal e Baia Formosa/RN. A partir do ano 2000, o Projeto Pau e Lata se transformou em Projeto de Extensão
pelo Departamento de Artes da UFRN, passando a ser denominado “Pau e Lata: Projeto Artístico – Pedagógico”,
desenvolvendo atividades com grupos nas cidades de Natal, Lajes do Cabugi, Mossoró urbano-rural, Pedro Velho e
Apodi, localizadas no Rio Grande do Norte. Desenvolve a partir de 2001, um núcleo de estudos rítmicos, na UFRN, com
jovens e adultos, alunos, professores, funcionários desta instituição e da rede pública de ensino e profissionais liberais.
Foi desvinculado do DEART/UFRN e hoje faz parte da Escola de Música da UFRN. Fonte:
http://pauelatarnn.blogspot.com.br/2010/02/trajetoria-pau-e-lata.html, acessado em 29/03/2013
Sobre o conceito de processos criativos colaborativos que norteiam nossas
criações artísticas o texto de Abreu (2006, p. 1) embora longo, deve ser citado por ser
extremamente esclarecedor:

Os grupos teatrais dos anos noventa, especialmente em São


Paulo, buscaram recuperar uma forma de produção do
espetáculo que se notabilizou nos anos setenta: a criação
coletiva. Sob essa denominação genérica abrigava-se uma série
de procedimentos criativos que observava, como regra geral, a
liberdade de proposição e atuação criativa. A idéia de que um
espetáculo teatral é obra de todos os envolvidos em sua
construção e, por conseguinte, todos teriam igual direito a
contribuir não só com suas habilidades artísticas, mas com sua
visão de mundo – política e estética – começou a prevalecer
sobre um sistema de produção que pressupunha um texto
acabado e pensado por um dramaturgo e um diretor
responsável por erguê-lo em cena.

Fiel ao espírito de uma época que se definia como


revolucionária na política, nos costumes e na estética, a criação
coletiva surge como um pensamento de oposição ao modelo
tradicional de produção teatral, baseado numa rígida e
hierarquizada divisão de funções artísticas. Originada e
desenvolvida no bojo de um ideário de Esquerda (o TEC, Teatro
Experimental de Cali, Colômbia, de Enrique Buenaventura foi
uma das referências na época) a criação coletiva não foi, no
entanto, apenas uma resposta estética, filosófica e política. Os
grupos e suas criações coletivas buscavam equacionar também
questões de ordem econômica e administrativa, estendendo
uma relação horizontal a todos os setores da construção e
veiculação do espetáculo.
Assim, era comum o criador, fosse ele ator, dramaturgo ou
diretor, assumir funções da escrita textual da cena, atuação,
confecção de cenários e figurinos, organização da cena,
contatos com a imprensa, distribuição de filipetas, etc. A
tendência era que todas as questões pertinentes ao espetáculo
fossem dialogadas e resolvidas pelo próprio coletivo, de
maneira autônoma.

Os anos oitenta viram a criação coletiva abandonar a cena, pelo


menos no circuito do teatro profissional, e chegou-se a acreditar
que fosse apenas um fenômeno localizado no tempo, típico do
experimentalismo da década anterior. Na década seguinte, o
pensamento da construção do espetáculo por meio de uma
criação coletiva retorna de forma vigorosa – denominado
processo colaborativo – e se dissemina como processo de
criação, acompanhando o renascimento dos grupos teatrais. E
aí está um fato significativo. Não é possível desassociar a
criação coletiva ou processo colaborativo do surgimento e
fortalecimento dos grupos de teatro. Isso porque a criação
coletiva, em suas várias formas, não constitui um método
isolado, um procedimento científico que pode ser reproduzido
em quaisquer condições e por quaisquer conjuntos artísticos. A
raiz de uma criação coletiva pressupõe fundamentalmente um
acordo ético entre os criadores, no sentido de fazer respeitar e
desenvolver as potencialidades individuais do artista ao mesmo
tempo em que constrói a obra - e uma visão de mundo - de
forma coletiva. Um processo coletivo de criação se aproxima
muito mais de uma pedagogia artística do que de uma técnica
de construção de espetáculo.

Os conceitos acima explicitados são aplicados na prática através de laboratórios


corpóreo/vocais, que incluem exercícios psicofísicos, com o objetivo de uma
preparação corporal pautada no desenvolvimento da presença do artista cênico e na
sua relação com o espaço, com o outro e com diversos elementos e objetos trazidos
dos filmes de Pedro Almodovar e da obra de Frida Kahlo, trabalhados durante o
processo. Os trabalhos realizados nos laboratórios de criação buscam essencialmente
uma conscientização corporal profunda como a que é proposta por Bogart (2005) com
o View Points, principalmente no desenvolvimento de novas e múltiplas possibilidades
de expressão do corpo, e cumplicidade e coesão entre o grupo, além de técnicas
corporais, diferentes daquelas comumente utilizadas no cotidiano. Barba (1995) ao
tratar de técnica, cita os estudos sobre técnicas corporais do antropólogo francês
Marcel Mauss; fazendo assim uma diferenciação entre técnicas cotidianas e
extracotidianas, já que segundo o autor citado:
o corpo é o primeiro e mais natural instrumento do
homem. Ou sem falar em instrumentos, o primeiro e mais
natural objeto técnico do homem, e ao mesmo tempo,
meio técnico do homem (MAUSS apud BARBA, 1995, p.
227).

Em nosso entendimento se faz necessário que o artista cênico entenda a


construção da prática corporal, diferenciando o corpo cotidiano e extracotidiano,
criando, por exemplo, rituais de aquecimento e preparação para a cena. Sabemos,
entretanto, que essa diferenciação acontece para fins didáticos, de modo a permitir
uma melhor aprendizagem e percepção das técnicas corporais, pois as ações
cotidianas não são esquecidas, pois se encontram encarnadas e fazem parte da
memória do corpo, mas podem sim serem transformadas, dilatadas e ressignificadas.
E nessa perspectiva trabalhamos com atmosferas ritualísticas, já que em diversos
rituais, que serão citados mais adiante, ocorre essa dilatação do corpo cotidiano, indo
ao encontro de uma esfera sagrada, mítica, fazendo sempre relações entre o social e o
mítico, compreendendo o ritual como prática transformadora.
Como já anunciado, neste artigo daremos ênfase à instauração cênica
intitulada “Corpo Livre”, exatamente por ser esta a que propõe uma discussão mais
direta entre ritual, corpo e sociedade. Investigamos os seguintes aspectos: como as
investigações de nossas técnicas corporais são influenciadas pela sociedade em que
vivemos, na medida em que temos uma matriz corpóreo/vocal encarnada e imposta
pelo meio sócio/cultural; como e em que situações o corpo sofre diversas repressões,
principalmente em sua forma natural, despido de vestimentas; por que o nu é
proibido; por que o nu esta em nossa sociedade diretamente ligado ao sexo ou a
sexualidade.

O corpo por muitos séculos foi e ainda é visto como um veículo de dominação e
manipulação social, o qual deve seguir regras e adotar determinados tipos de
comportamentos. Há uma forte coerção sobre o corpo-sujeito, uma disciplina imposta
seguida de uma dominação. De acordo com Foucault (1987), essa coerção não faz
referência à escravidão ou à vassalidade - pois a primeira possui uma relação de
apropriação dos corpos e a segunda uma relação clara de submissão - mas sim a uma
adoção das “disciplinas”. Tais “disciplinas” - utilizadas com maior ênfase a partir dos
séculos XVII e XVIII - visam o aumento do comportamento obediente e dócil e a sua
utilidade através da coerção. Ainda de acordo com Foucault “ (...) em qualquer
sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem
limitações, proibições e obrigações. (FOUCAULT, 1987, p. 118).

Ainda hoje podemos perceber a forte repressão sobre corpo, sobretudo quando
este se apresenta compondo o figurino com a própria pele, como a que ocorreu no
Teatro Alberto Maranhão, em Natal, no Rio Grande do Norte, durante uma
apresentação de dança cuja bailarina apresentava como figurino sua forma natural.
Como este tema perpassa e transcorre a obra de Pedro Almodovar e Frida Kahlo e
está em conexão com os acontecimentos que ocorrem em nossos cotidianos, a partir
desse fato que aconteceu em nossa cidade, foi proposta uma discussão no grupo
Cruor Arte Contemporânea sobre a liberdade corporal, o corpo como arte, além de
fomentar a ideia da realização de uma instauração cênica, que abordasse tal temática.
Começaram a ser desenvolvidos laboratórios constituídos por exercícios psicofísicos
que pudessem dar o embasamento necessário à realização deste evento. Escolhemos
a frente desse teatro já citado, mais precisamente a Praça Augusto Severo, para
realizarmos a instauração cênica que foi denominada “Corpo Livre” no dia 26 de maio
de 2012, onde os participantes tiveram como figurino a pele pintada de branco,
dançando ao som do Pau e Lata, as partituras corporais construídas nos laboratórios,
por apenas três minutos. Tão pouco tempo para a dança está pautada na afirmação do
advogado Thiago Lauria, consultor jurídico do projeto JurisWay4, que a partir do Art.
233 do Código Penal, nos informa:

A apresentação pública em estado de nudez configura o crime


de ato obsceno, punido com até 1 ano de detenção pelo Código
Penal. Mas, por que se permite que atores e atrizes se
apresentem em cenas de nudez parcial ou total em peças de
teatro? A resposta é simples. O crime de ato obsceno somente
se configura quando o agente tem a vontade de provocar um
atentado ao pudor público, ou seja, quando ele utiliza sua nudez
dolosamente com o intuito de causar escândalo. Nas peças
teatrais, a nudez é apenas uma parte integrante do espetáculo.
O dolo do agente não é de chocar ninguém, mas de interpretar
seu personagem. Mais que isso, tem-se aí uma verdadeira
manifestação de um direito de expressão, protegido
constitucionalmente. Logo, nesse caso, não há que se falar em
crime..(LAURIA:.2013)

No primeiro laboratório, utilizaram-se vestidos transparentes, confeccionados


com voal branco, para o processo de desnudamento. Esse processo é longo, pois não
significa apenas retirar a roupa, mas desnudar-se dos preconceitos e pudores,
envolvendo também a aceitação do próprio corpo, de assumir suas formas, de mostrar
estas para as outras pessoas. Foi escolhida a utilização do voal branco, porque a
transparência ajudaria no processo de ficar com o figurino da pele, pois esta
indumentária possibilita mostrar o corpo, porém mantendo a sensação de estar
vestido.

A metodologia utilizada nesse laboratório foi a técnica Viewpoits que é uma


forma de treinamento para a dança e o teatro. O Viewpoints como é denominado no
Brasil, sem a tradução como Pontos de Vista, pois, assim ficou decidido entre os
pesquisadores que trouxeram a técnica para cá. Surgiu em 1979 quando Anne Bogart
conheceu a coreógrafa Mary Overlie, a inventora do Six Viewpoints: Espaço, Tempo,
História, Movimento, Forma, Emoção. Esta técnica se conforma como um modo de
estruturar tempo e espaço na improvisação em teatro e dança, Anne Bogart adotou
essa metodologia em sua prática como diretora de teatro e por meio de um trabalho
de colaboração com Tina Landau expandiram gradualmente para Nove Viewpoints
Físicos: sendo quatro Viewpoints de Tempo: Andamento/Velocidade; Duração;
Resposta Sinestésica; Repetição; e cinco Viewpoints de Espaço: Forma; Gesto;
Arquitetura; Relação Espacial; Topografia. Além dos nove Viewpoints físicos de tempo

4
JurisWay é um projeto educacional, focado nos princípios de Responsabilidade Social avançada, cuja meta é apoiar a
formação do trabalhador, promover o desenvolvimento social e valorizar o sentimento de cidadania. O projeto contempla
a inserção do cidadão no mundo legal, na medida em que atua como suporte na compreensão de que a cidadania plena
pressupõe direitos, deveres e limites. Fonte: http://www.jurisway.org.br/v2/jurisway_eh.asp. Acessado em 26/03/2013.
e espaço, criaram ainda Seis Viewpoints Vocais: Altura; Dinâmica; Andamento;
Aceleração/Desaceleração; Timbre; Pausa (silêncio).
Esta técnica pode contribuir para o desenvolvimento de uma conduta mais
sensível, perceptível e compartilhada por parte do ator/atriz e do bailarino/bailarina na
geração de material improvisacional e compositivo. Os exercícios de Viewpoints
trabalham a criação de ações baseadas na consciência do tempo e do espaço na
relação entre os atuantes, coletivamente, ao invés de intenções prévias simuladas por
um viés excessivamente individual e subjetivo, nomeado por Bogart (2005) como
“psicológico”, viés este proposto inicialmente no âmbito do teatro por Constantin
Stanislavski5 para a criação e construção de personagem e desempenho de papéis na
cena. A isso acrescentamos a característica ritualística da repetição da ação e de
movimentos, criando atmosferas e um corpo em estado alterado de consciência, para
a criação das partituras corporais finais.
Muitos utilizam a técnica Viewpoints cotidianamente, porém de forma
inconsciente. Verifica-se isso, por exemplo, ao andarmos em uma rua, pois podemos
perceber a realização de um trajeto de variadas maneiras e formas, que ocorre em
uma determinada duração e tempo; a distância entre os corpos; e como estes se
relacionam e dialogam com espaço real. Quando essa técnica é trabalhada podemos
nos apropriar e nos tornar conscientes dos processos que ocorrem durante a
realização de um movimento. A conscientização é fundamental para os processos de
criação e improvisação, pois a exploração das ferramentas dadas pelo Viewpoints abre
a possibilidade para novas movimentações corporais no espaço, aumentando a
variação dos movimentos. Além disso, essa técnica não é praticada individualmente,
não é um trabalho introspectivo e sim expansivo, diretamente ligado com o “como
você se relaciona” – estruturando o tempo e o espaço e criando conexões com o
environment, é um trabalho de escuta permanente de si, do outro e do lugar aonde se
encontra com uma altíssima percepção.

Esse trabalho foi fundamental para a criação de um contexto de entrega, pois


gerou uma atmosfera de confiança e de liberdade entre o grupo, assim como para a
improvisação de movimentos e desenvolvimento da espontaneidade. Nossas
pesquisas envolvem ainda um outro processo de desnudamento que pressupõe o
envolvimento do limiar arte/vida, como coloca Richard Schechner, “o performer
precisa trabalhar duro se quiser desenvolver a coragem e a técnica necessárias para

5
Constantin Stanislavski, Pseudônimo de Konstantin Sergueievitch Alekseiev (17/1/1863 - 7/8/1938). Ator e diretor de
teatro russo, criador de um novo estilo de interpretação, o método Stanislavski, baseado em criação psicológica e física
do personagem, naturalidade, fidelidade histórica e busca de uma verdade cênica. In Biografia de Constantin
Stanislavski: Fonte: http://www.algosobre.com.br/biografias/konstantin-stanislavski.html. Acessado em: 25/11/12.
deixar a sua máscara de lado e se revelar como ele realmente é, na situação extrema
da ação que ele está interpretando” (SCHECHNER, 2009, p. 334). A partir desses
laboratórios, pode-se perceber que o grupo não estava mais ligado a imagem corporal
dos corpos pintados de branco na sala de ensaio, pois já haviam tirado a túnica de
voal branco, mas sim as sinestesias6 provocadas pelo ambiente e pela relação entre os
corpos. Assim, naturalmente, durante esse laboratório, iniciou-se o desenvolvimento
de uma partitura fixa de três minutos, que seria utilizada na instauração cênica “Corpo
Livre”. Essa partitura é composta por uma mandala formada pelos corpos dos
integrantes, onde todos podem ver uns aos outros e ter dentro da mandala formada,
livre movimentação para as suas partituras individuais criadas, as quais podem passar
por brevíssimos momentos de improvisação. Para Schechner (2009) a criação dessas
partituras individuais se torna parte fundamental do processo de criação física e coloca
o performer em um lugar que possibilita uma maior liberdade de experimentação
assim como em tradições teatrais que pressupões regras fixas de atuação. Para esse
autor “A liberdade que uma tradição propicia é a mesma que uma partitura propicia.
Uma partitura é uma tradição em miniatura” (SCHECHNER, 2009, p.336). Ainda
segundo este autor:

A cada performance, o performer tenta encontrar para si – e


vivenciar diante do público – o processo de nascimento,
crescimento, abertura, derramamento, morte e renascimento.
Esse é o mistério do ritmo da vida do teatro, o “teatro ao vivo”.
Esse é o centro da experiência mais pessoal do teatro, o lugar
onde arte, medicina e religião se encontram. (SCHECHNER,
2009, 365).

Assim foi percebida pelo grupo uma introdução na atmosfera ritualística


pautada no uso do espaço que foi desenvolvida no decorrer do processo criativo dessa
atividade artística, e que ganhou força durante a primeira apresentação da
instauração cênica, na segunda realizada na CIENTEC – Semana de Ciência,
Tecnologia e Cultura, na UFRN, em outubro de 2013 e na terceira realizada durante a
XII Semana de Antropologia no CCHLA/UFRN, cujo tema era "Antropologia, Políticas
Públicas e Direitos Humanos".

6
Sinestesia é diferente de Cinestesia (movimento e percepção muscular). Sinestesia se refere ao sensorial, a capacidade
de fundir ou misturar diferentes sentidos, por exemplo, conseguir ouvir (audição) um movimento visual (visão) ou sentir
cheiro (olfato) ou gosto (paladar) de uma imagem visual (visão) ou visualizar (visão) ao ouvir (audição) uma música,
sendo que um sentido pode evocar imediatamente um outro significando a relação subjetiva que se estabelece
espontaneamente, entre uma percepção e outra que pertence ao domínio de um sentido diferente. Por exemplo, um
perfume que evoca uma cor ou um som que invoca uma imagem, provocando comoção e emoção e produções de
sentidos. Para Bogart Kinesthetic Response, ou o “o movimento espontâneo que ocorre a partir da estimulação dos
sentidos” (2005, p.8)
Nos dias em que foram realizadas as instaurações foi perceptível a utilização
de diversos aspectos ritualísticos presentes na ação, desde a preparação até o
momento da apresentação, no sentido dado pela antropologia. Dessa forma, podemos
abordar a relação entre processo criativo, cena e ritual por diversas perspectivas. O
universo simbólico dos rituais, por exemplo, se apresentou como uma abordagem
interessante para pensarmos essa relação entre o ritual e a cena.

O antropólogo Victor Turner (1974), aborda em seu livro os processos rituais


em especial da sociedade Ndembo, localizada no noroeste de Zâmbia. Eles atribuem
valores ritualísticos diretamente às crises da vida social das aldeias, sobretudo nas
questões ligadas a subsistência como a caça, a agricultura e a fertilidade, além de
crerem que através dos rituais podem cessar conflitos referentes à esfera espiritual ou
social. Há uma presença muito forte de símbolos, como: objetos, gestos, cantos,
preces dentro de uma unidade de tempo e espaço, pois os Ndembos atribuem aos
símbolos à corporificação da “ação invisível”, realizada por feiticeiros e sombras, que
facilita a resolução do problema em questão.

Esses rituais têm características diferenciadas e são divididos em classes,


como: “rituais das mulheres”, “rituais de procriação”, essas classes também têm
subdivisões como é o caso do isoma que é uma subclasse dos “rituais dos espíritos
ancestrais, ou sombras”. O isoma tem como finalidade sanar as doenças, que
“prendem” a fertilidade da mulher, causadas por uma maldição que fora lançada por
alguma parenta morta, devido ao não cumprimento do respeito e fidelidade da mulher
a sua família matrilinear. Esse ritual ocorre de forma processual em três etapas, o
Elimbi (separa a mulher do mundo profano), o Kunkuka (separa a mulher da vida
secular) e o Ku-Tumbuka (dança festiva que celebra o afastamento da interdição da
sombra e a volta da paciente a vida normal).

A exposição do problema é um dos principais caminhos abordados pela


sociedade Ndembo para a busca da cura de enfermidades. Eles creem que quanto
mais se fala, quanto mais o problema ganha dimensões palpáveis ou formas, que em
geral se materializa em símbolos, mais fácil será o seu enfrentamento. Quando se
esconde o problema mais difícil se torna a sua resolução.

Nessa perspectiva podemos ligar os símbolos - cortejo em silêncio com


proximidade dos corpos com deslocamento pelo espaço em bloco ou cardume, termo
mais usual no teatro e na dança, figurino constituído pela pele pintada de branco,
música ritualística realizada no momento da ação dançada -; utilizados na instauração
cênica Corpo Livre à esse enfrentamento dos problemas através da corporificação da
ação invisível. E o principal elemento ritualístico como símbolo utilizado nessa
instauração -que auxilia no enfrentamento dessas questões- é o próprio corpo como
figurino, livre de vestes, e de pudores e tabus ligados ao corpo, em três minutos de
partituras dançadas que celebram a vida em sua mais expressiva liberdade e livre de
tabus e preconceitos.

Além disso, esse corpo coberto por uma coloração branca posto na cena trás a
referência de que em muitas sociedades como a Ndembo, pintar o corpo com tinta
branca representa pureza, vida, fertilidade. Assim o corpo é o próprio símbolo, e esse
símbolo se apresenta na instauração cênica não com o intuito de chocar, ou ferir o
pudor dos observadores, mas sim para causar uma fruição artística, além de
questionar, indagar a negação da nudez do corpo “o primeiro e mais natural
instrumento do homem” (MAUSS, 2007, p. 407).

Os três minutos dançados em “Corpo Livre” podem ser encarados como a


liminaridade, que se constitui no ritual, como o distanciamento onde tudo é permitido
e ficam suspensas as atividades e compreensões normais do cotidiano se configurando
como uma ação extracotidiana na acepção de Barba (1995).

Segundo Turner:

Os atributos da Liminaridade, ou de persone (pessoas) liminares


são necessariamente ambíguos, uma vez que esta condição e
estas pessoas furtam-se ou escapam à rede de classificações
que normalmente determinam a localização de estados e
posições num espaço cultural. As entidades liminares não se
situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições
atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e
cerimonial. Seus atributos ambíguos e indeterminados
exprimem-se por uma rica variedade de símbolos, naquelas
várias sociedades que ritualizam as transições sociais e
culturais. Assim, a liminaridade frequentemente é comparada à
morte, ao estar no útero, à invisibilidade, à escuridão, à
bissexualidade, às regiões selvagens e a um eclipse do sol e da
lua. (TURNER, 1974, p.117).

Trabalhando então nesta esfera ritual, mítica e liminar o corpo em seu figurino
de pele pintada de branco, adquire um aspecto político, ao questionar as leis que
geram a moral social, se colocando entre o permitido e o não permitido. No ritual em
um mundo contemporâneo onde não se propõe uma unanimidade de fé ou crença a
arte pode transgredir as normas propondo se pensar e se questionar valores, assim
como expressar poeticamente o pensamento. O nu artístico aqui estaria assim
protegido por esta esfera liminar ao ser colocado como parte do ritual de celebração
de corpos libertos.
Finalizamos em concordância com FREIRE (2013, p. 1):

...onde então reside o problema da nudez, pelo menos daquela


que suscita repúdio e incompreensão? O que aflige e perturba
os espíritos conservadores é esta nudez que ousa se colocar
como protagonista, como força viva e afirmativa capaz de
provocar mais do que sensações orgânicas e pensamentos
sexuais superficiais de subjugação e apossamento. Quer dizer,
capaz de suscitar nos corpos vestidos dos espectadores,
estranhamento, entusiasmo reflexivo, fervor estético e
sentimentos desconcertantes, tal como fez o provocativo grupo
do DEART em sua intervenção.

Pela criatividade estética e ousadia política, o grupo Cruor, em


sua manifestação, ergueu a nudez à condição de sujeito,
portanto, ao mesmo tempo como expressão artística e política.
É isto que assusta, porque a nudez assim mostrada
desestabiliza hierarquias e à dominação das normas e do
regramento cotidiano. É este potencial transgressivo da nudez,
capaz de revelar a hipocrisia e arbitrariedade de nossas
convenções e o disparate de nossas neuroses o que de fato
atemoriza profundamente os desprezadores do corpo.

E ainda com BROOK (1970) que afirma:

O teatro (...) sempre se afirma no presente. É isto que pode


torná-lo mais real do que o fluxo normal de consciência. E é
também isto que pode torná-lo tão perturbador. Nenhum tributo
ao poder latente do teatro é tão expressivo quanto o que lhe
presta a censura. Na maioria dos regimes, mesmo quando a
palavra escrita é livre, a imagem livre, o palco ainda é o último
a ser libertado. Instintivamente, os governos sabem que o
acontecimento vivo poderia criar uma eletricidade perigosa –
mesmo que só raramente vejamos exemplos disso. Mas esse
medo antigo é o reconhecimento de uma antiga potência. O
teatro é a arena onde pode acontecer uma confrontação viva. A
atenção concentrada de um grande número de pessoas cria
uma intensidade singular – devido a isso, forças que operam o
tempo todo e governam o dia-a-dia de cada um podem ser
isoladas e percebidas com maior clareza. (BROOK, 1970, p.
57,58)

O Cruor Arte Contemporânea é composto por alunos e alunas de vários cursos


de graduação e pós-graduação da UFRN apontados a seguir: Alexandre Araújo de
Oliveira, Cecilia Oliveira, Délia Régis Paiva Diniz, Fernanda Estevão, Heloisa Sousa,
Josie Pessoa, Keila Campanelli, Marcelo Dantas Lago, Marina Ataíde, Mauricio Motta,
Pablo Vieira, Patricia Tobias, Sandro Souza Silva, Sulamita Rodrigues, Yasmin
Rodrigues Cabral, sob a coordenação da segunda autora deste texto.

Bibliografia:
ABREU, Luís Alberto de. Raízes do Processo Colaborativo. In: Sarrafo no 09, março
2006. Disponível em www.jornalsarrafo.com.br/sarrafo/edicoes.htm. Acesso em
25/03/2012.
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Max Limonad, 1987.
ARTAUD, Antonin. Linguagem e Vida. São Paulo: Perspectiva, 1995.
BARBA, Eugenio. A arte secreta do ator. São Paulo: Hucitec/UNICAMP, 1995.
BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. Petrópolis: Vozes. 1970.
BOGART, Anne. The viewpoints book. New York: Theatre communications group,
2005.
FOUCALT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
LAURIA, Thiago. Nudez em peça teatral. Pode? 2013. Disponível em
http://www.jurisway.org.br/v2/drops1.asp?iddrops=243
LEVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1957.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Saõ Paulo: Cosacnaify, 2007.
NABUCO, Alex. Artaud. In: Cem anos de Artaud. Agosto 1996, Disponível em
http://www.quattro.com.br/passage/artaud.htm
PEIRANO, Mariza. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
SCHECHNER, Richard. Performer. In: Revista Sala Preta, v.9, n.1, p. 333-365, 2009.
Disponível em
http://www.revistasalapreta.com.br/index.php/salapreta/article/view/306.
TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petropolis: Ed Vozes,
1974.
ABREU, Luís Alberto de. Raízes do Processo Colaborativo. In: Sarrafo no 09, março
2006. Disponível em www.jornalsarrafo.com.br/sarrafo/edicoes.htm. Acesso em
25/03/2012.
1

HIBRIDISMO RELIGIOSO NO SERTÃO COLONIAL: CONFESSANDO-SE,


RISCANDO-SE, BAILANDO E CULTUANDO A SANTIDADE INDÍGENA
(1564-1593)

ANDREZA SILVA MATTOS


Mestranda em História – UFS e Especialista em Ciências da Religião – UFS
hist.andreza@yahoo.com.br

JOSEVÂNIA SOUZA DE JESUS FONSECA


Mestranda em História – UFS; Especialista em História Cultural – UFS.
souzajosevania@gmail.com

RESUMO: Objetivamos nesta pesquisa apresentar alguns aspectos do hibridismo


religioso comum do sertão colonial no século XVI. Tomaremos como guia, o renomado
capitão Domingos Fernandes Nobre, de alcunha Tomacaúna – mameluco e cristão-
velho. O marco temporal compreende o período entre 1564 e 1593 por abarcar,
respectivamente, o momento em que o mameluco abandona, aos 18 anos, o litoral e
embrenha-se no sertão; e 1593, momento que Tomacaúna retorna sua rotina no
sertão. As práticas relativas ao hibridismo religioso desse sujeito vieram à luz do
nosso conhecimento por meio da confissão inclusa no seu processo inquisitorial, a qual
expõe parte de sua trajetória de vida como as relações sociais tecidas entre Domingos
Tomacaúna e os indígenas que cultuavam a Santidade no sertão colonial,
possibilitando-nos refletir acerca do meio social, da mentalidade, dos usos e dos
costumes gentílicos necessários à sobrevivência nessas paragens.

PALAVRAS-CHAVE: Sertão. Cotidiano. Santidade. Hibridismo Religioso.

I – Aspectos introdutórios
Com o advento da instalação da comitiva inquisitorial na Cidade de Salvador,
em 1591, muitos processos foram instaurados revelando o mundo cultural de
mamelucos que assumiram a posição de soldados e passaram a integrar as entradas
que partiram rumo ao sertão colonial para descerem os índios.
No século XVI, o conceito de sertão não possuía o significado atual, isto é, de
uma região que se estende desde as proximidades da margem direita do rio Parnaíba,
no seu extremo norte, até o rio Itapicuru no seu extremo sul, abrangendo as terras
centrais dos Estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco,
Alagoas, Sergipe e Bahia (CASTRO, 1965). Dicionários contemporâneos como o Novo
Dicionário Brasileiro, organizado por Adalberto Prado e Silva (1965) e o Pequeno
Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira
(1971), atribuem ao sertão significação de lugar distante de povoações ou de terrenos
cultivados, floresta no interior do continente ou longe da costa.
2

Como preceituam Erivaldo Fagundes Neves e Antonieta Miguel (2007, p. 14),


o sentido do sertão do século XVI se expressaria na ideia espacial de interior e social
de deserto, região pouco povoada, que transcenderia qualquer delimitação precisa.1
Há, entre os pesquisadores, um consenso ao considerar o sertão como um
lugar despovoado, distante do litoral, mas não necessariamente árido. Cristina Pompa
define o sertão da seguinte forma:
O sertão é descrito por meio de imagens em oposição,
representando ao mesmo tempo espaço vazio e lugar de
riquezas, reino da barbárie e da selvageria e paraíso de
liberdade: território vazio, o sertão é o espaço que, no pano de
fundo da nascente colônia, povoa-se de imagens, construídas a
partir de elementos existentes no imaginário português e
conforme as situações específicas criadas pela situação colonial
(2003, p. 200).
Podemos considerar a partir da citação que o espaço é o lugar praticado com
suas contradições e relações. É, portanto, o lugar sem estabilidade ocupado pelas
entradas ou bandeiras e missões religiosas. Concluímos então que, à medida que as
redes de relacionamentos iam sendo tecidas entre os soldados mamelucos, o lugar
sertão transformar-se-ia em espaço sertão. O sertão do século XVI foi um “mundo”
em movimento.
Entre os soldados mamelucos que se relacionaram no sertão colonial,
destacamos Domingos Fernandes Nobre – mameluco que revelou, na sua confissão
inquisitorial, ser cristão-velho, “natural de Pernambuco, filho de Miguel Fernandes,
homem branco, pedreiro e de Joana, negra do gentio deste Brasil, defuntos, de idade
de quarenta e seis anos, casado com Isabel Beliaga, mulher branca, cristã velha,
morador nesta cidade e não tem ofício” (VAINFAS, 1997, p. 346).
Propomo-nos, a partir deste indivíduo, a recompor o percurso social e tentar
reconstitui-lhe as escolhas. Interrogaremos sobre suas experiências e, por
conseguinte, sobre o modo de formação de sua identidade social, definida por Stuart
Hall (2006) como identidade cultural híbrida.
Numa perspectiva macro-histórica, identificaremos qual foi o fundamental

1
Ao realizar uma análise etimológica do vocábulo sertão, Gustavo Barroso (1983), apoiando-se no
Dicionário da Língua Bunda da Angola, organizado por Bernardo de Maria de Carnecatim (apud NEVES;
MIGUEL, 2007), confere a origem do vocábulo “sertão” a muceltão, corrompido em celtão e depois, certão,
cujo significado, em latim seria lócus mediterraneus, ou lugar entre terras. Ainda mencionou sua acepção
como interior, sítio longe do mar ou mesmo mato distante da costa, definição que se coaduna com o conceito
de sertão nesta pesquisa adotado. No tocante à língua portuguesa, Barroso (1983) nos elucida que essa
significação recebeu, indevidamente, a equivalência de “desertão” cujo correspondente seria deserto grande,
do qual surgiu “sertão” como forma contraída. Corroborando ao esclarecimento etimológico do termo
analisado, Goes (1991) cita que a palavra “desertão” traduz a ideia de amplitude geográfica de baixa
densidade populacional. Ainda sobre o assunto, Jerusa Pires Ferreira ([s.d] apud NEVES; MIGUEL, 2007, p.
10), propõe que se atribua a origem do vocábulo sertão a “sertanus, advinda de sertum, particípio e passado
de sero, serui, ser”, que se explica por “entrelaçar, entrançar”, com o sentido de “o que está entrelaçado”,
numa alusão à vegetação contínua.
3

papel dos dogmas católicos para os soldados mamelucos; perceberemos as práticas


socioculturais comuns no sertão colonial e como se estabeleceram as contradições da
estrutura social.
Essa realidade social e cultural a qual nos propomos abstrair é um complexo
formado igualmente por indivíduos,2 mas que não pode ser encontrada no indivíduo
isoladamente, se não em relação com as características do todo que constituem – é,
pois a concepção sistêmica da realidade de que trata Júlio Aróstegui (2006). “Tanto a
ação do sujeito individual como a do coletivo são absolutamente imprescindíveis para
poder interpretar, compreender ou explicar a ação histórica” (Ibid, p. 330).
Nas palavras de Júlio Aróstegui (2006), o historiador dá conta do tempo
histórico através de três categorias: a cronologia – tempo da história em relação ao
tempo astronômico que estabelece o antes e o depois; o tempo interno – marcado
pelo curso dos acontecimentos; e a periodização com a determinação do espaço de
inteligibilidade, o qual é sempre relativo, existindo uma clara hierarquização dos
momentos cronológicos. Pretendemos fazer uma articulação dos tempos, uma forma
de conciliação entre o tempo externo da medição cronológica e o tempo interno das
vivências sociais e humanas, pois, como afirma Aróstegui, “a um único tempo
cronológico podem corresponder diferentes tempos internos” (2006, p. 345).
Tomando como parâmetro o conceito de tempo cronológico acima
mencionado, focaremos nos período entre 1564 e 1593 por abarcar, respectivamente,
o momento em que o mameluco abandona, aos 18 anos, o litoral e embrenha-se no
sertão; e 1593, momento em que Tomacaúna retoma sua rotina, após o Visitador
embarcar para inquirir os moradores de Pernambuco.
Tomacaúna será um guia que a nós revelará as práticas híbrido-culturais
expressas em sua confissão. Os relatos informam-nos parte de sua trajetória de vida,
seus costumes que contradisseram os ensinamentos religiosos.

II- O personagem e seu meio social


A população de mestiços residente na Bahia colonial, no final do século XVI, era
bastante numerosa. Conhecidos, nas fontes quinhentistas como mamalucos ou
mamelucos, os mestiços ascendentes de pai português e mãe índia, foram batizados,
tornando-se oficialmente cristãos. Contudo, ressaltamos que não foram eles, aos olhos
da Igreja, bons católicos, a exemplo do mameluco Domingos Fernandes.
João Ribeiro (1957) e Darcy Ribeiro (1995) nos guiarão quanto ao entendimento
do que significava ser mameluco no contexto do Brasil Colonial do século XVI. O

2
Entende-se aqui por “indivíduos” não somente homens, mas todo tipo de “unidades” em que os fenômenos
sociais podem se decompor: ações, palavras, números, coisas materiais, símbolos culturais de qualquer
gênero, etc. (ARÓSTEGUI, 2006, p. 321, nota 21).
4

primeiro apresenta os mamelucos (denominação portuguesa) ou curibacas


(denominação indígena) como filhos oriundos do cruzamento entre mulheres índias
com brancos; o segundo, em O Povo Brasileiro, complementa esclarecendo que a
denominação portuguesa de mamelucos aos brasileiros foi empregada “pelos jesuítas
espanhóis horrorizados com a brutalidade e desumanidade desse povo para com sua
descendência” (1995a, p. 107).
Domingos Fernandes Nobre, bem como seus semelhantes, era um homem que
vivia entre os ameríndios e os portugueses. Seu comportamento, por conseguinte,
oscilava entre ambos os costumes vivenciados, isto é, quando saia da convivência
ameríndia, regressavam ao povo português dotado de comportamentos revestidos por
hábitos nativos, mas logo estes eram, facilmente, influenciados pelo novo ambiente
cultural. Ao sair das áreas colonizadas e ingressar no sertão, ele sentia parte de seus
costumes portugueses entrar em confluência com a cultura tupi, levando-o a agir de
modo ambivalente.
Os mamelucos, homens ordinários, constituíam uma categoria imersa numa
sociedade cristã marcada pela intolerância. Conforme pondera Riolando Azzi (2002),
todos os habitantes da Bahia deveriam expor publicamente a crença católica, sendo
tal exposição não apenas uma manifestação de fé, mas também, uma expressão
cultural. Aquele que a religião católica não professasse, seria considerado herético,
como foram os nativos pagãos. Havia na sociedade baiana, da segunda metade do
século XVI, uma nítida distinção dos conceitos de pagão e de cristão. Para Riolando
Azzi, cristã era a maneira de viver própria dos lusos; pagã, a organização social dos
indígenas. Cristãs eram as tradições lusitanas; pagãos, os costumes dos gentios.
Cristãos, eram os nomes portugueses, devendo os indígenas renunciarem seus nomes
‘gentílicos’ ao serem batizados” (AZZI, op. cit., p. 22, grifo do autor).
Da citação, depreende-se que a sociedade baiana estava polarizada etnicamente
entre dois lados antagônicos: o ser cristão e os outros (os indígenas, os negros e os
judeus). Como pondera Severino Vicente Silva, “estava se travando uma luta entre as
crenças das tradições nativas e a daqueles que vieram para a realização do trabalho
missionário” (SILVA, In: BRANDÃO, 2002, p. 135). Ressalta o autor, que a “formação
do catolicismo brasileiro é prenhe dessa disputa entre o bem e o mal, da forma
definida pelo Concílio de Trento, reagindo às críticas dos reformadores” (Ibid).
Domingos Fernandes Nobre fazia uma ponte cultural entre o mundo cristão/bem
e o mundo indígena/mal. Foi ele um homem híbrido até no nome: Domingos
Tomacaúna - Domingos em homenagem ao santo; Tomacaúna, aos gentios valentes.
Vivia entre esses dois mundos, oscilando seu comportamento de acordo com as
5

circunstâncias. Não o fazia somente por vontade, a sociedade colonial com suas
contradições exigia, indiretamente, tal comportamento.
Nas palavras de Luiz Henrique Dias Tavares, a sociedade baiana era “agrária,
escravista e mercantil, com estrutura social fortemente hierarquizada” (2001, p. 69).
Os status eram diferenciados a partir dos papéis desempenhados (SIQUEIRA, 1978).
Nesta perspectiva, para não se tornar apenas um lavrador ou alfaiate, assim como foi
a maioria dos soldados mamelucos, Domingos Tomacaúna teve que responder às
exigências da economia capitalista comercial em expansão: recorreu às expedições
sertanistas e, por meio delas, contribui, intensamente, na colonização dos sertões
brasileiros. Esperava auferir terras doadas, através de sesmarias, àqueles que
contribuíram na ocupação dos territórios, o que conseguiu na próspera Sergipe Del
Rei, mesmo sem ter participado de tal empreitada comandada por Cristóvão de Barros
(Carta de sesmaria de Domingos Fernandes Nobre – Livro 1, [fol. 34 – 34v]) – CD-
ROM, nº 0024).
O governo baiano incentivou a colonização do território por meio de entradas
militarizadas. Não foram apenas os elementos político-econômicos que incentivaram
essas expedições. Cabe aqui mencionar que a ocupação do sertão foi, do mesmo
modo, motivada por fatores religiosos cujo objetivo foi introduzir o catolicismo, como
uma forma de converter os indígenas, os quais, segundo Pe. Manuel da Nóbrega, em
carta de 1549, a nenhuma coisa adoravam e não tinham conhecimento “nem da glória
nem do inferno, somente dizem que depois de morrer vão descansar num bom lugar,
e em muitas coisas guardam a lei da natureza” (NÓBREGA, 1549, in: HUE, 2006, p.
39). Ressaltamos que os jesuítas de tudo fizeram para converter os gentios, uma vez
que havia uma satanização dos aspectos religiosos tanto desses povos, como dos
povos de origem africana (SILVA, In: BRANDÃO, 2002).
A religião era, na sociedade colonial, um fator de integração à medida que
contribuía para reforçar as normas vigentes pelo modelo cultural português, modelo
este que não foi tão bem compreendido pela mentalidade híbrida dos mamelucos.
Tomacaúna era, em alguns momentos, um descrente, um cético; em outros, um
homem preocupado em seguir os ensinamentos da doutrina católica. Sua identidade
híbrida cultual se revela em todas as atitudes manifestadas.
Compreendemos a identidade cultural híbrida à luz de Stuart Hall (2006), para
quem o sujeito é fragmentado, composto não só de uma única, mas de várias
identidades que se transformam numa celebração móvel que varia segundo o sistema
cultural que rodeia o indivíduo. É uma identidade “formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados
nos sistema cultural que nos rodeiam” (2006, p. 13).
6

Constatamos, então, que o comportamento dos mamelucos não era uniforme e


coerente, mas extremamente variado e confuso, caracterizado pela circularidade
cultural na qual estavam imersos. Relacionamos a circularidade cultural dos soldados
mamelucos com o hibridismo cultural de que trata Peter Burke, para quem o conceito
é um processo, e não como um estado, através do qual as culturas estão envolvidas
entre si, sem que exista uma fronteira nítida, e sim, pelo contrário, um continuum
cultural (BURKE, 2003).
Domingos Tomacaúna estava sempre oscilando entre as duas culturas, e, ao
mergulhar na cultura gentílica, fazia ouvidos moucos a todos os ensinamentos
católicos: comeu carne em dias proibidos, participou da seita da Santidade Indígena,
tatuou o corpo à moda tupi, desposou várias índias e entregou armas aos indígenas
para lutar contra os portugueses.
Contra as atitudes ou práticas culturais que contradisseram os dogmas cristãos,
os jesuítas impenharam-se, veementemente. Não apenas contra as atitudes dos
mamelucos, mas contra as dos índios e as dos colonos portugueses. A colônia estava
imersa em muitos escândalos e os jesuítas mal podiam acreditar que no que viam:
Colonos portugueses que ali encontraram eram piores e mais
bárbaros que os próprios índios – causavam “muitos
escandalos”, tinham muitas mulheres e filhos ilegítimos, viviam
todos em pecado mortal, sem se confessarem havia anos. Os
clérigos, “a escória”, cultivavam o mesmo tipo de vida dos
colonos. Estavam todos perfeitamente tupinizados, vivendo
como o diabo gosta [...]. (NÓBREGA, 1549, in: HUE, 2006, p.
12, grifo do autor).
Os colonos, muitas vezes, deixavam de obrigar seus escravos e dependentes a
cumprirem os preceitos católicos. “Não edificavam com o exemplo, inobservantes
também os senhores aos deveres litúrgicos. Não podiam pedir correções e virtudes
que eles próprios não tinham” (SIQUEIRA, 1978, p. 49). Diante desse quadro, os
jesuítas passaram a “valorizar o tempo quaresmal e a semana santa como um período
oportuno para incentivar os fiéis para uma revitalização do espírito cristão, através da
via penitencial” (AZZI, 2001, p. 63). Encontraram, contudo, dificuldades básicas como
a escassez de missionários diante das numerosas populações indígenas a serem
convertidas e a pouca perseverança dos adultos na prática da fé católica (Ibid, p. 94).
O meio social híbrido no qual viveram os mamelucos foi, definitivamente, uma
preocupação à dilatação da cristandade, visto que o sentimento religioso português
compreendia que o “homem não pode separar sua ação social de sua ação religiosa”
(SILVA, In: Revista Eclesiástica Brasileira, 2002, p. 136). E para Domingos
Tomacaúna, a atuação social no sertão passava longe dos preceitos religiosos, como
pode ser constatado na sua confissão perante o Visitador Heitor Furtado de Mendonça.
7

III - Domingos Tomacaúna: um réu do santo ofício


A partir de 11 de fevereiro de 1591, os moradores da Bahia passaram a viver em
clima de desconfiança. Muitos mantiveram sob sua consciência o tormento de ser
compelido a delatar companheiros conjugais, familiares e amigos durante os
interrogatórios direcionados pelo visitador do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição,
Heitor Furtado de Mendonça.
Com a chegada da comitiva inquisitorial, o clima social na colônia sofrera sérios
abalos. Muitas amizades, desafetos e casamentos haveria de parar na mesa do dito
visitador, o qual estava, nas palavras de Ronaldo Vainfas, despreparado para captar
as heresias nos meandros do cotidiano de uma população nada cristã. Contudo, de
uma coisa tinha certeza, era ele o porta-voz de uma “política de repressão aos valores
religiosos das camadas subalternas da sociedade colonial” (SILVA, In: BRANDÃO,
2002, p. 136).
Sônia Siqueira (1978) e Ronaldo Vainfas (2005) compartilham da ideia de que foi
complexo ao visitador compreender os deslizes dos mamelucos que se embrenhavam
pelas veredas dos sertões. A Inquisição estava desarmada para lutar contra a
miscibilidade das crenças dos mamelucos. Foi uma tentativa inútil que não conseguiu
dissipar do âmago desses homens, híbridos na carne e no espírito, as gentilidades.
(RIBEIRO, 1995b).
Entre os réus acusados de gentilidades, destacamos Domingos Tomacaúna,
mencionado por Pedro Calmom (1929) como sendo, possivelmente, o maior
conhecedor dos sertões colonial. Sua jornada a esses lugares iniciou em 1564, aos
dezoito anos, e desde então, passou a viver nessas paragens, adaptando-se às
situações impostas pelo ambiente. Viveu ao modo gentio “não rezando nem se
encomendando a Deus cuidando que não havia de morrer nem tendo conhecimento de
Deus, como verdadeiro cristão...” (VAINFAS, 1997, p. 346). Embora não fosse um
bom católico, disse que confessava na quaresma por obrigação e que nunca tinha
tirado Deus do seu coração (Ibid).
A vida conjugal dos mamelucos era sempre ameaçada pela distância e pelo
tempo. As expedições poderiam demorar meses ou anos. As esposas ficavam nas
regiões colonizadas (vilas, freguesias ou na cidade de Salvador) à espera dos maridos
os quais, no sertão, não respeitavam o sacramento do casamento. Muitos deles
desposavam várias índias. A título de exemplificação, podemos explanar que,
aproximadamente, entre 1570 e 1575, Domingos Tomacaúna manteve relações
sexuais com duas afilhadas gentias quando esteve no sertão de Pernambuco (Ibid.).
Ao ser perguntado sobre quanto tempo era casado, respondeu que já fazia vinte e três
8

anos. Disse que não recebia as índias por palavras da Igreja, “somente as tomava
como é costume entre os gentios para conservação de mulheres” (Idem).
No que concerne ao sacramento do casamento, a Igreja Católica defende que
todos devem respeitar o matrimônio e, por conseguinte, não desonrar o leito nupcial
para que não seja julgado por Deus como adúltero (Hb., 13:4, in: BÍBLIA SAGRADA,
1990). Esta orientação não despertou o interesse dos desbravadores que, estando nos
sertões, viviam à moda gentílica.
Outro comportamento que merece ser desvelado é o fato de os soldados
mamelucos riscarem os corpos à maneira tupi. Tomacaúna não fugiu ao costume. No
sertão de Arabó tingiu suas pernas com urucum e com jenipapo (VAINFAS, 1997).
João Gonçalves, mameluco integrante da expedição colonizadora de Sergipe,
confessou que, nessa região, deixou-se riscar o braço esquerdo (ANTT, IL, proc. nº 13
098). Com essas atitudes, os mamelucos, já batizados, passavam da condição de
cristãos à condição de índios, os quais não professavam, definitivamente, o
catolicismo segundo o qual é proibido fazer tatuagens (Lv., 19:28, in: BÍBLIA
SAGRADA, 1990). Imerso nessa cultura, os mamelucos indianizavam-se para obter
simpatia dos nativos. Tomacaúna, homem grande de corpo, era riscado nas coxas,
nádegas e braços (VAINFAS, 2005).
No sertão, Tomacaúna bailou, cantou e tangeu maracás durante a cerimônia
religiosa dos nativos: a Santidade. Conforme carta de Pe. Manuel da Nóbrega,
endereçada aos padres da Companhia de Jesus, em Coimbra, no ano de 1549, o chefe
da Santidade incitava os índios a não trabalharem, afirmando-lhes que chegaria o
tempo bom no qual nunca faltaria comida, pois o alimento cresceria sozinho e as
flechas iriam ao mato caçar (NÓBREGA, 1549, in: HUE, 2006, p. 36-37).
O chefe da Santidade denominou-se Antônio Tamadaré e iniciou sua pregação
contra os colonizadores. Suplicava suas mortes e suas escravidões, assim descreveu
Gonçalo Fernandes em sua confissão. Disse que “... tinham um ídolo de pedra o que
faziam suas cerimônias adoravam dizendo que vinha já o seu deus a livrá-los do
cativeiro em que estavam e fazê-los senhores da gente branca, e que os brancos iriam
virar seus cativos...” (ANTT, IL, proc. nº 17 762, fl. 01-02).
A participação dos mamelucos nos rituais da Santidade indígena revela que
uma ponte religiosa, entre as culturas ameríndia e portuguesa, levou muitos agentes
sertanistas a praticarem, assim como os nativos, hábitos católicos nas realizações das
cerimônias religiosas tupis, caracterizando o hibridismo religioso. Este ato superou, em
ordem de gravidade, todos os demais, seguido pela quebra do jejum.
A adesão à Santidade pareceu aos olhos do Visitador uma heresia, visto que
os mamelucos já havia sido batizados e submetidos aos ensinamentos católicos. Os
9

praticantes dessa manifestação religiosa foram de encontro ao conceito de heresia


incluso no Manual dos Inquisidores. Um dos conceitos por nós abordado diz respeito
ao verbo eleger (eligo), equivalendo desta forma à eleição. Neste caso, dizer eleitor é
o mesmo que dizer “herético”, pois o herético abandona a verdadeira doutrina e elege
uma doutrina “falsa” como verdadeira (EYMERICH, 1993).
A ocupação das terras conduziu os soldados mamelucos a adaptarem-se ao
mundo do sertão. Entretando, não viveram eles somente nessas paragens. Tiveram,
em algum momento, de retornar ao litoral devendo voltar a ser cristãos. “E ser cristão
sob qualquer céu, era ‘ter fé, crer e praticar a doutrina de Cristo’. Mais: deviam zelar
pela integridade do Catolicismo, i.e., manter sua ortodoxia inalterada” (SIQUEIRA,
1978, p. 99, grifo da autora).
De volta à colônia, Tomacaúna precisou de amparo relgioso e assumiu seu lado
de Domingos Fernandes Nobre. “Um desejo aguilhoante de ser branco suscitou-lhe
crises de consciência e prostrou-se aos pés do confessionário. Absolvido e reconciliado
tentou ser cristão” (SIQUEIRA, op. cit., p. 105). Oscilavam os mamelucos, oscilava
Domingos Tomacaúna. Não tardou para retornar ao sertão e praticar comportamentos
pouco ortodoxos, sobretudo, depois de 1593 - ano em que a Comitiva Inquisitorial
partiu da Bahia para Pernambuco. Sobre o assunto, Sônia Siqueira (1978) questionou
se o retorno dele ao sertão implicaria insiceridade. Respondeu ela que não! Alegou
que Tomacaúna, assim como os demais, era possuidor de fé oscilante, era homem
incoerente. O sertão desorganizava a vida religiosa.
Podemos citar como outra ação incoerente deste porta-voz as entregas de
armas aos nativos para lutarem contra os portugueses. Ele relatou ao visitador que no
sertão de Pernambuco, no rio São Francisco, “deu uma espada e rodelas, e adagas e
facas grandes de Alemanha, e outras armas aos gentios que são inimigos dos cristãos”
(VAINFAS, 1997, p. 350).
Ao entregar armas aos nativos, os soldados mamelucos estariam inclusos,
conforme preceitua Ronaldo Vainfas (1995, p. 212), na Bula da Ceia – documento que
decretava a excomunhão dos que fornecessem armas aos infiéis como foram os turcos
e mouros. Outra menção à entrega de armas como ação que exigia excomunhão foi
por nós encontrada nas “Determinações” – documento publicado por Capistrano de
Abreu (1935, p. XXXVII) no livro Primeira Visitação do Santo Offício às partes do
Brasil.
É válido ressaltar que os soldados mamelucos que entregaram armas aos
nativos não foram excomugados. Antes de partir para Perbambuco, o visitador decidiu
deixar “em paz a alma dos mamelucos – livrando-os de excomunhão e esvaziando,
10

por conivência, o conteúdo idolátrico da santidade e das ‘guerras gentílicas’ ”


(VAINFAS, 1995, p. 212, grifo do autor).
Tendo em vista os comportamentos anticristãos dos soldados mamelucos, os
documentos inquisitoriais dos quais dispomos, bem como a confissão de Domingos
Tomacaúna revelaram que o Visitador e demais religiosos não os consideraram como
bons católicos, como já mencionamos. No sertão, sentiram-se livres para praticarem
os costumes aqui abordados, acrescentando a eles, o hábito de comer carne na
quaresma – período caracterizado por jejum e meditação.
A não observação do calendário cristão foi uma falta comum aos soldados. Longe
dos olhos controladores da Igreja e na liberdade do sertão, não jejuaram e comeram,
portanto, carne de acordo com sua vontade, desrespeitando, veementemente, as
determinações da Igreja. Comer carne em dias defesos era peculiar ao hibridismo
cultural a eles intrínseco. Os mamelucos conheciam a importância do jejum, contudo,
no sertão habitado por índios pagãos a carne era alimento corriqueiro. Como bem
mencionara João André Antonil, “no sertão mais alto a carne e o leite é o ordinário
mantimento de todos” (1976, p. 201).3
Na concepção dos jesuítas, que presenciaram costumes vivenciados pelos réus,
assim como na concepção do Visitador do Santo Ofício, a desobediência às práticas
alimentares cristãs expressava a carência religiosa desses pecadores. A carne
consumida revelava particularidades culturais e identidades locais desses homens
híbridos e, sobretudo, indicava a intensidade de relação com a religião cristã que,
neste caso, era bastante frágil, caracterizando o limite reduzido do catolicismo na
influência da conduta desses homens (MATTOS, 2008). Nesta perspectiva, o jejum e a
abstenção da carne na quaresma foi um identificador da delicada religiosidade dos
soldados cristãos.

IV - Considerações Finais
As ações de Domingos Tomacaúna traduziram aspectos do cotidiano do sertão
colonial baiano. Seu comportamento expressa um desacordo com a maioria dos
valores de seu tempo apregoado pela doutrina católica. Ele trouxe à luz, com seu jeito
de ser mameluco, as incoerências dos homens que viveram pelos meandros do sertão.
Podemos afirmar ainda que ele foi um produto do sistema político-econômico em vigor

3
Na Colônia, os jesuítas reforçavam a existência de impedimentos alimentares aos fiéis. Davam o exemplo
da conduta esperada dos súditos cristãos como se observa na carta escrita pelo Provincial Inácio de Tolosa
(1569, fl. 02). Encontramos neste manuscrito que os religiosos davam esmolas e realizavam abstinência
para poder alcançar o favor de seu Deus e assim poderem agir contra os desleais inimigos da santa fé.
Podemos asseverar que todos os fiéis tinham ciência da obrigação das abstinências, visto que Tolosa
mandou publicar na cidade da Bahia que em todas as quartas-feiras, sextas-feiras e sábados era proibido
comer carne, mormente, na época da quaresma (TOLOSA, op. cit.).
11

que transformava grande parte de mamelucos em soldados colaboradores da


colonização das vastas terras brasileiras. Da subversão, emergiu na historiografia
sendo citado por renomados pesquisadores que a essa temática aludem.
Comeu carne, desposou nativas, entregou armas aos indígenas, bailou com os
mantedores da Santidade e tatuou-se. Tudo fez por imposição da necessidade. A
solidão do sertão levou Tomacaúna a desorganizar sua vida religiosa que já não era
organizada. Homem culturalmente híbrido. Ora gentio, ora cristão. Foi ele,
possivelmente, o mais sublime representante da ambivalência cultural de sua etnia: a
mameluca.
Ele, certamente, não foi bom cristão. Contudo, podemos asseverar que foi um
mameluco que atuou como soldado sertanista beneficiando a colonização. Tomacaúna,
soldado riscado de jenipapo, foi, acima de tudo, homem com uma identidade
deteriorada, perdido entre as duas culturas que o originaram.

V - Referência Bibliográfica
5.1. Fontes manuscritas
a) ANTT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, (APALS – Acervo
Particular do Prof. Dr. Antônio Lindvaldo Sousa).
Processos inquisitoriais:
17 762 (Gonçalo Fernandes);
13 098 (João Gonçalves).
b) BNP - Biblioteca Nacional de Portugal (APALS).
Correspondência jesuítica:
Carta do Provincial Inácio de Tolosa. Co. 41.532, fl. 164. Mo. doc. 2.909.
C) IHGS – Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
Carta de sesmaria de Domingos Fernandes Nobre – Livro 1, [fol. 34 – 34v]) – CD-
ROM, nº 0024.

5.2. Fontes impressas


a) Documentos inquisitoriais:
EYMERICH, Nicolau. Manual dos Inquisidores. Comentários de Francisco de La Pena.
Tradução de Maria José Lopes da Silva. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. Brasília:
Editora da Universidade de Brasília, 1993. 253p.
“Determinações encontradas no 1º volume das Denunciações”. In: ABREU, Capistrano
de. Confissões da Bahia, 1591 – 1592. Rio de Janeiro: F. Briguiet & C., 1935, p.
XXXVII-XXXVIII.
“Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado
de Mendonça”. In: ABREU, Capistrano de. Confissões da Bahia, 1591 – 1592. Rio de
Janeiro: F. Briguiet & C., 1935. 195p.
"Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa". In: VAINFAS, Ronaldo
(Org.).São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 362p.

b) Correspondência jesuítica:
“Carta do Pe. Manuel da Nóbrega aos padres da Cia. de Jesus, 1549”. In: HUE, Sheila
Moura (Org.). Cartas do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 31 a 41.

c) Cronista:
ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. 2 ed.
São Paulo: Melhoramentos; Brasília: INL, 1976, p. 81-201.
12

5.3. Obras de Referência


ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6023: informação e
documentação – referências – elaboração. Rio de Janeiro, 2002. 24p.
___ . NBR 10520: informação e documentação – citações em documento –
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Hb, 13:4. Português. In: Bíblia Sagrada. 116 ed. São Paulo: Editora Ave Maria, 1998,
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98-103; 177- 200.
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Universidade Federal de Sergipe, Sergipe, 2008.
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13

____. Dom Helder: Um sopro progressista na arquidiocese de Olinda e Recife. In:


Revista Eclesiástica Brasileira. Vol. 62. Fasc. 245. Petrópolis/RJ: Editora Vozes,
2002, p. 133-149.
SIQUEIRA, Sônia A. A inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ática,
1978. p. 20-250
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VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São
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WEBER, Max. Sociologia. 5ª ed. São Paulo: Ática, 1991, p. 71-127.
CANÇÃO GOSPEL, NEGRITUDE E ESPETÁCULO: REFLEXÕES A PARTIR DO
LOUVOR NORTE EM BELÉM.

*
Giovana dos Anjos Ferreira
**
Leila do Socorro Araújo Melo

O estudo da expansão da canção gospel na atualidade constitui caminho revelador das


transformações que vem vivendo o campo evangélico brasileiro. A presente comunicação
constitui um estudo inicial e exploratório sobre a presença da black music gospel em Belém,
buscando compreender sua forma de manifestação no contexto local, tomando como
referência o evento denominado Louvor Norte. O estudo baseado em entrevistas e
observações buscou refletir sobre as formas de expressividade desse estilo musical que trás
as marcas da crítica social, da exaltação emocional e da identidade negra.

Religião, Música e Louvação


A relação entre música e religião é uma das mais antigas existentes no
cristianismo, apresentando-se sob diferentes formas e objetivos como servir de
elemento de comunicação entre Deus e os homens, ser um instrumento de difusão
do Evangelho, incentivar a criação de hinos de louvor tanto no protestantismo
quanto no catolicismo e contribuir na organização de grupos musicais e na
formação de músicos dentro das instituições religiosas, contudo na
contemporaneidade a nova feição dessa relação ganhou novas proporções,
dialogando, construindo novas formas de ser dentro do universo religioso. Exemplo
dessas transformações a canção gospel é uma das mais significativas.
Vale ressaltar que enquanto
nos Estados Unidos o termo gospel refere-se a um gênero musical
criado por negros protestantes, que, entre outras características, tem
ritmo sincopado, caráter emocional e origem nas canções de trabalho
(work songs) [...], no Brasil, [...] o vocábulo em questão passou a
identificar as canções evangélicas disponibilizadas pelas gravadoras
para o consumo de massa. Em outras palavras, mais do que designar
singularidades rítmicas e melódicas, como ocorre entre os norte-
americanos, em nosso país, a palavra gospel é usada como uma
categoria demarcadora de fronteiras, distinguindo a música industrial
evangélica das demais e, com efeito, identificando, também, o
segmento fonográfico que a produz. Com a formação deste nicho, além
dos hinos tradicionais, os quais faziam parte da liturgia dos cultos e de
programações musicais evangélicas, foram disponibilizados, para a
audiência, o funk gospel, axé music gospel, black music gospel. (PAULA,
R. R., 2012, p. 142-143)

Dessa forma entendemos que no campo evangélico atual a música


representa item essencial das novas práticas de louvor e adoração, que procuram
dar conta das demandas emocionais dos adeptos, assim como também procura dar
conta das novas demandas estabelecidas a partir da relação entre cultura, consumo
e mídia (MENDONÇA; KERR, 2007).
Nessa produção buscamos compreender sobre a black music gospel em

*
Graduada em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Pará, membro do Grupo de
Estudos Musicais da Amazônia- GEMAM. giovanaferreira8@yahoo.com.br
**
Mestre em Antropologia Social. Docente do curso de Ciências da Religião da Universidade do
Estado do Pará; da Secretaria Estadual de Educação do Pará e da Escola Superior da Amazônia.
leilamelo1@yahoo.com.br
Belém do Pará, a partir de reflexões feitas sobre o Louvor Norte, bem como as
transformações que ocorrem no meio evangélico. Ressaltando que
A dinâmica produtiva compreende a “música gospel” e apresenta
artistas, bandas musicais, empresários, bens e serviços, sendo muitos
vinculados às empresas presentes no meio evangélico. Também é
encontrada a modalidade black music gospel / “música negra” que
caracteriza uma esfera de produção musical e de eventos.
Determinadas musicalidades são reinterpretadas e apontadas como
componentes de uma comunicação específica entre os fiéis. Então, a
atividade musical estimula a discussão sobre a transformação do meio
evangélico, pois, de um lado, bens culturais são apropriados e novos
modos de participação são encontrados; de outro lado, alguns
produtores apresentam reflexões e concepções acerca da “cultura
negra” e do “negro” no meio evangélico.
Entre os formuladores de “música gospel” encontram-se aqueles que
produzem a black music gospel / “música negra”. Fazem parte dela
expressões como o rap, o rhythm and blues (r&b), o drum n’bass (db),
o reggae, e afirma-se que o pagode e o samba também são seus
componentes. (PINHEIRO, 2007, p. 164)

Esse fenômeno contemporâneo que agrega e articula esferas da juventude


no meio evangélico representa um movimento amplo de reformulação e construção
identitária que passa por um forte sentimento de pertença, onde o ser “ser negro”,
“ser evangélico”, para esse segmento, significa uma forma demonstrativa de
resistência e resgate de valores de grupo, assentado em uma ética comportamental
que passa pela construção de uma visão de mundo determinada, onde a denúncia
do preconceito racial e social estão presentes, além da ênfase da religião e na
“palavra” como mecanismo de libertação das opressões do mundo. Camurça (2008)
ressalta que o aparente antagonismo da relação entre Hip Hop gospel e
pentecostalismo se dilui quando se observa nas duas práticas a construção de uma
postura de combate às drogas e ao álcool, de uma vida mais regrada, mesmo
mediada pelo louvor lúdico.
A exaltação emocional visível na expressividade corporal e musical dos
adeptos da black music gospel, transformam as festas em locais de experiências de
noções como a de negritude. De acordo com Pinheiro (2007) os envolvidos ao
privilegiarem na produção musical referenciais musicais específicos fazem da black
music gospel uma via de atuação política. No entanto, vale ressaltar que esse
processo de releitura musical e sonora não constitui um segmento expressivo
dentro do meio evangélico de Belém, por isso certa invisibilidade nos canais oficiais
de divulgação é uma constante, fazendo com que seus produtores e seu público
sejam mais bem localizados nas “festas” e espetáculos desvinculados da estrutura
oficial das igrejas.
Representativas do cenário contemporâneo as “festas” demonstram a
reconfiguração do espaço de culto e louvor, não há mais determinação rígida de
local para louvar, pois os novos espaços da juventude congregam além do templo,
espaços como as praças, os bailes e os grandes eventos como o Louvor Norte.

O Louvor Norte
O Louvor Norte ocorre na capital paraense, e é um festival de canção
1
gospel , tradicional na cidade, o mesmo ocorre sempre no terceiro fim de semana
do mês de maio, sua realização ocorre desde o ano de 1988 e é organizado e
produzido por um pastor e promotor de eventos, mas desvinculado da igreja.

1
[...] quando falarmos em gospel, utilizaremos canção ao invés de música. Apresentaremos a
canção gospel como um gênero poético-musical que abarca diversas vertentes, e mesmo que
estas possuam expressões variadas (axé e funk gospel, dentre outras), elas têm um mesmo
cerne, que é a música cristã negra, que tem sua origem entre o final do século XIX e o início do
século XX, nas celebrações das comunidades protestantes negras estadunidenses. (FERREIRA, G.
A., 2013, p. 13).
O Louvor Norte é um evento que foi projetado desde o início para reunir
o público jovem, em um espaço interdenominacional, utilizando-se da
música e da dança, ou seja, onde houvesse a possibilidade da
juventude, dançar, pular e cantar ao som de canções as quais as letras
falam de Deus.
É nos fim dos anos 80, no inicio do movimento gospel no Brasil, no dia
22 de maio de 1987, que ocorreu a primeira edição do Louvor Norte na
região metropolitana de Belém, no estado do Pará. (FERREIRA, G. A.,
2013, p. 39).

O Louvor Norte é proveniente de ações independentes, ou seja, a iniciativa


de criação desse festival, não está vinculada a nenhuma igreja evangélica
existente, porém estas inscrevem bens e serviços que atraem interessados e
integrantes de várias igrejas evangélicas.
Segundo o produtor do evento, há concorrência com os fazeres das igrejas,
haja vista apresentar algo que interfere no funcionamento da liturgia do culto
durante três dias, em contraponto, ao que se refere à manutenção da juventude, o
evento é visto de modo especial enquanto mecanismo capaz de converter e de
evitar o desligamento do fiel, pois para a juventude, os mesmos observam ser isso
possível, pois a mensagem religiosa esta presente de maneira contextualizada.
Entretanto essa visão ainda é estranha para uma grande parcela dos
evangélicos, é por este motivo que o produtor não recebe apoio de muitos
pastores, recebendo duras críticas e pressão através de orientação doutrinal para
que os membros, particularmente jovens, não participem efetivamente do evento.
A diversidade de estilos, a crítica social e certa liberação corporal são vistos como
perigosos.
Mesmo que o Louvor Norte não aconteça em espaços ligados a instituições
ou empresas religiosas, há transmissão do festival por uma emissora de rádio
2
evangélica e pelo site da igreja da qual o promotor é pastor . No evento, as
inovações e diversidade de estilos se apresentam, a black music gospel / “música
negra” é executada no festival, com o predomínio do hip-hop.

No caso, as inovações musicais constituem um espaço no qual emergem


tais conflitos, pois as iniciativas, as idéias e os bens podem ser tomados
como “perigosos” a partir da interpretação de que aproximam a igreja
do polo do mal, através da promoção da liberalidade ou de expressões
culturais de povos negros. (PINHEIRO, 2007, p. 166).

O perigo coloca fiel “no mundo” do qual se quer afastá-lo e protegê-lo, as


inovações, portanto devem ser vividas com cautela, alertam os dirigentes
religiosos. Nesse evento percebe-se que há grande ênfase na música, na dança e
na exaltação emocional, o que nos apresenta aspectos significativos da
transformação do meio evangélico contemporâneo. A presença de bandas, grupos e
cantores com novos estilos, fazem uma releitura das noções de corpo ao flexibilizar
comportamentos e ações particularmente para a juventude, que no ritmo do corpo
e embalados pelos ritmos das músicas, anseiam por novidades trazidas pelas
bandas. E a partir dos anos 2005, nota-se a inserção de grupos e cantores gospels,
com novas sonoridades que expressão a noção de negritude, através da black
music gospel. Ocorre uma aceitação crescente, desse estilo, por parte dos
participantes. Assim, a cultura gospel demoliu essa barreira em dois sentidos:
inseriu a dança no contexto litúrgico e abriu as portas dessa expressão corporal
como entretenimento. (CUNHA. 2004).

2
www.catedraldafamíliaieq.com
Fotografia 1: 25ª edição do Louvor Norte, maio de 2012.
Fonte: Arquivo pessoal de Giovana dos Anjos Ferreira

Mesmo que no início a maioria da comunidade evangélica não aprovasse um


espaço de lazer e diversão para evangélicos, o mesmo se consolidou. O Louvor
Norte traz em si elementos do conservadorismo protestante, acompanhando e
reforçando o discurso que o corpo é “templo do espírito santo”, dessa forma, tudo
que se faz com o corpo deve ser dedicado e preservado ao transcendente. Portanto
o comércio de bebida alcoólica e cigarros são proibidos no espaço onde ocorre o
festival.
Em 2012 o Louvor Norte esteve em sua 25ª edição consecutiva, assim
podemos dizer que o que o festival, torna-se um evento de referência para canção
gospel, pois se iniciou nos fim dos anos 80, no início do movimento gospel no
Brasil, no dia 22 de maio de 1987. E em todas as edições tiveram presentes
artistas renomados dentro da indústria fonográfica gospel, e atualmente é o maior
evento da canção gospel da região norte-nordeste. Sua última edição teve quinze
horas de duração, reunindo, em três noites, mais de 80 mil pessoas.
A dinâmica do evento apresenta os elementos da contemporaneidade do
campo musical que apresenta os vários estilos e formas de expressividade. No que
se refere ao conteúdo das canções, a crítica social, a apologia pela igualdade de
direitos, a denúncia das mazelas da humanidade, apresentam-se de modo
particularizado, ou seja, não em vários grupos, com grandes produções, mas em
cantores particulares com forte ligação anterior a conversão com universo musical
ligado ao reggae, hip hop e rap.
A opção pela critica social ressalta a necessidade de afirmação dos
elementos demarcadores de uma identidade negra.
Recorro à noção de negritude porque os envolvidos na atividade
musical, ao privilegiarem elementos e referenciais culturais específicos e
veicularem suas concepções, fazem da black music gospel / “música
negra” também uma via de atuação política. Essa música integra
expressões musicais que podem ser consideradas a partir da noção de
“Atlântico negro” (Gilroy 2001). Os produtores musicais participam de
um circuito que envolve especialistas evangélicos ou não – refiro-me
aos produtores e divulgadores de hip-hop –, compartilham ideias, bens
e serviços e, assim, entendem apresentar algo próprio aos evangélicos
afrodescendentes. (PINHEIRO, 2007, p.165).

As práticas e discursos dos produtores do black music gospel, na capital


paraense enfrentam a oposição dentro das igrejas, porém observamos que ao
mesmo tempo em que existem evangélicos que são contra esse estilo de adoração
ao sagrado, há um crescente grupo que apoia e incentiva o posicionamento do
evangélico perante a questão da negritude dentro do meio cristão. Pode-se dizer,
portanto, que o black music gospel, esta “sofrendo” o mesmo estranhamento que o
gospel sofreu no início dele no Brasil.
No meio cristão evangélico de Belém são encontrados discursos e práticas
diferenciadas, principalmente quando se fala em adeptos afro-descendentes ou
negros. Pois encontramos ainda instituições religiosas que propagam a “maldição
hereditária”, segundo a qual o povo negro possui uma maldição, assim ele é
simbolicamente estigmatizado e incentivado a se libertar de sua ligação racial com
o continente africano e suas tradições, por outro lado o processo de aceitação social
e religiosa dentro de uma premissa que leva em consideração a afro-descendência
deve necessariamente ocorrer através de uma releitura cristã, valorativa do papel
dos fiéis negros e mulheres negras no sentido de uma afirmação étnica no seio das
igrejas após a conversão, mas de modo diferenciado das bandeiras de lutas do
movimento negro, pela negação do valor das tradições africanas.

Apesar dessa reivindicação, há dificuldade em se valorizar as “tradições


religiosas africanas”, e isso pode ser um dos fatores de não proximidade
com o movimento negro (Burdick 2001), embora ocorram articulações
que visam promover “ações afirmativas”, de forma a atender aos fiéis
“negros” e, também, às “mulheres negras” (Pinheiro 2006). É possível
encontrar relação entre os citados pastores e leigos e os produtores de
black music gospel / “música negra”, com determinada sensibilidade
musical e sonora. A prática dos especialistas musicais registra a
valorização de expressões musicais entendidas como próprias de povos
negros, inscritas em formas culturais internacionais. Assim, dialogam
com os valores, as concepções e os fazeres das igrejas evangélicas.
(PINHEIRO, 2007, p.167).

Percebemos que essa ressignificação, quando nós referimos a black music


no Louvor Norte, se apresenta na forma de expressão do público evangélico através
das danças ritmadas ao som do hip hop, no estilo de roupas, no canto das músicas,
durante a esperada apresentação da maior expressão do estilo no referido festival,
Luciano dos Santos Souza, conhecido como Pregador Luo, rapper gospel.
O Pregador Luo, tem 20 anos de carreira, é paulistano, fundador e líder do
"Apocalipse 16", grupo fundado em 1996 e pioneiro do rapper cristão do Brasil.
Produzindo letras com forte cunho social e testemunhos, o grupo foi aclamado pelo
público e crítica e conquistou o respeito de grupos seculares. É ganhador de vários
prêmios, como exemplo destaca-se o álbum 2ª Vinda, A Cura, vencedor premiação
máxima do rap brasileiro.
3
Pregador Luo é proprietário do selo 7 Taças , pelo qual lançou todos os seus
títulos (15 títulos ao todo), incluindo o mais recente CD “Pregador Luo – Único-

3
7 Taças é uma gravadora de música gospel brasileira pertencente ao grupo Apocalipse 16, cujo
líder Pregador Luo é o maior destaque. Atualmente, esse selo está sendo distribuído pela
gravadora Aliança Produções. Somados, todos os lançamentos da gravadora independente 7
Taças ultrapassam a marca de 900.000 cópias comercializadas
4 5
Incomparável” . Em 2011, Luo, foi indicado ao Troféu Promessas . Ele também se
utiliza do cyber espaço para divulgação de seu trabalho, onde se verifica que o
mesmo possui mais de 50 milhões de visualizações no Youtube e milhares de
6
seguidores nas redes sociais (Twitter e Facebook) .

Fotografia 2 Figura 1: Pregador Lou na 25ª edição do Louvor Norte, maio 2012.
Fonte: Arquivo pessoal de Giovana dos Anjos Ferreira

Ao longo de sua carreira iniciada em 1988, Pregador Luo, já contou com


colaborações de diversos outros artistas em seus álbuns. Fez mais de 250
participações em músicas de outras bandas e artistas que o convidaram para
colaborar em seus trabalhos, entre eles destacam-se: Chorão ‘Charlie Brown Jr’,
Emicida, KLB, Simoninha, Exaltasamba, Racionais MC’s, Rappin’ Hood, Adhemar de
Campos, Thaide, Rodolfo Abrantes, Juliano Son, Eyshilla, Cassiane, Fernanda Brum,
David Quinlan, Talita Pagliarin, Nívea Soares, Jamily, entre outros.
Observamos que os temas abordados nos trabalhos desse rapper cristão
evangélico, conhecido como Pregador Luo, expõem conteúdos raramente
valorizados na canção gospel brasileira, por exemplo, o respeito às mulheres,

4
O CD “Único-Incomparável” tem 2 Volumes, com mais de 30 faixas inéditas e participações da
cantora Cassiane, do grupo KLB e do rapper Emicida. O novo CD marca uma nova fase na
carreira de Luo, em que ele usa uma sonoridade pop com arranjos mais refinados e também se
arrisca cantando e fazendo todos os backing vocals.
5
O Troféu Promessas é uma premiação realizada pela Geo Eventos com o apoio da Rede Globo
desde o ano de 2011 para premiar os melhores artistas da música gospel brasileira. Com o fim
do Trofeu Talento em 2009, a premiação se tornou logo em seu início como a maior premiação
da música evangélica, com indicações de cantores de grandes gravadoras gospel e seculares
como a MK Music, Graça Music, Sony Music, Som Livre e Line Records.
6
Disponível em: http://www.7tacas.com.br/ e https://www.facebook.com/luo7t. Acesso: 30.
Mar. 2013.
valorização da raça e da cultura afro e latino- americana, como pode ser percebido
nos trechos das canções abaixo:

Construa com suas próprias mãos

Homem negro sua liberdade custou o sangue de outros irmãos

Mas ainda hoje tem uns malucos que deixam brecha

Não escutam o que eu falo e voltam a ser escravos

Roubam bancos, roubam, roubam carros

E o castigo pro furto é duro mais que Deus possa aliviá-los

E guiá-los no caminho para nova Jerusalém,

Só assim encontrarão a verdadeira paz

(Pregador Luo, canção: “Ho ho ho to na paz do Senhor”)

Quem tem muito tem porque roubou.


se não roubou de mim, é porque seu tataravô roubou meu tataravô
e por isso mesmo ficou.
Ficou nada se for assim cadê à justiça do Deus do Céu?
Rico mesquinho vai queimar que nem papel,
grana não muda nada, não altera pro Criador.
Dinheiro move o mundo mais não move quem o criou.
(Pregador Luo, canção: “Último Dia”)

Nesses dois trechos, de duas canções distintas, verifica que Pregador Luo faz
críticas sobre a sociedade e a desigualdade socioeconômica, e como esta sociedade
é capaz de moldar instituições para a sua manutenção no poder, onde o dinheiro é
o centro de tudo. Também alerta sobre os aspectos da escravidão social moderna,
fazendo paralelo com a necessidade de manutenção da liberdade, historicamente
conquistada com muita luta e que na atual conjuntura deve ser buscada através de
Deus, destaca ainda entre outros aspectos, a necessidade, o trabalho, a produção
de valor, a alienação e os fetiches. Dessa forma, ele expõe sua indignação ao
sistema que historicamente desumaniza a todos, isso tudo através da
expressividade do rapper.
E é em seus últimos álbuns que podemos observar uma análise do momento
social atual do país e do mundo, segundo a sua própria ótica, mas sem deixar de
lado o teor bíblico, o que deixa evidenciado sua crença, ou seja, nas letras das
canções do Pregador Luo, observamos que as belezas e as mazelas da pátria
brasileira são relatadas em cima de uma sonoridade embasada pela black music e
pela MPB.
A canção gospel expressa narrativas bíblicas, com interferências de Deus em
favor de seu povo. Tais narrativas são expressas nas músicas como forma de
adoração cristã. Assim a canção nos apresenta a visão dos fiéis e como eles se
utilizam da canção para ter contato com o transcendente, bem com, a trocar
experiências com outros fieis e possíveis novos adeptos. (PINHEIRO 2007).
Verifica-se, portanto que a canção também proporciona um bem-estar espiritual,
pois assim como a maioria das canções gospel, essa canção traz a mensagem de
consolo e ânimo, mas com um diferencial, pois a mesma aborda temas que outrora
não faziam parte do contexto cristão evangélico, como política, desigualdade
socioeconômica.
Em relação à posição dos jovens que participam do evento sobre as
releituras da questão negra nas produções artísticas e na proposta do evento,
assim como ocorre com outros estilos e tipos de festas e festivais gospels, os
posicionamentos não são unânimes, pois se muitos vão a alguns casos contrariando
os direcionamentos de suas igrejas, outros vão para reafirmar suas convicções
contrárias. Entretanto, através das conversas e observações em campo percebemos
que há, pela maioria, certa rejeição e aversão, com relação à inserção e utilização
de novos estilos, em festas e festivais gospels. Onde observamos discursos
proferidos por jovens, tais como: “Festa pagã no meio do povo de Deus?”. “Não
copie as novidades populares deste mundo”. A Bíblia diz em Romanos 12:2 “E não
vos conformeis a este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa
mente, para que experimente qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de
Deus”.
Entretanto há também uma pequena parte da juventude cristã evangélica,
que gradativamente cresce, a qual possui um discurso contrário ao exposto
anteriormente, ou seja, favoráveis a esses novos estilos de adoração ao sagrado.
Adotando discursos, tais como: “Evangelização com inteligência...”. “Se os crentes
não se misturarem com os nãos crentes, como irá ganhá-los? Jesus andava com os
pecadores... esse negócio da gente achar que crente não deve fazer isso, ou aquilo
é coisa de gente religiosa e hipócrita... apenas temos que ter temor e fizer pro
Senhor... não vejo o porquê de ser contra...”. “Jesus disse não sejam hipócritas e
religiosos! O povo de Deus não pode dançar ao som de outros estilos? Que pecado
tem? O pecado esta em não ter decência e ordem e se ajuntar a roda dos
escarnecedores. O povo de Deus tem que aprender a se divertir de maneira santa,
qual é o problema de estar no meio dos irmãos e se divertir e ainda dançar e ouvir
música de Deus?”.
Percebemos que através dos discursos e ações dos jovens durante o Louvor
Norte 2012 que relação com black music gospel ainda é de estranhamento e
aceitação parcial, um misto de novidade, e encantamento pela forma de
expressividade sonora e corporal que a mesma proporciona, porém seu cunho de
denúncia e ligação com uma identidade negra, em Belém, ainda é pouco
desenvolvido, fruto de iniciativas individuais que se encontram em espaços
alternativos como o Louvor Norte.

Considerações Finais

Ressaltamos que o presente artigo é um trabalho introdutório. E que o


estudo do black music gospel em Belém, é um campo de estudo e pesquisa a ser
galgado, dentro das Ciências da Religião e outras áreas de estudo. E ao perceber
essa carência de estudos, sentimos necessidade, e nos debruçamos sobre esse
objeto para tentar compreender a dinâmica do black music gospel na região
metropolitana da capital paraense, Belém.
Observamos que os produtores desse estilo musical em sua grande maioria
são jovens, pertencentes a diversas instituições religiosas evangélicas, que mantém
suas práticas dentro e fora do espaço institucional. Atualmente percebemos que a
juventude não participa somente das instituições de forma passiva, mas também
anseia e indaga sobre questões relacionas a fé, muitos buscam as instituições
religiosas e adotam posturas, muitas das vezes consideradas conservadoras, como
um modo de se afirma perante a sociedade.
Entretanto, mesmo que o discurso seja de uma “juventude que tem buscado
bastante as igrejas em busca de cura para sua alma e tem valorizado muito a
espiritualidade e a relação com Deus”. Dessa forma, as festas e festivais gospels
entram nesse mercado religioso como instrumento de manutenção e evangelização
dessa juventude. Como por exemplo, O Louvor Norte, surge com essa proposta de
diversão para a juventude.
Por conseguinte, percebemos que os discursos que reverberam sobre os
novos estilos dentro do gospel, sempre são conflituosos, pois têm suas origens em
pré-conceitos, concebido dentro de um país marcado pela pluralidade religiosa e
cultural e onde este bastante presente o pensamento de segmentos conservadores
e fundamentalistas religiosos, o que resulta em disputas e tensões dentro do
mercado religioso.

Referências
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hop gospel como instrumento de afirmação social entre jovens negros da periferia
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CUNHA, Magali Do Nascimento. "Vinho Novo em Odres Velhos": Um Olhar


Comunicacional Sobre a Explosão Gospel no Cenário Religioso Evangélico no Brasil.
Disponível em: <Http://Www.Teses.Usp.Br/Teses/Disponiveis/27/27134/Tde-
29062007-153429/Pt-Br.Php>. Acesso em: 30 Jul. 2012.

FERREIRA, Giovana dos Anjos. Juntos outra vez: canção gospel, espetacularização
da fé e marketing religioso no Louvor Norte. Trabalho de Conclusão de Curso
(Licenciatura Plena em Ciências da Religião), Universidade do Estado do Pará,
Belém, 2013.

MARANHÃO Fº., Eduardo Meinberg de Albuquerque . Caia Babilônia: análise de uma


canção religiosa a partir do contexto, poética, música, performance e silêncio.
Revista Brasileira de História das Religiões, v. 13, p. 236-272, 2012.

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modernidade. In: XVII Congresso da ANPPOM, 2007, São Paulo. XVII Congresso da
ANPPOM, 2007.

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PINHEIRO, Marcia Leitão. Música, religião e cor uma leitura da produção de black
music gospel. Religião & Sociedade, v. 27, p. 163-180, 2007.
A RELIGIÃO MARRANA: UM CASO DE SINCRETISMO NA AMÉRICA
PORTUGUESA

Josevania Souza de Jesus Fonseca


Mestranda em História-UFS; Especialista em História Cultural-UFS.
souzajosevania@gmail.com

Andreza Silva Mattos


Mestranda em História-UFS; Especialista em Ciências da Religião-UFS.
hist.andreza@yahoo.cm.br

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo refletir sobre o sincretismo religioso que
se evidenciou na religião marrana, a partir do encontro entre as práticas judaicas e
cristãs, por ocasião da conversão dos judeus ao cristianismo no final do século XV.
Analisaremos as identidades fragmentadas dos chamados cristãos-novos judaizantes,
tomando como exemplo o caso de Antônio José da Silva, de alcunha o Judeu,
considerado pela historiografia o maior comediógrafo de origem luso-brasileira do
século XVIII. O estudo seguirá a perspectiva da História das Religiões e da Micro-
história, associada ao paradigma indiciário. Desvenda-se com esta pesquisa que o
Judeu, mesmo diante das perseguições empreendidas pelo Tribunal do Santo Ofício
aos cristãos-novos judaizantes, difundiu uma mensagem criptografada aos de seu
grupo.

INTRODUÇÃO
O decreto de Granada assinado, em 31 de março de 1492, pelos reis
Fernando de Aragão e Isabel de Castela, no contexto da unificação política e religiosa
da Espanha, provocou transformações sem precedentes na história dos judeus da
Península Ibérica, conhecidos como sefarditas. Este documento que ficou conhecido
como o édito de expulsão dos judeus dos domínios da atual Espanha, e levou de um
lado à dispersão de boa parte dos judeus, principalmente para Portugal e por outro à
conversão ao cristianismo, em troca da permanência no território espanhol.
No final de 1496, os judeus que seguiram para Portugal foram mais uma vez
levados a escolher entre a conversão ou a saída do reino. D. Manuel, pressionado pela
Espanha, estabelece um prazo para que os judeus deixem o território, no entanto,
antes de findar o prazo, proíbe a saída e ordena que todos se convertam ao
catolicismo pela força (NOVINSKY, 1992).
Este episódio fez surgir vários grupos, a saber: verdadeiros conversos que se
tornaram fiéis cristãos; conversos parciais que vacilavam entre Judaísmo e
Cristianismo ou tentavam uma acomodação sincrética entre as duas religiões;
conversos criptojudeus que, na medida do possível, mantiveram-se fiéis ao Judaísmo;
e conversos que rejeitavam ambos Cristianismo e Judaísmo à luz da contínua
perseguição religiosa e violência (Jacobs 2002, apud SILVA, 2009).
A opção neste trabalho é pelos cristãos-novos que resistiram à conversão de
fato e iniciaram um fenômeno conhecido como Criptojudaísmo – a prática secreta da
religião judaica. Uma nova religião, portanto, criada na fronteira entra o judaísmo e o
cristianismo, que foi denominada como Religião Marrana.
Entretanto, vale ressaltar que em uma estrutura social homogeneizante em
que qualquer desvio da fé e da moral, imposta como única e absoluta, era punido com
presteza. Essa resistência só pôde ser considerada devido ao aparato teórico-
metodológico da História Cultural que possibilita reduzir a escala de observação para
analisar documentos produzidos no contexto dos grupos dominantes, mas que
revelam sinais de culturas subterrâneas, a exemplo das óperas de Antônio José de
Antônio José da Silva e dos processos movidos contra ele pelo Tribunal da Inquisição.
Uma análise microscópica, e ao mesmo tempo, densa e intensiva das fontes utilizadas.
Entende-se que a micro-história serve como uma tentativa de corrigir os
aspectos que não funcionavam na história tradicional, uma alternativa para vincular
cultura e sociedade e ao mesmo tempo refutar o relativismo, o irracionalismo e a
redução do trabalho do historiador a uma atividade puramente retórica que interprete
os textos e não os acontecimentos. Além de ver toda ação humana como resultado de
constante negociação, manipulação, escolhas e decisões do indivíduo, diante de uma
realidade normativa, ou seja, a estrutura oferece brechas e contradições sob as quais
o indivíduo exerce uma relativa liberdade de criação (LEVI. In. BURKE, 1992, p. 135).
A opção por um caso particular não foi feita de forma aleatória, e sim por
entender que Antônio José seria um normal excepcional1, um acesso para se observar
as incoerências de grandes sistemas sociais e culturais, as brechas e as fendas na
estrutura que propiciam ao indivíduo um pouco de espaço livre (BURKE, 2002).
Assim, interessa-nos o detalhe revelador, as marcas residuais nos traços da
cultura material e, sobretudo imaterial, pois, “se a realidade é opaca, existem zonas
privilegiadas - sinais, indícios – que permitem decifrá-la” (GUINZBURG, 1989, p. 117).
Esse constitui o ponto central do paradigma indiciário ou semiótico, que
compara o historiador a um detetive, por ser ele responsável pela decifração de um
enigma, pela elucidação de um enredo e pela revelação de um segredo. O historiador
detetive não entende a realidade como sendo transparente, e por isso vai além
daquilo que é dito, vê além do que é mostrado, exercitando seu olhar para os traços
secundários, para os detalhes e para os elementos que, sob um olhar menos arguto e
perspicaz, passariam despercebidos (PESAVENTO, 2005).
A contribuição de Ginzburg vai além do método2, como indica Jacqueline
Hermann em seu ensaio sobre História das religiões e religiosidades. A autora salienta

1
Expressão cunhada pelo historiador italiano Carlo Poni.
2
Embora o método indiciário tenha se consolidado enquanto principal contribuição de Carlo Ginzburg,
Jacqueline Hermann destaca a importância do historiador italiano para a constituição da disciplina História
das Religiões, pelo fato de não aceitar as análises fenomenológicas que procura a essência da experiência
que o historiador italiano é um marco e uma referência fundamental para o
enfrentamento de questões surgidas no processo de construção da história das
religiosidades, sobretudo no campo temático da história das crenças: circularidades e
hibridismos culturais, no qual inserimos o presente estudo (HERMANN. In: VAINFAS;
CARDOSO, 1997).
Interessa-nos refletir sobre o sincretismo religioso que se evidenciou na
religião marrana, a partir das identidades fragmentadas dos chamados cristãos-novos
judaizantes, tomando como exemplo o caso de Antônio José da Silva, de alcunha o
Judeu, considerado pela historiografia o maior comediógrafo de origem luso-brasileira
do século XVIII, através de uma breve reflexão sobre a trajetória de vida deste
comediógrafo, inserido no contexto da cultura criptojudaica.

ANTÔNIO JOSÉ DA SILVA: UM INDIVÍDUO ENTRE A LEI DE CRISTO E A LEI DE


MOISÉS
Antônio José da Silva (1705-1739) nasceu e viveu no Rio de Janeiro até os
oito anos de idade, quando sua mãe Lourença Coutinho foi levada presa para Lisboa
pelo Tribunal do Santo Ofício em 1713, acusada de culpas de judaísmo, e com ela
seguiu o marido João Mendes da Silva e os filhos.
A partir desse primeiro encontro, a Inquisição passou a fazer parte da vida de
Antônio José da Silva, pois em 07 de agosto de 1726 foi preso pela primeira vez,
confessando à mesa inquisitorial “que haverá quatro ou cinco annos se apartou de
nossa santa fé catholica e lei evangelica, e se passou à crença na lei de Moizés pelo
ensino que da mesma lhe fez sua tia D. Esperança”3 (Traslado do primeiro processo,
IHGB, 1896, p. 9)4. Arrependido, Antônio José foi reconciliado em auto de fé na Igreja
do Convento de São Domingos em Lisboa no dia 13 de outubro de 1726.
Após a reconciliação, passou a viver como bom cristão, fez boas relações com
os freis dominicanos e iniciou a carreira literária, escrevendo comédias para
apresentar no Teatro público do Bairro Alto em Lisboa, com as quais adquiriu grande
fama e as alcunhas de Judeu, Plauto português e Plauto fluminense.
Ao todo, são atribuídas a Antônio José da Silva oito óperas jocosérias5.
Algumas, das que chegaram até nós, foram reunidas anonimamente e publicadas pelo
impressor Francisco Luiz Ameno, em 1744, sob o título de Theatro Comico Portuguez,

religiosa e adaptando o método comparativo a uma análise historiográfica para entender as relações históricas
entre mitos e ritos.
3
D. Esperança, descende da família materna de Antônio José da Silva e é natural do Brasil.
4
Ressaltamos que a ortografia original do traslado do processo foi mantida.
5
Paulo Roberto Pereira explica que a denominação “jocoséria” é utilizada na classificação das “óperas do
Judeu”, por lembrarem os recursos híbridos da tragicomédia, mistura entre a elevação do trágico e o realismo
do cômico (PEREIRA. In. SILVA, 2007, p. 28).
ou Collecção Das Operas portuguezas que se representarão na Casa do Theatro
publico do Bairro Alto de Lisboa. Trata-se de quatro peças teatrais, a saber: Vida de D.
Quixote de la Mancha, Esopaida, ou Vida de Esopo, Os Encantos de Medéa e
Amphitryaõ, ou Jupiter, e Alcmena comédias musicadas que eram apresentadas por
meio de marionetes.
Suas peças articularam o que havia de novo para a época: a prosa ao invés
do verso; a música, por inspiração das óperas italianas e a utilização de marionetes de
cortiça, mais leves que permitiam mutações rápidas de cena. O Judeu foi influenciado
ainda pelo estilo jesuítico da arte teatral, falado em latim e encenado, sobretudo na
Universidade de Coimbra, onde estudou direito canônico e pela grandiosidade do
teatro espanhol do ‘Século de Ouro’, influências, provenientes do movimento
iluminista, que representaram uma renovação no tradicional teatro nacional
português.
A liberdade, porém, duraria pouco, pois em 1737, foi preso pela segunda vez,
denunciado por práticas secretas de judaísmo por uma escrava de sua mãe, e mesmo
não havendo provas conclusivas que o pudessem condenar, mesmo negando as
acusações e com depoimentos favoráveis dos frades dominicanos, a sentença de
Antônio José da Silva já havia sido traçada pela legislação inquisitorial,6 pois, ele
representava um risco para a preservação das verdades absoltuas pregadas pela
cultura dominante.
O fato é que dois anos depois da prisão, em 1739, aos 34 anos de idade,
Antônio José recebeu a sentença de:

convicto, negativo, pertinaz, e relapso no crime de erezia e


apostazia, e que foi erege apostata da nossa santa fé catholica,
e que incorreu em sentença de excomunhão maior e
confiscação de todos os seus bens para o fisco e camara real, e
nas mais penas de direito contra similhantes estabelecidas, e
como erege apostata de nossa santa fé catholica, convicto,
negativo e pertinaz, e ralapso o condemnam e relaxam á justiça
secular (Traslado do segundo processo, 1896, p. 261).

A trajetória de vida de Antônio José da Silva seria interrompida por asfixia no


garrote, uma misericórdia do Santo Ofício, que costumava garrotear os condenados,
antes de queimá-los, caso desejassem morrer na lei de Cristo, e seu corpo queimado
em espetáculo público no Campo da lã, na fogueira da Inquisição.

6
De acordo com o manual dos inquisidores a Igreja não podia perdoar o penitente relapso por acreditar que
não houve conversão sincera, no passado. “O crime reiterado (geminatus actus pravus) é particularmente
grave, dizem os juristas. É, portanto, absolutamente justo que a Igreja considere os relapsos como inúteis,
sempre infectos de heresia e, por isso, dignos de ser definitivamente expulsos e entregues ao braço secular”
(EYMERICH, 1993, p. 233).
Quase toda a família de Antônio José, de ascendência hebraica, pais, avós,
tios, primos, sobrinhos e esposa também saíram penitenciados em autos de fé
acusados de praticar secretamente o judaísmo (PEREIRA, 1998). Entretanto, a
notoriedade do Judeu, deve-se ao legado das óperas que compôs para apresentação
no Teatro do Bairro Alto em Lisboa, comédias classificadas pelo autor como jocosérias.
Essas, possivelmente, constituíram o agravante para a condenação7, pelo fato de ser
um instrumento de resistência a toda opressão sofrida pelos cristãos-novos, apesar de
não ser objeto de investigação pelo Tribunal do Santo Ofício, por terem sido
devidamente licenciadas.
Curiosamente, apesar de Antônio José haver sido o mais celebrado
comediógrafo de origem portuguesa do Século XVIII, a única referência que acontece
em todo o processo movido contra o mesmo pelo Tribunal do Santo Ofício, no período
entre outubro de 1737 a outubro de 1739, é no dia 15 de outubro de 1738, quando
frei Diogo Pantoja, mestre da Ordem de Santo Agostinho, atuando como testemunha
de defesa, declarou à Mesa da Inquisição que conhecia Antônio José:

... haverá quatro annos, pelo ver e lhe falar muitas vezes...” e
que “... depois que elle testimunha veio da India a ultima vez e
o comunicava por cauza das compozições, que elle fazia assim
no Bairro-alto, em caza de um irmão d’elle testimunha onde lhe
falou muitas vezes, como na caza do réo onde elle testimunha
ia.... (Traslado do segundo processo, 1896, p. 165).

Em vários momentos nas óperas, o Judeu deixa transparecer o seu


descontentamento com a sociedade, a Inquisição e a justiça da sua época, utilizando a
sátira para atingir diretamente a cultura dominante, além de preservar as marcas da
religiosidade marrana, como pode ser observado na ópera Os Encantos de Medeia,
encenada em 1735.
Na ópera, Antônio José vai além do objetivo de criticar a expansão marítima
portuguesa que ambicionava as riquezas das Índias no início dos tempos modernos.
Porém, diferente da tragédia mais conhecida, a de Eurípedes, na história escrita pelo
Judeu não ocorreu o casamento entre Jasão e Medeia, eles não geraram filhos e nem
tiveram uma vida em comum por anos. Na ópera do cristão-novo, desde o momento

7
Tese defendida por Nathan Wachtel em seu estudo sobre os “conversos” condenados como judaizantes pela
Inquisição lisboeta, que indica a respeito de Antônio José da Silva que: “um conjunto de argumentos
razoáveis permite sustentar a tese segundo a qual Antônio José da Silva teria sido condenado em razão das
ideias subversivas que o seu teatro passava para o público” [...] “o fato é que se podem extrair das peças do
‘Judeu’ muitas citações que, situadas no contexto histórico, parecem confirmar uma rara temeridade, como a
de fazer alusão à própria experiência nas prisões da Inquisição” (2001, p. 313, apud CHARTIER, 2012, p.
170).
em que Jasão chegou a Cólquida (atual República da Geórgia), se viu divido entre os
amores de Medeia e Creusa, porém decididamente apaixonado por Creusa.
Considerando que na simbologia religiosa tanto a assembleia cristã quanto a
judaica são representadas por mulheres, a metáfora de Jasão dividido entre o
interesse da igreja católica, representada por Medeia, e o amor pela Sinagoga judaica,
simbolizada por Creusa, representou perfeitamente a condição existencial de cristão-
novo judaizante durante os tempos modernos.
Além de caracterizar a condição do cristão-novo judaizante, a ópera de
Antônio José da Silva faz referência ao segredo, um dos requisitos para continuar
observante da religião marrana no contexto da imposição da prática da religião
católica aos sefarditas. Como pode ser evidenciado nas palavras de Sacatrapo:
“Senhor, em duas palavras: amar a Medeia por cerimônia, até lhe gadanhar o
Velocino, e ir conquistando em todo o caso o Velocino de Creuza.” (SILVA, 1759,
p.267). Noutro lugar, dirigindo-se a Teseu, Jasão explica: “Assim é, Teseu: mas as
cousas não se fazem como se dizem.” “... Uma mulher escandalizada e poderosa [A
Medeia/Igreja Católica] é muito para temer. Assim, pretendo encobrir, que por Creuza
é que me detenho” (Ibid, p. 288;289).
Toda a peça está permeada por críticas diretas à imposição da prática da
religião católica aos sefarditas, além dos costumes místicos abrangendo desde os
contra-feitiços, as mandingas, os encantamentos e desencantes, indícios que apontam
que o autor fazia referência cifrada à Cabala prática, um dos aspectos principais da
religiosidade dos judaizantes. Na ópera, além de Medeia, a sua criada, Arpia e o
“carneiro” são praticantes de feitiçaria. Além disso, o criado Sacatrapo afirma sobre o
reino da Cólquida: “... Sei que nesta terra há muita feiticeira” (SILVA, op. cit., p.257).
É grande o debate em torno deste indivíduo emblemático da nossa história,
principalmente acerca da relação entre a experiência de vida e a obra, da autoria de
algumas óperas atribuídas e publicadas após a morte, dos motivos que o condenaram
e da identidade8 que assumira de fato.
Apesar de ser considerado cristão em algumas biografias, como a de
Varnhagen e Sacramento Blake, existem fortes indícios que Antônio José da Silva
assumiria a identidade de cristão em público por uma questão de sobrevivência, mas
em seu interior prevalecia a identidade do judeu novo, sendo assim, um cristão-novo
judaizante cabalista9.

8
A identidade aqui deve ser pensada como uma construção histórica, e para entendê-la nos valeremos da
concepção de Stuart Hall, que mesmo refletindo sobre a identidade do sujeito pós-moderno formada na
diáspora negra afro-caribenha no pós-guerra, nos ajuda a pensar as identidades híbridas partindo do princípio
de que “Na situação da diáspora, as identidades se tornam múltiplas” (HALL, 2003, p. 26-27).
9
Essa perspectiva encontra-se em desenvolvimento em minha pesquisa no mestrado intitulada
provisoriamente Aspectos Cabalísticos na Obra de Antônio José da Silva.
A AMÉRICA PORTUGUESA COMO UM LUGAR DE ASILO PARA OS CRISTÃOS-
NOVOS JUDAIZANTES
O estabelecimento dos cristãos-novos na América portuguesa remete ao início
da colonização, na primeira metade do século XVI. Desde então, as comunidades de
judaizantes começaram a ganhar força, porquanto, a maioria dos conversos que
chegaram às terras do atual Brasil, não se tornaram cristãos de fato, mas sim de
aparência, pois, como indica Rodolfo Garcia:

O Brasil era, ao mesmo tempo, lugar de degredo e de asilo para


os cristãos-novos: degredo, quase sempre, para os que eram
penitenciados pelo Santo Ofício; asilo, para os que podiam fugir
a suas perseguições, esses em maior número do que aqueles.
Na Colônia vastíssima, despoliciada dos zeladores do credo
oficial, uns e outros, sem o temor de repressão imediata
voltaram natural e instintivamente às crenças ancestrais (1929,
apud AZZI, 2001, p.157).

Embora não tenha havido a instalação do Tribunal da Santa Inquisição na


América portuguesa, o Tribunal atuou em três momentos, de 1591 a 1595, na Bahia,
em Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, conduzidos pelo visitador Heitor Furtado de
Mendonça, cujos objetivos eram combater as heresias e fiscalizar os cristãos-novos
que prosperavam com a economia açucareira, além de estender sua atuação aos
domínios ultramarinos.
A segunda visitação ocorreu de 1618 a 1621 na Bahia, comandada por Marcos
Teixeira, a qual tinha como foco especial os cristãos-novos, porquanto havia a
suspeita de ligações desses com os judeus de Amsterdã e de uma possível invasão dos
holandeses. O terceiro momento se deu em 1763 e se estendeu até 1769 no Grão-
Pará e objetivava conhecer melhor a região após a expulsão dos jesuítas. Foi chefiada
por Geraldo José de Abrantes, numa época em que a Inquisição portuguesa era
controlada pelo marquês de Pombal (REVISTA DE HISTÓRIA, 2011).
Mesmo com a atuação do Tribunal da Inquisição, através das visitações e da
presença constante de funcionários que vigiavam, prendiam e enviavam para Lisboa
os hereges judaizantes, estes continuaram a praticar sua religiosidade
dissimuladamente, como afirma Varnhagen ao registrar que até o início do século
XVIII as colônias eram conhecidas como um “paraizo terreal dos novos hebreus” onde
as famílias seguiam ocultamente “a religião do Talmud” (1847, p. 115). O autor em
seguida contextualiza a intensificação das perseguições e prisões de família inteiras
que foram enviadas para Portugal, dentre as quais a de Antônio José da Silva.
Atuando entre as brechas de uma sociedade na qual a única crença permitida
era a cristã-católica e convivendo com um racismo institucionalizado pautado nas leis
de pureza de sangue, os cristãos-novos assimilaram a doutrina dominante e
tornaram-se indivíduos fragmentados, divididos entre o ser cristão em público e o ser
judeu no interior dos seus lares. Este fato resultou em sua cisão psicológica e no
surgimento de práticas que deram origem a uma nova religião, definida por Cecil
Roth, como a religião marrana.
Ainda segundo a autora, a religião marrana teria surgido no século XVI por
uma necessidade dos conversos10 de manter a tradição judaica, apesar das
circunstâncias em que viviam. Enfatiza que mais do que um credo, a nova religião
constituía uma regra de vida, com uma teologia diferente da ortodoxia do judaísmo
devido à adaptação das práticas religiosas ao universo cristão (ROTH, 2001).
Vale ressaltar que a transmissão da teologia marrana era feita, geralmente,
pela oralidade e a iniciação acontecia na adolescência devido à condição secreta em
que subsistia. Nesse processo de iniciação, a mulher tinha posição vital, estas muitas
vezes atuavam como guia espiritual dos grupos marranos, afirmação comprovada pela
documentação inquisitorial.
Dentre os ensinamentos que recebera da Tia Esperança, confessados por
Antônio José da Silva, durante a primeira prisão, estão: fazer “um jejum do dia grande
no meado de setembro, estando desde um dia a noite até o outro sem comer nem
beber couza alguma; e que no dito dia a noite comesse o que tivesse sem excepção
de qualidade de manjares de peixe ou carne, e que guardasse os sábados de trabalhos
como dias santos” (Traslado do primeiro processo, IHGB, 1896, p.9).
Essas seriam práticas comuns entre os seguidores da lei de Moisés, e um
crime contra a fé católica, instituído pelo Monitório do Inquisidor e punido com as mais
duras penas.
Por mais que tenha se configurado como uma religião, Anita Novinsky alerta
para a adequação das práticas marranas à pluralidade dos rituais. Segundo Novinsky
(1992), não existiu o marranismo e sim marranismos, por não haver coesão neste
fenômeno, mas uma ampla variedade de comportamentos.

10
A perseguição aos judeus no mundo ibérico se intensifica a partir de 1492, por ocasião da assinatura do
Edito de Expulsão na Espanha, pelos reis católicos Fernando e Isabel, obrigando os judeus a se dispersar pela
Europa, principalmente para Portugal onde viveram livremente, sem perseguições, mesmo com a existência
de leis como as do Concílio de Latrão que os obrigava a usar sinais em suas vestimentas. Em Portugal, o
problema do converso, conhecido como cristão-novo, surge quando D. Manuel (pressionado pela Espanha)
concorda em expulsá-los do país, no entanto, o rei consciente da importância econômica do grupo proibiu a
saída dos judeus através da prática da conversão forçada em 1497 (NOVINSKY, 1992, p.30).
Dentre estes, um monitório publicado no início dos trabalhos da visitação
define como sendo práticas judaizantes, as seguintes, ainda que muitas delas não
tenham sido típicas do Brasil, mas da península ibérica:

1) guardar o sábado, vestindo-se com roupas e jóias de festas,


limpando a casa na sexta-feira e acendendo candeeiros limpos
com mechas novas, mantendo-os acesos por toda a noite; 2)
abster-se de comer toucinho, lebre, coelho, aves afogadas,
polvo, enguia, arraia, congro, pescados sem escamas em geral;
3) degolar animais, mormente aves, ao modo judaico,
“atravessando-lhes a garganta”, testando primeiro o cutelo na
unha do dedo da mão e cobrindo o sangue derramado com
terra; 4) conservar os jejuns judaicos, a exemplo do “jejum
maior dos judeus”, em setembro, dia em que os judeus
jejuavam até saírem as estrelas no céu, quando então comiam
e pediam perdão uns aos outros, além do “jejum da rainha
Ester” e o das segundas e quintas-feiras de cada semana; 5)
celebrar festas judaicas como a Páscoa do pão ázimo (Pessach),
a das Cabanas e outras; 6) rezar orações judaicas, a exemplo
dos salmos penitenciais sem dizer “Gloria Patri et Filio et Spiritu
Sancto”, e outras em que oravam contra a parede, abaixando e
levando a cabeça e usando correias atadas nos braços ou
postas sobre a cabeça; 7) utilizar ritos funerários judaicos, a
exemplo de comer em mesas baixas pescado, ovos e azeitonas
quando morre gente na casa de judeus, amortalhar os defuntos
“com camisa comprida”, enterrá-los em terra virgem, cortar-
lhes as unhas para guardá-las, pondo-lhes na boca uma pérola
ou mesmo moeda de ouro ou prata e dizendo-lhes “que é para
pagar a primeira pousada”, mandar lançar fora a água dos
potes e vasos da casa quando alguém morre na casa; 8) lançar
ferros, pão ou vinho nos cântaros da casa, nos dias de São João
Batista e do Natal, dizendo que aquela água se torna sangue; 9)
abençoar os filhos pondo-lhes a mão na cabeça, abaixando-a
pelo rosto sem fazer o sinal-da-cruz; 10) circuncidar os recém-
nascidos, dar-lhes secretamente nomes judeus ou, batizando-os
na igreja, “rapar o óleo e a crisma” neles postos (VAINFAS,
1997, p. 22-23, apud SOUZA, 2008, p. 97).

Por vezes, as diretrizes contidas no monitório não correspondiam à realidade


encontrada na colônia pelos inquisidores, no entanto, estas constituíram a base para
os interrogatórios durante os processos.
Antônio José deve ser entendido como um porta-voz do seu tempo, que, por
conta da sua origem cristã-nova, sofreu os encalços políticos e religiosos que
contribuíram para a assimilação de características psicossociais peculiares, observadas
nos costumes e instrumental mental que configuraram essa contracultura que
subsistiu oprimida durante a época em que atuou o Tribunal do Santo Ofício da
Inquisição (1536-182111).

11
A data faz referência à Inquisição portuguesa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para efeito de conclusão, um aspecto essencial da produção deste trabalho
precisa ser destacado, a saber: a natureza introdutória da pesquisa, pois o estudo da
religião marrana constitui um aspecto dentro da temática em desenvolvimento no
programa de mestrado. O texto tem o objetivo de situar Antônio José da Silva, o
Judeu, em um contexto mais amplo da cultura sefardita que se desenvolveu a partir
da diáspora atlântica. Sendo assim, o conteúdo será revisado à medida que o estudo
for aprofundado.
No momento, considera-se que esta religião marrana, na perspectiva da
história das religiões e religiosidades, corrente da História Cultural, deve ser
compreendida como um produto cultural, e, portanto, ser analisada a partir das
contingências históricas.
Um produto contextualizado e enraizado na sociedade em todos os seus
setores: político, social, econômico e principalmente religioso. Fenômeno
eminentemente ibérico e latino-americano, criado como defesa contra a imposição de
uma cultura estranha à do judaísmo.
No processo de criação e consolidação da religiosidade característica do
marrano, a América portuguesa, recém-conquistada, serve de pátria para esse novo
grupo de indivíduos, divididos entre a crença dominante e a crença ancestral,
geradores comportamentos incompatíveis a esses dois universos culturais. Homens
divididos e de identidades fragmentadas, que encontram no sincretismo uma maneira
de subsistir culturalmente, evitando um etnocídio ainda maior.
O fenômeno do sincretismo constituiu uma característica fundamental neste
processo, porquanto, os costumes dos marranos eram transmitidos de geração em
geração pela oralidade, e mesmo na condição do segredo do interior dos seus lares, os
costumes judaicos se mesclaram aos cristãos ao ponto de, mesmo aqueles que
retornaram ao judaísmo posteriormente, continuarem com uma prática religiosa
misturada.

FONTES:

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RENUNCIAR A UMA HERANÇA TEOLÓGICA? OS CORINHOS

Msc. Daniel Ely Silva Barbosa


Universidade Estadual da Paraíba

No início do século XX a difusão da indústria fonográfica vai gradativamente


ganhando espaço, pois, se até as últimas décadas do século anterior só era possível o
registro escrito das canções, a invenção do gramofone possibilitou a gravação das
mesmas em fonogramas. Afetando a vida de compositores, intérpretes e músicos em
geral, onde uma nova maneira de se estabelecer uma relação com a música vai sendo
realizada pela sociedade, pois agora as mais variadas culturas musicais têm a
possibilidade de eternizar suas sonoridades por meio da gravação de discos (BOSCO
Apud NESTROVSKI, 2007).
Peter Burke afirma que em fins do século XVIII quando eruditos e
colecionadores metrificavam musicalmente canções folclóricas – elaboradas pelo povo
– através de partituras realizavam um registro conforme um sistema musical que não
foi elaborado para contemplar tal paisagem sonora. Assim, quando lemos uma
partitura estamos tendo acesso a algo que realmente existiu, ou o que os
compiladores acreditavam que deveria existir? E que leituras o intérprete faz do
registro escrito? (BURKE, 1995).
Com as questões que iniciamos este artigo desejamos balizar, sumariamente,
alguns pontos que consideramos fundamentais para pensar a mudança de paradigma
musical ocorrida ao longo do século XX. Mudança que afetou também o segmento
evangélico, pois, se antes regentes lançavam mão de hinários que continham
partituras para conduzir as congregações e corais, e, acrescente-se, a música
precisava ser executada ao vivo, com os discos, as fitas cassetes, e posteriormente os
CD’s novas linguagens musicais são possibilitadas. Agora com o registro sonoro
cantores solistas, musicais, dentre outros não dependem mais de orquestras ou
músicos para acompanhá-los (CUNHA, 2007).
Em nossa dissertação de mestrado abordamos acerca das inquietações de
fiéis diante da emergência da música evangélica contemporânea, onde além das
palmas, do volume do som, dos novos ritmos, dos novos instrumentos, do visual dos
grupos de louvor, mencionamos que as letras de alguns cânticos também
desagradaram a alguns fiéis acostumados com a música evangélica tradicional. Se
antes os hinários e algumas poucas canções avulsas eram adotados pelas igrejas,
agora com a entrada de produtos do segmento evangélico no mercado fonográfico
outro repertório é disponibilizado.
Em função da diversidade de cantores(as) e grupos que estão na mídia uma
das nossas primeiras inquietações fora fazer escolhas, e por isto selecionamos canções
que foram bem presentes em várias igrejas evangélicas da cidade de Campina
Grande, e também em todo o Brasil. O primeiro cântico que selecionamos, “Ele é
Exaltado”, é de autoria de Adhemar de Campos 1.
Ele é exaltado,
O Rei é exaltado nos céus
Eu O louvarei

Ele é exaltado,
Pra sempre exaltado
O seu nome louvarei

Ele é o Senhor
Sua verdade vai sempre reinar
Terra e céus glorificam seu santo nome
Ele é exaltado, o Rei é exaltado nos céus

Ele é exaltado, o Rei é exaltado nos céus


Ele é exaltado, o Rei é exaltado nos céus
Ele é exaltado, o Rei é exaltado nos céus
2
Ele é exaltado, o Rei é exaltado nos céus

O compositor já inicia a canção com uma exaltação ao nome de Deus


presente na segunda frase da primeira parte: “O Rei é exaltado nos céus”. Baseado
em trechos da Bíblia Joe Jordan alega que o louvor, a exaltação ao Nome de Deus, se
inicia no “céu”, pois, antes da terra ser criada a música tinha por propósito único:
“glorificar a Deus”, e, na terra, ela deveria também ser exercida para proclamar a
grandeza do Altíssimo. Assim o ato do ser “adorar ao Senhor”, “Eu O louvarei”, que
encontramos no cântico, seria uma ação paralela a algo que já aconteceria num plano
não terreno. Vemos então como afirmações simples, dispostas no corinho, refletem
todo um conjunto de formulações teológicas (JORDAN, 2006).
Na segunda parte, com a frase “Pra sempre exaltado”, temos outra
formulação de uma interpretação de que tudo teve um começo. Baseados em um
conjunto de trechos bíblicos teólogos atestam que antes de tudo existir só existia Deus
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (João 1.1).
E que pelo poder de sua palavra o universo veio a existir, os céus, a terra e tudo que
há fariam parte da categoria do não-Deus, pois, seriam obra de um Arquiteto

1
Ademar de Campos foi engajado com a causa do evangelismo desde 1974. Cursou teologia por três anos e é
músico, compositor e pastor auxiliar na Igreja Comunidade da Graça do Brasil da cidade de São Paulo. É
autor de várias canções que são conhecidas por todo o país, a exemplo de “Grande é o Senhor”. Realizou
vinte trabalhos musicais desde 1985, e já escreveu três livros: “Adoração e Avivamento”, “O Poder da
Música a Serviço da Adoração” e “Adoração um Estilo de Vida”. Ver:
http://www.adhemardecampos.com.br/
2
Conforme: http://letras.terra.com.br/adhemar-de-campos/205379/
primeiro, que se distinguiria de sua criação. Silas Daniel afirma que tudo teve um
começo e terá um fim, e que o Senhor também está além do tempo, que foi criado
para dimensionar a existência da humanidade, de maneira que quando o ser morre
fisicamente sua alma passa a estar inscrita na eternidade (DANIEL, 2001).
Na terceira parte do cântico encontramos mais uma reafirmação de trechos da
Escritura que abordam a noção de fundamento eterno: “Sua verdade vai sempre
reinar”. “Passará o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão” (Mateus
24.35). Numa associação entre texto revelado e promessas para uma realidade
vindoura, alguns pesquisadores da Bíblia interpretam que os trechos da Escritura
seriam uma enunciação da proposta do Senhor para orientar a humanidade “Toda
Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para
corrigir, para instruir em justiça” (II Timóteo 3.16). E também a materialização das
verdades desta Voz, deste Verbo que desde o princípio estava (GITT, 2005).
Logo em seguida o cântico apresenta o seguinte trecho: “Terra e céus
glorificam seu santo nome”, que no nosso entender seria uma retomada do discurso
elaborado até então, abordando novamente a ideia de que no plano terreno
(humanidade) e no plano celestial (neste inominável espaço espiritual) glórias são
constantemente rendidas a este Nome. O compositor conclui a canção sugerindo que
uma contínua exaltação é realizada ao “Rei”.
O filósofo Cornelius Castoriadis alega que Deus só pode ser referido pela
humanidade a partir de símbolos, nem que seja o Nome, mas Ele também ultrapassa
este Nome, é outra coisa, pois, está além de nossas definições (CASTORIADIS, 2007).
Apesar de utilizar uma linguagem mais coloquial para expressar sua relação
com o sagrado podemos perceber que o compositor lança mão da mesma natureza
confessional dos cânticos dos hinários, onde a diferença estaria na maneira de
comunicar o seu sentimento.
A canção “Jesus em Tua Presença”, de autoria de Asaph Borba 3, é outro
exemplo de composição que não rompe com as propostas teológicas presentes em
muitos hinos evangélicos.
Jesus em Tua presença, reunimo-nos aqui,
Contemplamos Tua face, e rendemo-nos a Ti,
Pois um dia Tua morte, trouxe vida a todos nós,
E nos deu completo acesso, ao coração do Pai.
O véu que separava já não separa mais,
A luz que outrora apagada, agora brilha,
E cada dia brilha mais.

3
Asaph Borba é um cantor, músico e compositor evangélico que se converteu no ano de 1974, e em 1978
gravou o seu primeiro disco, “Celebremos com Júbilo”. Nas últimas décadas muitos dos seus trabalhos
musicais têm tido notoriedade no segmento. Ver:
http://www.asaphborba.com.br/noticia_tour.asp?COD_MENU=102
Só pra Te adorar,
E fazer Teu Nome grande,
E te dar o louvor que é devido.
4
Estamos nós aqui.

A composição de Borba é iniciada com a ideia de os fiéis reunirem-se


enquanto comunidade para celebrar, prestar culto a Deus, estar na presença do
Senhor, onde as expressões “Tua presença” e “Tua face” são colocadas de maneira
figurada, uma vez que no protestantismo imagens, figuras concretas, ou
representações visuais não são adotadas por seus praticantes. Para utilizarmos as
expressões do escritor Rubem Alves podemos dizer que estes fiéis não lançam mão de
tais “símbolos da ausência”, então, este “ver” seria uma linguagem que se refere a
coisas não-visíveis, além dos sentidos, um contemplar com os olhos da fé. E, no
contexto do cântico, acrescente-se que, apesar de reunirem-se coletivamente, a
experiência de cada um é individual, particular (ALVES, 2000).
Com os trechos: “Pois um dia Tua morte, trouxe vida a todos nós,/ E nos deu
completo acesso, ao coração do Pai/ O véu que separava já não separa mais” é feita
uma clara alusão ao discurso teológico de que a morte de Cristo possibilitou a
chamada “Nova Aliança”. Pois, se antes o povo hebreu tinha acesso a Deus por
intermédio dos sacerdotes, a “Antiga Aliança”, uma vez que no templo havia um véu
que fazia a divisão entre o povo e o local chamado “santo dos santos”, já que só o
sumo-sacerdote poderia ultrapassar este limite, a partir da crucificação todo aquele
que se “converter” poderá se comunicar diretamente com o “Pai” por intermédio de
Jesus (LARSEN Apud KREWSON, 2005).
O texto segue enfatizando que esta Luz “cada dia brilha mais”, remetendo a
ideia de iluminação, de revelação de uma verdade para a humanidade, e, acrescente-
se, toda a criação. Já no final do cântico este ajuntamento, de que já tratamos, teria
sido realizado em favor de se oferecer louvor, de se prestar culto ao Senhor.
Com os hinos, os corinhos e discursos que analisamos até então não
desejamos fazer apenas uma mera exposição de tais textos, antes temos por intuito
demonstrar as aproximações que existem no plano teológico entre tais cânticos. Pois,
se para alguns fiéis a música evangélica contemporânea era inconciliável com a
musica evangélica tradicional, por conta de vários motivos que já expusemos no início
deste artigo, outros avaliavam o repertorio musical de suas igrejas em função das
letras. Assim, para alguns participantes de igrejas evangélicas ligadas ao
protestantismo histórico na cidade de Campina Grande o conteúdo escrito era uma

4
Conforme: http://letras.terra.com.br/asaph-borba/172299/
preocupação maior do que as harmonias e os ritmos das canções, conforme atesta o
senhor Abner Jorge de Andrade:
“... Agora vieram novas músicas. Eu não sou contra as músicas
não, agora, eu sou contra o conteúdo que aparece em certas
músicas. Eu não aceito determinadas mudanças. Outra coisa
que ta prejudicando a igreja é que estas músicas novas, muitas
vezes a letra é fraca e o auditório não tem condição de ouvir a
letra, só ouve os instrumentos...” (ANDRADE, 2006).

Com este depoimento o colaborador enfoca sua preocupação com o conteúdo


das letras das canções e com a compreensão do que se está sendo comunicado.
Apesar de podermos identificar um conjunto de temáticas nos cânticos que
avaliamos, é perceptível que a sua construção seja realizada com base em sistemas
de significados que se circunscrevem e operam sobre um corpus, no caso, a Escritura.
Para Certeau os procedimentos de fabricação são modalidades de ação que
apesar de disporem de maneiras de operar – mil maneiras de fazer com – são
procedimentos finitos, invenções como improvisações no piano ou na guitarra, que
supõe aplicações de códigos a lógicas relativas a..., numa hábil utilização. Maneiras de
colocar bem, atividade sutil, tenaz, com base no sistema do outro, onde ali vai caçar,
cria surpresas, instauram uma pluralidade criativa, memorizando repertórios de
esquemas de ação (CERTEAU, 2003).
O processo de instituição efetivar-se-ia numa relação de recepção/re-
elaboração do que já está instituído. Uma palavra, por exemplo, só teria significação e
poderia adquirir outros referindo-se a outras significações já existentes, do contrário
não seria palavra. Falar é unir e reproduzir signos de..., segundo as regras do co-
pertencer. Existindo assim um contexto linguístico, de maneira que uma frase ou um
termo devem ser compreendidos dentro do seu contexto particular. A linguagem seria
um feixe de remissões que remete a significados figurados, de maneira que a
constante emergência de novos significados atestam que a língua é viva e está
associada a seus referentes (CASTORIADIS, 2007).
É interessante perceber que apesar de apresentarem um conteúdo teológico
muito parecido com o dos hinos, considerando as maneiras de se expressar em cada
época, estes novos corinhos também receberam críticas de fiéis que não os
consideravam apropriados para fazerem parte do repertório musical de suas igrejas,
conforme atesta o entrevistado Boanerges Rodrigues Batista (BATISTA, 2008).
Os pontos que abordamos desde o início do artigo até o presente momento
além de tratarem de questões que convergem para o transcorrer de nossa escrita,
também têm por intuito possibilitar uma melhor compreensão do protestantismo.
Nem todos os cânticos atuais seguiram os mesmos critérios teológicos que as
duas canções que citamos neste artigo, de maneira que alguns apresentam
interpretações bem particulares, a exemplo da canção Restitui do Ministério de Louvor
Apascentar.
Os planos que foram embora,
O sonho que se perdeu,
O que era festa e agora,
É luto do que já morreu,
Não podes pensar que este é o teu fim,
Não é o que Deus planejou,
Levanta do chão!
Erga um clamor!

Restitui!
Eu quero de volta o que é meu
Sara-me!
E põe teu azeite em minha dor
Restitui!
E leva-me às águas tranqüilas
Lava-me!
E refrigera mina alma
Restitui!

O tempo que roubado foi,


Não poderá se comparar,
A tudo aquilo que o Senhor,
Tem preparado ao que clamar,
Creia porque o poder de um clamor,
Pode ressuscitar! 5

Já no começo do corinho pode-se perceber que diferente de outras canções de


seu período que enfatizam “a exaltação ao Nome de Deus”, a “crucificação”, “o novo
nascimento”, dentre outras temáticas recorrentes, a canção Restitui trata das
angústias do ser diante dos desafios da vida com os trechos “Os planos que foram
embora,/ O sonho que se perdeu,/ O que era festa e agora,/ É luto do que já morreu”.
A canção segue afirmando que este não é o fim, e que não seriam estes os planos de
Deus para esta pessoa que está passando por problemas, de maneira que ela
precisaria buscar ao Altíssimo a partir de orações. No côro tais questões têm
continuidade, onde é sugerido que o ser peça ao Senhor para que Ele cesse a sua dor,
que o faça viver momentos de tranquilidade, e que lhe conceda bênçãos.
Já no ano de 1986 em seu livro “JUBILATE! A música na igreja” Hustad
alertava para o fato de que uma das preocupações que têm inquietado os evangélicos
seria a apresentação de um evangelho que estaria restrito a um formato de

5
Conforme: http://letras.terra.com.br/toque-no-altar/185328/
mensagem em que a ênfase é a preocupação com os problemas dos seus
espectadores (HUSTAD, 1986).
Com a canção “Restitui” vemos que até o término da primeira parte do
corinho as expressões utilizadas não se distanciariam excessivamente de outras
canções evangélicas de sua época, mas com o trecho “Eu quero de volta o que é meu”
a composição toma um rumo que enfatiza o seu lugar teológico de fala, pois
demonstra um entendimento que tem sido motivo de muita polêmica entre
evangélicos, trata-se da chamada Teologia da Prosperidade.
A Teologia da Prosperidade é uma corrente doutrinária surgida nos EUA nas
décadas de 1960 e 70 em meio ao movimento de renovação pentecostal que prometia
saúde perfeita, prosperidade e triunfo. O teólogo e escritor Ricardo Gondim alega que
em toda a história do cristianismo encontram-se relatos acerca da cura divina, mas,
que a partir do século XIX, e especialmente a partir do século XX, passa-se a haver
uma maior ênfase no dom da cura divina em alguns grupos do segmento evangélico
(GONDIM, 1993).
Gondim informa que o principal nome na divulgação da Teologia da
Prosperidade foi Keneth Erwin Hagin, nascido em 1917, que iniciou o seu ministério
como pastor batista entre 1934-37 em uma pequena igreja na cidade de Roland,
Texas. Sua ênfase em pregar acerca da cura divina o afastava da proposta doutrinária
dos batistas. Em 1937 passou a ser pregador das igrejas da denominação da
Assembléia de Deus, até 1949, quando inicia o seu próprio trabalho, alegando
inclusive que seu ministério chegou a um nível super-espiritual, e que,
posteriormente, Jesus o teria “levado aos céus oito vezes” (SIC!) entre os anos de
1950 à 1959. Hagim escreveu livros e foi muito influente em algumas igrejas do
segmento evangélico, inclusive no Brasil.
Além das ideias de saúde perfeita e sucesso profissional, financeiro, etc.,
alguns dos propagadores de tais entendimentos afirmam que os filhos de Deus,
“salvos”, não podem adoecer, nem deixar de “prosperar”, uma vez que estas
situações demonstrariam incredulidade, imaturidade espiritual ou pecado. Pedir para
Deus curar e esperar que Ele faça a Sua vontade seria falta de fé, pois, crêem que
têm direitos para com o Senhor, e que o “crente” deve ordenar/decretar que seu
pedido seja realizado (GONDIM, 1993).
Gondim afirma que no que diz respeito a questão da cura “Deus permite o
sofrimento para que o socorro seja buscado, e o arrependimento venha”, de maneira
que toda teologia acerca da cura e dos milagres precisa considerar a possibilidade do
Senhor não curar. E que as compreensões acerca da Teologia da Prosperidade são um
perigo, pois, quando pessoas se acham muitos especiais e o que desejam não
acontece elas ficam deprimidas. Informa-nos também que alguns dos propagadores
de tais teologias foram hospitalizados escondidos. Afirma ainda que com estas ordens
e sentenças do tipo “Eu decreto, Ta amarrado...” seus praticantes se distanciam da fé
que confia na misericórdia e graça do Deus “que não nos dá o que merecemos,
(morte, infelicidade, inferno)”, mas que por Sua graça nos presenteia com o que não
merecemos: Suas bênçãos sem medidas (GONDIM, 1993, 93, 104).
Diante das questões expostas por Gondim nos perguntamos: por que esta
inquietação com estes discursos que se distanciam das compreensões teológicas dos
protestantes históricos e pentecostais? Silas Daniel alega que vivemos uma atual crise
onde novas teologias têm tentado relativizar os dogmas dos cristãos, desconstruindo
os antigos sistemas de interpretação, e pregado um cristianismo hedonista. E muitos
têm divulgado estas ideias não só em algumas igrejas, mas também através da
internet (DANIEL, 2007).
Uma das principais críticas que Silas Daniel faz é a “Teologia Narrativa” que
propõe que a Bíblia seja lida conforme as necessidades do leitor, que pode tirar as
lições que desejar. E que os teólogos que defendem tais ideias sentem-se
incomodados com os conceitos de “autoridade, inerrância, infalibilidade, revelação
objetiva, absoluta e literal” relacionados à Escritura. Pois crêem que qualquer
interpretação é possível, e que este Texto seria apenas inspirativo para boas obras e
para se agir de maneira politicamente correta, uma vez que esta Palavra seria um
documento datado e motivacional, onde o papel da religião se restringiria a tornar as
pessoas melhores. Daniel entende que tais maneiras de proceder refletiriam o temor
que esses teólogos têm de serem impopulares em meio aos diversos segmentos da
sociedade (DANIEL, 2007, 78).
McMahon acredita que tais modificações na maneira de se pensar a relação
com o sagrado seriam fruto da influência da psicanálise e de determinadas filosofias
na teologia. Pois, cada vez mais têm-se disseminado o discurso de que a natureza
humana é boa, e que para se tratar problemas mentais, emocionais e
comportamentais a Bíblia não seria suficiente, de maneira que nos EUA vários
pastores incorporaram o curso de psicologia a seus currículos. O escritor alega que
tais compreensões têm levado muitos cristãos a divinizarem seu ego, de modo a
crerem que podem agir conforme quaisquer que forem suas vontades, nas suas
palavras: agindo em rebelião contra Deus, desconsiderando as orientações bíblicas
para o fiel negar-se a si mesmo e abraçar as verdades do evangelho, “e os teus
ouvidos ouvirão a palavra do que está por detrás de ti, dizendo: Este é o caminho,
andai nele; quando vos desviardes para a direita ou para a esquerda” (Isaías 30.21)
(MCMAHON, 2007).
Na obra Aconselhamento: integrando a psicoterapia e a Bíblia? Bobgan e
McMahon atentam para o fato de que com a associação entre a psicoterapia e a
teologia os textos bíblicos são adaptados por intermédio das interpretações. Onde por
influência da psicanálise alguns cristãos têm buscado resolver seus problemas pondo a
culpa nos demais a sua volta, de maneira que se consideram sempre vítimas que
precisam de cura, e nunca pecadores que precisam do perdão e da ação de Deus.
Num evangelho que quer libertar o que chamam de “maravilhoso eu”. Maneiras de
pensar que, para os escritores, difeririam da proposta bíblica para a morte da velha
natureza, tornando-se, o convertido, uma “nova criatura”, e referenciam: “Enganoso é
o coração, mais do que todas as coisas, e perverso; quem o poderá conter?” (Jeremias
17.9). De modo que possam proceder, a partir deste momento, conforme “a Palavra
de Deus”, “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me
ama; e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei
a ele” (João 14.21) (BOBGN e MCMAHON, 2005).
Citando o escritor francês André Malraux Daniel acredita que vivemos um
momento único na história em que a sociedade se pergunta: “A vida tem um sentido?”
e a resposta é: “não sei”. Período onde a relativização e desconstrução das verdades e
valores têm levado alguns a crerem na ideia de que não há referentes, não há
absolutos a serem seguidos. Discursos estes que têm afetado a teologia (DANIEL,
2007, 22).
Mas, apesar de tal panorama há muitos teólogos e fiéis que não concordam
com a relativização da Escritura. Baseando-se em vários trechos desta Werner Gitt
afirma que a Bíblia é o único livro – ou conjunto de livros – revelados/autorizados por
Deus, e não há revelações suplementares, e nem se pode acrescentar nem retirar
nada. Sendo necessário permanecer nesta Palavra, que não se contradiz e é completa.
Faz críticas aos que pregam outro evangelho “Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo
do céu vos pregasse outro evangelho além do que já vos pregamos, seja anátema”
(Gálatas 1.8). Para Gitt qualquer pessoa pode selecionar trechos conforme sua
vontade, por isto, é preciso avaliar, sobretudo o contexto, e não ultrapassar o que
está escrito nesta “Revelação”, “Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a
vida eterna; e são elas que dão testemunho de mim” (João 5.39) (GITT, 2005).
Com a exposição dos discursos teológicos que realizamos ao longo deste
artigo desejamos traçar um breve panorama da atual situação do segmento
evangélico, onde apesar de existirem múltiplos discursos, que defendem vários
posicionamentos, os antigos sistemas de interpretação hermenêuticos que crêem na
Escritura enquanto “revelação” de verdades desta Voz, e, portanto um conjunto de
orientações para a humanidade ainda são adotados por muitos fiéis, especialmente
nas igrejas vinculadas ao protestantismo histórico. Com esta alegação não estamos
afirmando que os participantes têm uma mesma opinião, circunscrita pela visão da
denominação e do pastor, mas, que é preciso considerar as interpretações teológicas e
doutrinárias que circulam em cada comunidade eclesiástica. Salientando que não
tivemos nenhum constrangimento em mencionar tais falas, uma vez que elas estão
presentes em nosso texto enquanto discursos do grupo que pesquisamos.
Um questionamento que o leitor pode estar se fazendo é: qual a relevância de
se avaliar canções que não são compostas por cantores ou grupos vinculados ao
protestantismo histórico? Questão que pode ser facilmente compreendida, pois, com a
emergência da “música evangélica contemporânea” as igrejas evangélicas (em sua
maioria) passaram a adotar cânticos de várias denominações, conforme nos informa o
colaborador Afonso Joaquim Silva de Oliveira (OLIVEIRA, 2008).
Urgél Rusi Lotá enuncia que em se tratando da música nas igrejas evangélicas
muitos problemas (SIC!) seriam causados pelas lideranças que permitem a entrada de
uma quantidade excessiva dos corinhos em seu repertório musical, causando, uma
perda de identidade doutrinária nas denominações. Afirma também que muitas vezes
são escolhidos cânticos que não têm a ver com a unidade temática dos cultos (LOTÁ,
1993).
Referindo-se ao período em que pastoreou a Primeira Igreja Batista de
Campina Grande o Prof. Eli Brandão da Silva nos informa:
“Em geral o repertório foi sempre escolhido pelo antigo diretor
de música, ou o Ministro de Música, sendo que era sempre uma
combinação com o culto, pois o culto era visto como uma
unidade. As canções não podiam ser escolhidas aleatoriamente,
elas faziam parte de um todo. As músicas que eram
selecionadas no boletim eram de acordo com o tema central do
culto. Sendo que quando um grupo ia cantar isso nem sempre
era possível, pois às vezes nem o repertório deles
contemplavam as temáticas que iam ser adotadas no conjunto,
e isto escapava, pois não havia um controle disto. Às vezes o
grupo cantava, e cantava um repertório completamente
aleatório, e o culto acontecia de uma outra maneira, era como
se fosse um culto dentro de um outro culto” (SILVA, 2006).

Com o depoimento anterior vemos que ao passo que até determinado


momento, na história da igreja, era uma diretoria que selecionava o repertório
musical, mas, com a emergência dos grupos de louvor novas canções passam a fazer
parte dos cultos.
Mas, a entrada de certos cânticos é um assunto que tem causado
preocupação em muitas lideranças conforme nos relata o pastor Joseilton da Silva
Messias:
“... Muitas vezes vejo uma pessoa falando uma doutrina
incorreta e pergunto por que ela está dizendo isto, já que ela
não ouviu isto na igreja, e esta pessoa diz que aprendeu esta
doutrina com as músicas...” (MESSIAS, 2006).

Quando o entrevistado refere-se a estas novas teologias presentes em alguns


corinhos não generaliza, e faz questão de fazer tal ressalva durante a entrevista.
Opinião que é em certo sentido compartilhada por diversos entrevistados, inclusive
adultos de diversas igrejas evangélicas campinenses, que afirmaram que as letras de
muitos dos primeiros cânticos, e de alguns recentes, seriam balizados pela Bíblia.
Mas, a preocupação com o conteúdo doutrinário das letras – e com a
circulação de determinados entendimentos – é uma preocupação para muitas
lideranças de igrejas e fiéis, conforme relata o entrevistado Carlos Renato Siqueira de
Araújo:
“... cada denominação, principalmente as mais tradicionais têm
uma linha teológica muito forte, têm um pensamento teológico
muito forte. E nada mais justo que o que você está cantando
ande em conformidade com o que você crê. Embora existam
irmãos de igrejas tradicionais que cantam verdadeiras
aberrações teológicas. Que Deus sonha, e eu acho interessante
que não há a preocupação da pessoa explicar que talvez o
compositor não tenha a intenção de dizer que Deus deita em
um travesseiro e dorme. Mas o ministro deve ter a preocupação
de explicar a igreja” (ARAÚJO, 2008).

É interessante perceber o quanto o conteúdo das letras, e aqui entenda-se o


conteúdo teológico, foi algo considerado importante pelos entrevistados. Apesar de
afirmarem que nos últimos vinte anos ainda existam composições que consideram
bem elaboradas, muitos entrevistados tem a opinião de que as primeiras canções da
chamada música evangélica contemporânea no Brasil, nas décadas de 1970 e 80,
eram compostas com uma maior preocupação com as letras, conforme atesta o
colaborador Vamberto Lima: “E eu vejo que antigamente as músicas eram bem mais
trabalhadas, as letras eram mais profundas, mais bonitas, tinham mais conteúdo,
mais mensagem”. Ao longo da entrevista informa algo que também lhe inquieta: “Hoje
os grupos de louvor das igrejas preferem não cantar músicas de 15 ou 20 anos atrás,
preferem cantar as músicas mais contemporâneas”. Comentário que sugere que se os
corinhos recentes estão mais presentes, os cânticos das décadas anteriores, os quais
elogia, são menos selecionados pelos conjuntos de louvor (LIMA, 2008).
Se alguns teólogos criticam a dita “propagação de outro evangelho”, conforme
pudemos mencionar anteriormente, a presença de tais entendimentos em canções
evangélicas desagrada a muitos fiéis que compartilham da tradição hermenêutica do
protestantismo histórico, e também as comunidades de denominações que se
aproximam de tais teologias. Joe Jordan alega que hoje muito do que é chamado de
música evangélica contemporânea “não proclama a justiça de Deus”, não fala em
salvação, nem em pecado e não anunciam o Messias (Jesus Cristo). Em sua opinião, o
“problema” hodierno “é que muito do que é vendido sob o rótulo de música cristã ou
evangélica não tem nada a ver com Cristo”, de modo que em muitos “shows gospel”
as pessoas não seriam expostas a verdade do evangelho (JORDAN, 2006, 9, 11).
Para Certeau no ato de praticar a linguagem os usuários a alteram,
subvertendo-a a partir de dentro, metaforizam fazendo funcionar outro registro, no
entanto, modificam-na sem deixá-la. Usos que indicam um consumo em que
“conservam a diferença no próprio espaço organizado pelo ocupante”, pois criam um
espaço diferente, onde reempregam um sistema que foi construído e propagado por
outros. Redefinindo sistemas históricos com “mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do
outro” (CERTEAU, 2003, 95, 79).
Trazendo tais questões para o processo de composição que analisamos é
notória uma multiplicidade de discursos acerca do sagrado que pululam
cotidianamente. E nas igrejas ligadas ao protestantismo histórico tanto canções que
muito se aproximam da proposta teológica dos hinos, quanto cânticos que apresentam
outros discursos passaram a fazer parte de seus cultos – o que levou a muitos debates
teológicos. Cabendo se destacar as seleções feitas por cada igreja, uma vez que algo
que pudemos perceber fora que apesar de alguns cânticos terem uma maior circulação
entre o segmento evangélico como um todo, cada comunidade e cada grupo de louvor
realizou suas escolhas.
Hustad entende que as letras das canções evangélicas que são compostas a
partir de meados do século XX refletiriam algumas inquietações da época, onde o
formato de anunciação do evangelho também seguiria a estes padrões, de modo que a
maneira como as ideias de pecado e salvação eram comunicadas são, a partir de
então, redefinidas, mas não abandonadas. Menciona que levando em conta o fato de
que um dos problemas que cada vez mais aflige a sociedade moderna é a solidão,
compositores evangélicos elaboram alguns cânticos que enfocam a comunhão entre a
comunidade e também fazem referência a necessidade de serem tratadas às emoções
fiéis (HUSTAD, 1986).
Não é de se admirar que no Brasil corinhos a exemplo de “Restitui” ganhem
espaço, pois, com expressões como “põe teu azeite em minha dor”, “leva-me as águas
tranquilas”, ou a afirmação de que o tempo que foi roubado não se comparará com o
que será restituído, há um direcionamento para um discurso voltado para os
problemas dos fiéis. E por vezes discursos que propõe uma solução para tais
problemas.
Apesar de concordarem com a ideia de se referir a Deus enquanto um “Pai”
amoroso – atento as necessidades de seus “filhos” – muitos teólogos discordam da
maneira como alguns pastores, grupos de louvor, ou fiéis trabalham sua relação com
o sagrado. A principal crítica é dirigida aos discursos que buscam afirmar que o
“crente” deve decretar que o seu pedido seja atendido, conforme já mencionamos
anteriormente quando discutimos sumariamente a Teologia da Prosperidade.
Ricardo Gondim em seu emblemático nono capítulo “O fascínio de mandar em
Deus” refuta tais entendimentos. Assim a diferença não seria apenas uma questão de
ênfase, pois, se uns acreditam que têm direitos, e que devem ser atendidos, outros
compreendem que têm o direito de pedir ao Senhor e o dever de aceitar a Sua
vontade, uma vez que Ele sabe o que é melhor para seus “filhos” (GONDIM, 1993).
O teólogo Urgél Rusi Lotá entende que um dos problemas (SIC!) que os
evangélicos têm enfrentado seria o que denomina de “música para o consumo”, ou
seja, unicamente para o entretenimento musical, onde as canções teriam servido em
muitos casos como um acelerador das emoções, enquanto um fim em si mesmo, ou
mesmo enquanto termômetro da qualidade do culto (LOTÁ, 1993).
Para Magali do Nascimento Cunha alguns dos discursos que tem se tornado
comuns entre as lideranças de ministérios de louvor e adoração são: o da intimidade
com o sagrado, o da guerra espiritual, e o de se conceder bênçãos. Alega que na
tradição bíblica quem abençoa é Deus, e em seguida o pai de família, e no que chama
de nova concepção alguns ministros de louvor passam a conceder para si o poder de
abençoar, e também estimulam as pessoas a abençoarem umas as outras (CUNHA,
2007).
Certeau alega que estudar a religião é “pensar o que os seus conteúdos se
tornaram nas nossas sociedades” (CERTEAU, 2007, 179). Mas, apesar de considerar
as modificações, as rupturas, o novo, reconhece que a sociedade também guarda
permanências. Em suas palavras: são performances operacionais relativas a saberes
antigos, que remontam a tempos recuados, táticas que apresentam continuidades e
permanências, e que assimilam um sistema vasto (CERTEAU, 2003).
Assim, avaliando os vários discursos que problematizamos ao longo de nossa
escrita podemos perceber que, no segmento evangélico, vão sendo agenciadas falas
que buscam demarcar o que é e o que não é autorizado. E em concordância com os
depoimentos do Prof. Eli Brandão da Silva, entendemos que se muitos fiéis se sentem
incomodados com a presença de certos cânticos, esta inquietação ocorre, pois uma
canção é também “veículo de um conteúdo teológico”.
FONTES E BIBLIOGRAFIA

1. Fontes orais

ANDRADE, Abner Jorge de. Entrevista concedida a Daniel Ely Silva Barbosa.
Campina Grande 02 de mai 2006.
ARAÚJO, Carlos Renato Siqueira de. Entrevista concedida a Daniel Ely Silva
Barbosa. Campina Grande 19 de jul de 2008.
BATISTA, Boanerges Rodrigues. Entrevista concedida a Daniel Ely Silva Barbosa.
Campina Grande 22 de jul de 2008.
LIMA, Vamberto. Entrevista concedida a Daniel Ely Silva Barbosa. Campina
Grande 02 de mai de 2008.
MESSIAS, Joseilton da Silva. Entrevista concedida a Daniel Ely Silva Barbosa.
Campina Grande 04 mai 2006.
OLIVEIRA, Afonso Joaquim Silva de. Entrevista concedida a Daniel Ely Silva
Barbosa. Campina Grande 23 de abr de 2008.
SILVA, Eli Brandão da. Entrevista concedida a Daniel Ely Silva Barbosa. Campina
Grande 23 ago 2006.

2. Fontes Impressas

BÍBLIA Sagrada. Rio de Janeiro, editora, 1995.

3. Livros

ALVES, Rubem. O que é Religião? 2 ed. São Paulo: Loyola, 2000.


BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800. 2 ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 6 ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2007.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 2 Ed. 3ª Reimpressão. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2007.
_________. A Invenção do Cotidiano. 1. Artes de fazer. 9 ed. Petrópolis: Vozes,
2003.
CUNHA, Magali do Nascimento. A Explosão Gospel. Um olhar das ciências humanas
sobre o cenário evangélico no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, Instituto Mysterium,
2007.
DANIEL, Silas. A sedução das novas teologias. Rio de Janeiro: CPAD, 2007.
_______. Reflexões sobre a Alma e o Tempo. Rio de Janeiro: CPAD, 2001.
GITT, Werner. Perguntas que sempre são feitas. 2 ed. Porto Alegre: Actual
Edições, 2005.
GONDIM, Ricardo. O evangelho da nova era. 2 ed. São Paulo: Abba Press Editora,
1993.
HUSTAD, Donald P. JUBILATE! A música na igreja. São Paulo: Vida Nova, 1986.
JORDAN, Joe. Isso é música cristã? Porto Alegre: Actual Edições, 2006.
KREWSON, Willian L. Alianças bíblicas: entendendo a ação divina na história.
Porto Alegre: Actual Edições, 2005.
McMAHON, T. A. Psicologia na igreja: a religião anticristã do egocentrismo.
Porto Alegre: Actual Edições, 2007.
NESTROVSKI, Arthur. Lendo Música. 10 ensaios sobre 10 canções. São Paulo:
PUBLIFOLHA, 2007.

4. Artigo
LÓTA, Urgél Rusi. A Música na Igreja. In: FERREIRA, Ebenézer Soares. Revista
Teológica. Publicação do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil. Rio de Janeiro.
Ano VIII, nº12, Dezembro de 1993.

5. Artigos e links da internet

http://www.adhemardecampos.com.br/
http://letras.terra.com.br/adhemar-de-campos/205379/
http://www.asaphborba.com.br/noticia_tour.asp?COD_MENU=102
http://letras.terra.com.br/asaph-borba/172299/
http://letras.terra.com.br/toque-no-altar/185328/
A ritualidade presente na performance Ritos1

Amanda Baros Melo2

Melo.ritos@hotmail.com

Resumo

A presente pesquisa propõem fortalecer a ponte entre performance arte e o


fenômeno religioso, expandindo assim o campo de analise das Ciências da Religião.
A pesquisa é baseada em trabalho de campo realizado na condição de observadora
participante do processo de recriação da performance Ritos, espetáculo criado pela
performer paraense, Michele Campos de Miranda. Espetáculo este, baseado na obra
Os Tarahumaras, com aspectos que remetem ao teatro da crueldade do teatrólogo
francês Antonin Artaud e outro recurso utilizado é o processo ritual em cena, por
meio disto enfatizando a cultura ameríndia, unindo aspectos culturais de Brasil e
México, porém se utilizando de um jogo sincrético vasto, onde é possível perceber
elementos de varias religiões (judaísmo, umbanda, esoterismo,
cristianismo/protestantismo...) que em cena são ligados uns aos outros, a
simbologia utilizada remete a questão do sagrado e profano, a comunicação com
várias linguagens artísticas, que por meio do “aqui agora” estão em cena. Por meio
disto toda a ritualidade é expressa, de forma latente, com a utilização do corpo da
performer em cena, o centro de tudo, as transformações, os renascimentos, todos
estes componentes fazem parte da performance Ritos, que por meio da pesquisa
será descrita e analisada.

Palavras- chaves: Ritos, sincretismo, ritual, performance, corpo.

Live Art: Um pouco sobre a história da performance

Não há fotografia que não seja música.

Não há poesia que não seja cinema.

Nem teatro que não seja escultura.

Arte única, mais que um movimento

É uma constatação da contemporaneidade.

Nadam Guerra

Em uma sociedade que vive a contemporaneidade é comum haver mudanças


nas diversas formas de linguagens, expressões, movimentos de protestos ou até
mesmo de exaltação, tudo isto fica muito latente em qualquer contexto social, onde
a maioria das coisas estão mais próximas, os indivíduos estão mais amparados com
1
Este texto é parte de uma pesquisa mais ampla que está em desenvolvimento, que resultará no trabalho
de conclusão do curso.
2
Estudante da Universidade do Estado do Pará, estudante do 4° ano do curso de licenciatura plena em
Ciências da Religião.
informações, há mais questionamentos, o que antes era domínio de um grupo
distinto agora pode ser alcançado por quem estiver disposto a compreender algo
novo, é justamente em meio a todo esse contexto de mudança que o gênero
performance surgiu, já rompendo com os paradigmas pré-estabelecidos por outras
linguagens artísticas.

Antes de possuir as diversas denominações como, performance, body art,


live art, o ato de performar, de por para fora as inquietações presentes no
indivíduo, já existia, a exemplo disto os movimentos de contra cultura, movimentos
sociais, protestos, manifestações, isto já podia ser considerado uma forma de
perceber que o gênero performance já estava sim presente em meio social, só não
havia sido categorizado. O happening3 que pode ser tido como um “ancestral” da
performance, ou seja, um acontecimento que ocorria em tempo real, e todos
podiam presenciar dependendo do lugar que ocorre-se.

O gênero performance surgiu aproximadamente entre o fim da década de


1960 e inicio da década de 1970, a partir de então passou a ser analisada por
artistas, pesquisadores, como algo tecnicamente novo, e o fato de ser uma arte
híbrida, ou seja, comunica-se com as demais linguagens artísticas, se utilizada de
inúmero recursos para ser executada, vive em uma área fronteiriça, onde bebe em
várias fontes, assim acaba por enriquecer mais seu campo de atuação, livre de
amarrações4, era vista como uma forma de expressão anárquica, pois fugia a regra
das demais expressões artísticas, seu começo, meio e fim, era feita de forma
diferente, o fator do “aqui agora!”, a ação sendo feita para o publico, a própria
interação do performer com o publico já é algo que rompe completamente com a
idéia que se tinha de um espetáculo, outro fator que também mostra o diferencial
do ato de performar, é que este pode ser feito nos mais diversos lugares, não se
restringe há um teatro, há um palco, pode ser feito em lugares abertos, interagindo
mais ainda com quem está ao redor.

Cada item desses está diretamente ligado a vida cotidiana, rituais diários que
todos realizam, nos mais variados meios sociais, onde qualquer um pode exercer
está ação, mas o que vale ressaltar, é que a performance não pode ser entendida
como algo que é realizado de qualquer forma, um improviso mal feito, muito pelo
contrário, estas são elaboradas, e ensaiadas, o fato de ser algo livre de amarras,
não a faz ser um ato livre de preparação, sendo que o que realmente conta para

3
“Acontecimeto”, um evento, uma ação, movimentação. Termo que surgi pouco antes do nome
performence.
4
Termo utilizado, para mostrar que há limitações na maior parte das linguagens artísticas, porém a
performance busca romper com estas.
ser uma performance é o “aqui agora!”, tudo sendo feito a frente do publico,
utilizando o corpo em cena, a poesia falada, musica, vídeos, projeções, body art.
“Qualquer comportamento, evento, ação ou coisa pode ser estudado como se fosse
performance e analisado em termos de ação, comportamento,
exibição”.(SCHECHNER, 2003, p. 39).

Além dos inúmeros elementos que a performance apresenta, MEDEIROS, discorre


sobre a importância do quarto elemento:
Artista, obra, público são elementos estéticos da
performance. O quarto elemento é o tempo. A performance
artística se da no tempo, sua efemeridade é condição. Os
registros permanecerão registros, e, por permanecerem,
estarão semi-mortos, ainda que capazes de leves
ressonâncias. Os registros são apenas obscuros reflexos, eco
ensurdecido de um prazer para sempre estancado.
(MEDEIROS, 2005, p. 165).

A efemeridade da performance realmente é condição para sua existência,


pois como é algo que está em fase de maturação, experimentações são feitas no
decorrer do desenvolvimento de qualquer trabalho que use a performance como
cerne principal, o tempo se dá no momento em que a performance é feita,mesmo
sendo um espetáculo que seja feito por um longo período, nenhum dia é igual ao
outro, sempre há novas idéias, movimentações, por conta disto a live art, é uma
linguagem efêmera.

Performance de fato foi algo que surgiu para externalizar as inquietações


daqueles que a executam, há vários artistas que desde o surgimento do gênero já
desenvolveram inúmeros trabalhos se utilizando da performance para expressarem
o que sentem ou o que acham plausível expor. O corpo sendo utilizado como
instrumento de protesto, o corpo como templo e por conta disto é exaltado por
aqueles que o utilizam com elemento principal de suas performances. A que rompe,
que se impõem de certo modo, a que foge a regra dos demais, performance é
justamente isto, o reflexo da contemporaneidade presente em nosso meio social,
mesmo sendo considerada uma expressão cênica, ainda sim a performance pode
dar-se ao luxo de romper certas amarras. Quase uma arma política, pois também
se utiliza de recursos, para protestar, criticar, mostrar algo que o performer sente
que deve mostrar, por meio de “instrumentos” que o mesmo escolhe como se usar
ou apenas usa o corpo, livre, sem depender de outros recursos. COHEN, diz que:

Nesse sentido, se tivermos em mente um modelo topológico,


a performance funcionará como uma linha de frente, uma
arte de fronteira, que amplia os limites do que pode ser
classificado como expressão cênica, ao mesmo tempo em
que, no seu movimento constante de experimentação e
pesquisa de linguagem, funciona como um espaço de
rediscussão e releitura dos conceitos estruturais da cena
(forma de atuação, forma do transpor o objeto para a
representação, relação com o espectador, uso de recursos,
uso da relação tempo-espaço etc.). (COHEN, 2002. p. 116)

O fato de a performance está sempre em um momento de experimentação,


ou seja, é algo que não esta finalizado, não importante quantas vezes já foi
realizado, coexiste com as outras linguagens artísticas, caminha em vários
caminhos,faz parte do meio erudito, mas também é realizado por pessoas que
partem do senso comum, um ritual amplo, que não é preso há um contexto só.

Performance ritos: O contexto de criação e recriação

Ritos surgiu como resultado de uma pesquisa de campo e histórica, sobre a


utilização das diversas formas de linguagens, ligadas a dialetos, simbologia,
linguagem corporal das culturas indígenas e afro-brasileiras. Para moldar o trabalho
com a ideia de experimentação da criadora da performance, a mesma se utiliza de
pesquisas relacionadas com o teatro da crueldade do teatrólogo francês Antonin
Artaud, que é um dos principais cernes deste trabalho, pois outro recurso utilizado
para o norteamento da performance, foi a obra de Artaud, “Lês Tarahumaras”5, que
foi resultado de uma pesquisa desenvolvida pelo teatrólogo, em 1936, no norte do
México, para descobrir como era realizado o rito mortuário dos Tarahumaras. Ritos
é baseado em um vasto referencial teórico, que utiliza obras que enfatizam a
performance, ritual, sincretismo, teatro entre outros. “O cerne deste trabalho é o
ritual como experiência mágica e coletiva”. (MIRANDA, 2012. p. 2).
As várias experimentações para a maturação do mesmo vêm sendo
realizadas desde 2007, onde a performer Michele Campos de Miranda6 e o músico
Marcelo Gabbay juntos começaram a desenvolver o trabalho. Um ano depois em
2008 a performance Ritos foi apresentada pela primeira vez na Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), como resultado da disciplina “A
Crueldade no Teatro de Antonin Artaud”, posteriormente no II Encontro de
Performance e Política das Américas, no mesmo ano, haja em vista que neste
período Ritos, tinha a duração de apenas 15 minutos. Já em 2011, Ritos chega a
Paris, por conta do apoio institucional e financeiro da Cité Internationale
Universitaire de Paris, por meio do Found pour lês Institives Étudiantes (FIE), neste
momento Ritos é recriado, modificações ocorrem, mesmo por que o trabalho é
desenvolvido de forma experimental, a mudança mais evidente é a duração do

5
Tribo indígena, localizada ao norte do México, que em 1936 foi alvo da pesquisa do teatrólogo francês
Antonin Artaud que quando finalizada teve como titulo, Lês Tarahumaras. Livro este que detalha toda a
caminhada desenvolvida por Artaud.
6
Michele Campos de Miranda, mestra em artes cênicas pela Unirio. Criadora da performance Ritos.
espetáculo que agora é realizado em 1 hora, em sua passagem por Paris, outro
ponto a ser comentado é que agora mais colaboradores surgiram, a pianista e
estudante de musicologia Judith Romero-Porras que também reside na Cité
Internationale Universitaire, o compositor contemporâneo Ignacio Baca-Lobera que
também é mexicano e o filosofo brasileiro Leon Farhi Neto, a performance foi
apresentada em dois locais pertencentes a Cité Internationale Universitaire, a
Maison du Brésil e na Maison Du Mexique. No período em que a performer Michele
Campos estive em Paris, foram realizadas mais pesquisas para aquisição de mais
referencial bibliográfico, onde foram encontrados mais textos de Antonin Artaud e
textos que estão relacionados à filosofia, sociologia, estudos sobre o Tarot de
Marseille, textos do pesquisador e cineasta chileno Alejandro Jodorowsky, que bebe
em fonte artaudiana.

Ritos: Belém do Pará

Após 1 ano em Paris, a performer e o musico, retornam a Belém, em 2012.


A performance ganha uma pauta no Teatro Cuira, por meio do projeto Pauta
Mínima7,financiado pela FUNARTE. Mais uma vez o trabalho é reinventado, agora
com um amparo melhor para a execução do espetáculo, novos colaboradores
surgem, novos elementos são postos em cena, a exemplo disto o bastão de luz que
em determinado momento da cena a performer utiliza, a organização dos
elementos em cena, também é feita de forma diferente, modificações feitas para
adaptar o espetáculo para o contexto da local em que o espetáculo será realizado.

Um corpo, cercado por objetos que remetem ao sagrado e ao profano,


iluminado por diversas cores, sons surgem a todo o momento. A mulher, o xamã, a
onça, o pássaro, a marionete, tudo em um só corpo, que se transforma, molda-se,
a (des) construção presente em cena. O grito que ecoa nos ouvidos e entra nas
mentes. Luz e escuridão fazem parte de um mesmo momento. O inicio de tudo, a
Morte, um renascimento. Sobre o referido contexto, MIRANDA comenta:

Em cena, um corpo feminino revela sua delicadeza, seus


mistérios, sua força, e entra em estado de dança, perde as
formas, se altera, e revela quantas transmutações ele é
capaz de encarnar: um cacique, um animal, uma marionete,
um iniciado (...) A linguagem corporal é considerada como
meio de expressão soberano; ainda que a língua portuguesa
e os dialetos territoriais sejam utilizadas, é na plasticidade do
corpo e da música que se estabelece a comunicação

7
Projeto criado em 2012 pelo grupo Cuíra, financiado pela FUNARTE. Tem como um de seus objetivos
principais, divulgar espetáculos criados por artistas paraenses e também aproximar o publico da cidade a
eventos ligados as artes cênicas.
ritualística sem barreiras com os participantes (MIRANDA,
2012, p. 1-2)

É assim que a performance Ritos chega a cidade de Belém, capital paraense


que receberá com certa ansiedade e curiosidade este espetáculo, que há 5 anos
vive através da performer Michele Campos de Miranda e do músico Marcello
Gabbay.

O público é chamado para presenciar “jogo sincrético”, que esta em Ritos,


elementos que mostram uma identidade múltipla, que passa por lendas indígenas,
22 cartas de tarot, as 10 pragas presentes da religiosidade judaica. O palco torna-
se o centro do ritual onde tudo acontece, o público se torna agente participante
deste momento, essa passagem, para uma nova vida, que pode ser interpretada de
varias formas, as pequenas mortes. A organização dos elementos em cena, nada
esta em determinado lugar aleatoriamente, 22 elementos em cena, 22 pessoas no
palco e 22 cartas de tarot. Segundo a idealizadora da performance, MIRANDA diz
que:

Como toda performance, o experimento está “vivo”, não se


findou, não se esgotou, ele continua descobrindo novas
formas de ser explorado, “Ritos”. Agora, de volta à terra de
origem, pretendo reagrupar e reinventar a performance
“Ritos” para estabelecer uma troca pela primeira vez, com a
platéia de Belém, o resultado de um processo criativo que
vem sendo experimentando e amadurecido há quatro anos.
(MIRANDA, 2012. p.3)

Reforçando o fato de a performance ser um gênero livre de certas amarras,


isto favorece o ato de sempre estar em fase de experimentação, como é o caso da
performance Ritos. Que há 5 anos vive e sempre ressurgi de formas distintas,
mudanças estas que vem a somar com novos elementos, que trazem até mesmo
mais plasticidade ao espetáculo, traz também novas formas de compreensão do
público em relação aquilo que é feito em cena.

Analise da performance Ritos a partir da essência ritualística e sincrética


em cena

Ritos surgi com uma proposta interessante, através do ritual, encantaria,


simbologia, liminaridade, corporeidade, elementos estes que unidos formam o ritual
a qual a performer em cena realiza, com a “sua verdade”, para alguns apenas uma
representação, porém a performance é baseada em rituais reais, que em cena são
reinventados, como um ritual próprio que a performer criou, a efemeridade daquele
momento, exatamente como em um rito religioso, um rito mágico, ocorre
exatamente no momento em que os poucos convidados adentram no ‘templo”, um
palco, uma sala, não importa, mas a partir do momento em que se dá inicio aquele
evento, o ritual realmente ocorre, o mistério, que circunda certas cenas, onde nem
todos podem ouvir o que é dito sobre as cartas de tarot, ou então por que as 10
praga judaicas?
Assim, em plena a sociedade o mágico se isola, com mais
forte razão quando se retira no fundo dos bosques. Mesmo
em relação aos colegas, ele mantém quase sempre uma
atitude de reserva. O isolamento, como o segredo, é um sinal
quase perfeito de natureza íntima do rito mágico. Este é
sempre uma obra de um individuo ou de indivíduos que
agem de modo provado; o ato e o ator são cercados de
mistério. (MAUSS, p. 60. 2003).

Todo este mistério que cerca um rito mágico, a performance Ritos traz
consigo, a partir do momento que nem tudo o que esta em cena, é de fato
explicito, o momento em que isto fica mais evidente é quando a performer sai do
circulo sagrado, vai até algum espectador, o convida para tirar cartas de tarot para
o mesmo, ambos vão até o centro do ritual, uma vela é acesa, a performer pega as
cartas, três cartas são retiradas pelo “convidado”e a partir deste momento todo o
restante do publico apenas observa, o que a performer interpreta em cada carta,
somente é dito para aquela pessoa que esta diante da mesma, ou seja, a questão
do mistério está presente na performance ritos, porém este elemento é utilizado
pela performer de uma forma toda pessoal, pois por de traz da utilização de todos
os elementos do espetáculo, há explicações pessoais, coisas que a mesma viveu,
coisas que fazem parte da raiz cultural, uma infinidade de explicações que apenas
ela sabe, o ritual que ela criou para si e que compartilha com o publico, fazendo
assim uma espécie de junção entre ritual religioso e secular, unindo o cotidiano ao
sagrado. O simbolo é a menor unidade do ritual. (TURNER, p. 69. 2005 ), nesta
performance a todo momentos os simbolos (cachaça, caxixis, pena, cabelo e etc.)
estão em cena, são manipulados, e também manipulam a performer, é então feita
a relação do jogo em cena, onde a performer joga com a utilização dos simbolos e
também com o público.
Um ritual pessoal, que é dividido com poucos que rodeiam a cena, um ritual que
busca despertar certas lembranças, causar transportações8 , nos espectadores.“A
performance ritualística é um recurso estético usado para evidenciar o sincretismo
cultural brasileiro e suas contradições, oposições e pontos de tensão”. (MIRANDA,
2009. p.4). Por meio dos inúmeros meios de comunicação, o ritual se torna mais

8
Termo utilizado por Richard Schechner, para dar compreensão a ação que o performer realiza em seu
ritual/performance. Não há transformações fixas, mas sim transportações, utilização de energia e após o
termino da performance o corpo do performer “esfria” e então volta ao seu corpo cotidiano.
um modo de repasse de conhecimento. “Em princípio, passa a ser “ritual” o que
nossos interlocutores em campo definem ou vivem como peculiar, distinto”.
(PEIRANO, 2006). Partindo disto o que fica visível na performance Ritos, é que a
representação feita, conseguiu captar estas peculiaridades, um pouco da pertença
da cultura indígena, que é o principal elemento cultural em cena, aquilo que é
diferente, tratar com elementos que pertencem ao “outro”, é algo delicado, pois
nunca se sabe se estará no caminho certo, mas em Ritos, a representação, os ritos,
que foram feitos no palco conseguiram passar a noção de como o ritual é algo que
realmente reflete a identidade cultural de um grupo social. A magia é portadora de
uma significativa qualidade performativa que parece inscrita nos rituais da prece,
nas danças xamânicas, nos processos simbólicos de trocas. (ROCHA, 2008. p. 137)
A questão da magia que é representada, a encantaria, as lendas, as
sutilezas, a construção do circulo mágico/sagrado, tirar cartas de tarot para alguém
do público, oferecer cachaça ao santo e compartilhar da mesma com o público,
9
este jogo (playing ) feito, quase uma espécie de brincadeira, representações
distintas, mas que conseguem se comunicar, mesmo que sejam inúmeros
elementos, algumas vezes distintos demais.

Partindo do contexto da experiência vivida, há a transferência de saberes que


muitas vezes são até mesmo reinventados, na verdade a performance, tem como
característica, o fato de desconstruir para posteriormente construir algo, no que diz
respeito aos rituais isto também ocorre. “Os estudos da performance oferecem a
possibilidade de um questionamento crítico que pode iluminar práticas culturais
como aspectos de vida cotidiana no complexo movimento social dos nossos tempo.”
(LIGIÉRO, 2011. p. 69).
O jogo sincrético que a performer realiza em cena, durante o espetáculo,
demonstra o trabalho que é realizado há anos, trabalhar com as peculiaridades de
outras culturas, transitar entre vários “mundos”, e fazer disso um mosaico
multicultural em cena. “Tanto na performance cênica-artistica quanto no ritual, o
padrão processual implica em separação, transição e incorporação”. (SCHCHNER,
1985, p. 20)

Vôos em campo

9
Termo utilizado por Richard Schechner, o “jogando/brincando” da performance,ou seja, o jogo e/ou
brincadeira deve continuar.
Dezembro de 2012, deu-se inicio a pesquisa de campo, deste trabalho, a
performance Ritos. A pesquisa de campo realizada ocorreu a partir do dia
04/12/2012 a 16/12/2012, sendo que, os ensaios foram realizados em dois
ambientes, os ensaios menos técnicos, ainda em fase de maturação do trabalho
foram realizados na residência da iluminadora Patricia Gondim e da cenógrafa
Oriana Bitar, de 04 a 09 de dezembro, posteriormente os ensaios foram feitos no
local onde o espetáculo entraria em cena, o Teatro Cuíra.

Os ensaios no porão

Um casarão do inicio do século XX, localizado no bairro da Campina, na


cidade de Belém do Pará, um bairro surgido nos primórdios da criação de Belém. O
local dos ensaios, das recriações realizadas durante o trabalho é um porão, que faz
parte de um belo casarão feito todo em estilo Português, cheio de detalhes, exala
historias, memórias, de todos os cantos, cada pedaço daquele lugar tem algo a
“dizer”.

Chego lá, a convite de Michele Campos, para assim dar inicio a pesquisa de
campo, fazer os registros fotográficos, anotações, gravar vídeos para assim analisar
melhor o trabalho que esta sendo realizado. A priori não sabia o que esperar do
trabalho, pois só o que sabia, eram alguns detalhes que me foram fornecidos
através de conversas com a performer criadora do trabalho. Tudo era novo, a
curiosidade que tomava conta, as expectativas e até mesmo receio de saber se
realmente poderia transformar algo assim em um trabalho acadêmico.

Durante os ensaios observei as técnicas corporais utilizadas, que remetem a


danças circulares, aos rituais ancestrais, as transformações ocorridas neste corpo, o
pássaro, o xamã, a onça, a marionete, a coruja, a liminaridde presente, tudo isso
sendo mostrado bem de perto. Outro ponto que vale muito ressaltar que é a
interação entre o corpo que é utilizado como templo e centro de todas as
transformações ocorridas em cena, com os elementos que circundam esses
momentos representados a cada dia de ensaio, as músicas que ora guiam, ora
comandam as ações realizadas por aquela que doa seu corpo para mostrar diversos
elementos presentes em culturas distintas, mas que são unidas em momentos
sublimes. “Portanto, é sabido o quanto o corpo expressa “obrigatoriamente” os
padrões culturais e sociais como, por exemplo, os estilos de ritmo, as
manifestações de dor, os valores estéticos de um grupo”. (ROCHA, 2008, p.139).
Tudo isso usado como forma de linguagem, e sendo repassado para o publico, a
performance ritual em cena, a representação de algo, que para alguns é a própria
realidade vivia, os rituais “cotidianos” de algumas civilizações. A ritualidade
utilizada como meio de linguagem tradicional e eficaz. É tradicional pois é
repassada a partir da educação, de forma geralmente oral, os ensinamentos que
representam a identidade cultural. É também um meio de linguagem eficaz, pois é
realizado de forma prática.

Teatro Cuíra: Performance Ritos em cena

É chegado o momento, a semana que houve os ensaios no teatro Cuíra.


Local que está localizado no Bairro da Campina, que existe a certo tempo, rodeado
por um ambiente que traz certa liminaridade, vários contextos sociais nas
proximidades. O teatro Cuíra foi palco de todos os espetáculos que fizeram parte do
projeto pauta mínima, projeto este em que a performance ritos foi aprovada.

Segunda semana de Dezembro de 2012, a “semana Ritos” como assim foi


denominada por mim, ensaios mais técnicos ocorreram dos dias 11/12/2012 a
12/12/2012, após isso no período de13/12/2012 a 16/12/2012, Ritos esteve em
cena, no palco do Teatro Cuíra. Os ensaios ocorridos lá foram de forma mais
técnicos, adaptações foram feitas em relação ao espaço, pois o palco é amplo,
então a performer precisou se adaptar ao espaço e conciliar isto com suas
movimentações, que exigem um preparo físico bom, pois gasta-se muita energia,
também houveram testes com a iluminação, onde a responsável por isto foi Patricia
Gondim, aquela que conseguiu fazer a comunicação entre a cena e as luzes, cores
surgiam a todo momento e conseguiam integrar-se a cena de forma sublime. A
música e sonoplastia utilizada e executada por Marcelo Gabbay foi realizada e
adaptada ao espaço que seria utilizado.

O dia do ritual a qual o publico foi convidado a presenciar e também a


participar chega, dias 13, 14, 15 e 16, dias estes que foram escolhidos por acaso
pela idealizadora do espetáculo, números estes que representam respectivamente
as cartas do tarot, a morte 10 , a temperança 11 , o diabo12 e a torre 13 , cada uma
dessas com uma explicação de sua simbologia, e cartas estas que são os arcanos
maiores do tarot, que inclusive é utilizado em cena, tudo era ligado a algum ritual,
desde a entrada do publico, onde o mesmo se deparava com a performer já se
movimentando, com a musica sendo ouvida e a voz de Marcelo ecoando pelos alto
falantes, “Esta é a Cerimônia da Morte”, um texto denso e até mesmo difícil de ser
ouvido, algumas pessoas adentravam no teatro sem entender muito bem o que

10
Morte, carta numero 13 do tarot de Marseille.
11
Temperança carta número, 14 do tarot de Marseille.
12
Diabo, carta número, 15 do tarot de Marseille.
13
Torre carta número, 16 do tarot de Marseille.
ocorria ali, alguém chegou a dizer-me “mas o espetáculo já começou antes que nós
entrássemos!”, era curioso observar a reação das pessoas que sentavam no palco
presenciando a cena de perto, enquanto alguns preferiam ficar na “segurança” de
suas poltronas fixas. O momento em que a performer torna-se um fantoche, e a
passos aparentemente mecânicos, mais duros, segue até o altar, sobre e com o
cordão de miçangas transforma-se várias vezes, ora na figura da justiça, ora no
conquistador, no enforcado, para cada mudança da partitura corporal alguém pinta
seu corpo, a dita body art14, tudo isto ocorre com música ao fundo, esta marca o
tempo das metamorfoses, até que em um salto, a performer se torna onça,
“antigamente o dono do fogo era onça.”, “o homem só comia carne crua, pois o
dono do fogo era a onça”, em sussurros ela repetiu algumas vezes, ate que com
uma voz forte e estridente, conta mais uma lenda. Observar a reação do público,
quando notavam as transformações que ocorriam diante de seus olhos, foi algo
interessante, pois é perceptível que cada um conclui coisas distintas para cada
momento do espetáculo. Algumas cenas depois, a que mais despertou curiosidade
e aparente inquietação no público, é a cena em que Michele Campos, conta a lenda
“A Origem da Noite”, usando um colar de sementes, que ela sempre estava
mexendo, batendo as sementes umas nas outras, fazendo uma dança circular, com
passos bem marcados no chão, seguindo a melodia vinda do curimbó tocado por
Marcelo, a lenda é contada, “antigamente só existia o dia, certa vez um menino
muito curioso, resolveu abrir o pote proibido e de dentro deste pote saíram a
escuridão da noite com todos os seus bichos...”, a partir disso Marcelo toca e canta,
enquanto Michele dança, empregando muita energia e força em seus passos, como
em um transe sem fim, o publico que esta sentado no palco ao redor da cena a
observa, alguns pude perceber que ficar “hipnotizados” de certo modo, as reações
foram as mais variadas possíveis.

As trocas de energias foram feitas de formas distintas para cada dia, o playing
ocorrendo a cada momento, o grito, o tiro, a pintura, a cachaça dada ao santo, e
compartilhada com o publico, quando a noite chega, e a performer transforma-se
em coruja, depois diz as 10 pragas judaicas15, chega a “escuridão”, as estrelas são
jogadas ao chão, e o fim/começo de tudo é mostrado ao publico.

Considerações Finais

14
“Arte no corpo”, utilização como meio para a execução da performance, com pinturas corporais, dor,
cortes,entre outros elementos que já puderam ser observados em diversos espetáculos desde o surgimento
do gênero performance.
15
Águas em sangue, rãs, piolhos, moscas, peste nos animais, sarna que rebentava em ulceras, saraiva com
fogo, gafanhotos, trevas e morte dos primogênitos.
Por meio da pesquisa que ainda está em desenvolvimento, pretendo
contribuir para expandir as fronteiras de aplicação das ciências da religião em meio
social, utilizando recursos que estão diretamente ligados ao fenômeno religioso, um
espetáculo, um ritual, uma celebração, uma missa, não importa o que seja e de
que forma seja feita, mas sempre as várias linguagens artísticas estão diretamente
ligadas a este fato social, por conta disso optei por desenvolver uma pesquisa de
certo modo ampla sobre o gênero performance contido no espetáculo Ritos, para
assim mostrar e demonstrar de forma teórica e prática como isto pode ser utilizado
em relação ao fenômeno religioso, com ênfase na ritualidade contidas em distintas
grupos culturais representados neste espetáculo. A religiosidade, que esta atrelada
a cultura, discursos sobre identidade cultural também podem ser percebidos por
meio do que foi desenvolvido neste artigo.

Bibliografia

COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002.

LIGIÉRO, Zeca. Corpo a corpo: estudo das performances brasileiras/ Zeca Ligiéro,-
Rio de Janeiro: Garamond, 2011.

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. Tradução: Paulo Neves. São Paulo:


Cosac Naify, 2003. 536 p.

MEDEIROS, Maria Beatriz de. Aisthesis: estética, comunicação e comunidades.


Chapecó: Argos, 2005.
MIRANDA, Michele Campos. Os processos performáticos de Luis Otavio Barata e a
sua política de criação no cenário contemporâneo de Belém. 2009.

MIRANDA, Michele Campos. Projeto Pauta Mínima – Performance Ritos. 2012.

PERIANO, Mariza. Temas ou Teorias? O estatuto das noções de ritual e de


performance. Campos 7 (2):9-16, 2006.

ROCHA, Gilmar. Marcelo Mauss e o significado do corpo nas religiões brasileiras. p.


133-150. 2008.

SCHECHNER, Richard. Between Theater and Anthropology. Philadelphia:


University of Pennsylvania Press, 1985.

SCHECHNER, Richard. O que é performance? Revista O Percevejo, Tradução


Dandara, Rio de Janeiro: UNI-RIO, ano 11, 2003, p.25-50.

SANTOS, José Mario Peixoto. Breve histórico da “performance art” no Brasil e no


mundo. Revista Ohum, ano 4, n. 4. P.1-32, dez. 2008.

TURNER, Victor W. Floresta de simbolos: Aspectos do Ritual Ndembu/Victor Turner,


tradução de Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto – Niterói: Editora da Universidade
Federal Fluminense. 2005.

www.performanceritos.wordpress.com acessado dia: 05/12/2012


EVANGELIZANDO COM OS PÉS

Esporte, religiosidade, cura e marketing no Bola Running Florianópolis1

Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fo e Talita Sene2

Introdução

O presente ensaio visa apontar as articulações entre religiosidade e cura feitas por
alguns corredores do Bola Running Floripa (BRF), ministério da Bola de Neve
Church Floripa (BDNF), adicionando a esta reflexão dois assuntos correlatos, o
esporte e o marketing religioso, especialmente o marketing de guerra santa
(MARANHÃO Fº, 2012a, 2012b, 2012d).3 Para tal, o texto se divide em duas
partes: A primeira contextualiza, sinteticamente, a Bola de Neve Church, enquanto
a segunda, aponta para a mencionada articulação.

A Bola de Neve Church

A Bola de Neve Church (BDN), agência evangélica de características


4
majoritariamente neopentecostais, foi fundada em 1999, por Rinaldo Luiz de Seixas
Pereira, conhecido pelos fiéis de tal igreja como apóstolo Rina ou apê Rina. Porém,
a gestação da mesma, segundo seu site oficial, se deu em 1993, com reuniões
organizadas por Rina após problemas de saúde e “experiência pessoal com Deus”.5
Tal fato aponta para a história conjunta da igreja e de seu fundador, criando uma
representação identitária da BDN sobre si mesma, associada à superação e
experiências pessoais com Deus (MARANHÃO Fº, 2009).

1
Este ensaio é uma versão bastante reduzida do artigo Correndo para Jesus à Beira-Mar: Esporte,
religiosidade e cura na Bola de Neve Church, encaminhado para avaliação à revista Civitas, Revista de
Ciências Sociais da PUC-RS.
2
Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em História pela
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), especialista em Marketing e Comunicação Social
pela Fundação Cásper Líbero. Contato: edumeinberg@gmail.com. Mestranda em Antropologia Social
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Contato: talitasene@gmail.com.
3
Inspirada no método da observação participante e no uso de entrevistas, tal pesquisa foi realizada através
de aproximadamente três meses de visitas contínuas à Célula UFSC, aos cultos dominicais, eventos de
evangelismo e um mês no ministério BRF (Bola Running Floripa), todos da BDNF (Bola de Neve Church
Floripa), bem como em referencial bibliográfico, especialmente de Maranhão Fº (2009 a 2013).
4
O termo agência de características majoritariamente neopentecostais é entendido aqui como expressão
sob rasura – não dando conta dos múltiplos agenciamentos tanto da instituição como de seus fiéis
(MARANHÃO Fº, 2012a, 2012b, 2012c).
5
Quem Somos. Bola de Neve Church. Disponível em < www.boladene.com.br/index2.php?secao=quem>
Acesso em: 10 ago. 2012.
O público-alvo inicial da BDN era formado por “jovens” de classe média e média alta
da capital e litoral paulista. Grande parte destes, surfistas, skatistas e atletas em
geral. Em maioria, fãs de gêneros poético-musicais como o reggae e o rock e
conectados à internet.6 Com a midiatização sofrida pela agência, seu público
ampliou e tornou-se mais heterogêneo, ainda que houvesse um esforço da mesma
em reverberar uma identidade religiosa de “igreja de surfistas” (MARANHÃO Fº,
2009).

As diferentes unidades da BDN podem ter públicos-alvo distintos. A sede da BDNF,


por exemplo, tem intensificado os esforços para conquistar os estudantes da UFSC
(Universidade Federal de Santa Catarina). Este é seu nicho principal, seguido de
surfistas/skatistas, corredores e outros tipos de atletas (MARANHÃO Fº, 2012a,
2012b).

Os eventos esportivos promovidos pela BDN, bem como a participação de seus fiéis
em eventos seculares, representam uma das principais formas da mesma
conquistar adeptos através de um marketing religioso (MARANHÃO Fº, 2010c).
Como veremos adiante, as competições de corridas, bem como os treinos realizados
pelos fiéis participantes do Ministério BR exemplificam claramente tal fato.

O Ministério Bola Running

O ministério BR surgiu oficialmente no ano de 2010 na cidade de Florianópolis, em


decorrência de reuniões descompromissadas de um grupo de líderes e
frequentadores da BDNF que tinham apreço pela corrida. Estes, começaram a
participar de maratonas, vendo nisso não só uma oportunidade de cuidar do corpo,
mas também, de evangelizar. De início, o BR não era um ministério, porém, com o
grupo de adeptos correndo para Jesus aumentando, o apóstolo Rina percebeu o
potencial de crescimento do mesmo e anunciou que o BR seria um ministério que
iria evangelizar com os pés, que iria pregar sem palavras. A partir de então o
ministério, tal qual uma bola de neve, se espalhou por outras cidades onde há filiais
da BDN e os corredores do mesmo foram se profissionalizando e correndo nas
provas mais importantes do circuito de corridas, como por exemplo, o Mountain Do,
no Deserto do Atacama.7 Mas, o que os difere de um grupo de corrida que não faz
parte de uma agência evangélica? Porque eles evangelizariam com os pés, se para
os cristãos a Palavra é prerrogativa básica para ganhar fiéis para Jesus?

6
O ciberespaço, aliás, é a principal plataforma de midiatização da BDN, o que a distingue da maioria das
agências religiosas, inclusive das consideradas neopentecostais (MARANHÃO Fº, 2010b).
7
A história sobre a origem do BR nos foi contada por Giovani, em entrevista realizada no dia 25/11/2012,
na igreja sede da BDNF. Todas as outras referências feitas às falas de Giovani dizem respeito a esta
mesma entrevista.
Segundo Adalto, um dos runners de tal igreja, os corredores da BDN
evangelizariam com os pés por terem o slogan In Jesus we trust na camiseta.8 O
slogan em destaque no peito e nas costas atesta a presença de Jesus para os que
desconhecem a Palavra de Deus, tanto nos treinos como nas corridas. Porém, esta
não seria a única forma dos mesmos evangelizarem através dos pés. Além do uso
da camiseta, o BRF conta com fotógrafo profissional durante as competições, e as
imagens dos que correm para Jesus é reproduzida no grupo do Facebook e em
telões da agência durante um ou outro culto. Nestas imagens, transparecem não só
os esportistas do BRF, como também atletas seculares – muitos deles avisados
posteriormente de que suas imagens estarão disponíveis no grupo do ministério no
Facebook.

Para Adalto, fotografar gera uma interação, já que os corredores seculares “entram
no facebook, vêem as fotos e pegam”. Assim, na concepção do mesmo eles
evangelizariam em silêncio, “mas os outros corredores sabem que é uma equipe
cristã de uma igreja evangélica”. Além das referidas estratégias, os atletas do BRF
usam gestos para mostrarem para quem estão correndo, como apontar ou olhar
para o céu depois de passar pela linha de chegada.

Adalto argumenta que os membros do BRF participam de competições pois “só em


quatro paredes às vezes é complicado as pessoas chegarem” e competir torna-se
“uma forma sutil da pessoa chegar para a igreja, conhecer Deus através do BR e
dos outros ministérios”.

De acordo com o exposto pode-se perceber claramente que evangelizar com os pés
é uma forma de trazer fiéis para a igreja sem necessariamente pregar através de
palavras. Esta forma de evangelizar coloca em evidência a própria BDNF,
caracterizando uma das muitas formas de marketing de guerra santa de tal agência
evangélica.

Mas, como articular o marketing de guerra santa, a religiosidade e o esporte com a


cura no BRF?
***

Quando resolvemos estudar a relação entre marketing de guerra santa,


religiosidade, esporte e cura no BRF, fomos inspirados pelo testemunho de um de
seus líderes, Igor – para o qual a cura aparecia relacionada à doença física.
Imaginamos que escutaríamos testemunhos semelhantes, falando de lesões que
foram curadas pela fé e da maior eficácia da cura divina em relação à biomedicina.

8
Os nomes aqui mencionados, salvo o de Rina, são fictícios.
Porém, além de escutar testemunhos semelhantes ao do líder, quase sempre que
questionávamos os corredores sobre a relação do ministério com a cura, estes
faziam uma oposição entre drogas e corrida cristã, enfatizando que a última tiraria
as pessoas das drogas. Qual a relação que eles estavam fazendo entre doença e
cura ao articularem corrida e droga?

Tudo ficou um pouco mais claro quando Giovani, ao falar dos propósitos do BR
disse que a corrida era um “meio não só de liberação, de promoção de cuidados
saudáveis, mas também uma forma de evangelizar e levar Jesus Cristo num
ambiente onde as pessoas aparentemente são saudáveis” (grifo nosso). Giovani,
com “aparentemente saudáveis” quis dizer de forma sutil que “muitos atletas são
consumidores e dependentes de drogas que aumentam e melhoram a performance,
o que geraria nas mesmas uma prisão”, pois “a pessoa só consegue, ou acha que
consegue chegar a determinados pontos se consumir drogas”.9 O mesmo faz uma
oposição clara entre saúde e drogas, sendo que a última representaria o mal a ser
combatido.

Já Adalto, ao falar sobre o assunto, aponta para a ligação do ministério BRF com o
ministério Nova Vida da BDNF, que cuida de adictos. Tanto Giovani quanto Adalto
colocam droga em oposição à saúde, porém o que cada um percebe como droga
não parece ser exatamente a mesma coisa. Adalto a concebe como substâncias tais
quais cocaína e crack, ao passo que para Giovani drogas também são certos
estimulantes hormonais. Esta ambivalência de sentido corresponde à reflexão que
aparece em Os corpos intensivos, de Eduardo Viana Vargas, sobre o que se entende
por drogas ilegais e legais.10 Para Vargas, é necessário se precaver contra uma
distinção natural entre drogas lícitas e ilícitas, e reconhecer que as drogas não são
somente

substâncias químicas, naturais ou sintetizadas que produzem algum


tipo de alteração psíquica e corporal, e cujo uso em nossa sociedade,
é objeto de controle (caso do álcool ou tabaco) ou repressão (caso
das drogas ilícitas) por parte do Estado. Mesmo que trivial, é preciso
não esquecer que drogas são ainda todos os fármacos (VARGAS,
1998, p.122).

9
Entrevista com Giovani, 25/11/2012.
10
Vargas propõe analisar o problema do consume de drogas – lícitas ou ilícitas – sob uma ótica
epistemologicamente positiva, não recriminando-as, nem fazendo sua apologia, sim fazendo um
deslocamento de perspectivas, onde fosse possível “tanto avaliar a ‘doença’ ou a droga sob o ponto de
vista da ‘saúde’, quanto avaliar a ‘saúde’ do ponto de vista da ‘doença’ ou da droga”. Segundo o autor,
essa mobilidade é essencial para que se permita fazer a crítica da ‘doença’ ou da droga através da ‘saúde’
e a crítica da ‘saúde’ através da ‘doença’ e da droga, em nome, diríamos [...] nem da ‘doença’ e das
drogas paramedicamentosas ou não, nem da saúde e das drogas medicamentosas, mas de uma ‘grande
saúde’ sem todas essas ‘drogas’”.
Nesse sentido, entram para a categoria de drogas outras substâncias tidas como
lícitas, como as prescritas pela ordem médica “que visam produzir corpos
saudáveis” – remédios – e “drogas autoprescritas em virtude dos ideais de beleza –
anoréticos –, de habilidade – esteróides e anabolizantes –, e de estado de espírito –
ansiolíticos e antidepressivos” (VARGAS, 1998, p. 123).

O que Adalto concebe como droga, corresponde ao que a sociedade coloca como
ilícito, ao passo que Giovani junta à categoria de droga também algumas das
substâncias tidas como lícitas, substâncias hormonais, por exemplo. Como já dito,
ambas se opõem à noção de saúde, e neste caso, tanto física quanto espiritual.
Sendo assim, quando relacionada ao consumo de drogas – lícitas e ilícitas -, a
corrida aparece como restauração e incentivo à produção de corpos saudáveis física
e espiritualmente. No primeiro caso, ela ajudaria, segundo Giovani, “na parte de
liberação da serotonina e endorfina, hormônios que suprem a necessidade da
droga, ou daquilo o qual a pessoa tinha uma dificuldade”, enquanto no segundo,
“do princípio da restauração espiritual” que livra de prisões e cadeias “que impedem
que as pessoas atinjam seus objetivos e que as pessoas cumpram aquilo que Deus
a chamou para cumprir”. A relação entre cura e corrida mostra que “tem coisas que
precisa lidar não somente no campo físico, mas também no campo espiritual”.

Na relação estabelecida entre corrida e cura exposta acima, a corrida aparece como
meio de cura, embora o processo de curar muitas vezes não se inicie
necessariamente na corrida, o que aponta para um circuito de curas ou um sistema
de prestações totais (MAUSS, 2004) iniciado com a história de origem da BDN.11

Sua gênese é articulada a partir de duas características principais: a cura e a


batalha espiritual, sendo a cura o resultado da vitória contra forças malignas. O
apóstolo Rina vence o mal – doença – após experiência de contato com Deus,
superando-a e recebendo a cura. Quando curado, dá inicio às reuniões da Bola de
Neve, que a princípio era um ministério destinado a jovens esportistas – sendo boa
parte destes adictos ou ex-adictos. Aparecem na história do BR todos os elementos
presentes na origem da BDN: drogas, esporte, doença, saúde, cura, superação e
batalha, todos, mais uma vez interligados, como na economia do dom (MAUSS,
2004). Para usar a metáfora da própria agência evangélica, tudo evoca uma bola
de neve.12

11
Desenvolvemos mais aprofundadamente esta parte no artigo encaminhado para análise da Civitas.
12
Entre as experiências de Rina e Igor, outras se configuram como mediadoras, midiatizadoras e
agenciadoras da consolidação da agência, como os processos de cura de Denise Seixas – esposa de Rina,
líder do ministério das Mulheres do Bola, do ministério de Louvor e Adoração, líder dos conjuntos Tribo
de Louvor e Ruth’s – , e Rodolfo Abrantes – ex-cantor dos Raimundos, convertido após episódio de cura,
e atualmente líder e missionário da BDN (MARANHÃO Fº, 2010a).
(In) conclusão

Este ensaio não pretende-se conclusivo, mas apenas traçar alguns dos pontos
tratados em artigo a ser publicado posteriormente. Novos percursos, com outras
saídas e chegadas em campo, se farão necessários. No entanto, esperamos que
algumas das ideias contidas no mesmo possam fomentar novos debates.

Referências

ADALTO. Entrevista sobre a Bola Running. Florianópolis, 25 nov. 2012. Entrevista


concedida a Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho e Talita Sene.
GIOVANI. Entrevista sobre a Bola Running. Florianópolis, 25 nov. 2012. Entrevista
concedida a Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho e Talita Sene.
MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque. A Bola de Neve avança, o Diabo
retrocede: Preparando davis para a batalha e o domínio através de um Marketing
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dossiê Marketing Religioso, vol. 13, n. 1, São Paulo, 2012a (no prelo).
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Bola de Neve Church. Dissertação (Mestrado em História), UDESC, Florianópolis,
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ANPUH. Ano V, vol. 13, Maringá, 2012c, p. 234-272.
__________, “É dando-se à igreja que se recebe a graça de Deus”: Discurso
econômico em uma igreja neopentecostal. In: MIRANDA, Daniela da Silveira, et al.
O gênero em diferentes abordagens discursivas. São Paulo: Paulistana, 2011.
__________. “In Jesus we trust”: anglicismos na Bola de Neve Church. Tempos
Acadêmicos – UNESC, vol.1, n.14, Criciúma, 2013a (no prelo).
__________. “Marketing de Guerra Santa”: da oferta e atendimento de demandas
religiosas à conquista de fiéis-consumidores. Horizonte, vol. 10, n. 25, Belo
Horizonte, 2012d, p. 201-232.
__________. “Na casa de Deus não tem feijão queimado”. Usos do discurso
derretido na Bola de Neve Church (BDN). Teologia Acadêmica, vol.1, n.1, São
Paulo, 2013b (no prelo).
__________. Neopentecostalismo de supergeração. História Agora, vol.1, n.10, São
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__________. “Nós somos a dobradiça da porta”: notas preliminares acerca das
ambiguidades do discurso sobre as mulheres na Bola de Neve Church. Mandrágora,
vol.18, n.18, São Bernardo do Campo, 2012e, p. 81-106.
__________. O corpo e o esporte como estratégias de marketing da Bola de Neve
Church. Oralidades, São Paulo, 7, p. 35-52, 2010c.
__________. Sensualidade e interdição do desejo na Bola de Neve Church. Via
Teológica, vol.18, Curitiba, 2009, p. 147-169.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo:
Cosac & Nayfi, 2004.
VARGAS, Eduardo Viana. Os corpos intensivos – em torno do estatuto social do
consumo de drogas. In: DUARTE, Luiz Fernando Dias; LEAL, Ondina Fachel (Org.)
Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. 1ª ed. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 1998, p. 121-136.
TRÂNSITOS E BRICOLAGENS RELIGIOSAS DE TRANSHOMENS NO
FACEBOOK

Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº1

Introdução

Nesta breve comunicação, analiso alguns dos múltiplos discursos de homens transexuais
brasileiros através de mapeamento de inspiração etnográfica fundamentado em análise e
observação participante em fóruns e grupos do Facebook.

A comunicação é estruturada da seguinte forma: Primeiramente apresento comentários


sobre transexualidade masculina, e algumas das demandas de pessoas autoidentificadas
transhomens. Em seguida, destaco, muito sinteticamente, alguns dos comentários destas
pessoas no Facebook sobre suas experiências religiosas.
Por fim – sem a intenção de finalizar o assunto – apresento considerações inconclusivas
sobre o tema – visto que o mesmo encontra-se em constante ebulição.

Peregrinando pelo Facebook e conhecendo biografias trans

Esta pesquisa foi feita por conta de minha pesquisa de doutorado em História, em que
analiso os diferentes itinerários religiosos de pessoas que se identificam em trânsitos
identitários de gênero.2 Dentre estas múltiplas autodeclarações, destacam-se mulheres
trans, homens trans, travestis, e em alguns casos, drag queens, drag kings, intersexuais.
Tenho pensado no termo entre-gêneros para refletir sobre os agenciamentos quase infinitos
relativos às mobilidades de gênero (MARANHÃO Fº, 2012).

Transhomem é uma das muitas autodesignações adotadas por pessoas que “nasceram
mulheres”3 – ou explicando melhor, foram designadas como tal a partir da gestação ou
nascimento – e se identificam homens. Tais pessoas costumam identificar-se de outras

1
Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em História pela
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), especialista em Marketing e Comunicação Social pela
Fundação Cásper Líbero. Contato: edumeinberg@gmail.com.
2
Comentei sobre o assunto em ocasiões anteriores (MARANHÃO Fº, 2011a, 2011b, 2012a, 2012b).
3
Utilizo-me de aspas neste trecho e em outros com o objetivo de marcar o sentido irônico referente a tais
termos.
formas também: homens trans, FTMs (female to male), homens transexuais,
transmasculinos.

Tais definições procuram dar vistas à adequação entre o gênero e sexo


designados/atribuídos a partir do nascimento e o gênero e sexo de identificação destas
pessoas. São, assim, pessoas que “nasceram” “mulheres”, mas por se identificarem como
“homens”, passam por adequações distintas para se adequarem ao gênero e sexo de
autoentendimento e autodeclaração.

A pessoa identificada transhomem mais conhecida no Brasil é João Walter Nery.4 Realizei
com o mesmo, em 2013, um trabalho de inspiração etnográfica em que peregrinamos por
grupos e fóruns do Facebook em busca de experiências autobiográficas de outros
transhomens.5

Foram analisadas discussões em grupos como FTM Brasil, FTMS, Homens Trans Heteros,
FTM´s Bi e Gays e ABHT – Associação Brasileira de Homens Trans. Tal trabalho de
etnografia digital foi complementado através de conversas com integrantes desta rede
social.

A média de idade dos transhomens identificados nos fóruns do Facebook varia dos 16 aos
40 anos.Há diversas demandas pessoais e coletivas de transhomens. Algumas dizem
respeito à inserção e participação no ativismo trans, tanto masculino, como feminino; às
relações afetivas e sexuais; à permanência e evasão escolar; à inclusão no mercado de
trabalho, ao uso do nome social e à retificação de prenome; às preferências esportivas e
culturais.

A maioria se reconhece de início como lésbica (para não assustar muito os pais ou por falta
de apoio e maiores informações). Muitos começaram a se hormonizar recentemente e estão
preocupados com questões puramente pessoais de como contar para os pais, como adquirir
a receita obrigatória para se comprar o hormônio ou que dosagem tomar. Discutem os
efeitos diferentes que a testosterona causa, procuram por órteses6 (binder, packer, pump e

4
Nery foi o primeiro transhomem a ser operado no Brasil, em 1977, durante a ditadura militar. Publicou duas
autobiografias, Erro de Pessoa: João ou Joana?, em 1984, e Viagem Solitária - Memórias de um transexual
trinta anos depois, releitura atualizada de sua história, em 2011.
5
Esta pesquisa teve como produto um artigo conjunto, a ser publicado em 2013.
6
Aparelhos ou dispositivos ortopédicos de uso provisório ou não, destinados a alinhar, prevenir ou corrigir
deformidades ou melhorar a função das partes móveis do corpo.
STP)7 e tem dúvidas de como se apresentar no trabalho, na escola ou nas suas relações
afetivas. Outro dos assuntos que perpassam o cotidiano de pessoas transhomens refere-se à
importância das religiões e religiosidades em suas vidas.

Narrativas religiosas de transhomens

Nesta comunicação, apresento alguns exemplos de narrativas de transhomens em um


fórum fechado do Facebook. Para identificar tais vozes, optei pelo uso do anonimato: todos
os nomes dos transhomens são fictícios. Não modifiquei a grafia original das falas,
costumeiramente abreviadas ou adaptadas nas conversas de internet.

Neste fórum, André perguntou: “qual a religião de vcs e como ela interfere nas questões de
ser transhomem?”

Pedro contou que “eu particularmente não tenho religião e nem gostaria de seguir uma,
porém tenho uma fé em Deus independente de tudo.” Para Paulo, “minha religiao nao
interfere em nada no fato de ser trans.. sou budista e eles nao falam nada sobre isso
especificamente...”. Breno narra que

Minha formação religiosa é católica, já frequentei centro espírita, hoje em


dia sou bem na minha... Falar de religião pra mim é meio complicado
porque não me amarro nessas coisas não. O importante é ter fé no que
você acredita, também não tenho nenhuma religião realmente, só uma
formação.

Lucas, por sua vez, narra que “não tenho religião acredito em deus apenas e nos anjos”.
Marcos explica: “nao tenho religião, mas uma religiao que eu gosto é o candomblé, se um
dia eu for seguir uma religião que seja essa”. Sérgio conta que “desde pequeno sou
Adventista, mas tô bem afastado devido mudanças e tals... mas pretendo terminar a
mudança e voltar pra igreja... apesar que nunca me afastei de Deus independente de estar
dentro da igreja ou não acho que é o que importa! Mas sinto falta sim...”

Mateus comenta sobre sua escolha religiosa: “eu sou asatrú, é um tipo de paganismo
politeísta nórdico, e não diz nada sobre trans, mas fala sobre ser verdadeiro consigo
mesmo...”. Edson define-se como “sem religião ... (ser ateu não é religião,apesar de ter

7
Respectivamente colete para esconder as mamas, pênis flácido ou rijo, bomba para aumentar o clitóris e
dispositivo para urinar em pé.
gente q coloca isso no face ..oh zeus!) e logicamente nao interfere em nada na questão de
ser trans.” Gabriel conta ter

Formação religiosa católica, fiz catequese e tudo haha. Mas sou meio que
cristão apenas, sei lá, sou um grande fã de Jesus. Acredito em Deus,
tenho muita fé. Mas não nesse Deus palpável que serve de "alimento"
para muitos...

Dário é sintético: “não tenho religião, acredito em Deus e acho que isso q importa”, assim
como Silas: “não tenho religião... Tenho uma admiração muito grande pela Asatru, e
pretendo estudar mais sobre ela, e quem sabe segui-la. (:” Gérson comenta:

Acredito no espiritismo...creio em vida após morte e muitas perguntas q


tinha ou tenho são respondidas pelo livro de Allan Kardec. Não creio q
exista céu ou inferno e sim q existem lugares (planos) onde certos
espíritos como de assassinos, mulheres q praticam abortos e suicidas
ficam. A maioria das pessoas são leigas e confundem espiritismo com
candomblé nada haver.

Leandro contou:

eu ja fui na católica, evangélica, espirita kardecista ate me batizei na


evangélica mas me identifico mesmo com o candomblé frequentei por
alguns anos mas quando comecei a realizar minha transição a minha mãe
de santo disse que isso ñ seria da vontade do meu orixá então fiquei meio
frustrado decidi me afastar e depois eu voltarei para ver o que vai ser dai
em diante...

Marcos explica “sou candomblecista e católico ao mesmo tempo, e acredito nas duas
coisas. Na minha casa tenho um altarzinho com estátuas de santos negros e brancos”. E
Vítor conta que: “misturo tudo. Sou espírita, mas gosto de anjos, da cabala, dos orixás. E
dos santinhos católicos. Prá mim tá bom assim”.

Os próximos comentaristas foram sintéticos: Érico disse “sou ateu”, Lúcio, “kardecista”,
Peter, “sou católico não praticante”, e Flávio, “candomblé”. Otávio narrou:

Desde pequeno fui da adventista, mas ja tem 5 anos que n frequento,


gosto mt de ir, quem sabe depois de eu ser quem eu sou de verdade (tipo
tirar os invasores e tiver mais aparências masculina eu volte) pois assim n
quero. Agora eu falo n tenho uma religiao certa, pois ainda n sei o q vou
fazer e tal. Ja fui algumas vezses na igreja contemporanea (igreja que vai
os gls), mas tem mt tempo que n vou.. Acredito mt em deus , e nunca me
afastei dele , e creio e isso pra mim no momento é que ta bastando.
E por fim, há a narrativa de Jéferson: “eu sou ‘areligioso’, mas não ateísta. Não acredito
em dogmas religiosos, mas acredito em deus, não necessariamente um deus monoteísta e
personificado”.

Gostaria de analisar sinteticamente alguns destes comentários. Jéferson crê em Deus, do


seu jeito, definindo-se “areligioso mas não ateísta”. Dário também define-se sem religião,
assim como Silas. Um entende-se como crente em Deus, e o outro, como admirador da
Asatru. Mateus também conhece esta religião, que define como “um tipo de paganismo
politeísta nórdico”. Gabriel percebe-se, sobretudo, um “fã de Jesus”, enquanto Edson
define-se, como outros narradores, como um “sem religião”, o que “não interfere em ser
trans”. Paulo também entende que sua religião, o budismo, não interfere nele ser trans por
eles não comentarem sobre o assunto. Lucas e Marcos também explicam-se como não
tendo religião: um crê em Deus e nos anjos e o outro admira o candomblé.

Otávio explica que pretende retornar à Igreja Adventista quando avançar em seu processo
de adaptação corporal à sua identidade de gênero, explicando ser necessária a retirada dos
“invasores”. Tal expressão se refere aos seus seios (costumeiramente apelidados por
transhomens de “alienígenas”, “intrusos” ou “monstros” – de modo semelhante, a
menstruação costuma ser referida como “monstruação”). Ao que parece, Otávio só se
sentiria à vontade indo à Adventista quando adaptado esteticamente: de outro modo
provavelmente seria passível de discriminação.

Sérgio também se narrou adventista, aguardando pelo término de sua adaptação corporal
para retornar a igreja. Ambos demonstram sentirem falta da Adventista. Otávio, neste meio
tempo, frequentou a Igreja Contemporânea, uma das agências evangélicas brasileiras que
se identificam como inclusivas LGBT, ou seja, que procuram acolher pessoas que se
identificam lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneras. 8

A questão da frustração religiosa e do afastamento – quiçá da intolerância – também


transpareceu na fala de Leandro, que escutou de sua mãe-de-santo que não deveria realizar
sua transição pois isto não seria o desejo de seu orixá.

8
Comentei sobre a questão da inclusão nas inclusivas LGBT em outras oportunidades (MARANHÃO Fº,
2011a, 2011b, 2012c).
Alguns narradores identificaram-se de modo mais fixo: Érico é ateu, Peter, católico não
praticante, Lúcio é kardecista, Flávio, candomblecista. Gérson também demonstra uma
religiosidade menos fluida, marcada pela adesão ao kardecismo e necessidade de distinguir
o mesmo do candomblé.

Já Breno argumenta ter transitado pelo catolicismo e espiritismo, mas hoje “estar na sua”.
Vítor argumenta que gosta de misturar elementos religiosos: cabala, anjos, orixás e
“santinhos católicos”, assim como Marcos, que destaca sua dupla pertença entre o
catolicismo e o candomblé. São exemplos de uma religiosidade própria, autogerida,
(re)composta e derretida. Leandro demonstra uma peregrinação religiosa por paisagens
diversas: católica, evangélica, espírita kardecista e pelo candomblé. Enquanto vai
transitando, faz também suas bricolagens.

À pergunta de André, se a religião dos transhomens interferiria nas questões relacionadas à


transexualidade, apenas dois narradores comentaram que suas identidades de gênero não se
relacionavam com suas religiosidades. As narrativas, entretanto, evidenciam outros
aspectos relativos à fé destas pessoas. Na maioria dos discursos, ressalta-se uma
religiosidade particular, caracterizada pela mobilidade e composição própria da fé:
transparecem exemplos de bricolagens e trânsitos religiosos.

Como percebemos, as narrativas de transhomens não parecem diferir muito das falas que
poderiam vir de pessoas que não se identificam em trânsitos identitários de gênero – com
exceção aos poucos comentários referentes à transexualidade. Isto se dá por uma razão:
pessoas transgêneras e pessoas cisgêneras não possuem distinções ontológicas entre si,
com exceção das diferentes concepções a respeito de suas próprias identidades de gênero.
As primeiras apresentam discordância em relação às expectativas sociais de gênero a
pessoas designadas “mulheres” ou “homens”, e as segundas, encontram-se em consonância
com tais expectativas.

Entretanto, parece haver uma outra distinção: pessoas trans são, em muitos casos, vítimas
de preconceitos, discriminações e atos de intolerância religiosa mesclada à de gênero, ao
contrário das pessoas cisgêneras. Em alguns casos, sofrem de dupla intolerância, referente
à confusão que costumeiramente se faz entre identidade de gênero e orientação sexual.
Muitas pessoas trans, especialmente as transmulheres e as travestis, sofrem ainda das
consequências de uma segunda confusão feita pela sociedade em geral: são entendidas/os
como profissionais do sexo, colocando-as em situação de tríplice intolerância.

Considerações inconclusivas

Muito poderia ser dito, nesta comunicação, a respeito dos itinerários religiosos e
identitários de transhomens e de pessoas trans em geral. Entretanto, deixo esta discussão
germinando, pronta a florescer em ocasião mais conveniente, ciente de que muitas
contribuições ainda podem ser recebidas de outros/as observadores/as.

Referências bibliográficas

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dos guarda-chuvas queer, transgênero e trans* aos entre-gêneros. História Agora, dossiê
Gênero e Religião, vol. 2, n. 13, São Paulo, 2012a, p. 38-49.

__________. “Falaram que Deus ia me matar, mas eu não acreditei”: intolerância religiosa
e de gênero no relato de uma travesti profissional do sexo e cantora evangélica. História
Agora, dossiê Gênero em Movimento, vol. 3, n. 12, São Paulo, 2011a, p. 198-216.

__________. “Inclusão” de travestis e transexuais através do nome social e mudança de


prenome: diálogos iniciais com Karen Schwach e outras fontes. Oralidades – revista de
História Oral da USP, dossiê Diversidades e Direitos, São Paulo, 2012b, p. 89-116.

______. “Jesus me ama no dark room e quando faço programa”: narrativas de um


reverendo e três irmãos evangélicos acerca da flexibilização do discurso religioso sobre
sexualidade na ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana). Polis e Psique, vol. 1, n. 3,
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______. “Marketing de Guerra Santa”: da oferta e atendimento de demandas religiosas à


conquista de fiéis-consumidores. Horizonte, vol. 10, n. 25, Belo Horizonte, 2012c, p. 201-
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NERY, João W. Erro de Pessoa: João ou Joana? São Paulo: Record, 1984.

__________, MARANHÃO F º, Eduardo Meinberg de Albuquerque. Transhomens no


ciberespaço: Micro-políticas das resistências. História Agora, dossiê Universo Trans* (no
prelo).
______. Viagem Solitária – Memórias de um transexual trinta anos depois. São Paulo:
Editora Leya, 2011.
LAPINHA:
UMA DANÇA DE TRADIÇÃO RELIGIOSA DO NORDESTE BRASILEIRO

RESUMO
A Lapinha ou Pastoril é um folguedo que integra o ciclo das festas natalinas do Nordeste
brasileiro, que conta a história de um grupo de pastorinhas que viaja até Belém à
procura do menino Jesus. Divide-se em dois cordões de cores distintas, o Cordão
encarnado e o Cordão Azul. Esta pesquisa tem como objetivo fazer um levantamento
histórico da Lapinha, uma dança popular de tradição religiosa do Nordeste brasileiro. É
uma pesquisa qualitativo-descritiva e bibliográfica. Foram aplicadas entrevistas aos
coordenadores das Lapinhas, e realizadas observações das suas apresentações. As
Lapinhas investigadas são: Lapinha Bom Jesus e a Lapinha Jesus de Nazaré. As
manifestações culturais populares, tais como as Lapinhas estavam presentes em meados
do século XX, a Lapinha tornou-se uma das mais animadas atividades da cultura popular.

INTRODUÇÃO

As festas culturais de tradição cristãs geralmente estão ligadas à celebração a


alguém ou alguma coisa, festeja-se o renascimento da vida, a boa-nova. Segundo Souza
(2007, p. 81) elas são representações simbólicas de maneiras diferentes e são a base de
muitas comemorações cristãs, nesse instante de festividade são recuperados os ritos que
são celebrados ao longo dos tempos.

Desta forma, percebemos que a religião está comumente nos diversos momentos
da vida das comunidades. Sendo a religião um fenômeno humano, suas causas podem
ser encontradas no mundo social. “A religião nasce com o poder que os homens têm de
dar nomes às coisas, fazendo uma discriminação entre coisas de importância secundária
e coisas nas quais seu destino, sua vida e sua morte se dependuram” (ALVES, 1990, p.
24).

Sendo assim, a religião para os povos apresenta certo tipo de discurso, uma rede
simbólica, bem como seus fenômenos religiosos, construindo uma proteção que recobre
e interfere no seu meio social. Um desses fenômenos que leva o povo às ruas, às igrejas,
é a dança. Ela é uma forma de expressar a religiosidade, em que a coreografia é o meio
pelo qual os mitos e ritos são encenados.

A dança é uma manifestação cultural, desde as sociedades primitivas ela é


expressa pelos movimentos e gestos corporais, esses “movimentos e gestos corporais se
tornam modelares em determinados rituais” (CALDEIRA, 2008, p. 02). Pode ser
considerada uma linguagem da sociedade que permite a transmissão de sentimentos,
emoções, afetividade vividas nos espaços, nos costumes e nos hábitos religiosos.

Segundo Hanna (1999, p. 87) as primeiras danças do homem/mulher foram as de


imitação, as quais as pessoas que dançavam simulavam os acontecimentos que
desejavam se tornar realidade. Nas civilizações antigas, a dança está inserida no
contexto do sagrado. Era por meio da dança divina que se criava o próprio mundo e
surgia a ordem no universo. No Egito antigo, o faraó dançava dando passos ritmados ao
redor do templo para assegurar o percurso normal do sol. Já os rituais gregos de dança
em homenagem a Dionízio são formados por movimentos vivos, com movimentação de
pernas, braços e pescoço. Nestes observa-se a presença das danças nos banquetes, que
envolviam a sexualidade no culto ao Deus Dionízio, deus da fertilidade.

Nesta pesquisa, trataremos da Lapinha, uma dança de tradição natalina cristã,


que se desenvolveu na Região Nordeste do Brasil. Cascudo (1998, p. 429) ressalta que
por conta da tradição da Sagrada Família ter se recolhido numa gruta ou lapa, e lá ter
nascido o menino Jesus, daí veio o nome Lapinha.

As Lapinhas investigadas são: Lapinha Bom Jesus, no Bairro De Cruz das Armas e
a Lapinha Jesus de Nazaré, do Bairro do Rangel. As Lapinhas investigadas foram
escolhidas de acordo com o cadastramento realizado pela FUNJOPE (Fundação Cultural
de João Pessoa), as Lapinhas que estivessem cadastradas e ativas no ano de 2012
(ensaiando e se apresentando).

Lapinha: Origem e significado

A Lapinha ou Pastoril é um folguedo que integra o ciclo das festas natalinas do


Nordeste, que conta a história de um grupo de pastorinhas que viaja até Belém à procura
do menino Jesus. A Lapinha ou como é denominada popularmente, Pastoril, Pastorinhas,
Bailes Pastoril, era representada em autos diante do presépio. Essas são as
denominações dadas no Brasil as festas que comemoram o nascimento de Jesus, em
louvor a ele e a sua família (PINTO, 2002a).

Eram considerados folguedos populares, porque seus participantes tinham total


dedicação, faziam com que sua vida pessoal e sua cultura estivessem ligadas ao pastoril.
E o caráter religioso está repleto de teatralidade.

Era vinculada ao teatro religioso semipopular ibérico. Pimentel (2005, p. 09)


afirma que a origem dos autos populares natalinos deu-se no século X, no período da
idade média, na abadia de São Galo na Alemanha, onde nasceu e se espalhou. Esta teve
a iniciativa do monge Tuitilo, que em “o tropo de Natal” é documentado a apresentação
mais antiga.
Os tropos eram textos compostos por textos novos e frases melódicas intercaladas
em textos religiosos oficiais da igreja, cantados em gregoriano (ANDRADE, 1959;
GASSNER, 1997). Tanto na França quanto na Inglaterra, os tropos dialogados de Natal se
desenvolveram rapidamente em dramas litúrgico medieval. Fazia apologia, pois tinha a
intenção de ensinar, defender a verdade religiosa e a encarnação da divindade (Vieira,
2010) e eram dançados na frente dos presépios.

O uso dos primeiros presépios segundo Cascudo (1984) foram montados em


Portugal por volta de 1391, quando freiras da cidade de Lisboa fizeram o primeiro. Eram
chamados auto dos presépios e tinham um “sentido apologético, de ensino e defesa da
verdade religiosa e da encarnação da divindade” (NÓBREGA, 2010, p. 01).

Em Borba Filho (2007) a representação dramática da Lapinha (presépio) teve


início quando São Francisco de Assis, em 1223 querendo comemorar o nascimento de
Jesus Cristo obteve licença do papa e criou uma gruta com animais (um boi e um
jumento) e imagens da Virgem Maria e do Menino Jesus, foi a primeira vez que a cena
sagrada foi representada. Dentro desta gruta ele celebrou uma missa, e estavam
presentes frades e camponeses da localidade. “Diz a tradição graciosa que o próprio
Deus dos cristãos, consagrando a invenção franciscana, desceu dos céus na forma dum
Jesusinho e posou sobre a palha do estábulo” [...] (PIMENTEL, 2005, p. 10).

Esse teatro popular se firmou em Portugal com os Vilhancicos galego-portugueses


ou simplesmente, com as músicas de Natal, elas podiam ser cantadas ou dialogadas.
Definido como um drama litúrgico medieval, a apresentação do presépio era dividida em
três partes: a anunciação do nascimento de Jesus aos pastores; a adoração dos três reis
magos do oriente e o massacre dos inocentes. Os dois primeiros mencionados ainda se
conservam vivos e se desenvolveram por todo o ocidente europeu e em Portugal; já o
terceiro fato, encontra-se esquecido na atualidade.

Enfim a dramatização do auto do presépio surgiu da necessidade de se


compreender o episódio da natividade. A cena que era parada (apenas representada pelo
presépio) ganhou vida, movimentos e canções, com a utilização de instrumentos
musicais (ANDRADE, 2002).

Religiosidade no Pastoril X Pastoril Profano

O objetivo principal do pastoril religioso é propagar para o mundo o nascimento


de Jesus Cristo e a imagem da Virgem Maria, existe uma associação entre as
religiosidades oficiais cristãs e as populares. No cristianismo tornou-se símbolo a figura
da Virgem Maria e de seu filho cercados por animais e pastores. A Lapinha com seu
aspecto religioso tem a intenção de renovação da fé, conhecida pelos cristãos e
apresentado pelos personagens nesses dramas (PINTO, 2002a).

Segundo Lopes Neto (2011, p. 49) esse culto aos personagens religiosos teria
origem na Europa, por meio de trabalhos hagiológicos (estudo da vida dos santos) nos
tempos medievais, esses estudos preocupavam-se em exaltar os mártires, seus
sacrifícios, sua pureza. Por isso os pastoris estão intrinsecamente ligados ao culto
religioso do nascimento do salvador.

No Brasil, o trabalho religioso que era realizado pelos jesuítas e a imigração foram
os responsáveis pela difusão da Lapinha, incorporado ao catolicismo popular, tornou-se
parte das canções religiosas devocionais, sendo identificados como tradição natalina.
Sabemos que o ciclo de Natal é um dos principais períodos das festividades do
catolicismo brasileiro. “Os natais provieram dos mistérios; transpuseram resumidamente
as cenas da Natividade que ali se encontravam, retornando o modelo e muitas vezes as
melodias das canções profanas” (DELUMEAU, 2003, p. 255).

Enquanto o Pastoril religioso é composto por meninas com suas vestimentas


comportadas e uma única presença masculina, a do pastor, o pastoril profano vem com
um figurino mais ousado, com vestidos muito curtos, saias acima dos joelhos, e
mostravam suas calcinhas pretas ao público masculino, e ainda existia a figura do
palhaço (velho ou fúria). Este personagem faz gestos maliciosos com sua macaxeira
(bengala), canta e faz poesias para as pastorinhas com segundas intenções.

Estes espetáculos fugiam totalmente do enredo e da temática, a importância que


era dada às cenas do nascimento de Cristo é quase nula. A religiosidade, as mensagens
de salvação e catequese que são as características do pastoril religioso tornam-se folgaça
(farra, brincadeira), perde o caráter de evangelização.

De acordo com Pimentel (2005) foi no final do século XIX que se deu a passagem
do pastoril religioso para o pastoril profano. Nesse instante da história os antigos
presépios, Lapinhas ou pastoris sagrados tiveram que conviver com esse bailado profano.
Apesar do surgimento dessa característica mais popular, não implicou na eliminação dos
autos natalinos, sendo estes encontrados ainda em sua forma religiosa em alguns
estados do Nordeste do Brasil.

Segundo Vieira (2010) a passagem do Pastoril sagrado para o Pastoril profano, no


Brasil, foi uma herança dos colonizadores europeus. Isso porque as festas religiosas
europeias também têm caráter cômico popular e público, que foram entrando para a
tradição.

Alguns pastoris profanos estão mais ligados a prostituição, o personagem do


palhaço é dono e empresário das mulheres, chegando até a arranjar pretendentes para
as brincantes, é a exploração da figura feminina. As apresentações são realizadas nos
subúrbios, em palcos improvisados, os homens deveriam pagar entrada para assistir o
espetáculo, e tinham uma característica altamente erotizada (PINTO, 2002b, p. 80).

Lapinha no Brasil

No Brasil, foi trazido pelo teatro dos padres da Companhia de Jesus, tendo o
aparecimento do presépio que se deu por volta do século XVI (RIBEIRO, 1993), no
convento dos Franciscanos em Olinda, tendo como precursor frei Gaspar de Santo
Antônio. Já a referência a pastoris é creditada a Fernam Cardim, ele escreve sobre as
origens do pastoril brasileiro datada de 1584, citado por ANDRADE (1959, p. 35)
“debaixo da ramada se representou pelos índios um diálogo pastoril, em língua basílica,
portuguesa e castelhana e têm eles muita graça em falar línguas peregrinas, maximé a
castelhana”.

Conforme Ribeiro (1993) há um registro em que o Padre Cristovão de Gouveia,


em uma visita a aldeia Abrantes no Estado do Espírito Santo, em 1583, representou um
auto de Natal que era acompanhado por canções portuguesas e danças ao som de viola,
pandeiro, tamboril e flauta. Porém esse evento popular manifestou-se especialmente nas
cidades do litoral do Nordeste (PINTO, 2002b, p. 74).

Nos séculos XVII e XVIII não existem relatos sobre apresentações de pastoris no
Brasil. Apenas no século XIX houve grande quantidade de bailes pastoris, principalmente
no Nordeste do país, em especial nos estados de Pernambuco, Bahia, Alagoas e Paraíba.
As pastoras se apresentavam em frente aos presépios cantando louvores para que fosse
compreendido o nascimento do Menino Jesus.

Na Bahia os pastoris perderam o caráter religioso e passou a ter enredo dramático


profano desenvolvido por um personagem chamado “velho”. Segundo Pimentel (2005, p.
16) este pastoril contava com um velho que decide gozar a vida ao lado de quatro jovens
que só tinha a intenção de explorá-lo. Esse folguedo era também nomeado por “baile da
tentação, baile das quatro pastoras em velho, baile do caçador, baile da aguardente,
dentre outros”.

Também em Alagoas os pastoris se distanciaram da origem religiosa, conserva a


figura do “Velho”, apesar de ter tido sua origem em um mosteiro. “Um Velho gaiteiro que
vem à cidade grande a fim de namorar mocinhas e é por elas ridicularizado” (PIMENTEL,
2005, p. 18). E tem a presença do Fúria (Demônio),

Já em Sergipe, era seguida fielmente a tradição religiosa. O pastoril era


apresentado apenas por meninas da sociedade católica, sempre com apresentações em
frente à igreja local. Também contavam com fidelidade a história do nascimento do
Cristo. Em Sergipe não há pastoril profano apenas o religioso.

Em Pernambuco foi onde tudo começou, foi lá que Frei Gaspar de Santo Antônio
relatou sobre os presépios. De acordo com Valente (1995) o aparecimento da Lapinha
pernambucana deu-se em 1840, com apresentações teatrais. Assim como nas outras
cidades nordestinas, antes de se tornar um pastoril profano, as apresentações eram
realizadas em frente ao presépio, segundo Borba Filho (2007) essa dramatização foi
influenciada pelo auto sacramental, na forma literária.

No Rio Grande do Norte assim como em alguns outros estados do Nordeste, a


Lapinha se apresenta em frente a presépios, em palcos, nas ruas, e as pastoras cantam
canções animando a dramatizando a história cantada. Em vários municípios potiguares a
Lapinha está ativa tendo apresentações de cunho religioso ou profano (VIEIRA, 2010).

No estado do Ceará as apresentações conservam ligações evidentes com a


Lapinha original, porém atualmente se apresentam em salas, tablados, terreiros das
casas. No Piauí a Lapinha segundo (PIMENTEL, 2005) diz estar em desaparecimento. No
Maranhão a primeira apresentação aconteceu em Dezembro de 1933, os autos eram
muito semelhantes ao estado do Ceará.

Lapinha: sua composição

Ao longo dos tempos, a Lapinha por meio da sua divulgação no Nordeste do


Brasil, passou por algumas adaptações com relação às apresentações.

Atualmente os grupos de Lapinha são cantados e dançados em homenagem ao


Menino Jesus. Divide-se em dois cordões de cores distintas, o Cordão encarnado
(simboliza o coração de Jesus), composto pela Contra Mestra, Lindo Cravo, Lindo Guia,
Libertina, Borboleta, Assucena, Pastorinhas.

Já o Cordão Azul (simboliza o coração de Maria) é composto pela Linda Mestra,


Lindo Anjo, Camponesa, Borboleta, pastorinhas. E ainda temos o cordão central,
composto pela Estrela, Diana, Cigana e o Pastor. Existe uma disputa entre os dois
cordões, o cordão que mais arrecada dinheiro, torna-se vencedor.

Não se pode deixar de abordar o cunho religioso para explicar o partidarismo das
cores azul e encarnada. O primeiro é devido ao manto da imagem do coração de Maria, e
o segundo por causa do coração de Jesus cristo (LOPES NETO, 2011, p. 48).

De acordo com Borba Filho (2007) as pastoras se colocam em cena, divididas em


dois cordões, o azul de um lado e o encarnado do outro, com esta formação teve início as
disputas entre os cordões. O azul e o encarnado são as cores que estão nas vestes
(vestidos, blusas, saias, boleros), também levam à cabeça ou um chapéu ou uma fita de
filó, ou ainda um diadema nas cores dos cordões.

Segundo Andrade (1959, p. 23) as cores dos cordões representam a luta entre
cristãos e mouros (população islâmica do Noroeste da África), bem como denota a
Virgem Maria e Nosso Senhor. Para Brandão (1973, p. 149) são essas disputas entre os
dois cordões que fazem com que o Auto da Lapinha seja aceito por todas as classes
sociais e sua extraordinária persistência e difusão nos dias atuais.

Podemos perceber que as cores estão relacionadas à manifestação do sagrado,


pois “nós pensamos, experienciamos e imaginamos o que seja o mistério de Deus”
(MARDONES, 2006, p. 181). A simbologia das cores na Lapinha afeta profundamente a
apresentação e a vida religiosa.

Além dos cordões, as canções também tem grande importância no Pastoril. Para
Brandão (1961, p. 150), elas são cantadas e interpretadas pelas pastoras, que são
acompanhadas por instrumentos como violões, cavaquinhos, pandeiros, violas tocados
por homens.

As Lapinhas de João Pessoa – PB: Origem e desenvolvimento

Segundo o IBGE (2010) a população de João Pessoa é de 723.514 habitantes.


Com relação a religiosidade, é de maioria católica. Tendo 74% de católicos, 16%
pertencem à religião evangélica, 1,10% são espíritas e 7,41% alegaram não ter religião
nenhuma (podem ser ateus, agnósticos, deístas).

Com relação a cultura de João Pessoa, de acordo com Nascimento (2010), ao


longo do século XX houveram grandes modificações nas condições de trabalho, moradia,
urbanização e sobretudo, no contexto cultural. Estas mudanças ocasionaram um
desenvolvimento dos costumes e práticas culturais populares, principalmente nos Bairros
do Roger e do Tambiá. Lá surgiram muitas manifestações culturais, como a quadrilha e a
Lapinha.

As manifestações culturais populares, tais como a Lapinha estavam presentes em


meados do século XX, em vários bairros da Grande João Pessoa. E apesar de ser uma
dança de tradição religiosa, nessa época ela sofria censura e muitos pais não deixavam
seus filhos assistirem as apresentações.

Quando chegava a hora tinha que encerrar. Naquele tempo era


uma coisa muito assim, sobre a censura... Essa era mais ou menos
a época de quarenta e pouco. (eu to com setenta e seis anos, já
sei o que é Lapinha desde doze anos, treze anos) (GUEDES da
SILVA, 2006, p. 127).
Porém, Nascimento (2010) ressalta que com o passar do tempo, entre as décadas
de 1940 e 1960 a Lapinha tornou-se uma das mais animadas atividades da cultura
popular. Com características ora religiosas ora profanas, esse é um folguedo pastoril que
está relacionado ao culto religioso, ao nascimento do menino Jesus.

Para o autor supracitado essa brincadeira popular surgiu não apenas com a
intenção de diversão e entretenimento, mas também como uma forma de propiciar uma
maior sociabilidade entre os moradores dos bairros. Alguns Bairros de João Pessoa
tinham até quatro Lapinhas se apresentando ativamente e todos abriam as suas casas
para o Pastoril entrar. A popularidade dessa tradição foi tamanha, que além de simples
ato de fé e louvação ao nascimento de Jesus Cristo, também passou a ter grande
importância como manifestação artística.

A cultura da Lapinha chegou a ser tão intensa na cidade de João Pessoa que,
algumas de suas ruas tinham os nomes dos cordões do folguedo. De acordo com Aguiar
(1992) uma delas chamava-se cordão Azul, atualmente, é a Rua Branca Dias, localizada
no Bairro das Trincheiras. Hoje a Rua recebe este nome por que ela foi um símbolo que
lembra os paraibanos perseguidos e torturados pelo tribunal, criado pela Igreja católica.

Também existia a Rua cordão Encarnado, atual Rua Martim Leitão. O cordão
encarnado é toda a área que se situa a partir do Pavilhão do Chá (Praça Venâncio Neiva)
até as proximidades do Cemitério Senhor da Boa Centença. Fica próxima da que se
chamava Rua cordão Azul. Nela se realizavam as apresentações dos Pastoris ou Lapinha
por ocasião das festividades natalinas. Hoje a Rua tem esse nome por homenagear
Martim Leitão, que foi ouvidor-geral do Brasil e responsável pela conquista da Paraíba e
pelo começo da construção da capital em 1585 (AGUIAR, 1992, pp. 301 – 302).

Essas Ruas são muito próximas, pode-se até imaginar que existia uma relação
entre as Lapinhas daquela localidade, mas não há registro sobre isso. No mapa abaixo
podemos perceber a proximidade.

Pimentel (2005) afirma que o primeiro registro da festa da Lapinha em João


Pessoa foi feito por Coriolano de Medeiros, que descreveu as manifestações artístico-
culturais no Bairro do Tambiá. Estes relatos datam do final do século XIX e início do
século XX.

A experiência com a pesquisa da Lapinha é relevante para os estudos sobre


religiosidade popular. Como um espetáculo popular a Lapinha perdeu muito de sua
popularidade, e atualmente encontramos poucos grupos que ainda animam os bairros da
cidade de João Pessoa-PB. Mas, ainda que os fenômenos econômicos e sociais tenham
interferido para a decadência da apresentação dos pastoris, é bom lembrar e saber que
ainda existem pessoas que lutam pela sobrevivência dessa cultura que é tipicamente
nordestina.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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tempo. Coleção Cidade de João Pessoa. 1992.

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ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil. São Paulo: Livraria Martins, 1959.

BORBA FILHO, Hermilo. Espetáculos Populares do Nordeste. Recife: Fundação


Joaquim Nabuco, Ed. Massangana, 2007.

BRANDÃO, Théo. Folguedos Natalinos de Alagoas. Maceió: Departamento Estadual de


Cultura, 1961.

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Itatiaia Limitada, 1994.

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www.ibge.gov.br, acessado em 28 de Outubro de 2012.

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Repertório. n. 16, p.p. 46 - 69, 2011.

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inexatidão da verdade. Cronos. Natal, n. 02, v. 09, p. 393 - 403, Jul/Dez, 2010.

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VIEIRA, M. de S. Pastoril: uma educação celebrada no corpo e no riso. Tese (doutorado


em Educação - UFRN). Natal, 2010.
SOB O PÁLIO DO SALVADOR DO MUNDO: O CULTO AO SANTÍSSIMO
SACRAMENTO NA VILA DE SIMÃO DIAS.

Ivo Rangel Fontes Lima1


Bruna Ribeiro dos Santos2

Resumo:

O objetivo dessa pesquisa consiste em analisar por meio do Compromisso da Irmandade


da Vila de Simão Dias, Sergipe, aprovado em 1875. Entre as suas obrigações estavam as
questões referentes à estrutura hierárquica dentro da confraria, dando ênfase a
distribuição dos cargos ocupados por cada membro, bem como as obrigações que os
mesmos deveriam desempenhar na mesa regedora. Esta era dotada de poder
administrativo suficiente para designar os deveres de cada irmão, assim como os valores
e taxas cobradas para admissão de novos associados e por fim, tentamos analisar o
posicionamento que esta associação leiga assume perante as questões sociais, bem como
o prestígio social que o membro da irmandade recebe do meio cristão local e as
obrigações como festas, procissões e enterros.

Introdução: Surgimento das Irmandades.

Originadas no fim da Idade Média e por motivos da chegada da Reforma


Protestante, as Irmandades tinham como primeiro objetivo garantir a continuidade de
cultos cristãos, e ser o baraço forte da Igreja Católica assegurando principalmente os
cultos referentes a devoção do Santíssimo Sacramento e da Eucaristia. Quando em
momentos difíceis, a Igreja recomendava a adoração ao santíssimo para que a fúria de
Deus fosse amenizada sobre a terra, e cabia as irmandades esse papel de intermédio e
aproximação entre os fieis e a adoração ao santíssimo, que se estabelecia como um
símbolo mais importante da fé católica . Célia Borges aponta essa questão: “Ainda em
Portugal, após o terremoto de Lisboa em 1755, foram celebradas em várias partes do
território e nas suas colônias atos de adoração ao Santíssimo e festejaram-se inúmeras
procissões”.

O surgimento dessas irmandades foi comum em toda a Europa e por consequente


chegou às colônias brasileiras por intermédio mais próximo de Portugal, quando firmadas
em terras brasileiras, as irmandades adquiriram características próprias, como um
modelo padronizado na sua formação e na sua função, mas, ainda assim, mantinham
referencias europeias. As irmandades, comenta Cristiane Bahy, seguiam um padrão que
era estabelecido pelo Compromisso, uma espécie estatuto que coordenava as funções e

1
Graduando em História pela Faculdade José Augusto Vieira – FJAV.
2
Graduanda em História pela Faculdade José Augusto Vieira – FJAV.
as punições para quem não o seguisse ou respeitasse, nele estava contido os deveres e
obrigações de seus membros. Bahy, ainda aponta que outro motivo para tamanho
desenvolvimento das confrarias ou irmandades era a questão das: “migrações em busca
por melhores condições de vida a partir do século XI. As famílias que se mudavam
possuíam a necessidade de se integrarsocialmente e o faziam através das irmandades”.
Ainda sobre essa questão Célia Borges comenta: ”A propagação das Irmandades do
Santíssimo Sacramento na Colônia deve ser vista como um prolongamento do grande
movimento ocorrido na Europa em torno ao culto eucarístico”

Além do Compromisso, lei maior que regia o funcionamento de uma Irmandade,


esta também possuía livros de registros que acompanhavam toda a vida da mesma,
dentro dos compromissos ficavam estabelecidos quantos livros cada confraria teria e a
função administrativa que representariam, havia livros de registros, tombos, eleições, de
despesa e outros.

As irmandades quando chegaram ao Brasil, rapidamente se espalharam e


passaram a exercer influência na vida social e politica além da esfera religiosa, isso
possibilitava um prestígio aos seus membros na camada da sociedade. Devido a sua
capacidade de determinar um “estatus” social, a igreja tentava controlar seus atos para
que não adquirissem maior credibilidade que ela, por isso, os seus compromissos depois
de elaborados pelos irmãos deveriam ser aprovados pelas autoridades civis e religiosas, e
estas tinham o direito de rejeitar alguns itens de seus artigos orientadores se os mesmos
entrassem em desacordo com os seus interesses.

Além dos livros estabelecidos pelo compromisso, também havia as funções do


corpo administrativo, ou seja, eram estabelecidas as funções da mesa regedora da
irmandade, cada confraria estabelecia a quantidade destes cargos, havia o Juiz provedor,
o secretario, o tesoureiro, o procurador, os esmoleres. A quantidade e a função eram
estabelecidas por meio da lei de regência da irmandade.

O Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Vila de Simão dias

Não fugindo a regra de origem das Irmandades, a da antiga vila de Simão Dias
possuía o seu compromisso aprovado pela Resolução N. 1.018 de 1 de Maio de 1875 e
originada na matriz de Senhora Sant’Anna sob os cuidados do Santíssimo Sacramento.
Dentro do seu compromisso, eram estabelecidas sua organização, função e deveres
dentro da irmandade e dentro da sociedade simão-diense. Criada dentro de um universo
dominado por coronéis, barões e senhores do açúcar, as mulheres ficavam sempre em
segundo plano, prova disto é que em seu Artigo 2º do Capitulo I “fica estabelecido que
mulheres não poderiam exercer nenhum cargo administrativo dentro da irmandade”.
Art.2º “A Irmandade será composta de pessoas de ambos os sexos, não podendo o sexo
feminino ocupar cargos administrativos.” (Compromisso da Irmandade – 1875)

Para assegurar que a imagem de entidade promotora dos bons costumes cristãos
fosse preservada socialmente, existiam condições expressas no seu compromisso para a
aceitação de novos membros no corpo de irmãos da irmandade, assim segue o artigo 12:

Art. 12. Para ser irmão é preciso: § 1.º Ter boa conducta civil e
moral. § 2.º Ser catholico, apostolico, romano.§ 3.º Ter meios de
viver com decencia. § 4.º Ter meios de sustentar as obrigações do
compromisso. § 5.º Ser maior de 21 annos. § 6.º Sendo menor,
com acquiescencia de seu pai ou tutor. § 7.º O que estiver na
posse e livre administração de seus bens.

Ainda no que se refere as condições de admissão de novos membros, o


compromisso da irmandade estabelecia algumas regras internas, para que a proposta de
admissão dos novos membros fosse finalmente aceita, assim segue o artigo 13 e 14 do
compromisso:

Art. 13. Para ser irmão é preciso ser proposto perante a meza
administrativa por qualquer irmão indistinctamente, e depois de
correr o escrutinio secreto vencerá pela maioria de votos. Art. 14.
O cidadão que for eleito irmão, comparecerá perante a meza
administrativa e ahi lançará o secretario da meza o termo de
comparecimento e acceitação, que será assignado por elle e todos
os mezarios no livro destinado para esse fim.

Ao analisarmos o segundo capitulo do compromisso da Irmandade do Santíssimo


Sacramento da Vila de Simão Dias, percebemos uma preservação de costumes cristãos
elitizados que estreitam os caminhos da irmandade. Há uma insistente preocupação com
a imagem social representada pelos novos membros, estes que ao adentrarem na
irmandade devem trazer consigo a disponibilidade dos seus bens para manter a
irmandade bem como boas referências de caráter cristão.

Dentro das inúmeras obrigações que a irmandade possuía, destacam-se aqui as


mais importantes sendo elas o culto ao Santíssimo Sacramento, a Semana Santa e a
festa de Corpus-Christi. “O fim da Irmandade é render culto ao Santíssimo Sacramento,
promover os actos da Semana Santa, a festa de Corpus-Christi e a prática de todas as
virtudes.” (Art. 8º do Compromisso da Irmandade).

No compromisso eram estabelecidas quais as solenidades que deveriam existir


dentro dessas obrigações, assim, cita o artigo 9º:
Art.9º A semana Santa deverá ser solenizada com pompa e
magnificência, constará dos seguintes atos: 1º Offício de Ramos.
2º Paixão do Senhor. 3ºMissa cantada e procissão na quinta feita.
4º Lava-pés e sermão a tarde.5º Trevas.6º Sermão da Paixão,
procissão de fogaréos.7º Enterro, Paixão e procissão sexta-feira de
manhã. 8º Exposição do Sepulchro e procissão a tarde. 9º Trevas
e sermão de lágrimas á noite. 10º Alleluia, procissão e missa
cantada.11º Missa cantada, sermão e procissão da ressurreição.

E quais os deveres que os membros da mesa teriam para com cada solenidade
como demonstra o artigo 10º: “A festa de Corpus Christi será feita pelo juiz provedor e
quando por qualquer circunstancia, se limite a imposição da joia, será auxiliado pelo
cofre da irmandade.” (Compromisso da Irmandade - 1875). É possível perceber nos seus
primeiros artigos e capítulos que sua influência social e financeira eram questões que
denotavam uma forte importância e presença, quando observamos o artigo 9º fica claro
a independência e o poder social exercido pela a Irmandade, pois a mesma determinava
quais solenidades litúrgicas deveriam ocorrer e quando ocorreriam, assim como também
deixa claro a necessidade de membros que sejam católicos apostólicos romanos
(art.12,§2º) e que gozem de meios para sustentar as obrigações do compromisso, assim
cita o artigo 12,§4º.

A organização da Irmandade era regulamentada pelo mesmo compromisso, nele


era inscrito como se daria o período eleitoral para a formação da mesa regedora, o
período de posse dos novos membros e quais reclamações e reivindicações cabiam ser
feitas pela assembleia dos irmãos, quando deveria haver reunião extraordinária da
irmandade, e o que deveria ser registrado nos livros da mesma. Tais determinações se
encontram no Capitulo III do Compromisso. Da formação da mesa para a votação e
substituição dos membros antigos o Capitulo IV regulamenta todo o processo de nomes
para a eleição, e a regra para o preenchimento de cada cargo era a mesma, o voto do
vigário era meramente consultativo, nele também se estabelecia que os irmãos
honorários não poderiam votar e nem serem votados. Os momentos em que a
Irmandade poderia juntar-se a comunidade eram determinados no artigo 35 do mesmo
capitulo citado.

A organização da mesa passava por uma hierarquia administrativa sendo descrita


no compromisso por ordem de importância, compunham a mesa um Juiz provedor, um
secretário, um tesoureiro, dois procuradores e doze irmãos. Os membros que compõe a
mesa são eleitos por voto e ocupam os cargos eleitos já na primeira sessão após a
eleição, sendo que os novos membros são empossados de seus cargos pelo antigo corpo
da mesa. Cabia à mesa organizar e administrar os trabalhos postos à irmandade, assim
como participar de todas as sessões da assembleia geral. Os irmãos mesários deveriam
arrecadar “esmolas” sem distinção de classes por um mês e aquele que recusar-se a tal
ato, deveria contribuir com a importância de 20$000 para ajudar nas despesas de
engrandecimento moral e material da Irmandade.

O capitulo VII da Irmandade do Santíssimo Sacramento determina em minucias


quais os deveres compete a cada membro da mesa, sendo obrigação do juiz provedor
como já mencionado acima, dentre tantas obrigações destaca-se o financiamento da
festa de Corpus-Christi, ordenar as obras da Irmandade, convocar os membros para os
eventos litúrgicos, presidir e convocar a mesa administrativa quando assim se fizer
necessário, ao secretario entre tantos itens que lhe competiam, destacava-se a guarda
de todos os livros da Irmandade, a apuração da eleição juntamente com o tesoureiro,
apresentar-se em todas as reuniões da associação, já ao tesoureiro compete a guarda de
todos os moveis e bens da confraria, possuir livros próprios que permitam o balanço da
arrecadação, documentar as contas da irmandade, sendo posto no compromisso mais
algumas obrigações como as presentes no artigo 52: “§8º Mandar sahir a sineta e tocar
o sino da Irmandade nas occasiões precisas.§9º Nomear sineiro, alampadeiro e coveiro
debaixo de sua responsabilidade. §10º Nomear administrador de cemitério e tomar-lhe
conta de oito em oito dias”. (Compromisso da Irmandade – 1875)

Dentro do compromisso, tais especificações eram propostas, já que era obrigação


da Irmandade prestar auxilio aos seus irmãos que se encontrem em estado de miséria ou
mais ainda, auxiliar a mulher e os filhos em caso de morte do marido. Assim esclarece o
capitulo XV denominado de Garantia dos Irmãos no artigo 66: “§ 1º. Socorro pecuniário
e mensal durante a vida do irmão que cahir em penúria. Este socorro se estende a sua
mulher e filhos. §2º. O enterro do irmão, dando-se-lhe todo o necessário com decencia.
Esta garantia estende-se a sua mulher e filhos”.

Ainda sobre as obrigações da mesa administrativa, cabia aos procuradores quando


eleitos, distribuir as esmolas arrecadadas e a renda das dividas pagas e entregar ao
tesoureiro, cuidar dos elementos simbólicos como o altar, a banqueta e a alampada e
prover a cera e o azeite do alampareiro, e outras obrigações que se encontram presentes
no artigo 54 do Compromisso da Irmandade. Aos doze irmãos citados como parte da
mesa, recai sobre eles a formação da comissão que fiscaliza e aprova as contas dos
tesoureiros e dos procuradores, sendo que dentro destes doze, apenas dois são
escolhidos para tais funções pelo juiz administrativo. Assim fica estabelecido pelo
Capitulo XI por meio do artigo 56.

Art.56. A comissão nomeada pelo juiz provedor deverá recahir


sobre os doze membros da meza administrativa, constando apenas
de dois irmãos com as seguintes atribuições: § 1º. Examinar
circumstanciadamente as contas do tesoureiro dos dous
procuradores.§ 2º. Lançar o seu parecer sobre as mesmas contas,
que será submetido á mesa administrativa para jugal-as prestadas
com as alterações que houver.§ 3º. Proceder a qualquer
apreciação sobre as questões que lhe foram submetidas pela
meza. (Compromisso da Irmandade – 1875)

No compromisso da Irmandade também se encontra estabelecido quais livros


deverão fazer parte do dia-a-dia da mesma, no que se refere a Irmandade em estudo,
haviam 9 livros sendo eles: livro das atas, do registro sobre questões do compromisso,
de despesa e receita, de certidões de missa e legados, das dividas, das eleições, e
posses, lista nominal dos irmãos, dois livros para o tesoureiro e mais dois para os
procuradores, e por fim o livro de tombo. Todos esses livros deveriam ser rubricados e
abertos pelo juiz, assim, consta no artigo 58 do mesmo compromisso.

A renda da Irmandade baseia-se nos donativos pagos pelos irmãos efetivos e


honorários, além das esmolas arrecadadas para as festas como os atos da Semana
Santa, também fazem parte do rendimento da irmandade às ofertas que os fiéis fazem
ao Santíssimo Sacramento.

São exigidas contribuições dos irmãos efetivos e honorários ao entrarem na


irmandade, existem distinções quanto ao valor a ser pago por cada irmão, no Capitulo
XIII se encontram tais obrigações.

Art. 60. Aos irmãos compete:§ 1.º Dar 10$ rs. de entrada e 5$ rs.
Anualmente § 2.º As irmãs pagarão 20$ rs. de entrada e 5$ rs. por
anno por estarem isentas doserviço administrativo.§ 3.º Os
honorarios darão sessenta mil réis de entrada e cinco mil réis
annualmente por estarem tambem livres do serviço da irmandade.
(Compromisso da Irmandade – 1875)

Ainda no Capitulo XIII, encontramos por meio do artigo 62 que: “Todos os irmãos
efecctivos são obrigados a dar a quantia de cinco mil réis para auxiliar o cofre da
irmandade na celebração dos actos da Semana Santa”.

Além de tais rendimentos a irmandade também colhia donativos das festividades,


do patrimônio da padroeira, enterros no cemitério de São João e da joia restante do
requerimento de ofícios divinos. Em resumo, a receita e as despesas da irmandade são
parte fundamental de seu compromisso, agindo como artifício controlador de posição
dentro do grupo cristão, assim também como forma de sobrevivência da mesma.

Nas disposições gerais encontramos a confirmação de alguns dos regulamentos


expressos pelos artigos do compromisso como a questão referente a festa de Corpus
Christi, onde mesmo que algum irmão deseje fazer a festa, não será dispensado o
recolhimento do dinheiro que lhe seria destinado, fazendo destes rendimentos bens da
irmandade para fins que lhes fossem convenientes. “A irmandade reconhecia por seu
imediato protetor o S.M. o Imperador e o excelentíssimo arcebispo da Bahia.”

No que consta ainda sobre o Compromisso da Irmandade do Santíssimo


Sacramento da Vila de Simão Dias, pertencente à paroquia de Senhora Sant’Ana, há
ainda outra Resolução Provincial, de nº 1.149, de 27 de abril de 1880, que revogou
alguns dispositivos da primeira Resolução que colocou em prática o referido compromisso
aqui estudado:

Art. 1.º Cumprir-se-ha o compromisso da irmandade do


Santissimo Sacramento creada na freguezia de Simão Dias,
observando-se fielmente as alterações feitas pelos poderes civil e
ecclesiastico, e ficando de nenhum effeito os additivos feitos pelo
poder civil na resolução provincial n. 1018 do 1º de Maio de 1875;
sendo eliminadas no § 7 do art. 25 da mesma resolução as
palavras – e as tribunas com os irmãos mezarios e algum devoto
que concorrer com sua esmola para esplendor do culto; e
igualmente eliminadas, no § 4 do art. 64, as palavras – inclusive
as alfaias existentes na matriz e mais objectos que á esta
pertecem. Art. 2.º O patrimonio do padroeiro será administrado
pelo irmão que for nomeadopelo juiz da provedoria de capellas.
Art. 3.º Todos os livros da irmandade serão abertos, numerados e
encerrados pelo juiz de capellas, ficando assim entendido o art. 58
do compromisso. Art. 4.º As missas de que trata o § 4 do art. 66
do compromisso serão ditas nas quintas-feiras, dia
commemorativo do Santissimo Sacramento, pelo parocho ou
sacerdote desua nomeação. Art. 5.º Só ficará fazendo parte da
irmandade a cêra das festividades em que houver Sacramento
exposto. Art. 6.º Revogam-se as disposições em contrario.
(Resolução N. 1149 de Abril de 1880)

No que se refere ao artigo 64 do paragrafo 4º do compromisso, Carvalho Déda


tece a ideia de que este mesmo foi retirado devido as condições de doação do terreno
onde então foi construída a capela e depois a matriz; “ Este dispositivo foi revogado pela
Resolução nº 1.149, talvez porque ferisse direitos criados pela escritura de dote e
doação do Patrimônio de Santana.” (Déda, Carvalho, p.58) No tocante a escritura de
dote e doação do terreno eis parte da especificação do mesmo documento que talvez
possa comprovar a tese de Carvalho Déda:

(...) Cuja terra e gados dão eles doadores a fazer dote para a
ereção de uma Capela de Santa Anna, que nas ditas terras querem
levantar, cuja doação fazem de hoje para todo o sempre, com
todas as suas matas, fontes, e rios, enseadas; cujas terras são
livres e desembaraçadas, digo: desembargadas; sem penhoras,
hipotecas, encapelados; (...) (DÉDA, 2008, p. 47)
De todo o modo, tal ideia serve para povoar o imaginário das pessoas que se
deparam com tais documentos referentes ao Compromisso da Irmandade e da doação
das terras para a construção da antiga capela que hoje é a atual matriz.

Conclusão

Compreender as disposições sociais vivas na Irmandade do Santíssimo


Sacramento da Vila de Simão Dias nos remete à análise dos pontos aqui já discutidos, as
práticas de interação social vinculadas ao contexto da fé cristã são de suma importância
para definir as abordagens expressas no Compromisso da Irmandade.

As condições existentes dentro do compromisso da Irmandade para que fossem


inseridos novos membros no corpo de irmãos enveredam pelo caminho das condições
sociais e caminham de encontro aos costumes justificados como sendo parte da elite
cristã.

As obrigações contidas no compromisso regulamentador da Irmandade indicam


uma forte preocupação da mesma em satisfazer a devoção de seus membros. De tal
forma existia uma hierarquia administrativa que seria responsável por possibilitar que o
compromisso fosse cumprido. A mesa administrativa funcionava como sendo um órgão
organizador das disposições de compromissos da Irmandade, bem dividida em seus
cargos a mesa era composta por membros que antemão já tinham suas funções
definidas.

Estava entre os deveres do Compromisso da Irmandade o pagamento de uma jóia


de valor devidamente expresso hierarquicamente ao tonar-se membro da mesma,
juntamente com uma taxa anual para o provimento dos atos cristãos que a irmandade
dedicava-se. Em contra partida a Confraria dava garantias de assistência monetária e
fúnebre a seus membros e suas famílias, que caíssem em miséria, assim como os atos
compromissais de devoção.

É dito, por conseguinte então que a referida Irmandade do Santíssimo


Sacramento da Vila de Simão Dias foi uma instituição cristã de devoção ao Santíssimo
Sacramento restrita implicitamente a uma classe de indivíduos mais elevados
socialmente. Entretanto não se pode ofuscar a devoção de seus membros, e a honra que
tal instituição representava nas festas da padroeira e de adoração ao Santíssimo
Sacramento.
Referências:

ANDRADE, Welber. As Elites do Santíssimo: o papel das festividades na ostentação de


poder – o caso da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Vila de Santo Antônio do
Recife no século XVIII. Revista de Humanidades da UFRN, v.9. n. 24. Set/ out, 2008.

BAHY, Cristiane Pinto. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do


Arraial de Viamão (1780-1820): fontes primárias e perspectivas de pesquisa. Artigo
apresentado ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do
SUL. Rio Grande do Sul, s/d.

BORGES, Célia A. R. Maia. Em honra ao Senhor: a devoção à hóstia consagrada pelos


irmãos do Santíssimo Sacramento em Minas Colonial. Artigo apresentado ao XXVI
Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho de 2011.

________. As Representações Religiosas, as Práticas Culturais e os Símbolos Sagrados:


os Irmãos do Santíssimo Sacramento na Colônia. In: OLIVEIRA, Camila Aparecida Braga;
MOLLO, Helena Miranda; BUARQUE, Virgínia Albuquerque de Castro (orgs). Caderno de
resumos e Anais do 5º Seminário Nacional de História da Historiografia: biografia
e história intelectual. Ouro Preto: Ed UFOP, 2011.

DÉDA, José de Carvalho. Simão Dias: fragmentos de sua história. 2. ed. Aracaju:
Gráfica Editora J. Andrade, 2008.
SANTOS, Dijalma Oliveira Trindade dos. Devoção e assistência: compromissos de
irmandades sergipanas no século XIX. Monografia apresentada ao Departamento de
História da Universidade Federal de Sergipe. São Cristovão, Agosto de 2008.
Permanência do objeto ex-votivo na Peregrinação da Cidade de
Monte
Santo - Bahia
Genivalda Cândido da Silva1
José Cláudio Alves de Oliveira2

Resumo
Este trabalho tem como interesse apresentar como a manifestação de
cultura popular, no caso estudado a Peregrinação de Monte Santo no interior
da Bahia, a permanência da cultura ex-votiva se faz presente, mantendo o
diálogo cultura popular-cultura de elite, podendo considerar que o ex-voto
objeto muito utilizando durante a romaria, também pode ser reconhecido como
um veículo de comunicação presente, mesmo passando por mudanças
temporais, evolutiva da forma de agradecimento. A singularidade comum a
tantas romarias faz despertar o olhar para o objeto que é tido como fonte de
renda local, desmistificando assim a perda do fazer, e que se coloca na
perspectiva de uma história de longa duração, registrando mudanças das
mentalidades coletivas e das criações do imaginário dentro da continuidade da
cultura local.

O Catolicismo no Brasil

O papel da igreja no Brasil é determinante na política. Pois tinha a sua


disposição a arma da excomunhão e as chaves do paraíso, e de outro lado era
o único poder colonial que, além do latim, conhecia também a diplomacia,
ciência, técnica, arte, letras e negócios. Durante o período colonial, o clero
secular estava disperso principalmente nas áreas rurais, sujeito mais a
denominação dos senhores de engenho e outros latifundiários, em cujas
propriedades eram capelães, do que à autoridade de seus bispos. Com seus
ensinamentos e pregações forneciam uma ideologia ancorada na teologia que
justificava e dava suporte aos padrões socioeconômicos existentes. Com
exceção dos jesuítas como escreve Freyre (1999, 196), numa visão
sociológica, Clérigos, e até mesmos frades, acomodaram-se, gordos e moles, às
funções de capelães, de padres-mestres, de tios-padres, de padrinhos de meninos: à
confortável situação de pessoa da família, de gente da casa, aliado e
aderente do sistema patriarcal.
O catolicismo no Brasil tem o seu inicio, não com a cruz fincada com a chegada
de Pedro Álvares Cabral, mas quando os artífices da Colônia atravessavam os
oceanos empenhados, na propagação da fé. Quando havia acompanhamento
dos capelães atrás da conquista estava vigilante a igreja católica, e com ela

1
1 Graduanda em Museologia pela Universidade Federal da Bahia, atualmente cursando o último
semestre. Bolsista
IC-PIBIC - UFBA. No Projeto Ex-votos das Américas: etapa Américas do Norte e Central.
v.bridacandido@gmail.com

2
2 Professor da Universidade Federal da Bahia. Pesquisador do CNPq. Doutor e Orientador no Grupo de
Pesquisa em
ex-votos – GRECNPE - claudius@pesquisador.cnpq.br
instruções educativas e difusão das artes, e apresentação assim de uma nova
manifestação.
A religião popular é uma manifestação coletiva, geradora de fortes sentimentos
de identidade entre seus membros. Não é apenas um meio de repassar sua fé,
mas, de criar e recriar meios de difundir e perpetuar seus valores, crenças,
memórias.

A Cidade de Monte Santo como local de Pesquisa

Monte Santo é uma cidade da região do Nordeste Baiano, microrregião


de Euclides da Cunha. Fundada em 31/10/1775, á 352 km distante de
Salvador, com uma população estimada em torno de 51.257 habitantes. A
cidade também é conhecida por ter o maior meteorito encontrado no Brasil, foi
achado em 1774 no distrito de Bendengó, que fica no município de Monte
Santo. Este meteorito encontra-se em exposição no Museu Nacional na Quinta
da Boa Vista, cidade do Rio de Janeiro. Porém, não é dele que se tratará este
apontamento, e sim do percurso realizado pelos romeiros e dos próprios
romeiros, claro dos ex-votos ofertados como agradecimento de graças
alcançadas e a permanência deste objeto que é tão presente, e forte na
Romaria da Cidade, inclusive, fonte de comércio e de renda do local. A historia
da romaria teve início em 1785, quando em Frei Apolônio de Toddi, ao apreciar
a serra ficou impressionado com a semelhança da mesma com o calvário de
Jerusalém e convidou os fiéis que o acompanhava para transformar o Monte
em um “Sacro-Monte” e rebatizá-lo com o nome de Monte Santo, marcando
seu dorso com os passos da Paixão. Logo em seguida, mandou tirar madeira e
iniciou a armar uma capela, também mandou cortar paus de aroeira e cedro
para por no Monte, cruzes a espaços regulares: a primeira dedicada às almas,
as sete seguintes representando as dores de Nossa Senhora e as quatorze
restantes lembrando o sofrimento de Jesus, na sua caminhada para o Monte
Calvário em Jerusalém. O Santuário de Monte Santo é o 2º Sacro Monte
reconhecido no Brasil. O 1º é o de Matosinhos em Congonhas - MG. Na
Semana Santa tudo começa as 4:00 da manhã ao som das tramelas, para que
toda população acorde e se junte a procissão,um misto de fé e garra. Após
percurso na cidade, sobe-se então o monte em cantoria e ladainhas. Faz-se o
agradecimento pelas graças alcançadas. De jovens a idosos, é uma multidão
venerando, agradecendo chorando caminhando em louvor ao santo. A Semana
Santa não é o ápice da romaria, essa é realizada de 31 de outubro a 2
novembro. Porém a presença de pagadores de promessas, fiéis que sobem ao
monte para lá deixar suas ofertas, agradecimentos com o próprio corpo, ou,
com objetos votivos, foi observado durante a manifestação cultural, pela
iniciante a pesquisa científica essa forma de agradecimento.

Manifestação Popular, Simbolismo e Capitalismo.

O termo Manifestação Popular tem como significado, o ato de manifestar


(-se), ou, manifestação do pensamento. Um movimento popular, também
designa um ajuntamento de pessoas destinado a exprimir publicamente um
sentimento, uma opinião política, uma homenagem coletiva a uma pessoa
eminente, ou também, à uma crença, manifestação que o povo produz e
participa de forma ativa. A cultura popular surge das tradições e costumes e é
transmitida de geração para geração, com mais ênfase, de forma oral.
As atividades e manifestações referentes à Peregrinação na Cidade de
Monte Santo,concentram-se no âmbito da cidade, entendida como espaço
urbano. Fragmentada, articulada como reflexo e condicionante social, a cidade
é também o lugar onde as diversas classes sociais na Semana Santa se
encontram, e dividem o mesmo. Isto envolve o quotidiano e o futuro próximo,
bem como as crenças, valores, criados na capacidade da sociedade de classes
e, em partes, projetadas nas formas edificadas como lugar sagrado, uma igreja,
uma capela, um santuário, etc. O espaço tratado assume assim uma dimensão
simbólica... (CORRÊA, 1995, p. 9). Diversificadas vertentes de análise, desde a
abordagem como forma espacial em suas conexões com estrutura, processos
e funções, perpassando o paradigma de consenso ou de conflito, e ainda o viés
cultural e da percepção dos seus habitantes. A procissão de Monte Santo se
constitui, desta forma, como elemento que compõe a dimensão simbólica
produzida e/ou reproduzida com base nas relações e materialidades daquela
cidade. Alguns teóricos interpretam as festas como uma ruptura do cotidiano, à
medida que, durante sua realização a transgressão é aceita e permitida. Para o
antropólogo Roberto Da Matta,
...“na festa (...) rimos e vivemos o mito ou utopia da
ausência da hierarquias, poder, dinheiro e esforço físico.
Aqui, todos se harmonizam por meio de conversas
amenas...” (DA MATTA, 2001, p. 69).

Contrapondo a concepção de festas enquanto rompimento momentâneo


entre as diferenças sociais, Canclini é enfático ao caracterizar as festas
populares como, extensão e reprodução das relações de mercadológicas
existente no seio da sociedade capitalista.

...”A festa continua a tal ponto, que a existência cotidiana


que reproduz no seu desenvolvimento as contradições da
sociedade”. Ela não pode ser o lugar da subversão e da
livre expressão igualitária, ou só consegue sê-lo de
maneira fragmentada, porque não é apenas um
movimento de unificação coletiva: as diferenças sociais e
econômicas nelas se repetem... (CANCLINI, 1983, p. 55).

As conceituações de festas apresentadas são extremamente


divergentes, tendo em vista, as diferenciadas abordagens adotadas pelos
teóricos. Porém, a definição sugerida por Nestor Canclini adequa-se com
propriedade a realidade percebida durante o período da Peregrinação em
Monte Santo, A complexidade das discussões relacionadas às festas populares
não se restringe apenas à definição conceitual e ideológica, sendo ampliada
quando se propõe estender as considerações para as dimensões do sagrado e
do profano, intrínsecas as festas de origem religiosa em homenagem ao santo
de devoção, como é o exemplo do objeto de estudo da presente pesquisa. Na
atualidade, mesmo em detrimento de muitos valores religiosos, o catolicismo
ainda permanece ativo em muitas camadas da população brasileira, que
continuam a realizar rezas e festejos em louvor aos santos, fazendo
penitencias e pagando promessas. O espaço sagrado é um campo de forças e
de valores que eleva o homem religioso acima de si mesmo, que o transporta
para um meio distinto daquele no qual, transcorre sua existência. É por meio
dos símbolos, dos mitos e dos ritos que o sagrado exerce sua função de
mediação entre o homem e a divindade (ROSENDAHL, 1996, p. 30).

Ex-Votos e sua Permanência na Peregrinação de Monte Santo

A palavra grega Physis pode ser traduzida por natureza, mas seu
significado tem uma conotação mais ampla. Refere-se também à realidade,
não aquela pronta e acabada, mas a que se encontra em movimento e
transformação, a que nasce e se desenvolve, o fundo eterno, perene, imortal e
imperecível de onde tudo brota e para onde tudo retorna. Nesse sentido, a
palavra significa Gênese, origem, manifestação. A necessidade que se
manifesta no Movimento, Spinelli cita que;

"tudo o que nasce está destinado a ser o que deve ser e


não outra coisa. Esse nascer destinado, pelo qual o que
nasce se submete a um processo de realização, é
aphýsis, e, como tal, a archê. (...) tanto a phýsis quanto a
archê não são expressões do anárquico (...), tampouco
do ocasional... O que esses termos conjuntamente
designam é o que ocorre sempre ou de ordinário (...),
mas com uma eficácia tal que "dispara" sempre (como se
fosse um gatilho biológico) o que é melhor dentre todo o
possível" (SPINELLI, 2006, p.36-37).

Então para maior esclarecimento, a partir da abordagem sobre o que


está correlacionado o objeto de estudo, faz-se também uma apresentação do
mesmo, para posteriores conclusões. A etimologia é originada do latin ex-voto,
cuja preposição ex representa a 'causa de, em virtude de' e voto advém de
votum,i 'voto', do rad. de votum, originado de vovère 'fazer voto, obrigar-se,
prometer em voto, oferecer, dedicar, consagrar'. (Id.).
Ex-Votos são “quadro, pintura ou objeto a que se conferiu uma intenção
votiva; quadro, placa com inscrições, figura esculpida em madeira ou cera
(representando partes do corpo) etc., que se colocam numa igreja ou capela,
para pagamento de promessa ou em agradecimento a uma graça alcançada”.
(DICIONÁRIO HOUAISS).
O objeto ex-votivo é integrado e correlacionado como advento de uma
manifestação popular no santuário, e, há um processo mercadológico que
segue desde a sua encomenda, criação, elaboração e comercialização. Sendo,
um dos pouquíssimos locais ainda, a existir a produção ex-votiva de madeira,
que gera renda movimentando toda uma rede mercadológico-capitalista, já
citado. Em que se conjuntura, prefeitura, associações, grupos, e autônomos.
Do objeto ex-votivo de madeira pode-se citar que, o mesmo é esculpido
em madeira, leva tempo, não sendo uma produção em escala, mas sim uma
peça artesanal, única. Daí o fato de permanência, e comunicação entre
comprador e criador.
Outro fator mercadológico analisado, foi a questão que não somente o
ex-voto é comercializado, mas a parte hospedaria, alimentar, lembranças e o
Sistur religioso (turismo religioso), e imbricado no período da Procissão.
Movimentando então, uma renda local, que não é tida durante mais da metade
do ano.
Não seria o caso de venda de fé somente, mas uma maneira a qual a cidade
encontrou de se adaptar, as necessidades modernas, suprir as faltas que a
população local tem. Então faz-se necessário destacar que a manifestações
culturais não são imutáveis, a partir da análise feita na cidade de Monte Santo.
Estando esta manifestação inserida, em contextos sócio-econômicos
historicamente determinados são passíveis a transformações e incorporação
de novos elementos e significados. “Cultura é um processo dinâmico,
transformações ocorrem, mesmo quando intencionalmente, se visa congelar o
tradicional para impedir a sua deterioração” (ARANTES, 2004, p. 21).
O preocupante é que tais modificações vêm ocorrendo de forma crescente, e
em função de interesses capitalista que aparentam visam tornar a festa de
Monte Santo como mais um Sistur religioso.

Referências
ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense,
2004, p. 21.
CANCLINI, Nestor Garcia. As culturas populares no capitalismo. São Paulo:
Brasiliense, 1983. p. 55.
Cidade de Monte Santo. Disponível em:
http://montesantonoticias.webnode.com.br/.
Acesso em 29 de março de 2013.
DA MATTA, Roberto. O que faz do brasil, Brasil. 12. Rio de Janeiro: Rocco,
2001.
Dicionário Houaiss: Disponível em
http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=exvoto&
stype=k&x=7&y=12 . Acesso em 20 de fevereiro de 2013
CORRÊA, Roberto Lobato. O espaço Urbano. São Paulo: Ática, 1995. p. 9.
Projeto Ex-Votos do Brasil: Disponíel em: http://ex-
votosdobrasil.blogspot.com.br/ .
Acesso em 29 de março de 2013.
ROSENDAHL, Zeny. Espaço e religião: uma abordagem geográfica. Rio de
Janeiro:
UERJ,
1996. p. 30.
SPINELLI, Miguel. Questões Fundamentais da Filosofia Grega. São Paulo:
Loyola,
2006, pp.36-37.
ANEXOS
Placa Informativa
Vista geral da subida e o Santuário no cume.
Placa informativa da Procissão
Placa colocada no interior do santuário para
informação sobre histórico do local.
Pagadores de Promessas.
Vista geral da Sala de Milagres
Altar com variedades ex-votivas
Ex-votos de madeiras.
Todas as imagens foram da bolsista,
Genivalda Cândido da Silva.
CANTAR, DANÇAR E REZAR: A HISTÓRIA RELIGIOSA DO GUERREIRO
ALAGOANO.

Juliana Gonçalves da Silva


Deângelles Kamila Sá Januário

Os folguedos natalinos são apresentações que possuem em seu contexto uma


diversidade de temas que são cantados e dançados. Entre os diversos assuntos
abordados, o religioso é temática sempre presente, independente da época, é posto
como um dos destaques. As festas natalinas, estão associadas às festas de coroação
de reis e congos. A primeira dança é um auto de origem negra, que foi influenciado
pelas danças portuguesas guerreiras e antigas lutas dos reinados africanos. Em
território brasileiro, essas manifestações ficaram mais conhecidas como festas de reis
e folias de reis.

Entre os folguedos que foram classificados como natalinos, temos o Guerreiro


alagoano. Este folguedo foi inicialmente pesquisado pelos folcloristas, cujo trabalho
dedicado ao registro foi essencial para as reflexões realizadas posteriormente por
estudiosos como, antropólogos e historiadores.

Os primeiros pesquisadores, que se tem conhecimento, que se detiveram


especificamente sobre o Guerreiro, foram Arthur Ramos e Théo Brandão.

Seus trabalhos em nenhum momento são divergentes, ao


contrário, complementam-se. Arthur Ramos, o primeiro a
estudá-lo e registrá-lo em O folclore Negro do Brasil (1935),
indica ser o Guerreiro uma mistura de festas de origem africana
com autos europeus peninsulares (Rocha, 2006, p. 13).

O trabalho e organização dos folcloristas foram de suma importância para a


coleta e registro de diferentes manifestações que ficaram conhecidas como folclóricas.
Apesar das enormes críticas e do distanciamento que passou a existir durante
algumas décadas entre estes e a academia, o fato é que eles deram o primeiro passo
para o conhecimento e valorização do que hoje é conhecido como cultura popular.

Na história dos estudos folclóricos no país, o Movimento Folclórico, como


mostra Luís Rodolfo Vilhena (Vilhena. 1997), teve um papel importante. Este tinha
como base central a Comissão Nacional do Folclore (CNFL), instituição para-estatal
criada em 1947 por Renato Almeida, que ocupava então um alto cargo no Ministério
das Relações Exteriores, como chefe do Serviço de Informações no Itamaraty. A
UNESCO, criada em 1946, no contexto do pós-guerra, definiu que seus países
membros deveriam constituir organizações nacionais de cooperação junto às
respectivas delegações. Uma de suas atribuições seria, precisamente, o impulso ao
movimento folclórico, visto como uma das formas de reconhecer e valorizar
positivamente as diferenças culturais entre os povos, e podendo assim atuar como um
instrumento importante para evitar que se repetissem os horrores da guerra, em
grande parte vistos como fruto da intolerância, do racismo e do etnocentrismo. Foi
atendendo a essa recomendação que o Brasil criou o Instituto Brasileiro de Educação,
Ciência e Cultura, o IBECC, ligado ao Ministério das Relações Exteriores e dirigido por
Renato Almeida.

Em 1958 foi criada a campanha de defesa do folclore brasileiro, que tinha como
objetivo a defesa, preservação e divulgação das manifestações folclóricas brasileiras,
diante do avanço da industrialização, que na concepção dos folcloristas era uma
provável ameaça a identidade cultural nacional. Dentro dessa linha de pensamento os
folguedos tiveram uma atenção especial a partir do ano de 1952, ano que aconteceu a
IV semana do Folclore em Maceió, capital do Estado de Alagoas, evento este
organizado por folcloristas engajados no movimento que acontecia nacionalmente. A
concepção de folguedo foi a partir daí definida como fato folclórico completo – canto,
danças, interpretações, sendo um dos principais interesses dos folcloristas. Em
Alagoas o folguedo visto como completo foi o Guerreiro, tão estudado e enaltecido por
diversos folcloristas, e aclamado como símbolo da identidade alagoana.

Guerreiro, cheguei agora Nossa Senhora é nossa defesa!!!

O Guerreiro surgiu em fins da década de vinte do século XX em Alagoas. É um


folguedo que foi caracterizado pelos pesquisadores do folclore, como genuinamente
alagoano, por ter sido identificado unicamente nesse Estado. Sobre essa questão
Maynard (2004) afirma: “os guerreiros parecem ser exclusivamente alagoanos”. Para
o folclorista alagoano Théo Brandão, este é uma ramificação dos Reisados – seria um
Reisado Moderno.

O Guerreiro é um auto sincrético, que tem na religiosidade um de seus pilares.


As lutas entre o bem e o mal, o sagrado e o profano, fazem parte de sua carga
dramática. Paes (2007) analisa sobre essa questão que:

Através da dança dramática, enfatiza e mostra a


aproximação entre o estado espiritual e o senso
comum dos indivíduos, caracterizando-se assim a
efervescência, o delírio, os excessos ou exageros
existentes na arte de dançar, determinando o
objetivo religioso no qual o ritual dramático com
seus figurantes está determinado a representar, o
sagrado e o profano (p.16).

O profano é identificado pelas danças e dramatizações não religiosas contidas


em seu desenvolvimento. A aproximação com o sagrado acontece pelas influências
dos pastoris e reisados que compõe sua estrutura. Apesar de sua presença ser mais
forte durante o período natalino (sagrado), percebemos ensaios/apresentações
durante o ano todo, inclusive em épocas carnavalescas. Os ensaios são constantes,
acontecem no mínimo uma vez por semana ou a cada quinze dias, nos bairros onde a
maioria dos brincantes moram.
O reisado, uma das danças que deram origem ao Guerreiro, também resultou
da fusão de autos diversos (DUARTE:2010). A influência negra é um dos principais
destaques. Duarte ressalta que as tradições africanas, trazidas ainda no período
colonial, foram essenciais para a criação dos folguedos populares. Observa, ainda,
que em Maceió havia muitos negros vindos do Congo e de Angola, e que estes
trouxeram várias festas.
Um personagem central do Reisado que está presente no Guerreiro, é o Mateus
(ou Mateu, como falam os brincantes), este foi definido pelo pesquisador Abelardo
Duarte, como tragicômico. A comicidade de Mateus é por conta de sua alegria e
brincadeiras, durante as apresentações seu papel é animar os outros brincantes e a
platéia. A parte trágica se da no episódio do Boi, em que este recebe uma pancada e
morre, posteriormente, como escreve Duarte (2010), o Boi se levanta, renascendo. O
que caracteriza seu figurino é o encarvoamento do rosto, mesmo as pessoas negras
pintam a face. Esse processo se dava com carvão e banha de porco. Para um dos
mestres de Guerreiro atuantes em Maceió, mestre Benon, o Mateus representa os
negros fugitivos.
Os participantes/brincantes do Guerreiro possuem em suas vestes muitas
cores, espelhos, fitas e mantos. Brandão (2003) salienta que muitos grupos,
“imitavam os trajes nobres da colônia, adaptados ao gosto e possibilidade econômica
do povo”. O detalhe dos figurinos, com base no que os folcloristas registraram, não
passou por grandes mudanças, apenas adaptações. Um exemplo é do grupo de
Guerreiro Vilelense Mimo do Céu, da cidade de Teotônio Vilela, zona da Mata de
Alagoas, que apesar de seus membros serem crianças e adolescentes, as suas vestes
continuam coloridas, cheias de espelhos e outros enfeites, sendo nesse caso
adaptadas para seus tamanhos.
O que caracteriza também o Guerreiro é o grande Chapéu em formato de
igreja, que fica sob a cabeça do mestre do grupo, sendo este um dos principais
símbolos desse auto, usado em diversos trabalhos de publicidade para divulgar
eventos que acontecem em Alagoas, “tornou-se marca de forte apelo turístico e
institucional” (Cavalcanti & Rocha). Para os brincantes do grupo o significado do
chapéu é a ligação do auto com a religiosidade cristã. O divino, juntamente com os
enormes chapéus usados pelo mestre e o contra mestre, em formato de catedrais
católicas, é a ligação mais direta entre o folguedo e o catolicismo (Rocha, 2006, p.
14).
Apesar da aproximação com o cristianismo, através dos chapéus dos mestres
em formato de igreja, Brandão (2003) observou que o tom xangô, dos terreiros foi
sendo absorvido pelos grupos não apenas no ritmo, através do ganzá e tambores, mas
também em suas letras.
Os temas criados, cantados e dançados durantes as apresentações são
diversos: política, brigas, agradecimento, esclarecimento sobre algum fato, amor,
ódio, amizade. Os personagens registrados pelos folcloristas e antropólogos são os
mesmos, sendo que cada grupo possui a liberdade de acrescentar ou diminuir
conforme suas necessidades e condições financeiras. Temos no Guerreiro: Rei, Rainha,
Lira, Índio Peri e seus vassalos, Mestre e contra mestre, General, Catirina, Estrela
Republicana, Estrela Brilhante, Estrela de Ouro, Sereia, Caboclinho, Palhaço, Mateus,
Borboleta, Banda da Lua, Boi e por fim as figuras, que “apenas” cantam e dançam
para dar beleza ao Guerreiro.

Cantando, dançando e rezando

O cantar e rezar do Guerreiro são evidentes nas cantigas cuja letra pede
proteção aos santos católicos. O sagrado, a todo o momento, se faz presente, desde a
entrada, momento em que os brincantes pedem permissão a Nossa Senhora, até a
saída, momento que além da despedida, a benção dos céus é mais uma vez aclamada.
Durante as apresentações do Guerreiro, o profano e o sagrado andam lado a lado e
muitas vezes se misturam. As letras profanas possuem em seu contexto assuntos
referentes às brigas, fofocas e piadas sobre alguém ou algum fato.
Duas temáticas principais compõem o Guerreiro: nascimento do menino Jesus
e a Guerra dos Reisados. A primeira é composta de louvações cantadas, com pedidos
de proteção aos participantes do auto.

São duas temáticas centrais do Guerreiro: a primeira refere-se


ao nascimento de Jesus, contado no início da apresentação,
juntamente com louvações ao menino Jesus, à Sagrada Família
e aos três Reis Magos. É a chamada parte do Divino, localizada
no início da apresentação expressando louvor e respeito a Jesus
e pedindo proteção aos Guerreiros.
(Rocha, 206, p.14)

Em relação ao contexto sagrado do Guerreiro, o folclorista Théo Brandão


registrou como se dava o que ele caracterizou como “Louvação ao Divino”. Este trecho
da apresentação era posterior aos pedidos de permissão da entrada, onde os grupos
se dirigiam a capela ou para as imagens de santos presentes, comumente colocadas
em cima de uma mesinha na sala das casas. Até hoje, em muitas cidades do interior
do Nordeste esse costume é conservado pelas pessoas mais velhas. Durante as peças
de louvação os maracás são agitados de forma não ritmada pelos brincantes, em
respeito às rezas realizadas.
Nos seguintes versos pode-se notar a efervescência religiosa que os brincantes
do Guerreiro possuem:
Mestre:
O homem que tanto adora
Com seu joelho no chão
A virgem Nossa Senhora
Mãe de Deus da Conceição
Levante este teu povo
Com prazer e alegria
Festejai o nascimento de Jesus
Filho da Virgem Maria
A Rainha de Guerreiro
Deus te salve casa santa
Morada do Bom Jesus
Salve torre de Viçosa
Onde está a Santa Cruz.

Brandão ainda observa como se deu o processo de conversão dos negros, que
foram obrigados a adotar a doutrina cristã, representados durante as apresentações.

Abre-se, então, de par em par, a porta e inicia-se a entrada.


Num reisado, porém, ouvido em 1945 e ainda agora num
“ensaio” que assitimos em Pnta Grossa, a faceia do mateu toma
tal extensão que se transforma quase num episódio ou farsa
com muito de irreverência religiosa mas também grandemente
interessante como criação popular e que, encenada pelo mateu,
que é o negro da “troupe”, deixe entrever como aos africanos
adoradores de Ogum e de Xangô se conseguiu converter e que
espécie de conversão foi esta, no mais das vezes (2007, p.37).

Sobre o cantar, Brandão, com base em suas pesquisas empíricas, observou que
existia um entrosamento entre os brincantes, enquanto o mestre fazia o solo de uma
estrofe, na estrofe seguinte os demais personagens/brincantes respondiam o que foi
cantado antes.
Na letra da estrofe acima podemos perceber o caráter religioso. Quando se
canta e se reza, a dança no Guerreiro é uma conseqüência. A principal característica
do dançar no Guerreiro tem sua influência nas danças realizadas nos centros afro-
religiosos. As batidas fortes no chão, as rodas organizadas dependendo da
coreografia, e os instrumentos usados (ganzá, tambores), mostram aquilo que Théo
Brandão chamou como o “Tom Xangô” no Guerreiro. Dentro do espaço do canto e da
dança o rezar esteve sempre presente.

Nas primeiras pesquisas realizadas em meados do século XX, as peças que


eram cantadas, eram acompanhadas de danças. Brandão observou que:

Alias, houve antigamente e ainda há hoje, com maior


freqüência até, números em que as danças são
desacompanhadas de canto, havendo apenas a música da
orquestra e dos instrumentos das figuras. (...) Tais danças são
numerosas e podem variar tan t ode acordo com a tradição,
quanto segundo as habilidades coreográficas dos mestres e
figurantes (2007, p.74).

Brandão (2007) apresenta e descreve o nome de diversas coreografias do


Guerreiro e do Reisado neste trabalho: dança do gingá, passo da muquila, costas com
costas, currupio, encruzado, troado ou perna trocada, tropéis, passo 40 e o Balancê.
Este último a dança mais comum, até hoje presente tanto nos Guerreiros como nos
Reisados:

Consiste em dois passos dirigidos para um lado e um tanto para


a frente, dois outros dirigidos para o lado contrário e um pouco
para trás, com requebro do coro para os lados para onde se
dirigem os passos. (...) E assim por diante: além dos passos
tradicionais e conhecidos, cada mestre improvisa, inventa, cria
os seus passos próprios (2007, p. 78).

O Guerreiro teve como cenário as fazendas e engenhos da zona da mata e


casas do interior. O período para essas visitas eram na época das janeiras, início do
ano. Para começar as apresentações, dois personagens iam à frente para pedir
permissão ao dono da casa. O Mateu e o Palhaço efetuavam as visitas em busca da
licença para as brincadeiras. Além do consentimento para a realização da dança os
brincantes procuravam acertar o preço da “função” ou das brincadeiras. Entre os anos
de 1910 e 1920 o valor pedido pelos participantes do Guerreiros e dos Reisados era de
50$000, como pesquisou Brandão. Na época em que ele fez a pesquisa os grupos que
eram seus contemporâneos pediam o valor de Cr$250,00. Atualmente os grupos
fazem as apresentações sem esperar receber alguma coisa em troca. A mestra de
Guerreiro da cidade de Teotônio Vilela, a mestra Cícera, observa que muitas vezes o
cachê pedido é para ajudar na manutenção do grupo, mas muitas vezes as pessoas se
recusam a pagar por achar muito caro, oferecendo apenas o lanche para os
participantes.
Na história do Guerreiro podemos perceber que o apego religioso esteve
sempre presente. Muitas mudanças aconteceram desde suas primeiras aparições em
meados do século XX, mas o respeito ao universo religioso está presente, desde o
chapéu em formato de cátedra que é um dos acessórios indispensáveis da dança, e
uma de suas principais características, até as letras das músicas. Cada grupo tem a
liberdade para criar e reinventar as letras das peças, a variedade de assunto é
marcante nas suas músicas. E o tema da fé, ontem e hoje se faz presente nos ensaios
e apresentações. Em pesquisa que realizei em campo no interior de Alagoas, com o
grupo de Guerreiro Vilelense Mimo do Céu, mostro como a dinâmica deste auto não
dispensou a produção de letras de fundo religioso em seu cotidiano.
Começou Nosso Guerreiro
Com Deus e a Virgem Maria
Nossa Senhora que Guia
É quem vai nos ajudar
Oh! Virgem da Guadalupe
Venha nos abençoar
E só Jesus pode acabar
Boa noite a todos
Que eu cheguei agora
Comecei meu Guerreiro
Com Deus e Nossa Senhora
Boa Noite a todos
Com muita alegria
Jesus Cristo é filho de
Deus e da Virgem Maria.
Mestra Cícera de Teotônio Vilela – Alagoas
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Cátedra, 1978.
FESTAS E TRADIÇÕES SANJOANESCAS: UM ESTUDO SOBRE AS
MUDANÇAS NA FORMA DE CELEBRAR O SÃO JOÃO NO RECIFE
(1900-1930)
Mário Ribeiro dos Santos1

Resumo:
As três primeiras décadas do século XX foram marcadas por mudanças significativas na
forma de celebrar o São João no Recife. As elites atuaram como o principal fomentador
de tal prática e por isso como coautora de um processo que resultou num novo modelo
de festa junina na cidade, incentivando diferentes padrões de consumo. Uma relação
ambígua, que envolveu, em princípio, duas situações distintas, mas dialéticas: a política
de modernização das práticas culturais e sociais vivenciadas na cidade nas primeiras
décadas do século passado e o fomento de organizações festivas com caráter rural, que
valorizavam sotaques, danças e outras formas de expressão historicamente relacionadas
ao campo, mesmo aquelas caricaturadas criadas pelo olhar estereotipado do intelectual
urbano. As comemorações ultrapassaram as fronteiras dos largos e lares e alcançaram
outros espaços de sociabilidade, a exemplo dos clubes sociais. De casa para a rua, as
festas sanjoanescas passaram a fazer parte do cotidiano das atividades das comissões
dos moradores espalhadas pelas comunidades, que organizavam à sua maneira,
celebrações para os santos da época. Diferentes modos de fazer e formas de expressão
atribuíram novos sentidos à celebração, conquistando novos públicos e espaços. Nas
primeiras décadas do século XX, ocorreu a descentralização dos festejos, que
acompanhou o processo de mudanças na geografia da cidade, isto é, a expansão do
espaço urbano para os subúrbios, antes concentrado nos quatro bairros centrais. Atento a
esse contexto no qual, a festa surgiu como o instrumento de mediação entre a cidade, a
política e a tradição, recorremos aos principais periódicos que circulavam na cidade
(Revista da Cidade, Folha da Manhã, Jornal Pequeno, Jornal do Recife e Diario de
Pernambuco), com a garantia de que constituem indícios históricos favoráveis ao
processo de construção desse estudo.

Palavras-chave: festas sanjoanescas / festas de largo / festas nos clubes.

Múltiplas são as possibilidades de iniciar um texto histórico sobre as festas


sanjoanescas no Recife nas primeiras décadas do século XX. 2 No entanto, optamos por
trilhar o caminho que nos aproximava cada vez mais dos indícios pesquisados nos
periódicos encontrados na Fundação Joaquim Nabuco e no Arquivo Público Estadual
Jordão Emerenciano.
Nas páginas que seguem, observamos que as cerimônias sagradas não
constituem a totalidade da festa. Ela inclui a realização de outros acontecimentos

1
Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Bolsista da Fundação de
Amparo à Ciência e Tecnologia (FACEPE). E-mail:mariorisan@yahoo.com.br.
2
A expressão “sanjoanesca” aparece com frequência nos periódicos da época para designar os
acontecimentos festivos do mês de junho. No texto, é utilizada com o mesmo sentido de festas juninas,
festa de São João.
(práticas), que se estendem nas proximidades no entorno do templo e que aos poucos
tornar-se-ão o principal atrativo. Nesse sentido, buscaremos compreender por meio dos
indícios, a variedade dos significados, que os diferentes grupos sociais emitiam nas
noites de junho do Recife, nos diferentes espaços de sociabilidade.
A intenção é apresentar ao leitor a movimentação na forma de celebrar a festa
nesses quarenta anos. Aonde se reuniam nas noites festivas de junho? Como se
divertiam? O que comiam e bebiam? São questões, cujas tentativas de respostas nos
levará a entender por dentro os múltiplos significados das festas, distanciando-se da
ideia possuidora de sentido único.
Para melhor organizar a análise, dividimos o conteúdo em dois momentos: o
primeiro diz respeito às festas de largo em homenagem a Santo Antônio e São Pedro,
que aconteciam no centro da cidade. No segundo momento,direcionamos nossos olhares
para as festas nos clubes, como principal espaço de sociabilidade das elites nessa época
do ano.
Essas práticas nos chamaram atenção, pelo fato de aparecer constantemente nos
periódicos do mês de junho, durante as décadas de 1910 e 1920, e no período que segue
(anos 1930 e 1940), surgem praticamente isoladas, em meio à programação profana dos
clubes e associações, que ocupava cada vez mais o espaço da imprensa, quase
diariamente. Entretanto, isso não significa que não houvesse mais solenidades nas
igrejas para os santos no mês de junho. Havia sim, mas os ares cosmopolitas da cidade e
os desejos de consumo das elites direcionavam seus interesses para outros espaços de
sociabilidade, bem mais animados do que as sagradas salas dos templos com cheiro de
velas, incensos, angélica, cravo e outras flores vindo dos andores dos santos.
Em geral, a programação dessas festas contava com missas solenes, ladainhas,
novenas, te-déuns, sermões, além das esperadas ornamentações pomposas preparadas
pelos irmãos da ordem, a iluminação a gás, os fogos de artifício e as apresentações
musicais das orquestras ou bandas militares no coreto armado no largo da igreja. O
horário para iniciar as solenidades não se tinha ao certo. Alguns templos iniciavam suas
atividades nas primeiras horas da manhã; em outros, reservava-se o final da tarde,
estendia-se pela noite, encerrando aproximadamente 21 horas.
Um dos locais mais frequentados nessa época do ano era o Arco da Ponte 07 de
setembro ou o Arco de Santo Antônio como também era conhecido. O Arco ficava na
cabeceira dessa ponte (atual Maurício de Nassau), voltado para a rua 1º de março, no
bairro de Santo Antônio. Na outra extremidade, ficava o Arco da Conceição, dedicado a
Nossa Senhora e voltado para o bairro do Recife (atual Av. Marquês de Olinda).3 A
partir do dia 1 de junho, quando se iniciava a trezena para o santo, até o dia 13 as
expectativas da população eram intensas nesse local.
A Festa do Arco ou a Festa de Santo Antônio do Arco da Ponte do Recife, como
também era chamada, tinha uma pompa tradicionalmente conhecida pela população. O
nicho era artisticamente decorado, o trecho da rua compreendido entre a subida da ponte
e a praça da Independência era “galhardamente empavesado de folhagens e bandeirolas”
e uma iluminação de gás, cuidadosamente preparada pelos comerciantes da rua 1º de
março era distribuída pelo entorno.4 Essa festa alterava a rotina do centro da cidade,
principalmente nas proximidades da ponte. O comércio fechava as portas mais cedo, o
bonde tinha o seu caminho desviado e o trafego pela ponte 7 de Setembro era
interrompido a partir das cinco e meia, por determinação da Companhia de Ferro Carril.
Num intervalo de nove anos (1901 a 1910), a festa da capela do Arco teve
praticamente o mesmo formato: iniciava-se entre quatro e cinco horas da tarde. Os
devotos que chegavam, integravam-se com outros que largavam do trabalho e todos se
aglomeravam para assistir as apresentações que se realizariam no coreto armado na
cabeceira da ponte. Em geral, as bandas de música da Polícia Militar e do 4º Batalhão
da Infantaria do Exército apareciam com frequência na programação. Por volta das 7
horas da noite, havia uma parada nas músicas para o momento das ladainhas, voltando
em seguida até às 9 horas. O encerramento das solenidades era marcado por variados
fogos de artifício.5
A documentação não revela explicitamente, mas os indícios nos leva a inferir
que a ocasião, certamente, reunia pessoas de diferentes estratificações sociais,
considerando ser um evento público, num dos bairros mais populosos do centro e

3
Os arcos ou portais, como também são chamados, marcaram o cenário do Recife nos tempos de Colônia
e Império. Eles tinham a função de proteger a cidade dos invasores, uma espécie de defesa. A expressão
“fora de portas” designava a região para além das entradas do espaço fortificado. Os arcos desaparecem
desse cenário em meados da década de 1910, fruto do processo devastador de modernização que se
estendeu pelas principais capitais nacionais nesse período. Ver: REZENDE, Antônio Paulo. O Recife:
histórias de uma cidade. 2 ed. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2005. p 152.
4
Cf. JORNAL PEQUENO. Recife, 14 de junho de 1902 e 12 de junho de 1905.
5
Sobre a programação da festa do Arco consultar as edições do Jornal PEQUENO e Jornal do RECIFE
(1901-1910). Sobre o repertório dessas bandas, os indícios não nos possibilita conhecer, porém, os
estudiosos da área, registram que nessas ocasiões era comum executar marchas, criadas especialmente
para as procissões, diferentes da marcha militar e do dobrado. Eram marcadas pelas pancadas cadenciadas
do surdo e o retinir dos pratos. Algumas Bandas utilizavam flautas, fagote, clarinetes, bombos e trompas,
num total de aproximadamente 12 integrantes, num formato acompanhado desde o século XIX. Cf.
BINDER, Fernando Pereira. Bandas Militares no Brasil: difusão e organização entre 1808-1889.
Programa de Pós-Graduação em Música. (Dissertação de Mestrado). São Paulo:Universidade Estadual
Paulista (UNESP), 2006.vol 1. BRUSCKY, Paulo. Marchas de Procissão. Recife: Sette, 1998.
acontecer no principal caminho por onde passavam os trabalhadores do porto após um
dia exaustivo de trabalho. Será que todos que estavam ali eram devotos do santo? Será
que o principal atrativo para a parada do público, a desaceleração dos pedestres, era o
som das bandas militares e das orquestras convidadas para o evento? Ao término das
solenidades proferidas pelos sacerdotes, será que todos os fieis ficavam para a festa ou
iam embora?
A presença das bandas de música na programação das festas dos santos traduz
outro sentido para as solenidades católicas de junho. Elas ultrapassam o significado de
ser simplesmente o “exercício público de piedade”, mas, sim, transforma-se “numa
ocasião propícia aos divertimentos e à interligação entre o sagrado e o profano”
(COUTO, 2010:71).6 A banda permite ampliar o tempo de duração da festa e dos fieis
no largo. Ela transfigura, temporariamente, em profano, o que antes era sagrado. Ao
fazer a leitura interpretativa dos signos, o devoto “toma conhecimento do sagrado
porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano
(ELIADE, 2008: 17).” Para Mircea Eliade, o espaço sagrado é “por consequência forte e
significativo, e há outros espaços não-sagrados, e por consequência sem estrutura nem
consistência, em suma, amorfos (ELIADE, 2008: 25)”.7 Essa ideia de ordem diferente,
de integrar outra realidade distinta do cotidiano, no culto a Santo Antônio pode ser
identificada, entre outras ocasiões, nas novenas, nas missas e nas procissões.
As homenagens aos santos de junho na cidade não se resumiam à festa do Arco.
Elas se estendiam ao interior dos templos católicos, onde as irmandades dedicavam-se
para celebrar, cada uma a seu estilo, os santos da época. No convento de São Francisco,
por exemplo, na Rua do Imperador, a solenidade tinha início às 9 horas da manhã e se
estendia até às cinco horas da tarde. Os mais nobres nomes do clero se faziam presente
no evento, que sempre terminava com a parte musical realizada pela orquestra do
Círculo Católico.8 Na Igreja do Divino Espírito Santo, também no bairro de Santo
Antônio, missas solenes eram presididas por padres carmelitas, diáconos e sub-
diáconos; girândolas em profusão iluminavam os ares; no interior do templo,
ornamentação caprichosa iluminada com eletricidade, totalizando 30 mil velas; no pátio
e adjacências, bandeiras e festões patrocinados pela loja “Gallo Preto”, marcavam a

6
COUTO, Edilece Souza. Tempo de festas: homenagens a Santa Bárbara, Nossa Senhora da Conceição
e Sant’Ana em Salvador (1860-1940). Salvador: EDUFBA, 2010.p 71
7
Idem. p 25. Sobre essa relação do sagrado e do profano nas festas de largo, ver SERRA, Ordep.
Rumores de Festa: o sagrado e o profano a Bahia.2.ed. Salvador: EDUFBA, 2009.
8
JORNAL do Recife. Recife, 14 de junho de 1913.
noite de festa e ficava nas lembranças dos que ali se encontravam. Mantedo a tradição,
os organizadores do evento armaram um coreto na praça, onde o som da banda militar
do 2º Corpo da Polícia se fazia ouvir nas principais ruas do centro. Os comerciantes do
bairro deveriam estar satisfeitos com o brilhantismo da festa que organizaram para o
santo, cujo bairro tem especial devoção.
No bairro vizinho a Santo Antônio, em São José, 16 dias depois das celebrações
para o santo que inicia os festejos de junho, os devotos organizavam a festa de São de
São Pedro. No Pátio da igreja do apóstolo, as solenidades que aconteciam no dia 29 de
junho, alterava a rotina do centro da cidade e provocava mudança de comportamento.
Nos Pátios de São Pedro e do Livramento, na Praça da Independência, Rua Nova,
Concórdia, Carmo e das Hortas (itinerário da procissão), as pessoas se arrumavam e as
ruas recebiam atenção especial das autoridades e dos comerciantes locais. Nas calçadas
e esquinas, os devotos se espremiam para ver o santo no andor conduzido nos ombros
dos homens da Igreja. Braços erguidos pedindo bênçãos, momento de preces e
adoração, mas também propícios para aumentar os boatos, para namorar, paquerar,
mostrar as roupas, sapatos, bolsas, entre outras novidades que vinham da capital - Rio
de Janeiro.
As solenidades para São Pedro, como de costume, tinham início às 5 horas da
manhã, com missas celebradas a cada hora e contava com a presença de nomes
importantes do clero secular e regular, a exemplo do Monsenhor Dr. Fernando Rangel
de Melo, vindo do Rio de Janeiro, e religiosos do Seminário de Olinda, das Ordens
Terceiras, confrarias e irmandades do Recife. O ponto alto da celebração, com exceção
da “vistosa ornamentação a estilo romano, iluminada a eletricidade”, acontecia à tarde,
por volta das 16 horas, quando se tinha a saída da procissão do Pátio de São Pedro,
seguindo pelas ruas estreitas dos bairros irmãos São José e Santo Antônio.9
As ruas por onde passava a procissão se localizavam na área central do Recife -
lugares que constitíam o foco das festividades públicas no período estudado. As
solenidades do mês de junho, que aconteciam nesses espaços apareciam na imprensa
com mais frequência. Isso não significa dizer, que nos bairros afastados do centro não
existissem celebrações saojoanescas com caráter religioso. Pensar dessa forma seria
reduzir a complexidade dessa festa. No entanto, as artérias centrais da cidade
constituíam os espaços mais procurados para a realização dos acontecimentos, em

9
DIARIO de Pernambuco. Recife, 29 de junho de 1929. p 3
virtude de concentrar a movimentação da vida social do Recife, os principais templos
católicos, o comércio elegante, os bancos, as casas de negócios, a Faculdade de Direito,
a Escola de Engenharia, as redações dos jornais, os teatros, os cinemas, entre outros
espaços de sociabilidade.
Nesse trânsito da década de 1920, as celebrações religiosas organizadas pelos
templos do centro da cidade não constituíam a totalidade da festa. Ela incluía a
realização de outros acontecimentos (práticas), que se estendiam pelas proximidades do
entorno da igreja e que aos poucos, tornar-se-ia, o principal atrativo. Esses
acontecimentos eram as festas realizadas pelos devotos no interior de suas residências,
cada um a seu modo. Reuniam vizinhos, familiares, padres amigos, todos convidados
com antecedência para o grande evento da rua.
Os preparativos para a noite do dia 12 de junho de 1923, no trecho da residência
de Dona Laurentina Silva, começaram cedo na Rua Padre Floriano, número 11, bairro
de São José. Às 18 horas teria que estar tudo pronto, com “uma vistosa ornamentação”,
para o hasteamento da bandeira de Santo Antônio.10 A promotora dos festejos havia
preparado tudo com antecedência: convites às senhoritas do bairro para cantar as
ladainhas, uma banda de música para animar a noite, e como não há festa sem comida,
preparou um farto banquete para a ocasião.11
Provavelmente, a iniciativa de Dona Laurentina em organizar a festa para Santo
Antônio tenha nascido de alguma promessa alcançada sob a intercessão do santo, por
sinal, um dos mais populares da Igreja Católica e homenageado do ciclo junino. Essa
expressão de devoção é fruto de uma relação contratual entre o santo e o devoto, na qual
se localiza a maioria das festividades religiosas católicas. Novenas, procissões,
foguetório, banquetes e até mesmo bailes populares são exemplos concretos desse

10
As irmandades religiosas têm seus estandartes assim como os santos padroeiros. O levantamento da
bandeira, cerimônia realizada no início de certas festas votivas, consiste em içar o estandarte da
irmandade religiosa ou do santo padroeiro até a extremidade de um mastro enfeitado, entre música e salva
de foguetes. O arreamento da bandeira ocorre com solenidade idêntica, assinalando o fim da festividade
religiosa. Cf. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. p.45. Dessas festividades
religiosas com seus desdobramentos profanos, foram célebres, no Recife, as bandeiras do Poço da Panela,
de Santo Amaro, do Carmo (Olinda) e outros arrabaldes. As bandeiras saíam das residências das juízas e
eram conduzidas processionalmente até a frente do templo, levadas por moças entre cânticos. Houve no
Recife do século passado bandeiras carregadas por via fluvial: lindos cortejos noturnos pelo Capibaribe
afora, entre balõezinhos, fogos de bengala, foguetes e música. Cf. MORAIS FILHO, Melo. Festas e
Tradições Populares do Brasil. Op. Cit. p 164.
11
DIARIO de Pernambuco. Recife, 13 de junho de 1923. p 2
“acordo”, como “se ambos conseguissem cumprir suas obrigações a contento”, e a
devota comemorou o fim do acordo com exuberante festa. (COUTO, 2010: 71)12
A popularidade dos santos celebrados nesse período aumentava a cada ano
devido a grande quantidade de milagres que seus devotos lhes atribuíam: o fim do
caritó para as moças com idades avançadas ou as jovens temendo a solidão da velhice
era o motivo mais comum para homenagear Santo Antônio, que durante os treze
primeiros dias de junho, recebia das moças orações para “arranjar um marido”. Segundo
Gilberto Freyre, Santo Antônio é mais indicado para “as afeições perdidas, ou seja, os
noivos, maridos ou amantes desaparecidos. Os amores frios ou mortos” (FREYRE,
2006: 326). O sociólogo chega a classificar as “funções” de São João como
“afrodisíacas”, sendo o seu “culto ligado a práticas e cantigas sensuais”. Para o autor, é
o santo casamenteiro por excelência. “Dai-me noivo, São João, dai-me noivo, dai-me
noivo, que me quero casar” (FREYRE, 2006: 326). Até mesmo São Pedro, tem suas
orações relacionadas aos assuntos do coração. A ele, cabe à especialidade de “arrumar
marido ou amante para as velhas e de casar as viúvas” (FREYRE, 2006: 326).
Nesse sentido, pensamos que o episódio do hasteamento da bandeira de Santo
Antônio, da casa de Dona Laurentina e as simpatias praticadas nas noites de junho
surgem como um bom pretexto para reforçar a ideia do significado diverso e
multifacetado das solenidades nas noites de junho. Reproduzíamos as tradições
religiosas herdadas do tempo de Colônia. Uma espécie de teatralização do sagrado, com
a participação dos diferentes atores, das diversas classes sociais, incluindo traços e
signos festivos próprios de cada grupo, impregnando a celebração de múltiplos sentidos.
Essas múltiplas apropriações que constituem as celebrações em homenagem aos
santos juninos, aproximam-se da concepção de festa defendida por Guy Debord em A
Sociedade do Espetáculo. Para o autor, “a festa não é um conjunto ordenado de
imagens, mas uma relação social entre participantes mediada por imagens” (DEBORD,
1997: 14). Essa mediação formadora de metáforas que produzem efeitos de sentidos
variados entre os devotos, subvertem as regras de existência de uma única maneira de
interpretar e vivenciar a festa.
Partindo desse pressuposto, chamamos atenção do leitor para o modo de como as
elites celebravam essas datas nas décadas de 1920 e 1930. Os espaços de diversão nesse
período festivo se ampliaram e os clubes sociais se popularizaram entre as elites,

12
COUTO, Edilece Souza. Tempo de festas: homenagens a Santa Bárbara, Nossa Senhora da Conceição
e Sant’Ana em Salvador (1860-1940). Salvador: EDUFBA, 2010.p 71
passando a constituir um dos principais espaços de vivência das festas. No Bairro do
Recife, na Av. Rio Branco, por exemplo, um dos lugares mais frequentados era o
Britshi Club; na Rua do Imperador, bairro de Santo Antônio, o Club Brasil e o
Cavalheiros da Época dividiam a preferência da clientela. Nas áreas afastadas do centro
da cidade, merecia destaque o Country Club e o Club Alemão, ambos na Av. Rui
Barbosa, que disputavam entre si, as mais pomposas decorações nas noites de festa. O
Jockey Club, o Internacional e o Português eram os clubes mais evidenciados pela
imprensa da época, atraindo políticos, jornalistas, filhos da “açucarocracia”, entre outros
representantes da alta sociedade pernambucana, que ali se encontravam para conversar,
ouvir música, dançar, tratar de negócios, falar e fazer política e até mesmo namorar e
ensaiar (concretizar) traições conjugais. Esses novos espaços de divertimento, em geral
noturnos e aos finais de semana, contrastava com os formatos primeiros de festas de
largo (pátio), organizadas pelas igrejas e fieis para celebrar os santos do ciclo junino.13
Esse tipo de festa em ambientes fechados, organizados para as elites, que ganhou
mais espaço no Recife na segunda metade dos anos 1920, trouxe uma maneira de
celebrar o nascimento do Batista inovadora e atraente para uma parcela da sociedade
antenada com as novidades da Capital Nacional. Um dos propósitos era combater
“velhos hábitos” considerados desviantes diante do novo parâmetro de diversão
moderna, interferindo, assim, na dinâmica e na forma de celebrar o São João.
No entanto, é importante frisar, que o aparecimento de novos espaços de
sociabilidade não anula as outras práticas festivas já existentes. Uma coisa não encerra a
outra. As mudanças aconteciam em paralelo com as permanências. Não há uma
hierarquização temporal nos modos de celebrar o São João, o formato religioso da festa
não é um capítulo introdutório que desapareceu com as festas nos clubes.
De acordo com as fontes pesquisadas, no decorrer de uma década, o formato de
celebrar o São João nos clubes passou por mudanças significativas, desde a
programação ao tipo de traje dos associados e a organização do espaço. A fotografia
publicada na Revista da Cidade, em 1929, de “um grupo que tomou parte nas festas de
São João do Club Alemão”14, possibilita-nos identificar, que os participantes do baile

13
Sobre a funcionalidade dos clubes sociais e a sua localização geográfica na cidade, ver
CAVALCANTI, Carlos Bezerra. O Recife e seus bairros. Recife: Câmara Municipal do Recife, 1998.
1414
REVISTA da Cidade. Edição 162. Recife, 1929. Ver também a edição 110 da mesma revista, ano
1928. Acervo Fundação Joaquim Nabuco. Este periódico, como o próprio subtítulo anuncia, é o
semanário da vida mundana do Recife. Circula em todo o norte do país e se dedica a registrar fatos sociais
da semana, a exemplo de festas em ambientes fechados, novidades da moda, aniversários, casamentos,
espetáculos teatrais, o “footing”, entre outras formas de entretenimento das elites recifenses. A oficina do
estão todos trajados a rigor – importante marcador de distinção social. Os homens,
aproximando-se do modo de vestir dos ingleses e norte-americanos, usavam paletó (a
maioria na cor branca com gravata borboleta preta) e sapatos fechados pretos e
envernizados. As mulheres, elegantemente trajadas com vestidos em tons claros (das 29,
apenas 4 com tons escuros), cabelos cortados à lá garçon e joias. A única criança que
aparece na imagem também veste traje a rigor apropriado para a idade.

Grupo que tomou parte das festas de SãoJoão no Club Alemão.


Fonte: Revita da Cidade.n 162. Ano IV. 29/06/1929

Observamos que os tipos rurais não eram associados, ainda nesse momento, ao
tipo de traje das festas juninas (pelo menos os registros imagéticos não nos possibilita
identificar). Fato que difere, entretanto, com a realidade da década seguinte, quando a
festa revestiu-se, completamente, de um caráter caipira. A ruralização traduziu-se,
principalmente, na ambientação efêmera criada para a ocasião, o tipo de traje dos
participantes e as atrações artísticas. Os fogos de artifício, a fogueira, o balão e as
comidas à base do milho são elementos comuns a essa celebração desde as primeiras
referências no século XIX.
A programação dançante também atendia aos padrões de modenridade da época.
As orquestras que ficavam responsáveis pelas danças, que em geral, começavam entre

magazine, onde se realizava a redação e os serviços de arte gráfica, ficava localizada na rua Imperador
Pedro II, 207.
21h e 22 horas. A Jazz do Grande Hotel, a Amadores do Recife, a Barreto Andrade, o
Bando Acadêmico, a Huracab, entre outras orquestras Jazz que se apresentavam nos
clubes, constituíam o surto jazzístico que se espalhou pelo país, principalmente entre os
integrantes da classe média, em geral estudantes de cursos universitários antenados com
as novidades culturais do eixo sul do país e as notícias norte-americanas. 15 Esses grupos
eram formados com o intuito de negar todo e qualquer elemento que pudesse macular a
imagem civilizada da sociedade dominante.
Na mentalidade das elites, saber dançar e cantar músicas no estilo norte-
americano era sentir-se e perceber-se como pessoas modernas, as quais condenavam
hábitos e costumes ligados pela memória às sociedades colonial e imperial. Nesse
sentido, parece contraditório que os organizadores dos bailes de São João dos clubes
contratassem para a mesma festa, grupos de violeiros e Jazz Band. Será mesmo uma
única festa ou eram duas festas em uma? É importante destacar, que o fato dessas
atrações dividirem a programação da festa, o mesmo não acontecia com os espaços de
apresentação. As Bandas realizavam seus shows nos salões oficiais pomposamente
decorados para a ocasião, enquanto os violeiros e repentistas ocupavam os arraiais
armados na área externa (terreiro) do clube, conforme registra a Folha da Manhã de
1939. Na programação do Clube Internacional, por exemplo, três atraçõesmeros de
sucesso foram pensados para a noite de festa, entre eles a presença de violeiros
interpretando músicas “tipicamente” nordestinas: “o Bando Acadêmico, o Grupo
Pernambucano e os violeiros, representados pelos repentistas sertanejos contratados
para apresentar cantigas e desafios à viola.”16
Essa relação da festa com o universo do campo, pensada pelos diretores dos
clubes para atrair públicos cada vez maiores, vai além da escolha das atrações artísticas.
Uma arquitetura efêmera era projetada por artistas reconhecidos no estado e até mesmo
no país, de modo que despertasse na sociedade a curiosidade e atraísse um número

15
É importante frisar que a cultura do jazz nos Estados Unidos está relacionada às práticas de lazer e
entretenimento das crescentes massas urbanas das classes média e baixa, desde o final do século XIX. A
difusão da música negra norte-americana está relacionada à tecnologia do rádio, que em poucos anos
espalhou grupos em turnês pela Europa, América do Sul e outras localidades do globo, sobretudo, nas
áreas urbanas da sociedade industrial do ocidente. Não demorou, e rapidamente foi absorvido pelos
intelectuais, aristocratas e artistas letrados não apenas como música exótica e não-burguesa, mas
principalmente como símbolo da modernidade. Sobre o assunto ver: HOBSBAWM, Eric. Pessoas
Extraordinárias: resistência, rebelião e jazz. São Paulo: Paz e Terra, 1998. Sobre este processo de
mudança da mentalidade da sociedade brasileira com a chegada dos tempos modernos, conferir o trabalho
de SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, entre outros.
16
FOLHA da Manhã. Recife, 20 de junho de 1939.
significativo de associados. A decoração reunia aspectos típicos da cultura caipira com
o que havia de mais moderno na época. A fachada, o dancing e o jardim apresentavam
vistosa iluminação com luzes distribuídas por todo o espaço.17
O Clube Internacional, por exemplo, preparou uma programação que reunia
desde elementos da nossa “broadcasting” até “autênticos cantadores sertanejos”,
apresentando “interessantes números regionais com desafios e emboladas.”18 Na área
externa, uma reconstituição dos “terreiros matutos” fora projetado para reunir outros
símbolos regionais e algumas performances, a exemplo das “três fogueiras
monumentais que seriam tomadas de assalto por um grupo armado de bacamartes”.
Balões, fogos, uma fonte para adivinhações e a montagem de três cabanas: uma para Pai
Joaquim, outra para Mãe Preta e outra para o Rancho Fundo também contribuíram para
a ambientação regional. Dos atrativos da noite, ganhou destaque na imprensa, a
performance do casal de negros velhos: Pai Joaquim e Mãe Preta. Os personagens,
sedimentados no imaginário do Nordeste colonial, despertaram a curiosidade dos
convidados, que estendiam as mãos para serem lidas e escutarem prognósticos
relacionados à vida amorosa, trabalho, dinheiro, felicidades, saúde.
Essas festas eram esperadas com ansiedade pelas elites. Os ingressos eram
vendidos e as mesas reservadas cerca de um mês antes do evento. A imprensa contribuía
com a divulgação semanal, chegando a publicar diariamente a programação, quando da
proximidade do São João. A ideia era que os associados se organizassem para reservar
os melhores lugares e providenciar o traje mais original. Essas reuniões festivas
reafirmavam a condição socioeconômica dos seus associados e referendava para toda a
sociedade recifense que o seu espaço dos clubes era um “ambiente de ordem”. Fazer
exigências quanto ao traje, típico ou passeio também impedia que pessoas de outros
grupos sociais não desejadas pelos organizadores, entrassem, participassem e se
ficassem à vontade no evento, até porque o preço do ingresso era proibitivo para boa
parcela da população que não tinha como pagar pelo ingresso.
A análise das fontes nos possibilita identificar, cada vez mais, o distanciamento
de uma possível interação social. No ambiente festivo dos clubes, mesmo representando
elementos das expressões populares, as diferenças sociais e econômicas se repetiam,
tendo em vista que o evento não era um movimento de unificação coletiva. O pobre, o
negro, o trabalhador, enquadrava-se no mesmo patamar de caricatura do matuto, do

17
Idem. Recife, 15 de junho de 1939.
18
Idem. Recife, 18 de junho de 1939.
brejeiro, do supersticioso. O período de comemoração do São João não anulava a rígida
estratificação que vigora no convívio social no resto do ano.
Diante dessas circunstâncias, que nos levaram por diferentes caminhos a analisar
momentos específicos nos contextos da festa, as reflexões tecidas sinalizaram para as
diferentes formas de abordagem do tema, afastando-nos da possibilidade da existência
de uma única versão para a história do São João no Brasil. Por intermédio de diferentes
indicadores, as mudanças na forma de celebração e vivência da festa foram
evidenciadas, possibilitando-nos distanciar da ideia de um único pensamento norteador
da sua escrita. Outros discursos existem e são possíveis de proporcionar outros
contornos, revelar novos sujeitos, novas falas e experiências possíveis de desenhar uma
nova trama sobre o acontecimento em foco. Nesse sentido, é importante sairmos do
nível de generalidade do tratamento dado ao tema e ir mais fundo nestes deslocamentos
de sentidos dados à festa nas abordagens e pesquisas históricas.

Fontes:

Jornais
DIARIO DE PERNAMBUCO: jun. 1923; jun.1929.

FOLHA DA MANHÃ: jun.1939.


JORNAL PEQUENO: jun. 1901/1910
JORNAL DO RECIFE: jun. 1901/1913

Periódicos:

REVISTA da Cidade. Edição 110. Recife, 1928.


REVISTA da Cidade. Edição 162. Recife, 1929.

Referências

BINDER, Fernando Pereira. Bandas Militares no Brasil: difusão e organização entre


1808-1889. Programa de Pós-Graduação em Música. (Dissertação de Mestrado). São
Paulo:Universidade Estadual Paulista (UNESP), 2006.vol 1.
BRUSCKY, Paulo. Marchas de Procissão. Recife: Sette, 1998.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10 ed. São Paulo:
Global, 2001.
CAVALCANTI, Carlos Bezerra. O Recife e seus bairros. Recife: Câmara Municipal
do Recife, 1998.
COUTO, Edilece Souza. Tempo de festas: homenagens a Santa Bárbara, Nossa
Senhora da Conceição e Sant’Ana em Salvador (1860-1940). Salvador: EDUFBA,
2010.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Comentários sobre a sociedade do
espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 2 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2008.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o
regime da economia patriarcal. 51 ed. São Paulo: Global, 2006.
HOBSBAWM, Eric. Pessoas Extraordinárias: resistência, rebelião e jazz. São Paulo:
Paz e Terra, 1998.

MORAIS FILHO, Melo. Festas e Tradições Populares do Brasil. 3ª Ed. Rio de


Janeiro: F. Briguiet & Cia, 1946.

REZENDE, Antônio Paulo. O Recife: histórias de uma cidade. 2 ed. Recife: Fundação
de Cultura Cidade do Recife, 2005.

SERRA, Ordep. Rumores de Festa: o sagrado e o profano a Bahia.2.ed. Salvador:


EDUFBA, 2009.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na


Primeira República. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003
SOFRER OU BRINCAR?: A PENITÊNCIA INFANTIL NO MORRO
DA CONCEIÇÃO
Paula Neves Cisneiros1

RESUMO
A Festa do Morro da Conceição em Recife – PE é uma das maiores manifestações do
catolicismo popular brasileiro. O ápice da festa, que acontece há 108 anos, são as
promessas. A penitência é uma das mais tradicionais e legítimas formas de expressão das
emoções, culturalmente aceita e legitimada pelas práticas religiosas cristãs, especialmente
as católicas. Entre os pagadores de promessas estão as crianças. Demonstrando seriedade
ao performar a atividade, suscitam questionamentos a respeito do seu grau de autonomia na
decisão e pagamento da promessa. Este trabalho traz uma interface entre antropologias da
religião, criança e emoções para compreender a penitência infantil na Festa do Morro. Em
fase inicial de realização, a investigação busca nesse momento trazer uma discussão teórica
acerca dos resultados encontrados numa primeira incursão no campo proposto de estudo,
através da observação participante e realização de entrevistas.

Palavras-chave: Antropologia, Criança, Emoções, Catolicismo, Penitência

INTRODUÇÃO
A partir de 1904, o dia 8 de dezembro passou a ter um novo significado para a
cidade do Recife. Seu então bispo, Dom Luiz Raimundo da Silva Brito, trouxe uma
imagem de Nossa Senhora da Conceição em comemoração ao cinquentenário do dogma da
Imaculada Conceição no Brasil e deste momento em diante, o antigo Outeiro da Bela Vista
se transformou em Morro da Conceição e, assim, passou a moldar a identidade cultural de
uma cidade. Nossa Senhora da Conceição tornou-se padroeira do local. Oito de dezembro,
feriado no município. Azul e branco se estenderam para além do manto Mariano, tingindo
vestimentas de fieis, fitas de promessas, terços de oração.
Caminhando para sua 108ª edição, a “Festa do Morro”, como é popularmente
conhecido o evento anual que se realiza no local em homenagem à Santa, é uma das
grandes celebrações atuais do Catolicismo Popular, diversamente abordada como
manifestação religiosa e cultural recifense. Em todas as festas, desde os primórdios, é
possível observar uma grande quantidade de fieis em peregrinação à imagem da santa, no
ponto mais alto do morro. Desde o uso de roupas específicas às mais variadas formas de
subir o morro, o pagamento das promessas é uma demonstração de fé e/ou agradecimento
por pedidos (futuramente) alcançados.

1
Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia da mesma instituição.
É comum ver famílias com crianças entre os penitentes, fato que seria curioso se
não fosse tão comum. Crianças com cabelos enormes, vestindo azul e branco, fantasiadas
de anjo, segurando algum ex-voto para deixar aos pés da santa... A pergunta que fica no ar
é: O que sentem essas crianças? O que estão pensando?
Tais questionamentos levam o pesquisador a um caminho recentemente
pavimentado pela antropologia, onde Cohn, Toren, Pires e Campos são algumas das
pesquisadoras que trabalharam na legitimação de uma Antropologia da Criança. Fazer uma
antropologia com crianças significa tomá-las como sujeitos capazes de produzir falas com
sentido, de serem agentes dentro de seus grupos sociais e, por que não, de comunicarem
suas emoções de forma clara e sensível.
Este artigo é parte de uma investigação ainda em curso e visa propor a compreensão
do ponto de vista da criança através de uma interligação entre antropologia da religião, da
criança e das emoções, a fim de entender como estes sujeitos representam e vivenciam os
processos emocionais e religiosos ligados à condição de pequeno penitente.

COMPREENDENDO O PROBLEMA
Até o século dezenove, o catolicismo era a religião oficial brasileira, o que torna a
experiência da multiplicidade religiosa algo relativamente recente. A herança do
colonizador português ultrapassou o momento de conquista de um novo território
chegando até os dias atuais2, onde mais da metade da população ainda se declara católica
(63,3%). No entanto, a identidade religiosa brasileira está cada vez mais diversificada, em
plena mutação (SANCHIS, 2003), entendendo-se por isso não só a modificação do mapa
das religiões, mas a própria transformação de seus sentidos e funções (HERVIEU-LÉGER,
1993). Atualmente, o grupo das religiões evangélicas é o que mais cresce no território
nacional, despontando em números e ameaçando a hegemonia católica. Para Menezes
(2012), não é mais possível falar no catolicismo como a religião do Brasil, e sim como a
religião da maioria dos brasileiros.
Na contramão do declínio que atinge o país como um todo, o Nordeste ainda se
enquadra como a região mais católica, apesar de acompanhá-lo em números durante os
últimos dez anos (de 79,9% em 2000 para 72,4% em 2010). Se (ainda) faz sentido para o
Brasil falar de uma cultura católica, no Nordeste esta é uma realidade viva do que Sanchis
(2001) chama de matriz cultural católica expressa em formas de feriados santos, dias
santos e elementos desta religião. Uma das maiores celebrações da fé católica no Brasil é a
Festa do Morro, em homenagem a Nossa Senhora da Conceição, no Morro da Conceição,
em Recife - Pernambuco.
O símbolo-mor da festa é a procissão que ocorre no fim da tarde do dia 8 de dezembro,
encerrando um ciclo de novenas, missas e procissões menores nos arredores do bairro.
Uma réplica da imagem de Nossa Senhora da Conceição que fica no topo do morro e tem
5,5m, é carregada desde o ponto mais baixo e seguida por fieis, geralmente pagando
promessas feitas anteriormente ou no momento da festa, constituindo uma espécie de
tradição que ocorre durante todo o dia. As promessas também são cumpridas em forma de
orações ou de formas distintas de subir o morro ou qualquer outra ação que o fiel atribua
um significado específico de devoção e compromisso.
“A penitência é uma prática religiosa muito antiga e foi uma maneira bem comum de
atividade milenarista entre os séculos XIII e XIV. Nesses tempos medievais, a penitência
era um ritual tradicional performado em procissões promovidas e organizadas pela Igreja
Católica, que o prescrevia como uma forma de indulgência” (CAMPOS, 2008:8). Elas são
realizadas de forma voluntária e não há restrições por parte da igreja para a realização de
algum tipo específico de penitência no Morro da Conceição, o que gera uma situação de
liberdade de escolha por parte do fiel e de sua fé.
É comum ver crianças de várias idades seguindo a procissão acompanhadas de seus
responsáveis, muitas vestindo as cores da santa, rezando junto com os demais fieis, enfim,
participando ativamente da penitência na Festa do Morro.

Fotos: Rafael Acioly©, 2010/2011.


2
De acordo com dados do censo 2010, IBGE.
Fotos: Rafael Acioly©, 2010/2011.
Investigar esta prática no Morro da Conceição é por si só um fato inédito, e a proposta
é ir além de compreender as dinâmicas dessas ações, é buscar o ponto de vista da criança
penitente a respeito da posição exercida por elas, seus sentimentos, expectativas e qual o
lugar de suas promessas na sua rotina. O sofrimento, geralmente associado à condição de
penitente, é o ponto de partida para os questionamentos deste artigo, que toma a emoção
como diretamente ligada à penitência e ao pagamento de promessas.

CRIANÇA X EMOÇÕES
Pesquisar crianças é um campo em recente exploração. Este sujeito gerou certa
resistência por parte dos acadêmicos, existindo assim poucos trabalhos que incluíssem os
pequenos. Houve algumas tentativas na Antropologia clássica de trabalhar esta temática
(com Margaret Mead, George Bateson, Ruth Benedict, Malinowski, etc.), mas apenas
recentemente, em meados dos anos sessenta, quando a Antropologia contemporânea se
dedicou a questões de estrutura/agência, práticas sociais/culturais, a infância passou a ser
uma fase da vida, enfim, ouvida. Apenas a partir deste momento, o fazer antropológico se
abriu à criança como agente cultural (CAMPOS, 2011).
Parece existir, segundo alguns autores, uma resistência ao testemunho
infantil como fonte de pesquisa confiável e respeitável. Mesmo a
abordagem etnográfica e a história oral tendo certa aceitação
metodológica no estudo das crianças, a entrevista possui ainda uma
condição menor nas pesquisas com os pequenos. Por parte dos
pesquisadores parece haver uma certa resistência ou dificuldade para
ouvir e dar o tratamento adequado às vozes desse novo e pequeno sujeito
empírico” (CAMPOS, 2011:3)

No tocante à religião, as crianças sempre estiveram em posição de mudez diante das


pesquisas do tema, porque o foco residia no adulto detentor do conhecimento prévio e de
uma posição privilegiada dentro da instituição. Desta forma, a criança permaneceu durante
muito tempo numa espécie de buraco negro das pesquisas antropológicas, considerada
incapaz de exercer qualquer tipo de agência em espaços religiosos.
Campos e Falcão (2011) nos lembram que a presença das crianças nas religiões pode
ser observada em manifestações de credos diversos, tais como as aparições da Virgem
Maria na Igreja Católica, onde três crianças avistaram a Virgem de Medugorje pela
primeira vez em 1981 na Bósnia (STEIL & SANCHIS, 2001 in CAMPOS & FALCÃO,
2011) e os ogãs no contexto afro-brasileiro. Sobre estes últimos, pode-se destacar o
trabalho de Falcão (2010), que em sua dissertação abordou a autoridade de crianças no
candomblé a partir de um estudo num terreiro em Sergipe. A autora inicia o trabalho a
partir da observação de uma situação incomum, uma senhora de meia-idade pedindo a
bênção a uma criança de onze anos3, que com um semblante concentrado e sereno
desempenha com maestria o papel que lhe foi designado (FALCÃO, 2010). Ela observa
que neste terreiro a posição das crianças era de autoridade e saber: “O lugar delas [as
crianças] no candomblé é em vantagem em relação a alguns filhos de santo, estes já velhos
no santo4. O lugar delas é um lugar que as considera detentoras de um saber e esse saber
estrutura uma forma de hierarquia entre aqueles que sabem mais e aqueles que sabem
menos” (FALCÃO, 2011, p.10).
Nesta lógica, elas são consideradas autoridades e suas vozes, ouvidas. Entretanto, ainda
há grande carência de estudos tendo por foco as crianças em contextos religiosos, em

3
Esta criança era um ogã (masculino)/ekedi (feminino), e abiaxé. Explico: O ogã tem múltiplas funções no
terreiro: é responsável pela recepção de convidados em festas, realiza o sacrifício dos animais e toca os
atabaques para o santo. Abiaxé é aquele que recebeu ainda na barriga da mãe os fundamentos de iniciação e
obrigação, por isso, não precisa passar pelos rituais de iniciação, “já nasce feito” (FALCÃO, 2011, p.3).
Importa aqui perceber que ambas as posições podem e são ocupadas por crianças, conferindo-as alto grau de
autonomia, prestígio e posição privilegiada na hierarquia do candomblé.
4
A autora faz uma distinção da idade biológica com a idade do santo, que é o tempo em que se tem de
iniciado no terreiro e nas obrigações do candomblé.
especial o católico. Pires (2011), em seu livro “Quem tem medo de mal-assombro?
Infância e Religião no Semi-árido Nordestino” aborda crianças e a construção da ideia de
mal-assombro entre elas na cidade de Catingueira. O componente do catolicismo aparece
como fator de destaque devido ao alto número de fieis católicos na cidade, no entanto, as
crianças não estão em posição de destaque na religião dentro da pesquisa da antropóloga, e
sim, suas perspectivas acerca de ideias de mal-assombro que remetiam a elementos
religiosos.
Nas pesquisas atuais, muito se discute a respeito da autonomia infantil e, embora as
crianças caracterizem um grupo particular, estão longe de possuírem uma liberdade que
lhes garanta autonomia (CAMPOS, 2011). No entanto, este grupo possui um diálogo com
diversas esferas do mundo em que vivem, com as pessoas e as coisas, e “negociam suas
possibilidades de ação de acordo com o que lhes é dado pelas interações e contextos
sociais dos quais estão inseridas” (CAMPOS, 2011:6). Clarice Cohn (2010) destaca o
papel de agência infantil em relação a suas rotinas. Para a autora, a ideia presente no senso
comum de que este sujeito possui uma postura passiva diante das relações sociais e a
sociedade é errada. Cohn enfatiza o fato de que as crianças são decisivas no processo de
estabelecimento e manutenção de algumas relações sociais que são apresentadas a eles
(p.28). A criança tem sua forma própria de ver o mundo, atribuindo-lhe significado
diferentemente da forma que o adulto o faz. Desta forma, é possível trazer o argumento de
Cohn que crianças são, de fato, produtoras de cultura. Tal afirmação é reveladora, mas
possui limites, como a autora mesmo aponta (p.35) – é necessário relativizar esta
compreensão de autonomia porque crianças adquirem significados quando postas em
contraste com o sistema simbólico adulto.
Marchi (2011) trata desta posição de invisibilidade do objeto infantil dentro da
epistemologia das ciências sociais, não existindo assim uma Sociologia da Infância5 que
estudasse as crianças como um objeto de estudo autônomo, já que ela era sempre estudada
“a partir das instituições que a acolhem” (p.396), e teve seu status de ator social geralmente
negado nas investigações. A autora faz um paralelo com a exclusão que o objeto infantil
passou e o processo dos estudos de gênero no caminho de legitimação dos mesmos. Ortner
(1979) comparou a disputa entre mulher e cultura à disputa clássica do paradigma
antropológico de natureza e cultura, aproximando o feminino à natureza, ao ‘indomado’, a
algo inferior. Tal analogia pode ser estendida ao local da infância, comumente associada ao
paradigma da natureza, que termos douglasianos, seria um “perigo” à organização social.
Marchi (2011) aponta o local das crianças como o “reino da natureza” (p.400), o que as
coloca numa posição culturalmente inferior e socialmente inacabada e apenas com os
processos de socialização e educação, desempenhados pela família e a escola, é que podem
ser introduzidas à sociedade e à cultura. Para a autora, o argumento de Prout (2005) de que
as crianças são um objeto híbrido, entre a natureza e a cultura, é que as coloca na posição
de subordinação e invisibilidade. A socialização, então, seria o caminho para inserção da
criança na sociedade, o que não significa que é um processo passivo – elas também têm
consciência de seus desejos, sentimentos, ideias e expectativas, e são perfeitamente
capazes de expressá-los (MARCHI, 2005).
No entanto, a questão dos sentimentos e emoções nas ciências sociais é também um
campo que ganhou força na Antropologia a partir dos estudos americanos da década de
19706 e apenas em 1980 uma abordagem relativista dos sentimentos surgiu, tratando-os
como conceitos culturais que produzem a experiência afetiva. Uma das grandes teóricas
deste campo, Catherine Lutz (1988), propôs a noção de que emoção implica negociar com
uma gama de aspectos da vida social, tornando-se “um idioma que define e negocia as
relações sociais entre uma pessoa e outras” (LUTZ e WHITE, 1986 in REZENDE e
COELHO, 2010). O caminho epistemológico da antropologia das emoções foi em direção
a uma abordagem mais contextualista, onde em meados de 1990 passou-se a compreender
também a dimensão das emoções em relações de poder, as consequências dos sentimentos
nas relações sociais, o que Rezende e Coelho (2010) chamam de micropolítica das
emoções.
Dentre as várias abordagens, destaca-se o que Lutz (1988) chamou de etnopsicologia,
um conceito que se refere ao sistema de conhecimentos que define e explica a pessoa,
permitindo que ela monitore a si mesma e aos outros, possibilitando uma antecipação aos
comportamentos e adequando-os às mais variadas situações sociais. Seu pressuposto inicial
é a dualidade corpo e mente e pode ser estendida para razão e emoção, num caminho quase
evolucionista e hierárquico de organização destas categorias; onde corpo/razão seriam mais
regrados e seguros e mente/emoção, o extremo oposto. Essas dualidades não excluem o
papel da biologia na demonstração das emoções, como por exemplo, as cargas hormonais

5
E aqui eu estendo à Antropologia da Criança.
6
Refiro-me a quando o tópico passou a ser mais explorado, e não quando a temática surgiu nas ciências
sociais. Sobre isto, há referências na década de 1930 em Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, por
exemplo.
que alteram os comportamentos, mas, compreende-se inclusive a grande participação do
fator cultural no produto das ações emotivas, que seria o conceito de “embodiement” 7 de
Michelle Rosaldo (1984), onde as emoções seriam “embodied thoughts”, que engloba a
ideia de emoção muito mais como prática do que uma essência pessoal. Ela é treinada
através dos agentes sociais e culturais que legitimam as práticas comuns da sociedade,
quando e como expressar os sentimentos. Mauss (1979), num ensaio sobre os ritos
funerários australianos, demonstra esta sobreposição do social sob o individual. Em suas
palavras, “não só o choro, mas toda uma série de expressões orais de sentimentos não são
fenômenos exclusivamente psicológicos ou fisiológicos, mas sim fenômenos sociais,
marcados por manifestações não espontâneas e da mais perfeita obrigação” (MAUSS,
1979:147), e Lutz reitera dizendo que: “A emoção pode ser vista como um processo
cultural e interpessoal de nomeação, justificativa e persuasão de pessoas em relação com
outras. O significado emocional é assim, uma realização muito mais social que individual,
um produto emergente da vida social” (LUTZ, 1988:5, tradução livre).
A penitência, então, é uma das mais tradicionais e legítimas formas de expressão de
emoções, culturalmente aceita e legitimada pelas práticas religiosas cristãs, e
especificamente para este caso, católicas. Campos (2001) tem sua tese de doutorado sobre
os Ave de Jesus, grupo de penitentes que atua em Juazeiro do Norte – CE. Em linhas
gerais, a autora explora a relação dos sentimentos de misericórdia e sofrimento com a
identidade dos penitentes e da formação da identidade do Juazeiro como um todo. Essa
relação ‘penitência x localidade x grupo’ interessa a esta pesquisa por se adequar ao caso
proposto na forma de ‘pagamento de promessas x Morro da Conceição x crianças’. A
penitência em forma de pagamento de promessas acontece num local legitimador dessa
prática, o Morro da Conceição, que assim como Campos (2002) coloca, “a emoção tem um
importante destaque em um cenário em que o sofrimento físico é a forma mais comum de
expressão da religiosidade local. Juazeiro recebe todos aqueles que vem para chorar, se
consolar, se compadecer e serem misericordiosos” (p.117). No Morro da Conceição o
sofrimento nem sempre se configura como uma penitência de dor física, mas físico por ser
demonstrado de forma corporificada, além do discurso e palavras, mas também por

7
Numa tradução livre, corporação das emoções, no sentido de dar-lhes forma e corpo.
atitudes. Dessa forma, o sofrimento8 é concreto, visto e aprovado socialmente dentro do
contexto da Festa do Morro, mesmo que por uma criança.
Campos (2002) traz o trabalho de Kleinman & Lock (1997) para tratar do sofrimento
como uma experiência social: “Uma vez que o sofrimento ganha significado através de
representações culturais, ele é ao mesmo tempo performance e representação da realidade.
Portanto, o modo como o sofrimento é descrito nos leva a uma forma particular de como
ele é vivenciado” (p. 118). R.Campos nos lembra que a forma de expressão varia de acordo
com o grupo, pois as formas de apropriação cultural variam, sendo as crianças um grupo
específico que pode desenvolver sua forma específica de expressão e representação do
sofrimento e, por que não, da penitência.

A ETNOGRAFIA9
A metodologia de pesquisa consiste em realização de etnografia da Festa do Morro,
realizada em oito de dezembro de 2012, a fim de observar a dinâmica da festa e as crianças
que dela participam dentro do ambiente em foco. A partir dessa observação, entrei em
contato com doze crianças que estavam pagando promessas e seus pais, onde realizei
rápidas entrevistas semiestruturadas e peguei seus contatos para posterior entrevista e
observação mais aprofundadas, estágio este que se encontra em curso no momento da
escrita deste artigo. Busquei crianças com idade aparente10 acima dos sete anos, não
importando sexo ou classe social, pois a partir desta fase da vida, de acordo com as teorias
em psicologia de Vygostky e Piaget, é a fase da infância onde as outras esferas da vida,
além da família, passam a ter importância para a criança de forma essencial.
Para este artigo, escolhi focar num caso específico que instigou os questionamentos da
pesquisa como um todo; o de Alexandre e sua avó. Iniciei a incursão em campo já antes da
subida ao Morro, quando procurei me aproximar de uma avó que caminhava com seu neto
de 7 anos, em direção à parada do ônibus para ir à Festa do Morro. Foi fácil identificar que
estávamos indo para o mesmo lugar pois ambos vestiam branco e levavam fitas de Nossa

8
No momento de elaboração de projeto, traz-se apenas o sofrimento por falta de dados etnográficos,
buscados na realização da pesquisa em si, mas, admitem-se outros sentimentos que com a pesquisa de campo
aparecerão como emoções sentidas descritas pelas crianças.
9
Nesta seção será explorada de forma inicial, a primeira fase da etnografia da pesquisa, que está em curso,
que foi a incursão em campo no dia da festa. Pretendo expor minhas impressões advindas da confecção do
diário de campo e dos contatos primários com as crianças (que estão sendo estudadas mais a fundo) durante a
realização da festa.
Senhora da Conceição, que seriam amarradas aos braços quando chegassem perto da Santa,
no alto do Morro. Senti-me profundamente encantada por aquela criança que, caminhava
de braços dados com sua avó e possuía uma expressão séria. A avó estava de pés descalços
e dividia o calor nos pés com o pequeno penitente. Desde que ele completou dois anos que
ambos vão juntos para a festa e à medida que o tempo foi passando, parece que passaram a
dividir o peso da promessa que caleja. Os motivos da promessa de Alexandre11 foram
relatados pela avó, que disse que ele pedia para “passar de ano e ser um bom menino
durante o ano todo, não dar trabalho aos pais”. Alexandre confirmava as falas da avó e
falou pouco durante o trajeto do ônibus até o local de pagamento da promessa, que
consistia em percorrer o caminho descalço juntamente com sua avó e rezar aos pés da
santa.
Fingi não saber o caminho até a santa para que fosse guiada por eles e assim, ouvisse
Alexandre relatar um pouco mais de sua experiência como penitente. Sem reclamar
nenhuma vez dos pés no chão, ora de terra, ora de asfalto, o calor castigou cada um dos
fieis que foi honrar sua promessa no alto do Morro da Conceição. Alexandre suava, e só
soltava a mão de sua avó para enxugar as gotas de suor que molhavam as vestes brancas.
Ao passar por um pedinte, ele olhou para a avó com um olhar que só entendi quando ela
depositou em suas mãos alguns centavos, que ele repassou para o pedinte. “Caridade é
importante”, disse ela, explicando a Alexandre que este era um ato cristão e justificando
para mim o porquê de ter dado dinheiro. Notei que a comunicação do neto era basicamente
através de olhares e sorrisos tímidos. Perguntei-lhe se gostava de ir à festa e ele disse que
sim.
Pouco mais de dez minutos que estávamos juntos subindo o morro, Alexandre puxa a
blusa da avó, olha para ela e pergunta: “Quando é que eu vou ganhar a minha bola?”. A
avó responde: “Quando a gente acabar aqui”. Neste momento, perguntei por que ele queria
ganhar uma bola e ele respondeu “Sempre que eu venho, eu ganho uma bola”. Tal relato
foi um tanto revelador para a pesquisa como um todo, pois, a criança que a princípio se
portava, através de suas ações, como sendo levado pela avó/ sem voz, por não responder
diretamente às minhas perguntas, mostrou-se um menino autônomo, que negociou suas
possibilidades de ação com a avó. “Sempre que eu venho, eu ganho uma bola” – Se não

10
Aparente porque não tinha como, à primeira vista, saber a idade certa da criança. Após a abordagem, uma
vez que a idade era confirmada, a criança passava a fazer parte da pesquisa com o seu consentimento e de
seus pais.
11
Todos os nomes utilizados neste artigo são fictícios.
houvesse a bola ao final do ciclo da promessa, Alexandre não iria querer ir à Festa pagar a
promessa que sua avó disse ter sido prometida por ele mesmo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste momento, pude compreender que o pagamento de promessas, para Alexandre12,
tinha a dimensão lúdica da brincadeira, de assumir um papel de agradar a avó para depois
ganhar o seu agrado. Foi a partir deste dado etnográfico que a penitência infantil se
desenhou para mim de uma forma além do sofrimento, onde a criança re-significa o ato de
sofrer para sua realidade de brincadeira, mas ainda assim respeitando a expressão correta
da penitência, numa confluência do que Mauss (1979), no seu “Expressão Obrigatória dos
Sentimentos” descreve como a forma de expressar o luto através do choro e aqui eu
descrevo uma situação análoga da forma de expressar o sofrimento através da seriedade e
da mensagem que o corpo emite ao vestir-se de branco e se autoflagelar com os pés
descalços. Mas tudo isso, para Alexandre, possuía um significado diferente do imaginado
pelo adulto que observa. Entra em cena a autonomia infantil, discutida por Cohn (2010) e
demonstrada através da negociação do menino – Alexandre ganhou a bola13.

12
E outras crianças observadas/entrevistadas, mas que escolhi não trazer para esta discussão devido ao
caráter inicial da investigação e do recorte dado a este artigo.
13
Ciente de que há muito a ser explorado no caso de Alexandre e dos outros pequenos penitentes, este artigo
se encerra com a intenção de provocar reflexões sobre este fenômeno novo para a academia.
1

RELIGIÃO E GÊNERO:
A ELEIÇÃO EPISCOPAL NA DIOCESE MERIDIONAL DA IEAB.

Lilian Conceição da Silva Pessoa de Lira


Marinez Rosa dos Santos Bassotto

Resumo: A Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, província da Comunhão Anglicana


desde 1910, compreende nove dioceses. Cada diocese é liderada por um bispo, eleito
dentre os presbíteros e presbíteras da Igreja, pelo povo e clero. O clero da Igreja
compreende três ordens: diaconato, presbiterado e episcopado. As mulheres são
ordenadas há vinte e sete anos. No entanto, mesmo que em eleições recentes tenha
havido mulheres como candidatas, somente homens têm sido eleitos ao episcopado.
Mais recentemente, na Diocese Meridional, em Porto Alegre, houve um processo
eleitoral no qual havia dois homens candidatos e uma mulher candidata. O processo
consistiu na realização de reuniões regionais para oportunizar o diálogo dos candidatos
e da candidata com povo diocesano. No diálogo foi possível a elaboração de perguntas
comuns e específicas para as pessoas candidatas. Entretanto, à única candidata
mulher foram destinadas questões que desvelaram as desigualdades de gênero
culturalmente construídas e legitimadas pelo discurso religioso de algumas lideranças.
O objetivo do presente texto é fazer uma análise desses discursos a partir da chave
hermenêutica de gênero.

Palavras-chave: gênero; ordenação feminina; IEAB; eleição episcopal feminina.

1. A Ordenação de Mulheres na Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB)


O Anglicanismo chega ao Brasil em 1810, em forma de capelania nas regiões
Sudeste, Norte e Nordeste, para atendimento às pessoas anglicanas que vieram
trabalhar nas ferrovias e nos seringais. Mas somente 80 anos depois, o Anglicanismo
de Missão constitui a Igreja Episcopal do Brasil (IEB), que no aniversário do seu
centenário, em 1980, passou a ser denominada Igreja Episcopal Anglicana do Brasil
(IEAB).
Mesmo sendo uma Igreja inclusiva, o que faz parte de seu ethos, somente em
maio 1985, ou seja, 105 anos após a sua institucionalização no Brasil, a IEAB passou
a admitir a ordenação de mulheres; sendo Carmen Etel Alves Gomes a primeira


Bacharel, Mestra e Doutoranda em Teologia (área: Religião e Educação), pela
Escola Superior de Teologia (EST), bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES). Título da dissertação de Mestrado: As ações educativas do Centro
Ecumênico de Cultura Negra (CECUNE), sob a orientação do Prof. Dr. Evaldo Luis Pauly.
Especialista em Gênero pela Organização do Trabalho e pela ONU Mulheres; bem como
estudante de Licenciatura em Educação do Campo pela Universidade Federal de Pelotas
(UFPEL), e da Especialização em Educação de Jovens e Adultos (EJA) na Diversidade; ambos
na modalidade EaD, no Pólo Santo Antônio da Patrulha da Universidade Aberta do Brasil.
Atualmente orientanda dos Professores Dr. Roberto E. Zwetsch e Dr. André S. Muscopf, e a
atual pesquisa de doutorado tem como tema: Igbasilé: Acolhimento às Mulheres Negras em
Situação de Violência Doméstica no Projeto Ajeunbó. Contato: liliancsilva13@gmail.com.

Bacharel em Teologia, com Integralização em curso pela Escola Superior de
Teologia e Espiritualidade Franciscana (ESTEF). Contato: marinez.bassotto@uol.com.br.
2

mulher ordenada na IEAB, como consequência de uma década de discussão e reflexão


sobre o tema. Uma reivindicação iniciada em 1973, tendo o pleito aprovado no Sínodo
Geral da Igreja em junho de 1984.
Em toda a Comunhão Anglicana, da qual a IEAB é uma das 44 províncias
espalhadas em todo o mundo, a primeira província a ordenar mulheres às sagradas
ordens foi a Diocese Hong Kong, na China, quando da II Guerra Mundial, pela urgente
necessidade de atendimento à comunidade chinesa em Macao. Pois havia a proibição
de da entrada de presbíteros nos territórios ocupados, impossibilitando-os de chegar a
essa comunidade. Em 1944, portanto, Forence Lee Tim Oi foi ordenada diácona e
presbítera na Diocese de Hong Kong.
Em 2005, as reverendas anglicanas de todo o Brasil, que compreendiam 30%
do clero nacional da IEAB, reuniram-se para compartilhar suas experiências e para
celebrar duas décadas da ordenação feminina. Na ocasião, reuniram-se com as
clérigas anglicanas, lideranças leigas e ministras pastorais auxiliares da mesma IEAB,
bem como clérigas de igrejas irmãs. Na carta aberta ao término no encontro, foram
destacadas pelo menos três recomendações: Que a formação teológica na IEAB
contemplasse a questão de gênero, através da revisão do currículo dos cursos de
Teologia e da inclusão disciplina Teologia Feminista nos nossos Seminários e Centros
de Estudos Teológicos Diocesanos; que através do Centro de Estudos Anglicanos
(CEA) discussão sobre o tema fosse difundida e ampliada, por meio da promoção de
seminários regionais e diocesanos; e que a Junta Nacional de Estudos Teológicos
(JUNET) contemple em seu programa de bolsas de estudos a formação em outras
áreas do saber, como forma de auxílio no desenvolvimento do ministério; que a IEAB
respeite a resolução do Conselho Consultivo Anglicano (CCA), de junho de 2005, que
solicita a participação feminina de 50% em todos os níveis decisórios da Comunhão
Anglicana: cargos e comissões paroquiais, diocesanos e provinciais; que a política
salarial das dioceses contemple justiça e igualdade no exercício do ministério
feminino, tornando os salários dignos e nos mesmos níveis que são pagos aos homens
que exercem igual função; e que também sejam respeitados os direitos de previdência
complementar Fundo de Aposentadorias e Pensões (FABIEP) da IEAB.1
Como atestam as recomendações acima, mesmo sendo uma Igreja que
ordenava mulheres há duas décadas  o que somente passou a acontecer na Igreja da
Inglaterra em 1990, ainda assim, essa prática não significou equidade dos direitos
entre homens e mulheres no clero anglicano brasileiro. Sendo importante ressaltar
que uma vez admitindo a ordenação feminina, a IEAB admitiu que as mulheres

11
Carta Aberta à IEAB. Itaara, 2005. Disponível em:
http://iawn.anglicancommunion.org/resources/docs/Brazil_ConfReport_2005_Portuguese.pdf).
3

poderiam ser ordenadas às três ordens clericais: diaconato, presbiterado e


episcopado. No entanto, até a presente data, nenhuma mulher foi ordenada ao
episcopado em todo o Brasil.

2. Mulher e Episcopado na IEAB


A compreensão de ordens na IEAB, assim como em toda a Comunhão
Anglicana, é uma compreensão de hierarquia. Apesar de que em todo o Novo
Testamento bíblico, não seja encontrada qualquer referência que endosse essa
compreensão. Em sua organização estrutural, tem-se na diocese sua menor unidade.
Unidade essa dirigida por um bispo, no caso do Brasil, já que não há mulher sagrada
ao episcopado. De modo que sendo uma igreja episcopal, sua administração está sob
a regência da pessoa que tenha sido ordenada ao episcopado. O que talvez explique
porque ainda não haja mulheres ordenadas ao episcopado no Brasil, uma vez que a
Igreja brasileira, assim como toda a sociedade nacional, está desenhada sob o sistema
patriarcal, do qual o machismo é sua principal ideologia.
Em toda a Comunhão Anglicana, a Província que primeiro sagrou uma mulher
ao episcopado foi a Igreja Episcopal dos Estados Unidos, da qual essa mesma mulher
é a atual Bispa Presidenta, a Revdma. Katharine Jefferts Schori. Em todo o mundo,
são dezenas de mulheres sagradas ao episcopado, incluindo a Província do continente
africano, que é uma das mais conservadoras. No entanto, no Brasil, ainda não temos
uma mulher bispa.
Em maio de 2013, a IEAB celebrará 28 anos de ordenação feminina. Ou seja,
quase três décadas de ministério feminino ordenado na Igreja brasileira. Mas só
recentemente, nos últimos anos, as mulheres passaram a participar dos processos de
eleição episcopal na Igreja brasileira. Desde então, foram apenas quatro eleições
episcopais, a saber, das Dioceses de Brasília, Pelotas, Sul-Ocidental (Santa Maria/RS)
e Meridional (Porto Alegre/RS), em 2000, 2007, 2010 e 2012, respectivamente. E nas
quatro ocasiões somente homens foram eleitos.
Por ser a eleição mais recente, mais próxima, e por sermos nós, autoras do
presente texto, partícipes do processo, seja como candidata, seja como apoiadora da
candidatura, assumimos o desafio de propormos uma reflexão sobre o recente
episódio numa perspectiva analítica de gênero, por entendermos que essa proposição
nos ajudará a melhor compreendermos o quanto ainda nos falta para avançarmos,
enquanto igreja, parte da sociedade brasileira, na implementação efetiva da equidade
de gênero, necessária à transformação da sociedade que ainda vive sob o sistema
patriarcal.
4

Para tanto, entendemos necessário elucidarmos conceitualmente o que


entendemos sobre gênero e sobre sua origem do Feminismo; bem como sobre o
sistema patriarcal e a ideologia do machismo que o alimenta.

3. Gênero: Derivação do Feminismo


Por gênero, adotamos o conceito da socióloga norteamericana Joan Scott "um
elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os
sexos".2 Sendo assim, gênero é uma categoria de análise social que questiona as
desigualdades entres os sexos, legitimadas pelas diferenças biológicas. Enquanto
categoria de análise, gênero deriva do Feminismo, movimento político com mais de
dois séculos de reconhecimento e ainda mais tempo de existência, que denuncia o
modelo de poder masculino que se impõe como paradigma das relações humanas
estabelecidas na sociedade. A esse modelo de poder masculino, ideologia intitulada de
machismo, que instaurou o sistema patriarcal; que o Feminismo denuncia,
promovendo o anúncio da necessária transformação das relações humanas com base
na equidade de gênero.
Scott, que realizou uma pesquisa importante sobre a procedência do uso do
conceito “gênero”, afirma que: “A palavra indicava uma rejeição ao determinismo
biológico implícito no uso de termos como ‘sexo’ ou ‘diferença sexual’. [...] o gênero é
um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre
os sexos”3. Gênero sublinha também o aspecto relacional das definições normativas
das feminilidades, conforme a autora4. Vê-se aí duas constatações fundamentais para
a desconstrução do modelo relacional culturalmente constituído: que as diferenças são
naturais, mas as desigualdades são culturais e historicamente construídas. Portanto,
ser mulher e ser homem são construções culturais, como bem o afirma a socióloga
chilena Teresa Valdes: “[...] a incorporação da categoria gênero parte do feminismo
anglo-saxão para se referir à construção social do feminino e do masculino,
privilegiando o social e o simbólico sobre o biológico na explicação das diferenças
entre homens e mulheres”5. Valdez afirma também que a “‘identidade de gênero, a

2
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Tradução de Christine Rufino
Dabat e Maria Betânia Ávila. Nova Iorque: Columbia University Press, 1989, p. 21. Disponível
em: http://wesleycarvalho.com.br/wp-content/uploads/G%C3%AAnero-Joan-Scott.pdf. Acesso
em: 04 jan. 2013.
3
SCOTT, 1989, p. 21.
4
SCOTT, 1989, p.19.
5
VALDES, Teresa. Identidad feminina y transformación en América Latina: A modo de
presentación. In: ARANGO, Luiz Gabriela; LEON, Magdalena; VIVEROS, Mara. Género e
Identidad: Ensayos sobre lo feminino y lo masculino. Colombia: Ediciones Uniandes, Género,
Mujer e Desarrollo e TM Editores, 1995, p. 22. Disponível em:
http://www.bdigital.unal.edu.co/1384/2/01PREL01.pdf. Acesso em: 04 jan. 2013.
5

identidade feminina se apresenta como uma construção social e cultural, variável,


histórica e transformadora que se distingue da identidade sexual”6.
Gênero, portanto, é uma categoria de análise social derivada do Feminismo, de
caráter relacional, que denuncia o modelo de poder masculino que se impõe como
paradigma das relações humanas estabelecidas na sociedade. O poder é aí entendido
“[...] como relação de forças, na qual constantemente está presente seu exercício
sobre um sujeito que não o vive de forma passiva, senão que assume compromissos,
opõe resistências, estabelece limites, causa rupturas, conforme as diversas situações
de força”7.
Para Scott, o poder e o conceito de gênero estão imbricados, uma vez que “o
gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder”.8 Poder, que segundo
a socióloga paulista Daniella Coulouris, é um dos “conceitos centrais para a reflexão
teórica de gênero”9, assim como também a dominação, a ideologia e o discurso.
Para a filósofa e teóloga brasileira Ivone Gebara, gênero “[...] significa um
modo de ser no mundo, um modo de ser educado/a e um modo de ser percebido/a
que condiciona o ser e o agir de cada um”10.
Esse modelo de poder masculino, denominado patriarcado, que tem no
machismo sua maior expressão, tem ignorado as variadas masculinidades e
feminilidades, sendo necessária a retomada do princípio da igualdade, primeira
bandeira do feminismo histórico, atualizando-o com a perspectiva do respeito às
diferenças, que se corporifica no que entendemos como equidade11.
Como observa Scott, é preciso superar a visão do poder social como unificado,
centralizado e coerente, pela compreensão foucaultiana de poder “entendido como

6
VALDES, 1995, p. 23.
7
Sobre o poder em questão, a teóloga feminista alemã Catharina Halkes defende o que ela
denomina “a sisterhood of men”, uma solidariedade entre as pessoas, mulheres e homens,
promotora de inclusão e humanização, em substituição ao modelo de poder como dominação.
HALKES, Catharina. Gott hat nich nur starke Söhne: Grundzüge einer feministischen Theologie.
Gütersloh: Gerd Mohn, 1985. Apud TABORDA, Francisco. Feminismo e Teologia Feminista no
Primeiro Mundo. Breve panorâmica para uma primeira informação. In: Perspectiva Teológica
XXII, n. 58 set/out 1990, p. 319.
8
SCOTT, 1989, p.21.
9
COULOURIS, Daniella Georges. Ideologia, dominação e discurso de gênero: reflexões possíveis
sobre a discriminação da vítima em processos judiciais de estupro. Revista Humanidades MNEME.
Publicação do Departamento de História e Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Centro de Ensino Superior do Seridó – Campus de Caicó. V. 05, nº 11, p. 4, jul./set. de
2004.
10
GEBARA, Ivone. Rompendo o Silêncio: a fenomenologia feminista do mal. Petrópolis: Vozes,
2000, p. 106.
11
SOJO, Ana. Mujer y Política. Ensayo sobre el feminismo y el sujeito popular. San José-Costa
Rica: Departamento Ecuménico de Investigaciones (DEI), 1985, p. 43.
6

constelações dispersas de relações desiguais constituídas pelo discurso nos campos de


forças”12.

4. A Eleição Episcopal na Diocese Meridional da IEAB


A IEAB é uma província da Comunhão Anglicana desde 1910, composta por
nove dioceses. Cada diocese é liderada por um bispo, eleito dentre os presbíteros e
presbíteras da Igreja, pelo povo e clero. O clero da Igreja é constituído por três
ordens: diaconato, presbiterado e episcopado. Recentemente, na Diocese Meridional,
em Porto Alegre, houve um processo eleitoral no qual havia dois homens candidatos e
uma mulher candidata. Um dado curioso está no mútuo apoio dos dois candidatos
homens, no qual um assinou a carta de apresentação da candidatura um do outro, o
que pode ser lido como um prenúncio de uma possível coligação, caso a disputa
envolvesse um dos nomes e a única candidata mulher.
Uma de nós, Marinez Rosa dos Santos Bassotto, é clériga da Igreja Episcopal
Anglicana do Brasil, tem 42 anos de vida, 18 anos de ministério Ordenado, é
divorciada do primeiro casamento e do segundo casamento, que celebra dez anos,
tem duas filhas. Vejamos um breve relato sobre a sua vida ministerial:
Quero iniciar este breve relato afirmando que eu creio que o que
hoje somos é fruto de nossas experiências e vivências ao longo
da vida, eu sou fruto do trabalho missionário da Igreja Episcopal
Anglicana do Brasil / nasci no interior de Canguçu, em uma área
missionária onde havia uma paróquia e muitas missões, meu avô
foi um dos fundadores deste trabalho. Cresci e fui me sentindo
desde muito cedo vocacionada ao ministério sempre tendo minha
vida e minha história enraizada na vida desta Igreja. (...)
(...) E assim vinda do interior, de uma área missionária, cheguei
a Pelotas e de lá pra Porto Alegre, para estudar Teologia com
vistas a ordenação – muitas foram as experiências até ser
colocada como diácona por Dom Cláudio Vinícius de Senna Gastal
na Catedral da Santíssima Trindade, a qual, mais tarde, assumi
como Deã com 4 anos de ministério e 28 anos de vida, tornando-
me a primeira mulher brasileira a assumir uma Catedral – todas
as experiências e envolvimento com a vida da igreja tornaram-
me a pessoa que sou hoje.13

Sendo essa mulher, primeira a assumir a reitoria de uma catedral diocesana na


IEAB, convidada a participar do processo eleitoral em questão, por algumas e alguns
colegas de ministério, que nela reconheceram vocação pastoral e condições para o
exercício do ministério episcopal.

12
SCOTT, 1989, p.20. Apud FOUCAULT, Foucault. The History of Sexuality. vol I, An
Introduction, New York, 1980; FOUCAULT, Michel. Power/Knowledge: Selected Interviews and
other Writings, 1972-77.
13
BASSOTTO, Marinez Rosa dos Santos. Extrato do relato elaborado por ocasião do processo
eleitoral espicopal da Diocese Meridional. Porto Alegre, 2012.
7

O processo eleitoral consistiu na realização de reuniões regionais nas áreas


missionárias da Diocese, para oportunizar o diálogo dos candidatos e da candidata
com povo diocesano. No diálogo foi possível a elaboração de perguntas comuns à
candidata e aos candidatos, dentre as quais destacamos:
Nas igrejas o que se vê são pessoas “adultas”. O que pensas em fazer para atrair as
crianças e os jovens? Considera importante a avaliação de seu episcopado pelas
comunidades? Em que periodicidade aconteceria? Você se considera capacitada para o
episcopado? Como pretende apoiar o clero diocesano no trabalho de expansão
missionária da Igreja? Como melhorar a Educação Cristã? Por que você quer ser bispa
ou bispo? Como pretende supervisionar as paróquias e motivá-las a evangelizar e a
realizar missão? Qual sua experiência em missão? Essa etapa oportunizou que os
candidatos e a candidata pudessem compartilhar seus conhecimentos, seus saberes,
suas experiências com o povo diocesano. O que foi, sem sombra de dúvida, uma
excelente oportunidade de crescimento individual e coletivo para todas as pessoas
partícipes do processo.
Entretanto, quando as perguntas foram específicas para um dos candidatos ou
para a candidata, houve uma que mais explicitamente oportunizou explicitar a
desigualdade imposta por algumas pessoas partícipes do processo, com relação ao
sexo das pessoas candidatas. A pergunta foi unicamente destinada à candidata
mulher: Como você vai conciliar o episcopado e sua família? Essa pergunta, que
poderia muitíssimo bem ser destinada a qualquer uma das pessoas candidatas, uma
vez que todas são casadas e têm famílias constituídas, ao ser feita apenas à candidata
mulher, desvelou o senso comum sobre o papel que deve ser desempenhado pela
mulher, como única cuidadora da família, papel esse há muito definido pela sociedade
patriarcal e machista.
O destaque dado à pergunta em questão, por ela ter sido dirigida apenas à
única candidata mulher, evidencia as desigualdades de gênero culturalmente
construídas e legitimadas pelo discurso machista construído pela sociedade, do qual o
discurso religioso também se apropria e, muitas vezes, legitima e perpetua. E, em
alguns casos, é o discurso gerador.
O que aqui intencionamos elucidar é a explícita discriminação de gênero
durante o processo eleitoral, admitida publicamente pelos candidatos homens
partícipes e pelo bispo diocesano, em carta à Diocese assinadas por eles, da qual
destacamos os seguintes trechos:
...falsas acusações e boatos atingindo todas as candidaturas, mas
especialmente envolvendo a Revda. Marinez Rosa dos Santos
Bassotto,...
Diante dessas e outras insinuações e acusões que a Revda.
Marinez, sua família e comunidade têm sofrido durante o
8

processo de eleição ao episcopado, e mesmo após o início do


Concílio de eleição, nós candidatos ... e bispo diocesano ...
esclarecemos e declaramos que: a) Estas insinuações não
correspondem com a verdade do fatos e que as repudiamos como
causadoras de graves sofrimentos à Revda. Marinez, sua família
e toda a igreja; b) Que ditas afirmações, aqui desmentidas, não
devem comprometer a imagem e o desenvolvimento do
ministério que a Revda. Marinez em oferecido a Igreja em todos
os níveis; Nós ... nos solidarizamos com a Revda. Marinez e lhe
pedimos perdão em nome da Igreja Diocesana e esperamos que
fatos como este sirvam de aprendizado e não se repitam em
relação a ela ou a qualquer outra pessoa.14

Como participamos de todos os encontros regionais, foram vários os


comentários nos bastidores sobre as possíveis dificuldades que teria a candidata de
assumir o episcopado, se eleita fosse: por ser mãe de duas crianças; por ser esposa
de um leigo; por ser muito jovem; por sua experiência pastoral estar focada
majoritariamente na Catedral diocesana; por ser divorciada, sendo alegado que se não
conseguiu dar conta de administrar o próprio lar, como seria capaz de administrar a
diocese; que ainda não é tempo de termos uma mulher no episcopado; dentre outros
comentários.
Tais insinuações e acusações foram desde especulações sobre a vida pessoal e
familiar da candidata, até sua vida ministerial, como atestam as palavras da carta em
questão. É míster reconhecer que a alternativa espúria de depreciar a imagem da
única candita mulher, deveu-se ao fato de que parecia absurdo admitir que o motivo
pelo qual a candidata não deveria ser eleita era unicamente por ser mulher.
Vale aqui o registro de que sendo a IEAB parte da Igreja cristã, tem como
pilares de seu fazer teológico a tradição, a fé e razão, tendo como ponto e partida os
textos bíblicos. Assim sendo, cabe aqui destacar o que afirma a Bíblia sobre o
episcopado, na primeira Carta a Timóteo, capítulo 3, versículos de 1 a 7:
Fiel é a palavra: se alguém aspira ao episcopado, excelente obra
almeja. É necessário, portanto, que (a pessoa) seja
irrepreensível, seja monogâmica, tenha temperança, sobriedade,
modéstia, seja hospitaleira; seja apta para ensinar; não dada ao
vinho, pacificadora, cordata, inimiga de contendas, não avarenta
e que governe bem a própria casa, criando as filhas e os filhos
sob disciplina, com todo o respeito; não seja nova na fé, para
não suceder que se ensoberbeça e incorra na condenação do
diabo. Pelo contrário, é necessário que tenha bom testemunho
das (pessoas) de fora, a fim de não cair em vergonha e no laço
do diabo.15

14
Carta ao 120 Concílio da Diocese Meridional. Porto Alegre, 2012.
15
Bíblia Sagrada. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no
Brasil. 2ª ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993, p. 249.
9

A orientação bíblica sobre o episcopado, apregoada pela IEAB, e no entanto


ignorada pelas pessoas que optaram por caluniar à candidata, unicamente por ser
mulher, fez com que, de outro lado, outras pessoas se mobilizassem e apresentassem
seu apoio à candidatura feminina. De modo que houve um grupo de lideranças, 50%
do clero diocesano, cujo perfil predominante é a jovialidade da idade cronológica e/ou
do tempo de ministério pastoral, que apoiou a candidatura da única candidata mulher.
O grupo que apoiou a candidatura da única mulher candidata, em um movimento de
defesa da candidatura, sem quem com isso fosse necessário depreciar à imagem dos
candidatos, e acreditando que o perfil da candidatqa atendia ao que se espera de
aluguém no exercício do ministério episcopal, afirmou em carta aberta:
Como diaconisa e sacerdotisa da Igreja, ela tem demonstrado
que servir é a principal marca do ministério da Igreja, razão pela
qual foi ordenada. E em sua experiência ministerial tem
contribuído com a IEAB na vida cotidiana comunitária paroquial,
na participação do extinto Departamento de Missão, sendo a
responsável pela organização e pela realização de uma das
edições da Conferência Nacional de Lideranças (Confelíder); na
participação como conselheira do Conselho Nacional de Missão e
no Conselho Executivo da IEAB; como membro da Comissão
Nacional de Liturgia; da Comissão Diocesana de Planejamento
Pastoral e Missão, e da Comissão Diocesana de Direito Canônico;
além de sua participação no Conselho Diocesano e em diversas
comissões da Igreja diocesana. Como testemunho de sua
vivência ecumênica, é membro da Diretoria do Conselho Nacional
de Igrejas Cristãs no Rio Grande do Sul (CONIC-RS) e integra, há
13, o Grupo de Diálogo Inter-Religioso de Porto Alegre, do qual
participam também pessoas representantes do Budismo
Tibetano, Zen Budismo, Catolicismo, Espiritismo, Fé Baha'I,
Islamismo, Judaísmo, Igreja Luterana, Umbanda e participantes
de Cultos Afrobrasileiros; testemunhando o ethos anglicano de
ser ecumênico e promovendo ações de respeito à diversidade
religiosa e de construção de uma cultura de paz na sociedade. De
modo que nossa irmã Marinez tem dado testemunho de que tem
cumprindo, com muita dedicação, importantes papéis na vida da
nossa Igreja e a mais sublime tarefa que lhe foi confiada:
pastorear o povo de Deus. Soma-se às razões já indicadas, o fato
de que em maio de 2012, nossa IEAB celebrou 27 anos de
ordenação feminina, assumindo a compreensão de que é Deus
quem vocaciona e que Ele não faz acepção de pessoas (Dt.
10,17; Rm.2,11) e o entendimento de que é chegada a hora
histórica desta, que é primeira diocese anglicana brasileira, e na
qual está se encontra Catedral Nacional, oferecer para a Igreja
de Cristo a primeira bispa anglicana da América do Sul.16

Reconher que mulheres e homens igualmente podem participar de processos


eleitorais episcopais, uma vez que ambos exercem o ministério ordenado na Igreja, é

16
Carta Aberta à Diocese Meridional. Apoio à candidatura da Revda. Deã Marinez Rosa dos
Santos Bassotto. Porto Alegre, 2012.
10

dar um passo rumo à boa prática de equidade de gênero. Testemunho revelador do


Deus amoroso que não faz acepção de pessoas e que subverte a compreensão de
poder como dominação, afirmando-o como serviço. Serviço entendido não como
submissão, já que para esse o lugar da mulher é reservado na Igreja, mas como lugar
de quem deve ocupar os primeiros lugares. Nesse sentido, mulher e homem, cada
qual e ambos, podem e devem exercer esse poder que se nos apresenta como
alternativa de equidade de gênero. Somente possível se corporificado na mudança
estrutural das relaçoes humanas.
A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NO MOVIMENTO MESSIÂNICO MILENARISTA
BORBOLETAS AZUIS

Davidson Belo Mangueira

Mestrando em Ciências das Religiões - UFPB

Resumo:

Este trabalho pretende analisar a representação da mulher no contexto do movimento


messiânico milenarista “Borboletas Azuis”, bem como as relações de gênero observadas
no mesmo. Nosso objetivo será analisar, na perspectiva das relações sociais de sexo, a
influência feminina dentro do contexto religioso deste movimento. O presente artigo será
delimitado em três partes: na primeira, apresentaremos uma definição sociológica da
religião, por meio das “lentes” de Marx Weber e Peter Berger, uma explicação sobre os
movimentos messiânicos milenaristas; na segunda, faremos um breve histórico do
movimento em questão; e finalmente, na terceira, analisaremos as relações de poder
entre homens e mulheres integrantes do movimento e o papel desempenhado por elas
em torno da re-significação e manutenção do movimento.
Palavras chave: Religião, Messianismo, Milenarismo, Gênero.

Abstract:
his work intends to analyze the representation of women in the context of messianic
millenarian movement "Borboletas Azuis", as well, gender relations observed in that. Our
goal will be to examine, from the perspective of the social relations of sex, female
influence inside the religious context of this movement. This article will be delimited in
three parts: first, we will present a sociological definition of religion, through the "lens" of
Marx Weber and Peter Berger, an explanation of the messianic millenarian movements,
on second, we will take a brief history of the movement in question, and finally, in the
third, we will analyze the power relations between men and women, members of the
movement and the role played by them around the re-signification and maintenance of
the movement.
Keywords: Religion, Messianism, Millenarianism, Gender.

Introdução
Para a compreensão das relações de gênero e da influência feminina presente no
movimento messiânico milenarista Borboletas Azuis1, torna-se necessário entender o
contexto sociorreligioso no qual as mulheres estão inseridas, pois este pano de fundo nos
trará base de elucidação para compreensão das relações de poder e influência
desempenhada por elas no âmbito do movimento.

No presente trabalho delimitaremos uma visão sociológica clássica do que são


movimentos messiânico-milenaristas, passaremos por uma breve análise descritiva do
movimento, suas práticas, ritos e história e logo após analisaremos o poder e o carisma
do líder, Roldão Mangueira de Figueiredo2, a profetisa Luciene Diniz3 e outras pessoas de
destaque na comunidade, estabelecendo uma relação de gênero e demonstrando como
se estruturam as influências, posições e relações de poder dentro do movimento.

Religião e movimentos messiânicos milenaristas.

Os movimentos messiânicos são expressões religiosas que nascem em meio ao


caos da exploração dos ricos sobre os mais pobres e das desigualdades sociais. Seus
líderes têm a capacidade de disseminar a esperança e um novo significado de vida, à
espera de um reino vindouro, seja este, terreno ou celestial, onde a desigualdade será
eliminada e todos serão fartos. Uma busca de uma nova identidade e dignidade. Reação
de um grupo oprimido e dominado em busca de instaurar uma nova ordem social que os
valorize e restaure a dignidade, outrora perdida.

Movimentos religiosos de cunho milenarista foram por muitas décadas, tomados


por preconceito, sendo entendidos como patologias sociais e expressões teológicas
deturpadas, ou seitas. De acordo com Arruda (1993, p. 9), somente após obras como as

1
Os Borboletas azuis foi um movimento religioso popular de raízes católicas. Suas práticas e ritos associavam
concepções espíritas como curas, passes e incorporações, mas se mantinha fiel à tradição católica não aceitando
as doutrinas kardecistas de karma e reencarnação e os espíritos incorporados eram representações de ícones do
catolicismo, como santos, padres e freiras. Os Borboletas Azuis apregoavam a instauração de um novo mundo
após um evento cataclísmico diluviano com data prevista por uma adepta do movimento. Por suas características,
é entendido como um movimento messiânico milenarista. Araújo, pp. 44 – 64. Negrão, p. 125 – 127.
2
Roldão Mangueira de Figueiredo foi o líder carismático de tradição católica que, após receber influência e
contato com as doutrinas e práticas do espiritismo, incorporando o espírito de Padre Cícero Romão e São
Francisco de Assis, estabeleceu seu carisma por meio de curas e milagres na cidade de Campina Grande, no
estado da Paraíba. Posteriormente Roldão desponta como líder e fundador da Casa de Caridade Jesus no Horto,
local onde se reunia o grupo que posteriormente foi denominado de borboletas Azuis pela mídia e população por
decidir vestir timões azuis e brancos, simbolizando um meio de separação dos escolhidos que sobreviveriam ao
dilúvio por meio da purificação do corpo e da alma. Araújo, pp. 28 – 40. Carneiro, pp. 21 e 22.
3
Luciene Diniz foi uma profetisa com a idade de dezessete anos, que participava ativamente do grupo e que
lançara a profecia do dilúvio. Seu carisma foi estabelecido pela mesma ter sofrido um acidente automobilístico
onde faleceram todos os passageiros, incluindo seus familiares, sobrevivendo somente ela e o motorista. Após
conhecer a Casa de Caridade e ser liberta por Roldão do espírito de um de seus tios mortos que a atormentava,
passa a ser entendida como uma liderança interna do movimento, incorporando figuras como as de Jesus e
Maria. É Luciene que por meio de seus guias, estabelece o uso das vestimentas características do movimento.
Araújo, pp. 40 - 42. Carneiro, pp. 22 e 23.
de Maria Isaura Pereira de Queiroz e Maurício Vinhas de Queiroz, Messianismo no Brasil e
no Mundo e Messianismo e Conflito Social, respectivamente, avanços no estudo e
pensamento acadêmicos se deram em torno do assunto. Suas obras se tornaram
referências obrigatórias para pesquisadores que buscassem desenvolver pesquisas
dessacralizadas, entendendo-os como movimentos sociopolíticos.

De acordo com Arruda (1993, p. 23), teóricos como Weber, Engels, Lanternari e
Beer, compartilham da mesma ideia de que, para que um fenômeno messiânico
aconteça, é preciso haver uma crise sociopolítica generalizada que desperte uma
necessidade de salvação em contraposição à desgraça política de um povo. Para ele, o
messianismo ocorre em situações nas quais os menos privilegiados são submetidos a
fortes pressões internas, elementos subjetivos religiosos imbuídos de uma ética de
salvação que anuncie a inversão das estruturas hierárquicas da sociedade, privilegiando
as classes dominadas. O reino messiânico passaria necessariamente, pela inversão da
hierarquia social vigente. (Arruda, 1993, p.41).

Para Weber (1964, p. 489), isto acontece com frequência em classes oprimidas,
camadas desprivilegiadas nas quais, através do sofrimento e falta de esperança, acabam
por ceder aos encantos de um apelo mágico de missões religiosas onde prosperam
elementos emotivos. Para ele, era em momentos de opressão extrema que povos
subjugados, em contrapartida à opressão sofrida, constroem apelos religiosos. Como o
movimento da física, de ação e reação, quanto maior a ameaça e a opressão, maior seria
a resposta e a esperança salvífica desencadeada por meio do apelo religioso. A análise de
Weber demonstra que o messianismo delimita-se numa luta de classe em busca de novas
perspectivas, tendo como base de discurso e legitimidade, a religião.

Já, para Berger (1985, p. 19), a religião é um produto histórico, examinado


através das lentes da sociologia. Para ele, uma totalidade dos produtos do homem
(p.19), que é a cultura. Uma construção de mundo “sintética” que provê ao ser humano,
uma base de vivência e experiência estrutural, isto é, uma “segunda natureza”.

As sociedades necessitam de instrumentos de controle para de reforçar as


tradições e imbuir significado para este mundo sintético que o ser humano criou e nele
existe. Um grande esforço é feito para se manter uma realidade plausível, e para que isto
aconteça, é necessário criar uma vida social ordenada e significativa, tanto objetiva,
como subjetivamente. Uma estrutura de saber onde os mesmos se relacionam e co-
habitem, o “nomos 4”.

Quando estas estruturas culturais não se apresentam totalmente perfeitas através


da percepção de indivíduos ou grupos, tendem a ser desconsideradas. Estes indivíduos

4 BERGER, Peter L. O Dossel Sagrado. Elementos para uma Teologia Sociológica da Religião. (Berger usa a
terminologia nomos para denominar uma estrutura cultural ou religiosa vigente, uma cultura).
apresentam-se dissociados do sistema por não encontrar nele mais nenhum sentido.
Deslocados da cultura, tornam-se párias, que não encontrando participação, ou lutam
desesperadamente contra o nomos estabelecido ou isolam-se criando estruturas radicais
que expressem sua inconformidade, o que se denomina como o fenômeno da “anomia”
por Berger 5.
6
Para Berger, a religião torna-se um “escudo contra a anomia” e o caos gerado
pela ruptura social que a mesma desencadeia. Por meio da religião, o homem pode
exteriorizar seus desejos não alcançados e transcender a exclusão gerada pela anomia.
Pode assim, combater o “caos” por meio do novo “cosmos” 7 gerado, o religioso. Este cria
um processo contrário ao da anomia, pois, além de proteger o indivíduo do caos,
reforçando o “nomos” já existente, denotando força e estruturação ao memo.

Seguindo este pensamento, podemos entender que a religião se mostra como


aspecto fundamental no reforço da cultura ou “nomos”, como instrumento de re-
significação e autoafirmação de mundo, criando um novo mundo, o mundo religioso,
mundo qual, encontra-se o movimento que estudaremos. Negrão (2001, p.127) afirma
que o movimento Borboletas Azuis emerge em uma zona urbana, diferindo da grande
maioria dos movimentos escatológicos desta natureza e sendo por ela, classificado como
parte dos novos movimentos messiânicos brasileiros, que se dão após o processo de
industrialização no Brasil, datados da década de trinta em diante e que acontecem fora
dos centros rurais. Para o autor, este movimento se distingue das antigas crenças
católicas, pois abarca um catolicismo combinado com práticas espíritas. Embora aconteça
num contexto urbano, a maioria de seus adeptos consta de ex-pobres rurais, agora,
novos pobres urbanos suscetíveis, através do sofrimento a se encaixarem neste novo
padrão de anomia. (NEGRÃO, 2001, p. 122).

Outra característica importante é que o movimento ainda vive e tem sido re-
significado por meio de dois únicos adeptos, duas mulheres, a irmã Maria Tereza e
Helena Fernandes8. As mesmas continuam a manter a Casa de Caridade Jesus no Horto e
“a manter os ensinamentos propagados pelo fundador”. (LOPES, 2010, p.8)

Seita fundada nos anos 80 em CG 9 por Roldão


Mangueira, que pregava o fim do mundo e a extinção
da raça humana por meio de um dilúvio, tem hoje

5 Termo usado por Berger que representa a separação radical do indivíduo do mundo social.
6 Idem, p. 40
7 Ibdem. Cosmos e caos. p.40
8
Estas duas personagens participam do movimento desde seus primórdios. A irmã Teresa reside na Casa de
Caridade Jesus no Horto e tomou a característica de guardadora do templo e da tradição, enquanto Helena
Fernandes reside com seus familiares, mas auxilia no mantenimento da casa e das reuniões regulares. In:
LOPES, S. A resistência das borboletas azuis. Jornal Diário da Borborema, Campina Grande,
28 mar. 2010.
9
CG - Campina Grande, Paraíba.
apenas duas seguidoras. Irmã Maria Tereza (foto) 10
vive enclausurada na casa construída pelo líder.
Helena Fernandes só aprece alguns dias da semana. 11

Os Borboletas Azuis: histórico do movimento.

Como vimos anteriormente, os movimentos messiânicos brasileiros são vertentes


sociorreligiosas escatológicas que se desenvolvem associados à influência do catolicismo
romano brasileiro e que nascem como forma de proteção e refúgio contra a anomia,
estabelecendo uma defesa conservadora e radical.

O “Borboletas Azuis” foi um movimento apocalíptico que, resgatou e re-significou


princípios e elementos de fé e devoção católica. Seu diferencial se demonstrava através
da prática do líder carismático, pelo qual foram inseridos elementos do espiritismo, bem
como a incorporação de símbolos religiosos católicos (santos) como o Padre Cícero
Romão, o que tornou o movimento misto, ou, como se denomina teoricamente, um
12
movimento de “bricolagem”.

Embora sua liderança e membros afirmem serem puramente católicos, suas


práticas mostram-se diferentes. Sua justificativa se baseia no fato de que o espiritismo
de Alan Kardec era considerado pelos mesmos, demoníaco e falho e criam receber o
próprio Espírito Santo, sendo denominados como espíritas do “alto espírito”, enquanto os
kardecistas, do “baixo espiritismo” por receberem espíritos inferiores de acordo com as
palavras de D. Tereza (ARAÚJO, 2008, p. 80).

Os Borboletas Azuis se reuniam na Casa de Caridade Jesus no Horto, construída


em terreno doado por Roldão Mangueira de Figueiredo em 1970. A fundação da casa de
caridade se tornou o ponto de decisão da liderança de Roldão. Ali ele realizava consultas
espirituais e aconselhamentos, orações e entrava em contato com os espíritos
iluminados. Com a grande convergência de pessoas no templo em busca de doações
materiais e curas.

Como estrutura de base religiosa, o grupo, em suma, utilizava orações e hinos dos
livros de orações e hinário católico, tendo oito orações e dois hinos de própria autoria.
Respeitavam o Decálogo13 e um estatuto próprio, denominado por eles como, catecismo,
instituído pelo seu fundador. Os princípios são: Não comer carne de animais, não praticar
esportes, não portar vestes de cores berrantes, não consultar médicos, não fazer sexo
fora do matrimônio, não transformar o templo num comércio de curas, não aderir ao

10
Ver Anexo foto de capa do Jornal Diário da Borborema, Campina Grande, 28 mar. 2010.
11
LOPES, S. A resistência das borboletas azuis. Jornal Diário da Borborema, Campina Grande, 28 mar. 2010.
12
A “bricolagem” é um termo usado para descrever o uso e a associação de ritos de diferentes religiões num
mesmo movimento religioso. Araújo, p. 98.
13
Decálogo: Os dez mandamentos de Abraão.
modernismo, cobrir o corpo inteiro, andar com os pés descalços, ouvir e respeitar os
espíritos de luz.

Sua liturgia assemelha-se a de uma novena católica e o templo tem


características de templos anteriores ao Concílio Vaticano II. Aos domingos, o ritual se
apresenta pleno, com cinco horas de duração e é dividido em três etapas distintas. A
primeira se apresenta através de uma hora de orações ajoelhados nos genuflexos no
local limite onde se separa o altar do templo. O segundo momento acontece quando ao
término das orações cada grupo, masculino e feminino, senta-se nos bancos do templo,
cada um de um lado e entoam os cânticos do hinário católico. Nesta fase, cada
congregante tem o dever de, pelo menos, entoar um dos cânticos. No terceiro momento,
os asseclas dispõem-se ao redor da mesa de comunicação, e ainda na mesa, a divisão de
gênero permanece visível, tendo homens de um lado, mulheres do outro e o líder na
cabeça da mesa, onde incorpora o Padre Cícero Romão e responde aos questionamentos
das pessoas presentes, respondendo a todos até que não haja mais questionamentos,
terminando assim o culto dominical.

Existem ainda três ritos especiais dentro do Borboletas Azuis: o ofício de limpeza,
o banho de sereia e o batismo dos pagãos. As duas primeiras são cerimônias de
descarrego, ou seja, de limpeza dos pecados, já o último, um sinal de adesão ao grupo,
um rito de iniciação e salvação, o batismo das almas pagãs.

O primeiro se trata de uma curta cerimônia diária em torno da mesa de


comunicação onde os fiéis fazem movimentos circulares com os braços e mãos e
enquanto o celebrante profere várias vezes a sentença: “Vai para as ondas do mar”. Um
sinal de lavagem por maio das águas. No segundo, o rito é semanal, realizado nas
quintas-feiras e, diferente do primeiro, é bastante demorado. Após recitar o Ofício de
Nossa Senhora, retira-se água de um pote com uma caneca e - na entrada do templo -
derrama-se sobre os a cabeça daquele que se encontra em pecado. O último é reservado
somente aos espíritos pagãos que são classificados em dois tipos: Espíritos que em vida
foram servos exclusivos de Deus, denominados de profetas e os que mesmo sem estar
em contato presente com Deus, dedicaram suas vidas a disseminar a bondade, como o
caso de Buda e Ghandi, dentre outros. Nestes dois casos, os espíritos incorporados
necessitam serem batizados em nome de Jesus Cristo antes de revelar qualquer
mensagem à comunidade.

Trataremos a seguir sobre o papel da liderança e a influência dos mesmos sobre o


movimento, destacando as relações de gênero, apresentando uma explanação sobre o
papel desempenhado pelo líder carismático, os papéis desempenhados por homens e
mulheres dentro de denominações religiosas cristãs e a necessidade de um líder
carismático masculino para que aconteça a manutenção e legitimação do movimento.
Relações de gênero e a influência da mulher dentro do movimento Borboletas
Azuis.

De acordo com Queiroz (1976, P. 25), os termos “messias” e “messianismo” tem


sua raiz advinda da religião judaica e dos relatos bíblicos de Isaias, onde se profetizava a
vinda de um enviado de Deus que pudesse libertar o povo da opressão e a escravidão. O
messias é o personagem concebido como um guia divino que deve levar o povo eleito ao
desenlace natural da história, isto é, a humilhação dos inimigos e o reestabelecimento de
um reino terreno e glorioso para Israel (Queiroz, 1976, p. 26).

Com o passar do tempo e dos avanços de estudos teológicos, a figura do messias


passou a demonstrar também conotação histórica, além da teológica. Sociólogos como
Weber e Alphandéry desenvolveram análises do termo quase que exaustivamente e
alcançaram definições próximas. Ambos definem o messias como um indivíduo que é
enviado ou representa a divindade. Um emissário de justiça e de mudanças que corrigiria
a imperfeição deste mundo trazendo a vitória sobre o mal, instaurando um reino de paz e
justiça, um paraíso terrestre. Sua posição e discurso e suas capacidades mágicas o torna
uma figura carismática, isto é, um ser dotado de poderes sobrenaturais ou sobre-
humanos que se mostra mais poderoso ou evoluído que qualquer criatura terrena, ora
como indivíduo exemplar e, em consequência, como chefe caudilho, guia ou líder. (Weber
1944, Vol. I, pp. 252-253).

De acordo com Queiroz (1976, p. 29), Alphandéry, estudando casos medievais


percebe nos movimentos uma mesma configuração, um líder de poderes espirituais
místicos e que se declara além da hierarquia eclesiástica. Este tipo de liderança possuiu
um status de poder que se torna muito perigoso para as instituições religiosas e
estruturas sociais vigentes, pois desafia as estruturas nômicas estabelecidas e a cultura
vigente.

O que precisamos entender é o quão fundamental é a presença desta liderança


carismática. Sem ela, os movimentos de cunho messiânico milenaristas tendem a perder
sua força paulatinamente e até mesmo a extinguir-se. Geralmente, na ausência da figura
carismática, estabelece-se sucessão por parte de uma ou mais figuras de semelhante
carisma dentro dos movimentos.

Lemos (2009, p. 53) afirma que, o discurso religioso fundamenta as relações de


gênero e delimita a separação entre homem e mulher, dotando-os de características
humanas que podem ser entendidas como atributos divinos, o que delimita as relações
de ganho e poder dentro da religião. Consciente ou inconscientemente, as figuras do
sexo masculino são comparadas a deus, tendo atributos infalíveis, detentores do poder,
provedores. Basta atentarmos às representações históricas por meio da arte e
iconografia eclesiástica. Deus em forma de homem, cabelos e barba grande e grisalha,
corpo escultural e olhar imponente, facilitando assim a dominação e a aceitação de
líderes do sexo masculino. Foi assim no mundo Grego, na figura de Zeus, no Nórdico
através da figura de Odin e as imagens de Deus no cristianismo, como a famosa pintura
de Leonardo Da Vinci na Capela Sistina.

A mulher, por outro lado, é entendida como uma figura frágil, fraca e emotiva; ou
seja, um deus menor, inferiorizado. As representações artísticas sempre demonstram a
figura feminina em sofrimento, muitas vezes chorando e com olhar triste, submissa,
muitas vezes ajoelhada, representando esta sujeição em detrimento ao homem;
características de um deus fraco e sensível (Idem, pp. 54 e 55).

Roldão Mangueira, antes mesmo de fundar a Comunidade Jesus no Horto


apresentava características de liderança carismática, realizando curas, milagres e
expulsão de espíritos malignos por meio de reuniões espíritas denominadas “mesa
branca”. Seu status de homem de deus se espalhava pela cidade e histórias sobre sua
pessoa e seus feitos eram divulgadas por todo o estado. De acordo com Araújo (2008, p.
40), o carisma de Roldão crescia a ponto de logo após a fundação da casa de caridade, o
número de frequentadores regulares chegarem a 350 pessoas, além dos visitantes. Já os
dados de Carneiro (1983, p. 29), apontam o número de adeptos como o de setecentas
pessoas, meses antes da data prevista para o dilúvio.

Como Carneiro (1995, p. 36) alega, o grupo dos Borboletas Azuis sempre foi
bastante arredio e recluso em ceder informações sobre os adeptos e os serviços da casa
de Caridade, o que dificulta o trabalho dos pesquisadores. Nenhuma informação é
encontrada delimitando o número de adeptos dos sexos, masculino e feminino. A
ocupação dos demais participantes é de natureza totalmente popular e a maioria não
tinha nenhum tipo de formação especializada ou que necessitasse de um nível de
escolaridade acima do básico. Ao entrevistar o sucessor de Roldão - o senhor Antônio
Rodrigues de França14 - Carneiro traça um perfil dos membros da comunidade que é
formada por ferramenteiros, padeiros, barbeiros, pedreiros, encanadores, comerciantes
de frutas, cereais e verduras, motoristas, vigilantes, carroceiros, e pessoas que
cumpriam atividades domésticas.

As mulheres exercem um papel secundário dentro do movimento Borboletas


Azuis, mas como demonstram os estudos de gênero, é comum esta classificação dentro
de qualquer instituição ou movimento religioso. Souza (2009, p. 81) afirma que as
14
Antônio Rodrigues de França assume a liderança após o falecimento de Roldão e o afastamento do segundo
na liderança, o senhor José Alves. De acordo com Consorte e Negrão (1984, p. 318), França era versado,
inteligente e participativo no movimento, muitas vezes fazendo predições por meio de visões, intuições e
sonhos e teria sido ele que predissera a missão de Luciene Diniz dentro do movimento Araújo (2008, p. 135).
mulheres sempre foram esquecidas, colocadas à margem, tanto na história quanto no
âmbito religioso. Para ele, a visão da mulher por meio do imaginário católico brasileiro,
local de onde deriva nosso objeto de estudo, as mulheres eram excluídas de papeis de
destaque tanto no âmbito religioso quanto no social por representarem o pecado original
e a tentação, advindas da primeira mulher, Eva.

Permaneceu durante vários séculos a ideia de que a


mulher era portadora do mal e da morte, não
possuindo nem bondade, nem amizade, sendo incapaz
de fortalecer os laços afetivos que poderiam ser
construídos com os homens. Foram frequentemente
submetidas a teorias naturalistas, como a do “sexo
frágil” e teorias conspiratórias como – facilmente
possuídas pelo mal e predadoras da humanidade. [...]
Conforme Bordieu, a dominação masculina é
legitimada através das práticas e a religião contribui
para justificar este processo. Portanto, a desconfiança
sobre a carne estava intrinsecamente ligada às
mulheres, elas eram consideradas pelo clero como
criaturas débeis e suscetíveis às tentações do diabo.
Tentadora, culpada pelo peado original e pela queda
dos homens, estavam sempre associadas à figura de
Eva. 15

Dentro do movimento Borboletas Azuis, a história não se diferencia. Com o


falecimento de Roldão, seu segundo na liderança, José Alves, afasta-se do movimento e,
reconhecido através da comunidade por seu carisma, Antônio Rodrigues de França
assume o papel de liderança. Mesmo após a não sucessão na pessoa de José Alves, outro
homem assume a liderança, e eleito por reconhecimento carismático por parte dos
dominados, ou adeptos, segundo conceituação weberiana, como afirma Araújo (2008, p.
135).

Outro fator delimitador é a posse da palavra. A palavra é instrumento de poder,


principalmente dentro de instituições religiosas, e em sua maioria é a figura masculina
que detém a liderança detém a palavra e deste modo, o poder. De acordo com Souza
(2008, p. 87), o poder político apodera-se das palavras e as palavras e o silêncio são
parte da substância a que recorre o poder. No movimento Borboletas Azuis, mesmo que
as mulheres tivessem certa autonomia, expressando sua voz, por meio de incorporações
de ícones católicos, estas manifestações necessitavam de suporte por meio dos homens
que faziam parte da liderança, ou não teriam força.

A dominação acontece através de uma relação


dinâmica entre poder, interesse e vantagens por parte
daqueles que obedecem a um simples costume ou
tradição de um comportamento antigo, enraizado
fortemente pelo tempo, ou ainda, a partir do puro

15
SOUZA, Edmundo. Mulher em cena, a condição da mulher no catolicismo de Juazeiro do Norte. p. 56
afeto pessoal do súdito. [...] a dominação é exercida
pelo sexo masculino e está ancorada no imaginário
coletivo de tal forma que não é percebida, pois faz
parte de uma estrutura subjetiva, em que a
organização social se estrutura através de princípios
androcêntricos.16

Dona Maria Tereza, mulher ativa no movimento e citada anteriormente neste


artigo, reforçava a figura masculina de dominação ao comparar Roldão com as figuras
santas que incorporava (Padre Cícero e São Francisco de Assis), afirmando que o mesmo
detinha características e capacidades semelhantes a estes santos. (Araújo 2008, pp. 130
e 132).

Outra figura feminina carismática que se destacou dentro do movimento e que


teve legitimação por meio de Roldão Mangueira e Antônio de França foi Luciene Diniz.
Araújo (2008) descreve que Luciene recebia revelações por incorporação dos próprios
personagens de Jesus Cristo e Maria, já Carneiro (1995), cita a figura de Padre Cícero
Romão, o mesmo santo que Roldão também incorporava. Embora o seu carisma fosse
reconhecido pela comunidade, Luciene necessitava do aval por parte de Roldão para que
suas palavras surtissem efeito. Assim, Roldão, recebendo uma profecia ao incorpor o
Padre Cícero, afirmara que aquela menina de 17 anos seria um assombro pra
humanidade. (Araújo 2008, p. 42). A partir deste advento, as revelações dela passaram
a ser não somente ouvidas, mas cumpridas. Em Araújo (2008), encontramos
depoimentos de homens e mulheres da comunidade apontando as ações de Luciene. A
mesma, segundo as palavras de um dos participantes masculinos do movimento, William
Silva, começou a por ordem no movimento (Araújo 2008, p. 40).

Luciene revelava através de seus guias que a vaidade feminina não era aceita no
movimento O fato é que o carisma de Luciene crescia a cada dia, sendo legitimada
também para a sua missão por meio de Antônio de França, através de uma visão que o
mesmo tivera. Com isto Luciene, por meio de incorporação, enfoca atos de “purificação”
e de luta contra a “vaidade”, como a mudança das vestimentas para timões azuis e
brancos e o desapego feminino em relação a adornos e maquiagens.

É importante destacar que Luciene reforça, por meio de suas revelações e


discurso, a dominação masculina. Por meio da religião, ela reforça a violência simbólica
sobre as representações de gênero. As mulheres, vestidas com timões azuis e brancos e
sem adornos ou maquiagem, no entendimento dela, não seriam motivo para o pecado do
homem. Assim, Luciene reforça os paradigmas controladores do corpo feminino. Para
roldão ela não era uma ameaça ao seu poder instituído, pelo contrário, ela contribuía

16
SOUZA, Edmundo. Mulher em cena, a condição da mulher no catolicismo de Juazeiro do Norte. p. 80
para reforçá-lo. De acordo com Araújo (2008, p 41) após as repetidas revelações de
Luciene sobre o uso de artífices de vaidade, pintura de unhas, cortes de cabelo e o uso
de calças compridas por parte das mulheres, numa das sessões, Roldão obrigara os
participantes a colocarem seus artífices de vaidade numa bacia, purificá-los com sal e
jogá-los fora.

Luciene também entrega uma revelação através de Jesus Cristo, afirmando que
todos os seguidores deviam seguir seu exemplo e usar as mesmas vestimentas que o
mesmo usara. Luciene não parou por aí, a profecia de um dilúvio, expurgando a terra,
destruindo os maus e fazendo com que somente os que ouvissem a mensagem
sobrevivessem, vem através de si, e não de Roldão, como ainda hoje imaginam muitas
pessoas que tem conhecimento do movimento. Ela data este acontecimento apocalíptico
para o dia 13 de maio de 1980.17

Luciene, mesmo detendo o poder da revelação por meio da incorporação e


profecias não tentara substituir o líder carismático, Roldão, que preenchia todos os
moldes pré-concebidos de liderança religiosa; antes, Luciene, em seus atos, reforça a
liderança masculina de Roldão, reforçando todos os instrumentos de dominação
masculina, abolindo a vaidade feminina e o pecado da carne que poderia ser despertado
pela vaidade feminina, limitando até mesmo a entrada de mulheres na Casa de Caridade
que não se adequassem aos instrumentos de controle. Vejamos estas características nas
palavras de um dos adeptos do movimento, o cunhado de Luciene, o senhor Willian
Silva: ...mulher com unha pintada não é mais pra entrar; mulher que corta o cabelo não
é mais pra entrar; mulher não pode usar calça comprida... (Araújo 2008, p. 40).

O poder, portanto, é distribuído de modo desigual


entre os sexos: as mulheres ocupam em geral as
posições subalternas na organização mais ampla da
vida social e também na organização do espaço
religioso, [...] A sociedade molda o ser mulher e o ser
homem. As mulheres são socializadas ao interior, ao
fechado e ao privado. 18

Lemos (2009), em seu livro, Religião e Masculinidade, efetua séries de entrevistas


com homens e mulheres, chegando à conclusão de que ambos os sexos, reforçam a
visão de liderança masculina dentro do âmbito religioso e que no imaginário popular
cristão a figura de deus, mesmo etérea, é representada através das lentes humanas
como masculina.

A masculinidade discursada pela religião é aquela que


perpassa o universo da força, da potência, da
provisão, da grandeza e do poder; características

17
Ver em “Anexos” recorte de jornal.
18
SOUZA, Edmundo. Mulher em cena, a condição da mulher no catolicismo de Juazeiro do Norte. pp. 84-85.
atribuídas a deus que é masculino. Os homens devem
expressar sua masculinidade assim como deus, pois
são representação dele aqui na terra.19

O movimento necessita de uma nova significação após o falecimento de Roldão no


dia 24 de julho de 1980, abrindo um interstício propício para que um novo líder surgisse,
suprindo a figura de Roldão. A não realização do dilúvio, além da ausência física do
fundador, levou o grupo a um sensível arrefecimento. (Carneiro. 1995, p. 30).

O novo líder carismático do sexo masculino é o senhor Antônio Rodrigues de


França. Ele, re-significa o movimento afirmando que o dilúvio não acontecera por
misericórdia divina, pois deus dera uma nova chance ao mundo para arrepender-se de
seus pecados.. Seu discurso é aceito pelos remanescentes e fortalecido por duas
mulheres, Tereza e Helena Fernandez Araújo (2008, pp. 137-140), que posteriormente
darão continuidade ao movimento. França declarava receber “revelações” por meio do
espírito de Padre Cícero Romão – o mesmo ícone que Roldão recebia anteriormente -
sendo assim, imbuído de poder e carisma sucessório (Carneiro. 1995, anexo VIII).

Uma reportagem do Jornal, O Diário da Borborema as aponta como as últimas


20
Borboletas Azuis. As mesmas ainda creem que um novo líder surgirá, revitalizando o
movimento a ponto de lotar as dependências do templo. Mesmo que estas duas mulheres
mantenham o templo, seguindo os mesmos rituais estabelecidos pelo fundador, não
reclamam para si o status de emissário divino ou de sucessor do movimento. Para elas, a
figura messiânica que virá será do sexo masculino e as liderará a um novo patamar na
história do movimento, superando a influência e o poder de Roldão. De acordo com Dona
Tereza, o bom é um homem assumisse a missão, mas na falta de uma pessoa do sexo
masculino comprometida, como é ela e D. Helena, elas é que dão prosseguimento aos
trabalhos. Araújo (2008, p. 135) Helena e Tereza se encaixam perfeitamente no padrão
religioso do gênero feminino, mulheres submissas ao ideal, guardando a tradição e
esperando por uma figura patriarcal enviada por deus.

19
LEMOS, Fernanda. Religião e masculinidade, identidades plurais na modernidade. p. 88.
20
LOPES, S. A resistência das borboletas azuis. Jornal Diário da Borborema, Campina Grande.
28 mar. 2010.
Conclusão

O trabalho presente nos propõe entender as relações entre homens e mulheres


dentro do movimento messiânico milenarista Borboletas Azuis, assim como suas
expressões e práticas como movimento messiânico milenarista no nordeste brasileiro.

Num primeiro momento, através de uma análise sociológica por meio de clássicos,
elucidamos o entendimento do que são estes modelos de movimentos religiosos
populares e por meio de uma descrição das práticas internas e ritos, trazemos luz sobre
o cotidiano, escolaridade e esclarecimento dos adeptos, seu relacionamento interno e
social na cidade de Campina Grande.

Posteriormente, através das análises das relações de gênero, trazemos


entendimento sobre as figuras de liderança masculinas e femininas presentes no
movimento e seus esforços em busca de re-siginficação do movimento após o não
acontecimento do dilúvio e posteriormente, a morte de Roldão e seu sucessor, Antônio
de França, ícones de representação do poder masculinizado dentro dos espaços
carismático e profético do movimento.

Concluímos que mesmo que a influência feminina no movimento chegue a posição


de liderança, sem o apoio ou representatividade de uma liderança masculina, o impacto
gerado pela figura da mulher não suscita crescimento ou efervescência, demonstrando
que em qualquer espaço religioso de raiz cristã encontra-se com papéis previamente
definidos e inculcados através dos séculos. Mesmo que a mulher possa desempenhar
papéis próprios do universo masculino, ela não tem uma das características básicas da
masculinidade: a força. E por não possuir esta característica, a mulher está subjugada ao
espaço secundário. (Lemos2009, p. 87).

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MULHERES NA PASTORAL POPULAR URBANA

Maria Brendalí Costa1


Introdução
O olhar, embora fragmentado, tem como ponto de partida a prática da
pastoral popular quando a Igreja Popular organizou e influenciou as práticas, as ideias
e os objetivos do movimento de libertação na América Latina. O artigo faz uma
reflexão, a partir da Teologia Feminista, das diferentes maneiras pelas quais esta
práxis influenciou, através dos princípios, da visão de mundo e da metodologia a ação
das mulheres que participavam da Pastoral Popular Urbana – PPU na periferia de
cidades da Diocese de Caxias do Sul.2 O estudo é bibliográfico, documental e por meio
de uma visão situada num lugar social, como mulher inserida neste contexto, para
analisar o papel ou a atribuição das mulheres nos projetos da pastoral popular.

1 A Pastoral Popular
O processo de nascimento de uma igreja3 preocupada com o povo e com os
problemas socioeconômicos, no início da década de 1960 é resultado de um processo
que frutificou inicialmente por iniciativa de lideranças de base, conscientes da
realidade de dependência e dominação latino americana. O Movimento de Ação
Católica, organizado a partir do laicato e dos problemas dos diferentes segmentos da
sociedade, foi vanguarda no processo de conscientização na América Latina, colocando
em prática o método ver, julgar e agir, como instrumento de análise da realidade.4
Com este método foi possível ajudar na superação do dualismo espiritual-temporal,
fé-política, comprometendo-se com os setores populares, numa dimensão
comunitária, favorecidos pela abertura provocada Concílio Ecumênico Vaticano II
(1962-1965) (Perani, 1984, p. 55). A Ação Católica será mediadora, no interior da
igreja, de uma reflexão cristã a partir de um engajamento e de uma consciência social
de “classe”.

1
Bolsista CAPES – Brasil. Mestranda em Teologia pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdades EST –
São Leopoldo/RS. Participante do Núcleo de Pesquisa de Gênero (NPG) e do Grupo de Pesquisa
Interculturalidade na América Latina. Advogada. E-mail: mariabrendali@hotmail.com
2
Diocese é um termo eclesiástico usado pela igreja católica, que serve para designar uma porção de povo e
de território confiada ao governo de um bispo. A Diocese de Caxias do Sul compreende uma área de 11.892
Km2 e uma população de aproximadamente 865.691 hab. (IBGE 2011). Sua jurisdição abrange 30
municípios.
3
Ao citar o termo “Igreja” quer dizer a Igreja Católica Apostólica Romana, embora nas décadas de 1960-
1990 a referência pode ser ao conjunto das Igrejas cristãs que se inserem no meio popular.
4
Deveríamos falar de Teologias da Libertação, assim dos diferentes instrumentos de análise da realidade ou
dos diferentes métodos teológicos da Teologia da Libertação que foram referência na América Latina nas
décadas de 1950 em diante.
Nesse período a ditadura militar na América Latina ficava cada vez mais
violenta contra a população e as lideranças. A reação à ditadura começa a ganhar
espaço na sociedade através da reorganização do movimento popular, sindical,
estudantil, das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs e dos Centros de Direitos
Humanos, para conquistar a anistia e a implementação da democracia. Foram longos
anos de luta e sofrimento em todo o Brasil.
A Igreja passou do apoio incondicional a questionar as práticas utilizadas pela
ditadura. Em todo o Brasil a repressão militar teve profundas implicações neste
processo. Os movimentos sindical, estudantil e popular foram praticamente dizimados.
Os partidos políticos foram fechados, para dar lugar à ARENA e MDB, partidos criados
pela ditadura militar. Qualquer reação popular era duramente perseguida.
Neste cenário floresce uma Igreja mais popular, após o golpe de 1964. É o
momento em que inúmeras lideranças, freiras, seminaristas e padres mudam de lugar
social e vão para o interior ou para as periferias das cidades, para viver no meio do
povo. É o tempo das ‘inserções’. Presença esta que tinha como objetivo o
compromisso com a vida e luta do povo, presença vivencial e de testemunho.
Este período histórico se caracteriza por grande criatividade teórica,
criatividade prática, compromisso dos cristãos no processo de libertação latino
americano. Era necessário dar uma nova explicação do porque comprometer-se.
Deste modo uma igreja popular vai acontecendo através da prática de uma
pastoral popular. Então, pastoral é a face prática da igreja (Libanio, 1983, 118).
Pastoral popular: constitui-se de todas as iniciativas de Igreja
no âmbito das classes populares, nas quais o povo encontra um
espaço para assumir sua responsabilidade na vivência de uma
fé comprometida com os problemas da justiça. Abrange,
portanto, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a Pastoral
Operária (PO), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), e outros
movimentos e pastorais que possuem (em âmbito geral ou
local) uma dinâmica semelhante. (Galetta, 1986, p. 7)

Também é o período de crescimento do Movimento Popular, dentro do


processo das organizações populares: na esfera sindical e no eixo popular:
associações de moradores, sociedades amigos do bairro, luta dos favelados, grupos de
mulheres, clube de mães, lutas de bairros por luz, água, esgoto, asfalto, escola,
creche (Galetta, 1986, p. 7).
A expressão “popular” é carregada de significado de uma prática que exigiu
uma elaboração teórica:
Os clubes de mães da periferia de Canoas são compreendidos
como “populares”. Este conceito distingue entre povo em
processo de organização e massa desorganizada e manipulável.
“Popular” não é compreendido como qualificativo nacional, mas
sim social. Também não circunscreve somente o segmento
espoliado pelo sistema capitalista, mas esse segmento em
processo de conscientização sobre sua condição histórica. Além
disso, o popular está integrado ao movimento que, com sua
práxis, luta para que a exploração da classe trabalhadora seja
superada historicamente. (Hans, 1993, p. 15)

Uma certeza existe: a práxis foi acontecendo, através da prática e da reflexão


da pastoral popular e do movimento de libertação, para depois acontecer a teorização
com a Teologia da Libertação, que se mantém atualizada pelo processo de prática e
reflexão.
Considerar esta efervescência social e eclesial é condição para analisar a
proposta da Pastoral Popular Urbana - PPU,5 organizada no início da década de 1980,
mas com raízes iniciais em 1969, como fruto de um longo período de
acompanhamento, participação e análise das transformações que ocorriam no mundo,
mais especificamente na América Latina. Foi um tempo em que se vivia, se respirava
e se alimentava da Teologia da Libertação, da Igreja Popular, da opção pelos pobres,
da radicalidade evangélica, da leitura popular da bíblia, das comunidades
comprometidas, da militância no movimento popular, no sindicalismo e na política
partidária. Época de idealismo, de inserção popular, da fé encarnada na vida, da busca
por justiça social mesmo que com perseguição e martírio, da descoberta de um Deus
que caminha junto com o povo. Experiência vivida por cristãos de várias
denominações religiosas e também por não cristãos. Por isso era chamado de
Movimento de Libertação.

2 A Pastoral Popular e a Teologia Feminista


Três aspectos são determinantes para entender este relato e para isso é
preciso se ancorar em teólogas feministas contemporâneas, para poder iniciar este
diálogo entre pastoral popular, teologia feminista e a experiência pessoal como mulher
neste processo. Então, em primeiro lugar, a experiência pessoal não é um
conhecimento menor. Conforme Marga J. Stroher para a Teologia Feminista “a
experiência coloca-se como critério hermenêutico”. Em segundo lugar a opção de não
usar o termo “mulher”, mas “mulheres”, visto que “o conceito essencialista mulher
passa a ser substituído pelo plural mulheres, pois há uma multiplicidade de
experiências de ser mulher” (Stroher, 2012, p. 122). E o terceiro aspecto que ao
elaborar a experiência de fé das mulheres é preciso levar em consideração a
duplicidade: opressão e resistência, que Elaine Neuenfeldt define com as expressões
“sujeitos subordinados” e “sujeitos ativos”:

5
A sigla PPU será utilizada, nesse texto, para identificar a expressão “Pastoral Popular Urbana”.
Fazer teologia a partir da experiência das mulheres significa ter
que adotar posturas metodológicas que analisam as mulheres
como sujeitos subordinados em estruturas sociais patriarcais e
sexistas, por um lado; por outro, como sujeitos ativos que
interagem com a realidade, que resistem e a transformam.
(Neuenfeldt, 2008, p. 122)

Deste tripé as mulheres constroem a sua história e o seu conhecimento na


tentativa de superação do clericalismo no espaço da Igreja, da religião.

2.1 A autoridade de um conhecimento que nasce da experiência


Ivone Gebara ajuda a situar a luta das mulheres na pastoral popular, nas
décadas de 1970 e 1980. Ela tem autoridade para falar do assunto, visto ser uma das
teóricas das teologias feministas na América Latina, que parte da realidade das
mulheres que vivem em situação de vulnerabilidade. Gebara já nos inícios dos anos de
1970 decidiu viver na periferia de Olinda junto com irmãs de sua congregação para
trabalhar mais próximo da vida do povo, nas CEBs nascentes. Este deslocamento de
lugar permitiu a ela uma visão particular da situação da vida das mulheres das classes
populares:
Meu caminho feminista começou em 1979 (ou 1980), quando
um amigo do Recife me convidou a escrever uma introdução a
um livro de sua autoria, O povo, o sexo e a miséria, uma
coletânea de relatos de poesia de cordel em que a mulher
aparecia como mercadoria, usada e desprezada. O discurso dos
homens em seu texto chocou-me e feriu-me. Na mesma época,
comecei a ler Dorothée Sölle e Rosemary R. Ruether que muito
me sensibilizaram, despertando-me para a luta antipatriarcal e
para uma problemática ainda pouco refletida entre nós. Foi uma
época em que a teologia da libertação estava em seu auge: não
havia espaço para falar das mulheres, a não ser que as
introduzíssemos discretamente na noção genérica de pobres.
Falar de uma maneira diferente, ou pretender uma abordagem
a partir da experiência das mulheres era, de certa forma, “trair”
o caráter geral da libertação em curso na América Latina.
(Gebara, 1994, p. 6-7)

Com esta afirmação de Gebara se pode compreender de que o discurso


teológico da época enfocava a questão do pobre ou da opção pelos pobres dentro do
processo de libertação. Mas um pobre visto na dimensão de classe não abrangendo as
categorias de gênero, etnia e diversidade. E mesmo na prática da Igreja Popular as
mulheres não aparecem como realidade específica da reflexão da Teologia da
Libertação. Qualquer atrevimento de uma abordagem de denúncia da opressão das
mulheres, como cita Gebara, era de certa forma, “trair” o caráter geral da libertação.

2.2 As mulheres na pastoral popular: protagonistas ou coadjuvantes?


Faz-se necessário analisar a evolução do papel ou da contribuição das
mulheres na igreja popular, através de algumas percepções desta questão nas
décadas de 1970 e 1980, com a opção de usar o termo mulheres, no plural, pois são
muitos e diferentes jeitos de ser mulher.
As mulheres aparecem na classificação de “leigos” na Igreja, na segunda
metade dos anos de 1970. Conforme Marina Lessa “só a partir de Vaticano II se pode
atribuir participação responsável aos leigos na Igreja”. A autora faz um elenco de
espaços de participação das mulheres: nos organismos continentais e nacionais
(CLAR, CIDAL e CRB); nas associações religiosas tradicionais (Apostolado da oração,
Congregações Marianas, Conferências Vicentinas ou Damas de Caridade, Movimentos
Mariais, Vicentinos, Legião de Maria); nos movimentos bíblicos e de catequese; nos
cursilhos; nos Movimentos Especializados de evangelização (Ação católica
especializada); nos movimentos familiares; nos movimentos operários; nas paróquias
sem pároco; com responsabilidade no governo da Diocese; nas CEBs (Lessa, 1976, p.
103). Ainda assim, seu papel das mulheres não chega a ser de protagonista, mas
apenas de coadjuvantes, de colaboradoras, mesmo que numa atuação profissional,
como se pode perceber no estudo de Epherem E. Lau:
As mulheres aparecem como colaboradoras profissionais na
Igreja em dois campos: como religiosas e como leigas. Segundo
o direito canônico, pertencem ao grupo dos “ceteri”,
“denominados leigos”. Como mulheres na Igreja têm, pelo
batismo e pela confirmação, a mesma tarefa de testemunhar e
os mesmos direitos e sofrem iguais discriminações no que se
refere às oportunidades de engajamento eclesiástico e de
concretização de seus direitos. O fato de pertencerem ao
“estado religioso” de forma alguma as inclui na estrutura
hierárquica da Igreja. O que para as religiosas aparece aqui e
ali como privilégio baseia-se em tradições culturais e
desaparece com o retrocesso da Igreja Popular. (LAU, 1987, p.
93)

Maria José Rosado Nunes pesquisou a questão desde uma perspectiva crítica
e feminista. Com relação à prática das mulheres na Igreja Católica em meados de
1980, traz à tona situações concretas vividas a partir de uma experiência e realidade
específicas. Sua avaliação é reveladora de um tempo de mudanças, pois tempos atrás,
as mulheres estavam em tradicionais associações católicas, tipo Filhas de Maria ou
Apostolado da Oração. Atualmente mulheres das classes populares estão nas CEBs,
onde exercem destacada influência, muitas vezes em posições de liderança. O fato das
mulheres poderem atuar em Comunidades de Base representou uma oportunidade
única de participação social. Nas reivindicações locais por creches, postos de saúde,
água ou melhoria no serviço de ônibus, é freqüente que a liderança seja exercida por
mulheres (Rosado, 1984, p. 27).
Cora Ferro, esclarece que em meados da década de 1980, “a mulher popular
na América Latina é aquela que pertence à classe explorada, por ter nascido nela ou
por opção, ou seja, a maioria das mulheres”. Mas como a igreja é uma estrutura
patriarcal aliada ao poder, a mulher não tem participação em nível de decisão na
Igreja. “A estrutura eclesial, hierárquica e masculina é um modelo de relação
opressiva homem-mulher, onde o homem dita em nível de consciência e fé o que a
mulher deve crer e praticar.” Então “a mulher é quem mais assiduamente participa em
tudo o que a Igreja organiza: culto, assistência social, catequese ...”, contudo
“transmite os valores e crenças religiosas, mas com o sentido fatalista que ela mesma
recebeu, assumindo-os em sua atitude de passividade e resignação”. Cora enfatiza
que a “mulher é mão-de-obra eficaz na infra-estrutura pastoral”, mas no “nível
teológico, negou-se à mulher a participação como sujeito de sistematização, porque
nas categorias do homem, a pessoa vale pelo que sabe à maneira masculina.” “No que
se refere à mulher nas comunidades cristãs populares, ela está presente de forma
maciça, mas completamente ausente na orientação e direção da instituição” (Ferro,
1982, p. 53-59).
A Igreja Popular assume uma perspectiva classista e incorpora a
mulher na vida e na ação evangelizadora das comunidades de
base. Porém, continuará limitada em seu desenvolvimento
enquanto não considerar, explicitamente, a questão feminina
como desafio específico para a construção da Igreja, os
ministérios, sua organicidade etc. Não desenvolve nem
sistematiza uma reflexão teológica que seja reformulada a
partir das alternativas propostas pela perspectiva feminina.
(Ferro, 1980, p. 59)

Neste período muitas mulheres trabalharam incansavelmente e construíram


práticas em nível de organização e animação de comunidades, formação sistemática
de lideranças, acompanhamento de pastorais, organização de movimentos populares,
participação em lutas do povo, através das associações de moradores e dos clubes de
mães, bem como na oposição sindical e organização de novos partidos políticos.
Estavam presentes trabalhando em nível local, na base, mas também em espaços
mais abrangentes de formação, de coordenação e assessoria. Mas não conseguem
sistematizar uma reflexão teológica na perspectiva da mulher, que contemplasse
todas as ações construídas na Pastoral Popular.

2.3 A duplicidade: opressão e resistência: a teologia como tarefa das


mulheres
Geralmente as mulheres estavam em quase em todos os espaços de ação
prática. Todavia no espaço de elaboração teológica ainda não haviam chegado. Das
mulheres que, neste período, fazem teologia, a maioria são religiosas.
Gebara confessa que ser teóloga no Brasil não é tarefa fácil. A teologia
sempre foi obra dos homens e entrar atrevidamente em seus santuários exige da
mulher a observação fiel de todas as rubricas. A “academia” é ainda o altar da
teologia, seu lugar de produção, aceitação e purificação. O segundo momento é o da
autonomia, da criatividade mais solta, mais madura, mais feminina, onde nasceram as
críticas, pois um pensamento teológico que propunha a revisão das bases de
sustentação das teologias assustava até mesmo as mulheres, apegadas ao esquema
religioso patriarcal. Sem dúvida, em outras palavras, um pensamento que se propõe a
olhar a realidade, de modo diverso, ouvindo as interrogações das pessoas,
especialmente das empobrecidas, e acertando o compasso teológico ao ritmo da vida
cotidiana, sempre atrapalha a dogmática tradicional e sua aparente segurança
(Gebara, 1994, p. 7).
A teologia desde a perspectiva das mulheres nasceu, assim, como fruto da
ousadia feminina e de uma nova visão da sociedade e da igreja. Segundo Gebara, o
fazer teológico da mulher é múltiplo e variado. Por isso, fala dos diferentes “afazeres
teológicos” femininos, classificando diferentes categorias de elaboração teológica
realizada por mulheres:
- As mulheres do povo: Exprime-se na convivência, na transmissão oral, na partilha
simples da vida. São funções femininas não oficiais: conselheiras, rezadeiras ou
benzedeiras, curandeiras e outros serviços profundamente ligados à dimensão
religiosa da vida humana.
- As catequistas populares: encarregadas da iniciação mais sistemáticas à doutrina
cristã. Se por um lado sua tarefa pode ser a simples repetição de coisas publicadas,
aprendidas na própria infância, ou impostas pelos sacerdotes, por outro, verifica-se
uma dimensão impressionante de criatividade, que tem influído fortemente na vida de
crianças e jovens.
- As religiosas: O labor teológico das religiosas, inseridas nos meios populares, tomou
corpo no Brasil particularmente a partir da década de 1970 e fortaleceu a formação da
consciência e da participação nas organizações populares, propiciando uma leitura da
fé cristã a partir dos problemas e esperanças do povo.
- As teólogas: O fazer teológico das mulheres que assumem o magistério teológico,
não se limita apenas a cursos, mas em assessorias a diferentes grupos e movimentos
das Igrejas cristãs (Gebara, 1994, p. 11-12).
Já no campo da teologia latino-americana, numa análise mais recente, a
presença da consciência feminista, ou de gênero, é recente, conforme Delir Brunelli.
Teve inicio nos anos 1970 e cresceu na última década. A fase preliminar: emergência
da mulher na Igreja, a partir da década de 1960. A primeira fase: a Teologia e a
questão da mulher. A produção teológica das mulheres latino-americanas começa na
segunda metade da década de 1970, mesmo que sem a preocupação de gênero. A
segunda fase: a teologia na ótica da mulher, na década de 1980. As mulheres
começam a perceber e a denunciar o caráter androcêntrico, patriarcal e demasiado
racional do discurso teológico. Questionam também o fato de a Teologia da Libertação
tratar os pobres de forma genérica e advertem que é diferente fazer teologia com
base na experiência dos homens ou das mulheres pobres. E a terceira fase: A teologia
feminista corresponde especialmente à década de 1990, quando se aprofunda o
diálogo entre as teólogas e as feministas e algumas encontram na categoria gênero
uma nova mediação analítica para a teologia (Brunelli, 2000, p. 209-214).
Com relação à afirmação de que depois do Concílio Vaticano II e, na América
Latina, com a Teologia da Libertação, se introduz uma nova epistemologia, Ivone
Gebara refuta a argumentação explicando que, de fato “não houve propriamente
mudança de epistemologia. A cosmologia e antropologia cristã continuaram as
mesmas, embora a linguagem dualista tenha sido mitigada, sobretudo pelo trabalho
de setores progressistas” (Gebara, 1997, p. 52-53).
Retomando a análise do papel das mulheres na pastoral popular, observa-se
que é inegável a contribuição da Teologia da Libertação, assim como da Igreja da
Libertação e da Pastoral Popular para o protagonismo dos pobres.
Outro aspecto incontestável é que o trabalho prático da igreja popular foi
realizado pelas mulheres. E aqui pode se verificar uma incoerência na vivência
concreta dos relacionamentos humanos. Keneth Serbin constata que “a prática da
teologia da libertação destoou por ser principalmente feminina, mas não conseguiu
transformar as relações de gênero na Igreja” (Serbin, 2008, p. 275).

2.4 A tentativa de superação do clericalismo e o protagonismo das mulheres


Mesmo que os documentos do Concílio Vaticano II e de Medellín tenham
assumido como doutrina que a Igreja é o Povo de Deus, sabemos que o que constrói a
história são os fatos e os acontecimentos. Nas ações de construção da Igreja Povo de
Deus não se levou em consideração e não se incluiu algumas categorias, entre essas
as mulheres.
A realidade concreta de construção da teologia e da pastoral do povo de Deus
provou a vivência da tensão com o modelo de cristandade que ainda resistia na
mentalidade e opções de homens e mulheres. E o clericalismo, que é uma
compreensão de liderança como domínio que reduz outras pessoas a súditos a serem
governados, não foi desmantelado das comunidades (Ruether, 1993, p. 173).
É por isso que não poucas mulheres, ao se depararem com a incoerência de
um discurso de libertação e a prática de clericalismo e androcentrismo, não resistiram
e rumaram para outras instâncias fora da igreja, embora fiéis à construção histórica
do Reino de Deus. A grande maioria, porém, ainda resiste em silêncio e trabalhando
nesta igreja. Outras nem são percebidas, pois sofrem o processo de indiferença e
invisibilização por parte da igreja.
A opinião de Marcela Althaus-Reid, é de que encontramos “um discurso que,
às vezes, carece de realidade”, pois o discurso da Teologia da Libertação era de
inclusividade, mas analisando a prática, não houve empenho em encontrar espaço e
lugar para todas e para todos, mas apenas para alguns (Althaus-Reid, 2006, p. 456-
457).
A análise de Marcela Althaus-Reid ajuda a entender que a teologia da
libertação latino americana, “nascida de um ethos de autoritarismo (social, político e
eclesiástico), perdeu as possibilidades de poiesis teológica, que provém não de
discursos sobre os pobres idealizados, mas da realidade dos pobres como pessoas de
diferentes identidades, de sexo e gênero” (Althaus-Reid, 2006, p. 459). Pois quem
vive e conhece a realidade sabe que “os pobres constroem comunidades em torno de
amor e compaixão e não mediante vínculos legais” (Althaus-Reid, 2006, p. 464).

3 A Pastoral Popular Urbana


Quanto à história da Pastoral Popular Urbana na Diocese de Caxias do Sul,
entendo que ela não pode ser analisada separada do contexto de mudanças sociais e
eclesiais que ocorreram nas décadas de 1960 a 1980, com repercussões importantes
na vida das pessoas, da igreja e da sociedade em geral.
A sociedade sofria um processo de profundas mudanças. Também a Igreja se
sentia forçada a mudar para ser fiel ao evangelho e à realidade que surgia. O Concílio
Ecumênico Vaticano II possibilitou que muitas práticas fossem revistas na igreja.
Neste processo de atualização, também na Diocese de Caxias do Sul havia o
questionamento sobre as prioridades pastorais até então assumidas. A análise da
realidade mostrava que o foco de atuação devia mudar. Até então a igreja buscava no
seu interior as motivações para a ação pastoral. Só que a realidade estava mudando
em processo acelerado e era necessário se adequar.
Nessa época, a questão da realidade urbana foi se tornando um desafio de
análise e compreensão para a ação pastoral da Diocese de Caxias do Sul. O inchaço
das periferias criava outro cenário nas cidades e a igreja não estava conseguindo dar
uma resposta a estes novos desafios.
Considerando toda a trajetória anterior, as diversas experiências de
descentralização da ação pastoral, a aposta no trabalho em equipe, a caminhada de
reflexão teológica a partir de uma nova maneira de analisar a realidade social,
econômica e política, os impulsos que vinham do Concílio Vaticano II, das
Conferências Episcopais de Medellín e Puebla, todo este conjunto de fatores
desencadeou em 1984 na proposta da PPU, como espaço de articulação das equipes
das áreas de pastoral6 de Caxias do Sul, de Farroupilha e Bento Gonçalves. Estas eram
as cidades que começaram a receber um grande número de pessoas em busca de
trabalho e melhores condições de vida, boa parte delas expulsas ou forçadas a deixar
a vida do interior, iam parar na periferia.
O mundo do trabalho e o operário que vivia na periferia da cidade passam a
ser a opção e o foco de atuação da PPU. Para a construção do projeto popular se
acreditava que era preciso estar onde o operário morava, em seu bairro. Por isso a
necessidade de criar comunidades em todos os bairros: movimento comunitário. A
igreja deveria estar presente também no local de trabalho do operário, na fábrica. Daí
a presença no movimento popular e no movimento sindical. E em vista disso se
criavam e organizam grupos e movimentos.
A metodologia de organização popular exigia conhecer a realidade. E para
atender esta realidade partia-se de um levantamento dos problemas que o povo vivia
localmente, através de uma assembleia e juntos era encontrada uma resposta
concreta à problemática. Isso exigia trabalho em conjunto com a Associação de
Bairros ou outras instituições existentes ou se criava um serviço para atender à
demanda constatada. Os encaminhamentos feitos na comunidade eram
acompanhados localmente pelos conselhos e assembléias.
Outro espaço de atuação era na organização do operário em sua dimensão de
classe, através do movimento sindical. Os movimentos de Ação Católica Especializada,
a Pastoral Operária e o Centro de Estudo Pesquisa e Direitos Humanos trabalhavam na
consciência dos direitos e ajudavam na resistência e organização, em nome da fé.
Orientava-se também à participação no movimento sindical e na política partidária.
Os assessores e militantes da PPU tinham encontros periódicos para estudo,
avaliação, planejamento e para alimentar a fé a partir da Palavra de Deus e dos
desafios da realidade. Juntos entendiam o processo metodológico de construção e
acompanhamento do processo. Não se admitia um assessor, um militante ou
coordenação sem base; precisava ter uma prática. Ação e reflexão. A reflexão da
prática levava a uma nova ação.

6
Área e Setor de Pastoral são usados aqui como sinônimos e significa uma divisão territorial da periferia da
cidade e sua respectiva localização em Caxias do Sul. Um conjunto de paróquias situadas na mesma região,
fazem parte de uma área ou setor de pastoral.
Desde o início da organização do Setor Sul,7 ainda em 1969 e depois com a
criação das áreas de pastoral, um dos aspectos que a PPU tem muito claro é um
trabalho colegiado com padres, religiosos, religiosas, leigos e leigas. Não só o trabalho
prático, mas a reflexão da ação que acontece através do processo coletivo de análise
da realidade, da opção por uma prática comum de organização e do retorno à reflexão
(autocrítica). Com esta presença de homens e mulheres, de leigos e leigas não havia
diferenças de tratamento.
Também na assessoria se podia contar com um quadro de lideranças
preparadas e capacitadas na leitura e análise da realidade, em sua maioria militantes
oriundos dos movimentos de Ação Católica.

4 A Pastoral Popular Urbana e a participação das mulheres


A proposta da Pastoral Popular Urbana tinha como primeiro desafio superar o
esquema paroquial sendo uma resposta à realidade do mundo do trabalho. Ela
pretendia desenhar um novo projeto de igreja. Mas no que se refere à presença e
participação das mulheres, várias perguntas precisam ser feitas: O fato de superar o
esquema de estrutura paroquial favoreceu a participação das mulheres? Rompeu-se
com o poder clerical estruturado e institucionalizado? Formar comunidades favoreceu
a busca por relações mais igualitárias entre homens e mulheres, nas quais as
mulheres tivessem o seu lugar reconhecido? A inclusão de mulheres nas equipes
favoreceu para que a visão feminista fosse respeitada e valorizada? Como acontece o
exercício do poder nessa nova proposta?
Talvez não seja fácil responder todas estas perguntas. Mas partilhando a
própria experiência, numa análise inicial se pode concluir que, de fato, as mulheres na
PPU são a mistura da tensão entre opressão e resistência que foi acontecendo na
experiência concreta do caminho de fé. São elas que realizam e tecem a prática
concreta. As mulheres são as responsáveis pelo trabalho concreto na base. Elas
conhecem a realidade dos bairros da periferia e estão sempre junto às lutas do povo:
na organização e animação de comunidades e seus serviços, na formação de
lideranças, nas assessorias de cursos e assembléias, na leitura popular da bíblia, nas
celebrações, na realização de conselhos e assembléias, junto aos grupos, nas
reivindicações dos bairros, nas festas, nos velórios e enterros, nas visitas às casas.
Neste período histórico havia muitos grupos que se reuniam na periferia, a grande
maioria motivados e coordenados por mulheres. Então as mulheres querem participar,
dar opinião, ser ouvidas e poder decidir. Trabalham de maneira eficaz e incansável na

7
Em janeiro de 1969 foi iniciado o Setor Sul de Pastoral, na periferia de Caxias do Sul-RS. Características
completamente novas: sem matriz; sem canônica; comunidades a partir de base leiga, grupos de lideranças;
equipe sacerdotal; equipe pastoral com religiosas e lideranças leigas. Alternativa para a paróquia.
infraestrutura pastoral. Contudo a atuação ainda é como um serviço e geralmente este
serviço é voluntário e gratuito.
Entre as lideranças participavam mulheres leigas, junto com religiosas de
diferentes congregações, que estavam inseridas nas comunidades de periferia. As
mulheres estão presentes nas equipes de coordenação da PPU, no processo de
reflexão e trabalhando em conjunto com os homens na condução do processo. São
elas as responsáveis pelo registro e elaboração dos relatórios das reuniões.
Neste período no contexto da Diocese de Caxias do Sul estão as CEBs
querendo e articulando um novo jeito de toda a igreja ser. A Pastoral Operária que
realiza trabalho de dinamismo sócio eclesial na organização de grupos, nas oposições
sindicais e na conscientização dos direitos trabalhistas. Também a Pastoral da
Juventude do Meio Popular – PJMP, na organização da juventude da periferia.
Interessante registrar que estas ações tem uma forte organização e estrutura com
lideranças que são remunerados para este trabalho. São os chamados liberados e
liberadas. Neste trabalho as mulheres assumem esta função em pé de igualdade com
os homens, descobrindo formas de sustento econômico para garantir dentro da
instituição um trabalho de base. Outro fator digno de nota é que foi conquistado um
local de fácil acesso no centro da cidade de Caxias do Sul, que se chamava “porão”,
pois de fato era o porão da casa do bispo que abrigava a sede destes grupos. Muita
gente se encontrava neste local, muitas reuniões são feitas. Ali se davam as
articulações pastorais e políticas, de homens e mulheres.
Uma experiência organizada e articulada a partir da metade da década de
1980 é a Pastoral das Mulheres Urbanas - PMU. Esta proposta agregou e mobilizou
mulheres que atuavam numa diversidade de iniciativas tais como: Clubes de Mães,
Saúde alternativa, organizações do Movimento Comunitário, alfabetização de adultos,
grupos de mulheres e outros. É um grupo que abrange mulheres das mais diferentes
denominações religiosas e das mais variadas ações para poder partilhar e refletir a
prática como mulher nos bairros da periferia de Caxias do Sul. Este grupo mesmo se
intitulando como ‘pastoral’, sofreu alguns questionamentos por parte da instituição,
justamente por sua diversidade e por ter nascido fora do espaço institucional. Se
poderia ousar dizer que nesta proposta há uma semente de elaboração e
sistematização teológica. Existe a tentativa de elaboração da mística de mulheres que
sonhando com um mundo novo, mas conhecendo a realidade de sua “aldeia”, tentam
encontrar motivação para criar uma rede de ação na periferia. Acreditam na ação local
das mulheres, mas querem que todas estas ações superem as barreiras de credos, de
opções políticas e ideológicas. É um grupo que dá sustento e motivação para muitas
mulheres que atuam fora do espaço eclesial, mas que se sentem cristãs no processo
de libertação. Embora grande parte das mulheres que coordenavam a PMU fosse
integrantes da PPU, este grupo não teve representação reconhecida na PPU. No inicio
da década de 1990 a causa da PMU foi declinando na medida em que algumas
mulheres começaram a se inserir em outros espaços de participação: nos sindicatos,
nos partidos, nas instâncias de governo e outros espaços da sociedade civil.
As mulheres exerceram destacada influência em comunidades, pastorais e
movimentos populares, muitas vezes em posições de liderança o que representou uma
oportunidade única de participação social. Não foram poucas as mulheres que
aprenderam a dar a própria opinião, a falar em público, a coordenar e exercer sua
liderança, a criar consciência da realidade que vivia como mulher cidadã. É freqüente
que a liderança seja exercida por mulheres organizando reivindicações locais por
creches, escola, postos de saúde, água ou melhoria no serviço de ônibus. Com o
avançar do tempo algumas começaram a perceber e a denunciar o caráter
androcêntrico, patriarcal e demasiado racional do discurso teológico e da prática
eclesial.
O estudo da Bíblia ajudou muitas mulheres na consciência de serem mulheres
e do seu papel na igreja e sociedade, movidas pela fé em Jesus e no seu projeto do
Reino de Deus. A Bíblia nas mãos das mulheres foi um instrumento de libertação e de
empoderamento. A leitura popular da Bíblia feita na visão das mulheres favoreceu
uma espiritualidade de resistência e de esperança de um mundo novo. A mulher
começa a fazer teologia de outro jeito.
A tentativa de uma leitura feminista por parte de algumas mulheres criou
situações constrangedoras de aversão ao discurso e à postura destas mulheres sendo
taxadas de feministas. Certamente algumas mulheres para sobreviverem no espaço
de atuação onde estavam começaram a adotar um estilo mais racional e ao “estilo dos
homens”. Não se conseguiu avançar na reflexão e elaboração feminista que fosse
própria da causa das mulheres que atuavam na década de 1980 dentro ou fora do
espaço da religião.
A questão crucial, porém, permaneceu nas relações de poder internas na
Igreja. Provisoriamente, podemos concluir que, embora o discurso no campo popular
fosse de libertação e de inclusão das minorias, este espaço de sistematização ainda se
apresentava como de preponderância masculina e clerical. Não se conseguiu
transformar as relações de gênero também na Pastoral Popular Urbana.
De fato e na prática, o poder das mulheres aconteceu na produção de
cuidados.
A Pastoral Popular Urbana historicamente mudou seu lugar social de inserção,
ou seu lugar teológico e a opção foi viver na periferia, no mundo dos operários.
Todavia a cosmovisão e a antropologia cristã continuaram as mesmas. Neste período
não houve a elaboração de um novo conhecimento teológico também das mulheres.
As mulheres não se sentiram autorizadas a elaborar sua experiência de fé.
Questões e causas que ainda precisam ser aprofundadas.

Referências

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GALETTA, Ricardo. Pastoral Popular e política partidária. São Paulo: Paulinas, 1986.

GEBARA, Ivone. Teologia em ritmo de Mulher. São Paulo: Paulinas, 1994.

______. Teologia ecofeminista: ensaio para repensar o conhecimento e a religião. São


Paulo: Olho D’Água, 1997.

LIBANIO, João Batista. O que é pastoral. São Paulo: Brasiliense, 1983.

RUETHER, Rosemary Radford. Sexismo e religião: rumo a uma teologia feminista. São
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TREIN, Hans A. O Evangelho no clube de mães: análise de uma experiência de leitura


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Organização de livro:
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Teologia para outro mundo possível. São Paulo: Paulinas, 2006.

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FERRO, Cora. A mulher Latino-americana, a práxis e a Teologia da Libertação. In;


TORRES, Sérgio (Org.). ASSOCIAÇÃO ECUMÊNICA DE TEÓLOGOS/AS DO TERCEIRO
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São Paulo: Paulinas, p. 48-63, 1982.

Artigo:
LAU, Ephrem Else. Religiosas e mulheres leigas como colaboradoras na igreja.
Concilium, Rio de Janeiro, n. 214, p. 93-98, 1987.

LESSA, Marina. A Mulher nos movimentos de igreja na América Latina. Concilium, Rio
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NEUENFELDT, Elaine. Teologia feminista na formação teológica – conquistas e


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PERANI, Cláudio. A Igreja no Nordeste: breves notas histórico-críticas. Cadernos do


CEAS, Salvador, n. 94, p. 53-65, 1984.
ROSADO, Maria José. A mulher e os ministérios: questão recolocada. Vida Pastoral,
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Artigo na internet:
STROHER, Marga J. A história de uma história: o protagonismo das mulheres na
teologia feminista. História Unisinos. Vol. No 9(2), p. 116-123, ago. 2005. Disponível
em:
<http://www.unisinos.br/publicacoes_cientificas/images/stories/sumario_historia/vol9
n9/art04_stroher.pdf>. Acesso em: 28 jul. 2012.
A família feliz: representações de família entre as Testemunhas de Jeová
em Santo Estevão/Ba (1970-2001)

Camila Noêmia Rener Santos Bastos1

Este trabalho tem como objetivo analisar as representações de família e, por


conseguinte, as relações de gênero, entre as Testemunhas de Jeová, na cidade de Santo
Estevão, Bahia, no período de 1970 a 2001. Representações construídas a partir do
discurso produzido pela Organização Torre de Vigia e do Corpo Governante, através de
suas publicações impressas, como livros e revistas.
As Testemunhas de Jeová surgiram no final do século XIX, período de grandes
questionamentos da população norte-americana em relação às denominações
protestantes históricas. A Guerra de Secessão (1861-1865) trouxe inquietações e
decepções, assim como propiciou o surgimento de grupos dissidentes, como o citado
acima.
Em 1872, Charles Taze Russel, ex-presbiteriano, ex-adventista2, fundou um grupo
de estudo, chamado Inquiridores da Bíblia, que tinha como principal objetivo disseminar,
através de impressos, as profecias milenaristas, forte influência dos adventistas. Em
julho de 1879, Taze Russel e seus colaboradores, incluindo sua esposa, Maria Frances
Ackley, começaram a publicar a revista Zion’s Watch Tower and Herald os Christ’s
Presence, conhecida popularmente por Watchtower3.
O segundo líder das Testemunhas de Jeová, Joseph Franklin Rutherford (1896-
1942) foi responsável pela modificação do nome do grupo, de União Internacional dos
Inquiridores da Bíblia, para Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados
(Watchtower Biblie and Tract Society of New York Inc.)4, chamado simplesmente como
Torre de Vigia. Uma verdadeira cidade, assim é a sede administrativa das Testemunhas
de Jeová, com parque gráfico, templo, morada de um grupo seleto, responsável pelas
decisões e direcionamentos dessa confissão religiosa, intitulado Corpo Governante. No
final de 1974, o Corpo Governante era formado por dez membros, atualmente são doze
membros.

1
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação pela Universidade Estadual de Feira de Santana – Bahia
2
Os adventistas cresceram e se fortificaram nesse período da Guerra Civil Norte-Americana, principalmente, por
causa de seu discurso fortemente milenarista.O milênio de Cristo é um dos eventos mais aguardados pelas
Testemunhas de Jeová, pois representa para eles o fim da violência e de todos os males que assolam a
humanidade, sendo um começo de um tempo de paz e alegria.
3
(PUGA e LÓPEZ, 2010)
4
(BORNHOLDT, 2004)
Conforme o relato da Exposição Histórica5, desde o final do século XIX já existia
Testemunhas de Jeová no País. Uma dessas Testemunhas era Sarah Bellona Ferguson.
Entretanto a primeira assembléia do grupo no Brasil aconteceu em 1922, quando o então
presidente do grupo, Rutherford, passou a ver o Brasil como um País em que o trabalho
do grupo poderia ter um bom êxito, devido ao número crescente de assinaturas da
revista The Watch Tower (que mais tarde passou a se chamar Sentinela), a qual era
traduzida em espanhol. O primeiro batismo foi realizado em 10 de outubro do ano em
questão.

As Testemunhas de Jeová reproduzem o discurso cristão da submissão feminina,


cabendo ao homem tomar decisões e a responsabilidade maior na orientação dos
membros da família nos “caminhos de Jeová”. Desta forma, o papel da esposa é a de
auxiliá-lo nesta tarefa, dando-lhe o suporte necessário para que a autoridade masculina
seja exercida e respeitada.
A naturalização deste discurso androcêntrico entre os fiéis resulta uma
perspectiva subalterna da mulher, vista como um ser inferior ao homem, incapaz de
tomar decisões no interior da família e nem em exercer cargos na congregação religiosa,
função exclusiva dos homens. A hierarquia nos papéis de gênero tem como
embasamento a própria Bíblia, ou a interpretação feita pelo Corpo Governante de alguns
trechos da mesma, como a ideia de culpabilidade de Eva pelo pecado original e o
consequente castigo divino pelo erro cometido. Dessa maneira, a mulher só encontra
redenção ao aceitar seu lugar de submissa, tanto ao seu marido, como às lideranças
locais do grupo, os anciãos.
A manutenção do poder masculino e de seu controle sobre a mulher perpassa pela
produção e reprodução de um discurso baseado na diferenciação e hierarquização entre
os sexos.Trabalho na perspectiva da História Cultural, em diálogo com as fontes orais e
impressas, para analisar a construção de um perfil ideal de família, através da
manutenção do modelo patriarcal, pautado na diferenciação entre os sexos.
O livro A História Cultural entre práticas e representações, de Roger CHARTIER
(1990), traz elucidações à respeito da construção social das representações e de como
elas são determinadas pelo grupo que as criam. Por isso, acredita CHARTIER, não há
discurso neutro na formação dessas representações, pois elas servem para legitimar e
impor as percepções sociais dos que as proferem.

A problemática do mundo como representação, moldado através


das séries de discurso que o apreendem e o estruturam, conduz
obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como uma
figuração desse tipo pode ser apropriada pelos leitores dos textos

5
Exposição Histórica da Obra das Testemunhas de Jeová no Brasil (1997)
(ou das imagens) que dão a ver e a pensar o real. (CHARTIER,
1990, p. 24)

Chartier demonstra como a apropriação dos discursos afeta a vida do leitor, pois
esses discursos podem produzir mudanças na própria compreensão deste sobre si
mesmo e sobre o mundo. No entanto, é preciso salientar que Chartier não descarta o
caráter autônomo da cultura, ele não coloca o texto como algo extremamente
condicionante sobre o pensamento do leitor. Portanto, falar nos discursos produzidos pela
Associação Torre de Vigia e de como eles influenciam na vida de seus fiéis, não isenta
estes da responsabilidade e consciência daquilo que estão aceitando como verdade.
As Testemunhas de Jeová estão inseridas num contexto social, no caso específico
deste trabalho, na cidade de Santo Estevão, situada à 40 km de Feira de Santana, com
características e dinâmicas próprias, das quais, mesmo com todo o discurso
homogeneizador produzido numa realidade diferente – Estados Unidos – não pode ser
deixado de lado, pelas peculiaridades da sociedade santo-estevense.
A Sociologia da Religião também se constitui numa importante contribuição para
os estudos históricos. Em se tratando de simbolismos, linguagens e representações o
pensamento do sociólogo Pierre BOURDIEU em Economia das Trocas Simbólicas (1999)
se faz necessário para esse trabalho, principalmente, para análise das trocas simbólicas
que acontecem com o grupo estudado, como e para quem ela é produzida, distribuída e,
digamos assim, consumida, já que BORDIEU trata essas trocas como uma relação
econômica e simbólica ao mesmo tempo; dentro do campo religioso de uma cidade
majoritariamente católica e conservadora. A linguagem apresentada pelo grupo, a
padronização de um estilo de roupa para irem à cultos, entre outras características são
reproduzidos pelo discurso escrito pela Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados
Como este discurso contribuiu para a construção de um modelo de família e as relações
de gênero existentes nela, para os fiéis Testemunhas de Jeová em Santo Estevão, essa é
uma das questões discutidas.

“[...] a religião permite a legitimação de todas as características de


um estilo de vida singular, propriedades arbitrárias que se
encontram objetivamente associadas a este grupo ou classe na
medida em que ele ocupa uma posição determinada na estrutura
social (efeito de consagração como sacralização pela
‘naturalização’ e pela eternização)” (BOURDIEU, 1999, p. 46)

 As Testemunhas de Jeová em Santo Estevão


A ação proselitista das Testemunhas de Jeová, vista pelos membros do grupo
como uma missão de valiosa importância ordenada pelo próprio Cristo, se constitui, com
toda certeza, naquilo que mais identifica as testemunhas perante as sociedades, no Brasil
e no mundo.
Partindo desta missão divina de fazer discípulos de pessoas de todas as nações6,
que as Testemunhas de Jeová chegaram a Santo Estevão no ano de 1969, para dar início
ao trabalho de evangelização e disputar por espaço no campo religioso santo-estevense.
Alguns irmãos e irmãs, membros da Congregação do Alto Saldanha7, em Brotas,
Salvador, fizeram o reconhecimento do campo, entrega de folhetos e brochuras do
grupo, e em 1970, alugaram um espaço para as reuniões. Uma das primeiras pessoas a
aceitarem o convite dos pioneiros foi uma senhora, já falecida, de nome Alaíde, católica
no período em questão, que convidou a entrevistada desse trabalho, dona Célia8, para
assistir uma das reuniões. Ela aceitou o convite, para ir à a reunião, na qual, segundo a
mesma, “aprendeu o nome de Deus”. A partir dai, dona Célia começou a estudar a Bíblia
com o grupo, se batizando no ano seguinte, juntamente com Alaíde e mais outra
senhora.
Ainda na década de 1970 o grupo se mudou para a Av. Rio Branco, antiga Rua do
Cemitério, uma das ruas mais conhecidas de Santo Estevão, e naquele período, uma das
mais importantes, se reunindo na garagem da casa de dona Alaíde. Mais tarde, já na
década de 1980, eles se mudaram para o Salão do Reino localizado na Rua A. Dona Célia
conta que, antes do grupo de pioneiros que começarem o trabalho no centro urbano de
Santo Estevão, estes já faziam o trabalho na Caatiguinha, zona rural do município, tanto
que, por muito tempo, a congregação que se instalou lá era chamada de Congregação
do Oeste9, enquanto que, a congregação urbana era chamada de Congregação do Leste.
Como se deu essa incursão numa cidade majoritariamente católica? Quais as
dificuldades de um trabalho pioneiro num campo com muitas resistências? Além das
Testemunhas de Jeová, um grupo evangélico, os Batistas10, abriram uma congregação
em Santo Estevão, na década de 1970 e em 1976, inauguraram o seu templo, a Primeira
Igreja Batista nesta localidade.
A cidade de Santo Estevão, dentro do recorte temporal escolhido para esse
trabalho, dos 06 prefeitos que a governou, teve a única prefeita mulher, Adair Miranda

6
Bíblia Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas, 1986
7
Infelizmente, o presente trabalho não teve acesso às fontes escritas do grupo, como Atas, que relatassem a
respeito desta chegada a Santo Estevão e nem em relação à congregação de Salvador, que começou o trabalho
nesta localidade.
8
Dados colhidos em entrevista com dona Célia, publicadora, em 2009 e em conversas com outros membros do
grupo
9
A presente pesquisa se concentrou apenas o estudo das Testemunhas na zona urbana de Santo Estevão, por
questão de tempo e de fontes também.
10
A Primeira Igreja Batista em Santo Estevão é fruto do trabalho da Primeira Igreja Batista em Feira de Santana.
Cerqueira e Silva, no período de 1977 a 198211. Segundo os censos do período, nas
décadas de 1970 e 1980, a população santo-estevense possuía, respectivamente, 25.410
e 30.869, sendo que mais de 80% da população vivia na zona rural. A economia tinha na
agricultura o seu principal sustentáculo, com a produção dos seguintes gêneros
agrícolas: feijão, milho, fumo, mandioca, laranja e castanha de caju. Já os censos de
1991, 1996 e 200012 revelaram uma diminuição crescente entre moradores da zona rural
e moradores da zona urbana. No censo realizado em 2002, dos 41.138 habitantes,
19.844 viviam na zona urbana do município, enquanto que 21.294 viviam na zona rural.
Durante todo o período estudado, entre resistências e adesões, já na década de
1990, o Salão do Reino em Santo Estevão contava com duas congregações, que se
reuniam em dias diferentes, devido ao aumento do número de membros: a Congregação
Central e a Congregação Progresso. A criação das duas congregações colaborou para que
o grupo construisse um Salão do Reino maior e num lugar melhor localizado, o que
resultou na construção do Salão do Reino, em 2001, na Avenida Teixeira de Freitas, com
capacidade de 200 pessoas, mais ou menos, em cada reunião. Hoje são três
congregações existentes: Central, Progresso e Nova Esperança. A construção do novo
salão durou cerca de 21 dias, com a colaboração de outros irmãos de cidades diferentes
da Bahia, que trabalharam em mutirão. O dinheiro para essa construção foi cedido pela
Organização Torre de Vigia, que faz empréstimos para a construção de templos. Esse
dinheiro é devolvido depois para que outros templos sejam construídos em outras
localidades, segundo contou dona Célia e demais membros consultados a respeito disso.

Para a sociedade santo-estevense, o grupo religioso Testemunhas de Jeová ainda


ocupa a posição de seita, pois não adquiriu capital simbólico suficiente para se
apresentar estar em uma outra posição dentro deste campo religioso. No
entanto,internamente, perante seus fiéis, os leigos do grupo, a instituição Torre de Vigia
adquiriu prestígio simbólico suficiente para construir habitus e representações na vida
destes leigos.

 Representações de família entre as Testemunhas de Jeová

A família é, sem dúvida, a instituição mais importante para a manutenção da


religião ou religiões, assim como o discurso religioso colabora grandemente para a

11
Livro do médico e memorialista Ivan Claret Marques Fonseca, intitulado, Introdução à História de Santo
Estevão do Jacuípe, 1983.
12
Segundo o IBGE, o censo de 1991, 1996 e 2000 Santo Estevão possuía, respectivamente, 37.006, 40.548 e
41.118 habitantes dos quais 12.660, 15. 696 e 19.674 estavam no espaço urbano e 24.346, 24.762 e 21.444,
respectivamente, na zona rural.
conservação do modelo patriarcal. Dessa maneira, elas estão unidas de forma consciente
ou não, através de um diálogo que envolve a sobrevivência de ambas, uma união
duradoura e que muito as beneficia. Ao estudar a relação família e religião, o objetivo
central é tentar perceber esse apoio mútuo e como a religião, ou, as práticas religiosas
influenciam na construção de habitus na família. O modelo familiar ideal produzido pelo
discurso da Organização Torre de Vigia, tendo como base principal a Bíblia, resulta em
representações e práticas entre os fiéis.
Esse discurso produzido numa realidade distante13 culturalmente da sociedade
brasileira, que por se só já possui peculiaridades regionais, tenta ser homogeneizante, a
partir de seu caráter fundamentalista, transformando numa verdade absoluta e
atemporal aquilo que é construído histórico e culturalmente.
Segundo a socióloga Maria das Dores Machado (1996): “A religião e a família
funcionam como uma espécie de mecanismo de equilíbrio, oferecendo ao indivíduo uma
ordem integradora e cheia de significados para sua vida em sociedade.” Dessa forma,
elas se oferecem como um referencial sob os quais o indivíduo pode se desenvolver de
forma completa e segura.
No que diz respeito às Testemunhas de Jeová, a família é vista como responsável
pela preservação e propagação dos ensinamentos do grupo, ou melhor, de Deus, e para
que isso aconteça, ela mesma deve lutar pela sua própria sobrevivência, apoiando-se no
discurso religioso. E o que o discurso religioso produzido pela Organização Torre de Vigia,
através do Corpo Governante tem a dizer a respeito da família? Quais são as
representações e hábitus que este discurso busca produzir?
Em seu principal livro sobre a família, intitulado O Segredo de uma Família Feliz
(1996) a família é mostrada como a mais antiga e principal instituição terrena,
responsável pelo desenvolvimento do ser humano e por uma sociedade bem estruturada.
Sendo assim, trabalhar para a preservação e o bem-estar da família torna-se algo
fundamental para o fiel Testemunha e para obter isso, é preciso refugiar-se na Bíblia, ou
nos discursos produzidos a partir dela. Segundo o mesmo livro:
Conselhos sobre conseguir uma família feliz aparecem de todos os
lados (...) Onde, então, podemos encontrar orientação familiar
confiável? (...) Essa fonte é a Bíblia. Segundo todas as evidências,
ela foi inspirada pelo próprio Deus. Se estiver inclinado a descartar
a possibilidade de que a Bíblia possa ajudar a produzir famílias
felizes, considere o seguinte: Aquele que inspirou a Bíblia é o
Originador do casamento. (Gênesis 2:18-25). A Bíblia diz que seu
nome é Jeová. (Salmo 83:18) Ele é o Criador e ‘Pai a quem toda
família deve seu nome’. (Efésios 3: 14,15) Jeová observa a vida
familiar desde o começo da humanidade. Ele conhece os

13
A Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados possui sua sede administrativa em Nova York, EUA, local
onde é produzido todo o material de áudio, vídeo e literário do grupo e repassado para as Casas Betel, filiais da
organização nos países em que eles possuem congregações – mais de 200 locais, desde o período estudado por
este trabalho. (BORNHOLDT, 2004)
problemas que podem surgir e dá conselhos para resolvê-los. Por
toda a História, aqueles que sinceramente aplicaram os princípios
bíblicos na sua vida familiar foram os que encontraram maior
felicidade. (TORRE DE VIGIA, 1996, pp. 10-11)

Através de exemplos extraídos da Bíblia ou de fiéis de várias partes do mundo, o


livro O segredo de uma Família Feliz procura inculcar nos membros do grupo que a
família precisa de Jeová para ser feliz e, mais que isso, ela precisa seguir, sem
questionar, seus ensinamentos e mandamentos. A orientação de Deus para o bom
funcionamento familiar perpassa pela organização dentro dela. Essa organização está
ligada à distribuição e diferenciação de papéis entre os sexos e pela manutenção do
poder masculino e, consequentemente, a submissão feminina.

 Submissão feminina e diferenciação entre os sexos


“As esposas estejam sujeitas aos seus maridos como ao Senhor,
porque o marido é a cabeça de sua esposa, assim como também
Cristo é cabeça da congregação.” (Efésios 5. 22, 23)14

Esta passagem bíblica acima, escrita pelo apóstulo Paulo aos Efésios, no primeiro
século da era cristã é, talvez, o principal texto que embasa o pensamento cristão a
respeito da relação entre homem e mulher, marido e esposa. Papéis bem definidos
podem ser observados nesta passagem, em que, à mulher, cabe a subserviência e
submissão e ao homem o papel de chefe. Dois versículos usados para construir
representações e práticas familiares, pautado na diferenciação e hierarquização entre os
sexos.
A analogia com o corpo humano, sendo a cabeça, parte responsável pelo comando
e direcionamentos, representada por Cristo e pelo marido, procura estabelecer uma
relação assimétrica entre homens e mulheres, em que, simbolicamente, o homem é
aquele que toma as decisões, quem orienta, quem guia os passos de sua família, assim
como Cristo faz com sua congregação. Assim, através da fé e de interpretações de
trechos bíblicos, escrito em contexto social, cultural e histórico diferentes, procura-se
naturalizar as desigualdades de direitos entre homens e mulheres.
No texto Mulheres protestantes: uma trajetória nem sempre submissa15, das
historiadoras Elizete da Silva e Bianca D’Aebs Almeida (2011), uma das questões
abordadas é sobre essas interpretações feitas aos textos bíblicos que legitimam o poder
masculino sobre a mulher, e a desconstrução através da busca de teólogas feministas,
no final do século XIX e início do século XX, em trazer à cena, a participação feminina na

14
Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas, 1986.
15
“Fiel é a Palavra”: leituras históricas dos evangélicos protestantes no Brasil, 2011, p. 337-384.
“historiografia cristã primitiva”. O feminismo protestante, segundo elas, teve como
principal motivo de luta, ampliar o espaço feminino dentro do protestantismo.
A mensagem evangélica, difundida pelo protestantismo, colocou
homens e mulheres em igualdade de condições perante Deus e
nas relações religiosas. No entanto, mantinha-se intacto o primado
masculino quanto ao ministério da pregação e a direção
administrativa da comunidade. (ALMEIDA e SILVA, 2011, p. 341)

Por ser um grupo para-protestante, e que se denomina cristão, as Testemunhas


também corroboram com este pensamento: igualdade entre homens e mulheres até um
certo limite, e este limite é o poder, seja ele de tomar decisões, de liderar, no lar ou na
congregação.
Sara Silva dos Anjos ao estudar O papel da mulher na expansão e consolidação da
Assembléia de Deus em Feira de Santana (1949-1980) analisa a importância das
mulheres assembleianas para o crescimento do grupo, pela grande atuação delas na
ação proselitista, mas que, mesmo assim elas estão sempre sujeitas a uma hierarquia,
na qual o homem está no topo. Segundo a autora: a estrutura simbólica da religião é,
em muitos aspectos, hierarquizada (ANJOS, 2008, p.16). As mulheres Testemunhas de
Jeová são muito atuantes no serviço de campo, mas não podem ocupar nenhum cargo no
grupo, como servo ministerial ou ancião, pois estes são papeis exclusivamente
masculino.
Como relatado por uma jovem casada, pertencente ao grupo, em entrevista: O
homem é a cabeça. As mulheres podem dar opinião. Falando da minha realidade, João
sempre procura ouvir minha opinião. O homem é a cabeça e pronto. Outra jovem
testemunha, mas solteira, também ratifica esse pensamento: O que a Bíblia diz é que o
homem é a cabeça da esposa e Cristo, a cabeça da congregação.16

No livro O Segredo de uma Família Feliz está registrado o seguinte:

A Bíblia nos informa que o homem foi criado com atributos que o
capacitaram a ser um bom chefe de família. Como tal, o homem
seria responsável perante Jeová pelo bem-estar espiritual e físico
de sua esposa e de seus filhos. Teria de fazer decisões equilibradas
que refletissem a vontade de Jeová e ser bom exemplo de conduta
piedosa.(TORRE DE VIGIA, 1996, p.31)

Ao ler os trechos das entrevistas e do texto acima referido, parece uma


reprodução do discurso de submissão feminina sem nenhum espaço para a crítica e
mudanças, principalmente, quando a fala de uma das entrevistadas termina em, “o
homem é a cabeça e pronto”. Parece, então, que a discussão se encerra ali. No entanto,

16
Entrevista realizada com Marcela Guimarães em 07 de fevereiro de 2013, na casa da entrevistada
há um limite para essa sujeição ao poder masculino, ele é, conforme Dona Nitinha,
relativo, ou seja, o poder masculino sobre a mulher é limitado pelo próprio tratamento
que o homem dá a ela – se a maltrata verbal ou fisicamente – podendo assim perder seu
efeito, quando o homem deixa de suprir o sustento de sua família, estando a mulher,
inclusive, livre para pedir o divórcio nesses casos.
Além disso, a necessidade de ouvir a opinião dela é algo salientado pelas
entrevistadas, pois, apesar da chefia do homem sobre o lar, pregado pelo grupo, no final
as decisões são tomadas em comum acordo. Se a mulher não tem o poder, ela tem os
poderes, como afirma Perrot, ou seja, ela se utiliza de estratégias para conseguir seu
espaço, ou mesmo, para influenciar nas decisões e atitudes masculinas de formas
múltiplas, sem demonstrar abertamente que está fazendo isso. Segundo Dona Jailza17,
em entrevista, afirma que: o homem é a cabeça, mas a mulher é o pescoço. Ao mesmo
tem pó que ela reconhece e respeita a autoridade masculina, porque essa é dada pelo
próprio Jeová, ela entende também que, através do diálogo, sedução, por exemplo, a
mulher pode fazer com que sua vontade prevaleça.

As três entrevistadas citadas acima, possuem idade entre 30 e 45 anos, sendo


Marcela – casada há 09 anos, com uma filha pequena e idade de 30 anos – , Renata e
Nitinha, solteiras. Possuem formação superior, trabalham, são independentes
financeiramente, inseridas numa cidade conservadora, como a sociedade
santoestevense, mas que possui uma realidade cada vez mais crescente de pessoas com
nível superior, em diversas áreas – saúde, licenciaturas, bacharelado em Direito, entre
outras formações – num intercâmbio constante com a academia. Mesmo assim, apesar
desta inserção, tanto no meio acadêmico, quanto no mercado de trabalho, um viés
conservador permeia seus discursos quando o assunto são papéis de gênero, as relações
das mulheres no grupo religioso.
De acordo com Renata, quando ela começou a fazer parte do grupo, esse discurso
de submissão feminina a incomodava, devido a sua própria vivência familiar como
também, por, neste período, está começando sua formação acadêmica, num curso de
Licenciatura. Filha de pais separados, ela e a irmã –possui outro irmão também – tiveram
que apoiar a mãe e assumiram algumas responsabilidades na família, o que a tornou,
segundo ela, uma mulher independente. A presença paterna não foi tão presente assim
em sua vida, como foi a materna, a chefia do lar, então, coube à mulher, ou às
mulheres, em seu caso e, por disso, ser submissa pareceu-lhe algo longe de sua
realidade.
O que fez, segundo a entrevistada, mudar de opinião foram os estudos da Bíblia,
com textos como o de Aos Efésios 5. 22, 23, que aos poucos foram sendo aceitos por ela

17
Entrevista realizada com Jailza Borges, em 27 de agosto de 2009, na casa da entrevistada
como verdade. Ela procurou adequar seus pensamentos e, de certa forma, suas próprias
vivências, como o divórcio dos pais, ao que é entendido pelo grupo como uma relação
saudável entre homem e mulher. Quando perguntada se faz parte de seu projeto de
vida, casar, formar uma família nos moldes tradicionais – pai, mãe e filhos – ela afirma
que: Sim, eu penso que sim. Ter filhos, eu não sei, mas casar eu penso que sim18.
Embora a família com a qual ela sonha, possa não incluir filhos, devido, segundo ela, à
própria falta de tempo que se tem em criá-los, o casamento, é uma possibilidade real.

A importância da família, a naturalização dos papéis de gênero, são discursos


produzidos e reproduzidos em grupos religiosos como as Testemunhas de Jeová, que
constroem representações e estimulam práticas, que justificam o poder e o controle

18
Entrevista realizada com Renata Conceição, em 23 de fevereiro de 2013, na casa da entrevistada

Referências Bibliográficas:
ANJOS, Sara Silva dos. O papel da mulher na expansão e consolidação da Assembléia de
Deus em Feira de Santana (1949-1980). (Dissertação de Mestrado), UFBA, Bahia, 2008.
BORNHOLDT, Suzana Ramos Coutinho. "Proclamadores do Reino de Deus": Missão e as
Testemunhas de Jeová. (Dissertação de Mestrado em Antropologia Social), UFSC,
Florianópolis, 2004.
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas simbólicas. São Paulo. Perspectiva, 1999.
BOURDIEU, Pierre. O poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações, Memória e
Sociedade. São Paulo: Difel, Editora Bertrand Brasil, 1990.
D’AEBS, Bianca Almeida e SILVA, Elizete da. Mulheres protestantes: uma trajetória nem
sempre submissa. In: ALMEIDA, Vasni de, SANTOS, Lyndon Araújo dos, SILVA, Elizete
da, (Org). “Fiel é a palavra”: leitura histórica dos evangélicos protestantes no Brasil. Feira de
Santana: UEFS Editora, 2011, p. 337-384.
MACHADO, Maria das Dores. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera
familiar. Campinas: Ed. Autores Associados/ANPOCS, 1996
PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Paz e Terra,
SP: 2010.
SOUZA, Sandra Duarte de (Org). Gênero e religião no Brasil: ensaios feministas. São
Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2006.
SOUZA, Sandra Duarte e LEMOS, Carolina Teles. A casa, as mulheres e a Igreja: relações de
Gênero e Religião no contexto familiar. São Paulo: Fonte Editorial, 2009.
masculino. Conforme Bourdieu (1999), o objetivo dessa, como de outras representações
religiosas, é manter uma estrutura já existente, através de sua legitimação
Em uma sociedade dividida em classes, a estrutura dos sistemas
de representações e práticas religiosas próprias aos diferentes
grupos ou classes, contribui para a perpetuação e para a
reprodução da ordem social (no sentido de estrutura das relações
estabelecidas entre os grupos e as classes) ao contribuir para
consagrá-la, ou seja, sancioná-la e santificá-la. (BOURDIEU, 1999,
pp. 52, 53)

As representações, o modelo ideal de família é construído com base em


interpretações bíblicas, tidas como verdade, mediante a legitimação do discurso
produzido pelo Corpo Governante. Este grupo seleto, dentro do próprio grupo, composto
exclusivamente por homens, ao afirmar a chefia masculina sobre o lar, está também
reafirmando esta chefia na própria congregação. Dessa forma, o homem, ao ser a cabeça
do lar está apenas exercendo seu poder de fato e de direito e a mulher, ao ser submissa
e ajudadora, também está cumprindo seu papel e sendo obediente ao que Jeová diz
através de seu Escravo Fiel e Discreto, isto é, àquele que é o representante de Deus na
Terra, por meio do qual, Jeová fala a seus fiéis.
Segundo a socióloga Sandra Duarte de SOUZA (2009), a pressuposição
sociocultural de que os homens são naturalmente superiores às mulheres, e, portanto,
possuidores de direitos sobre elas, colabora para a desqualificação das mulheres, assim
como para a perpetuação da violência doméstica, seja ela física ou simbólica, através de
uma visão de mundo construída sobre a ideia de dominação e superioridade masculina.
As mulheres Testemunhas de Jeová entrevistadas, reproduzem o texto da
hierarquia eclesiástica e estão satisfeitas com o papel subalterno que vivem na
comunidade. A pesquisa está em curso e novas fontes poderão trazer outras
possibilidades de comportamentos, práticas e representações entre os irmãos.

Considerações finais

O estudo sobre representações de família entre as Testemunhas de Jeová em


Santo Estevão/Ba (1970-2001) apresenta inúmeros desafios. Alguns já foram colocados,
como o fato de ele está inserido na História do Tempo Presente, tão próximo da vivência
do historiador que o escreve e analisa, bem como por falar de um grupo com poucos
trabalhos historiográficos no Brasil e inexistente na Bahia.
Pensar neste objeto de estudo é procurar a colaboração de outras disciplinas e
seus métodos de análise, como a Sociologia, a Antropologia, por exemplo. É também se
apropriar de alguns de seus conceitos, como o caso do conceito de campo e de
representações de Pierre Bourdieu, para compreender as estruturas internas do campo
religioso santo-estevense, bem como as relações de poder dentro do grupo Testemunhas
de Jeová e da legitimação do discurso da Torre de Vigia, através da produção de habitus
entre seus fiéis.
A História Cultural também colaborou para este estudo, principalmente, por
perceber e trazer à tona o sujeito, suas vivências, experiências, que interferem e
colaboram em seu processo de apropriação do discurso, no caso, do discurso da Torre de
Vigia.
As representações de família pautadas na hierarquização entre os sexos, com
papéis bem definidos para homens e mulheres se constituem numa tentativa de manter
o conservadorismo social, o modelo patriarcal de família, descaracterizando assim,
através de um discurso conservador, toda uma luta de movimentos feministas, por
exemplo, nas décadas de 1970 a 1990, de contestação desses papéis de gênero, a partir
da crítica a este modelo patriarcal.
ESTUDO COMPARADO: PRÁTICA DO ENSINO RELIGIOSO NO BRASILE EM
GUINÉ-BISSAU.
Comparative Study: Practice of religious education in Brazil and Guinea-Bissau.

Ricardo José Sanca1


Glauciane Souza2
RESUMO
O presente artigo esta inserido no projeto de iniciação cientifica: “Resgatando a
historia da laicidade do Estado, garantindo a liberdade religiosa”. A
pesquisa tem como objetivo identificar e analisar as principais diferenças no
tratamento do ensino religioso no Brasil e em Guiné-Bissau tendo como foco as
bases educacionais de políticas públicas, voltadas para a formação moral e ética do
cidadão. Para o desenvolvimento desta pesquisa utilizou-se o estudo comparativo,
baseado na aplicação de questionário entre os estudantes brasileiros e guineenses
do curso de administração pública da Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira- UNILAB. Este estudo é continuidade da pesquisa anterior,
incluindo os recém-ingressos na Universidade. Os resultados obtidos mostram que
diferente do Brasil, onde as escolas públicas são obrigadas a oferecer o ensino
religioso, em Guiné-Bissau esta prática ocorre só nas escolas privadas. Outros
resultados encontrados nos permitem relacionar dados que mostram mudanças nas
práticas religiosas de ambos os países.

Palavras-chave: Ensino religioso, Legislação, Educação.

ABSTRACT
This article is part of the project of scientific initiative: "Rescuing the history of the
secular state, guaranteeing religious freedom." The research aims to identify and
analyze the key differences in the treatment of religious education in Brazil and
Guinea-Bissau focusing on the educational foundations of public policies aimed at
the moral and ethical citizen. For the development of this research, we used the
comparative study, based on a questionnaire among Brazilian students and the
Guinean public administration course at the University of International Integration
Lusophone African-Brazilian-UNILAB. This study is the continuation of previous
research, including new ticket at the University. The results show that unlike Brazil,
where public schools are required to offer religious education in Guinea-Bissau this
practice occurs only in private schools. Other findings allow us to relate data
showing changes in the religious practices of both countries.

Keywords: Religious education, Public Policy, Education.

Introdução
A religião, principalmente a católica, está indiscutivelmente ligada à
educação brasileira desde seus primórdios. As primeiras escolas públicas nacionais
se originaram dos colégios implantados pelos jesuítas no século XVI.
____________________________________
1-Discentes do curso de Administração Pública da UNILAB (Universidade da
Integração Internacional Lusofonia Afro-Brasileira). Bolsistas de Iniciação Científica
– PIBIC/UNILAB. Trabalho orientado pela Profª Drª Marilia Domingos. E-mail:
glaucianessouza@gmail.com; 2-E-mail: ritchassanca@hotmail.com
Na época das grandes navegações, em que se “descobriu o Novo Mundo”, os
jesuítas já empreendiam campanhas por todo o mundo inclusive na África. Os
colégios jesuítas estavam presentes em todos os continentes, formando
missionários e intelectuais. No Brasil não foi diferente, os inacianos chegaram ao

1
país em 1549, criaram instituições de ensino, e instalaram uma estrutura
educacional fundamentada no catolicismo.
Expulsos em 1759, por motivos políticos, os jesuítas levaram consigo sua
estrutura educacional própria, mas o caráter pedagógico religioso instalado e
implementado por eles durante 210 anos não foi totalmente suprimido.
Os países africanos de língua portuguesa, como Guiné-Bissau, objeto deste
estudo, tem seu contexto histórico educacional semelhante ao do Brasil. A chegada
dos missionários católicos em solo africano significou doutrinação e conversão dos
habitantes por meio da educação formal, no entanto o tratamento do ensino
religioso no país - embora guarde algumas semelhanças - difere do Brasil em
muitos aspectos.
Com este trabalho pretendemos abordar alguns pontos acerca da maneira
como acontece o ensino religioso (ER) ofertado no Brasil e em Guiné-Bissau. Para
entendermos as principais diferenças e semelhanças no tratamento do ensino
religioso nos dois países, analisamos a legislação e políticas educacionais vigentes,
o PCNER, elaborado pelo Fonaper, a influencia do contexto sócio-politico no campo
educacional, em particular no que concerne ao ER, e a utilização do ensino religioso
como instrumento de formação ética e moral.
A pesquisa se desenvolveu em três etapas: levantamento da legislação e
base teórica referente ao tema; aplicação de questionário composto de questões
abertas e de múltipla escolha a uma amostra de alunos do curso de Administração
Pública da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(UNILAB), a qual é composta de guineenses e brasileiros; e uma entrevista
exclusivamente com alunos guineenses.

Ensino Religioso no Brasil, uma discussão além das fronteiras escolares

Quando se trata do tema ER no Brasil, se observam duas linhas de


pensamento antagônicas, a primeira defende que o ensino religioso é essencial na
vida escolar dos educandos, pois a disciplina dispõe de componentes necessários à
formação integral humanística, tais como moral, ética, cidadania e tolerância.
Para Figueira (2012, p. 12), a religião não é apenas um conjunto de crenças
e práticas, também é o modo pelo qual o homem compreende, explica e ordena a
realidade em seu entorno, como a mais derradeira expressão da humanidade,
correspondendo ainda ao discurso do homem sobre o mundo e sobre si mesmo.
A educação religiosa na sua proporção humanística não seria somente objeto
de conscientização ou moralismo, mas sim trataria de discriminação étnica e
religiosa, debateria questões de valores, símbolos, singularidades e pluralidades.

2
Nessa perspectiva, o ER se apresenta como uma ferramenta eficaz para o
combate à intolerância, visto que os princípios do pluralismo e respeito à
diversidade estão resguardados.
No outro extremo há os que defendem uma educação pública laica, livre de
qualquer intervenção de cunho religioso, alegando que o Estado só deve interferir
no campo religioso quando o objetivo for à proteção e segurança moral do
individuo, quando sua liberdade de crença estiver ameaçada.
A ética de fundo religioso, que cada um terá (ou não)
de acordo com a própria escolha, é relevante para ser
compatibilizado no plano individual, no intimo da
consciência de cada um, embora não possa ser
abordado por um Estado que deve, por natureza laica,
ignorar os assuntos da fé como forma de proteger a
liberdade de consciência, de crença e de culto.
(FISCHMANN, 2011, p.09)

Cavaliere vai além, ao relatar a concepção do ER como disciplina curricular


de oferta obrigatória nas escolas públicas: “O Estado, incapaz de resolver
problemas sociais, cede parte de suas responsabilidades às instituições religiosas,
esperando que elas consigam apaziguar, curar feridas, postergar soluções.”
(CAVALIERE, 2006, p.11)
Este posicionamento concretiza a oposição da inclusão e permanência da
disciplina em questão, nas escolas. O Estado recorre aos preceitos e dogmas da
religião para se desvencilhar de problemas de ordem político-social, cometendo um
grave engano no que se refere à diversidade de crença e de consciência brasileiras.

Ensino religioso, como ministrar?

Um ensino religioso que atenda as características impostas pelo Estado, não


depende exclusivamente de aspectos filosóficos; são necessários metodologias,
técnicas e materiais para subsidiar o trabalho do docente.
Neste ponto há um impasse, que nos leva às mais indesejáveis situações,
desde docentes tomando como princípios para o ER a sua própria religião, até
outras disciplinas sendo ministradas no horário destinado ao ensino religioso.
A lei 9.475/97, que dá nova redação ao art. 33, da LDBEN/96, estabelece
que
“O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte
integrante da formação básica do cidadão e constitui
disciplina dos horários normais das escolas públicas de
ensino fundamental, assegurado o respeito à
diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas
quaisquer formas de proselitismo”.

3
No entanto, não institui um “padrão”, modelo ou método de ensino a ser seguido
pelas escolas ou pelos docentes. A tarefa de fixar as diretrizes curriculares para o
ensino religioso acaba ficando a critério das escolas, tendo em vista que a lei prevê
que “Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos
conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e
admissão dos professores.” (Art. 33 §1º, LDBEN/97), mas esse, na maioria dos
estados, se abstém de seu papel.
Definido como disciplina curricular, assim como as demais ministradas nas
instituições de ensino, o ER guarda duas interessantes peculiaridades, a saber, é a
única disciplina expressa na Constituição Nacional, e, ao mesmo tempo é aquela na
qual a responsabilidade de habilitar profissionais para lecionar é retirada do poderio
do Estado e repassada para a sociedade civil, configurando uma inversão de papeis.
De acordo com o parecer divulgado pela Câmara de Educação Superior/DF,
na pessoa da conselheira Eunice Durham, “é impossível prever a diversidade das
orientações estaduais e municipais e, assim, estabelecer uma diretriz curricular
uniforme para uma licenciatura em ensino religioso que cubra as diferentes
opções.”
A inexistência de um parâmetro curricular nacional para o ensino religioso,
apesar de prontamente explicada pela Câmara Superior de Educação, abre espaço
para diversas disparidades e inconstitucionalidades no tratamento do ER,
principalmente quanto aos critérios de seleção de professores, e definição de
conteúdos e temas usados para ministrar a disciplina nas escolas públicas.
Em geral, os critérios para seleção dos professores, são preenchimento da
carga horária dos docentes, identificação e interesse do profissional por teologia.
Ficando a critério do professor a escolha do material didático, métodos e técnicas
de ensino, onde se identifica a possível intervenção da crença (ou não crença),
pessoal do professor.
Em resposta a um pedido de autorização para o funcionamento do curso de
Licenciatura em Ensino religioso, que seria ministrada pela Faculdade de Ciências
Religiosas e Teologia Eurípedes Barsanulfo, e mantida pela Associação Aliança de
Assistência ao Estudante, a Secretaria de Educação Superior, afirmou que não cabia
à União, determinar, direta ou indiretamente, conteúdos curriculares que orientam
a formação religiosa dos professores, o que interferiria tanto na liberdade de crença
como nas decisões de Estados e municípios referentes à organização dos cursos em
seus sistemas de ensino, completando que não lhe compete autorizar, reconhecer
ou avaliar cursos de licenciatura em ensino religioso, cujos diplomas tenham
validade nacional.

4
Diante desta posição da Secretaria de Educação Superior, surge o
questionamento:
Como o Estado pode assegurar que o ER ministrado nas escolas públicas de
todo país seja baseado no respeito á diversidade cultural religiosa do Brasil, sem
qualquer forma de proselitismo?
Em um país laico, a proteção da liberdade de consciência é dever eminente
do Estado. Quando este se omite, mesmo sob a alegação de que “é preciso evitar
que o Estado interfira na vida religiosa da população e na autonomia dos sistemas
de ensino”, fica a critério de terceiros, mesmo com preparo pedagógico, garantir ou
não integridade da formação cidadão e seguridade de direitos configurados
fundamentais.

PCNER: Moral, ética e ensino religioso na escola pública

Diante da inexistência de um parâmetro curricular para o ensino religioso,


uma entidade civil denominada Fonaper (Fórum Nacional Permanente do Ensino do
Ensino Religioso), composta por pessoas da sociedade civil, educadores, pessoas
jurídicas e ligadas a entidades religiosas, se propôs a estabelecer os PCNER
(Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Religioso).
Criado em setembro de 1995 em Santa Catarina, em meio a intensas
discussões a respeito da introdução do ensino religioso na LDB de 1971, o Fonaper
tinha “por objetivo consultar, refletir, propor, deliberar e encaminhar assuntos
pertinentes ao Ensino Religioso – ER” (FONAPER, 1997). Atribuindo-se entre outras
finalidades, o direito de exigir que a escola, seja pública ou privada, ofereça o ER,
em todos os níveis de escolaridade, respeitando as diversidades de pensamento e
opção religiosa e cultural do educando. Além de subsidiar o Estado na definição do
conteúdo programático do ER, promover o respeito e a observância da ética, da
paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e dos outros valores
universais.
Em 1997, o Fonaper publicou o PCNER, apresentando o projeto: “Pela
primeira vez, pessoas de várias tradições religiosas, conseguiram juntas construir
elementos constitutivos do Ensino Religioso como disciplina escolar, cujo objeto é o
Transcendente”. (PCNER, 1997)
Composto de cinco vertentes: Cultura e Tradições Religiosas, Escrituras
Sagradas/ Tradições Orais, Teologias, Ritos e Ethos, os PCNER buscaram retirar a
ligação direta que o ensino religioso mantinha com a igreja, e tentou transforma-lo
em área de conhecimento, uma disciplina pedagógica composta de conteúdos

5
capazes de abranger a maioria das confissões, fundamentando-se no conhecimento
e no dialogo.
Os aspectos referentes à Cultura e Tradições religiosas apresentavam uma
visão voltada para a relação da ética e os valores da tradição religiosa, analisando o
sentido da existência humana em diferentes concepções culturais.
A vertente Escrituras Sagradas/Tradições Orais consistia em “textos que
transmitem, conforme a fé dos seguidores, uma mensagem do Transcendente,
onde pela revelação, cada forma de afirmar o Transcendente faz conhecer aos seres
humanos seus mistérios e sua vontade, dando origem às tradições.” (PCNER,
1997).
O estudo das Teologias, remetem ao repasse através dos preceitos religiosos
do conhecimento do Divino, -tratado no PCNER, como Transcedental-, através da
religião.
Ritos e Ethos são baseados respectivamente nas práticas, crenças e formação
moral do ser humano. Onde a moral é fruto dos valores obtidos pela religião.
No primeiro momento, tem-se que a proposta não é ensinar os princípios ou
dogmas das religiões, mas sim tomar como base seus princípios e valores para
imputar ética e moral aos cidadãos. Mas, quem não é adepto de nenhuma religião?
Em momento algum se menciona a liberdade de consciência ou de crença, o
conteúdo do PCNER se baseia apenas na liberdade religiosa.
Ora, a liberdade consciência é maior do que a liberdade religiosa, visto que
essa “É o direito de “escolher entre crenças”. Já a liberdade de crença ou de
consciência é o direito de escolher entre crer ou não crer em uma divindade (ou
divindades ou ser supremo), cultuando-a (ou não) através de uma religião ou grupo
de pertencimento.” (DOMINGOS, 2010, p.54)
Por vezes se menciona a “fé dos cristãos”, se dirigindo aos educandos como
fiéis. Fica a impressão que frequentam as escolas apenas aqueles que pertencem a
algum tipo de religião; os ateus e agnósticos são visivelmente excluídos. Na
percepção apresentada pelo Fonaper, quem não pertence a nenhuma confissão, ou
seja, não mantêm contato com nenhum valor doutrinário não goza de plenos
princípios éticos e morais.
O valor moral tem ligações com um processo dinâmico da
intimidade do ser humano e, para atingi-lo, não basta deter-se á
superfície das ações humanas. Essa moral está iluminada pela
ética, cujas funções, por sua vez são muitas, salientando-se a
crítica e utópica. (...) A função utópica projeta e configura o ideal
normativo das realizações humanas. (PCNER, 1997)

6
A religião de âmbito privado passa a ser pública, com o intuito de formar
cidadãos éticos e capazes de viver em sociedade, visto que as ações do ser humano
por si só não são capazes de configurar o Ethos adequado à vivência humana.
O ER se configura “laico”, à medida que não privilegia diretamente nenhuma
confissão, no entanto a laicidade não consiste apenas na igualdade de direitos entre
as religiões, há também o aspecto relacionado à liberdade de consciência,
suprimido no texto do PCNER.

Ensino Religioso em Guiné-Bissau

Em Guiné-Bissau, país de precedentes históricos semelhantes ao do Brasil,


onde o setor educacional tal como se conhece hoje, nasceu da intervenção jesuíta,
a religião, assim como assuntos tocantes ao campo da fé, não ultrapassam os
domínios do privado.
Dado a observância do principio de laicidade presente claramente na
constituição da Guiné, não se justifica haver ER, nas escolas públicas do país. O ER,
entendido como pertencente à esfera privada, só é oferecido nas escolas
confessionais.
A implantação do ER nas escolas confessionais da Guiné é assegurada pela
constituição guineense: “É garantida a liberdade de ensino de qualquer religião
praticada no âmbito da respectiva confissão”. (artigo 52º § 3 Constituição
Guineense/1996), isto é, a disciplina ER cabe apenas às escolas privadas,
provenientes das religiões existentes no país.
O ensino religioso ministrado nas escolas confessionais obedece aos
princípios das instituições religiosas educacionais, reputando que cada uma das
instituições possuem doutrinas diferentes, até mesmo opostas. O que obviamente
acarreta acentuadas distinções na forma como acontece à prática do ER.
Tomemos como exemplo, a escola Adventista Betel: os professores desta
instituição, que em geral são adventistas, costumam iniciar e terminar a aula com
uma oração, leitura dos versículos da Bíblia para meditação. As aulas de ER são
baseadas nas escrituras sagradas e no espírito de profecia, escritos da Ellen G.
White, pioneira da Igreja Adventista do Sétimo Dia.
Surgindo como uma das prioridades ou porque não dizer a razão da
existência de todas as escolas religiosas de Guiné-Bissau, o ER é percebido como
ferramenta de difusão de crenças religiosas. Prova disso é o fato dos proprietários
das escolas confessionais desenvolverem estímulos e métodos educativos para
promover a aceitação por parte dos alunos, das normas e diretrizes da religião, a
qual pertence à escola.

7
Além disso, os responsáveis legais dos educandos são convidados a assinar um
documento no momento da matricula, onde se comprometem que o aluno em
causa, cursará o ER e consequentemente respeitará as normas estabelecidas pela
instituição religiosa.
Mesmo quando o ER se encontra resguardado no campo privado,
inevitavelmente surgem conflitos. É comum ocorrerem “choques” de crenças entre
os alunos de outras confissões religiosas, contrária à da escola na qual estão
matriculados. Aqui há uma incontestável perda de princípios e direitos
fundamentais, visto que é comum neste tipo de situação, o educando modificar sua
pratica religiosa enquanto está nos limites da escola, caso contrário não poderá
permanecer na instituição.
A formação moral, também constitui disciplina escolar em Guiné,
denominada Educação Moral. Seus conteúdos e metodologia de ensino são
similares aos do ER, ou seja, são fundamentados na religião. Tanto a Educação
Moral, quanto o Ensino Religioso, constituem métodos de evangelização de alunos,
professores e funcionários que decidem ingressar na escola.
O Ministério da Educação Nacional, não interfere na educação religiosa. O
Estado se detém em questões pertinentes à promoção da educação e criação de
políticas públicas com vistas a reduzir e combater o alto nível de analfabetismo
nacional.

Legislação: caminhos percorridos pelo ensino religioso no Brasil

No século XVI os jesuítas iniciaram a caminhada ao redor do mundo


catequetizando e convertendo povos e nações ao catolicismo. Chegando ao Brasil
em 1549, atendendo aos interesses da Corte Portuguesa e aos seus próprios, os
jesuítas criaram instituições de ensino público, e doutrinaram os nativos, tanto por
meio da adaptação do catolicismo a língua local, quanto por meio do ensino da
língua portuguesa aos nativos, condição indispensável à colonização. RANQUETAT
(2007, p. 164, afirma que : “A evangelização e catequização destas populações foi
de alguma maneira uma espécie de ensino religioso, de educação e formação
religiosa de acordo com os princípios da moral e da doutrina católica.”
Os missionários jesuítas não se limitaram ao ensino das primeiras letras,
havia também o ensino superior para formação de sacerdotes com cursos de
Teologia e Ciências Sagradas. Permanecendo no país por 210 anos, os inacianos
implantaram no país toda uma estrutura educacional, composta por métodos
pedagógicos e uma moral baseada nos princípios católicos.
Após a expulsão dos inacianos do território nacional, a educação passou a
ser responsabilidade de pessoas ligadas à igreja católica. Ao mesmo tempo em que

8
se educava, se doutrinavam as crianças, propagando a fé católica e tornando o
catolicismo a religião do Estado, fato que se confirma no 5º artigo da primeira
Constituição Política do Império do Brasil, em 1824. “A Religião Catholica
Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras
Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para
isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo. (Art. 5, Constituição
Federal/1824)
No entanto a primeira lei que tratava do ensino religioso foi instituída três
anos depois. Promulgada por D. Pedro I a lei de 15 de outubro de 1827,
determinou a criação de “(...) escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas
e lugares mais populosos do Império”. E no Art. 6º determinava que
“Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro
operações de aritmética, prática de quebrados,
decimais e proporções, as noções mais gerais de
geometria prática, a gramática de língua nacional, e os
princípios de moral cristã e da doutrina da religião
católica e apostólica romana, proporcionados à
compreensão dos meninos; preferindo para as leituras
a Constituição do Império e a História do Brasil”.

Tal situação perdurou até o inicio do período republicano. Se iniciava um


novo regime com doutrinas e diretrizes distintas do regime político anterior. Como
a igreja católica até então mantinha ligações políticas profundas com o Estado,
fazia-se necessário a total separação entre Igreja e Estado. Uma das primeiras
ações institucionais do governo provisório, nesse campo, foi o decreto 119-A. Foi
instituida a liberdade de culto, e vedada qualquer intervenção do Estado em âmbito
religioso, pondo fim ao padroado no Brasil.
Apesar do decreto nada dispor sobre o campo educacional, este deu base
para o ato constitucional seguinte. A Constituição de 1891, primeira do período
republicano, estabeleceu a desvinculação do Estado com qualquer igreja. A
educação tomou base nos princípios da Reforma de Benjamin Constant que pregava
a gratuidade da escola primaria, a liberdade e laicidade do ensino: “Será leigo o
ensino ministrado nos estabelecimentos públicos”. (Art. 72º § 6º, Constituição
Federal/1891)
Durante alguns anos a religião teve seu espaço nas escolas públicas,
ocupado pela Educação Moral. A disciplina denominada Educação Moral e Cívica
mantinha aspectos seculares e nacionalistas, atendendo ao modelo republicano. O
civismo substituiu o ensino religioso nas escolas públicas, até a Era Vargas (1930-
1945), em que o Decreto 19.941/31, reintroduziu o ensino religioso de caráter
facultativo, com o objetivo de conseguir apoio das elites católicas.

9
Somente na Constituição de 1934, o ensino religioso ganhou um aspecto
regulatório especifico. No qual o ensino religioso confessional de matricula
facultativa era oferecido em horários normais em todas as instituições de ensino,
incluindo as de educação profissional.
O golpe militar de 1937 que manteve Vargas na presidência anulou a
constituinte de 34, e instituiu uma nova Constituição, onde
“A educação física, o ensino cívico e o de trabalhos
manuais serão obrigatórios em todas as escolas
primárias, normais e secundárias, não podendo
nenhuma escola de qualquer desses graus ser
autorizada ou reconhecida sem que satisfaça aquela
exigência.” (Art. 131, Constituição Federal/1937).

O ensino religioso perdeu a obrigatoriedade, e tornou-se matéria ordinária.


A reposição da obrigatoriedade do ensino religioso ocorreu na Constituição
de 1946 e nas constituições seguintes o ensino religioso manteve-se, sofrendo
somente algumas alterações, quanto ao nível educacional no qual o ensino religioso
deveria ser ministrado.
Em 1961, a primeira lei de Diretrizes e Bases da Educação dispunha no Art.
97:
“O ensino religioso constitui disciplina dos horários das
escolas oficiais, é de matrícula facultativa, e será
ministrado sem ônus para os poderes públicos, de
acôrdo com a confissão religiosa do aluno, manifestada
por êle, se fôr capaz, ou pelo seu representante legal
ou responsável”. (LDBEN, 1961).
O registro do profissional responsável por ministrar o ensino religioso
deveria ser realizado junto às autoridades religiosas das respectivas confissões.
Na LDB seguinte, lei nº 5.692/71, obrigava-se a inclusão da Educação Moral
e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde, mas sem
suprimir o ensino religioso.
Duas modalidades de ensino religioso foram instituídas na LDBEN de 1996
(Lei nº 9394/96): o confessional e o interconfessional. Ministrado por professores
preparados e credenciados pelas igrejas ou entidades religiosas a qual pertenciam,
o ER confessional obedecia à confissão religiosa do aluno. O interconfessional se
constituía de um programa pedagógico, resultante do acordo entre diversas
entidades religiosas.
O ER como base para a formação do cidadão foi fixada pela lei 9.475, que
modificou a LDBEN, onde também se estabeleceu que os próprios sistemas de
ensino regulamentariam os conteúdos da disciplina e a habilitação do professor,
após acordo com a sociedade civil.

10
É notória a interferência da religião, na perspectiva educacional, no contexto
histórico-administrativo do país, por vezes acompanhando o regime político
vigente. Desde o Brasil colônia a Igreja se fez presente, outrora ativamente, outras
vezes de maneira tímida. Este aspecto não foi observado no estudo realizado no
contexto histórico educacional e administrativo de Guiné-Bissau.

Semelhanças e diferenças: Ensino religioso Brasil/Guiné-Bissau

Estabelecer semelhanças e diferenças entre grupos sociais não é uma tarefa


fácil, em particular quando não se tem dados concretos ou estudos desenvolvidos,
em uma das partes. Neste estudo apontaremos os pontos divergentes e
similaridades do ER ministrado no Brasil e em Guiné-Bissau, a partir da percepção
dos brasileiros e guineenses, estudantes do curso de Administração Pública da
UNILAB.
Por meio da aplicação de questionário e entrevistas foram recolhidos dados
acerca do tema, o que nos permitiu observar que há bastante similaridades, assim
como pontos divergentes. Responderam ao questionário um grupo amostral,
correspondente a 33,9% dos alunos de Administração Pública, composto por
proporções iguais de brasileiros e guineenses, com idades entre 16 e 26 anos de
ambos os sexos.
Dado que Guiné-Bissau dispõe de poucos pesquisadores e estudos
desenvolvidos no campo religioso, fato decorrente do pouco investimento por parte
do Estado em pesquisas acadêmicas, sentimos a necessidade de fazer uma
entrevista com os estudantes guineenses como condição para coletar os dados que
pudessem nos orientar no desenvolvimento do trabalho.
A entrevista foi realizada apenas com discentes guineenses e a seleção dos
participantes teve como base um critério específico: guineenses que estudaram em
diferentes escolas confessionais, durante o ensino regular.
Dentre os brasileiro que participaram da pesquisa houve uma predominância
da religião católica, tanto provenientes da escola pública, quanto privada. Juntos
representam 47,4% da amostra de brasileiros estudada (Ver tabela 1).
Tabela 1: Escola de origem - Alunos brasileiros X Religião

Cristãos
Instituição Católicos Protestantes Outros
Escola Pública 45,5% 27,2% 27,2%
Escola Privada 35,7% 25% 37,5%
Menos da metade dos participantes receberam ensino religioso, sendo que
desses somente 20% não receberam ER na escola, o que mostra uma visível
inconstitucionalidade a respeito do art. 210 da Constituição Federal/88 e do Art. 33

11
da LDBEN/71 (obrigatoriedade do ER nas escolas públicas fundamentais). Contrário
ao esperado, já que a disciplina não é obrigatória nas escolas privadas, todos os
que estudaram nessas escolas no Brasil tiveram o ensino ER, sendo que 87,5%
afirmam tê-lo recebido na escola (Ver tabela 2).
Tabela 2: Tipo de formação recebida - Estudantes brasileiros

Receberam Nenhuma Conhecem o


Predominância
Ensino crença Art. 33 da
Católica
Instituição religioso Predominante LDBEN/97
Escola
Pública 45,5% 40% 60% 36,4%
Escola
Privada 100% 62,5% 0 25%

Outro dado relevante está relacionado à legislação nacional: 73,7% dos


brasileiros pesquisados não conheciam a LDBEN, lei que regulamenta o ensino no
país.
Dos estudantes guineenses, 43,8% são católicos e pouco mais de 10% são
mulçumanos, religião com maior numero de adeptos em Guiné-Bissau (Ver tabela
3).
Tabela 3: Escola de origem - Alunos guineenses X Religião

Cristãos
Instituição Católicos Protestantes Mulçumanos Outros
Escola 50% 12,5% 12,5% 25%
Pública
Escola 37,5% 12,5% 12,5% 37,5%
Privada
Todos os estudantes guineenses oriundos da escola privada tiveram ensino
religioso no currículo escolar, enquanto os provenientes da escola pública 57,14%
receberam orientação religiosa na igreja e os demais em casa.
Tabela 4: tipo de formação recebida – Alunos Guineenses
Nenhuma
Receberam Predomin
Instituição crença
Ensino ância
predominant
Religioso Católica
e
A Escola 87,5% 71,4% 14,3%
Pública
Escola 100% 50% 12,5%
Privada

entrevista decorreu num ambiente favorável à interação dos pesquisados, que


demonstraram interesse em compartilhar conosco suas experiências. Participaram
desse momento três estudantes guineenses, que assim como os demais cursam
Administração Pública na UNILAB. Todos como uma particularidade: estudaram o
ensino fundamental e médio em três das principais escolas confessionais de Guiné-

12
Bissau - Liceu João XXIII (Católica), Escola Adventista Betel (Adventista Do Sétimo
Dia) e Attadamun (Muçulmana).
Os relatos obtidos com a entrevista nos confirmou que o ER em Guiné-
Bissau é ministrado de acordo com os critérios de cada religião. Em geral o
responsável pelas aulas são pessoas indicadas pela igreja, podendo ser um pastor
(IASD), padre ou irmã (Igreja Católica) e Imame (religião muçulmana). As aulas
são constituídas de orações, cantos e estudos de livros sagrados das respectivas
confissões.
Houve consenso entre os entrevistados em relação à importância do ER, na
vida dos educandos. Justificaram este posicionamento afirmando que a educação
religiosa é indispensável na formação do caráter da pessoa e contribui para
transformação de vidas, a fim de formar pessoas mais educadas, capazes de se
interagir com outros indivíduos na sociedade, porque o objetivo do ER, de acordo
com os entrevistados é ensinar o aluno a se relacionar melhor com o próximo.
Cada indivíduo guineense pertence a um dos três grupos religiosos
existentes no país: cristãos, muçulmanos e animistas. O animismo, uma antiga
crença africana ainda praticada no continente africano foi citada durante a
entrevista: uma estudante católica revelou que quando chegou ao Brasil, a pouco
mais de cinco meses, teve alguns problemas de saúde não diagnosticados e, ao
comunicar aos pais em Guiné-Bissau, estes de imediato realizaram uma cerimônia
religiosa para livra-la do mal que a atingiu. Todos confirmaram que essas práticas
são comuns entre os mais velhos.
Além desse relato, um outro também nós chamou a atenção: uma estudante
adepta da religião Muçulmana relatou a maneira como as pessoas reagiam quando
a mesma falava que era islamita. Segundo ela a maioria das pessoas acredita que
todos os islamitas são terroristas.
A Educação Religiosa tem grande influência na vida dos estudantes
guineenses, por isso a defesa deles, ao serem inquiridos a respeito do tema. É
comum que alguns estudantes acabem aderindo às praticas da religião a que a
escola pertence, na realidade a educação pode ser considerada como uma forma de
trazer conhecimento para sociedade e como resultado interfere na atitude de quem
a recebeu. Uma das entrevistadas, inclusive, citou que apesar de praticar com a
família uma religião (católica), se comprazia com as práticas da religião da sua
escola e participava de atividades dessa religião fora da escola, escondida da sua
família

Considerações finais

13
O tratamento do ER se dá de maneira diferente nos dois países estudados -
Brasil e Guiné-Bissau. Os pontos mais notáveis, se referem ao profissional
responsável pela disciplina ER; à maneira como é ministrada - conteúdo métodos e
técnicas- e, ao tipo de instituição de ensino na qual o ER é oferecido, como já
havíamos abordado no estudo anterior em 2011, a saber, enquanto no Brasil a
prática do ER acontece nas escolas públicas e confessionais, em Guiné somente as
instituições de ensino privadas tem educação religiosa no currículo escolar.
O ER na perspectiva brasileira manifestada nos argumentos dos seus
defensores é muito parecido com aquele ministrado em Guiné-Bissau. A disciplina
deve apresentar um conteúdo voltado para a formação moral e ética do individuo,
tomando como base os valores e princípios da religião.
No entanto, os professores da disciplina no Brasil não precisam
necessariamente ter uma formação religiosa para dar aulas de religião, situação
contrária ao registrado em Guiné-Bissau. Daí surge a diferença no modo como o ER
é lecionado nos dois países. No Brasil há maneiras diversificadas, desde a efetiva
orientação religiosa, em seus aspectos doutrinários, até a utilização do horário da
disciplina para tratar de assuntos paralelos. No modelo de educação religiosa, em
Guiné, os educandos estudam os livros sagrados e aprendem a orar.
Na sociedade guineense é difícil encontrar uma pessoa que não professe
uma religião. Essa cultura é transmitida de geração em geração, entretanto, as
práticas religiosas mais convencionais, como a animismo estão se perdendo ao
longo do tempo, em particular nas zonas urbanas. Os jovens estão incorporando
cada vez mais costumes europeus e americanos, e abandonando os traços culturais
do grupo étnico de origem.
Diferente do caso brasileiro, o ER em Guiné-Bissau não é alvo de discussões
ou ataques. No país o ensino religioso faz parte das disciplinas obrigatórias
ministradas em escolas privadas cujos proprietários são instituições religiosas
cristãs ou muçulmanas, o que evita qualquer discussão ou intervenção, na maneira
como é concebida o educação religiosa.

Referencia Bibliográfica
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao37.htm>.
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14
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BRASIL. Decreto Nº 119-A, de 07 de Janeiro de 1890, Proíbe a intervenção da
autoridade federal e dos estados federados em matéria religiosa, consagra a plena
liberdade de cultos, extingue o padroado e estabelece outras providencias. 2º da
República, sala do Governo Provisório.
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16
VIO L ÊN CIA D E GÊN E RO NA S O CIEDADE FA RAÔ N I CA
E N A AT UA LID A DE

Glória Maria D. L. Pratas1

Resumo

Este estudo analisará a violência de gênero na sociedade faraônica e na atualidade.


As mulheres egípcias são descritas nas literaturas como detentoras de direitos
iguais aos dos homens, apesar da contestação de estudiosos do assunto acerca
dessa igualdade. Polêmicas à parte, apesar de se falar sobre igualdade, é fato que à
mulher era renegada uma posição secundária. A elas não cabia ocupar cargos
administrativos e do governo - com exceção das rainhas que governaram o Egito,
pois seu papel “principal” era o de esposa e mãe. Porém exerciam um importante
papel na esfera religiosa: eram iniciadas nos mistérios do templo. A diferença de
gênero e violência também se estende ao casamento, pois se a infidelidade
feminina era mal vista e condenada, ao homem era permitido ter outras esposas.
Mas, afinal, qual era o papel da mulher na antiga sociedade? O que mudou, se
mudou, na atualidade quanto à violência de gênero?
Palavras-chave: Trabalho, religião, gênero, violência, Egito Antigo

Abstract

This study will examine gender violence in society Pharaonic and today. Egyptian
women are described in the literature as having equal rights with men, despite the
opposition of scholars on the subject of equality. Controversy aside, despite the talk
about equality, is the fact that the woman was denied a secondary position. To
them it was not for occupying administrative positions and government - except for
the queens who ruled Egypt - because his role "principal" was that of wife and
mother, but played an important role in the religious sphere: they were initiated
into the mysteries of the temple. The difference in gender and violence also extends
to the wedding, because if female infidelity was frowned upon and condemned, the
man was allowed to have other wives. But ultimately, what was the role of women
in ancient society? What has changed, if changed, nowadays as gender-based
violence?
Keywords: Work, religion, gender,violence, Ancient Egypt and contemporary.

Resumen

Este estudio examinará la violencia de género en la sociedad faraónica y hoy. Las


mujeres egipcias se describen en la literatura, tienen los mismos derechos que los
hombres, a pesar de la oposición de los estudiosos sobre el tema de la igualdad.
Controversia aparte, a pesar de que se habla sobre la igualdad, es el hecho de que
la mujer se le negó un lugar secundario. Para ellos no era para ocupar puestos
administrativos y gobierno - a excepción de las reinas que gobernaron Egipto -
porque su papel "principal" era el de esposa y madre, pero jugó un papel
importante en la esfera religiosa: fueron iniciados en los misterios del templo. La
diferencia de género y la violencia se extiende también a la boda, ya que si la
infidelidad femenina era mal visto y condenado, el hombre se le permitió tener
otras esposas. Pero al final, ¿cuál fue el papel de la mujer en la sociedad antigua?
¿Lo que ha cambiado, si ha cambiado, hoy en día como la violencia de género?

1
Glória Maria D. L. Pratas é mestre em Ciências da Religião, na área de Bíblia (Antigo Testamento) e
Teóloga pela Universidade Metodista de São Paulo.
Palabras clave: Trabajo, la religión, el sexo, el género, la violencia, el antiguo
Egipto y contemporâneo.

Introdução

Para se fazer teologia, hoje, é necessário estudar a história e essa se faz não
somente por intermédio de seus escritos, mas, também, por meio de imagens que
vão desde pinturas rupestres à obras de arte, uma expressão da cultura e da
vivência humana. A arte é uma forma de escrita e já foi vista como uma abstração,
quase que desconectada dos interesses historiográficos. Porém, um dos desafios da
moderna historiografia é o estudo das “representações”, ou seja, o sentido e as
configurações simbólicas, expressas em forma de arte, que abarcam a relação
entre o ser e o mundo em suas práticas socioculturais e religiosas. Os simbolismos
tecem o seu mundo e marcam de forma diferente a história.
Assim, a análise deste tema é voltada para a iconografia histórico-religiosa,
expressa nas pinturas e nos relevos murais encontrados nas tumbas do Egito, uma
das civilizações mais extraordinárias que o mundo já conheceu. Inscrições em
forma hieroglífica – um conjunto de sinais pictográficos e um dos primeiros
sistemas de escrita da humanidade, criados pela civilização egípcia2 –, também
fazem parte dessa iconografia. Eles vão de simples desenhos coloridos aos
revestidos em ouro, retratando a vida dos faraós, seus feitos, o dia a dia de seu
povo e simbolismos religiosos e ritos de passagem para o outro mundo.

Figura 1- Escrita hieroglífica em forma de símbolo feita em pedra revestido


em ouro..
Fonte: http://www.infoescola.com/civilizacao-egipcia/hieroglifos/
Tais imagens, como um livro ilustrativo, pintadas ou entalhadas com extrema
perfeição, ao serem decodificadas tornaram-se “janelas para o passado”
descortinando os principais aspectos de cada reinado. Tais representatividades são
ainda um mistério e continuam sendo pesquisadas como é o caso dos óstracos

2
O francês e egiptólogo Jean-François Champollion (1790-1832), foi quem os decifrou, a partir de 1822,
e um dos primeiros a perceber a sua importância.
(lascas de calcário contendo escritos) utilizados como forma de comunicação entre
o povo egípcio.
A arte no Egito Antigo, segundo Robins (1996, p. 5) “era produzida com uma
finalidade específica, frequentemente para preencher funções particulares nos
cultos domésticos, funerários ou divinos” e “manteve suas características principais
ao longo do período faraônico” (CARDOSO, 1992, p. 99). Porém, a riqueza de
detalhes dessa arte revelou muito mais, e com precisão de detalhes, a história de
uma das mais ricas e prósperas civilizações que a humanidade já pode vislumbrar.
Souza (2010, p.6), citando a metodologia utilizada por Richard H. Wilkinson,
afirma que “os gestos das figuras podem ser lidos e interpretados como a
representação simbólica de uma ação”. Assim, a base teórica para a escolha e
análise das imagens para este artigo, embora de forma limitada, se dará nas
relações de gênero e violência, numa leitura do papel das mulheres socialmente
inseridas em uma estrutura altamente hierarquizada.
A leitura desse universo imagético se fundamentará nos seguintes pontos: (1)
demonstrar o papel da mulher nas relações de gênero numa das mais antigas
civilizações da humanidade; (2) seu papel social, visto como sujeito social
autônomo, porém, historicamente, vitimado pelo controle social e patriarcal
masculino; (3) seu status na sociedade antiga e na atualidade: o que mudou e “se”
mudou.
Deste modo, é impossível abordar questões históricas do Egito Antigo sem
atentar para as imagens que, de forma envolvente, retrataram o universo dessa
civilização carregada de mistérios e beleza.

Contexto sociocultural nas construções de gênero

A desigualdade nas relações de gênero, construída ao longo dos séculos, é


mantida e reforçada por sistemas socioculturais e religiosos que têm mantido a
opressão, a tirania e a exploração do feminino pelo masculino.
As relações de gênero, no Egito Antigo, tinham uma estrutura extremamente
hierarquizada e reforçada por uma esfera divina, existente em seu sistema
religioso, entranhado de magia e de mitos em todos os seus aspectos: este
deificava e imortalizava o rei (faraó), como personificação e descendência direta do
deus criador “Ra”. Essa estrutura não funcionava igualitariamente para as rainhas.
O descendente direto de Ra tinha que, por excelência, ser homem, e no caso de
uma rainha-faraó “a noção de realeza feminina era complementar ao rei, e a
conexão entre os dois significava que um não poderia existir sem o outro”
(ROBINS, 1996, p. 42).
Para Cardoso (1992, p. 99), “o fato de o faraó concentrar maior riqueza e
mão de obra necessária, fazia deste o maior consumidor de objetos de arte, logo,
seu principal construtor”. Os responsáveis pelo sistema burocrático e a produção da
arte, era a elite de escribas: área, também, de atuação masculina (poucas
mulheres tornaram-se escribas). Assim, em um mundo dominado por homens,
Balthazar (s/d, p.33) esclarece que
é de alguma maneira difícil compreender completamente o
papel exercido pelas rainhas egípcias, principalmente pelo
fato de que o massivo material disponível como fonte
(arqueológicas, iconográficas e textuais), para reconstituir a
história destas mulheres, foi produzido pela elite masculina
egípcia as diferenças na relação de gênero. (BALTHAZAR,
s/d, p.33)
Os egípcios tinham um senso de cultura e de religiosidade muito fortes e
deixaram um legado histórico, bem mais através da morte do que da vida. Isso
porque a crença de vida após a morte produzia a necessidade de se preparar para
viver nela e, deste modo, preparar a sua tumba com tudo o que precisaria para
usufruir no além-vida.
As histórias do Egito Antigo, expressas em forma de arte são quase que,
exclusivamente, dos reis egípcios e sua preparação para o post-mortem
descrevendo “suas dinastias, batalhas, conquistas, construções e outros feitos [...]
resultado do caráter predominante da documentação escrita e arqueológica
disponível, a qual ilumina, sobretudo, a religião e a monarquia” (CARDOSO, 1992,
p.9).
A existência, ou não, de igualdade de gênero no Egito Antigo é questionada
pelos/as, pesquisadores/as atuais, em contrapartida com estudos antigos, gerando
certa polêmica “principalmente na questão do matrimônio, herança e condição
econômica”, conforme relata Souza (2010, p. 28). Todavia, cabe salientar que a
iconografia esclarece tais fatores na retratação de homens e mulheres
demonstrando que há diferenças nas relações de gênero conforme apontam os
estudos a partir do século XX, para a existência de desigualdade mostrando que,
apesar de a mulher egípcia ter uma posição privilegiada em comparação com as de
outras sociedades da época, ela continuava com um papel subordinado ao do
homem: “às mulheres caberiam as funções de gerar, curar (muitas eram iniciadas
na magia e eram curandeiras) e manter o equilíbrio (lar, esposo e filhos) e aos
homens as funções de julgar, guerrear e conduzir” (SOUZA, 2003, p.64).
As relações de gênero apontadas nas fontes referem-se à forma de vida,
trabalho e jurídicas quanto à questão de bens, conforme relata Robins (1996,
p.137) “homens e mulheres podiam possuir bens próprios e estes, mesmo após o
casamento, que era um ato social não oficializado por qualquer sansão ritual ou
administrativa, continuavam sendo os detentores de seus bens e posses”. Exemplo
disso são “inscrições da III e V dinastias que mostram homens recebendo
propriedades de suas mães”, segundo Robins (1996, p.137).
Ainda, segundo Souza (2010, p.6) “em comparação com as mulheres de
outras civilizações antigas, as egípcias desempenharam um papel privilegiado em
questões jurídicas e econômicas”. Para a autora, “apesar desse privilégio a
condição da mulher, em comparação ao homem era inferior, pois eram excluídas,
por exemplo, de postos públicos e somente algumas mulheres foram chamadas de
escriba” (SOUZA, 2010, p.6).
É importante salientar que tais ocorrências estão ligadas à pirâmide social que
culmina no rei, pois este representa os deuses na Terra. Deste modo, o rei (faraó)
era o detentor de posses para a execução de obras grandiosas, como templos e
tumbas em sua forma elitizada. Assim, as mulheres que faziam parte da elite real
obtinham um melhor posicionamento na sociedade faraônica como a descrita por
Balthazar (s/d, p.34) “a questão de gênero, na realeza egípcia segue titulaturas
femininas como mãe do rei, esposa do rei, irmã do rei dentre outras, que
demonstram que mesmo as mulheres da realeza eram identificadas, em suas
representações, em sua relação direta com o marido ou o filho”.
Em contrapartida, para uma parca elite existia uma vasta população
constituída por camponeses e camponesas, não-letrados, responsáveis pela
produção agrícola que era a fonte econômica do país dentre outros. Deste modo,
surge um importante questionamento diante da visão de uma elite extremamente
burocratizada: até que ponto as ideias representadas na iconografia eram
compartilhadas pelos mais humildes?
Assim, alguns aspectos que indicam ações igualitárias de gênero
independentes das relações de poder são apresentados por Souza (2010):
 Mulheres podiam agir em justiça;
 Podiam apresentar-se nos tribunais como querelantes;
 Atuavam como defensoras e testemunhas em igualdade com os
homens (o que não ocorria em outras culturas que exigiam a
existência de tutores para as mulheres);
 A quantidade ínfima de mulheres escribas confirma sua ausência na
burocracia;
 Mulheres, pertencentes à classe alta e que possuíam instrução (em
nível inferior ao dos homens), desempenharam funções estatais, de
chefia e de mão de obra enquanto as de classe inferior, não
pertencentes à família real eram subalternas;
 As mulheres de classe alta e instruídas também desempenhavam papel
importante no culto religioso de vários deuses, podendo desenvolver a
função de sacerdotisa, cantora ou dançarina (funções que se tornaram
inferiorizadas ao longo do tempo);

 Diante da condição de poder controlar suas ações, estas também lhes


davam o peso de igualdade na responsabilidade por elas como
métodos de interrogatórios e castigos próximos aos dos homens;
 O divórcio poderia ser solicitado por ambas as partes (havia baixa
incidência em virtude das pesadas compensações econômicas
garantidas à parte repudiada (SOUZA, 2010, p.31-32)

Contexto mítico-religioso e as relações de gênero

O ponto de maior fascínio da cultura do Egito Antigo para o seu povo,


encontra-se na concepção de renascimento e imortalidade, pois a religião era o
ponto forte e central destinada a garantir a sobrevivência e o poder do rei morto:

Outra razão parece ser uma espécie de fascínio exótico e


nostálgico exercido sobre o nosso mundo secularizado de
hoje por alguns dos elementos culturais do Egito faraônico,
em particular a realeza de caráter divino e a religião
funerária tão elaborada, com sua obsessão milenar pelo
renascer, pela imortalidade. (CARDOSO, 1992, p.8)

A religião era profundamente penetrada de magia em todos os seus aspectos


e perpassavam os templos e tumbas, tendo em sua arquitetura e decoração,
representações simbólicas do universo e a sede de operações mágicas destinadas a
evitar a destruição cósmica. As imagens mais usuais desta concepção eram as do
caminho diurno e noturno do Sol, ameaçado por demônios inimigos (como a
serpente Apepi) entre os quais terminou sendo incluído o deus Seth, o adversário
de Osíris e Hórus. (CARDOSO, 1992)

Para se compreender melhor a influência e o domínio da religião sobre essa


civilização, a crença de que faraó era a divindade masculina encarnada que
descendia direto do deus criador: Maat3, filha do deus solar, é a personificação
divina da verdade e da justiça. O papel principal do faraó era preservar as regras
de Maat, e suas ações deveriam ser submetidas apenas a ela. Maat também se
tornou uma, norma moral pela qual cada egípcio poderia distinguir o certo do
errado4.

3
Na religião egípcia Maat é a filha do deus solar Ra. Deusa da Justiça, do equilíbrio e da ordem do
mundo que combatia o caos e a desordem, responsável pela manutenção da ordem cósmica e social. É
representada com uma pena na cabeça com a qual pesava as almas de todos que chegassem ao Salão de
Julgamento subterrâneo com a pena da verdade. A pluma era colocada num prato da balança e, no prato
oposto, o coração do falecido. Se os pratos ficassem em equilíbrio, o morto podia festejar com as
divindades e os espíritos dos mortos. Entretanto, se o coração fosse mais pesado, ele era devolvido para
Ammit para ser devorado. Fonte: http://www.all-about-egypt.com/maat.html. Acesso em 27 mar. 2013.
4
Texto retirado de All-About-Egypt. Fonte: http://www.all-about-egypt.com/maat.html. Acesso em 27
mar. 2013.
Figura 2: Maat. Fonte: http://www.all-about-egypt.com/maat.html

É fato, conforme Souza (2010, p.8) “que um dos pilares da sociedade egípcia
foi, sem dúvida, a instituição da realeza”. A personificação de faraó como deus na
Terra, lhe rendeu culto, poder divino, respeito e adoração, mas, apesar de tudo,
não o desvinculou da sua humanidade e da morte. A autora descreve que a função
de faraó como o mediador entre os mundos divino e humano, o visível e o invisível,
era o de fortalecer os deuses através das oferendas de alimentos e bebidas para
manter a renovação da ordem cíclica para que tudo funcionasse evitando, assim, a
desordem e o caos. (SOUZA, 2010, p.8)
Essa personificação de faraó, como descendente direto do deus criador Ra,
como relata ainda Souza (2010, p.6) “fazia com que o reinado de uma mulher fosse
percebido como algo contrário à Maat e à ordem cósmica e social que permeava o
cosmos, conceito central para os antigos egípcios”. Sob esse aspecto importante se
faz lembrar que Hatshepsut (a primeira e única mulher-faraó que reinou por 20
anos e obteve conquistas notáveis) ao assumir o reinado, tornando-se faraó, teve
sua imagem sempre representada como um faraó varão e suas vestes femininas
suprimidas pela masculina.
A utilização das vestes masculinas tem sua representação dentro da
religiosidade mágica egípcia, pois a rainha-faraó, simbolicamente, coagiria os
deuses ao utilizar tais vestes (que simbolizam e identificam o masculino).
Os egípcios professavam uma crença no poder criador da palavra e esta
estendia-se em forma de imagens, gestos e símbolos em geral, pois acreditavam
que com estes coagiriam os deuses e o cosmos; ou seja, com a magia. Cardoso
(1992) como segue:
A extensão de tal princípio a outros sistemas de signos abria
o caminho a formas variadas de ações mágicas. Se a
palavra, o gesto, a escrita, a imagem etc. geram a realidade,
podia-se agir sobre esta através de fórmulas verbais,
gesticulação ritual, textos, desenhos. A representação do rei,
nos relevos dos templos, dominando os inimigos do Egito,
garantiria a segurança do país através da constante vitória
sobre tais inimigos. Se um dado rito exigia o sacrifício de um
hipopótamo - ação bastante incômoda e complicada -,
quebrar uma estatueta de hipopótamo magicamente
consagrada surtiria o mesmo efeito. Se os encarregados do
culto funerário se descuidassem do oferecimento de vitualhas
ao morto, a representação pictórica de pães e outros
alimentos nas paredes da tumba teria efeito equivalente. E
assim por diante. (CARDOSO, 1992, p.86)

O embasamento para uma melhor compreensão do legado histórico egípcio


carece, ainda, de maiores informações, pois estima-se que ainda há 70% desses
tesouros a serem descobertos, imersos nas areias do tempo e do lugar, que
esclarecerão tantos questionamentos, ainda por confirmar.

A arte egípcia e sua representatividade na questão de gênero

As manifestações artísticas no Egito Antigo são compostas de arquitetura,


pintura, escultura e artes menores. Ao longo dos tempos essa arte sofreu
mudanças até sua estabilidade no Reino Novo, porém os padrões e cânones
artísticos pouco mudaram ao longo do período faraônico, mantendo assim suas
características fundamentais (CARDOSO, 1992, p. 99).
Os relevos e pinturas murais estão carregados de referências ao universo de
faraó, seu reinado, feitos e, principalmente o seu ritual funerário, pois as
ilustrações funerais garantiam seu encontro com Ra e sua continuidade como deus
(figura 3).

Figura 3: Ritual funerário: tumba de Ramsés. Fonte:


http://egyptiananachronism.blogspot.com.br/2011/09/wonderfull-things-from-
valley-of-nobles.html
Em algumas pinturas a esposa ou a mãe de faraó eram representadas
sentadas ao seu lado, ou de braços dados, como sinal de apoio e contemplação de
seu reino (figura 4).
Figura4: Faraó e esposa representados hierarquicamente do mesmo
tamanho..
Fonte: http://egyptomusee.over-blog.com/article-25338628.html.
Porém, a arte egípcia em algumas cenas, retrata uma variação de tamanho
entre homem e mulher, faraó e sua esposa, conforme especifica Robins (1996,
p.108) “são colocadas em menor escala de tamanho ou atrás de seu esposo”
(figura 5). Essa diferença simboliza a inferioridade da mulher em relação à faraó e
sua posição superior como deus na Terra. Outro fator é por esta ser ordenada por
uma elite masculina de escribas que viam a mulher como um ser inferior.

Figura 5: Representação da mulher em tamanho inferior ao do homem.


Fonte: http://egyptiananachronism.blogspot.com.br/2011/09/wonderfull-things-
from-valley-of-nobles.html
Outras expressões coexistem perfeitamente numa mesma tumba,
representando homens e mulheres em cenas quotidianas, em cerimônias solenes e
religiosas, misturadas a cenas domésticas, trabalho agrícola e artesanal, esportes e
jogos, cultos e ritos mágicos, com riqueza e sensibilidade de detalhes da vida de
nobres e plebeus (figura 6 e 7)

Figura 6: Papiro com cenas de trabalho agrícola e artesanal.


Fonte: http://www.foradomapa.com.br/?tag=berlim.
Figura 7: Cenas de trabalho agrícola e artesanal.
Fonte: http://www.foradomapa.com.br/?tag=berlim.
Na arte egípcia a imagem, de homens, mulheres e soberanos, eram
idealizadas. Souza (2010, p.16) relata que “representações da velhice, gravidez e
deformidade são inexistentes nas obras egípcias”. Os egípcios representavam o
corpo humano de forma estilizada: o rosto, o tórax e os seios femininos (sempre
em perfil) e os ombros e o corpo eram representados de frente (BALTHAZAR, s/d,
p. 36)

Figura 8: Tocando para os deuses e faraó.


Fonte: http://www.louxoregypte.be/site/articles.php?lng=fr&pg=99
Outro ponto básico da arte egípcia está na distribuição de cores, como a que
existe para diferenciar homem e mulher. Na sociedade egípcia o trabalho feminino
concentrava-se no lar com ocupações domésticas ou artesanais como na fabricação
de pão, cerveja, fiação e tecelagem e não em atividades agrícolas (raramente
encontram-se cenas de mulheres nessa atividade). Por essa razão, ao se observar a
arte percebe-se a diferente coloração da pele: a dos homens é mais escura por
estarem sempre expostos ao sol. Porém, quando a mulher é retratada em afazeres
agrícolas, sua pele tem a mesma tonalidade (figura 9).
Figura 9: Trabalho agrícola conjunto
Fonte: http://egiptoparati.blogs.sapo.pt/2009/05/10/
O luto era tratado como um ritual e era uma função importante
desempenhada pelas mulheres no Egito Antigo. Nas fontes, as mulheres
encarregadas do luto (carpideiras) são muitas vezes anônimas, sendo difícil
identificar sua relação com o morto. Existiam também as chamadas “profissionais
do luto”, contratadas para velar o morto. Outra atividade que as mulheres de todos
os grupos exerciam era a alimentação de crianças pequenas. Várias pinturas e
esculturas representam mulheres amamentando ou segurando uma criança.
A riqueza histórica resgatada de escavações e tumbas retratavam cenas
diárias e as que seriam vivenciadas no post-mortem, como relata Baines e Malik:

Os relevos e as pinturas das tumbas proporcionam


grande riqueza de materiais; embora apenas os
membros da classe alta da sociedade fossem
enterrados em tumbas amplas e decoradas. As cenas
subsidiárias não deixam de proporcionar vislumbres da
vida do povo simples. Vislumbres que são completados
com modelos e objetos funerários, de uso cotidiano,
que frequentemente fazem parte do equipamento
fúnebre. Achados como esses são menos frequentes
nas escavações de povoados. (BAINES e MALIK, 2008,
p.190)

Outro elemento importante é a literatura hieroglífica egípcia em forma de


manuais: para os sucessores do rei morto (filhos ou esposa); para altos
funcionários da corte; fórmulas epistolares e conselhos sobre a prática de
autocontrole; composições sapienciais que exaltam o estudo e a carreira de
burocrata (escribas) e a desvantagem das profissões que não requerem estudos;
boas maneiras e a arte da eloquência e o do saber calar; defeitos difíceis de
eliminar como a avareza e a avidez e alguns de profecias sobre os tempos
conturbados ou áureos do Reino Antigo, dentre outros. (WIEDEMANN, 2007, p.82-
84)
As relações de gênero: Direitos e deveres da mulher no Egito Antigo na
atualidade

A hierarquização nas relações de gênero em uma sociedade não foge à regra,


ou seja, associa a mulher como esposa e companheira, a “senhora da casa”. Mas,
qual era, realmente, o papel da mulher na sociedade faraônica? Seria apenas o de
esposa e mãe? Será que esse papel ainda prevalece na atualidade?
O Egito atual, diferentemente do Antigo (politeísta), é hoje uma nação de
maioria islâmica (monoteísta), Teologias à parte, os preceitos de dominação
patriarcal permanecem, ou seja, a mulher é vista como sujeito social autônomo,
porém, permanece vitimada pelo controle social masculino.
As relações de gênero e de poder descritos nas literaturas do Egito Antigo
para com o atual não evoluíram ou procedem de modo diferente. Exemplo disso
encontra-se numa literatura antiga em que se aconselha ao homem controlar as
paixões quanto ao seu procedimento para com as mulheres. Wiedemann (2007)
descreve o conteúdo dessa literatura: “se na vida pessoal desejar manter a
amizade em uma casa ao adentrarem, seja como senhor, amigo ou irmão evitem se
aproximar das mulheres, pois insinuações e impulsos são como um breve
momento, parecidos com um sonho: a morte chega por havê-las conhecido”.
(WIEDEMANN, 2007, p. 84)
De outro modo as literaturas do Egito Antigo também fazem menção quanto
ao casamento dando o seguinte conselho:

Quando prosperares e construíres teu lar, ama a tua esposa


com ardor, enche seu estômago, veste suas costas [...]
Alegra seu coração enquanto viveres porque ela é um campo
fértil para o seu senhor. Não a julgues, mas afasta-a de uma
posição de poder. Reprime-a, pois seu olho é um vento de
tempestade quando ela encara. Abriga seu coração com o
que acumulastes, assim ela permanecerá em tua casa. Se a
repelires, virão lágrimas. Uma vagina é o que ela oferece por
sua condição e tudo o que indaga é quem lhe fará um canal5.
(WIEDEMANN, 2007, p. 84)

Wiedemann (2007, p.85) esclarece que estas são obras literárias destinadas
aos mais altos postos da hierarquia egípcia como um conjunto de regras de
comportamento, etiqueta, obediência, fidelidade aos superiores e os inferiores e de
julgamento, bem como as questões privadas como a esposa, filhos e filhas e os
amigos.
A clareza dos textos mostra que a condição de dominância, violência e poder
na relação de gênero permanecem no Egito atual. Parafraseando o primeiro ponto,
apresentado na literatura sobre “as paixões na vida pessoal”, o nível de

5
“lhe fará um canal” significa: lhe vestirá e alimentará. (WIEDEMANN, 2007, p. 84)
comparação entre o Antigo e o atual Egito, agora de dominância islâmica, fica claro
que: a proximidade entre homem e mulher é fator de risco e cautela, ou seja, tanto
no antigo como no atual o preço é pago com a morte!
Atualmente, embora o ato de sair de casa para trabalhar, possa ter libertado
algumas mulheres do passado e do estigma do passado como “senhoras da casa”,
as mulheres egípcias não encontraram nenhum reconhecimento e estão optando
por retomar a tradição. Apesar de a mulher ser classificada com igualdade no Egito
Antigo, atualmente, o Egito está entre 120 dos 128 países quanto à igualdade entre
os sexos quanto à emancipação política e oportunidades reais para o sexo feminino
na economia, conforme relatório do Fórum Econômico Global.
Tal situação não difere dos tempos faraônicos conforme nos relata Iman
Bibars, presidente da Associação para o Desenvolvimento e Valorização da Mulher,
com sede no Cairo: “mais mulheres estão trabalhando, mas nem todo trabalho é
libertador"6.
Bibars (2010) acrescenta: “apenas as mulheres de classe mais abastada
podem se dar ao luxo de ter ambição". Por serem, em sua maioria, pertencentes à
classe média ou baixa, Bibars acrescenta que “o analfabetismo feminino continua a
ser elevado”. A mais recente Pesquisa do Mercado de Trabalho Egípcio concluiu,
segundo ela, que “47% das mulheres rurais e 23% das mulheres urbanas não
sabem ler nem escrever”7.
O jornal “The New York Times” publicou que para as mulheres, na opinião
feminina, retornar à tradição faraônica as levará a caminhos destinados apenas aos
homens: “Eles é que devem carregar o fardo e prover para sua família. Uma mulher
se destina a dar amor, carinho e ser protegida. Ela não deveria estar fora de casa o
tempo todo”.
Um estudo recentemente realizado pelo Centro de Pesquisas “Pew”, em
associação com o “International Herald Tribune”, declarou que o Egito surgiu como
um país onde as mulheres têm uma posição secundária no mercado de trabalho em
relação aos homens e a igualdade de direitos é um “objetivo” muito mais do que
uma realidade. Dos entrevistados no Egito, 61% disseram que as mulheres devem
poder trabalhar fora de casa. Mas 75% disseram que, quando os empregos são
escassos, os homens deveriam ter mais direito ao trabalho.

6
Jornal Último Segundo. Notícia anunciada no “The New York Times” em 19/07/2010 16h29. Pesquisa
efetuada em 22 mar.2012 no site:
http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/nyt/trabalho+mas+nao+liberdade+para+as+egipcias/n12377229
55758.html.
7
Jornal Último Segundo. Notícia anunciada no “The New York Times” em 19/07/2010 16h29. Pesquisa
efetuada em 22 mar. 2012 no site:
http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/nyt/trabalho+mas+nao+liberdade+para+as+egipcias/n12377229
55758.html.
Segundo as estatísticas no “The New York Times”, as mulheres no Egito
ocupam apenas oito das 454 cadeiras do Parlamento e cinco delas foram indicadas
pelo presidente. Há apenas três ministras e nenhuma mulher entre os 29
governadores do país. A notícia vai um pouco além:

Quando as mulheres pediram a oportunidade de se


tornar juízas do Conselho de Estado, a mais alta corte
do Egito, a assembléia geral do conselho votou contra,
argumentando que a disposição emocional da mulher
e seus deveres maternais as tornam impróprias para o
cargo. A decisão foi revogada em março, depois que o
primeiro-ministro Ahmed Nazif recorreu ao Tribunal
Constitucional, mas nenhuma mulher foi indicada até
agora. (THE NEW YORK TIMES, 2010)
Assim, percebe-se que as relações de gênero constituem um meio de
compreender a representação social do papel das mulheres nas diversas sociedades
e épocas, porém faz-se necessário, ainda, resgatar um papel que sempre foi
relegado a uma posição secundária quando, com justiça, deveria ser igualitário,
fazendo com que as mulheres não vejam tantas perspectivas no futuro que as faça
não retornar ao passado, passado em que, ao que parece, delegava uma maior
compreensão e reconhecimento do papel feminino.

CONCLUSÃO

Por esse discurso percebemos que à mulher contemporânea, apesar dos


tempos e das mudanças, ainda é reservado condições iguais às do passado. O
trabalho, estudo, política não se abriram para a sociedade egípcia comum, mas
continua a pertencer a um percentual elitizado em que prevalece a continuidade da
desigualdade de direitos.
Em seu discurso intitulado “Trabalho, mas não liberdade para as egípcias”,
Bibar aponta que “o novo”, permanece ainda “antigo”, ou seja, o status social da
mulher depende da família: “casar, gerar, cuidar de sua família”. Se quando solteira
a mulher pertencia a seus pais; ao se casar passa a pertencer ao seu marido. Pode-
se chamar a isso de liberdade? De direitos iguais? questiona Bibar.
Apesar das limitações impostas e das generalizações inerentes à tentativa de
se abarcar o longo período faraônico, buscou-se demonstrar, de maneira sucinta,
que os textos e a imagética no Egito Antigo devem, segundo os estudiosos, serem
encarados como reflexo do ideal de uma minoria, uma elite masculina por
excelência, e não como o registro de uma realidade vivida por todas as mulheres
desta sociedade.
As literaturas documentaram que os direitos legais das egípcias não se
estendiam efetivamente a todas as mulheres já que, de certa forma, a questão do
respeito entre a diferença de gênero tem que encontrar um respaldo na riqueza e
na base familiar. As áreas como o direito e a política permanecem com pouco
espaço para mulheres de origens modestas.
Deste modo, seguindo o conceito de Robins (1996), não se deve permitir que
a grande visibilidade das mulheres, na arte egípcia, obscureça o fato de que existia
a distinção de sexos como parte da estrutura formal da sociedade e que, em geral,
as mulheres ocuparam uma posição secundária em relação aos homens ao longo de
toda a história do Egito Antigo.
Portanto, cabe aqui concordar com Bibar: “trabalho, mas não liberdade, para
as egípcias”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Andromeda Oxford Limited, 2004, 2008.

BALTHAZAR, G. S. “O corpo ideal: um estudo sobre o feminino na Arte Régia do


Reino Novo (cc. 1550-1070 a.c.)”. In: NEArco: Revista Eletrônica de
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http://www.nea.uerj.br/nearco/arquivos/numero8/3.pdf. Acesso em 27 mar 2013.

CARDOSO, C. F. Trabalho compulsório na antiguidade. Rio de Janeiro: Edições


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______. O Egito Antigo. 9ª. ed., São Paulo: Brasiliense,1992.

EL-NAGGAR, M.. “Trabalho, mas não liberdade para as egípcias”. In: The New
York Times (19/07/2010). Pesquisa efetuada em 02 de Junho de 2010 no site:
http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/nyt/trabalho+mas+nao+liberdade+para+a
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JACQ, C. O Egito dos Grandes Faraós. Porto: ASA, 1999.

______. As egípcias: retratos de mulheres do Egito Faraônico. Rio de Janeiro:


Bertrand Brasil, 2000.

MORLEY, J.; SALARIYA, D. How Would You Survive As an Ancient Egyptian?


Publisher: Orchard/Watts Group, 1999.

ROBINS, G. Las Mujeres en el Antiguo Egipto. Madrid: Akal, 1996.

SOUSA, Aline Fernandes. A Mulher-Faraó: Representações da Rainha


Hatshepsut com Instrumento de Legitimação (Egito Antigo – Século XV
a.C.). Niterói: UFF, 2010. (Dissertação de Mestrado). Disponível em:
http://www.nea.uerj.br/nearco/arquivos/numero8/3.pdf. Acesso em 23 mar. 2013.

WIEDEMANN, A. A questão de gênero na literatura egípcia do II milênio a.C.


Tese de Doutorado em História , Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007, 358 f.
RELIGIÃO, PODER E GÊNERO: CONSAGRAÇÃO E ORDENAÇÃO FEMININA NAS
IGREJAS CRISTÃS EM CAMPINA GRANDE/PB

Pollyanne Rachel Fernandes Maciel – UFCG

Introdução

Apesar das mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas, que levaram à
contestação dos tradicionais papéis atribuídos aos homens e às mulheres, estes ainda
vivem uma relação altamente hierarquizada. Em meio as nossas atividades mais
triviais, a situação privilegiada do homem aparece como algo natural, uma vez que o
cotidiano é formado pela dominação de gênero. Esta dominação se exerce nas esferas
privada e pública, atribuindo aos homens privilégios materiais, culturais e simbólicos.
Assim, a situação privilegiada do sexo masculino aparece como algo natural,
convertendo a diferenciação de gênero em desigualdade.
A opressão das mulheres pelos homens é um sistema dinâmico no qual as
desigualdades vividas pelas mulheres são os efeitos das vantagens dadas aos homens.
Não somente homens e mulheres não percebem da mesma maneira os fenômenos,
mas, sobretudo, não percebem que o conjunto do social está dividido segundo o
mesmo simbólico que atribui aos homens e ao masculino as funções nobres e às
mulheres e ao feminino as tarefas e funções afetadas de pouco valor.
Segundo Scott (1990), o masculino é tomado, historicamente, como o normativo
para a humanidade, o que proporciona a elaboração de uma espécie de contrato
sexual nas relações sociais. Esse contrato estabelece o patriarcado moderno e a
dominação dos homens sobre as mulheres.
As relações de gênero têm como transversal em sua dinâmica a dominação e o
poder. O poder necessariamente implica numa relação de dominação, no nosso caso
especifico, de homens sobre mulheres. Entretanto, pensar esta dinâmica como
unilateral, ou seja, como uma barbárie masculina é incorrer no erro da vitimização. A
mulher também é sujeito nesta relação, sujeito dominado, heterônomo, não
autônomo, mas o é (Chauí, 1985).
Já há várias décadas, inicialmente as mulheres e depois alguns homens, têm
lutado e/ou produzido análises que procuram dar visibilidade e explicar essa questão.
Mostram como a dominação é apresentada como óbvia, como um fenômeno natural,
integrado de algum modo à divisão social e hierárquica por sexo. Da análise crítica da
opressão das mulheres, nasceram às lutas contra o sexismo e o patriarcado.
O movimento feminista, em suas várias vertentes, provocou um profundo
questionamento sobre o lugar e a função social das mulheres na cultura patriarcal. Ao
estabelecer uma divisão rígida de papéis e de trabalho entre os sexos, o
patriarcalismo aprisionou homens e mulheres em estereótipos e funções que não
podem mais ser vistos como parte da natureza humana, mas sim como produtos de
processos e interesses históricos, econômicos e culturais.
As relações sociais que se tecem entre os sexos - relações de poder - dizem
respeito a toda a sociedade e a todas as suas instituições, inclusive as religiosas.
Entretanto, não se pode contestar o fato de que o campo religioso também sofreu o
impacto dessas transformações, principalmente com a difusão das idéias feministas
que incidiram diretamente sobre as relações de gênero (Rosado-Nunes, 2001).
Conforme Lucila Scavone (2008) o contexto de desenvolvimento dos movimentos
feministas abriu caminhos para que em todos os campos do social, as questões de
gênero fossem difundidas e “o campo religioso, em seu aspecto institucional,
tradicionalmente antifeminista, não ficou imune aos efeitos sociais e culturais das
idéias feministas contemporâneas” (Scavone, 2008, p. 07).
Assim, a dominação masculina, no ocidente contemporâneo, não se impõe mais
com a proeminência de algo que é indiscutível. Após séculos de aceitação
aparentemente passiva, o cenário vem mudando. Os efeitos se fazem sentir em todas
as esferas, até mesmo no âmbito religioso.
Pesquisas apontam um aumento no que tange à insatisfação por parte de
algumas mulheres dedicadas à vida religiosa nas igrejas cristãs quanto à
impossibilidade de participação em atividades e cargos tradicionalmente reservados
para homens, bem como uma maior participação destas em cargos de liderança.
Nesse sentido, o presente artigo se propõe a analisar, mesmo que brevemente,
a condição feminina no discurso religioso e no interior de algumas instituições
religiosas cristãs de Campina Grande - PB.

A representação da mulher na tradição cristã: retrato da dominação


masculina

Ao longo da história, as religiões constituíram-se em poderosos instrumentos


de submissão e produção do silêncio das mulheres no seio da sociedade.

Bocas fechadas, lábios cerrados, pálpebras baixas, as mulheres


só podem chorar, deixar as lágrimas correrem como a água de
uma inesgotável dor, da qual segundo Michelet, elas “detêm o
sacerdócio”. [...] O silêncio é um mandamento reiterado através
dos séculos, pelas religiões, pelos sistemas políticos e pelos
manuais de comportamento. Silêncio das mulheres na igreja ou
no templo; maior ainda na sinagoga ou na mesquita, onde elas
não podem nem mesmo penetrar na hora das orações. (Perrot,
2005. p. 9-10).
Em relação às mulheres, algumas das principais igrejas cristãs, masculinas por
excelência, tanto em seus simbolismos quanto em suas hierarquias, estão entre as
organizações mais conservadoras das sociedades modernas, especialmente a Igreja
Católica (Giddens, 2005, p.434).
Como explicita Bourdieu (2003, p. 103), a Igreja, marcada por um
antifeminismo profundo e uma visão pessimista das mulheres e da feminilidade, é
uma das principais instâncias sociais que tem garantido o trabalho de reprodução da
estrutura das relações de dominação entre os sexos.
De fato, ao longo de sua trajetória, a tradição cristã representou a mulher como
um ser inferior e submisso ao homem. Herdamos desta tradição uma visão negativa
da figura feminina, uma vez que seu legado foi responsável pelo sufocamento de uma
via feminina na teologia, na doutrina e na autoridade no cristianismo.
Essa inferioridade, afirma Bourdieu (2003), é construída por um processo social
que naturalizou-se e está arraigada em diferentes setores da sociedade, revelando-se,
principalmente, nas estruturas das Igrejas.
As religiões cristãs sempre demonstraram muita resistência em dar visibilidade à
atuação feminina nas atividades das igrejas. Pautadas no argumento da “natural”
submissão feminina, afastaram as mulheres por muito tempo das mais importantes
esferas religiosas do poder (Tedeschi, 2008).
No cristianismo, o acesso ao poder institucional está legitimado pelo sexo e pelas
representações simbólicas que foram sendo cristalizadas ao longo dos séculos. Nesse
sentido, pode-se afirmar que este se institucionalizou como uma religião
eminentemente masculina, uma vez que ser homem ou ser mulher, no âmbito
religioso, significa mais do que uma representação sexual, ou seja, trata-se da
possibilidade de acessar ou não o espaço do poder de hierarquia, do culto e até
mesmo do ensino e da produção do saber teológico-religioso (Furlin, 2008).
Essa característica marca profundamente nossa sociedade. Como ressalta
Giddens, “as igrejas e denominações são organizações religiosas com sistemas
definidos de autoridade. Nessas hierarquias, assim como em outras áreas da vida
social, as mulheres são, na maioria das vezes, excluídas do poder” (Giddens, 2005,
p.434).
Segundo Rosado Nunes (2005), “historicamente são os homens que dominam a
produção do que é ‘sagrado’ nas diversas sociedades. Para ela, os discursos e as
práticas religiosas têm a marca dessa dominação”. Nesse sentido, “normas, regras,
doutrinas são definidas por homens em praticamente todas as religiões conhecidas”
(p.363). São eles que ditam as normas da produção do silêncio das mulheres. Por trás
dos mitos religiosos produzem-se manuais de comportamentos femininos e arquétipos
a serem cumpridos.
Em sua doutrina social, a igreja tem reforçado o papel de sujeição da mulher ao
homem, tanto por defender a indissolubilidade do casamento como por considerar a
sexualidade suspeita a não ser quando praticada em função da reprodução e, ainda,
quando ressalta a função biológica da maternidade como uma das mais importantes
da mulher na sociedade. À mulher sempre se atribuiu a esfera privada – o lar –,
tendo como função “natural” o cuidado e a educação dos filhos.
No catolicismo, a figura feminina é associada ao modelo mariano de perfeição e
santidade e ao de pecadora, personificado na figura de Eva e ao de Maria Madalena, a
pecadora que se redime.
Como explicita Rosado Nunes (2005, p. 363), “o lugar das mulheres no discurso
e na prática religiosa não foi, e frequentemente ainda não é, dos mais felizes. [...] Sua
presença continua silenciosa e suas razões não ditas”. A tradição religiosa cristã
caracteriza-se por ter colocado a mulher, ao longo da história, como reprodutoras das
orientações determinadas pela estrutura dominante vigente: a predominância
masculina.
Na atualidade, muitas religiões, bem como inúmeros estudos teóricos sofrem
influência do feminismo e do movimento reconhecido como teologia feminista, na
busca de uma revisão e desnaturalização da história da mulher social e
religiosamente.
Rodrigues (2006, p.06), define a teologia feminista como

uma teologia de mulheres de orientação feminista, que


reconhecem, denunciam, criticam e desejam superar o
patriarcado na sociedade, na igreja e na convivência mútua. [...]
Teologia Feminista é uma teologia contextual que leva em conta
a historicidade das situações de vida e o caráter restrito das
afirmações teológicas.

A partir das análises feministas da religião essa situação vem mudando, embora
muitos valores simbólicos continuem estagnados, principalmente no Brasil. É fato que
para que a ordem social e eclesial permaneça imutável, a hierarquia masculina das
Igrejas, em sua grande maioria, recusa a análise feminista. No entanto, as estruturas
hierárquicas masculinas e os pronunciamentos da hierarquia masculina não são mais
identificados, sem crítica, com “vontade de Deus” ou com a comunidade cristã.
Ao estabelecer um diálogo entre gênero e religião Sandra Duarte de Souza
(2006) observou que a ascensão pública das mulheres representa uma ameaça,
principalmente, no caso das organizações religiosas, onde tem sido cada vez mais
crescente a participação das mulheres nas esferas de poder institucional. Para essa
autora, tais mudanças, ainda que lentas, evidenciam um processo de ruptura com a
concentração androcêntrica do poder na sociedade (Souza, 2006, p.34).

Consagração e ordenação feminina em Campina Grande/PB

A questão da ordenação de mulheres, seja ao ministério pastoral ou ao


sacerdócio, tem sido objeto de discussão por parte de estudiosos e religiosos. A
hierarquia masculina das Igrejas, em pleno século XXI, tem impedido as mulheres de
ascender a cargos ordenados e oficiais no interior das instituições eclesiais.
Nas grandes religiões institucionalizadas as lideranças femininas acabam sempre
marginalizadas, reforçando a tradicional imagem de mulher submissa à autoridade
religiosa representada pela figura masculina. Essa marginalização envolve espaços de
liderança, acesso à formação e as relações hierárquicas nas estruturas institucionais.
No caso do catolicismo, as ordens femininas são suprimidas do oficio sacramental e de
todas as instâncias de decisão da Igreja, estando ligadas mais a obra social. No
protestantismo a condição inferior é imposta à mulher quanto ao exercício ministerial,
hegemonicamente masculino. Verifica-se, entretanto, na vertente cristã protestante, a
liderança religiosa feminina legalmente institucionalizada, embora restrita a um
pequeno número de congregações, legitimando uma aproximação com a teologia
feminista e apresentando mais flexibilidade nos papeis masculinos e femininos do que
na Igreja Católica, que preserva uma estrutura arcaica bastante fechada nesse
sentido.
Já no contexto evangélico, a figura das diaconisas, presbíteras, pastoras e até
bispas é uma realidade em muitas delas. De acordo com alguns estudos recentes, as
mulheres têm sido cada vez mais influenciadas pelas idéias do movimento feminista
global e, consequentemente, pela Teologia Feminista dela decorrente. Assim, com as
análises feministas da religião, essa situação começa a mudar, ainda que, muitos
valores simbólicos que constituem os dogmas cristãos continuem estagnados.
Para Viero (2005), no limiar do neofeminismo, um dos focos do feminismo
cristão - especialmente as Igrejas protestantes - foi o movimento pela ordenação de
mulheres que alcançou um resultado significativo: “na reunião de 1958 do Conselho
Mundial das Igrejas, de 168 grupos, 44 admitiam ordenar mulheres” (Viero, 2005,
p.104).
Na década de 1960 os movimentos de libertação da mulher, principalmente nos
Estados Unidos e em países europeus, atacaram fortemente as Igrejas, especialmente
a católica, por considerar que esta impedia a libertação da mulher. De acordo com
Viero (op. cit.), nesses países “se multiplicaram as reivindicações para a ordenação
das mulheres e para que elas obtivessem mais poder nas Igrejas”. Com a elaboração
da Teologia Feminista por um lado, e por outro, as inovações nas Ciências Humanas
devido à “introdução de elementos teórico-metodológicos oriundos do Feminismo,
para a análise da religião”, foi possível interrogar as religiões do ponto de vista das
relações sociais entre os sexos, ou de gênero, com mais afinco (Ibid.).
São múltiplos os movimentos de mulheres nas Igrejas brasileiras influenciados
pelo feminismo. Não obstante as distinções, de acordo com Viero, eles estão unidos no
caminho da experiência da fé, à luz de uma nova consciência das mulheres,
provocando uma mudança de linguagem, revisão dos símbolos, reorientação da
prática e novas relações.
Contudo, na prática, poucas mulheres consagradas ao trabalho religioso ousam
contestar a situação de discriminação e inferioridade no interior das instituições
religiosas, demonstrando que esta situação praticamente não sofreu alterações,
sobretudo na América Latina, principalmente no contexto católico, mesmo com as
conquistas ensejadas pelo movimento feminista.
A presente discussão baseia-se em resultados da pesquisa1 bibliográfica e
empírica realizada em instituições católicas e evangélicas na cidade de Campina
Grande, entre 2011 e 2012. A partir da observação participante e de entrevistas com
pessoas dedicadas ao serviço religioso nas igrejas por nós pesquisadas, bem como,
através das pesquisas realizadas em outras regiões do Brasil sobre o assunto,
percebemos que o comportamento mais frequente em relação à ocupação ou não por
mulheres em cargos hierárquicos é a de conformidade com a ordem estabelecida ou
uma passividade aparente. Pois mesmo quando não há concordância com a ordem
estabelecida, o medo de ser repudiada ou castigada pela igreja ou pelas pessoas, o
medo de contrariar ou desmoralizar o marido é mais forte que a insatisfação.
A maioria dos entrevistados representantes da Igreja Católica, apesar de
exaltarem a figura feminina e as características historicamente a ela atribuídas –
sensibilidade, amabilidade, brandura, etc., aceitam a descriminação presente, mesmo
reconhecendo que a mulher é tão competente quanto o homem e que a ampliação do
espectro da ação feminina a serviço da instituição seria positiva no momento atual,
visto que temos mais mulheres do que homens neste serviço. A maioria dos religiosos
não concorda ou não almeja a ordenação feminina e não se mostra interessados em
uma mudança de status dentro da Igreja Católica, e isso fica evidente nas entrevistas.
Segundo uma das entrevistadas, “tudo funciona perfeitamente bem” do jeito que é.

1
Projeto PIBIC 2011-2012 “A consagração feminina nas igrejas cristãs em Campina Grande/PB: estudo
comparativo entre as Igrejas Católica e evangélicas”. Participaram do estudo três instituições católicas
(Mosteiro de Santa Clara, Associação das Damas Hospitaleiras e Instituto São Vicente de Paulo) e três
evangélicas (Igreja Batista, Assembléia de Deus e Verbo da Vida). Nestas, entrevistamos mulheres e homens
consagrados ao serviço religiosos e realizamos observação participante de cultos, eventos e cerimônias
religiosas.
Isso nos possibilita inferir que a hegemonia masculina na Igreja Católica é explicita e
sua internalização é parte da aprendizagem, diríamos mesmo, obrigatória.
No que diz respeito às atividades, as religiosas católicas, na prática, podem dar a
comunhão, ocupar cargos de coordenação e de alguns ministérios em algumas
dioceses brasileiras, dependendo da autorização do bispo de cada região. Mas, é
importante destacar que se trata de lugares concedidos. Os homens da igreja
permitem e regulam que as mulheres ocupem lugares previamente determinados por
eles. (Fernandes, 2005, p. 429). No geral, suas atividades dizem respeito a serviços
sociais, como as obras sociais e de caridade mantidas pela Igreja.
No caso da Igreja Católica, a posição de freira indica a principal oportunidade
que as mulheres têm para participar “ativamente” na instituição religiosa, já que se
percebe na história que a mulher tem sido alijada da participação nas esferas do poder
e da administração.
A existência de ordens de mulheres nunca garantiu nenhum tipo de poder direto
das mulheres afora dos conventos e instituições ligadas a estes. Enquanto as igrejas
protestantes vêm dia após dia aumentando o número de mulheres em seus
ministérios, a instituição católica permanece radical com relação ao gênero. O papel
da mulher se mantém imutável desde sua fundação, perpetuando a submissão
feminina dentro da instituição e entre seus fiéis.
A hierarquia da Igreja Católica permanece firme em sua decisão de vedar os
espaços das altas hierarquias, que possui três graus: os diáconos, os padres e os
bispos, às religiosas. O Papa João Paulo II, na “Encíclica Da Dignidade da Mulher”, fala
sobre o papel “fundamental” das mulheres na história do Cristianismo, argumentando
que há papéis femininos e masculinos na Igreja, uma divisão de tarefas diferenciada
entre os gêneros. Segundo esta, as mulheres religiosas são consagradas a Deus, e a
diferença entre os dois papéis está na função sacerdotal ministerial, que é destinada
apenas aos homens. Prosseguindo, ele afirma que o paraíso não é destinado aos
ministros, mas antes aos santos, homens ou mulheres, um discurso que pode indicar
um não desmerecimento do papel das mulheres na igreja, e, de certa forma, evitar
maiores contestações.
O Papa João Paulo II demonstrou publicamente nítida inclinação para as posições
mais conservadoras, utilizando condenações consideradas já ultrapassadas.
Condenava a nudez, o homossexualismo e a participação das mulheres em cargos de
liderança na igreja. Em 1994, reafirmou o não ordenamento de mulheres a
sacerdotes, dando o tema por encerrado. Consoante Fernandes (2005, p.425), de
acordo com a carta apostólica Ordinatio Sacerdotalis, os argumentos de caráter
teológico apresentados por ele podem ser sintetizados em:
a) a missão sacerdotal foi confiada apenas aos homens por Cristo
que chamou 12 apóstolos; b) a necessidade ou valorização da
preservação da tradição ou da prática da Igreja ao longo dos
séculos nesse tema; c) como conseqüência do segundo item,
aborda-se a irrevogabilidade do Magistério da Igreja.

O referido documento enfatiza que não se trata de discriminação contra a


mulher, mas de atender a uma certeza inquestionável acerca do mistério de Cristo e
de sua Igreja, argumento presente nos discursos dos católicos entrevistados.
De modo contraditório a esse exclusivismo masculino em relação às posições
hierárquicas, a Igreja Católica enaltece a figura feminina e evidencia a igualdade entre
os cristãos dos dois sexos, embora na prática a vivência religiosa feminina seja à
sombra da masculina.
Destaca-se, ainda, que há congregações femininas que se apresentam com um
perfil mais consoante com a Igreja e suas prescrições. Sendo assim, promovem um
tipo de adesão religiosa menos questionadora ou mais voltada para o discurso oficial
da instituição.
Evidencia-se assim, o papel da tradição, base da identidade institucional, que
cria a constância através do tempo promovendo a articulação entre o passado e o
futuro (Giddens, 1997, p.100) de forma a preservar o sistema que mantém a
instituição.
Assim, no Brasil, até o momento a liderança religiosa feminina pode, pois, ser
considerada um fenômeno exclusivamente evangélico, uma vez que na Igreja Católica
as mulheres continuam excluídas da hierarquia e proibidas do exercício do sacerdócio.
No contexto das instituições evangélicas, sabe-se que embora continuem a
existir limitações em relação ao papel da mulher no exercício de uma função dentro
das instituições religiosas, fruto de uma estrutura hierarquizante, subordinada ao julgo
masculino, observa-se uma tendência maior à revisão da participação das mulheres na
liderança. Em algumas denominações, sobretudo as pentecostais, constata-se o
crescimento gradativo do número de pastoras em todo o país.
Machado (2005) destaca o crescimento do número de denominações com
pastorado feminino e a multiplicação das igrejas fundadas por mulheres. De acordo
com esta autora, estudos recentes sobre a distribuição de autoridade no interior das
igrejas revelam a tendência de revisão dos constrangimentos à participação das
mulheres na direção das comunidades pentecostais. Tendência que, de acordo com
ela, apesar de intimamente associada à expansão neopentecostal, não está
circunscrita ao segmento mais novo da tradição evangélica.
Movimentos em favor da consagração de mulheres já podem ser
percebidos tanto na Assembléia de Deus, uma das mais
tradicionalistas e sexistas denominações do pentecostalismo
clássico, quanto na comunidade Batista, que é a maior e mais
popular igreja do protestantismo histórico em nosso país
(Machado, 2005, p. 391).

Acredita-se que a liderança feminina religiosa pode ser interpretada como


ruptura com o campo religioso dominante (catolicismo) e uma continuidade com os
novos padrões de conduta social do feminismo, ou seja, maior participação e atuação
na esfera publica.
Entretanto, é importante destacar que nem sempre as mudanças nas hierarquias
eclesiásticas resultam das reivindicações e da pressão das mulheres que a integram.
Machado (op. cit., p. 388) observa a crescente dificuldade das instituições tradicionais
em regular e manter seus adeptos “dentro dos limites seguros e estáveis de seus
sistemas de crença, produzindo, consequentemente, a intensificação do trânsito
religioso e da competição entre as estruturas eclesiásticas”. Assim, se a religião está
imersa em um “campo” religioso de concorrência e tensão entre as denominações
religiosas, podemos atrelar a adoção da liderança feminina como uma das estratégias
de expansão e manutenção das igrejas, uma vez que de acordo com estudos
anteriores há um predomínio de fiéis do sexo feminino no dinâmico campo pentecostal
brasileiro.
Tratar-se também, pois, de um sinal de flexibilidade, que se configura como um
dos elementos centrais não apenas no processo de conquista de novos adeptos, mas,
também, de manutenção dos já convertidos. Soma-se, ainda, o fato da existência de
mudanças, já detectadas na sociedade, e de novas práticas que apontam para um
declínio do patriarcado nas culturas modernas.
Entretanto, ainda que as mulheres constituam a maioria no meio evangélico, e
nas igrejas em geral, como mostram todos os estudos e o senso, e que algumas
denominações evangélicas comecem a revisar certas interdições, grande parte das
igrejas não permite que a parcela feminina pratique o pastorado. Os cargos de
liderança associados à habilidades inerentemente femininas, tais como a direção de
escola bíblica dominical e a organização de grupos de oração, o cuidado das crianças
ou o lecionar para adolescentes ou senhoras e atividades de menor visibilidade são
comumente atribuídos às mulheres. Sendo assim, as verdadeiras limitações às
mulheres evangélicas encontram-se especificamente vinculadas ao exercício do
pastorado, pois este traz consigo a exigência por maior autoridade eclesiástica (Santos
apud Silva, 2002).
Tornar-se pastora ainda é, portanto, um privilégio para poucas e, somente de
umas décadas para cá, com o advento do neopentecostalismo e as mobilizações
missionárias, aliados a acalorados debates entre as lideranças cristãs, é que o
ministério pastoral feminino, até então estagnado, tem conquistado maior espaço no
ambiente das igrejas.
Vários trechos bíblicos são utilizados por lideres evangélicos contrariados ao
ministério feminino. Estes também argumentam que Jesus escolheu somente homens
para serem apóstolos e que o Novo Testamento não apresenta claramente mulheres
em posições de autoridade. Um dos problemas enfrentados é que os aliados deste tipo
de pensamento contra a consagração das pastoras se apresentam como os grandes
defensores da chamada “inerrância bíblica”, já que aderiram a uma interpretação
literal, como declaram, dos textos sagrados, sem considerar a cultura na qual foram
produzidos.
Ou seja, tudo passa pelo entendimento de alguns trechos bíblicos interpretados
por essa ou aquela estrutura eclesiástica, segundo a visão do seu líder ou órgão
deliberativo. Assim, baseadas nas escrituras bíblicas e na própria relação da Igreja
com Cristo, da qual Ele é o “cabeça”, é que a hierarquia masculina das Igrejas tem
impedido as mulheres de ascender a cargos ordenados e oficiais no interior das
instituições eclesiais. Verificamos a presença de um discurso cuja motivação é a
manutenção do status quo atual, ou seja, a predominância das estruturas patriarcais
no universo cristão.
A própria liderança feminina, quando há, transmite e perpetua saberes que
impedem às fiéis de sua igreja questionamentos sobre a dominação masculina no lar,
na igreja e fora dela. Assim, termos como “cooperadora”, “ajudadora” e “auxiliadora”
estão sempre presentes no discurso dos sujeitos pesquisados. Dessa forma, a imagem
que a mulher consagrada faz de si própria e das outras mulheres fiéis, revelada em
suas falas, convergem para um papel de figurante da figura masculina no plano da
esfera privada e coletiva. De modo geral, as mulheres bíblicas são apresentadas aos
fiéis numa visão estereotipada, que na maioria das vezes depõe contra as mulheres, o
que contribui para a forma como elas se vêem. A partir das respostas às várias
indagações efetuadas às entrevistadas, verificamos que a imagem do feminino no
discurso das mulheres consagradas é aquela da esposa e mãe, onde não há ruptura
com o espaço doméstico e nem com o poder masculino.
Muitas vezes, os mesmo textos bíblicos que são relativizados, permitindo que as
mulheres exerçam alguns cargos de liderança ou mesmo que subam ao púlpito, são,
contraditoriamente, utilizados para barrar o pastorado feminino, que, especificamente
em algumas instituições2, diz respeito ao cargo de comando e gerenciamento geral da
igreja.

2
Na Igreja Evangélica Verbo da Vida as mulheres recebem a mesma formação que os homens, podendo
inclusive ser mestres ou ministras e, portanto, ministrar a Palavra no púlpito. Porém, ela não pode liderar uma
igreja, função exclusivamente masculina.

Referências Bibliográficas

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A discriminação da mulher é algo que para alguns, dentro dessas estruturas
religiosas cristãs, deixou de existir a muito tempo. Pois, quando vêem que a mulher já
se encontra dentro das estruturas eclesiásticas, exercendo tarefas múltiplas e
aparenta certa tranquilidade, acreditam que já tenha alcançado tudo a que se
propunha algum dia na vida. Os preconceitos e rejeições apresentam-se às vezes de
forma sutil, outras vezes de modo acentuado e podem ser constatado não só através
de palavras, mas, também de gestos e decisões tomadas por aqueles que coordenam
essas estruturas eclesiásticas.
Ademais, percebe-se que há desigualdade quanto ao acesso ao conhecimento
(formação). No catolicismo, os homens recebem formação superior a que é destinada
as irmãs. No meio evangélico, essa realidade também pode ser percebida, embora,
em muitos casos, ambos podem até receber a mesma formação, o que não significa
que a mulher equiparar-se-á ao homem na hierarquia institucional.
Nesse processo, a mulher tende a ocupar, mesmo que lhe sejam abertas as
portas dos vários níveis de ensino, certas áreas de estudo que as destinam a
determinados setores de atuação predominantemente femininos, nos quais serão,
consequentemente, subalternas.
Não se pode relegar o fato de que, mesmo nas denominações que permitem o
pastoreio feminino há inúmeras e sutis discriminações contra as ministras ordenadas,
especialmente no tocante à sua ascensão a cargos mais altos na estrutura de poder
das instâncias superiores. Essa participação dificilmente se dá com a mesma
regularidade e notoriedade que a masculina. Assim, elas têm se conformado a
designações de trabalhos menos importantes do que o dos pastores do gênero
masculino, como por exemplo, aceitarem ser auxiliares dos pastores titulares ou dos
maridos, no caso das mulheres casadas, ou mesmo, como já mencionado,
desempenharem cargos relacionados ao pastoreio de mulheres, o que não lhes dá
acesso às tomadas de decisões dos comandos superiores.
Machado (2005) sugere que há uma forte associação entre o sacerdócio feminino
e o laço matrimonial, uma vez que a maioria das pastoras é casada com homens que
ocupam cargos hierárquicos iguais ou superiores em suas denominações. As
entrevistadas afirmaram não haver diferença entre a mulher consagrada casada ou
solteira, porém, todas que exercem cargos de liderança importantes são casadas com
lideranças da igreja, revelando, assim, “a importância dos vínculos domésticos e o
papel decisivo dos homens no processo de ascensão das mulheres nas hierarquias
religiosas” (p. 392). Para essa pesquisadora, atrelar a consagração das mulheres à
concepção do ministério do casal foi a fórmula encontrada pelas lideranças de várias
denominações para preservar a dependência feminina em relação aos homens.
O trabalho missionário feminino acarreta responsabilidades semelhantes às de
um pastor. Em outras palavras, não tem o status de líder religioso, porque se chegar
ali um pastor ela deve sair de cena porque perde a visibilidade perante os
frequentadores da igreja. A expressão “servir a Deus” independente da importância da
função pode ser uma forma falaciosa de ocultar a discriminação feminina.
Segundo os estudos sobre a ordenação feminina, e conforme pudemos
averiguar, o ambiente criado pelas limitações impostas ao acesso feminino ao púlpito
ou mesmo aos cargos mais elevados na hierarquia no meio evangélico tem provocado
insatisfações, embora esse desagrado comumente não leve a reivindicações. Pois,
assim como acontece na Igreja Católica, a passividade e o acatamento a “visão”
doutrinária da congregação predominam, até como forma de respeito à liderança, nos
casos pesquisados. Ou seja, embora entre os evangélicos já se possa perceber
questionamentos a determinados conteúdos ou posicionamentos institucionais, as
opiniões críticas não norteiam o discurso de todos os entrevistados deste meio.
De um modo geral, apesar da peculiaridade e subjetividade de cada sujeito
pesquisado, da sua religiosidade e denominação religiosa específica, observamos que
predominam os depoimentos de mulheres com perfis pouco críticos e profundamente
eclesiástico no sentido de estarem bem adequadas a aspectos doutrinais do
magistério. Ainda que não seja absoluto, esse perfil de mulheres aponta para uma
tendência presente na maioria das congregações, que é a de adequação ao discurso
institucional e manutenção do status quo.
Contudo, nem todas as fissuras que corroem as formas de dominação masculina
tomam a forma de dilacerações espetaculares, tampouco significam discurso de recusa
ou de rejeição.

Considerações Finais

Tudo indica que a tradição cristã mantém seu poder frente a uma realidade cada
vez mais desafiadora, apesar da tênue reflexividade que, de alguma ou de várias
formas, tenta penetrar este contexto hostil de inflexividade. Nessa direção, mantém-
se ainda, as configurações tradicionais do masculino e feminino, como muralha de
contraposição a ordenação feminina.
Em geral, as mulheres ocupam posições subalternas na organização mais ampla
da vida social e também nas religiões cristãs. Constata-se que o poder ainda é
desigualmente distribuído entre os sexos. A interpretação da visão hierárquica eclesial
desconsidera solenemente a recente inclusão social da mulher. Fruto da reflexão dos
homens ligados às Instituições Religiosas, não correspondem ao que as mulheres
sentem, suas reivindicações, quer em teologia, quer no interior das Igrejas, embora
nos cultos, missas e no serviços religiosos estas sejam a maioria. Percebe-se que as
diferenças estão integradas num discurso igualitário, abstrato e global, mas que visa
tão somente desautorizar a atuação.
É possível verificar que as relações sociais que se tecem entre os sexos -
relações de poder - dizem respeito a toda a sociedade e à história, bem como a todas
as suas instituições, as religiosas inclusive, e nesse sentido, a refletem. A Igreja, além
se ser um dos pilares sobre o qual se assenta a relação hierárquica entre os sexos,
contribui para a manutenção da ordem política reforçando-a simbolicamente,
inculcando em seus membros que a submissão feminina ao homem é algo natural e
necessário. Ela inculca explicitamente uma moral familiarista completamente
dominada pelos valores patriarcais e principalmente pelo dogma da inata inferioridade
das mulheres.
Através dos vários estudos e pesquisas realizados acerca da temática em
questão, percebemos um duplo movimento de permanências e mudanças. Entretanto,
os resultados da nossa pesquisa indicam que apesar das conquistas ensejadas pela
eclosão do movimento feminista, a situação da mulher consagrada ao trabalho
religioso no âmbito da hierarquia da Igreja Católica como um todo, em Campina
Grande não sofreu alterações significativas. Porém, em relação à condição pessoal,
acesso à informação através da mídia, os conventos hoje são muito diferentes da
rigidez e severidade de vinte ou trinta anos atrás. No contexto evangélico, as poucas
mudanças por nós constatadas em relação à ascensão da mulher consagrada ao
serviço religioso aparecem de forma ambígua e contraditória no discurso das
evangélicas e na prática religiosa. Assim, é admissível concluir que a situação da
mulher cristã consagrada no Brasil, e, portanto, neste município, ainda enfrenta
barreiras poderosas. As mudanças neste setor são muito lentas e de difícil
assimilação, até mesmo por parte das próprias mulheres.
Trata-se de um universo complexo, repleto de nuances, sobre o qual ainda há
muito a pesquisar. A esse respeito, cabe ressaltar ainda, que se trata de uma questão
mais sociocultural do que, propriamente, espiritual. Vivemos ainda sob a égide da
cultura patriarcal, e a quebra de paradigmas e preconceitos no campo religioso
demanda tempo e muito diálogo. As concepções de gênero e religiosidade dos
indivíduos estão intimamente relacionadas à sociedade na qual vivemos e somos
socializados. E se pensarmos que as concepções de gênero não têm origem na
natureza biológica, mas numa construção sociocultural bem urdida e bem nutrida ao
longo de séculos no campo simbólico que visa regular relações de poder entre os
sexos, precisamos reconhecer que este campo impregna nossos atos, afetos e
identidades e por isso mesmo, são muito mais difíceis de serem mudados.
A MAGIA COMO INSTRUMENTO DE EMPODERAMENTO DA MULHER

Emmanuel Ramalho de Sá Rocha

Introdução
Segundo autoras feministas (GEBARA, 1997; GRIFFIN, 1978; KING, 1997; PLUMWOOD,
1993; RUETHER, 1992; WARREN, 2000), o pensamento ocidental foi culturalmente
construído por um sistema dualista de “[...] pares de conceitos, objetos ou sistemas de
crenças opostos [...] em alguma forma de argumento hierárquico.” (FAUSTO-STERLING,
2001, p. 60), que se manifestam nas relações religiosas, políticas, domésticas e em
todas as outras áreas da vida social.

Esse sistema dualista é estruturado em uma lógica de dominação entre elementos


construídos historicamente como masculinos, sobre elementos desvalorizados associados
ao feminino. Segundo Val Plumwood (1993, p. 43), alguns desses elementos e
características duais são – sendo os primeiros masculinos e os segundos femininos:
cultura/natureza; espírito/natureza; razão/emoção; razão/matéria; mente/corpo;
universal/particular; público/privado; humano/não-humano; civilizado/primitivo;
sujeito/objeto; mestre/escravo; liberdade/necessidade; eu/outro.

A relação de dominação e submissão que define esse dualismo está na raiz da


inferiorização de determinados grupos sociais na civilização ocidental e é o que faz a
subordinação de gênero1 estar intimamente ligada a outros tipos de inferiorizações, como
de etnia e classe (GEBARA, 1997; KING, 1997).

Porém, uma dualidade pouco percebida e, consequentemente, pouco analisada, é entre


religião e magia – ou religião ético-racional e religião mágica. Compreende-se que “[...]
uma religião nunca está isenta de magia e [...] a magia sempre está integrada a uma
religião. Empiricamente enquanto fenômenos concretos, a magia e religião se
confundem. Mas enquanto tipos ideais, se opõem” (MARIZ, 2003, p. 80). Para Max
Weber (2004, p. 279), a magia envolve “[...] forças extracotidianas com finalidades
práticas para solucionar problemas do dia-a-dia”; uma definição similar apresenta
Malinowski (1984, p. 25), a magia é “[...] um conjunto de artes puramente práticas,
executadas como meio para atingir um fim”. Esse racionalismo prático da magia se opõe

1
Segundo Joan Scott (1990, 21) gênero é “[...] um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas
diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder.” Ainda
segundo Scott (1990), entre os elementos do gênero relacionados entre si na configuração de relações sociais
estão os símbolos culturais; os conceitos normativos desses símbolos através da limitação de interpretações de
seus sentidos; uma noção do político, por meio das instituições sociais;e as identidades subjetivas.
à sistematização racional da religião que leva à institucionalização e à formação de um
discurso ético (WEBER, 2004).

Estando magia e religião inseridos no sistema dualista ocidental, também estão


associados a binômios de gênero, sendo religião associado ao masculino e a magia ao
feminino (ERICKSON, 1996). Deve-se estar claro que o vínculo entre eles não é
essencialista, é construído, pois a base desse vínculo, o pensamento dualista, é uma
construção cultural ocidental.

Assim, o que define a relação entre mulher e magia é a subordinação social a que ambos
estão submetidos com base no mesmo sistema de pensamento. Dessa forma, as
religiões, particularmente as ascéticas, têm criado e legitimado identidades masculinas e
femininas baseadas em um sistema hierárquico que inferioriza tudo o que é tido como
feminino, seja a própria mulher ou a magia. “É a habilidade da religião de sacralizar os
homens que os torna masculinos. Através da definição que especifica que as pessoas do
sexo feminino não são homens, são criadas a mulher e sua identidade feminina. Todos os
indivíduos tidos como uma ameaça à masculinidade recebem uma identidade feminina.”
(ERICKSON, 1996, 211).

Portanto, a magia está intrinsecamente ligada à mulher e às características construídas


ao longo da história ocidental como femininas. E como tais características são aplicadas a
todos as categorias consideradas subalternas pelo sistema dualista androcêntrico, a
magia está relacionada a esses subalternos.

Assim, o objetivo deste trabalho é analisar a conexão entre práticas mágicas e o feminino
para investigar como a magia pode servir como instrumento de empoderamento das
mulheres, porém não como um poder de dominação que busque apenas reverter quem é
inferior ou superior, mas um empoderamento que gere ganhos para si sem gerar perdas
para outros, através dos modelos de poder-de-dentro, poder-para e poder-com. E para
isso será analisado a bruxaria contemporânea de origem europeia, um sistema mágico
que tem permitido o empoderamento feminino enquanto categoria inferiorizada.

Masculino-feminino, religião-magia
As características duais relativas ao feminino e ao masculino são visíveis nos atributos
divinos construídos culturalmente ao longo da história. Divindades femininas geralmente
são definidas como terrestres, de caráter mais local e popular; enquanto divindades
masculinas são, em sua maioria, deuses do céu, senhores de tudo o que tem regras fixas
e regularidade rígida, tendo, assim, um caráter mais universal e racional (ELIADE, 1992;
WEBER, 2004).

Segundo Max Weber (2004, p. 292), os sacerdotes – representantes e guardiões das


estruturas sistemático-racionais em torno dos cultos a esses deuses celestes – ao
especular sobre tais divindades, geralmente os concebem como demasiadamente
poderosos, o que os torna não mais influenciáveis por meios mágicos, assim, “O
progresso das concepções de um deus poderoso [...] condiciona então o predomínio
crescente dos motivos não-mágicos.” (WEBER, 2005, p. 293).

Um exemplo de um deus poderoso, celeste e masculino é Jeová. Para Weber (2001, p.


46) “[...] a eliminação da magia no mundo, que começara com os antigos profetas
hebreus” atinge sua conclusão com os protestantes, o que Weber define como
desencantamento do mundo, a “ancestral luta da religião contra a magia, sendo uma de
suas manifestações mais recorrentes e eficazes a perseguição aos feiticeiros e bruxas
levada a cabo por profetas e hierocratas [...] a repressão político-religiosa da magia”
(PIERUCCI, 1998, p. 8).

Essa repressão, como já mencionado anteriormente, é o elemento conector da mulher


com a magia. Por estarem do mesmo lado na estrutura dicotômica, a magia está
associada a características consideradas femininas. Isso pode ser observado nas análises
de Weber (2004) em que as religiões mágicas são descritas como primitivas, irracionais
no sentido de emotivas e sensoriais, etc.

Weber reproduz essa dualidade, pois para Victoria Lee Erickson (1996, p. 203) “A luta
entre o masculino e o feminino veio à tona em Durkheim e Weber como uma luta entre a
magia e a religião”. Ela vê na sociologia da religião weberiana um preconceito de gênero
implícito2 ao constatar que Weber sugeria um caminho para grandeza nacional através do
racionalismo e ascetismo religioso, e segundo Erickson (1996, p. 117):

O ascetismo e a racionalização religiosa exigem a repressão e a


eliminação da natureza e de tudo o que seja feminino. Em sua
pesquisa histórica das religiões, Weber reconheceu que, no
processo de substituir a motivação mágica por uma ética abstrata
e universalista, foi necessário desenvolver uma antipatia pela
sexualidade. Por inferência, isto significa uma antipatia pelas
mulheres e pelo feminino.

2
Segundo Erickson (1996, 13), “O preconceito sexual inexplorado é perigoso, pois permite o uso de definições e
suposições que mantêm as teorias ancoradas no pensamento patriarcal”. Assim, apesar desta pesquisa fazer uso
da sociologia da religião weberiana em alguns trechos, buscou-se estar atento ao preconceito implícito e evitar as
definições e suposições ancoradas nesse pensamento.
Ainda segundo Erickson (1996), a religião mágica das massas atrai as mulheres e o papel
destas é diversificado e mais igualitário se comparado à religião burocrática, racional e
ascética das elites em que a mulher é mais inferiorizada, como também são
inferiorizadas a sexualidade e a arte, vistas como forças irracionais e sem controle,
portanto femininas. No entanto, na religião mágica elas são fortalecidas. Um exemplo
disso, na questão da sexualidade, é dado por Keith Thomas (1991, p. 459) sobre a
repressão à bruxaria na Inglaterra no fim da Idade Média e início da Idade Moderna:

[...] a mitologia da bruxaria atingiu o seu apogeu em uma época


em que a havia a suposição geral em que as mulheres eram
sexualmente mais vorazes que os homens [...] No século XVIII,
essa opinião foi sendo gradualmente superada entre as classes
médias pela noção [...] de que as mulheres eram sexualmente
passivas e totalmente carentes de lascívia. A mudança coincidiu
elegantemente com o desaparecimento da crença de que as
bruxas satisfaziam seus apetites sexuais com o Diabo. Essas duas
tendências refletiam uma tentativa de conter e reprimir a
discussão aberta da sexualidade.

Por fim, Erickson (1996, p. 187) afirma que “Weber considerava as mulheres, as
crianças, os idosos, os homens desmasculinizados ou desmilitarizados e os oprimidos
como atentos à magia. Por conseguinte, a defesa da magia pode significar a defesa dos
oprimidos”. Tal perspectiva reafirma a noção de que a relação subalterna é o que vincula
determinados grupos sociais destituídos das positivas características masculinas.
Também indica que a magia pode ser usada como um meio de empoderamento dessas
categorias consideradas subalternas.

Empoderamento e formas de poder


Antes de adentrar na explicação de como a magia pode funcionar como meio de
empoderamento feminino, é necessário compreender o conceito de empoderamento aqui
usado e a que tipo de poder este se remete. O conceito de empoderamento tem sido
trabalhado na perspectiva feminista por autoras como Srilatha Batliwala (1994), Shirin
M. Rai (2002) e Sarah Mosedale (2005).

Para Batliwala (1994, p. 134, tradução nossa), empoderamento é “[...] o processo de


desafiar relações de poder existentes, e de ganhar mais controle sobre as fontes de
poder”. Mosedale (2005, p. 252) define empoderamento feminino como “[...] o processo
pelo qual mulheres redefinem e ampliam o que é possível para elas serem e fazerem em
situações nas quais têm sido reprimidas, comparadas aos homens”.

Parafraseando Mosedale (2005, 244), o empoderamento possui quatro aspectos:


1) para ser empoderada, uma pessoa deve estar desempoderada previamente. Como as
mulheres são desempoderadas em relação aos homens;
2) o empoderamento não pode ser concedido por uma terceira parte, deve ser obtido por
aqueles que serão empoderados;
3) empoderamento inclui a noção de pessoas tomando decisões em suas vidas e sendo
capazes de executá-las. Esse processo pode ser individual ou coletivo, contudo, o foco
geralmente é individual;
4) empoderamento é um processo contínuo.

Segundo Rai (2002), a noção de empoderamento largamente usada nas ciências sociais,
por exemplo, é de exercer poder sobre instituições, recursos e pessoas. Esse modelo de
poder, o poder-sobre, se baseia em relações de dominação e submissão. Nesse tipo de
empoderamento, quando um ganha, o outro sempre perde, mesmo que aquele que
ganha não tenha consciência disso (MOSEDALE, 2005). Porém, desde a década de 80,
feministas têm contribuído na crítica e na expansão da noção de poder para além do
poder-sobre, formas de poder em que o ganho de um não é necessariamente a perda do
outro. Esses são o poder-de-dentro, poder-para e poder-com.

Poder-de-dentro refere-se, por exemplo, a autoestima, confiança, consciência individual,


autoentendimento; todo poder começa daqui. Poder-para é aquele que aumenta as
fronteiras do que é possível para uma pessoa em relação à capacidade para fazer algo,
sem necessariamente diminuir para outra; aprender a ler é um exemplo. Poder-com
refere-se à ação coletiva, pessoas agindo juntas têm mais poder do que agindo sozinhas
(RAI, 2002; MOSEDALE, 2005). Tendo definido empoderamento e as formas de poder,
agora é possível compreender como a magia se encaixa nesse modelo de
empoderamento para mulheres.

Magia como instrumento de empoderamento


O poder e as relações de poder se manifestam de maneiras distintas na magia e na
religião. Conforme Pierucci (2001, p. 103), “Magia é vontade de poder; religião, vontade
de obedecer”. Isso se torna evidente na relação de magos e religiosos com deuses,
espíritos e demônios; enquanto que na religião a graça divina é “[...] obtida mediante
súplicas, presentes, serviços, tributos, adulações, subornos” (WEBER, 2004, p. 292), na
magia, o mago os coage utilizando-se de poderes suprassensíveis para obter aquilo que
deseja. Assim, segundo Bronislaw Malinowski (1984, p. 31), a magia “Constitui sempre a
afirmação do poder do homem para provocar determinados efeitos concretos”.
Portanto, a magia, fenomenologicamente, se caracteriza como um instrumento de poder.
No entanto, a magia também se expressa como uma forma de poder social, por exemplo,
através da crença do mago em seu poder, o que o investe de confiança e autoestima; ou,
também, através da crença no poder do mago por parte do grupo social no qual está
inserido, o possibilitando maior influência e status; ou, simplesmente, pela própria
característica da magia de buscar poder e não obediência, o que leva o magista a
expressar tal atitude em toda percepção e ação perante a vida.

Assim, tomando como referência as definições de empoderamento anteriormente


mencionadas, a magia, uma fonte de poder e não de obediência, possibilita desafiar as
relações de poder existentes, redefinindo as situações nas quais as mulheres têm sido
reprimidas, e como será mais detalhado a seguir, através do poder pessoal e da
percepção das capacidades obtidas, amplia o que alguém pode ser e fazer e, assim,
ganhando mais controle sobre sua vida.

E seguindo os aspectos do empoderamento de Mosedale: 1) a mulher como categoria


desempoderada, 2) tem a possibilidade de empoderar-se por si mesma através da
magia, 3) a qual “[...] estabelece a legítima autoridade que favorece a ação e a tomada
de decisões.” (ERICKSON, 1996, p. 191). Sendo, geralmente, um processo mais
individual, pois, apesar da existência de comunidades e sociedades iniciáticas mágicas, o
mago “[...] é sobretudo um isolado.” (DURKHEIM, 1996, p. 29); 4) por fim, magia é
prática e cotidiana, é um processo contínuo de aprendizagem e ação (PIERUCCI, 2001)

A magia se enquadra como um poder-de-dentro ao possibilitar autoestima, confiança,


criatividade, autonomia e qualquer característica fruto da crença e na busca do próprio
poder, é um “[...] poder interior, não poder sobre os demais.” (STARWAHK, 2005, p. 80,
tradução nossa). Para Malinowski (1984, p. 32-33), “A função da magia é ritualizar o
otimismo do homem, enaltecer a sua fé no triunfo da esperança sobre o medo. A magia
exprime para o homem o maior valor da confiança em relação à dúvida, da firmeza em
relação à indecisão, do otimismo em relação ao pessimismo”.

Por ser um saber eminentemente técnico, que ensina o indivíduo a lidar com desafios do
cotidiano (PIERUCCI, 2001), a magia também é poder-para. Por exemplo, ela capacita o
praticante a fazer “[...] vários serviços [...] desde a cura de doentes e a localização de
objetos até a leitura da sorte e todos os tipos de adivinhação.” (THOMAS, 1991, p. 156).
Sociologicamente, tais capacidades servem para empoderar o magista dentro de seu
grupo social, o tornam útil ou, até mesmo, um líder no caso de comunidades mágicas.
Por último, sobre o poder-com, Starhawk (2005, p. 7, tradução nossa) vê a magia como
fomentadora de “[...] aquisição de poder pessoal e coletivo, por ser um modelo de poder
compartilhado”. Erickson (1996), em sua análise da sociologia da religião weberiana, vê
que a magia se desenvolve mais em grupos comunitários, onde há maior atividade da
ação coletiva, enquanto que a religião se desenvolve melhor na sociedade-polis, porém
na medida em que a sociedade-polis fortalece seus mecanismos de controle social,
reprime a magia, por ser fonte de poder individual e compartilhado. Keith Thomas (1991,
p. 542), ao analisar o declínio da magia no mundo contemporâneo, afirma que uma das
razões para tanto foi o crescimento urbano e suas relações impessoais. Assim:

A repressão da magia procurava negar às massas o acesso a um


conhecimento alternativo e uma compreensão de Deus, como um
caminho que conduzisse a ele. O colapso da magia era defendido e
mantido pela violência política e institucional. A religião guerreira
tinha que combater um poder comunitário de ação compartilhada
para impedir uma visão comunitária radicalmente diferente,
robustecida pela sexualidade e pela arte. (ERICKSON, 1996, p.
142)

Portanto, a magia é um instrumento de empoderamento que possibilita ao indivíduo ou


grupo subordinado a obtenção de poder de dentro de si, poder que lhe capacita para
fazer algo e poder que leva à ação conjunta.

A análise de como isso ocorre em um grupo real específico, as bruxas contemporâneas,


facilitará o entendimento. Há outros grupos sociais os quais apresentam relação íntima
entre mulher, magia e poder, porém escolhem-se as bruxas de origem nas tradições
europeias, pré-cristãs e que contemporaneamente se inserem, em sua maioria, em
grupos pagãos, neopagãos, espiritualidade da deusa, entre outros (CLIFTON; HARVEY,
2004), devido à peculiar relação que tal tradição passa a ter com o feminismo a partir
das décadas de 50 e 60.

Bruxaria contemporânea
Segundo Keith Thomas (1991, p. 355), a definição de bruxa para a religião cristã na
Idade Média e início da Idade Moderna era: “Uma bruxa é uma pessoa de qualquer sexo
(mais com maior frequência uma mulher) que podia ferir outras pessoas por meios
misteriosos”. À parte da crença teológica daquele período, em que a bruxa é a que fere,
o maior número de mulheres é correto. Estima-se que entre os executados por bruxaria
pela Inquisição Católica, 85% eram mulheres3 (TOMITA, 2002). Entre as mulheres
consideradas bruxas estavam, sobretudo, as mais secundarizadas, como velhas e viúvas,

3
Embora muitas dessas mulheres apenas tenham “confessado” serem bruxas devido ao uso de tortura (TOMITA,
2001, 38).
que passam a se valer e se empoderar através da magia quando a tradição de auxílio de
paróquias e vizinhos gradualmente deixa de existir. Por sua vez, outros grupos
secundarizados da sociedade, como os mais pobres, buscavam com frequência os
serviços das bruxas (THOMAS, 1991, p. 431).

Conforme o conceito de empoderamento, as bruxas desafiavam as relações de poder


existentes, ela era um exemplo “[...] não conformista contra qual a comunidade sempre
tomou medidas punitivas” (THOMAS, 1991, p. 428). Mesmo no mundo hostil de extrema
rejeição à magia, e consequentemente à bruxaria, como eram os séculos XVI e XVII na
Inglaterra analisados por Thomas, era justamente o poder percebido da magia que
garantia a essas mulheres poder social, sendo temidas e respeitadas (THOMAS, 1991, p.
456).

Porém, o crescente ceticismo contra a bruxaria contribuiu com o seu declínio, resistindo
por mais tempo apenas nas aldeias de zona rural europeias até o século XIX (THOMAS,
1991). No entanto, ocorre, a partir do final da década de 1950, o reflorescimento da
bruxaria (ERICKSON, 1996), isso se dá, em parte, quando feministas, primeiramente,
intensificam as críticas ao androcentrismo judaico e cristão e, em seguida, passam a
analisar e aderir a movimentos espiritualistas fora dessas tradições que estavam sendo
criados e recriados naquela época (GROSS, 1996).

Entre estes movimentos estão os pagãos, neopagãos, espiritualidade da deusa, e muitos


outros termos para sistemas religiosos “inspirados pelas tradições indígenas, pré-cristãs,
da Europa” (CLIFTON; HARVEY, 2004, p. 1, tradução nossa). Segundo Rosalira Olivera
(2005, p. 12), para os praticantes do movimento de espiritualidade da Deusa:

[...] as bruxas feministas criticam a sociedade atual por conta das


suas estruturas sociais hierárquicas e autoritárias, baseadas no
exercício do “poder sobre” que desautorizam e deslegitimam
valores como sensibilidade, criatividade e colaboração. De fato, o
chamado “poder sobre” é um dos pilares da visão de mundo
patriarcal, caracterizada pela ordenação do mundo em opostos
hierárquicos, a um dos quais é sempre outorgada a prerrogativa –
e mesmo a obrigação – de dominar o outro.

Starhawk, uma feminista que se tornou bruxa e é uma referência da bruxaria


contemporânea desde a década de 70, considera que resgatar a palavra “bruxa” é
resgatar um direito das mulheres a serem poderosas (2005, p. 27); na bruxaria os
homens não devem ser renegados a uma segunda classe nem a um status superior às
mulheres e devem estar dispostos a interagir com mulheres fortes e poderosas (2005, p.
109).
Segundo Andrea Osório (2004, p. 157), ao pesquisar praticantes de wicca, ela constatou
que “A categoria ‘bruxa’, bem como a prática de um determinado tipo de religiosidade
definida pelas praticantes como bruxaria moderna, assenta-se em uma cosmovisão que
dá à mulher um valor e um papel preponderantes no universo”. Ainda segundo Osório
(2004), para os wicca, os atributos considerados femininos pela sociedade de dominação
masculina – como a natureza, o sobrenatural, a loucura e a magia – são mantidos entre
as bruxas como características femininas, porém há a inversão de valores, entre elas tais
atributos são positivos. Assim, “Neste ambiente, a mulher tem a oportunidade de compor
uma identidade de gênero pautada em atribuições tradicionais, ao mesmo tempo que
modifica o valor dado a elas, segundo discursos feministas subjacentes à prática
wiccana.” (OSÓRIO, 2004, p. 158).

Para Starhawk (2005, p. 53-54), as assembleias de bruxas, ou covens, tentam fomentar


o poder-de-dentro de seus membros, o poder criativo e a habilidade; esse poder interior
da bruxa fomenta um orgulho saudável e a alegria pela própria força; assim, a mulher,
como bruxa, é ensinada a lidar com seu próprio poder e sentir-se bem com isso.
Conforme Osório (2004, p. 166), na análise de seu material de campo, ficou claro que
ser bruxa propiciou mais autonomia às mulheres pesquisadas, até mesmo no mercado de
trabalho.

O poder-para da bruxa se manifesta através de sua sabedoria e conhecimento mágico, é


o que lhe capacita para fazer algo:

Sabedoria e conhecimento podem se entender melhor quando


estão juntos. O conhecimento é a aprendizagem, a capacidade da
mente para compreender e descrever o universo. Sabedoria é
saber como aplicar o conhecimento e como não aplicá-lo.
Conhecimento é saber o que dizer, a sabedoria é saber se
devemos dizer ou não. O conhecimento pode ser ensinado, a
sabedoria vem com a experiência, de cometer erros. (STARHAWK,
2005, p. 80, tradução nossa)

Assim, o conhecimento mágico da bruxa serve para resolver os problemas do dia-a-dia


ou realizar desejos próprios (PIETRO, 2009). O poder-para da bruxa também se expressa
na utilização do conhecimento mágico como profissão. Entre as bruxas pesquisadas por
Osório (2004, p. 160) muitas “Desempenhavam o papel de videntes (taróloga, runóloga,
astróloga, cartomante) ou ocultistas (numeróloga, radiestesista), sendo palestrantes em
feiras e eventos esotéricos, dançarinas e comerciantes”.
Os covens, além de treinar cada membro a desenvolver seu poder pessoal através da
magia, é um espaço de empoderamento através do poder-com; “O apoio e a seguridade
do grupo reforça a crença de cada membro em si mesmo” assim, a ação conjunta
prepara “[...] cada bruxa para que seja uma líder” (STARHAWK, 2005, p. 54, tradução
nossa), portanto estabelecendo lideranças, não hierarquias.

Algo que os defensores do empoderamento através da magia pouco mencionam é que


esta também pode servir como poder-sobre; porém, sobre isso, Starhawk (2005, p. 120,
tradução nossa) afirma que “A magia não deve ser usada para obter poder sobre os
outros, deveria ser vista como parte da disciplina para desenvolver o ‘poder que vem do
interior’. Magia que tem como intenção controlar outra pessoa deveria ser evitada”. A
maior ênfase nos deveres éticos do praticante de magia é uma das diferenças da
bruxaria contemporânea em relação à sua contraparte tradicional. A wicca, por exemplo,
entre seus princípios e crenças, postula o Dogma da Arte, que assim diz:

‘Faça o que quiser, desde que não faça mal a nada, nem ninguém’.
Esta é seguramente a principal diretriz Wiccaniana e é levada em
consideração todas as vezes que realizamos um ato mágico e no
nosso comportamento diário. Assim como em muitas religiões a
Wicca também pratica Magia. Nós Bruxos acreditamos que a
mente e o corpo humano possuem o poder de efetuar mudanças
nos acontecimentos de maneiras ainda não compreendidas pela
ciência. Em nossos rituais, onde honramos nossos Deuses,
realizamos diversos feitiços para inúmeros propósitos como cura e
superação de problemas. No entanto, a Magia sempre é praticada
de acordo com um código de ética que afirma que só podemos
ajudar outros, ou a nós mesmos, respeitando o livre arbítrio das
pessoas envolvidas e quando isso não prejudicar ninguém. Não
fazer mal a nada nem NINGUÉM significa não prejudicar a
natureza, as pessoas ao nosso redor e nós mesmos. (PIETRO,
2009, p. 20)
Considerações finais
É importante ressaltar que a magia, inserida nos modelos de poder-de-dentro, poder-
para e poder-com, não necessariamente anula a dominação de um grupo sobre outro –
um exemplo disso é que as tradições mágicas na Europa dos séculos XVII e XVIII
analisados por Thomas não anularam a dominação cristã – contudo, permite aos
subordinados o acesso a fontes de poder que não dependam dos dominadores, possibilita
capacidades e maior autonomia sobre a própria vida que dependam apenas de si. Assim,
em face à falta de poder do individuo no meio coletivo, a magia possibilita o
empoderamento deste mesmo indivíduo em relação a si mesmo.

Necessário, também, salientar os possíveis efeitos negativos de noções essencialistas de


gênero em muitos grupos de bruxaria contemporânea, particularmente wicca, para o
empoderamento da mulher, pois reproduzem um modelo tradicional de características
masculinas e femininas que podem entrar em conflito com visões modernas de
identidades de gênero, as quais favorecem mais liberdade e equilíbrio. No entanto, sobre
isto, Osório (2004) afirma que as bruxas contemporâneas têm, na verdade, utilizado a
tradição de forma moderna:

Neste ponto, cabe um questionamento sobre o quanto a identidade


de bruxa rompe com valores tradicionais e expressa a
“modernização” da mulher e o quanto essa identidade, na
verdade, ajuda a reconstruir para a mulher moderna papéis
tradicionais de gênero. Em ambos os casos, na verdade, está-se
diante de expressões de modernidade. De fato, não parece ser o
caso de uma volta aos papéis tradicionais, mas de uma valorização
de atributos tradicionais das mulheres, estando o feminino
compreendido ainda em termos tradicionais, mas não valorado
segundo eles [...] É um discurso de retorno à tradição que inova e
se direciona para a modernidade. (2004, p. 165-166)

De qualquer maneira, a magia como empoderamento nos modelos de poder-de-dentro,


poder-para e poder-com tem se mostrado útil para as feministas desde a segunda
metade do século XX. À parte da bruxaria de origem europeia, o reconhecimento desse
caráter da magia como empoderamento dos oprimidos tem ocorrido também em outros
movimentos, como nas tradições afrodescendentes nas Américas “A magia africana
precisa ser reclamada na luta contra o racismo [...] a magia pertence às massas, aos
oprimidos, e o vodu, aos escravos e a seus filhos” (ERICKSON, 1996, p. 198).

O resgate da magia, e particularmente das tradições mágicas europeias pré-cristãs, tem


servido a muitas mulheres como uma maneira de escapar dos sistemas religiosos
androcêntricos (CLIFTON; HARVEY, 2004; ERICKSON, 2005). E nesse movimento de
reconstrução a figura da bruxa tem servido como modelo de contestação e poder
feminino, pois “O que a figura da bruxa ensina é um certo modo de enxergar a mulher,
principalmente quando esta expressa poder” (ZORDAN, 2005, p. 332).

Por fim, é importante ressaltar que semelhante à desconstrução realizada por


pesquisadores feministas da literatura sobre mulheres ainda inserida na dicotomia
hierarquizante entre masculino e feminino; a literatura sobre magia, especialmente dos
clássicos, como Weber, Durkheim, Malinowski, James Frazer, Edward Tylor, entre outros,
também precisa ser desconstruída. Apesar de serem fontes importantes nos estudos
sociais e antropológicos de magia, suas análises estão inseridas no pensamento dualista
e, assim, expressam um preconceito implícito em relação à magia.

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O DESENVOLVIMENTO DO AKTISMO NOS PUR A
Flávia Bianchini1

Introdução
O aktismo é a religião indiana cuja divindade central é a akti, ou seja, a Podero-
sa, a Dev (deusa) suprema. Nesta tradição, a deusa que era inicialmente apenas uma
companheira de iva foi adquirindo importância cada vez maior e acabou por ser con-
siderada uma síntese de todas as formas divinas femininas, chegando depois a ser
considerada como superior às divindades masculinas (devas).
Essa abordagem já estava presente no Hinduísmo durante o período medieval, mas
é difícil determinar quando se estabeleceu. O estudo acerca das origens e consolida-
ção do aktismo na Índia se depara com enormes dificuldades por falta de informa-
ções históricas, em função das características próprias da estrutura de transmissão
oral na tradição indiana, pela extensão territorial e pela falta de documentação escrita,
entre outros tantos fatores.
Há duas correntes de pensamento acerca da origem do culto a Deusa, uma no qual
se atribui suas origens em torno das deusas das vilas e outra que recorre às divinda-
des femininas existentes nos Vedas2 e estudo de artefatos arqueológicos que retratam
imagens femininas encontrados em diversos sítios arqueológicos, que indicariam um
antigo culto da Deusa Mãe em terras indianas (Agrawala, 1984, pp. 23-38). Estamos
ainda longe de ter certeza absoluta sobre a origem desse culto. O que podemos abor-
dar com mais segurança é o período em que se deu a sua consolidação de forma inde-
pendente, com base nas escrituras encontradas. Esse é o propósito do presente texto.
Abordaremos as fontes escriturais nas quais podemos verificar fatos, mitos, aconteci-
mentos e registros em torno do culto à deusa na Índia e sua apresentação como di-
vindade suprema. Daremos principal atenção aos Pur a e por isto faremos uma breve
apresentação sobre a estrutura e história destas obras. A culminação do culto à deusa
é evidente nos Pur a, onde ela aparece ocupando uma posição única e central como
a Realida Última, no Dev Bh gavata Pur a.

Pur a
A palavra Pur a significa “antigo” e é aplicada a textos contendo uma narrativa
tradicional cuja origem dificilmente pode ser datada. Existem referências sobre os
Pur a no Atharvaveda, nos Br hma as e outras obras muito anteriores à era cristã
(Kumar, 2010, p. v). Mas não é claro se naquele tempo eram obras com um conteúdo

1
Especialista em Yoga pela UNIBEM; Mestranda em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da
Paraíba (UFPB). E-mail: flaviabianchini@gmail.com
2
Os Vedas são as quatro escrituras sagradas indianas mais antigas conhecidas como gveda, S maveda,
Yajurveda, e Atharvaveda respectivamente.

1
determinado ou apenas uma tradição indeterminada. Tanto Itih sa quanto Pur a de-
signam histórias e ambos são mencionados juntos na literatura vêdica, às vezes sepa-
rados e às vezes como uma palavra composta (Pargiter, 1922, p. 35). Atualmente
identificamos como Itih sa as obras Mah bh rata e Ram yana, distinguindo-as dos
Pur a (Pruthi, 2005, p. 1).
Os Pur a foram transmitidos oralmente durante um longo tempo e a única data
que lhes pode ser atribuída é a época aproximada de sua compilação escrita. Os mais
antigos parecem datar do primeiro milênio da era cristã, e tradicionalmente atribui-se
sua compilação ao sábio Veda Vy sa3. Amarasi ha, em sua definição clássica do ter-
mo, em 500 d.C., indicou cinco características (pañcalak ana) para definir uma obra
como sendo um Pur a, a saber: sarga (criação), pratisarga (dissolução e recriação),
vam a (genealogias divinas), manvantara (eras dos vários Manus), vam anucarita
(genealogias dos reis) (Pruthi, 2005, p. 2; Coburn, 2002, p. 21). Essa caracterização
antiga dos Pur a não leva em conta diversos outros aspectos que vemos nas obras
que conhecemos hoje em dia. Praticamente todos os Pur a apresentam aspectos de-
vocionais sectários, dando especial atenção às divindades Vi u e iva. Esses Pur a
atualmente existentes constituem verdadeiras enciclopédias, e compreendem um vas-
to corpo de informações religiosas e culturais contendo narrativas que tratam sobre as
origens das coisas e dos mais variados assuntos, como: mitos; histórias; tradições; as
interações entre deuses, demônios e seres humanos; a natureza de Brahman e de
vara; a relação entre o Eu ( tman) e Brahman; a natureza da libertação (mok a) e
os meios para alcançá-la; os ritos, cerimônias e modos de adoração; as genealogias
das dinastias reais; a evolução do universo, desde sua criação à destruição, etc. (Par-
giter, 1922, p. 22; Kumar,1983 pp. 19-20; Krishnamachariar, 1937, p. 72).

Período medieval ou purânico


A tradição indiana não possui um relato cronológico preciso da sua história, sendo
difícil determinar exatamente o período dos Pur a. De acordo com diferentes
estudiosos, as datas de composição dessas obras variam bastante, e podem se situar
no período entre 400 a.C. até o século XII d.C., ou mesmo posterior a isso (Dhawan,
1997, p. 86; Brown, 1999, p. 7). Algumas fontes indicam que o início de composição
destas obras foi no período Gupta, 300-600 d.C. João C. B. Gonçalves sugere os dois
séculos antes e após o século X d.C., como sendo o período no qual tais obras adquiri-
ram feição semelhante à que apresentam hoje (Gonçalves, 2009, p. 14).
Os Pur a mais antigos que conhecemos talvez sejam V yu, M rka eya, Matsya e

3
Distintos questionamentos são realizados sobre o mítico Veda Vy sa. Algumas pesquisas sugerem que o
nome Vy sa se refere a um único compilador, outros apontam que esta designação corresponde a vários es-
critores (Gonçalves, 2009, p. 37).

2
Vi u Pur a, que podem datar dos séculos II e III d.C. (Pruthi, 2005, p. 128). Naren-
dra Nath Bhattacharyya considera que os Pur a mais antigos seriam V yu, Brah-
m nda, Vi u e Bh gavata, e como mencionam a dinastia Gupta entre as suas dinasti-
as reais, sugere que não teriam sido compilados antes do século IV d.C. (Bhatta-
charyya, 1996, p. 100).
Mackenzie Brown considera que os Pur a seriam uma continuação da grande tra-
dição épica, pois muitas vezes narram histórias já encontradas no Mah bh rata, o
grande épico Hindu. Para ele, os paur ikas – os compositores dos Pur a – foram
influenciados cada vez mais pelos novos movimentos religiosos personalistas, devoci-
onais e teístas, conhecidos como bhakti (Brown, 1999, p. 6). No período purânico o
movimento devocional adquiriu grande força e influência, atingindo sua plenitude por
volta de 1.200-1.700 d.C., redefinindo em muitos aspectos o hinduísmo (Dhawan,
1997, p. 85). A atenção dada às batalhas épicas do Mah bh rata e Ram yana cedeu
espaço para manifestações devocionais e o culto de um grande Deus ou Deusa. É nes-
se contexto que, em alguns dos Pur a, a Grande Deusa ou akti passa a ser apresen-
tada como a divindade suprema.

A Era Gupta - Influências geográficas e econômicas na expansão do aktismo


Vejamos primeiramente qual era a situação do culto à divindade feminina antes do
período dos Pur a. Segundo Narendra Nath Bhattacharyya, uma ideia mais concreta
da popularidade do culto a deusa no início da era cristã pode ser formada através de
evidências encontradas no Mah bh rata (400 a.C. até 400 d.C.). A seção Th rta-y tr
do Vanaparvan (Mah bh rata III.82) descreve três lugares sagrados associados à
deusa – os dois Yoniku as e o Stanaku a4 – e cita os nomes de diversas deusas cul-
tuadas em diferentes regiões da Índia. No Mah bh rata (III.84.94-95) também há
menção ao Yonidvara, lugar sagrado no vale de Bhamayoni em Gaya. O hino Durg
Stotra contido no grande épico (Mah bh rata IV.6; VI.23) já apresenta o processo
pelo qual a Dev adquire seu papel central, pois revela o processo através do qual
inúmeras deusas locais são combinadas em um único princípio feminino todo-poderoso
(Bhattacharyya, 1996, p. 75). As deusas citadas no Mah bh rata e diversas outras
recebem grande atenção nos Pur a5, sendo também enumerados novos lugares sa-
grados (M t t rthas ou Dev -t rthas), chegando a 108 pontos dedicados à adoração da
Deusa espalhados por toda a Índia (Bhattacharyya, 1996, p. 76).
Narendra Bhattacharyya e Madhu Bazaz Wangu fazem inúmeras considerações
sobre as influências econômicas e geográficas na expansão do aktismo durante a era
Gupta (300-700 d.C.). Eles atribuem as mudanças na perspectiva religiosa da Índia, e

4
Bhimasthana próximo a Pañcananda (Punjab), na colina Udyataparvata e na montanha Gaur ikhara.
5
Matsya XXI.31; K rma I.35.3; P dma I.37.3; Mah -Bh gavata III.84.94-95; P dma I.38.15I

3
a crescente popularidade do princípio feminino durante esse período às mudanças nos
padrões sociais decorrentes das novas condições econômicas e ao novo conjunto soci-
al que se institui, que possivelmente permitiu e fez com que a Deusa Mãe dos
agricultores encontrasse caminho para os níveis mais elevados da sociedade sob as
condições históricas resultantes da expansão do comércio, do crescimento urbano e da
estruturação das classes sociais (Bhattacharyya, 1996, p. 80; Wangu, 2003, p. 64). As
eras Gupta e pós-Gupta foram caracterizados por uma sofisticação das crenças e prá-
ticas religiosas, pela institucionalização sob a forma do estabelecimento de organiza-
ções monásticas e de outras; construção de templos, edifícios e estruturas gigantes-
cas; produção de uma desconcertante variedade de imagens custeadas por generosas
doações dos príncipes e da nobreza; elaborado nível de institucionalização, sacerdócio
organizado, codificação rígida e sectarismo (Bhattacharyya, 1996, p. 110; Wangu,
2003, pp. 65-68; Trautmann, 2011, pp. 72-80).
Bhattacharyya sugere que inicialmente existia um aktismo dependente: havia ce-
rimônias de culto das imagens de Vi u, iva e das divindades dos budistas e jainistas,
junto com suas respectivas consortes, instalados em numerosos templos de propor-
ções magníficas, tornou-se uma característica muito importante da vida religiosa, sen-
do a instalação de tais templos e imagens evidentemente resultantes do desenvolvi-
mento econômico. O culto do princípio feminino estava subordinado ao manto das
correntes vai ava, iva, budista e jainista, e a colocação das deusas ao lado dos
deuses de todos esses sistemas, como seus cônjuges e símbolos de sua energia ou
akti, foi importante para o passo seguinte (Bhattacharyya, 1996, p. 108). Essa situa-
ção evoluiu para um aktismo independente, no qual a deusa assumiu papel principal
(Bhattacharyya, 1996, p. 96).
Surgem no período Gupta inúmeros templos, inscrições em pilares e cavernas as-
sociados à Grande Deusa. Em diferentes partes do país, ela parece ter sido cultuada
tanto em seus aspectos individuais quanto coletivamente, em um círculo de sete deu-
sas. As inscrições no pilar de pedra em Bihar, do período de Skandagupta, mencionam
as mães divinas conhecidas como Mat s (Bhattacharyya, 1996, p. 102; Coburn, 1992,
p. 21; Pattanaik, 2007, pp. 80-81). Algumas esculturas do período Gupta representam
as deusas associadas às religiões vai ava, aiva, budista e jainista; retratam as popu-
lares deusas dos rios Ga ga, Yamun e Sarasvat ; e a imagem mais importante deste
período é encontrada em um relevo esculpido na fachada de uma caverna em Udaya-
giri perto de Bhilsa, Madhya Pradesh, que mostra a deusa Durg matando o búfalo-
demônio Mahi sura (Wangu, 2003, p. 73) – um tema que será apresentado com mais
detalhe em outra seção deste trabalho. Há esculturas da deusa que mata Mahi sura
(Mahi amardin ), com oito ou dez braços providos de armas, espalhadas por toda a

4
Índia, e tudo indica que elas se tornaram bastante populares a partir deste período
(Bhattacharyya, 1996, pp. 104, 125). Um templo da deusa Durg foi erguido em Aiho-
le pelos reis Calukya entre os anos 550 e 642 d.C. O principal monumento de Calukya
é a série de templos cavernas de Badami, a varanda de pilares que apresenta algumas
das melhores figuras da deusa em suas diferentes formas (Parthasarathy & Parthasa-
rathy, 2009, pp. 104-106). Tudo isso indica que nos primeiros séculos da era cristã, a
divindade feminina já havia adquirido grande importância, na Índia.

Mah -Pur a
Tradicionalmente são reconhecidos dezoito Mah -Pur a6 e dezoito Upa-Pur a
(uma expressão que significa Pur a secundário), embora possam ser encontrados
referências a quase uma centena destes (Feuerstein, 1998, p. 366). A grande maioria
dos Mah -Pur a exalta as glórias de Vi u ou de iva como sendo os grandes devas,
nas duas principais correntes devocionais indianas conhecidas como Vai ava e aiva,
respectivamente. Dentre os muitos Pur a e Upa-Pur a, encontramos diversas obras
onde a Dev aparece em destaque, além do grupo de kta Upa-Pur a, onde ela é a
divindade principal.
Em muitos dos Maha-Pur a constatamos o crescimento do número de nomes e
formas da deusa, aumento do número de lugares sagrados de adoração (Mat -t rthas,
Dev -t rthas ou kta-p thas), a repetição em vários Pur a das histórias acerca da
destruição do sacrifício de Dak a por iva em função da morte de sua consorte S t
(Bagchi, 1980, p. 1). Constatamos uma evolução em torno da concepção e mitologia
da deusa. Nos Pur a, muitas deusas locais passam a ser identificadas com a Suprema
Deusa, que passa a ser considerada a personificação do Princípio Feminino ativo que
tudo permeia, a fonte primordial da criação. Ela passa a ser vista como sendo tudo em
todos, a criadora de Brahm , Vi u e iva, sendo todos eles subordinados a ela (Bhat-
tacharyya, 1999, p. 119).
O Matsya Pur a afirma que Dev pode ser adorada com 108 nomes e em 108 lu-
gares por toda a Índia (Dasgupta, 2011, p. 38). O capítulo 13 dessa obra declara que
ela tudo permeia e sustenta todas as formas, que os devotos desejosos de alcançar a
perfeição devem adorá-la em lugares diferentes, por meio de diferentes formas e no-
mes conforme enumerados no texto. Essa lista é encontrada em alguns outros Pur a
como, por exemplo, no P dma (Dasgupta, 2011, p. 55). Considera-se que os mais
importantes Pur a do ponto de vista kta são o M rka eya Pur a, Brahm a

6
São eles: Brahm , Padma, Vi u, Agni, V yu, Bh gavata, N rada, M rka eya, Bhavi ya, Var ha, Skan-
da, Garu a, K rma, Brahma-Vaivarta, Li ga, Matsya, Brahm a, Vam na; mas há listas diferentes.

5
Pur a, e o Dev Bh gavata Pur a7, pois eles se constituem em escrituras-chave no
desenvolvimento das concepções centrais do aktismo (Bhattacharyya, 1996, pp.
163-166). É nos kta Upa-Pur a que a glória da deusa é relatada em toda a sua
extensão (Bhattacharyya, 1999, p. 119).

Alguns temas mitológicos importantes

O sacrifício de Dak a

A evolução e variações encontradas em vários Pur a sobre a história do sacrifício


de Dak a refletem como ocorreu o desenvolvimento em torno da mitologia da deusa.
Essa história aparece pela primeira vez no Mah bh rata. Segundo este mito, a Dev
(com o nome S t ) havia aceitado nascer como filha do br hma a Dak a e se tornar
esposa de iva. No entanto, o próprio Dak a não respeita iva, que considera como
um asceta sujo e estranho, e prefere não manter contato com ele. Em certa ocasião,
Dak a resolve realizar um grande ritual, e não convida sua filha nem o genro. Apesar
disso, S t resolve participar dessa celebração. No entanto, durante essa ocasião
Dak a insulta iva e os convidados também o ridicularizam (Bhattacharji, 1998, pp.
39-41). S t fica tão envergonhada por seu pai, que se sacrifica, invocando o fogo sa-
grado (Agni). Imediatamente iva toma conhecimento do que aconteceu, vai até o
lugar do sacrifício de Dak a e destrói tudo, repleto de fúria, por meio de suas manifes-
tações Virabhadr e Mah kal . Depois, coloca nos ombros o corpo de S t e sai va-
gando pelo universo, desconsolado, louco de dor. Para interromper essa situação, os
devas pedem a ajuda de Vi u. Este corta o corpo de S t em pedaços com seu disco;
os lugares onde essas partes caem se tornam depois sagradas. Posteriormente, a
deusa renasce sob a forma de P rvat . Essa história foi desenvolvida no V yu, Matsya
em outros Pur a, e principalmente nos kta Pur a (Bhattacharyya, 1999, p. 119).

kta-p thas

Na lenda do sacrifício de Dak a, os lugares onde caem as partes do corpo de S t


se tornam sagrados, e vão se tornar lugares de peregrinação da akti ( kta-p has)
onde são construídos templos em homenagem à Dev . Nos textos mais antigos são
descritos poucos desses locais, mas seu número aumenta gradualmente (Renou,
2004, p. viii). O surgimento dos kta-p has sugere que a adoração de akti começa
a se tornar importante em toda a Índia, com maior concentração em Bengala e Assam
(Dev, 1987, p. 16). Nos Mah -Pur a considerados mais antigos, o número de lugares
sagrados gira em torno de 51, e esse número aumenta para 108 nos Pur a posterio-
res. Uma lista completa dos 108 nomes da deusa com as especificações de sua asso-

7
Há controvérsias acerca da classificação do Dev Bh gavata Pur a como um Mah -Pur a ou um Upa-
Pur a, mas este ponto não será debatido aqui.

6
ciação com lugares de peregrinação específicos encontra-se pela primeira vez no Mat-
sya Pur a (XIII.26-53) e, depois, no Dev Bh gavata Pur a (Bhattacharyya, 1999, p.
124; Sircar, 2004, p. 25).

A morte do demônio-búfalo Mahi a-Asura


Um dos episódios mitológicos que destaca a importância da deusa é o seu combate
contra o demônio-búfalo Mahi sura. É interessante notar que nos Mah -Pur a consi-
derados mais antigos esse tema não adquire grande destaque. A ênfase se dá princi-
palmente no M rka eya, no Vam na e nos kta Upa-Pur a (Bhattacharyya, 1999,
p 121). Nas versões mais desenvolvidas desse mito, é uma única deusa que, sob dife-
rentes formas e manifestações, destruiu diversos demônios; porém, segundo Bhatta-
charyya, existiram inicialmente diversas lendas de combate aos demônios, associadas
a diferentes deusas, que mais tarde foram identificadas com a deusa suprema do
kta (Bhattacharyya, 1999, 124). Assim, a elaboração deste episódio mítico teria
sido um ponto importante no sincretismo e no aumento de importância da Dev .
A popularidade da lenda em torno na morte do búfalo-demônio Mahi sura pela
deusa se verifica pela já citada ampla distribuição de esculturas de Mahi amardin ; a
popularidade do conceito da deusa assassina de demônios deve ter adquirido um sig-
nificado social. Bhattacharyya atribui a expansão deste mito pelo território indiano às
mudanças econômicas e mobilidade social. Segundo ele, o povo que constituía a base
da sociedade identificou no mito uma representação de sua luta. E assim, a luta de
Dev contra os demônios simbolizaria o triunfo final do bem sobre o mal e a libertação
da opressão. Haveria assim uma associação mais próxima da Deusa Mãe com as pes-
soas comuns, com os fatos de sua vida diária. A deusa estaria ligada à vegetação e à
fertilidade; seria a produtora da vida e protetora das crianças; a curadora das doen-
ças; a dona do gado; a guardiã das florestas e da vida selvagem; a doadora do suces-
so e fortuna; e removedora das dificuldades de todos os tipos. Essas relações teriam
dado uma nova dimensão às lendas purâ icas de Dev (Bhattacharyya 1996, p. 105;
Sivananda, 2006, pp. 9-10).

O Dev -M h tmya, do M rka eya Mah -Pur a


No M rka eya Pur a (aproximadamente 300-600 d.C.) se encontra o Dev
M h tmya (“Glorificação da Deusa”), uma parte da obra que adquiriu status de escri-
tura independente, e que descreve os feitos da deusa Durg e sua vitória sobre o de-
mônio-búfalo Mahi sura. Parece ter sido composto aproximadamente no século V d.C.
É também conhecido como Durg Sapta at por conter setecentos versos (sapta ata =
700), em 13 capítulos (M rka eya Pur a 81-93). Esse é um dos mais importantes
textos do aktismo. O Dev M h tmya também é conhecido como Ca M h tmya,
(Ca = a violenta), sendo o principal texto sagrado dos adoradores de Durg no nor-

7
te da Índia (Payne, 1997, p. 40). Aqui a deusa Durg se manifesta como Mah -Kal
(capítulo I), Mah -Lakshm (capítulos II e IV),e como Mah -Sarasvat (capítulos 5 ao
8) (Rahi, 2008, p. 103).
O Dev M h tmya é considerado o livro-texto dos adoradores da deusa conhecida
como Kal , Cha , ou Durg em Bengala. Ele é lido diariamente nos templos de Durg ,
e fornece a base do grande festival hindu, o Durg puja, ou adoração pública daquela
deusa (Ghosha, 1997, p. xiii; Wilson, 1840, p. xxxv). Nesta obra, a deusa Durg apa-
rece pela primeira vez como divindade central. Nesta escritura ela surge da união da
energia de todos os deuses e recebe destes todas as suas armas e poderes para salvar
o mundo do demônio-búfalo Mahi a-asura. Este momento é assim descrito por Hein-
rich Zimmer:

Contemplando a mais preciosa personificação da suprema


energia do universo, essa maravilhosa fusão da totalidade de
seus poderes, os deuses rejubilaram-se venerando-a como a
esperança de todos. Nela, “a mais linda donzela das três cida-
des” (Tripur Sundar ), mulher perene e primordial, todas as
forças particularizadas e limitadas de suas várias personalidades
estavam integradas de modo poderoso, numa esmagadora tota-
lização que significava onipotência. Com um gesto de total
submissão e de abdicação espontânea voltaram suas energias
para a akti primordial, força única e fonte de onde tudo nasceu
e teve origem. O resultado foi uma grandiosa renovação do es-
tado original do poder universal. Quando o cosmos desdobrou-
se pela primeira vez, em um sistema de esferas e forças dife-
renciadas de modo estrito, a energia da vida foi dividida numa
multidão de manifestações individualizadas. Porém, estas havi-
am perdido sua força. A Mãe de todas, a própria energia da vi-
da, princípio maternal primevo, as reabsorvera; o útero univer-
sal, para onde haviam regressado, as engolira. Agora ela estava
pronta para existir na plenitude de todo o seu Ser. (Zimmer,
2002, p. 154)
O foco de muitos dos mitos e lendas nas antigas histórias relatadas nos Pur a gira
em torno de eternos ciclos de conflito entre os deuses e demônios, colocando a estabi-
lidade e a prosperidade de todo o universo e da humanidade em desequilíbrio ou à
beira de uma grande destruição. O recontar destas antigas histórias servia para rea-
firmar a eventual vitória dos deuses e o restabelecimento da ordem cósmica (Kumar,
1997, p. 36). Assim como o Dev -M h tmya, o Dev Bh gavata Pur a também se
insere neste contexto, pois relata o mito do demônio T raka e o surgimento da Grande
Deusa como geradora dos meios para sua destruição, constituindo um remanescente
deste tipo de estrutura mitológica cujo objetivo é o restabelecimento da ordem cósmi-
ca (Brown, 1999, p. 6).
Muitas vezes se considera que o Dev M h tmya marca o nascimento do aktismo
como um culto independente de adoração à Deusa, ou seja, o culto do princípio femi-

8
nino como ser supremo, independente e superior às divindades masculinas, com uma
filosofia distinta. Geralmente, nos Maha-Pur a, o princípio feminino aparece ao lado
dos devas masculinos dos quais são cônjuges, como símbolo de sua energia ou akti.
Embora este texto faça parte de Mah -Pur a, aqui ela surge como sendo superior aos
grandes devas da trim rti, Brahm , Vi u e iva. Todo o período de 550-900 d.C. pa-
rece ser permeado por concepções do poder personificado como uma Deusa (Payne,
1997, p. 42). Pela primeira vez, os vários elementos mítico, cultual e teológico relati-
vos a diversas divindades femininas começaram a ser reunidos no que tem sido cha-
mado mais recentemente de “cristalização da tradição da Deusa” por Chiver Macken-
zie Brown e Thomas B. Coburn (Brown, 1992, p. 2; Coburn, 2002). Este texto é de
vital importância para avaliar o crescimento do aktismo no contexto da história da
Índia. De modo geral, foi datado entre os séculos V e VII d.C. mas, segundo M. C.
Joshi, a ausência de quaisquer referências a Ga e a sugere que foi composto durante
um tempo em que os br hma as ainda não reconheciam Ga e a como um deva; por
isso, o texto deve ser anterior ao século V d.C. (Joshi, 2002, p. 46).
Outra consideração importante a se fazer é que, embora o Dev M h tmya seja um
texto purânico, nele temos as diversas características de uma obra literária tântrica,
na medida em que nele se encontram muito bem desenvolvidos temas relativos à total
devoção à Deusa, à realização de sacrifícios com fogo em sua honra, apresenta um
sistema de japa (repetição de mantras místicos) dedicados a ela, falando sobre ofere-
cimentos diversos que incluem a própria carne e sangue do devoto; e nele há referên-
cias à combinação entre o gozo ou prazer (bhukti) e a libertação (mukti). O texto
menciona também a forma tripla do Poder Supremo que simbolicamente está baseada
nos três gu as: tamas (trevas), rajas (poder) e sattva (pureza), que são representa-
dos por seus aspectos chamados de Tamas ou Yoganidr , Mahi amardin e Sarasvat
(Joshi, 2002, p. 47).
A teologia da deusa é cristalizada no Dev M h tmya, que a exalta como a fonte de
toda a criação. Tracy Pintchman aponta que a grande deusa, no Dev M h tmya, é
representada de formas que a comparam a Brahman – por exemplo, quando é
descrita como a realidade final mais elevada – embora tal associação não seja feita de
forma explícita no texto. A identificação com Brahman só vai se dar no Dev
Bh gavata Pur a. No Dev M h tmya, quando ela se revela, diz-se que ela só parece
ter nascido, mas na verdade é eterna; que ela, portanto, nunca nasceu, e que ela
realmente nunca morre (Pintchman, 1997, p. 119).
A importancia desta obra para o aktismo e sua expansão se dá também pela
influência que o Cha M h tmya teve sobre a produção de outras obras, pois ele se

9
constitui na base do Cha ataka de B abha a (início do século VII d.C.), uma ode
à deusa Cha , com uma centena de versos (Payne, 1997, p. 41).

Upa-Pur a
Os Upa-Pur a são considerados textos secundários em relação aos Mah -Pur ae
supõe-se que foram escritos em um período posterior. Os Upa-Pur a existentes po-
dem ser divididos em seis grupos, de acordo com as visões sectárias encontradas ne-
les: Vai ava, kta, aiva, Saura (associados a S rya), Ga apatya (associados a
Ga e a); e também os não-sectários. Rajendra Chandra Hazra apresenta a seguinte
lista de kta Upa-Pur a: Dev , K lik , Mah -Bh gavata, Dev -Bh gavata, Bhagavat ,
Ca (ou Ca k ), S t , Dev -Rahasya, e um segundo K lik (que é também chamado
K l ou S t ) diferente do K lik mencionado antes (Hazra, 1963, p. 1). Há listas simi-
lares de 18 Upa-Pur a no K rma Pur a (I.1.17-23) e no Garu a Pur a (capítulo
227) (Shastri, 1991, p. 9).
Nos kta Upa-Pur a os conceitos e concepções de Dev são desenvolvidos ple-
namente. Eles elaboram e incrementam as façanhas de Dev mencionados nos Mah -
Pur a, e dão uma imagem dos seus lugares sagrados e das deusas locais que passam
a ser identificadas com a Deusa Suprema dos kta (Bhattacharyya, 1999, 125).
A concepção da deusa, a sua criação a partir da energia de todos os deuses pre-
sente no Dev M h tmya tornou-se popular entre os kta, que recontam a história de
modo mais elaborado nos Upa-Pur a (Bhattacharyya, 1996, p. 101; 1999 p. 123). Os
kta Upa-Pur a nos fornecem informações importantes sobre a natureza da deusa,
o método de seu culto, sobre a iconografia, sobre os votos kta, sobre os lugares
sagrados e cerimônias em sua homenagem, e descrições de algumas partes da Índia
(Santideva, 2000, p. 191).

A deusa e a criação – cosmogonia


Vamos analisar aqui duas das cinco características (pancalak ana) que definiriam
uma obra Pur ica – sarga (criação) e pratisarga (dissolução e recriação) do universo.
O processo de criação geralmente aparece nos Mah -Pur a associado aos três
devas masculinos. A mais elevada divindade, Brahman, investido com o gu a rajas (o
poder da atividade) adquire a forma do deva Brahm criando todos os seres; investido
com o gu a sattva (o poder luminoso) associado ao deva Vi u, preserva a criação do
universo; e na forma terrível do gu a tamas (o poder da inércia e das trevas)
associado ao deva Rudra ou iva destrói toda a criação (Pruthi, 2005, p. 6). A criação
viria à existência no dia de Brahman e teria fim na noite de Brahman, quanto tudo se
recolheria, e toda a natureza criada (prak t) entraria em um grande processo de dis-

10
solução (namittika-pratisarga), no qual todos os elementos retornariam à sua origem,
seriam novamente incorporados na substância primária (Pruthi, 2005, p. 7).
A criação a partir de uma fonte primária e a dissolução e reabsorção nessa mesma
fonte assumiram interpretações novas dentro do aktismo. No Dev Bh gavata Pur a
(I.2.6-8) considera-se que, embora a divindade Brahm seja denominada como sendo
o criador do universo no Veda e nos Pur a, deve-se também considerar o papel da
deusa:

Brahm nasceu de um lótus do umbigo de Vi u; sendo assim, então ele


não pode criar nada de forma independente. Por sua vez, Vi u, de cujo
umbigo brotou um lótus onde Brahm nasceu, estava ele próprio deitado no
sono yoga na cama-serpente no momento do grande dilúvio. Assim, como
pode Vi u ser concebido como o criador do universo, pois ele mesmo tomou
repouso nas mil cabeças de e an ga ou Ananta? E o refúgio de Ananta era
água do oceano Ek r ava. O líquido não pode ficar sem um recipiente. Por
isso, é somente a Deusa Mãe que suporta todos (Dev, 1987, p. 43-44).
No Dev M h tmya a deusa é descrita como essencial para a criação e assume a
função dos três papéis cosmogônicos: ela é o criador supremo, a causa eficiente da
criação; é a causa material; e ela é a própria criação. Nesta obra não há passagens
que descrevam os processos cosmogônicos em si, mas eles aparecem plenamente
desenvolvidos posteriomente no Dev Bh gavata Pur a (Pintchman, 1997, p. 120).
No Dev Bh gavata a incorporação do feminino se dá sobre os níveis de criação
primária e secundária e o principio feminino é identificado como a mais alta divindade
e realidade última Brahman e com os três devas, Brahm , Vi u e iva. Ela é descrita
como sendo Brahman com qualidades (sagu a), manifesto na criação durante o dia de
Brahman, e também sem qualidades (nirgu a), correspondendo ao Brahman
imanifesto. Também é consistentemente descrita como akti (o poder dinâmico em
tudo), M y (a magia) e Prak ti (a Natureza) (Pintchman, 1997, p. 128). Neste con-
texto kta, a fonte primal de toda a energia é a Deusa Suprema ( akti ou Mah De-
v ) que atribui a cada deva – incluindo a suprema trindade hinduísta de Brahm , Vi u
e Mahe vara ( iva) – suas respectivas funções (Chaturvedi, 2009, p. 7).
Rajendra Chandra Hazra afirma que as inúmeras disputas sectárias fabricaram di-
versos tipos de histórias, muitas vezes, em conformidade com os princípios filosóficos
para apoiar e divulgar os seus respectivos pontos de vista, e neste caso, o aktismo
concebeu uma Dev central para representar a Prak ti do S khya e o Brahman do
Ved nta respectivamente, e todos as deusas passaram a ser as suas diferentes formas
assumidas em momentos diferentes de acordo com a função ou papel a ser desempe-
nhado (Hazra, 1963, p. 26).
Fenômenos semelhantes ocorreram em outras linhas devocionais. No K rma
Pur a, em que iva é a divindade central, Brahm e Vi u são devas importantes e de

11
mesmo nível, mas iva é declarado como o criador, preservador e destruidor do
universo, a fonte de Brahm e Vi u, identificado a Brahman. Por outro lado, no Vi u
Pur a a situação se inverte: é Vi u quem é identificado ao Brahman imperecível,
sendo a causa da criação, preservação e destruição do universo (Carpenter, 1921, p.
283). Os devotos da deusa seguiram uma linha semelhante. As três aktis associadas
à Trim rti foram identificadas entre si, e depois uma delas foi exaltada como a fonte
de tudo e como correspondente a Brahman. Desde o período do Mah -Bh rata, Saras-
vat e Lak m já tinham ficado em segundo plano em relação a Um -P rvat -Durg , a
companheira de iva. Ela passa a ser chamada de Dev – ou seja, “a” Deusa – e é
elevada no Dev M h tmya à posição de divindade mais elevada, sendo descrita pelo
próprio Brahm como a criadora, sustentadora e destruidora do universo (Carpenter,
1921, p. 284). O passo seguinte foi identificá-la a Brahman, o que ocorre de forma
clara no Dev Bh gavata Pur a.

Dev Bh gavata Pur a


Dentro deste crescente movimento devocional, talvez no século XI, ocorre a com-
posição do Dev Bh gavata Pur a, dedicado exclusivamente à devoção da Deusa,
concebida como o poder supremo ( akti) do universo, não estando sujeita a nenhum
outro deva nem sendo declarada sua consorte. De acordo com a maioria dos autores
consultados, o Dev Bh gavata Pur a é considerado como um Upa-Pur a, mas os
kta – adoradores de akti, da Grande Deusa como o poder supremo, ou realidade
última – no entanto, consideram a obra como um dos Mah Pur a. Por outro lado,
para os kta o Bh gavata Pur a (que é Vai ava) é considerado um Upa-Pur a
(Brown, 1999, p. 7).
O Dev Bh gavata Pur a, também conhecido como rimad Dev Bh gavatam, é
um dos mais importantes dentre os kta Pur a. Nele se encontra o Dev G t , ou
cântico da deusa. Este Pur a pode ter sido escrito entre os séculos VI e XIV d.C. Con-
tendo 18 mil versos compostos ao longo de 318 adhy ya (capítulos) divididos em 12
skandhas (livros) (Vijñanananda, 1922, pp. vi-xvi). Provavelmente o Dev Bh gavata
Pur a foi escrito em Bengala, tendo em vista o estilo de sua composição (Kumar,
2010, p. x).
O autor do Dev Bh gavata Pur a, parece bem versado nas escrituras, pois ao
longo da obra ele aborda inúmeras outras obras e correntes de pensamento. Ele cita
S maveda, Yajurveda, Atharvaveda, Mah bh rata, K ma astra, aiva astras, akti
Tantras e Dharma astras. Ele usa conteúdos e passagens da Kena Upani ad, do Dev
M h tmya (Durg Sapta at ) e diversos outros G t s de outros Pur a. Também de-
monstra ser um estudioso das escolas M m s e Ved nta e da gramática de P ini
(Kumar, 2010, p. x).

12
O Dev Bh gavata Pur a reconta os acontecimentos do Dev M h tmya em muito
maior extensão e detalhes, como também traz reflexões filosóficas de natureza kta,
esclarecendo e elaborando a natureza da deusa. O Dev G t (cântico da deusa), que é
a parte mais conhecida do Dev Bh gavata Pur a, é um texto fundamental neste sen-
tido, na medida em que nele ocorre uma mudança em relação à concepção da nature-
za de Dev : nele a deusa torna-se menos guerreira e mais educadora e consoladora
dos seus devotos. O Dev G t repetidamente sublinha o caráter devocional amoroso
da relação com a divindade, ressalta a natureza única e suprema dela, e revela todos
os ideais devocionais de natureza bhakti kta (Brown, 1999, p. 21). Assim a própria
deusa se expressa no Dev G t :

Eu sou a Divindade Manifesta, a Divindade Imanifesta, e a Divin-


dade Transcendente. Eu sou Brahm , Vi u e iva, bem como Saras-
vat , Lak m e P rvat . Eu sou o Sol e as estrelas, e também sou a
Lua. Eu sou todos os animais e pássaros, e eu também sou o pária e
o ladrão. Eu sou a pessoa baixa, de atos terríveis, e a grande pessoa
de feitos excelentes. Eu sou mulher, eu sou homem, e eu sou neutra.
(Dev Bh gavata Pur a, VII.33.13-15; Brown, 1999, p. 186)
No Dev Bh gavata Pur a, o universo inteiro forma o corpo cósmico de Dev , to-
dos os devas perdem sua capacidade de ação quando desprovidos de suas respectivas
aktis, tudo se torna inerte e sem vida quando desprovidos dela, que é o Poder ( ak-
ti). Nesta obra em particular ela reside em cada uma e em todas as substâncias da
natureza. Aqui ela é concebida como o poder primordial, di- akti (I.8), que reside
em Brahm como o princípio da criação, em Vi u como o princípio sustentador e em
iva como o princípio destrutivo, e assim permeia todo o espaço e anima todas as
coisas deste mundo fenomênico. Diz-se que a deusa imanifesta toma três formas co-
nhecidas como Mah -Lak m , Mah -K l e Mah -Sarasvat representando os três pode-
res primordiais do universo (gu as), que são rajas, sattva e tamas, atributos de
Prak ti (a Natureza). Mah -Lak m produz Brahm e Sr (também chamada Lak m ),
Mah -K l produz Rudra ( iva) e Tray (Sarasvat ), e Mah -Sarasvat produz Vi u e
Um (P rvat ). Da união da Brahm e Tray produz-se o mundo, da união de Vi u e
Sr a sua manutenção e da união de iva com Um advém a sua destruição (Bhatta-
charyya, 1999, p. 125).
O Dev Bh gavata Pur a descreve inúmeros aspectos do culto à deusa, falando
sobre Yoga, centros psicoenergéticos (cakras), devoção, conhecimento espiritual, ética
social e pessoal, e os lugares sagrados a serem visitados. Porém, sua característica
mais marcante é o modo pelo qual apresenta a deusa como o fundamento do universo
e como idêntica a Brahman, o Ser Supremo. Podemos listar várias características da
Dev apresentadas nesta obra: a deusa é descrita como sendo Nirgu a (sem qualida-
des) e é identificada com Parabrahman, o Absoluto supremo; ela é M la-prak ti (a

13
Natureza primordial) e divide-se a si mesma em Puru a e Prak ti (consciência e natu-
reza, os dois princípios cósmicos do S khya); ela é Mah -m y (a grande Magia) e
cria Vi u, iva e Brahm fora de si, permitindo que eles realizem suas funções; ela é
a Mãe de todo o universo e a akti (o Poder) de tudo; ela é tanto dotada de atributos
quanto sem atributos, e tem a natureza da consciência universal; ela cria o mundo em
sua forma de Mah -m y ou Yoga-m y (a magia da união) atando os seres ao mun-
do, e ela mesma os liberta em sua forma de Brahmavidy (o conhecimento de Brah-
man) (Jyotirmayananda, 2005, pp. 28-29); ela esta além dos gu as (os três poderes
básicos da natureza, tamas, rajas e sattva); ela é o receptáculo de todas as coisas;
ela é a vida (pr a) dos seres vivos; ela é a Prak ti primordial que permeia os três
mundos (lokas), ela é todo o universo móvel e imóvel; ela é Dev , ela é akti, o poder
inerente em todos os corpos individuais, divinos ou mortais; ela assume três formas:
Mah -Lak m , Mah -Sarasvat e Mah -K l ; ela é M y , composta pelas três qualida-
des no tempo da criação do mundo e ela é Nir k r (aquela que não tem forma) ou
Nirgu a Brahman (o Absoluto sem qualidades) enquanto libera os indivíduos da escra-
vidão do mundo; ela é eterna, omnipresente, sem mudanças e é alcançada pelo Yoga;
ela é o refúgio do universo e sua natureza é chamada Tur ya Caitanya (a quarta forma
da consciência); ela é o mais elevado poder primordial; ela é o conhecimento no Ve-
da; ela cria o universo e sua natureza é tanto real quando irreal; ela cria, preserva e
destrói o universo por meio de seus poderes rajas, sattva e tamas, e absorve tudo em
si mesma (Kumar, 2010, pp. x-xv). Todas essas descrições da Dev , que a identificam
explicitamente a Brahman, não têm paralelo em nenhuma obra anterior que tenha
chegado até nós.
O Dev Bh gavata Pur a é também um marco importante por ser a primeira gran-
de obra teísta kta de natureza devocional (bhakti) onde é enfatizado o aspecto be-
nigno da Deusa – muito diferente da abordagem sanguinária e destrutiva como ela é
representava em algumas partes do K lik Pur a, ou da deusa guerreira (Durg ) do
Dev M h tmya. Esta obra é dedicada à deusa em seu modo icônico mais elevado:
como a suprema Governante do Mundo, Bhuvane var , apresentada como uma divin-
dade autônoma, sem qualquer subordinação possível a iva, estando muito além do
nascimento e do casamento. Este Pur a é a contribuição mais significativa para a
tradição teológica kta em seu ideal de uma deusa suprema, única e benigna
(Brown, 1999, p. 10).

Considerações finais
Como assinala o estudioso Ushas Dev (1987), o estudo dos Pur a, especialmente
dos kta Upa-Pur a, tem revelado que as ideias dispersas sobre o conceito de akti
que já estavam presentes no Veda, nos épicos Mah bh rata e Ram yana, nos Mah -

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Pur a e na literatura clássica e filosófica, foram reunidas e elaboradas e formaram
uma seita separada e independente no período em que vieram à existência os kta
Upa-Pur a, provavelmente entre os séculos VI e XII d.C.
A popularidade e desenvolvimento do aktismo podem ser constatados ao avaliar-
mos o aumento do número de referências a lugares sagrados dedicados à Dev , os
kta-p has; pela descrição detalhada de rituais, vratas, cerimônias dedicados ao cul-
to da Deusa; elaboração e sofisticação das mitologias e iconografia; construção de
imagens e templos; elaboração dos princípios filosóficos do culto; e pela composição
de Pur a específicos que tratam da deusa. A conceituação da Deusa como Realidade
Última, que tem raízes no Dev M h tmya, adquire forma completa no Dev Bh gavata
Pur a.

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16
Transmigração da alma e reencarnação: uma análise comparativa entre o
Hinduísmo e o Espiritismo

Maria Lucia Abaurre Gnerre¹


Paulo Ferreira Cavalcante²
Resumo:
Neste artigo, nos propomos a analisar o conceito de transmigração da alma no
Hinduísmo com base nos ensinamentos do Bhagavad-gita e perceber como este
conceito é interpretado em outro período histórico: o Espiritismo da segunda metade
do século XIX, que apresenta o tema da reencarnação através do texto de O Livro dos
Espíritos de Allan Kardec e de outras obras subsidiárias. Apresentaremos e
interpretaremos o contexto histórico da época na qual estas obras vieram a lume.
Objetivamos relacionar as semelhanças, divergências e ideias adicionadas a este
conceito nestes dois contextos distintos (a Índia antiga e o Espiritismo moderno).
Realizamos este trabalho, com a finalidade de estabelecer uma análise comparativa a
respeito do entendimento do assunto, do ponto de vista destas duas filosofias.

Palavras chave:
Alma, Espiritismo, Hinduísmo, reencarnação, transmigração.

Abstract:
In this work, we propose to analyze the concept of transmigration of the soul in
Hinduism based on the teachings of Bhagavad-gita and see how this concept is
interpreted in a different historical period: Spiritism in the second half of the XIX
century, which presents the theme of reincarnation through the text of The Spirits'
Book by Allan Kardec and other works subsidiaries. Present and interpret the historical
context of the era in which these works came to light. We aim to list the similarities,
differences and ideas added to this concept in these two different contexts (India
ancient and modern Spiritism). We conducted this work, in order to establish a
comparative analysis regarding the understanding of the subject, from the point of
view of these two philosophies.

____________________________________
¹ Doutora em História pela Unicamp. Vice-coordenadora do Programa de Pós-
Graduação em Ciências das
Religiões da Universidade Federal da Paraíba; e-mail: marialucia.ufpb@gmail.com
²Bacharelando em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba; e-
mail: paulocavalcantecrufpb@gmail.com

Key words:
Soul, Spiritism, Hinduism, reincarnation, transmigration.
Introdução
jatasya hi dhruvo mrtyur / dhruvam janma mrtasya ca / tasmadapariharye
'rthe / na tvam socitumarhasi.
“Para os nascidos, a morte é certa; e para os mortos, não há dúvida do
nascimento. Portanto, você não deve chorar por essa inevitável consequência”
(Bhagava-gita. II. 27).

Será que existe alma? Se sim, qual o seu destino após a morte? Será que ela
retornará a nascer em outros corpos ou não? Muitos indivíduos preferem não pensar
no assunto, vivem como se não fossem morrer um dia, ou sentem temor do
desconhecido e evitam a temática fatal. Os materialistas afirmam que após a cessação
definitiva dos batimentos cardíacos e a anóxia cerebral nada mais existe, a matéria
orgânica que constitui o corpo irá se decompor, alma é ilusão, a inteligência provem
apenas do cérebro. Outros admitem a existência de algo que sobrevive após a morte,
e o seu destino no além-túmulo depende do sistema soteriologico de cada religião, céu
ou inferno é o que a aguarda. Mas existem os que creem na existência da alma, na
vida depois da vida, que ela pode voltar e comunicar-se com os vivos, e também
retornar a nascer em outras existências. Uma breve análise comparativa das tradições
pertencentes a este terceiro grupo, especialmente o hinduísmo e espiritismo, constitui
o nosso objeto de estudo neste artigo.
Segundo o verso do Bhagavad-gita citado anteriormente, para quem está vivo
existe a certeza da morte, e a alma liberta da matéria voltará a nascer. Querendo ou
não, crendo ou descrendo neste conceito, segundo estes ensinamentos todos
inevitavelmente estão presos neste ciclo de renascimentos, a roda do samsara por
conta do karma (fruto das ações), até o momento em que o atma (alma) evolui
espiritualmente e consegue a moksa (liberação) e liberta-se definitivamente. Este
assunto da transmigração da alma, que faz parte da crença da maior parte da
população da Índia e de outros países próximos é bastante conhecido no ocidente
como reencarnação. A concepção indiana não corresponde exatamente a este termo
cunhado, sobretudo no âmbito da tradição espírita que se desenvolve no século XIX.
No entanto, existem importantes pontos em comum e outros pontos divergentes, que
analisaremos mais adiante neste artigo.

Crença na pluralidade das existências

Lançando o olhar sobre o passado, há indícios de que a sobrevivência da alma


após a morte do corpo físico fazia parte da crença de algumas tribos paleolíticas. "O
culto do fogo ligado ao das imagens antropomórficas e das pedras, bem como os
cuidados com os cadáveres, são evidências a favor desta hipótese” (WERNET, 1948,
p.73). Alguns historiadores e antropólogos aceitam a teoria de que os paleontropideos
acreditavam em um renascimento após a morte. Por exemplo, Mircea Eliade (grande
pesquisador das ciências das religiões, que muito contribuiu para esta área do
conhecimento) diz o seguinte: “Por outro lado, nada impede que a posição curvada do
morto, longe de denunciar o medo de 'cadáveres vivos' (medo atestado em alguns
povos) signifique, ao contrário, a esperança de um 'renascimento'; conhecem-se, com
efeito, vários casos de inumação intencional em posição fetal” (ELIADE, 1978, p.27).
Aliás, é importante notar que este conceito de renascimento após a morte pode
ser identificado em diversas culturas e em vários períodos da história da humanidade,
citamos aqui: o Antigo Egito, a Grécia (apresentando-se destacadamente no Orfismo),
em algumas tradições Judaicas (especialmente na Cabala) e no Druidismo. No oriente
destacam-se o Budismo, o Jainismo, o Confucionismo, o Taoísmo, e o Hinduísmo.
Hodiernamente este conceito também é difundido a nível mundial, pelo Espiritismo
(sendo o Brasil o país com o maior número de adeptos desta doutrina), o movimento
Hare Krishna, a Teosofia, a Cientologia, a Igreja Católica Liberal, a Fé bahá'í, a Seicho-
No-Ie, o Rosacrucianismo, a AGEACAC (Associação Gnóstica de Estudos
Antropológicos e Culturais, Arte e Ciência) o movimento New Age e etc. Temos com
denotada influência especificamente no Brasil, a Religião de Deus (Legião da Boa
Vontade), a Eubiose, o Santo Daime, a Umbanda, a União do Vegetal e o Vale do
Amanhecer que também propagam estes ensinamentos.
Estas questões que anteriormente faziam parte apenas de discussões fechadas
nas denominadas sociedades secretas e que eram suprimidas pelas religiões
dominantes de outrora, recentemente estão popularizando-se e vem ganhando espaço
no campo acadêmico e passa agora a serem estudadas em laboratórios com métodos
científicos.
Para não nos referirmos aos cientistas do passado, citamos os da atualidade
como, o
Dr. Ian Stevenson (1918-2007), um dos pioneiros no estudo sobre a reencarnação
dentro da academia. Também o Ph.D. Raymond Moody, autor do conhecido livro Vida
Depois da Vida.
A priori cético o arguto pesquisador Ph.D. Peter Fenwick neurologista do Kings
College, em Londres, também dedica-se a investigar sobre o assunto. O Ph.D.
Erlendur Haraldsson do departamento de psicologia da universidade da Islândia realiza
estudos de campo, principalmente com crianças e jovens que afirmam lembrar-se de
fatos de vidas passadas. O Ph.D. Sam Parnia, cardiologista da universidade de
Southampton, Inglaterra, realiza o seu estudo com vítimas de experiência de quase
morte (EQM) desde 1997, ano em que conseguiu autorização para entrevistar
pacientes do hospital geral de Southampton. Ele tem como parceiro o já citado Ph.D.
Peter Fenwick.
O representante de Parnia aqui no Brasil é o Ph.D. Alexander Moreira de
Almeida, que é professor adjunto de psiquiatria da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal de Juiz de Fora-UFJF, fundador e coordenador do NUPES (Núcleo
de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde da UFJF). Na USP, uma das maiores
universidades do Brasil, em 1999 foi fundado no departamento de Psiquiatria o
Programa de Saúde, Espiritualidade e Religiosidade (ProSER) tendo como co-fundador
o Ph.D. Alexander Moreira de Almeida já referido anteriormente. Quem também
pesquisa sobre esta área na USP é o Dr. Frederico Camelo Leão que inclusive, já
realizou análises de campo em centros espíritas.
É claro que esses estudos não são vistos com bons olhos por parte da
comunidade acadêmica, mas é necessário continuarmos em buscas de respostas que
atendam aos anseios humanos. Realizamos este artigo considerando hipoteticamente
a existência da pluralidade das existências, não com a finalidade de comprovação
científica, mas fazendo uma análise dos ensinamentos e das crenças que permeiam o
Hinduísmo e o Espiritismo.

Breve histórico do Bhagavad-gita

Esta obra de 700 versos “que remontam a uma tradição oral do século X a.C.”
(GNERRE, 2011, p.65), está contida no Mahabharata no livro III, LXIII capítulo da
obra.

Sua autoria é atribuída tradicionalmente a Vyasa, antepassado


comum das duas famílias guerreiras que se enfrentam no
poema. O autor é, pois, testemunha direta das atribulações que
narra. Esta participação em primeira pessoa pretende sublinhar
que a grande epopéia não é uma invenção literária, mas uma
crônica de feitos divinos (ALBANESE, 2006, p.64).

O Mahabharata narra à fundação da terra dos Bharata (A Índia. Para os


indianos eles moram em Bharata), e descreve a enorme “contenda entre os dois
ramos da estirpe
dos Bharata, os Kauravas da cidade de Indraprastha e os Pandavas de Hastinapura,
que disputavam entre si a região de Kurukshetra, perto de Thanesar, ao norte de
Délhi” (ALBANESE, 2006, p.65).
Segundo Fonseca (APUD GNERRE, 2011) a obra como conhecemos na
atualidade teria sido consolidada aproximadamente no século II d.C. Muitas das fontes
históricas deste período são atribuídas as obras do grego Arriano, que preservou e
difundiu a narração escrita pelo almirante de Alexandre, Nearco de Soloi. Também se
destaca a contribuição do grego Cláudio Ptolomeu.
Remontando o passado da história indiana, segundo a indóloga Marilia
Albanese (2006), o ultimo rei da dinastia Shunga morreu em 28 a.C. “combatendo o
reino de Andhra, cuja capital Amaravati, foi sob a dinastia dos Satavahanas, um dos
maiores centros culturais da Índia centro-meridional, até o século II d.C. (ALBANESE,
2006, p.51).” Novos invasores surgiram a partir do século II d.C na região noroeste:
“os indo-gregos, e vários povos da estepe, como os Shakas (os citas), os Pahlavas (os
partos) e os Kushanas, estes últimos de cronologia incerta. Kanishka, o maior de seus
soberanos, patrocinou a escola de arte helenizante de Gandhara, bem como a mais
indiana de Mathura (ALBANESE, 2006, p.51).” Esta época regida pela dinastia dos
Kushanas é conhecida como controvertida. Esta dinastia foi perecendo sob os
sucessores de Kanishka, restando pequenos estados, e se estabeleceu uma ausência
no noroeste que facilitou o advento da dinastia Gupta. É neste contexto histórico que
se consolida a obra citada anteriormente.
O Bhagava-gita narra um momento crítico da epopeia, a iminência do conflito
entre Kauravas e Pandavas. Duryodhana líder dos Kauravas escolheu ficar com todo o
exército de Krsna e Arjuna optou por ficar com Krsna como seu quadrigário.

É importante lembrar que a imagem da carruagem foi citada no


texto da katha upanisad, e constituía uma importante metáfora:
conduzir a carruagem era a alegoria da própria condução dos
sentidos (cavalos) do corpo (a carruagem) através da razão (as
rédeas). Mas, em última instância, o condutor da carruagem (a
mente) deveria sempre estar em sintonia com o proprietário
desta (o próprio atman). Assim, com todo este referencial
simbólico associado à carruagem na cultura indiana do período,
Krsna torna-se o condutor (auriga) de Arjuna. A condução da
biga (carruagem) então pode ser entendida como uma alegoria
da própria condição de Krsna, amigo e mestre de Arjuna, que se
revela o condutor do espírito humano, simbolizando pelo próprio
Arjuna (GNERRE, 2011, p.66).

No momento em que deveria começar a batalha, Arjuna paralisa-se e com


receio decide não lutar por que amigos, parentes e mestres seus estavam no outro
lado do campo de batalha. Então Krsna o vendo nesta indecisão decide ensinar-lhe o
Dharma (doutrina suprema), que extingue a ilusão e a ignorância. E são estes
ensinamentos que encontramos no Bhagavad-gita e que servem de referência para o
nosso artigo.
Breve histórico de O Livro dos Espíritos

Este livro de 1857 que contém 1019 perguntas e respostas é a primeira obra
basilar da doutrina espírita, que foi codificada por Allan Kardec na segunda metade do
século XIX. Mas Allan Kardec é um pseudônimo, o seu verdadeiro nome era Hippolite
Léon Denizard Rivail. Rivail nasceu em 03 de outubro de 1804 na cidade de Lyon,
França. Este período histórico que foi consolidado após a revolução francesa de 1789,
era influenciado pelos pensamentos iluministas de homens notáveis como Rousseau e
Montesquieu. Também se destaca Napoleão Bonaparte, figura imponente.

Entre o final do século XVIII e início do século XIX (1799 a


1815), a política européia está centrada na figura carismática
de Napoleão Bonaparte, um dos grandes chefes militares da
História, administrador talentoso, que entre outras reformas
civis, promulga uma nova constituição; reestrutura o aparelho
burocrático; cria o ensino público; declara laico o estado;
promulga o Código Napoleônico, que garante a liberdade
individual, a igualdade perante a lei, o direito à propriedade
privada, o divórcio e adota o primeiro código comercial
(AMARAL, 1995, p.9852).

Em 1814 o menino Rival é matriculado pelos seus pais no instituto


educacional de Johann Heinrich Pestalozzi, em Yverdon, Suíça. Este instituto era
considerado a escola modelo da Europa e foi elogiado por pessoas de renome “como
os naturalistas Humboldt e Saint-Hillaire e por personalidades tão diversas quanto
Goethe, a amiga de Beethoven,
Teresa de Brunszvik, o rei da Prússia, Frederico Guilherme 3°, o czar da Rússia,
Alexandre 1º, e a futura imperatriz do Brasil, Leopoldina da Áustria” (AGUIAR, 2007,
p.11).
Aos 18 anos ele já com o diploma de instituteur (diretor de escola secundária),
vai morar em Paris na rua de la Harpe, 117. Ele começa a lecionar e escrever a sua
primeira obra para fins didáticos, O curso prático e teórico de aritmética segundo o
método de Pestalozzi. Com o passar do tempo ele cria a sua escola técnica e publica
mais obras voltadas para a educação. Ele casou-se com Amélie-Gabrielle Boudet,
professora de belas-artes e letras. Rivail interessou-se pelo estudo do magnetismo
embasado nos escritos de Mesmer, e tornou-se membro da Sociedade de Magnetismo
de Paris atuando como magnetizador. Lecionou química, astronomia, fisiologia e física
no Liceu Polimático de Paris.
No que tange a história este período também é influenciado pela revolução
industrial, que se iniciou na Inglaterra em meados do século XVIII. Na música
destaca-se o nacionalismo, nas composições de Wagner e Beethoven. A cidade de
Paris vivia a efervescência política, cultural, artística e filosófica. Na literatura francesa
destaca-se Victor Hugo e a sua obra mais popular é Os miseráveis. E na França o
movimento democrático mesclava literatura e política.

Assim, numerosos escritores se engajam na luta política e


social, através de suas obras e ação. Desse modo, Lamartine e
Victor Hugo são eleitos deputados, tornando-se o próprio
Lamartine , que muito contribuiu para o advento da república,
chefe do governo provisório (LAGARDE, 1964, p.7).

É nesse contexto que o fenômeno das mesas girantes, recebe lugar de


destaque nas conversas, nos salões da alta sociedade, nas revistas e jornais. As
pessoas reuniam-se para obterem respostas através de pancadas que a mesas
efetuavam no chão com uma das pernas, pois as mesmas levitavam. E
condicionavam-se sinais para as respostas, por exemplo, uma pancada significava não
e duas sim. Em outro método as mesas efetuavam pancadas referentes ao numero
correspondente da letra do alfabeto, as repostas eram dadas em um largo espaço de
tempo. As perguntas feitas as mesas eram frívolas, as moças perguntavam a idade
com que iriam se casar, alguns aventureiros buscavam respostas que indicassem
locais de tesouros escondidos e etc.
Foi no ano de 1854 que o professor Rivail tomou conhecimento pela primeira
vez a respeito das mesas girantes. A priori as pessoas relacionavam as respostas
inteligentes que as mesas davam a força do magnetismo. Informado sobre o assunto
pelo amigo Fortier, Rivail replicou-lhe dizendo “só acreditarei quando o vir e quando
me provarem que uma mesa tem cérebro para pensar, nervos para sentir e que possa
tornar-se sonâmbula. Ate lá, permita que eu não veja no caso mais do que um conto
para fazer-nos dormir em pé” (KARDEC, 2002, p.265).
Em maio de 1855 em companhia do amigo Fortier, Rivail presenciou pela
primeira vez o fenômeno na casa da Sra. Planeimaison. Indagando a mesa quem é
que respondiam as perguntas, logo veio à resposta esclarecendo que eram os espíritos
daqueles que já viveram na Terra. O professor obstina-se pelo assunto e começa a
estuda-lo. Os espíritos lhe informaram da sua missão de codificar uma nova doutrina
baseada na ciência, filosofia e religião. Através de perguntas feitas a vários médiuns e
respostas dadas por Espíritos Superiores em diversas partes do mundo e utilizando-se
de métodos científicos na pesquisa ele começa a codificar esta doutrina. A posteriori,
vem a lume em Paris no dia 18 de abril de 1857, em uma manhã primaveril na livraria
do Sr. Dentu em Palais Royal, O livro dos Espíritos. Livro este contendo os princípios
da Doutrina Espírita sobre a imortalidade da alma, a natureza dos espíritos e suas
relações com os homens, as leis morais, a vida presente, a vida futura e o porvir da
humanidade. A partir do lançamento desta obra Rivail irá assinar os livros espíritas
com o pseudônimo Allan Kardec, desta forma separando as suas obras acadêmicas
dos estudos espíritas. Aliás, este nome foi-lhe revelado pelo espírito Zéfiro,
informando que Rivail em uma encarnação passada fora um sacerdote druida,
vegetariano e adorador do deus da fraternidade Dispater na Gália, no tempo de Júlio
César.
Nosso artigo também norteia-se nos ensinamentos desta obra.

Transmigração da alma e reencarnação

Já observamos aqui, que o conceito de múltiplos renascimentos é anterior ao


Espiritismo, não é exclusividade desta doutrina. O que a doutrina espírita faz é trazer
estes ensinamentos em uma nova linguagem e sob um ponto de vista mais moderno.
Realizamos esta afirmação através de uma comparação dos ensinamentos do
Bhagavad-gita e de O Livro dos Espíritos.
Vamos observar como este tema se apresenta na primeira obra citada acima:
“A alma não tem nascimento, ela é eterna, perpétua, primordial” (Bhagavad-gita II.
20). “Nunca houve um tempo em que Eu não existisse, nem tu, nem todos esses reis;
e no futuro nenhum de nós deixará de existir” (Bhagavad-gita II. 12). Segundo o
Bhagavad-gita a alma sempre existiu, ela não tem início nem fim. Já no contexto do
Espiritismo, ela tem uma origem como podemos observar na 78ª questão de sua obra
basilar.
Os Espíritos tiveram princípio ou existem, como Deus, de toda a
eternidade? Se não tivessem tido princípio, seriam iguais a
Deus, ao passo que são criação sua e se acham submetidos á
sua vontade. Deus existe de toda a eternidade, é incontestável;
quanto, porém, ao modo como Ele nos criou, nada sabemos.
Podes dizer que não tivemos princípio se por isto entenderes
que, sendo eterno, Deus há de ter criado incessantemente. Mas,
quando e como Ele crio cada um de nós, eu te repito, ninguém
o sabe: eis o mistério ( KARDEC, 2007, p.118).

Observamos aqui uma forte similaridade entre estes ensinamentos. O


Espiritismo afirma que existe um momento em que as almas foram criadas, mas não
se sabe quando. Verificamos concordância no tocante à continuidade da vida após a
morte
“Chamamos alma ao ser imaterial e individual que reside em nós e sobrevive ao
corpo” (KARDEC, 2207, p.25). No Bhagavad-gita encontramos a assertiva que
contribui com esta ideia “Saiba que aquilo que penetra o corpo inteiro é indestrutível.
Ninguém é capaz de destruir a alma imperecível” (Bhagavad-gita II. 17).
Em referência a alma no pensamento Hinduísta, Lucio Valera diz o seguinte:

Não é possível entender os conceitos da morte e o renascimento


do Hinduísmo, sem saber a diferença entre a alma (atma)
permanente e o corpo material temporário. A Bhagavad-gitta
explica a natureza da alma com a seguinte analogia: “Assim
como o Sol ilumina sozinho todo esse Universo, do mesmo
modo, a entidade viva, sozinha dentro do corpo, ilumina o corpo
inteiro através da consciência” (Bhagavad-gitta XIII. 34). A
consciência evidencia concretamente a presença da alma dentro
do corpo. Num dia nublado o Sol pode não estar visível, mas
sabemos que ele está lá no céu, através da presença da luz
solar. Analogamente, podemos não ser capazes de perceber
diretamente a alma, mas podemos concluir que ela existe pela
presença das consciência. Na ausência da consciência, o corpo é
simplesmente um monte de matéria morta. Somente a
presença da consciência faz com que esse monte de matéria
morta possa respirar, falar, amar e temer (VALERA, 2012, p.3).

Encontramos também na questão 166ªb do Livro dos espíritos referência às


múltiplas existências “A alma passa então por muitas existências corporais? Sim,
todos contamos muitas existências” (KARDEC, 2007, p.168). Mais adiante na questão
166ªc “Parece resultar desse princípio que a alma, depois de haver deixado um corpo,
toma outro; em outras palavras, que ela reencarna em novo corpo. É assim que se
deve entender? Evidentemente” (KARDEC, 2007, p.168) e na 172ª afirma-se que
“vivemo-las em diferentes mundos” (KARDEC, 2007, p. 170).
No Bagavad-gita encontramos concepções semelhantes nos versos “Como,
após jogar fora roupas desgastadas, um homem depois veste novas, então, após
abandonar corpos inúteis, a alma aceita outros novos” (Bhagavad-gita II. 22). E em
referência a transmigração da alma para outros planetas, temos o seguinte na
tradução de Prabhupada: “Aqueles situados no modo da bondade (sattva)
gradualmente elevam-se aos planetas superiores; aqueles no modo da paixão
(rajasah) vivem nos planetas terrestres; e aqueles no abominável modo da ignorância
(tamasah) descem para os mundos infernais” (Bhagavad-gita XIV. 18).
Mas afinal, o que prende a alma na roda do samsara? O Espiritismo esclarece
que “A cada nova existência o Espírito dá um passo na estrada do progresso. Quando
se despojar de todas as impurezas, não mais necessitará das provas da vida corporal”
(KARDEC, 2007, p.168). Para os espíritas essas impurezas significam tudo aquilo que
são opostos às virtudes, como a luxúria, apego aos bens materiais, vícios e prática de
más ações. A reencarnação não é um castigo, é uma oportunidade que Deus concede
aos seus filhos para se aperfeiçoarem, não é possível que em uma única existência, a
alma possa aprender e vivenciar tudo que é preciso para se aproximar da divindade. A
evolução se dá de duas formas, através do intelecto, adquirindo conhecimentos
benéficos para a alma, e na prática destes ensinamentos. Por isso a bandeira da
caridade, que não é simplesmente dar coisas, é o doar-se, amar, perdoar, ser
indulgente e demais virtudes, faz parte dos ensinamentos espíritas.
Lucio Valera esclarece que no Hinduísmo:

Estas influências são causadas pelos gunas, ‘cordas’ ou modos


da Natureza material. Eles são as três polaridades ou
qualidades básicas constitutivas da Natureza material. Os gunas
são: rajas – paixão, atividade ou expansão; tamas – ignorância,
inação ou escuridão; e sattva – bondade, harmonia ou luz.
Sattwa conduz para cima, rajas mantêm no meio, tamas leva
para baixo (VALERA, 2012, p.4).

O que mais enreda a alma neste ciclo de retornos é o apego a maya (ilusão),
isto é, o corpo e os bens materiais são perecíveis, mas a alma, as virtudes e o reino
espiritual são eternos. Quem busca agir no modo da bondade (sattva) buscando aquilo
que é contrário a maya liberta-se da roda do samsara mais rapidamente.
O Espiritismo diverge com o Hinduísmo no tocante a encarnação em corpos de
animais, justamente porque a reencarnação se dá apenas em corpos humanos e a
transmigração da alma pode realizar-se em corpos humanos, animais e vegetais.
Vejamos o que diz Allan Kardec: “A encarnação dos espíritos ocorre sempre na
espécie humana; seria erro acreditar-se que a alma ou Espírito possa encarnar no
corpo de um animal. As diferentes existências corporais do Espírito são sempre
progressivas e jamais retrógradas; mas a rapidez do progresso depende dos esforços
que faça para chegar à perfeição” (KARDEC, 2007, p.38-39). Vemos aqui, que para os
espíritas este conceito da alma encarnar em um corpo animal é considerado um
retrocesso, embora, eles acreditem que o princípio espiritual primeiro encarne no
reino mineral, depois passando para o vegetal, animal e conquistando o raciocínio no
estado hominal, sendo aí considerado alma. As ideias de Kardec estão também em
sintonia com o pensamento positivista de sua época, para o qual a noção de progresso
é algo fundamental, e por isso também esta possibilidade do retrocesso ao animal não
é condizente com sua concepção.
No Bhagavad-gita o futuro nascimento da alma está relacionado ao apego dos
gunas: “Quando alguém morre no modo da paixão (rajas), nasce entre os que se
ocupam em atividades fruitivas; e quando morre no modo da ignorância (tamas),
nasce no reino animal” (Bhagavad-gitta XIV. 15). Para o Hinduísmo isto não é um
retrocesso, mas apenas consequência das ações do indivíduo durante a sua vida.

Considerações finais

Observamos através de nossos estudos, que este tema da transmigração da


alma apresenta-se em diversas sociedades e períodos históricos da humanidade. O
Espiritismo e o Hinduísmo tem muitos pontos em comum, afinal, o Espiritismo bebe na
fonte das antigas tradições religiosas para apresentar os seus ensinamentos, com
novas ideias e conceitos, como no caso da reencarnação. Consideramos que este
trabalho faz parte de um grupo de estudos pioneiros na academia brasileira na
realização desta comparação destes conceitos que, para a maioria das pessoas, são a
mesma coisa. Nosso objetivo aqui foi apresentar semelhanças, porém também
pontuar diferenças. Nós apenas buscamos fazer uma introdução ao assunto, há muito
mais a ser desdobrado no futuro.

Referência
AGUIAR, Sebastião. Personagens que Marcaram Época, Allan Kardec. São Paulo:
Editora Globo, 2007.
ALBANESE, Marilia. Índia Antiga. Barcelona: Folio, 2006.
AMARAL, Jesus S. F. Enciclopédia Mirador Internacional. São Paulo: Enciclopédia
Britânica do Brasil,1995.
ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Ideias Religiosas. Tomo I. Rio de Janeiro:
Zahar, 1978.
GNERRE, Maria Lucia Abaurre. Religiões Orientais. João Pessoa: Editora Universitária
UFPB, 2011.
KARDEC, Allan. Obras Póstumas. Trad. Guillon Ribeiro. Rio de Janeiro: FEB, 2002.
_____________. O Livro dos Espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. Rio de Janeiro:
FEB, 2007.
LAGARDE, André e MICHARD, Laurent. XIX e Siècle, Les grands auteurs Français Du
Programme. Paris: Editions Bordas, 1964.
PRABHUPADA, A. C. Bhaktivedanta Swami. O Bhagavad-gita Como Ele É. São Paulo:
The Bhaktivedanta Book Trust, 2011.
SARGEANT, Winthrop. The Bagavad Gita. Nova York: Excelsior Editions, 2009.
VALERA, Lucio. Revista Religare V. 2. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2012.
WERNERT, Paul. Histoire Générale des Religions. Tomo I. Paris: Quillet, 1948.
A CONSTITUIÇÃO DO TEXTO SAGRADO NO BUDISMO
PARA UMA HISTÓRIA DO CÂNONE PÁLI

Deyve Redyson1
Universidade Federal da Paraíba

RESUMO
Este trabalho tem como principal objetivo esclarecer a formação histórica do que no
budismo é entendido como texto sagrado ou as palavras do Buddha Sakyamuni.
Corroborando com a ideia de que o Buddha nada escreveu e que seus
ensinamentos foram transmitidos por discípulos através de sermões diferenciados
por cada uma das escolas e tradições existentes, apresentamos a história da
constituição do principal cânone de escrituras budistas denominado de cânone Páli,
entendido como o mais antigo e mais completo veiculo Theravada em sua tríplice
divisão Tripitaka: Vinaya Pitaka, Sutta Pitaka e Abhidharma. Também fará parte de
nosso trabalho o processo de reconhecimento deste cânone como o mais antigo
através dos três concílios budistas da roda do Dharma e a formação dos outros
cânones, sânscrito, tibetano e chinês, como complementariedade da mensagem do
Buddha pelos veículos Mahayana e Vajrayana.

Introdução

O que podemos entender como texto sagrado no budismo? Diferente de


outras religiões o budismo não está centrado em um único texto que represente a
verdade, ou que efetivamente expressem uma única leitura possível. Quando
falamos de texto e de hermenêutica dentro do budismo teremos que considerar a
diversidade de escolas e tradições que revelam inúmeros textos, obras e
manuscritos que demonstram como seguir determinado caminho que não é o único.
Dessa forma nossa tarefa é uma hermenêutica da tradição histórica do budismo.
Segundo Percheron as escrituras budistas aludem com bastante insistência
episódios da vida de Buda e de sua iconografia, relata também que é difícil
entender a relação entre o mito e a realidade na história de Buda (PERCHERON,
1958, p. 17).
O budismo se configurará com a Triratna, isto é, com os três refúgios.
Segundo Yoshinori: O budismo é buscar refúgio nas três realidades salutares
supremas: o Buda (como seu mestre), o Dharma (como seu ensinamento) e o
Sangha (como a comunidade budista).
Eu me refugio em Buda (Buddham Saranam Gacchami);
Eu me refugio na Lei (Dharmam Saranam Gacchami);
Eu me refugio na Comunidade (Sangham Saranam Gacchami).

1
Doutor em Filosofia. Professor de Filosofia da Religião no Programa de Pós-Graduação em Ciências das
Religiões da Universidade Federal da Paraíba – dredyson@gmail.com

1
Os três são considerados as três jóias que estão além de todo preço”
(YOSHINORI, 2006, p. xi). Encontrar refúgio nas três joias é o que diferencia os
budistas dos não-budistas. O Buda que alcançou a iluminação no último de seus
muitos nascimentos efetivou uma grande tradição no cultivo da clareza do bem-
estar.
O texto do cânone mais antigo, o cânone páli, evidencia praticamente todos
os oitenta e quatro mil ensinamentos proferidos pelo Buda Shakyamuni, o Buda
histórico, em sua inteireza. Estes textos são os conhecidos sermões do Buda das
quatro nobres verdades, do nobre caminho óctuplo e da originação interdependente

1) O surgimento do cânone páli

A língua do Buda foi o Páli, língua indo-europeia muito próxima ao sânscrito,


língua mais importante na Índia antiga, porém o páli não deriva do sânscrito, tem
seus elos de aproximação e também tem de distanciamento. A palavra páli significa
texto dessa forma é a língua do texto. Segundo Cohen é muito pouco conhecida
sua origem e onde era exatamente falada (COHEN, 2001, p. 17). O ramo
Therav da é o único que aceita exclusivamente apenas o cânone páli e seu
conjunto de escritos, o budismo Mahay na aceita os textos que também estão em
outros cânones como o tibetano, chinês e japonês. “Hoje já é consenso entre a
maioria dos estudiosos de que o budismo páli preservou as ideias originais de
Buda; as escolas mahayana aceitam isso, mas argumentam que Buda teria
ensinado doutrinas esotéricas também, que passaram de mestre para discípulo, e
que esses ensinamentos são expressos nos escritos mahayana” (COHEN, 2001, p.
17).
Este cânone é chamado de Tipitaka em páli, que contém os ensinamentos
originais do Buda e que estão reunidos no cânone páli: “Este cânone chama-se
também Tipitaka (em sânscrito Tripitaka), isto é, As três Corbelhas por dividir-se
em três grupos” (COHEN, 2004, p. 259), que se apresenta da seguinte forma:
Vinaya Pitaka (Livros de Disciplina), Sutta Pitaka (Livros da Doutrina) e Abhidhama
(Livros Psicológicos).
O Vinaya Pitaka é a primeira divisão da Tripitaka, é a estruturação e
edificação da comunidade monástica (sangha) e contém o código de regras para
monges e mongas de como devem se comportar individualmente bem como a
forma de comportamento para que a comunidade permaneça em harmonia. O
Vinaya se apresenta em três divisões de regras: Suttavibhanga, Khandhaka e
Parivara que em seu todo apresenta 227 regras para monges e 311 regras para as
mongas que são contados e recontados.

2
O Sutta Pitaka, segunda divisão da Tripitaka, é composto da doutrina
praticada e ensinada pelo Buda. Será no Sutta que encontraremos os discursos e
principais passagens dos ensinamentos do Buda expostos acima. O Sutta (Sutra em
sânscrito) contém os discursos proferidos pelo Buda e pelos discípulos do Buda
mais próximos durante quarenta e cinco anos de transmissão através da palavra. O
Sutta Pitaka é dividido em cinco nikayas (coleções): Digha Nikaya, Majjhima
Nikaya, Samyutta Nikaya, Anguttara Nikaya e Khundaka Nikaya. Estes representam
os registros mais importantes da doutrina do Buda. Estudiosos afirmam que todo o
Sutta tem uma única lógica de formação, a de que os sutras mais extensos formam
o digha, os medianos o Majjhima e os curtos no Samuytta e no Anguttara2.
O Digha Nikaya são os discursos longos (digha = longo) e são compostos de
34 sutras e estão divididos em três outras classes: Silakkhandha-vaga, Maha-vagga
e Patika-vagga. Nele está o grande sutra da Originação Dependente (DN15), o
Grande discurso do parinirvana (DN16), o maior sutra de todo o cânone, Os
fundamentos da atenção plena (DN22) e o Rugido do Leão ao girar a roda (DN26).
O Majjhima Nikaya, segunda divisão do Sutta, são os discursos médios (Majjhima =
médio) e consistem em 152 discursos divididos em três partes, cada uma destas
partes tem dez outras divisões: Mulapannasapali, Majjhimapannasapali e
Uparipannasapali. É nesta coleção que encontramos alguns dos sutras mais
importantes da doutrina do Buda, como por exemplo, o MN9 que expõe as quatro
nobres verdades e o nobre caminho óctuplo, os cinco agregados e as seis
perfeiçoes. O Samyutta Nikaya, a terceira divisão do Sutta, é composto de 7.762
sutras divididos em cinco seções: Sagatha-vagga, Nidana-vagga, Khandha-vagga,
Salayatana-vagga e Maha-vagga, cada uma destas seções tem uma infinidade de
Samyuttas (pequenos) textos do Buda que variam de situações vividas pelo Buda
em seus ensinamentos, conselhos aos monges e exortações a reis. A quarta divisão
do Sutta é o Anguttara Nikaya que é organizado em onze seções (nipatas) por
ordem numérica, cada nipata estabelece um tema e todos os discursos nele contido
dizem respeito a esse tema. Os títulos destes nipatas é estabelecido por seu
número: Livro do Um, Livro dos dois, Livros dos três etc.
O Khunddka Nikaya é a quinta e última divisão do Sutta Pitaka, sua
formação é de discursos curtos (khundda = menor/pequeno), contém discursos
muito pequenos e outros longos, versos e fragmentos de ensinamentos do Dharma.
O Khuddka subdividido em dezoito nikayas e contém 9.550 sutras. O
Dhammapada, um dos mais conhecidos e mais antigos textos sagrados budistas,
está composto no Sutta Pitaka. “O nome Dhammapada é uma palavra composta:

2
Ver: RHYS-DAVIDS, T. W. Pali-English Dictionary. London, The Pali Text Society. 1952; RAHULA,
Walpola, What the Buddha taught. London. Gordon Fraser, 1978 e CONZE, Edward (Ed.) Buddhist
Scriptures. London, Peguin. 1968.

3
dhamma + pada; dhamma significa, entre outras coisas, virtude, ensinamento,
doutrina, lei, verdade, retidão, etc; pada tem o significado de senda, caminho,
trilha, traço, pé, passo, etc. Aqui o nome que a presente tradução recebeu foi A
Senda da Virtude; este nome se harmoniza com o caráter geral da obra” (COHEN,
2004, p. 259). O Dhammapada reúne 423 estrofes em 26 capítulos. Segundo Rhys
Davids, os textos que integram o Khunddka Nikaya, foram muito apreciados e
memorizados pelos budistas em todo o mundo, Alguns são versos inspirados no
despertar dos primeiros monges e tiveram uma grande apreciação no ocidente.
Será também no Khunddka que encontraremos as histórias Jatakas, mais de
quinhentas histórias de renascimentos do Buda.
O Abhidharma Pitaka, terceira e última divisão da Tripitaka contém os livros
psicológicos da doutrina do Buda. Recebe esta expressão psicológicos por serem os
mais difíceis e complexos textos da doutrina búdica. Estão relacionados aos
processos dos comportamentos mentais e físicos. Enquanto o Vinaya e o Sutta
estabelecem os ensinamentos práticos relativos ao caminho budista para a
iluminação, os livros do Abhidharma expõem uma análise mental e cientifica dos
mesmos conhecimentos. Soa textos densos, de características filosóficas que
abordam uma essência mais intima com a mente. O Abhidharma é composto de
sete livros: Dhammasangani que trata dos fatores e estados mentais, apresenta os
quatro elementos primários físicos, os vinte e oito fenômenos físicos e o nirvana;
Vibhanga, Dhatukatha, Puggalapannati, que são continuações do primeiro livro;
Kathavatthu que compreende perguntas e respostas remontando a possíveis
controvérsias que podem surgir durante o ensinamento do Dharma; Yamaka,
continuação do livro anterior e Patthana, o livro mais extenso de todo a Tripitaka
(na edição tailandesa tem mais de 6.000 páginas), onde descreve os 24 paccayas,
ou leis de condicionalidade, através dos quais o Dharma interage. Este livro
demonstra todas as experiências possíveis de serem conhecidas.

Assim se apresentam a Tipitaka em seu cânone páli3:

I – Vinayapitaka
1. Suttavibhanga Os regulamentos do Sangha
a) Mahavibhanga Divisão relativa aos monges: 227
regulamentos dividido em:
- Pacittiya: penitências;
- Patimokkha: fórmulas de confissão
b) Bhikkhunivibhanga 331 regulamentos as monjas

3
Seguimos as listagens em COHEN, Nissim. Ensinamentos do Buda. São Paulo. Devir, 2008, p. 545-546,
WOLPIN, Samuel. Diccionario de Filosofia Oriental. Buenos Aires, Editorial Kier, 1993, p. 289-291 e
Buddhist Scriptures. (Org. Edward Conze). Londres. Peguin Books. 1959, p. 11-16. Um bom comentário
seria: HUAI-CHIN, Nan. Breve história do Budismo. Rio de Janeiro. Gryphus. 1999, p. 60-67.

4
Assuntos concernentes à organização do
Sangha
2. Khandhaka - Mahavagga: regulamentos para
ordenação, retiros, vestuário,
alimentos;
- Cullavagga: Assuntos processuais e a
história dos primeiros dois concílios
3. Parivara (Parivarapatha) Recapitulação
Recapitulação de todos os regulamentos

II – Suttapitaka
1. Digha Nikaya Coleção de 34 discursos longos

2. Majjhima Nikaya Coleção de 152 discursos médios

3. Samyutta Nikaya Coleção agrupada de 56 discursos,


perfazendo 7.762 sutras

4. Anguttara Nikaya Coleção agrupada de 11 discursos,


perfazendo 9.550 sutras
Coleção de 15 textos menores, dividido
em:
1. Khuddakadapatha: pequenas lições
(sutras);
2. Dhammapada: A Senda da Virtude,
coleção de 423 versos sobre ética;
3. Udana: 80 expressões solenes a Buda
(efusões da voz);
4. Itivuttaka: 112 sutras curtos
(tradições dos monges);
5. Sutta Nipata: 71 sutras em verso
5. Khuddaka Nikaya (instruções);
6.Vimanavatthu: relatos dos
renascimentos celestiais dos virtuosos;
7. Petavatthu: 51 poemas acerca de
renascimentos como espectro;
8. Theragatha: 264 versos de monges
superiores;
9. Therigatha: 100 versos de monges
superiores;
10. Jakata: 547 histórias sobre os
renascimentos do Buda;
11. Middesa: Exposição do Sutta Nipata
(comentários);
12. Patisambhidamagga: Tratado do
conhecimento superior;
13. Apadana: Lendas sobre história em
verso sobre as vidas dos monges;
14. Buddhavamsa: 24 genealogias dos
Budas
15. CarlyaPitaka: Histórias J taka
acerca das virtudes dos Bodhisattivas

5
III – Abhidhammapitaka
1. Dhammasangani Análise psicológica da ética

2. Vibhanga Análise de várias categorias doutrinais

3. Dh tukath Classificação das doutrinas

4. Puggalapannatti Classificação dos tipos humanos

5. Kath vathu Disputas doutrinais sobre as seitas

6. Yamaka Pares sobre categorias do ensinamento

7. Patthana Causalidades analisadas em 24 grupos

Estes vinte e nove livros que compõe o cânone páli budista chegam a dez
mil páginas. Ainda existe o cânone sânscrito composto de livros reconhecidos e
livros não reconhecidos que chegam a vinte e cinco livros, esta listagem é aceita
pelo budismo de tradição Hinayana e Theravada, existindo ainda os cânones
referentes às traduções destes textos para o tibetano e para o chinês, dando forma
ao cânone tibetano e ao cânone chinês.

2) Os concílios budistas

Passando da essência e das perspectivas filosóficas do budismo chegamos a


sua primordial e inicial divisão. A doutrina pregada pelo Buda espalhou-se deixando
uma enorme região e obteve diversos seguidores entre reis, rainhas, ferreiros,
escravos, pescadores e até mesmo generais e ricos comerciantes. A comunidade
(Sangha) budista cresceu enormemente e junto com este crescimento vieram
também as sucessivas discordâncias. O budismo pode ser dividido em três grandes
ramos (escolas): Theravada, Mahayana e Vajrayana. A Theravada, que para alguns
estudiosos é quase sinônimo do Hinayana, é um dos ramos mais antigos e que
sustenta o cânone páli em si; a M h yana que se interpõe entre a doutrina dos
anciãos e a do grande veículo afirma que foi o próprio Buda que elaborou as
tradições por meio de um segundo e depois terceiro giro da roda do dharma, este é
o grande cisma entre o budismo Theravada e o Mahayana, pois a estrutura dos três
giros da roda do dharma é rejeitada pela primeira escola citada.
Goldstein nos esclarece:
“A estrutura desses três giros se tornou, em si, uma fonte de
desacordo entre as tradições. Os adeptos do Theravada
rejeitam em geral a ideia de que os ensinamentos

6
“desenvolveram-se” a partir daqueles que o Buda histórico
transmitiu originalmente e consideram as pregações
posteriores – a ideia de novos giros – simplesmente como
criações das escolas filosóficas em surgimento. Por outro
lado, os praticantes do Mahayana e Vajrayana consideram
fundamentais os ensinamentos originais do primeiro giro,
mas incompletos, e acham que só por meio das
manifestações mais místicas da natureza do Buda chegamos
a entender inteiramente a realidade” (GOLDSTEIN, 2004, p.
34).

Em outras classificações existe ainda outra vertente chamada Vajrayana


(veículo do Diamante) que figura comumente como uma parte do budismo
M h yana, praticado em todo o Tibete.
Segundo Eckel:
“Cada uma das primeiras escolas desenvolveu um conjunto
distinto de literatura canônica. Dessas, somente o cânone
páli do Theravada ficou como remanescente” (ECKEL, 2009,
p. 34).

Dessa forma, surgiram diversos sutras, comentários, sermões etc, atribuídos


ou não ao Buda que fundamentaram a doutrina de cada uma das escolas, mas a
expressão do cânone páli do Theravada ainda hoje figura como a mais importante,
antiga e original expressão do pensamento e das palavras do Buda.
O primeiro giro da roda do Dharma pode ser entendido pela doutrina
ensinada pelo Buda em seu primeiro momento, isto é, os grandes discursos que
tratam das quatro nobres verdades, o óctuplo caminho, a lei de originação
interpendente e outros desta mesma época. O segundo giro pode ser relacionado
ao Buda que transmitiu o pran -p ramit e o terceiro giro a composição dos sutras
Avantamsaka e Samdhinirmocana.
Muitos anos após a morte do imperador Asoka a doutrina de Buda foi
difundida pelo resto da Índia e alcançou sua saída pelo Ceilão (atual Sri Lanka)
ainda no mesmo século. Rapidamente o budismo se espalha pela Ásia, Japão,
Coréias, China, Camboja, Afeganistão etc, começam a surgir um número indefinido
de escolas e de interpretações do Dharma. Sua doutrina se espalhou
provavelmente entre os séculos IV e VI a.C. O que é chamado de Budismo, no
ocidente, é na verdade o Buddha-Dharma que literalmente significa “Aquilo que foi
ensinado por Buda”, Dharma terá a significação de ensinamento, lei, verdade4.

4
Uma verdadeira antologia do cânone Páli se encontra em: Ensinamentos do Buda, que traz uma boa
introdução ao Buda e a esta expressão ocidental Budismo. Segundo Nissim Cohen “Este termo
(Budismo), a exemplo de outros com sufixo – ism, é uma invenção dos estudiosos ocidentais (isto ocorreu
por volta dos anos 1830), e não tem correspondente nas línguas páli e sânscrito. Prefácio, in
Ensinamentos do Buda, op. cit, p. 19. Pode-se conferir também no mesmo livro a bela introdução
intitulada Uma visão panorâmica do Ensinamento do Buda, p. 33-157. Outro texto referência é o já
clássico livro Textos Budistas e Zen-Budistas traduzido por Ricardo Mario Gonçalves.

7
No século I a. C. 18 escolas budistas do ramo Theravada disputavam entre
si o mah sanghikas (integrantes da grande comunidade), todas elas
desempenhavam características próprias mas seguiam a mesma doutrina. A sangha
original, após a realização de um concílio no século IV a.C, dividiu-se em duas
escolas de pensamento: Mahasanghika e Sthaviravada. Desses dois troncos, a
única escola remanescente é a Theravada. Os três veículos principais são: Escolas
mais antigas (Hinayana/Theravada), Escolas Mahayana e Escolas Vajrayana.

3) O cânone tibetano

O cânone tibetano é formado de duas partes: o Kanjur (bKángjur) e o Tanjur


(bStan-'gyur). O primeiro apresenta a tradução das palavras do Buda em 98
volumes e assim se apresenta:
1. Vinaya 13 volumes
2. Prajnaparamita 21 volumes
3. Avatamsaka 6 volumes
4. Ratnakuta 6 volumes
5. Sutra 30 volumes (270 textos)
6. Tantra 22 volumes (300 textos)

Já o Tanjur apresenta a base do pensamento tibetano com sutras e


comentários aos sutras do segundo e terceiro giro da roda do dharma. Estão
compostos de 224 volumes. Os rolos estão escritos em tibetano e em pergaminhos
sempre adornados com decorações tibetanas5. Assim se apresentam:
1. Sutras 1 volume (64 textos)
2. Comentários aos Tantras 86 volumes (3055 textos)
3. Comentários aos Sutras 137 volumes (567 textos)
4. Comentários ao Prajnaparamita 16 volumes
5. Tratados Madhyamika 29 volumes
6. Yogacara 29 volumes
7. Abhidharma 8 volumes
8. Miscelânia de textos 4 volumes
9. Comentários ao Vinaya 16 volumes
10. Contos e Dramas 4 volumes
11. Tratados técnicos 43 volumes

5
Podemos encontrar alguns destes textos no volume XAVIER, Raul (Org.) Textos Sagrados do Tibete.
Rio de Janeiro. Livros do Mundo Inteiro. 1973.

8
4) O cânone chinês

No cânone chinês o catálogo mais antigo é de 518 a.C. e tem


aproximadamente 2.113 obras, este cânone foi impresso pela primeira vez em 972.
Na edição japonesa chama-se Taisho Issaikyo que reúne 2.184 obras em 55
volumes onde aproximadamente cada um contém mil páginas. Assim se
apresentam:
1. Sutras 21 volumes
2. Vinaya 3 volumes
3. Abhidharma 8 volumes
4. Comentários chineses 12 volumes
5. Escolas chinesas e japonesas 4 volumes
6. Histórias, catálogos, dicionários e
biografias. 7 volumes

5) Conclusão

Cada escritura budista tem uma forma própria de revelar conhecimentos,


cada expressão, cada linhagem e principalmente cada mestre tem uma revelação
diferente a ser dada. Dentro do budismo nenhuma destas revelações é ignorada,
como também é impossível seguir todas, mas o convencionamento destes textos,
permite o entendimento de uma coisa, o Buda, isto é, o principio de todas estas
escolas são o buda e sua doutrina configurada na tríplice refúgio: o Buda, o Dharma
e a Sangha.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUDA. Os Ensinamentos do Buda. Trad. Nissim Cohen. São Paulo. Devir. 2008.
_____. Textos Budistas e Zen-Budistas. Trad. R. M. Gonçalves. São Paulo. Cultrix.
1967.
_____. Dhammapada. Trad. Nissim Cohen. São Paulo. Palas Athena. 2004.
BUSWELL, Robert (Ed.) Encyclopedia of Buddhism. New York. Thompson Gale.
2004.
COHEN, Nissim. Fundamentos da grámatica páli. Jacareí. CEB, 2001.
ECKEL, Malcom David. Conhecendo o Budismo. Petrópolis. Vozes. 2009.
GOLDSTEIN, Joseph. Dharma. O Caminho da libertação. Rio de Janeiro. Bertrand do
Brasil. 2004.
GOWANS, Christopher. Philosophy of the Buddha. New York. Routledge. 2003.
PERCHENRON, Maurice. O Buda e o budismo. Rio de Janeiro. Agir. 1958.

9
REDYSON, Deyve. Schopenhauer e o Budismo. A impermanência, a
insatisfatoriedade e a insubstancialidade da existência. João Pessoa. Ideia/Ed.
Universitária. 2012.
RHYS DAVIDS, Thomas W. Pali-English Dictionary. London. Pali Text Society. 1952.
YOSHINORI, T. (Org.). A Espiritualidade Budista I. São Paulo. Perspectiva. 2007.

10
QUE TIPO DE CONCEPÇÃO RELIGIOSA EXISTIA NA ÍNDIA ANTIGA?

Roberto de Andrade Martins


Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)
roberto.andrade.martins@gmail.com

Introdução
Desde o século XIX se discute a respeito da natureza do pensamento religioso in-
diano: trata-se de um tipo de politeísmo, ou monoteísmo, ou algum outro tipo? Foram
propostas novas categorias para a religião dos Vedas, como henoteísmo e catenoteís-
mo, mas não há unanimidade sobre como classificar esse pensamento.
A questão é difícil de ser respondida, por vários motivos. Há afirmações aparen-
temente contraditórias nos textos indianos antigos; esses textos não são claros, preci-
sando ser interpretados, e as interpretações são variadas; o próprio conceito de divin-
dade das religiões de tipo monoteísta Abraâmico, que é a referência utilizada por pra-
ticamente todos os autores ocidentais, não se aplica às concepções indianas antigas.
Este trabalho analisa essa problemática, descrevendo alguns aspectos da religião
dos Vedas e apresentando as opiniões de diversos autores. Conclui-se que o pensa-
mento religioso indiano antigo não se enquadra estritamente em nenhuma das cate-
gorias propostas.

Interpretações usuais da religião dos Vedas


A tradição religiosa indiana mais antiga está contida nos quatro Vedas. Esses tex-
tos foram certamente compostos pelo menos 1.500 anos antes da era cristã – prova-
velmente em torno do século XX a.C., mas talvez 1.000 anos antes disso (Bianchini,
2012). Não se sabe o que precedeu a composição dos Vedas, mas pode-se considerar
que os hinos vêdicos, em sua forma presente, são uma revisão antiga de uma obra
ainda mais antiga (Klostermaier, 2007, p. 102). Considera-se geralmente que o gve-
da é o mais antigo dos quatro e que o Atharvaveda é o mais recente. Dentro de cada
uma dessas coletâneas, os estudiosos tentam estabelecer uma cronologia relativa,
interpretando algumas partes como mais antigas e outras como mais recentes.
Os Vedas são constituídos por mais de mil hinos, preces, fórmulas utilizadas em ri-
tuais e diversos outros tipos de invocações aos devas – uma palavra que costuma ser
traduzida por “deuses” – e às dev s (o feminino de deva). As interpretações ocidentais
mais comuns dos Vedas afirmam que se trata de uma reunião politeísta, onde os de-
vas (deuses) representavam forças naturais (Nigal, 1986, p. 25).

1
Há um enorme número de devas que são mencionados nos Vedas. Alguns estão
associados a fenômenos naturais, como Agni, que é o deva associado ao fogo, e
S rya, o deva associado ao Sol. Outros, como Indra, são personagens que realizam
grandes feitos, destruindo demônios e beneficiando os homens. Há também devas que
possuem nomes abstratos, como a dev Aditi – a infinita, ou ilimitada (Nigal, 1986, p.
25). Há enormes dificuldades na compreensão do significado dos Vedas e grande con-
fusão nas suas interpretações (Klostermaier, 2007, p. 54).
Uma interpretação usual dos Vedas é de que eles teriam sido produzidos por pes-
soas “primitivas”, “almas poéticas”, que inicialmente se maravilhavam com a natureza
interpretando seus fenômenos mais marcantes como divindades. Alguns poetas poste-
riores criaram divindades guerreiras, como Indra, porque esse era um período de con-
quistas e batalhas. Apenas ao final do período de composição dos Vedas teria começa-
do a existir uma reflexão mais profunda e filosófica, que se manifestaria nos hinos
mais recentes (Radhakrishnan, 1989, vol. 1, p. 71).
A religião primitiva dos Vedas é compreendida por Radhakrishnan e outros autores
como sendo antropomórfica e baseada nas forças naturais: “Interpretamos todas as
coisas por analogia com nossa própria natureza e supomos vontades por trás dos fe-
nômenos físicos” (Radhakrishnan, 1989, vol. 1, pp. 73-74). Daí surgiria um politeís-
mo, pela divinização dos fenômenos naturais que despertam mais a atenção. “Os pri-
meiros estágios da religião dos Vedas parecem ser naturismo e antropomorfismo”
(ibid., p. 74). A partir dessa base, segundo Radhakrishnan, os poetas que compuse-
ram os Vedas foram elaborando concepções mais refinadas sobre as divindades, intro-
duzindo elementos éticos e, por fim, elaborando concepções mais abstratas:
Quando o pensamento progrediu do material para o
espiritual, do físico para o pessoal, tornou-se fácil conceber
divindades abstratas. A maioria dessas divindades ocorre no
último livro do gveda, indicando assim sua origem
relativamente tardia. (Radhakrishnan, 1989, vol. 1, p. 73)
A multidão de deuses e deusas dos Vedas levou a tentativas de sistematização,
distribuindo todos eles, por exemplo, em três categorias (terrestres, atmosféricos e
celestes).
Eles [os deuses] algumas vezes são unificados em um
conceito amplo de um panteão, ou vi ve dev . Esta tendência
à sistematização teve seu fim natural no monoteísmo, que é
mais simples e mais lógico do que a anarquia de uma multidão
de deuses e deusas opondo-se uns aos outros. O monoteísmo é
inevitável em qualquer verdadeira concepção de Deus. O
Supremo só pode ser um. Não podemos ter dois supremos e
seres ilimitados. [...] Com a crescente compreensão do
funcionamento do mundo e da natureza da divindade, os muitos
deuses tenderam a se fundir em um. (Radhakrishnan, 1989,
vol. 1, p. 90)
2
Essa transformação de um politeísmo para um monoteísmo teria passado, segun-
do Radhakrishnan, por uma fase intermediária de henoteísmo:
A demanda implícita da consciência religiosa por um Deus
supremo se manifestou naquilo que é caracterizado como o
henoteísmo dos Vedas. De acordo com Max Müller, que cunhou
esse termo, ele é o culto de uma divindade por vez, como se ela
fosse o maior e até mesmo o único deus. Mas essa posição é
uma contradição lógica, onde o coração mostrava o caminho
correto do progresso e a crença o contradizia. Não podemos ter
uma pluralidade de deuses, pois a consciência religiosa se opõe
a isso. Henoteísmo é um tatear inconsciente para o
monoteísmo. (Radhakrishnan, 1989, vol. 1, p. 90)
Assim, nos hinos, algumas vezes Agni é o maior de todos os deuses, em outros é
Indra, em outros é Varu a. Esse processo teria levado à transformação de um polite-
ísmo antropomórfico em um monoteísmo espiritual, passando através de uma fase
intermediária com o estabelecimento de um ser supremo, ao qual os deuses ficariam
subordinados. Cada deus mantinha apenas o poder no seu próprio domínio.
Os deuses caprichosos de um culto confuso à natureza se
tornaram as energias cósmicas cujas ações eram reguladas por
um sistema harmonioso. Mesmo Indra e Varu a se tornaram
divindades departamentais. A posição mais elevada, na parte
mais recente do gveda,é concedida a Vi vakarman. Ele é o
deus que tudo vê, que tem olhos, faces, braços e pés por todos
os lados, que produz o céu e a terra pelo uso de seus braços e
asas, que conhece todos os mundos, mas está além da
compreensão dos mortais. B haspati também tem suas
indicações para o nível supremo. Em muitos lugares é Praj pati,
o senhor das criaturas. (Radhakrishnan, 1989, vol. 1, p. 92)
De acordo com Radhakrishnan, mesmo esse monoteísmo foi apenas um passo in-
termediário, pois nesse período a divindade suprema ainda era vista de um modo an-
tropomórfico. Em seguida, os pensadores indianos teriam aplicado a Deus o nome
neutro Sat (Ser, Existência), para mostrar que estava acima das distinções de gênero.
Esse ser seria único, impessoal, e Agni, Indra, Varu a etc. seriam apenas formas ou
nomes dele. Assim teria surgido a intuição do “verdadeiro Deus” (Radhakrishnan,
1989, vol. 1, pp. 94-95). Esse Deus Único é chamado por diferentes nomes, conforme
os seus âmbitos de manifestação ou as preferências dos devotos. Com o fim do antro-
pomorfismo, segundo Radhakrishnan, o pensamento indiano teria atingido uma visão
monística, no final do período dos Vedas. Assim, de acordo com esse autor, houve
inicialmente diversos deuses naturalísticos, e deuses antropomórficos, mas nenhum
deles atingia a concepção mais elevada de divindade, até que se chegou à ideia do
Deus Uno sem nome.
O progresso dos Vedas não cessou até atingir essa realidade
última. O progresso do pensamento religioso incorporado nos
hinos pode ser apresentado pela menção dos deuses típicos: (1)

3
Dyaus [céu], indicativo do primeiro estágio do culto à natureza;
(2) Varu a, o deus altamente moral posterior; (3) Indra, o deus
egoísta da era da conquista e dominação; (4) Praj pati, o deus
dos monoteístas; (5) Brahman, a perfeição de todos esses
quatro estágios inferiores. Esta progressão é tanto cronológica
quanto lógica. Mas nos hinos dos Vedas nós os encontramos
colocados lado a lado, sem qualquer concepção de arranjo
lógico ou sucessão cronológica. Algumas vezes o mesmo hino
tem sugestões de todos eles. Isso apenas mostra que quando o
texto do gveda chegou a ser escrito, todos esses estágios de
pensamento já haviam se passado, e as pessoas estavam se
prendendo a alguns ou a todos eles sem qualquer consciência
de sua contradição. (Radhakrishnan, 1989, vol. 1, pp. 98-99)

Algumas considerações sobre a análise de Radhakrishnan


Resolvi tomar como ponto de partida deste artigo a análise da religião dos Vedas
apresentada pelo indiano Sarvepalli Radhakrishnan (1888-1975) por vários motivos. A
obra que foi citada, Indian Philosophy, foi publicada pela primeira vez em 1923, mas é
reeditada e lida até hoje. O autor lecionou na Universidade de Calcutá a partir de 1921
e depois na Universidade de Andhra, mas posteriormente mudou-se para a Inglaterra,
onde foi professor da Universidade de Oxford (1936–1952). Nesse período publicou,
entre outras obras, um estudo comparativo: Eastern Religions and Western Thought
(1939). Retornou depois para a Índia, que havia se tornado independente, tornando-
se seu primeiro vice-presidente (1952-1962), sendo depois o segundo presidente da
Índia, de 1962 a 1967. É considerado uma grande autoridade sobre o pensamento
indiano (Hawley, 2006). No entanto, veremos que sua análise sobre os Vedas contém
muitos problemas e equívocos.
Em primeiro lugar, a própria forma pela qual Radhakrishnan exprime suas ideias
mostra que ele está querendo apresentar como os Vedas conduziram a uma concep-
ção verdadeira sobre Deus. Sua abordagem não é neutra, é tendenciosa. Ele era um
adepto do Advaita Ved nta, que aceita apenas a existência de um ser supremo impes-
soal (Brahman), que não pode ser descrito conceitualmente. Qualquer outra concep-
ção religiosa é primitiva e insatisfatória, para os seguidores dessa corrente filosófica.
Em segundo lugar, Radhakrishnan cria uma pseudo-história que não se baseia em
nenhuma evidência histórica. A sequência de fases que ele imagina é apriorística, e
ele interpreta a diversidade dos hinos com base em suas hipóteses sobre como a reli-
gião dos Vedas deve ter se desenvolvido. Não há nenhuma base historiográfica para
imaginar que primeiro surgiram os devas associados aos poderes da natureza, depois
os devas associados a aspectos éticos, depois os devas associados às conquistas e
guerras, depois os devas considerados supremos. Apesar de muitas tentativas para

4
encontrar uma cronologia interna aos Vedas (Bloomfield, 1900), não há acordo sobre
isso.
Em terceiro lugar, o modo pelo qual Radhakrishnan utiliza as categorias religiosas
como monoteísmo, politeísmo e henoteísmo é problemático, como vamos analisar
abaixo.

O conceito de henoteísmo
Comecemos pelo conceito de henoteísmo, que será central em toda nossa discus-
são.
Radhakrishnan afirma que Max Müller criou esse conceito, o que não é verdade:
ele foi formulado por Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling em 1842 (Yusa, 1987, p.
266; Pettazoni, 1960, 112). O termo, cuja etimologia é = heis theos (um
deus), representa o culto de uma única divindade em um contexto em que se aceita a
possibilidade de existência de outras divindades.
Müller introduziu nas suas obras o termo henoteísmo para discutir a história das
religiões e como se sucedem várias fases religiosas diferentes. Ele considerava que “A
intuição primitiva da divindade não é nem monoteísta nem politeísta” (Müller, 1867, p.
353).
Se, portanto, tivesse sido dada uma expressão a essa
intuição primitiva da Divindade, que é a fonte de toda religião,
posterior, teria sido “Há um Deus”, mas não ainda “Existe
apenas Um Deus”. A última forma de fé, a crença no Um Deus,
é chamada propriamente de monoteísmo, enquanto o termo
henoteísmo exprimiria a fé em um deus individual. (Müller,
1867, p. 354)
Para Müller, há uma hierarquia de religiões, com o monoteísmo no topo (Yelle,
2012, p. 65). O pensamento religioso dos Vedas é mais primitivo do que o monoteís-
mo dos judeus e cristãos, e também é mais primitivo do que o politeísmo dos gregos e
dos romanos. “O Veda, por sua linguagem e pensamento, supre aquela base distante
na história de todas as religiões da raça Ariana [...]” (Müller, 1867, p. 26). Já que não
dispomos de informações sobre como era o pensamento religioso dos gregos e dos
romanos antes do período histórico, podemos reconstruir esse passado por compara-
ção com o pensamento religioso dos indianos, pois nesse caso “estamos mais perto da
fonte” (ibid., p. 26). Segundo Müller, a maior parte dos hinos dos Vedas não tem va-
lor:
Mas, ocultas neste lixo [rubbish], há pedras preciosas. Para
apreciá-las de modo justo, devemos tentar nos despir das
noções comuns sobre o Politeísmo, tão repugnante não apenas
para nossos sentimentos, mas também para nosso
entendimento. Sem dúvida, se devemos empregar termos
técnicos, a religião do Veda é Politeísmo, não Monoteísmo. As
5
divindades são invocadas por diferentes nomes, alguns claros e
inteligíveis, como Agni, fogo; Surya, o sol; [...] outros, como
Varu a, Mitra, Indra, que se tornaram nomes próprios, só
revelam vagamente sua aplicação original aos grandes aspectos
da natureza, o céu, o sol, o dia. Mas sempre que um desses
deuses individuais é invocado, ele não é concebido como
limitado pelos poderes dos outros, como superior ou inferior em
nível. Cada deus é, na mente do suplicante, tão bom quanto
todos os deuses. Ele é sentido, no momento, como a divindade
real – como supremo e absoluto – sem uma suspeita dessas
limitações que, na nossa mente, uma pluralidade de deuses
deve implicar em cada deus individual. Todo o resto desaparece
por um momento da visão do poeta, e apenas aquele que deve
preencher seus desejos permanece em plena luz diante dos
olhos daqueles que o cultuam. (Müller, 1867, pp. 27-28)
Essa atitude que Müller descreveu como henoteísmo está presente não apenas nos
Vedas, mas também na tradição indiana recente:
Dentro das tradições Hindus, a forma mais comum de
prática espiritual é bhakti – devoção completa a uma única
divindade. [...] A tradição compreende que é a prática de
devoção em si e por si própria que é essencial; assim, a
divindade particular escolhida como objeto de devoção é
relativamente sem importância. Ciente das muitas divindades
Hindus, o devoto tende a associar todos os atributos das várias
divindades a uma única divindade que é o seu objeto de
devoção. Isso não é uma relação de exclusividade: o devoto
fará oferecimentos às outras divindades quando estiver na
presença de seus templos e santuários. Mas para o devoto, em
essência, existe apenas uma única divindade. (Paper, 2005, p.
123)
Müller deu também o nome de catenoteísmo (kathenotheism) a esse tipo de reli-
gião dos Vedas – uma palavra construída a partir de kath’hena+theos, significando um
deus de cada vez (Yelle, 2012, p. 65). Posteriormente, ele desistiu dessa denomina-
ção, e passou a utilizar o termo mais curto henoteísmo, que teve maior aceitação
(Müller, 1883, p. 147). A diferença central entre o henoteísmo dos Vedas e o politeís-
mo dos gregos é que, neste último, há uma hierarquia bem definida de deuses e um
deus supremo (Zeus), com uma estrutura semelhante a uma monarquia – algo que
poderia ser denominado também politeísmo monárquico (Müller, 1879, p. 263). A reli-
gião dos Vedas seria algo mais primitivo, com várias divindades lado a lado (no mes-
mo nível), nenhuma delas sendo realmente suprema (ou qualquer uma podendo ser
considerada superior às outras), e comparável à situação social anárquica de um con-
junto de vilas aglomeradas, sem um governo centralizado superior (Müller, 1883, pp.
145-146; Müller, 1879, p. 263; Yelle, 2012, p. 102).
O que eu desejo que vocês observem em tudo isso é a
perfeita liberdade com que esses Devas ou assim chamados
deuses são manipulados, e particularmente a facilidade e
naturalidade com a qual primeiro um, depois outro, emerge
6
como supremo nesta teogonia caótica. Esta é uma característica
peculiar da religião antiga dos Vedas, totalmente diferente tanto
do Politeísmo quanto do Monoteísmo que nós vemos nas
religiões Grega e Judaica; e mesmo se o Veda não nos tivesse
ensinado nada mais além desta fase henoteísta, que deve em
todos os lugares ter precedido a fase mais altamente
organizada do Politeísmo que vemos em Grécia, em Roma e em
outros lugares, o estudo do Veda não teria sido em vão. (Müller,
1883, pp. 162-163)
Portanto, ao contrário do que Radhakrishnan afirma, o henoteísmo não seria uma
fase intermediária entre o politeísmo e o monoteísmo, mas anterior ao politeísmo,
sendo a mais “primitiva” possível. Note-se que a palavra henoteísmo não é uma sim-
ples descrição “neutra”, mas carrega certa bagagem intelectual, pois representaria um
estágio no esquema de desenvolvimento na história da religião (Smith, 2010, p. 167;
Yelle, 2012, p. 64).
O termo henoteísmo tem sido comparado ao de monolatria – uma palavra propos-
ta também no século XIX para indicar o culto de uma única divindade, embora admi-
tindo a existência de outras (Mackintosh, 1908, p. 810; Yusa, 1987, p. 266). Alguns
autores recentes, como Christoph Elsas, indicam que o termo henoteísmo já não é
mais utilizado como descrição de um estágio na evolução das religiões, mas sim em-
pregado na fenomenologia da religião para descrever uma atitude que pessoas religio-
sas podem ter, dedicando-se a uma manifestação divina em particular (Elsas, 2001, p.
524; Yusa, 1987, p. 267).
Vamos rever, agora, a análise de Radhakrishnan. Segundo ele, teria havido um
politeísmo, seguido de um henoteísmo que conduziria ao monoteísmo. Porém, aquilo
que este autor chama de monoteísmo é o que Müller denomina politeísmo: uma varie-
dade de deuses, mas com uma divindade suprema. Para Max Müller, o pensamento
dos Vedas nunca ultrapassou a fase mais primitiva, a do henoteísmo; não chegou ao
politeísmo, e muito menos ao monoteísmo, que afirma a existência de uma divindade
única e nega a existência de uma variedade de deuses. Radhakrishnan, como outros
autores indianos, procurou identificar um monoteísmo no pensamento indiano antigo
porque aceitava, como os europeus, que essa era a melhor visão religiosa possível
(Smith, 2010, p. 128). Apresentar esse suposto monoteísmo era um modo de tornar
essa tradição indiana aceitável aos ocidentais.
Não estou pressupondo, é claro, que a análise de Müller é correta ou que é a única
possível. Podemos encontrar também muitos problemas na abordagem de Müller. Ele
também tinha ideias preconcebidas sobre qual era o tipo “perfeito” de religião (o cris-
tianismo monoteísta) e considerava a priori que a religião dos Vedas teria que ser in-
ferior às mais antigas religiões conhecidas da Europa, que eram politeístas (Smith,
2010, p. 167; Yelle, 2012, pp. 64-65). Foi a partir desse ponto de vista eurocêntrico e
7
preconceituoso que Müller estudou o “lixo” constituído pelos hinos dos Vedas e inter-
pretou o seu tipo de religião.

Os problemas de interpretação
A partir dos exemplos de Radhakrishnan e Müller, podemos apontar alguns dos
problemas centrais em qualquer tentativa de caracterização da religião indiana no pe-
ríodo dos Vedas. Em primeiro lugar, é necessário dispor de categorias bem definidas,
uma conceituação clara que possa ser aplicada de modo inequívoco a cada exemplo
histórico e identifica-lo como pertencendo a um ou outro tipo de religião. Em segundo
lugar, é necessário tentar deixar de lado ideias preconcebidas sobre as conclusões às
quais se vai chegar na análise. Em terceiro lugar, é necessário dispor de um conheci-
mento histórico bem fundamentado, para aplicar essas categorias.
O primeiro requisito é o mais fácil de preencher, pois muitos autores se dedicaram
a esclarecer de forma bastante satisfatórias os vários tipos existentes de concepções
da(s) divindade(s) existentes em vários tipos religiosos.
O segundo requisito é um desideratum que nunca pode ser totalmente atingido –
é fácil perceber os preconceitos dos antigos, mas muito difícil perceber os nossos.
O terceiro requisito constitui uma barreira muito grande, no caso do estudo dos
Vedas. Pois há uma grande variedade de interpretações sobre o próprio conteúdo dos
hinos, e as interpretações divergentes influem nas conclusões que se possa querer
tirar sobre o status da religião vêdica. Esse problema se torna ainda mais agudo por
vários fatores. Em primeiro lugar, a distância cronológica – há pelo menos 3.500 anos,
talvez muito mais, entre a época dos Vedas e o nosso tempo. Em segundo lugar, o
tipo de fonte disponível – os hinos dos Vedas não constituem uma descrição doutriná-
ria sistemática; é necessário interpretar o que está por trás desses hinos. Em terceiro
lugar, encontramos uma grande variedade de interpretações para o pensamento dos
Vedas, mesmo no caso de intérpretes nativos antigos.
No caso específico do período vêdico, há também algumas questões centrais:
(1) Existe um único tipo de religião presente nos Vedas, ou uma mistura de tipos reli-
giosos correspondentes a diversos períodos?
(2) Se existir uma mistura de tipos religiosos, será possível isolá-los, interpretar cada
um deles e atribuir-lhes uma sequência?
(3) Se existir um único tipo de religião, será possível dar uma interpretação coerente
sobre ela, a partir do conteúdo dos hinos vêdicos?
Muitos autores, como Radhakrishnan, respondem “sim” às duas primeiras pergun-
tas. Infelizmente, todas as análises que procuram distinguir diferentes estratos no
pensamento dos Vedas são altamente conjeturais e caem em argumentos circulares,

8
justificando as distinções e a cronologia com base nas diferentes ideias identificadas e
postulando que alguns tipos de concepções devem ter vindo antes de outros, por se-
rem mais simples e primitivos. E todas essas interpretações entram em conflito com a
tradição indiana, que nunca apontou a existência de diferentes estratos religiosos nos
Vedas.
Há autores que procuram dar uma interpretação única, coerente, a todo o conteú-
do dos Vedas. E devemos nos lembrar de que um dos princípios hermenêuticos fun-
damentais é o de que se deve pressupor sempre que o texto diante do qual estamos é
coerente. Parece-me que essa é a melhor atitude a adotar, a menos que ela se mostre
inviável.
Consideremos primeiramente, como categorias mais básicas de análise, as de mo-
noteísmo e politeísmo. Conceitua-se o monoteísmo como uma religião que apenas
admite a existência de um único deus. Conceitua-se o politeísmo como uma religião
que admite a existência de dois ou mais deuses. Cada um desses grandes tipos pode
ser subdividido em outros. Por exemplo, o politeísmo de Max Müller pode ser conside-
rado como um politeísmo monárquico, e o henoteísmo como outro tipo de politeísmo.
Parece facílimo verificar se a religião dos Vedas pertence a uma dessas categorias
ou à outra. Há referência a vários deuses nos Vedas? É difícil negar isso. Interpretan-
do-se deva como deus, vemos que existe uma grande variedade de deuses menciona-
dos nos hinos dos Vedas, como Soma, Indra, Agni, Savit , Sarasvat e tantos outros.
Assim, o problema pareceria se reduzir a determinar qual tipo de politeísmo está pre-
sente. No entanto, a solução não é tão simples assim. Afinal de contas, podemos con-
siderar que os devas são deuses? Ou deveríamos classificá-los de outra forma?
O pensador indiano Ananda Kentish Coomaraswamy, em seus estudos e traduções
dos Vedas, traduzia sistematicamente devas por anjos (Coomaraswamy, 1935). Ora, a
religião judaica admite uma multiplicidade de anjos, mas é monoteísta. Se Soma, In-
dra, Agni, Savit , Sarasvat e os outros devas não são deuses e sim equivalentes a
anjos, então a religião dos Vedas não é um politeísmo.
A questão pode ser colocada de outra forma: a multiplicidade de devas nos Vedas
é equivalente à multiplicidade de deuses nas mitologias grega e romana? Se puder ser
estabelecido um paralelo entre os devas indianos e os deuses da Antiguidade clássica,
poderemos considerar que a religião indiana antiga era politeísta. E isso nos remete a
questões de religião comparada e também de linguística, que serão tratadas a seguir.

A busca de esclarecimento etimológico


Uma possível abordagem para tentar esclarecer se os devas são ou não deuses é
um enfoque linguístico. Segundo o dicionário sânscrito-inglês de Monier-Williams, o

9
termo sânscrito deva é derivado de div ou dyu, que significa brilho, dia, céu diurno.
Deva significa celeste, divino, luminoso, podendo também ser aplicado a qualquer coi-
sa excelente – por exemplo: um sacerdote, um rei (Monier-Williams, 1979, pp. 478,
492).
Costuma-se procurar obter uma visão mais clara sobre o significado de deva a
partir de sua análise etimológica. Considera-se que o termo sânscrito deva se origina
de uma palavra do idioma Proto-Indo-Europeu1: *deiwo-, que seria a designação ge-
nérica para deus (Mallory & Adams, 2006, p. 408; Winn, 1995, p. 22; Snyder, 2001,
p. 10), significando também celeste ou brilhante.
Há outros termos do Proto-Indo-Europeu associados a este: *dei-, com seus vari-
antes *deye-, *d - e *dy - tinha o significado básico de brilhante, radiante (Snyder,
2001, pp. 10-12). Daí se originaram vários termos sânscritos, tais como d (brilhar),
d ti (esplendor, brilho), div (durante o dia), divam (um dia), divedive (dia a dia, dia-
riamente), div ou dyu ou diva (céu), divi (que mora no céu), divya (celeste).
Dessa mesma origem Proto-Indo-Européia vieram o latim deus e o grego Zeus
( ) (Snyder, 2001, p. 12; Winn, 1995, p. 23)2. À primeira vista, portanto, se deva,
deus e Zeus vieram da mesma origem, deve ser possível traduzir deva por deus. Mais
ainda: se tanto na Grécia como em Roma as religiões eram politeístas, a associação
entre deva, deus e Zeus poderia indicar que os devas são deuses no sentido politeísta
da palavra. Essa é a interpretação etimológica usual (Müller, 1867, p. 25).
Esse tipo de análise, no entanto, não permite esclarecer nada. Ele pressupõe que
não pode ter surgido nada de radicalmente novo na cultura indiana, a partir da cultura
primordial Proto-Indo-Européia. Tal pressuposto é limitador, empobrecedor, e não tem
qualquer justificativa. Vejamos um exemplo que mostra o perigo de tal tipo de análise.
Do mesmo termo Proto-Indo-Europeu *deiwo- de onde se originaram o sânscrito de-
va, o latim deus e o grego Zeus, surgiu o termo avéstico daeva, que significa demônio
(Mallory & Adams, 2006, p. 408; Snyder, 2001, p. 12; Winn, 1995, p. 23). Ora, se
não tivéssemos informações muito claras sobre o significado de daeva no Zend-
Avesta, concluiríamos da sua etimologia que devia significar uma divindade... uma
conclusão totalmente falsa.
Neste caso específico, há uma explicação histórica para a mudança de significado.
Acredita-se que no período pré-histórico, na Pérsia como em outras regiões de tradi-
ção indo-européia, as palavras derivadas de *deiwo- significariam uma divindade. No
entanto, quando Zoroastro (aproximadamente no século VII a.C.) reconheceu Ahura
Mazdah como o único deus verdadeiro, declarou que todos os outros antigos deuses

1 Supõe-se que a cultura Proto-Indo-Européia pode ter florescido no 5º ou 4º milênio antes da era cristã (Winn, 1995, p. 265).
2 O fonema *dy do Proto-Indo-Europeu se torna z em grego, e j ou i no latim (Winn, 1995, p. 23).
10
(daeva) eram demônios (Trubeckoj, 1996, p. 101). É relevante também mencionar
que a palavra ahura, que no avéstico significa divindade, é correlata a asura, em
sânscrito, que pode significar tanto um ser divino quando demoníaco (Moulton, 1911,
p. 34). A partir desse exemplo, não poderíamos também nos perguntar se os devas
dos Vedas mantiveram o significado Proto-Indo-Europeu ou sofreram uma transforma-
ção de significado?
Vejamos outro ponto. Considera-se que uma das mais antigas divindades dos an-
cestrais Indo-Europeus era um deus celeste cujo nome foi reconstruído como *Dyeus,
significando “céu brilhante” ou “céu iluminado” (Winn, 1995, pp. 20, 23; 31). Ele foi
identificado, no sânscrito, como o deva Dyaus, que está associado ao céu, e identifica-
do ao Zeus grego e ao Júpiter romano. O nome Ju-piter significa literalmente “céu
pai”, e existem também as expressões Zeu-pater e Dyau -pit , com o mesmo signifi-
cado (Fortson, 2010, p. 25; Winn, 1995, pp. 21-22; Snyder, 2001, pp. 10-12; Beekes,
2011, p. 40). O deus do céu, para os gregos e romanos, se tornou também o deus do
trovão, patrono dos guerreiros, correspondente a Thor, entre os vikings (Winn, 1995,
p. 23); e o aparecimento da palavra “pai” seria uma prova de que a religião Indo-
Européia primitiva era inerentemente patriarcal, centrada na autoridade masculina.
Essa parece ser a única divindade comum aos diferentes ramos da cultura Indo-
Européia (Macdonell, 1897, pp. 8, 20; Beekes, 2011, p. 40; Snyder, 2001, p. 26).
Toda essa tentativa de reconstrução é, no entanto, repleta de problemas. Os auto-
res costumam focalizar sua atenção nas semelhanças, deixando de lado importantes
diferenças. No caso em questão, é relevante assinalar que na tradição vêdica o deva
Dyaus não é o deus do trovão – é Indra quem está associado aos raios e ao trovão, e
este não é um deva relacionado à região celeste e sim à região atmosférica (Macdo-
nell, 1897, p. 55).
Há outras diferenças. Na tradição vêdica, raramente Dyaus é mencionado sozinho;
aparece quase sempre associado à devi P thv (associada à Terra), que é também
chamada de P thv -m t (Terra-mãe). Muitos hinos fundem os dois devas em uma
unidade, Dy v p thv (céu-terra), e apenas em uma única passagem ( igveda
VI.51.5) aparece a expressão tão mencionada, céu-pai ou Dyau pitar (Macdonell,
1897, p. 22). Ele é considerado o progenitor de muitos devas, como U as, os dois
A vins, Agni, S rya, os dityas, os Maruts (Macdonell, 1897, p. 21). Curiosamente,
em 20 passagens Dyaus aparece como feminino (ibid., p. 22).
Na tradição grega, o céu e a terra também formam um casal, mas neste caso o
céu não tem nenhuma relação com Zeus, e sim é denominado Ouranos, o céu noturno

11
(e não diurno)3. A palavra Dyaus é usada para se referir ao céu, cerca de 50 vezes no
igveda, e também significando dia, cerca de 50 vezes; apenas em um único ponto há
uma indicação simbólica de Dyaus associado à noite (Macdonell, 1897, pp. 21-22).
Portanto, o casal Dyaus-P thv não pode ser considerado como equivalente ao casal
Ouranos-Gaia da mitologia grega. Além disso, como é bem sabido, na Teogonia de
Hesíodo há uma sucessão de deuses supremos, começando com Ouranos, seguido de
Kronos e depois por Zeus, portanto Zeus e Ouranos são bem distintos. Devemos tam-
bém mencionar que Dyaus não é considerado uma divindade suprema, nos Vedas
(Moulton, 1911, p. 36; Macdonell, 1897, p. 22), nem há qualquer evidência de que
seja considerado mais antigo do que os outros devas. Portanto, a correlação com Zeus
e Júpiter é muito fraca.

Características dos devas


Se quisermos entender o que são os devas nos Vedas, será necessário verificar o
que os Vedas afirmam sobre os devas. Muitos autores, como Arthur Anthony Macdo-
nell, indicam que os devas não possuem individualidade clara, sendo que para muitos
deles não há sequer mitos disponíveis.
O caráter de cada deus vêdico é constituído por apenas
alguns poucos traços essenciais, combinados com certo número
de outras características comuns a todos os deuses, como
brilho, poder, benemerência e sabedoria. Algumas grandes
funções cósmicas são atribuídas a praticamente todas as
principais divindades individualmente. (Macdonell, 1897, p. 15)
Atribui-se a vários devas diferentes a capacidade de sustentar ou de estabelecer o
céu e a terra; de criar os dois mundos (terrestre e celeste); de produzir o Sol, ou colo-
ca-lo no céu; e diversos deles são descritos como sendo os senhores de tudo o que se
move e está estacionário (Macdonell, 1897, p. 15). Os devas são descritos como imor-
tais – mas não eternos, pois primeiramente teriam sido mortais. São benéficos, pro-
porcionam prosperidade; possuem características morais, pois são descritos como au-
tênticos e não enganadores; são amigos e guardiães da honestidade e da correção.
Algumas das características que aparecem com maior frequência são as de serem
grandiosos e poderosos: possuem domínio sobre todas as criaturas (ibid., pp. 18-19).
Na mitologia grega antiga, as divindades tinham aspectos específicos: estavam
associadas ao amor, à guerra, etc. Não se nota essa diferenciação na mitologia dos
Vedas. Mesmo a associação com fenômenos naturais não é rigorosa. Diversos hinos
dos Vedas indicam a existência de 33 devas, sendo 11 deles terrestres, 11 celestes e
11 da região intermediária (atmosfera). Mas essa divisão não é rígida; Tva e P thiv

3 Tentou-se, durante muito tempo, identificar Ouranos com o deva indiano Varu a, mas tal correlação foi muito criticada e
acabou por ser abandonada (Beekes, 2011, p. 40).
12
aparecem nas três regiões (embora P thiv seja a dev associada à Terra); Agni e U as,
tanto na região terrestre quando na atmosférica (embora Agni seja o deva do fogo e
U as a dev associada à aurora); e Varu a, Yama e Savit nas regiões atmosférica e
celeste (embora Varu a seja associado muitas vezes ao céu e Savit seja um deva
solar) (Macdonell, 1897, p. 19).
Como há muitos atributos comuns aos vários devas, e poucos específicos, em di-
versos hinos ocorre uma identificação entre os vários devas (Macdonell, 1897, p. 16).
Alguns deles são descritos como possuindo ou assumindo todas as formas (vi var pa),
e surge em alguns hinos a afirmação de que os vários devas são apenas diferentes
formas de um único ser divino. A ideia é encontrada em mais de uma passagem do
igveda, como por exemplo neste famoso verso ( igveda I.164.46; Atharvaveda
X.8.28, XIII.4.15): “Os sacerdotes falam sobre o ser uno de muitas formas; eles o
chamam de Agni, Yama, M tari van” (Macdonell, 1897, p. 16).
Há devas peculiares nos Vedas, que não podem ser associados a nenhum fenôme-
no natural específico, que não possuem características antropomórficas e que indicam
um alto grau de elaboração filosófica, como Aditi. Esse nome é proveniente da raiz
sânscrita d (prender), de onde também vem d (amarrar, atar). Diti é aquilo que
prende ou limita; a-diti é a ilimitada, a liberta, sem limitações, a infinita (Monier-
Williams, pp. 18, 136, 474). Ela é invocada especialmente para a libertação do devoto.
Não há nenhum hino dedicado apenas a ela, mas seu nome aparece cerca de 80 vezes
no gveda. É chamada muitas vezes de dev e caracterizada como brilhante, luminosa,
sustentáculo das criaturas, pertencente a todos os homens. Seus filhos, os dityas,
são devas celestes, solares. Algumas vezes Aditi é identificada com o céu, ou com a
terra, ou com ambos (Macdonell, 1897, pp. 120-121). Em certos hinos ela representa
a natureza universal, a base de tudo: “Aditi é o céu; Aditi é a atmosfera; Aditi é mãe e
pai e filho; Aditi é todos os devas e as cinco tribos; Aditi é tudo o que nasceu; Aditi é
tudo o que nascerá” ( gveda I.89.10). É importante mencionar que Aditi não aparece
apenas nas partes dos Vedas consideradas “mais recentes”, e sim ocorre de forma
geral na coleção toda (Macdonell, 1897, p. 120).
Por causa de todas essas características dos devas vêdicos torna-se difícil classifi-
car a religião indiana antiga em qualquer das categorias comuns. Macdonell se viu
levado a utilizar diversas delas simultaneamente:
Assim, parece que no final do período do gveda, havia-se
chegado a um tipo de monoteísmo politeísta. Encontramos até
mesmo a concepção panteísta incipiente de uma divindade que
representa não apenas todos os deuses mas também a
natureza. Pois a deusa Aditi é identificada não apenas com
todos os deuses, mas com os homens, tudo o que já nasceu ou
nascerá, a atmosfera e o céu ( gveda I.89.10). [...] Essa visão

13
panteística se torna plenamente desenvolvida no Atharva Veda
(X.7.14,25) e é aceita explicitamente na literatura vêdica
posterior. (Macdonell, 1897, p. 16)
É claro que uma religião não pode ser simultaneamente monoteísta, politeísta e
panteísta... A citação acima, de Macdonell, exemplifica a dificuldade de enquadrar a
religião dos Vedas em qualquer categoria usual.

A conceituação de “deus”
A partir da descrição sucinta dos devas, apresentada na seção anterior, podemos
nos perguntar se eles são deuses ou não. Mas o que é um deus?
O conceito ocidental de deus está baseado nas três principais religiões Abraâmicas
(Judaísmo, Cristianismo, Islamismo). Nessas religiões, e em todas as análises filosófi-
cas derivadas das mesmas, considera-se que Deus é um ser espiritual (não material),
eterno, auto-existente, pessoal, digno de culto (o objeto supremo de devoção religio-
sa) superior a qualquer outro ser, ativo, criador de todas as coisas (exceto de si pró-
prio), onipresente em sua criação (mas sem corpo), dotado de supremo poder (onipo-
tente), conhecimento (onisciência) e bondade (Evans & Manis, 2009, pp. 38-42). A
descrição do conceito de deus apresentada em obras didáticas sobre filosofia da reli-
gião também costuma se concentrar no deus do monoteísmo Abraâmico: um ser su-
premamente bom, independente do mundo, onipotente, onisciente, criador do univer-
so, auto-existente, eterno (Rowe, 2007, p. 6).
Essa conceituação implica na existência de um único deus, pois não podem existir
vários deuses correspondendo simultaneamente a essa descrição. Qual é, então, a
conceituação de deus aplicável ao politeísmo? Esse tema nem costuma ser analisado.
Por exemplo, em uma obra recente que aborda as religiões de uma forma muito am-
pla (Tagliaferro, Draper & Quinn, 2010), nenhum dos 85 ensaios apresenta qualquer
discussão a respeito de um conceito de deus compatível com o politeísmo. Um dos
capítulos introduz o conceito básico de deus das religiões Abraâmicas, que é o de per-
feição – um ser planejador e criador do mundo, bondoso (providencial), que possui
excelência máxima sob todos os aspectos, como onipotência, onisciência e perfeição
moral (Webb, 2010, p. 27). Outros capítulos expandem essa caracterização do deus
monoteísta.
Quando se tenta encontrar uma caracterização de divindade compatível com todas
as variedades de religiões, chega-se a algo muito vago, como por exemplo: “pode-se
definir um deus como um ser que é ou pode ser cultuado apropriadamente” (Smart,
1996, p. 35). Mas tal conceituação não distingue os deuses de demônios, espíritos,
antepassados, santos, heróis, ninfas e outros seres que também são cultuados em
diversas civilizações.
14
Edgar Sheffield Brightman tentou proporcionar uma definição de divindade compa-
tível com todos os tipos de religiões. Ele considerou que toda religião é, em algum
sentido, uma forma de culto, e sem um objeto de culto não existiriam religiões: “o que
diferencia a religião de outros fenômenos sociais é a atitude de devoção reverente
para com alguma coisa divina” (Brightman, 1940, p. 133). O conceito básico de deus
seria o de objeto de culto, como na obra de Ninan Smart citada acima; mas Brightman
desenvolveu mais detalhadamente essa ideia. Para ele, o objeto de culto é aquilo que
é considerado pelo praticante como sendo a fonte dos seus valores mais elevados, é
um ser do qual ele quer se aproximar. Assim, ser objeto de culto é apenas uma condi-
ção necessária, mas não suficiente, para considerar algo como um deus. Devem tam-
bém ser atribuídos os valores mais elevados a esse objeto de culto; e deve haver o
objetivo de se aproximar dele (ibid., pp. 134-135). Está incluída aqui a ideia de algum
tipo de perfeição – mas não uma perfeição que impeça a multiplicidade. Obviamente,
esses valores devem variar de uma religião para outra, e em algumas os diversos va-
lores mais elevados não estarão associados a um único ser, mas a vários – é o caso
do politeísmo (Brightman, 1940, p. 138).
A análise de Brightman é interessante e pode ser aplicada a um grande número de
concepções religiosas diferentes. Note-se que ela permite diferenciar um deus de um
anjo e de outras entidades, pois um deus representa os valores mais elevados aceitos
pelo praticante daquela religião, e os seres espirituais inferiores não satisfazem tal
condição.
Vimos que os devas possuem diversas características que podem ser consideradas
como valores positivos, dentro da cultura vêdica: são poderosos, são imortais, são
benéficos, são autênticos e não enganadores, são grandiosos, etc. Além disso, não há
dúvidas de que eles eram cultuados, no período antigo. Mas serão realmente deuses?
Há uma dificuldade para classificar os devas como deuses, usando essa conceitua-
ção. Seria necessário que os devas fossem os seres mais perfeitos, em relação aos
valores considerados, para poderem ser considerados como deuses. No entanto, além
da multiplicidade dos devas, os Vedas mencionam uma unidade subjacente, que supe-
ra os devas individuais. Vejamos esse aspecto, a seguir.

A unidade além dos devas


Um dos motivos pelos quais vários autores consideram que não se pode interpre-
tar deva como deus é que, por trás do culto aos devas, nos Vedas, existe a ideia de
um ser último que permeia tudo, um poder cósmico do qual os devas participam sem
serem totalmente idênticos a ele (Klostermaier, 2007, p. 102). Esse ser supremo é
desprovido de nome, mas as pessoas lhe dão muitos nomes, quando falam a respeito

15
dos devas: “Eles o chamam de Indra, Mitra, Varu a, Agni e ele é Garutman, de asas
celestes. Os sábios dão muitos nomes àquilo que é um” (ibid., p. 103). Esse ser uno é
denominado Brahman, nas Upani ads e obras posteriores.
Seria essa unidade um Deus supremo? Alguns autores consideram que sim. Sahe-
brao Genu Nigal, por exemplo, cita diversos trechos dos Vedas que falam a respeito
desse Um e, seguindo a interpretação de Swami Dayananda (Nigal, 1986, pp. 26-27)4
defende uma interpretação monoteísta:
Os sábios dos Vedas nunca foram politeístas, isto é, eles
nunca acreditaram na realidade de vários Deuses. Eles também
não foram henoteístas, porque o henoteísmo aceita a posição
do politeísmo e adiciona a ela a visão de que um dos Deuses ou
das Divindades é considerada como tendo alta estima no
momento do culto. Os sábios dos Vedas afirmam explicitamente
que a Realidade é uma, e a chamam por vários nomes: Ekam
sat viprah bahudha vadanti ( gveda I.164.46 e Atharvaveda
IX.10.28). Isso nos dá o conceito de uma Existência Absoluta.
De modo semelhante, outro hino diz: Ekam santam bahudha kal
payanti ( gveda X.114.15), Uma Realidade é concebida de
várias formas. Em outro verso, o vidente afirma enfaticamente
a existência do um sob várias formas e nomes: Mahat devanam
asuratvamekam ( gveda III.55.1), grande é a Divindade única,
ou a Divindade de todos os deuses. Assim, os sábios e filósofos-
poetas falam sobre um Deus de muitos modos. (Nigal, 1986, p.
97)
Há, no entanto, uma grande dificuldade para identificar esse Um subjacente aos
devas como sendo um deus, pois ele não é cultuado. E, de acordo com as definições
usuais, um ser que não é cultuado não pode ser considerado um deus.
Diversos autores recentes negam a possibilidade de aplicar à religião vêdica qual-
quer classificação como monoteísmo, politeísmo ou outros “ismos”. Raimon Panikkar,
por exemplo, considera que tentar aplicar o conceito ocidental de deus e dos vários
tipos de teísmos ao pensamento indiano é forçar o uso de categorias surgidas dentro
de um tipo de religião (cristianismo, judaísmo) em religiões com visões totalmente
diversas.
Os Vedas, eu proponho, não são teístas – e, assim, nem
monoteístas, nem politeístas, muito menos ateístas. [...]
Mesmo chamar a doutrina vedântica posterior sobre Brahman
de (mono)teísta é forçar o significado desta palavra além dos
seus limites. O que eu estou contestando aqui é um método
excessivamente monocultural de interpretar outras culturas.
(Panikkar, 2013, III.A.3) 5

4 Swami Dayananda Saraswati (1824-1883) foi um importante pensador indiano, fundador do Arya Samaj, um movimento de
reforma da tradição vêdica que depois se fundiu à Sociedade Teosófica.
5 As páginas do livro de Panikkar não são numeradas; assim, só é possível identificar a posição das citações pela indicação de
suas partes, capítulos e seções.
16
O mesmo autor afirma: “Deus ou Não-Deus não é considerado como um dilema
último pela culturas externas ao domínio teísta. Nem o Tao nem Brahman são Deus ou
Deuses” (Panikkar, 2013, III.A.3).
Roderick Ninian Smart também considera que a tendência dos autores ocidentais
de classificar qualquer religião como monoteísta, politeísta, etc. é um abuso. No Bu-
dismo, por exemplo, “há muitos deuses, mas o objetivo mais elevado transcende to-
dos eles” (Smart, 1993, p. 34), por isso o autor o descreveu como transpoliteísta. Ele
também cunhou outro termo, transteísta, assim descrito: “Prefiro utilizar transteístico
para sistemas de crenças que enfatizam que existe um Brahman ou um X impessoal
que está além de deus”.
Max Müller estava perfeitamente ciente da existência de hinos dos Vedas que des-
crevem um ser único subjacente a todos os devas, mas comentou: “A consciência de
que todas as divindades são apenas diferentes nomes de uma mesma divindade apa-
rece realmente aqui e ali no Veda. Mas está longe de ser geral” (Müller, 1867, p. 28).
Ou seja: ele não deva muita importância a esses hinos específicos, considerando que
eram tardios e não descreviam o espírito geral dos Vedas.
Nos tempos antigos, e durante um período de uma
literatura incipiente, tal como o período dos Vedas parece ter
sido, temos o direito de dizer que, geralmente falando, hinos
celebrando a aurora e o Sol eram anteriores aos hinos dirigidos
a Aditi; que esses, por sua vez, eram anteriores aos cânticos
em honra a Prajapati, o senhor único de todas as coisas vivas; e
que tais odes que tentei traduzir agora mesmo, nas quais o
poeta fala sobre “o Um respirando por si mesmo sem respirar”
vieram ainda mais tarde. (Müller, 1879, p. 339)
Assim como a análise de Radhakrishnan que serviu de ponto de partida deste arti-
go, a ideia de Max Müller sobre essas etapas sucessivas no desenvolvimento dos con-
ceitos religiosos dos Vedas não tem justificativa histórica; baseia-se em uma precon-
cepção sobre o que deve ter vindo antes ou depois, sob o ponto de vista da evolução
do pensamento “primitivo”. É curioso que o próprio Müller às vezes se contradiz, como
quando reconhece, na mesma obra, que Aditi, a infinita, não é uma divindade “recen-
te”, pois aparece lado a lado com os devas “antigos” (relacionados aos fenômenos
naturais) em vários hinos (Müller, 1879, p. 227).

Considerações finais
A religião dos Vedas não é um politeísmo, pois não pode ser reduzida a uma mul-
tiplicidade de divindades distintas. Também não é um monoteísmo, pois o Um subja-
cente a todos os devas não é um deus, já que não é cultuado.
A ideia de que o pensamento expresso nos Vedas é “primitivo” e que não pode ter
atingido o grau de sofisticação filosófica encontrado nas Upani ads e outros textos
17
posteriores é totalmente gratuita. Não há dúvidas de que a civilização indiana, na épo-
ca dos Vedas, havia atingido um alto nível de sofisticação, que pode ser identificado,
por exemplo, na estrutura gramatical do idioma, na riqueza das formas poéticas, no
processo extremamente cuidadoso de transmissão dos hinos vêdicos e muitos outros
aspectos (Martins, 2011). Há quase um século, Franklin Edgerton já apontou: “Toda
ideia contida pelo menos nas Upani ads mais antigas, quase sem exceção, não é uma
novidade das Upani ads, mas pode ser encontrada exposta ou, pelo menos sugerida
muito claramente, nos textos vêdicos mais antigos” (Edgerton, 1917, p. 197).
Parece perfeitamente possível interpretar todo o conteúdo dos Vedas sem tentar
dividi-lo em “fases” ou “estratos” de diferentes épocas, correspondendo a diferentes
concepções religiosas. Tal interpretação nos obriga a considerar seriamente todos os
pontos onde os Vedas apontam para uma unidade dos devas e para uma realidade
única subjacente a todos eles. Quando se adota esse ponto de vista, percebe-se que é
impossível aplicar as categorias religiosas ocidentais ao pensamento vêdico, como vi-
mos.

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19
1

O JORNAL A AÇÃO E AS REPRESENTAÇÕES DA ENCÍCLICA SACERDOTALIS


CAELIBATUS NA DIOCESE DO CRATO-CE.

Maria Arleilma Ferreira de Sousa – (arleilmasousa@hotmail.com)


Discente de Mestrado do Programa de Pós-graduação em História, Cultura e Sociedade –
PPGH da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG.

O campo da História tem sofrido no último século profundas modificações o que


possibilitou um alargamento de temas, fontes e aproximações teóricas com outras
ciências. De acordo com Barros (2010, p. 55) a História Cultural é particularmente rica
no sentido de abrigar diferentes possibilidades de tratamento. A História Cultural se
interessa pelos Sujeitos produtores e receptores da Cultura como os Sistemas
Educativos, a Imprensa, os Meios de Comunicação, as organizações Socioculturais e
Religiosas.
O grande avanço da História se deu a partir dos anos 1970 com a chamada crise
dos paradigmas. Esta possibilitou um maior alargamento de temas e fontes para as
análises historiográficas enriquecendo as discussões em torno da História e trazendo em
discussão temas considerados até então irrelevantes como morte, comida, práticas de
sociabilidades, entre outros.
A crise dos paradigmas possibilitou o nascimento da denominada Nova História
Cultural e com ela a possibilidade de novas mudanças epistemológicas. Como o
Imaginário, o retorno da Narrativa, as reflexões em torno da Ficção, a possibilidade de se
trabalhar a História dialogando com a Literatura, a abordagem das Sensibilidades no
campo historiográfico, às discussões em torno das Identidades e das Representações.
Segundo Pesavento (2008, p. 39) a representação é um dos temas centrais da
História Cultural. Esta faz os Homens viverem por elas e nelas. “São matrizes geradoras
de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como
explicativas do real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das
representações que constroem sobre a realidade”.
A representação estar envolvida em processos de percepção, identificação,
reconhecimento, classificação, legitimação e exclusão. Além disso, as representações são
intimamente ligadas com o simbólico, ou seja, levam consigo sentidos que são
construídos historicamente e socialmente.
Ainda seguindo as ideias de Pesavento (Idem, p. 41) “a força da representação se
dá pela sua capacidade de mobilização e de produzir reconhecimento e legitimidade
social. As representações se inserem em regimes de verossimilhança, e de credibilidade,
e não de veracidade”.
A discussão que ora se apresenta tem como arcabouço teórico as discussões sobre
representação e tem como tema central a Religião. Analisando a Religião como objeto da
2

História, Gomes (2002, p. 21) aborda a relação entre o historiador e seu objeto
afirmando que essa relação não se apresenta de forma neutra:

A relação do historiador com seu objeto de estudo não é neutra,


seja esse objeto religioso ou não. Todo o historiador fala a partir
de um lugar social e de um lugar epistêmico. Suas opiniões o
situam forçosamente ora do lado dos crentes, ora do lado dos não
crentes, ora num lugar incômodo a meio caminho, ora mais
próximo de uma confissão ou de uma outra, mais sensível a
determinado percurso religioso ou a outro, até a hostilidade a toda
expressão religiosa.

Nossa análise buscará discutir sobre o Cristianismo Católico no contexto de finais


dos anos de 1960 e ao longo da década de 1970, sobretudo a partir das discussões em
torno do Celibato clerical. Os debates em torno da ascese dos Sacerdotes Católicos vêm
sendo discutidos desde sua promulgação ainda no século XIII. Entretanto no século XX
podemos perceber um retorno mais incisivo com relação aos discursos sobre o tema,
sendo o Concílio Vaticano II responsável por abrigar institucionalmente uma maior
discussão sobre tal questão.
O lugar de nossa análise é marcado por fortes influências do catolicismo popular.
Localizada no cariri cearense a cidade do Crato se avizinha com Juazeiro do Norte
marcado pelas romarias ao Padre Cícero. Podemos constatar ainda práticas muito antigas
como grupos de irmandades religiosas devotadas ao Sagrado Coração de Jesus e a
Maria, além de grupos de Penitentes.
Para legitimidade de nossa fala nos aportaremos no Campo da História Cultural se
apossando do conceito de Representação esboçado por Roger Chartier. Nosso intuito é
perceber como a Diocese do Crato apresentou ao mundo Católico cratense as notícias
sobre o Concílio Vaticano II, em especial, ao evento denominado de Crise dos Padres.
Segundo Serbin (2008, p. 10) os anos de 1960 e 1970 refletem a Crise de identidade que
assolou o Clero brasileiro. A frustração das expectativas de mudanças provocadas pelo
Concílio Vaticano II fez com que Padres de todo o mundo questionasse sua vocação.
Muitos abandonaram o Sacerdócio. Como podemos observar na reportagem do Jornal A
AÇÃO;

O Diário Carioca “Correio da Manhã” analisou, recentemente, a


crise da Igreja do Brasil (...) a proporção é de um padre para 7500
habitantes. (...) A Igreja enfrenta hoje um déficit de 20 mil padres
(...). Segundo o Secretário Nacional dos Seminários da CNBB, em
1968 havia no país 2535 seminaristas maiores diocesanos e
religiosos. Em 1970 esse número caiu para 1607 (JORNAL A AÇÃO
em 17/07/1971).
3

As principais razões para as desistências eram a manutenção do Celibato


obrigatório, a rigidez da estrutura hierárquica e a ausência de uma postura mais firme
dos Bispos contra o Regime Militar. A Diocese do Crato- CE na tentativa de afastar a
Crise que assolava o Clero de “outras regiões” em seu território se utilizou de várias
estratégias para construir uma Identidade Clerical em sua Diocese.
Utilizou como principais recursos: Encontros Pastorais e seu Jornal A AÇÃO.
Criado na década de 1930 o jornal ora analisado era impresso semanalmente e tinha
como objetivo manter a população Católica informada sobre os eventos religiosos e
políticos locais e em proporções mundiais. Tendo seus editores ligados ao grupo Católico
do Crato-CE repassava reportagens que estivesse de acordo com a intencionalidade dos
setores dominantes seja no tocante aos assuntos políticos e, principalmente com relação
às notícias de cunho religioso.
O jornal A AÇÃO, apresentou algumas matérias sobre a Crise dos Padres, porém,
de acordo com as reportagens, tal Crise ocorrera apenas na Europa e em algumas
capitais do Brasil, ficando sua Diocese fora de tais problemas conforme foi publicado em
17 de julho de 1971: [...] a crise número um é a falta de vocações e a crise número dois,
a falta de Formação. Observa o periódico que “faltam padres e freiras para o trabalho da
Igreja na América Latina, África, enfim em toda a parte” Principalmente nos países
subdesenvolvidos. Aqui no Brasil a proporção é de um padre para 7500 habitantes [...].
Esse período de desligamento de alguns membros do Clero da Instituição Católica
ficou conhecido como Crise dos Padres ou Crise de Identidade dos Sacerdotes. Encontra-
se no Guia Pedagógico da Pastoral Vocacional de 1983 um trecho que caracteriza esse
momento vivenciado pela Instituição Religiosa em anos anteriores:

A gravidade da “crise de identidade” do padre se manifestou no


elevado número de desistências do ministério sacerdotal e na crise
de numerosos seminários, especialmente a partir de 1967. O
resultado em termos quantitativos foi à estabilização do número
de padres, no Brasil, pouco acima de 12.000, o que dá a relação
de um padre para 10.000 habitantes.

Para Mainwaring (1989, p. 33) a Crise da Igreja brasileira teve início após a
segunda Guerra Mundial sendo o resultado de uma rápida transformação na sociedade
sem que o mesmo ocorresse com a Igreja acarretando assim uma série de prejuízos para
a Instituição, pois, as manifestações de crise incluíram uma resistência à secularização, o
alarmante crescimento do protestantismo e do espiritismo, menor comparecimento à
missa, uma crise de vocações, o crescimento da esquerda, e uma perda de influência
entre as classes dominantes e entre a classe operária urbana.

Conforme o jornal A AÇÃO em matéria apresentada em 17 de julho de 1971 “em


1968 havia no Brasil 2535 seminaristas maiores Diocesanos e Religiosos. Em 1970 esse
4

número caiu para 1607”. Por que tantas desistências? Era a pergunta que inquietava os
líderes religiosos. Consoante as informações repassadas no jornal o Secretário da CNBB
estava pedindo para que os Bispos de todo o Brasil tomassem as seguintes providências
para resolver o problema das vocações sacerdotais: um trabalho urgente para animar em
todos os sentidos, os padres atuais; definição do verdadeiro sentido teológico e tarefa
pastoral do padre; uma série reflexão para que num mundo da técnica e da secularização
não se perca a capacidade de compreender e de aprender os valores transcendentais.
De acordo com a oficialidade do Clero cratense as determinações de Roma
deveriam ser seguidas e para isso divulgava as determinações de Paulo VI e dos
defensores do Celibato consagrado, que em um Sínodo ocorrido em finais de 1971
confirmou mais uma vez a obrigatoriedade do Celibato consagrado afirmando ainda que
se mantiver eunuco é um dom de Deus, é um chamado do altíssimo para trabalhar em
seu Reino.

O Celibato, (...) é mais válido ainda quando se trata do celibato


assumido por causa do reino dos céus, como se manifesta na vida
de tantos santos e igualmente na de fiéis que vivendo uma vida
celibatária, se devotaram totalmente a Deus e ao próximo,
contribuindo para o progresso humano e cristão. (Jornal A AÇÃO,
08 de janeiro de 1972).

Como foi mencionado anteriormente, utilizaremos como principal testemunho


sobre a Crise dos Padres no Crato–CE o jornal A AÇÃO. Partindo das premissas de Luca
(2010, p. 111) o uso de fontes impressas na pesquisa histórica ainda era relativamente
pequeno na década de 1970. Apesar de alguns trabalhos se utilizarem de tal recurso
ainda prevalecia um ranço decorrente da tradição do século XIX e início do XX. A partir
das análises sobre os Sujeitos considerados subalternos, tema enfatizado pela História
Social é que jornais e revistas serão mais retratados como fontes nas análises
historiográficas.
Utilizaremos também como testemunho de análise a Encíclica Sacerdotalis
Caelibatus. Divulgada pelo Papa Paulo VI ao final do Concílio essa motivou uma grande
evasão de Sacerdotes da Igreja e dos Seminários. Ao analisar sobre as discussões em
torno do Celibato durante o Vaticano II, Ney de Souza (REVISTA TEOLOGIA E CULTURA,
2005, p. 31) constata que:

a discussão da lei do celibato, solicitada pelos bispos latino-


americanos, foi julgada inoportuna pelo papa, em carta ao cardeal
Tisserant de 11 de outubro. Pouco antes, uma intervenção de um
bispo brasileiro de origem holandesa, Pedro Paulo Koop (Lins, São
Paulo), propunha, devido à escassez de sacerdotes, a ordenação
de leigos casados há pelo menos cinco anos. A proposta foi
rejeitada pelos moderadores.
5

Como podemos perceber os anseios do Clero com relação à implantação do


Celibato opcional ou ainda a ordenação de homens casados foi considerado inválido e
teve sua legitimação após a divulgação da Encíclica Sacerdotalis Caelibatus um dos
únicos documentos emitidos pela Igreja Católica que trata exclusivamente da
sexualidade do Clero. Para o Papa Paulo VI, se manter solteiro é um dos requisitos
básicos para o melhor desenvolvimento do serviço do Reino de Deus, pois a:

“virgindade consagrada dos sacerdotes manifesta, de fato, o amor


virginal de Cristo para com a Igreja (...) o sacerdote, dedicando-se
ao serviço do Senhor Jesus e de seu Corpo místico, em plena
liberdade, facilitada pela sua oferta total, realiza, de modo mais
completo, a unidade e a harmonia da vida sacerdotal; torna-se
mais capaz de ouvir a palavra de Deus e de se entregar a oração”.
(1967, p. 07)

A instauração do Celibato consagrado passou por vários Concílios desde o de


Nicéia em 325 d.C. até sua definição no Concílio de Trento em 1545, onde o não
cumprimento da prática do Celibato incorria até em excomunhão. O Celibato é quebrado
quando o Padre se casa, mas não necessariamente quando este tem relações sexuais e
isso tem sido alvo de muitas críticas. Após contrair um casamento o Sacerdote não deixa
de ser Padre, no entanto, perde o direito de exercer o Ministério Sacerdotal.
Segundo Hubermann (1936, p. 11) a permanência do Celibato dos Padres tem
como objetivo a manutenção hegemônica do poderio econômico da Igreja Católica tendo
em vista que quando um Padre morre, por não ter constituído família, seus bens se
mantém em posse da Instituição religiosa.
Ao analisar sobre a institucionalização do Celibato obrigatório pelos Ministros da
Igreja, Silva (2008, p. 55) afirma que sua construção se deu basicamente em torno de
dez séculos, sendo o estado de solteirice a principal característica da identidade clerical
diferenciando-os inclusive de outros cristãos, como os protestantes.
A confirmação da Obrigatoriedade e Sacralidade do Celibato pelos Ministros da
Igreja possibilitou concernente ao pensamento de Silva, um grande número de saídas de
Sacerdotes em todo o mundo Católico para se casarem o que vai fazer com que inclusive
no Brasil se institua o Movimento de Padres Casados.
A Diocese do Crato–CE utilizou seu principal meio de comunicação, o Jornal A
AÇÃO para noticiar sobre a Crise dos Padres que estava acontecendo em grandes
proporções, aproveitava ainda para intensificar seu trabalho de pastoral para afastar tal
problema de seu meio apresentando reportagens que enfatizavam a importância do
Padre, muitas vezes qualificando-o como herói como podemos perceber no trecho
abaixo:

Devemos ver o Padre como um homem que, por forças de suas


funções, vive isolado, afastado de determinadas convenções
sociais e privado principalmente do amor da mulher amada,
6

renúncia esta que ele procura sublimar com a dedicação ao


apostolado que ele exerce em nome do Cristo. (Jornal A AÇÃO em
04 de agosto de 1976).

Segundo Coutrot (2003, p. 348) a imprensa Cristã tem como principal objetivo
penetrar nas realidades do mundo contemporâneo, mantendo estreita relação com seus
leitores. O jornal cristão é lido em família. Coutrot ainda observa que, a partir dos anos
60 tem-se uma queda do voto católico nos partidos de direita.
O que vai fazer com que a Igreja Católica, especialmente no espaço ora analisado
intensifique seus trabalhos pastorais. Suas divulgações na imprensa procura demonstrar
o “perigo que a sociedade sofria estando sob o comando vermelho”, ou seja, os partidos
de esquerda em especial o partido comunista. Este era associado ao mundo do demônio.
A segunda metade do século XX marcou um momento de efervescência social e
cultural a nível mundial. É interessante destacar que esse período é marcado, sobretudo
no Brasil, de Regime Militar, perseguição aos Comunistas e de ascensão dos ideais da
Teologia da Libertação. Consoante Coutrot (idem, p. 331) as ligações íntimas entre
religião e política durante muito tempo foram desprezadas, sendo reavaliadas a partir da
primeira metade do século XX. Ainda analisando as mediações de interdependência entre
religião e política afirma:

[...] a religião vivida no seio das Igrejas cristãs se inscrevem em


manifestações coletivas que marcam ás vezes os grandes ritos de
passagem, que são portadoras de um conteúdo, cultural e agentes
de socialização [...] a política não pára de impor, de questionar, de
provocar as Igrejas e os cristãos, a título individual ou coletivo,
obrigando-os admitir atos que os comprometem perante si
mesmos e perante a sociedade. (Idem, p. 335)

Marcado por uma ascensão de novas ideias o contexto de finais dos anos de 1960
e ao longo da década de 1970, teve no cenário político, cultural, econômico e social a
recepção de profundas transformações. O mundo religioso também estava inserido
nessas discussões. O pós-Concílio será marcado por uma maior efervescência de ideais
que já vinham sendo gestados desde o início dos anos de 1950 entre elas podemos citar
a Teologia da Libertação que acabou causando muita polêmica principalmente por
defender ideias de cunho marxista, que era bastante combatido por alguns setores da
Igreja Católica.
Entretanto é preciso destacar que para Lowy (2000, p.64) a Teologia da
Libertação não fora um movimento efetivamente político, não tinha um programa, nem
formulou objetivos econômicos e políticos precisos, se inseria basicamente no campo
ideológico. Admitindo a sua autonomia da esfera política, ela deixou essas questões para
os partidos políticos da Esquerda, limitando-se em fazer uma critica social e moral à
injustiça, a aumentar a consciência da população, a espalhar esperanças utópicas e
promover iniciativas “de baixo para cima”.
7

A Teologia da Libertação teve uma ampla aceitação por parte de alguns grupos da
Instituição Católica o que acabou fazendo com que houvesse uma grande mobilização
inclusive com a participação de laicos.

Como afirmou Leonardo Boff, a teologia da libertação é, ao mesmo


tempo, reflexo de uma práxis anterior e uma reflexão sobre essa
práxis. Mais precisamente, é a expressão de um vasto movimento
social que surgiu no começo da década de 60, bem antes de novos
escritos teológicos. Esse movimento envolveu setores significativos
da Igreja (padres, ordens religiosas, bispos), movimentos
religiosos laicos ( Ação Católica, Juventude Universitária Cristã,
redes sociais com base popular, comunidades eclesiais de
base(CEBS), bem como várias organizações populares criadas por
ativistas das CEBs; clubes de mulheres, associações de moradores,
sindicatos de camponeses ou trabalhadores, etc. (LOWY, 2000 p.
56)

Lowy (idem, p. 57) destaca sobre a Teologia da Libertação afirmando que a


maioria de seus ativistas não são teólogos e que seu movimento havia surgido muito
antes da instauração de sua teologia, preferindo denominar tal movimento de
Cristianismo da Libertação:

Normalmente, refere-se a esse amplo movimento social/religioso


como “teologia da libertação”, porém, como o movimento surgiu
muitos anos antes da nova teologia e certamente a maioria de
seus ativistas não são teólogos, esse termo não é o mais
apropriado; algumas vezes, o movimento é também chamado de
“Igreja dos Pobres”, mas, uma vez mais, essa rede social vai bem
mais além dos limites da Igreja como Instituição, por mais ampla
que seja sua definição. Proponho chamá-lo de cristianismo da
libertação, por ser esse um conceito mais amplo que “teologia” ou
“igreja” e incluir tanto a cultura religiosa, e a rede social, quanto a
fé e a prática.

Ainda seguindo as prerrogativas de Lowy (idem, p. 58) a Teologia da Libertação


foi duramente reprimida pela alta cúpula da Igreja Católica o que faz-nos pensar que
existe uma provável luta de classes dentro da Igreja a partir do momento em que essa
age de acordo com os interesses dos setores dominantes:

O Cristianismo da Libertação é combatido pelo Vaticano e pelo


órgão regulamentador da hierarquia da Igreja na América Latina- o
CELAM (Conselho dos Bispos Latino-Americanos), dirigido, desde o
início dos anos 70, pela ala conservadora da Igreja. Poderíamos
então dizer que há “uma luta de classes dentro da Igreja?” Sim e
não. Sim, na medida em que certas medidas correspondem aos
interesses das elites dominantes e outras ao dos oprimidos. E não,
na medida em que Bispos, jesuítas ou padres que chefiam a
“Igreja dos Pobres” já são eles próprios, pobres. Sua dedicação á
causa dos explorados tem como motivo razões espirituais e morais
inspiradas pela cultura religiosa, pela fé cristã e pela tradição
católica.
8

Ao analisar sobre a formação do Movimento de Padres Casados no Brasil, Silva


(2008, p.140) afirma que o número de evasão da Instituição Católica se deu por causa
do Celibato. Ou seja, após a divulgação da Encíclica Sacerdotalis Caelibatus confirmando
a obrigatoriedade da prática, os Sacerdotes se desvincularam da Igreja Católica para se
casarem. Nossa inquietação é buscar saber: Foi apenas isso? Não teria alguma coisa de
cunho político ou ideológico que motivou essas saídas clericais?
Tais indagações se justificam porque é sabido pela historiografia brasileira que
desde o período colonial os Padres cometem desvios quanto à vivência do Celibato. Tem-
se o registro de um vasto número de Sacerdotes que viviam com mulheres chegando
inclusive a constituir uma grande família. Porque só nesse contexto da segunda metade
do século XX que os Ministros da Igreja resolveram se desligar da Instituição? Os
discursos sobre o motivo da Crise dos Padres não seria uma espécie de Camuflagem para
esconder algo que a própria Igreja Católica não queria que viesse a tona? Esses
questionamentos vêm sendo direcionados em nossa pesquisa sobre a Crise dos Padres
na cidade do Crato-CE.
Ao teorizar sobre o conceito de Camuflagem Duverger (1964, p. 205) afirma que
esta é frequentemente utilizada pela política e pela religião sendo que sua principal
característica é criar um inimigo para esconder o verdadeiro motivo de suas ações.

Frequentes vezes, a camuflagem é parcialmente inconsciente.


Outra técnica de camuflagem consiste em fazer crê à massa da
população que os seus interesses estão em causa, quando a
questão não diz respeito senão aos interesses particulares de uma
minoria. (...) Muito frequentemente, este processo de camuflagem
toma a forma do “espantalho”. Inventa-se um “inimigo’, aumenta-
se a importância de um inimigo real, justificando pela necessidade
de se defender contra ele medidas tomadas na realidade no
interesse das classes no poder.

Nosso intuito imediato é compreender como a Diocese do Crato-CE fez com que
as determinações de Roma fossem prontamente seguidas. Interessante observar que
enquanto o mundo Católico presenciava a Crise dos Padres no decorrer da segunda
metade do Século XX, a Diocese do Crato procurou sanar tal conflito em seu território,
logo após seu surgimento, ainda na década de 1960 e nos anos posteriores. Poderemos
destacar um dos Encontros Pastorais realizado com esse fim. Foi um Encontro realizado
no período de 16 a 20 de fevereiro de 1970 e teve como ministrante o Padre Paulo Ponte,
professor do Seminário de Fortaleza.
Este, na ocasião, concedeu uma entrevista ao Jornal A AÇÃO falando sobre a Crise
dos Padres, afirmando que aqueles que se mostram contra o valor do Celibato
Consagrado deveriam ser desvinculados do cristianismo, como podemos observar na
reportagem do A AÇÃO em 21 de fevereiro de 1970: “ se um padre ou um bispo negasse
9

o valor do celibato, ele estaria indo de encontro à palavra do Cristo e não sei se ele
merecia mais o nome de cristão”.
Conforme Silva (2005, p.89) “[...] a identidade e a diferença estão estreitamente
associadas a sistemas de representação”. Utilizamos a ideia de Representação a partir da
perspectiva de Roger Chartier (1990, p. 17) onde ele estabelece que representar é fazer
presente algo que se estar ausente. Dessa forma pretendemos perceber como as
determinações do Concílio Vaticano II e as determinações do Papa Paulo VI se faziam
presentes na Diocese do Crato-CE, mesmo estando ausentes.
Assim sendo, os recursos de comunicação da Diocese cratense, enquanto lugar de
produção de discurso representava os ditames da mais alta cúpula clerical dando a ver
um ausente, como nos demonstra Chartier (idem, p. 20): a representação como dando a
ver uma coisa ausente, o que supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e
aquilo que é representado; por outro a representação como exibição de uma presença,
como apresentação pública de alguém.
Nesse sentido, para Chartier, representação se dar em um determinado lugar e
acaba gerando outras representações, ou seja, uma coisa que é gerada acaba sendo
geradora de outras coisas. Sendo assim, as representações são geradoras de outras
práticas.
Ao longo das discussões para tentar implantar o Celibato opcional passou-se a
discutir a possibilidade de ordenação de homens casados o que faria com que muitas
pessoas passassem a vivenciar a realidade religiosa resolvendo o problema da falta de
Sacerdotes e amenizando assim a Crise.
Nesse intento, foi realizado um retiro espiritual do Clero cratense no período de 07
a 11 de julho de 1969, tendo como palestrante o Diretor do curso Christus Sacerdots, do
Rio Grande do Sul, Padre Oscar Mueller e como assunto de pauta “A Missão do Padre na
Igreja de Hoje”. Na ocasião o Padre Muller em entrevista ao jornal A AÇÃO afirma que
uma das saídas para resolver a Crise dos Padres seria a ordenação de homens casados:
“A solução que se projeta para todo o povo de Deus é que se possa ordenar homens
casados para presidirem uma comunidade menor” (Jornal A AÇÃO em 19 de julho de
1969).
Através das análises feitas no jornal A AÇÃO, as palavras do Padre Muller foram
às únicas proferidas no contexto da Crise dos Padres no Cariri cearense e que não
comungavam diretamente com os ditames da norma instituída por Paulo VI e a alta
cúpula do poder Católico. Ao cogitar a possibilidade de ordenação de homens casados
para resolver o problema da Crise dos Padres Padre Muller se mostrou como Sujeito
praticante de novas práticas.
A Diocese do Crato-CE se utilizou de vários esforços para, através de seu poder
instituído afastar as Crises que a Igreja estava vivenciando no contexto da segunda
10

metade do século XX e utilizava seu jornal para representar o sagrado, para fazer com
que as determinações de Roma fossem prontamente seguidas e obedecidas.

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11

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REVISTA UTILIZADA
SOUZA, Ney. Revista Teologia e Cultura, ed. Nº 02, dezembro de 2005, p. 31.
DA CAIXINHA DO DIABO PARA INSTRUMENTO DE DEUS: UMA ANÁLISE SOBRE O
USO DA MÍDIA TELEVISIVA PELOS PENTECOSTAIS
Polyanny Lílian do Amaral1

Resumo: O uso da mídia por pentecostais está a cada dia mais evidente. Ao longo dos
anos é possível perceber como o pentecostalismo resignificou o uso da mídia,
especialmente a televisão, outrora tão demonizada. A partir do uso da televisão os
líderes pentecostais ocupam agora um status de "celebridade" advindo da grande
visibilidade obtida. Este artigo aponta como se deu, historicamente, a passagem da mídia
de elemento profano para elemento litúrgico, mediando as práticas e rituais religiosos,
através de uma análise teórica. Também apresentamos alguns exemplos etnográficos
resultados de uma pesquisa realizada na Igreja Internacional da Graça de Deus, sede,
em Recife e dos dados coletados ao assistir os programas, transmitidos na TV aberta, por
esta mesma igreja. Com isto, mostramos que a mídia televisiva atua como "mediadora"
entre pastores e fieis, ultrapassando o caráter proselitista.

Palavras-chave: Pentecostalismo, mídia, celebridade, efervescência imaginária.

Introdução
A religião como um todo tem desempenhado grande influência na sociedade, e
quando se tratando do pentecostalismo, essa influência torna-se mais forte e
perceptível. De um lado, o fato de que o Brasil tem atravessado um momento de declínio
do catolicismo e um crescimento exacerbado dos evangélicos, sobretudo dos
pentecostais (MARIANO, 2004 e CAMURÇA, 2006). Por outro lado, a mídia brasileira tem
aberto espaço para programas religiosos desde a madrugada até o horário nobre. A
partir disso, esse união entre religião e mídia permite sugerir um curioso fenômeno: o
líder religioso, de alguma forma, se torna um "ídolo da TV", consequentemente, o fiel
passa a ser uma "audiência".
Com a Reforma Protestante, as práticas católicas como a adoração de imagens,
canonização dos santos, legalização da penitência por dinheiro e o abandono das
Escrituras Sagradas foram veementemente combatidas. Atualmente, com o movimento
pentecostal, podemos perceber uma espécie de retorno a algumas dessas práticas,

1
Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), discente do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da UFPE, bolsista CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior), ligada ao Núcleo de Estudos de Religiões Populares (NERP - PPGA - UFPE). E-
mail: poly_lilian@hotmail.com
1
especialmente a "mediação" entre Deus e humanos, outrora tão criticada, mesmo que
essa mediação não seja reconhecida ou legitimada explicitamente e que se manifeste
com intensidades diferentes de acordo com as denominações. Porém, o mediador agora
passa a ser o líder protestante.
Os líderes pentecostais utilizam performances2 peculiares para determinados fins que
tocam diretamente os fieis. Alguns desses líderes são tidos como celebridades3 e
utilizam-se dos meios de comunicação para disseminar seus preceitos, conquistar
adeptos e mostrar a realização de atos milagrosos. Diante disso, os fieis autorizam uma
intervenção do pastor na sua relação para com Deus e suas práticas religiosas. O líder
carismático torna-se, portanto, um "mediador" agindo como canal para a manifestação
sobrenatural, estabelecendo sistematicamente a relação “fiel – pastor – Deus” e essa
mediação se acentua pela utilização da mídia televisiva.

A atuação da mídia no contexto religioso


Censo 2000 o pentecostalismo cresceu extraordinariamente entre as décadas de 1980
e 1990, mesmo período em que este movimento gozava de "maior visibilidade pública,
mais tempo no rádio e na TV" (PIERUCCI, 2011, p.476). Seus adeptos estão presentes
na mídia, na política, na economia, entre outras esferas. Dentre estas a mídia é um
expressivo meio de propagação de ideias religiosas. Também é verdade que na mídia
brasileira diversos programas de televisão pentecostais têm utilizado deste espaço, desde
a madrugada ao horário nobre, para programas de cunho religioso.
Antônio Flávio Pierucci (2011) chama atenção para um fenômeno de "migração
religiosa". Segundo o autor: "hoje no Brasil a diversidade religiosa está sendo
revalorizada não só como consequência, mas também e ao mesmo tempo como causa,
mola propulsora de uma liberdade religiosa cada vez mais sustentada, afirmativamente
reclamada e defendida" (pp. 473,374). No caso dos pentecostais em especial, este
sentimento de liberdade está relacionado a uma maior liberdade dos profissionais
religiosos a utilização da mídia como meio de reprodução ampliada de suas igrejas.
Birgit Meyer (2011) destaca que o crescente uso das mídias pelas religiões coincide
com a crescente visão da religião como força social e política. Também aponta para o
fato de que a mídia seria a chave da manifestação religiosa em nosso tempo, ao
contrário da crença de muitos pesquisadores que entenderiam que o uso da mídia pela
religião levaria esta a se render a lógica do entretenimento e do mercado. Contudo ela
também ressalva que não podemos relacionar mídia e religião a partir de uma percepção

2
Entenda-se performance como fluxos energéticos corporais e emocionais transmitidas pelo líder.
3
Ao se utilizar da mídia, o líder carismático adquiri visibilidade, se torna "inalcançável", o fiel admira e quer ser
como o líder. Ou seja a relação entre líder carismático e mídia produz a celebridade da fé.
2
utilitarista da tecnologia. Perceber a religião como mediação entre o ser humano e o
divino seria de fundamental importância para compreender que a mídia possibilita outros
meios ao qual a religião pode se aliar para realizar uma nova forma de mediação. Nesta
perspectiva o meio utilizado para realizar esta mediação também faz parte da realização
transcendental de contato com o divino. (AMARAL; SOUZA 2011). A autora tem uma
visão da mídia não só como definida por tecnologia modernas particulares, antes,
defende uma visão mais ampla da mídia: "como transportadores de conteúdo que
conecta as pessoas e o divino"4 (p. 27)
Simon Coleman aponta algumas características básicas do líder carismático. Dentre
elas está a capacidade de se estender até os ouvintes numa interação e provocação da
emoção do público. É neste ponto em que a mídia se faz um instrumento útil. Uma vez
que o líder se torna distante ou mesmo há uma impossibilidade do fiel de se locomover
ao local das reuniões da igreja, os programas religiosos transmitidos pelos canais de
televisão agem como uma espécie de “ponte”, uma ligação entre o fiel e sua crença. Mas
que para a mídia televisiva se tornasse uma aliada da religião foi necessário um exercício
de desconstrução da ideia de televisão como sendo um meio de comunicação que fere os
princípios cristãos.
Meyer (2011) chama atenção que a mídia, por privilegiar a imagem, o ícone, foi (e,
em menor grau, ainda é) negada pelo protestantismo histórico que não admite qualquer
espécie de adoração e é um crítico ferrenho da idolatria católica. A ideia protestante se
baseia no fato de que a mídia, por ser algo humano, não pode levar a Deus, pois isto é
feito apenas pela leitura da Bíblia Sagrada que proporciona uma ligação pessoal e
imediata com Deus, sem interferência de autoridades eclesiásticas.5
As igrejas protestantes históricas e das primeiras vertentes do pentecostalismo no
Brasil se posicionavam de forma contrária a televisão, pois afirmavam que esta última
apresentava apenas “o pecado” para a sociedade e que os adeptos dessas religiões não
deviam se contaminar com a “caixinha do diabo”. Foi um processo lento e ainda
inacabado, mas com o evento da modernidade podemos notar o quanto essas

4
"Our understanding of media moved from a view of media as defined by particular modern technologies
towards a broader view of media as transporters of content that connect people with each other and the divine."
(MEYER, 2011, p.27)
5
Meaning, content and inward belief are privileged above media, form and outward behaviour. Such a view
reflects Protestant self-descriptions as developed in reaction to Catholicism’s emphasis on sacraments and the
use of images. The Protestant charge of iconoclasm can fruitfully be analysed as a clash between competing
visions on media. Importantly, the Protestant critique of the power attributed to media in the Catholic church and
its own emphasis on reading the Bible did not simply yield a plea for substituting one medium (icons) for
another (biblical text). At stake was a move out of media, towards immediacy. The Protestant vision dismissed
religious media as human-made and hence misguided in getting close to God. Only by reading the Bible – the
living word of God – could believers achieve a personal and immediate link with God without the interference of
church authorities. (MEYER, 2011, p. 28,29)
3
concepções mudaram, pelo menos para algumas vertentes. Atualmente percebemos uma
forte presença do protestantismo na mídia em geral e especialmente na televisão.
O uso da televisão é muitas vezes reduzido ao desejo desesperado dos líderes de
converter indivíduos ou mesmo ao simples intuito capitalista de angariar lucro às custas
de patrocínios, vendas de produtos e pedidos de doações. Chamamos atenção, neste
artigo, que a inserção dos protestantes na mídia se dá por uma adequação da filosofia
religiosa para manutenção e extensão de suas práticas. Esta reformulação, admitimos,
tem um intuito de converter novos adeptos e caráter mercadológico, mas também tem
por objetivo alcançar espiritualmente seus adeptos em lugares “extra-muros da igreja”.
Campos (2011) reflete a transformação do pastor em celebridade, a forma de
autoridade do carisma pentecostal, sua circulação e transmissão do carisma. A autora
aponta que o carisma que "emana" do líder, circula entre os fieis. A mídia é acrescentada
por mim à essa circulação do carisma que acontece de três formas (comodificação do
carisma; parentesco; propagação coletiva), de forma que esses fluxos estão presentes na
comodificação apontada pela autora.
Assim, a mídia é um dos principais meios pelo qual esse carisma e circula e é
transmitido. No caso neopentecostal brasileiro é principalmente na TV e no rádio que os
lideres carismáticos estabelecem primeiro contato com o "futuro fiel" e mantêm o
"contato" com os seus seguidores. Por sua vez, este fiel fica admirado com os fenômenos
milagrosos ocorridos através do Pastor. Confinante a esse processo a figura do pastor se
destacada e, dotado do carisma, utilizam suas qualidades carismáticas para
determinados fins que tocam diretamente nos fieis. É assim que estes líderes
carismáticos terminam por ocupar um status de "celebridade" e de maior virtude, capaz
de ser mediador das intervenções divinas na vida dos fieis. Esses líderes dirigem várias
igrejas a nível nacional e internacional, através da TV e Internet levam sua mensagem
por todo o mundo e são capazes de conduzir e, em certo sentido, até controlar centenas
de seguidores que os tem, nas palavras de Coleman, como verdadeiros "santos
protestantes" (CAMPOS, 2011).
Assim, podemos constatar que a mídia é utilizada nos processos caracterizados por
estas teorias. A mídia televisiva passa a ter papel importante para a rotinização do
carisma, o pastor utiliza a mídia para reafirmar sua autoridade como líder carismático
(como apontou Weber, 2000) e angariar um quadro fixo de fieis, cotidianizando sua
atuação, mas também garantindo seu status de “celebridade”. Entretanto, é importante
perceber que a performance midiática do líder pode ser mimetizada, ou mesmo tornada
tema de conversas pelos fieis que querem demonstrar a amplitude de seu capital
religioso (de acordo com a teoria bourdieusiana).
Religião e mídia no Brasil: o caso dos Neopentecostais
4
Ricardo Mariano (2005), concordando com Freston, divide o pentecostalismo
brasileiro em três vertentes ou ondas denominadas pelo autor de "pentecostalismo
clássico", "deuteropentecostalismo" e "neopentecostalismo". Nos deteremos nesta
última.
O Neopentecostalismo constitui a vertente pentecostal mais influente e a que mais
cresce hoje no Brasil. Esta expansão está para além dos templos e denominações. Seus
adeptos estão presentes na mídia, na política, no comércio de produtos religiosos. Dentre
estes, a mídia é um expressivo meio de propagação de ideias religiosas.
O campo midiático tem interferido nas religiões e vice-versa. Ora os meios de
comunicação se debruçam, de forma informativa e crítica, sobre a questão religiosa, ora
os próprios religiosos se utilizam dos veículos midiáticos a fim de divulgar suas tradições
e crenças. Assim, não se torna tão absurdo assistir a um programa evangélico na
televisão, escutar pregações de pastores e sermões dos padres no rádio, rituais religiosos
na Internet e produções cinematográficas referentes ao Espiritismo.
A mídia em geral passou, ao longo do tempo, de um elemento demoníaco para um
canal para transmitir Deus. Os meios de comunicação são agora necessários para
propagação e reafirmação da crença. E se tratando do contexto pentecostal, a relação
religião e mídia se estreitam uma vez que o movimento neopentecostal desenvolveu os
primeiro passos para esta união.
Comumente o primeiro contato com os "futuros fieis" é mediado por um parente,
como mãe ou esposa6. Porém, com a larga atuação na TV e no rádio, os líderes
carismáticos passam a estabelecer também um primeiro contato com os fieis através
destes meios. Estes fieis por sua vez ficam admirados com as curas, libertações e
prosperidade emitidas através dos Pastores. Confinante a esse processo a figura do
pastor tem se destacado nitidamente. Dotado de carisma, os pastores utilizam suas
qualidades extraordinárias acompanhadas por performances peculiares para
determinados fins que tocam diretamente nos fieis. No entanto, estes líderes
carismáticos terminam por ocupar um status de "celebridade" e de maior virtude, capaz
de ser mediador das intervenções divinas na vida dos fieis. Esses líderes dirigem várias
igrejas a nível nacional e internacional, e através da TV e Internet levam sua mensagem
por todo o mundo e são capazes de conduzir e, em certo sentido, até controlar centenas
de seguidores que os tem como verdadeiros "santos protestantes".
No Brasil, são vários os exemplos de líderes pentecostais atuantes na mídia,
especialmente os que aderem aos meios de comunicação para propagação de suas
crenças. Dentre eles, o pastor Silas Malafaia, que, desde janeiro de 2010, é líder da

6
Ver: Mariz (1994); Mariz e Machado (1998); Campos e Gusmão (2008)
5
Assembleia de Deus Ministério Vitória em Cristo (antiga Assembleia de Deus na Penha)
com programas diários pela Rede Bandeirantes, como o programa Vitória em Cristo
(anteriormente chamado de "Impacto") que está na televisão há mais de trinta anos e é
transmitido em inglês e português para cerca de 137 países; o apostolo Valdemiro
Santiago, fundador da Igreja Mundial do Poder de Deus que, em parceria com a Rede
Bandeirantes, possui seu próprio canal de televisão7; o Bispo Edir Macedo, que em 1977
fundou a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), proprietária de várias empresas
como Rede Record, 62 emissoras de rádio no Brasil, gráficas, gravadora entre outras;
Romildo Ribeiro Soares, conhecido como Missionário R. R. Soares, desligou-se da IURD e
fundou a Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) em 1980 e hoje apresenta o
programa “Show da Fé”. O Missionário possui também empresas como Graça Artes
Gráficas e Editora Ltda. (adquirida em 1983), da Graça Music (uma gravadora gospel),
da Graça Editorial (uma editora) e da Graça Filmes, lançada em 2010 (distribuidora e
produtora de longas). As outras, tais como STB (Superior Technologies in Broadcasting),
RIT, Nossa Rádio e Nossa TV (TV por assinatura), pertencem à IIGD.

O papel da mídia na construção de um santo protestante


É um paradoxo pensar em um "santo protestante" pois, ao mesmo tempo em que
existe uma ideia de violência simbólica mo que diz respeito ao culto dos santos, existe
também a ideia de santidade na concentração de elementos religioso. As ligações entre
textos religiosos e figuras santas, entre outros, estão todas na pessoa do santo como
religioso virtuoso. Esse papel pode ser visto como uma personalização inevitável da
doutrina religiosa ou os santos podiam ser analisados como pessoas solteiras mediando
entre as ordens simbólicas. Em ambos os casos, o santo é uma complexa figura
pragmática, exemplificação dos ideais religiosos por meio de um autotransformação que
pode finalmente levar a um comportamento tão extremo que se torna impossível os
outros imitar.
Na tradição protestante contemporânea, que tem sido muitas vezes volúvel em suas
críticas a idolatria, existe a possibilidade de um "não declarado" culto aos santos, em
parte porque todos são santos. Os evangélicos contemporâneos ecoam a tradição Paulina
de abordar crentes como santos, como veículos humanos para o funcionamento do
Espírito Santo. Esse exercício é concernente a uma tradição evangélica particular, um
ramo do movimento neocarismático contemporâneo que incorpora tais contradições
aparentes em sua justaposição particular de práticas de imitação e transgressão da
construção paradigmática de figuras de santo. É uma tentativa de trazer o passado

7
Em agosto de 2008, foi feito um acordo para pregarem na Rede 21 por 22 horas e outras 2 horas produzidas
pela rede.
6
bíblico para o presente através de um desenvolvimento íntimo com a vida de Jesus, que
tem uma ligação direta com a queda original do Espírito Santo. Assim, a ideia de
mediação parece ser anátema, uma barreira desnecessária.
A justaposição de precedente bíblico, formação da igreja e a natureza da vida célebre
do pregador não se constituem por acidente. "A busca generalizada pelo carisma tem os
seus vencedores. Aqueles que atingiram o sucesso carismático", ou seja, os santos
protestantes são "como resultado desta cultura da corrida pelo carisma assentada na
oralidade da Bíblia" (MAURICIO JUNIOR, 2011:91). A "agência de pregadores" não é
expressa apenas em seu próprio corpo, mas também na capacidade de cura espiritual,
êxtase, profecias, cumprimento das profecias, entre outros. As figuras dos santos são
modos de "encapsular" o sagrado. O corpo e a performance do santo é a chave para a
construção do sujeito religioso, ou seja, a formação (e manutenção) do líder carismático
e principalmente com a expansão, com aqueles que emergem na interação.
Diante disto, o trabalho "Transgressing the self: making charismatic saints" de Simon
Coleman (2009) que trata sobre os "santos carismáticos" apresenta algumas questões a
respeito dos elementos constitutivos da santidade: (1) como articular moral e espaço
geográfico combinando poder local e expansão da fé? (2) Qual o papel da narrativa, ao
invés de apenas textos na produção de santidade? (3) Qual a conexão entre a pessoa do
santo e as mais gerais construções do sujeito religioso? (4) como é o "milagroso" e como
se relaciona com a ontologia? Em resumo: localidade, narrativa e subjetividade.
Assim, Simon Coleman aponta algumas características básicas que o líder carismático
precisa ter para se tornarem realmente homens escolhidos por Deus. O primeiro princípio
é o da "mobilidade". De modo geral, o imaginário de viagens está centrado
principalmente num discurso protestante. A linguagem religiosa cristã deve ser cercada
dentro de fronteiras espaciais e temporais da comunidade face a face para que tenha
efeito completo. O pastor, líder carismático, deve atuar como mediador entre os
territórios e sua presença física é fundamental. O poder dos "pregadores móveis" não
reside apenas na sua capacidade de transcender barreiras culturais e políticas, mas
também de fazer parte da construção da personalidade espiritual. Mobilidade é a chave
para a grandeza carismática. Todo aspiram a santidade, mas apenas alguns são
chamados de "grandes homens de Deus".
"Narrativa" é o segundo princípio para a formação de um líder carismático. Sobre a
linguagem, Coleman percebe que é de extrema importância indicar a presença do texto
no movimento pentecostal, além da performance, bem como a ideia de não separar texto
do corpo, pois esse texto, seja lido, cantado ou dançado, está presente em tudo,
inclusive numa técnica de justaposição em que o pregador se coloca no lugar dos heróis
bíblicos. A linguagem falada, embora divina, emerge do corpo do pregador e também é
7
assimilada pelo corpo do ouvinte. O pregador, como pessoa pública, espera que suas
palavras sejam estudadas, discutidas e assimiladas. A oratória do pregador é reforçada
pela linguagem corporal, pela performance do líder. O pregador é a sua história, como se
as histórias dos grandes heróis bíblicos fossem transpostas para a história de vida do
pregador. Os pregadores usam a técnica verbal e corporal para a conversão. A ideia da
Palavra de Deus como "semente", não só remete a um "nascimento", como também a
um crescimento interno. O fiel concebe o líder como um exemplo a ser seguido, para tal
desenvolvem a mesma retórica, mesmo que em menor grau. Assim, segundo o autor,
para obter o título de "pregador", "santo protestante" ou "líder carismático" é preciso ser
um mestre da oratória.
A tentativa do pregador de estabelecer uma relação envolvem práticas corporal e
verbal que sugerem a possibilidade de construir um vão entre o poder do pregador e os
crentes comuns, de forma que o pregador ocupe um status de "mais santo" que outros.
O pregador deve alcançar seus ouvintes, a palavra e a performance deve tocar, atingir, é
a capacidade de se estender até os ouvintes numa interação e provocação da emoção do
público.. É isso que o diferencia de outros pregadores: o princípio de "reaching out".
Neste terceiro ponto, Coleman aborda a capacidade de extensão que o pregador tem.
Esta extensão é provada quando a interação entre pregador e crente comum gera um
"fluxo espiritual" que passa do pregador para o crente comum e deste para outro e assim
por diante, numa espécie de cadeia. Campos (2011) sugere em seu artigo que a mídia é
parte ou elemento fundamental para a potencialização do reaching out e este trabalho
pretende contribuir com esse argumento apresentando as análises dos dados
etnográficos.
Assim, Coleman analisa como a relação de dominação surge em termos práticos,
performáticos, procurando os mecanismos sociais e coletivos da produção do líder,
focando a perspectiva do fiel.

A efervescência coletiva "imaginária"

Durante este trabalho analisamos que o pastor ocupa um status de celebridade por
estar presente na mídia, utilizando-a para expor suas crenças e exibir seus feitos, em
outras palavras "mantendo seu posto de carismático", rotinizando o carisma. Abordamos
ainda que, de acordo com Coleman, uma das características para torna-se um pregador é
o princípio de "reaching out" em que o pregador deve ter a habilidade de envolver o
ouvinte na pregação tocando-o, chegando até ele, estendendo-se até atingir o público.

8
Vimos também esta interação entre pregador e crente comum deve gerar um "fluxo
espiritual", ou seja, um momento de efervescência coletiva8.
Neste ponto nos voltamos para Durkheim (1968) quando ele trata sobre a vida
religiosa. Segundo o autor um grupo religioso tonifica "periodicamente o sentimento que
tem de si mesmo e de sua unidade. Ao mesmo tempo, os indivíduos são reafirmados na
sua natureza de seres sociais" (p. 536). Nestes momentos de reanimação, através de
uma festa (ou no caso neopentecostal, uma "reunião avivada"9), a energia do coletivo

8
Agitação do espírito, excitação, exaltação, comoção, movimento, desde que manifestos por um grupo, ou seja,
coletivamente. No caso pentecostal, esse momento de efervescência coletiva é caracterizado pelo manifestação
do Espírito Santo.
9
Faço uma ressalva neste ponto, pois Durkheim usa a terminologia 'festa' para tratar do momento de
efervescência, porém, não é do interesse deste trabalho discutir a definição de 'festa'. Diante disto, preferi usar o
termo nativo (reunião ou culto avivado) para as reuniões em que ocorre a efervescência.

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10
atingiria o seu apogeu no momento de maior "efervescência" dos participantes. Ele
observa que esta efervescência "muda as condições da atividade psíquica. As energias
vitais são superexcitadas, as paixões mais vivas, as sensações mais fortes" (Ibid, p.603).
Além disto, para que ocorra, este fenômeno pressupõe um coletividade.
Porém, quando a mídia é utilizada para fins religiosos, dois fenômenos ocorrem: 1) o
fiel torna-se audiência; 2) o pastor ocupa o cargo de "celebridade", ao mesmo tempo que
obedece ao princípio de "reaching out" observado por Coleman. O primeiro ponto nos
possibilita refletir sobre o fato de que, uma vez mudado o lugar do fiel, muda-se também
o lugar do líder carismático e a performance deste último. Já o último ponto permite-nos
afirmar que a mídia age como "mediadora", um canal, entre o pastor, celebridade tão
distante, e o fiel, audiência admiradora do líder. A mídia proporciona ao pastor, a
extensão, o "deslocamento" que é fisicamente impossível. Com o líder celebridade, o
fiel, por vezes age como fã, querendo tocar, tirar fotos, receber uma oração especial,
frequentar a igreja do líder carismático mesmo que não seja a sua congregação habitual.
Existe então um paradoxo: por um lado a mídia cria a distância ao transformar o pastor e
em celebridade e por outro aproxima na medida que funciona como um canal, uma
mediação com o divino a partir do líder. Aqui o que se tem é a vivencia afetiva do
carisma. A potencialização se dá em um paradoxo. (Campos 2011)
Desta maneira, o fiel reconhece que o "poder que há no pastor" pode alcançá-lo -
através da mídia - mesmo que ele não esteja presencialmente na igreja. O depoimento
(ou testemunho) de duas fieis na IIGD, sede, em Recife, nos permite verificar na prática
como este fenômeno se dá. A primeira mulher diz: "Pastor, eu estava com artrose e não
podia ir à igreja. Mas assisti o seu programa cedinho... Me acordava e ligava logo a TV...
Quando o senhor disse que era pra colocar o copo com água que o senhor iria orar, eu
corri, peguei o copo com água e coloquei perto da televisão. Depois que o senhor orou eu
tomei com muita fé e minha artrose melhorou" (Diário de Campo, 25/11/2011). A

WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensível. Tradução

de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: Editora da UnB, vol. II, 1999.

WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensível. Tradução

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______ A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1967

11
segunda fiel nos exemplifica melhor o que chamamos de "efervescência coletiva
imaginária": "Pastor, eu sou da IIGD, sede, mas não estava mais com vontade de ir na
igreja... Estava com um frieza e não queria sair de casa. Assisti o seu programa e vi os
testemunhos e apareciam. Comecei a dar glória Deus... Abri a Bíblia, como se estivesse
na igreja, orei junto com o senhor... De repente, comecei a me alegrar, parecia que o
fogo da igreja estava na minha casa." (Diário de Campo, 13/01/2012)
Nos dois depoimentos, podemos perceber a extensão do pastor, do culto e da palavra
através da mídia. Proponho, então, refletirmos uma continuação do conceito de
efervescência apresentado por Durkheim. No segundo depoimento houve uma
efervescência coletiva, porém de forma "virtual", "imaginária" ou mesmo "solitária", pois
a mulher que prestou o testemunho estava em casa, provavelmente sozinha, mas se
imaginou dentro da igreja, realizando os mesmos rituais e "sentindo o mesmo fogo" da
igreja.
Portanto, podemos concluir que quando o fiel é uma audiência, que participa
isoladamente da pregação (pela TV, rádio ou outro meio que faz o pregador estar longe
fisicamente), é possível uma "efervescência solitária" (quanto ao físico) que transcende a
coletividade material imprescindível para Durkheim. Afirmo, assim, que faz-se uma
"coletividade imaginária" que faz o fiel-audiência sentir-se imerso no ambiente do
pregador. Esta "fantasia" do indivíduo proporciona um "êxtase espiritual" que independe
do local ou da coletividade presente.

Considerações Finais
Perceber o entrelaçamento entre mídia e religião não é mais tão obscuro. Na
atualidade esta relação se torna cada vez mais forte e visível. Este trabalho propôs a
fazer uma reflexão sobre o papel da televisão na construção do espaço religioso
pentecostal e apontar suas interferências na interação do fiel com este espaço. Porém
refletimos que, como ressaltou B. Meyer, não devemos cair numa visão utilitarista e
admitir apenas o caráter comercial, acusando os líderes e igrejas de utilizarem a mídia
com objetivos principal de "merchandagem" e colocar o objetivo religioso de forma
reducionista. Neste trabalho não eliminamos o caráter comercial, mas fazemos uma
reflexão que, para além deste, existem muitos outros fatores de âmbito religioso.
A religião que um dia foi inimiga mortal da mídia condenando-a ferreamente, com o
movimento neopentecostal inverteram-se os polos e de "caixinha do diabo" a mídia foi
transformada em "instrumento de pregação". Junto com este processo, os líderes das
igrejas que se apropriaram da mídia se tornaram celebridades e graças a divulgação
midiática dos fenômenos sobrenaturais apresentados, o pastor passou a ser também
mediador desses milagres. Este trabalho se propôs a fazer uma reflexão sobre a
12
transformação do uso da mídia e o papel exercido por ela no posicionamento do pastor
como "celebridade" e do fiel "audiência". A descrição etnográfica, embasada
teoricamente, apresenta de forma empírica como se dão estes processos na prática,
tendo em base as observações feitas na Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) na
cidade do Recife.
A mídia televisiva torna-se um canal de mediação entre o fiel e o pastor, assim como
a religião é um canal entre o fiel e o divino. (Meyer, 2011). Como nos demonstra
Coleman (2009) é de essencial importância a extensão do líder ao fiel, assim os
programas de televisão como mediadores entre estes possibilitariam esta extensão
aproximando líderes e fieis. Concluímos, portanto, que há um paradoxo: por um lado a
mídia cria a distancia ao transformar o pastor e em celebridade e por outro aproxima na
medida que funciona como um canal, uma mediação com o divino, com o carisma do
líder. (Campos, 2011)
Assim, deve-se considerar que o uso da mídia pelas igrejas e pastores pentecostais
envolve objetivos que superam as dimensões mercadológicas e/ou de dominação. Este
uso envolve características de cunho espiritual e material os quais muitas vezes se
confundem e não implicam na negação de um pelo outro.

13
1

O PLURALISMO RELIGIOSO E A MIDIATIZAÇÃO CONTEMPORÂNEA

Robéria Nádia Araújo Nascimento1

Emilson Ferreira Garcia Junior2

Resumo

A religiosidade do século XXI torna-se um campo fértil para os discursos em torno do


pluralismo, redefinindo a fé e os modos de vivência social. Assim, a polissemia do
divino que perpassa o diálogo plurireligioso aponta duas perspectivas: as mensagens
da comunicação são produtos culturais capazes de engendrar a construção e a
reconstrução de significados; a permeabilidade da ambiência televisiva pode interferir
nos processos identitários da esfera pública. Embasado em Fausto Neto (2001, 2008),
Certeau (1999), Martino (2003) e Sodré (2009), esse trabalho visa compreender as
interfaces entre o campo religioso e a midiatização contemporânea na formação de
novas identidades.

Palavras-chave: programa Sagrado, pluralismo religioso, midiatização, identidades.

Introdução

A presente discussão deriva do projeto de pesquisa, desenvolvido sob nossa


orientação, intitulado “Em nome de uma fé plural: a diversidade religiosa do programa
Sagrado da Rede Globo” e contempla o processo de midiatização contemporânea no
campo religioso, destacando, sobretudo, os pensamentos formulados pelo grupo do
CNPQ/DECOM/UEPB Comunicação, cultura e desenvolvimento, do qual participamos; e
os desdobramentos analíticos da nossa linha de pesquisa Mídia e Estudos Culturais.
O referido estudo vem apontando como resultado mais expressivo, e que não
podemos ignorar, o fato incontestável de que hoje a mídia tece relações estreitas com
a esfera religiosa, seja em seu próprio nome (nas intervenções de pessoas e grupos
religiosos, na realização de programas de rádio ou de TV, nas publicações
especializadas, na crescente “indústria cultural” de matriz religiosa) ou no que
concerne à temática religião nos seus entremeios com o espaço social (documentários,
entrevistas, coberturas de notícias em números expressivos). Observamos ainda que
na internet sites de relacionamentos e comunidades afins se multiplicam, propagando

1
Professora do curso de Comunicação Social da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Doutora em
Educação. rnadia@terra.com.br.
2
Graduando de Comunicação Social da Universidade Estadual da Paraíba. emilson.garcia@bol.com.br
2

suas crenças e alimentando a efervescência que cerca esse debate. Desse modo,
entendemos que trazer esta discussão para o campo da comunicação social significa
propor um cenário de pensamento que busque compreender a convergência do
pluralismo religioso com a presença imperativa que a mídia tem assumido no nosso
cotidiano.
Assim, precisamos considerar e atentar para a mundialização de ideias típicas
da modernidade, num momento em que as diversas religiosidades ganham cada vez
mais espaços na mídia sob a forma de telenovelas e produções cinematográficas (as
surpreendentes bilheterias dos filmes Chico Xavier, Bezerra de Menezes, Nosso Lar e
As mães de Chico Xavier, investimentos da Globo Filmes, ilustram essa perspectiva),
bem como artigos na imprensa diária e revistas semanais. Reportagens especializadas
abordam temas ligados à expansão evangélica, aos fundamentalismos religiosos, à
crise institucional do catolicismo, às religiões mediúnicas e aos movimentos da Nova
Era, identificando as matrizes transversais que perpassam essa relevante discussão
nas suas interações com os campos da Sociologia, da Comunicação, das Ciências da
Religião, da Antropologia, da Filosofia, aliadas às vivências pessoais dos sujeitos que
se deparam com os impactos dessa conjuntura. Cursos em nível de pós-graduação
sobre Ciências das Religiões também são criados em várias universidades do país, a
fim de perscrutar esse universo. Verificamos, desse modo, que o pluralismo religioso
instiga uma série de debates em diversos âmbitos da sociedade que buscam analisar o
atual significado da religiosidade na época contemporânea.
Esse contexto “espectral” (Burity, 2005) no horizonte do debate religioso, uma
vez que as interferências de cunho doutrinário não são percebidas com nitidez nos
espaços sociais e mostram-se “opacas e nebulosas” em suas expressões, reflete um
processo de longa duração e de apropriação dos processos da dinâmica cultural numa
sociedade intensamente permeada pela influência midiática. Vivenciamos, pois, um
paradigma de religiosidade profundamente afetado pela ruptura das tradições
acompanhado de uma crise do pertencimento institucional de matriz religiosa.
Trata-se de uma época de mutação, marcada pela liberdade de crença e de
pensamento, influenciada pela descartabilidade das escolhas dos grupos sociais.
Momento histórico em que o pluralismo acena com a perspectiva de assimilação de
novas vertentes, talvez trazendo de volta a dimensão emocional da fé, atrelada à
exteriorização das práticas, a ausência de fé, ou a evidência da diluição de qualquer
crença. Neste sentido, entendemos que tanto a intensidade do vínculo entre religião e
mídia como sua percepção e avaliação por diferentes atores sociais tornam-se
oportunas nesses novos tempos de transição em que as pessoas mudam de
pensamento religioso como mudam de canal televisivo.
3

Contudo, a presente discussão não expõe um viés teológico. A perspectiva que


move o nosso interesse não defende qualquer apologia doutrinária, pretendendo
somente o desafio de analisar o impacto do pluralismo religioso, difundido pela TV, no
espaço social, e as implicações derivadas desse fato, considerando a ressonância
alcançada pela emissora global no nosso país. Problematizamos aqui, pois, a
diversidade religiosa mostrada pela TV, situando-a como instância geradora de
múltiplos sentidos e, como tal, polissêmica em suas ações de propagação do elemento
“divino e sagrado”.
Nesse contexto, a pesquisa referida visa empreender um estudo de recepção,
não se centrando na concepção de religiosidade enquanto categoria
socioantropológica, embora a suponha e a inclua, procurando compreender a
discussão da diversidade religiosa via TV e os sentidos criados a partir de sua
intervenção no cotidiano dos telespectadores. Para Hall (2004), a polissemia midiática
pode provocar construções identitárias que influenciam tanto os nossos pensamentos,
quanto os nossos pertencimentos e nossas concepções de nós mesmos. Torna-se
válido entender como essas influências incidem sobre nossos desejos e como a mídia
televisiva articula o espaço concedido à religião para tais intenções. De que maneira a
TV se coloca como espaço de diálogo com diversos grupos religiosos? Quais os
sentidos do divino expressos pela mídia? Nesse momento, mediante uma revisão de
literatura, expomos aqui algumas reflexões teóricas suscitadas pelo estudo, que nos
conduzem a perscrutar as possíveis construções identitárias sugeridas pelos processos
de midiatização do diálogo plurireligioso.

O pluralismo religioso e a midiatização televisiva


O senso comum entende a programação religiosa, sobretudo a televisiva, como
elemento de identificação com suas expectativas e sentimentos, de modo que suas
mensagens podem produzir vários sentidos. Ou seja, nosso interesse deriva de alguns
eixos e indagações no que concerne ao poder que a TV exerce junto à audiência:
como suas mensagens repercutem no espaço doméstico? O templo eletrônico
propiciado pela TV pode se converter em um altar, capaz de difundir múltiplas
crenças? Será possível explicar o sentido da diversidade e do pluralismo religioso na
programação diária, considerando-se a amplitude que tal temática carrega? Quais
estratégias são utilizadas pelas emissoras para visibilizar a discussão deste debate de
cunho religioso? As práticas religiosas e os sistemas de crenças estariam restritos ao
nível da individualidade? A diversidade religiosa seria apenas consequência do
4

desencantamento do mundo, tal como afirmou Weber3? Ou as novas expressões


religiosas indicariam somente a transmutação do divino cujos sentidos se multiplicam
e se moldam aos costumes hodiernos?
Podemos observar que a mídia intervém no ambiente público, produzindo
acordos tácitos entre a audiência e os veículos, a partir da visibilidade alcançada pelos
fatos noticiados para o conhecimento social. Isso pode ser verificado também no
contexto religioso, quando a TV cria um espaço propício para capturar a atenção de
múltiplos fiéis pertencentes a diversos credos. Sobre o processo de midiatização,
argumenta Fausto Neto (2008) que não se trata mais de reconhecer a centralidade
dos meios na tarefa de organizar a interação entre os campos sociais, mas de
constatar que “a constituição e o funcionamento da sociedade – de suas práticas,
lógicas e esquemas de codificação – estão atravessados e permeados por
pressupostos e lógicas do que se denominaria cultura da mídia” (Fausto Neto, 2008, p.
92).
Essa cultura, por sua vez, configura um reflexo da intensificação das
convergências tecnológicas que perpassam os meios de comunicação (informática,
telecomunicações e audiovisualidades), afetando todos os campos sociais, suas
práticas e interações, que passam a se organizar e a funcionar tendo como referência
a existência de lógicas e operações midiáticas (Fausto Neto, 2008). Desse modo, a
mídia interfere na produção de sentidos, a partir das mensagens difundidas, dos
mecanismos utilizados, constituindo estratégias discursivas e diferentes categorias de
enunciação. Os meios não são apenas considerados dispositivos de transmissão de
conteúdos, mas poderosos ambientes, capazes de criar sistemas reguladores de
posicionamentos num registro simbólico que pode modificar a percepção da realidade.
Daí porque diversas manifestações religiosas escolhem os veículos de comunicação,
especialmente a TV, para difundir seus projetos e intenções.
De acordo com o autor supracitado, a própria noção de fé muda
substancialmente na medida em que sua ambiência deixa de ser estruturada pela
simbólica do campo religioso, passando a ser permeada agora pelo simbolismo da
cultura das mídias. Este novo lócus - o da mídia - proporciona processos de
ajuntamentos dos fiéis em torno de uma espécie de comunidade na qual se vive de
modo intenso e peculiar, compartilhando um modo de fazer religião inspirado nos

3
Para Weber (1991), o homem moderno perderia a magia da religiosidade. Ao invés de conviver com o mistério,
buscaria explicações racionais e científicas para a vida, num processo denominado de “desencantamento do mundo”. O
retrocesso desse fenômeno seria, portanto, o “reencantamento do mundo”. In: WEBER, Max. Economia e sociedade:
fundamentos da sociologia compreensiva. Vol.1. Brasília: UNB,1991.
5

"gêneros", estilos e linguagens das mídias, especialmente a televisiva, com seus


cenários de sedução.
Carvalho (1997) também raciocina em torno dessa problemática
contemporânea. Esclarece que um processo distinto dos templos sucede quando a
relação com o “sagrado” ou o “santo” é mediatizada (na expressão do autor). Isto é,
quando somos conduzidos a eles através de um programa televisivo, de “profissionais”
que editam e conduzem o processo da mediação. Nesse âmbito, já não se tem mais a
mesma garantia de uma fé “herdada”, por exemplo, que antes era passada de geração
a geração. No momento presente, entra-se num mundo complexo e nebuloso, porque
a midiatização é mercantilizada. Trata-se de um mercado gigantesco; e como a
necessidade espiritual do público também é elevada, torna-se até doloroso admitir que
“o outro” midiático é apenas uma imagem, transmitindo algo desconhecido, construído
exclusivamente através de projeção, fantasia, desejo ou sonho. “O valor em jogo já
não é mais a condição espiritual alcançada, mas a eficácia da própria mediação que
nos permitiu aproximar-nos dela” (Carvalho, 1997, p. 17).

A pluralidade religiosa e as identidades culturais


No novo contexto de religiosidade, as relações entre midiatização religiosa e
realidade social são essencialmente culturais. Quando tais relações são ancoradas no
dispositivo televisivo, mostram-se cada vez mais próximas e apontam para um pacto
discursivo estabelecido entre o enunciador (a emissora) e o receptor (a audiência) no
entorno social. Tal pacto evidencia o entrelaçamento entre os campos da mídia
televisiva e da religião, em razão da visibilidade concedida às mensagens temáticas
dessa natureza. A permeabilidade da ambiência televisiva se torna intensa na rotina
dos campos sociais, transformando o modo como as mensagens chegam à esfera
pública e interferindo na constituição de sentidos dos receptores. Embora a internet
seja uma realidade no cotidiano social, a televisão continua relevante nas
configurações identitárias, ao mesmo tempo em que as identidades continuam sendo
mediadas por suas intervenções, num processo contínuo de construção e reconstrução
de pensamentos culturais.
Martino (2003) salienta que as igrejas necessitam dos meios de comunicação,
sobretudo da TV, em virtude da popularidade do veículo para divulgar duas espécies
de bens culturais: os simbólicos, relacionados à satisfação mental-espiritual, e os
materiais “dos quais depende o funcionamento da instituição religiosa (...) e isso
atesta a interdependência entre o campo religioso e outros campos sociais” (Martino,
2003, p. 11-12). As leituras e interpretações do público são motivadas pelos vínculos
6

de proximidade com a TV, à medida que o veículo enfatiza vínculos de pertencimento


com as expectativas desse mesmo público.
Tal perspectiva é corroborada por Bourdieu (1998), quando este explica que a
gênese das práticas e das estruturas sociais configura relações intrínsecas que
interferem nas ações e interpretações do público, denominado pelo autor de agente
social. Os agentes sociais, no processo relacional da cultura, constroem seu habitus,
influenciados pelas práticas e representações simbólicas de cada espaço, engendrando
uma esfera particular permeada por novas especificidades. A noção de campo é assim
passível de construção e reconstrução, sendo emblemática para o entendimento das
identidades sociais.
Em Certeau (1999), encontramos a noção apropriada de que a Igreja, junto
com a ideologia e a doutrina, desempenha um papel importante que não lhe é dado
apenas pelos detentores do poder do clero ou do discurso da autoridade: é algo
consentido, permitido por aqueles que vivenciam o espaço social. Nessa perspectiva,
emerge, no momento presente, a tarefa dos discursos de cunho doutrinário, que
apelam para as reformas íntimas e o despertar da fé. “As técnicas do fazer crer
desempenham ação decisiva onde se trata daquilo que ainda não é (...) Todo discurso
reformista sofre a tentação de adquirir vantagens e transformar seus militantes em
conquistadores” (Certeau, 1999, p. 285).
As “artes do fazer crer” enxergam nos dispositivos de midiatização um campo
fértil para o processo de construção de sentidos, desencadeado pelas
intencionalidades de cunho religioso e pelos diversos interesses que movem as
condições de produção dos discursos do gênero. Considerando que a programação
televisiva alcança de modo incisivo tanto aqueles que creem como os que não creem
na temática da religiosidade, as emissoras investem nessa perspectiva como modo de
enquadramento às condições postas pelo debate religioso (necessário) na atualidade.
A Globo, em razão do amplo alcance nacional e cujos parâmetros de audiência são
atestados pelo Ibope, decidiu apostar no pluralismo religioso de modo mais
imperativo, embora já costumasse fazê-lo em atrações específicas da dramaturgia,
ainda que indiretamente, através de vários personagens e suas diferentes crenças.
Podemos lembrar a novela A Viagem e a minissérie A Cura (ambas de grande sucesso,
que abordaram em suas tramas o viés Kardecista).
Na trilha desse raciocínio, entendemos que o cenário religioso eletrônico torna-
se, pois, um espaço de representação simbólica capaz de redimensionar e legitimar,
de novas maneiras e por diferentes “técnicas e táticas”, o cotidiano (Certeau, 1999),
de modificar a concepção tradicional/social de religiosidade e do elemento divino,
enquanto produtos da instituição “Igreja”. Logo, a projeção de reconhecimento ou de
7

negação advinda desse processo pode ser viabilizada a partir dos enquadramentos
produzidos e apresentados no programa Sagrado.
Interessa-nos, desse modo, investigar se os conteúdos expostos no programa
instigam rearranjos identitários entre o público receptor e como o fazem, o que nos
parece justificar a vinculação do estudo com a vertente dos Estudos Culturais. Essa
pretensão temática emerge, sobretudo, da percepção da pluralidade religiosa que
permeia o país, considerado lugar multicultural, privilegiado pela “tolerância” em
diversas crenças. Tal conjuntura, por sua vez, permite que a comunicação televisiva
busque criar momentos de discussão sobre as diferentes expressões da fé do povo
brasileiro. De acordo com Martino (2003), esse fato pode ser considerado o ponto de
partida para a “inserção da religião no contexto midiático, suscitando relações
complexas no entorno social e muitas vezes sendo o canal que diversas igrejas
utilizam para se manter no horizonte da visibilidade” (Martino, 2003, p. 8).

Conclusão
A compreensão das mensagens de cunho religioso passa necessariamente
pelas possibilidades de recriação social e não somente pelas ações de receber e
decodificar determinados conteúdos. No processo de midiatização, o ato de
significação cultural atrela-se às diferentes maneiras de se ler, ver e ouvir mensagens,
requerendo atitudes e reações. As visões que o discurso religioso do Sagrado desperta
na audiência implicam, portanto, construções de outros discursos, daí a necessidade
de se conhecê-los, mediante uma pesquisa de recepção sobre possíveis formações
identitárias.
O estudo da literatura existente sobre a temática aponta que as novas
dinâmicas do campo religioso fazem circular no espaço social diferentes bens
simbólicos na perspectiva do ecumenismo. À luz desse fato, torna-se válido indagar:
como as diferentes discussões religiosas são recebidas e (re)interpretadas, e quais as
lacunas e as conexões de sentido que são sugeridas pelo discurso do pluralismo
religioso na contemporaneidade?
Nesse processo, entendemos que as narrativas de caráter religioso requerem
mais habilidades e competências interpretativas do público receptor, porque
mobilizam aspectos que vão além do ato de ver ou ler a realidade mostrada,
sensibilizando a audiência para determinados ângulos dos fatos: estas requerem, na
verdade, a compreensão daquilo que constitui significativamente as intencionalidades
das mensagens. Ponderamos, pois, que esse ato de significação midiatizado produz as
interações que se materializam no cotidiano e influencia as escolhas do público por um
8

determinado programa, atuando na recriação dos múltiplos sentidos do divino no


âmbito da sociedade.

Referências

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BATESON, Gregory. Mente e natureza: a unidade necessária. Rio de Janeiro; Francisco


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pluralista. Cadernos de Antropologia. Brasília: UNB, 1997.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1999.

FAUSTO NETO, Antonio. Processos midiáticos e construção das novas religiosidades:


dimensões discursivas. Intertexto. Vol. 2. Nº 7. Porto Alegre: UFRGS, 2001.

______. Midiatização e processos sociais na América Latina. São Paulo: Paulus, 2008.

GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

MARTINO, Luís Mauro. Mídia e poder simbólico: um ensaio sobre comunicação e


campo religioso. São Paulo: Paulus, 2003.

NEGRÃO, Lísias Nogueira. Mutantes religiosos. Tempo Social. Revista de Sociologia da


USP. Vol 20. Nº 2, 2008.

PIERUCCI, Antonio Flavio. Prefácio de um estudo exemplar sobre sociologia da


religião. In: ARRIBAS, Célia da Graça. Afinal, espiritismo é religião? A doutrina espírita
na formação da diversidade religiosa brasileira. São Paulo: Alameda, 2010.

SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em


rede. Petrópolis: Vozes, 2009.
9
CIBERFUNDAMENTALISMO – O SENHOR É O MEU PASTOR, MINHA REDE NÃO
CAIRÁ1

Luciano de Carvalho Lirio2

O ciberespaço está legitimado para os membros da Igreja Batista


Conservadora através do site oficial da Convenção Batista Conservadora e pela
iniciativa de igrejas convencionadas e membros individuais. A Igreja Batista
Conservadora está presente nas redes sociais como Orkut e Facebook, seja através de
comunidades ou de perfis pessoais. O caráter congregacional da denominação fica
explícito na sua distribuição descentralizada no ciberespaço. A atualização de
informações denominacionais e os cuidados pastorais são compartilhados em
velocidade mais eficiente através de comunidades como: Mocidade Betel, Igreja
Batista Conservadora e EBD – Igreja Batista Conservadora tornando o site oficial da
denominação desatualizado.
A Igreja Batista Conservadora ainda não se opôs oficialmente ao uso da
internet e não possui nenhum documento ou projeto elaborado de orientação aos
jovens quanto ao uso da rede. O policiamento do material exposto na rede fica a cargo
das lideranças e membros que acessam a rede e compõem uma confederação virtual e
informal de batistas conservadores. Isso possibilita aos internautas compartilharem
suas experiências em espaços e territórios interdenominacionais, cuidando apenas de
conservarem os princípios doutrinários e bíblicos, atuando como divulgadores de uma
denominação pouco conhecida fora do Estado do Rio Grande do Sul.
É possível encontrar adolescentes da Igreja Batista Conservadora em sites de
relacionamentos e namoros como Par Perfeito, Amor em Cristo e Romance Cristão
sem esconderem sua origem denominacional. Ao contrário de outras denominações no
estado que impõem restrições explícitas aos seus membros e congregados quanto ao
uso da internet, o fundamentalismo da Igreja Batista Conservadora se promove
através das páginas individuais dos seus membros.
O fundamentalismo se propõe a oferecer todas as respostas para a
humanidade. Acessando o site oficial da denominação ou um blogger de um membro
da igreja, o adolescente experimenta em tempos de insegurança, o ponto de

1
Esse artigo é parte da dissertação Adolescer em um Contexto Fundamentalista Pentecostal Gaúcho
apresentado pelo mestrando Luciano de Carvalho Lirio, sob a orientação da professora: Dr. Gisela I.W.
Streck no PPG – EST, com apoio CAPES.
2
Bacharel em Teologia (SETECERJ) e (Faculdades EST); Licenciado em História (UERJ); especialista em
História Moderna (UFF); associado à Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR). Atualmente
Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Teologia ( EST ), com apoio CAPES – Brasil, contatos :
lucianomission@yahoo.com.br.
referência e apoio capaz de tranqüilizá-lo. A Igreja e as redes sociais são balizas
sociais para esses adolescentes. É o retorno à segurança primeira, perdida com o fim
da infância, mas readquirida através dos ensinamentos, da afetividade do grupo e do
carisma do líder. A sensação de desamparo oriunda da falta de parâmetros na pós-
modernidade leva o adolescente ao isolamento proveniente do individualismo
exacerbado. O ciberfundamentalismo não pretende a modernização da religião, mas a
fundamentação religiosa e explícita da modernidade. No ciberfundamentalismo ele
encontra outros adolescentes que se identificam através de símbolos e imagens e
percebem-se como parte integrante de uma missão maior, que transcende à sua
própria existência. No site oficial da Igreja Batista Conservadora é possível encontrar
uma mensagem bíblica de encorajamento do líder da denominação, testemunhos de
membros e uma seção para postar pedidos de oração.
Se no passado da humanidade a adolescência poderia representar apenas o
período preparatório para o ritual de passagem, na pós-modernidade a entrada em
grupo na internet tem o mesmo valor para um adolescente. O ciberfundamentalismo
acolhe o adolescente, através de um grupo de adolescentes e jovens, por perceber
que os rituais de passagem na contemporaneidade se dão entre os jovens e não mais
na sociedade no coletivo. A valorização do adolescente pelos seus pares passa a ser
encontrada através da sua inserção em um grupo identitário.
O adolescente se identifica com os padrões comportamentais e doutrinários do
grupo, pois estes lhe oferecem respostas que lhe proporciona uma razão social para
existir. O processo de adultez precoce também lhe cai bem, pois ele passa a ser
reconhecido pelo grupo como um jovem adulto e não mais como uma criança. O
adolescente é um ser em busca do sentido da vida e nesta caminhada procura a
integração das várias dimensões que constituem o seu existir humano.
Segundo Fowler, durante o estágio de fé sintético-convencional, Deus ainda é
visto de maneira antropomórfica, sendo a sua imagem a síntese daquilo que foi
ensinado a respeito da divindade com aquilo que a pessoa mesma imagina a respeito
de Deus. Os símbolos estão ligados nessa fase, aos seus sentidos. (FOWLER, 1992, p.
202-3)

Em sua essência, a religiosidade é relacional. A religiosidade


comporta sempre um encontro com o outro (o Outro), seja qual
for o entendimento que dele tenha a pessoa ou o grupo
religioso no qual ela é socializada. A maneira como este
encontro é vivenciado inscreve-se no itinerário de vida e
autopercepção de cada um. Ademais, ela deve ser vista como
uma resposta aprendida na convivência socializada, por meio de
múltiplas mediações (costumes, valores, normas, crenças,
papéis, organizações, rituais, mitos, símbolos e – como
mediação de fundo – pessoas) interiorizadas em forma
individual, mas sempre no contexto de relações sociais
concretas .3
Na Igreja Batista Conservadora, assim como nas demais denominações
evangélicas e religiões que se fazem presente na internet, o ciberespaço ainda é visto
como um instrumento de evangelização, meio de divulgação da instituição e de
cuidado pastoral. A internet é um lugar. O grande desafio é pensar de maneira digital
quando não se é um nativo digital. Não se trata apenas de levar o culto para a web.
Cerimônias e reuniões religiosas transbordam no You Tube; sermões, boletins e
louvores podem ser encontrados facilmente de sites evangélicos. A questão é que é
preciso compreender que o virtual não é uma realidade paralela ao mundo concreto, o
ciberespaço faz parte da realidade das pessoas. A linguagem da mídia está no
cotidiano, mesmo quando as pessoas não estão conectadas. É um ambiente a ser
habitado.
O ciberfundamentalismo evolui com a web. Até o surgimento das redes sociais
como Orkut e Facebook, as pessoas se comunicavam através de e-mails, numa
relação invisível para os demais usuários. O ciberfundamentalismo se expande através
da conexão entre pessoas. Ele está nas páginas de conteúdo, nos feeds, nas relações
online, em ações como curtir, compartilhar e promover, atualizando-se na mesma
velocidade em que são postados comentários. Estar na rede não basta, é importante
estar conectado a algo ou a alguém.

1 Sites fundamentalistas: o boom de uma disputa simbólica

Existe uma demanda religiosa nas redes sociais. Nos primeiros doze anos do
Século XXI percebe-se tanto o previsível crescimento dos evangélicos quanto o
inusitado aumento do número dos sem religião nas pesquisas do Censo/IBGE que
incluem ateus e agnósticos. O Brasil está deixando de ser um país majoritariamente
católico e se tornando predominantemente pluralista. O embate religioso se faz nas
mídias e no ciberespaço. A religiosidade virtualiza-se no “espaço de comunicação
aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias informáticas, isto
é, o chamado ciberespaço”. O termo ciberespaço foi criado pelo escritor Willian
Gibson, no livro de ficção científica Neuromancer, de 1984 e segundo Lévy :

O ciberespaço é o novo meio de comunicação que surge da


interconexão mundial de computadores. O termo especifica não
apenas a infra-estrutura material da comunicação digital, mas

3
VALLE, E. Psicologia da Religião. In: USARSKI, F.(org). O espectro disciplinar da Ciência da
Religião. São Paulo: Paulinas, 2007.
também o universo oceânico de informações que ela abriga,
assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse
universo.4

A religiosidade não está ausente no ciberespaço. Na realidade virtual a


tecnologia e a espiritualidade se tocam. O teológico se reveste do tecnológico. A
ênfase na religião ou a ausência dela são indicadores de que, apesar dos avanços da
ciência e do secularismo, a religião não morreu, mas continua sendo elemento de
explicação e consolo para a humanidade e utilizada como justificativa para atitudes
extremadas. No ciberespaço Leonardo Boff cita Samuel P. Huntington, assessor do
Pentágono na coordenação da Guerra do Vietnã e autor da expressão “Guerra das
Civilizações”:

No mundo moderno, a religião é uma força central, talvez a


força central que motiva e mobiliza as pessoas... O que em
última análise conta para as pessoas não é a ideologia política
nem o interesse econômico; mas aquilo com que as pessoas se
identificam são as convicções religiosas, a família e os credos. É
por estas coisas que elas combatem e até estão dispostas a dar
a sua vida.5

Pierre Lévy fala que embora pareça que há uma oposição entre o virtual e a
realidade, o virtual não se opõe ao real. O mundo digital não é uma saída, uma opção
de fuga da realidade, mas um plano de existência palpável ao contato físico através
dos dispositivos que podem ser tocados, transportados e manipulados pelo ser
humano. As mídias digitais enriquecem as vidas, possibilitam novas formas de
comunicação e constroem uma nova compreensão do mundo ordinário.
No ciberespaço a realidade é virtual, mas não é uma realidade paralela, ela faz
parte da vida de muitas pessoas; a internet está integrada ao cotidiano
contemporâneo. É um espaço desterritorizado, sem presença física, habitado tanto
pelo sagrado quanto pelo profano. É um espaço de informações alimentadas pelas
tendências da sociedade. Ele não é um campo estéril, é preciso saber que semente
plantar no espaço virtual e ser criterioso ao escolher os seus frutos. Um ambiente
culturalmente construído e antropologicamente concebido.

É impossível separar o ser humano do seu ambiente material,


dos sinais e das imagens através dos quais confere sentido à
vida e ao mundo. Da mesma forma, não se pode separar o
mundo material – e menos ainda sua parte artificial – das idéias

4
LÈVY, 2000, p.91.
5
BOFF, Leonardo. Fundamentalismo: a globalização e o futuro da humanidade. Rio de Janeiro:
Sextante, 2002. p.64.
através das quais os objetos técnicos são concebidos e
utilizados pelos homens que os inventam, produzem e usam.6

No Site E a Bíblia com isso? Criado por um grupo de amigos, pastores


presbiterianos, preocupados em fazer uma leitura do mundo pelo prisma da Bíblia
confiando na sua inerrância, se propõe a oferecer respostas fundamentadas nos
Catecismos e Confissões Calvinistas e Reformadas para questões atuais, como se um
cristão pode ser um lutador de Ultimate Fighting Championship – UFC.

Para os cristãos presbiterianos, que é o meu caso, há ainda


outra questão a ponderar. Somos uma igreja confessional, isto
é, temos a Escritura como regra de fé e prática e adotamos
como sistema expositivo de doutrina e prática a Confissão de
Fé, o Catecismo Maior e o Breve Catecismo de Westminster.
Isso quer dizer que acatamos essa interpretação das Escrituras
como fiel. Creio que não é preciso explicar que toda a violência
desses “esportes” vai contra o que professamos como fé.7

O espaço sagrado tem um valor existencial para o ser religioso. O espaço


virtual não está livre de religiosidade. Isso gera uma luta pela predominância
simbólica na rede que cria banners, gravuras, comentários e vídeos no You Tube com
o objetivo de explicitar o projeto fundamentalista para a humanidade. Os
ciberfundamentalistas se autodenominam como remanescentes dentre uma multidão,
“aqueles que foram chamados para fora”. Eles não têm a pretensão de dominar o
ciberespaço como os evangélicos ou os neo-ateus, afim de não se macularem com o
sistema religioso dominante.

“O fundamentalismo, entretanto, nunca esteve e nunca poderia


estar limitado às afirmações de qualquer denominação em
particular. Os Fundamentos da Comunhão transcendem as
distinções denominacionais e fazem isso sem enfraquecer ou
contemporizar essas distinções. Por exemplo, os
fundamentalistas sempre foram bons presbiterianos ou bons
batistas e ainda capazes de ter comunhão com
fundamentalistas de outros grupos. Embora os fundamentalistas
certamente difiram entre si mesmos em certas interpretações
das Escrituras, eles se unem na comunhão e "propósito comum
para a defesa da fé e a pregação do evangelho", aceitando
somente a Bíblia, sem questionar, como divina e verbalmente
inspirada, inerrante e autorizada Palavra de Deus." (ênfase no
original).8

6
LÉVY, 2000, p. 26.
7
JUNIOR, Milton. Pensando Alto sobre o UFC e afins... Disponível em:
< http://bibliacomisso.blogspot.com.br>. Acesso em: 14 jul. 2012.
8
BEALE, David O. Quem São os Cristãos Fundamentalistas e Por Que Estão Sendo Insultados
por Outros Grupos 'Cristãos'? Disponível em: <http://www.espada.eti.br/n1861.asp>. Acesso em
O triunfalismo gospel pode afirmar que “a internet é dominada por
religiosos” e os ateus blogueiros da Tropa dos Lanternas Verdes declaram
explicitamente que a internet é dominada pelos ateus. Ambos têm razão a respeito
do ciberespaço ocupado por cada um. A rede proporciona, conforme os interesses,
uma leitura parcial da realidade que leva o usuário a pensar dessa maneira. A
sociedade moderna é fragmentada em diversos grupos sociais e esses grupos lutam
pela supremacia simbólica para imporem a definição que se acredita. O ciberespaço
virou também um campo de lutas simbólicas pela hegemonia cultural nas
sociedades. As novas tecnologias de informação, neste caso o surgimento das redes
sociais, criaram várias comunidades virtuais, com identidades próprias.

2 Lutando nos sites do Senhor

Sites evangélicos conservadores e sites fundamentalistas têm muita coisa


em comum. Eles adotam doutrinas tradicionais da Escritura e da pessoa de Cristo,
evocam princípios protestantes da Reforma, promovem a evangelização e as
missões e valorizam um padrão ético diferenciado da sociedade atual. Entretanto,
sites fundamentalistas acreditam ser diferentes dos demais sites evangélicos por
serem fiéis ao que compreendem como cristianismo bíblico e por combaterem erros
doutrinários que promovem a apostasia nas igrejas.
Apesar de o Brasil não ter tradição em grupos fundamentalistas religiosos
que advogam o uso da força e da violência para empreender algo como uma guerra
santa, sites fundamentalistas assumem militância de patrulhamento em especial sob
igrejas neopentecostais, líderes midiáticos e correntes teológicas.
Os que são identificados como inimigos da fé sofrem vigilância intensificada
e constantes tentativas de desqualificação pública. É a globalização do inimigo9,
onde os fundamentalistas delimitam e localizam os que consideram ameaça à
ortodoxia cristã protestante. Sites fundamentalistas elaboram e atualizam listas com
endereço de outros sites fundamentalistas que cumprem exigências doutrinárias e
de conduta que os classificam como fundamentalistas.

No Brasil, as escolas abaixo citadas, devem ser evitadas pelos


verdadeiros fundamentalistas, pois as mesmas abandonaram
a posição correta acerca das Escrituras e partiram para a
aventura da crítica textual. Alguns, infelizmente, adotaram a

20 fev. 2013.
9
BOFF, Leonardo. Fundamentalismo: a globalização e o futuro da humanidade. Rio de Janeiro,
Sextante, 2002.p.63.
posição "eclética" (ou self-service – ou “escolha a Bíblia que
você gostar mais”) de usar ou tolerar a Bíblia Almeida
Corrigida e Fiel (ou até mesmo o Texto Recebido) nas classes,
mas usam / toleram / não condenam as Bíblias corruptas
como a Atualizada, NVI ou Linguagem de Hoje. Além disso,
há o uso do Texto Crítico, ou do outro falso Majoritário (de
Hodges-Farstad - 1982). Isso é o fermento que tem levedado
a massa do fundamentalismo e deve ser tenazmente
combatido pelo remanescente fiel.10

O perfil dos sites cristãos fundamentalistas no Brasil é majoritariamente


composto por páginas oficiais de desistências fundamentalistas de igrejas históricas:
batistas, metodistas, presbiterianos e congregacionais; ou blogs de pastores e
líderes dessas denominações.11 Embora o fundamentalismo histórico combata o
pentecostalismo, membros de igrejas pentecostais que realizam estudos teológicos
em igrejas históricas, se alinham aos fundamentalistas, sobretudo para manifestar
virtualmente seu repúdio a Igrejas neopentecostais.

A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) está se


preparando para a construção da réplica do templo de
Salomão. Essa obra só custará R$ 360 milhões e terá pedras
importadas. A estrutura do templo vai ser tão grande, que a
prefeitura de São Paulo só permitiu a construção, se a
empresa responsável pela obra reestruturasse o trânsito ao
redor.12

Sites fundamentalistas brasileiros assumem o termo fundamentalista ou


conservador com orgulho para se diferenciarem dos demais evangélicos e cristãos que
consideram apóstatas. A doutrina da separação dos demais evangélicos é evocada no
ciberespaço. É preciso manter as fronteiras éticas e teológicas. O combate é
estabelecido contra todos os grupos cristãos que não se alinham às posturas adotadas
pelos ciberfundamentalistas:

Nenhum crente fiel à Bíblia, portanto, deve se envergonhar


ou ter constrangimento de ser chamado Fundamentalista
Bíblico porque, na verdade, esse é um termo que, como o
nome de "cristão", designa todo o fiel seguidor e discípulo do
nosso único Senhor e Salvador, Jesus Cristo13.

10
ALMEIDA, José Pedro M. Seminários Fundamentalistas no Brasil que apostataram para
o texto crítico. Disponível em <http://www.baptistlink.com>. Acesso em 12 jul. 2012.
11
SILVA, Hélio de Menezes. Sites Batistas Fundamentalistas. Disponível em:<http://solascriptura-
tt.org>. Acesso em 12 jul. 2012.
12
BERNARD, Arthur. Templo de Salomão – Ultraje ao Evangelho. Disponível
em:<http://umremanescente.blogspot.com.br>. Acesso em 12 de jul. 2012.
13
BURITI Davi. O Movimento Fundamentalista Bíblico. Disponível em
<http://selecoesbiblicasfundamentalistas.blogspot.com.br>. Acesso em 12 jul. 2012.
Os ciberfundamentalistas brasileiros encontram munição para os seus
ataques em sites fundamentalistas estrangeiros, sobretudo norte-americanos. São
perfis individuais, páginas de conteúdo ou sites oficiais de igrejas que se
preocupam, sobretudo, em demonstrar porque são fundamentalistas e não apenas
evangélicos. Nos sites em que o referencial estadunidense é ressaltado é possível se
conectar com as matrizes e conhecer a indústria do mercado fundamentalista
cristão. É possível perceber que praticamente todo o material utilizado no
ciberespaço fundamentalista brasileiro provêm da língua inglesa. Os sites brasileiros
são vitrines em língua portuguesa do material produzido nos Estados Unidos. Devido
à sua matriz norte-americana, o ciberfundamentalismo difunde algo que é típico dos
Estados Unidos; as teorias da conspiração. São teses com base em fatos ou sinais
que aparentam ações de uma entidade, governo, pessoas, empresas, sociedades
que em benefício próprio seria capaz de provocar uma hecatombe mundial. Os
fundamentalistas não são os inventores das teorias da conspiração, mas alimentam
esse ciclo porque continuam fazendo sempre as mesmas perguntas e não
concordam com as respostas plausíveis para as suas indagações. Através da mídia
promovem campanhas contrárias e boicotes a empresas supostamente
financiadoras de organizações e sociedades secretas.
Para os que acreditam somente nas teorias da conspiração estas são o
verdadeiro motor da história. Pessoas, instituições e governos têm sido vítimas
dessas teorias. Essas teorias trazem benefícios para os ciberfundamentalistas. Eles
se sentem privilegiados por conseguirem decifrar um plano secreto contra a
humanidade. O compartilhamento desse saber transmite a sensação de pertencer a
um grupo seleto da humanidade. Eles se vêem como seres únicos.

Quando o Anti – Cristo encenar sua aparência, ele vai alegar ser
um mestre ascensionado de outra dimensão, ou seja, um ser
alienígena. Ele é apenas tão amigável quanto os estrangeiros
que você tem visto na TV e filmes. Ele tem apenas os melhores
interesses no coração... Líderes da nova era acreditam que as
pessoas ficarão muito mais inclinadas a aceitar as reivindicações
do Anti-Cristo, se eles já acreditam em Aliens.14

3 Fundamentos Inabaláveis na rede

Sites, redes e blogs fundamentalistas possuem distintivos dentre outras


páginas religiosas: defendem uma tradição protestante histórica, se autodenominam
fundamentalistas, adotam conduta dispensacionalista e pré-tribulacionista, são

14
SKIBA, Rob. Archon Invasion: The Return of the Nephilim. Disponível em:<
http://www.cuttingedge.org/index.html>. Acesso em 21 jan. 2013.
criacionistas, separatistas. Assumem em tempos do politicamente correto, seu aspecto
não denominacional, anti-carismático, anti-G12, anti-"igreja com propósito", anti-CMI,
antidivorcista, anti-arminianismo.

Este site é politicamente incorreto. Ele possui declarações fortes


e impopulares. O nosso direito e dever de expor a verdade não
foi dado por governo algum, nem por nenhuma lei humana,
mas pelo próprio Deus revelado nas Escrituras Sagradas. Caso
continue, será por conta e risco próprio. Considere-se avisado.15

O ciberfundamentalismo se autoproclama como a porta aberta para a


salvação na internet. O ciberfundamentalista tem a convicção militante de que é um
escolhido por Deus para realizar a proclamação das doutrinas básicas do
Cristianismo que conduz a uma Separação Bíblica daqueles que as rejeitam. A
seguinte mensagem pode ser lida num site fundamentalista.
O Movimento Fundamentalista Bíblico defende a união de
todos os verdadeiros crentes e luta contra todas as formas de
apostasia religiosa e moral existentes atualmente no meio
evangélico. O Movimento Fundamentalista Bíblico é
interdenominacional porque defende a união interativa de
todos os crentes em torno da obediência à Palavra de Deus.16

A hermenêutica literal das Escrituras é marca do fundamentalismo histórico.


O fundamentalismo é um modo literal de ler a Bíblia. Através da ética revelacional é a
Bíblia que determina a conduta pessoal. Para os fundamentalistas as Sagradas
Escrituras, por serem inspiradas por Deus, não contêm erros ou evoluções de modo
algum. Tudo nela deve ser interpretado de modo estritamente literal!

O ciberfundamentalismo tem disponibilizado publicamente variantes


intencionais e não intencionais presentes em versões atuais da Bíblia que são
apresentados como fruto do trabalho de tradução pelo método de equivalência
dinâmica adotado pela Sociedade Bíblica Brasileira em consonância às demais
Sociedades Bíblicas Unidas. Essas variantes são interpretadas como agentes
responsáveis pela disseminação de erros doutrinários entre as igrejas cristãs e
invalidando a mensagem da Bíblia:

Lembrando que a versão ACF é traduzida a partir dos


manuscritos originais gregos do TR(TEXTUS RECEPTUS),

15
ALMEIDA, José Pedro M. Biblioteca Batista Independente Online. Disponível em
<http://www.baptistlink.com>. Acesso em 12 jul. 2012.
16
http://selecoesbiblicasfundamentalistas.blogspot.com.br/2007/11/movimento-fundamentalista-
bblico.html
enquanto a versão ARA foi compilada a partir da mistura dos
manuscritos do TR e do TC (TEXTO CRÍTICO),de Westcot, e a
versão BLH,a mais prostituída de todas, é baseada apenas
nos manuscritos do TC, que não existiam quando Almeida
traduziu a Bíblia p/ o nosso idioma. Qualquer versão que
modifique, altere ou acrescente qualquer coisa à Santa
Palavra de Deus, é obra do maligno, é prostituição da
Verdade, e como tal, deve ser desprezada por quem ama a
Palavra de Deus.17

De acordo com os fundamentalistas, todas as versões da Bíblia para a língua


portuguesa são resultados dos esforços de organizações ecumênicas e apóstatas em
subtrair e trair a verdadeira versão da Bíblia em português. A Reversão Corrigida e
Fiel, traduzida pelo método de equivalência formalé considerada pelos
fundamentalistas brasileiros como a única fiel ao Texto Hebraico Massorético e ao
Texto Grego Receptus em Português, publicada atualmente pela Sociedade Bíblica
Trinitariana, uma concorrente menor da Sociedade Bíblica Brasileira – SBB.

As ACF e ARC (ARC idealmente até 1894, no máximo até a


edição IBB-1948, não a SBB-1995) são as únicas Bíblias
impressas que o crente deve usar, pois são boas herdeiras da
Bíblia da Reforma (Almeida 1681/1753), fielmente traduzida
somente da Palavra de Deus infalivelmente preservada (e
finalmente impressa, na Reforma, como o TextusReceptus).18

O ciberfundamentalismo disponibiliza em rede a agenda fundamentalista do


século XX, atualizada com respostas conservadoras para questionamentos
contemporâneos para a fé cristã como macroevolução, bioética e clonagem. O
ciberfundamentalismo não propõe nada de novo. A missão de alertar para os desvios
doutrinários que levam a degeneração da cristandade agora é online.
O ciberfundamentalismo não pretende a modernização da religião, mas a
fundamentação religiosa e explícita da modernidade. O ciberfundamentalismo objetiva
através do espaço virtual, voltar ao que são considerados princípios fundamentais e
vigentes na fundação da denominação e do protestantismo. Os sites fundamentalistas,
imputam aos cristãos terem se desviado ou corrompido pela adoção de princípios
alternativos hostis ou contraditórios à identidade evangélica original. O
ciberfundamentalismo revela ao adolescente uma apresentação de Deus feita através
de uma interpretação literal da Bíblia recalcada através da utilização de símbolos e

17
ASSUERO, Moderador. Qual é a versão correta da Bíblia? Disponível em:<http://gospel-
semeadores-da.forumeiros.com> Acesso em 10 jul. 2012.
18
ASHBROOK, John E. Separação Eclesiástica. Disponível em: < http://solascriptura-tt.org>.
Acesso em 10 jul. 2012.
ilustrações que reforçam valores e conceitos doutrinários da teologia cristã protestante
conservadora.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, José Pedro M. Seminários Fundamentalistas no Brasil que


apostataram para o texto crítico. Disponível em <http://www.baptistlink.com>.
Acesso em 12 jul. 2012.
ALMEIDA, José Pedro M. Biblioteca Batista Independente Online. Disponível em
<http://www.baptistlink.com>. Acesso em 12 jul. 2012.
ASHBROOK, John E. Separação Eclesiástica. Disponível em: < http://solascriptura-
tt.org>. Acesso em 10 jul. 2012.
BERNARD, Arthur. Templo de Salomão – Ultraje ao Evangelho. Disponível
em:<http://umremanescente.blogspot.com.br>. Acesso em 10 de jul. 2012.
BOFF, Leonardo. Fundamentalismo: a globalização e o futuro da humanidade. Rio de
Janeiro: Sextante, 2002. p.64.
BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p.11.
BEALE, David O. Quem São os Cristãos Fundamentalistas e Por Que Estão Sendo
Insultados por Outros Grupos 'Cristãos'? Disponível em:
<http://www.espada.eti.br/n1861.asp>. Acesso em 20 fev. 2013.
BURITI Davi. O Movimento Fundamentalista Bíblico. Disponível
em:<http://selecoesbiblicasfundamentalistas.blogspot.com.br>. Acesso em 10 jul.
2012.
CONCÍLIO INTERNACIONAL DE IGREJAS CRISTÃS. Declaração Doutrinária. Disponível
em<http://selecoesbiblicasfundamentalistas.blogspot.com.br>. Acesso em 12 jul.
2012.
GRECCO, Yuri. Deixar os religiosos quietos? #EuSouUmAteuRevoltado. Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=fMP_rVTw-44>. Acesso em: 14 jul. 2012.
FABRIS, André Marques. Católicos, sem religião e evangélicos pentecostais têm
maioria de pessoas de 15 anos ou mais sem instrução. Disponível em:
<http://www.canalrioclaro.com.br>. Acesso em: 10 jul. 2012.
FOWLER, James. Estágios da fé. São Leopoldo: Sinodal, 1992. p.202-3.
LÈVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 2000.p.17.
MUNIZ, Jônatas Bezerra..História da Convenção. Disponível
em:<http://portalcbc.org>. Acesso em: 01 set. 2012.
PÁGINA Inicial. Portal da Igreja Assembléia de Deus Ministério Restauração. Disponível
em: < http://www.adrestauracao.com/>. Acesso em: 01 jun. 2012.
SKIBA, Rob. Archon Invasion: The Return of the Nephilim. Disponível em:<
http://www.cuttingedge.org/index.html>. Acesso em 21 jan. 2013.
SPADARO, Antonio. Ciberteologia: pensar o cristianismo nos tempos da rede. São
Paulo: Paulinas, 2012. p. 10.
VALLE, E. Psicologia da Religião. In: USARSKI, F.(org). O espectro disciplinar da
Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, 2007
SKIBA, Rob. Archon Invasion: The Return of the Nephilim. Disponível em:<
http://www.cuttingedge.org/index.html>. Acesso em 21 jan. 2013.
NOTAS

1. O dispensacionalismo é uma doutrina teológica e escatológica cristã que afirma


que a segunda vinda de Jesus Cristo será um acontecimento no mundo físico,
envolvendo o arrebatamento e um período de sete anos de tribulação, após o
qual ocorrerá a batalha do Armagedon e o estabelecimento do reino de Deus
na Terra.

2. O pré-tribulacionismo ensina que Jesus Cristo voltará antes do período milenar,


e que a Igreja será arrebatada antes da Grande Tribulação, que será um
período de sete anos em que o planeta ficará sob o domínio do Anti-Cristo.

3. O Criacionismo sustenta que todos os seres vivos existentes foram criados por
um ou mais entes inteligentes. Esta é a hipótese de maior recepção em todo o
planeta, elaborada em oposição à teoria evolucionista.

4. O Conselho Mundial de Igrejas (CMI) foi constituído formalmente em 23 de


Agosto de 1948 em Amsterdam, Holanda. É composto de diversas organizações
filiadas ao CMI.

5. O Arminianismo é um sistema teológico baseado nas idéias do pastor e teólogo


reformado holandês Jacob Harmensz, mais conhecido pela forma latinizada de
seu nome Jacobus Arminius. No inglês, é usualmente referenciado como James
Arminius ou Jacob Arminius. Em português, seu nome seria Jacó Armínio.
Armínio defendeu a crença que a salvação do homem depende da cooperação
entre Deus e o homem, que é contrário ao Calvinismo (crença de que a
salvação é inteiramente determinada por Deus, sem nenhuma participação livre
do homem.

6. O principio da equivalência dinâmica, também chamada, ultimamente, de


equivalência funcional, é o que busca transmitir o significado que seguramente
deveria ter o texto que se traduz, deixando em segundo lugar o significado
concreto das palavras. Os tradutores e editores que apóiam a equivalência
dinâmica têm uma definição da inspiração divina que tem colocado em dúvida
a inerrância da Bíblia.

7. Edição Almeida Corrigida Fiel.

8. Edição Almeida Revista e Atualizada.

9. Edição A Bíblia na Linguagem de Hoje.


10. Define-se o processo de tradução por equivalência formal, como sendo o
processo pelo qual se traduz palavra a palavra, o mais fiel possível o texto em
questão. RAFEIRO, Humberto. Porque só aceito as traduções feitas por
equivalência formal.

11. Edição Almeida Revista e Corrigida.

12. Versão da Imprensa Bíblica Brasileira baseada na tradução de João Ferreira de


Almeida.
CRIANÇA PASTORAS E A MÍDIA

Priscila Ribeiro Jeronimo Diniz

Resumo

Este trabalho tem por objetivo pensar a criança pastora como ator social,
observando o conteúdo midiático gerado através desse fenômeno. Irei citar ao
longo do texto algumas questões levantas em sites falando sobre crianças que
pregam, como também, vídeos da internet que tem crianças pastoras e programas
de televisão que falam sobre esse evento. Os métodos utilizados foram: leitura
bibliográfica sobre a criança como ator social, como: Ariès (1981), Belloni (2009),
Cohn (2005), Corsaro (2005), Fernandes (2004), Hirschfeld (2002), James (2005),
Prout (2005), Mauss (2010), Mead (1932), Pires (2010), Schildkrout (2002), Nunes
(2002); observações de campo em igrejas evangélicas com crianças pregando;
analises de vídeos da internet e programas de televisão que falam sobre um
assunto. Observando a repercussão das crianças pregando na mídia, alguns sites
da internet como: “Dilma na rede”, diz que crianças que pregam são vistas como
um crime da moda, protestando pelos direitos delas, considerando esse ato como
um trabalho infantil. Considerando os discursos apresentados pelos sites e
programas de televisão, junto com os comentários da sociedade, é possível
observar o embate entre essas opiniões. No intuito de refletir sobre a imagem
dessas crianças na mídia, a opinião das pessoas que assistem, tendo como
finalidade uma reflexão sociológica sobre as crianças que pregam e os vídeos.

Introdução

Este trabalho tem por objetivo pensar a criança pastora como ator social,
observando o conteúdo midiático e cultural gerado através desse fenômeno. Irei
citar ao longo do texto algumas questões levantas em sites falando sobre crianças
que pregam, como também, vídeos da internet que tem crianças pastoras e
programas de televisão que falam sobre esse evento. O ensaio será dividido em
quatro partes: como é pensada a infância; as crianças que pregam e a imitação; a
mídia e as crianças que pregam; e o conceito de cultural no sentido diferencial.

A Antropologia e Sociologia iniciaram estudos sobre crianças em 1970, a


partir de então, a construção social da infância passou por mudanças na tentativa
de mostrar como as crianças criam e recriam a sociedade onde vivem. A infância é
pensada pelos adultos como a idade imatura não apenas biologicamente falando,
mas socialmente também; a infância significaria a preparação para um “mundo”
adulto, ou seja, somente na fase adulta se tornaria um ser social. Com isso a
socialização foi vista por muito tempo pela Sociologia e Antropologia, como um
recipiente, aonde iria sendo depositadas na infância, acontecimentos, maneiras de
ser e pensar da sua sociedade. Porém a socialização é uma via de mão dupla,
quando há esse processo tanto os adultos como as crianças se socializam.

1. O que é infância para as Ciências Sociais

A Antropologia e Sociologia iniciaram estudos sobre crianças em 1970, a


partir de então, a construção social da infância passou por mudanças na tentativa
de mostrar como as crianças criam e recriam a sociedade onde vivem. A definição
da infância tem por base universal biológica um período adequado, porém
culturalmente essa categoria muda, através dos processos do lugar onde se
encontra.

Para iniciar esse conceito de infância como construção social, é importante


observar os debates de Belloni (2009), James (2005), Cohn (2005), Hischfeld
(2002), e Ariès (1981); que mostram ao longo da história como ocorreu à
edificação do conceito de criança, como categoria social.

Compartilho com Belloni esse significado do que é infância:

“Falar de infância significa, do ponto de vista sociológico (ou


macrossocial), utilizar a categoria geração para compreender
os fenômenos menos sociais; categoria que, tal como classe,
gênero ou escolaridade, pode ser entendida como variável
explicativa. (...)Também implica estabelecer relações entre a
categoria geração e as estruturas sociais no sentido de
compreender quais as determinações do processo de
socialização das novas gerações.” (Belloni, 2009, p.01)

Ou seja, nas palavras da autora, a infância é uma categoria que por si só,
pode e deve ser estudada, tanto quando as questões de gênero e classe. Pois, é a
partir da década de 70 que inicia essa preocupação de tornar dependente esse
conceito de criança, abrindo espaço para ser construída na categoria de geração.

Alisson James e Alan Prout, ao iniciarem seus estudos sobre criança


mostram a situação de como é vista a infância, e busca estabelecer um novo
paradigma sobre esses estudos, que possam reinterpretar o conceito de infância na
perspectiva de mostrar esses sujeitos como agentes sociais.
Infância é, portanto, importante estudar como um período
pré-social de diferença, biologicamente determinada etapa
no caminho para isto é o status humano completo, idade
adulta. (...) Em um modelo evolutivo: a criança
desenvolvimento em um adulto representa uma progressão
de simplicidade para complexidade do pensamento, do
irracional comportamento racional. (James & Prout, 2005,
p.13, tradução minha).

Neste sentido, a infância é pensada pelos adultos como a idade imatura não
apenas biologicamente falando, mas socialmente também; a infância significaria a
preparação para um “mundo” adulto, ou seja, somente na fase adulta se tornaria
um ser social. Neste ponto, Ariès mostra como eram vistas as crianças desde a
Idade Média, e através de seu relato histórico podemos observar a “insignificância
da infância”:

As idades da vida não correspondiam apenas a etapas


biológicas, mas a funções sociais. (...) Só se saía da infância
ao se sair da dependência, ou, ao menos, dos graus mais
baixos da dependência. Essa é a razão pela qual as palavras
ligadas à infância iriam subsistir para designar familiarmente,
na língua falada, os homens de baixa condição, cuja
submissão aos outros continuava a ser total. (Ariès, 1981,
p.19 a 21).

Ou seja, a insignificância era agregada a dependência, ser dependente era


ser rebaixado na sociedade, continuando com Ariès:

De criancinha pequena, ela se transformava imediatamente


em homem jovem, sem passar pelas etapas da juventude,
que talvez fossem praticadas antes da Idade Média. A
passagem da criança pela família e pela sociedade era muito
breve e muito insignificante para que tivesse tempo ou razão
de forçar a memória e tocar a sensibilidade. As pessoas se
divertiam com a criança pequena como com um animalzinho,
um macaquinho impudico. (Ariès, 1981, p. 03)

Isso mostra que a “passagem” das crianças na sociedade, possuía ênfase na


ridicularização, futilidade e banalidade da infância. Para tanto, a questão da infância
como estudo acadêmico também foi visto por muito tempo como uma categoria
banal, sem relevância a ser estudada, o que mostra Hischfeld:

Para a maioria dos antropólogos, a imagem da criança


comumente conjurada é a de “adultos – em – fabricação”.
Liminaridade tanto quanto irônica dado o considerável
interesse antropológico na diversidade de formas de status
ligada à etariedade, nesse caso geralmente concebendo as
crianças como criaturas culturalmente incompetentes,
consideradas, quando muito, simplesmente “apêndices da
sociedade adulta”. (Hischfeld, 2002, p.613, tradução
minha).

No caso, mostrado por Hischfeld, a Antropologia também considerou a


infância como uma categoria vinculada à fase adulta, e que não merecia relevância
a ser analisada, como seres sociais sem ter atuação na sociedade. Por isso, a
questão mostrada nessa primeira fase, informa não apenas como a criança era
vista pela sociedade, mas como era vista pelos antropólogos, para isso os estudos
instaurados na década de 70 possui marco significativo para abrir portas para a
Antropologia da Criança.

Assim compartilho com James e Prout a primeira característica do paradigma


da conjuntura da infância, que é colocar essa categoria como construção social, e
para isso afirma Cohn:

“Pensa o que é ser criança e sem entender o lugar que elas


ocupam naquela sociedade- o mesmo vale para as crianças
nas escolas de uma metrópole. E aí está a grande
contribuição que a antropologia pode dar aos estudos das
crianças: a de fornecer um modelo analítico que permite
entendê-las por si mesmas; a de permitir escapar daquela
imagem em negativo, pela qual falamos menos das crianças
e mais de outras coisas, como a corrupção do homem pela
sociedade ou o valor da vida em sociedade.” (Conh, 2005,
p.09).

Então esse é o marco dos estudiosos da Antropologia da Criança, pensar


essa categoria como independente de ser estudado como agente social, mas não
separado do contexto da sociedade.

2. A agência infantil

As crianças tem um papel dentro dessa sociedade dos adultos, elas podem
até serem pensadas em independência, mas não são separadas, é do conjunto
entre crianças e adultos que podemos ver as suas expressões, as suas vozes, é
através do contexto que podemos falar que as crianças são agentes sociais. Autores
como James (2005), Cohn (2005), Nunes (2002), Corsaro (2005) estarão presentes
nessa sessão no intuito de reafirmar o papel da criança na sociedade dos adultos, o
papel de agente social.
James e Prout na construção do novo paradigma nos proporciona ter um
olhar diferenciado para a questão da criança:

O século XX está a ser dito "século da criança" e, talvez, em


nenhum outro momento ter filhos foi tão altamente perfilado.
A ideologia do centrada na criança sociedade dá "a criança" e
"os interesses da criança" um lugar de destaque na política e
práticas de bem-estar, jurídica, médica e instituições de
ensino. (...) Isto significa que as crianças devem ser vistas
como ativamente envolvidos na construção de suas próprias
vidas sociais, as vidas daqueles ao seu redor e das
sociedades em que vivem. Elas não podem mais ser
consideradas simplesmente os sujeitos passivos de
determinações estruturais. (James & Prout, 2005, p.01 e 06)

O que mostra como a construção da vida social se modifica quando a criança


é agente, essa modificação pode ser vista em setores e instituições sociais, como
direitos específicos, ajuda de políticas publicas que tem como base o bem estar das
crianças.

Clarice Cohn em “Antropologia da Criança” (2005), nos mostra como é


importante observar esse papel das crianças, como atores sociais. A autora explica
desde a função de atuação de um papel fictício, até a atuação na sociedade
atualizando seus espaços de socialização.

Ao invés de receptáculos de papéis e funções, os indivíduos


passam a ser vistos como atores sociais. Se antes eles eram
atores no sentido de atuar em um papel, agora eles o são no
sentido de atuar na sociedade recriando-a todo o momento.
(...) A criança como ator social, a criança como produtor de
cultura, e a definição da condição social da criança. (...)
Reconhecê-lo é assumir que ela não é um ‘adulto em
miniatura’, ou alguém que treina para a vida adulta. É
entender que, onde quer que esteja, ela interage ativamente
com os adultos e as outras crianças, com o mundo, sendo
parte importante na consolidação dos papéis que assume e
de suas relações (Cohn, 2005, p.20, 21 e 28).

Acredito que a primeira atitude de um pesquisador sobre a infância é o


reconhecimento de que eles são atores sociais, não sendo passivos, não os
excluindo. É como expressa Nunes (2002), há originalidade na fala das crianças e
quando se encontra crianças e adultos há troca de saberes também, e esse
pressuposto deve ser um dos pontos de partida para uma pesquisa que envolva
crianças.
Schildkrout dá exemplos de sua pesquisa sobre o papel das crianças na
sociedade dos adultos, onde as crianças têm responsabilidades nas tarefas sociais
significativas. “Muitas tarefas são delegadas para as crianças, e alguns pode ser
realizada apenas por crianças, ou por outras pessoas que por uma razão ou de
outra, não estão vinculados pelos ‘normais’ papéis adultos de marido e mulher”.
(Schildkrout, 2002 p.360, tradução minha).

Outro bom exemplo da atuação das crianças encontra-se no texto de


Hirschfeld, em uma ideia que esse autor lança, com a questão do ambiente cultural.

Crianças não apenas vivem nas esferas culturais dos adultos


com quem dividem espaço de vida -uma observação
largamente trivial- mas elas criam e mantém seus próprios
ambientes culturais. O objetivo de uma criança é ser uma
criança bem sucedida... Crianças não são membros
incompetentes na sociedade dos adultos; eles são membros
competentes em sua própria sociedade, na qual possuem
suas próprias normas e cultura. (Hirschfeld, 2002, p.614,
tradução minha).

O autor lança uma nova ideia, a questão de que as crianças possuem sua
própria sociedade, nesse ponto não concordo com ele, por que como já indaguei, as
crianças podem ser independentes, ser agentes, mas não possuem uma sociedade,
por que elas não podem ser separadas do contexto comunitário em que vivem. Elas
possuem normas e regras próprias, mas não uma conduta que produz sociedade.
As crianças fazem sentidos e está interpretando sentidos. A grande questão é
pensar que a criança pode produzir informações para além da infância.

Ao pensar a infância na sociedade de adultos, o exemplo de Fernandes nos


ajuda pensando na ideia de imitação. “As crianças abstraem de modo genérico A, B
ou C para falar de pai, mãe, bailarina, então há uma imitação dessas
representações sociais, na função social”. (Fernandes, 2004, p. 249) A imitação é
relativa à representação social que a figura de um adulto representa; exemplo disso
pode ser observado pelos estudos sobre pastores mirins, que imitam a figura da
função social do pastor; as crianças os imitam, não de forma específica, mas de
forma geral, o genérico predomina. Ao pregar elas representam nas suas
desenvolturas uma espécie de “imitação” de um pastor, porém elas não apenas
imitam, mas “reproduzem interpretando” (Corsaro, 2005). Então para as crianças a
imitação da representação social faz parte da sua socialização, o que as permite
também desenvolver sua agência social.
Crianças e a mídia

Pensando na questão das crianças que reproduzem interpretando, podemos


pensar nas crianças que pregam. Pois estas crianças pregam, estudam e
interpretam a Bíblia ao seu modo, explicam e chamam a atenção dos adultos e das
crianças em pontos importantes de passagens bíblicas; elas podem ser estudadas a
partir do conceito de agência infantil, amplamente discutido por Allison James
(2005), na medida em que modificam seu meio social e religioso. Cohn (2005)
afirma:

A criança atuante é aquela que tem um papel ativo na


constituição das relações sociais em que se engaja, não
sendo, portanto, passiva na incorporação de papéis e
comportamentos sociais. Reconhecê-lo é assumir que ela não
é um ‘adulto em miniatura’, ou alguém que treina para a vida
adulta. É entender que, onde quer que esteja, ela interage
ativamente com os adultos e as outras crianças, com o
mundo, sendo parte importante na consolidação dos papéis
que assume e de suas relações. (2005, p.28).

As crianças não apenas reproduzem os adultos, mas ao imitar elas


produzem novos olhares, construindo como agentes.

Esse texto tem também a intenção de pensar nas crianças que tem vídeos e
entrevistas na mídia; a maioria de textos, artigos que falam sobre criança e mídia
tem relação com o consumo, ou seja, com o consumo das crianças através da
televisão. Esse texto faz o movimento inverso, sai da mídia que fala e mostra as
crianças pregando, e entra em um estudo sociológico na busca de analisar a
repercussão das crianças na mídia, pretendo colocar o que eu observo em lócus
sobre a face da formação das crianças na igreja.

Observando a repercussão das crianças pregando na mídia, alguns sites da


internet como: Dilma na rede1, diz que crianças que pregam são vistas como um
crime da moda, protestando pelos direitos delas, considerando esse ato como um
trabalho infantil. Os comentários do site mostram a indignação das pessoas
acreditando por vezes, esse ato ser uma pedofilia evangélica.

1
http://dilmanarede.com.br/ondavermelha/blogs-amigos/criancas-pastoras-e-o-crime-da-moda-em-
algumas-igrejas.
No programa “Pregadores Mirins”2, do canal National Geografic exibiu no ano
de 2011 e 2012, um programa com três crianças diferentes que “promovem uma
guerra contra os pecadores”. A reportagem da emissora apontava o crescimento
desse fenômeno, e a aposta das igrejas nessas crianças, que muitas vezes não
sabem nem ler. Fora os inúmeros vídeos exibidos pelo site youtube, com crianças
pregando.

Os casos apresentados acima mostram como os pastores mirins são


colocados pelo meio midiáticos, muitas vezes esse vídeos causam medo, ao ver
uma criança como um “espetáculo”, no sentido de as adultizar, ou seja, é através
das repercussões desse fenômeno na rede que vai haver maior visibilidade para as
crianças e para a igreja, como forma de propaganda e promoção destes.

Nesse espetáculo, as crianças são vistas como pessoas que tem um dom,
que já nasceu com esse dom. De acordo com a literatura sócio-antropológicas nada
é inato, tudo é construído socialmente, se a criança tem tendências a pregar e
possui a retórica, isso foi sendo construído na sua formação dentro da unidade
religiosa que ela foi colocada.

É também importante observar que nem todas as igrejas evangélicas


compartilham da mesma forma da formação das crianças que pregam, algumas
constroem com mais tempo essa formação de tornar as crianças pastoras, há um
momento mais prolongado, e a exposição seria uma espécie de barreira para a
construção dessa criança como ser que irá pregar.

Certas igrejas tem um culto especial uma vez por mês para que as crianças
preguem, isso acontece em muitas igrejas. O caso é que colocar as crianças
pregando na rede é problemático por que a sociedade vai olhar para isso com maus
olhos, mesmo que saibam ou não, que esse mesmo conteúdo também é usado nas
igrejas, mas a partir do momento que isso ganha espaço, vira um “crime da moda”,
expondo a ideia da criança como um “adulto em miniatura”, causando espanto.

Para isso, estudos sobre a relação criança e religião é escasso, e pensar


sobre um “problema” como esse, é pensar sobre como acontece à formação destas
crianças em lócus. “Para o antropólogo, assim como para a criança, os dados,
todavia, não estão disponíveis na superfície. Para decodificá-los é preciso pesquisa
de campo”. (PIRES, 2011, p.25) Ou seja, no conteúdo midiático apresentado acima,
sobre crianças pastoras não há estudos de pesquisa de campo, e se há é muito
pouco divulgado.

2
http://www.natgeo.com.br/br/especiais/pregadores-mirins.
Para pensar sobre o que acontece com crianças que pregam, estou
realizando um trabalho de campo na igreja Adventista, que possui crianças que
pregam, onde, até o presente momento não assisti nenhum culto que essas façam.

Observo a formação dessas crianças na Escola Sabatina, que são aulas que
as crianças têm todos os sábados, com lições que são lidas a semana inteira com a
família, essa Escola é dividida em idade, e por isso, os adolescentes e adultos
também tem essas aulas, o que significa que, não são só as crianças que estão em
formação, os adultos também. Por isso partilho com Pires que “compreender a
religiosidade infantil pode levar-nos a melhor compreender a religiosidade nos
moldes adultos”. (2011, p.23)

Nesses momentos de formação há as lições de temor e amor a Deus, há


também a interpretação das crianças e a forma como elas oram e transmitem o que
entendem. Exemplo é o caso de uma menina de oito anos que está preparando sua
pregação.

Acredito que mesmo com pouco tempo de trabalho de campo, já observo


que a agência infantil é vista nesta igreja, e a partir disso as crianças tem um papel
nessa igreja, não sendo “adultos em miniaturas”. Como são vistas pelos vídeos.

Considerações finais

Analiso, portanto, a partir dos textos lidos, que a criança dentro de um


grupo de categorias que deve ser estudado pela Sociologia e Antropologia; não é
apenas uma réplica dos adultos. As crianças enxergam e traduzem o seu estilo de
vida, e dentro da religião essas crianças são colocadas em um patamar elevado,
elas são vistas como o futuro da igreja e o canal mais fácil de Deus. Então, além da
importância da socialização das crianças na religião evangélica, elas são também
pontes de conversão e porvir da igreja.
A criança dentro de um grupo de categorias que deve ser estudado pela
Sociologia e Antropologia; não é apenas uma réplica dos adultos. As crianças
enxergam e traduzem o seu estilo de vida.

Outro aspecto importante é pensar que ao ver o “espetáculo” das crianças


pregando nas mídias, é preciso observar os fatos através de uma observação
sistemática, para ver que a formação e o possível ato de pregar em público, não é
um “show a parte”, mas sim uma construção da evangelização das crianças.
Obtive através do diálogo com autores da Sociologia e da Antropologia um
espaço de debate que proporciona questionar o papel da criança em qualquer
sociedade estudada, acredito ser importante manter esse diálogo em qualquer
questão que envolva um trabalho empírico com crianças, sendo de suma
importância colocar a criança como agente da sua sociedade, e priorizar o primeiro
ponto do paradigma de James e Prout, sobre a infância como construção social;
observando a formas de socialização de cada lugar, como foi citado nesse texto
com exemplos de pessoas que estiveram em campo e produziram as formas do
papel da criança na sua comunidade. Busquei nesse diálogo aprofundar-me nas
perspectivas já estudadas, para que trabalhos futuros tenham essa base teórica.

Referências

Livros:

Bauman, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro: Zahar,


2012.

FERNANDES, Florestan. As “Trocinhas” do Bom Retiro. Pro-Posições, v. 15,


n.1(43)- jan-abr; 2004.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 3º ed. Rio de Janeiro:


DP&A Editora, 1999.

ARIÈS, Philippe. 1981 [1962] (2a. edição brasileira). História Social da Criança e
da Família. Rio de Janeiro: LTC Editora.

BELLONI, Maria Luiza. O que é sociologia da infância. Campina, SP: Autores


Associados, 2009.

COHN, Clarice. Antropologia da criança. RJ: Jorge Zahar. Ed. 2005.

CORSARO, William A. The sociology of childhood. 2 ed. Sociology for a new


century. 2005

JAMES, Allison & PROUT, Alan. Constructing and Reconstructing Childhood:


contemporary Issues in the Sociological Study of Childhood. Taylor & Francis e-
Library, 2005.

NUNES, Ângela; Aracy Lopes da Silva; Ana Vera Lopes da Silva Macedo
(organizadoras). Crianças indígenas: ensaios antropológicos. SP: Global, 2002 –
(Coleção antropologia e educação).

Artigos:
FERNANDES, Florestan. As “Trocinhas” do Bom Retiro. Pro-Posições, v. 15, n.
1(43)- jan-abr; 2004.

HIRSCHFELD, Lawrence A. Why Don't Anthropologists Like Children? American


Anthropologist. Volume 104, Issue 2, pages 611–627, June 2002.

MAUSS, Marcel. Três observações sobre a sociologia da infância. Pro-Posições,


Campinas, v. 21, n. 3 (63), p. 237-244, set./dez. 2010.

MEAD, M. 1932. “An investigation of the thought of primitive children, with special
reference to animism”. Journal of the royal anthropological institute, 62,
173-190.

PIRES, Flávia F. Tornando-se Adulto: uma abordagem antropológica sobre crianças


e religião. Religião & Sociedade (Impresso), v. 30, p. 143-164, 2010.

SCHILDKROUT, Enid. "Age and Gender in Hausa Society: Socio-Economic Roles of


Children in Urban Kano" pp. 109-137. Age and Sex as Principles of Social
Differentiation. J.S. La Fontaine (Ed.) London: Academic Press. 2002

Sites:

Site de Dilma Rousseff: http://dilmanarede.com.br/ondavermelha/blogs-


amigos/criancas-pastoras-e-o-crime-da-moda-em-algumas-igrejas. Visualizado
em 17 de janeiro de 2013.

Site do Canal National Geografic:


http://www.natgeo.com.br/br/especiais/pregadores-mirins. Visualizado em 20 de
janeiro de 2013.

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http://www.youtube.com/results?search_query=crian%C3%A7as+pastoras&oq=cri
an%C3%A7as+pastoras&gs_l=youtube.3...18272.21932.0.22420.17.17.0.0.0.0.32
6.2463.7j5j4j1.17.0...0.0...1ac.1.6OoEIF0RfBE. Visualizado em 13 de março de
2013
LAICIDADES E SECULARIZAÇÕES: BREVE DISCUSSÃO TEÓRICA

*
Adriana Gomes

Resumo: O artigo de propõe a discutir as especificidades dos processos de laicizações


e secularizações nas diferentes sociedades, incluindo a brasileira, sem que incorra a
falácia da mera separação jurídica entre o Estado e a religião. Para tanto, as
discussões teóricas abordadas referem-se aos diferentes conceitos construídos no
contexto da modernidade para esses processos. A partir dos diferentes matizes desses
conceitos, compreende-se a autonomia das esferas da vida social para que se
relativize a liberdade, o pluralismo e a tolerância religiosa.

Palavras-Chaves: Laicização – Secularização – Estado

O cerne das discussões weberianas sobre as sociedades modernas está


veiculado ao estudo do processo de secularização que as constituíram. As sociedades,
sobretudo as ocidentais, apresentam especificidades na sistematização das
racionalidades, porque estas expressariam as diferentes interpretações das esferas da
vida, seja no matiz econômico, político e cultural, assim como, nas manifestações da
ciência, da arte e na própria compreensão da religião (Mariz, 2011, pp. 72-73).

Para entender como se propagou a racionalidade e o “desencantamento do


mundo”, Max Weber (1854-1920) debruçou-se sobre a religião. Ele comparou as
diferentes civilizações ocidentais e identificou as suas peculiaridades em termos de
religiosidades, construindo, portanto, uma matriz cultural do ocidente (Mariz, 2011, p.
72).

A religião, enquanto objeto de análise, interessou Weber porque propiciou a


capacidade de formar atitudes e disposições para aceitar ou rejeitar determinados
estilos de vida ou para criar novos. A subjetividade e a intencionalidade dos atores
sociais tornaram-se elementos indispensáveis para que os seus pressupostos em
relação à religião se fundamentassem nas pesquisas relacionadas à formação da
conduta humana nas diferentes sociedades, portanto, a religião se tornaria um
instrumento para se compreender as ações sociais, sinalizando os motivos e as
intenções nas relações entre os sujeitos.

*
Mestre em História Política (UERJ); Integrante do Grupo de Pesquisa Políticas, Direitos e Éticas; e
Professora da SEEDUC/RJ.
A religião foi considerada como um campo de múltiplas tensões e
possibilidades. Essas tensões seriam frutos de circunstâncias específicas e conflitos de
interesses de ordem material e ideal. Os embates em busca da dominação e os
conflitos de interesses de valores foram centrais no arcabouço teórico e metodológico
de Max Weber em suas análises acerca da religião (Mariz, 2011, p.76).

A força secularizadora da ética protestante promovida pela forma subjetivada


da experiência religiosa teria criado, para Max Weber, um estilo de vida fundamentado

numa “afinidade eletiva” com o capitalismo.

Ao incentivar os seus fiéis a se dedicarem de forma ascética ao trabalho


secular, o protestantismo teria criado uma massa de fiéis motivados a produzir
riquezas. O ascetismo protestante exigia que todos os seus seguidores se engajassem
nessa proposição, pois vislumbrava através de pregações a ascese do mundo.

O protestantismo rompeu com diversos padrões do catolicismo medieval,


negando vários sacramentos e a devoção aos santos. Concomitantemente diminuiu a
quantidade de rituais, rejeitou a prática de promessas e rezas tradicionais,
estimulando a leitura e a interpretação da Bíblia por todos. “Era assim uma religião
menos ritualista, mais intelectualizada, mais ética, menos encantada, menos ‘mágica’”
(Mariz, 2011, p. 76).

A partir desses pressupostos, as religiões éticas para Weber se caracterizaram


pela idealização abstrata da salvação, racionalizando a imagem de um mundo sem
Deus e pela projeção da experiência mística para o além (Casanova, 1994, p. 25).

Diante do processo de desmistificação da experiência religiosa, duas


consequências são consideradas iniludíveis: a forma subjetivada da experiência
religiosa, já mencionada, e a viabilidade que a Reforma Protestante possibilitou,
conjugada com a emergência dos Estados Modernos e da ciência, a uma acentuação
no processo de aprofundamento de diferenciação das esferas política, econômica e
científica em relação à esfera religiosa.

Ao seu ponto, a respeito da emancipação da esfera secular das instituições


religiosas, algumas considerações reflexivas valem ser ressaltadas. José Casanova
analisou a dimensão normativa do paradigma weberiano de secularização com
ressalvas, sobretudo no que se refere ao processo de modernização culminando com a


Afinidade eletiva, para Max Weber, compreende-se como um estilo de vida, um ethos, que sob o prisma
protestante levaria os fiéis a se dedicarem de forma ascética ao trabalho secular, criando uma mão de obra
que se motivava para a criação de riquezas e para a poupança antes mesmo do sistema capitalista ter uma
força e autonomia para gerar a sua própria motivação.
separação jurídica entre o Estado e a Igreja. Sua crítica fundamentou-se na
pressuposição que “uma vez que a secularização foi concebida como um processo
teleológico universal, cujo resultado era conhecido de antemão (o declínio religioso e
sua privatização), os cientistas sociais não se interessaram em estudar os diferentes
caminhos que as ciências tomam” (Casanova, 1994, p. 25).

A secularização seria apenas um dos elementos de um processo histórico


amplo, que inclui a iminência de um mercado impessoal, de um Estado mais distante
de normatizações morais, de uma vida intelectual mais dinâmica e fluente em que a
ideia de Deus é dispensada, além de uma acentuada individualização acarretada pela
intensificação da vida urbana, facilitadora de um maior acesso à escolarização, aos
questionamentos e a autonomia do sujeito (Montero, 2006, p. 48).

Segundo Habermas, é possível prescindir do paradigma secular de Max Weber


para se pensar no processo de secularização. Esse processo pode ser analisado, a
partir da diferenciação da esfera pública da esfera privada, que só pôde ser efetivada
com o surgimento do Estado Moderno e de uma esfera civil. Partindo desse
pressuposto, para se compreender a ordem social moderna para além da separação
institucional entre o Estado e a Igreja, é necessário analisar a diferenciação entre a
esfera pública do Estado e a esfera privada da sociedade. Sob esse prisma, que a
religião se torna uma questão de âmbito privado, excluindo-se da esfera do Estado
(Habermas, 2007, pp. 129-167).

No entanto, vale ressaltar que a partir do século XVIII, através das concepções
de Habermas, outra diferenciação surgiu nessas esferas. A esfera das pessoas
privadas reunidas em público, a esfera pública burguesa ou a sociedade civil, que tem
como consequência mais expressiva a inserção da família no espaço privado
(Habermas, 2007, pp. 129-167).

Mesmo a sociedade de massa tendo fracionado os fundamentos da esfera


pública, obscurecendo as diferenciações entre o público e o privado, ficaram
intrínsecas à ordem social moderna, a concepção do Estado – sociedade – esfera
privada. Desses pressupostos, compreende-se que as relações entre a sociedade e a
religião devem ser pormenorizadas analiticamente e não de forma normativa que, em
tese, confinou a privatização da prática religiosa à esfera familiar. Contudo, as
especificidades das sociedades e seus modos de produção histórica de diferenciação
das esferas, assim como em articulá-las, alvitram que a alocação da religião nas
sociedades seja realizada a partir de uma leitura diferenciada e particularizada.
Como mais adiante será abordada, na especificidade da sociedade brasileira, a
religião foi alocada, após a secularização do Estado, na sociedade civil e não na esfera
privada e familiar.

A liberdade religiosa, interpretada como liberdade de consciência, foi a primeira


liberdade conquistada, propiciando precondições de todas as liberdades modernas
(Montero, 2006, p. 49). Do mesmo modo que o direito à privacidade, fundamento do
liberalismo moderno, está diretamente relacionado à liberdade de consciência. “A
liberdade de consciência e o direito à privacidade são direitos fundadores e
legitimadores do Estado Moderno” (Montero, 2006, p. 49).

No entanto, o problema das relações entre a religião e a sociedade é mais


complexo que a separação jurídica perfeita entre o Estado e a Igreja. Os Estados
seculares não estão diretamente relacionados à privatização da religião na esfera
doméstica. Torna-se claro que a liberdade de privacidade e a liberdade de consciência
são condições modernas necessárias para a liberdade religiosa, que depende da
solidariedade de seus cidadãos em se respeitar mutuamente no que tange às
diferentes “visões de mundo” ‡. A secularização deve ser interpretada nos âmbitos
culturais e sociais “como um processo de aprendizagem que obriga ambas as
tradições, a do Esclarecimento e a das doutrinas religiosas, à reflexão sobre seus
respectivos limites” (Habermas, 2007, p. 136).

A liberdade de consciência e de religião constitui os grandes desafios da


pluralidade religiosa. O Estado secular precisa garantir simetria da liberdade de
religião, para não se enveredar na falácia de uma “autoridade secularizada”
(Habermas, 2007, p. 136), em que as fronteiras entre as visões de mundo não sejam
precárias ao ponto de obrigar um a seguir a religião do outro. O princípio da tolerância
deve ser respeitado para que não se defina limites de tolerância (Habermas, 2007, p.
136). Faz-se condição sine qua non a criação de regras equitativas em que os agentes
sociais aprendam a assumir as perspectivas uns dos outros.

Partindo da premissa que o Estado secular transpõe o poder político para um


alicerce não mais religioso, os direitos dos cidadãos fundamentam-se na simetria, na
liberdade e na igualdade, que passa a ser a regulação da convivência mútua.


A definição de religião para Habermas através da denominação “visões de mundo”, foi refutada por Eliane Moura da
Silva em seu artigo História das Religiões: algumas questões teóricos e metodológicas (2011, p. 20) In Religião, Cultura
e Política no Brasil: Perspectivas Históricas. Sob o olhar da historiadora, definir “religião” como “visões do mundo”,
pressuporia que todas as “visões de mundo” fossem religiosas, que é uma falácia, pois essa definição seria vaga e
ambígua para atender a compromissos religiosos específicos.
Os modos de pensar, as expectativas e os comportamentos dos cidadãos não
podem ser impostos mediante o direito. Faz-se necessário que os cidadãos se
respeitem reciprocamente como membros de uma mesma comunidade política,
“apesar de seu dissenso em questões envolvendo convicções religiosas e visões de
mundo” (Habermas, 2007, p. 137). O entendimento recíproco deve basear-se na
racionalidade, em que as possíveis diferenças devam ser apresentadas umas às outras
fundamentadas em argumentos.

O ideal da cidadania impõe um dever moral, não legal – o dever


da civilidade – de ser capaz, nessas questões fundamentais, de
explicar uns aos outros como os princípios e normas de conduta
propostos e votados são compatíveis com os valores da razão
pública. Portanto, esse dever envolve a disposição de prestar
atenção aos outros e uma compreensão equitativa quando se
trata de chegar a uma acomodação razoável de seus pontos de
vista (Habermas, 2007, p. 138).

O Estado secular sendo neutro nas questões relativas às visões de mundo e às


religiosidades, as decisões políticas só podem ser legitimadas a partir de argumentos
imparciais tanto para cidadãos religiosos como para cidadãos não-religiosos, assim
como, também, para cidadãos de orientações de fé distintas, que formam grupos
minoritários na sociedade. As instituições do Estado, as justificativas das leis, as
ordens judiciais, dentre outras atribuições de âmbito estatal, devem ter uma
linguagem acessível a todos os cidadãos, mantendo a neutralidade quanto às visões
de mundo, para não privilegiar um dos lados em detrimento dos outros.

Para que o Estado possa garantir a liberdade de religião, as comunidades


religiosas e não religiosas devem aceitar condições não somente relacionadas à
neutralidade do Estado do ponto de vista das visões do mundo, mas, sobretudo, na
determinação “restritiva do uso público da razão dos cidadãos” (Habermas, 2007, p.
139).

Vale ressaltar, a partir das discussões, que secularização e laicidade são


conceitos e processos construídos de forma diferenciada. Ambos os processos
ocorreram no contexto da modernidade e se relacionam com a autonomização das
diversas esferas da vida social, a partir do controle e tutela da religião.

No entanto, se faz necessário contextualizar e situar os processos de


secularização e laicidade nos matizes distintos que podem se apresentar. Para tanto,
deve ser salientado que a secularização e a laicização são processos dinâmicos,
portanto, não são lineares e muito menos irreversíveis historicamente, sem
generalidades e sem universalidades.

Para Pierucci (1997), a secularização caracteriza-se como a perda da força e da


autoridade da religião na vida privada e cotidiana. Segundo Peter Berger (2003, p.
119), a secularização seria um processo em que setores da sociedade e da cultura
seriam subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos. Para Berger, a
secularização se manifesta, historicamente, com a retirada das igrejas cristãs de áreas
de atuação que estariam sob o seu controle ou influência. Citando como exemplos, a
emancipação da educação do poder eclesiástico e a expropriação de terras da Igreja.
A secularização seria, portanto, um processo pelo qual o pensamento, práticas e
instituições religiosas perderiam significação social.

Partindo desse pressuposto, o processo de secularização traria consigo


consequências sociais relevantes. No caso específico do Brasil, a consequência social
de maior representatividade seria a perda do monopólio da Igreja Católica como
confissão religiosa (Ranquetat, 2008, p. 62).

Já a laicidade pode ser considerada um processo social relacionado à esfera


política. Seria a formação de um Estado desvinculado de quaisquer grupos religiosos,
assim como, da neutralidade religiosa no espaço público. A laicidade é, sobretudo, um
fenômeno político e não um problema religioso. (Ranquetat, 2008, p. 63).

A laicidade deriva do Estado e não da religião, isto é, o Estado que se afirma e


impõe a laicidade, na maioria dos casos. Porém, em determinadas secularizações, a
sociedade civil que foi a iniciante no processo. Mas, de uma forma geral, o setor
político que realiza a mobilização e a mediação da operacionalidade empírica da
laicização (Ranquetat, 2008, p. 63).

A laicização implica na neutralidade do Estado em matéria religiosa. No


entanto, essa neutralidade pode ser matizada em dois sentidos distintos: a
neutralidade-exclusão, isto é, a ausência da religião na esfera pública. E, também, a
neutralidade-imparcialidade, em que o Estado seria imparcial em relação às religiões,
resultando na necessidade desse Estado tratar com igualdade as diferentes religiões
(Barbier, 2005).

Segundo Balibérot (2005), pode-se afirmar a existência da laicidade quando o


poder político não é mais legitimado pelo sacro e quando não há a dominação da
religião sobre o Estado e a sociedade. Nessa especificidade, haveria a autonomia do
Estado, dos poderes e das instituições públicas em relação às autoridades religiosas e
a dissociação da lei civil das normas religiosas.

A laicidade não se confunde com a liberdade religiosa, o pluralismo e a


tolerância. Pode-se encontrar, em determinadas sociedades, todas essas
características sem que haja laicidade.

Na especificidade brasileira, a Constituição do Império de 1824 garantia a


liberdade religiosa a outras religiões além do catolicismo, com cerceamentos, mas
garantia a tolerância religiosa. No entanto, havia a união entre o Estado e a Igreja
Católica, que era a religião oficial do Império (Ranquetat, 2008, p. 64).

De acordo com Catroga (2006, p. 143), o projeto laicizador se tornou em


muitas sociedades uma fé laica, “as necessidades de reprodução do Contrato Social e
da justificação do papel histórico da nação também sacralizarão o profano, pondo em
prática certa fé laica”. Portanto, a laicidade não se expressa como uma mera
neutralidade, pois se revela, também, como um conjunto de crenças.

Segundo Ranquetat, alguns cientistas sociais franceses estabeleceram


distinções entre as laicidades: a laicidade de combate, agressiva e a laicidade de
coabitação, tolerante e flexível (Ranquetat, 2008, p. 65).

A laicidade de combate tem o objetivo de lutar contra a influência da religião e


dos sacerdotes. Já a laicidade da coabitação, permite um maior espaço para o
religioso na esfera pública.

A partir da assimilação que laicidade e secularização são termos que não se


referem a processos sociais e históricos idênticos, Catroga (2006, p. 150) em suas
reflexões, notabilizou que existem sociedades altamente secularizadas, onde as
práticas e comportamentos religiosos declinaram, mas que os seus Estados não são
laicos. Da mesma forma que em outras sociedades, cujos Estados são não-
confessionais, elas sinalizam uma semi-laicidade, por apresentarem apoios e subsídios
às religiões. E ainda têm as sociedades de quase-laicidade, em que os Estados são
laicos na constituição e juridicamente, mas através de acordos e tratados, privilegiam
o grupo religioso majoritário.

Sob essa perspectiva, pode-se compreender que no Brasil, o que se refere às


relações entre Estado e Igreja Católica, configurou-se como uma “quase-laicidade”
(Catroga, 2006). Mesmo com a separação formal entre o Estado e a Igreja, ou seja,
entre o poder político e a organização religiosa, os vínculos, os contatos, as
cumplicidades entre as autoridades nos aparatos estatais e nos compromissos
permaneceram entre as instituições católicas e o poder do Estado ao longo dos anos.

A partir dessas argumentações, que se fundamentam as prerrogativas acerca


da aceitabilidade do pluralismo religioso. E sob essas perspectivas, que o discurso em
torno do processo de secularização do Estado brasileiro foi questionado. Os direitos
dos cidadãos, que tinham visões do mundo diferenciadas do catolicismo, foram
violados, sobretudo para as religiões mediúnicas§. A pluralidade religiosa não alcançou
a expressividade que se interpretava de um Estado secular. As instituições estatais
não mantiveram a neutralidade necessária e condicional durante o processo de
secularização.

Na constituição do Estado Moderno Republicano brasileiro, o catolicismo, até


então religião oficial do Estado Imperial, foi retraído para o espaço social, acarretando
um “intenso conflito em torno da autonomia de certas manifestações culturais de
matriz não-cristã, ou da sua legitimidade para expressar-se publicamente” (Habermas,
2007, pp. 49-50). Infringindo, portanto, a respeitabilidade das diferentes visões de
mundo.

Referências Bibliográficas

BALIBERÓT, Jean. A laicidade. Acesso: www.france.org.br.

BARBIER, Maurice. Por uma definición de la laicidade francesa. Revue Le Debat, nº


134, mars-avril, pp. 1 – 14, 2005.

BERGER, Peter. O Dossel Sagrado. São Paulo: Paulus, 2003.

CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares: secularização, laicidade e religião civil.


Coimbra: Almedina, 2006.

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,


2007.

§
Termo utilizado por Ari Pedro Oro (2005, p. 441), ao se referir as religiões que tiveram os seus direitos de
crença cerceados na secularização republicana. Ele referiu-se ao espiritismo e as religiões afro-brasileiras.
MARIZ, Cecília Loreto. A Sociologia da Religião de Max Weber. In: TEIXEIRA, Faustino
(Org.). Sociologia da Religião – Enfoques Teóricos. Petrópolis: Vozes, pp. 67-93, 2003.

PIERUCCI, Antônio Flávio. Secularização segundo Max Weber. In: SOUZA, Jessé
(Org.). A atualidade de Max Weber. Brasília: UNB, pp. 105 – 162, 2000.

RANQUETAT, Cesar Alberto Jr. Laicidade, laicismo e secularização: definindo e


esclarecendo conceitos. Revista Tempo da Ciência, pp. 59 – 72, julho-dezembro,
2008.
Casa de oxum, Jardim das Folhas Sagradas e outras histórias: evangélicos e
políticas públicas para o povo de santo no governo Lídice da Mata
Adriana Martins dos Santos
doutoranda em História Social – UFBA
Bolsista CNPq
martins.reli@hotmail.com

Traçaremos neste artigo alguns enfrentamentos ocorridos durante a gestão do


governo Lídice da Mata (1993-1996) possivelmente em razão de uma menor
articulação política da bancada evangélica. Nosso objetivo principal foi analisar como
as políticas públicas para o povo de santo instituídas pela dita prefeita ocasionaram
reações no campo evangélico, identificando o espaço legislativo como lócus dos
conflitos religiosos de vários tipos que ocorreram na sociedade e que incluiu, por
variadas vezes, altercações entre os diversos grupos religiosos cristãos, e destes com
representantes das religiões afro-brasileiras.
Foi realizado um estudo sobre a atuação legislativa dos vereadores evangélicos
analisando discursos, projetos de leis, requerimentos e moções que tinham qualquer
referência às religiões de matriz africana durante o governo de Lídice da Mata. O
Diário Oficial do Município, que também incluía o Diário do Legislativo, além de
informações sobre produção legislativa dos vereadores também publicava atas das
sessões realizadas na câmara Municipal de Salvador. Objetivamos construir um
histórico das relações entre os vereadores evangélicos, seus colegas e a prefeita da
cidade no que tange às políticas públicas empreendidas pela prefeitura e que tiveram
como beneficiários setores ligados às religiões de matriz africana.
O período legislativo de 1997 a 2000 foi o momento de consolidação da bancada
evangélica na Câmara Municipal e neste intervalo de tempo se verificaram alguns
conflitos que ganharam visibilidade na sociedade soteropolitana. Os dois ocorreram
em 1998 e diziam respeito à identificação que se construíra na Bahia, notadamente
em Salvador, entre as religiões de origem africana e “baianidade”. Em ambos os casos
os vereadores evangélicos que atuavam na Câmara Municipal se uniram para lutar
contra o que consideravam um exemplo de preconceito religioso: a valorização de um
determinado grupo em detrimento de outros.
O primeiro foi a revitalização do Dique do Tororó, realizada em 1998, que incluiu
a instalação de esculturas dos orixás pela prefeitura de Salvador, então dirigida por
Antonio Imbassahy, contando com o apoio estadual do governo Paulo Souto, rendeu
uma série de críticas dos grupos evangélicos, sobretudo os ligados a Igreja Universal
do Reino Deus (IURD), que condenaram o que interpretaram como um ato de

1
apreciação de elementos religiosos afro-brasileiros, através da ação do poder público.
Os vereadores evangélicos protestaram contra a instalação do monumento dos Orixás,
que se apresentavam como símbolo da remodelação do Dique.1
O outro conflito ocorreu em novembro de 1998 quando o prefeito de Salvador
Antonio Imbassahy baixou uma portaria na qual determinava a padronização da venda
de acarajés no município. Os grupos evangélicos que consumiam os “bolinhos de
Jesus” e não os “acarás” do candomblé questionaram o ato do Executivo Municipal,
pois mais uma vez acreditavam que as religiões de origem africana estavam de uma
forma camuflada sendo impostas à população. Os evangélicos consideravam impuros
os alimentos vendidos pelas “baianas autênticas” e preferiam consumir estes produtos
em locais que julgavam imunes ao “contágio”.
Apesar desta maior visibilidade durante o governo de Imbassahy no governo de
Lídice da Mata (1993-1996) foram observadas algumas iniciativas semelhantes as do
prefeito carlista na apreciação de grupos religiosos de origem africana sem que se
percebessem grandes contestações dos setores evangélicos. No governo de Lídice a
valorização do patrimônio cultural afro-brasileiro não agradou muitos vereadores
ligados a grupos evangélicos. Apesar das dificuldades enfrentadas pela prefeita que
administrava a cidade na época com parcos recursos, fruto apenas das transferências
obrigatórias feitas pelo governo estadual, dirigido por Antonio Carlos Magalhães,
houve uma política pública voltada para a valorização do candomblé, principalmente
através do projeto Jardim das Folhas Sagradas que realizou a melhoria de instalações
físicas de alguns terreiros de candomblé de Salvador.2
O Projeto Jardim das Folhas Sagradas foi um projeto ligado a Secretaria
Municipal do Meio Ambiente cujo diretor era Juca Ferreira, sociólogo com histórico de
participação no Movimento Estudantil durante os anos 1960, tendo participado
também da resistência à Ditadura Militar instalada em 1964. Ele foi um dos
idealizadores do Projeto Axé3, cuja qualidade da proposta fez furar o cerco criado por

1
Situado no centro da cidade de Salvador, o Dique de Tororó é uma zona de tráfico intenso, entre a
Estação Central da Lapa e o Estádio de futebol da Fonte Nova, comunicando o centro histórico com os bairros
pobres do norte. O Dique tinha se transformado num esgoto a céu aberto, e a remodelação visava higienizar as
águas e formar um parque com equipamentos nas suas imediações, funcionando como mais uma opção
turística de Salvador.
2
A derrota do grupo de ACM nas eleições de 1990 custou à cidade de Salvador quatro anos de
abandono e perseguições a então candidata do PSB. (ALMEIDA, 1999, p. 524)
3
Foi um programa responsável pela educação e assistência a jovens e adolescentes em situação de
risco social implantado durante a gestão de Lídice da Mata na cidade de Salvador.
http://lidice.com.br/?page_id=50 Acesso em 20/03/2015
2
Antonio Carlos Magalhães em torno das realizações da prefeitura de Lídice da Mata.4 A
relação do Candomblé com a natureza inspirou o projeto que tinha como um dos
objetivos principais preservar as áreas de mata presentes nos terreiros:

O “Projeto Jardim das Folhas Sagradas” tem como


finalidade deflagrar ações práticas de preservação e proteção
das áreas verdes (jardins ou matas) inerentes aos terreiros de
candomblé, onde se cultivam arvores e plantas consideradas
sagradas pelo culto afro-brasileiro, e que vinham sendo
devastadas, inclusive pela especulação imobiliária.5

Os principais terreiros de Salvador foram beneficiados com ações de preservação


e promoção. Dentre os agraciados estavam o Terreiro do Bate Folha, o Terreiro do
Bogum, Terreiro da Casa Branca e o Terreiro do Gantois. Neste último foi inaugurada
uma praça no dia 3 de fevereiro de 1994 que contou com a participação de devotos
dos orixás, artistas e diversas autoridades políticas. No discurso da prefeita durante a
festa foi ressaltado o papel que as religiões afro-brasileiras tiveram na construção do
estado:

Não poderíamos deixar de dar esta contribuição


significativa para a cultura e religião afro na Bahia, no
centenário de Mãe Menininha do Gantois. Daqui para frente,
nossas praças terão o nome das pessoas que ajudaram a fazer
a cultura e a história de Salvador, dos verdadeiros
representantes da nossa cidade, mães, pais e filhos-de-santo,
artistas intelectuais, capoeiristas, cantores e todos aqueles que
ajudaram a fazer da nossa terra um lugar diversificado, do
ponto de vista cultural.6

É possível perceber o reconhecimento da importância do projeto da prefeita para


a comunidade religiosa afro-baiana uma vez que se tratava não de conquistas
pontuais, mas da tentativa de instalação de uma política pública através da ação da
prefeitura. O projeto ambicionava transformar em jardins sagrados centenas de
terreiros em Salvador e criar um jardim Etno-Botânico, com as plantas que faziam
parte dos cultos afro-brasileiros, consideradas sagradas.
Lídice da Mata mantinha boas relações com as lideranças religiosas afro-
brasileiras e a presença dela em terreiros, assim como do povo de santo em seu
gabinete era constante. Dentre estes o Terreiro da Casa Branca tinha um lugar de
destaque. Desde os tempos de deputada federal constituinte que Lídice mantinha uma

4
http://pt.goldenmap.com/Juca_Ferreira Acesso em 24/03/2013.
5
DOM (Diário Oficial do Município), 31/01/1994, p. 8.
6
DOM, 07/02/1994, p. 1.
3
relação próxima com este grupo. Já em 1989 denunciava o risco que esta comunidade
sofria uma vez que parte de suas terras estava sendo ocupada irregularmente por um
posto de gasolina, apesar desta área já ter sido desapropriada em favor do terreiro,
pelo governador Waldir Pires:

Há 29 anos que a entrada (local sagrado) do Terreiro Casa


Branca está ocupada por um posto de combustível. Esta área
ocupada pelo posto, que é destinada à construção da Praça de
Oxum, futuramente projetada gratuitamente por Oscar
Niemeyer, foi desapropriada através de decreto do Governo do
Estado que há semanas entregou espaço à comunidade de Casa
Branca. Porém, o proprietário do posto de gasolina entrou com
pedido de reintegração de posse na Justiça estadual e
conseguiu uma liminar. A entrada do Terreiro é consagrada às
deusas e, no caso, a Oxum, divindade que incorpora as
qualidades tidas como femininas; é a Deusa do Amor, da
Maternidade e da Sedução. A Praça de Oxum é, portanto,
também a Praça das Mulheres. No último dia 25 de março,
diversas entidades, artísticas e políticos da Bahia realizaram um
ato de apoio à luta daquela comunidade em frente ao posto que
ocupa a entrada do Terreiro Casa Branca. Todos os presentes,
sensíveis à defesa da cultura afro-brasileira, se solidarizaram.7

Quando Lídice assumiu a prefeitura garantiu num encontro realizado com


representantes do Terreiro da Casa Branca conservar e colocar guardas municipais
para assegurar a segurança no local, além apoiar a construção da Praça de Oxum e
prometer encontrar o processo da desapropriação do terreno que estava perdido entre
os papéis municipais. Este foi encontrado e entregue às lideranças do terreiro no dia
da inauguração da praça que aconteceu em junho de 1993. Stella de Óxossi, Creuza
do Gantois, Altamira Cecília dos Santos, as principais sacerdotisas do candomblé
compareceram ao evento que contou com a presença também de artistas, intelectuais
e filhos e filhas de santo.8
No ano seguinte Lídice foi convidada para a abertura do ano litúrgico na Nação
Keto/Nagô do Brasil que ocorreu no terreiro da Casa Branca. Esta aproximação sem
dúvida está relacionada à sua atuação em relação ao terreiro, pois conseguiu ajudar
esta comunidade a recuperar depois de 30 anos de batalhas judiciais um terreno de
mil metros quadrados que era ocupado ilegalmente pelo posto de gasolina, além de
incluí-lo no Projeto Jardim das Folhas Sagradas.9
Mas nem só de afagos era a relação de Lídice com o povo de Santo. O carnaval
de 1993 foi marcado por uma polêmica entre a prefeitura e a Federação do Culto Afro-

7
DCD (Diário da Câmara dos Deputados), 06/04/1989, p. 1865
8
DOM, 22/06/1993, p. 1.
9
DOM, 07/02/1994, p. 10.
4
brasileiro por conta da decoração oficial da festa que tinha como tema “Salvador,
Terra dos Orixas”. Esta atitude desagradou segmentos do culto afro que viram como
um desrespeito religioso a presença de imagens dos Orixás como elementos
decorativos.

A decoração foi suspensa depois que a Federação do Culto


Afro-Brasileiro entrou com uma ação judicial acatada pela
Defensoria Pública, com base no artigo 275 da Constituição
Estadual, que dizia ser “dever do Estado preservar e garantir a
integridade, a respeitabilidade e a permanência dos valores da
religião afro-brasileira. A ialorixá Stella de Óxossi, uma das
vozes mais importante do candomblé na Bahia, considerou
desrespeitoso o uso de símbolos dos orixás numa festa profana
como o Carnaval.10

A presença da cultura ou das culturas negras na sociedade soteropolitana


sempre foi muito forte e como esta sempre esteve muito ligada à religiosidade, se
torna difícil estabelecer onde começa uma e termina outra. Isto, se por um lado trás
vantagens, como a promoção das práticas religiosas, pode levar também a sua
folclorização. Era o que possivelmente temiam as entidades religiosas afro-brasileiras
que se encontravam também em processo de afirmação religiosa. Esta se dava em
amplas frentes: afastamento de práticas sincréticas com o Catolicismo, criação de
uma ortodoxia e, talvez com consequência destas ações, distinções entre os aspectos
culturais e religiosos da história negra. Neste último caso, a prática religiosa quer se
afirmar dentro de um campo específico, o campo religioso, e não ser encarado como
um elemento meramente cultural.
Apesar da existência de atritos, a proximidade entre a prefeita e o povo de santo
permitiu o diálogo fornecesse as bases para resolução das pendências. Foi marcada
uma reunião entre os coordenadores do carnaval e a Federação do Culto Afro-
Brasileiro que visava estabelecer um entendimento através da retirada dos pontos que
eram considerados mais polêmicos na decoração.11 Esta relação próxima entre o povo
de santo e a prefeitura, no entanto, não agradou muito aos vereadores evangélicos
que faziam parte da Câmara Municipal de Salvador: Alvaro Martins, Domingos
Bonifácio, Geraldo Ferreira e Eliel Santana, Beto Gaban e Pedro Melo.
Entre os que eram já vereadores reeleitos no governo Lidice da Mata estavam o
Alvaro Martins, Domingos Bonifácio e Pedro Melo. Alvaro Martins era de origem
batista, radialista e jornalista de profissão, e ao longo de sua trajetória no legislativo
soteropolitano fez inúmeros projetos que beneficiavam associações e igrejas, inclusive

10
DOM, 27/01/1993, p. 1.
11
DOM, 27/01/1993, p. 1.
5
de forma direta através da sugestão de isenções fiscais, além da solicitação de
concessão de utilidade pública a grupos ligados a sua prática religiosa. Já o Pastor da
Igreja Universal do Reino de Deus, Domingos Bonifácio, teve longa carreira como
vereador soteropolitano. Atuou de 1989 até 2002 e já em seu segundo mandato fez
parte da mesa diretora da Câmara, continuando a ocupar esta posição na legislatura
seguinte. Quando se elegeu pela primeira vez em 1988 foi o segundo vereador mais
votado da capital, perdendo apenas para o cantor Gilberto Gil. O assembleiano Pedro
Melo também foi eleito pela primeira vez em 1988 com o voto dos evangélicos.
Já no grupo dos novatos da legislatura 1993-1996 estavam os vereadores
Geraldo Alves Ferreira e Eliel Santana. Eliel Santana e Pedro Melo eram
representantes oficiais da Assembleia de Deus na Câmara Municipal e agiam como
verdadeiros prepostos dos assembleianos, defendendo os interesses do grupo.
Geraldão ou Super Geraldo, forma como era designado o vereador do Partido Social
Democrata Brasileiro Geraldo Alves Ferreira, fazia parte da base de sustentação da
prefeita Lídice da Mata. Durante seu primeiro mandato se tornou membro da Igreja
Universal do Reino Deus e passou a partir deste momento a compor o quadro de
“defensores” do grupo em Salvador. Outro convertido durante o mandato foi Beto
Gaban que se tornou um árduo defensor dos interesses batistas na Câmara.
Ainda não havia uma identidade de grupo entre estes evangélicos e eles
atuavam de forma individual para atender aos interesses dos seus grupos. A força dos
evangélicos em todas as esferas do legislativo brasileiro pareceu estar diretamente
ligada à sua capacidade de agir como um bloco unido por interesses comuns, em
razão de sua condição minoritária na sociedade. As demandas de cada grupo foram
mais atendidas à medida em cresceu sua participação, quando estes passaram a agir
em conjunto com outros grupos religiosos ligados ao seu credo. Ou seja, não existia
uma bancada evangélica durante a prefeitura de Lídice da Mata, mas vereadores
batistas, assembleianos e iurdianos. Esta condição ocasionou limitações a sua
oposição às políticas públicas desenvolvidas pelo governo municipal em relação ao
povo de santo. Alvaro Martins, por exemplo, acreditava que estaria ocorrendo uma
negação de um Estado laico e se contradizendo o principio da liberdade religiosa.
Como uma contestação da política de preservação e promoção do candomblé em
1996, o batista Alvaro Martins apresentou o projeto de lei 75/96. Este tinha como
finalidade proibir que espaços públicos recebessem nomeação religiosa. Assim ele o
justifica:

Tomamos a iniciativa de apresenta[r] este Projeto de Lei,


tendo em vista que o nosso município é composto de uma
religiosidade bastante diversificada, fruto da liberdade de culto

6
e da Democracia, pertinentes à nossa sociedade. A
denominação de logradouros, escolas, creches ou qualquer bem
público, não deve ter nenhuma tendência religiosa, haja vista
que um patrimônio de toda coletividade com a denominação
com cunho religioso tende a agradar a um segmento e
desagradar outros.
Queremos citar, como exemplo, a denominação que
recentemente foi dada ao abrigo para meninas carentes da
Prefeitura de “Casa de Oxum”, que se constituiu claramente em
homenagem ao culto afro, trazendo, desta forma, um
desagrado aos evangélicos, católicos, carismáticos e outros
segmentos que não coadunam com a filosofia religiosa praticada
pelo candomblé.
Por estas razoes, e também por sabermos que todos os
segmentos merecem ser respeitados em suas convicções
religiosas, apresentamos este Projeto que acreditamos ser
justo, para apreciação dos nobres pares.12

O vereador Alvaro Martins não desejava que logradouros públicos recebessem


intitulações como “Casa de Oxum” porque estavam ligadas a determinadas crenças,
mas ao que parece não pensava desta maneira em momentos anteriores, uma vez
que foi autor de dois projetos que tiveram este objetivo. O PL 396/1991 e o PL 246/95
denominavam Jesus de Nazaré e Praça da Bíblia a logradouros públicos da cidade de
Salvador.13 Certamente o que importava não era tanto a homenagem, mas quais
grupos eram agraciados com a celebração.
Bastante sutil a crítica de Martins a atuação da prefeitura em relação ao povo de
santo. Esta atitude difere bastante da que se verificaria na legislatura seguinte, de
1997-2001, onde a disputa se daria de forma mais agressiva. Neste momento os
vereadores evangélicos ainda lutavam pela sua afirmação dentro da própria Câmara e
a constituição de uma bancada ainda era um projeto em formação que só se
consolidou na legislatura seguinte. Nesta o número de vereadores evangélicos passou
de 6 para 7 representantes14, sendo composta por três vereadores iurdianos,
Alexandre Madureira, Domingos Bonifácio e Geraldo Ferreira, e por Alvaro Martins
(batista), Beto Gaban (batista), Pedro Melo (AD) e Eliel Santana (AD). Os vereadores
evangélicos ainda se opuseram de forma veemente a construção de uma casa da
herança africana, em 1996, que consideraram como uma valorização das religiões

12
PL 75/96 de 03/06/1996. DOM, DL (Diário do Legislativo), 28/11/1996, p. 7.
13
DOM, 20/11/1992, p. 15 e 29/12/1995, p. 3, respectivamente.
14
Como já foi obervado durante a legislatura 1992-1996 dois vereadores se tornaram políticos
evangélicos: Geraldo Ferreira se tornou iurdiano e Beto Gaban, batista.
7
afro-brasileiras, a despeito dos demais edis tentarem afirmar que apenas estavam
reconhecendo o papel dos africanos para a formação da cultura brasileira.15
A atuação dos evangélicos e as transformações que sofreu ao longo de sua
trajetória na política não seriam possíveis sem as modificações discursivas que ao
mesmo tempo em que refletiram as mudanças ajudaram a disseminar e justificar
diante dos fiéis a necessidade desta ampliação. A sua presença nos espaços
legislativos esteve de certa forma articulada a construção de um “reino na terra”, uma
“administração pública à luz do Evangelho”. Aliás, este foi o título bastante sugestivo
de um seminário organizado, em 1995, por vereadores evangélicos no legislativo
soteropolitano para discutir a relação entre os cristãos e a política:

O autor da proposta, Domingos Bonifácio, lembrou que os


problemas que existem nas esferas do Poder Executivo, seja ele
federal, estadual ou municipal, são originários sobretudo pela
falta do temor a Deus. Ele cita a corrupção, a malversação de
recursos e a proliferação de obras inacabadas, como
consequências de administrações que não priorizam metas
cristãs, como o respeito ao próximo e às coisas públicas. “Em
épocas passadas esses problemas também existiam. Mas houve
homens tementes a Deus que também administraram e fizeram
prosperar cidades e sanear seus problemas cruciais”, disse
Bonifácio. Segundo ele, na atual administração municipal, estão
faltando ações e atitudes confiáveis. “É preciso tocar uma
administração sem retaliações ou privilégios”, adverte.16

Não seria leviano imaginar, a partir das relações estabelecidas entre Lidice da
Mata e o povo de santo, quais seriam as pessoas que estariam sendo agraciadas, na
visão de Bonifácio, com privilégios no governo municipal. Assim é compreensível que
dois anos depois, em 1997, tenha lançado o projeto de Lei 188/97 de 20/10/1997 que
autorizava o chefe do Poder Executivo a promover liberação, permissão e concessão
de obras de arte a diversos segmentos sociais, inclusive religiosos. Garantir o direito
aos “católicos de reivindicar a instalação de santos em locais públicos”, dos budistas
pedirem “a colocação de estátuas do seu líder maior (Buda)" e quem sabe dos
evangélicos construírem praças com imagens de Bíblias estava subentendido na
justificativa do projeto: “Nada mais justo é permitir que todos os segmentos sociais
tenham os mesmos direitos, construindo seus símbolos, suas obras de arte e
expondo-os nos diversos logradouros públicos da cidade, sem que haja nenhuma

15
DOM, DL, 19/04/1996, p. 5.
16
DOM, DL, 28/11/1995, p. 1.
8
discriminação”.17 Neste momento o incomodo se dava em função da instalação das
esculturas de orixás no Dique do Tororó e o prefeito era outro, Antonio Imbassahy,
mas a referências aos supostos privilégios dos demais grupos religiosos, notadamente
os de origem africana, permaneciam as mesmas. O jornal Folha de São Paulo
registrou a indignação dos evangélicos com os planos de urbanização do Dique do
Tororó e como o vereador iurdiano Domingos Bonifácio assumiu a liderança do
movimento, com o argumento de que a Constituição Federal os protegeria:

"O dique do Tororó é um local público e merece ser


preservado deste tipo de imposição religiosa", disse o vereador.
Na semana passada, representantes dos evangélicos
encaminharam ao governador Paulo Souto (PFL) uma carta
pedindo a suspensão da obra.
Há três dias o governador também recebeu uma comissão
de representantes dos evangélicos para discutir o projeto.
Segundo a assessoria do governador, a decisão de instalar
as esculturas está mantida. Segundo seus assessores, Souto
argumenta que as esculturas são obras de arte.
"Este pensamento do governador dá direito aos católicos
de reivindicar a instalação de santos em locais públicos, assim
como os budistas podem pedir a colocação de estátuas do seu
líder maior (Buda)", disse José Bonifácio.18

Observa-se nesta declaração como a discussão estava relacionada a uma


suposta negação de um Estado laico, que estaria contradizendo o principio da
liberdade religiosa. É interessante observar como grupos que muitas vezes
justificaram sua entrada na política com também decorrente de sua condição religiosa
sempre estivessem tão preocupados com a laicidade estatal. Evidentemente que esta
isenção estatal só interessava na medida em que o Estado beneficiava apenas os
outros grupos.
Desde a elaboração da nova Constituição em 1988, na verdade, os movimentos
sociais então emergentes colocaram lutas identitárias ou afirmativas por direitos civis
na pauta do dia, superando uma perspectiva apenas classista ou burocrática.
Mulheres, negros, trabalhadores, homossexuais e outros segmentos buscaram atender
suas demandas. As Câmaras Municipais, as Assembléias Legislativas ou o Congresso
Nacional se tornaram cada vez mais um espaço de negociação, conflito, trocas, para
tais grupos. Portanto, a emergência de grupos mais ligados à Esquerda e, portanto,
com uma agenda política que levava em conta as reivindicações de setores da

17
DOM, DL, 22/10/1997, p. 4.
18
Folha de São Paulo, 10/10/1997. Disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff101023.htm Acesso em 10/01/2009.
9
comunidade negra baiana, aliado as boas relações que esta mesma comunidade
mantinha com o então governador Antonio Carlos Magalhães possibilitaram um
relativo destaque às políticas públicas destinadas ao povo de santo.
Os grupos religiosos de matriz africana tiveram no governo de Lídice da Mata um
maior espaço político, seja através da valorização de seus terreiros, seja através da
promoção de suas práticas religiosas na sociedade de uma forma geral. Condenando
iniciativas de outros vereadores como a sugestão de criação de uma Casa da Cultura
Africana, questionando as ações da prefeita no sentido de promover terreiros de
candomblé tradicionais, os vereadores evangélicos iniciaram no governo de Lídice da
Mata a base para a construção de uma bancada evangélica atuante na Câmara
Municipal de Salvador, que veio a se consolidar nas legislaturas seguintes.

Bibliografia

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Antônio Carlos Magalhães. Salvador: Faculdade de Comunicação - UFBA, 1999 (tese
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Carlos Magalhães na modernização da Bahia (1954 – 1974). Belo Horizonte, Rio de
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PIERUCCI, Antonio Flavio. A realidade social das religiões no Brasil: religião,


sociedade e política. São Paulo: Hucitec, 1996.

10
11
A BAKTI-YOGA VAISHNAVA REDEFININDO A VIDA DOS DEVOTOS

Jaqueline Gomes Ribeiro*

Irene de Araújo van den Berg Silva**

Resumo

O presente trabalho discute as atividades da corrente religiosa vaishnava em Natal.


Nessa cidade inexiste uma sede da comunidade e todas as atividades do grupo são
realizadas nas casas dos adeptos. A filosofia, os textos sagrados e a teologia do
grupo são orientados a partir de interpretações de Sua divina Graça A.C.
Bhaktivedanta Swami Prabhupada, cujo papel foi fundamental no sentido de
promover uma cultura religiosa pautada em aspectos culturais e históricos da Índia.
Essa cultura religiosa transforma os modos de vida dos devotos nos aspectos
alimentares, de relacionamentos e diversões, ao mesmo tempo em que a vida para
eles passa a ser mais ritualística. A pesquisa mostra a redefinição de postura do
praticante da bhakti-yoga, em três aspectos: a compreensão sobre o amor, o
trabalho e a felicidade. A pesquisa de campo foi realizada principalmente na casa
de uma devota que realiza o festival de domingo, aberto a visitantes. Concluo que
essa tradição é um meio de educação para os adeptos.

Palavras-chave: Pesquisa, Krsna, Bhakti-yoga.

Reflexões iniciais acerca dessa pesquisa

A pesquisa de campo que fundamenta esse trabalho foi realizada na casa da


devota Avatara, em Natal/RN, onde acontece um culto de domingo aberto a
visitantes (chamado pelos devotos de festival de domingo).

* Jaqueline Gomes Ribeiro, Graduada em Ciências da Religião pela Universidade do


Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
** Irene de Araújo van den Berg Silva, Professora Doutora do curso de Ciências da
Religião pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
Na cidade não existe uma sede da religião e todas as atividades do grupo
Hare Krsna acontecem ou em ambientes domésticos, como no caso da residência
da devota, ou em espaços de fins coletivos, quando se realizam atividades mais
públicas, como é o caso do Festival de Radhastami que se trata do aniversario da
Deusa Radharani, face feminina e namorada do Deus Krsna (SWAMI, 2001).
A pesquisa teve início a partir da realização de um trabalho de graduação
para a disciplina Antropologia Religiosa que eu cursava àquela altura. Com esse
objetivo,
busquei o grupo através de um colega de curso que era devoto e já tinha uma
vasta experiência e relação dentro da comunidade. Desde então, há pelo menos
quatro anos, frequento a comunidade e, desse período, há pelo menos dois anos
me encontro na condição de pesquisadora-devota. Essa experiência tornou-se
importante para a pesquisa, pois vem proporcionando perceber as peculiaridades
das relações que se processam no interior da comunidade.
Considerando que esta comunicação busca tratar a redefinição da vida dos
devotos, é importante ressaltar que a experiência enquanto devota favorece a
percepção das implicações que a adesão à religião gera no plano das vivências
cotidianas dos devotos em relação aos princípios religiosos Hare Krsnas. Além
disso, a condição de pesquisadora-devota me introduz no âmbito das relações e
conflitos internos da comunidade, experiência que nem de longe é possível a um
mero visitante ou expectador-pesquisador.
O acesso à informação como pesquisadora ou como devota é bastante
diferente. Diz-se muita coisa ao pesquisador pelo status que essa posição lhe
assegura. Qualquer devoto de qualquer religião orgulha-se de uma pesquisa que
resultará num livro sobre sua casa, mas isso tem implicações diretas na forma
como essa comunidade e suas práticas são apresentadas ao pesquisador.

Como se vê, a presença em muitos terreiros de cientistas e


intelectuais provenientes das classes dominantes brancas foi
impostas por eles, mas também foi incentivada pelas
comunidades religiosas como forma de divulgar suas
tradições, estabelecer alianças com as elites, desqualificar
inimigos e angariar legitimidade dentro do próprio campo
religioso. (SILVA, 2000, p. 78).

Na condição de membro partilhante da comunidade é possível perceber


movimentos que estão para além daqueles selecionados com o intuito de que se
tornem públicos. No mesmo sentido, também permite distinguir até que ponto há
uma verossimilhança entre o que está prescrito nos conceitos, princípios e rituais
daquilo que se observa efetivamente no comportamento dos devotos.

Certamente, o pesquisador-devoto se coloca num plano de dilema ético


bastante superior ao pesquisador comum, posto que, ao mesmo tempo em que
enxerga mais que o outro, não lhe cabe revelar os elementos religiosos que a
comunidade considera segredo. Assim, enquanto o pesquisador comum não tem as
mesmas oportunidades de acesso às informações para que decida se publica ou não
(SILVA, 2000) o pesquisador-devoto as conhece, mas não as pode revelar sob pena
de trair a confiança de seu próprio grupo. Desse modo, um pesquisador-devoto
nunca é um devoto igual aos outros, pois ele não chega ao espaço religioso com as
mesmas intenções e pelos mesmos caminhos que um devoto comum. Por outro
lado, ele também não é um pesquisador comum, pois embora alcance o patamar de
conhecimento profundo da comunidade tão almejado por um investigador, ele
precisa triar aquilo que pode ser dito e aquilo que precisa ser silenciado. Nas seções
que apresento adiante busco apresentar a comunidade e suas dinâmicas, mas sem
dúvida alguns silêncios estão marcados nas entrelinhas.

A Religião e o grupo de Natal.

Para se entender o movimento Hare Krsna é necessário lembrar seu berço, o


espaço e a cultura de onde veio o movimento, a Índia. Nesse país, variadas
manifestações religiosas passaram a ficar conhecidas como hinduísmo. É
equivocado pensar que se trata de uma religião apenas. Na verdade, o hinduísmo
abraça diversas correntes religiosas que estão sob essa nomenclatura.
Weber (apud OLIVEIRA, 2008) esclarece que a expressão hinduísmo foi
atribuída aos habitantes da Índia pelos islâmicos, por ocasião de sua dominação
perante esse povo, que não convertidos ao islamismo foram chamados de
hinduístas.
Dentre as várias correntes religiosas existe a corrente vaishnava, que em
sânscrito se traduz como devoto de Visnu, que é o próprio Krsna, personalidade
divina na visão dos devotos vaishnavas. A corrente também é conhecida como Hare
Krsnas e seus hábitos cotidianos foram pesquisados para esse trabalho. Essa é uma
corrente religiosa embasada nos livros sagrados hindus, os vedas, que se definem
como as primeiras grandes obras escritas em sânscrito da literatura e da religião
hindu. A palavra veda significa conhecimento, daí a denominação de religião védica
– religião que busca o conhecimento. E é nos vedas que se baseiam muitas das
diversas tradições religiosas que se costumam pensar como hinduísmo.
Para os seguidores destas correntes, o conhecimento védico só deve ser
transmitido aos discípulos através dos mestres por uma sucessão discipular
chamada parampara. Relembrando a variedade de correntes dentro do hinduísmo,
vale a pena salientar que o conhecimento é passado numa idéia de linha
ininterrupta entre os seguidores de cada corrente. Elas têm suas peculiaridades,
suas variações no que concerne à visão teológica, exercício de seus rituais e
segmentos filosóficos de acordo com cada corrente.
A linha sucessória do parampara seguida pelos vaishnavas começa com a
própria divindade, Krsna, seguido por outros mestres ou gurus, até chegar a Sri
Caitanya Mahaprabhu, há 526 anos. Seu aparecimento ocorreu na região da
Bengala, Índia, na cidade de Nawadiwpa. Na visão dos devotos, Caitanya
Mahaprabhu é o próprio Krsna, ou Deus. Nesta última vinda a esse planeta, Krsna
como Caitanya com sua autoridade suprema estabeleceu o cantar dos santos
nomes do Senhor (Hare Krsna Hare Krsna Krsna Krsna Hare Hare Hare Rama Hare
Rama Rama Rama Hare Hare) como o yoga-dharma (método recomendado para se
alcançar o divino, para cada era) para essa era.
Seguindo o parampara chega-se à Sua Divina Graça A.C. Bhaktivedanta
Swami Prabhupada, Acarya fundador da Sociedade Internacional para a Consciência
de Krsna, a ISKCON, e também difusor do movimento Hare Krsna no ocidente.
O movimento Hare Krsna difundiu quatro princípios como seus pilares, a
saber, não comer carne, peixes e ovos para o desenvolvimento da não violência,
não praticar sexo ilícito (fora do casamento) para manter uma consciência e hábitos
puros, o não uso de tóxicos entorpecentes para manter uma mente sóbria e a não
prática de jogos de azar para desenvolver a honestidade. O propósito dessa religião
é a prática de bhakti-yoga, que significa construir uma relação pessoal com Deus, e
estar sempre consciente de Krsna. Bhakti-yoga é o processo de se unir à Suprema
Personalidade de Deus através do serviço devocional amoroso ao Senhor, de
maneira que: “Tudo o que você fizer, tudo o que comer, tudo o que oferecer ou der
para os outros, e quaisquer austeridades que você executar – faça isto, ó filho de
Kunti, como uma oferenda a Mim.” (PRABHUPADA, 2008, p. 489), (BG 9.27). Isso é
serviço devocional, isso é bhakti-yoga, essa é a vida dos devotos.

O culto bhakti, via de libertação máxima para o


vaishnavismo, define-se, portanto, como uma participação
direta e sentimental do fiel (em corpo, fala e mente) na
relação pessoal com Deus, nesse caso, com Krishna. Isso nos
leva a entender que a meta máxima desse culto é a união
(Yoga) amorosa e mística com Krishna; um amor que
prepara o amante para a libertação e a perfeição dele
mesmo. (OLIVEIRA, A. S. 2008, p. 106).

E esse processo se concretiza quando o devoto oferece, para Deus, todos os


seus atos pessoais e propostos pela religião, a saber, o cantar dos santos nomes, a
prática de adoração às deidades (imagens dos altares dos devotos sob variadas
formas de Krsna), entre outros. Há também a prática do estudo constante das
escrituras sagradas que instruem o devoto sobre como viver nesse mundo de modo
a alcançar o supremo, ou o planeta de Krsna, ou ainda o paraíso.
Os devotos de Krsna chegaram ao Brasil em 1974 e permanecem como uma
das mais sólidas instituições religiosas de origem oriental não vinculada a grupos
étnicos. A primeira impressão levava os desavisados a compreender os hare krsnas
como um grupo de vivência exótica divulgadores da espiritualidade oriental. Hoje
eles compõem o cenário religioso brasileiro mais amplo disputando espaço com
outras denominações. Esta transformação fez com que a ISKCON se adaptasse ao
modo de ser ocidental e também contribuísse com seus traços culturais para a
composição do quadro cultural religioso da sociedade brasileira. (GUERRIERO,
2001).
Um grupo pequeno compõe o cenário religioso dos hare krsnas em Natal. A
devota mais velha, Avatara Devi Dasi é também a responsável por difundir a
religião referida nessa cidade desde 1981, quando se mudou do Rio de Janeiro para
Natal. Hoje se tem um grupo de mais ou menos vinte pessoas.
Em Natal não há templo. Os devotos costumam se reunir na casa da devota
Avatara que realiza com a colaboração dos hare krsnas de Natal o festival de
domingo e costuma receber, além dos devotos que moram na cidade, visitantes
locais que acabam por se tornarem freqüentadores com níveis variáveis de
assiduidade. Esse ambiente onde se congrega pessoas em torno de práticas
religiosas também é espaço de conflitos, disputas internas, confusões em relação à
delimitação de relacionamento religioso (ou o que se chama nesse âmbito religioso
de associação devocional) e conduta/privacidade na vida pessoal das pessoas que
lá freqüentam. Isso, por vezes, acaba levando simpatizantes e devotos a
distanciarem-se do convívio sócio religioso nesse espaço.
Esses conflitos, por sua vez, não condizem com o que seria coerente em
âmbito religioso como se ilustra na citação a seguir: “Um mestre fidedigno deve
sempre pensar: “Eu mesmo sou um mero servo de Deus, o meu discípulo também
é um servo dEle, e estou simplesmente ajudando essa pessoas a servi-lo”.”
(GOSWAMI, 2012, p.98).
É perceptível que esses conflitos se dão com tal intensidade, nesse espaço,
por não se tratar de um espaço neutro e público como é nos casos de templos em
outros lugares e religiões. Mesmo que se realize o Festival de domingo aberto a
visitantes, o espaço é propriedade privada residencial, um espaço particular onde a
autoridade é a da senhora do lar e os convidados devem comportar-se de acordo
com o ponto de vista da anfitriã e não apenas estritamente com os pontos de vista
do comportamento ético religioso. Nesse caso, qualquer discordância gera conflitos.
Importa relatar aqui que a devota Avatara, que promove e abre sua casa
aos visitantes para o festival de domingo, o faz com seus próprios recursos e a
colaboração dos devotos de Natal, com o intuito primeiro de dar às pessoas a
oportunidade de conhecer Krsna e exercer sua própria fé, desejo comum entre
pessoas religiosas.
A existência de conflitos em espaço religioso é um retrato comum das
relações humanas, o conceito de Deus traduz perfeição, mas seus pregadores são
humanos, o conceito de humano é antagônico ao de Deus no se refere à perfeição.

Krsna: A Pessoa Suprema


Para os devotos vaishnavas, o Deus Krsna é uma pessoa. Longe de ser uma
pessoa comum ele é a Pessoa Suprema. Assim, os hare krsnas são personalistas e
entendem a Suprema Personalidade de Deus como sendo uma pessoa com a cor de
nuvens azuladas, adornado com muitas jóias e com traços da arte indiana.

O vaishnavismo defende irrevogavelmente que o Absoluto é


uma pessoa e que o homem é eternamente individual, sendo
a união (Yoga) entre ambos uma realidade possível, baseada
em uma forma amorosa de relacionamento, e não em uma
simples imersão na energia impessoal do Absoluto.
(OLIVEIRA, A. S. 2008, p. 102).

A relação pessoal que os devotos mantêm com Krsna, o processo de bhakti-


yoga, que tem origem nos termos: devoção pura (bhakti) e exercício da devoção
(yoga), não permite pensar em Deus como sendo uma energia, pois ninguém se
relaciona com uma energia. Para eles, Krsna é palpável, tem forma, é belo.

Ao compreendermos a Pessoa Suprema, visualizamos por


completo esses aspectos da Verdade Absoluta. Vigraha
significa “forma”. Logo, o Todo Completo não é desprovido
de forma. Se Ele não tivesse forma, ou se houvesse algum
aspecto de Sua criação que fosse superior a Ele, Ele não
poderia ser completo. O Todo Completo deve conter tudo o
que está dentro do limite de nossa experiência, bem como o
que ultrapassa; caso contrário, Ele não pode ser completo.
(PRABHUPADA, 1999, p. 2).

O nome Krsna significa, em sânscrito, o todo atrativo. Ele é o aspecto


pessoal da verdade absoluta, a pessoa mais atrativa, mais bela, fonte de todas as
qualidades dos seres humanos, o Deus cultuado pelos devotos do movimento Hare
Krsna.

Inteligência, conhecimento, estar livre da dúvida e da ilusão,


clemência, veracidade, controle dos sentidos, controle da
mente, felicidade e aflição, nascimento, morte, medo,
destemor, não-violência, equanimidade, satisfação,
austeridade, caridade, fama e infâmia – todas essas várias
qualidades dos seres vivos são criadas apenas por Mim.
(PRABHUPADA, 2008, p. 507), (BG 10.4-5).

Para os devotos, Krsna possui ilimitadas qualidades não sendo possível de


ser descritas todas, no entanto, também é o dono de seis opulências (que são
características que também lhe conferem qualidades), as quais o caracterizam
como o todo atrativo, a saber: o poder, o conhecimento, a beleza, a riqueza, a
fama e a renúncia.
O próprio nome Krsna é revelador de qualidade em relação à divindade: “Na
verdade, o próprio nome “Krsna”, que não é um nome sectário, significa “o prazer
maior”. Krs significa “o maior”, e na significa “prazer”.” (PRABHUPADA, 2011b, p.
10). Conforme a tradição, ele próprio se descreve no livro sagrado dos devotos, o
Bhagavad-Gita. Há também outras literaturas que fazem referência a Ele e que são
descritos pelos seus devotos, como o Srimad Bhagavatam.
A leitura de livros sagrados é chamada de sacrifício, pois se entende que ao
ler os livros sagrados uma pessoa está se oferecendo em sacrifício a Krsna. Sua
inteligência, que comumente usa para qualquer outro tipo de estudo que não o
estudo sagrado acerca do divino, portanto, essa atividade é considerada como
serviço devocional amoroso ao Senhor ou uma das práticas de bhakti-yoga.

Quanto mais servimos, mais rendidos a Krsna estaremos;


por conseguinte, uma pessoa deve utilizar quaisquer talentos
que tenha a serviço de Krsna. Há nove processos de serviço
devocional – ouvir, cantar, lembrar, servir, adorar a deidade,
orar, cumprir ordens, fazer amizade com o Senhor e
sacrificar tudo por Ele – e devemos nos manter sempre
ocupados em pelo menos um destes nove processos.
(PRABHUPADA, 2011a, p. 67).

A atividade de ler, ouvir, falar e ver Krsna na forma das deidades é


chamada por seus devotos de Krsna Katha.

A Casa como Espaço Sagrado: A Prasadam e os Mantras.


Os devotos têm uma conduta religiosa tal que essa não se separa de suas
vidas pessoais. Suas casas são as casas de Krsna e, portanto, um espaço sagrado.
Ser um devoto de Krsna significa, em razão de cumprir os quatro princípios já
relatados: não comer carne, peixes e ovos, não praticar sexo ilícito, não jogar jogos
de azar e não usar entorpecentes. Esses princípios se desdobram em aspectos
cotidianos, como por exemplo, não usar bolsas e sapatos de couro ou ainda conferir
todos os ingredientes nas compras de supermercados e restaurantes. Como suas
casas são os espaços principais onde devem exercer as atividades sagradas a
preparação dos alimentos é aspecto singular no cumprimento dos mandamentos
religiosos. Assim, como tudo que se cozinha se oferece a Krsna, as panelas, por
exemplo, não podem ser contaminadas cozinhando nada que contenha carne, ovos
ou peixes. Todas essas situações demonstram como a conduta cotidiana dos
devotos implica numa postura ideológica/prática diante da vida.
A prasadam é o alimento oferecido ao Deus Krsna, e, portanto, considerado
como o próprio Krsna em forma de alimento. Essa oferenda se dá com a pessoa
recitando o mantra (mantras são canções/orações sagradas em sânscrito) do seu
mestre espiritual,pois cada mestre ou guru tem um mantra diferente. Quem não foi
iniciado por nenhum guru, faz a oferenda recitando o mantra de Sua Divina Graça
A. C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada, que é considerado o mestre espiritual de
todo o ocidente, já que foi ele que difundiu o movimento Hare Krsna fora da Índia.
Depois de pronta a prasadam, os devotos costumam cantar um mantra
glorificando a prasadam antes de comerem. Eis o mantra que glorifica a prasadam,
Krsna em forma de alimento:

Ó irmãos! Este corpo material é um lugar de ignorância, e os


sentidos são uma rede de caminhos que seguem em direção
à morte. De alguma forma, caímos neste oceano de desfrute
dos sentidos materiais, e de todos os sentidos a língua é
muito voraz e incontrolável; é muito difícil conquistar a
língua neste mundo.
Porém, o Senhor Krsna é muito bondoso conosco e deu-nos
essa prasadam tão saborosa, só para que possamos
controlar a língua. Agora, tomemos esta prasadam até
ficarmos plenamente satisfeitos e glorifiquemos a Radha e
Krsna, e com amor peçamos a ajuda do Senhor Caitanya e
Nityananda (PRABHUPADA, 1996, p. 46-47).

Os devotos normalmente são ótimos cozinheiros. Esse interesse culinário se


dá pela peculiaridade das comidas que um devoto pode comer e oferecer a Krsna:
“Se alguém Me oferecer, com amor e devoção, uma folha, uma flor, frutas ou água,
Eu as aceitarei.” (Prabhupada, 2008, p. 486), (BG 9.26). Fundamentados nesse
verso de seu livro sagrado, o Bhagavad-Gita, os Hare Krsnas nada comem que
possa conter carne, ovos e peixes, pois são lacto – vegetarianos. O próprio Krsna
disse suas preferências culinárias nesse livro conforme citação acima. A prasadam
“(só se come prasada, comida oferecida primeiramente a Krsna,)” (Prabhupada,
2011a, p. 16) tem um valor muito especial entre os Hare Krsnas, valor oposto ao
valor de um alimento profano ou não sacralizado.
Os devotos do Senhor libertam-se de todas as espécies de
pecados porque comem alimentos que primeiramente são
oferecidos em sacrifício. Outros que preparam o alimento
para a satisfação dos próprios sentidos, na verdade, comem
apenas pecado. (Prabhupada, 2008, p. 179), (BG 3.13).

Assim, a prasadam é um dos elementos essenciais que compõem as


atividades cotidianas dos devotos em suas casas. Interferindo em suas escolhas e
em suas opções de consumo.
Outro elemento que está intimamente ligado as práticas cotidianas dos
devotos é o cantar de mantras. Não apenas o cantar de Hare Krsna marca a
musicalidade nessa tradição, tudo que se canta é em sânscrito. Os instrumentos
usados para tocar os mantras são o harmonium, que é um instrumento de cordas
como um mini teclado e com fole acoplado, a mrdanga que é um instrumento
percussivo e karatalas que são como pratos pequenos de metal. Sem o cantar de
mantras não poderia haver a maioria dos rituais no âmbito vaishnava, pois essa
tradição está intimamente ligada à musicalidade.
Os mantras também podem ser recitados, como ocorre no caso do cantar do
maha-mantra (grande hino védico) Hare Krsna no que se chama de japa mala. A
japa é uma espécie de rosário de 108 contas que são recitadas pelos integrantes da
ISKCON, 16 vezes por dia. A japa é feita em geral de tulace, uma planta sagrada
dos vaishnavas, planta essa da qual é feita também a kante dos devotos, a saber, o
colar de contas de madeira que todos os devotos usam para sua proteção e
identificação espiritual.

Alegria, Conhecimento, Amor e Serviço.


É nítida a alegria, a felicidade de um devoto Hare Krsna em seus cultos
alegres. Talvez por isso sejam chamados de festivais. Ele é facilmente reconhecido
na multidão, não apenas pelos tão conhecidos trajes açafrão e cabeças raspadas
dos monges, mas pelos entusiasmados festivais realizados nas ruas, nos quais se
canta, toca e dança o maha mantra hare krsna com muito entusiasmo, para seu
querido Deus Krsna. Essa postura se relaciona com a ideia de que é incompatível
sentir-se pobre e infeliz diante do Senhor da Riqueza e da Renúncia, que não deixa
seu devoto perecer jamais. O amor e a benevolência de Krsna são infinitos para
com seus devotos e, portanto, não há motivo para tristeza.
Em entrevista concedida pelo devoto Udharana Dasa, em 25/02/12, ele
explica que é uma ofensa chorar na frente da deidade, pois se alguém está com
sede perante uma cachoeira só choraria se não compreendesse aquilo como água,
mas ao compreender o sentido profundo da situação a atitude do devoto seria bem
outra. Então uma pessoa só chora na frente de uma deidade se não consegue
realizar o conhecimento, se não compreende que lá está Deus.
Deus é perenemente feliz, porque é belo, bom, verdadeiro. A
aquisição da natureza divina é progressiva no tempo e
definitiva no eterno. O homem se torna feliz à medida que
encarna em si os pensamentos e o agir de Deus, assumindo
a maneira de ser da Divindade, revestindo-se da Verdade,
Bondade e Beleza divina. O desejo de felicidade, no homem,
é o desejo de voltar gradativamente para a sua origem e o
seu útero, que é o Criador e Pai Perfeito. (MARCHIONII,
2008, p. 73-74).

Suas cerimônias religiosas são festivais com música, prasadam e muita


alegria. Os devotos costumam falar poeticamente do mundo espiritual como sendo
um lugar onde cada passo é uma dança e cada palavra uma canção.
Todos precisam de um sentido na vida para escapar da infelicidade. “A
plenitude feliz consiste na entrega de si a um ideal, isto é, idéia-guia, um projeto
nobre a ser alcançado com paixão e afinco” (MARCHIONII, 2008, p. 76). As pessoas
para serem felizes procuram por um sentido na vida. Os devotos sabem que as
misérias existem, porém, eles têm um sentido em suas vidas, Krsna.
Para os devotos de Krsna o conhecimento é elemento que permite lidar
melhor com as misérias desse mundo material, afim de alcançar Krsna. É através
do conhecimento que se adquire equilíbrio de si e com o meio. Sua fonte de
inspiração são as escrituras sagradas, os vedas. Estes textos apresentam um
processo de compreensão espiritual profundo e prático. Neles são encontrados
respostas às perguntas eternas: Quem sou eu? Por que estou aqui? Qual é o
objetivo da vida? Como posso alcançá-lo? Ao mesmo tempo, esses textos tratam de
assuntos como psicologia, amor, drama, música, cosmologia, yoga, saúde.
Segundo Dhanvantari Swami (s.d) a palavra veda significa conhecimento, o
qual materializa-se nos livros sagrados compilados pelo grande sábio Vyasadeva.
Como é comum nas sociedades antigas o conhecimento era transmitido de forma
oral, porém, com a chegada da era de kali-yuga, (a era da hipocrisia, discórdia e
mentira na qual para os hare krsnas vivemos atualmente) quando o homem perde
o poder de concentração, inteligência e memória, se fez necessário codificar os
vedas em forma escrita. Os quatro vedas são Rg, Yajur, Sama e Atharva, mas
também se considera como literatura védica toda aquela que esteja de acordo com
o sidhanta védico, o qual poderia ser resumido na descrição sobre conhecimento
encontrada no Bhagavad-Gita, (13.8-12): "aceitar a importância da auto-
realização; e empreender uma busca filosófica da Verdade Absoluta." O objetivo
dos vedas, portanto, é proporcionar respostas plausíveis para o candidato em busca
filosófica acerca da Verdade Absoluta, no caso dos vaishnavas, Krsna.
Dhanvantari Swami descreve o homem como ser limitado, com sua alma
condicionada, está sujeito a quatro tipos de limitações. 1- Pramada: tem a
tendência a cometer erros. Isto ocorre até mesmo por simples falta de atenção. 2-
Bhrama: tendência a se iludir especialmente sobre sua própria identidade. A alma
condicionada pensa ilusoriamente que é o corpo material no qual está habitando. 3-
Vipralipsa: tendência a enganar outros. Devido a nossa vasta experiência, esta
limitação do homem dispensa aqui maiores comentários; E, 4- Karanapatava: tem
sentidos imperfeitos. Nossos olhos, por exemplo, são tão incapazes de ver o que se
encontra por trás de uma parede como de nos revelar Deus.
Para seus devotos, Krsna ensina a não apegar-se e nem identificar-se com o
mundo material, trabalhando sem apego ao fruto da ação, pois as aflições não
provêem das obras, e sim do apego ao fruto dessas mesmas ações (LELOUP,
2001). Assim eles consideram o dinheiro, a fama, a família, como meios do
propósito de cumprirem seus deveres sociais e espirituais, mas não como absolutos
fins da vida.
O conhecimento é poder e um dos poderes que o conhecimento védico
propicia ao sujeito lhe permite entender para que serve o trabalho (sustentar o
corpo) e como deve ser realizado (oferecendo-o a Krsna). Esse conhecimento
confere ao devoto a segurança necessária para as atividades cotidianas do
trabalho. Qualificados sobre os saberes, muitas vezes proporcionados pela vivência
religiosa do serviço devocional a Krsna, tais como cozinhar, tocar, costurar, entre
outros, os devotos vaishnavas realizam essas tarefas também para o seu sustento.
Contudo, isso não funciona como uma via de mão única. Os saberes da vida são
trazidos para o serviço devocional, mas aprendendo os saberes do serviço
devocional também se aprende para a vida. O conhecimento, o saber, é uma
dádiva especial de Krsna, que incentiva seus devotos a serem responsáveis por seu
próprio sustento que é uma exigência do próprio corpo. “Execute seu dever
prescrito, pois este procedimento é melhor do que não trabalhar. Sem o trabalho,
não se pode nem ao menos manter o corpo físico.” (PRABHUPADA, 2008, p. 172),
(BG 3. 8). Então se se têm algum tipo de conhecimento, de saber, como o saber de
um ofício, por exemplo, esse foi dado por Krsna que afirma sobre o próprio
conhecimento transmitido no livro sagrado Bhagavad-Gita: “Este conhecimento é o
rei da educação, o mais secreto de todos os segredos. É o conhecimento mais puro
e por conceder uma percepção direta do eu, é a perfeição da religião. Ele é eterno e
é executado alegremente.” (PRABHUPADA, 2008, p. 449), (BG 9. 2).
Como senhor da riqueza krsna é o mantenedor de seu devoto e mesmo
aqueles cuja única propriedade é Krsna são considerados os mais ricos, pois Ele é o
maior de todos os bens. “Ele logo se torna virtuoso e alcança a paz duradoura. Ó
filho de Kunti, declare ousadamente que o Meu devoto jamais perece.”
(PRABHUPADA, 2008, p. 495), (BG 9. 31). Assim, essa tradição religiosa ensina um
tipo de conhecimento que conscientiza para o serviço e sobre a finalidade do
trabalho que muito tem a dizer para qualquer pessoa seja ela devoto ou não. O
próprio Krsna dá o exemplo: “Ó filho de Prtha, não há trabalho prescrito para Mim
dentro de todos os três sistemas planetários. Nem sinto falta de nada, nem tenho
necessidade de obter algo – e mesmo assim me ocupo nos deveres prescritos.”
(PRABHUPADA, 2008, p. 189), (BG 3. 22). Então, se pode dizer que os vaishnavas
incentivam e valorizam o trabalho e mais que isso, o trabalho como serviço
devocional.
É sabido que entre os seguidores de Krsna o serviço é um dos princípios de
maior repercussão.

Deve-se realizar o trabalho como um sacrifício a Visnu; caso


contrário, o trabalho produz cativeiro nesse mundo material.
Portanto, ó filho de Kunti, execute seus deveres prescritos
para a satisfação dEle, e desta forma você sempre
permanecerá livre do cativeiro. (PRABHUPADA, 2008, p.
173), (BG 3.9).

O serviço é amor a Ele. Por serviço se entende admirar Sua beleza, se


dedicar a Seu conhecimento, desenvolver amor por Deus e outras atividades.
O que é o amor? “O amor começa com este intercâmbio. Damos algo ao ser
amado, ele nos dá algo, e dessa forma o amor se desenvolve.” (PRABHUPADA,
2011a, p. 40). Não funciona como um pensamento interesseiro, mas é uma
questão de reciprocidade. Os devotos também costumam dar o exemplo de que se
alguém pensa em outrem de modo agradável, favorável, constantemente, isso é
amor.
Muitas pessoas se perguntam o que é o amor. Essa tradição religiosa traz
como respostas para essa pergunta:

Os seis sintomas de amor que os devotos compartilham


entre si são: dar presentes em caridade, aceitar presentes
caridosos, revelar os pensamentos com confiança, indagar
confidencialmente, aceitar prasada e oferecer prasada.
(PRABHUPADA, 1978, p. 39).

Considerações Finais
Entre os pontos explicitados, o serviço transpassa todos eles. A alma é
sempre ativa, essa é uma qualidade inerente a ela. Não somos extáticos nem no
mundo material nem no mundo espiritual. Por isso estamos sempre ocupados.
(PRABHUPADA, 2008).
A ação é um incentivo de Krsna. Esse é um processo religioso prático que diz
respeito ao modo de vida das pessoas. Todos precisam trabalhar para seu próprio
sustento, então, que ofereçam sua atividade em sacrifício a Krsna, com isso se
elimina o karma.
Na conduta do devoto vaishnava, suas ações não devem ser para a
satisfação de seus sentidos, mas para a satisfação da Suprema Personalidade de
Deus, Krsna. O objetivo dos vaishnavas é voltar para Krsna, entendendo que estão
como adormecidos nessa vida e que precisam acordar para a realidade
transcendental e isso só é possível ficando livre dos enredamentos materiais,
produzidos pelo karma, ou atividades materiais. Entende-se por melhor modo de
conduta a sugestão do livro sagrado: “Desse modo, você ficará livre do cativeiro do
trabalho e de seus resultados auspiciosos e inauspiciosos. Com a mente fixa em
Mim neste princípio de renúncia, você se libertará e virá a Mim.” (Prabhupãda,
2008, p. 490), (BG 9.28).
Os devotos entendem que quando se fala em renúncia não significa parar
com as atividades que uma pessoa precisa executar, mas refere-se à renúncia da
expectativa dos resultados, pois eles enredam o indivíduo nesse mundo material.
Estar com a mente fixa em Krsna é pensar nEle, no transcendente. Ao executar
atividades e a Ele oferecer essas atividades, esse é o princípio da bhakti-yoga.
Mas não é apenas no mundo material que se têm atividades. No planeta de
Krsna todos estão servindo a Ele, pois essa é a posição constitucional, eterna da
alma.
Na sociedade ocidentalizada costuma-se considerar que servir é uma
atividade menor. Essa é uma idéia deturpada para os devotos sobre o serviço. Um
servo da limpeza, por exemplo, em uma empresa é a pessoa menos notada. No
entanto, servir é natural à alma. Se não servimos a Deus, servimos a nosso patrão,
servimos nossos pais e eles nos servem nos sustentando. Servimos a nosso
cachorro, temos de alimentá-lo, dar banho. Estamos sempre servindo e sequer
notamos. Os devotos sabem da inclinação natural ao serviço, portanto servem
àquele que é superior a todos, a Suprema Personalidade de Deus, Krsna.
A atividade, o serviço e o relacionamento são inerentes à pessoa humana e
a alma de um modo geral. Os devotos sabem disso de um modo mais consciente
por orientação de seus livros sagrados e, portanto, procuram exercer esses pontos
da melhor forma possível, em função do divino.
Todos têm uma rasa, um tipo de relacionamento específico com Krsna. Não
é possível para nós não nos relacionarmos, somos seres sociais por natureza, já
nascemos em uma pequena sociedade, a família. Crescemos o tempo todo nos
relacionando e não seria diferente com Deus.
Não que Deus precise relacionar-se, os devotos explicam que Deus não
precisa de nada. Mas Ele se relaciona com seus devotos. Da mesma forma os
devotos crêem que todos têm um relacionamento eterno de serví-lo e isso causa
prazer longe de se configurar como algum tipo de escravidão, mas como uma
necessidade da alma por esse tipo de prazer.

Referências

PRABHUPÃDA, Swami. Bhagavad-Gita. São Paulo: AGA Estúdio, 2008.


PRABHUPÃDA, Swami. O Upadesamrta: O néctar da Instrução. São Paulo:
Bhaktivedanta Book, Trust, 1978.
PRABHUPADA, Swami. Karma: A justiça infalível. São Paulo: Bhaktivedanta Book
Trust, 2011a.
PRABHUPADA, Swami. Além do nascimento e da morte. São Paulo: Bhaktivedanta
Book Trust, 2011b.
PRABHUPADA, Swami. Canções Vaishnavas. São Paulo: Bhaktivedanta Book Trust,
1996.
PRABHUPADA, Swami. Sri Isopanisad. São Paulo: Bhaktivedanta Book Trust, 1999.
SWAMI, Chandramukha. Quem é a Mocinha que está com Krishna? Editoração
Eletrônica: Editora OM TAT SAT, 2001.
GOSWAMI, Hridayananda Dasa. A Meta da Vida. Sankirtana Books, 2012.
OLIVEIRA, A. S. A Índia muito além do incenso: um olhar sobre as origens,
preceitos e práticas de vaishnavismo. In: Horizonte, Belo Horizonte, v. 6, n. 12,
jun. 2008, p. 93-111. Disponivel em:
http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/viewArticle/441. Acesso
em: 16/05/11.
SILVA, Vagner Gonçalves da. O Antropólogo e sua magia. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2000.
MACHIONNI, Antonio. Ética: a arte do bom. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
LELOUP, Jean-Yves. Além da Luz e da Sombra: Sobre o viver, o morrer e o ser.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
GUERRIERO, Silas. O Movimento Hare Krishna no Brasil: uma interpretação da
cultura védica na sociedade ocidental. In: Revista de Estudos da Religião,
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http://www.pucsp.br/rever/rv1_2001/p_guerri.pdf. Acesso em: 04/03/12.
SWAMI, Dhanvantari. O que são Vedas? In: Krishna.com, 2011. Disponível em:
http://pt.krishna.com/o-que-s%C3%A3o-os-vedas. Acesso em: 03/03/12.
DE PREFEITA À PASTORA: AS “CONTAMINAÇÕES” ENTRE OS CAMPOS
POLÍTICO E RELIGIOSO NA CIDADE DE NATAL

Emanuel Freitas da Silva

emanuelffreitas@gmail.com

Doutorando em Ciências Sociais (UFRN)

“A política, outrora, eram as ideias.

Hoje, são as pessoas. Pois cada dirigente parece escolher um emprego

E desempenhar um papel. Como num espetáculo.

Doravante, o próprio Estado se transforma em empresa de espetáculos.

A política se faz, agora, encenação.”

(Roger-Gérard)

1-INTRODUÇÃO

Em tempos de secularização e de autonomia da política, passadas duas


décadas de nossa redemocratização, ocorrida a partir de 1985, podemos visualizar a
contaminação de alguns outros campos no espaço da política, passando a influenciar o
jogo político, e mesmo a transportar para este as lógicas e as regras de seu interior.
Constatamos isso ao percebermos a contínua e cada vez mais ampliada influência e
presença da religião na política brasileira, em especial do segmento evangélico. É uma
tal influência que consideramos aqui como contaminação, no sentido de uma invasão
de um modus operandi distinto do próprio à ação política mas que passa a determinar-
lhe, a dar-lhe a forma, a influenciar em demasia suas decisões.

A visibilidade dos evangélicos na política veio junto com a reformulação da


Constituição Brasileira de 1988. Toda uma mobilização foi feita diante da suspeita de
que a nova Constituição poderia declarar o Brasil como um país oficialmente católico.
Elegeram 32 deputados federais em 1986. Esse grupo, com exceção de seis deputados
identificados como de esquerda ou de centro-esquerda, compôs a conservadora
“bancada evangélica”, que funcionou, sobretudo, para votar questões consideradas de
interesse das várias denominações que a compunham. Tal presença no Congresso
Nacional tem sido cada vez mais ampliada, a ponto de na atual legislatura, a 53ª,
contarmos com 63 deputados federais e 5 senadores.
Tal presença na política, contudo, não deixa de caracterizar-se pelos vícios e
defeitos próprios de nosso sistema político, um dos quais constitui-se exatamente em
torno de nosso clientelismo. No contexto eleitoral, se é possível identificar a existência
de um certo tipo de “clientelismo religioso”, sua descrição deve levar em conta a
especificidade da instituição em pauta. Diferentemente do clientelismo político,
caracterizado pela manutenção do “curral eleitoral” do coronel e da troca de voto por
proteção e/ou dinheiro, o poder dos líderes religiosos é de outro tipo. As Igrejas
Evangélicas atuam em um terreno em que a escolha individual e a adesão voluntária
são as idéias fortes. Através delas se produzem conversões e se mantém a
participação dos fiéis. Mesmo porque há muitas e simultâneas ofertas de
pertencimento religioso entre as denominações evangélicas: muda-se com facilidade
de “pastores”, de templos e mesmo de denominações.
Mas, uma tal presença religiosa na política, a cada vez mais ampliada e com
maior poder de influência, faz-nos perceber que bem longe de podermos falar em um
mundo contemporâneo permeado pela lógica da secularização e desgaste da religião,
ou mesmo de uma arena pública bem distinta e independente da esfera religiosa, o
que vemos é, como lembra-nos Geertz (2001, p. 151), que “hoje em dia a luta
religiosa refere-se quase sempre a ocorrências bastante externas, a processos ao ar
livre que acontecem em praça pública”, caracterizando movimentos que, ao invés de
localizarem a religião em espaços particulares para aí expressarem-se, agem tendo
como consequência seu impulso “para fora, para as comoções da sociedade, do Estado
e desse tema complexo a que chamamos cultura”(p.152). Veremos nesse artigo como
a crescente presença dos evangélicos no Brasil vem acarretando maior inserção desse
agrupamento nos mais variados espaços, inclusive na política, reconfigurando seu
funcionamento.
2-A campanha e a eleição de Micarla de Souza: a vitória da mãe de família

Micarla de Sousa (PV) nasceu em Natal/RN em 1970. Filha do ex-senador


Carlos Alberto de Sousa e Miriam de Sousa, casou-se com o apresentador Miguel
Weber, com o qual tem dois filhos. É proprietária da TV Ponta Negra, afiliada do SBT
no Rio Grande do Norte. Começou sua vida pública na TV Ponta Negra, já que era filha
do proprietário da empresa, como assistente de produção. Dessa função, logo passou,
a produtora. Depois, foi diretora de programa. Em setembro de 2004, lança a sua
candidatura a prefeita de Natal, aproveitando sua forte exposição (que lhe conferiu
considerável notoriedade) em seu canal de televisão. Devido à gravidez do segundo
filho e às tendências das pesquisas da época, Micarla optou por aceitar o convite da
então governadora Wilma de Faria (PSB) para compor como vice-prefeita a chapa pela
reeleição de Carlos Eduardo Alves. Em 30 de outubro do mesmo ano, com 193 mil
votos, Carlos Eduardo foi reeleito, e Micarla tornou-se vice-prefeita de Natal.
Renunciou ao cargo em 2006 após romper politicamente com Carlos Eduardo e no
mesmo ano, se candidatou a deputada estadual. Foi a sétima candidata mais votada,
com 43.936 votos, tendo sido a segunda colocada em seu partido (PV).
Um excelente balanço da sua candidatura à prefeitura de Natal pode ser lido
abaixo:
Em 2008, Micarla de Sousa viabilizou sua candidatura para a
prefeitura de Natal com uma ampla coligação chamada "Natal
Melhor", formada por PV, DEM, PP, PMN, PTB e PR. Antes da
eleição, a era aliada da governadora Wilma de Faria na
Assembléia Legislativa, que havia reunido em sua aliança, à
exceção do DEM, um leque de partidos que dava sustentação ao
governo estadual e também fazia parte da base de governo do
presidente Lula. Para Spinelli (2010), a aliança que dava
sustentação à candidatura de Micarla possuía coerência
ideológica. Com isso, a candidatura de centro-esquerda petista
encontrou uma adversária com um posicionamento claro de
direita, conservador e temperado pelo populismo eletrônico.
Com a aliança à sua candidatura solidificada, surge então uma
facção de um dos blocos políticos norte-rio-grandenses que
sempre disputaram, ou às vezes se aliaram na busca pela
hegemonia do aparato estatal. Esses blocos políticos
hegemônicos estabeleceram-se através de tentáculos sólidos na
sociedade civil representados pela imprensa. O bloco político
hegemônico representado pela família Alves cria a Tribuna do
Norte e o bloco político da família Maia detém a FM e a TV
Tropical. [...] É através do principal órgão de opinião pública, a
televisão, que Micarla de Sousa consegue atingir setores
relevantes da sociedade civil, como o empresariado e as classes
populares organizadas (associação de bairros e outros)
utilizando um discurso liberal de deslocamento da sociedade
civil para a prestação de serviços sociais públicos, além da
participação na valorização da cultura. Nesse discurso, o
terceiro setor ganha uma dimensão de protagonista na
sociedade civil, resolvendo os problemas deixados pelo Estado
“incompetente” e “ruim”. Além disso, há um forte apelo
emocional para atingir às classes populares utilizando valores
como a família, a fraternidade e a solidariedade. (CAMPOS,
2011, p. 53-54).

Nesta campanha, Micarla de Souza (PV) possuía o apoio de um dos


principais líderes da oposição ao governo Lula, o senador José Agripino Maia (DEM),
além do presidente da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Norte, deputado
estadual Robinson Faria (PMN) e do deputado federal João Maia (PR), e também de
dois canais de televisão ao seu favor, um deles de sua família, a TV Ponta Negra,
afiliada do SBT (Sistema Brasileiro de Televisão) e a TV Tropical, afiliada da Rede
Record, pertencente ao Senador José Agripino. A deputada federal Fátima Bezerra
(PT), que já havia sido derrotada três vezes à prefeitura de Natal, era sua principal
adversária. Fátima Bezerra havia conseguido formar uma coligação que contava com o
apoio de importantes políticos. Sua coligação conseguiu unir o prefeito de Natal,
Carlos Eduardo Alves (PSB), a governadora do Estado do Rio Grande doNorte, Wilma
de Faria (PSB), o presidente do Senado, Garibaldi Alves Filho (PMDB) e o presidente
da República, Luis Inácio Lula da Silva (PT).

Micarla foi eleita em 5 de outubro de 2008, no primeiro turno com 50,84%


dos votos, o equivalente a 193.195 votos. Obteve uma maioria de 53.249 votos sobre
o segundo colocado, a deputada Fátima Bezerra. Natal se tornou, assim, a primeira
capital brasileira na qual o Partido Verde ganhou uma eleição majoritária. Em agosto
de 2010, uma pesquisa do jornal Tribuna do Norte, de propriedade da família de
Agripino Maia, em parceria com o instituto Certus mostra a avaliação da população em
relação a gestão Micarla de Sousa. A avaliação positiva (juntando as categorias
"ótimo" e "bom") da gestão municipal alcançou um índice de 25,14%. Já 34,29% dos
natalenses questionados consideram a administração "regular". Já a avaliação
negativa (juntando as categorias "ruim" e "péssima") foi de 38,72%, com 12,43%
respondendo como "ruim" e 26,29% considerando a administração como "péssima".
Em outubro de 2010, anunciou seu apoio, no segundo turno, a Dilma Rousseff (PT),
contrariando assim o grupo político que lhe apoia desde 2008, entre eles a
governadora eleita do Rio Grande do Norte, Rosalba Ciarlini, e o senador José Agripino
(que havia mobilizado seu capital político na eleição de 2008 para garantir-lhe a
vitória), que apoiam José Serra. Ao final da disputa, Serra venceria Dilma na cidade
de Natal.

Em novembro de 2010, dados de uma pesquisa divulgada no portal Nominuto


mostravam que 77,6% dos participantes desaprovavam sua gestão, enquanto que o
percentual dos que aprovavam chegava a apenas 13,3% das pessoas que
participaram da pesquisa aprovam a gestão. Outros 9,1% não tinham opinião
formada. Em março de 2011, mais uma pesquisa realizada pelo jornal Tribuna do
Norte mostrava a reprovação da gestão municipal, com um percentual de 84,5% de
reprovação.

Em maio de 2011 uma onda de protestos pedia o impeachment de Micarla de


Souza. Iniciadas através das redes sociais, as manifestações chegaram ao ápice no dia
25 de maio de 2011 quando jovens foram às ruas protestar contra a gestão. Formado
majoritariamente por jovens de classe média, o movimento tomou um caráter plural e
apartidário. Através das redes, através de comunidades e das tags #foramicarla e
#RioGrevedoNorte, novas manifestações foram agendadas. Os protestos culminaram
com ocupação da Câmara Municipal de Natal no dia sete de junho: os jovens
permaneceram 11 dias acampados com o objetivo de pedir a investigação dos
contratos firmados pela prefeitura. A ocupação culminou com a instauração da
Comissão Especial de Inquérito (CEI) dos contratos. Através dela, o Ministério Público
acusou Micarla de estar ligada a uma fraude na Secretaria de Saúde de Natal e
solicitou à Justiça que ela fosse afastada da prefeitura. No dia 31 do mesmo mês, o
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte deferiu a solicitação e a afastou da
prefeitura, pedindo que o vice-prefeito Paulinho Freire fosse empossado.

3-A Sociologia de Pierre Bourdieu: A realidade social compreendida a partir


da noção de “campo” e a relação entre os campos religioso e político

Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002), a estrutura social, de


todo simbólica, pode ser compreendida como uma estrutura formada e reproduzida
por uma série de campos com algumas relações entre si. Um campo é um microcosmo
incluído no macrocosmo constituído pelo espaço social (nacional) global. Cada campo
possui regras do jogo e desafios específicos, irredutíveis às regras do jogo ou aos
desafios dos outros campos (o que faz “correr” um matemático – e a maneira como
“corre” – nada tem a ver com o que faz “correr” – e a maneira como “corre” – um
industrial ou um grande costureiro). Um campo é um “sistema” ou um “espaço”
estruturado de posições. Esse espaço é um espaço de lutas entre os diferentes
agentes que ocupam as diversas posições. As lutas dão-se em torno da apropriação de
um capital específico do campo (o monopólio do capital específico legítimo) e/ou da
redefinição daquele capital. O capital é desigualmente distribuído dentro do campo e
existem, portanto, dominantes e dominados.
A distribuição desigual do capital determina a estrutura do campo, que é,
portanto, definida pelo estado de uma relação de força histórica entre as forças
(agentes, instituições) em presença no campo. As estratégias dos agentes são
compreendidas se as relacionarmos com suas posições no campo. Entre as estratégias
invariantes, pode-se ressaltar a oposição entre as estratégias de conservação e as
estratégias de subversão (o estado da relação de força existente). As primeiras são
mais freqüentemente as dos dominantes e as segundas, as dos dominados (e, entre
estes, mais particularmente, dos “últimos a chegar”). Essa oposição pode tomar a
forma de um conflito entre “antigos” e “modernos”, “ortodoxos” e “heterodoxos”.
Em luta uns contra os outros, os agentes de um campo têm pelo menos
interesse em que o campo exista e, portanto, mantêm uma “cumplicidade objetiva”
para além das lutas que os opõem. Logo, os interesses sociais são sempre específicos
de cada campo e não se reduzem ao interesse de tipo econômico. A cada campo
corresponde um habitus (sistema de disposições incorporadas) próprio do campo.
Apenas quem tiver incorporado o habitus próprio do campo tem condição de jogar o
jogo e de acreditar nesse jogo.
Cada agente do campo é caracterizado por sua trajetória social, seu habitus e sua
posição no campo.
A teoria dos campos, seguramente, continua uma larga tradição de reflexões
sociológicas e antropológicas sobre o processo de diferenciação histórica das
atividades e das funções sociais sobre a divisão do trabalho social. Através desse
conceito é possível perceber a tentativa de Bourdieu de constituir um ponto
geométrico entre diferentes concepções sociológicas, especialmente as de Emile
Durkheim (“regiões do mundo social”, “divisão do trabalho social”) e Max Weber
(“esferas de atividade”, “legalidades próprias”) (LAHIRE, 2002a).
Quando da publicação dos dois artigos nos quais aborda o tema religioso:
“Uma intepretação da Teoria da Religião de Max Weber” e “Gênese e estrutura do
campo religioso”, ambos de 1971, Pierre Bourdieu se esforçava para apresentar de
maneira mais sistemática e aplicada sua teoria dos campos. Segundo Sergio Miceli, a
esse período, as reflexões de Bourdieu ainda eram caudatárias de algumas
formulações Weberianas (MICELI, 2003). Nesses artigos, Bourdieu pretende fazer
avançar a teoria de Max Weber,
apreendendo inclusive “a intenção profunda da análise weberiana” e submetendo-a a
uma “ordenação metódica e sistemática”. A reformulação das análises weberianas se
daria, ainda, por uma segunda e necessária ruptura que deveria subordinar a análise
das lógicas das interações que podem se estabalecer entre agentes diretamente
defrontados e, particularmente, as estratégias que opõem, à construção da estrutura
das relações objetivas entre as posições que ocupam no campo religioso, estrutura
que determina a forma que podem tomar suas interações e a representação que delas
possam ter (BOURDIEU, 2004, p. 82).
O importante para Bourdieu não é a natureza da mensagem religiosa, mas a
sua capacidade de atendimento de uma demanda específica, tanto religiosa como
especificamente ideológica. Isto é, constituindo um dos campos de produção de bens
culturais, as condições de sucesso da profecia dependem do grau de homologia entre
o
campo da produção e o da recepção. Outro ponto importante, e que é o que aqui nos
interessa em maior grau, é o nexo “inevitável” entre o campo religioso e o campo do
poder. Como aponta Bourdieu, a religião, em sua função ideológica, é entendida como
“a prática e política de fazer absoluto o relativo e da legitimação do arbitrário”
contribuindo assim à “imposição dissimulada de princípios de estruturação de
percepção e de pensamento do mundo e, em particular, do mundo social” (BOURDIEU,
2004a). Assim sendo, boa parte do esforço do autor se concentra em vincular o
aparato religioso com a formação social, demonstrando que a “estrutura dos sistemas
de representações e práticas religiosas” tende a assumir a função de instrumento de
imposição e legitimação da dominação, contribuindo para assegurar a dominação de
uma classe sobre outra, para a “domesticação dos dominados”.
Essa transfiguração, essa alquimia religiosa, como assinala, faz com que o
campo religioso não somente cumpra funções de atendimento de demandas
estritamente religiosas, correspondendo aos interesses por ações e práticas mágicas,
mas esteja vinculado a demandas propriamente ideológicas, donde a “necessidade de
legitimação das propriedades associadas a um tipo determinado de condições de
existência e de posição na estrutura social” (BOURDIEU, 2004b). A demanda
ideológica corresponde, por conseguinte: a espera de que uma mensagem sistemática
seja capaz de dar sentido unitário à vida, propondo a seus destinatários privilegiados
uma visão coerente do mundo e da existência humana, e dando-lhe os meios de
realizar a integração sistemática de sua conduta cotidiana. Portanto, capaz de lhes
fornecer justificativas de existir como existem, isto é, em uma posição social
determinada (BOURDIEU, 2004b, p. 85-86).
O Estado regula a existência dos campos, não só do campo político, mas de
todos os que existem, exercendo um poder sobre todas as espécies de capital. Dados
os seus recursos, o Estado tem a possibilidade real de regular o funcionamento de
todos os campos, através seja de uma intervenção econômica ou de intervenções
jurídicas e legitimadoras. Metodologicamente, tratar a política como um campo
permite uma compreensão desta tendo em vista outras realidades que, assim como
esta, funcionam em termos de campo, mobilizando capital, agentes, lutas,
conservação, mudanças e habitus. Assim,
Falar de campo político é dizer que o campo político é um
microcosmo, isto é, um pequeno mundo social relativamente
autônomo no interior do grande mundo social. Nele se
encontrará um grande número de propriedades, relações, ações
e processos que se encontram no mundo global, mas esses
processos, esse fenômenos, se revestem aí de uma forma
particular. É isso o que está contido na noção de autonomia: um
campo é um microcosmo autônomo no interior do macrocosmo
social. (BOURDIEU, 2010, p.195).

Ainda que o campo político seja um microcosmo, um mundo separado e


fechado em si mesmo, ele jamais pode ser totalmente fechado, pois isso tornaria a
vida política impossível. Como os políticos são periodicamente julgados pelos
eleitores e como seu poder, de certa maneira, é um poder que foi a eles delegado
por um grupo, é preciso ter esse fato sempre em conta. Funcionando como um
campo, a política repousa sobre uma separação entre os profissionais e os profanos.
Os meios de acesso à participação política estão desigualmente distribuídos na vida
social, fazendo com que existam condições para a constituição da competência
política, para a competência de participação e deliberações nesse campo. Assim, em
nossa pesquisa aqui relatada interessava-nos responder à pergunta: como atores
religiosos com considerável capital social tornam-se profissionais no campo da
política?

O agente político deve mostrar a legitimidade e o volume de seu capital num


movimento duplo: para dentro, frente aos demais agentes do campo, e para fora,
frente aos eleitores, aos despossuídos de capital político, aos “consumidores”, uma
vez que o que está “em disputa no campo político é o monopólio da capacidade de
fazer ver e de fazer crer de uma maneira ou de outra” (BOURDIEU, 2010, p. 200). A
promessa ou o diagnóstico apresentado serão tidos como verdadeiros dependendo da
“autoridade daquele que os pronuncia”, o que significa também dizer que depende de
uma “capacidade de fazer crer na sua veracidade e na sua autoridade”. Sendo esses
enunciadores sujeitos de reconhecido capital no campo em que atuam, como
consideramos ser Ana Paula Valadão e a banda gospel Diante do Trono no meio
religioso brasileiro, a autoridade de que gozam no meio religioso transfere-se para o
meio politico. O homem político, diz-nos Bourdieu, “retira a sua força política da
confiança que um grupo põe nele”, funcionando como uma construção social,
respondendo a uma estrutura determinada e confiada socialmente. Por isso mesmo, é
um “capital detido e controlado pela instituição e só por ela”. O grupo dá um crédito,
um carisma, uma delegação; assim é que podemos falar de uma legitimação do
político e da política a partir de encenações e enunciações de atores religiosos que
creditam ou descreditam políticos. A investidura é compreendia por Bourdieu como um
“ato propriamente mágico de instituição” do político pelo religioso, não apenas de
investidura para uma disputa eleitoral, mas também pela limpeza ou purificação de
atos pregressos e que, após a dita conversão, passam a ser reinterpretados e
reenunciados pela fala religiosa.

Opera-se, assim, incessantemente, uma ação por parte dos agentes no sentido
de “acumular o crédito” e também de “evitar o descrédito”, ação essa que requer
“todos os silêncios, todas as dissimulações” que são impostas àqueles que pautam sua
ação pelas regras do jogo do campo, aderindo a elas pelo envolvimento. Este é, pois,
o espaço em que se operam as disputas pelas mais legítimas formas de notoriedade
dentro do campo político.
4-A gravação de um DVD e a releitura de fatos políticos: as “contaminações”
entre a religião e a política; ou, como legitimar práticas políticas com
elementos religiosos?

Dentro do campo religioso evangélico brasileiro, a Igreja Batista da Lagoinha


ocupa uma posição especial, distinta. Originada de uma cisão dentro da Convenção
Batista Brasileira ainda nos anos 70. Como as demais igrejas batistas, essa também
possuía um significativo grupo de músicos, o que logo depois colaborou para a
formação da banda Diante do Trono, conduzida por Ana Paula Valadão, filha de um
dos pastores da igreja. Em 1998, gravou-se o primeiro álbum da banda; pelos anos
seguintes, as gravações de cd´s e dvd´s foram constituindo-se como eventos
importantes dentro da igreja, apresentados como “jornadas proféticas” ao longo do
Brasil. A partir de 2004, os dvd´s passaram a ser gravados pelas capitais do país.
A centralidade da persona de Ana Paula, em seu carisma, em sua imagem é
algo que apresenta-se visível aos olhos do observador. Esta já constituiu-se e
legitimou-se como persona de considerável notoriedade no campo evangélico e,
porque não dizer, de importante capital religioso. A imagem de uma pessoa espiritual,
ungida e sua capacidade de comunicação, transformaram-na na musa da música
gospel brasileira.
A música flui de seus lábios, envolvente. Palavras e cânticos
sucedem, num fluxo ininterrupto, trazendo uma atmosfera de
marcante espiritualidade. No altar, ela canta, ora, dança. [...]
Quem assiste às apresentações do Ministério de louvor Diante
do Trono, liderado por ela, tem a sensação de que está,
literalmente, na presença do Rei dos reis. Não é exagero dizer
que o Diante do Trono é o maior fenômeno da música
evangélica nacional desde que os Vencedores por Cristo
casaram uma revolução três décadas atrás. Capitaneado pela
carismática Ana Paula Valadão, o ministério atrai multidões por
onde passa. (CUNHA, 2007, p.117).
Em Julho de 2011, ocorreu a gravação de mais um DVD do grupo evangélico
Diante do Trono, dessa vez na cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte. O
evento foi gratuito, custeado em parte pela prefeitura, e realizado na Praia dos
Artistas, não por acaso uma praia em que se visualiza uma grande estátua de
iemanjá. Dois meses antes da gravação, foi distribuído na cidade um livreto com
informações sobre a cidade, mas em cuja contracapa havia a letra de uma música da
referida banda. A gravação, inicialmente programada para realizar-se em apenas um
dia, realizou-se em dois, por conta de uma forte chuva que abateu-se sobre a cidade.
Meses depois, em novembro do mesmo ano, foi realizado o 1º Encontro Mulheres
Diante do Trono, na sede da igreja, em Belo Horizonte. O evento contou com a
participação de Micarla dando seu testemunho de conversão, deixando transparecer
uma certa gratidão da banda ao apoio dado pela prefeitura. No evento, discursam Ana
Paula Valadão, líder maior da banda, Micarla de Souza e Zenete, mãe biológica de Ana
Paula e enunciada como “segunda mãe” de Micarla.
Encararemos aqui todas as enunciações ocorridas durante esse evento
como enunciações políticas, discursos políticos. Mesmo tendo sido feitas em um
congresso religioso, elas ocorreram num momento de várias denúncias de corrupção
contra a prefeita, que culminaram com seu afastamento da prefeitura no final de
2012, e que pareceram ter o claro intuito de ressignificarem sua gestão e as
acusações que vinham sofrendo como coisas a serem pensadas a partir da lógica do
campo religioso. Assim, “não é o discurso que é político, mas a situação de
comunicação que assim o torna [...] é a situação que o politiza” (CHARAUDEAU, 2006,
p.40). Selecionamos os trechos julgados mais significativos da relação política-religião
e mantivemos o tom coloquial em que foram ditos. Enfatizamos as principais
expressões e as destacamos em itálico.
Ana Paula: Todos os anos quando o DT se prepara para alguma
gravação, nós fazemos algumas estratégias [...] para despertarmos o
corpo de cristo. Nós cremos que não é apenas um evento. Nós vemos a
gravação como um pretexto [...] em Natal nós vivenciamos uma das
coisas mais lindas em nossa história, em 14 anos de gravações. Gostaria
de chamar aqui uma mulher que é fruto, espiritualmente falando, desse
tempo de preparação antes da gravação. A bíblia diz que uma alma
vale mais do que o mundo inteiro [...] temos tantos testemunhos de
Natal, mas essa alma vale mais do que o mundo inteiro, não é
simplesmente uma pessoa, uma mulher, mas é uma autoridade naquela
cidade [...] se nós hoje olharmos para essa mulher como um sinal de
deus [...] através da conversão dessa mulher nós somos ainda mais
encorajados a prosseguir profetizando. O Brasil é do senhor jesus cristo.

Micarla é apresentada como “um sinal de deus”, uma vez que ela “vale mais
do que muitas almas”, sendo sua conversão “uma das coisas mais lindas” vivenciada
pela banda em todos os anos de gravações. Logo depois, é a própria prefeita quem faz
uso da palavra. Começa por dizer que “nasceu de novo” há menos de 40 dias e
demonstra seu medo de “falar para tanta gente”, logo ela que já havia “falado tanto
em comícios” e em tantos outros “países, representando Natal”. Mas, segundo ela, “o
senhor disse assim pra mim: ‘você já falou em vários idiomas, você já levou o nome
da cidade em vários lugares, mas agora você vai falar a minha língua’ ”. Depois disso,
Micarla passa a inserir-se como portadora de uma missão divina, comparando seu
trabalho com o trabalho de pastores, sendo ela mesma uma pessoa “de bem”,
portanto alguém que pode gerar as transformações tão almejadas pelos homens, uma
vez que tais transformações só podem vir, segundo ela, da política:
As pessoas olhavam pra mim e diziam: “você não tem cara de política”.
Eu fico imaginando o que que as pessoas acham que é ser uma prefeita.
Será que é como algumas pessoas imaginam que sejam os evangélicos,
gente que de forma preconceituosa acham que é assim e assim e
acabou? Será que nós políticos não somos agredidos, sofremos bullying
muitas vezes só porque optamos e escolhemos uma missão? Eu entrei
na política em 2004. [...] Quando eu estava grávida de três meses, meu
marido acorda e diz assim: “amor, eu tive um sonho com você. Eu
sonhei que você era prefeita”. Nunca havia pensado entrar na política.
Meu pai foi o mais jovem senador [...] filho de uma costureira e de um
fiscal de trem [...] “eu tive um sonho, uma revelação, e eu tenho
certeza que e deus que tá querendo”. Eles fizeram pesquisa e eu já
aparecia bem colocada. [...] toda transformação do planeta passa pela
transformação da política, não existe outra forma. Se não for gente de
bem, se não for gente comprometida, quem serão os eleitos? Quem
serão as autoridades constituídas por deus? A missão da política eu
encaro como ministério, eu encaro como a missão de um pastor [...]
para político, deus diz: “vai lá e cuida da educação, da saúde, da vida do
meu rebanho”. São missões muito dignas, que têm que ser encaradas
por gente digna.

Assim, se ela mesma encarou e aceitou a missão de ser política, realizando o


“propósito de deus” que havia sido revelado a seu marido em sonho, cabia a ela
encarar isso como uma ordem divina, filiando seu mandato à escolha divina e ao rol
daqueles que tão somente cumpriam com seu mandato, legitimando-o por meio do
que Charaudeau (2006, p.70) considera como “legitimidade por filiação”: quando os
atributos e as qualidades do governante são ligados a uma missão decorrente do fato
de pertencer a certo grupo social, que recebe uma herança e que passa a viver como
o sujeito de dever. Orlandi (1996) aborda o discurso religioso como possuindo um
desnivelamento, assimetria na relação entre o locutor e o ouvinte – o locutor está no
plano espiritual (Deus ou os sujeitos que foram agraciados com o seu chamado), e o
ouvinte está no plano temporal (os adoradores e os fiéis que escutam o seu
testemunho).
Depois disso, Micarla passa a falar de como conheceu Ana Paula, no final do
ano de 2010, quando esta havia feito um show na cidade de Parnamirim e foi-lhe
apresentada por um vereador da base aliada. Segundo Micarla, teria pedido a Ana
Paula que “orasse pela cidade porque deus me falava que existia algo muito forte que
precisava ser quebrado”. Depois, Ana Paula havia ligado para ela e dito: “prefeita,
meu marido Gustavo teve uma revelação que o senhor que mostrava que varias
pessoas iriam se levantar em todo e mundo e iriam fazer a transformação que nós
precisamos”. Logo depois, a mãe de Ana Paula passa a ser a testemunha maior do que
Micarla está a dizer:

A Ezenete disse que entrou e pensou: quem é essa pastora? Era eu!! E
ela começou a conversar comigo e eu não escutava. Era uma luz, uma
coisa tão sublime que eu não conseguia escutar. Eu flutuava....eu quero
que o grupo venha para cá, porque vai ser de fundamental importância
para Natal.
Depois, Ana Paula toma a palavra para contar os feitos materiais que a
gravação do DVD em Natal havia trazido à cidade: Ana: os principais shoppings de
Natal venderam mais do que nos dias das mães, a ocupação dos hotéis de Natal
estava quase 100%, não tinha vagas nos aviões. E ela ainda salienta: “a gravação
movimenta financeiramente a cidade. Muita gente não sabe o bem que nossas
gravações fazem às cidades, sem contar o bem espiritual, sem vandalismo, sem uma
lata de cerveja, sem uma ocorrência policial”.
Se todo governante tivesse um pouco de senso, enxergaria que é um
momento próspero e de bênçãos. Foi nesse instante que eu disse sim. A
Ezenete me disse: “olha prefeita, todoso os lugares que nós vamos
temos problemas, porque as trevas elas se levantam de tal forma que
agente pensa que não vai conseguir”.

O momento mais marcante, e portanto de maior valor e apelo simbólicos, é


quando Micarla deixa a posição de “escolhida por deus” para uma missão, governar
Natal, para passar a ser manifestação de seu poder, narrando o suposto milagre que
este havia feito em sua vida. A proximidade da gravação do dvd, acompanhada do
aumento das denuncias contra sua administração, é ressignificada como avanço das
“trevas” sobre a cidade de Natal, o que fez com que o avançar dessas trevas
culminasse com a parada de seu coração:
Em dezembro eu tive um AVC e fiquei sem fala e sem movimentos. Eu
dizia: “meu deus será que o inferno começou a atuar e ele veio?” Uma
tia muito religiosa entrou na UTI e começou a orar. Durante esse
período, quantas tantas coisas aconteceram, parece que as trevas
estavam reinando, revirando Natal, querendo me retirar da prefeitura
[No contexto em que essas coisas aconteceram, várias denúncias contra
sua administração foram levadas a cabo pelo Ministério Público,
manifestações ocorriam em todos os lugares levadas a cabo por
estudantes, chegando a Câmara Municipal a ser ocupada por mais de
uma semana]. E eu sofri muito, sofria, chorava, chorava sofria. Me
agrediram como mulher, picharam muros da cidade [...] eu não
entendia o que deus queria [...] e quanto mais chegava perto [do dia da
gravação do dvd] mais as coisas aconteciam. E 15 dias antes meu
coração resolveu parar. .Até aquele momento eu não tinha em entregue
a jesus. Naquele instante, na UTI, sozinha, deus tocou meu coração:
“senhor, eu quero te declarar nesse instante como meu senhor e
salvador”. [...] eu entendi que a minha vida ia mudar.

O testemunho, por nós aqui considerado, na verdade, como discurso


político, encerra-se com um ordenamento da agora convertida, serva e “pastora” para
que as mulheres ali presentes tomem o seu exemplo como modelo e passem a dar
exemplos de vida, como ela dá, e a orar pela mudança no Brasil via política, com a
representação dos evangélicos, “povo de bem”, possa ser ampliada. Agora, depois de
narrar-se a si mesma como manifestação do querer de deus, pode expor o seu querer,
o querer da pastora Micarla:
O que eu posso querer é que todos vocês sejam exemplos. Na minha
casa as pessoas ainda não tão acreditando, não. [cabe aqui perguntar:
mas não foi seu marido mesmo quem primeiro havia sonhado? Por que
ele ainda não acredita?] Que nós possamos ser exemplos, agente não
vai conseguir trazer ninguém por lado de jesus na marra, brigando, na
força, mas pelos nossos exemplos. Nós, mulheres, temos as nossas
missões. Temos que encarar a politica como uma missão de deus.
Ninguém consegue limpar a lama se não a tirar com suas próprias
mãos. Que daqui possam sair outras mulheres que sejam levantadas
para representar o povo brasileiro. Vamos orar com toda a força do
nosso coração pelas mulheres foram levantadas para nos governar. O
que eu tenho de enfrentar de arranjos de coisas do passado, que eu
tenho de romper a cada dia, não é fácil. Vamos orar.

O evento termina com a oração de Ezenete, uma das líderes da Igreja da


Lagoinha, pedindo para que Micarla “seja luz no meio das trevas” e para que o
“chamado de deus” possa cobrí-la por inteiro e que “esse chamado esteja a frente da
tua filha, tudo o que tem se levantado contra ela, contra sua casa, contra seu
mandato nós paralisamos agora como igreja.”

5-REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Relaciones, otoño, año/vol. XXVII, número 108, Zamora, México, 2006, pp. 19-27.
A IGREJA EM ALBA (CUNEO/ITÁLIA) E A RESISTÊNCIA AO FASCISMO

Francisco Fagundes de Paiva Neto

chicofagundes@gmail.com

O processo da Unificação Italiana teve em 1861, quando o rei do Piemonte Vittorio


Emanuele II se tornou monarca do Reino Unido da Itália, e foi concluído em 1918 com
a anexação de Trento e Trieste. A cidade de Roma, uma área remanescentes dos
Estados Pontifícios, foi conquistada pela Monarquia em 1870, que sob a inspiração do
liberalismo criou uma verdadeira cisão entre os adeptos do rei e os católicos, que
seguiam as orientações políticas do Papa Pio IX contra a desterritorialização pela qual
passava a Igreja. Essa situação da Igreja em relação aos estados pontifícios
representa o advento de um aspecto da nova sociedade, a sociedade moderna, que é
“um conjunto desterritorializado de relações sociais articuladas entre si” (ORTIZ,
1994, p. 50). Ou seja, a emergente sociedade italiana, cujo território político estava
ainda em processo de construção, precisou absorver os Estados Pontifícios e conviver
com um conflito entre o laicismo e a tradicional cultura católica.

Por isso entre 1870 e 1929 o conflito entre o Estado Italiano e a Igreja manteve-se
presente, sendo solucionado durante o período fascista, através do Tratado de Latrão.
Conforme Manfrói (1999, p. 50): “Os católicos se isolaram da sociedade civil criando
um mundo à parte” devido a “onda de anticlericalismo, a legislação liberal do governo,
a laicização do Estado, o confisco dos bens de ordens religiosas contribuíram para
reforçar a oposição entre católicos e italianos”. Assim, a construção do Estado italiano
deu-se em meio a um conflito com uma instituição religiosa, a Igreja, necessitando de
uma série de manobras com o fim de pacificar os respectivos partidários.

A centralidade política do Piemonte na Itália trouxe outros componentes à vida


pública da recente nação: as tensões entre os liberais e os grupos socialistas. Por tais
razões, a população católica ficou em constante vigilância com relação às duas
culturas políticas anticlericais combatidas, com maior ou menor intensidade, pelos
Papas: o liberalismo e o socialismo. As culturas políticas para Motta (2009, p. 23)
compõem de um repertório de:

vasto patrimônio que (...) depende (...) das ações de seus


inspiradores originais e dos aderentes posteriores (...) As ações
influenciam as representações, que nelas se inspiram e buscam
forma, e também garantem sua reprodução através de práticas
rituais. Porém, as representações (...) são determinantes para
suas escolhas e ações, pois os homens agem a partir de
apreensões da realidade (...) Influenciados por tais
representações, os homens orientam suas ações, e às vezes
agem movidos por paixões que cegam.

Diante do choque entre as representações de uma monarquia liberal e a Igreja o


diálogo para consolidar as fronteiras do Itália necessitou se prolongar, devido a alguns
entraves. Em condições de formação de um Estado nacional é preciso o
estabelecimento de relações políticas com grupos religiosos, visando uma condição
mais profícua de manutenção da ordem pública. No caso da Península Itálica, essa
necessidade foi premente em virtude da presença dos Estados Pontifícios, então
pertencentes a Igreja Católica, que poderia desestabilizar alguns projetos políticos, a
partir da resistência de membros das suas hostes, sendo estratégico a qualquer
regime vigente na área a busca pela hegemonia, no sentido apontado por Gramsci
(2002), especialmente junto a população católica.

O reconhecimento da importância de estabelecer um diálogo com a Igreja Católica


foi parte do projeto político de Mussolini por meio da Concordata, que deu origem ao
Vaticano. Com o acordo entre o Estado italiano e a Igreja voltou a ter um território
político reconhecido, o Vaticano (ou a Santa Sé), embora territorialmente
extremamente reduzido, em relação aos antigos Estados Pontifícios. Além disso, o
Vaticano tornou-se a única sociedade religiosa com um caráter estatal a obter o
reconhecimento pela comunidade dos países na contemporaneidade, pois uma série
de outras concordatas foram assinadas com diversos Estados nacionais, desde a
criação do Vaticano (CUNHA, 2009) . No caso específico da Concordata de 1929, o
regime fascista reconheceu a monarquia religiosa de caráter eletivo e vitalício,
representada pela figura do papa, no seu território político e religioso, o Vaticano, ao
passo que a contrapartida foi o reconhecimento das fronteiras do Estado italiano pela
Igreja, pondo fim ao litígio iniciado pela invasão dos Estados Pontifícios, durante a
Unificação Italiana. Essa condição teve um desdobramento quanto à aproximação do
Vaticano às políticas fascistas, porque a Concordata de 1929 também previa a
concessão de privilégios à Igreja como a difusão do catecismo católico nas escolas
italianas, privilégios de ordem política e econômica, além da proibição aos cultos dos
protestantes, tantos nos espaços privados (mesmo quando realizados em domicílios),
quanto no espaço público.

Contudo, devemos atentar para o fato de que essa relação do regime fascista com a
Igreja, quanto aos seus conflitos, mesmo com o pacto político de 1929. Esse olhar nos
permitirá perscrutar a Igreja como uma instituição centralizada no Papa, mas
demarcada por conflitos internos e, no caso em questão, por questões de ordem
geopolítica e regional, que são inerentes aos interesses religiosos/estatais do Vaticano
em relação a outras sociedades. A presença de católicos em diversos Estados
nacionais foi inclusive vista por Antonio Gramsci como sendo a Igreja uma sociedade
civil dentro de outras sociedades civis, dando ao Papa a possibilidade de influir nos
debates políticos de outras nacionalidades.

A percepção pelo papa e os seguidores do catolicismo sobre a necessidade de


submissão do laico ao religioso demarcou as balizas de instruções do Sumo Pontífice
para o comportamento político no Estado laico, motivando a falta de envolvimento dos
católicos na participação política nacional, pelo menos desde a formação do Estado
italiano até a Concordata de 1929. O conflito instaurado entre uma cultura política
laica e uma religiosa manteve-se até o firmamento do Tratado de Latrão, que garantiu
à Igreja uma série de privilégios na sociedade nacional italiana, apaziguando reações
da hierocracia católica e do seu rebanho, por meio de uma tolerância ao laicismo
durante o regime fascista.

Embora desde 1922 até a Concordata de 1929 a relação entre o Vaticano e os


fascistas tenha sido de proximidade e colaboração deu sinais de tensões a partir de
maio de 1931, quando Mussolini objetivou exercer o controle sobre os participantes da
Ação Católica (AC). A tentativa de diluição da AC em 1931 por Mussolini foi frustrada
pela reação do Papa Pio XI, por meio da Encíclica Non Abbiamo Bisogno (Não
precisamos) e pela pressão internacional de grupos leigos, que deram suporte a crítica
do Pontífice a estatolatria dos fascistas. Vale lembrar, que a Encíclica foi publicada
escrita e difundida pela Rádio Vaticana, atingindo vários rincões da Itália e
fomentando o debate entre os membros do catolicismo sobre a política. Em uma
perspectiva gramsciana, os católicos mesmo sem uma formação partidária
convencional, o próprio partido político, afirmaram a sua influência na política italiana
por meio da vascularização capaz de expressar uma vontade coletiva, através da
defesa da AC e, posteriormente, pela própria participação em grupos da resistência,
tanto pelo uso das armas, quanto pela colaboração indireta.

A Ação Católica a resistência piemontesa ao fascismo

A II Guerra Mundial foi combatida em duas grandes frentes: as convencionais


(exércitos) responsáveis pela beligerância entre os Estados nacionais; e as irregulares
(guerrilhas), pelo alastramento nos diversos países europeus, através dos movimentos
da chamada Resistência1. A combinação dessas duas experiências de guerra, com as
suas metodologias de combates regulares (entre exércitos), ganhou um novo
componente com a participação das tropas irregulares, a partir do momento em que
civis foram às armas. O aparecimento dos grupos da Resistência assumiu contornos
mais definidos, quando a Alemanha invadiu a União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS). No mês de agosto de 1939, a Alemanha e a URSS assinaram um
acordo de não agressão, tendo para Hitler o caráter de estratagema pela neutralização
de uma aliança dos russos com a França e a Inglaterra. A partir de 1939, os nazistas
invadiram a Polônia e no primeiro semestre de 1940, marcharam sobre a Noruega, a
Dinamarca, a Holanda e a Bélgica. Ainda em 1940, a Alemanha já contava com o
apoio da Itália, do Japão, da Hungria, da Bulgária, e da Romênia. O primeiro semestre
de 1941 demonstrou o êxito dos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), pois a
Europa estava quase toda dominada. Apenas a Inglaterra resistia solitariamente aos
ataques aéreos alemães e da marinha italiana no Mediterrâneo.

A quebra do tratado de não agressão firmado entre Hitler e Stalin com a invasão
alemã ao território soviético (1941) representou uma nova fase na guerra, pois
ganhou um componente político e militar inesperado (HOBSBAWN, 1995, p. 165).
Surgiu a nível internacional uma curiosa aliança entre o capitalismo dos Estados
Unidos e o comunismo da URSS, que nos campos de guerra semeou coalizões de
resistência, de um lado a outro, balizadas pelo aspecto de combater as forças da
Alemanha, da Itália e do Japão, principalmente.

A Europa, desde antes da quebra do tratado de não agressão entre alemães e


soviéticos, estava sob o domínio das tropas regulares do Eixo (Alemanha, Itália e
Japão), com exceção da Inglaterra. Contudo, a invasão alemã na URSS fez despertar a
resistência interna por grupamentos de civis, denominados genericamente de
partisans (partidários), cujas filiações eram as mais diversas. As formações dos
partisãos, através de guerrilhas e sabotagens trouxeram instabilidades aos exércitos
alemão e italiano. Cotidianamente ocorriam ataques surpresas por grupamentos;
roubos de material bélico; destruições de equipamentos ou infiltrações para se obter
informações importantes para as tropas aliadas. Em meio ao conflito a população civil
também enfrentava a passagem de desertores, que lhe solicitava víveres, ou as
violências sexuais cometidas pelas tropas, enquanto no sul da Itália o caos era
incrementado pelas ações de clãs mafiosos, munidos de armamentos constituídos por
carros de combate e armas automáticas leves como fuzis e metralhadoras Thompson

1
As Resistências foram constituídas por grupos civis e militares de várias tendências políticas, cujo esforço
se orientou pelo combate ao nazifascismo.
(LEWIS, 2003). Avaliando a atividade da Resistência italiana, Hobsbawn (Op. cit., p.
165-166) considerou:

Assim, a vida pública italiana foi transformada, após mais de


vinte anos e um fascismo que desfrutara de considerável apoio
até mesmo entre os intelectuais, pela mobilização
impressionante e generalizada da Resistência em 1943-45,
incluindo um movimento partisan armado no Centro e Norte da
Itália de por volta de 100 mil combatentes, com 45 mil mortos
(...) Enquanto os italianos podiam deixar a memória de
Mussolini para trás com a consciência limpa, os alemães, que
tinham apoiado o seu governo até o fim, não podiam colocar
distância entre eles próprios e a era nazista de 1939-45 (...) Em
cada país os fascistas, os radicais de direita, os conservadores,
ricos locais e outros cujo principal terror era a revolução social,
tendiam a simpatizar, ou pelo menos não se opor aos alemães
(...) O mesmo não se deve esquecer, fizeram os elementos
profunda e intransigentemente anticomunistas na Igreja
Católica e seus exércitos de religiosos convencionais, embora a
política da Igreja fosse demasiado complexa para ser
classificada simplesmente como ‘colaboracionista’ em qualquer
parte.

Essas considerações aguçam a nossa percepção sobre a existência de brechas na


sociedade italiana, mesmo sob as violências do regime fascista pôde dar uma
demonstração de resistência política, a partir de grupos de civis em armas. Com
frequência ocorreram associações entre os Aliados e os partigiani, graças ao apoio de
militares com auxílio de homens ou equipamentos. A estrutura jurídico-política fascista
não conseguiu conter o gotejamento das organizações clandestinas constituídas por
militantes das mais variadas tendências políticas e religiosas, sobretudo setores da
AC.

Essa situação política exige o estabelecimento de uma compreensão analítica, cujo


contexto deve ser visto na sua diversidade de matizes. Procuraremos manter ao largo
a ideia do contexto como uma fixidez ou um determinismo criador de homogeneidades
sociais, porque a prática “de reconstrução histórica (...) em geral implica que seja
dada uma prioridade à análise das relações sociais na restituição de um contexto”
(GRENDI, 1998, p. 257). Assim a investigação sugere um programa de uma análise
das condições da experiência social em sua máxima complexidade (REVEL, 1988,
p.22).

No caso da área do Piemonte, visualizamos tensões entre setores hierárquicos da


Igreja com os membros do Estado fascista, tendo em conta que nessa região da Itália
a oposição ao regime ganhou uma forte expressão, devido a presença de um bispo
abertamente antifascista desde a época que foi padre. A relação da Igreja a nível
nacional manteve algumas tergiversações com o regime fascista, ao passo que no
Piemonte o bispo de Alba, D. Maria Grassi, assumiu uma postura antagônica ao
regime, perdendo inclusive alguns dos seus padres, em decorrência de execuções
sumárias ou por haver sido mandados para campos de extermínio.

A participação dos católicos na resistência foi acentuada na Província de Cuneo no


Piemonte, desde o ano de 1933, através das orientações dadas pelo então monsenhor
Luigi Maria Grassi à AC em contraste explícito com o fascismo. A tônica da AC era um
projeto político com “o primado religioso, moral e civil entre os povos”, demarcando
um espaço próprio entre os governos de inspiração liberal, nazifascista ou comunista.
Posteriormente, em 1937, D. Grassi criticou abertamente o fascismo, no jornal
“Gazzetta d’Alba”, afirmando “se tratar de uma minoria não querida pelo sufrágio
universal e não confortável ao aspecto eclesiástico ou em outros termos: uma
“ditadura reacionária de massa”. (GRASSI, 1994, p.23)

Um dos primeiros grupos sociais católicos a ter sofrido as pressões dos políticos pré-
fascistas foram os camponeses do Piemonte, devido ao surgimento do Partido dos
Camponeses (imediatamente após o fim da IGM), que assumiu contornos de uma
agremiação sustentadora do fascismo em gestação. Nessa fase, o movimento
camponês foi contido, enquanto foi restaurado o monopólio do poder nas mãos dos
grupos oligárquicos rurais (MOLA, 1994, p. 26). Nas décadas posteriores a crise
econômica foi superada, por meio dos sacrifícios sofridos pelas populações rurais
(MOLA, Op. cit., p. 28). Para os membros da AC, os camponeses foram um grupo
importante no sentido de combater os fascistas, considerando as condições políticas
de opressão e a forte presença do catolicismo nas áreas rurais.

No campo político, os fascistas adquiriram um inimigo de grande envergadura os


seguidores das orientações da AC. Entre os anos de 1936 e 1937, o levantamento do
monsenhor Grassi apontava para uma presença sólida da AC em 97 paróquias do
Piemonte, contando com pelo menos 17% dos habitantes da Diocese com uma
posição política antifascista. Porém, esse número tendeu a crescer nos anos
posteriores.

A Igreja na Itália estava dividida diante do fascismo. A hierarquia clerical dava sinais
de fissuras, sendo seguida pelos leigos. No caso de Alba os religiosos faziam uma
oposição, através do trabalho nas paróquias. No bispado de D. Grassi2 em Alba

2
Em março de 1933, Pio XI nomeou-o bispo de Alba, chamando-o para suceder D. Francis King. Assumiu
aa diocese em 11 de junho de 1933.
ocorreu uma franca oposição ao regime fascista, tendo por base o trabalho
anteriormente realizado na AC, quando havia sido padre. Alguns narradores italianos
colaboraram com a nossa pesquisa sobre a atuação de D. Grassi na Diocese de Alba.
Para Maggi ao ser indagado sobre a resistência dos religiosos ao fascismo:

O bispo Grassi com custos altos fez um trabalho contínuo de


mediação com vista a prevenir danos e mortes entre as
pessoas. Um jovem pastor assistente de Roddi, D. Demetrio
Castelli, foi morto pelos alemães. Muitos sacerdotes estavam
lutando com os fascistas. Um religioso dominicano, Padre
Giuseppe Girotti, foi deportado para Auschwitz por ter ajudado
a muitos judeus, e morreu em uma tentativa de salvar da morte
outro preso3.

A oposição dos religiosos de Alba ao regime chegou a resultar em várias mortes


como a do padre Demetrio Castelli4, que foi fuzilado na área do Piemonte, e do padre
Girotti, morto no campo de concentração de Auschwitz (Polônia). Além disso, outros
religiosos passaram por cárceres ou foram ameaçados pelos militares. Assim,
percebemos um franco conflito entre o regime e vários membros da Diocese de Alba,
colaborando para o apoio dos católicos aos grupos armados.

A Igreja (no Piemonte) e os grupos partisãos eram unânimes quanto à necessidade


da derrocada fascista. A força guerrilheira mais expressiva na área esteve sob o
comando de Enrico Martini, “Mauri”, ex-oficial do Estado Maior do Exército Italiano até
1943, durante a experiência imperialista na África. A partir de então, refugiou-se no
Piemonte e organizou forças de resistência em Cueno (área montanhosa nos alpes),
na Langhe e no Monferrato (as duas últimas são área de colinas) por meio das
Formações Autônomas, cuja orientação ideológica era a distância dos diversos
partidos, restringindo as atividades às missões militares contra os nazifascistas.

No mês de julho de 1944 a guerra civil tomou um corpo mais robusto no Piemonte.
O então bispo de Alba, D. Grassi, politicamente monárquico, deparou-se com uma
realidade de guerra marcada pela presença de três grupos: os aliados, o Reino do Sul
e os partigiani; os alemães e os republicanos (partidários de Mussolini); por fim os
republiquinos (ligados ao dissidente fascista Pietro Badoglio, que se associou aos
Aliados). Em 1944 os conflitos tornaram-se mais agudos, devido a contraofensiva dos

3
Entrevista realizada por Andrea Cane com Gianfranco Maggi, março de 2010. Tradução nossa. O
historiador Andrea Cane franqueo-nos a possibilidade de realizar as entrevistas na Itália, a partir da
intermediação do seu filho e nosso amigo, Daniele Cane.
4
O padre Demetrio foi fuzilado no Castelo de Polenzzo (25/08/1944), junto a dois homens, pelos nazistas,
sob a acusação de “cumplicidade e consciência” de uma emboscada partisan contra os alemães. O próprio
bispo de Alba, Dom Grassi, esteve profundamente envolvido com os jovens participantes da Resistência,
demonstrando que não é fácil atribuir uma análise generalista sobre a hierarquia da Igreja, em relação à
política, por causa das identidades dos membros do próprio clero ou pelas demandas dos próprios fiéis.
nazifascistas as tropas aliadas, que desde o mês de junho haviam ocupado Roma,
rumando para o norte e nordeste do país.

Nesse período, o bispo de Alba, D. Grassi (considerado o bispo partigiano), realizou


um encontro clandestino com Michel (nome de guerra de Ghibellini Almicare,
comandante do destacamento da XLVIII brigada, IV Divisão Garibaldina) solicitando,
que não mais fossem executados líderes fascistas em Alba como forma de evitar
retaliações contra os civis. A admiração entre o bispo e os partigiani era mútua, ao
ponto do religioso enfrentar dificuldades com as autoridades fascistas (devido os
contatos com a juventude que ingressava nos grupos de resistência) e da promessa
de Michel haver sido cumprida. Contudo, o destacamento de Michel realizou outra
ação desafiando os fascistas, a libertação, em 6 de outubro de 1944, no cárcere de
Alba, do aviador Cornélio Brosio. A 9 de outubro de 1944, após uma série de
combates, a cidade de Canale foi abandonada pelos nazifascistas gradativamente
ocupada pelos partigiani do grupos Giustizia e Libertà (Justiça e Liberdade), Azzurre
(nome derivado dos lenços azuis amarrados nos pescoços, confeccionados com os
restos dos paraquedas aliados); Badogliane (formação associada a Badoglio);
Matteotti; Garibaldini; Rossi, dentre outras.

As estratégias de Mauri, junto às qualidades militares das formações partigiani, sob o


seu comando, revelaram-se na criação de uma zona composta por 400 comunas livres
dos nazifascistas (1944) entre Langhe e Monferrato, tendo como capital livre para
uma junta de governo a cidade de Alba, sob a proximidade do comando Aliado e do
bispo de Alba

No mês de setembro de 1945 os membros da Divisão Giustizia e Libertà (GL)


avançaram cerca de 80 quilômetros em território nazifascista. A Criação do Corpo dos
Voluntários da Liberdade (CVL) não indicou em nenhum momento uma unanimidade
entre os partigiani, pois cada um marchava conforme a sua bandeira (MOLA, Idem, p.
13-14). E assim até a derrota plena dos fascistas os combates foram intensos com
muitas mortes, aprisionamentos e troca de prisioneiros entre os beligerantes, algumas
vezes intermediadas por D. Grassi.

O caráter mais acentuado do envolvimento da Diocese de Alba no confronto ao


regime fascista ganhou evidencia por meio da aproximação de D. Grassi aos militantes
dos grupos da resistência. A aproximação teve um aspecto politicamente esdrúxulo,
porque D. Grassi era politicamente monarquista, enquanto a juventude partisã sofria
influencia especialmente de grupos socialistas.
Diante das hostilidades aos nazifascistas na região do Piemonte tornou-se
problemática, porque a prisão ou a morte do bispo de Alba poderia suscitar um
processo ainda mais acentuado de comprometimento de setores católicos com a
resistência. Dessa forma, a estratégia dos nazifascistas foi de fuzilar ou deportar
alguns padres, que cumpriam as orientações imediatas de D. Grassi, como forma de
enfraquecer as bases da resistência entre as hostes do baixo clero católico, que
capilarizava as ordens do bispo, e de estabelecer a dissuasão entre os fiéis pelo
recurso da violência. Dessa forma, o bispo ficou em uma situação complexa, pois
precisou realizar uma série de atividades, que antes poderiam ser delegadas aos seus
subordinados, a exemplo das negociações pela troca e soltura de prisioneiros ou o
contato com os representantes tanto dos nazifascistas como dos partisãos para
resolução de questões variadas.

A participação dos partigiani demonstra uma variedade de tendências políticas laicas


e mesmo religiosa, católica, no enfrentamento aos grupos nazifascistas. Apesar dos
vínculos entre o Estado italiano e o Vaticano ocorreram posicionamentos contrários às
relações com a política tutelada pelos nazifascistas. Os debates e as práticas de
dissidência dentro da Igreja tiveram um aspecto próprio em referência à permanência
dos vínculos de bispos e padres, bem como de leigos com a instituição.

Por sua vez, a experiência da luta dos católicos entre os partigiani demonstrou a sua
importância na formação de uma área liberada da influência nazifascista. Porém,
reafirmamos a percepção de que muitos componentes das forças nazifascistas eram
também católicos, alguns convictos e outros submetidos aos rigores do serviço militar,
não excluindo a prática de resistência pela deserção, por sabotagens materiais ou
ainda pelo trânsito de informações privilegiadas, importantes para o conhecimento das
estratégias e objetivos visados pelos inimigos. Sobre essa questão nos foi respondido
sobre a composição das forças partigiani, incluindo os militares desertores por
Gianfranco Maggi:

As diferentes formações partigiani, embora bastante precisas,


as pessoas eram agrupadas em diferentes direções. Além disso,
muitos que se diziam socialistas ou comunistas eram católicos
praticantes, ou pelo menos vinha do mundo católico. E em
todas as formações estavam presentes, talvez ao lado do
socialista ou comissários políticos socialistas ou comunistas, ou
os accionistas, os capelães. As duas realidades que a pergunta
recorda não eram tão rigidamente distintas mas bastante
permeáveis entre si (...) Mas eu sei (...) da presença de
diferentes grupos (comunistas, socialistas, ou acionistas – isto
é, laicos de esquerda não marxista – católicos, monárquicos, ou
militares desertores). Entre eles havia uma
colaboração/competição5.

O narrador Maggi salienta a presença de outros grupos nas frentes partigiani, a


exemplo dos militares desertores e os acionistas, ou seja, os membros da esquerda
não marxista e reforça o caráter plural da resistência piemontesa, demonstrando quão
rica foi a oposição ao fascismo.

A narração sobre o conflito no Piemonte tem outro aspecto que não pudemos
ignorar, desde o momento da realização das entrevistas. Trata-se da perspectiva de
revelar os sofrimentos decorrentes da guerra, porém sem se esquecer do papel
político da resistência (mesmo antes de 1944) aos nazifascistas, bem como o sentido
de pertencimento a uma família colaboradora dos partigiani. Assim, a narrativa sobre
um passado de dor e de congregação de pessoas, em grupos identificados com a
Resistência, situa a importância do espaço de Canale d’Alba no tempo das primeiras
ações armadas dos guerrilheiros. Canale como um dos focos da Resistência tem um
significado de um tempo de dor, de padecimento, mas também da disposição de
grupos piemonteses em combater o fascismo. Nas entrevistas, percebemos a
importância da geografia local e do tempo da guerra para constituição de uma noção
de pertencimento social, pois o narrador nos falou da sua origem familiar, cujos
vínculos com a Resistência eram definidos por uma experiência cotidiana de
participação política. Essa questão nos remete a uma discussão sobre a questão do
tempo, do espaço, das identidades sociais, da rememoração e da própria narrativa
(PORTELLI, 1996). Todos esses elementos demarcam um espaço, a partir de balizas
de suma importância para o pesquisador e para o narrador: o lugar de onde os
acontecimentos foram experimentados pelos indivíduos para posteriormente ser
transmitidos pela memória, permitindo o acesso a situações sociais e as estratégias
dos indivíduos em conflito (BOUTZOUVI, 1994, p. 2)

A memória reflete assim uma forma de pertencer socialmente a um grupo ou de


rememorar o pertencimento, pois mesmo o tempo não anula a identificação grupal,
podendo certamente apenas fomentar uma ressignificação. A experiência social de
vínculo a pessoas de posições antifascistas ecoa no tempo como uma demonstração
da resistência narrativa àquele regime político. A dor sentida e sofrida junto a tantos
outros italianos massacrados pelos nazifascistas gerou cicatrizes presentificadas pela
voz dos narradores.

5
Entrevista realizada a nosso pedido por Andrea Cane ao senhor Gianfranco Maggi, Idade: 64, profissão:
aposentado em Sommariva, Itália, primeiro semestre de 2010. Tradução nossa.
Os membros da Resistência (anteriormente, camponeses, operários, professores,
religiosos, dentre outras profissões) traziam as demandas das vítimas do nazi
fascismo pelo exercício de pacificar, por meio da sua doação aos combates contra
exército bem treinados (o italiano e o alemão), regiões até então sob o domínio
fascista. Outro narrador, o monsenhor Pescarmona , durante a entrevista que
realizamos evitou comentários sobre memórias incômodas como mortes e a destruição
material provenientes dos bombardeios ou dos conflitos (Entrevista ao autor: Junho de
2009). O aspecto da memória como uma força ativa entre o esquecer e o lembrar foi
avaliado por Samuel na sua dinamicidade: “o que ela sintomaticamente planeja
esquecer é tão importante quanto o que ela lembra” (1997, p. 44).

Outro aspecto com relação à população de Alba e a sua cultura política voltou-se
para a presença de alguns trabalhadores, politicamente socialistas, que frequentavam
missas. Essa questão desponta como um aspecto interessante sobre a religiosidade
entre os militantes ou adeptos da esquerda associados ao catolicismo. Esse fator
colaborou igualmente ao recrutamento da Resistência. Em alguns estudos realizados
por Hobsbawn foi possível constatar que a secularização e as posturas antirreligiosas
ou de indiferença religiosa eram mais comuns entre os operários das metrópoles,
enquanto nas pequenas cidades os trabalhadores cultivavam uma prática religiosa
mais participativa entre fins do século XIX e primeiras décadas do século XX (2000,
p.60). Essa questão pode ser explicada pela permanência de aspectos comunitários
associados às práticas religiosas.

No caso de Canale as estruturas de autoridade e da comunidade não haviam sido


rompidas, destruídas ou transformadas pelo capitalismo moderno, cuja tendência é
substituir a sociedade pela comunidade e de fazer a religião perder o monopólio de
formar e comunicar ideias entre a população6. Logo, percebe-se como em uma
determinada região, podemos constatar as variações do fenômeno político, a partir de
algumas memórias transmitidas por meio de gerações, que formaram alicerces de
uma cultura política7 socialista em conflito com o liberalismo da fase pré-Mussolini
pelos direitos dos trabalhadores. Posteriormente, as questões em pauta se
demarcaram por processos organizativos, envolvendo desde as questões partidárias,
sindicais e antifascistas. Assim, a vida em Alba se constituiu como nexo entre a
experiência política de famílias camponesas para uma conjunção do catolicismo com a

6
Segundo Hobsbawn mesmo entre pessoas devotas, supersticiosas ou ortodoxas votavam na esquerda
“ateia”. Cerca de 40% das pessoas na Sicília e Sardenha, nos polarizados anos 50, não viam
incompatibilidade entre o catolicismo e o comunismo. Ver: HOBSBAWN, E. A religião e a ascensão do
socialismo..., p. 60.
7
Cultura política refere-se às ações e representações relacionadas ao fazer político. Ver: MOTTA, R. P. Sá
(ORG). Culturas políticas na história...
esquerda. Percebemos pelas narrativas sobre os assuntos referentes às relações entre
socialismo, monarquia e catolicismo faziam parte de uma experiência específica de
classe. Durante a formação da classe operária inglesa no século XIX ocorreu a divisão
dos operários em uma diversidade de denominações cristãs. O Metodismo, por
exemplo, assemelhou-se bastante com a Igreja Católica na Itália, especificamente em
relação às questões de ser praticado por patrões e trabalhadores, enquanto se
enfrentavam politicamente (THOMPSON, 1987).

No caso italiano, a presença do papado garantiu a formação de práticas políticas


relacionadas com o catolicismo por meio de um vasto leque: monarquistas e
republicanos, sendo estes divididos em sociais-democratas, socialistas, liberais e
democratas-cristãos. Podemos imaginar a dimensão dessas disputas grupais, tendo
em conta a ocorrência da própria guerra na Itália.

Apesar das relações políticas do Papa com o regime fascista, o nordeste italiano
destacou-se por um movimento de resistência ao regime. Esse fato implicou inclusive
na participação ativa do bispo da Diocese de Alba, região do Piemonte, junto aos
guerrilheiros antifascistas. As manobras políticas da burguesia do norte italiano não
tardaram a limitar o poder político da monarquia e, posteriormente a sua abolição, na
década de 1940, após a queda fascista (MOLA, 1995, p. 14).

Findo o conflito, a sociedade italiana precisou passar pelo desafio da reconstrução,


enquanto alguns efeitos da guerra se apresentavam irreversíveis. Inegavelmente o
conflito colaborou para a debilidade física de D. Grassi, cuja oposição ao fascismo
surgiu ainda antes da guerra, e que a 5 de Abril de 1948 feneceu, sendo sepultado
três dias depois, causando uma enorme comoção na Diocese de Alba.

FONTES UTILIZADAS:

BOUTZOUVI, Aleka. “Individualidad, memoria y conciencia colectiva: la identidad de


Diamando Gritzona”. In: Historia y Fuente Oral, 1, 11, Barcelona: Universidad de
Barcelona, 1994, p 39-52.

BOURDIEU, Pierre. Razones prácticas: sobre la teoría de la acción. Traducido por


Thomas Kauf Editorial Anagrama, Barcelona, 1997, 233 p.

CUNHA, Luís Antônio. A educação na Concordata Brasil-Vaticano. In; Educação e


Sociedade,Campinas, v.30, no. 106, 2009, p. 1-8.
DOSSE, François. O Desafio Biográfico: escrever uma vida. Tradução Gilson César
Cardoso de Souza. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009, 438 p.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002,


Vol. 5.

GRASS, Luigi M. La tortura di Alba e dell’albese (Luglio 1944-Aprile 1945).


Introduzione storica di Aldo Alessandro Mola. III Edizione. Alba: Società San Paolo;
Gazzeta D’Alba, 1994.

HOBSBAWN, Eric. A religião e a ascensão do socialismo. In: Mundos do trabalho:


novos estudos sobre história operária. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000, cap. 3, p.
55-78.

MANFRÓI, Olívio. Imigração e nacionalismo. In: Anais do Simpósio Internacional sobre


Imigração Italiana e Anais do IX Fórum de Estudos Ítalo-Brasileiros. Caxias do Sul:
EDUCS, 1999, 500p.

MOLA, Aldo A. Introduzione: continuità e innovazione nella storia civile italiana dalle
pagine di Mons. Luigi M. Grassi sulla chiesa d’Alba e dell’Albense nella resistenza. In:
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política
pela historiografia. In: ________ (Org.). Culturas políticas na história: novos estudos.
Belo Horizonte: Argumentvm, 2009, p. 13-37.

ORTIZ, Renato. O outro território. São Paulo: Brasiliense, 1994.

PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de


1944): mito e política, luto e senso comum. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta
de M (Orgs). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio
Vargas, 1996, p. 103-130.

SAMUEL, Raphael. Teatros de memória. In: Projeto história, São Paulo, no. 15, abril
1997, p. 41-81.

THOMPSON, E. P. O poder transformador da cruz. In: ________. Formação da classe


operária inglesa (II- A maldição de Adão). Trad.: Denise Bottman. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1987, v. 2, cap. 6, p.225-289.

Entrevistas:
Entrevista realizada a nosso pedido por Andrea Cane, historiador italiano, ao senhor
Gianfranco Maggi, Idade: 64, profissão: aposentado em Sommariva (Perno), Itália,
primeiro semestre de 2010. Tradução nossa.

Entrevista ao autor: Monsenhor Luigi Pescarmona (Junho de 2009).


POLÍTICA E RELIGIÃO: AS NOVAS FACETAS DA POLÍTICA ESPETÁCULO – O
CASO DAS ELEIÇÕES 2012 EM CAMPINA GRANDE – PB

Josileide Carvalho de Araújo

Daniel Ferreira Gonçalves de Oliveira

Orientadora: Elizabeth Christina de Andrade Lima

APRESENTAÇÃO

Este artigo resulta de pesquisa realizada nas campanhas eleitorais para a Prefeitura
Municipal de Campina Grande /PB, em 2012. Buscamos analisar as estratégias de
candidatos a prefeitos que se utilizaram da religião para promover sua própria imagem
ou mesmo denegrir a imagem dos adversários. Religião e política são dimensões
distintas que se inter-relacionam no espaço público, onde podemos compreender que
a política é disputa de poder, mas também de símbolos e significados que se
incorporam na maneira de se fazer política na contemporaneidade que pode se
originar do campo religioso. Podemos destacar alguns fatos que chamaram atenção, o
candidato Romero Rodrigues (PSDB) foi acusado de ser contra os evangélicos, Tatiana
Medeiros (PMDB) foi chamada de “mãe de santo”. Reconhecemos que na política a
religião tem seu peso e interfere na vida política, seja no sistema de crenças, moral,
bons costumes e nos valores políticos que se incorporam nas campanhas.

Palavras-chave: Religião, Política, Campanhas eleitorais.

INTRODUÇÃO

No presente artigo tomamos como caso para análise as campanhas dos


candidatos Romero Rodrigues (PSDB) e Tatiana Medeiros (PMDB) na eleição municipal
de Campina Grande de 2012, que tiveram seus nomes envolvidos em vários episódios
relacionados a instituições religiosas. No processo eleitoral levamos em consideração
que a política não é só entendida como uma relação de poder, ocupação de cargos e
administração dos bens públicos, também encontram-se envolvidos os eleitores, o
processo de escolha de uma candidatura e os candidatos com a construção de suas
imagens públicas, que perpassa as relações sociais e a cultura. Cabe entender os usos
e desusos de religiões e o nome de Deus nas propagandas eleitorais.

Nesse aspecto o candidato utilizou o seu tempo de propaganda para relatar que
seu nome estava envolvido em tramas por parte dos adversários, ao mesmo tempo,
que se defendia ao dizer ser uma pessoa católica praticante, sua mãe evangélica e
que tem uma família unida, segundo os preceitos religiosos. Por sua vez, a candidata
Tatiana Medeiros aproveitou seu tempo de propaganda para afirmar que Romero
Rodrigues era contra os evangélicos, criticando sua postura de intolerante as religiões,
como também para apresentar a sua família, que mesmo sendo uma mulher
divorciada, ela tinha uma família unida, demonstrando em suas palavras a força da
mulher e de ser mãe. A estratégia do candidato foi passar para os eleitores que ele
era tolerante em relação às religiões e que não demonstra nenhum preconceito. Já a
candidata se utilizou da imagem de intolerante do candidato para desconstruir sua
imagem pública e sua credibilidade política e o colocar em contradições entre o que
ele dizia e a denúncia contra os evangélicos.

A imagem dos candidatos é avaliada pela equipe de campanha e dos próprios


eleitores, cabe à construção de uma imagem pública que convença o eleitorado, e aqui
as estratégias utilizadas pelo candidato, como o modo de se vestir e de se comportar,
a maneira como que ele se dirigiu as pessoas, seu discurso e se já tem experiência
política pode ser um dos requisitos para ser escolhido. Entretanto, a política se
apresenta num jogo de encenação, de significados e símbolo que acaba por levantar
outras questões que envolvem os candidatos de um modo a crer que a tradição e os
bons costumes são elementos importantes que contribuem na adesão ao candidato, e
um desses meios é a religião, que acirra as campanhas eleitorais e interfere na
politica. Temos o esforço de apresentar essa relação entre religião e política a partir
da análise do guia eleitoral dos candidatos na última semana de campanha no
segundo turno, onde podemos constatar com mais evidência o uso da religião nos
discursos como forma de desconstruir ou positivar a imagem pública.

A IMAGEM PÚBLICA DOS CANDIDATOS

Na vida política, principalmente nas campanhas eleitorais, candidatos disputam


a adesão, em forma de votos, dos eleitores encenando e oferecendo uma imagem que
pode ser aceita se for bem convincente ou rejeitada se os eleitores tiverem a
impressão que o político está sendo falso. No denominado “tempo da política”, e aqui
estamos nos referindo ao momento do processo eleitoral, muitas estratégias são
utilizadas para garantir adesão, e consequentemente, o voto dos eleitores. É nesse
contexto, que a Maria Helena Weber apresenta que a experiência política é também a
construção de imagem pública que aciona vários aspectos pessoais e políticos dos
candidatos.

Antes de refletirmos sobre a construção da imagem pública de Romero e


Tatiana, temos que nos debruçar sobre o processo eleitoral nas eleições municipais em
Campina Grande. Ao se estabelecer as candidaturas tivemos a oportunidade de
termos sete candidatos concorrendo ao pleito, foram eles: Guilherme Almeida, do
Partido Social Cristão (PSC), é formado em Engenharia Civil, exerceu três mandados
como vereador e à época da disputa ocupava o cargo de deputado estadual; Tatiana
Medeiros (PMDB) é médica-ortopedista, fez parte da gestão do prefeito Veneziano
como chefe do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência em Campina Grande e
Secretária Municipal da Saúde. Foi candidata a deputada estadual nas Eleições de
2010, mas não foi eleita; Daniella Ribeiro (PP) formada em pedagogia, filha do ex-
deputado federal e ex-prefeito Enivaldo Ribeiro e irmã do atual Ministro das Cidades,
Aguinaldo Ribeiro. Foi vereadora em Campina Grande e é líder da bancada do PP na
assembleia estadual; Romero Rodrigues do Partido da Social Democrática Brasileira
(PSDB) formado em Agronomia, já foi vereador e deputado estadual na mesma
cidade, e é deputado federal; Artur Almeida do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) é
presidente da Federação das Câmaras dos Dirigentes Lojistas do Estado da Paraíba, e
nunca exerceu um cargo público; Sizenando Leal do Partido Socialismo Liberdade
(PSOL) é professor na rede estadual de ensino e Alexandre Almeida do Partido dos
Trabalhadores (PT) e fez parte da gestão do prefeito Veneziano Vital do Rêgo. No final
do primeiro turno, Romero e Tatiana conseguem chegar ao segundo turno, e o
candidato vence a eleição.

Quando falamos em personagens políticos temos a noção de que eles são uma
representação, seja de um candidato que traz em sua imagem a figura do pai, bom
marido ou filho, ou se nos referirmos às mulheres pode ser acionada a figura da mãe,
boa esposa ou filha. Enfim, vários elementos que podem compor uma imagem pública,
que o político deve acreditar, e as pessoas devem ter uma boa impressão. Um
indivíduo representa e desempenha um papel, os sujeitos observadores tem uma
impressão da imagem que está sendo representada, acreditando ser verdade, mas
não de um modo determinante que não possa ser questionado, de um modo geral, as
coisas são como parecem ser.

A constituição da imagem pública é um processo contínuo e vital para a


visibilidade e reconhecimento de “sujeitos políticos”, segundo Weber (2004) “Trata-se
de um processo de construções e desconstruções de verdades, realidades e de
legitimidade, tanto de quem fala sobre si próprio, como sobre os próprios espelhos –
mídias, espaços, palcos.” (Weber, 2004, p. 260). Certas situações e eventos provocam
mudanças e adaptações dos sujeitos à imagem representada e percebida. Uma
imagem pode exercer influencia sobre os outros, imagem significa algo para aquele
que gera e aquele que recebe no calor da emoção uma imagem pode ser tão próxima
a nós que nos sentimos parte do processo e totalmente envolvidos com aquele que
representa, o apoiamos e defendemos até o fim, talvez aqui não há dúvidas sobre o
que é verdade ou mentira, e sim que possamos ter o controle da situação.

Weber apresenta que “a imagem pública dos sujeitos políticos vai sendo
formada, individual e simultaneamente, a partir da combinação das representações
visuais e das representações mentais.” (Weber, 2004, p. 261). Para que uma imagem
seja difundida são necessários canais que permitam o acesso a estas. Candidatos
recorrem às mídias sociais e digitais para garantir que as pessoas os percebam, a
propaganda política e o Horário Eleitoral Gratuito – HGPE se somam a materiais
impressos de campanha e o uso das redes sociais como espaços de divulgação de
atividades e informações sobre os candidatos.

Segundo Weber (2004) “a imagem pública é resultante da imagem conceitual,


emitida por sujeitos políticos em disputa de poder e recuperada na soma das imagens
abstratas (o inatingível, a imaginação), com as imagens concretas (o tangível, os
sentidos).” (Weber, 2004, p. 261-262). Para a autora a imagem pública é inerente ao
exercício da política e diz respeito à coisa pública. Porém, a imagem pública faz parte
de um processo social, isso quer dizer que não só se refere a vida política, quando
tratamos das campanhas eleitorais, percebemos que a vida privada dos políticos
interfere na vida pública. Quando um candidato é questionado sobre suas ações ou
ausência delas, sua imagem pública pode estar em risco, pois dependendo do que é
veiculado pode ter uma repercussão pública a seu favor ou contra “a repercussão
pública” é desencadeada pelas mídias, adversários, grupos sociais, indivíduos, através
da veiculação de suas opiniões e imagens sobre a ação do sujeito político”, segundo
Weber (2004, p.262).

A política se refere a um jogo de encenação, interesses, disputas pelo poder e


principalmente de significados e símbolos que se aproximam do real e produz sentido.
É uma relação que se estabelece entre o político e eleitor, um é à sombra do outro; na
política é necessário o tempo de reconhecimento das figuras políticas e a aceitação por
parte dos eleitores. Não podemos pensar que a escolha de determinado candidato
acontece aleatoriamente, a avaliação e adesão são peças fundamentais para
pensarmos que o povo sabe votar, como afirma Nara Magalhães (1998). O que é
comum entre o político e seu eleitorado são os elementos que vão tecer os laços entre
o ator e o sujeito. Como afirma Weber, o conceito de aprovação desejado por sujeitos
políticos é a soma das imagens sociais, conceituais e visuais acumuladas no
imaginário, indicativas da identidade de quem fala (Weber, 2004, p. 269).
Apresentamos até agora sobre a constituição de uma imagem pública, e quais as
estratégias para mantê-la. Mas a imagem pública é construção e (des) construção,
pois ela faz parte de um processo individual e social que não está imune às mudanças.
Numa campanha eleitoral ocorre a disputa pelo poder que solicita que o discurso seja
persuasivo para capturar a mídia que o reproduz, e para capturar o indivíduo, que
formará uma opinião, segundo Weber. Através de marcas visuais, discursos, material
de campanha, ocupação de espaços na mídia, comunicação visual gráfica, eletrônica e
digital, assessoria, não podemos pensar a campanha apenas no jogo de imagens e
conceitos, temos que nos remeter a uma equipe de campanha e espaços que
viabilizem a reprodução da imagem e informações sobre o candidato.

Portanto, construir e (des) construir uma imagem é caminhar numa mesma


direção, na mesma proporção. Ter uma imagem pública favorável é a cobiça da
política hoje, entre sujeitos e instituições, pois se uma imagem é positiva ou negativa
isso pode ser requisito para manter ou perder o poder, que poderemos destacar
melhor quando apresentarmos a propaganda dos candidatos e as informações que
foram passadas durante a campanha.

PERFIL DO CANDIDATO ROMERO RODRIGUES

Romero Rodrigues Veiga nasceu em Campina Grande, mais exatamente no


Distrito de Galante, em 9 de janeiro de 1966, é filho de Moacir Barbosa da Veiga e
Antonieta Rodrigues Veiga. Engenheiro agrônomo pela Universidade Federal da
Paraíba (UFPB). É casado com a médica Micheline Moura e pai de Vitória Moura e Vitor
Romero. O candidato após concluir o Segundo Grau em 1981, prestou o Vestibular e
aprovado no Curso de Zootecnia na Universidade Federal da Paraíba, na cidade de
Areia/PB. Após a conclusão do curso fez Mestrado em Irrigação e Drenagem.

Elegeu-se vereador em 1992 pela primeira vez, e conseguiu mais três


mandatos, e por três vezes esteve à frente como presidente da Câmara de Vereadores
de Campina Grande. Eleito deputado estadual mais votado e apontado pela ONG
Transparência Brasil como o deputado com melhor atuação através de Projetos de Lei
de Qualidade. Licenciado da Assembleia Legislativa assumiu a titularidade da
Secretaria da Interiorização do Estado (2007-2008) e, posteriormente, a chefia da
Casa Civil do Governo da Paraíba (2008-2009).

O candidato foi o deputado federal mais votado na cidade em 2010, e no de


2012 se candidatou a prefeito em Campina Grande pela Coligação Por Amor a
Campina, formada pelo PSDB, DEM, PRB, PSL, PTN, PCB, PPS, PSB, PV, PRP, PSD e PT
do B, e que teve como vice Ronaldo Cunha Lima Filho. Romero terminou o primeiro
turno com a votação de 97.659 que equivale a 44,94%. Ao chegar no segundo turno o
candidato consegue vencer a eleição com votação de 130.106, com 59% dos votos
válidos.

PERFIL DA CANDIDATA TATIANA MEDEIROS

Tatiana de Oliveira Medeiros tem 44 anos, nasceu no dia 21 de julho de 1966


na cidade de Campina Grande/PB. Filha do médico urologista Dr. José Moysés de
Medeiros Neto e da empresária Zoé Medeiros. Tatiana tem quatro filhos, o mais velho
Cassiano se candidatou a vereador no ano de 2008 e foi eleito. É médica ortopedista
e traumatologista, trabalha há mais de 20 anos na cidade de Campina Grande.

Foi médica da equipe do SAMU-192-CG desde a sua implantação em Julho de


2004, e no ano de 2005 foi convidada pelo então prefeito Veneziano Vital do Rêgo
para coordenar o SAMU. Em 2010, Tatiana Medeiros se lançou candidata a uma vaga
na assembleia legislativa e obteve mais de 10 mil votos, sendo mais de 7 mil na
cidade de Campina Grande. O que chamou atenção é o fato da candidata não ser
herdeira de uma família política local tradicional e mesmo assim, obteve uma
expressiva votação. Logo após as eleições de 2010, Veneziano a convida para assumir
a Secretaria de Saúde do munícipio. Através de consulta popular entre os
campinenses, o nome escolhido para suceder Veneziano era o de Tatiana Medeiros
que aceitou mais uma vez seu convite e enfrentou o desafio da vida pública. Ela faz
parte da coligação Campina segue em frente formado pelo PMDB, PR, PMN, PHS, PTC,
e PPL. Com o início das eleições, as pesquisas apontavam 3% de intenção de votos,
com várias atividades para cumprir da agenda, ela conseguiu chegar ao segundo lugar
das intenções de voto, terminou o primeiro turno com votação de 65.195 referentes a
30% dos votos válidos, conseguiu chegar ao segundo turno, mas perdeu a eleição
para Romero Rodrigues, com uma diferença de 40 mil votos.

ANÁLISE DO HGPE E OUTROS MATERIAIS ELEITORAIS

Sabemos que as campanhas eleitorais se utilizam de várias estratégias para


conseguir um maior número de adesões, e consequentemente, votos. Muitos materiais
são distribuídos durante as eleições como forma de compor a imagem dos candidatos
ou para desestabilizar ou mesmo desconstruir seus adversários. Como também, o
próprio discurso dos candidatos serve para positivar sua imagem ou negativar a
imagem dos adversários, pois certos atributos podem ser referidos como que somente
um dos candidatos possa a ter.
Vale a pena destacar que na cidade de Campina Grande temos durante a
realização do carnaval o evento “Encontro da Nova Consciência” que tem por objetivo
reunir pessoas das mais diversas religiões, cuja maior intenção é a prática do
ecumenismo. Entretanto, quando nos referimos à campanha das eleições de 2012, a
religião foi utilizada como arma política, como forma de atacar os adversários, que no
fim das contas a religião perde seu lugar de sagrado para ser instrumento político.

Um dos vídeos mais comentados na Internet durante a campanha foi o de


Tatiana Medeiros visitando uma comunidade de uma religião afro-brasileira. O vídeo
intitulado “Tatiana em Terreiro de Candomblé” foi postado no canal de vídeos do
Youtube. O que chamou atenção é que tinha uma legenda que dizia: “Ela que ser mãe
de Campina. Mas, o que ela é, é mãe de santo”. O vídeo de 2010, mostra à candidata
a prefeita de Campina Grande visitando um evento de culto afro-brasileiro e, na
época, como candidata a deputada estadual, se fez presente, aceitando convite feito
pelos dirigentes religiosos.
A figura da mãe foi comentada durante as inserções da Presidenta Dilma
Rousseff que pedia aos campinenses um voto para Tatiana. E nas imagens aparece
que Dilma é mãe do PAC, e trazia a informação que Tatiana por ser mãe iria cuidar
com mais atenção e carinho da população campinense. O objetivo do vídeo não foi
defender a candidata, e sim uma tentativa de vincular a imagem da candidata à
religião afro-brasileira com a intenção de desconstruir a imagem de Tatiana diante de
eleitores católicos e evangélicos. No site oficial da candidata o coordenador de
campanha postou uma nota esclarecendo a situação:

O coordenador de comunicação da campanha, jornalista Carlos


Magno explicou que Tatiana Medeiros é católica cristã praticante,
não discrimina e não persegue ninguém que tenha religiões e
crenças diferentes da dela. “Tatiana é uma mulher íntegra e
sensata, diferente do seu adversário político, ela respeita e
liberdade de crença e religião de todas as pessoas”, frisou
Magno. Carlos acrescentou ainda que não apenas Tatiana
Medeiros, mas o prefeito Veneziano Vital do Rego e demais
componentes diretos da administração executiva campinense,
participam de todos os eventos religiosos a que são convidados.
“Ela não tem obrigação de agir com preconceito e intolerância
religiosa, como age o candidato Romero Rodrigues que tem
várias ações na justiça contra os evangélicos”, declarou.
(www.votetatiana15.com.br)

Lembramos que essa cena também fez parte da campanha para governador na
Paraíba em 2010. O candidato ao governo do Estado, Ricardo Coutinho do Partido
Social Brasileiro (PSB) foi vítima do mesmo tipo de situação. Mas o que deixa claro é a
tentativa de defesa da candidata ao atribuir a ela a imagem de cristã, tolerante e que
respeita as religiões. Enquanto seu adversário era atacado por parte de sua equipe
apresentando-o como um candidato preconceituoso e intolerante as religiões.

É notório que um prefeito tem por responsabilidade administrar uma cidade


não importa se as pessoas seguem uma religião ou não. O que deveria ser levado em
questão são as propostas dos candidatos, e não a religião que segue ou deixa de
seguir. Afinal, não estamos aqui para eleger padres ou pastores, e sim quem melhor
para gerir uma cidade. É nesse aspecto que a Antropologia tem a contribuir com o
entendimento dessa relação tão complexa entre religião e política, que não pode ser
entendida em campos separados, mas sim na força que há entre os dois campos.
Outro fato que nos chamou atenção foi a apresentação do programa eleitoral
de Tatiana e Romero próximo ao dia da votação. No dia 19 de outubro de 2012 o guia
eleitoral do candidato mostrava que a Assembleia Legislativa da Paraíba aprovou um
projeto de lei de autoria do deputado Romero Rodrigues que declara de utilidade
pública a visão nacional para a Consciência Cristã (VINACC). O mesmo guia informa:

Várias entidades evangélicas instaladas em Campina Grande são


reconhecidas de utilidade pública, graças a aprovação de projetos
de lei apresentados por Romero. Uma delas a VINACC, que
inclusive já recebeu recursos conseguidos por Romero para
realizar o Encontro para a Consciência Cristã, um dos maiores
eventos evangélicos do Brasil. (Guia eleitoral Romero Rodrigues,
19 de outubro de 2012).

No mesmo guia aparece o Pastor Geraldo Máximo dizendo que “esse projeto
ajudou muito, porque, se não fosse assim, esse evento não teria a magnitude que
tem.” E ainda é apresentado que Romero é também autor do projeto de lei que tornou
de utilidade pública a AMPLA – Associação Multi-Assistencial em Plena Ação, localizado
em Campina Grande/PB que tem por objetivo difundir o evangelho. E mais uma vez é
destacado que Romero é uma pessoa cristã, assim é apresentado:

Romero é católico praticante, mas a mãe dele é evangélica há


quarenta anos. Com Dona Antonieta, Romero aprendeu a
importância de conviver com pessoas de diferentes credos, e a
respeitar todas as religiões. (Guia eleitoral Romero Rodrigues, 19
de outubro de 2012).

Após esse destaque aparece o pastor Josimar afirmando que,

Mesmo não sendo evangélico, Romero sempre teve uma


convivência de respeito, de apoio, de ajuda às igrejas evangélicas
que receberam e recebem dele toda a atenção. Romero pode dar
testemunho de vida cristã, porque é cristão, e me sinto feliz em
poder dar esse testemunho. (Guia eleitoral Romero Rodrigues, 19
de outubro de 2012).

Após essa participação, Fábio Medeiros Ministro Igreja Verbo da Vida afirma,

Todos nós sabemos do compromisso cristão de Romero. Uma


pessoa de bem, uma pessoa de família, uma pessoa educada,
que não compra briga com ninguém. Enfim, Campina está
precisando, verdadeiramente, de uma pessoa de paz, que vai
trazer paz para a cidade. E Campina graças a Deus vai ter um
prefeito cristão, um prefeito de família, um prefeito que vai
cuidar das famílias. Eu tenho certeza disso. E, livremente, nós
vamos escolher, porque o debate não é religioso, o debate é
administrativo. (Guia eleitoral Romero Rodrigues, 19 de outubro
de 2012).

O programa ainda continua com a apresentação de Romero como aquele que


tem religião, tem família e que sempre teve uma relação de respeito e de apoio aos
evangélicos. E para complementar o programa lança que a gestão de Veneziano foi
que perseguiu os evangélicos apresentando ações demolitórias que teve início por
parte da prefeitura contra a Igreja Batista Betel Congregacional Dinamérica para
derrubar seu templo, que se repetiu com outras igrejas. Na sequência da cena,
aparece o candidato Romero com sua família para afirmar as seguintes palavras
abaixo transcritas:

Sou católico com muita convicção e há muitos anos frequento a


mesma igreja no Catolé. Conheço a comunidade de minha
paróquia e a comunidade me conhece dos atos religiosos e da
vida paroquial. Sou de família cristã, e aprendi, na minha família,
o respeito e a tolerância religiosa. Minha mãe é evangélica
também convicta e frequenta há mais de 40 anos a mesma igreja
adventista. Pastores e Padres no conhecem, não da época de
campanha, mas da vida. Lamento que, nessa campanha, em vez
de discutir propostas, para superar os graves problemas, como
os da saúde, que a cidade inteira sofre, tentem desviar o foco
dos debates para mentiras lamentáveis sobre a convivência com
as diversas igrejas. Respeito, sempre respeitei, todas as
religiões, mas sempre me neguei, como hoje me nego, a utilizar
minha fé ou a minha igreja para conseguir qualquer tipo de
ganho eleitoral. Religião e fé são coisas muito sérias e sagradas
para serem banalizadas como mero instrumento cata-voto.
Escolheram a pessoa errada como foco de suas inverdades. Posso
apresentar a Campina minha família, minha mãe, minha esposa,
Micheline, meus filhos Vitor r Vitória, que a cidade conhece. Não
sei se autores dessas mentiras podem fazer o mesmo. Pouco me
interessa. Pouco me interessa. Respeito o direito de qualquer um
viver como quiser. Com ou sem religião, com ou sem família. O
meu modelo é esse: tenho religião e tenho família. Mas insisto: o
que se discute na campanha é o que fazer para Campina superar
os seus problemas. Não religião e família dos candidatos. Ou se
eles têm família, ou quantas famílias. O que se discute é a
questão administrativa, não religiosa. (Guia eleitoral Romero
Rodrigues, 19 de outubro de 2012).

Interessante notar que a imagem pública do candidato foi colocada na dúvida


se ele era uma pessoa tolerante ou não. O programa foi dedicado a defender a
integridade e a imagem de Romero. A presença de outras falas no programa, de
pessoas ligadas a Igreja acabou por reforçar uma imagem do candidato como cristão.
Em uma das falas, Fábio ao dizer que teremos um prefeito cristão, na verdade levanta
a questão que religião importa e pode ser um dos requisitos para a escolha e
consequente vitória, de um candidato. Vivemos numa cidade que se revela
conservadora e ligada à questão da moral e “bons costumes”. Ser uma pessoa
religiosa e de família acaba por ajudar a construir uma imagem pública que está de
acordo com a vivência, hábitos e costumes da população campinense. A fala de
Romero só reforça o embate religioso na campanha, por mais que diga que isso não
deva acontecer, e que o debate deve ser por questões administrativas para resolver
os problemas da cidade. Ao se colocar como cristão e de família, está na verdade
atacando seus adversários políticos, principalmente, Tatiana Medeiros. Pois, se partiu
da equipe da candidata a defesa de que ela era cristã e o candidato intolerante às
religiões. E como poucos sabiam da vida da candidata, Romero aproveitou o espaço
para apresentar sua família, e pouco interessava saber se os outros tinham família ou
religião. E se colocar nessa posição é demonstrar que somente ele carregava esse
valor e essa preocupação. Enquanto Tatiana era divorciada e ainda não tinha
apresentado sua família, mesmo nas informações na Internet sobre seu perfil,
sabíamos que ela tinha quatro filhos, mas não tinha chegado às mídias sociais os
apresentando.

Até que no dia 21 de outubro de 2012, a apresentadora do guia eleitoral de


Tatiana afirma que o candidato Romero tenta usar meios para desviar atenção do
ataque que fez aos evangélicos ao dizer que a prefeitura na gestão de Veneziano
impediu a construção de uma igreja e iniciou ações demolitórias. E ao dizer vamos a
verdade apresenta que a obra que Romero se refere foi embargada, pois não tinha
permissão para ser construída, conforme o código de obras do munícipio que foi
sancionado por Romero quando esteve à frente da prefeitura interinamente. E a
prefeitura estava respeitando e cumprindo a lei que o candidato no tempo havia
sancionado. E ela continua: mas, quando Romero entrou na justiça contra os
evangélicos foi por vontade pessoal. Logo em seguida aparece o Pastor Gomes e Silva,
presidente estadual da CEPEA-PB afirmando,
A Comunidade Evangélica campinense sabe muito bem, que o
prefeito Veneziano foi muito correto com o Encontro para
Consciência Cristã. Durante esses oito anos de administração de
Veneziano nós podemos pontuar três grandes conquistas do
Encontro para Consciência Cristã, primeiro, Veneziano assegurou
o espaço do Parque do Povo, para que o evento acontecesse
normalmente, quando anteriormente foi ameaçado de perder o
local para sua realização. Segundo, Veneziano inclui no
calendário turístico do município de Campina Grande no ano de
2006 o evento, ou seja, uma conquista da comunidade
evangélica e terceiro, Veneziano ele manteve o apoio financeiro
ao Encontro para Consciência Cristã. Tudo isso fez com que o
Encontro para Consciência Cristã, se tornasse o maior evento no
gênero da América Latina. Ou seja, uma grande conquista para
todos nós. Então, hoje, nós podemos dizer, nós agradecemos a
Deus em primeiro lugar, pelo sucesso do Encontro para
Consciência Cristã e em segundo lugar, a Veneziano, pelo apoio
que ele dispensou a todos nós. (Guia eleitoral Tatiana Medeiros,
21 de outubro de 2012).

O guia teve como objetivo apresentar que no governo de Veneziano os


evangélicos tiverem apoio estrutural e financeiro para realizar o evento. Isso foi uma
forma de desvincular a candidata Tatiana desses episódios, e que em nenhum
momento Veneziano perseguiu os evangélicos, assim como a sua candidata à
sucessão. Após esse embate sobre religião, como o candidato tocou no assunto
família, a candidata preparou uma apresentação dando enfoque a essa questão. No
dia 25 de outubro de 2012, Tatiana aparece em seu programa eleitoral afirmando,

O assunto família foi usado insistentemente nos últimos guias


eleitorais do meu adversário. Não sei se sua intenção foi sugerir
que existe alguma vantagem em se ter como prefeito um homem
de família. Ou se ele queria insinuar algum preconceito contra as
mulheres independentes. Quero dizer a ele e a todos que tenho
imenso orgulho de ser uma entre milhões de brasileiras arrimo de
família. Sou apenas uma dessas mulheres que não dependem de
ninguém, que constroem uma vida profissional de sucesso ao
mesmo tempo em que vão à luta para criar seus filhos como todo
carinho, alimentá-los, e educa-los para que se tornem cidadãos
dignos e responsáveis. Mulheres guerreiras, que tiveram que se
construir fortes para enfrentar por muitas vezes a incompreensão
de alguns e o preconceito de muitos. Fui atleta, adquiri as
virtudes da disciplina, determinação e respeito. Adquiri também a
coragem para perseguir a vitória, a nunca esmorecer, nunca
desistir. Mesmo quando tudo parecia estar contra mim. Minha
história de vida e de vitórias, o carinho e a felicidade da minha
família unida são o meu testemunho. Sou Tatiana. Uma mulher
entre tantas: independente e que sabe o que quer. Uma mulher
que só deve a obediência ao povo de Campina. (Guia eleitoral
Tatiana Medeiros, 25 de outubro de 2012).
Tatiana Medeiros se utilizou da situação de ser mulher para construir uma
imagem de mulher que trabalha e sustenta a família sozinha, sem precisar estar
casada. E ainda usou que assim como outras mulheres no Brasil é chefe de família.
Outro aspecto é a imagem de mãe, aquela que cuida com carinho dos seus filhos,
dando a entender que ela tem esse atributo e pode ser levado na sua possível gestão.
Assim por sua atuação técnica no trabalho e nos discursos, a mesma demonstrou que
é determinada ao dizer o que quer, dessa forma, podemos trazer a escolha de seu
nome para suceder Veneziano não foi uma coisa aleatória, ela sabia o que estava
fazendo e tentou trazer essa questão na sua construção de imagem pública.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebemos que a política não pode ser entendida apenas por questões
administrativas e voto. Diante do que foi exposto, tivemos o esforço de apresentar
que numa campanha eleitoral muitas estratégias são utilizadas pelos candidatos, por
isso nosso interesse se fez em levantar algumas questões sobre a relação entre
religião e política nas eleições municipais de Campina Grande. Por mais que se diga
que religião e política são campos distintos e não deveriam ser confundidos, como se
religião fosse sagrado, e política profano, quando nos referirmos às campanhas dos
candidatos Romero e Tatiana essa relação se apresentou tênue. Os dois candidatos
fizeram uso de questões religiosas para atacar e se defender diante público eleitor.

Romero se apresentou como uma pessoa cristã, que respeita as religiões e que
tinha família. No seu guia ao apresentar sua família e dizer que sua mãe era
evangélica, a mensagem que estava sendo passada era de que como alguém que tem
mãe evangélica pode ser intolerante e atacar os evangélicos. O candidato aproveitou
seu tempo no guia para deixar essas reflexões para seus possíveis eleitores, pois são
eles que interpretam essas informações e avaliam quem melhor representou.

O coordenador da campanha de Tatiana a defendeu afirmando que ela era uma


mulher cristã e quem era intolerante era seu adversário político. A candidata
aproveitou a situação para levantar questões sobre a família, pois o candidato no
mesmo guia que afirmava ser cristão, também afirmou ter família. Diante do discurso
do candidato, Tatiana apresentou que era uma mulher determinada e carinhosa com
os filhos, e que o seu adversário era preconceituoso por ela ser divorciada, e
preconceituoso não só com ela, mas com muitas mulheres que são chefe de família no
Brasil.

Nosso esforço se fez em levantar algumas questões sobre essa relação tão
complexa entre religião e política. Sabemos que esses campos são distintos, mas
quando se trata de campanha eleitoral eles se inter-relacionam. A nossa pesquisa
durante o processo eleitoral nos ajudou a compreender que a política faz parte de
estratégias, representação, construção de imagem pública, avaliação, escolha e voto
dos eleitores, e não apenas uma mera disputa pelo poder. A política faz parte de uma
rede de símbolos e significados que são incorporados pelos candidatos para compor
sua imagem pública. É nesse aspecto que a religião se destaca, pois reconhecemos
que questões morais e de bons costumes serão levados em consideração na escolha
de um candidato, e, portanto, religião interfere na vida pública.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 BARREIRA, Irlys Alencar Firmo. Imagens ritualizadas (Apresentação de


mulheres em cenários políticos e eleitorais) – Irlys Barreira (org.) Fortaleza,
CE: Universidade Federal do Ceará/Funcap/CNPq-Pronex; Campinas; SP:
Pontes Editores, 2008.

 BARREIRA, Irlys Alencar Firmo. Chuva de Papéis: ritos e símbolos de


campanhas eleitorais no Brasil. Rio de Janeiro. Relume Dumará: Núcleo de
Antropologia Política, 1998.

 BOURDIEU, P. A representação política: elementos para uma teoria do campo


político. In: O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. Cap.
VII, p. 163-207.

 GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Tradução


Marília Célia Santos Raposo. Petrópolis, editora Vozes, 1985.

 WEBER, Maria Helena. Comunicação e política: conceitos e


abordagens/Antônio Albino Canelas Rubim (org). Imagem Pública/ Maria
Helena Weber. Edufba, 2004.

PESQUISA NA INTERNET:

http://www.pbagora.com.br/conteudo.php?id=20120926124302&cat=paraiba&keys=t
atiana-medeiros-minha-historia-politica-alicercada-minha-vida-profissional

http://pensamentomultiplo.blogspot.com.br/2012/02/campina-veneziano-e-
tatiana.html

http://gilberguessantos.blogspot.com.br/2012/03/analisando-as-pre-candidaturas-
tatiana.html
http://devir.wordpress.com/2012/10/22/ggg/

www.votetatiana15.com.br

www.romero45.com.br
AS VITÓRIAS DE 1996 COMO RESULTADO DO ACÚMULO DAS LUTAS DOS
ANOS 70 E 80 E A CONDUÇÃO DE UM EX-AGENTE PATORAL PRA A CÂMARA
MUNICIPAL DE BELÉM.

RESUMO:

O bairro da Sacramenta, situado em área periférica de Belém, tem a sua história


constituída através de processos de ocupação de latifúndios urbanos. Em meio às suas
lutas e conquistas nasce e amadurece no bairro um grupo de militantes políticos com
forte influência de orientação Marxista, e que encontra na paróquia do bairro, a de São
Sebastião, um espaço propício para as suas construções, como a importante
contribuição para a eleição de Edmilson Rodrigues, em 1996, assim como a
determinante participação no êxito eleitoral de Carlito Aragão, do PT, para o
Legislativo municipal.

PALAVRAS-CHAVE: Eleições municipais; Paróquia de São Sebastião; Comunidade.

1 - OS ANTECEDENTES DA ELEIÇÃO DE 1996: UM BREVE RECUO NO TEMPO.

Fundada em 12 de janeiro de 1616, a partir da ocupação das terras indígenas


pelos portugueses, Belém é quase uma península, atravessada por canais, rios e
igarapés e localizada às margens da baía do Guajará, onde deságuam vários rios
importantes, como o rio Guamá, que empresta nome a um bairro tradicional e
populoso da cidade.

De sua área total, mais da metade está distribuída entre suas 39 ilhas. Entre a
metade do século passado e o começo deste, Belém viveu o ciclo borracha. São dessa
época construções de grande porte preservadas no seu centro histórico. Igrejas
magníficas, palácios, sobrados com azulejos portugueses, mercados, praças com
coretos de ferro... O Teatro da Paz, na Praça da República, e o Palácio Antonio Lemos,
sede da prefeitura, são exemplos de um patrimônio arquitetônico admirável.

Com o fim do chamado Ciclo da Borracha, a Cidade das Mangueiras entra no


século XX como tantas outras cidades brasileiras, com problemas de administração e
de infraestrutura, de políticas públicas e de investimentos. Belém tem uma forte
tradição política oligárquica. No Pará a política é exercida por famílias que têm o
domínio da terra e, mais recentemente, as que dominam os meios de comunicação.

Essas famílias influenciam os processos eleitorais, elegem o prefeito, fazem dos


filhos e parentes parlamentares e ocupantes de cargos de confiança nos governos que
elegem — ou ajudam a eleger. Contudo, em meio à influência das oligarquias, no
período final dos anos de 1970 e início dos de 1980, os movimentos sociais forma
protagonistas de ações que, algumas logrando vitórias, que propunham, segundo
Edivania Santos Alves:

Uma ruptura com a tradicional relação subordinada e tutelada


dos mesmos em relação ao Estado buscando a partir de um
duplo processo: o reconhecimento e afirmação dos direitos,
entendidos como faculdades políticas, sociais e econômicas que
pertencem aos indivíduos, cabendo ao Estado garanti-los e não
cedê-los como benesses ou dádivas (o direito a ter direitos) e o
fortalecimento político-organizativo do próprio movimento, via
democracia interna, com ampla mobilização e participação
social (PINTO, 1998). Este cenário contribuiu para o
desenvolvimento de um campo de forças sociais, onde novos
personagens entraram em cena23 como movimentos sociais
urbanos na luta pela Reforma Urbana. Durante as décadas de
1980-90, foram criadas entidades gerais na perspectiva de
articulação e representação desses movimentos como: a
Confederação Nacional das Associações de Moradores - CONAM
em 198224, o Movimento Nacional de Luta pela Moradia -
MNLM em 198325, a União Nacional por Moradia Popular -
UNMP em 198926 e a Central de Movimentos Populares - CMP
em 199327.

Na década de 70, grande parte da população brasileira residente nas periferias


das cidades iniciou processos de reivindicações que culminaram com o surgimento de
várias formas de organização popular, cujos objetivos eram as reivindicações precisas:
habitação; luz; água; esgoto e pavimentação redundavam em garantir a construção
de um espaço mais democrático no cenário político.

Os anos 80 iniciaram-se com os movimentos sociais fortalecidos. Vários


movimentos haviam dado um grande salto qualitativo, saindo das reivindicações
isoladas para formas mais amplas das demandas populares. O Estado já não mais os
reprimia, ao contrário, buscava sua integração. Trata-se de um momento em que os
movimentos sociais conseguem imprimir algumas de suas reivindicações como
prioritárias no âmbito das políticas urbanas.

Por essa linha de raciocínio, entendo que o surgimento dos movimentos


populares como sujeitos na produção do espaço urbano e de uma transformação
sentida como necessária, tiveram grande influência no processo eleitoral de 1996, que
culminou com a eleição dos professores Carlito do PT e Edmilson Rodrigues, para a
câmara municipal e chefia do executivo municipal de Belém, respectivamente.

2 - FOI DADA A LARGADA.

Em 1996, Belém tinha à frente de sua administração municipal o Sr. Hélio da


Mota Gueiros, popularmente conhecido como Papudinho. Naquele ano, ocorreriam
eleições tanto para compor a câmara municipal de Belém, como para escolher o novo
prefeito da cidade, já que ainda não estava em voga o processo de reeleição para
cargos majoritários do executivo, o que só viria a ser aprovado em 1997, em uma
negociação do PSDB de Fernando Henrique Cardoso, então presidente da república, e
sua bancada de apoio na Câmara Federal, visualizando as eleições gerais de 1998.

No fervor das negociações para substituição de Hélio Gueiros (PFL) na


Prefeitura de Belém, a partir de sua clara orientação, o bloco de partidos e afiliados
políticos que estavam a sua volta referendou o nome do então secretário de finanças
do município de Belém, Sr. Ramiro Bentes que era afiliado ao PDT.

Outros partidos de origem conservadora também lançaram candidatos, como o


PPB que lançou Cipriano Sabino, o PL lançara Luis Seffer, o PSD propunha o nome do
também deputado estadual Duciomar Costa, o PMDB veio com a ex-primeira dama do
Estado Elcione Barbalho.

O Partido dos Trabalhadores fechou questão em torno dos nomes do professor


Edmilson Rodrigues para prefeito e da Deputada Federal Ana Júlia carepa para a vice-
prefeitura. Esta proposta foi aceita e encampada pelos demais partidos de esquerda
de Belém, que compuseram a Frente Belém Popular, então formada por PT, PSB,
PCdoB, PCB e PSTU.

Já naquele cenário despontavam como favoritos Ramiro Bentes e Elcione


Barbalho, porém, com o início oficial da campanha no rádio e na TV, o cenário político
eleitoral daquele momento foi-se gradativamente alterando, pois cada programa
exibido em rede publica se intensificava o acirramento da polarização Ramiro Bentes e
Elcione Barbalho., o que levou uma intensa animosidade entre estas candidaturas,
uma que representava o poderio do grupo Liberal e outra que representava os
interesses do grupo RBA (grupo de comunicação da família Barbalho). Naturalmente
— e equivocadamente — este aumento da animosidade entre os candidatos levou seus
programas de rádio e TV a um nível muito baixo, com intensas e constantes trocas de
acusações de enriquecimento ilícito, incompetência, desonestidade e coisas do gênero
entre as candidaturas. O baixo nível e a banalização das propagandas de rádio e TV
levou os candidatos Ramiro Bentes e Elcione Barbalho a uma inevitável rejeição do
eleitorado belenense. Tendo seus potenciais de intenção de votos sido transferido, ora
para Cipriano Sabino, que com sua jovialidade e boa aparência despontava como “o
novo”, hora para ex-prefeito Augusto Resende que era bem avaliado pelos servidores
municipais. Porém, o maior herdeiro de toda rejeição resultante do conflito Elcione
Barbalho versus Ramiro Bentes, foi o ex-deputado estadual Edmilson Rodrigues, que
com seu discurso eloquente e com forte apelo social, somado à grande capacidade de
mobilização e sensibilização popular de sua candidata à vice — Ana Júlia Carepa —
conseguiram uma grande penetração nas massas, pois até então o PT tinha como seu
grande capital político os estudantes de universidades públicas, professores e
trabalhadores sindicalizados no campo e na cidade.

A Frente Popular de esquerda era encabeçada por Edmilson Rodrigues,


paraense, de Belém, arquiteto graduado pela Universidade Federal do Pará, com
especialização em Desenvolvimento de Áreas Amazônicas e mestrado em
Planejamento do Desenvolvimento. Tal formação acadêmica formação lhe
proporcionou, certamente, suporte técnico para elaboração das mudanças ocorridas
em seu primeiro mandato (1997 a 2000) à frente da Prefeitura de Belém.

Eleito anteriormente deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores – PT,


em dois mandatos, este já contava com uma experiência parlamentar. Tempos mais
tarde. em setembro de 2005, desfilia-se do PT e ingressa no recém-criado PSOL.

Nas eleições de 1996, em meio a uma guerra entre candidatos da direita, a


candidatura dos partidos de esquerda (PT, PSB, PCdoB, PPS, PSTU, PCB), encabeçada
por Edmilson, saiu da marca de 2% nas pesquisas de opinião, superou as dificuldades
iniciais e venceu os dois turnos da disputa pela Prefeitura de Belém.

3 - O QUE MUDOU?

Dentro de um contexto de fortalecimento dos movimentos sociais e de resgate


do papel histórico da participação popular, é possível se inferir que em Belém ocorreu,
as últimas décadas, mudanças nas relações entre o Estado e os movimentos sociais no
que diz respeito ao processo de participação na política urbana. No entanto, estas
alterações permitiram a participação somente de alguns segmentos que foram
incorporados às discussões.
Chamado a citar as principais mudanças ocorridas na cidade, no supracitado
período, o prefeito Edmilson Rodrigues enumero aquelas que denomina intangíveis:

São as mudanças culturais que se realizam por um esforço de


recuperar a auto-estima do povo, a partir da recuperação da
sua própria identidade histórico-cultural. A Cabanagem foi
retomada como um ícone do passado que deve ser relembrado,
mas, acima de tudo, deve inspirar as lutas do presente com o
objetivo de construir um futuro justo, solidário, que eram os
objetivos dos cabanos, nossos antepassados. É a recuperação
da formação étnico-cultural, pois cada vez mais belenenses têm
orgulho de herdar o sangue tupinambá.

Como se percebe, apesar das gestões resultantes de um processo histórico


de participação popular e enfrentamento com os poderes constituídos, não conseguem
compreender, em grande parte, os instrumentos políticos necessários ao exercício da
função social da cidade, que garantiria um poder de decisão significativo da ampla
maioria da população.

Pode-se, por conseguinte, inferir-se que os movimentos sociais no processo


de transformação urbana, embora com dificuldades e limites, conseguiram intervir
neste empreendimento e garantir, até mesmo, que esta política pública atinja os seus
objetivos explícitos de beneficiar os moradores das áreas de baixa renda. Essa
participação ocorreu devido à articulação entre diversos atores sociais que formaram
um conjunto de ações que imprimiram uma nova dinâmica à participação popular e
imprimem, também, uma nova racionalidade ao processo organizativo, pautado na
eficácia da sua ação e no planejamento de suas estratégias.

A participação do movimento popular foi importante na medida em que


fiscalizou e as ações do governo, embora não tenha sido suficiente para ampliar o
grau de participação democrática, pois houve certo distanciamento entre a população
envolvida e as lideranças.

4 - A ELEIÇÃO DO PROFESSOR E EX-AGENTE PSTORAL CARLITO ARAGÃO


PARA A CÂMARA MUNICIPAL DE BELÉM

No início de 1996 a militância petista da Sacramenta, que era


hegemonicamente ligada à tendência denominada Corrente e que depois se tornaria o
atual PT pra valer, já discutia exaustivamente as eleições municipais que estavam por
vir. Naquele momento, tanto a militância em geral quanto as lideranças do bairro da
Sacramenta já haviam acumulado uma considerável experiência por meio dos
mandatos parlamentares, como os de Valdir Ganzer1, Geraldo Pastana2, Humberto
Cunha3, Zé Geraldo4, mandatos estes que lograram êxito a partir da contribuição
efetiva da militância do bairro. Outras atividades que contribuíram para esta
maturidade política da militância do bairro foram suas experiências em instituições e
organizações não governamentais, como a FASE, UNIPOP e CEPEPO.

A militância petista da Sacramenta, cuja grande parte é oriunda da Paróquia


de São Sebastião, percebeu então que era o momento de eleger um parlamentar
saído das entranhas do bairro, pois naquele instante aquele grupo precisava ter suas
próprias propostas políticas e deixar de ir à reboque das propostas políticas de outros.
Era necessário ampliar o poder interno no PT, e ter gente direcionando politicamente
as instâncias de decisão e, por conta de sua estreita relação com a paróquia,
incentivava-se o ingresso cada vez mais intenso de cristãos conscientes dentro do
partido, fortalecendo o coletivo, e assim buscou-se uma candidatura que pudesse
unificar a militância, que representasse os anseios da comunidade e contemplasse as
Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), já que a paróquia de São Sebastião ainda
exercia grande influência política no bairro ou da comunidade, utilizando a ideia de
Durhan (1886, p. 9), segundo a qual comunidades constituem modelos que permitem
a ordenação de conjunto de práticas divesas, através de estabelecimentos de critérios
que avaliam a ordem social existente.

Entre vários nomes postos em discussão, já que o bairro havia, durante o


processo de construção política, constituído vários lideres, e após diversos e intensos
debates foi fechada questão em torno do nome do Professor Carlito Aragão, o Carlito
do PT, que naquele momento vislumbrava a possibilidade da unificação da militância
petista do bairro, contando ainda com o apoio das CEB’s, da paróquia de São
Sebastião e do Pe. João Bakembauer, já que o mesmo exerceu por muito tempo o
cargo de agente pastoral da paróquia, coordenou a pastoral da juventude e teve
importante contribuição na luta pelo direito de morar. Como relata Sérgio Galiza:

1
Liderança sindical rural, vindo do Rio Grande do Sul para o Pará em na década de 1970, durante o processo
de colonização da Transamazônica, eleito Deputado Estadual em 1986, pelo Partido dos Trabalhadores, eleito
Deputado Federal, também pelo PT, em 1994, pelo mesmo partido, candidato ao Governo do Estado, em
1998 se elegeu Deputado Federal pelo PT, em 2000 se elege vice-prefeito de Belém, em 2002 e em 2006 e
em 2010 se elege Deputado Estadual.
2
Liderança sindical em Santarém, foi eleito Deputado Estadual pelo PT em 1990, em 1994 concorre à
Câmara Federal, ficando na primeira suplência, assumindo a vaga dois anos depois, em 1998 concorre a vice-
governador do Estado pela chapa PT, PSB e PC do B, em 2004e 2008 se elege prefeito d Belterra, PA.
3
Vereador eleito pelo ainda PMDB, em 1982, e candidato á prefeitura de Belém pelo PT em 1985 e 1988.
4
Liderança agrária vinda do Espírito Santo para a Transamazônica na década de 70, eleito deputado estadual
pelo PT em 1994 e em 1998 e deputado federal também pelo PT e 2002, 2006 e 2010.
Carlito naquele momento conseguia unir todo mundo, o pessoal
lá do PT do bairro, a turma da igreja, as lideranças comunitárias
e ainda tinha o fato de ele ser professor do Rutherford, que
tinha muitos alunos e possibilitou uma grande quantidade de
votos. E te confesso que a campanha foi única pra gente e que
nunca houve outra igual.

Em 26 de abril de 1996, na Escola Estadual Graziela de Moura Ribeiro, no


bairro da Sacramenta, contando com a presença de uma vasta militância e do
deputado estadual Zé Geraldo, e também do professor e pré-candidato a prefeito de
Belém Edmilson Rodrigues, foi aprovada pela plenária a candidatura do Carlito do PT
para vereador. Como afirma Henrique Nazareno:

Nós fizemos tudo de forma mito simples, pedimos autorização


no Graziela, convocamos a militância que deu pra convocar,
convidamos o Edmilson e o Zé Geraldo, fizemos até coleta pra
cerveja da noite. No final, acabou que apareceu mais gente do
que esperávamos. Não tinha outra, aquele era o momento do
Carlito e do Edmilson.

5 - CONCLUSÃO

A campanha de Carlito do PT, apesar das dificuldades financeiras, só crescia,


atraindo o apoio de lideranças de vários setores. A coordenação de campanha, que era
composta por lideranças como Cláudio Bordalo5, Henrique Nazareno6, Guilherme
Carvalho e o professor Raimundo Jorge Pires Bastos, elaborou uma extensa agenda de
campanha, que ia desde panfletagem em frente às escolas, a FACEPA, passando pelas
caminhadas margeando os canais Pirajá e São Joaquim, até as concorridas noites
culturais realizadas sempre em locais pensados de forma estratégica.

Outro coletivo importante para a eleição de Carlito foi o dos professores,


pela influência e mobilização em sala de aula, ajudado pelo fato de o referido
candidato também ser docente.

O resultado de toda essa construção é que no primeiro turno das eleições de


1996, em que Edmilson Rodrigues garante sua participação no segundo turno para

5
Ex-agente pastoral da paróquia de São Sebastião, foi presidente municipal do PT durante o biênio de 1988 a
1989, fez pte da coordenação de campanha de Luís Inácio Lula da Silva em 1989, foi da executiva estadual
do PT durante a década de 90 e foi assessor parlamentar dos deputados federais Valdir Ganzer e Geraldo
Pastana, dos deputados estaduais Zé Geraldo, Valdir Ganzer, Nonato Guimarães e Raimundo Marques.
6
Engenheiro sanitarista, é liderança do PT no bairro da Sacramenta, coordenou a campanha de Carlito
Aragão para Vereador em 1996, foi diretor geral da SESAN na primeira gestão de Edmílson Rodrigues de
1996 a 2000, coordenou a campanha Arlison Miranda para vereador em 2000 e foi diretor geral do Centro de
Perícias Científicas Renato Chaves no período de 2007 a 2008, durante o governo de Ana Júlia Carepa, de
2007 a 2010.
enfrentar Ramiro Bentes, o professor Carlito do PT alcança 4.210 votos, destes 3.000
no bairro da Sacramenta, garantindo assim sua vaga no legislativo municipal e o
colocando como terceiro mais votado da Frente Belém Popular. Como disse Cláudio
Bordalo, “a eleição do Carlito não foi a vitória de uma pessoa, mas de todo um
processo histórico, iniciado na luta pelo direito de morar e nas atividades pastorais e
políticas na década de 1980”.

Por fim, fazendo uma breve referência à fala do pesquisador Imerson Alves
Barbosa, em seu trabalho de dissertação de mestrado, sobre a tarefa dos cristãos, que
seria a de construir uma sociedade justa, uma vez que o compromisso sociopolítico é
inerente à fé cristã, e a luta contra a pobreza só será eficaz se superarmos os limites
da visão caritativa tradicional da igreja. E nesse contexto, o bairro da Sacramenta, e
em especial a paróquia de São Sebastião, tiveram um papel fundamental nas lutas
populares do bairro, na construção da memória da Sacramenta e nas eleições
municipais de 1996.

REFERÊNCIAS

ALVES, Márcio Moreira. A igreja e a política no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979.

BLOCH, Marc. A observação histórica. IN: Apologia da história, ou o ofício do


historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001, pp. 69-124.

_____________. A crítica da história. IN: Apologia da história, ou o ofício do


historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001, pp. 69-124.

COSTA, Adelaide de Souza. Praxis da teologia da libertação na paróquia de São


Sebastião no bairro da Sacramenta – Belém (1970 – 1985). (Trabalho de Conclusão
de Curso de Graduação em História). UFPA, 2002.

FERREIRA, Marieta de Moraes. História oral: os riscos da inocência. IN: O direito à


memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992.

PETIT, Pere. A Esperança Equilibrista. São Paulo: Jinkings e Belém: NAEA, 1996.

SIQUEIRA, Lélio Veiga. Conflitos fundiários em Belém: a participação da CBB nos


conflitos fundiários no período de 1979 a 1981 nos bairros da Sacramenta e Cremação
(Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação e História). UFPA, 1986.
LAICIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO PESSOENSE:
UM ESTUDO DOS PROJETOS DE LEI DA CÂMARA MUNICIPAL DA CIDADE DE
JOÃO PESSOA

Paula Katherine Tarquino


Felix Augusto Rodrigues

"Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus." (Mc 12, 17)

1. Introdução

Como é sabido, o Brasil diz-se ser um país laico, isto é, não eclesiástico, cujo
ordenamento jurídico é legislado sem a participação nem a interferência religiosa.
Em um país plural no que concerne à religiosidade, contudo, é fácil constatar que a
maioria da população brasileira pratica um credo de origem cristã, mais
especificamente, católica.

Consequentemente, o poder invisível da igreja, mesmo que não tenha


representação direta no processo legislativo, exerce influência poderosa, mas de
forma imperceptível e velada, através dos seus seguidores que se tornam agentes
das suas doutrinas dogmáticas e interferem nas decisões parlamentares, seja
quando dos processos eletivos, seja quando da elaboração e da propositura de
Projetos de Lei (PLs).
Apesar de sua importância para a sociedade hodierna, a questão da
Laicidade é um assunto pouco discutido, tendo em vista a sua complexidade. Não
obstante o seu status constitucional de país laico, o Brasil ainda está fortemente
sedimentado em suas raízes cristãs, consequência do processo histórico de
colonização que impôs, através da catequese, e adotou oficialmente os dogmas
religiosos cristãos, mas especificamente, aqueles da Igreja Católica Apostólica
Romana. Nesse ponto, não podemos esquecer que a sociedade brasileira foi
construída por indígenas que possuíam, como parte da sua identidade cultural,
crenças distintas da religião cristã, e também por negros que trouxeram crenças e
cultos africanos, além de diversos outros povos, que, a posteriori, também
introduziram suas crenças religiosas na sociedade em formação. Por esses motivos,
a observância ao Princípio da Laicidade não apenas abrange a grande maioria
católica, mas também os pequenos grupos seguidores de diversas outras crenças,
além daqueles que não seguem crença alguma.
Assim sendo, uma sociedade que foi construída pela incorporação de
elementos de várias culturas, pela miscigenação, não deve privilegiar uma religião,
mesmo que seja a da maioria, pois o Estado deve resguardar o direito de todos. Por
não incomodar a maior parte da população, esse assunto permanece um tanto
esquecido, só vindo à tona quando a violação da Laicidade agride o direito ou a
liberdade de alguém ou de um grupo minoritário que, assim, torna pública a
questão em tela.
O desrespeito ao Princípio da Laicidade é um tema bastante controverso. O
motivo é que não há como cumprir rigorosamente a lei, no que concerne ao tema,
sem que haja conflito com a forte tradição religiosa cristã reinante no Brasil. Cria-
se, então, um impasse no que se refe re à aprovação e aplicação de certas leis que
ferem os dogmas religiosos cristãos. Leis estas que possuem, em sua essência, o
princípio da equidade, o respeito peladiversidade no que concerne à liberdade das
diversas práticas religiosas e o direito do Estado de ser uma entidade laica.
Investigar como a Câmara Municipal da Cidade de João Pessoa aplica
efetivamente os fundamentos do Princípio da Laicidade quando da elaboração e
propositura de PLs é o Laicidade no Ordenamento Jurídico Pessoense Paula
Katherine Tarquino e Felix Augusto Rodrigues 1:15 principal objetivo desta
pesquisa. Esta também visa investigar a viabilidade de cooperação entre o Estado
Laico e a Instituição Religiosa, visando exclusivamente atender ao interesse
público. Para que o supracitado objetivo seja atingido, será discutido, ao longo
deste trabalho, como o Brasil passou da condição de um 'Estado Eclesiástico' para o
status de 'Estado Laico', seguido-se uma sucinta explicação dos fundamentos do
Princípio da Laicidade que serviram de base para a transição do Brasil da condição
de 'Estado Eclesiástico' para a condição de 'Estado Laico'. Em seguida, será
estabelecida uma definição do conceito de Laicidade, além do conceito da liberdade
religiosa tutelada pela Constituição Federal, e suas limitações. A seguir, será
brevemente discutida a possibilidade de estabelecer um processo de cooperação
entre o Estado Laico e as Instituições Religiosas que vise exclusivamente atender
ao interesse público. Serão também brevemente tratadas as possíveis implicações
advindas desta cooperação e seus limites, no que concerne à atuação das
Instituições Religiosas, sem que a cooperação fira o Princípio da Laicidade. Na parte
final do estudo será apresentada uma análise dos PLs que constituem o corpus
desta pesquisa, a qual emprega uma abordagem qualitativa. O corpus está
constituído de 05 (cinco) PLs elaborados e propostos pelos legisladores da Câmara
Municipal de João Pessoa no período de 2006 a 2012 e foram coletados do website
da supracitada instituição. A investigação tem como escopo verificar se os
representantes desta casa legislativa respeitam e aplicam o Princípio da Laicidade.
2. Laicidade no Ordenamento Jurídico Brasileiro

O Brasil é um país com grande diversidade religiosa, resultado de um processo


de ocupação que o país passou a partir do século XVI, que teve início com a
chegada dos portugueses. O entendimento sobre esse processo de colonização é de
fundamental importância para o tema a ser tratado nessa pesquisa, já que a
construção do pensamento cultural na nossa nação começou a se formar a partir
desse momento, com a contribuição do pensamento religioso cristão trazido pelos
jesuítas, as crenças indígenas dos habitantes naturais, as religiões de origem
africana trazidas pelos negros, em momento posterior, e diversas outras formas de
credo que foram acrescentadas a nossa cultura através de outros povos imigrantes.
Com essa diversidade de crenças, o Brasil, como um Estado Democrático de
Direito, tomou medidas jurídicas para garantir que todas as manifestações
religiosas fossem reconhecidas e tratadas igualitariamente sem que estas
interferissem nas decisões do Estado, tornando-o, assim, um Estado Laico.

2.1 – De 'Estado Eclesiástico' a 'Estado Laico': Um Breve Histórico


Quando da chegada dos portugueses, foi constatado que a terra já era habitada.
Seus habitantes eram povos de uma cultura bastante diferente daquela dos
navegadores que aqui desembarcaram. Os índios, assim chamados posteriormente,
viviam de maneira selvagem, segundo os próprios portugueses. Andavam
naturalmente nus e tinham práticas nada 'civilizadas' como, por exemplo, a
antropofagia. Além disso, possuíam crenças em divindades oriundas da natureza.
Logo no primeiro contato houve um conflito entre culturas bem distintas (Bueno,
2010, pp. 18-23).
Durante os primeiros 30 anos de colonização, o objetivo da coroa
portuguesa diante do novo mundo era apenas explorar o pau-brasil, muito rentável
economicamente. Unido a exploração da madeira e com o intuito de também
explorar a força de trabalho indígena, os portugueses trouxeram os jesuítas que
tinham o objetivo de ensinar a língua portuguesa e aprender o tupi, a língua
indígena, além de ensinar aos nativos a doutrina da Igreja Católica Laicidade no
Ordenamento Jurídico Pessoense Paula Katherine Tarquino e Felix Augusto
Rodrigues 2:15 Apostólica Romana como parte do processo de dominação dos
povos indígenas. Dom João III, rei de Portugal entre 1521 e 1557, afirma que a
causa que o levou a povoar o Brasil foi que "(...) 'a gente do Brasil se convertesse à
nossa santa fé católica'. Segundo este discurso, o estabelecimento europeu no
Brasil foi um benefício sobretudo espiritual, pois significou a conversão dos índios, a
expansão da Igreja, a catequese de povos nunca dantes evangelizados."
(Hoornaert, 1994, p. 24).
Da mesma forma, um índio chamado Momboré-uaçú, falou em nome deles
aos colonizadores franceses do Maranhão que "(...) 'os portugueses mandaram vir
os padres. E estes ergueram cruzes e principiaram a instruir os nossos e a batizá-
los. Mas tarde afirmaram que nem eles nem os padres podiam viver sem escravos
para os servirem e por eles trabalharem'. Este discurso relaciona evangelização
com escravidão e a partir deste relacionamento faz uma leitura da história da Igreja
no Brasil." (Hoornaert, 1994, p. 8).
Depois de 30 anos de exploração, Portugal começa a ocupar definitivamente
o novo mundo, incentivando os interessados a colonizar as novas terras
descobertas, também com o objetivo de evitar a invasão de outras então potências
interessadas na exploração do novo território português. É importante observar que
nesse período havia uma prática muito comum entre as grandes potências
mundiais, a escravidão. Os europeus traziam em suas embarcações negros
africanos para explorar sua força de trabalho no território brasileiro. E estes
acrescentaram à cultura brasileira os seus cultos africanos. Durante mais de 300
anos, o Brasil foi colônia de Portugal e como este era um império diretamente
ligado à igreja, esta dominava completamente a vida da sociedade.
Nessa época, chamado período colonial, não era tolerado nenhum tipo de
manifestação religiosa que divergisse da doutrina cristã. Nesse momento não se
ouvia falar em liberdade religiosa e nem de credo, sendo a religião Católica
Apostólica Romana a única permitida, por ser a religião oficial de Portugal.
Observa-se que, desde o período colonial, o Brasil se direciona a formar uma
sociedade miscigenada, com a participação de índios, negros e brancos europeus.
Cada um, contribuindo para a nova sociedade, com um pouco de seus costumes,
crenças, enfim, com um pouco de sua s culturas.
Com a promulgação da Constituição Política do Império do Brazil de 1824, o
Brasil, já um país independente, mantém sua aliança com a Igreja Católica, como
podemos observar no art. 5º da referida Constituição, in verbis: "Art. 5. A Religião
Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as
outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas
para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo" (Brasil. Constituição
1824. Art. 5º).
Observamos, dessa forma, que a supracitada Constituição trouxe à tona a
liberdade de credo, restringindo a liberdade de culto. Só a Igreja Católica poderia
construir templos específicos para a prática do culto oficial do Estado. As demais
religiões só podiam ser professadas nas residências de seus seguidores. Além disso,
a Igreja como ins tituição diretamente ligada ao Estado controlava, de várias
formas, a vida da sociedade. Por exemplo, não existia o casamento civil, somente o
religioso. Para ter o casamento reconhecido pela lei e pela sociedade, o casal
deveria ser casado na Igreja, pois somente esta instituição detinha o poder de
reunir duas pessoas em matrimônio. Outra situação relacionada ao poder da Igreja
se refere ao sacramento do batismo, isto é, as pessoas só eram cidadãs se fossem
batizadas na Igreja Católica. De acordo com Hoornaert "o clero secular atendia às
necessidades da assim chamada 'sacramentalização' ou administração dos
sacramentos obrigatórios, como sejam: o batismo, o casamento, a confissão anual
no tempo pascal, a missa de defuntos. Estes sacramentos eram administrados à
população em geral, não a grupos que livremente os aceitavam: eram considerados
obrigatórios." (Hoornaert, 1994, p. 13).
Laicidade no Ordenamento Jurídico Pessoense Paula Katherine Tarquino e
Felix Augusto Rodrigues 3:15 Deve-se observar que a Constituição de 1824 foi a
única que manteve a aliança entre Estado e Igreja. Tal fato se deve ao longo
período que o Brasil esteve sob o domínio português. Como recorrentemente
acontece, as novas Constituições são promulgadas em decorrência de profundas
mudanças sociais. Foi o que ocorreu com o Brasil quando da elaboração das
Constituição de 1824, em decorrênc ia da independência do Brasil, e da
Constituição de 1891, quando o Brasil se torna uma República. O mesmo aconteceu
com as Constituições que as sucederam, promulgadas, por exemplo, por motivos
de golpe de estado, ditadura militar e reabertura política.
A separação entre Estado e Igreja se deu antes da promulgação da nova
Constituição Brasileira com o Decreto 119-A de 1890. Na nova carta constitucional,
a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, foi consolidada a
separação, pelo menos em tese, e os princípios básicos da liberdade religiosa
(Silva, 2005, p. 251).
Observe-se então, o que reza o §3º, do art. 72, da Constituição Federal de
1891, in verbis:
"Art. 72. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à
propriedade, nos termos seguintes: (...) §3º - Todos os indivíduos e confissões
religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse
fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum." (Brasil.
Constituição 1891. Art. 72, §3º).
A partir da Constituição de 1891, todas as demais Constituições que foram
promulgadas continuaram confirmando a separação entre Estado e Igreja,
aperfeiçoando o conteúdo de seus artigos referentes à liberdade religiosa para
tutelar esse direito de forma mais equânime e acompanhar o desenvolvimento da
sociedade. Atualmente, temos o direito à liberdade religiosa tutelado pelo Art. 5º,
incisos VI, VII, VIII e pelo Art. 19, inciso I da Constituição Federal de 1988, in
verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de
culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas
entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de
convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação
legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o
funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de
dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse
público; (...) Assim, podemos constatar que no texto constitucional de 1988, o
direito a liberdade religiosa foi ampliado. Anteriormente, o Estado se preocupou
apenas em garantir a prática do exercício de credo entre as pessoas, agora, além
dessa tutela, podemos perceber que o Estado reconhece o valor social das Religiões
e oferece espaço para que as duas entidades Laicidade no Ordenamento Jurídico
Pessoense Paula Katherine Tarquino e Felix Augusto Rodrigues 4:15 trabalhem
unidas em prol do interesse público (Art. 19, I, CF), sem com isso prejudicar a
autonomia e a legitimação do Estado como entidade laica. Dessa forma, se faz
necessário entender o significado de Estado Laico.

2.2 – Conceitos que Norteiam o Princípio da Laicidade


Antes de adotarmos um conceito de Laicidade a ser utilizado ao longo desta
pesquisa, precisamos entender a natureza deste fundamento constitucional.
Atualmente, o Brasil está passando por um processo irreversível de legitimação
jurídica para torná-lo um Estado verdadeiramente Laico. Embora já em 1891 a
Laicidade tenha se consagrado no país através da Constituição Federal e, desde
então, tenha havido uma ampliação do Princípio da Laicidade por parte das
Constituições Federais posteriormente promulgadas, percebemos que este princípio
não tem sido totalmente aplicado e respeitado na esfera pública. Sabemos que
necessitamos da concretização de um Estado genuinamente Laico, mas para isso
precisamos saber o que é um Estado que possui uma religião oficial e se deixa
governar por esta, ou seja, um Estado Eclesiástico.
O Estado Eclesiástico está diretamente vinculado a uma religião. Segundo
Gaarder, religião "é o batismo numa igreja cristã. É a adoração num templo
budista. São os judeus com o rolo da Torá diante do Muro das Lamentações em
Jerusalém. São os peregrinos reunindo-se diante da Caaba em Meca." (Gaarder, et.
al., 2005, p. 15). O que move o ser humano no sentido da religiosidade é, de
acordo com Funari, "(...) a fé característica da humanidade, [que] está na raiz seja
das religiões institucionalizadas, seja de todo movimento humano em prol de algo
pelo que se luta, com crença profunda (uma religião, uma causa, uma crença)."
(Funari, 2009, p. 8). Em suma, podemos apreender que a manifestação religiosa
pode ser identificada como sendo qualquer demonstração de fé expressa em torno
de uma dada divindade com um propósito específico, e que, no escopo desse
trabalho, pode possuir implicações sociais de caráter não eclesiástico, mas sim
secular.
Assim sendo, no Estado Eclesiástico a religião, a política e o poder estão
centralizados na Igreja como instituição soberana. O Estado Eclesiástico é o Estado
Confessional, que, segundo Weingartner (2007, p. 32), "(...) liga-se a uma
confissão religiosa, católica ou protestante (...). Num esquema decalcado do direito
privado, o rei é o grande proprietário, que dispõe dos súditos de forma
incondicionada. Se os bens e os interesses do reino são os do rei, a religião do rei
também será a do reino – cuius régio eius religio, a 'escolha da religião é matéria
da competência exclusiva do príncipe'". Essa entidade – Estado-Igreja – tem o
poder de intervir nas relações públicas, como acontecia nas monarquias onde o rei
era considerado o representante de Deus na terra e simultaneamente exercia o
papel de chefe de Estado que utilizava as normas eclesiásticas no seu exercício
político. Essa situação ocorreu no Brasil antes de sua independência, quando então
o Brasil não era um Estado, e as práticas religiosas divergentes das cristãs eram
proibidas e combatidas. Após a independência, o Estado Brasileiro passou a tolerar
outras práticas religiosas, com seus cultos e cerimônias particulares e sem
manifestação pública. O Brasil era então um Estado Eclesiástico adotando a religião
Católica Apostólica Romana como religião oficial.
Nem sempre quando um Estado adota uma religião oficial ele precisa
necessariamente proibir ou restringir as demais crenças e práticas religiosas, nem
mesmo investir em políticas públicas que não sejam consideradas democráticas e
que excluem aqueles que aderem a credos diferentes do adotado pelo Estado.
Segundo Blancarte (2008, p. 20), Laicidade no Ordenamento Jurídico Pessoense
Paula Katherine Tarquino e Felix Augusto Rodrigues 5:15 (...) a laicidade como um
processo de transição entre formas de legitimidade sagradas e formas democráticas
ou baseadas na vontade popular, permite-nos também compreender que esta (a
laicidade) não é necessariamente o mesmo que a separação Estado-Igrejas. De
fato, existem muitos Estados que não são formalmente laicos, mas estabelecem
políticas públicas alheias à normativa doutrinária das Igrejas e sustentam mais sua
legitimidade na soberania popular do que em qualquer forma de consagração
eclesiástica. Países como Dinamarca e Noruega, que têm Igrejas nacionais como a
luterana (e cujos ministros de culto são considerados funcionários do Estado), são,
sem dúvida , laicos na medida que suas formas de legitimação política são
essencialmente democráticas e adotam políticas públicas alheias à moral da própria
Igreja oficial. Existe autonomia do político frente ao religioso.
No que concerne à relação entre Estado Ec lesiástico e Laicidade, Blancarte
(2008, pp. 20-21) explica que o critério de separação entre os assuntos do Estado
e os das Igrejas é confundido com o da laicidade, porque, na prática, os Estados
laicos adotaram medidas de separação. Mas existem Estados que não conhecem a
separação formal e no entanto suas formas de governo são essencialmente
democráticas, por isso não requerem uma legitimação eclesiástica ou sagrada. Na
verdade, a melhor prova de que pode existir alguma forma de laicidade sem que
exista a separação é o caso francês, pois a escola laica se desenvolveu no último
terço do século XIX, e a separação entre o Estado e as Igrejas somente teve lugar
na França a partir de 1905. Assim que podem existir países laicos sem formalmente
serem laicos ou sem sequer ter uma separação entre o Estado e as Igrejas.
Significa também dizer que podem existir países formalmente laicos, mas que no
entanto ainda estejam condicionados pelo apoio político proveniente de uma ou
mais Igrejas majoritárias no país. E, de forma contrária, existem países que não
são formalmente laicos, mas que, na prática, por razões relacionadas a um
histórico controle estatal sobre as Igrejas, não dependem da legitimidade
proveniente das instituições religiosas.
O Brasil adotou, já na Constituição de 1891, a separação entre Estado e
Igreja. Na carta constitucional de 1988 o mesmo princípio foi confirmado, mas
mesmo com essa reafirmação podemos perceber que este fundamento continua
não sendo respeitado hodiernamente. Isto acontece, por exemplo, quando
observamos a existência de uma bancada religiosa forte em nosso congresso
nacional que propõe leis com base em doutrinas religiosas, quando a abordagem do
ensino religioso nas escolas públicas enfoca exclusivamente princípios das religiões
cristãs, e também quando constatamos a presença de símbolos religiosos
representando a crença majoritária em repartições públicas. São diversas as
situações que podemos constatar que o Estado Brasileiro ainda possui um forte
vínculo com a religião Católica Apostólica Romana.
Em oposição ao conceito de Estado Eclesiástico, podemos deduzir o conceito
de Estado Laico. Se o Estado Eclesiástico é aquele que está diretamente ligado a
Igreja que toma decisões baseadas em seus dogmas, o Estado Laico, por outro
lado, é legitimado por não adotar nenhuma religião oficial, respeitando todos os
credos e não fazendo referência a nenhuma religião nas coisas públicas, como
moeda oficial, repartições, e seus representantes políticos.
Com base no acima exposto, podemos considerar o conceito de Laicidade
proposto por Blancarte (2008, p. 19) que afirma ser a Laicidade "um regime social
de convivência, cujas instituições políticas estão legitimadas principalmente pela
soberania popular e já não mais por elementos religiosos." Na mesma linha de
pensamento, Ortega (2006, p. 250) afirma que Laicidade no Ordenamento Jurídico
Pessoense Paula Katherine Tarquino e Felix Augusto Rodrigues 6:15 La teoría del
Estado laico se funda, ante todo, en una concepción secular y no sacra del poder
político como actividad autónoma respecto de las confesiones religiosas, las cuales,
sin embargo, colocadas en un mismo plano de igualdad jurídica, pueden ejercer um
influjo político de acuerdo con su própria relevancia social. El Estado laico no
profesa, pues, uma ideologia irreligiosa o antirreligiosa. La laicidad, la secularidad,
consiste fundamentalmente en reconocer la racionalidad del Estado, la autonomía
de las realidades terrenas, y en ningún caso mezclarlas con lo que representa
exclusivamente una decisión individual. El Estado debe actuar sólo como Estado.1
Para que o Estado Laico consiga oferecer um tratamento igualitário, as normas que
são elaboradas pelo Poder Legislativo não podem ter conteúdo que descaracteriza o
Princípio da Laicidade. Weingartner (2007, pp. 34-35) afirma que é
incontroverso, em larga medida, que a religião funcionou, durante muito tempo e
bem, como poderoso instrumento de coesão social, garantindo unidade axiológica.
Também parece certo, todavia, que o custo desta mundivisão, no que se erigiu
como exclusivista, especialmente em termos de consciência individual e travestida
de proselitismo políticomilitar dirigido contra os infiéis (a par das iniciativas de
banimento sistemático dos judeus da vida comercial, ou da perseguição pessoal a
Giordano Bruno, Copérnico, Galileu etc.), foi muito alto. Daí a cunha de
secularização, (...) [se define] como o processo pelo qual a sociedade se afastou do
controle da Igreja, de forma que a ciência, a educação, a arte e a política ficaram
livres da conformidade com o dogma teológico e as hierarquias eclesiásticas.
Entendendo este fundamento percebemos que no Estado Laico as políticas
públicas são guiadas em favor da sociedade como um todo, sem a exclusão de
grupos minoritários, sejam eles religiosos ou de quaisquer outras naturezas. No
Estado Laico, as leis são criadas para que todos possam ter o direito à cidadania, o
direito a liberdade de consciência, de expressão e de exercício da manifestação
religiosa que mais lhes aprouver, participando, assim, da vida social em toda sua
plenitude. Como afirma Aristóteles (apud Sennet, 2010, p. 11) "uma cidade é
construída por diferentes tipos de homens; pessoas iguais não podem fazê-la
existir".

2.3 – A Liberdade Religiosa sob a Tutela do Estado


Tutelado pela Constituição Federal de 1988, o direito a liberdade religiosa
reconhece três preceitos distintos embora interligados, a saber, a liberdade de
consciência, a liberdade religiosa e a liberdade de culto. A liberdade de consciência
é o mais amplo dos preceitos, é a liberdade de escolher suas próprias convicções,
seus valores éticos e morais de suas condutas, sejam elas de cunho religioso ou
não. Dessa forma, a liberdade de consciência engloba também a liberdade religiosa,
que por sua vez, se refere à liberdade de aderir a qualquer religião ou de não aderir
a nenhuma, de mudar de religião e de não ser descriminado por qualquer atitude
religiosa ou anti-religiosa. Já a liberdade de culto, que é uma especificação da
liberdade religiosa, é o direito individual ou coletivo de venerar seus deuses, de
homenageá- los, seguir suas doutrinas, de expressar por qualquer forma, através
de palavras ou de símbolos, a religião escolhida (Canotilho e Moreira, 2007, p.
609).
Dessa forma, o Estado tem o dever de garantir que essas liberdades sejam
exercitadas de forma plena e respeitadas tanto pelo Estado como pela sociedade,
como afirma Adragão (2002, p. 421): "É o dever genérico do Estado (e das outras
pessoas) de não criarem obstáculos ao livre exercício da liberdade religiosa e de
não forçar a conduta de quem quer que seja. Suas expressões são,
designadamente, o dever de não perseguir por motivos religiosos e de não
discriminar, pelos mesmos motivos, em matéria de direitos ou Laicidade no
Ordenamento Jurídico Pessoense Paula Katherine Tarquino e Felix Augusto
Rodrigues 7:15 de deveres." Miranda e Medeiros (2005. p. 447) também enfatizam
o papel do Estado no que concerne à sua relação com a religião, afirmando que (...)
a liberdade de religião consiste, de igual modo, em o Estado não impor ou não
garantir com as leis o cumprimento dos deveres religiosos. Se o Estado, apesar de
reconhecer aos cidadãos o direito de terem uma religião, os puser em condições
que os impeçam de a praticar, aí não haverá liberdade de religião. Assim como, em
contrapartida, não haverá liberdade de religião se o Estado se transformar em
polícia das consciências, emprestando o seu braço – o braço secular – às confissões
religiosas para assegurar o cumprimento pelos seus membros dos deveres como
crentes.
Ou seja, é um direito livre do cidadão aderir ou não a qualquer credo
religioso, cultuar seus deuses, construir templos em suas homenagens, participar
das atividades realizadas em prol de suas crenças, e ainda, fazer proselitismo de
suas doutrinas religiosas sem se sentir obrigado ou coagido por parte do Estado ou
de qualquer pessoa. Entretanto, a Liberdade Religiosa não é ilimitada, pois, há
situações que tanto a natureza da atividade religiosa quanto a competência da
pessoa que vai exercê-la se apresentam em conflito com outros princípios
importantes do ordenamento jurídico.

2.3.1 – Limites à Liberdade Religiosa e a Objeção de Consciência


Como já foi explanado, a Liberdade Religiosa sofre limites quanto ao seu
exercíci o. Esse limite ocorre quando as atividades religiosas entram em conflito
com determinados direitos que estão acima dela hierarquicamente. Por exemplo, se
colocarmos na balança o direito à vida e o direito à liberdade religiosa, aquele se
sobrepõe a este. Sendo assim, à liberdade religiosa são estabelecidos limites
quando esta entra em conflito com preceitos invioláveis e indisponíveis.
Em algumas situações, a liberdade religiosa ficará em primeiro plano, sendo
obrigatório ao detentor de tal preceito fazer uma atividade alternativa, ou ajustar
as duas atividades para que nenhuma seja prejudicada. Isso acontece, porque todo
cidadão brasileiro tem o direito à objeção de consciência, ou seja, deixar de fazer
ou fazer alguma atividade por motivo de crença religiosa. À medida que a todos os
cidadãos ficam resguardado o direito à objeção de consciência, se tornam excluídos
desse rol todos os representantes do Estado. Estes devem praticar o seus atos com
base na lei sem seguir suas convicções religiosas, como afirmam Canotilho e
Moreira (2007, p. 616) que "o direito à objecção de consciência (...) consiste no
direito das pessoas de não cumprir obrigações ou não praticar actos que conflituem
essencialmente com os ditames da consciência de cada um. (...) A objecção de
consciência não vale evidentemente para os titulares de cargos públicos em relação
ao cumprimento dos seus deveres públicos, dado a responsabilidade democrático-
republicana em que estão investidos, tratando-se, aliás, em geral, de cargos de
candidatura livre."
Na mesma linha de pensamento, Blancarte (2008, p. 27) afirma que "os
legisladores e funcionários públicos não estão em seus cargos a título pessoal e
devem, mesmo que ainda tenham direito a ter suas próprias convicções, primar
pelo interesse público em suas funções e responsabilidade." Nada impede, é claro,
que mesmo não podendo atuar segundo suas próprias convicções religiosas, os
representantes do Estado, em suas funções administrativas ou legislativas,
proponham a união entre o Estado e Instituições Religiosas com a finalidade de
realizar atividades ou eventos exclusivamente sociais. Dessa forma, o Estado Laico
poderá manter com as Instituições Religiosas um vínculo de cooperação com vistas
a atender aos seus objetivos institucionais, visando, exclusivamente, ao interesse
público. Laicidade no Ordenamento Jurídico Pessoense Paula Katherine Tarquino e
Felix Augusto Rodrigues 8:15

3. Cooperação entre Estado e Instituições Religiosas

A crença em divindades sempre esteve ligada à história das civilizações fazendo


parte de suas culturas que constituem a identidade destas, isto é, a marca
distintiva de uma sociedade que a identifica entre tantas outras. Podemos confirmar
este fato se voltarmos no tempo e observarmos o que as grandes civilizações,
como, por exemplo, a egípcia e a greco-romana, deixaram de herança para a
posteridade. Além de todo o conhecimento produzido por ela s, a religião é o
elemento constitutivo mais característico que melhor identifica determinada
sociedade. Isso porque faz parte da vida cotidiana das pessoas o desconhecimento
científico e a curiosidade de saber porque certos fenômenos acontecem sem, a
princípio, nenhuma explicação, o que faz surgir os mitos para tentar explicar tais
acontecimentos. Quando um grupo de pessoas começa a acreditar serem esses
mitos verdades incontestáveis, se cria um vínculo muito forte entre essas pessoas e
suas crenças e, por sua vez, estas se incorporam à sociedade que as cultuam,
introduzindo-as posteriormente em nossa cultura que poderá assimilar as suas
deidades. Sendo as religiões manifestações de crenças tão recorrentes na nossa
cultura, o Estado não pode desconsiderar a importância que têm todas as religiões
presentes em nossa sociedade.
Dessa forma, o Estado como entidade laica tem o dever de se posicionar a
favor de todas as religiões, sem se identificar com nenhuma e sem financiar suas
práticas evangelizadoras. O Estado não pode se posicionar contra as religiões, o
que o classificaria como Estado-Ateu e, consequentemente, estaria favorecendo um
determinado grupo da sociedade que são os que não possuem crenças. Assim
sendo, o Estado além de respeitar todos os credos, ele também deve respeitar
aqueles grupos que não se identificam com nenhuma religião e que tem concepções
filosóficas desvinculadas de divindades.
Então, como pode o Estado apoiar todas as religiões sem fazer proselitismo
de alguma especificamente? Na verdade, o Estado não se preocupa em praticar
ações para promover as religiões, mas sim, recepciona as que solicitam o apoio
estatal para a realização de suas atividades que não podem e nem devem ser de
natureza religiosa.
Portanto, com o interesse de realizar atividades meramente voltadas ao
interesse público e sem propósitos evangelizadores, o Estado se une a determinada
instituição religiosa para que possam trabalhar na forma cooperativa. A parceria
entre o Estado e as Instituições Religiosas se justifica no momento em que as duas
instituições perseguem os mesmos fins, ou seja, quando esses fins são de interesse
da coletividade e trazem benefícios à sociedade. Nesse caso, a Instituição Religiosa
que coopera com os interesses públicos do Estado não pode utilizar essa parceria
para promover sua crença. Em outras palavras, as atividades realizadas
conjuntamente devem ser exclusivamente seculares. Nessa mesma linha de
raciocínio Canotilho e Moreira (2007, p. 615) afirmam que "(...) a consideração da
religião como manifestação comunicativa transcendental no espaço público (e não
apenas como questão privada) legitima esquemas de cooperação do Estado com as
Igrejas desde que esta cooperação não viole os princípios da separação, da não
confessionalidade e da neutralidade religiosa." Dessa forma, o Estado se mantém
laico e consegue por meio das Instituições Religiosas Filantrópicas alcançar os fins
sociais que almeja, porque, segundo Miranda e Medeiros (2005. p. 448) "uma coisa
é o Estado, enquanto tal, não assumir fins religiosos, não professar nenhuma
religião, nem submeter qualquer Igreja a um regime administrativo; outra coisa
seria o Estado ignorar as vivências religiosas que se encontram na sociedade ou a
função social que, para além delas, as confissões exercem nos campos do ensino,
da solidariedade social ou da inclusão comunitária." Laicidade no Ordenamento
Jurídico Pessoense Paula Katherine Tarquino e Felix Augusto Rodrigues 9:15 Nesse
sistema de cooperação, o Estado e as Instituições Religiosas, apesar de terem
funções originárias distintas, conjugam esforços para levar a cabo a empresa e
atingir o mesmo fim. As Instituições Religiosas que buscam através da cooperação
com o Estado alcançar os seus objetivos vêem na solidariedade os motivos para a
realização de suas atividades filantrópicas, sendo possível realizar essas atividades
através da cooperação com o Estado. Como explica Adragão (2002, p. 453): "(...) a
ideia de Estado social não está fortemente afastada do domínio da liberdade
religiosa, podendo manifestar-se na inclusão das confissões religiosas em
programas governamentais em que a realização das finalidades sociais e culturais
de relevo constitucional é feita em cooperação com as diversas forças da sociedade
civil."
Contudo, faz-se necessário investigar como o Estado Laico e as Instituições
Religiosas dialogam em prol da construção de uma relação que tem por fim ou
objetivo exclusivo o interesse público e em que situações essa relação pode agredir
o Princípio da Laicidade.

4. Laicidade no Ordenamento Jurídico Pessoense: Um Estudo dos PLs da


Câmara
Municipal de João Pessoa
Reza o ordenamento jurídico brasileiro que o Princípio da Laicidade deve ser
respeitado em todos os âmbitos da atividade Estatal. Entretanto, percebemos que o
referido princípio é um tanto negligenciado no cotidiano das atividades legislativas,
mais especificamente, da Câmara Municipal de João Pessoa, que é o foco dessa
investigação.
Faz-se necessário apenas uma visita à referida casa legislativa para observar
que há ostentação de símbolo s religiosos, especificamente católicos, em suas
paredes, mostrando a preferência religiosa do órgão público. Também tornou-se
lugar-comum a prática de atividades religiosas dentro da Câmara, como missas e
cultos, além da invocação do nome de Deus no início das sessões plenárias ser
recorrente. Por outro lado, ao analisar-mos os PLs propostos pelos legisladores,
podemos constatar que a Câmara Municipal de João Pessoa, de fato, não aplica o
Princípio da Laicidade como estabelece a lei. Tais fatos demonstram que, além de
não respeitar o Princípio da Laicidade, a Câmara Municipal de João Pessoa, através
dos seus legisladores, está sujeita a uma forte influência religiosa inerente à
maioria dos seus parlamentares.
Esta investigação se limitou a analisar apenas 5 (cinco) PLs elaborados e
propostos no período de 2006 a 2012 pelos parlamentares da Câmara Municipal de
João Pessoa. Sabemos ser impossível ter uma visão minuciosa e conclusiva de
como é aplicado o Princípio da Laicidade na elaboração dos PLs, mas o corpus
investigado, apesar de representar apenas um pequeno recorte do amplo e
complexo universo legislativo, apresenta sinais concretos de como os legisladores
lidam no dia a dia com a relação Princípios Religiosos versus Princípio da Laicidade.

4.1 – O Uso da Bíblia Sagrada nas Bibliotecas e Escolas Públicas Municipais


Analisando o PL 608/2006 (Anexo 1), podemos observar claramente o
intuito do legislador de favorecer a crença na qual ele acredita. Começamos pelo
título do autor, que este faz questão de lembrar a todos a que esfera da sociedade
ele está representando. Ele se intitula "PASTOR" e afirma que "FELIZ A NAÇÃO
CUJO DEUS É O SENHOR", ou seja, apenas através desses dois excertos
percebemos que o parlamentar tem uma relação muito forte com a crença que
professa, interferindo, assim, na sua identidade de parlamentar.
Nesse caso, percebe-se claramente que não há distinção entre a figura do
pastor e a do parlamentar, pois ambas se integram em uma única pessoa. Se este
parlamentar tem Laicidade no Ordenamento Jurídico Pessoense Paula Katherine
Tarquino e Felix Augusto Rodrigues 10:15 uma relação tão forte com sua crença
que o leva, mesmo em sua atividade de representante da sociedade, se apresentar
como pastor, é evidente que este pastor, ou parlamentar, realiza suas funções
conforme suas convicções religiosas. Esse fato, portanto, fere o instituto da objeção
de consciência, direito de todos os cidadãos, mas vedado aos representantes do
poder público.
O PL em análise dispõe sobre o uso da Bíblia Sagrada nas bibliotecas e
escolas públicas municipais. Constata-se o intuito de expandir a doutrina religiosa
do autor e proponente do PL entre os alunos da rede pública, favorecendo, por
parte da Câmara Municipal de João Pessoa, a religião de fundamentos cristãos.
Nesse exemplo, o autor do PL visando "(...) a primazia de levar ao conhecimento de
nossos estudantes a realidade do Estatuto Bíblico a crianças, jovens e adolescentes
no tocante a conhecimentos direcionados a fé e aos costumes basilares da Sagrada
Família."
(Anexo 1), não observa e nem respeita a pluralidade de culturas religiosas
dentro de uma escola pública, infringindo, assim, o Princípio da Laicidade que deve
ser rigorosamente observado pelo Estado Laico através do sistema educacional
público de sua competência.

4.2 – Reconhecimento de Utilidade Pública da Associação Menino-Jesus

No PL 1304/2008 (Anexo 2), que propõe o reconhecimento de utilidade


pública da Associação Menino Jesus, a cooperação entre as duas entidades, Estado
e Igreja, se apresenta de forma errônea e desrespeitosa, quando o autor do texto
legislativo afirma que essa entidade sem fins lucrativos "(...) é uma obra de caráter
religioso e social que busca resgatar jovens e famílias não só para a igreja, mas
também sociabilizá- la através das artes e da doutrina Católica." (Anexo 2). E
ainda, apresenta as atividades que esta entidade, com o apoio do Estado, realiza
em prol do proselitismo de sua religião, como "(...) ministrar o amor misericordioso
de Deus no coração da humanidade vem durante todo esse tempo, através de
retiros. Louvor-shows, aulas de dança de salão, de balé técnica vocal, palestras,
sopão entres outras formas dando uma nova esperança de vida melhor a população
não sónesta Capital, como também no alto sertão do nosso Estado." (Anexo 2).
Enfim, percebemos que as atividades religiosas e/ou sociais estão interligadas e
tem como finalidade divulgar doutrinas religiosas com o apoio do Estado.

4.3 – Reconhecimento de Utilidade Pública da Igreja Batista Bessamar

A não observância do Princípio da Laicidade é constatada também no PL


1409/2008 (Anexo 3), cujo objetivo é reconhecer a utilidade pública da Associação
Evangélica Primeira Igreja Batista Bessamar. Segundo o autor desse projeto, a
Instituição referida merece tal reconhecimento porque "(...) tem como objetivo a
celebração de cultos e atos evangélicos com fundamentação a luz da Bíblia
Sagrada, bem como edificaçãomoral espiritual de seus membros através da
ministração da Santa palavra de Deus, contida na Bíblia Sagrada, educação
religiosa e doutrinária de seus membros com estudos bíblicos ministrados em
Escolas Bíblicas dominicais e de férias em caráter curricular ou não, evangelização
da comunidade bem como desenvolvimentos de obras sociais." (Anexo 3).
Percebemos neste contexto que as obras sociais de interesse público ficaram
em segundo plano, e que a principal atividade dessa Instituição, que se diz
filantrópica, é apenas evange lizar as pessoas dessa comunidade através da sua
doutrina religiosa.
4.4 – Inclusão do Ensino Religioso à Área de Educação Doméstica

O PL 912/2011 (Anexo 4) também viola o Princípio da Laicidade, mas de


forma sutil e disfarçada. Este tem o propósito de incorporar o ensino religioso à
área de educação doméstica que será ministrada na rede municipal de ensino. O
autor afirma que o ensino Laicidade no Ordenamento Jurídico Pessoense Paula
Katherine Tarquino e Felix Augusto Rodrigues 11:15 religioso resgataria os valores
básicos da família, que segundo ele, são: "(...) obediência, respeito, temor a Deus,
religiosidade, fraternidade, caridade, verdade, amor e sobretudo valorização da
vida, do corpo e do próximo." (Anexo 4). Desse modo, estabeleceria a exclusão, na
rede pública municipal de ensino, de alunos que em seu seio familiar não adotam
valores como temor a Deus e religiosidade. Neste grupo podemos incluir famílias
que são agnósticas e atéias para quem a crença em divindades não faz parte do
seu cotidiano. Assim sendo, pelo referido projeto, toda família deve ser guiada pela
doutrina cristã, para ter valores morais considerados corretos pela sociedade.
Contudo, sabemos que caráter e condutas corretas não se definem exclusivamente
pela ética e pela crença religiosas.

4.5 – Dia Municipal da Família


O PL 1386/2012 (Anexo 5) propõe a instituição do dia municipal da família.
A princípio não se constata nenhuma violação ao Princípio da Laicidade, porém o
autor e proponente do PL afirma que o dia municipal da família diz respeito a um
modelo específico de família, "(...) a Sagrada Família, a Família de Nazaré, modelo
de unidade, amor mútuo, simplicidade, humildade, generosidade, onde Jesus
entrou na história da humanidade." (Anexo 5). Ou seja, as famílias que não se
identificam com o modelo proposto pelo parlamentar não se sentiriam confortáveis
para participar das atividades realizadas neste dia e, portanto, excluídas. Parece ser
relevante que em uma sociedade, marcada pela violência fora e dentro dos lares,
seja instituído um dia reservado à exaltação e valorização da unidade familiar,
através da realização de diversas atividades em prol deste objetivo. Porém, devem
ser incentivados valores universais, sem integrar nestes valores dogmas religiosos
de credos específicos. Não devemos, enquanto sociedade civil, incentivar um dia
em que todas as pessoas enxerguem num único exemplo familiar religioso
específico o modelo ideal, pois, sendo a nossa sociedade extremamente pluralista e
multicultural, estaríamos violando o direito do outro no que concerne a sua opção
religiosa. A crença religiosa é importante para algumas famílias, mas para outras
não o é.
As famílias que não adotam valores religiosos em seus lares devem ser
reconhecidas pelo que elas realmente são, famílias, sem serem valoradas pelos
seus credos ou pela falta destes. Ao não fazê-lo, também estaríamos transgredindo
o Princípio da Laicidade, enquanto cidadãos, membros de um Estado Laico.

5. Considerações Finais
Através da análise dos PLs, podemos afirmar que a Câmara Municipal de
João Pessoa não aplica, em sua amplitude, o Princípio da Laicidade no processo das
atividades legislativas. A inobservância do princípio se apresenta de inúmeras
formas, algumas com alcance social maior e outras tão singelas que a princípio não
percebemos o quão estão violando o princípio em tela. Contudo, é importante para
um Estado Democrático de Direito, que cada vez mais tenta se legitimar por sua
ampla democracia, respeitar irrestritamente o Princípio da Laicidade. Tal medida
deve ser expressa até mesmo nas ações consideradas ínfimas, com o escopo de
que a sociedade enxergue no poder estatal uma referência de respeito aos direitos
da coletividade.
Como já mencionado, é legítimo o Estado se unir às Instituições Religiosas
com o intuito de realizar atividades em prol do interesse público. Essa cooperação
entre o poder público e as entidades religiosas pode ser realizada de diversas
formas. Pode haver a cooperação entre as duas entidades, quando, por exemplo,
uma das partes decide fazer eventos sociais e a outra, interessada na finalidade
social desse evento, participa. Esse tipo de parceria entre Estado e Instituições
Religiosas não viola o Princípio da Laicidade, desde Laicidade no Ordenamento
Jurídico Pessoense Paula Katherine Tarquino e Felix Augusto Rodrigues 12:15 que,
a entidade religiosa participante se limite a executar apenas atividades em prol do
interesse público, não incorrendo em atividades evangelizadoras de seu próprio
interesse.
Seja quando atua em favor do interesse público através dos seus
legisladores, seja quando afasta a interferência das Instituições Religiosas para se
manter cada vez mais Laico, o Estado deverá legislar sempre desvinculado de
dogmas e crenças religiosas para que, assim, o povo seja cada vez mais respeitado
e legitimamente representado.

NOTA
1. A teoria do Estado laico se baseia, especialmente, em um conceito secular, não
sagrado, do poder político como atividade autônoma com relação as crenças
religiosas, as quais, entretanto, sendo consideradas dentro de um mesmo plano de
igualdade jurídica, podem exercer uma influência política de acordo com a sua
relevância social. O Estado laico não professa, pois, uma ideologia religiosa ou anti-
religiosa. A laicidade, a secularidade, consiste fundamentalmente em reconhecer a
racionalidade do Estado, a autonomia das realidades terrestres, e em nenhuma
hipótese mesclá -las com o que representa uma decisão individual. O Estado deve
atuar apenas como Estado. [Tradução Livre de Ortega, 2006, p. 250]

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WEINGARTNER NETO, Jayme. Liberdade Religiosa na Constituição. Porto Alegre:
Livraria do
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Laicidade no Ordenamento Jurídico Pessoense
Paula Katherine Tarquino e Felix Augusto Rodrigues 13:15
ANEXOS
ANEXO 1: Projeto de Lei 608/2006
Dispõe sobre o uso da Bíblia Sagrada nas Bibliotecas e
Escolas Públicas Municipais e dá outras providências.
A MESA DA CÂMARA MUNICIPAL DE JOÃO
PESSOA DECRETA:
Art. 1º Fica incluída a inserção da Bíblia Sagrada nas
Bibliotecas e Escolas Públicas Municipais, como forma
de que se ensine a criança, o jovem e o adolescente a
aprender a manejar, estudar e discutir sobre o Livro
Sagrado.
Parágrafo único. Evidencia-se o uso da obrigatoriedade
referida no caput do artigo como forma de se
reverenciar os ensinamentos do Livro Divino por
pessoas qualificadas, que realmente possam ministrar
tais ensinamentos.
Art. 2º A disposição de que trata o artigo anterior visa
inserir no meio social e cultural os ensinamentos do
Mestre sobre toda uma vida pautada em lisura e amor
ao próximo.
Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua
publicação.
Art. 4º Revogam-se as disposições em contrário.
JUSTIFICATIVA
A presente propositura tem a primazia de
levar ao conhecimento de nossos estudantes a realidade
do Estatuto Bíblico a crianças, jovens e adolescentes no
tocante a conhecimentos direcionados a fé e aos
costumes basilares da Sagrada Família.
Não se pode negar o conhecimento àqueles
que são o epicentro do tema em causa.
Temos que demonstrarmos a nossa
responsabilidade diante de fatos inegáveis e de fácil
correção diante das notícias de jornal, rádio e televisão
sobre o que de pior acontece com os jovens e
adolescentes em nossa Capital, como forma de
jogarmos um bom exemplo a todos os municípios do
Estado da Paraíba.
Desta forma espero receber de meus pares
nesta Casa Legislativa a devida aprovação a esta
proposição, como forma de contribuirmos para o
conhecimento formal, legal e do cotidiano de nossos
jovens.
Muito obrigado.
Sala das Sessões da Câmara Municipal de João Pessoa,
“Casa de Napoleão Laureano”, em João Pessoa, 1 de
agosto de 2006.
PASTOR
MIGUEL ARCANJO
VEREADOR – PRB
“FELIZ A NAÇÃO CUJO DEUS É O SENHOR”
www.prmiguelarcanjo.com
ANEXO 2: Projeto de Lei 1304/2008
RECONHECE DE UTILIDADE PÚBLICA À
ASSOCIAÇÃO MENINO JESUS, E TOMA OUTRAS
PROVIDENCIAS.
Art. 1º Fica reconhecida de Utilidade Pública à
ASSOCIAÇÃO MENINO JESUS, tendo como nome de
fantasia Comunidade Lírios do Vale, é uma Entidade sem fins
lucrativos, fundada em 30 de Maio de 2002, devidamente
inscrita no CNPJ n. 05.165.677/0001-01, registrada no Serviço
Notarial e Registral “ Toscano de Brito “, Registro de Títulos
e Documentos e Registro Civil das Pessoas Jurídicas,
protocolado no Livro A-38, e registrado sob n. 223.107, livro
A-24, de 19 de Junho de 2002, e toma outras providências.
Art. 2º A presente Lei entra em vigor, na data de sua
publicação, revogadas as disposições em contrário.
JUSTIFICATIVA
O nosso objetivo é de reconhecer de Utilidade
Pública à ASSOCIAÇÃO MENINO JESUS, é uma entidade
sem fins lucrativos, fundada em 30 de Maio de 2002, tendo
como nome de fantasia Comunidade Lírios do Vale, é uma
obra de caráter religioso e social que busca resgatar jovens e
famílias não só para a igreja mas também sociabilizá-la
através das artes e da doutrina Católica. Fundamentada em seu
Carisma, “ministrar o amor misericordioso de Deus no
coração da humanidade vem durante todo esse tempo, através
de retiros. Louvor-shows, aulas de dança de salão, de balé
técnica vocal, palestras, sopão entres outras formas dando uma
nova esperança de vida melhor a população não só nesta
Capital, como também no alto sertão do nosso Estado.
A comunidade em epígrafe é guiada pela inspiração
divina do seu fundador Nilton Claudio Tavares Lima, e
dirigida por um conselho composto de fundador. Cofundadores
e lideres de diversas atividades da Entidade.
Ante o exposto, esperamos a aprovação unânime
deste Projeto de Lei, no Plenário desta Egrégia Casa, pelos
nobres Pares, para que seja reconhecido de Utilidade Pública,
uma entidade que visa exclusivamente beneficiar seus
associados.
CÂMARA MUNICIPAL DE JOÃO PESSOA, EM 19 DE
MARÇO DE 2007.
DURVAL FERREIRA DA SILVA FILHO
Vereador
Laicidade no Ordenamento Jurídico Pessoense
Paula Katherine Tarquino e Felix Augusto Rodrigues 14:15
ANEXO 3: Projeto de Lei 1409/2008
RECONHECE DE UTILIDADE PÚBLICA A
ASSOCIAÇÃO EVANGÉLICA PRIMEIRA IGREJA
BATISTA BESSAMAR, E TOMA OUTRAS
PROVIDÊNCIAS.
Art. 1º Fica reconhecida de Utilidade Pública à
ASSOCIAÇÃO EVANGÉLICA PRIMEIRA IGREJA
BATISTA BESSAMAR, é uma entidade religiosa sem fins
lucrativos ou econômicos, com sede e foro na cidade de
João Pessoa, Capital do Estado da Paraíba, sito a Av.
Argemiro de Figueiredo, n. 1470, Jardim Oceania, que
desde sua criação vem atendendo e dando assistência a
todos os associados, devidamente inscrita no CNPJ
n.06.014.769/0001-45, registrada no Serviço Notarial e
Registral “Toscano de Brito”, Registro de Títulos e
Documentos e Registro Civil das Pessoas Jurídicas,
protocolado no Livro A-52, e registrado sob n. 296.726,
livro A-171, de 25 de Novembro 2003, e toma outras
providências.
Art. 2º A presente Lei entra em vigor, na data de sua
publicação, revogadas as disposições em contrário.
JUSTIFICATIVA
O nosso objetivo é de reconhecer de Utilidade
Pública à ASSOCIAÇÃO EVANGÉLICA PRIMEIRA
IGREJA BATISTA BESSAMAR, fundada aos 05 dias do
mês de dezembro do ano de dois mil e dois, é uma entidade
sem fins lucrativos, que já vem trabalhando a vários anos
em prol de toda coletividade, tem como objetivo a
celebração de cultos e atos evangélicos com
fundamentação a luz da Bíblia Sagrada, bem como
edificação moral espiritual de seus membros através da
ministração da Santa palavra de Deus, contida na Bíblia
Sagrada, educação religiosa e doutrinária de seus membros
com estudos bíblicos ministrados em Escolas Bíblicas
dominicais e de férias em caráter curricular ou não,
evangelização da comunidade bem como
desenvolvimentos de obras sociais.
Ante o exposto, esperamos a aprovação unânime
deste Projeto de Lei, no Plenário desta Egrégia Casa, pelos
nobres Pares, para que seja reconhecido de Utilidade
Pública, uma entidade que visa exclusivamente beneficiar
seus associados.
CÃMARA MUNICIPAL DE JOÃO PESSOA, EM 20 DE
MAIO DE 2008.
DURVAL FERREIRA DA SILVA FILHO
Vereador
ANEXO 4: Projeto de Lei 912/2011
Incorpora a Rede Municipal de Ensino, a área de Educação
Doméstica, vinculada a disciplina de ensino religioso e dá
outras providências.
A Câmara Municipal de João Pessoa, aprova:
Art. 1º Fica incorporada a área de educação doméstica,
vinculada à disciplina de ensino religioso no âmbito da
rede Municipal de Educação.
Art. 2º Deverão ser trabalhados nesta área de educação os
valores humanos, o respeito à cidadania, valorização de
vida, hábitos e virtudes familiares.
Art. 3º A matéria de que fala a ementa e o Artigo 1º será
implantada nas Escolas Municipais a partir do ano letivo
2012.
Art. 4º Dentro das atividades propostas na área de
educação doméstica ora em questão será comemorado o
dia da família na Escola (2ª sexta-feira do mês de maio de
cada ano).
Art. 5º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 6º Revogam-se decisões em contrário.
JUSTIFICATIVA
Hoje em dia tem se tornado cada vez mais
frequente a questão da violência nas escolas, bem como o
crescente desrespeito do estudante ao seu professor e as
outras pessoas que convivem no seio da escola e até
mesmo dos filhos para com os seus pais e até hoje a escola
tem feito pouco para resgatar os valores básicos da família;
tais como: obediência, respeito, temor a Deus,
religiosidade, fraternidade, caridade, verdade, amor e
sobretudo valorização da vida, do corpo e do próximo.
Nossa justificativa é feita no sentido da
necessidade de termos na escola um espaço didático e
pedagógico para discutirmos e elegermos junto com as
famílias dos alunos valores que irão nortear estes jovens
para todas suas vidas.
Sala das Sessões da Câmara Municipal de João Pessoa, 17
de maio de 2011.
BENILTON LUCENA
Vereador – PT
Laicidade no Ordenamento Jurídico Pessoense
Paula Katherine Tarquino e Felix Augusto Rodrigues 15:15
ANEXO 5: Projeto de Lei 1386/2012
Institui o dia 30 de dezembro como do Dia Municipal da Família
Art. 1º Institui o dia 30 de dezembro como o Dia Municipal da
Família
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogandose
as disposições em contrário.
JUSTIFICATIVA
Venho propor este projeto de Lei fundamentado na minha
crença na família como “lugar sagrado”, “Igreja doméstica” que é
capaz de realizar sua missão mesmo sob fortes tensões, inúmeras
transformações e enfrentando dificuldades de todas as ordens:
“guardar, revelar e comunicar ao mundo o amor e a vida”.
A família deve ser a responsável pelo desenvolvimento
integral dos filhos e, consequentemente, para uma vida social mais
equilibrada.
O Catecismo da Igreja Católica assim exp licita o valor
extraordinário da família: “A família é a comunidade na qual, desde a
infância, se podem assimilar os valores morais, em que se pode
começar a honrar a Deus e a usar corretamente da liberdade. A vida
em família é iniciação para a vida em sociedade” (CIC, 2207).
Consideramos que as referências masculinas e femininas
presentes numa família são fundamentais para a formação, a educação
e ainda pelo equilíbrio emocional dos filhos: “toda criança, seja ela
menina ou menino tem necessidade de absorver e introjetar o caráter
masculino normalmente relacionado pela psicologia à agressividade,
entendida como uma função importante no relacionamento do sujeito
com o mundo exterior”. (...) A mulher tem um papel fundamental na
educação e formação da personalidade. É ela que transmite à criança
– menino ou menina - as características naturais do sexo feminino
como delicadeza, compreensão, receptividade, acolhimento,
bondade”. (Pai e mãe, diferentes e complementares. Virgínia
Aparecida dos Santos e Fernanda Pompermayer, Revista Cidade
Nova, p. 17, agosto de 2011.)
Certamente a família precisa ter garantida a condição
necessária para exercer o papel que lhe cabe. De acordo com José
Antonio Faro, Diretor da Redação da revista Cidade Nova, “... a
sociedade só tem a ganhar se garantir as condições para que pai e mãe
possam exercer plenamente os seus papéis na educação dos filhos e
na consolidação da família. Nesse sentido, proteger a família é uma
demonstração de maturidade social e política de um povo e de
maturidade democrática do Estado”.
O dia 30 de dezembro como o Dia Municipal da Família faz
referência A Sagrada Família, A Família de Nazaré, modelo de
unidade, amor mútuo, simplicidade, humildade, generosidade, onde
Jesus entrou na história da humanidade.
Plenário da Câmara Municipal de João Pessoa, 19 de março de 2012.
RAONI MENDES
Vereador/PDT
FESTA DE REIS E(M) LARANJEIRAS:
RELAÇÕES ENTRE POLÍTICA E RELIGIOSIDADE

VICTOR HUGO NEVES DE OLIVEIRA


Doutorando em Ciências Sociais/ PPCIS – UERJ.
Professor do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal da Paraíba.

RESUMO
Palavras-chave: festa de reis, Laranjeiras, resistência.

O trabalho aqui proposto busca descrever as motivações geradoras da Festa de


Reis realizada na cidade de Laranjeiras (SE) e examinar os conteúdos que
relacionam inserções e valorações de determinados rituais no conjunto de
manifestações que estruturam políticas culturais vinculadas ao turismo e a noç ão
de regionalismos. A partir deste ensaio que se prop õe, sobretudo a estruturar uma
descrição sobre os fenômenos sensíveis, vividos e experienciados na Festa de Reis
pretendemos igualmente investigar os processos que favorecem a expans ão e
continuidade das relações vivas entre política, festa e religião.

Domingo, 10 de janeiro de 2010. Apesar do calor da cidade de Laranjeiras


abafar o som dos tambores, o relógio marca 09h00min anunciando-me, assim, que
as cerimônias preparadas para a manhã já começaram. Sigo, então, em direção à
Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito (localizada na Rua José Prado
Franco) para visualizar, por mais um ano – desde 2007, a missa em louvor a Nossa
Senhora do Rosário, a S ão Benedito e também a coroaç ão da Rainha das Taieiras,
a Chegança e a manifestação dos Cacumbis. Após o término da cerimônia me dirijo
ao almoço e às 15h30min parto, novamente, rumo às ruas da cidade a fim de
acompanhar a participação do grupo de São Gonçalo na procissão festiva aos
Santos Reis1.
Certamente, segundo o calendário católico esta data expressa tão somente
as cerimônias referentes aos Reis, tendo em vista que São Benedito e N. S. do
Rosário devem ser festejados, respectivamente em abril e em outubro. No
entretanto, há um descompasso entre a data destinada pela Igreja para a
homenagem devida aos referidos santos e o momento em que ela é realizada na
cidade.
A propósito, Padre Diógenes Oliveira Silva, pároco da cidade de Laranjeiras
(Depoimento: 2010) comenta:
Na verdade quem sai na prociss ão são, justamente, os
santos de devoção do povo negro (...) santos negros: Nossa
Senhora do Rosário, São Benedito e o certo seria também
sair os Santos Reis, mas aq ui eles carregam justamente as
imagens de outros santos, no caso: S ão Benedito, N. S. do
Rosário e São Gonçalo (...) são os que mais saem.

1 As comemorações do Dia de Reis são, em Laranjeiras, vinculadas aos festejos de encerramento do


Encontro Cultural da Cidade de Laranjeiras (evento de ocorrência anual), ocorrem de modo geral em um
domingo próximo ao dia 06 de janeiro.
Tal desencontro entre a doutrina eclesiástica e a efetiva celebração aos
santos na cidade que aproxima estruturas simbólicas diversas e, de certo modo,
explicita um campo de crenças distintas consiste em uma herança da situação dos
negros nas confrarias religiosas (espécies de irmandades que congregavam os
indivíduos legitimando a hierarquia da sociedade escravista, separando em
corporações religiosas do Santíssimo Sacramento e S ão Francisco, os senhores, e
em irmandades de Nossa Senhora do Rosário e S ão Benedito, os escravos) e,
portanto, deve ser analisada a partir das relaç ões de dominação, subjugação e
interesses materiais aos quais os negros e suas crenças estavam submetidos;
afinal:
É no eixo entre sagrado e profano, em que interesses
materiais e aproximações simbólicas de tradições diversas se
intercruzam, que se deve entender o descompasso entre a
prescrição ecle siástica e a efetiva celebraç ão dos santos na
cidade com uma importante festa, cuja realização foi
registrada no século passado no m ês de janeiro. A data da
festa, ao que parece, atendia à adequação das celebrações
caras aos escravos às exigências do calendário agrícola de
uma sociedade escravocrata. Com seus muitos dias
santificados, o período natalino parecia mais apropriado à
suspensão dos trabalhos nos campos (...). A justificativa
apresentada no Compromisso da Irmandade do Rosário da
cidade de Alagoas, antiga capital da Província vizinha,
aprovado em 1830, é significativo ao determinar que: “Em
razão desta Confraria ser composta em sua maioria de
pretos cativos, a festa de Nossa Senhora do Rosário que se
celebra no primeiro outubro será transferida para dezembro”
(...) É importante ressaltar que é a condiç ão dos pretos
escravos que é invocada para justificar o deslocamento da
data da festa para o ciclo natalino que medeia entre o fim
de dezembro e o início de janeiro. Por outro lado, as
aproximações estabelecidas através das figuras dos reis que
se intercruzam – Reis de Congo ou do Rosário que são
coroados, os três Reis Magos, um dos quais preto, que se
postam diante de Jesus Menino – fornecem o quadro
simbólico de suporte às celebrações dos santos patronos dos
negros no dia 6 de janeiro (DANTAS, 1999: 120-1).

Em seu livro Registros dos Fatos Históricos de Laranjeiras , o Padre Filadelfo


Jônatas revela a continuidade das associações entre os Santos Negros e a Festa de
Reis, durante a década de 30, ao apresentar uma descrição da Igreja de Nossa
Senhora do Rosário e S ão Benedito; no entanto, na ocasi ão o cônego não aborda a
presença da dança em louvor ao santo amarantino, o que nos induz a crer que esta
ainda não era associada aos Festejos dos Reis.
Modesta, simples e ainda não concluída, tendo aos pés
Laranjeiras e mais abaixo o rio Contiguiba, acha-se
assentada em pequena Colina a Igreja de Nossa Senhora do
Rosário e S. Benedito, que tem 100 palmos de
comprimento, 40 de largura, uma sacristia, um púlpito, u m
côro e três altares com as imagens de Nossa Senhora do
Rosário, S. Gonçalo, Santo Antonio e S ão Benedito de S.
Filadelfo, assim chamado porque nasceu na aldeia de S.
Filadelfo, na Cecília. Os homens de cor concentraram todas
as suas devoções neste templo, onde nas célebres
tradicionais festas de Reis mais de cem pretos se
apresentam fantasiados, representando os Reisados,
Cheganças, Congos, Taieiras, Mouramas, Marujadas e
Maracatu, comemorando as guerras entre os Crist ãos e os
Mouros, entoando cânticos à Virgem do Rosário, Vencedora
em Lepanto (OLIVEIRA, 2005: 59).

Inferimos, pois, que a participaç ão da Dança de São Gonçalo na Festa de


Reis é um fenômeno recente, resultante das relaç ões estabelecidas entre a política
cultural, a prefeitura e a Igreja (na década de 70) quando há um projeto de
associação entre folclore e turismo à promoção da cidade de Laranjeiras. Assim,
apreendemos o porquê de em registros sobre as práticas rituais na igreja não
encontrarmos, até a década de 70, na cidade de Laranjeiras, referências sobre o
ritual a São Gonçalo.
Percebemos uma estrutura política conciliada ao setor sociocultural,
abrangendo a biodiversidade cultural e a valorização das manifestações culturais
mais autênticas da região, tais quais a música, a dança, o teatro e as artes
plásticas e visuais, além do artesanato.
O enfoque principal desse período foi definido como sendo a “defesa da
cultura”. A função primária do Sistema Nacional de Cultura e do Conselho Federal
de Cultura [implementado em 21 de novembro de 1966 pelo Decreto-lei 74] seria
conservar o acervo cultural já constituído e manter viva a memória nacional,
assegurando a perenidade da cultura brasileira.
Essa é a raz ão de, no inicio de suas funç ões, o C onselho Federal de Cultura
se concentrar em normatizar os auxílios financeiros destinados às instituições que
se incumbiriam da conservação e guarda do patrimônio nacional. Segundo Ortiz
(2006: 96), não é por acaso que os institutos Históricos e Geográficos cultivam a
memória dos grandes nomes da história nacional, e que os folcloristas se voltam
para o estudo das tradições populares. Todos trabalhavam para manter certas
tradições, certos eventos que estavam intimamente ligados ao tipo de sociedade
que se desejava preservar.
Seu José Ranulfo Paulo dos Santos, mestre violeiro do grupo de São
Gonçalo da Mussuca (povoado quilombola da cidade de Laranjeiras) e irm ão de
Dona Nadir (cantadora da Dança de São Gonçalo e importante referência local),
atesta esta hipótese em entrevista (2010) ao comentar que o grupo de São
Gonçalo brinca no Dia de Reis há não mais de quarenta anos:
O São Gonçalo brinca (...) na Festa de Reis, em Laranjeiras,
tem (...) uns quarenta anos (...) foi um prefeito que (...)
tinha lá (...) que chamava Zé de Ireno, ele andava lá pela
Mussuca, que ele tinha fazenda e passava lá e via nós
fazendo a promessa pra São Gonçalo, fazendo a brincadeira
lá na Mussuca e lá ele convidou o finado meu pai pra ir a
uma Festa de Reis em Laranjeiras (...) aí nós foi presentar
na Festa de Reis; aí ele botou o São Gonçalo como a
prefeitura responsável e nisso ficou: até hoje.

Dona Nadir, filha de Mestre Paulino e cantadora do grupo de S ão Gonçalo


(Depoimento: 2009) complementa:
Na época que entrou os político na Mussuca (...) tinha um
prefeito que se chamava Zé de Ireno e tinha o vice que era
Zé Sobral. Aí, disse assim: “Seu Paulino eu vô fazer um
trabalho com o senhor que é pra vocês representar este
grupo nim Brasília” (tá com trinta cinco anos, você veja
bem). Aí acertou tudo quando foi em fevereiro, no dia 1 0 de
fevereiro, aí o grupo se aprontou – tava tudo certo, a
passagem tudo certa já e foram pra Brasília. De lá, quando
voltou (...) eles botaram Grupo Folclórico (...) aí ficou (...)
o São Gonçalo ficou sempre viajando (...). Mas, este grupo
de São Gonçalo só era mesmo pra promessa.

Aí, percebemos a flexibilidade e plasticidade dos tempos sagrados a


ressignificar no universo cotidiano, através de agenciamentos políticos e interesses
materiais, as instâncias da fé e do rito engendrando, desse modo, diálogo s entre
diferentes sistemas de devoção em as terras de Laranjeiras.
Laranjeiras, em uma das ruas e vielas que tramam sua tessitura, encontro
os sangonçalistas2 (reunidos em frente ao Centro de Convenções); conversamos
sobre o atraso de alguns figuras que ainda não haviam chegado e acerca do calor
daquela tarde. Percebo que eles estão nervosos, ansiosos ou enfadados, não
saberia dizê-lo o porquê e no exato momento em que inquiriria sobre tal estado de
tensão, um sinal inicia a procissão induzindo aos dançadores a correr para
acompanhá-la nas posições originárias e a mim igualmente a fazê-lo para
acompanhá-los.
Seguimos em cortejo em direção a Praça Matriz (também conhecida como
Praça Dr. Heráclito Diniz Gonçalves) e neste instante percebo que outros
integrantes surgem, juntando-se ao grupo e estruturando a formaç ão adequada aos
casos de procissão: mariposa (figura feminina que conduz a imagem do santo) e
músicos à frente, patrão (figura que dá configuração à dança através de toques
musicais em uma caixa), figuras-adultos (também conhecidos como dançantes),
patrão mirim e seus dançantes; prosseguimos pela Rua José Prado Franco
(também conhecida por Rua Direita) até a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e
São Benedito.

2 Termo utilizado por Alceu Araújo para designar os devotos e participantes da dança na zona rural
paulista.
Observo que a mariposa traja uma saia branca, um bolero branco aberto sobre uma
blusa de mesma cor e porta uma faixa branco-prateada nos cabelos além de
alguns acessórios (anel, cordão, pulseira e brincos); os tocadores vestem blusa
pólo azul e calça branca ou preta; o patrão traja sua indumentária ritual habitual
(trajes de marinheiro) com sua caixa atravessada no ombro; os dançantes o
seguem em numero de nove (provavelmente pelo fato de alguém n
ão ter
conseguido chegar a tempo da saída da procissão) e, logo após, o grupo mirim
(com quatorze meninos dançantes) coordenado pelo patrão mirim.
Ambos os grupos cantam e dançam com o escopo de chegar a Igreja S ão
Benedito, porém, cada qual possui uma jornada3 diferente para o momento;
enquanto os adultos cantam “Quizamba” 4, as crianças cantam “Suzanê”. Os grupos
de dançantes se deslocam, ent ão, em fila saltando e requebrando-se; porém, ao
alcançarmos a Praça Augusto Maynard o grupo dos veteranos dá início a um
desenvolvimento coreográfico onde cada fila de dançantes realiza voltas que se
encontram no meio e seguem à frente (novamente em fila); os homens pulam e
gingam estabelecendo aí um jogo de negociação, conflito e sensualidade.
“Brincando com o desequilíbrio, o corpo oscila nas direções laterais, fazendo da
ginga ‘uma zona intermediária e ambígua, situada entre o lúdico e o combativo’”
(COUTO, 2003: 64-5).
Às vezes, quando os guias se encontram a meio caminho, retornam por trás
da roda (con)fundindo o olhar do espectador que busca o encontro das formas
simples; tais entrelaçamentos são motivos para (trans) ou (con)fusão de cores e
arranjos que geram a alegria, o riso espontâneo, a fé e(m) remelexo. Percebo que
as crianças param suas brincadeiras para observarem pais, tios, primos e desse
modo, desenvolver aquela propriedade gestual promovendo a (in)cor poração e
assimilação daqueles saberes coletivos encarnados na gestualidade mussuquense.
Os meninos, entre seis e treze anos, rejubilam-se e apreendo, ent ão, que o
processo de inserção das crianças no universo ritual atende e revela-nos, antes de
mais nada, a preocupação da comunidade e dos devotos com o porvir das práticas
e sistemas de fé da Mussuca e a implementação atual de um projeto de sucessão
dos atores sociais envolvidos no ritual.

3 Segundo Cascudo (1984: 365), as jornadas consistem em uma s érie de versos cantados sem interrupção,
estruturando-se, deste modo, como ato onde percebemos quadras decoradas e algumas improvisadas
alusivas ao culto.
4 Segundo Dona Nadir (Depoimento: 2010), a jornada Quizamba, não deve ser cantada senão em

procissões.
Aí, percebemos a gestualidade como lugar de produção de conhecimento e
examinamos as resultantes das aç ões humanas como técnicas do corpo, isto é
“maneiras como os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional,
sabem servir-se de seu corpo” (Mauss, 2011: 401): uma educação do corpo.
Em todos esses elementos da arte de utilizar o corpo
humano os fatos de educaç ão predominavam. A noção de
educação podia sobrepor-se à de imitação. Pois há crianças,
em particular, que têm faculdades de imitação muito
grandes, outras muito pequenas, mas todas se submetem à
mesma educação, de modo que podemos compreender a
sequência dos encadeamentos (...). É precisamente nessa
noção de prestígio da pessoa que faz o ato ordenado,
autorizado, provado, em relação ao indivíduo imitador, que
se verifica todo o elemento social (MAUSS, 2011: 405).
A propósito Neilton Santana, (Depoimento: 2010) nos esclarece:
Aí, né, essa idéia que teve de botar os meninos pequenos
para dançar o São Gonçalo foi uma boa idéia (...) onde
assim, não vai poder acabar, né?! (...) Porque assim, eu já
vim de mirim, aí veio meu primo, veio meu irmão (...) É
como se fosse uma escala (...) dos menores para os
maiores. Isso aí vai até quando não der mais porque isso vai
facilitar o resgate do S ão Gonçalo (...) e os que v êm depois
aí, vai surgir mais forte (...) Q uem era mirim vai ficar
jovem, quem era jovem vai ficar adulto (...) Para não
morrer o São Gonçalo.
Seguimos pela Rua Direita, enquanto as crianças seguem caminhando em
silêncio, os veteranos ( à frente) cantam a jornada “Vosso Reis Pediu uma Dança”.
Ali, nas proximidades do Museu Afro-brasileiro já se escuta as canções
provenientes da igreja, mas os dançantes persistem em suas manifestações de fé
realizando pequenos giros pela dimensão estreita da rua. Então cantam e dançam e
somente quando estamos em frente à igreja eles param; outros grupos, porém
continuam em os quadros de expans ões de fé em festa, dentre os quais se
destacam os Cacumbis.
O relógio já aponta 16h40min quando chegamos à igreja, a canção
eclesiástica reclama bênçãos para toda a naç ão brasileira em tons maviosos,
graciosos e singulares:
Protege o povo brasileiro
Que vem feliz te agradecer
Oh Nosso São Benedito
A fé não lhes deixe perder

Enquanto a música toca suave misturando-se aos sons graves emitidos


pelos instrumentos dos cacumbis, as imagens dos santos (S. Gonçalo Garcia, S.
Benedito e N. S. do Rosário, respectivamente) descem, em andores carregados por
homens diversos, o plano inclinado da igreja e fundam a hierofania na prociss ão.
Os sangonçalistas seguem atrás de N. S. do Rosário, a música cantada cessa e os
sinos tocam fomentando a idéia do tempo sagrado e da fundaç ão de um novo
mundo, representado pela cosmogonia5 do eterno retorno. Provavelmente, o grupo
de sangonçalistas segue a Nossa Senhora do Rosário por não ser São Gonçalo
Garcia o santo da predileção comunitária, afinal segundo, Marcos de Oliveira
Souza, historiador e pesquisador de educação patrimonial e religiosidade popular
(Depoimento: 2009):
Existe o São Gonçalo de Amarante que é a devoção do São
Gonçalo que dança e ex iste São Gonçalo Garcia. S ão
Gonçalo Garcia era filho de uma portuguesa com um
indiano. Não! A mãe dele era indiana e o pai era português,
por isso que ele tem esta cor morena (...) E S ão Gonçalo,
ele foi para o Japão e os franciscanos foram fazer uma
5Aqui, aplicamos o termo para designar o modelo exemplar da Criação Divina, das ações e mitologias
dos santos e o processo de reatualização deste modelo pela ação simbólica dos homens (ELIADE, 1992).
missão e eles tavam até bem a missão; mas você sabe: em
toda organização sempre tem aquele que se incomoda
quando o trabalho de um sobressai, né?! E tavam se
incomodando e fizeram a cabeça do Imperador e o
Imperador mandou pregá-lo na cruz (você tá vendo o
símbolo da cruz) e mesmo pregado na cruz (...) enfiavam
lanças nele (...) Aí, por isso que tem esta devoção. Como
aqui a devoção é da devoção africana, Nossa Senhora do
Rosário sempre teve esta identidade com os africanos, S ão
Benedito era devoto de Nossa Senhora do Rosário e São
Gonçalo Garcia tinha uma devoção a Nossa Senhora do
Rosário – a m ãe de Jesus, a medianeira de todas as graças.
Por isso, todos os santos que voc ês v êem na festa de Reis
sempre eles têm um caráter um pouco voltado à cor africana
(...) a devoção popular africana.

Uma banda de música toca então determinadas marchas de simbolismo


cívico, e todo o cortejo segue até o final da Rua Direita ou Rua José do Prado
Franco (ponto do Chico Preto, entre a Rua da Palha e a Rua Comandaroba); ambos
os grupos de S ão Gonçalo seguem silenciosos enquanto alguns outros grupos como
o Samba de Pareia e os Cacumbis retomam seus cantos. No ponto do Chico Preto,
apreendo que os grupos retornam em formato coreográfico (em simultaneidade,
aqueles que vão à direção do fim da rua fazem o percurso por fora e aqueles
outros que retornam o fazem por dentro).
O carro de som toca canção religiosa (enquanto os grupos se arranjam pelos
meandros estreitos da cidade); sem deixar, contudo, de perceber os tambores e
vozes, a algazarra e a alegria dos homens e mulheres na cidade, posso apreender
alguns versos da música eclesiástica:
Segura na mão de Deus (2X)
Pois ela, ela te sustentará
Não temas, segue adiante e não olhes para trás
Segura na mão de Deus e vai
A procissão, em seu retorno, passa novamente pela Igreja de Nossa
Senhora do Rosário e S ão Benedito, alcança a Praça Augusto Maynard e, a eito,
prossegue rumo a Praça da Matriz. Neste momento, a Igreja Matriz abre suas
portas e toca seus sinos congregando ali não apenas devotos, mas pesquisadores,
turistas, rede autóctone, senão pelos ideais religiosos pelo apelo à celebração.
A procissão segue pela Rua do Roque (ou Rua Sagrado Coraç ão de Jesus) e
percorre a Praça Samuel de Oliveira e a Praça da República, porém aí percebo que
a sua estrutura faz-se diversa, há predomínio da serenidade e o sil êncio envolve a
ação cerimonial, apreendo que após a passagem pela Matriz, quase todos
silenciam.
A ordem da prociss ão apresenta-se, ent ão, mais claramente: à frente um
jovem empunha uma cruz todo vestido de branco, seguido de dois outros jovens;
atrás destes algumas crianças vestidas de anjos seguem; a seguir, determinadas
pessoas sustentam as bandeiras do Brasil, de Sergipe, seguidas de outras tr
ês
bandeiras. Após, provêm alguns estandartes com imagens da Virgem do Rosário e
em suas laterais os homens da Chegança; a este quadro segue a figura do padre
(promovendo orações, tal qual a Ave Maria) e dos Cacumbis. Em seguida, vem a
imagem dos santos: São Gonçalo Garcia, São Benedito e Nossa Senhora do
Rosário. Os devotos de São Gonçalo de Amarante acompanham a Nossa Senhora,
porém já não tão contíguos e concentrados em torno da Virgem, mas próximos a
todo o conjunto de pessoas que “guardam” o cortejo (turistas, pesquisadores,
comunidade local, etc.). Finalmente, a banda passa seguida das senhoras do
Samba de Pareia e alguns brinquedos e bonecos (en)cantados. A procissão
prossegue pela Rua João Ribeiro (ou Rua do Cangaleixo), transp õe a Rua Josino
Menezes (antiga Praça da Conceição) onde fica localizada a Igreja de Nossa
Senhora da Conceição (também conhecida como Igreja do Galo) e segue pela Rua
Francisco Bragança, por onde retorna à Rua Direita e à Igreja de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito: aí, os sinos tornam a tocar para legitimar a entrada dos
santos na igreja e a cerimônia tem seu “fim”.
Agora são 17h40min. Leoziro dos Santos e José Neilton dos Santos – Nenel
– (figuras adultos de S ão Gonçalo) me convidam enquanto os sinos continuam a
tocar para irmos ao bar bebermos uma cerveja, aceito o convite, apesar de não
beber alcoólicos e de temer perder alguma manifestação relevante da cerimônia;
em seguida, seguimos para residência de Dona Adelaide Ribeiro Vieira para
promover uma visita com dança, o relógio aponta 17h54min. A visita, nestas
circunstâncias, consiste em uma homenagem que se eleva ao plano dos afetos: só
é realizada para pessoas especiais e representativas ao grupo; no caso de
Adelaide, a visita é uma saudação especial ao Mestre Oscar Ribeiro (um dos
maiores folcloristas de Laranjeiras, piloto da Chegança Almirante Tamandaré, seu
falecido e saudoso pai) que se estrutura como tradição. A propósito, Adelaide
(Depoimento: 2010) nos esclarece:
O São Gonçalo dança na minha casa por sermos filhas do
Mestre Oscar e por uma trad ição que já vem acontecendo há
muitos e muitos anos, não só o São Gonçalo, mas todos os
grupos como: Chegança, Taieiras, Cacumbi, Reisados, etc.
Nas outras residências são afinidades de amizade, mas aqui
na minha casa é uma tradição desde os tempos do meu
saudoso pai.

Em a casa de Adelaide, os dançantes entoam três jornadas e apesar da casa


estar cheia de gente, eles desenham o espaço com suas coreografias cheias de
sinuosidade, volúpia e fé; primeiro realizam uma pequena introduç ão sem cantos
apenas com os instrumentos tocando, depois dançam “Nas Horas de Deus Amém ”,
“Suzanê” e a “Chula”, após esta ultima jornada os homens se abaixam e ao
finalizar a música Mestre Sales (o patrão) reclama algumas vivas:
Viva a Deus do Céu!
E o coro responde: Viva!
Viva a São Gonçalo de Amarante – Viva!
Viva aos Tocadores – Viva!
Viva a Secretária de Cultura – Viva!
Infelizmente, a “Viva” à Secretária de Cultura como forma de saudar e
estreitar laços com uma convidada ilustre, representante da política cultural do
estado, que ali está, torna-se vã. À noite, ao percorrer as ruas da cidade de
Laranjeiras, os mestres dançantes não conseguem jantar com tranqüilidade, devido
à precariedade da refeição oferecida pela Prefeitura e não conseguem efetivar as
obrigações relacionadas às atividades do Encontro Cultural de Laranjeiras marcadas
para o horário em que a noite caí. Sem espaço para encenar e dramatizar suas
manifestações, devido a deslocamentos arbitrários realizados pela Secretária de
Cultura de Laranjeiras que fornece o lugar das representações populares para o
“show” do Padre Antonio Maria, os grupos populares vão se deslocando pelas ruas
da cidade sem obter informações sobre as representações que realizariam em
aquele tempo.
Após, algumas horas de pé, que simbolizam nada mais nada menos do que
a falta de respeito e o descaso da Prefeitura da Cidade de Laranjeiras a todos os
pesquisadores congregados no evento, mas, mormente, aos mestres populares
(que são apenas valorizados na “capital do popular” em estruturas de simulacr o)
optamos por nos retirar daquele recinto, todos os pesquisadores se
comprometeram em enviar cartas e artigos a congressos, jornais e revistas
reclamando itens de valorização aos mestres populares no evento que n ão sejam
apenas seus nomes em programas que nem sequer se cumprem. Por fim,
seguimos com Dona Nadir (cantadora do Grupo de São Gonçalo) para a rodoviária
da cidade fizemos uma boa batucada como protesto e criamos nosso espaço de
queixas, ativismo e promoção da arte popular. Ao término de nossos jogos em
roda e de nossas exclamações sobre o absurdo descaso, ovacionamos o ônibus que
levaria os sangonçalistas e demais grupos para Mussuca gritando inúmeras vezes o
nome do povoado, batendo palmas e dando vivas à Cultura Popular!

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS
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Niterói: EdUFF, 2003.

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MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

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Aracaju/SE, 2005.

ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira & Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense,
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CASTELO INTERIOR: EDUCAÇÃO MÍSTICA PARA O ENCONTRO COM DEUS

Admilson Eustáquio Prates


Doutorando em Ciências da Religião PUC/SP
Mestre em Ciências da Religião PUC/SP
Professor na Universidade Estadual de Montes Claros / UNIMONTES
E-mail: adeprates@yahoo.com.br

Introdução
O presente trabalho procura apresentar a obra Castelo Interior, de Santa
Teresa d'Ávila, escrito no século XVI, com o objetivo de apresentar as etapas que a
alma trilha em direção a Deus1. É um livro que apresenta a metáfora do castelo
dividido em sete moradas, e cada uma delas retrata um estágio no qual a alma
percorrerá para chegar até Deus. Além disso, a obra mescla planos autobiográficos e
doutrinais. Este livro transmite também a doutrina espiritual da reformuladora da
Ordem do Carmelo e, ao mesmo tempo, reflete sua experiência pessoal. As sete
moradas da vida interior em que se divide a obra representam as etapas da santidade
que o ser humano tem de alcançar até chegar à perfeição, segundo Teresa d'Ávila.
A metodologia do trabalho centra atenção na pesquisa bibliográfica que
aproxima a questão da religiosidade, da mística com a questão da cultura e da
educação. Por fim, o resultado da pesquisa mostrou a presença imaginária dos quatro
elementos naturais na escrita da obra Castelo Interior, que são categorias primordiais
para a educação mística do Cristão Católico.

Santa Teresa d'Ávila


O texto pauta em um tema clássico do Cristianismo Medieval espanhol do
século XVI o qual pretende estudar a mística de Teresa d'Ávila, religiosa e escritora
espanhola que nasceu em Gotarrendura, em 28 de março de 1515, e faleceu em Alba
de Tormes, em 4 de outubro de 1582. Ela é reconhecida pela reforma que realizou na
Ordem das Carmelitas e pelas suas obras místicas, sendo ela uma grande expoente da
mística medieval com as suas obras. Foi proclamada Doutora da Igreja pelo Papa
Paulo VI. Além disso, percorreu quase toda a Espanha fundando conventos.

A obra Castelo Interior


Estudiosos entendem que a obra Castelo interior centra seu ensinamento na
fase madura de Teresa d’Ávila. Esta obra é o coroamento das obras: Vida e Caminho.
O texto, é tecido no Livro da vida, retrata a autobiografia de uma mulher que conta,

1
Entende-se Deus a partir da concepção Cristão-Católica do século XVI, sobretudo em uma atmosfera
espanhola.

1
entre outros feitos, a experiência de seu contato direto com Deus, numa prosa que
mistura conversa de freira, romance de cavalaria e teologia mística; na obra Caminhos
da perfeição, ela deixa um roteiro para a santidade, aponta o caminho da perfeição
com muita acuidade psicológica, baseando-se na introspecção, na experiência pessoal
e na exemplaridade de outras pessoas.
A autora apresenta o texto Castelo interior com metáfora do castelo dividido
em várias moradas para descrever os sucessivos estágios que a alma percorre no seu
caminho em direção a Deus.
O livro pode ser compreendido da seguinte maneira: a primeira morada centra-
se na conversão, é o momento de entrada no castelo, ou seja, da busca de conhecer a
si mesmo. A segunda morada simboliza a luta - a tensão entre o pecado e a graça2.
Na terceira morada, o ser humano presencia a prova do amor. Assim explica Patrício
Sciadini: “Terceira morada: a prova do amor. Estabelecimento de um programa de
vida espiritual e de oração; manter-se nele; surgimento do zelo apostólico; mas
sobrevêm a aridez e a impotência como estados de prova. ‘prova-nos, Senhor, que
sabes as verdades’ ”. (Sciadini, 2009, p. 437)
Na quarta morada, a autora apresenta o simbolismo da água associada à
imagem da fonte. Uma fonte interior que representa, para alguns autores, o amor
místico-passivo.
Na quinta morada, a alegoria presente é o bicho-da-seda, “... a alma renasce
em Cristo; estado de união por conformidade de vontades, manifesta especialmente
no amor ao próximo” (Sciadini, 2009, p. 437)
O crisol do amor está presente na sexta morada. Por fim, na sétima morada,
acontece o casamento místico.

Alma trilha em direção a Deus: primeiros passos


Padre Gracián insiste com Teresa d’Ávila que escreva uma obra. Ela, por sua
vez, reluta afirmando que não tem saúde e que trocaria umas palavras pelas outras.
Todavia, ele consegue convencê-la da tarefa, alegando que pessoas curam mais
facilmente com estórias, experiência que com medicina.
Nosso estudo centrará atenção na primeira morada que apresentará ao leitor
os primeiros passos da jornada espiritual daquele que se propõem encontrar Deus. O
texto é rico de símbolos, uma vez que Teresa d’Ávila é mestra no uso dos símbolos, e
há também na obra um dialogo com os textos bíblicos.
Ela, a autora, no primeiro parágrafo do Castelo interior, constrói a imagem
associativa da alma ao castelo como pode ser lido: “Falo de considerar a nossa alma

2
Entende-se por graça Deus.

2
como um castelo todo de diamante ou cristal muito claro onde há muitos aposentos,
tal como no céu há muitas moradas” (Ávila, 2009, p. 441). Neste pequeno trecho,
além de associar a alma ao castelo, ela dialoga com o seguinte texto bíblico: “Na casa
de meu Pai há muitas moradas. Se não fosse assim, eu vos teria dito; pois vou
preparar-vos um lugar.” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, Jô 14, 2, 1879).
O castelo é a alma humana com sua inteligência e formosura (Ávila, 2009)
sendo imagem e semelhança de Deus, como se pode encontrar na Sagrada Escritura
(Bíblia), coletânea de escritos revelados aos homens conforme a cosmovisão cristão:

Então Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem e


semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves
dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e
sobre todos os répteis que se arrastem sobre a terra. Deus criou
o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o
homem e a mulher. (BÍBLIA SAGRADA, Gn 1, 26-27, 33)

O ser humano possui inteligência, e ela não é capaz de compreender Deus.


Mesmo assim, a busca pela compreensão é incansável, pois, se simplesmente começar
a lembrar que Deus fez o ser humano a sua imagem e semelhança, será possível
vislumbrar a dignidade e a beleza da alma.
Este esforço de conhecer a alma esbarra-se, segundo Teresa d’Ávila, no
problema de “nós mesmos nem saibamos quem somos” (Ávila, 2009, p. 442). Se
pessoa não sabe quem é, o que é ou como conhecer Deus? O problema não se resolve
inicialmente porque o ser humano centra atenção sobre sua identidade no corpo, e
Teresa d’Ávila considera isso uma insensatez. Para ela, a compreensão está na alma,
o entendimento está na alma. Logo, a dificuldade de entrar na alma, ou no castelo,
está na presença do corpo, que se torna uma muralha.
Teresa d’Ávila insiste que o ser humano deve entrar no castelo para conhecer a
formosura, o quão é agradável estar no castelo. Quando sugere a entrada no castelo,
ela reconsidera a ação de entrar, pois, sendo a alma o castelo, não é possível entrar
onde já se encontra.

Pode parecer que digo algum disparate, porque, se esse castelo é


a alma, claro está que não se trata de entrar, pois, se é ele
mesmo, pareceria desatino dizer a alguém que entrasse num
aposento estando já dentro dele. Mas deveis saber que há grande
diferença entre os modos de estar, existem muitas almas que
ficam à volta do castelo, onde estão os que o guardam, e que
não têm interesse em entrar, não sabendo o que há nesse
precioso lugar, nem quem está dentro, nem seguer que
aposentos possui. (Ávila, 2009, p. 443).

3
Não que a alma esteja fora da alma ou em outro lugar, ela simplesmente está
perdida nela mesma. Não tem força e age como um paralítico ou um tolhido quando
não existe oração. Pois a alma faz um mergulho em si mesma via oração. Consoante
Teresa d’Ávila, “... as almas que não têm oração são como um corpo paralítico ou
tolhido, que, embora tenha pés e mãos, não os pode mover. (...) Há almas tão
enfermas e tão habituadas às coisas exteriores que não há remédio nem parecem
poder entrar em si mesmas.” (Ávila, 2009, p. 443-444).
Aquele mergulho, ou seja, o encontro da alma com a alma segundo Teresa
d’Ávila, só acontece mediante a oração. Assim escreve: “Pelo que posso entender, a
porta para entrar nesse castelo é a oração e reflexão. Não digo oração mental mais do
que vocal; para haver oração, é necessário a reflexão.” (Ávila, 2009, p. 444).

A mística
O encontro da alma com Deus pela oração podemos chamar de mística. Isto é,
o conhecimento de nós mesmos somente acontecerá, de acordo com Teresa d’Ávila,
quando se conhece Deus. Em um movimento de grandeza e de pequenez, de pureza e
de impureza, de humildade e de arrogância. Quando a pessoa conhece Deus,
imediatamente se depara com Sua grandiosidade, Sua pureza e Sua humildade, e,
como ser humano, descobre o quão é pequeno, sujo.
Esse movimento é uma infusão mística. A palavra mística nos estimula a
pensar em mistérios, magias, encantos. A aproximação, portanto, está correta como
podemos encontrar no dicionário3 de Filosofia, que afirma que a mística estar ligada
ao movimento de atingir o sagrado. O dicionário4 de língua portuguesa apresenta o
significado de mística como estudo associado as coisas sobrenaturais e à vida
contemplativa. Na mesma linha conceitual, Brugger (1969), em seu dicionário5 de
Filosofia, afirma que a mística é toda união interior com Deus.
Além disso, entendemos mística por totalidade o que nos remete a Plotino (Cf.
BAL, 2007), o qual afirmava que a experiência mística não conhece o abismo entre ele
(o indivíduo) e a respiração cósmica. Tudo é uno. Recordando o místico cristão,
Ângelus Silesius, em seus mergulhos no oceano infinito de onde tudo provém, diz: “A

3
Etim: grego mystikos, quer dizer respeito aos mistérios. A) Conjunto de processos ou movimentos
espirituais pelos quais pensa atingir diretamente o divino. B) Parte da teologia que estuda os fenômenos
místicos, isto é, os que pretendem atingir, pela apreensão não racional, uma ordem de realidade superior. (
RUSS, 1994, 186)
4
“Mística: s.f 1. Estudo das coisas divinas e espirituais. 2 Vida religiosa e contemplativa; misticismo.”
(LAROUSSE, 1992: 752).
5
(“fechar os olhos”), designa etimologicamente uma vivência profundamente interior, misteriosa,
principalmente no domínio religioso. Em acepção muito ampla, entende-se por mística toda espécie de união
interior com Deus; em sentido restrito, só a união extraordinária com Deus. (BRUGGER, 1969: 274)

4
pequena gota se transforma em mar quando chega até ele; e assim a alma se
transforma em Deus, quando é nele acolhido.” (apud GAARDER, 1995:154).
A infusão mística é necessária, pois o ser humano, como orienta Teresa d’Ávila,
deve primeiro entrar em si mesmo, “entrar no aposento próprio” (Ávila, 2009, p. 448)
para, somente depois, percorrer outros caminhos e aposentos. Ela afirma tanto que é
necessário conhecer a si mesmo que escreve: “... a questão de nos conhecer é tão
importante que eu gostaria que não houvesse nisso nenhuma negligência...” (Ávila,
2009, p. 448). Podemos entender que a mística e a educação espiritual tem uma
relação estreita na obra Castelo interior, em que os quatro elementos naturais que
estimulam a mente humana para a dimensão do sagrado.

Os quatro elementos naturais


Os quatro elementos naturais acompanham o imaginário humano desde os
primórdios, mas podemos citar mais recentemente os gregos e os medievais. Os
gregos tanto na mitologia exploravam em suas narrativas a presença dos quatro
elementos naturais quanto nos primeiros filósofos – os pré-socráticos ou filósofos das
physis – encontraram nos quatros elementos o princípio do cosmo. Na Idade Média, é
forte a presença dos quatro elementos. Por exemplo, no poema de São Francisco de
Assis, Cânticos das Criaturas, ele se dirige à natureza com as expressões: irmão
vento, irmã água, irmão fogo.
Nos textos que compõem a Bíblia Cristã, existem vários momentos em que há
presença dos quatro elementos naturais. Por exemplo, no livro Gênesis sobre a criação
do mundo e tudo o que nele existe, estão presentes os quatro elementos naturais.
Além disso, existe a presença do fogo para castigar. No livro Êxodo, há o elemento
fogo como símbolo da presença e atuação do Senhor6. No texto de Matheus e de
Coríntios, existe a presença do fogo como símbolo do juízo final e, no livro de Atos,
como meio de purificação. O elemento terra está ligado à relação íntima entre as
pessoas e a terra como pode ser encontrado nos livros de Gênesis e de Isaías. E a
água está relacionada aos símbolos dos bens divinos no evangelho de João.
A mística de Teresa d'Ávila é uma mística psicológica e trabalha, em seu escrito
Castelo Interior, metáforas que possibilitam vislumbrar a presença dos quatro
elementos naturais. Isto é, ora a escrita é mais quente, ora é mais suave, leve, ou
seja, existe a presença do fogo e do ar. Por outro lado, a própria metáfora do Castelo
remonta a ideia de terra. Ela, a terra, é de onde tudo surge. É nela que encontramos
os outros três elementos naturais: água, ar e fogo.

6
Mesmo que Deus na concepção Cristã.

5
É possível encontrar traços dos quatro elementos naturais na obra Castelo
Interior, como pode ser lido no trecho: “... a nossa alma como um castelo todo de
diamante ou cristal muito claro onde há muitos aposentos, tal como no céu há muitas
moradas” (Ávila, 2009, p. 441). Os termos castelo, diamante e cristal podemos
associar ao imaginário da terra, e o termo claro, ao imaginário da água e do fogo. Pois
o termo claro consegue trazer em seu bojo a ambiguidade dos quatro elementos
naturais; enquanto associado ao elemento água, provoca a memória dos riachos e das
águas claras, e, quando nos fazer lembrar o fogo, está ligado a fenômeno de olhar, já
que só é possível ver quando há luz, e a luz é quente, é fogo.

Castelo interior: dimensão pedagogia espiritual


Na primeira morada, visualiza-se o ato de entrar no castelo. É o movimento de
conversão, onde será recuperado no ser humano a sensibilidade espiritual a partir de
uma pedagogia do conheça a si mesmo e que tem como estratégia educacional a
oração. Escreve Teresa d’Ávila sobre a primeira morada:

Por isso digo, filhas: ponhamos os olhos em Cristo, nosso bem, e


com Ele, bem como com seus santos, aprenderemos a verdadeira
humildade. Isso nos enobrecerá o intelecto, como eu disse, e
evitará que o nosso conhecimento próprio se torne rasteiro e
covarde. Porque, embora esta seja apenas a primeira morada, é
extremamente rica e de grande valor. Se escaparmos dos
parasitas que nela existem, conseguiremos avançar. Terríveis são
os ardis e manhas do demônio para que as almas não se
conheçam a si mesmas nem entendam o caminho a seguir.
(Ávila, 2009, p. 449).

Dessa maneira, a primeira morada instrui o ser humano, ou seja, orienta-o na


busca pela luz, e Teresa d’Ávila adverte que é preciso afastar-se das feras e alimárias
para que os olhos possam ver beleza e recuperar a sensibilidade para contemplar a
luz.

Bibliografia
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9
CONGREGAÇÃO DS FILHAS DO AMOR DIVINO: BREVE ABORDAGEM DA
EDUCAÇÃO CATÓLICA ATRAVÉS
DO CENTRO EDUCACIONAL CRISTO REDENTOR (1944-2010)

Ana Cristina de Lima Moreira1


Resumo

O Centro Educacional Cristo Redentor, localizado em Palmeira dos Índios, no estado de


Alagoas, é fruto da educação católica, implantada, no Brasil, pelos Jesuítas, desde o
século XVI, a qual foi posteriormente expandida por outras instituições religiosas, a
exemplo da Congregação das Filhas do Amor Divino, fundada em Viena, na Áustria, no
século XIX, e atualmente atua em dezesseis países. As Filhas do Amor Divino chegaram
ao Brasil em 1920 e na região sul na década de 40, se instalaram em Palmeira dos
Índios. Objetiva-se apresentar o contexto histórico, social, religioso e educacional
vivenciado pela referida Congregação através do colégio acima citado ao longo de 68
anos de existência, enfatizando sua influência na educação católica para sociedade, por
meio da formação ministrada e, através dela, da difusão dos ensinamentos e valores
cristãos. Na metodologia utilizar-se-á entrevistas, análise textuais e de documentos
pertencentes ao acervo da Congregação, da Província Nossa Senhora das Neves – sede
em Natal (RN) – e do colégio objeto de estudo, bem como autores que enfatizam essa
temática.

Palavras-chave: Igreja; Educação; Escola católica; Sociedade.

1
Graduada em Pedagogia e Estudos Sociais- CESMAC e UNEAL

Coordenadora do Centro Educacional Cristo Redentor- Congregação das Filhas do Amor Divino

Mestranda em Ciências da Religião-UNICAP

1
CONGREGAÇÃO DS FILHAS DO AMOR DIVINO: BREVE ABORDAGEM DA
EDUCAÇÃO CATÓLICA ATRAVÉS
DO CENTRO EDUCACIONAL CRISTO REDENTOR (1944-2010)

1. Educação católica: processo histórico.

A educação católica começou a fazer parte de um dos pilares da formação da


sociedade brasileira desde o século XVI, quando do início do povoamento do Brasil então
marcado pela presença dos índios que constituíam uma civilização diferenciada da
europeia, na forma de vestir, nos hábitos alimentares, bem como no conjunto de
manifestações religiosas e em uma variedade de dialetos.
Naquele contexto, o europeu chegou ao Brasil com o intuito de adquirir terras do
novo mundo e auferir riquezas; atrelado a esses interesses estava o desejo de contribuir
com a expansão do cristianismo. Para cumprir essa meta, foi necessário trazer da Europa
os Jesuítas e outros grupos de religiosos e religiosos, incumbidos de catequizar os índios,
tarefa que, para ser cumprida, requereu a utilização de algumas estratégias, visto que
deveriam ser enfrentados vários problemas, dentre os quais a multiplicidade de línguas
faladas pelos índios. A esse respeito o Pe. Laércio Dias de Moura, SJ, esclarece:

Embora a missão dos jesuítas fosse principalmente a catequese


dos habitantes das novas terras, a obra que realizaram foi muito
extensa, assentando as bases de uma nova nação, sobretudo por
meio da atividade educativa . 2

Com a chegada dos europeus ao Brasil, a Igreja Católica e a educação


apresentaram-se como referenciais à estruturação da sociedade brasileira. Como
exemplo, apresenta-se, no período de oficialização da nova terra (Brasil), a união entre a
Igreja e o Estado que também contribuiu para que a coroa portuguesa detivesse um
controle que foi outorgado à Igreja através do regime de padroado; assim, afirma-se que
3
descoberta do Brasil se fez sob o signo da espada e da cruz.

2
MOURA, Laércio Dias de. A educação católica no Brasil: presente, passado e futuro. São Paulo:
Loyola, 2000.p.23.

3
Ibidem p.19

2
O trabalho missionário foi posto em prática, tendo como ponto de partida o
processo educacional, implantação de escolas e construção de igrejas que começaram a
fazer parte do espaço que estava sendo ocupado e transformado.
Ao ato de ensinar incluía-se a preparação para a vida como cristão. Em tal
perspectiva, o público alvo eram as crianças indígenas. Para essa clientela fundaram as
missões e, simultaneamente, foi implementada a educação para a elite colonial, o que
perdurou até o Império, período marcado pela ruptura do sistema colonial a partir das
medidas tomadas por D. João, que também incluíam a estrutura geral do ensino.
Enquanto o Brasil passava por todos esses períodos de transições, a fundadora da
Congregação das Filhas do Amor Divino, Madre Francisca Lechner, intensificava seu
grande desafio, que era a fundação de casas para abrigar órfãs e desempregadas e
escolas. Em 1884 o Papa Leão XIII aprovou a Regra da Congregação e a partir daquela
data, as religiosas puderam fazer votos perpétuos. Naquele tempo, a Madre Francisca já
externava sua preocupação com as escolas e, consequentemente, com suas professoras
e todas freiras; para tanto, elaborou um plano educativo que continha 17 itens, nos quais
destacava a importância do exemplo de vida de cada uma, principalmente para as
crianças.
Os ensinamentos de Madre Francisca ultrapassaram a barreira do tempo,
perpetuando-se até os dias atuais, onde naquela época a Madre deixava explícito o
processo de inclusão quando falava as suas orientandas que “Deus não deu dotes iguais
a todos;” em virtude disso, lembrava que as professoras passassem a ter cuidado
principalmente com os que fossem fracos de intelecto, bem como cautela com os
elogios pois esses também podem ajudar ou prejudicar, a depender da intensidade e
veracidade, bem como a importância da formação que a criança iria receber na escola.
No entanto, nas preocupações hodiernas, a ênfase recai sobre o processo de
inclusão que tem a sociedade como ponto de referência, pois ela é a responsável pela
formação e construção do homem. Nesse contexto Berger ressalta:
A sociedade é constituída e mantida por seres humanos em ação.
Não possui ser algum, realidade alguma, independente de tal
atividade. Seus padrões, sempre relativos no tempo e no espaço,
não são dados da natureza e de nenhum modo específico podem
4
ser deduzidos da “natureza do homem”.

4
BERGER, Peter Ludwig. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São
Paulo: Paulus, 1985. p.20

3
O tripé sociedade, educação e religião é visto como os pilares que sustenta a
estrutura social, em todo o momento a religião apresenta-se com poder de direcionar
ou mesmo ditar normas, porém é a sociedade que acata e põe em prática, atitude capaz
de mudar ou redirecionar os rumos da história.

1.1 Implantação da Congregação das Filhas do Amor Divino no Brasil

A implantação no Brasil apesar de ter ocorrido em 1920, há documentos que


comprovam que a missão de vir para o Brasil é anterior à Carta de recomendação do Sr.
Bispo de Cracóvia que foi emitida em no dia 16 de agosto de 1913. Alguns padres do Rio
Grande do Sul tiveram uma grande participação foram os responsáveis em fazer os
contatos com Dom Hermeto José Pinheiro bispo de Uruguaiana e foram imprescindíveis
nesse processo. Mas nem tudo dependia da vontade dos padres, de Irmã Teresina
Werner ou mesmo de Madre Ludovica uma das conselheiras que também contribuiu.
Porém, restava apenas a autorização da Madre Geral, que não era a favor dessa
migração alegando não haver irmãs suficientes para a missão e, portanto, havia a
necessidade de uma estrutura adequada para recebê-las, além do idioma (língua
portuguesa) que as mesmas não dominavam.

Segundo OLIVEIRA, no dia 29 de abril de 19205, Irmã Teresina e suas


companheiras partiram para o Brasil, estabelecendo-se na região conhecida como
“Reduções”, tendo Nossa Senhora Conquistadora como padroeira da Diocese de
Uruguaiana trazida pelos antigos missionários e as irmãs do Amor Divino trouxeram a
conquista de Nossa Senhora do Rosário. Torna-se necessário deixar claro que a respeito
da vinda das irmãs para o Brasil, não há nenhuma referência a Portugal e Espanha países
responsáveis pelas grandes navegações e expansão do credo cristianismo,
principalmente no trabalho de catequese a partir do século XVI.

Esses fatos contribuiriam para que as Filhas do Amor Divino viessem para o Brasil
na certeza de que a Educação predominante no Brasil era a Católica, trazida pelos
jesuítas que perdurou durante 230 anos. As irmãs Teresina Werner, Irmã Constantina e

5
OLIVEIRA, Vilma Lúcia de. A obra de Ir. Teresina Werner para instaurar a Congregação das
Filhas do Amor Divino no Brasil: análise crítico-histórica. Pontifícia Universidade Gregoriana.
Faculdade de História Eclesiástica. Roma, 1999.

4
duas postulantes desembarcaram em São Paulo e seguiram em direção a Hamburgo-RS,
local que mantiveram contato com o Padre Schimmöller pároco desse lugar e um dos
responsáveis em solicitar atuação das Filhas do Amor Divino que na ocasião tinham
destino para Serro Azul (Cerro Largo) onde ficaram hospedadas no colégio Santa
Catarina.

1.9 Os reflexos do processo migratório no contexto sócio, histórico, econômico e


educacional brasileiro.

Para se entender melhor apresenta-se o significado de migração, que segundo o


parecer geográfico é o deslocamento de pessoas podendo ser externo ou interno. Então o
deslocamento de um país para o outro pode receber a definição de imigração. Assim o
Brasil foi por muito tempo uma referência nesse processo responsável por mudanças na
sociedade, reestruturação das cidades, organização para o processo de ocupação, a
aprendizagem de outro idioma, visto que, alguns grupos a exemplo os imigrantes do sul
do Brasil de certa forma mantinham sua identidade, através de seus costumes, danças,
músicas, alimentação, idioma, credo religioso dentre outros dando a conotação de
pequenas amostras de países europeus em território brasileiro.

As Filhas do Amor Divino foram protagonistas desse fragmento da História da


educação católica no Brasil, conforme já fora citado. As irmãs de origem europeia vieram
no intuito de fundar Missões e estas atenderia uma necessidade da sociedade que
estavam inseridas. A princípio expandiram o trabalho apenas na Europa, mas
precisamente na região do Império Austro Húngaro, mas, com início da I Guerra Mundial
inicia-se então a luta incansável de Irmã Teresina Werner para fundar outras Casas
estando como prioridade Inglaterra no Continente Europeu, no Continente Americano os
Estados Unidos e o Brasil. Apesar do trabalho árduo e incansável de Madre Francisca a
época vivida por ela enfrentava outras situações também difíceis no processo de
implantação das casas, mas a ajuda do Império era certa, pois como parceiro da Igreja e
tinha um papel fundamental nessa questão.

Nesse contexto destaca-se o momento histórico o qual o Brasil estava vivendo,


desde 1918 quando a partir da visita do então Presidente da República Campos Sales ao
Papa Leão XIII, surge uma áurea de bons fluídos para o país nessa temática.Ainda em
1922, dois anos após chegada das Filhas do Amor Divino segundo AZZI inicia-se um
novo período entre a Igreja e o Estado. A esse respeito cita-se:

[...] é um clima de maior diálogo e aproximação entre os dois


poderes, sem que isso signifique de forma alguma a abdicação da
5
respectiva autonomia na gestão de seus negócios
específicos.Houve um esforço para superar eventuais tensões
entre ambas as partes, sendo feita na medida do possível
concessões recíprocas.6

No entanto a chegada das irmãs ao Brasil pode-se dizer em metáfora que foi
tortuosa. Sabe-se que era o sonho de Irmã Teresina Werner trazer a Congregação, mas
os obstáculos foram inúmeros desde a aceitação da Madre a chegada ao país. Após a
estadia no Rio Grande do Sul, e alguns entraves enfrentados a irmãs se deslocaram para
o Nordeste do Brasil onde fundaram várias casas destinadas a educação. Na sede do
Nordeste a Província do Norte, instalaram suas escolas em várias localidades como:
Caicó, Assu, Areia Branca, Patos na Paraíba, Natal (atual sede), Taguatinga em Brasília e
Palmeira dos Índios em Alagoas o Centro Educacional Cristo Redentor objeto de estudo
dessa pesquisa.

1.3 Centro Educacional Cristo Redentor

O Centro Educacional Cristo Redentor, localizado à Avenida Deputado Medeiros


Neto, 51, no Bairro São Cristóvão, há 68 anos foi implantado em Palmeira dos Índios -
AL. Pertence à Congregação das Filhas do Amor Divino, fundada em 21 de novembro de
1868, na Áustria, por Madre Francisca Lechner e está presente em 16 países, a exemplo
do Brasil, Estados Unidos, Áustria, Romênia, Itália, Polônia, Bósnia, República Tcheca,
Hungria e Angola, entre outros.
Em 1944, o então pároco de Palmeira dos Índios, Monsenhor Francisco de Macedo
estava com a incumbência de instalar na cidade uma Escola Normal para moças, visto
que havia o Colégio Pio XII, exclusivo para rapazes, cuja administração ficava sob a
responsabilidade do referido Monsenhor e demais padres residentes em Palmeira. O
Monsenhor Macedo já conhecia o trabalho das religiosas Filhas do Amor Divino que, na
mesma década, tinham fundado o Colégio Cristo Rei, em Patos, na Paraíba. No aspecto
religioso a cidade de Palmeira dos Índios pertencia à Diocese de Penedo e, em virtude
dessa dependência, a solicitação para a implantação da escola foi feita ao então Bispo
daquela circunscrição eclesiástica, Dom Fernando Gomes, que acatou o pedido. Na
verdade a sociedade não queria apenas uma escola para as jovens, o que realmente era
estava em pauta era que a referida escola fosse católica.Para legitimar esse fato destaca-
se Berger:

6
AZZI, Riolando. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo. Tomo
II/3-2 – Terceira época – 1930-1964. Petrópolis: Vozes, 2008 p.219.

6
Pode-se dizer, portanto, que a religião desempenhou uma ponte
estratégica no empreendimento humano da construção do
mundo.A religião representa o ponto máximo da auto
exteriorização do homem pela infusão, dos seus próprios sentidos
sobre a realidade.7

Portanto, tal contexto justificava a necessidade da implantação de uma escola


para moças junto à Madre Provincial da época, a Irmã Cristina Wlastinik. Assim, em meio
a um período conturbado em todo o mundo que enfrentava a Segunda Guerra Mundial, a
cidade de Palmeira dos Índios recebeu, em 20 de fevereiro de 1944, a visita da Madre,
acompanhada por outras religiosas, e no dia 27 de fevereiro de 1944, na presença de
várias pessoas, dentre as quais se cita Monsenhor Xavier de Macedo, o Padre Luis Cirilo
(capelão da comunidade) e o professor Pedro Teixeira, responsável pela saudação às
irmãs, foi oficializado que as irmãs dariam inicio aos serviços educacionais daquela
escola.8
A partir da oficialização muitas pessoas se empenharam, dividindo-se em
comissões para a organização do prédio da diocese onde iria funcionar o Educandário
Cristo Redentor, também chamado de Escola Normal, que teve como um dos
colaboradores o então prefeito da cidade, José Pinto de Barros. Em 1º de março do
mesmo ano iniciaram-se as aulas dos cursos Primário e Normal. O período finalizava a
Guerra e toda sociedade precisava se preparar para uma nova situação, assim também a
sociedade católica se reúne e funda a Associação das Escolas Católicas no Brasil.
A AEC é criada no (Rio de Janeiro, 1945) para reunir pessoas, em
defesa da escola católica e aumentar a força das instituições
escolares em vista da promoção da educação, à luz dos valores
evangélicos que caracterizam um tipo de sociedade e um tipo de
homem.9

7
BERGER, Peter Ludwig. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião.
São Paulo: Paulus, 1985. p.41

8
WLASTINIK, Cristina. Livro de Tombo do Educandário Cristo Redentor. Palmeira dos Índios,
1944 a abril de 1995. (Manuscrito
9
LIMA, Severina Alves (Coord.). Caminhos novos na educação. São Paulo: FTD, 1995.p.48.
7
Em 1946, vivia-se o pós-guerra, período marcado pela Guerra Fria, quando a
educação passou a ser considerada um direito de todos, inspirada nos princípios da
liberdade e nos ideais de solidariedade humana, bem como era posta como livre à
iniciativa privada. As famílias das classes média e alta assumiram a responsabilidade pela
educação de seus filhos, conduzindo-os para as melhores escolas, dentre as quais se
incluíam as escolas católicas, uma vez que nos anos 1930 a Igreja Católica, que tentara
assumir o controle da educação pública do país, limitou-se a administrar apenas as suas
escolas. Não foi diferente em Palmeira dos Índios, onde as famílias de classe média e alta
contribuíram para a implantação do Educandário Cristo Redentor, com o propósito de que
suas filhas tivessem uma educação de qualidade.
Em fevereiro de 1948, aconteceram os exames para o curso Ginasial, tendo
prestado exame 25 alunas para a primeira turma. Na mesma ocasião a Madre Ângela foi
a Maceió, acompanhada da secretária, Irmã Júlia, para tratar da equiparação do Curso
Ginasial, tendo sido necessária a sua permanência por mais alguns dias na capital
alagoana para providenciar, de forma urgente, a planta do Educandário que deveria ser
enviada para o Rio de Janeiro e ser oficializado como Ginásio, o que ocorreu através da
Portaria nº. 206, de 12 de abril de 1948, que concedeu o reconhecimento ao Ginásio
Cristo Redentor.10
Na década de 1950 foi criada a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
e Juscelino Kubitscheck, eleito Presidente do país, não se comprometeu com o ensino
básico. Em 17 de maio de 1952, o Ginásio recebeu a visita de uma Comissão de fiscais
que veio inspecionar o estabelecimento de ensino com o propósito de conceder a
inspeção definitiva, segundo ata assinada em 26 de agosto de 1952, por Madre Maria
Imaculada Widder. Em março de 1953, foi inaugurado o Jardim de Infância, sob a
direção de Ir. Antonia, que passou a funcionar em uma casa anexa ao Colégio e
pertencente à paróquia. Em 1955, em 13 de setembro, foi realizada a benção da pedra
fundamental do novo edifício do Ginásio Cristo Redentora, por Dom Frei Felício da Cunha
Vasconcelos, OFM e Monsenhor Francisco Xavier de Macedo. Estavam também presentes
no evento a madre superiora da comunidade religiosa do Amor Divino, com outras
freiras, alunas e autoridades da cidade.
Em 1960, as religiosas que viviam em países comunistas estavam sendo
perseguido, fato que era comunicado às comunidades religiosas instaladas no Brasil. No
mesmo período, a Irmã Superiora solicitou a oficialização do curso Pedagógico, no já
então chamado Ginásio Cristo Redentor. Nesse mesmo período (1961) foi promulgada a

10
Idem

8
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBN 4.024 – que enfatizava as
reivindicações da Igreja Católica.
Os anos 1970 foram marcados por uma série de fatos, dentre eles registra-se
através da Portaria nº 283, de 27 de abril de 1970, da Inspetora da Seccional de Maceió
e da Diretoria do Departamento de Ensino Fundamental que, de acordo com o Parecer do
Setor de Prédios e Aparelhamento Escolar, resolveu conceder o reconhecimento definitivo
do Curso Secundário, 1º ciclo (Curso Ginasial), do Colégio Cristo Redentor, em 02 de
julho do mesmo ano. Em 1971 deu-se a promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases –
LDB 5692/71. Outro fato marcante foi a fundação da Escola Dom Bosco, dentro das
instalações do Colégio Cristo Redentor, para alunos com idade entre 7 e 14 anos, de
classe baixa, cujo objetivo, além de ministrar aulas, era fornecer merenda através do
Ministério da Educação e Cultura (MEC). Naquela década o colégio já estava funcionando
em prédio novo. Em 1973, a escola passou a ser chamada oficialmente de Centro
Educacional Cristo Redentor.11
Na década seguinte (1980), considerada perdida para a Geografia Econômica, já
como Centro Educacional Cristo Redentor, foi feita opção pela intensificação dos
esportes, quando foi iniciada a construção do Ginásio de Esportes graças a campanhas e
ajudas de particulares; destacou-se, também, a abertura da Feira de Ciências que foi o
primeiro passo para incluir ciência, cultura, religião e tecnologia em suas dependências,
através de um projeto interdisciplinar apresentado pelos alunos dos Ensinos Fundamental
e Médio.
Nos anos 1990 foi promulgada outra Lei de Diretrizes e Bases, (LDB 9394/96),
que apresentou um novo referencial para a educação de base, principalmente a
flexibilidade. Foi comemorado o centenário de morte da Madre Francisca Lechner,
fundadora da Congregação.
No espaço de tempo entre 2000 e 2010, o colégio sediou os Jogos da Província,
que contaram com a participação de jovens de várias escolas do Nordeste. Obteve a
melhor nota do Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM), como escola privada da cidade
e com uma das melhores notas do Estado de Alagoas, ficando acima da média do país.
Pode ter contribuído também na formação de vários alunos que tornaram-se padres,
jovens da cidade e da região que tornaram-se freiras.Durante toda sua trajetória, o
Centro Educacional Cristo Redentor vem tentando acompanhar a evolução tecnológica,
não ficando alheio aos fatos sociais e históricos para, assim, cumprir a sua missão que é

11
WLASTINIK, Cristina. Livro de Tombo do Educandário Cristo Redentor. Palmeira dos Índios,
1944 a abril de 1995. (Manuscrito

9
a de promover a humanização através da valorização do conhecimento, formando
cidadãos coerentes com a sua origem divina e seus ideais cristãos.
Pretende-se desenvolver essa pesquisa de cunho social, religioso, histórico e
educacional como uma forma de contribuição para a História da Educação no Brasil após
a vinda dos jesuítas desvinculada de Portugal e Espanha, porém, com os mesmos ideais
de implantar a educação católica em território brasileiro, envolvendo o processo
migratório, a sociedade e a Igreja, tripé responsável pela formação social no território
brasileiro podendo o pluralismo ser evidenciado como palavra chave de todo esse
contexto, os dialetos da civilização indígena, a língua portuguesa e a educação escolar
parceiras para difusão do cristianismo, a riqueza cultural, a variedade de cores
(pigmentação da pele), o credo religioso (cristianismo) como a base em uma sociedade
de politeístas (índios), de religião afro e evangélicos.Para tanto o ponto de partida está
no trabalho realizado pelos religiosos e religiosas que aqui chegavam responsáveis pela
catequização e instrução daquelas pessoas sendo destacado o trabalho da Irmãs da
Congregação das Filhas do Amor Divino.

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10
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WLASTINIK, Cristina. Livro de Tombo do Educandário Cristo Redentor. Palmeira dos


Índios, 1944 a abril de 1995. (Manuscrito)

11
12
ENTRE A CRUZ E A TORAH: AS EXPERIÊNCIAS “INTELECTUAIS” DE BENTO
TEIXEIRA

JUARLYSON JHONES S. DE SOUZA*

Durante a Idade Moderna o Tribunal do Santo Ofício gerou em torno de si uma


vasta documentação que atualmente serve de matéria prima para pesquisas históricas
que enfocam os mais variados temas. Grupos perseguidos pela inquisição, em particular
os cristãos novos como alvo principal, além de práticas avulsas que se inseriam no
convívio da sociedade, – tais como a blasfêmia, a sodomia, a bigamia, a feitiçaria etc. –
tem se tornado objetos de estudo de muitos historiadores que, atualmente, utilizam o
corpus documental produzido pela Inquisição como fontes de informações para se
analisar grupos e práticas existentes nas sociedades que se organizaram nos domínios
ibéricos.

Ainda mais recentemente podemos identificar novos estudos que possuem como
objeto de investigação grupos e práticas ainda não tão abordadas pela historiografia,
como os negros e suas religiosidades que foram também interceptados pela atuação
inquisitorial. O comércio e o contrabando1 além dos agentes que se inseriram nesses
circuitos também têm sido objetos de estudo de pesquisadores que trabalham com a
documentação gerada pela Inquisição. Entretanto, não é apenas nas práticas e grupos
perseguidos pelo Tribunal do Santo Ofício que os estudos inquisitoriais tem se
concentrado. A dimensão institucional da Inquisição tem gerado também trabalhos
historiográficos, apesar de apenas recentemente. Um dos autores que consideramos mais
significativos nesta perspectiva é Bruno Feitler que em sua crítica à historiografia da
Inquisição no Brasil, afirma que os estudos inquisitoriais tem se especializado apenas nos
grupos perseguidos pelo Santo Ofício sem levar em consideração os aspectos estruturais
de funcionamento do Tribunal no Brasil:

*
Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura Regional da Universidade Federal
Rural de Pernambuco (PPGHISCR – UFRPE). Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES).
1
Ver os trabalhos de Janaína Silva (SILVA, Janaína Guimarães da Fonseca. Cristãos novos nos negócios da
Capitania de Pernambuco: relacionamentos, continuidades e rupturas nas redes de comércio entre os anos de
1580 e 1630. Tese de Doutorado, UFPE – CFCH, Recife, 2012) e Daniela Levy (LEVY, Daniela. O estudo do
contrabando através das fontes inquisitoriais. In: Anais Eletrônicos do I Simpósio Internacional de Estudos
Inquisitoriais: História e Historiografia. 2011. Disponível em http://www.ufrb.edu.br/simposioinquisicao/wp-
content/uploads/2012/01/Daniela-Levy.pdf. Acesso em 20/01/2013).
2

Conectando a história da instituição, para não dizer a história


institucional, à história das práticas e do sentimento religioso,
pretendo mostrar que não se pode entender uma sem a outra,
mesmo se aqui privilegiamos o estudo do funcionamento local do
Santo Ofício, por muito tempo esquecido da historiografia, que
privilegiou, nas poucas obras que se interessaram pelo tema, pelos
números de presos e condenações, e pelo funcionamento interno e
especificamente processual dos tribunais. (Feitler, 2007, p. 12-13)

Em geral, os métodos oferecidos pela micro-história têm instrumentalizado os


historiadores da Inquisição a coletarem informações, que tem gerado estudos dos mais
variados sobre o cotidiano colonial e a multiplicidade de práticas que se inserem numa
estrutura muito mais diversificada do que as macroanálises já sugeriram. São estes
“indícios imperceptíveis para a maioria” (Ginzburg, 1990, p. 145) que norteiam as
abordagens dessa nova historiografia da Inquisição no Brasil. Seguindo na prática a
analogia proposta por Carlo Ginzburg de perceber o inquisidor como um antropólogo que
observa e coleta informações sobre determinado grupo humano, as fontes inquisitoriais
tem alimentado essa historiografia com informações sobre práticas e grupos, daí se
observa a multiplicidade de temas que essas fontes comportam estimulando uma
produção histórica cada vez mais profícua.2

Dentro desse contexto historiográfico, temos nos dedicado ao estudo da trajetória


do letrado Bento Teixeira e percebido dados históricos que apontam para experiências
letradas alternativas ao sistema oficial constituído pelos colégios jesuítas que
monopolizavam o ensino e se constituíam como grandes centros de difusão de cultura
letrada:

(...) os colégios jesuítas na Bahia e em Pernambuco se tornavam


núcleos de formação de intelectuais que, por sua vez, passavam
eles também a educar os filhos dos senhores de engenho. Tais
instituições funcionavam como centros culturais, crescendo na
proporção que as vilas se desenvolviam, e disponibilizando suas
bibliotecas para padres, alunos e leigos. Nelas os jesuítas
incentivavam o hábito de leitura, distribuindo livros em festas como
as da abertura do ano letivo no Colégio de Olinda, em 1573 e
1574, celebradas com sessões literárias e representações teatrais.
(Silva, 2010, p. 13)

Entretanto, Thaís Fonseca sinaliza para a escassez de pesquisas que tratem dos
processos educativos e experiências letradas existentes na América Portuguesa para além

2
Ver o artigo clássico de Carlo Ginzburg: “O Inquisidor como Antropólogo. Revista Brasileira de História. v.
1, nº 21. São Paulo, 1991, p. 09-20”.
3

do ensino institucional conduzido pela Companhia de Jesus. Existem poucas pesquisas


neste âmbito, e, as que existem, se concentram em abordar a educação jesuítica e o
período das reformas educacionais implementadas pelo Marquês de Pombal. (Fonseca,
2009, p. 112) A educação leiga e outras formas de manifestação da cultura letrada têm
sido pouco exploradas pela historiografia.
Antes mesmo de seguirmos em nossa análise acerca da trajetória do letrado e
cristão novo Bento Teixeira, há a necessidade de se discutir alguns aspectos conceituais.
Laura de Mello e Souza em artigo dedicado ao estudo de alguns intelectuais no período
colonial põe em evidência o uso, pelos historiadores, do conceito de intelectual para se
referir àqueles que mantinham certas experiências de cultura escrita e erudita durante o
período da colonização. A autora defende a utilização do conceito de letrado como
categoria conceitual adequada para se referir aos sujeitos históricos que estavam ligados
à produção literária no século XVIII. O conceito de intelectual, segundo a historiadora, é
característico do século XIX e acrescenta que o uso indiscriminado de determinados
conceitos fora de suas realidades e contextos históricos que os produziram pode ser
considerado anacronismo. Deste modo, “se cuestiona acerca de la legitimidad de definir
como intelectuales a aquellos que, en el pasado colonial del Brasil, tuvieron una actuación
y un papel semejantes a los de los hombres que hoy podrían ser designados de ese modo
sin problema alguno”. (Souza, 2008, p. 94-95)
Além de tecer tais considerações sobre o conceito mais adequado que
pretendemos adotar em nossa análise, é necessário estabelecer de maneira ainda mais
precisa o próprio conceito de letrado. Segundo o frade Rafael Bluteau, em seu
Vocabulario Portuguez e Latino publicado em Lisboa em 1716, letrado se refere ao
“homem sciente, versado nas letras”. (Bluteau, 1716, p. 90) As considerações de Laura
de Mello e Souza e a definição de Rafael Bluteau dizem respeito ao contexto do século
XVIII, entretanto, mesmo Bento Teixeira ter vivido durante o século XVI, reafirmamos
que o conceito de letrado é o mais adequado para se referir às experiências deste
personagem histórico. Formado nos Colégios Jesuítas, mestre de moços leigo na capitania
de Pernambuco (no qual lecionava latim, noções matemáticas e doutrina cristã), leitor de
livros proibidos pela censura inquisitorial, debatedor de questões teológicas com alguns
clérigos na vila de Olinda e autor de um dos primeiros escritos poéticos na América
Portuguesa, Bento Teixeira pode ser considerado um letrado, um sujeito histórico que foi
versado nas letras.
4

O processo inquisitorial contra Bento Teixeira (5.206)3 contém uma série de dados
sobre este personagem histórico que viveu na capitania de Pernambuco na segunda
metade do século XVI, ensinando moços filhos da elite açucareira que se formou neste
contexto. O processo contém informações sobre uma série de práticas cometidas por
Bento Teixeira e foram as causas que o levaram a ser preso durante a primeira visitação
inquisitorial na América Portuguesa na década de 1590.
Entretanto, não é apenas através do processo inquisitorial contra Bento Teixeira
que alguns autores tem analisado a atuação do letrado no final do século XVI. As
confissões da Bahia e as denunciações de Pernambuco4 se constituem também como
fontes, pois nesses documentos existem depoimentos contra o letrado, como também
suas confissões. Além disso, podemos fazer referência ao poema épico de autoria do
letrado, Prosopopéia5, que tem gerado análises tanto de historiadores como de
especialistas em literatura.
Sobre a figura de Bento Teixeira a produção historiográfica é relativamente
escassa. E podemos elencar algumas obras que nos são referência. José Antônio
Gonsalves de Mello dedica um capítulo à vida social e familiar além das práticas
criptojudaicas do poeta em questão em seu clássico Gente da Nação (Mello, 1990). Tais
dados, reunidos a partir de um forte aparato documental, nos são úteis na medida em
que tentamos compreender a teia de relações sociais a qual Bento Teixeira estava
inserido, além de constituir um manual cronológico acerca da vida do mestre de moços.
Sônia Siqueira (1972) nos concede um importante estudo sobre o criptojudaísmo
de Bento Teixeira, partindo de uma análise interpretativa do poema Prosopopéia. Muito
mais do que a exposição de informações sobre a vida de Bento Teixeira, Siqueira adorna
seu discurso por meio de uma análise significativa acerca da atmosfera cultural que forjou
o poeta em questão, considerando-o um desajustado pelo fato de abrigar em torno de
sua pessoa múltiplas identidades, às quais foram bem utilizadas pelo poeta quando da
necessidade de camuflar suas práticas judaizantes aos olhos da Igreja Católica.

3
Este processo consiste nas denúncias sobre Bento Teixeira, como também em suas confissões. Atualmente, todo
o processo inquisitorial (de número 5.206) se encontra disponível no site do Arquivo Nacional da Torre do
Tombo (ANTT) de Portugal: : http://antt.dgarq.gov.pt/
4
Ver alguns documentos da primeira visitação inquisitorial à América Portuguesa no século XVI que já foram
editados: Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil – Denunciações e Confissões de Pernambuco
1593-1595. Recife: FUNDARPE, 1984; Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil – Denunciações
da Bahia - 1591-1592. São Paulo: Ed. Paulo Prado, 1925; Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil.
Confissões da Bahia (1591-92). Edição da Sociedade Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro: Liv. Briguiet, 1935.
5

Podemos citar também o importante trabalho de Eneida Ribeiro que a partir dos
textos escritos pelo poeta Bento Teixeira, nos revela dados importantes sobre o cotidiano
dos cárceres da Inquisição de Lisboa e a corrupção existente na estrutura inquisitorial
(RIBEIRO, 2006). Este trabalho também aborda as estratégias textuais utilizadas por
Bento Teixeira na composição de sua defesa diante do Santo Ofício.
Trabalhos como os de Luiz Alves (1983) e Kênia Pereira (1998) nos presenteiam
com análises sobre o aspecto poético-literário de Bento Teixeira, analisados a partir de
sua produção textual no momento em que esteve preso nos cárceres da Inquisição de
Lisboa como também do seu principal poema Prosopopéia, considerado sua obra prima.
Apesar da relevância desses trabalhos, consideramos que o processo contra Bento
Teixeira ainda nos oferece possibilidades diversas de abordagens, e aspectos que nos
chamam a atenção para referenciarmos experiências de cultura letrada alternativas aos
colégios da Companhia de Jesus. Consideramos que a trajetória de indivíduos como Bento
Teixeira nos revela que vivências letradas significativas podem ser percebidas sob o
manto de certas generalizações presentes na historiografia.

I. Primeiro, a acusação.
De maneira geral podemos perceber que o processo contra Bento Teixeira é
constituído por partes que devem ser compreendidas, e que foram produzidas
paralelamente à trajetória de Bento Teixeira desde quando começou a ser denunciado
durante a primeira visitação inquisitorial a Pernambuco no século XVI, até o momento em
que o réu chega a falecer nos cárceres do Santo Ofício de Lisboa em julho de 1600. As
denúncias, em sua maioria, geraram relatos que se transformaram nos documentos da
visitação do Santo Ofício a Pernambuco, e se formam a partir das acusações dos inimigos
do réu, como também das pessoas que conviveram com ele e acharam conveniente
denunciá-lo, entretanto, deve-se considerar que desde a visitação da Inquisição à Bahia,
já havia denúncias contra Bento Teixeira. Ainda no tempo da graça o próprio réu se
apresenta diante do inquisidor para confessar suas culpas e denunciar outros mais.
Entretanto, mesmo se confessando no período concedido pela Inquisição para que os
colonos pudessem por si mesmo irem confessar suas culpas, os inquisidores Diogo Sousa
e Marcos Teixeira mandaram prender Bento Teixeira em 1595, pela relevância das
denúncias que foram dirigidas ao réu. A historiadora Eneida Beraldi Ribeiro (2006) lista o

5
Bento Teixeira foi consagrado pelos manuais de literatura como o primeiro poeta do Brasil pelo fato de ser o
autor do poema Prosopopéia, uma narrativa épica sobre os feitos do nobre Jorge da Albuquerque na batalha da
Alcácer Kibir junto ao rei D. Sebastião.
6

conjunto de práticas às quais foram atribuídas ao letrado Bento Teixeira e que se


constituíram em suas culpas diante da Inquisição:
 Juramento desonroso à Virgem Maria;
 Não abrir sua escola de ensinar moços aos sábados;
 Negou o mistério da Santíssima Trindade ao considerar que uma canção
que tratava do tema era falsa;
 Negou a existência do purgatório;
 Declarava a Bíblia em linguagem;
 Se orgulhava de ser cristão novo;
 Negou tijolos à Igreja.
Além de acusado de práticas que fugiam da ortodoxia do catolicismo, Bento
Teixeira possuía um aspecto que tornava ainda mais grave os seus ‘delitos’: era cristão
novo. Acusado não apenas pelos seus inimigos, mas por sua própria esposa, que o traía e
afirmava categoricamente que ele era um “cristão novo fedorento” (Ribeiro, 2006, p. 93),
Bento Teixeira suscitou desconfiança por ser da nação. Frei Damião da Fonseca, da ordem
de São Bento de Olinda, afirmou ter questionado Bento Teixeira do porque se referir ao
Antigo Testamento no presente, obtendo como resposta: “cada um fala na sua crônica”.
Damião da Fonseca considerou a proposição de Bento Teixeira de “má presunção”, pelo
fato dele ser cristão novo. Isto porque considerando a atualidade do Antigo Testamento
(ou da Lei Velha) Bento Teixeira estaria atestando seu judaísmo, tendo em vista que os
judeus desconsideram os textos do Novo Testamento que apresentam Cristo como o
messias prometido em algumas passagens do Antigo Testamento.

II. Segundo, a defesa.

Bento Teixeira cuidou de escrever sua própria defesa, apresentando aos


inquisidores cartas em que ora se esquivava das acusações, ora as confessava, ou ainda
cooperava com os inquisidores denunciando desde pessoas que conviveram com ele na
capitania de Pernambuco até os seus companheiros de cárcere. Nestas cartas, que
começaram a serem escritas desde quando Bento Teixeira se encontrava preso em
Olinda, há uma relação de nomes que eram seus possíveis inimigos, e o réu utiliza este
argumento para tentar desvalidar as acusações que foram feitas contra ele. Esta
estratégia parece-nos válida, pois ocorria de muitos se utilizarem do Tribunal da
Inquisição para se vingarem de seus desafetos, e segundo o historiador Marcos Nunes
Silva (2012) havia certa cautela por parte dos inquisidores em avaliar a relação entre o
denunciante e o denunciado, buscando evitar submeter alguém a um processo apenas
7

por questões de inimizade entre indivíduos6.

Nos textos dessas cartas Bento Teixeira buscou utilizar com esmero as letras que
tanto fizeram parte de sua vida desde quando estudou nos colégios jesuítas das
capitanias do Espírito Santo, Rio de Janeiro e da Bahia (onde chegou perto de se tornar
um clérigo), até quando viveu em Pernambuco e lecionava para os filhos da elite,
escrevendo um poema épico em homenagem a Jorge de Albuquerque, chegando inclusive
a discutir questões teológicas com um clérigo do mosteiro de São Bento de Olinda.

A estrutura das cartas de defesa de Bento Teixeira pode ser caracterizada pelo
domínio do latim e pela utilização de figuras bíblicas como elemento retórico que
adornaram e compuseram sua narrativa. Não podemos apenas mencionar este aspecto
sem considerar que dentre as acusações que levaram Bento Teixeira a ser preso pelo
Tribunal do Santo Ofício está o fato dele ter traduzido do latim textos bíblicos para alguns
cristãos novos judaizantes, especificamente textos do Antigo Testamento em troca de
pagamento. (Ribeiro, 2006, p. 102) Ao analisar o texto dessas cartas pudemos perceber
que utilizando figuras bíblicas, predominantemente do Antigo Testamento, e
demonstrando conhecimentos em latim Bento Teixeira estaria, na verdade, mostrando
aos inquisidores que ele, para escrever sobre personagens bíblicos, provavelmente lia a
Bíblia, prática proibida pela Igreja para os leigos e só permitida aos clérigos. Figuras
como as de Adão, Esaú, Jacó, Moisés, Psalmista (Davi) e o Sábio (Salomão) aparecem na
narrativa composta por Bento Teixeira aos Inquisidores, sem esquecer também da
analogia utilizada pelo letrado ao comparar sua mulher à Arca de Noé “por não lhe ficar
animal que não entrasse”, se referindo aos diversos amantes de Felipa Raposo7. Vejamos
alguns trechos em que Bento Teixeira emprega personagens bíblicos em sua narrativa:

“Ilustríssimos Inquisidores. Vendo o pai das misericórdias e Deus


de toda consolação ante cujos os olhos (como o Psalmista) todas
as coisas são nuas e descobertas que Adão se soltara do preceito
que lhe dera e que o pecado o tinha preso e sua culpa não tinha
desculpa para o forrar da pena em castigo que merecia (...).
(...) mas não mo deu a admoestar, antes com a voz de Jacó (tendo
6
Marcos Nunes Silva cita documentos em seu artigo sobre a blasfêmea na Bahia e em Pernambuco em que os
inquisidores apresentaram certa cautela, ao considerarem o teor da relação entre os denunciantes e o denunciado:
“Após chegar a diligência ao conhecimento do Santo Ofício, os inquisidores concluíram que os denunciantes
eram inimigos de Francisco da Rocha Rangel, o que invalidava suas acusações”. (Silva, 2012, p. 43)
7
Eneida Beraldi Ribeiro lista alguns dos homens com quem Felipa Raposo, mulher de Bento Teixeira, havia
adulterado: Padre Diogo de Barbuda, Francisco de Sousa de Almeida, Antônio Lopes Sampaio, Diogo Luís
lagartixa, Paulo Valcarena e o Padre Duarte Pereira. (Ribeiro, 2006, p. 91)
8

as mãos de Esaú me recolheu)”. (PROCESSO 5.206)

Para a Inquisição, Bento Teixeira poderia ser interpretado como uma figura
perigosa, pois dispunha de conhecimentos que poderiam ser úteis aos judaizantes,
traduzindo textos do Antigo Testamento e com um rico conhecimento bíblico, poderia
inclusive assumir certa liderança entre os cristãos novos que judaizavam. Isto adquire
certo relevo quando consideramos que não havia uma literatura nem liderança religiosa
que pudesse perpetuar o judaísmo entre os cristãos novos, pois segundo o historiador
Charles Boxer:

Não havia em Portugal [e nem no Império Português] nenhum


rabino em exercício, não se permitia a circulação de nenhum livro
ou manuscrito hebraico, e, em duas ou três gerações, a grande
maioria dos chamados cristãos novos provavelmente já se
constituía de genuínos católicos romanos praticantes (e não só
exteriormente). A pequena maioria que aderia secretamente ao
que acreditava ser a Lei de Moisés conhecia pouco mais do que
simples práticas ritualísticas, como vestir roupas de linho limpas
aos sábados, abster-se de comer carne de porco, mariscos etc., e
guardar a Páscoa dos judeus em vez da cristã. (Boxer, 2002, p.
279-280)

Eram particularmente a partir destes fragmentos da religião judaica que se


constituía o criptojudaísmo de alguns cristãos novos que insistiam na religião de seus
antepassados. E Bento Teixeira, de fato, assumia certa liderança entre os cristãos novos
na capitania de Pernambuco, como quando foi consultado por Violante Fernandes acerca
da vinda do messias esperado pelo povo judeu. (Ribeiro, 2006, p. 170) Bento Teixeira
não era apenas um cristão novo judaizante, era um letrado, e eram essas letras que o
instrumentalizaram para judaizar junto com outros cristãos novos. Esta percepção
possivelmente tornou o processo inquisitorial contra Bento Teixeira tão longo como o foi
de fato, sendo composto por mais de oitocentas páginas.

Não foi apenas entre os judaizantes que Bento Teixeira demonstrou ser alguém
perigoso pelo Tribunal da Inquisição. Dentre as denúncias efetuadas contra o letrado, e
em suas próprias confissões no período da Graça, estavam certas posturas que se
dirigiam especialmente à Igreja Católica: pronunciou juramento desonroso à Virgem
Maria mencionando a ‘humanidade de Nossa Senhora’ e negou tijolos para uma reforma
numa Igreja de Olinda afirmando ser a sua casa também sagrada. Na visão inquisitorial
estas duas atitudes de Bento Teixeira poderiam ser enquadradas como sendo um caso de
blasfêmia e proposição herética, respectivamente. Mas na abordagem destas denúncias
optamos por seguir a interpretação do historiador Marco Nunes Silva de não entender
9

situações de blasfêmia e proposições heréticas apenas pelo viés dos efeitos de bebida
alcoólica, ou em momento de grande fúria e descontrole emocional. Os que afirmavam
proposições heréticas conscientemente atraíam especial atenção do Tribunal do Santo
Ofício, pois “para os inquisidores, eram estes que verdadeiramente representavam
ameaça à fé”. (Silva, 2012, p. 51) Segundo à linha de interpretação de Marco Nunes
Silva:

[É] bastante redutor entender a questão apenas pelo lado negativo


da embriaguez ou a um possível acesso de cólera e ódio. (...)
Propomos perceber o ato de blasfemar pelo seu lado positivo, que
demonstraria uma atitude de tolerância e de questionamento das
normas impostas, que muitos, de forma legítima, sustentaram,
pagando inclusive um preço alto por isso. (Silva, 2012, p. 31)

A posição de letrado, detentor de certos conhecimentos bíblicos e de latim, e sua


relação com os cristãos novos judaizantes tornavam a situação de Bento Teixeira cada
vez mais complexa para os inquisidores. Além disso, o fato de Bento Teixeira ter se
insurgido contra elementos da santa fé católica acentuavam sua situação. E sendo um
letrado, essa insurgência contra elementos do catolicismo eram encaradas mais como
uma crítica à ordem estabelecida pela Igreja Católica do que como uma atitude
impensada devido a um descontrole ou distúrbio emocional, como a maioria dos casos de
blasfêmia e proposição herética eram enquadrados. Uma ordem estabelecida pela Igreja
e mantida a todo o custo por instituições como a Inquisição. Bento Teixeira se constituía
como alguém que afrontava esta ordem.

Alguém tão perigoso e ameaçador para a ordem estabelecida como foi Bento
Teixeira deveria ser subjugado pelos órgãos de dominação social, papel muito bem
assumido pela Inquisição. É interessante notar que, além de tudo o que já ressaltamos
anteriormente, havia o fato desse letrado, judaizante e herege, atuar na capitania de
Pernambuco como mestre de moços, e principalmente, moços da elite. Bento Teixeira
atuava numa iniciativa individual, não estava a serviço de instituições que serviam ao
controle social do Estado e da Igreja, tal como o Tribunal da Inquisição e a Companhia de
Jesus, através de seus colégios, que, além de catequizar os indígenas, cuidava da
educação dos colonos. O que é interessante, e precisa ser bem ressaltado é que uma
figura como Bento Teixeira foi forjada dentro da própria estrutura institucional montada
no Império Português para submeter os indivíduos ao poder do Estado e da Igreja. Foi o
contexto dos colégios jesuítas existente na América Portuguesa que forjaram Bento
Teixeira. Isso demonstra as próprias contradições internas de um sistema que criava as
10

condições para seu próprio questionamento, e nos faz refletir sobre determinadas
posturas historiográficas que abordam o período colonial como um período de intenso
controle social a partir das instituições do Estado Português, sem, no entanto, perceber
certos casos em que este controle foi afrontado com posturas como as de Bento Teixeira.

Em suas cartas aos inquisidores Bento Teixeira utiliza seu papel de mestre de
moços como algo a ser usado em sua defesa, mas talvez a percepção dos inquisidores
fosse precisamente a inversa. Vejamos o que nos informa o próprio réu:

(...) ensinando publicamente assim latim, como doutrina cristã, e


os demais costumes que um aprovado mestre pode ensinar: e
vendo todos em geral quanto imprimia meu ensino, e doutrina nos
moços, tiraram seus filhos da escola, e escola dos reverendos
padres da Companhia, e mos entregaram. (PROCESSO 5.206)

Pelo que percebemos, se o depoimento do réu, foi de fato, verdadeiro, Bento


Teixeira não era apenas uma alternativa de formação letrada paralela à formação
exercida pelos Colégios Jesuítas, mas uma ameaça, se levarmos em conta a preferência
de alguns colonos em entregarem seus filhos ao letrado. Ao apresentar tal depoimento o
réu talvez quisesse chamar a atenção dos inquisidores para sua postura de letrado cristão
na capitania de Pernambuco, mas apesar de não termos documentos que nos indiquem
acerca da postura dos inquisidores com relação ao papel desempenhado por Bento
Teixeira na capitania, a extensão do processo nos faz ter ideia do quanto o letrado
precisava ser detido pela Inquisição, além de considerarmos o cruzamento das denúncias
realizadas contra o réu com o seu depoimento.

Já no período das denunciações quando houve a primeira visitação inquisitorial à


América Portuguesa, Bento Teixeira foi representando como herege em algumas
denúncias, por posturas que já assumia quando ainda estudava no Colégio Jesuíta da
Bahia. Eneida Beraldi Ribeiro nos informa que, denunciado por Paulo Serrão seu
companheiro de estudos, Bento Teixeira foi aconselhado pelo seu professor Manoel de
Barros no colégio da Companhia que “dizia publicamente nas aulas ‘que este não fosse
com os estudos adiante, para que não lhe acontecesse nenhum mal, posto que tinha
muitas opiniões e dúvidas em suas argumentações e, que se ele fosse letrado corria o
risco de dar em herege’”. (Ribeiro, 2006, p. 208-209)

O processo contra Bento Teixeira é extenso, mas contém informações e dados


sobre a trajetória deste letrado que nos fazem perceber manifestações da cultura letrada
para além do que ocorria no domínio institucional dos colégios da Companhia de Jesus no
11

século XVI. Além da formação adquirida nos colégios jesuítas, através de textos da
tradição clássica, Bento Teixeira buscou trilhar seus próprios caminhos como um letrado,
lendo inclusive livros proibidos no Império Português, como foi o caso de Diana de Jorge
de Montemayor que circulava clandestinamente na colônia nas mãos de letrados como
Bento Teixeira. As leituras da Bíblia por si só nos chamam atenção para se analisar e
compreender esta prática num período em que não havia condições para sua leitura por
leigos.

Estas experiências letradas autônomas, ou coordenadas pelos ‘reverendos padres’


da Companhia de Jesus são passíveis de análise histórica e o processo contra Bento
Teixeira se constitui como uma fonte inquisitorial importante para o estudo de
manifestações da cultura letrada na América Portuguesa, para além do que já foi
empreendido pelos jesuítas. Grupos foram perseguidos pela Inquisição, e práticas foram
reprimidas, dentre estas práticas se encontram as expressões letradas que precisam ser
investigadas a partir da trajetória dos indivíduos que, como Bento Teixeira, estiveram
ligados a elas e que fizeram dessas expressões seu modo de vida e instrumento de
interação social numa sociedade marcada por tentativas de controle e repressão às
formas de expressão letradas alternativas, caracterizadas pela atuação do Tribunal do
Santo Ofício.

REFERÊNCIAS

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Pascoal da Sylva, Impressor de Sua Magestade, Volume 5, 1716.
PRIMEIRA Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil; Denunciações e Confissões de
Pernambuco 1593-1595. Prefácio de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife, FUNDARPE.
Diretoria de Assuntos Culturais 1984. 509+158 p. Il (Coleção pernambucana – 2ª fases.
14)
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Nacional da Torre do Tombo, Lisboa. (Disponível em http://antt.dgarq.gov.pt/)

 Bibliografia
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2002.
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1640-1750). São Paulo: Alameda; Phoebus, 2007.
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perspectivas. Revista Lusófona de Educação, v. 14, número 14. 2009.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. 1ª reimpressão. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
12

GINZBURG, Carlo. O Inquisidor como Antropólogo. Revista Brasileira de História. v. 1, nº


21. São Paulo, 1991, p. 09-20.
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: cristãos novos e judeus em
Pernambuco, 1542-1654. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1990.
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recreação, a solidão por companhia e a tristeza por prazer”. Tese (Doutorado em
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SILVA, Marco Antônio N. da. Blasfêmias Coloniais: Pernambuco e Bahia nos cadernos do
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SOUZA, Laura de Mello e. Brasil: literatura e “intelectuales” en el período colonial. In:
ALTAMIRANO, Carlos (org.). Historia de los intelectuales en América Latina. Buenos Aires:
Katz Editores, 2008.
JOÃO PAULO II E O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO

Claudi Gonçalves da Silva*

Resumo

Este trabalho analisa a postura do Papa João Paulo II em relação ao diálogo inter-
religioso: paradoxos, ambiguidades e contribuições. A metodologia utilizada é de natureza
bibliográfica: livros e outros textos encontrados em sites confiáveis. Apresentar-se traços da
relação de Jesus de Nazaré com os povos não cristãos; gestos e pronunciamentos de João
Paulo II no campo do diálogo entre o cristianismo e os não cristãos; ressalta-se ainda uma
avaliação da postura do Papa João Paulo II em direção as outras religiões como relevante
contribuição para o diálogo inter-religioso na atualidade. Sobre suas reflexões, é possível
apoiar novas discussões em vista da urgente necessidade da aproximação respeitosa entre
as diferentes religiões.

Introdução

Diante das indagações sobre a presença das religiões na atualidade, seu


significado e seus horizontes, o diálogo inter-religioso assume um lugar de grande
relevância. Sua influência pode ser considerada como aspecto decisivo na busca de
superação dos conflitos que podem ocorrer na sociedade pela falta de uma prática
dialógica que leve em consideração o respeito, a tolerância e o reconhecimento de
elementos positivos inerentes às religiões, que podem favorecer a aproximação
entre elas.
Nessa pesquisa, histórica e teológica, apresentam-se inicialmente alguns
traços da relação de Jesus de Nazaré e o Cristianismo com as outras religiões,
contudo, vale salientar que o foco principal é a contribuição do Papa João Paulo II
no campo do diálogo inter-religioso.

Breves traços sobre a relação Jesus de Nazaré e os primeiros cristãos


frente às outras Religiões
Ficou compreensível nas atividades desenvolvidas por Jesus de Nazaré seu
significativo esforço na tentativa de avançar no acolhimento de todos os povos,
fossem eles judeus ou não judeus, sua ação indicava preocupação com todo gênero
humano e assim abria horizontes para além do território legal de Israel (Mt 8, 5-13;
Jo 4, 9; Lc 17, 18-19). Indo em direção aos pecadores, aos doentes, aos pobres e
excluídos da sociedade, revelou sua sensibilidade para com todas as pessoas. Todos
que dele se aproximavam e aderiam a sua mensagem, experimentavam o
acolhimento e a solidariedade de alguém que se interessava pelo bem de todos.

*
Mestre em Ciências da Religião pela UNICAP - Universidade Católica de Pernambuco;
Especialista em Ciências da Religião pela PUC Minas - Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais; Licenciado em Filosofia pelo ISEP - Instituto Superior de Ensino de Pesqueira – PE.

1
Diante da religião tradicional dos judeus, Jesus enfrentou sérias
consequências por romper, em muitos momentos, com as normas e preceitos
religiosos observados pelo povo judeu. Contudo, quis fazer com que sua mensagem
de vida e liberdade, ultrapassasse as fronteiras religiosas e chegasse a todos os
povos.
Na tentativa de prolongar na história, os ensinamentos de Jesus, seus
seguidores também experimentam sérias perseguições e rejeições no confronto
com outras religiões. No entanto o compromisso assumido com seu Mestre, Jesus
de Nazaré, foi levado adiante. Observa-se que não foi passivo o caminho percorrido
pelos cristãos ao longo da história, até chegarem a ser reconhecidos como religião
oficial, mas é interessante igualmente saber que, sua maneira de reconhecer os
valores das outras religiões também levou muitos anos. Nesse processo, notam-se
posturas acolhedoras e exclusivistas por parte dos cristãos. Somente no Concílio
Vaticano II (1962-1965) é que a Igreja chegou a emitir formalmente juízos
positivos sobre as religiões e reconhecer que elas comportam valores evangélicos.
Frente a esse processo histórico da Igreja Cristã Católica e levando em
consideração às rápidas mudanças da sociedade atual, a pessoa de Papa João Paulo
II que governou a Igreja Católica entre os anos 1978 a 2005, transparece como
figura central dessa pesquisa. Por meio do seu empenho à frente da Igreja, sua
postura diante das necessidades da humanidade e inserção na realidade social do
seu tempo é possível apresentá-lo como grande expoente no âmbito do diálogo e,
sobretudo, em sua aproximação às outras religiões.
Pode-se observar que o Papa João Paulo II, ao longo de seu pontificado,
demonstrou notável empenho no campo do diálogo inter-religioso. Seus gestos e
discursos em direção aos membros de outras religiões sinalizaram sua intenção de
inserir a Igreja em um novo processo de evangelização, levando em consideração a
realidade social moderna. Diante das várias necessidades pelas quais passam os
seres humanos, o Papa justificou a necessidade das religiões manterem-se unidas
na resolução de problemas que afetam a dignidade da pessoa humana. O diálogo
apresentado por João Paulo II ainda sugere a superação de divisões, intolerâncias e
preconceitos vivenciados entre as diferentes religiões, ao longo da história.
Nessa perspectiva observar-se-á a opinião de alguns autores que emitem juízos
positivos sobre a contribuição do referido Papa em sua relação com as religiões.
Teixeira (2005, p. 6), escrevendo sobre os 25 anos do pontificado de João Paulo II,
afirma que “os gestos de abertura do papa incidem sobre duas questões
particulares: o testemunho em favor da paz e a abertura ecumênica e inter-
religiosa”. O reconhecimento da atuação do Papa na área do diálogo inter-religioso
foi destacado mais pelo impacto dos seus gestos, desse modo é possível observar

2
que a realidade gestual de João Paulo II despertou importante curiosidade durante
seu pontificado. O próprio Cardeal Ratzinger1 (2000, p. 10) escreveu: “quem se der
ao trabalho de estudar atentamente todos os escritos do papa João Paulo II logo
entenderá que ele sabe diferenciar muito bem as opiniões pessoais de Karol Wojtyla
e o seu ensinamento magisterial como papa”. Com isso, o Cardeal acena sobre a
possibilidade de se perceber certa distinção entre as atividades papais e as atitudes
de Karol Wojtyla, enquanto homem inserido na sociedade com seus anseios e
projetos. Contudo, não nega sua capacidade de conduzir seus trabalhos, deixando
refletir sua firme personalidade: “ele sabe reconhecer também que as duas coisas
são reciprocamente heterogêneas, mas refletem uma única personalidade
embebida na fé da Igreja” (Ibid., p. 10). Nessa visão, o Papa demonstra sua
capacidade de conduzir a Igreja harmonizando seus objetivos pessoais às
atividades do Magistério tradicional da Igreja.
Segundo Alemany, “O pontificado de João Paulo II vem marcar um novo avanço
pelo que indicam as tomadas de postura do magistério da Igreja em torno das
religiões e no diálogo do cristianismo com elas” (2001, p. 89, tradução nossa)2 .
Mesmo que tenham ocorrido outras manifestações sobre o diálogo antes de João
Paulo II, é cabível dizer que o referido Papa, através de suas atividades pontificais,
proporcionou maior abertura do cristianismo católico em direção às outras religiões.
Também Dupuis, (1999, p. 243) reconhece em João Paulo II um indicativo
positivo no processo de reflexão sobre a teologia das religiões. Em uma de suas
afirmações declarou: “a contribuição peculiar do papa João Paulo II para uma
‘teologia das religiões’ está na ênfase com que ele afirma a presença operante do
Espírito de Deus na vida religiosa dos não-cristãos e em suas tradições religiosas”.
Segundo ele, o acento recai sobre a presença do Espírito Santo nas religiões, o
Papa conseguiu acentuar o Espírito Santo como ponto de unidade, onde cada
religião é conduzida pela mesma força espiritual. Essa ação operante indica uma
visão mais ampliada de valores espirituais nas tradições religiosas, em geral. Ainda
nessa perspectiva, foi feita uma comparação entre o pontificado de Paulo VI3 e o de
João Paulo II:

Se Paulo VI está bem firme na ‘teoria do cumprimento’ [...], João Paulo


II, sobretudo por causa de sua ênfase na universalidade da presença
ativa do Espírito de Deus e de Cristo, nas tradições religiosas como tais,
é mais positivo e demonstra uma inclinação mais forte, para uma
perspectiva mais ampla, sem, contudo ir claramente além da concepção
pré-conciliar do cumprimento (DUPUIS, 1999, p. 250).

1
Atualmente Bento XVI, Papa Emérito da Igreja Católica.
2
Cf. (El pontificado de Juan Pablo II va a marcar um nuevo avance por lo que respecta a las
tomas de postura del magistério de la Iglesia em torno a las religiones y al dialogo Del
cristianismo com ellas).
3
Nascido a 26 de set. de 1897, em Concesio, Itália, foi o 262 Papa da Igreja Católica e governou
a Igreja de 1963 a 1978. Faleceu a 6 de agosto de 1978.

3
Mesmo obedecendo às orientações do Vaticano II sobre a presença de
valores nas religiões, a afirmação leva a entender que João Paulo II avança na
percepção das ações do Espírito Santo dentro das práticas religiosas. Há uma sutil
diferença, uma vez que a teoria do cumprimento4 leva a compreensão de que os
valores presentes entre os não cristãos terão seu cumprimento em Jesus Cristo e
no Cristianismo. Numa colocação assim, pode-se entender aquilo que fora dito
anteriormente sobre João Paulo II: enquanto Papa, se coloca em sintonia com
aquilo que rege a doutrina e os ensinamentos em geral da Igreja, mas, enquanto
Karol Wojtyla sugere pelos seus gestos, maior avanço em alguns setores,
especialmente no campo do diálogo inter-religioso. Pode-se dizer positivamente que
João Paulo II conseguiu equilibrar sua atuação entre a doutrina tradicional da Igreja
e a necessidade de se avançar diante das interpelações da sociedade.
Segundo Svidercoschi (2011, p. 103), “aquilo que mais impressionava em
Karol Wojtyla era a tenacidade com a qual ele fazia de tudo para manter unidas as
fileiras daquela comunhão fraterna, recém-descoberta, entre as religiões, entre as
Igrejas”. Assim o Papa indicou um itinerário positivo de diálogo entre as diversas
religiões.
Na visão de Teixeira (2005, p. 8), “os passos mais decisivos de abertura de
João Paulo II acontecem no campo do diálogo inter-religioso. O evento que serviu
como paradigma desta abertura foi a Jornada de Oração pela Paz realizada no ano
de 1986, na cidade de Assis”. Nesse direcionamento o encontro de Assis sinalizou
de maneira mais pertinente a intenção do Papa em atuar no campo do diálogo com
as outras religiões, indicando um novo rumo na história da Igreja. Observa-se que
“o evento de Assis resultou numa iniciativa histórica de grande alcance, um gesto
sem precedente, extraordinário e único, portador de um explosivo poder simbólico”
(Ibid., p. 8). Assumindo valor histórico, abriu espaço na Igreja para o
aprofundamento das reflexões, no tocante às outras tradições religiosas. Seu
projeto universal levou ao mundo uma nova ideia em favor da paz. Também Araújo
(2011, p. 60) comentando sobre a atuação de João Paulo II, reconhece que “sua
reputação de grande profeta e operário da paz é comprovada por meio de sua
trajetória, que representou a abertura de novos diálogos, como o grande encontro
de Assis (Itália)”. É interessante perceber, como as atitudes do Papa caracterizaram
sua pessoa. Os substantivos profeta e operário da paz indicam a sua atuação, a
coragem de assumir, durante seu governo eclesial, a desafiadora promoção da paz,
contando com o ajuda das outras tradições religiosas.

4
Sobre a referida teoria encontra-se uma substanciosa contribuição em Dupuis, 1999, p. 188 et.
Seq.

4
Na perspectiva de Frisotti (1996, p. 33), Assis representou “um símbolo
também da nova preocupação que o diálogo ecumênico e inter-religioso carrega:
unir os esforços para que o mundo viva na paz e na justiça, como um chamado do
Deus único para os fiéis de todas as religiões”. A afirmação do autor levanta uma
questão complexa: pensar a construção de um mundo de justiça e paz como
chamado do Deus único requer maior aprofundamento na reflexão. João Paulo II,
no seu discurso conclusivo, no encontro da cidade de Assis, (L’OSSERVATORE
ROMANO, 1986, p. 1, n. 4) fez o caminho inverso: mostrou que as religiões podem
ser consideradas como expressões do desejo dos seres humanos em direção ao Ser
Absoluto. Embora a expressão tenha aparecido no singular, o Ser, a questão
acenada pelo Papa não define isso como um desafio a ser enfrentado, algo que
difere da postura de Frisotti, quando se refere ao Deus único. Provavelmente, João
Paulo II, ao optar pelo conceito de Ser Absoluto, busca propor uma terminologia
mais inclusiva, tendo em vista a complexidade das diferentes concepções de Deus
entre as religiões monoteístas e politeístas.
Segundo Teixeira (1997, p. 140), “Ao convidar os líderes das várias
tradições religiosas para unirem-se aos cristãos na oração pela paz, João Paulo II
sinaliza através de tal gesto simbólico a aceitação da legitimidade salvífica das
outras tradições religiosas”. Ao sublinhar a legitimidade da salvação das religiões
não cristãs, fez referência a um tema pertinente na direção do diálogo, indicando
uma reflexão mais aprofunda. Contudo, pode-se dizer que, mesmo reconhecendo
valores salvíficos nas outras religiões, João Paulo II não as define como caminhos
absolutos de salvação. Conforme o próprio Papa expressou em seus
pronunciamentos, trata-se de um estar juntos em oração pela paz, cada qual
segundo sua liturgia própria, algo que é possível realizar num encontro inter-
religioso, favorecendo o respeito ao modo particular com o qual cada religião se
relaciona com o sagrado.
O evento não deseja abrir discussões teológicas ou doutrinais, como se
expressa o próprio Papa: “considero o encontro de hoje como sinal eloquente do
compromisso de todos vós em favor da paz” (L’OSSERVATORE ROMANO, 1986, p.
1, n. 3). Em outra citação, referindo-se ainda a Assis, Teixeira (1997, p. 140-141)
destacou que o evento: “representou uma luz de esperança para a paz no mundo
[...], um primeiro sinal de profunda ruptura com uma longa e triste história de
intolerância entre as religiões”. Assim, o encontro das religiões em Assis pode ser
compreendido como um indicativo importante para todos os povos que anseiam
pela paz. Sugere ao mundo que a paz também pode acontecer mediante o esforço
do ser humano na superação de suas limitações, muitas vezes excludentes.

5
O reconhecimento da legitimação da salvação das outras religiões, como
propõe Teixeira, a nosso ver, deve ser entendida como uma interpretação do autor
no que tange o significado simbólico dos gestos do Papa. Diante dos vários
discursos de João Paulo II em seus encontros com os líderes das principais religiões
da humanidade, observa-se que ele sempre evita entrar em discussão sobre a
legitimidade ou não de salvação nas religiões. Certamente, em consonância com as
ideias do Concílio Vaticano II o Papa destacou o que há de bom nas outras
tradições religiosas como manifestação da graça de Deus (Cf. NOSTRA AETAE, N.
2). Observa-se que o Papa não aborda aspectos que envolvam o lugar da salvação
das outras religiões no mistério de Cristo, no qual a Igreja está centrada. Em seus
discursos sobressai um esquema básico: ele parte sempre da riqueza espiritual e
ética das tradições religiosas para, em seguida convidá-las a um engajamento
conjunto em favor da paz e da justiça no mundo.
Ainda nessa direção vale ressaltar o documento Diálogo e Anúncio, emitido
durante o pontificado de João Paulo II pelo Secretariado para os não cristãos a 10
de junho de 1985. O documento foi escrito na perspectiva do Concílio Vaticano II e
faz referência aos 25 da promulgação da Nostra Aetate. Ao longo do texto do
Diálogo e Anúncio ficou claro que o diálogo inter-religioso faz da missão da Igreja.

João Paulo II e a Declaração Dominus Iesus


Além das reflexões positivas até aqui desenvolvidas, é pertinente destacar
que o Papa também sofreu críticas tendo em vista algumas atitudes que
contrariaram sua atuação positiva no campo do diálogo inter-religioso. Destaca-se
nessa pesquisa o documento Dominus Iesus, pela sua repercussão em alguns
setores da sociedade, emitido a 6 de agosto de 2000, durante o seu pontificado
pela Congregação para a Doutrina da Fé, sobre a universalidade salvífica de Jesus
Cristo e da Igreja.
O referido documento manifestou uma avaliação negativa frente a algumas
tendências na teologia das religiões e mesmo diante dos pronunciamentos e gestos
que João Paulo II vinha desenvolvendo no campo do diálogo entre as religiões.
Observa-se que o documento quer reafirmar a doutrina teológica da Igreja Católica
frente às teorias sobre o pluralismo religioso. Se por um lado, João Paulo II realçou
os valores presentes nas outras religiões, o referido documento destaca as
diferenças, reafirmando a superioridade da Igreja Católica sobre as outras
experiências religiosas e, portanto uma linguagem que não avança em relação ao
diálogo em meio à diversidade das religiões.
Na visão de Teixeira (2010, [s.p]), a “Declaração significou um forte
impacto. Na ocasião, as repercussões são muito negativas entre as instâncias que

6
trabalham os temas do ecumenismo e do diálogo inter-religioso”. A declaração
contraria os passos que vinham sendo dados por João Paulo II. Barros (2005, p.
13) afirma: “A Dominus Iesus não parece ter sido nem uma coisa nem outra. Ela
surpreendeu por vir na contramão do esforço de João Paulo II de fazer do Jubileu
do ano 2000 um acontecimento ecumênico e encerra-lo em um encontro inter-
religioso”. Muitos outros posicionamentos foram emitidos sobre a referida
Declaração na intenção de mostra o seu aspecto negativo frente a necessidade do
diálogo entre as religiões na atualidade.

João Paulo II também enfrentou controvérsias


Não obstante os avanços em direção ao diálogo entre as religiões, a postura
de João Paulo II também atraiu críticas, sobretudo por parte de alguns membros da
Igreja, que, no decurso do tempo, assumiram posturas fechadas em relação aos
avanços modernos e mesmo às novidades empreendidas pela Igreja em relação aos
não cristãos.
Uma das controvérsias da Igreja em relação à postura de João Paulo II
frente ao diálogo inter-religioso pode ser observada logo quando ele anunciou seu
projeto de oração para o dia mundial da paz. Segundo Lecomte (2005, p. 549),

No dia 25 de janeiro [1986], preparando-se para viajar para a Índia


onde se encontrará com os mais altos dignitários hindus, muçulmanos,
sikkis e budistas, o papa causa estupor no Vaticano ao anunciar uma
iniciativa inédita e desconcertante: ele convida solenemente todos os
líderes religiosos do planeta, cristãos e não-cristãos, para participar em
outubro de uma jornada mundial de oração pela paz.

A reação desconcertante dos membros do Vaticano frente à decisão do Papa


apontou a falta de preparação, diante da possível aproximação com as outras
religiões. Opondo-se à ideia do encontro entre os líderes religiosos, demonstram
suas limitações para tratar de assuntos que envolvam os não cristãos, tais atitudes
revelaram, ainda, suas disposições em permanecer fechados em suas convicções de
superioridade e unicidade da Igreja alimentada ao longo dos séculos. Todavia, é
possível afirmar que a atitude convicta do Papa quis mostrar a necessidade de
direcionar as atividades da Igreja pela via da superação dos preconceitos históricos,
das divisões, proporcionando-lhe maior abertura para o diálogo frente ao cenário
religioso mundial.
Nota-se que a proposta do encontro das religiões em Assis, tendo em vista
sua expressividade mundial, suscitou posições antagônicas em vários níveis,
provocando sérias reflexões:

Logo que o projeto vem a ser conhecido, muitos prelados da cúria se


insurgem contra esse “sincretismo” que nada tem de católico,
questionando-se, às vezes em voz alta: como poderia o papa orar em
companhia de pessoas que adoram divindades estranhas ao

7
cristianismo? A quem se haverá de estar orando? Como colocar o
catolicismo no mesmo plano que o budismo e o animismo? Pode o
sucessor de Pedro misturar-se, por uma questão de respeito por seus
convidados, num grupo indistinto de líderes religiosos que por sinal, em
sua maioria, não são do seu nível? Todas essas questões têm
fundamento (LECOMTE, 2005, p. 550).

Ocorreu inicialmente um comportamento incompreensivo sobre o verdadeiro


significado do encontro por parte dos prelados. No posicionamento contra o possível
sincretismo, fez entender o medo de que a Igreja viesse a misturar-se com os não
cristãos perdendo sua identidade. As indagações apresentam uma ideia de rejeição
aos que professam a fé num deus diferente do Deus cristão indicando, desse modo,
a falta de conhecimento sobre as realidades das religiões e suas crenças. Ainda
acenam a possibilidade do Papa perder-se na oração cristã, dirigindo-se a deuses
diferentes em meio às influências dos não cristãos, como se o sucessor de Pedro
não tivesse segurança suficiente de se manter integralmente na sua convicção
cristã. Na visão dos que discordavam do Papa na Cúria, tanto a Igreja como o Papa
são colocados acima de todas as outras tradições religiosas, reduzindo os outros
líderes religiosos a uma categoria de inferioridade.
Os questionamentos levantados foram assumidos por João Paulo II como
sendo pertinentes a ponto de encarregar um Cardeal da Cúria Romana para
aprofundá-los. Na ocasião, o Cardeal Roger Etchegaray, presidente da Comissão
Justiça e Paz, ficou incumbido de estudar sobre as questões e apresentar possíveis
respostas às indagações (Cf. Ibid.). Contudo, pode-se dizer que o Papa não esperou
passivamente pelas eventuais respostas. Enquanto se realizavam as discussões em
busca de uma compreensão mais ampla sobre o assunto, João Paulo II se
preparava para colocar em prática o seu projeto de oração.
Accattoli (1999, p. 212) comentando sobre o acontecimento, chegou a
declarar que “a ofensiva interreligiosa de João Paulo II surpreendeu os
observadores e até os colaboradores da Cúria romana”. E, continuando no mesmo
texto, destacou a opinião do Cardeal Joseph Ratzinger, que também se revelou
incomodado diante das intenções do Papa, no campo inter-religioso. Segundo o
autor, o Cardeal Ratzinger reconheceu no comportamento de João Paulo II uma
“ênfase excessiva aos valores das religiões não-cristãs” (Ibid.).
Faustino Teixeira, num artigo intitulado o paradigma de Assis, também
comentou sobre os temores e reações ao evento: “outras críticas mais sutis vieram
de setores da cúria romana, igualmente insatisfeitos com o significado e as
repercussões do evento” (Cf. TEIXEIRA, 2010, [s.p.]). A insatisfação de alguns
colaboradores do Papa evidencia insegurança e, medo da repercussão que o
acontecimento pudesse sublinhar dentro e fora da Igreja católica. Segundo
Svidercoschi (2011, p.101),

8
Tratou-se provavelmente da decisão mais audaz, mais corajosa, de João
Paulo II. E também a mais discutida, a mais contestada, inclusive por
parte de cardeais renomados, pelo temor de que essa iniciativa
acabasse produzindo sincretismo ou mal – entendido entre o povo
cristão.

É relevante frisar o aspecto corajoso do Papa que não se limitou àquilo que
já vem sendo afirmado pela Tradição da Igreja, mas provocou um novo horizonte
na Igreja, mesmo enfrentando resistências dentro da própria Instituição. Seu
testemunho revelou sua intenção de avançar no campo do diálogo, sugerindo uma
maior inserção da Igreja nas situações emergentes da sociedade e, sobretudo, seu
compromisso diante das grandes causas que ameaçam o processo vital da
humanidade.
Outro acontecimento importante, na linha das controvérsias, foi a explicação
de João Paulo II aos membros da Cúria Romana, no dia 22 de dezembro de 1986,
por ocasião do encontro inter-religioso de Assis.
Em seu discurso, o Papa, além dos cumprimentos natalinos aos presentes,
citou o evento de Assis pela sua expressividade popular e religiosa. Durante seu
discurso, insistiu na importância da oração como caminho para a paz no mundo e
como motivo principal do encontro. Além disso, destacaram-se em sua fala, de
maneira explicativa, as bases onde ele se apoiou para a realização do evento: os
ensinamentos do Concílio Vaticano II, a revelação bíblica da criação, como unidade
originária da pessoa humana e a redenção, como elementos que indicam a unidade
da humanidade, e o plano salvífico de Deus pela encarnação de Cristo5. Parte do
discurso revelou sua convicta consciência sobre a importância do diálogo entre as
religiões:
O evento de Assis pode muito ser considerado como uma ilustração
visível, uma classe de coisas, uma catequese de todo inteligível, do que
significa e exige o compromisso com o diálogo ecumênico, inter-religioso
recomendado e promovido pelo Vaticano II 6.

Nessa perspectiva, o evento indicou a atualização das orientações do


Vaticano II. Portanto, não se trata de uma iniciativa individual do Papa, mas de um
compromisso para o qual toda Igreja é chamada a assumir, em conformidade com
as orientações conciliares. Além do Vaticano II, João Paulo II esclareceu a não
confusão e sincretismo do evento e realçou o significado e o valor das religiões não
cristãs7. Por outro lado, o acontecimento de Assis também indicou um momento de
grande importância no seu pontificado, onde foi frisado seu empenho em mostrar

5
Discurso do Papa João Paulo II à Cúria Romana para cumprimentos de Natal, 22 de dezembro de
1986, n. 2;3;4. Disponível em:
<http://www.vatican.va/holy_father/jonh_paul_ii/speeches/1986/december/documents/hf_ip-
ii_spe_19861222_curia-romana_it.html>.
Acesso em 30 de mar de 2012.
6
Ibid., n. 7
7
Ibid., n. 9

9
ao mundo o valor do diálogo entre a diversidade de crenças presentes na
sociedade.
Vale salientar, ainda, no que tange as controvérsias, o discurso de João
Paulo II ao corpo diplomático acreditado junto à Santa Sé, no qual ele defendeu a
legitimidade do Encontro de Assis, a 10 de janeiro de 1987, por ocasião da troca de
cumprimentos do ano novo. Diante das autoridades presentes o Papa, retomou
aspectos importantes para se alcançar a paz: a oração como símbolo da unidade da
humanidade, por meio da qual é possível afastar do coração humano o egoísmo, a
agressão, a ganância e, ao mesmo tempo pode levar à conversão do coração
humano; a paz como realidade de natureza ética, e ainda a importância do respeito
em todos os direcionamentos da vida humana e como caminho para a paz; o
diálogo como requisito importante nas relações diversas do mundo e a fraternidade
como imperativo significativo para se afastar a competição, o poder, e a guerra. Do
mesmo modo, ele destacou a solidariedade como chave para a paz, por meio da
qual a humanidade pode afastar do seu meio a violência sem sentimentos de
derrota8. Em outra parte do discurso onde o Papa é ainda explícito na defesa sobre
o encontro de Assis:
Da parte dos representantes das grandes religiões, não se tratava mais
de negociações de convicções de fé para se chegar a um consenso
religioso sincrético. Mas para olhar junto ao mesmo, tão desinteressado,
objetivo fundamental da paz entre os homens e entre os povos. [...] a
oração é o primeiro dever dos homens religiosos, sua expressão típica9.

O Papa volta à temática do sincretismo religioso na tentativa de mostrar aos


participantes que o objetivo do encontro não é negociar a fé, ou misturar as
crenças, mas de orar pela paz, como impulso que se encontra intrinsecamente ao
ser humano, independente de sua religião e que é comum a todos que estão
ligados a um Ser transcendente.

Considerações finais

Analisando a trajetória histórica do Papa João Paulo II, é possível afirmar


que ele contribuiu eficazmente no campo do diálogo abrindo novos caminhos na
Igreja. Seus gestos e seus pronunciamentos indicaram seu desejo de apresentar
uma nova forma de evangelizar, levando em consideração as mudanças das
sociedades e do mundo. Seus enfoques, na direção da atividade humana e

8
Discurso do Papa João Paulo II ao corpo diplomático acreditado junto a Santa Sé para troca de
cumprimentos de ano novo, 10 de janeiro de 1987. Disponível em:
<http://www.vatcan.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/1987/january/documents/hf_jp_ii_spe
_19870110_corpo-diplomatico_it.html>. Acesso a 1 de abr de 2012.
9
Ibid., n. 3: (Da parte dei reppresentanti delle grnadi religioni non se trattava più de negoziare
delle convinzioni de fede per giugere a um consenso religioso sincretista. Ma de guardare, insieme
nello stesso momento, in modo disiteressato, al’obiettivo cruciale della pace tra gli uomini i tra i
populi. [...] La preghiera è il primo dovere degli uomini religiosi, la loro spressione tipica).

10
espiritual, faz compreender questões significativas não somente para o
Cristianismo, como para todas as religiões que se interessam por um mundo
melhor.

Vale ressaltar que os gestos de João Paulo II, longe de apontar dicotomia na
sua personalidade, indicaram forte abertura em sua relação com os não cristãos.
Sua atuação na relação com os líderes de outras religiões indicou fortemente o
desejo de refazer as divisões entre os seres humanos, na maioria delas, causadas
pela indiferença das religiões.
A palavra diálogo apareceu na maioria de seus discursos levando a entender
sua capacidade de compreender a necessidade de relações dialógicas mais eficazes,
frente às diferenças notáveis na sociedade atual. Essa relação dialógica, muitas
vezes indicada por ele, sempre esteve ligada à dimensão da fraternidade, com o
objetivo de levar as religiões a compreenderem sua origem e destinos comuns e a
se unirem por um mundo melhor, tendo em vista os males que podem afetar ou
aniquilar a vida humana sobre a terra.
Nessa direção, ele fez entender que todas as religiões podem contribuir para
o bem da humanidade, a partir de suas dimensões ética e espiritual. Realçando a
dimensão ética, despertou em todos o dever de preservar a vida em todas as suas
expressões, de cuidar para que possam viver com dignidade exercendo direitos e
deveres, como responsáveis pela organização da sociedade. No que tange à
espiritualidade, soube reconhecer a dimensão espiritual do ser humano e, nesse
sentido, refletiu sobre a importância da liberdade religiosa, do respeito às
diferentes formas que a humanidade procura viver em relação com o
Transcendente. Nesse ínterim, seu testemunho é positivo na luta pela superação
dos preconceitos que afastam os seres humanos uns dos outros.
Ainda vale destacar a capacidade do Papa em reconhecer a paz como sendo
de natureza divina, como dom que pode ser alcançado mediante a oração de todos
os seres humanos, unidos cada qual a seu modo, mas na mesma intenção em
busca da paz. Seu convite a todas as religiões a orarem pela paz (1986 e 2002) foi
um exemplo de quem acreditou que a paz é possível mediante a súplica dos
homens e mulheres religiosos.
Diante dos paradoxos, ambiguidades e controvérsias que emergiram na
trajetória de João Paulo II, pode-se justificar seus limites humanos, pois foi passivo
de erros, contudo, é relevante enfatizar que sua contribuição no campo do diálogo
sinalizou positivamente aquilo que é preciso se fazer para tornar o mundo mais
justo, fraterno e solidário. Os pronunciamentos, as atitudes que em algum
momento contrariaram a atuação do Papa em direção ao diálogo, pouco significam
diante do seu esforço frente ao cenário pluralista das culturas e religiões em busca

11
de um mundo mais pacífico, essa realidade continua refletindo a importância do
diálogo. Nesse direcionamento, os testemunhos de vários autores sobre sua
atuação positiva, como se pode verificar, permitem apresentar a postura do Papa
João Paulo II como uma efetiva contribuição para o diálogo inter-religioso na
atualidade.
Sobre suas reflexões, é possível apoiar novas discussões em vista da
urgente necessidade da aproximação respeitosa entre as diferentes religiões. Seus
escritos e gestos sublinhados durante seu governo podem contribuir eficazmente
para novas discussões nos mais variados setores da sociedade, especialmente nos
meios acadêmicos onde homens e mulheres de religiões diferentes buscam
responder às interpelações do mundo moderno e se interessam por referências
positivas que apontem caminhos, pelos quais é possível alcançar a paz e a justiça
entre os povos.

REFERÊNCIAS

ACCATTOLI, Luigi. Karol Wojtyla: o homem do final do milênio. São Paulo:


Paulinas, 1999.
ALEMANY, Joaquim José, S.J. El diálogo inter-religioso em el Magistério de la
Iglesia. Madrid: Universidade Pontifícia de Comillas, 2001.
ARAÚJO, Roger. João Paulo II: uma vida de santidade. São Paulo: Canção Nova,
2011.
BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2004.
DUPUIS, Jacques. Por uma leitura pluralista do cristianismo. São Paulo:
Paulinas, 1999.
FRISOTTI, Heitor. Passos no diálogo – Igreja católica e religiões afro-brasileiras.
São Paulo: Paulus, 1996.
LECOMTE, Bernard. João Paulo II: biografia. Rio de Janeiro: Record, 2005.
PONTIFÍCIO Conselho Para o Diálogo Inter-religioso. Diálogo e Anúncio. São
Paulo: Paulinas, 1996.
RATZINGER, Joseph. João Paulo II: vinte anos na história. São Paulo: Paulinas,
2000.
SVIDERCOSCHI, Gian Franco. João Paulo II: um papa que não morre. São Paulo:
Paulinas, 2011.
TEIXEIRA, Faustino (Org). O diálogo inter-religioso como afirmação da vida.
São Paulo: Paulinas, 1997.
VATICANO II: mensagens, discursos e documentos. São Paulo: Paulinas, 1998.
BARROS, Marcelo. A unicidade e universalidade salvíficas de Jesus Cristo e da
Igreja. In.: VIGIL, José Maria (Coor.). O atual debate da teologia do pluralismo
depois da Dominus Iesus. Disponível em:
<http://servicioskoinonia.org/LibrosDigitales/LDK/LDK1port.pdf>. Acesso em 29 de
dez. 2011.
JOÃO PAULO II, Papa. Discurso a Cúria Romana para cumprimentos de Natal,
22 de dezembro de 1986. Disponível em:
<http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/1986/december/docum
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2012.
______. Discurso junto ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé, para troca de
cumprimentos de Ano Novo, 10 de janeiro de 1987. Disponível

12
em:<http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/1987/january/documents/hf_jp-
ii_spe_19870110_corpo-diplomatico_it.html>. Acesso em 25 de mar de 2012.
L’OSSERVATORE ROMANO. Roma, 22 de out. 1986.

13
REFLEXÕES SOBRE AS CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES E A PSICOLOGIA: ANÁLISE
DA AUTOTRANSCENDÊNCIA NA VIVÊNCIA DO HOMEM RELIGIOSO

Danielly Costa Roque Vieira 1


Karen Guedes Oliveira2

RESUMO

Ao longo da história da civilização, a relação entre ciência e religião foi marcada por
momentos conflituosos. Há quem acredite que ambas caminham juntas, como
também existem aqueles que as consideram temas totalmente incongruentes. Hoje,
percebe-se cada vez mais a importância de um diálogo entre os dois campos para a
construção de ideias, reflexões e principalmente novas percepções que corroborem a
necessidade de suprimir as tensões que foram cravadas e que perduram nos dias
atuais. Portanto, o seguinte estudo objetiva tecer uma reflexão a fim de contribuir
para uma ponderação acerca de discussões entre cientistas da religião e da psicologia
sobre o homem religioso e o fenômeno da autotranscendência. Para tal estudo, foi
realizada uma revisão da literatura, a qual se constituiu em três momentos: primeiro,
foi realizado um resgate histórico dos traços básicos destes discursos acadêmicos
confrontando os elementos que fizeram parte do processo de construção das Ciências
das Religiões, assim como divergências e convergências apontadas ente os referentes
autores; o segundo referiu-se à Psicologia da Religião, sua contextualização histórica e
seu embasamento epistemológico e, em um terceiro momento, foi realizada uma
reflexão sobre os principais fundamentos da Logoterapia (terceira escola vienense de
Psicoterapia) para a compreensão da autotranscendência na vida do homem religioso.
Concluiu-se que a partir da releitura de estudiosos das Ciências das Religiões,
percebe-se que as ciências das religiões não constituem uma disciplina à parte
fundada na unidade do objeto (a religião) e na unidade do método (a compreensão
hermenêutica). Pelo contrário, consiste em um campo disciplinar, com uma estrutura
aberta e dinâmica. Quanto ao homem religioso, percebe-se a existência de um leque
de possibilidades diante se seu ser-no-mundo, e com isto a vivência religiosa se
manifesta de muitas maneiras no existir humano. Para Viktor Frankl, o fundador da
Logoterapia, é possível encontrar o sentido da vida, uma vez que esqueçamos e
deixemos de lado nosso modo egoísta de viver e passarmos a buscar algo que
realmente valha a pena, além de nós mesmos. Isto é, as autênticas decisões
existenciais não se apoiam definitivamente em algo impessoal, mas provém daquilo
que constitui a parte mais humana do homem, o Eu-espiritual. Frankl concebe que o
cerne da existência humana consiste na sua disposição à autotranscendência, a qual
significa a capacidade do homem de sair de si mesmo e voltar-se para algo ou alguém
que está além de si próprio.

Palavras–Chave: Ciências das Religiões, Psicologia, Logoterapia,


Autotranscendência.

ABSTRACT

Throughout the history of civilization, the relationship between science and religion
was marked by conflicting moments. Some believe that the two go together, as there
are also those that consider themes totally incongruous. Today, we see more and

1
Psicóloga Clinica, graduada em Psicologia (UNIPÊ), Especialista em Saúde Mental (FIP) e Mestranda em
Ciências das Religiões (UFPB).
2
Graduada em Psicologia (UEPB), Mestranda em Ciências das Religiões (UFPB).
more the importance of a dialogue between the two fields to construct ideas,
reflections and insights primarily to corroborate the need to eliminate the tensions
that have been spiked and that endure today. Therefore, the following study aims to
weave a reflection in order to contribute to a weight of about discussions between
scientists of religion and psychology of man and the phenomenon of religious
transcendence. For this study, we performed a literature review, which was formed in
three stages: first, we conducted a historical review of the basic traits of these
academic discourses confronting the elements that were part of the construction of the
Science of Religions, as well as differences and convergences being pointed referents
authors, the second referred to the Psychology of Religion, its historical context and its
epistemological basis, and a third time, was held to reflect on the key foundations of
Logotherapy (third Viennese school of psychotherapy) to understanding of
transcendence in the life of the religious man. It was concluded that from the
rereading of scholars Science of Religions, one realizes that the science of religions are
not a separate discipline founded on the unity of object (religion) and the unity of
method (a hermeneutic understanding). In contrast, consists of a disciplinary field,
with an open structure and dynamics. As for the religious man, realizes that there is a
range of possibilities before if your being in the world, and with it the religious
experience manifests itself in many ways in human existence. For Viktor Frankl, the
founder of Logotherapy, you can find the meaning of life, and forget that once we put
aside our selfish way of living and move to get something really worthwhile, beyond
ourselves. This is the authentic existential decisions definitely not based on something
impersonal, but what comes is the most human of man, the I-spiritual. Frankl
conceives that the core of human existence is its willingness to self-transcendence,
which means man's capacity to stand outside yourself and turn to someone or
something that is beyond himself.

Keywords: Science of Religions, Psychology, Logotherapy, Transcendence.

INTRODUÇÃO

Ao longo da história da civilização, a relação entre ciência e religião foi marcada por
momentos conflituosos. Há quem acredite que ambas caminham juntas, como
também existem aqueles que as consideram temas totalmente incongruentes. Hoje,
percebe-se cada vez mais a importância de um diálogo entre os dois campos para a
construção de ideias, reflexões e principalmente novas percepções que corroborem a
necessidade de suprimir as tensões que foram cravadas e que perduram nos dias
atuais. Nascida no campo da rejeição às suas antecessoras, a Filosofia e, em especial, a Teologia, a
Ciência da Religião tinha enforme conceptual positivista e era acima de tudo cientifista, contudo
Ciência e Religião tem sido um dueto problemático em algumas áreas da cultura
ocidental moderna e o acréscimo da Psicologia a esse dueto tem o sentido de destacar
a extensão da ciência natural e biológica para a ciência humana e de apontar a
dimensão psicológica que vincula o cientista à religião e o religioso à ciência.
Desde cedo a Psicologia teve algum contato com a questão ciência/religião, e
partindo do principio que a Psicologia da Religião é o estudo da experiência vivida pela
pessoa no que tange às questões da imortalidade, da liberdade de vontade, da relação
corpo-alma, dos sentimentos, afetos e finitude, tais questionamentos produzem um
sentimento de procura de respostas entre a visão e a fé, entre a realidade humana e
Deus, e ao nos depararmos com estas reflexões entendemos que a vida é
A natureza passional do homem, que luta, ama, odeia, admira,
conhece o espanto ingênuo e a reverência numinosa, que
mostra capacidade de diálogo, de esperança e de
transcendência (JASPERS, citado por DORSCH, HACKER &
STAPF, 2001, p.746-747).

Faremos mais adiante uma ponte entre a Psicologia da Religião e a


Logoterapia, a fim de analisarmos a transcendência na vida do homem religioso, já
que a partir desta é que o homem pode sentir sua experiência religiosa, que passa a
ser a vivência fundante do homem, porque é ela que realiza o diálogo do homem com
o mundo e principalmente com o significado último das coisas e do homem em relação
ao sagrado.

2 As Ciências das Religiões: contextualização histórica e o debate de uma


área acadêmica

A percepção de que a religião habitualmente se constitui em um entrave ao


avanço da ciência é uma ideia que ainda persiste de modo ainda muito forte, tal
perspectiva provavelmente explica boa parte da hostilidade algumas vezes vista entre
cientistas e religiosos, assim como o debate que muitas vezes torna-se acalorado
sobre religião e ciência. Contudo, há vários anos historiadores da ciência vêm
demonstrando que os "fatos" supracitados como exemplos do contínuo conflito entre
religião e ciência são alguns dos muitos mitos relacionados ao tema.
A contextualização histórico brasileira de Ciências da religião fundamentada por
Dreher (2001), inicia com um campo de discussão desde a distinção clara que se
deve ter entre a ciência da religião da teologia e a formação multifacetada que o
estudioso da religião deve ter, os aspectos acrescentados pelo o autor nos remete a
reflexão que nos distancia do redutivismo, sugerindo um estudo autônomo e
interdisciplinar da ciência da religião igualmente com a necessidade de distinguir no
que consiste em semelhanças e diferenças entre a teologia e ciência da religião.
Contrapondo a visão de Dreher (2001), o discurso sobre Ciência da Religião é
proposto por Usarski (2006), como uma disciplina isolada, autônoma, centrando-se na
manutenção da autonomia e identidade própria da ciência da religião dentro da área
acadêmica, demonstrando as diferenças entre uma produção Teológica e a pesquisa
cientifica da religião, deixando claro que a mesma não esta vinculada a uma religião
ou filiada a Teologia, mas uma Ciência que tem seus métodos do estudo da religião.
Para Camurça (2008), a Ciência da Religião no Brasil nasce e se desenvolve
confrontada com a Teologia e as Ciências Sociais, já para Frank Usarski (2006), não
se pode ter como objetivo apontar o certo e o errado nas distintas religiões, mas a
religião como objeto de estudo pelo cientista da religião, comungando da mesma
visão, Mendonça (2001), afirma que só se pode falar de uma Ciência da Religião se for
possível determinar um referencial único.
Greschat (2005), nos leva à reflexão sobre o papel do cientista da religião e
sua relação com o objeto, levando em consideração a época e reações comumente a
suas respectivas crenças, segundo o autor a religião em sua totalidade torna-se um
divisor de águas entre cientistas da religião e aqueles que se ocupam
esporadicamente da religião ‘’este relaciona um aspecto religioso a totalidade da
disciplina em que são especialistas: as leis, por exemplo, a psique, a arte e assim por
diante’’(GRESCHAT, 2005, p.24).
Ainda para Greschat (2005), a experiência religiosa seria a força vital que
alimenta e anima as religiões, onde a força da religião está vinculada a vivência, a
verdade de sua crença individual, onde as ’’experiências religiosas são cristalizadas em
obras de arte, ritos, mitos e em outras manifestações. Talvez algo visível permita-nos
um olhar no invisível, em uma experiência religiosa’’(GRESCHAT, 2005,p 27).
Os autores Filorami e Prandi (1999), enfatizam a autonomia relativa da
religião, e a dicotomia entre mudanças e permanências de ritos e crenças,
questionando a religião em sua autonomia, afirmam ainda que o termo autonomia
está sujeito a uma ampla variedade de uso, assim como diversos graus, com isto o
estudioso da religião deve conhecer os fenômenos religiosos em um entrelaçamento
concreto, historicamente dado, entre determinadas ‘’individualidades religiosas com
sua particular lógica e estrutura e determinados contextos histórico–
sociais’’(FILORAMI; PRANDI, 1999, p.20). Um “exercício acadêmico em direção aos
fundamentos” do campo. Tal debate envolve a relativização das polaridades que
colocam de um lado, religião como “todo coerente: totalidade e transcendência, e as
ciências (sociais) com pretensões de decompor a primeira em um conglomerado de
contingências socioculturais, historicamente produzidas e transformadas”, do outro
lado (CAMURÇA, 2008, p. 35).
No campo de discussões acadêmicas, as mudanças que ocorrem diante da
experiência religiosa, e de que como o próprio movimento do campo religioso ocorre
em suas interfaces são reflexões constantes, nas palavras de Geertz
(2006),denominando-se de transferência de sentidos. Vale também ressaltar a
inversão de Velho (2008) sobre o que a religião pode fazer por nós e a “tradução num
sentido forte”: a “via de mão dupla em que aquilo que é traduzido, afeta a linguagem
para a qual é traduzido e é afetado pela tradução” (VELHO, 2008, p. 238).

3 Psicologia da Religião e Logoterapia: Analisando a Transcendência divina na


vivencia do Homem Religioso

A psicologia da religião procura perceber os mecanismos psíquicos nos


sentimentos ou experiências religiosas de um indivíduo ou de um grupo, mecanismos
estes que podem colocar-se ao nível dos impulsos mentais, provocando êxtase ou
uma meditação profunda. William James foi o um dos representantes mais conhecidos
e fundadores desta disciplina, que em 1902, no livro The Varieties of Religious
Experience, tentou mostrar o lado interior de uma crença religiosa sem recorrer à
típica terminologia teológica. Foi também James que obteve grande aceitação em sua
teoria, demonstrando que a racionalidade moderna não apagará necessariamente a fé
religiosa.
Ainda sobre o desenvolvimento da Psicologia da Religião, HOCK (2010),
estabelece diferenciais sobre estes na Alemanha, onde a Psicologia Experimental
ganha espaço na percepção de que a Religião é vista como um fenômeno superior,
onde não pode ser pesquisado por meio da Aplicações de métodos, e na França onde
Psiquiatras se dedicaram a questões psicológicos religiosas, Pierre Janes e Théodule
Amand Ribot e outros dedicaram-se a pesquisa da relação entre religião e fenômenos
psicopatológicos.
Uma vez saído do momento do seu batismo, destacam-se novas vertentes de
pesquisas na Psicologia da Religião e consequentemente estudiosos renomados como
Sigmund Freud e Carl Jung, estes enquadrados na vertente da Psicologia Profunda,
onde embora tenham visões diferentes, contribuem de forma sustentável para a
Psicologia da Religião, conforme Freud a Religião elabora uma visão neurótica e
distorcida da realidade, já Jung, vê a religião de modo mais positivo que Freud.
Estabelecendo estreitas relações com cientistas da religião, teólogos, psicólogos
e cientistas naturais, Jung denomina de arquétipos os conteúdos do inconsciente
coletivo, considerando o processo de individuação uma forma alternativa das
tradicionais denominações de religiões. Segundo HOCK (2010), a compreensão da
religião, as pesquisas psicológico-religiosas ou mais para as pessoas que representam
e defendem tais conteúdos.
De acordo com Valle (2007), é natural certo estranhamento entre psicologia e
religião, pois há uma evidente distância entre o tomar consciência das situações-limite
do humano e o tentar analisar com objetividade “positiva” e “medir” o que os seres
humanos experimentam em tais situações. Segundo o autor, a religião, do ponto de
vista da psicologia, deve ser entendida como uma “atitude”, isto é, como uma maneira
de ser diante de alguém ou algo. Estrutura-se como uma síntese dinâmica, orientada
por metas, normas e valores que são assimilados pelas pessoas a partir do que são,
sentem, pensam e buscam.
Entretanto é importante ressaltar que o reducionismo pode acontecer na
Psicologia da Religião de duas formas, quando o investigador se apropria de um tema
religioso para explicá-lo a partir de uma teoria psicológica, ele reduz à religião a
psicologia. Considerando os fenômenos religiosos como expressões de processos
humanos iguais a quaisquer outros, desacreditando, pois de seus característicos
significados. Este reducionismo rejeita a noção de que as religiões estão presentes na
sociedade como corpos de conhecimentos, crenças e valores que incidem na
subjetividade humana. Excluindo o principio da transcendência, que diz que os
psicólogos da religião não devem nem afirmar nem negar a existência autônoma do
objeto religioso.
A partir deste panorama surge a necessidade de analisar a transcendência, e
como o homem pode sentir sua experiência religiosa, vivência que passa a realizar-se
com si próprio, com o mundo e o sagrado. A vivência do homem no mundo ocorre na
maioria das vezes de forma fragmentada, por isso, tende sempre à totalidade do ser,
tanto em seus projetos como em suas realizações. A superação dessa experiência de
finitude existencial vem com a experiência religiosa, fazendo o homem abrir-se
‘’para’’, e é neste momento que aparece a vivência religiosa, isto é, o surgimento do
sagrado. A experiência religiosa segue de encontro direto com as principais questões
existenciais do homem, com base nestas afirmações analisaremos este estado
religioso através da Logoterapia, criada pelo psicólogo austríaco Viktor Frankl, a
Logoterapia vê o homem além da dimensão especificamente humana, onde em
nenhum momento o homem deixa as demais dimensões, mas a essência de sua
existência está na dimensão espiritual denominada de noética, pela qual se entende
que o homem não é um ser guiado, pelo contrário, ele é livre e responsável.

4 Visão do Homem para Logoterapia

Para a Logoterapia a visão do homem é baseada em três aspectos: a liberdade


da vontade, a vontade de sentido e o sentido da vida, a liberdade da vontade se opõe
ao determinismo e significa à liberdade da vontade humana, a vontade de sentido
remete ao homem um desejo básico e fundamental, algo que é especificamente
humano, enquanto que o sentido da vida é caracterizado pela vontade inerente, como
uma motivação primária em sua vida. Esta busca não é algo aprendido, condicionado
ou objeto de sua consciência, ela está na pessoa como mola impulsionadora de sua
existência, sendo o sentido único e especifico para cada ser humano.
O sentido da vida do ser humano se concretiza em todas suas dimensões:
pessoal, social, corpórea, histórica e transcendente, o homem passa a ser um ser
aberto a relação com os outros dentro da sociedade, o conviver social na rede de
relações que interliga indivíduos assegura uma melhor qualidade de vida a todo ser
humano. Segundo Frankl esta é uma característica constitutiva da existência
humana’’o homem busca-se, em sua busca, tende a atingir o mundo, mundo esse
repleto de outros seres humanos a encontrar e de sentidos a preencher’’ (FRANKL,
2011, p. 45).
Assim, a existência propriamente humana é a existência espiritual, e neste
sentido, a dimensão noética é considerada superior às demais, sendo também mais
compreensiva porque inclui as dimensões inferiores, sem negá-las - o que garante a
totalidade do homem (FRANKL, 2007).A dimensão espiritual mostra-se,
essencialmente, como a dimensão da vivência da liberdade e da responsabilidade.
Responsabilidade nada se identifica com um caráter moralista pelo qual o indivíduo se
obrigaria a agir de acordo com normas introjetadas, mas caracteriza-se justamente
pela capacidade de responder, isto é, pela liberdade atuante no momento em que o
homem responde ou se posiciona diante das circunstâncias presentes. Falar de
existência, na sua dimensão espiritual, é falar sobretudo do "ser-responsável" e do
"ser humano consciente de sua responsabilidade" (FRANKL, 2007, p.58).
Para Jung a espiritualidade foi considerada um fator tão essencial para a saúde
psicológica que ele só poderia tratar pessoas de meia-idade que tivessem uma
perspectiva espiritual ou religiosa perante a vida. Viktor Frankl, em seu livro “A
presença ignorada de Deus”, menciona a importância da lembrança do primeiro
contato com a fé, a primeira vez que ouvimos falar sobre Deus. E essa lembrança é
utilizada como um recurso de enfrentamento para os seus pacientes que se
encontravam com uma doença incurável. Segundo a logoterapia a vida tem um supra-
sentido que excede e ultrapassa toda e qualquer compreensão intelectual do ser
humano. Esse supra-sentido pode ser bem exemplificado na fé religiosa, onde as
pessoas confiam naquilo que não veem ou compreendem e esperam por um futuro do
qual não tem provas que possa existir. Esse princípio, muitas vezes, impulsiona e dá
forças às pessoas para superarem as adversidades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caminho percorrido e que foi sendo construído nas Ciencia(s) da(s) Religião,
levantam muitas questões, algumas questões aqui discutidas neste artigo, onde é
possível perceber que se trata de um campo inesgotável de conhecimento onde se
permite essa possibilidade para as distintas reflexões. A releitura de autores citados
neste artigo nos proporciona uma percepção que sugere uma mudança na postura
científica, enfatizando a ruptura dualista, e consequentemente abandonando as
posturas unilaterais.
No que se refere a Ciências das Religiões e a Psicologia da Religião, foram
analisados em seu contexto historico juntamente com os grandes respresentantes e as
aproximações existentes entre estes estudos,com isto recomenda-se pensar que
Psicologia e Religião são apenas mais dois componentes de uma realidade repleta de
sistemas interdependentes. Ainda neste estudo foi possivel pontuar aspectos sobre a
transcedencia divina dentro da Abordagem da Logoterapia, observando que o homem
possui infinitas possibilidades dentro de seu ser-no-mundo, e com isto a vivência
religiosa se manifesta de muitas maneiras no existir humano. Concluímos esta
resumida apresentação de algumas descrições ressaltando que esta busca a
religiosidade não ocorre de forma linear, parte-se do pressuposto de que viver os
aspectos religiosos e espirituais é valorizar as ações solidárias, o respeito a
diversidade e as diferenças.
Para Viktor Frankl, o fundador da Logoterapia, só encontraremos o sentido da
vida se nos esquecermos, e deixarmos de lado nosso modo egoísta de viver e
passarmos a buscar algo que realmente valha a pena, além de nós mesmos.

REFERÊNCIAS

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Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 121-167.
A CONTRIBUIÇÃO DO GRUPO FIDELID E DA CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES NA
FORMAÇÃO DO PROFESSOR DO ENSINO RELIGIOSO

Narjara Lins de Araújo1


Profº Dr. Marinilson Silva 2

RESUMO

Este artigo traz a contribuição para o processo de formação dos professores e


pesquisadores do ensino religioso do grupo de pesquisa FIDELID, que está
vinculado a Universidade Federal da Paraíba-UFPB e ao curso de pós-graduação em
Ciências das Religiões. O objetivo geral deste trabalho é divulgar os objetivos do
grupo pesquisa Formação, Identidade, Desenvolvimento e Liderança de Professores
de Ensino Religioso (FIDELID) como complemento para a formação de professores
e pesquisadores do ensino religioso. Atualmente participam do grupo professores
mestres e doutores em Ciências das Religiões, professores do ensino religioso,
alunos da graduação e pós- graduação em Ciências das Religiões, e alunos do curso
de pedagogia. Os autores destacados são Junqueira (2009); Soares (2012);
Cândido (2010); Silva (2011); Alves (1981); Latour (2004) entre outros, todos
atrelados ao campo das Ciências das Religiões.
Palavras- Chaves: ciências das religiões; ensino religioso, formação docente

ABSTRACT

This paper gives a contribution to the process of training teachers and researchers
of religious education at research FIDELID, which is linked to the Federal University
of Paraíba and UFPB-graduate course in Science of Religions. The overall goal of
this work is to promote the objectives of the research training group, Identity,
Leadership and Development of Teachers of Religious Education (FIDELID) as a
complement to the training of researchers and teachers of religious education.
Currently attending the group master teachers and doctors in Sciences of Religions,
religious education teachers, undergraduates and graduate in Science of Religions,
and students of pedagogy. The authors are highlighted Junqueira (2009), Soares
(2012), Candide (2010), Silva (2011), Alves (1981), Latour (2004) among others,
all linked to the field of Science of Religions.
Key Words: science of religions, religious education, teacher training

Introdução

Este artigo aborda uma questão bastante discutida na atualidade, que é a


formação dos professores que irão atuar ou atuam no ensino religioso, que após a

1
Pedagoga e mestranda da pós-graduação em ciências das religiões na Universidade Federal da Paraíba-
UFPB. E- mail: narjaralins@hotmail.com
2
Professor doutor do programa de Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba- UFPB.
E- mail: marinilson_rs@ig.com.br
LDB de nº9394/96 no seu Art. 33 este surge como disciplina obrigatória nos
currículos escolares de forma não confessional e nem proselitista. Com a finalidade
de atender a diversidade religiosa do povo brasileiro; não cabendo mais a formação
teológica pura deste profissional.
O objetivo geral deste trabalho é divulgar os objetivos do grupo pesquisa
Formação, Identidade, Desenvolvimento e Liderança de Professores de Ensino
Religioso (FIDELID) como complemento para a formação de professores e
pesquisadores do ensino religioso. Este grupo está situado na Universidade Federal
da Paraíba (UFPB), mais especificamente na pós-graduação do curso de Ciências
das Religiões/CE.
Para melhor compreendermos a que visão de religião o grupo de estudo em
foco está situado já que este assunto engloba o ensino religioso, farei uma breve
introdução dos pensamentos de autores da área, dentro do campo das ciências da
religião como Alves (1981), Latour (2004), Prandi (1999), Hock (2010), Usarski
(2006), Dreher (2001), Camurça (2008) entre outros.
Logo em seguida, discutirei a questão da formação docente de acordo como a
visão de autores como a do coordenador do grupo professor Dr. Marinilson Barbosa
e a professora Dr. Viviane Cândido ambos da UFPB; Junqueira (2012); Soares
(2009).
A pesquisa deste trabalho é descritiva e bibliográfica e será desenvolvida com
base em as minhas participações neste grupo de pesquisa, que já dura cerca de
dois anos. Como também do levantamento feito durante as aulas no mestrado no
curso de Ciências das Religiões.

O CONCEITO DE RELIGIÃO ATRELADO AS CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES


DISCUTIDO NO GRUPO FIDELID

É importante que conheçamos o conceito de Religião discutido pelo grupo


Fidelid, pois este tema fundamenta o contexto do ensino religioso. Desta forma, de
acordo com estudiosos da área das ciências das religiões o conceito de religião está
ligado ao contexto histórico- cultural onde cada sociedade está inserida. Podendo
esta introduzida em discursos políticos, educativos etc. por meio de símbolos.
Por isso, é importante que o estudioso e pesquisador desta área definam
bem o seu objetivo dentro da religião que vai se aprofundar e o (s) contexto (s)
cientifico (s) que vai servir de base teórico- metodológico para o seu estudo.
Deve-se ter o cuidado para não deixar transpor as suas crenças pessoais
durante o procedimento da pesquisa, principalmente a de campo. Sendo importante
focar no fenômeno religioso em si e adequá-lo aos seus objetivos. O pesquisador
não pode colocar suas percepções durante a pesquisa, no contato com os adeptos
deve-se fazer de conta que acreditamos, para assim perceber e achar o que
queremos. (ALVES, 1981, P.119)
Segundo Rubens Alves (1981) todas as religiões tem uma marca em
comum, todas pensam a realidade para que ela faça sentido. Dando destaque ao
funcionalismo da religião, ou seja, esta é vista como uma forma de lidar com as
dificuldades humanas. Segundo este autor, a religião dá estrutura ao mundo físico.
E mesmo com o avanço tecnológico e científico a religião não vai ser extinta, e sim
que a esperança religiosa permanece, mas com modificações.
A religião passa a ser comparada com o encantado, com o mágico, pois, o
homem é formado de desejos e a religião seria uma teia de símbolos capazes de
transubstanciar a natureza, onde esta perde o seu sentido natural como forma de
se saciar os desejos daqueles. Usando como ferramenta a imaginação, onde os
símbolos trazem a ordem e a vontade de viver.
Ou seja, a religião passa a dar sentido à existência humana. Se por um
acaso estes esquemas entram em colapso, o homem pode chegar à loucura.
Destaca ainda que o sentido da religião esta na realidade escondida das pessoas
religiosas. E que o verdadeiro sentido da religião é o ateísmo. (ALVES, 1981a)
Latour (2004) tem como principal objeto de estudo a produção da verdade
nos diversos campos. Para ele para se falar em religião é preciso falar sobre o
discurso religioso, pois falar da religião e falar sobre a religião são coisas distintas.
Destaca que o discurso religioso não transmite informações, mas pessoas e novos
recomeços. E para redirecionar a nossa atenção para a verdade do discurso é
preciso entender que a fala religiosa esta no presente, então devemos desviar a
nossa atenção para o distante.
O autor continua destacando que a definição Religare apesar de ser a mais
usada é também bastante criticada. Acredita- se que exista uma insuficiência
semântica do conceito de religião para dar conta da complexidade do termo
sagrado, por isso não tem como existir um termo universal.
Apesar da demora, o cristianismo percebe que não é a única religião do
mundo. Cada termo e definição esta ligada ao contexto sócio- histórico por isso não
tem se basear no termo etimológico de religião e a sua explicação. Na realidade
somos portadores de um paradigma religioso. As religiões estão dentro das esferas
da vida, ou seja, religião, política e direito. (PRANDI, 1999, P.253-257)
Prandi (1999b) ainda mostra que as definições de religião estão atreladas a
três teorias: a primeira seria a Teoria da Ilusão, que consiste em uma forma de
consolo para os sofrimentos humanos e tem função funcionalista; a segunda é a
Teoria Simbolista que formam idéias e símbolos religiosos e onde as pessoas
recorrem para alcançar objetivos, tem caráter funcionalista; e a última é a Teoria
Cognitiva que é uma interpretação ou explicação do mundo, como forma de
controlar e manipular as pessoas.
Já Hock (2010, p.20) busca a essência das religiões e o que elas têm em
comum. Para ele o conceito de religião tem que ser um “conceito- aberto”, pois
esta vinculada a outras esferas da vida. Neste sentido, religião abrange toda uma
“família” de componentes.
Segundo ele precisa- se referir a uma coleção de diferentes fatores, critérios
e dimensões que, em seu conjunto, descrevem um quadro no qual a ciência da
religião pode inserir seu objeto. No entanto, esse quadro não é “preestabelecido
objetivamente”, mas “construído” por meio da atuação de cientistas da religião, isto
é, pesquisadores que constroem, a partir de elementos relacionados entre si e de
formas de expressão, um esquema ideal- típico que determina o que pode ser
considerado “religião”. (HOCK, 2010a)
A partir deste contexto Hock afirma que religião é:

“Um constructo cientifico que abrange todo um feixe de


definições de caráter funcional de conteúdo, através do qual
podem ser captada, como “religião”, num esquema,
elementos relacionados entre si e formas de expressão, como
objeto e área de pesquisa cientifica- religiosa (e outra).
Pertencem e esses elementos e formas, entre outros,
dimensões da ética e da atuação social (normas e valores,
padrões de comportamento, formas de vida), dimensões
cognitivas e intelectuais (sistemas de doutrinas e de fé,
mitologias, cosmologias, etc., ou seja, todo o saber
“religioso”), dimensões sociopolíticas e institucionais (formas
de organização, direito, perícia religiosa, etc.), dimensões
simbólicos- sensuais (sinais e símbolos, arte religiosa, música
etc.) e dimensões da experiência (experiências de vocação e
de revelação, sentimento de união mística, experiência de
cura e salvação, experiências de comunidade e de
unificação)”. (HOCK, 2010b)

Outro autor Asad (1993) considera a religião como condição primeira. Acredita
que se as instituições se transformam a religião também se transforma, tanto no
que é visível como na sua natureza. Para este autor, a religião teria uma autonomia
diferente da sociologia e da política; ela é transhistorica e transcultural e não um
fenômeno.
Este também é contra a universalidade e essencialidade da religião, afirma que
até mesmo os elementos que constroem um contexto histórico específico é produto
de conceitos históricos, entre estes a própria definição “universal” de religião. Ou
seja, todo conceito é um sistema de símbolos, que formam conceitos e se tornam
reais. Por trabalhar a questão do poder e liberdade, defende que não há um
sistema simbólico separado da prática. (ASAD, 1993a)
De acordo este autor, o discurso teológico é diferente do discurso religioso. Para
ele o primeiro não induz necessariamente um discurso religioso. O discurso é a
prática e o agir social. Os discursos mais autoritários redefinem o discurso religioso,
onde na prática se sujeitavam a uma autoridade central, que negava as linhas de
pensamentos desconectadas com a sua e não o fenômeno religioso. É a partir deste
contexto que surge o discurso universalista da religião. (ASAD, 1993b)
Ele não defende um conceito de religião, apenas afirma que o conceito de
religião esta interligado ao sócio-histórico, os símbolos religiosos estão ligados a
vida social e mudam com ela; podendo apoiar ao poder político dominante e pode
se opor a ele.
Continua afirmando que diferentes tipos de práticas e discursos são intrínsecos
ao campo das representações religiosas, ajudando a criar as identidades. No
entanto, o conceito de religião esta atrelado a disciplinas e autoridades ao longo do
processo histórico. E o seu principal interesse é buscar a geologia (essência) da
religião. Mostrar como foi construída antropologicamente e não em definir um
conceito de religião. (ASAD, 1993c)
Para Usarski (2006) religião é um sistema repleto de sentido e o termo sagrado
possui uma larga utilização, isto é, o plural da palavra religião indica vários
métodos, por isso não devem ser usados no plural.
Greschat (2005, p.17-20) acrescenta um novo pensamento, segundo este
existe uma tendência em materializar a “religião” como cristã. Porém, a religião é
uma espécie (essência), repleta de especialidades, não tem como ser comparada a
uma ciência exata e nem ter um conceito universal.
Já Dix (2007) narra que os estudiosos acreditavam que com a secularização
haveria o desaparecimento da religião ou o desencantamento do mundo ao
contrário do que acontecia na idade média.
Este autor ainda destaca que para falar de religião existem duas perspectivas a
“perspectiva interior” e a “perspectiva exterior”; a primeira é uma perspectiva
confessional e advém do crente e a segunda é a perspectiva do autor que fala
sobre o assunto. Para ele o contexto sócio- histórico é determinante na construção
do conceito de religião, e acrescenta que no século 21 esta se volta para a esfera
pública e cientifica. (DIX, 2007a)
Continua seu pensamento afirmando que é necessário descrever o fenômeno
religioso num determinado contexto cultural e não ter uma visão sobrenatural; mas
o lado humano e social da fé religiosa. Por isso, é necessário definir como ira
prosseguir com seus estudos.
Pois ao contrário a definição pode causar confrontos ao pesquisador, mas são
importantes para certo coletivo. É preciso respeitar e ter alteridade, como também
refletir e reavaliar o nosso trabalho constantemente. E ter um foco meta- teórico,
ou seja, de acordo com sua área de estudo. (DIX, 2007b)
Segundo Filoramo Prandi (1999, p.5) existem dois riscos que pode ocorrer no
estudo das religiões na parte metodológica: a Cacofonia metodológica que consiste
em usar várias metodologias, às vezes sem conexões; e a Miopia Especialista, que
ocorre quando o pesquisador fica muito fechado em apenas uma metodologia. O
ideal é buscar o equilíbrio.
Acredita que a religião não é diferente de outra realidade, por isso não pode ser
autônoma, absoluta e sim relativa. Desta forma, religião não é um estado puro,
separado da cultura ou da história; estão entrelaçados. (PRANDI, 1999a)
E finalmente Camurça (2008) descreve que as denominações de ciência ou
ciências religião ou religiões dependem da quantidade de objetos que for abordado.
A idéia é polissêmica, ou seja, não tem como se alcançar a “essência da religião”.
Para este autor a religião é uma via de mão dupla entre ciência e religião, que
permite afetar e deixar- se afetar pelo objeto, ou seja, pensar o objeto e não com o
objeto.

AS CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES E A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DO ENSINO


RELIGIOSO

Contextualizando o (s) termo (s) ciência (as) da (s) Religião (s)

Existe um grande debate em torno da nomenclatura da ciência da religião,


se deve ficar no singular ou no plural. Outra questão bastante discutida e que esta
relacionada à primeira é se esta pode ser considerada uma disciplina, pois muitos
argumentam que esta não tem uma metodologia própria, enquanto outros afirmam
que tem.
De acordo com Usarski (2006) a fase formativa da ciência da religião é difícil
de historiar, devido a equívocos nas datas. Mais tem- se como base a virada do
século XIX ao XX. Ela é considerada uma filha emancipada da teologia. Atualmente
é uma disciplina social e autônoma e não um campo disciplinar, e por isso deve ter
um lugar específico no meio acadêmico.
Apesar dos seus paradigmas estarem em processo de construção, estes
consistem em: realizações cientificas; é universalmente reconhecida; possui um
tempo para que surjam outros paradigmas; envolve conceitos e teorias, oferecem
soluções para determinada comunidade cientifica e possui um método próprio, o
integrativo. (USARSKI, 2006a).
Mas foi no final do século XIX como afirma Filoramo Pranti (1999b) com o
surgimento do positivismo que foi possível perceber que a ciência da religião não
tinha como fazer uso dos mesmos métodos empíricos das ciências naturais. Surge
em contraponto às ciências do espírito, estando mais ligada a compreensão, a visão
essencialista. Desta junção surge o método integralista da ciência da religião; que é
uma junção entre áreas de conhecimentos, que não podem ser dissociadas.
Assim como Usarski o autor Wiebe (1998, p. 42) também acredita no
método integrativo da ciência da religião, apesar de defender que esta é um campo
disciplinar e não uma disciplina autônoma (ciência). Onde o fenômeno religioso é o
foco, independentemente de outras conexões com outras áreas. Tem- se uma visão
mais complexa e ampla.
Wiebe (1998) continua proposto que a ciência da religião não é um
empreendimento religioso, o que a difere da teologia. Se a primeira quer de fato se
diferenciar da teologia ela deve se interessar pela verdade sobre a religião e não
pela verdade da religião. Ou seja, a ciência da religião tem um aspecto mais
cientifico do que catequético.
Hock (2010c) também ver a ciência da religião como uma disciplina
autônoma. Assegura que os cientistas da ciência da religião têm uma visão mais
geral do fenômeno religioso. Para ele está disciplina tem uma perspectiva cientifica-
religiosa e serve para transmissão de conhecimentos sobre religião e culturas; se
distancia da essência do fenômeno religioso e se aproxima do tema pluralidade
religiosa.
Destaca a função mediadora ou moderadora da ciência da religião, isto é
promover o dialogo entre as religiões e desfazer preconceitos, de forma
interdisciplinar. E apesar de usar o discurso religioso, este não é o seu principal
discurso. (HOCK, 2010d)
Dix (2007c) ainda propõe que a ciência da religião é a verdade sócio-
cultural e difere da teologia principalmente por estudar vários livros sagrados e não
apenas um, como revelação divina. Como também explica o enigma da existência
humana por meio de respostas dadas pelas várias ciências o contrário da teologia.
Conta que a ciência da religião possui uma pluralidade de métodos e de
interpretações. Tem como função descrever fenômenos religiosos num determinado
contexto cultural. Não faz uso da visão sobrenatural, mas do lado humano e social
da fé religiosa. (DIX, 2007d)
Filoramo Prandi (1999c) que ver a ciência da religião, como campo
disciplinar, com uma estrutura aberta e dinâmica, explica cada nomenclatura dada
ao termo onde: ciência da religião é quando existe apenas um método cientifico e
um objeto unitário; ciência das religiões tem um único método para vários objetos;
ciências da religião tem uma multiplicidade de métodos e um único objeto e
finalmente ciências das religiões da qual faz parte o grupo de pesquisa estudado
FIDELID, possui uma pluralidade metodologia e de objetos.
Camurça (2008a) não ver a ciência da religião como um campo disciplinar,
mas por meio da interdisciplinaridade. Afirma que o termo ciência da religião surge
com a intenção de criar uma nova área, separada da teologia e da sociologia e o
que fica em comum é o estudo do fenômeno religioso. Porém, deve está
sintonizada com as demais áreas, como também trazer contribuições em relação ao
fenômeno religioso.
Continua dizendo que a autonomia da ciência da religião em relação às
ciências humanas, tende a ser sempre relativa, posto que é uma área acadêmica
composta por várias ciências com trajetórias teórica- metodológicas próprias. E
complementa que o diferencial da ciência da religião é em oferecer uma atenção
especial e uma concentração de saberes das ciências humanas ao tema da religião.
(CAMURÇA, 2008b)

A formação docente para o ensino religioso (ER) no âmbito da ciência (s)


da (s) religião (s)

Existe um grande problema que afeta a formação docente para o ensino


religioso e até mesmo a própria prática desta disciplina nas escolas, é o fato do
Ministério de Educação e Cultura (MEC) não ter criado os Parâmetros Curriculares
Nacionais para esta disciplina, apesar de ter considerado-a uma das 10 áreas de
conhecimento importantes para a formação da pessoa. Como não existe nenhuma
orientação específica, a construção do seu currículo fica a mercê da política de cada
escola, excluindo muitas vezes as necessidades de aprendizagem dos seus alunos.
Este problema é decorrente do descaso em relação ao ER durante o tempo, pois
enquanto as outras disciplinas básicas do currículo escolar evoluíam em seus
conteúdos de forma cientifica e em suas metodologias e procedimentos
pedagógicos, o ER ficou estagnado em dogmas religiosos e sobe responsabilidade
de instituições religiosas, principalmente o cristianismo, impedindo assim que estas
incluam outras crenças religiosas que caracterizam a pluralidade religiosa do povo
brasileiro.
Diante da falta de atitude do MEC o Fórum Nacional Permanente de Ensino
Religioso (FONAPER) preocupado com o desenvolvimento do ER depois da
separação da Igreja /Estado, organizou os Parâmetros Curriculares Nacionais, isto é
uma orientação específica para esta disciplina. Devido à credibilidade do FONAPER
esta proposta vem sendo usada como base para os cursos superiores de formação
de professores e na construção do currículo escolar do ER. (BRANDENBURG, 2004,
P.62)
Acredita-se que os principais desafios marcados para o ER têm uma relação
direta com os estudos da religião, ou das Ciências da Religião no Brasil. Não
existindo uma base epistemológica, não há o que ensinar numa área de
conhecimento. O canal histórico comum é um brando desenvolvimento do ensino
superior no país e a escassez de estudos de religião na esfera acadêmica. (PASSOS,
2007, P.34)
Passos (2007b) alega que as Ciências da Religião solidifica-se no nível de pós-
graduação com seus cursos regulares de mestrado e doutorado credenciados pela
Capes. Porém, estes são recentes e escondem em seus currículos pressupostos e
conteúdos teológicos.
Existe atualmente um grande desafio dos professores de ensino religioso como
comenta o pesquisador e coordenador do grupo Fidelid, Marinilson Silva, reside na
difícil superação das concepções teológicas e catequéticas. Pois, em ambas as
abordagens existem em comum, a visão da passividade dos sujeitos que compõe o
universo educacional, no modelo catequético, o professor transmite e o aluno
absorve.
No modelo teológico, os sujeitos (alunos e professores) não precisam dialogar,
não precisam se colocar no lugar do outro e visualizar a religiosidade e a
espiritualidade de um ponto de vista diferente, apesar do respeito e entendimento
de que vivemos numa sociedade plurirreligiosa. (SILVA, 2010, P.21-22).
No entanto, este é o momento de inovar e deixar para trás os dogmas firmados
no passado, em decorrência dos mesmos princípios da autonomia religiosa e da
laicidade do ensino.
Hoje a principal função do professor do ER, segundo Silva (2010a) o professor é
mediar à questão religiosa, a espiritualidade para toda a comunidade escolar, por
meio do dialogo inter-religioso e da busca pela ética e pela paz.
Para Junqueira (2009) os saberes e práticas dos professores estão
correlacionados e são formados de acordo com a sua formação profissional, seus
saberes disciplinares, curriculares e experienciais. Por isso, é fundamental que os
saberes dos professores ocorram de maneira global a outras dimensões do ensino.
Evitando-se a transferência de uma ideologização e de proselitismo e limitando a
visão de sociedade dos seus alunos.
Para este autor as instituições de ensino superior que formam professores do ER
devem ter como objetivo tratar o fenômeno religioso como característica cultural
dos povos e patrimônio da humanidade, passível de ser estudado e pesquisado.
A proposta pedagógica para o ER na sua essência não é vista como tarefa
isolada, mas que abrange todas as ações humanas e em conseqüência as
religiosas. Este componente curricular deve brotar do interior deste projeto plural,
constituindo-se em disciplina, enquanto busca conhecimentos religiosos e
fundamentos para um compromisso ético na perspectiva de um agir solidário e
transformador das realidades existentes. (JUNQUEIRA, 2009a)
Segundo a autora Cândido (2010) a melhor forma de qualificar o olhar para
lidar com as diferenças no ER é “localizarmos essas controvérsias já em suas fontes
mesmas, bem como na experiência de sua prática pedagógica, assim sendo,
chegaremos à epistemologia capaz de fundamentá-la, isto é, a controvérsia.
De acordo com as quatro teses da epistemologia da controvérsia de
Cândido:

1. A finalidade do ER é possibilitar aos educandos uma


ampliação de sua visão de mundo, levando-os a uma maior
compreensão das questões religiosas no âmbito da vida
moderna, tendo a religião como seu objeto de estudo,
elevando tais estudos e reflexão à categoria de elementos
colaboradores na compreensão e vivência do realmente
humano e do diálogo na diferença.
2. [...] contemplar o tratamento das religiões tanto do ponto
de vista institucional quanto do ponto de vista da experiência
religiosa, ou seja, considerar a religião de forma ampla e não
reduzi-la a algumas de suas compreensões, [...] recorrendo
para tanto, a uma abordagem multidisciplinar. (p.106)
3. Pensando na religião como um objeto de estudo que, por
si mesmo, exige uma abordagem multidisciplinar, no âmbito
das Ciências das Religião, entendemos como um lugar
propício para essa reflexão a Filosofia da Religião, área que,
ao tratar a religião como parte da vida da razão, no campo
específico do estudo da religião e do ER, pode contribuir com
a afirmação de sua identidade e, no campo das Ciências da
Religião em geral, para um trabalho multidisciplinar
consistente nesse mesmo estudo.
4. Na escola, em razão das diferenças, se dão os conflitos.
Para nós, a forma de qualificar nosso olhar para esses
conflitos, tornando-os operativos cognitivamente é,
necessariamente, mediada pela controvérsia e, no que
concerne ao ER, localizamos essas controvérsias já em suas
fontes mesmas, bem como na experiência de sua prática
pedagógica, assim sendo, chegamos a que a epistemologia
capaz de fundamentá-lo é a controvérsia. (CÂNDIDO, 2010a)

Junqueira (2009b) defende que o ER deve abordar a questão religiosa a partir


da Ciência da Religião, segundo ele só assim será possível compreender todas as
dimensões presentes que a religião infere na sociedade inseridas no cotidiano,
posturas e discursos.
Sabe-se que a presença das dioceses e paróquias ainda é constante nas
escolas, porém, houve um grande investimento na produção de livros sobre
Ciências da Religião em parceria com várias ciências que davam suporte ao ER.
Houve um aumento das Instituições superiores para a formação de professores
para atuarem no ER com bases na Ciência da Religião, cujo objetivo era tratar o
fenômeno religioso como característica cultural dos povos e patrimônio da
humanidade, passível de ser estudado e pesquisado. (JUNQUEIRA, 2009c)
O acúmulo de estudos de Ciências da Religião nos cursos de pós-graduação
pode ser considerado, um primeiro passo, para que preconceitos sejam superados e
até mesmo da institucionalização do estudo cientifico da religião no campo das
ciências habilitadas nas áreas estabelecidas pelos órgãos do ministério da
Educação. (PASSOS, 2007c)
Existem atualmente autores renomados na área do ER com bases na Ciência da
Religião: Profº Dr. Faustino Teixeira (UFJF); João Décio Passos (PUCSP); Frank
Usarski (PUCSP), Luzia Sena (2006); Profº Afonso Maria Ligório Soares (2010)
Apesar das muitas controvérsias entre alguns autores em relação ao ER como
uma área de conhecimento. Alguns argumentam que o ER não é uma área de
conhecimento, assim como a sociologia, a matemática, desta forma não pode haver
uma transposição didática do conhecimento produzido pela CR.
Em outro momento Junqueira (2009d) expõe o pensamento do profº João Décio
que coloca a filosofia da religião na transposição da CR para o ER. Nesta
perspectiva, a CR é assumida como área de conhecimento e o ER, sua leitura
pedagógica ou transposição didática.
Para Soares (2012, p.1) os cursos superiores que formam o professor do
ensino religioso deverão ter como principais objetivos: proporcionar aos docentes o
conhecimento dos elementos básicos do fenômeno religioso a partir da experiência
dos alunos; expor e analisar o papel das tradições religiosas na sociedade e na
cultura; contribuir com a compreensão das diferenças e semelhanças entre as
tradições religiosas; refletir sobre a relação entre os valores éticos e práticas
morais com as matrizes religiosas presentes na sociedade e na cultura; apresentar
a religião como uma referência de sentido para a existência.
Mostra que o melhor é não tratar o ER como área de conhecimento autônoma
em paridade com, por exemplo, a sociologia, as Ciências Jurídicas ou a Matemática.
Na verdade, continua “o ensino religioso é o resultado prático da transposição
didática do conhecimento produzido pela Ciência da Religião para as aulas do
ensino fundamental e médio”. (SOARES, 2012a)
Em geral, no Brasil a formação de professores em nível de graduação com
licenciatura em ensino religioso, tanto no âmbito publico como privado, deixa a
desejar. Os que existem são ainda pouco aderidos, como acontece com o caso da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
A Lei nº 9.475/97 trouxe novas formas de agilizar a formação de professores
para o ER. Assim, na medida em que professores vão adquirindo habilitação vão
aperfeiçoando sua relação com a disciplina, com os colegas de profissão, alunos e
por fim com a sociedade. (SILVA, 2010b)
Apesar dos contratempos as ciências da religião podem sim servir como base
teórica para o ER, disposto- se como mediação epistemológica para as suas
finalidades educacionais em cursos de licenciatura. (PASSOS, 2007d)
Por falar nisto, já existem alguns trabalhos de conclusão de curso (TCC) e
dissertações de mestrado que usufruíram das reuniões e produções do grupo de
pesquisa Fidelid para enriquecerem a suas fundamentações teóricas. Um destes
trabalhos foi o meu TCC cujo tema foi “O Ensino Religioso: Representação de
estudantes do curso de pedagogia da UFPB. (ARAÚJO, 2011)
É ainda importante destacar que em 2013 será formada a primeira turma de
graduação em ciências das religiões no Brasil em uma Universidade Federal, no
caso a UFPB, que apesar de ainda não ter sido oficializada pelo Ministerio da
Educação – MEC tem todos os indícios de uma aprovação, pois recebe todos os
benefícios de um curso regular, como por exemplo, a bolsa Capes e a Bolsa Reuni,
da qual faço estou inclusa. Entre outros benefícios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depois de conhecermos mais a fundo a que conceitos de religião e a que bases


epistemológicas guiam a formação docente de acordo com as ciências das religiões
poderemos compreender melhor e de forma mais ampla os objetivos do grupo de
pesquisa FIDELID.
Os objetivos do grupo foram colhidos por meio do projeto escrito para o
programa de apoio as licenciaturas, Prolicen e Pibic lidado ao CNPq. Estes
consistem em: Investigar, histórica e sistematicamente, a complexidade do ensino
religioso a partir de um entendimento multidimensional, mas, sobretudo,
procurando focalizar e aprofundar as dimensões "Religião e Educação"; Analisar o
processo de formação inicial e continuada de professores de ensino religioso;
Analisar a natureza e o processo de desenvolvimento, formação de lideranças e
construção de identidades individuais e coletivas de professores de ensino religioso
a partir de um processo de investigação interdisciplinar, buscando interfaces com a
Fenomenologia, Psicologia, Sociologia, Antropologia, História, etc.; Investigar o
ensino religioso e suas múltiplas dimensões, a partir de um processo reflexivo,
crítico, transformador, humanizador e transcendental; Identificar as potencialidades
do ensino religioso em vista da construção de uma cultura de paz e de não violência
no contexto escolar.
É possível perceber que os objetivos do grupo analisado consistem em um
processo constante de analise e reflexão da prática de professores e estudos de
pesquisadores do ensino religioso.
Acredito que este aspecto possibilita uma percepção mais aguçada do tema de
pesquisa e da realidade escolar de cada pesquisador e professor. Fazendo com que
velhos hábitos sejam vistos de outra forma, a luz das ciências das religiões,
possibilitando uma melhor adequação de suas ideologias às necessidades das novas
gerações.

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da religião. São Leopoldo: Sinedal, 1998, p.38-52
1

O ENSINO RELIGIOSO E A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Rodrigo Oliveira dos Santos1

Resumo:

O presente estudo busca evidenciar na legislação educacional vigente, em especial as


Leis nº 9.475/1997, 10.639/2003 e 11.645/2008, a proposta curricular do Ensino
Religioso e a sua relação com a Educação das Relações Étnico-Raciais, tomando como
objeto a abordagem da diversidade cultural religiosa no contexto dessa legislação. Para
isso apropria-se da pesquisa qualitativa, de orientação bibliográfica da literatura
temática e duas experiências pedagógico-didáticas desenvolvidas nessa abordagem,
onde os educandos, de posse do conhecimento da diversidade cultural religiosa de seu
contexto, promovem no ambiente escolar o reconhecimento da importância e valores
das diversas culturas que compõem o fenômeno religioso do povo brasileiro. A
abordagem da diversidade cultural religiosa ainda é um desafio nos currículos e no
cotidiano escolar, mesmo diante da sua obrigatoriedade as resistências persistem,
principalmente com relação às culturas religiosas afro-indígenas. Nesse sentido, o Ensino
Religioso, ao centrar sua prática pedagógica nessa abordagem, demonstra seu
compromisso social para a educaç ão brasileira, com a formaç ão humana integral do
cidadão.

Palavras-chave: Ensino Religioso. Educação Étnico-Racial. Diversidade Cultural.


Legislação.

APRESENTAÇÃO
O presente artigo discorre sobre a modalidade educacional que é própria do
Ensino Religioso (ER), o reconhecimento e promoção do respeito à diversidade cultural
país.
Durante os primeiros séculos no Brasil, destacou-se na educação a postura ativa
e permissiva diante da discriminação e do racismo que atinge a população
afrodescendente até os dias atuais, incluindo indígenas, migrantes, pessoas com
deficiências, entre outros.
No âmbito cultural religioso não foi diferente, a adesão religiosa à religião oficial
era o requisito para cidadania, pois enquanto primeira disciplina do currículo brasileiro, o
ensino da religi ão romana consistia do modelo catequético, com obj etivo da conversão
dos colonizados, não respeitando as outras culturas.
Esse processo de não reconhecimento às diferenças étnico-culturais perdurou por
muito tempo, e vem sofrendo mudanças a partir do século XX, superando a fase de
hegemonia da Igreja (século XVI a XVIII) e do Estado (século XX), ainda vinculados à
cultura eurocêntrica e a religião Católica, mesmo diante da concepção do Estado laico.

1Graduando em Letras – Habilitação Língua Alem ã (UFPA) e Mestrando em Educa ção (PPGED/UFPA), na
Linha de Pesquisa Educação: Currículo, Epistemologia e História. Líder do Grupo de Pesquisa em Educação e
Religião na Amazônia (GPERA). Bolsista da CAPES. E-mail: naumamos@yahoo.com.br
2

A leitura pedagógica do ER como área de conhecimento ocorre no final da última


década do século passado defendendo a autonomia desse componente curricular,
adotando como referência o respeito à diversidade cultural religiosa presente na escola,
a partir da leitura e decodificaç ão do fenômeno religioso como fenômeno sociocultural
comum a toda e qualquer sociedade.
Nesse aspecto, evidencia-se o direito e o respeito às diferenças, permitindo ao
outro ser sujeito do conhecimento, logo essa dimensão torna-se indispensável para as
ideias de liberdade e dignidade do cidadão brasileiro passando, de fato, a serem
incorporados na escola, inicialmente, pelo ER.
Em 2003, com a promulgação da Lei n º 10.639, essa abordagem é ampliada no
currículo da escola, com a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-
brasileira, e em 2008 é incorporada a história e cultura indígena, por meio da Lei nº
11.645.
Essas mudanças na educação nacional, embora não tão recente, ainda são
encaradas com resistências nas escolas, por isso o presente trabalho destaca a
importância e as dificuldades encontradas na promoção dessa modalidade educacional.
Nesse sentido, inicialmente transcorre-se sobre o ER, como componente
curricular obrigatório a escola, que contribui na formação integral do cidadão. Após,
destaca-se os desafios dessa área de conhecimento no contexto paraense e para
finalizar, as contribuições dessa disciplina na promoção da Educação das Relações Étnico-
Raciais.

1 O ENSINO RELIGIOSO NO BRASIL


O ER, assegurado no currículo da escola pública, como área de conhecimento,
indispensável à formação básica do cidadão, constitui-se disciplina dos horários normais
das escolas públicas, porém seu valor e importância enquanto componente curricular n ão
tem sido reconhecido na mesma.
O problema histórico criado em torno da disciplina, remonta o período de acordo
entre Igreja e Estado (Colônia e Império), mas a partir do Decreto n. 119-A, de 07 de
janeiro de 1890, no Brasil, assume-se a concepç ão de estado laico, confirmado pela
Constituição Republicana de 1891.
Nesse período, as discussões sobre o currículo e a formação docente eram
insipientes no país. Romanowski (2008) relata que, somente após a expulsão da
Companhia de Jesus do Brasil, em 1749, com as reformas adotadas por Marquês de
Pombal, inicia-se a criação das escolas públicas. Na República, mesmo com o
entusiasmo pela educação, esse quadro sofreu poucas alterações.
As mudanças começaram a surgir no início do século XX, com o Manifesto de
1932, de onde aparecem os indicativos para um projeto de educaç ão nacional incluindo a
3

criação de um sistema de ensino público, laico e para t odos os cidadãos brasileiros.


Mesmo diante das intervenções legais: a Lei de Diretrizes e Bases da Educaç ão Nacional
(LDB), a Lei nº 4.024/61 e 5.540/68 e 5.692/71 (reformas da LDB), somente após o
período da Ditadura Militar essa questão tomou proporções significativas.
É importante destacar que o ER, embora ausente na Constituição de 1891,
passou a fazer parte da Constituiç ão de 1934 e em todas seguintes, a partir de ent ão. A
constituição de 1934 regulamentou o ER como disciplina na escola pública, porém de
matrícula facultativa. As Constituições de 1937, 1946 e 1947 mantiveram o ER como
disciplina do currículo, de frequência livre para o aluno e de caráter confessional de
acordo com o credo da família. Mesmo diante dessas circunstâncias, após a separação da
Igreja do Estado criou-se a concepção de que sua presença tornou-se imprópria no
currículo da escola, já que isso poderia representar o financiamento da mesma pelo
Estado.
Embora, com interesses de apoio político por parte dos governantes como
Getúlio Vargas, essas aulas retornaram à escola pagas pelo poder público, com a
nomenclatura de ER, o nome foi alterado, mas a concepç ão continuou sendo de aulas de
religião.
Segundo estudiosos da causa, os argumentos contrários e em defesa do ER
foram desenvolvidos quando do período constituinte na década de 1980, assim como
durante aprovação da LDB/1996. A polêmica continuou mesmo após a homologação da
referida lei, o que exigiu uma reformulação, que aconteceu em 1997, tanto que foi o
primeiro artigo dessa lei a ser alterado. Nesse sentido, o ER passou a ser concebido
como uma área de conhecimento e organizado a partir da escola e não das religiões.
O que não se pode adiar é o fato que este componente está presente na escola,
e como os outros, precisam sofrer críticas e reformulações, considerando que:
A escola deve explicitar em suas propostas curriculares processos
de ensino voltados para as relações com sua comunidade local,
regional e planetária, visando à interação entre a educação
fundamental e a vida cidadã; os alunos, ao aprenderem os
conhecimentos e valores da base nacional comum e da parte
diversificada, estarão também constituindo sua identidade como
cidadãos, capazes de serem protagonistas de ações responsáveis,
solidárias e autônomas em relação a si próprios, às suas famílias
e às comunidades (Resolução CEB/CNE nº 02/98).

E como todos os componentes contribuem para isso, logo o ER é parte


integrante dessa ação, por isso a importância do presente estudo.
O currículo, segundo vários estudiosos, é considerado um campo de conflitos e
de forças políticas, ideológicas, econômicas e socioculturais situado no tempo e no
espaço. “Todo conhecimento depende da significação e esta, por sua vez, depende das
relações de poder. Não há conhecimento fora desses processos” (SILVA, 1999, p. 149).
4

As relações de poder, para o autor, são previamente determinantes na


formulação dos currículos, como aconteceu na história com o currículo do ER e ainda
hoje percebemos que existe essa luta por ele na sociedade, é consequência da
construção histórico-cultural e política do país, e hoje os estudos acerca do currículo
melhor podem explicitar isso.
Segundo Oliveira et al. (2007, p. 34) “O Ensino Religioso é um componente
curricular que visa discutir a diversidade e a complexidade do ser humano como pessoa
aberta às diversas perspectivas do sagrado presentes nos tempos e espaços histórico-
culturais”.
Historicamente, o ER sempre foi um campo pol êmico na sociedade e na escola,
mesmo estando presente nas Constituições brasileiras a partir de 1934, não deixou de
sofrer as influências das teorias do currículo em suas diversas concepções.
Na década de 60, devido à pressão de diferentes manifestações religiosas e da
sociedade civil organizada, surgiram grandes debates retomando a questão da liberdade
religiosa. Com a manifestação do pluralismo religioso na sociedade brasileira, o modelo
curricular do ER centrado na doutrinação passou a ser intensamente questionado e
perdeu sua função catequética. Porém, na prática, os professores leigos e voluntários
continuavam a ministrar as aulas, encaminhando-as com forte influ ência das tradições
religiosas, com o objetivo de converter os alunos para a religião oficial.
O direito do cidadão de confessar livremente a sua crença foi resgatado nas
Constituições da Segunda República, do Regime Militar e da chamada Constituição
Cidadã, aprovada em 05 de outubro de 1988, trazendo maiores preocupações com os
chamados direitos sociais, sendo considerada, assim, a mais democrática entre as
Constituições brasileiras. Nesse sentido, faz-se necessário explicitar essa dimensão da
Carta Magna para compreender o caráter democrático dessa Lei, na qual o modelo de ER
está inserido.
Considerando o art. 210 da Constituição Federal de 1988, o ER foi aprovado na
LDB nº 9.394/1996, sob os seguintes aspectos: de matrícula facultativa; ministrado nos
horários normais das escolas públicas do ensino fundamental, mas sem nenhuma
indicação de como se faria nas escolas da rede privada; sem ônus para os cofres
públicos; oferecido de acordo com as preferências que os alunos ou responsáveis
manifestassem e de caráter confessional ou interconfessional.
Apesar do caráter democrático da Constituiç ão Cidadã, a promulgação da LDB
não contemplou as demandas da sociedade civil organizada e confirmou o ER “sem ônus
para o Estado”, cabendo ao corpo docente trabalhar de forma voluntária ou sustentada
pelas tradições religiosas.
A concepção do ER , mantida até o texto original do artigo 33 da LDB/199 6, era
de que ele deveria ter um perfil relacionado às tradições religiosas e n ão a uma
5

identidade pedagógica. Por esse motivo, era a única disciplina submissa a “dois
senhores”: autoridades escolares e autoridades religiosas, permitindo, assim que a
escola fosse espaço de contínuo proselitismo.
É importante destacar a ausência de cursos de formação para professores de ER,
o que favoreceu as tradições religiosas hegemônicas no preparo de professores por meio
de cursos e da elaboração de materiais didático-pedagógicos que, em sua grande
maioria, continuaram atrelados aos princípios catequéticos.
Para imprimir ao ER o enfoque pedagógico, a nova redação do art. 33 da
LDB/1996, a Lei nº 9.475/1997, declara que o Ensino Religioso é parte integrante da
formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normai s das escolas
públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do
Brasil, sendo vedadas quaisquer formas de proselitismo, além da organização curricular
dos conteúdos com a participação da entidade civil representada p elas diferentes
denominações religiosas e habilitação dos professores para atuar na disciplina a partir da
responsabilidade dos sistemas de ensino.
A esse enfoque, cria-se uma nova concepção de ER, tendo como base o respeito
à diversidade cultural religiosa do Brasil, sendo vedadas quaisquer formas de
proselitismo e a sinalização de que os sistemas de ensino devem regulamentar os
procedimentos sobre os conteúdos e, inclusive, as normas para habilitaç ão e admissão
desses professores.
Essa alteração mudou profundamente os rumos da disciplina, ressaltando o
caráter pedagógico do ER aponta para a necessidade da formação de um profissional de
nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e
institutos superiores de educação (art. 62, da LDB/1996).
O ER, na atualidade da educação brasileira, manifesta-se com um dos lugares e
espaços em se destacam e discutem posições sobre o sentido da vida, do ser humano,
na perspectiva da liberdade do ensino, como forma de construção da liberdade humana,
sendo esta uma das maiores dificuldades que a humanidade enfrenta: permitir ao outro
ser sujeito de sua cultura e de seus interesses, de modo especial quando os interesses
dele interferem na vontade e nos interesses do outrem.
O ER, nesses termos, precisa compreender essa quest ão, pelo fato de haver nas
escolas, diferentes opções e dimensões de fé. Saber respeitar o diferente e as diferenças
e com eles interagir é, para esse componente curricular, um marco referencial. Por outro
lado, não se pode perder de vista a contextualização do ser humano no tempo e no
espaço em que ele atua e existe, tanto como professor quanto como aluno, já que a
visão da pessoa influencia profundamente sua postura face à sociedade e garante ou
questiona a relação com a divindade.
6

Perceber a importância do outro é dos eixos temáticos do ER, a esse aspecto


recupera-se distorções históricas e ideológicas ao trazer os conhecimentos de outras
culturas marginalizadas e minoritárias, mesmo que isso nem sempre seja o caso, como
os afro-brasileiros e indígenas no Brasil.

2 O ENSINO RELIGIOSO NO CONTEXTO PARAENSE


O ER no contexto paraense tem vivenciado um grande dilema quanto à sua
presença no currículo das escolas públicas e quanto ao profissional habilitado para
ministrá-lo. Já com relação à rede de ensino privado este componente curricular tem
estado presente somente nas escolas de orientação confessional até o ensino médio, nas
demais, o ER inexiste.
A presença e desenvolvimento deste componente curricular acompanham os
acontecimentos históricos na educação brasileira, tomando novos rumos a partir da
alteração do art. 33, da LDB, com a Lei nº 9.475/1997.
A partir dessa nova concepção, busca-se superar o modelo confessional e
interconfessional, pelo fenomenológico, “[...] cujo ponto de partida é o fenômeno
religioso presente na sociedade, como abertura do homem para o sentido fundamental
de sua exist ência, seja qual for o modo como é percebido esse sentido ” (JUNQUEIRA,
2008, p. 96), implicando diretamente na forma como esse fenômeno é percebido e
desenvolvido na escola, logo, necessita-se de um profissional legalmente habilitado,
com a devida formação, incluindo as demandas teóricas e pedagógicas.
O primeiro curso de formação conhecido no Pará, na modalidade livre, em
licenciatura curta, no modelo da interconfessional, data da década de 80 “Para
desenvolver a proposta de interconfessionalidade, a Arquidiocese de Belém criou, em
parceria com a Universidade do Federal do Pará – UFPA, o Curso de Licenciatura Curta
em Ensino Religioso, que passou a formar os profissionais para trabalharem o ER”
(NASCIMENTO, 2009, p. 28).
Em 2000, é criado por meio da Resolução nº 361/CONSUN-UEPA, de 20 de
outubro de 1999 e seu funcionamento autorizado pelo Parecer nº 372/01 e Resolução nº
403/01, do Conselho Estadual de Educação do Pará (CEE/PA), o primeiro curso de
licenciatura plena para atender o Ensino Religioso, numa universidade pública do Brasil,
a Universidade do Estado do Pará (UEPA), o curso de Ciências da Religião.
Desde então, inicia-se no Pará a leitura pedagógica desse componente curricular
e área de conhecimento que integra a base nacional comum (Resoluç ão nº 04/2010 –
CNE/CEB), porém, essa compreensão não é compartilhada pelo sistema de ensino local,
que não dispunha de uma legislação específica sobre o ER.
Em 2007, é criada a Associação dos Cientistas da Religi ão do Pará (ACREPA),
agregando profissionais que ministram o ER , com objetivo de garantir o espaço e
7

reconhecimento desse profissional, bem como assegurar o respeito da diversidade


cultural religiosa do país no ambiente escolar.
O primeiro empreendimento ocorreu em parceria com o Centro Acadêmico de
Ciências de Religião (CACIR) junto ao CEE/PA sobre a regulamentaç ão da disciplina e do
profissional habilitado para isso, ent ão, em 23 de novembro de 2007, foi emitida a
Resolução nº 325 – CEE/PA.
Embora fosse assegurado o espaço desse docente e os pressupostos
epistemológicos acerca dos conteúdos do ER, na prática, n ão ocorreu o esforço por parte
do sistema de ensino paraense para efetivação do previsto na Resolução.
Em 2008, a Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC) anunciou
concurso para 423 vagas de professores de Ensino Religioso (Diário do Pará, 2008).
Entretanto, as ações para isso passaram a ocorrer em 2009 com a elaboraç ão da minuta
de edital para o concurso, constando apenas 140 vagas.
Durante esse período, a ACREPA vem investindo na concretização desse direito
com ações junto ao Ministério Público Estadual (MPE) e Federal (MPF). Em 2010, MPE
reuniu ACREPA, Conselho Estadual e Municipal de Belém para tais esclarecimentos
quanto ao desenvolvimento da disciplina e o profissional que a ministra, já que a
presença da Resolução estadual não assegurava tal direito.
Na reunião, o Conselho Municipal afirma que não existia Resolução sobre tal
normatização, enquanto o Conselho Estadual tenta justificar-se afirmando que o Estado
estava tomando as devidas providências com o concurso.
Na época, a ACREPA apresenta planilha da Secretaria Municipal de Educaç ão
(SEMEC) com mais de 200 turmas se m professor de ER ao MPE, comprovando o descaso
com a disciplina, pois no início do ano sempre ocorria contratações por parte da SEMEC.
No mesmo ano, Conselho Municipal de Educaç ão emite a Resolução nº 31/2010,
que normatiza a disciplina na rede municipal.
O Conselho Estadual, também, emitiu a Resoluç ão nº 01/2010, sobre as
diretrizes da educação básica no Pará, destacando o ER como parte integrante da
formação básica do cidadão e a formação específica, em curso superior de licenciatura
plena para os anos finais do ensino fundamental e médio, de acordo com o art. 62-63,
da LDB.
Nesse sentido, no estado do Pará existe uma situação desagradável com a
disciplina, pois, este detém um curso de formação específica, legalmente reconhecido
pelo sistema de ensino local, mas insiste em manter na escola qualquer profissional,
além de dificultar a realização do concurso público para o magistério no ER.

3 A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS


8

A Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura


Afro-Brasileira e Africana instituída pela Resolução nº 01, de 17 de junho de 2004,
baseado no Parecer CNE/CP nº 003/2004, de 10 de março de 2004, em atendimento da
luta histórica do movimento negro, principalmente, atende aos dispositivos previstos na
Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, que altera a Lei n º 9.394/1996, modificado pela
Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003, tornando obrigatório o ensino de história e
cultura afro-brasileira e indígena no currículo da educação básica.
Em atendimento a esses dispositivos legais, o Conselho Nacional de Educaç ão,
em 2004, aprovou o parecer que propõe as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira, sendo publicadas em 2005 e em 2006 as Orientações e Ações para a Educação
das Relações Étnico-Raciais, sendo que, o último documento corresponde aos resultados
de um vasto trabalho desenvolvido por diversos estudiosos, em diversas jornadas
realizadas em Salvador, Belo Horizonte, F lorianópolis e Brasília, entre 2004 e 2005,
segundo Henrique (2006), na apresentação das Orientações e Ações.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educaç ão das Relações Étnico-Raciais
e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana constituem-se de
orientações e princípios e fundamentos para o planejamento, execução e avaliação da
educação, e t êm por meta, promover a educaç ão de cidadãos atuantes e conscientes no
seio da sociedade multicultural e pluriétnica do Brasil, buscando relaç ões étnico-raciais
positivas, rumos à construção de nação democrática (Resolução nº 01/2004, Art. 2º).
Segunda a supracitada Resolução, a Educação das Relações Étnico-Raciais tem
por objetivo a divulgação e produção de conhecimentos, bem como de atitudes, posturas
e valores que eduquem cidad ãos quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes
de interagir e negociar objetivos comuns que garantam, a todos, o respeito aos direitos
legais e a valorização da identidade, na busca da consolidação da democracia brasileira,
de acordo com o § 1º, da seguinte Resolução “Essa modalidade de educação atende,
sobretudo, os dispositivos da Lei nº 10.639/2003, modificada pela Lei nº 11.645/2008,
devido ao tipo de tratamento que vem sendo dada a história e cultura afro-brasileira e
africana no currículo da escola brasileira, onde o negro e o índio continuam sendo
vítimas de estereótipos e estigmas racistas e preconceituosos”.
Integrado, assim, a essa modalidade de educação, o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana tem por objetivo o reconhecimento e valorização da
identidade, história e cultura dos afro-brasileiros, bem como garantia da igualdade de
valorização das raízes africanas da nação brasileira, ao lado das indígenas, europeias,
asiáticas, conforme § 2º da presente Resolução.
Esses objetivos referendados nos dois parágrafos serão desenvolvidos, segundo o
art. 3º, por meio de conteúdos e competências, atitudes e valores, a serem
9

estabelecidos pelas instituições de ensino e seus professores, com o a poio e supervisão dos sistemas de
ensino, entidades mantenedoras e coordenações pedagógicas, atendidas as indicações,
recomendações e diretrizes explicitadas no Parecer CNE/CP nº 003/2004.
Esses conteúdos serão ministrados no âmbito de todo o currículo da educação
básica, destacando as áreas de Educação Artística, Literatura e História Brasileiras, não
isenta as outras áreas de conhecimento da responsabilidade. A Lei 11.645/2008, § 1º, do
Art. 1º destaca algumas especificidades desses conteúdos:
O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá
diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a
formação da população brasileira, a partir desses dois grupos
étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a
luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e
indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade
nacional, resgatando as suas contribuiç ões nas áreas social,
econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

Esses documentos estabelecem mediações pedagógicas entre os subsídios


teóricos e práticos para a promoç ão dessa modalidade educacional, em atendimento a
luta histórica de negros e índios diante do desrespeito manifestado em atitudes racistas,
preconceituosas e discriminatórias na escola, não permitindo mais a perpetuação dessas
posturas e concepções.
Ambos os documentos enfatizam a importância do fenômeno religioso africano e
indígena no currículo da educaç ão básica e na formaç ão de professores, sendo que no
primeiro é dado m aior destaque, contudo, esse fenômeno é marcado pela invisibilidade,
pela negação e até mesmo a proibição de sua abordagem, por ser trata de
conhecimentos “maléficos”.
As Diretrizes para esta modalidade de educação (2005) afirmam que é
importante destacar que não se trata de mudar de foco etnocêntrico marcadamente de
raiz europeu por um africano, mas de ampliar o foco dos currículos escolares para a
diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira. Essa abordagem positiva
desses conteúdos, ou seja, as contribuições histórico-culturais, e não somente de
denuncia da miséria e discriminações que atingiram essas populações.
Incluem-se nesses conteúdos as irmandades religiosas, o papel dos anciões e
dos griots como guardiães da memória histórica, a historia da ancestralidade e
religiosidade africana, destacando o jeito próprio de ser, viver e pensar, manifestado
tanto no dia-a-dia, quanto em celebraç ões como congadas, moçambiques, ensaios,
maracatus, rodas de samba, entre outros.

4 O ENSINO RELIGIOSO NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-


RACIAIS
10

No currículo da educação básica, integrando a base nacional comum, est ão


diversas áreas do conhecimento (Língua Portuguesa, Matemática, o conhecimento do
mundo físico, natural, da realidade social e polít ica, especialmente do Brasil, incluindo-
se o estudo da História e das Culturas Afro-brasileira e Indígena , Arte, Educação Física e
Ensino Religioso), no sentido de assegurar a formação integral do cidadão, respeitando
as diversas formas de saber, incluindo o exercício da solidariedade humana e a
tolerância recíproca em que se assenta a vida social (art. 32, LDB).
Com objetivo de atender as características regionais e locais da sociedade, da
cultura, da economia e da comunidade escolar enriquece a complemen te a base nacional
comum à parte diversificada.
Nesses aspectos, destaca-se o ER, com suas contribuições desde a última
década do século passado, com abordagem do respeito da diversidade cultural religiosa
do Brasil, sendo vedadas quaisquer formas de proselitismo.
Entretanto, há de se considerar o desconhecimento e não compreensão desse
componente curricular que “[...] tem como base de sustentação de sua estrutura
cognitiva e educativa a leitura e a decodificaç ão do fenômeno religioso ” (JUNQUEIRA;
RODRIGUES, 2009, p. 21).
Nesse momento, destacam-se as contribuições dessa área de conhecimento, que
sustenta sua prática pedagógico-didática a partir da diversidade cultural e religiosa, pois:
O erro mais trágico e persistente do pensamento humano é o
conceito de que as ideias são mutuamente exclusivas. Esse
engano fatal em todos os tempos frustra o ideal de fraternidade
universal. Em cada indivíduo, em cada povo, em cada cultura
existe algo que é relevante para os demais, por mais diferentes
que sejam si. Enquant o cada grupo pretender ser o dono exclusivo
da verdade, enquanto perdurar esta estreiteza de visão, a paz
mundial permanecerá um sonho inatingível (PCNER, 2009, p. 33).

Nessa acepção, de que a verdade não é própria de uma cultura o u outra é que o
ER desenvolve-se, considerando a pluralidade e a diversidade do fenômeno religioso na
sociedade, como abertura do homem para o sentido fundamental de sua exist ência, seja
qual for o modo como é percebido esse sentido, valorizando assim, a
Transcendência/Imanência, como conhecimento enraizado em toda em qualquer
produção cultural, logo não pode ser negado. O conhecimento religioso, mesmo
revelado, é uma produção humana nos tempos histórico-culturais, sendo considerado um
patrimônio da humanidade, por isso, deve estar disponível aos alunos, como afirma os
PCNER (2009, p. 33-34) “Nesses termos, básico para a construção da paz na sociedade é
a humildade para reconhecer que a verdade não é monopólio da própria fé religiosa ou
política. E, no Ensino Religioso, pelo espírito da reverência às crenças alheias (e não só
pela tolerância), desencadeia-se o profundo respeito mútuo que pode conduzir à paz”.
11

Sobre essa perspectiva, desenvolve-se o ER no ambiente escolar, permitindo


que o outro e o diferente tenham o mesmo tratament o, assegurados o respeito mútuo e
a prática da tolerância, com o combate do preconceito, do racismo e da discriminação.
Essa dimensão que integra a formação integral do cidadão, reverenciado no ER,
tem sido apresentada há mais de 15 anos pela Revista de E nsino Religioso Diálogo, com
diversas experiências do Sagrado, nas mais variadas culturas.
Entre esses trabalhos, destacam-se na abordagem da educaç ão das Relações
Étnico-Raciais A caminho da multiculturalidade: ensino religioso na ilha do Marajó (2009)
e Da resistência a consciência (2010).
A primeira experi ência destaca a importância da diversidade cultural religiosa
de Salvaterra, na ilha do Marajó, onde os alunos, por ocasião do desfile de 07 de
setembro, caracterizam-se na representação dos líderes de ssas tradições, e ligados por
uma faixa ao personagem Sagrado, apresentam as diversas relações na busca pela
Transcendência existente na sua cultura local (MACIEL; SANTOS, 2009).
O reconhecimento do multiculturalismo na escola desenvolveu-se com a
participação de vários líderes religiosos, mas a participaç ão dos afro-religiosos traduziu-
se, para alguns, numa arbitrariedade, pois essa cultura ainda continua sendo
marginalizada na educação.
A segunda experiência destacou o dia 20 de novembro, atendo os dispositivos da
Lei nº 10.639/2003. Em seu contexto histórico-cultural, Salvaterra acumulou,
atualmente, o maior número de comunidades quilombolas reconhecidas de todo
Arquipélago do Marajó; são 16 reconhecidas, entretanto, na escola, restava o
desconhecimento e a negação do negro, visto como escravo e o índio, como selvagem
(SANTOS, 2010).
Nesse sentido, ressaltaram-se as contribuições e a importância da cultura
africana na sociedade brasileira e local, destacando, também, a cultura marajoara, com
o sincretismo e o hibridismo cultural.
Em poucos dias, organizou-se a Semana da Consciência Negra, promovendo
cinco temas: história da escravidão, comunidades quilombolas, culinária, religião e arte
(música e dança).
Durante as apresentações das atividades, que n ão ocorreram somente na escola
de origem dos alunos, mas até em outras comunidades, como as comunidades
quilombolas, destacando a beleza na estética negra, a exemplo dos penteados e na
vestimenta (SANTOS, 2010).
Esses temas foram desenvolvidos em diversas escolas, sendo a dança
coreografada roda dos Orixás a que mais chamou atenção, apresentada na abertura da
semana.
12

Diante disso, professores e alunos sofreram com algumas situações racistas e


discriminatórias, evidenciando a dificuldade para reconhecer o valor da diversidade
cultural religiosa.
A demonização das atividades marcou para sempre os envolvidos, reconhecendo
que “A escola, como parte integrante dessa sociedade que se sabe preconceituosa e
discriminadora, mas que reconhece que é hora de mudar, está comprometida com essa
necessidade de mudança e precisa ser um espaço de aprendizagem onde as
transformações devem começar a ocorrer de modo planejado e realizado coletivamente
por todos os envolvidos, de modo consciente” (LOPES, 2008, p. 185).
Embora essas experiências fossem marcadas pela intolerância, de alguns
gestores e professores, principalmente, para os alunos traduziram-se nas mais
significativas aprendizagens, como descrito abaixo por uma aluna:
Aprender sobre o modo de viver a religião, porque nós, que
moramos no centro, não temos ideia da vida dele (Zumbi) e
depois desse trabalho nós tivemos oportunidade de ver a
aprender. Até ent ão eu não sabia que era Zumbi de Palmares. A
cultura, o modo de conviver, sem diferenças. Mas o mais difícil foi
passar pelo preconceito dos outros e ver que antes desse trabalho
nós éramos assim, preconceituosos. Para termos consciência disso
foi preciso perceber que nem tudo é um mar de rosas. Os
quilombolas sofrem com a invasão das cercas. Algumas pessoas
dão apoio, mas outras nos desestimulam. Na hora da fama, dizem
que o trabalho foi maravilhoso, mas quando é para jogar a
primeira pedra, são os primeiros. Fico revoltada porque sabem
que nós não somos mais aqueles alunos calados (SANTOS, 2009,
p. 63).

Fazer com que essa compreensão seja possível no ambiente escolar,


oportunizando aos alunos o conhecimento do seu contexto sociocultural, representa mais
que a promoção dessa abordagem de suma importância na escolarização brasileira.
Após as atividades ocorreu à demissão dos prof essores que as coordenavam
comprovando a urgência e a importância desses conteúdos no currículo das escolas, pois
“o mito da democracia racial ainda impede a abolição da educação” (idem, p. 63).
Nesses termos, somente a prática didático-pedagógica que cons idera a
diversidade, a pluralidade e multiculturalidade presente na escola como ponto de partida
para seu desenvolvimento, atenderá bem mais que os dispositivos legais das referidas
leis, mas cumprirá seu objetivo principal, a formação integral do educando, a partir da
perspectiva da liberdade, da dignidade, da cidadania, da moralidade, do respeito mútuo
e principalmente do direito à diferença, e no ER esse objetivo está assegurado, desde
que:
O ER necessita cultivar a reverência, ressaltando pela alteridade que todos são
irmãos. Só então a sociedade irá se conscientizando de que atingirá seus objetivos
desarmando o espírito e se empenhando, com determinação, pelo entendimento mútuo.
13

Logo, há de se considerar que muitos obstáculos ainda est ão postos a essa área
de conhecimento, destacando-se a formação na área, para que haja essa compreensão
de que o modelo fenomenológico é que melhor atende essa perspectiva (OLIVEIRA et
al., 2008).
Nesses termos, as contribuiç ões do ER são sólidas e consistentes para essa
modalidade educacional, quando considera em sua práxis pedagógico-didática a
diversidade cultural religiosa do Brasil, não permitindo quaisquer formas de proselitismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escola brasileira possui de forma intrínseca a diversidade cultural, pois: “A
escola apresenta a diversidade, nasce na diversidade e continuará na diversidade.
Durante muito tempo, porém, a educação na ótica europeia omitiu a religião, os
valores, a ética e a moral das diversas culturas do povo brasileiro” (SANTOS, 2010, p.
33).
Essa constatação, embora em algumas vezes ficasse na invisibilidade e negação,
não pode ser mantida por muito tempo. Desde o Humanismo do século XIV busca-se o
melhor reconhecimento do ser humano enquanto produto sociocultural, nos tempos e
espaços históricos.
Enquanto ser político, permeado por relaç ões econômicas, o ser humano,
também, vincula-se ao Sagrado e as relações de Transcendência/Imanência com os
quais vem convivendo desde os tempos mais remotos.
Reconhecer e aceitar o outro, o diferente, sempre fora uma dificuldade para os
humanos, mesmo em tempos da contemporaneidade. No Brasil, esse traço marcante
presente é recente e marcado por inúmeras polêmicas, principalmente na educação.
Nesses termos, a partir do século passado, as ciências humanas destacam-se
nessa promoção e no combate à intolerância, ao preconceito, o racismo e a
discriminação, assegurando a desconstrução de muitos estereótipos contra as populaç ões
afro-indígenas.
Nesse cenário, o ER na sua práxis didático-pedagógica assegura esse combate,
desenvolvendo ações de promoção dessa identidade étnico-cultural religiosa plural, ao
lado da Educação das Relações Étnico-Raciais, garantindo a formaç ão integral do
cidadão, na perspectiva dos direitos humanos, da liberdade religiosa e do direito à
diferença.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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_______. Diversidade religiosa e direitos humanos. Brasília: SEDH, 2006.


14

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15

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Horizonte: Autêntica, 1999.
ENSINO “LEIGO” NO INSTITUTO PEDAGÓGICO CAMPINENSE 1919 – 1932

Alexandro dos Santos, alexandrodossantos09@gmail.com1


2
Ronyone de Araújo Jerônimo, ronyone_guns@hotmail.com

Nesta pesquisa analisamos como o ensino “Leigo” fez parte das preocupações
pedagógicas da direção do Instituto Pedagógico campinense durante os anos de 1919
a 1932. O Instituto Pedagógico foi criado em 1919 na Rua Barão do Abiaí no centro de
Campina Grande, com ensino exclusivo para o primário e secundário, com educadores
de ambos os sexos, sendo composto de duas cadeiras oferecidas por seu fundador
Tenente Alfredo Dantas Correa de Góis e a professora normalista Ester de Azevedo.
Durante a primeira metade do século XX, a instituição passa a ganhar destaque
perante as demais instituições de ensino de Campina Grande-PB, pelas varias
disciplinas que oferecia a seus discentes inclusive o ensino “Leigo”. O desenvolvimento
econômico, político e intelectual de Campina Grande contribuíram para o avanço e
melhorias nas instalações de ensino da cidade. O ensino “Leigo” tinha como objetivos
práticos contribuir para a formação harmoniosa entre os indivíduos; “aproximar os
homens, pelo respeito mútuo, sem distinção de raças, nacionalidade de dogmas
sociaes e religiosos”. As crianças educadas seguindo os dogmas religiosos se
tornariam cidadãos mais amorosos, compreensíveis com familiares e pessoas mais
próximas, deixando de lado os preconceitos de raça, físico, moral e religioso tidos
como desvios de conduta. A documentação consultada para o desenvolvimento desse
trabalho consta dos jornais A Batalha e o Brasil Novo e da Revista Evolução produzida
pelo Instituto Pedagógico durante os anos de 1931 e 1932 que se encontram na
biblioteca Átila de Almeida na sede da reitoria da UEPB. Essa revista merece atenção
especial na escrita desse trabalho por discutir em seus oito exemplares o cotidiano do
referido instituto trazendo em suas paginas uma diversidade de temas e noticias do
cotidiano da instituição de ensino, além de abordar temas da história da Paraíba e
Campina Grande durante as primeiras décadas do século XX. Para melhor
fundamentar nossas analises nos utilizaremos dos pressupostos teórico-metodológicos
relacionados ao tema do ensino das religiões nas salas de aula a exemplo de
Ranquetar Jr. (2007) e também Junqueira e Wagner (2011), que nos possibilitar
compreender como ocorreu ao longo dos anos o ensino das religiões nas diferentes

1
(Graduando do curso de História e Bolsista do PET-História UFCG, SESu/MEC)
2
(Graduando do curso de História e Bolsista do PET-História UFCG, SESu/MEC)
instituições de ensino no Brasil. Nessa pesquisa foram importantes as contribuições
teóricas formuladas pelo historiador Frances Michel de Certeau (2011) sobre as
sutilezas, táticas e operações do fazer e saber.

Palavras Chave: Ensino “Leigo”; Instituto Pedagógico; Educação.

O objetivo do presente trabalho é fazer uma história do ensino “Leigo” do


Instituto Pedagógico campinense. O nosso interesse nessa história surgiu quando
iniciamos as pesquisas do projeto de pesquisa intitulado “CARTOGRAFIAS DAS
PRÁTICAS E SABERES DISCIPLINARES EM CAMPINA GRANDE – PARAÍBA (1900-
1930)” desenvolvida no Programa de Educação Tutorial (PET) do curso de história da
UFCG, sobre a orientação da professora Dr. Regina Coelli Gomes do Nascimento. A
intenção do presente projeto é resgatar para o meio acadêmico a história da educação
tanto na Paraíba como também na cidade de Campina Grande, que apesar de dispor
aos mais diferentes tipos de pesquisadores uma rica documentação em se tratando do
assunto da educação essa realidade ainda não se faz presente merecendo por parte
dos historiadores um olhar mais cuidadoso quando o tema a ser discutido for a história
da educação em seus mais diferentes aspectos.

O foco de nosso trabalho é o Instituto Pedagógico campinense3, criado no ano


de 1919, pelo Tenente Alfredo Dantas Correa de Góis, segundo o redator do Jornal-
Evolução, Orlando Santos:

O Instituto Pedagógico foi instalado, nesta cidade, em 1919 pelo


Tenente reformado do Exercito Alfredo Dantas Correia de Góis,
á rua Barão do Abiaí. Desde o início tem internato e, graças ao
tenaz esforço do seu incansável diretor, conseguiu galgar a
posição de destaque que hoje desfruta no meio local. Mantém 4
cursos: Primário, com matricula de 150 alunos. Admissão, com
23, Normal, equiparado á Escola Oficial, com 72 e comercial
(propedêutico fiscalizado pelo Governo Federal), com 64. O
total da matricula elevou-se, por tanto, este ano a 309 alunos a
cifra muito significativa e que é uma prova frisante do bom
conceito que gosa. (Evolução-Jornal, 1934).

O Instituto Pedagógico se destacava entre as instituições de ensino de Campina


Grande pela diversidade de cursos que disponibilizava aos discentes como, por

3
Para maiores informações a respeito da história do Instituto Pedagógico ver o trabalho: ANDRADE, Vivian
Galdino de. A COMPREENSÃO DE UMA MODERNIDADE PEDAGÓGICA ATRAVÉS DO
INSTITUTO PEDAGÓGICO CAMPINENSE (1919 – 1950). IX Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas
‘História, Sociedade e Educação no Brasil’, Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa – 31/07 a
03/08/2012 – Anais Eletrônicos – ISBN.
exemplo, os ensinos “Comercial”, “Militar”, “Gymnastica”, “Ensino Domestico” e
também o ensino “Leigo” que tinha por finalidade “... aproximar os homens, pelo
respeito mútuo, sem distinção de raças nacionalidade de dogmas sociais e religiosos”.4
É com esses objetivos que os diretores do Instituto Pedagógico, inserem o ensino
“Leigo” na instituição com a estratégia de tornar seus discentes homens e mulheres
mais amáveis e compreensivos da realidade social em voga na época. Michel de
Certeau define estratégia como sendo “... o cálculo (ou a manipulação) das relações
de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e
poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser
isolado...” A partir do conceito formulado por De Certeau, podemos entender que os
diretores do Instituto Pedagógico, implantaram na instituição o ensino “Leigo” com a
intenção de tornar os discentes, pessoas, entendedoras das mais diferentes crenças
religiosas do país, sendo que o responsável pelo a administração do educandário o
Tenente Alfredo Dantas, seguia a religião Evangélica, fica claro compreender que no
instituto existia a plena liberdade religiosa, “Religião – O Instituto Pedagógico
mantém, em toda sua plenitude, a positiva liberdade de consciência, deixando aos
pais, a orientação religiosa dos seus filhos”. (A União, 1920, p. 7).

Nesse momento histórico a cidade de Campina Grande passa a se destacar na


Paraíba, nos mais diferentes assuntos como economia e política se tornando uma das
cidades de maior importância do interior do estado, por exercer a função de receptora
de parte da produção agrícola do estado, produtos que na maior parte das vezes vinha
tanto do cariri do estado como também do sertão, a exemplo do algodão que foi no
início do século XX, a principal fonte de renda dos grandes latifundiários locais, além
de significar o mais importante produto de subsistência dos pequenos agricultores.5

O interesse em pesquisar as práticas do ensino “Leigo”, ocorreu quando


visitamos o Acervo documental da biblioteca Átila de Almeida6. Na biblioteca se

4
Ver Revista Evolução, 1931, Nº 2, “Escola Leiga”.
5
Ver os trabalhos; SANTOS, A. EDUCAÇÃO “GYMNASTICA” E FÍSICA NO INSTITUTO
PEDAGÓGICO: UM OLHAR A PARTIR DA REVISTA EVOLUÇÃO”. II COLÓQUIO NACIONAL
HISTÓRIA CULTURA E SENSIBILIDADES na UFRN – Caicó – RN. / NASCIMENTO, Regina Coelli
Gomes. Disciplina e espaços: construindo a modernidade em Campina Grande no início do século XX.
Recife, 1997. Dissertação de Mestrado em História apresentado ao PPGH da UFPE. / Cidade e região:
múltiplas histórias / Eugenia Dantas e Iranilson Buriti (Orgs.). – João Pessoa: Ideia, 2005.
6
A biblioteca Atila de Almeida se encontra na cede da reitoria da UEPB, e conserva em seu acervo
documental uma variedade de fontes referentes à história de Campina Grande, principalmente do inicio do
século XX, além da maior coleção de Cordéis já catalogada no mundo, alguns exemplares pertenceu ao
próprio Atila de Almeida que dá nome a biblioteca atualmente.
encontra a Revista Evolução7, em suas paginas notamos que entre os cursos
oferecidos no Instituto Pedagógico, o ensino “Leigo” estava entre as preocupações dos
diretores do instituto. Segundo o historiador Josemir Camilo de Melo: “Em 1931,
portanto, brindava a cidade com mais um serviço de comunicação e sociabilidade, a
revista Evolução, cujo primeiro número saiu em setembro daquele ano”. A Revista
Evolução tinha a importância de disponibilizar a sociedade campinense e cidades
próximas a exemplo do estado do Rio Grande do Norte, inúmeros temas sociais e
políticos de destaque na cena política nacional e estadual da época. Outra
característica da revista é a forma como a mesma homenageia em suas capas8
pessoas ilustres da cena estadual como, por exemplo, o criador do Instituto
Pedagógico o Tenente Alfredo Dantas, Antenor Navarro, João Pessoa ex-governador
do estado, o professor Clementino Procópio, o prefeito Lafaete Cavalcante, Dr. Arlindo
Correia até então diretor do posto de higiene e profilaxia rural de Campina Grande, Dr.
Severino Cruz diretor de higiene municipal, Heronides Mathias de Oliveira professora
normalista da “Escola Normal João Pessoa” anexada ao Instituto Pedagógico e o
professor José Batista de Melo diretor de ensino primário da Paraíba.9 Para Josemir
Camilo de Melo,

No começo dos anos 1930, o Instituto Pedagógico deixava de


ser uma mera escola local para o ensino do que hoje chamamos
de fundamental básico (o curso “primário”, de então) para se
estender ao ensino médio (curso ginasial) da população
campinense e ser reconhecido de utilidade educacional em nível
nacional. Era uma proposta moderna, se comparada ao colégio
São José, do professor Clementino Procópio, que fecharia suas
portas em 1931, bem como o Instituto Olavo Bilac, do professor
Mauro Luna.

Com a efetivação do espaço do Instituto Pedagógico, o ensino em Campina


Grande passa a ganhar em qualidade, cedendo espaço para o surgimento de outros
importantes centros de ensino, principalmente os ligados a ordens religiosas a

7
Revista produzida pelo Instituto Pedagógico entre os anos de 1931 e 1932. Para mais informações sobre
essa revista ver: MELO, Josemir Camilo de. “Evolução”. Revista Pedagógica e Magazine na Paraíba dos
Anos 30. II Seminário Nacional Fontes Documentais e Pesquisa Histórica: Sociedade e Cultura de 07 a 10 de
Novembro de 2011. Campina Grande-PB.
8
Lembrando que a Revista Evolução foi produzida em 08 exemplares sendo que os últimos se encontram em
apenas um único numero o 8 e o 9.
9
SANTOS, A. EDUCAÇÃO “GYMNASTICA” E FÍSICA NO INSTITUTO PEDAGÓGICO: UM OLHAR
A PARTIR DA REVISTA EVOLUÇÃO”. II COLÓQUIO NACIONAL HISTÓRIA CULTURA E
SENSIBILIDADES na UFRN – Caicó – RN.
exemplo do Colégio Imaculadas Conceição10 (conhecido por Colégio das Damas com
ensino exclusivamente para mulheres), e o Colégio Diocesano Pio XI, criado pelo
vigário José Delgado, dedicado ao ensino religioso11. (CAMARA, 1947, p.87-93).

O surgimento dessas instituições de ensino no ano de 1931 na cidade de


Campina Grande-PB é atribuído ao desenvolvimento do Instituto Pedagógico, que
possuía na sua proposta educacional o ensino leigo, que desagradava a corrente
religiosa da cidade, que imbuídos pelos preceitos Cristãos Católicos requisitavam a
manutenção do ensino religioso na cidade.

Diante das inaugurações de instituições educacionais que visavam combater o


ensino leigo na cidade de Campina Grande-PB defendido pelo Instituto Pedagógico. O
veiculo de comunicação que seria produzido pelo Instituto Pedagógico em finais de
1931, já expressaria um pouco deste embate que foi fomentado no mesmo ano com o
surgimento das instituições educacionais ligadas a igreja Católica. A Revista Evolução
lançaria no mês de Outubro na sua segunda edição um artigo enfatizando a
importância do ensino leigo. Os primeiros parágrafos do artigo veiculado na revista já
descreve bem o momento que estava se vivendo na cidade como também uma defesa
do Ensino Leigo feita pela instituição que defendia o ensino. É dessa maneira que se
inicia o artigo

Há muita gente ainda que combate a Escola Leiga. E, entretanto,


para escolas publicas, ou semi-oficiaes, nada mais consentaneo
que o ensino livre no intuito conciliatório e educativo de formar
as novas gerações sem aquelas reações próprias do antagonismo
de credos hostilisantes.

10
Sobre a criação do “Collégio da Imaculada Conceição”, ver o jornal “Brasil Novo”, que no ano de 1931,
traz em suas páginas uma nota informando a seus leitores da inauguração do presente colégio: “Inaugura-se
amanhã nesta cidade, mais um estabelecimento de ensino denominado “Colégio da Imaculada Conceição. A
direção deste educandário está entregue as Damas Christãs, anciosas e competentes religiosas que muitos
serviços têm prestado ao ensino no Brasil. O referido Colégio manterá os cursos: INFANTIL, PRIMARIO,
PREPARATORIO E SECUNDARIO e aulas de Piano, Pintura, desenho e flores”.

11
SANTOS, A. EDUCAÇÃO “GYMNASTICA” E FÍSICA NO INSTITUTO PEDAGÓGICO: UM OLHAR
A PARTIR DA REVISTA EVOLUÇÃO”. II COLÓQUIO NACIONAL HISTÓRIA CULTURA E
SENSIBILIDADES na UFRN – Caicó – RN. / CAMARA, Epaminondas. Datas Campinense. Campina
Grande: Ed. Caravela, 1988.
[...]

O ambiente escolar deve manter uma temperatura igual,


uniforme, que não altere, nem provoque a discórdia entre
aqueles que se moldam pelo amor mutuo e pela tolerância.
(Evolução, 1931, p.5)

As primeiras palavras veiculadas no artigo publicado pela revista Evolução, até parece
uma resposta aos críticos do Ensino Leigo que descreve bem o ambiente que estava
sendo evidenciada na cidade de Campina Grande no ano 1931, como já abordado
nesse trabalho. A cidade tinha recebido duas instituições educacionais ligadas à igreja
Católica, que aumentaram o embate contra o ensino que era aplicado pelo Instituto
Pedagógico. O artigo veiculado pela Revista Evolução do Instituto Pedagógico tem
como papel de expressar uma opinião a favor do ensino leigo, mostrando as
qualidades do ensino que incentivava a combater o ambiente de discórdia que era
gerado em razão do ensino religioso, que tornava excludente para aqueles que não
compactuavam com os preceitos emitidos pelas instituições que possuíam o ensino
religioso. Como também tinha a função de construir o sentido de tolerância nas
mentes dos jovens.

Essa tolerância veiculada pelo artigo publicado pela revista Evolução não
corrobora apenas para afirmação do Ensino Leigo, que era exercido pelo Instituto
Pedagógico na cidade de Campina Grande. Mas, também possuía o interesse de
derrubar das instituições de ensino do Brasil a influência religiosa, que teria sido a
razão de muitos males, que pode ser evidenciado nessa passagem que dar
continuidade ao artigo sobre o Ensino Leigo publicado pela revista Evolução

Não devemos requerer o que nos trouxe a inquisição, os dias


nefastos de São Bartolomeu e tantos feios crimes que a historia
registra como para nos avisar que não devemos mais competir
consciencias contra consciencias, religiões contra religiões, povos
contra povos. Levar as religiões para escolas publicas é
reconstruir a torre de Babel no seio amoravel e harmonico que
deve ser o templo cívico da educação. Ora a concepção social
hodierna é aproximar os homens, pelo respeito mutuo, sem
distinção de raças nacionalidades de dogmas sociaes e religiosos.
(Evolução, 1931, p.5)
A citação acima se apega a fatos históricos para mostrar o quanto é
interessante a exclusão da influência da religião no ensino. Pelo fato desta ter sido o
precursor de muitas atrocidades que poderia se perpetuar com a manutenção do
domínio do ensino por parte dos religiosos. A inquisição e o massacre de São
Bartolomeu serão o grande exemplo da influência religiosa sobre a cabeça dos homens
e mulheres do passado, que não poderiam se observar na construção das mentes dos
jovens do século XX. O Ensino leigo era entendido pelo Instituto Pedagógico, como
sendo uma prática pedagógica que iria afastar os preconceitos, ou pelos menos
construir nas mentes dos seus discentes a consciência de respeito mutuo com as
diferenças.

Como pudemos ver, o Ensino Leigo abriu espaço para a formação de jovens
campinenses no começo do século XX, em razão da ascensão do Instituto Pedagógico
que se apresentaria como referência educacional na cidade de Campina Grande-PB. Já
que desde sua inauguração, em 1919, buscou introduzir na sua prática pedagógica tal
ensino, que geraria, por sua vez, muitas discussões por parte dos religiosos da cidade,
que ficariam muito visíveis, com o surgimento dos educandários Imaculada Conceição
(Damas) e o Pio XI no ano de 1931. Nesse sentido, a Revista Evolução, por parte do
Instituto Pedagógico, procurou defender os ideais da escola leiga: “Sendo a Evolução o
reflexo pedagógico do Instituto e da escola normal João Pessoa” (Evolução, 1931,
p.9), já que a revista buscava difundir seus interesses. E desse modo, o ensino Leigo
será observado até o fim da revista Evolução, em 1932, sendo muito presente nos
artigos publicados pela mesma, desenvolvendo uma prática de ensino que visava
valorizar o respeito mútuo entre os seus discentes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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ATRAVÉS DO INSTITUTO PEDAGÓGICO CAMPINENSE (1919 – 1950). IX Seminário
Nacional de Estudos e Pesquisas ‘História, Sociedade e Educação no Brasil’,
Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa – 31/07 a 03/08/2012 – Anais
Eletrônicos – ISBN.

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17. Ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
__________. 1925-1986. A invenção do Cotidiano: 2. Morar, cozinhar / Michel de
Certeau, Luce Giard, Pierre Mayol; tradução de Ephraim F. Alves e Lúcia Endlich Orth.
10. Ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

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de Lourdes Menezes: Revisão técnica de Arno Vogel. –ed. – Rio de Janeiro: Forense
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MELO, Josemir Camilo de. “EVOLUÇÃO”. REVISTA PEDAGÓGICA E MAGAZINE NA


PARAÍBA DOS ANOS 30. II SEMINARIO NACIONAL FONTES DOCUMENTAIS E
PESQUISA HISTORICA: SOCIEDADE E CULTURA DE 07 a 10 DE NOVEMBRO DE 2011.
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NASCIMENTO, Regina Coelli Gomes. Disciplina e espaços: construindo a modernidade


em Campina Grande no início do século XX. Recife, 1997. Dissertação de Mestrado em
História apresentado ao PPGH da UFPE.

O ensino religioso no Brasil / Organizado por Sérgio Junqueira e Raul Wagner. –


2.ed.rev. e ampl. – Curitiba: Champagnat, 2011. 198 p.; 21cm.( Coleção Educação:
Religião; 5).

RANQUETAT JR, Cesar A. RELIGIÃO EM SALA DE AULA: O ENSINO RELIGIOSO NAS


ESCOLAS PÚBLICAS BRASILEIRAS. CSOnline. Revista Eletrônica de Ciências Sociais.
Ano I. Edição 01, Fev. 2007.

SANTOS, A. EDUCAÇÃO “GYMNASTICA” E FÍSICA NO INSTITUTO PEDAGÓGICO: UM


OLHAR A PARTIR DA REVISTA EVOLUÇÃO”. II COLÓQUIO NACIONAL HISTÓRIA
CULTURA E SENSIBILIDADES, UFRN – Caicó – RN. Anais do II COLÓQUIO NACIONAL
HISTÓRIA CULTURA E SENSIBILIDADES, UFRN – Caicó – RN.

FONTES:

Jornal União

Evolução-Jornal

Revista Evolução
VIOLÊNCIA NO ESPAÇO ESCOLAR E A NECESSIDADE DA CULTURA DE PAZ: UM
ESTUDO A PARTIR DA REALIDADE DO 9º ANO DE UMA ESCOLA ESTADUAL EM
LUZIÂNIA (2013)

Marcelo Máximo Purificação1

INTRODUÇÃO

Discutir sobre violência nas escolas implica em adentrar um campo complexo,


que envolve dimensões sociais, econômicas, políticas e educacionais. Tal fato aponta
que qualquer estudo com o tema, precisa delimitar bem o objeto de investigação.
Nesse estudo, nos propomos a investigar em uma escola estadual em Luziânia, como
se constitui as relações conflituosas ou não no ambiente escolar entre os alunos,
professores e alunos, demais profissionais da educação e alunos, tomando-se por base
a percepção dos estudantes do 9º ano do ensino fundamental.
A unidade de estudo selecionada fica localiza na cidade de Luziânia. Espaço
marcado por um alto índice de violência. Em 2006, Luziânia esteve em 15º lugar no
ranking de municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes e que registraram
altos indicadores de violência contra adolescentes. No período citado, em toda a
Região Centro Oeste, era a única cidade com uma média de mais de cinco jovens
assassinados em cada grupo de mil, as demais apresentavam no máximo três mortes
(CORREIO BRAZILIENSE, 23 jul. 2009, p.5).
Atualmente, temos uma redução desses índices, contudo a cidade continua
registrando muitos assassinatos entre adolescentes. No encontro realizado em
Luziânia em 2011, foram delineadas estratégias para a Polícia Militar dar apoio às
escolas e elaborados vários projetos para a cultura de paz entre gestores, professores,
alunos e a comunidade.
Esse contexto evidencia a importância de se investigar a violência nessas
escolas. Para efeito dessa análise, utilizaremos o estudo de caso. Pois, consideramos
que a apreensão mais completa de um fato está vinculada a compreensão do contexto
em que se situa, revelando “a multiplicidade de dimensões presentes numa
determinada situação ou problema” (LUDKE & ANDRÉ, 1986, p.19). Nessa
perspectiva, iremos conhecer o que os alunos nomeiam como violência. Serão objetos

1
Doutorando do Programa de Ciências da Religião da PUC-Goiás, Mestre em Educação, Mestre
em Infância e Juventude pela EST-RS, Especialista em Docência do Ensino Superior e Gestão
Educacional, Graduado em Matemática, Pedagogia, Filosofia e Teologia. Email:
marcelomaximo.edu@bol.com.br
de análise: as formas de sociabilidade, as modalidades de violência e os mecanismos
individuais e sociais presentes nas concepções dos estudantes.
Como hipótese de trabalho e guia de argumentação, proponho considerar que a
composição conceitual de violência dos alunos do ensino fundamental é influenciada
pelas significações sociais e que determinados contextos propiciam o desenvolvimento
de manifestações de violência, e essa, quando colocada em ação, revela aos atores
sociais o poder de seu uso. Assim, uma violência que, inicialmente, se organiza a
partir de um contexto favorável produz, ou pode produzir a violência como lógica de
intervenção.
O modelo teórico-metodológico se pautará na pesquisa de natureza qualitativa,
na expectativa de ampliar as possibilidades de aproximação do pesquisador com o
universo a ser investigado.

A VIOLÊNCIA INTRAMUROS NO ESPAÇO ESCOLAR

De acordo com o Relatório da Comissão Internacional sobre Educação (1998),


realizado pela UNESCO, um dos grandes desafios do século XXI seria a convivência
escolar. A realidade escolar brasileira contemporânea, assinalada com inúmeros casos
de violência, retrata bem esse prognóstico. Segundo Aquino (1996, p. 23), “há muito,
os conflitos deixaram de ser um evento esporádico e particular no cotidiano das
escolas brasileiras para se tornarem, talvez, um dos maiores obstáculos pedagógicos
dos dias atuais”.
É irrefutável a importância de um ambiente escolar que promova a convivência
harmoniosa entre seus sujeitos, seja para a promoção da aprendizagem ou para a
formação do aluno de modo geral e o bem estar de todos. Todavia, a qualidade deste
convívio vem sendo comprometida pelo contexto de violência presente no interior das
escolas.
A esse respeito, Abromovay e Castro (2006) destacam que um dos caminhos
para melhor compreender as formas de violências que acontecem nas instituições de
ensino é apreender as distintas relações que envolvem os sujeitos que convivem
cotidianamente nas escolas.
O termo é utilizado no plural, violências, para sublinhar a variabilidade da
intensidade, gravidade e pemanência do fenônemo. Esses aspectos estão estritamente
vinculados ao estabececimento escolar, a posição de quem fala (professores, direção,
alunos, funcionários, pais, etc), sexo, raça, além de estar sujeita à temporalidade e ao
lugar nos quais os atores a vivenciam (ABRAMOVAY & RUA, 2003).
As boas e más relações interpessoais são processos concretos nos quais nos
vemos envolvidos. A escola é um dos cenários dessa construção, espaço que como
afirmou Paulo Freire (1995) não tem fins exclusivos para o aprender, pois é um local
no qual se constituem vínculos e se criam expectativas e sentimentos. É um cenário
de convivência que tem seus efeitos na formação geral da personalidade individual e
social de seus protagonistas e agentes.
Nessa direção, podemos afirmar que a escola assume diferentes sentidos, ao
mesmo tempo em que é um espaço onde as pessoas revelam ter fins comuns como o
conhecimento e novas amizades, também é um local onde são obrigadas a conviver
todos os dias, de acordo com determinadas normas. Nessa convivência diária,
também se fazem presentes indisposições e conflitos (ABROMOVAY, 2003). Esses
conflitos muitas vezes não são equacionados pela escola, culminando em atos de
agressões verbais, físicas e humilhações entre os alunos.
Para Hernándes e Seem (2004) a violência é consequência de um clima de
desrespeito na instituição escolar. Ambiente que provoca instabilidade emocional e
impede o processo de ensino aprendizagem.
Minayo e Silva (1997/1998) reconhecendo a abrangência do tema, afirma que
o contexto das violências, precisa ser conhecido sobretudo no que se refere as
especificidades do fenômeno.
Nessa direção, Lopes e Gasparim (2003) acrescentam que o caráter violento de
um ato está atrelado dos valores culturais de cada grupo social, do cenário em que foi
perpetrado e até de disposições subjetivas.
Na esteira dessas ideias, consideramos fundamental compreender as
dimensões das violências no âmbito escolar. Um dos caminhos possíveis para essa
análise é o estudo das significações e os sentidos das ações humanas. A esse respeito
Smolka (2000), considera que todas as ações assumem sentidos múltiplos, e tornam-
se práticas significativas, dependendo das posições e das formas de participação dos
sujeitos nas relações. Pois, é nas ações, segundo Bronckart (1999) que interagem os
aspectos comportamentais e psíquicos das condutas humanas. Essas reflexões nos
levam a pensar que os sentidos e significados atribuídos pelos alunos às práticas de
violência que acontecem na escola são instrumentos importantes para discutirmos as
formas de interações que permeiam o cotidiano escolar.
Assim, a presente pesquisa pretende investigar quais as concepções
dos alunos acerca da violência e de que forma elas estão presentes nas suas ações no
âmbito da escola. Questiona-se, ainda, quais os fatores que compõem a construção
social desse conceito.
A VIOLÊNCIA ESCOLAR SOB VÁRIOS OLHARES

Charlot (2002) afirma que a violência escolar não é um fenômeno recente. No


século XIX, algumas escolas apresentavam explosões de violência. Contudo, em cada
época ela assume contornos próprios. Para Abramovay e Castro (2006), a discussão
sobre violência nas escolas recebeu destaque não apenas pelas mudanças ocorridas
no ambiente escolar, mas também pelos novos significados assumidos pela violência
no mundo contemporâneo.
Segundo Ortega e Mora – Merchán (1997) o tema começou a ser analisado na
Europa, primeiramente, nos países escandinavos, no início dos anos setenta, e
posteriormente na Inglaterra, Holanda e Espanha.
No Brasil, esse tema ganhou espaço nos estudos acadêmicos a partir do final
da década de oitenta e início da década de noventa. Primeiramente, os estudos
tinham como foco a proteção das escolas públicas de elementos considerados
estranhos, como por exemplo, os moradores dos bairros de periferia (SPOSITO,
2001). Contudo, conforme as investigações foram realizadas, os dados apontaram que
a violência escolar não é resultado apenas de fatores exteriores a escola, mas que a
própria instituição é produtora de violência. Sendo portanto, mais indicado o termo
“violências nas escolas”.
Desde sua origem, a instituição escolar é espaço de disputa de mentes e
de corpos. Dussel e Caruso (2003) afirmam o protestantismo promeveu o início da
escola elementar e de seu caráter disciplinador, porém é com a modernidade que ela
aperfeiçoa sua função de educar com a dominação e controle. Ainda que, no decorrer
dos anos a escola tenha sofrido muitas transformações, ela ainda possui o duplo
caráter: ensinar e controlar.
Camacho (2001) afirma que, as concepções da escola tradicional ainda
estão presentes no cotidiano de muitas unidades de ensino. Contudo, é necessário
buscar novos caminhos, que revelem a compreensão dos diversos sentidos da
violência presentes nas escolas. Em resposta a essas demandas foram elaborados
trabalhos que abordavam desde a problematização da indisciplina (AQUINO, 1996)
até a presença de gangues nos espaços da escola (AQUINO,1996; ABROMOVAY, 1999,
2001,2003,2004; CAMACHO 2001; SPOSITO 1998; ZALUAR, 2001).
Nos últimos vinte anos os estudos reiteram práticas de violência voltada contra
a escola, principalmente contra o patrimônio. Sublinham, também, formas de
sociabilidade entre os alunos marcadas por ações de violência física e verbal nas
instituições públicas e particulares.
A complexidade da pesquisa sobre violência em meio escolar no
Brasil decorre assim, da interseção com o tema violência social,
sobretudo nas cidades e na interação que o mundo do tráfico
estabelece com os segmentos juvenis, alunos e ex- alunos da
escola pública. (...) Por outro lado, os denominados conflitos
entre grupos ou pares de jovens muitas vezes vem propondo
novos temas para a investigação, pois eles, em certa medida,
estão dissociados dos fenômenos de deliquencia e criminalidade”
(SPOSITO, 1985, p. 23.)

Assim, o conceito de incivilidade é incorporado de forma gradual, indicando a


ocorrência de pequenos delitos e transgressões que não estão no âmbito da
criminalidade. São formas agressivas de convivência que fragilizam os
relacionamentos e podem extinguir laços sociais, estabelecendo a insegurança.
Para Porto (2010), no Brasil de hoje, há uma re-significação da
violência. A dificuldade, portanto, de se definir violência, deriva do fato de ser uma
categoria empírica de manifestação social, sua apreensão está condicionada aos
arranjos societários de que emerge.
A esse respeito Michaud (1978) ressalta que a relatividade da noção de
violência precisa ser investigada pela ótica do que os sujeitos consideram como
violência, e as condições a partir das quais a violência é apreendida. Isso porque,
temos um deslocamento de sentido do termo.

(...) há poucas décadas, estupro ou espancamento de mulheres


eram fenômenos tratados na esfera privada, não nomeados como
violência. A criação de delegacias da mulher e a criminalização de
atos de violência contra as mulheres sinalizam para novos
sentidos do que se considera violência, o que reflete outro
estatuto da condição feminina (Op. cit. p. 43)

O exemplo acima mostra que as modificações da noção de violência


estão diretamente vinculadas as transformações da natureza do social. Pois, “se muda
a natureza do social, mudam igualmente as formas de manifestação da violência e de
suas significações” (Op. cit. p. 51).
Essa análise sinaliza para ideia de que a percepção da violência em suas
diversas dimensões (inclusive no âmbito da escola) deve considerar “a pluralidade de
valores e de configurações sociais resultantes dos processos de transformação social”
(Op. cit. p. 54).

OUTRAS CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS ACERCA DO TEMA


Refletir sobre o tema violência na escola implica na escolha de um caminho
permeado por muitas tensões, pois o conceito é polissêmico, apresenta uma variedade
e interação de suas causas, e não apresenta consenso sobre sua natureza. Assim, o
que é definido como violência varia segundo os aspectos sociais, culturais e
econômicos, compreendendo uma diversidade de realidades e de especificidades.
Costa (1984, p. 296) discorrendo sobre a origem da violência e suas distintas
concepções, apresenta uma substancial diferença entre esta e a agressividade.

discernir as más relações dos verdadeiros atos de violência


(ORTEGA e MORTA-MERCHÁN, 1997; ORTEGA, 1997), de separar
as manifestações de agressividade boas, salutares, que
contribuem para o processo de auto afirmação do indivíduo,
daqueles que comportam um teor destrutivo.

Para efeitos desta análise, compreendemos por violência atos que não se
restrigem a sanção penal, mas são caracterizados pelo não reconhecimento do outro,
tais como: desrespeito, descaso e humilhação. Violência, que explícita ou simbólica, é
definida como incivilidades por Debarbieux (1997, p. 87).

Estes fatos não são forçosamente puníveis, mas, inclusive em


suas formas mais inofensivas parecem ameaças contra a ordem
estabelecida, e transgridem os códigos elementares da vida em
sociedade, o código das boas maneiras. São intoleráveis pelo
sentimento de “não respeito” que produzem em quem os sofre.

As incivilidades ou microviolências possuem um caráter próprio: dizem respeito


ao mau uso dos espaço públicos, ou seja, a transgressão de preceitos da boa
convivência. Atitudes que muitas vezes são desconsideradas ou recebem um peso
menor nas avaliações dos profissionais da educação, por estarem incorporadas ao
cotidiano da escola. Isso impede que, providências de enfrentamento e prevenção da
violência sejam adotadas nas escolas.
Esse tipo de violência cria um ambiente de tensão ou insegurança nos lugares
públicos, além serem causas de agressões físicas. Tal fato, acontece porque “as
pequenas violências anulam a ideia de um mundo que pode ser dividido com o outro,
comprometem a reciprocidade e a solidariedade na vida social sem tocar na
integridade física dos indivíduos” (ROCHÉ, 2002).
Sposito (1988) considera que as agressões físicas, ofensa verbal e vandalismo
praticados pelos alunos nos espaços internos da escola assinalam uma nova
configuração de sociabilidade entre pares ou entre alunos e os professores, baseadas
na violência e na qual essas atitudes são banalizadas.
Candau et al (1999) ao analisar a banalização da violência escolar, denuncia a
naturalização dos atos violentos na sociedade e sua repercussão no interior da escola.
“Por meio da banalização da violência, novas formas de sociabilidade são
fundamentadas, nas quais o outro aparece como inimigo, impossibilitando a formação
de parcerias baseadas na confiança, condição imprescindível para o sucesso
educacional” (Ibidem, p. 32)
A violência na escola instala um cotidiano tenso, assinados pela insegurança e
pelo medo. Dificultando as relações sociais, comprometendo a autoestima dos
envolvidos e podendo ter como consequências a queda do desenvolvimento escolar e
a diminuição de desempenho profissional.
A escola percorre um movimento ambíguo: de um lado, realiza ações que tem
o objetivo de cumprir preceitos definidos pelos órgãos centrais, e, de outro, precisa
lidar com a dinâmica dos grupos internos que estabelecem interações, rupturas, troca
de ideias, palavras e sentimentos.
A compreensão dessa dinâmica interna exige que o aluno seja visto como
sujeito. Charlot (2000) define sujeito como ser humano portador de desejos, que
possue uma história, interpreta e dá sentido ao espaço social que ele ocupa. Nessa
ótica, a condição humana é vista como uma construção, no qual o ser se forma como
sujeito na medida em que se institui como humano. Para o autor, ao pensarmos o
sujeito nessa concepção, estamos dando o primeiro passo para discutir as formas de
violência que ocorrem no interior da escola e são próprios do ambiente escolar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As razões que justificam essa pesquisa tem seu alicerce em dois aspectos: o
primeiro, refere-se aos meus interesses educacionais. Como professor de Matemática
da Secretaria do Estado de Educação de Goiás observo que a violência entre os alunos é
um fato constante no cotidiano escolar. A violência aqui entendida na concepção de
Zaluar e Leal (2001) como o aniquilamento dos corpos e arruína da mente dos
indivíduos. Caracterizada, portanto, pelo não reconhecimento do outro. “A violência,
nessa concepção, relaciona-se com o desaparecimento do sujeito da argumentação ou
da demanda, estando preso e esmagado pela força (física ou moral) de seu oponente
que lhe nega diálogo” (Ibidem, p.30).
A reflexão teórica acima evidencia que diversas manifestações podem ser
identificadas como violências: atos físicos, insultos, humilhações, olhares, silêncios,
isolamento do grupo e etc. Entretanto, muitas das violências citadas são ignoradas
pelos professores e gestores da escola. Em alguns casos, sobretudo atos de insultos e
agressões físicas como: empurrões e tapas, a função educativa das instituições de
ensino cedem espaço para as ações de vigilância, denúncia e punição, o que Lopes et al
(2008) denomina de “educação pelo medo”. Tal postura, demonstra que os sujeitos
responsáveis pelo processo de ensino aprendizagem ainda não sabem quais as ações
pedagógicas que devem ser tomadas para combater as violências nas escolas. Pois, no
momento em que os profissionais de educação adotam instrumentos de controle
enfraquecem as boas relações sociais de convivência e restrigem as estratégias
pedagógicas a práticas disciplinares.
Assim sendo, com o intuito de produzir dados que embasassem práticas
pedagógicas de prevenção e enfrentamento da violência é que escolho investigar o
conceito dos alunos da 9º ano fundamental. Comungando das ideias de Hernándes e
Seem (2004) acredito que a missão educativa da escola só será cumprida se tivermos
um ambiente agradável que proporcione aos estudantes interesse pelo que está
fazendo, inclusive nas questões relacionadas a aprendizagem. Pois, “as relações
positivas são responsáveis pela diminuição de comportamentos violentos e
pertubadores”.
Sposito (2002) afirma que mesmo depois do advento da democratização do
país, quando o tema impetrou o espaço público, a produção científica ainda é
embrionária e apenas nos últimos anos é que ela tem sido fomentada, sobretudo nas
instituições de ensino superior e em algumas organizações não governamentais. Outro
dado, que fundamenta a razão de darmos continuidade aos estudos sobre violência e
educação.
Pensar a questão da violência demanda um alargamento teórico do fenômeno
que possibilite embasar a compreensão do processo em que a violência escolar está
inserida, seus reflexos na interação entre alunos, aluno e professores, e alunos e
demais profissionais da educação. Uma vez que, “não basta, porém, coletar dados;
deve-se saber exatamente o que procura. E isso é ainda mais necessário quando se
aborda uma questão antiga de uma forma relativamente nova” (CHARLOT, 2000, p.9).
Nessa ótica, consideramos fundamental compreender o que os estudantes identificam
como ação de violência, e quais as associações que eles estabelecem com as práticas
de violência. Para chegar a essas respostas precisamos adentrar a escola e conhecer
esses estudantes, assim como o lugar que a escola ocupa na vida desses alunos.
A importância de se investigar o conceito de violência dos alunos está pautada
também na relevância das interações na construção da subjetividade humana. Essa
posição fundamentada nos pressupostos da teoria sócio-histórica a respeito do
desenvolvimento humano assevera que, “a criança, desde seus primeiros anos de vida,
está imersa em um sistema de significações sociais (FONTANA, 1996). Sistema que irá
incorporá-la as ações e significados produzidos e acumulados historicamente. Nessa
perspectiva, a composição humana é resultado de um processo de desenvolvimento que
está densamente enraizado nas ligações entre história individual e história social
(VYGOTSKY, 1984).

É nas relações sociais que se pode considerar a origem da


violência, é a partir destas relações reproduzidas no interior da
escola que esse processo se constitui como determinante.
Tomando ainda a escola como espaço social e de contradições, a
violência se caracteriza como uma forma de recusa do próprio
espaço escolar, isso evidencia também uma certa resistência em
compreender a escola como um espaço para a superação destas
contradições. É mais do que necessário conhecer e debater as
relações sociais na sociedade numa perspectiva do conhecimento
escolar e da prática docente (ANDRADE, 2012, p. 4)

Essa reflexão demonstra a necessidade estabelecermos as interseções entre


conceitos e ações. A proposta deste trabalho caminha neste sentido, pois acredita que
ao analisarmos as concepções de violência dos estudantes do ensino fundamental
estamos discutindo de que forma as relações interpessoais afetam a identidade
subjetiva dos estudantes, ao mesmo tempo em que refletirmos como o processo
educativo contribui para a formação desse sujeito.

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Secretário nega alto índice de violência. Correio Braziliense, Brasília, 23 jul. 2009.
Disponível em:
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sdf. Acesso em: 20 out. 2012.
ORAR E CONTROLAR: A DISCIPLINARIZAÇÃO

DA INFÂNCIA PELA CATEQUESE NO BRASIL QUINHENTISTA

José dos Santos Costa Júnior1

Laísa Francisco Silva2

Resumo: O artigo problematiza uma pesquisa que aborda a infância sob a ótica da
religiosidade cristã no século XVI. A investigação teve o objetivo de mapear e analisar
os elementos indicativos das relações sociais protagonizadas por crianças e padres
jesuítas no Brasil colônia. A pesquisa envolveu quatro procedimentos metodológicos:
Leitura e seleção das fontes (cartas avulsas); Mapeamento das fontes, buscando
identificar a representação das crianças nas cartas; Articulação e cruzamento das
fontes a fim de aproximar perspectivas e identificar diferenças estruturais e
discursivas; 4 - Análise documental e produção textual do artigo. A partir dos
pressupostos teóricos formulados por Michel Foucault buscamos perceber como essa
relação foi permeada por um desejo de poder e disciplinarização dos corpos dos
chamados “cunumins”, as crianças indígenas, para fins de uma dominaç ão cultural. O
texto visa fortalecer uma abordagem interdisciplinar, na medida em que dialoga
formulações do campo da Filosofia com análises historiográficas presentes nas obras
de Mary Del Priore e Philippe Ariès.

Palavras: Infância, Disciplina, Catequese, Religião.

Abstract: The article discusses a study that addresses the childhood from the
perspective of Christian religiosity in the sixteenth century. The research aimed to
map and analyze the factors indicative of social relationships starring children and
Jesuits in colonial Brazil. The research involved four instruments: Reading and
selection of sources (spare cards); Mapping the sources, trying to identify the
representation of children in the letters; Linkage and crossing of sources in order to
approach prospects and identify structural differences and discursive; 4 - Analysis
textual production of documentary and article. From the theoretical assumptions
made by Michel Foucault sought to see how this relationship was permeated
by a desire for power and the disciplining of bodies called " cunumins" indigenous
children for purposes of a cultural domination. The text aims to strengthen an
interdisciplinary approach, in that dialogue formulations of the field of philosophy with
historiographical analysis in the works of Mary Del Priore and Philippe Ariès.

1 Graduando em Hist ória na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Bolsista do Programa de
Educação Tutorial de História da UFCG. E-mail: jose.junior010@gmail.com
2
Graduanda em História na UFCG. Técnica em pesquisa no Projeto “Catálogo Geral dos Manuscritos
avulsos e em códices referente a História Indígena e Escravidão Negra no Brasil” financiado pela Petrobrás.
E-mail: laisafrancisco@gmail.com

1
Keywords: Children, Discipline, Catechesis, Religion.

Diversos mecanismos de comunicação e difusão de imagens têm, desde o final


do século XX, divulgado de modo mais acentuado um conjunto de imagens sobre a
criança, a infância, de modo que busca incentivar a sociedade em geral para cuidar
desta fase da vida e conduzir esses sujeitos da melhor maneira possível para um
desenvolvimento saudável. No Brasil, este investimento na imagem da criança pode
ser pensado a partir de diferentes perspectivas tendo em vista que a partir dos anos
19803 um conjunto de mobilizações reivindicou um outro lugar para a criança,
concebendo-a como um sujeito de direitos e dotada de particularidades e
características próprias.
Pretendemos construir neste texto uma reflex ão que possa localizar a temática
da infância do ponto de vista histórico, de modo que nos seja possível traçar como foi
construída uma imagem para a criança nos primeiros anos do processo de colonizaç ão
portuguesa no Brasil. Nossa intenção é buscar no passado informações e registros que
possam nos ajudar a elucidar algumas questões, tais como: que estatuto foi
construído para a criança? Qual a percepç ão construída culturalmente para tratar as
crianças indígenas? Que modos de interação foram estabelecidos entre jesuítas, que
foram atores relevantes no processo de colonização, e os chamados índios cunumins,
as crianças indígenas?
A partir destas provocações objetivamos pensar o modo como foi construído
um determinado tipo de relação social entre jesuítas e crianças a partir de uma
vontade de disciplinar e controlar os corpos infantis, de modo que eles pudessem
servir aos interesses e as motivaç ões dos crist ãos. Assim, buscaremos perceber como
a instauração desse discurso crist ão foi responsável por forjar comportamentos
socialmente aceitos e atitudes religiosamente permitidas num momento de intenso
contato cultural e de estranhamento dos europeus em relação aos índios, e vice-
versa.
A documentação sob a qual nos debruçamos para desenvolver esta pesquisa é
composta por correspondências (cartas) escritas por padres portugueses que
estiveram no Brasil ou escreveram para os que aqui estavam. Ela envolve o período

3
No Brasil o período da Constituinte, entre 1987 e 1988, foi marcado por intensa participa ção de segmentos
sociais em defesa dos direitos humanos de crian ças e adolescentes. Essas lutas sociais foram incorporadas na
nova Carta Magna de 1988, que através de seus artigos 227 e 228 possibilitou a criação de uma nova agenda
política para tratar da infância. Com base nestes artigos da Constitui ção Federal foi sancionada a lei nº 8.069
de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma importante conquista do povo
brasileiro na busca de um novo modo de olhar as crian ças e os adolescentes, bem como pautar novos modos
de conviver com eles e garantir-lhes os meios necessários para uma boa qualidade de vida.

2
entre 1550 e 1559 e será a partir deste recorte temporal que buscaremos tecer
reflexões sobre a infância no período colonial.
Inicialmente, cabe pensar um pouco sobre em que momento o tema da
infância passou a fazer parte do conjunto de objetos e prob lemas da investigação
histórica. Deste modo, é preciso que consideremos o surgimento de uma nouvelle
histoire francesa, que se configurou de modo mais acentuado e significativo a partir
do final da década de 1960 e início da de 1970 e que possibilitou a emerg ência de
novos temas, problemas e abordagens, como afirmam Jacques Le Goff e Pierre Nora,
ao campo da História.
O profissional que foi pioneiro na construç ão de análises históricas acerca da
infância foi Philippe Ariès4, responsável por realizar um conjunto de reflexões sobre a
emergência do sentimento da infância e da família a partir do século XVII. Em sua
obra, apresenta um amplo conjunto de informações históricas sobre as mudanças
ocorridas desde o século XIII até o século XVIII, apontando os diferentes níveis de
socialização, especialização de tarefas e funç ões sociais envolvendo a criança e a
família. Enfatiza o surgimento da escola e sua influência na formação do sentimento
de família, bem como a importância dada à criança após as novas configurações
familiares e domésticas que se constituíram . Outro dado importante refere-se ao fato
de que a pesquisa desenvolvida por Ariès esteve fortemente alicerçada em fontes
como imagens, pinturas, diários, documentos religiosos, etc.
Embora não fosse um historiador propriamente dito, tendo em vista que era
demógrafo histórico por formação, ele marcou de maneira relevante a postura
adotada na terceira geração da Escola dos Annales5, pois se posicionou contrário aos
métodos quantitativos e buscou realizar suas análises a partir de fontes novas para o

4
É considerado um pioneiro ao tratar a infância numa perspectiva histórica. Sua obra é de forte relevância
tendo em vista que se insere na terceira gera ção dos Annales, na França, e incorpora algumas tend ências dos
novos postulados teórico-metodológicos que a História nova adotava. Para mais informações, Cf. ARIÈS,
Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaksman. Rio de Janeiro: LTC, 2006.
5
A terceira geração dos Annales foi responsável por um conjunto de renovações e reformulações de caráter
teórico-metodológico no campo da história a partir do final da d écada de 1960 e come ço da de 1970. A
principal característica dessa fase é apontada como tendo sido a ocorrência de uma virada da história em
direção a antropologia, na medida em que foi a partir do intenso contato com essa disciplina que a hist ória
renovou seus métodos, abordagens, perspectivas teóricas e mesmo ampliou o campo de objetos e
problemáticas de estudo. Embora tenha sido marcada por um conjunto de renovações substanciais para a
história, esta nova fase (também chamada de nouvelle histoire) possibilitou a retomada de três elementos já
presentes na história tradicional e que foram alvo de fortes críticas com as transformações ocorridas na
história a partir do começo do século XX. Esta retomada refere-se ao retorno da política, da narrativa e do
fato, ou acontecimento, como aspectos relevantes para a escrita da história. Contudo, mesmo havendo a
retomada destes três aspectos t ão duramente criticados na história tradicional , a diferença está no modo como
essa nova história tratou destas três questões. Cf. REIS, José Carlos. Escola dos Annales: a inovação em
História. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

3
historiador, tendo em vista que seu objeto (a história da criança e da família) exigiu
também que ele pensasse a partir da perspectiva dos sentimentos, das mentalidades,
das representações criadas socialmente para tratar da formação de um conjunto de
ideias sobre a infância e sobre o sentimento da família.
Peter Burke (1997) aponta Ariès como um “historiador domingueiro”, isto é,
um profissional que desenvolveu interessantes análises históricas sem fazer parte,
propriamente, do grupo destes profissionais. Suas análises foram cruciais tanto para a
consolidação do programa da terceira geração dos Annales como também para os
novos horizontes que a História buscava trilhar.

“[...] criticaram Ariès por estudar a evolução européia,


apoiando-se tão somente em evidências quase que
exclusivamente limitadas à França, e por n ão distinguir com
mais clareza entre as atitudes dos homens e das mulheres, das
elites e do povo comum. Pelo sim, pelo n ão, foi uma
contribuição de Ariès colocar a infância no mapa histórico (grifo
nosso), inspirar centenas de estudos sobre a história da criança
em diferentes regiões e períodos, e chamar a atenção de
psicólogos e pediatras para a nova história” (Burke, 1997, p.
82).

A contribuição de Ariès marcou fortemente uma mudança paradigmática na


história tendo em vista que foi um dos pensadores que incorporou de modo notável as
novas ideias e perspectivas para a produção do conhecimento histórico. Alinhou-se
também com uma atitude interdisciplinar que caracterizava a nova tendência, na
medida em que pesquisou sobre atitudes, sentimentos, percepções, enfim, objetos
até então localizados no campo da Antropologia, da Sociologia e da Psicologia e que
eram então apropriados pela História.

Por uma infância disciplinada


Após tecer algumas considerações sobre como a infância ganhou um lugar na
historiografia faz-se necessário então iniciar a elucidação do objeto desde artigo e
pensar como foram construídas as relações sociais protagonizadas por padres jesuítas
e crianças indígenas no Brasil colonial.
Considerando a catequização dos índios como um processo educativo,
entendemos este também como estando fortemente amparado na ideia de que seria
possível incutir ideias e valores cristãos, e consequentemente europeus, na mente dos
índios que passassem por essa educação. Essa catequização intencionou fazer com
que os índios fossem controlados e disciplinados, de modo que pudessem agir do
modo como a mentalidade europeia julgava conveniente e civilizado. No intuito de
analisar este modelo de interação buscamos em Michel Foucault, filósofo francês do

4
século XX, o referencial teórico necessário para pensar como estas relações foram
construídas a partir de um desejo, por parte dos padres jesuítas, de disciplinar a
infância e fazer com que os corpos infantis servissem aos objetivos e valores
europeus.
Inicialmente é possível apontar que as cartas dos padres jesuítas 6 têm a
intencionalidade de trocar informações sobre como estava sendo desenvolvida a
empreitada missionária, isto é, como estavam sendo realizadas as aç ões de
catequização dos índios e como eles estavam lidando com isso, quais as dificuldades
enfrentadas, etc. Desde logo podemos notar como os padres que aqui estavam
precisaram prestar contas de suas atividades e empreendimentos para aqueles que
estavam na Europa e que precisavam saber como estava sendo efetivada a missão de
difundir o evangelho de Jesus Cristo na nova terra. A estrutura das cartas é
basicamente a mesma, sendo iniciadas quase sempre com uma saudação e apontando
o objetivo da correspondência, ou seja, informar o andamento das ações missionárias.
Um trecho da carta do padre Ruy Pereira, de 1560, demonstra a necessidade de
intercambiar informações:

“Charíssimos Padres e Irmãos em Christo, posto que a santa


obediencia me não obriga a lhes escrever, abastará e sobejará
para o haver de fazer os grandes desejos que tenho de os
comunicar, como de cá me é possível, máxime sabendo eu
quanto em o Senhor se animam e alegram pera o serviço do
seu Creador com as boas novas, que destas e d’outras
semelhantes partes lhes escrevem das cousas que Deus tem
por bem de obrar em suas creaturas” (Pereira, 1560, p. 265).

A intenção de comunicar como estava sendo trilhado o caminho apontado por


Deus é bastante clara e possibilita que pensemos a hierarquia religiosa que fazia com
que os missionários prestassem contas de suas ações aos superiores. Nesta carta o
padre Ruy Pereira aborda a conversão dos índios e a necessidade de incutir novos
costumes e hábitos nestes povos. As crianças são destacadas no relato do jesuíta no
momento em que ele trata da importância de cuidar delas e afastar a ameaça
daqueles índios que não queriam a conversão.
“[...] e pretendemos que já que não forem bons os grandes, ao
menos não estorvem aos pequenos, nem os mettam em seus
maus castumes (sic), e com virem á doutrina, e viverem co mo
christãos, e não se permittirem feiticeiros antre elles, nem
outros pecados periculosos, vêm á (sic) hora da morte a
pedirem o bautismo e morrerem christãos. E alguns, si
escapam da doença (posto que são mui raros), dizem
maravilhas do bautismo” (Pereira, 1560, p. 270).

6 Documentação utilizada para o desenvolvimento das análises aqui apresentadas.

5
O cuidado com as crianças estava alicerçado no conhecimento que os jesuítas
tinham do ambiente em que a catequização era operada. Sabiam bem o quanto era
arriscada aquela conviv ência e como havia resist ências7 de alguns indígenas em
relação aos costumes e à imposição religiosa dos europeus. O trato com as crianças
apresenta-se como um mecanismo de dominação8 e subjugação que não se operava a
partir da lógica de uma violência física, ou pelo menos nem sempre era assim.

“Os Indios gentios, de que fallei que se convertiam á nossa


Santíssima Fé, vivem constantemente perseguidos pelos
outros. Não muitos dias ha, que mataram a um menino
christão. Sabendo o que, os novamente conversos se
alevantaram contra aquelles, feriram-n’os e se acabariam por
comerem uns aos outros si n ão lhes tivessemos feito as pazes”
(Navarro, 1550, p. 59).

As crianças podiam inclusive ser vítimas de viol ência, represálias, dos próprios
índios que não haviam se convertido à fé crist ã. Era também por isso que era preciso
guardar estas crianças a salvo de toda e qualquer tentativa de fazê-las retornar aos
seus antigos costumes e hábitos. Eram muitos os desafios para que a catequese se
efetivasse no Brasil, pois para além das dificuldades práticas como a quantidade de
padres para atender a quantidade de índios, a escassez de recursos financeiros e
materiais para o desenvolvimento das atividades e a necessidade de um espaço
propício para a educação religiosa, havia ainda as limitações imateriais. Isso é
demonstrado nas cartas quando os padres referem-se ao risco das crianças voltaram a
praticar os rituais 9 e os hábitos nos quais haviam sido criadas. Era preciso construir
formas de isolamento da criança em relação aos seus pais, por exemplo, pois eles
representavam risco para ela. “Assim, não se tratava apenas de aprender a doutrina e
as coisas da fé. Para os padres, o mais difícil era justamente perseverar nos bons
costumes” (Id., ibid., p. 60).

“Tanto os problemas com os meninos, como a própria


7
Sobre as diferentes resistências e agenciamentos que foram construídos pelos indígenas para não se
subjugarem aos costumes e imposi ções dos europeus e dos jesuítas, Cf. ALMEIDA, Maria Regina Celestino
de. Os índios na História do Brasil . Rio de Janeiro, Editora da Fundação Get úlio Vargas, 2010., e também
PINSKY, Jaime. A escravidão no Brasil. São Paulo: Contexto, 2009.
8
“Por dominação eu não entendo o fato de uma dominação global de um sobre os outros, ou de um grupo
sobre outro, mas as múltiplas formas de dominação que podem se exercer na sociedade. Portanto, não o rei
em sua posição central, mas os súditos em suas relações recíprocas: não a soberania em seu edifício único,
mas as múltiplas sujei ções que existem e funcionam no interior do corpo social ”. Cf. FOUCAULT. Michel.
Soberania e disciplina. Op., cit. p. 181.
9
O principal ritual que os padres temiam que as crianças tornassem a praticar era a antropofagia. A carta do
padre João de Azpilcueta Navarro (1550) narra um epis ódio desse tipo e demonstra a aversão que os
religiosos católicos tinham por esse costume nativo. Cf. Carta I. pp. 59-66.

6
evangelização dos adultos, levaram os padres a optar cada vez
mais por uma conversão pela ‘sujeição’ e ‘temor’, como
escreviam em seus textos. Fortalecia-se aos poucos a
convicção de que os índios só se converteriam se fossem
sujeitos a alguma autoridade, daí o constante apelo ao poder
da Coroa, para a consecução da conversão dos índios. Inclusive,
do ponto de vista do ensino dos meninos índios, essa
perspectiva coincidia com a estruturação de um rígido sistema
disciplinar [...], que, no mesmo sentido que o próprio repensar
da disciplina desde o século XV, dependia de uma vigilância
constante, da delação e dos castigos corporais”
(Chambouleyron, 2007, p. 69).

A relação com os cunumins dava-se a partir do interesse de disciplinar e


controlar aquelas crianças, convertendo-as e encaminhando-as para um conjunto de
objetivos cristãos e das ordens religiosas. O contato diário com as crianças era
essencial para que a vigilância fosse eficaz. Neste sentido, pensamos aqui esta
relação a partir da noção de poder disciplinar10, de Michel Foucault. Para ele, essa
disciplina

“[...] nem é um aparelho, nem uma instituiç ão, na medida em


que funciona como uma rede que as atravessa sem se limitar a
suas fronteiras. Mas a diferença não é apenas de extensão,
mas de natureza. Ela é uma técnica, um dispositivo, um
mecanismo, um instrumento de poder, são ‘métodos que
permitem o controle minucioso das operações do corpo, que
asseguram a sujeição constante de suas forças e lhes impõem
uma relação de docilidade-utilidade” (Foucault, 1979, p. 17).

É perceptível a atenção dos jesuítas às crianças indígenas, como sendo as


possíveis componentes de uma “nova cristandade”. Eram várias as queixas de padres
quanto a dificuldade de se evangelizar o índio. Isso é demonstrado nas cartas dos
próprios padres, onde apresentavam como barreira o fato de que os nativos já
estavam muito apegados aos seus costumes e isso tornava difícil a interiorização dos
códigos comportamentais cristãos.
De acordo com o olhar dos jesuítas os índios estavam tão presos nas trevas de
seus “maus costumes” que não aceitavam a doutrina cristã. Entre os costumes dos
nativos que mais escandalizava os jesuítas estavam a prática canibal, presente em
algumas aldeias, e a crença nos caciques, curadores e adivinhos. Esses personagens
da crença nativa eram vistos pelos cristãos como abomináveis feiticeiros, e aos
indígenas foi dado o rótulo de idólatras, tendo em vista que para os jesuítas a

10
Cf. FOUCAULT, Michel. Apresentação. In. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto
Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

7
tradição cultural desses povos era definida como uma cegueira que impedia o
entendimento espiritual necessário para que abraçassem as práticas cristãs.
Essa percepção servia como justificativa para que os crist ãos reafirmassem o
seu discurso de que tinham a missão de levar o evangelho e a sabedoria cristã para
estes povos atrasados e que precisavam ser civilizados e conduzidos para o caminho
da verdade. Considerando todas as dificuldades vivenciadas os jesuítas voltaram-se
para os pequenos cunumins como uma forma de garantir que as novas gerações que
surgissem fossem capazes de alcançar as finalidades civilizadoras e crist ãs que eles
julgavam essenciais para o desenvolvimento desse povo desconhecido e de práticas
culturais tão distintas.
O padre Antonio Rodrigues foi um dos correspondentes que escreveu cartas
cuja finalidade era prestar contas aos seus superiores de como vinha sendo realizada
a catequese. Nele é possível perceber um tipo de imagem criada para representar a
criança indígena.
“[...] logo fiz assentar o numero dos Indiozinhos innocentes, os
quaes me deram de mui boa vontade, e os baptizámos todos
para gloria do Senhor. Eram ao todo 31. Acabado o officio,
préguei-lhes o melhor que pude sobre a creação do mundo e
nossa, da gloria, etc., o que tudo o foi de tanta edificaç ão para
os circunstantes christãos que se acharam, que choraram pelas
barbas, segundo me disse o Patrão e outros Christãos que
presentes se achavam: gloria e louvores ao Senhor”
(Rodrigues, 1559, p. 242).

As cartas tinham o intuito de convencer que a catequização estava sendo


implementada com sucesso. Era preciso prestar contas do trabalho e apontar, pelo
menos parcialmente, os resultados até ent ão alcançados. O termo “indiozinhos
innocentes” tem uma conotação que reafirma o controle e a disciplina que era
colocada sobre eles. A oração, a vida religiosa dedicada aos princípios cristãos eram
formas de enquadramento na vida social permitida para aquelas crianças. O tom
como o padre refere-se às crianças tem também um elemento afetivo, sentimental,
que demonstra a relação de proximidade alimentada entre os jesuítas e os cunumins,
tendo em vista que a doutrinação ocorria a partir de espaços de conversa, onde o
religioso contava as histórias entendidas como fundamentais para a formaç ão do bom
cristão. Noutra carta, Antonio Rodrigues fala das crianças que abandonaram a casa
dos pais para segui-lo na vida evangélica, como aponta o seguinte trecho: “[...] foi
esta viagem para mim de muita consolaç ão, vendo-me cercado destas almas, que,
deixadas as casas de seus paes e mães, vinham comigo com tanta alegria á (sic)
casa de Deus para serem ensinados em Sua Santa Fé” (Rodrigues, 1559, p. 244.
A religião era a base a partir da qual se buscava formatar comportamentos

8
individuais que pudessem servir a uma ordem pensada e formulada a partir dos
interesses dos jesuítas. O discurso religioso prescrevia um conjunto de práticas e
atitudes que os sujeitos, neste caso crianças, podiam realizar. Deste modo, elas
estariam de acordo com o modelo de comportamento estipulado e com o novo modo
de vida que teriam. É possível compreender que “... a evangelização das crianças
tornara-se uma forma de viabilizar uma difícil conversão, já que [...], nos meninos se
poderia esperar muito fruto, uma vez que pouco contradiziam a lei cristã” (Id., ibid.,
p. 58).
O padre João de Azpilcueta Navarro aponta que “[...] só aos pequenos acho
com boa inclinação, si os tirassemos de casa de seus Paes, o que não se poderá fazer
sem que Sua Alteza faça edificar um collegio nesta cidade com destino a essas
crianças para as educar, de maneira que com os maus costumes e malicia dos Paes
se não perca o ensino que se ministra aos filhos” (Navarro, 1550, p. 6 1). Notamos
assim que uma estratégia apontada para vencer a dificuldade da catequizaç ão, isto é,
os costumes dos pais das crianças indígenas como sendo empecilhos ao processo de
formação delas, foi a institucionalização da educação jesuítica através dos colégios.

“A segunda metade do século XVI assistiu ao lento, e às vezes


problemático, estabelecimento da Companhia de Jesus no
Brasil. Em razão de sua vivência apostólica e da própria
descoberta da infância, os padres entenderam que era sobre as
crianças, essa ‘cera branca’, que deveriam imprimir-se os
caracteres da fé e virtude crist ãs. Para isso, elaboraram
estratégias e projetos, que se transformavam à medida que se
consolidava a própria conquista portuguesa na América, e que
seguiam os ventos que traziam e enviavam suas cartas ao
Velho Mundo” (Chambouleyron, 2007, p. 79).

Há nesse tipo de compreensão a vontade de controlar as atitudes e os


comportamentos infantis e tal atuação dos jesuítas em relação aos “pequenos” não se
dava exclusivamente a partir da violência física sobre o corpo, mas a partir da
coerção e da disciplina dos gestos e das ações de cada sujeito. A ideia era que estas
crianças esquecessem os seus costumes e adotassem os padr ões de comportamento
daqueles que os doutrinava. Nesse processo o padre Ruy Pereira deixa claro que

“[...] ensinamo-lhes jogos que usam lá os meninos do Reino;


tomam-os tão bem e folgam tanto com elles, que parece que
toda a sua vida se criaram em isso; denique (grifo no original)
essa nova criação que cá se começa está tão apparelhada pera
nella se imprimir tudo o que quizermos (si hover quem
favoreça o serviço de Deus) como uma cera branca pera
receber qualquer figura, que lhe imprimirem. N ão falta mais
que virem, meus caríssimos em Christo, a dilatar e estende a
vinha do Senhor” (Pereira, 1560, p. 273).

9
O trecho evidencia a intenção dos jesuítas de construírem discursivamente
sujeitos que pudessem atuar do modo como lhes foi autorizado. Deste modo, é
possível afirmar que houve uma construção social dos corpos infantis a partir de uma
lógica da “docilidade” e “utilidade” destes gestos individuais no contexto social em
que se inseriam. Podemos notar como o poder era fruto das relações estabelecidas
entre os padres jesuítas e as crianças indígenas e, neste sentido, vale considerar o
poder não apenas no seu aspecto negativo, destrutivo, mas percebendo-o e lendo-o
como dotado de aspectos positivos. O poder11, como o compreendemos aqui, tem
uma função produtiva e transformadora na medi da em que possibilita a criaç ão e a
construção de modos de sociabilidade, bem como possibilita a construção de
individualidades que são forjadas para servir a determinados interesses e objetivos.
Os padres solicitam para Bahia em várias cartas a construção de um colégio,
um espaço específico para o letramento e o ensino da doutrina. Este espaço útil
rompia a comunicação dessas crianças com as práticas cotidianas da aldeia “... a
rotina dos meninos das vilas, principalmente do colégio, era muito diferente daquela
vivenciada nas aldeias” (Chambouleyron, 2007, p. 78) já que ali estavam com as
práticas cotidianas dos jesuítas, o colégio era um espaço de disciplinarização onde
elas viviam de acordo com as regras dos jesuítas e os valores da religião da qual
estavam se tornando prosélitos. O padre Francisco Pires menciona que todas as
práticas tinham seu tempo, o tempo da leitura, da doutrina, da missa e o aprendizado
de outros ofícios, pois “ [...] para cada movimento [era] determinada uma direç ão,
uma amplitude, uma duração; [era] prescrita sua ordem de sucessão. O tempo
penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder” (Foucault, 2012,
p. 146). O padre Serafim Leite afirma que “ [...] a política de instrução dos padres
consistia em abrir sempre uma escola onde quer que erigissem uma igreja” (Leite,
apud Chambouleyron, 2007, p. 59) onde se aplicava a pedagogia do ler e doutrinar,
as duas bases da disciplinarização dos jesuítas.
O corpo foi alvo de uma relação de poder específica vivenciada entre os
jesuítas e as crianças indígenas. Foi objeto de um conjunto de ações dos padres e,
assim, pode-se compreender que aqueles corpos infantis, dóceis, foram forjados a
partir dos interesses da ordem religiosa: controlar, disciplinar e autorizar os modos de
utilização desse próprio corpo no tecido social tendo em vista que “[...] em qualquer
sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe
impõem limitações, proibições ou obrigações” (Foucault, 2012, p. 132).

11
A condução da análise sistematizada neste texto foi realizada a partir das considera ções do filósofo Michel
Foucault sobre o poder. Para mais informações sobre sua perspectiva de análise, Cf. FOUCAULT, Michel.
Op. cit.

10
Buscando pensar o poder para além do aspecto negativo e destrutivo com o
qual ele sempre é relacionado, podemos refletir como “[...] o poder produz; ele
produz o real; produz domínios de objetos e rituais de verdade. O poder possui uma
eficácia produtiva, uma riqueza estratégica, uma positividade. E é justamente esse
aspecto que explica o fato de que tem como alvo o corpo humano, não para supliciá-
lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo” (Foucault, 1979, p. 14).
O corpo humano passa a ser pensado não apenas como um dado natural,
biológico, anatomicamente pronto e finalizado, mas como uma produção cultural e
social. O jogo de relações que se estabelecem em uma determinada sociedade
possibilita a construção do corpo a partir de uma malha de interesses, de jogos de
poder e formas de coação, controle, disciplina e possibilidades de liberdade e
satisfação. Deste modo, vemos como o corpo humano pode assumir , em diferentes
sociedades e em diferentes épocas, estatutos diferenciados, tendo em que vista a
mutabilidade dos valores culturais, dos dogmas ou crenças religiosas e dos padrões de
comportamento socialmente determinados e aceitos.
A criança no Brasil colonial era vista pelos jesuítas como uma aposta, uma
promessa de futuro, pois todos sabiam que os objetivos das ordens12 religiosas no
Brasil só seriam alcançados dentro de um longo espaço de tempo. “Os procedimentos
disciplinares revelam um tempo linear cujos momentos se integram uns aos outros, e
que se orienta para um ponto terminal e estável” (Foucault, 2012, p. 154). As ações
eram diárias, como apontam as cartas de alguns padres que estiveram na colônia
naquele período. A atividade evangelizadora se dava diariamente com o intuito de
que fossem formados sujeitos capazes de interiorizarem cada vez mais os valores, os
costumes e as crenças do povo europeu e do discurso cristão, especificamente.
Podemos compreender ainda o processo de catequização como o de um
treinamento das crianças indígenas, pois a educação religiosa era baseada também
num conjunto de objetivos práticos como , por exemplo, fazer com que estes novos
cristãos fossem responsáveis pelo processo de civilização da terra nova. Os cunumins
eram a aposta para o mundo novo. Eram eles que deveriam, como os crist ãos que se
tornariam, contribuir para a formação da nova sociedade de modo que ela fosse a
mais semelhante possível ao modelo europeu que eles aprendiam diariamente a
vivenciar, experimentar e exercitar.
Aquelas crianças eram treinadas diariamente para ocuparam um lugar social
que, muito possivelmente, elas nem sabiam qual era. Serviriam aos interesses de um

12
No Brasil não houve o monopólio de uma ordem apenas para desenvolver o processo de catequização.
“Ordens tão importantes como a dos Frades Menores se ocuparam da convers ão no s éculo XVI, e também do
ensino dos filhos dos portugueses. Cf CHAMBOULEYRON, Rafael. Jesuítas e as crianças no Brasil
quinhentista. In: DEL PRIORE, Mary. (Org). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007.

11
grupo que não havia perguntado quais seus interesses e quais as suas motivações
para o futuro. O que houve foi um processo de dominação cultural e religiosa que
objetivou fazer com que aquelas crianças, tidas como “cera branca” pudessem
assimilar os valores e credos vistos pelos católicos como essenciais. Tal operação
dava-se com o intuito de minimizar as possibilidades de resist ência e fazer com as
crianças compreendem e atribuíssem importância para este processo, até certo ponto
silencioso, que se configurava e que as envolvia. Neste aspecto notamos a lógica
docilidade-utilidade presente nesta relação de controle, pois “é dócil um corpo que
pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e
aperfeiçoado” (Foucault, 2012, p. 132). A formação religiosa das crianças pode ser
vista como a construção social e cultural de corpos maleáveis, capazes de servir aos
interesses de um determinado grupo social sem que estes sujeitos, necessariamente,
soubessem ou percebessem a condição de dominação e controle em que se
encontravam.
“O controle social são as formas pelas quais a sociedade inculca
os valores do grupo na mente de seus membros, para evitar
que adotem um comportamento divergente. O principal
objetivo do controle social é fazer com que cada indivíduo
tenha um comportamento socialmente esperado” (Oliveira,
2003, p. 151).

A disciplina era implementada com sutileza, a partir de atividades cotidianas,


diárias, que com o decorrer do tempo puderam ser vivenciadas de forma banal.
Entretanto, os mecanismos da disciplinarização mantinham-se contínua e
persistentemente. Neste sentido Chambouleyron (2007) aponta como a música era
um instrumento importante na catequese, sendo usada como recurso pedagógico para
instruir, treinar e formar os sujeitos para a vida social. “No aprendizado da doutrina,
apostava-se principalmente na sua memorização, e os padres orgulhavam-se dos
meninos que sabiam tudo de cor” (Id., ibid., p. 63).
“Ensinava-se a cantar e tocar instrumentos como forma de
aprender a doutrina e os bons costumes. As primeiras
referências ao uso da música aparecem menos de um ano após
a chegada dos padres. Conta o padre Nóbrega, em uma carta
de janeiro de 1550, que o padre Navarro ensinava os meninos a
cantar orações, em lugar das ‘canções lascivas’ a que estavam
acostumados” (Chambouleyron, 2007, p. 64)

Foram variadas as formas de dominação que os jesuítas usaram para poder


impor os dogmas da fé crist ã. Os modos de proceder dos portugueses nem sempre
eram violentos e os jesuítas ilustram bem isso na medida em que suas aç
ões
primavam por serem atrativas e pedagogicamente sutis para incutir nas crianças seus
interesses e formas de torná-las disciplinadas e úteis para os fins planejados por eles.

12
É interessante notar ainda como os jesuítas lançaram mão de várias estratégias para
poder desenvolver a conversão dos indígenas à fé crist ã. Segundo Chambouleyron
(2007) eles trouxeram para o Brasil um considerável número de órfãos de Lisboa, que
faziam parte do Colégio de Jesus dos Meninos Órf ãos, em 1550 e 1551. Estas crianças
aprenderam com rapidez o idioma dos nativos e foram importantes colaboradores do
processo de cristianização no Brasil colonial.
Entretanto, esta estratégia enfrentou alguns desafios como, por exemplo, a
oposição do primeiro bispo do Brasil, Dom Pero Fernandes. Ele chegou ao Brasil em
1552 e com sua chegada a atuação das crianças portuguesas na catequização foi
reduzida, pois ele era contrário ao fato de que os órfãos portugueses “cantassem
músicas gentílicas e tocassem os instrumentos que os índios usavam nas festas em
que matavam e ingeriam seus inimigos” ( Id., ibid., p. 64). Mesmo com a
argumentação dos padres afirmando que os órfãos estavam ajudando muito na
conversão e que o fato deles haverem aprendido a língua nativa havia sido
importante na aproximação com as crianças indígenas, ainda assim Dom Pero
Fernandes resistiu. No entanto, aos poucos o ensino de música foi retomado, embora
a prática dos cânticos indígenas tenha sido cada vez mais minimizada, o que aos
poucos provocou seu abandono. “O ensino musical era de suma importância n ão só
para o aprendizado da doutrina, mas também para a participação nas mais variadas
formas da vida religiosa” (Id., ibid., p. 65).
O canto foi uma modalidade pedagógica usada pelos jesuítas na catequização e
teve uma importância crucial no processo de doutrinação dos cunumins. “Além de
cantarem nas procissões, as crianças das escolas e dos colégios se disciplinavam, o
que comovia muito os padres. Havia que aprender a ter uma outra relação com o
corpo, agora macerado e domado” (Chambouleyron, 2007, p. 66). Outra estratégia
pensada pelos jesuítas foi desenvolver catecismos dialogados em que havia a prática
de perguntas e respostas e nesse jogo as crianças indígenas acabavam por indicar aos
padres o quanto tinham aprendido da doutrina crist ã através da memorização dos
princípios doutrinários.
Portanto, as reflexões aqui tecidas tiveram como objetivo reiterar a
importância de pensar o passado a partir de questões que possam problematizá-lo,
indagá-lo, de modo que as fontes documentais possam ser caminhos possíveis para
um diálogo com outras temporalidades, outros modos de ver, ler e viver a
experiência humana. Este texto buscou apontar como a religião foi usada no período
colonial como um instrumento estratégico para a construção da nova sociedade que os
portugueses desejavam montar. Os jesuítas foram atores importantes no processo de
conquista do Brasil, na medida em que construíram relações de poder com os índios e
os fizeram, mesmo considerando os entraves, as resist ências e as dificuldades

13
ocorridas, assimilar os valores da religião cristã e com isso tornaram-se indivíduos
moldados a partir dos valores de outro povo, com outros modelos de pensamento e
de interpretação sobre a vida. A criança indígena foi tida como uma “cera branca” e
“mole” sobre a qual poderiam ser impressos todos os interesses, valores e códigos
morais dos europeus. O corpo infantil foi considerado como um instrumento sobre o
qual seriam inseridos os modelos de comportamento aceitos para a “nova
cristandade” que os jesuítas queriam formar.
Deste modo, buscamos contribuir para que a história da infância possa ser um
campo temático renovado a partir de novos olhares, perspectivas e modos de
trabalho. Pensar as crianças como sujeitos dotados de características específicas, em
qualquer sociedade e temporalidade histórica, exige que pensemos como elas foram
alvo de interesses e de modos distintos de controle social difundidos a partir da
educação (seja ela religiosa ou laica) ou de outros instrumentos de formação de
comportamentos, mentalidades e modos de agir no tempo e no espaço.

Fontes

Cartas I, XIV, XXX, XXXI e XXXIX, pp: 59-66; 136-143; 242-243; 244-245 e 265-
283, respectivamente.
Disponíveis em: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/search?q=dc.subject:%22Jesuitas+-
+S%C3%A9c.+XVI++Brasil%22 acesso em 10 de jan. 2013, às 21h48, p. 242-243.

Referências bibliográficas

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2006.

BURKE, Peter. A terceira geração. In. A Escola dos Annales (1929-1989): a


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14
ENSINO RELIGIOSO – TRILHANDO A NOVA ABORDAGEM EM NATAL

Valdicley Euflausino da Silva (PIBIC/CNPq/UERN)*


Araceli Sobreira Benevides (UERN)**

Resumo
O Ensino Religioso (ER) não é mais refém das referências confessionais e
moralizantes. Passou para o modelo fenomenológico (LONGUI, 2004), das Ciências da
Religião ou ainda pluralista, como trata Benevides (2009), exigindo agora professores
com nível superior, possuidores de conhecimentos pedagógicos sobre a docência. Com
base na exploração do conceito da diversidade religiosa no ambiente escolar,
trilhamos, através dos discursos de dois grupos de professoras do município de
Natal/RN, a sua formação inicial e as vivências nos diferentes modelos dessa
disciplina. Os resultados indicam a constituição dos conhecimentos do antigo e do
novo modelo de ER e as transformações que devem acontecer nas esferas das práticas
escolares para um modelo voltado à pluralidade.

INTRODUÇÃO
Quando o Ensino Religioso³ foi legalizado com ônus ao governo, através Lei
9.475/97, dando nova redação do artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDBEN) 9.394/96, surgiu grande preocupação em acompanhar o processo
de inserção dessa nova abordagem dentro do ambiente escolar brasileiro e,
consequentemente, em relação aos agentes que ministrariam esse novo tipo de
ensino, tendo em vista os diversos aspectos anteriores que contrariavam essa
disciplina.
Essa mudança contribuiu para uma abordagem de ER no Brasil que visa a um
enfoque mais aberto, voltado aos conhecimentos das Religiões e seus Fenômenos,
necessitando, assim, de profissionais devidamente capacitados para coordenar as
aulas desse componente curricular (CORTELLA, 2007; PASSOS, 2007; USARSKI,
2007). Porém, ainda há um desconhecimento desse fato por parte da maioria dos
gestores públicos, dos acadêmicos e da sociedade em geral.
Assim sendo, pretendemos dar prosseguimento à atividade de mapeamento
iniciadas por Benevides (2008a) dentro do projeto Saberes da prática docente no
contexto do Ensino Religioso – entrecruzando a multidisciplinaridade, leituras e

*
Valdicley Euflausino da Silva (PIBIC/CNPq/UERN)
**
Araceli Sobreira Benevides (UERN)
experiências na construção de identidades docentes (PIBIC/CNPq/UERN), no qual
investigamos as lembranças iniciais desses profissionais nas esferas das práticas do
ER na região metropolitana de Natal/RN, os discursos desses docentes sobre seus
conhecimentos, com a finalidade de entendermos a construção das identidades
docentes (PIMENTA, 2008; CATANI; BUENO; SOUSA, 2000).
Para tanto, realizamos a interpretação e reinterpretação de discursos recolhidos
através de entrevistas e relatos pessoais elaborados durante a primeira fase de
preenchimento de um questionário investigativo realizado com professoras de ER que
atuam na região metropolitana de Natal. Além de analisar se/como os conhecimentos
construídos no curso de graduação estão sendo levados para o contexto da sala de
aula com o intuito de conhecermos (FREITAS, 2002, 2003) seus saberes (Pimenta,
2008), pois, como veremos adiante, suas práticas refletem os ideais impostos na
época de formação.
Analisamos, através da transcrição de dados realizados anteriormente4, os
discursos desses agentes educacionais, amparando-nos, nessa fase da pesquisa, em
autores como Catani, Bueno e Sousa (2000) e Pimenta (2008). Essas autoras
discutem em seus trabalhos o processo de construção das identidades docentes,
valorizando suas lembranças iniciais e os saberes construídos ao longo da vida do ser
professor.
Para Catani, Bueno e Sousa (2000, p. 152), as “[...] relações que os indivíduos,
homens e mulheres (alunos e professores), mantêm com a escola e com as diferentes
disciplinas, e os significados dessas relações em histórias de escolarização e na
formação da identidade dos professores [...]” são valorizados pela importância da
natureza desses esses atores em suas próprias formações identitárias. Já Pimenta
(2008, p. 18) entende que a Identidade “[...] é um processo de construção do sujeito
historicamente situado [...]”, que emerge no decorrer da história pessoal e
profissional, pois estão implicadas as formas de compreensão dos significados sociais,
da(s) cultura(s), da (s) teoria(s) e prática(s) relacionada(s) às realidades desses
sujeitos. Sua concepção identitária assemelha-se ao processo de edificação da
identidade docente, tendo em vista que o profissional docente está implícito dentro do
contexto da constituição da identidade, para aqueles que resolvem seguir esta
carreira. Dessa forma, entendemos que identidade de um indivíduo não é algo finito,
acabado ou fechado. Como descreve esta última autora, estão envolvidas uma gama
de circunstâncias, que não por acaso, estamos a vivenciar continuamente no contexto
histórico. Destacamos que a formação do profissional docente na é construída
exclusivamente na sociedade ou em um curso de formação. Através destes
enunciados queremos chegar ao entendimento/compreensão de que
A Formação de Professores é a área de conhecimentos, investigação e de
propostas teóricas e práticas que, no âmbito da Didática e da Organização
Escolar, estuda os processos através dos quais os professores – em
formação ou em exercício – se implicam individualmente ou em equipa, em
experiências de aprendizagem através das quais adquirem ou melhoram os
seus conhecimentos, competências e disposições, e que lhes permite
intervir profissionalmente no desenvolvimento de seu ensino, do currículo e
da escola, com o objectivo de melhorar a qualidade da educação que os
alunos recebem. (GARCIA, 1999. p. 26).

Vemos acima, que somente um curso de Formação Inicial proporciona as


adequadas capacidades profissionais docentes, permitindo, dessa forma, a intervenção
correta no ambiente escolar a fim de contribuir a um progresso qualitativo da
educação. Ou seja, o curso de formação ampara o docente na sala de aula, mas ele
deve atentar-se ao contexto externo, para proporcionar um mudança das hegemonias
reprodutoras/opressoras de outrora. Segundo Nagamine (2007), os professores não
tinham os devidos conhecimentos pedagógicos até o final da década de 1960. Nesse
sentido, não se pode mais pensar em ensino de qualidade sem conhecimentos
pedagógicos e epistemológicos em todas as áreas de conhecimento. Ancorado neste
discurso, o ER transformou-se: de área intencionada ao reforço religioso-espiritual,
amparado pelas instituições religiosas, para uma área de conhecimentos
epistemológicos e didáticos, gerando atualmente uma abordagem sistemática
(CORTELLA, 2007; PASSOS, 2007).
Destarte, intencionamos que este trabalho também contribua para os
profissionais atuantes e os que estão para se formar, além dos leigos, provocando-os
a reflexões acerca das relações dos educadores dessa área com a escola e do percurso
de formação docente na área das Ciências da Religião.

OS MODELOS DE ENSINO RELIGIOSO NO BRASIL


Para entendermos o contexto do ER existente no RN antes das mudanças
ocorridas em meados da década de 1990, quando era entendido como ensino de
Religião, faremos um rápido resgate histórico.
Trazemos primeiramente a ótica Longhi (2004) sobre os modelos de ER
vigentes na história educacional brasileira. Segundo ele, o primeiro modelo de ensino
implementado do país é denominado confessional, datado dos tempos coloniais até o
começo da década de 1970. Durante esse tempo, o único tipo de ensino explorado no
país era o Ensino da Religião Católica. Algumas características desse modelo são: a
doutrinação e a catequese realizadas pela Igreja Católica Apostólica Romana,
acontecendo, assim, aulas de religião.
O próximo modelo é denominado de interconfessional, surgido a partir da
década de 1970 e que perdura até meados dos anos 1990. Nesse momento, persistem
as aulas de religião, porém, devido a uma análise dos textos sagrados cristãos, houve
certa abertura aos diferentes credos. Como consequência, o ensino baseava-se em
atitudes e valores a serem vivenciados com o próximo. O último modelo é
categorizado como fenomenológico. Esse modelo advém no momento histórico
denominado pós-modernidade. Nessa fase, existe um diálogo religioso e
interdisciplinar, confluindo para um ensino com perspectivas mais solidárias, afetivas,
sensíveis, respeitosa (LONGHI, 2004).
Outro autor que discute a temática dos modelos de ER existentes é Passos
(2007) que enumera três tipos de modelos existentes no Brasil. Contudo, as
denominações e as características são um pouco distintas das do modelo de Longui,
indicado acima. O primeiro modelo é classificado de modelo Catequético. Este modelo
consiste (ia) na transmissão de princípios de fé, de doutrinas e dogmas,
primeiramente exercidos no âmbito da Igreja Católica e, depois, das Igrejas
Reformadas, os quais eram levados para dentro das escolas públicas, sendo utilizadas
como motivação espiritual, como base teórica e como estratégia metodológica para o
ER (mais conhecidamente como ensino de religião e aspectos religiosos).
O segundo modelo apresentado por esse autor é o modelo Teológico. Este
abarca a perspectiva de um ER que ultrapassasse a fundamentação referente à
confessionalidade estrita, de modo que superasse a prática catequética. Buscava
oferecer um discurso religioso e pedagógico com a sociedade e as diversas confissões
religiosas dentro de um horizonte ecumênico.
O terceiro modelo seria o das Ciências da Religião. Este é o atual modelo e
caracteriza-se pelo rompimento com os dois anteriores sob a égide da autonomia
epistemológica e pedagógica, que necessita todo Componente Curricular (PASSOS,
2007) do Ensino Fundamental brasileiro.
Para Benevides (2009) tanto o último modelo apresentado por Longui (2004),
quanto o último modelo categorizado por Passos (2007) é tratado como modelo
Pluralista. Segunda a autora, este novo modelo pluralista rompe com o ensino
dogmático, que é pautado pelo Estudo Bíblico, abrindo espaço para a “[...] percepção
da existência de Textos Sagrados de matrizes religiosas em diversas sociedades e em
tempos históricos variados” (BENEVIDES, 2009), por exemplo.
Comparando os paradigmas, percebemos, por exemplo, que em Passos o
modelo Teológico descrito possui característica que, no discurso, são perspicazes,
contudo, notamos que perpassava de maneira disfarçada o caráter catequético no
discurso ecumênico desenvolvido no modelo. Esse fato dá-se à motivação religiosa dos
agentes educacionais, acarretado pela ausência de cursos de formação com referência
à abordagem condizente com o modelo (PASSOS, 2007). Assim, se no modelo
catequético ou confessional, a dificuldade era em relação aos conteúdos ministrados;
no modelo teológico ou interconfessional, o que impedia uma abordagem mais
coerente era a ação dos agentes educacionais. O modelo das Ciências da Religião,
Fenomenológico ou Pluralista, desvincula esses parâmetros e parte de uma concepção
totalmente científica, sem pressupostos catequéticos, evangelizadores ou doutrinários;
germinando a consciência de cidadania diante da sociedade e os aspectos pedagógicos
da disciplina que, nesse modelo, recebe o título de Ensino Religioso.
Vale ressaltar que, ainda, atualmente, esses modelos coexistem devido ao fato
de cada Estado ser responsável pelo tipo de modelo a ser vinculado em sala de aula
(PASSOS, 2007). Entretanto, o modelo exigido pela LDB está pautado na pluralidade,
na diversidade e no multiculturalismo, pois, o ER, entendido como componente do
currículo do Ensino Fundamental, deve ser construído sob os conhecimentos
epistemológicos no interior das Ciências da Religião – área de conhecimento que
forma os profissionais da educação dessa disciplina (CORTELLA, 2007). No Rio Grande
do Norte, o curso que forma os professores dessa área é a Licenciatura em Ciências da
Religião da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

O CAMINHO DA COMPREENSÃO – METODOLOGIA


Começamos este tópico trazendo à tona Amorim (1997) que, em suas
pesquisas, ressalta a importância do método, mais precisamente do percurso pelo
qual se encaminha a pesquisa, alertando sempre para a postura, o caráter
observatório, investigativo, analítico, crítico e dedutivo que um pesquisador deve
apresentar, pauta-se sempre em questionamentos, pois estes configuram o caráter
científico do objeto em estudo (AMORIM, 1997). A partir dessas precisões
investigativas, tomamos como direcionamento metodológico, o enfoque
Qualitativo/Interpretativista, segundo Moita Lopes (1994), que se justifica, segundo o
autor, por possibilitar uma (re)interpretação do mundo, tendo em vista que as
características criadoras do mundo social, que estão ligadas ao homem, são inúmeras.
Assim, entendemos que essa metodologia atende a inúmeras visões de mundo e,
constantemente, estão a remodelar-se no discurso, pela linguagem.
Dentro dessa ótica investigativa, procuramos, a partir dos relatos de
professores atuantes desde o antigo modelo de ER, interpretar os seus discursos a fim
de entendermos como ocorreu o processo de formação do profissional nessa área.
Nosso intuito, nessa fase da pesquisa, não é de julgar suas atitudes como proselitistas
ou não, mas, sim, entender os valores tomados como fundamentais para uma melhor
educação da época. Em outras palavras, priorizamos o conhecimento que esses
profissionais construíram (FREITAS, 2002; 2003) dentro do contexto sócio-histórico
em que viviam. Para as discussões acerca dos valores constituintes na formação
inicial, amparamo-nos em autores como Catani, Bueno e Sousa (2000), García (1999)
e em Pimenta (2008), como indicado anteriormente.
Nosso foco nesses profissionais educacionais atuantes desde o modelo
confessional de ensino até os tempos atuais é justificado pelo fato de entendermos
que estes agentes possuem os saberes de ambos os modelos de ER e, tendo
vivenciado as transformações que implicam até o novo modelo docente, teriam uma
gama de conhecimentos relevantes a serem conhecidos pelos sujeitos da época atual.
Isso alude que esses professores construíram e organizaram conhecimentos,
vivenciaram e praticaram o modelo de ensino moralizante, porém, alguns mudam,
alteram esse status, por possuírem atualmente a formação em Ciências da Religião.
Este fato acarreta o interesse em sabermos se os saberes docentes apreendidos na
nova formação estão sendo levados e abordados no ambiente escolar.
Para isso, tomamos como instrumentos de pesquisa as análises de relatos
pessoais elaborados durante a fase de preenchimento de um questionário
investigativo realizado com professoras de ER atuantes na região metropolitana de
Natal/RN, como primeira fase. A escolha desse corpus nos remete a Souza (2008),
que nos conduz ao entendimento de que a prática de análise de relatos,
biografizações, autobiografias etc. oportuniza a compreensão dos contextos de
formação, pois possibilita a análise e a reflexão dos agentes entrevistados sobre a
própria trajetória. O autor destaca ainda que esse instrumento auxilia no
entendimento das dimensões metodológicas da pesquisa e ainda remete seus
produtores a refletir “[...] sobre ações, modelos e práticas expressas” (SOUZA, 2008,
p.93) nas vozes de cada discurso. Segundo Catani, Bueno e Sousa (2000) também
indicam as escolhas e opções do tornar-se professor, o repertório de conhecimentos
docente e o desenvolvimento que esses sujeitos alcançaram ao longo da formação que
tiveram. Entendemos, assim, que esse tipo de análise auxilia-nos a conhecer as
aprendizagens dos agentes analisados, mas, acima de tudo, propicia um momento de
reflexão sobre os seus saberes e ações no contexto educacional (FREITAS, 2002;
2003).
Na segunda fase, as análises dos dados foram geradas durante uma entrevista
com uma professora de ER da rede pública estadual do RN que possui graduação e
especialização na área das Ciências da Religião. Sua posição enunciativa ajudou-nos a
interpretar os discursos sobre seus conhecimentos teóricos e práticos que estão no
cotidiano das aulas de Ensino Religioso5.
Dentro dessas fases, trabalhamos com a entrevista coletiva conforme as
orientações de Kramer (2007). Os dados contidos nas filmagens foram transcritos pelo
bolsista, servindo para as análises realizadas nos estudos do Grupo de Pesquisa
Educação, Cultura e Fenômeno Religioso dentro da linha de pesquisa Formação e
Atuação do docente da Educação e das Ciências da Religião.
Finalizando este tópico, destacamos que as observações, vivências e saberes
construídos durante essa entrevista nos enriqueceram, pois, através dos múltiplos
olhares dos sujeitos participantes, pudemos refletir na construção dos nossos saberes
como futuros docentes, através da experiência que é vivenciada, compartilhada e
apreendida.
Informamos que organizamos os enunciamos a partir da seguinte orientação:
P1(Professora 1), P2 (Professora 2) e P3 (Professora 3) – sujeitos de pesquisa da
fase 1 – cujos dados foram construídos em 2009 por Benevides e colaboradores; e P4
(professora 4) – sujeito de pesquisa da fase 2 do estudo organizado por Benevides e
colaboradores (2011).

CONHECENDO AS PRÁTICAS DO ENSINO RELIGIOSO EM NATAL


Partindo da proposta de que o pesquisador “[...] é aquele que investiga,
aquele que quer saber” (AMORIM, 1997, p.137), procuramos entender as ações dos
docentes de ER na sala de aula como informado anteriormente. Percebemos, na
compreensão dos enunciados analisados, como se constituíram os conhecimentos
relacionados aos conteúdos das aulas do antigo ao novo modelo. Através dos relatos,
entendemos como ocorria a inserção no âmbito escolar dos professores de ER em
outras épocas.
A inserção do sujeito participante na pesquisa o incluía como doutrinador,
evangelizador e não como professor, como poderemos ver no relato de uma das
professoras participantes desta pesquisa.
P1: Historicamente falando, o Ensino Religioso na rede pública estadual era
um ensino catequético, doutrinário e proselitista coordenado pela Igreja
Católica, sendo assim, esse profissional foi por muitos anos indicado
através de autoridades religiosas como padres e/ou freiras, portanto, não
era exigido desse profissional uma formação pedagógica como educador,
mas apenas a comprovação do seu engajamento em alguma ação pastoral,
isto o qualificava a ministrar aulas de Ensino religioso. (Trecho relato
pessoal – 2009).
P2: A minha experiência com ER teve início em 1991, com o convite da
direção para que eu representasse a escola em uma reunião sobre a
Campanha da Fraternidade. [...] Na ESER6, a formação só era direcionada
a prática cristã com pouco enfoque a outras religiões. [...] (Trecho relato
pessoal – 2009).
P3: Iniciei a experiência com o E.R. no Instituto Maria Auxiliadora em
Natal/RN [...] Na época, já tinha formação acadêmica em teologia e
filosofia [...] (Trecho relato pessoal – 2009).

Percebemos, primeiramente, nos trechos acima, como se caracterizava o ER,


ou mais propriamente o ensino de Religião, na época em que as professoras
começaram seu exercício profissional: catequista, evangelizador e proselitista. Em
seguida, elas constatam que, para o exercício desse trabalho, era exigido que a
pessoa estivesse ligada a uma igreja, ou tivesse formação em Teologia ou Filosofia, e,
assim, poder-se-ia indicá-la a alguma a promoção do ambiente escolar. Esses trechos,
mostram-nos a falta de preparo pedagógico e de conhecimentos específicos na área
de ensino, gerando, consequentemente, um direcionamento doutrinário e pouco
conscientizador do enfoque quando comparado ao da atualidade.
Essa abordagem dificultava uma compreensão adequada, mais responsável e
mais solidária na aceitação das diferenças. Esse fato remete ao lento processo de
desenvolvimento das universidades no Brasil. Esse fator gerou um atraso educacional
no Brasil, cooperando para uma longa administração das entidades religiosas no
sistema educativo.
Contrariando essa antiga prática, o ER realizado no momento atual permite a
interdisciplinaridade, o intercâmbio, o entrelaçamento com os conhecimentos em
diversos campos. Pois, além mostrar a área com uma abordagem de conhecimento
sistemática, tendo em vista as múltiplas orientações religiosas em que se formou o
Brasil, estabelece uma ligação entre as diversas áreas, dialogando com aspectos da
cultura, como a música, o folclore, a alimentação, a literatura, que trazem muito dos
aspectos religiosos inerentes ao qualquer ser humano.
Para confrontar a realidade assistemática, como descritas pelas participantes
do grupo 1, passemos ao discurso da professora entrevistada recentemente – P4, que
possui formação e especialização em Ciências da Religião e leciona para crianças do
ano tal, em uma escola municipal de Natal. Abaixo, a professora comenta um pouco
de sua prática no cotidiano escolar:
P4 – E aí eles já tinham, eles já tinham assistido A Paixão de Cristo, eu
boto só, o Mel Gibson, né... só a primeira cena pra eles. Pra que eles... //
aí eu digo não pode assistir todo, porque esse filme não é censura livre...
Então, vocês vão só se situar, pra ver a língua que Jesus Cristo falava, a
língua que os apóstolos falavam e a língua que os romanos falavam... olha
esse pessoal pra fazer esse filme, teve que aprender hebraico, aramaico e
latim. [descrevendo as ações que aparecem na aula] [trechos da entrevista
coletiva – maio de 2012].

P4 – Aí eu já tinha a ele já tinha a origem, aí da história... por que, // pra


eles, // no filme inteiro ele é chamado de Yehoshuá! / Isso, pra quando
eles ouvissem a palavra, não, não sentir a, a dificuldade! [trechos da
entrevista coletiva – maio de 2012]

P4 – [...] porque eu tava começando o cristianismo, então começando, eu


começo sempre, eu gosto muito de começar do filme pra situá-los, né?!
[trechos da entrevista coletiva – maio de 2012]

Podemos perceber que a prática da entrevistada está mais próxima do modelo


exigido pelo PCNER’s. Uma das características observadas que contribui para essa
constatação, encontra-se no momento em que ela nos revela uma prática comum em
suas atividades. Quando o assunto tratado é o cristianismo, fica confirmado que a
docente sempre promove a apresentação de filmes, por exemplo, o de Mel Gibson, A
Paixão de Cristo. Contudo em nenhum momento, a professora indica catequizar as
crianças. Ela aborda as questões históricas contidas no seio desta religião, tratando-as
como conteúdo disciplinar do ER.
Mais adiante na entrevista essa professora indica outro filme que apresenta a
seus alunos ao abordar outra temática do Ensino Religioso. Vejamos...
P4 – Isso tem muito // essa coisa do, dos valores tem muito no, no filme
que ele tem // que tem ééé // “kiriku e a feiticeira”. [trechos da entrevista
coletiva – maio de 2012]

P4 – [...] Passa muito esses valores. // É valor do mais velho. / Daquele


que senta pra conversar... [trechos da entrevista coletiva – maio de 2012]

P4 – É muito interessante! Passa muito // passa a mãe de kiriku, ela vai


fazer a sopa, ela sai catando... // entendeu?! // só o que vai utilizar. //
entendeu?! // e quando você disse valores, eu, nossa! [trechos da
entrevista coletiva – maio de 2012]

O filme mencionado, Kiriku e a feiticeira, é um filme que trata dos costumes


dos povos nativos (indígenas) da América do Sul. Mais uma vez a P4 demonstra está
de acordo com as exigências dos PCNER´s, ao discutir no contexto escolar, a
diversidade religiosa e cultural constituinte da sociedade brasileira.
Refletindo sobre essas passagens, vemos a lacuna que ocorre no ER quando o
professor não possui graduação específica na área. Nas análises realizadas
inicialmente por Benevides (2008b) e, posteriormente por Silva e Benevides (2012b),
constatou-se o total despreparo dos professores de ER que nem sequer sabem que
existe um curso de graduação que habilita à docência dessa disciplina do Ensino
Fundamental. Nesses trabalhos, há uma professora que utilizava vídeos e livros da
igreja que frequentava, além de afirmar que consultava a internet para elaborar suas
aulas. A entrevistada afirma ainda que sua graduação fora em Química e não em
Ciências da Religião e que completa sua carga horária com o ER, para não ter que
lecionar em outra escola, longe de onde reside. (BENEVIDES, 2008b; SILVA,
BENVIDES, 2012b).
Esse aspecto de professores completarem carga horária, ou ainda de
estagiários de outras áreas de conhecimento, ministrarem as aulas de ER nas escolas
públicas descredencia qualquer abordagem indicada pelos PCNER’s. Comparando
esses aspectos que perduram em muitas escolas devido ao lento desenvolvimento do
processo do ensino superior no Brasil (PASSOS, 2007), acarretando um também lento
processo de conhecimento e inserção de profissionais devidamente capacitados,
vemos a seguir, novamente, nos enunciados de P4, os conhecimentos
recomendados/estabelecidos pelos eixos temáticos contido no PCNER.
P4 – Bom! A gente tem. / Eu até hoje, né? que eu não dou mais. / Tem
como base os Parâmetro... Que eu não dou mais. Os Parâmetros
Curriculares... ele faz bem essa divisão, né? / O que ser trabalhado, né! Tá
até divididos em ciclos. Mas, ele continua dividido em ciclos. [Trechos da
entrevista coletiva -2012]
P4 – [...] Eu tenho como base ele, né?! / Mas aí, eu já tenho a minha
proposta // De quê? Eu parto da realidade do aluno. / Qual a convivência
dele pra poder... Entendeu?! / Partir pra um outro conhecimento, eu parto
da vivencia dele. / Se você chega na sala, você pergunta. Todo mundo diz
que é católico ou evangélico. / Então... tá no contexto que eles dizem pra
educação, pra séries inicias tem o contexto cultural, em qual o aluno tá
inserido. / Então ele tá inserido momento, naquilo ali [...]. [Trechos da
entrevista coletiva -2012]

A professora demonstra que os conteúdos trabalhados por ela possuem uma


metodologia e possuem uma coerência científica amparada pelos PCNER’s. Esse
enunciado mostra a importância do curso de formação inicial na vida de um educador
(GARCÍA, 1999), pois entendemos que somente os profissionais devidamente
preparados em cursos de formação possuem os saberes necessários a serem
transpostos dentro da sala de aula.
Os desajustes e lacunas encontrados no discurso de algumas professoras
permitiu-nos compreender que, entre outros aspectos, faltam os elementos
constitutivos aos saberes da docência. Esses saberes, compostos pela experiência,
pelo conhecimento e os saberes pedagógicos (PIMENTA, 2008), contribuem para a
intervenção na construção dos futuros cidadãos.
Assim sendo, esses saberes construídos na formação, confirmam o valor que o
curso de Licenciatura possui. Contudo, García adverte que
“[...] para que uma acção de formação ocorra, é preciso que se produzam
mudanças através de uma intervenção na qual há participação consciente
do formando e uma vontade clara do formando e do formador de atingir os
objetivos explícitos” (GARCÍA, 1999, p. 21).

Em outras palavras, para que o curso de formação seja significativo, faz-se


necessário o empenho tanto do formador estimulando a construção da aprendizagem,
quanto do formando em querer apreender. No caso do ER, é necessário entender que
as mudanças ocorridas do ensino de religião para o Ensino Religioso exigem um tipo
de transformação das saberes, dos conteúdos e das metodologias a serem
empregadas pelos novos condutores desse componente curricular (CORTELLA, 2007).
Como consequência, nossas investigações revelaram que os saberes e práticas
dos antigos professores rementem a uma época em que o ensino moralizante,
confessional e dogmático católica vigorava no cenário educacional. Sendo fruto do seu
tempo, os saberes se originaram a partir de outras concepções, de outra visão de
mundo. Por isso, deparamos com experiências variadas do ER.

Considerações Finais
Ao longo desse trabalho, percebemos que a pesquisa nos redimensionou
para a história da abordagem das práticas pedagógicas existentes no interior do
Ensino Religioso. A restrição desse componente curricular, como muitos defendem,
apresenta-se como cisão entre mundo, vida e conhecimento, contribuindo para a
fragmentação da sociedade (ipseidade) e do conhecimento, gerando uma não-
contextualização total para a construção do cidadão.
Nosso esforço é de conceber o respeito pelo entendimento e compreensão dos
diversos aspectos religiosos (psicológicos, sociais, históricos e filosóficos), pois
entendemos que o objeto desconhecido, no nosso caso, os fenômenos das diversas
religiões (GRESCHAT, 2005), torna-se abstrato e uma barreira a qualquer indivíduo,
assim como em qualquer outra área de conhecimento, quando o que estão em jogo
são contribuições para a sociedade.
Destarte, percebemos que as experiências mais recentes com o ER indicam
práticas pedagógicas que assumem percursos auspiciosos, mas também antagônicos,
por ainda encontrarmos – no contexto escolar – o ensino confessional, apesar das
exigências legais que orientam para um modelo fenomenológico, pluralista ou das
Ciências da Religião, em que o ensino baseia-se nos conhecimentos epistemológicos
das Ciências da Religião, como vistos em Benevides (2008b) e Silva e Benevides
(2012b). Quando percebemos que os educadores possuem a devida qualificação,
como é o caso de P4, a abordagem de ensino permite a aprendizagem em uma
perspectiva mais aberta, voltada para os conteúdos propostos pelos PCNER, que
indicam como foco principal os Eixos Temáticos: Culturas e Tradições Religiosas,
Escrituras Sagradas, Teologias, Ritos e Ethos. (FONAPER, 2009), possibilitando as
transformações necessárias nas esferas das práticas escolares para um modelo
voltado à pluralidade.
Para que isso seja possível, indicamos que somente profissionais formados em
Ciências da Religião devem atuar nas escolas. É preciso ainda a elaboração de
materiais didáticos apropriados para a transposição didática dos conteúdos. Por fim,
solicitamos maior atenção dos gestores públicos, para que se mobilizem em convocar
concursos para esses profissionais, principalmente por possuírem os conhecimentos
epistemológicos da área, tendo em vista que as experiências mais recentes com o ER
indicam práticas pedagógicas que assumem percursos condizentes, quando os
docentes possuem a devida qualificação, permitindo aos discentes uma aprendizagem
na perspectiva mais aberta e compreensiva (SILVA, BENEVIDES, 2012c).

Notas
1
Discente do Curso de Ciências da Religião – UERN. E-mail:
valdicley_bambucha@yahoo.com.br
2
Docente do Departamento de Ciências da Religião - UERN, CAN. E-mail:
aracelisobreira@yahoo.com.br
3
Doravante utilizaremos ER para denominar a disciplina Ensino Religioso.
4
Conferir Benevides (2011).
5
A realização dessa entrevista aconteceu em 03 de maio de 2012 e ficou registrada
em vídeo. Esses dados encontram-se arquivados na sala de pesquisa do Curso de
Licenciatura em Ciências da Religião, com a coordenadora do projeto, estando à
disposição para quaisquer esclarecimentos. Também foram seguidos os procedimentos
de preservação da identidade dos sujeitos participantes da entrevista, conforme posto
na proposta encaminhada para o Comitê de Ética da UERN, protocolo 098/10.
6
Escola Superior de Educação Religiosa que era mantida pelo ITEPAN.

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COM SEU HABITO FRANCISCANO PELAS RUAS DE ARACAJU: Trajetória biográfica
do frei Michelângelo Serafini

Valéria Maria Santana Oliveira *

RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar algumas representaç ões da sociedade aracajuana


acerca da figura do frade capuchinho italiano Michelângelo Serafini, mais conhecido por
Frei Miguel, tendo por base sua trajetória de vida a partir de sua chegada ao Bairro
América. Pretende-se ainda situar a atuação do mesmo no contexto social do bairro com
o objetivo de compreender quais elementos podem ser apontados como responsáveis
pela grande admiração que a sociedade aracajuana nutre pelo referido frade. As fontes
utilizadas foram essencialmente matérias de jornais alusivas ao frei, como também
notas que fizeram referência ao mesmo em web sites como o da Arquidiocese de
Aracaju e de um deputado sergipano, além do Livro de Tombo da Paróquia S ão Judas
Tadeu. O recorte temporal escolhido deve-se a opção de privilegiar sua vida inserida no
contexto do Bairro América e do serviço pastora l exercido dentro e fora deste, o que fez
com que se tornasse conhecido em todo estado de Sergipe.

Palavras-chave: Frei Miguel. Bairro América. Ordem Capuchinha.

Em 2013, Frei Michelângelo completou 104 anos, o que deixa claro que haveria
muito de sua vida para se contar. Diante disto, faz-se necessário esclarecer que muitas
informações não estão contidas neste trabalho, porém não há a pretensão de esgotar
toda a existência do biografado, sendo este o resultado de uma seleção de apenas
alguns aspectos de sua vida, emblemáticos para o entendimento sobre a construção da
imagem do frade enquanto religioso venerado como santo ainda em vida. Pois, como
explica Borges (2006) “(...) não há outra forma para narrar uma vida a n ão ser
selecionando o que nos parecer significativo” (p. 220).

No entanto, este trabalho não se propõe a ser uma narrativa hagiográfica1, uma
vez que não procura simplesmente enaltecer a vida de um “santo” para que esta sirva
de exemplo, mas sim realizar uma breve narrativa biográfica com a pre tensão de situar
o indivíduo no contexto em que está inserido. Pois, como afirma Certeau (2010): “A
vida de santo se inscreve na vida de um grupo, Igreja ou comunidade. Ela supõe que o

*Universidade Federal de Sergipe (UFS). Licenciada em História. Especialista em Docência do Ensino Superior.
Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente.

1
A Hagiografia é um gênero literário que privilegia os atores do sagrado. Ex.: mártires, santos
patronos, fundadores de uma abadia, fundadores de ordens religiosas ou de uma igreja (Cf.
CERTEAU, 2010).
2

grupo já tenha uma exist ência. Mas representa a consciência que ele tem de si mesmo, associando uma
imagem a um lugar.” (CERTEAU, 2010, p. 269).

A CHEGADA DOS FRADES CAPUCHINHOS A ARACAJU

Na década de 1960, Aracaju passava por um processo de franco desenvolvimento.


Foi neste período que a capital mais cresceu, tendo se tornado uma área de atração do
interior de Sergipe e de estados vizinhos, a exemplo de Alagoas e Bahia. As raz
ões das
migrações vão das secas à escassez de empregos, fazendo com que estas pessoas
fossem residir na periferia da cidade (TELES, 2006).
Com o crescimento demográfico da capital, notadamente de sua zona periférica,
os moradores do Bairro América encontravam-se carentes de tudo, inclusive de um
melhor atendimento espiritual. Aquela região era predominantemente habitada por uma
população pobre, uma vez que o perímetro urbano da capital era marcado pela
especulação imobiliária, o que proporcionava um deslocamento da populaç ão para os
subúrbios da capital (FREITAS, 1999).
Neste sentido, no dia 1º de junho do ano de 1961, festa de Corpus Christi, o
arcebispo metropolitano Dom José Vicente Távora criou uma nova paróquia em Aracaju,
desmembrando o território eclesiástico da freguesia de Nossa Senhora de Lourdes do
Bairro Siqueira Campos. Esta nova paróquia chamar-se-ia São Judas Tadeu.
Havemos por bem entregar a paróquia de São Judas Tadeu aos
Reverendíssimos Padres Capuchinhos, recomendando-lhes, além
da cura de almas, da catequese e da Evangelização direta uma
pastoral adotada às necessidades sociais e Educacionais do povo,
procurando ir, sempre, ao seu encontro para ajudar a resolver seus
problemas, através de serviços e instituições2.

A missão estava posta e eis que não seria das mais fáceis, uma vez que estava
tudo por fazer. A construção do convento, do santuário, da escola que os frades viriam a
construir, entre outros serviços que passaram a ser prestados à comunidade no decorrer
dos anos.
Os frades capuchinhos que vieram para Aracaju pertenciam (e assim é até hoje) à
Província da Ordem Capuchinha da Bahia e Sergipe, Nossa Senhora da Piedade. Segundo
Peccorari (2003) a atuação destes missionários pode ser dividida em quatro momentos,
de acordo com o tipo específico de pastoral exercido ao longo de sua história.
O primeiro vai de 1642 a 1703 com a chegada dos primeiros frades ao Brasil, em
Pernambuco. Estes capuchinhos eram franceses e substituíram os Jesuítas na catequese
indígena em aldeamentos do médio e baixo São Francisco.

2 Livro de Tombo da Igreja São Judas Tadeu (1961-2005), p. 01-03.


3

O segundo momento corresponde a 1703 a 1892, fase em que os capuchinhos


italianos substituíram os capuchinhos franceses nas missões indígenas. Com a extinção
dos aldeamentos por parte do governo, ganhou força a atuação dos frades através das
chamadas Santas Missões populares.
A terceira fase vai de 1892 a 1937 e é caracterizada pelo fato da prefeitura da
Província da Piedade, na Bahi a ter sido entregue à Província de Ancona, na Itália. Neste
período, além de dar continuidade às missões populares, houve o estímulo às vocações
nativas com o estabelecimento de seminários e a aceitação de paróquias.
A quarta e última fase compreende o pe ríodo de 1937 a 1983, data da criaç ão da
nova Província da Ordem Capuchinha da Bahia e Sergipe. Nela foi dada continuidadeàs
Santas Missões, porém as atividades pastorais se ampliaram com a construç ão de
colégios, orfanatos, asilos, escolas agrárias e pro fissionais e centros de assist ência
social, a exemplo da CASSAJUTA3 no Bairro América. Como afirma Azzi (2008):
A prática das obras de misericórdia está inserida no código de
ética cristã. O exercício da caridade é apresentado como um
componente da vida católica. No elenco desses atos de
benevolência destacam-se dar alimento aos famintos, vestir os
nus, visitar os doentes e encarcerados, amparar os velhos e as
crianças (AZZI, 2008, p. 23)

A CONSTRUÇÃO DA IGREJA E DO CONVENTO

Falar da construção da Igreja São Judas Tadeu, é falar dentre outras figuras
humanas, de um homem em especial. Seu nome de batismo é Serafini Césare, nasceu
em Cíngoli (Itália) a 30 de outubro de 1908 e aportou no Brasil em 1935. Para os
sergipanos, ele é simplesmente o frei Miguel.
Frei Michelangelo Serafini – como passou a chamar-se quando se tornou frade –
chegou ao Bairro América em 1961 para auxiliar outro frade capuchinho que já se
encontrava na referida missão, frei Faustino de Ripratansone, também italiano.
O então prefeito da cidade, José Conrado de Araújo e o governador do estado
Luís Garcia eram simpáticos à presença dos capuchinhos em Aracaju, tendo contribuído
no início das construções. No entanto, a participação da comunidade foi bastante efetiva
para a construção do templo. Foram diversas campanhas, leilões e rifas para conseguir
recursos para a construção do santuário, além dos pedidos que os frades faziam
diretamente aos moradores, a exemplo do relato abaixo:

3CASSAJUTA – Centro de Assistência Social São Judas Tadeu. Reconhecido como utilidade
pública estadual pela Lei 1197/63 de 09/10/1963. Utilidade p ública municipal pela Lei 215/71 de
18/11/1971; Utilidade pública federal pelo Decreto 71209 de 05/10/1972. C ertificado como
Entidade de Fins Filantrópicos em 1974. Sede rua Bolívia S/N, anexo ao Convento São Judas
Tadeu.
4

Ma fu per la generosità di tutta la popolazione che pote sorgere il


Convento, del quale, il 9 aprile 1962, si gettarono le fondamenta
limitatamente al primo braccio. I lavori di construzione, pero,
iniziarono solo il 23 settembre dell ’anno sucessivo e continuarono
lentamente, mentre Frei Inacio de Loyola bussava di porta in
porta per ottenere aiuti dalla popolazione. Il 7 marzo 1964 fu
gettata La prima pietra per La costruzione della Chiesa, Che si
levo su um brillante disegno del P. Michelangelo Serafini e Del P.
Beniamino Cappelli. (SANTARELLI, 1978, p. 69) 4

No primeiro momento, deu-se inicio à construção do convento, era um grande


vão, onde os frades também celebravam missas. Foi feito primeiro o subsolo, que até
hoje comporta várias salas onde funcionam as atividades paroquiais, e, sobre a laje que
foi batida, erguida a igreja São Judas Tadeu.
O desenho da igreja foi elaborado pelo próprio Frei Miguel, que acompanhou de
perto cada etapa da construção.

UM FRADE CENTENÁRIO

Uma das características mais marcantes deste religioso era o fato de estar
sempre caminhando pelas ruas da cidade, atendendo enfermos, abençoando casas
comerciais, ouvindo confissões na Catedral Metropolitana, entre outras atividades.
Aquela imagem do frade de longa barba branca com seu hábito franciscano pelas ruas da
cidade ficou marcada na me mória dos aracajuanos, que vêem nele, além de exemplo de
santidade, ícone do ser missionário.
Por ocasião do seu aniversário de 99 anos, foi-lhe prestada uma homenagem na
sessão de 31 de outubro de 2007 da Câmara dos Deputados, em que as palavras de um
dos membros daquela casa são bastante representativas da imagem que a população
aracajuana tem com relação ao frade. “A sua figura de barbas brancas, curvada pela
idade, o seu jeito humilde e serviçal, o caminhar lento e seguro, a simplicidade de
gestos, tem atraído um incomensurável número de admiradores e amigos, tanto entre
os que mais possuem, quanto entre os mais carentes da comunidade.” 5

Frei Miguel não é o primeiro religioso capuchinho a ter sua imagem cristalizada
no imaginário popular como um santo venerado ainda em vida. Miranda (2002) aponta

4
“Mas foi pela generosidade de toda a população que pode ser aumentado o Convento, o qual
em 9 de abril de 1962, foi lan çada a pedra fundamental. O trabalho de constru ção, porém, foi
iniciado somente em 23 de setembro do ano seguinte e continuaram lentamente, Frei Inacio de
Loyola buscava de porta em porta obter ajuda da popula ção. Em 7 de mar ço de 1964 foi
lançada a pedra fundamental da constru ção da igreja, que se deu sob um brilhante desenho do
padre Michelangelo Serafini e do padre Berniamino Cappelli.”
5
MACHADO faz homenagem a Frei Miguel. Disponível em:
http://www.deputadomachado.com.br/imprimir.php?id=14&tipo=noticia. Acesso em: 26 jun 2010.
5

para dois religiosos, chamados “frades barbados italianos” cuja notoriedade junto a
população merece destaque: Frei Caetano de Messina no século XIX e Frei Dami ão de
Bozzano no século XX.

Sobre este último o autor afirma: “Frei Dami ão (...) foi o ultimo representante
desses ‘frades barbados italianos’ que, segundo o dito popular, ‘o Diabo tinha mais medo
deles que de outros religiosos” (MIRANDA, 2002, p. 206). No entanto, Sergipe tem
também seu representante deste tipo de religioso.

Estes missionários, especialmente Frei Dami ão6, ainda são lembrados pelo povo
das cidades por onde passaram, pelos sermões proferidos nas Santas Missões populares
pelo Nordeste do país7.

As Santas Missões exerceram grande importância na construção da devoção


popular no Nordeste, notadamente nos sertões. Acerca disto, Peccorari (2003) afirma
que:

Na mentalidade popular, ainda hoje, a figura do Capuchinho é


associada às Santas Missões. Ele é o missionário por autonomásia.
Isto porque, na verdade, foram eles os grandes missionários
populares, que andaram em quase todos os povoados, vilas e
cidades do Nordeste, especialmente na zona do sertão.
(PECCORARI, 2003, p. 55)

Neste sentido, observa-se em Frei Miguel um exemplo este tipo de admiraç ão


por parte da população. O frei – chamado por muitos de “homem santo” ou até mesmo
de “santo padre ” – é por assim dizer, venerado pelos fiéis que acorrem dioturnamente a
Igreja São Judas Tadeu. É possível inclusive afirmar, guardadas as devidas proporções,
que este frade representa para os aracajuanos o que frei Dami ão representou para os
nordestinos.

No entanto, dois aspectos os distinguem. O primeiro seria o lócus de suas


atividades missionárias, uma vez que Frei Damião peregrinou pelos sertões nordestinos
“pregando as suas missões no estilo antigo, anterior à ideologia do Concílio Vaticano II”
(ANDRADE, 1992, p. 114); já as atividades missionárias de Frei Miguel em Aracaju
foram notadamente urbanas.

6 Nascido de família camponesa, Frei Damião foi soldado na Primeira Guerra Mundial e, em
seguida, participou das tropas italianas que ocuparam uma região da Croácia. Após prestar o
serviço militar retornou ao convento e ao concluir os estudos e ser ordenado foi enviado para o
Nordeste do Brasil, percorrendo-o em todas as direções (cf. ANDRADE, 1992).

7Os sermões das Santas Missões eram normalmente voltados para os seguintes temas: perigos
dos pecados da carne; os castigos divinos; a morte; o juízo final; o inferno, etc. (MIRANDA, 2002)
6

O segundo aspecto seria a natureza de suas pregações, pois, enquanto Frei


Damião ameaçava os pecadores com o fogo do inferno, Frei Miguel conclamava os fiéis
a conversão num tom muito mais brando, sendo lembrado sempre por express ões como
“Papai do Céu” ao se referir a Deus.

Eis um exemplo da reverência com que os frades capuchinhos, especialmente o


Frei Miguel, são tratados nesta capital:

Ressalte-se ainda como grande contribuição para o bem de


Aracaju, a iniciativa de Dom Távora em reconduzir os beneméritos
frades Capuchinhos, instalando-os no Bairro América, onde
fundaram a Escola Santa Rita de Cássia, onde se empenharam
pela instituição da Policia Comunitária e onde construíram o
Santuário S ão Judas Tadeu, para onde converge grande parte da
comunidade, a fim de receber os sábios conselhos e a absolvição
dos seus pecados, através do grande confessor, o venerando Frei
Miguel8.

Em 30 de outubro de 2008 o frade alcançou o marco de 100 anos de vida, fato


este que fez brotar de diversos setores da sociedade muitas homenagens que reforçam a
construção da imagem do mesmo enquanto santo ainda em vida. A imprensa de Aracaju
registrou abundantemente esta data. Quando do centenário do frade, tem-se um
exemplo bastante emblemático da devoção popular a ele dirigida, transcrito abaixo, cujo
título é “O tempo de um anjo”:
Das entranhas da terra, das profundezas dos mares, do alto das
montanhas emergem sons que explicitam o regozijo que a todos
envolve, pela felicidade de ter entre nós, coberto com o manto
supremo do amor, um santo que perambula por ruas, veredas,
palácios e casebres, em busca de corações para abençoar, com
sua humildade de samaritano da bondade.
Sergipe, como Pernambuco, teve a felicidade de abrigar, atrás das
cortinas que enfeixam suas fronteiras, e guardar no recôndito do
cofre-forte da alma de seu povo um guia que asperge amor nos
caminhos que percorre, batidos todos eles pelas sandálias de
verdadeiro pescador de almas.
Frei Miguel chegou para se eternizar. Seu espírito e a chama
incandescente da bondade que eclode de seu tênue e arquejante
físico transformam-se de pronto na fortaleza que protege contra
todas as investidas dos desejos incontidos daqueles que,
desprevenidos, esquecem-se de conferir o cumprimento da Lei
maior da Tábua dos 10 mandamentos.
Para Frei Miguel não existe discriminação racial para socorrer os
necessitados. Acode a todos, brancos ou pretos. N ão tem partido
que lhe faça mudar sua forma de agir. É apartidário, pois professa
a religião de amar ao próximo como a si mesmo. Em Aracaju,
fincou-se na colina de bairro periférico e lá construiu uma
verdadeira catedral de aconchego. De lá espargiu (sic) b ênçãos

8Texto contido na web Page na Arquidiocese de Aracaju, onde constam os feitos de Dom José
Vicente Távora. em: http://www.arquidiocesedearacaju.org/?pg=bispoanterior_domjosetavora.
Acesso em: 26 jun 2010.
7

santificadas que cobriram todos os quadrantes do território


imensurável que começa no Bairro América.
Um dia Frei Miguel haverá de alcançar os patamares do éter
celestial... E nessa contem plação de sua caminhada, cá estamos
nós, regozijados e felizes por ele está (sic) ainda no meio de
todos e cantando “Aleluia” para fazermos chegar ao Senhor o
agradecimento de tê-lo nos 100 anos, embora sabedores de que
um anjo não tem vida mensurável, porque sua missão não tem
fim (CRUZ, 2008) 9.

Pode-se observar, a partir do excerto da página da Arquidiocese de Aracaju na


internet e do texto acima publicado no Jornal da Cidade, alguns aspectos que
demonstram a veneração que a população de Aracaju já dedicava ao religioso anos antes
de seu falecimento.
Outro exemplo foi o registro feito na Câmara de Deputados pelo político e
empresário Albano Franco acerca do centenário do frei:
Manifestando imensa satisfação pessoal, o deputado federal
Albano Franco (PSD B) registrou nos Anais da Câmara, na sessão
de ontem, a comemoração em Sergipe do Centenário do Frei
Miguel, que acontece no dia 30 deste mês, ‘quando será prestada
justa homenagem a este santo vivo’ 10.

Por ocasi ão do seu aniversário de 101 anos, em 2009, o portal Infonet fez alusão
à data:
(...) Mas é na comunidade do Bairro América em que Frei Miguel
é considerado o pai, protetor, conselheiro, o que acode os mais
necessitados, os aflitos, os doentes. Ele já não vai mais até as
residências e os hospitais levar suas palavras de conforto, mas
continua agindo como um anjo protetor, abençoando e acolhendo a
todos na Igreja dos Capuchinhos (SOUZA, 2009).

Em nove de janeiro de dois mil e treze, às quatro horas da madrugada, Frei


Miguel veio a falecer. Sua saúde encontrava-se debilitada a cerca de um ano, período
em que chegou a ser hospitalizado por diversas vezes. No entanto, apesar de já não
consegui mais andar, mesmo preso a uma cadeira de rodas e alimentando-se por meio
de sonda, o frade não deixo de participar da missa festiva de seus 104 anos, realizada
em trinta de outubro de 2012.
Quando do seu falecimento, milhares de fiéis, de todas as partes do estado
compareceram ao seu velório, que foi amplamente divulgado pela mídia. Após uma
missa de corpo presente, seu corpo foi sepultado num mausoléu construído dentro da
Igreja São Judas Tadeu. Logo após o local tornou-se alvo de peregrinação de muitos
fiéis que já buscam a intercessão do frade através de votos e promessas a ele

9
Disponível em: http://www.jornaldacidade.net/noticia.php?id=17549. Acesso em: 13 jul 2010.
10
Disponível em: http://www.jornaldacidade.net/noticia.php?id=16563. Acesso em: 13 jul 2010.
8

direcionadas. Esta devoção instantânea já era esperada, uma vez que o mesmo era
considerado por muitos um santo ainda em vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A começar pelos adjetivos a ele atribuídos – venerável, humilde, guia, anjo, pai,
protetor, “o confessor”, conselheiro, “santo vivo” – percebe-se o peso que a figura do
religioso possuía e que perdura após seu falecimento . Em vida, era muito visitado por
personalidades políticas do estado, tendo sempre cultivado a simpatia das famílias mais
influentes de Sergipe, cujos membros podiam ser vistos corriqueiramente nas
dependências da Igreja, na busca de bênçãos, confissões e aconselhamentos.
Num primeiro olhar voltado sobre a veneração que a população do Bairro América
nutre por Frei Miguel, poder-se-ia concluir que isto se dá pelo fato de se tratar de uma
comunidade periférica. Pela condição da maioria de sua população ser de baixa renda,
estariam mais suscetíveis a valorização da pessoa do frade por dois motivos: o primeiro
seria o próprio fato deste ser uma autoridade religiosa local; o segundo s eria suas obras
caritativas.
No entanto, observa-se que esta extrema admiração não parte apenas dos
moradores do bairro, nem somente de pessoas menos favorecidas economicamente.
Empresários, políticos e membros das mais variadas classes sociais buscam o frade
constantemente, sendo que muitas destas pessoas tinham frei Miguel como conselheiro e
confessor.
Isto nos remete ao texto anteriormente citado onde o autor afirma que: “Não
tem partido que lhe faça mudar sua forma de agir. É apartidário (...)” de fato, o frade
não apóia abertamente nenhum partido político, no entanto, cultivava a simpatia das
famílias de maior tradição política do estado. Assim sendo, percebe-se que a influência
que o frade conquistou ao longo de sua história desde a chegada a Aracaju, deve-se a
fatores que vão além da situação socioeconômica dos moradores do Bairro América.
Seu caráter acolhedor, sempre disposto a ouvir os que o procura vam, seja para
confissões, benção de objetos e bens diversos, celebrações e etc. Possuía grande
facilidade de transitar por diversos ambientes, desde as casas dos paroquianos mais
humildes aos recintos de grandes empresários e gestores de órg ãos públicos, certamente
devido ao respeito que a sociedade aracajuana lhe legou.
Percebe-se, por fim, que uma imagem ficou cristalizada no imaginário dos
aracajuanos: a de um frade italiano, de longa barba branca, caminhando a pé com seu
habito franciscano pelas ruas de Aracaju.

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SITES CONSULTADOS:
10

http://www.arquidiocesedearacaju.org/?pg=bispoanterior_domjosetavora
UM PRECURSOR DO PROTESTANTISMO EM MOSSORÓ: JOSÉ DAMIÃO DE
SOUZA MELO E A PROPAGAÇÃO DA DOUTRINA PROTESTANTE NAS PÁGINAS
DO JORNAL MOSSOROENSE.

Elioenai de Souza Ferreira1

Introdução

O texto que ora apresentamos está inserido no contexto de uma pesquisa


relacionada ao processo de inserção do protestantismo no Rio Grande do Norte2, mais
especificamente na cidade de Mossoró. Um dos agentes dessa inserção foi o pastor
norte-americano e presbiteriano DeLacy Wardlaw, que também atuou como um dos
pioneiros do proselitismo protestante na então Província do Ceará. 3 No entanto,
concentraremos nosso estudo noutro sujeito e suas interações sociais, políticas e
religiosas.
Num primeiro momento, discorremos sobre o lugar social de José Damião de
Souza Melo, destacando sua vinculação com o movimento abolicionista em Mossoró,
bem como suas relações com a elite liberal da cidade já mencionada. No segundo
tópico, abordamos a propagação de ensinamentos de cunho protestante através de
artigos publicados no jornal Mossoroense. Por meio de inferências baseadas em
indícios internos e externos aos artigos, identificamos Souza Melo como o provável
autor desses textos.
Utilizamos como fontes bibliográficas textos de memorialistas, tanto daqueles
vinculados ao presbiterianismo quanto de autores que elaboraram uma historiografia
oficial de Mossoró, permeada de seus heróis e vultos. Além desses, também nos
baseamos em bibliografia acadêmica em duas categorias: uma de caráter geral, que
nos proporcionou o suporte teórico e metodológico; e no âmbito específico, obras que
tratam mais especificamente do processo de inserção do protestantismo no Brasil e
seus diversos contextos históricos.

I – O lugar social de Souza Melo em Mossoró.


Na fase de levantamento de fontes para a construção da monografia,
pensávamos, a princípio, deter-nos somente no estudo da atuação do reverendo
Wardlaw e sua relação com a história do protestantismo em Mossoró. Entretanto,
outro indivíduo despertou a nossa atenção, no que tange à sua atuação como
precursor do protestantismo em Mossoró. Trata-se de José Damião de Souza Melo.
Na maior parte das fontes bibliográficas que fazem referência ao missionário
Wardlaw, nelas encontramos alguma menção à Souza Melo, algumas vezes
demonstrando as ligações entre ambos. Especificamente sobre Souza Melo, o autor
2

que nos forneceu mais informações foi Raimundo Nonato, em sua História Social da
Abolição em Mossoró. Câmara Cascudo, no seu livro Notas e Documentos para a
História de Mossoró, traz alguns complementos.
Português nascido em Aveiro, Souza Melo é descrito como “poeta, jornalista,
sacerdote e apóstata” (NONATO, 1983, p.71). O autor cita um relato de Romualdo
Galvão, registrado pelo escritor João Batista Galvão, segundo o qual Souza Melo era
padre em Portugal, quando abandonou o sacerdócio e migrou para o Brasil. Isso se
deu no ano de 1862. Não nos foi possível precisar quando e onde Souza Melo se
converteu ao protestantismo, porém uma fonte situa esse acontecimento antes da
vinda do missionário Wardlaw ao Ceará, no ano de 1881 (ALENCAR, 2005, p. 88).
No Brasil, teve uma vida itinerante, residindo nas cidades de Mossoró, Acari,
Jardim do Seridó, Fortaleza e Manaus. Em Mossoró, instalou uma casa comercial no
ano de 1866 (CASCUDO, 2010, p. 127).
No entanto, suas atividades não se restringiam ao comércio. Foi um dos
fundadores, juntamente com Jeremias da Rocha Nogueira e Ricardo Vieira do Couto,
do jornal Mossoroense, cuja primeira edição data de 17 de outubro de 1872. Também
foi um dos fundadores da Loja Maçônica 24 de Junho, no ano de 1873.
Os memorialistas supracitados apresentam Souza e Melo como um homem
comprometido com ideais humanitários e progressistas, especialmente com o
movimento abolicionista. “Jornalista dos mais brilhantes, sempre esteve empenhado
nas campanhas das grandes idéias da fraternização humana (...). Grande exemplo de
estrangeiro-brasileiro de idéias novas e de espírito avançado, que deixou seu nome
incluído na galeria dos abolicionistas mossoroenses, em cuja campanha foi um
militante de primeira linha.” (NONATO, 1983, p.221).
Esse registro memorial sobre Souza Melo classifica-o como integrante do grupo
de homens esclarecidos que lutaram contra o atraso que a Mossoró escravocrata,
provinciana e conservadora mantinha em relação ao mundo civilizado. Câmara
Cascudo não se furtou de emitir seu juízo de valor acerca do ex-sacerdote português
acrescentando, porém, um dado a respeito de sua confissão religiosa. “Homem de
inteligência clara, poeta, um dos jornalistas históricos de Mossoró (...). Foi um dos
animadores da Religião Reformada em Mossoró. Sua participação no movimento
abolicionista foi direta e alta”. (CASCUDO, 2010, p. 221).
Consideremos, agora, as interações sociais de Souza Melo. Seu pertencimento
à Maçonaria e envolvimento com a causa abolicionista, inclusive escrevendo para o
jornal cearense O Libertador, davam-lhe acesso a uma rede de relacionamentos que
possibilitava uma difusão de suas convicções, incluindo sua fé protestante.
3

Quanto aos seus contatos com o missionário Wardlaw, vale salientar que Souza
Melo recepcionou o norte-americano em sua chegada à Fortaleza e provavelmente fez
o convite para que o mesmo estivesse presente em Mossoró no dia da libertação
oficial dos escravos (NONATO, 1983, p. 144).
Junte-se a esses fatos a militância de Souza Melo no jornal O Mossoroense e
assim, temos elementos para levantarmos uma hipótese. José Damião de Souza Melo
desempenhou a função de precursor do protestantismo em Mossoró. Servindo-se de
suas relações interpessoais, de seu lugar social, facilitou a atuação evangelizadora do
pastor Wardlaw, permitindo-lhe o trânsito entre setores elitizados mais predispostos a
renegarem a religião tradicional, minimizando a rejeição à mensagem protestante,
enfim, criando condições para a conquista de novos seguidores.

II – Idéias protestantes na imprensa: os escritos de Souza Melo no jornal


Mossoroense.
Sobre o referido jornal, vale ressaltar que o mesmo não surgiu num vazio
histórico, aliás, nenhuma atividade humana pode ser dissociada das contingências
temporais. Marc Bloch expressa magistralmente essa premissa fundamental do ofício
de historicizar. “Realidade concreta e viva, submetida à irreversibilidade de seu
impulso, o tempo da história (...) é o próprio plasma em que se engastam os
fenômenos e como o lugar de sua inteligibilidade”. (BLOCH, 2001, p. 55).
Sendo assim, julgamos pertinente uma análise, ainda que sucinta, do contexto
no qual surgiu o jornal que serviu de suporte para a escrita de Souza Melo. De acordo
com Jean Glénisson, na análise crítica de jornais, deve-se ter em conta as razões que
influenciam o que é omitido ou realçado (GLÉNISSON, 1977, p. 80). Essas razões não
são dadas naturalmente, ao contrário, provém de fatores condicionantes, tais como
classe social e ideologia.
No caso do Mossoroense, em seus cabeçalhos estão anunciadas suas
características. Nos exemplares consultados, datados até 8 de novembro de 1873, o
jornal é apresentado como semanário politico, commercial, noticiozo e anti-jésuitico. A
partir da edição do dia 2 de fevereiro de 1874, posiciona-se como órgão do Partido
Liberal de Mossoró, dedicado aos interesses do município, da província e da
humanidade em geral. O principal idealizador do “Mossoroense”, Jeremias da Rocha
Nogueira, estava associado com o liberalismo e o anticlericalismo, segundo a fonte
citada a seguir.

A ferrenha oposição de Jeremias da Rocha Nogueira contra os


conservadores confundia-se com o seu combate à igreja. Não
há como separar uma da outra. Muita lenha na fogueira deve
4

ter colocado, de outubro de 1872 a dezembro de 1875, a


linguagem desairada de Jeremias, na luta contra os
conservadores, na luta contra a Igreja Católica, uns e outros,
aqui liderados pelo Vigário Antônio Joaquim Rodrigues.
(NONATO, 1983, p. 81).

Um jornal encabeçado por um indivíduo com as motivações acima referidas se


apresentava como um espaço oportuno para que um ex-sacerdote católico, convertido
ao protestantismo, pudesse disseminar publicamente os princípios de sua nova
confissão da fé cristã. No entanto, há mais um fator a ser levado em conta, a saber, a
vinculação tanto de Jeremias Nogueira como de Souza Melo com a Maçonaria. Sobre a
ligação do primeiro com a confraria secreta, temos a seguinte referência.

A Loja de Mossoró nascia, assim, com uma tradição de que


eram portadores certos grupos de livres pensadores (...) como
se deduz das publicações que apareciam no “O Mossoroense”,
um jornal independente, onde as opiniões do seu diretor,
Jeremias da Rocha Nogueira, deixavam transparecer,
claramente, suas tendências para o rumo da franco maçonaria,
com revelações que identificavam seus pontos de vista
doutrinários. (NONATO, 1983, p.88).

Não se deve ignorar que nos primeiro anos da década de 70 do século XIX, a
cena política e religiosa do Brasil estava agitada pelos debates e embates provocados
pela Questão Religiosa. Em dezembro de 1872, o bispo D. Vital lançou seu ultimato
contra a Irmandade do Santíssimo Sacramento, em Pernambuco, intimando-a para
excluísse os maçons da agremiação, a menos que eles abjurassem a Maçonaria
(BARROS, 2004, p. 395). Tal fato se deu dois meses após a fundação do jornal
Mossoroense. Em 1873, os maçons de Mossoró fundaram sua própria Loja,
regularizando-a no ano seguinte.
Quando da oficialização da Loja, publicou-se no “Mossoroense” um discurso
proferido na ocasião. Nele, faz-se uma apologia da Maçonaria diante da oposição
movida pela cúpula da Igreja Católica. Um trecho nos permite dimensionar a
intensidade do repúdio que os redatores maçons do jornal manifestavam pelos seus
adversários. “O inimigo é grande, o inimigo é forte e não poupa meios para conservar
suas fontes pecuniárias, as vítimas da superstição e da cegueira, a pobre humanidade
emfim sepultada no charco immundo d’uma ignorância eterna. Ente supremo, luz,
luz”. (MOSSOROENSE, 28 de junho de 1874, p. 1).
Na ótica do autor, as posições na batalha entre Maçonaria e Igreja Católica
estavam bem demarcadas. Eles, os maçons, eram portadores da luz, do
conhecimento, do esclarecimento. Ao contrário, seus oponentes promoviam as trevas,
5

escravizando os povos na ignorância. Luz e trevas correspondem, nessa lógica, à bem


e mal, respectivamente.
A respeito da atuação da Maçonaria no Brasil durante os últimos três decênios
do século XIX, o historiador Alexandre Barata discute as ligações da instituição com o
movimento da Ilustração brasileira. Este movimento, afinado com as luzes do
Iluminismo, propunha-se a dirigir a sociedade brasileira nos rumos da modernidade.
Este projeto, de cunho liberal e secular, encontrava a tenaz oposição da Igreja
Católica, enquanto força identificada com o conservadorismo, em seus diversos
matizes (BARATA, 1994, pp. 78-89). Sendo assim, a trincheira maçônica, liberal e
anticlerical do Mossoroense estava inserida num campo de batalha mais amplo, no
qual a Questão Religiosa foi o fator catalisador dos conflitos latentes.
Nesse contexto, como o protestantismo se expressava nas páginas do jornal
oitocentista da cidade de Mossoró? Antes, porém, outra indagação reclama uma
resposta. Como identificar José Damião de Souza Melo como o autor dos textos que
relacionamos ao protestantismo, visto que esses textos estão assinados por um
pseudônimo?
Tomamos como fundamentação teórica o paradigma indiciário, analisado e
historicizado por Carlo Ginzburg numa de suas obras (GINZBURG, 1989, pp. 143-
179). Por meio desse modelo epistemológico, procura-se identificar um objeto de
pesquisa direcionando o olhar para sinais, indícios, os quais permitem realçar as
particularidades do objeto.
O uso desse método implica enfatizar as qualidades do individual em contraste
com as elaborações teóricas generalizantes que propõem modelos homogêneos. A
relevância do método indiciário para o ofício do historiador pode ser verificada quando
este necessita abordar as especificidades dos sujeitos, que tendem a ser ocultadas,
omitidas ou minimizadas por uma História total e que prima pela síntese.
A pesquisa baseada no paradigma indiciário, segundo Ginzburg, não está presa
a procedimentos inflexíveis, a regras previamente estabelecidas, matematicamente
calculadas. Ao contrário, requer do pesquisador, tal qual um caçador, “faro, golpe de
vista, intuição” (GINZBURG, 1989, p. 179.). Não se conforma com as informações que
estão à superfície, mas a partir delas identifica o objeto nas entrelinhas. “O que
caracteriza esse saber é a capacidade de, a partir de dados aparentemente
negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável
diretamente”. (GINZBURG, 1989, p. 152).
Quais são os indícios aparentes que nos permitem apontar alguns artigos do
Mossoroense como sendo de autoria de um protestante, no caso, Souza Melo?
Dispomos de quatro textos, sendo que três estão assinados por um certo O Velho da
6

Montanha. O quarto não está assim subscrito, mas como é um ataque ao dogma
católico do purgatório, não o descartamos.
Dos artigos do Velho da Montanha, dois têm na sua epígrafe versículos bíblicos.
Todos se dirigem ao povo, são intitulados missão abreviada e se iniciam com o
vocativo meus caros irmãos ou meus dilectíssimos irmãos, lembrando aspectos de um
sermão.
Os textos foram publicados em edições do jornal do ano de 1874. Eles serão
apresentados e discutidos de acordo com a ordem cronológica em que foram
publicados. O primeiro artigo é aberto com uma sentença em latim e a sua respectiva
tradução, que é se acompanhaes os jesuitas, não ides com Jesus. Os principais
assuntos comentados pelo autor são o dogma da infalibilidade papal e a separação
entre Igreja e Estado.

Não admira portanto que a chamada Egreja queira também nos


escravisar e aviltar (...) com seu Syllabus, e com sua louca
infalibilidade. (...) Como pois pode-se crer que a fragil
humanidade possa ser inerrante e divina? (...) O poder civil
nada tem com as consciencias, os seus codigos não punem o
erro que cada um possa ter no intimo de seu pensamento (...).
O peccado só tem de se haver com a Egreja, o crime com o
Estado. (MOSSOROENSE, 3 de maio de 1874, pp. 1-2).

O dogma da infalibilidade papal fora proclamado no Concílio Vaticano I,


ocorrido entre 1869 e 1870, tornando-se um dos principais instrumentos para o
fortalecimento do poder do papado sobre as demais instâncias da Igreja Católica,
inclusive a própria instituição do Concílio, formada pelo colegiado dos bispos.4 Dessa
forma, o referido dogma representava uma ameaça para os maçons, entre os quais
havia muitos maçons; além disso, podia ser considerado pelos protestantes como uma
heresia, um absurdo doutrinário. Souza Melo, sendo maçom e protestante, não iria se
eximir de manifestar sua crítica.
O Velho da Montanha5 faz menção ao chamado Sílabo dos Erros, documento
emitido pelo papa Pio IX6 e publicado em 1864, no qual foram elencados os desvios
que a Igreja deveria combater. Dentre esses, foram condenados o racionalismo, o
protestantismo, a livre escolha de religião, o socialismo, o comunismo, todas as
formas de secularização, as sociedades secretas (LATOURETTE, 2006, pp. 1485-
1489).
Quanto à defesa da separação entre Igreja e Estado, entre as esferas do
espiritual e do temporal, entre pecado e crime, o Velho da Montanha repercute em seu
artigo uma reivindicação comum aos grupos liberais. No mesmo ano de 1874, houve
uma mobilização de republicanos, maçons e presbiterianos com o propósito de
7

encaminhar à Assembléia Legislativa do Império uma petição que pleiteava a


igualdade legal dos cultos no Brasil, fim da condição de religião oficial para o
catolicismo e a laicização da educação pública, do casamento, dos registros de
nascimentos e óbitos, dos cemitérios. No entanto, esse programa reformista não
logrou êxito, devido à oposição de grupos monarquistas e ultramontanos com
influência no Parlamento (VIEIRA, 1980, pp. 282-286)
Uma evidência do envolvimento dos jornalistas do Mossoroense com a
campanha para a separação entre Igreja e Estado pode ser verificada no fato do jornal
reproduzir artigos de Joaquim de Saldanha Marinho, originalmente publicados no
Jornal do Commercio, de Recife. Os artigos eram veiculados numa coluna intitulada A
Igreja e o Estado. Saldanha Marinho figurou entre os mais ferrenhos opositores da
Monarquia e sua Igreja oficial, além de ser, na época, o Grão-Mestre do Grande
Oriente dos Beneditinos, uma das duas organizações que congregavam as lojas
maçônicas no Brasil.7
Voltemos ao Velho da Montanha e seu artigo. Na mesma edição que o publicou,
há uma apresentação do articulista, recomendando-o aos leitores. Segundo o redator
do jornal, o objetivo do escrito é “esclarecer o povo sobre a nova propaganda
jesuítica”, referindo-se a uma carta circular enviada pelo governador do Bispado de
Recife, que seria lida para os fiéis católicos na igreja matriz de Mossoró.
Nessa recomendação, o leitor é alertado para a diferença entre o colaborador e
os jesuítas. “Vejam o povo que evangelho lhe vai ser explicado à face do Deos vivo,
compare esse aranzel dos ciganos do syllabus com o que o divino mestre mandou ao
pastor ensinar ás suas ovelhas, e vejão se o autor da missão abreviada não tem rasão
de sobejo para pregar contra os jesuítas” (MOSSOROENSE, 3 de maio de 1874, p. 3)
Encontramos nessa conjuntura indícios que nos remetem à Souza Melo como o
provável autor da missão abreviada, tendo em vista que a sua formação de
seminarista o qualificava para se pronunciar como um pregador, um doutrinador;
ademais, a sua condição de apóstata, bem como sua conversão ao protestantismo,
dava-lhe subsídios para anunciar aos leitores do Mossoroense outro evangelho oposto
ao dos jesuítas.8
O próximo artigo assinado pelo Velho da Montanha defende o casamento civil,
então um dos tópicos mais sensíveis nos debates sobre a instalação do Estado laico.
Como se pode perceber a seguir, o autor dessacraliza o casamento, situando-o no
âmbito dos contratos civis.

Eis-me de novo entre vós para mais uma vez do alto desta
tribuna dizer-vos as palavras da verdade e convencer-vos do
8

embuste com que espiritos malignos, valendo-se da vossa


credulidade e inexperiencia procuram obscurecer-vos atirando-
vos nas sombras do engano (...). O Estado nada tem com o
incidente do culto: só por um abuso pode uzurpar os poderes da
Egreja; mas tem tudo com o matrimonio enquanto contracto:
compete-lhe fazel-o, como à Egreja santifical-o. (...). Não é
indispensável para que a união conjugal seja feliz e proveitosa a
Deus e aos homens que ao casamento communique a Egreja a
graça divina – que ella o torne em Sacramento. No matrimonio
tão santo, que é <<dois em uma só carne>> não vemos se não
as mesmas fraquezas de todos os contractos humanos. Oh nem
o sacramento que deu-se-lhe como timbre pode-o fazer
perfeito (MOSSOROENSE, 17 de maio de 1874, p. 1)

Atentemos para o modo como o autor vê a sua missão. Ele está acima, como
um mestre a falar de sua tribuna, dotado da verdade, pronto a iluminar as crédulas
almas que estão na escuridão e no erro. Não é difícil deduzirmos quem são os
espíritos malignos aos quais se refere o sábio da montanha; eram os jesuítas.
O autor reforça o argumento liberal da não ingerência do Estado e da Igreja
nas funções peculiares de cada instituição; para muitos, esta era a única solução para
os conflitos da Questão Religiosa (VIEIRA, 1980, p. 285). Seguindo uma tradição
doutrinária que remonta à Reforma Protestante do século XVI, ainda nos dias de
Martinho Lutero, o jornalista não considera o casamento como um sacramento 9 ,
classificando-o como um contrato civil, sujeito às circunstâncias mundanas, devendo
ser regulamentado pelo Estado.
Os protestantes e seus aliados também pressionavam pela instituição do
casamento civil, visando à plena legalização da condição dos casais protestantes no
Brasil. O que havia, conforme já mencionamos, era a lei promulgada em 1861 que
reconhecia o casamento de protestantes, desde que fosse realizado por um pastor
credenciado como tal junto ao governo brasileiro.
Porém, Vieira aponta algumas limitações dessa lei. Nem sempre havia um
ministro protestante disponível, especialmente nas colônias de imigrantes mais
isoladas dos centros urbanos. Para os liberais, ainda que legalizado, o casamento dos
protestantes e de outros acatólicos estava numa condição inferior, servindo apenas
para legalizar questões de propriedade e de herança. Além disso, havia o temor de
que as restrições religiosas no Brasil contribuíssem para a diminuição do fluxo
imigratório de protestantes para o Brasil (VIEIRA, 1980, pp. 226-227).
Sobre o texto que discorre a respeito do dogma do purgatório 10 , pinçamos
alguns fragmentos que nos permitem concluir que, ainda que não tenha sido escrito
pelo Velho da Montanha, o foi por alguém bastante alinhado com o protestantismo.
9

De facto, desde que essa invenção diabolica se não apoia em


texto algum da biblia, unica autoridade infallivel em materia
religiosa, hade evaporar-se, como sonho monstruoso que é
(...). Mas o seculo XIX não pode mais supportar uma
semilhante impostura, e o espirito do Evangelho, que os seus
ministros começão a propagar, hade cedo ou tarde aliviar a
pobre humanidade d’esse fardo horrendo de mentiras. (...) O
tempo é chegado; a palavra do Divino Mestre, interrompida
pelos papas e jesuitas hade afinal faze-se ouvir, e o relâmpago
da verdade illuminando o coração das massas dissipará o
fanatismo dos povos e exterminará para sempre as superstições
do moderno paganismo (MOSSOROENSE, 21 de junho de 1874,
p. 2)

Esse discurso denota que o seu autor militava ativamente contra o catolicismo
e os valores que, na sua visão, estavam a ele interligados. Manifesta nitidamente
concepções de cunho protestante. A principal razão para não se crer na veracidade do
purgatório é a ausência de referência direta do texto bíblico sobre sua existência,
demonstrando o princípio protestante segundo o qual o texto sagrado está acima da
tradição. O autor arremata seu argumento afirmando que a Bíblia detém o verdadeiro
atributo de ser infalível em questões de religião. Ora, é uma contraposição ao dogma
da infalibilidade papal.
A auto-imagem do protestantismo em fins do século XIX pode ser aqui
vislumbrada. Seus ministros eram os portadores de uma mensagem que se coadunava
com os novos tempos da razão, do predomínio das luzes. Sua missão consistia em
libertar os povos do engano, oferecendo-lhes em troca a verdade evangélica. Nesse
raciocínio, o dogma do purgatório representava um fardo, um resquício do medievo a
ser superado. O autor também manifesta uma visão triunfalista quanto à vitória do
Evangelho, ou seja, do protestantismo sobre o catolicismo, classificado como um
neopaganismo.
O último sermão proferido pelo Velho da Montanha que iremos analisar é
uma apologia do protestantismo, elevando-o à condição de verdade única, suprema e
universal.

O que vou dizer-vos, para ser comprehendido, não precisa se


não da rasão natural, e esta o Ser, que creou a vós, aos sabios
doutores da Igreja e aos papas infalliveis, soube-a destribuir
com egualdade (...). Não há povo sem religião porque tambem
não há homem que não tenha noções do Ser da creação (...).
Como jà vos disse, meus irmãos, todas as religiões tem o
principio universal e verdadeiro – o conhecimento da divindade
(...) em outra ocasião me ocuparei de mostrar quanto são
incomparaveis as sabias doutrinas com que o divino Mestre,
deu-nos a mais sublime das religiões, que nos aperfeiçoa para o
mundo e nos purifica para a eternidade (...). No entretanto,
10

meus caros e piedosos irmãos, vos recommendo que deixeis de


uma vez as beaticas cartilhas, entupidas de rezas banaes e mal
compostas, que nada podem doutrinar, e fartai vosso espírito,
bebendo com os olhos do entendimento dia e noite a toda hora
a todo o instante da única fonte de sabedoria e de verdade – o
Evangelho (MOSSOROENSE, 12 de julho de 1874, p. 1).

Neste artigo, o autor defende a superioridade do protestantismo, mas se utiliza


de sutileza filosófica, visto que não menciona explicitamente sua confissão religiosa,
optando por denominá-la genericamente de Evangelho. Inicialmente, manifesta sua
crença na razão como um principio universal, naturalmente dado pelo Criador. Sendo
assim, estamos lidando com um racionalista cristão. Pressupondo serem todos os
homens dotados dessa razão, conclui que todos também estão aptos para conhecer a
verdade. Essa verdade, para o Velho da Montanha, também é universal.
Aparentemente, o autor demonstra uma postura ecumênica, ao ponderar que
todas as religiões existentes possuem um ponto de convergência, a saber, o
conhecimento do Ser Supremo. No entanto, esse aspecto comum das religiões é a
seguir demonstrado como um potencial para se chegar a mais sublime das religiões.
Sendo assim, na concepção do autor, há as religiões criadas pelo homem que
apenas dão noções acerca de Deus. Acima delas, está a religião verdadeira, dada pelo
divino Mestre, numa referência a Jesus Cristo. Na condição de religião revelada, o
Evangelho é, assim, alçado à posição de verdade ahistórica, atemporal, imune às
contingências, universal, portanto, absoluta.
Nas últimas linhas do texto em análise, percebe-se uma crítica nada sutil a
práticas do catolicismo, as quais são desprezadas pelo autor como elementos de uma
religião inferior e ineficaz. Em seguida, conclama abertamente seus leitores a
abandonar essa religião irracional para aderirem à fonte superior de sabedoria e de
verdade. Baseados nesses contrastes postos pelo autor, concluímos que o Evangelho
corresponde ao protestantismo.
Partimos do pressuposto de que José Damião de Souza Melo, jornalista do
Mossoroense, maçom, protestante, é o mesmo Velho da Montanha, a partir dos
indícios e sinais acima expostos. Podemos, então, inferir que a sua atuação na
sociedade de Mossoró, por meio de seu círculo de relações, da sua participação no
movimento abolicionista e dos seus artigos publicados num órgão de imprensa ligado
aos maçons e ao Partido Liberal; constituiu-se num fator precursor para a chegada do
protestantismo à Mossoró oitocentista.

Considerações Finais
11

Como já afirmamos anteriormente, um elemento inesperado com o qual


nos deparamos na pesquisa foi a atuação preparatória de Souza Melo para a
introdução da igreja presbiteriana em Mossoró. Apesar de não podermos
rigorosamente, no sentido cartesiano e científico do termo, identificar o Velho da
Montanha com a pessoa de Souza Melo, propomos que os sinais evidenciados nos
permitem considerar tal relação provável.
Portanto, desejamos fazer dois apontamentos resultantes da nossa pequena e
superficial pesquisa. Primeiro, acreditamos que os produtores da historiografia que
trata acerca do Rio Grande do Norte podem e devem dirigir seus olhares para o estudo
das diversas expressões do protestantismo presentes nesse território, descobrindo
sujeitos e objetos que foram esquecidos pela História oficial e unilateral. Dessa forma,
haverá uma contribuição salutar para a compreensão histórica do fenômeno da
pluralidade religiosa.
A segunda sugestão que aqui fazemos diz respeito a estudos mais
aprofundados sobre a configuração da Questão Religiosa no Rio Grande do Norte,
tendo em vista que uma das dioceses diretamente envolvidas, a de Olinda, exercia
sua jurisdição sobre a província norte-rio-grandense. O nosso trabalho já indicou que
havia em Mossoró um grupo que se posicionava contra as propostas ultramontanas
dos bispos de Olinda e Belém e seus aliados jesuítas. A principal arma da qual esse
grupo dispunha para os embates ideológicos era o jornal Mossoroense. Também não
se deve ignorar a presença do elemento protestante nesse contexto, uma vez que dele
participou ativamente (VIEIRA, 1980, p. 377)

1
Graduando em História (Licenciatura) pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN),
Campus Avançado de Assú.
2
Este artigo foi elaborado com base no terceiro capítulo da monografia de graduação Incursões protestantes
na cidade de Mossoró: a construção de um espaço de diversidade religiosa (1874-1885), defendida junto ao
Curso de História da Universidade do Estado do Rio Grande, Campus Avançado de Assú.
3
O missionário fundou uma igreja presbiteriana na cidade de Fortaleza no ano de 1882. No ano seguinte,
realizou sua primeira visita à cidade de Mossoró. Como resultado do seu trabalho evangelizador, organizou
em 1885 uma igreja presbiteriana na cidade de Mossoró.
4
O cerne do dogma consiste na afirmação de o Papa, enquanto chefe maior da Igreja e ocupante do trono
apostólico, é infalível nas suas declarações quanto à fé e a moral cristãs. Nessa condição, sua autoridade é
tida como inquestionável.
5
Sobre a razão do uso desse pseudônimo podemos conjecturar, ao menos acerca do segundo termo. No artigo
já citado, o autor diz estar “uzando da palavra divina da imprensa” e anuncia seu objetivo: “(...) daqui desta
montanha, vou publicamente fallar, soltando aos quatro ventos as mais indestructiveis verdades”. A
montanha pode significar, então, a condição do jornal como um observatório dos acontecimentos, uma torre
de vigia, um baluarte da verdade.
6
Giovanni Maria Mastai-Ferreti governou a Santa Sé entre 1848 e 1878. Seu pontificado foi marcado pela
reação da Sé romana às idéias da modernidade iluminista, num processo conhecido como romanização.
7
Com propostas republicanas e anticlericais, essa agremiação se diferenciava do Grande Oriente do
Lavradio, este mais afeito à filantropia do que às reformas políticas, mais simpático à Monarquia do que à
República.
12

8
Mesmo não sendo a única ordem religiosa ligada ao ultramontanismo no Brasil, pois havia também
lazaristas e capuchinhos, o termo jesuíta passou a designar genericamente todos os religiosos ultramontanos.
Segundo David Vieira, tal expediente era usado pelos adversários dos ultramontanos para direcionar contra
estes as leis de expulsão anteriormente aplicadas aos jesuítas (VIEIRA, 1980, pp. 36-37).
9
A doutrina católica sobre os sacramentos, baseada na teologia de Agostinho (354-430 d. C), define-os como
meios de transmissão da graça divina, suficientes e eficazes em si mesmos, independente das ações de quem
os receba. Para Lutero, os sacramentos legítimos são aqueles explicitamente ordenados nas Escrituras, e
somente o batismo e a Eucaristia (ou Ceia do Senhor para alguns protestantes) se enquadram nesse critério.
Além disso, os cristãos que os recebem devem participar ativamente com sua fé, a fim de que os sacramentos
sejam válidos (OLSON, 2001, pp. 270, 402-403).
10
A doutrina do purgatório foi sistematizada pelo papa Gregório I, que governou a Igreja Romana entre 590
e 604 d.C. O purgatório é entendido como o estado ou lugar no qual as almas dos cristãos são purificadas dos
pecados menos graves, chamados de veniais, antes de serem conduzidas ao Juízo Final (LATOURETTE,
2006, p. 457).

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_____________________________Vol. II: 1500 a 1975. São Paulo: Hagnos, 2006.


13

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Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980.

FONTE

Jornal Mossoroense. 04.10.1873 a 24.01.1874. Coleção Mossoroense Série E (Periódicos).


Volume 3, s.d. Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado.
(Pertence ao arquivo pessoal da senhora Maria Lúcia Escóssia).
CÂNDIDO MENDES DE ALMEIDA, UM INTELECTUAL ULTRAMONTANO.
Ítalo Domingos Santirocchi

Introdução
Nas últimas décadas do século XX as biografias de indivíduos tanto
“desconhecidos” ou “marginalizados”, quanto de personagens ilustres retornaram ao
cenário historiográfico. As críticas surgidas ao estruturalismo e as mentalidades
permitiram o ressurgimento dos indivíduos, a discussão sobre a possibilidade de
liberdade individual, seu reflexo na sociedade e na história. Candido Mendes de
Almeida é um importante personagem do império, mas apesar de ilustre no seu tempo
é pouco conhecido e pesquisado pela historiografia.
O reduzido número de trabalhos sobre Cândido Mendes possibilita a utilização
de técnicas da micro-história, mesmo trabalhando com um indivíduo que na sua época
era um personagem público, e ao mesmo tempo possibilita a elaboração de uma
“biografia-problema”, muito utilizada para as atuais biografias de personagens
ilustres, como o fizeram historiadores dos Annales e da História Social Inglesa. O fato
de Candido Mendes de Almeida ser um personagem ilustre no seu tempo, apresenta a
pesquisa uma ulterior problemática ao se tentar traçar sua biografia: ele já foi objeto
de uma “construção” da sua própria imagem a partir do seu tempo e também objeto
de “construção” da sua memória, por meio dos seus biógrafos, homenagens e elogios
fúnebres. Atualmente venho pesquisando aspectos bibliográficos de Cândido Mendes,
no entanto, nesta comunicação, pretendo ressaltar a sua importante contribuição
intelectual, e até mesmo política, à causa ultramontana. Mas antes disso, temos de
conhecer um pouco de sua biografia e de seu tempo.
A vida de Cândido Mendes percorre importantes fases da história do Brasil
Império, até 1881, ano do seu falecimento. Sua vida pública foi testemunho de
importantes fatos políticos e eclesiásticos tais como: o regresso conservador; a
consolidação da Monarquia e início da sua crise, o controle do episcopado por parte
dos ultramontanos; a tentativa de retomada de autoridade sobre a igreja no Brasil,
por parte da Santa Sé; os conflitos entre os poderes secular e espiritual na década de
60, envolvendo a questão matrimonial, as ordens religiosas, os benefícios
eclesiásticos, a formação do clero; e o posterior acirramento desse conflito na Questão
Religiosa e suas conseqüências.
Todos os trabalhos sobre Candido Mendes de Almeida, até o momento
publicados, apresentam um homem sem fratura, integro, sem contradições, linear na
sua conduta moral, política e intelectual. Todos foram produções encomendadas por
ocasiões comemorativas, relembrado suas morte ou suas obras, ora pelo Instituto
Histórico Geográfico Brasileiro (Sá Vianna, 1918), ao qual ingressou nos últimos anos
de vida, ora por seus descendentes (Villaça, 1981), ora pelo Senado (Rodrigues,
1982).
Tais trabalhos, todavia, são lacunares, demonstrando muito mais um intento
laudatório que crítico. Não são uma produção biográfica problematizada. As pesquisas
sobre sua vida, principalmente antes do sucesso na política e no campo religioso, vêm
demonstrando um homem muito mais dinâmico, mais multifacetado, com seus medos
e contradições, ou seja, um Candido Mendes mais de carne e osso.

Cândido Mendes de Almeida


Na apresentação dos Pronunciamentos parlamentares de Cândido Mendes de
Almeida (1818-1881), publicada pelo Senado Federal, o senador Jarbas Passarinho,
em poucas palavras, definiria a essência da sua atuação política e judiciária: um
conservador por filiação partidária e que “teve, como poucos, a exata percepção do
papel da Igreja, interpretando com acuidade incomum e profundidade histórica as
relações entre ela e o Estado”. Cândido Mendes também lutou pela emancipação dos
escravos e por uma eficaz reorganização judiciária brasileira. (Almeida, 1982, t.I, p.
9).
Manuel Álvaro de Sousa Sá Viana, por sua vez, no seu Elogio Histórico de
Cândido Mendes de Almeida, assim descreve a pessoa do senador Mendes:

[...] com uma face imperiosa, cara rapada, tinha linhas solenes
e marmóreas do busto de um César, forma romana, dentro da
qual habitava um espírito rígido de doutrinário representando
no Governo a tradição; era o contrapeso conservador do
ministério de que fazia parte, e onde estava como bloco de
granito constitucional para impedir que os outros ministros se
adiantassem muito pela grande estrada da Revolução, e tinha
por isso essa ampla solenidade de maneiras [...] de quem se
honra em guardar as coisas supremas – a Coroa, a Igreja, os
privilégios [...], a integridade do Império (Sá Viana, 1918, pp.
513-514).

Cândido Mendes de Almeida nasceu no dia 14 de outubro de 1818, em São


Bernardo do Brejo dos Anapurus, Maranhão. Era filho de Fernando Mendes de Almeida,
português, e Esméria Alves de Souza. (Villaça, 1981, pp. 21-23). Seus avós maternos
foram o Capitão-Mor Domingos Alves de Sousa e Euzébia da Conceição Alves de Sousa,
sendo esta última uma das primeiras colonizadoras da região do Brejo na segunda década
do século XIX. Dona Euzébia era mulher de caráter forte, que comandou a região com
punhos de ferro e morreu tragicamente em 1939, defendendo os conservadores,
conhecidos como Cabanos, durante a Balaiada (1838-1840). Cândido Mendes descendia de
uma família de importância política e econômica no Maranhão. Era membro dos potentados
locais e provinha de uma cidade que, mesmo sendo humilde, possuía um posicionamento
estratégico, pois foi disputada ferozmente durante a balaiada, sendo o último local a ser
pacificado (Serra, 1942; Assunção, 2008, pp. 191-192).
Seu pai faleceu em 1840 (O Legalista, n. 35, p. 1, 1840). O Capitão Fernando era
português e transferiu-se para o Brasil em 1816, estabelecendo-se na cidade de Caxias
(MA), onde se casou com Esméria Alves de Souza, em 1817. Politicamente ele se
posicionou ao lado dos conservadores (cabanos), contra os liberais, conhecidos como bem-
te-vis. (Otávio, 2001, pp. 40-41; Borralho, 2009, pp. 124).
Candido Mendes estudou as primeiras letras e um pouco de latim em Caxias. A
preparação para a Faculdade de Direito ele fez em São Luís. Em 1835 ele se transferiu para
Olinda para cursar Direito. Aos 21 anos de idade, em 1839, Candido Mendes se formou em
Ciências Jurídicas e Sociais. Logo iniciou o exercício da advocacia. Eram anos de
instabilidade, que forçaram o amadurecimento do jovem advogado ao ver seu estado
tomado pela guerra civil. Como vimos, nestes anos de angustia ele perdeu sua avó materna
(1839) e seu pai (1840). Candido Mendes se tornou, então, o chefe da família aos 22 anos
de idade, tendo de manter sua mãe e seus três irmãos mais jovens.
Candido Mendes casou-se com Rosalina Ribeiro Campos, no Rio de Janeiro em 20
de setembro de 1850, quando já contava com quase trinta e dois anos de idade. O casal se
fixou na Corte em 1854 e em 1857 nasceu o seu primeiro filho, Fernando. Segundo seus
biógrafos, a partir dai seu catolicismo se fortaleceu e intensificou sua espiritualidade.
(Villaça ,1981, p. 30).
Em 1840 ele superou um concurso para lecionar no Liceu do Maranhão, na cadeira
de História e Geografia. Foi contemporaneamente promotor público em São Luís entre 1841
a 1842. Como era também dotado de espírito comunicativo fundou, no Maranhão,
alguns jornais, como, por exemplo: O Brado de Caxias e O Observador. Posicionou-se
ao lado dos conservadores, seguindo as tradições familiares, e enfrentou as elites
locais aliadas aos liberais. Aos poucos estabeleceu redes de relações e alianças
políticas que o levaram à corte.
Logo iniciou a carreia política ao se eleger como suplente de Manuel Jansen Pereira.
Cândido acabou substituindo-o e foi deputado pelo Partido Conservador na quinta
legislatura (1843-1844). (Sá Viana, 1918, p. 516). Foi posteriormente deputado nas
legislaturas: 5ª (1843-1844), 8ª (1850-1852), 9ª (1853-1856), 10ª (1857-1860) e 14ª
(1869-1871). Foi Senador do Império de 1871 a 1881. Exerceu também as funções de
Secretário da Província do Maranhão (1849-1854), Diretor de Seção da Justiça (1954-1857)
e Chefe da Seção da Secretaria dos Negócios do Império (1860-1864). (Nogueira, 1973, p.
46).
O contato com a corte lhe abriu várias portas e várias possibilidades de crescimento
no meio político e administrativo. Ele tinha tudo para conseguir tal sucesso: membro das
oligarquias locais, com grande capacidade intelectual e, sobretudo, conservador, chegando
ao governo bem no momento em que estava em ato o movimento político conhecido como
Regresso Conservador, que buscava fortalecer o poder central do Imperador, pacificar o
país e realizar uma reforma na Igreja Católica por meio de nomeações de ultramontanos
para as cadeiras episcopais. O momento não podia ser melhor para Cândido Mendes.
Cândido era um amante dos estudos e, pela sua grande produção, pelo nível de
erudição, pela paixão pelos documentos, seguramente tinha uma disciplina incomum, pois,
além das produções jurídicas, históricas, geográficas e jornalísticas, ainda participava
ativamente da política do seu tempo. Ao se entregar às pesquisas jurídicas não estudou
somente as constituições e leis civis, mas também aquelas eclesiásticas, tomando
conhecimento dos direitos e deveres das respectivas instituições. No entanto, a partir de
um certo momento Cândido Mendes passou a se considerar primeiro católico e depois
cidadão, como irá afirmar algumas vezes no Senado.
O que se pode afirmar é que seu primeiro escrito de cunho religioso foi realizado em
1856, dois anos após o matrimônio. Publicou nesse ano as traduções da Instrução sinodal
de monsenhor Pie, atual bispo de Poitiers sobre os principais erros do tempo presente e dos
Sentimentos de Napoleão Bonaparte sobre o Cristianismo. Em 1860 traduziu mais duas
obras: Pio IX e a França em 1849 a 1859, pelo Conde de Montalembert, traduzido em
vulgar da segunda edição em Paris e O Papa. Questões na ordem do dia, por monsenhor de
Segur.
Seu catolicismo e, principalmente, o seu ultramontanismo aparecem claramente na
sua maior obra, o Direito Civil Eclesiástico Brasileiro antigo e moderno, em suas relações
com o Direito Canônico, publicada em dois volumes, em 1866 e em 1873. Uma verdadeira
obra prima jurídica e histórica sobre as relações da legislação civil sobre a Igreja e suas
contradições em relação ao Direito Canônico. Neste livro a ortodoxia e o ultramontanismo
de Cândido Mendes já se encontram maduros e totalmente elaborados. Dessa obra
magistral e monumental é que ele irá tirar a erudição para seus discursos em defesa das
ordens religiosas em 1869 e dos bispos na Questão Religiosa nos anos setenta.
A partir desse momento o seu catolicismo passou a causar admiração a todos:
políticos, padres, bispos e aos representantes da Santa Sé no Brasil, os Internúncios
Apostólicos, que encontraram nele um fiel aliado. Durante o Segundo Império nenhum leigo
foi tão fortemente ligado ao centro do catolicismo e a ortodoxia quanto Candido Mendes.
Segundo Villaça: “Ele defendia a religião católica numa dupla perspectiva – porque era a
sua religião pessoal e porque, por força da Constituição, continuava a ser a religião do
Estado. Como cidadão, como jurista, como político e como católico, defendia a religião
católica”. (Villaça, 1981, p. 40).
Em 13 de maio de 1871, Cândido Mendes foi eleito Senador do Império tomando
assento em 19 de maio. A partir dessa data lutará principalmente por duas causas: a da
abolição, ou seja, a luta parlamentar em defesa da Lei do Ventre Livre, logo em 1871, e a
Questão Religiosa, em 1873, isto é, a batalha contra a maçonaria e o regalismo em defesa
da liberdade da Igreja. É nas cadeiras do Senado que pronunciará dois discursos de incrível
erudição histórica, jurídica e teológica que ficaram na memória dessa instituição: o de 10 de
março e o de 30 de junho de 1873. (Rodrigues, 1982).
Na Corte, enquanto era deputado e senador, continuou a sua carreira de jornalista,
redigindo o Correio da Tarde, escrevendo no Sentinela da Monarquia, no Brasil, no Correio
Mercantil. Além de político e jornalista se dedicou a literatura, a geografia e a história. Nos
anos 50 publicou dois trabalhos que chamaram a atenção de Varnhagen para o seu nome.
O Tury-assù ou a incorporação d’este território à Província do Maranhão (1851) e A
Carolina, ou a definitiva fixação de limites entre as províncias do Maranhão e de Goyas
(1852). Estas obras começam a abrir-lhe as portas do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e demonstram a sua capacidade e gênio, trazendo de volta ao Maranhão dois
territórios que há décadas estavam em disputa com o Pará e o Goiás. Em 1860, publicou o
seu primeiro grande livro, Memórias para o Extinto Estado do Maranhão, que só teria
conclusão quatorze anos depois, em 1874, com o segundo tomo. (Villaça, 1981, pp. 30-31,
35; Sá Vianna, 1918, pp. 547-548).
Seu nome já havia sido proposto ao Instituto Histórico desde 1853, por sugestão de
Varnhagen a Pedro II, mas só em 25 de setembro de 1868, o sócio Pedro Torquato Xavier
de Brito lhe indicou oficialmente. Neste ano havia publicado o Atlas do Império do Brasil,
que causou impressão entre os membros do IHGB. Todavia, somente dez anos depois, em
1878, seria distinguido com a condição de sócio honorário. Esta demora em ingressar na
instituição era o resultado do seu posicionamento político em favor da Igreja, contrariando o
Imperador, importantes políticos e intelectuais da época. (Villaça, 1981, p. 34).
Em 1869, publicou o Código Filipino, com 1487 páginas, juntamente com o Auxiliar
Jurídico, com 849 páginas. Em 1874 publicou os Princípios de Direito Mercantil, reedição da
obra do Visconde de Cairu. Outras obras de Cândido Mendes de Almeida que merecem ser
citadas são: Discurso combatendo a medida de venda dos bens das corporações
monásticas, e a conversão do respectivo produto em apólices da dívida pública, Rio de
Janeiro, 1869; Discurso pronunciado no Supremo Tribunal de Justiça na sessão de 21 de
fevereiro de 1874 por ocasião do julgamento do exmo. e revmo Sr. Bispo de Olinda, Rio de
Janeiro, 1874; e Instrução sinodal de monsenhor Pie, atual bispo de Poitiers sobre os
principais erros do tempo presente, Tradução, publicado no Correio da Tarde 1856. (Blake,
1883, vol. II, pp. 35-40).
Recebeu, em vida, vários títulos honoríficos: Oficial da Ordem da Rosa, no
Brasil; Comendador de N. S. da Conceição, da Vila Viçosa de Portugal; e Comenda
da Ordem de São Gregório Magno, da Santa Sé (Sá Viana, 1918; Rodrigues, 1982, t.I,
pp. 17-19). No dia 4 de janeiro de 1881, realizou sua última fala no Senado, pois
faleceu no dia 1º de março. (Villaça, 1981, p. 55).

O pensamento ultramontano de Cândido Mendes de Almeida


É possível encontrar em Cândido Mendes de Almeida várias facetas: o historiador, o
geógrafo, o parlamentar, o jornalista, porém, duas delas marcaram fortemente o seu
caráter: o jurista e o católico. Ao analisar sua vida percebe-se que estes seus dois traços
estão profundamente ligados, pois ao defender e estudar as leis reforçava a sua posição em
defesa da Igreja perante o Estado. Enquanto se imergia na espiritualidade católica,
fortalecia o seu apego ao dever, as leis e a Constituição do seu país. Para ele, ser patriota
era ser católico e defender a Constituição nacional. Ser católico era ser fiel à ortodoxia, ao
Papa, aos seus representantes no Brasil, aos bispos e a hierarquia em geral, em uma
palavra era ser ultramontano, adjetivo usado constantemente por seus adversários.
Sá Vianna, em 1918, apresentou muito bem como era a concepção de
ultramontanismo no Brasil Imperial. Naquela época ela tinha duas conotações divergentes e
opostas: uma positiva, aceita pelos seus defensores; e outra negativa, utilizada pelos seus
adversários, como podemos ver na citação abaixo:

Sob o ponto de vista religioso Candido Mendes foi apresentado do


mesmo modo injusto, como ocorrera politicamente: catholico
intransgente, catholico intolerante, catholico reacionário, enfim,
aggressivamente – ultramontano, ultramontano no mao sentido,
nesse que o vulgo ignaro emprega por lh’o terem perversamente
ensinado errado; ultramontano não procurando as origens do
partido religioso que doutrinava e propagava a soberania do papa,
mas o ultramontano, significando inimigo da Democracia, o
hypocrita que se deve temer, o phanatico que se deve condemnar,
o pérfido do qual mal se pode fugir, tudo quanto é mao, posto em
ação em nome de Deus e para perdição dos homens! E pensar,
senhores, que houve Brasileiro que assim disseram e de tal modo
pudessem julgar um patrício que, sob este aspecto, nem foi um
asceta, mas um virtuoso; um subversor, mas um leal combatente,
um crente que não solicitava o milagre em troca da oração, mas
fazia-se merecedor da Graça pela prática sincera e abnegada do
Bem! (Sá Vianna, 1918, p. 523).

A Igreja católica era a religião oficial de acordo com a Constituição, e por meio desta
Cândido Mendes buscou defendê-la. Perseguiu a “legalidade enquanto expressão e
encarnação de uma vontade que transcendia o próprio homem”, sempre preocupado com a
sobrevivência legal dos valores e proposições do pensamento católico. (Almeida, 1982, t. I,
pp. 12-13).
João Camilo de Oliveira Torres afirma que em todas as manifestações públicas,
parlamentares e nos escritos, Cândido Mendes foi um jurista de altos méritos e
ultramontano consciente. (Torres, 1968, pp. 169-173). A sua adesão ao catolicismo
ortodoxo, colocando-se do lado da Igreja perante o Estado, foi claramente desenvolvida na
sua obra jurídico-histórica intitulada Direito Civil Eclesiástico Brasileiro antigo e moderno em
suas relações com o direito canônico. Esta obra foi elaborada em dois volumes de
aproximadamente 1800 páginas. No primeiro volume, nas primeiras 424 páginas, Cândido
expõe suas teses históricas e jurídicas sobre a formação do padroado e do regalismo
português e brasileiro, elaborando suas críticas ao sistema que, segundo ele, sufocava a
liberdade da Igreja e usurpava-lhe poderes e direitos. No restante dos volumes ele
apresenta a documentação que reuniu, sendo que vários delas se achavam inéditas e
escondidas nos arquivos de Portugal e Brasil.
Cândido Mendes critica severamente todas as medidas da coroa lusitana e brasileira
que prejudicavam a liberdade da Igreja e a autoridade pontifícia, principalmente as
introduzidas com o Código Filipino, com as reformas pombalinas e com a Constituição
brasileira de 1824. Ele não esconde sua posição e a apresenta logo no prólogo, ao acusar o
poder temporal de reduzir, pela legislação vigente, a liberdade e autonomia da Igreja
Católica. (Almeida, 1866, p. 4). As práticas regalistas que ele critica mais ferozmente são o
Beneplácito Régio, o Recurso a Coroa e a implementação do Padroado Civil por meio da
Constituição de 1824, que ele denomina de “padroado a força”.(Almeida, 1966, p. 29).
Cândido Mendes, alinhado com as diretrizes do Concílio de Trento, defende a
autonomia da Igreja como sociedade dentro do Estado, com uma organização executiva,
legislativa e judiciária que lhe é própria. A Igreja não só seria autônoma, como superior ao
Estado. Aproveita a ocasião para criticar a doutrina que ele chama de Galicana e que na sua
opinião se inseriu em Portugal por meio do governo do Marquês de Pombal. Segundo ele tal
concepção defendia que a autoridade teria origem no Direito Divino e que o rei teria
recebido o seu poder diretamente de Deus. (Almeida, 1866, p. 42).
Cândido Mendes, atacando o regalismo e o galicanismo, deixa claro qual seria a sua
posição: o ultramontanismo. Ao diferenciar a sua doutrina daquela que critica, faz questão
de demonstrar que aquela que defende carrega um germe revolucionário. Mas como uma
doutrina conservadora como a ultramontana poderia ser revolucionária? Estes conceitos são
por vezes difíceis de serem utilizados quando se analisam algumas doutrinas em ambientes
diferenciados. O ultramontanismo é sim um movimento de conservação da Igreja a nível
mundial, no entanto, no Brasil ele é novidade, já que o tradicional era a Igreja luso-
brasileira baseada no padroado e no regalismo. No Brasil imperial, no que se refere à
Igreja, quem procura conservar é o governo, é parte da maçonaria, são os membros dos
partidos, que buscavam de todas as formas manter a Igreja sobre o rígido controle do
Estado. Cândido Mendes não teme em demonstrar que os ultramontanos teriam o direito de
se revoltar contra tal governo em casos extremos:

Há ainda a de notar ... entre a escola galicana e a ultramontana,


esta diferença, que a segunda admite muito mais voluntariamente
os limites do poder, e as garantias da liberdade dos súditos. Talvez
mesmo os Doutores desta última escola não repugnem tanto como
os da primeira em admitir casos extremos em que o povo poderia
legitimamente derribar do seu trono um tirano que não usasse de
sua autoridade senão para arruinar a sociedade, de que deveria ser
o sustentáculo. (Almeida, 1866, p. 194).

Cândido Mendes questiona abertamente o direito de padroado no Brasil, que foi


instaurado civilmente, “a força”, justificando-se na soberania dos estados e que,
posteriormente, negou o beneplácito à bula Praeclarae Portugalliae com a qual, em 1827, o
Papa havia concedido o padroado real e da Ordem de Cristo ao Imperador do Brasil. Na
opinião de Cândido esse direito teria se acabado de vez com a secularização das Ordens
Militares católicas com um decreto publicado em 1843. Seu objetivo era traçar os contornos
deste “padroado a força” e, segundo ele, ilegítimo. (Almeida, 1866, pp. 180-181).
Todavia, as críticas de Mendes não se dirigiam somente ao Estado, elas também
foram endereçadas aqueles bispos que se calaram diante das usurpações estatais e fugiram
da luta pelos seus direitos. Seguindo seu raciocínio, logo depois da independência, quando
ainda existia a Mesa da Consciência no Brasil, o “regalismo a força” brasileiro dava como
direito do Imperador “até mesmo a capacidade de colar ou de fazer colar até mesmo um
secular”. Isso dificilmente foi contrastado pelos bispos que eram “feituras do Padroado”, e
mesmo se arriscassem uma resistência seriam severamente contidos, mas estes “preferiam
o silêncio, à luta e ao martírio”. Concluía Cândido que o resultado disso foi a transformação
dos “empregados da Igreja” em “em funcionários públicos” (Almeida, 1866, p. 332).
Cândido Mendes clama pela liberdade da Igreja, pois somente assim poderia ser levada
adiante uma efetiva reforma do clero (p. 355) e para isso era necessária uma reação. E ela
só poderia partir dos bispos, da hierarquia eclesiástica (p. 389).
Cândido Mendes esboçou no Direito Civil e Eclesiástico um projeto de reforma
católica, que em vários pontos se aproximava daqueles elaborados pelo episcopado. Ele
pregava que os prelados lutassem pela instauração de qualificados centros de formação do
clero, pois só um clero bem formado poderia reformar o costume do povo. Ele sugere, na
sua obra, a criação de faculdades católicas para suprir tais necessidades. (Almeida, 1866,
pp. 70-71).
Enquanto trabalhava no seu livro, Cândido Mendes presenciou as várias “crises”
religiosas que envolveram questões como o matrimônio, as tentativas do Estado de
apoderar-se dos bens das ordens religiosas e de interferir na administração dos seminários.
Foi testemunha das dificuldades dos bispos D. Viçoso e D. Antônio Mello para disciplinarem
seu clero, que constantemente recorriam a Coroa, levando os casos ao Conselho de Estado.
Ele deve ter recebido com tristeza, em 1858, a notícia que as negociações para uma
Concordata com a Santa Sé tinham falido. (Santirocchi, 2010).
O Direito Civil Eclesiástico de Cândido Mendes causou impressão geral, até mesmo
em seus adversários. Obra muita bem redigida e incrivelmente documentada recebeu
elogios até mesmo do Papa Pio IX1. Logo após a publicação do primeiro volume, Cândido
Mendes teve o prazer de ver nomeado para a diocese do Rio de Janeiro o seu primeiro
bispo ultramontano, D. Pedro de Maria Lacerda, discípulo de D. Viçoso, que assumiu a sede
carioca em 1868. Agora nosso personagem tinha a companhia de um bispo reativo, que dali
a quatro anos iniciaria a “Questão Religiosa”. (Lemos, 1987; Santirocchi, 2010).
Em 1869, Cândido Mendes demonstrou suas qualidades de deputado católico e a
sua inabalável posição em defesa da Igreja. Na sessão de 20 de julho de 1869, pronunciou
um discurso na Câmara dos Deputados, de vasta repercussão, a respeito da proposta da lei
do orçamento para o ano financeiro de 1869-1870. Nestes anos o governo buscava abolir
as ordens religiosas, ditas brasileiras, que estavam em via de ficarem sem religiosos por
motivo da morte daqueles existentes e a proibição da entrada de noviços decretada em
1855. O intento do Estado era apoderar-se dos bens das corporações monásticas,
vendendo-os e convertendo o respectivo produto em apólices da dívida pública inalienáveis.
Esta contenda vai durar vários anos, até o fim do Período Imperial. (Santirocchi, 2010, pp.
365-370).
Nesta ocasião, Cândido Mendes travou a sua primeira luta política juntamente com
os bispos ultramontanos e o Internúncio Domenico Sanguini. Ele vai combater ferozmente
uma proposta orçamentária que impunha impostos crescentes sobre terrenos, prédio
rústico e outros bens pertencentes às ordens religiosas. Como era de sua feição fez um
discurso erudito onde declarou que estava ali para defender os direitos da Igreja. Reafirmou
sua acusação de que a “Igreja neste país não tem liberdade, não obstante saber-se que a
liberdade é o maior bem que a ela se pode fazer”, e lastimou “que a missão de atacar e
oprimir a Igreja caiba hoje por sorte ao partido a que tenho a honra de pertencer”.
Aproveitou a ocasião para estender sua crítica às todas as medidas regalistas do governo
imperial. Seu discurso causou admiração entre os católicos e mudou os rumos da discussão
na Câmara. (Rodrigues, 1982, t.I, p. 20; Santirocchi, 2010, pp. 365-370).
Além de defender as ordens religiosas em geral, Cândido Mendes foi um defensor
dos Jesuítas, constantemente atacados pelos liberais e pelos regalistas (Domingos, 2008).
Discutiu veementemente com Sousa Franco para defendê-los. Dizia ele a seu opositor:
“Quando o adversário quer a supressão do seu contendor, para ficar só em campo,
mediante o auxílio da força, patenteia a sua deficiência de razão, exibe claramente a sua
incapacidade. A Maçonaria deveria travar em campo leal uma luta com os Jesuítas”.
(Villaça, 1981, p. 80).
Quando os bispos resolveram desafiar o regalismo imperial, por ocasião da “Questão
Religiosa”, Cândido Mendes se colocou na primeira linha para defendê-los. Sobressaiu-se
como um dos mais brilhantes defensores dos prelados, se propondo como advogado
espontâneo no julgamento de D. Vital. Para Cândido Mendes a Questão Religiosa era o fruto
da aplicação do placet, ou melhor, sobre o entendimento constitucional do tema. Como já
havia demonstrado no Direito Civil e Eclesiástico, ele se opunha veementemente a esta
prática.
Durante as discussões em 1873, ele desenvolveu eruditos discursos nos quais citou
bulas papais, a história da maçonaria em Portugal, no Brasil e no estrangeiro em geral, e a
história da Igreja na luta contra as sociedades secretas. Buscou provar a incompatibilidade
do Ministro Rio Branco ser ao mesmo tempo chefe do gabinete e chefe da maçonaria,
baseando-se no art. 5º da constituição. Revoltou-se contra a teoria que identificava as
doutrinas católicas e maçônicas e defendeu que os maçons não poderiam ser sepultados
nos cemitérios católicos, devendo construir os seus próprios. (Rodrigues, 1982, t. I, p. 13,
pp. 22-25).
Foi neste ano, em 30 de junho de 1873, que Cândido Mendes de Almeida
pronunciou um dos discursos mais longos publicado nos Anais do Senado, superando as
100 páginas. Versava sobre o Voto de Graças sobre a Política Religiosa do Ministério.
Segundo José Honório Rodrigues, Candido Mendes, “seguríssimo de saber teológico,
canônico, de direito e história da Igreja em geral e da brasileira em especial, revelou toda a
força mental, toda a capacidade jurídica, todo conhecimento histórico que acumulara”. Para
o referido autor, Cândido Mendes foi sempre assim: “o que fazia era o melhor que podia e o
que podia raríssimos podiam elaborar”. (Rodrigues, 1982, t. I, pp. 34-36).
Este discurso é muito relevante, porque nele o orador analisou a questão religiosa, o
procedimento do bispo de Olinda, a impossibilidade de ser ao mesmo tempo católico e
maçom e atacou vigorosamente a maçonaria. Nele conceituou o que é dogma, as heresias,
os erros cometidos pela inconsciência de seus adversários, elaborou uma sucinta história da
Igreja no Brasil, defendeu a entrada dos capuchinhos no país e o retorno dos jesuítas.
Explanou sobre a condenação das sociedades secretas, a história da maçonaria e seus fins.
Ele tomou posição em favor do Syllabus e da Quanta Cura, explicou a distinção entre o
Papa e a Cúria Romana, entre bula e breve, e os equívocos do Conselho de Estado.
Defendeu a sentença de interdito de D. Vital à Irmandade do Santíssimo Sacramento de
Recife.
Cândido Mendes ainda explicou as diferentes versões do placet dadas pelo poder
temporal e espiritual, defendendo que este, juntamente com o recurso à Coroa, dificultava
e tencionava as relações entre o Estado e a Igreja o Império. Para ele, o placet atacava a
jurisdição do Sumo Pontífice e o recurso à Coroa a dos bispos, devendo ser este último
somente admitido em matérias temporais. (Almeida, 1873; Rodrigues, 1982, t. I, pp. 22-
25).
Sua dedicação a causa da Igreja comoveu até mesmo o Internúncio Apostólico
Angelo Di Pietro, que por ocasião do seu falecimento, escreveu um ofício comovido no
qual deixou claro os sentimentos de admiração e de respeito da Santa Sé em relação a
Candido Mendes2.

Conclusão
Seria fácil continuar relatando vários outros exemplos de ações que ligam Cândido
Mendes ao movimento ultramontano no Brasil. Seria possível continuar citando trechos de
suas obras ou discursos, ou analisá-los de forma sistemática, todavia, isso seria impossível
num espaço tão pequeno como o de uma comunicação. O objetivo aqui proposto era
demonstrar a vinculação do autor com o ultramontanismo e sua convicção católica, e não
fazer uma exaustiva analise de suas idéias. O que foi até aqui apresentado é mais que
suficiente para demonstrar a sua ortodoxia e a sua importância para o movimento de
reforma ultramontana católica no século XIX.

Bibliografia

Fontes:
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Documentos e fontes publicadas:


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Bolsista do Programa Nacional de Pós Doutorado – PNPD – CAPES. Inserido no projeto de pesquisa: Testamentos
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1
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60, f. 46r-47r.
2
Negócios Eclesiásticos Extraordinários (Affari Ecclesiastici Straordinari), Br., Officio, 8 de março de 1881,
Fasc. 10, pos. 203, f. 55r-56r.
IGREJA E POLÍTICA NA TRAJETÓRIA DE DOM MARCOS ANTONIO DE SOUSA
(1820-1842)

Joelma Santos da Silva*

Introdução
O Império brasileiro herdou da antiga metrópole portuguesa uma cultura
política marcada por uma forte imbricação entre as esferas temporais e espirituais,
não podendo prescindir das instâncias eclesiásticas durante o seu processo de
organização e institucionalização. Reflexo disso foi o estabelecimento do Catolicismo
como a religião do Estado por meio da Constituição de 1824, promulgada sob a
invocação da Santíssima Trindade, bem como a participação ativa dos clérigos nos
conflitos que resultaram na emancipação política do Brasil e pleitos que marcaram o
período de transição entre o Reino Unido e o Império (NEVES, 2009; SILVA, 2012;
SOUZA, 2010).
Um dos mais destacados desses clérigos foi Marcos Antonio de Sousa,
deputado eleito às Cortes de Lisboa de 1820 e para a Assembleia Geral e Legislativa
de 1826, o primeiro bispo do Brasil independente, indicado pelo Imperador D. Pedro I
ainda durante aqueles trabalhos legislativos. Ele participou ativamente de importantes
debates na Assembleia sobre a relação que se estabeleceria, a partir da emancipação
política brasileira, entre o Estado e a Igreja. Ficou conhecido na historiografia, por
suas ações no bispado do Maranhão e defesa das prerrogativas da Cúria Romana em
assuntos ligados a religião, e como um dos precursores do ultramontanismo nestes
territórios (SILVA, 2012).
Entendendo que “[...] cada indivíduo é uma síntese individualizada e ativa de
uma sociedade, e uma reapropriação singular do universo social e histórico que o
envolve.” (GOLDENBERG, 2004, 36) é possível, por meio da mediação entre a
trajetória religiosa e política de D. Marcos Antonio de Sousa, e o contexto no qual ele
estava inserido, apreender as mudanças na relação da Igreja com o Estado no
processo de construção do Império no Brasil. Bem como pensar sobre a Reforma
Católica de inspiração tridentina e ultramontana que começou a ser operacionalizada
pelos bispos no Brasil, especificamente no Primeiro Reinado e Regências.

Marcos Antonio de Sousa, informações biográficas


Marcos Antonio de Sousa nasceu na Freguesia de São Pedro Velho da Cidade e
Arcebispado da Bahia, aos 10 de fevereiro de 1771, filho de Francisco Manuel de
Sousa Costa e Dona Anna Joaquina de Sousa.Seu pai, Francisco Manuel de Sousa
Costa, era bacharel, foi Ouvidor das Alagoas e Desembargador da Relação da Bahia.
Foi sagrado na ordem de presbítero secular entre os 22 e 23 anos e fez seus
estudos secundários na Bahia (MARQUES, 2008; PACHECO, 1968; SILVA, 1922;
SOUZA, 2010). Pelos escassos dados biográficos encontrados, não foi possível precisar
o local e o nível de formação escolar de Marcos Antonio de Sousa, mas presumimos,
pela elevada erudição comentada nos estudos que o citam e pela sua origem social,
que tenha sido de nível superior. Corrobora com essa ideia, um escrito do padre que
consta da lista de “Papéis do Brasil 1550/1818”, seção do Guia Geral dos Fundos da
Torre do Tombo, entre as obras de caráter monográfico, intitulado “Princípios de
literatura segundo a doutrina de Cícero, Quintiliano, Abade Batteaux, e Dr. Blair”
(FARINHA et al, 2005, 35).
Após a sua sagração foi instituído vigário colado na freguesia de Nossa Senhora
da Vitória, na capitania da Bahia, onde nascera e fora batizado, exercendo também
por muitos anos o cargo de examinador sinodal e secretário do governo provincial, até
ser eleito em 1820 para deputado às Cortes de Lisboa (BLAKE, 1883-1902).
Marcos Antonio de Sousa também foi vigário da freguesia do Siriri, na capitania
do Sergipe, e em 1808 escreveu um livro pouco divulgado na época, mas que
atualmente é um dos documentos fundamentais da história local, “Memória sobre a
Capitânia de Sergipe: sua formação, população, produtos e melhoramentos de que é
capaz”, que teve a publicação inicial no Rio de Janeiro, na Tipographia do Jornal do
Commercio, no ano de 1878 (ALVES, 2003-2005).
Em 1820, no contexto dos conflitos da Revolução do Porto, o então vigário da
freguesia de Nossa Senhora da Vitória, Marcos Antonio de Sousa, foi eleito deputado
às Cortes de Lisboa pela Bahia. A sua atuação na constituinte portuguesa foi
consagrada pela historiografia como de uma defesa vigorosa dos interesses da Igreja
e do Estado. Ele também ficou conhecido pela defesa da liberdade da imprensa
religiosa, além do sustento do foro eclesiástico, sendo exaltado partidário da
Independência do Brasil, o que lhe rendeu ascensão social, política e religiosa
(BEOZZO, 1992; BLAKE, 1883-1902; CARVALHO, 1912; MARQUES, 2008; MELLO
MORAES, 1871; PACHECO, 1968; SANTIROCCHI, 2010; SILVA, 1922; SOUZA, 2010;
VARNHAGEN, 2010).
Após a impossibilidade de conciliação dos interesses das Cortes com os dos
deputados brasileiros e a proclamação da Independência, estes romperam com a
constituinte portuguesa e voltam ao Brasil (COSTA, 1999). Entre eles, Marcos Antonio
de Sousa que, em uma ratificação do protesto feito no congresso de Lisboa, em 11 de
setembro de 1822, apresentou a D. Pedro I, no ano de 1824, um relatório detalhado,
onde expõe todas as ocorrências que se deram em Lisboa durante as sessões das
Cortes.
A clara opção política do futuro bispo pela causa brasileira, e posicionamento
favorável ao regime político-administrativo proposto pelo Príncipe Regente D. Pedro,
também é explicitada em uma carta que o clérigo enviou, de Londres, a um amigo na
França, em 1822, onde escreveu que “Nomeado deputado muitas vezes repeti, que
fazendo o exame mais reflexo não descobris os laços, porque a Portugal ficaria ligado
o Brasil, que por 15 annos em si tinha a soberania.” (MELLO MORAES, 1871, 322).
Tal posicionamento rendeu como recompensa ao ainda vigário Marcos Antonio
de Sousa, o título honorífico de Comendador da Ordem de Cristo e Dignitário da
Ordem da Rosa, favorecendo sua ascensão na elite eclesiástica por meio da sua
prática política (MARQUES, 2008; PACHECO, 1968; SILVA, 1922).
Em 1825, Marcos Antonio de Sousa foi eleito Deputado Geral pela Bahia para a
Assembleia Geral do Império (1826-1829), que regulamentaria a nova Constituição.
Nas reuniões da Legislatura de 1826 ficou conhecido pela sua defesa do monarca, do
Império e da Igreja Católica. É reconhecido, junto ao futuro Arcebispo da Bahia,
Romualdo Antonio de Seixas, como um dos principais representantes dos chamados
“governistas” ou “ministeriais”, além de representante do início do movimento de
Reforma Católica Ultramontana no Brasil (BEOZZO, 1992; SANTIROCCHI, 2010;
SOUZA, 2010).
Marcos Antonio de Sousa foi o primeiro bispo nomeado por D. Pedro I, após a
emancipação política do Brasil, um cargo que naquele contexto pertencia a elite
eclesiástica e alta burocracia estatal e possuía indiscutível influência político-religiosa
no cenário nacional (SOUZA, 2010). Indicado para a Diocese de São Luís do Maranhão
por decreto imperial de 12 de outubro de 1826, foi confirmado pelo Papa Leão XII
somente em 26 de julho de 1827, recebendo a sagração episcopal no Rio de Janeiro,
em 28 de outubro daquele ano, tomando posse da diocese em 19 de março de 1828,
por intermédio dos seus procuradores, os cônegos José Constantino Gomes de Castro
e José João Beckman e Caldas (BLAKE, 1883-1902; SILVA, 1922).
A vinda de D. Marcos Antonio de Sousa para o bispado do Maranhão não
representou um abandono, ou mesmo declínio, de sua carreira política. Pelo contrário,
com o fim da Legislatura de 1826 não se reelegeu deputado ou senador, mas foi
alçado ao degrau mais alto do Legislativo, sendo nomeado membro do Conselho de
Sua Majestade Imperial. Graham (1997) afirma que a nomeação para o Conselho de
Estado é o coroamento máximo de uma carreira política no Império, e José Murilo de
Carvalho (2011) considera os seus integrantes como o topo da elite política. Durante o
seu bispado foi várias vezes eleito deputado provincial, ocupando a cadeira de
Presidente da Assembleia Legislativa Provincial do Maranhão entre os anos de 1838-
1842 (COUTINHO, 1981).
Legislatura de 1826, ações e posicionamentos político-religiosos
Marcos Antonio de Sousa chegou a Legislatura de 1826, eleito pela província
Bahia, contando com grande experiência na ocupação de cargos políticos anteriores, e
reconhecido junto ao futuro Arcebispo da Bahia, Romualdo Antonio de Seixas, como
um dos principais representantes dos chamados “governistas”, defensores de D. Pedro
I na Câmara dos Deputados. Eram chamados ironicamente, pelos deputados
contrários às intenções centralizadoras do Imperador, de “ministeriais” (SOUZA,
2010).
Apesar da liderança política assumida por D. Romualdo dentro e fora do
Parlamento, D. Marcos foi o clérigo que mais vezes freqüentou a tribuna falando a
favor de D. Pedro I e em defesa dos interesses do governo, muitas vezes justificando
erros e tentando amenizar os embates (SILVA, 2012).
As divergências políticas na Câmara dos Deputados aparecem já na
1
apresentação do Voto das Graças ao trono, quando D. Marcos foi eleito, por
unanimidade, para prepará-lo e proferi-lo ao Imperador. Ao final do Voto, o deputado
Clemente Pereira aditou a fala do clérigo, tratando dos esforços feitos pelo Imperador
para a conservação da província Cisplatina, que acabou sendo perdida. Diante deste
ato a Câmara se dividiu, pois haviam concordado em não falar diretamente dessa
questão, sendo a integridade do território assunto delicado, não nomeando a dita
província “[...] para que a honra nacional não sofresse míngua.” (BRASIL, 1826, 56).
Sobre esse episódio, D. Marcos reagiu aos debates afirmando que o seu Voto
conformou-se com as bases estabelecidas pela Câmara, tratando a questão da
Cisplatina de maneira geral, agradecendo ao Imperador pelo empenho em manter a
integridade do território e sustentar a honra nacional, a partir das bases que lhe foram
dadas (BRASIL, 1826).
Após a emancipação política do Brasil, o Imperador enviou a Roma, em 1824, o
ministro Monsenhor Francisco Correa Vidigal e o seu secretário, Vicente Antonio da
Costa, com o objetivo de conseguir do Papa o reconhecimento da Independência do
Brasil e obter uma concordata concedendo ao Imperador e seus herdeiros o gozo dos
direitos do Padroado2. Também foi solicitado o estabelecimento de uma nunciatura no

* Graduada em História e Mestra em Ciências Sociais, professor do IFMA – Campus Santa Inês e do
Programa Darcy Ribeiro – UEMA.
1
O Voto de Graças era o discurso oficial que a Assembleia Legislativa formulava e proferia ao Imperador
como resposta da Fala do Trono, que era proferida deste para a Assembleia, na abertura dos seus trabalhos
legislativos [N. A.].
2
O Padroado significava uma troca de obrigações e direitos entre a Igreja e um indivíduo, ou instituição, que
assumia assim a condição de seu padroeiro. O Padroado Régio e a função de padroeiro do Grão-mestre da
Ordem de Cristo foram concedidos e unificados pela Santa Sé na figura do monarca português, o que
implicou em uma série de obrigações entre a Igreja e o Estado, em Portugal e nas suas colônias. Tratava-se
país e a elevação das prelazias de Goiás e Mato Grosso à condição de bispados
(NEVES, 2009; SANTIROCCHI, 2010; SOUZA, 2010).
A primeira resposta de Roma foi a Bula papal Solicita Catholicae Gregis Cura,
que elevou as prelazias de Goiás e Mato Grosso à condição de dioceses, indicando
também a criação e manutenção dos cabidos e seminários, bem como nomeava
vigários capitulares, sendo um estrangeiro, fixando os seus benefícios (SANTIROCCHI,
2010).
Em julho de 1827, a Bula foi examinada na Câmara dos Deputados pela
comissão eclesiástica, composta por clérigos, e pela comissão da Constituição,
composta por laicos, como previsto na Constituição de 1824, no artigo 102. As duas
chegaram a pareceres semelhantes, aprovando a criação, extensões e limites das
dioceses, mas discordando da indicação de seus bispos, bem como da nomeação de
um vigário estrangeiro, julgando sem nenhum efeito as orientações dadas quanto ao
cabido e ao seminário episcopal (Brasil, 1827).
Em defesa da execução de todas as cláusulas previstas na Bula, por não ver
nela ofensa alguma às leis do Império, estando em conformidade total com os
cânones e regras religiosas, D. Marcos se colocou contrário ao posicionamento da
maioria dos integrantes da Câmara, afirmando que “A creação das novas dioceses é
da competência da Sé Apostolica em confomidade da presente disciplina geralmente
recebida em toda igreja catholica.” (BRASIL, 1827,129). Alegou ainda que o
Imperador teria somente o exercício de “[...] um direito annexo ao seu poder de
jurisdição na igreja catholica.” (BRASIL, 1827, 129).
As comissões desaprovaram a concessão do beneplácito completo a referida
Bula alegando que o direito de nomear bispos pertencia ao poder temporal. O parecer
afirmava ainda a falta de jurisdição do Papa para taxar o valor dos benefícios e
determinar a criação de seminários no Brasil, pondo em questão o tradicional
entendimento da origem do Padroado enquanto uma concessão pontifícia. Os clérigos
liberais de tendência regalista sustentavam que o direito do monarca sobre a Igreja no
Brasil advinha da Constituição do Império e ele não deveria requerer nem admitir a
intervenção de um poder externo (BRASIL, 1827).
D. Marcos, não se conformando com o parecer da Câmara, apresentou um voto
separado onde empreendeu a defesa dos direitos da Cúria Romana. O bispo

de um instrumento jurídico que possibilitava um domínio direto da Coroa nos negócios religiosos,
especialmente nos aspectos administrativos, jurídicos e financeiros. Os aspectos religiosos também eram
afetados por tal domínio, pois padres, religiosos e bispos eram também funcionários da Coroa portuguesa no
Brasil colonial. Nesse sentido, religião e religiosidade eram também assuntos de Estado, e vice-versa. No
Império, além do Padroado Régio, a Constituição de 1824 estabeleceu um Padroado civil, submetendo ao
poder temporal toda a instituição eclesiástica católica no Brasil, fonte potencial de diversos conflitos entre a
Igreja e o Estado no século XIX. O fim do regime de padroado no Brasil se deu com a Proclamação da
República em 1889. (SANTIROCCHI, 2010; VIEIRA, 1980).
demonstrou sua fidelidade ao Pontífice Romano ao afirmar a sua primazia em assuntos
ligados à Igreja, por entender que “[...] o poder temporal é inteiramente
independente do espiritual, assim como este daquelle.” (BRASIL, 1827, 128). Afirmou
ainda que de forma alguma a Igreja no Brasil era apartada da de Roma, ao colocar
qual era o lugar do Papa e o do Imperador nessa relação de poder. Considerava o
Papa como o “[...] supremo pastor e centro da unidade catholica.” (BRASIL, 1827,
124), demarcando sua posição de superioridade em relação ao Imperador, pois este
era somente o “[...] padroeiro das igrejas do Brasil.” (BRASIL, 1827, 124).
Em 30 de maio de 1827, o Monsenhor Vidigal conseguiu, em vez da concordata
solicitada pelo governo, a concessão da Bula Pontifícia Praeclara Portugaliae, que
confirmou o Padroado e o Grão-mestrado da Ordem de Cristo no território brasileiro
ao Imperador D. Pedro I e seus descendentes, com todos os direitos com que os
exerciam os reis de Portugal (SANTIROCCHI, 2010). O Imperador, por sua vez, ficava
responsável pela propagação da fé católica e catequização dos pagãos, em especial os
índios brasileiros.
A Bula Praeclara Portugaliae foi enviada para as comissões da Constituição e
Eclesiástica, na Câmara dos Deputados. Desta vez as comissões deram parecer
contrário a todas as suas disposições, manifestando-se contrárias a aprovação do
beneplácito por considerar que ela propunha uma causa injusta (NEVES, 2009;
SOUZA, 2010).
Quanto a esta questão, Santirocchi ressalta que “Havia algumas motivações
menos explícitas para o parecer negativo à bula Praeclara Portugalliae, dado pelas
Comissões, que eram: o conflito entre a Assembleia e o Imperador e as diferentes
opiniões sobre a fonte e limites da soberania da Coroa.” (2010, 74).
Contrário a esse parecer se posicionou novamente D. Marcos, apresentando
outro voto separado onde expôs os motivos de sua discordância. Em defesa da Bula e
da autoridade do pontífice romano afirmou, em sessão da Assembleia, que o Padroado
não era intrínseco à figura do imperante, mas condicionado pela dotação das igrejas,
sustento dos serviços eclesiásticos e expansão da fé (BRASIL, 1827).
Nesse ponto tem-se uma divergência fundamental quanto à compreensão de D.
Marcos, em relação à natureza do Padroado, e a dos demais clérigos que formavam a
Comissão Eclesiástica na Legislatura de 1826. Para os clérigos de maior influência
liberal e regalista, o artigo 5º da Constituição, em si mesmo, já dotava o Imperador
como padroeiro da Igreja no Brasil, sendo interna a autoridade que o investia.
Segundo o bispo do Maranhão, com esse artigo, a nação brasileira havia tomado para
si a obrigação de proteger e sustentar a Instituição, e somente essa situação fazia
com que o Imperador fosse legitimamente investido pelo Papa como padroeiro, posto
que o reconhecimento, a concessão dos privilégios, direitos e títulos seriam externos.
Os limites entre a fidelidade ao Papa e ao Imperador geraram polêmicas e
demonstram uma lógica dúbia, mas pertinente a corrente conservadora católica na
qual o bispo se inseria. Para ele, a relação de complementaridade entre o poder
político e o poder religioso, estando bem demarcados os limites de ingerência de
ambos, era essencial para a defesa das tradições, ordem, hierarquia, comunidade e fé.
Apesar da oposição de D. Marcos, o parecer das duas comissões foi aprovado em 29
de outubro de 1827 (BRASIL, 1827).
Outro aspecto relacionado à religião que ganhou destaque nos da Legislatura
de 1826 foi à crença partilhada, entre os padres deputados, na necessidade de uma
reforma da Igreja no Brasil, visando uma moralização das práticas de leigos e do
clero. No entanto, não havia um projeto comum sobre como essas reformas deveriam
ser conduzidas. Souza (2010) polariza as diretrizes para essa regeneração, nesse
período, em dois grupos: o paulista e o conservador.
Como a maioria dos políticos do período, os padres pertencentes ao grupo
paulista, liderado por Feijó, acreditavam que a religião era a fonte primeira de moral
pública e tranqüilidade do Estado (AZZI, 1992). Mas, devido à situação de despreparo
e imoralidade em que o clero se encontrava, era necessário primeiro reformar a Igreja
e regenerar o corpo clerical para que ele assumisse seu papel de educador do povo.
Esse processo, porém, não partiria da Instituição Eclesiástica, e sim do Estado,
seguindo a tradição regalista do Catolicismo luso-brasileiro (NEVES, 2009).
Os conservadores também demonstraram o desejo de transformação da
religião e da Igreja no Brasil, mas entendiam que cabia à Instituição, e não ao Estado,
a função de pensar sobre as soluções para os problemas que se abatiam sobre a
mesma. Para esse grupo o Estado deveria apenas apoiar a Igreja naquilo que lhe fosse
necessário, visto que, enquanto instituição autônoma, não deveria sofrer ingerências
do poder temporal.
As propostas de reforma apresentadas pelos padres liberais regalistas
encontraram forte resistência por partes daqueles de orientação católica
conservadora, principalmente do Arcebispo da Bahia, D. Romualdo Antonio de Seixas,
e do Bispo do Maranhão, D. Marcos Antonio de Souza, que diversas vezes reagiram e
colocaram obstáculos aos projetos liberais de modernização da religião apresentado
da Assembleia de 1826 (VIEIRA, 1980).
Lutando contra os projetos que tencionavam abrasileirar a Igreja, D. Marcos
empreendeu na Assembleia Legislativa uma enfática defesa das Ordens religiosas,
uma das principais características da atuação de grande parcela dos bispos
ultramontanos no período imperial (VIEIRA, 1980). Quando o deputado Paula e Souza
propôs, na sessão de 17 de maio de 1828, que fosse proibida a admissão e residência
no Império de frades ou congregados estrangeiros de qualquer denominação, instituto
ou hábito, bem como qualquer nova ordem ou corporação religiosa, D. Marcos se
colocou desfavorável a essa proposição, declarando que não entendia nem admitia
que se excluíssem do território os frades estrangeiros pelo motivo de seguirem uma
ordem religiosa e que a catequização dos índios era um elemento que tornava
indispensável à sua presença e atuação no Brasil (BRASIL, 1828).
A ofensiva tridentina sustentada por D. Marcos gerou duras críticas de seus
colegas de deputação, tanto dos leigos quanto dos clérigos, amplamente influenciados
pelo liberalismo e tradicional regalismo luso-brasileiro. Acusaram-no de
inconstitucional, por defender a separação entre o poder civil e religioso e ser
contrário à ingerência do Estado nos assuntos da Igreja; de “jesuitista”, por defender
as ordens religiosas e, por vezes, utilizar o jesuíta Antonio Vieira como exemplo de
conduta clerical; e mesmo de “transmontano”, por afirmar a supremacia do Papa em
assuntos da religião (BRASIL, 1828).

Reforma ultramontana no bispado do Maranhão


O Maranhão, província com relevante importância geográfica e econômica,
passou por um conturbado processo de adesão à Independência, cujo reconhecimento
não significou um clima de paz, necessitando de um bispo que representasse os
interesses do governo central e auxiliasse na consolidação da unidade e afirmação da
figura do Imperador, como o governista Marcos Antonio de Sousa.
Ele foi o décimo quinto bispo do Maranhão. Assumiu uma Diocese que abrangia
as províncias do Maranhão e Piauí, substituindo o bispo D. Frei Joaquim de Nossa
Senhora de Nazaré, que foi desligado da diocese em 15 de setembro de 1823, se
retirando para a diocese de Coimbra, em Lisboa, pelo seu envolvimento direto nas
guerras de Independência do Maranhão como presidente da Junta Provisória e
Administrativa, não concordando com a adesão do Maranhão ao Império do Brasil
(PACHECO, 1968; SILVA, 1922).
Quando D. Marcos assumiu o bispado do Maranhão, em 1830, após o fim de
suas atividades na Assembleia Legislativa de 1826, iniciou uma série de ações que o
fizeram ser identificado como pertencente ao grupo dos bispos reformadores. Hauck
(1992) afirma que a reforma que iria produzir frutos reais, ampliando-se em uma
cadeia crescente, teve início no Pará, com D. Romualdo de Sousa Coelho (1819-
1841). Este teria criado um círculo de influência de onde saíram D. Romualdo Antonio
de Seixas, seu sobrinho e Arcebispo da Bahia (1827-1860), e D. Marcos Antonio de
Sousa, bispo do Maranhão (1827-1842). O programa de reforma adotado pelos três,
também chamados de bispos do norte, era o do Concílio de Trento, baseado no
investimento na formação de um clero ilustrado e santo e na instrução religiosa do
povo por meio da catequese.
As medidas implantadas por D. Marcos não tinham somente um caráter
religioso. A organização territorial do bispado e o controle mais efetivo dos bispos
sobre os clérigos eram determinações imperiais largamente discutidas na primeira
legislatura. Deve-se ressaltar que, enquanto bispo, ele continuava sendo um
funcionário público, pelo regime do Padroado, e um membro da alta burocracia do
Estado, enquanto integrante do Conselho de Sua Majestade.
Isso, porém, não impediu que o bispo entrasse por vezes em choque com o
poder administrativo, mediante as ações de reforma que tentava implantar no
Maranhão, porque mesmo ocupando altos cargos na hierarquia da Igreja e do Estado,
suas ações eram limitadas pelo Padroado. Essa dupla fidelidade gerava tensões na
medida em que as diretrizes tridentinas e a doutrina ultramontana, por ele defendidas,
primavam pela autoridade do Papa, enquanto líder supremo da Igreja, e a autonomia
da Instituição frente aos governos locais, em assuntos ligados a sua organização e
doutrina.
Por outro lado, essa situação de pertencimento à elite política do Império, em
algumas situações favoreceu as ações de D. Marcos, por ser esse um contexto onde o
valor pessoal tinha um grande peso nas relações. D. Francisco de Paula e Silva afirma
que, ocupando cargos na burocracia do Estado, tanto a nível nacional quanto
provincial “[...] não foram poucos os favores temporaes que conquistou para o seu
clero e suas freguesias.” (1922, 203).
Dessa forma, conseguiu junto ao Imperador, em 1829, o pagamento de suas
côngruas de bispo que estavam atrasadas e o aumento das côngruas para os cônegos
e dignidades da catedral maranhense, e para os demais párocos e coadjutores do
bispado (MEIRELES, 1977; SILVA, 1922). Para D. Marcos o aumento das côngruas era
fundamental para a correção disciplinar do clero, pois permitiria que eles não se
envolvessem com outras atividades, dedicando-se exclusivamente à vida religiosa.
A questão das côngruas dos clérigos e das verbas destinadas ao bispado do
Maranhão pelo Tesouro Nacional foi um dos pontos de tensão entre o bispo e o
presidente de província, Cândido José de Araújo Viana. Para alcançar seus objetivos,
D. Marcos utilizou-se das relações e contatos que manteve na capital do Império,
junto ao governo, desautorizado as autoridades locais em algumas situações.
A precariedade das verbas destinadas à Igreja fez com que D. Marcos tivesse
um rígido controle das contas da Catedral da Sé, chegando a solicitar do tesoureiro o
ponto dos empregados e as folhas de pagamento, para compará-las e verificar se
estavam corretas (Silva, 1922). Nas portarias e nomeações dos vigários o bispo
recomendava que fizessem inventário de todas as alfaias, ornamentos e contas da
fábrica, fazendo registrar tudo no livro adequado e remeter todas as informações a
Câmara Eclesiástica.
Estabeleceu também uma tabela de preços para os emolumentos, com o
objetivo de inibir os abusos nas cobranças pelos serviços eclesiásticos, padronizando
suas práticas às leis imperiais e determinações conciliares. Também exigiu do clero do
bispado que fosse cumprida a lei da residência, determinando que os vigários
residissem na diocese e freguesia para onde foram destinados, o que tornava mais
fácil controlar esses agentes e garantir a presença efetiva da Igreja e do Estado nos
territórios mais distantes e sobre uma parcela maior da população.
A defesa das ordens religiosas não foi abandonada durante o seu governo da
diocese maranhense. Quando, em 1831, os conflitos antilusitanos decorrentes do
clima de tensão e insegurança gerado pela abdicação de D. Pedro I atingiram também
a Igreja, resultando na saída dos religiosos de Santo Antônio da província do
Maranhão, o bispo assumiu uma postura de não cooperação com as determinações da
presidência de província.
No mesmo dia em que D. Marcos recebeu o comunicado da presidência de
província de que teriam findados os conflitos e restabelecida a lei e a paz no
Maranhão, remeteu ofício solicitando enviar uma ordem para que os religiosos de
Santo Antônio que haviam sido exilados no Pará pudessem regressar ao Maranhão.
Pediu ainda que os regulares reassumissem sua Igreja e seu convento e gozassem dos
direitos existentes em qualquer Estado civilizado e católico (APEM, 1832).
A resposta do presidente de província foi que não expediria a portaria solicitada
pelo bispo e que ele não possuía autoridade para mandar retornar os religiosos de
Santo Antônio do Pará, pois este assunto era prerrogativa do poder civil. Diferente de
uma visão consagrada de altar unido ao trono em um projeto de modernização
conservadora do Catolicismo (AZZI, 1992), esses pontos de conflito demonstram que
o processo de reforma católica apresentou também divergências de interesses entre a
Igreja e o Estado, disputas de poder e autoridade pessoal e institucional e entre
interesses centralistas e federalistas.
Em 26 de agosto de 1839 D. Marcos expediu um ofício ao ministro da Justiça
lamentando-se da falta de religiosos dispostos a desenvolver o trabalho necessário nas
missões indígenas, sugerindo que “[...] se enviassem dois ou três sacerdotes de São
Vicente de Paula de Minas para catequizar os índios e ‘ainda com sua doutrina e
exemplo curar a imoralidade, origem de tantas calamidades” (SANTIROCCHI, 2010,
321). Motivado pela carência de párocos em que se encontrava o interior da província
devido a Guerra da Balaiada3, bem como nas missões indígenas, D. Marcos solicitou
com urgência que o governo imperial tomasse medidas necessárias para o bem estar
da Província e felicidade do Império.
Outra medida de destaque no bispado de D. Marcos foi a realização freqüente
de Visitas Pastorais, consideradas por ele rotinas necessárias para remediar os males
que poderiam atingir o clero e o povo. Também havia a necessidade de conhecer as
freguesias, templos, população e clero para melhor diligência das suas ações à frente
do bispado e cumprir determinações imperiais relacionadas à redefinição da geografia
eclesiástica, estabelecimento de missões indígenas e ordenação dos dados
estatísticos.
O momento das Visitas também era utilizado para a realização das
Conferências Eclesiásticas, recomendação do Concílio de Trento que tinha como
objetivo melhorar os conhecimentos teológicos do clero (BEOZZO, 1992), e foi um dos
caminhos propostos para a implementação da reforma ultramontana da Igreja no
Brasil (SANTIROCCHI, 2010). D. Marcos foi o primeiro bispo do Maranhão a promover
as Conferências, realizando verdadeiras sabatinas e rememorando ao clero as
obrigações da profissão religiosa e os prejuízos que causavam a falta de disciplina
eclesiástica (Pacheco, 1968; Silva, 1922).
As visitas foram de grande importância sob vários aspectos, no entretanto, era
necessário um trabalho de profundidade sobre a seleção e educação do clero nos
padrões tridentinos, e D. Marcos Antonio de Sousa muito insistiu para a criação de um
seminário diocesano no Maranhão, solicitando-o desde os seus trabalhos legislativos,
em 1827 (BRASIL, 1827). Porém, abrir um seminário no período do Primeiro Império
e Regências não era uma tarefa fácil, era necessário um prédio adequado ao controle
que queria se realizar sobre os seminaristas, professores instruídos e capazes de
ensinar as ciências eclesiásticas e vocações, o que parecia ser naquele período a
tarefa mais difícil. Porém, os dois maiores obstáculos para a abertura de um seminário
no Império eram a licença do Governo e a obtenção de recursos para manter a
instituição.
Informado que parte do edifício do Convento de Santo Antônio seria utilizado
para aulas de ensino mútuo, solicitou ao presidente de província que o seminário do
Maranhão fosse inteiramente instalado naquele prédio, tendo o seus apelos diversas
vezes recusados. Chegou a afirmar que não se recusaria em contribuir com alguma
3
A Balaiada, no Maranhão, ocorreu entre os anos de 1838-1841. Foi uma revolta popular e social que
eclodiu no interior do Maranhão e se expandiu para as províncias do Piauí e Ceará. Foi marcada pela forte
presença de grupos subalternos, como escravos, negros, forros, vaqueiros, camponeses, e artesãos.
Profissionais liberais e intelectuais ligados ao partido bem-te-vi também estiveram envolvidos (BOTELHO,
2007; MEIRELES, 2001).
quantia em dinheiro de suas próprias rendas para as reformas necessárias do edifício,
caso fosse cedido para a instalação do seminário (APEM, 1831).
Em 1830, D. Marcos fez uma representação ao Governo Imperial pedindo uma
verba anual de um conto de réis e uma licença para adquirir bens de raiz que
somassem até dezesseis contos de réis para fundar o seminário diocesano do
Maranhão, mas a abdicação de D. Pedro I protelou o caso. Somente em 03 de junho
de 1835, por meio de uma Portaria do Ministro Manoel Alves Branco, a matéria foi
submetida e repassada ao governo provincial, de quem era então a competência sobre
o assunto (SILVA, 1922).
O Ato Adicional de 1834 que criara as Assembleias Legislativas nas províncias
também delegava a elas, por meio do § 2º do artigo 10, a competência sobre a
instrução pública e sobre os estabelecimentos próprios para promovê-la. Isso
possibilitou ao bispo D. Marcos Antonio de Sousa, na posição de deputado eleito da
Assembleia Provincial do Maranhão, e em um contexto favorável de reorganização do
ensino local, que privilegiava o discurso religioso sobre a moral e sua função junto à
sociedade, uma ação mais direta e decisiva no sentido de criar um seminário
diocesano na província.
Em 1837, o Bispo conseguiu a aprovação para a criação do seminário
diocesano no Convento de Santo Antônio, a devolução daquele edifício à diocese e
retirada das aulas de primeiras letras e Guarda da Polícia, lá instalados. Foi aprovado
também o subsídio de um conto e seiscentos mil réis para o estabelecimento imediato
da instituição, e organização dos estatutos pelo bispo (COUTINHO, 1981; SILVA,
1922). Foram aprovados em 1838, na Assembleia Provincial que tinha como
presidente o próprio D. Marcos Antonio de Sousa, função que este exerceu naquela
casa até a sua morte, os estatutos que deveriam reger o seminário diocesano do
Maranhão (PACHECO, 1968).
Como presidente da Assembleia Provincial D. Marcos conseguiu ainda o
pagamento de uma prestação anual de dois contos de réis para o seminário, bem
como a aprovação de uma loteria ao “teatro União”, em São Luís, para ajudar na sua
sustentação. Como bispo, determinou que metade das esmolas arrecadadas pelos
frades capuchinhos em suas missões também fosse revertidas em favor do
estabelecimento (SILVA, 1922). A sua preocupação com a extinção do
estabelecimento por falta de rendas fez com que o bispo deixasse como herança ao
Seminário de Santo Antônio três apólices no valor de quatrocentos mil réis cada, e
dois títulos da dívida pública, no valor de seiscentos mil réis cada (SILVA, 2012).
D. Marcos faleceu no Palácio Episcopal da Igreja da Sé de São Luís, em 29 de
novembro de 1842 (MARQUES, 2008). Pelos bens enumerados em seu testamento é
possível concluir que o bispo não possuía grande fortuna, nem terras, mas tinha uma
situação econômica vantajosa em relação à maioria da população no período, como é
possível consultar no seu testamento e codicilo de 07 de setembro de 1842
(COORDENADORIA DO ARQUIVO E DOCUMENTOS HISTÓRICOS, 1840-1842).
O relatório feito para o ministro dos Negócios, Paulino José Soares, um mês
antes do falecimento de D. Marcos Antonio de Sousa, nos possibilita contabilizar os
esforços empreendidos pelo prelado, contando ao fim de seu bispado com 53
paróquias e 90 sacerdotes. Quando assumiu eram 38 paróquias, não existem dados
quanto ao número de sacerdotes, mas em lista elaborada a pedido do governo
provincial, em 1832, existiam somente treze vigários colados. Em 1842 esse número
havia dobrado: eram 26 vigários colados e ainda 27 vigários encomendados (APEM,
1842; PACHECO, 1968).

Considerações finais
O espaço da religião e a política no Brasil imperial não eram autônomos,
estavam ligados histórica e culturalmente, bem como por determinações jurídicas,
influenciando-se mutuamente e tornando possível a existência de trajetórias de padres
para quem o duplo pertencimento e a associação entre prática religiosa e prática
política fossem naturais, como a de D. Marcos Antonio de Sousa, que culminou em
conflitos com outros clérigos e com o poder civil.
Utilizando sua posição política como oportunidade de pensar e atuar sobre a
Igreja, apropriando e integrando os preceitos tridentinos de reforma religiosa às suas
condições de possibilidade dentro do sistema de subordinação do Regime do
Padroado, D. Marcos contribuiu para o início de uma nova fase da prática clerical no
Brasil e das relações que o seriam estabelecidas a partir de então entre a Igreja e o
Império. Ações que fizeram o primeiro bispo do Brasil independente ser reconhecido
pela historiografia como um dos precursores do ultramontanismo no Brasil

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VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História da independência do Brasil. Brasília:
Senado Federal, Conselho Editorial, 2010.
VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo a maçonaria e a questão religiosa no Brasil.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980.
UM PRECURSOR DO PROTESTANTISMO EM MOSSORÓ: JOSÉ DAMIÃO DE
SOUZA MELO E A PROPAGAÇÃO DA DOUTRINA PROTESTANTE NAS PÁGINAS
DO JORNAL MOSSOROENSE.

Elioenai de Souza Ferreira*

Introdução
O texto que ora apresentamos está inserido no contexto de uma pesquisa
relacionada ao processo de inserção do protestantismo no Rio Grande do Norte1, mais
especificamente na cidade de Mossoró. Um dos agentes dessa inserção foi o pastor
norte-americano e presbiteriano DeLacy Wardlaw, que também atuou como um dos
pioneiros do proselitismo protestante na então Província do Ceará. 2 No entanto,
concentraremos nosso estudo noutro sujeito e suas interações sociais, políticas e
religiosas.
Num primeiro momento, discorremos sobre o lugar social de José Damião de
Souza Melo, destacando sua vinculação com o movimento abolicionista em Mossoró,
bem como suas relações com a elite liberal da cidade já mencionada. No segundo
tópico, abordamos a propagação de ensinamentos de cunho protestante através de
artigos publicados no jornal Mossoroense. Por meio de inferências baseadas em
indícios internos e externos aos artigos, identificamos Souza Melo como o provável
autor desses textos.
Utilizamos como fontes bibliográficas textos de memorialistas, tanto daqueles
vinculados ao presbiterianismo quanto de autores que elaboraram uma historiografia
oficial de Mossoró, permeada de seus heróis e vultos. Além desses, também nos
baseamos em bibliografia acadêmica em duas categorias: uma de caráter geral, que
nos proporcionou o suporte teórico e metodológico; e no âmbito específico, obras que
tratam mais especificamente do processo de inserção do protestantismo no Brasil e
seus diversos contextos históricos.

I – O lugar social de Souza Melo em Mossoró.


Na fase de levantamento de fontes para a construção da monografia,
pensávamos, a princípio, deter-nos somente no estudo da atuação do reverendo
Wardlaw e sua relação com a história do protestantismo em Mossoró. Entretanto,
outro indivíduo despertou a nossa atenção, no que tange à sua atuação como
precursor do protestantismo em Mossoró. Trata-se de José Damião de Souza Melo.

*
Elioenai de Souza Ferreira
2

Na maior parte das fontes bibliográficas que fazem referência ao missionário


Wardlaw, nelas encontramos alguma menção à Souza Melo, algumas vezes
demonstrando as ligações entre ambos. Especificamente sobre Souza Melo, o autor
que nos forneceu mais informações foi Raimundo Nonato, em sua História Social da
Abolição em Mossoró. Câmara Cascudo, no seu livro Notas e Documentos para a
História de Mossoró, traz alguns complementos.
Português nascido em Aveiro, Souza Melo é descrito como “poeta, jornalista,
sacerdote e apóstata” (NONATO, 1983, p.71). O autor cita um relato de Romualdo
Galvão, registrado pelo escritor João Batista Galvão, segundo o qual Souza Melo era
padre em Portugal, quando abandonou o sacerdócio e migrou para o Brasil. Isso se
deu no ano de 1862. Não nos foi possível precisar quando e onde Souza Melo se
converteu ao protestantismo, porém uma fonte situa esse acontecimento antes da
vinda do missionário Wardlaw ao Ceará, no ano de 1881 (ALENCAR, 2005, p. 88).
No Brasil, teve uma vida itinerante, residindo nas cidades de Mossoró, Acari,
Jardim do Seridó, Fortaleza e Manaus. Em Mossoró, instalou uma casa comercial no
ano de 1866 (CASCUDO, 2010, p. 127).
No entanto, suas atividades não se restringiam ao comércio. Foi um dos
fundadores, juntamente com Jeremias da Rocha Nogueira e Ricardo Vieira do Couto,
do jornal Mossoroense, cuja primeira edição data de 17 de outubro de 1872. Também
foi um dos fundadores da Loja Maçônica 24 de Junho, no ano de 1873.
Os memorialistas supracitados apresentam Souza e Melo como um homem
comprometido com ideais humanitários e progressistas, especialmente com o
movimento abolicionista. “Jornalista dos mais brilhantes, sempre esteve empenhado
nas campanhas das grandes idéias da fraternização humana (...). Grande exemplo de
estrangeiro-brasileiro de idéias novas e de espírito avançado, que deixou seu nome
incluído na galeria dos abolicionistas mossoroenses, em cuja campanha foi um
militante de primeira linha.” (NONATO, 1983, p.221).
Esse registro memorial sobre Souza Melo classifica-o como integrante do grupo
de homens esclarecidos que lutaram contra o atraso que a Mossoró escravocrata,
provinciana e conservadora mantinha em relação ao mundo civilizado. Câmara
Cascudo não se furtou de emitir seu juízo de valor acerca do ex-sacerdote português
acrescentando, porém, um dado a respeito de sua confissão religiosa. “Homem de
inteligência clara, poeta, um dos jornalistas históricos de Mossoró (...). Foi um dos
animadores da Religião Reformada em Mossoró. Sua participação no movimento
abolicionista foi direta e alta”. (CASCUDO, 2010, p. 221).
Consideremos, agora, as interações sociais de Souza Melo. Seu pertencimento
à Maçonaria e envolvimento com a causa abolicionista, inclusive escrevendo para o
3

jornal cearense O Libertador, davam-lhe acesso a uma rede de relacionamentos que


possibilitava uma difusão de suas convicções, incluindo sua fé protestante.
Quanto aos seus contatos com o missionário Wardlaw, vale salientar que Souza
Melo recepcionou o norte-americano em sua chegada à Fortaleza e provavelmente fez
o convite para que o mesmo estivesse presente em Mossoró no dia da libertação
oficial dos escravos (NONATO, 1983, p. 144).
Junte-se a esses fatos a militância de Souza Melo no jornal O Mossoroense e
assim, temos elementos para levantarmos uma hipótese. José Damião de Souza Melo
desempenhou a função de precursor do protestantismo em Mossoró. Servindo-se de
suas relações interpessoais, de seu lugar social, facilitou a atuação evangelizadora do
pastor Wardlaw, permitindo-lhe o trânsito entre setores elitizados mais predispostos a
renegarem a religião tradicional, minimizando a rejeição à mensagem protestante,
enfim, criando condições para a conquista de novos seguidores.

II – Idéias protestantes na imprensa: os escritos de Souza Melo no jornal


Mossoroense.
Sobre o referido jornal, vale ressaltar que o mesmo não surgiu num vazio
histórico, aliás, nenhuma atividade humana pode ser dissociada das contingências
temporais. Marc Bloch expressa magistralmente essa premissa fundamental do ofício
de historicizar. “Realidade concreta e viva, submetida à irreversibilidade de seu
impulso, o tempo da história (...) é o próprio plasma em que se engastam os
fenômenos e como o lugar de sua inteligibilidade”. (BLOCH, 2001, p. 55).
Sendo assim, julgamos pertinente uma análise, ainda que sucinta, do contexto
no qual surgiu o jornal que serviu de suporte para a escrita de Souza Melo. De acordo
com Jean Glénisson, na análise crítica de jornais, deve-se ter em conta as razões que
influenciam o que é omitido ou realçado (GLÉNISSON, 1977, p. 80). Essas razões não
são dadas naturalmente, ao contrário, provém de fatores condicionantes, tais como
classe social e ideologia.
No caso do Mossoroense, em seus cabeçalhos estão anunciadas suas
características. Nos exemplares consultados, datados até 8 de novembro de 1873, o
jornal é apresentado como semanário politico, commercial, noticiozo e anti-jésuitico. A
partir da edição do dia 2 de fevereiro de 1874, posiciona-se como órgão do Partido
Liberal de Mossoró, dedicado aos interesses do município, da província e da
humanidade em geral. O principal idealizador do “Mossoroense”, Jeremias da Rocha
Nogueira, estava associado com o liberalismo e o anticlericalismo, segundo a fonte
citada a seguir.
4

A ferrenha oposição de Jeremias da Rocha Nogueira contra os


conservadores confundia-se com o seu combate à igreja. Não há como
separar uma da outra. Muita lenha na fogueira deve ter colocado, de
outubro de 1872 a dezembro de 1875, a linguagem desairada de Jeremias,
na luta contra os conservadores, na luta contra a Igreja Católica, uns e
outros, aqui liderados pelo Vigário Antônio Joaquim Rodrigues. (NONATO,
1983, p. 81).

Um jornal encabeçado por um indivíduo com as motivações acima referidas se


apresentava como um espaço oportuno para que um ex-sacerdote católico, convertido
ao protestantismo, pudesse disseminar publicamente os princípios de sua nova
confissão da fé cristã. No entanto, há mais um fator a ser levado em conta, a saber, a
vinculação tanto de Jeremias Nogueira como de Souza Melo com a Maçonaria. Sobre a
ligação do primeiro com a confraria secreta, temos a seguinte referência.
A Loja de Mossoró nascia, assim, com uma tradição de que eram
portadores certos grupos de livres pensadores (...) como se deduz das
publicações que apareciam no “O Mossoroense”, um jornal independente,
onde as opiniões do seu diretor, Jeremias da Rocha Nogueira, deixavam
transparecer, claramente, suas tendências para o rumo da franco
maçonaria, com revelações que identificavam seus pontos de vista
doutrinários. (NONATO, 1983, p.88).

Não se deve ignorar que nos primeiro anos da década de 70 do século XIX, a
cena política e religiosa do Brasil estava agitada pelos debates e embates provocados
pela Questão Religiosa. Em dezembro de 1872, o bispo D. Vital lançou seu ultimato
contra a Irmandade do Santíssimo Sacramento, em Pernambuco, intimando-a para
excluísse os maçons da agremiação, a menos que eles abjurassem a Maçonaria
(BARROS, 2004, p. 395). Tal fato se deu dois meses após a fundação do jornal
Mossoroense. Em 1873, os maçons de Mossoró fundaram sua própria Loja,
regularizando-a no ano seguinte.
Quando da oficialização da Loja, publicou-se no “Mossoroense” um discurso
proferido na ocasião. Nele, faz-se uma apologia da Maçonaria diante da oposição
movida pela cúpula da Igreja Católica. Um trecho nos permite dimensionar a
intensidade do repúdio que os redatores maçons do jornal manifestavam pelos seus
adversários. “O inimigo é grande, o inimigo é forte e não poupa meios para conservar
suas fontes pecuniárias, as vítimas da superstição e da cegueira, a pobre humanidade
emfim sepultada no charco immundo d’uma ignorância eterna. Ente supremo, luz,
luz”. (MOSSOROENSE, 28 de junho de 1874, p. 1).
Na ótica do autor, as posições na batalha entre Maçonaria e Igreja Católica
estavam bem demarcadas. Eles, os maçons, eram portadores da luz, do
conhecimento, do esclarecimento. Ao contrário, seus oponentes promoviam as trevas,
escravizando os povos na ignorância. Luz e trevas correspondem, nessa lógica, à bem
e mal, respectivamente.
5

A respeito da atuação da Maçonaria no Brasil durante os últimos três decênios


do século XIX, o historiador Alexandre Barata discute as ligações da instituição com o
movimento da Ilustração brasileira. Este movimento, afinado com as luzes do
Iluminismo, propunha-se a dirigir a sociedade brasileira nos rumos da modernidade.
Este projeto, de cunho liberal e secular, encontrava a tenaz oposição da Igreja
Católica, enquanto força identificada com o conservadorismo, em seus diversos
matizes (BARATA, 1994, pp. 78-89). Sendo assim, a trincheira maçônica, liberal e
anticlerical do Mossoroense estava inserida num campo de batalha mais amplo, no
qual a Questão Religiosa foi o fator catalisador dos conflitos latentes.
Nesse contexto, como o protestantismo se expressava nas páginas do jornal
oitocentista da cidade de Mossoró? Antes, porém, outra indagação reclama uma
resposta. Como identificar José Damião de Souza Melo como o autor dos textos que
relacionamos ao protestantismo, visto que esses textos estão assinados por um
pseudônimo?
Tomamos como fundamentação teórica o paradigma indiciário, analisado e
historicizado por Carlo Ginzburg numa de suas obras (GINZBURG, 1989, pp. 143-
179). Por meio desse modelo epistemológico, procura-se identificar um objeto de
pesquisa direcionando o olhar para sinais, indícios, os quais permitem realçar as
particularidades do objeto.
O uso desse método implica enfatizar as qualidades do individual em contraste
com as elaborações teóricas generalizantes que propõem modelos homogêneos. A
relevância do método indiciário para o ofício do historiador pode ser verificada quando
este necessita abordar as especificidades dos sujeitos, que tendem a ser ocultadas,
omitidas ou minimizadas por uma História total e que prima pela síntese.
A pesquisa baseada no paradigma indiciário, segundo Ginzburg, não está presa
a procedimentos inflexíveis, a regras previamente estabelecidas, matematicamente
calculadas. Ao contrário, requer do pesquisador, tal qual um caçador, “faro, golpe de
vista, intuição” (GINZBURG, 1989, p. 179.). Não se conforma com as informações que
estão à superfície, mas a partir delas identifica o objeto nas entrelinhas. “O que
caracteriza esse saber é a capacidade de, a partir de dados aparentemente
negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável
diretamente”. (GINZBURG, 1989, p. 152).
Quais são os indícios aparentes que nos permitem apontar alguns artigos do
Mossoroense como sendo de autoria de um protestante, no caso, Souza Melo?
Dispomos de quatro textos, sendo que três estão assinados por um certo O Velho da
Montanha. O quarto não está assim subscrito, mas como é um ataque ao dogma
católico do purgatório, não o descartamos.
6

Dos artigos do Velho da Montanha, dois têm na sua epígrafe versículos bíblicos.
Todos se dirigem ao povo, são intitulados missão abreviada e se iniciam com o
vocativo meus caros irmãos ou meus dilectíssimos irmãos, lembrando aspectos de um
sermão.
Os textos foram publicados em edições do jornal do ano de 1874. Eles serão
apresentados e discutidos de acordo com a ordem cronológica em que foram
publicados. O primeiro artigo é aberto com uma sentença em latim e a sua respectiva
tradução, que é se acompanhaes os jesuitas, não ides com Jesus. Os principais
assuntos comentados pelo autor são o dogma da infalibilidade papal e a separação
entre Igreja e Estado.
Não admira portanto que a chamada Egreja queira também nos escravisar
e aviltar (...) com seu Syllabus, e com sua louca infalibilidade. (...) Como
pois pode-se crer que a fragil humanidade possa ser inerrante e divina?
(...) O poder civil nada tem com as consciencias, os seus codigos não
punem o erro que cada um possa ter no intimo de seu pensamento (...). O
peccado só tem de se haver com a Egreja, o crime com o Estado.
(MOSSOROENSE, 3 de maio de 1874, pp. 1-2).

O dogma da infalibilidade papal fora proclamado no Concílio Vaticano I,


ocorrido entre 1869 e 1870, tornando-se um dos principais instrumentos para o
fortalecimento do poder do papado sobre as demais instâncias da Igreja Católica,
inclusive a própria instituição do Concílio, formada pelo colegiado dos bispos.3 Dessa
forma, o referido dogma representava uma ameaça para os maçons, entre os quais
havia muitos maçons; além disso, podia ser considerado pelos protestantes como uma
heresia, um absurdo doutrinário. Souza Melo, sendo maçom e protestante, não iria se
eximir de manifestar sua crítica.
O Velho da Montanha4 faz menção ao chamado Sílabo dos Erros, documento
emitido pelo papa Pio IX5 e publicado em 1864, no qual foram elencados os desvios
que a Igreja deveria combater. Dentre esses, foram condenados o racionalismo, o
protestantismo, a livre escolha de religião, o socialismo, o comunismo, todas as
formas de secularização, as sociedades secretas (LATOURETTE, 2006, pp. 1485-
1489).
Quanto à defesa da separação entre Igreja e Estado, entre as esferas do
espiritual e do temporal, entre pecado e crime, o Velho da Montanha repercute em seu
artigo uma reivindicação comum aos grupos liberais. No mesmo ano de 1874, houve
uma mobilização de republicanos, maçons e presbiterianos com o propósito de
encaminhar à Assembléia Legislativa do Império uma petição que pleiteava a
igualdade legal dos cultos no Brasil, fim da condição de religião oficial para o
catolicismo e a laicização da educação pública, do casamento, dos registros de
nascimentos e óbitos, dos cemitérios. No entanto, esse programa reformista não
7

logrou êxito, devido à oposição de grupos monarquistas e ultramontanos com


influência no Parlamento (VIEIRA, 1980, pp. 282-286)
Uma evidência do envolvimento dos jornalistas do Mossoroense com a
campanha para a separação entre Igreja e Estado pode ser verificada no fato do jornal
reproduzir artigos de Joaquim de Saldanha Marinho, originalmente publicados no
Jornal do Commercio, de Recife. Os artigos eram veiculados numa coluna intitulada A
Igreja e o Estado. Saldanha Marinho figurou entre os mais ferrenhos opositores da
Monarquia e sua Igreja oficial, além de ser, na época, o Grão-Mestre do Grande
Oriente dos Beneditinos, uma das duas organizações que congregavam as lojas
maçônicas no Brasil.6
Voltemos ao Velho da Montanha e seu artigo. Na mesma edição que o publicou,
há uma apresentação do articulista, recomendando-o aos leitores. Segundo o redator
do jornal, o objetivo do escrito é “esclarecer o povo sobre a nova propaganda
jesuítica”, referindo-se a uma carta circular enviada pelo governador do Bispado de
Recife, que seria lida para os fiéis católicos na igreja matriz de Mossoró.
Nessa recomendação, o leitor é alertado para a diferença entre o colaborador e
os jesuítas. “Vejam o povo que evangelho lhe vai ser explicado à face do Deos vivo,
compare esse aranzel dos ciganos do syllabus com o que o divino mestre mandou ao
pastor ensinar ás suas ovelhas, e vejão se o autor da missão abreviada não tem rasão
de sobejo para pregar contra os jesuítas” (MOSSOROENSE, 3 de maio de 1874, p. 3)
Encontramos nessa conjuntura indícios que nos remetem à Souza Melo como o
provável autor da missão abreviada, tendo em vista que a sua formação de
seminarista o qualificava para se pronunciar como um pregador, um doutrinador;
ademais, a sua condição de apóstata, bem como sua conversão ao protestantismo,
dava-lhe subsídios para anunciar aos leitores do Mossoroense outro evangelho oposto
ao dos jesuítas.7
O próximo artigo assinado pelo Velho da Montanha defende o casamento civil,
então um dos tópicos mais sensíveis nos debates sobre a instalação do Estado laico.
Como se pode perceber a seguir, o autor dessacraliza o casamento, situando-o no
âmbito dos contratos civis.
Eis-me de novo entre vós para mais uma vez do alto desta tribuna dizer-
vos as palavras da verdade e convencer-vos do embuste com que espiritos
malignos, valendo-se da vossa credulidade e inexperiencia procuram
obscurecer-vos atirando-vos nas sombras do engano (...). O Estado nada
tem com o incidente do culto: só por um abuso pode uzurpar os poderes da
Egreja; mas tem tudo com o matrimonio enquanto contracto: compete-lhe
fazel-o, como à Egreja santifical-o. (...). Não é indispensável para que a
união conjugal seja feliz e proveitosa a Deus e aos homens que ao
casamento communique a Egreja a graça divina – que ella o torne em
Sacramento. No matrimonio tão santo, que é <<dois em uma só carne>>
não vemos se não as mesmas fraquezas de todos os contractos humanos.
Oh nem o sacramento que deu-se-lhe como timbre pode-o fazer perfeito
(MOSSOROENSE, 17 de maio de 1874, p. 1)
8

Atentemos para o modo como o autor vê a sua missão. Ele está acima, como
um mestre a falar de sua tribuna, dotado da verdade, pronto a iluminar as crédulas
almas que estão na escuridão e no erro. Não é difícil deduzirmos quem são os
espíritos malignos aos quais se refere o sábio da montanha; eram os jesuítas.
O autor reforça o argumento liberal da não ingerência do Estado e da Igreja
nas funções peculiares de cada instituição; para muitos, esta era a única solução para
os conflitos da Questão Religiosa (VIEIRA, 1980, p. 285). Seguindo uma tradição
doutrinária que remonta à Reforma Protestante do século XVI, ainda nos dias de
Martinho Lutero, o jornalista não considera o casamento como um sacramento 8 ,
classificando-o como um contrato civil, sujeito às circunstâncias mundanas, devendo
ser regulamentado pelo Estado.
Os protestantes e seus aliados também pressionavam pela instituição do
casamento civil, visando à plena legalização da condição dos casais protestantes no
Brasil. O que havia, conforme já mencionamos, era a lei promulgada em 1861 que
reconhecia o casamento de protestantes, desde que fosse realizado por um pastor
credenciado como tal junto ao governo brasileiro.
Porém, Vieira aponta algumas limitações dessa lei. Nem sempre havia um
ministro protestante disponível, especialmente nas colônias de imigrantes mais
isoladas dos centros urbanos. Para os liberais, ainda que legalizado, o casamento dos
protestantes e de outros acatólicos estava numa condição inferior, servindo apenas
para legalizar questões de propriedade e de herança. Além disso, havia o temor de
que as restrições religiosas no Brasil contribuíssem para a diminuição do fluxo
imigratório de protestantes para o Brasil (VIEIRA, 1980, pp. 226-227).
Sobre o texto que discorre a respeito do dogma do purgatório 9 , pinçamos
alguns fragmentos que nos permitem concluir que, ainda que não tenha sido escrito
pelo Velho da Montanha, o foi por alguém bastante alinhado com o protestantismo.
De facto, desde que essa invenção diabolica se não apoia em texto algum
da biblia, unica autoridade infallivel em materia religiosa, hade evaporar-
se, como sonho monstruoso que é (...). Mas o seculo XIX não pode mais
supportar uma semilhante impostura, e o espirito do Evangelho, que os
seus ministros começão a propagar, hade cedo ou tarde aliviar a pobre
humanidade d’esse fardo horrendo de mentiras. (...) O tempo é chegado; a
palavra do Divino Mestre, interrompida pelos papas e jesuitas hade afinal
faze-se ouvir, e o relâmpago da verdade illuminando o coração das massas
dissipará o fanatismo dos povos e exterminará para sempre as superstições
do moderno paganismo (MOSSOROENSE, 21 de junho de 1874, p. 2)
Esse discurso denota que o seu autor militava ativamente contra o catolicismo
e os valores que, na sua visão, estavam a ele interligados. Manifesta nitidamente
concepções de cunho protestante. A principal razão para não se crer na veracidade do
purgatório é a ausência de referência direta do texto bíblico sobre sua existência,
demonstrando o princípio protestante segundo o qual o texto sagrado está acima da
9

tradição. O autor arremata seu argumento afirmando que a Bíblia detém o verdadeiro
atributo de ser infalível em questões de religião. Ora, é uma contraposição ao dogma
da infalibilidade papal.
A auto-imagem do protestantismo em fins do século XIX pode ser aqui
vislumbrada. Seus ministros eram os portadores de uma mensagem que se coadunava
com os novos tempos da razão, do predomínio das luzes. Sua missão consistia em
libertar os povos do engano, oferecendo-lhes em troca a verdade evangélica. Nesse
raciocínio, o dogma do purgatório representava um fardo, um resquício do medievo a
ser superado. O autor também manifesta uma visão triunfalista quanto à vitória do
Evangelho, ou seja, do protestantismo sobre o catolicismo, classificado como um
neopaganismo.
O último sermão proferido pelo Velho da Montanha que iremos analisar é
uma apologia do protestantismo, elevando-o à condição de verdade única, suprema e
universal.
O que vou dizer-vos, para ser comprehendido, não precisa se não da rasão
natural, e esta o Ser, que creou a vós, aos sabios doutores da Igreja e aos
papas infalliveis, soube-a destribuir com egualdade (...). Não há povo sem
religião porque tambem não há homem que não tenha noções do Ser da
creação (...). Como jà vos disse, meus irmãos, todas as religiões tem o
principio universal e verdadeiro – o conhecimento da divindade (...) em
outra ocasião me ocuparei de mostrar quanto são incomparaveis as sabias
doutrinas com que o divino Mestre, deu-nos a mais sublime das religiões,
que nos aperfeiçoa para o mundo e nos purifica para a eternidade (...). No
entretanto, meus caros e piedosos irmãos, vos recommendo que deixeis de
uma vez as beaticas cartilhas, entupidas de rezas banaes e mal compostas,
que nada podem doutrinar, e fartai vosso espírito, bebendo com os olhos
do entendimento dia e noite a toda hora a todo o instante da única fonte de
sabedoria e de verdade – o Evangelho (MOSSOROENSE, 12 de julho de
1874, p. 1).

Neste artigo, o autor defende a superioridade do protestantismo, mas se utiliza


de sutileza filosófica, visto que não menciona explicitamente sua confissão religiosa,
optando por denominá-la genericamente de Evangelho. Inicialmente, manifesta sua
crença na razão como um principio universal, naturalmente dado pelo Criador. Sendo
assim, estamos lidando com um racionalista cristão. Pressupondo serem todos os
homens dotados dessa razão, conclui que todos também estão aptos para conhecer a
verdade. Essa verdade, para o Velho da Montanha, também é universal.
Aparentemente, o autor demonstra uma postura ecumênica, ao ponderar que
todas as religiões existentes possuem um ponto de convergência, a saber, o
conhecimento do Ser Supremo. No entanto, esse aspecto comum das religiões é a
seguir demonstrado como um potencial para se chegar a mais sublime das religiões.
Sendo assim, na concepção do autor, há as religiões criadas pelo homem que
apenas dão noções acerca de Deus. Acima delas, está a religião verdadeira, dada pelo
divino Mestre, numa referência a Jesus Cristo. Na condição de religião revelada, o
10

Evangelho é, assim, alçado à posição de verdade ahistórica, atemporal, imune às


contingências, universal, portanto, absoluta.
Nas últimas linhas do texto em análise, percebe-se uma crítica nada sutil a
práticas do catolicismo, as quais são desprezadas pelo autor como elementos de uma
religião inferior e ineficaz. Em seguida, conclama abertamente seus leitores a
abandonar essa religião irracional para aderirem à fonte superior de sabedoria e de
verdade. Baseados nesses contrastes postos pelo autor, concluímos que o Evangelho
corresponde ao protestantismo.
Partimos do pressuposto de que José Damião de Souza Melo, jornalista do
Mossoroense, maçom, protestante, é o mesmo Velho da Montanha, a partir dos
indícios e sinais acima expostos. Podemos, então, inferir que a sua atuação na
sociedade de Mossoró, por meio de seu círculo de relações, da sua participação no
movimento abolicionista e dos seus artigos publicados num órgão de imprensa ligado
aos maçons e ao Partido Liberal; constituiu-se num fator precursor para a chegada do
protestantismo à Mossoró oitocentista.

Considerações Finais
Como já afirmamos anteriormente, um elemento inesperado com o qual
nos deparamos na pesquisa foi a atuação preparatória de Souza Melo para a
introdução da igreja presbiteriana em Mossoró. Apesar de não podermos
rigorosamente, no sentido cartesiano e científico do termo, identificar o Velho da
Montanha com a pessoa de Souza Melo, propomos que os sinais evidenciados nos
permitem considerar tal relação provável.
Portanto, desejamos fazer dois apontamentos resultantes da nossa pequena e
superficial pesquisa. Primeiro, acreditamos que os produtores da historiografia que
trata acerca do Rio Grande do Norte podem e devem dirigir seus olhares para o estudo
das diversas expressões do protestantismo presentes nesse território, descobrindo
sujeitos e objetos que foram esquecidos pela História oficial e unilateral. Dessa forma,
haverá uma contribuição salutar para a compreensão histórica do fenômeno da
pluralidade religiosa.
A segunda sugestão que aqui fazemos diz respeito a estudos mais
aprofundados sobre a configuração da Questão Religiosa no Rio Grande do Norte,
tendo em vista que uma das dioceses diretamente envolvidas, a de Olinda, exercia
sua jurisdição sobre a província norte-rio-grandense. O nosso trabalho já indicou que
havia em Mossoró um grupo que se posicionava contra as propostas ultramontanas
dos bispos de Olinda e Belém e seus aliados jesuítas. A principal arma da qual esse
grupo dispunha para os embates ideológicos era o jornal Mossoroense. Também não
11

se deve ignorar a presença do elemento protestante nesse contexto, uma vez que dele
participou ativamente (VIEIRA, 1980, p. 377)

1
Este artigo foi elaborado com base no terceiro capítulo da monografia de graduação Incursões
protestantes na cidade de Mossoró: a construção de um espaço de diversidade religiosa (1874-1885),
defendida junto ao Curso de História da Universidade do Estado do Rio Grande, Campus Avançado de
Assú.
2
O missionário fundou uma igreja presbiteriana na cidade de Fortaleza no ano de 1882. No ano
seguinte, realizou sua primeira visita à cidade de Mossoró. Como resultado do seu trabalho
evangelizador, organizou em 1885 uma igreja presbiteriana na cidade de Mossoró.
3
O cerne do dogma consiste na afirmação de o Papa, enquanto chefe maior da Igreja e ocupante do
trono apostólico, é infalível nas suas declarações quanto à fé e a moral cristãs. Nessa condição, sua
autoridade é tida como inquestionável.
4
Sobre a razão do uso desse pseudônimo podemos conjecturar, ao menos acerca do segundo termo.
No artigo já citado, o autor diz estar “uzando da palavra divina da imprensa” e anuncia seu objetivo:
“(...) daqui desta montanha, vou publicamente fallar, soltando aos quatro ventos as mais
indestructiveis verdades”. A montanha pode significar, então, a condição do jornal como um
observatório dos acontecimentos, uma torre de vigia, um baluarte da verdade.
5
Giovanni Maria Mastai-Ferreti governou a Santa Sé entre 1848 e 1878. Seu pontificado foi marcado
pela reação da Sé romana às idéias da modernidade iluminista, num processo conhecido como
romanização.
6
Com propostas republicanas e anticlericais, essa agremiação se diferenciava do Grande Oriente do
Lavradio, este mais afeito à filantropia do que às reformas políticas, mais simpático à Monarquia do
que à República.
7
Mesmo não sendo a única ordem religiosa ligada ao ultramontanismo no Brasil, pois havia também
lazaristas e capuchinhos, o termo jesuíta passou a designar genericamente todos os religiosos
ultramontanos. Segundo David Vieira, tal expediente era usado pelos adversários dos ultramontanos
para direcionar contra estes as leis de expulsão anteriormente aplicadas aos jesuítas (VIEIRA, 1980,
pp. 36-37).
8
A doutrina católica sobre os sacramentos, baseada na teologia de Agostinho (354-430 d. C), define-
os como meios de transmissão da graça divina, suficientes e eficazes em si mesmos, independente
das ações de quem os receba. Para Lutero, os sacramentos legítimos são aqueles explicitamente
ordenados nas Escrituras, e somente o batismo e a Eucaristia (ou Ceia do Senhor para alguns
protestantes) se enquadram nesse critério. Além disso, os cristãos que os recebem devem participar
ativamente com sua fé, a fim de que os sacramentos sejam válidos (OLSON, 2001, pp. 270, 402-
403).
9
A doutrina do purgatório foi sistematizada pelo papa Gregório I, que governou a Igreja Romana
entre 590 e 604 d.C. O purgatório é entendido como o estado ou lugar no qual as almas dos cristãos
são purificadas dos pecados menos graves, chamados de veniais, antes de serem conduzidas ao Juízo
Final (LATOURETTE, 2006, p. 457).

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12

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séculos XVII e XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
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FONTE
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(Periódicos). Volume 3, s.d. Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado.
(Pertence ao arquivo pessoal da senhora Maria Lúcia Escóssia).
O ABACIADO DE D. TIMÓTEO E A DITADURA MILITAR NA BAHIA (1965-
1
1968)

Os estudos sobre a ditadura militar (1964-1985) na Bahia e as religiões têm


crescido nos últimos vinte anos. O desenvolvimento de pesquisa na
contemporaneidade é repleto de desafios. Há uma dualidade neste contexto, por
ser um período tão próximo o historiador costuma se deparar com o excesso de
documentos, porém quando o assunto é ditadura é este aspecto não é problema.
Os arquivos militares baianos foram em boa parte destruídos e se restou alguma
documentação não é disponibilizada aos pesquisadores.
A realidade de pesquisa sobre ditadura militar em outros estados é
semelhante. Em 2005, foi iniciado o processo de abertura dos arquivos que
pertenciam ao extinto Conselho Nacional de Segurança e Comissão Geral de
Investigações e Serviço Nacional de Informações, até então os acervos destas
instituições estavam sob custódia da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
Esses arquivos foram tutelados à Casa Civil, essa conquista foi fruto das lutas
do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil, denominado "Memórias
Reveladas".

O Centro constitui um marco na democratização do


acesso à informação e se insere no contexto das
comemorações dos 60 anos da Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Um pedaço de nossa história estava nos
porões. O "Memórias Reveladas" coloca à disposição de
todos os brasileiros os arquivos sobre o período entre as
décadas de 1960 e 1980 e das lutas de resistência à
ditadura militar, quando imperaram no País censura,
violação dos direitos políticos, prisões, torturas e mortes.
Trata-se de fazer valer o direito à verdade e à memória.2

O presente artigo é fruto do projeto de pesquisa em andamento: A estreita


relação de D. Timóteo com a cidade de Salvador (1965-1981). O Mosteiro de São
Bento da Bahia ao longo das décadas de 60 e 70 foi um espaço de circulação de
ideias e pessoas em tempos de opressão. A localização do Mosteiro beneditino
favoreceu o surgimento e encontros de gerações de lutas sindicais, estudantis e
sociais durante a ditadura militar em Salvador.

1
Autoria do artigo da mestranda Eva Carvalho dos Anjos, Bolsista da FAPESB, aluna do Programa de
Pós-Graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia.
2
Trecho do texto de Apresentação no site do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil,
denominado "Memórias Reveladas". Disponível em:
http://www.memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1&sid=2
O abaciado de D. Timóteo foi o período em que ocorreram mudanças
importantes na instituição religiosa, a exposição de alguns fatos e eventos
históricos anteriores à sua direção no Mosteiro são importantes, afim de,
compreender posturas e atitudes tomadas por ele enquanto abade. O recuo no
recorte temporal na pesquisa em desenvolvimento é necessário visto que, a série
de episódios corridos na capital baiana entre 1965-1968 tem influência direta dos
anos anteriores.
Após a leitura de algumas obras e entrevistas de pessoas que viveram boa
parte do século XX, se tivesse que defini-lo em apenas uma palavra, seria:
incerteza(s). A primeira metade do século passado foi repleta de ideologias, crises,
revoluções e guerras que produziram grande instabilidade em todo mundo. O
tempo parece ter sido acelerado, a chegada de continuas tecnologias e a expansão
da mídia deram essa sensação às pessoas: de ter vivido tanta coisa em tão pouco
tempo.
Em tempos de contemporaneidade a Igreja Católica, embora permanecesse
unitária, encontrava-se desarticulada, algo que comprometia sua estrutura porque
as ações em prol de avivamento espiritual eram urgentes, contudo o que havia
eram ações isoladas. Inúmeros líderes religiosos católicos levantaram-se na defesa
dos mais pobres, carentes de fé e de justiça social. A pesquisa desenvolvida é
pautada na vida e obra de um abade beneditino, Dom Timóteo, por acreditarmos
que ele representa uma geração, composta de pessoas que vivenciaram boa parte
do século XX e suas transformações.
Pretendemos contribuir para a história social e religiosa da Igreja Católica
escrevendo sobre os atos, a participação social e o ecumenismo de D. Timóteo,
religioso que esteve à frente de alguns movimentos sociais que buscavam apoiar
pessoas que viviam na pobreza na cidade de Salvador, independente da crença ou
posição política. Hoje percebemos que a temática que essa pesquisa aborda é de
grande contribuição para os estudos da História Religiosa Local, uma vez que D.
Timóteo foi um cidadão soteropolitano3, embora tivesse um cargo que o deixava
bastante atarefado com a Ordem da qual fazia parte, se envolveu bastante com os
problemas sociais da cidade que habitou por vinte e nove anos.
A escolha de um objeto de estudo exige predileção e delimitações. Os
estudos sobre a cultura religiosa, especialmente sobre catolicismo e suas
influências na cidade de Salvador na segunda metade do século XX compõem o
cenário escolhido para essa pesquisa. A escolha de um indivíduo para representar

3
D. Timóteo nasceu em 1910 na cidade de Barbacena-MG, título de cidadão soteropolitano foi concedido
em 1987 pela Câmara Municipal de Salvador.
aspirações e inquietudes comuns a inúmeros religiosos de outrora é uma ação
baseada na redução de escala de observação. Este artifício é bastante utilizado
pelos historiadores, visto que “(...) a abordagem micro-histórica se propõe
enriquecer a análise social tornando suas variáveis mais numerosas, mais
complexas e também mais móveis”.4
Com o surgimento dos Annales em 1929, a relação entre o historiador e
suas fontes mudou bastante com o tempo. Novos ventos sopraram a respeito da
escrita do outro, a biografia é um exemplo disso. Nos anos 80 do século passado
surgiram contribuições para novas formas de se encarar temas como excluídos e
personagens comuns. Os autores Carlo Ginzburg e João José Reis, produziram
obras consagradas, consideradas referências baseados no período citado com
destaque para O queijo e os vermes e Domingos Sodré um sacerdote africano,
respectivamente. Os historiadores trabalham com fontes, eles se apropriaram delas
com maestria através de métodos diferentes, abordagens específicas e de uma
escrita ímpar, essas são características de quem desenvolve seus objetos baseados
na Micro-história5.
As relações entre História Religiosa, Micro-história e Biografia são
indispensáveis na trajetória dessa pesquisa, estas correntes historiográficas,
compõem a modalidade de escrita do trabalho em desenvolvimento, é a base
empírica dessa pesquisa historiográfica.

Pois a escolha do individual não é vista aqui como


contraditória à do social: ela deve tornar possível uma
abordagem diferente deste, ao acompanhar o fio de um
destino particular – de um homem, de um grupo de homens
– e, com ele, a multiplicidade dos espaços e dos tempos, a
meada das relações nas quais ele se inscreve.6

Boa parte dos escritos que foi lido sobre o abade, foram redigidos por
jornalistas muitos deles não fizeram contextualizações adequadas, alguns fatos são
simplesmente narrados, eventos ocorridos no período não foram citados e
depoimentos importantes não foram colhidos . Quando um historiador se propõe a
escrever uma biografia em sua escrita constam as hesitações do personagem,

4
REVEL, Jacques (Org.) Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1998, p.23.

5
REVEL, Jacques (Org.) Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1998.
6
Idem, p.21.
reflexões contra factuais visando o entendimento do mundo através daquele
personagem. Dentro da biografia é necessária a clareza da história do indivíduo,
seu legado, sua representação e seu papel na sociedade. Nesse gênero os
historiadores costumam:

Não se pode ter a pretensão de esclarecer o mistério de


uma vida somente a partir de fatos e de achados concretos;
é significativo não só o que se encontrou documentado, mas
as incertezas intuídas, as possibilidades perdidas etc. A
sensibilidade e a intuição do historiador são muito
importantes a fim de aproveitar ausências e vazios com os
quais ele depara em seu trabalho de pesquisa para também
interpretá-los.7

A proposta de escrita dessa pesquisa é que a mesma encontre os seus


caminhos, que seja cheia de sentido através da seleção do que é essencial. As
interpretações atraentes são um recurso possível através da aproximação da
História com a Literatura. A reavaliação do passado e de suas interpretações
estabelecidas é possível através de novas fontes e teorias. É necessário repensar e
ressignificar o passado, buscando freqüente renovação, através de novas questões
ou reformulações antigas, estas devem ser feitas com a consciência da
representação que a sociedade tem de si própria e do seu passado.
Em 1964 um golpe civil-militar tomou o poder, no mesmo ano foi convertido
em uma ditadura militar, esta atentou contra a democracia e a constituição
nacional por vinte e um anos. O sucesso do golpe só ocorreu graças ao apoio de
setores da sociedade civil como a Igreja Católica e instituições privadas, algumas
delas integrantes da imprensa. Um dos motivos que fez com que os militares se
aproximassem de seguimentos da sociedade civil foram às supostas aproximações
do governo de João Goulart com o comunismo.
As Marchas da Família com Deus8 foram manifestações de apoio ao golpe,
lideradas por setores mais conservadores da Igreja Católica. Os eventos utilizaram
todas as mídias da época, as famílias católicas marcharam em diversas capitais
brasileiras em defesa da sociedade cristã e seus alicerces: “Deus, Pátria e Família”
9
. Uma das maiores marchas ocorreu em Salvador com o apoio de diversos setores
da sociedade baiana.

7
BORGES, Vavy Pacheco. Grandezas e misérias da biografia. In: Pinsky , Carla Bassanezi, (org.).
Fontes históricas . — 2ª.ed., Iª reimpressão.— São Paulo : Contexto, 2008.
8
A TARDE, 13 de abril 1964 - Marcha da Família com Deus.
9
Título do Livro: SIMÕES, Solange. Deus, Pátria e Família – As Mulheres no Golpe de 64. Petrópolis,
Editora Vozes, 1985.
Poucos dias após o golpe, o cardeal dom Álvaro
Augusto da Silva oficiava um Te Deum e liderava uma
“Marcha da Família com Deus pela Democracia”, do terreiro
de Jesus até o Campo Grande, como agradecimento a Deus e
aos comandantes militares pela salvação do país da “ameaça
comunista.”10

Em 1965 foi encerrado o Concílio Vaticano II, poucos meses após o primeiro
aniversário do regime militar, o monge Timóteo Amoroso foi eleito septuagésimo
sétimo Abade do Mosteiro de São Bento de Salvador. Um dos motivos para escolha
de D. Timóteo para a direção do Mosteiro de São Bento foi a sua especialização em
liturgia. Foi na sua especialidade que ocorreram as primeiras mudanças. Quando
assumiu a abadia, as missas passaram a ser realizadas em português, substituindo
o latim, e os cânticos em português foram incorporados à celebração das missas,
estas medidas práticas foram orientações do Concílio Vaticano II.
Não é uma tarefa fácil, pensar novas possibilidades e atores que
antecederam o abaciado do beneditino, algo inexplorado pelas biografias
jornalísticas publicadas até então.

Os objetos e as experiências são produtos de nosso modo de


experimentar, determinado tempo no espaço. (...) Pensamos,
hoje o passado como uma invenção, de que fizeram parte
sucessivas camadas de discursos e práticas. (...) O
conhecimento histórico é perspectivista, pois ele também é
histórico e o lugar ocupado pelo historiador também se altera
ao longo do tempo. Nem sempre se fez a história do mesmo
jeito, e ela serviu a diferentes funções no decorrer do tempo.
11

As últimas leituras dos documentos revelaram que o Mosteiro de São Bento


da Bahia vinha tendo uma postura diferente no cenário baiano desde 1962. Nesse
período era realizada aos domingos às 18H, uma missa, que era transmitida para
toda a Bahia pela extinta rádio Cruzeiro, atual rádio Excelsior. A missa dominical
reunia as principais lideranças da juventude católica soteropolitana. Nela eram
discutidos temas polêmicos pelo monge Dom Jerônimo de Sá Cavalcante. Desse
meio surgiram líderes da esquerda católica e não-católica, movimentos sociais e
sindicais de Salvador.

10
FERREIRA, Muniz Gonçalves O Golpe de Estado de 1964 na Bahia. Clio, Revista de Pesquisa
Histórica, nº22, 204. Disponível em http://www.fundaj.gov.br/licitacao/observa_bahia_02.pdf Pg. 7.
Acessado 5 de Julho de 2011.
11
ALBUQUERQUE Júnior, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de Teoria
da História. Bauru, São Paulo, Edusc, 2007, p. 60-61
Os arquivos do Mosteiro de São Bento contêm atas, cartas, artigos e
poesias. O arquivo da Cúria da Arquidiocese, os arquivos do Centro de Estudos e
Ação Social – CEAS, instituição jesuíta da qual D. Timóteo pertenceu ao corpo
jurídico, são arquivos que até então não haviam sido explorados. Outra fonte rica
são as entrevistas com pessoas que frequentavam o Mosteiro ou que em algum
momento vivenciaram ao lado do abade eventos importantes na história de
Salvador.
Os novos arquivos e fontes pesquisadas permitem hipóteses e reflexões
inovadoras sobre a temática escolhida. O diferencial de um trabalho historiográfico
são os questionamentos aos documentos. O material pesquisado em arquivo é o
que orienta e limita a escrita do historiador, “(...) de todo o labor histórico que num
processo de diálogo contínuo entre o objecto de estudo e o corpus documental não
pode negligenciar a problematização, a conceptualização que conferem
significabilidade aos modelos obtidos”.12
Os sermões, a atuação e os posicionamentos de D. Timóteo tiveram grande
repercussão. O primeiro acontecimento que tomou proporções nacionais foi a “A
Missa do Morro”. O próprio nome já foi bastante incomum para a época e direto
para quem ela se destinava. A Missa do Morro ocorreu em 11 de dezembro de
1965, realizada no Mosteiro de São Bento por Dom Timóteo, O evento foi noticiado
pelos jornais durante meses, o motivo de tanto estardalhaço foi uma missa
celebrada ao som de berimbaus, pandeiros e atabaques, instrumentos tipicamente
utilizados nas celebrações do Candomblé.
O Concílio libertou a liturgia do imobilismo contraditório. A
rígida uniformidade anterior deu lugar a formas flexíveis que,
sem prejuízo do fundo inalienável dos ritos, tornam possível
uma celebração encarnada. O gênio próprio do povo e sua
língua, o seu modo de expressão e de representação e a sua
sensibilidade, a sua música, os seus instrumentos, o seu
mundo intelectual – eis valores culturais chamados a
contribuir ativamente para exprimir a vinda de Deus e a
resposta do homem, na unidade simbólica do rito. A liturgia é
por definição popular. É, pois, evidente a importância da
Missa do morro para concretização dessas intenções mais
profundas do Concílio e da aspiração por uma liturgia
reconstituída nas fontes e da criatividade popular.13

12
PEREIRA, Maria da conceição Meireles. História Local e Regional – singularidades de uma história
plural. In: FARIAS, Sara oliveira; LEAL, Maria das graças de Andrade. História Regional e local II: o
plural e o singular em debate. Salvador, EDUNEB, 2012, p.23.
13
ANASTÁCIO, D. Timóteo Amoroso, OSB. Apresentação do disco Missa do Morro e cantigas da Boa
Terra, Rio de Janeiro, Philips; Companhia Brasileira de Discos, 1969, (Coleção de Pesquisa de Músicas
Brasileiras).
Os anos 60 foram impulsionados por uma força libertadora que se alastrou
em um movimento de norte-sul para todo o globo. Em todas as esferas, na política,
nos hábitos na vida cotidiana, na cultura, as formas de dominação tidas por
opressivas foram combatidas. Com a Igreja Católica não foi diferente, um novo
contexto é apresentado uma igreja múltipla, universal um exemplo disso é a
Teologia da Libertação14.
A abertura do Mosteiro de São Bento, por intermédio de D. Timóteo,
transcendeu o diálogo e passou para o campo da ação. Em 1968 ocorreu o episódio
mais temeroso que o beneditino se envolveu. O abade deu asilo a estudantes que
protestavam em uma passeata, quando eles se depararam com a polícia. Enquanto
os estudantes se encaminhavam para uma rua atrás do Mosteiro, os policiais
invadiram o recinto.

Durante a Invasão, alguns rapazes e moças se esconderam dentro das celas


do claustro, algo intolerável pela Igreja Católica, sujeito à duras penas eclesiásticas
e até mesmo a excomunhão. Um dos monges beneditinos recorreu à regra da
Ordem para levar o ocorrido às autoridades eclesiásticas. D. Timóteo justificou
através da própria regra de São Bento, que não deve ser negado o direito de asilo a
quem está desassistido, afirmou que pecado maior teria sido não acolher aqueles
(as) estudantes. O temor do abade humanitário tinha fundamentos já que um tiro
foi disparado dentro do Mosteiro.
Neste período surgiu o Grupo Moisés, idealizado por D. Timóteo, o grupo
serviu como espaço de debate e de ações, a fim de promover o diálogo sobre
diversos episódios que ocorriam na cidade e temas polêmicos da época. O sociólogo
Joviniano Neto o cita em D. Timóteo – Presença Histórica,15 este grupo de trabalho
social. O Grupo Moisés era composto de religiosos e leigos, alguns deles eram
militantes de esquerda. Eles realizavam encontros e ações afirmativas em
comunidades carentes de Salvador durante a ditadura. O Grupo Moisés promoveu
grande articulação e mobilização de pessoas e discursos em tempos de AI-nº516, as
reuniões ocorreram inicialmente no CEAS e no Mosteiro de São Bento.

14
Teologia da Libertação é um movimento de várias correntes denominacionais do cristianismo,
engajadas em novas interpretações dos escritos cristãos baseadas em uma libertação de injustas condições
econômicas, políticas ou sociais.
15
HOORNAERT, Eduardo (org.). D. Timóteo: Presença Histórica – Documento organizado a partir do
5º Seminário Religião e Sociedade, 1996. (sem dados de publicação)
16 O Ato Institucional nº 5, AI-5, decretado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general
Costa e Silva, foi a expressão mais dura da ditadura militar brasileira (1964-1985). Vigorou até dezembro
de 1978 e produziu inúmeras ações arbitrárias de efeitos sentidos até os dias atuais. Definiu o momento
de maior perseguição do regime, dando poder de exceção as autoridades para punir arbitrariamente os que
fossem inimigos do regime ou como declarados como tal
Neste período, o Mosteiro de São Bento da Bahia ainda possuía uma
tipografia é sabido que houve produção de panfletos e afins, autorizados por Dom
Timóteo. Acreditamos que esse material não era autorizado pelos órgãos
responsáveis pela censura, ou seja, os possíveis documentos produzidos no
Mosteiro pode ser considerado clandestino. Essa não era a única atividade
subversiva que ocorria nas dependências no Mosteiro de São Bento da Bahia, era
comum perseguidos políticos se esconderem no recinto, bem como reuniões de
sindicatos e organizações civis ocorrerem lá.
Em tempos em que os indivíduos e grupos não podiam se expressar ou serem
ouvidos diante de tanta opressão e censura durante boa parte dos vinte e um anos
de regime militar, o Mosteiro de São Bento e seu abade puderam auxiliar muitas
pessoas neste momento sombrio. Tempos em que telefones eram grampeados e
correspondências eram violadas, as tomadas de decisões geralmente eram feitas
pessoalmente. Somente através da realização de entrevistas é possível
compreender e esclarecer certos fatos através da vivência de certos indivíduos do
período em questão.
As entrevistas representam o uso da história oral17 como método histórico,
ferramenta para compreensão do contexto social, da vida cotidiana sob os olhares
de pessoas que vivenciaram eventos ou conviveram com uma determinada pessoa.
Por meio de suas memórias é possível detectar relações de poder, apoio, ou ter
acesso às revelações que não foram disponibilizadas nas fontes escritas.

Muitas vezes, meras lembranças, reminiscências, que


emergem como sinais involuntários – fiapos desgarrados -
,mas plenos de revelações. A riqueza está em poder
apreender nas histórias narradas os fios de tensões, as linhas
contraditórias, talvez muito mais ambíguas, linhas de fuga
que formam um quadro complexo e desafiador para a
pesquisa histórica. Recontar as histórias é também reinventar
a experiência humana.18

A história oral no passado já foi pensada como limitada pelo seu cunho
subjetivo, hoje se tornou um instrumento para o entendimento de processos
históricos. “(...) nada se grava, nada se guarda na memória, nenhuma lembrança
se enternece, nenhum feito se salva, se a escrita da história não consegue articular

17
Discussões na obra: THOMPSON, P. A Voz do Passado: História Oral. Rio de Janeiro: 1992.
18
BORGES, Vavy Pacheco. Grandezas e misérias da biografia. In: Pinsky , Carla Bassanezi, (org.).
Fontes históricas . — 2ª.ed., Iª reimpressão.— São Paulo : Contexto, 2008, p. 111.
as ligações essenciais entre o vivido e o relato – problemática da relação entre
narrativa e história.”19
Alguns dos métodos utilizados na execução dessa pesquisa são: análise dos
jornais dos diversos eventos que Dom Timóteo esteve envolvido como A Missa do
Morro e a invasão do Mosteiro de São Bento da Bahia pelos militares. Suas
declarações em assuntos polêmicos ou fatos relevantes quando era convidado a
fazê-lo em jornais de grande circulação são indispensáveis. Bem como, uma série
de entrevistas com pessoas que vivenciaram o período abordado que serão
realizadas na execução do projeto, que contempla amigos, frequentadores do
Mosteiro, intelectuais e artistas que tiveram destaque e participação ao longo do
período que o religioso foi abade do Mosteiro de São Bento.
Construir novos caminhos da história significa também aprender a cruzar
fontes, a produção de embates e conflitos, sobretudo de interpretações sobre elas.
Não há receitas prontas, contudo é necessário levantar novas questões diante de
fontes já utilizadas. O caminho da pesquisa é esse o levantamento de perguntas,
sem esperar certezas ou respostas definidas “significa, em suma assumir o caráter
detetivesco do historiador”20.
A imprensa teve um papel de destaque em momentos políticos decisivos, um
exemplo disso foi o golpe de 1964. Neste período a imprensa e a mídia
promoveram juntas as disseminações de mitos, personalidades foram
transformadas em heróis ou bandidos, porém, “... os mitos não devem ser
desprezados, mas também não se recomenda sua leitura em termos literais.
Escrevê-los e imprimi-los, portanto, ajuda a resistência da memória à manipulação”
21
.

19
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Memória e relato histórico. Clio – Revista de Pesquisa
histórica, Recife, nº 23, p. 107, 2005.
20
Idem, p. 29.
21
Burke, Peter. História como memória social. In ___. Variedades da história cultural. Rio de janeiro:
Civilização brasileira, 2000. p. 67-89.

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Até a década de 70 do século XX, jornais eram vistos como “enciclopédias
do cotidiano”, mistura entre o imparcial e o tendencioso. Que lugar a historiografia
tem reservado a imprensa? As décadas de 60 e 70 do período em questão foram
um momento em que o rádio, os jornais e revistas imperavam, a TV estava se
consolidando nesse período.
Muito já foi escrito sobre esse beneditino, porém é necessária a promoção
do diálogo entre as fontes existentes através de um debate historiográfico. Além do

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elaborações recentes e tendências hodiernas de escrita da História da Bahia. In:
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acréscimo de fontes não utilizadas. No decorrer das leituras, pouco foi mencionado
à respeito da regra de São Bento, ou seja, sobre as normas de convivência na
comunidade beneditina e os votos que D. Timóteo fez ao abraçar a vida religiosa.
A compreensão dos escritos beneditinos é essencial para o entendimento da
atuação, dos sermões, das poesias de D. Timóteo, escritos durante sua vida
dedicada à Ordem de São Bento. A Regra de São Bento orienta as posturas dos
monges e do abade, aborda como deve ser a relação entre eles e que posturas
devem ter com a sociedade no dia-a-dia ou em situações difíceis.
Algumas relações D. Timóteo não foram estabelecidas ou abordadas pelas
biografias escritas até o presente. O ecumenismo cristão foi estimulado e praticado
primariamente entre as Igrejas e denominações cristãs sendo apoiado durante e
posteriormente ao Concílio Vaticano II. O trabalho ecumênico do abade não se
restringiu apenas ao Candomblé, alguns seguimentos evangélicos estiveram
presentes no diálogo ecumênico de D. Timóteo. A impressão que se tem, após as
leituras biográficas, é que a pregação de D. Timóteo foi exclusivamente para
militantes, ecumênicos, ex-políticos. E o povo, e as pessoas comuns que
frequentavam suas missas?
A pesquisa historiográfica em desenvolvimento propõe análise de uma rica
documentação com destaque para as fontes eclesiásticas, jornalísticas e orais. A
investigação da atuação do Abade beneditino é um trabalho de vanguarda no
campo da história baiana. D. Timóteo participou de eventos e presenciou fatos
importantes que marcaram a capital soteropolitana. Esses acontecimentos
permitiram a aproximação da abadia beneditina, durante o regime opressor, com
excluídos e perseguidos, militantes católicos, estudantes secundaristas e
universitários, ativistas políticos, mães-de-santo e pastores evangélicos de
Salvador, muitos destes personagens foram considerados subversivos pelo regime
autoritário.
“Estar no mundo sem ser mundanos/as”: Pentecostais em Eunápolis
(1988-2011)

Célia Santana Silva 1


Niágara Zâmbia Portugal dos Santos2

RESUMO: O trabalho objetiva analisar o Pentecostalismo em Eunápolis (1988-2011),


bem como a sua participação no processo de emancipação política da cidade. Nesse
sentido a pesquisa propõe-se a examinar a história da chegada dos pentecostais na
região, a inserção na sociedade eunapolitana, como se institucionalizaram, como
difundiram suas crenças e práticas religiosas entre a população e qual a recepção
encontrada pelos sujeitos, coletividades e instituições que formavam a cidade nos
momentos iniciais da presença dos pentecostais. Tentando relacionar a presença
pentecostal e o processo de emancipação política da cidade no intuito de compreender,
interpretar e analisar como as denominações religiosas pentecostais caminham e
disputam espaços em Eunápolis.

PALAVRAS CHAVES: Religião e História- Pentecostalismo- Emancipação


Política- Representação Social- Eunápolis.

As atividades dessa pesquisa inserem-se no campo das reflexões que dialogam


com religião, história e memória acerca da chegada dos pentecostais em Eunápolis
(1988-2011), enfatizando a temática política do processo de emancipação da cidade. O
recorte temporal é de, 1988 a 2011, justifica-se, na medida em que o período estudado
está balizado pelo processo de emancipação política do Município, abertura política,
Constituinte e Constituição.
No dia 12 de maio de 1988, o então governador da Bahia, Waldir Pires assina o
decreto baseado na Lei 4.770, transformando Eunápolis, até então maior povoado do
mundo. Este ato conferia ao Município montar sua estrutura jurídica, eleição para
gestores municipais dentre outros. É este clima de efervescência política, religiosa,

1
Professora da Universidade Estadual da Bahia (UNEB) Campus XVIII.
2
Graduando do curso de História pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Campus XVIII.
quando os munícipes estão buscando definir e organizar sua comunidade, que
analisamos, buscamos entender como se deu o processo de inserção do pentecostalismo,
como, difundiram suas práticas religiosas, como conviveram nesse momento com as
outras denominações religiosas, e buscando através das memórias dos moradores
antigos que presenciaram tal fato como se deu esse processo.
Um dos desdobramentos da Nova História é a interdisciplinaridade e a
aproximação da História com a Religião. Essa junção entre a religião e a história está no
centro do debate atual e caracterizou a transição do século XX para o XXI, a crise dos
paradigmas de análise da realidade e o fim da crença em uma única verdade. Assim, a
tão proclamada ordem dos Annales, em criar novos objetos, problemas e abordagens,
ganhou fôlego e também marcou um ecletismo teórico e, na maioria das vezes, uma
ausência de distinção, de apego ou definição por uma matriz teórico-metodológica.
Sustentamos que a produção historiográfica não pode ser confundida com a
literária. O que interessa como especificado anteriormente é discutir o diálogo da
história com a religião, como um caminho que se percorre contínuo com o imaginário,
com as representações, campo de pesquisa que passou a se desenvolver
significativamente no Brasil a partir dos anos 80.
A chamada “terceira geração” dos Annales voltou-se para a história cultural e
tem representação como um conceito central que, a rigor, foi incorporada pelos
historiadores no início do século XX, a partir das formulações de “representações
coletivas” (formas de percepção, de classificação e de julgamento) de Marcel Mauss e
Émile Durkheim.
Trabalhamos com o conceito de representação não vista como uma cópia fiel do
real, uma imagem perfeita, um reflexo e sim uma composição feita a partir dele com
elementos históricos. Salientamos quanto à possibilidade de se chegar ao conhecimento
histórico a partir da representação, desde que mediada pelos instrumentos de pesquisa, e
pelo estudo dos fatos históricos, em uma apurada contextualização. Como na
perspectiva de Chartier (1991, p. 185), a representação “mascara, em vez de pintar
adequadamente, o que é seu referente.”.
Na noção de representação trabalhada por Chartier ele lança mão para designar o
modo pelo qual em “diferentes lugares e momentos uma determinada realidade é
construída, pensada, dada a ler”, por diferentes grupos sociais. A partir daí, faz-se
necessário considerar as classificações e as percepções próprias de cada grupo ou meio
como as instituições sociais atuam, sob a forma de categorias mentais e de
representações coletivas. (CHARTIER, 1990, p.16).
A construção das identidades sociais seria o resultado de uma “luta entre as
representações impostas por aqueles que têm poder de classificar e nomear e as
definições que cada comunidade então produz de si mesma (seja docilmente, seja
resistindo às representações impostas).” (CHARTIER, 1991, p. 183). Nesse ponto,
consideramos importante buscar as percepções e definições, bem como a construção das
identidades pentecostais presentes em Eunápolis, suas interpretações sobre suas
atividades, e como a cidade os percebem.
Portanto será imprescindível a aquisição de depoimentos de pentecostais e suas
memórias, os quais apresentam suas versões sobre sua chegada em Eunápolis,
dificuldades e caminhos/estratégias para se firmarem enquanto grupo religioso de
destaque.
Ao propormos a utilização das memórias pentecostais como uma das fontes
desta pesquisa, pretende-se contribuir para a discussão de problemas postos à
historiografia contemporânea, no que diz respeito a sua preocupação, com a relação
entre a história e a memória. As lembranças individuais e coletivas do viver cotidiano,
as representações do real desses evangélicos se chocarão com o quadro de
representações “mundanas”.
Novamente nos parece viável, para nossa pesquisa, levar em consideração as
observações de Roger Chartier (2002), ‘quando afirma que os leitores interpretam ou se
apropriam dos textos de acordo com as capacidades de leitura, os códigos e as
convenções próprias de cada comunidade. Isto é, a leitura tem uma história e essa
história se faz na produção de sentido, que acontece pela interação entre leitor, obra e
comunidade de leitura.
Assim, as representações do social variam conforme o contexto em que são
produzidas e os interesses partilhados pelo grupo que as forjou, ou seja, uma realidade,
assim, não pode ser apreendida de forma pura, sempre é apropriada e simbolizada,
consciente ou inconscientemente. E neste sentido, percebemos que as representações
não são “ingênuas”.
As percepções do social, segundo Chartier (1990), não seriam discursos neutros,
elas produzem estratégias e práticas sociais, escolares e políticas. Tudo isso,
naturalmente para afirmar que as práticas e representações são sempre resultados de
motivações e necessidades sociais.
Para precisarmos em período histórico a mudança de enfoque do
pentecostalismo como propulsor de uma nova perspectiva para discutir as relações
políticas, diríamos que surge aproximadamente no final dos anos 80, quando uma
linguagem acadêmica traz à tona discussões em torno da competição religiosa em nosso
país.
Aqui pastores, ministros e profetas, “herdeiros do princípio do sacerdócio
universal, através do qual cada adepto é um pastor em potencial” (Fernandes, 1998:8),
promovem uma espécie de duelo espontâneo no qual grupos adventistas, testemunhas
de Jeová, espíritas, católicos da linha carismática e representantes de religião sem tanta
tradição, realizam um duelo discursivo que tem por objetivo provar que o Deus de cada
credo é o mais verdadeiro. Não podemos esquecer que a História deve problematizar e
possibilitar debates, buscar as diferenças e perceber que os fatos, as histórias não estão
prontas e fora de uma realidade. Ao contrário, elas precisam sair de um modelo pronto e
acabado e ser analisadas à luz de um tempo e espaço específicos. Longe de querer fazer
apologia ao pentecostalismo, a pesquisa busca analisar como nos comportamentos
tradicionais pode-se encontrar um leque de possibilidades e estratégias de convivência e
socialização.
A priori é necessário situar a cidade de Eunapolis, município este que em sua
fase de surgimento cresceu e prosperou, ficando famoso como o maior povoado do
mundo, até o plebiscito realizado em 1988. Localizado no Extremo Sul da Bahia, sua
área estar situada no portal de entrada do Sitio Histórico do Descobrimento do Brasil.
Sendo que antes de sua emancipação era parte integrante dos municípios de Porto
Seguro e Santa Cruz Cabrália. Estabelecido às margens da BR 10, atualmente Eunapolis
possui 102.628 habitantes, sendo então a 16ª cidade mais populosa do estado em 2012,
segundo o IBGE. Sua base econômica é à agricultura, extração e pecuária. É também o
terceiro produtor baiano de pimenta do reino, 4º de mandioca, 5º de mamão, e possui
importante rebanho bovino.
É importante salientar que povoado que em 1953 foi denominado de Eunápolis
teve dois períodos de muito desenvolvimento. O primeiro, na década de 60, com a
chegada dos sertanejos de Ribeira do Pombal - o pioneiro foi o comerciante José Dantas
-, que, com os seus “atacados”, tornaram o povoado um grande centro comercial.
Depois, na década de 70, após a construção da BR 101, que propiciou o ciclo madeireiro
- tendo os capixabas, principalmente, como principais personagens – e a consolidação
de Eunápolis como principal centro comercial e de serviços da região.
Tornou-se então um lugar fértil para a propagação do evangelho.
Foi nesse auge que a Assembleia de Deus criou raízes. Desde 1950 a referida
denominação existe em Eunápolis, antes mesmo da Igreja Católica cujo templo foi
construído quatro anos depois, da chegada dos missionários assembleianos. Porem era
um trabalho pequeno, que não tinha uma organização institucional, e templo próprio.
No inicio se reuniam em um casebre que pertencia a um dos poucos membros que se
converteram através da evangelização. Esse trabalho ainda modesto foi iniciado com o
missionário e pastor Eugenio, que não ficou muito tempo na região. Em 1958 assume o
pastor Antonio Francisco dos Santos vindo da cidade de Itamaraju, Bahia onde começa
um novo trabalho de apregoação da palavra de Deus, construção do templo sede e
organização da igreja Assembleia de Deus.
Com isso, houve tanto um aumento de fieis bem como a construção de mais
templos nos bairros da cidade. No processo de emancipação não há indicativos da
participação direta da igreja, já que era fechada para as questões políticas, portanto, não
houve envolvimento de assembleianos nesse evento histórico da cidade. No entanto,
podemos perceber através de outras fontes (cf. os registros da Câmara de Vereadores de
Eunápolis) que houve dois vereadores membros da assembleia de Deus eleitos no pleito
da 2ª legislatura no ano de 1993 – 1996. Porem não há indícios de que esses vereadores
foram candidatos indicados p ela instituição assembleiana, o que de certa forma nos leva
a acreditar que se candidataram de forma autônoma.
Visando a continuidade de nossa pesquisa, estamos contatando outras fontes
primordiais para a coleta de dados, a saber: o Pastor José Carlos, filho do pastor
Antonio Francisco, um dos primeiros pastores da Assembléia de Deus em Eunapolis;
desde 1958 até 1996; Edna e Adelice ambos os membros da Assembleia que
acompanharam e ajudaram no crescimento da instituição no município de Eunápolis
fazendo parte de grupos de evangelismos bem como exercendo alguns cargos dentro da
Igreja, nos fornecerá dados preciosos para o objeto em estudo, de acordo com o
levantamento que estamos fazendo, muitos documentos dentre eles fotos da 1ª igreja e
dos primeiros membros estão sobre os cuidados dessas senhoras, que são esposa e filha
respectivamente do pastor Antonio Francisco dos Santos.
Podemos assegurar que esta pesquisa tem despertado cada vez mais nosso
interesse em estudá-la, aprofundá-la. Lembramos que as análises apresentadas não são
conclusivas, elas fazem parte de mediações aptas a levar-nos paulatinamente a
resultados operantes que vislumbrem necessariamente diretrizes inalienáveis ao objeto
em estudo.

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IGREJA BATISTA NAZARETH: IDEIAS E TENSÕES NO MOVIMENTO ECUMÊNICO
ENTRE BATISTAS PROGRESSISTAS (1974 A 1990)

A segunda metade do século XX, em especial as décadas de 1950 a 70 existiu


um espaço muito rico para os movimentos sociais e culturais no Brasil, mesmo com o
país sendo governado por militares num regime ditatorial. Foi nesse espaço que em
1975, a Igreja Batista Nazareth foi organizada na cidade de Salvador, Bahia. Mas essa
não seria apenas mais uma Igreja evangélica na terra de todos os santos. Como um
grupo de caráter ecumênico, Nazareth, assumiu uma postura progressista para a
época defendendo transformações sociais, além de ter lutado contra os desmandes da
Ditadura Militar no Brasil.

É inevitável abordar a formação das ideias ecumênicas no Brasil relacionando-


as com a situação política do país. Percebemos que os conflitos entre progressistas e
conservadores, revelam uma convergência da vertente progressista do protestantismo
brasileiro com o bloco de forças políticas e sociais existente no país, o mesmo ocorreu
com as forças conservadoras da igreja que se associaram a grupos reacionários da
sociedade. (Ferreira, 2010, p. 83-103).

O golpe civil-militar vem em resposta a essa efervescência político-social


existente no Brasil. Foi apoiado por setores conservadores do país, representados em
sua maioria por grupos civis da sociedade ligados ao empresariado e a classe média
alta (Santana, 2009, p. 20). Com o golpe, os progressistas e ecumênicos foram
derrotados, vencendo um grupo que ao longo desse tempo se opunham com
hostilidade crescente às articulações progressistas. (Ferreira, 2010, p.84.).

Durante muito tempo os grupos protestantes se omitiram da participação


política no país, entretanto Muniz Ferreira afirma que o campo religioso passou a
reproduzir o clima da sociedadTe brasileira, onde a efervescência cultural e política no
Brasil incitavam e influenciavam a uma nova ala de protestantes (Ferreira, 2010,
p.85). Essa juventude que viria a formar o setor ecumênico e progressista do país
olhava a realidade brasileira com um olhar crítico e via nos instrumentos políticos as
possibilidades de mudança, “havia uma efervescência cultural e política no Brasil que a
juventude protestante queria acompanhar e participar.” (Silva, 2010, p.98, 99).

Diversos encontros foram organizados com a intensão de encontrar formas de


resolver problemas tão antigos ao Brasil como a pobreza, por exemplo. Entre esses
encontros, a quarta reunião de estudos foi a mais representativa para o setor,
realizada no Recife, conhecida como Conferência do Nordeste (Almeida, 2008, p.105.),
nela buscou-se convergir vertentes progressistas do protestantismo brasileiro com
grupos progressistas políticos e sociais do país no ano de 1962 (Ferreira, 2010, p.85).

Entretanto a Conferência do Nordeste, em 1962, foi um marco não só para os


progressistas e ecumênicos, como também para os conservadores. Como podemos
perceber, assim como houve uma mobilização de protestantes a favor das
transformações sociais, a resposta conservadora foi forte e encontrou em setores
políticos e sociais tradicionais o apoio necessário para conter o avanço das ideias
progressistas. A efervescência política muito preocupava as camadas detentoras de
poder. Desta forma, setores conservadores das igrejas protestantes tomaram um
posicionamento ativo no cenário político aliando-se com setores também
conservadores do Estado. Assim sendo, fundiram-se os inimigos dos conservadores,
quer seja no meio político ou no religioso, ambos passaram a receber o rótulo de
comunistas1. Desta forma ficou claro que os conflitos nos meios evangélicos se
tornariam, em grande medida, uma extensão dos conflitos sociais do país.
Contrapunham-se dois modelos de projetos: mudança/transformação versus
conservação/reação (Ferreira, 2010, p.83).

A Ditadura Militar serviu como um entrave para a continuidade dos trabalhos


ecumênicos e progressistas. As conferências, como a do Nordeste de 1962 foram
proibidas, os conservadores passaram a ser maioria nas instituições tendo uma
postura antiecumênica além da instauração do clima de “caça às bruxas” perseguindo
aos progressistas e ecumênicos dentro das igrejas como se fossem comunistas
(Almeida, 2011, p. 108).

Até a década de 1950, sendo acentuado ainda mais com o Golpe Civil-Militar de
1964, o meio protestante manteve a imagem de um posicionamento de não
interferência nas questões políticas desde que suas ideias e princípios não fossem
ameaçados de algum modo. Na verdade o principio tão tradicional de não participação
política não passava de um argumento retórico (Silva, 2009, p. 31), pois desde a
década de 1940 os evangélicos ofereciam a obediência e o respeito às autoridades
constituídas e recebiam em troca apoio e manutenção das liberdades de consciência e
religiosa. Essa foi a tática utilizada por muitas denominações evangélicas para se
estabelecerem no Brasil. Entretanto, isso começa a ser modificado com a inserção de
novas linhas teológicas na ambiência protestante, como a teoria do Evangelho Social

1
Para maior compreensão do tema ler a Dissertação do mestrado de Luciane Silva de Almeida: ALMEIDA,
Luciane S. de. A Igreja Anticomunista: Representações dos Batistas e dos Fundamentalistas sobre o Regime
Militar em Feira De Santana (1964-1980). Relatório Final. PROBIC/ UEFS, Feira de Santana, 2008.
em 1950, associando-se a isso “uma nova geração de jovens reformados começava a
se inquietar com a realidade brasileira, de forma sistemática e organizada” (Silva,
2010, p. 20,66).

Inconformados com a postura da maioria das igrejas evangélicas, de silêncio,


apoio e até conivência frente ao Governo ditador, um grupo de jovens da Igreja
Batista Dois de Julho se movimentou recriminando tal atitude2, ainda que ela viesse
da Convenção Batista Baiana ou Brasileira (maiores instâncias organizacionais da
denominação Batista), que buscavam no apoio ao Governo o espaço necessário para a
autoafirmação no país, à época majoritariamente católico. Esse grupo, tido como
inconformado e rebelde, seria expulso de sua igreja e viria a organizar a Igreja Batista
Nazareth.

Da dialética da reforma para a dialética de ruptura.

A origem dos grupos protestantes esteve calcada em princípios de contestação,


e liberdade. Seus três pressupostos essenciais consistem na centralidade das
escrituras, a justificação pela fé e o sacerdócio de todos os crentes, o que retirou a
necessidade dos lideres religiosos como intercessores entre o fiel e a divindade.
(Matos, 2013, p.1) Formalmente, essas igrejas se definem como democráticas,
abertas e defensoras do livre exame. Em contrapartida, a Igreja Católica que se define
formalmente como uma estrutura hierárquica, monárquica, com pretensões de
infalibilidade, tem se mostrado muito mais elástica que as igrejas protestantes. (Alves,
2004, p.59).

O termo “elasticidade” é utilizado por Rubem Alves fazendo referência a


possibilidade que uma igreja tem de estender seus limites conceituais para englobar
fieis que possuam ideias, em alguma medida, divergentes do pensamento dominante.
Na Igreja Batista Dois de Julho, a ruptura com a Mocidade e a formação de uma nova
igreja, indicam que havia chegado ao limite de sua elasticidade como instituição
Batista.

Ela não faz lugar, no seu interior, para interpretações


divergentes de fé. É absolutista. Em decorrência disso, a
dialética da reforma é abordada no seu interior e transformada
em dialética de ruptura (...) não sobra nenhuma área aberta a
discordância. Assim, o livre exame protestante não significa que
2
IGREJA BATISTA NAZARETH. Igreja Batista Nazareth: Uma história de resistência, luta e fé, 1975 –
2000. Salvador/Ba: [s.n.], 2000, p. XI
o crente possa interpretar o texto livremente, pois a leitura
correta já esta definida pela confissão. (Alves, 2004, p.60,61).

Existe, portanto, espaços que, apesar da liberdade, não podem ser


questionados ou problematizados dentro de uma religião, pois corre-se o risco do
rompimento. Pierre Bourdieu nos diz que a religião funciona como principio de
estruturação que constrói a experiência. Dentro dessa experiência existe um sistema
de questões indiscutíveis “delimitando o campo do que merece ser discutido em
oposição ao que esta fora de discussão.” A religião teria, portanto, uma predisposição
a “assumir uma função ideológica, prática e politica de absolutização do relativo e de
legitimação do arbitrário” (Bourdieu, 2009, p.45,46).

Quando se entra em conflito a ideia dominante e a nova interpretação, o


discurso não resolve quem tem a ultima palavra, mas sim o grupo de maior poder, de
maior autoridade. Após esse acirramento, a ideia que perde no embate das forças é
transformada em heresia. “(...) a heresia é a voz dos fracos (...)” (Alves, 2004, p.56).

Mocidade da “Primeira Igreja”.3

Inicialmente esse grupo de jovens participava de um conceituado coral com


grande visibilidade para a Igreja Batista Dois de Julho, e integravam a União da
Mocidade Batista. Entretanto, a atitude progressista deles muito incomodou a
organização da Igreja a qual faziam parte, pois o posicionamento desta voltou-se para
o fundamentalismo bíblico dando atenção quase que exclusiva a salvação das almas,
além de apoiarem ao Governo Militar. Essa era a postura majoritária das Igrejas
Batistas, dando a aparência de não envolvimento com questões políticas e sociais.
Contudo, tal representação é questionada quando se observa eventos exclusivamente
de cunho religioso, como as campanhas evangelísticas que mostravam o regime
militar como uma resposta às suas orações, significando assim mais uma
demonstração de apoio a política reacionária do Governo Militar (Almeida, 2008,
p.56).

No dia 19 de Setembro de 1974, 17 jovens do grupo da Mocidade da Igreja


Batista Dois de Julho entregaram um Manifesto escrito por eles para a direção da
igreja criticando a postura do seu Pastor, Ebenézer Cavalcanti. Entre as posturas
criticáveis está a acusação de comunistas e perniciosos feita pelo referido pastor a
membros da igreja. O manifesto informa da ocorrência de inúmeras outras acusações

3
“Primeira Igreja” – Referência à Igreja Batista Dois de Julho. Foi um termo recorrente utilizado nas
entrevistas que fiz por muitos membros da Igreja Batista Nazareth.
sendo agravadas no mês de abril de 1974, quando a Igreja proibiu a participação de
visitantes às reuniões da Mocidade, uma forma de restringir o espaço e influência das
ideias defendidas por esse grupo. Cerceou a liberdade de expressão do grupo vetando
toda e qualquer circulação de material impresso por esses jovens, tendo agora a
necessidade da aprovação da Igreja (Pastor e Diretoria) para a realização das
atividades do grupo, veto da divulgação em órgãos da imprensa de seus projetos,
além da retirada do irmão Agostinho J. Muniz Filho do rol de membros da igreja,
acrescentado da ameaça a outros jovens de serem afastados de igual forma4.

Aqui vale a pena fazermos um parêntese a essa situação e informar que essa
postura de distanciamento das questões sociais e de critica a ações ecumênicas não
eram atitudes recorrentes da Igreja Batista Dois de Julho. As entrevistas realizadas
com antigos membros informam que houve uma ruptura com as posturas
progressistas da Igreja após o seu Pastor, Ebenézer Cavalcanti, ter passado por
alguns problemas de saúde, sendo assessorado e influenciado por membros que
tinham grande simpatia, quando não algum tipo de relação com o Governo Militar,
além de possuírem uma leitura da bíblia mais conservadora5.

Em entrevista, Liane, um dos membros fundadores da Igreja Batista Nazareth,


destaca a grande estima e consideração que tinha pelo pastor Ebenézer Cavalcanti:

[...] uma pessoa muito inteligente, um líder de grande


caminhada, uma pessoa muito atuante, inicialmente muito além
da sua realidade da época. Ele permitia que a mocidade da
Igreja Batista dois de julho, que o seu Coral, participasse de
coisas fora da igreja, inclusive com a igreja católica. Não tinha
nada a ver com a realidade da época. [...] Nós cantávamos em
Latim, nós cantávamos em alemão, nós éramos muitos
avançados.6.

Liane ainda destaca que o pastor Ebenézer Cavalcanti já havia até recebido aos
Padres Dom Gerônimo e Dom Timóteo para pregarem na Igreja Dois de Julho e que
fazia convites para membros de diferentes Igrejas para entrarem no Coral da
Mocidade da Igreja Batista Dois de Julho. “(...) ele trazia essas pessoas para o coral e
ele aceitava, não pergunta a origem, não perguntava nada.”

[...] Pastor Ebenézer ficou doente, teve um derrame e


ficou um tempo afastado da Igreja. Quando ele voltou da igreja,
ele era uma outra pessoa. Ele passou por uma transformação,
4
Manifesto da União da Mocidade da Igreja Batista Dois de Julho, in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Anexo
I; Ata nº 1005 de 12 de Setembro de 1974. Não paginado
5
Entrevista gravada na Igreja Batista Nazareth, no dia 10 de março de 2013, em comemoração ao 38º
aniversário da Igreja.
6
Entrevista gravada na Igreja Batista Nazareth, no dia 10 de março de 2013, em comemoração ao 38º
aniversário da Igreja.
não sei como se explica, ele passou por uma transformação que
ele voltou uma outra pessoa, ao lado de Adlair e Rufino, o
secretario e o tesoureiro. E foi daí que partiu essa aversão, esse
horror, q eles começaram a ter para os jovens [...] a primeira
coisa q ele fez foi isso: ele quis caçar quem não fosse batista,
batista batizado! Ele quis caçar!7

De jovens atuantes a hostilizados, esse grupo passou a ser impedido de discutir


e opinar nas reuniões da Igreja. Em resposta ao Manifesto entregue pela Mocidade, a
Diretoria da Igreja Batista Dois de Julho afirmou ter chegado “[...] o tempo de se
dizer: B A S T A” a esse “grupinho”, fazendo-lhes o convite a saírem da Igreja e critica
o uso “do nome de Cristo como bandeira para alcançar seus ideais, que não são os da
Igreja”8.

Esses jovens estavam também muito indignados pela Igreja Dois de Julho ter
decidido pela Carta Compulsória a Agostinho e Balbino, que faziam criticas ao governo
militar.9 Chegou-se ao ápice desse conflito no dia 10 de Outubro de 1974, quando,
numa reunião muito tensa, aproximadamente 25 jovens da União da Mocidade da
Igreja Batista Dois de Julho teve a sua fala cerceada, indignados, foram forçados a
10
requererem suas cartas demissórias (espécie de documento de expulsão da Igreja) .
Liane foi a primeira a fazer o pedido, e foi prontamente seguida por parte dos
integrantes do Coral.

Não mais suportando os demandes de seu antigo Pastor, Ebenézer Cavalcanti,


esses jovens buscavam agora um espaço que estivesse em sintonia com suas ideias.
Esses homens e mulheres em momento algum negaram a sua crença nos princípios
Batistas, continuariam com uma Igreja de base neotestamentária, em consonância
com essa fé11, concordando com a plena autonomia das igrejas locais, repudiando
qualquer ingerência na sua economia interna (Cavalcanti, 1970, p. 33).

A relação com as questões sociais sempre foi uma característica do grupo de jovens,
que encontrou nas mudanças de pensamentos teológicos as fontes necessárias para o
seu posicionamento, que apoiava transformações na sociedade, transformações que
ultrapassassem o assistencialismo tradicional protestante. Em grande medida essas
correntes eram elaboradas na Europa e nos EUA e adaptadas a realidade brasileira

7
Entrevista gravada na Igreja Batista Nazareth, no dia 10 de março de 2013, em comemoração ao 38º
aniversário da Igreja.
8
Carta do diácono Adlair de F. Pacheco à Igreja Batista Dois de Julho em resposta ao Manifesto da
Mocidade. Salvador, 16 de outubro de 1974. Documentação da IBN.
9
Carta de Agostinho Muniz em comemoração aos 15 anos da IBN. In Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não
paginado.
10
Carta de Miriam Guerra Pinillos ao Presidente da Convenção Batista Baiana. 11 de setembro de 1974 in
Igreja Batista Nazareth, op. cit., Anexo I. Não paginado.
11
Carta de Paulo Rosa Torres ao Pastor Djalma Torres. Salvador, 12 de outubro de 1974. Documentação IBN
como o Evangelho Social que apontava como característica necessária ao
protestantismo a ação social e política (Silva, 2009, p. 76-77).

“Pode algo bom vir de Nazareth?” – A formação de uma nova Igreja.

Organização do grupo e a (dis)filiação à Junta Batista

Esses jovens não queriam romper com a Igreja Batista, mas sim com a
Igreja Batista Dois de Julho por considerar impossível a convivência. Em carta enviada
à Convenção Batista Baiana no dia 12 de Outubro de 197412, Paulo Torres afirma o
interesse do grupo em “organizar uma nova igreja com base neotestamentária e em
consonância com os princípios Batistas.”

Ao informar o ocorrido, buscando aconselhamento pastoral com o


Presidente da Convenção Batista Baiana, Pr. Djalma Torres, Miriam G. Pinillos relatou
o trágico ocorrido, informando ainda que “nós, jovens Batistas, membros da Igreja
Batista Dois de Julho, fomos forçados a requerer nossas cartas demissórias.” 13
Em entrevista, o Pastor Djalma Torres informou ter tido grande interesse e
cuidado com o grupo:

Esse grupo então saiu da igreja e meio solto foi acolhido


por mim que na época pastoreava a Igreja Batista da Graça,
mas dei ampla cobertura ao grupo sugerindo inclusive que o
grupo se mantivesse unido com o propósito de formar uma
comunidade religiosa e não se dispersasse por diversas outras
igrejas onde as ideias deles iam ser pulverizadas dentro da
igreja14.

A princípio o grupo realizava as reuniões nas suas casas e nas casas de amigos,
sem um ponto fixo. No dia 31 de dezembro de 1974, o Reverendo Enoque Sena,
Pastor presbiteriano e Diretor do Colégio Dois de Julho, instituição educacional de
caráter ecumênico, ligada à Igreja Presbiteriana, ofereceu as dependências do Colégio
para o encontro do grupo enquanto lhes fossem necessárias.15 Logo em seguida, sob o
auxilio do Pastor Djalma Torres, a Igreja Batista Moriá acolheu a esses jovens, “já
sabendo que esse grupo não ia se integrar na igreja, mas ia fazer reuniões

12
Carta de Paulo Rosa Torres ao Pastor Djalma Torres. Salvador, 12 de outubro de 1974. Documentação IBN
13
Carta de Miriam Guerra Pinillos ao Pastor Djalma Torres. Salvador, 11 de outubro de 1974. Documentação
IBN
14
Entrevista com o Pastor Djalma Torres no dia 08 de julho de 2012
15
Carta à Igreja Batista Moriá, 31 de dezembro de 1974. In Igreja Batista Nazareth, op. cit., Anexo I. Não
paginado.
separadamente das reuniões normais da igreja até se organizarem também em uma
comunidade religiosa, ou seja, numa Igreja Batista”16.

O processo de organização da nova Igreja estava sendo acompanhado, em


especial, por dois líderes Batistas: os pastores Djalma Torres e Eliabe Barbosa. Nesse
momento o grupo já contava com o apoio e participação de aproximadamente 40
pessoas de outras igrejas e interessados, que aguardavam a organização da Igreja
Nazareth para regularizarem a sua situação. A carta dos jovens compulsoriados
encaminhada a Igreja Batista Moriá conclui com a afirmação de que “(...) já reunimos
as condições necessárias para sermos mais uma Igreja de Jesus Cristo nesta Cidade,
17
contribuindo para a expansão do reino de Deus entre os homens.” .

O grupo então foi oficializado no dia 14 de fevereiro de 1975, quando


ocorreu a cerimônia de organização da Igreja Batista Nazareth, dirigida pelo Pastor
José Luis de Carvalho18.

(...) concedendo a palavra ao examinador, Missionário


Burleu Cader, que após as perguntas e respostas apresentadas
declarou-se satisfeito. Em prosseguimento o pr. Djalma Torres é
convidado a apresentar o Pacto das Igrejas [conjunto de
normas acatadas por todos os membros da Igreja Batista]19 e
sua declaração de fé, a cujos princípios todos se revelaram
unânimes em observa-los, aceitando-os na sua integridade.
Num ato solene, os membros da novel Igreja são solicitados a,
de pé, confirmarem a aceitação de todas as responsabilidades
assumidas, sendo diante de tais demonstrações proposta a
transformação em IGREJA da congregação cujo nome já foi
proposto: IGREJA BATISTA NAZARETH (...)20

Em entrevista, Djalma Torres declara que “o grupo se organizou como Igreja


Batista dentro do figurino Batista, com um concilio, leitura do pacto das igrejas, com a
presença e participação de lideres religiosos batista, uma igreja pronta para também
21
fazer parte da denominação batista” . Entretanto, tamanha foi a surpresa quando ao
pedir a filiação à Convenção Batista Brasileira, foi-lhe negada.

(...) o órgão encarregado disso que era a Junta Geral da


Convenção Batista Baiana recusou o pedido alegando que o
grupo era caracterizado por uma forte influencia ecumenista,
comunista e mundana, e a igreja foi rejeitada. A partir daí a
16
Entrevista com o Pastor Djalma Torres no dia 08 de julho de 2012
17
Carta à Igreja Batista Moriá, 31 de dezembro de 1974. In Igreja Batista Nazareth, op. cit., Anexo I. Não
paginado.
18
Carta convite para a cerimônia de organização da Igreja Batista Nazareth. Documentação IBN
19
Nota do Autor.
20
Ata de organização da Igreja Batista Nazareth, 14 de fevereiro de 1975, In Igreja Batista Nazareth, op. cit.,
Anexo I. Não paginado.
21
Entrevista com o Pastor Djalma Torres no dia 08 de julho de 2012
igreja começou a ter uma vida isolada. Só com o passar do
tempo ela foi se relacionando com outras igrejas,
presbiterianas, por exemplo, episcopal, e depois com a própria
igreja Católica em alguns trabalhos específicos22.

O motivo justificado pela Junta Batista Baiana da não aceitação da Igreja


Batista Nazareth em seu rol de membros foi a postura ecumênica defendida pelo
grupo. Ironicamente, esses mesmo jovens, quando ainda faziam parte da Igreja dois
de Julho tinham participado de diversos eventos de caráter ecumênicos sob a
orientação do pastor Ebenézer Cavalcanti, como apresentação do Coral em diversas
igrejas católicas, e nunca tinham sido penalizados, pois essas medidas eram
justificadas de acordo com o principio Batista de liberdade religiosa.

Nesse contexto, uma carta anônima foi encaminhada à Junta Geral da


Convenção Batista Baiana questionando os motivos usados por ela, para a não
aceitação de Nazareth em seu corpo. Nesse documento acrescentou-se ainda a
informação de diversos lideres batistas apontados como corruptos e maus
23
administradores, cabendo a esses uma resposta mais enérgica da Convenção.

A Igreja Batista Nazareth (IBN) negou ter enviado uma carta com tal teor,
onde detratava pessoas sob o pretexto de solicitar reconsideração dessa junta sobre o
pedido de filiação.24. Por esse motivo, a Convenção Batista Baiana (CBBa) pediu à
Nazareth permissão para publicar no Jornal Batista a carta de negação sobre o
documento anônimo, pois esse documento tinha sido enviado a muitos pastores como
circular.25 Prontamente a IBN aceitou a publicação de seu pronunciamento a respeito
da carta anônima26 sendo parabenizada pela Convenção Batista Brasileira por terem
demostrado “um louvado espirito conciliador, de coragem e prudência.”27 A Igreja
Batista Dois de Julho, nesse interim, também lança um documento informando não ter
nenhuma relação com a negação de pertencimento de Nazareth à CBBa e que nem
mesmo tem algum conhecimento da existência do referido grupo. 28

22
Entrevista com o Pastor Djalma Torres no dia 08 de julho de 2012
23
Carta anônima à Junta Geral da Convenção Batista Baiana. in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não
paginado.
24
Carta do Pastor da IBN, Djalma Torres, à Junta Executiva da Convenção Batista Baiana, em 25 de Agosto
de 1975, in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
25
Carta da Junta Executiva da Convenção Batista Baiana, Itapetinga, 29 de Agosto de 1975, in Igreja Batista
Nazareth, op. cit., Não paginado.
26
Carta da Igreja Batista Nazareth à Junta executiva da Convenção Batista Baiana. Salvador, 15 de setembro
de 1975, in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
27
Carta da Junta Executiva da Convenção Batista Brasileira, Rio de Janeiro, 27 de Novembro de 1975, in
Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
28
Carta da Igreja Batista Dois de Julho à Denominação Batista, Salvador, 3 de Setembro de 1975, in Igreja
Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
Após uma solicitação verbal do Pastor Djalma Torres à CBBA, no dia 20 de
maio de 1975, esta decidiu q enviaria “uma comissão da Junta para estudar o assunto
com a comissão da Igreja”, contudo o próprio pastor da IBN recusou a forma como
seria analisada a questão29. Finalmente, em 23 de julho de 1976 a Igreja Batista
Nazareth é aceita para ingressar no Rol Cooperativo da Convenção Batista, sendo
oficializado na primeira sessão da 53ª assembleia da CBBa.30

A exclusão final de Nazareth

Após 12 anos fazendo parte do rol cooperativo da Convenção Batista


Baiana, em Junho de 1988, a Junta Executiva da CBBa cria uma comissão especial
para o esclarecimento de ações ecumênicas adotadas pela Igreja Batista Nazareth,
atitudes essas que feriam ao Estatuto Batista. As ações de Nazareth passaram a ser
noticiadas por alguns jornais como o A Tarde, e essas mesmas matérias foram
utilizadas como provas questionáveis da postura da IBN. De acordo com o artigo 2º,
Capitulo VIII da Declaração Doutrinária “o relacionamento com outras entidades, quer
sejam de natureza eclesiásticas ou outra, não deve envolver a violação da consciência
ou o comprometimento da lealdade a Cristo e sua Palavra.”31

Foi esse o argumento utilizado pela junta para colocar em questionamento a


postura da IBN. Em carta a Convenção Batista explica:

Entendemos que o envolvimento dos irmãos com grupos


não evangélicos, como vemos nos artigos citados acima, viola a
nossa consciência batista e cristã, deixando também claro o
nosso comprometimento da Palavra de Cristo (...)”.
Gostaríamos portanto de saber a vossa posição como igreja em
relação a este assunto e se o mesmo não for entendido pelos
irmãos como um descumprimento do capitulo VIII da
Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira, que os
irmãos se posicionem sobre o interesse de continuar ou não no
rol cooperativo da Convenção Batista Baiana.32.

Um mês após o envio da Carta da Junta Executiva da CBBa, Nazareth encaminha uma
carta documento representando a posição da Igreja. É clara ao afirmar que não abdica
do direito de ser considerada uma Igreja Batista e que tem por fundamentação

29
Carta da Junta Geral da Convenção Batista Baiana à Igreja Batista Nazareth, Salvador, 8 de abril de 1976,
in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
30
Carta da Junta Geral da Convenção Batista Baiana à Igreja Batista Nazareth, em 23 de Julho de 1976. in
Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
31
Artigo 2º, Capitulo VIII da Declaração Doutrinária do Estatuto Batista. In Igreja Batista Nazareth: Uma
história de resistência, luta e fé, 1975 – 2000. Salvador/Ba: [s.n.], 2000. Não paginado.
eclesiástica a “Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira”, salientando
que houve uma interpretação duvidosa e parcial dessa Declaração por parte da
CBBa.33 Nessa mesma carta, Nazareth enumera uma serie de tópicos destacando suas
crenças. Algumas delas:

(...) Crê que é missão da Igreja atuar profeticamente no


Mundo, proclamando (combatendo) a injustiça dos poderosos
quem mantem sob opressão e miséria os povos do terceiro
mundo, denunciando a corrupção dos que estão no poder, os
desiquilíbrios do sistema social e as muitas formas de
autoritarismo religioso.

Crê que os batistas brasileiros têm perdido a


credibilidade, ao aceitar que, em seu nome, sejam feitas
honrarias religiosas, em troca de benefícios duvidosos e
vantagens pessoais, concedidas pelos poderes públicos.

Crê que a omissão, em face de problemas tão graves


como a Dívida externa, Direitos Humanos, desemprego e sub-
emprego, inflação, reforma agrária, violência,
homossexualismo, droga, preconceitos etc., constituem-se em
pecado diante de Deus e a quebra dos dois grandes
mandamentos divinos (mat. 22:37-39)34.

Nazareth reafirma ainda o seu posicionamento informando que tem


levantado problemas como estes, “solidarizando-se com outras igrejas evangélicas
e/ou entidades, publicando muitas de suas posições com determinação cristã
consoante o que esta disposto pelo capitulo XVI – Ordem Social – da Declaração
Batista Brasileira”.

Lembra ainda quem em 1975 a Junta geral negou o egresso de Nazareth ao


seu rol cooperativo por motivos similares ao que nesse momento estava sendo
utilizado e que em 1976 a Igreja foi aceita “sem que nada tenha havido, de sua parte,
que justificasse a mudança de atitude da Junta. A Igreja fez saber a Junta que suas
posições continuavam as mesmas”.

Foi exatamente nesse período, entre a rejeição e a aceitação pela Junta (1975/76),
continua a carta, que Nazareth começou a estabelecer relacionamentos mais estreitos
com demais grupos evangélicos, o que possibilitou “a descoberta da grande riqueza
doutrinária, teológica, litúrgica e fraternal dessas igrejas (...) Deus transformara,

32
Carta da Junta Geral da Convenção Batista Baiana à Igreja Batista Nazareth, em 03 de junho de 1988, in
Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
33
Carta da Igreja Batista Nazareth à Junta executiva da Convenção Batista Baiana. Salvador, 4 de Julho de
1988, in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
34
Documento da Igreja Batista Nazareth em resposta à Carta da Junta Executiva da Convenção Batista
Baiana, Salvador, 4 de Julho de 1988, in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
assim, a marginalização batista numa grande e concreta manifestação de apoio,
compreensão e ajuda no meio evangélico.

Em Julho de 1988, a Convenção Batista Baiana decide em meio a 65ª


Assembleia anual, realizada em Alagoinhas, remover a Igreja Batista Nazareth de seu
rol de membros cooperativos.

O Julgamento da Igreja Batista Nazareth foi feito de


forma sumaria, e a assembleia da convenção, com base no
relatório de uma comissão de três membros, já no final de uma
sessão, decidiu pela exclusão (...) O amplo documento sobre o
seu credo e a pratica doutrinária que a Igreja Nazareth
encaminhou à comissão não lhe serviu como defesa, porque o
mesmo sequer foi lido para a assembleia.35

Para a Igreja Batista Nazareth, o ocorrido tem um caráter claro de


obscurantismo denominacional além de uma manifestação evidente de intolerância.
Em nota do Jornal A Tarde, extraído do Boletim dominical da própria Igreja, Nazareth
desabafa: A fidelidade aos nossos princípios custou o afastamento da convenção. “Nós
preferimos ficar com os nossos princípios.”.

Considerações finais

De inicio, a liberdade não era violentada abertamente pela força, mas sim
conquistada de forma ideológica e discursiva. Contudo, em meio a esse período, as
práticas inquisitoriais permaneceram vivas no seio protestante. Essas práticas
punitivas e excludentes faziam parte de um conjunto de procedimentos institucionais
cuja função era identificar e eliminar o pensamento divergente, pois ameaça a sua
unidade politica e teológica. Para tal havia os controles de pensamentos, de
comportamento moral (desviante) e de comportamento intelectual, que seria o mais
perigoso, pois trazia criticas ao sistema. (Alves, 2004, p.96, 112 e 114).

Como bem salientou Rubem Alves, esse conflito ideológico não se dá no campo
do debate, mas sim do poder, da força. “A decisão é feita por um processo politico.”
Nesse embate, o discurso dos vencidos é transformado ou tido como heréticos e dos
ortodoxos os vencedores, a verdade, cabendo então aos hereges a represália e
exclusão. Pensam os ortodoxos: Porque toleraríamos o pensamento divergente se
nossa instituição é possuidora da verdade? Porque um diálogo ecumênico se nada há
para aprender? (Alves, 2004, p.114-116).

35
Jornal A Tarde. Salvador (Ba), Terça-feira, 26 de julho de 1988.
O ecumenismo tem em sua origem uma proposta de aproximação entre os
cristãos para a ampliação da obra missionária, porém “(...) no Brasil passou de um
esforço de colaboração entre as igrejas para ser um agente histórico de transformação
política e social no país.”36. Em grande medida esse é um dos motivos que explicam o
porquê da maioria das igrejas evangélicas, aqui me refiro em especial à igreja batista,
mantiveram uma postura de recusa a participar desse movimento ecumênico
buscando reafirmar os seus princípios denominacionais como verdade bíblica a ser
seguida (Silva, 2010, p.59).

A Igreja Batista Nazareth se propõe a estabelecer relações com religiões de


diferentes matrizes por meio do ecumenismo, combatendo assim a intolerância e
questionando problemas sociais. Numa região como o estado da Bahia, de tão grande
diversidade cultural e de exclusão social, propostas como essas devem ser cada vez
mais germinadas na sociedade. Esse combate à intolerância não se restringe apenas a
questão religiosa, mas também às questões sociais, culturais, políticas e até mesmo
sexuais37.

Referências Bibliográficas

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Fundamentalistas sobre o Regime Militar em Feira De Santana (1964-1980). Relatório
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ALMEIDA, Luciane Silva de. “O comunismo é o ópio do povo”: representações dos


batistas sobre o comunismo, o ecumenismo e o governo militar na Bahia (1963 –
1975). Dissertação (Mestrado em História), UEFS, Feira de Santana, 2011.

ALVES, Rubem. Dogmatismo e tolerância. São Paulo, Edições Loyola, 2004, 174p.

ALVES, Rubem. Protestantismo e Repressão. São Paulo: Ática, 1979.

BOURDIEU, Pierre, A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2009.
361p.

CAVALCANTI, Ebenézer G. Os Batistas e o Ecumenismo (1970). Casa Publicadora


Batista.

DIAS, Agemir de Carvalho. O Movimento ecumênico no Brasil (1954-1994). A Serviço


da Igreja e dos Movimentos Populares. Tese de Doutorado. Curitiba: UFPR. 2007

FERREIRA, Muniz. Insurgência, Conciliação e Resistência na Trajetória do


Protestantismo Ecumênico Brasileiro. In: DIAS, André L. M.; COELHO NETO, Eurelino
36
Agemir de Carvalho Dias. O ECUMENISMO : Uma ótica protestante.
Professor da FEPAR. Este texto foi apresentado no I Simpósio Internacional de Religião, Religiosidades e
Cultura, promovido pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, p.1.
37
Filosofia da igreja Nazareth, outra abordagem in Igreja Batista Nazareth op. cit.. Não paginado.
T.; LEITE, Marcia M. da S. B. (org.). História, Cultura e Poder. Feira de Santa: Ed. da
UEFS/ Salvador: Edufba. 2010.

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MATOS, Alderi Souza de. A relevância da Reforma. Disponível em:


http://www.mackenzie.br/6973.html, Acessado em: 23 de março de 2013.

SANTANA, Ediane Lopes de. Campanha de desestabilização de Jango: as „donas‟ saem


às ruas! In Zachariadhes (org);Ditadura militar na Bahia: novos olhares, novos
objetos, novos horizontes – Salvador: EDUFBA, 2009. V. P. 13-29.
Silva, Elizete da. Protestantes e o Governo Militar: convergências e divergências. In:
ZACHARIADHES, (org.). Ditadura Militar na Bahia: novos olhares, novos objetos,
novos horizontes. Salvador: EDUFBA, 2009.

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Progressistas em Feira de Santana – Feira de Santana: Editora da UEFS, 2010, p. 171.
ZACHARIADHES, Grimaldo Carneiro (org); Ditadura militar na Bahia: novos olhares,
novos objetos, novos horizontes/ Grimaldo Carneiro Alex de Souza Ivo... et al. –
Salvador: EDUFBA, 2009. V.1, 286 p.
RELIGIOSIDADE POPULAR NO NORDESTE ORIENTAL DO BRASIL: A
MEDICALIZAÇÃO DO ESPIRITISMO E DE UMA SEITA “MISTERIOSA” NA
DÉCADA DE 1930.

Elaine Santana do Ó

RESUMO

O Brasil passou por grandes mudanças no que diz respeito à medicina, durante
a década de 1930. A medicina nesse momento entende que é através da observação
da sociedade que se pode “curar” seus males, por isso a prática de determinadas
religiões passaram a ser estudadas, e em sua maioria foram entendidas como algo
negativo a sanidade do homem. Dessa forma muitas dessas instituições passaram a
ser fiscalizadas pelo Estado, onde este fornecia ou não uma licença de funcionamento.
Os espaços que conseguiam conquistar a licença recebiam com freqüência
funcionários do Serviço de Higiene Mental (SHM), que observavam seus rituais, e
elaboravam artigos, que atualmente se encontram no arquivo de assistência aos
psicopatas. Disponho-me nesse artigo, a analisar estes documentos que atendem
diretamente ao Espiritismo e a uma “Seita” Panteísta própria desta época, com o
objetivo de compreender a relação existente entre religiosidade e doença mental na
década de trinta, sob o ponto de vista da medicina.

Palavras-chave: Religiosidade. Medicina. Alienados.

Introdução

Em um ano de pesquisa de Iniciação Cientifica tratei sobre a religiosidade


popular no Nordeste. Este artigo é um aprimoramento mais especifico sobre estes
estudos que venho desenvolvendo, onde busco agora, focar no espiritismo e em uma
seita panteísta que surge nos anos trinta. O objetivo é entender sob o ponto de vista
da medicina, quais eram os discursos utilizados por estes profissionais para com os
indivíduos praticantes destes segmentosreligiososna década de 1930. Para isto


Graduanda em História pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e em Museologia pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
analisei os artigos sobre religião e psiquiatria que se encontram publicados na revista
“Arquivo da Assistência a Psicopatas” o que nos possibilitou compreender melhor a
relação entre estas religiões e a medicina nesse período. Entendo essa pesquisa,
portanto, como sendo extremamente necessária para a historiografia brasileira pela
sua complexidade, necessária a sociedade porque memória é poder e a sociedade
precisa conhecer, e devido à escassez de estudos nesse sentido.

A década de 30 e seus contextos

Este período pode ser classificado como um dos mais sanguinários de toda a
história mundial. Foi na década de 30 que o mundo conheceu a política de Hitler, e
junto com ela assistiu ao genocídio do que ele denominava "raças inferiores", e ai
podemos entender como judeus, muçulmanos, gays e etc. No final da década de 30
em 1939 tem inicio a Segunda Guerra Mundial. Nos Estados Unidos, tem início o New
Deal, plano econômico de recuperação devido à quebra da bolsa de Nova York,
em 1929. Frente a todos esses acontecimentos é muito comum ouvir que essa foi a
pior década do século XX, já que teve inicio com a grande crise e terminou com
a guerra.
No Brasil, acontece a Revolução de 30, movimento comandado pelo Getúlio
Vargas. A Revolução Constitucionalista tem seu inicio em 1932, e em 1934 é
promulgada a nova Constituição. Chega ao fim a política do café-com-leite e tem início
o Estado Novo, em 1937. Só ocorrendo eleições no ano de 1945 com o fim do Estado
Novo. O Nordeste nessa época era uma região recém “reconhecida”, já que foi
formada no inicio dos anos 20. Era, portanto uma fase de afirmação de identidade
política, econômica, social, e cultural. Podemos identificar diversos trabalhos que
ajudaram a afirmar essa identidade, como “Casa Grande e Zenzala” e “Nordeste” de
Gilberto Freyre, sendo o primeiro escrito em 1933 e o segundo em 1937. Frente a
esses aspectos a região Nordeste reproduzia o autoritarismo e o controle que o Brasil
como um todo vivia nesse momento, e é o que veremos a seguir, tendo a religião
como elemento principal para percebemos esses aspectos.
O Espiritismo e sua relação com a medicina na década de trinta

Com a criação do serviço de Higiene Mental da Assistência a Psicopatas


começou a se fazer um estudo da prática do espiritismo para assim fosse feita uma
espécie de vigilância sobre esses cultos. O que levou o SHM a dar uma atenção
especial aos centros espíritas foi o grande número deles que existiam durante essa
fase, em Pernambuco, por exemplo, foram calculados 200 para a zona urbana, com
um numero não menor de seitas africanas, e o continuado aparecimento em Recife de
novas religiões, levou o serviço de higiene mental ao Estudo das Religiões. O SHM em
suas visitas constantes aos centros espíritas escreveu artigos, aos quais tive acesso, e
neles traçam o perfil dos médiuns dessa época. De acordo com Pedro Cavalcanti, um
dos membros do SHM, os médiuns em sua maioria eram analfabetos, ou tinham
instrução primaria, e alguns ainda de instrução rudimentar. Sempre eram
pertencentes às camadas mais baixas da população, o que o levava a crer que usavam
da mediunidade para obter lucros pecuniários. Mas o que mais o incomodava de fato
era que a maioria desses médiuns arriscava-se no curandeirismo. Logo, a prática do
espiritismo se instalou nas camadas mais baixas da população, estas que para a
medicina da década de 30 já constituía um problema policial e sanitário difícil de
resolver.
A prática daquilo que se convencionou chamar de “baixo
espiritismo” ou simplesmente “espiritismo” se alastrou tanto nas
baixas camadas da população que já constitui um problema
policial e sanitário difícil de resolver. São, em geral, indivíduos
que fazem dessas praticas, inteiramente deturpadas, um
rendoso meio de vida, os responsáveis pelos “centros” que se
encontra em todos os bairros da cidade, principalmente nos
hábitos pela população pobre. Em quase todos, os fenômenos
mediúnicos explorados são os tão conhecidos da auto-sugestão
com libertação do automatismo subconsciente, acompanhados,
quase sempre, de manifestações caracteristicamente pitiaticas.
(Lima, 1932, p. 138).

Em quase todos os fenômenos médiuns os médicos citavam a ocorrência da


libertação do subconsciente, e manifestações pitiaticas (perturbações nervosas ou
histéricas suscetíveis de cura pela sugestão). Segundo, Dinice Lima, Monitora do
Serviço de Higiene Mental da época, com exceções de poucos desses “centros” que
buscam fazer religião, todos os “centros” nada mais são que reuniões para o exercício
ilegal da medicina, pois sem nenhuma formalidade passam para o papel receitas que
os “espíritos” lhes ditavam.
Apesar de nos parecer que estes artigos são persuasivos, seus autores
afirmavam tratar do assunto com imparcialidade essas praticas que para eles, são
“ofensivas e prejudiciais a saúde mental”. Muitos desses adeptos chegaram a ser
internados no Hospital Ulysses Pernambucano, por estarem possuídos, e portando fora
de seu estado natural, e de sua razão. Dinice Lima afirma ainda que, seja qual for à
classe, em uma reunião o que não podia faltar, era a “manifestação”, o transe. Nele
afirmavam os fieis que um espírito do espaço, bom ou mau, zombeteiro ou caridoso,
baixa e entra no instrumento humano, o médium. As palavras e a escrita do
intermediário pertence ao ocupante, na grande maioria um bem feitor que vem
evangelizar ou aplacar a dor dos irmãos da terra, primeiramente acontece um discurso
e posteriormente a receita.

Discursando ou receitando nunca vimos nas sessões


visitadasao menos indicio de médium, servindo de instrumento,
demonstrar conhecimentos acima de suas capacidades, de sua
aprendizagem anterior. Não vimos, por exemplo, um só
médium analfabeto cuja mão algum espírito guiasse. Os centros
eram refúgios de pobres, gente ignorante que procura neles
aliviar seus males, núcleos onde pequenos psicopatas
encontram ambientes propicio para suas tendências mórbidas.
(Lima, 1932, p.141).

Segundo o SHM, nos anos 30 o “espiritismo” estava submetido à influência da


religião superior dominante do meio, o catolicismo, tendo o mesmo fato sido percebido
por Nina Rodrigues quando estudou as religiões dos negros da Bahia. E esses centros
espíritas não só se apropriavam de aspectos do catolicismo como também do
fetichismo africano, tendo os permitido afirmar que praticamente não existia em
Pernambuco o “puro” espiritismo, que seria a religião sem influência manifesta das
demais crenças e religiões. Os artigos afirmam ainda que somente dois núcleos
espíritas em Recife promovessem reuniões em que é desdobrado o evangelho próprio,
mas ainda assim, os fieis não conseguiam se livrar das sugestões católicas. As
imagens, os terços, as medalhas, as orações mais ou menos modificadas, apareciam a
cada momento na liturgia das reuniões. Muitos adeptos espíritas visitavam
comumente as igrejas católicas, e na quase totalidade dos centros que nós
observamos vimos estampa de santos.

Muitos adeptos espíritas visitam comumente as igrejas


católicas, E na quase totalidade dos centros por nós observados
vimos em profusão estampas de santos, floridas. Certa Médium
apresentou-nos, mesmo, chamando “o centro”, uma saleta na
qual estava armado um altar com velas, adornos, eromos,
estatuetas.(Lima, 1932, p. 139).

Essas religiões eram vistas pelo Serviço de Higiene Mental como um afronto a
medicina, pois em sua maioria eram criadas para o exercício ilegal da mesma e dá-se
a praticas mágico-fetichistas, determinando principalmente fenômenos de possessão,
o que era de grande interesse para o psiquiatra. Para os centros espíritas obterem
licença de funcionamento, tinham que submeter seus médiuns a exames. As Seitas
Africanas para obterem sua licença também tinham que submeter seus babalorixás a
testes psicológicos e exames clínicos.
Portanto, fica claro que não foram apenas as religiões afrodescendentes que
foram perseguidas e vigiadas durante a década de 30 como constantemente ouvimos,
geralmente, entre senso comum. Várias outras religiões foram controladas pela
medicina com o apoio do governo, dentre elas o espiritismo como vimos, e uma seita
panteísta que vamos conhecer adiante. E é válido acrescentar ainda que não eram
apenas as religiões os elementos que a medicina estudava durante esse período, mas
diversas outras aspectos que o recorte deste artigo não nos permite explorar. Mas
para situar o leitor, é importante informar que o Professor Ulysses Pernambucano
fazia critica frequentes as estatísticas feitas pelos psiquiatras. Pois ele enxergava dois
defeitos nas estatísticas, o primeiro é que só se fazia para atender aos pedidos das
repartições de estatísticas, e o outro defeito das estatísticas é que elas só forneciam
informações sobre a frequência das doenças segundo o numero de doentes
internados. A multidão de problemas que fervilha em torno desses doentes e dessas
doenças nem se quer era levado em conta. O papel de fatores biológicos como a
hereditariedade, tóxicos, e infecciosos (alcoolismo e sífilis em certas psicoses), sociais
(condições de vida, estudo do meio, influencia de religiões, fetichismo,etc.), muito
raramente faziam parte das estatísticas.

Seita “misteriosa”

Nessa varredura pelos espaços de cultos religiosos, o SHM encontrou em


fundão, um bairro da zona norte da capital Pernambucana, uma Seita curiosa que tem
o seu templo funcionava como um círculo de adoração aos planetas. Na documentação
mais uma vez encontramos um enfoque nos bairros em que essas seitas entram
geralmente encontradas, bairros pobres, onde residiam pessoas de poucas condições
financeiras e com empregos simples.Além dessa Seita, é valido ressaltar a presença
de centros espíritas e de religiõesafrodescendentes nesse mesmo bairro.
Segundo Pedro Cavalcanti, autor do artigo da década de 30 que fala sobre essa
seita, o templo tinha uma arquitetura e uma aparência bizarra. Nos cultos Homens e
mulheres eram separados, e tanto a diretoria quanto os visitantes também tinham
seus lugares separados. Nas salas do templo existiam esculturas grosseiramente feitas
em gesso, cabeças que representavam marte, júpiter, Netuno e Urano. Apoiando as
duas extremidades sobre o altar estava uma grande estrela também em massa
chamada, Vestra. As paredes eram em alto relevo e possuía frases, como estas: A
natureza mãe do universo; Deus tudo quanto a bom.
Os cultos eram realizados no templo pelos adoradores nas terças,
quintas e domingos a noite, ou em excursões que eram por eles realizadas a
cachoeiras, rios, serras e etc. Algumas vezes ficavam em vigília a noite toda para
adorar a estrela Dalva. Nos cultos eram proclamados versos que Pedro Cavalcanti
dizia ser pobre em sentido e em rima onde se faziam referencias as águas, as
florestas, a lua, e aos planetas. Depois acontecem cânticos, que são mais uma vez
determinados por Cavalcanti como pobres e monótonos, chegando a compará-los com
as musicas cantadas por protestantes. Pedro afirma ainda em seu artigo que durante
os cultos os fieis falavam em alguns momentos uma língua improvisada.

Eis alguns côros que são cantados:


A natureza que tanto nos dava
E a primavera que as luzes mudavam.
Deus te salve as nuvens e a lua
O sol nos avistou
Deus te salve as estrelas,
Que nas águas morou.
Veja o sol
E também o luar
Minha estrela
Nós adorar.
(Cavalcanti, 1933, p. 61)

Um dos aspectos que mais me chamou atenção frente ao material que


examinei é que os adoradores apresentam uma fobia acentuada pelas demais
religiões, inclusive com a igreja católica, com a qual, inclusive, são bem irreverentes.
Deixavam pra trás carga de sofrimento que a igreja Católica carrega nas “costas” e
tem o otimismo como ponto fundamental, e esse é o motivo, pelo qual não
acreditavam em Cristo utilizavam só seguinte questionamento, “Se ele era filho de
Deus porque sofreu tanto?”. Eles tinham o sofrimento como um mal. Alegres, os
adeptos do circulo deveriam ser homens exemplares, não devia fumar, nem beber, e
nem desejar a mulher do próximo. Para que isso realmente ocorresse, havia uma
vigilância recíproca entre os fieis pra que esses pontos fossem cumpridos. Como a
seita que visava à natureza, os filhos dos adoradores devem ser criados ao ar livre e
por isso, raramente eles adoeciam. Para manter a saúde, os adoradores sempre
tinham em sua casa água irradiada, da qual bebem um pouco diariamente, onde dela
faziam uso medicinal e assim acreditavam conservar a saúde.
Pedro Cavalcanti em seu artigo compara claramente esta seita ao espiritismo e
ao candomblé, tendo em vista que também foi possível observar em cerimônias
pessoas em estado de transe, e inclusive crianças.
Sem querermos nos meter em divagações filosóficas
aventamos classificar o Circulo Deus e Verdade como uma Seita
Panteísta.Isto Mao grado a grande mistura de religiões de que é
feita. A irradiação dos planetas nas crianças lembra de perto a
queda no santo dos terreiros africanos. Para quem já assistiu a
ambos, como nós, o paralelo é absolutamente justo.A salientar,
porém, que nos terreiros dos candomblés o espetáculo é de
uma intensidade maior já pelo barulho ensurdecedor [sic], já
que pelos cânticos e danças de que é acompanhado. No circulo
a irradiação se inicia por movimentos ritmados da cabeça, do
corpo e debaixo de um silencio absoluto. Pouco e pouco aquelas
crianças ficam como que possuídas de uma força estranha.
Conservam as pálpebras semicerradas, a fisionomia se reveste
de um ar de concentração. Os movimentos vão se acelerando,
chegando a ponto de fazer pena aquele esforço físico em
criaturas tão jovens. (Cavalcanti, 1933, p. 62)

Longe de querer tratar essa religião, hoje desaparecida, como inferior,


apresentei aqui a visão da época aqui estudada para que possamos entender como a
medicina e o governo da década de 30 enxergava esse tipo de reunião e culto. Utilizei-
me da palavra “Seita” porque foi como a medicina a denominou em seus estudos
naquele momento, como sendo uma “Seita Panteísta”, pelo fato de adorarem vários
elementos, como os planetas, e a natureza no geral.

Considerações Finais

O que vimos nesse artigo é que o serviço de higiene mental durante a década
de 30 se interessou em estudar algumas religiões, principalmente as por eles tidas
como “inferiores”. Acreditava-se que essas religiões desenvolviam anormalmente a
cultura do subconsciente, causando manifestações mórbidas do “automatismo
psicológico”. Portanto para eles, conhecer essas religiões que se desenvolviam e
cresciam rapidamente nas cidades, principalmente no seio da população inculta, é ter
informações seguras sobre a probabilidade de verdadeiras epidemias que povoavam
os asilos e, às vezes faziam correr o sangue. De qualquer modo conhecê-las
significava ficar armado de elementos para uma intervenção profilática em momento
oportuno. Logo o objetivo maior desse artigo, é informar ao leitor o pensamento que
assolava a medicina e o governo brasileiro em 1930, e dessa forma contribuir com a
história e com a memória de nossa sociedade, já que memória é poder. Portanto
busquei dar poder ao leitor desse estudo, para que ele use quando achar devido,
afinal é essa a função da história, dar conhecimento de um passado para que se
compreenda se mude, ou pelo menos, se questione o presente. Uma sociedade sem
memória é um sociedade sem identidade.
Referências Bibliográficas:

Livro:
CARNEIRO, Edison. Religiões Negras- Negros Bantos. São Paulo:
Edições Civilização Brasileira, 1981.
RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Edições Madras,
2008.

Tese:
DANTAS, Zuleica. O Combate ao Catimbó: práticas repressivas às
religiões afro-umbandistas nos anos trinta e quarenta. Tese (doutorado em
História) UFPE, Recife, 2001.

Artigo:
CAMPOS, Helena. As Doenças Mentais Entre os Negros de Pernambuco.
Assistência a Psicopatas, 1932,p. 120.
CAVALCANTI, Pedro. Contribuição ao estudo do estado mental dos
médiuns. Assistência aos Psicopatas, 1934, p. 135.
LIMA,Dinice.Investigações sobre as religiões no Recife “O espiritismo”.
Assistência aos Psicopatas, 1932, p. 138.
NETO, Gonsalves de Mello. Do Negro. Assistência aos Psicopatas, 1933, p.
177.
PERNAMBUCANO, Ulysses. Ideas e Realizações. Assistência aos Psicopatas,
1932, p. 3.
CAMPOS, Helena. As Doenças Mentais Entre os Negros de Pernambuco.
Assistência aos Psicopatas, 1932, p. 120.
FERRAZ, Álvaro. Raça e Constituição individual. Assistência aos Psicopatas,
1935, p. 189.
Protestantismo e Resistência aos Governos Militares no Brasil

Elizete da Silva

Professora Titular Plena da UEFS

“E Não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação das
vossas mentes.”

(Bíblia Sagrada)

INTRODUÇÃO

No inicio da década de 1970, um grupo de protestantes ecumênicos e alguns


católicos, fundaram a Coordenadoria Ecumênica de Serviços (CESE), sediada em
Salvador, sob os auspícios do Conselho Mundial de Igrejas (CMI). O primeiro
projeto de relevância que a CESE patrocinou foi uma campanha sobre os Direitos
Humanos, iniciada em 1973, em plena vigência da Ditadura Civil –militar, instalada
em 1964 no País. A entidade foi uma das primeiras organizações a encetar uma
estratégia sistemática de luta pelos Direitos Humanos, no período. Pretendemos
analisar os fatores que contribuíram para a atuação desse segmento ecumênico,
bem como a repercussão dessa campanha oposicionista no processo de resistência
de setores religiosos ao regime militar no Brasil.

A relação entre religião e política tem sido destacada por diversos estudiosos a
exemplo de François Houtart, quando ressaltou o papel das utopias religiosas nos
movimentos messiânicos e na Teologia da Libertação. (HOUTART, 1994) Na
perspectiva de Pierre Bourdieu (1974), o conceito de campo religioso, preconizou as
correlações entre a religião e as estruturas sociais. As instituições religiosas e os
seus agentes buscam a transcendência, a salvação e as práticas espirituais, porém
vivem as injunções do cotidiano e das disputas de poder que ocorrem em qualquer
grupo social.

No âmbito do protestantismo, os vínculos com o contexto histórico e as estruturas


políticas têm ocorrido desde os primórdios do Século XVI, nas origens da fé
reformada. A radicalidade da leitura do texto bíblico serviu de inspiração e força
motriz para o movimento camponês anabatista na Europa, especialmente na
Alemanha. Discorrendo sobre a Inglaterra no século XVII, em a Bíblia Inglesa e as
revoluções do século XVII, Hill (2003, p.283) analisou criteriosamente toda a
literatura revolucionária e como a mesma estava baseada no texto bíblico, no livre
exame dos protestantes radicais, não da ortodoxia anglicana.
No Brasil, por longas décadas, decorrentes de vários fatores históricos, os
protestantes mantiveram atitudes e práticas absenteistas em relação aos aspectos
políticos. Pensavam, que na vivência cristã não cabia a participação em partidos ou
entidades coletivas com projetos sociopolíticos. Votavam nas eleições, pois o voto
era obrigatório, e seguiam fielmente a máxima bíblica da obediência às autoridades
vigentes, pois tinham sido constituídas por Deus.Quando muito oravam pelos
homens que estavam investidos de poder e pela liberdade religiosa no País.

No âmbito do protestantismo, a criação do Conselho Mundial de Igrejas


(CMI) em 1948 foi um aspecto incentivador nas reflexões sobre as questões sociais
e a política, o qual realizou a sua primeira assembleia em Amsterdã, com o
significativo tema: A desordem humana e o desígnio de Deus. A assembleia
inaugural do CMI reuniu cento e quarenta igrejas com o firme propósito de uma
“aliança ecumênica que tem seu fundamento na fé cristã e que se manifesta no
compromisso de trabalhar concretamente pelo Reino de Deus”.
A Confederação Evangélica do Brasil acompanhava toda essa movimentação.
Pela iniciativa de Waldo Cesar e R. Shaull e com o respaldo do CMI criaram a
secção Igreja e Sociedade com o objetivo de refletir e propor alternativas na
solução dos problemas sociais. Foi um ambicioso projeto que se desdobrou em
ações efetivas e na realização de quatro grandes conferências nacionais que tinham
como objetivo central debater os problemas brasileiros e apresentar soluções à luz
da ética cristã. A Primeira Conferência realizou-se em 1955, com o título Consulta
Sobre a Realidade Social da Igreja. A segunda Conferência, intitulada Reunião
sobre a Responsabilidade Social da Igreja, aconteceu em 1957. A terceira
Conferência tratou da Presença da Igreja na Evolução Nacional, em 1960, todas
ocorreram em São Paulo.(SILVA,2010)
A quarta Conferência do Setor de Responsabilidade Social da Igreja da
Confederação Evangélica do Brasil reuniu-se em Recife, Pernambuco, de 22 a 29 de
julho de 1962. O tema geral foi Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro. A
pauta era ampla, incluindo as questões eclesiásticas internas, a movimentação da
Igreja Católica e o cenário nacional. Essa conferência ficou conhecida como a
Conferência do Nordeste, região escolhida em decorrência dos conflitos e
inquietações sociais que ocorriam no campo e na cidade naquela conjuntura.
Reverendo João Dias Araújo tratou do “Conteúdo Revolucionário do ensino de Jesus
sobre o Reino de Deus; Reverendo Edmond Sherrill discorreu a respeito da “Missão
total da Igreja numa Sociedade em crise”. Os cientistas convidados trataram da
situação do País, a exemplo de Paul Singer Juarez Alves e Celso Furtado. (SILVA,
2010)
PROTESTANTES ALINHADOS e REPRESSÃO MILITAR

As consultas da Confederação Evangélica cessaram após o golpe civil-militar de


1964. Foram apenas quatro eventos que tiveram uma forte repercussão na
comunidade protestante, tanto positivamente ao ampliar o raio de ação dos
progressistas, tanto negativamente ao se observar a reação conservadora dos
fundamentalistas. O campo protestante estava cindido e o ponto da divergência era
a questão da ética e do ecumenismo. Segundo Shaull, (2003, p. 179).

As conferências do Setor Social também repercutiram entre os católicos, em meio a


setores significativos como a Juventude Universitária Católica, que teve
representação oficial na Conferência do Nordeste. O jornal católico Brasil Urgente,
mais tarde censurado e fechado, dedicou as páginas nobres ao evento, reafirmando
que o protestantismo brasileiro tinha duas grandes fases: antes e depois da
Conferência do Nordeste.

O novo discurso progressista desse setor evangélico e ecumênico também


repercutiu negativamente e a reação conservadora foi imediata. Nas páginas do
Jornal Brasil Presbiteriano, o debate entre os dois grupos fez-se de forma intensa,
pelo menos até abril de 1964. O editor do jornal presbiteriano certamente, já
sofrendo pressões da hierarquia presbiteral, reverberou num editorial o clima que
se vivia na comunidade presbiteriana: “Não tirem do jornalista a liberdade
democrática de deixar a cada qual dizer o que bem entende, desde que faça em
termos. A hora é revolucionária. Precisamos ajudar a revolução com o Evangelho e
dentro da democracia, antes que a revolução seja feita sem o Evangelho e sem
democracia” (cit. ARAÚJO, Brasil Presbiteriano, agosto de 1963).

A luta de representações entre os dois grupos continuou acirrada e tomou feições


políticas típicas daquele período de conturbação política e fermentação ideológica.
Os protestantes traziam para a arena eclesiástica a polarização em que vivia a
sociedade brasileira. Em julho de 1964, no ambiente de “caça às bruxas”
instaurado pelo governo militar, começou o expurgo de professores dos seminários
presbiterianos e conflitos entre seminaristas e as autoridades da hierarquia
presbiteral.

A repressão externa ao grupo progressista também foi muito forte. Convém salientar
que a movimentação da Comissão de Igreja e Sociedade, desde os anos 1960,
levantou a suspeita dos órgãos militares de repressão, afinal de contas os “crentes”
deixavam de ser respeitosos e submissos às autoridades constituídas. Recordou um
dos organizadores da comissão: “A visita de um agente do Departamento de Ordem
Política e Social (DOPS) e o interrogatório a que submeteu Waldo Cesar indicavam o
quanto nosso trabalho ultrapassara os limites eclesiásticos e instigava as autoridades
da chamada segurança nacional” (SHAULL, 2003, p. 180).

Com o golpe civil-militar de 1964, a repressão se intensificou não só pelo


alinhamento tradicional do protestantismo aos governos de plantão, mas também
pelas relações e vínculos de alguns ilustres protestantes ao regime. Araújo (1985)
sugeriu que a “Igreja Presbiteriana foi a mais envolvida e a mais comprometida
com a revolução de 1964 por causa das ligações dessa Igreja com a classe média e
por causa do prestígio político que ela gozava nos meios políticos e militares” Vários
presbiterianos ocuparam cargos durante a Ditadura civil-militar.

Os desencontros e as desavenças entre progressistas e a hierarquia presbiterial


aconteceu em várias regiões do País. Rubem Alves, (1987, p. 31) na época pastor
presbiteriano no interior de Minas Gerais, além de sofrer as acusações e punições
do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana, foi denunciado como subversivo aos
militares. Havia um dossiê com denúncias “dos próprios irmãos, inclusive da
direção do Instituto Gammom, escola protestante...”. Quanto às acusações do
Concílio Presbiteral, “eram mais de quarenta”, graves e virulentas não só do ponto
de vista religioso quanto político.

Amedrontado pelos militares e cansado de lutar nas estruturas eclesiásticas, Alves


aceitou um convite da Igreja Presbiteriana dos EUA para fazer um doutorado no
Seminário Teológico de Princeton, tradicional instituição presbiteriana, onde o seu
mestre Richard Shaull era professor.

Em 1969, o jornal evangélico ecumênico Cristianismo publicou um longo artigo


relatando a deposição do Reverendo Gerd Wenzel do Presbitério do Rio Doce – MG.
“O pastor foi acusado de assumir uma posição contrária aos princípios da IPB.
Entretanto, esta acusação nunca foi provada, nem tampouco denunciada, como
manda o artigo 42 § 2 do Código de Disciplina”. Com os pastores do Presbitério de
Salvador aconteceu de forma semelhante. Quanto aos princípios contrários,
certamente se referiam ao ecumenismo e às preocupações sociais e políticas.

Os setores mais conservadores, especialmente a hierarquia das referidas comunidades,


condenaram o pensamento progressista de forma bastante agressiva. Em 1966, na
Igreja Presbiteriana, o grupo inovador era denominado de “a esquerda que caminha
pelo Evangelho Social”. Em um artigo publicado no Brasil Presbiteriano, acusavam o
grupo de facilitar a “licenciosidade teológica e de ceder às tentações do sincretismo
programado pela Igreja Romana e o Conselho Mundial de Igrejas”. Utilizando-se de
uma prática comum aos que têm o poder de definir a ortodoxia, satanizam o
pensamento divergente: “É hora de dizermos não ao enganador e como discípulos de
Jesus Cristo importa ergamos alto o brado de repressão: vai-te satanás”. (O BRASIL
PRESBITERIANO no 14/16,1966, p. 08) Lançaram mão de uma representação do bem
x mal, Deus x satanás, para marginalizar e condenar o que consideravam uma heresia.

A delação transformou-se num ato de serviço à pátria e a Deus. Aqueles que


pertenciam a partidos de linha socialista passaram a compor as listas dos irmãos.
Na Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), proporcionalmente mais politizada e
atuante, a questão foi aberta no próprio Supremo Concílio. Durante a reunião do
Supremo Concílio em Fortaleza (1966), falou-se em regime de exceção dentro da
Igreja. Um presbítero general do exército propôs que nenhum pastor podia
pertencer a um partido político de orientação socialista. Essa proposta não foi
aceita. Outro presbítero, também oficial do exército, dizia aos delegados, nos
corredores, que “era soldado de Cristo e soldado da pátria e como soldado da pátria
tinha o dever de denunciar às autoridades qualquer irmão suspeito de subversão
(ARAÚJO, 1985, p. 53).

Na Confederação Evangélica do Brasil (CEB), logo após o golpe de 1964, o Presidente


em exercício Amantino Vassão imprimiu uma linha mais conservadora, perdendo
aquela visão social dos anos anteriores. O Setor de Responsabilidade Social não deu
continuidade aos planos previstos para o triênio pós 1963. O discurso e as práticas
conservadores ganharam o debate: tanto o Setor da Mocidade quando o Setor de
Responsabilidade Social foram fechados e os seus líderes demitidos. As causas
apontadas para o fechamento do Setor de Responsabilidade Social, juntamente com
outros que eram dirigidos por pessoas progressistas como o sociólogo Jether Ramalho
e o Reverendo Domício de Matos, tinham um conteúdo puramente ideológico (SILVA,
2010).

Como ocorreu no interior das denominações protestantes, o grupo progressista foi


expurgado também da CEB. O escritório de Waldo Cesar foi invadido pela polícia em
1967; o mesmo foi preso pelos militares acusado de subversão, na época ele era
editor da Revista Paz e Terra, a qual tinha uma proposta “ecumênica e humanista”.
Os seus delatores foram os irmãos presbiterianos.

O Conselho Mundial de Igrejas e a Ação Social e Política dos Protestantes

Em Feira de Santana em 1970, sob os auspícios do Conselho Mundial de Igrejas,


foi realizada uma pré-consulta, na qual, se discutiram os problemas sociais do País,
especialmente os nordestinos. Participaram do evento várias denominações
evangélicas, a Igreja Católica, representada pelo Padre Albertino Carneiro, na
época um atuante clérigo progressista na região e vinculado à Teologia da
Libertação (ENTREVISTA EM 15/12/2006).
Do final de julho a quatro de agosto de 1972 realizou-se em Salvador uma Consulta
do Conselho Mundial de Igrejas “com a finalidade de se fixarem orientações para
ajuda de Igrejas ou entidades estrangeiras às Igrejas Evangélicas no seu trabalho
de ação social (DOCUMENTOS AVULSOS DA CESE – CONCLUSÕES DO ENCONTRO
SOBRE CONSULTA ECUMÊNICA). A coordenação do conclave ficou sob a
responsabilidade de Enilson Rocha, (presbiteriano e posteriormente membro da
Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para Cristo) Frei Felix Neefjes (católico) e os
Reverendos presbiterianos Josué Mello e Celso Dourado, atuantes líderes
ecumênicos e vinculados a projetos sociais como o Serviço de Integração do
Migrante,localizado em Feira de Santana, Bahia, além de fiéis discípulos de R.
Shaull da década de 1950.

Participaram ainda da Consulta representantes das igrejas – membros do CMI no


Brasil, isto é, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana, Igreja Metodista do Brasil,
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil e a Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil Para
Cristo, além do clérigo católico citado representando a CNBB, o Arcebispo Primaz do
Brasil D. Avelar Brandão Vilela participou ativamente. Representaram o CMI o Rev.
Allan Brash e o Rev. João D. Parahyba da Silva, líder metodista atuante desde a
década de 1950, que inaugurou a Consulta com uma palestra sobre o avanço da
pobreza no mundo e no Brasil.

Nas fontes consultadas ficou claro que a linha de atuação seguida pelo CMI norteou
desde as origens a Coordenadoria Ecumênica de Serviço. Em junho de 1973 as
igrejas nacionais que participavam do CMI organizaram, formalmente, a
Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) com uma proposta corajosa de
cooperação, recusando o assistencialismo e o proselitismo dominante entre as
instituições eclesiásticas evangélicas. Buscava-se um serviço social aos
empobrecidos, com uma visão ecumênica de respeito à diversidade religiosa
reinante no País.

Com o golpe militar de 1964 muitos líderes leigos e pastores progressistas foram
perseguidos pela Ditadura e os setores da Confederação Evangélica do Brasil que se
dedicavam às intervenções sociais e políticas foram desativados. Conforme a
documentação pesquisada podemos afirmar que as preocupações sociais e políticas
do setor protestante progressista persistiram, numa tentativa de resistência e
organização coletiva. A CESE é a legítima herdeira desse grupo, especificamente do
setor de Projetos da CEB.

A entidade foi criada e sediada no Nordeste, em Salvador, por razões muito claras.
As desigualdades e as distorções regionais que assolavam o território brasileiro
adentraram também nos arraiais protestantes, especialmente na divisão do “bolo”
da ajuda financeira que era enviada pelas instituições eclesiásticas da Europa e dos
EUA. Os nordestinos ficavam sempre com a menor fatia. Segundo Enilson Rocha,
primeiro secretário executivo da CESE, a escolha da sede em terras soteropolitanas
foi uma forma de reverter “o pecado da má distribuição dos recursos cooperantes
aportados no País. Cerca de 82% eram destinados na década de 60 à Região Sul”(
SOUZA, Enilson.CESE-1997).

Embora sediada no Nordeste brasileiro e priorizando essa região bem como a Norte
do País, a CESE ao longo de sua trajetória também tem apoiado projetos oriundos
das demais regiões do País. “Em entrevista concedida aos autores o Rev. Josué
Mello referiu-se à escolha da Bahia para sediar a CESE de forma semelhante. “Era
preciso acabar com as distorções na administração dos recursos que vinham das
agências estrangeiras...” na sua concepção a criação da Coordenadoria Ecumênica
de Serviço resolveria o problema. Convém destacar que o Rev. Mello já tinha uma
razoável experiência com projetos e a ajuda das instituições eclesiásticas
estrangeiras. Tanto a Associação Feirense de Ação Social (AFAS) (1967) e o Serviço
de Integração de Migrantes, (1972) fundados em Feira de Santana, sob a liderança
de Mello, recebiam tais recursos financeiros do CMI e da EZE alemã (ENTREVISTA,
MELLO, 2007).

A motivação principal que animou a organização da CESE foi a preocupação com os


problemas sociais do País e a possibilidade de intervir e transformar a realidade
excludente que se vivia e vive na sociedade brasileira. Buscava-se servir ao
próximo na perspectiva cristã, sobretudo à maioria da população que vivia na
pobreza ou na linha da miséria. A concepção de serviço que presidiu as atitudes e
ações dos fundadores da CESE partia de uma visão cristã, cara aos defensores do
Evangelho Social ou da teologia barthiana, na qual o Evangelho é para totalidade
do homem, não apenas para a salvação futura, mas também para antecipar na
vivência cotidiana os valores do Reino de Deus, de promoção da justiça e
transformação social.

Já na Consulta de 1972, que antecedeu a criação da CESE, os fundadores


traçavam um programa de ação, calçado em uma “filosofia de colaboração”, a qual
reconhecia as relações sociais injustas e preconizava eficácia do Evangelho
Libertador na promoção das transformações sociais e políticas. Conforme o
documento final do conclave: “a igreja, serva do mundo, continua no tempo a
missão de Cristo. Sua ação no campo social consiste na evangelização libertadora,
esperança para os homens no desespero que caracteriza o tempo presente” (CESE-
CONCLUSÕES SOBRE CONSULTA ECUMÊNICA).
O Rev. Jaime Wright, um presbiteriano progressista e engajado nessa
perspectiva transformadora do Evangelho, assim se expressou: “A igreja deve
cuidar não apenas da salvação da alma, mas do homem como um todo, dar a ele
condições de vida de se integrar ativamente no contexto da sociedade. Nas regiões
Norte e Nordeste se concentra um dos maiores focos de pobreza do mundo”(
TRIBUNA DA BAHIA, 15/07/1974, p. 3).
Os promotores da CESE eram portadores de uma visão articulada da
realidade, queriam a promoção humana e dos indivíduos, porém vinculada ao
contexto social, às estruturas dominantes e determinantes, as quais também
precisavam se modificar a partir da proclamação e prática das doutrinas cristãs.
Numa perspectiva profética - entendemos tal perspectiva no sentido usado por
Pierre Bourdieau,(1974) isto é, de agentes religiosos portadores duma nova
mensagem vivificadora em meio à crise - denunciavam os pecados/problemas
sociais e anunciavam a possibilidade de mudanças sociais estruturais: “para
humanizar as estruturas, a Igreja apresentará na sua vida e na sua ação sinais do
Reino. Isso implica numa ação não só anunciadora, mas crítica de si mesma e do
mundo” (CESE – CONCLUSÔES do ENCONTRO SOBRE CONSULTA ECUMÊNICA).
Convém destacar que ao longo da trajetória da CESE essa perspectiva de
colaboradora nas transformações sociais tem persistido como princípio fundante e
norteador de sua estratégia de ação. Para um setor protestante ecumênico e
progressista vinculado organicamente ao Conselho Mundial de Igrejas e para a
Igreja Católica a Coordenadoria Ecumênica de Serviço funcionava e funciona como
uma entidade central que possibilitava, financiava, organizava as ações sociais em
que as comunidades religiosas estavam envolvidas.

DIREITOS HUMANOS na PAUTA dos PROTESTANTES

O primeiro projeto de relevância nacional que a CESE patrocinou foi uma


campanha sobre os Direitos Humanos, iniciada em 1973, em plena vigência da
Ditadura civil-militar, instalada em 1964 no País. Ao que nos consta, a entidade foi
uma das primeiras organizações brasileiras a encetar uma estratégia sistemática de
luta pelos Direitos Humanos, no período. Conforme os documentos da diretoria da
CESE o sociólogo Waldo César, um dos articuladores do setor progressista
protestante, foi redator e executor do projeto, o qual incluía palestras, grupos de
apoio e a publicação do texto integral da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, em forma de cartilha, acrescida “onde possível de um texto por extenso
do Velho Testamento e outro do Novo Testamento” (LIVRO de ATAS da DIRETORIA
da CESE ata no 3, 14/09/1973 p. 4).
Os 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos foram
apresentados de per si, acompanhados de textos bíblicos e um pequeno comentário
extraído de documentos das diversas comunidades religiosas próximas ou
organicamente vinculadas à CESE. Eis a apresentação do Artigo I: “Todos os
homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e
consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.
Logo após, aparecia em destaque os seguintes textos bíblicos: “Proclamareis
liberdade na terra a todos os seus moradores. (LN 25,10) e Homens, vós sois
irmãos: por que vos ofendeis uns aos outros? (At. 7,26). Seguia um comentário
sobre a paz social extraído da Pastoral Gaudium et Spes da Igreja Católica e um
extrato da Declaração da V Assembléia Mundial de Igrejas vinculada ao ramo
protestante, o qual rezava sobre a justiça e a observância dos direitos como uma
reivindicação divina: “Deus quer uma sociedade em que todos possam exercer
plenamente os direitos humanos. Todos os seres humanos são criados à imagem de
Deus, para serem iguais, infinitamente preciosos para Deus e para nós” (CESE,
DECLARAÇÃO UNIVERSAL dos DIREITOS HUMANOS .2000 p. 3).
Além de Waldo César, o Rev. Jaime Wright participou ativamente do projeto
sobre os Direitos Humanos, tornando-se também um dos executores do Brasil
Nunca Mais, juntamente com líderes católicos, a exemplo de D. Paulo Evaristo Arns,
arcebispo de São Paulo no período. Rev. Wright foi responsável pela 4a edição da
cartilha, publicada em 1977. Entre 1973 e 1978 “foram publicados um milhão e
oitocentos mil exemplares da cartilha”. (CESE, DECLARAÇÃO UNIVERSAL dos
DIREITOS HUMANOS .2000 p. 3).
O projeto Brasil Nunca Mais em defesa dos Direitos Humanos e contra a
violência política do governo militar contou com o aporte financeiro do CMI e
intermediação institucional da CESE. A Pastoral dos Direitos Humanos encetada
pelo arcebispo católico D. Arns contou com substancial apoio logístico e financeiro
da entidade. Correspondências entre representantes da Arquidiocese de São Paulo
e a CESE comprovam o envolvimento e a parceria ecumênica na luta dos cidadãos
brasileiros contra a ditadura militar e o terrorismo de estado que se instalaram no
País, após 1964.

A Cartilha dos Direitos Humanos pretendia ser didática e atingir


prioritariamente os grupos cristãos, sensibilizando-os para o cumprimento das
normas prescritas na declaração, dentro do território nacional. Ao final da cartilha
apresentava-se em gráfico um índice dos textos bíblicos citados em cada artigo. A
insistência em justificar os artigos com a citação da Bíblia Sagrada deve-se ao fato
da centralidade das Sagradas Escrituras entre os cristãos, especialmente das
denominações protestantes. Tratava-se de uma leitura contextualizada do texto
bíblico, fundamentando a participação política dos fiéis, enfocando as relações entre
a fé e a intervenção social, originárias das concepções progressistas e ecumênicas
de setores protestantes e católicos, já analisadas anteriormente.

Na última página da Cartilha dos Direitos Humanos apresentavam-se


sugestões para melhor aproveitá-la, individualmente ou em grupos e de forma clara
conclamava os leitores à reflexão e a ações práticas tais como:

a) comparar com a nossa realidade e verificar quais são os artigos da


Declaração Universal dos Direitos Humanos mais violados entre nós.

b) que tipo de ação você ou seu grupo poderia desenvolver para diminuir ou
preferivelmente, eliminar estas violações? (CESE, DECLARAÇÃO UNIVERSAL dos
DIREITOS HUMANOS .2000 p. 3).
Num momento em que o Brasil vivia sob o arbítrio dos governos militares, a
eficácia de tal campanha, inclusive o caráter formador de construção de cidadania e
resistência política, certamente incomodou os defensores do golpe. Além de
orações e reflexões bíblicas, incentivava-se a criação de grupos organizados e
atuantes. “Para as circunscrições eclesiásticas (dioceses, presbitérios, paróquias
etc) criar centros de Defesa dos Direitos Humanos”, recomendava a sugestão de
número 3. Aos grupos não eclesiásticos sugeriam reuniões, teatro, concurso de
cartazes, poesias e a denúncia de violações dos Direitos humanos de que
tomassem conhecimento. (CESE, DECLARAÇÃO UNIVERSAL dos DIREITOS
HUMANOS .2000 p. 3).
O processo de conscientização deveria culminar com ações práticas de conotação
política.

A CESE apoiou orgânica e financeiramente a criação de vários comitês que lutavam


pela anistia de presos políticos e direitos humanos no Brasil, a exemplo do comitê
de Santo André, da Bahia, Maranhão, Ceará, Minas Gerais, dentre outros. Em 1982,
financiou totalmente a criação do Movimento Nacional de Direitos Humanos no
Brasil. A entidade apoiou ainda exilados latino-americanos perseguidos em seus
países de origem, a exemplo do Projeto Cone Sul, liderado por J. Wright.

A cartilha contendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos espraiou-se de


norte a sul do território nacional, cumprindo o seu papel de instrumento na
alfabetização política de brasileiros, que em sua maioria vivia destituída de um
patamar mínimo de civilidade, que pudesse ser compreendido como cidadania. Um
exemplo eloqüente do raio de ação desse projeto da CESE foi o episódio do
massacre de presidiários em Carandiru, São Paulo, em 1992, quando os
sobreviventes aos gritos e acuados empunharam um exemplar da Cartilha dos
Direitos Humanos, publicada pela entidade, lutando pelo mais básico direito
humano: o direito à vida, de dispor da sua própria existência.

A foto, testemunho histórico para a posteridade do massacre, foi estampada


em vários meios de comunicação nacional e internacional, (vide iconografia,
página...). Não sabemos o percurso da cartilha até chegar às mãos de presidiários
de Carandiru. Talvez levada por algum religioso devoto, ou advogado atencioso e
consciente do seu ofício, o certo é que aqueles homens tratados como bestas feras,
brandiram a Declaração dos Direitos Humanos como um grito de liberdade, “um
suspiro da criatura oprimida”, como nos dizia Marx ( MARX, Karl. Crítica da Filosofia
do Direito de Hegel.p.46), ao referir-se à alienação humana impingida pela
sociedade desigual e injusta.
A campanha pelos Direitos Humanos encetada pela CESE foi financiada pelo
CMI, o qual desde o final dos anos 60 apoiou vários movimentos sociais que
lutavam por liberdades democráticas na América Latina, prenhe de governos
golpistas liderados por militares naquela conjuntura. O CMI organizou um comitê
específico para tratar dos Direitos Humanos, o qual teve uma intensa atuação na
resistência à violência dos militares. Em Genebra criou-se a sede de uma rede
internacional de luta que denunciava violações de direitos, acolhia e dava asilo a
perseguidos políticos. A iniciativa da CESE, levada a cabo com o apoio incondicional
do CMI, foi rapidamente imitada por outros organismos eclesiásticos da América
Latina, América do Norte e Europa, que publicaram documentos similares,
adaptados às circunstâncias de seus próprios países.
Vários latino-americanos e brasileiros perseguidos pelos governos militares
receberam apoio e acolhimento da CESE, a exemplo do Missionário Manoel de
Mello, preso pelos militares, em 1975 e a diretoria da entidade prontamente oficiou
ao então ministro da justiça, Armando Falcão, exigindo a sua liberação e respeito
aos Direitos Humanos.( LIVRO de ATAS da DIRETORIA da CESE. 14/03/1975, p.
15).
Eliana Rollemberg, atual diretora executiva da CESE, como militante política da AP (
Ação Popular)foi presa pelos militares e ao exilar-se na França, encontrou acolhida
no CMI, onde atuou no asilo de refugiados políticos e em contatos com o Comitê
Brasileiro de Anistia. “O Conselho Mundial de Igrejas teve uma atuação
fundamental na época da Ditadura, ajudando na questão de perseguidos que
precisavam sair do País, e também no projeto Brasil Nunca Mais, com Jaime
Wright”, relembrou Rollemberg em entrevista concedida a autora. (ROLLEMBERG,
2007).
Após o golpe da Ditadura civil-militar o movimento de alfabetização liderado pelo
grande educador Paulo Freire foi rechaçado e o seu idealizador passou setenta e
cinco dias preso pelos prepostos do regime, obrigando-o a se exilar do País,
temendo mais represálias. Por iniciativa dos protestantes ecumênicos, no inicio da
década de 1970, o Conselho Mundial de Igrejas, acolheu em Genebra o professor
Freire e contribuiu decisivamente na divulgação da pedagogia freiriana engajada e
politicamente libertadora. Durante dez anos que passou no CMI Paulo Freire fez da
Pedagogia do Oprimido uma verdadeira missão profética nos campos de atuação do
chamado terceiro mundo, abrangido pelas comunidades e países atingidos pelo
órgão ecumênico. Paulo Freire foi consultor do CMI para assuntos de educação,
conforme pontua R. Jardilino (JARDILINO, 2000).

O Reverendo Richard Shaull, que trabalhou no Brasil desde a década de


1950, com a juventude evangélica e posteriormente foi banido pelos governos
militares, tornou-se o depositário fiel dos originais do livro de Freire, Pedagogia do
Oprimido, quando o mesmo exilado estava impedido de regressar ao País Ainda
sobre Freire e Shaull, esse último relatou em suas memórias um encontro nos EUA,
quando Freire lhe entregou um manuscrito e solicitou: “tome-o e consiga sua
tradução e publicação” (SHAULL, 2003, p. 263.)Tratava-se da Pedagogia do
Oprimido, livro que se transformaria numa referência para os educadores
brasileiros e de alguns setores da América Latina.
Quando do assassinato em 1975 do jornalista Wladimir Herzog pelos prepostos
militares, a CESE programou, juntamente com várias entidades da sociedade civil,
uma campanha de denúncia da violação dos Direitos Humanos ao nível
internacional, utilizando-se da rede de apoios políticos sediada no CMI, em
Genebra. No culto ecumênico realizado em 31/10/1975 com a participação de
líderes religiosos judaicos, islâmicos, católicos e protestantes a CESE foi
representada pela sua diretoria naquele grande ato político que marcou, como num
ponto de inflexão, a resistência da sociedade civil brasileira contra o governo
ditatorial. O Rev. Jaime Wrigth, também diretor da CESE, oficiou o culto, ao lado de
outros sacerdotes religiosos. Dir-se-ia que os sonhos libertários e ecumênicos do
judeu e comunista Herzog cumpriam-se naquela cerimônia fúnebre em sua
homenagem. Morto, mas simbolicamente vivo, continuava a conclamar os
brasileiros à resistência ao golpe.

Em 1965, o setor protestante ecumênico brasileiro, tentando dar continuidade a


atuação social e política do Departamento Igreja e Sociedade da Confederação
Evangélica do Brasil, organizou o Centro Ecumênico de Informações (CEI), o qual
tornou-se “um centro informação e aglutinação de setores ecumênicos nos meios
religiosos brasileiros, possibilitando sua interconexão e troca de experiências nas
difíceis condições de existência do regime ditatorial.”(FERREIRA,2010, p.103).Em
1979, o boletim do CEI, deu lugar a Revista Tempo e Presença, a qual contou com
a colaboração de Zwinglio Mota Dias como um dos seus editores.

O atual deputado pelo Partido dos Trabalhadores Emiliano José, um ex-preso


político da Ditadura civil-militar na Bahia, acompanhou a trajetória da entidade e
assim se expressou: “Foi significativa a intervenção política da CESE no período da
ditadura, expressa, por exemplo, nas quatro edições do livreto sobre a Declaração
Universal dos Direitos Humanos.”( JORNAL TRIBUNA da BAHIA 07/06/2000).
A CESE deu continuidade ao projeto, mesmo após o denominado processo de
redemocratização do País. Em 1998, ao completar 50 anos da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, a entidade organizou a publicação Debate – Direitos
Humanos, na qual vários especialistas religiosos e acadêmicos discorreram sobre a
temática, abordando direitos da infância, étnicos, políticos e econômicos, além de
fazerem um balanço do Movimento Nacional de Direitos Humanos organizado
oficialmente no Brasil em 1982. Ampliava-se o espectro das questões específicas
dos direitos civis para as necessidades básicas da sociedade brasileira.

A Coordenadoria Ecumênica de Serviço atualmente participa do Fórum Ecumênico


Brasil, o qual baseia-se em princípios democráticos, ecumênicos, da paz
internacional e da defesa dos direitos civis. Assumiu que os mesmos se ampliam e
aderiu ao Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC),
ratificado pelo Brasil em 1992. A entidade colaborou “com dezenas de propostas
aprovados que fortaleceram as articulações locais e regionais de Direitos Humanos
em suas denúncias, em seus fóruns de pressão e na capacitação de quadros
capazes de intervir nos conselhos e na formulação de políticas”. (CESE –
RELATÓRIO de ATIVIDADES, 2002 p. 20).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o golpe civil-militar em 1964 a Confederação Evangélica que havia criado o


Setor Igreja e Sociedade sofreu intervenção de militares e seus dirigentes
chegaram a responder processo. No interior das Denominações Protestantes os
membros ecumênicos e progressistas foram excluídos e perseguidos pelas
lideranças eclesiásticas conservadoras.

Em 1972, um grupo remanescente da geração de jovens ecumênicos de 1950


fundou em Salvador a Coordenadoria Ecumênica de Serviços (CESE) com o total
apoio do Conselho Mundial de Igrejas, tendo como objetivo precípuo desenvolver
projetos sociais para combater a pobreza e organizar diversos movimentos sociais
que pautaram problemas sociais candentes, a exemplo de questões de gênero,
combate ao racismo, luta por moradia, combate às secas e à fome, além de apoio a
segmentos sociais em situação de risco. Os Direitos Humanos também entraram na
agenda da CESE, com campanhas nacionais, boletins, cartilhas e material de apoio
que foram utilizados por diversos Comitês de Anistia criados no País pelos
movimentos de oposição ao regime militar.

Embora não se constitua como entidade de caráter político, podemos afirmar que a
CESE deu uma relevante contribuição no processo de abertura política na década de
1980, apoiando projetos de organizações sindicais, realização de seminários de
discussões políticas, bem como na formação de quadros atuantes em defesa dos
Direitos Humanos no País.

Juntamente com a Fundação Dois de Julho a CESE instituiu em 2004 o prêmio


Jaime Wright de Promotores e Promotoras da Paz e dos Direitos Humanos.
Entendemos que é uma forma de homenagear e reconhecer a relevância do
trabalho do Reverendo Jaime Wright, mas ao mesmo tempo é um instrumento
pedagógico na formação de cidadãos responsáveis e atuantes.

Em meio a um campo religioso em que diversos grupos religiosos vivem em


permanente disputa e intolerância, a atuação do Conselho Mundial de Igrejas e da
Coordenadoria Ecumênica de Serviços foi imprescindível na construção de um
diálogo ecumênico e o envolvimento do protestantismo nacional com as demandas
políticas do País, especialmente na luta pela democratização, pós 1964.

Atualmente, o pêndulo da História aponta para o crescimento de instituições


eclesiásticas que disputam o mercado religioso e o campo político com um perfil
fundamentalista e conservador, em contrapartida observamos o descenso do setor
ecumênico e progressista no cenário evangélico nacional, porém as sementes que
foram lançadas serão sempre possibilidades de renovos, de novos frutos.

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MUDANÇA NO PENSAMENTO DA IGREJA NO BRASIL

Fábio Pereira

Por muito tempo a Igreja Católica no Brasil esteve submetida e totalmente


dependente do Estado. Tal submissão era legitimada pelo Padroado, um acordo
firmado entre o Estado e a Igreja, por meio desta concordata o Estado colonizador
garantia a implantação e expansão da fé católica em todos os territórios conquistados,
por sua vez a Igreja concedia prerrogativas de controle sobre as igrejas e ordens
religiosas instaladas nas colônias. (CANCIAN, 2011, p.14). A Igreja brasileira nunca
dispôs dos recursos financeiros ou do zelo que usufruíam suas equivalentes. Sua
fragilidade alcançou seu ponto mais baixo no século XIX, naquele período muitos
padres constituíram famílias e os seminários estavam deficientes em termos de
qualidade e quantidade. Naquele momento o chefe titular da Igreja no Brasil era o
imperador Dom Pedro II (1840-18890) (MAINWARING, 2004, p.42).

Durante a segunda metade do século XIX, Roma esforçou-se para adquirir


maior controle sobre as igrejas nacionais. No Brasil, a Sé Romana fez pressão para o
estabelecimento de um catolicismo mais oficial e “aceitável”. Por sentir-se ameaçado,
o Vaticano por meio de algumas lideranças católicas passou a promover uma presença
mais marcante na sociedade brasileira. Estimulada por Roma a desenvolver práticas
pastorais mais aceitáveis, parte da Igreja brasileira começou a afirmar sua autônima
frente ao Estado. Os conflitos entre as lideranças católicas e o Estado resultaram na
prisão de dois bispos em 1874 e a quebra dos laços entre a Igreja e o Estado em
1890, a ruptura entre ambos foi incorporada na Constituição Republicana de 1891.
(MAINWARING, 2004, p.42).

Para Marcio Moreira Alves, as atuais estruturas do catolicismo brasileiro


nasceram por volta do ano de 1891, quando a Constituição Republicana separou a
Igreja do Estado. (ALVES, 1979, p.17). Com o termino do Padroado a Igreja no Brasil
perdeu significativos privilégios outrora assegurados pelo Estado, entre eles: o
casamento religioso perdeu seu status para o civil, a educação foi laicizada e a religião
católica passou a ser equiparada as demais religiões. (CANCIAN, 2011, p.20), porém,
o fim do Padroado libertou a Igreja Católica no Brasil de uma relação de subserviência
ao Estado. (MAINWARING, 2004, p.42).

Ao longo do século XX, a Igreja esforçou-se para restabelecer laços sólidos com
o Estado, e sob a liderança do cardeal dom Sebastião Leme da Silveira Cintra,

1
arcebispo de Olinda e Recife (1916-21) e, mais tarde, do Rio de Janeiro, a Igreja
recuperou seus privilégios por meio de um pacto informal com o Estado. (SERBIN,
2001, p.82). Dom Leme foi indicado por Getúlio Vargas, líder do movimento
revolucionário que pôs fim a chamada República Oligárquica, para persuadir o então
presidente Washington Luiz a abrir mão do poder sem oferecer resistência, o que de
fato veio a acontecer (CANCIAN, 2011, p.23).

Ao assumir o poder, Getúlio Vargas passou a privilegiar o diálogo com a Igreja


Católica, personificada na figura de dom Leme. No ano de 1934 uma nova
Constituição foi promulgada, dom Leme conseguiu junto ao presidente Vargas
incorporar uma série de prerrogativas favoráveis à Igreja Católica, entre elas: A
obtenção de direitos cívicos pelos religiosos; A assistência espiritual às organizações
militares; Reconhecimento do casamento religioso; proibição do divórcio; Implantação
do ensino religioso nas escolas públicas. (ALVES, 1979, p.37). O acordo informal entre
a Igreja e o Estado garantiu importantes ajudas financeiras para o vasto leque de
obras educacionais e de assistências sociais mantidas pela Igreja. (SERBIN, 2001,
p.302).

No ano de 1937, o então presidente Getúlio Vargas, com o apoio do chefe do


Estado-Maior do Exército, general Góis Monteiro, e do ministro da Guerra, Eurico
Gaspar Dutra, ordenou o fechamento do Congresso Nacional e implantou no Brasil um
regime autoritário, que perdurou até 1945, esse período ficou conhecido como Estado
Novo. O golpe de Estado promovido por Vargas foi apoiado pela Igreja Católica
brasileira, que considerava a ditadura um mal menor diante da ameaça comunista.
Durante o Estado Novo as relações entre a Igreja e o Estado não foram alteradas,
prova disso é que naquele período uma nova Constituição foi promulgada e todas as
prerrogativas concedidas anteriormente a Igreja foram mantidas. Durante o governo
Vargas a Igreja ampliou de forma significativa o seu prestigio, tornando-se assim uma
espécie de instituição social que preconizava a ética e a moral do sistema político
vigente naquele momento. (CANCIAN, 2011, p.24).

O intervalo entre os anos de 1955 a 1965 foi marcado por importantes


mudanças na Igreja Católica Romana, tanto em nível internacional como no Brasil. As
principais mudanças foram promovidas pelo Papa João XXIII. As encíclicas papais por
ele escritas: Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963) modificaram o
pensamento católico oficial. Ambas defendiam uma nova concepção de ser Igreja, a
mesma deveria estar em sintonia com o mundo moderno e comprometida em
melhorar o destino dos seres humanos na terra, além de promover a justiça social.
(MAINWARING, 2004, p.62). Outra fonte importante de mudança na Igreja Católica foi

2
à realização do Concílio Vaticano II, o mesmo que tinha como objetivo discutir uma
visão mais aberta da Igreja. O Vaticano II é tido por muitos como a mais ampla
reforma da história da Igreja. Segundo Zachriadhes: “O Concílio enfatizou a missão
social da Igreja Católica, defendeu a importância do laicato dentro da instituição,
valorizou o diálogo ecumênico, modificou a liturgia para torná-la mais acessível e
desenvolveu a noção de Igreja como povo de Deus”. (ZACHRIADHES, 2010, p.132). O
Vaticano II veio legitimar algumas tendências renovadoras já existes na Igreja
Católica.

Para Edvaldo M. Araujo A Igreja Católica brasileira a partir da década de 1960


sofreu grandes transformações no seu modo de pensar e de agir, a mesma estava
buscando desenvolver uma teologia que não só usasse a mediação filosófica, mas
também a mediação socioanalítica, assim a Igreja Católica no Brasil aos poucos estava
deixando de ser uma mera repetidora dos conceitos teológicos europeus, para
formular seus próprios conceitos, sendo os mesmos desenvolvidos a partir do seu
próprio contexto sócio – político. (ARAÚJO, 2012, p.21).

Para muitos autores o nordeste é apontado como sendo o centro irradiador das
mudanças ocorridas no interior da Igreja Católica no Brasil. De acordo com
Mainwaring foi à pobreza que impulsionou a Igreja nordestina a mudar, na medida em
que a sua Doutrina Social se desenvolvia, seria mais provável que a mesma viesse a
ser implantada onde houvesse maiores injustiças. A Igreja do nordeste foi a primeira a
lançar críticas radicais ao regime militar implantado em 1964.

A IGREJA CATÓLICA E O GOLPE DE 1964

O ano de 1964 no Brasil foi marcado por intensos confrontos políticos. Naquele
ano a alta cúpula militar das Forças Armadas juntamente setores conservadores da
sociedade civil, apoiados pela Agência de Inteligência estadunidense (CIA) uniram-se
com o objetivo de depor o então presidente da República, João Goulart. O mesmo
eleito democraticamente pelo voto popular. Goulart defendia a importância de
reformas profundas nas estruturas do país, tais reformas ficaram conhecidas como:
“Reformas de Base”, as mesmas abarcavam toda a sociedade, existiam planos para
diferentes áreas, como: eleitoral; administrativa; tributária; urbana; bancária;
cambial; universitária, sendo a mais polêmica a que se referia à reforma agrária
(CHIAVENATO, 2004, pp. 21; 22). Na visão dos golpistas, Jango, simbolizava aquilo

3
que havia de “negativo” na vida política brasileira: era demagogo, subversivo e
implacável inimigo da ordem capitalista. (TOLEDO, 1994, p.12).

É consenso entre os historiadores que a hierarquia da Igreja Católica


desempenhou um papel fundamental na criação do clima ideológico que favoreceu a
intervenção militar no Brasil. A hierarquia episcopal apoiada pelas elites conservadoras
engajou-se na campanha anticomunista, contra a Reforma Agrária, contra os
movimentos grevistas, contra a aliança entre cristãos e marxistas. (BRASIL NUNCA
MAIS, 1988, p.147), além de se opor as Reformas de Base. A ala conservadora da
Igreja acreditava que as Reformas de Base levariam o Brasil ao comunismo ateu. A
mesma se posicionou contra o projeto de Goulart e iniciou uma campanha contra o
mesmo, sendo ela encabeçada por dom Jaime de Barros Câmara, cardeal do Rio de
Janeiro. Dom Jaime trouxe das Filipinas o padre Patrik Peyton, agente da CIA,
especialista em levantar as massas católicas contra o comunismo. O padre Patrik,
dispunha de espaço na mídia para promover a Cruzada pelo Rosário em Família, a
mesma possuía como lema: “a família que reza unida permanece unida”, Chiavenato
afirma que por traz dessa mensagem vinha o recado anticomunista, o mesmo que
associava os males do mundo aos políticos ateus que mudariam a ordem natural das
coisas. (CHIAVENATO, 2004, p.45). A Cruzada pelo Rosário em Família lançou as
sementes das Marchas da Família com Deus pela Liberdade, as mesmas foram
movimentos organizados por mulheres católicas pertencentes às classes médias
urbanas, que tinham como objetivo protestar contra o governo Goulart.

A deposição de Goulart deu sequência a uma longa tradição intervencionista


das Forças Armadas na vida política do Brasil (BRASIL NUNCA MAIS, 1988, p.53).
Logo que iniciada a intervenção militar em 1964, a Igreja brasileira dividiu-se em três
grupos que se posicionavam de maneira antagônica em relação à ação dos militares,
foram eles: Os conservadores; os moderados e os radicais. Os conservadores
representavam a maior parte da hierarquia episcopal, este grupo ofereceu total apoio
a ação do militares. Os moderados preferiram esperar o desenrolar dos fatos para se
posicionarem em relação ao novo governo. O grupo dos radicais por sua vez se
posicionou contra a tomada do poder pelos militares desde o inicio da mesma.
(ARAÚJO, 2012, p.145).

Após a consolidação do golpe militar de 1964, a CNBB emitiu a seguinte nota:

“Atendendo á geral e angustiosa expectativa do Povo Brasileiro,


que via a marcha acelerada do comunismo para a conquista do
Poder, as Forças Armadas acudiram em tempo, e evitaram se
consumasse a implantação do regime bolchevista em nossa
Terra. (...) Logo após o movimento vitorioso da Revolução,

4
verificou-se uma sensação de alivio e de esperança, sobretudo
porque, em face do clima de insegurança e quase desespero em
que se encontravam as diferentes classes ou grupos sociais (...)
Ao rendermos graças a Deus, que atendeu as orações de
milhões de brasileiros e nos livrou do perigo comunista,
agradecemos aos militares que se levantaram em nome dos
supremos interesses da Nação”. (apud. MAINWARING, 2004,
p.102).

Por meio desta nota emitida pela hierarquia episcopal, fica evidenciado o total
apoio e o sentimento de “gratidão” da ala conservadora em relação à ação dos
militares no Brasil em 1964. De 1964 a 1968 a postura da Igreja em relação ao
governo militar foi de completa aceitação. A maioria da hierarquia episcopal deu apoio
ao golpe militar e integrou-se aos setores dominantes da sociedade. A mentalidade
conservadora e anticomunista da época predominou entre os membros do episcopado
que apoiaram o golpe militar de 1964. Porém é de suma importância afirmar que o
apoio dado pela alta hierarquia ao golpe não representava a totalidade do pensamento
católico brasileiro naquele período, prova disto é que em 13 de abril de 1964, 17
bispos do nordeste em um manifesto intitulado: Declaração dos Bispos do Nordeste,
afirmavam que: “A Igreja, em sua missão, não está vinculada a regime ou a governo,
mas dentro de suas possibilidades colabora com o bem comum, a Igreja não se
identifica com vitórias ou derrotas, e sim com o evangelho”. (ARAÚJO, 2012, pp.144;
147). Os bispos também pediam o justo tratamento para com os presos políticos.

Segundo Inácio Arruda, uma das principais características do regime militar de


1964, foi o uso extremado da violência. Naquele período a arbítrio assumiu sua fase
mais brutal, com prisões, torturas e assassinatos não só de dirigentes e militantes das
organizações de esquerda, mas de qualquer cidadão considerado nocivo ao regime.
(apud. OLIVEIRA, 2012, p.13).

Setores expressivos da Igreja Católica inspirados na pregação reformista e


modernizante do Papa João XXIII, cada vez mais se engajavam no processo político,
visando transformações sociais. (MORAES, 2011, p.39). Após a consolidação do golpe
de 1964, as Forças Armadas passaram a intensificar os ataques a militantes católicos
que supostamente estariam atrapalhando os militares em sua missão de salvar o
Brasil do comunismo. O fosso nas relações entre a Igreja e o Estado, só aumentaram
com a implantação do Ato Institucional Nº5. Uma grande quantidade de padres,
freiras, bispos e militantes leigos sofreram maus-tratos por parte dos agentes de
segurança do Estado. Dados parciais de uma pesquisa realizada pela Igreja Católica
entre 1968 e 1978 registrou a prisão de uma centena de padres, sete mortes e
numerosos casos de tortura. Durante o Regime Militar a Igreja foi alvo de frequentes

5
ataques verbais por parte das autoridades ligadas ao regime, às mesmas que iam
desde reclamações contra as suas atividades políticas até as acusações de
imoralidades sexuais. (SERBIN, 2001, pp.24; 48; 109).

Os militares tentaram neutralizar a ação da Igreja junto às camadas populares


da sociedade. Para conter sua atuação o regime utilizou de inúmeras estratégias, uma
delas foi difamar a imagem dos padres considerados como “radicais” e associa-los a
grupos “terroristas”.

DOM HELDER E A LUTA PELOS DIREITOS HUMANOS

Diante de um contexto extremamente opressor gerado pelo Regime Militar


brasileiro, onde entre outras coisas a tortura tornou-se uma matéria de ensino
rotineira dentro da maquina militar de repressão política da ditadura (GASPARI, 2002,
p.17), surgiram no interior da Igreja Católica vozes que se levantaram em favor dos
direitos humanos e das liberdades coletivas e individuais dos cidadãos, entre elas a do
arcebispo de Olinda e Recife, dom Hélder Pessoa Câmara.

Dom Helder Câmara nasceu na cidade de Fortaleza, CE, em 1909, sendo o


décimo primeiro filho do casal João Eduardo Torres e de dona Adelaide Rodrigues
Pessoa. Helder ingressou no seminário diocesano de Fortaleza no ano de 1923 e
ordenou-se padre no ano de 1931, com apenas 22 anos e meio. Após sua ordenação
sacerdotal, padre Helder foi designado por Dom Manuel, arcebispo de Fortaleza – CE,
para assessorar o Círculo Operário Cristão, em seguida organizou o movimento da
Juventude Operária Cristão, organizou o movimento da Juventude Operária Católica
(JOC), foi assistente eclesiástico da Liga dos Professores Católicos, professor de
religião, filosofia e psicologia, e um dos fundadores da Legião Cearense do Trabalho.
Tornou-se membro da Ação Integralista Brasileira (AIB) e responsável pela Liga
Eleitoral Católica (LEC) no Ceará. No ano de 1935, padre Helder assumiu a Diretória
de Instituição de seu Estado, cargo abandonado após 5 meses. A decisão de demitir-
se teve três motivos principais: 1º Frustração de ver que o seu pedido de que não
haveria concessões políticas na transferência de professores não era acatado; 2º A
possibilidade de ruptura entre o governo e os integralistas, o 3º motivo foi à
possibilidade de perder o apoio do bispo na disputa entre os integralistas e o governo.
Autorizado por seu arcebispo, padre Helder aceitou o “convite” feito por Lourenço Filho
para trabalhar na Secretária de Educação do Distrito Federal, Rio de Janeiro. O convite
feito ao padre Helder foi feito atendendo ao pedido do mesmo que desejava ir embora
de Fortaleza, sua transferência foi acertada com cardeal Leme por dom Manuel.

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(ARAÚJO, M. Edvaldo, 2012, pp. 47; 58; 53). Em sua primeira reunião com o cardeal
Leme, padre Helder recebeu a ordem de abandonar o integralismo, tendo em vista
que o engajamento político de padres naquela diocese era proibido. Padre Helder
atendeu prontamente a ordem do cardeal Leme.

Padre Helder foi eleito bispo pelo Vaticano após indicação de dom Jaime
Câmara, arcebispo do Rio de Janeiro, em 1952. Como bispo dom Helder fundou a
CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e o CELAN (Conselho Episcopal
Latino-americano). Outros empreendimentos de destaque de Dom Helder Câmara
foram: A Cruzada São Sebastião; O Banco da Providência e a Comunidade de Emaús.
Dom Helder é considerado por muitos como sendo um dos bispos mais atuantes nos
bastidores do Concílio Vaticano II.

No ano de 1952, por iniciativa de dom Helder foi criada no Rio de Janeiro a
Cruzada São Sebastião, a mesma que tinha como objetivo encontrar soluções
humanas e cristãs para os problemas das favelas do Rio de Janeiro. Para alcançar tal
objetivo dom Helder teve a ideia inicial de transferir os moradores das favelas para
prédios construídos em terrenos cedidos pelo Governo Federal. Segundo Edvaldo M.
Araujo, a Cruzada São Sebastião, com o apoio financeiro do Governo Café Filho e
Juscelino Kubitscheck, com donativos e com o planejamento de autofinanciamento, ela
realizou: a construção de uma escola em Lins Vasconcelos; o financiamento de água
em 13 favelas; a construção de um centro de abastecimento; a construção de 910
apartamentos na praia do Pinto e de 46 apartamentos no Morro Azul. Pela a iniciativa
da Cruzada São Sebastião dom Helder recebeu ferrenhas acusações de
assistencialismo e de incoerência por apoiar politicamente o Governo. (ARAÚJO, 2012,
pp.95; 96; 97).

O Banco da Providência foi fundado em 1959, com o objetivo de distribuir aos


mais necessitados bens e serviços que se tornavam supérfluos para os membros da
classe média e ricos. O banco surgiu com a proposta de centralizar as doações e
coordenar as atividades filantrópicas.

Como dito anteriormente A Comunidade de Emaús, foi um dos


empreendimentos de dom Helder, a mesma foi criada no ano de 1959 e tinha como
objetivo de habilitar pessoas marginalizadas e tidas como irrecuperáveis pela
sociedade. O trabalho da Comunidade de Emaús consistia em “recolher” mendigos,
alcoólatras e pequenos marginais, dando-lhes a possibilidade de reabilitação.

Devido a divergências pastorais entre dom Jaime Câmara e dom Helder, o


segundo acabou sendo transferido para a arquidiocese de Olinda e Recife. A chegada

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de dom Helder em sua nova arquidiocese ocorreu em plena ebulição do regime militar.
No dia 12 de abri de l964, em cerimônia realizada na Basílica do Carmo, dom Helder
tomou posse oficialmente da diocese de Olinda e Recife, em seu pronunciamento de
posse o mesmo deixou claro que estaria aberto ao diálogo com quem quer que fosse,
como ficou evidenciado em um dos trechos de seu discurso, no qual ele afirma:

“[...] Ninguém se escandalize quando me vir frequentando


criaturas tidas como indignas e pecadoras... Ninguém se
espante me vendo com criaturas tidas como envolventes e
perigosas, da esquerda ou da direita (...) Ninguém pretenda
prender-me a grupo (...) Minha porta e meu coração estarão
abertos a todos, absolutamente a todos.Cristo morreu por todos
os homens: a ninguém devo excluir do diálogo fraterno. [...]
(apud. ARAÚJO, M. Edvaldo, 2012, p.136)

Por meio deste trecho do discurso de dom Helder, é possível afirmar que o
mesmo foi extremamente corajoso ao proferir tais palavras, tendo em vista que
naquele momento vivia-se um clima de extrema tensão na vida política do Brasil,
mesmo diante de tal situação, dom Helder teve coragem de afirma-se aberta ao
diálogo com todos, independentemente de rótulos impostos por terceiro. O discurso
proferido por Dom Helder em sua posse, é interpretado por muitos estudiosos como
sendo um dos marcos iniciais da resistência da chamada Igreja popular ao regime
ditatorial. (PILETTI; PRAXEDES, 1997, p.303)

No inicio do Golpe Militar, dom Helder defendia as reformas de base e


aguardava o desenrolar dos acontecimentos para se posicionar contra ou a favor do
regime imposto pelos militares. Após a consolidação do golpe de 1964, centenas de
pessoas foram presas; torturas; exiladas e mortas, entre elas militantes leigos vindos
do MEB e dos movimentos oriundos da Ação Católica (JEC; JUC; JOC) e da Ação
Popular. Diante de tais prisões, Dom Helder assumiu a defesa e passou a interceder
pelos militantes católicos presos, tal atitude desagradou aos militares, os mesmos
chegaram a pedir a dom Helder que cessasse de visitar aos presos políticos, tal pedido
foi prontamente negado por dom Helder. Esse é considerado por muitos como sendo o
primeiro de vários confrontos diretos entre o arcebispo de Olinda/Recife e os militares.
(ARAUJO, 2012, pp.146; 147).

O ano de 1966 é apontado por muitos autores como sendo o ano que marca a
ruptura entre dom Helder e o Governo Militar. Edvaldo M. Araujo, afirma que o
episódio responsável por tal rompimento ocorreu no dia 14 de junho daquele ano,
após a emissão do documento “Manifesto dos Bispos do Nordeste”, tendo sido o
mesmo elaborado e assinado pelos arcebispos do Nordeste II. Neste documento o
episcopado nordestino afirmava ter conhecimento do manifesto da Ação Católica

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Operária (ACO) sobre as situações desumanas nas quais os trabalhadores nordestinos
eram submetidos, e do relatório apresentado pela Ação Católica Rural (ACR) e pela
Juventude Agrária Católica (JAC) referente ao meio rural. (ARAÚJO, 2012, pp.147;
148). Os órgãos de segurança o consideraram “subversivo” e de inspiração marxista,
diante de tais acusações, dom Helder protesta e propõe um debate na televisão entre
os bispos e militares. Após a publicação do “Manifesto dos Bispos do Nordeste”, as
autoridades militares do Recife passaram a acusar dom Helder, abertamente por
conluio com comunistas e o ameaçar de prisão. A visão das autoridades militares
sobre dom Helder fica evidenciada em uma circular emitida e distribuída a leigos e
padres, pela X Região Militar, na qual se afirma:

(...) o prazer de estar na tevê com excessos histriônicos e


atitudes de vedetismo (...) está sempre agitando ideias e
através delas os homens, (...) tudo isso o coloca, nitidamente,
no campo dos esquerdistas ligados à Ação Popular, (...) D.
Hélder se coloca ao lado do esquerdismo, embora guarde as
aparências em contrário nas suas falas oficiais. (...) (apud
Relações Igreja-Estado no Brasil, 1986, pp.66; 67).

Após encabeçar as assinaturas do episcopado nordestino no “Manifesto dos


Bispos do Nordeste”, dom Helder passou a receber ferrenhas críticas, não só dos
militares, como também dos grandes editoriais e de membros do episcopado, como
dom Antônio de Castro Mayer, do movimento Tradição, Família e Propriedade (TFP).
No ano de 1967 ocorreram novas situações de confronto entre dom Helder e os
militares, tal situação ocorreu em virtude de dom Helder ter recusado o convite feito
pelo general Souza Aguiar para celebrar uma missa em ação de graças ao terceiro
aniversário da “revolução de 1964”. No inicio de 1968, dom Helder novamente se
envolveu em mais uma polêmica, dessa vez com o poder judiciário. No discurso de
encerramento do Primeiro Encontro das Federações de Trabalhadores Rurais, realizado
em Carpina, Pernambuco, dom Helder alertou aos trabalhadores sobre três perigos
internos nos sindicatos, eram eles: o pelego; o advogado desonesto e as ajudas
financeiras que enfraqueciam a luta dos trabalhadores. Em seguida criticou as
injustiças sociais tão presentes no nordeste, defendeu a reforma agrária, exigiu a
democracia e denunciou espancamentos e mortes de trabalhadores rurais. (ARÚJO,
2012, pp.151; 152)

Seguindo os exemplos de Martin Luther King e Mahatma Gandhi, dom Helder


em 1968, criou o Movimento Ação, Justiça e Paz. O lançamento do mesmo ocorreu em
outubro daquele ano em Recife. No discurso de lançamento, dom Helder afirmava
que:

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Ação, Justiça e Paz não nasce para ser um movimento cinza,
acomodado e contemporizador . [...] quer ser e será, com a
graça divina, a violência dos pacíficos. Ação, Justiça e Paz tem
como objetivo a humanização daqueles a quem a miséria pões
em estado infra-humano e aqueles a quem o egoísmo
desumaniza. E para sua execução propões: A) A transformação
gradual, porém efetiva, das estruturas socioeconômicas,
políticas e culturais do Brasil e da América Latina. B)
Integração nacional, de maneira que se liberte da existência de
áreas infra-humanas de nosso país. C) a integração latino
americana sem imperialismo internos externos. (apud. ARAÚJO,
2012, pp.191; 192)

Até meados do primeiro semestre de 1968, as tentativas de intimidação a dom


Helder se davam através de acusações, difamações, deturpação de seus
pronunciamentos e por ameaças telefônicas. Em outubro de 1968 ocorreu uma
radicalização das tentativas de intimar o arcebispo, naquele mês grupos de extrema
direita metralharam a sua residência. As perseguições por parte dos militares não se
restringiam apenas a figura de dom Helder, vários de seus colaboradores mais
próximos foram presos e torturados, sendo o caso mais grave o do padre Antonio
Henrique Pereira Neto, torturado e assassinado em 1969, pelo grupo paramilitar de
extrema direita, conhecido como: Comando de Caça aos Comunistas (CCC).

No inicio da década 1970, dom Helder já era reconhecido como uma liderança
na luta em defesa dos direitos humanos e da manutenção da paz mundial. Prova disso
é que em maio daquele mesmo ano o jornal estadunidense Sund Times chegou a
mencioná-lo como “o homem de maior influência na América Latina, depois de Fidel
Castro” o mesmo editorial afirmava que dom Helder representava uma “grande e
importante corrente dentro da Igreja Católica”. Como sinal de seu grande prestigio
internacional, dom Helder recebeu em Recife a visita de Ralph David Abernathy,
pastor batista norte-americano sucessor do líder pacifista Martin Luther King. O pastor
Ralph David em conjunto com dom Helder lançou uma nota em defesa das lutas pela
justiça e por métodos pacíficos. (PILETTI; PRAXEDES, 1997, p.378).

Desde 1964, dom Helder já havia realizado dezenas de palestras ao redor do


mundo, aonde chegou a defender seus pontos de vista diante de monarcas e de
chefes de Estados. (PILETTI; PRAXEDES, 1997, p.379). Em 1970, dom Helder, viajou
com destino a Europa onde faria uma série de conferências em Salisburgo, Áustria;
Louvain; Bruxelas; Lyon; Orléans e Paris. Ao chegar a Paris a convite do Centro
Católico dos Intelectuais Franceses um grupo de amigos questionou o arcebispo de
Olinda e Recife sobre a realidade do Brasil, especialmente no que dizia respeito à
existência de torturas. Esse mesmo grupo lhe pediu que mudasse o tema da sua
conferência, para o mesmo abordasse tal assunto. (ARAÚJO, 2012, p.162). Dom

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Helder conhecia pessoalmente casos de torturas, e inclusive chegou a denunciá-las
por meio de um oficio enviado ao governador de Pernambuco, em agosto de 1969,
assim como no Boletim Arquidiocesano, mas não havia se pronunciado abertamente
sobre tal tema fora do país. (PILETTI; PRAXEDES, 1997, p.381).

Atendendo aos pedidos de seus amigos, dom Helder modificou o tema de sua
conferência, a mesma foi intitulada de: “Quaisquer que sejam as consequências”.
Nessa conferência dom Helder apresentou a realidade brasileira demonstrando a
existência das torturas a partir de dois exemplos: O primeiro do estudante Luiz
Medeiros de Oliveira, preso e torturado em Recife, o segundo exemplo, foi o do jovem
Tito de Alencar Lima, frade dominicano de 24 anos, preso e torturado, que após ser
libertado, cometeu suicídio:

Um dia, no entanto, li nos jornais da cidade que um desses


estudantes tinha se atirado pela janela do prédio da polícia.
Imediatamente, fui ao hospital, como meu bispo auxiliar. Então,
nós dois, junto com médico, junto com a polícia que estava lá,
vimos o ferido, os membros quebrados. Pergunte-lhe: “O que
aconteceu?” Então Luís Medeiros respondeu-me: “Ah! Dom
Helder! Eu sofri torturas terríveis e no momento em que
descobri que elas iam recomeçar eu preferi me jogar pela
janela” [...] Eis o segundo exemplo: Trata-se de um padre
dominicano de 24 anos, de São Paulo, Tito de Alencar Lima. Ele
fora preso e a polícia queria lhe fazer denunciar alguns
nomes.Como não poderia ou não queria, eles começaram a
torturá-lo. Mais tarde, seu provincial trouxe-me uma carta que
Tito escrevera, na qual descrevia algumas das torturas que
tinha sofrido. Por exemplo, o “pau-de-arara” [...] totalmente
deprimido, esse jovem dominicano tentou o suicídio (que
acabaria cometendo em 1974, no sul da França. [...] Esses
exemplos, meus amigos, não casos isolados. Ele são, antes, a
regra no que concerne aos presos políticos [...] (apud. PILETTI;
PRAXEDES, 1997, pp. 382; 382)

Em seguida dom Helder narrou o contexto político do país, afirmando que a


violência nº1 é a injustiça social, a violência dos opressores, que faz emergir a
violência dos oprimidos, aquela dos movimentos de luta armada, a violência da
juventude, que traduz a revolta dos oprimidos. (ARAÚJO, 2012, p.163).

Após a conferência realizada por dom Helder em Paris, as campanhas


difamatórias contra ele se intensificaram dentro e fora do país. Entre os principais
difamadores de dom Helder no país naquele momento destacam-se os jornais O Globo
e O Estado de São Paulo. O Estado de São Paulo publicou um documento que segundo
o jornal pertencia ao monsenhor Álvaro Negromonte. Tal documento apresentava as
qualidades e defeitos de Dom Helder. Entre os defeitos estavam: Dom Helder
pertenceu a todos os movimentos que o podiam projetar, usou as pessoas para atingir

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os seus objetivos, entre eles, chegar ao arcebispado; era explorador da pobreza e
mau caráter por não cumprir seus compromissos. Apesar de todas essas criticas dom
Helder continuava firme na luta pelos direitos humanos no Brasil, e era visto pelo
embaixador estadunidense Chales Elbrich como sendo o candidato ideal para a
presidência do Brasil. (ARAÚJO, 2012, pp.164; 165; 171).

Entre todos os membros do episcopado brasileiro, dom Helder foi sem dúvida
um dos mais que sofreram calunias e perseguições durante o regime militar em nosso
país. Desde meados de 1964, ele era frequentemente convidado a proferir palestras e
conferências ao redor do mundo. Dom Helder foi acusado de estar recebendo dinheiro
proveniente de assaltos a bancos para pagar as suas viagens ao estrangeiro. Em
resposta a essas denúncias dom Helder escreveu uma extensa carta na qual prestava
contas de todas as suas ultimas viagens, com as respectivas entidades que o
convidara e que financiaram suas passagens e estadias. Para Nelson Piletti e Walter
Praxedes, atacar dom Helder tornou-se uma credencial que representava a apoio
irrestrito ao governo militar. (PILETTI, PRAXEDES, 1997, p.386). Até esse momento
dom Helder conseguia se defender das acusações por da mídia, porém isso muda a
partir de 9 de outubro de 1970, quando o então Ministro da Justiça lança a seguinte
nota: “De ordem do Sr. Ministro da Justiça ficam proibidos em todos os órgãos de
imprensa, rádio e televisão,publicações e divulgação de entrevista, artigos e
reportagens de D. Helder Câmara. Tal proibição é extensiva aos horários reservados à
propaganda política”. (apud. PILETTI; PRAXEDES, 1997, pp. 382; 382)

Devido à censura imposta pelos militares a dom Helder, o mesmo entre os anos
de 1970 a 1977 comunicou-se com o povo apenas pelo boletim arquidiocesano, um
informativo mimiografado restrito apenas a arquidiocese de Olinda e Recife e pelo
programa de rádio na emissora local, onde muitas vezes foi obrigado a mudar de
horário.

Em 1970 grupos de parlamentares da Holanda, Suécia, França e Eire,


juntamente com o ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1968, René Cassin, indicaram
formalmente o nome de dom Helder ao Prêmio daquele ano. A indicação do arcebispo
de Olinda e Recife ao Prêmio recebeu o apoio de cinco milhões de assinaturas de
trabalhadores latino-americanos, tendo sido as mesmas recolhidas pela Confederação
Latino-Americana Sindical Cristã. Para René Cassim, dom Helder “simbolizava a luta
para a melhoria das condições de vida por meios pacíficos”, o grupo de parlamentares
do Eire afirmava que atribuir “o prêmio da Paz a dom Helder seria uma manifestação
valiosa de solidariedade humana numa situação dominada pelo terrorismo e pela
opressão”, (apud. PILETTI; PRAXEDES, 1997, p.10). Naquele ano Dom Helder era o

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candidato mais cotado ao prêmio, prova disso é que o próprio consultor do Nobel,
Jakob Serdrup em seu relatório manifestou-se claramente favorável à concessão do
Prêmio a dom Helder, ele afirmava:

Sua mensagem de não-violência na América Latina de hoje


pode ser considerada importante para a conservação da paz, já
que representa uma real alternativa ao aumento do terrorismo
e dos movimentos guerrilheiros. Sua coragem pessoal é
indiscutível, é um homem de prestígio e importância, o que faz
com que a sua mensagem seja ouvida tanto no Brasil como no
exterior. [...] Além disso Câmara não representa apenas ele
próprio, mas também um grande e importante corrente dentro
da Igreja católica da América Latina. (apud. PILETTI;
PRAXEDES, 1997, p.9).

Apesar de todos esses pareceres favoráveis a dom Helder, o Prêmio Nobel da


Paz de 1970, foi concedido ao professor estadunidense Norman Borlaug, especialista
em fisiologia e que instituiu a chamada “revolução verde”. Tal resultado desagradou
os partidários de dom Helder, que lhe indicaram nos três anos seguintes. Por acreditar
que a vitória de dom Helder no Nobel representaria uma catástrofe, o governo militar
brasileiro buscou inviabilizar a candidatura de dom Helder, para isso usou de
diferentes estratégias como: difamar o arcebispo nos meios de comunicação social, e
unir-se a empresários noruegueses com o objetivo de influenciar o comitê do
parlamento norueguês.

No ano de 1971, novamente dom Helder foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz. A
fim de evitar a sua vitória a embaixada brasileira em Oslo arquitetou uma campanha
de bastidores contra o arcebispo, para isso buscou ampliar o leque de colaboradores
na Noruega. Naquele ano o prêmio foi entregue ao alemão, Willy Brand. No ano de
1972 o comitê responsável pelo prêmio não escolheu nenhum ganhador. No ano de
1973, dom Helder novamente foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz, naquele ano o
prêmio foi dado a Henry Kissinger (EUA) e Le Duc Tho (Vietnã) que receberam o
prêmio em virtude das negociações pelo fim da guerra do Vietnã. Segundo Edvaldo M.
Araujo a repercussão da politização política do Prêmio da Paz gerou protestos em
grande escala, fazendo com que Le Duc Tho renunciasse ao prêmio e Henry Kissinger
mandasse um representante para receber o prêmio. (ARAÚJO, 2012, p.174). Em
protesto, a Associação da Juventude Norueguesa lançou uma campanha pela criação
do “Prêmio Popular da Paz”. A iniciativa foi prontamente apoiada pela Suécia,
Dinamarca, Finlândia, Holanda, Bélgica, Áustria e Itália, que arrecadam em torno de
um milhão e meio de coroas norueguesas. Nesse mesma época a Alemanha Ocidental
também criou o seu prêmio Popular da Paz. Em 1974, dom Helder recebeu em Oslo o
Prêmio Popular da Paz.

13
Somente a partir da década de 1980, com o processo de abertura política, dom
Helder começou a deixar de ser considerado um “mau elemento” na sociedade
brasileira. Dom Helder Câmara durante e após o Concílio Vaticano II foi um dos
principais entusiastas das mudanças proposta pela Igreja. Por sua militância em
defesa da justiça social e em nome dos direitos humanos ele passou a ser conhecido
como o “Profeta do terceiro mundo”. Ao longo de sua trajetória dom Helder recebeu
inúmeros títulos e Prêmios, todos ligados ao seu compromisso com a justiça e com a
paz.

14
BIBLIOGRAFIA

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paz. Pensamento teológico e antropológico. Aparecida: São Paulo: Idéias e Letras,
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Ditadura Militar. Salvador: EDUFBA, 2010.

15
A CATOLICIZAÇÃO DA POLÍTICA NO ESTADO NOVO

Marco A. Baldin*

RESUMO: A era Vargas serviu de apoio para que a Igreja Católica soubesse encontrar
seu caminho na República Brasileira: aliment ar e dar espírito de nacionalidade ao
país, catolicizando os espaços públicos, as instituições mais importantes, as
consciências cidadãs que, a partir dali, deveriam se submeter a uma nova ordem
política, dentre aquela que apregoava o governo autoritário, qual seja, o limite entre
ser cidadão-cristão e cristão-cidadão.

PALAVRAS-CHAVE: Igreja Católica, política, era Vargas, cardeal Leme.

Uma questão da história do catolicismo no Brasil vem sempre recheada de


polêmica: a separação efetiva entre Igreja e Estado e, subsequentemente, o real
papel da Igreja Católica na relação com a sociedade, os governos constituídos, as
demais religiões.

Proclamada a República, tudo levava a crer que a Igreja Católica iria perecer
sob o plano sorrateiro de posit ivistas, maçônicos e protestantes que, supostamente,
iriam aniquilar ou extinguir a Igreja . Ao contrário , ela sobrevive e, além disso, se
sobrepõe aos níveis anteriores de relação estabelecidos no padroado. A Igreja, junto
ao Exército, acabam se tornando as instituições de maior influência na Primeira
República. Ambas as instituições iriam despertar na nação um papel que lhe daria
legitimidade, identidade e sentido político de ser. O Exército se apresenta como órgão
vital de manutenção da ordem pública e, por isso, exigia ser tratado como braço
direito do governo estabelecido, embora quisesse muito mais nas manifestações dos
tenentes e dos sargentos, isto é, reestruturar a instituição para controlar o Estado,
apodrecido pelos maus costumes da corrupção endêmica (CARVALHO, 2006). A
Igreja, mesmo que estivesse convencida de que era a religi ão predominante da
maioria dos brasileiros, não agia como tal, timidamente espremida pela ausência de
lideranças no episcopado, um clero altamente arredio, distante dos ideais do povo,
como apregoava o padre Júlio Maria (VILLAÇA, 1975, p. 72) e, principalmente, com

* Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” e doutorando pela
mesma instituição.
um discurso e uma doutrina quase que obsoletos e tremendamente anacrônicos, pois
não causavam mais impactos diante do avanço massivo da ci ência, do
desenvolvimento do cinema, do rádio, da imprensa escrita, enfim, da secularização
violenta do início do século XX que pôs em xeque a existência da predominância de
um pensamento expresso na ideia de que o mundo era governado por uma força
sobrenatural em detrimento do mundo natural (MANOEL, 1999).

Frente a esse quadro, a Igreja procurou se organizar para tentar novamente ser
uma presença decisiva no cerne do poder, mas com ações simultâneas junto às
organizações sociais, tanto as já existentes no país, como também presente naquelas
que ela própria iria criar: Centro Dom Vital, LEC, Liga das Senhoras Católicas,
Instituto Católico de Estudos Superiores, Coligação Católica, Ação Universitária
Católica, dentre outras. Sem dúvida, todas essas organizaç ões foram criadas com o
fim preciso de interferir na política do país, n ão apenas no nível do Estado, mas
também nos grupos empresariais, nas Forças Armadas, na condução da educação em
todos os níveis, na imprensa, na cultura (PIO XI, 1960), na família, nos clubes.

Era justamente isso o que vislumbrava Dom Leme quando escreveu as


instruções para a organização da “Ação Católica” no Brasil. Escrito originalmente em
1923, o livro tinha como finalidade servir de base para orientar os leigos na busca
frenética pela organização católica em todos os espaços da vida nacional:
 Ronda de vigilância para neutralizar protestantes e espíritas;
 Propõe o voto feminino sob orientação dos bispos;
 Fiscalização radical contra as fontes capitais da imoralidade: livros,
teatros, cinemas, modas, bailes;
 Divulgar na imprensa o apostolado (folhetos, artigos em jornais,
conferências);
 Evangelizar intelectuais, industriais, comerciantes, operários;
 Reestruturar a comissão paroquial que consistia em dividir a paróquia
em quarteirões, ruas, grupos de casas e que todos pudessem ser
visitados e “fiscalizados”;
 Pressionar e exigir dos poderes públicos leis de pronto interesse católico
e seu cumprimento;
 Lista das empresas que respeitavam o descanso dominical como dia
consagrado à Igreja;
 Comissão de caridade e assistência: proporcionar aos pobres o trabalho
e criar uma matrícula dos pobres para identificar cada pessoa;
 Curso para enfermeiras católicas;
 Criar albergues católicos com subvenção pública para crianças de rua;
 Criar escolas católicas em toda a part e. (Até 1950, 40% das escolas do
país eram confessionais);
 Assistência à “União Católica dos Militares”;
 Assistência à União da Mocidade Católica; etc.
A Santa Sé se põe como centro de referência para o mundo. Tal postura
demonstra o sentido reacionário da política católica. As concordatas assinadas com
governos constituídos institucionalmente ou por meio de golpes (como foi o caso do
período do Estado Novo no Brasil) de Estado revelam a face autoritária da Igreja
(MANOEL, 1999) como queria ela própria se i nserir no mundo moderno. Revela
também o propósito de manter canais de “pressão” política para obter espaço em
lugares centrais. Remeto-me à carta da Santa Sé ao embaixador Carlos Maximiano
de Figueiredo, propondo que o governo brasileiro apoiasse a candid atura do católico
Manoel Aroche, venezuelano, para cargo na Liga das Naç ões (DESPACHOS, 1935). Na
realidade, a política-teológica da Igreja, principalmente no pontificado de Pio XI, é
tornar a “Ação Católica” o verdadeiro partido político do catolicismo ro mano. Nesse
sentido, a política-teológica da Igreja era fazer uma teologia-política em todos os
espaços possíveis. O papel desempenhado pela Igreja no Brasil era reflexo disso: ela
estava disposta só em defender as suas liberdades corporativas particulares (apud
PORTELLI, 1984, p. 140). A hierarquia brasileira, profundamente dividida, v ê em suas
próprias ações a oportunidade de se fazer presente na vida pública brasileira. A
estratégia para atingir esse fim era organizar as entidades católicas, agir
intermediariamente às mulheres dos respectivos senhores do poder, pessoalmente, a
hierarquia iria até às raias do poder, negoiando diretamente com membros do Estado.
( LEME,1935).
Procuramos caracterizar o nosso personagem social que emerge das entranhas
do catolicismo oficial, isto é, o católico como militante que buscava defender a causa
da Igreja em todas as instâncias da vida: na família, na comunidade, na paróquia, no
trabalho, no clube, no partido etc. O termo “Ação Católica” já pressupõe uma
conjugação de forças coletivas atuando na realidade. O militante católico, desde a
tenra idade, formado nas hostes do colégio católico ou convertido posteriormente, era
disciplinado e condicionado a ser um agente político, pois atuava especialmente fora
das fronteiras da Igreja, seu campo de batalha principal. Este militante católico é
exclusivamente de matiz conservadora, defensor da ordem e inibidor dos conflitos, a
não ser que tais conflitos explodissem na esfera de ofensas à sua religi ão e
enveredassem para assuntos partidários e nacional-patrióticos. A missão (pois se
tratava justamente disso) do católico era se engajar numa causa espiritual, visando
intereferir na conduta do outro, dar forma católica ao campo político, extrapolando a
relação binária entre Estado e Igreja. Tudo deveria ter a pecha do católico.
O dever da Igreja era simultaneamente agir sobre a naç ão e sobre o Estado.
Esse seria o dever político do católico: manter católica a nação, desenvolver,
purificar, intensificar a consci ência desse catolicismo. O objetivo dos católicos e a
manutenção de sua mobilização constante era o de impedir que os opositores da
Igreja a isolassem ao âmbito sacramental, espiritual. O plano, ambicioso por sinal,
era mais ousado: colocar a Igreja no patamar de braço de apoio do Estado.
Exemplos não faltam para ilustrar até onde poderiam ir os limites do
catolicismo. Octavio de Faria, cunhado de Alceu, era romancista. Escrevia seguindo
dois estilos: apresentava as nuances do comportamento dos personagens; o outro,
publicista (no sentido político), acaba impondo barreiras a que os personagens vivam
sua própria vida. Os personagens tornam-se instrumentos do modo de pensar do
autor, o próprio Faria. Ele impõe aos personagens, no interior das narrativas,
concepções de pecado, de perdão. Enfim, Faria catoliciza as narrativas, muitas vezes,
cercadas de pessimismo e de um senso de deísmo maior do que o esperado pelos
líderes católicos. Daí os conflitos e o rompimento com Alceu.
Induz o leitor e tenta convencê-lo da ideia de que o catolicismo é capaz de nos
dar a melhor orientação para a crise moral na qual passava o país e o mundo.
(BASTOS, 2010, p. 276 ). Outro exemplo foi a Confederação Católica do Rio de
Janeiro que apresentara um dossiê ao Presidente da República, Washington Luiz,
sobre o momento da crise e penúria da nação durante a quebra da Bolsa de Nova
Iorque, em 1929. O tom imperativo do texto demonstra a tentativa de querer impor
política pública católica ao chefe da nação. (A CONFEDERAÇÃO, 1929).
Empregamos o termo “geopolítica” em duas dimensões: ocupar espaços para
cristianizá-los, despolitizando-os simultaneamente. Aqui, no sentido que Blackburn dá
ao termo, isto é, esvaziar a raz ão, tirar-lhe sua historicidade, o “Vampiro da Razão”.
(1992). Territorialidade é a outra dimensão com base na obra de Rosendahl. (s/d, p.
195). São mobilidades, ocupações espaciais onde se exercem práticas religiosas:
controlar o lugar sagrado (fixo) e os itinerários que constituem seu território. O lugar
se consolida quando o indivíduo se sente reconhecido numa comunidade. É nesse
momento que o espaço se torna político, sem deixar de ser religioso.
Alceu Amoroso Lima escrevera o livro Pela Ação Católica para justificar e
convencer os católicos. (1935, p. 119 ss) da necessidade e urg
ência de os próprios
católicos agirem em duas frentes: cultivar (dever cultural) a educaç ão dos católicos
com uma elite adestrada que pusesse em movimento as grandes massas; em
segundo lugar, agir diretamente sobre o Estado (dever político) para recristianizar os
políticos e o Estado. Igreja e Estado devem coexistir harmoniosamente, cada qual
com seus atributos específicos.
Em Política (Lima, 1999), Alceu tentou mostrar que o Estado n ão possuía uma
origem natural, mas surgira a partir da família e de suas necessidades mais
primitivas. Portanto, o dever do Estado seria observar os deveres públicos que, por
decorrência, deveria garantir o direito de Deus. (LIMA, 1999, p. 112).
A fala de Alceu A. Lima traz subjacente a postura de seu mentor, o cardeal
Sebastião Leme. Dom Leme pensara a turba católica, inspirado nos propósitos de Pio
XI, sob o modelo italiano da Ação Católica. Num primeiro plano, a Aç ão Católica
deveria criar órgãos de formação cristã: nas escolas confessionais, na universidade,
nos retiros espirituais, nos cent ros catequéticos, nas conferências teológicas, nas
semanas eucarísticas, nos congressos eucarísticos de nível nacional. Esses órgãos
deveriam ser estruturados nas respectivas arquidioceses do país inteiro, mas com
objetivos precisos de se atingir a eficácia nas paróquias onde concretamente se dava
a participação dos membros católicos. Num segundo plano, a Aç ão Católica deveria
convencer o católico de que a vida espiritual deveria nortear toda a vida do homem e
da mulher católicos: na família, na escola, na universidade, na empresa, no clube, no
sindicato, na cultura (cinema, na literatura, em teatro, no livro didático).
No entanto, manifestam-se divisões na postura de alguns prelados que
enfraqueciam a imagem da Igreja perante o laicado. Dom Becker, no sul, apoiava
explicitamente candidatos políticos de seu Estado, bem como manifestava também
apoio ao governo de Vargas (ISAIA, 1992 ). O cardeal não demonstrava partidarismo,
a não ser de forma reservada, mesmo assim a cautela prevalecia até nas
correspondências aos amigos mais íntimos como o arcebispo de São Paulo, Dom
Duarte, a quem demonstrava ser bem informado quanto à posição do exército
paulista no levante comunista de 1935. (LEME, 1935). Dom Leme, também em
correspondência a Dom Alberto Gonçalves, bispo de Ribeirão Preto, tecia comentários
sobre suas estratégias de obter votos favoráveis à Igreja na Constituinte de 1933.
(LEME, 1935). Em carta ao embaixador na Santa Sé, Carlos Magalh ães de Azeredo,
Dom Leme comentava o que pensava do cardeal Henrique Gaspar ri, que estaria do
lado dos prelados brasileiros e do Brasil, quanto pensava do núncio Aloisi Masella, um
grande apoiador do Brasil na Secretaria de Estado da Santa Sé. (LEME, 1935).
Também havia divisões ou divergências na intelectualidade católica do Rio de
Janeiro. Jonathas Serrano, em carta a um destinatário chamado Fonseca, faz um
desabafo, dizendo que estava farto de discursos, e acrescenta que era preciso uma
ação católica atuante e de uma União Católica Brasileira eficiente e ativa, o que ainda
não existia. (SERRANO, s/p).
Apesar do esforço dispendido por Dom Leme, a participação maior dos leigos,
principalmente dos homens, ficara muito a desejar. Assim, a estratégia do cardeal
fora influir sobre as autoridades públicas por meio de suas esposas e mães, católicas
fervorosas, como também negociar diretamente com os homens do poder.
Demonstramos nesse item as simbioses, os pactos que sistematicamente
Estado e Igreja efetivaram à medida em que se evidenciavam as intenç ões de ambos
e se percebiam como necessários um para o outro. Em primeiro plano, analisa-se as
formas de acercamento que tanto Estado quanto Igreja realizavam para se tornarem
íntimos e cúmplices de um espaço institucional e cultural que ambos apregoavam
para si como que por direito de tradi ção histórica e conjunturalmente, por direito
inerente às circunstâncias que exigiam atitudes eminentemente patrióticas de
salvação nacional. Evidentemente que esse pano de fundo fora construído tanto pelas
autoridades políticas quanto pelas lideranças católicas para criar um clima de
instabilidade que justificasse suas intervenções e reações. Exemplos não faltam:
sucessivos levantes militares nos anos de 1920; o movimento operário combativo; os
movimentos socialistas e comunistas.
Em segundo plano, a manei ra, digamos, simbólica de lidar com o imaginário
popular tanto do governo Vargas quanto da Igreja que restaura seus símbolos festivos
mais fortes e procura atrair a atenç ão da fé espontânea. É mais essa maneira que
marca a conciliação de política e teologi a. Por parte da Igreja, a institucionalização da
festa do Cristo-Rei por Pio XI; a adoraç ão perpétua ao santíssimo sacramento da
eucaristia, entronização da padroeira do Brasil etc. Por parte do Estado, a
“encarnação” de Deus na pessoa de Vargas como “Pai dos pobres”, no sentido de ser
benevolente com os que sofrem injustamente, o culto ao patriotismo emocional do
povo, a trindade nacional: nossa pátria, nossa bandeira, nosso chefe. Seria uma
referência à simbologia cristã da santíssima trindade. (CAPELATO, 2009, p. 52).
Há uma interpretação ainda em voga de que a hierarquia católica juntamente
com o papa desejavam uma volta triunfal a uma sociedade sacral e aristocrática na
qual se restabeleceria o justo lugar do Estado à categoria de “Estado Católico”,
definidor das normas de conduta do indivíduo, da família, da sociedade.
Publicamente, a Igreja manifesta-se assim. No entanto, reservadamente, o
discurso é outro. Nos bastidores, quando ocorre a necessidade de negociação direta
com as autoridades civis, a hie rarquia era comezinha, retraída, quase submissa à
espera de concessões. Daí vem os inúmeros “pedidos” de favores para empregar
parentes, benevolentes doações, badalações em círculos sociais burgueses, privilégios
legais.
A ação pastoral da Igreja se dá em três dimensões muitas vezes
concomitantes: organizar seus órgãos e entidades para cristianizar um número cada
vez maior de católicos; fazer-se incorporada aos órgãos do Estado e da sociedade civil
como uma instituição genuinamente nacional, inerente e inte grante da realidade sócio-
cultural brasileira; atuar no particular de cada personalidade pública ou de pessoas da
família (principalmente mulheres) para influir em prol de conquistar vantagens à
Igreja. A contragosto de seus algozes, a Igreja desejava sair da posição que lhe
imputavam os liberais, ou seja, de ser uma reles representante da vida espíritual
praticada na intimidade do lar e das fronteiras emocionais das pessoas, para ser
politicamente uma instituição intermediária dos problemas seculares, porque era
ontologicamente constituída da autoridade divina.
Alceu Amoroso Lima, escreve que Dom Leme, aparentemente, poderia
manifestar interesse político ao engajar a Igreja na LEC, mas era um engajamento de
caráter exclusiva e rigorosamente religioso:
“ – Quando a política toca o altar, temos ent ão de fazer política, mas só
então”. (apud LIMA, 1943, p. 166).
Alceu descreve o jeito de agir do cardeal: “- Dom Leme procurava agir em
silêncio. Tentava a ação secreta, indireta. De homem a homem”. (LIMA, 1943, p.
167). Dom Leme se rendia ao “jeitinho” brasileiro de fazer política: “ – Com bons
modos, tudo se consegue no Brasil. As campanhas são inúteis. Os homens, mesmo os
mais aparentemente maus, são bons entre nós. A questão é saber levá-los. Não
adianta levantar barreiras. O que adianta é vencer prevenções. E ir diretamente às
almas. Falar aos corações”. (apud LIMA, 1943, p. 168).
Em sua Carta Pastoral de 1916, Dom Leme afirmara com muita convicç ão e
num tom de desafio que o católico era apático, inerte. O país era considerado
católico, mas as instituições, as leis, a cultura, a educação, o próprio Estado não
tinham nenhum caráter que pudesse ser espelho de catolicidade. (LEME, 1916). Assim
sendo, era necesário fazer valer a máxima do ser-católico brasileiro. Para tanto, urgia
reorganizar e reequipar os órg ãos com nova roupagem de lideranças formadas sob as
orientações romanas, fazê-las atuantes, reaproximá-las das turbas do poder, torná-
las capazes de se fortalecerem para servirem como meio de cristianização e de
pressão política simultaneamente. Seguindo esse caminho, vislumbrava como centro
aglutinador a Confederação Católica que, inicialmente teria o objetivo de conquistar
classes dirigentes e as elites intelectuais. Numa outra fase, a Confederação Católica
serviria para articular em torno de si as outras associações que deveriam seguir
rigorosamente seus líderes, de antemão nomeados pelo arcebispo coordenador e pelos
respectivos bispos de cada diocese. Todas as asssociações deveriam ser compostas de
comissões que possuiam nas suas direções lideranças rotativas. Sua estrutura se
configurava numa rígida hierarquia vertical e com formato baseado naquilo que se
pode chamar de “teoria dos círculos conc êntricos”, isto é, a Confederação formava os
respectivos dirigentes que iriam coordenar as associações que estavam
umbilicalmente e obrigatoriamente ligadas às Confederações Católicas de cada
arquidiocese, sendo que todas as Confederaç ões estariam sob a direção máxima do
arcebispo, que logo depois, em 1930, seria o card eal Leme. De tal maneira que,
invertendo a ordem de posição das associações, na dimensão da cristianização das
pessoas a “teoria dos círculos concêntricos” funcionava do particular para o universal:
catequizar a mulher, os filhos, dos filhos suas respectivas famílias, desses à
sociedade até atingir a universalidade dos chamados católicos do Brasil. (MANOEL,
1999). Nota-se que a mulher é o modelo do militante.
Para Dom Leme, o primeiro passo seria organizar as associaç ões. O segundo
plano seria torná-las coparticipantes dos órgãos do Estado e das entidades sociais
diversas: formar lideranças católicas para ocuparem os ministérios, as repartições
públicas, as empresas, as hostes das Forças Armadas que, segundo Santo Rosário,
foram as primeiras a receberem a cr istianização (SANTO ROSÁRIO, 1962, p. 162). O
terceiro passo seria amarrar os interesses da Igreja no corpo a corpo, nas relaç
ões
pessoais. Em carta ao embaixador Carlos Magalhães Azeredo, Dom Leme revela como
funcionava uma da formas de tática de aproxima ção e convencimento. Acerca do
Presidente Washington Luiz:

“ – Tenho certeza absoluta das boas disposições do actual


governo com relação à Igreja. O Sr. Presidente vai mostrando,
com argumentos indiscutíveis, a sua sympatia por nós [...].
Velhas questões e litígios que, há anos, muitos anos, vinham
cansando as energias dos administradores archidiocesanos,
tiveram prompta e rápida soluç ão, logo que se falou ao Dr.
Washington Luiz. E nem foi preciso grande empenho, pois
enviei apenas, o meu procurador, com um pequeno memorial.
[...] e tudo se resolveu”.

Logo a seguir, na correspond ência, D. Leme pede ao embaixador ajuda para


incrementar as obras sociais da Igreja. Pede que o embaixador escreva cartas às
pessoas e famílias, pedindo-lhes que iniciem o movime nto, depois de ouvido o
arcebispo-coadjutor. “ -Mande-me a lista de tais pessoas e, quer me procurem elas
ou não, darei jeito de activa-las, pondo-me à frente etc.” (LEME, 1935).
Portanto a articulação das entidades católicas, sua inserção nos poros da
sociedade e as relações de corpo a corpo demonstram a projeção e profundidade da
ação pastoral católica e a construção de uma ordem política católica sob forma de
corporação que não se restringia à instituição eclesiástica, mas se estendia ao corpo
social não apenas configurada na religião, mas em estratégias de conquistas
politicamente católicas.
Nosso objetivo é trazer à baila as condições em que se encontravam as duas
instituições no início dos anos 1930. A contragosto de uma vis ão padronizada e
funcionalista de que a Igreja servia ao Estado como amortecedora de conflitos sociais,
e que o Estado, por sua vez, se fortaleceu e se legitimou com autoridade maior
devido ao apoio da Igreja, dando-lhe em troca um prestígio acima do que indicava a
legislação republicana, é preciso cautela em se colocar as duas instituições numa
dependência mútua que não reflete o peso real dos personagens que lhes deu corpo.
A Igreja estava vivendo um conflito interno muito grande. Bispos e arcebispos
não chegavam a um lugar comum em questão de como fazer valer o peso da religi ão
que representavam. A Santa Sé não se sintonizava às preocupações do episcopado
brasileiro e, de certa forma, o tratava com arrogância e desdém. Haja vista o
desabafo do carismático católico Jackson de Figueiredo ao embaixador na Santa Sé,
Carlos Magalhães de Azeredo (FIGUEIREDO, s/d) dizendo que a paz da qual
desfrutava a Igreja era “fictícia” e que a Santa Sé n ão respeitava os bispos
brasileiros.
Jonathas Serrano, em carta, desabafa e diz que estava farto de discurso. Para
ele, era desesperadora a situação da Igreja frente aos problemas sociais e que o
momento exigia ação enérgica. (SERRANO, 1931).
Por sua vez o Estado não tinha, supostamente, uma posição quanto ao que
podeia fazer em relação às aproximações da Santa Sé, que buscava uma assinatura
de concordata com o governo.
Sendo assim, nenhuma das duas instituições possuia uma posição definida do
que esperava da outra. O jogo estava em aberto.
O avivamento do culto ao nacionalismo e ao patriotismo de ambas a s
instituições teve objetivos precisos e, de certa forma, conhecidos. Por parte da Igreja,
o discurso que ligava nacionalismo, patriotismo, amor à terra da paz e da concórdia
tinha também endereço certo: expurgar comunistas, protestantes e influências
estrangeiras que pudessem trazer perigo à ordem constituída. Não deixava de ser um
discurso de adesão e de facilitação à junção com o Estado e às suas diretrizes, uma
readaptação a um lugar que, no fundo, a hierarquia sabia que n ão lhe pertencia mais,
ou seja, ajustar-se ao papel de apoiadora daquilo que decidia o Estado. Nesse sentido,
o discurso de nacionalismo, de patriotismo, de amor à terra se reveste de um caráter
espiritual na medida em que se incorpora às diretrizes pastorais da Igreja. No dizer de
Alceu, seria a democracia crist ã, ou, a política visando atingir o homem eterno, seria
uma filosofia de vida. (LIMA, 1999, p. 43), na contramão do que pretendia a teoria
do contrato social de Rousseau e Hobbes. Se era uma faceta pastoral de ação social,
deveria abarcar toda a dimensão da vida do crente: educar a criança para ser um
cristão-cidadão, o jovem para ser militante da causa católica, educar o adulto para
uma família cristã, o militar para honrar a pátria cristã, o empresário para uma
economia do bem-comum, o operário para ser o trabalhador da ordem política cristã.
Já, por parte do Estado, esse incorpora um discurso no qual o centro é a
imagem do seu novo líder, Vargas. O Estado brasileiro teologiza a imagem de seu
líder, sem catolicizá-lo. (CAPELATO, 2009). Vargas tinha o hábito de criar atores
políticos. Talvez seu grande feito tenha sido transformar-se no epípeto de “pai dos
pobres”, o que lembra a figura de um deus benevolente que, num gesto de pura
misericórdia, vem do alto salvar o indefeso, o coitado, o injustiçado.
O caráter de autoridade patriarcal se destaca. O pai concede a graça para seus
filhos à medida que esses cumprem a obedi ência esperada. O Presidente da República
se descola do papel histórico para salvar o povo das tiranias.

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QUEIROZ, Marcos Oliveira de.1

Esta pesquisa integra uma análise mais ampla que vem sendo
desenvolvida pela Professora Célia Santana, partindo de suas indagações e
questionamentos, resolvemos dar um novo recorte para o tema sem perder o
seu direcionamento. Nessa pesquisa partimos de alguns conhecimentos sobre
a Instituição Histórica Tradicional Assembleia de Deus, como a sua distancia
quanto às questões políticas.

A instituição Assembleia de Deus foi fundada em no Brasil por dois


missionários Gunnar Vingren e Daniel Berg que através de ensinamentos
novos como a manifestação do espírito Santo começaram a atrair vários
adeptos, que por se reunirem para juntos buscarem o espírito Santo
denominaram Assembleia de Deus o ajuntamento de pessoa que comungavam
o mesmo propósito. Sua expressão territorial no Brasil foi muito rápida. Na
Bahia a chegada dessa instituição se dá em 1926. Recentemente a igreja
chegou ao seu primeiro centenário apresentando um crescimento vertiginoso e
acelerado, consolidando-se como uma maior expressão do pentecostalismo
brasileiro. São mais 100 mil locais de cultos nos mais de cinco mil municípios
brasileiros.

É notável que desde a Assembleia Constituinte de 1986 os evangélicos


pentecostais vêm tendo uma participação significativa na política brasileira.
Esse fato se dá obviamente por escolhas individuais, mas também por arranjos
estratégicos de algumas igrejas para melhorar a habilidade de eleger e manter
os seus representantes. Esta participação de religiosos pentecostais vem tendo
uma notoriedade em todo o território nacional, mas na pesquisa a que nos
propusemos debruçar está especificamente voltada para a Instituição Histórica
Tradicional Assembleia de Deus na Cidade de Eunápolis- BA. Eunápolis é um
município do estado da Bahia-Brasil às margens da BR-101. Emancipada no
dia 05 de Dezembro de 1988.

Durante o século XX a participação dos evangélicos na política nacional


era relativamente pequena, sua proeminência se dá em 1986, a partir das

1
Graduando do Curso de História VIII Semestre, pela Universidade do estado da Bahia. (UNEB – Campus
XVIII.
eleições para a assembleia Nacional constituinte. Nas eleições de 1982 haviam
sido eleitos 12 deputados federais evangélicos, sendo apenas dois
pentecostais, no pleito de 1986 foram eleitos 32 parlamentares desse
seguimento religioso, sendo 18 deles pentecostais. No expressivo crescimento
da representação pentecostal o destaque foi para a Igreja Evangélica
Assembleia de Deus com 13 deputados eleitos. Em 2012, a representação
evangélica em Brasília cresceu muito, chegando a 51 parlamentares, com 49
deputados federais e 3 senadores eleitos (SOUZA, André Ricardo, OS
EVANGÉLICOS NAS ELEIÇÕES MUNICIPAIS. Pag. 28. Revista Eletrônica
Correlatio n. 17 – Junho 2010.

O cenário religioso brasileiro vem se transformando significativamente


nas duas últimas décadas. Uma dos motivos para este fato está no rápido
crescimento do seguimento evangélico, em contrapartida ao decaimento
católico. Os censos demográficos do IBGE (Instituto brasileiro de geografia e
estatística) Mostram que de 1940 a 1980, os evangélicos passaram de 2,6% a
6,6% da população brasileira. E no último levantamento em 2000, eles
chegaram a 15,4%, ou seja, mais de 26 milhões de adeptos. Estima-se que
esse conjunto já seja superior a 32 milhões de pessoas, sendo dois terços de
pentecostais e os demais protestantes históricos.

Pesquisas de autores como Joanildo A. Burity, André Ricardo Souza,


Paul Freston vão dizer que há um movimento de simetria entre religião e
política, principalmente devido ao considerável crescimento de pentecostais
nas últimas décadas. A consolidação da liberdade religiosa, a pluralidade do
campo religioso, o enfraquecimento do poder da Igreja Católica e a
redemocratização do Brasil contribuíram decisivamente para transformar as
relações dos grupos religiosos. A acelerada expansão numérica dos
evangélicos constitui fator dos mais relevantes para compreender parte das
mudanças ocorridas recentemente nos campos religioso e político brasileiro.

Nas duas últimas eleições municipais em Eunápolis se percebe um novo


movimento favorável a esta participação. Não só de participar e discutir, mas
de lançar candidatos. O Olhar histórico nessa pesquisa é de tentar entender
que movimento é esse que leva a mudança de mentalidade e de postura
desses fiéis protestantes? Quais os impactos na denominação religiosa
Assembleia de Deus, instituição religiosa da qual nos propomos pesquisar?

Nos últimos anos, os evangélicos têm aparecido cada vez mais no


cenário político e nas manchetes dos noticiários, ostentando grande
capacidade de interferir nas decisões políticas. Nas três últimas eleições (2004,
2008,2012), se percebe uma significativa participação de alguns fieis da
Assembleia de Deus. É sabido que sempre houve uma intolerância e repúdio
por parte da maioria dos líderes tradicionais evangélicos, que por sua vez
pregavam em suas plataformas aos fiéis que política não seria ambiente para
um verdadeiro cristão, constata-se isto em entrevistas e discursos dos
ensinamentos dos condutores das instituições pentecostais, que por motivos
éticos ainda não estão citados diretamente nesta pesquisa.

Dentro de uma análise história mais ampla se percebe que esta


mudança de mentalidade dos líderes evangélicos nos últimos anos se dá por
fatores sociais e principalmente econômicos. Há sem dúvida uma
transformação nos preceitos religiosos mais tradicionais para os que
atualmente se propagam nas igrejas, sobretudo pentecostais. E conhecido que
a cidadania expressa um conjunto de direitos que dá a qualquer indivíduo a
possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem
não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada
de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social. É
com base nesse pensamento que obviamente os cristãos pentecostais não
poderia estar alheio aos acontecimentos políticos. Mais do que consciência
política de cidadania, os pentecostais querem estar ativamente engajados
dentro da plataforma política, pois estando inseridos nesse contexto poderá
interferir em tomadas de decisões que beneficiarão prejudicarão seus
princípios religiosos.
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Revista Eletrônica Correlatio n. 17 - Junho de 2010
A PRODUÇÃO DE VERDADES NO ESPIRITISMO: AS CONTROVÉRSIAS ENTRE
ALLAN KARDEC E J.B. ROUSTAING

Fabiano Cesar de Mendonça Vidal 1*


2**
Dilaine Soares Sampaio de França

Resumo:
Este trabalho se propõe a discutir a produção de verdades no Espiritismo kardecista, o
processo de legitimação das mesmas através do "Controle Universal do Ensino dos
Espíritos", a disputa do monopólio da produção dos bens simbólicos espíritas e as
controvérsias existentes entre a obra de Kardec e Jean Baptiste Roustaing, tomando
por inspiração o conceito de controvérsia de Bruno Latour e utilizando a metodologia
de análise do discurso de Michel Foucault para compreender a produção do discurso
da doutrina, seus modos de legitimação e rejeição desse discurso.

1. Introdução
Este artigo relaciona-se ao trabalho de dissertação em andamento3 e é fruto do
interesse na gênese do Espiritismo kardecista, notadamente no que se refere à sua
produção de verdades e como se dá a legitimação das mesmas. Com essa finalidade,
serão analisadas as controvérsias entre Allan Kardec, o codificador da Doutrina
Espírita, e o advogado francês Jean Baptiste Roustaing, adepto do Espiritismo que se
propôs a publicar uma obra denominada Os Quatro Evangelhos - A Revelação da
Revelação que, em sua visão, daria continuidade à obra de Kardec, sendo-lhe um
complemento necessário. Utilizaremos neste artigo o trabalho de Iracilda Gonçalves
(2010) sobre a produção de verdades no Espiritismo, as teses de Michel Foucault
sobre a produção do discurso e de Bruno Latour sobre as controvérsias.
Como nosso trabalho foi construído a partir do referencial das Ciências Sociais
das Religiões, faremos num primeiro momento a contextualização histórica das
Ciências das Religiões, dos seus primórdios à discussão de sua emancipação no meio
acadêmico como disciplina e de ser ou não uma ciência própria.
Na segunda parte, é realizado um breve histórico do contexto em que surge o
Espiritismo na França, através do fenômeno das mesas girantes, como Allan Kardec
surge nesse cenário com seus estudos e como se dá o processo de seleção e aceitação
ou não das verdades que farão parte do corpo doutrinário do Espiritismo, e como esse
critério de seleção rejeita as teses de Jean Baptiste Roustaing, cuja obra Os Quatro

*
Mestrando em Ciências das Religiões (PPGCR/UFPB). E-mail para contato:
fabianovidal.ufpb@hotmail.com.br
**
Professora Adjunta do Departamento de Ciências das Religiões da UFPB e de seu Programa de Pós-
Graduação em Ciências das Religiões – PPGCR.
3
A dissertação, em construção, a ser defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da
UFPB intitula-se Em torno do Nosso Lar: Uma análise das controvérsias e discursos produzidos no
Movimento Espírita.
Evangelhos se apresenta como complementar à obra kardequiana, mas sendo
rejeitada posteriormente pelo codificador do Espiritismo, o que irá causar um cisma na
nova doutrina.

2. A(s) Ciência(s) da (s) Religião (ões): contextualização histórica e o debate


de uma área acadêmica
Greschat considera que o uso da palavra “religião”, apesar de corriqueiro, pode
ser comparado a um labirinto no qual sua utilização só é conhecida por especialistas
que se utilizam do termo “Ciência da Religião”. Conforme o autor, na Europa, quando
se fala na palavra “religião”, esta é associada à religião cristã, em função do fato da
cultura europeia haver sido influenciada pelo cristianismo. Segundo o autor, “religião”
serve para especialistas de diversas disciplinas, embora nem sempre signifique ou
denomine a mesma coisa e, por consequência, apesar do grande número de definições
de religião, até hoje não se chegou a um consenso (Greschat, 2005, p.17; 20).
Para Greschat:
O fato de não possuirmos uma definição universal de religião é um defeito,
mas não uma catástrofe, uma vez que o objeto permanece e a qualidade
de palavras inventadas ou a serem inventadas atinge o objeto apenas
marginalmente (Greschat, 2005, p.21).

Embora não se tenha chegado ainda a um consenso sobre a definição de


religião, esta existe enquanto objeto de estudo. Dada a multiplicidade dos diferentes
modos e procedimentos de seu estudo pelos cientistas, tem ocorrido que a religião é
vista de forma parcial, de acordo com as perspectivas das disciplinas destes
cientistas4. Já para os cientistas da religião, o importante é a totalidade da religião
estudada (Greschat, 2005, p. 23-24).
Segundo Usarski, somente a partir da segunda metade do século XIX a Ciência
da Religião foi estabelecida como matéria acadêmica das universidades europeias. No
entanto, um saber sobre religiões já existia desde a antiguidade grega. De acordo com
este autor, a Ciência da Religião desenvolveu, ao longo do tempo, especificidades
próprias em função das condições acadêmicas de cada país, em função de sua relação
e colaboração com outras disciplinas e até mesmo devido à presença de determinadas
religiões que mais chamam a atenção entre os pesquisadores do tema (Usarski, 2006,
p. 15).
A Ciência da Religião é tida como “filha emancipada da Teologia” (Tworuschka.
Apud Usarski, 2006, p. 16) e, em relação à sua emancipação desta disciplina, é
possível afirmar que esta ocorre devido à “vasta extensão da sua área de pesquisa e
no seu ideal de neutralidade diante dos seus objetos” (Usarski, 2006, p. 17). Outra

4
Greschat cita como exemplos arqueólogos, historiadores, sociólogos, médicos, psicólogos e juristas.
diferença entre as duas disciplinas é que na Ciência da Religião o cristianismo não é
tomado como referência, o que a leva a posicionar-se de forma irrestrita quanto aos
objetos por ela tidos como dignos de investigação e em sua motivação pelos objetos
estudados, apresentando um interesse primário isento de motivos apologéticos ou
missionários. Para Usarksi, esta capacidade de abstração religiosa e sua “indiferença”
quanto às contraditórias pretensões de verdades com as quais o pesquisador se
defronta são competências-chave que caracterizam a Ciência da Religião (Usarksi,
2006, p. 17).
Acerca do uso do termo Ciência da Religião ou Ciências das Religiões, Filoramo
e Prandi assim se posicionam:
Quem fala de ciência da religião tende, de um lado, a pressupor a
existência de um método científico e, do outro, de um objeto unitário.
Quem, ao contrário, (...) prefere falar de ciências das religiões, o faz
porque está convencido tanto do pluralismo metodológico (e da
impossibilidade de reduzi-lo a um mínimo denominador comum) quanto do
pluralismo do objeto (e da não-liceidade e até impossibilidade, no plano da
investigação empírica, de construir sua unidade) (Filoramo; Prandi, 2007,
p.12).

Conforme este autor, as ciências das religiões não podem ser consideradas
uma disciplina a parte, fundada, do modo como idealizaria a tradição
hermeneuticamente orientada, sob a unidade do objeto e do método. As ciências das
religiões são, antes de tudo, um campo disciplinar e, consequentemente, uma
estrutura aberta e dinâmica (Filoramo; Prandi, 2007, p.13).
O uso da palavra “ciência”, no sentido específico do qual provém a expressão
“ciência da religião”, de acordo com Dreher, é oriundo de uma íntima relação com o
termo alemão Wissenschaft, que possui, segundo ele, o significado de um
conhecimento sistemático e coerente, um saber (Wissen) regrado e controlado,
explicitador dos seus pressupostos e que controla e justifica seus procedimentos
(Dreher, 2001, p. 162-163).
Em relação à institucionalização da ciência(s) da religião(ões) como uma
disciplina acadêmica autônoma, Usarski considera que a mesma teve início nas
últimas três décadas do século XIX, quando surgiu a primeira cátedra de “Histoire dês
Religions” em 1873 na Facultè dês Lettres na Universidade de Genebra (Usarski, 2006,
p.24-25). O desenvolvimento da ciência(s) da religião(ões) enquanto disciplina teve
um grande progresso a partir de 1886, quando, através de decreto governamental, foi
fechada a Faculdade de Teologia da Sorbonne para dar lugar à Section dês Sciences
Religieuses da École dês Hautes Études, caracterizada pelo então ministro responsável
como um “centro de pesquisa crítica” (Usarksi, 2006, p. 26).
No entanto, outros indicadores além da “oficialização” da Ciência da Religião
nas universidades explicam sua progressão enquanto disciplina no meio acadêmico: o
surgimento de periódicos e publicações e organização de congressos, que por sua vez
refletiam nas comunidades científicas relacionadas e ofereceram a oportunidade para
o fortalecimento da consciência de integridade da própria comunidade científica
(Usarksi, 2006, p. 27).
No Brasil, a proposta da(s) ciência(s) da religião como uma nova área
acadêmica, surge, segundo Dreher, a partir de uma concepção de que o objeto
“religião/religiões” tem muito a ganhar através de uma melhor compreensão e
aclaramento científico, se este for estudado de forma interdisciplinar e autônoma. Este
estudo interdisciplinar em solo brasileiro, destaca o autor, foi moldado baseado em um
modelo ora de aliança, ora de complementaridade com as ciências sociais, que deram
uma contribuição significativa no tocante ao desenvolvimento de uma agenda para o
estudo acadêmico da religião. Para Dreher, deve-se a este fato o maior interesse
atualmente manifestado pela questão do diálogo inter-religioso que, apesar de ainda
estar atrelado à teologia no país, possui um potencial próprio dentro da(s) ciência(s)
da religião (Dreher, 2001, p. 159-160).

3. Allan Kardec e Jean Baptiste Roustaing: controvérsias no Espiritismo


A Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec tem sua origem vinculada ao
fenômeno das mesas girantes, que em 1853, na França, estava em seus primórdios e
era visto pela maior parte da sociedade da época como um mero passatempo. Este
acontecia quando pessoas se colocavam ao redor de uma mesa, em cima da qual
punham as mãos. Levantando um dos pés, a mesa dava uma pancada equivalente a
uma determinada letra que servia ao espírito comunicante para formar palavras.
Porém, é apenas em 1854 que o pedagogo Hippolyte Léon Denizard Rivail (Allan
Kardec) terá seu primeiro contato com as mesas girantes. O mesmo ocorre em função
de convite realizado por um magnetizador, o Sr. Fortier, a fim de conhecer as
manifestações que ocorriam nos salões da capital francesa, inclusive no Palácio
Imperial de Napoleão III. Inicialmente, a posição de Rivail foi de ceticismo, atribuindo
ao fenômeno a possibilidade de ser causado pelo fluido magnético, uma vez que “a
mesa não possuía nervos nem cérebro, nem podia tornar-se sonâmbula” (Abreu Filho,
1956, p.24). Homem das ciências, Rivail não acreditava na possibilidade deste ser um
fenômeno espiritual.
Tendo participado posteriormente de algumas sessões mediúnicas, a atenção
de Rivail se voltou para o fato de que muitas das respostas emitidas por aqueles
objetos estavam além do conhecimento cultural e social dos que faziam parte do
"espetáculo". Desta forma, Rivail chega à conclusão de que a causa do fenômeno das
mesas girantes não era meramente física, de onde depreende o axioma “se todo efeito
tem uma causa, todo o efeito inteligente deve ter uma causa inteligente” (Kardec,
2009, p.147).
Durante seus estudos e observações, Rivail recebeu uma comunicação dirigida
a ele, de um espírito que se denominava Verdade, informando-o de que seria
responsável pela codificação de uma nova doutrina. Após muitos questionamentos do
pedagogo francês ao espírito, por fim Rivail aceita a tarefa que lhe fora designada. Até
então, de acordo com Gonçalves, “Rivail não possuía como objetivo produzir um
arcabouço discursivo específico. O que movia seu interesse pela observação do fato
era, apenas, a vontade de inteirar-se sobre o fenômeno” (Gonçalves, 2010, p. 35).
Dentre os temas que mais interessavam a Kardec durante seu processo de
observação, estavam aqueles ligados à filosofia, psicologia e da natureza do mundo
invisível. Iracilda Gonçalves destaca que, face à complexidade da tarefa assumida,
Kardec passa a encarar os fenômenos por ele pesquisados como:
Uma chave de leitura para a solução de questionamentos, sobre o passado
e o futuro da humanidade, até então, sem explicações. O fenômeno
constituía-se, na sua perspectiva, como uma revolução nas ideias e crenças
que, naquele momento, circulavam como verdades (Gonçalves, 2010, p.
35).

Kardec, então, assume que os fenômenos por ele estudados não poderiam ser
explicados pelas leis já conhecidas, e adota o método experimental utilizado pelas
ciências positivas (Gonçalves, 2010, p. 36). Sua decisão é assim explicada:
Apliquei a essa nova ciência, como o fizera até então, o método
experimental; nunca elaborei teorias pré-concebidas; observava
atentamente, comparava, deduzia as consequências; dos efeitos eu
procurava remontar às causas, pela dedução e o encadeamento lógico dos
fatos, só admitindo como válida uma explicação quando ela pudesse
resolver todas as dificuldades da questão. (Kardec, 2002, p. 394)

Em razão deste posicionamento assumido, Allan Kardec dá prosseguimento à


coleta de discursos que formarão seu corpus de análise através das entrevistas. Elaborou
de forma prévia um roteiro de perguntas sobre cada objeto a ser tratado, tendo se
utilizado dos médiuns para conversar com seus informantes. Os principais médiuns
utilizados por Kardec durante todo o processo foram as irmãs Caroline e Julie Baudin
(Gonçalves, 2010, p.40). As mesmas perguntas realizadas a estas eram repetidas para
vários outros médiuns da Europa e América, fazendo com que Kardec viajasse por mais
de vinte cidades. Os médiuns utilizados durante a codificação da nova doutrina não
tinham contato entre si, apenas Kardec tinha acesso a eles. Este controle rígido das
informações coletadas ficou conhecido por "Controle Universal do Ensino dos Espíritos",
do qual se estabeleceu que qualquer informação vinda do plano espiritual só terá
validade para o Espiritismo se for constatada em vários lugares, através de diversos
médiuns, que não mantenham contato entre si. Fora desse critério, toda comunicação
será tida como uma opinião particular do espírito comunicante (Vidal, 2012, p. 16-17).
É, portanto, através da aplicação do "Controle Universal do Ensino dos Espíritos",
que Allan Kardec seleciona os enunciados que farão parte “daquele conjunto de ideias,
em meio à grande dispersão de enunciados que circundavam, em torno daquele processo
discursivo”, o que o fez optar pelo recurso da observação das regularidades discursivas
(Gonçalves, 2010, p. 41).
Temos, portanto, a adoção, por parte de Kardec, de um tipo de procedimento que
permite o controle do discurso espírita e, consequentemente, da produção das verdades
a serem adotadas pelo Espiritismo:
Trata-se de determinar as condições de seu funcionamento, de impor aos
indivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim de não permitir
que todo mundo tenha acesso a eles. (...) Ninguém entrará na ordem do
discurso se não satisfazer a certas exigências ou se não for, de início,
qualificado para fazê-lo (Foucault, 2011, p.36).

Conforme Freitas Gonçalves, o Espiritismo constrói suas verdades a partir de um


conjunto de enunciados nos quais, ao tratar de objetos como a vida, morte, espírito,
imortalidade, dentre outras temáticas, estes se tornam imanentes à sua religiosidade.
Ainda segundo a autora, “a Doutrina Espírita possui um conjunto de discursos que
formam seu campo discursivo a partir de uma regularidade que as identifica como tal.
São discursos que definem um saber específico sobre o divino, o humano, o espírito, o
terreno, a vida, a morte” (Gonçalves, 2011, p.54-55). O processo de produção do
discurso espírita é realizado através dos vários tipos de mediunidade, o que dá origem a
um tipo de discurso específico: o mediúnico.
Assim como Allan Kardec, é através do discurso mediúnico que um advogado da
cidade de Bordeaux, Jean Baptiste Roustaing, adepto do Espiritismo, dará início a uma
obra que é tida por estudiosos da Doutrina Espírita como o primeiro cisma da mesma. De
formação católica, Roustaing passara por uma grave enfermidade e, ao sair desta, fora
informado por um clínico sobre a possibilidade de comunicações do mundo corpóreo com
o espiritual. De início, este demonstra certo ceticismo sobre o assunto, mas
posteriormente decide pesquisá-lo e adquire exemplares de O Livro dos Espíritos e O
Livro dos Médiuns, concluindo posteriormente que “o mundo espiritual era bem o reflexo
do mundo corporal” (Pires,1973, p.6).
Empolgado com a revelação espírita de Allan Kardec, Roustaing decide estudar
por conta própria livros de teor profano e religioso, O Velho e o Novo Testamento, dentre
outros, e chegou à conclusão de que as verdades das obras de Kardec por elas eram
confirmadas. Porém, Roustaing se questiona sobre a origem e a natureza espiritual de
Jesus, assim como sobre sua posição espírita em relação a Deus e ao nosso planeta, os
seus poderes e a sua autoridade (Pires, 1973, p.6). Este sente, então, a necessidade de
uma nova revelação, que se concretizaria na obra Os Quatro Evangelhos - A Revelação
da Revelação, em uma clara alusão ao Espiritismo kardecista.5
Segundo relato do próprio Roustaing, a 24 de junho de 1861, este, no “sigilo de
uma prece fervorosa”, pede a Deus que permitisse que o espírito de João Batista lhe
manifestasse através de um médium que se encontrava em sua companhia, assim como
a manifestação de seu pai e de seu guia protetor. Roustaing confirma, então, as
manifestações espontâneas desses espíritos, “com surpresa do médium, a quem eu
deixara ignorante de minha prece”, e que posteriormente, a 30 de junho, o espírito do
apóstolo Pedro se manifesta “de modo inesperado tanto para mim quanto para o
médium”. (Pires, 1973, p.7).
Pires relata que após essas comunicações, Roustaing “trava conhecimento com
Madame Collignon” (1973, p.7). Nascida na Bélgica, em 1820, Émilie Aimée Charlotte
Bréard Collignon, médium que ficaria mais conhecida por Madame E. Collignon, começa a
receber Os Quatro Evangelhos, apenas oito dias depois da comunicação de Pedro. Os
apóstolos Mateus, Marcos, Lucas e João teriam lhe transmitido extensa comunicação
sobre o recebimento da Revelação da Revelação. A obra é concluída em maio de 1865 e,
em junho de 1866, Allan Kardec realiza uma análise da obra roustainguista6 na Revista
Espírita. Segundo o codificador do Espiritismo,
Esta obra [Os Quatro Evangelhos] compreende a explicação e a interpretação
dos Evangelhos, artigo por artigo, com ajuda de comunicações ditadas pelos
espíritos. É um trabalho considerado, e que tem, para os espíritas, o mérito de
não estar, sobre nenhum ponto, em contradição com a doutrina ensinada por
O Livro dos Espíritos e o dos médiuns. As partes correspondentes àquelas que
tratamos em O Evangelho Segundo o Espiritismo o são num sentido análogo.
De resto, como nos limitamos às máximas morais que, quase sem exceção,
são geralmente claras, elas não poderiam ser interpretadas de diversas
maneiras; também foram o assunto de controvérsias religiosas. Foi por esta
razão que começamos por ali a fim de ser aceito sem contestação, esperando
para o resto que a opinião geral estivesse mais familiarizada com a ideia
espírita (Kardec,1993, p.129).

Baseados nessa afirmação de Kardec, os adeptos das teses de Jean Baptiste


Roustaing afirmaram que o codificador do Espiritismo “não condenou os Evangelhos de
Roustaing, apenas o deixou em quarentena” (Vidal, 2012, p. 31-32). Os seguidores de
Kardec contestaram tal afirmação, citando a continuidade da mesma análise realizada
pelo codificador na Revista Espírita. Nela, Kardec pondera que as explicações da tese
roustainguista devem ser tidas:
Como opiniões pessoais aos espíritos que a formularam, opiniões que podem
ser justas ou falsas, e que, em todos os casos, têm necessidade da sanção do
controle universal, e até mais ampla confirmação não poderiam ser

5
Para Allan Kardec, a Doutrina Espírita é a Terceira Revelação das leis de Deus. A primeira revelação
estava representada na figura de Moisés; A segunda, personificada na figura de Jesus; e a terceira, o
Espiritismo, que seria o Consolador Prometido por Jesus, não estando personificado por alguém, mas
é o produto do ensinamento dado pelos espíritos.
6
As teses defendidas por Jean Baptiste Roustaing, assim como seus adeptos, são denominadas de
roustainguistas, rustenistas ou rustanistas.
consideradas como partes integrantes da Doutrina Espírita (Kardec, 1993,
p.129).

As controvérsias entre kardecistas e roustainguistas ocorreram em função das


revelações contidas na obra de Roustaing que não estariam dentro das condições
estabelecidas por Kardec para a produção e aceitação de verdades pelo Espiritismo. Entre
as principais teses do roustainguismo que causaram as controvérsias com as obras de
Kardec, está a virgindade de Maria (sua gravidez teria sido obra do Espírito Santo, e
como tal, aparente e fluídica, de maneira a produzir ilusão, a fazê-la crer numa gravidez
real); o corpo fluídico de Jesus, que possuiria da matéria apenas a aparência; Tudo na
vida de Jesus, foi apenas aparente, havendo ilusão para todos que o seguiam; Os
espíritos “ateus” sofreriam o castigo da primitiva encarnação humana, transformando-se
em larvas, que Roustaing denomina “criptógamos carnudos”, uma espécie de lesma; E a
afirmação dos adeptos de Roustaing que Humberto de Campos-espírito enfatiza a
participação dele na obra da Codificação7 . Além destas teses, outro fator de crítica pelos
kardecistas à obra de Roustaing se deve ao fato deste haver se utilizado de uma única
médium (Madame Collignon) para o recebimento da obra, e da não aplicação do método
de aferição das verdades criado por Kardec, o “Controle Universal do Ensino dos
Espíritos”.
Lewgoy, acerca da preocupação do controle das mensagens que poderiam ou não
compor a Doutrina Espírita, assim se pronuncia:
Desde Kardec, o espiritismo esteve preocupado em critérios de autenticação
das mensagens recebidas pelos médiuns, onde a credibilidade destes é
condição de possibilidade do êxito da comunicação. Mas o exame da
mensagem é soberano, sendo feito com base em critérios exegéticos de
"elevação moral intrínseca" de seu conteúdo. Ou seja, se são reconhecidas
como mensagens de espíritos de escol, há todo um esforço paralelo de
teorização dos critérios de reconhecimento, que atravessam a obra de Kardec,
bem como nos autores que até as primeiras décadas do Século XX falam do
espiritismo, como Conan Doyle (1992). Os critérios textuais consistem,
fundamentalmente, numa espécie de crítica religiosa do conteúdo das
mensagens, a fim de evitar fraudes e mistificações. Não se trata de uma
simples exegese racional em busca de coerência doutrinal, mas do que poderia
ser chamado, do ângulo do critério, de um certo habitus que corresponde a
um "feeling religioso" que, por sua vez, apresenta uma abertura para a
questão da estética das mensagens recebidas (Lewgoy, 2000, p. 59).

Para Latour, uma sentença dependerá da forma como está inserida em outras
para ser considerada mais fato ou ficção: “Por si mesma, uma sentença não é nem fato
nem ficção; torna-se um ou outra mais tarde graças a outras sentenças” (Latour, 2011,
p.35). Conforme o autor, a sentença será tornada mais fato desde que esteja “inserida
numa premissa fechada, óbvia, consistente e amarrada, que leva a alguma outra
consequência menos fechada, menos óbvia, menos consistente e menos unificada”. De
acordo com o filósofo e antropólogo francês, ao olharmos uma controvérsia mais de

7
Conforme relato do autor espiritual na obra Brasil Coração do Mundo, Pátria do Evangelho,
psicografada pelo médium Francisco Cândido Xavier.
perto, perceberemos que “metade do trabalho de interpretação das razões que estão por
trás da crença já está feita!” (Latour, 2011, p. 37).
A continuação de um debate implica no aprofundamento do objeto estudado, o
que geraria um maior número de novas condições de produção a serem atacados, uma
vez que a cada nova contestação a ser adicionada ao debate da controvérsia, o status da
descoberta original será modificado. Consequentemente, o destino da afirmação (sua
definição como fato ou ficção) dependerá dos debates ulteriores:
Seu grau de certeza aumenta ou diminui, dependendo da sentença seguinte
que a retomar; essa atribuição retrospectiva se repete na nova sentença, que,
por sua vez, poderá ser tornada mais fato ou ficção por força de uma terceira,
e assim por diante (Latour, 2011, p. 39-40).

O que Latour denomina por debates ulteriores aconteceu, de fato, entre Allan
Kardec e Roustaing. Em 1868, apenas dois anos após o lançamento de Os Quatro
Evangelhos, Kardec publica A Gênese, onde procura implodir, de forma definitiva, a tese
central roustainguista acerca do corpo fluídico de Jesus:
Como homem, [Jesus] tinha a organização dos seres carnais; mas como
Espírito puro, destacado da matéria, devia viver na vida espiritual mais que na
vida corporal, da qual não tinha as fraquezas. A superioridade de Jesus sobre
os homens não era relativa às qualidades particulares de seu corpo, mas à de
seu espírito, que dominava a matéria de maneira absoluta, e ao seu perispírito
alimentado pela parte a mais quintessenciada dos fluidos terrestres (Kardec,
2003, p.263).

Arribas afirma que os esforços de Kardec para contraditar a teoria de Roustaing e


posicionar-se de vez sobre o assunto, se davam em consequência da disputa do
monopólio da produção dos bens simbólicos espíritas. Kardec aspirava, portanto, acabar
com as bases para ver desmoronar todo o edifício teórico do pretendido continuador do
seu Espiritismo (Arribas, 2010, p.221-222). Segundo a pesquisadora, embora houvesse
existido um mínimo de diálogo entre Kardec e Roustaing através das páginas da Revista
Espírita, a obra roustainguista:
Mal foi conhecida, ou em termos mais precisos, reconhecida no meio espírita
francês. Mesmo recebendo uma segunda tiragem em 1882, aumentada
somente de um prefácio exclusivamente produzido contra o artigo de Kardec
da Revue Spirite, as teses roustainguistas foram pouco ou quase nada
difundidas. No entanto, no Brasil, os seus escritos tiveram uma recepção
bastante acolhedora, o que favoreceu a sua difusão por parte, sobretudo, do
grupo dos religiosos – grupo que tomou cada vez mais a dianteira do
movimento espírita brasileiro (Arribas, 2010, p. 224).

Segundo as concepções de Foucault sobre as “doutrinas”, estas constituiriam o


inverso do que se entende por uma “sociedade de discurso”, que ocorre quando o
número dos indivíduos que falavam, mesmo não sendo fixado, tendia a ser limitado, e
apenas dentro desse grupo de indivíduos o discurso poderia circular e ser transmitido
(Foucault, 2011, p. 41). A doutrina, explica Foucault, possui a tendência de difundir-se,
através da partilha de:
Um só e mesmo conjunto de discursos que indivíduos, tão numerosos quanto
se queira imaginar, definem sua presença recíproca. Aparentemente, a única
condição requerida é o reconhecimento das mesmas verdades e a aceitação de
certa regra – mais ou menos flexível – de conforme com os discursos
validados. (...) Ora, a pertença doutrinária questiona ao mesmo tempo o
enunciado e o sujeito que fala, um através do outro. Questiona o sujeito que
fala através e a partir do enunciado, como provam os procedimentos de
exclusão e os mecanismos de rejeição que entram em jogo quando um sujeito
que fala formula um ou vários enunciados inassimiláveis; a heresia e a
ortodoxia não derivam de um exagero fanático dos mecanismos doutrinários,
elas lhe pertencem fundamentalmente (Grifo nosso). (Foucault, 2011, p. 42).

Foucault fecha seu raciocínio sobre as doutrinas ao considerar que estas ligam os
indivíduos a certos tipos de enunciação e, ao mesmo tempo, sujeita seus seguidores à
sujeição “dos sujeitos que falam aos discursos e dos discursos ao grupo, ao menos
virtual, dos indivíduos que falam” (Foucault, 2011, p. 43).
Desta forma, concordamos com Vilhena, quando esta autora afirma que, em
decorrência de críticas acirradas entre grupos representativos de posturas antagônicas e
concorrentes, o diálogo se torna mais áspero e, muitas vezes, praticamente impossível,
originando cismas e rupturas no interior da mesma religião, conduzindo ainda à formação
de dissensões dos grupos disputantes que arvoram para si a pretensão da correta
interpretação dos princípios doutrinários e práticas a eles correlatas (Vilhena, 2008, p.
14).

4. Considerações finais
Cremos ser esta discussão acerca da produção e legitimação de verdades
doutrinárias espíritas de suma importância para uma maior compreensão das várias
correntes existentes no seio do movimento espírita brasileiro, uma vez que através do
estudo da temática aqui abordada poderemos chegar a um entendimento de como se
deu os momentos de implantação, consolidação e de legitimidade social ou
doutrinária. As Ciências das Religiões, em nosso entender, é o meio mais propício para
tal estudo, face às suas pretensões de abstração religiosa e isenção missionária.
Ressalte-se que o Espiritismo dentro do campo religioso brasileiro é relevante não
apenas pelo expressivo número de adeptos8, mas também em decorrência de seus
princípios básicos serem aceitos por muitos brasileiros, incluindo aqueles adeptos de
outras religiões.
Como exemplo da importância do estudo desta temática, citamos Giumbelli:
No Brasil, Os Quatro Evangelhos, traduzido em 1883 por Ewerton Quadros,
influenciaram livros como A divina epopeia de João Evangelista, de
Bittencourt Sampaio, 1882 (...); e Elucidações evangélicas, de Antonio
Sayão (1897) – este último muito usado em substituição ao original de
Roustaing, tido como de difícil compreensão (Giumbelli, 1996, p.75).

8
Dados do Censo 2010 indicam que a doutrina de Kardec possui 3,8 milhões de seguidores, o que faz
do Brasil o maior país espírita do mundo. De 1,3% da população em 2000, o número de adeptos sobe
para 2,0% em 2010.
Mas a influência da obra de Roustaing não teria ficado limitada às obras citadas
por Giumbelli. Sérgio Aleixo, vice-presidente da Associação de Divulgadores do
Espiritismo do Rio de Janeiro (ADE-RJ), denomina a obra roustainguista de
“deturpação perigosa” que não seria divulgada apenas por sua obra principal,
concorrente de Kardec, “mas mediante livros psicografados por Chico Xavier” (Vidal,
2012, p. 72). Arribas credita a aceitação e divulgação das teses roustainguistas no
Brasil ao fato desta se conciliar às predisposições católicas de muitos espíritas, que
deram origem em solo brasileiro a um Espiritismo catolicizado que segue dominante
no movimento espírita brasileiro até a atualidade (Arribas, 2010, p. 235). Desta
forma, consideramos que o presente trabalho será capaz de dar sua parcela de
contribuição às questões aqui propostas na busca da compreensão das controvérsias
espíritas.

Referências
ABREU FILHO, Júlio; PIRES, José Herculano. O Verbo e a Carne. São Paulo: Edições
Cairbar, 1973.
ARRIBAS, Célia. Afinal, Espiritismo é religião? A doutrina espírita na formação da
diversidade religiosa brasileira. São Paulo: Alameda, 2010.
DREHER, Luís Henrique. Ciência (s) da Religião: Teoria e Pós-Graduação no Brasil. In:
TEIXEIRA, Faustino (org). A(s) ciência(s) da religião no Brasil. Afirmação de uma área
acadêmica. São Paulo: Paulinas, 2001.
FILORAMO, Giovani; PRANDI, Carlo. Para um estudo científico da religião. In: As
Ciências das Religiões. São Paulo: Paulinas, 2007. (Coleção Repensando a Religião).
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2011.
GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história da condenação e
legitimação do espiritismo / Emerson Giumbelli – Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
1997.
GONÇALVES, Iracilda Cavalcanti de Freitas. Psicografia: verdade ou fé? João Pessoa:
Editora Universitária UFPB, 2010.
_____________________. Na discursivização de Nosso Lar: as verdades do
Espiritismo. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2011.
GRESCHAT, Hans-Jürgen. O que é ciência da religião? / Hans-Jürgen Greschat;
[tradução Frank Usarski]. – São Paulo: Paulinas, 2005. – (Coleção repensando a
religião)
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Allan Kardec; tradução de José Herculano Pires.
66ª edição. São Paulo: Lake, 2009.
_______________. Obras Póstumas. Tradução de Maria Lúcia Alcântara de Carvalho.
1ª ed. Rio de Janeiro: CELD, 2002.
_______________. A Gênese. Allan Kardec: tradução de Victor Tolendal Pacheco. 21ª
edição. São Paulo: Lake, 2003.
_______________. Revista Espírita. Quarto Ano – 1861. Tradução de Salvador
Gentile, revisão de Elias Barbosa. Araras, SP, IDE, 1ª edição, 1993.
LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade
afora / Bruno Latour; tradução Ivone C. Benedetti; revisão de tradução Jesus de Paula
Assis. – 2. ed. – São Paulo: Ed. Unesp, 2011.
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras. Tese (Doutorado em Antropologia) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2000.
USARSKI, Frank. Constituintes da ciência da religião: cinco ensaios em prol de uma
disciplina autônoma. São Paulo: Paulinas, 2006. (Coleção Repensando a Religião).
VIDAL, Fabiano. Breve História do Espiritismo. Florianópolis: Bookess Editora, 2012.
VILHENA, Maria. Espiritismos: limiares entre a vida e a morte / Maria Angela Vilhena.
– 1.ed. – São Paulo: Paulinas, 2008. (Coleção temas do ensino religioso. Série
tradições religiosas).
OPTCHA! CIGANOS, BEIJA FLOR, GLOBO E NILÓPOLIS – DEBATE SOBRE
CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE, ETNIA, CULTURA E RELIGIÃO NA TENDA
CIGANA TZARA RAMIREZ

Cleiton Machado Maia1

Um convite no lanchinho

Na noite do dia 18/10/2012 estava preparando um lanche quando o


meutelefone celular tocou e fui surpreendido por uma voz corrida e com
informações confusas, mas que extremante feliz me fez um convite. Era Arimar2,
uma das principais informantes na pesquisa desenvolvida na Tenda Espiritualista
Tzara Ramirez, que lembrara de mim nos últimos momentos em que redigia a lista
de um ônibus que sairia da Tenda para escola de samba Beija Flor naquela noite,
por convite de um dos sambistas da escola. No primeiro momento não consegui
entender muito bem o que estava acontecendo, como estava acontecendo ou
porque estava acontecendo, mas tomado pela felicidade de minha informante em
estar indo para tal evento, com todos os membros da Tzara e ser único não
médium convidado me fez aceitar sem pestanejar, inclusive sempensar sobre a
única exigência feita pela minha informante e uma das lideres do grupo: Tem que ir
vestido de cigano.
Assim que desliguei o celular tentei me concentrar, comer meu lanche, e
pensar no que tinha acontecido, estava acontecendo e iria acontecer. Menos de
uma semana antes tinha participado de uma atividade na Tenda, em que durante
dois dias ajudei a organizar, arrumar e comemorar com eles a sua principal
festividade do ano, comemorando no dia 12 de outubro, a festa de Nossa Senhora
e Santa Sara de Kali, e até então nada tinha sido falado de Beija Flor, convite da
Beija Flor ou carnaval. Imediatamente comecei a ligar para meus contatos na
Tenda, buscando entender o que tinha acontecido e do que se tratava de uma
maneira geral. Após alguns telefonemas descobri o que em meio à euforia e
felicidade minha informante não conseguiu dizer. Durante a semana algumas das
médiuns da Tenda tinham sido procuradas em seus estúdios de dança cigana por
membros da G.R.E.S. Beija Flor de Nilópolis3 para comparecer na noite da final da
escolha do samba e participar dançando como ciganas,samba deles. Ambas as
professoras apresentaram a Tzara Ramirez e disseram que conseguiriam formar

1
Mestrando do PPGCS da UFRRJ.
2
Todos os nomes usados nesse trabalhosão os nomes ciganos de batismo recebidos pelos
médiuns após efetivação de sua relação com a Tenda, optei por não usar seus nomes civis, já
que com essa opção os resguardo, sendo seus nomes ciganos usados somente lá dentro ou entre
os médiuns em ocasiões especiais como no caso da Beija Flor.
3
G.R.E.S Beija Flor de Nilópolis - http://www.beija-flor.com.br
1
uma grande ala de ciganos, mas dependeria do apoio que a escola ofereceria e a
aceitação de Juan, liderança da Tzara, e sua espiritualidade4.
Logo que Juan Ramirez e Arimar foram apresentados aos representantes da
Beija Flor, pelas professoras e médiuns da Tzara, explicaram quem eram e suas
condições para participar. Durante a primeira conversa logo encontraram
conhecidos em comum: a Tzara Ramirez é bem conhecida na Baixada Fluminense
(Nova Iguaçu e Nilópolis, Mesquita e municípios vizinhos), ligados aárea de política,
artes, cultura, dança e religiões afro-mediúnicas, mas esse conhecimentoexplicarei
mais adiante. O primeiro convite era somente para a noite de escolha do samba
enredo, conforme fosse essa noite seriam apresentados às lideranças de
coreografias, alas e o carnavalesco da escola:Layla.
Após entender o que verdadeiramente estava acontecendo, e que convite
tinha aceitado, liguei com certo desespero e desconforto para Arimar; já que ter de
me vestir de cigano não sai da minha cabeça, e de certa maneira ecoava e
martelava em minha cabeça tem que ir vestido de cigano; pedindo maiores
explicações e entender como me posicionar. Arimar me explicou que lembraram de
mim por ter trabalhado muito na festa de Santa Sara de Kali com eles, ter ficado o
ano todonos rituais e principalmente por minhas fotografias, e fez questão de falar:
quanto a roupa, não se preocupa não, agente já separou uma blusa, um lenço e
cinto para você – só vai de calça jeans e tênis, não esqueça da câmera. Te espero
lá as 22:30 horas, me liga e te encontro em frente ao portão principal, não sei se
ela desligou rápido ou meu raciocínio congelou quando disseram que já tinham
minha roupa separada, mas o importante é que ela desligou sem que eu pudesse
responder.
Já eram quase 21 horas e eu tinha de decidir se iria ou não, calculando o
deslocamento, e não posso negar que durante banho, escolha de roupa e garagem
mudei de ideia várias vezes e tive de ligar para alguns amigos antropólogos,
familiares antropólogos e professores para me encorajar, em sua maioria riam
muito antes, mas depois destacavam a importância do evento e sua singularidade,
e determinar ir.
Cheguei uns 20 minutos antes do previsto e comecei a procurar lugar para
estacionar, apesar de ser uma moto, tal tarefa parecia impossível, e só consegui
encontrar vaga uns três quarteirões acima da quadra da escola e por isso comecei a
me preocupar com a segurança da moto e a minha segurança quando voltasse para
ir embora. Mas logo fui abordado por um guardador que,após indagado sobre
segurança, sorriu e me afirmou algumas certezas e algumas perguntas, as

4
Desde o primeiro momento os adeptos da Tzara Ramirez apresentaram seu envolvimento com
o mundo cigano.
2
certezas: Tu nunca foi na noite de escolha de samba enredo! e Cê nunca veio a
beija flor! e as perguntas foram: Vai ficar até o final? e não conhece as relações?
Ele acertou tudo.
Graças ao telefonema de Arimar, avisando do atraso que ocorreria,
remarcando para 23 no nosso ponto de encontro, e abertura oferecida pelo
guardador comecei a entender a mistura que se concretizaria ao entrar na quadra
da escola de samba. Desenvolvendo a conversa com o guardador pude entender as
suas perguntas e afirmações, a noite de escolha de samba enredo é um marco que
se fechaum ciclo e se abreoutro ciclo. Está se fechando a escolha do samba enredo
que a escola irádefender/cantarno próximo carnaval, e essa escolha é um
processo/concurso longo, demorado e sério, lembrou ele de histórias contadas por
familiares mais velhos, de tempos que era uma bagunça e os bicheiros5, segundo
ele, acabavam com os concursos, mudavam o samba e “coisas desse tipo”,
contrastando com hoje em dia que segundo ele é sério: a Globo até filma6. E o
novo ciclo que se abre é o de ensaios técnicos que começam na semana seguinte a
escolha do samba enredo e termina com os dois ensaios marcados na avenida ou
ensaio geral, e quando perguntei do carnaval em si, achei que seria o encerramento
do segundo ciclo, ele sorriu e respondeu: o carnaval é a prova de fogo7.
Quando perguntei novamente se ali era seguro e porque era seguro, ele
explicou as afirmações e perguntas feitas acima. Aqueles quarteirões, segundo ele,
seriam o lugar mais seguro de Nilópolis aquela noite, ninguém quer estragar a
festa, é bom pra todo mundo. Após essa declaração e no desenrolar da conversa e
posteriormente andando para meu ponto de encontro entendi as relações
estabelecidas ali e devidamente detalhadas por aquele humilde guardador de carro,
nascido e sempre morador de Nilópolis, como ele mesmo se identificava. Durante
as noites de eventos relacionados ao carnaval da Beija-Flor, período de Novembro a
Fevereiro de cada ano, o policiamento acontece em toda a região da quadra (um
raio de 5 quarteirões), mas de maneira mais intensa nos 3 primeiros quarteirões
onde ficam as barracas de comidas e que vendem blusas e coisas mais e por isso
acontece maior intensidade de concentração de pessoas e polícia. A própria
comunidade está extremante envolvida com os eventos, seja como vendedores,
guardadores de carros, integrantes da escola e outras funções mais, explicando a
colaboração desses para a manutenção da ordem e segurança. Além das alianças
paralelas entre Beija–Flor, políticos locais, moradores e polícia, que impossibilita

5
Como ficaram conhecidos os contraventores ligados ao Jogo do bicho.
6
Conferindo ao ato de filmar e a presença da Rede Globo de televisão a legitimação da seriedade
do concurso e seu desenvolvimento, quase em um padrão Globo de qualidade.
7
Lembrando que essas observações não resumem o trabalho desenvolvido durante todo o ano
nas escolas de samba, que começa muito antes disso e não pode ser descartado.
3
pequenos furtos, bagunça, reboque de carros estacionados de forma proibida e o
fechamento de 3 quarteirões mais próximos a quadra para o transito.

Putz! Virei cigano?

Conforme o combinado a escola de samba mandou um ônibus para buscar


os membros da Tzara Ramirez, eu fiquei esperando no local combinado e no horário
combinado, como um turista de blusa branca, calça jeans e máquina fotográfica a
tira colo, após alguns minutos percebi um grande furor das pessoas em minha volta
direcionando olhares e comentários para a subida da ladeira que levava a quadra
da escola, logo conclui que meu grupo chegara. Não deu outra, eram eles subindo a
rua todos caracterizados, e em uma felicidade que dava gosto. Assim que me
avistaram, Arimar e Dolores logo vieram em minha direção me cumprimentar e
entregar o bracelete de entrada, quase que imediatamente chamaram
Aldebaram,que trazia minha blusa, lenço e cinto dizendo: coloca, coloca, coloca
logo pra gente entrar!Aldebaramvai te ajudare de maneira muito agradável pedi
para trocar dentro da quadra, por me sentir mais confortável e eles prontamente
entenderam, mas assim que entrei o mesmo pedido foi feitocoloca, coloca, coloca
logo pra gente entrar!Aldebaramvai te ajudar, sendo que dessa vez era para entrar
no espaço separado para, agora, nosso grupo e não tive como escapar. Assim que
comecei a abrir a blusa percebi que todos os olhares voltaram para mim, quase
como em abrir de roda, e as máquinas todas começaram a se ligar;percebi a
mudança imediata de pesquisador (observador) para pesquisado (observado), onde
me tornei um observado. Segundo os médiuns desde a festa de Santa Sara de Kali
os médiuns sentiam vontade de me ver vestido de cigano, por ter ajudado e estar
com eles presencialmente desde o inicio do ano. Com a enorme ajuda de
Aldebaram consegui entender os tantos cordões e detalhes ao vestir minhablusa
amarelo ouro bordada com fios de ouro e meu lenço e cinto verde com bordado de
fios de ouro também; assim que termineide me arrumar, as fotos e sorrisos não
pararam, muitos pediram para tirar minha foto, cumprimentos e brincadeiras com o
ciganinho se tornaram constantes, muitos diziam que estavam doidos para ver,
outros que já sabiam que existia um cigano dentro de mim e por ai vai, brincava
que a única vantagem é que: já tinha o brinco original de fábrica.
Percebendo que minha estratégia de não colocar a roupa tinha se
desmantelado e os médiuns da Tzara conseguiram me vestir como queriam, logo
me posicionei como fotógrafo do grupo para poder observar sua interação e o que
acontecia no ambiente. Tínhamos recebido um camarim só para a Tenda, com
várias cadeiras e uma visão privilegiada do lado direito até o centro do palco, o

4
último camarote antes da área nobre/VIP onde em um grande salão com ar-
condicionado ficam os diretores da Beija Flor e políticos influentes de Nilópolis, com
baldes de cerveja e água e alguns brindes como: bandeiras com o número do
samba enredo que defenderiam, blusas e echarpes de caubói. O tema Amigo fiel:
do cavalo do amanhecer ao manga-larga marchador. O enredo conta a história da
relação entre o cavalo e a história do homem Sou Mangalarga Marchador! Um
vencedor, meu limite é o céu! Eu vim brilhar com a Beija-Flor...Valente guerreiro,
amigo fiel!..., onde em um determinando momento do samba conta a importância
da relação do cavalo com o povo cigano nas caravanas, batalhas e uma busca de
purificação do sangue desses animais ...Cigano... Buscando a purificação!
Mostrando elegância e bravura, A minha aventura se torna canção!, o que
justificava o convite dos ciganos da Tzara Ramirez ali. No primeiro momento não
entendi o porquê dessa estrofe no meio do samba enredo e a relação que
justificasse um convite com tanta força, somente depois de um estudo e conversas
pude compreender, mas tratarei disso mais a frente.
Assim que me coloquei um pouco mais na lateral do grupo de deixei de ser o
centro das fotos comecei a observar a interação do grupo com aqueles que
estavam a margem do espaço para eles separado. Muitas pessoas encostavam,
quase entrando, pedindo para tirar fotos com os ciganos e eles de maneira solicita
atendiam, posando e performatizando olhares obscuros e danças, o que chamava
cada vez mais atenção e de maneira direta aumentava o pedido de fotografias a
serem tiradas. Por estar àmargem entre eles e os seus admiradores era
constantemente questionado com a pergunta: são ciganos? E só balançava com a
cabeça de maneira positiva, sem questionar ou problematizar. Até que um dos
grupos de admiradores me surpreendeu conversando com 3 ciganos, um homem e
duas mulheres, com o pedido para tirar uma foto. Muitas vezes ouvi isso na Tenda
e me retirava ou até oferecia para bater a foto da pessoa com ele, mas dessa vez a
pergunta era para mim, quer dizer nós 4, e apesar de tentar disfarçar, sair ou tirar
a foto não consegui e fui fotografado como cigano algumas vezes. Ainda antes de
sair essa jovem, após observar minha dificuldade com a situação, fez a seguinte
pergunta: Você não é cigano?, sei que ela esperava uma resposta, mas não eu e
sim os ciganos que me acompanhavam imediatamente responderam positivamente
para acabar com a situação, e eu mudo só conseguia me perguntar: Posso virar
cigano? Existe essa possibilidade? Hoje sou cigano por uma noite? A identidade do
grupo se tornou um problema a ser pensado como pesquisador e a identidade
somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe
como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza
(HALL, 2011, p. 9).

5
Minha primeira fotografia da beira do camarote se tornou um objeto de
observação etnográfica pela observação que fiz de imediato em meus
pensamentos:quanta mistura 8 ,lembrando de um texto que já foi muito debatido
entre grupo de amigos do programa de PPGCS e me dava a mesma impressão ao
observar a foto, unindo com os relatos do guardador de carro e minhas indagações
quando recebi o convite para assim como o meu grupo estar ali. Balões, bandeiras,
faixas e símbolos mais variados e diferentes se congelaram no viso da câmera,
assim como pessoas e personagens mais variados que eram símbolos importantes
a serem analisados também. Ali Globo, Beija Flor, Ciganos e Nilópolis se
misturavam e representavam interesses diferentes, mas é a Tenda Tzara e seus
ciganos que se são o foco de minhas observações e minhas análise nesse trabalho.
Como os ciganos foram parar ali, o que representam ali e como interagem com os
demais grupos ali representados?
A Rede Globo estava ali como principal patrocinadora da Beija Flor naquele
ano, por causa da relação do enredo com a novela Salve Jorge 9 da Globo, que
mostra a região de origem do povo cigano e os cavalos mais importantes e valiosos
e a relação estabelecida no início da história cigana com esse animal. E os políticos
de Nilópolis mantêm uma longa e estreita relação com a presidência da Beija Flor
desde sua fundação, o que explica a força da escola de samba na comunidade e
relação com os moradores e comunidade e muitas vezes se misturando com esfera
pública. Mas como os ciganos da Tenda chegaram até ali?
Alguns minutos antes da execução do sambar enredo de número 70, um
homem chamado Jorginho da Beija Flor foi correndo chamar os ciganos da Tzara;
era ele um dos compositores e responsável pelo convite que resultou naquela noite;
e pediu que eles se posicionassem na frente do palco, entre a bateria e a plateia,
de frente para Layla, carnavalesco da Beija Flor. Logo pedi a Arimar que explicasse
que iria fotografar10 e ele de imediato me mostrou onde ficar e tirar minhas fotos
no palco e no chão, disse que falaria com os seguranças para liberar meu trânsito,
e assim fez. Todos desceram e se posicionaram onde foi pedido e assim que o
samba enredo começou os ciganos da Tenda começaram a dançar, rodando e
balançando saias e chapéus, em coreografia de dança cigana, às vezes um ou outro
dava uma sambadinha balançando a saia ou chapéu, rindo e brincando de misturar
dança cigana com samba. Sempre sorrindo e se apresentando para a bateria,
público e Layla, tirando gritos, aplauso e comentários de admiração de ambos os

8
“É muita mistura”: religião, música, política, dengue, beleza e saúde no Complexo do Alemão
– Carly Barboza Machado PPGCS – UFRRJ, Trabalho apresentado 28° Reunião ABA – 2012.
9
http://tvg.globo.com/novelas/salve-jorge/index.html
10
Também tinha medo que quisesse que sambasse ou dançasse igual cigano, e não sei fazer
nenhum dos dois.
6
três, ao final os membros da bateria e público demoraram o retorno para o
camarote por causa da grande quantidade de fotografias tiradas com a surpresa da
noite. Apesar de naquela noite o samba enredo que a Tenda defendia não ter
ganho,a Tenda saiu como vitoriosa, pois conseguiu encantar todos presentes,
reproduzir o ethos cigano(GEERTZ, 1989, p.104)e o convite do próprio Layla de
participar de uma Ala de Ciganos, e uma reunião para resolver isso durante
semana.
No domingo seguinte fui ansioso ao atendimento da Tenda esperando
noticias daconversa que ocorreria durante a semana e até então não tinha noticias,
assim que cheguei fui direto a sala de Arimar, e pedi que me contasse sobre sua
reunião com Layla. Ela me contou que foram recebidos por ela durante a semana,
assim como outros representantes da Beija Flor, e que participariam mesmo do
carnaval em uma ala de ciganos. Disse que os três (Juan, Arimar e Morgana – uma
das professoras de dança que é médium na Tenda) falaram com ele e esclareceram
e acertaram algumas coisas sobre participação, roupa e coreografia. Após deixá-la
falar por quase uma hora ela comentou Aí o Layla perguntou se agente era cigano
mesmo, eu disse que sim, de coração, de espírito! Ele perguntou se tinha algum
cigano de sangue, família. Eu disse que sim, mas se fosse para a Tenda ir teríamos
de ir todos, todos somos ciganos, senão estaríamos fora!. O ser cigano para o
grupo da Tenda parece ser um só, onde real (sangue) e imaginado
(espiritualidade), que eles entendem ser e existir assim, na avenida – assim como
em qualquer momento que estão como Tenda Tzara Ramirez, ritualístico ou não – é
um só (GEERTZ, 1989, p.129) os critérios de pertencimentos são do grupo e
independentes do olhar de fora, seja pesquisador ou não(BARTH, 2000, p. 25-67).

Quem são os “meus ciganos11”?

A história da Tenda Tzara Ramirez quandoJuan, queera pai de santo em um


terreiro de candomblé em uma região chamada Chacrinhaem Nova Iguaçu, a mais
de quinze anos atrás, onde nas festividades aconteciam rituais somente de
candomblé. Mas alguns dos adeptos, inclusive ele, teriam começado a sentir a
presença de espíritos ciganos no ambiente, segundo ele alguns dos adeptos
frequentavam umbanda também, o que estava causando essa energia diferente no
ambiente, até que um dia Juan incorporou pela primeira vez o cigano Juan Ramirez.
Assim que incorporou esse cigano foi dada a Juan a responsabilidade de
arrumar um lugar em que os espíritos ciganos, de pessoas de terreiros de umbanda

11
A brincadeira do título é referencia ao ato de se descobrir “seu cigano” – como chamam os
adeptos da Tenda quando uma pessoa joga cartas para descobrir que cigano incorpora e que
trabalhos esses ciganos fazem.
7
e de candomblé diferentes, pudessem cuidar 12 de seus ciganos, já que uma
característica da Tenda é o duplo pertencimento dos adeptos em umbanda e
candomblé, que os mesmos chamam de outro lado. Juan começou abrir no mesmo
espaço dias só para trabalhos com espíritos ciganos e em outros dias para rituais
de candomblé, mas o espaço de ciganos começou a se tornar conhecido pela
propaganda dos próprios adeptos e pessoas da comunidade. Três anos depois Juan
foi orientado a procurar outro lugar, que tivesse um espaço maior para as
atividades ritualísticas e principalmente houvesse a separação da Tenda Tzara
Ramirez do barracão de candomblé – pedido feito ao Cigano Juan Ramirez.
Esse pedido teria sido feito pelo cigano, pois os espíritos ciganos queriam
um espaço só para eles, já que não se sentiam a vontade de dividir um espaço
onde acontece sacrifício de animal, já que isso não existe na tradição cigana. Entre
os trabalhos, feitiços e magias dos espíritos ciganos não existe o pedido de sangue
vermelho 13 , somente de sangue verde 14 . Esse pedido fez com que a região da
Chacrinha fosse trocada para uma região mais ampla e que as especialidades
fossem separadas, a opção foi o bairro de Santa Eugenia que é mais distante do
centro de Nova Iguaçu, onde hoje em dia se localiza a tenda – nessa região foram
comprados dois terrenos, um para a Tenda Cigana Espiritualista Tzara Ramirez15 e
outro para o Barracão de Candomblé.
O espaço que chamo de Tenda está em um terreno de 700 m² onde se
encontram a tenda, que é um barracão ocupando a metade do terreno, pintado
com desenhos de ciganos e de forma bem colorida, um tablado de madeira central,
telhado simples e que usa como divisórias um conjunto de biombos móveis, que
são colocadas e tiradas com facilidade – dependendo das cerimônias. Na região de
trás da tenda temos algumas salas que são usadas para trabalhos espirituais como
banhos, cirurgias espirituais, sala dos potes e vestiários. No espaço à frente da
Tenda encontramos o pátio central, onde a salamandra está localizada ao centro, e
a região de espera dos pacientes, com o número de sete bancos onde mais de
setenta pacientes se revezam quinzenalmente sentados ou em filas enormes em pé
para algum dos trabalhos que são ali oferecidos.
Assim apresentado o local e como surgiu a Tenda Cigana Espiritualista Tzara
Ramirez esclareço que esse trabalho tem como campo somente esse grupo

12
Expressão que é usada quando o médium adepto da casa usa para explicar que na Tenda
direciona sua atenção espiritual para trabalhar com seu espírito cigano, já que no candomblé e
na umbanda eles podem dar uma atenção melhor aos outros espíritos.
13
Referência que os espíritos ciganos fazem ao sacrifício de animal.
14
Quando é feito um trabalho com ervas, flores e elementos da natureza os espíritos fazem uma
associação com sacrifício de sangue verde.
15
Começou a usar esse nome a partir desse momento, onde os espaços espirituais estavam
separados.
8
religioso, sendo assim essa tenda e os espíritos que incorporam nos médiuns desse
local o centro de minhas atenções, observações etnográficas e sobre eles
debruçarei minhas analises metodológicas. É sobre esses médiuns que se chamam
de ciganos de coração e ciganos de espírito16. O duplo pertencimento é comum na
Tenda Tzara Ramirez, todos os adeptos que conversei têm uma segunda religião ou
outro lado, como eles mesmos nomeiam, e em sua maioria umbanda e candomblé.
O diferencial da Tenda é que após a separação do espaço físico, na Tenda Tzara
Ramirez só existe incorporação de espíritos ciganos, o que será um importante
ponto para essa análise. E são esses médiuns/espíritos que se chamam de ciganos,
e são foco nesse trabalho. Como esse grupo religioso constrói sua identidade e
como se posicionam perante outros grupos, sendo religiosos, sociais, comunidade e
a própria Beija Flor.
Essa relação da Tenda com outros grupos já tinha chamado minha atenção
em momentos diferentes, como eles mesmos fazem questão de ressaltar: somos
ciganos de coração, espírito, porém essa relação é muito mais complexa do que me
pareceu nos primeiros momentos, pude presenciar momentos em que essa
identidade foi acionada e legitimada com fatores diferentes e forças diferentes,
onde ora são ciganos, ora são grupo religioso, ora são ciganos da Tzara, ora
oriundos de umbanda e candomblé, ora totalmente diferentes de umbanda e
candomblé, dependendo do grupo ou relação com o grupo envolvido. Muitas vezes
se tornando conflitivo entre os próprios adeptos dentro do grupo e conflitivo quando
em referência a outros grupos, no caso dos ciganos de sangue, como os adeptos
chamam a etnia cigana e conflitivo também, em alguns momentos, com outros
grupos religiosos como umbanda e candomblé. O que Stuart Hall (2011,
p.11)chama de Sujeito pós-modernonão possui uma identidade fixa, permanente e
essencial. Trata-se de uma identidade móvel, definida historicamente e não
biologicamente, não é unificada como no Iluminismo, tão pouco coerente. Nesse
entendimento, um indivíduo pode possuir diversas identidades em si, utilizando-as
de acordo com os sistemas culturais que o rodeia (HALL, 2011. p. 11)
Uma das primeiras situações importantespara entender um desses conflitos
foi em maio, quando fui chamado para assistir a uma mesa que o ISER promoveria
um dia após o Dia Nacional do Cigano com o título Ciganos: Desafios para
entendimento, e se propunha a trabalhar a presença dos ciganos em vários países
do mundo, principalmente o Brasil, e suas características culturais e situação social
no mundo hoje em dia. Estavam compondo a mesa Hélio R. S. Silva (Presidente do

16
Essas duas nomenclaturas são comumente usadas entre os adeptos para explicar e diferenciar
dos ciganos de “sangue” – etnia cigana – e é comum ver essa expressão até tatuada em alguns
médiuns.
9
ISER e mediador da mesa), Marco Antônio da Silva Mello (Doutor, Professor da UFF
e UFRJ, Coordenador do LeMetro e especialista em História e Cultura Cigana),
Felipe Berocan Veiga (Doutro, Professor da UFF e membro do LeMetro e especialista
em Cultura Cigana), Greta Persico (Doutorando da Universitádi Milano-Bicocca,
pesquisadora de Ciganos e sua relação com a educação/escola) e Mio Vacite
(Presidente da União Cigana do Brasil).
A mesa aconteceu no dia 25 de maio e os pesquisadores Marco, Felipe e
Greta apresentaram seus papers destacando a presença cigana pelo mundo e
Brasil, e comosua cultura se relaciona e diverge em muitos momentos dos países
que estão. Após as apresentações Mio Vacite foi convidado a dar uma palavra como
representante dos Ciganos no Brasil e encerrar a mesa, que posteriormente seria
aberta para perguntas. Em sua fala ou crítica demonstrou um discurso fervoroso e
defensor radical de uma Cultura Cigana extremamente ligada a etnicidade, e que
segundo ele, estaria sendo corrompida e misturada no Brasil gerando perigo a sua
identidade (DOUGLAS, 2012, p. 118), inclusive pela própria data que estávamos ali
reunidos de certa maneira para comemorar, como uma vitória da etnia cigana.
Além do Dia Nacional do Cigano, também fez severas criticas a adoção de Santa
Sara de Kali como padroeira dos Ciganos no Brasil, a Cartilha de direitos da etnia
Cigana e principalmente aos cultos afro-mediúnicos, sendo foco desse trabalho, que
reivindicam valores e identidades da cultura ciganas. A fala de Mio Vacite e a
repercussão que causou no decorrer da mesa me fez começar a pensar nessa
identidade cigana, o que me levou a buscar entender essa relação de ciganos na
religião/religiosidade,que é exatamente onde a Tenda estaria nesse primeiro
momento de análise. A identidade étnica que Mio defendia ali é definida como
Sujeito do Iluminismopor Stuart Hall(2011, p. 20)sendo umaconcepção de sujeito
humano centrado, racional, unificado, consciente. A identidade nesse sujeito
aparece no seu nascimento – biológica e sanguínea - e desenvolve-se ao longo da
vida em um processo contínuo/culturais(2011, p. 20).O que seria comum a um
grupo étnico, mas sinceramente me confundiu, já que em 2008 na ALERJ durante a
comemoração do centenário da umbanda Mio e sua companhia apresentaram um
musical o que parecia revelar forte interação étnico-racial (PEREIRA, 2009,p. 152).
A segunda vez que pude observar esse conflito foi na V Caminhada em
Defesa da Liberdade Religiosa do Rio de Janeiro, ocorrida em 16 de setembro de
2012 na Praia de Copacabana reunindo 210 mil pessoas17, segundo a impressa. Fui
com o intuito de fotografar e observar não só o religioso que estudo e que não
esteve presente, ou não os encontrei,mas também recolher dados que fossem

17
http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/09/caminhada-em-defesa-da-liberdade-
religiosa-leva-milhares-copacabana.html(acesso 18-01-2013).
10
relevantes a minha analise. Quase desistindo da caminhada tive meu olhar
direcionado por minha companhia a uma senhora vestida, muito bem vestida, de
cigana se direcionando para o que seria o final da caminhada, onde apressando o
passo observei que se direcionava para um grupo de em média uns 25 ciganos,
incluindo homens e mulheres de todas as faixas etárias, vestidos de ciganos.
Bastante preocupado com que ciganos eram esses, sabendo do conflito e certo
receio com a recepção caso errasse, resolvi observar de perto e esperar ouvir algo
que me possibilitasse a entrada, mas nem foi necessário, logo identifiquei Mio
Vacite bem ao centro, o que logo os identificou como ciganos de etnia, mas colocou
uma dúvida ainda maior em minha cabeça: O que estavam fazendo ali?
Principalmente depois da mesa do ISER.
Depois de alguns minutos reunidos conversando sobre coisas variadas
resolvi pedir para ser fotografado com alguns dos membros do grupo e assim fazer
elogios as belíssimas roupas e acessórios e conversar com aqueles que dessem
abertura. Logo fui muito bem recepcionado para as fotografias, onde a câmera
profissional mais uma vez me abriu campo, muitas vezes acham que sou fotógrafo
profissional ou repórter, o que abre a conversa e esclarecimentos sobre minha
pesquisa18e conversas. Todos explicaram sua origem cigana dizendo a que família e
subgrupo faziam parte e sua ligação com União Cigana do Brasil, quase todos eram
familiares de Mio, sendo assim Calon, e participavam do seu grupo musical de
dança e música cigana19, muitos me entregaram cartões com contatos para aulas
de música,e algumas mulheres de quiromancia. Assim que a caminhada começou o
grupo abriu uma faixa com o nome da União Cigana do Brasil em cima e embaixo
uma única frase: Em defesa da liberdade cultural e liberdade religiosa, e quando
perguntado do porque de sua presença ali sempre respondiam apoiamos a
liberdade religiosa, todos tem direito de manifestar sua opção religiosa – nós
ciganos não temos uma religião cigana, adotamos a religião do país onde estamos e
somos livres para escolher20, o que me fez pensar no caso do Brasil e a variedade
de opções que teriam, inclusive religiões afro-mediúnicas. Seria possível ideia de
mudança constantedeStuar Hall na cultura cigana, rápida e permanente. E é este
caráter de mudança permanente que as distingue das sociedades tradicionais que
os ciganos parecem estar? O autor chama atenção para o processo de
descontinuidades, processo que libertou os indivíduos das amarras da tradição,

18
E após o esclarecimento, por mais que não seja o que esperavam, em sua maioria das vezes,
gera interesse. Mas de qualquer forma já é uma abertura para contatos.
19
Mio tem um grupo de dança e música cigana que toca profissionalmente em eventos diversos
no Brasil chamado “Encanto Cigano”.
20
Frase dita por um cigano do grupo, o qual tirei foto e anotei frases em meu caderno, mas não
escrevi seu nome. Mas pelas fotos o chamo de “Cigano da saia” – pela capa de toureiro que
usava e posava com ela como uma saia para as fotografias.
11
promovendo uma ruptura com o passado, sendo assim possível dentro da liberdade
de escolha religiosa dos ciganos de sangue um deles incorporar um espírito cigano,
caso venha optar por religiões mediúnicas? (2011, p. 49), indo de confronto no
discurso de Mio. Lembrando que WlaviraTurczyneck 21 me disse que tem cigano
Judeu, protestante, católico e por ai vai...
Antes de me despedir do grupo e acompanhá-lo do lado de fora da
caminhada, me achou atenção a quantidade de pessoas, principalmente mulheres e
algumas vestidas de ciganas, pediam para fotografar com os membros do grupo,
comecei direcionar minha atenção e abordagens a esses, dos quais consegui
fotografar alguns e conversar com duas. A primeira jovem vestida de cigana disse
que era da umbanda e tinha uma cigana também, o que explicava a vestimenta,
incorporava a algum tempo e estava ali com um grupo de umbanda, viu os ciganos
e quis tirar fotos com eles. A segunda jovem sentiu um certo desconforto com a
minha pergunta, porque quis fotografar com eles22, falou que por causa da beleza e
fazia dança, mas depois de um tempo disse que “tinha uma cigana” que só tinha
decido uma vez e estava trabalhando para isso acontecer mais. Os ciganos de
espírito/coração que me eram comuns na tenda agora voltavam e se apresentavam
como linha 23 na umbanda e em vários outros momentos pude observar outras
pessoas com roupas de ciganos ou que lembravam ciganos andando na caminhada.
Terceiro momento importante foi à festa de Nossa Senhora Aparecida, onde
uma grande festividade de dois dias envolveu não só os médiuns da tenda, mas
também os moradores da comunidade em que a tenda está localizada e alguns
políticos da região que cederam material de grande importância para o
acontecimento do evento em 12 de outubro de 2012. Acompanhei os
procedimentos para a festa durante o dia de seu acontecimento e o dia anterior
com seus preparativos, onde pude acompanhar os médiuns e suas internações
durante um dia inteiro fora do ritual e precedendo o principal ritual anual deles,o
que me possibilitou observar e presenciar fatos e conversas essenciais para
entender algumas das observações aqui feitas.
Ao chegar na Tenda no dia de arrumação que precedia a festa percebi que o
evento acontecia na rua que já estava sendo fechada, o que proporcionaria um
espaço quase de um quarteirão, já que a rua de trás da Tenda é sem saída. Logo
que estacionei indaguei sobre o fechamento e recebi algumas respostas como a
festa é grande e precisa de espaço grande, e quando indagado sobre a comunidade

21
Cigana de sangue de família importante em Cascadura – RJ, professora e Dona de um estúdio
de dança.
22
Que foi a mesma a todos os que isso faziam.
23
Referência dada a grupo em que entidade que se manifestou está dentro da cosmologia da
umbanda, mais referencia ver Ortiz, 2011.
12
e pessoas das ruas todos gostam e participam, é um grande evento, mas mesmo
assim continuei preocupado até que Arrimar chegou, me cumprimentou e quando
indagada pelo mesmo motivo me respondeu temos autorização da Prefeitura (nesse
caso Nova Iguaçu), temos amigos lá, sempre que precisamos eles apoiam e
colaboram, como hoje na autorização para fechar a rua, autorização para o som,–
que foram eles que deram o carro de som, e autorização para fazer um procissão
mais tarde dando a volta em alguns quarteirões da vizinhança, surpreso resolvi
aprofundar sobre esses amigos lá que Arimar destacou com orgulho.
A Tenda Tzara Ramirez tem um certo reconhecimento na cidade de Nova
Iguaçu e em alguns bairros da Baixada Fluminense por sua relação com a dança,
arte e cultura cigana24. Desde seu surgimento tem se empenhado em promover a
cultura cigana com aulas de aulas de dança e música, é forte a tradição de
professoras profissionais de dança na casa, como citado anteriormente, o que faz
com que exista uma divulgação muito grande da Tenda em eventos de prefeituras
relacionado à cultura cigana e aespiritualidade cigana, essa divulgação faz com que
a Tenda seja chamada para festas em outros grupos religiosos como umbanda e
candomblé com muita frequência.
Essa relação com a dança se deve muito ao médium Juan, que é líder da
Tenda e tem uma relação muito grande com a dança e espetáculos. Juan é um
excelente dançarino – o melhor da Tenda, seja entre homens e mulheres e essa
opinião é partilhada por médiuns, adeptos e o pesquisador que escreve, e
ultimamente tenho percebido que na Beija Flor também, o que lhe faz ser
constantemente o destaque quando dança. Essa colaboração com a cultura fez com
que Juan recebesse um premio pela colaboração com a divulgação da cultura
cigana no ano de 2008 concedido pela Prefeitura de Nova Iguaçu, e organizado pela
secretaria de cultura de Nova Iguaçu no Sesc da cidade, onde após uma noite
inteira de homenagens, dança e canto, Juan recebeu um diploma das mãos do
próprio prefeito e secretário de cultura da cidade. Segundo as próprias palavras de
Juan foi uma noite e tanto, já viu as fotos? O SESC lotado de ciganos, o pessoal da
umbanda, lá do barracão... Muito lindo.
Destaco aqui na fala de Juan lá do barracão para aprofundar uma questão já
mencionada acima e que darei um destaque maior em minha abordagem, o fato de
Juan ser pai de santo num terreiro de candomblé onde é conhecido com M.de
OniraBabalorixa 25 . Acompanhei Juanalgumas vezes nesse terreiro em festas,
obrigações, saídas de santo e outras mais, acompanhando sua relação com o

24
O que explica o convite feito pela Beija Flor, principalmente depois de entrar em contato coma
Liderança da Tenda.
25
Não usarei o nome civil de Juan, por motivos anteriormente citados.
13
candomblé e destaco que lá a musica e dança são destaques principais do terreiro,
proporcionando convites diversos para acompanhar outros grupos e festas, assim
como na Tenda, e com a secretaria de cultura de Nova Iguaçu também, agora na
propagação e eventos da cultura afro. Um evento de destaque esse ano contado a
mim pelo próprio Juan durante o acontecido, foi um convite em que ele foi a
Salvador – BA para lecionar um culto de dança afro, bancado pelo governo da Bahia
e mediado por gente de lá da Prefeitura de Nova Iguaçu.
Esse terreiro fica na rua de trás da Tenda, menos de 150 metros, se der a
volta no quarteirão andando, o que proporciona uma grande força desses grupos no
local e junto a comunidade, onde suas festas, frequência de atendimento, força
perante a prefeitura proporciona um certo destaque. Aos bares e barraquinhas de
cachorro quente da região se localizam mais próximos dos templos em dias de
atividades, assim como nos dias de Tenda, quando o próprio dono me falou que
aumenta o número de frangos para botar para assar na padaria, por sabe que eles
não comem carne vermelha em dia de trabalho, o que ajuda a ele vender mais,
demonstrando a relação que a comunidade tem com a Tenda e o barracão de Juan.
Essa relação foi comprovada na Festa de Nossa Senhora Aparecida, onde a
procissão demonstrou essa interação devido a grande quantidade de pessoas que
estavam presentes, as pessoas que saiam no portão para observar e o respeito
sempre zelado. Mostrando como a Tenda desenvolve os jogo das identidades e
como as identidades tornaram-se politizadas, na medida em que mudam de acordo
como são interpelados pela sociedade (grupos), sendo assim, a identidade do grupo
não é automática (HALL, 2011, p. 78). Segundo Stuart Hall, com o surgimento de
poderes, contestou a divisão público/privado, também a política da identidade, cada
movimento social vai reivindicar uma identidade própria (2011, p. 78), e assim a
tenda faz.

Os ciganos de sangue da Tenda

A etnia cigana e os debates sobre suas formação e legitimação não são um


processo singular da realidade brasileira, a construção da etnia cigana e busca de
direitos desse grupo tem produzido um acervo público e cientifico considerável nas
últimas décadas pelo mundo. Embora não tenha uma pátria, a etnicidade cigana é
confirmada pela União Romani Internacional e reconhecida pela ONU em 28 de
fevereiro de 1979 (PEREIRA, 2009, p. 12). No Brasil, em 24 de maio de 2007, foi
comemorado com decreto o dia Nacional do cigano, onde a Cartilha de direitos da
etnia cigana foi lançada pelo próprio governo federal no mesmo dia e decreto. Além

14
da existência da Associação de Preservação da Cultura Cigana (APRECI) e União
Cigana do Brasil (UCB).
A defesa da etnia cigana tem como base principal na construção de sua
cultura e elementos tidos como da cultura cigana o dialeto romani – que tem como
estrutura central para variações (romanó, caló, sintó) (HILKNER, 2008, p.40),
sendo a transmissão da língua elemento fundante e essencial para se manter a
cultura e práticas do povo, já que é por meio dela que a tradição cigana é mantida
e passada, já que o romani não tem escrita e por isso é somente oral(PEREIRA,
2009, p.23). A origem da língua, assim como a da etnia, é de comprovação
extremante questionável – contendo vários mitos fundantes – e até antão pouco
comprovável, sendo mais aceito a origem Indiana (pré-castas) como demonstram
estudos linguísticos do Centro Cigano de Paris, aproximação semântica com as
línguas védicas/sânscritas (PEREIRA, 2009, p.23), o que exclui outras origens como
Egito, Israel, Mesopotâmia e outros muitos (PEREIRA, 2009, p.22).
Apesarda dificuldade de se marcar uma origem cigana, sua presença é
registrada em fontes históricas desde o século XII, com registro em toda a Europa,
Ásia, Oriente, África e América, apesar do sedentarismo marcante de sua cultura
até século XVIII quando surgem os primeiros grupos sedentários (HILKNER, 2008,
p. 74), caracterizados como povos de cultura esponjosa,vivencias culturais diversa
e malditos. Essas características foram atribuídas por terem uma singularidade no
modo de se vestir, língua própria, hábitos culinários artísticos e cerimoniais
religiosos singulares, que em alguns momentos foram positivos e negativos na sua
história. Essa afeição pela dança, música e artes abriram portas na Europa -sendo
os ciganos muitas vezes contratados da alta aristocracia como artistas dos palácios
e suas festas – durante os séculos XV – XVII, porém suas práticas singulares de
cerimônias religiosas, quiromancia, língua e sectarismo26 foram muito mal vistas e
construíram uma imagem negativada de um povo que seria de práticas trapaceiras
– enrolando em seu dialeto nas trocas comerciais, feiticeiros – quiromancia –
boêmios, mendicantes e vagabundos – por viverem de artes – e amaldiçoados –
várias lendas sobre os ciganos se propagaram nesse período – por serem
causadores de epidemias, pacto com o diabo ou terem negado leito ao recém
nascido cristo em Belém (PEREIRA, 2009, p.30-31, HILKNER, 2008, p.89).
A chegada dos primeiros grupos ciganos no Brasil aconteceu no século XIX
com a chegada da comitiva de D. João VI - apesar de Adolfo Coelho em seu livro A
origem do povo cigano em Portugal tem destaco alguns ciganos (presença pontual

26
Apesar de hoje em dia em grande maioria dos grupos não ser assim, o sectarismo era prática
obrigatória entre o povo cigano, tornando os casamentos entre comuns uma forma de
manutenção da cultura e tradição.
15
como João Torres) durante os séculos XVI e XVII nas bandeiras e comércio, e
outros que teriam sido degradados (em maioria por pequenos furto, mendicâncias,
feitiçaria) – e foram os primeiros oficiais de justiça do pais (MELLO, 2009, p. 251) e
foram retratados em obras de Debret os retratou em quadros como artistas,
comerciantes, oficiais de justiça e comerciantes de escravos. João Dornas Filho em
Os ciganos em Minas Gerais destaca os ciganos brasileiros como originários de
Portugal e Espanha de famílias Calons, Romá e Roms, que são famílias destacadas
como comerciantes, metalúrgicos e comerciantes de cavalos (PEREIRA, 2009, p.59,
DORNAS FILHO, 1948, p.96) o que explicaria a associação da relação de ciganos e
cavalos que originou o convite para uma ala inteira explicando essa relação e sua
força no Brasil durante quase quatro séculos.
Um grande marco na mudança de hábitos e inicio de busca por direitos seria
a Revolução Industrial nos séculos XIX e XX, que no Brasil fez os ciganos
começarem um processo de sedentarização(MELLO, 2009, p. 243), abandono de
práticas comerciais que dependiam do nomadismo como a venda de cavalos, e
busca de direitos para a continuidade da tradição e práticas ciganas e
reconhecimento como etnia perante o estado. Cristina da Costa Pereira em seu livro
Os ciganos ainda estão na estrada destaca que em 1980 Àtico Vilas-Boas da Mota,
professor da UFG e membro do Centro de estudos Ciganos de Paris participou junto
com o governo federal da tentativa frustrada de elaborar um estatuto cigano, que
continha três pontos básicos: direitos a estacionamento em todas as localidades
brasileiras, evitando o conflito dos grupos nômades com as autoridades municipais;
direito a assistência médica em todas as campanhas e alfabetização emromani e
em português.
O documento não foi a frente por divergências entre as lideranças ciganas
que não aceitariam o enquadramento do seu povo/cultura, por ser uma faca de dois
gumes, os anos de história nômade ciganos geraram a formação de um mosaico
étnico (HILKNER, 2008, p.102) que muitas vezes quanto a uma variedade de
assuntos, grupos como Calé e Roms (principais no Brasil), encontram na língua um
elemento de singularidade e coesão, ao mesmo tempo que em assuntos culturais
(religião, política, costumes) não conseguem por muitas vezes chegar a um
consenso como vimos em na comissão de 1980 e opiniões divergentes ao decreto
de 2007 conforme exposto na opinião de Mio anteriormente, isso devido a
multiforma da identidade étnica do grupo cigano (BARTH, 2000, p .27 e PINTO,
2005, p. 34), que só se mantém sua união identitária por meio da língua e convívio
social (PINTO, 2005, p. 44).
Apesar da divergência entre esses grupos alguns elementos são
considerados essenciais para construção da identidade e cultura cigana, entre eles

16
o romani e o sangue cigano (família cigana), onde a cultura encontraria uma forma
de resistência e manutenção de todos os elementos tidos como essências para o
povo. Seria na família e relação familiar que o cigano passaria suas leis, práticas
religiosas, hábitos e ofícios de geração em geração (PEREIRA, 2009, p.59), ofícios
como artes circenses, comércio, metalurgia, quiromancia, musica e dança.

“...a cigana leu o meu destino...”

A presença dos ciganos nas artes e literatura foram importantes para


manutenção de um imaginário – em alguns momentos positivo,outros negativo –
no imaginário popular brasileiro. Como citado anteriormente, os ciganos retratados
por Debret (MELLO, 2009, p. 251) foram também destaque em obras de Machado
de Assis, Guimarães Rosa e Cecília Meireles que destacaram características Olhos
dissimulados, Romanceiro e Boêmio como destaque do povo cigano.
Mas destaco outra característica para essa análise A cartomante que
permeou os contos e literatura brasileira, assim com o imaginário de nosso povo.
Me lembromuito bem das ciganas que liam mão no calçadão de Nova Iguaçu e
sempre me encantaram coma possibilidade de ver meu destino ou sorte. Assim
como uma das práticas passadas de geração em geração na cultura cigana a
quiromancia é sem duvida um dos ofícios da cultura ciganos mais questionados e
perseguidos pelas autoridades ao longo da História (PEREIRA, 2009, p.149,
BARROS, 2010, p. 49) e seria o elemento de ligação entre a dita tradição cigana e
religião cigana e símboloeficaz(LÉVI-STRAUSS, 2003, p.194) e figura lendária
fundante dessa magia ciganae identidade cigana construído no imaginário popular
brasileiro (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 33).
Em trabalhos clássicos como Ruth Landes (1947), Edison Carneiro (1948),
Roger Bastide (1958), Pierre Verger (1981) e Juliana Elbein dos Santos (1986)
mostram como a busca da africanização e de uma raiz étnica do candomblé da
Bahia, nesse processo o rompimento com o sincretismo pela divulgado ao público
em um manifesto em 1984, assim como a consequente africanização do culto, é
frequente e facilmente entendido como o apagamento bem-sucedido de uma
mentalidade católica no candomblé e outras religiosidades mediúnicas (VAN DE
PORT, 2012, p. 131) apesar de TalalAsad (1993, p. 31) não nos deixar esquecer do
fato de que as declarações sobre o que constitui a essência de uma religião são
inextricavelmente ligadas a – e trabalham a serviço de – configurações específicas
de poder, nesse caso do verdadeiro candomblé.
Isso no leva a uma outra categoria de análise para entendimento dos
ciganos de espiritoque é o Baixo espiritismo (MAGGIE 1992, p.226 e GIUMBELLI,

17
2003, p.248) e sua análise documenta entre os anos de 1890 – 1940 no processo
da institucionalização política que norteiam a definição do que é religião, nesse caso
mediúnicas. No caso do espiritismo (GIUMBELLI, 1995, p. 120) onde mostra a
socialização do baixo espiritismo e produção de agentes sociais falsos e verdadeiros
na definição do que é religião quanto as práticas mediúnicas, normatizando o que é
espiritismo(GIUMBELLI, 2003, p. 250-251)
Nesse processo Renato Ortiz em A morte branca do feiticeiro negro diz que a
umbanda sofre o processo contrário que ele chama de empretecimento, nessa
ruptura dentro do baixo espiritismo, enquanto o espiritismo se normatiza e
embranquece a umbanda é difundida nas camadas mais pobres (2011, p. 32). O
que junto a perseguição dos anos de 30 no Brasil possibilitou um dinamismo da
umbanda (TURNER, 2007, p.50)com o imaginário brasileiro (BARROS, 2010, p. 41,
VAN DE PORT, 2012, p. 137), as dificuldades que o candomblé constrói com sua
africanização e o espiritismo com a sua normatização encontra na umbanda nesse
momento a possibilidade de estabelecer por meio da mistura o que muitos
estudiosos se tornou um problema para entender e estudar como destaca
reconhecer que a flexibilidade de fronteiras diz respeito a concepções do que seja
religiões diferentes daquelas operadas pelos antropólogos (BIRMAN, 1995, p. 16).
Ou seja, na umbanda um mesmo símbolo possui multivocalidade, podendo vir a
representar diferentes significados de acordo com a performance ritual (TURNER,
2007, p.77).
Na ruptura com o Kardecismo a missão se torna uma herança importante, e
os espíritosconsiderados pouco evoluídos - e em alguns casos proibidos de
incorporar -ganhar maior lugar como preto velho, caboclo, negros e mestiço
(BARROS, 2010, p. 43). Segundo alguns autores a umbanda se torna uma tradição
presente, uma comemoração criativa do Brasil atual (BAIRRÃO 2002, p.58) com
interação sem limites étnicos, geográficos e sociais, gerando uma intenção de
mestiçagem que por meio da bricolage (MEYER, 1993, p. 132) possibilita a inclusão
e acolhimento de atores sociais (BARRROS, 2010, p. 43) com atenção as dinâmicas
sociais e necessidades dos homens(BAIRRÃO 2004, p.73) como prostitutas
(pombas giras), bandidos (malandros), boiadeiros (cangaceiros) e ciganos,
personagens (modelos/arquétipos) da vivencia brasileira (BARROS, 2010,p. 46)
como símbolos dominantes (TURNER, 2007, p.77).
A prática de quiromancia - leitura de mão - que durante anos foi associada a
feitiçaria ou charlatanismo e perseguida no Brasil pela Igreja Católica e Estado
Novo(MIRANDA,2010, p.127)foi o símbolo comum encontrado entre a identidade
cultura cigana e espírito cigano (PEREIRA, 2009, p. 94-95), causando as primeiras
associações entre as duas identidades, principalmente depois da década de 70

18
quando no Brasil grande grupos de famílias ciganas se tornaram sedentárias e
muitas mulheres ciganas liam mãos em praças públicas e em salas de quiromancia.
E as primeiras quiromantes não-ciganas (médiuns) que já estavam começando a
desenvolver essa prática (PEREIRA, 2009, p. 96).

E a pemba serve pra que? A proibição!

No período do Estado Novoos ciganos foram perseguidos como feiticeiros


assim como adeptos de cultos mediúnicos – e boêmios – assim como sambistas,
prostitutas e artistas/músicos da noite – grande parte dos modelos incorporados
pela umbanda como espiritualidades/entidades, como visto acima. Porém nos
últimos 30 anos (PEREIRA, 2009, p.160 e MIRANDA. 2010, p.130) as entidades
ciganas tem surgido e vem sendo incorporadas a Linha de Exu27, o que para muitos
adeptos tem lógica (por serem povo de rua) mas gera problema (não é a mesma
energia).
Na Tenda Espiritualista Tzara Ramirez esse discurso é muito frequente entre
os adeptos, principalmente quando o assunto éincorporação e energia da
incorporação. Os médiuns diferenciam a força e sensação entre o outro lado e a
Tenda:
Não vou lá no barracão pois tem sangue de animal, aqui não,
é tranquilo e a energia é boa - Cigana Morgana - adepta de
umbanda também.
Vim para cuidar de minha cigana, ela me trouxe, ela não
desci lá por ser carregado...- Cigana Sibilain – adepta de
umbanda também.
Aqui é diferente, lá no barracão a energia é outra, muito
mais pesada - Cigana Indianira – adepta de candomblé.
A energia de minha cigana é boa, leve... me deixa bem, isso
desde a primeira vez que ela veio - Cigana Carmencita –
adepta de candomblé

Essa divergência entre as energias Exus x Ciganos é comumente encontrada


em outros médiuns e casas (PEREIRA, 2009, p.153) e seria um dos motivos de
surgimento da Tzara Ramirez – como já mencionado – e destacando uma das suas
principais características em relação a outros grupo de presença de espíritos
ciganos é a proibição de incorporação de outros espíritos, que não sejam ciganos.
O principal evento aconteceu durante um Ritual de energização feito só com
os médiuns da Tenda, onde uma semana antes a Cigana Arimar passou uma lista
com todos os elementos que deveriam ser comprados para a realização da
energização que iria realizar. Uma semana depois os médiuns todos sentados

27
Termo nativo que corresponde a que grupo essa entidade está ligada, designando
características, que vão ser usadas para enquadrar na cosmologia da umbanda, para saber mais
ler Renato Ortiz (2011).
19
começaram a receber explicação de como seria o ritual e a função de cada objeto a
ser utilizado, chegando na vez da pemba a Cigana Arimar – assim como fez com
todos os objetos – pergunta em voz alta: E a pemba serve pra que?, quase de
maneira uníssona responde para riscar o ponto e caem na gargalhada. Arimar
imediatamente responde se tivessem do outro lado sim, mas aqui não! promovendo
um grande constrangimento. Na Tzara Ramirez por ser, desde sua fundação um
lugar para as entidades/espíritos ciganos, é proibido incorporar outros espírito, é
um espaço pedido pelos ciganos e só de ciganos como referido por Cigana
Carmencita.
Essa singularidade é muitas vezes um motivo de invocação e distinção desse
grupo em relação a outros que incorporam ciganos também, agente é cigano-
incorporamos só ciganos e muitas vezes é referencial de pureza/impureza e
hierarquia(DOUGLAS, 2012, p. 118)entre o próprio grupo aquela ali – se referindo
Sibilain – uma vez pegou champanhe e derramou na cabeça igual pomba gira, não
pode, agente é só cigano!(Cigana Carmencita). Esse limiar (TURNER 2007, p.139) é
sempre observado e cuidado entre o grupo – lideranças e os próprios adeptos –
vigiam essa difícil tarefa de não deixar o outro lado encostar28, já que todos tem o
seu outro lado.

Os puros?

Após a conversa de Arimar com Layla sobre a identidade da Tenda, resolvi


procurar os ciganos de sangue e logo que perguntei entre os médiuns os ciganos
foram apontados, com uma certa força e admiração. Eram 3 entre o grupo, um
homem chamado Cigano Wladymir, Cigana do chá 29 e Cigana Morgana, que
apresentam papel de destaque entre o grupo. O cigano Wladymir esteve com o
grupo do período de Março até Novembro do ano de 2012 e sempre foi o cigano
homem mais procurado, considerando que só existem aproximadamente 10 ciganos
homens e o Cigano Juan pouco atende na Tenda30, principalmente para áreas de

28
Quando uma entidade está querendo incorporar - baixa, ou usar – um médium -
aparelho/cavalo.
29
Vou optar por usar esse nome e guardar o nome dessa cigana, já que só me deu seu nome de
batismo até agora.
30
A maioria dos atendimentos do Cigano Juan é em uma sala separa do público ou em festas.

20
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21
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VERGER, Pierre. Orixás, deuses Iorubás na África e no novo mundo. Salvador:
Corrupio, 1981.

22
tem a religião que quiser, é livre e a que ele escolheu era aquela ali, e que o povo
cigano tem uma espiritualidade natural, por isso aquele trabalho, de ajudar o
próximo, ali era mais fácil para ele. Declarações que me fizeram lembrar Mio – na V
Caminhada e na Mesa do ISER – e a Cigana WlaviraTurczyneck (cigana de sangue
de família importante em Cascadura – RJ, professora e dona de um estúdio de
dança).
O sangue cigano é um elemento de pureza, e de grande importância na
hierarquia para os membros da Tzara, tanto como marcadores dentro do grupo ou
como para aprendizado de suas funções culturais para uso ritualístico das
entidades. A Cigana Sibilainem conversa me disse: a minha cigana – espiritualidade
– joga cartas, mas eu ainda não sei. Vou aprender, fazer um curso para ela me
usar no jogo, mas não vou fazer com qualquer um desses que dá curso não, vou
fazer com uma cigana mesmo, de sangue sabe. Eles que sabem mesmo. Quando
questionada sobre o cigana mesmo ela me explicou, Tá vendo aquela ali! –
apontando para a Cigana do chá – ela é cigana de sangue sabe, ela que faz o chá,
o chá cigano! Ela sabe a magia, o encantamento, tá no sangue...

Conclusão
O cigano está mesclado à cultura brasileira, e a figura do cigano foi
assimilada a crença do povo brasileiro. Um olhar desatento sobre identidade cigana
pode gerar uma confusão sobre etnia cigana e espírito cigano, principalmente
quando percebemos esses grupos em total interação do espaço público – como
festas, passeatas, apresentações culturais ou manifestações de interesses comum –
o que é muito comum na realidade brasileira. No caso da Tzara Ramirez esses dois
universos não só se apresentam configurados de forma separada, os ciganos de
sangue, os ciganos de espírito, mas também os ciganos de sangue e espírito, que
dentro da opção de escolha livre de uma religiosidade comum à cultura cigana –
proporcionaram na Tenda o encontro dessas duas identidades.
Essas característica proporciona por muitas vezes que o grupo – como vimos
-reivindique sua identidade dependendo da melhor adequação. Algumas vezes
como ciganos de sangue, no caso da Beija Flor, e em outras como ciganos de
espírito, perante outros grupos religiosos e pacientes, ou como ciganos de sangue e
espírito no caso de alguns ciganos da tenda que encontram nessa possibilidade um
maior destaque.

23
"PARA QUEM ACREDITA, NENHUMA PALAVRA É NECESSÁRIA; PARA QUEM
NÃO ACREDITA, NENHUMA PALAVRA É POSSÍVEL": UM PRIMEIRO OLHAR
SOBRE AS CURAS ESPIRITUAIS DO MÉDIUM JOÃO DE DEUS1

Edileide Bezerra do Nascimento*

Resumo: O presente trabalho é fruto de uma pesquisa de caráter exploratório envolvendo


pessoas que procuram cirurgias espirituais realizadas pelo médium João de Deus na cidade
de Abadiâna, interior de Goiás. O médium João Teixeira de Faria, o João de Deus, há mais de
54 anos tem feito o tratamento das mais diversas patologias e arrastado multidões dos mais
variados níveis socioeconômico e cultural a Casa de Dom Inácio de Loyola. A partir de uma
perspectiva antropológica, utilizamos para a pesquisa, de caráter quantitativo-qualitativo,
três instrumentos: um socio-demográfico, voltado para as pessoas frequentadoras do local,
outro direcionado ao médium e um último pensado para as entidades com as quais o
médium trabalha. Todavia, para este artigo, utilizaremos apenas os resultados obtidos
através do primeiro instrumento. No que tange a estruturação do texto, o primeiro momento
será reservado a contextualização do trabalho, nos deteremos na história da cidade e do
médium. Num segundo momento, tomando como ponto de partida algumas reflexões de
Mircea Eliade e ainda a literatura antropológica e sociológica, nos dedicaremos a análise das
entrevistas propriamente ditas. Nos valeremos, como fonte complementar, das informações
disponíveis no site da Casa de Dom Inácio de Loyola.

1. Fenômeno de Abadiânia: João de Deus

Segundo Eliade (2011) o sagrado manifesta-se sempre como uma realidade


inteiramente diferente das realidades “naturais”. E é nesse mundo envolto de formas
sagradas que vamos encontrar o médium João de Deus, a casa Dom Inácio de Loyola e
uma multidão em busca de curas das mais diversas parte do mundo.
João Teixeira de Faria nasceu no vilarejo de Cachoeira da Fumaça, no estado de
Goiás, em 24 de junho de 1942, sendo o mais novo de seis filhos. Conforme Cumming, a
mãe dele, Francisca Teixeira Damas, era conhecida por todos como Dona Iuca. Ela era
uma dona de casa prestimosa, dedicada à criação dos filhos, querida e respeitada por
todos que a conheciam. João tem muito orgulho da mãe e fala dela com grande amor e
admiração. Nas décadas de 1940 e 50, não havia ruas asfaltadas e nenhum tipo de
infraestrutura nessa parte do Brasil. As estradas que ligavam as cidades eram de terra,
pontilhadas de mata-burros, e serpenteavam pelas fazendas e vilas. Afirma que, no final
da década de 50, quando as ruas começaram a ser pavimentadas, a mãe de João dirigia
um hotelzinho e cozinhava para os operários que trabalhavam nas obras de calçamento
com o intuito de ajudar no orçamento minguado da família. João muitas vezes comenta
que a mãe ficou famosa graças à sua comida boa (Cumming, 2008, p. 23). A autora
explica que o pai dele, José Nunes de Faria, conhecido como Juca Faria, ganhava a vida
como alfaiate e era dono de uma tinturaria e com essas atividades conseguia sustentar

1
Este artigo foi desenvolvido sob a orientação e supervisão da Profª. Drª. Dilaine Soares Sampaio
de França (DCR-PPGCR-UFPB).
toda a família: João, o filho mais novo; seus quatro irmãos: Americano, José, Francisco e
Abílio; e uma irmã, América. Todos os irmãos dele já faleceram. A irmã vive em Anápolis
e já passa dos 80 anos (Cumming, 2008, p. 23 - 24).
Explica a autora quando foi o primeiro registro da habilidade mediúnica de João de
Deus:

O primeiro registro das capacidades paranormais de João aconteceu quando


ele tinha 9 anos e visitava a família com a mãe, na cidade de Nova Ponte. Era
um lindo dia ensolarado, mas João teve a premonição de que uma forte
tempestade estava chegando. Ele começou a apontar para as casas, inclusive
para a do irmão, dizendo que elas seriam derrubadas ou destelhadas pela
tempestade. Insistiu para que ele e a mãe partissem antes que a chuva
começasse. Embora ela não estivesse muito convencida, fez a vontade do filho
e eles buscaram abrigo na casa de um amigo, nas proximidades. Exatamente
como ele pressentira, uma tempestade começou inesperadamente e destruiu
ou danificou em torno de quarenta casas da cidadezinha de aproximadamente
150 habitantes (Cumming, 2008, p.24 - 25).

De acordo com Alves, com idade de quinze anos João deixou o lar para trabalhar
em outras cidades, mudando-se para Campo Grande, hoje capital do Estado de Mato
Grosso do Sul. Com grande vontade de trabalhar montou uma alfaiataria e ficou
esperando a clientela. Porém, transcorreu um mês e não lhe apareceu nenhum cliente,
devido ao clima quente da região. João, um tanto desanimado, foi então em busca de um
emprego e conseguiu um trabalho de pipeiro numa olaria, mas no primeiro dia o
mandaram embora (Alves, 2012, p. 15). Procurou, então, abrigo embaixo de uma ponte,
planejando banhar-se no rio antes de seguir sua busca. Ao se aproximar do rio, uma
mulher o chamou, convidando-o a aproximar-se. Conversaram a tarde inteira e após
algum tempo, o médium descobriu que a mulher era o espírito de Santa Rita de Cássia.2
Relata ainda Alves (2012) que no outro dia, retornou ao local na esperança de
encontrá-la novamente, entretanto, no lugar onde ela estivera sentada havia apenas
focos de luz e naquele momento ouviu a voz, interpretada como pertencente à Santa Rita
de Cássia, que recomendou ao médium a ida ao Centro Espírita Cristo Redentor, ali
mesmo em Campo Grande. Cumming relata que João seguiu as instruções explícitas da
visão e, ao chegar, o presidente do Centro se aproximou e perguntou se o nome dele era
“João Teixeira de Faria”. O presidente explicou que sabia que João viria e estava
esperando por ele. Nesse mesmo instante, João desmaiou e quando recobrou os sentidos
horas depois, pediu desculpas, constrangido, atribuindo o desmaio à fome. Havia um
aglomerado de pessoas em torno dele e alguém lhe disse que havia incorporado a
Entidade Rei Salomão e, por seu intermédio, mais de cinquenta pessoas haviam sido

2
Informações obtidas na página oficial da casa Dom Inácio de Loyola. Disponível em: <
http://www.joaodedeus.com.br/ >. Acesso em 15 jan.2013.
curadas. Os frequentadores do Centro ficaram admirados com a mediunidade de João e
com as curas realizadas (CUMMING, 2008.p. 25).
Segundo Kardec, toda pessoa que sente a influência dos Espíritos, em qualquer
grau de intensidade, é médium. Essa faculdade é inerente ao homem. Por isso mesmo,
não constitui privilégio e são raras as pessoas que não a possuem pelo menos em estado
rudimentar. Segue o codificador afirmando que todos são mais ou menos médiuns.
Usualmente, porém, essa qualificação se aplica somente aos que possuem uma faculdade
mediúnica bem caracterizada, que se traduz por efeitos patentes de certa intensidade, o
que depende de uma organização mais ou menos sensitiva (Kardec, 2005, p.180).
Durante os primeiros anos da prática desse extraordinário trabalho de cura, o
médium João de Deus foi muitas vezes vítima da perseguição de membros da igreja e da
comunidade médica, que se sentiam ameaçados com sua presença na cidade. Ele perdeu
a conta de quantas vezes foi preso e acusado de praticar a medicina clandestina.
Constantemente perseguido, ele vivia se escondendo das autoridades (Cumming, 2008,
p. 27).
3
Segundo Cumming, na década de 1960 o Brasil passou por uma “revolução” e
os militares tomaram o poder. Em 1964, Brasília, começou a dar os seus primeiros
passos como capital do país. João viajou para lá e ofereceu aos militares os seus serviços
de alfaiataria. Como era muito jovem, não conseguiu ser comissionado para confeccionar
uniformes, mas lhe deram a oportunidade de costurar uma remessa de calças. A
competência impressionou os patrões e ele logo foi promovido a alfaiate e contratado
para fazer uniformes para o exército (Cumming, 2008.p. 27).
Depois de passar muitos anos em Brasília, sob a proteção dos militares, o médium
João de Deus ansiava por um santuário onde as pessoas pudessem procurá-lo em busca
de tratamento. Em 1978, as Entidades transmitiram ao médium João, por intermédio do
seu venerado amigo e mentor Francisco “Chico” Cândido Xavier, uma mensagem que
transformou a vida dele (Cumming, 2008.p. 89).
Segundo Eliade, o espaço sagrado tem um valor existencial para o homem
religioso; porque nada pode começar, nada se pode fazer sem uma orientação prévia – e
toda orientação implica a aquisição de um ponto fixo (Eliade, 2011, p. 26). A mensagem
de Bezerra de Menezes designava a cidadezinha de Abadiânia como o local apropriado
para o santuário (Cumming, 2008.p. 89). A pequena cidade de Abadiânia está situada na
BR que liga Goiânia à Capital Federal, a cerca de 120 km de Brasília e bem próximo a
Anápolis, cerca de 40 km de distância (Alves, 2012, p. 33). Era indispensável que

3
Respeitamos aqui o pensamento da autora, embora numa perspectiva historiográfica, o conceito
de “revolução” já tenha sido bastante questionado quando aplicado a processos históricos
brasileiros, de modo que a subida dos militares ao poder é vista com grande consenso entre os
historiadores como um “golpe de estado” e não como “revolução”.
houvesse uma cachoeira nas cercanias. Seguindo meticulosamente essas instruções, o
médium João começou a procurar o terreno (Cumming, 2008.p. 89).
O médium João Teixeira de Faria, sendo portador de um grande carisma, quando
interpelado pelos casos de cura, faz a seguinte afirmação: “Eu não curo ninguém. Quem
cura é Deus, que, em sua infinita bondade, permite as Entidades (bons espíritos) que me
assistem proporcionar cura e consolo aos meus irmãos, ao passo que sou apenas um
instrumento em suas divinas mãos”. Segundo Weber a autoridade carismática não se
configura segundo preceitos gerais, quer racionais quer tradicionais, mas, em princípio,
segundo revelações e inspirações concretas e, de acordo com essa pauta, é irracional e
revolucionária na medida em que não está ligada à ordem existente. (Weber, 2010, p.
41).

2. Casa de Dom Inácio

No inicio de seus trabalhos João de Deus atendia em locais variados, pois não
possuía um local fixo. Afirma Póvoa que João de Deus recebera uma mensagem através
do médium Chico Xavier, tomado pelo espírito Bezerra de Menezes, lhe aconselhando a
fundar uma casa onde pudesse praticar a caridade, indicando na cidade de Abadiânia o
exato lugar onde atualmente se encontra a “Casa de Dom Inácio de Loyola” (Póvoa,
2012, p.46). Para Eliade, uma irrupção do sagrado que tem como resultado destacar um
território do meio cósmico que o envolve o torna qualitativamente diferente (Eliade,
2011, p. 30). Ainda, segundo Póvoa, numa determinada ocasião pensou o médium em
sair de Abadiânia, entretanto, recebeu uma carta de Chico Xavier pedindo-lhe que
permanecesse lá (Póvoa, 2012, p.46).

A Casa de Dom Inácio, criada por João de Deus no ano de 1976, na cidade de
Abadiânia – GO é o local onde o médium cumpre sua missão de cura
espiritual. Mesmo seguindo os princípios da Doutrina Espírita, a Casa funciona
como hospital espiritual e templo ecumênico, onde todos são bem vindos,
independentemente de suas convicções ou crenças religiosas. Trabalham na
Casa diferentes Entidades espirituais que ajudam aos filhos físicos, emocional
e espiritualmente. O atendimento não tem custo e não é necessário marcar
um horário para ser atendido (Casa Dom Inácio de Loyola, 2012).

A Casa recebeu oficialmente o nome de Casa de Dom Inácio de Loyola em


homenagem a uma das principais Entidades que orientam o médium João, Dom Inácio de
Loyola ou Dom Inácio. As cores da Casa são o branco e o azul-céu, de acordo com o
pedido explicito de Dom Inácio numa visão do médium João. Dom Inácio de Loyola foi
fundador da ordem dos Jesuítas (Cumming, 2008, p. 27):

Dom Inácio de Loyola (também conhecido como Santo Inácio de Loyola)


nasceu em 1491, na província Basca de Guipúzcoa, na Espanha. Dom Inácio
de Loyola – estátua dos jardins da Casa. De família nobre, em 1516, entra
para a guarda do vice-rei de Navarra. Ao defender o território basco dos
franceses, na batalha de Pamplona, Inácio de Loyola é ferido na perna por
uma bala de canhão. Durante sua recuperação, no castelo de Loyola, ao invés
de livros sobre a cavalaria, encontra livros sobre a vida dos santos. Ao fazer a
leitura, inspira-se pelo exemplo dos santos e sente, então, a necessidade de
uma mudança interior. Decide, assim, dedicar sua vida a Cristo e à conversão
dos infiéis. Já totalmente recuperado, vai a Monserrat, mosteiro beneditino nos
arredores de Barcelona, onde faz sua confissão geral que dura três dias.
Depois, retira-se para uma gruta, em Manresa, também nos arredores de
Barcelona. Ali se completa sua transformação espiritual e escreve o livro
“Exercícios Espirituais”. (...) Inácio de Loyola desencarnou aos 65 anos de
idade e foi canonizado pelo Papa Gregório XV, em 1622 (Casa Dom Inácio de
Loyola, 2012).

Além da Casa Dom Inácio há outras casas onde as atividades de João de Deus são
desenvolvidas e que ele visita esporadicamente, como a Casa Sul em Canela - RS e a
Casa de Caridade Cristã Dr. Oswaldo Cruz – ES.
Retratam os seguidores do médium João que em janeiro de 1998, durante os
trabalhos da Casa de Dom Inácio em Abadiânia – GO, a entidade Dr. Augusto falou da
necessidade de construção de uma Casa no Sul, indicando o local na cidade de Canela –
RS e encarregando um dos filhos da Casa para liderar a construção. A partir de então,
houve a mobilização de uma equipe de colaboradores que iniciaram os trabalhos, na
tentativa de adquirir a área escolhida, o que se realizou no ano de 2001, através de
doações dos filhos da Casa de Dom Inácio. Segundo Eliade (2011) a casa é santificada,
em parte ou na totalidade, por um simbolismo ou um ritual cosmológico e se instala em
qualquer parte, construir uma aldeia ou simplesmente uma casa representa uma decisão
grave. Em 05 de fevereiro de 1996 foi fundada a Casa de Caridade Cristã Dr. Oswaldo
Cruz que está localizada em Cariacica – ES. Em 1994, o Médium João fez o primeiro
atendimento em Vitória-ES.
A Casa Dom Inácio de Loyola recebe, nos dias de atendimento, milhares de
pessoas dos mais variados locais com diversas enfermidades, e muitas desenganadas
pela medicina. As ruas são tomadas por uma multidão vestida de branco com destino a
“Casa de João de Deus”. Segundo Estrich, o centro de curas abre às oito da manhã. Os
doentes reúnem-se para receber a senha com o seu número. Fotógrafos preparam o
material para filmagem da atividade do dia. Em algum lugar da casa, num quarto
anônimo, João descansa, faz meditação sozinho, preparando-se para um novo dia de
curas.
Relata Alves que quando o médium encontra-se preparado, por ele são realizadas
no salão principal operações visíveis, de cortes, com ou sem instrumentos, estando o
médium João de Deus incorporado pelas entidades (Alves, 2012, p. 34 - 35). O
pesquisador Estrich afirma que o centro dá a impressão aos que chegam de ser um
pequeno hospital. Todo branco por dentro e por fora, exceto por uma faixa azul alta, de
cerca de um metro, que decora a parte interna, sendo resultado de um projeto indicado a
João pela entidade principal, Dom Inácio.
A sala dos médiuns é o local onde tem início os trabalhos todos os dias, com todos
os médiuns reunidos em concentração. Durante os trabalhos, é nesta sala que é efetuada
a limpeza espiritual dos pacientes como também a desobsessão e o desenvolvimento
mediúnico (Alves, 2012, p. 43). A sala de entidades é o local de atendimento dos
consulentes pelos mentores espirituais incorporados no médium, individualmente (Alves,
2012, p. 46).
A Casa da Sopa foi inaugurada em 2004, sendo construída a pedido das Entidades
da Casa de Dom Inácio e está localizada em Abadiânia – GO. Diariamente, são servidos
em torno de mil pratos de sopa/almoço para aqueles que têm fome. Além de fornecer
alimento, existem projetos de apoio às crianças e famílias da comunidade.4 É importante
ressaltar ainda que a sopa é utilizada como uma das terapêuticas de tratamento após as
cirurgias espirituais.
Segundo Nicacio (2012) a Casa de Dom Inácio tem área de descanso com vistas
para um mirante, livraria, lanchonete, farmácia e sala de banho de cristal. Além da
cirurgia, os visitantes também podem participar do banho de cachoeira, uma bica d’água
natural a aproximadamente um quilômetro do prédio principal.
Muitos são as Entidades que incorporam no Médium. Segundo ele, são trinta e
três entidades conhecidas, todavia, há aquelas que têm frequente atuação na Casa,
revelando-se constantemente nos trabalhos. Mas há aqueles que não se revelam mesmo
estando trabalhando e ainda aqueles que participam constantemente, mas no plano
espiritual (Alves, 2012, p. 47). Afirma Póvoa (2012) que embora o médium receba mais
de 30 entidades diferentes, algumas das raríssimas vezes incorporam as que estão quase
diariamente atendendo o povo. Através dele, ocorre a presença espiritual do Rei
Salomão, de Dom Inácio de Loyola, Dr. Osvaldo Cruz, Augusto de Almeida e Dr. José
Valdivino (Póvoa, 2012, p.49).
Segundo Estrich, as entidades são espíritos de falecidos médicos, cirurgiões,
psicólogos e teológos cujas almas são de nível altamente elevado e não necessitam mais
reencarnar no mundo. No entanto, continuam a se elevar no plano espiritual, graças à
amplitude de sua benevolência e obras de caridade. Usando o corpo de João como
instrumento, são capazes de executar milagosas operações, assim como curar os
doentes e os aleijados (Estrich, S/D, p.56 -57).

3. Pessoas que frequentam a “Casa Dom Inácio de Loyola”

Segundo Weber o termo “carisma” será entendido como referência a uma


qualidade extraordinária de uma pessoa, prescindindo de que seja real, presumida ou

4
Informações coletadas na página oficial da Casa Dom Inácio de Loyola, disponível em:
http://www.joaodedeus.com.br/.
suposta. Segue o mesmo autor afirmando que “autoridade carismática” aludirá a um
poder sobre os homens, quer seja primordialmente interno ou externo, ao qual se
subordinam os governados em virtude de sua fé na qualidade excepcional da pessoa
específica (WEBER, 2010, p. 40). E esse poder extraordinário de curar leva as pessoas à
busca pela cura e pelo conforto fazendo com que uma multidão de pessoas vestida de
branco, passe horas sentada em profunda meditação, se alimente de sopa, passe por
várias filas, tome banho de cristais e se submeta a cirurgias sem nenhum tipo de
esterilização.
Para Eliade sente-se a necessidade de mergulhar por vezes nesse Tempo sagrado
e indestrutível, pois é o Tempo sagrado que torna possível o tempo ordinário, a duração
profana em que se desenrola toda a existência humana (Eliade, 2011, p. 79).
Afirma Nicacio que são necessárias algumas poucas horas em Abadiânia para
colecionar relatos de pessoas que mudaram suas vidas sob o impacto do encontro com
João de Deus (Nicacio, 2011, p.1). Segue relatando que é comum encontrar médicos
renomados que largaram consultórios na Europa para se tornarem assistentes espirituais
e executivas de alto escalão que viraram donas de pequenos estabelecimentos
comerciais na cidade apenas para ficar perto de João de Deus (Nicacio, 2011, p.1).
Nicacio conclui afirmando que a saga do líder espiritual goiano já atravessou
fronteiras e foi tema de programa da apresentadora americana Oprah Winfrey (Você
acredita em milagres?) e do canal fechado Discovery Channel, entre outros. Sua fama e
seu poder ganharam dimensões continentais e são infinitamente maiores do que o local
que ele escolheu para exercê-los (Nicacio, 2011, p.1).
Em nossas visitas foi possível confirmar as observações de Nicacio (2011) sobre o
impacto provocado por João de Deus na vida daqueles que o procuram. Devido ao
caráter incipiente da pesquisa, optamos em apresentar para este trabalho os resultados
de apenas dez entrevistas, realizadas a partir do instrumento sócio-demográfico
elaborado. Com o intuito de facilitar a compreensão, os dados coletados foram
esquematicamente reunidos no quadro abaixo:

RESULTADOS OBTIDOS A PARTIR DO INSTRUMENTO SOCIO-DEMOGRÁFICO

2. Sexo: foram
1. Idade dos(as) entrevistados 3. Escolaridade: médio e
entrevistados homens e
(as): entre 38 e 80 anos superior
mulheres

2. Diante da pergunta: Tem religião? Nove responderam que sim e apenas uma
respondeu que não possuía nenhuma religião.

3. No que se refere a identicação religiosa, sete pessoas declararam-se católicas e duas


afirmaram ser espíritas.
4. Diante da pergunta:Você acredita em Deus? As dez pessoas entrevistadas
responderam que sim.

5. Para a pergunta: Qual o grau de importância da religião para a sua vida?, obtivemos
os seguintes resultados para a escala de valores feita:

Não é importante - uma pessoa

Pouco importante - uma pessoa

Mais ou menos importante - uma pessoa

Importante - quatro pessoas

Muito importante - três pessoas

6. Sobre a frequência de participação em uma comunidade religiosa, foi colocada a


seguinte escala: Nunca/Ocasionalmente/Uma vez ao ano/ Uma vez ao mês/ Uma vez
por semana / Mais de uma vez por semana/ Diariamente. A partir disso tivemos o
seguinte resultado:

Ocasionalmente - cinco pessoas

Uma vez ao mês - duas pessoas

Uma vez por semana - duas pessoas

Mais de uma vez por semana - uma pessoa

7. Para a questão: Que motivos o levam a procurar esta instituição?, tivemos respostas
bastante variadas:

1. Depressão, tristeza profunda.

2. Tumor no cérebro de 4 cm. A intervenção de João de Deus possibilitou o tratamento


por cirurgia tradicional, após cirurgia espiritual.

3. Insuficiência Cardíaca

4. Problema na Tireóide e no nervo ciático. Está em tratamento na Casa e sente melhora


significativa

5. Problema no estômago

6. Problema na bexiga. Seu esposo fez tratamento com João de Deus em virtude de um
problema renal e ficou totalmente curado.

7. Hérnia Umbilical

8. Frequenta o local há 20 anos. A Casa Dom Inácio é vista como um lugar de paz.
Primeira visita feita teve como motivação uma infecção na pele de seu pai. Após um
primeiro contato com João de Deus já se sentia melhor.

9. Curou-se de um problema de coluna.

10. Câncer na garganta há 15 anos. Foi curada, vive na casa Dom Inácio de Loyola,
tornou-se “filha da casa”.
Os dados coletados revelam que João de Deus é procurado por pessoas de várias
idades, diferentes níveis de escolaridade, incluindo homens e mulheres e, nesta pequena
amostragem, a maioria declara possuir uma religião. Entre os nossos entrevistados, a
maioria declarou-se católica, embora apenas duas pessoas afirmassem ser frequentes
semanalmente a uma comunidade religiosa. Todos os participantes, inclusive aquele que
afirmou não ter religião, mostraram-se crentes em Deus. As motivações para a procura
de João de Deus se mostraram bastante diversificadas, apesar da maioria das pessoas
com quem conversamos apresentarem como razão algum problema “aparentemente”
“orgânico”. Nem todos os entrevistados realizaram cirurgias espirituais haja vista que tal
indicação não ocorre para todos os casos. Os pacientes que receberam a indicação de
cirurgia puderam optar entre a “cirurgia visível” (com incisões) e a “cirurgia invisível”
(permanecem em grandes salões sentados ou deitados em meditação). O médium afirma
não ser necessária a “cirurgia visível”, sendo realizada apenas naqueles que não
acreditam na “invisível” e desejam comprovação do tratamento através de cortes.
No que tange ao modo de ação, João de Deus relata que permanece inconsciente
durante os procedimentos, permitindo a manifestação de um dos inúmeros espíritos de
sua “equipe espiritual”. Dentre os espíritos que trabalham na falange da Casa está Dr.
Augusto de Almeida, Rei Salomão, Osvaldo Cruz, Dom Inácio de Loyola dentre outros.
Como a questão das cirurgias espirituais é um fenômeno extremamente
intrigante, desperta o olhar acadêmico não apenas nas Ciências Humanas, mas também
na área das Ciências da Saúde, que na posição da “medicina oficial”, buscam atualmente
compreender o fenômeno João de Deus. A.M. de Almeida ,T.M. de Almeida e Gollner,
autores vinculados a Faculdades de Medicina da USP e da UFJF, respectivamente, há
mais de 10 anos atrás acompanharam em torno de trinta cirurgias realizadas pelo
médium João de Deus. Em artigo intitulado Cirurgia espiritual: uma investigação
apresentaram os seguintes resultados e conclusões, que transcrevemos abaixo:

RESULTADOS. O “cirurgião” verdadeiramente incisa a pele ou o epitélio ocular,


além de realizar raspados corneanos sem nenhuma técnica anestésica ou
antisséptica identificável. Apesar disso, apenas um paciente queixou-se de dor
moderada quando teve a mama incisada. Os pacientes foram examinados até
três dias depois da cirurgia sem nenhum sinal de infecção, bem como os
relatos posteriores dos pacientes não continham informações de infecção. O
exame histopatológico evidenciou que os tecidos extraídos eram compatíveis
com o local de origem e, com exceção de um lipoma de 210 gramas, eram
tecidos normais, sem particularidades patológicas. Foi realizada revisão da
literatura e discussão do efeito placebo.
CONCLUSÕES. As cirurgias são reais, mas, apesar de não ter sido possível
avaliar a eficácia do procedimento, aparentemente não teriam efeito específico
na cura dos pacientes. Sem dúvida, nossos achados são mais exploratórios
que conclusivos. São necessários posteriores estudos para lançar luz sobre
esse heterodoxo tratamento (A.M. de Almeida ,T.M. de Almeida e Gollner,
2000, p.194).
Numa perspectiva antropológica, no âmbito das Ciências das Religiões, é
extremamente interessante ver a Ciência Médica debruçar-se sobre o fenômeno das
cirurgias espirituais e reconhecer a sua dimensão de realidade. A História demonstra que
nem sempre foi assim, haja vista os conhecidos conflitos entre a nascente psiquiatria e o
espiritismo no início do século XX, já bastante trabalhados por Giumbelli (1997 a, 1997b,
2006). Para o referido autor, uma boa chave de leitura para pensarmos as relações entre
a Medicina oficial e o espiritismo é trabalharmos com as categorias de “introjeção,
subversão e complementaridade” de modo relacional, pois “certas práticas da terapêutica
espírita envolvem, de diferentes formas e ao mesmo tempo, introjeção e subversão de
elementos, dinâmicas e lógicas da medicina oficial” (GIUMBELLI, 2006, p.300).
4. Considerações finais

Ainda sem pretensões conclusivas consideramos que há muitas questões a serem


elucidadas em novas visitas que precisarão ser feitas. Um primeiro olhar sobre as curas
espirituais do médium João de Deus demonstram a complexidade do fenômeno, que
envolve diferentes campos para além do religioso, como bem já apontou Giumbelli
(2006). Essa primeira incursão revelou ainda que uma análise sob a perspectiva dos
sistemas simbólicos teria muito a revelar, haja vista que foram notados muitos símbolos
que ultrapassam o universo religioso espírita kardecista. Outro bom investimento seria o
de trabalhar as noções de doença e cura ali presentes, tanto entre os frequentadores
quanto entre os trabalhadores da Casa e o próprio médium.
A trajetória de João de Deus também merece ainda ser melhor investigada, posto
que o médium já respondeu e ainda responde a processos na justiça, com acusações de
homicídios e até mesmo de atentado ao pudor, embora João Teixeira de Faria negue
todas as denúncias. O mesmo sujeito que responde a acusações e já se tornou “caso de
polícia”, é recebido e visitado por Oprah Winfrey; se faz presente das mais diversas
formas na mídia eletrônica, impressa e televisiva, tendo já sido objeto de reportagem do
famoso Programa Fantástico da Rede Globo 5 ; e, ainda recorreram a ele, pacientes
ilustres como o presidente Luis Inácio Lula da Silva, a apresentadora Xuxa, o ator Marcos
Frota e a atriz americana Shirley Maclaine (NICACIO, 2012). Acreditamos que perseguir
essas “redes” de relações que envolvem diversos “atores” e que são construídas pelo
médium mostra-se como um caminho frutífero para compreender melhor a presença de
João de Deus na e para além da sociedade brasileira.

REFERÊNCIAS

5
Informações obtidas através de transcrição da reportagem exibida no Programa Fantástico em
01/04/2012. Disponível em: <http://www.partidaechegada.com/2012/04/joao-de-deus-recebe-
afagos-e-acusacoes.html>. Acesso em 20/02/2013.
ALMEIDA, A.M. de; ALMEIDA,T.M. de e GOLLNER, A.M. Cirurgia espiritual: uma
investigação. Ver. Ass. Med. Brasi, 46(3), 2000, p. 194-200. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ramb/v46n3/3076.pdf>. Acesso em 20 fev.2013.
ALVES, C. J. C. João de Deus a serviço da luz. Minas Gerais, 2012, gráfica Bom
Pastor.
CASA DOM INÁCIO DE LOYOLA. Casa de Dom Inácio. Disponível em: <
http://www.joaodedeus.com.br/casa-de-dom-inacio>. Acesso 09/12/2012.

CUMMING, Heather; LEFFLER, Karen. João de Deus: o médium de cura brasileiro


que transformou a vida de milhares Tradução de Denise de C. Rocha Delela. São Paulo:
Pensamento, 2008.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. 3 edição São Paulo:
editora WMF, 2011
ESTRICH, R. P. João de Deus: o curador e seus milagres, Goiás, Editora Múltipla, S/D.
GUIA PARA VISITANTES EM PORTUGUES. Casa Dom Inácio. Disponível em:<
http://www.friendsofthecasa.info/GuiaDaCasaPortuguesV2.1.pdf>.Acesso em
15/12/2012.
KARDEC, Allan. O livro dos médiuns. Tradução de Salvador Gentile. São Paulo: IDE,
2005.
GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história da condenação e
legitimação do Espiritismo. Rio de Janeiro, Arquivo nacional, 1997a.

___________. Heresia, doença, crime ou religião: o Espiritismo no discurso de médicos


e cientistas sociais. Antropologia, São Paulo, v.40, n.2, p.31-82, 1997b.

____________. Espiritismo e medicina: introjeção, subversão, complementaridade.In:


ISAIA, Artur C. Orixás e Espíritos: o debate interdisciplinar na pesquisa
contemporânea. Uberlândia: Edufu, 2006, p.283-304.

NICACIO, Adriana. Os poderes de João de Deus. Isto é, Edição 2201, 13 de janeiro de


2012. Disponível em:<
http://www.istoe.com.br/reportagens/186615_OS+PODERES+DE+
JOAO+DE+DEUS>. Acesso em 07/02/2013.
PÓVOA, Liberato. João de Deus: fenômeno de Abadiânia, Goiás: gráfica Bom Pastor,
2012.
WEBER, Max. Sociologia das Religiões. Tradução Cláudio J. A. Rodrigues. 1 ed. São
Paulo: Ícone , 2010.
LUZIA PINTA E SEUS TRANSES: INTERLOCUÇÕES E MEDIAÇÕES ENTRE
EXPERIÊNCIAS RELIGIOSAS CENTRO-AFRICANAS E CATÓLICAS NO SÉCULO
XVIII

Robert Daibert Jr. *

No século XVIII, em Sabará, interior de Minas Gerais, uma ex-escrava, nascida


em Angola e traficada para o Brasil passou a chamar a atenção da população e das
autoridades locais. Seu nome era Luzia Pinta. Sua especialidade era prestar
atendimento espiritual para os habitantes dessa regi ão. Como uma espécie de
médium, em seus rituais de matriz africana ela entrava em transe , oferecendo
serviços de cura e de adivinhação. Como veremos nessa comunicação, suas práticas
mágico-religiosas despertaram a desconfiança da Igreja Católica, em um processo que
a levou aos cárceres da inquisição portuguesa.
Nesse sentido, esse texto tem como objetivo analisar os conflitos entre a
africana Luzia Pinta e seus inquisidores portugueses em torno da interpretaç ão de
suas práticas mediúnicas. O texto investiga o significado das associaç ões e relações
estabelecidas por Luzia entre elementos de sua herança cultural e religiosa centro-
africana e o Deus Cristão da tradição católica. Nesse sentido, serão observadas as
estratégias de mediação simbólica operadas pela acusada no intuito de demonstrar
que seus rituais religiosos e transes eram inspirados pelo Deus Cristão e não pelo
diabo.
Em seus rituais, Luzia era acompanhada por três auxiliares, duas “negras
angola” e um escravo de origem desconhecida. É curioso notar que seus ajudantes
eram todos escravos de sua propriedade, o que revela a capacidade de certo acúmulo
de recursos financeiros, gerados talvez da prestaç ão de seus serviços religiosos, como
era comum nessas situações. No caso de Luzia, n ão há indícios de enriquecimento ou
formação de grande fortuna. No entanto, ao que parece, parte de seu sustento
financeiro após a conquista da alforria vinha dos serviços religiosos que ela passou a
oferecer em Sabará.
Durante os rituais, celebrados em sua própria casa ou na residência de seus
assistidos, ela vestia-se com roupas especiais, ora descritas como “à moda de anjo”
ora como “à moda turquesa”. Muitas vezes, seus cabelos eram amarrados em formato
de meia lua e sua cabeça era revestida por uma fita larga. No início da cerimônia, em
uma espécie de altar cujo dossel era composto por tecidos, Luzia permanecia
assentada em uma cadeira, segurando nas mãos um espadim, uma machadinha ou

*
Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Programa de Pós-Graduação
em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.
outro objeto de ferro. Ao agitar esses instrumentos, ela marcava com os pés e os
braços o compasso da música ao som dos tambores e atabaques tocados por seus
escravos. (ANTT, 1744, processo 252)
Ao som dos instrumentos e do canto de suas escravas, Luzia começava a
pular, tremer e gritar palavras e frases desconhecidas, entrando em uma espécie de
transe. A partir daí, suas auxiliares soltavam uma cinta antes amarrada em sua
barriga e Luzia colocava alguns penachos coloridos na orelha dizendo receber “ventos
de adivinhar”. Nesse momento, os participantes eram convidados a se ajoelhar e
passavam a ser cheirados e assoprados, como forma de diagnóstico das doenças e
queixas. Aqueles identificados como pessoas enfeitiçadas recebiam pós ou ervas ora
sobre suas cabeças ora em suas bocas, sempre ao som dos gritos da oficiante que
muitas vezes precisava ser acalmada pelos seus auxiliares. (ANTT, 1744, processo
252)
Em algumas ocasi ões, Luzia também oferecia vinho ou outras bebidas
alcóolicas aos seus assistidos. Na sequência, ela ordenava que todos se deitassem de
bruços no chão e imediatamente começava a passar por sobre seus corpos
gesticulando de modo ininterrupto. Havia casos em que muitos assistidos, após
ingerirem as substâncias oferecidas no ritual chegavam a vomitar, ato que era
interpretado como eliminação dos males espirituais. Em geral, dentro de certas
variantes, procedia-se assim ao ritual de adivinhação e cura, realizado geralmente à
noite e que chegava a durar em torno de duas horas. Seus atendimentos n ão eram
oferecidos exclusivamente aos africanos ou afrodescendentes, nem tampouco eram
voltados apenas para cativos. Luzia era procurada tanto por escravos quanto por
alforriados e também por homens e mulheres brancos, inclusive portugueses. (ANTT,
1744, processo 252)
Os atendimentos espirituais de Luzia Pinta tiveram início após uma experi ência
sobrenatural, espécie de êxtase que ela classificou como doença em seu depoimento à
inquisição. Segundo o registro do escrivão do Santo Ofício, certa vez,
na vila de Sabará ouvindo missa em dia santo, lhe sobreveio repentinamente a
dita doença, de que ficou muito mal, por não saberem os remédios que se
haviam de aplicar, até que sendo chamado um preto por nome Miguel, escravo
de Manuel de Miranda, morador na dita vila, lhe disse este que a dita queixa
era a do calandus e que só a havia de curar e ter remédio mandando tocar
alguns instru mentos e fazendo (algumas coisas) mais, por ser este o meio e
modo porque se costuma curar a dita doença, o que com efeito ela fez e
experimentou melhora. (ANTT, 1744, processo 252)

De acordo com Alexandre Marcussi, (2006, p. 110) “é provável que


Miguel fosse, ele também, um praticante de magia, ou que ao menos tivesse
familiaridade com os procedimentos rituais centro-africanos” . Havia casos em que os
próprios sacerdotes e religiosos católicos, contrariando a orientação da própria Igreja e
sentindo-se incapazes de prestar atendimento espiritual aos “possessos e doentes de
feitiço”, recomendavam a procura por “negros calundureiros”. Esses africanos e
afrodescendentes, cuja eficácia era reconhecida pela comunidade, tinham a fama de
especialistas em tratar de pessoas que se diziam possuídas pelas almas de seus
parentes defuntos. (SOUZA, 1986, p. 262-263) Esse parece ter sido o caso de Miguel.
Como um especialista, esse escravo deve ter sido responsável por uma etapa
do processo de iniciação ritual que transformou Luzia Pinta em uma líder espiritual ou
sacerdotisa, possuidora de poderes e segredos que a habilitaram posteriormente a
oferecer serviços religiosos. Nas sociedades banto da África Centro-Ocidental, havia
rituais específicos de formação de sacerdotes que se tornavam mediadores entre o
mundo visível, habitado pelos vivos e o mundo invisível, habitado pelos antepassados
e pelos espíritos ancestrais. A formação do sacerdote passava assim pela iniciação
ritual que envolvia, necessariamente, o pagamento de uma taxa e a reclus ão ritual
por meio da qual o iniciado entrava em contato com o mundo dos mortos, era
possuído por eles e retornava posteriormente ao mundo visível, capacitado a prestar
atendimento espiritual, tornando-se oficiante do culto do espírito ancestral.
(MARCUSSI, 2006, p.108-109)
Em sua interpretação, Marcussi vale-se das proposições de Macgaffey (1986,
p. 107-113 ) ao afirmar que
um espírito ancestral (nkulu, em kikongo) podia decidir possuir e afligir um
descendente como forma de “propor” uma comunh ão e um adensamento de
laços recíprocos entre o ancestral e seu descendente (laços que podiam
inclusive estar sendo negligenciados pelo último). Procurando tratamento ritual
adequado, o doente livrava-se da enfermidade e passava a ter uma ligaç ão
especial com o espírito que antes o possuíra. Com isso, tornando-se um elo de
mediação entre mundo visível e invisível, ele passava a poder mobilizar o
poder do espírito para diversos fins rituais, tornando-se um oficiante dos cultos
desse espírito. (MACGAFFEY, 1986, p. 107-113 apud MARCUSSI , 2006, p. 109)

Mas onde estaria o ancestral na história de Luzia? Em depoimento ao


Santo Ofício, ela revelou ainda aos inquisidores outro aspecto de sua experiência
religiosa passada na infância. Disse-lhes ter herdado aqueles fenômenos, por uma
espécie de contágio, de uma tia sua chamada Maria de quem n ão se lembrava muito.
(ANTT, 1744, processo 252) De acordo com Alexandre Marcussi, (2006, p. 110) a
aflição espiritual estava tradicionalmente ligada a uma relação entre uma linhagem e
seus ancestrais. Assim, ao ser atendida por Miguel, de origem possivelmente centro-
africana, Luzia de alguma forma retomava e fortalecia sua ligação com seus
ancestrais e com sua terra natal. Assim, ao se tornar uma oficiante dos ritos do
calundu, cumpria seu destino e, de alguma forma, “honrava e respeitava a memória
de sua tia Maria, possivelmente angustiada pelo débito em relação aos espíritos
ancestrais com os quais Luzia pôde se reconciliar”. (MARCUSSI, 2009, p.16)
Para o autor, é preciso entender o desfalecimento de Luzia na missa
em Sabará como o complemento de uma outra experiência extática vivenciada
inicialmente em sua infância. Os dois episódios devem, a seu ver, ser tomados como
um processo de iniciação ritual. Para entender sua argumentação, é preciso conhecer
essa primeira ocorrência. Logo no início, em seu primeiro interrogatório, Luzia
revelou aos inquisidores aquela que parece ter sido sua primeira experi ência religiosa
considerada marcante. Tratava-se de uma visão, decorrente de uma espécie de
êxtase. Segundo ela,
Aos 12 anos, pouco mais ou menos, assistindo na cidade de Angola, em casa
de seu senhor Manoel Lopes de Barros, saindo um dia pela manhã ao quintal
das casas em que morava, caiu repentinamente como morta no meio dele, e
ficando totalmente imóvel e privada de seus sentidos, foi levada sem saber
como, até a margem de um grande rio aonde encontrando uma velha, lhe
perguntou esta para que parte ia, e respondendo-lhe ela decla rante que não
sabia, lhe continuou a dizer a dita velha que fosse muito embora porque logo
havia de voltar. E continuando com efeito o seu caminho, encontrou mais
acima um homem ainda moço que lhe fez as mesmas perguntas e ela lhe deu
as mesmas respostas e andando mais encontrou outra velha que lhe perguntou
para que parte queria ir, e respondendo-lhe que queria passar para outra
banda do rio, lhe disse ent ão a mesma velha que pegasse na ponta de uma
linha bem fina que tinha na m ão e conseguiria o que desejava. E fazendo-o ela
assim, sucedeu secar repentinamente o dito rio, de sorte que pode passá-lo
enxuto e sem embaraço algum. E dando logo a uma encruzilhada, encontrou
com outras duas velhas e com dois caminhos, um muito sujo e outro muito
limpo, e intentando ela ir por este, lhe disseram as ditas velhas que havia de ir
pelo sujo se quisesse ou n ão. E indo com efeito por ele, chegou a uma casa
grande a onde um homem ancião com barbas compridas, assentado em uma
cadeira, e de redor dele, vários meninos com candeias acesas. E querendo ela
deitar-se, chegou ao pé do dito homem, a quem tomou a b ênção, e logo este
lhe disse que se fosse embora, sem passar mais cousa alguma. E vindo já na
escada daquelas casas, retirando-se, sucedeu tornar a si por virtude de
remédios e fumaças que o dito seu senhor lhe mandou fazer pela achar como
morta no dito quintal. E dando depois conta de tudo a um clérigo, o Padre
Manuel João, assistente na mesma cidade de Angola, lhe disse este que aquele
velho anci ão era Deus Nosso Senhor, o que ficou ela assim entendendo pela
referida razão, e não passou mais cousa alguma nem teve outra vis ão.” (ANTT,
1744, processo 252)

Segundo Alexandre Marcussi, quando menina em Luanda, Luzia


adquiriu uma conexão com os espíritos, e mais especificamente com o espírito
do velho que a acolheu na casa. A iniciaç ão ritual propriamente dita, quando
ela seria introduzida nos serviços rituais e aprenderia a fazer uso dessa sua
conexão, só se completaria em Sabará, aos cuidados do preto Miguel, mas
suas raízes estavam neste episódio da infância, do qual Luzia se lembra n ão
sem razão quando questionada pelos inquisidores.” (MARCUSSI, 2006, p. 116)

Luzia, ao que tudo indica, passou pelo padrão de uma iniciação religiosa
centro-africana, recriada e adaptada em Minas Gerais do século XVIII. Em um
primeiro momento, na infância, ela vivenciou a reclusão ritual que a colocou em
contato com o mundo dos mortos (brancos) do outro lado do rio e com seus espíritos
ancestrais. Ao cruzar o Atlântico, faltava-lhe ainda desenvolver essa potencialidade
latente, completada pelo atendimento que lhe foi prestado pelo escravo Miguel em
sua aflição espiritual. (MARCUSSI, 2006, p. 110-112)
Já os gastos financeiros, embora não sejam evidentes, podem ser
inferidos por meio de dois indícios apontados por Alexandre Marcussi (2009, p.15) no
trecho transcrito abaixo:
Miguel muito provavelmente recebeu pagamento pelos serviços de cura
executados, como era habitual entre os curandeiros coloniais, que muitas vezes
extraíam seu sustento ou acumulavam dinheiro para alforrias empregando seus
poderes sobrenaturais a serviço de clientes pagantes (...) Além disso, Miguel
afirmou que Luzia Pinta devia mandar fazer alguns procedimentos rituais,
fórmula que muito possivelmente indica que Luzia pagou pelos materiais
usados do ritual, como comidas, bebidas ou as oferendas necessárias para
restabelecer relações adequadas com os espíritos.

É interessante observar que Miguel foi chamado pela comunidade para


socorrer Luzia, mas nada indica que seu atendimento tenha se dado exclusivamente
dentro da igreja ou que o tratamento oferecido por ele tenha sido rápido. Em seu
depoimento à inquisição, Luzia diz apenas que após diagnosticá-la, (a dita queixa era
a do calandus) o escravo lhe oferece o seguinte diagnóstico “ só a havia de curar e ter
remédio mandando tocar alguns instru mentos e fazendo (algumas coisas) mais, por
ser este o meio e modo porque se costuma curar a dita doença, o que com efeito ela
fez e experimentou melhora.” (ANTT, 1744, processo 252)
O toque dos instrumentos e “algumas coisas mais” que ela
propositalmente deve ter evitado detalhar apontam indícios de uma cerimônia
específica talvez conduzida pelo próprio Miguel como parte de sua iniciação. Em todo
caso, completava-se assim o ritual conforme as bases das tradições centro-
africanas, fortalecendo de alguma forma sua ligaç ão com a terra m ãe, para onde
provavelmente ela sonhava retornar. Desde então, Luzia parece ter assumido uma
responsabilidade frente aos seus antepassados e também diante da comunidade da
qual fazia parte em Sabará. Suas escolhas, dentro do quadro de possibilidades com as
quais ela jogava em seu trânsito pelo mundo atlântico, revelam o recurso à parentela
como um elemento central na (re )construção de identidades marcadas pela
responsabilidade e respeito pela memória da linhagem. (MILLER, 2004, p. 118-120)
Nesse sentido, o contato com Miguel parece ter sido bastante definidor em sua
trajetória.
É importante perceber que Luzia Pinta atestava sempre a presença de um
sentido cristão em suas práticas e experiências religiosas. Em outras palavras, na
construção de seu relato, ela sempre fundamenta seus rituais na inspiração divina.
Diante da inquisição, ela afirmava estar ligada ao mesmo Deus dos portugueses e
não ao Diabo fortemente presente no imaginário dos inquisidores. Para perceber a
construção dessa associação do Deus crist ão às tradições religiosas centro-africanas, é
preciso voltar àquela primeira experiência espiritual de Luiza, aos doze anos de idade.
Segundo sugere Luiz Mott (1994, p. 76-77), essa espécie de visão foi
interpretada pela menina como uma premoniç ão de sua travessia do oceano rumo ao
Brasil. O autor, infelizmente, não segue adiante nem detalha sua análise. Mas,
seguindo sua sugestão, pode-se conjecturar que a visão de Luzia trazia várias nuances
em relação a uma visão espiritual de sua experiência no tráfico atlântico, de seu
enfrentamento e de sua superação. A análise dessa que parece ter sido a primeira
experiência espiritual da menina de Angola pode nos ajudar a desvendar a bagagem
que ela silenciosamente transportou para o Brasil.
Para os povos banto, habitantes da costa da África Central na regi ão do
Congo e Angola, a linha divisória que separava o mundo dos vivos do mundo dos
mortos era representada por um rio ou pelo mar. (SLENES, 1992, p.53-54) Em sua
cosmologia, concebiam o universo dividido em duas metades: o mundo dos vivos e o
mundo dos mortos. Essas esferas estabeleciam entre si relações de
complementaridade ou mesmo de oposição. Enquanto o mundo visível dos vivos era
habitado pelos negros, o mundo invisível era dominado pelos brancos, que
simbolizavam a morte. Ainda nessa perspectiva, era corrente a crença de que - após
sofrerem a travessia do Oceano rumo ao mundo branco dos mortos que os
escravizavam em uma espécie de encantamento sobrenatural - esses cativos
voltariam fisicamente ou espiritualmente à sua terra natal, junto de seus familiares
vivos e seus descendentes. A volta física estaria, no entanto, condicionada à
capacidade de se guardar uma pureza espiritual, capaz de reverter a prisão fruto de
um encantamento. (MACGAFFEY, 1986, p. 107-112; 1972, pp. 49-74 )
Mas, diante dessa explicação, fica ainda pendente a compreensão da presença
de um sentido católico atribuído àquela experiência religiosa. De acordo com a
tradição cristã, enquanto o caminho limpo pode ser associado ao caminho largo, da
soberba, que leva à perdição, o sujo é indicado como aquele da virtude, da provação
e do sofrimento, visto como a porta estreita da salvação. Essa, segundo Marcussi,
pode ter sido outra chave de leitura possível, ao alcance de Luzia Pinta, além daquela
centro-africana, apontada anteriormente. Para o autor, a temática da escolha é um
topos reiterado nas narrativas judaico-cristãs. (MARCUSSI, 2006, p. 113-114)
Entendendo que aquela visão pode ter sido lida como premonição pela menina
escrava, é possível interpretá-la como uma etapa de uma iniciação ritual que a
habilitaria espiritualmente a enfrentar o cativeiro sob uma condição diaspórica. Nesse
sentido, Luzia pode ter partido de Luanda carregando silenciosamente um aprendizado
religioso significativo. Sua travessia, embora perigosa, seria certa e segura se
acompanhada pelos guias espirituais. O local de desembarque do outro lado do
Atlântico era desconhecido e guardava um destino inevitável. O contato com o mundo
dos brancos - espiritualmente preparado em sua visão e vivenciado na diáspora -
poderia ser tomado como parte de um processo de iniciaç ão ritual que a habilitaria
como uma futura especialista religiosa, responsável por auxiliar e socorrer sua
comunidade em suas dificuldades no Novo Mundo. Enfim, seu retorno esfumaçava-se
em meio a uma promessa que, embora interrompida, permanecia em seu horizonte.
Em todo caso, com base nessas premissas, o seu caminho de alguma forma
continuava. E para que fosse bem sucedido, precisava ser conduzido pela incorporação
do Deus do mundo dos brancos.
James Sweet (2003, p. 143-151) considera o calundu colonial uma espécie de
aglutinação de variados ritos de cura praticados na África Central e que tinham em
comum o fenômeno da possessão por espíritos. A palavra calundu, segundo o autor,
seria uma variante do vocábulo quilundu, termo usado para designar qualquer tipo de
espírito responsável por causar uma doença ou aflição passível de ser curada por meio
da intervenção de um sacerdote. Nesse sentido, segundo o autor, a abrang ência desse
significado amplamente difundido entre a comunidade escrava teria facilitado, no
território colonial, a designação do calundu como uma religião centro-africana
transplantada para o Brasil e responsável pelo tratamento das aflições.
O autor defende, assim, a permanência de profundas diferenças entre os dois
universos. (SWEET, 2003, p. 7) A seu ver, se por um lado, os africanos praticavam o
catolicismo de modo superficial, por outro, as religiões africanas teriam permanecido
intocadas e independentes em seu sistema de pensamento. Nesse sentido, para ele,
o calundu deve ser encarado como uma religi ão tipicamente centro-africana recriada
no Brasil. O peso dado pelo autor às recriações e transplantes intocados das religiões
africanas para o Novo Mundo o impediram de perceber uma interessante dinâmica
dialógica.
Em sua leitura do calundu de Luzia Pinta, ao adotar uma perspectiva diversa
de Sweet, Alexandre Marcussi (2006, p.117) afirma que a mesma possuía uma
espécie de dupla interpretabilidade que lhe conferia uma dupla legitimidade. Ao invés
de escolher entre duas cosmologias, classificando-as como verdadeira e profunda ou
falsa e superficial, Luzia elaborou um repertório simbólico acionado de acordo com as
circunstâncias. Segundo o autor, ela
compunha um itinerário de produç ão simbólica que lhe permitia adentrar o
universo cultural do catolicismo (mesmo que no espaço marginalizado da
religiosidade popular), único legitimado pelos poderes institucionais na
sociedade colonial, ao mesmo tempo em que resgatava e atualizava aspectos
de sua cosmovisão centro-africana e interpretava o catolicismo a partir deles.
Tratava-se, portanto, de uma inclusão simbolicamente negociada. (MARCUSSI,
2006, p. 117)

Nesse sentido, o autor vê no calundu de Luzia Pinta uma estratégia de


mediação simbólica por meio de uma interpretação própria das duas tradições em
diálogo. Nesse processo ela teria criado “um texto cultural particular, nem bem
português, e nem exatamente angolano, mas um texto próprio da zona de mediação
intercultural na qual viveu.” (MARCUSSI, 2006, p. 122)
Essas proposições de Alexandre Marcussi são bastante pertinentes para
pensarmos a inserção de Luzia Pinta no mundo atlântico, entendido como espaço de
mediação intercultural. Sua experi ência na diáspora africana certamente potencializou
sua habilidade em jogar com um repertório simbólico disponível ao seu alcance desde
sua infância. A riqueza desse aprendizado certamente evitou que Luzia se tornasse
presa fácil diante da retórica inquisitorial e de seu arsenal demonológico.
Por meio de seu texto próprio, espécie de enigma movente, Luzia apresenta-
se ao Tribunal do Santo Ofício, perturbando seus inquisidores em Lisboa. Tal situaç ão
nos remete à noção de hibridismo, conforme apresentado pelo crítico pós-colonial
Homi Bhabha (1998). Para o autor, o híbrido não é o resultado da mistura entre dois
elementos que preexistiram de modo puro, mas sim um terceiro espaço, que nomeia
intersticial, construído nos atos de deslocamento entre eles. Tanto colônia quanto
metrópole só existem em relação. Nesse sentido, as colônias, forçadas a espelhar-se
em suas metrópoles, produzem imitações distorcidas, gerando diferenças
perturbadoras que circulam no interior dos sistemas coloniais, desestabilizando-os por
meio da inserção de um “outro” na imagem de um “mesmo”. (BHABHA, 1998, p. 129-
138) Por meio de uma apropriação e adaptação, bastante livre, das proposições desse
autor, é possível perceber no discurso de Luzia Pinta uma mímica da religião do
colonizador, representação construída na relação deslizante que assume a condição
simultânea de semelhança e ameaça. É interessante observar que, em seu
depoimento ao Santo Ofício, antes da sessão de tortura, Luzia argumentou que suas
práticas
provêm de Deus e n ão do Diabo, por que nas ocasiões em que se fazem as
ditas curas, sempre se pedem aos enfermos duas oitavas de ouro, as quais se
mandam dizer missas repartidas, a metade para Santo Antônio e a metade
para São Gonçalo e por intervenção destes santos é que se fazem as ditas
curas.” (ANTT, 1744, processo 252)

Em sua sessão de tortura, ápice de um longo processo marcado por outras


violências, Luzia grita por Santo Antônio. (ANTT, 1744, processo 252) Seu grito
perturbador representa a condição híbrida de seu discurso. Guardadas as devidas
proporções, a mesma estratégia discursiva havia sido utilizada algumas décadas antes
por outra centro-africana. Beatriz Kimpa Vita apresentou-se como a própria
encarnação desse santo, gerando um movimento político de resist ência no Reino do
Congo, denominado antonianismo. De alguma forma, a “Santo Antônio Congolesa”
devolvia ao colonizador uma imagem distorcida de si na qual se inscrevia como
diferença perturbadora de um mesmo. Beatriz afrontava explicitamente o
catolicismo pela recusa dos sacramentos católicos, criticando o clero oficial por
monopolizar a revelação e o segredo das riquezas em proveito exclusivo dos brancos e
em prejuízo dos negros. (SOUZA & VAINFAS, 1998, p. 105-108)
De um modo não explícito, Luzia Pinta fazia a mesma crítica ao gritar pelo
santo. Como vimos anteriormente, os movimentos de renovação religiosa na África
Central passavam pela incorporação e acréscimo de crenças, processo entendido como
estratégia eficaz no enfrentamento da adversidade e no alcance da boa fortuna.
(PARÉS, 2007, p. 111). Pela ótica centro-africana, a devoção de Luzia ao Deus cristão
e aos santos católicos era um meio legítimo que, ao mesmo tempo em que
subordinava o catolicismo àquelas tradições africanas, passava a considerá-lo como
novo e principal elemento de fundamentação de seus rituais, modificando e re-
significando suas antigas práticas religiosas sem contudo excluí-las. Nesse sentido,
mais uma vez, é importante destacar que o discurso de Luzia não pode assim ser
tomado como mero simulacro, disfarce ou estratégia. A seu ver, era perfeitamente
possível associar e inserir o Deus crist ão em seus calundus de matriz centro-africana,
sobretudo a partir daquelas experiências que culminaram em sua iniciação ritual.
Enquanto seus inquisidores tentavam a todo custo descobrir sinais de pacto
demoníaco, Luzia, por outro lado, tentava dar provas de sua fidelidade e obedi ência
aos preceitos da Igreja. Em sua trajetória, aliás, n ão faltavam elementos para isso.
Quando criança, em Luanda, havia sido batizada na Igreja de Nossa Senhora da
Conceição. Em Sabará, onde na juventude recebeu o sacramento do Crisma, Luzia
frequentava missas. Diante do exame de fé proposto pelos inquisidores, soube rezar
as principais orações do Catecismo e os mandamentos da Lei de Deus e da Igreja. Em
seu depoimento, afirmou, ent ão, que os remédios que preparava eram oferecidos
aos doentes em nome da Virgem Maria e que suas adivinhaç ões vinham de Deus
Nosso Senhor. (ANTT, 1744, processo 252)
Após a sessão de tortura, Luzia permaneceu por cerca de quase um ano no
cárcere sendo então submetida a um Auto de fé, em 21 de junho de 1744 na Igreja
de São Domingos de Lisboa, diante de D. Jo ão V, ent ão rei de Portugal. Como de
costume, o monarca estava acompanhado por representantes de sua família, por
membros da nobreza e do alto clero portugueses. Nesse auto, dos quarenta e um réus
sentenciados, oito foram condenados à fogueira, dentre eles uma feiticeira. (MOTT,
1994) Luzia conseguiu escapar da morte, mas n ão foi considerada inocente. Na
ausência de provas explícitas e contundentes, seu pacto foi presumido. Sentenciada
pela “abjuração de leve suspeita de ter abandonado a fé católica”, ela foi para
sempre proibida de retornar a Sabará, sendo ainda condenada a quatro anos de
degredo no Algarve. (ANTT, 1744, processo 252)
Se olharmos para as páginas da história tradicional do tráfico negreiro e da
escravidão atlântica, Luzia Pinta praticamente desaparece entre milh ões de outros
africanos, arrancados de seu continente e transportados para o Brasil no período
colonial. Nessas leituras, marcadas por abordagens econômicas, essa escrava de
Angola foi sem dúvida uma entre os dois mil e seiscentos cativos que, em média,
entraram por ano entre 1699 e 1717 na regi ão mineradora. (RUSSEL-WOOD, 2005, p.
166) Sob essa perspectiva, sua experiência na diáspora permaneceu à margem de
algumas narrativas, preocupadas muito mais com o impacto das estruturas na
montagem e funcionamento do mercado de cativos.
A diversificação dos objetos, metodologias, referências teórico-metodológicas e
fontes de pesquisa trouxe, contudo, uma mudança no foco dessas interpretações
historiográficas. Embora as análises econômicas não tenham deixado de ser
produzidas, novos olhares sobre a história atlântica abriram perspectivas diferenciadas
para outros tipos de leitura do continente africano e da dispers ão de sua população
mediante a intervenção colonialista naqueles territórios. Nesse sentido, veio à tona
um crescente conjunto de trabalhos preocupados não mais exclusivamente com a
circulação de mercadorias e escravos pelo Atlântico, mas também com o trânsito de
crenças e tradições religiosas, suas possíveis sobrevivências e/ou reinterpretações no
Novo Mundo. (SOUZA, M. 2002, SLENES, 2006, PARÉS, 2007)
Dessa forma, historiadores, antropólogos e outros especialistas passaram
também a se interessar pela travessia das concepç ões de mundo dos macro grupos
africanos. Nesses estudos, a ênfase passou a recair sobre a religi ão, aqui entendida
como os modos pelos quais os africanos e afrodescendentes lidavam e imaginavam
dever lidar tanto com o mundo visível quanto com aquilo que consideravam o mundo
invisível, bem como com as relações possíveis entre ambos. Entre esses principais
modos, foram privilegiados os diferentes rituais concebidos como práticas
estruturadas no sentido de significar e tentar viabilizar a interação entre tais esferas.
Essa relação, diálogo entre universos que se tocam, era considerada um meio possível
de se garantir a sustentabilidade da vida neste mundo a partir do contato com as
chamadas entidades espirituais. (PARÉS, 2007, p. 104)
Nesse sentido, Luzia Pinta parece ter utilizado de sua mediunidade, cuja
eficácia era legitimada pela comunidade a sua volta, para dar sentido à sua vivência
na diáspora africana. Por meio de interlocuç ões e mediações entre suas experiências
religiosas centro-africanas e o católicas, ela n ão só reatualizou suas crenças africanas
em um novo contexto geográfico, social e cultural, como também contribuiu para a
formação sincrética de uma religiosidade afro-brasileira nascente. Como uma espécie
de médium, Luzia favoreceu não só os seus assistidos em seus modos de perceber as
relações possíveis entre o mundo dos vivos e os mortos. Mas do que isso, ela ajudou
a tecer uma série de mediações entre África e Brasil por meio de seus rituais,
carregados de cantos, batuques, danças e transes. Na história da resistência à
escravidão e ao tráfico, seus recursos eram seus encantamentos e segredos, que ela
transportou como armas em suas travessias pelo Atlântico.
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LUZIA PINTA E SEUS TRANSES:

Interlocuções e mediações entre experiências religiosas centro-africanas e


católicas no século XVIII

Robert Daibert Jr.*

No século XVIII, em Sabará, interior de Minas Gerais, uma ex-escrava, nascida


em Angola e traficada para o Brasil passou a chamar a atenção da população e das
autoridades locais. Seu nome era Luzia Pinta. Sua especialidade era prestar
atendimento espiritual para os habitantes dessa região. Como uma espécie de
médium, em seus rituais de matriz africana ela entrava em transe, oferecendo
serviços de cura e de adivinhação. Como veremos nessa comunicação, suas práticas
mágico-religiosas despertaram a desconfiança da Igreja Católica, em um processo que
a levou aos cárceres da inquisição portuguesa.

Nesse sentido, esse texto tem como objetivo analisar os conflitos entre a
africana Luzia Pinta e seus inquisidores portugueses em torno da interpretação de
suas práticas mediúnicas. O texto investiga o significado das associações e relações
estabelecidas por Luzia entre elementos de sua herança cultural e religiosa centro-
africana e o Deus Cristão da tradição católica. Nesse sentido, serão observadas as
estratégias de mediação simbólica operadas pela acusada no intuito de demonstrar
que seus rituais religiosos e transes eram inspirados pelo Deus Cristão e não pelo
diabo.

Em seus rituais, Luzia era acompanhada por três auxiliares, duas “negras
angola” e um escravo de origem desconhecida. É curioso notar que seus ajudantes
eram todos escravos de sua propriedade, o que revela a capacidade de certo acúmulo
de recursos financeiros, gerados talvez da prestação de seus serviços religiosos, como
era comum nessas situações. No caso de Luzia, não há indícios de enriquecimento ou
formação de grande fortuna. No entanto, ao que parece, parte de seu sustento
financeiro após a conquista da alforria vinha dos serviços religiosos que ela passou a
oferecer em Sabará.

Durante os rituais, celebrados em sua própria casa ou na residência de seus


assistidos, ela vestia-se com roupas especiais, ora descritas como “à moda de anjo”
ora como “à moda turquesa”. Muitas vezes, seus cabelos eram amarrados em formato
de meia lua e sua cabeça era revestida por uma fita larga. No início da cerimônia, em

*
Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Programa de Pós-Graduação
em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.
uma espécie de altar cujo dossel era composto por tecidos, Luzia permanecia
assentada em uma cadeira, segurando nas mãos um espadim, uma machadinha ou
outro objeto de ferro. Ao agitar esses instrumentos, ela marcava com os pés e os
braços o compasso da música ao som dos tambores e atabaques tocados por seus
escravos. (ANTT, 1744, processo 252)

Ao som dos instrumentos e do canto de suas escravas, Luzia começava a pular,


tremer e gritar palavras e frases desconhecidas, entrando em uma espécie de transe.
A partir daí, suas auxiliares soltavam uma cinta antes amarrada em sua barriga e
Luzia colocava alguns penachos coloridos na orelha dizendo receber “ventos de
adivinhar”. Nesse momento, os participantes eram convidados a se ajoelhar e
passavam a ser cheirados e assoprados, como forma de diagnóstico das doenças e
queixas. Aqueles identificados como pessoas enfeitiçadas recebiam pós ou ervas ora
sobre suas cabeças ora em suas bocas, sempre ao som dos gritos da oficiante que
muitas vezes precisava ser acalmada pelos seus auxiliares. (ANTT, 1744, processo
252)

Em algumas ocasiões, Luzia também oferecia vinho ou outras bebidas


alcóolicas aos seus assistidos. Na sequência, ela ordenava que todos se deitassem de
bruços no chão e imediatamente começava a passar por sobre seus corpos
gesticulando de modo ininterrupto. Havia casos em que muitos assistidos, após
ingerirem as substâncias oferecidas no ritual chegavam a vomitar, ato que era
interpretado como eliminação dos males espirituais. Em geral, dentro de certas
variantes, procedia-se assim ao ritual de adivinhação e cura, realizado geralmente à
noite e que chegava a durar em torno de duas horas. Seus atendimentos não eram
oferecidos exclusivamente aos africanos ou afrodescendentes, nem tampouco eram
voltados apenas para cativos. Luzia era procurada tanto por escravos quanto por
alforriados e também por homens e mulheres brancos, inclusive portugueses. (ANTT,
1744, processo 252)

Os atendimentos espirituais de Luzia Pinta tiveram início após uma experiência


sobrenatural, espécie de êxtase que ela classificou como doença em seu depoimento à
inquisição. Segundo o registro do escrivão do Santo Ofício, certa vez,

na vila de Sabará ouvindo missa em dia santo, lhe sobreveio


repentinamente a dita doença, de que ficou muito mal, por não
saberem os remédios que se haviam de aplicar, até que sendo
chamado um preto por nome Miguel, escravo de Manuel de
Miranda, morador na dita vila, lhe disse este que a dita queixa
era a do calandus e que só a havia de curar e ter remédio
mandando tocar alguns instrumentos e fazendo (algumas
coisas) mais, por ser este o meio e modo porque se costuma
curar a dita doença, o que com efeito ela fez e experimentou
melhora. (ANTT, 1744, processo 252)

De acordo com Alexandre Marcussi, (2006, p. 110) “é provável que Miguel


fosse, ele também, um praticante de magia, ou que ao menos tivesse familiaridade
com os procedimentos rituais centro-africanos”. Havia casos em que os próprios
sacerdotes e religiosos católicos, contrariando a orientação da própria Igreja e
sentindo-se incapazes de prestar atendimento espiritual aos “possessos e doentes de
feitiço”, recomendavam a procura por “negros calundureiros”. Esses africanos e
afrodescendentes, cuja eficácia era reconhecida pela comunidade, tinham a fama de
especialistas em tratar de pessoas que se diziam possuídas pelas almas de seus
parentes defuntos. (SOUZA, 1986, p. 262-263) Esse parece ter sido o caso de Miguel.

Como um especialista, esse escravo deve ter sido responsável por uma etapa
do processo de iniciação ritual que transformou Luzia Pinta em uma líder espiritual ou
sacerdotisa, possuidora de poderes e segredos que a habilitaram posteriormente a
oferecer serviços religiosos. Nas sociedades banto da África Centro-Ocidental, havia
rituais específicos de formação de sacerdotes que se tornavam mediadores entre o
mundo visível, habitado pelos vivos e o mundo invisível, habitado pelos antepassados
e pelos espíritos ancestrais. A formação do sacerdote passava assim pela iniciação
ritual que envolvia, necessariamente, o pagamento de uma taxa e a reclusão ritual por
meio da qual o iniciado entrava em contato com o mundo dos mortos, era possuído
por eles e retornava posteriormente ao mundo visível, capacitado a prestar
atendimento espiritual, tornando-se oficiante do culto do espírito ancestral.
(MARCUSSI, 2006, p.108-109)

Em sua interpretação, Marcussi vale-se das proposições de Macgaffey (1986,


p. 107-113 ) ao afirmar que

um espírito ancestral (nkulu, em kikongo) podia decidir possuir


e afligir um descendente como forma de “propor” uma
comunhão e um adensamento de laços recíprocos entre o
ancestral e seu descendente (laços que podiam inclusive estar
sendo negligenciados pelo último). Procurando tratamento ritual
adequado, o doente livrava-se da enfermidade e passava a ter
uma ligação especial com o espírito que antes o possuíra. Com
isso, tornando-se um elo de mediação entre mundo visível e
invisível, ele passava a poder mobilizar o poder do espírito para
diversos fins rituais, tornando-se um oficiante dos cultos desse
espírito. (MACGAFFEY, 1986, p. 107-113 apud MARCUSSI ,
2006, p. 109)
Mas onde estaria o ancestral na história de Luzia? Em depoimento ao Santo
Ofício, ela revelou ainda aos inquisidores outro aspecto de sua experiência religiosa
passada na infância. Disse-lhes ter herdado aqueles fenômenos, por uma espécie de
contágio, de uma tia sua chamada Maria de quem não se lembrava muito. (ANTT,
1744, processo 252) De acordo com Alexandre Marcussi, (2006, p. 110) a aflição
espiritual estava tradicionalmente ligada a uma relação entre uma linhagem e seus
ancestrais. Assim, ao ser atendida por Miguel, de origem possivelmente centro-
africana, Luzia de alguma forma retomava e fortalecia sua ligação com seus ancestrais
e com sua terra natal. Assim, ao se tornar uma oficiante dos ritos do calundu, cumpria
seu destino e, de alguma forma, “honrava e respeitava a memória de sua tia Maria,
possivelmente angustiada pelo débito em relação aos espíritos ancestrais com os quais
Luzia pôde se reconciliar”. (MARCUSSI, 2009, p.16)

Para o autor, é preciso entender o desfalecimento de Luzia na missa em Sabará


como o complemento de uma outra experiência extática vivenciada inicialmente em
sua infância. Os dois episódios devem, a seu ver, ser tomados como um processo de
iniciação ritual. Para entender sua argumentação, é preciso conhecer essa primeira
ocorrência. Logo no início, em seu primeiro interrogatório, Luzia revelou aos
inquisidores aquela que parece ter sido sua primeira experiência religiosa considerada
marcante. Tratava-se de uma visão, decorrente de uma espécie de êxtase. Segundo
ela,

Aos 12 anos, pouco mais ou menos, assistindo na cidade de


Angola, em casa de seu senhor Manoel Lopes de Barros, saindo
um dia pela manhã ao quintal das casas em que morava, caiu
repentinamente como morta no meio dele, e ficando totalmente
imóvel e privada de seus sentidos, foi levada sem saber como,
até a margem de um grande rio aonde encontrando uma velha,
lhe perguntou esta para que parte ia, e respondendo-lhe ela
declarante que não sabia, lhe continuou a dizer a dita velha que
fosse muito embora porque logo havia de voltar. E continuando
com efeito o seu caminho, encontrou mais acima um homem
ainda moço que lhe fez as mesmas perguntas e ela lhe deu as
mesmas respostas e andando mais encontrou outra velha que
lhe perguntou para que parte queria ir, e respondendo-lhe que
queria passar para outra banda do rio, lhe disse então a mesma
velha que pegasse na ponta de uma linha bem fina que tinha na
mão e conseguiria o que desejava. E fazendo-o ela assim,
sucedeu secar repentinamente o dito rio, de sorte que pode
passá-lo enxuto e sem embaraço algum. E dando logo a uma
encruzilhada, encontrou com outras duas velhas e com dois
caminhos, um muito sujo e outro muito limpo, e intentando ela
ir por este, lhe disseram as ditas velhas que havia de ir pelo
sujo se quisesse ou não. E indo com efeito por ele, chegou a
uma casa grande a onde um homem ancião com barbas
compridas, assentado em uma cadeira, e de redor dele, vários
meninos com candeias acesas. E querendo ela deitar-se, chegou
ao pé do dito homem, a quem tomou a bênção, e logo este lhe
disse que se fosse embora, sem passar mais cousa alguma. E
vindo já na escada daquelas casas, retirando-se, sucedeu tornar
a si por virtude de remédios e fumaças que o dito seu senhor
lhe mandou fazer pela achar como morta no dito quintal. E
dando depois conta de tudo a um clérigo, o Padre Manuel João,
assistente na mesma cidade de Angola, lhe disse este que
aquele velho ancião era Deus Nosso Senhor, o que ficou ela
assim entendendo pela referida razão, e não passou mais cousa
alguma nem teve outra visão.” (ANTT, 1744, processo 252)

Segundo Alexandre Marcussi, quando menina em Luanda, Luzia

adquiriu uma conexão com os espíritos, e mais especificamente


com o espírito do velho que a acolheu na casa. A iniciação ritual
propriamente dita, quando ela seria introduzida nos serviços
rituais e aprenderia a fazer uso dessa sua conexão, só se
completaria em Sabará, aos cuidados do preto Miguel, mas suas
raízes estavam neste episódio da infância, do qual Luzia se
lembra não sem razão quando questionada pelos inquisidores.”
(MARCUSSI, 2006, p. 116)

Luzia, ao que tudo indica, passou pelo padrão de uma iniciação religiosa
centro-africana, recriada e adaptada em Minas Gerais do século XVIII. Em um primeiro
momento, na infância, ela vivenciou a reclusão ritual que a colocou em contato com o
mundo dos mortos (brancos) do outro lado do rio e com seus espíritos ancestrais. Ao
cruzar o Atlântico, faltava-lhe ainda desenvolver essa potencialidade latente,
completada pelo atendimento que lhe foi prestado pelo escravo Miguel em sua aflição
espiritual. (MARCUSSI, 2006, p. 110-112)

Já os gastos financeiros, embora não sejam evidentes, podem ser inferidos por
meio de dois indícios apontados por Alexandre Marcussi (2009, p.15) no trecho
transcrito abaixo:

Miguel muito provavelmente recebeu pagamento pelos serviços


de cura executados, como era habitual entre os curandeiros
coloniais, que muitas vezes extraíam seu sustento ou
acumulavam dinheiro para alforrias empregando seus poderes
sobrenaturais a serviço de clientes pagantes (...) Além disso,
Miguel afirmou que Luzia Pinta devia mandar fazer alguns
procedimentos rituais, fórmula que muito possivelmente indica
que Luzia pagou pelos materiais usados do ritual, como
comidas, bebidas ou as oferendas necessárias para restabelecer
relações adequadas com os espíritos.
É interessante observar que Miguel foi chamado pela comunidade para socorrer
Luzia, mas nada indica que seu atendimento tenha se dado exclusivamente dentro da
igreja ou que o tratamento oferecido por ele tenha sido rápido. Em seu depoimento à
inquisição, Luzia diz apenas que após diagnosticá-la, (a dita queixa era a do calandus)
o escravo lhe oferece o seguinte diagnóstico “só a havia de curar e ter remédio
mandando tocar alguns instrumentos e fazendo (algumas coisas) mais, por ser este o
meio e modo porque se costuma curar a dita doença, o que com efeito ela fez e
experimentou melhora.” (ANTT, 1744, processo 252)

O toque dos instrumentos e “algumas coisas mais” que ela propositalmente


deve ter evitado detalhar apontam indícios de uma cerimônia específica talvez
conduzida pelo próprio Miguel como parte de sua iniciação. Em todo caso, completava-
se assim o ritual conforme as bases das tradições centro-africanas, fortalecendo de
alguma forma sua ligação com a terra mãe, para onde provavelmente ela sonhava
retornar. Desde então, Luzia parece ter assumido uma responsabilidade frente aos
seus antepassados e também diante da comunidade da qual fazia parte em Sabará.
Suas escolhas, dentro do quadro de possibilidades com as quais ela jogava em seu
trânsito pelo mundo atlântico, revelam o recurso à parentela como um elemento
central na (re)construção de identidades marcadas pela responsabilidade e respeito
pela memória da linhagem. (MILLER, 2004, p. 118-120) Nesse sentido, o contato com
Miguel parece ter sido bastante definidor em sua trajetória.

É importante perceber que Luzia Pinta atestava sempre a presença de um


sentido cristão em suas práticas e experiências religiosas. Em outras palavras, na
construção de seu relato, ela sempre fundamenta seus rituais na inspiração divina.
Diante da inquisição, ela afirmava estar ligada ao mesmo Deus dos portugueses e não
ao Diabo fortemente presente no imaginário dos inquisidores. Para perceber a
construção dessa associação do Deus cristão às tradições religiosas centro-africanas, é
preciso voltar àquela primeira experiência espiritual de Luiza, aos doze anos de idade.

Segundo sugere Luiz Mott (1994, p. 76-77), essa espécie de visão foi
interpretada pela menina como uma premonição de sua travessia do oceano rumo ao
Brasil. O autor, infelizmente, não segue adiante nem detalha sua análise. Mas,
seguindo sua sugestão, pode-se conjecturar que a visão de Luzia trazia várias nuances
em relação a uma visão espiritual de sua experiência no tráfico atlântico, de seu
enfrentamento e de sua superação. A análise dessa que parece ter sido a primeira
experiência espiritual da menina de Angola pode nos ajudar a desvendar a bagagem
que ela silenciosamente transportou para o Brasil.
Para os povos banto, habitantes da costa da África Central na região do
Congo e Angola, a linha divisória que separava o mundo dos vivos do mundo dos
mortos era representada por um rio ou pelo mar. (SLENES, 1992, p.53-54) Em sua
cosmologia, concebiam o universo dividido em duas metades: o mundo dos vivos e o
mundo dos mortos. Essas esferas estabeleciam entre si relações de
complementaridade ou mesmo de oposição. Enquanto o mundo visível dos vivos era
habitado pelos negros, o mundo invisível era dominado pelos brancos, que
simbolizavam a morte. Ainda nessa perspectiva, era corrente a crença de que - após
sofrerem a travessia do Oceano rumo ao mundo branco dos mortos que os
escravizavam em uma espécie de encantamento sobrenatural - esses cativos
voltariam fisicamente ou espiritualmente à sua terra natal, junto de seus familiares
vivos e seus descendentes. A volta física estaria, no entanto, condicionada à
capacidade de se guardar uma pureza espiritual, capaz de reverter a prisão fruto de
um encantamento. (MACGAFFEY, 1986, p. 107-112; 1972, pp. 49-74 )

Mas, diante dessa explicação, fica ainda pendente a compreensão da presença


de um sentido católico atribuído àquela experiência religiosa. De acordo com a
tradição cristã, enquanto o caminho limpo pode ser associado ao caminho largo, da
soberba, que leva à perdição, o sujo é indicado como aquele da virtude, da provação e
do sofrimento, visto como a porta estreita da salvação. Essa, segundo Marcussi, pode
ter sido outra chave de leitura possível, ao alcance de Luzia Pinta, além daquela
centro-africana, apontada anteriormente. Para o autor, a temática da escolha é um
topos reiterado nas narrativas judaico-cristãs. (MARCUSSI, 2006, p. 113-114)

Entendendo que aquela visão pode ter sido lida como premonição pela menina
escrava, é possível interpretá-la como uma etapa de uma iniciação ritual que a
habilitaria espiritualmente a enfrentar o cativeiro sob uma condição diaspórica. Nesse
sentido, Luzia pode ter partido de Luanda carregando silenciosamente um aprendizado
religioso significativo. Sua travessia, embora perigosa, seria certa e segura se
acompanhada pelos guias espirituais. O local de desembarque do outro lado do
Atlântico era desconhecido e guardava um destino inevitável. O contato com o mundo
dos brancos - espiritualmente preparado em sua visão e vivenciado na diáspora -
poderia ser tomado como parte de um processo de iniciação ritual que a habilitaria
como uma futura especialista religiosa, responsável por auxiliar e socorrer sua
comunidade em suas dificuldades no Novo Mundo. Enfim, seu retorno esfumaçava-se
em meio a uma promessa que, embora interrompida, permanecia em seu horizonte.
Em todo caso, com base nessas premissas, o seu caminho de alguma forma
continuava. E para que fosse bem sucedido, precisava ser conduzido pela incorporação
do Deus do mundo dos brancos.

James Sweet (2003, p. 143-151) considera o calundu colonial uma espécie de


aglutinação de variados ritos de cura praticados na África Central e que tinham em
comum o fenômeno da possessão por espíritos. A palavra calundu, segundo o autor,
seria uma variante do vocábulo quilundu, termo usado para designar qualquer tipo de
espírito responsável por causar uma doença ou aflição passível de ser curada por meio
da intervenção de um sacerdote. Nesse sentido, segundo o autor, a abrangência desse
significado amplamente difundido entre a comunidade escrava teria facilitado, no
território colonial, a designação do calundu como uma religião centro-africana
transplantada para o Brasil e responsável pelo tratamento das aflições.

O autor defende, assim, a permanência de profundas diferenças entre os dois


universos. (SWEET, 2003, p. 7) A seu ver, se por um lado, os africanos praticavam o
catolicismo de modo superficial, por outro, as religiões africanas teriam permanecido
intocadas e independentes em seu sistema de pensamento. Nesse sentido, para ele, o
calundu deve ser encarado como uma religião tipicamente centro-africana recriada no
Brasil. O peso dado pelo autor às recriações e transplantes intocados das religiões
africanas para o Novo Mundo o impediram de perceber uma interessante dinâmica
dialógica.

Em sua leitura do calundu de Luzia Pinta, ao adotar uma perspectiva diversa de


Sweet, Alexandre Marcussi (2006, p.117) afirma que a mesma possuía uma espécie
de dupla interpretabilidade que lhe conferia uma dupla legitimidade. Ao invés de
escolher entre duas cosmologias, classificando-as como verdadeira e profunda ou falsa
e superficial, Luzia elaborou um repertório simbólico acionado de acordo com as
circunstâncias. Segundo o autor, ela

compunha um itinerário de produção simbólica que lhe permitia


adentrar o universo cultural do catolicismo (mesmo que no
espaço marginalizado da religiosidade popular), único
legitimado pelos poderes institucionais na sociedade colonial, ao
mesmo tempo em que resgatava e atualizava aspectos de sua
cosmovisão centro-africana e interpretava o catolicismo a partir
deles. Tratava-se, portanto, de uma inclusão simbolicamente
negociada. (MARCUSSI, 2006, p. 117)

Nesse sentido, o autor vê no calundu de Luzia Pinta uma estratégia de


mediação simbólica por meio de uma interpretação própria das duas tradições em
diálogo. Nesse processo ela teria criado “um texto cultural particular, nem bem
português, e nem exatamente angolano, mas um texto próprio da zona de mediação
intercultural na qual viveu.” (MARCUSSI, 2006, p. 122)

Essas proposições de Alexandre Marcussi são bastante pertinentes para


pensarmos a inserção de Luzia Pinta no mundo atlântico, entendido como espaço de
mediação intercultural. Sua experiência na diáspora africana certamente potencializou
sua habilidade em jogar com um repertório simbólico disponível ao seu alcance desde
sua infância. A riqueza desse aprendizado certamente evitou que Luzia se tornasse
presa fácil diante da retórica inquisitorial e de seu arsenal demonológico.

Por meio de seu texto próprio, espécie de enigma movente, Luzia apresenta-se
ao Tribunal do Santo Ofício, perturbando seus inquisidores em Lisboa. Tal situação nos
remete à noção de hibridismo, conforme apresentado pelo crítico pós-colonial Homi
Bhabha (1998). Para o autor, o híbrido não é o resultado da mistura entre dois
elementos que preexistiram de modo puro, mas sim um terceiro espaço, que nomeia
intersticial, construído nos atos de deslocamento entre eles. Tanto colônia quanto
metrópole só existem em relação. Nesse sentido, as colônias, forçadas a espelhar-se
em suas metrópoles, produzem imitações distorcidas, gerando diferenças
perturbadoras que circulam no interior dos sistemas coloniais, desestabilizando-os por
meio da inserção de um “outro” na imagem de um “mesmo”. (BHABHA, 1998, p. 129-
138) Por meio de uma apropriação e adaptação, bastante livre, das proposições desse
autor, é possível perceber no discurso de Luzia Pinta uma mímica da religião do
colonizador, representação construída na relação deslizante que assume a condição
simultânea de semelhança e ameaça. É interessante observar que, em seu
depoimento ao Santo Ofício, antes da sessão de tortura, Luzia argumentou que suas
práticas

provêm de Deus e não do Diabo, por que nas ocasiões em que


se fazem as ditas curas, sempre se pedem aos enfermos duas
oitavas de ouro, as quais se mandam dizer missas repartidas, a
metade para Santo Antônio e a metade para São Gonçalo e por
intervenção destes santos é que se fazem as ditas curas.”
(ANTT, 1744, processo 252)

Em sua sessão de tortura, ápice de um longo processo marcado por outras


violências, Luzia grita por Santo Antônio. (ANTT, 1744, processo 252) Seu grito
perturbador representa a condição híbrida de seu discurso. Guardadas as devidas
proporções, a mesma estratégia discursiva havia sido utilizada algumas décadas antes
por outra centro-africana. Beatriz Kimpa Vita apresentou-se como a própria
encarnação desse santo, gerando um movimento político de resistência no Reino do
Congo, denominado antonianismo. De alguma forma, a “Santo Antônio Congolesa”
devolvia ao colonizador uma imagem distorcida de si na qual se inscrevia como
diferença perturbadora de um mesmo. Beatriz afrontava explicitamente o catolicismo
pela recusa dos sacramentos católicos, criticando o clero oficial por monopolizar a
revelação e o segredo das riquezas em proveito exclusivo dos brancos e em prejuízo
dos negros. (SOUZA & VAINFAS, 1998, p. 105-108)

De um modo não explícito, Luzia Pinta fazia a mesma crítica ao gritar pelo
santo. Como vimos anteriormente, os movimentos de renovação religiosa na África
Central passavam pela incorporação e acréscimo de crenças, processo entendido como
estratégia eficaz no enfrentamento da adversidade e no alcance da boa fortuna.
(PARÉS, 2007, p. 111). Pela ótica centro-africana, a devoção de Luzia ao Deus cristão
e aos santos católicos era um meio legítimo que, ao mesmo tempo em que
subordinava o catolicismo àquelas tradições africanas, passava a considerá-lo como
novo e principal elemento de fundamentação de seus rituais, modificando e re-
significando suas antigas práticas religiosas sem contudo excluí-las. Nesse sentido,
mais uma vez, é importante destacar que o discurso de Luzia não pode assim ser
tomado como mero simulacro, disfarce ou estratégia. A seu ver, era perfeitamente
possível associar e inserir o Deus cristão em seus calundus de matriz centro-africana,
sobretudo a partir daquelas experiências que culminaram em sua iniciação ritual.

Enquanto seus inquisidores tentavam a todo custo descobrir sinais de pacto


demoníaco, Luzia, por outro lado, tentava dar provas de sua fidelidade e obediência
aos preceitos da Igreja. Em sua trajetória, aliás, não faltavam elementos para isso.
Quando criança, em Luanda, havia sido batizada na Igreja de Nossa Senhora da
Conceição. Em Sabará, onde na juventude recebeu o sacramento do Crisma, Luzia
frequentava missas. Diante do exame de fé proposto pelos inquisidores, soube rezar
as principais orações do Catecismo e os mandamentos da Lei de Deus e da Igreja. Em
seu depoimento, afirmou, então, que os remédios que preparava eram oferecidos
aos doentes em nome da Virgem Maria e que suas adivinhações vinham de Deus
Nosso Senhor. (ANTT, 1744, processo 252)

Após a sessão de tortura, Luzia permaneceu por cerca de quase um ano no


cárcere sendo então submetida a um Auto de fé, em 21 de junho de 1744 na Igreja de
São Domingos de Lisboa, diante de D. João V, então rei de Portugal. Como de
costume, o monarca estava acompanhado por representantes de sua família, por
membros da nobreza e do alto clero portugueses. Nesse auto, dos quarenta e um réus
sentenciados, oito foram condenados à fogueira, dentre eles uma feiticeira. (MOTT,
1994) Luzia conseguiu escapar da morte, mas não foi considerada inocente. Na
ausência de provas explícitas e contundentes, seu pacto foi presumido. Sentenciada
pela “abjuração de leve suspeita de ter abandonado a fé católica”, ela foi para sempre
proibida de retornar a Sabará, sendo ainda condenada a quatro anos de degredo no
Algarve. (ANTT, 1744, processo 252)

Se olharmos para as páginas da história tradicional do tráfico negreiro e da


escravidão atlântica, Luzia Pinta praticamente desaparece entre milhões de outros
africanos, arrancados de seu continente e transportados para o Brasil no período
colonial. Nessas leituras, marcadas por abordagens econômicas, essa escrava de
Angola foi sem dúvida uma entre os dois mil e seiscentos cativos que, em média,
entraram por ano entre 1699 e 1717 na região mineradora. (RUSSEL-WOOD, 2005, p.
166) Sob essa perspectiva, sua experiência na diáspora permaneceu à margem de
algumas narrativas, preocupadas muito mais com o impacto das estruturas na
montagem e funcionamento do mercado de cativos.

A diversificação dos objetos, metodologias, referências teórico-metodológicas e


fontes de pesquisa trouxe, contudo, uma mudança no foco dessas interpretações
historiográficas. Embora as análises econômicas não tenham deixado de ser
produzidas, novos olhares sobre a história atlântica abriram perspectivas diferenciadas
para outros tipos de leitura do continente africano e da dispersão de sua população
mediante a intervenção colonialista naqueles territórios. Nesse sentido, veio à tona um
crescente conjunto de trabalhos preocupados não mais exclusivamente com a
circulação de mercadorias e escravos pelo Atlântico, mas também com o trânsito de
crenças e tradições religiosas, suas possíveis sobrevivências e/ou reinterpretações no
Novo Mundo. (SOUZA, M. 2002, SLENES, 2006, PARÉS, 2007)

Dessa forma, historiadores, antropólogos e outros especialistas passaram


também a se interessar pela travessia das concepções de mundo dos macro grupos
africanos. Nesses estudos, a ênfase passou a recair sobre a religião, aqui entendida
como os modos pelos quais os africanos e afrodescendentes lidavam e imaginavam
dever lidar tanto com o mundo visível quanto com aquilo que consideravam o mundo
invisível, bem como com as relações possíveis entre ambos. Entre esses principais
modos, foram privilegiados os diferentes rituais concebidos como práticas
estruturadas no sentido de significar e tentar viabilizar a interação entre tais esferas.
Essa relação, diálogo entre universos que se tocam, era considerada um meio possível
de se garantir a sustentabilidade da vida neste mundo a partir do contato com as
chamadas entidades espirituais. (PARÉS, 2007, p. 104)
Nesse sentido, Luzia Pinta parece ter utilizado de sua mediunidade, cuja
eficácia era legitimada pela comunidade a sua volta, para dar sentido à sua vivência
na diáspora africana. Por meio de interlocuções e mediações entre suas experiências
religiosas centro-africanas e o católicas, ela não só reatualizou suas crenças africanas
em um novo contexto geográfico, social e cultural, como também contribuiu para a
formação sincrética de uma religiosidade afro-brasileira nascente. Como uma espécie
de médium, Luzia favoreceu não só os seus assistidos em seus modos de perceber as
relações possíveis entre o mundo dos vivos e os mortos. Mas do que isso, ela ajudou a
tecer uma série de mediações entre África e Brasil por meio de seus rituais,
carregados de cantos, batuques, danças e transes. Na história da resistência à
escravidão e ao tráfico, seus recursos eram seus encantamentos e segredos, que ela
transportou como armas em suas travessias pelo Atlântico.

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ESPIRITISMO: MÉDIUNS, PACIENTES E PROCESSOS DE CURA DENTRO DA
DOUTRINA ESPÍRITA.

Vanessa Elisa da Silva Correia1

O Espiritismo no Brasil entende a doença por diversos aspectos diferentes. Entende-


se aqui por Espiritismo a doutrina cristã, filosófica, científica e moral – que posteriormente
se tornaria religião no Brasil – codificada por Allan Kardec na segunda metade do século XIX
na França. O termo Espiritismo foi criado por Allan Kardec para especificar uma doutrina
que teria preceitos e ideias novas, e para que a mesma não fosse confundida com as
demais doutrinas já existentes. As demais religiões que utilizam o termo Espiritismo, como
em alguns casos a Umbanda, não é objeto deste estudo.

Há divergências nas obras publicadas originalmente na Europa e as que foram


escritas por espíritas de renome no Brasil, como Chico Xavier, quanto a conceitos e
afirmações em torno do que é ou não o Espiritismo e o que seria aceito como verdade
dentro do pensamento espírita. Essas divergências teóricas são resultado da adaptação da
doutrina quando vinda da Europa para o Brasil na segunda metade do século XIX, onde
ganhou através de disputas internas o status de religião2, obteve a adesão de católicos,
místicos, entre outros, que miscigenavam as ideias espíritas às práticas já conhecidas no
país, a devoções a santos católicos e a pratica de ritos espirituais comuns no país. Todas
essas práticas e crenças locais foram unidas a novas práticas, novas teorias, e dariam ao
Espiritismo no Brasil características diferenciadas.

Importante salientar que mesmo com as afirmações sobre plano espiritual, curas,
fluidificação, cirurgias espirituais, o Espiritismo nega qualquer tipo de misticismo ou do
sobrenatural. Allan Kardec em artigo escrito para a Revue Spirite, afirma que as
superstições nada mais são do que uma verdade que foi ampliada pela imaginação. Assim
sendo, se fosse retirada a parte fantasiosa das superstições, seria uma forma de destruir o
que há de falso nas crenças populares, pois a explicação lógica anularia o fantástico e o

1
Graduanda em História pela Universidade Federal de Alagoas, membro do Laboratório Interdisciplinar
de Estudo das Religiões - LIER.
2
Ver: ARRIBAS, Célia da Graça. Afinal, Espiritismo é religião? – A doutrina espírita da formação da diversidade
religiosa brasileira. São Paulo, Alameda, 2010.
impossível, deixando a realidade explicada à luz da ciência3. No Brasil essa lógica de Kardec
não teve tanta força inicialmente, onde o fantástico está presente em diversas crenças e se
incorporou ao Espiritismo em diversos pontos de sua instalação no país.

Quanto aos motivos que levam o homem a sofrer de males físicos ao longo da vida,
geralmente coincidem na obra original e na seguida hoje pelos religiosos adeptos do
Espiritismo as mesmas causas. A doença segundo a doutrina espírita pode ser vista como
uma expiação4 por algum mal causado em encarnações anteriores e que, por justiça divina,
o homem reencarnaria com problemas relacionados com essa falha que teria cometido,
passando assim por certas dificuldades que o fizessem entender o mal que causou. Nesta
lógica espírita, quanto maior a falha cometida pelo homem, maior a expiação que o mesmo
sofreria na mesma encarnação ou na subsequente. A doença poderia também ser causada
por males provocados pelo próprio indivíduo, por não ter os cuidados necessários com seu
corpo – que é considerado pelos espíritas como um invólucro temporário do espírito
enquanto encarnado. As obsessões5 de espíritos sobre o indivíduo igualmente - e não raro -
seriam motivo de doenças mentais e físicas. Estas seriam as causas mais prováveis, porém
não únicas, do acometimento do homem por doenças de diversos tipos.

Pode ser observado que na doutrina espírita os problemas – sejam eles de saúde ou
psicológicos – tem suas razões geralmente explicadas pela crença de que há existências
anteriores e que as ações não são isentas de reação, mesmo que em encarnações
diferentes. A partir dessa ideia, a expiação e a más tendências morais são um problema
individual a ser combatido, o que reafirma a ideia espírita da necessidade constante de
busca do melhoramento moral6 e do afastamento de vícios e comportamentos divergentes

3
KARDEC, Allan. Revue Spírite – jornal de Estudos Psicológicos. Ano II. 1859. 3ª ed.Rio de Janeiro, FEB, 2009.
p. 11-19
4
Allan Kardec afirma que “Até que os últimos vestígios de falta desapareçam, a expiação consiste nos sofrimentos
físicos e morais que lhe são consequentes, seja na vida atual, seja na vida espiritual após a morte, ou ainda em nova
existência corporal.” KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno – ou a justiça divina segundo o Espiritismo. 52ª edição.
São Paulo, IDE, 2008. Cap.7
5
A obsessão é um distúrbio espiritual, a ação persistente que um espírito exerce sobre o indivíduo. Pode apresentar
diversas características, desde a influência moral, desordem do organismo, problemas mentais, etc. Regra geral, a
obsessão é praticada por espíritos considerados moralmente inferiores. CAMPETTI SOBRINHO, Geraldo (org.). O
Espiritismo de A a Z - Dicionário de termos. Rio de Janeiro, FEB, 2010. p. 625-630.
6
Os espíritas costumam chamar de reforma moral ou reforma íntima as mudanças que o indivíduo deve conseguir
alcançar em nome do seu bem estar e do próximo. CAMPETTI SOBRINHO, Geraldo (org.). O Espiritismo de A a Z
- Dicionário de termos. Rio de Janeiro, FEB, 2010. p. 759
da lógica cristã. A reforma íntima, como é chamada a busca do aperfeiçoamento moral, é
considerada como um requisito indispensável para a saúde do homem.

No caso das expiações, entende-se na doutrina espírita que o homem encarnaria ao


longo de sua existência inúmeras vezes, a quantidade de vezes variando de acordo com o
seu grau de amadurecimento moral e intelectual, tendo como meta aprender e alcançar a
superação de suas más inclinações. O espírito, portanto, nasceria ignorante e a cada
encarnação, de acordo com as experiências que vive, adquire conhecimento, inteligência,
moral, etc. Durante essa jornada por encarnações diferentes, o indivíduo cometeria falhas,
teria vícios que degeneram o corpo, poderia cometer suicídio voluntário ou involuntário7,
enfim, degenerar a máquina que teria sido “dada” por Deus para sua evolução moral e
intelectual. Essas falhas seriam compensadas em encarnações posteriores, com expiações
proporcionais a falta cometida, compensações essas que poderiam ser de inúmeras formas,
desde físicas, materiais ou de dificuldades diversas. Na lógica seguida pelos espíritas,
alguém que, por exemplo, cometesse suicídio voluntário, poderia reencarnar com problemas
físicos que a impedissem de cometer suicídio novamente ou com um tipo de limitação no
órgão afetado pelo ato cometido.

A negligência com o corpo físico, o abuso do álcool e do cigarro por exemplo, são
problemas que, segundo a ciência convencional, comprometem a expectativa de vida do
homem. A prática desses atos ou de tantos outros que trouxessem males ao organismo, são
entendidos pelo Espiritismo como o motivo de determinadas doenças ou ainda como a
causa do agravamento de algum mal que já estaria “destinado” ao indivíduo, mal este que
seria potencializado pelos hábitos destrutivos cometidos ao longo da vida.

As obsessões, por sua vez, são aproximações e influências de um espírito sobre o


homem. Seriam causadas, entre outros motivos, por problemas mal resolvidos em
encarnações anteriores, desequilíbrio em atitudes que aproximariam o indivíduo de espíritos
que possuam as mesmas más tendências, pensamentos maldoso, vingança, fúria, ou
qualquer outro ato ou pensamento que remeta a falta de equilíbrio e falha das noções de
moralidade. O encarnado - tendo tais atitudes e pensamentos - estaria em desequilíbrio e

7
O abuso de drogas, álcool, cigarro, vícios adquiridos ao longo da vida, o mau cuidado do corpo e que diminuem a
expectativa de vida do indivíduo são uma morte a longo prazo, considerado como suicídio involuntário. “O suicídio
não consiste somente no ato voluntário que produz a morte instantânea, mas em tudo quanto se faça
conscientemente para apressar a extinção das forças vitais.” KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno – ou a justiça
divina segundo o Espiritismo. 52ª edição. São Paulo, IDE, 2008.
atrairia assim os espíritos que teriam a mesma frequência de pensamentos considerados
moralmente inferiores. O homem falha de forma recorrente, resulta na atração do espírito
que o incentiva a continuar cometendo a mesma falha e assim se cria, segundo o
Espiritismo, um ciclo do qual só com a mudança de postura moral, o homem estaria livre. A
lógica se assemelha, em partes, a noção da Samsara budista, o ciclo de renascimentos e
mortes do indivíduo, onde o homem de acordo com o desenvolvimento de sua sabedoria,
consegue ultrapassar esse ciclo de reencarnações e se tornar um iluminado, livre do
sofrimento comum ao homem que ainda não conseguiu chegar à iluminação. Guardadas as
devidas diferenças, a lógica é semelhante. Somente com o conhecimento, segundo ambas
as doutrinas, o homem pode “evoluir”, sendo esse conhecimento adquirido ao longo de
existências e com um fim comum: o bem estar do espírito, que estaria livre dos males,
doenças, privações, dificuldades em geral.

Porém, não é porque as doenças podem ter as causas oriundas de encarnações


anteriores, como afirma o Espiritismo, que o homem não teria o direito de tentar minimizá-
las, corrigi-las ou curá-las de acordo com o merecimento, ou seja, com a melhora de
postura moral e o exercício da caridade com o próximo. O Espiritismo entende que o
indivíduo ainda está em processo de aprendizado, e, portanto, pode ter arrependimento,
melhoramento, busca da correção dos erros cometidos, e enfim, o merecimento do alívio
dos males do corpo e do espírito. É nesse sentido que as casas espíritas possuem
procedimentos diretamente relacionados com tratamentos de saúde. As formas variam, de
uma instituição para outra, mas mantém uma linearidade no sentido de que há médiuns
responsáveis pela mediação e pela instrução dos pacientes, para que haja êxito no
tratamento.

O papel do médium seria o de mediação entre o paciente e os espíritos responsáveis


por auxiliar nos processos de tratamento. Mesmo sem transe ou incorporação, como
geralmente funciona o atendimento ao público nas casas espíritas, os médiuns explicam que
há a orientação e a inspiração dos mesmos para o atendimento dos pacientes, nos
tratamentos e durante os procedimentos de passe magnético8 ou outros meios utilizados
nos tratamentos. O médium na casa espírita é orientado a estudar as obras básicas de

8
O passe magnético é a imposição de mãos do médium sobre o ‘paciente’ seja ele carente de melhora espiritual ou
física. “Na liturgia atual da Igreja Católica o passe também pode ser identificado na imposição de mãos dos
padrinhos, em certos momentos das cerimônias de casamento e batismo. Vamos encontra-los, também, nos
exorcismos e nas bênçãos de um modo geral.” GURGEL, Luiz Carlos de M. O passe espírita. 5. ed. Rio de Janeiro,
FEB, 2006.
Kardec – alguns centros também orientam o estudo de obras de Chico Xavier. Outra
orientação é que o médium na proximidade do atendimento ao público não cometa excessos
de qualquer ordem, para que esteja em equilíbrio na hora de auxiliar os pacientes em
tratamento.

O tratamento de saúde varia de acordo com a necessidade do indivíduo. Como já foi


colocado neste trabalho anteriormente, a doença, segundo o Espiritismo, poderia ser
ocasionada por obsessões de espíritos sobre o homem. Nesse caso, o tratamento consiste
geralmente na ingestão de água fluidificada9, passes magnéticos - também conhecidos
como fluidoterapia -, e o estudo da doutrina com base no Evangelho Segundo o Espiritismo,
obra básica da codificação de Allan Kardec10. Esse estudo da doutrina espírita também é
feito com palestras onde são evidenciadas que as falhas morais seriam responsáveis por
grande parte dos problemas do homem e que, portanto, buscando viver em equilíbrio,
seriam evitados ou amenizados os problemas de obsessão e, consequentemente, de
problemas físicos e mentais.

Em nenhum momento durante os tratamentos de saúde nas casas espíritas é


solicitado que o tratamento com remédios, exames e médicos seja abandonado ou que o
mesmo seja menos importante. Na realidade, entende-se o tratamento médico convencional
como um complemento que o organismo precisa para a recuperação efetiva. Ressalta-se a
importância dessa parte do tratamento, também baseado na valorização da ciência e da
evolução intelectual. Como, para o Espiritismo, foi “permitido” que o homem desenvolvesse
técnicas de tratamentos que pudessem melhorar a qualidade de vida do indivíduo, esses
métodos deveriam ser utilizados, mas sem detrimento do tratamento espiritual.

O interessante é que o processo de tratamento de saúde não possui unicamente a


finalidade de cessar a doença, mas vai além disso, buscando amenizar o sofrimento do
paciente, trazer o consolo com a afirmação de que os males do corpo são passageiros,
ensinando que a resignação e a fé são virtudes, que a vida espiritual - sendo eterna - é livre
das angústias que o individuo sofre enquanto encarnado. Weber, no entanto, entende que a
ideia de salvação tem fundamento na busca da mudança por aqueles que sofrem. Nessa

9
Água fluidificada é o líquido levado pelo paciente, que passaria por um processo de magnetização onde a
espiritualidade coloca os fuidos que o indivíduo necessita para o auxílio de sua doença.
10
A codificação da doutrina espírita é constituída por cinco obras, todas da autoria de Allan Kardec: O Evangelho
Segundo o Espiritismo, O Livro dos Espíritos, O Céu e Inferno, O Livro dos Médiuns e A Gênese, sendo os dois
últimos com aspectos mais científicos e os demais com ensinamentos morais e com os conceitos básicos.
lógica, o sofrimento traz inquietação e a vontade de que ele cesse é um dos motivos que
levam as pessoas a procurarem auxilio nas práticas religiosas11. A salvação não
necessariamente é procurada com um fim para além desta vida. A necessidade da cura e do
alívio das dores físicas, assim como a busca da riqueza também o é, são bens por vezes
almejados e a serem alcançados na presente existência. As religiões, desde as mais
primitivas, pareciam entender e oferecer tais bens, o que pode ser visto ainda hoje em
diversas ideologias religiosas. Portanto mesmo que o Espiritismo traga a noção de que
existe uma vida pós-morte, onde as dores cessarão, o indivíduo que sofre de um mal físico
pode entender na doutrina um local de cura e de alívio psicológico/físico imediato. É comum
ouvir de membros das casas espíritas a afirmação de que o indivíduo busca o Espiritismo
“por amor ou pela dor”, no sentido de que ocorre de aceitar a doutrina por se identificar
com a mesma e virar adepto ou então o indivíduo vê, num momento de angústia e
desespero, a saída ou a chance de amenizar seus males – sejam eles por doença ou não -
com os tratamentos alternativos e o alívio de saber que há para além do plano material, um
possível auxílio, que no imaginário popular, tem mais força.

Há um grupo religioso, não reconhecido pela Federação Brasileira de Espiritismo,


mas que em suas reuniões segue o evangelho de Kardec, que é mais explícito ao tratar dos
males do corpo. São os templos do Dr. Fritz12. As cirurgias neste templo são realizadas
mediante o uso de agulhas, às vezes com bisturis, e uma das curiosidades desses
procedimentos é que nota-se a ausência de sangramento dos pacientes, mesmo com
incisões aparentemente mais profundas. Nos dias voltados ao atendimento do público,
centenas de pessoas podem presenciar e observar o tratamento umas das outras. Não há
salas ou consultas particulares. Geralmente são usados salões ou galpões para os
atendimentos, onde os pacientes, em fila, esperam a sua vez de serem consultados.

Na equipe que acompanha o médium que trabalha em transe e afirma incorporar o


Dr. Fritz, há a participação de pessoas de diversas idades, com formações variadas,
algumas delas trabalhadores da área de saúde. Em depoimento dado por um dos ajudantes,
médico obstetra, o mesmo afirmou não ter explicação científica para o que acontecia ali,
desde a retirada de tumores até raspagens nos olhos de quem sofre de problemas

11
Ver WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. LTC, Rio de Janeiro, 5ª edição, 2002. p. 193.
12
Dr. Fritz teria sido um médico alemão que cuidava de doentes durante a segunda guerra mundial e que hoje
incorpora em médiuns para que possa fazer cirurgias espirituais. Atualmente há um templo do Dr. Fritz em Maceió,
onde pude assistir a cirurgias, conversar com pacientes e ajudantes do médium.
oftalmológicos. Para ele, o homem e a ciência são limitados e, portanto, não poderiam
alcançar esse tipo de ação sem que houvesse infecções – já que o ambiente não é
esterilizado -, dores durante o procedimento – que não leva anestesia –, entre outras
consequências que uma cirurgia pode ocasionar.

Durante todo o processo de atendimento das pessoas presentes, o médium estaria


em transe e acompanhado por uma equipe espiritual. O atendimento do médium e a
cirurgia não são garantia de cura, como os assistentes afirmam. Há o merecimento que o
indivíduo deve possuir, os motivos da doença - que no caso de serem expiações podem não
ser resolvidas - e a fé no procedimento. No tocante a fé, Dr. Fritz afirma que não cura
ninguém, mas a fé é o que faz o indivíduo ser curado. Os procedimentos são gratuitos, mas
o remédio receitado para dar continuidade ao tratamento é pago. Na embalagem o produto
é identificado como Chá de Dente de Leão.

Há semelhanças entre o atendimento do Dr. Fritz e o das casas espíritas


reconhecidas pela FEB, como o uso do evangelho de Allan Kardec, como citado
anteriormente, a noção de merecimento para obter a cura e a palestra com o discurso sobre
o melhoramento moral para evitar males. As diferenças mais evidentes são a incorporação
pública, pois no Espiritismo não há participação de médiuns em transe em público. Outra
diferença marcante é o atendimento coletivo do Dr. Fritz, e geralmente feito num só dia,
enquanto no Espiritismo o atendimento é individual e o tratamento é um processo que pode
durar meses ou até mesmo anos, de acordo com a gravidade do caso.

No final do século XIX era comum encontrar médiuns receitistas. Eram chamados
assim os espíritas que, em atendimento e afirmando serem mediadores do espírito de um
médico ou de algum espírito ‘evoluído’ passavam geralmente receitas homeopáticas ou os já
citados passes magnéticos. Médiuns curadores era outra modalidade conhecida no período,
que também aplicavam passes e buscavam a cura da chamada obsessão.13 Além desses
médiuns que não possuíam educação formal na área da medicina, vários médicos aderiram
à causa espírita, tornando-se referência no meio, como Adolfo Bezerra de Menezes, que
chegou a presidência da Federação Espírita Brasileira, foi um dos grandes nomes da

13
Revista de história da Biblioteca Nacional. Ano 3, nº 33. Junho, 2008. p. 16.
unificação doutrinária do Espiritismo no Brasil14 e ainda hoje é bastante citado e em grandes
reuniões da religião, tendo seu nome relacionado a auxílios médico-espirituais.

Segundo Emerson Giumbelli,15 o médium poderia não ter a qualificação e formação


acadêmica, mas seria auxiliado por um ou mais espíritos de médicos desencarnados,
oriundos de era uma profissão de prestígio e, portanto, respeitados. Dessa forma, o
Espiritismo fazia um misto de erudito e popular, característica já bastante conhecida nas
demais doutrinas e religiões que chegam ao Brasil. A transformação que o Espiritismo sofre
desde a codificação de Kardec até esse período é influenciada por motivos diversos, sejam
eles políticos, por perseguições religiosas, adaptação de ideias à realidade local ou a
formação essencialmente católica dos seus membros, que uniam catolicismo e a doutrina
espírita em diversos pontos que são em verdade desconexos e incompatíveis, como, por
exemplo, a crença simultânea na reencarnação e na ressurreição16.

Não é raro encontrar pessoas que relacionem o espiritismo a doenças psiquiátricas


no começo do século XX. O exercício da mediunidade e a aproximação com o que seria o
mundo espiritual são fatores acusados de causar o desequilíbrio mental. Psiquiatras e
médicos acreditavam que o Espiritismo seria uma doença mental contagiosa e assim,
respaldada no código penal, o combate ao Espiritismo foi se consolidando, apesar das
práticas mais perseguidas ainda serem as ligadas à cultura popular e religiões de matriz
africana como a Umbanda e o Candomblé.

As chamadas práticas mágicas foram assunto tratado no código penal de 1890 nos
artigos 156, 157 e 158, que não permitiam misticismos, feitiçarias ou o que pudesse ser
interpretado como tal, como a prescrição de remédios naturais ou hipnotismo. Os espíritas,
sempre fundamentados em homeopatia, magnetismo, fluidificação e curas espirituais,
tiveram problemas, sendo perseguidos judicialmente, além das perseguições religiosas de

14
Ver: ARRIBAS, Célia da Graça. Afinal, Espiritismo é religião? – A doutrina espírita da formação da diversidade
religiosa brasileira. São Paulo, Alameda, 2010.
15
Revista de história da Biblioteca Nacional. Ano 3, nº 33. Junho, 2008. p. 14-19
16
A ressurreição é a ideia de que o espírito retornaria ao corpo que já está morto, não aceita pelos espíritas, mas
reivindicada como verdadeira pelos católicos. Já a reencarnação é a volta da alma à vida corpórea, porém num outro
corpo, fato que ocorre tantas vezes sejam necessárias afim de que o indivíduo possa cumprir suas sucessivas
existências. CAMPETTI SOBRINHO, Geraldo (org.). O Espiritismo de A a Z - Dicionário de termos. Rio de
Janeiro, FEB, 2010. p. 753 e 772.
outras doutrinas que combatiam as ideias espíritas e também consideravam as curas
espirituais como charlatanismo.17 O código penal trazia o seguinte texto:

Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de


talismãs e cartomancia, para despertar sentimento de ódio ou amor,
inculcar curas de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para
fascinar e subjugar a credulidade pública.

Pena: de prisão celular de 1 a 6 meses e multa de 100$000 a


500$000

Não era raro interpretar o Espiritismo como um curandeirismo revestido de novas


práticas, o que daria margem a interpretar as atividades. Com a transformação do
Espiritismo em religião institucionalizada, a perseguição – ao menos a oficial, foi amenizada,
já que a Constituição Federal garantia a liberdade de culto. A perseguição religiosa e política
ainda continuaram acontecendo, principalmente se tratando da igreja católica e evangélica,
segundo os próprios membros do Centro Espírita Melo Maia em Maceió.18 A diversidade de
crenças e filosofias religiosas hoje impede que haja a antiga hegemonia católica, hegemonia
essa que influenciava até mesmo a legislação e o código penal. O pluralismo, que
atualmente temos, é essencial para que haja liberdade e garantia de autonomia no campo
religioso.

Enfim, o Espiritismo traz um tratamento alternativo baseado em ensinamentos que


teriam sido trazidos da espiritualidade, que envolvem conceitos e descobertas científicas
(magnetismo, homeopatia, estudo dos fluidos) e aplica estes artifícios para que o indivíduo
busque o alívio e a cura para as doenças do corpo e do espírito. É necessário salientar a
importância de ter o apoio psicológico envolvendo os familiares do enfermo e o próprio
doente, que a partir da adesão às ideias da doutrina espírita, é incentivado a buscar uma
posição de resignação perante a doença e entender que a morte seria apenas uma
passagem. Não que seja simples aceitar o fato da morte ou da derrota para a doença, mas
tal apoio é considerado como o responsável pelo melhor enfrentamento da doença, mesmo
que não traga a cura esperada.

17
ARRIBAS, Célia da Graça. Afinal, Espiritismo é religião? – A doutrina espírita da formação da diversidade
religiosa brasileira. São Paulo, Alameda, 2010. p. 119 – 130.
18
Informativo Espírita – Órgão do Centro Espírita Alagoano Melo Maia. Ano I – Outubro de 1976 – nº4.
Bibliografia

Livro:

ARRIBAS, Célia da Graça. Afinal, Espiritismo é religião? – A doutrina espírita da formação da


diversidade religiosa brasileira. São Paulo, Alameda, 2010.

GURGEL, Luiz Carlos de M. O passe espírita. 5. ed. Rio de Janeiro, FEB, 2006.

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno – ou a justiça divina segundo o Espiritismo. 52ª edição.
São Paulo, IDE, 2008.

KARDEC, Allan. Revue Spírite – jornal de Estudos Psicológicos. Ano II. 1859. 3ª ed.Rio de
Janeiro, FEB, 2009.

KLOPPENBURG, Boaventura. O Espiritismo no Brasil – orientação para os católicos. 2ª ed.


Petrópolis, Ed. Vozes, 1964.

WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. LTC, Rio de Janeiro, 5ª edição, 2002

Organização de livro:

CAMPETTI SOBRINHO, Geraldo (org.). O Espiritismo de A a Z - Dicionário de termos. Rio de


Janeiro, FEB, 2010.

Tese ou Dissertação:

FRADE DA CRUZ, Inácio Manoel Neves. Doutor Fritz andou de disco voador: hibridizações e
sincretismos na terapia espiritual de Chico Monteiro. Dissertação. Juiz de Fora, 2007.

Texto de jornal e revista:

Informativo Espírita – Órgão do Centro Espírita Alagoano Melo Maia. Ano I – Outubro de

1976 – nº4.

Revista de história da Biblioteca Nacional. Ano 3, nº 33. Junho, 2008. p. 14 – 25.


Do Corpo Místico de Cristo e Inculturação nas encruzilhadas do Vaticano II.

Introdução
Gostaria de iniciar chamando a atenção para os seguintes elementos: Vaticano II;
inculturação; Corpo Místico de Jesus Cristo. Para que eu pense Vaticano II, preciso
tomar em conta a conquista colonial do mundo, sua pretensa conquista espiritual a
partir da Europa, e tomemos como locus central o Vaticano, tensões face a um
potencial cânone policêntrico. Transito pela lógica de que Cristo não é europeu, mas
foi incorporado por seus Estado-Nações e serviu de estandarte da Colonização, do
assujeitamento dos ditos “quatro cantos do mundo” ao longo dos processos colonial e
neo-colonial do mundo – e tem ainda servido nos processos de assujeitamento pós-
guerras de libertação, mas este não é o enfoque central desta reflexão.
Se eu estou a pensar inculturação, penso interculturalidade, contato, contágio,
encontro, rotas de colisão ou rotas compartilhadas, condição de encruzilhada, trocas,
feixes relacionais, oposições. A palavra encruzilhada já se faz marcada quando se
menciona religião e quando se relaciona com a vida cotidiana, não apenas cruzamento
de caminhos, mais que isso, possibilidade plural de caminhos. Uns podem preferir
sincretismos, outros hibridização, outros em construção identitária, entre-lugar: do
local e transnacional, fronteira “inatingível”, trânsitos.
E ao trazer à baila o Corpo Místico de Cristo, dogma eclesiástico - unidade do Corpo
místico sem a qual não pode haver salvação (Lumen Gentium, 1964, p. 21) – tendo
como cabeça deste Corpo a própria Instituição Igreja Católica; pondero aqui também
o campo de poder em meio a trânsitos, como “organização ou ordenamento do caos”
(Schieffelin, 1985), se o “símbolo ritual transforma-se em fator de ação social, em
uma força positiva, num campo de atividade” (Turner, 2005, p. 49), então pondero
considerar o campo, que, segundo Bourdieu, constitui um sistema de linhas de força
que se opõem e se agregam, conferindo sua estrutura específica num momento dado,
e por outro lado, cada uma destas linhas está determinada por seu pertencimento a
este campo, suas propriedades de posição, e um tipo determinado de participação no
campo cultural (Bourdieu, 2002, p. 9-10); assim sendo, cabe investigar esta entidade
dinâmica (Turner, 2005, p. 50) e sua polarização do significado (Turner, 2005, p. 59-
62), seja no polo ideológico – normas, valores, ordem moral e social - , assim como a
ordem sensorial aí intercalada, quiçá refletir o corpo, como se vem abstraindo o corpo
como conteúdo e componente de marcas identitárias, suas concepções e trânsitos
semânticos que perfilam este processo também ritual; campo da interpretação e da
tradução, e por assim dizer o deslocamento (Ricœur, 2011, p. 7).
Os eixos confluem ou afluem no que Estermann (2007, p. 267) traz como paradigma
da “missão inter gentes” correspondente ao espírito do Vaticano II, e destaco: “It
admits to reciprocity and mutual conversion between agents and receivers of mission,
recognizes the Church on six continents, and values intercultural and interreligious
dialogue”; e “It highlights mission, not as an activity between individuals, but between
communities”. O mesmo autor alerta “It will be important that the old Latin American
Christianity prepare for the new religious situation, which presents itself concurrently
as an inherited popular religiosity and as a diaspora of an already small flock”.

Eis um possível dilema: o catolicismo polimorfo (Bastián, 2005; 1997, p. 40) e “uma
articulação do juízo crítico dos ‘vencidos’ ou ‘convertidos’ frente ao cristianismo
ocidental que se lhes impõe” (Fornet-Betancourt, 2007, p. 16), um cristianismo
policêntrico (Fornet-Betancourt, 2007, p. 31) a evidenciar as encruzilhadas culturais
por onde transita o catolicismo a se (re)modelar conforme tessituras culturais, e que
poriam em risco o Corpo Místico de Jesus Cristo.

Nesta ambiência fomentaram-se Missas Inculturadas, celebrações de missas com


marcas locais, contudo destaco aqui apenas as Missas Negras de Salvador, Bahia e
Missas Afro, de Minas Gerais e São Paulo. Tais Missas se configuram em tempos e
espaços próprios, contextos interligados na condição da diáspora negra, tanto na
qualidade de povos testemunho, povos transplantados e povos novos (Ribeiro, 1977)
e do diálogo inter-religioso. Porém chamo a atenção para a condição de alteridade ao
refletir a Missa dos Quilombos, a partir de fragmentos da mesma, uma missa que ouso
chamar de hybris, não apenas híbrida, pois as inculturadas por si o seriam; esta com
ênfase muito marcada na transformação social a partir da opção pelos pobres e a
ressignificar o próprio conceito de pobre e periferia, a pensar a diáspora africana,
visando descontruir preconceitos e catalisar o diálogo entre a Igreja Católica e
Religiões de Matriz Africana; descortina a escravidão negra e os lugares negros na
sociedade, fora vetada enquanto celebração eucarística, ao passo que as ditas missas
inculturadas (Borges, 2001) seguem como aglutinador possível de diferenças e
atração comunitária.

Corpo sacrificado, corpo em contenção.


Se a Igreja se (im)põe como a cabeça do Corpo Místico de Cristo, aqui indago como
esta se põe na lida com as marcas culturais diversas que pululam através dos corpos
personalizados pelos contextos culturais. Pondero como a Igreja se põe na
encruzilhada dos contatos e das histórias que por vezes eclodem revelando
contradições e antagonismos: cicatrizes da colonização, cicatrizes da cristianização
que podem ser lidas tanto como subjugação, quanto mecanismos de alianças, conflitos
e coesões em coparticipação dos seus populares. Daí podermos pensar tanto
fronteiras da romanização, quanto trânsitos e permeabilidades da enculturação, ou
vice-versa. A romanização permeada por um herói fundador vindo do oriente e
ressignificado na sua condição romana, a inculturação onde o outro é se for subalterno
aos dogmas da romanização. Corpos sacrificados, subjugados, contidos, ainda não
santificados.
Num contexto de História como Providência (Lebrun, 1988, p. 31-37) “onde a História-
do-Mundo se cristianizou por completo, por que o cristão se sentiria em terreno
profano? Porque agora somos, efetivamente, cristãos” (1988, p. 53). Não cabe aqui
tecer uma discussão sobre a transcendência, busco refletir como a igreja se situa na
composição do estigma impositivo da Diáspora, nas encruzilhadas identitárias cujos
subalternos teceram negociações, subelternos que ousam falar e se fazer ouvir – tomo
de empréstimo a reflexão de Spivak: podem falar os subalternos? (2003) -,
instrumentalizaram alteridades e egos que afloram na Missa dos Quilombos,
entreposto estético e político, marco na caminhada de Pastorais Católicas.
Sobre este marco, cabe pontuar como se compõem reflexões sobre a diferença e por
que falar em diferença passa a integrar concepções e ações políticas (Marques, 1995).
Eis a diferença ontológica, de acordo com Mbembe, que identifica no signo africano,
algo de singular, mesmo indelével, que o distinguiria de todos os outros signos
humanos: o corpo negro e sua condição nativa, classificação racial de facto e de jure
(Mbembe, 2001, p. 2-8). Salienta Mbembe que a diferença só é reconhecida, na
medida em que implica desigualdades que, além disso, são consideradas de tal forma
naturais que justificam a discriminação e, nos casos mais extremos, a segregação
(2001, p. 8). Onipresentemente seguem-se os agenciamentos.
As formas identitárias são móveis, reversíveis e instáveis (Mbembe, 2001, p. 31),
processo intercultural, mutação e fraturas, processos de hibridação e combinações
identitárias (Mbembe, 2001; Canclini, 2003). Por interculturalidade o conflito, o
dialético, o inacabado, social e interpessoal, a diferença e sua relação dramática, não
apenas coexistência pacífica (Candau; 2005, p. 32). Para uns o sincretismo, palavra-
labirinto na antropologia evitada por alguns, combatida por muitos, mas que aqui
trago não como esquecimento das diferenças internas, não como fusão proveniente de
essencialidade, mas princípio de cisão (Ferretti; 1995).
Posiciono-me ponderando a partir dos arranjos e dos fragmentos, no que tange às
missas inculturadas – contexto intercultural, onde no diálogo inter-religioso eclodem
campos de disputas de poder - celebrações eucarísticas católicas dotadas de
elementos de outras matrizes religiosas, permeabilizando a instituição Igreja Católica,
seus centralismos se põem em questão, em realidade o risco para não por em perigo a
potestade da Igreja. A cabeça admite outros corpos, sempre dogmatizados, sempre na
condição de seguidores fieis, ou de aliados que carecem de sua santa proteção.
Esta é a ambiência na qual se geram as Missas Inculturadas, este é o campo e o
habitus (Bourdieu, 1974; 1989), o que permite trazer à superfície a hybris, como
melting-pot para além do mero apolíneo e dionisíaco (De Grandis, 1995). A hybris
talvez implicaria autopoiesis, “faz nascer alguma coisa que ainda não existia, alguma
coisa nova, uma singularidade” (Machado, 2010, p. 8) ou, como diz Tierra: “vertebrar
forças populares dispersas e produzir alternativas democráticas com a sociedade”
(Tierra, 2012, p. 78).
Por condição histórica de migração um tanto peculiar, aos afrodescendentes temos o
escravismo colonial como marco, às populações indígenas temos os descimentos
forçados. Eis que a condição de homem negro, ou mesmo afro, assim como a
afroamerindianidade, se faz transnacional, periférica e subalterna. Pondero que Missas
étnicas, ou inculturadas, podem ser situadas como vozes que ecoam, e tais vozes são
fruto de uma dada condição periférica, seja colonial ou pós, ou mesmo de Estados-
nações desterritorializados (Schiller et al; 1995, p. 50) que aí se unem nas delicadas
memories of things past (1995, p. 51). Processos migratórios que foram fundidos na
construção de outras nacionalidades nascidas do escravismo colonial, aí são criadas
alternativas para conviver com o hegemônico, as formas de apropriação desigual dos
bens, como salienta Ribeiro (2010, p. 21-22). O romper regras, a hybris, a
transgressão.
A Missa dos Quilombos da sua primeira montagem ocorrida no Recife, em novembro
1981, onde se expusera a cabeça de Zumbi de Palmares no ano de 1695, produzida
no contexto de ações da Pastoral Negra Católica, grupos ligados à Teologia da
Libertação (TdL), catalisara ações da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil -
CNBB e congregara pastorais e Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, de autoria de
Pedro Casaldáliga, Milton Nascimento e Pedro Tierra; com participação especial de
Dom Hélder Câmara; missa concertante, evoca o drama social da diáspora negra. Esta
Missa que teve sua execução eucarística vetada por Giuseppe Casória, então prefeito
da Sagrada Congregação da Doutrina e da Fé, ex-Santo Ofício, daí a Missa buscaria
caminhos para se manter como expressão cultural e diálogo com diferentes públicos,
veio a se expressar como teatro (Tierra, 2012, p. 83), transpôs muros da Instituição
Igreja Católica. Desfaz-se a condição de ser missa, assume seu pecado impresso no
cartaz: o punho fechado erguido, ao invés da foice e martelo, a cruz de madeira e o
fundo em tom vermelho. “A celebração eucarística será como deve ser, e é, somente
memorial da morte e ressurreição do Senhor, e não reivindicação de qualquer grupo
humano ou racial” escreveu Casória a dom Ivo Lorscheider, então presidente da CNBB
(Abril Coleções, 2012, p. 13).
Ora, os processos de hibridação e combinações identitárias (Canclini, 2003, p. X-XI)
que são ou seriam policêntricos, e que refletem o trânsito católico pensando e
dialogando com seu Outro, ao tempo em que o reconhecem o silenciam, em nome da
romanização, que também pode ser lida como a manutenção não somente do status
quo da velha igreja, mas a manutenção de suas alianças, localizadas nas redes
desiguais onde as elites centrais se diferem das elites periféricas e ambas diferem e se
põem desiguais em relação à “opção pelos mais pobres”.
Por interculturalidade Candau afirma que:
Orienta processos que têm por base o reconhecimento do
direito à diferença e desigualdade social. Tenta promover
relações dialógicas e igualitárias entre pessoas e grupos que
pertencem a universos culturais diferentes, trabalhando os
conflitos inerentes a esta realidade. Não ignora as relações de
poder presentes nas relações sociais e interpessoais. Reconhece
e assume conflitos, procurando estratégias mais adequadas
para enfrenta-los. Trata-se de um processo permanente,
sempre inacabado, marcado por uma deliberada intenção de
promover uma relação dramática entre os grupos envolvidos, e
não unicamente uma coexistência pacífica num mesmo território
(2005, p. 32).

Se há forma de criação não apenas religiosa, “maneiras de fazer” que constituem as


diversas práticas pelas quais consumidores/produtores (re)inventam seu espaço
organizado por instrumentos da produção sociocultural (Magalhães, 2005, p. 94).
Estas entendidas como ação de sujeitos dirigida para transformação ideológica de uma
realidade, também pequenos atos de articulação da vida e de suas resistências às
normas estabelecidas. Tanto interculturalidade quanto as maneiras de fazer são
tomadas no enfrentamento considerando que a ideia do Corpo Místico de Jesus Cristo.
Montero (1995: 233-235) reflete a construção histórica deste Outro que não poderia
mais ser somente pagão, era a hegemonia católica e cristã em alto risco. Os Papas
começaram a viajar para reforçar alianças, enquanto a Igreja engendrou seu caminho,
da possibilidade de Roma adaptar a igreja a países não europeus, refletindo sobre
aculturação até eleger o termo enculturação posteriormente se utilizou a grafia
inculturação, que implicaria estar em processo de alteridade, de reconhecimento do
Outro, não exatamente seria ter a missão de evangelizar este Outro. Eis a geopolítica
do Vaticano e o controvertido diálogo do missionário com as culturas locais, com suas
lógicas, donde a conversão não seria central, porém o eixo seria a compreensão e o
conhecimento entre duas culturas, foi o que se pôs na atuação pastoral e missionária
da Igreja, usada por esta como agenciamento.

Corpo santificado, corpora em disciplina.

A Igreja “que perdeu peso público e força de incidência” (Fornet-Betancourt, 2007,


p.38), todavia naquilo que é chamado “campo do exercício prático-teórico do
cristianismo a hegemonia do poder dessa configuração ocidental dominante da
religião, cristã (católica, sobretudo) se apresenta pujante ainda” (Fornet-Betancourt,
2007, p. 38).

Eis a ambiência tensiva entre “um cristianismo culturalmente plural” (Fornet-


Betancourt, 2007, p. 1) e o crescimento de decretos católicos nos quais povos ocupam
um lugar de assujeitáveis, um solo difuso de cultura. Aí através da inculturação –
termo que passou a reorientar a presença do catolicismo no mundo, quiçá do
cristianismo (Fornet-Betancourt, 2007, p. 40-41) ao exigir-lhe entrar em diálogo com
a diversidade cultural da humanidade, contudo este diálogo ainda marcado pela
conversão do Outro, logo, interculturalidade como partilha, como entrecruzamento
profícuo de alteridades.

Ponderando o sentido de sincretismo, maneiras de fazer, em Magalhães (2005, p. 91-


94), religião neste conjunto se pondera como invenção permanente, é mundo de
experiências e reconstituições de dados, é criatividade de sujeitos em confrontação
com dilemas da vida. Tem-se a fronteira como obstáculo e como trânsito, a tensão
reflexa (Magalhães, 2005, p. 92) entre o poder aí central da Igreja Católica que soara
flexível e a polifonia das diásporas negras em entrecruzamento.

Segundo Löwy (1998, p. 38-39) dependendo das circunstâncias, tanto a Igreja


enquanto instituição e mesmo organizações de leigos assumem posições políticas, mas
de modo geral quatro perfis podem ser vistos na Igreja Católica Latino-Americana:
fundamentalistas ultra-reacionários, a exemplo da Tradição Família e Propriedade;
uma corrente tradicionalista organicamente unida aos governantes e ao Conselho
Episcopal Latino-Americano (CELAM); uma corrente reformista e moderada com certa
autonomia intelectual em relação às autoridades romanas, pronta a defender certas
demandas sociais; uma pequena mas influente minoria de radicais, simpatizantes para
com a TdL e capaz de solidariedade ativa com o popular, os movimentos de
trabalhadores e camponeses.
Campo de tensões sociais, no Brasil (Löwy, 1998, p. 90) a ditadura militar
estabelecida em 1964 progressivamente obstruiu todos veículos institucionais que
potencializassem a expressão de protestos populares (particularmente depois dos
ocorridos em 1968, destacando ações mais duras a exemplo do Ato Institucional n5 –
AI5 – que suprimia liberdades individuais), o regime militar terminou transformando a
Igreja no último refúgio da oposição. Os movimentos populares em grandes números
passaram a ir articular na Igreja e ajudaram na 'conversão' da Igreja à causa da
libertação dos pobres. Ao mesmo tempo, a repressão brutal pelo exército aos setores
radicais da Igreja obrigou à instituição reagir em conjunto e foi criada uma dinâmica
de conflito permanente entre o Estado e a Igreja.

Várias foram as formas pelas quais o catolicismo foi adotado por populares, por
comunidades afrodescendentes, adverte Souza (2002, p. 144-146), de conexão entre
este mundo e o outro, a relação dos homens com o além, permitida pelo objeto
mágico-religioso, seja o um santo católico, um nkisi, um Orixá, ou um produto
mestiço do encontro entre diferentes culturas, utilizando-se dos espaços permitidos
pela sociedade, sejam espaços permitidos, senão criando meios de negociação ou
formas de permanência.

A linguagem se pronuncia entre diásporas do que se concebeu como negros da terra –


ameríndios e africanos – sob o que Souza chama por gramática da cultura (2002, p.
146), normatividades e territorialidades, o que para a TdL passa a ser resgatado e
instrumentalizado como êxodo, todavia sem o retorno à Terra Prometida, entretanto
com a edificação do sentido de identidade que se agrega à ideia da Terra Prometida
como memória, travessia do Atlântico e sua construção histórica como os Afros de
América, os Negros do Mundo (Casaldáliga, 1982, p. 1).

Uma Missa cujo roteiro concertante põe como predicador a própria comunidade em
atuação. A abertura da missa se faz com o cântico Estamos chegando, das margens
do mundo e a semantização do estar e ser periférico, do historicamente subalterno, do
deslocado que (re)constrói lugares e alianças, negativizado e negado que vem ao som
de todos os tambores, dançar e cantar sua memória atualizada, não apenas a
travessia, mas a condição pós-travessia, clamam em louvor. Trazem contradições
sociais e evocam em sua memória o porvir de outro Palmares, que mescla o valor
histórico da resistência colonial e anuncia uma Terra Prometida.

Aqui não temos o rito nos terreiros, mas na igreja e espaços correlatos destes bens
culturais hegemônicos numa liturgia do e para o negro (Ferretti, 1995) –
posteriormente proibida, portanto colocada numa potencial diáspora. Faço uso do
raciocínio de Abdias do Nascimento, para quem embora não houvesse a igualdade ou
paridade religiosa, condição prévia do verdadeiro sincretismo (Nascimento, 1980, p.
94), refletindo a relação catolicismo e identidades africanas: quase todas as ordens
possuíam escravos, ao que Sant’Ana (2005, p. 49) pontua: “associado ao tráfico e ao
sistema escravista. elaboradas doutrinas com falsa base bíblica e filosófica, bem como
tentativas de comprovação de teorias com uma falsa base científica”. Traz-se a
memória perigosa já advertida por Casaldáliga quando da Missa da Terra Sem Males
(1980, p. 14).

Corpo santificado, corpora em disciplina.

Mesmo à encruzilhada, um corpus cujos pressupostos centrais soariam mais


sinalizadores, permitindo inclusive o diálogo com outros corpora, sob a hierarquia
romana. Destes, creio que ao considerar arquivo a partir de Foucault (2004, p. 95): “o
jogo de regras que determinam, em uma cultura, o surgimento e o desaparecimento
dos enunciados, sua remanescência e eliminação, sua existência paradoxal de
acontecimentos e de coisas”, permite-se pensar as “marcas discursivas suscetíveis de
permitir a reconstituição do conjunto das regras que, num dado momento definem
tanto os limites, quanto as formas de dizibilidade, da conservação, da memória, da
reativação e da apropriação” (Revel, 2011, p. 12).

Em festa onde a dor se transmuta em possibilidades e ações de criar estética e


politicamente, em nome do deus trinitário de todos os nomes e em nome do povo
sempre deportado, e que espera na graça da fé, a voz do Xangô, o Quilombo-Pascoa
que o libertará. O Povo que fez seu Palmares e que o fará de novo (Abril Coleções,
2012, p. 29). Aí não se tem o somente catolicismo do dogma, mas formas populares
aliadas a outras manifestações originariamente não cristãs e algumas efetivamente
não cristãs.

Sua Abertura se inicia com a recitação de Trancados na Noite – de autoria de Pedro


Tierra e Robertinho da Silva -, acompanhada de solo percussão:

_Trancados na noite, milênios afora,


forçamos agora
as portas do dia.
Faremos um povo de igual rebeldia.
Faremos um povo de bantus iguais
na só Casa Grande do Pai.
Os Negros da África,
os Afros da América,
os Negros do Mundo,
na aliança com todos os Povos da Terra.

Se as missas inculturadas podem ser lidas como dotadas de indumentárias e


sonoridades de outras matrizes e relativo protagonismo comunitário, todo o enredo se
faz sob a égide da eucaristia católica, sob a presença e direção do padre, ainda que na
presença de sacerdotes de outras matrizes, e com sua multivocalidade. O rito é
católico, podendo ser pontuado como catolicismo popular, negro – discussão que
sinalizo, mas não se faz cerne deste trabalho – em palco e cenário católico ainda que
adornos de outras referências, e assim celebram-se batismos católicos dentre outros
sacramentos, fundamentos da comunhão; não ocorrem nestas missas, nem a roda
tampouco de alguém bolar no santo, pelo menos não se tem divulgado tais
informações, reforçado por Borges (2001). O sumo sacerdote aí é o padre, em mais
que espaço católico, é território católico, ainda que neste território se amarrem outros
trânsitos e permeabilidades como determinadas categorias de idas e saídas de terreiro
onde se costumam visitar igrejas.

Traz-se a escravidão negra, o pan-africanismo e a memória revisitada das resistências


– desde algumas assinaladas na historia angolana, a exemplo de Kimpa Vita e os
Antonianos que de queimados pela Igreja como hereges e bruxas, passam a ser
interpretados como mártires da Colonização; a travessia nos Tumbeiros; as
resistências no âmbito do Apartheid e a Guerra de Descolonização, até os
trabalhadores anônimos no cotidiano com denúncias de discriminações e de abusos de
autoridades, ou intolerâncias, assimetrias que reforçam a desigualdade – com seus
heróis martirizados que, aí, são convidados a consagrar na sua atualidade, o sentido
de memoria e compromisso através do louvor que é uma festa. Este louvor é marcado
por menções a Xangô e se afirma que todos os santos nos vão ajudar. Revivem-se a
negritude, panafricanismos e outras construções da visibilidade negra, numa
ressemantização do ser negro, neste contexto anunciam o Evangelho como festa,
terra liberta, o compartilhar: seremos o Povo dos Povos, Povo resgatado, Povo
aquilombado, livre de senhores, de ninguém escravo, senhores de nós, irmãos de
senhores, filhos do Senhor! (Abril Coleções, 2012, p. 42). Pontua-se autonomia, seria
outra cabeça para o corpus, não um corpo sem cabeça, ao que a atitude eclesiástica
marcada através de Casória visa disciplinar o corpo, aqui comparo à carne, morada do
pecado, que subverte a pretensa ordem romana, desordenadora, posta ao ostracismo,
banida ao silenciamento, perigosa.

Em sua apresentação no Recife, novembro 1981, Dom Hélder Câmara proferiu a


Invocação a Mariama, e salientou: “claro que dirão, Mariama, que é política, que é
subversão, que é comunismo. É Evangelho de Cristo, Mariama… Nada de escravo de
hoje ser senhor de escravos amanhã. Basta de escravos. Um mundo sem senhores e
sem escravos. Um mundo de irmãos. De irmãos não só de nome e de mentira. De
irmãos de verdade, Mariama”. Visibiliza a afluência de outros sujeitos que se
produzem no que Bastián concebe como catolicismo polimorfo (2005; 1997, p. 40),
que traz então desde o sujeito histórico com sua opção política e social, como traz
uma espécie de internacionalização deste sujeito em se reinventar como negro e como
cristão neste meio ordenador das relações sociais.

Há algo que subsiste e persiste e parece ter ganho vida para além dos documentos do
Sínodo dos Bispos que trouxe a preocupação de ampliar e manter a hegemonia
católica no continente americano. A condição de interculturalidade, da igreja católica
latino-americana que historicamente foi construída pelos braços escravos e de outros
subalternos que então fora aberta à celebração negra, mesmo que suas portas
fisicamente se fechem, como é frequente em determinadas comemorações populares,
a fé na sua condição imaterial tem poder de convocação histórica para o adro da
Igreja ou outro lugar que se possa fazer locus cerimonial e se exibir em sua
performance histórica, depende sim de a que rede social esta fé se faz instrumento,
qual forma de oprimido: se a vítima, quem carrega a mácula, ou se quem busca
superar as adversidades transformando a si e quiçá o seu entorno, ou mesmo
ocupando o lugar e a forma dos seus opressores. Algumas CEBs sinalizaram Grupos
Catalisadores, do uso do rádio1, com esta conduta, se escutam as memórias
comunitárias, assim teciam redes, malhas sociais (Conceição; Oliveira, 2007, p. 147-
148), mobilidades e mobilizações nem sempre bem vistas pelo centralismo.

A Missa termina com o proferir do “Quilombo Novo” e a saudação yorubá Ony Saurê –
que por alguma razão ainda não conhecida gravou-se “saruê” - (Abril Coleções, 2012,
p. 44). A Missa se põe como entre-lugar, encruzilhada identitária e define seu trajeto
no cruzamento noutra direção que a do centralismo romano, e reafirma sua opção
pelos pobres, potencializando “redes dos oprimidos” (Castro-Pozo, 2011).

Pondero redes dos oprimidos (Castro-Pozo, 2011), a improvisação da emergência,


formas associativas, o quilombismo que nos fala Nascimento: “Objetivamente, essa
rede de associações, irmandades, confrarias, clubes, grêmios, terreiros, centros,
tendas, afochés (sic), escolas de samba, gafieiras foram e são os quilombos

1
Conceição e Oliveira (2007, p. 147-148): The basis for the process that guides the work of the Catalyst
Group is explained by Ho Chi Minh: People who do not count with their own forces, and only wait for the
help of others, do not deserve to be independent. According to Bogo (2003), the Catalyst Group can be
described by using a metaphor based on two radios: the wall radio and the portable radio. The wall radio is
internal to the community and is composed of leadership within the community, people who live the social
problem on a daily basis. The portable radio represents the leadership en route because they take the
messages to the radio station.
legalizados pela sociedade dominante; do outro lado da lei se erguem os quilombos
revelados que conhecemos (1980, p. 255)”.

Como fronteira e trânsito está a Missa, espaço que se tornara território cênico,
superando as portas fechadas das igrejas para o popular, ou portas abertas para a
entronização (Silva, 2010: 25) popular da autoridade que circula na igreja e nas ruas
e ali também se cultua, aí transitam na divindade outros componentes do poder
pastoral como complexo de significações, práxis afro-brasileira, que não significa
escravo fugido, mas ali transita liminarmente como reunião fraterna e livre,
solidariedade, convivência, comunhão espiritual (Nascimento, 1980, p. 255-263). A
religião como um tipo particular de ação social (Silva, 2010, p. 31).

De fato é missa inculturada, o Corpo Místico de Jesus Cristo ressemantizado em Corpo


Místico da Memoria da Diáspora, porém é missa inculturada onde os sujeitos fazem
este trânsito entre dogmas e redes de significados diversos, outros corpora possíveis,
em se articulando possibilitam ganhar visibilidade e outras ações (Spivak, 2003),
herança ainda delicada do Vaticano II e suas multivocalidades que a igreja insiste em
ordenar. Às cicatrizes da colonização, parecem insistir em cobrir o corpo
disciplinarmente.

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ANÁLISE DA BUSCA PELA CURA NOS TERREIROS DE UMBANDA:
Representações e Significados
Maria do Amparo Lopes Ribeiro1

1
– Bolsista CAPES/CNPq, do mestrado em Antropologia e Arqueologia, PPGGAArq/CCHL/UFPI
e-mail: amparo_ribeiro@ymail.com
1. INTRODUÇÃO

Diante do sofrimento e da angústia vivenciados pelo indivíduo quando


acometido por alguma doença, o mesmo empreende percursos terapêuticos na busca
pela cura, alguns procurando suas respostas através de uma religiosidade que dê
sentido à vida, principalmente quando não se percebem acolhidos no atendimento
prestado nos moldes do modelo médico hegemônico, hospitalocêntrico e
medicalizante.
Embora, em termos acadêmicos de ensino em universidades e/ou faculdades,
em publicações de artigos em revistas especializadas nessa área, ou em eventos,
como as Conferências Nacionais de Saúde (que pela Lei 8142/90, ocorrem de 4 em 4
anos) se fale muito em se prestar uma atenção integral ao paciente (a integralidade
sendo um dos princípios que norteiam o Sistema Único de Saúde, SUS) por meio dos
conhecimentos biomédicos, sociais e culturais na compreensão das doenças e de como
elas afetam os indivíduos, na prática, a realidade é bem diferente para aqueles que
necessitam do atendimento pela rede pública de saúde no país (BRASIL, 2006).
Segundo Giovanella (2008), o modelo médico hegemônico se caracterizaria
por : individualismo; encarar a saúde/doença como mercadoria; dar maior ênfase ao
biologismo (encarando a doença como uma disfunção fisiológica de determinado órgão
ou sistema biológico do organismo); a historicidade da prática médica; privilégio da
medicina curativa em detrimento de uma medicina preventiva; medicalização dos
problemas (dando maior incentivo à produção da indústria farmacêutica de
medicamentos); estímulo ao consumismo médico; participação passiva e subordinada
dos consumidores, ou seja, dos usuários dos serviços de saúde.
Disso, resulta que as pessoas procurem outras estratégias/caminhos para
minimizar e/ou atender suas necessidades de saúde negligenciadas nos moldes do
modelo médico hegemônico, assim, a busca pela cura através de práticas terapêuticas
em espaços religiosos, como nos terreiros de Umbanda, por exemplo,
complementariam as práticas médicas oficiais. (MELLO & OLIVEIRA, 2010)
Com isso, temos como pergunta norteadora da pesquisa: “Como o indivíduo
que vai aos terreiros de Umbanda, da zona norte de Teresina-Piauí, percebe os
terreiros como um espaço complementar ao tratamento iniciado nos estabelecimentos
de saúde e/ou consultórios do sistema médico hegemônico e como os terreiros de
Umbanda se mostram enquanto espaços acolhedores para essa busca pela cura?”
Ou melhor dizendo: “ Qual o significado da busca terapêutica religiosa como
uma complementarização ao atendimento no sistema médico hegemônico, do ponto
de vista de quem procura os terreiros de Umbanda e dos adeptos dessa manifestação
religiosa?”
Desta pergunta inicial, advém as seguintes: será que tais representações
terão uma carga de sentidos cada vez maior à medida em que ele se sinta acolhido,
ou de acordo com as próprias experiências vivenciadas no transcorrer do tratamento
recebido em tais espaços? E tais representações não seriam apenas por parte de
quem as busca, e quanto aos próprios adeptos da Umbanda, pais e/ou mães de santo
e filho (as) de santo, o que teriam a dizer sobre a angústia e a busca que esses
indivíduos empreendem pela cura e/ou alívio de suas doenças? Qual o sentido da
saúde, da doença e da cura nos espaços de terreiros de religiões de matriz africana?
Por isso, também é importante ter atenção aos próprios significados e
representações de saúde na Umbanda, procurando pensar sobre a questão da doença
e da cura no interior desta religião, procurando considerar sua cosmologia, seus rituais
e as práticas de seus agentes (adeptos) em termos de saúde, doença e cura nos
terreiros.
A relevância dessa pesquisa estará em demonstrar a importância de estudos
que abordem o caráter social das doenças, e o quanto a cultura, como nas
manifestações religiosas da Umbanda, podem auxiliar no restabelecimento da saúde
de quem procura os espaços dos terreiros, assim como demonstrar o quanto tais
espaços podem ser promotores de saúde.

2. A RELAÇÃO DO PESQUISADOR COM O CAMPO

Com relação ao papel do pesquisador/observador, Yvonne Maggie (2001) nos


fala sobre a importância da reflexão sobre a presença e a posição do observador no
drama e de sua função no desenrolar dos fatos, um olhar sobre a conjuntura,
analisando-se também o lugar do observador neste drama social. A autora parte das
informações do universo pesquisado e tenta verificar como o grupo se posiciona neste
universo, quais os modelos expressos pelos membros, e principalmente, perceber a
lógica dos rituais, seus símbolos e discursos. Tal lógica de discursos percebida através
de categorias-chave, na busca pelo significado em meio a análises simbólicas desse
drama.
A autora refere que, quando se elabora o conceito de drama social, pretende-
se compreender os distúrbios e crises ocorridos na vida social dos grupos estudados,
pretendemos buscar o sentido dos dramas individuais analisados de um ponto de vista
da coletividade no qual se inserem tais sujeitos, isso porque, segundo a autora, o
drama social além de ser encarado como um instrumento teórico serviria de guia para
a descrição etnográfica de um sistema em funcionamento, demonstrando suas
estruturas a partir, não apenas da observação do pesquisador, mas das versões que
os próprios membros dão aos fatos ocorridos.
Nesse âmbito, caberiam as narrativas dos frequentadores não-adeptos e/ou
simpatizantes que procuram os terreiros em busca da cura, de um acolhimento, de
alguém que escute suas angústias, seus medos e inseguranças, sendo que, tal foco
não desmereceria o momento de conflito interno que os mesmos vivenciam, mas não
o vivenciam de forma solitária, isto é, ao se permitirem adentrar o espaço dos
terreiros, como atores sociais, também estão permitindo que sejam acolhidos por
aquele grupo, para que possam dar uma diretriz para o problema pelo qual estão
passando, se tornando assim sujeitos ativos perante o que coloca em risco sua saúde.
Nesse momento, o indivíduo deixa de ser único, em suas crenças, sem perder
sua individualidade, e aceita as crenças daquela coletividade, como uma crença
alternativa, motivações tornadas significativas para o objeto de sua busca, no caso, a
cura, que poderá lhe trazer o alívio necessário a este momento de angústia, se
permitindo confiar nos pais e/ou mães de santo e nos filhos (as) de santo que lhe
acolhem, aqui cabendo o reflexo disto, no que tange a como essa coletividade
interpreta a posição deste indivíduo perante ela e dela perante ele.
Para Geertz (2011), tal motivação seria uma inclinação para “(...) executar
certos tipos de atos e experimentar certas espécies de sentimento em determinadas
situações (...)” (p.71). Situações estas, referentes a este estudo, como frequentar um
espaço religioso como os terreiros de Umbanda, se permitindo e atendendo às normas
e regras deste espaço, atuando numa performance que favoreça a introjeção e
ativação do simbólico experimentado durante as ritualísticas terapêuticas que
envolvem banhos com ervas, consultas com a(s) entidade(s) espiritual(is) que
rege(m) o terreiro, estar presente durante os trabalhos de cura e quando da entoação
dos pontos cantados2,

2
Na Umbanda, o chamado “ponto cantado” refere-se a cantigas que falam dos Orixás e/ou das entidades
espirituais que trabalham/atendem no terreiro. Estes pontos funcionariam como evocações de determinadas
energias, servindo tanto para trazer as entidades como para se despedir delas.
assim como o cumprimento de regras que direcionem a uma mudança de
comportamentos e de hábitos que favoreçam o entrecruzamento entre tratamento e
cura. Como pode ser observado na foto abaixo, onde presenciei uma festa no
terreiro/tenda espírita onde me proponho fazer esta pesquisa. (FOTO 01)

FOTO 01 – Festa de Seu Raimundo Légua na tenda espírita São Jorge Guerreiro, em
03/11/2012.

A importância de se analisar tais práticas e sua interelação com o universo


simbólico dos participantes, nos remete ao que Yvonne Maggie (2001) e Roberto
DaMatta (1978) afirmam sobre o objeto de pesquisa e a busca pelo mesmo, a
primeira tratando sobre a importância do desenvolvimento de uma percepção do
objeto de pesquisa, onde seria necessário aguçar os sentidos sobre as práticas
terapêuticas e religiosas realizadas nos terreiros e sobre o que as mesmas
representam para quem acorre a eles em busca da cura, para não perder de vista a
relação entre observador e todo o universo de representações do observado.
Já o segundo autor, se refere à busca da realidade objetiva através das
entrevistas e da observação, que leva o pesquisador/observador a se encontrar
submergido em uma dimensionalidade entre o mundo e as teorias. Para ele, para se
conduzir um bom trabalho etnográfico, há que se vestir a capa do etnólogo, no sentido
em que se deve aprender a efetuar a tarefa de transformação do exótico em familiar
e/ou transformar o familiar em exótico, num movimento de ida e volta, sendo
imprescindível a vivência nos domínios da teoria e da prática, visualizando-se as
perspectivas da religiosidade do indivíduo, da sua crença e do que tal momento
representa para o mesmo, em todos os seus sentidos e significados.

3. A BUSCA DOS SENTIDOS E SUAS MULTIPLICIDADES

De acordo com Geertz,


a Antropologia é na verdade uma ciência astuciosa e enganadora.
No momento em que ela parece estar mais deliberadamente
afastada de nossas vidas é que está mais próxima; quando parece
estar falando de modo mais insistente sobre o distante, o
estranho, o remoto ou o idiossincrático, ela também está falando
do próximo, do familiar, do contemporâneo e do genérico. ( 2004,
p.35)

Ao se falar em busca dos sentidos em suas multiplicidades se refere ao


próprio locus do antropólogo enquanto observador, e enquanto participante daquilo
que observa e como o interpreta. Estes sentidos são múltiplos porque não dizem
respeito a um indivíduo que não possua nenhum tipo de vínculo, seja social, afetivo ou
religioso, pelo contrário, ele só pode dar sentido a algo se aquilo possuir algum
significado para o mesmo, por meios dos símbolos com os quais construiu tal
significação para si, caso contrário, não há motivação, não há formação de sentidos, e
tanto ele como a coletividade na qual se insere projetam tais significados, nisso, o
pesquisador precisa apreender e depois apresentar tais dados observados.
Segundo Roberto Cardoso de Oliveira (1988), citando Geertz em O saber
local, “a etnografia do pensamento, como qualquer outra forma de etnografia (...), é
uma tentativa não de exaltar a diversidade, mas de tomá-la seriamente em si mesma,
como um objeto de descrição analítica e de reflexão interpretativa (...) agora, somos
todos nativos” (p.21), aqui, ele explicita o que chama de cruzamento de horizontes
(do observador e do que é observado e do observador e de quem se observa) para
que a interpretação se dê de forma reflexiva.
Algo extremamente importante, conforme o autor, é o surgimento e
consequente admissão de nossos próprios preconceitos por meio do que ele chama de
a fusão dos horizontes que pode ocorrer nesse ir e vir do estar lá geertziano, pois ao
se fazer a etnografia, o pesquisador nunca voltará o mesmo, embora, “na penetração
do horizonte do outro, não abdicamos do nosso próprio horizonte”(p.21), mas até
onde este horizonte já não será mais somente o nosso?
Em relação a isso, temos o que Ricoueur, apud Roberto Cardoso de Oliveira,
diz:
Deste conceito insuperável de fusão de horizontes, a teoria do
preconceito recebe sua característica mais própria: o preconceito é
o horizonte do presente, é a finitude do próximo em sua abertura
para o distante. Desta relação entre o eu e o outro, o conceito de
preconceito recebe seu último toque dialético: é na medida em que
eu me transporto no outro, que levo meu horizonte presente, com
meus preconceitos. É somente nesta tensão entre o outro e eu
mesmo, entre o texto do passado e o ponto de vista do leitor que
o preconceito se torna operante, constitutivo da historicidade.
(1988, p. 21-22)

A busca dos sentidos nos levará às interpretações que os membros de um


determinado grupo, no caso específico, ao integrantes e participantes das práticas
terapêuticas observadas nos terreiros de Umbanda, aplicam às suas experiências, as
construções que erigem sobre os acontecimentos pelos quais passam e, não só como
se comportam frente a tais acontecimentos, mas qual o sentido que dão a tais
acontecimentos, que olhares lançam e quais discursos advêm destas práticas
(GEERTZ, 2004).
Ao analisar o campo a ser pesquisado, percebo o ethos com o qual irei me
deparar e terei que trabalhar, isso porque, lidarei com práticas terapêuticas ligadas a
um espaço de manifestações religiosas, e isso não pode ser deixado de lado, pois,
como relata Geertz (2004; 2011), o centro da perspectiva religiosa seria a convicção
de que os valores assimilados pelos indivíduos se estruturam e tem como fundo a
realidade de quem vivencia tais experiências (o contexto social), demonstrando que o
que os símbolos sagrados fazem para aqueles para os quais são sagrados, ou tem
essa denotação de sagrado, seria formular uma ideia de construção do mundo e uma
conduta que se refletem mutuamente, ou como diria Victor Turner (2005) “ o símbolo
é uma coisa encarada pelo consenso geral como tipificando ou representando (...) algo
através da posse de qualidades análogas” ou seja, “é a menor unidade do
ritual”(p.49). (FOTO 02)
FOTO 02: Chapéu de vaqueiro, no mastro central do terreiro, simbolizando a
presença de Seu Francisco Légua em festa realizada em sua homenagem na tenda
espírita São Jorge Guerreiro. 03/11/2012.

Ainda para Geertz (2004), os padrões religiosos apresentam um duplo


aspecto, sendo ora uma moldura da percepção do indivíduo sobre sua própria
situação, como se fosse uma tela simbólica por meio da qual ele irá interpretar suas
próprias experiências, suas vivências com esses padrões, e isso constitui uma
orientação para possíveis guias de conduta deste indivíduo, com tais orientações é que
nos propomos nos munir ao nos direcionar ao campo.
Escolhi os espaços de manifestação religiosa da Umbanda, inicialmente, a
tenda espírita São Jorge Guerreiro e a tenda espírita São Raimundo Nonato, seguindo
o que diz André Ricardo de Sousa (2004) sobre esta religião, que ela possui uma
grande capacidade de auto-redefinição, de traços religiosos diversos e adaptação ao
meio social no qual estiver inserida, produzindo uma lógica de oferta de bens
simbólicos para o atendimento direto às aflições das camadas populares, sendo o
terreiro uma referência nos bairros periféricos, tendo um caráter de espaço de
agregação comunitária. Com relação a tais aspectos, Sousa comenta que:

O contato inicial com a religião, [ocorre quando] o espírito fala


(...) do problema que aflige a pessoa. (...) Depois, seguindo os
conselhos e prescrições de banhos rituais ou alguma outra
obrigação (oferenda, despacho), recomendados pelo guia
(entidade espiritual), muitos consulentes sentem ter alcançado
a ajuda procurada, tendo para si a prova da eficácia religiosa.
(...) Nesse processo é relevante a acolhida dos cambonos, que
são os assistentes dos guias, mas o decisivo é o atendimento
dos pretos-velhos, caboclos e outras entidades espirituais (apud
PRANDI, 2004, p.307)

Isso condiz com o que Yvonne Maggie (2001) afirma sobre a própria
denominação de religião afro-brasileira que explica o caráter sincrético da Umbanda,
refletida não apenas em sua diversidade, mas numa multidiversidade:

Em primeiro lugar, as religiões afro-brasileiras foram sempre


vistas como um fenômeno de sincretismo religioso no qual se
encontravam traços africanos associados a traços católicos. A
esse sincretismo inicial foi acrescentada a mistura de traços do
espiritismo kardecista com traços indígenas. O próprio nome
genérico que foi escolhido para denominá-las expressa essa
visão de uma religião sincretizada. Afro, pois tinham traços
africanos. Brasileiras, pois apresentavam traços católicos,
espíritas e indígenas (MAGGIE, 2001, p.13).

Por isso me proponho a trabalhar com tais aportes simbólicos e


representativos, envolvendo as práticas terapêutico-religiosas nos entrecruzamentos
discursivos do que possam nos dizer os clientes (que pode ser sinônimos de
frenquentadores não-adeptos e/ou simpatizantes), que procurem as sessões de
trabalhos de cura dos terreiros, assim como, o que pensam os integrantes, adeptos
deste espaço, ou seja, pais e/ou mães de santo e filhos(as) de santo com relação a
quem procura tal atendimento em busca da cura, e o que pensam sobre a questão da
saúde e da doença.
Ao falar dessa busca pela cura, neste espaço específico, com suas práticas
terapêuticas de caráter mágico-religioso, também estarei tratando de toda uma rede
de significados e representações, em um fluxo dinâmico de trocas simbólicas, que
permeia as subjetividades envolvidas, ou seja, a de quem busca pela cura e dos
adeptos que o acolhem no terreiro.
Com isso, trabalhando na dinâmica do que diz Seeber-Tegethoff (2007), com
aproximações com o locus de manifestação social, espiritual e cultural, como são os
terreiros, um espaço onde a escuta, a atenção, os cuidados oferecidos, assim como o
acolhimento levam em conta a harmonia psicossocial do indivíduo que os procuram,
seria possível atribuir um papel de Grenzgänger, termo alemão que combina a noção
que se tem de uma fronteira, a qual separa, mas que por um ato de travessia, acaba
ligando dois lados. E, de acordo com a autora, esse termo também pode designar uma
pessoa que faz o percurso na linha da fronteira, ficando precisamente no espaço entre
os dois lados, a divisa entre dois mundos, no caso ao qual se propõe esta pesquisa, ou
seja, pesquisar e comparar as representações dos indivíduos oriundos da prática
médica oficial, que recebem tratamentos espirituais nos espaços das religiões de
matriz africana, com suas práticas ditas alternativas, de caráter complementar à
prática oficial, assim como o sentido destas práticas de saúde nos terreiros, para os
adeptos desta religião.
Com isso, vamos travando diálogos com Reginaldo Prandi (2004), ressaltando
esse pertencimento a um mundo e por um tempo atravessar a fronteira para o outro
mundo, o dito mundo espiritual, das entidades, dos encantados, confabulando com o
mundo do indivíduo que chega a tais espaços, em busca da cura para seus males,
procurando olhar de dentro desse olhar, cruzando fronteiras e horizontes, com o
entendimento dos umbandistas, levando em conta que as estruturas e exigências são
muito diferentes nestes mundos e se transfiguram em uma luta permanente de
reconhecimento (legitimação das práticas) entre eles. (FOTO 03)

FOTO 03: Oferendas para as entidades que representam o “povo de Légua”, na festa
de Seu Francisco Légua, na tenda espírita São Jorge Guerreiro, em 03/11/2012.

Assim, o momento da escuta da cultura, como fala Geertz, no seu texto Estar
Lá: a antropologia e o cenário da escrita será:
A capacidade dos antropólogos de nos fazer levar a sério o que
dizem tem menos a ver com uma aparência factual, ou com um ar
de elegância conceitual, do que com sua capacidade de nos
convencer de que o que eles dizem resulta de haverem realmente
penetrado numa outra forma de vida (ou se preferir (...), de terem
sido penetrados por ela), de realmente haverem, de um modo ou
de outro, “estado lá”. E é aí, ao nos convencer de que esse milagre
dos bastidores ocorreu, que entra a escrita (2009, p.15)

4. A BUSCA PELA CURA: representações de saúde e doença


Segundo Laplantine (2004), não há sociedade onde a doença não tenha uma
dimensão social, repleta de representatividades por ela acometidas, sendo ao mesmo
tempo a mais íntima e individual das realidades, dando um exemplo concreto da
ligação intelectual entre a percepção individual e o simbolismo social de estruturas
estruturantes, fazendo com que o “campo de conhecimento e significado do doente”
seja caracterizado pelo sofrimento e pela consciência da experiência mórbida com
seus componentes irracionais de angústia (de ser portador de uma doença incurável)
e de esperança (de curar-se), pois, segundo Minayo (2006), “as doenças, a saúde e a
morte não se reduzem a uma evidência orgânica, natural e objetiva, mas sua vivência
(...) está intimamente relacionada com características organizacionais e culturais de
cada sociedade” (p. 205), ou seja, a doença e a saúde são socialmente construídas e o
indivíduo doente é, sobretudo, um ator social que dá sentido àquilo que vivencia.
E como se aproximar dos sentidos inseridos em tais representações, como
vislumbrar essa rede de significados? Para isso, teríamos o estar lá de Geertz (2009),
onde, o labor etnográfico se faria quando o pesquisador se dirigisse ao campo de
pesquisa, voltando de lá com informações referentes aos modelos de como
determinado grupo se organiza, e tornando tais informações disponíveis, de forma
prática, à comunidade científica.
É preciso interpretar o alcance dessas representações, isso, estando de
acordo com o que diz Roberto Cardoso de Oliveira (1988), quando se refere à
Antropologia como uma disciplina de cunho interpretativo, “ela própria possuidora de
instrumentos que lhe permitam poder alcançar um grau de compreensão de si própria,
de modo a realizar aquele espanto (...) em seu encontro com o outro”(p.13).
Ou, de acordo com James Clifford (1991), ao se encontrar em campo, ter em
mente que, em termos etnográficos, não existem verdades absolutas, mas sim,
parciais, incompletas, que apenas certas verdades podem construir um todo,
interpretando o sentido dos silêncios, transcrevendo os discursos, o observado, num
discurso científico que se esforça não somente em contar o que foi observado, mas
também procurando explicá-lo à luz das teorias, a busca pelo equilíbrio entre teoria,
metodologia e técnicas utilizadas em campo, lembrando-se, sobretudo, em não se
priorizar a teoria em detrimento da conjuntura observada, pois, como diz Gilberto
Velho, prefaciando a obra de Geertz (2004), em Observando o Islã: “A compreensão
dos processos sociais observados passa necessariamente, portanto, pelos significados
que lhes são conferidos por parte dos diferentes atores envolvidos”(p.8), e isso será
de extrema importância pois, por meio dos significados, chegaremos ao que tais
processos representam para os atores envolvidos.
E encontraremos tais processos durante o trabalho de campo, com isso,
estaremos atentos ao que Malinowski (1916) nos recomenda a observar que “(...) no
local de estudo [poderemos nos deparar com] um caos de factos, alguns dos quais
[sendo] tão diminutos que parecem insignificantes; outros [sendo] de tal modo vastos
que é difícil abarcá-los com um olhar sintético (...) e o trabalho de campo consiste
(...) na interpretação [desta] realidade social (...)”(p. 256).
Assim, entre o aparentemente insignificante e o que se demonstra
significativo, teceremos a trajetória e importância do não-dito ou aquilo que se diz de
forma cautelosa e velada, talvez o ponto que nos apresente os sentidos de quem se
permite experienciar a busca pelo restabelecimento de sua saúde nos terreiros, nesse
entrecruzamento de discursos, o religioso e o do indivíduo acometido pela doença. .
Com relação a isso, Melo e Silva (2010), citando Lévi-Strauss e Geertz, diz
que:

O discurso religioso possibilita pensar os problemas dentro de uma


lógica ordenada, oferecendo um critério de classificação e
representando uma integração dos acontecimentos desordenados,
tornando suportáveis “para o espírito as dores que o corpo se
recusa a tolerar”, e isso, muitas vezes, [sendo] interpretado como
cura. (2010, p. 12)

Segundo Rabelo (2005) é possível encontrar nos trabalhos de Arthur


Kleinman que procurou manter-se fiel à antropologia interpretativista de Geertz, esse
autor, em 1981, desenvolveu uma abordagem culturalmente sensível e aberta ao
trabalho comparativo, ou seja, a um só tempo interessante tanto para as discussões
travadas no âmbito da antropologia como relevantes para os profissionais de saúde
engajados em um esforço para “alargar o horizonte da medicina rumo ao diálogo com
contextos médicos distintos dos seus” (p.128).
Essa autora demonstra a forma como Kleinman trabalhou, fazendo uma
comparação entre os conceitos illness e disease e seus correspondentes healing e
cure. Disease corresponderia à doença tomada como realidade objetiva, a um modelo
centrado no mal-funcionamento de processos biológicos, e cure à intervenção que visa
a alterar ou deter os processos patológicos relacionados à doença, ou seja, estes
conceitos seriam os trabalhados no campo do modelo biomédico.
Já o conceito de illness, por sua vez, seria o que se refere à doença como
realidade subjetiva, seria o entendimento e, consequentemente, o sentimento dos
sujeitos que estão aflitos e angustiados com sua doença; healing seria uma proposta
de “reconduzir esse entendimento rumo a uma percepção de bem-estar. (...),
Kleinman e seguidores argumentaram que a medicina ocidental se especializou em
curing e relegou a um segundo plano os processos de healing, bastante desenvolvidos
em sistemas médicos não ocidentais. ”(RABELO, 2005, p.129)
Trabalhar tais conceitos demonstra que os sistemas religiosos de cura, como
no caso das práticas terapêuticas observadas nos terreiros em estudo, oferecem uma
interpretação à doença que a insere no contexto sócio-cultural mais amplo de quem
busca pela cura.
Ainda conforme Rabelo (2005), tais aportes simbólicos auxiliariam a quem
busca pela cura, poder fazer uma interpretação que organizaria os estados confusos e
desordenados que caracterizam a experiência da aflição pela qual está passando, em
um todo ordenado e coerente e que, nesse sentido, faria mais do que simplesmente
ligar tais estados a uma causa exterior, agindo, assim, diferentemente da abordagem
biomédica, que tende a despersonalizar o doente, deixando de lado características que
são valorizadas quando do tratamento religioso, que procura ver o indivíduo em sua
totalidade, enquanto um ser social, biológico e psicológico,

5. PERCURSOS METODOLÓGICOS NOS TERREIROS

A condição plural dos terreiros onde serão investigadas as representações e


os sentidos da cura com suas implicações no processo terapêutico através dos olhares
dos participantes de tal processo, implicará em um esforço maior de pesquisa no
sentido de qualificá-la mais adequadamente enquanto segmento presente nas
realidades observadas, visualizando-se a diferenciação entre categorias analíticas e
categorias nativas.
O grande aspecto a ser observado é justamente essa caracterização em
categorias, pois ao adentrarmos o espaço onde realizaremos nosso trabalho de
campo, não poderemos impor a teoria ao que for observado, impor conceitos, mas
antes, analisar e observar o que cada componente e/ou termos utilizados pelos
indivíduos significam para cada um deles.
A abordagem antropológica, baseada na observação direta dos
comportamentos sociais, poderá auxiliar na percepção das formas de ver, sentir e agir
dos atores pesquisados, mapeando suas dinâmicas e realidades. A observação direta
da pesquisa participante, qual seja “aquela que o pesquisador (...) compartilha a
vivência dos sujeitos pesquisados, participando, de forma sistemática e permanente,
ao longo do tempo da pesquisa de suas atividades” (SEVERINO, 2007, p.120)
proporcionará o ambiente adequado para que se sintam motivados a participar
efetivamente da investigação.
Com isso, pretende-se fazer um estudo etnográfico, pois segundo Malinowski
apud Guimarães (1990), as fontes etnográficas devem ser analisadas de modo a
distinguir, de um lado, o resultado das observações diretas e, de outro, o que for
levantado das declarações e interpretações dos sujeitos entrevistados, e ainda, se
atentando ao fato de um terceiro fator, ou seja, as inferências do pesquisador.
Este autor também nos recomenda a conhecer o mecanismo mental do
nativo, talvez numa clara alusão às categorias nativas que podem surgir durante as
observações e/ou mesmo durante as entrevistas, sendo que seria desnecessário
justificá-lo com explicações ou teorias rebuscadas, num sentido de não forçar a
excessiva teorização do que for encontrado no campo, mas sempre procurar
interpretar tais dados.
Além disso, ele também estabelece algumas regras para o trabalho de campo,
como recolher os fatos puros, para separá-los das interpretações, esclarecendo que é
importante, durante a interpretação dos fatos tomarmos cuidado com as
generalizações precipitadas, procurando classificar e ordenar os fenômenos,
estabelecendo relações mútuas entre eles, evitando-se com isso um mero amontoar
de dados de forma desconexa.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estudar a relação entre religiosidade, doença, saúde e cura nos ajuda a


visualizar o quanto tais aspectos encontram-se repletos de representações, sentidos e
significados para aquele que vivencia o processo do adoecimento, com suas angústias
e sofrimentos.
A proposta desta pesquisa será analisar, através de uma pesquisa etnográfica
as representações sobre saúde, doença e a busca pela cura por meio das práticas
terapêuticas observadas em terreiros de Umbanda, levando-se em conta sua
cosmologia e o que esta religião entende por saúde, doença e cura.
Espero que a adoção de múltiplas estratégias metodológicas de pesquisa,
resultem no reconhecimento de que diferentes informações possibilitem
conhecimentos diversos acerca da realidade investigada. Além disto, irei trabalhar
com a convicção de que as informações recolhidas possibilitem sistematizações e usos
diferentes, não apenas para e/ou em forma de texto, mas na elaboração de outros
possíveis documentos de áudio e de imagens, dentre outros, preservando a identidade
dos sujeitos pesquisados.
Portando, diversos relatos serão apreendidos, com o objetivo de oferecer
interpretações sobre os tratamentos e cura de pessoas que procuram terreiros na
zona norte de Teresina, considerando suas implicações no estudo da cultura e sua
importância no cuidado com a saúde.

7. REFERÊNCIAS

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para o controle social no sistema único de saúde. 2.ed. Brasília: Editora do
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______. A interpretação das culturas. 1.ed. Rio de Janeiro: LTC, 2011.

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2005.
“O SANTO SOCIAL”: UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA SOBRE
A FORMAÇÃO SACERDOTALi

Arlindo J. de S. Netoii
RESUMO
As mudanças ocorridas na história interferiram diretamente na formação de novos
padres. Do Concílio Vaticano II, a Igreja colheu a idealização do Optatum Totius, um
decreto que sancionou a reforma educacional dos seminários no mundo todo. Desde sua
fundação, o Seminário Maior Nossa Senhora da Graça, fundado pelo Bispo de Olinda
Dom Azeredo Coutinho (1742-1821), de Olinda e Recife, atuou nas transformações
sociais, culturais e políticas, não apenas do estado, mas em todo o país. A partir da
importância deste Seminário para a formação sacerdotal, o presente trabalho buscou
analisar, descrever e compreender como é a atual formação dos seminaristas da
Arquidiocese de Olinda e Recife e como ela dialoga com as estruturas sociais. Indo
além, buscou-se compreender como se dá o processo ritual (Van Gennep e Victor
Turner), especificamente, o rito de passagem na vida desses seminaristas.

INTRODUÇÃO

Neste trabalho, pretendi estudar o processo ritual ao qual são submetidos os


seminaristas da Arquidiocese de Olinda e Recife, mais especificamente, os que estão no
propedêutico – primeira etapaiii da formação sacerdotal católica. Esse modelo de
formação foi criado desde o Concílio de Trento (1545-63), com o objetivo de introduzir
os seminaristas ao estudo da Filosofia e da Teologia.

Os atuais estudos antropológicos sobre o catolicismo são muitos, e tem como objeto
de estudo o laicato. Para citar alguns, temos Cecília Mariz (2003 e 2009), Marcelo
Ayres Camurça (2009) e Mísia L. Reesink (2005 e 2009). Os autores, a partir dos leigos
católicos, tratam temas como renovação carismática, morte e milagre. A Igreja Católica,
como objeto histórico, também foi bastante estudada em variadas dimensões. Alguns
trabalhos podem ser citados, como os de Flávio Pierucci (1984), Renata Menezes
(2004), Pierre Sanchis (1992) e Sérgio Miceli (2009). A história da formação sacerdotal
não ficou fora dessas análises, mas antropologicamente, como dito, não é encontrada em
nenhuma obra que se debruce primariamente sobre os seminários. Indo além da
formação sacerdotal masculina, existem algumas etnografias referentes ao noviciado
feminino ou a vida religiosa feminina, como por exemplo, Ângela Berlis (1999) e Sílvia

1
R. A. Fernandesiv (2005), mas nada antropologicamente referente à formação sacerdotal
masculina.

Mais especificamente, em relação ao Seminário de Olinda e Recife podem-se


encontrar algumas obras históricas, mas nenhuma etnografia. O que existe são obras
como as de Gilberto Luiz Alves (2001 e 2010), referentes, basicamente, à criação e ao
fundador do Seminário. No mais, são obras apologéticas e que já estão de algum modo,
desatualizadas. Como, por exemplo, as obras do cônego José do Carmo Barata (1972) e
do mons. Severino Leite Nogueira (1985).

Diante disso e tendo em vista a importância que os seminaristas têm no catolicismo


e na instituição católica, é coerente questionar-se porque essa ausência de interesse
etnográfico. Pois mudanças ocorridas na história interferiram diretamente na formação
de novos padres. Sejam elas: as mudanças econômicas, sociais, culturais e políticas, de
alguma forma, afetaram à Igreja. Como consequência, os seminários de formação
também sofreram os efeitos.

A Igreja tomou algumas medidas para adaptar-se às transformações sociais.


Algumas propostas foram discutidas pelo clero, por exemplo, no Concílio de Trento
(1545-63), que propôs uma reforma de dentro para fora da instituição e estabeleceu o
modelo de seminário adotado no século XVI a meados do XX. Sucessivo ao Concílio de
Trento, o Concílio Vaticano Segundo (1962-65) reuniu os bispos católicos do mundo
todo para repensar a estrutura e a constituição da Igreja. O Vaticano II provocou uma
das maiores reformas no seio dessa instituição e dos seminários. Desse concílio, a Igreja
colheu a idealização do Optatum Totius, um decreto que sancionou a reforma
educacional dos seminários no mundo todo, permitindo a cada país adotar seu próprio
modelo de ensino de acordo com as circunstâncias locais. No Brasil, os seminários
permitiram que seus seminaristas vivessem em pequenas comunidades, consentindo o
estudo das ciências sociais e um maior contato com o laicato.

Desde o início, o Seminário de Olinda e Recife atuou nas transformações sociais,


culturais e políticas, não apenas do estado, mas em todo o país. Sobreviveu a todas as
intempéries, mantendo-se em plena atividade. Diante das transformações sociais, o clero
não poderia permanecer sem mudanças. Discussões, resistências e novas tendências de
formação surgiram. Olinda e Recife, possuindo um dos mais importantes seminários do

2
Brasil: o Seminário Maior Nossa Senhora da Graça, fundado pelo Bispo de Olinda Do m
Azeredo Coutinho (1742-1821), igualmente, repercutiu sobre a formação seminarística.
Dom Hélder Pessoa Câmara (1909-1999), Bispo de Olinda e Recife (1964-1985), tentou
reestruturar o modelo de formação sacerdotal. Este modelo buscaria um bom diálogo
entre leigos e sacerdotes e ampliaria a liberdade dos seminaristas durante a formação.
Sem apoio do Papa e do clero local, o novo modelo apenas permaneceu como projeto. A
reação conservadora foi contra a implantação e os seminários permaneceram presos às
suas origens.

Atualmente, a formação de um seminarista da Arquidiocese de Olinda e Recife pode


ser dividida em duas etapas ou fases: (1) o propedêutico; (2) o noviciado. Essas duas
etapas de formação são desenvolvidas em ambientes diferentes: a primeira, no
Seminário Menor ou Seminário Menor Imaculada Conceição, situado em Recife, no
bairro da Várzea; a segunda, no Seminário Maior, também chamado de Seminário
Maior Nossa Senhora da Graça, localizado em Olinda. Ambos os Seminários são
dirigidos pela Arquidiocese de Olinda e Recife.

Diante disso, os ritos de passagem da formação de um seminarista é dividido em


três partes de forma esquematizada: (1) o propedêutico, em um primeiro momento, rito
de separação, contendo também ritos pré-liminares e liminares; (2) o noviciado, o rito
liminar ou de margem e (3) a ordenação, o rito de agregação ou pós-liminar.

Assim, tive como locus da pesquisa o Seminário Menor, onde os seminaristas


residem durante um ano. Nesse período eles estudam para submeterem-se ao vestibular
em Filosofia na Universidade Católica de Pernambuco. Convivi, ao total, com doze v
seminaristas num período de oito meses. Eles são oriundos de classe média baixa, têm a
idade média de 19 anos, concluíram o ensino médio e são predominantemente pardos.
Utilizei o método etnográfico de coleta de dados. Ainda, vali-me da observação
participante e realizei entrevistas estruturadas e não estruturas com todos.

Quem são esses seminaristas?

Convivi com doze seminaristas durante todo o ano de 2012. Esses seminaristas,
durante o ano de 2011, antes de ingressarem no Seminário, foram acompanhados por
seus respectivos párocos. Uma vez por mês se reuniam com o reitor do Seminário para

3
se integrarem na dinâmica da instituição. Só assim, tornaram-se aptos para ingressarem
ao Seminário. Ainda não estava em campo quando esses encontros ocorreram. Portanto,
não pude observa-los. Mas, posteriormente, pude ter acesso, através da fala dos meus
informantes, do que ocorria e como era a dinâmica desses encontros. Segundo M, 16
anos, “são nesses encontros que o “chamado de Deus” fica mais forte”; ou, B, 19 anos,
“esse momento nos ajuda a discernir o que realmente queremos”; ou ainda, P, 19 anos,
“os encontros eram legais, é bom porque a gente vai percebendo como vai ser a nossa
nova vida”vi.

Dos doze seminaristas, dez são pardos e dois são negros. O mais jovem do grupo
tem 16 anos e o mais velho 31. Mas a idade média é de 19 anos. Todos vêm de famílias
compostas por pai, mãe e pelo menos um irmão ou irmã. Nenhum deles era filho único.
Quando questionados se os familiares os apoiavam, sempre respondiam
afirmativamente. Apenas um disse-me que a família não tinha “gostado da ideia”, mas
se era o “gosto” dele, apoiariam. O que chamou minha atenção é que 2/3 dos
seminaristas tinham algum parente próximo que era padre, seja um tio, um primo ou
padrinho. E todos eles, desde criança, eram vinculados à igreja do bairro, exercendo
alguma atividade, seja como coroinha ou algo relacionado com os jovens que
frequentam a instituição (grupo de jovens).

Esses seminaristas vêm de cidades, famílias e classes sociais diferentes. A relação


deles com essas estruturas, ao que parece, são responsáveis pelas motivações que os
levam a escolher a vida sacerdotal. As motivações são diversas, desde um “chamado de
Deus”, uma promessa de família que deve ser cumprida ou um meio de ascensão social.

Para entender melhor quem são e quais são as reais motivações, entrevistei-os
tendo como base duas perguntas principais. A primeira era, “Por que decidiu entrar para
o seminário?”; e a segunda, “O que você espera depois de ser ordenado padre?”.
Encontrei quase o mesmo padrão de resposta: “um desejo que não sei como explicar”
(Jvii 20 anos), “acho que Deus tem planos pra mim dentro da Igreja” (P. 19 anos),
“algo começou a mexer no meu coração referente a isso” (T. 31 anos), “fui chamado e
eu respondi a esse chamado” (J. 21 anos). Mesmo sendo “esse chamado” o motriz para
a decisão de tornar-se padre, foi comum ouvir em seguida, que o seminário iria ajudar a
discernir “esse chamado de Deus”. Dando sentido ou (re)significando “esse chamado”.

4
Na segunda questão, as respostas foram sempre à mesma: “estar inserido numa
comunidade” (F. 20 anos), “sentir-me realizado e integrado no meio do povo, sendo
para eles um bom pastor” (K. 18 anos), “fazer a vontade de Deus no meio do povo” (L.
anos), “realizar a vontade de Deus e conduzir o povo a encontra-la” (T. 31 anos). Esta
perspectiva pastor-povo esta presente no discurso desses seminaristas, muito
provavelmente, porque a própria liderança (Arquidiocese) tomou essa posição e por
consequência seus pastores também.

Além disso, “o que se explicita nas iniciações não é o triunfo da autonomia, do


espaço interno e do isolamento, mas a glória do elo e a exaltação do retorno à aldeia
como alguém que renovou sua consciência de complementaridade e o seu débito para
com a sociedade” (DaMatta, 2000, p. 19 – grifo meu). O papel que o seminário faz,
iniciando esses jovens na vida sacerdotal, é o que motiva a experiência de estar fora do
mundo (uma das principais características dos ritos de passagem), e só assim poder
retornar.

Os iniciandos também retornam às suas comunidades com o


aprendizado de que os elos igualitários com os companheiros de
iniciação, a intensidade das emoções e mortificações desnudadas
pela experiência do isolamento, são complementares à condição
de pertencer a uma rede imperativa de parentesco que, em um
sentido preciso, responde a todas as indagações intelectuais e
tem como alvo curar a doença, manter o bem-estar e aliviar o
sofrimento (ibidem).

Outra característica presente nas respostas foi o sofrimento e a resignação.


Ambos atuam na vida do seminarista como consequência ou característica da escolha de
se tornar padre. Como me relatou P, 19 anos, no primeiro dia de minha visita ao
seminário, “aqui é pior do que o exército, tem que ter coragem”. Assim, o candidato a
seminarista antes de ingressar no seminário tem a consciência da existência do
sofrimento durante a formação. Mas, para servir “o Cristo”, ou ainda ser seu
representante na Terra, a existência do sofrimento vai estar presente. “Porque foi Cristo
quem mais suportou sofrimentos, sofreu pela humanidade e, portanto, qualquer outro
sofrimento, seja físico ou moral, sentido por qualquer outra pessoa será menor. E, por
isso, tem que ser suportado” (B. 16 anos). Dessa forma, essa experiência acaba sendo
tomada como “missão”. Ou seja,

5
Os sentimentos em questão certamente são os mesmos
(humilhação, sofrimento, piedade, etc), mas também é certo que
os significados desses sentimentos assumem diferentes contornos
e sombras. Em um a humilhação e o sofrimento são rejeitados e
até mesmo insuportáveis; no outro, desejados. Não só desejados,
mas motivos de orgulho pois fundam toda uma moralidade, um
modo de ser e de sentir (Campos, 2002, p.260).

É o que Roberta Campos ressalta em sua pesquisa com os Ave de Jesus, em


Juazeiro do Norte. Nesse trabalho a autora demonstra como os Ave de Jesus criam sua
sociabilidade. E para isso, busca entender as relações entre sentimentos e valores morais
e a ação dos indivíduos. O conjunto dessas relações geraria, por conseguinte, tanto da
parte dos seminaristas quanto dos Ave de Jesus, o “modo de ser no mundo”.

Estruturalmente os seminaristas formam uma família. Foi o que Padre


Paulo, o vice-reitor, frisou durante uma das refeições: “juntos formamos uma família”.
Observei que qualquer pedido, especialmente o afrouxamento de regras, era feito ao
padre Paulo. Como um dos jovens disse: “ele é uma mãe” (P. 19 anos). E pelo que
pude observar, os seminaristas sempre conseguiam o apoio do padre Paulo. Era evidente
a mediação que o mesmo fazia entre reitor Josivan e os seminaristas. Onde papeis de
atividade e passividade são bem demarcados. A mãe com paciência, tolerância e
abnegação defende os filhos e um pai rígido defende a moral e os bons costumes.
Ambos buscam o bem estar e a felicidade da família. Essa relação era também
vivenciada dentro do seminário, tendo o pai, a mãe, o filho pródigo ou rebelde, o
corajoso e o medroso.

1. Ritos de Passagem: uma questão de conceito viii

É comum ter uma ideia geral para os rituais, imagina-los como algo formal,
rígido e arcaico ou que estão diretamente ligados a determinados cultos ou ao meio
religioso. Essas ideias gerais se mostram, muitas vezes, presentes no cotidiano. Mas na
realidade, os rituais, especialmente os ritos de passagem, estão presentes nos mais
variados espaços de nossa sociedade e de formas múltiplas, desde os mais complexos
aos mais ordinários. E a repetição é o ponto comum de suas variedades. Estes rituais
ajudam a estruturar e organizar a sociedade. Eles conferem status, troca de valores e
posições, controla e legitima a vida social, sejam eles religiosos ou não ix.

6
A antropóloga Mariza Peirano no livro, Rituais ontem e hoje, evita uma
definição de ritual que tenha um caráter rígido e absoluto. Com a intenção de sempre
dar voz ao nativo, Peirano diz que a definição de ritual “precisa ser etnográfica, isto é,
apreendida pelo pesquisador em campo junto ao grupo que ele observa” (2003, p. 9).
Desse modo, suscita a importância do etnógrafo não observar os rituais com os critérios
de sua sociedade, não se deixando levar pelos valores de racionalidade, já que não são
os mesmos para todos os grupos. Deve-se assim, considerar como importante o dia-a-
dia ou ao que é comum a um grupo, já que os rituais ressaltam essas peculiaridades.

É a partir desses pontos chaves que Mariza Peirano x tenta conceituar o que é um
ritual e através deles observar como uma sociedade vive, se pensa e se transforma, pois
“consideramos o ritual um fenômeno especial da sociedade, que nos aponta e revela
representações e valores de uma sociedade, mas o ritual expande, ilumina e ressalta o
que já é comum a um determinado grupo” (ibidem, p. 10).

1.1. Van Gennep, Turner e a Estrutura do Fenômeno

Arnold Van Gennep (2011) divide os ritos de passagem em três etapas: a


primeira consiste em uma separação; segunda, num momento de margem; e a terceira,
na agregação. Consistindo em cada etapa ritos específicos, ou seja, ritos de separação,
margem e agregação. Com a constituição básica dos ritos de passagem, Van Gennnep
deu à devida atenção a todas às fases e de modo algum às dissocia uma das outras.

O autor também discute os problemas e implicações dos ritos e introduz o ritual


e seus mecanismos básicos como um objeto relevante na Antropologia. Assim, o autor
conceitua os ritos de passagem “como um fenômeno dotado de certos mecanismos
recorrentes (no tempo e no espaço), e também de certo conjunto de significados, o
principal deles sendo realizar uma espécie de costura entre posições e domínios”. (Van
Gennep, 2011, p.15).

Esses ritos estão presentes em todas as sociedades. Seja um rito religioso, social,
econômico ou fisiológico ele é um estopim para mudança. Consequentemente, mudança
sempre exige uma resignificação. Suscitando-nos que os ritos de passagem organizam a
sociedade e lhe dão significado. Para vivenciá-lo é preciso estar inserido em um grupo
ou comunidade, ao mesmo tempo em que se pode entendê-lo pela dimensão individual.

7
Mas, necessariamente, um rito de passagem só consolida-se se existir a participação
dessas duas esferas, o indivíduo e o grupo. E deste modo nos diz que “para os grupos,
assim como para os indivíduos, viver é continuamente desagregar-se e reconstituir-se,
mudar de estado e de forma, morrer e renascer. É agir e depois parar, esperar e repousar,
para recomeçar em seguida a agir, porém de modo diferente” (ibidem p. 160).

Então, para a circulação de indivíduos entre uma sociedade leiga e uma


sociedade religiosa é necessário satisfazer algumas condições. Essas condições podem
ser entendidas como ritos de passagem, pois é através deles que são expressos os
mecanismos sentimentais e mentais desta circulação, sendo o estágio intermediário entre
profano e sagrado.

Igualmente, “para um indivíduo que é leigo tornar-se sacerdote, ou


inversamente, é preciso executar cerimônias, isto é, atos de um gênero especial, ligados
a certa tendência de sensibilidade e a determinada orientação mental.” (ibidem, p.23).
Então, pode-se pensar e considerar o propedêutico, de um certo ponto de vista, o estágio
pré-liminar, ou como dito antes, a primeira condição para a circulação dos indivíduos
entre mundo leigo e o mundo clerical. Suscitando assim, que “entre o mundo profano e
o mundo sagrado há incompatibilidade, a tal ponto que a passagem de um ao outro não
pode ser feita sem um estágio intermediário.” (ibidem, p.23).

Influenciado pelas teorias de Van Gennep, Victor Turner estudou os rituais de


iniciação entre as meninas ndembu do Zimbabwe (África Central), reelaborando o
conceito de liminaridade. O autor analisa os símbolos que indicam a invisibilidade dos
neófitos submetidos aos ritos de passagem. Sendo eles, os responsáveis pelo acesso a
um novo status, seja a participação em um grupo exclusivo ou numa sociedade secreta.
Para tal, os noviços precisam ser “nivelados e despojados de todas as distinções
profanas de posição social e de direitos sobre a propriedade” (Turner, 1974, p. 205).

Os ritos de passagem sistematizam as novas formas de comportamento do neófito


ou iniciado. Moldam, estruturam e simbolizam. E para isso, os neófitos viveriam numa
condição de ambiguidade, ou seja, todas as categorias antes vividas são colocadas em
prova. E isso caracterizaria os indivíduos como nem vivos nem mortos, como invisíveis.
Desse modo, como afirma Turner, “o ritual é transformador; a cerimônia,
confirmatória” (Turner, 2005, p.139).

8
Uma dentre outras características que Victor Turner atribui a esse estado de
invisibilidade é a dos neófitos não possuírem nada nesse momento. “Não têm status,
propriedade, insígnia, vestimenta secular, graduação, posição de parentesco, nada que
possa distingui-los, estruturalmente, de seus companheiros” (ibidem, p. 143). É nesse
sentido que Turner descreveu o que chamou de “communitas”. Esse termo pode ser
entendido como um grupo, uma comunidade, uma comunhão homogênea de indivíduos
submetidos ao mesmo processo ou conjunto de ordens e a uma autoridade.

É na conjunção dessas duas perspectivas, citadas acima, que irei interpretar os


dados colhidos em campo. Para isso, adotei o ponto de vista de Reesink (2012),
perspectiva que, para essa autora, compreende a flexibilidade das etapas dos ritos de
passagem. Para essa interpretação, Reesink xi centrou sua atenção na variedade de ritos
católicos e na maior ou menor intensidade da prática ritual realizada pelos católicos de
Casa amarela (Recife-PE). Permitindo a autora elaborar o modelo denominado de “o
complexo ritual fúnebre católico”xii.

Nesse sentido, a estrutura ritual é flexível, podendo ser classificada como


ambivalente (ou mesmo até polivalente), a partir do ponto de vista que é analisada.
Igualmente, o propedêutico assumiria, nessa interpretação, essa classificação. Mesmo
como rito de separação, esse rito pode assumir características de rito liminar. Partindo
dessa interpretação, destaco Reesink, ao afirmar que “quando se fala [...] desses ritos de
passagem leva em conta que eles não são elaborados apenas a partir de uma única
posição de referência, mas de várias, que se superpõem [...]” (ibidem, p.368). Assim, a
estrutura processual pode assumir algumas recomposições. O propedêutico, dentro de
uma visão geral do rito de passagem, é percebido como um rito de separação. Porém, se
o observarmos isoladamente, veremos que ele também pode ser considerado (ou possui
também) um estado liminar. Pois, no propedêutico, o jovem é separado da sociedade e
do grupo em que vivia (rito de separação), mas também começa viver uma nova vida,
despojando a anterior. E isso é uma característica do estado liminar.

Para melhor visualizar, esquematizei a estrutura ritual. Na imagem que segue,


visualizasse o propedêutico como rito de separação.

9
Porém, na imagem abaixo, o propedêutico, num segundo momento, assume as
características do estado liminar.

É a partir da liminaridade dos ritos que o individuo é rebaixado para, logo após,
ser readmitido em um novo status. Então, para o seminarista ser admitido para a
próxima etapa de formação, o noviciadoxiii, ele invariavelmente teria que passar pela
liminaridade. Mas como dito antes, numa visão geral do rito de passagem de formação
de um seminarista, o noviciado é que representa essa liminaridade. Portanto, as etapas
rituais se recompõem segundo a posição que ocupam no momento ritual, ou seja,
“existem inúmeras modalidades de separação e de agregação, e, portanto, variadas
situações de margem” (ibidem, p.369).

1.2. Goffman e o Contexto do Fenômeno

Erving Goffman (1974) conceitua o que se chama de instituição total. Esse


conceito contextualiza em que tipo de instituição vive os seminaristas. Goffman
demonstra que todo e qualquer novo recluso ou noviço é submetido a uma série de
procedimentos e de rituais, como as cerimônias de admissão e o aprendizado das
rotinas, que tendem a limar à sua individualidade, à sua ligação ao mundo exterior, à sua
memória e a sua vontade própria. Para Goffman, uma instituição total seria:

10
[...] um lugar de residência e de trabalho onde um grande
número de indivíduos, colocados numa mesma situação, cortados
do mundo exterior por um período relativamente longo, levam em
conjunto uma vida reclusa segundo modalidades explícita e
minuciosamente regulamentadas (Goffman, 1974, p.41).

Goffman apontou como característica fundamental das instituições totais a


ocorrência de nesses “universos” fechados se encontrarem “suspensas” as barreiras que
quase sempre separam às várias esferas de vida do indivíduo, estando elas submetidas a
uma gestão e a uma autoridade comuns, e onde os participantes são os mesmos, daí que
deriva o adjetivo total.

Utilizo o conceito de instituição total como modelo de interpretação, uma vez que, é
possível identificar, características que evidenciam o tipo de instituição à que estão
submetidos os seminaristas. Embora, entendo que a realidade pode ou não se aproximar
deste modelo.

Dessa forma, a palavra de ordem dentro do Seminário é disciplina. Ela é instituída a


partir da rotina. Cada seminarista tem atividades pré-definidas e tendo toda
responsabilidade pela execução da mesma. Por exemplo, qualquer descumprimento de
regra dentro do Seminário, qualquer fraqueza ou dificuldade de um repercute no outro,
no grupo. Foi isso o que me relatou B, 18 anos, num momento de “fofoca”, disse-me
que na noite anterior todos teriam recebido um castigo, no dia seguinte só tomariam
água e comeriam pão. Já que teriam descumprido uma das regras do Seminário. Disse-
me, que o reitor teria estabelecido que logo após os estudos da tarde, todos teriam que
estar prontos para o jantar, mas não foi isso que ocorreu. Segundo ele, alguns dos
seminaristas ficaram “passeando” pelo seminário e “perderam a hora” do jantar. Visto
que o reitor não estava no seminário. Mas todos se enganaram, ele estava lá, estava na
capela e tinha visto toda a algazarra. “Pronto, todos estavam ferrados” (B, 18 anos).
Foi o que exatamente ocorreu, os três seminaristas que tinham provocado à “desordem”,
foram punidos, porém todo o grupo também foi. Pois, como parte do sistema de regras,
todos vigiam todos. E como isso não aconteceu, todos estariam culpados. Uma vez que
“nos ritos de iniciação, os neófitos dramaticamente conjugam individualidade e
coletividade, pois neles se reafirma que coletivo e individual constroem-se
simultaneamente, sem fendas, descontinuidade ou separações” (DaMatta, 2000, p. 19).

11
Igualmente, pode ser demonstrado por uma situação observada nas primeiras visitas
ao seminário, logo após a chegada dos seminaristas à instituição. Dos doze seminaristas,
três tinham medo de dormir sozinhos em seus quartosxiv, já que a instituição tem
alojamento individual para todos. De tal modo, o padre-reitor designou que os que
estavam com medo de dormi sozinhos escolhessem outro seminarista para dormirem no
mesmo quarto, até que o medo fosse perdido. A justificativa é que em suas casas eles
não possuíam um quarto para si, sempre dividindo com irmãos, parentes ou os pais. E
como deveriam desenvolver a união, o companheirismo e a caridade, teriam que
sacrificar a intimidade dividindo o quarto para ajudar o “irmão” de formação.

Toda a divisão e estruturação física do Seminário contribuem para o isolamento e ao


mesmo tempo à dependência. O seminarista precisa cumprir a demanda de leituras,
regras e posturas, mas sozinho não consegue. A demanda da organização, limpeza e
tarefas dentro do seminário o impede de realizar sozinho, necessitando da cooperação
dos demais. Porém, mesmo sendo essas atividades coletivas, o seminarista se mantém
isolado, preso na sua própria experiência. O Seminário cria uma atmosfera de
isolamento, mesmo o individuo estando em um grupo e realizando atividades em
conjunto.

Assim, podemos suscitar que a assimilação institucional provocaria a


despersonalização, a degradação da identidade pessoal e a perda de autonomia. Ainda
poderíamos acrescentar que rendidos à instituição e reduzidos a membros, os
seminaristas tornam-se, ao fim deste processo, extremamente dependentes da instituição
que os moldaram e os acolheram. Possivelmente, tornando-se incapazes de enfrentarem
outros ambientes ou de neles (re)fazerem às suas vidas.

1.3. Bourdieu e a Aquisição Cognitiva do Fenômeno

Para compreender como se dá o processo de aquisição cognitiva da formação do


seminarista, é interessante observarmos o conceito de habitus, desenvolvido por Pierre
Bourdieu (2000). Vale salientar que não aprofundarei a discussão e a sua aplicação em
relação aos dados, mesmo me auxiliando como orientador em campo. Vide a
necessidade de observar todo o período de formação xv.

Então, para Bourdieu, de modo geral, habitus seria um conhecimento adquirido, um


capital. Ou em suas palavras, “um sistema de disposições duráveis e transponíveis que,

12
integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz
de percepções, de apreciações e de ações” (2000, p, 65). Seria, então, o princípio
gerador e estruturador das práticas e das representações.

Partindo disso, pode-se dizer que os seminaristas estão imersos num sistema de
disposições socialmente constituídas. E esse sistema é o princípio que gera e unifica as
práticas e as ideologias que caracterizam esse grupo. Portanto, seria esse sistema
subjetivo que conduz toda a visão de mundo e o estilo de vida desses seminaristas.

Se pensarmos habitus como condicionamentos que são associados a um


determinado grupo de categorias de existência, podemos perceber que ele é adquirido
durante todo o processo dos ritos de passagem. Apenas sendo completa a sua aquisição
ao fim do rito de passagem. Em outras palavras, já na fase de separação do rito de
passagem o seminarista começa a vivenciar o habitus sacerdotal, se assim podemos
chamar, mas ele só será “incorporado” ou vivido em sua plenitude ao fim do rito de
passagem, ou seja, na ordenação. É aí que o seminarista receberá suas novas
responsabilidades. E assim, mesmo não tendo observado todas as etapas de formação,
suscito que o propedêutico, o noviciado e a ordenação são os três polos constitutivos
que instituem novo o habitus.

Por fim...

Assim, partir das observações, pude perceber que os ritos de passagem se dão numa
microestrutura (rituais cotidianos), nos pequenos acontecimentos do dia. E sendo os
macroacontecimentos (as cerimônias) os marcadores sociais de grande escala,
necessários para sinalizar e demarcar o novo status – seria uma espécie de “termômetro
social”.

Portanto, os rituais vividos nos ritos de passagem dos seminaristas estariam no


cotidiano vivido no Seminário, fazendo-o vivenciar mimeticamente o novo status. E
após, vivenciar a exibição ritual ou exibição social do rito. Dessa forma, o seminarista é
“convidado”xvi a exercer o papel de sacerdote ainda estando dentro do Seminário. A
rotina, as tarefas a serem executadas, as provas a serem realizadas para obter bons
resultados e as horas de estudo são a apreensão cotidiana do que é exigido de um futuro
sacerdote. Para enfim, não mais apreender e sim, ser.

13
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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14
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15
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ZALUAR, Alba. “Teoria e Prática do trabalho de campo: alguns problemas”, In


CARDOSO, Ruth. A aventura Antropológica: Pesquisa e Teoria. São Paulo, Editora
Paz e Terra, 2004.

i
O presente artigo nasceu de algumas reflexões oriundas de minha monografia de conclusão de curso.
ii
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco, mestrando em An tropologia
pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da mesma Universidade e integr ante do Núcleo das
Religiões Populares – NERP/UFPE. E-mail: ar lindo.n etto@hotmail.com
iii
A segunda fase consiste no noviciado, esse não sendo abordado aqui, mas com intenções futur as.
iv
Fernandes (2005), por exemplo, aborda a não ordenação feminina no catolicismo a partir da ótica de
jovens seminaristas e moças que desejam ingressar em conventos. Trata-se de um estudo sociológico e
qualitativo que analisa comparativamente as percepções de rapazes e moças sobre as relações de gên ero
na Igreja Católica. A autora, mesmo não tendo os seminaristas como foco exclusivo de análise, é a que
mais se aproxima dessa perspectiva.
v
Segundo o CERIS (Centro de Estatística e Investigações Sociais) em números absolutos, havia, no ano
de 2000, um total de 8.659 seminaristas ligados às dioceses brasileiras e 3.393 vinculados aos institutos
religiosos. No momento não existem dados atuais.
vi
Dessa maneira, esses encontros podem ser considerados, levando em consideração a perspectiva de
flexibilidade das etapas dos ritos de passagem, como os momentos de separação antes de ingressarem no
Seminário. Dando, por assim dizer, ao propedêutico, um caráter de margem. Mais uma vez, a perspecti va
de Reesink (2012) mostra-se de acordo com os dados coletados, destacando que a estrutura dos ritos de
passagem (aqui observados), pode ser considerada como polivalen te.
vii
Os nomes foram suprimidos, mantendo apenas as in iciais.
viii
Minha intenção, aqui, se resume a demonstrar qual a perspectiva do conceito de ritual eu assumo. Não
tendo como objetivo fazer uma discussão sobre a literatura especializada.
ix
Por exemplo, Claude Rivière, em seu livro, Os ritos profanos (1977), foge à regra e não estuda os r itos
considerados sagrados. O autor analisa os ritos profanos, os ritos que estão presentes no cotidiano. En tr e
eles estão os ritos escolares, os ritos de ordem, os ritos de atividades, etc. Rivière destaca a impor tân cia
desses ritos para a formação da identidade da criança. Na contemporaneidade esses rituais podem ser
observados claramente, por exemplo, os trotes aos novos alunos que entram na universidade ou a
formatura escolar. Todos esses ritos marcam a perda de um status e a aquisição de outro, trazendo com
eles novas r esponsabilidades.

16
x
Organizadora da coletânea O dito e o feito: ensaios de Antropologia dos Rituais (2002). Na pr imeir a
parte do livro, Peirano, através de trabalhos do antropólogo Stanley Tambiah, enuncia na discussão o
ritual como instrumental analítico e como manifestação nativa, que deve ser percebida pelo antropólogo e
por uma tradição de renovação da antropologia pelo diálogo com as etnografias clássicas e r efer en ciais
teóricos diversos.
xi
A autora busca, a partir dos moradores de Casa Amarela, em especial, compreender a cosmologia
católica, conjugada à representações e aos rituais de morte.
xii
“Compreendendo este tanto ritos de passagem, quanto de ‘oblação’” (Reesink, 2012, p.368).
xiii
Estudo da Filosofia e Teologia.
xiv
Segundo o reitor, a quantidade de seminaristas serem a mesma quantidade de quartos não foi
intencional, foi apenas uma coincidência. Visto que no seminário maior, eles dividem quartos. Para o
reitor, isso não representa, necessariamente, um problema. Apenas obra do acaso.
xv
Segundo o reitor, a quantidade de seminaristas serem a mesma quantidade de quartos n ão foi
intencional, foi apenas uma coincidência. Visto que no seminário maior, eles dividem quartos. Par a o
reitor, isso não representa, necessariamente, um problema. Apenas obra do acaso.
xvi
Dependendo do ponto de vista de quem analisa, poderiam ser usados termos como: coagido,
constrangido, imposto, etc.

17
1

PADRE JONAS ABIB E UMA NOVA CANÇÃO: O CARISMA DO LÍDER E SEU


PAPEL NA COMUNIDADE CANÇÃO NOVA

Manoel Pedro Ferreira Neto1*


Dilaine Soares Sampaio de França2**

Resumo:
Este artigo pretende apresentar relações entre o papel exercido pelo líder e fundador
da Comunidade Canção Nova, o Padre Jonas Abib, e os fundamentos da Sociologia da
Religião, com ênfase nos conceitos de carisma desenvolvidos por Max Weber. O
objetivo principal será compreender como e se é possível encontrá-los no
comportamento do religioso, através da análise de mensagens selecionadas em seu
sítio eletrônico e da observação de sua trajetória. Num primeiro momento, um breve
histórico de sua atuação pastoral, sobre seu ingresso no movimento carismático, o
início da comunidade fundada por ele e a escolha pelo setor das comunicações para o
aparato de evangelização. Segue-se uma breve contextualização sociocultural da
igreja no século XX no que diz respeito ao incentivo do trabalho pastoral da renovação
carismática católica e sua aceitação por parte desta instituição. Num segundo
momento, faremos uma análise em busca de conexões entre as falas do religioso e os
conceitos weberianos sobre o tema, objetivando confrontar as orientações e posturas
do religioso com os conceitos de “carisma” e “líder carismático”.

1. Introdução
Numa tarde de domingo, ao acompanhar a programação da televisão aberta
brasileira, deparei-me com uma cena interessante – para não dizer diferente. Tratava-
se de um ginásio repleto de fiéis em louvor e oração, durante um acampamento de
oração na comunidade carismática Canção Nova3, liderada pelo Padre Jonas Abib.
Numa música de sua autoria, os presentes entoavam a letra em escalas musicais
diversas e até desafinadas, porém, com o entusiasmo de liderados e seguidores do
carisma emanado pelo interlocutor, que entre uma fala de motivação e outra, narrava
os seguintes versos, que eram cantados em sua totalidade pela assembleia:

Quero transformar numa canção


As juras de amor
por ti meu Deus
entraste em minha vida sedutor
já não sei viver

*
Mestrando em Ciências das Religiões – UFPB. Graduado em Comunicação Social com Habilitação em
Publicidade e Propaganda (IESP).
**
Professora Adjunta do Departamento de Ciências das Religiões da UFPB e de seu Programa de Pós-
Graduação em Ciências das Religiões – PPGCR.
1
Este artigo é fruto de um trabalho de aproveitamento realizado para a disciplina Sociologia Clássica
da Religião, ministrada pela Profª. Drª. Fernanda Lemos, no segundo semestre de 2012, no Programa
de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba. O texto sofreu
modificações, através do trabalho de orientação da co-autora para ser apresentado neste evento.
2
Sobre os acampamentos de oração na comunidade Canção Nova, ver informações disponíveis em:
http://www.cancaonova.com/portal/canais/eventos/novoeventos/ac_estrutura.php?cod=6&ti=Acamp
amento%20de%20ora%E7%E3o Acessado em 10/12/2012
3
Sobre os acampamentos de oração na comunidade Canção Nova, ver informações disponíveis em:
http://www.cancaonova.com/portal/canais/eventos/novoeventos/ac_estrutura.php?cod=6&ti=Acamp
amento%20de%20ora%E7%E3o Acessado em 10/12/2012.
2

sem teu amor


tudo te entreguei, nada me restou
livre eu fiquei
para te amar, meu Deus
tudo me pediste, nada te neguei
hoje sou feliz
assim tenho a ti
meu Deus.
(Padre Jonas Abib – “Quero Transformar numa Canção”)4 5

Em meio à emoção latente dos presentes ao ginásio, aos closes das câmeras de
televisão e aos agudos pronunciados pelo líder da assembleia, a letra da música cria
vida e fala diretamente de alguém que largou tudo o que possuía e se fez “livre” para
o trabalho na Igreja – devemos compreender que neste caso, especificamente, na
comunidade carismática em questão –, e como bom fiel, entrega sua vida e suas
orações através de juras de amor a Deus, por meio de uma canção. Percebe-se
claramente o discurso dionisíaco6 de uma figura religiosa que fundou uma comunidade
católica e ergueu um “império” no ramo das comunicações, com representações fortes
nas mídias eletrônicas, impressas e audiovisuais, além de gráfica, produção
fonográfica7 e casas de missões instaladas em diversas localidades do planeta.
O carisma do Padre Jonas Abib pronuncia-se claramente em sua postura de
fundador, líder e pregador à frente da Comunidade Canção Nova, sediada no interior
de São Paulo, na cidade de Cachoeira Paulista, diocese de Lorena. O talento de
arrebanhar multidões com eloquentes pregações, que versam sobre temas atuais,
históricos ou simplesmente conselhos dados aos diversos grupos da sociedade,
através dos acampamentos de oração ou de suas publicações mensais no sítio
eletrônico da comunidade, é digno de apreciação e estudos.
Diante desse quadro, se fez necessário alimentar a curiosidade benéfica de
conhecer sua interação com os fiéis e liderados, bem como a história de vida e
formação religiosa em questão, dentro dos preceitos de carisma discutidos pelos
teóricos das Ciências Sociais.
Vale salientar que o papel de líder carismático exercido pelo Padre Jonas o
coloca no centro de importantes questionamentos, o que se percebe nos
acampamentos de oração e nas pregações em celebrações eucarísticas ou mesmo nas
revistas, livros e sítio eletrônico. Ao tratar de temas polêmicos, como aborto, métodos
contraceptivos, relações sexuais e identidade de gênero, o líder carismático, que
“vende” uma “Canção Nova”, apresenta as mesmas “canções antigas” já conhecidas,
isto é, seu discurso não apresenta grandes distinções daquele presente na “igreja

4
Letra extraída do site http://letras.mus.br/. Acessado em 10/12/2012.
5
Grifos meus.
6
Dionisíaco refere-se ao apelo da emoção, contudo não pretendemos aprofundar este conceito neste
artigo.
7
Disponível em: http://cancaonova.com/. Acessado em 07/12/2012.
3

tradicional” enquanto renovação carismática8. Mas esse aspecto em especial não


compõe a problemática principal, tampouco o foco desse estudo, apenas acrescenta
aos conceitos que devem ser estudados, o questionamento a respeito da tradição
versus o carisma do líder. Não iremos aqui discorrer acerca do movimento carismático
mas trataremos do carisma da liderança em questão.
Tentaremos, no decorrer deste artigo, observar o perfil apresentado pelo Padre
Jonas Abib e sua atuação enquanto líder carismático sob a orientação teórica de um
dos “pais” da Sociologia, Max Weber. Isso se dará através da análise de material
coletado no sítio eletrônico do religioso9, particularmente, nos deteremos às pregações
mensais divulgadas e buscaremos lê-las a partir dos escritos weberianos em relação
ao que se pode compreender – dentre os aspectos inerentes ao tema – por carisma.
O critério para escolha do material se deu de acordo com o título da mensagem
e o ano de sua publicação na internet. Foram selecionadas três mensagens que
haviam sido divulgadas em anos distintos, buscando assim uma compreensão acerca
da possibilidade de possíveis mudanças em nuances discretas no discurso do religioso.
Num primeiro momento, será apresentado um breve histórico de atuação do
Padre Jonas Abib, buscando compreender e confrontar as informações levantadas com
o contexto histórico e social, caminhando entre vias delicadas – compreendam-se por
delicadas as vias sobre as quais não iremos nos aprofundar, mas apenas tecer
comentários apresentando posições de alguns autores a respeito – objetivando uma
melhor compreensão acerca do tema. Galgando mais degraus o diálogo com teóricos
da Sociologia da Religião e da Comunicação contribuirão no entendimento da escolha
do líder pelo setor das comunicações.
Num segundo momento, procuraremos estabelecer conexões entre as falas do
religioso em suas mensagens, objetivando confrontar as orientações e posturas do
religioso com os conceitos inerentes ao tema “carisma” e “líder carismático”, de
acordo com as orientações weberianas.
A partir disso, será possível observar como o papel do líder carismático em
questão atua na contemporaneidade, bem como sua importância para a fundação e
continuidade do trabalho na comunidade Canção Nova.

2. Padre Jonas Abib e sua nova canção


Natural da cidade de Elias Fausto, interior do Estado de São Paulo, o Padre
Jonas Abib, cresceu numa região simples de São Paulo, estudou em colégios católicos
e ingressou na ordem salesiana, através da qual foi ordenado padre em 1964.

8
Não se deve aqui confundir a expressão “renovação carismática” com a figura do “líder carismático”,
esta última se aplica nesse artigo unicamente através da análise e estudo dos conceitos weberianos.
9
Ver www.padrejonas.com , acessado em 10/12/2012.
4

Dedicou-se ao trabalho com os jovens e ao desenvolvimento das habilidades de


música, comunicação e artes no geral. Organizava encontros de jovens e retiros de
espiritualidade e em 1971 participou de um evento no qual teve seu primeiro contato
com a renovação carismática católica10 e, a partir daí, deu início ao trabalho de
pregação, batismo no Espírito Santo e ao traçado de ideais e objetivos que se
configura hoje como o sistema Canção Nova de comunicação.
Sua trajetória enquanto líder teve início com a realização de reuniões para
oração e demais encontros com os jovens da região, com o intuito de batizá-los no
Espírito Santo. Com a grande frequência de participantes surgiu a necessidade de um
local fixo para os encontros e reuniões, originando dessa forma, a primeira casa de
missão.11 Sobre a consolidação das diretrizes de sua missão, vale destacar:
A partir de um encontro, em 1976, com Dom Antônio Afonso de Miranda,
na época bispo de Lorena (SP), nasceram as bases evangelizadoras da
Canção Nova. Chamado ao escritório episcopal, padre Jonas, então com 37
anos, recebeu a missão de colocar em prática a Exortação Apostólica
“Evangelii Nuntiandi”: Evangelização no Mundo Contemporâneo, assinado
pelo Papa Paulo VI em 8 de dezembro e publicado em 21 de dezembro de
1975. O Santo Padre reconhecia no item 44 desse documento que “os
batizados não são evangelizados” (CANÇÃO NOVA, 2008).

Para o contexto social da igreja católica, a exortação apostólica Evangelii


Nuntiandi representa um marco em relação à evangelização e disseminação dos
conceitos, dogmas e valores da religião católica no século XX. Não iremos, neste
artigo, nos ater ao estudo deste documento. Deveremos nos ater ao seu papel e ao
carisma desempenhado em sua função – buscaremos conhecer os aspectos presentes
da teoria weberiana para a realidade do líder em questão, perpassando simples e
unicamente demais conceitos inerentes a este entendimento. Num próximo momento
iremos discutir a respeito do contexto no qual surgiu a comunidade Canção Nova, bem
como a aceitação da renovação carismática católica por parte da igreja.
Sob sua liderança, foi fundada no ano de 1980 a rádio Canção Nova, e a partir
do ano de 1989, tiveram início os trabalhos da retransmissora de TV da comunidade
religiosa12. De acordo com seu fundador, a comunidade se diferencia das demais –
leia-se neste sentido sua diferenciação em relação às comunidades católicas
carismáticas, no que a igreja católica classifica como novas comunidades – pelos
recursos em relação aos meios de comunicação:
O que a Canção Nova tem de mais forte são os meios de comunicação. O
restante são estruturas que qualquer comunidade poderia ter. Nós temos a
graça de ter os meios que Deus nos deu e comunicar um Senhor vivo e

10
Deve-se compreender como Renovação Carismática Católica o movimento surgido em 1967 nos
Estados Unidos, durante retiro espiritual realizado na Universidade de Duquesne, em Pittsburgh,
Pensylvania. O movimento conta com a fé de seus adeptos e seguidores aos dons do Espírito Santo.
Fonte: http://rccbrasil.org.br, acessado em 13/12/2012.
11
CANÇÃO NOVA: Como Nascemos? Disponível em: http://comunidade.cancaonova.com/como-
nascemos/, acessado em 10/12/2012.
12
Ver PADRE JONAS. Disponível em: http://www.padrejonas.com/, acessado em 10/12/2012.
5

vivenciado por nós. É o presente que o mundo mais almeja, porque isso
corresponde à sua maior necessidade (ABIB, 2008).

Sobre o discurso de se tratar de uma nova canção, de uma modificação por


parte do líder carismático, Weber acrescenta:
Em vez da piedade diante dos costumes antiqüíssimos e por isso sagrados,
exige o carisma a sujeição íntima ao nunca visto, absolutamente singular, e
portanto divino. Neste sentido puramente empírico e não-valorativo, é o
carisma, de fato, o poder revolucionário especificamente "criador" da
história (WEBER, 1999, p.328).

Criando-se a história, abre-se a possibilidade concreta de narrar a vida e


difundir conhecimentos, carismas e, sobretudo, os conceitos inerentes à catequização
constante e massificada. Seguindo os preceitos da igreja católica, visto a abertura
apresentada pelo Papa João Paulo II em relação aos novos meios de difusão do saber
eclesial:
O Papa João Paulo II recompôs a autoridade da Igreja centralizada em
Roma e ganhou projeção, inclusive como vulto político de relevância
internacional. Os seminários voltam a ter um público maior de pessoas com
vocação religiosa e a Igreja deixa-se revitalizar por movimentos leigos,
porém controlados de perto (NEGRAO, 2005, p.28).

Buscando esta revitalização dos movimentos leigos, ao final dos anos 70, foi
construído um sobrado numa faixa de terreno que fora doada e a partir daí foram
adquiridos mais lotes e construída a estrutura que se configura atualmente como a
comunidade religiosa em questão, situada na cidade de Cachoeira Paulista, interior de
São Paulo (CANÇÃO NOVA, 2008). De acordo com informações da própria
comunidade:
Depois de alguns anos, com a Divina Providência, foram adquiridas mais
terras e hoje o local conta com cerca de 372 mil m², onde fica o Centro de
Evangelização Dom João Hipólito de Moraes (para 70 mil pessoas); o
Rincão do Meu Senhor (para 4 mil pessoas); e o Auditório São Paulo (para
700 pessoas). Além de capelas; posto médico; escola; restaurante;
padaria; postos bancários; lojas de artigos religiosos; pousada; área de
camping e, no entorno, prédios administrativos e obras sociais (CANÇÃO
NOVA, 2008).

Percebe-se com isso que foi edificada uma grande obra e sobre o poder
alcançado pelo carisma em relação à vida cotidiana e, por conseguinte, ao alcance da
comunicação, se faz necessário compreender por que razão pode ter sido escolhida a
comunicação como o “diferencial” desta comunidade, conforme afirmam Breton &
Proulx:
A emergência da ideia de comunicação foi, portanto, inseparável de uma
vontade de redefinir as relações do homem com o mundo material e com a
criação. A comunicação tornava-se de imediato um modo de definição
universal que servia para descrever toda atividade organizada (BRETON &
PROULX, 2002, p, 89).

Pode-se ponderar a possibilidade da necessidade latente de uma


redemocratização da informação no sentido religioso, inerente ao crescimento da ideia
6

e à fundamentação metodológica apresentada continuamente pelo sistema, que se


apresenta de forma íntegra e aberta, tendo seu título uma força sonora marcante.
A escolha do nome “Canção Nova” foi feita pelo Padre Jonas Abib durante retiro
de oração para designar um grupo de trabalho interno. Contudo, em virtude da
sonoridade do nome, foi feita a escolha e a Associação foi registrada no ano de 1975.
Chalita, ao entrevistar o líder carismático, registrou uma fala que justifica a escolha do
nome da comunidade:
Depois da experiência do batismo no Espírito, da nova relação com a Bíblia,
tudo o que foi acontecendo comigo fez com que mais aquilo, que era
simplesmente um nome bonito, adquirisse ressonância no meu íntimo. Para
mim Canção Nova dizia tudo o que a Bíblia diz, especialmente em Isaías.
Canção Nova, o cântico dos remidos. O cântico dos homens novos. O
cântico do mundo novo. O próprio pessoal dos Encontros não estava ligado
ao nome Canção Nova. (...) E ficou. Para mim, na verdade, foi inspiração e
escolha de Deus, muito mais que minha (CHALITA, 2006, p. 216).

No que diz respeito ao sistema de mídia e difusão do conhecimento, Breton &


Proulx contribuem afirmando que:
Os conteúdos difundidos pelo sistema da mídia não aparecem todavia
unitários: eles são heterogêneos e ambíguos. Neles se encontram
mensagens com orientações ideológicas diversas e contraditórias, marca,
segundo certos difusores, de sua objetividade. Alias, é a logica do lucro
fundada na espetacularização da informação que levará os difusores a
difundir o discurso espetacular dos oponentes: por exemplo, a eficácia do
terrorismo contemporâneo seria amplamente fundada nessa lógica de
amplificação midiática (BRETON & PRAULX, 2002, p, 188).

São reafirmados aqui os conceitos de divulgação e difusão de ideologias,


aplicados especialmente neste âmbito no que diz respeito aos valores religiosos
católicos carismáticos, com a realização de encontros que acolhem as diversas
camadas da sociedade, bem como uma diversificada programação audiovisual voltada
a atender as necessidades de um público alvo que compõe uma grande segmentação
de mídia. Acrescentam Montero & Almeida:
Os meios de comunicação e os grandes ritos de massa em estádios têm
contribuído para a formação de um verdadeiro circuito econômico-religioso
que, nos casos dos pentecostais, movimenta bilhões de dólares. Trata-se
de um movimento de retroalimentação que envolve meios de comunicação,
relações politicas institucionais e a formação de um mercado consumidor.
Uma série de produtos que atendem às várias demandas da crença, tais
como discos, literatura, programação televisiva, educação, saúde etc., está
disponível para o consumo imediato dos fieis, criando um circuito
econômico e simbólico muito mais amplo e variado do que aquele que a
Igreja católica havia inaugurado com a comercialização de terços,
escapulários, velas e medalhas (MONTERO & ALMEIDA, 2000, p.337).

Numa sociedade da informação e da cultura do espetáculo, entendemos que a


formação salesiana de Padre Jonas Abib pode ter influenciado o caminho do líder, haja
vista que a congregação de Dom Bosco prima pela assimilação de conceitos através da
valorização dos talentos do indivíduo e considera os meios de comunicação como
7

importantes à evangelização.13 Essa influência, seja ela subconsciente ou consciente,


pode ter contribuído para que Abib tenha decidido direcionar os trabalhos de pastoral
de sua nova comunidade aos veículos de comunicação. Sobre o surgimento de
movimentos carismáticos de origem artística, afirma Weber que:
É tão consequente a ideia de modernos movimentos carismáticos de
origem artística, segundo a qual certos "autônomos sem profissão" (na
linguagem cotidiana: rentistas) são, em regra, os sequazes mais
qualificados do portador da vocação carismática quanto o era o
mandamento de pobreza para o frade medieval, que exigia, do ponto de
vista econômico, exatamente o contrário (WEBER, 1999, p.325).

No que diz respeito à comunidade Canção Nova, é informado em suas mídias


que não há vínculo comercial privado. No que diz a esse respeito, todos os produtos
comercializados têm renda revertida para a manutenção de sua estrutura14. Os
grandes eventos promovidos são fonte de programação audiovisual e impressa,
atendendo a demanda de público e principalmente aos preceitos estabelecidos pelas
determinações eclesiásticas. Não nos cabe aqui discutir a respeito da forma de
contribuição e captação de recursos por parte das denominações cristãs. Contudo, o
circuito econômico e simbólico presente no sistema em questão apresentam-se como
necessários à manutenção e funcionamento de suas demandas.

2.1. Contexto social da Igreja Católica no início da trajetória carismática do


Padre Jonas Abib
Faz-se necessário pontuar a respeito do panorama sociocultural de então,
contextualizando o surgimento da comunidade Canção Nova e o crescimento do
movimento religioso Renovação Carismática Católica – vivenciado pela igreja católica
no preâmbulo da massificação de uma crise religiosa, perpassando décadas, num
amalgamado de fatos inerentes a contextualização sociopolítica e histórica do Brasil.
Comentaremos ainda sobre o papel do documento Evangelii Nuntiandi. O Papa, ao
publicar este encaminhamento pastoral, acentua a importância de reintroduzir a Igreja
no patamar ocupado outrora na práxis popular. Sobre este período, Negrão contribui:
Nas décadas de 1960 e 1970, em âmbito internacional, o que também
repercutiu no Brasil, o desencantamento e a secularização emergiram de
forma contundente (...). Vivia-se o período da “crise das instituições
religiosas produtoras de sentido”, das igrejas vazias, da crise de vocações
religiosas para o sacerdócio, da perda da influência das autoridades
religiosas e, no Brasil, do abandono da Igreja Católica por parte de padres
que se engajavam em movimentos políticos (NEGRÃO, 2005, p.28).
No Brasil, esse panorama da tão discutida secularização15 a qual se refere
Lísias Negrão, reflete num conceito de igreja mais consciente da situação

13
Ver a esse respeito: SALESIANOS DE DOM BOSCO. Disponível em: http://www.sdb.org/pt,
acessado em 10/12/2012.
14
Ver MEIOS DE COMUNICAÇÃO. Disponível em: http://comunidade.cancaonova.com/meios-de-
comunicacao/, acessado em 10/01/2013.
15
Embora o termo secularização seja bastante controverso, possuindo definições distintas, vinculados
a diferentes teorias, ele foi usado inicialmente para designar “a perda do controle de territórios ou
8

socioeconômica e cultural do país, e voltada especialmente para os pobres, os menos


favorecidos economicamente, com trabalhos pastorais destinados à conscientização da
população acerca de seu valor e potencial político, ao que acrescentam Montero &
Almeida:
Baseada na ideia de que era preciso conscientizar politicamente as
camadas populares e inspirada em uma concepção de religião ancorada na
transformação social da realidade, essa pedagogia contribuiu para
deslegitimar as formas tradicionais da religiosidade organizadas em torno
das procissões e da crença nos santos e nos milagres (MONTERO &
ALMEIDA, 2000, p.329).

A atuação de alguns setores da igreja católica no Brasil como as CEBs16, que


através da teologia da libertação davam maior ênfase aos trabalhos sociais e à
conscientização das camadas menos favorecidas economicamente acerca de seu
potencial político e social, fez com que alguns aspectos da práxis romana fossem
deixados de lado. Isso fez com que alguns laços para com o elo romano da igreja
católica fossem abalados e provocou por parte desta uma ação que legitimasse seu
poderio e garantisse o retorno desta parcela de fiéis ao seu seio.17
Surge, em nossa análise, a importância do incentivo “romano” ao carisma,
especificamente o potencial dos líderes pertencentes ao movimento então recém-
surgido, a renovação carismática, como instrumento de retorno aos direitos da igreja.
Neste caso pode ser registrado o que se deu, a partir de o que contribui Weber:
O carisma, em vez de atuar conforme seu sentido genuíno, de forma
revolucionária, diante de tudo que seja tradicional ou se fundamente na
aquisição "legítima" de direitos, como acontece in statu nascendi, atua
exatamente no sentido contrário, como fundamento de "direitos adquiridos"
(WEBER, 1999, p. 333).

A respeito da estreita relação entre a igreja romana18, a teologia da libertação


e a renovação carismática, dentro do contexto histórico e sociocultural brasileiro, bem
como sua importância, segmentação e conceituação enquanto valor de crença e fé,
num amalgamado de conceitos, símbolos, fatos e acontecimentos que ocasionaram a
“repressão” as CEBs e a valorização da renovação carismática, enquanto estratégia da
igreja católica a fim de estabelecer-se novamente no “centro” da questão, contribuem
Montero & Almeida:

propriedades por parte das autoridades eclesiásticas”, no contexto das guerras religiosas. Segundo
Berger, alguns estudiosos chegaram a propor o seu abandono em função do quão controvertido se
apresenta o vocábulo. Não concordando com essa postura, para o autor secularização “refere-se a
processos disponíveis empiricamente de grande importância na história ocidental moderna” e, embora
considere difícil um definição simples, entende que se trate do “processo pelo qual setores da
sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos (BERGER,
1985, p.117-119).
16
CEBs são Comunidades Eclesiais de Base, pertencentes ao movimento da Teologia da Libertação.
Ver Negrão (2005).
17
Ver Montero & Almeida (2000).
18
Denominamos “igreja romana” em diferenciação à igreja católica no Brasil, envolvida em parte com
a teologia da libertação. Com esta distinção pode-se compreender a ação da ordem pontifícia diante
do movimento eclesial popular.
9

Atingida pelas resoluções do Concílio Vaticano II e num contexto


continental de regimes políticos autoritários, a Igreja adotou um discurso
social no qual se identificou com os pobres e agiu em favor das liberdades
políticas. Essa posição foi assumida de forma mais contundente pela
teologia da libertação e suas CEBs, que produziram um movimento social
significativo nos anos 70 e 80 e uma teologia católica formulada a partir do
contexto latino-americano. Como contra-reação ao caráter político das
CEBs e a expansão evangélica, a igreja abrigou o movimento carismático,
cujas raízes se encontram no pentecostalismo norte-americano. Contando
com a tolerância da hierarquia eclesial, a renovação carismática tem
promovido, nesta última década, a readesão dos católicos brasileiros
(MONTERO & ALMEIDA, 2000, p, 329).

Sobre o papel assumido pela renovação carismática, acrescentamos uma


leitura crítica e reflexiva acerca do movimento, que ao ser acolhido pela hierarquia da
igreja, foi submetido a diretrizes e encaminhamentos oriundos da hierarquia de Roma.
Obtendo aprovação e aceitação por parte da alta cúpula da igreja, seus conceitos e
ideais foram incorporados e direcionados pelo Concílio Vaticano II, conforme atesta o
movimento:
O Concílio Vaticano II não vê nenhum motivo para que se estabeleça uma
oposição entre "carisma" e "ministério" ou "carisma" e "instituição"; tal
como as instituições e os ministérios, os carismas são realidades
igualmente essenciais para a Igreja. O Concílio consegue, assim, superar
as antigas impostações dicotômicas que predominaram no campo teológico
por vários anos e recupera o equilíbrio salutar da eclesiologia (...)
(RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA - BRASIL, 2011, p.2).

Pode-se observar com atenção e criticidade neste discurso que houve


distinções suprimidas ou “arestas aparadas”, para que o movimento passasse a ser
bem quisto no seio da igreja de Roma, mas sobre esse tema não iremos nos
aprofundar no momento, e sim, tão somente traçar o paralelo necessário à boa
compreensão acerca do contexto político interno católico no qual está inserida a
caminhada do Padre Jonas Abib, bem como a fundação e direcionamentos da
comunidade Canção Nova. A respeito das ações adotadas pela igreja e sua hierarquia
e o corpus da renovação carismática, se faz importante para concluir este raciocínio,
compreender o que acrescenta Negrão:
Isto para não falar na Renovação Carismática, movimento leigo ao mesmo
tempo incentivado e controlado pela hierarquia. Apesar de fiel à Igreja e ao
sacerdócio, e embora seja um movimento basicamente formado por
pessoas de classe média, sua religiosidade é bastante emotiva, incluindo
elementos mágicos em seus cultos, voltados às curas e a solução de
problemas pessoais de natureza diversa. Uma espécie de pentecostalismo
católico (NEGRAO, 2005, p. 34).

Percebe-se o papel exercido pela renovação carismática católica para a igreja


na segunda metade do século XX bem como a necessidade de adequação aos moldes
estabelecidos. Fez-se interessante desenvolver o respaldo a um pentecostalismo
católico, em contrapartida ao pentecostalismo evangélico de então. O carisma e o
papel do líder carismático passam a ser valorizados especialmente neste momento,
visando à obtenção de valor e o atrativo de milhares de fiéis, com o intuito de
10

recuperar-se do “êxodo” havido em décadas anteriores e apresentando-se firme diante


do crescimento das denominações pentecostais evangélicas e sua forma de exercer
sua espiritualidade. Sendo assim, busca-se a renovação para que haja a manutenção
da tradição.

3. Padre Jonas e o Carisma


Retornando ao cerne de nosso artigo – encontrar paralelos e contrapontos na
fala do Padre Jonas Abib em sua direção e liderança carismática, bem como em sua
atuação enquanto portador de carisma – podemos inserir a informação de que sua
trajetória foi marcada pela orientação do bispo Dom Antônio Afonso de Miranda e,
obviamente, por sua aceitação em cumprir suas exortações, visando por em prática as
determinações do documento papal Evangelii Nuntiandi.
O sacerdote e sua equipe promoveram catecumenatos e demais reuniões leigas
com o intuito de catequese e oração. Numa constante tarefa de reunir-se com o
objetivo de evangelizar, foram criados laços e surgiram necessidades específicas
dentro do contexto religioso no qual estava imerso o grupo. Esta relação de
proximidade e similaridade de ideais, ideias e planos, fez com que o líder exortasse
sua equipe a tomar decisões mais “drásticas”, e adotar caminhos de aprofundamento:
Passado um tempo, padre Jonas sentiu a necessidade de lançar um desafio
à juventude: iniciar um “Catecumenato” interno, no qual os jovens
deixariam a família, a casa e os estudos para se entregarem ao Espírito
Santo. Os jovens de Queluz foram os primeiros a ser chamados e doze
deles aceitaram a missão. No dia 2 de fevereiro de 1978, dava-se inicio à
Comunidade Canção Nova com o seu primeiro compromisso (CANÇÃO
NOVA, 2008).

Nota-se aqui um simbolismo interessante, contido no texto divulgado pela


comunidade religiosa em seu sítio eletrônico: o líder carismático convoca os jovens a
deixarem suas casas e vidas sociais e, apenas – seja em totalidade ou singularidade –
aceitam o convite doze jovens. Qualquer semelhança com os evangelhos seria mera
coincidência? Não nos interessa obter uma resposta exata a este questionamento,
contudo, observa-se aí a necessidade em identificar-se com a ordem sociorreligiosa
em vigor: a liderança de Cristo, ao simbolismo do número doze e aos seus apóstolos.
A respeito da figura do líder em questão, Bourdieu contribui afirmando que:
(...) O problema não é apenas um signo que exprime “o sentimento que a
sociedade tem de si mesma”; ele “constitui” este sentimento. Da mesma
forma que o emblema, a fala e a pessoa do profeta simbolizam as relações
coletivas porque contribuíram para constituí-las (BOURDIEU, 1974, p.92).

É importante ressaltar o surgimento da necessidade de afirmação de sua fala


enquanto líder carismático, diante da possibilidade de estabelecer uma nova ordem,
congregação ou grupo religioso firme e estruturado, numa vivência que perpassasse
os limites da contextualização social e se tornassem opções únicas de vida. Sobre as
11

relações entre o indivíduo e seu contexto social, que podem ser frutos da influência de
um líder, Negrão acrescenta:
Diria que somente uma interpretação em que se rompa com qualquer
continuidade entre o indivíduo e seu contexto social, visto estrutural ou
conjunturalmente, poderia desconectar o profeta de seu tempo, de sua
época, de sua situação. (...) O líder só o é porque tem liderados seguidores
que acreditam em suas virtudes excepcionais e em suas mensagens
(NEGRÃO, 2005, p. 26).

A aceitação de liderados e seguidores e a realização do primeiro compromisso


da comunidade Canção Nova configuram-se como passos iniciais à formação de uma
organização carismática que alcançou constante crescimento. Surge a figura do líder
que possui o carisma necessário à edificação de uma nova proposta organizacional
pautada na fé. Em relação aos fatores do carisma e potencialidades de sua missão,
contribui Weber:
O carisma pode ser, e naturalmente é, em regra, qualitativamente singular,
e por isso determina-se por fatores internos e não por ordens externas ao
limite qualitativo da missão e do poder de seu portador. Segundo seu
sentido e conteúdo, a missão pode dirigir-se, e em regra o faz, a um grupo
de pessoas determinado por fatores locais, étnicos, sociais, políticos,
profissionais ou de outro tipo qualquer: neste caso, encontra seus limites
no círculo destas pessoas (WEBER, 1999, p. 324).

Ao destacar que a missão pode ser dirigida a um determinado grupo de


pessoas, Weber nos mostra que o caráter de líder carismático exercido pelo Padre
Jonas Abib perpassa o papel de fundador de uma comunidade católica e configura-se
como personificação do carisma narrado e teorizado, em tese. Iremos a partir de
então, analisar os aspectos do carisma apresentados por Max Weber e encontrados no
discurso do sacerdote.
O Padre Jonas é citado nos documentos divulgados pela comunidade como um
patriarca, fundador, formador e amigo de seus liderados.19 E o próprio líder assim se
coloca através de seu discurso, seja em palestras, homilias ou durante as celebrações
eucarísticas ou entrevistas em quaisquer dos meios de comunicação. Percebe-se
muitas vezes que de forma natural o líder toma para si as rédeas da fundamentação
discursiva e assume seu papel. Sobre o caráter de patriarca, Weber afirma que:
O patriarca é o "líder natural" da vida cotidiana. Neste aspecto, a estrutura
burocrática é apenas o par da primeira, transposto para a esfera racional.
Também é uma formação permanente e corresponde, (...) seu sistema de
regras racionais, à satisfação de necessidades constantes e calculáveis com
meios normais (WEBER, 1999, p. 323).

Podemos exemplificar a afirmativa acima apresentando um trecho da


mensagem intitulada “A vocação se faz no dia a dia”, publicada em agosto de 2012.
No calendário católico, o mês de agosto é tido como o mês vocacional20

19
Ver CANÇÃO NOVA (2008). Disponível em: http://www.cancaonova.com, acessado em
05/01/2013.
20
Disponível em: http://www.cancaonova.com/portal/canais/pejonas/, acessado em: 05/01/2013.
12

Temos de viver a vontade de Deus no agora da nossa vida. O passado já é


passado; o futuro não existe ainda. Só temos o momento presente. Reze
já, pedindo ao Senhor a graça de viver bem sua vocação a cada dia:
Senhor, dá-me a graça de ser, hoje, tudo aquilo que eu devo ser. De fazer,
hoje, tudo o que devo fazer. Amanhã será outro dia e eu serei aquilo que
Tu queres que eu seja. Por hoje serei fiel. Amanhã será amanhã. Cada dia
terá as dificuldades próprias. Hoje, eu me comprometo a ser fiel em tudo o
que o Senhor me confia. O padre que serei no dia de amanhã eu o realizo
no dia de hoje (ABIB, 2012).

Destaca-se aqui a necessidade de orientar a fidelidade aos preceitos e a fé


inabalável, bem como cumprir as obrigações, obediência e humildade diante das
tarefas do dia-a-dia. Orientando seus seguidores a viverem sua vocação diária,
através do diálogo com Deus e a manutenção da esperança, o presbítero sugere ao
leigo a importância e valor de sua experiência religiosa, fator este apontado por
Weber:
O poder do carisma, ao contrário, fundamenta-se na fé em revelações e
heróis, na convicção emocional da importância e do valor de uma
manifestação de natureza religiosa, ética, artística, científica, política ou de
outra qualquer, no heroísmo da ascese, da guerra da sabedoria judicial, do
dom mágico ou de outro tipo (WEBER, 1999, p.327).

E prossegue:
O "reconhecimento", mais ativo ou mais passivo, conforme as
circunstâncias, e puramente efetivo da missão pessoal do
senhor carismático pelos dominados, sobre o qual se
fundamenta o poder deste, tem sua origem na entrega fiel ao
extraordinário e inaudito, alheio a toda regra e tradição e por
isso considerado divino, tal como nasce do desespero e do
entusiasmo (WEBER, 1999, p.326).

Sobre esta afirmação, de que o reconhecimento do dominado tem origem na


entrega fiel ao inaudito, sendo enfocada uma espécie de medo da justiça de Deus –
neste caso traça-se o paralelo com o que Weber aponta por desespero ou entusiasmo.
Encontramos em seu discurso presente na mensagem: “Resgatados para resgatar”,
publicada em Setembro de 2008, uma fala na qual o Padre Jonas afirma que:
Nós estamos graças a Deus no tempo da misericórdia, tempo que o Senhor
se põe de braços abertos para acolher a todos que veem a Ele. Você sabe
que todo tempo dura por um tempo. Tempo de manga, goiaba... E
terminado aquele tempo, terminou. Deus é sempre misericordioso, mas o
Deus que é misericordioso também é justo, vai ter um momento que Ele
vai precisar usar da sua justiça, então volte agora para o Senhor. Ele está
esperando por você e pelos seus. Não é uma coisa egoísta, não é apenas
nós nos voltarmos para o Senhor, mas querer que os nossos também se
voltem a Ele (ABIB, 2008).

Ao expressar-se através da afirmativa de que ao terminar o tempo, ele


terminou, Padre Jonas suscita no receptor uma espécie de medo de Deus, um temor à
justiça divina que fora apresentado por Weber em relação ao desespero. Ao concluir a
fala exortando o ouvinte de que é preciso que os “nossos” – aqui sugere-se o
pensamento nos familiares, bem como a influência para que também estes se
13

convertam – voltem para a igreja, o líder busca mais fieis e membros para sua obra
através deste discurso .
Ao discutir os fundamentos em relação ao carisma, a respeito da atuação,
trajetória e posturas adotadas, bem como as características principais de seu
desenvolvimento à frente do carisma, Weber complementa que o líder: “deve fazer
milagres, se pretende ser um profeta, e realizar atos heróicos, se pretende ser um
líder guerreiro. Mas sobretudo deve "provar" sua missão divina no bem-estar daqueles
que a ele devotamente se entregam (WEBER, 1999, p.326).
Em relação a esta característica primordial à execução do carisma no sentido
weberiano, no que diz respeito ao chamado do patriarca aos dominados – vale aqui
salientar o fundamento acerca da necessidade de provar a missão divina em questão
através do bem-estar dos que o rodeiam e seguem seus preceitos – surge uma fala
interessante, datada de fevereiro de 2011, na qual o Padre afirma:
Portanto, ser bom demais para nós é mais que uma campanha para
motivar nossos sócios evangelizadores, embora nossos passos tenham
recebido mais sentido e a presença de cada um tenha se tornado mais forte
e generosamente comprometida de todas as formas. Ser bom demais
também é mais que um slogan que nos coloca em alguma posição
privilegiada, embora nos tenha concedido a grandeza de um desafio sem
igual, colocando-nos em destaque na Igreja do Brasil e do mundo. Ser bom
demais ganhou proporções de missão, e, portanto, incitou nossa
missionariedade e fecundou-nos com os valores mais sublimes e pungentes
do Evangelho, transformando-nos em semeadores e sementes deste
mundo novo pelo qual lutamos cotidianamente e que, acima de tudo, nos é
dado pela graça de Deus (ABIB, 2011).

21
O slogan da comunidade Canção Nova é “Ser Canção Nova é Bom Demais,”
inclusive é este o título da mensagem da qual foi retirado o trecho acima. Com esta
declaração, é deixado claro, implícito, subliminarmente ou mesmo expressamente,
que aderir aos conceitos e desígnios do carismático em questão faz do liderado “bom
demais”, isto é, o torna em comum bem-estar aos demais. Mostra também que só se
está “bem demais” quando se está na Canção Nova, e quem faz parte da comunidade
é feliz e goza de muitas alegrias e realizações, buscando atrair para sua comunidade
cada vez mais adeptos.
Também na fala acima, o Padre Jonas insere a informação de que há os “sócios
evangelizadores” – que na verdade são pessoas leigas que se organizam para enviar
donativos à obra, bem como seguir os passos dos participantes da comunidade e
disseminar seus valores e carismas, entendendo-o sob o ponto de vista religioso –
pelo mundo, alcançando notoriedade. Sobre isso, Weber aponta:
Por isso, a dominação carismática genuína desconhece disposições
jurídicas, regulamentos abstratos e a jurisdição "formal". Seu direito
"objetivo" é o resultado concreto da vivência extremamente pessoal de
graça celestial e força heróica semelhante àquela dos deuses e significa

21
Ver CANÇÃO NOVA (2013). Disponível em: http://www.cancaonova.com, acessado em
07/01/2013.
14

renúncia ao compromisso com toda ordem externa em favor da glorificação


exclusiva do autêntico espírito profético e heroico (WEBER, 1999, p.326).

Insere-se na postura do líder a fala de que a vivência espiritual da graça em


sua comunidade é a melhor e que os liderados ao serem felizes tornam-se realizados
em suas ambições pessoais e questionamentos inerentes ao ser e ao mundo. Este é
um discurso que pode ser encontrado na fala da maioria dos líderes políticos.
Sobre a questão financeira, faz-se necessário ressaltar que o carisma não
admite qualquer tipo de salário, vínculos financeiros no âmbito pessoal, servindo as
reservas financeiras captadas unicamente para a manutenção e continuidade da obra
(WEBER 1999). Sobre este ponto, bastante delicado, o mesmo autor apresenta:
Em sua forma "pura", o carisma jamais é para seus portadores uma fonte
de ganhos privados, no sentido da exploração econômica realizada como
troca de certas prestações e contraprestações, nem na forma de uma
remuneração de serviços, e ele também não conhece nenhuma ordem
tributária para satisfazer as necessidades objetivas de sua missão (WEBER,
1999, p.325).

É correto afirmar que há uma necessidade de manutenção provinda de recursos


econômicos, sendo eles recebidos através de patrocínios, doações, contribuições e
uma gama de prestações de forma voluntária (WEBER, 1999). A televisão divulga
relatórios mensais e anuais para que o colaborador acompanhe os gastos e aplicações,
numa forma de mostrar que não há ganho privado, e sim comunitário.
A respeito deste tema, foi encontrado um momento no qual o Padre Jonas Abib
agradece ao sócio contribuinte pelas doações e créditos ao projeto desenvolvido pela
comunidade religiosa22, deixando claro que a colaboração do fiel torna-se
substancialmente importante para a execução dos planos e obtenção de êxito nas
metas estabelecidas:
Alegre-se! Você, com a sua contribuição, ajudou a formá-los. É justo,
portanto, agradecer e festejar. Nos dias 9, 10 e 11, celebramos o primeiro
aniversário do Centro de Evangelização Dom João Hipólito de Moraes, o
nosso novo Rincão, maravilhoso espaço que você ajudou a construir. E
para culminar, no dia 25 festejamos o grande aniversariante: Jesus, o
Senhor. Nascendo e permanecendo vivo entre nós, Ele dividiu a história:
"antes e depois de Cristo". É assim que nós terminamos o ano de 2005. É
justo tributar ao Senhor, que fez tudo isso, toda a glória e todo o louvor.
Você foi fiel à Canção Nova. Você faz um Natal feliz para muita gente neste
ano de 2005. Obrigado (ABIB, 2005).
No que diz respeito à prestação de contas observada na mensagem do
presbítero, Weber complementa:

22
A comunidade Canção Nova possui programas denominados “Dai-me Almas”, e “Clube do Ouvinte”,
através dos quais os fiéis são cadastrados como sócios arrecadadores, e incentivados a organizarem
campanhas extraoficiais para obtenção de recursos e doações. As quantias são apresentadas
mensalmente e o liderado recebe em sua residência uma revista intitulada “Revista Canção Nova”,
que possui um editorial multidisciplinar. Uma característica importante de seu sistema de
comunicação é a inexistência de horários patrocinados, isto é, não há propagandas, exceto quando
surgem campanhas nacionais, como a do voto consciente, por exemplo. A obtenção de recursos é
única e exclusivamente destinada à manutenção da estrutura existente, confirmando assim o que
Weber afirma por inexistência de ganhos privados. Disponível em:
http://www.comunidade.cancaonova.com, acessado em 07/01/2013.
15

As prestações em bens materiais, ainda que formalmente voluntárias, não


baseadas em estatutos e inconstantes, são consideradas, na medida
exigida pela satisfação das necessidades, um dever de consciência dos
carismaticamente dominados e entregues de acordo com a necessidade e
capacidade (...). O carisma é, portanto, ao lado da comunidade doméstica,
da qual difere, o segundo grande portador histórico do comunismo, se por
ele entendemos aqui a ausência da calculabilidade no consumo de bens e
não a organização racional da produção de bens para um "cálculo" - de
alguma forma - coletivo ("socialismo") (WEBER, 1999, p.330).

Sobre a organização e estrutura da comunidade fundada e liderada pelo padre


Jonas Abib, podemos afirmar que a perspectiva weberiana contribui à fiel
compreensão de seu sistema de funcionamento de acordo com o carisma do líder –
aqui entendido em sua dimensão sociológica. Prosseguindo com a análise e
argumentação suficientes à boa compreensão do referido tema, para Weber:
A existência de uma autoridade "puramente" carismática, no sentido aqui
adotado da palavra, embora esta não possa ser concebida - e isto cada vez
menos quanto mais puro se conserva seu caráter - como "organização" no
sentido costumeiro de uma ordem imposta aos homens e objetos, segundo
o princípio de finalidade e meio, não significa de modo algum uma situação
amorfa com falta de estrutura, sendo, ao contrário, uma forma estrutural
social claramente definida, com órgãos pessoais e um aparato de serviços e
bens materiais que se adaptam à missão do portador do carisma (WEBER,
1999, p.330).

A organização fruto da autoridade carismática configura-se de acordo com o


que Weber teoriza, visto a estrutura da comunidade e o aparato de serviços e bens
apresentados ao público. Classifica-se como aparatos que se adaptam à missão do
portador do carisma devido ao fato de que o comando exercido pelo padre Jonas Abib
direciona toda a estrutura vigente para os “nortes” aos quais ele designar, isto é,
configura-se como líder absoluto em discurso e atitudes. Ainda, segundo Weber:
(...) o carisma, em sua essência, não é nenhum complexo "institucional",
mas, onde se apresenta em seu tipo "puro", exatamente o contrário. Os
portadores do carisma, tanto o senhor quanto os discípulos e sequazes,
para cumprirem sua missão, têm que encontrar-se fora dos vínculos deste
mundo, das profissões comuns e dos deveres familiares cotidianos
(WEBER, 1999, p.325).

O que se percebe na realidade do padre Jonas Abib é que o carisma exercido


foi transformado numa instituição em que há cargos, profissões e tarefas, com o
objetivo de concretizar as metas apontadas pelo líder. Contudo, fora “dos vínculos
deste mundo”, pois o ingresso na comunidade anuncia a entrada noutro mundo, numa
realidade distinta em que as tarefas podem ser comuns, mas não se apresentam
como, bem como os deveres sociais e familiares.
No âmbito da igreja católica, a autoridade puramente carismática exercida pelo
padre Jonas Abib foi reconhecida – numa política interna, visto tal reconhecimento se
dar na esfera eclesiástica – de forma clara quando o sacerdote foi nomeado
“Monsenhor”, uma titulação que laureia seus méritos e congratula sua contribuição
para a manutenção da fé católica.
16

Atualmente o sistema de comunicação e a comunidade religiosa fundados pelo


padre Jonas se confundem com sua história, contudo, vale ser destacada a
importância do carisma presente na personalidade latente do sacerdote e verificado
nesse levantamento. O amalgamado de conceitos inerentes ao tema “carisma”, no
campo sociológico também se confunde com as nomenclaturas religiosas, e neste
específico caso, destaca-se a postura de líder, que perpassa a ciência e laureia o
campo das ideias.

4. Considerações finais
Podemos concluir que o papel do líder carismático apresentado pelo Monsenhor
Jonas Abib configura-se como um parâmetro de análise válido, principalmente no que
diz respeito às coerências e divergências sob o ponto de vista sociológico dos autores
apresentados, principalmente ao que compete o estudo criterioso acerca do que Max
Weber apresenta em relação ao carisma.
A musicalidade inicialmente transcrita para introduzir nosso tema de estudo
perpassa os sentidos práticos e ao concluir este levantamento podemos acrescentar
que ao dizer: “hoje eu sou feliz assim, tenho a ti meu Deus”, o Padre Jonas Abib
destaca que a forma de alcançar a felicidade dentro de sua vivência é alcançar um
estado pleno de satisfação de acordo com o aprofundamento de seu carisma. Não foi
nossa intenção fundamentar a existência de um líder religioso católico, tampouco de
justificar suas intenções ou habilidades.
Entretanto, ao analisar a fala do líder católico e procurar fundamentar seu
carisma desempenhado no âmbito religioso de acordo com o que os teóricos afirmam
se tratar de carisma, contextualização sociocultural ou mesmo histórica, percebeu-se
algumas relações bastante próximas com o levantamento bibliográfico em questão.
Pode-se concluir que, obviamente, há muito que aprofundar acerca do tema da
vivência do carisma, líder carismático ou simplesmente, atuação do carisma na
sociedade. Contudo, o estudo dos conceitos inerentes ao carisma e a busca por sua
aplicação nas posturas de um líder carismático da religiosidade popular na atualidade
mostra-se eficaz e condizente com a proposta de aproximar academia e vida social, e
neste âmbito, estabelecer pontos de confluência entre o que se teoriza e o que é visto
na prática popular.
Observar a mudança de paradigmas de um movimento religioso diante da
hierarquia da igreja, bem como as estratégias efetivadas para sua inserção e
contenção de outro movimento de forte influência popular, auxilia no aprendizado e
compreensão acerca dos valores inerentes ao imanente mundo na esfera religiosa.
17

Numa sociedade de informação, comunicação e espetáculo, a figura de um


líder carismático levanta questionamentos dos mais diversos, possibilitando respostas
e significados distintos. Por isso, estabelecer um estudo acerca destas relações é
importante, atual e condizente com a tarefa do pesquisador de Ciências das Religiões.

Referências
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Disponível em:< http://comunidade.cancaonova.com/>. Acesso em 14/12/2012.
____________. Pregações. Sistema Canção Nova de Comunicação. Disponível em:
<http://www.padrejonas.com/>. Acesso em 10/12/2012.
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2002.
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Disponível em <http://comunidade.cancaonova.com/como-nascemos/>. Acesso em
14/12/2012
CHALITA, Gabriel. Eu acredito em milagres! : a história de Padre Jonas Abib. Vol. I
.São Paulo : Canção Nova, 2006,.
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Século: Problemas e Perspectivas”. In: RATTNER, Henrique (org). Brasil no Limiar do
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Editora da Universidade de São Paulo, 2000 (Coleção Estante USP – Brasil 500 Anos).
NEGRAO, Lísias Nogueira. Nem "jardim encantado", nem "clube dos intelectuais
desencantados". Revista Brasileira de Ciências Sociais [online], vol.20, n.59,2005, p.
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RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA - BRASIL. Histórico da RCC, 22 de novembro de
2011. Disponível em: <http://www.rccbrasil.org.br/institucional/historico-da-
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WEBER, Max. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva.
[Livro] / trad. Barbosa Regis Barbosa e Karen Elsabe. Vol. II. Brasília : Editora
Universidade de Brasilia, 1999.
HISTÓRIA E TRANSFORMAÇÕES DO OPUS DEI NO BRASIL:
A TRAJETÓRIA DE FÉLIX

Asher Brum
Doutorado em Ciências Sociais – IFCH/Unicamp
Orientador: Prof. Dr. Ronaldo de Almeida
Bolsista FAPESP

Resumo:
O objetivo do trabalho proposto é discutir, através do recurs
o da narrativa, a
trajetória de Félix, um dos quatro primeiros membros do Opus Dei no Brasil. Desse
modo, é possível analisar as interpretações individuais de Félix no fluxo de uma
experiência social compartilhada – o Opus Dei –, o que nos informa sobre processos
sociais que ultrapassam o sujeito. A partir dessa narrativa, é possível ensaiar uma
história do Opus Dei no Brasil. O método utilizado para chegar aos resultados
expostos foi a análise de entrevistas com Félix, uma vez que ainda não existe em
nossas produções bibliografia sobre o tema. O trabalho está organizado em dois eixos
que seguem a narrativa de Félix: a pré-história e a história do Opus Dei no Brasil.

Este trabalho surgiu a partir de um projeto mais amplo – financiado pela


Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) – que tem por
objetivo estudar o surgimento, transformações e configurações do Opus Dei no Brasil.
Aqui, valendo-me das entrevistas que realizei com Félix, um dos quatro primeiros
membros numerários do Opus Dei no Brasil, procuro analisar a construç ão narrativa
de sua trajetória de vida, a qual se confunde com a história do Opus Dei nesse país.
Desse modo, o trabalho está organizado em dois eixos, seguindo a narrativa de Félix:
a pré-história do Opus Dei no Brasil (que envolve eventos ocorridos na Espanha antes
de 1957) e a história, propriamente dita (após 1957, quando os fundadores chegaram
ao Brasil). Portanto, este trabalho está fundamentado na narrativa de Félix, coletada
através de entrevistas. Ainda não existe, em nossa literatura, fontes escritas sobre a
história do Opus Dei no Brasil.
Ao analisar a narrativa de Félix sobre a fundação do Opus Dei no Brasil, é
possível observar essa narrativa como a reconstrução de um processo sociocultural
através de uma experiência particular. Trata-se, portanto, de compreender essa
narrativa como uma interpretação individual de uma experi ência social. A utilização
da narrativa, neste trabalho, é central, pois se refere ao que o sujeito em questão
conta e como constrói a sua narrativa com base nessa experiência social. A partir da
narrativa de Félix, com o sentido interno que ele atribuiu no âmbito da pesquisa, é

1
possível ler o relato de acordo com o encadeamento que lhe atribuiu o entrevistado. A
partir disso, abre-se margem para que o pesquisador faça uma interpretação própria
dessa narrativa. Visto dessa forma, a narrativa de Félix sintetiza a singularidade
desse sujeito – suas interpretações e interesses – e que, através da inteiração com o
pesquisador, transcende o sujeito e informa sobre o social.
Nesse sentido, a narrativa de Félix, além de transmitir a dimensão
interpretativa e subjetiva do sujeito e de conter uma reflexão pessoal sobre a
experiência vivida, também pode ser compreendida como fonte de informação que
remete a experiências que transcendem o sujeito narrador. Esses elementos, por
certo, não podem ser dissociados na análise, uma vez que estão profundamente
imbricados no fluxo da experiência vivida, onde não existem fronteiras estritas entre
subjetividade e objetividade. Meu propósito é o de analisar a narrativa de Félix,
levando em conta suas próprias interpretaç ões e subjetividade, no fluxo das
transformações que ocorreram no Brasil a partir de 1957 e que constituíram essas
experiências que vão além do sujeito narrador – mais do que isso, que o engloba.
Trata-se, aqui, de entender como esses elementos externos ao sujeito são
compreendidos por ele ao ser tomado em seu fluxo, mais do que a preocupaç ão de
entender como se configuraria uma modernidade brasileira. Trata-se da interpretação
individual de experiências sociais que se condensam em narrativa.
Entendo por narrativa a prática de contar uma história. Desse modo, quando
se formula uma narrativa, existem contextos históricos, interesses e motivações que
devem ser levados em consideração – interesses por parte de quem conta e de quem
ouve. Tanto quem conta, quanto quem ouve, preserva, omite, isola e enfatiza
determinados elementos, de acordo com seus interesses particulares e com a ocasi ão
(HERRSTEIN, 1980). Pensando a partir de Suely Kofes (1994 ), considero, aqui, a
narrativa a partir de três aspectos: como fontes de informaç ão (falam de uma
experiência que ultrapassa o sujeito que relata); como evocação (transmitem a
dimensão interpretativa e subjetiva do sujeito); como reflexão (contém uma análise
sobre a experiência vivida). Entender a narrativa a partir desses elementos permite,
não só interpretar a relação entre subjetividade e a realidade objetiva, externa ao
sujeito, mas, também, entender o mundo que o sujeito constrói a partir dessa
interação. De fato, o mundo do sujeito é a interação da subjetividade com a realidade
externa, objetiva. Ao mesmo tempo, essa forma de entender a narrativa permite
entender o sujeito como narrador da sua própria história e, desse modo, como
narrador de processos históricos no qual está inserido.
Entendo, como experiência, alguma coisa da qual saímos transformados
(FOUCAULT, 2006). Ao mesmo tempo, ainda pensando com Foucault, é algo que se
expande para além do sujeito. Embora a experiência tenha uma dimensão individual,

2
solitária, ela somente é plena na medida em que escapa à pura subjetividade, ou
seja, outros podem cruzá-la e atravessá-la (REVEL, 2005). Creio, nesse sentido, que
podemos falar em uma experiência social, em cujo fluxo o sujeito se insere e, desse
modo, podemos pensar em processos de subjetivação. A experiência individual,
portanto, é a forma particular com que o sujeito se insere na experiência social
compartilhada. Tim Ingold (2011) nos ajuda a pensar a relação entre experiência e
narrativa: só se pode contar algo que já se experimentou, que se conheceu. O
conhecimento que pode ser narrado, para Ingold, surge na jornada de cada pessoa ; a
jornada, por sua vez, é constituída pelas experiências do sujeito. Essa jornada não é
estática, mas é movimento, e o conhecimento é o próprio movimento. O
conhecimento que adquirimos em nossas jornadas é aquilo que pode ser narrado.

1. Nota prévia: o que é o Opus Dei


O Opus Dei (que significa Obra de Deus em latim) nasceu em 1928, na
cidade de Madri, na Espanha. Após a sua fundação, recebeu a aprovação do Bispo de
Madri, em 1941, e da Santa Sé, em 1947. Até 1982, o Opus Dei era considerado um
instituto secular da Igreja católica; foi o Papa João Paulo II que o constituiu em
Prelazia Pessoal. Uma Prelazia Pessoal, ou Diocese Pessoal, por definiç ão, refere-se
ao fato dos seus membros filiarem-se a ela de maneira pessoal, e n
ão por
pertencerem a determinado território, como é o caso das dioceses; é composta por
fiéis leigos e sacerdotes. Uma Prelazia é governada por um Prelado, que exerce
jurisdição sobre ela. Mais do que meramente uma instituiç ão, o Opus Dei define-se
pelo chamado espírito do Opus Dei.
Atrelado ao espírito do Opus Dei está uma ideia fundamental: a santidade no
meio do mundo. Todos os homens, enquanto filhos de Deus e batizados pela Igreja
católica, são chamados à santidade, ou seja, a serem santos. Essa santidade, de fato,
é entendida em contraposição ao ideal de santidade das ordens monásticas, as quais
defendem a fuga do mundo deturpado pelo pecado. Segundo aquela s ordens, a
santidade só pode ser alcançada retirando-se do mundo, pois só dessa forma é
possível santificar a si próprio. Josemaria Escrivá, o fundador do Opus Dei, trouxe a
ideia inovadora da santificação no meio do mundo. Cada pessoa, cada leigo, seria
chamada por Cristo a viver a santidade na sua vida cotidiana, exatamente no lugar
onde estivesse, porque, afinal, cada pessoa está onde está porque Deus assim quis. O
Opus Dei compreende que Deus, em sua infinita bondade, criou o mundo como um
lugar bom, para que o homem o transformasse com o seu trabalho. Com o pecado
original (de Adão e Eva), o mundo foi deturpado. Desse modo, a mensagem do Opus
Dei é que cada pessoa busque a santidade no meio do mundo e, dessa forma,
santifique o mundo a partir do seu trabalho e da sua atividade cotidiana. Só assim o

3
homem pode reconciliar-se com Deus e devolver o mundo a Ele. Através do seu
trabalho, santificado e santificador, é que o homem pode tomar parte no projet o
redentor de Cristo.
Desse modo, os centros e casas do Opus Dei surgem como legítimos
ambientes de formação espiritual e, mais do que isso, oferecem aos seus
frequentadores orientações de conduta em suas vidas profissionais e familiares. No
Brasil, a formação espiritual do Opus Dei é oferecida nos Centros Culturais, que são
as células de organização da Prelazia nesse contexto e onde, claramente, se
justapõem o discurso científico-acadêmico e o discurso religioso, adotando uma
estratégia de inserção no espaço público chamada de científico-educacional.
Diferentemente dos outros grupos leigos da Igreja católica, o Opus Dei possui
membros dedicados exclusivamente à formação espiritual nos Centros Culturais: os
numerários. Os numerários são membros leigos, celibatários, que moram e
administram os Centros e que, além de se dedicarem ao Opus Dei, êm
t empregos
comuns. Existem padres entre os numerários, mas s ão poucos, e sua funç ão é
administrar os sacramentos (principalmente a Eucaristia e a Confissão) nos Centros
Culturais. Os numerários são os membros que, por excelência, vivem o espírito do
Opus Dei.

2. A história de Félix
Comecei a entrevista com a pergunta “como o senhor conheceu o Opus
Dei?”, ao que Félix respondeu:

Era o ano de 1951 e eu estava começando direito. Foi então


quando eu conheci o Opus Dei. Fui passar as férias na terra da
minha família, em Molina de Aragón [na Espanha]. A gente ia
todos os verões lá. Era verão e fomos para lá. E tinha um
camarada lá que era muito esportista, nadava muito bem e tal.
(...) Era um cidadão muito cotado, porque era um bom
esportista, de boa presença, e que vim a saber que se chamava
Céspedes. E eu fiquei curioso: “mas quem afinal é este
camarada?” Acho que estava nos últimos anos da formatura
dele e seria do Opus Dei. Foi a primeira vez que eu ouvi falar
do Opus Dei, nessas férias. (...) Ent ão, eu quis saber o que era
o tal Opus Dei, por causa do tal Céspedes.(...) Eu tinha 17
anos. Não consegui saber muito, mas fiquei com a pulga atrás
da orelha. (...) Ent ão, perguntei ao meu pai, que era advogado
militar lá em Barcelona, o que era o Opus Dei e tal. Queria
conhecer o tal Opus Dei. Ent ão, ele sabia alguma coisa... sabia
que o Opus Dei estava fazendo uma residência universitária lá
em Barcelona. Deu-me alguns nomes de pessoas do Opus Dei
(...), meu pai sabia alguma coisa. Ent ão, eu lhe disse que se
tivesse algum contato, que eu queria contatar e saber o que
era isso do Opus Dei. Naturalmente, ele me preparou um
contato e fui para a residência. (...) Ent ão conheci, tive um

4
primeiro contato, fui lá, falei com ele [com o diretor] (...) e
perguntei se poderia voltar. (...). Me disseram que voltasse
quando quisesse, que poderia usar a sala de estudos à vontade
e tal. Então, comecei a ir e fui conhecendo diretamente o que
era o Opus Dei. Não supunha nenhuma surpresa. Era gente
normal, que circulava normalmente, que estudava... um
ambiente sadio. Eu achava ótimo. Comecei a ter também uma
certa direção espiritual com um padre que era do Opus Dei
(...). Então foi assim. Cá nos meus botões pensava – já sabia
o que era o Opus Dei – que calhava tudo bem para mim,
porque o que eu queria era ser advogado (...) e então soube
que essa seria a mensagem, a novidade do Opus Dei. Soube
que eu poderia santificar advogando, trabalhando. (...). Vi que
poderia ser um cidadão comum, porém, poderia santificar a
Deus advogando.

Minha intenção, ao motivar o início da entrevista com essa pergunta (“como


o senhor conheceu o Opus Dei? ”) era delimitar um fluxo de lembranças que
desembocaria, posteriormente, no tema da pesquisa: o Opus Dei no Brasil. Era um
fluxo de lembranças, portanto, motivado pelos meus interesses de pesquisa. Desse
modo, a narrativa de Félix, iniciada dessa forma, permitiu-me, tomando o cuidado de
preservar seus elementos específicos, traçar alguns aspectos informativos mais
amplos e gerais que envolvem o Opus Dei, tais como a santificaç ão do trabalho, a
procura por estudantes e o caráter leigo da instituição. A santificação do trabalho, que
se constitui como símbolo1, é um dos aspectos mais fundamentais do Opus Dei,
entendido enquanto uma experi ência social. A proposta é clara: cada homem pode, e
deve, santificar o mundo a partir da sua atividade cotidiana, do seu trabalho, porque,
afinal, Deus quis cada um onde está. Trata-se de santi ficar o mundo a partir de
dentro. Essa enunciação, por suposto, cria discursos de justificação do Opus Dei nos
diferentes espaços públicos pelos quais transita. Não interessa, aqui, essa enunciação
em si mesma, mas a forma como esta se conecta subjetivamen te ao sujeito
individual e, por conseguinte, o envolve em um fluxo de experiência social e sobre o
qual ele projeta sua interpretação individual.
Nesse ponto, a narrativa de Félix apresenta uma estruturaç ão própria que
traz a santificação do trabalho como eixo fundamental. Embora não de forma

1
Utilizo o termo símbolo fazendo referência à forma como Talal Asad (2010), em crítica a Geertz, o entende.
Para aquele autor, os s ímbolos não podem ser separados dos contextos hist óricos e das práticas de poder nas
quais surgem. Dito de outra forma: os símbolos s ão intrínsecos às práticas históricas de organização e
significação. Muito foucaultianamente, Asad afirma que são relações de poder que criam as condições para
que certas verdades, discursos e símbolos possam ser experimentados. Existem, portanto, processos
históricos e materiais através dos quais s ímbolos e significados s ão construídos e em torno dos quais se
configuram experiências. Os símbolos, portanto, são um conjunto de relações entre objetos e eventos
agregados cuja formação é condicionada por relações sociais e, principalmente, por processos de poder.
Entendo, segundo Asad, que os símbolos não são mais elementos universais de significados trans-históricos,
mas são, ao contrário, constituídos historicamente e envolvem processos de poder e de subjetivação.

5
explícita, a santificação do trabalho perpassa toda a sua narrativa, uma vez que esse é o cerne da mensagem
do Opus Dei e, em se tratando de Félix, sua trajetória pessoal se confunde com a história do Opus Dei no Bras il.
A santificação do trabalho ordena todo o seu relato: a história de uma vida dedicada
a santificar o mundo, as outras pessoas e a si mesmo pelo trabalho e, mais do que
isso, levar essa mensagem ao Brasil através do Opus Dei. Em suma, as lembranças
das condições que o levaram a entrar para o Opus Dei, conectadas em uma mesma
narrativa, ganham um encadeamento lógico no relato de Félix, onde, evidentemente,
aparece a articulação da santificação do trabalho – o que o atraiu ao Opus Dei – com
a chegada do Opus Dei no Brasil como portador dessa mensagem. O encadeamento
lógico das ações do passado, na narrativa de Félix, apresenta como eixo comum a
santificação do trabalho.
Em comparação com as narrativas de outras pessoas que compartilham com
Félix a experi ência de ser membro numerário do Opus Dei, a narrativa deste é única,
embora apresente semelhanças e interconexões com essas outras narrativas. Essas
semelhanças expressam-se na evocação comum do símbolo da santificaç ão do
trabalho, mas cada um dos sujeitos narradores, claramente, interpreta sua
experiência individual com esse símbolo de forma única, particular. N ão se trata, a
princípio, da santificação do trabalho como escolha lógica e racional, mas, antes de
tudo, configura-se como predicação, pois suscita sentimentos específicos. A
experiência da vocação para a santificação do trabalho, própria do Opus Dei, tem
como elemento central a predicaç ão, ou seja, a capacidade de suscitar sentimentos
capazes de conectar a interpretação individual à experiência social.
Ainda em se tratando da santificação do trabalho, a narrativa de Félix toca
em um elemento fundamental interconectado àquele: diz ele que na época em que
conheceu o Opus Dei era um estudante e que no Centro que ele frequentava, convivia
com outros estudantes, com pessoas que estudavam. Esse aspecto é central, pois
permite que o Opus Dei, enquanto instituição, seja capaz de formular discursos de
justificação pública através da justaposição de discursos científico-acad êmicos e
religiosos. Não se trata, no entanto, de uma estratégia maliciosa de ocultação e
enganação, pelo contrário, é uma nova configuração do religioso frente às novas
regras de afirmação nos espaços públicos modernos. O Opus Dei criou uma forma
sofisticada de transição e de interação nesses espaços. Por conseguinte, a vocação à
santificação do trabalho impulsiona os sujeitos aos espaços públicos.
Tendo em conta a dimensão da interpretação individual por parte dos sujeitos
que são construídos e englobados no fluxo da experi ência social do Opus Dei, pode-se
dizer que cada sujeito santifica o seu trabalho de maneira própria, pessoal. Cada qual
é capaz de colorir a realidade externa, o mundo dos elementos objetivos, com a sua
subjetividade. Na narrativa de Félix, a santificaç ão do trabalho se de u por meio da

6
profissão de advogado e da rede de relações que essa profissão específica lhe
permitiu. Em dado momento de sua narrativa, que não foi transcrito no trecho acima,
Félix relata o seu trabalho apostólico entre juízes e advogados, já no Brasil, em um
campo de atividade profissional já bem desenvolvido. Essa investida audaciosa
resultou em várias vocações para o Opus Dei e para a vida crist ã. O ideal de
santificação do trabalho (e pelo trabalho), portanto, permeia toda a estruturação da
narrativa de Félix e pode ser lido em seu relato, mesmo que secundariamente.
O início do relato Félix, como experiência e como narrativa, remente a uma
experiência social compartilhada: o Opus Dei. Trata-se de uma experiência que
engloba vários sujeitos em seu fluxo , sujeitos esses capazes de interpretações
individuais sobre essa experi ência social e, também, de experi ências individualizadas.
Félix, através do relato da sua trajetória de vida, oferece-nos margem para
pensarmos esses elementos gerais e mais amplos que envolvem a experi ência do
Opus Dei e, ao mesmo tempo, colore e interpreta essa experiência social com sua
própria subjetividade. O Opus Dei se afigura, aqui, como uma experiência que
transcende o sujeito que relata, mas que, ao mesmo tempo, é transmitida pela
dimensão interpretativa e subjetiva do sujeito, é interpretada por ele como
experiência vivida.

3. Trajetórias cruzadas: o encontro de Félix com São Josemaria


Um elemento chave que surge ao longo da narrativa de Félix, em se tratando
da sua vinda para o Brasil, foi seu encontro com o fundador do Opus Dei, São
Josemaria Escrivá. A seguir, o fragmento que explicita esse encontro:

O que interessa do Brasil é o seguinte (...), eu estou tentando


até relembrar a data em que o fundador da Obra 2 me
perguntou se eu estava disposto a começar o Opus Dei no
Brasil e eu lhe disse que sim. Ent ão, foi numa tertúlia 3, em um
dia de festa. Lá tínhamos uma bandinha... tinha o bumbo lá, e
os pratos, o violão e um monte de coisas. Então, eu fiz um
número. O meu número co nsistiu em tocar “na baixa do
sapateiro”, do Ary Barroso. Eu sabia um monte de sambinhas
brasileiros e tal. Fiz um número de cantoria. A turma gostou!
(...) E foi aí que o Nosso Padre4 me perguntou se eu estaria
disposto. A rigor, Nosso Padre, com o Colégi o Romano5, queria,

2 Os membros do Opus Dei utilizam o termo Obra para referir-se àquela instituição.
3O termo tertúlia é utilizado para designar as reuniões di árias dos frequentadores dos centros e residências do
Opus Dei. Essas reuniões são regulares e, às vezes, tem apresentações musicais, ou simplesmente conversas
informais.
4 O termo Nosso Padre é utilizado, internamente, para referir-se ao fundador, São Josemaria Escrivá.
5 O Colégio Romano da Santa Cruz foi erigido em Roma, em 1948, por Josemaria Escrivá. Era um centro
internacional de formação de membros do Opus Dei.

7
em primeiro lugar, ir formando e ir fazendo gente da Obra; em
segundo lugar, ir preparando pessoas para fazerem a expansão
da Obra. Começar o Opus Dei em distintos países. (...). Ent ão,
alguns anos antes de começar [ o Opus Dei no Brasil] , ele
preparou o começo com este cidadão que com você fala. E foi
assim.

Essa é uma das passagens que considero mais belas e delicadas da narrativa
de Félix. Por parte das pessoas do Opus Dei, existe um carinho muito grande em
relação ao fundador, que vei o a ser canonizado em 2002. Ter conhecido S ão
Josemaria, e mais, ter convivido com ele, que veio a se tornar santo, é considerado
um grande privilégio. Esse carinho torna-se patente durante o relato de Félix, pois
percebi trato e delicadeza ao chegarmos ne ssa parte da sua narrativa. Ao rememorar
essa passagem, Félix deu um encadeamento lógico ao seu relato : só foi possível o
Opus Dei no Brasil por conta daquela apresentação musical, naquele dia de festa.
Desse modo, fica clara a intervenção direta de São Josemaria para que o Opus Dei
chegasse ao Brasil por intermédio de Félix e dos três outros membros que o
acompanharam na viajem. A devoção a São Josemaria faz parte da experiência social
compartilhada que é o Opus Dei. Félix, por sua vez, conectou-se subjetivamente a
essa experiência e, desse modo, foi capaz de construir uma experiência própria,
pessoal e individualizada.
São Josemaria Escrivá é uma figura simbólica. Além de santo, ainda antes
disso, é o fundador do Opus Dei – que é uma forma de estar no mundo comunicada
diretamente por Deus a Josemaria Escrivá. Esse fato, entendido dessa forma, o
colocou no topo da hierarquia como líder pastoral, posiç ão que ele vivenciou com
sofisticação. Foucault (2008), delimita, no plano teórico-abstrato, tr ês elementos
constituintes do poder pastoral: conduzir os indivíduos para a salvação; fazer com que
observem a lei de Deus, pois só dessa forma poderão alcançar a salvação; professar
a verdade, pois só pela verdade é que alcançar ão a salvação e observarão a lei de
Deus. Esses elementos são evidentes, não só em se tratando de Josemaria Escrivá,
mas no caso de qualquer líder religioso com alguma representatividade. A função do
pastor, por certo, é guiar a ovelha para a salvação, não por meio de ordens, mas pelo
exemplo. São Josemaria Escrivá, não raro, declarava-se um pecador, cheio de
misérias e fraquezas, e, por isso, ensinava pelo exemplo. Mais do que isso, dizia que
não deviam tê-lo como modelo, mas tomar como modelo o próprio Cristo. Nesse
caso, podemos ver exemplos de fraqueza e humildade configurando-se em
tecnologias de poder. O líder pastoral tem legitimidade para governar, justamente,
porque expõe suas fraquezas e misérias – expõe sua alma às ovelhas, ao invés de
colocar-se em posição superior a elas. Em suma: pel o fato de São Josemaria ser um
líder pastoral, envolto em simbolismo e devoç ão, sempre o que ele pede é mais

8
legítimo de ser pedido, n ão por um sentimento de imposiç ão por parte de quem
obedece, mas por uma devoção carinhosa à sua pessoa e ao que ela representa.
Relacionada à questão do poder pastoral, surge a obediência como tecnologia
de poder (FOUCAULT, 2008). Várias ordens religiosas, e também o Opus Dei,
enunciam o esquecimento próprio como forma de tornar-se melhor instrumento de
Deus; para melhor servir aos desígnios divinos, os próprios vícios, gostos e prazeres
terrenos devem ser esquecidos, abandonados, através da mortificação. Desse modo,
paradoxalmente, o esquecer-se a si mesmo implica em um constante voltar-se para
si mesmo, de modo a mapear os próprios vícios e imperfeições, os quais impedem o
indivíduo de ser puramente um instrumento de Deus. Justamente por isso, o exame
de consciência e a confiss ão são t ão enfatizados pelo Opus Dei. Por conseguinte,
quando Josemaria Escrivá vai a Félix e pergunta se ele gostaria de levar o Opus Dei
para o Brasil, ele responde: “sim”. Estar envolto pela experi ência do Opus Dei
implica, necessariamente, em um esquecer-se a si mesmo em prol dos desígnios
divinos, nesse caso, mediados por Josemaria Escrivá. Trata- se de ser instrumento
perfeito de Deus. Lembro-me de ter perguntado a Félix, em dado momento: “não
deu nenhum frio na barriga [quando decidiu vir para o Brasil]? ”. Ao que ele
respondeu: “Não... não me deu nenhum frio. Pareceu-me uma tarefa interessante,
nada mais do que isso”. Confesso que me senti surpreendido com a resposta, pois
denotava uma entrega total aos desígnios do Opus Dei e, portanto, à vontade de
Deus. Era, para mim, uma postura difícil de compreender, justamente por eu não
estar mergulhado na mesma experi ência que Félix. Preocupava-me com o doutorado,
em ter um diploma, em ter prestígio e ganhar dinheiro, de modo que me pareceu
assustadora a possibilidade de largar uma vida estabelecida e partir para uma
aventura como essa, a qual Félix tratou com tanta naturalidade.

4. O Opus Dei no Brasil


Félix organiza sua narrativa em dois períodos: pré-história e história do Opus
Dei no Brasil. Os fragmentos trabalhados até aqui se referem à pré-história do Opus
Dei no Brasil, ou seja, consistem em uma série de elementos que, quando
encadeados logicamente pelo narrador, ganham um sentido próprio. Desse modo, a
entrada de Félix para o Opus Dei, em 1951, e o convite de S ão Josemaria Escrivá,
ainda na Espanha, configuram a pré-história do Opus Dei no Brasil. Félix considera o
começo da história, propriamente dita, após 1957, quando os quatro fundadores
chegaram ao Brasil. A instituição encontrou uma porta de entrada, no Brasil, através
da iniciativa de Dom Hugo Bressane de Araújo (1898-1988) , na época, bispo
diocesano de Marília (SP). Segundo o relato de Félix, Dom Hugo escreveu e,
posteriormente, encontrou-se com Josemaria Escrivá, pois estava à procura de padres

9
para as paróquias, uma vez que a diocese de Marília havia recém sido criada.
Josemaria Escrivá viu, aí, a oportunidade de começar o Opus Dei no Brasil e enviou
quatro membros para a cidade de Marília, onde surgiu a primeira residência do Opus
Dei, sendo dois padres e dois leigos, em 1957. Sobre isso, Félix comenta:

Eu diria que se entrou no Brasil pela porta pequena. Nosso


padre dizia que as coisas se começam como se pode. Era
importante isso. Foi a porta real que a Obra encontrou para
começar no Brasil. Tanto é que uns anos depois deixávamos
Marília. Isso é uma coisa pouquíssimo frequente na Obra. Esse
é um dos poucos casos que teríamos visto e, evidentemente, o
lugar indicado era São Paulo, uma cidade imponente, com
brilho, com ímpeto. Então foi assim.

Decorre dessa parte da narrativa de Félix uma série de informações. Essas


informações provêm de experiências sociais que ultrapassam o sujeito que relata e
que o engloba em seu fluxo. Pode-se dizer que essas experiências envolvem uma
realidade externa, ou seja, condições objetivas e materiais do mundo por onde
transitam os sujeitos. Aqui, especificamente, refiro-me ao estágio de
desenvolvimento urbano e industrial que São Paulo apresentava em 1958 (ano em
que os fundadores foram para São Paulo). Isso permitiu a configuração de uma
multiplicidade de espaços públicos, tais como aqueles constituídos pelo movimento
operário, pelos partidos políticos, pela imprensa, pelas universidades, dentre outros. A
dinâmica da vida na capital paulista, com certeza, era mais intensa do que em
Marília, no interior do estado. Adequava-se mais aos interesses de expansão e
trabalho apostólico do Opus Dei.
Em seu relato, Félix evoca a cidade de São Paulo como o terreno ideal para
que o Opus Dei se desenvolvesse no Brasil. Além de possuir espaços públicos
desenvolvidos, onde as enunciações de justificação pública do Opus Dei encontraram
condições para circular relativamente bem, também possuía, já em 1958, as
principais universidades e colégios do Brasil. Naturalmente, é próprio do Opus Dei
procurar vocações, principalmente, entre os estudantes universitários, o que levou os
primeiros membros a ir à Universidade de S ão Paulo (USP) e, através de abordagens
diretas, convidar os rapazes a conhecer o Opus Dei. Segundo a fonte da qual recolhi
esse relato, essa estratégia funcionava. Para Félix, a USP afigurava-se como campo
de trabalho apostólico – ele coloria a realidade externa, que encontrou em S ão Paulo,
com a sua subjetividade. Além disso, encontrou um campo profícuo para o seu
trabalho apostólico entre os advogados e juristas, seu meio profissional. Essa
dimensão é clara em sua narrativa.
Aqui, mais uma vez, surge como pano de fundo o símbolo da santificaç ão do
trabalho no meio do mundo. A ênfase no apostolado entre os estudantes e

10
profissionais implica em uma codificação moral que aponta para o mundo como um
lugar de pecado, que precisa ser santificado. Desse modo, Félix evoca esse símbolo,
ao longo de sua narrativa, para classificar os lugares pelos quais transita (e transitou)
como ambientes que necessitam de santificação. Essa forma de colorir o mundo,
muito própria do Opus Dei, ganhou na narrativa de Félix traços muito pessoais, uma
vez que ele estava como que desbravando um território ainda intocado, uma vez que
era um dos quatro primeiros a estar ali, construindo o Opus Dei em S ão Paulo. Ao
refletir sobre sua própria experiência, no entanto, Félix não se refere, em momento
algum, ao mundo como um lugar desgraçado; não demonstra nenhum tipo de
desânimo com relação à sua experiência. Pelo contrário, o mundo aparece como o
lugar onde cada um deve estar, santificando e levando a palavra de Deus, cada qual
com seu ofício, porque, afinal, Deus quis cada um justamente onde está.
Segundo o relato de Félix, o Opus Dei no Brasil, após chegar a S ão Paulo,
em 1958, foi se consolidando com poucos membros, timidamente, até 1974. Esse foi
o ano em que o fundador, Josemaria Escrivá, esteve na América Latina e,
naturalmente, passou pelo Brasil. Félix relata:

A vinda dele [do fundador] foi em 1974. Chegou em 22 de


maio de 1974. Passou aqui uns 15 dias. Foi embora... deve ter
sido no dia de hoj e... deve ter sido em 7 de julho que ele
continuou a viajem para a Argentina, para Buenos Aires. Ent ão,
a rigor, fez parte da vinda dele à América Latina. Esteve em
vários países: no Chile, no Peru... então, esteve no Brasil. E
realmente foi muito significativo, importante, e creio que fazia
parte da missão dele chegar aos lugares onde a Obra tinha sido
implantada através do impulso dele. Todavia, era necessário,
conveniente, que ele visse e comprovasse se aquilo que lá era
Opus Dei realmente era Opus Dei. Então, ele veio e creio que
se pode dizer que comprovou que era o Opus Dei aquilo que se
tinha feito aqui ao longo daqueles anos, 57 a 74. (...). Então,
foi importante. E, talvez, tenha sido especialmente importante
pelo impulso que deu. Aqui, no Brasil, estrategicamente,
estávamos concentrados em São Paulo [na capital].

De acordo com a narrativa de Félix, São Josemaria Escrivá, ao visitar o


Brasil, viu nesse país um grande potencial para a expansão do Opus Dei. Por
conseguinte, após sua vinda, data em que encontrou o Opus Dei plenamente
consolidado na cidade de São Paulo, enviou mais membros para o Brasil, o que deu
fôlego para que a instituição se expandisse para outras capitais das regiões Sul,
Sudeste e para Brasília, assim como para outras regiões da capital paulista. A
descrição da expansão do Opus Dei possui força evocativa no relato de Félix, pois
dramatiza a intervenção divina no curso dos eventos, que vão desde o relato da pré-
história do Opus Dei no Brasil, até a vinda do fundador, em 1974, o que deu um

11
fôlego especial para que o Opus Dei prosseguisse até os dias de hoje. Os elementos
encadeados dessa forma, no relato de Félix, conferem uma sincronicidade aos
eventos descritos, compreendidos como a Providência atuando no mundo e,
naturalmente, valendo-se de meios humanos para realizar Sua vontade. A leitura da
narrativa de Félix, portanto, me permite sugerir que não se trata, simplesmente, de
um relato histórico comum, mas de uma história protagonizada por Deus no mundo,
na qual os homens são instrumentos. Deus é o ator por trás dos eventos relatados.
Em uma passagem belíssima e evocativa de sua narrativa, onde Félix
interpreta e reflete sobre a experi ência vivida, após eu ter perguntado “hoje, olhando
para trás, o senhor diria que valeu a pena?”, ele responde:

Para dizer francamente, o que você vê é o envolvimento de


Deus com o homem. Você acaba vendo que Deus,
conjuntamente com você, e na medida que você pena, se
sacrifica, vai em frente, que vai construindo espaços plenos.
Então, é isso o que eu vejo. Acho que valeu à pena. Aliás,
quando esteve aqui, no ano de 74, o fundador da Obra, lembro
que me pegou pelo braço e perguntou se tinha valido à pena
ter vindo ao Brasil. Eu não tinha a menor dúvida de que tinha
valido à pena. (...) Mas, você, também, tem consci ência de
que não são tuas obras. Você está envolvido, mas são coisas
que ganham tal volume, tais dimens ões, que você termina
vendo a mão de Deus nessas fainas.

5. A narrativa de uma experiência


A narrativa de Félix fala, antes de tudo, da interpretação individual de uma
experiência social. O Opus Dei é entendido como essa experiência social
compartilhada por atores diversos, dentre os quais um nos fala. Félix refere-se ao
Opus Dei como relação social, a qual viveu na situaç ão de fundador, no B rasil. Desse
modo, sua narrativa informa-nos de elementos que ultrapassam o sujeito individual,
constituindo experiências maiores, tais como a configuração simbólica, hierárquica,
normativa e moral do Opus Dei, a construção de espaços na cidade de São Paulo, o
desenvolvimento urbano e industrial dessa cidade, dentre outros. Ao mesmo tempo,
sua narrativa é evocativa e reflexiva ao passo que traz à tona interpretações e
análises do sujeito sobre a experiência vivida.
O cenário de operação do Opus Dei é o mundo, onde o eu aparece
desintegrado. Na narrativa de Félix, percebo, não uma exaltação de si mesmo e dos
seus próprios méritos por ter trazido o Opus Dei para o Brasil, mas a evocaç ão de
Deus como o grande ator de toda a história, na qual o homem é instrumento. Nesse
sentido, surge um paradoxo: para desintegrar o eu, o sujeito tem que voltar-se a si
mesmo, e reconhecer suas fraquezas, através do exame de consciência e da
confissão. Trata-se de um processo de subjetivaç ão singular e sofisticado. O eu

12
desaparece, ao longo da narrativa, para dar espaço à Providência. O sujeito, em sua
singularidade, olha para a experiência vivida e a interpreta à luz de uma experiência
social que configura processos de subjetivação. Os atores individuais, no fluxo das
experiências sociais, colorem o mundo com a sua subjetividade.
Desse modo, ao olhar o mundo por meio de uma experiência mais ampla,
Félix relata a construção de espaços nos quais é possível se deslocar: as
universidades e os meios profissionais. O eixo desse deslocamento é a santificação do
mundo pelo trabalho. Desde 1958 até os dias atuais, naturalmente, esses espaços
foram se sofisticando e se ampliando de forma a abranger mais campos profissionais,
universidades, etc. Mais crist ãos surgiram nesses meios, se converteram e, alguns, se
aproximaram do Opus Dei. As formas de trabalho apostólico também foram se
transformando. A partir do relato de Félix, percebo que o Opus Dei, no Brasil, surgiu
como uma alternativa diferenciada aos grupos tradicionais católicos que exi stiam
nesse contexto até então. Não havia, nesse país, alternativas católicas que
apontassem para formas de ser cristão no meio do mundo, santificando-o através do
trabalho profissional e do estudo. Mais do que isso, nenhum outro grupo católico,
antes do O pus Dei, formulou enunciados de justificação pública capazes de transitar
tão bem pelos espaços públicos da modernidade brasileira.
Portanto, a narrativa de Félix remete-nos a relações, interpretações,
subjetividades e experiências sociais. Muito além de exemplificar processos mais
amplos, o relato de Félix traz singularidade e subjetividade – é uma interpretação
pessoal, muito própria, da experiência vivida. É um relato de uma trajetória de vida,
com seus entrecruzamentos e relações, cujo conhecimento adquirido é interpretado e
organizado em forma de narrativa. A narrativa, creio, é a melhor forma de
compreender a conex ão de subjetividades individuais com experi ências sociais
compartilhadas.

Bibliografia

Livros:

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Rialp, 2006.

13
Artigos:

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Luiz F. Dias (Org.). Horizontes das ciências sociais: Antropologia. São Paulo:
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GOODMAN , Nelson: "Twisted Tales: Or, Story, Study, and Symphony" in


Critical Inquiry, Vol. 7, No. 1, On Narrative (Autumn, 1980), pp.
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MONTERO, Paula. “Talal asad: para uma crítica da teoria do símbolo na antropologia
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Site:

Opus Dei: site oficial, 07/10/2011, <www.opusdei.org.br>

14
O GÊNERO DOS SANTOS E A AGÊNCIA DOS DEVOTOS: A HAGIOGRAFIA E AS
ORAÇÕES DIRECIONADAS AOS SANTOS CATÓLICOS SOB UMA PERSPECTIVA
DE GÊNERO

Este trabalho tem por objetivo analisar (i) a hagiografia1 e (ii) as tradicionais
orações direcionadas aos santos católicos sob uma perspectiva de gênero. Os papéis
mitológicos de gênero dos santos retirados de suas biografias serão analisados
primeiramente. Depois disto, focaremos nas orações e pedidos que os fiéis
direcionam aos seus santos de devoç ão. Pretendo mostrar q ue estas orações (mesmo
elas), podem revelar a prática de uma “agência de projetos nas margens do poder”,
para utilizarmos um termo de Ortner (2007), que será explicado em seus detalhes
mais adiante.

Para embasar teoricamente esta análise serão contrapostas as conclusões de


Pierre Bourdieu em A dominação masculina ao trabalho já citado de Sherry Ortner, o
qual traz contribuições contundentes ao debate em torno da oposiç ão estrutura-
agência, caro às Ciências Sociais desde sua g ênese. Outros trabalhos serão trazidos
para contribuir com este debate sobre a agência (ALMEIDA, 2011; MARIZ &
MACHADO, 1994), bem como farei uso de bibliografia específica sobre canonizaç ão, o
culto aos santos católicos e o catolicismo em geral (COUTO, 2004; DE THEIJE, 2002;
MENEZES, 2004; PINTO & SOARES, 2010; SANTOS, 2010).

Se formos capazes de vislumbrar uma “agência de projetos” em meio à


cosmologia e às práticas religiosas da instituição considerada como uma das principais
responsáveis pela instauração da ideologia desigual de gênero vigente na sociedade
brasileira, estaremos fazendo coro às reivindicações de Ortner sobre o equívoco em se
contrapor os conceitos de estrutura e ag ência. Eles seriam, pelo contrário,
complementares, no sentido de a agência fazer parte, ser inerente à estrutura. Fica
claro então, desde já, minha opção de apontar elementos que contrariem o “paradoxo
da doxa” bourdiano, trazendo à tona negociações por autonomia (mesmo) em meio a
estruturas patriarcais seculares. Vamos à análise, em primeiro lugar, do trabal ho de
Bourdieu.

O beco (quase) sem saída

Notas
1
sf. 1. Relato ou biografia da vida de um santo. 2. Estudo sobre esse relato ou biografia (Fonte: Dicionário
Aulete)
Bourdieu afirma realizar em A dominação masculina o que chama de “um
trabalho de sócio-análise do inconsciente androcêntrico, capaz de operar a objetivação
das categorias deste inconsciente ” (p. 13), ou seja, de t razer à tona o inconsciente
dominado, e os mecanismos que engendram tal dominação, a fim de des-naturalizar
esta situação de desigualdade. Neste intuito de apreender os meandros da dimensão
simbólica da dominação masculina, escolhe a Cabília para fazer, como ele mesmo nos
diz, sua experiência de laboratório. Tal escolha se dá porque, segundo ele, “a região
apresenta uma forma paradigmática da visão falo-narcísica e da cosmologia
androcêntrica” (p. 14). Visão que seria, além disso, comum às sociedades do
mediterrâneo europeu, sobrevivendo até hoje, mesmo fragmentada e em estado
parcial, “em nossas estruturas cognitivas e estruturas sociais” (p. 14).

A tese principal do autor francês neste trabalho consiste em afirmar que a divisão
entre os sexos, além de esta r “na ordem das coisas ” (termo utilizado para dizer
que algo é normal, natural, a ponto de ser inevitável) encontra-se “em estado
objetivado nas coisas ”, ou seja, gravada em todo o mundo social. O que significa
dizer que a divisão entre os sexos encontra- se em estado incorporado, nos corpos e
nos habitus dos agentes, funcionando como esquemas de percepção, de pensamento e
de ação. Para Bourdieu, então, a mulher, enquanto ser social que vive em um
mundo orientado por uma cosmologia androcêntrica, pode-se dizer, “dorme com o
inimigo”, na medida em que esta cosmologia - e o que nosso autor chama de“as
estruturas sociais de dominação” - estão incorporadas nela mesma, como já
dissemos, na forma de esquemas de percepção, pensamento e ação. A inculcação do
habitus dominado na mulher faz com que ela aja inexoravelmente de acordo com
estas estruturas. Esta concordância entre estruturas cognitivas e estruturas objetivas
(entre representações e práticas) perpetrada pelo embodiment do habitus dominado,
torna possível o que Bourdieu chama de “experiência dóxica”, ou seja, a atitude de
apreender o mundo social e suas divisões arbitrárias como naturais e evidentes.

A visão androcentrica do mundo só toma forma de lei ao se inscrever nos corpos


através de uma “somatização das relações sociais de dominação”. Tal somatização se
dá como conseqüência de “um extraordinário trabalho coletivo de socialização difusa e
contínua”, tanto através do discurso mítico, quanto, e principalmente, através dos
ritos de instituição. Na Cabília, como dissemos, laboratório etnológico de Bourdieu,
estes rituais vão desde o nascimento, quando o corte do cordão umbilical do filho
homem é ritualizado significando a autonomia do masculino em relação ao feminino,
até a profusão etnografada por Bourdieu dos ritos sexuais orientados no sentido da
virilização do homem e da fragilização da mulher.
Este trabalho de socializaç ão difusa condena as mulheres a serem incapazes de
tornaram-se algo diferente do que elas são segundo a razão mítica, confirmando
assim, primeiramente aos seus próprios olhos, sua condição de destinadas ao baixo,
ao torto, ao pequeno, ao mesquinho, ao fútil, etc. Nas palavras de Bourdieu, “elas
estão condenadas a dar, a todo instante, aparência de fundamento natural à
identidade minoritária que lhes é socialmente designada”. A ordem social funciona,
assim, como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominaç ão
masculina sobre a qual se alicerça. Os dominados t êm poucas escolhas: quando est ão
limitados a pensar a situação na qual se encontram a partir de esquemas que são
produto da dominação ou, em outros termos, quando seus pensamentos e suas
percepções estão estruturados de conformidade com as estruturas mesmas da relaç ão
da dominação que lhes é imposta, seus atos de conhecimento são,
inevitavelmente, atos de reconhecimento, de submiss ão. As estratégias usadas
pelas mulheres contra os homens como - voltando à Cabília de Bourdieu - a magia,
são para este autor as “armas do fraco”. Continuam dominadas, pois o conjunto de
símbolos e agentes míticos que elas põem em ação, ou o fim que elas buscam, tem
seu princípio na própria visão androcêntrica em nome da qual elas são dominadas.

A cosmologia androcêntrica dos santos católicos

Bourdieu afirma ainda, no trabalho que venho analisando até aqui, a necessidade
de reconhecer os sistemas de agentes que contribuíram para arrancar da História (e,
por conta disto, responsáveis por naturalizar) as relações de dominação masculina. O
trabalho de reprodução desta dominação estaria garantido por três instituições
principais, segundo o autor. Seriam elas: a Família, a Igreja e a Escola. Caberia à
Igreja (foco de análise deste trabalho), instituição marcada por um antifeminismo
profundo, o papel de construir uma visão pessimista das mulheres e da feminilidade.
Mais especificamente, Bordieu afirma que a Igreja

inculca explicitamente uma moral familiarista, completamente


dominada pelos valores patriarcais e principalmente pelo
dogma da inata inferioridade das mulheres. Ela age, além
disso, de maneira mais indireta, sobre as estruturas históricas
do inconsciente, por meio sobretudo da simbólica dos textos
sagrados, da liturgia e até do espaço dos templos religiosos
(BOURDIEU, 1999, p. 103).

Para Bourdieu, então, estudar a hagiografia, bem como as orações dirigidas aos
santos, faria parte do seu programa de “restituir à doxa seu caráter paradoxal e, ao
mesmo tempo, demonstrar os processos que são responsáveis pela transformação da
história em natureza, do arbitrário cultural em natural” (p. 7). Ou seja, des-
naturalizar o mecanismo engendrado pela igreja católica que, a partir do princípio de
exemplaridade de fé devotado aos seus santos, inculcaria nas mulheres fiéis um
habitus dominado. A mitologia dos santos católicos, e a incorporação dos papéis
míticos de gênero nos esquemas de percepção dos fieis produziriam, seguindo o
modelo de Bourdieu, modos de pensamento que são eles próprios produtos da
dominação.

Pinto & Soares (2010) acompanham as conclusões de Bourdieu ao analisarem as


mudanças nos processos de canonização dos santos católicos ao longo dos séculos,
focando especificamente na recente santificação de santa Gianna Beretta Molla. Os
autores nos lembram que a santidade é um construto social e, denominando o
processo de canonização de “produção do santo”, utilizam-se do aparato teórico
bourdiano e encararam a santidade como um capital simbólico, e como tal, alvo de
disputas no campo. Por conseguinte (e inevitavelmente), esta “produção do santo”
por eles citada traria consigo marcas das estruturas dominan tes, dentre elas, as de
gênero.

Segundo os autores houve uma mudança de paradigma no formato da santidade


e nas significações a ela atribuídas, bem como no processo canônico formal. Tais
mudanças confirmariam, um retorno a práticas conservadoras pelas ins tancias oficiais
católicas. Nos sécs. V e VI o processo canônico passa a ser uma formalidade para o
clero e, neste momento, quase a totalidade dos sujeitos entendidos como santos
eram mártires. Já na Idade Média, o critério foi modificado para contemplar, em sua
maioria, santos nobres e doutores. Finalmente, nos sécs. XIX e XX, sãos os sujeitos
castos os alvos da canonizaç ão. A sexualidade foi, portanto, o elemento gerador da
santidade neste período (PINTO & SOARES, 2010).

É o caso de Santa Gianna. Ela decidiu morrer, ao invés de abortar, para salvar a
vida de seu filho. A crescente devoç ão a esta santa, sobretudo, segundo Pinto &
Soares, entre os jovens adeptos da Renovação Carismática Católica, cultua um ideal
de mulher que se realiza na maternidade dentr o do casamento e, a partir deste ideal
de mulher, elabora-se um modelo feminino para a boa conduta cristã. E, para além
disso, uma forte postura anti-aborto dos adeptos católicos na esfera pública. Voltando
a Bourdieu, o modelo de um cosmologia androcêntrica incorporada nos esquemas de
percepção das fiéis católicas, conformando-as a uma posição que abdica do controle
de seus próprios corpos encaixaria aí como uma luva.

No entanto, os autores afirmam haver ainda outro elemento que deixaria mais
complexo (e complicado) a análise do fenômeno da canonização de Santa Gianna. A
miraculada que, através do recebimento desta ‘graça’ serviu de confirmação da
santidade de Gianna Beretta Molla, a leiga Elisabete Comparini 2, tornou-se divulgadora das obras de
sua santa de devoção através de pregaç ões em eventos da RCC. Os autores
reconhecem estar diante de um empoderamento feminino ao se depararem com a
liderança de Elisabete. Mas isto ocorre ao mesmo tempo em que ela proclama os
valores de mulher cuidadora, mãe dócil e sacrificadora de si (PINTO & SOARES,
2010).

Esta situação complexa é definida pelos autores como ambigüidade. Bourdieu


provavelmente classificaria a performance de liderança de Elisabete, e o seu
empoderamento como leiga, e mulher, frente aos adeptos da RCC como o uso de
“armas do fraco”, passiveis apenas de contribuir para ratificar a dominação
masculina. Os autores, ao pinçar um empoderamento feminino em meio às categorias
teóricas bourdianas, o fazem, a meu ver, em revelia ao autor franc ês. Bourdieu,
assim entendo, não oferece quadro teórico que nos permita vislumbrar sequer
ambigüidades neste caso. A brecha semiótica que abriria possibilidade para o que ele
chama de “luta simbólica” (promotora de reversões nos sistemas de significados
dominantes em prol dos dominados), bem como a categoria da ambigüidade trazida à
tona por Pinto & Soares, não são suficientes para dar conta da complexidade da
relação entre estrutura e agência que se pode apontar na interação entre os devotos e
os santos de sua devoção, e das práticas e significados que decorrem desta interação.
E mais, tais categorias não nos oferecem modelo teórico capaz de vislumbrar a
construção de autonomia, empoderamento, enfim, ag ência, dos fieis inseridos em
seus sistemas simbólicos religiosos. Para tentar fazê-lo, utilizaremos a partir daqui as
categorias oferecidas por Sherry Ortner (2007) no seu já citado ensaio sobre a
Antropologia da Agência.

Intencionalidade, resistência e recursos (Eles, às vezes, sabem o que


fazem)
Antes de qualquer coisa, é necessário dizer que o conceito de agência, conforme
proposto por Ortner, não implica em dar precedência aos indivíduos em relação aos
contextos. Todos os atores sociais “têm” agência, mas, por estarem
inextricavelmente envolvidos com outros na operação de “jogos sérios”, torna-se
impossível pensar que o agente é livre, ou que consiste em um indivíduo agindo sem
restrições. Ortner reconhece os perigos de se focar no tema da ag ência e cair em um

2 O milagre de ter escapado da morte ao decidir ter o beb ê de uma gravidez que a condenava, foi reconhecido
pelo Vaticano como sendo devido a Santa Gianna. Elisabete recebeu, enquanto estava internada entre a vida e
a morte, das m ãos de um bispo que pleiteava a santidade de Gianna Molla, um livro contando a biografia da
então beata. A partir daí, Elisabete, identificada com a hist ória que chegou at é ela, passa a pedir a Santa
Gianna o milagre de escapar da morte, o qual é concedido (PINTO & SOARES, 2010).
humanismo estéril e etnocêntrico que ignora a força das estrutur as sociais. Sua
discussão, felizmente, vai mais além. Vejamos.
O primeiro elemento importante na definição de agência de Ortner é a distinção
que ela faz entre práticas de rotina, de um lado, e os atos de ag ência “que intervêm
no mundo com algo em mente (ou no coração)”, do outro, a partir do foco
dispensado à questão da intencionalidade. E Ortner não admite o que chama de
abordagem soft da intencionalidade. Para ela, a intencionalidade deve ser entendida
como “metas conscientemente mantidas no foco de atenção”. Não menos do que isto.
Quando se é soft demais em relação à intencionalidade, diz Ortner, “perde-se a
distinção... entre práticas de rotina, por um lado, e, por outro lado, “agência”, vista
precisamente como ação mais intencionalizada” (ORTNER, 2007, p. 53).

Sem passar ao largo das quest ões de poder, Ortner vai mais além do que
equiparar agência à resistência, afirmando que “agência de oposição” é apenas uma
de muitas formas de ag ência. Além disso, existe uma multiplicidade de formas pelas
quais o que Ortner chama de recursos são distribuídos entre os indivíduos inseridos
em uma determinada estrutura social. Por mais desigual que seja a sociedade, diz
Ortner, há uma distribuição de “recursos” e alguma parte deles é controlada pelos
indivíduos, por mais destituídos que eles sejam. Caso contrário, não se poderia falar
de agência. Com isso, ela enfatiza a universalidade da ag ência e esclarece que ela
não se opõe à estrutura, mas é um componente desta. O cerne da questão é que
diferentes estruturas distribuem diferentemente seus recursos, empoderando
diferentemente seus agentes, portanto. Pode-se dizer, enfim, que agência é, em
certo sentido, uma capacidade de todos os seres humanos, ao passo que sua forma e,
por assim dizer, sua distribuição sempre são construídas e mantidas culturalmente.

Políticas da Agência
Ortner procede, a partir daí, com um exercício que, segundo ela, permitirá
vislumbrarmos o que ela chama de política da agência: “o trabalho cultural
envolvido na construção e na distribuição da agência como parte do processo que cria
pessoas apropriadamente definidas em termos de g ênero e, assim, entre outras
coisas, diferencialmente empoderadas” (ORTNER, 2007, p. 58, 59).

Analisando as personagens femininas dos contos dos Irmãos Grimm, Ortner diz
estar interessada em “examinar o que poderia ser chamado de políticas narrativas
envolvidas na construção de agência em um corpus particular de histórias”. Se
Bourdieu procurava nos sistemas mitológicos os mecanismos da dominaç ão simbólica,
a postura de Ortner é, desde o início, discutir o que chama de políticas narrativas
de construção de ag ência. A conclusão da autora é que as heroínas das histórias
dos Grimm, mesmo exercendo agência (no caso específico destas histórias, uma
postura ativa), são punidas just amente devido às suas ações em busca de autonomia,
o que não acontece com os personagens masculinos. Se não são castigadas
definitivamente, tais personagens precisam passar por provaç ões que envolvem
sempre símbolos e práticas de profunda passividade e/ou total inatividade.

Políticas da Agência dos santos

Seguindo o esforço reflexivo realizado por Ortner a partir dos contos dos Irmãos
Grimm, podemos analisar a hagiografia dos santos que comp õem a cosmogonia
católica verificando como a agência é distribuída nestas histórias e como se
constroem papéis de gênero “catolicamente” apropriados. Iremos contrapor as
hagiografias de São Jorge, Santa Catarina e Santa Bárbara perseguindo este intuito.

 São Jorge
De acordo com a tradição, Jorge da Capadócia3 era soldado no exército romano
do imperador Diocleciano. Conta a história que mudou-se para a Palestina com a m ãe
após a morte do pai. Privilegiadamente educado, ao chegar à adolescência, torna-se
militar, sendo rapidamente promovido à condição de capit ão do exército romano. Aos
23 anos passa a viver na Nicomédia, a corte imperial, onde exerce a funç
ão de
tribuno militar. Quando o imperador decide estabelecer decreto a fim de matar todos
os cristãos do Império, Jorge se levanta contra a decisão e exorta os presentes a
converterem-se ao Cristianismo, deixando a todos atônitos por tal atitude vir de um
tribuno de Roma. Acredita-se que devido a este ato foi preso e torturado sob as
ordens do imperador, e ainda assim não renegava sua fé. Após cada tortura, era
levado perante o imperador, que lhe perguntava se renegaria a Jesus em favor dos
deuses pagãos romanos. Todavia, Jorge reafirmava sua fé, tendo seu martírio aos
poucos ganhado notoriedade ao ponto de muitos romanos terem se convertido ao
Cristianismo por intermédio de seu testemunho, inclusive a própria esposa do
imperador. Finalmente, diz-se que Diocleciano, não tendo êxito no intento de vencer
a fé de Jorge, mandou degolá-lo.

 Santa Catarina de Alexandria


Conforme a hagiografia, Catarina4 viveu em Alexandria no séc. III d.c. Antes,
ainda na Cilícia, nega casar-se com vários pretendentes alegando que o faria somente
com alguém dotado de sabedoria à sua altura. Após a morte de seu pai Córbulo,

3 As informações sobre a vida de S ão Jorge foram retiradas da enciclopédia virtual Wikipedia no endereço
http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_Jorge [Acessado em 19 de Agosto de 2012].
4 As informações sobre a vida de Santa Catarina foram retiradas do website
http://biografiadossantos2.wordpress.com/2010/07/22/santa-catarina-de-alexandria/ [Acessado em 19 de
Agosto de 2012].
Catarina converte-se ao Cristianismo a partir de um sonho, tido ao mesmo tempo em
que sua mãe Sabinela, onde rejeitava pretendentes diversos a fim de casar somente
com o Imperador da Glória. Porém, este se nega a casar com a jovem pelo fato dela
ser pagã. Ananias, sábio responsável pela anterior conversão de Sabinela, interpreta o
sonho para Catarina, revelando-a que o Imperador da Glória seria Jesus Cristo e que
para unir-se a Ele deveria converter-se ao Cristianismo, o que ela faz prontamente.
Os grandes do reino continuam a cortejar-lhe, mas Catarina continua negando,
afirmando agora ser esposa do Altíssimo e mostrando, como prova do que afirmava,
o anel recebido do próprio Cristo no sonho que teve após sua convers
ão. Já em
Alexandria, cuida da herança deixada pelo pai há tempos falecido, e que passou a
administrar com a morte da mãe, ajudando os pobres com suas posses.
Em uma ocasi ão em que o imperador Max êncio organiza um grande sacrifício
coletivo aos deuses pagãos, e intentando defender os cristãos da crescente
perseguição por ele imposta, Catarina decide enfrentar o Imperador. Acusa-o de, ao
invés de adorar o Deus verdadeiro, sacrificar aos ídolos. Max êncio, não conseguindo
argumentar contra a sabedoria de Catarina, aprisiona-a e oferece riquezas aos sábios
que conseguirem convencê-la a adorar os deuses de Roma. Cinqüenta sábios
entraram em debate público contra a intrépida jovem, mas todos foram derrotados,
convertendo-se ao cristianismo através das palavras de Catarina. Max êncio enfurecido
diz a Catarina que, se ela não se curvasse aos deuses dele, seria decapitada.
Desdenhando da possibilidade de adorar outros deuses além do verdadeiro, Catarina
aceita a condenação e é entregue aos seus algozes

 Santa Bárbara
De acordo com a hagiografia, Bárbara nasceu na Nicomédia, no século III, filha
de uma família que n ão professava o Cristianismo. Os textos hagiográficos ressaltam
a tentativa dos pais de iniciá-la na “religião pagã” e a sua persistência em tornar-se
uma serva de Cristo. A jovem era considerada muito bela e tinha “grandes qualidades
de espírito”. O pai temia que a tendência religiosa da filha prejudicasse o seu plano
de encontrar um bom pretendente para a realização do casamento. Resolveu, então,
trancá-la numa torre para receber aulas de Ciências e melhor conhecesse os deuses.
Porém, essa reclusão serviu para Bárbara se dedicar mais à religião Cristã e receber o
batismo (COUTO, 2004).
A crença popular revela que, após receber uma proposta de casamento de um
jovem de “posição e alta linhagem”, Bárbara, mesmo insatisfeita, aproveitou a
ocasião e pediu ao pai para ser instalada num balneário. Dioscoro, antes de partir
para uma viagem, atendeu aos apelos da filha. A jovem começou a realizar encontros
com os cristãos em sua nova morada e provocou a ira paterna. Depois de uma
discussão na qual o pai a ameaçou com uma espada, ela refugiou-se numa gruta. A
partir do momento em que esse esconderijo foi descoberto, começou o seu martírio.
Ela foi encarcerada e torturada. Como resistisse às sessões de tortura, foi condenada
à morte e conduzida nua pelas ruas da cidade, para ser insultada pela multidão. O pai
foi o responsável pelo golpe de espada que a matou, sendo em seguida surpreendido
por um temporal e morto por um raio (COUTO, 2004).

 Não tão androcêntricos assim...


Se entre os personagens dos irm ãos Grimm analisados por Ortner, os homens são
retribuídos por exercerem agência, ao passo que as mulheres recebem punição, na
mitologia católica aqui analisada o fim é o mesmo n ão importa o gênero: o martírio.
As histórias de Santa Catarina e Santa Bárbara apresentam personagens femininas no
mínimo intrépidas, nos dizeres de Ortner, que “ ‘têm’ muita agência”. Em nome de
suas convicções religiosas, Catarina e Bárbara rejeitam o casamento. Diante do que
deveria ser o ideal religioso de realização feminina, elas escolhem pagar com a
própria vida5 por escolherem o caminho contrário. Catarina, antes mesmo de sua
conversão, afirma que só casaria com um homem de intelecto à sua altura. Presa
pelo imperador, não retrocede em seus propósitos: condenar o que considerava
práticas pagãs e apregoar a conversão ao seu Deus. Enfrenta (e vence) o Imperador
com seus argumentos e, posteriormente, derrota os sábios do reino nos embates
teológicos que se seguiram, até ser martirizada. Estamos diante de uma mulher que
vence através de argumentos uma série de homens sábios. A mesma intrepidez de
Bárbara percebe-se em Jorge, que a despeito de seu cargo como tribuno militar do
imperador Diocleciano, decide defender os cristãos. A intrepidez não fez distinção de
gênero nestas histórias.
Na hagiografia de Santa Bárbara a educação formal e a instrução religiosa são
mutuamente excludentes (ao invés de estudar ci ências, ao ser trancada por seu pai
na torre, dedica-se mais à religião), o que não acontece na história de Jorge e
Catarina. Ambos tiveram uma educação primorosa e dela se valeram em sua luta
contra o paganismo e defesa dos cristãos. Mas a astúcia de Bárbara em ludibriar o pai
e aproveitar ocasião para encontrar-se com os crist ãos merece destaque. Não se pode
ignorar também sua disposição de enfrentar a família, mais um valor crist ão
indiscutível, mostrando que a fidelidade a Deus deve ser colocada acima até de
preceitos tradicionais caros ao catolicismo, como no caso das já discutidas negativas
ao casamento.

5 A tradição também conta que o imperador ofereceu-se em casamento à Catarina antes de ordenar sua morte.
Não se pode, porém, esquecer que a desigualdade de gênero ainda se faz
presente no que diz respeito à sexualidade. Um dos contos que popularizaram a
devoção a São Jorge versa sobre sua luta, e vitória, contra um dragão, a fim de
salvar, e posteriormente desposar uma princesa. Enquanto isso, o ideal de pureza
sexual perpassa as histórias de Catarina e Bárbara, mantidas imaculadas até a morte,
requisito indispensável às suas canonizações.

Mas a quest ão principal é se esta autonomia de Catarina e Bárbara, percebida em


suas hagiografias, influencia um comportamento equivalente nas mulheres católicas,
mais especificamente nas devotas destas santas. Seria a agência dos santos
internalizada pelos fieis, promovendo a busca de autonomia? N ão pretendemos
responder esta pergunta definitivamente. Minha intenção é, apenas, refletir sobre esta
questão através das tradicionais orações dos fiéis católicos direcionadas a estas
santas.

Os devotos nas margens do Poder


A construção de autonomia e o exercício de ag ência por fieis de um credo
religioso, sob influência deste credo e das práticas que dele decorrem, s ão elementos
já trabalhados como tema nas ci ências sociais (ALMEIDA, 2011; DE THEIJE, 2002 ;
MARIZ & MACHADO, 1994). Almeida (2011) levanta a possibilidade das mulheres,
nascidas no início do séc XX e, portanto, socializadas sob preceitos patriarcais mais
intensos do que na atualidade, engendrarem uma autonomia na esfera pública (que
reverbera na esfera doméstica) construindo um espaço “só seu” através da
participação intensa nas atividades da igreja (católica). Mariz e Machado (1994)
mostraram que a conversão ao pentecostalismo leva as mulheres a colocarem sua
fidelidade a Deus acima até de preceitos familiares, passando a rejeitar abusos de
seus maridos.
Marjo De Theije (2002) faz uma etnografia, que apesar de focar nos homens
católicos, pode contribuir ainda mais com nossa análise. Ela aborda a vivência
religiosa dos homens católicos leigos e os chama de “transgressores”, no sentido de
que, se religião é “coisa de mulher”, estes homens assumem valores considerados
como femininos e, de posse de sua ideologia de gênero específica (a católica)
contrariam e criticam a ideologia de g ênero da sociedade mais ampla, rejeitando o
rótulo de “briguentos”, “machões”, etc. De Theije sugere que o contexto religioso
pode invocar outras características de gênero que não as invocadas dentro da esfera
doméstica ou pública em geral. Há, portanto, significados da ideologia de g ênero
mais ampla que podem entrar em choque com signific ados específicos vivenciados no
sistema simbólico religioso.
Mesmo vislumbrando a possibilidade de o fiel ir de encontro à ideologia desigual
de gênero mais ampla de posse da ideologia de gênero católica, a autora afirma
ainda que, apesar deste choque en tre diferentes ideologias de gênero, “a participação
masculina em grupos predominantemente femininos não contribuirá para a eliminação
da desigualdade entre os gêneros na sociedade mais ampla. Uma vez que as relaç ões
entre os sexos são conflitantes dentro do grupo religioso, mas fora do religioso
continuam os valores hegemônicos” (DE THEIJE, 2002, p. 54).

Apesar de nos fornecer a possibilidade de visualizar as relaç ões de gênero de


forma mais complexa do que Bourdieu o faz, De Theije as v ê ainda exclusivamente
sob o prisma do eixo dominantes-dominados. Outros aspectos, no entanto, devem ser
trazidos à tona. Nos dizeres de Ortner, a análise da ideologia de gênero dos homens
católicos leigos efetuada por Marjo De theije limitaria o entendimento da ag ência
como “agência de poder”, mas não discutiria ainda o que Ortner chama de “agência
de projetos”.

Ortner, em trabalho anterior (Life and death on Mt. Everest, 1999) tem o objetivo
de mostrar como as pessoas mant êm uma vida culturalmente significativa em
situações de dominação em larga escala por parte de outros poderosos – escravidão,
colonialismo, racismo, etc. Ela discute nesta obra, especificamente, o modo como os
Sherpas, embora muitíssimo afetados por um século de estreito envolvimento com
alpinismo no Himalaia, mantêm âmbitos de vida culturalmente “autêntica” e resume
esta idéia por meio da expressão vida cultural nas margens do poder. Ficam
distinguidas assim, duas modalidades de agência, como já esboçamos ao longo do
texto:

1) Em uma modalidade, a agência está estreitamente relacionada com idéias de


poder, incluindo tanto dominação como resistência;

2) Em outra, está estreitamente relacionada com idéias de intenção, com projetos


de pessoas (culturalmente constituídas) no mundo e com sua habilidade de
iniciá-los e de realizá-los.

A “agência de projetos” é, para Ortner, a dimensão mais fundamental da agência,


pois quando se fala de poder são os seus projetos que os dominadores querem
realizar (não o poder como um fim em si), e são os seus projetos que os dominados
visam proteger. Como seriam estes projetos culturais? Muitos são simples metas de
indivíduos (embora nunca se deva perder de vista o fato de que o todo da meta é
culturalmente constituído), outros, contudo, são “jogos sérios” plenamente
desenvolvidos, envolvendo o intenso jogo que multiplica sujeitos posicionados que
perseguem metas culturais dentro de uma matriz de desigualdades locais e
diferenciais de poder (portanto, mais uma vez, tais “projetos” não são livres).
É justamente a possibilidade da busca d e uma “agência de projetos” que quero
enfatizar na relação entre o devoto e os santos católicos. E falo de “jogos sérios”, não
somente de metas de indivíduos isolados. Nas palavras de Ortner, e no meu
entendimento, a relação entre os devotos e seus santos de devoção tem relação “com
a vida (relativamente comum) socialmente organizada em termos de projetos
culturalmente constituídos que infundem vida com significado e propósito”. As
pessoas, enfatiza Ortner, procuram realizar coisas valorizadas dentro do contexto de
seus próprios termos, suas próprias categorias de valor. Com os santos e seus
devotos não é diferente.
Menezes (2009, 2004) pode nos explicar melhor a relação entre os devotos e seus
santos de devoção. Na sua busca de elementos básicos para definir a santidade, a
autora destaca alguns pontos: Para além das variantes um santo seria capaz de
articular três dimensões, sempre presentes em maior ou menor grau. São elas: a
dimensão taumatúrgica, a dimensão mediadora e a dimensão exemplar.
Esclarecendo: um santo precisa, para assim ser considerado, provocar graças ou
milagres; conseguir coisas para as pessoas por estar mais próximo de Deus ou Jesus
Cristo, sendo, portanto, um mediador ideal; e servir como um exemplo a ser imitado.
“É numa articulação tensionada e singular entre essas tr ês dimensões – de
taumaturgo, de mediador e de exemplo – que um santo se configura” (MENEZES,
2009. p. 113)6. No entanto, afirma Menezes, tais dimensões podem levar ao
entendimento de que é somente a eficácia do santo a responsável pelo
estabelecimento de uma devoção. A autora nos alerta que há mais aspectos
envolvidos na escolha pelos devotos dos seus santos de devoção e que relativizam
essa limitada equação pedir-receber.
Dentre os aspectos citados por Menezes (2004) que de finem uma devoção, o que
mais nos interessa para efeito deste trabalho se dá quando determinadas
características da vida do santo funcionam como estímulo a uma devoção:
As especificidades da “espiritualidade” do santo, “as praticas
que desenvolveu durante sua vida, as atitudes que tomou
diante do mundo, sua personalidade podem ser tomadas como
verdadeiras molas propulsoras da devoç ão. Isso demonstra
como a biografia do santo e seus atributos podem adquirir
importância para um devoto”. (MENEZES, 2004, p. 235).

Portanto, não é apenas pelo que o santo fez pelo devoto que este se vinculaàquele,
“mas também porque o próprio devoto identifica características comuns entre ele e o

6
Vale ressaltar que, na contemporaneidade, o Vaticano tende a refor çar a dimens ão exemplar do santo, como
vimos no caso da canonização de Santa Gianna (PINTO & SOARES, 2010).
santo, uma certa afinidade que estimula o culto” (p. 236) . Ser devoto implica,
portanto, ligar elementos da vida do santo a elementos de sua própria vida (p. 238).
Isto abre precedente, no meu entendimento, para nos questionarmos se o
empoderamento verificado nos exemplos das vidas de Santa Catarina e Santa
Bárbara pode reverberar no comportamento de seus devotos, mais especificamente,
das mulheres devotas. Não estou propondo uma ligação simples e imediata entre a
mitologia dos santos e a prática dos devotos. Entre as representaç ões e as práticas
existe a intermediação, a necessidade da incorporação das primeiras no habitus dos
fiéis. É necessário que tais valores sejam produzidos nas performances dos rituais
católicos, tanto nos momentos de efervescência coletiva (DURKHEIM, 2008), quanto
nas interações rituais de menor intensidade (ROBBINS, 2009) responsáveis pelo
processo de socialização difusa e continuada destes valores (BOURDIEU, 1999 ).
Também não estou reivindicando para os devotos uma “agência de poder” (no sentido
de resistência que reverta a desigualdade de g ênero vigente na sociedade mais
ampla). O que pretendo mostrar, enfim, é que mesmo em meio a uma ideologia de
gênero mais ampla onde as mulheres aparecem como a parte dominada, e, além
disso, fazendo parte de uma ideologia específica onde elas ainda não conquistaram
uma autonomia definitiva, elas têm possibilidade de realizar projetos culturalmente
constituídos que infundem vida com significado e propósito. Há a possibilidade de
realizar coisas valorizadas dentro de seus contextos, em seus próprios termos, com
suas próprias categorias de valor, “nas margens do poder” (ORTNER, 2007) e, eu
acrescentaria, com a ajuda dos seus santos de devoção.
Verifiquemos as tradicionais orações que os devotos fazem às santas que já
conhecemos neste trabalho. Menezes (2004) esclarece que os pedidos aos santos
também tem a ver com suas especialidades. Estas por sua vez s ão criadas a partir
das de episódios das histórias dos santos. Santa Bárbara teria o poder de controlar os
raios e as tempestades devido ao fato de que seu algoz, seu próprio pai, teria
morrido fulminado por um raio após matá-la. Santa Catarina, por sua vez, tornou-se
padroeira, além de outras coisas, dos estudantes e professores, por ter vencido os
sábios do imperador romano nos debates acerca dos deuses, como vimos. Estas
referências podem ser encontradas nas orações abaixo, mas estamos em busca de
questões mais profundas:

Santa Bárbara7, que sois mais forte que as torres das fortalezas
e a violência dos furacões, fazei que os raios não me atinjam,
os trov ões não me assustem e o troar dos canhões não me
abalem a coragem e a bravura. Ficai sempre ao meu lado para
que possa enfrentar de fronte erguida e rosto sereno todas as
tempestades e batalhas de minha vida, para que, vencedor de

7 Retirado de http://www.saojorge.net/oracoes/santabarbara.htm [Acessado em 10 de Julho de 2012]


todas as lutas, com a consciência do dever cumprido, possa agradecer a
vós, minha protetora, e render graças a Deus, criador do céu,
da terra e da natureza: este Deus que tem poder de dominar o
furor das tempestades e abrandar a crueldade das guerras.
Santa Bárbara, rogai por nós.

Minha Santa Catarina 8, clara e digna. Vós fostes aquela


Senhora que passou pela porta de Abraão, achastes
quatrocentos homens tão bravos como leões, e vós com as
vossas santas palavras, abrandastes seus corações: assim,
minha Santa Catarina, abrandai os corações de meus inimigos;
se tiverem pés que não me alcancem se tiverem mãos, que
não me agarrem, se tiverem olhos que n ão me vejam e se
vejam tão acorrentados de pés e m ãos como meu Senhor Jesus
Cristo se viu na Cruz para todo o sempre. Amém.

Estas orações, longe de indicarem passividade, revelam pessoas que desejam


enfrentar “de fronte erguida e rosto sereno todas as tempestades e batalhas da vida”.
São pessoas que exercem agência a ponto de terem inimigos e clamarem para que
“tendo eles pés, não o alcancem”. Pedem por coragem e bravura. Querem vencer
lutas e abrandar corações de “homens bravos como leões”. Assim, o que podemos ver
nestas orações, para voltarmos aos dizeres de Ortner, “tem a ver com pessoas que
nutrem desejos de ir além de suas próprias estruturas de vida, inclu sive – o que é
muito central – de suas próprias estruturas de desigualdade; tem a ver, em suma,
com pessoas que jogam, ou tentam jogar, seus próprios jogos sérios, mesmo se
partes mais poderosas procuram desvalorizá-las ou até destruí-las” (ORTNER, 2007).
E, ainda, ao apresentar mais duas orações (uma pertencente à tradição católica,
a outra espontânea) proferidas por mulheres em comunidades dedicadas a Santa
Bárbara nas redes sociais, pretendo reforçar a relaç ão entre a devoção aos santos e a
possibilidade de empoderamento e ainda, e principalmente, da construção de uma
“agência de projetos” feminina. Seguem as orações:

Santa Bárbara 9 tiene muchas oraciones, sin embargo la más


popular es: "Santa Bárbara, Virgen Bendita, Grandiosa de
inmenso poder, Dios te acompañe, y Tu a mí por el camino del
bien. Con tu espada vencedora líbrame del mal, de la injusticia,
de la envidia y de los malos ojos. Con el poder del rayo
protégeme de mis enemigos, glorifica la boca de fuego de mi
cañón y permite que salga victorioso. Con el cáliz de tu copa y
el vino mantén la fuerza de mi cuerpo y espíritu para la dura
lucha y el combate. A mis manzanas y margaritas recíbelas
como ofrenda de que te tengo siempre presente en mi
pensamiento y en mi hogar, y te ruego no me abandones nunca
y acudas a mi cada vez que te reclame para defender mi fe, mi

8
Retirado de http://magnificat-umbelina.blogspot.com.br/2010/12/santa-catarina.html [Acessado em 15 de
Julho de 2012].
9Retirado de https://www.facebook.com/pages/Santa-B%C3%A1rbara/49927044432 [Acessado em 10 de

Julho de 2012]. Postado por Marielba Herrera em 03 de março de 2009.


tierra, mi familia y mis luchas; y que al final me lleves siempre a la gloria como Tú.
Amén.

Valei-me amada Santa Bárbara 10, peço-te para interceder diante de


\nosso Senhor Jesus Cristo, a graça de ser chamada no
10
Retirado de
http://www.orkut.com/Main#CommMsgs?tid=5423706597177332439&cmm=97544769&hl=pt-BR
[Acessado em 12/07/2012] Postado por Anônimo (verificar marcador de gênero) 24/09/2010.

Referências Bibliográficas
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Sant’Ana em Salvador (1860 – 1940). Tese (Doutorado em Hist ória), Universidade
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MARIZ, Cecília L. & MACHADO, Maria das Dores Campos . Pentecostalismo e a


Redefinição do Feminino. Religião e Sociedade. v. 17, n. 1, 1994.

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sagrado: rituais, sociabilidade e santidade num convento do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2004.

MENEZES, Renata de Castro. Santo Antônio no Rio de Janeiro: dimensões da santidade e


da devoção. In: TEIXEIRA, Faustino & MENEZES, Renata de Castro. Catolicismo Plural:
dinâmicas contemporâneas. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.

ORTNER, Sherry B. Poder e Projetos: reflexões sobre a agência. In: GROSSI, Miriam Pilar
(et.alli). Conferências e Diálogos: saberes e pr áticas antropológicas. Blumenau : Nova Letra,
2007.

PINTO, F. S & SOARES, H. R. Santa Gianna Beretta Molla: um estudo sobre os novos
modelos de santidade no catolicismo contemporâneo. Trabalho apresentado na 27ª
Reunião Brasileira de Antropologia - Brasil Plural: Conhecimentos, Saberes
Tradicionais e Direitos à Diversidade. Belém: 2010.

ROBBINS, Joel. Pentecostal networks and the spirit of globalization: on the social
productivity of ritual forms. Social Analysis, v.53, n. 1, p. 55-66, 2009.
concurso público que fiz e passei com boas notas e estou precisando muito, pois
sou pai e mãe de uma adolescente, eu Jannací te louvo e venero, minha amada
mãe, protege minha filha Alana Karolyne, dos olhos maus, sucesso nos estudos,
saúde, que cada dia ela seja mais interessada nas tarefas da
escola, e tenha sempre essa calma que Deus a premiou, assim
seja, paz ao mundo e à minha família e a essa amada
comunidade. Amém!!!!!

Estas mulheres est ão em busca de poder através de suas crenças nos santos para
jogarem seus “jogos sérios” e atingirem suas metas culturalmente constituídas.
Podemos fazer coro com Ortner e afirmar que estas mulheres est ão, com a ajuda dos
santos, e através deles, tentando sustentar seus próprios projetos culturalmente
constituídos, procurando fazer ou sustentar certo tipo de autenticidade cultural “nas
margens do poder” (p. 69).

Considerações finais
Pode-se dizer que, de acordo com Menezes (2004), quando se passa de um
simples fiel que apenas “testou um santo” invocando suas especialidades, para um
devoto verdadeiro deste santo, abre-se a possibilidade de pensar uma “agência de
projetos” baseada nesta devoção com qualquer dos santos que compõem a
cosmogonia católica, não somente com os santos das histórias analisadas até aqui e
que exerceram em sua biografia uma agência ativa. Isto se daria porque o
aprofundamento da relação com o santo, ou seja, a transformação de uma relação
baseada em um pedido fortuito em uma relação de devoção, faz com que o devoto
tenha garantida uma proteção mais ampla do que a relacionada com a especificidade
do santo. Toda a vida do devoto “que se agarrou com o santo” estaria envolvida por
esta devoção, não dizendo mais respeito ao que a tradiç ão considera como
especialidades do santo em questão.
Mas o que eu quis realmente enfatizar aqui, e espero ter deixado claro, é que,
apesar de estarem inseridas em uma ideologia de g ênero mais ampla na qual se
encontram dominadas, e, além disso, fazendo parte de uma instituiç ão cuja ideologia
específica de gênero é promotora de estruturas patriarcais seculares, as mulheres
podem exercer uma “agência de projetos nas margens do poder ”. E isto,
paradoxalmente, manuseando o próprio sistema simbólico desta instituiç ão. Tal
fenômeno acontece porque, Sahlins nos l embra, as categorias, quando em uso, s ão
colocadas em risco. A realidade não tem a obrigação de se conformar à mitologia. De
Theije segue a trilha de Sahlins ao dizer que “nenhuma ordem simbólica pública é
totalmente coerente e a hegemonia relativa ao g ênero da sociedade mais ampla só
pode ser parcial ” (Todavia, a influência dessa hegemonia parcial é indiscutível).
Ortner, por sua vez, questiona o efeito totalizador de formações como o colonialismo
e o racismo enfatizando, como vimos, a agência dos dominados.
Não quero, mais uma vez, negar a desigualdade de gênero nas representações e
práticas católicas. Quero apenas lembrar que a realidade é mais complexa do que o
simples enquadramento das relações sociais no eixo dominantes-dominados. Mais,
ainda que constrangidos por poderes que tentam demover os indivíduos de realizarem
seus projetos, há espaços simbólicos e efetivos para ir adiante. No caso aqui
analisado, o poder dos santos, ao meu ver, tem a capacidade de contribuir com a
construção de uma vida cultural significativa para seus devotos.
O ITINERÁRIO CATÓLICO:
DE UM TRADICIONALISMO INSTITUCIONAL AOS NOVOS PARADIGMAS DE
UMA PRÁTICA RELIGIOSA “MODERNA”

Elenilson Delmiro dos Santos1

Resumo: O presente artigo tem por objetivo fazer uma breve análise de como o
concílio Vaticano II possibilitou ao catolicismo perceber que se prender a um
tradicionalismo institucional significaria perder o controle da própria sociedade já que
uma das expressões da modernidade é o principio da secularização. A literatura já
produzida acerca desse assunto possibilitará compreendê-lo melhor, bem como munir-
se de subsídios para a reflexão e discussão do tema de pesquisa proposto. Hoje, o
catolicismo se vê completamente implicado diante da necessidade de ter que se
articular por meio de seus movimentos, como é o caso da RCC, com esta mesma
modernidade, isto, porém, não significa dizer que o catolicismo aderiu a todos os
princípios da modernidade, apenas que ele encontrou uma estratégia de seguir o seu
itinerário visando o controle absoluto na construção cultural da sociedade.

Palavras chave: Igreja, Tradição, Modernização, Vaticano II.

1. Introdução

Em períodos que antecedem o século XXI, alguns teóricos da secularização


pregaram o fim da religião. Hoje, em plena contemporaneidade o mundo se dá conta
de que não existe nada mais questionável do que esta visão derrotista da religião. No
entanto, é importante ressaltar que se a religião sobreviveu até os nossos dias e
possivelmente deve continuar sobrevivendo por um longo período da nossa história,
isto não se deve tão somente a necessidade que o homem sente pelo elemento
sagrado em sua vida, mas, que a própria religião por meio do seu aparato
institucional, a partir de uma releitura do mundo, perceberam que a própria religião
precisava sofrer algumas transformações para se adequar ao tempo presente.

No caso do catolicismo brasileiro, foram tantas e tão grandes as mudanças


ocorridas nos últimos 30 anos, que um observador que não tivesse acompanhado todo
o processo dificilmente acreditaria que elas pudessem ocorrer sem uma verdadeira
ruptura institucional (Oliveira, 1992, p.41). Neste caso, se expandirmos esse olhar
para além dos 30 anos, perceberemos que o itinerário católico é tamanho que uma
única fase do catolicismo seria intenso o bastante para preencher inúmeras páginas de
uma detalhada pesquisa acadêmica, imagine então, querer falar em poucas linhas

1
Graduado em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Graduando do curso de
licenciatura em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Email:
elenilsondelmiro@gmail.com
desse mesmo catolicismo, sobretudo, em um período que se coloca no pré e no pós-
concílio vaticano II.

Portanto, a partir da compreensão de que o catolicismo nas fases do tempo não


se constitui num todo homogêneo, muito menos estático, assim como seu próprio
discurso e a sua prática não é um todo universal, o Concílio Vaticano II por meio de
sua constituição Gaudium et Spes mostrou-se como a mais clara evidência desta
capacidade de readaptação que a Igreja dispõe para se adequar com o mundo atual.

Para esta pesquisa, apesar do risco de incorrer num reducionismo, limito-me


apenas a fazer um breve recorte, com base numa pesquisa histórico-sociológica, de
dois momentos vividos pela Igreja católica, o período que antecede o Concílio Vaticano
II marcado por um catolicismo romanizado, isto é claro, dentro da sua complexa
relação com o Estado, e o período posterior a este Concílio, em que podemos defini-lo
como um catolicismo que tenta por meio dos seus movimentos dialogar com a
modernidade.

No primeiro momento, abordarei o catolicismo romanizado, que surge como


uma reação tomada pela Igreja cujo intento era o de combater os princípios da
modernidade e da secularização que ficou claramente evidenciado após a Igreja
perder a sua hegemonia junto ao Estado com a proclamação da república, momento
este que culminou com o fim da relação de padroado que a Igreja mantinha com o
império, com destaque para o período republicano e a sua aliança com o governo
ditatorial de Getúlio Vargas. Num segundo momento, mostrarei a postura adotada por
esta mesma Igreja, agora Igreja da libertação, durante o período da ditadura militar
até chegarmos a Igreja midiática do nosso tempo.

Ao fazê-lo, pretendo demonstrar como nestes dois momentos, distintos de


posturas eclesiológicas e pastorais, porém, semelhantes em ideologia institucional, o
catolicismo vem seguindo paulatinamente o seu itinerário, e consequentemente
procurando se manter no controle da construção cultural da sociedade.

2. O catolicismo romanizado no Brasil, investindo na tradição

Secularização, pluralismo religioso, estas são algumas das novas configurações


apresentadas por um país que se encontra em processo de mudança. O advento desta
sociedade que anseia por respirar os ares trazidos pela modernidade, ganhou novos
contornos em 1890, ano em que se decreta a separação entre Igreja e Estado. Neste
novo contexto cultural, fica evidente que a modernização criou problemas para a
religião (Fonseca, 2011, p.10).

Nesse ambiente, a Igreja católica se vê completamente ameaçada diante das


implicações trazidas pelos paradigmas da secularização. Com efeito, diante da
velocidade e da intensidade com que se desenvolve a secularização, a Igreja não vê
alternativa, senão, encontrar uma forma de confrontar os perigos mortais trazidos por
um novo “deus”, o do cientificismo. Portanto, fortalecer a Igreja enquanto instituição,
reafirmar e viver as suas tradições, parece ser a forma encontrada de suscitar o seu
antigo papel.

Neste caso, em um país, que politicamente se encontra em plena afirmação


republicana e o catolicismo se vê subtraído à dominação do Estado, que por sua vez,
passa a ocupar um espaço antes reservado ao campo religioso, a romanização2 da
Igreja católica no Brasil, embora se configure como uma contraproposta para um
Estado secularizado favorece amplamente o capitalismo, assim como, a própria
modernização e o domínio social e religioso da sociedade. É neste sentido, que o novo
modelo institucional pautado na mais pura tradição proposta pela “romanização” do
catolicismo brasileiro, atinge tanto o clero como o movimento leigo (Iamamoto, 2003,
p. 143). Por se tratar de uma adaptação aos moldes europeus, vai ser muito útil ao
regime republicano. Sendo assim, a romanização vai se dar na mais perfeita
comunhão com o Estado Brasileiro.

Essa abertura vai ser o suficiente para garantir que a Igreja, mesmo sob o risco
da secularização, demande por parte da sua cúpula esforços no sentido de garantir
direitos, conquistar espaços na nova ordem estabelecida e limitar influência de outras
religiões aos fiéis do Estado (Serpa, 2008, p.86). Assim, a proclamação da república,
não necessariamente representou o fim da hegemonia católica, pois, mesmo
considerando que o fim do vinculo com o Estado provocou um abalo no catolicismo em
decorrência da abertura para outras matrizes religiosas, diferentemente do que
aconteceu na Europa, em que ocorreu uma forte perseguição ao clero; no Brasil, a
educação, que por sinal foi um dos grandes pontos estratégicos da Igreja, continuou
sendo fortemente influenciada pelo catolicismo ao ponto do Estado colocar o tesouro
público a disposição das escolas particulares, em especial, às católicas (Manoel, 2008,
p.55).

2
O termo romanização é um conceito que tem provocado entre os pesquisadores amplas discussões teóricas,
no entanto, para esta pesquisa adotaremos o conceito de romanização de Bastide que entre varias situações,
consiste na afirmação da autoridade de uma Igreja institucional e hierárquica.
No entanto, foi a tradição da Igreja, que não exatamente tem haver com a
tradição bíblica, e sim enquanto uma instituição que se caracteriza por estar a serviço
de suas próprias estruturas internas e seus interesses políticos, que a Igreja católica
conseguiu traçar suas novas linhas de ação contra os ventos trazidos pela
modernidade. Porém, por causa destas características, a instituição corre o risco de
perder o ritmo da história, de bastar-se a si mesma, de olvidar-se de sua
funcionalidade, de gerar passividade, monotonia e alienação (Boff, 2005, p.115).

Para a Igreja, naquele contexto a tradição representava mais do que um retorno


aos bons costumes, assim como era no período medieval, com a tradição com a qual
se reveste a instituição, que tem a ver sempre com o poder (Boff, 2005, p.115). Ela
consegue fazer com que as pessoas reforcem o seu espírito católico e para que isto
ocorra é preciso aceitar a autoridade de uma comunidade que já existia antes da
própria pessoa, que existe fora dela agora e que continuará a existir no futuro
(Rausch, 2000, p.87). Para tanto, se manter no controle da construção da sociedade
em suas mais distintas esferas, vai exigir da Igreja bem mais do que o seu poder
estrutural, se faz necessário um verdadeiro casamento com o Estado.

A fundição entre Estado e Igreja, e de um modo particular na era Vargas, foi de


tal modo intenso, que no caso do Brasil, ficava difícil determinar dentro da sociedade
aonde começava e terminava a religião. Nesse processo, a Igreja, configura-se como a
principal responsável por esse processo sincrético, de modo que restou ao Estado, por
sua vez, procurar atrair a solidariedade e o apoio da “valiosa força disciplinadora da
Igreja” e de resguardar seus campos privilegiados de intervenção, delimitando áreas
de influências (Iamamoto, 2003, p.156). Ou seja, coube ao estado apenas tirar
proveito da situação.

Se no período republicano o fator incondicional para a Igreja era ignorar a


questão social3, com a nova política proposta pelo Estado, que marca o inicio da era
Vargas, a permanência da Igreja junto ao Estado vai se dar em meio a uma
verdadeira mudança de paradigmas. É de fundamental importância para a vitalidade
da Igreja, colocar-se de uma forma favorável aos movimentos políticos que se
levantava contra o governo estabelecido, isto é claro, não com o intuito de apoiá-los,
e sim como uma forma de influenciar a opinião pública, consolidando desta forma
junto ao Estado as posições indispensáveis para a consolidação de sua influência social
(Iamamoto, 2003, p.159).

3
A questão social, seu aparecimento, diz respeito diretamente à generalização do trabalho livre numa
sociedade em que a escravidão marca profundamente seu passado recente. (Iamamoto, 2003, p.125).
O período que passou para a história conhecido como Estado novo foi, a um só
tempo, de fato novo, principalmente no que se refere à legislação trabalhista, porém,
ao mesmo tempo velho, pois, mais uma vez abriu espaço para que a Igreja se
colocasse novamente na disputa pelo controle do imaginário social, ocupando todos os
espaços sociais, culturais e políticos; estabelecendo vínculos mais próximos com o
Estado, no campo social.

Em suma, o regime do bom entendimento entre a Igreja e o Estado, ou seja, de


uma “concordata não-escrita” (Oliveira, 1992, p.42), durou até meados da década de
60, quando começa a se estruturar uma nova conjuntura política no país. Com o
inevitável advento de uma sociedade que começava a respirar o ar da democracia e
que se tornava completamente contrária aos princípios hierárquicos da instituição
católica, a própria Igreja vai se dar conta que o seu tradicionalismo institucional
começava a ruir, não lhe restando outra outra alternativa, senão, reconhecer as novas
expressões da cultura moderna. O que se vê depois disso é um catolicismo que
procura manter a sua influência religiosa sem ter que necessariamente se prender em
uma única identidade religiosa.
Assim, no caso do catolicismo, a instituição não deve mais ser considerada
como norma de referência, mas apenas como um dos elementos que entram na
composição da identidade católica, ela mesma plural e heterogênea (Higuet, 2002,
p.74).

3. O catolicismo na alvorada do Concilio vaticano II

Thomas Rausch, ao escrever sobre o catolicismo, inicia a sua pesquisa fazendo


um recorte histórico que segundo alguns observadores, na metade do século XX a
Igreja se encontrava em plena saúde institucional, pois os números indicavam um
crescimento do catolicismo tanto em números quanto em influência, no entanto,
segundo o próprio autor, isto não afasta a desconfiança que igreja sentia das
influências trazidas pela modernidade. (Rausch, 2000, p.19). A igreja se dar conta
que se torna inviável pensar o homem em suas esferas sociais de uma forma que não
seja vinculado ao mundo moderno, neste caso, será necessário adotar uma nova
estratégia.
Se não é mais possível manter o homem exclusivamente sob o seu aparato
religioso em detrimento ao mundo moderno, cabe agora a Igreja, ao menos tentar se
inserir neste mesmo universo. Neste caso, o Concílio Vaticano II se apresentou como
uma janela que se abriu, para que assim, os primeiros raios da modernidade
pudessem entrar nos ambientes morfos e empoeirados de uma instituição que não
conseguia mais dar conta dos anseios dos homens. No entanto, Paul Valadier faz uma
ressalva com relação a esta aproximação da Igreja com o mundo moderno, muitos
alegam, com efeito, que o concílio não foi compreendido corretamente ao ser lido
como uma aceitação a secularização (Valadier, 1991, p.28). E ainda diz:

Os que examinam as coisas a fundo – assim se argumenta,


emitindo um juízo teológico sobre o mundo moderno? – sabem
perfeitamente que o concílio não podia aderir a uma
secularização que, na realidade, equivale ao humanismo ateu.
(...) o concílio, embora deplorando também o desenvolvimento
do ateísmo, se abstém claramente de estabelecer um nexo
pretensamente profundo entre modernidade e ateísmo. (Valadier,
1991, p.28)

Este questionamento nos oferece uma base para levantarmos a hipótese se de


fato a Igreja com todo o peso de sua tradição, de fato aderiu, ou ao menos, conseguiu
dar início a um diálogo com a modernidade. Entretanto, o que a historiografia nos
mostra é que a “terceira via”, a via do diálogo com o mundo moderno e da
inculturação na modernidade, nunca deixou de ser minoritária de fato (Comblin, 1996,
p.52).

4. Gaudium et Spes, um novo jeito de ser católico

O vaticano II, na Gaudium et Spes, passa das condenações anteriores à


disposição para dialogar. (Lopes, 2001, p. 14). Portanto, a Gaudium et Spes
representa, ao menos em documento, a passagem de uma Igreja mais voltada para si
mesma, institucional, para uma Igreja mais inserida na realidade social e aberta para
os desafios advindos de um mundo secular. Neste novo cenário político e eclesiológico,
o catolicismo deixou de ser um compreendido apenas como uma religião que se limita
a viver regida tão somente pelos dogmas determinados pela Igreja e que tinham como
objetivo final a salvação espiritual de cada pessoa. O compromisso social se torna
para o catolicismo uma consequência natural da fé cristã.

A ambiguidade passa a ser algo recorrente na postura adotada pela Igreja no


pós Vaticano II o que deixa em evidencia que esta estava dividida em duas alas:
progressistas e conservadores, mais que ainda assim, independente desta divisão a
Igreja migrou para um novo trajeto da sua história.

A nova conjuntura política, ditada pelo regime militar provoca uma crise no
interior da Igreja. De um lado existe uma ala de direita que procura de todas as
formas demonstrar o seu interesse de contribuir com o novo regime político, porém,
não recebiam qualquer manifestação de interesse por parte dos novos donos do
poder, até mesmo porque, estes só queriam ter a Igreja ao seu lado, legitimando suas
medidas em nome do anticomunismo, mas sem conceder-lhe real influência na
definição dos rumos do país (Oliveira, 1992, p.44). Do outro lado, uma ala de
esquerda encabeçada por clérigos e leigos que manifestavam abertamente apoio aos
movimentos sociais, inclusive fazendo parte deles.

O discurso cristão católico proposto pela base progressista, principalmente após


o concílio vaticano II e os embates ocorridos durante a ditadura militar, propiciou uma
aproximação entre o discurso cristão católico referendado pela teologia da libertação
que pregava a libertação das pessoas da tirania e da opressão que vinha sendo
promovido pelo governo militar e o discurso de libertação proposto pelos movimentos
sociais que tinha em sua essência uma base política de esquerda.

Face às semelhanças não apenas de discurso, mas principalmente de interesses


sociais é que a ala de esquerda da Igreja católica passou a assumir por meio de sua
militância e principalmente através das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs, que se
constituíam na ala progressista da Igreja católica, a defesa dos mais pobres e
marginalizados da sociedade. A inserção de líderes comunitários e militantes católicos
nos movimentos sociais, como uma forma de defender os seus interesses, não
necessariamente, significava dizer que dentro dos próprios movimentos eles teriam a
oportunidade de ter uma voz ativa, visto que, alguns movimentos sociais tinham suas
próprias aspirações políticas.

Portanto, as CEBs se tornaram para os mais marginalizados uma organização


representativa que de fato dava a oportunidade para que estes expressassem suas
próprias ideias e interesses e não necessitassem de discursos de líderes políticos que
muitas vezes estavam infectados de interesses partidários. A palavra libertação no
catolicismo assume, a partir da CEBs, um sentido de grande amplitude, romper com o
projeto político que se limita a atender aos interesses de uma minoria e condena uma
grande parcela da sociedade a viverem excluídas dos seus direitos sociais.

Neste sentido, de que se faz necessário uma ação concreta é que as CEBs vão
encontrar na teologia da libertação o respaldo teórico e teológico necessário para
impulsioná-las a buscarem a união entre fé e a vida (Boff, 1986, p.96). É no enlace
destes dois princípios que muitos fiéis vão acreditar que a santidade na terra vai
começar pela política.

Para ser bom político não se necessita ser cristão; isso já o


sabiam e ensinavam os mestres medievais. Mas para ser um bom
cristão é preciso preocupar-se também com a justiça social que é
uma realidade política. Hoje para se alcançar esta justiça social,
tão carente em nossa sociedade discricionária, importa viver a fé
como um fator de transformação das relações sociais (Boff,1986,
p.82)

Se a Gaudium et Spes, foi uma constituição que abriu caminho para a vocação
do homem e da Igreja no mundo contemporâneo fosse discutida, possivelmente as
CEBs conseguiriam perfeitamente tirar do papel um dos principais documentos que
surgiram como fruto do Concílio Vaticano II. Nesta perspectiva, quando o documento
pontua que a Igreja deve marcar sua presença no mundo, a meu ver, dar-se a
entender que este mundo estar além dos próprios muros da Igreja enquanto
instituição. Assim, o preceito de que sua vitalidade estava estritamente condicionada à
manutenção de suas tradições, foi completamente superada.

A instituição católica percebeu que a sua própria presença enquanto instituição


na vida dos homens está ironicamente ligada a algo que ela tanto combateu: a
modernidade, até mesmo porque o crescimento evangélico que tem provocado um
certo desconforto no monopólio católico, estar intimamente ligado a forma como eles
fazem uso dos novos instrumentos ofertados pelo mercado tecnológico, a exemplo da
mídia eletrônica.

5. Catolicismo midiático, o caminho da vez

Como não seria diferente o catolicismo, com sua eficácia de sempre, abri por
meio da midiatização mais uma página de seu longo percurso histórico. Hoje, por meio
de um catolicismo midiático (Carranza, 2006, p.74) a Igreja católica consegue dar
continuidade a sua busca constante pela hegemonia religiosa dentro da sociedade,
hegemonia esta ameaçada pelo pluralismo religioso e pelas próprias subjetividades
criadas pela própria modernidade.

No entanto, o catolicismo tem evidenciado que a modernidade deixou a muito


de ser uma bandeira inimiga, até mesmo porque, trata-se de uma instituição milenar
que sempre refaz seus trajetos, por isso encontramos, de tempos em tempos, novas
ofensivas de recatolização (Carranza, 2006, p.74). É esse legado histórico que faz com
que o catolicismo seja capaz de articular alguns dos seus conteúdos tradicionais com
elementos que são próprios da modernidade.

O catolicismo começa a rever os seus conceitos com relação à modernidade,


principalmente quando se dar conta, que por mais antagônico que possa parecer, as
subjetividades oriundas do mundo moderno estão sendo determinantes nos setores de
evangelização. Neste contexto midiático, marcado pela busca do absolutismo religioso
é que a Renovação Carismática Católica - RCC, vai se apresentar como o principal
instrumento católico de enfrentamento aos desafios desse novo mercado religioso, e
de um modo particular, aos avanços do pentecostalismo.

Múltiplas são as razões pelas quais a RCC tornou-se socialmente


visível nos anos 1990, entre elas podemos destacar: a forma
específica de apropriação dos MCM, setor maciçamente ocupado
uma década antes pelo pentecostalismo e neopentecostalismo, e
a sintonia cultural que sua proposta religiosa encontrou na época
(Carranza, 2006, p.75)

É notório que a mídia eletrônica deu uma nova vida a religião, porém, se torna
ainda mais notório pensar no risco que esta mesma midiatização pode estar
reservando para o futuro desta mesma religião. Se hoje, ela se estende para novos
endereços: Rádio, TVs, Casa de Shows, é bem provável que com o passar dos tempos
a religião corra um sério risco de ser vista sob uma nova perspectiva, e não mais
como uma agregação de cultos e doutrinas que direciona o homem para um elemento
sagrado. Não se pode deixar de considerar que este maneira de se viver a religião
talvez esteja se dirigindo para um grande vazio.

Se por um lado, a midiatização se apresenta como uma possível permanência


do catolicismo como sendo a religião hegemônica do país, por outro ela também pode
significar o fim de uma religiosidade. Neste caso, a linha popular, pois esta, por sua
vez estar inexoravelmente condenada a desaparecer com a urbanização e a
modernização. (Comblin, 1996, p.41).

6. Considerações finais

Nesse conflito desencadeado por fatores internos e externos, entre o esforço


pela manutenção de uma postura tradicional ou a abertura para a nova proposta
trazida pela modernidade, o fato é que a igreja católica optou pelo caminho do meio,
ou seja, utilizar a modernidade, porém, sem se entregar totalmente a ela. Apesar de
todo o esforço desempenhado pela Igreja no sentido de se manter em sua linha
tradicional, a necessidade de dialogar com a nova proposta dita moderna tem causado
um novo ordenamento social, o fez com que a Igreja católica abalasse os seus
paradigmas tradicionais e se abrisse para uma nova proposta religiosa.

Confrontar-se com a realidade ou ajustar-se a ela? Foi na cadência de uma


resposta para esta pergunta que o Concílio Vaticano II, empreendeu novas propostas
de mudanças para a instituição católica, isto é claro, valia para todos os seus
seguimentos, desde os mais tradicionais e heterodoxos até os mais progressistas.

Portanto, se instrumentalizar de acordo com os ventos trazidos pela


modernidade, não implica dizer que a Igreja católica aderiu aos princípios da
modernidade, mas, que ela pode ser utilizada quando atende aos interesses do
catolicismo. Entretanto, nem por isso, vai deixar de exigir da própria instituição
católica uma autodefinição que vai culminar numa dialética que varia entre a
continuidade e a ruptura, ou seja, entre a tradição e a modernidade.

REFERÊNCIAS

BOFF, Leonardo. Igreja, carisma e poder. Rio de Janeiro: Record, 2005.

___________ . E a Igreja se fez povo, a Igreja que nasce da fé do povo. São Paulo:
Vozes, 1986.

CARRANZA, Brenda. Catolicismo midiático. In: TEIXIRA, Faustino; MENEZES, Renata.


(Orgs.). As religiões no Brasil, continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006.

COMBLIN, José. Cristãos rumo ao século XXI, nova caminhada de libertação. São
Paulo: Paulus, 1996.
FONSECA, Alexandre Brasil. Relações e privilégios, Estado, secularização e diversidade
religiosa no Brasil. Rio de Janeiro: Novos diálogos, 2011.

HIGUET, Etienne. Alguns aspectos do catolicismo brasileiro atual, considerações a


partir da visão da modernidade em Paul Tillich. In: Revista Eletrônica Correlatio n. 01
– Abril de 2002. Disponível em: www.metodista.br ›... › Correlatio ›. Acesso em:
05/01/2013.

IAMAMOTO, Marilda. CARVALHO, Raul de. Relações sociais e serviço social no Brasil,
esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez, 2003.

LOPES, Geraldo. Gaudium et Spes, texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2001.

MANOEL, Ivan Aparecido. A criação de paróquias e dioceses no Brasil no contexto das


reformas ultramontanas e da ação católica. In: SOUZA, Rogério Luíz de; OTTO,
Clarícia. (Orgs.) Faces do catolicismo. Florianópolis: Insular, 2008.

OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro. Estruturas de igreja e conflitos religiosos. In: SANCHIS,


Pierre. (Org.) Catolicismo, Modernidade e tradição. São Paulo: Loyola, 1992.

RAUSCH, Thomas P. O catolicismo na aurora do terceiro milênio. São Paulo: Loyola,


2000.

SERPA, Élio Cantalício. Igreja e poder na primeira república. In: SOUZA, Rogério Luíz
de; OTTO, Clarícia. (Orgs.) Faces do catolicismo. Florianópolis: Insular, 2008.

VALADIER, Paul. Catolicismo e sociedade moderna. São Paulo: Loyola, 1991.


O SEMEADOR: A VOZ ANUNCIADORA DO VATICANO II EM ALAGOAS

Everton Esperidião de Melo1

Universidade Federal de Alagoas

Orientador. Prof.ª Dra. Irinéia M. Franco dos Santos

Este trabalho é parte dos resultados da pesquisa que desenvolvemos no Arquivo da


Arquidiocese de Maceió, analisando de forma sistemática aquele que é o jornal
Alagoano mais antigo em circulação e o primeiro diário Católico do Brasil. As fontes
documentais utilizadas para essa discussão são artigos do O Semeador, com textos
do período que compreende 1960 a 1964. O objetivo deste trabalho é entender de
que forma O Semeador, como órgão oficial da Igreja em Alagoas, anunciou o
Concílio Vaticano II e suas repercussões na Igreja brasileira e alagoana,
viabilizando elementos que auxiliem no processo de reflexão sobre o papel histórico
e institucional da Igreja Católica na formação social em Alagoas.

Primeiramente se faz necessário fazer um pequeno levantamento historiográfico de


tal jornal, para que desta forma se compreenda a importância do mesmo e de que
forma ele foi administrado trazendo assim uma clareza na presente análise.

A igreja perpetuou-se em uma nova conjuntura histórica no século XIX através de


atuações nos diversos setores sociais como a educação2 e saúde, e em Alagoas não
foi diferente. A Igreja está na gênese da imprensa alagoana se utilizando da mesma
como instrumento de suas causas antes mesmo da existência do O Semeador. Se
faz necessário recordar a participação do clero nas atividades da imprensa local
traçando desta forma o pioneirismo da igreja no tocante a comunicação e disfunção
da noticia no estado de Alagoas.

O Cônego Afonso de Albuquerque Melo, que através de árduo trabalho fundou e


dirigiu o jornal “O federalista alagoense” em 1832, sobrevindo o “Iris Alagoense”, e
notoriamente reconhecido pelo seu trabalho em prol da difusão da informação. Mais
não foi o único que teve participação ativa nessa história. Já em 1853 em Maceió,
surge o primeiro jornal de publicação constante, o Diário das Alagoas, que tinha
como proprietário o também Cônego Antônio José da Costa. Desta forma fica
exemplificado a atuação do clero local no germe da impressa Alagoana.

Já no século XX, o então Dom Manoel Antônio Lopes, segundo bispo da Diocese das
Alagoas, retorna ao histórico de atitudes pioneiras e tem por iniciativa a criação do
que viria ser o primeiro diário católico do Brasil, sendo o mesmo atualmente o mais
antigo jornal em circulação no estado. Vale aqui salientar algumas mudanças
ocorridas durante a vida do jornal, mudanças estas que expressa à expansão da
publicação. Desde que iniciou a sua circulação em 1913, o jornal sofreu várias

1
Graduando em História Bacharelado pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL.
2
Dias de Moura, Pe. Laércio. A educação católica no Brasil: passado, presente e futuro, -2ª ed, São
Paulo: Edições Loyola, p. 100.
mudanças, principalmente no tocante à diagramação. Inicialmente era produzido de
forma artesanal perdurando esta forma até meados de 1940 circulando com quatro
páginas, com um número crescente de noticias e anúncios se fez necessário que a
sua diretoria decidisse mudar a forma de diagramação, que agora passaria de
tipográfica para linotipo, vencendo assim, a lentidão da composição dos textos
executada na tipografia. Esta forma perdurou até 1982 tendo o acréscimo de mais
quatro páginas. Com as constantes mudanças tecnológicas, o linotipo vai sendo
substituído em todos os centros de publicações pela impressão offset, que se
tornou principal forma de impressão de grandes tiragens, desta forma em 1982 a
direção do jornal faz mais uma mudança agora de linotipo para impressão offset
circulando agora com 16 páginas, forma que perdura até hoje. Com estas
observações podemos compreender que o jornal sofreu ao longo de sua existência
vários investimentos, pois sendo ele um órgão de circulação oficial da Arquidiocese
de Alagoas, expressava a opinião segura da mesma para os seus fiéis.

A articulação do O Semeador não se construiu apenas com informações relevantes


ao campo eclesiástico e teológico, ele se envolve e se entrelaça com todo o
contexto social da contemporaneidade de sua publicação, sendo desta forma uma
ferramenta ricamente qualificada para análise social. É desta forma que
utilizaremos tal publicação, observando suas afirmações, questionamentos e
apontamentos no tema aqui relevante, o Concilio Vaticano II.

Um dos grandes acontecimentos na segunda metade do século XX foi á convocação


do Concilio Ecumênico Vaticano II (1962-1963), convocado pelo então Papa João
XXIII (1958-1965). Ali se buscou a perspectiva de um novo catolicismo. O início de
uma transição de uma Igreja arcaica, para uma Igreja aberta à modernidade. Foi
apresentado por Cassiano Floristan como: “o acontecimento mais importante do
século XX, celebrando em momento propicio religioso e cultural” 3

O Vaticano II buscou renovar a mensagem cristã aproximando-a da realidade do


mundo, renovando a participação da Igreja na vida social e reformando certos
aspectos do catolicismo. No discurso de abertura da primeira sessão do concílio, em
11 de outubro de 1962, João XXIII afirmou:

Sempre a Igreja se opôs aos erros; muitas vezes até os


condenou com a maior severidade. Nos nossos dias, porém,
a Esposa de Cristo prefere recorrer ao remédio da
misericórdia a usar as armas do castigo. Em face das
necessidades atuais, julga mais conveniente elucidar melhor
sua doutrina do que condenar os que dela se afastam.4

Desta forma, pode-se perceber na abertura do concílio já um caráter “amigável”


com que se pretendia discutir a Igreja como um todo e como ela dialogava com
outros setores da sociedade.

3
SAMANES, Cassiano Floristán & TAMAYO-COSTA, Juan-José (Orgs.). Dicionário de Conceitos
Fundamentais do Cristianismo. São Paulo: Paulus, 1999.
4
Vaticano II, mensagens, discursos e documentos / tradução: Francisco Catão. – 2. ed. São Paulo:
Paulinas, 2007, p.32.
Um dos pontos muito tocado no concílio foi o ecumenismo, este por sua vez, se
construirmos uma linha de início para o movimento ecumênico dentro da Igreja,
poderemos entender que ele surge à margem dela, fruto de parte do trabalho de
leigos e alguns poucos clérigos.

Sobre isso escreve Elias Wolff:

A relação das igrejas com o movimento ecumênico acontece


num segundo momento, quando líderes eclesiásticos se
integram na caminhada ecumênica de caráter laical,
envolvendo a totalidade das próprias igrejas. Dão, assim, a
sua contribuição específica para o ecumenismo. A relação
não é pacífica. As instâncias oficiais apresentam receios e
exigências que, mesmo buscando incentivar e orientar o
caminhar ecumênico dos fiéis, podem diminuir o ritmo da
caminhada desenvolvida pelas iniciativas leigas. As igrejas
sentem “riscos” como a perda da identidade confessional, o
relativismo da fé eclesial, a perda do “controle” das
iniciativas ecumênicas de seus fiéis.5

O discurso ecumênico representaria a tentativa de estabelecer um novo olhar sobre


o mundo. Num contraponto àqueles que ainda estavam embebidos de conceitos
enraizados na desinformação sobre a realidade do mundo moderno. Este já não
seria mais hegemônico.

Dizia Le Goff:

[...] não esquecemos nunca que o Deus da Idade Media é um


Deus oficial. Não tem concorrente. Javé é o Deus exclusivo
dos judeus e Alá não chega, na verdade, ao conhecimento
dos cristãos¸ nem mesmo dos cristãos cultos, nem mesmo
daqueles que como Pedro, o Venerável, abade de Cluny,
mandaram providenciar a tradução do Alcorão para melhor
conhecê-lo. Não existem além do Deus dos cristãos, a partir
daquele momento, mais do que falsos deuses”.6

A Igreja não se encontrava mais dentro desta conjuntura. Mudanças se faziam


necessárias para que o esgotamento de seus templos não se desse em razão de um
arcaísmo que não construía diálogos. Foi neste contexto que o Vaticano II buscou
construir uma nova perspectiva para o diálogo fraterno entre a Igreja e este mundo
moderno.

O mundo se encontrava em grandes discussões, a versão moderna da cristandade


se apresentava de forma a desacreditar nesta Igreja. Faz-se notar também, que o
apoio reciproco entre instituições politicas e igrejas estaria se afundando

5
Wolff, Elias, Igrejas e ecumenismo: uma relação identitária. pp. 19-20.
6
Le Goff, Jacques, O Deus da Idade Media; conversas com Jean-Luc Pouthier; tradução de Marcos de
Castro, -2ª ed.- Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p.27.
definitivamente. O contexto bipolar do mundo apresentava uma angústia para
Igreja.

Os ecos do anúncio foram amplos levando atenção e expectativas para diversas


camadas no mundo, desde as mulheres a grupos religiosos incluímos também as
fraternidades discretas como a Maçonaria, todos olhando para um possível
catolicismo que possivelmente estaria á nascer.

Sobre isso escreve Giuseppe Alberigo:

Os ecos do anúncio foram muitos amplos, provindos de


ambientes, classes sociais e camadas culturais muito
diversas, bem além dos limites habituais da catolicidade
romana. Á área de atenção transpôs também a costumeira
área atlântica – Europa ocidental e América setentrional-; era
um primeiro sintoma do alcance internacional que iria
caracterizar o pontificado de João e o concilio. É
praticamente impossível ter um panorama completo das
reações e dos primeiros comentários suscitados pelo anúncio.
Em poucas horas, a notícia deu a volta ao globo, suscitando
atenção, interesse, expectativas com tal variedade de
acentos, de matizes e de atitudes, que mesmo o relatório
mais acurado não consegue documentar em uma medida
exaustiva.7

Desta forma podemos observar a amplitude do anúncio do concílio se radiando por


todo mundo, inclusive Alagoas, sendo O Semeador responsável por transmitir as
preposições tratadas e discutidas pelo concílio.

A primeira nota sobre tal evento no O Semeador data de nove de março de 1962,
que tinha como titulo a Autoridade do Concílio assinada pelo Pe. Humberto Costa,
nota esta que traz uma análise dos ecos que um concílio pode ter. Mesmo que a
autoridade do concílio não seja superior ao do papa, este pode até ter mais
prestigio e se tornar mais eficaz junto aos fiéis e ao mundo não católico. O padre
também faz uma análise de que o cenário mundial, segundo ele, estava
completamente arregrado de ateísmo, representando um momento árduo na
história da humanidade, cabendo à igreja contribuir para a formação mais solene e
mais vigorosa da verdade.8

Tal nota mostra que o concílio Vaticano II não apenas se mostrava como
importante por apresentar a Igreja de uma forma, digamos, mais “próxima do fiel”.
O cenário mundial foi totalmente importante. Em todo momento o discurso do clero
tenta apresentar como turbulento o contexto social em que passa a humanidade na
contemporaneidade do concílio.

7
Alberigo, Giuseppe. Breve historia do concilio Vaticano II; Tradução de Clóvis Bovo-Aparecida, SP:
Editora Santuário, 2006, p. 23.
8
Porto, Humberto. A autoridade do Concílio. O Semeador, Alagoas, 9 de março, 1962, p. 1.
Mundo este que após a segunda grande guerra vive uma situação bipolar onde as
duas nações que tiveram papel altamente relevante na guerra e que se saíram
vitoriosas passam agora a se confrontar. Os Estados Unidos e União Soviética,
disputam tecnologicamente, ideologicamente e politicamente, áreas de influência
em todo o mundo. É neste tempo que a Igreja se encontra inserida, neste mundo
que diferentemente da idade media que tinha como grande voz a Igreja Católica.
Com esta situação ela precisa se reinventar e se dinamizar para que desta forma
ela possa construir laços mais reais com este novo tempo. Então ela rapidamente
escolhe o seu lado, atuando como agente da afirmação da ameaça comunista,
representado neste tempo pela União Soviética, de tal forma que O Semeador
também participa desta situação, visto que esta zona de possíveis influências
destas duas potências é sentido em todo o mundo, incluindo Brasil, logo em
Alagoas não é diferente. O Semeador vai ser no estado a ferramenta da igreja local
para demostrar quão perigoso é a “ameaça vermelha”.

No ano de 1962, ano este do início das atividades do concilio o Brasil passa por
uma situação conflituosa onde o presidente João Goulart9 é temido pela elite
brasileira no sentido de uma possível aproximação com setores comunistas no país,
representando perigo para os interesses da burguesia, isso se agrava com certas
posturas populares do presidente como o ato de sancionar a lei que instituiu o 13º
salario mês (abono de natal).

Em vista da grande repulsa do povo mineiro contra a


realização do Congresso Sindical Comunista em Belo
Horizonte, esse certame vermelho será feito em Brasília. O
secretário de segurança de Porto Alegre, afirma que o
Governo Federal é conivente com a pregação subversiva10

Dentro deste contexto O Semeador cumpre muito bem o papel de propagar a ideia
da Igreja perante o comunismo, que nesta conjuntura estaria aventando o Brasil,
então é constante manchetes e notas sobre á vida politica do país, sempre
relacionando a atuação dos “vermelhos” como um perigo para a paz da nação
podendo trazer miséria, insegurança, fome e outros males sociais.

Em contrapartida á Igreja apresenta respostas como a ação católica e o tão grande


Vaticano II que se apresenta tentando levar a Igreja a um caminho mais singelo no
tocante a comunicação com o seu fiel, que por sua vez estar incluso neste mundo,
não o vive separadamente, logo respostas se fazem necessárias para que esta
Igreja tradicionalista não se esvaziar-se.

Entre uma nota e outra que diariamente saia nas páginas do O Semeador, podemos
ler:

9
Goulart repele a denuncia de golpe. Folha de São Paulo, São Paulo, 14 julho, 1962, p.1.
10
Em vista da grande repulsa do povo mineiro contra a realização do Congresso Sindical Comunista em
Belo Horizonte, esse certame vermelho será feito em Brasília. O secretário de segurança de Porto
Alegre, afirma que o Governo Federal é conivente com a pregação subversiva. O Semeador, Alagoas, 25
Janeiro, 1962, p. 1.
(...) Múltipla é a finalidade do próximo Concílio Segundo do
Vaticano, conforme esclareceu o Santo Padre gloriosamente
reinante:
Dois objetivos são básicos: união e adaptação aos tempos
modernos.
Entre outros, destacam-se no pensamento e no coração do
Papa: novo vigor e novas energias; incremento da fé;
renovação dos costumes; a unidade de um só rebanho e
Pastor.11

O O Semeador no ano do início dos trabalhos do concilio, trazia quase sempre uma
manchete referente ao contexto da política brasileira quando não internacional,
sempre com os seus alertas e reflexões sobre o comunismo, limitando-se a trazer
pequenas notas sobre o concílio relevantes à organização, importância, história,
além de notícias gerais, como a nota trazida na sua edição de 20 de março de 1962
com o titulo “os Bispos irão para o concilio” 12. Até então não é possível encontrar
nenhuma manchete relevante ao concílio, sendo elas somente direcionadas para a
situação política do Brasil, raramente direcionadas para o mundo católico em si,
como se no momento este perigo “vermelho” merecesse uma atenção urgente, no
sentido das ameaças para o povo brasileiro fazendo uma clara e explicita oposição
ao comunismo tanto no âmbito internacional e nacional. Em uma nota do mês de
julho de 1962 intitulada “o que devemos fazer para que o Brasil não se torne
comunista” 13o jornal aponta várias atitudes que deveriam ser tomadas pelos
católicos.

(...) denunciar os comunistas disfarçados, que são sempre


numerosos e mais perigosos do que aqueles que se
confessam comunistas, não prestigiar - comprando ou neles
anunciando – os órgãos de imprensa que ostensivamente ou
discretamente, servem de interesse ao comunismo no Brasil,
não ter medo de ser chamado de reacionário e o medo de ser
ridicularizado. Não há ridículo em defender a mais sagrada
das causas: a liberdade, orar e fazer penitência, rezar muito
e pedir ao nosso Deus Nosso Senhor que apesar de nossa
indignidade salve o Brasil.14

De março até 11 de outubro, data da abertura do Concilio, o jornal vai publicando


notas referentes às preparações, como a chegada dos bispos em Roma como

11
O Concilio Ecumênico. O semeador, Alagoas, 8 Maio, 1962, p. 1.
12
Os Bispos irão para o Concílio. O semeador, Alagoas, 20 Março, 1962, p. 1.
13
O que devemos fazer para que o Brasil não se torne comunista. O semeador, Alagoas, 24 Julho, 1962,
p. 1.
14
O que devemos fazer para que o Brasil não se torne comunista. O semeador, Alagoas, 24 Julho, 1962,
p. 1.
também explicações sobre a importância de tal evento visto o momento em que a
humanidade esta passando de perda de valores morais.

Esta abordagem vai mudando no momento em que a data prevista para a abertura
dos trabalhos do concílio vai se aproximando, as notas vão ficando mais longas e
mais pomposas, aclamando o concílio e o atribuindo perspectivas de um catolicismo
novo, uma nova situação para igreja, um diálogo centrado na união, não só com os
não católicos mais com os irmãos separados, enfim, com todo o mundo. É este o
discurso do O Semeador, um discurso voltado pra a importância de tal momento
na igreja, contrapondo a situação do mundo dividido, como já foi apontado aqui. A
Igreja caracterizava este momento da história humana como crítico, sendo então
ela uma ajudadora dos mais humildes, atuando para a divulgação da paz e da
justiça social, tal imagem pretendia o concilio criar.

No dia 20 de outubro de 1962, foi aprovado pelo concílio uma pequena mensagem
apresentando o que seria a missão da Igreja, se colocando com solidariedade aos
problemas que afligiam a contemporaneidade:

Dirigimos continuamente nosso espirito a todas as angústias


que afligem, hoje, as pessoas; por isso antes de tudo, nossos
cuidados voltam-se para os mais humildes, os mais pobres,
os mais fracos; a exemplo de Cristo, sentimos compaixão da
multidão que padece de fome, miséria e ignorância;
constantemente voltados para aqueles que, desprovidos dos
auxílios necessários, não chegaram ainda a um modo digno
de vida. Por esses motivos, no decorrer de nossos trabalhos,
teremos em grande conta tudo o que compete à dignidade do
homem e o que contribui para a verdadeira fraternidade dos
povos.15

O Semeador trazia as preposições do que pretendia o Concílio, se tornando mais


forte na medida em que as discussões internacionais a respeito do mesmo iam
ganhando forma e corpo, sem esquecer nunca do seu grande inimigo, o
comunismo, fazendo lembrar ao seu leitor o perigo do mesmo. Ao analisar os
exemplares de 1962, o ano do início das atividades do Vaticano II, se faz perceber,
em todos os exemplares, holofotes sempre voltados para o perigo, a ação, a
movimentação dos comunistas brasileiros e internacionais. É impossível analisar a
forma que o O Semeador anuncia as preposições e o que pretendia o Concilio e não
esbarrar em tal situação, o discurso ante comunista, por motivos de relevância, até
o advento da data 11 de novembro de 1966 o jornal não imitiu nenhuma manchete
referente a tal Concílio, sempre o fazendo através de notas tão limitadas a explicar
funções, histórias e perspectivas do tal evento, mas mesmo se construindo desta
forma, é notório a importância que o jornal teve para a comunicação do Vaticano
Segundo no estado de Alagoas, fazendo de forma consciente e convicta, ele
anuncia o Concilio colocando em contraponto com o mundo conturbado que

15
Diario del concilio Vaticano II, aos cuidados de A. Melloni, Bologna, 1996 , 20 outubro de 1962.
evidentemente se encontraria desta forma por conta da ação vermelha pelo mundo,
trazendo manchetes como “Em Cuba impera a fome. Fracassou o plano soviético de
produção com a coletivação dos campos. Como na Alemanha dominado pelo
consumismo, o povo cubano deseja fugir em busca da liberdade.”16

Faz-se compreender que a visão da equipe editorial era tão somente única de que a
Igreja estaria trazendo novos ventos para um mundo sem paz, obviamente fazendo
tal discurso com maestria de quem representava a voz oficial da Igreja no estado.
Faz-se lembrar que no O Semeador em todas as capas compreendidas entre 1960 a
1964 vinha estampado “Órgão Católico” acontecendo antes e posteriormente
também, mais aqui exemplificada neste período, pois é o que aqui estamos a trazer
referencias, deixando evidente que suas opiniões estavam em conformidade com as
orientações do clero superior.

Esta situação faz pensar em algo que só com uma análise muita ampla, com um
panorama impossível de se obter pode conseguir, que é como estes ecos do
Vaticano II foram sendo encarados por outros órgãos católicos e suas preposições.
Faz-se crer que o O Semeador não seja o único, mais o que com maior maestria o
fez no sentido de realizar um discurso de um momento histórico difícil para a
humanidade, de um processo de desvalorização do ser, de dúvidas e de agonias,
criando no imaginário católico local um processo de legitimação do Concílio, no
sentido de que a Igreja como representante de Cristo na terra, estaria cumprindo
fielmente as palavras de Cristo, indo e pregando o evangelho, a palavra da
libertação não só da alma, mais do corpo, libertação esta que traria paz. Os
humilhados, oprimidos, e os escravos de um mundo material, eram submetidos aos
“vermelhos” agentes da destruição, fazendo sempre estes laços, O Semeador lança
questões internacionais deste cenário bipolar com o contexto nacional aqui já
tratado.

Não se pode negar que os amigos de Moscou procuram a


todo tempo tirar proveito do momento politico do país, meio
confuso, meio duvidoso.
Mas no meio dos tumultos das paixões, ressoa a voz serena
e maternal da Igreja através dos bispos, já mostrando o
perigo das relações diplomáticas com a Rússia, já
apregoando a Reforma Agrária e medidas tocantes á
tranquilidade para a nação e o bem estar de milhentos de
lares carecidos de recursos.
Já muito antes, os prelados do Brasil, como os Bispos e os
monjes da Idade Média que criaram a civilização ocidental,
fizeram reuniões em diversos Estados do país, estudando
problemas agrícolas no sentido de melhorar a situação do
camponês.

16
Em Cuba impera a fome. Fracassou o plano soviético de produção com a coletivação dos campos.
Como na Alemanha dominada pelo consumismo, o povo cubano deseja fugir em busca da liberdade. O
semeador, 22 março, 1962, p. 1.
(...) Mas faz parte do apostolado cristão, a formação de um
ambiente propício a virtude e a tranquilidade social, dai a
razão pela qual os bispos brasileiros se entregam ao árduo
trabalho da criação de um meio, onde não reine a miséria,
para melhor eficácia da missão apostólica (...)17

Desta forma a apresentação que o jornal faz do concílio é de um momento em que


a Igreja se abre para este mundo contaminado pela injustiça e ganância, como já
aqui foi descrito o jornal unicamente apresentava notas reverentes ao evento,
tendo sua primeira manchete sobre tal, no dia 11 de outubro, que dizia: “Hoje em
Roma, em hora correspondente ás 10 horas no Brasil, se abriu sob as luzes do
Espirito Santo, e presidência do Papa João XXIII, o Concílio Vaticano II. Toda a
cristandade cooperando na fé e na oração com os seus Pastores, pede a Deus que
traga uma renovação crista de unidade e fraternidade humana.”.18

Todo este discurso reflete esta visão que se passa no seio de Roma, esta
preocupação com este mundo bipolar, em guerra ideológica, onde os valores que
antes se embebedavam nas fontes da Igreja já os não faz ao bom tempo,
precisando a Igreja se renovar, se reinventar, criando possibilidades de mais uma
vez se sentir com mais vigor no meio dos seus fiéis, se fazia necessário superar os
problemas que se carregava desde a reforma protestante, do iluminismo, e agora
com á modernidade que sempre foi colocando novas demandas a Igreja, era
preciso se pensar como se apresentar neste contexto, estava claro e evidente que a
cada década o ultramontanismo não se apresentava mais como uma questão
plausível, não era mais o momento de preferir reagir utilizando-se de velhas
ferramentas incapazes de adaptar-se com destreza aos acontecimentos do século,
isso fica claro a cada momento do concílio.

Os observadores que assistem as deliberações do Concilio


Ecumênico predisseram hoje que as mesmas apressarão a
unidade cristã. Frederick Grant, professor do Seminário da
União Teológica de Nova Iorque e observadores enviados
pela Igreja Protestante, disse que o Concilio reconhece os
problemas da Igreja Crista; O padre Karekub Sarksiabe,
diretor do Seminário Teológico Armênio do Líbano, disse que
pode ver no Concilio um interesse e preocupação verdadeiros
para com os outros cristãos. Assinalou que este Concílio
parece constituir um esforço sério e eficaz para avaliar
novamente todos os aspectos da Igreja Católica Romana,

17
A Igreja e o Momento Atual. O semeador, 22 maio, 1962, p. 1.
18
Hoje em Roma, em hora correspondente ás 10 horas no Brasil, se abriu sob as luzes do Espirito Santo,
e presidência do Papa João XXIII, o Concílio Vaticano II. Toda a cristandade cooperando na fé e na oração
com os seus Pastores, pede a Deus que traga uma renovação crista de unidade e fraternidade humana.
O semeador, 11 outubro, 1962, p. 1.
com relação a sua posição doutrinaria as praticas litúrgica e
as relações com o mundo em seu conjunto. 19

Mesmo que a parte conservadora da Igreja tenha imaginado um concílio de


acusações e condenações como era de costume se fazer, visto que todos os
concílios que foram realizados, sempre foram formados para colocar respostas a
heresias, isso não foi real no Vaticano II, a maioria dos Bispos estavam ligados a
uma tendência de renovação, de observação às novas demandas do mundo
contemporâneo.

O O Semeador sempre se pronunciou com brilho no tocante ao anuncio do concílio,


sempre colocando a importância das transformações da teologia, juntamente com a
importância da mudança da forma em que a Igreja se relaciona com os outros
grupos cristãos. A muito do que se pensar sobre os ecos e como a Igreja local e
nacional anunciou o concílio, a atuação do episcopado brasileiro, as permanências e
as mudanças, a situação atual da Igreja, e o posicionamentos diferentes que
precisaram ser modificados e alinhados com as novas demandas do mundo
moderno para que esta instituição miliar pudesse ganhar ar e respirar de forma
mais suave. É necessário pensar nesta modernidade atual, onde o sujeito moderno
se apresenta com uma identidade fragmentada, um amplo campo de mudança que
desloca as estruturas centrais das sociedades modernas. É fundamental estas
reflexões visto a capacidade de influencia da Igreja em todo o mundo seja no
campo burocrático politico como também na vida social dos seus fies que se
encontram nos quatro quantos do planeta. Como a Igreja se pronuncia nesta
situação, onde o sujeito se encontra fragmentado possuindo não apenas uma mais
várias identidades, por muitas vezes contraditórias, não apresentando uma
identidade permanente? A sociedade moderna é por definição, sociedade de
mudanças que se estabelecem de forma muito rápida e constante.

É notório que as preposições do Vaticano II são cada dia mais reais e necessárias
para a manutenção de tal instituição no sentido de renovação e abertura para a
comunicação com este mundo, com estas identidades. Poderia até se pensar o
quanto mais o Vaticano II poderia avançar , mais aqui fica exemplificado como o O
Semeador tratou de informar aos seus fies e a toda a sociedade alagoana o
Concilia, fazendo-o de forma simplória até a data de sua abertura pós como já foi
afirmada, a preocupação até então era outro os perigos do eminente comunismo
que estava “solto” no Brasil.

As relações históricas entre Igreja Católica e a modernidade passaram por


transformações importantes nesta segunda metade do século XX. Obviamente
ainda se tem muito a construir e a se esclarecer, ainda se observa continuidades e
retrocessos em certos setores da Igreja. No entanto, a atual conjuntura se
apresenta mais favorável para que Igreja Católica continuem tendo novas
perspectivas para uma relação cada vez mais cooperativa e franca com todos que
não comungam da fé católica.

19
Concilio vai apressar a união dos cristãos. O semeador, 5 Novembro, 1962, p. 1.
Referências Bibliográficas

J.A. F Benimeli, G. Caprile, V Alberton, Maçonaria e Igreja Católica, hoje e


amanha; [tradução e adaptação de Valério Alberton.]- 6ª ed. – São Paulo:
Paulos, 2010.

Le Goff, Jacques, O Deus da Idade Media; conversas com Jean-Luc Pouthier;


tradução de Marcos de Castro, -2ª ed.- Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2010.

SAMANES, Cassiano Floristán & TAMAYO-COSTA, Juan-José (Orgs.). Dicionário


de Conceitos Fundamentais do Cristianismo. São Paulo: Paulus, 1999.

Vaticano II, mensagens, discursos e documentos / tradução: Francisco Catão. –


2. ed. São Paulo: Paulinas, 2007.
Medeiros, Fernando Antonio Mesquita de. O homo inimicus: igreja, ação social
católica e o imaginário anticomunista em Alagoas- Maceió: Edufa, 2007.

Passos, João Décio. Como a religião se organiza: tipos e processos – São Paulo:
Paulinas, 2006.

Dias de Moura, Pe. Laércio. A educação católica no Brasil: passado, presente e


futuro, -2ª ed, São Paulo: Edições Loyola, 2000.
EM JUAZEIRO DO NORTE NOSSA SENHORA É DEUS-MÃE:
UM FEMINISMO MARIANO?

Joaquim Izidro do Nascimento Jr.


Joaquim.izidro@gmail.com

Roberta Bivar Carneiro Campos


robertabivar@gmail.com
Introdução

Em linhas gerais, entendemos o feminismo como um importante movimento


que se volta contra as diversas formas de opressão, que atribuem aos homens a
hegemonia do poder. Se levarmos em conta que somos, mulheres e homens1,
influenciados fortemente por “estruturas históricas de ordem masculina”, há de
concordarmos que “incorporamos, sob forma de esquemas inconscientes de
percepção”, essas mesmas estruturas, que reproduzimos, sucessivamente, ao longo
de nossas existências. Nesse sentido, alimentamos, inconscientemente, uma
hierarquia de predomínio masculino que se retroalimenta constantemente (BOURDIEU
2003).
Para Pierre Bourdieu, o imenso trabalho de reprodução da dominação
masculina foi realizado por “por três instâncias principais, a família, a Igreja e a
Escola”, que agiram “sobre as estruturas inconscientes” (BOURDIEU 2003:103). Nesse
artigo, nos interessa a Igreja Católica e sua configuração mariana, seus
desdobramentos nos grupos compostos de leigos, em sua grande maioria formado por
mulheres. O modelo feminino, inspirado em Maria, mãe de Jesus, é defendido e
propagado pela Igreja Católica e destaca modos de comportamento percebidos
enquanto virtudes como: submissão, humildade, generosidade, abnegação,
maternidade, etc. Tais virtudes tornam-se parâmetros para a vida em sociedade e
determinam muitas das relações sociais. A visão feminina da Igreja Católica é
percebida aqui enquanto processo, pois há modificações significativas ao longo do
tempo, em que essa visão se desloca, indo da perdição à salvação, isto é, da visão de
Eva enquanto “responsável pela queda da humanidade a partir do pecado” até a
valorização de Maria, “aquela que salva a todos, por ser a mãe obediente e servil do
Cristo” (CAMPOS & CAMINHA 2009:268).
Percebemos que essa ideia do sacrifício da maternidade predomina tanto na
instituição Católica como nos estudos acadêmicos; ambos os espaços cultuam esse
sacrifício materno, ainda que às avessas; o primeiro exalta a maternidade servil
enquanto virtude, o segundo, reivindica enquanto opressão a ser combatida. Numa
outra direção, destacamos que esse amor materno não pode ser compreendido
somente enquanto obediência e/ou opressão, há algo de ordem bem maior que
aproxima-se do ágape cristão, nele está a essência do cristianismo (MAYBLIN 2010). É
a figura de Maria, enquanto modelo de maternidade, que reforça um amor fundante e
partilhado e, assim, evidencia as relações sociais entre a maioria das mulheres
católicas.
Ainda que exista essa visão “androcêntrica” do mundo, transformada ao longo
do tempo (mas que não perde a ostentação do poder masculino), acreditamos que “há
sempre lugar para uma luta cognitiva” (BOURDIEU 2003:22 – Grifos do autor), essa
luta pode oferecer “uma possibilidade de resistência contra o efeito de imposição
simbólica” de ordem masculina. Nesse sentido, iremos reter o modelo de Pierre
Bourdieu até a luta cognitiva, privilegiando esse aspecto. Essa luta pode, ainda,
reconfigurar a vida de inúmeras mulheres em seus espaços de socialização nos grupos
de leigos católicos, tendo o modelo da maternidade mariana como parâmetro de vida.
Sendo assim, iremos identificar em nosso trabalho etnográfico o exemplo de Dona
Sebastiana Araújo2 que, vinculada a uma forte devoção mariana, decide erguer uma
capela em homenagem a Nossa Senhora Rainha da Paz e propaga ideias acerca de sua
relação com a mãe de Jesus. Esta atitude causa tensões com representantes da Igreja
Católica local, instituição considerada por ela como “Machista”.
Conhecemos Dona Sebastiana Araújo por ocasião da dissertação de
NASCIMENTO JR (2011). Interessado em saber como uma prática religiosa se torna,
ela mesma, parte enraizada de um lugar, o autor realizou um trabalho etnográfico
com dois grupos religiosos de leigos da cidade de Juazeiro do Norte/CE3, seu interesse
era compreender o fortalecimento de um elo estabelecido entre associados e um
Juazeiro sagrado, erguido sob uma ótica cosmológica. Como Dona Sebastiana havia
sido presidente de um dos grupos, havíamos realizado uma entrevista que, para nossa
surpresa, revelou o tema que agora nos ocupamos nesse artigo.

A gênese feminina

A criação da mulher, narrada no livro do gênese, demonstra bem um mito de


origem que sentencia, implacavelmente, a posição social e cultural da mulher nas
escrituras pré-cristãs, mas precisamente no Judaísmo. Formada de uma das costelas
de Adão, a primeira mulher, à luz do antigo testamento bíblico, é “osso dos ossos do
homem e carne de sua carne4”. No livro do Gênese é narrado, também, o pecado
original (um misto de desobediência a Deus e castigo pela subversão da sexualidade),
o paraíso habitado por Adão e Eva tem seus dias contados. A serpente, animal temido,
que representa astúcia, escolhe a mulher para seduzir e oferecer o fruto da árvore que
está no meio do paraíso, ação proibida (e ameaçada com a morte) por um Deus pai
masculino. A serpente argumenta com a mulher de que, ao comer do fruto, “de nem
um modo morrereis”, mas ao contrário, “se abrirão os vossos olhos, e sereis como
deuses, conhecendo o bem e o mal”. Convencida pela serpente, a mulher comeu do
fruto “e deu a seu marido, que também comeu. E os olhos de ambos se abriram; e,
tendo conhecido que estavam nus, coseram folhas de figueira, e fizeram para si
cinturas”. A culpa do pecado original, claramente relacionado com o controle da
sexualidade, recai sobre Eva, ou seja, sobre todas as mulheres. O castigo aplicado por
Deus às mulheres, de acordo com o livro do gênese, foi: “Multiplicarei os teus
trabalhos, e (especialmente os de) teus partos. Darás à luz com dor os filhos, e
estarás sob o poder do marido, e ele te dominará”. E o domínio masculino se faz,
fortemente, pela força da letra.
O nascimento do Cristo, ponto fulcral do cristianismo católico, narrado no novo
testamento bíblico, trouxe um grande desafio para a Igreja Católica Romana: como
justificar a vinda do filho do próprio Deus através de uma mulher, considerada fonte
de um pecado original? Era preciso que surgisse uma nova mulher capaz de receber
tal honra e responsabilidade e nessa busca normativa, a maternidade divina de Maria
foi reconhecida pela Igreja Católica no Concílio de Éfeso, no ano de 431. Em 553 a
Igreja estabeleceu os dogmas de sua virgindade perpétua, era preciso ser virgem e
pura para diferenciar-se das demais mulheres marcadas pelo pecado original e Maria
torna-se uma “sempre virgem”, mesmo após o nascimento do Cristo. Em 1854, a
Igreja Romana estabeleceu o dogma da sua Imaculada Conceição, ou seja, Maria,
desde sua fecundidade, foi concebida sem “mácula”, sem mancha do pecado original.
Estava quebrado o vínculo com Eva, surgia um novo modelo feminino, livre do pecado
original, uma nova Eva. Em 1954, o Papa Pio IX “aprovou mais um importante dogma
ao catolicismo: a Assunção de Maria, que considera sua elevação aos céus em corpo e
alma” (CAMPOS e CAMINHA 2009). De acordo com o catecismo da Igreja Católica, os
dogmas são formas de obrigar “o povo cristão a uma adesão irrevogável de fé” e esta
fé argumenta que “o nó da desobediência de Eva foi desfeito pela obediência de Maria;
e o que a virgem Eva ligou pela incredulidade, a virgem Maria desligou pela fé”. E
numa comparação entre as duas mulheres: “veio a morte por Eva e a vida por Maria”5.
E Maria, virgem e mãe do próprio Deus, ocupou o lugar de Eva e tornou a Igreja
Católica Romana, ela mesma, a mãe que acompanha os seus filhos. A obediência
marca uma característica forte de um modelo feminino defendido e ensinado, a
própria Igreja cobra a mesma obediência de seus filhos: “A Igreja... torna-se também
ela Mãe por meio da palavra de Deus que ela recebe na fé...6
O marianismo

“Eis aqui a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra7”. São
com essas palavras bíblicas que Maria aceita a maternidade do Cristo anunciada pelo
anjo de nome masculino, Gabriel8, e são essas mesmas palavras que irão influenciar
as mulheres no cristianismo. É notório que mulheres e homens vivem diferentemente
seus vínculos com a religião, isso porque tanto sociedade quanto Igrejas “os tratam de
forma diferenciada e esperam deles e delas comportamentos distintos” (NUNES 2001).
No Brasil, acreditamos que a “ordem cultural relativa aos gêneros parece intimamente
ligada à religião” (THEIJE 2002), nesse sentido, esta ordem cultural “cria, sustenta e
legitima simbólica e socialmente os papéis para homens e mulheres” (THEIJE
2002:48). Para os adeptos do catolicismo, e sua maioria de gênero feminino, a
“Virgem Maria” tornou-se um “protótipo ideal de mulher”, onde parte de seu valor
“reside no fato de ser santa, modesta, silenciosa, humilde e, fundamentalmente, de
ser mãe sem ter tido o gozo de seu corpo – a mãe ideal” (CONCLA 1981 apud ARY
2000).
De acordo com o Catecismo da Igreja Católica, a Virgem Maria “realiza de
maneira mais perfeita a obediência da fé”9. Os cultos marianos, fomentados pela
Igreja, tem como principal propósito exaltar a figura feminina enquanto virtude de
humildade e obediência; a própria Igreja, sendo mãe, precisa da obediência de seus
filhos para que suas normas sejam cumpridas. O item nº 963 do Catecismo da Igreja
Católica coloca Maria em um lugar de destaque, ela “é reconhecida e honrada como a
verdadeira Mãe de Deus e do Redentor (...) porque cooperou pela caridade para que
na Igreja nascessem os fiéis que são os membros desta Cabeça. (...) Mãe de Cristo,
Mãe da Igreja”. Esta “Cabeça” institucional é masculina, a Igreja é comandada por
homens que buscam (assim como os “nativos” estudados pelos antropólogos)
organizar suas “experiências segundo suas tradições, suas visões de mundo, as quais
carregam consigo também a moralidade e as emoções inerentes ao seu próprio
processo de transmissão” (SAHLINS 2007:48). Percebê-los dessa forma é considerar
que as “estruturas” são habitadas por indivíduos que acreditam no poder herdado
pelos homens e reproduzem este mesmo poder evocando uma maternidade humilde e
obediente, isso é parte de suas visões de mundo.
No Brasil, onde o patriarcalismo exerceu forte influência, o culto a Maria foi
interpretado por Gilberto Freyre como uma compensação “dos excessos do
patriarcalismo em nossa formação. Excessos identificados com o despotismo ou a
tirania do homem sobre a mulher, do pai sobre o filho, do senhor sobre o escravo, do
branco sobre o preto” (FREYRE 1951:87). Entendemos que os argumentos de Gilberto
Freyre não se voltam para a questão da relação de poder entre os gêneros; sua maior
preocupação é como o exemplo de Maria, seu amor materno suaviza a violência
própria da dominação patriarcal. Nesse sentido, é esse amor materno (abrangente e
envolvente) que se revela numa moralidade entre mulheres e homens, crianças e
adultos, pobres e ricos; e que tem em sua fonte alimentadora o exemplo de Maria.
Sugerimos aqui que o Amor Materno pode funcionar como ideia-valor (DUMONT 2000)
que perpassa todo um sistema simbólico e moral, que orienta e ordena a ação dos
indivíduos. Nesse sentido estamos falando de uma ordem hierárquica, isto é, uma
ordem simbólica resultante do emprego do valor e não do poder e do comando. Dada
a bidimensionalidade da hierarquia, como concebida por Louis Dumont, há de se
analisar não a entidade em si mesma, mas a sua relação com o todo, e ainda que o
ordenamento hierárquico pode sofrer inversões de acordo com as situações (DUMONT
2000). É também nesse aspecto que interpretamos o marianismo à luz da
maternidade, ou seja, em consonância com a ideia do “amor materno” de Maya
Mayblin (2010). Esse amor transcende as emoções, ele “precede tudo e não pode ser
derivado de nada” (MAYBLIN 2010).
Nessa concepção cultural cristã há um sentimento comum que une mãe e filhos
e esse sentimento é evidenciado no marianismo. Maria é o modelo de amor para com
os seus filhos, tal reconhecimento reforça e dá sentido ao mesmo amor. Em muitos
países da América Latina10, “a maternidade carrega certo status social que exige um
alto nível de respeito”, os filhos devem reconhecer o amor materno e corresponder a
ele. Amar a mãe e ser amado por ela faz parte de uma comunhão com Deus. “A
comunhão com Deus só é possível porque o ágape vem primeiramente, fornecendo o
impulso, e o amor que se repercute dos homens e volta a Deus e do ser humano para
o ser humano, de formas várias” (MAYBLIN 2010). Esse amor materno “estabelece
novas fontes, novas trajetórias relacionais no mundo”. Dessa forma estamos
pensando mais com Dumont do que com Bourdieu, ainda que o segundo nos sirva
como parâmetro para o debate, através da idéia de luta cognitiva, a respeito da
possibilidade de um feminismo mariano.
Para DULLO (2008), a compreensão da figura de Maria passa,
fundamentalmente, pela relação entre mãe e filho, essa relação representa um modelo
a ser seguido. O autor considera “que o núcleo axial [do modelo familiar] é a relação
mãe-filho, relação de cuidado e afeto, de dedicação e altruísmo, cujo objetivo é a
promoção do filho em detrimento da mãe” (DULLO 2008:44). Partilhamos desse ponto
de vista, ao mesmo tempo, consideramos que nem sempre o protagonista é o filho,
como defende o autor: “(...) tal qual Maria, a ‘Boa Mãe’ não é a protagonista, o
protagonista é Cristo" (DULLO 2008:44). Em nosso caso etnográfico (como veremos
na última parte) iremos interpretar, a partir de um trabalho de campo, que o
protagonismo pode ser o de Maria em detrimento do filho. Dona Sebastiana nos
revelou (em suas palavras e também em suas práticas) que Maria representa
autonomia, força e poder nos destinos da humanidade. O filho, por sua vez, não se
revela por si, mas é apresentado e conduzido pela mãe, que esclarece e orienta qual o
caminho a ser seguido. Dona Sebastiana defende que, acima de tudo, devemos
reconhecer o fundamento das coisas a partir da figura materna:

O machismo do velho testamento tá todo no novo, a gente vê


claro. No velho testamento nós somos filhos de homens e
continuamos sendo filhos de homens porque o velho testamento
não morreu, no novo [testamento] nós somos filhos de
mulheres. Deus mandou o inverso. Adão foi o pai de toda
criação, Eva não teve mãe. No novo testamento Jesus não teve
pai, só teve mãe. Maria não teve Pai, São Joaquim é pai de
Maria do mesmo jeito que José foi pai de Jesus. Nós
continuamos na humilhação.

Maria e seus filhos

Uma chave importante para entendermos as devoções marianas é, sem dúvida,


as aparições de Maria em várias partes do mundo. Tais aparições fizeram com que
mãe e filhos estabelecessem uma relação mútua de intimidade, tornando-se cúmplices
de um amor materno que vincula um ao outro, liga céu e terra, visível e invisível. As
aparições de Nossa Senhora na cidade portuguesa de Fátima são consideradas as mais
importantes da Igreja Católica por terem sido assumidas pelo Papa João Paulo II,
como veremos mais adiante.
No ano de 1917, três crianças camponesas (Lúcia, Francisco e Jacinta)
afirmaram que viram a mãe de Jesus em várias oportunidades. Vinte e três anos
depois a Igreja reconheceu as aparições de Nossa Senhora de Fátima e dá permissão
para que o culto seja público. Das três crianças que presenciaram as aparições, duas
delas, Francisco e Jacinta, morreram precocemente, respectivamente, nos anos de
1918 e 1920. Lúcia, a mais velha, tornou-se freira da Congregação das irmãs
Doroteias e dedicou toda sua vida a propagar às mensagens marianas até sua morte,
em 2005.
O que tornou as aparições de Nossa Senhora de Fátima uma fonte de
curiosidades e conjecturas, foi, sem dúvidas, a existência de um segredo dividido em
três partes. Lúcia revelou as duas primeiras partes no ano de 1941, tal revelação
consistia numa visão do inferno com imagens catastróficas; menciona a devoção ao
Imaculado Coração de Maria como salvação; cita um cenário de guerra que a Igreja
interpreta como sendo a segunda guerra mundial; e menciona a Rússia e o
comunismo como ameaças à fé cristã. A terceira parte do segredo não foi revelada
nesse momento, Lúcia, aconselhada pelo bispo de Leiria, entrega um envelope selado
11
ao arquivo secreto do Santo Ofício em 1957 . No ano de 1959 o papa João XXIII
recebe o envelope, tem conhecimento do conteúdo, mas decide enviar novamente
para o arquivo. No ano de 1965, o então Papa Paulo VI também tomou conhecimento
da terceira parte do segredo de Fátima, mas como seu antecessor, envia para o
arquivo do Santo Ofício com a decisão de não publicar o texto.
Em 13 de maio de 1981, o então Papa João Paulo II, sofreu uma tentativa de
assassinato, sendo atingido por quatro tiros em plena Praça de São Pedro. Em estado
grave, João Paulo II foi submetido a uma delicada e perigosa cirurgia e conseguiu
sobreviver. O Papa atribuiu sua recuperação à Nossa Senhora de Fátima, afirmando
que foi “uma mão materna a guiar a trajetória da bala”, permitindo que o Papa
12
agonizante se detivesse no limiar da morte” . E ainda:

Eu poderia esquecer que o evento (tentativa de assassinato) na


Praça de São Pedro teve lugar no dia e na hora em que a
primeira aparição da Mãe de Cristo aos pastorinhos estava
sendo lembrada por 60 anos em Fátima Portugal? Mas em tudo
o que aconteceu comigo naquele mesmo dia, senti que a
proteção extraordinária maternal e cuidadosa, acabou por ser
mais forte do que a bala mortal13.

Após dois meses do atentado, João Paulo II pediu o envelope com a terceira
parte do segredo de Fátima, revelado por Nossa Senhora às crianças pastoras nos idos
13 de julho de 1917. O Papa providenciou logo a “consagração do mundo ao
Imaculado Coração de Maria” e solicitou a publicação da terceira parte do segredo.
João Paulo II estava convencido de que a última parte do segredo de Fátima falava
dele próprio. Abaixo, trecho da transcrição da terceira parte do segredo:

[...] E vimos numa luz imensa que é Deus: ‘algo semelhante a


como se vêem as pessoas num espelho quando lhe passam por
diante’ um Bispo vestido de Branco ‘tivemos o pressentimento
de que era o Santo Padre’. Vários outros Bispos, Sacerdotes,
religiosos e religiosas subir uma escabrosa montanha, no cimo
da qual estava uma grande Cruz de troncos toscos como se fora
de sobreiro com a casca; o Santo Padre, antes de chegar aí,
atravessou uma grande cidade meio em ruínas, e meio trêmulo
com andar vacilante, acabrunhado de dor e pena, ia orando
pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho;
chegado ao cimo do monte, prostrado de juelhos [sic] aos pés
da grande Cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe
dispararam vários tiros e setas, e assim mesmo foram
morrendo uns trás outros os Bispos Sacerdotes, religiosos e
religiosas e várias pessoas seculares, cavalheiros e senhoras de
várias classes e posições. Sob os dois braços da Cruz estavam
dois Anjos, cada um com um regador de cristal em a mão, neles
recolhiam o sangue dos Mártires e com ele regavam as almas
que se aproximavam de Deus 14.

É com o Papa João Paulo II que as devoções marianas são (re)significadas e


revigoradas. A Igreja Católica, norteada pelo seu representante maior, fortalece a
figura materna de Maria como mãe da Igreja e do seu povo. As aparições de Maria se
multiplicam e as interpretações dos segredos de Fátima ganham uma dimensão
escatológica. Uma imensa literatura “revelada” é publicada, à revelia da Igreja, e
distribuída, principalmente, entre as mulheres. O mundo Católico se volta para o
modelo mariano e potencializa as mais diversas interpretações e vivências sociais.
Dona Sebastiana Araújo é a confirmação de que o marianismo ganha um
multiplicidade de sentidos, mas todos eles reivindicam uma máxima: o amor supremo
entre mãe e filhos, com destaque para a mãe.
CAMPOS E CAMINHA (2009) argumentam que o surgimento do Movimento da
Renovação Carismática Católica (RCC) contribuiu para que o culto mariano fosse
“amplamente incentivado pela hierarquia romana como forma de evitar uma cisão,
dando aos adeptos desse movimento um senso de pertencimento”. Acreditamos que o
incentivo da hierarquia romana passa pelas preocupações de cisão, mas também
defendemos (e acrescentamos) que o incentivo mariano é uma crença dos
eclesiásticos de que a Igreja Católica se faz mãe com Maria, evocar esse modelo
feminino é acreditar nele enquanto parâmetro que dá sentido à vida. A
“(re)significação” de Maria é exemplificada por CAMPOS E CAMINHA com a etnografia
da Comunidade Obra de Maria15, na cidade do Recife, grupo onde “a espiritualidade
mariana é amplamente difundida entre seus membros, em especial a devoção à
Rainha da Paz, por meio das mensagens de Medjugorje16” (CAMPOS & CAMINHA
2009:.271).
As aparições de Medjugorje são tratadas por Mísia Reesink (2002) como sendo
parte de um novo modelo de aparições. Para a autora, as aparições marianas
contemporâneas, comparadas com as de Lourdes e Fátima, oferecem características
que apontam para a circulação dos bens simbólicos no mercado globalizado “a serem
absorvidos por uma cultura de massa internacional” (REESINK 2002:5). A autora
defende que “os eventos e experiências locais das aparições de Nossa Senhora estão
passando por uma adequação ao padrão religioso dominante contemporâneo por meio
da ação da Renovação Carismática Católica”. De nossa parte, como vimos
anteriormente, as novas aparições marianas ganharam força com o posicionamento do
Papa João Paulo II em propagar a devoção mariana a partir de sua experiência-limite
com a morte. Foi um acontecimento fundamental para popularização das mensagens
marianas. Desvincular o Papa de uma instância de poder é fundamental para
compreendermos as ações simbólicas que também acometem os detentores desse
poder na Igreja Católica, percebe-los é levarmos em conta as interações que dão às
instituições um caráter mais dinâmico.
Com relação ao movimento carismático católico e suas relações com as “novas”
aparições, acreditamos que pode haver tal relação, mas a ênfase na orquestração, por
parte da RCC, na circulação de bens simbólicos em um mercado globalizado reduz
outras possibilidades que podem ser identificadas no campo; possibilidades estas que
se colocam bem mais complexas e pormenorizadas do que parecem. Defendemos que
as interações (valorizando as trajetórias individuais e suas consequências coletivas)
podem nos revelar traços importantes que a análise das instituições esconde.
Consideramos que a investigação do universo nativo (bem como o do pesquisador)
são chaves importantes para descobrimos novas interpretações e pontos de vista
outros (CAMPOS & REESINK 2011), pois “é imprescindível levar a sério o que o nativo
nos diz, e não simplesmente traduzir o que é absurdo para nós como metáforas”
(CAMPOS 2009:33). De uma maneira mais geral é necessário nos colocarmos à prova
em nossos preconceitos religiosos (a escrita dos pesquisadores são influenciadas por
suas visões de mundo) para chegarmos a compreensões menos passionais. Tais
compreensões só podem ser atingidas, antropologicamente, “radicalizando a
articulação entre as categorias do nativo e as do antropólogo, mesmo porque as
negociações da verdade se dão nessa interação” (CAMPOS & REESINK 2011:220).
Acreditamos que o processo etnográfico flagra o encontro entre antropólogo e nativo e
expõe seus respectivos “sistemas de verdades”.
Sendo assim, norteados por nossa etnografia, identificamos que pode haver, ao
mesmo tempo, devoções à Nossa Senhora de Fátima e Nossa Senhora Rainha da Paz;
as aparições velhas e novas podem estar entrelaçadas com o Papa João Paulo II; pode
haver vínculos com Nossa Senhora Rainha da Paz e distanciamentos com a RCC. Dona
Sebastiana, por exemplo, acredita que foi revelado no livro do Apocalipse o
surgimento de sete Igrejas protestantes que iriam se distanciar da Igreja Católica, a
Renovação Carismática seria uma delas, ela seria a própria “Igreja Pentecostal”. Aqui
é importante mencionarmos o que Marjo de Theije já havia chamado atenção em seu
livro “Tudo que é de Deus é bom” (2002), de que para muitos fiéis não há fronteiras
entre suas práticas religiosas nos diversos segmentos católicos. Nesse sentido, um
católico pode participar de várias pastorais e de grupos carismáticos ao mesmo
tempo, mesmo que essas práticas possam parecer antagônicas, elas dão unidade nas
construções coletivas de mundo. No caso de Dona Sebastiana, acreditamos que ela é
um exemplo do trânsito entre práticas e crenças ditas tradicionais, populares,
carismáticas e marianas, já que essas fronteiras são tênues e esponjosas.
Ainda com base nesse argumento, partilhamos da ideia de STEIL (2001), de
que não devemos “pensar tradição e modernidade como um contraste binário” e sim
reconhecermos “as possibilidades de arranjos entre elementos de diferentes origens”,
tradicionais ou/e modernas, “vivenciados em experiências pessoais e coletivas que
ultrapassam a possibilidade do controle das instituições religiosas” (STEIL 2001:126).
O autor defende que o reordenamento do campo religioso possibilita vivências
coletivas e individuais, com a presença de elementos tradicionais. Nesse sentido,
STEIL acredita “que a tolerância religiosa que caracteriza a sociedade moderna
também está permitindo uma revitalização de rituais e crenças tradicionais e/ou
individualizadas, que eram abafados pelo sistema dominante” (STEIL 2001:117). É
importante considerarmos que a “reinvenção” da tradição implica em “abrir a
possibilidade para múltiplas escolhas e pertencimentos religiosos”, ou seja:

As opções para expressar o ‘ser católico’ se multiplicaram


nestes últimos anos, de modo que as suas possibilidades podem
variar [...] Alguns podem ser católicos, centrando sua prática no
culto aos santos, outros participando de associações religiosas,
outros ainda assumindo compromissos éticos e políticos de
caráter libertário. E há também aqueles que se consideram
católicos, sem que isto os vinculem a quaisquer compromissos
explícitos de ordem religioso-institucional (STEIL 2001:117).

Com relação às viagens organizadas por muitas instituições marianas, iremos


tecer elos entre as aparições na cidade de Medjugorje e Dona Sebastiana Araújo,
nosso exemplo etnográfico de “feminismo mariano”. A principal missão de muitas das
comunidades marianas é a peregrinação religiosa; no caso da Obra de Maria, por
exemplo, no ano de 2000 foi atingido o número de três mil pessoas viajando em suas
peregrinações (CAMPOS & CAMINHA 2009:276) que escolhem, além da “Terra Santa”,
vários santuários internacionais marianos pelo mundo. Muitas outras “empresas”
trabalham com o turismo religioso e essa rede envolve grande fatia dos católicos,
interferindo em suas culturas e suas formas de apreensão do marianismo. O exemplo
que se segue, demonstra que essas viagens podem ser um marco divisor de águas no
universo simbólico de muitas mulheres leigas.

Deus Mãe

Em fevereiro de 2010, Dona Sebastiana concedia uma entrevista numa Igreja


da cidade de Juazeiro do Norte, interior do estado do Ceará. A conversa tinha o
propósito de entender a relação dela com um grupo religioso de leigos, da qual foi
presidente durante cinco anos. De repente, de maneira inusitada (não era tema da
conversa), Dona Sebastiana falou em tom de segredo:
D. Sebastiana: Pois é, nesses dias eu escrevi até um
testamento, assim, sobre Nossa Senhora. Porque eu vejo Nossa
Senhora dum jeito que parece que as pessoas não vê.

Entrevistador: Como é o jeito Dona Sebastiana?

D. Sebastiana: Não. Só dava certo se você desse uma


saidinha... É tão pertim. Aí eu vou mostrar como eu vejo ela,
como eu vejo ela, viu? Sou muito devota de Nossa Senhora,
todos os títulos de Nossa Senhora é meu. Só que a devoção
dela não começou com Nossa Senhora Auxiliadora não, viu? Eu
comecei com 13 anos de idade, Nossa Senhora do Desterro,
comecei sempre com Nossa Senhora do Desterro, Nossa
Senhora do Desterro, Nossa Senhora do Desterro... Um anjo me
acompanhou a minha vida, foi sempre ensinando como era que
eu ia chamando Nossa Senhora, com 13 anos de idade. Sempre
eu fui... desde os 13 anos de idade que eu comecei. Não
conhecia o filho, o filho eu não conhecia não, ela quem me
levou o filho, me levou a conhecer...

No espaço institucional não era fácil falar de um assunto tão delicado, a


entrevista aconteceu do lado da sacristia17 e havia pessoas circulando, preparando-se
para a missa que iria acontecer em instantes. Mesmo assim, em voz baixa Dona
Sebastiana continuou:

D. Sebastiana: Desde os 13 anos. Aí ela já me levou lá onde


ela aparece, lá em Medjugorje, ela me levou lá. Sendo que eu
achava que eu nunca... eu não via por onde... eu via falar,
assim, como que era um sonho, tá entendendo? Embora eu
lia... aquelas mensagens lá, eu lia muito, de fato gostei muito
de ler aquelas mensagens (frase não entendida). Sem eu
esperar... uma surpresa, muita surpresa...
Entrevistador: E tem uma lembrança nítida desse momento,
né?
D. Sebastiana: Ah, eu não esqueço nunca, passei oito dias lá.
Muito momento feliz que eu passei. Passei oito dias em Roma e
oito dias lá. Não esqueço nunca, foi uma viagem... uma coisa
que Nossa Senhora fez na minha vida. Marcante. Não tenho
condição de esquecer mais nunca. Aquilo que eu observei, as
graças, os milagres, as coisas que... foi fantástico. Tanto que eu
digo com toda sinceridade. Eu sei que a Igreja ignora isso que
eu falo (frase não entendida)... eu falo abertamente, eu não
tenho medo de falar de jeito nenhum, digo a qualquer pessoa,
Nossa Senhora é vista por mim como Deus Mãe, ela não é Deus
Pai, ela não é Deus filho, Deus Mãe. E eu digo com
conhecimento, eu não to dizendo que acho que ela... eu to
dizendo com conhecimento bíblico e pelas mensagens que ela
escreve. Isso com toda certeza (com ênfase). Ela é ignorada.
Pode gravar que...
Entevistador: Sim...
D. Sebastiana: É tanto que o testamento que eu escrevi,
quando eu ler pra você é capaz de você não desacreditar não.
Retomamos o contato com Dona Sebastiana em julho de 2012, com o objetivo
de escrever o presente artigo. Havia uma forte desconfiança dessa senhora de 74
anos quanto aos nossos propósitos, ela tinha receios de que pudéssemos ter algum
vínculo com a Igreja e que desejávamos apurar suas ideias, no intuito de prejudica-la.
Por ocasião dessa segunda entrevista, o mal entendido foi desfeito e conseguimos tê-
la mais perto de nós.
A adolescência de Dona Sebastiana aconteceu na zona rural da cidade de
Assaré, sertão do cariri cearense. Filha de agricultores, a menina que se achava feia,
recebeu um conselho de uma mulher, sua vizinha, aos 13 anos de idade: “reze uma
oração que Nossa Senhora vai te defender em todos os momentos da sua vida. Vai
haver muita coisa ruim em seu caminho, mas Nossa Senhora vai defender”.
Sebastiana acredita que essa mulher era como se fosse um anjo que estabeleceu sua
primeira devoção: Nossa Senhora dos Desterros. Não demorou muito para que as
dificuldades aparecessem, seu pai ficou muito doente durante o período de um ano e
esse acontecimento marcou profundamente a vida de Dona Sebastiana.
Num certo dia, seu pai acordou “perturbado” e a partir daí muitas crises se
sucederam: parou de comer; passava a maior parte do tempo de joelhos; ao meio-dia
olhava para o sol com os joelhos feridos em sangue; não conseguiu mais trabalhar;
tomava as duas filhas menores nos braços e não largava por nada, dizendo que elas
iriam livra-lo das tentações; quebrava os terços de oração e ouvia vozes. Chegou a
ser denunciado por vizinhos e acabou preso, sendo libertado logo após por um
conhecido da família. Dona Sebastiana era a mais velha dos oito filhos do casal e
viveu esses acontecimentos com muito sofrimento. Nossa Senhora era sua protetora e
a devoção aliviava tamanha aflição.
As crises cessaram depois de um ano, quando seu pai resolveu pagar uma
promessa na cidade do Canindé, estado do Ceará. As promessas seriam de duas
pessoas já falecidas que estavam em débito com São Francisco e pediram (o pai de
Dona Sebastiana ouvia vozes) que ele cumprisse o prometido. Com uma pedra de três
quilos na cabeça, o homem adoentado, rumou para Canindé “levando nome de louco
até lá, quando voltou, se curou”.
Dona Sebastiana casou e saiu da zona rural indo para a cidade Juazeiro do
Norte no ano de 1965, levou a mãe e o pai (que nunca mais teve crises). É nesse
Juazeiro, buscado por Dona Sebastiana, que iremos identificar os elementos religiosos
que predominam e serão (re)compostos a partir de sua experiência e trajetória
pessoais. Em sua tese de doutorado When Sadness is Beautiful (2001), CAMPOS já
apontava para a existência de uma crença difusa entre muitos devotos, nem sempre
evidenciada nos trabalhos etnográficos. Tal crença está presente nas falas dos Ave de
Jesus (grupo de penitentes de Juazeiro do Norte), numa sobreposição e até mesmo,
com certa frequência, coincidência entre Jesus, Maria e Padre Cícero, sendo um o
outro, e os três um só Deus. Esse dado sugere a existência de outras representações
em gênero do Deus cristão. Relativa a essa questão há ainda de se notar a existência
em Juazeiro do Norte de uma cultura religiosa que enfatiza as “mães”, por exemplo,
Mãe Anja [Ângela] do Horto (personagem da mítica da fundação da comunidade Ave
de Jesus), Madrinha Dodô (líder já falecida do grupo de penitentes Dança de São
Gonçalo), Mãe Quinô (mãe do Padre Cícero) e outras. Veremos, ao longo da análise
dos dados a seguir, que Dona Sebastiana move-se dentro desse repertório cultural e
religioso criando outras versões não autorizadas da tradição.
Mas voltemos ao nosso caso etnográfico. Dona Sebastiana buscava respostas
para o que havia ocorrido com seu pai. As respostas não a satisfaziam, na maioria das
vezes eram explicadas como sendo crises de loucura. Até que Sebastiana foi buscar
respostas no que ela chama de “literaturas reveladas”: livros, revistas, jornais e
folhetos que narram mensagens de aparições de Nossa Senhora à seus filhos. Houve
um movimento de aproximação e aprofundamento, começando com Nossa Senhora de
Fátima e chegando até Nossa Senhora Rainha da Paz. As aparições de Nossa Senhora
18
da Paz, na cidade de Medjugorje, começaram no ano de 1981 , Dona Sebastiana
acompanhou desde o inicio. Nos anos noventa ela tinha economias aplicadas numa
conta poupança e decidiu usá-las em uma viagem para Medjugorje, região da Bósnia.
O impulso se deu quando ela leu em um jornal católico que um grupo da cidade de
Brasília iria realizar uma peregrinação. Sebastiana telefonou, se inscreveu e começou
a pagar parcelas mensais. Em junho de 1996, Dona Sebastiana e um grupo de 260
pessoas partiam da cidade do Rio de Janeiro para a terra de Nossa Senhora Rainha da
paz.
Os momentos foram “inesquecíveis”. Ela viu a “santidade”, viu e confirmou as
escrituras que havia lido antes, em seus livros e revistas. Quando voltou, estava
decidida a “fazer algo na comunidade” em que morava. Empenhou-se na construção
de uma capela dedicada a Nossa Senhora Rainha da Paz e começou a espalhar as
mensagens marianas entre os frequentadores dos grupos de oração. Há doze anos
existe na capela o “cerco da misericórdia”, um encontro que acontece às primeiras
sextas-feiras de cada mês; há orações do terço diariamente, dedicadas à Nossa
Senhora do Carmo, São Miguel Arcanjo, às famílias e, principalmente, à Nossa
Senhora Rainha da Paz. Dona Sebastiana é casada há 50 anos e possui dois filhos.
Logo que construiu a capela, Dona Sebastiana recebeu críticas do padre
Gomes, representante da Igreja Católica local. Os discursos de Dona Sebastiana
destoavam de fundamentos teológicos ao afirmarem ideias como: o ápice da missa
não é a eucaristia (a hóstia distribuída entre os participantes não é para ela um
momento importante, diferente do que pensa a Igreja, que proíbe as pessoas que
estão em pecado, ou que não se confessam regularmente, de receber a hóstia) e sim
o momento da consagração, onde pão e vinho se transformam, pela oração do padre,
em sangue e corpo de Jesus, momento anterior à distribuição da hóstia; Nossa
Senhora é Deus Mãe e faz parte da Santíssima Trindade19. Um jovem, amigo de Dona
Sebastiana, disse ter ouvido uma conversa entre o Padre Gomes e o Padre auxiliar,
que afirmava que Sebastiana “estava pregando coisas estranhas para o povo” e que
iria conversar com ela, se ela não “obedecesse” iria levar a questão ao Bispo da
diocese. A sugestão que Dona Sebastiana mandou pelo mesmo interlocutor foi a
seguinte: “Chama ela, que ela não tem medo não, chame ela. Eles não tem coragem
de chegar pra mim e dizer, só [dizem] indiretas”. Em muitas ocasiões, inclusive em
homilias nas missas, Padre Gomes tecia críticas à postura de Dona Sebastiana e ela
reagia em conversas com outras pessoas:

A Igreja nem é minha nem é dele, mas é mais minha do que


dele, porque eu moro na porta. Eu não tenho a intensão de sair
daqui, a não ser quando morrer, ele tá passando (em referência
a um período programado que cada padre permanece na
cidade).

Como havia previsto Sebastiana, chegou o tempo de o Padre Gomes sair da


paróquia. O seu substituto também não concordava com a postura dela, mas sua
permanência na cidade foi mais breve. No período que fizemos a entrevista (2012), o
atual vigário era simpático às devoções marianas e apoiava os trabalhos
desempenhados por Dona Sebastiana, ela tem sido mais prudente em suas falas
públicas para evitar cisões:

A igreja tem hierarquia, né? Eu gosto de me pegar com os


padres também, pra eles me orientar, embora eles não sabe
[sic] o que eu to pensando, o que é que eu to vivendo. Uma
visão totalmente diferente da deles, mas eu sofro muito. Eu
tenho muito cuidado no que eu digo. Tem muita descrença
naquilo que eu falo. A gente sente lá no fundo da alma.

Dona Sebastiana reconhece seu jeito explosivo e está tentando não se exaltar,
como forma de conviver melhor com a hierarquia da Igreja: “Eu não sei falar. É o meu
defeito. Uma guerra dentro de mim. Estraga. Eu evito. Não é pra gente se exaltar”.

Conclusões
Para Dona Sebastiana, há uma revelação mariana que evidencia uma nova
configuração: a face feminina de Deus como condutora da Igreja Católica. Sebastiana
acredita que essa ideia é capaz de reconstruir a Igreja, ela seria alguém que esclarece
as mensagens de Maria, a partir de livros e também de maneira intuitiva, e revela aos
frequentadores da capela. Dona Sebastiana traça outros sentidos inspirados num
caráter de autonomia e de questionamentos do poder masculino.
Mesmo conscientes de que a Igreja é “marcada pelo antifeminismo profundo de
um clero pronto a condenar todas as faltas femininas à decência” (BOURDIEU
2008:103), consideramos que o exemplo de Dona Sebastiana se enquadra numa
“possibilidade de resistência contra o efeito de imposição simbólica” (BOURDIEU
2008:22), ainda que essa postura não receba tanta atenção desse autor. Marshall
Sahlins nos ajuda com a noção de “mudança cultural”, que reconhece a cultura
enquanto algo historicamente produzido e alterado na ação dos indivíduos (SAHLINS
1990). Nesse sentido, as pessoas envolvidas numa determinada cultura possuem
compreensões preexistentes da ordem cultural onde estão inseridas e essas
compreensões as norteiam em relação ao sentido que fazem de suas vidas; ao mesmo
tempo, os significados desses agentes são reavaliados quando realizados na prática e
isso altera seus esquemas convencionais. Para Sahllins, essas alterações podem
representar uma “mudança sistêmica” ou até mesmo uma “transformação estrutural”
(SAHLLINS 1990:07). Cabe aqui o esforço de Victor Turner (2008) em defender que a
mudança não deve ser interpretada à luz de modelos estruturais estáticos, que limita
as ações dos indivíduos. O autor nos alerta para os “perigos inerentes quando
consideramos o mundo social ‘um mundo em devir’, se, ao invocar a ideia de ‘devir’,
você estiver inconscientemente influenciado pela antiga metáfora de crescimento e
decadência orgânica” (TURNER 2008:26). Concordamos com o autor no sentido de
que a mudança não deve ser encarada como “cíclica”, “repetitiva”, como uma seta que
aponta o “devir”; mas como situações que envolvem, “movimento tanto quanto
estrutura, persistência tanto quanto mudança e, na verdade, persistência enquanto
um notável aspecto de mudança” (TURNER 2008:27). É importante não desprezarmos
“o poder exercido pelos leigos nesta modalidade religiosa [...] onde a “ideologia do
Marianismo [...] tem proporcionado a adequação das mulheres ao modelo patriarcal
vigente e gerado algumas dessas práticas” (CAMPOS & CAMINHA 2009:279-280) e,
também, significados e sentidos.
Dona Sebastiana frequenta a Paróquia de São Francisco, organizada pelos
padres de uma congregação estrangeira. Ela frequenta missas e festas paróquias e é
considerada uma leiga engajada nos trabalhos pastorais. Nesses espaços institucionais
ela evita comentários que possam comprometer sua visão de empoderamento
feminino em suas atividades na Capela de Nossa Senhora Rainha da Paz. Ela
identifica, claramente, aliados na própria Igreja local (padres que são simpáticos à
devoção de Nossa Senhora Rainha da Paz) e desenvolve seus trabalhos usufruindo das
lacunas abertas na estrutura católica. Trabalhando nos interstícios, Dona Sebastiana
vai abrindo possibilidades para outras ideias, visões em que se alinham, talvez, mais a
ideia de ágape, do amor materno em sua exemplaridade moral do que ao modelo de
subordinação feminina. Visão que muitas vezes pode romper com as nossas
concepções de gênero e santidade. Por exemplo, Campos (2001) observou que entre o
grupo de penitentes Ave de Jesus, também de Juazeiro do Norte, Padre Cícero é Nossa
Senhora e Jesus ao mesmo tempo. Dona Sebastiana lança mão de uma base cultural e
religiosa não autorizada, mas que é parte do mundo em que nasceu, a que foi
apresentada e que hoje ajuda a reconstituí-lo. Esse mundo contesta a Igreja e se
confronta com as versões já estabelecidas na academia.
Por isso, tomar Dona Sebastiana como exemplo de “um feminismo mariano”
não pode ser apenas a confirmações de teorias antropológicas que focam as formas de
opressão e poder como sendo de ordem principal. Essas formas também possuem
suas porções de equívoco. A escolha dessas referências de hegemonia acadêmica não
reconhece que todos os acusados também buscam organizar suas “experiências
segundo suas tradições, suas visões de mundo”, e que “carregam consigo também a
moralidade e as emoções inerentes ao seu próprio processo de transmissão” (SAHLINS
2007:48). Tais modelos teóricos não oferecem abrigo aos opressores, eles não
entram, por razões diversas, na categoria nativos, eles não merecem chances, isso
poderia manchar uma pureza construída. Aqui nos é bastante útil as interpretações de
Maya Mayblin que considera “a maioria dos comentários populares e acadêmicos sobre
o sacrifício da maternidade (...) névoa de culpa edipiana ou afronta politizada e que é
frequentemente denominada com um incontestável mitologia machista (MAYBLIN
2002)”.
Não queremos, com isso, negar os aspectos de opressão presentes no caso
etnográfico de Dona Sebastiana. Mas defendemos que a escolha de seu
posicionamento é menos uma afronta ao poder masculino da Igreja, e mais uma forte
obediência à Maria mãe de Jesus. “O amor de mãe também é, em termos ideais, o
iniciador e catalisador de todas as relações, porque é o seu amor que ensina à criança
o que é o amor e como, o que e quem amar e a quem retribuí-lo (MAYBLIN 2002)”. A
partir do caso de Dona Sebastiana, interpretamos que o amor materno, e não as
formas de opressão e poder por si só, “estabelece novas fontes, novas trajetórias
relacionais no mundo, mesmo onde o próprio amor é parte de algo muito maior e
originário: um processo divino (MAYBLIN 2002)”. Dona Sebastiana é guiada por esse
amor materno e sua relação com Maria é de extrema intimidade: “Eu chamo ela de
mãe, converso com ela, pergunto”.
Em um momento de tensão, em que foi perseguida e questionada em suas
ideias, Dona Sebastiana passou uma noite em claro, “agoniada”, implorando uma
“prova” na própria Bíblia, de que Nossa Senhora representa o próprio Deus: “Me dê
uma luz!”, disse ela com intimidade e súplica de uma filha para uma mãe. Abriu a
Bíblia no Livro dos Cânticos, capítulo 6, versículos 7, 8 e 9:

São sessenta as rainhas, e oitenta as esposas de segunda


ordem, e inumeráveis as donzelas. Porém uma só é a minha
pomba, a minha perfeita, escolhida pela que lhe deu o ser. As
donzelas viram-na, e felicitaram-na, viram-na as rainhas e as
outras mulheres e encomiaram-na. Quem é esta, que avança
como a aurora quando se levanta, formosa como a lua,
brilhante como o sol, terrível como um exército formado em
batalha?

Dona Sebastiana não cansa de dizer que as respostas estão na própria Bíblia e
não só em sua literatura “revelada”, na maioria das vezes rechaçada pela Igreja
Católica. É necessário provar com o livro aceito pela instituição, ele é o status de
verdade que deve ser acionado e argumentado. Depois cita a passagem do Livro do
Apocalipse, capítulo 12, versículos 1 e 2:

Depois apareceu no céu um grande sinal: uma mulher vestida


de sol, com a lua debaixo de seus pés, e uma coroa de doze
estrelas sobre a sua cabeça. Estava grávida, e clamava com
dores de parto e sofria tormentos para dar à luz.

Somente uma filha que conhece tão bem a própria mãe pode saber os seus
segredos. Dona Sebastiana considera João Paulo II o Papa “mais santo e mais sábio
que a Igreja teve”, o “Papa Peregrino” foi perseguido pela própria Igreja Católica até a
morte: “o papa morreu de eutanásia, remédios, ninguém aguentava mais ele não,
santo na terra ninguém aguenta não”. Para Dona Sebastiana, o último segredo de
Fátima ainda não pôde ser revelado porque os homens da Igreja não permitiram. João
Paulo II sabia, mas não teve condições de revelar, morreu antes. Bento XVI também
não o fará. Para Dona Sebastiana, o próximo Papa é que irá revelar o último segredo
que ainda resta: “NOSSA SENHORA É DEUS MÃE”.

Notas
1
O feminismo, em sua verve mais teórica, adotou o conceito de gênero “como
maneira de referir-se à organização social da relação entre os sexos” (SCOTT 1989).
Masculino e feminino passaram a ser construções sociais, enquanto homem e mulher
foram interpretados enquanto categorias “naturais”. A ideia de “natural” foi
problematizada enquanto uma dimensão que atribuía ao fator biológico o motivo das
diferenças (MOORE 1997). O próprio conceito de Gênero foi fortemente criticado por
Judith Butler em sua importante obra Problemas de gênero.
2
Todos os nomes utilizados na etnografia são fictícios, com a intenção de proteger o
anonimato.
3
Mesmo sendo considerada um dos mais importantes centros de peregrinação do
Brasil, Juazeiro do Norte não se resume aos aspectos religiosos. A segunda maior
cidade do estado do Ceará, com uma população de quase 250.000 habitantes (Censo
2010), cresce a passos largos ano após ano e modifica constantemente seu cenário
urbano, gerando uma diversidade de formas e conteúdos culturais. Nesse artigo
optamos em privilegiar os elementos que tocam o caráter religioso da cidade por
entendermos que tais elementos ainda norteiam condutas morais de muitos de seus
habitantes.
4
As referências dessa página, entre aspas, foram retiradas do Livro do Gêneses,
capítulos dois e três.
5
Catecismo da Igreja Católica. Artigo 3, Parágrafo 2. Item 494. Página 53. Pia
Sociedade Filhas de São Paulo – São Paulo, 1998.
6
Catecismo da Igreja Católica. Artigo 3, Parágrafo 2. Item 507. Página 54. Pia
Sociedade Filhas de São Paulo – São Paulo, 1998.
7
Evangelho Segundo São Lucas, Capítulo 1, versículo 38.
8
Os anjos são considerados seres “assexuados”, contudo, é curioso notar que sempre
recebem nomes masculinos.
9
Catecismo da Igreja Católica. Capítulo 3, Artigo 1, Item 148, Página 17. Pia
Sociedade Filhas de São Paulo – São Paulo, 1998.
10
Ainda com relação às questões de gênero, o marianismo é encarado em muitos
contextos da América Latina como “um edifício secular de crenças e de práticas
relativas à posição das mulheres na sociedade”, como nos esclarece STEVENS (1973);
nesses casos, “o marianismo é tão presente como o machismo...” (ibid:72).
11
Informações retiradas do documento “A mensagem de Fátima”, da Congregação
para doutrina da Fé. Vaticano. Pia Sociedade Filhas de São Paulo – São Paulo, 2000.
12
“A mensagem de Fátima”. Congregação para doutrina da Fé. Vaticano. Pia
Sociedade Filhas de São Paulo – São Paulo, 2000. p. 39
13
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Paulo_II Apub Memória e Identidade.
Weidenfeld & Nicolson 2005:184.
14
“A mensagem de Fátima”. Congregação para doutrina da Fé. Vaticano. Pia
Sociedade Filhas de São Paulo – São Paulo, 2000. p. 28.
15
A comunidade Obra de Maria foi fundada em 1990 pelo psicanalista Gilberto Gomes
Barbosa, egresso da Renovação Carismática Católica. No ano de 2007 a comunidade
contava com 35 casas de missão no Brasil e 03 no exterior.
16
Medjugorje é uma pequena região na Bósnia e Herzegovina, composta por cinco
vilas (Me ugorje, Bijakovi i, Vionica, Miletina e Šurmanci), onde alegadamente estão a
ocorrer as mais recentes aparições da Santíssima Virgem Maria. Estas aparições
tiveram início a 24 de Junho de 1981, tendo tido, nos primeiros meses, uma
frequência diária, e posteriormente passado a aparições mensais ou anuais
(dependendo dos videntes). Entre os videntes, encontram-se seis pessoas nascidas
nos arredores da localidade e a quem a Santíssima Virgem Maria se terá apresentado
como "Eu sou a Rainha da Paz". Em 1991, a Conferência Iugoslava de Bispos
determinou que não havia nada de sobrenatural nessas ocorrências. A Igreja Católica
continua, no entanto, a estudar estas aparições, a fim de determinar a sua veracidade
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Me%C4%91ugorje)
17
Lugar em que se guardam os paramentos, adornos da igreja e em que os padres se
paramentam.
18
Acreditamos que pode estar relacionado com os acontecimentos de João Paulo II,
narrados anteriormente.
19
A Santíssima Trindade, de acordo com a Igreja Católica, é composta pelo Pai
(Deus), o Filho (Jesus Cristo) e o Espírito Santo. Dona Sebastiana não explicou se com
a presença de Maria seria quatro o número total, ou se haveria algum tipo de
substituição.

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TENTATIVA CATÓLICA DE MODERNIDADE:

o conceito de pessoa humana e sua realização histórica (1960-1980)*

Autor: Lucas Aparecido Costa*

Introdução

A Doutrina Social da Igreja (DSI) consolidou entre os anos de 1960 e 1980 sua
concepção de ser humano. No período aludido, determinados setores católicos
lançaram mão, como forma de justificar suas opções políticas – grosso modo
progressistas –, de ideias provenientes do catolicismo social, cuja base teórica se
prende ao princípio de pessoa humana1. Essa caminhada tem como norte a proposta
de uma tentativa católica de modernidade2. Sustentamos que esse conceito se
incorporou às práticas sociais do laicato em dois momentos distintos daquele período,
porém complementares: 1. O primeiro momento ocorreu durante a efêmera existência
do movimento social e semanário Brasil, Urgente (1961-1964). 2. A segunda ocasião
sobreveio na década de 1970, ao tempo das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). A

*
O conteúdo deste artigo faz parte da pesquisa que venho desenvolvendo no doutorado.
*
Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” e doutorando pela
mesma instituição.
1
Esse conceito representa para a Igreja Católica a segunda pessoa de Cristo – sua face humana. Essa
concepção de ser humano, cuja origem remonta à filosofia helenista, foi aprofundada pela matriz romana e,
seguidamente, pelo cristianismo, quando a Igreja procurou debater a respeito da Santíssima Trindade. A
pessoa humana é o núcleo a partir do qual a instituição eclesiástica orienta todo o seu ensino social e avalia
as diferentes realidades temporais. Com base nesse preceito de ser humano, a Igreja reprovou dois sistemas
de ideias diametralmente opostos – capitalismo de um lado, e, do outro o comunismo: “é exatamente em
nome da pessoa humana que se condena o “materialismo capitalista”, na medida em que celebra a cobiça e
transforma o homem em coisa, ou o ‘materialismo ateu dos comunistas’, que suprime as liberdades
humanas” (Mello; Novais, 1998, p. 610).
2
O conceito de tentativa católica de modernidade ilustra duas práticas eclesiais distintas que, todavia, se
entrecruzaram ao longo das décadas de 1960 e 1970. Segundo o teólogo Pablo Richard (1982), as práticas
da Igreja Católica, posteriores aos anos de 1960, se dividem em duas categorias. Para o autor, a Igreja
socialmente engajada tem na mensagem evangélica a justificativa para sua ação sociopolítica; esse
conceito ilustra as posições da Esquerda Católica dos anos de 1960 onde não se percebe, claramente, uma
opção política do grupo pelo socialismo – o que não significa dizer que o grupo não seja simpático a esse
sistema econômico; a Igreja politicamente engajada faz o caminho inverso, o agir antecede a reflexão
evangélica, a práxis redefine a fé e a interpretação que se tinha, até então, acerca das Sagradas Escrituras.
Essa forma ou tipo de Igreja adere declaradamente a um projeto político socialista. Segundo Richard, esse
modo de ser Igreja teria se consolidado ao longo da década de 1970. Para nós, esses dois tipos de práticas
eclesiais não existiram separadamente, de modo que em um mesmo grupo, ou movimento católico, podem
ser contempladas essas duas formas de ser Igreja – as Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) demonstram
isso. O conceito por nós elaborado, embora tenha em Richard seu principal referencial, funciona, ao mesmo
tempo, como crítica à separação cronológica de práticas eclesiais feita pelo autor e dá conta de historicizar,
igualmente, a experiência vivenciada pelo laicato católico progressista nas décadas de 1960 e 1970, pois
sinaliza as práticas eclesiais das Igrejas – socialmente e politicamente engajada –, como duas matrizes de
um movimento mais amplo: a tentativa católica de modernidade. O conceito em itálico, no sentido que está
sendo empregado neste artigo, indica a opção da Igreja, em sua busca por defender os direitos da pessoa
humana, de dialogar com valores não utilitários da modernidade que problematizavam a própria
modernidade – podemos refletir, nesse sentido, a respeito da crítica feita pelo socialismo, de filiação
marxista, ao sistema capitalista.
busca por colocar em prática, ideias provenientes do catolicismo social, é entendida
nesse artigo como uma aposta de muitos fiéis da Esquerda Católica e mesmo de
frações significativas da hierarquia eclesiástica, de se resolver – unindo teoria à
prática social – o “problema da pessoa humana”, inconcluso pelo ensino social
católico3.

Por um cristianismo social: o movimento e semanário Brasil, Urgente (1961-


1964)
Referências

A partir de 1960, os efeitos corrosivos do capitalismo brasileiro determinavam


ao Estado o cumprimento de uma série de reformas econômicas, institucionais e
sociais. A euforia dos anos 1950, quando havia grandes esperanças de o Brasil tornar-
se uma nação moderna, cedia espaço ao conflito e à perplexidade da década
subsequente. Segundo considerações de Argelina C. Figueiredo, em virtude das
grandes mudanças que se processavam no país nas esferas industrial, urbana e nos
setores trabalhistas, mormente na classe operária, tornava-se urgente fixar normas
institucionais profundas que incluíssem os diversos setores da sociedade
(FIGUEIREDO, 1993, p. 22). Na zona rural, o trabalho de conscientização política dos
trabalhadores, desempenhado pelas Ligas Camponesas de Francisco Julião, permitiu
um aumento expressivo do número de sindicatos rurais, alterando igualmente, o feitio
paternalista que prevalecia nessas associações. Para a historiadora Denise
Rollemberg:

As ligas foram desde a origem um centro de tensões. Por vários


motivos. Antes de tudo porque pretendiam mexer na estrutura
fundiária de um país de tradição colonial, escravista, com um
legado baseado no latifúndio, na exploração, na miséria, na
desigualdade. E no Nordeste, epicentro dos mais importantes
movimentos das Ligas, era expressão viva desse quadro. Além
disso, as ligas surgiram num momento muito particular no
cenário nacional e internacional. No país, a expansão do
movimento coincidiu com o breve governo Jânio Quadros e o
governo de João Goulart, marcados pela reação da direita, a
organização e a polarização dos movimentos sociais, as
ambiguidades do presidente Jango e a passividade da esquerda
representada pelo PCB [...]” (ROLLEMBERG, 2001, p. 8).

3
Muito embora o nome de Michel de Certeau não tenha aparecido no corpo do trabalho, a questão que vem a
seguir, pensada a partir da leitura do seu clássico A Escrita da História, orientou a construção teórica do
nosso artigo: Qual o tipo de relação seria passível de se estabelecer entre o conceito-chave para se
compreender a doutrina social da Igreja – a pessoa humana – e as estruturas socioculturais ou a dinâmica
do período estudado? Segundo Certeau, a resposta a esse ou qualquer outro mote, que se pretenda histórico,
será determinado pelo período, o objeto e o lugar de onde fala o historiador (CERTEAU, 1982, p. 34).
Período marcado por uma intensa politização, os quatro primeiros anos da
década de 1960 se mostraram fecundos em produzir manifestações de diferentes
setores da sociedade civil, que mesclavam elementos culturais, econômicos e
sociais, cujo conteúdo propunha reformas dos mais variados matizes, não estando
a implantação do socialismo na agenda política de alguns desses grupos, dos quais
podemos destacar o Partido Comunista Brasileiro (PCB). A luta por reforma agrária,
moradia digna e melhor distribuição de renda, se dava dentro da legalidade
(GORENDER, 1964, p. 111), assim, a inexistência de um projeto específico e bem
fundamentado, que pretendesse romper de fato com o capitalismo, não se
restringia apenas aos movimentos sociais ligados à Igreja Católica, muito embora o
discurso combativo de alguns deles, alusão seja feita ao movimento Brasil,
Urgente, fosse tão incisivo quanto o que rezavam os documentos das esquerdas
revolucionárias.
Em direção oposta a essa plêiade de grupos afinados com a ideia de
transformar as estruturas sociais e econômicas do Brasil, encontravam-se os setores
da sociedade que propunham um desenvolvimento dependente do capital externo.
Essa frente reunia parcela significativa da classe média, militares ligados à Escola
Superior de Guerra (ESG), o empresariado vinculado à União democrática Nacional
(UDN) e segmentos conservadores da Igreja Católica. Refletindo o contexto histórico
da Guerra Fria e a intensa polarização da sociedade brasileira, os estratos sociais
mencionados atribuíram a efervescência política dos movimentos sociais à influência
comunista.
Situada na fronteira de três campos (BOURIDEU, 2003) – o religioso, o social e
o político –4, a dinâmica do movimento social e semanário Brasil, Urgente expressava
não apenas a conjuntura daquele período, mas, de maneira incisiva, sua pertença a
uma longa tradição cristã, que tinha na filosofia tomista e no ensino social da Igreja
seu arcabouço teórico. Frei Carlos Josaphat, dominicano da ordem dos pregadores e
fundador de Brasil, Urgente, corrobora nossa afirmação. A ação social do frade, que
marca, precisamente, o início do movimento, se deu em setembro de 1961. Nessa
ocasião, Carlos Josaphat ofereceu um curso, nas dependências do Salão da Cúria
Metropolitana, sobre a encíclica Mater et Magistra (1961), do pontífice João XXIII
(1958-1963). O curso se efetivou em dez aulas, ministradas a um público calculado
em dois mil alunos.

4
A opinião de Lucilia Delgado e Mauro Passos caminha na mesma direção, quando afirmam que “o
pensamento religioso não evolui sozinho no espaço simbólico. Ele interage com outras formas de
pensamento e outras esferas de organização social, política e cultural” (DELGADO; PASSOS, 2003, p.
102).
O sacerdote procurou destacar, nesse curso, as grandes linhas da Bíblia e da
história da Igreja, para depois situar o pensamento social da instituição. Estabelecendo
diálogo com Maritain e Mounier, Josaphat analisa a posição da religião católica no
alvorecer dos anos 1960, concluindo que “Hoje, na fidelidade ao Evangelho e atendendo
ao apelo da Igreja, é a nossa vez de trabalhar pela vitória daquele HUMANISMO
PERSONALISTA COMUNITÁRIO, que é o corolário da Encarnação Redentora” (JOSAPHAT,
1961, s/p). Refletindo em sua escrita a renovação teológica de setores estratégicos da
hierarquia eclesiástica e do apostolado leigo da década de 1960, avalia como legítima, a
prática religiosa interessada não apenas em harmonizar o mundo, mas quando necessária
– e a fase conturbada daquele período assim exigia – propor uma revolução social
(JOSAPHAT, 1961, s/p). Nessa perspectiva, os diversos grupos ligados ao movimento
Brasil, Urgente – formado por leigos, estudantes, trabalhadores da indústria e do campo –
, estavam dispostos a ir além das Reformas de Base propostas durante o governo de João
Goulart, tendo por fito substituir o sistema capitalista por outro modelo alternativo de
sociedade (MENEZES. et al., 2002, p. 461-462).
Luiz Gómez de Souza (1984), ex-militante da JUC, define os anos de 1960, como
a fase em que estavam em jogo dois projetos de Brasil. Segundo o autor –
diferentemente de Gorender –, a contenda presente em diversos setores da sociedade
se dava entre as esferas defensoras do capitalismo, que procuravam remediar os pontos
contraditórios do sistema e, do outro lado do campo, os grupos e movimentos sociais
cujo ideário propunha o fim do regime vigente, apostando na implantação de um
modelo socialista alternativo. Weffort (1980) aponta que após a renúncia de Jânio
Quadros, em agosto de 1961, surgem formas de contestação e ação popular que
ultrapassam o feito paternalista dos movimentos anteriores, propondo por meio de
greves e mobilização da opinião pública, a necessidade premente de reformas
estruturais, que incluíssem, simultaneamente, os trabalhadores rurais (WEFFORT, 1980,
p. 77). Na mesma senda, as vanguardas culturais e políticas do período vislumbravam a
possibilidade de superação do atraso econômico, social e político brasileiro, mediante a
conscientização e apoio ao povo, sendo esse subsídio prestado à população oprimida,
uma alternativa possível no processo de emancipação política.
Atento à conjuntura histórica apresentada no parágrafo precedente – todavia
arraigado, ao mesmo tempo, em uma cultura católica cuja matriz é o tomismo–,
Josaphat apresenta, sucintamente, as fontes e as particularidades teológicas de Santo
Tomás de Aquino, objetivando adequá-las aos anos de 1960. Na tentativa, grosso
modo, de historicizar os escritos tomistas, o frade chama a atenção – no curso que
marca o início do movimento Brasil, Urgente – para o fato de o pensamento do
Aquinate estar
em comunhão com a mentalidade universitária da Europa
medieval. A Summa Theologica está longe de ser uma obra
isolada ou de explicar-se por geração espontânea: ela vem a
ser a realização genial, preparada e ajudada por tôda uma
amplíssima rêde de homens e equipes de talento [...] Sua moral
não pretende ser um sistema de normas abstratas, mas inserir-
se concretamente nas estruturas, em comunhão vital com as
instituições (JOSAPHAT, 1961, s/p).

Relativizando a contribuição tomista, Josaphat, enfatiza, ainda, que o esforço


de Santo Tomás: “há de ser entendido como o convite a um trabalho a se retomar
constantemente com novos materiais: em cada momento histórico, religião, cultura,
direito devem irmanar-se num elã construtivo e incansável” (JOSAPHAT, 1961, s/p).
Interpretando a lógica do pensamento religioso de Josaphat, percebemos um discurso
vinculado a diferentes temporalidades, no qual assume importância fundamental a
concepção de projeto, no sentido atribuído por Delgado e Passos, “lançado para
adiante, intento, ação de estender-se, extensão” (DELGADO; PASSOS, 2003, p. 102),
que não perde de vista, contudo, a tradição. O que nos leva a refletir sobre a essência
das críticas endereçadas ao capitalismo pelo movimento social Brasil, Urgente, onde
se mesclam elementos da DSI, da filosofia tomista e da Bíblia – sobretudo o Antigo
Testamento, no qual a figura de Deus se faz presente na história do povo judeu, ora
glorificando-os, ora punindo-os5.
Do movimento social Brasil, Urgente surgiria, em março de 19636, um
semanário de mesmo nome. Dois pontos devem ser considerados na análise desse
jornal, cujo epílogo se deu em abril de 1964, quando do golpe civil-militar: 1) Esse
veículo de informação se insere no amplo processo, por nós chamado, de tentativa
católica de modernidade, estando presente em suas páginas o movimento pendular
característico do conceito em destaque, no qual se articulam duas práticas eclesiais: a
Igreja socialmente engajada e a Igreja politicamente engajada; 2) O semanário traz
implícito em seu discurso um projeto, tendo como orientação, portanto, o desejo de
estender-se, de lançar-se ao futuro – esse ponto se torna inteligível quando se avalia

5
Michael Löwy faz um interessante estudo sobre a preferência, dos teólogos da libertação, pelos textos do
Antigo Testamento. Sobre o assunto, confira o artigo de Michael Löwy, O catolicismo latino-americano
radicalizado, 1989. A sugestão bibliográfica não indica a pertença do movimento Brasil, Urgente à
Teologia da Libertação, já que o segundo acontecimento ocorreu na década de 1970, quando Brasil,
Urgente, não mais existia.
6
17 de março de 1963 é a data de fundação do jornal, tendo sido publicado até dia 28 de março de 1964.
Com apenas um ano de existência e 55 exemplares – no formato de tabloide – Brasil, Urgente estabeleceu
fecundo diálogo com o seu tempo. A relevância do estudo dessa imprensa se deve ao fato de suas matérias
– sobretudo as de cunho doutrinal – terem levantado problemáticas que seriam, na década de 1970,
retomadas e ampliadas pelos teólogos da libertação e pelas CEBs.
a posterior Teologia da Libertação, a qual retoma e amplia muitas das discussões
presentes nas matérias veiculadas pelo tabloide.
O jornal, continuando o movimento social que o antecedeu, se preocupou em
difundir o ensino magisterial da Igreja Católica, atualizado pelas encíclicas sociais
Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963), do pontífice João XXIII (1958-
1963). Para ilustrar as diretrizes do hebdomadário, vejamos o conteúdo do seu
primeiro editorial:

Divulgaremos sempre as grandes linhas da doutrina social


cristã, tal qual vem compendiada em Documentos como a
Encíclica Mater et Magistra do Papa João XXIII. Mas a
doutrina deve ser confrontada com os fatos e a eles aplicada.
Daí a análise destemida do atual processo de desenvolvimento
brasileiro, em seu conjunto e em suas peculiaridades, em suas
características regionais, bem como em suas implicações
continentais e internacionais (BRASIL URGENTE, 1963, p. 3,
grifo do autor).

Imerso em um ambiente altamente polarizado e representando


simultaneamente, a chamada vertente católica de “esquerda”, Brasil, Urgente abriu
espaço, assim como demonstra seu primeiro número, para os principais debates do
período, fossem eles sociais ou políticos, não sendo a difusão do cristianismo católico
sua única intenção (COSTA, 2012, p. 192). Como nos informa Delgado e Passos, o
hebdomadário era: “Um instrumento de reflexão sobre os problemas sociais e políticos
dos militantes católicos. Teve um importante papel para a reflexão e a organização
política, particularmente dos centros urbanos, em congressos, passeatas,
manifestações estudantis e operárias” (DELGADO; PASSOS, 2003, p. 122).
Para ilustra melhor o contexto religioso daquela ocasião, contamos com as
palavras de frei Carlos Josaphat. Segundo o sacerdote, os padres que atuavam na
linha das reformas sociais já tinham em mente um propósito de mobilização
incompreensível mesmo para bispos como Dom Hélder Câmara. Para Josaphat, a
ocasião exigia um movimento “não em nome do cristianismo, mas em nome do povo,
com uma inspiração evangélica, inspiração cristã, [capaz de] mobilizar para poder
fazer a reforma social-econômica e político-cultural” (PEREIRA, 2002, p. 456). No
centro do movimento indicado por Josaphat estava o homem – na terminologia
doutrinária católica a pessoa humana –, constituído por matéria e espírito, aberto,
dado o seu livre-arbítrio, ao diálogo com o outro, mormente o comunista. Havia,
segundo Josaphat, possibilidades de diálogo com os herdeiros de Marx, já que
defendiam também – reservada as profundas diferenças filosóficas –, o ser humano.
Nesse sentido, o jornal tinha como proposta aglutinar os diferentes
movimentos partidários da renovação e da revolução, conferindo a cada um sua
devida participação. Para o sacerdote dominicano:

O princípio de diálogo era esse de dizer: olha, no jornal tem


esse projeto, nós todos estamos de acordo com isso; agora,
você que é comunista, você vai chegar e discutir sobre esse
projeto, você não me vai trazer a idéia do Partido Comunista –
que não me interessa. Eu sou católico, eu sou dominicano, eu
não vou trazer aqui para você a posição dos dominicanos; eu
vou trazer a posição sobre essa nossa coisa aí, que diz como é
que vamos discutir esse projeto, como é que vamos alargar
esse projeto e fazer tema para esse projeto [...] Mas isso é
interessante, você tem aí um encontro, uma força na linha do
que nós encontramos em Karl Marx. Então, é isso aí que é o
problema que, para mim, foi muito rico: um esforço de um
diálogo que não reduzisse, que não fosse redutivo em relação
às várias posições. Quer dizer, no fundo são dez posições, então
três prevalecem, e sete não? Nós vamos ver que as dez
posições podem chegar e se apresentar, e quando, por
exemplo, numa tomada de posição uma ficou de lado, na
próxima você vai – essa posição é mais intelectual –, bom, nós
vamos fazer um número do jornal em que você vai entrar mais,
etc. Então isso é uma questão de importância de diálogo, que
às vezes um diálogo leva a um acordo [...] (entrevista
concedida ao autor em 7 de julho de 2006, p. 250-251).

Atinente às vozes variadas que falavam através de um jornal de inspiração


cristã, assume importância basilar a doutrina presente na encíclica Pacem in Terris
(1963) de João XXIII, que passou a distinguir teorias de movimentos sociais
suscitados por estas; o que torna muito significativas a evolução das críticas da
hierarquia em relação ao socialismo e também da prática sociopolítica do semanário
Brasil, Urgente. Os princípios anunciado nos documentos oficiais, de Pio XI a João
XXIII, em relação a esse sistema mantiveram uma constante: a refutação do
socialismo independentemente de sua aproximação com alguns princípios da doutrina
cristã. No entanto, como havíamos afirmado, João XXIII, na encíclica em pauta,
diferencia teoria de movimentos práticos, estabelecendo o seguinte: “Além disso,
cumpre não identificar falsas ideias sobre a natureza, a origem e o fim do universo e
do homem, com movimentos históricos de finalidade econômica, social, cultural e
política, embora tais movimentos encontrem nessas idéias filosóficas a sua origem de
inspiração” (MESQUITA, 1963, p. 617).
O depoimento de frei Carlos Josaphat, que encerra esta parte do artigo, é
bastante emblemático, pois esclarece dois pontos: 1. A propriedade do jornal
enquanto porta-voz de uma ampla rede de movimentos em defesa do ser humano; 2.
O modo como se processou, em um grupo específico do laicato católico, a releitura
das orientações pontifícias. Havia, portanto, segundo o dominicano:

Um encontro de várias correntes com uma unidade de marcha,


de ação, mas com uma certa autonomia [...] nem é assim, um
jornal que traduz a posição do esquerdismo da Ordem
Dominicana, nem da AP, nem, assim, de um grupo de
comunistas, nem de um grupo de sindicalistas, é uma
resultante. Agora, de modo que o problema nosso, por
exemplo, quando a gente fazia, então, uma reunião – um
congresso – ou quando a gente fazia, então, uma reunião de
elite para dirigir o jornal, agente procurava atender tudo isso. E
o princípio de diálogo era esse (entrevista concedida ao autor
em 7 de julho de 2006, p. 250).

Comunidades Eclesiais de Base (CEBs): a democratização do sujeito moderno

Nascidas no interior da Igreja Católica nos anos 19607, as Comunidades


Eclesiais de base (CEBs) constituíram uma nova eclesiologia, ou na terminologia da
extensa bibliografia relativa ao assunto, um novo modo de ser Igreja, que surgiu entre
os pobres, formados em sua maioria por camponeses e operários. Ao passo que as
frações dominadas foram penetrando um território religioso, antes restrito a um
laicato intelectualizado, a ideia de sujeito se democratiza. Essa afirmação implica uma
melhor definição do que se entende por sujeito, a qual – dado a historicidade do
conceito – se compreende pelo termo moderno. Para tanto, lançamos mão das
palavras do padre e teólogo João Batista Libânio, as quais sintetizam, com
propriedade, as características elementares, tanto dos movimentos de renovação da
primeira metade do século XX, quanto da proposta de sujeito defendida pelos agentes
que orientaram, inicialmente, o trabalho pastoral nas CEBs:

Quem ver a ser sujeito social? Não são indivíduos em sua


singularidade. O termo sujeito denota a dimensão de
consciência, de auto-identidade, de ação. Ele sabe quem é, o
que quer, de onde vem e para onde vai. É portador de
interesses econômicos, políticos, culturais e religiosos. E age
não na singularidade e na fragmentação dos indivíduos, mas
como um corpo, um grupo, uma classe. Desempenha papel
decisivo e primordial na criação da temática a ser debatida. Faz-
se reconhecer pelos problemas, perguntas, preocupações,
interesses que manifesta (LIBÂNIO, 2005, p. 12).

Os movimentos de renovação – referência sejam feitas às diversas ramificações


da Ação Católica (AC), sobretudo a Juventude Universitária Católica (JUC) – abriram

7
Foge dos propósitos desse artigo, aludir os antecedentes que possibilitaram o surgimento das CEBs no
Brasil. Há uma extensa bibliografia que trabalhou essa temática.
as portas da Igreja Católica ao sujeito moderno, o qual haveria de trazer para dentro
da instituição, os conflitos e desafios característicos da modernidade. O universo
religioso pensado a partir da experiência – discurso que se defende nos movimentos
da AC da primeira metade do século XX – se materializaria nas CEBs durante a década
de 1970. A teorização e o tom abstrato das discussões, característica muito forte nos
setores mais intelectualizados do laicato, cederia espaço, com as comunidades, a uma
teologia mais prática, que teria no contexto de opressão o ponto de partida para o
refletir teológico.
Não escapa a essas provocações típicas da modernidade, a concepção cristã de
ser humano. Tendo incorporado valores da cultura moderna, como o diálogo, “a
abertura ao diferente, [a] aceitação do pluralismo” (LIBÂNIO, 2005, p. 31), o conceito
de pessoa humana abriu para si, infinitas possibilidades de leitura. Dentre as diversas
interpretações acerca do ser, uma adquiriu – referência seja ao contexto de
exploração capitalista – posição destacada: o pobre, dito de outro modo, a classe
oprimida. Assim, as frações dominadas (BOURDIEU, 1983) encarnaram, no contexto
histórico dos anos 1960, o conceito de pessoa humana. Como arquétipo da visão
cristã de homem, o pobre se torna o predileto do Reino de Deus, e é para ele que
deveriam ser voltados os planos pastorais. Partindo-se dos grupos marginalizados,
social e politicamente, determinados setores da Igreja8 organizaram seu trabalho, cuja
meta seria fazer o oprimido falar por si mesmo. O mundo abstrato não integra,
portanto, a lide desses grupos, mas sim a realidade tangível dos seus integrantes,
com todas as “suas grandezas e debilidades, angustias e esperanças, tendências e
dramas” (LIBÂNIO, 2005, p. 131).
D. Cláudio Hummes, em artigo veiculado pelo jornal O São Paulo9 em janeiro
de 1980, retrata um pouco do que se afirmou nas últimas linhas do parágrafo
precedente. Escrito no período de franca expansão das CEBs, o texto, apresentado na
forma de tópicos, traz como terceira resposta de uma única pergunta que abre e
orienta o artigo, considerações referentes à prática dessa parcela do laicato católico:

A prática do Evangelho não é individualista nem abstrata. Ao


contrário, a CEB procura encarnar o Evangelho na realidade em
que vive (num primeiro momento, na realidade do bairro, da
cidade etc., para finalmente chegar até as estruturas de nossa
sociedade). Analisa a realidade (procurando as causas),
descobre os problemas e as situações contrárias ao Evangelho e

8
Nos referimos aqui, à pastoral desenvolvida por alguns padres e bispos da CNBB; entre os leigos podemos
destacar os fiéis vindos das antigas ramificações da AC. O trabalho das CEBs, muito embora tenha sido
orientado, inicialmente, por estratos intelectualizados da Igreja, tomou vida própria, cumprindo, por
extensão, os objetivos iniciais do movimento.
9
Jornal da Arquidiocese de São Paulo.
empenha todos os seus membros a buscar juntos a
transformação dessa realidade (AS CEB’S..., 1980, p. 3).
O boletim Vida e Missão da Igreja caminha na mesma direção. Divulgado em
novembro de 1980, a publicação trouxe, em sua última página, um resumo do 2º
Encontro das CEBs do Setor Capão Redondo, do qual participaram 85 representantes
das comunidades do município de Itapecerica da Serra. Segundo a reportagem, três
objetivos orientaram o encontro: 1. Refletir o vínculo entre Evangelho e vida; 2.
Confrontar a mensagem de Jesus Cristo à realidade cotidiana; 3. Avaliar o grau de
união do povo de Deus na prática da evangelização (ENCONTRO DAS..., 1980, p. 4). O
evento, que fora dividido em dois momentos, contou, primeiramente, com a
participação dos leigos, os quais se reuniram em grupos para discutirem assuntos
pertinentes à catequização, juventude, lutas populares, animadores e pastoral. De
grande relevância se assenta o exame dos leigos sobre a terceira temática: “Lutas
populares: Participar nas lutas reivindicatórias é viver o Evangelho, hoje, viver a
justiça e a fraternidade; é criar a paz, e ver Cristo dentro da própria realidade. Os
cristãos têm responsabilidade de ajudar os outros a acordarem para esta realidade, e
não somente rezar por eles” (ENCONTRO DAS..., 1980, p. 4). Tomou a palavra, no
segundo momento do encontro, o padre Guilherme. Expressando em seus dizeres a
compreensão moderna de sujeito – o que implica responsabilidade e participação –,
defendeu uma concepção menos absoluta das escrituras – o que traz à tona a ideia de
relatividade. Conforme a reportagem, o sacerdote teria, acerca do tema
evangelização, assim se colocado:

1) O que é o Evangelho? Não é uma série de verdades eternas,


ou bonitas idéias sobre Deus, mas Mensagem Alegre de Fé com
o HOMEM no centro, quer dizer, a pessoa humana como objeto
do amor do Pai. A Boa Notícia também é resposta a uma
realidade, que pode ser descrita como a “socialização da
miséria”. Dentro deste contexto, o Evangelho torna-se
mensagem alegre de liberdade e libertação; palavra perigosa
que QUESTIONA o sistema.
2) Como viver este Evangelho? De uma maneira vital e não
decorativa; através de um compromisso de vida em GESTOS
CONCRETOS DE AMOR, e não com palavras apenas. Precisamos
ver, sentir e palpar este amor; precisamos de exemplos vivos
como Santo Dias da Silva, companheiro, amigo, irmão, para
acreditar no amor gratuito do Pai. E tudo isto A PARTIR DOS
POBRES, acreditando na gente fraca que tem o potencial de
evangelizar a Igreja toda, solidários com eles na sua luta para
se organizar e libertar.
3) Para que evangelizar? Para construir, desde já, uma nova
sociedade, mais justa e fraterna, sem dominações e sem
explorações, que aliás é o projeto libertador de Deus na Bíblia.
Através da vida normal das comunidades, a Palavra se encarna
na realidade do povo, em vista de uma LIBERTAÇÃO TOTAL,
que inclui as lutas populares, mas não se esgota nisto; ela vai
além – é sinal do próprio Reino. Ela questiona nossa prática:
será que os nossos pequenos projetos, mesmo dentro das
comunidades, estão reproduzindo o próprio Sistema de
dominação que questionamos? (ENCONTRO DAS..., 1980, p. 4).

A fala do padre se torna deveras relevante, pois expressa o arcabouço teórico


de um grupo de teólogos e católicos que se serviram de elementos do marxismo para
entender as raízes do processo de exploração capitalista, com o fito de libertar o
homem dessa dependência. Deve-se ressaltar, ainda, que o discurso do padre, pelo
fato de não ter excluído o Evangelho como possibilidade de transformação, operou
uma amarração entre a tradição católica e sistemas de pensamento modernos não
utilitários; além disso, a presença de um sacerdote, em um evento destinado ao
laicato, levanta a possibilidade de uma boa convivência da instituição – ao menos nos
anos 1970 – com as CEBs. Os instrumentais teóricos, que transcorrem o texto do
padre Guilherme, já se faziam sentir muito antes dos anos 1970. A preocupação
tangente no texto, cuja inquietação defende uma libertação total do homem – tanto
do ponto de vista espiritual, quanto material –, ganhara vulto na Europa dos anos
1940, ocasião em que se destacou a produção intelectual dos católicos Jacques
Maritain e Emmanuel Mounier, bem como dos clérigos Yves de Congar e Henri de
Lubac. Muito embora esses pensadores tivessem como horizonte de atenção o sujeito
moderno intelectualizado, já defendiam, em seus escritos, uma Igreja mais voltada
para a espiritualidade, na qual o leigo assumisse um papel ativo.
Acoplando elementos da longa tradição católica e não apenas valores modernos
– conforme pode ser visto no parágrafo precedente –, as CEBs no Brasil não buscaram
colidir frontalmente com a hierarquia eclesiástica, ou mesmo dela se separar.
Documentos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), anteriores ao
nascimento das comunidades10, ou mesmo aqueles posteriores11, revelam a presença
de clérigos na articulação e organização da dinâmica dos grupos. Do mesmo modo, o
caráter histórico do ser humano não suplanta a concepção católico-cristã de pessoa.
Nesse sentido, as palavras de Libânio apresentam – para além da situação religiosa e
histórica, específica às CEBs – a junção entre o antigo e o novo:

O ser humano é essencialmente histórico e o mundo participa


de sua historicidade. É o teatro da vida das pessoas que são

10
O Plano de Emergência da CNBB (1962) já previa um trabalho mais condizente com as particularidades de
cada comunidade eclesial. Em 1966, com a elaboração do Plano de Pastoral de Conjunto para o quadriênio
de 1966 a 1970, os bispos endossam a ideia de se criar meios e condições para que a Igreja se ajustasse, no
Brasil, às diretrizes emanadas do Concílio Vaticano II.
11
Citamos como documentos posteriores ao surgimento das CEBs os seguintes textos: Diretrizes Gerais da
Ação pastoral da Igreja no Brasil para o triênio de 1975 a 1978, Subsídios para Puebla (1978) e do ano de
1982, As Comunidades Eclesiais de Base no Brasil.
atores de tudo o que aí acontece. Não é mero cenário, mas está
marcado pelo esforço do homem em seus triunfos e fracassos.
Como sujeito da história, o ser humano inter-relaciona-se
dialeticamente com o mundo, construindo-o e sendo construído
por essa mesma relação de agente. O homem transforma e
humaniza o mundo. E quando o faz à luz da fé dá-lhe um
sentido teológico que subsume o sentido cosmológico e
antropológico histórico (LIBANIO, 2005, p. 132).

O artigo de Cláudio Hummes, citado a pouco, caminha na mesma direção das


conclusões de Libânio, já que enaltece a responsabilidade e participação ativa dos
seus membros, como a pedra basilar do movimento. Logo, o bispo assim definiu:

Promove rigorosamente [as CEBs] a co-responsabilidade e


participação de todos: é uma comunidade que senta em
círculo, onde todos tomam parte em tudo e são irmãos. O
animador, o coordenador e os vários ministros que irão
surgindo durante o processo de evolução da CEB, são todos
servos da CEB e não dominadores. Não deve haver nem
dominadores nem dominados. Há, sim, serviços, ministérios e
carismas para o bem comum da CEB; há liberdade,
participação, co-responsabilidade e fraternidade, num processo
constante rumo à liberdade integral (AS CEB’S..., 1980, p. 3).

Até o ano de 1976, grande parte das CEBs se concentrava em Estados da


região Nordeste do Brasil; relativo à presença desses núcleos em cidades, ganham
relevo especial os municípios de São Paulo (SP) e João Pessoa (PE) – o que guarda
profunda relação com a atuação dos bispos D. Paulo Evaristo Arns, na capital paulista,
e na capital pernambucana, de D. Hélder Câmara, ambos defensores dos direitos
humanos. A opção preferencial pelos pobres, expressão defendida na Conferência de
Puebla (1979), já vinha sendo trabalhada, de um modo geral, pelas CEBs, com ênfase
destacada para o dinamismo percebido, através da documentação12, em determinadas
regiões da Grande São Paulo, o que se vincula diretamente com a fundação do Partido
dos Trabalhadores (PT) em 1980. As CEBs, que se encontravam espalhadas em
diversos pontos da cidade de São Paulo e da sua região metropolitana, lançaram,
também, as bases para o desenvolvimento de diversos movimentos sociais e sindicais.
Michael Löwy argumenta que as CEBs se tornaram o alicerce sobre o qual se
construíram as paredes dos movimentos sociais e políticos daquele período:

Foi graças a essa base de massa que a CUT, a nova


confederação de luta de classes, pôde se organizar em torno de
dez milhões de trabalhadores urbanos e rurais, e conquistar a

12
Essa documentação diz respeito a uma ampla variedade de textos que informam a respeito dos encontros
regionais das CEBs na região metropolitana de São Paulo. No Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) da
UNICAMP, encontra-se um farto material sobre o trabalho dessas comunidades, para além da capital
paulista, nas seguintes Dioceses: Goiânia (GO), Vitória (ES) e Rio de Janeiro (RJ).
hegemonia no movimento sindical durante a redemocratização
parcial do país nos anos 1980 [...] enquanto o PT, o novo
partido operário portador de uma perspectiva socialista, ganhou
centenas de milhares de eleitores (LÖWY, 1991, p. 57).

Considerações finais

Através da análise pontual de dois acontecimentos, o movimento social e


semanário Brasil, Urgente (1961-1964) e as CEBs (anos 1970), demonstramos como
se operou, no interior de um processo maior – a tentativa católica de modernidade –,
a realização histórica do conceito que estrutura a Doutrina Social da Igreja (DSI): a
pessoa humana. Tendo como parâmetro dois episódios distintos, todavia
complementares, percebemos que a modernidade adentrou a Igreja Católica, por meio
do sujeito moderno. Esse sujeito – em um primeiro momento elitizado – trouxe
consigo os dilemas, desafios e perspectivas da cultura moderna. Buscando definir sua
concepção de ser humano, uma determinada parte da Igreja – mundo clerical e
mundo leigo – incorporou elementos da modernidade, como noções de autonomia,
liberdade, responsabilidade, fraternidade, democracia, participação, valorização do
homem, leitura crítica da realidade, entre outros.
Nesse sentido, as CEBs surgiram como proposta de mudança, já que
procuraram retomar a ideia de comunidade fraternal, na qual o poder seria, pari
passu, delegado a todos os cristãos. Esse movimento tem como vizinho mais próximo
os debates das décadas de 1930 e 1940, principalmente quando o humanismo integral
de Jacques Maritain e toda a renovação teológica europeia penetraram o Brasil. A crise
de um determinado tipo de ideia de Igreja, calcada em uma concepção hierarquizada
que se naturalizou ao longo dos séculos, deu seus primeiros sinais, justamente no
período citado. As décadas de 1960 e 1970 ampliam essa tensão, pois o que estava
sendo questionado naquele momento histórico era todo um modo de pensar
autoritário, seja do ponto de vista religioso, social, econômico, ou político.
Como a longa duração trabalha com permanências e mudanças, uma das
permanências, que ultrapassam o período histórico no qual se situa nosso artigo, é a
concepção hierarquizada da religião, que não está aberta à participação popular.
Assim, quando abordamos a existência de Brasil, Urgente e, seguidamente, das CEBs,
estamos na verdade, problematizando as profundezas de um oceano, e não,
isoladamente, a superfície desse grande mar. Logo, as diferentes camadas históricas,
de longa e média duração, compuseram o surgimento dos fenômenos aqui estudados.
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MISSÃO RESGATE: UMA ANÁLISE ACERCA DO MOVIMENTO

CARISMÁTICO EM CRATO (CE)

A Renovação Carismática Católica Missão Resgate na cidade de Crato- CE é


um dos movimentos mais conhecidos dentro da cidade, que atrai os fiéis de Crato
e também das cidades vizinhas. Ele é realizado todas as quartas feiras, tendo início
por volta das18: 30 horas, começando com o terço meditado e cantado em
adoração a Nossa Senhora, sendo que, a partir do terço os fiéis já começam a orar
por algo que está precisando ser alcançado para aquele momento. Em seguida, às
19h00min começa o esperado encontro que todos os fiéis devotos procuram como
forma de louvor, adoração, reflexão, buscar a Deus.
O missionário inicia o encontro com a oraç ão ao Divino Espírito Santo, mais
adiante é o momento de cantar, pular, gritar, onde ninguém fica parado, e o
importante é que a todo o momento de oração, ele vai pedindo que os fiéis
interajam, falem com o vizinho, dê um abraço, boa noite, um aperto de mão e
muito mais. Em seguida, faz a leitura da palavra de Deus e faz alguns
comentários, depois é o momento dos testemunhos, a oferta e, por fim, a oração
final.
O movimento carismático católico Miss ão Resgate vem atuando há onze anos
na cidade de Crato. Este trabalho começou apenas com duas pessoas que se
reuniram para rezar pelo Crato e pelo Cariri. Depois foi crescendo, reunindo
pessoas de várias cidades até se transformar em verdadeiro fenômeno religioso,
reunindo semanalmente mais de três mil pessoas para celebrações em Crato.
Assim, pode ser resumida a história da Missão Resgate, como uma
comunidade católica leiga, coordenada pelo advogado e radialista Geraldo Correia
Braga, e que conta com apoio da Diocese do Crato, de vários religiosos, e a
participação de centenas de pessoas.
Dessa forma, em 2001 a comunidade começou pequena com um grupo de
oração, mas hoje se expande para fora do Cariri. Por sua vez, há trabalhos
missionários e sociais realizados pela Missão Resgate também na Amazônia, além
de grupos nas cidades de Juazeiro, Iguatu, e Milh ã. Para Geraldo Correia, o
estímulo para iniciar o trabalho foi à constatação de que as pessoas est ão longe de
Deus. “Na época eu era estudante universitário e a gente observava que quase
ninguém falava de Deus. Havia uma distância muito grande entre as pessoas e
Deus, e resolvemos fazer um grupo de oração para pedir a Deus que olhasse para
nossa juventude, as pessoas, nossa cidade, nossa região”. (http://
www.opovo.com.br. Acesso em 19 de março de 2013)
O movimento Missão Resgate nasceu na capela de casa de caridade do Crato,
com a finalidade de resgatar jovens entregues as drogas e ao alcoolismo. O grupo
nasceu com a força do Espírito Santo. Ela é explicação apresentada por Geraldinho
para justificar o crescimento de sua organização religiosa.
Então, passou um ano para que chegasse a 30 pessoas. A partir daí o
crescimento foi se dando. Desse grupo nasceu uma comunidade de missionários
que vive em prol da evangelizaç ão. Atualmente são cerca de 400 missionários e
missionários que dedicam parcial ou integralmente seu tempo à pregação. Os que
são consagrados vivem em comunidades e fazem trabalho pastoral e social.
Também o movimento procura ajudar as pessoas carentes com a distribuição
de comida e roupa. Além disso, resgatam as pessoas das drogas e do alcoolismo.
Por sua vez, a Missão Resgate ainda faz um trabalho nos meios de comunicação,
com a Rádio Educadora AM, além de evangelizar via jornal escrito e por meio do
site do movimento.
Assim, a multidão que está presente todas as quartas feiras entra em êxtase
de olhos fechados, mão para cima rezam com fervor, alguns ficam mobilizado,
parecendo haver perdido qualquer contato com o mundo exterior. Uma vez que, a
Missão Resgate surgiu como grupo de teatro com peças especifica sobre
evangelização destinada a jovens e adolescentes. Portanto, o objetivo da Missão
Resgate é glorificar o nome do senhor, louvando e evangelizar a cristo e buscando
o crescimento espiritual de seus membros, ou seja, levar o amor de Cristo.
No Brasil, os movimentos carismáticos est ão crescendo e ganhando uma
maior visibilidade dentro do universo católico. Entretanto, nos últimos anos chega a
ser surpreendente a força que esse grupo carismático Missão Resgate está tendo
dentro da sede da igreja Católica no Crato. Uma vez que, é sabido que o número
de católicos tem decaído nos últimos anos e a valorização de grupos desses tipos
pela própria igreja pode ser entendida de certa forma como estratégia da igreja
para recuperar e manter seus membros.
A Renovação carismática Católica também é conhecida como a
pentecostalização do catolicismo pelo fato de assumir características dos
pentecostais, como, por exemplo, a ênfase que é dada as músicas emotivas, com
apelos a despertar a emoção dos fiéis. Ou seja, a pentescostalização do catolicismo
ocorreu devido a uma apropriação da Igreja Católica, onde a Missão Resgate se
apropria da emoção do pentecostalismo, com músicas bem emotivas, assim tanto
a música, como a ênfase na cura são justamente o que mais se tem destacado
nesse movimento carismático. Assim, os fiéis buscam nas reuniões carismáticas
uma forma de devoção a partir do Espirito Santo, se apropriando dos seus
pertences carismáticos a conquista das soluções dos seus problemas.
Contudo, esse Movimento se expandia no mundo cristão e criava atrito com a
Igreja Católica, a começar pela terminologia. Aos poucos, o termo Pentecostalismo
Católico foi substituído por Renovação Carismática Católica. Para, além disso, ao
introduzir a RCC no Brasil, essa express ão poderia gerar interpretaç ões errôneas,
pois designar os grupos católicos de oração de pentecostalismo causava um certo
incômodo, já que o termo pentecostal ou seita era a denominação pejorativa
dada aos evangélicos que não pertenciam à Igreja Católica.

A Igreja Católica tem tomado algumas atitudes tais como, o


retorno à devoção, o destaque a dimensão místico-espiritual
do ser humano, a revisão das práticas pastorais, a ocupação
de maior espaço na mídia e o incentivo ao desenvolvimento
da Renovação Carismática dão ênfase e emoção as bênçãos
e curas aos dons do Espirito Santo, tratando de um
movimento que utiliza os mesmos dispositivos utilizados
pelo pentecostalismo. (PAZ, 2005, p. 43)

Desse modo, é importante considerar a ideia de bricolagem como uma forma


da religião se apropriar de outra pegando algo de outra religi ão, como por
exemplo, as músicas emotivas, onde de certa maneira o que se percebe é que a
igreja católica está se baseando em alguns elementos do universo evangélico.
Dessa forma, a privatização da religi ão faz adaptação a sua religi ão incorporando o
movimento que privatiza a devoção, pois a emoção é um dos elementos mais
importantes para a Renovação Carismática.
Contudo, podemos pensar em função das palavras de Steil (2001) que, ao
observar esta valorização emocional, em qualquer universo que seja, sobrepõe-se à
dimensão racional e teológica das instituições religiosas da modernidade. Por sua
vez, as religiões que são ditas populares e as experiências religiosas
contemporâneas estariam centradas nos símbolos que produzem adesões para
identificação.
Ou melhor, tanto o tradicional, como o pós-moderno religioso tem em
comum o fato de privilegiarem o polo sensorial na produç ão de sentidos do polo
ideológico. Entretanto, para os crentes no campo religioso é uma “nova era”, que
está nos cultos populares e que se deixam mobilizar pelo sensível e pela emoção
do que pelos dogmas e verdades de fé, pois as novas formas de crer são
importantes para o campo religioso.

MISSÃO RESGATE: FÉ E ADORAÇÃO

O Movimento Carismático Missão Resgate, tem o objetivo de viabilizar um


momento de fé e adoração a Deus, onde várias pessoas buscam no encontro a
solução de algo que está necessitando através da oração, e ao passo que vai
conduzindo a reunião no final está se sentindo renovado, graças ao seu potencial
de fé. Todas as quartas feiras o tema da oração é diferente: há louvores pela
família, causas impossíveis, libertação, dentre outros. É o louvor que atrai muitas
pessoas, pois elas podem cantar, pular, extravasar, trocar calor, sentir-se
renovado.
Além disso, é na Missão Resgate que as pessoas recebem de Deus as
bênçãos desejadas por Deus pelo Espírito Santo. Sendo assim, ao conversar com
um fiel, ele diz com muita adoração, convicção, e respeito em sua fé católica,
“venho buscar na reunião a Deus e sinto uma paz interior, gosto das pregações, e
tenho sentimento de um novo tempo que Deus está revelado”. (Entrevistado
M.H.M, Entrevistado por Marcyana Macedo, Crato, 27 de setembro de 2012)
Frente a isso, vale considerar que para o catolicismo pode-se observar uma
reinvenção da tradição e uma revitalização de rituais impregnados de emoção, uma
vez que há possibilidade para escolhas e pertencimentos religiosos. Contudo, a
diversidade atingiu até mesmo o catolicismo, dessa forma, algumas pessoas
podem ser católicas, ao centrar, por exemplo, as suas práticas no culto aos santos,
como também participando de associações religiosas e de diversas crenças.
Dessa maneira, também podem ser considerados católicos sem ter vínculo a
qualquer compromisso expresso formalmente de ordem religioso-institucional, ou
seja, os que têm uma crença na divindade, mas não tem religião. Assim, “a
pluralidade e fragmentação religiosa, portanto são fruto da própria dinâmica
moderna. A secularização múltipla os universos religiosos, de forma que a sua
diversidade pode ser vista como interna e estrutural ao processo da modernidade”.
(STEIL, 2001. p116)
Para, além disso, a privatização da religião faz adaptação a sua religião
incorporando o movimento que privatiza a devoção, pois a emoção é um dos
elementos mais importantes para se pensar no catolicismo carismático.
Nesse sentido, para se pensar na Missão Resgate é interessante perceber o
quanto é importante para aqueles fiéis que buscam a Deus pelas suas prá ticas
existenciais por meio do Espirito Santo, uma vez que, para os fiéis o encontro
carismático representa significados distintos que vão sendo construídos através do
momento de oração, uma explicação para si mesma, isto é, para as necessidades
espirituais que cada fiel apresenta naquele momento. Assim, “tanto quanto suas
ações, suas emoções e sua auto- interpretação são pré-definidas para ele pela
sociedade. [...]”. (BERGER, 1989, p.131).
Sendo assim, a Renovação Carismática Católica está inserida no campo
religioso brasileiro, é um agente dinâmico dentro do catolicismo e também é um
fenômeno que se prende nas contínuas mudanças que a pós-modernidade
apresenta no momento atual. Esses se constituem em elementos que dificultam
uma delimitação muito estreita de suas peculiaridades.
A Renovação Carismática sustenta que a renovação do
Espírito é resultado do valor que nela possuem carisma ou os
dons do Espírito Santo carismas provenientes de Deus e
devem ser utilizados por aqueles em três grupos:
1- dons das palavras: das línguas estranhas, das
interpretações e das profecias;
2- dons do poder: fé, cura e milagre;
3- dons das revelações: sabedoria, ci ência e discernimento.
(PIERUCCI & PRANDI, 1996, p.66)

A religião tornou-se cada vez mais expressiva o número de pessoas que


buscam no sobrenatural solução para suas crises existenciais ou materiais
demonstram uma nova característica do homem moderno com o encadeamento
religioso.
Nesse aspecto, a Renovação Carismática obteve entres os fiéis da Igreja uma
aceitação expressiva que atualmente no Brasil, é um dos movimentos religiosos
católicos de maior expansão. Então, com o aparecimento de novas religi ões, e
crescimento de outras religiões e sistemas de sentido, sobretudo da Igreja
evangélica não deixa de causar certa preocupação à Igreja Católica. Como por
exemplo, a igreja Universal do Reino de Deus, Deus é Amor, Internacional da
Graça, etc. Diante dessa consideração é importante destacar que: “Não existem
religiões falsas. [...] todas respondem, mesmo que diferentes formas, a condição
dadas de existência humana” (DURKHEIM, 1973, p.508).
Nesse sentido, em relação às emergências dessas religiões percebe-se que a
religião é uma forma de explicaç ão de si e do mundo, pois todas s ão consideradas
verdadeiras independentemente de sua crença, onde cada uma é verdadeira a seu
modo.
Dessa forma, o que se tem percebido é que a partir da segunda metade do
século XX, com a constante mudança na vida religiosa, onde o número de católicos
tem diminuído nas últimas décadas e com o constante fascismo de novas
manifestações religiosas, sendo que a partir do momento que começa a existir
outros grupos e movimentos com a participação daqueles que buscam valores e
atitudes para segui-los em frente, pois a partir de sofrem mudanças religiosas com
seu aspecto a igreja sofre com essa evasão de fieis, pois a partir de sofrem
mudanças religiosas com seu aspecto conservador a Renovação Carismática
Católica surge como fenômeno social proeminente, com o objetivo de atender as
necessidades religiosas.
Diante dessas quest ões que foram colocadas, vale destacar que a igreja
católica levou mais de vinte anos para aceitar a Renovação Carismática,
legitimando a RCC que finalmente o documento de orientaç ões pastorais sobre a
RCC seria aceito. Então, essa legitimação é resultado da força da estruturação do
movimento da sua relação com os setores conservadores da igreja e do seu
discurso religioso voltado para o restabelecimento do catolicismo, que aspira a
hegemonia do catolicismo na esfera religiosa.
A Renovação Carismática Católica está inserida no campo religioso brasileiro,
é um agente dinâmico dentro do catolicismo e também é um fenômeno que se
prende nas continuas mudanças que a pós modernidade apresenta no momento
atual. Esses se constituem em elementos que dificultam uma delimitação muito
estreita de suas peculiaridades.

Observa-se que a RCC constitui uma sociedade dentro da


sociedade e uma igreja dentro da Igreja. O que significa que
a RCC tende a suprir todas as necessidades de seus
componentes e se auto abastecer, almejando a ser a
totalidade referencial de quem a segue. De tal maneira que
esta totalidade referencial pode levar cada membro da RCC
a reclusão, isto é, ao dispor de todos serviços que a
estrutura lhe oferece, o integrante da RCC não precisa sair
do Movimento para a sociedade.(PAZ, 2005, p 49)

Sendo assim, ao considerar que o culto carismático envolve terço, oração,


veneração a Maria, cânticos agitados, leitura da bíblia, serm ões, curas divinas,
milagres e recebimento do Espírito Santo. A religião tornou-se cada vez mais
expressiva o número de pessoas que buscam no sobrenatural solução para suas
crises existenciais ou materiais demonstram uma nova característica do homem
moderno com o encadeamento religioso.

(...) identificar as crenças religiosas pelo fato de fazerem


referência a um
poder sobrenatural, a uma transcendência ou a uma
experiência que ultrapassa as fronteiras do entendimento
humano, essa abordagem “des-substantivada” da religi ão
não privilegia nenhum conteúdo particular do crê. (...) ela
parte de hipótese que, qualquer que seja a crença, ela pode
ser objeto de uma transformação religiosa, desde que
encontre sua legitimidade na invocação à autoridade de uma
tradição. ( HERVIEU-LÉGER, 2008, p.26)
E por outro lado a esse respeito, o autor Steil coloca que:

Esse movimento de “re-encantamento” do mundo, que se


observa novas formas de crer, ao mesmo tempo que
questiona as religiões transcendentes, que se fundam sobre
a dualidade e a disjunção entre as ordens da natureza e do
sobrenatural, também resgata elementos das tradições
religiosas fundadas sobre a sacralização do mundo e da
natureza. (STEIL, 2001.p. 124)

Sendo assim, os fiéis ao buscar as reuniões o sobrenatural como uma


forma de solução para aquela determinada situação que está sentindo naquele
momento de aflição. Portanto, o Movimento Carismático da cidade de Crato, para
os fiéis é uma benção de Deus, uma vez que, a Igreja Católica é rica em
movimentos.
Dessa forma, a comunidade foi criada para os fiéis na certeza que, A ovelha
perdida procurou e a desgarrada regatou, pois é um espaço para partilhar as
vivências espirituais como também receber e ou dar aconselhamentos, ou seja, as
pessoas procuram o momento de oraç ão para está com Deus e que ele possa
libertar de todo mal que estiver por sua volta, pois Deus procurou e regatou.
Enfim, para todos que desejam ardentemente resgatar almas para Cristo sendo
sinal do Amor de Deus no coração do mundo. Contudo, o encontro encera com a
seguinte frase,
Que Maria mãe do Amor cubra com seu manto os nossos Corações. Amém, e em
seguida da um beijo na mão do vizinho, que está do lado direito e esquerdo.
Ao investigar as práticas religiosas da Igreja Católica, percebe-se, sobretudo
em relação a esse cenário religioso carismático a ênfase que é dada na cura divina.
Uma vez que, para entender o que os jovens passam assimilar desse universo dito
religioso, por exemplo, o uso de meios de comunicação de massa e nas praticas do
exorcismo. Portanto, existe uma mobilização por parte da Renovação Carismática
Católica em recrutar os jovens para a vivência religiosa.
Dessa maneira, é interessante notar que a Renovação Carismática Católica
compõe a tentativa modernizadora do catolicismo e atua no âmbito familiar no
sentido de modernizar posturas e preceitos difundidos pela modernidade. Então, a
origem da RCC e seus principais fundamentos, pode-se entender sua maneira de
atuar na sociedade com relação à politica e as outras religiões.
Em suma, o catolicismo vive em um processo de aprofundamento de uma
pratica bastante preocupada com as discutas de fiéis no campo religioso em
detrimento de um modelo de evangelizaç ão preocupado com situação social do
individuo. Em suma, ao construir uma perspectiva inclusiva de distanciamento do
mundo e mesmo de intolerância, Renovação Carismática Católica produz também
um certo distanciamento da própria instituição católica.

Referências Bibliográficas
.

Capitulo de livro:

BERGER, Peter. Perspectivas sociológicas: Uma visão humanística. Petrópolis,


vozes, 1989.

Capitulo de livro:
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Abril.
1973.

Capitulo de livro:
HERVIEU-LÉGER, Danielle. O peregrino e o convertido. A religião em
movimento. Petrópolis: Vozes, 2008.

Monografia:

PAZ, Ana Cláudia M. Movimento de Renovação Carismática Católica em Natal:


Origem e expansão. 2005. Natal (UFRN); monografia apresentada ao Curso de
Ciências Sociais.

Capitulo de livro:

PIERUCCL, Antônio Flávio & PRANDI; Reginaldo. A Realidade Social das Religi ões
no Brasil. São Paulo: HUCITEC, 1996.

Artigo:
STEIL, Carlos Alberto. Pluralismo, modernidade religiosa e tradiç ão. Transformação
de campo religioso. In Ciências Sociais e religião. Porto Alegre, 2001.

Sites consultados
Disponível em: http://www.diariodonordeste.com.br acesso 23 de outubro de 2012.
Disponível em: http:// www.opovo.com.br acesso em 19 de março de 2013.
A TRAJETÓRIA E OS SABERES DE UMA XAMÃ NA AMAZÔNIA

Dannyel Teles de Castro1

Resumo:

Este trabalho consiste num mapeamento dos saberes construídos e transmitidos


por uma xamã, Roseana Gil, falecida em 2006, reconstruindo a sua trajetória entre
Belém e a ilha de Colares/PA, onde morou por muitos anos. Tem como objetivo
compreender a trajetória de vida desta xamã e os saberes acumulados por ela,
bem como identificar os processos de construção e transmissão desses saberes,
visando contribuir para a compreensão das práticas xamânicas na Amazônia. Trata-
se de uma pesquisa de campo, com abordagem qualitativa, utilizando na coleta de
dados a entrevista com familiares, amigos e seguidores. Entre as práticas
realizadas pela xamã Roseana Gil, encontram-se elementos de diversas tradições
religiosas, a exemplo da Umbanda e do movimento Nova Era, configurando sua
prática como um hibridismo religioso e evidenciando seus múltiplos saberes
utilizados em seu cotidiano num constante processo de bricolagem.

Palavras chave: Saberes, Xamanismo, Amazônia.

Abstract:

This work consists of a mapping of knowledge build and transmitted by a shaman,


Roseana Gil, died in 2006, rebuilding her career between Belém and the island of
Colares/PA, where she lived for many years. Has the objective to understand the
life trajectory of this shaman and the knowledge accumulated by her, also to
indentify the process of construction and transmission of this knowledge,
contributing to the understanding of those shamanic practices from the Amazon.
This is a field study with a qualitative approach, using in data collection interviews
with family, friends and followers. Within the practice performed by the shaman
Roseana Gil, we find elements of various religious traditions, such as Umbanda and
the New Age movement, setting up his practice as a religious hybridity and
highlighting its multiple knowledge used in their daily lives in a constant process of
bricolage.

Keywords: Knowledge, Shamanism, Amazon.

Introdução

Este artigo propõe analisar, de forma introdutória, a trajetória percorrida


por uma xamã na Amazônia, Roseana Gil, conhecida como “Tia Rose”. Sua
importância para a história da Amazônia, e do Pará em particular, foi identificada a
partir de minha vinculação a um projeto de pesquisa mais amplo, intitulado

1
Graduando em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Pará (UEPA) e bolsista de
Iniciação Científica pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
“Diálogos de saberes: processos educativos não escolares e práticas docentes”,
inserido no contexto do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica (PROCAD),
estabelecido entre a Universidade do Estado do Pará (UEPA) e a Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC – RS).

O projeto “Diálogo de Saberes” tem por objetivo analisar os diferentes


processos educativos vivenciados no cotidiano de sujeitos da Amazônia paraense e
as formas como tais processos são incorporados no cotidiano das escolas formais
de ensino. Para tanto, realiza uma cartografia de quatro modalidades de saberes:
poéticos, ambientais, lúdicos e religiosos, tendo como ponto de referência a
realidade sociocultural amazônica da Região do Salgado, especificamente, os
municípios de Vigia, São Caetano de Odivelas e Colares2.

No que diz respeito aos saberes religiosos de Colares, parte da pesquisa na


qual estou engajado, constatou-se que, praticamente, todas as esferas da vida são
perpassadas por valores sagrados, a começar pelo imaginário que circula a respeito
da ilha, frequentemente referida como lugar mágico, sagrado, diferente e com
muita energia. Constata-se também que a natureza de Colares sempre foi
admirada pelos sujeitos que chegam à ilha, de padres jesuítas, como João Daniel,
que esteve em Colares no século XVIII – quando esta ainda se chamava ilha de
Cabi –, a antropólogos contemporâneos como Gisela Villacorta, que em alguns anos
de pesquisa sobre as práticas neoxamânicas3 em Colares, constatou que a ilha é
vista como um portal de cura na Amazônia (2000).

A coleta de dados sobre os saberes religiosos de Colares levou ao


conhecimento sobre uma xamã, que viveu no município entre as décadas de 70 e
90 do século XX, muito conhecida por realizar sessões de cura, fato que atraia
várias pessoas para a ilha, de Belém e de outros estados do Brasil. Trata-se da Sra.
Roseana Neves Gil, ou Rose, como é referida pelas pessoas que a conheceram. A
trajetória dessa xamã em Colares foi marcada por um turismo religioso no qual
diferentes pessoas iam até o seu sítio em busca de cura e de comunhão com a
natureza

Esta pesquisa surgiu, então, da constatação da importância de Rose para a


cultura e história de Colares, onde é possível observar entre a população local que
sua memória continua bastante viva. O estudo se reveste também de importância

2
A microregião do Salgado, localizada na mesoregião do Nordeste paraense, corresponde a uma
extensa área em que predomina, entre as populações tradicionais, a atividade de artesanato, associada à
pesca artesanal e à cata do caranguejo (Fonte: http://www.icmbio.gov.br/portal/o-que-
fazemos/populacoes-tradicionais/producao-e-uso-sustentavel/uso-sustentavel-em-ucs/251-regiao-do-
salgado-paraense.html - acessado em 23/03/2013).
3
Para maior conhecimento, conferir Villacorta (2000; 2011).
pelo fato de que esta xamã atraiu diversos seguidores, muitos dos quais, guardadas
suas especificidades, se dizem discípulos e seguidores dos seus ensinamentos até
os dias de hoje. Neste artigo, busco, portanto, apresentar os resultados parciais
acerca da trajetória de vida desta xamã, bem como os seus saberes.

Do ponto de vista metodológico, esta é uma pesquisa de campo e


bibliográfica pautada em uma abordagem qualitativa. De acordo com Godoy (1995,
p.62) as características essenciais capazes de identificar o tipo de pesquisa com
esta abordagem são: 1) o ambiente natural como fonte direta de dados e o
pesquisador como instrumento fundamental; 2) o caráter descritivo; 3) o
significado que as pessoas dão às coisas e à sua vida como preocupação do
investigador; 4) enfoque indutivo.

Desta forma, no levantamento bibliográfico deste estudo eu busquei


inspiração em autores com base em categorias como: história de vida, e, neste
caso, história oral, sendo Portelli (1997) o teórico mais consultado; espiritualidade,
e, mais especificamente, xamanismo e os novos movimentos religiosos,
considerando que nas práticas xamânicas de Rose é identificado certo hibridismo
religioso, desta forma, o amparo teórico vem de autores como Vitebsky (1995),
Maués (1990, 2008), Villacorta (2000, 2011), Hervieu-Léger (2008) e Magnani
(1999, 2000, 2005). Também é minha intenção dialogar com autores que
trabalham as temáticas apresentadas a partir de uma realidade amazônica.

O segundo momento, ainda em processo, consiste na pesquisa de campo,


dos tipos história oral e etnográfica, onde estão sendo coletados os dados por meio
de entrevistas semi-estruturadas, registros audiovisuais e anotações no diário de
campo. As entrevistas são do tipo narrativo, que também visa buscar a história de
vida dos entrevistados (pesquisa biográfica). Os narradores da pesquisa são
pessoas que acompanharam a trajetória de Rose pela Amazônia, selecionados entre
familiares, amigos, seguidores e pessoas que foram curadas por ela.

A configuração atual da pesquisa de campo consistiu em três momentos de


viagens até Colares, com duração de dois a três dias na ilha. Nessas ocasiões foi
possível conhecer o sítio “Estrela do Oriente”, onde viveu Rose, bem como
conversar com nativos da ilha que conviveram com ela.

A evidência oral, transformando os “objetos” de estudo em “sujeitos”,


somente começou a ser trabalhada na década de 40 do século XX. O historiador
italiano Alessandro Portelli (1997) defende a ideia de que o ponto principal da
História Oral é a subjetividade dos narradores. Para o autor não interessa o resgate
da fala dos dominadores ou dominados, o ineditismo, ou mesmo o preenchimento
de lacunas, mas sim a recuperação do vivido, segundo a concepção de quem o
viveu. De acordo com Portelli:

A História Oral é uma ciência e arte do indivíduo. Embora


diga respeito – assim como a Sociologia e a Antropologia – a
padrões culturais, estruturas sociais e processos históricos,
visa aprofundá-los em essência, por meio de conversas com
pessoas sobre a experiência e a memória individuais e ainda
por meio do impacto que elas tiveram na vida de cada uma.
Portanto, apesar de o trabalho de campo ser importante para
todas as ciências sociais, a História Oral é, por definição,
impossível sem ele (PORTELLI, 1997, pp.13-49).

Desta forma, a pesquisa por meio da História Oral requer entrevistas e


registros através de fotos e vídeos, por meio de uma ampla participação em campo.
Esta modalidade da história possui um subgênero, intitulado micro-história, que
consiste no recorte temático sobre um assunto específico. A presente pesquisa
baseia-se nesta modalidade, tendo em vista que focaliza e mapeia um tema
específico na vida de Rose, os seus saberes espirituais.

Considerações sobre a Ilha de Colares/PA

Para um melhor entendimento da trajetória de Rose, é necessário que se


faça uma análise acerca da Ilha de Colares/PA, local onde morou durante cerca de
20 anos e onde desenvolveu seus trabalhos de cura que a tornaram personagem
singular na Amazônia.

O município de Colares desperta a curiosidade de várias pessoas que


tomam conhecimento de suas histórias místicas e do imaginário que permeia o
cotidiano de seus habitantes. É possível elencar alguns fatores responsáveis por
este status de Colares: a herança indígena da ilha, evidenciada pela forte presença
de influências xamânicas entre as práticas religiosas de sua população; a vasta
beleza natural que pode ser encontrada no seu território, com rios, igarapés, praias
e florestas; as diversas histórias que compõem o imaginário local, entre as quais a
da existência de feiticeiras na ilha, as chamadas matintapereras4; e, em especial,

4
Villacorta (2000) observa que “esta feiticeira da Amazônia é geralmente descrita enquanto uma
mulher que possui um pássaro homônimo, seu ‘xerimbabo’, que usa o silêncio da noite como horário
principal para realizar seus ‘malefícios’, sendo identificada a sua presença por um longo assobio”.
os relatos de ataques extraterrestres5 que, a partir da década de 1970, têm
tornado essa ilha internacionalmente conhecida.

Esses são alguns dos principais motivos pelos quais a ilha de Colares é
bastante procurada tanto por pessoas oriundas das imediações do Estado do Pará
quanto de outras localidades do país, conforme aponta Villacorta (2011, p.36). No
entanto, o fascínio de pessoas pela ilha não é algo somente existente na
atualidade, mas remonta à própria história da colonização da Amazônia. Os
primeiros relatos de missões jesuíticas na Amazônia revelam que os padres
missionários que estiveram na ilha de Colares ficaram encantados com a sua
beleza.

Estes primeiros relatos de padres jesuítas na ilha de Colares revelam que


inicialmente o município era chamado de “Ilha do Sol”. No entanto, não há como
afirmar a origem do nome “Ilha do Sol” atribuído a Colares em muitos dos relatos
dos jesuítas. Alguns estudiosos levantam a possibilidade de ser devido ao pôr do
Sol observado na ilha, que teria algo de diferente.

Posteriormente, como observa o padre Serafim Leite (1943), a cidade


passou a ser chamada de “Ilha dos Tupinambás” ou “Vila dos Tupinambás” devido a
etnia de seus nativos, identificada por Tupinambá. Sobre os índios Tupinambás, o
também jesuíta João Felippe Betendorf observa:

São os Tupinambás gente briosa na guerra, que bem


mostraram os daquela ilha, que sendo menos que as outras
nações do rio, com tudo tiveram guerras sujeitando e
consumindo nações inteiras e obrigando outras a buscar
terras estranhas. Disseram que para banda do Sul havia
outras nações, uma de humanos pequenichinhos chamados
Guaiacys, e outra de gentio que tem os pés as avessas, de
sorte que, quem os não conhecendo quisesse seguir seu
rastro caminharia sempre pelo contrário deles, chamam-se
Mataieces, das achas de pedra, que continuamente lavram
para cortar árvores, e são tributários dos Tupinambás
(BETENDORF, 1990, p.57).

5
O fenômeno ficou conhecido como “chupa-chupa” e faz referência às aparições de luzes que
chupavam o sangue de alguns colarenses, conforme aponta Silva (2012, p.24). Na década de 1970, a
Força Aérea Nacional (FAB), através do Comando Regional Aéreo de Belém, esteve no município de
Colares realizando uma operação que ficou conhecida como Prato, e foi montada para investigar o
fenômeno. A partir deste evento, a ilha de Colares passou a ser o ponto de busca de vários ufologistas
oriundos de diferentes localidades do país. Posteriormente, a prefeitura do município passou a utilizar a
figura do extraterrestre para atrair turistas, espalhando-a por vários pontos locais, inclusive em uma
imagem localizada na entrada da cidade, onde o típico “E.T.” (isto é, uma criatura verde com cabeça e
olhos grandes) está dando boas-vindas a quem chega à ilha, como pude constatar em minha primeira
pesquisa de campo na ilha de Colares, que se deu em dezembro de 2012.
A forte herança indígena deixada pelos índios Tupinambás pode ser
considerada como o principal fator responsável pela presença de práticas
xamânicas na ilha de Colares na atualidade. Em pesquisa de campo na cidade, tive
a oportunidade de entrevistar Tereza Miranda, que já foi Secretária de Cultura e
Turismo do município. Ela afirma que todos os nativos da ilha estão de alguma
forma envolvidos com a chamada pajelança cabocla6. Para Tereza:

Quase todos os nativos têm muito a ver com a pajelança,


porque tudo deles, os remédios, a cura, as rezas - eles fazem
muita reza - eles vão pegar galinhos de planta que é pra
curar, pra quebranto, pra limpar mau olhado. Tudo pra ele tá
ligado com a cura que vem através da natureza que é o
xamanismo. O xamanismo ainda é hoje em dia aqui na ilha o
mais forte. Mesmo sendo católico, sendo que você se batiza,
tem toda aquela religião de frequentar a igreja, como tem
agora os evangélicos também, mas mesmo os evangélicos e
os católicos eles são do xamanismo, eles fazem trabalhos de
cura em casa, porque vem da raiz dele, do avô, do bisavô
que ensinou (entrevista).

A própria Tereza, que se diz descendente dos índios Tupinambás, leva um


estilo de vida em comunhão com a natureza. Ela afirma ser conhecedora das
plantas capazes de curar, além de realizar rituais com a beberagem indígena
ayahuasca em seu sítio em Colares.

Nos anos de 1970, em provável sintonia com o movimento contracultural


existente no mundo, o imaginário sobre Colares como lugar místico, diferente foi
motivo de atração de diversas pessoas que para lá se destinaram em busca daquilo
que, no seu passado colonial, os índios tupi-guarani chamavam de “a terra sem
mal”, lugar onde “as plantas nascem por si próprias, corre mel em abundância e
todos os que o alcança, usufruem a felicidade” (MÉTRAUX, 1979, p. 177). De
acordo com Villacorta (2000, p.3), eram esotéricos e ufologistas que, além da
busca por maior contato com o meio natural, chegavam a Colares inspirados pelos
constantes relatos sobre a presença de extraterrestres na ilha. Neste contexto,
encontrava-se Roseana Gil, que largou a vida que levava em Belém e foi viver em
um sítio na ilha de Colares, no início da década de 1970.

6
A pajelança cabocla é identificada como uma forma de xamanismo na Amazônia por estudiosos
como Galvão, Maués e Villacorta (cf. GALVÃO, 1955; MAUÉS, 1990; VILLACORTA, 2011). Para
Maués “o pajé rural, parcialmente herdeiro de uma prática de cura dos antigos pajés tupis, sincretizada
com o catolicismo e as religiões de matriz africana, bem como com laivos de espiritismo kardecista, pode
ser importante personagem da medicina popular de povoados rurais ou mesmo de cidades amazônicas
onde essa prática é costumeiramente exercida” (MAUÉS, 2008, p.5-6).
Roseana Gil e o nomadismo religioso

Rose viveu em Belém até meados da década de 1970, quando largou a


metrópole amazônica e foi viver em uma ilha pela qual havia se encantado,
Colares. De acordo com os narradores entrevistados7, Rose trabalhava como
secretária na Assembléia Legislativa de Belém, quando, ao conhecer a ilha de
Colares através de um amigo, decidiu vender tudo o que tinha para comprar um
sítio na ilha8. No entanto, ela retornou à Belém na década de 1990, onde viveu
seus últimos anos, tendo falecido em 2006 em função de problemas respiratórios.

Ao ir embora para Colares, Rose abandonou sem emprego em Belém e


passou a viver de doações, atuando como curadora em seu sítio na ilha. Entre as
práticas religiosas realizadas por ela encontram-se elementos de diversas vertentes
religiosas como, por exemplo, a Umbanda e o movimento da Grande Fraternidade
Branca. Em vista disso, é possível notar certo hibridismo religioso e cultural, ou, em
termos antropológicos, uma bricolagem.

O antropólogo Lévi-Strauss afirma que bricolagem é o termo que se aplica


ao fato de operar com materiais fragmentários já elaborados, isto é, em termos
religiosos, o processo de unir saberes oriundos de diversos movimentos em seu
cotidiano religioso (LÉVI-STRAUSS, 1989, p.33).

A antropóloga Gisela Villacorta acompanhou boa parte da trajetória de


Rose em pesquisas de campo que culminaram em sua dissertação de mestrado e
tese de doutorado. Nesta última, Villacorta afirma que os métodos de cura
utilizados por Rose eram o resultado da junção de diversos elementos de diferentes
sistemas mágico-religiosos. No entanto, a autora observa que “o xamanismo está,
prioritariamente, no centro desta bricolagem, pois, segundo Rose, o fim último de
sua religião, que denominava de ‘universal’, é a cura” (VILLACORTA, 2011, p.66). A
própria Rose acreditava que seu dom xamanístico vinha de uma vida passada, em
que ela teria sido uma índia Tupinambá filha do cacique de sua tribo, chamado
Tabajara.

Em entrevista concedida a Villacorta (2011, p.68) durante sua pesquisa de


campo na ilha de Colares nos anos 90, Rose contou um pouco mais sobre a origem
de seu dom xamanístico:

7
Até o momento, três pessoas foram formalmente entrevistadas, são elas Tereza Miranda, Zé Caeté e
Benedita Ana. No entanto, estou considerando também as informações que obtive sobre a Rose através de
conversas informais que tive com moradores de Colares, bem como com pessoas da cidade de Belém que
a conheceram.
8
Esta parte da trajetória de Rose será melhor analisada em um outro momento deste artigo.
Desde os sete anos de idade eu trabalho com a linha da
encantaria. Eu sempre fui uma criança diferente das outras,
eu chorei no ventre da minha mãe, e aí com sete anos uma
amiga da minha mãe foi quem me orientou sobre os meus
dons de cura. Como você sabe, eu sou de Belém, eu tinha
vinte e seis anos quando isso aconteceu, eu trabalhava como
funcionária pública e tinha uma boa remuneração, eu
conhecia Colares já há algum tempo, através de um amigo
que tinha um sítio aqui. No caminho pra chegar no sítio do
meu amigo, tinha um outro sítio, só estar nesse caminho eu
já sentia alguma coisa diferente, a mata, os sons dos
pássaros, eu sentia a presença de todas as energias. Mas
quando eu passava em frente desse sítio, ele me chamava a
atenção pela energia forte que eu sentia, era um aperto no
coração, uma saudade, uma lembrança. Foi quando numa
das vezes que eu ia passando na frente desse sítio, eu vi
numa árvore a primeira letra do meu nome, entendi logo a
mensagem. No local daquele sítio, havia sido habitado pela
tribo Tupinambá. Voltei pra Belém com a certeza de que eu
ia comprar esse sítio. Conheci a dona do sítio, nos tornamos
amigas, um belo dia ela me diz que quer vender o sítio.
Voltei pra Belém, vendi tudo o que eu tinha, juntei minhas
economias, e comprei o sítio. Foi quando eu vim morar em
Colares. Na época as pessoas não entenderam toda essa
mudança na minha vida, mas eu sabia, são vinte anos
morando em Colares, trabalhando com a cura, ajudando o
meu povo. As pessoas aqui são descendentes diretos dos
índios Tupinambás. Eu estou aqui para resgatar as minhas
raízes indígenas, conscientizando as pessoas para a
preservação da natureza.

O fato de ter “chorado no ventre de sua mãe” é um indício da identificação


de Rose como uma pajé de nascença. Maués (1990) identifica o pajé de nascença
como aquele que nasce com o dom da pajelança, geralmente herdado pela família.
Ou seja, trata-se de um sujeito capaz de curar a partir do auxílio de entidades da
natureza, os encantados, ou caruanas.

Para Maués & Villacorta (2004, p.17), a figura do encantado faz parte da
crença fundamental da pajelança cabocla amazônica. De acordo com estes autores:

[...] A crença nos encantados se refere a seres que são


considerados normalmente invisíveis às pessoas comuns e
que habitam “no fundo”, isto é, numa região abaixo da
superfície terrestre, subterrânea ou subaquática, conhecida
como o “encante” (...). As ideias sobre os encantados
claramente derivam de lendas e concepções de origem
europeia, que ainda hoje persistem no repertório ocidental
das histórias infantis e que têm inspirado várias obras de
arte em diversos campos. Mas foram também influenciadas
por concepções de origem indígena, de lugares situados “no
fundo”, ou abaixo da superfície terrestre, e provavelmente
também por noções sobre entidades de origem africana,
como os orixás, que não se confundem com os espíritos dos
mortos.

Em vista destas considerações, é possível afirmar que as primeiras


energias mobilizadas por Rose em seus trabalhos de cura eram as forças da
natureza, os encantados, o que permite pensar em uma identidade original
xamânica. No entanto, Tereza Miranda afirma que sua primeira formação espiritual
foi na Umbanda, religião na qual Rose se criou e em dado momento de sua vida,
segundo Tereza, se dedicou a estudar. A relação de Rose com a Umbanda está
sendo melhor investigada.

No entanto, a partir do contato com diferentes filosofias espiritualistas,


Rose passou a mesclar diversas práticas em seu sistema de cura, utilizando desta
forma não apenas as energias da natureza, os encantados da pajelança, mas
também os 7 raios da Umbanda, cristais, alinhamento dos chakras, cromoterapia,
etc.

Para Daniele Hervieu-Leger (1999, p.29 a 60), o religioso na modernidade


seria o errante, o migrante, o andarilho. Sendo assim, o sujeito em questão passa a
fazer experimentos com diversos saberes religiosos, a partir dos quais ele extrairá
os conhecimentos e práticas que mais se identificar para utilizar em seu cotidiano.
Em outras palavras, o sujeito religioso na modernidade é uma bricolagem
ambulante. É possível identificar que Rose está inserida no contexto descrito por
Daniele Hervieu-Leger, pois conforme Villacorta afirma:

Rose ressalta que “cada um tem que saber quais os melhores


caminhos para trilhar”, pois “cada um sabe de si”. Dentre as
conversas gravadas que tive com Rose, era sempre
enfatizada por ela a autonomia que “cada um tem” para
“vivenciar” suas experiências religiosas, afirmação esta que
também se aplica para a experiência da vida como um todo,
pois “as coisas não estão separadas”, esta última ideia ela
denominava como uma “postura holística do mundo”, ou
seja, a não separação das coisas, mas a relação entre elas
(VILLACORTA, 2011, p.198).

O resultado desse processo de ressignificação da religião, onde a


instituição religiosa deixa de exercer o papel fundamental e a experiência individual
com o sagrado torna-se mais importante, é a ascensão de movimentos
espiritualistas que mesclam várias filosofias e rituais oriundos de antigas práticas
religiosas ligadas à natureza.
Desta forma, é possível pensar em Rose como uma xamã urbana, a partir
das considerações feitas acerca de sua herança indígena e do constante processo
de bricolagem presente em suas práticas. Magnani (2005) considera que o
xamanismo contemporâneo, isto é, aquele que é praticado nas grandes metrópoles,
está inserido nesse contexto religioso, que ele também denomina como neo-
esoterismo. Para o autor:

Geralmente visto sob o prisma de sua fragmentação e de


uma suposta ausência de princípios ordenadores, esse
fenômeno já foi considerado como uma espécie de “religião
pós-moderna”. Desprovido de uma hierarquia centralizadora,
de uma doutrina apresentada como revelada e um corpo
unificado de rituais, aparecia como uma imensa bricolagem,
resultado da livre escolha e junção (regida apenas pela
criatividade de cada participante e encerrada nos limites de
sua individualidade) de elementos tirados, aleatoriamente,
das mais diversas tradições e filosofias (MAGNANI, 2005,
p.220).

Ao citar o fenômeno da “religião pós-moderna”, Magnani possibilita um


diálogo com Stuart Hall, sendo que este último coloca a religião como fundamental
para a construção da identidade na pós modernidade. Hall (1992) é defensor da
tese de que o sujeito pós-moderno é híbrido, no que diz respeito a sua cultura,
etnia e religião. Dito de outra forma, o religioso contemporâneo é um nômade que
passeia entre movimentos religiosos acumulando diversos saberes, utilizando todos
esses saberes em seu cotidiano num constante processo de ressignificação. É neste
contexto que a xamã Rose encontrava-se inserida, como uma portadora de
múltiplos saberes.

Os processos de construção e transmissão dos saberes de Roseana Gil

O trânsito de Rose por meio de diversas tradições religiosas – o


xamanismo, a Umbanda, o esoterismo, para citar algumas –, permite inseri-la no
contexto de um nomadismo religioso que lhe possibilitou, por sua vez, o acúmulo
de uma diversidade de saberes que eram empregados em suas práticas do
cotidiano.

As práticas de cura de Rose refletiam seus múltiplos saberes, isto é, a


xamã curava seus pacientes através de métodos oriundos da pajelança (pena,
maracá e a ajuda dos encantados), os 7 raios da Umbanda, cristais, alinhamento
dos chakras, cromoterapia, etc. Isto foi possível porque, antes de mais nada, a
Rose era uma esotérica, como afirma Zé Caeté. Através de influências diversas, ela
criou seu próprio sistema de crenças e de cura.

De acordo com Zé Caeté9 a espiritualidade de Rose era inspirada em suas


diversas leituras, pois de acordo com ele “a Rose era uma pessoa muito culta e de
uma cultura do oculto”, isto é, ela costumava ler sobre Umbanda, Teosofia, a
Grande Fraternidade Branca, filosofia oriental, etc. Dentre os autores que
costumava ler estão Helena P. Blavatsky, Jiddu Krishnamurti, Paramahansa
Yogananda, além de diversas informações sobre os Mestres Ascencionados da
Grande Fraternidade Branca. Desta forma, a teia de saberes de Rose foi sendo
construída.

Pode-se afirmar que durante sua curta permanência neste plano material –
de 1953 a 2006 – Rose transmitiu seus saberes a diversas pessoas. Tanto seu
estilo de vida na ilha de Colares, pautado numa ética anticapitalista e
anticonsumista e na solidariedade com os doentes e necessitados, bem como os
trabalhos espirituais que realizava, atraíram diversas pessoas ao seu sítio em
Colares.

Zé Caeté conta que algumas das pessoas que frequentaram o sítio de


Rose tornaram-se adeptas de certas religiões como, por exemplo, o Santo Daime,
de forte marca xamânica. O próprio Zé Caeté e sua esposa, Cristina, que também
foi amiga de Rose, são responsáveis pela condução de um grupo espiritualista que
trabalha com a Grande Fraternidade Branca e os Mestres Ascencionados, o Circulo
Esotérico Estrela do Oriente, originalmente fundado por Rose em meados da década
de 1990.

É importante perceber que, além da bricolagem que realizava, Rose se


destacava por sua humanidade, sendo que ela desenvolvia atividades filantrópicas
na ilha de Colares e não costumava cobrar por suas sessões de cura. Todos eram
bem vindos em seu sítio e ela não negava ajuda a quem precisasse. Sobre o que
aprendeu com Rose, Zé Caeté destaca que:

Antes de mais nada ela me ensinou a ter paciência, a ter


humildade, a procurar compreender as pessoas, a procurar,
apesar de falar muito, aprender a ouvir, sabe e compreender
além do ser... Além do ser porque muitas vezes é preciso tu

9
Zé Caeté era amigo de Rose. Além de poeta, é corretor de seguros e conheceu Rose em meados da
década de 1980. Após seu falecimento, Caeté tem se dedicado a direcionar o grupo criado por ela, o
Circulo Esotérico Estrela do Oriente, que trabalha a espiritualidade a partir dos ensinamentos da Grande
Fraternidade Branca.
pensares como uma pessoa tá vivendo pra ti poder
realmente procurar compreendê-la. Até no que diz respeito
às pessoas que se agitam, porque ela tá mal humorada,
alguma coisa, alguma energia tá acontecendo com ela. Em si
o ser humano é perfeito, é maravilhoso, é lindo (entrevista).

Considerações finais

Procurei evidenciar neste artigo a trajetória e os saberes construídos e


transmitidos por uma xamã, Roseana Gil, ou tia Rose, como ficou conhecida na ilha
de Colares/PA. Rose é um exemplo do sujeito religioso na modernidade, isto é, uma
bricolagem ambulante. Seus saberes e práticas de cura foram construídos a partir
de seu contato com várias vertentes espiritualistas, e posteriormente transmitidos
às pessoas que vivenciavam os trabalhos espirituais realizados por ela na ilha. Cabe
ressaltar que Rose teve muitos seguidores entre os sujeitos que frequentavam o
seu sítio em Colares e, sob diversos ângulos, estes seguidores perpetuam e
atualizam os saberes e práticas da xamã.

Caracterizar o trabalho de Rose como xamanismo pode parecer estranho


ao leitor que acompanhou as considerações feitas aqui sobre as práticas híbridas
dela. Porém, se o leitor considerar que o conceito de xamanismo é extremamente
moldável, tanto geograficamente quanto culturalmente, poderá concordar que Rose
praticava a arte de curar, assim como os xamãs, em suas diferentes culturas e
locais, sempre o fizeram. Conforme afirma o antropólogo Piers Vitebsky (1995,
p.6), a palavra xamã tem sido usada com uma certa liberdade em diversos lugares
do mundo, com o significado de curandeiro, feiticeiro, mago e bruxo
particularmente nos locais onde estas personagens têm trabalhado fora da corrente
das religiões institucionalizadas.

Desta forma é possível concluir que Rose era uma xamã, com fortes traços
de modernidade e no contexto daquilo que alguns estudiosos denominam de
neoxamanismo, mas ainda assim uma xamã. Esta nova forma de interpretar o
xamanismo, a partir do ponto de vista pós-moderno de Stuart Hall, tem sido
encontrada nas grandes metrópoles brasileiras desde a década de 1990, a partir de
estudos antropológicos acerca do neo-esoterismo. No entanto, Rose se destacou
por ter sido uma religiosa pós-moderna que se diferenciava dos xamãs urbanos
encontrados nestas metrópoles, isto é, ela mesclava elementos deste circuito neo-
esotérico com práticas culturais de sua região, como a pajelança cabocla
amazônica, sendo desta forma um sujeito singular.
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CRENÇAS E RITOS DO POVO POTIGUARA: DIMENSÕES DA ESPIRITUALIDADE

Joselma Bianca Silva de Souza Mendonça¹


Almir Batista da Silva²
José Mateus do Nascimento³

Resumo: O presente artigo constitui parte de minha dissertação de mestrado em


curso, intitulada “A Espiritualidade Indígena Potiguara e a Espiritualidade Monástica
Carmelitana da Paraíba”. O mesmo tem, por objetivo, apresentar alguns aspectos da
espiritualidade indígena Potiguara, localizada na Aldeia São Francisco, no município de
Baía da Traíção, estado da Paraíba. Falar da dimensão espiritual do índio Potiguara
não é tão fácil; pois constitui um universo subjetivo e bastante complexo que envolve
a parte pesquisada.Iremos tratar do que é manifesto, ou seja, notório nas atividades
espirituais realizadas em comum no interior da referida aldeia. O mito e o rito
constituem o cerne dessa espiritualidade e estão inseridos nesse contexto. As ações
cotidianas ali existentes, juntamente com os ritmos da natureza com sua fauna e
flora, impulsionam a vida do povo Potiguara e assumem dimensão de espiritualidade
dentro da tradição indígena .

Palavras-chave: crenças. ritos. espiritualidade Potiguara.

ABSTRACT

Abstract: This article is part of my ongoing dissertation entitled "Spirituality and


Indigenous Potiguara Carmelite Monastic Spirituality of Paraiba." And aims to present
some aspects of Indian spirituality Potiguara, located in the Village San Francisco, the
city of Bay of treason, state of Paraíba. Speaking of the spiritual dimension of the
Indian Potiguara is not so easy, because it is a very complex and subjective universe
that involves the search. What we will treat only is what is manifest and notorious in
spiritual activities held in common within said village. The myth and ritual are at the
heart of this spirituality and are inserted in this context. The daily actions therein,
along with the rhythms of vegetation, boost people's lives and take Potiguara
dimension of spirituality within the Indian tradition.

Keywords: belief, ritual, spirituality, Indian Potiguara.


¹ Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências das religiões (PPGCR), da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
E-mail: biancabt24@hotmail.com
² Mestre do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões (PPGCR) – UFPB.
E-mail: almirtupi@gmail.com
³ Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões (PPGCR)
– UFPB
E-mail: zenmateus@gmail.com
1.Introdução

Este artigo é parte da escrita de minha dissertação de mestrado em


andamento, intitulada: “A Espiritualidade Indígena Potiguara e a Espiritualidade
Monástica Carmelitana da Paraíba”, a ser defendida no Programa de Pós-Graduação
em Ciências das Religiões da UFPB. O objetivo do trabalho é investigar as dimensões
da espiritualidade que norteiam o universo Indígena Potiguara e o universo Monástico
Carmelitano. Não trataremos aqui, de estudar as duas dimensões em sua totalidade.
Convém salientar portanto, que o recorte deste trabalho, apenas está direcionado à
primeira temática, à qual diz respeito à espiritualidade indígena Potiguara, possuindo
como foco, a Aldeia São Francisco, localizada no município de Baía da Traíção, estado
da Paraíba.
Neste sentido, a pesquisa em curso, visa desde então, analisar aspectos dessa
espiritualidade, por meio das crenças e dos ritos. Na oportunidade, nos utilizaremos
de um estudo etnográfico, acompanhado de referências sobre o assunto a ser tratado
a respeito da temática em questão. Porém, quando se fizer necessário, utilizaremos
outras obras complementares.
A dimensão sagrada está impregnada na natureza, é essência presente no
indivíduo e, portanto, mito e rito não se encontram fora dessa esfera. Um olhar dentro
de si mesmo em busca de várias respostas, um convite para lutar e viver fora do caos.
O mito pode ser uma história, algo que se relata numa narrativa, a qual tem
capacidade de articular essa memória vivenciada, dando vida, abrindo perspectivas
para o futuro. Por meio do ritual, essa narrativa é materializada e perpetuada,
atravessando gerações.
Diversas culturas possuem suas especificidades, divididas entre si por meio de
costumes, modos de viver e conviver. A esse respeito, Durkheim (1996, p.19) afirma
que “ Todas as crenças religiosas, sejam simples ou complexas, apresentam um
mesmo caráter comum: supõem uma classificação de coisas, reais ou ideais.” As
crenças e os ritos portanto, fazem parte desse universo de valores que constituem
uma determinada espiritualidade. Para Durkheim (1996, p.19):

As crenças “São estados de opinião, consistem em


representações; e os ritos são modos de ação determinados[...]
As crenças e os ritos [...], são representações ou sistemas de
representações que exprimem a natureza das coisas sagradas,
as virtudes e os poderes que lhes são atribuídos, sua história,
suas relações mútuas [...] (DURKHEIM, 1996, P.19)

Entende-se pois, que o mito faz parte do universo subjetivo, o mundo que se
percebe; no entanto, necessita ser encarnado, e essa encarnação é manifestada por
meio da ação ritual.

2. Povo Potiguara

Potiguara significa “comedor de camarão”. Conhecidos desde os primórdios da


colonização, esse povo pertencia ao grupo tupi, nome dado à língua nativa, a qual
falavam os tupinambás e outras etnias. Sobre essa afirmação, afirma Moonem (
1989), “[...] nos documentos são: potigoar, potiuara, pitiguara, pitigoar, petigoar.”
Constituída de 32 aldeias, a nação Potiguara vive entre as imediações dos
municípios de Rio Tinto, Marcação e Baía da Traíção. Contudo,o foco da pesquisa em
andamento está voltado para São Francisco, Aldeia de maior relevância cultural. É
também lá onde as principais decisões relativas à etnia são tomadas. Por essa razão,
é considerada por todos como “Aldeia Mãe”, merecendo atenção especial .
A trajetória do povo Potiguara é marcada, no passado, pela imposição da cultura
europeia e escravização. As ações jesuíticas, impostas pela coroa portuguesa, durante
a expansão marítima do século XVI, muito contribuíram para o processo de
cristianização dos povos colonizados, sobretudo, dos indígenas. De tal forma que,
“Com a colonização, a identidade e a cultura dos Potiguara foram ameaçadas, visto
que, a violenta aculturação, tornou-se um plano da Ordem dos Jesuítas.”
(NASCIMENTO E SOUSA, 2012, P. 63). Nesse contexto, por meio da catequese,
elementos católicos, foram introduzidos no meio da etnia, provocando reflexos até os
dias atuais em suas crenças e em seus ritos.
Os indígenas travam no presente, uma verdadeira luta para manter viva suas
tradições. Para isso, contam também com o apoio da FUNAI (Fundação Nacional de
Assistência ao Índio) e de outros órgãos governamentais como OPIP (Organização dos
Professores Indígenas da Paraíba), SESAI (Sistema de Saúde Indígena), na busca por
direitos sociais. O processo de emergência étnica e ressignificação da cultura dos
referidos indígenas, ocorre por meio de crenças e práticas , que os mesmos
consideram importantes. Os anciãos que residem na Aldeia, são considerados
guardiões da tradição daquele povo. Também conhecidos como os “troncos velhos”,
eles são responsáveis pela transmissão do conhecimento oral e pelas narrativas
mitológicas entre os indígenas. Dessa maneira, muitos dos costumes são preservados,
até os dias atuais.

3. Crenças do Potiguara: O Mito, como realidade manifesta

Cada nação possui um conjunto de tradições populares marcadas pelas


geografias fatuais e míticas, o que torna muitas vezes difícil de compreender as
formas de manifestar essas crenças. Explicar a natureza do mito é lidar com
subjetividades, uma vez que o mito está em cada indivíduo, influenciando no
comportamento, de acordo com o meio em que está inserido. Diante dessa realidade,
“ Seria difícil uma definição de mito que fosse aceita por todos os eruditos e, ao
mesmo tempo, acessível aos não especialistas”. (ELIADE, 2007, p.11), Pois, na
relação do homem com os mitos, ocorre sentimento da imaginação, somado às
necessidades humanas fundamentais. E, em meio ao caos, o mito pode ser a força
que arrebata o homem dos abismos espirituais, transmitindo esperança e segurança.
A saber que, “Uma coisa que se revela nos mitos é que, do fundo do abismo, desponta
a voz da salvação”. (CAMPBELL,1990 p50).
O mito não é coisa do passado, ele está sempre existindo. O mito para Eliade (
1992, p.99), é:
[...] a história do que se passou in illo tempore, a narração
daquilo que os deuses ou os seres divinos fizeram no começo do
tempo [...] O mito proclama a aparição de uma nova “situação”
cósmica ou de um acontecimento primordial. Portanto, é
sempre a narração de uma criação [...] é por isso que o
mito[...] só fala das realidades, do que realmente aconteceu, do
que se manifestou plenamente. (ELIADE, 1992, p. 99)

O mito portanto, é uma realidade, crença que está impregnada na natureza


humana e, por assim dizer, essência manifesta no meio Potiguara. De modo que a
crença, “Constitui o germe inicial da vida religiosa”. (Durkheim,,1996, p.3). É na
busca contínua de algo que lhe faça sentido, que o homem consegue driblar a
desordem, o caos que o rodeia e assim, alcançar por meio de uma contínua
transcendência, o verdadeiro “sentido de sua existência”. É nessa perspectiva que a
espiritualidade floresce no ambiente indígena, não dependendo de construções ou
templos ornamentados. A esse respeito, (NASCIMENTO, FARIAS E BARCELLOS, 2012,
p.42), reforçam em seus escritos, quando afirmam que,

A sociedade Potiguara preserva seus mitos através do rito


cultuado em diversos espaços sagrados [...] Os Potiguara
veneram a terra, as águas, as matas, acreditando que nesses
elementos se manifestam o sagrado. Para eles estabelecer
relações com o sagrado não é apenas estabelecer um elo com
os deuses, mas receber energias para uma vida mais forte e
pura. É vivenciar hierofania. É preenchimento do ser.
(NASCIMENTO, FARIAS E BARCELLOS, 2012, P.42)

No plano do sagrado, percebe-se muito forte entre os indígenas, uma


multiplicidade de crenças cristãs. Muito embora sejam constituídos de uma etnia, os
Potiguara possuem três dimensões religiosas, “englobando vários rituais que estão
presentes, cada um com sua liturgia e sua cosmologia, advindos da religião indígena
católica, indígena tradicional, indígena evangélica e indígena de matriz africana.”
(SILVA, 2011). A natureza, em seus diversos aspectos e elementos, como: Terra,
água, Fogo e Ar, somados aos encantados, complementa a dimensão sagrada.. Tudo
isso reverbera no ritual Toré, congregando uma multiplicidade de valores e
constituindo a espiritualidade da etnia.
Apesar de manterem a tradição,“Os indígenas Potiguara também participam dos
cultos católicos” (NASCIMENTO E SOUSA, 2012, p.66). Da mesma forma que, “O
ritual católico é realizado conjuntamente com o Toré no dia 19 de abril.” (SILVA,
2011). Visto que, “Todo esse entrelaçamento entre o rito Toré e o catolicismo, pode
ser considerado um sincretismo religioso.” (NASCIMENTO E SOUSA, 2012, p.66). Até
porque, torna-se comum que os indígenas, ao fim de cada rito, rezarem o Pai-Nosso e
a Ave-Maria. Esses costumes estão presentes no cotidiano e são aceitos sem nenhuma
rejeição. Tais ações são repassadas aos mais novos, sobretudo, as crianças, sem
nenhuma imposição por parte dos anciãos.
Percebe-se que as crenças e o rito do Toré, congregam não só aspectos da
religiosidade, mas também, uma imensidão de valores dotados de significados dentro
da tradição.
Por isso, tivemos a oportunidade de, em uma das ocasiões com os Potiguara,
vivenciar essa experiência mística e, ao mesmo tempo, confusa, para aqueles que não
conhecem de perto, a referida etnia.
No ano de 2012, por ocasião das comemorações relativas ao Dia do Índio, um
acontecimento inédito tomou conta dos festejos e, sobretudo, da curiosidade dos
visitantes que por ali passavam para prestigiar os ritos sagrados dos Potiguara. Em
meio à entrada da furna em São Francisco, área nobre de transcendência, onde, por
meio do ritual de defumação, os indígenas invocam a presença de seus ancestrais,
ocorreu, desde então, o batismo de um curumim, ritual até então, defendido pela
Igreja Católica somente na pia batismal e no templo. Na ocasião, pudemos perceber
que houve uma quebra de paradigma e a fusão de dois ritos: o rito típico da tradição e
o rito católico.
Sendo práticas bastante comuns no universo Potiguara, convém salientar que,
as crenças e os ritos, fazem parte desse universo de energia cósmica em que o
indígena está inserido.
Há forte reconhecimento no meio Potiguara que entidades ou seres espirituais
movem o cotidiano daquela gente. As crenças em pai do mangue, comadre fulorzinha,
a Mãe D`água, somados aos fenômenos naturais, como relâmpago e trovão,fazem
parte do universo de energia cósmica, realidade a qual o índio está inserido em seu
cotidiano. Sendo assim, a natureza contribui para esse universo de plenitude e
magnitude, como afirma Barcellos ( 2005, p.121) e Josafá ( 2004), quando dizem que
“A mãe terra abriga lugares de encantos”. Segundo (BARCELLOS, 2005, p.93-124), a
terra constitui o espaço sagrado, onde emana as forças espirituais e,

A natureza é para os índios, lugar poderoso, capaz de renovar e


transmutar tudo o que é ruim em energia vital. Quanto mais o
índio penetra na natureza, mais solidifica e fortalece sua aliança
com a mãe natureza. A sinfonia dos animais, agregada com a
fertilidade da natureza, os aromas das plantas e toda a
atmosfera espiritual dos ancestrais, dos encantos e dos espíritos
de luz, renovam e purificam suas vidas[...] Para os Potiguara,
os encantos, os aliados que protegem a natureza e os lugares
dos rituais, fazem parte da cosmovisão indígena. Na mãe terra,
existe vida mineral, vegetal, animal; é onde moram os espíritos,
os ancestrais e os encantados. (BARCELLOS, 2005, p.93-124).

Há portanto, uma estreita relação do índio com o cosmos, o qual ele atribui
significado de valor. Pois “ No divino,todos esses atributos são pensados como sendo
‘absolutos’, ou seja, como perfeitos.” (OTTO, 2007, p.34). É sobre esta perspectiva
que se manifestam afeto e sentimento na relação do índio com a natureza, a qual
considera como uma mãe de útero fértil que cuida de seus filhos promovendo vida.
Percebe-se que em qualquer lugar a espiritualidade Potiguara se manifesta.
Uma vez que, “As furnas, a oca, o terreiro são espaços sagrados onde os Potiguara
invocam seus ancestrais e praticam o ritual do Toré”. (NASCIMENTO, FARIAS E
BARCELLOS, 2012, p.42). O indígena também vivencia experiências místicas em seu
cotidiano através de práticas, como visitar as matas para cortar lenha, ir ao rio para
tomar banho, sair para pescar e plantar, tudo possui um caráter de transcendência,
revestindo-se de valor espiritual e promovendo o fortalecimento da tradição.
Neste sentido, vale dizer que o mito tem valor de crença, de fé na tradição
Potiguara, de forma que, a crença que sustenta a maneira de agir no cotidiano, está
no fundamento dos rituais e na espiritualidade da etnia Potiguara.
Os mitos são razão para a constituição de determinadas práticas ritualísticas
como o Toré, a partilha do bejú e da evocação nas furnas, ações dos Potiguara que se
baseiam em crenças. Afirma (BARCELLOS, 2005, p.27-28) que, entre os indígenas que
habitam o Litoral Norte da Paraíba,
[...] O mito é fonte interpretativa[...] e a espiritualidade, o
resultado de uma consciência grupal[...] São os mitos os
responsáveis pela descrição da realidade cultural, social,
histórica e da espiritualidade da aldeia, uma vez que provêm da
sabedoria coletiva. São conhecimentos tidos como verdadeiros
porque atualizam os acontecimentos do passado cheios de
sentidos para o presente. Explicam como surgiu o mundo, o
povo, o lugar, os festejos, a identidade e a espiritualidade.
(BARCELLOS, 2005, P.27-28)

O mito ocupa um espaço que percorre uma trajetória, marcada de forte


religiosidade. Quando o índio lembra dos seus ancestrais,do lugar de origem, logo, as
imagens se fazem presença dentro dele, reatualizando o passado à sua frente. O mito
articula uma narrativa que assume significado e valor para quem houve e vivencia
essa etnohistória. Não existe uma realidade sem ter um mito sustentando essa
realidade dentro do universo da espiritualidade. São os rituais que dão consistência a
essa convicção. Por meio deles, o mito é materializado e pela narrativa, descarta-se
toda visão fabulosa da realidade.

4. O Toré: ritual de manifestação da espiritualidade Potiguara

As nações indígenas possuem seus valores culturais bastante diversificados, e


nem todos os povos convivem no mesmo espaço. Torna-se importante dizer, que há
uma multiplicidade de características nos hábitos cotidianos, como a maneira de
vestir-se, dormir e trabalhar apresentam formas diferenciadas . Visto que, “Cada povo
indígena tem seu jeito de ser, sua musicalidade, dança, coreografia, forma de
estabelecer contatos com as ancestrais.” (BARCELLOS, 2005, p. 220). De forma que,
cada sociedade também possui uma maneira própria de manifestar sua crenças, as
quais são expressas por meio de diversos modos de materialização das
espiritualidades, crenças e tradições, denominadas “ritos”. Por esse motivo, “Os ritos
são vivenciados em diversos lugares de acordo com a sociedade e a cultura.”
(NASCIMENTO, FARIAS E BARCELLOS ( 2012, p. 43). Essa mesma ideia é referendada
por (VILHENA, 2005, p.22), quando afirma que, “Conforme as circunstâncias, e as
necessidades sociais, novos ritos podem ser criados[...]”
Os mitos são materializados por meio dos rituais. Pois, através “dos rituais,
atinge-se aquela dimensão da qual a vida provém e para a qual retorna.”
(CAMPBELL,1990, p.92). Dentre os principais ritos existentes entre os Potiguara, o
ritual do Toré, merece atenção, uma vez que constitui o referencial de ressignificação
da cultura e manifestação da espiritualidade. Durante o momento em que o mesmo é
praticado, ocorre uma conexão entre o deus Tupã e a Mãe-Terra, envolvida pelo
batuque dos sons promovidos pelo tambor, maracá, gaita e flauta, num ambiente
revestido pela presença dos antepassados ou ancestrais. É momento de grande valor
místico, pois os encantados se fazem presentes, promovendo o fortalecimento da
espiritualidade indígena Potiguara.O momento de transfiguração é possível para
aqueles que se deixam envolver por esse fenômeno. Pois “O Toré entre os Potiguara
tem essa característica de estabelecer sintonia com os “espíritos de luz” fonte da qual
os encantados revelam mensagens que direcionam a vida dos que vivenciam o ritual.”
(BARCELLOS,2005). Por esse motivo, (NASCIMENTO E SOUSA 2012, p.59-60),
complementam dizendo que,

[...] Através da dança os descendentes indígenas resgatam a


cultura de seus pais e, ao mesmo tempo, inauguram uma ação
eclética de sentidos, congregando aspectos,das
religiões,mitos,[...] e expressões de luta que garantem a
existência e o reconhecimento da etnia. [...] O Toré para esses
indígenas é um ritual sagrado”. (NASCIMENTO E SOUSA, 2012,
P.59-60)

Percebe-se que no interior da crença Potiguara, o ritual do Toré constitui


patrimônio imaterial, congregando uma multiplicidade de valores que permeiam a vida
da Aldeia. Através dessa prática, os indígenas reafirmam sua identidade e seus
valores espirituais.
³ - Toré: dança ritualística, praticada entre os povos indígenas do Nordeste. No meio
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Potiguara, possui valor político, cultural e religioso, uma vez que é considerada referencial
de ressignificação da tradição da referida etnia.

Por meio dessa realidade, podemos notar que, o Potiguara possui uma
maneira própria de manifestar suas crenças, e isso independe de construções ou
templos ornamentados pela ação humana ou de regras pré-estabelecidas. Os rituais
dentro do universo indígena Potiguara são sinais da experiência religiosa, ou por não
dizer assim, a expressão dessa experiência e a linguagem dela. Experiência religiosa
que, embora vivenciada de forma estranha, traz em si, um fundo de razão. Por essa
razão, os indígenas constroem uma lógica de argumentação fundamentada em duas
realidades, onde mito e realidade integram-se para explicar a existência de suas
tradições. De tal forma que, os mitos e os ritos no universo Potiguara, podem ser
considerados como essência manifesta da espiritualidade da referida etnia.
REFERÊNCIAS:

BARCELLOS, Lusival Antonio. As Práticas Educativo-Religiosas dos Índios


Potiguara da Paraíba. 2005. 310f., principalmente Il. Color. Tese (Doutorado em
Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2005.

CAMPBELL, Joseph com Bill Moyers. O Poder do Mito/ São Paulo: Palas Athena,
1990.
DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa/ Fundação Editora
da UNESP,1996

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Marins Fontes, 1992.


_____ Mito e Realidade. Tradução Pola Civelli – São Paulo: Perspectiva, 2007.
MOONEM, Frans. Os índios Potiguara de São Miguel de Baía da Traíção:
passado, presente e futuro. João Pessoa: UFPB, 1989.

NASCIMENTO, José Mateus. Etnoeducação Potiguara: pedagogia da existência e


das tradições/ José Mateus Nascimento (Org.). – João Pessoa: Ideia, 2012.

OTTO, Rudolf. O Sagrado. Petrópolis: Vozes, 2007.

SILVA. Almir Batista. A Religião dos Potiguara na aldeia de São Francisco da


Paraíba/ Dissertação (Mestre em Ciências das Religiões) Almir Batista da Silva. João
Pessoa, 2011. 270 p.: Il.

VILHENA, Maria Ângela, Ritos: Expressões e Propriedades. São Paulo, Paulinas,


2005 (Coleção Temas de Ensino Religioso).
“Guardiãs” do Segredo: Conflitos e Resistência dos Adeptos da Religiosidade
Afro-Brasileira - Amargosa (1940-1960)

Autora: Lorena Michelle Silva dos Santos (PPGHIS/UNEB)


Bolsista CAPES
e-mail: santosm_@hotmail.com

Co-autora: Profa. Dra. Carmélia Aparecida da Silva


Miranda
Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local –
UNEB – Campus V
e-mail: carmelia_miranda@yahoo.com.br

Introdução
As práticas culturais religiosas afro-brasileiras vivenciadas e reconstruídas pelos
sujeitos, sobretudo negros e negras, moradores do município de Amargosa, localizado no
Recôncavo Sul da Bahia, no período em estudo, territorializaram expressões e influências
no meio social, marcando ritmos nas relações que eram estabelecidas no cotidiano da
população. Os adeptos dessa religiosidade (Candomblé) exerciam seus saberes religiosos
a partir do legado dos seus antepassados e das experiências compartilhadas entre os
pares, que estavam pautadas no poder, nas trocas culturais e na (re)configuração das
práticas sociais.
Nessa perspectiva, a partir das primeiras evidências apontadas pelas fontes,
pode-se identificar que as práticas religiosas afro-brasileiras, como também, os seus
praticantes, principalmente se estes fossem mulheres, conhecedoras dos mistérios e
segredos do universo religioso afro-brasileiro tiveram seus costumes questionados,
rejeitados e em alguns momentos perseguidos, por parte da população da cidade, que
tinham o catolicismo como parâmetro de fé, fator que foi intensificado com a instalação
da Diocese - Instituição Religiosa Católica, que teve como sede a cidade de Amargosa,
sendo de grande influência na região1.
Desse modo, essas mulheres adeptas do culto afro (conhecidas como “guardiãs”
do segredo), ao exercerem esta função e ao desenvolverem suas práticas religiosas, o
que de certa forma proporcionava prestígio, e atraia pessoas da região, que buscavam
cura de seus males era fator que incomodava parte da população da cidade, que as via
de forma pejorativa como “perigosas” e “feiticeiras”. Percebe-se que esta postura
assumida por parte da população de Amargosa tinha como objetivo impedir, que as
pessoas se aproximassem dos adeptos dos Terreiros de Candomblé. Era passado para a


Este texto é resultado de parte da pesquisa de Mestrado intitulada “Visões e Imagens sobre as práticas
religiosas afro-brasileira em Amargosa (1940-1960)”, que está em fase de conclusão.
1
A implantação da diocese na cidade de Amargosa ocorreu em 15 de Agosto de 1941 e teve o apoio da elite
local, que se mobilizaram através de doações ou angariando fundos para a instalação dessa instituição religiosa
católica na cidade.
população que os seguidores do Candomblé labutavam com coisas do mal, tal atitude
pode ser considerada como uma forma de controle, ou seja, impedir que as pessoas
freqüentassem os terreiros. Entretanto, muitos daqueles que discriminavam as práticas
religiosas afro-brasileiras, em vários momentos buscavam os serviços das mesmas no
intuito de aliviar seus males.
O presente texto tem como objetivo analisar como as mulheres negras,
mestiças e pobres adeptas da religiosidade afro-brasileira, atuavam na cidade de
Amargosa e como desenvolviam suas práticas religiosas, bem como, a imagem que lhes
era atribuída já que aos olhos da classe dominante desviava dos padrões impostos na
época.
Assim, as questões relacionadas à cultura afro-brasileira no município estiveram
relacionadas com a representatividade que parte da sociedade tinha para com ela,
perpassando por uma trama de discursos e visões construídas, muitas vezes a partir do
lugar em que ocupava e da realidade social que vivenciava. Produzindo concepções que
na maioria das vezes eram reelaboradas e transmitidas como verdade, emergindo uma
memória coletiva negativa com relação aos cultos afros, o que permitiu a construção do
medo de cada indivíduo, fundamentado naquilo que eles carregam na formação remota
das suas almas ou a partir da figura simbólica a que essas práticas mágicas foram
relacionadas, como a bruxaria e ações demoníacas.

Postura feminina nos cultos afro-brasileiros e estratégias de resistência


Ao trilhar pelos caminhos da pesquisa é possível identificar que mesmo vivendo em
condições difíceis e sendo vítimas de estereótipos, as mulheres ligadas às práticas
religiosas de matriz africana, na cidade de Amargosa no período em estudo, utilizavam
de diferentes estratégias e formas de resistência, desenvolvida por meio das experiências
vivenciadas no seu cotidiano. Através das trocas culturais e na (re) configuração das
práticas sociais, em lugares diversos quer sejam na cidade ou nas áreas rurais, no intuito
de estabelecer seu lugar na sociedade e superar as dificuldades que eram impostas à
realidade vivenciada em um contexto social diversificado.
Nesse sentido, ao estudar as experiências religiosas afro-brasileiras, devemos
entendê-las como manifestações religiosas trazida pelos africanos e ressignificadas no
território brasileiro, através das relações sociais e culturais que eram construídas,
reconstruídas e compartilhadas entre os pares, no intuito da continuidade cultural. Nesse
aspecto, os autores ( MINTZ e PRICE, 2003, p.25) ao discorrer sobre a formação da
cultura afro-americana, ressaltam que os indivíduos escravizados das diversas nações
africanas, ao chegarem ao Novo Mundo reelaboram lentamente uma experiência de vida,
através da partilha de uma cultura na medida e na velocidade que eles mesmos as
criaram e recriaram, somadas a tantas outras que já existiam nas Américas.
Tomando como dimensão a cidade de Amargosa, as práticas religiosas afro-
brasileiras eram desenvolvidas e experimentadas pelos adeptos, através da relação entre
o mundo visível e invisível, na magia, na ancestralidade, no seu pensar, no seu fazer, na
disputa com o outro, nos cultos domésticos aos orixás e caboclos e no próprio terreiro de
Candomblé. Assim, a religiosidade afro-brasileira deve ser entendida como um conjunto
mais amplo, para além dos compromissos religiosos, uma filosofia de vida, uma maneira
especial de interação do homem consigo mesmo e com os elementos essenciais da
natureza.
Devemos nos ater ao fato de que não há como conceber que as práticas
religiosas afro-brasileiras, majoritariamente negra abordada nessa pesquisa, apesar de
receberem adesão da população, eram praticadas e apoiadas apenas por negros e
pobres. É possível perceber pelas evidências das fontes que a depender da situação e da
conveniência outros setores sociais da cidade de Amargosa, poderia se identificar com o
Candomblé.
Ao abordar as concepções e atitudes da sociedade de Amargosa, com relação às
mulheres que desenvolviam práticas de cura, tendo como base as ervas, participavam
dos cultos, e também eram mães-de-santo utilizamos como ponto de partida o uso do
conceito de representação, para compreender as diversas visões que muitos indivíduos
tinham sobre essas mulheres. A idéia de representação denota formas idealizadas de
percepção do mundo, expondo os atores sociais naquilo que imaginam ser ou devem ser.
O conceito ainda possibilita verificar as diferentes visões da realidade, visões que devem
ser tomadas como projeções de interesses políticos de grupos ou indivíduos (CHARTIER,
1990, p.30-32). Nesse contexto, o uso das reflexões teóricas apontadas por Chartier
possibilita problematizar ao longo da pesquisa, como as imagens e representações acerca
dos adeptos ao culto afro-brasileiro foram construídas e com quais intencionalidades.
Ao abordar aspectos da cultura afro-brasileira é significativo perceber algumas
questões em torno da Historia Social, que vem contribuindo para alargar o campo de
atividades possíveis de serem estudadas, principalmente por contribuir para
compreensão e articulação de novas temáticas no social. Assim, a História Social permite
recuperar as experiências vividas pelos atores, reconstituindo o tempo e espaço em que
práticas culturais foram desenvolvidas a exemplo da religiosidade dos mais diferentes
grupos sociais. A Nova Historiografia2 possibilitou a proximidade do intelectual com
temáticas como, mulheres, família, gênero, religiosidade inserindo aos estudos históricos,
outras abordagens, rompendo com as interpretações positivistas, estruturalistas e

2
A Nova Historiografia refere-se a produção de uma história dinâmica, não se atendo apenas a uma
historiografia linear e factual, apresentando um leque de abrangência com relação a concepção de fonte,
passando a utilizar não apenas os documentos oficiais, mas outras vertentes até então desconhecidas, ou até
mesmo, ignoradas. Para compreender essa dimensão, cf. CARDOSO, Ciro Flamarion. Domínios da História:
Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
economicistas, dentro de uma estreita relação entre a História Social e Cultural3. O
estudo da religiosidade integra esse processo de mudanças nos campos teórico e
metodológico, os pesquisadores ao assumirem a diversidade cultural como objeto de
investigação histórica, submeteu a revisão crítica os vários universos e contextos
religiosos, dando ênfase aos estudos sobre crenças, mitos e rituais ( HERMAN, 2002,
p.45).
Este estudo além de trabalhar numa perspectiva social, também segue uma
linha cultural, ao pensar nas relações desenvolvidas por meio das práticas religiosas afro-
brasileiras na cidade de Amargosa, permitindo relacioná-las como elemento cultural
recriadas pelos grupos que experimentaram essa religiosidade. Nesse contexto
Thompson (2002, p. 32), embora seu estudo esteja voltado para a classe operária
inglesa no século XVIII, trouxe outras perspectivas e noções para o campo da
historiografia, pensar a cultura corresponde colocá-la em articulação com o social,
trazendo as experiências humanas, mas observando, de outro lado que a própria
experiência é o lugar da resistência às forças produtivas determinantes. Sendo assim, ao
tratar das práticas culturais, que nesse caso são as práticas religiosas afro-brasileiras, é
necessário ter em vista, os contextos sociais e específicos de cada tempo e as relações
de força de cada grupo. Sem, contudo, perder de vista as interferências que ajudam a
compor as diversas culturas.
O recorte temporal do objeto de pesquisa, definido a partir de 1940, se refere às
evidências apontadas no contato com as fontes, em especial, num processo crime
encontrado, referente a esse período na cidade de Amargosa, no qual se percebe, que a
repressão às práticas religiosas afro-brasileiras, se dava a partir do processo de
criminalização das mesmas, sendo classificadas em alguns momentos como
“curandeirismo”, previsto no art. 258 do Código Penal de 1940, como crime contra a
saúde pública. Este era um dos caminhos trilhados pela polícia e justiça para condenar e
perseguir os adeptos do Candomblé, outras práticas religiosas afro-brasileiras e, por
conseguinte, a própria religião. Demonstrando, dessa maneira a visão e o papel
desempenhado pela força policial e outras autoridades com relação às práticas culturais
da população negra.
Contudo, o estudo provocou investigar a presença das práticas religiosas afro-
brasileiras e suas relações sociais para com os vários setores da sociedade local até a
década de 60 do século XX. As evidências apontadas através das entrevistas de pessoas
que vivenciaram o contexto social da época, fotografias e alguns jornais que circularam

3
Para uma discussão ampla em torno das abordagens da Historia Social. Cf.: TOMPSON, E.P. Costumes em
comum: estudos sobre cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. No Brasil, existe
uma vasta produção historiográfica em tono da História Social da Cultura, por exemplo, na Bahia se destacam:
REIS, J, J. A Morte é uma Festa: Ritos Fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, entre outros.
no município, indicam que as manifestações religiosas afro-brasileiras na cidade de
Amargosa, apesar de serem perseguidas e reprimidas, se mantiveram vivas e presentes
em vários espaços da cidade. Sendo assim, pode-se evidenciar que se por um lado houve
por parte de certos setores da sociedade a prática da repressão, por outro, é possível
identificar que as pessoas ligadas às práticas religiosas afro-brasileiras, souberam
resistir, a exemplo da presença do cortejo afro na cidade. A década de 60 se torna um
referencial, sendo esse período, o último momento em que a mãe de santo Raquel,
promoveu o cortejo afro4. Para o período, o cortejo afro era considerado um desafio, uma
forma de resistência, uma afronta às outras religiões e uma forma de ocupar o espaço
público. Apesar das perseguições, dos preconceitos por parte da população de Amargosa,
os adeptos do Candomblé ocupavam o espaço público e mostravam que sua religiosidade
estava viva e que eles continuavam realizando suas práticas culturais, que foram
passadas pelos seus antepassados.
Desse modo é imprescindível salientar o importante papel que a fonte oral
assume para esta pesquisa. Pois proporciona uma relação mais próxima com o tema e os
sujeitos históricos em estudo e seu cotidiano. A oralidade abre alternativa de captar o
vivido, provoca a relativação de qualquer verdade pronta, acabada e universal e nos
apresenta diversas problemáticas que adquire centralidade no estudo ( SANTANA, 1998,
p. 21).
A memória ocupa um papel de grande relevância na construção da narrativa,
pois através dela será possível lidar com imagens do passado que vão se reconstruindo
no presente. A memória em outros termos contém elementos básicos para construção
de uma concepção histórica. A memória, entre lembranças e esquecimentos seleciona a
partir dos anseios individuais e coletivos do presente, os fatos que devem e podem ser
lembrados e ou esquecidos (LE GOFF, 1985, p. 32).
Buscaremos também estabelecer um diálogo com o discurso dos jornais que
circulavam na época, que dão conta das complexas interações sociais entre a pretensa
elite dominante que desejava disciplinar a população dentro dos ditames de uma cidade
em processo de urbanização e fervorosamente católica, em contraponto as experiências
religiosas negras, que em muitos momentos eram desenvolvidas por mulheres.
Na segunda seção do texto, discutimos sobre a trajetória das mulheres negras,
mães, esposas, trabalhadoras, muitas delas, na condição de “guardiãs” dos segredos e
saberes, que souberam vivenciar o sagrado e desenvolveram relações de sociabilidades
nos momentos de festas, cultos, trabalhos, como também, nos momentos de resistência
e conflitos.

4
De acordo com o relato da sua filha de sangue Idália Santos, sua mãe não deu continuidade, devido a
problemas de saúde.
Os diferentes conflitos enfrentados pelos Adeptos da Religiosidade Afro-
Brasileira
Minha filha, minha vida foi de luta e ainda é. (risos) eu desde nova
trabalhava na enxada, torrava farinha, era um tempo difícil, mas
todo mundo vivia [...] junto com o trabalho da roça, eu também
tinha minha função dentro de uma casa de candomblé daqui, que
eu frequentava, era a cozinheira de lá, eu ajudava em tudo. O
povo daqui não gostava muito da gente não, dizia que a gente
lutava com o diabo, às vezes quando a gente ia à missa, as outras
mulheres ficavam perguntando o que essas “feiticeiras” vieram
fazer na igreja [...]. Mas, somos nós que zelamos pelos orixás,
caboclos, pelos fundamentos do Candomblé, conhecemos os
segredos e os saberes5.

Dominga, mulher negra, residente na zona rural da cidade de Amargosa e que


ocupara um cargo no Candomblé, algo que para ela era visto como privilégio, ao narrar
suas experiências, rememorou como eram conduzidas às relações religiosas por parte da
população de Amargosa com os adeptos do Candomblé. Ao contar-nos sua história, a
narradora traz a tona à memória e a conservação de si própria. Como também, nos
apresenta as inúmeras investidas da sociedade dominante em desqualificar a
religiosidade afro-brasileira, por estarem associadas a uma cultura negra, diferenciada
dos preceitos cristãos disseminados na época, na cidade.
Entretanto, mulheres como Dominga, conseguiam em meio às dificuldades do
seu cotidiano, realizar celebrações religiosas, festejos, não levando em conta o que as
pessoas pensavam delas. Elas se preocupavam em cumprir a função de “guardiãs” dos
saberes religiosos do culto afro-brasileiro, compartilhando, em espaços forjados, as suas
experiências. Esses sujeitos religiosos queriam sim, poder cantar, sambar, comer ou
oferecer seu caruru, além de ajudar aqueles que precisavam do seu auxílio, por exemplo,
através de seus saberes de cura. Eram eles que dentro do cenário de uma cidade como
Amargosa resistiam ao que lhes era imposto, não viviam de forma desregrada, mas
desenvolviam e aplicavam na sua vida, os valores próprios, mesmo que estes não fossem
aceitos pela sociedade dominante e tivesse que ser à base do conflito. Essas mulheres
negras e pobres da região, que viviam em bairros humildes da cidade e em diversos
lugares na zona rural, muitas eram lavadeiras, baianas de acarajé, rezadeiras, mães-de-
santo, ou até mesmo trabalhavam nos inúmeros armazéns de fumo da cidade6. A
exemplo de dona Antônia, mulher negra, moradora da cidade, que no período que

5
Depoimento concedido por Dominga Santos, iniciada no Candomblé de Angola – localizado em Amargosa.
Trabalhadora rural, moradora da zona rural do município de Amargosa. Entrevista concedida, em 14 de Março
de 2011.
6
Sobre os diversos tipos de trabalho exercido pelas mulheres negras no século XIX, cf: SOARES, Cecília
Moreira. Mulheres negras na Bahia do século XIX. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da UFBA, 1994, p.22.
trabalhava num armazém de fumo e que nos apresentou a partir da sua vivência o dia-a-
dia de muitas mulheres pobres que viviam na mesma condição que ela.

Ah! Minha filha eu trabalhei quando nova, na roça, mas logo


depois que vim pra cidade, comecei logo a trabalhar no armazém
de fumo do finado Rebouças, eu e mais um monte de mulher,
saíamos cedo de casa e quando voltávamos já estava
escurecendo, eu precisava trabalhar para ajudar dentro de casa,
pois o dinheiro do marido era pouco para criar tanto filho. Era um
tempo de luta, mas eu gostava, no trabalho a gente fazia
amizade, tinha minha vizinha que ajudou muito, pois eu deixava
as crianças às vezes com ela para trabalhar [...] nesse tempo a
rua daqui era boa, movimentada, as vezes tinha samba na casa
da mãe de santo ( Salinha) era caruru, e eu gostava de ir, me
divertia, sambava muito, sempre gostei dessas coisas, só não
demorava por causa dos meninos7.

O relato de Antônia se enquadra no cotidiano de mães que trabalhando para


manter seus filhos, estabeleciam vínculos de solidariedade. Em sua maioria eram pobres
e precisavam exercer outras atividades, para ajudar no sustento da casa, mas, essas
mulheres ao trabalharem “fora” eram tidas como “indecentes”, pois a lida de mulheres a
exemplo da depoente, exigia um contínuo ir e vir pelas ruas, o que possibilitava o
distanciamento do comportamento feminino, no imaginário social dominante da época (
FERREIRA FILHO, 2003, p.64-65 ).
Assim, mulheres como dona Antônia, não só trabalhavam, mas quando podiam
participavam dos batuques, festas e carurus como forma de divertimento e promoção da
sociabilidade, amenizando as vicissitudes cotidianas. Isso, por sua vez, rendia a elas a
dúvida com relação a sua conduta, pois aos olhos repressores da sociedade dominante
da época, representavam essas como mulheres “indecentes”, pois as mulheres
“honestas” usufruíam do lazer, de forma moderada, apenas no convívio da própria
família ou restrito a grupos de amigos.
No artigo intitulado “Luta, Sobrevivência e Cotidiano das Mulheres Quilombolas
de Tijuaçu”, (MIRANDA, 2007, p.58) evidencia como as mulheres dessa comunidade
quilombola, quebraram o isolamento do lar e passaram a participar do espaço público,
ocupando diferentes papéis, consolidando um viver recheado de trabalho, lazer, devoção,
solidariedade e de muita “labuta”. Mesmo se tratando de um outro contexto e espaço, as
abordagens apresentadas pela autora, nos permitem pensar nas mulheres negras de
Amargosa, e como estas passaram a configurar seu espaço, dentro da cidade a partir da
sua vivência religiosa, trabalho e do seu cotidiano que era marcado pela resistência e
busca constante de estratégias de sobrevivência.

7
Depoimento concedido por Antônia dos Santos, moradora da cidade de Amargosa, trabalhou no armazém de
fumo, devota de São Cosme e Damião e Santa Bárbara. Entrevista concedida em 18 de abril de 2011.
Nessa perspectiva, o periódico “Liderança” de circulação na cidade de Amargosa,
traz uma nota em destaque sobre como era visto o papel da mulher dentro das
convenções sociais.
A mulher tem, no lar, o papel de tornar a atmosfera agradável,
calma, e harmoniosa, embalsamada pelo perfume do bom
exemplo!Esse ambiente de virtude criará nela quase uma
necessidade de ser boa e temente a Deus. Do contrário
considerar-se-ia uma mulher dissonante do exemplo de uma vida
cristã, no conjunto do convívio doméstico. 8

O discurso ideológico, em especial, da igreja católica, tinha a função de


disseminar quais seriam as atitudes e comportamento tidos como socialmente aceitos
(como verdadeiros), valendo-se, inclusive, de fontes bíblicas a fim de justificar a
imposição das normas morais e as regras de bons costumes em meio ao cotidiano das
moças em Amargosa, desde seu modo de vestir, a obrigação de frequentar as missas,
estando sempre fiel aos ensinamentos cristãos. Objetivava-se, dessa forma, controlar e
disciplinar a mulher que deveria ter padrões adequados, pois só assim seriam
consideradas “mulher de bem” e com perfil digno do convívio doméstico.
Estas convenções sociais e regras, não vão ser seguidas de maneira
generalizada por todas as mulheres de Amargosa, resistências sobre estas tentativas de
condicionamento foram frequentes na vida cotidiana da população, até porque a própria
condição de vida de algumas mulheres adeptas a religiosidade afro-brasileira contrastava
com o que era previsto como aceito socialmente. Através da sua religião carregavam a
responsabilidade de expandir o conhecimento religioso de matriz africana, superando os
entraves do preconceito, estando sempre cientes do seu lugar e valor. Não tinham
vergonha do que eram e do que realizavam no cotidiano, nos cultos, até porque sabiam o
que representavam para seus filhos-de-santo e para aqueles não iniciados, mas que as
respeitavam. Resistiam ao olhar discriminador da igreja ou da elite, através da inserção
do seu povo e da sua religião na localidade de Amargosa.
Nas palavras do senhor Derneval, morador da cidade e comerciante no período
estudado, que ao ser questionado sobre as mulheres negras e pobres da cidade faz
considerações diferentes da visão da elite, e faz menção a Raquel, que na sua concepção
“... Ah! Raquel era uma mulher humilde, mas forte e de sabedoria das coisas do
Candomblé, tinha gente que não gostava dela, mas eu a respeitava e muito9”.
O depoente ao se referir as mulheres negras na cidade, recordou sobre a
representatividade de Raquel, mulher negra que, a exemplo de tantas outras, que foram
vítimas das consequências do período escravista. Desafiando o próprio tempo, tornaram-

8
Jornal de circulação na cidade no período em estudo, vinculado a Igreja Católica. Arquivo particular de
Berlamina dos Santos. “Liderança”, ano I, nº. 1 de 13 de Outubro de 1963.
9
Depoimento concedido por Derneval da Silva, morador da cidade de Amargosa, era comerciante no período em
estudo. Entrevista concedida em 22 de abril de 2011.
se “mulheres que sabem” os fundamentos, “dos mistérios dos mistérios”, os segredos
das ervas. Tem nos seus saberes e fazeres uma forte herança ancestral, e em alguns
momentos ao colocar em prática o que aprenderam eram reconhecidas como mães-de-
santo, mãe preta, “curandeira”.
Dentro do contexto social da cidade era Raquel uma das mulheres, mãe e
trabalhadora que se dedicava aos filhos e aos orixás, e ao ter o conhecimento religioso,
somado ás experiências cotidianas, tinha a valorização e admiração do ser feminino e da
sua ação, aos olhos de alguns, a exemplo do senhor Derneval. Em contrapartida sofria
com a opressão da elite dominante que a marginalizava, por defender e praticar uma
cultura afro-brasileira.
O autor (ARRUTI, 2006, p.104), informa-nos como o terreiro de Candomblé,
assim como o quilombo, surge como um grande símbolo de resistência política e cultural
da população negra, que está diretamente associada a uma territorialidade, organização
sócio-territorial que a população negra pobre e marginalizada criou para viabilizar
alternativa ao espaço urbano.
Nesse sentido, a convivência e as relações estabelecidas dentro do ambiente
religioso do Candomblé potencializavam a capacidade de muitas pessoas em resistir e
sobreviverem em ambientes adversos a sua cultura ou a sua religiosidade, pois o fato de
os terreiros serem um espaço público acolhedor e agregador das pessoas da rua, dos
becos, de fora, como também de longe, sem fazer distinção de cor e/ou classe social
dentro de uma estrutura religiosa, na qual os indivíduos conseguiam salvaguardar seu
referencial religioso.
A presença de traços africanos, na cidade de Amargosa, era explicitada por
mulheres como Raquel e por tanto outros indivíduos que ofereciam caruru em sua casa,
que desenvolviam cultos domésticos, que tinham terreiro, além das que transitavam nas
ruas e becos da cidade de Amargosa, com seus tabuleiros de doces, vendendo iguarias
como acarajé, cocada e abará. A venda de comida na rua, fez com que a influência
africana determinasse essas modalidades, quer no tipo de iguaria comercializada ou na
indumentária. Todas elas faziam com que a cultura afro-brasileira permeasse o cotidiano
da cidade de Amargosa, quando não, faziam com que alguns lugares cheirassem a azeite
de dendê.
Assim, o senhor Florisvaldo, morador da cidade de Amargosa, homem negro, 82
anos, rememorou como Jacy, mulher negra e mãe-de-santo buscava a todo momento
afirmar-se como tal.
Ah!Eu me lembro de Jacy curandeira, quando ela vinha para
cidade sempre era acompanhada dos seus filhos-de-santo, ela
nunca vinha sozinha, [...] sempre vinha vestida com aquelas
roupas, cheia de colar. Quando as pessoas que não gostavam
dessas coisas, viam passar, diziam já vem esse povo do
candomblé com essas coisas10 [...]

10
Depoimento concedido por Florisvaldo Ferreira, trabalhou como operário da construção civil, morador da
cidade de Amargosa, devoto de Santo Antônio. Entrevista realizada, em 16 de março de 2011.

Referências Bibliográficas

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SOARES, Cecília Moreira. Mulheres negras na Bahia do século XIX. Dissertação de


Mestrado, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, 1994.
Jacy, ao transitar pelos espaços da cidade de Amargosa, demonstrava o desejo
em de dar visibilidade a sua cultura no ato de ousadia e resistência, posicionamento que
impedia que ela ou a sua religiosidade fossem deslegitimada. Ao adentrar os espaços
públicos e privados utilizando os trajes que correspondiam a sua cultura, era uma forma
de afirmar-se como integrante do Candomblé, e de responder as investidas da classe
dominante em apagar os traços de cultura negra na cidade. O que demonstra como os
agentes religiosos, através da suas práticas tinham a capacidade de desenvolver vínculos
externos à comunidade negra, contribuindo para a consolidação e expansão dos terreiros
de Candomblé, respondendo a opressão social através de uma resistência (REIS, 2008,
p. 140).
Aos olhos de alguns, Jacy era uma mulher com saber, principalmente religioso e
cultural, era possuidora de uma postura firme e desenvolvia estratégias para alcançar
seus ideais e superar o preconceito, daqueles, que viam a sua religiosidade como apenas
“coisa de negro”. Jacy tinha a convicção de que era sim, a cultura, religiosidade dos
negros, mas que não servia de auxílio apenas para os negros, os brancos tidos como
católicos da cidade, também se serviam da cultura e da religiosidade, que, em alguns
momentos era considerada, como “incivilizada” ou “diabólica”.
De acordo com Maria de Lourdes Siqueira, muitas mulheres:

Inspiradas na tradição dos seus antepassados, mesmo sem o


direito de segui-las na sua própria vida pelas interdições que
recebia através de uma doutrina, que era estranha a sua natureza
profunda, mas elas sempre desenvolveram as estratégias de
controle dos princípios e práticas [...] Nos mitos, nos contos,
lendas, nos cantos, ali reinava uma filosofia que alicerçava um
processo de construção de um saber ancestral africano (SIQUEIRA,
1998, p.423).

Todavia, fazendo referência aos adeptos do Candomblé e a as mulheres


mencionadas pela autora, as mães e os pais do povo-de-santo da cidade de Amargosa se
assemelham aos zeladores do povo-de-santo, possuidores de uma sabedoria concedida
pelas divindades que lhes indicavam o melhor caminho para superar os obstáculos do
cotidiano.
Assim, ao analisar as recriações e (re) configurações das práticas religiosas
afro-brasileiras e seus agentes, nos permite perceber como era estabelecida essa
dinâmica religiosa na cidade de Amargosa, mesmo que estas nem sempre, fossem vistas
com “bons olhos” por uma parte da sociedade, mas a sua presença deixou marcas, não
apenas na diversidade de experiências religiosas no período em estudo, mas uma
diferença cultural com características próprias.

Considerações Finais
Por fim, a religiosidade afro-brasileira em Amargosa representou para muitos
dos seus seguidores a possibilidade de viver o sagrado e desenvolver relações de
sociabilidades nos momentos de festas, como também nos momentos de divergências,
pois sendo ela uma religião que agrega todos que compartilham dessas experiências
religiosas, possibilitava aos indivíduos se reconhecerem detentores de uma religião e
identidade afro-brasileira. Assim, é essencial evidenciar que algumas mulheres que na
condição de “guardiãs” dos segredos e mistérios, ao terem consciência da
responsabilidade que lhe foi concedida, seguiam com suas práticas religiosas, crenças,
ainda que em meio a negociações e conflitos. Essas mulheres ao superar os percalços
impostos pela sociedade com relação a sua religião ousavam em alguns momentos,
ultrapassar os limites do terreiro e adentravam as ruas da cidade.
Apesar da opressão e dos preconceitos, essas mulheres conseguiram impor sua
religiosidade, suas práticas sociais, suas posturas, suas formas de sobrevivência, enfim
sua cultura, demarcando território na cidade de Amargosa.
“O ETNÓGRAFO, A REZADEIRA E A CERCA DE CIPÓ”: Autoridade
etnográfica e iniciação xamânica de rezadeiras Amazônicas

Jerônimo da Silva e Silva1

Resumo: A ponência em questão pretende, inicialmente, mapear a


partir das narrativas orais de Dona Fátima o longo processo de iniciação
xamânica, envolta em representações de santos do catolicismo
devocional e a cosmologia dos encantados no nordeste paraense.
Tocada pela presença das encantarias do ar, revelações noturnas e
vozes, esta rezadeira rememora performaticamente o aprendizado do
dom de rezar junto ao famoso rezador-curador Zé de Deus como espaço
cósmico de cartografias espirituais, força vivificadora e fonte de
autoridade junto à comunidade. Em diálogo com postulados da Teoria
Antropológica, Antropologia da Religião e aportes metodológicos da
História Oral, acesso incursões etnográficas no interior da Amazônia
Bragantina (Capanema-PA), problematizando, nessa perspectiva,
inserção do pesquisador enquanto personagem e autor na urdidura do
texto antropológico.

PALAVRAS-CHAVE: Rezadeiras; Xamanismo; Autoridade Etnográfica

Introdução
O ato de rezar está associado a uma evocação, uma petição revestida de
rituais, no caso das rezadeiras, temos elementos da pajelança indígena, cultura
afro brasileira (umbanda, candomblés e xangôs) associadas às orações e santos do
catolicismo devocional (Prandi, 2004:146-159). Durante desenvolvimento da
pesquisa de campo verifiquei a existência de rezadeiras oriundas de vários estados
do nordeste, como, Maranhão, Ceará e Paraíba, além das rezadoras locais. Esses
sujeitos históricos construíram representações identitárias através da bagagem
cultural acumulada em seus locais de origem, adquiridos através de saberes orais.
Essas narrativas descrevem as curandeiras, não apenas como gênero majoritário
na prática da cura no cenário de Capanema2, mas tangenciam para um diálogo
entre experiências religiosas que acenam para o cotidiano das relações familiares,
do trabalho agrícola e doméstico.
Essas mulheres explicavam suas histórias de vida e práticas de reza
mediante o contato com as entidades ou encantados da floresta, que através de

1
Doutorando em Antropologia Social (PPGA/UFPA). Líder do Grupo Estudos Culturais na Amazônia
(GECA/CNPq/UFPA); Assessor especial no Arquivo Público do Estado do Pará (APEP/SECULT);
Professor Adjunto na Universidade da Amazônia. Este texto foi pensado como atividade parcial para
obtenção de conceito na disciplina Teoria Antropológica Contemporânea, ministrada pela Drª Cristina
Donza Cancela. Email: prof-jeronimo@hotmail.com
2
A cidade de Capanema está localizada no nordeste Paraense, na microrregião Bragantina, têm relações
limítrofes com Traquateua, Maracanã, Salinópolis, Bragança, Peixe-Boi e Ourém, tendo distância em
linha reta de Belém o equivalente a 160 km pela rodovia BR 316. Abrange uma área de 614, 026 km²,
população de 63. 628 hab. Densidade de 103,62 hab./km², um clima equatorial úmido, atualmente uma
vegetação voltada para a criação de gado e agricultura. IBGE. Enciclopédia dos municípios Brasileiros.
Capanema-PA.

1
possessões, “atuações”, visões, desmaios e diversas outras formas de sofrimento
adquiriram a capacidade para realizar rezas, curas, benzeções ou partos. A
existência desse panteão cosmológico foi denominada genericamente por Prandi
(2004:7-9) de “Religião Brasileira dos Encantados”.3
O poder de rezar é um dom, mas a pluralidade de experiências que levam
as benzedeiras4 a “desenvolver” o ofício é múltipla. Segundo Trindade (2008), os
rituais de iniciação, aceitação e aprendizado depende da forma como os encantados
se apresentam: ataques, ameaças ou equilíbrio e harmonia, onde cabe ressaltar o
papel da comunidade na elaboração social da vocação xamânica de laços e níveis
de hierarquia diferenciados – proteção, medo, preconceito, respeito – no trato
dessas mulheres, reforçando estrategicamente o papel social, já notado por Lewis
(1971) e Figueiredo (1979).
Muitas rezadeiras afirmaram que, na maioria dos casos, só conseguem
desenvolver o dom de rezar graças à ajuda de velhos rezadores e experientes, isto
é, homens/mulheres dotados dos saberes da floresta e poderes de comunicação
com o reino das encantarias. Vamos acompanhar a narrativa de uma rezadeira em
particular que fora iniciada dessa forma e atribui aos rezadores “experientes” a
capacidade de interpretar e mediar à inserção dos iniciados em práticas religiosas
diversas.
Pretendo problematizar as questões evocadas acima, questionando,
sobretudo, a minha presença na casa de D. Fátima como aspecto contíguo à voz da
narradora. Seguindo o pressuposto de Crapanzano (1991: 62-63) percebemos que
uma conversa não se trata de simples troca de informação, nem tão pouco do ato
de ouvir/falar alternadamente, mas exige o entendimento de “um” com o “outro”
no manuseio da percepção tematizada, criando, não um ambiente de concordância
ou confronto de ideias e sim um espaço engajado de criação.
Nas trilhas apontadas por Clifford (1998) considero que, se inicialmente as
experiências agregadas na pesquisa de campo – vozes, gestos, ambientes,
memórias e afetividades – desvelam campos múltiplos de interpretação cultural
entre o pesquisador e suas alteridades, esta vive o drama de, ao traduzir o diálogo
com o outro para a linguagem textual, emergem outras vozes, relações de poder,

3
Para o caso Amazônico, Maués (1990: 196) define os encantados como “seres que normalmente
permanecem invisíveis aos nossos olhos, mas não se confundem com espíritos, manifestando-se de modo
visível sob forma humana ou de animais e fazendo sentir sua presença através de vozes e outros sinais
(como o apito do curupira, por exemplo). Além disso, incorporam-se nos pajés e nas pessoas que tem o
dom para pajelança. Entre os encantados, os do fundo são muito mais significativos para os habitantes da
região. Habitam nos rios e Igarapés, nos lugares encantados onde existem pedras, águas profundas
(fundões) e praias de areia, em cidades subterrâneas e subaquáticas, sendo chamado de encante o seu
lugar de morada”
4
Termos como “rezadeira”, “benzedeira” ou “puxadora de criança” são descritos alternadamente pelos
narradores locais, sem especificidade alguma. Adoto a mesma perspectiva.

2
e, eventualmente, a recepção do leitor – tirano e fonte de inspiração irresistível da
intencionalidade que sombreia o pesquisador.
Reconhecer que a presença e voz do pesquisador provocam e produzem,
simultaneamente, imagens e recortes na textualização da pesquisa, inaugura, para
Clifford, o dilema de, no ato da escrita, fragilizar formas de autoridade. O texto que
segue, de certa forma, alimenta essa pretensão.

“Os ventos falavam comigo”


No dia 25 de Fevereiro de 2011, por indicação de pessoas conhecidas fui à
residência de Dona Fátima, esta reside na Avenida Barão de Capanema, local
considerado privilegiado, próximo ao Terminal Rodoviário Interno, dito
“terminalzinho”. Sua casa é de alvenaria, de tamanho médio, com três quartos,
sala de estar e cozinha, no pátio funciona uma borracharia, administrada pelos
filhos, convivendo com netos e bisnetos.
A primeira vez que ouvi falar de dona Fátima, foi na sala de professores da
Escola S. Pio X, local onde lecionei. Comentei com alguns professores sobre o meu
projeto de pesquisa, de imediato alguns indicaram a benzedeira. Disseram que no
passado era uma rezadeira muito boa, mas que hoje em dia não rezava mais,
sendo inclusive um pouco grosseira com os insistentes: “Parou de rezar, por causa
da língua do povo [...] que diziam que ela era macumbeira”, argumentou uma
professora.
Ao estacionar o carro na frente de sua casa, atraí a atenção de um de seus
filhos, conhecido borracheiro no bairro. Pensavam que o meu veículo estava com
problemas. Cumprimentei um dos funcionários, pedi para falar com D. Fátima e fui
conduzido à sala de estar, local, aproximadamente de três metros quadrados,
telhado baixo, dois sofás confortáveis, estante com televisão e muitos... Muitos
bibelôs, com calendários de santos e imagens de Nossa Senhora de Nazaré. Esperei
durante onze minutos, ouvi uma voz da cozinha, dizendo: “já vai... Só um
minutinho seu moço!”. Sem demora surge D. Fátima, uma senhora de 65 anos,
branca, alta, forte e com fala firme.
Apresentou-se com um vestido longo, um pouco molhado e um cheiro de
sabão em pó, pediu desculpas, pois estava lavando roupa, sentou-se do meu lado e
perguntou: “Pois não?! O que, que o senhor quer comigo?”. Expliquei que era
professor e que estava fazendo um trabalho sobre mulheres que rezavam.
Interrompeu-me bruscamente: “Olhe professor, eu não tenho nada pra dizer não,
minha vida todo mundo sabe (silêncio), quem mandou o senhor aqui?”. Após
inúmeras explicações os ânimos arrefeceram, manteve o olhar altivo dos pés à
cabeça, parecendo julgar minhas posturas corporais (Zumthor, 1993).

3
Estávamos calados, mas a sala continuava com muito barulho, os
equipamentos da borracharia e as conversas do lado de fora, contrastavam com o
nosso silêncio. Muito embora, com o passar do tempo tive a impressão de que as
sonoridades eram um componente rítmico de nossas vozes. Disse não ter muito a
contar, e que estava com pouco tempo. Por isso, ia me responder algumas dúvidas,
mas nada de demorado. Perguntei se podia voltar depois, ela fez sinal negativo
com a cabeça emitiu secamente um “Melhor não...”. Resolvi então aproveitar a
“meia horinha”, que tinha me oferecido. Inicialmente estávamos bastante tensos.
Como é possível constatar acima, creio que alimentava receio diante da imagem
negativa que teria a seu respeito.
Ameaçada, utilizou o silêncio e com relutância escapou para outros assuntos
aparentemente sem importância, talvez como estratégia de defesa. Ao mesmo
tempo em que mantive o respeito, convertendo o silêncio como parte da narrativa,
pensando sobre a importância do pesquisador de história oral não ser apenas um
ouvinte, mas aprendiz de vozes silenciosas (Portelli, 1997:22). Também,
estrategicamente, enveredei por temas que pudessem convergir à temática de meu
interesse, como saúde e memórias de infância.
Dona Fátima esperou apenas pelas primeiras perguntas, depois, começou a
falar aleatoriamente sobre vários assuntos. Tentei ordenar, sequenciar por meio de
perguntas, mas ignorando a maior parte das intervenções, narrou como se
estivesse “descarregando” as situações vividas. Passei então a ouvir e, quando
possível, perguntar, questionar ou reforçar algumas experiências:
Professor, num acredito muito nessas reza que faço não, sabe!? Faço
porque pedem, mas num levo muito a sério não (risos), sou católica,
sirvo a Deus, acredito nos santos, principalmente Nossa Senhora de
Nazaré. Acho que esse mundo é só ilusão, o mundo de verdade mesmo
é o espiritual, por isso me apego em Deus. Sabe, eu num curo, não faço
nada, é Deus que faz. Eu falo pro povo que bate na minha porta: Vou
rezar, se der certo bem, se não... Fazer o quê, né? Outra coisa, não
incorporo espírito, nem caboclo e oiara, não tomo cachaça nem faço
adivinhação.
(D. Fátima, entrevista realizada em Outubro de 2011)

Para muitas pessoas, a relação entre as incorporações de espíritos, caboclos,


caruanas ou oiaras e o consumo de álcool em alguns rituais de pajelança são
genericamente designadas como bruxaria, macumba ou feitiçaria. Pelo menos esse
tem sido o discurso vinculado ao catolicismo oficial, e às diversas formas de
religiosidade nos últimos séculos de colonização amazônica presentes na escrita de
Mello e Souza (2009) e Maués (1995).
Acrescenta a esses, tomar cachaça e fazer adivinhação. Muitas religiosidades
utilizam o consumo de bebidas alcoólicas nas práticas religiosas da Amazônia,

4
mesmo esta não sendo consumida em certas ocasiões5. No entanto, a apreciação
de bebidas foi adotada no imaginário popular como sinal dessas crenças. Assim
como a adivinhação, amplamente divulgada e igualmente procurada por populares,
porém, jamais assumida por essas pessoas, bem como pela maioria dos próprios
“adivinhos”.
A tentativa desesperada de organizar as narrativas da rezadeira esteve
atrelada a pretensão de estabelecer recortes de acordo com o contexto da
pesquisa. Recordo atualmente que ignorei, por exemplo, como D. Fátima
apresentou afetividades distintas ao recordar preconceitos religiosos em tempos
diversos: a zombaria de outras crianças, na infância, em tom humorístico; na
juventude com melancolia e aqueles vivenciados na vida adulta, com rispidez e
sarcasmo. Obviamente ao ignorar essa multiplicidade de afetos, creio ter perdido a
oportunidade de compreender a forma com que D. Fátima se relacionou com o ato
de rezar em sua história de vida. Resultado da apropriação tanto da palavra como
da contextualização da pesquisa, Crapanzano (1991: 76,79) alerta que, apesar do
pesquisador amordaçar o seu recorte temático na “tirania da citação”, a este lhe
escapa um domínio irrestrito, pois “qualquer que seja a resistência daqueles com
quem conversamos, eles sempre são um pouco nossa criação, assim como nós
somos a deles”.
Com o passar do tempo a rezadeira pareceu relaxar e durante uma fala
levantou-se. Ao voltar disse que tinha ido diminuir o fogo do fogão para não
“queimar tudo”. A forma rápida com que retornou da cozinha, retomando
automaticamente o fio da narração, demonstra como a benzedeira estava imersa
nos domínios da memória, priorizando este momento em detrimento de outros
afazeres.
Hoje eu quase num rezo mais, às vezes um e outro vem e diz: “D.
Fátima reza aqui, reza ali, tira um quebranto, uma crista de galo”, [...]
mau olhado, bruxarias, essas coisas de espírito desgraçado... Do diabo
mesmo, né? Pelo amor de Deus! Por Nossa Senhora! Eu tinha sossego,
não. Era dia e noite, um amontoado de povo na minha calçada querendo
reza. Muitos anos de aperreio... Esses municípios tudinho, tudinho... Era
só afobação.
(D. Fátima, depoimento citado)

5
As práticas de pajelança, benzeduras ou reza, dependendo do local e dos saberes das populações
amazônicas adquirem particularidades. Um exemplo é o consumo de chás, caldos e em determinadas
comunidades, bebidas alcoólicas nos rituais de cura. Em diversas religiões o consumo de bebidas
(alcoólicas ou não) é um componente ritualístico poderoso “uma das principais características da
barquinha é o uso da ayahuasca, denominada localmente de Daime, como uma bebida típica de índios
amazônicos que teve seu uso difundido entre seringueiros e hoje é consumida em diversas religiosidades
conforme assevera Mercante (1980: 48). A esse respeito, em conversa informal, o Antropólogo Heraldo
Maués define que consumo de bebidas nos rituais religiosos pode ser conceituado como “Empeógenas”
ou “Deus dentro”; a fim de percebermos que o uso do vinho na eucaristia católica e em determinadas
religiões protestantes também comungam dessa definição.

5
A Recordação do sofrimento ao atender tantas pessoas oriundas de vários
municípios, o aglomerado nas calçadas são imagens que não apenas sintetizam a
“época de aperreio” como convivem com a representação de “feiticeira” e “pajé”. O
reconhecimento social e a conversão de olhares e interesses em suas rezas
agregam, portanto, relações identitárias que dissolvem a compartimentação entre
individual e coletivo. Isso explicar, em parte, a construção do argumento de que
“só reza por causa do povo”, pois durante muito tempo juntavam-se na porta de
sua casa.

Tá... Olhe, minha família morava pras banda da Sebastião de Freitas


(Rua localizada no centro da cidade) naquela época era só mato, mato
mesmo. As casas eram tudo longe uma d’outra. Mas tinha uma vizinha
que tinha muita dor de cabeça, era filha do Manoelzinho, ela chorava,
gritava (fala apreensiva, com muitos gestos) aí um dia – eu tinha sete
anos – peguei umas plantas, uns matos que ficavam perto de casa,
assim bem colado nas paredes (risos), eu não entendia de nada de cura
não. Era na INTUIÇÃO (risos), mas deu certo. Passou-se, depois seu
Manoelzinho ia em casa pegar reza quase todo dia, aí minha mãe
perguntava: “que doidice é essa menina?” o senhor sabe, né? Nessa
época o tabefe comia logo! Vixe... Apanhei muito por causa disso. Minha
mãe era paraibana braba e não entendia de nada. Mas com tempo foi
aceitando, aceitando, aceitando até chegar um tempo que aparecia
umas amiga dela pra mim rezar, passar remédio e tudo, foram
acostumando. Eu num impressionava não, vinha na cabeça e eu haja
pegar mato pisado (risos) dava certo, né?! Aí eu continuava.
(D. Fátima, depoimento citado)

A narradora demonstrava grande ansiedade para falar sobre essas


recordações, recompondo paisagens, personagem e situações vividas quando
despertava para o poder de rezar. Sobre o despertar desse “dom” assinalou: “veio
um impulso, uma força ‘vindo de dentro’, e então rezei e deu certo”. Notei que
dona Fátima se esforçava para expressar o que sentiu, mas não encontrava
palavras, percebia uma preocupação em transmitir e compartilhar comigo essas
experiências. A reza é vista nesse momento como uma dádiva, algo que brotou
espontaneamente na cabeça da rezadeira.
Enquanto descrevia seus tempos de infância, curiosamente, também fui
deslocado ao meu passado familiar. A imagem dos pés de planta na parede lateral
da casa, quintais amplos, ventilados e a percepção de residências divididas por
cercas de madeira semi-aberta, pequenos riachos ou cacimbas deram-me a
sensação de aconchego no sofá da rezadeira, o cheiro da mata verde e nascente
após as chuvas noturnas de dezembro fora entrelaçada tanto ao fiar mnemônico de
D. Fátima quanto à forma como passei a representá-la em minha escrita. Esse
horizonte ampliado do aqui e do agora que se esvai para tempos alternados do
imaginário, são, na verdade, coloridos pela aparição intersubjetiva da
subjetividade. A experiência compósita vivida por mim talvez esteja na “fronteira

6
da imaginação”, no “mundo de sombras”, denominado por Crapanzano (2005) de
“cena”; isto é, um episódio originado em dramas interlocutórios, onde a
subjetividade vive a metáfora do ator na peça de teatro: a percepção da existência
do público pelo ator oscila ante o aspecto “interno” da própria cena.
As memórias de infância são abandonadas por um tempo associado a
“doenças inexplicáveis”, desmaios e pesadelos diversos, descritos pela narradora
como parte do gradativo processo de desenvolvimento do dom:
Mas o brabo mesmo na minha vida começou lá pelos vinte dois, vinte
três anos. Era casado novo – meu marido era um homem muito bom,
Deus me deu de presente, paciente, aguentou muita coisa, muita
doidice minha – tinha dois filhos, aí eu vi o inferno. De um dia pro outro
comecei a ter pesadelo, desmaiava todo dia, parecia o Cão! De dia só
dava tempo de dá de comer pros meus filhos, depois caí mesmo, minha
mãe me acudiu muito. Tinha moleza no corpo, preguiça braba, fartio,
tava seca em vida, tava morrendo viva... Às vezes parecia que saia de
mim [do próprio corpo] na calada da noite, sonhava com coisa do nosso
mundo e do mundo da banda de lá. O povo da antiga dizia que era os
encanti, né? Sei não! Os filhos perambulando pela casa tudo sujo,
maltratado, ficava no fundo do quintal de coca olhando pro tempo.
Marido chegava hum... Não tinha nada feito pra ele, comida, roupa,
nada... Nem sossego pro pobre.
(D. Fátima, depoimento citado)

Dona Fátima é uma rezadeira que tem experiências com visões, presságios,
experiências com espíritos de noite, andanças nos cemitérios e idas a outros
mundos. Experiências religiosas envolvendo sonhos, transes, visões e sentimentos
de isolamento indicam, no caso de êxtases xamânicos, a possibilidades que essas
forças – os encantados no contexto Amazônico – têm ao transportar certas pessoas
para o seu mundo, a exemplo da iniciação e hierarquia de Mestres na pajelança
marajoara, descritos por Cavalcante (2008) e representações de reinos aquáticos
presentes no imaginário de literatos paraenses, estudados por Figueiredo (2008).
A preocupação com a família foi constante em suas narrativas, o ser
rezadeira é um desdobramento do “ser mãe” e “ser esposa”, os papéis sociais se
imiscuíam, intensificando as preocupações. Como não conseguia desempenhar as
atividades domésticas e não cuidava dos filhos, o fundo do quintal era o único lugar
que buscava, afirma que ficava olhando para a mata, não conseguindo nem pensar
direito.
Enfatizou o distanciamento da casa, o isolamento da família, e o estado de
absorção ante o movimento das folhas nas árvores às memórias de infância. A
descrição de como brincava sozinha na mata, muitas vezes isolada da família, e de
como as folhas caíam das árvores constituíram um cenário adotado por mim como
símbolo da iniciação xamânica da benzedeira.
De noite, bem na boca da noite (madrugada) hum... O senhor não vai
acreditar; um cavalo grande passava a noite toda se esfregando na

7
parede, roçando ao redor da casa a noite toda, comendo capim sabe?!
Dava pra ouvir o barulho dele puxando capim com a boca (imita o som).
E se eu lhe disser que não tinha e nunca teve um só pé de capim no
meu quintal! Quase fico doida. Se não fosse um homem bom, tinha me
deixado, vixe! Eu via coisas, vulto... Os ventos falavam comigo.
(D. Fátima, depoimento citado)

Conforme Maués & Villacorta (2004) nas pessoas que tem o dom de viajar a
outros mundos, abre-se a possibilidade de manifestações dos encantados no espaço
físico em corpos de animais aquáticos, terrestres e aves de agouro de todo gênero.
Eliade (1960) em clássico estudo sobre xamãs na Sibéria aventava a ida desses
escolhidos a outros mundos, o céu e inferno transpareciam como locais de conflito
com entidades diversas para obtenção da cura e proteção. Estudando a cura
xamânica em São Caetano de Odivelas, Trindade (2007: 127-137) analisa
narrativas sobre encantados associados ao vento em Pajés. Em minha dissertação
de mestrado, penso D. Fátima como emblemática nesse sentido, pois apresenta,
dentre outras, fartas narrativas a respeito das experiências que intitulo de
“Encantados do Ar” (Silva, 2011).

No cercado de Zé de Deus

O encontro de D. Fátima com Zé de Deus é um dos momentos mais


emocionantes da narrativa, neles o sofrimento da narradora vem à tona de muitas
maneiras. Denotava viver no limite de suas faculdades físicas e mentais:

Um dia uma conhecida da mãe disse pra eu procurar um rezador muito


famoso aqui em Capanema – ele já morreu faz uns anos – um neguinho
bem velho mesmo, mas disque tinha muito poder, fazia e desfazia
bruxagem. Olhe (silêncio) foi uma luta pra mim ir com esse homem,
fugia, me escondia, mentia. Até que um dia me levaram, e era longe,
era pra banda da quinta... Sexta travessa...6 Andei quase onze
quilômetros, parava, corria, desistia. Tava toda suja, de correr, rolar no
chão [...] não sabia se era eu ou eles [espíritos/encantados] que tava
correndo. Era uma doidice só (risos). Quando cheguei lá era uma
casinha simples, bem no matagal, era chamado Zé de Deus, vivia com a
irmã, dentro da casa tinha vários cestos, assim, de vidro de ervas,
remédio de perder de conta.
(D. Fátima, depoimento citado)

Zé de Deus era um homem negro, idoso, que veio do Maranhão ainda


jovem para região Bragantina. É representado no imaginário local como bom
rezador, especialmente para desfazer feitiços, encantos ou “bruxagem”. O encontro
com Zé de Deus era seguido de fugas, acidentes e sofrimentos inexplicáveis que
afligiam toda família. Interpretava esses incidentes como se os espíritos agissem
para impedir o seu encontro com o rezador.

6
Na época um Ramal de terra batida, cercada de mata fechada localizada na estrada Capanema-Salinas.

8
A narrativa de dona Fátima é tomada por um clima de intensa agitação.
Sentada no sofá, ergue e baixa os braços como se estivesse realizando exercícios
físicos, olha para todos os lados, no intervalo das frases. O humor oscila entre
risadas e lamentações altamente melancólicas. O desempenho performático da
narradora ao reviver essas experiências é reforçado, no final, pela imagem de uma
senhora suada com respiração ofegante e fisionomia angustiada.
Particularmente a imagem de uma mulher jovem, correndo, rolando no
chão, se escondendo no meio das árvores, com vestido sujo, unhas dos pés e mão
fincadas de terra e casca de árvore, cabelos desgrenhados e vigiada pelo marido
em quase todo o percurso, despertou lembranças de experiências religiosas vividas
por mim, ainda hoje bem significativas.
Entre 15 e 17 anos de idade fui evangélico de uma Igreja Batista local,
nesse período, tanto na cidade como em comunidades mais afastadas promovíamos
os chamados “cultos de libertação”. A presença de mulheres se debatendo no chão,
homens “incorporados” passando horas em cima de árvores, foram maximizadas
pela crença de que o Diabo e seus asseclas visitavam esses corpos sob o signo de
Exu, Pomba-Gira, Caboclos, Índios mortos e assombrações diversas.
Deixando de lado a história de preconceito e demonização rememorada por
mim, em meio a práticas religiosas que, na verdade, gostaria muito de esquecer,
chamo atenção para questões que penso não sucumbir: Ao tentar compreender as
práticas culturais dessas rezadeiras, não estaria, na verdade, em busca de
redenção? Tendo em vista o passado outrora apresentado! Em perspectiva oposta,
na ânsia de descrever essas religiosidades como portadora de dinâmicas internas e
isoladas, não estaria negligenciando as representações cristãs? Será que o jovem
“exorcista” apenas mudou de ferramentas? Não duvido de que, em alguns casos, o
etnógrafo é um exorcista em potencial! (Ginzburg, 2006). E por fim, apesar do
esforço associativo entre o percurso da rezadeira na Sétima travessa e minhas
pelejas contra as “possessões diabólicas”, cabe perguntar se há algum sentido
nessa elucubração.
Talvez todas essas questões não sejam pertinentes, talvez ainda esteja sob
a batuta de todas. Ainda há a possibilidade de ter perdido a oportunidade de propor
questões, de fato relevantes. Pois, conforme atesta Tedlock (1986: 200), “as
implicações máximas do diálogo podem ser adiadas, ao se escutar às escondidas, o
discurso dos outros, mas se tal discurso vai ser traduzido e interpretado, então o
etnógrafo da fala, deverá, mais cedo ou mais tarde, se tornar um etnógrafo
falante”.
Voltemos ao encontro com Zé de Deus. Quando chegaram à vila,
perguntaram pelo rezador, as pessoas se olhavam, depois olhavam para ela toda

9
suja, cansada e todo tempo com o marido e a irmã segurando-a nos braços, então
indicaram um ramal de uns cento e vinte metros e lá no fim estava à casa do
rezador. Era um local pequeno, com paredes de barro, coberta de palha e com
muitas imagens de santos.
Ele ficou me olhando um tempo, disse pra me soltarem que eu num ia
correr não, ia ficar sentada de qualquer jeito, aí falou pro meu marido
que me acompanhava: “A doença dela não é pra doutor não, é doença
pros Santo curar, com a ajuda de S. Benedito e os incante vou tirar esse
espírito de bruxagem que fizeram pra ti menina”. Fiz quarenta dias de
reza, tomei erva e nunca, NUNCA saía de casa meio dia (12 horas) e fim
de tarde (18 horas), pois senão os bichos do vento ficam valentes de
novo. No último dia ele falou assim: “Deus te curou e S. Benedito
também, não quero nada, mas você é médium, recebe mensagem e vai
de agora em diante ajuda os outros”. Não sabia dizer nada, fiquei
olhando assim, égua! Não sei rezar direito, não entendo de remédio,
não sei de nada disso, ele só riu e disse que eu ia aprender que minha
força ia aumentar com tempo, me fez comprar baralho e tudo, não sabia
nem dobrar carta, ele teimava que ia aprender, pois bem... Assim foi.
(D. Fátima, depoimento citado)

Durante quarenta dias a rezadora precisou ir com Zé de Deus, o tratamento


era realizado com erva pisado e tabaco. Suas narrativas descrevem, como passava
a manhã com ele, ajudando a fazer farinha, pisando tabaco, conversando sobre
assuntos de família, coisas do cotidiano. Às vezes exigia que rezasse um Pai Nosso,
determinava ainda os dias que precisava ir toda de branco, com terço no pescoço.
Sobre as possessões, ou causa de doenças não naturais é importante lembrar que a
benzedeira compartilhou a ideia de que dependem da fraqueza ou fortalecimento da
vítima, se esta tiver com o espírito fortalecido, o espírito estranho não conseguirá
possuí-la.
A imagem de seu Zé como um grande rezador, se contrapõe com o fato de
que não viu nada de “mágico” ou “maravilhoso” nos seus feitos. Os dias em que ia
à casa de Zé de Deus estão fortes na sua memória pelas conversas e trabalhos
realizados. A memória construída sobre o velho rezador é a de um homem do
cotidiano, que aprendeu suas sabedorias na relação com o mundo natural. Essas
experiências, adaptações e leituras que a cultura é capaz, têm estreita relação de
proximidade, continuidade e transformação na forma que os homens percebem o
mundo natural, como é o caso das mulheres estudadas no ritual do Sabá
(Ginzburg, 1991)
Às vezes eu ficava assim, pensando, né? “mas eu num tô fazendo nada,
só aqui trabalhando”, mas eu me sentia bem. Cada dia que passava
aquele sufocamento nos peito ia me deixando, sabe? Parecia que tava
protegida [...] bem de início inda sentia arrepio nos braço quando
pegava a estrada pra lá (casa de Zé de Deus), mas, parando de ouvir
voz [...] os sopro foram acabando. Tinha dia que passava o dia todo
fazendo farinha, mas tinha uma coisa, ele me botava no terreiro, pegava
uns cipózinho de pé de maracujá e botava tudo ao meu redor, parecia

10
uma cerca de cipó e falava: “não sai daí pra nada, se quiser saí me
chama que eu desfaço o cercado [...] se tu pular vai morrer em três
dias”. Num tinha um dia que não trabalhasse. Mesmo depois que
aprendi a rezar, ainda depois de um tempão ainda ia com ele pra
explicar os meus sonhos, sabe? Às vezes eu não dizia nada, mas era só
chegar na porta da casa que ele já abria sorriso com canto da boca
(risos), porque da outra era o cachimbo, né?
(D. Fátima, depoimento citado)

Atentemos que a narradora foi retirada, parcialmente, do seu contexto


familiar, mudou a rotina de trabalho, trocou as atividades domésticas e o cuidado
das crianças por serviço manual pouco realizado. Há uma tendência em pensarmos
o tratamento de dona Fátima, como uma forma de exploração ou pagamento pelos
“serviços” de Zé de Deus. Mas o relato da depoente não denotou esse sentimento,
compreendeu esse período como uma “época de aprendizado”, no diálogo diz ter
aprendido lições para a vida toda... Então, o pisar tabaco, o fazer farinha, fizeram,
assim entendo, com que não se sentisse fora deste mundo, afugentando o
sentimento de isolamento.
Lembremos que no decorrer da transcrição acima, mencionou os “encantes
do vento”, interrompeu a lógica do seu raciocínio para inserir um fato
aparentemente “desconexo”. Somente após a transcrição da entrevista, dias
depois, comecei a interrogar o significado, não do termo em si, mas o porquê dele
estar inserido nessa situação especifica. Depois de quase vinte dias após a data da
primeira entrevista, fui compelido por uma curiosidade irresistível a buscar outras
narrativas sobre esses encantados do vento. Ao fazer o questionamento para a
entrevistada, ela sorriu e disse em tom de despedida: “tem os encante meu do
vento, seu menino! Sai voando, né?”
A vontade de clarificar e julgar que me arrastou novamente a casa da
benzedeira, desvela duas inquietações que considero fundamentais. A primeira diz
respeito ao percurso feito pelo pesquisador, que muitas vezes, ao vivenciar o
confronto entre a pesquisa de campo e o momento de edição textual – se é possível
distingui-los – na tela do computador, cercado de referências acadêmicas adota um
procedimento sistêmico no estudo da experiência social. Questão amplamente
analisada por Rabinow (1999: 98-99), a ideia de “lacuna” e “coerência” pertencem
ao domínio interno e limitado do mundo da lógica, de modo que, “tanto o
antropólogo quanto o nativo estão engajados na interpretação do sentido do
cotidiano. Problemas de representação são centrais para ambos e são o lócus da
imaginação cultural”.
A segunda questão é uma suspeita ingênua. Notei com o passar do tempo
que D. Fátima havia compreendido o que, naquele período, o seu interlocutor
buscava ouvir. Em conversas posteriores mal íamos sentando e a rezadeira

11
discorria sobre inúmeros relatos de desaparecimentos, malineza e manifestações
dos encantados, mortos-vivos e demônios. Achava curioso quando narrava enredos
semelhantes com personagens e locais distintos repetidamente, assim como, após
longas narrativas, procurava dar-lhes sentido, isto é, discorria sobre regras locais
nos horários de caça e pesca, modos de portar-se nos dias santos, lições de moral
e coisas do gênero. Certa vez levei fotos antigas da cidade e conheci outras versões
sobre a história de Capanema. O meu interesse em descrever essas situações tem
como objetivo perceber que as narrativas de D. Fátima sobre acontecimentos aqui
esquadrinhados, foram, paulatinamente, adquirindo feições que permitem abrir
outras formas compreensivas.
Um exemplo é a leitura de D. Fátima sobre a armação de cipó em formato
circular posta por Zé de Deus. No inicio interpretei a cena como uma forma de
proteção contra o assédio dos encantados, pelo menos enquanto não fosse capaz
de controlar as entidades. Em conversa realizada no início de Novembro, minha
sugestão interpretativa é questionada por outros contextos narrativos.
Ah! A história do cipó, né? Eu era teimosa demais! Ele dizia que era
porque eu não sabia o meu lugar, e como perambulava muito pelo
terreiro marcou um lugar pra mim [...] era engraçado ver que o velho
fazia isso com um cachorro que ele tinha, sabia? E não é que o pequeno
obedecia?! O senhor já viu passarinho nascido em gaiola, né? Depois de
um tempo aquilo ali é a casa dele, mesmo se sair não voa mais. Esse
cachorro levava era muita cipuada. Ele tirava os cipós dava uma peia no
bicho e depois colocava esse mesmo cipó de volta, que é pra justamente
não esquecer. Um dia eu quase levo umas também (risos), nesse dia me
disse assim: “se tu não sabe o teu lugar como é que o teu povo (os
encantados) vão saber os dele”. No inicio era um cercadinho [...] depois
foi aumentando, aumentando até que não colocou mais.
(D. Fátima, entrevista realizada em Novembro de 2011)

A narradora descreve a cerca de cipó como uma estratégia didática de Zé de


Deus. Não se tratava de proteção, nesse sentido, e sim de compreender
determinados limites. O controle de si pressupunha o domínio sobre as entidades.
O gradual alargamento da cerca e seu total desaparecimento no final do
tratamento, não significava uma libertação absoluta, mas o reconhecimento de
fronteiras imaginárias que a rezadora deveria aceitar para o resto da vida.
A criação de um círculo compreensivo como um lugar limítrofe em processo
de identificação, fez-me pensar no cercado imaginário de Zé de Deus, e,
principalmente na cerca repleta de domesticidade que envolve a dita pesquisa de
campo. O processo de construção e reconstrução não apenas da mensagem, mas
das condições de enunciação revelam, segundo Crapanzano (1986), não a tentativa
de portar a mensagem da verdade, nem da idealização normativa que compõe a
autoridade discursiva, mas principalmente de viver a aproximação parcial de
significados, elemento que nos faz produtores de sentido.

12
Palavras Finais
A mensagem que nomeia é percebida pela interpretação das “vozes do
vento” enquanto preço pela consolidação da identidade de ser rezadeira, isto é, não
se tratava da perda do contato com os encantados, mas de estabelecer outras
formas de comunicação. Os laços de cumplicidade do “fazer-se” dos sujeitos
históricos em questão apontavam para a afirmação das tradições, sem negar suas
(re) atualizações (Thompson, 1998).
As encantarias eram o suporte identitário, os agenciadores, modus operanti
do fazer-se dessa rezadeira. O processo “terapêutico” de reconhecimento do dom e
autocontrole deste implicou no reconhecimento de uma identidade que passa não
apenas pela iniciação nas rezas ou na aquisição dos saberes da floresta, mas
também pelos mínimos aspectos do cotidiano, dos múltiplos signos que transitam
na tessitura do “eu”
No momento do tempo passado, houve uma relação entre seu Zé de Deus,
o intérprete, e, concomitantemente, dona Fátima, que interpretava as mensagens
enunciadas por ele. Atualmente a rezadeira (re) constrói o episódio interpretando
não apenas as palavras dele, mas a relação entre ela e o rezador naquele instante.
E finalmente, a forma e o tempo como sua memória e narrativa chegam até mim,
produzem outros significados.
A consciência da narradora, isto é, a maneira de experimentar a
compreensão de si no horizonte da temporalidade tem uma relação critico-reflexiva
com elementos que, advindos da tradição e das vozes do passado, chegam até nós.
Esse movimento do discurso identitário não se fecha apenas como memória; ao
preocupar-se com o juízo que seus pares sociais pudessem ter a seu respeito,
projeta expectativas, denota um esforço titânico para recortar, transfigurar,
costurar as relações entre o aquém (passado memorial) e além (projeto rumo a
possibilidades) na comunidade (Soares, 1988).
Pretendemos através do narrar e ouvir, contextualizar essas vozes, com o
intuito de perceber os significados dados no encontro da “fusão de horizontes”
(Cardoso de Oliveira, 1997). Essa tarefa da consciência histórica é denominada de
interpretação (Gadamer, 2003:18-19). O intérprete estaria, portanto, sempre na
tensão entre o seu olhar do passado e a percepção de elementos denotativos de
uma temporalidade experimentada.
Nesse sentido, a relação mediadora e fronteiriça entre Deus, os santos e os
encantados perpassam outros pólos de tensão. Experiência individual,
transformação social e representação do mundo natural (florestas, rios, ventanias e
animais) são experiências que atravessam a percepção identitária da rezadeira, ao

13
mesmo tempo em que molda e cria sentidos na percepção do etnólogo. Dona
Fátima não “faz” apenas o seu sentido/destino na comunidade, mas, através do
poder conferido por seus pares e pelo acúmulo de sabedorias de matrizes oriundas
de tradições orais, coloca-se como portadora e responsável pela mensagem do
destino em relação ao Outro. É o discurso que anuncia, na medida e contexto que
escuta e deixa-se falar.
O sentido dado à memória narrada é uma interpretação da mensagem, um
modo particular de transmissão. Pensar narrativas, discursos e mediações na
Amazônia, significa perceber que, para além das construções exógenas, exóticas e
estereotipadas impostas pelo saber racional romanizador e/ou mercantilização de
práticas culturais, há, sem dúvida, vozes dissonantes, homens e mulheres que
entre juncos, vilas, canoas e estradas atravessadas por árvores, animais e Deuses
da floresta, pretendem conquistar o direito de voz e escuta nos espaços de
afirmação negociação e luta, onde “todo compreender acaba sendo um
compreender-se” (Gadamer, 1997: 394).

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16
Tenda São Jorge Guerreiro: “Maria Bonita”, a mãe-de-santo, a filha, a religião e a
história.

Bruno Barros dos Santos1


Cleides Antônio Amorim2

Na busca por entender o universo simbólico, material e espiritual do Outro, este


universo que é constituído pela mãe-de-santo, Maria Bonita e suas filhas-de-santo, que
trabalham no terreiro Tenda São Jorge Guerreiro é que toda nossa investida se faz
necessária. Nosso objetivo é entender o comportamento religioso das pessoas da Tenda
São Jorge Guerreiro a partir do comportamento ritual que é sempre pleno de gestos, falas,
danças, doutrinas e etc... Em outras palavras, é a partir de uma análise comparativa que
buscaremos encontrar onde os discursos e práticas cerimoniais do mencionado terreiro se
distanciam e se encontram com as outras religiões afro-ameríndio-brasileiras, a fim de
descobrirmos os elos de significação que permitem que essas práticas se comuniquem a tal
ponto que possamos classificá-las como pertencentes a um ethos geral.

Panorama afro-brasileiro

Não é nossa intenção enquadrar a manifestação religiosa das médiuns em nenhum


tipo ideal, queremos sim, analisar os ritos e as narrativas, para que possamos fazer um
diálogo entre as diversas práticas religiosas como o candomblé, a umbanda e o tambor de
mina, visualizando onde as práticas de nossas entrevistadas se aproximam e se distanciam
das mesmas. Queremos também observar o que de novo existe na prática de nossas
entrevistadas, algo que não ocorre em nenhuma outra religião, mas temos certeza de que
nenhuma religião hoje é pura, nem o candomblé jeje, nem a mina nagô.
Foram usadas muitas estratégias para que as religiões afro pudessem se manter
ativas, uma dessas foi a associação de seus deuses, os orixás, com os santos católicos, algo
que para muitos pesqu isadores e mesmo sacerdotes não seria possível graças as similitudes
arquetípicas. O sincretismo de práticas religiosas começa bem antes da escravidão no
Brasil, entre as próprias tribos africanas aconteciam assimilações de características
culturais. Houve uma perfeita junção das práticas de religiões afro no Bras il, mas segundo
Prandi, “as que mais se propagaram foram as matrizes queto (ioruba) e angola (bantu)”
(Prandi, 2001, p.2). Existem divindades para o santuário, as tarefas domésticas, as formas
lúdicas, para a agricultura e etc. Não que isso represente um preservasionismo maior. As
2

várias matrizes religiosas também tem linguagem própria as mais conhecidas são o ioruba,
fon e bantu. Cada região do país tem uma matriz religiosa correspondente, na Bahia o
Candomblé, no Recife e Alagoas o Xangô, no Maranhão e Pará o Tambor de Mina, e no
Rio Grande do Sul o batuque.

Candomblé

No terreiro de D. Maria Bonita pode-se notar ponto riscado3 para Oxalá – orixá
sincretizado com Jesus Cristo. As paredes internas do terreiro são cobertas de quadros de
entidades e santos católicos, tais como Indaiá (cabocla indígena), Pai João (preto velho),
Janaína (nome brasileiro de Iemanjá), Jesus, Santo Antônio, São Lázaro. No altar estão
expostas várias imagens e esculturas de gesso como a de Santo Antônio, São Jorge, Nossa
Senhora da Consolação, Bom Jesus da Lapa, Padre Cícero, Iemanjá e uma infinidade de
entidades indígenas e caboclas. Todo o altar é decorado com muitas fitas envoltas nas
imagens, bola de cristal e muitos jarros de flores. Em baixo do altar, do lado esquerdo,
discretamente, há pratos com oferendas para os Exus, e do lado direito existem oferendas
dedicadas aos encantados que não trabalham na chamada linha “negra”4. Embora os exus
sejam ali alimentados, não existem cerimon ias de consagração para eles e para as
Pombagiras, no começo do culto, algo que é característico em outras práticas afro-
brasileiras como o candomblé e a umbanda.
Também diferentemente das religiões mencionadas acima, no terreiro de D. Maria
não há rit ual de iniciação das médiuns. Conforme nos foi relatado, elas chegaram ao
terreiro através da busca pela cura ou tratamento de alguma doença e descobriram que seus
infortúnios seriam em decorrência a sua mediunidade e, portanto, para livrarem-se destes
males teriam que ‘trabalhar’ no terreiro. Já a mãe-de-santo nos relatou que fora iniciada
por Pai Denilson, no Pará. Segundo D. Maria Bonita, em seu ritual de iniciação ela teve a
cabeça raspada e sofreu várias incisões por todo o corpo, o que nos faz supor tratar-se de
um ritual do candomblé, embora a mesma não confirme.
Tambor de mina

No Tambor de Mina é comum à incorporação dos encantados retratados nos


mitos, diz-se que eles não morreram, mas simplesmente se encantaram. Vale ressaltar que
os encantados classificados como turcos não são exclusivamente desta origem, pois
3

segundo as histórias desses encantados eles ao chegarem às terras brasileiras entraram em


contato com índios e caboclos que os adotaram como membro de suas famílias. Um bom
exemplo disso é Caboclo Velho, conhecido nos terreiros de mina do Maranhão como o
mais velho índio a descer na ‘guma’5, mas que geralmente é recebido nos terreiros quando
estes homenageiam, ou apenas cantam, para as entidades afiliadas ao Rei da Turquia.
Também é comum ouvir das pessoas de mina que algumas entidades foram adotadas por
Rei da Turquia devido estas terem aderido à causa moura contra os cruzados. Exemplo
disso é a chamada Rainha Douro ou Dodô, que no Maranhão é associada à Joana D´Arc e
no terreiro que estudamos é chamada de Mãe Marina. Segundo D. Maria Bonita, Mãe
Marina teria trabalhado nos navios negreiros e lutado na guerra vestida de homem. Assim
sendo, D. Maria associa Mãe Marina à santa católica Joana D’Arc.

Umbanda
Embora a umbanda tenha em sua origem uma forte contribuição do kardecismo,
doutrina que dá atenção especial à vida após a morte, onde se recebe espíritos de mortos
com o intuito de mostrar-lhes o “caminho da luz”, da transcendência, ou para estabelecer
comunicação entre os mortos e seus parentes, a umbanda, ao longo do tempo agregou
outras crenças brasileiras. De modo que no terreiro onde realizamos nossas observações, a
comunicação com os mortos não é nem de longe a principal preocupação do grupo. Ali é a
relação com os encantados que assume lugar de destaque e estes não são apenas espíritos
de pessoas mortas, mas diferentemente, possuem matéria e até podem sair da condição de
encantado. Conforme nos relata Dona Maria Bonita:

[...] Bem aqui na Pira, um homem pegou uma Mãe D’água desencantou e
casou. Ela não falava, aí disse que um dia ela teve um filho dele. Ele
matou uma galinha e passou o sangue na rede da criança, aí pegou a
menina, afirmando: - Olha eu matei. Levou a faca assim, disse que ela
gritou, os búzios caíram lá no pé dele. Elas [as mães d’água] têm os
búzios, saiu os búzios que tinha na goela dela, aí ela ficou falando. O
homem já era velho e morreu. Ela ficou. Ficou no mundo com uma
filhinha, não entrou mais na água.

Este relato contado por Maria Bonita demonstra qual a importância e a


significação empregada em relação aos encantados, a proximidade se faz notar muito mais
do que em outras religiões aqui descritas. Mas sabemos também que essas entidades do
relato podem incorporar e, conforme D. Maria, só incorporam as encantadas mais velhas.
Pajelança
4

A pajelança é uma herança de nossos ancestrais indígenas, mas hoje agrega tanto
características do catolicismo popular quanto de práticas africanas. É tanto uma religião
quanto uma prática terapêutica. O pajé no momento dos rituais usa como instrumentos, o
maracá, o tauari6, penacho7 e glanchamas8, bem como uma mesa rodeada de santos
católicos e entidades caboclas e indígenas. São várias as linhas de encantados e seus
encantes relacionados à pajelança, a entidade que trabalha com o pajé chama-se mestre, as
diferentes linhas são: a de água doce, salgada, das matas, dos igarapés. Eduardo Galvão
nos diz que:
os casos e as descrições dos sobrenaturais, “encantados” como os
companheiros do fundo ou os botos, bichos visagentos, currupiras e
anhangas, acentuam as concepções entre estes seres e o homem. [...] São
como que entidades protetoras que guardam a natureza contra sua
depredação pelo homem (Galvão, 1976, p. 79-80).

As práticas africanas de pajelança são tidas por pesquisadores como uma


representação da pajelança indígena e não uma herança dos mesmos. Muitos curadores
foram perseguidos e presos, por conta de suas práticas, uma das características mais
perseguidas foram às possessões, muitos curadores se tornaram umbandistas por conta
disso. Nina Rodrigues (2008) foi um dos pesquisadores que ajudou a diminuir esse
preconceito, apesar de explicar o transe a partir de um viés médico, para ele a possessão
era um sonambulismo provocado.
As semelhanças com a pajelança indígena ou africana são grandes em relação às
práticas das filhas-de-santo da Tenda São Jorge Guerreiro. No princípio de suas práticas
Maria Bonita também utilizava uma mesinha onde colocava os santos e praticava suas
rezas, viajava para as localidades com essa mesa, isso antes de construir o salão. A mãe-de-
santo também nos conta do receio que tem quando passa muito tempo sem ir tomar banho
no rio, isso por que ela tem medo da Boiuna9, e dos males provocados por ela. Maria
Bonita também nos contou sobre o Boto que tem relações com outra mãe-de-santo de
Tocantinópolis, relações essas que não se assemelham com a descrita por Galvão (1976),
tendo em vista que a relação entre o Boto e a mãe-de-santo do relato de Maria Bonita é de
cunho sexual e ela não nos conta nenhum mal provocado por isso. Ainda segundo Maria
Bonita, a mãe-de-santo em questão é empautada com o Boto. Não sabemos se o relato
descrito por Maria Bonita é pejorativo, isto é, que tenta atingir as práticas da outra agente,
ou se apenas ela está chamando atenção para algo que lhe surpreendeu, o que importa notar
é que D. Maria vive em um universo cosmológico próprio e suas interpretações se baseiam
5

em outras simbologias, que aí sim se assemelham com as descritas pelos pajés estudados
por Galvão (1976).

Estórias da vida de Maria Bonita, ouvidas dos encantados, das filhas-de-santo e da


própria

Quem começa contando onde morava e quem eram; a avó, e a mãe de Maria
Bonita é a entidade Cabocla Aninha. A entidade disse que: Maria Bonita é natural de Serra
da Cinta no Maranhão, sua mãe é Maria Gomes e seu pai Legitimá. Ouvimos também da
própria mãe-de-santo esses dados.
Maria Bonita também é do signo de Libras. Aos quatro anos de idade já ouvia as
Mães D’águas. Morava no sertão, o sertão da casa de sua avó, pois além da narrativa de
“Aninha” (como as filhas costumam se referir a Cabocla Aninha), há também outra que ela
se refere a um sertão maior, “eu fui criadinha no sertão sem vê televisão, sem vê nada,
nada, nada. Era só coisas (encantados) que eu via”, possivelmente Maria Bonita se refere a
toda Serra da Cinta. Fugiu das ameaças do segundo marido de sua mãe, Pedro Panagá,
onde partiu para a casa da avó, Nenesia, que também sabia curar. Aos quatro anos achava
que: “se metesse o dedo dentro d’água a Mãe D’água sarava os dedos dela. Ela pensou que
ela fosse uma deusa mesmo. Mas não, elas são poderosas, mas, não são também isso tudo,
não é?” (relato contado em dia de culto por Cabocla Aninha). Aos doze anos, pagou
professores para lhe darem aula, pois, se não fosse isso teria ficado burra. Tentou fazer um
curso pela SUCAM, onde Mãe Marina já lhe puxava, mas não conseguiu trabalhar nos
navios, na Marinha, por que morava muito longe.
Maria Bonita queria ficar parecida com sua entidade espiritual, assim como outros
agentes mágico-religiosos presentes nas pesquisas de Maués e Villacorta (1998) e Rachel
Barros (2007). Mãe Marina é a chefe espiritual do terreiro São Jorge, segundo suas ordens,
Maria Bonita colocou Caboclo Sete Flechas para fora do terreiro. Maria Bonita não
construiu um salão da forma como Cabocla Jurema pediu, pois, na época as pessoas teriam
queimado o salão, isso porque o mesmo teria que ser feito de palha e de forma
arredondada, típico dos terreiros de pajelança. Cabocla Jurema não ocupa no panteon do
terreiro uma posição tão prestigiosa quanto Mãe Marina. Maria Bonita também tinha a
intenção de ir embora de Tocantinópolis, mas, Mãe Marina e os outros encantados não
deixaram. Maria Bonita brigou com um doutor do CESP chamado, Ezio. Ela era solteira e
6

tinha que criar os filhos. O doutor estava acompanhado dos colegas de profissão e amigos,
e jogou conversa naquela mulher fácil.
Maria Bonita trabalhou vendendo comida caseira e cervejas em sua casa, que era
de palha na época, isso para criar os filhos. A sua casa era frequentada por prostitutas que
tinham relações com homens casados ali mesmo, as prostitutas também eram casadas,
Maria Bonita diz que ajudou muita mulher a sair dali sem ser reconhecida. Apesar de não
vender o corpo, Maria Bonita era amiga de prostitutas. Vivia numa situação promíscua,
porque além de vender cervejas, era mãe solteira. Sabemos que no Brasil essa situação é
ainda pior, pelo fato da moral católica está arraigada em nossa cultura. O ideal do período
Colonial onde as mulheres deveriam casar-se virgens, ainda vigora na sociedade brasileira.
Ela brigou com as pessoas que não queriam que ela implantasse o terreiro, diziam
que ela teria que fazer casa pra ela e não para espirito. A mãe-de-santo nos contou que
quem é médium e não obedece ao chamado, ou morre, ou mata, fica preso ou acaba os dias
numa cadeia. D. Maria Bonita dá exemplos de pessoas que debochavam dela e que hoje
estão em más condições. Ela foi vítima de feitiço, dentro de oito dias o que era dela
acabou, foram dois, um enterrado e outro colocado em cima da casa, mas, Maria Bonita
recebeu ajuda de um baiano que segundo ela vem com mais força. Maria moeu um dos
ossos jogados em sua casa e colocou no pote onde o feiticeiro iria beber, ele bebeu, a filha
dele falou para ele pedir desculpas a mãe-de-santo, mais ele não pediu e morreu. D. Maria
exortou que o homem morreu porque bebeu demais.
Por conta de estar gravida de um filho, e a gravidez ser de risco, ou melhor, Maria
havia dado a luz a um filho, mas ao outro não, então fez uma promessa a Nossa Senhora da
Conceição. D. Maria fez a promessa mais não acreditava em espírito na época, disse que:
“se a santa fizesse o parto com segurança, ela passaria a acreditar que os espíritos
existem”. Porém, como uma mulher que já havia visto tanta coisa, não acreditava em
espirito? Maria Bonita sofreu por um tempo influência do catolicismo popular mais do que
da umbanda e da pajelança? Entretanto, D. Maria também era parteira e será que por isso
teria mais chances de receber o milagre? Não nos importamos com o que é verdade ou
mentira, segundo Leach, “as contradições são muito mais importantes do que as
uniformidades” (Leach, 1996, p. 308) o antropólogo tem que se utilizar da melhor maneira
possível dos dados que dispõem, traçando afirmações e generalizando se possível. O que
tiramos de tudo isso, é que D. Maria era uma crente descrente, vivia uma condição de
7

promiscuidade, ou seja, na religião, era chamada de feiticeira, macumbeira e pajoa, e fora


dela, era chamada de prostituta, mulher fácil.

Relatos que tratam dos encantados e das filhas-de-santo

Colocamos os relatos das filhas com os encantados porque estão entrelaçados. A


primeira filha-de-santo descrita por nós é Pacílicia também conhecida como Cílicia.
Natural de Caxias no Maranhão, mas que morou em Vitorino Freire, morou ainda em
Mearim. Passou algum tempo em um sitio chamado Lago da Pedra, em Muncuiba e em
Paulo Ramos, até que em 8 de dezembro de 1978 veio para Tocantinópolis. Tem um filho,
já trabalhou de lavadeira e vendedora de feira. Descobriu que tinha mediunidade com
quarenta e poucos anos. Pacílicia conta que desde novinha, via uma mulher morena de
cabelo longo. Depois de algum tempo ela descobriu que a mulher se tratava na verdade de
uma Mãe D’água. Todo dia de tardizinha a menina (Pacílicia) ia pescar no rio Mearim, e
via a Mãe D’água, certa vez ela pensou em presentear a Mãe D’água com legumes e
hortaliças, pois, sabia que não teria condição daquela mulher (Mãe D’água) criar tais
alimentos dentro d’água, no entanto, ela queria algo em troca, que seria os peixes. Nesse
momento estabelece-se a troca, a dádiva e a contra dádiva, Pacílicia ia presentear mais
queria algo em troca, é o “dar, receber e retribuir” clássico de Marcel Mauss (2003).
Pacílicia conta que as Mães D’água moram numa loca de pedra. Maria Bonita
afirma que “elas” são crianças que jogaram na água, afirma também que elas podem se
desencantar e que quem faz uma pauta com elas fica rico. Pacílicia conta também
narrativas sobre os Légua-Bogis que também teriam se encantado numa loca de pedra, na
época do Dilúvio Bíblico. As duas narrativas tem pontos em comum, pois as Mães D’água
mais velhas também teriam vivido na época do Diluvio. Hoje algumas Mães D’água
incorporam, mas, só as mais velhas. Já os Légua-Bogis, são muitos os que incorporam na
tenda São Jorge Guerreiro. Segundo Mundicarmo Ferreti, “Légua-Bogi é um preto-velho, a
mais velha entidade a vir ao mundo” (Ferreti, 2001, p. 163)
De Jesus, também filha-de-santo, mora em Araguaína, começou a frequentar o
terreiro com 37 anos, hoje ela tem 78 anos. É prima de Maria Bonita. Ela está com Maria
Bonita muito antes da mãe da mesma morrer. Raimunda Assunção dos Santos é o nome de
D. Jesus. Ela fala que nasceu crua no espírito, porque nasceu de bruços, todo homem nasce
de bruços. E ela nasceu que nem um homem. Fala também que sofreu por conta de sua
mediunidade, perdeu seu marido por conta da religião, porém, afirma também que foi feito
8

um feitiço para que ela perdesse ele. Tudo que ela aprendeu, ela perdeu com as
incorporações, assim como D. Maria que tem que se pinicar para saber se esta vestida.
Mas, há também o lado bom das incorporações, Pacílicia, por exemplo, quando baia
ninguém percebe que ela manca de uma perna, mas quando o santo sobe tudo volta ao
normal. A entidade comentada por D. Jesus é Zé Pelintra, ela considera-o como o seu pai,
diz que ele está assentado em Goiânia e Brasília, nesse mundo todo. Zé Pelintra segundo
Ligiéro,

se faz justiceiro a sua maneira, ajudando de graça os excluídos de nossa


sociedade, é aliado com os caboclos harmonizados às forcas da natureza,
é herdeiro de pajés e catimbozeiros, que usam as folhas para tratar as
doenças, e ajudar os doentes e necessitados. (Ligiéro, 2004, p.22)

Zé Pelintra também, “agrega a figura do bom malandro aquele que em vida


provocou amor e ódio nas pessoas e hoje vem para atender quem lhe procura, mediante
oferendas” (Zaydan, 1993, p.2).
Narcisa é a mais velha filha-de-santo de Maria Bonita, nasceu em Canto do Buriti
no Piauí. Passou a frequentar o terreiro quando sua filha estava doente. Ela sabia que
também teria que trabalhar, porque tem uma crôa como toda médium. Tem um filho que
mora em Araguaína, que é protestante, dentre outros. Maria Antônia sua filha que ela
acompanhou em outros terreiros, só veio encontrar a cura na Tenda São Jorge, com a ajuda
da Cabocla Aninha. “Aninha” ajudou Antônia a ficar boa. Mãe Marina nos contou uma
narrativa onde um homem ao não respeitar o dia desta santa teve a vida ceifada, uma
árvore que estava em sua terra, veio a quebrar uma lasca e atravessou o homem, entretanto,
Aninha ajudou a criar os filhos dele, a lasca daquele dia em diante passou a ser considerada
milagrosa. Antônia filha de Narcisa, desde nova benze e trata de quebranto, arca-caída
dente outros males, muitas mães trazem seus filhos para serem tratados por ela.
Maria Antônia é natural de Teresina no Piauí. Narcisa fala que sua filha entrou
nos trabalhos pela dor, por causa da doença, já ela entrou por amor, porque realmente gosta
da religião. Cabocla Aninha é considerada a filha de Maria, já que não teve apenas Jesus
ele era somente seu primogênito e ainda porque Maria é considerada mãe de todos os
cristãos. Em suma, na tenda São Jorge Guerreiro não existe ritual de iniciação, assim como
no sentido de ritos de passagem, trabalhado por Van Gennep (1977). As filhas-de-santo
entraram no salão por conta de doenças, não fizeram raspagem de cabeça, como no
candomblé e nem foi derramado sobre elas sangue sacrificial de animais, nem tiveram o
9

corpo coberto por incisões, 21 no total, principalmente na cabeça. Mas algumas tiveram
que abdicar de suas vidas conjugais como Narcisa e De Jesus, bem como foi na Tenda São
Jorge Guerreiro que encontraram solução para as suas demandas.

Santos ou não, mas aqui estão

Esta parte do trabalho é fruto de entrevistas com D. Maria Bonita. Apesar de no


seu terreiro haver uma adoração a entidades como: caboclos, orixás, princesas entre outros,
neste momento abriremos espaço para os santos católicos, pelo menos na concepção de
nossas entrevistadas. O primeiro “santo católico”, padre que aparece em nosso trabalho é o
padre Cícero, que nasceu em Crato-CE em 3 março de 1844. Lutou junto aos cangaceiros
para defender Juazeiro contra a força oficial10. Durante uma missa, uma beata teria ingerido
uma hóstia e está se converterá em sangue. Todavia, o próprio padre Cícero teria duvidado
do milagre. Os boatos chegaram ao Vaticano e após muitos anos de investigação não
deram a Cícero a beatificação. Mas, sabemos que santo ou não, o padre Cícero é adorado
por grande parte da população brasileira.
Na tenda São Jorge Guerreiro ele apareceu a um rapaz que foi vítima de acidente
automobilístico. Segundo os médicos, a situação do rapaz era crítica tanto que, ele foi
despachado pelos mesmos. A mãe de Ricardo, Maria da Conceição, então trouxe o rapaz
para a casa de Maria Bonita. “Ele estava só roncando” (dando os últimos suspiros) como
relata a mãe-de-santo. D. Maria Bonita rezou e a pedido de Maria da Conceição, ofereceu
as orações para padre Cícero, passados uma semana, a mãe de Ricardo disse que ia até sua
casa, então Maria ficou sozinha cuidando do rapaz, ela sentiu vontade de ir ao banheiro, e
no momento que retornou o rapaz já não estava mais no colchão “quem nem mexia”. D.
Maria se dirigiu para o salão e lá estava Ricardo, conversando com alguém, Maria diz que:
“a pessoa que conversava com ele tem a voz grossa”. D. Maria ouve da pessoa que é para o
rapaz fazer assim com a mão, uma espécie de prece. Então quando a “entidade” vai
embora, Maria pergunta a Ricardo: “quem era que estava conversando com você?”.
Ricardo diz que foi o padre Cícero, que ele veio mesmo visitar ele, então o rapaz apresenta
melhoras, e Maria agradece a presença do santo em sua humilde casa.
Através de uma leitura mais aprofundada, vemos que a medicina alopática não
teve subsídios para curar o rapaz em questão, pois, a cura não se restringia ao plano
10

material. Neste momento abre-se uma brecha para a intervenção da curandeira/benzedeira,


que segundo Paula Monteiro,

o médium que cura é alguém que, na maior parte das vezes, vem do
mesmo grupo social de seu ‘cliente’, sendo capaz, portanto, de
compreender e incorporar a experiência vivida do indivíduo que a
procura. Neste sentido, pode-se dizer que a cura mágica representa, para
as camadas populares, um universo de conhecimento alternativo ao saber
médico (Montero, 1990, p.68-69).

Marcel Mauss fala que nestes casos, “é mais seguro intercambiar com os deuses,
pois, são os primeiros habitantes do mundo e também que é mais seguro não intercambiar,
caso as solicitações destes não sejam cumpridas” (Mauss, 2003, p. 206). Neste ponto cabe
expor um relato onde não houve o cumprimento da promessa oferecida ao santo. O
cavalheiro medieval Jordan-Fritiz ao ver que o filho mais novo sofria fortes dores por
causa de uma doença, resolve da água benta do relicário de São Tomás trazido por
peregrinos, o rapaz então fica curado, e o cavalheiro promete que vai em peregrinação até
o relicário, mas passam os anos e ele não vai, São Tomás até o avisa das intempéries, no
entanto, o cavalheiro não liga, daí o santo perde a paciência e mata o filho mais velho de
Jordan. Neste ponto ele resolve pagar a promessa. (BBCfour, por dentro da mente
medieval. http: //www.youtube.com/user/bleogeo/, domingo 20/ 03/2011, 13:08).
Na tenda São Jorge ocorreu o mesmo drama, notamos que Maria da Conceição até
tinha intenção de pagar uma promessa a padre Cícero. Neste caso, a mãe de Ricardo ficaria
lavando as roupas das médiuns por um bom tempo, mas passados alguns dias, aparece uma
mulher e diz que aquilo é uma besteira, pois, Maria Bonita já é rica, e não há necessidade
da mulher fazer aquele serviço. Maria da Conceição interrompe a promessa e cai em
castigo. É possuída por um espirito mal. Maria Bonita mais uma vez socorre a mulher em
apuros. Vemos então que os santos são bons, mas, devem ser retribuídos. Nas relações
sociais vê-se que a obrigação de “dar, receber e retribuir”, descrita por Marcel Mauss
(2003) no Ensaio sobre a dádiva não foi respeitado neste ponto e as pessoas antes
agraciadas com a benção dos santos agora sofrem suas punições. Para melhor entendermos
a força mágica dessa relação, ou a fé que a paciente teve em Maria Bonita utilizamos o
conceito de mana, que pode ser compreendido como uma força espiritual advinda dos
deuses a partir do bom cumprimento das prerrogativas antes salientadas, diz-se de uma
pessoa rica, inteligente que está tem mana, isso também está presente em todas as relações
sociais. A casa de D. Maria, sua oração, seu prestígio tudo isso comprova a legitimidade de
11

suas práticas, isso através do bom trato com as entidades. Vemos que algumas pessoas ao
passarem perto da casa de Maria até sentem medo, isso comprova ainda mais seu prestígio.
Agora partimos para a descrição de outras narrativas onde o bispo Dom Cornélio
é a personagem principal. Ele foi por muitos anos, padre em Tocantinópolis, ajudou a
impulsionar muitos movimentos católicos, mas neste trabalho ele aparece como santo. D.
Maria Bonita conta que numa igreja de São Sebastião; estavam ela, sua filha e a família
que criava sua filha. Ela deu a criança para adoção, no entanto, após querer se aproximar
de sua filha, o possível pai adotivo não havia deixado e pior, estava com a posse de um
revólver. D. Maria diz que depois daquele instante não viu mais nada, ou seja, ela
incorporou pela primeira vez, Mãe Marina. Todavia ainda não sabia controlar a entidade,
foi preciso que o Bispo segurasse ela e dissesse que “todos os bichos brigam por seus
filhos”, com ela não seria diferente. O bispo ainda disse que a coroa (ou crôa) de Maria
Bonita era a mesma dele. Depois o bispo aproximou a cabeça dele à de Maria tocando-a,
“chega faiscou”. Maria fala que o bispo pegou o revólver do homem e colocou em sua
batina e ainda fez com que ela voltasse a si.
Este relato além de ser surreal deve ser melhor compreendido. Por que D. Maria
fala que o bispo conhecia a coroa dela? Então o bispo conhecia Mãe Marina. Ele também
era médium? Por que D. Maria fala que o homem estava armado em plena igreja, seria este
o pai adotivo da criança em verdade, ou o revólver apenas aumentou a façanha do bispo?
Sabemos que D. Maria considera o bispo muito mais do que um homem comum, e que
estes são irmãos-de-santo, porque compartilham dos mes mos conheciment os e da mesma
madrinha espiritual. Logo depois, Maria cita outra narrativa onde o bispo aparece como
apoio na fundação do terreiro, pois, se não fosse ele “a Assembleia de Deus não teria
deixado”. D. Maria também fala que é filha do bispo e que ele antes de morrer, prometeu
que ninguém iria lhe ameaçar, nem mesmo depois de morrer. Diferente dos orixás e
encantados, o bispo não pode ser vist o depois de sua morte, apenas pode-se fazer pedidos a
ele. Mergulhamos na communitas dos relatos de D. Maria algo que está escondido e
embaralhado, também recorremos ao conceito, polissemia, para entendermos as palavras
nos seus muitos sentidos. Quem antes era irmão no santo, agora passa a ser pai, Maria
também usufrui de seu prestígio para se reafirmar enquanto agente mágico-religiosa.
Segundo Brandão “a relação que se estabelece entre a mãe-de-santo e a umbanda deve ser
relegada a segundo plano, já que esta busca na figura do bispo sua legitimação” (Brandão,
1986, p.54-55). Mas sabemos também que Maria Bonita tirou um espírito mal de um
12

católico conhecido do bispo, ou seja, ouve uma reciprocidade. D. Maria se utilizou da


relação com o bispo, para em meio a sociedade circundante poder se levantar e respirar
dizendo que é uma espírita. Podemos ainda dizer que ouve uma solidariedade
durkheiminiana em relação à importância que cada agente religioso reconheceu na figura
do outro.

Análise de ritual

Os rituais públicos ocorrem as terça-feira com começo as 21:00h. Neste ritual,


chamado de fortalecimento D. Maria faz um círculo no chão e coloca nove velas no
mesmo, após canta uma doutrina se referindo ao símbolo de Salomão, que segundo os
místicos, exerce a força de Deus sob todas as criaturas, também é a forma que o planeta
Vênus exerce em sua órbita quando vista da Terra. Maria pede que o paciente ajoelhe e
reze, depois D. Maria incorpora uma Cabocla Braba e um Caboclo Sete-Estrelas. Notamos
que o ponto no chão se refere a um Caboclo. A mãe-de-santo pede que coloquem fogo na
porta, e canta uma doutrina, se referindo “a não deixar contrário entrar”. Segundo Douglas
, “nossos costumes estão solidamente ancorados na higiene; nós afastamos os germes eles
mandam embora os espíritos” (Douglas, 1991, p. 47).
Para analisar o ritual de fortificação usaremos o esquema de Turner (1974)
fundamentado em “oposições binarias cruzadas”. Primeiro fazemos o contraponto entre o
terreiro e a sociedade circundante, ou local de cura e local de contágio ou impureza. Feito
isso, partimos para outros agrupamentos feitos em três séries estabelecidas no esquema
logo abaixo:

Quadro 1: Esquema explicativo do ritual de fortalecimento.

Longitudinal Latitudinal Atitudinal

Ponto riscado / Canto do A esquerda da entrada / à Doutrina antes / Doutrina depois


Salão direita

Fraco / forte Filhas-de-santo / Mãe-de-santo


Morte / vida
13

Paciente / Família do paciente

Desgraça mística / cura Divindade / seres humanos

Mediunidade / sem mediunidade

Fogo / sem fogo Oração do paciente / oração da Fé no santo / fé na mãe-de-santo


mãe-de-santo
Não deixa passar o mal /
Passa o mal Oração no terreiro / oração
fora do terreiro

Neste sistema classificatório, temos que nos ater principalmente aos símbolos que
possam ter mais de um significado. Diante dessa premissa, podemos elencar certos
elementos como: o ponto riscado, o fogo e a oração. O ponto riscado pode ser oferecido
para diferentes entidades em favor de uma cura, ou outra espécie de trabalho, no caso em
questão, o ponto foi oferecido a um Caboclo. O fogo está presente em dois momentos
nesse ritual: nas velas, que são nove e estão em cima do ponto riscado e quando é colocado
logo depois na porta dentro do salão. Segundo a doutrina, o fogo não deixa contrário
entrar. Já a oração tem seu poder efetivado quando realizada dentro do salão, pelo chefe do
terreiro. Sua efetividade fica comprometida quando uma pessoa sem fé, ou que não tenha
mediunidade execute essa ação. Como mencionamos em capítulo anterior (Santos ou não,
mas aqui estão), a força espiritual advinda da entidade, o que chamamos de mana (fazendo
alusão à significação empregada a essa palavra na literatura antropológica, principalmente
em trabalhos sobre os melanésios), pode também servir de base para o entendimento do
prestígio da mãe-de-santo para a realização de seus trabalhos.
O ponto riscado é feito a esquerda do congá, ou altar do terreiro, será que é em
respeito a Exus e Pombagiras? Mas, vimos que estas entidades não são reverenciadas no
começo do culto. São recitadas doutrinas antes e depois do ritual. É colocado fogo na porta
para afastar o mal. É preciso que o paciente também reze, não há ninguém da família do
paciente no terreiro. Para entendermos o comportamento do paciente, usamos o conceito de
magia de contágio de James Frazer, “uma coisa que em certo momento estiver ligada a
outra, e por acaso vier a ser separado mesmo assim o que for feito sobre uma afetará a outa
14

parte” (Frazer, 1982, p. 105). Neste caso o sangue do homem em questão serve para que o
ritual sirva para todos os seus.
Sabemos que é legítima a prática de Maria Bonita e de suas médiuns, pelo fato das
pessoas terem fé e acreditarem veementemente que serão curadas ou receberão a ajuda
necessária que solicitam das mesmas. Com Lévi-Strauss (2008) percebemos o quanto é
importante a “crendice” de ambas as partes envolvidas na cura: o agente mágico-religioso,
o paciente, a família do paciente e a sociedade circundante, todos tem que ter fé e acreditar
que a cura se realizará, algo que nos dizeres do antropólogo, constitui a “eficácia
simbólica”.

Notas:
1
Graduado em Ciências Sociais pela UFT de Tocantinópolis.
2
Mestre em Antropologia Social pela UFRS. Orientou a monografia que deu corpo a este artigo.
3
Desenho feito geralmente em forma de circulo, com diversas características que lembram o orixá que
se quer representar ou que se deseja invocar ou saldar. São inúmeros os pontos riscados.
4
Caracterizada por agregar entidades ditas ambíguas, que tanto podem fazer o bem quanto o mal, dependo da
solicitação de quem pede. São representantes desta linha Exus e Pombagiras que são associados aos
sentimentos promíscuos e obscenos de seus filhos. Também associados com o diabo católico.
5
Guma, principal lugar sagrado do terreiro. Lugar onde encontra-se todo o assentamento espiritual de uma
casa de mina. Também pode se referir ao salão, ou seja lugar destinado para se executar a dança ritual dos
encantados (FERRETI, 2001).
6
Líber de uma arvore da família das Lecitidáceas, utilizado para mortalha de cigarros. Apenas os pajés
utilizam cigarros enrolados em tauari. (GALVÃO, 1976, p.149)
7
Objeto feito de penas de aves, geralmente de araras que são bem coloridas. Lembra muito os rituais feitos
por alguns indígenas.
8
Faixas coloridas usadas para representar o santo respectivo do médium. É um adereço fundamental, assim
como as guias servem para identificar o médium.
9
Grande cobra encantada, que habita os rios. O nome vem da fusão do nome boi com una, de única. Maria
Bonita tem medo deste ser, pois fica muito tempo sem banhar no rio. Temos duvidas sobre isso, mas
acreditamos que deve ser porque a Boiuna estranha sua presença depois de tanto tempo sem vê-la.
10
Mas, o que dificilmente se fala é que padre Cícero não deu o título de capitão a Lampião.

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parentesco ritual e seus paralelos com a vida terrena. ICS/ UFAL, artigo, 2007.

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15

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ZAYDAN, Alkmin. Zé Pelintra: dono da noite, rei da magia. Editora Pallas, 1992.
Tenda São Jorge Guerreiro: “Maria Bonita”, a mãe-de-santo, a filha, a
religião e a
história.
Bruno Barros dos Santos1
Cleides Antônio Amorim2
Na busca por entender o universo simbólico, material e espiritual do Outro, este
universo que é constituído pela mãe-de-santo, Maria Bonita e suas filhas-de-
santo, que
trabalham no terreiro Tenda São Jorge Guerreiro é que toda nossa investida se
faz
necessária. Nosso objetivo é entender o comportamento religioso das pessoas
da Tenda
São Jorge Guerreiro a partir do comportamento ritual que é sempre pleno de
gestos, falas,
danças, doutrinas e etc... Em outras palavras, é a partir de uma análise
comparativa que
buscaremos encontrar onde os discursos e práticas cerimoniais do mencionado
terreiro se
distanciam e se encontram com as outras religiões afro-ameríndio-brasileiras, a
fim de
descobrirmos os elos de significação que permitem que essas práticas se
comuniquem a tal
ponto que possamos classificá-las como pertencentes a um ethos geral.
Panorama afro-brasileiro
Não é nossa intenção enquadrar a manifestação religiosa das médiuns em
nenhum
tipo ideal, queremos sim, analisar os ritos e as narrativas, para que possamos
fazer um
diálogo entre as diversas práticas religiosas como o candomblé, a umbanda e o
tambor de
mina, visualizando onde as práticas de nossas entrevistadas se aproximam e
se distanciam
das mesmas. Queremos também observar o que de novo existe na prática de
nossas
entrevistadas, algo que não ocorre em nenhuma outra religião, mas temos
certeza de que
nenhuma religião hoje é pura, nem o candomblé jeje, nem a mina nagô.
Foram usadas muitas estratégias para que as religiões afro pudessem se
manter
ativas, uma dessas foi a associação de seus deuses, os orixás, com os santos
católicos, algo
que para muitos pesquisadores e mesmo sacerdotes não seria possível graças
as similitudes
arquetípicas. O sincretismo de práticas religiosas começa bem antes da
escravidão no
Brasil, entre as próprias tribos africanas aconteciam assimilações de
características
culturais. Houve uma perfeita junção das práticas de religiões afro no Brasil,
mas segundo
Prandi, “as que mais se propagaram foram as matrizes queto (ioruba) e angola
(bantu)”
(Prandi, 2001, p.2). Existem divindades para o santuário, as tarefas
domésticas, as formas
lúdicas, para a agricultura e etc. Não que isso represente um preservasionismo
maior. As
2
várias matrizes religiosas também tem linguagem própria as mais conhecidas
são o ioruba,
fon e bantu. Cada região do país tem uma matriz religiosa correspondente, na
Bahia o
Candomblé, no Recife e Alagoas o Xangô, no Maranhão e Pará o Tambor de
Mina, e no
Rio Grande do Sul o batuque.
Candomblé
No terreiro de D. Maria Bonita pode-se notar ponto riscado3 para Oxalá – orixá
sincretizado com Jesus Cristo. As paredes internas do terreiro são cobertas de
quadros de
entidades e santos católicos, tais como Indaiá (cabocla indígena), Pai João
(preto velho),
Janaína (nome brasileiro de Iemanjá), Jesus, Santo Antônio, São Lázaro. No
altar estão
expostas várias imagens e esculturas de gesso como a de Santo Antônio, São
Jorge, Nossa
Senhora da Consolação, Bom Jesus da Lapa, Padre Cícero, Iemanjá e uma
infinidade de
entidades indígenas e caboclas. Todo o altar é decorado com muitas fitas
envoltas nas
imagens, bola de cristal e muitos jarros de flores. Em baixo do altar, do lado
esquerdo,
discretamente, há pratos com oferendas para os Exus, e do lado direito existem
oferendas
dedicadas aos encantados que não trabalham na chamada linha “negra”4.
Embora os exus
sejam ali alimentados, não existem cerimonias de consagração para eles e
para as
Pombagiras, no começo do culto, algo que é característico em outras práticas
afrobrasileiras
como o candomblé e a umbanda.
Também diferentemente das religiões mencionadas acima, no terreiro de D.
Maria
não há ritual de iniciação das médiuns. Conforme nos foi relatado, elas
chegaram ao
terreiro através da busca pela cura ou tratamento de alguma doença e
descobriram que seus
infortúnios seriam em decorrência a sua mediunidade e, portanto, para
livrarem-se destes
males teriam que ‘trabalhar’ no terreiro. Já a mãe-de-santo nos relatou que fora
iniciada
por Pai Denilson, no Pará. Segundo D. Maria Bonita, em seu ritual de iniciação
ela teve a
cabeça raspada e sofreu várias incisões por todo o corpo, o que nos faz supor
tratar-se de
um ritual do candomblé, embora a mesma não confirme.
Tambor de mina
No Tambor de Mina é comum à incorporação dos encantados retratados nos
mitos, diz-se que eles não morreram, mas simplesmente se encantaram. Vale
ressaltar que
os encantados classificados como turcos não são exclusivamente desta
origem, pois
3
segundo as histórias desses encantados eles ao chegarem às terras brasileiras
entraram em
contato com índios e caboclos que os adotaram como membro de suas
famílias. Um bom
exemplo disso é Caboclo Velho, conhecido nos terreiros de mina do Maranhão
como o
mais velho índio a descer na ‘guma’5, mas que geralmente é recebido nos
terreiros quando
estes homenageiam, ou apenas cantam, para as entidades afiliadas ao Rei da
Turquia.
Também é comum ouvir das pessoas de mina que algumas entidades foram
adotadas por
Rei da Turquia devido estas terem aderido à causa moura contra os cruzados.
Exemplo
disso é a chamada Rainha Douro ou Dodô, que no Maranhão é associada à
Joana D´Arc e
no terreiro que estudamos é chamada de Mãe Marina. Segundo D. Maria
Bonita, Mãe
Marina teria trabalhado nos navios negreiros e lutado na guerra vestida de
homem. Assim
sendo, D. Maria associa Mãe Marina à santa católica Joana D’Arc.
Umbanda
Embora a umbanda tenha em sua origem uma forte contribuição do
kardecismo,
doutrina que dá atenção especial à vida após a morte, onde se recebe espíritos
de mortos
com o intuito de mostrar-lhes o “caminho da luz”, da transcendência, ou para
estabelecer
comunicação entre os mortos e seus parentes, a umbanda, ao longo do tempo
agregou
outras crenças brasileiras. De modo que no terreiro onde realizamos nossas
observações, a
comunicação com os mortos não é nem de longe a principal preocupação do
grupo. Ali é a
relação com os encantados que assume lugar de destaque e estes não são
apenas espíritos
de pessoas mortas, mas diferentemente, possuem matéria e até podem sair da
condição de
encantado. Conforme nos relata Dona Maria Bonita:
[...] Bem aqui na Pira, um homem pegou uma Mãe D’água desencantou e
casou. Ela não falava, aí disse que um dia ela teve um filho dele. Ele
matou uma galinha e passou o sangue na rede da criança, aí pegou a
menina, afirmando: - Olha eu matei. Levou a faca assim, disse que ela
gritou, os búzios caíram lá no pé dele. Elas [as mães d’água] têm os
búzios, saiu os búzios que tinha na goela dela, aí ela ficou falando. O
homem já era velho e morreu. Ela ficou. Ficou no mundo com uma
filhinha, não entrou mais na água.
Este relato contado por Maria Bonita demonstra qual a importância e a
significação empregada em relação aos encantados, a proximidade se faz
notar muito mais
do que em outras religiões aqui descritas. Mas sabemos também que essas
entidades do
relato podem incorporar e, conforme D. Maria, só incorporam as encantadas
mais velhas.
Pajelança
4
A pajelança é uma herança de nossos ancestrais indígenas, mas hoje agrega
tanto
características do catolicismo popular quanto de práticas africanas. É tanto
uma religião
quanto uma prática terapêutica. O pajé no momento dos rituais usa como
instrumentos, o
maracá, o tauari6, penacho7 e glanchamas8, bem como uma mesa rodeada de
santos
católicos e entidades caboclas e indígenas. São várias as linhas de encantados
e seus
encantes relacionados à pajelança, a entidade que trabalha com o pajé chama-
se mestre, as
diferentes linhas são: a de água doce, salgada, das matas, dos igarapés.
Eduardo Galvão
nos diz que:
os casos e as descrições dos sobrenaturais, “encantados” como os
companheiros do fundo ou os botos, bichos visagentos, currupiras e
anhangas, acentuam as concepções entre estes seres e o homem. [...] São
como que entidades protetoras que guardam a natureza contra sua
depredação pelo homem (Galvão, 1976, p. 79-80).
As práticas africanas de pajelança são tidas por pesquisadores como uma
representação da pajelança indígena e não uma herança dos mesmos. Muitos
curadores
foram perseguidos e presos, por conta de suas práticas, uma das
características mais
perseguidas foram às possessões, muitos curadores se tornaram umbandistas
por conta
disso. Nina Rodrigues (2008) foi um dos pesquisadores que ajudou a diminuir
esse
preconceito, apesar de explicar o transe a partir de um viés médico, para ele a
possessão
era um sonambulismo provocado.
As semelhanças com a pajelança indígena ou africana são grandes em relação
às
práticas das filhas-de-santo da Tenda São Jorge Guerreiro. No princípio de
suas práticas
Maria Bonita também utilizava uma mesinha onde colocava os santos e
praticava suas
rezas, viajava para as localidades com essa mesa, isso antes de construir o
salão. A mãe-desanto
também nos conta do receio que tem quando passa muito tempo sem ir tomar
banho
no rio, isso por que ela tem medo da Boiuna9, e dos males provocados por ela.
Maria
Bonita também nos contou sobre o Boto que tem relações com outra mãe-de-
santo de
Tocantinópolis, relações essas que não se assemelham com a descrita por
Galvão (1976),
tendo em vista que a relação entre o Boto e a mãe-de-santo do relato de Maria
Bonita é de
cunho sexual e ela não nos conta nenhum mal provocado por isso. Ainda
segundo Maria
Bonita, a mãe-de-santo em questão é empautada com o Boto. Não sabemos se
o relato
descrito por Maria Bonita é pejorativo, isto é, que tenta atingir as práticas da
outra agente,
ou se apenas ela está chamando atenção para algo que lhe surpreendeu, o
que importa notar
é que D. Maria vive em um universo cosmológico próprio e suas interpretações
se baseiam
5
em outras simbologias, que aí sim se assemelham com as descritas pelos
pajés estudados
por Galvão (1976).
Estórias da vida de Maria Bonita, ouvidas dos encantados, das filhas-de-
santo e da
própria
Quem começa contando onde morava e quem eram; a avó, e a mãe de Maria
Bonita é a entidade Cabocla Aninha. A entidade disse que: Maria Bonita é
natural de Serra
da Cinta no Maranhão, sua mãe é Maria Gomes e seu pai Legitimá. Ouvimos
também da
própria mãe-de-santo esses dados.
Maria Bonita também é do signo de Libras. Aos quatro anos de idade já ouvia
as
Mães D’águas. Morava no sertão, o sertão da casa de sua avó, pois além da
narrativa de
“Aninha” (como as filhas costumam se referir a Cabocla Aninha), há também
outra que ela
se refere a um sertão maior, “eu fui criadinha no sertão sem vê televisão, sem
vê nada,
nada, nada. Era só coisas (encantados) que eu via”, possivelmente Maria
Bonita se refere a
toda Serra da Cinta. Fugiu das ameaças do segundo marido de sua mãe,
Pedro Panagá,
onde partiu para a casa da avó, Nenesia, que também sabia curar. Aos quatro
anos achava
que: “se metesse o dedo dentro d’água a Mãe D’água sarava os dedos dela.
Ela pensou que
ela fosse uma deusa mesmo. Mas não, elas são poderosas, mas, não são
também isso tudo,
não é?” (relato contado em dia de culto por Cabocla Aninha). Aos doze anos,
pagou
professores para lhe darem aula, pois, se não fosse isso teria ficado burra.
Tentou fazer um
curso pela SUCAM, onde Mãe Marina já lhe puxava, mas não conseguiu
trabalhar nos
navios, na Marinha, por que morava muito longe.
Maria Bonita queria ficar parecida com sua entidade espiritual, assim como
outros
agentes mágico-religiosos presentes nas pesquisas de Maués e Villacorta
(1998) e Rachel
Barros (2007). Mãe Marina é a chefe espiritual do terreiro São Jorge, segundo
suas ordens,
Maria Bonita colocou Caboclo Sete Flechas para fora do terreiro. Maria Bonita
não
construiu um salão da forma como Cabocla Jurema pediu, pois, na época as
pessoas teriam
queimado o salão, isso porque o mesmo teria que ser feito de palha e de forma
arredondada, típico dos terreiros de pajelança. Cabocla Jurema não ocupa no
panteon do
terreiro uma posição tão prestigiosa quanto Mãe Marina. Maria Bonita também
tinha a
intenção de ir embora de Tocantinópolis, mas, Mãe Marina e os outros
encantados não
deixaram. Maria Bonita brigou com um doutor do CESP chamado, Ezio. Ela era
solteira e
6
tinha que criar os filhos. O doutor estava acompanhado dos colegas de
profissão e amigos,
e jogou conversa naquela mulher fácil.
Maria Bonita trabalhou vendendo comida caseira e cervejas em sua casa, que
era
de palha na época, isso para criar os filhos. A sua casa era frequentada por
prostitutas que
tinham relações com homens casados ali mesmo, as prostitutas também eram
casadas,
Maria Bonita diz que ajudou muita mulher a sair dali sem ser reconhecida.
Apesar de não
vender o corpo, Maria Bonita era amiga de prostitutas. Vivia numa situação
promíscua,
porque além de vender cervejas, era mãe solteira. Sabemos que no Brasil essa
situação é
ainda pior, pelo fato da moral católica está arraigada em nossa cultura. O ideal
do período
Colonial onde as mulheres deveriam casar-se virgens, ainda vigora na
sociedade brasileira.
Ela brigou com as pessoas que não queriam que ela implantasse o terreiro,
diziam
que ela teria que fazer casa pra ela e não para espirito. A mãe-de-santo nos
contou que
quem é médium e não obedece ao chamado, ou morre, ou mata, fica preso ou
acaba os dias
numa cadeia. D. Maria Bonita dá exemplos de pessoas que debochavam dela
e que hoje
estão em más condições. Ela foi vítima de feitiço, dentro de oito dias o que era
dela
acabou, foram dois, um enterrado e outro colocado em cima da casa, mas,
Maria Bonita
recebeu ajuda de um baiano que segundo ela vem com mais força. Maria moeu
um dos
ossos jogados em sua casa e colocou no pote onde o feiticeiro iria beber, ele
bebeu, a filha
dele falou para ele pedir desculpas a mãe-de-santo, mais ele não pediu e
morreu. D. Maria
exortou que o homem morreu porque bebeu demais.
Por conta de estar gravida de um filho, e a gravidez ser de risco, ou melhor,
Maria
havia dado a luz a um filho, mas ao outro não, então fez uma promessa a
Nossa Senhora da
Conceição. D. Maria fez a promessa mais não acreditava em espírito na época,
disse que:
“se a santa fizesse o parto com segurança, ela passaria a acreditar que os
espíritos
existem”. Porém, como uma mulher que já havia visto tanta coisa, não
acreditava em
espirito? Maria Bonita sofreu por um tempo influência do catolicismo popular
mais do que
da umbanda e da pajelança? Entretanto, D. Maria também era parteira e será
que por isso
teria mais chances de receber o milagre? Não nos importamos com o que é
verdade ou
mentira, segundo Leach, “as contradições são muito mais importantes do que
as
uniformidades” (Leach, 1996, p. 308) o antropólogo tem que se utilizar da
melhor maneira
possível dos dados que dispõem, traçando afirmações e generalizando se
possível. O que
tiramos de tudo isso, é que D. Maria era uma crente descrente, vivia uma
condição de
7
promiscuidade, ou seja, na religião, era chamada de feiticeira, macumbeira e
pajoa, e fora
dela, era chamada de prostituta, mulher fácil.
Relatos que tratam dos encantados e das filhas-de-santo
Colocamos os relatos das filhas com os encantados porque estão
entrelaçados. A
primeira filha-de-santo descrita por nós é Pacílicia também conhecida como
Cílicia.
Natural de Caxias no Maranhão, mas que morou em Vitorino Freire, morou
ainda em
Mearim. Passou algum tempo em um sitio chamado Lago da Pedra, em
Muncuiba e em
Paulo Ramos, até que em 8 de dezembro de 1978 veio para Tocantinópolis.
Tem um filho,
já trabalhou de lavadeira e vendedora de feira. Descobriu que tinha
mediunidade com
quarenta e poucos anos. Pacílicia conta que desde novinha, via uma mulher
morena de
cabelo longo. Depois de algum tempo ela descobriu que a mulher se tratava na
verdade de
uma Mãe D’água. Todo dia de tardizinha a menina (Pacílicia) ia pescar no rio
Mearim, e
via a Mãe D’água, certa vez ela pensou em presentear a Mãe D’água com
legumes e
hortaliças, pois, sabia que não teria condição daquela mulher (Mãe D’água)
criar tais
alimentos dentro d’água, no entanto, ela queria algo em troca, que seria os
peixes. Nesse
momento estabelece-se a troca, a dádiva e a contra dádiva, Pacílicia ia
presentear mais
queria algo em troca, é o “dar, receber e retribuir” clássico de Marcel Mauss
(2003).
Pacílicia conta que as Mães D’água moram numa loca de pedra. Maria Bonita
afirma que “elas” são crianças que jogaram na água, afirma também que elas
podem se
desencantar e que quem faz uma pauta com elas fica rico. Pacílicia conta
também
narrativas sobre os Légua-Bogis que também teriam se encantado numa loca
de pedra, na
época do Dilúvio Bíblico. As duas narrativas tem pontos em comum, pois as
Mães D’água
mais velhas também teriam vivido na época do Diluvio. Hoje algumas Mães
D’água
incorporam, mas, só as mais velhas. Já os Légua-Bogis, são muitos os que
incorporam na
tenda São Jorge Guerreiro. Segundo Mundicarmo Ferreti, “Légua-Bogi é um
preto-velho, a
mais velha entidade a vir ao mundo” (Ferreti, 2001, p. 163)
De Jesus, também filha-de-santo, mora em Araguaína, começou a frequentar o
terreiro com 37 anos, hoje ela tem 78 anos. É prima de Maria Bonita. Ela está
com Maria
Bonita muito antes da mãe da mesma morrer. Raimunda Assunção dos Santos
é o nome de
D. Jesus. Ela fala que nasceu crua no espírito, porque nasceu de bruços, todo
homem nasce
de bruços. E ela nasceu que nem um homem. Fala também que sofreu por
conta de sua
mediunidade, perdeu seu marido por conta da religião, porém, afirma também
que foi feito
8
um feitiço para que ela perdesse ele. Tudo que ela aprendeu, ela perdeu com
as
incorporações, assim como D. Maria que tem que se pinicar para saber se esta
vestida.
Mas, há também o lado bom das incorporações, Pacílicia, por exemplo, quando
baia
ninguém percebe que ela manca de uma perna, mas quando o santo sobe tudo
volta ao
normal. A entidade comentada por D. Jesus é Zé Pelintra, ela considera-o
como o seu pai,
diz que ele está assentado em Goiânia e Brasília, nesse mundo todo. Zé
Pelintra segundo
Ligiéro,
se faz justiceiro a sua maneira, ajudando de graça os excluídos de nossa
sociedade, é aliado com os caboclos harmonizados às forcas da natureza,
é herdeiro de pajés e catimbozeiros, que usam as folhas para tratar as
doenças, e ajudar os doentes e necessitados. (Ligiéro, 2004, p.22)
Zé Pelintra também, “agrega a figura do bom malandro aquele que em vida
provocou amor e ódio nas pessoas e hoje vem para atender quem lhe procura,
mediante
oferendas” (Zaydan, 1993, p.2).
Narcisa é a mais velha filha-de-santo de Maria Bonita, nasceu em Canto do
Buriti
no Piauí. Passou a frequentar o terreiro quando sua filha estava doente. Ela
sabia que
também teria que trabalhar, porque tem uma crôa como toda médium. Tem um
filho que
mora em Araguaína, que é protestante, dentre outros. Maria Antônia sua filha
que ela
acompanhou em outros terreiros, só veio encontrar a cura na Tenda São Jorge,
com a ajuda
da Cabocla Aninha. “Aninha” ajudou Antônia a ficar boa. Mãe Marina nos
contou uma
narrativa onde um homem ao não respeitar o dia desta santa teve a vida
ceifada, uma
árvore que estava em sua terra, veio a quebrar uma lasca e atravessou o
homem, entretanto,
Aninha ajudou a criar os filhos dele, a lasca daquele dia em diante passou a ser
considerada
milagrosa. Antônia filha de Narcisa, desde nova benze e trata de quebranto,
arca-caída
dente outros males, muitas mães trazem seus filhos para serem tratados por
ela.
Maria Antônia é natural de Teresina no Piauí. Narcisa fala que sua filha entrou
nos trabalhos pela dor, por causa da doença, já ela entrou por amor, porque
realmente gosta
da religião. Cabocla Aninha é considerada a filha de Maria, já que não teve
apenas Jesus
ele era somente seu primogênito e ainda porque Maria é considerada mãe de
todos os
cristãos. Em suma, na tenda São Jorge Guerreiro não existe ritual de iniciação,
assim como
no sentido de ritos de passagem, trabalhado por Van Gennep (1977). As filhas-
de-santo
entraram no salão por conta de doenças, não fizeram raspagem de cabeça,
como no
candomblé e nem foi derramado sobre elas sangue sacrificial de animais, nem
tiveram o
9
corpo coberto por incisões, 21 no total, principalmente na cabeça. Mas algumas
tiveram
que abdicar de suas vidas conjugais como Narcisa e De Jesus, bem como foi
na Tenda São
Jorge Guerreiro que encontraram solução para as suas demandas.
Santos ou não, mas aqui estão
Esta parte do trabalho é fruto de entrevistas com D. Maria Bonita. Apesar de no
seu terreiro haver uma adoração a entidades como: caboclos, orixás, princesas
entre outros,
neste momento abriremos espaço para os santos católicos, pelo menos na
concepção de
nossas entrevistadas. O primeiro “santo católico”, padre que aparece em nosso
trabalho é o
padre Cícero, que nasceu em Crato-CE em 3 março de 1844. Lutou junto aos
cangaceiros
para defender Juazeiro contra a força oficial10. Durante uma missa, uma beata
teria ingerido
uma hóstia e está se converterá em sangue. Todavia, o próprio padre Cícero
teria duvidado
do milagre. Os boatos chegaram ao Vaticano e após muitos anos de
investigação não
deram a Cícero a beatificação. Mas, sabemos que santo ou não, o padre
Cícero é adorado
por grande parte da população brasileira.
Na tenda São Jorge Guerreiro ele apareceu a um rapaz que foi vítima de
acidente
automobilístico. Segundo os médicos, a situação do rapaz era crítica tanto que,
ele foi
despachado pelos mesmos. A mãe de Ricardo, Maria da Conceição, então
trouxe o rapaz
para a casa de Maria Bonita. “Ele estava só roncando” (dando os últimos
suspiros) como
relata a mãe-de-santo. D. Maria Bonita rezou e a pedido de Maria da
Conceição, ofereceu
as orações para padre Cícero, passados uma semana, a mãe de Ricardo disse
que ia até sua
casa, então Maria ficou sozinha cuidando do rapaz, ela sentiu vontade de ir ao
banheiro, e
no momento que retornou o rapaz já não estava mais no colchão “quem nem
mexia”. D.
Maria se dirigiu para o salão e lá estava Ricardo, conversando com alguém,
Maria diz que:
“a pessoa que conversava com ele tem a voz grossa”. D. Maria ouve da pessoa
que é para o
rapaz fazer assim com a mão, uma espécie de prece. Então quando a
“entidade” vai
embora, Maria pergunta a Ricardo: “quem era que estava conversando com
você?”.
Ricardo diz que foi o padre Cícero, que ele veio mesmo visitar ele, então o
rapaz apresenta
melhoras, e Maria agradece a presença do santo em sua humilde casa.
Através de uma leitura mais aprofundada, vemos que a medicina alopática não
teve subsídios para curar o rapaz em questão, pois, a cura não se restringia ao
plano
10
material. Neste momento abre-se uma brecha para a intervenção da
curandeira/benzedeira,
que segundo Paula Monteiro,
o médium que cura é alguém que, na maior parte das vezes, vem do
mesmo grupo social de seu ‘cliente’, sendo capaz, portanto, de
compreender e incorporar a experiência vivida do indivíduo que a
procura. Neste sentido, pode-se dizer que a cura mágica representa, para
as camadas populares, um universo de conhecimento alternativo ao saber
médico (Montero, 1990, p.68-69).
Marcel Mauss fala que nestes casos, “é mais seguro intercambiar com os
deuses,
pois, são os primeiros habitantes do mundo e também que é mais seguro não
intercambiar,
caso as solicitações destes não sejam cumpridas” (Mauss, 2003, p. 206). Neste
ponto cabe
expor um relato onde não houve o cumprimento da promessa oferecida ao
santo. O
cavalheiro medieval Jordan-Fritiz ao ver que o filho mais novo sofria fortes
dores por
causa de uma doença, resolve da água benta do relicário de São Tomás
trazido por
peregrinos, o rapaz então fica curado, e o cavalheiro promete que vai em
peregrinação até
o relicário, mas passam os anos e ele não vai, São Tomás até o avisa das
intempéries, no
entanto, o cavalheiro não liga, daí o santo perde a paciência e mata o filho mais
velho de
Jordan. Neste ponto ele resolve pagar a promessa. (BBCfour, por dentro da
mente
medieval. http: //www.youtube.com/user/bleogeo/, domingo 20/ 03/2011,
13:08).
Na tenda São Jorge ocorreu o mesmo drama, notamos que Maria da
Conceição até
tinha intenção de pagar uma promessa a padre Cícero. Neste caso, a mãe de
Ricardo ficaria
lavando as roupas das médiuns por um bom tempo, mas passados alguns dias,
aparece uma
mulher e diz que aquilo é uma besteira, pois, Maria Bonita já é rica, e não há
necessidade
da mulher fazer aquele serviço. Maria da Conceição interrompe a promessa e
cai em
castigo. É possuída por um espirito mal. Maria Bonita mais uma vez socorre a
mulher em
apuros. Vemos então que os santos são bons, mas, devem ser retribuídos. Nas
relações
sociais vê-se que a obrigação de “dar, receber e retribuir”, descrita por Marcel
Mauss
(2003) no Ensaio sobre a dádiva não foi respeitado neste ponto e as pessoas
antes
agraciadas com a benção dos santos agora sofrem suas punições. Para melhor
entendermos
a força mágica dessa relação, ou a fé que a paciente teve em Maria Bonita
utilizamos o
conceito de mana, que pode ser compreendido como uma força espiritual
advinda dos
deuses a partir do bom cumprimento das prerrogativas antes salientadas, diz-
se de uma
pessoa rica, inteligente que está tem mana, isso também está presente em
todas as relações
sociais. A casa de D. Maria, sua oração, seu prestígio tudo isso comprova a
legitimidade de
11
suas práticas, isso através do bom trato com as entidades. Vemos que
algumas pessoas ao
passarem perto da casa de Maria até sentem medo, isso comprova ainda mais
seu prestígio.
Agora partimos para a descrição de outras narrativas onde o bispo Dom
Cornélio
é a personagem principal. Ele foi por muitos anos, padre em Tocantinópolis,
ajudou a
impulsionar muitos movimentos católicos, mas neste trabalho ele aparece
como santo. D.
Maria Bonita conta que numa igreja de São Sebastião; estavam ela, sua filha e
a família
que criava sua filha. Ela deu a criança para adoção, no entanto, após querer se
aproximar
de sua filha, o possível pai adotivo não havia deixado e pior, estava com a
posse de um
revólver. D. Maria diz que depois daquele instante não viu mais nada, ou seja,
ela
incorporou pela primeira vez, Mãe Marina. Todavia ainda não sabia controlar a
entidade,
foi preciso que o Bispo segurasse ela e dissesse que “todos os bichos brigam
por seus
filhos”, com ela não seria diferente. O bispo ainda disse que a coroa (ou crôa)
de Maria
Bonita era a mesma dele. Depois o bispo aproximou a cabeça dele à de Maria
tocando-a,
“chega faiscou”. Maria fala que o bispo pegou o revólver do homem e colocou
em sua
batina e ainda fez com que ela voltasse a si.
Este relato além de ser surreal deve ser melhor compreendido. Por que D.
Maria
fala que o bispo conhecia a coroa dela? Então o bispo conhecia Mãe Marina.
Ele também
era médium? Por que D. Maria fala que o homem estava armado em plena
igreja, seria este
o pai adotivo da criança em verdade, ou o revólver apenas aumentou a façanha
do bispo?
Sabemos que D. Maria considera o bispo muito mais do que um homem
comum, e que
estes são irmãos-de-santo, porque compartilham dos mesmos conhecimentos
e da mesma
madrinha espiritual. Logo depois, Maria cita outra narrativa onde o bispo
aparece como
apoio na fundação do terreiro, pois, se não fosse ele “a Assembleia de Deus
não teria
deixado”. D. Maria também fala que é filha do bispo e que ele antes de morrer,
prometeu
que ninguém iria lhe ameaçar, nem mesmo depois de morrer. Diferente dos
orixás e
encantados, o bispo não pode ser visto depois de sua morte, apenas pode-se
fazer pedidos a
ele. Mergulhamos na communitas dos relatos de D. Maria algo que está
escondido e
embaralhado, também recorremos ao conceito, polissemia, para entendermos
as palavras
nos seus muitos sentidos. Quem antes era irmão no santo, agora passa a ser
pai, Maria
também usufrui de seu prestígio para se reafirmar enquanto agente mágico-
religiosa.
Segundo Brandão “a relação que se estabelece entre a mãe-de-santo e a
umbanda deve ser
relegada a segundo plano, já que esta busca na figura do bispo sua
legitimação” (Brandão,
1986, p.54-55). Mas sabemos também que Maria Bonita tirou um espírito mal
de um
12
católico conhecido do bispo, ou seja, ouve uma reciprocidade. D. Maria se
utilizou da
relação com o bispo, para em meio a sociedade circundante poder se levantar
e respirar
dizendo que é uma espírita. Podemos ainda dizer que ouve uma solidariedade
durkheiminiana em relação à importância que cada agente religioso
reconheceu na figura
do outro.
Análise de ritual
Os rituais públicos ocorrem as terça-feira com começo as 21:00h. Neste ritual,
chamado de fortalecimento D. Maria faz um círculo no chão e coloca nove
velas no
mesmo, após canta uma doutrina se referindo ao símbolo de Salomão, que
segundo os
místicos, exerce a força de Deus sob todas as criaturas, também é a forma que
o planeta
Vênus exerce em sua órbita quando vista da Terra. Maria pede que o paciente
ajoelhe e
reze, depois D. Maria incorpora uma Cabocla Braba e um Caboclo Sete-
Estrelas. Notamos
que o ponto no chão se refere a um Caboclo. A mãe-de-santo pede que
coloquem fogo na
porta, e canta uma doutrina, se referindo “a não deixar contrário entrar”.
Segundo Douglas
, “nossos costumes estão solidamente ancorados na higiene; nós afastamos os
germes eles
mandam embora os espíritos” (Douglas, 1991, p. 47).
Para analisar o ritual de fortificação usaremos o esquema de Turner (1974)
fundamentado em “oposições binarias cruzadas”. Primeiro fazemos o
contraponto entre o
terreiro e a sociedade circundante, ou local de cura e local de contágio ou
impureza. Feito
isso, partimos para outros agrupamentos feitos em três séries estabelecidas no
esquema
logo abaixo:
Quadro 1: Esquema explicativo do ritual de fortalecimento.
Longitudinal Latitudinal Atitudinal
Ponto riscado / Canto do
Salão
A esquerda da entrada / à
direita
Doutrina antes / Doutrina depois
Fraco / forte
Morte / vida
Filhas-de-santo / Mãe-de-santo
13
Desgraça mística / cura
Paciente / Família do paciente
Divindade / seres humanos
Mediunidade / sem mediunidade
Fogo / sem fogo
Não deixa passar o mal /
Passa o mal
Oração do paciente / oração da
mãe-de-santo
Oração no terreiro / oração
fora do terreiro
Fé no santo / fé na mãe-de-santo
Neste sistema classificatório, temos que nos ater principalmente aos símbolos
que
possam ter mais de um significado. Diante dessa premissa, podemos elencar
certos
elementos como: o ponto riscado, o fogo e a oração. O ponto riscado pode ser
oferecido
para diferentes entidades em favor de uma cura, ou outra espécie de trabalho,
no caso em
questão, o ponto foi oferecido a um Caboclo. O fogo está presente em dois
momentos
nesse ritual: nas velas, que são nove e estão em cima do ponto riscado e
quando é colocado
logo depois na porta dentro do salão. Segundo a doutrina, o fogo não deixa
contrário
entrar. Já a oração tem seu poder efetivado quando realizada dentro do salão,
pelo chefe do
terreiro. Sua efetividade fica comprometida quando uma pessoa sem fé, ou que
não tenha
mediunidade execute essa ação. Como mencionamos em capítulo anterior
(Santos ou não,
mas aqui estão), a força espiritual advinda da entidade, o que chamamos de
mana (fazendo
alusão à significação empregada a essa palavra na literatura antropológica,
principalmente
em trabalhos sobre os melanésios), pode também servir de base para o
entendimento do
prestígio da mãe-de-santo para a realização de seus trabalhos.
O ponto riscado é feito a esquerda do congá, ou altar do terreiro, será que é em
respeito a Exus e Pombagiras? Mas, vimos que estas entidades não são
reverenciadas no
começo do culto. São recitadas doutrinas antes e depois do ritual. É colocado
fogo na porta
para afastar o mal. É preciso que o paciente também reze, não há ninguém da
família do
paciente no terreiro. Para entendermos o comportamento do paciente, usamos
o conceito de
magia de contágio de James Frazer, “uma coisa que em certo momento estiver
ligada a
outra, e por acaso vier a ser separado mesmo assim o que for feito sobre uma
afetará a outa
14
parte” (Frazer, 1982, p. 105). Neste caso o sangue do homem em questão
serve para que o
ritual sirva para todos os seus.
Sabemos que é legítima a prática de Maria Bonita e de suas médiuns, pelo fato
das
pessoas terem fé e acreditarem veementemente que serão curadas ou
receberão a ajuda
necessária que solicitam das mesmas. Com Lévi-Strauss (2008) percebemos o
quanto é
importante a “crendice” de ambas as partes envolvidas na cura: o agente
mágico-religioso,
o paciente, a família do paciente e a sociedade circundante, todos tem que ter
fé e acreditar
que a cura se realizará, algo que nos dizeres do antropólogo, constitui a
“eficácia
simbólica”.
Notas:
1 Graduado em Ciências Sociais pela UFT de Tocantinópolis.
2 Mestre em Antropologia Social pela UFRS. Orientou a monografia que deu corpo a este
artigo.
3 Desenho feito geralmente em forma de circulo, com diversas características que lembram o
orixá que se
quer representar ou que se deseja invocar ou saldar. São inúmeros os pontos riscados.
4 Caracterizada por agregar entidades ditas ambíguas, que tanto podem fazer o bem quanto o
mal, dependo da
solicitação de quem pede. São representantes desta linha Exus e Pombagiras que são
associados aos
sentimentos promíscuos e obscenos de seus filhos. Também associados com o diabo católico.
5 Guma, principal lugar sagrado do terreiro. Lugar onde encontra-se todo o assentamento
espiritual de uma
casa de mina. Também pode se referir ao salão, ou seja lugar destinado para se executar a
dança ritual dos
encantados (FERRETI, 2001).
6 Líber de uma arvore da família das Lecitidáceas, utilizado para mortalha de cigarros. Apenas
os pajés
utilizam cigarros enrolados em tauari. (GALVÃO, 1976, p.149)
7 Objeto feito de penas de aves, geralmente de araras que são bem coloridas. Lembra muito os
rituais feitos
por alguns indígenas.
8 Faixas coloridas usadas para representar o santo respectivo do médium. É um adereço
fundamental, assim
como as guias servem para identificar o médium.
9 Grande cobra encantada, que habita os rios. O nome vem da fusão do nome boi com una, de
única. Maria
Bonita tem medo deste ser, pois fica muito tempo sem banhar no rio. Temos duvidas sobre
isso, mas
acreditamos que deve ser porque a Boiuna estranha sua presença depois de tanto tempo sem
vê-la.
10 Mas, o que dificilmente se fala é que padre Cícero não deu o título de capitão a Lampião.

Referências Bibliográficas:
BARROS, Rachel Rocha de Almeida. O filho de uma rainha – reflexões
sobre
parentesco ritual e seus paralelos com a vida terrena. ICS/ UFAL, artigo,
2007.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo: um estudo sobre
religião popular.
São Paulo: Brasiliense. 1986.
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo: Ensaio sobre a noção de poluição e
tabu. Rio de
Janeiro, Edições 70, 1991.
15
FERRETI, Mundicarmo Maria Rocha. Encantaria de Barba Soeira. Codó,
capital da
magia negra? São Paulo: Ed. Siciliano, 2001.
FRAZER, James George. O ramo de ouro, versão ilustrada. Tradução;
Waltensir Dutra,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1982.
GALVÃO, Eduardo. Santos e Visagens: Um estudo da vida religiosa de Itá,
Baixo
Amazonas. Coleção Brasiliana. São Paulo: Nacional, 1976.
LEACH, Edmund. Sistemas políticos da alta Birmânia. São Paulo: Ed. da
Universidade
de São Paulo, 1996.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O feiticeiro e sua magia. In: Antropologia
Estrutural. São
Paulo: Cosac e Naivy, 2008.
LIGIÉRO, Zeca. Malandro divino. Rio de Janeiro: Nova Era, 2004.
MAUÉS, Raimundo Heraldo. Pajelança e encantaria amazônica. In.
VILLACORTA,
Gisela Macambira. Artigo, São Paulo, 1998.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão das trocas nas
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2003.
MONTERO, Paula. Magia e Pensamento Mágico. São Paulo: Editora Ática,
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PRANDI, Reginaldo. O candomblé e o tempo: concepções de tempo, saber
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autoridade da África para as religiões afro-brasileiras. RBCS (Revista
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TURNER, Victor W. O Processo Ritual: Estrutura e anti-estrutura.
Petrópolis: Vozes,
1974.
VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem: estudo sistemático dos ritos
da porta e
da soleira, da hospitalidade, da adoção e etc.; Petrópolis: Vozes, 1976.
ZAYDAN, Alkmin. Zé Pelintra: dono da noite, rei da magia. Editora Pallas,
1992.
ANÁLISE DA BUSCA PELA CURA NOS TERREIROS DE UMBANDA:
Representações e Significados
Maria do Amparo Lopes Ribeiro1

1
– Bolsista CAPES/CNPq, do mestrado em Antropologia e Arqueologia, PPGGAArq/CCHL/UFPI
e-mail: amparo_ribeiro@ymail.com
1. INTRODUÇÃO

Diante do sofrimento e da angústia vivenciados pelo indivíduo quando


acometido por alguma doença, o mesmo empreende percursos terapêuticos na busca
pela cura, alguns procurando suas respostas através de uma religiosidade que dê
sentido à vida, principalmente quando não se percebem acolhidos no atendimento
prestado nos moldes do modelo médico hegemônico, hospitalocêntrico e
medicalizante.
Embora, em termos acadêmicos de ensino em universidades e/ou faculdades,
em publicações de artigos em revistas especializadas nessa área, ou em eventos,
como as Conferências Nacionais de Saúde (que pela Lei 8142/90, ocorrem de 4 em 4
anos) se fale muito em se prestar uma atenção integral ao paciente (a integralidade
sendo um dos princípios que norteiam o Sistema Único de Saúde, SUS) por meio dos
conhecimentos biomédicos, sociais e culturais na compreensão das doenças e de como
elas afetam os indivíduos, na prática, a realidade é bem diferente para aqueles que
necessitam do atendimento pela rede pública de saúde no país (BRASIL, 2006).
Segundo Giovanella (2008), o modelo médico hegemônico se caracterizaria
por : individualismo; encarar a saúde/doença como mercadoria; dar maior ênfase ao
biologismo (encarando a doença como uma disfunção fisiológica de determinado órgão
ou sistema biológico do organismo); a historicidade da prática médica; privilégio da
medicina curativa em detrimento de uma medicina preventiva; medicalização dos
problemas (dando maior incentivo à produção da indústria farmacêutica de
medicamentos); estímulo ao consumismo médico; participação passiva e subordinada
dos consumidores, ou seja, dos usuários dos serviços de saúde.
Disso, resulta que as pessoas procurem outras estratégias/caminhos para
minimizar e/ou atender suas necessidades de saúde negligenciadas nos moldes do
modelo médico hegemônico, assim, a busca pela cura através de práticas terapêuticas
em espaços religiosos, como nos terreiros de Umbanda, por exemplo,
complementariam as práticas médicas oficiais. (MELLO & OLIVEIRA, 2010)
Com isso, temos como pergunta norteadora da pesquisa: “Como o indivíduo
que vai aos terreiros de Umbanda, da zona norte de Teresina-Piauí, percebe os
terreiros como um espaço complementar ao tratamento iniciado nos estabelecimentos
de saúde e/ou consultórios do sistema médico hegemônico e como os terreiros de
Umbanda se mostram enquanto espaços acolhedores para essa busca pela cura?”
Ou melhor dizendo: “ Qual o significado da busca terapêutica religiosa como
uma complementarização ao atendimento no sistema médico hegemônico, do ponto
de vista de quem procura os terreiros de Umbanda e dos adeptos dessa manifestação
religiosa?”
Desta pergunta inicial, advém as seguintes: será que tais representações
terão uma carga de sentidos cada vez maior à medida em que ele se sinta acolhido,
ou de acordo com as próprias experiências vivenciadas no transcorrer do tratamento
recebido em tais espaços? E tais representações não seriam apenas por parte de
quem as busca, e quanto aos próprios adeptos da Umbanda, pais e/ou mães de santo
e filho (as) de santo, o que teriam a dizer sobre a angústia e a busca que esses
indivíduos empreendem pela cura e/ou alívio de suas doenças? Qual o sentido da
saúde, da doença e da cura nos espaços de terreiros de religiões de matriz africana?
Por isso, também é importante ter atenção aos próprios significados e
representações de saúde na Umbanda, procurando pensar sobre a questão da doença
e da cura no interior desta religião, procurando considerar sua cosmologia, seus rituais
e as práticas de seus agentes (adeptos) em termos de saúde, doença e cura nos
terreiros.
A relevância dessa pesquisa estará em demonstrar a importância de estudos
que abordem o caráter social das doenças, e o quanto a cultura, como nas
manifestações religiosas da Umbanda, podem auxiliar no restabelecimento da saúde
de quem procura os espaços dos terreiros, assim como demonstrar o quanto tais
espaços podem ser promotores de saúde.

2. A RELAÇÃO DO PESQUISADOR COM O CAMPO

Com relação ao papel do pesquisador/observador, Yvonne Maggie (2001) nos


fala sobre a importância da reflexão sobre a presença e a posição do observador no
drama e de sua função no desenrolar dos fatos, um olhar sobre a conjuntura,
analisando-se também o lugar do observador neste drama social. A autora parte das
informações do universo pesquisado e tenta verificar como o grupo se posiciona neste
universo, quais os modelos expressos pelos membros, e principalmente, perceber a
lógica dos rituais, seus símbolos e discursos. Tal lógica de discursos percebida através
de categorias-chave, na busca pelo significado em meio a análises simbólicas desse
drama.
A autora refere que, quando se elabora o conceito de drama social, pretende-
se compreender os distúrbios e crises ocorridos na vida social dos grupos estudados,
pretendemos buscar o sentido dos dramas individuais analisados de um ponto de vista
da coletividade no qual se inserem tais sujeitos, isso porque, segundo a autora, o
drama social além de ser encarado como um instrumento teórico serviria de guia para
a descrição etnográfica de um sistema em funcionamento, demonstrando suas
estruturas a partir, não apenas da observação do pesquisador, mas das versões que
os próprios membros dão aos fatos ocorridos.
Nesse âmbito, caberiam as narrativas dos frequentadores não-adeptos e/ou
simpatizantes que procuram os terreiros em busca da cura, de um acolhimento, de
alguém que escute suas angústias, seus medos e inseguranças, sendo que, tal foco
não desmereceria o momento de conflito interno que os mesmos vivenciam, mas não
o vivenciam de forma solitária, isto é, ao se permitirem adentrar o espaço dos
terreiros, como atores sociais, também estão permitindo que sejam acolhidos por
aquele grupo, para que possam dar uma diretriz para o problema pelo qual estão
passando, se tornando assim sujeitos ativos perante o que coloca em risco sua saúde.
Nesse momento, o indivíduo deixa de ser único, em suas crenças, sem perder
sua individualidade, e aceita as crenças daquela coletividade, como uma crença
alternativa, motivações tornadas significativas para o objeto de sua busca, no caso, a
cura, que poderá lhe trazer o alívio necessário a este momento de angústia, se
permitindo confiar nos pais e/ou mães de santo e nos filhos (as) de santo que lhe
acolhem, aqui cabendo o reflexo disto, no que tange a como essa coletividade
interpreta a posição deste indivíduo perante ela e dela perante ele.
Para Geertz (2011), tal motivação seria uma inclinação para “(...) executar
certos tipos de atos e experimentar certas espécies de sentimento em determinadas
situações (...)” (p.71). Situações estas, referentes a este estudo, como frequentar um
espaço religioso como os terreiros de Umbanda, se permitindo e atendendo às normas
e regras deste espaço, atuando numa performance que favoreça a introjeção e
ativação do simbólico experimentado durante as ritualísticas terapêuticas que
envolvem banhos com ervas, consultas com a(s) entidade(s) espiritual(is) que
rege(m) o terreiro, estar presente durante os trabalhos de cura e quando da entoação
dos pontos cantados2,

2
Na Umbanda, o chamado “ponto cantado” refere-se a cantigas que falam dos Orixás e/ou das entidades
espirituais que trabalham/atendem no terreiro. Estes pontos funcionariam como evocações de determinadas
energias, servindo tanto para trazer as entidades como para se despedir delas.
assim como o cumprimento de regras que direcionem a uma mudança de
comportamentos e de hábitos que favoreçam o entrecruzamento entre tratamento e
cura. Como pode ser observado na foto abaixo, onde presenciei uma festa no
terreiro/tenda espírita onde me proponho fazer esta pesquisa. (FOTO 01)

FOTO 01 – Festa de Seu Raimundo Légua na tenda espírita São Jorge Guerreiro, em
03/11/2012.

A importância de se analisar tais práticas e sua interelação com o universo


simbólico dos participantes, nos remete ao que Yvonne Maggie (2001) e Roberto
DaMatta (1978) afirmam sobre o objeto de pesquisa e a busca pelo mesmo, a
primeira tratando sobre a importância do desenvolvimento de uma percepção do
objeto de pesquisa, onde seria necessário aguçar os sentidos sobre as práticas
terapêuticas e religiosas realizadas nos terreiros e sobre o que as mesmas
representam para quem acorre a eles em busca da cura, para não perder de vista a
relação entre observador e todo o universo de representações do observado.
Já o segundo autor, se refere à busca da realidade objetiva através das
entrevistas e da observação, que leva o pesquisador/observador a se encontrar
submergido em uma dimensionalidade entre o mundo e as teorias. Para ele, para se
conduzir um bom trabalho etnográfico, há que se vestir a capa do etnólogo, no sentido
em que se deve aprender a efetuar a tarefa de transformação do exótico em familiar
e/ou transformar o familiar em exótico, num movimento de ida e volta, sendo
imprescindível a vivência nos domínios da teoria e da prática, visualizando-se as
perspectivas da religiosidade do indivíduo, da sua crença e do que tal momento
representa para o mesmo, em todos os seus sentidos e significados.

3. A BUSCA DOS SENTIDOS E SUAS MULTIPLICIDADES

De acordo com Geertz,


a Antropologia é na verdade uma ciência astuciosa e enganadora.
No momento em que ela parece estar mais deliberadamente
afastada de nossas vidas é que está mais próxima; quando parece
estar falando de modo mais insistente sobre o distante, o
estranho, o remoto ou o idiossincrático, ela também está falando
do próximo, do familiar, do contemporâneo e do genérico. ( 2004,
p.35)

Ao se falar em busca dos sentidos em suas multiplicidades se refere ao


próprio locus do antropólogo enquanto observador, e enquanto participante daquilo
que observa e como o interpreta. Estes sentidos são múltiplos porque não dizem
respeito a um indivíduo que não possua nenhum tipo de vínculo, seja social, afetivo ou
religioso, pelo contrário, ele só pode dar sentido a algo se aquilo possuir algum
significado para o mesmo, por meios dos símbolos com os quais construiu tal
significação para si, caso contrário, não há motivação, não há formação de sentidos, e
tanto ele como a coletividade na qual se insere projetam tais significados, nisso, o
pesquisador precisa apreender e depois apresentar tais dados observados.
Segundo Roberto Cardoso de Oliveira (1988), citando Geertz em O saber
local, “a etnografia do pensamento, como qualquer outra forma de etnografia (...), é
uma tentativa não de exaltar a diversidade, mas de tomá-la seriamente em si mesma,
como um objeto de descrição analítica e de reflexão interpretativa (...) agora, somos
todos nativos” (p.21), aqui, ele explicita o que chama de cruzamento de horizontes
(do observador e do que é observado e do observador e de quem se observa) para
que a interpretação se dê de forma reflexiva.
Algo extremamente importante, conforme o autor, é o surgimento e
consequente admissão de nossos próprios preconceitos por meio do que ele chama de
a fusão dos horizontes que pode ocorrer nesse ir e vir do estar lá geertziano, pois ao
se fazer a etnografia, o pesquisador nunca voltará o mesmo, embora, “na penetração
do horizonte do outro, não abdicamos do nosso próprio horizonte”(p.21), mas até
onde este horizonte já não será mais somente o nosso?
Em relação a isso, temos o que Ricoueur, apud Roberto Cardoso de Oliveira,
diz:
Deste conceito insuperável de fusão de horizontes, a teoria do
preconceito recebe sua característica mais própria: o preconceito é
o horizonte do presente, é a finitude do próximo em sua abertura
para o distante. Desta relação entre o eu e o outro, o conceito de
preconceito recebe seu último toque dialético: é na medida em que
eu me transporto no outro, que levo meu horizonte presente, com
meus preconceitos. É somente nesta tensão entre o outro e eu
mesmo, entre o texto do passado e o ponto de vista do leitor que
o preconceito se torna operante, constitutivo da historicidade.
(1988, p. 21-22)

A busca dos sentidos nos levará às interpretações que os membros de um


determinado grupo, no caso específico, ao integrantes e participantes das práticas
terapêuticas observadas nos terreiros de Umbanda, aplicam às suas experiências, as
construções que erigem sobre os acontecimentos pelos quais passam e, não só como
se comportam frente a tais acontecimentos, mas qual o sentido que dão a tais
acontecimentos, que olhares lançam e quais discursos advêm destas práticas
(GEERTZ, 2004).
Ao analisar o campo a ser pesquisado, percebo o ethos com o qual irei me
deparar e terei que trabalhar, isso porque, lidarei com práticas terapêuticas ligadas a
um espaço de manifestações religiosas, e isso não pode ser deixado de lado, pois,
como relata Geertz (2004; 2011), o centro da perspectiva religiosa seria a convicção
de que os valores assimilados pelos indivíduos se estruturam e tem como fundo a
realidade de quem vivencia tais experiências (o contexto social), demonstrando que o
que os símbolos sagrados fazem para aqueles para os quais são sagrados, ou tem
essa denotação de sagrado, seria formular uma ideia de construção do mundo e uma
conduta que se refletem mutuamente, ou como diria Victor Turner (2005) “ o símbolo
é uma coisa encarada pelo consenso geral como tipificando ou representando (...) algo
através da posse de qualidades análogas” ou seja, “é a menor unidade do
ritual”(p.49). (FOTO 02)
FOTO 02: Chapéu de vaqueiro, no mastro central do terreiro, simbolizando a
presença de Seu Francisco Légua em festa realizada em sua homenagem na tenda
espírita São Jorge Guerreiro. 03/11/2012.

Ainda para Geertz (2004), os padrões religiosos apresentam um duplo


aspecto, sendo ora uma moldura da percepção do indivíduo sobre sua própria
situação, como se fosse uma tela simbólica por meio da qual ele irá interpretar suas
próprias experiências, suas vivências com esses padrões, e isso constitui uma
orientação para possíveis guias de conduta deste indivíduo, com tais orientações é que
nos propomos nos munir ao nos direcionar ao campo.
Escolhi os espaços de manifestação religiosa da Umbanda, inicialmente, a
tenda espírita São Jorge Guerreiro e a tenda espírita São Raimundo Nonato, seguindo
o que diz André Ricardo de Sousa (2004) sobre esta religião, que ela possui uma
grande capacidade de auto-redefinição, de traços religiosos diversos e adaptação ao
meio social no qual estiver inserida, produzindo uma lógica de oferta de bens
simbólicos para o atendimento direto às aflições das camadas populares, sendo o
terreiro uma referência nos bairros periféricos, tendo um caráter de espaço de
agregação comunitária. Com relação a tais aspectos, Sousa comenta que:

O contato inicial com a religião, [ocorre quando] o espírito fala


(...) do problema que aflige a pessoa. (...) Depois, seguindo os
conselhos e prescrições de banhos rituais ou alguma outra
obrigação (oferenda, despacho), recomendados pelo guia
(entidade espiritual), muitos consulentes sentem ter alcançado
a ajuda procurada, tendo para si a prova da eficácia religiosa.
(...) Nesse processo é relevante a acolhida dos cambonos, que
são os assistentes dos guias, mas o decisivo é o atendimento
dos pretos-velhos, caboclos e outras entidades espirituais (apud
PRANDI, 2004, p.307)

Isso condiz com o que Yvonne Maggie (2001) afirma sobre a própria
denominação de religião afro-brasileira que explica o caráter sincrético da Umbanda,
refletida não apenas em sua diversidade, mas numa multidiversidade:

Em primeiro lugar, as religiões afro-brasileiras foram sempre


vistas como um fenômeno de sincretismo religioso no qual se
encontravam traços africanos associados a traços católicos. A
esse sincretismo inicial foi acrescentada a mistura de traços do
espiritismo kardecista com traços indígenas. O próprio nome
genérico que foi escolhido para denominá-las expressa essa
visão de uma religião sincretizada. Afro, pois tinham traços
africanos. Brasileiras, pois apresentavam traços católicos,
espíritas e indígenas (MAGGIE, 2001, p.13).

Por isso me proponho a trabalhar com tais aportes simbólicos e


representativos, envolvendo as práticas terapêutico-religiosas nos entrecruzamentos
discursivos do que possam nos dizer os clientes (que pode ser sinônimos de
frenquentadores não-adeptos e/ou simpatizantes), que procurem as sessões de
trabalhos de cura dos terreiros, assim como, o que pensam os integrantes, adeptos
deste espaço, ou seja, pais e/ou mães de santo e filhos(as) de santo com relação a
quem procura tal atendimento em busca da cura, e o que pensam sobre a questão da
saúde e da doença.
Ao falar dessa busca pela cura, neste espaço específico, com suas práticas
terapêuticas de caráter mágico-religioso, também estarei tratando de toda uma rede
de significados e representações, em um fluxo dinâmico de trocas simbólicas, que
permeia as subjetividades envolvidas, ou seja, a de quem busca pela cura e dos
adeptos que o acolhem no terreiro.
Com isso, trabalhando na dinâmica do que diz Seeber-Tegethoff (2007), com
aproximações com o locus de manifestação social, espiritual e cultural, como são os
terreiros, um espaço onde a escuta, a atenção, os cuidados oferecidos, assim como o
acolhimento levam em conta a harmonia psicossocial do indivíduo que os procuram,
seria possível atribuir um papel de Grenzgänger, termo alemão que combina a noção
que se tem de uma fronteira, a qual separa, mas que por um ato de travessia, acaba
ligando dois lados. E, de acordo com a autora, esse termo também pode designar uma
pessoa que faz o percurso na linha da fronteira, ficando precisamente no espaço entre
os dois lados, a divisa entre dois mundos, no caso ao qual se propõe esta pesquisa, ou
seja, pesquisar e comparar as representações dos indivíduos oriundos da prática
médica oficial, que recebem tratamentos espirituais nos espaços das religiões de
matriz africana, com suas práticas ditas alternativas, de caráter complementar à
prática oficial, assim como o sentido destas práticas de saúde nos terreiros, para os
adeptos desta religião.
Com isso, vamos travando diálogos com Reginaldo Prandi (2004), ressaltando
esse pertencimento a um mundo e por um tempo atravessar a fronteira para o outro
mundo, o dito mundo espiritual, das entidades, dos encantados, confabulando com o
mundo do indivíduo que chega a tais espaços, em busca da cura para seus males,
procurando olhar de dentro desse olhar, cruzando fronteiras e horizontes, com o
entendimento dos umbandistas, levando em conta que as estruturas e exigências são
muito diferentes nestes mundos e se transfiguram em uma luta permanente de
reconhecimento (legitimação das práticas) entre eles. (FOTO 03)

FOTO 03: Oferendas para as entidades que representam o “povo de Légua”, na festa
de Seu Francisco Légua, na tenda espírita São Jorge Guerreiro, em 03/11/2012.

Assim, o momento da escuta da cultura, como fala Geertz, no seu texto Estar
Lá: a antropologia e o cenário da escrita será:
A capacidade dos antropólogos de nos fazer levar a sério o que
dizem tem menos a ver com uma aparência factual, ou com um ar
de elegância conceitual, do que com sua capacidade de nos
convencer de que o que eles dizem resulta de haverem realmente
penetrado numa outra forma de vida (ou se preferir (...), de terem
sido penetrados por ela), de realmente haverem, de um modo ou
de outro, “estado lá”. E é aí, ao nos convencer de que esse milagre
dos bastidores ocorreu, que entra a escrita (2009, p.15)

4. A BUSCA PELA CURA: representações de saúde e doença


Segundo Laplantine (2004), não há sociedade onde a doença não tenha uma
dimensão social, repleta de representatividades por ela acometidas, sendo ao mesmo
tempo a mais íntima e individual das realidades, dando um exemplo concreto da
ligação intelectual entre a percepção individual e o simbolismo social de estruturas
estruturantes, fazendo com que o “campo de conhecimento e significado do doente”
seja caracterizado pelo sofrimento e pela consciência da experiência mórbida com
seus componentes irracionais de angústia (de ser portador de uma doença incurável)
e de esperança (de curar-se), pois, segundo Minayo (2006), “as doenças, a saúde e a
morte não se reduzem a uma evidência orgânica, natural e objetiva, mas sua vivência
(...) está intimamente relacionada com características organizacionais e culturais de
cada sociedade” (p. 205), ou seja, a doença e a saúde são socialmente construídas e o
indivíduo doente é, sobretudo, um ator social que dá sentido àquilo que vivencia.
E como se aproximar dos sentidos inseridos em tais representações, como
vislumbrar essa rede de significados? Para isso, teríamos o estar lá de Geertz (2009),
onde, o labor etnográfico se faria quando o pesquisador se dirigisse ao campo de
pesquisa, voltando de lá com informações referentes aos modelos de como
determinado grupo se organiza, e tornando tais informações disponíveis, de forma
prática, à comunidade científica.
É preciso interpretar o alcance dessas representações, isso, estando de
acordo com o que diz Roberto Cardoso de Oliveira (1988), quando se refere à
Antropologia como uma disciplina de cunho interpretativo, “ela própria possuidora de
instrumentos que lhe permitam poder alcançar um grau de compreensão de si própria,
de modo a realizar aquele espanto (...) em seu encontro com o outro”(p.13).
Ou, de acordo com James Clifford (1991), ao se encontrar em campo, ter em
mente que, em termos etnográficos, não existem verdades absolutas, mas sim,
parciais, incompletas, que apenas certas verdades podem construir um todo,
interpretando o sentido dos silêncios, transcrevendo os discursos, o observado, num
discurso científico que se esforça não somente em contar o que foi observado, mas
também procurando explicá-lo à luz das teorias, a busca pelo equilíbrio entre teoria,
metodologia e técnicas utilizadas em campo, lembrando-se, sobretudo, em não se
priorizar a teoria em detrimento da conjuntura observada, pois, como diz Gilberto
Velho, prefaciando a obra de Geertz (2004), em Observando o Islã: “A compreensão
dos processos sociais observados passa necessariamente, portanto, pelos significados
que lhes são conferidos por parte dos diferentes atores envolvidos”(p.8), e isso será
de extrema importância pois, por meio dos significados, chegaremos ao que tais
processos representam para os atores envolvidos.
E encontraremos tais processos durante o trabalho de campo, com isso,
estaremos atentos ao que Malinowski (1916) nos recomenda a observar que “(...) no
local de estudo [poderemos nos deparar com] um caos de factos, alguns dos quais
[sendo] tão diminutos que parecem insignificantes; outros [sendo] de tal modo vastos
que é difícil abarcá-los com um olhar sintético (...) e o trabalho de campo consiste
(...) na interpretação [desta] realidade social (...)”(p. 256).
Assim, entre o aparentemente insignificante e o que se demonstra
significativo, teceremos a trajetória e importância do não-dito ou aquilo que se diz de
forma cautelosa e velada, talvez o ponto que nos apresente os sentidos de quem se
permite experienciar a busca pelo restabelecimento de sua saúde nos terreiros, nesse
entrecruzamento de discursos, o religioso e o do indivíduo acometido pela doença. .
Com relação a isso, Melo e Silva (2010), citando Lévi-Strauss e Geertz, diz
que:

O discurso religioso possibilita pensar os problemas dentro de uma


lógica ordenada, oferecendo um critério de classificação e
representando uma integração dos acontecimentos desordenados,
tornando suportáveis “para o espírito as dores que o corpo se
recusa a tolerar”, e isso, muitas vezes, [sendo] interpretado como
cura. (2010, p. 12)

Segundo Rabelo (2005) é possível encontrar nos trabalhos de Arthur


Kleinman que procurou manter-se fiel à antropologia interpretativista de Geertz, esse
autor, em 1981, desenvolveu uma abordagem culturalmente sensível e aberta ao
trabalho comparativo, ou seja, a um só tempo interessante tanto para as discussões
travadas no âmbito da antropologia como relevantes para os profissionais de saúde
engajados em um esforço para “alargar o horizonte da medicina rumo ao diálogo com
contextos médicos distintos dos seus” (p.128).
Essa autora demonstra a forma como Kleinman trabalhou, fazendo uma
comparação entre os conceitos illness e disease e seus correspondentes healing e
cure. Disease corresponderia à doença tomada como realidade objetiva, a um modelo
centrado no mal-funcionamento de processos biológicos, e cure à intervenção que visa
a alterar ou deter os processos patológicos relacionados à doença, ou seja, estes
conceitos seriam os trabalhados no campo do modelo biomédico.
Já o conceito de illness, por sua vez, seria o que se refere à doença como
realidade subjetiva, seria o entendimento e, consequentemente, o sentimento dos
sujeitos que estão aflitos e angustiados com sua doença; healing seria uma proposta
de “reconduzir esse entendimento rumo a uma percepção de bem-estar. (...),
Kleinman e seguidores argumentaram que a medicina ocidental se especializou em
curing e relegou a um segundo plano os processos de healing, bastante desenvolvidos
em sistemas médicos não ocidentais. ”(RABELO, 2005, p.129)
Trabalhar tais conceitos demonstra que os sistemas religiosos de cura, como
no caso das práticas terapêuticas observadas nos terreiros em estudo, oferecem uma
interpretação à doença que a insere no contexto sócio-cultural mais amplo de quem
busca pela cura.
Ainda conforme Rabelo (2005), tais aportes simbólicos auxiliariam a quem
busca pela cura, poder fazer uma interpretação que organizaria os estados confusos e
desordenados que caracterizam a experiência da aflição pela qual está passando, em
um todo ordenado e coerente e que, nesse sentido, faria mais do que simplesmente
ligar tais estados a uma causa exterior, agindo, assim, diferentemente da abordagem
biomédica, que tende a despersonalizar o doente, deixando de lado características que
são valorizadas quando do tratamento religioso, que procura ver o indivíduo em sua
totalidade, enquanto um ser social, biológico e psicológico,

5. PERCURSOS METODOLÓGICOS NOS TERREIROS

A condição plural dos terreiros onde serão investigadas as representações e


os sentidos da cura com suas implicações no processo terapêutico através dos olhares
dos participantes de tal processo, implicará em um esforço maior de pesquisa no
sentido de qualificá-la mais adequadamente enquanto segmento presente nas
realidades observadas, visualizando-se a diferenciação entre categorias analíticas e
categorias nativas.
O grande aspecto a ser observado é justamente essa caracterização em
categorias, pois ao adentrarmos o espaço onde realizaremos nosso trabalho de
campo, não poderemos impor a teoria ao que for observado, impor conceitos, mas
antes, analisar e observar o que cada componente e/ou termos utilizados pelos
indivíduos significam para cada um deles.
A abordagem antropológica, baseada na observação direta dos
comportamentos sociais, poderá auxiliar na percepção das formas de ver, sentir e agir
dos atores pesquisados, mapeando suas dinâmicas e realidades. A observação direta
da pesquisa participante, qual seja “aquela que o pesquisador (...) compartilha a
vivência dos sujeitos pesquisados, participando, de forma sistemática e permanente,
ao longo do tempo da pesquisa de suas atividades” (SEVERINO, 2007, p.120)
proporcionará o ambiente adequado para que se sintam motivados a participar
efetivamente da investigação.
Com isso, pretende-se fazer um estudo etnográfico, pois segundo Malinowski
apud Guimarães (1990), as fontes etnográficas devem ser analisadas de modo a
distinguir, de um lado, o resultado das observações diretas e, de outro, o que for
levantado das declarações e interpretações dos sujeitos entrevistados, e ainda, se
atentando ao fato de um terceiro fator, ou seja, as inferências do pesquisador.
Este autor também nos recomenda a conhecer o mecanismo mental do
nativo, talvez numa clara alusão às categorias nativas que podem surgir durante as
observações e/ou mesmo durante as entrevistas, sendo que seria desnecessário
justificá-lo com explicações ou teorias rebuscadas, num sentido de não forçar a
excessiva teorização do que for encontrado no campo, mas sempre procurar
interpretar tais dados.
Além disso, ele também estabelece algumas regras para o trabalho de campo,
como recolher os fatos puros, para separá-los das interpretações, esclarecendo que é
importante, durante a interpretação dos fatos tomarmos cuidado com as
generalizações precipitadas, procurando classificar e ordenar os fenômenos,
estabelecendo relações mútuas entre eles, evitando-se com isso um mero amontoar
de dados de forma desconexa.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estudar a relação entre religiosidade, doença, saúde e cura nos ajuda a


visualizar o quanto tais aspectos encontram-se repletos de representações, sentidos e
significados para aquele que vivencia o processo do adoecimento, com suas angústias
e sofrimentos.
A proposta desta pesquisa será analisar, através de uma pesquisa etnográfica
as representações sobre saúde, doença e a busca pela cura por meio das práticas
terapêuticas observadas em terreiros de Umbanda, levando-se em conta sua
cosmologia e o que esta religião entende por saúde, doença e cura.
Espero que a adoção de múltiplas estratégias metodológicas de pesquisa,
resultem no reconhecimento de que diferentes informações possibilitem
conhecimentos diversos acerca da realidade investigada. Além disto, irei trabalhar
com a convicção de que as informações recolhidas possibilitem sistematizações e usos
diferentes, não apenas para e/ou em forma de texto, mas na elaboração de outros
possíveis documentos de áudio e de imagens, dentre outros, preservando a identidade
dos sujeitos pesquisados.
Portando, diversos relatos serão apreendidos, com o objetivo de oferecer
interpretações sobre os tratamentos e cura de pessoas que procuram terreiros na
zona norte de Teresina, considerando suas implicações no estudo da cultura e sua
importância no cuidado com a saúde.

7. REFERÊNCIAS

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para o controle social no sistema único de saúde. 2.ed. Brasília: Editora do
Ministério da Saúde, 2006.

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Tempo Brasileiro: CNPQ, 1988.

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1991.

DA MATTA, R. O ofício do etnólogo, ou como ter anthropological blues. In: NUNES,


E.O. (Org.) A Aventura Sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978.

GEERTZ, C. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Editora da


UFRJ, 2009.

______. A interpretação das culturas. 1.ed. Rio de Janeiro: LTC, 2011.

____. Observando o Islã: o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

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Editora FIOCRUZ, 2008.

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MAGGIE, Y. Guerra de Orixá: um estudo de ritual e conflito. Rio de Janeiro: Jorge


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MALINOWSKI, B. Baloma: the spirits of dead in the Trobriand island. The Journal of
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http://www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_27_RBA/arquivos/grupos_trabal
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SEEBER-TEGETHOFF, M. Grenzgänger: uma consideração dos entrelaçamentos entre


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TURNER, V. Floresta de símbolos:aspectos do ritual Ndembu. – Niterói: EdUFF,


2005.
A ABORDAGEM RELIGIOSA NA PRÁTICA CLÍNICA: AMPLIANDO OS
HORIZONTES DO RELACIONAMENTO MÉDICO-PACIENTE

Valdelene Nunes de Andrade Pereira¹

Berta Lúcia Pinheiro Klüppel²

Compreender o sofrimento do paciente e contribuir para minimizá-lo é o papel básico


do médico. Assim, a correta abordagem médica deve abranger as esferas mental,
física e espiritual. Esta pesquisa entrevistou 139 pacientes: 121 mulheres e 18
homens entre 25 e 75 anos de idade, em tratamento de hipertensão arterial sistêmica,
em uma unidade de saúde de Pedras de Fogo/PB. Questionados se julgavam
importante o médico perguntar sobre sua religião: 80% responderam que sim; 14%
que não; destes, apenas 18% haviam sido interrogados quanto a este assunto
anteriormente; 6% não responderam. Dados qualitativos, desta amostra, revelaram
uma grande necessidade de inclusão da dimensão espiritual na relação médico-
paciente.

Palavras-chave: Relacionamento médico-paciente; religião; dimensão espiritual.

¹Médica, mestranda do PPGCR/UFPB.


²Médica, Docente do CCS e do PPGCR/UFPB.

1 – Introdução
Ciência e religião estiveram separadas por muito tempo, principalmente aqui no
Ocidente. No entanto, nos dias atuais torna-se mais aceita a ideia que o corpo
humano sofra influências da religiosidade desenvolvida pelo indivíduo (SOUSA et al,
2004, p.55). Bertani (2006, p.133) chama a atenção para a integralidade do cuidado
com o doente, não devendo o médico deter-se somente ao órgão afetado, à dor, à
emoção. Nesta visão ampliada pode-se considerar que deve haver uma sinergia entre
a Medicina e a Religião, ajudando o homem na busca pela saúde física e pelo seu bem
estar psicológico. Esta nova perspectiva terapêutica pode ser chamada de Medicina
Teossomática (LEVIN, 2011, p.27). O mundo científico parece dividido quanto a esta
questão: de um lado estão os que não acreditam na influência benéfica da fé sobre a
saúde, como o professor Richard Sloan, da Universidade de Colúmbia; do outro estão
cientistas como Harold Koenig, da Universidade de Duke, que tentam provar que a
religião é um importante instrumento de cura, devendo ser explorada na prática
clínica (PESSINI, 2007, p.193).

Muitas das pessoas com boas condições de saúde se dizem integradas com o
divino. Alguns doentes também compartilham desse sentimento enquanto que outros
se sentem abandonados por Deus. Independentemente de afiliar-se a uma
determinada religião, o ser humano possui necessidades espirituais, que o levam a
procurar conectar-se a um ser superior, podendo vir a manifestar sua fé através da
espiritualidade/religiosidade (ELIOPOULOS, 2010, p.151). Alguns estudiosos vêem a
espiritualidade como a preocupação com o sentido da vida (ROCHA; FLECK, 2004,
p.184), ou como senso humanitário, sem ligar-se obrigatoriamente à religião
(PESSINI, 2007, p.188).

Em certos casos a espiritualidade surge na própria doença, como forma de


recurso interno, favorecendo a aceitação do quadro ou ajudando no restabelecimento
do corpo; o que demonstra a sua importância na prevenção de doenças, na
manutenção da saúde, na reabilitação e até na cura. Ela parece favorecer uma visão
positiva da vida, reduzindo o estresse, através da sensação emocional que brota do
relacionamento com a divindade (MARQUES, 2003, p.56-57). Como forma de
manifestar tal relação pode-se destacar: a prece (TOSTA, 2004, p.118), a adoração
(ROCHA; FLECK, 2004, p.184) e os rituais executados nas mais diversas formas,
conforme a cultura do povo (GRESCHAT, 2005, p.149).

A dimensão espiritual pode ser trabalhada em qualquer lugar e com pessoas


com graus variados de instrução (MARQUES, 2003, p.64). Além disso, o interesse do
médico pela religiosidade do paciente melhora a relação entre ambos e,
consequentemente, propicia resultados terapêuticos mais satisfatórios, frisando-se
que o profissional deve ser hábil e neutro ao inquirir o paciente sobre suas crenças
(PERES; SIMÃO; NASELLO, 2007, 138; PERES et al., 2007, p.84), sendo importante
um prévio treinamento e um correto posicionamento ético por parte de quem executa
essa abordagem junto ao paciente (FARIA E SEIDL, 2005, p.388).

A espiritualidade no cuidado com o paciente é de suma importância, pois são


muitos os indivíduos que se consideram religiosos e utilizam a religião para lidar
melhor com suas enfermidades, sobretudo com aquelas consideradas incuráveis. A
religião também interfere na saúde física e mental, bem como nas decisões
terapêuticas, sendo importante a maneira como ela será tratada pelo profissional de
saúde. Afinal este é um assunto delicado, requerendo certo preparo e tato por parte
de quem o aborda. (KOENIG, 2007, p. 15-71)

Esse autor chama a atenção para a necessidade de se coletar uma “história


espiritual” do paciente, de forma rápida, sensível e ao mesmo tempo, centrada nas
crenças do paciente, usando linguagem de fácil entendimento para o mesmo.
Igualmente importante é o momento em que será feita a abordagem do assunto.
Certas ocasiões não são convenientes para que seja abordado algo desta natureza.
Pacientes em situações de morte iminente, recuperando-se de anestesia em pós-
operatório ou recuperando-se de um enfarte do miocárdio não são bons exemplos de
indivíduos que devam ter sua “história espiritual” colhida. Ele também não acha
conveniente falar sobre este assunto quando profissional de saúde e paciente não
mantêm nenhum vínculo de relacionamento. Segundo ele seriam situações mais
convenientes para abordar o assunto religião: ao fazer a anamnese de um novo
paciente, na admissão hospitalar ou em visitas ao médico para revisão rotineira de
saúde. Outros autores como Celich e colaboradores (2009, p.68) também incentivam
o questionamento a respeito das crenças do paciente.

Durante sua prática clínica, as pesquisadoras deste estudo se depararam com


diversas situações em que a abordagem da espiritualidade/religiosidade dos pacientes
se mostrou importante para entender o processo saúde-doença, auxiliando no
diagnóstico e terapêutica dos mesmos.

2 – Metodologia

O trabalho aqui apresentado faz parte de um estudo do tipo quantitativo,


qualitativo e longitudinal, realizado no período de dezembro de 2011 a dezembro de
2012, acompanhando pacientes hipertensos em tratamento na unidade Centro I do
Programa Saúde da Família (PSF) de Pedras de Fogo - PB, município localizado na
zona da mata norte, extremando-se com Pernambuco.
2.1 – População e Amostra

A população do município segundo estimativas do censo 2010 do Instituto


Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) era de 27.034 habitantes e o número de
famílias atendidas na referida unidade era de 671. No início do estudo era 340 o
número de hipertensos cadastrados, de acordo com dados fornecidos pela Secretaria
de Saúde. Foram estudados inicialmente 152 pacientes de ambos os sexos, entre 25 e
75 anos de idade, portadores de Hipertensão Arterial Sistêmica. O trabalho foi
concluído com 139 pacientes.

2.2 – Posicionamentos Éticos

Este estudo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres


Humanos/CCS/UFPB, levou em consideração os aspectos éticos da pesquisa com seres
humanos, contemplados na resolução 196 de 10 de Outubro de 1996, do Conselho
Nacional de Saúde, destacando o termo de Consentimento Livre e Esclarecido
assinado pelos pacientes ou seus responsáveis legais, no caso de analfabetos,
antecedendo a participação voluntária na pesquisa.

2.3 – Materiais e Métodos

2.3.1 – Instrumentos Utilizados

Após o consentimento esclarecido dos pacientes sobre o estudo, foi aplicado


um questionário clínico e sócio-demográfico, abordando dados pessoais, de
escolaridade e de hábitos de vida, incluindo a prática ou não de atividade religiosa.
Um dos questionamentos feitos aos pacientes foi: Você acha importante o médico
perguntar sobre sua religião? As respostas poderiam ser sim ou não, devendo em
seguida o paciente responder o porquê de sua escolha. Outra pergunta foi: Algum
médico já havia lhe perguntado sobre sua religião?

2.3.2 – Procedimentos Operacionais

Foram estimuladas práticas religiosas de acordo com a preferência dos


pacientes, em reuniões semanais. Nestas ocasiões os pacientes agendados passavam
por entrevistas e exames clínicos. Nestes momentos, em caderno de campo, foram
tomados os depoimentos que compõem os dados qualitativos deste trabalho.

3 – Resultados e Discussão

A amostra foi composta por 121 mulheres e 18 homens. O predomínio do sexo


feminino entre os participantes da pesquisa reflete a realidade de uma maior procura
das mulheres pelos serviços de saúde. Dentre os 139 entrevistados no estudo, 67 (48
%) eram casados, 32 (23%), solteiros, e dois (1,4%) viviam em união estável; 32
(23%) eram viúvos e seis (4,3%), separados ou divorciados (figura 1). Este estudo
contou com uma maior participação de pacientes casados. O número de pessoas
solteiras foi igual ao de viúvos (as).

Figura 1. Estado civil de pacientes em tratamento de hipertensão arterial


participantes do estudo. Unidade de saúde de Pedras de Fogo/PB. 2012.

Nesta pesquisa foi detectado que a inclusão de dados sobre a religiosidade do


indivíduo, na anamnese, pode ser de grande utilidade para estabelecer um melhor
relacionamento médico-paciente, conforme observado em alguns relatos obtidos por
ocasião da pergunta: Você acha importante o médico saber sobre sua religião?

“Sim. O paciente se sente mais à vontade porque sabe que ele tem fé” (E 14,
católica).

“Sim. Para passar a medicação do paciente. Você fica mais confiante” (E 16, católica).

“Sim. Em minha opinião, existem tantas coisas que podem afetar nossa saúde. A falta
de dinheiro, o relacionamento com as pessoas e com Deus, por exemplo, pode ser
uma delas. Dependendo de sua qualidade de vida, sua saúde pode estar sendo
afetada. Acredito que, tanto a presença quanto a ausência de Deus em nossa vida,
pode interferir em nossa saúde física e espiritual. É necessário que o médico tenha
acesso a determinadas informações sobre nossa vida. Como nossa religião; só assim,
ficará mais fácil para ele detectar onde está a solução para algumas doenças” (E 101,
católica).

“Sim. Facilita o diálogo entre o médico e o paciente” (E 148, católica).

“Sim. Só assim o médico poderá avaliar melhor seu paciente” (E 152, católica).

Foram muitas as respostas semelhantes às apresentadas acima, tendo como


centro a maior confiança do paciente em relação ao profissional que se interessa pelos
aspectos religiosos de sua vida.

Os dados quantitativos quanto à pergunta aos pacientes se eles julgavam ser


importante que o médico soubesse sobre sua religião revelam que 111 (79,8 %)
responderam que sim, enquanto 20 (14,4 %) responderam que não. Oito (5,7 %)
deles não souberam responder ou não opinaram. A despeito deste resultado, apenas
25 (18%) haviam sido questionados pelos médicos sobre este aspecto de suas vidas
anteriormente.

Dossey (2007, p.170) relata a importância de o médico conversar com o


paciente, abordando outros aspectos de sua vida, não se detendo apenas aos
sintomas e às doenças.

Moreira-Almeida, Lotufo-Neto e Koenig (2006, p.249) chamam a atenção para


o fato de alguns profissionais não se sentirem preparados para abordar o aspecto
religioso dos seus pacientes, mas que de posse de tal capacidade, bem como havendo
uma maior aproximação com o paciente, o profissional de saúde poderá ajudá-lo,
amenizando seu sofrimento. Peres, Simão e Nasello (2007, p.138) afirmam ser
indispensável o respeito às crenças do paciente, e que deve ser mantida a
neutralidade por parte de quem faz o questionamento.

Pessini (2007, p.192, 194) ressalta a importância que está sendo dada a
abordagem religiosa nas faculdades de medicina nos Estados Unidos. Segundo ele, o
número de pacientes que pedem orações a seus médicos aumentou. Além de que 72%
dos americanos são favoráveis que seus médicos conversem com eles sobre religião e
acreditam em curas pela fé.

Levin (2011, p.145-153) chama a atenção para o fato de que a saúde das
pessoas também sofre influência do seu relacionamento com Deus. Segundo um dos
estudos citados em seu livro “Deus, fé e saúde: explorando a conexão espiritualidade-
cura” as pessoas que enxergam Deus como um remédio, um ser que as liberta dos
problemas em suas vidas, eram mais felizes e satisfeitas com sua saúde. Pessini
(2007, p.194) apresentou em artigo de revisão o seu ponto de vista e o de outros
pesquisadores, que como ele, acreditam no potencial curador da fé.

Koenig (2007, p.15) enumera seis razões pelas quais se devem incluir a
espiritualidade no cuidado com os pacientes que são: muitos são religiosos ou
espiritualizados; a religião ajuda o paciente a enfrentar uma doença mental; devido o
isolamento a que fica submetido o paciente, ao ser hospitalizado; a religião pode
influenciar decisões terapêuticas, e até entrar em conflito com as mesmas; o
envolvimento religioso está relacionado tanto com saúde física quanto com a mental;
e por fim, a religião influencia os cuidados de saúde na comunidade.

Em outro trabalho, Koenig (2004, p.82) chama a atenção para a importância da


história espiritual no relacionamento médico-paciente. Gary McCord e colaboradores
(2004, p.358), ao realizarem pesquisa no Nordeste de Ohio, abordando pacientes e
seus parentes em salas de espera, encontraram um percentual de 83% de
entrevistados que desejavam ser questionados por seus médicos sobre aspectos de
suas crenças. Dentre estes, 62% acreditavam que isso contribuiria para a tomada de
decisões terapêuticas e 87% deles, para obter um tratamento mais compreensivo por
parte dos médicos. 67% achavam que tais informações contribuiriam para incentivar
nos médicos atitudes mais esperançosas em relação aos seus pacientes. Outro estudo
realizado por Wettstein (2010, p.27) encontrou que apenas 1,7% dos entrevistados
disseram não se sentir à vontade ao responder questões sobre sua religiosidade.
A maneira como o paciente encara sua doença e proximidade com a morte, são
influenciadas pela sua postura religiosa, ajudando-o a encontrar sentido para o seu
sofrimento e para a sua vida (KOVÁCS, 2007, p.247).

4 – Considerações Finais

A modernização da medicina trouxe além da evolução nos métodos


diagnósticos e medicamentosos a superficialização das relações humanas e a
mecanicidade no atendimento ao doente. Diante da precarização das relações de
trabalho e da busca constante por um padrão de vida mais condizente com sua
profissão, o médico afasta-se cada dia mais do paciente, tratando-o muitas vezes de
maneira fria e impessoal. Este por sua vez está numa busca frenética por exames de
alta complexidade, de necessidade muitas vezes questionável, perdendo a confiança
na capacidade do profissional que o atende. O resultado desastroso desta mistura é
um sistema de saúde cada vez mais oneroso e filas cada vez maiores nos
ambulatórios e postos de saúde. Faz-se necessária uma reflexão sobre os atuais
padrões de atendimento existentes, onde papéis impressos e exames de laboratório
são considerados mais importantes que as palavras, sensações e evidências físicas
disponíveis.

Em contrapartida há o interesse por parte de alguns profissionais em trazer de


volta a consulta clínica cuidadosa, apurando o ouvido para o que o doente deseja lhe
falar. Ao questionar o paciente sobre sua religiosidade o médico demonstra mais
compaixão e humanidade por quem está à sua frente, abrindo a possibilidade de
dialogo em uma linguagem que o doente entende e precisa: a da esperança. Afinal já
são muitos os cientistas, conforme citações anteriores neste trabalho, que corroboram
com a ideia de que a religiosidade/espiritualidade do ser humano pode influenciar na
evolução de seu processo de cura, na maior parte das vezes de modo favorável. Além
de que a correta abordagem dos aspectos religiosos da vida do indivíduo pode
contribuir para melhorar o relacionamento médico-paciente, fragilizado atualmente
diante das demandas do mundo moderno e secularizado. Abre-se portanto mais uma
opção na busca pelo bem estar, em conformidade com a medicina de mente, corpo e
espírito.

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1, Franca, 2006, p. 131-158.

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Sul, Porto Alegre, 2010.
1

ÉTICA DAS RELIGIÕES E EDUCAÇÃO EM


DIREITOS HUMANOS – EDH

Evanilson Alves de Sá1


Wellcherline Miranda Lima2

RESUMO: A sociedade passou por transformações conjunturais e estruturais que


desencadearam mudanças nas diversas dimensões humanas. Destacamos a
emergência do sujeito de direito com possibilidades de criar espaços de autonomia
política, cultural e religiosa, tendo como substrato jurídico-político marcos
normativos e princípios éticos que passam, também, pela ética das religiões.
Particularmente no Brasil, verificam-se o dinamismo das religiões e seus valores,
condensados no mosaico de religiões de diversas matizes, que encontram no ethos
as possibilidades do diálogo inter-religioso. A EDH assume como paradigma a
inclusão incondicional do outro, com base no respeito às diferenças e diversidades.
O artigo tem por objetivo promover reflexões acerca da EDH no contexto da ética
das religiões, com fundamento nas prescrições de Candau, Sacavino (2010),
Rampazzo (2010), Hüng (2009), Benevides (2007).

Palavras-chaves: Ética. Religião. Direitos Humanos.

O ser humano é, de forma essencial, sociável, desde sua aparição em


espaços sociais menores, como a família, a sociedade e em espaços maiores como o
Estado que mostram elementos atitudinais e comportamentais, bem como na sua
(inter)dependência com os demais seres humanos sendo através do conhecimento,
a linguagem, a corporeidade e a liberdade, apresentados no raciocínio de
Rampazzo:

O conhecimento põe o homem em contato com todo o


mundo que o circunda, particularmente com o mundo
humano. A linguagem permite-lhe trocar com os outros as
suas ideias próprias, os próprios sentimentos e projetos. O
corpo lhe dá a possibilidade de trabalhar, jogar, divertir-se
junto com os outros. [...] a liberdade colocando na
disposição de dar-se aos outros e de fazer os outros
participantes da sua própria vida e do seu próprio ser (2010,
p. 43).

Por outro lado, percebe-se que o sujeito que recebe da sociedade o elemento
cultural, adquirindo assim crenças religiosas, inseridas em contextos éticos, que se
condensam em princípios morais, critérios estéticos modulados pela sociedade, “se
expande e se enriquece” (Cf. RAMPAZZO, 2010, p. 42). Além de expandir com
proporções globalizadas por meio das comunicações que eleva a dimensão da
riqueza e diversidade social no qual ao mesmo tempo apresentam as dificuldades de

1
Autor é Advogado, Pedagogo e Mestre em Educação (UFPE).
2
Co-autora é Historiadora, Bióloga e Mestre em Ciências da Religião (UNICAP).
2

ocultar e/ou tornar vulneráveis os pensamentos alheios passando ser acessível sem
o seu devido consentimento.
Entende-se que a religião é, na sua essência, um elemento social, conforme
complementa o sociólogo francês Durkheim:

Para aquele que vê na religião uma manifestação natural da


atividade humana, todas as religiões são instrutivas, sem
exceção, pois todas exprimem o homem à sua maneira e
podem assim ajudar a compreender melhor esse aspecto de
nossa natureza. (2009, p. 04)

A religião e o procedimento social na prática deram início ao processo


histórico, e, observou-se que as razões para que a sociedade seja ética é o modo
como o sujeito vive suas ideias e valores, os quais não são universais, mas são
típicos de cada cultura.
Sobre a ética das religiões vem à contribuição de Valls a respeito do princípio
da ética, que segundo ele, “[...] pode ser o estudo das ações ou dos costumes e
pode ser a própria realização de um tipo de comportamento” (2005, p. 08) é,
portanto, a conduta, é o bem comum que pode ser visto de dois modos distintos.

A primeira compreensão inclinada sobre a ética como a finalidade da conduta


do sujeito vem apresentando, então, como se deve agir para aproximar-se desta
concepção de ética. No segundo raciocínio, a ética é vista como a possibilidade da
conduta dos sujeitos que pretendem causar oscilações possíveis de uma forma que
dirija a sua ação.
Ainda, na primeira ideia do conceito de ética conduz em termos ideais para o
qual todo o sujeito se dirige por algo universal ou por natureza. No segundo
momento destacam-se motivos da conduta da pessoa humana, atendo-se ao
conhecimento dos fatos.3 (Cf. VALLS, 2005, p.20-41).
O ethos é constituído, então, de forma singular, pelas contribuições da
família, da escola, da religião, e da cultura de forma geral. Dentro do pensamento
de Hans Küng (2002, p.29-33), ele faz referência ao ethos como espaço reservado e
constituído a partir do cotidiano, das vivências e das relações sociais, com as
normas e/ou regras culturais nas diversas esferas.4

3
Nota-se que há distinção entre a moral e a ética sendo o primeiro seria esse conjunto de regras
estabelecidas numa sociedade, que diz à pessoa de que modo ela deve se comportar, agir. No caso, a
ética é caracterizada pela reflexão que o humano faz dessas regras em relação à situação em que,
normalmente, essas regras deveriam ser empregadas.
4
Hans Küng menciona sobre a ethos mundial como um sistema de coordenadas para encontrar o caminho
da consciência no qual foi realizado , em 1993, o Parlamento das Religiões Mundiais, em Chicago. (Idem,
p.29).
3

No entanto, essa conduta oriunda da visão ocidental, com reforços morais


veio exclusivamente da religião, tendo em vista que os demais domínios da
sociedade foram dirigidos pela religião, ou melhor, pelo Cristianismo.
No contexto da história Ocidental ocorreram, por muito tempo, as leis
oferecidas pela religião, em especial, a judaica e a cristã, que eram semelhantes na
conduta ética, válidas para todos em qualquer circunstância. As normas oriundas da
religião exibiam para a sociedade como ser um sujeito com ética, de forma
confiável.5
Observando as conjunturas e estrutura vistas nos últimos anos, nota-se à
diversidade da prática da religião, ou melhor, religiosa vivenciada atualmente e o
conflito entre elas6; isso desperta o empenho de conhecer essa correspondência
entre ética e religião.
Considerando aquelas duas concepções de ética, poderíamos dizer que na
religião encontram-se somente as regras de procedimento moral, entretanto da
maneira como estão organizadas não favorecem a reflexão do sujeito frente à
situação – a atitude que, aparece, estaria mais próxima ao movimento filosófico, à
reflexão. Isso traz algumas implicações por justificar atitudes como os preconceitos,
a guerra, e, ainda, a falta de atitudes básicas como o respeito.
Entretanto, há atitudes presentes em grande parte das religiões, que está
direcionada para o fundamentalismo como mediador da relação religiosa, com o
qual a sociedade se proporciona e avocam na esperança de encontrarem segurança
na resolução de suas questões, uma certeza, do seu universo particular, o seu
futuro.
Existem muitos outros motivos e exemplos que nos mostrariam que a ética,
reflexão sobre moral, é a concepção mais adequada; também muitos outros que nos
revelariam que a ligação entre religião e ética não é certeira. Há, entretanto, outra
afronta que merece essa reflexão: as “éticas” – como dizem – ou, modos de agir em
cada âmbito da vida e do saber (ética médica, ética docente, ética empresarial,
ética política, etc), porque não falar em “ética”, um modo de proceder dentro da

5
No Brasil Colônia e Imperial, a religião Católica desempenhou normas na sociedade (luso)brasileira.
6
O Censo2010 apresentou o quadro da diversidade cultural e religiosa no Brasil; e ainda está instituído o
dia 21 de janeiro, O Dia Nacional de Combate a Intolerância Religiosa foi oficializado pela Lei nº 11.635,
em 2007. A data referente homenageia a sacerdotisa Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda. Ialorixá
do terreiro Axé Abassá de Ogum, em Salvador, Mãe Gilda morreu de enfarte, após ver sua foto publicada
no jornal de uma igreja evangélica, acompanhada de texto depreciativo. Semanas antes, o terreiro de Mãe
Gilda fora invadido por evangélicos. A Igreja Universal do Reino de Deus, responsável pela publicação da
Folha Universal, foi condenada a indenizar a família da Ialorixá. Disponível em <
http://www.generoracaetnia.org.br/sala-de-imprensa/calendario/item/457-21/01-dia-nacional-de-combate-
a-intoler%C3%A2ncia-religiosa.html > . Acessado em: 17 mar. 2013.
4

religião? Por exemplo, é preciso ter respeito acima das leis, para com outras
religiões, sua existência, o fim que elas indicam às pessoas com as regras que criam
e como fazem isto – até porque, não respeitar o modo de alguém viver de acordo
com sua religião é dito antiético.7
O fundamentalismo é uma forma de (con)viver sobre uma religiosidade
desprovida das leituras hermenêuticas, ou mesmo, cultural; uma forma
desnecessária à vivência religiosa. Diante disso, ocorre no cenário entre cristãos e
católicos e, de maneira notável, no meio dos protestantes, onde a falta de reflexão
sobre essas leituras, por vezes, causa exatamente o oposto da intenção primeira
destas regras: o respeito ao outro – ao próximo, se desejar.8
O Cristianismo, em relação à postura religiosa, na maioria das vezes, é
fundamentalista9, no qual se entende que não há espaço para a reflexão sobre as
regras de procedimento moral e a dificuldade para o diálogo, principalmente o inter-
religioso.
Lançando o olhar para os ensinamentos de personalidades tais como: Jesus
Cristo, Buda e Maomé, entre outros, nota-se que são ensinamentos reflexivos, que
foram cristalizados em algum momento. Diante disso, esses ensinamentos fazem
emergir o valor da preservação da vida como lei universal, bem como o bem-estar
do sujeito e a sua inclusão como outros sujeitos sociais.
Considera-se que as leituras hermenêuticas se tornariam elementos para
qualquer livro sagrado inserido nas mais diversas culturas. Observa-se que não se
trata de abandonar sua cultura, seus costumes, mas de admitir e até somar. Seria,
para tanto, necessário uma compreensão de religião como modo cultural.
Entendermos que leis de preservação da vida são universais e que religião é
uma necessidade cultural, social, e que a medida que a sociedade muda, suas
convicções, seus valores, seu parâmetro de normalidade também mudam, deverá
haver, então, um movimento também na religião.
Além de tudo, esses movimentos indicam que nossa cultura já não é tão
cristã, pois, se fosse, não haveria tantas manifestações diversas – pelo menos
públicas –; e perante esse tipo de lei não ganharia visibilidade somente a doutrina
pentecostal.

7
Muitos brasileiros ainda se lembram do pastor evangélico que agrediu a santa padroeira do País, para os
católicos.
8
No final do século XX houve a guerra entre católicos e protestantes na Irlanda. A banca Pop U2, contém
a música Sunday bloody sunday “domingo de sangue” a música denúncia à guerra e anuncia a indignação
por intolerância religiosa no seu país.
9
Entende-se como o pressuposto do membro religioso de acreditar que a verdade de sua religião é
absoluta, por exemplo, para o cristão, só há salvação em Jesus Cristo e para aproximar-se dele deve-se
seguir as orientações bíblicas literalmente.
5

Isso nos faz concluir que, em qualquer âmbito social, laico ou religioso, em
que se pretenda um agir com o diálogo inter-religioso, a reflexão e a
interdisciplinaridade como a Educação em Direitos Humanos são pressupostos
necessários. Do contrário, em algum momento haverá um conflito moral, que, por
vezes, tem implicações terríveis.

Da Invenção à Afirmação dos Direitos Humanos: uma breve incursão

Afirma-se que os direitos humanos são produtos da fusão e consagração do


pensamento filosófico, do desenvolvimento jurídico e das ideias surgidas com o
cristianismo.
Do ponto de vista filosófico os direitos do homem se assentam no
pressuposto de que a pessoa humana é essencialmente a mesma em qualquer parte
do planeta, devendo-se respeitar a sua individualidade e as peculiaridades de sua
cultura. Segundo Comparato “Os seres humanos apesar das inúmeras diferenças
biológicas e culturais que os distinguem entre si, merecem igual respeito, como
únicos entes no mundo capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza”
(2006, p. 01).
O Cristianismo legou a cultura política humana à afirmação do valor
transcendente da criatura humana e o postulado da limitação do poder pelo direito e
do direito pela justiça. Fundamenta-se na concepção de pessoa humana como ser
“[...] demiurgo de si mesmo e do mundo em torno de si” (Idem, p. 6). O ser
humano tem uma essência intermediaria entre a natureza divina e a natureza
humana. O Cristianismo conclama que a paz se materializa na relação que os seres
humanos (homens e mulheres) estabelecem com o Transcendente, com o outro,
consigo mesmo e com a natureza.
No campo do direito, duas importantes teorias se destacam na justificação
dos direitos humanos: a jusnaturalista e a positivista.
O jusnaturalismo admite a existência de um direito anterior e superior às leis
escritas que se fundamentam em uma ordem superior, universal, imutável e
inderrogável.
A dignidade existe mesmo quando não é reconhecida pelo Direito. Ela
compreende qualidade inerente a todo e qualquer ser humano, portanto é
irrenunciável e inalienável no qual Sarlet diz que "Assim sendo, temos por
dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em
cada ser humano que o faz merecedor de respeito e consideração por parte do
Estado e da comunidade [...]” (2006, p. 60).
6

O positivismo fundamenta a existência dos direitos humanos na ordem


normativa, enquanto legítima manifestação da soberania popular postulando que
são direitos humanos aqueles previstos no ordenamento jurídico.
Segundo o Positivismo Jurídico, as teorias filosóficas enquanto primeiras
afirmações dos direitos do homem são puras e simplesmente a expressão de um
pensamento individual, portanto universais enquanto conteúdo à medida que se
dirige ao homem racional fora do espaço e do tempo, porém extremamente
limitadas em relação a sua eficácia por compreenderem propostas para um futuro
legislador. Somente quando acolhidas por um legislador e postas na base de uma
nova concepção de estado a afirmação dos direitos do homem ganha forma e se
constitui no ponto de partida para a formulação de um autêntico sistema de direitos.
O segundo momento da afirmação dos direitos do homem corresponde ao
percurso do direito pensado para o direito realizado. Admite-se que no trânsito do
direito pensado ao direito realizado a afirmação dos direitos do homem ganha em
concreticidade e perde em universalidade. Os direitos passam a ser protegidos no
âmbito dos estados que os reconhecem, deixam de ser direitos do homem,
transfiguram-se em direitos dos cidadãos de um estado particular.
Segundo Bobbio (2004, p. 50) a terceira fase da afirmação dos direitos do
homem corresponde ao momento de transformação dos direitos dos cidadãos em
direitos do homem, não apenas proclamados, mas protegidos. O autor argumenta
que eles "[...] nascem como direitos naturais e universais, desenvolvem-se como
direitos positivos particulares, para finalmente, encontrar sua plena realização como
direitos positivos universais”. Com fundamento nos argumentos acima expostos é
comum na doutrina jurídica a compreensão de que a importância dos direitos
humanos não consegue ser explicada por qualquer das teorias existentes, que se
mostram insuficientes. Na realidade, se completam, devendo coexistir.
O direito tem por finalidade ordenar os aspectos fundamentais da
convivência humana criando as condições estruturais que permitam a conservação
da sociedade e a realização social dos seus membros. O direito positivo é
constituído pelo conjunto de normas elaboradas por uma sociedade determinada,
para reger a sua vida interna.
Ao passo que o direito natural, na sua formulação, não é um conjunto de
normas paralelas e semelhantes ao direito positivo. É constituído pelas normas que
servem de fundamento a este, normas essas que são de outra natureza e estrutura
diferente das do direito positivo. Centra-se no postulado de que a dignidade
compreende um “[...] valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta
na autodeterminação consciente e responsável da própria vida.” (SARLET, p. 45).
7

Ao discorrer sobre a invenção dos direitos humanos, Hunt (2009), destaca a


afirmação de auto-evidências como elemento crucial para a história dos direitos
humanos, mencionando que conhecemos o significado dos mesmos pela nossa
capacidade de indignação diante das diversas formas violações de direitos.
A autora ainda fundamenta seus estudos nas lutas empreendidas pela
humanidade no combate à tortura judicial como procedimento preparatório à
obtenção da confissão de culpa e nas lutas contra a escravidão. Conclui que os
direitos humanos se fundamentam na dignidade e na razão humana, que são
naturais, iguais e universais, contudo, só ganham significado político quando
adentram na Declaração da Independência Americana de 1776 e na Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão em 1789. Segundo Benevides (2000)

Direitos Humanos são aqueles comuns a todos, a partir da


matriz do direito à vida, sem distinção alguma decorrente de
origem geográfica, caracteres de fenótipo, [...] de etnia,
nacionalidade, sexo, faixa etária, presença de incapacidade
física ou mental, nível socioeconômico ou classe social, nível
de instrução, religião, opinião política, orientação sexual ou
qualquer tipo de julgamento moral [...] decorrem do
reconhecimento da dignidade intrínseca de todo ser humano.
(p. 337)

Apesar da autoevidência, os direitos humanos, conforme afirma Hunt


(2009), continuam abertos à discussão, porque as nossas percepções acerca de
quem tem direito e quais são esses direitos mudam com o tempo e nos diferentes
espaços geográficos. "A revolução dos direitos humanos é, por definição, um
contínuo" (p. 27).

Da Afirmação dos Direitos Humanos à Educação em Direitos Humanos: onde


queremos chegar?

A Educação em Diretos Humanos, compreendida como processo permanente


e multidimensional, tem por objetivo formar o sujeito de direitos, dando-lhe ciência
disso e dos mecanismos destinados a sua proteção e promoção. Candau e Sacavino
(2010) defendem que formar sujeitos de direitos pressupõe "[...] reforçar no
cotidiano [...] a lógica expansiva da democracia, afirmar o princípio e o direito da
igualdade estabelecidos na esfera jurídica e política e transportar essa dimensão
igualitária para as diversas esferas da sociedade".
Contudo, educar em direitos humanos não implica na mera socialização de
conhecimentos historicamente construídos no campo dos direitos humanos de forma
atualizada e demanda ainda por uma teoria de educação e processos metodológicos
coerentes com os direitos humanos. Assim sendo, defendemos a inserção da
mesma no contexto das pedagogias críticas com forte influência da educação
8

popular compreendida como "[...] prática educativa engajada politicamente,


comprometida com os grupos sociais que sofrem diferentes processos de
marginalização e diferentes formas de inclusão social e cultural perversa." (SOUZA,
2007, p. 374). Nesse contexto é que postulamos que a intervenção escolar, como
prática social humana, implica uma única exigência: a inclusão incondicional do
outro.

A Educação em Direitos Humanos, um dos eixos


fundamentais do direito à educação, refere-se ao uso de
concepções e práticas educativas fundadas nos Direitos
Humanos e em seus processos de promoção, proteção,
defesa e aplicação na vida cotidiana e cidadã de sujeitos de
direitos e de responsabilidades individuais e coletivas.
(DNEDH, 2012)

Com esse propósito, a Educação em Direitos Humanos (EDH) provoca os


sujeitos inseridos no processo educativo - educadores e educandos - para juntos
experimentarem novas formas de pensar, sentir e agir. Estas dimensões concebidas
de forma integrada e interrelacionadas propiciam espaços de vivencias concretas
dos direitos humanos. "Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca
inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e
com os outros" (FREIRE, 2005, p. 67).
As Diretrizes Nacionais para Educação em Direitos Humanos (DCNEDH)
destacam a cultura dos direitos humanos como o conteúdo ou temáticas10 da EDH.
Assumindo fazerem parte dessa cultura os conteúdos ou temáticas “[...] que dão
corpo a essa área, como a historia, os processos de evolução das conquistas e das
violações de direitos, as legislações, os pactos e acordos que dão sustentabilidade e
garantia aos direitos.” (DCNEDH, 2012).
O Ordenamento Jurídico Brasileiro consagra o direito à educação como um
direito humano fundamental e o reafirma como direito de cidadania.
Segundo Dias (2005, p.239) o direito a educação na sua relação com a
cidadania compreende duas dimensões: “[...] é um direito de cidadania, mas
também um imperativo para o seu exercício."
A Constituição Brasileira de 1988 confirma a educação como direito de todos
e como dever do Estado e da família, que será promovido com a colaboração da
sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

10
Os temas [...] existem nos homens, em suas relações com o mundo, referidos a fatos concretos
(FREIRE, 2005, p. 115).
9

Habermas afirma que o conceito de direito subjetivo desempenha um papel


fundamental na moderna compreensão do direito. Corresponde ao conceito de
liberdade de ação subjetiva. Os direitos subjetivos estabelecem os limites, no
interior do qual, um sujeito está justificado a empregar livremente sua vontade.
Como elemento da ordem jurídica os direitos subjetivos pressupõem a colaboração
dos sujeitos, que se reconhecem reciprocamente em seus direitos e deveres. “Os
direitos subjetivos resultam dos direitos que os sujeitos se atribuem
reciprocamente.” (2003, p. 121).
Ainda de acordo com o autor anteriormente citado, acrescenta-se que às
normas morais e jurídicas seguem lado a lado, se complementando. Uma ordem
jurídica só pode ser legitima quando não fere princípios morais. Ao perseguir
legitimidade a norma jurídica mantém uma relação de complementação recíproca
com a norma moral. Segundo Ramos (2005, p. 47) a fundamentação dos direitos
humanos "[...] como direitos morais buscam a conciliação entre os diretos humanos
entendidos com exigência ética ou valores e os direitos humanos entendidos como
direitos positivados."
Comparato (2006, p.60) afirma que na prática se identifica uma confusão
entre o direito subjetivo propriamente dito e a pretensão "[...] que é o modo
judicial, ou extrajudicial, reconhecido pelo ordenamento jurídico para garantir o
respeito ao direito subjetivo. A ausência ou não do exercício da pretensão não
significa [...] que não haja o direito subjetivo”.
A lição do Jurista e educador reforça a caráter imprescritível do direito a
educação, que fundado na concepção de homem como ser inconcluso e inacabado,
acompanha o ser da espécie humana ao longo de sua vida.

O ser do homem não é algo permanente e imutável: ele é


propriamente a vir a ser, um continuo devir. A essência do
ser humano é sempre evolutiva, porque a personalidade de
cada indivíduo, isto é, o seu ser próprio, é sempre, na
duração de sua vida, algo incompleto e inacabado, uma
realidade em continua transformação. (Idem, p.28-30)

O Caminho: encontros e desencontros

Candau (2003) compreende que o estudo de experiências concretas


realizadas no contexto escolar nas suas implicações com a educação popular,
poderá contribuir para o desenvolvimento teórico e metodológico da educação em
direitos humanos.
10

Segundo Gadotti (2000), na América Latina e no Brasil a Educação Popular


se consolidou em um mosaico de experiências: educação no campo, indígena,
quilombola, para as mulheres entre outras. Entretanto, a adjetivação não
desvirtua a sua compreensão como teoria geral da educação que pode ser aplicada
a qualquer processo educativo, desde que não perca a sua identidade com os
deserdados do mundo. A educação popular enquanto “[...] concepção geral da
educação pode ser aplicada em qualquer nível de ensino ou em qualquer setor
social; contudo, ela se dirige [...] majoritariamente às classes populares” (p.272).
Pesquisas evidenciam que os estudos de experiências concretas realizadas no
contexto escolar a partir das suas relações com os paradigmas da educação popular,
revelam uma tensão entre estudiosos e educadores. De um lado encontramos um
grupo de defensores da educação em direitos humanos que afirmam a mesma
demandar por princípios, conteúdos e metodologias próprias, dos quais somos
signatários. Do outro, coletivos que consideram que qualquer experiência educativa
fundada na perspectiva problematizadora e libertadora da educação de base
freireana, podem ser visualizadas como experiências de educação em direitos
humanos, por considerar o valor educativo do diálogo e os sujeitos do processo
educativo como construtores de saberes.
Candau (2003) defende que a proposta metodológica coerente com a
educação em direitos humanos deverá se alicerçar em dois eixos estruturadores: a
vida cotidiana como referência permanente da ação educativa e a admiração diante
de toda expressão de afirmação da vida. Destaca a técnica das oficinas
pedagógicas como “[...] um espaço de construção coletiva do saber, de análise da
realidade, de confronto e intercâmbio de experiências, e de um exercício concreto
dos Direitos Humanos.” (p. 117-118).
Também ainda nessa acepção Horta (2003) considera que a educação em
direitos humanos demanda por uma abordagem metodológica multidimensional
comprometida com o desenvolvimento das pessoas na sua totalidade, pautada em
“[...] práticas educativas participativas e dialógicas em que se trabalhe a relação
prática-teoria-prática e em que o cotidiano escolar esteja impregnado da vivência
dos direitos humanos” (p.129).
Sacavino (2003), preleciona, corroborando com as demais, que a educação
em direitos humanos deverá articular-se em torno de três eixos inter-relacionados e
implicados entre si. Quais sejam: processos educativos destinados à formação de
sujeitos de diretos e ao empoderamento; o olhar histórico para a cultura dos
vencidos, quebrando a cultura do silêncio e da impunidade; articulação da dimensão
ética com a política social e as práticas concretas.
11

Candau (2003) afirma que indignar-se e rebelar-se implica no


desenvolvimento da capacidade de superar toda indiferença diante das violações
dos direitos humanos, que se multiplica em nossa sociedade e estão presentes
também na escola. “A educação em direitos humanos fornece a capacidade de
perceber, dentro e fora do âmbito escolar estas buscas concretas e cria espaços em
que estas experiências são partilhadas, construídas e postas em prática” (p. 111).
Reafirma que no desenvolvimento de experiências concretas de educação em
direitos humanos devem ser consideradas três dimensões: a intelectual, a ética e a
política. A dimensão intelectual corresponde aos aspectos cognitivos. O
desenvolvimento de experiências concretas no campo da educação em direitos
humanos requer o conhecimento dos direitos humanos considerando os seus
aspectos filosóficos, históricos e jurídicos. Trabalhar a dimensão ética
da educação em direitos humanos implica na promoção da educação para cidadania
ativa; construção de uma prática educativa dialógica, participante e democrática,
compromissada com a construção de uma sociedade que tenha por base a
afirmação da dignidade de toda pessoa humana.
A dimensão política implica em processos educativos radicalmente voltados
para transformação social, logo:

A Educação em Direitos Humanos deve penetrar nas


diversas dimensões da ação educativa, não pode estar
desvinculada das práticas sociais. Tem que se expressar em
atitudes, saberes, comportamentos e compromissos, no
exercício da cidadania e na vida cotidiana em seus
diferentes âmbitos. Compromete nossos sentimentos,
desejos e sonhos (CANDAU, 2003, p. 89).

O discurso atual sobre os direitos humanos é polissêmico.


Consequentemente, as maneiras de se conceber a educação em direitos humanos
também trazem em si as marcas da polissemia. Essas marcas nos permitem
visualizar, no mínimo, dois enfoques, um de caráter ideológico neoliberal e outro
fundamentado na visão dialética e contra-hegemônica. Segundo Mondaini (2006,
p.12) a versão neoliberal “[...] procura identificar nos direitos humanos uma
barreira à realização da lucratividade pelo livre mercado”.
Contudo, a educação em direitos humanos de enfoque neoliberal não se opõe
ao estudo dos direitos humanos, desde que não seja questionado o modelo social
vigente profundamente marcado pela violação de direitos, no qual se encontra
inserida a escola. “A escola sempre foi espaço de tensos convívios de relações
autoritárias, mas também de ações amorosas e respeitosas.” (ARROYO, 2005, p.
317).
12

Ao passo que a educação em direitos humanos de enfoque contra-


hegemônico questiona o modelo educacional vigente e assume o compromisso com
a transformação social e com construção de um projeto social alternativo. “Os
direitos humanos devem permitir a construção não só de uma linguagem de
protesto e denuncia, mas também de uma linguagem da utopia e da esperança em
ação” (HORTA, 2003, p. 138).
Consideramos que nem todos os espaços adjetivados de humanos são
verdadeiramente humanos. E muitos discursos, radicalmente democráticos,
escondem práticas autoritárias que nem todos os que se assumem como
autoritários são capazes de praticá-las. Sujeitos autoritários existem, a história
humana registra e narra suas atrocidades. Porém, os defensores e promotores de
diretos devem estar atentos às pessoas que se dizem defensores e promotores de
direitos, quando na verdade buscam promoção pessoal e, para tanto não se
incomodam de interceptar o sopro de humanidade que percebe no outro que busca
o seu processo de humanização tanto na dimensão pessoal como coletiva. Essas
pessoas muitas vezes são protegidas pelo manto do estado de direito para
postergar o direito do outro, em decorrência, grupos humanos incluídos
perversamente, nas suas lutas, nem sempre seguem o caminho da justiça e do
direito. Ao lutarem pelo o que há de mais elementar para o humano viver acabam
por empreenderem práticas que põem em risco as suas próprias vidas e vidas de
outras pessoas.
Os educadores, promotores e defensores de direitos, partem do princípio de
que a defesa do direito é necessária à promoção da justiça. A educação em direitos
humanos não pode ficar indiferente à violação de direitos e ao sofrimento do povo.
Nas suas relações com a educação popular faz opção pelos deserdados do mundo.
Isso significa lutar contra a exploração e desejar que todos possam viver com
dignidade.
A opção pelos marginalizados do mundo não pode ficar no plano teórico ou
meramente emotivo, sem verdadeira incidência em nossos comportamentos e em
nossas decisões. É necessária uma atitude permanente que se manifeste em opções
e gestos concretos evitando toda e qualquer atitude paternalista. Combater o
paternalismo implica em dá aos deserdados do mundo atenção, escutar seus
interesses, procurando a partir deles, a transformação da situação em que vivem
por pior que seja.
Os educadores a partir do momento que se propõe a tarefa de educar estão
se assumindo como promotores e defensores de direitos. É preciso desenvolver no
profissional da educação, seja na sua formação inicial ou continuada, a
compreensão da natureza singular do direito a educação como um direito humano,
13

que promove o acesso a outros direitos e a importância do seu papel na garantia


desses direitos.
Contudo, inferimos que a ética se constitui no fio condutor que aproxima
religião, direitos humanos e educação em direitos humanos. Preservadas suas
singularidades, religião e direitos humanos se encontram nos princípios clássicos
dos direitos humanos - liberdade, igualdade, fraternidade - que ao se condensarem
possibilitam e incorporam as diversidades e as diferenças como pressuposto da
igualdade.

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14

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TESSITURAS ENTRE: RELIGIÃO, IN/TOLERÂNCIA, DIGNIDADE E DIREITOS
HUMANOS NO BRASIL.

Josefa Vênus de Amorim1

RESUMO

A religião como contínua re/construção do ser, com variedades de elementos e


multiplicidades de relações que transforma as experiências estimula e motiva o viver.
A religião por ser uma prática de intervenção social, é multifacetada por um composto
complexo de enfoques e perspectivas. Portanto não pode ser apreendida ou
considerada como uma ciência isolada e sim como um fenômeno que compõe varias
categorias de um campo epistemológico influenciado por várias dimensões e ciências:
sociais, políticas, psicológica, filosóficas, históricas, etc. Neste contexto a dignidade e
os direitos humanos. A pesquisa de caráter bibliográfico com o objetivo de identificar
uma ação pró-ativa em favor de atitudes de tolerância, respeito às diferenças e
compreensão dos direitos humanos e da alteridade.

Palavras-Chave: Religião. Intolerância Religiosa. Dignidade. Direitos Humanos no


Brasil

1 RELIGIÃO

1
Josefa Vênus de Amorim: Economista - Psicóloga – Especialista em Direitos Humanos - Especialista e
Mestre em Ciências das Religiões - UFPB
2

A interdependência biológica ou a
fraternidade religiosa de todos os seres
humanos transmudam-se, assim, em
autentica solidariedade jurídica, que cria
direitos e gera obrigações. (Fábio Konder
Comparato)

A dimensão espiritual mostra-se essencialmente, como a dimensão da vivência


da liberdade e da responsabilidade. Responsabilidade nada se identifica com um
caráter moralista pelo qual o indivíduo se obrigaria a agir de acordo com normas
introjetadas, mas caracteriza-se justamente pela capacidade de responder, isto é, pela
liberdade atuante no momento em que o homem responde ou se posiciona diante das
circunstâncias presentes.
A Religião (do latim: "religio" usado na Vulgata, que significa "prestar culto a
uma divindade", “ligar novamente", ou simplesmente "religar") pode ser definida
como um conjunto de crenças relacionadas com aquilo que a humanidade considera
como sobrenatural, divino, sagrado e transcendental, bem como o conjunto de rituais
e códigos morais que derivam dessas crenças.
Toda religião supõe uma classificação das coisas, reais e ideais, em duas
categorias ou gêneros oposto designados com os termos profano e sagrado. Os Ritos,
rituais e vivencia religiosa estão intrínsecos no imaginário humano. Neste sentido,
Vilhena (2005 p. 57) diz que:
O imaginário nesse sentido, é nossa via de acesso às realidades
invisíveis ou aquelas ditas como sobrenaturais. Porque nosso
imaginário é povoado por fantasias, sonhos, utopias, criações de
situações, lugares e seres, somos capazes de produzir ciências,
poesias, romances, musicas, pinturas, esculturas, religiões. Esse
processo vivido no plano individual também acontece no plano
coletivo.

As Religiões contemplam várias abordagens metodológicas e distintas disciplinas,


dentro das ciências humanas, sendo possível um estudo de forma plural, e nas mais
diversas perspectivas, com dimensões mais refinadas em suas “formas visíveis” os
fenômenos, o numinoso, o mistério fascinante.
As Religiões numa relação transdisciplinares com outros saberes das ciências
humanas e sociais, como a Teologia, a Filosofia, a História, a Antropologia, a
Sociologia, a Psicologia, etc., ampliam o leque de oportunidades acadêmicas, para os
profissionais que trabalham com a educação em direitos humanos, para líderes
religiosos e outros grupos profissionais, possibilitando um diálogo e convivência.
Possibilita ainda, uma releitura da realidade. Apresentando algumas questões
adicionais por comportar elementos que o conhecimento científico tem dificuldades
para objetivar, e assim, aspectos essenciais da vida humana relacionada à
3

religiosidade e espiritualidade, tendo oportunidade de ser investigada a luz desses


componentes, educacional e religioso.
Educação (educere) significa a formação integral do ser humano, isto é, o
desenvolvimento de suas potencialidades com uma fundamentação ética para sua
formação integral, ou seja, significa possuir e perseguir o ideal de ser humano,
sociedade e mundo, através da busca de um ordenamento coerente do todo que está
fragmentado.
O direito de liberdade de consciência e de crença deve ser exercido
concomitantemente com o pleno exercício da cidadania. Para tanto é preciso educar. E
“educar é conduzir pelos caminhos do conhecimento na busca da autonomia
intelectual e política” (PASSOS, 2007, p.41a). Como “ciência, ensino-aprendizagem e
cidadania formam o tripé de toda ação educativa” (PASSOS, 2007, p.41b), a Religião
não pode prescindir da dimensão intelectual, como também das dimensões éticas,
culturais e de direitos humanos.
A adesão à fé confessional e a um tipo de religião/religiosidade, com já visto na
análise dos instrumentos legais de combate à intolerância, são inalienáveis, e por isso
mesmo, constituem opções individuais. Construir sua própria cidadania, reconhecendo
e respeitando as diferenças.

O confronto com a pluralidade de modelos, a decodificação de


experiências valorativas que envolvem os sujeitos, a abordagem
de questões que transcendem pragmatismos teóricos e sociais
de valores que fundamentam a convivência humana (PASSOS,
2007, p.43c).

Como atividade pedagógica, o trabalho com a diversidade religiosa se torna


elemento central de ação pró-ativa em favor de atitudes de tolerância e respeito às
diferenças e compreensão da alteridade. Não visa reproduzir, mas antes produzir
conhecimento, levando o individuo a refletir sobre as várias formas de viver o
fenômeno religioso, compreendendo suas diferenças, levando-os a respeitá-las,
deixando de enxergá-las como oposições. Essa ação se traduz numa necessidade no
contexto atual, onde se pode observar a nível planetário, uma tendência à pluralidade
religiosa.
Esse fator deve ser cuidadosamente considerado principalmente no Brasil, onde
apesar da hegemonia do catolicismo, existiu desde o início da colonização a influência
de europeus e indígenas, cada um contribuindo com seus valores e crenças para a
formação de um povo. Portanto, “o perfil religioso brasileiro reflete o caleidoscópio
cultural de nossa terra, com a herança diversificada e a abertura para o novo e para o
plural” (CRUZ, 2004, p.32), devendo ser incentivada essa abertura natural para o
novo como forma de estímulo à convivência e ao respeito por essa pluralidade.
4

Nesse contexto onde se pode detectar uma multiplicidade de credos e crenças,


e considerando-se que o ser humano é um ser de reciprocidade que está inserido em
um contexto sofrendo-lhe as influências, dentre as quais a religião é uma das mais
fortes, pode-se garantir a liberdade de pensamento, a liberdade de expressão, a
igualdade na diversidade apenas pela imposição da lei?
Levando-se em conta todos esses fatores, a tarefa do educador, como diz Paulo
Freire (1996) exige consciência do inacabamento, ou seja, deixa de ser apenas a de
mero transmissor de conhecimento a respeito da história das religiões. Como
professor de ensino religioso ele precisa, portanto, criar um processo de mediação
para que os educandos possam interagir, enfrentando seus conflitos e problemas
comuns a partir de suas experiências, histórias de vidas, referências culturais, dentre
outras. Ainda numa perspectiva freiriana, exige bom senso, humildade, tolerância e
luta em defesa dos direitos.
A mudança de paradigmas contribuirá para a mudança do individuo e seu
padrão de comportamento social, possibilitando a erradicação futura de
comportamentos que ameacem a consolidação da liberdade de expressão, da
consolidação da paz entre credos e nações e consequente desenvolvimento da
tolerância.

2 IN/TOLERÂNCIA RELIGIOSA

Iniciamos a partir de uma diferenciação entre: A Intolerância religiosa, que


consiste em um termo que descreve a atitude mental caracterizada pela falta de
habilidade ou vontade em reconhecer e respeitar as diferenças ou crenças religiosas
de terceiros, e a Tolerância religiosa, que consiste na aceitação da atitude do outro, “é
a harmonia na diferença” (UNESCO, 1995, p.11). Praticar a tolerância religiosa
significa admitir “que toda pessoa tem a livre escolha de suas convicções e aceita que
o outro desfrute da mesma liberdade” (UNESCO, 1995, p.12).
No entanto, podemos considerar que aprender a conviver, viver com o outro e
com a diferença do outro, respeitar a igualdade na diversidade, (igual respeito a cada
pessoa nas suas diferenças), se constituem em princípios fundamentais a serem
respeitados, especialmente pelo educador, para que ele possa repassar esses
conceitos com segurança para o alunado.
Embora a perseguição religiosa, que constitui um caso extremo de intolerância
e consiste no maltrato persistente que um grupo dirige a outro grupo ou a um
indivíduo devido à sua afiliação religiosa, usualmente vendo caracterizando esta
perseguição de formal tal que floresce devido a vários fatores, no entanto, estaremos
5

selicionando o foco do nosso estudo, ou seja, a ausência de tolerância religiosa,


liberdade de religião e pluralismo religioso.
A história humana encontra-se repleta de confrontos religiosos. Mas se há
confrontos é preciso admitir que as organizações religiosas “participam dos fluxos
históricos que configuram povos, territórios e poderes políticos” (PASSOS, 2007,
p.98), sendo uma presença forte e constante que interfere nas relações sociais.
Decorrente desse fato, e levando-se em conta que, apesar das rápidas
mudanças ocorridas nos tempos atuais, “o sagrado continua seduzindo os humanos”
(CALIMAN, 1998, p.7) as questões da liberdade religiosa e os seus limites, tornaram-
se assuntos delicados que vêm sido promovido polêmicas que perpassam por vários
setores sociais, sejam elas de caráter público, administrativo, judicial ou político e que
ultrapassa em muito os limites territoriais.
Como as instituições religiosas “desempenham funções hermenêuticas no
interior das culturas como classificação da realidade” (PASSOS, 2007, p.98), a
verdade revelada pela religião adotada por cada cultura vai ser considerada por seus
seguidores como verdade universal, se tornando o único princípio, meio e fim de
salvação.
No entanto, a crença de que são detentores da verdade absoluta, é a gênese
de sentimentos de intolerância em relação a outros grupos que expressam sua
espiritualidade de forma diferente, e que também crêem que a sua verdade é única.
Geram-se assim os confrontos com base nessa classificação da realidade dentro das
culturas e na crença subseqüente de que, estando o outro errado, deverá ser
convertido à fé verdadeira.
É possível identificar que a moral proclamada por algumas religiões também
determina uma visão de mundo muitas vezes preconceituosa e pragmática. O que
pode conduzir ao fundamentalismo e novamente à intolerância, principalmente contra
as minorias, pois:
O fundamentalismo religioso é extremamente nocivo para o
indivíduo e para a sociedade. Ele promove a intolerância, a
dificuldade de relacionamento entre grupos, destrói a integração
e o respeito mútuo, não admite opiniões divergentes e
considera sua perspectiva isenta de erros (PPGCR, 2009, s/p).

No momento atual, “o encontro da alteridade é uma experiência que nos coloca


em teste: dele nasce à tentação de reduzir a diferença à força” (MELUCCI apud
BAUMAN, 1999, p.16). Por exemplo, é o caso das limitações impostos às mulheres,
aos grupos homossexuais, aos adeptos de religiões de origem africana e aos que não
professam um credo religioso. Ações estas, geradas com base em preconceitos que
6

visam justamente reduzir as diferenças usando-se a força como meio de coerção por
falta de aceitação dessas diferenças.
No contexto histórico percebemos que no Brasil, o histórico de colonização
também revela um retrato de intolerância e de dominação, utilizando princípios
religiosos como justificativa para a opressão. O cidadão podia ser privado de sua
liberdade de expressão dentro da comunidade em que vivia indo-se ao extremo de
privar os sujeitos da própria liberdade, ou seja, esta temática vem marcando nossa
história.
É possível identificar que mesmo com a diversidade de expressões religiosas
na atualidade, por conta da herança colonial, “o Brasil ainda se constitui como um país
essencialmente cristão” (CRUZ, 2004, p.16). O que significa afirmar que, ainda que
exista uma variedade significativa de cultos e religiões, essa herança ainda é tão forte,
que mesmo essas novas manifestações trazem resquícios do cristianismo ou mais
precisamente da religião oficial no Brasil colônia, que era o catolicismo.
Essa influência é sentida da mesma forma no contexto escolar através do
Ensino Religioso que, “ao longo da história [...] esteve e desconfiamos que ainda está
sobre o controle da Igreja Católica, enquanto instituição religiosa hegemônica”
(PASSOS, 2007, p.16). E estando sobre o controle da igreja, era cumpridor dos
parâmetros fornecidos por ela, tendo caráter catequético e teológico, repassando
unicamente os princípios e ideologias católicas.
Desconfiamos que essa forma de exercer e educação religiosa era excludente,
visto que adotava uma denominação religiosa em detrimento das demais. Na medida
em que a religião hegemônica obtinha dos sistemas de ensino o consentimento para
reproduzir a sua doutrina, tornavam-se instrumento de discriminação religiosa.
Nesse sentido, ao impedir o alunado de conhecer outras religiões, promoviam a
uniformização e, como “a uniformidade alimenta a conformidade e a outra face da
conformidade é a intolerância” (BAUMAN, 1999, p.54), acabavam por promover essa
última, pois dava a impressão equivocada que somente essa religião continha
elementos morais válidos para a conduta dos indivíduos em sociedade.
Por também ter sido muitas vezes realizado de forma impositiva, o Ensino
Religioso deixou de colaborar para a composição de uma educação integral e
integradora. Por sua vez, o Estado entrando em concordância com os atos da igreja,
permitindo-lhe agir conforme lhe aprouvesse, contribuiu para a manutenção dessa
situação.

3 CONTEXTUALIZANDO OS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL


7

Objetivando reverter a situação há muito instaurada e após um período de


consultas realizado entre lideranças de diferentes tradições religiosas, a Secretaria
Especial dos Direitos Humanos lançou em novembro de 2004, uma cartilha
denominada Diversidade Religiosa e Direitos Humanos. Inspirada na Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948), na Declaração de Princípios sobre a Tolerância
(1995) e com abalizada pelo artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal, visa o
esclarecimento da sociedade quantos aos direitos relativos à prática religiosa e
Fundamenta-se no princípio da tolerância.
A Declaração de Princípios sobre a Tolerância enfatiza em seu texto, a
importância da educação na construção de uma política de paz ao afirmar que “a
educação é o meio eficaz de prevenir a intolerância” (UNESCO, 2004, p.15) e mais
adiante complementa que,
A educação para a tolerância deve ser considerada como
imperativo prioritário; por isso é necessário promover métodos
sistemáticos e racionais de ensino da tolerância [...] As políticas
e programas de educação devem contribuir para o
desenvolvimento da compreensão, da solidariedade e da
tolerância entre os indivíduos, entre grupos étnicos, sociais,
culturais, religiosos, lingüísticos e as nações.

O exercício da tolerância deve ser incentivado e cultivado por ser um princípio


norteador da convivência social. A partir desse referencial pode-se aprender a cultura
emergente enquanto expressão do fenômeno religioso e daí apreender o perfil
culturanalitico da escola e do fenômeno religioso, bem como, compreender a inter-
relação entre a força do simbolismo que este fenômeno provoca nos indivíduos e a
dinâmica da organização escolar.
Conforme descrito ainda na apresentação desta cartilha, “o Estado Brasileiro é
laico” (SEDH, 2004, p.6). O estado laico é aquele que não deve ter ou não tem
religião, mas, onde há liberdade de adesão por parte dos cidadãos a qualquer
denominação religiosa ou mesmo de abstenção dela devendo haver respeito pelas
suas práticas.
Esse respeito é promovido “pelo conhecimento, a abertura de espírito, a
comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença” (UNESCO,
1995, p.11). O que desembocará na tolerância religiosa, nascida do respeito tanto às
religiões, quanto a falta delas.
Este conceito (estado laico) aparece pela primeira vez na constituição de 1887,
e apregoa o respeito à religião, cabendo a lei, o papel de garantir a liberdade religiosa.
Garantir essa liberdade de escolha significa também dizer que a lei não se imiscuirá
nas decisões religiosas, como também a religião não deverá interferir ou influenciar as
8

decisões da lei. Dessa forma, a escolha pela laicidade apresenta-se como uma
alternativa válida para assegurar o direito de escolha e liberdade de religião.

4 INSTRUMENTOS LEGAIS DE COMBATE A INTOLERACIA RELIGIOSA

Iniciamos trazendo uma reflexão a partir da afirmativa de Gandhi: “as religiões,


fundamentalmente, não são mais que as diversas encarnações da única verdade”
(ROHDEN, 2004, p.182a), não haveria motivos para as discórdias entre religiões e
religiosos. Mas, como ele mesmo observa, “como uma árvore tem um único tronco e
muitos ramos e folhas, assim existe uma única e verdadeira religião que, passando
pelo homem se multiplica” (ROHDEN, 2004, p.182b).
Esse pensamento traduz muito bem, as diferenças de ser e pensar de cada
indivíduo que, associando-se às questões culturais e sociais, influenciam suas
concepções de mundo e intervêm no processo educativo.
Essa diferença de pontos de vista faz surgir problemáticas relativas aos direitos
individuais, como a do direito à liberdade de escolha religiosa. Elas ganham cada vez
mais visibilidade em um “mundo globalizado [onde] as diferenças culturais e religiosas
misturam-se e confrontam-se de maneira direta ou virtual na vida cotidiana e
desafiam os cidadãos a terem sobre elas uma visão e uma postura” (PASSOS, 2007,
p.78).
A globalização dos meios de comunicação ao promover a divulgação de
realidades outras antes não imaginadas, “tanto divide como une [...] e as causas da
divisão são idênticas às que promovem a uniformidade do globo” (BAUMAN, 1999,
p.7). Ao realçar diferenças culturais e religiosas entre os povos, divide as opiniões
quanto à sua legitimidade e põe em evidência a necessidade da criação de políticas de
combate à intolerância religiosa que assegurem os direitos humanos dos indivíduos.
Como a problemática da imposição religiosa por parte do poder político
extrapola os limites do país, ocorrendo em âmbito mundial, faz-se necessário
averiguar não só o posicionamento da legislação brasileira a respeito do tema, como
também lançar um olhar sobre as declarações universais a respeito da questão dos
direitos humanos neste particular, independente da nação a que pertença. Segundo o
plano nacional dos direitos humanos

Os Direitos Humanos são nucleados pela concepção da


dignidade da pessoa humana. De toda pessoa humana, sem
distinção. É essa concepção,assumida como princípio, que
confere aos Direitos Humanos a sua universalidade, ao
constituir a dignidade como o atributo de humanidade, da
espécie humana.
9

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 traz em seu artigo 18, o
ideal à liberdade na diversidade, igual respeito a cada um nas diferenças. Declara a
respeito da questão religiosa que,

Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento,


consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar
de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião
ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela
observância, em público ou em particular (ONU, 1948, s/p).

A partir da mencionada declaração, observa-se logo de início, a ênfase dada a


garantia do direito fundamental que todo indivíduo possui de agir tendo como base a
própria consciência e o livre pensar na construção dos seus princípios religiosos
quando os possuir, ficando livre para expressar publicamente suas preferências sem
que seja alvo de qualquer discriminação ou represália. Segue-se daí, não ser lícito que
cidadãos sejam obrigados a professar ou a rejeitar qualquer religião, ou impedir que
alguém entre ou permaneça em comunidade religiosa contra a sua livre vontade ou
mesmo a abandone.
Desta construção, outros documentos internacionais e nacionais passam a
caracterizar esse direito de forma mais específica. Neste ensejo, para além do papel
desempenhado pelas instituições educacionais – onde os indivíduos estão expostos a
diversos fatores que virão a compor a sua personalidade e condicionar suas
concepções de mundo – fica claro, especialmente na redação do Artigo 18 do Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966, que cabe ao Estado a obrigação de
garantir esse direito.
Após discorrer sobre o impedimento do uso de medidas coercitivas que possam
prejudicar a liberdade individual de ter ou não de adotar uma religião ou crenças, o
referido Artigo complementa:
Os Estados Partes no presente Pacto comprometem-se a
respeitar a liberdade dos pais e, em caso disso, dos tutores
legais a fazerem assegurar a educação religiosa e moral dos
seus filhos e pupilos, em conformidade com as suas próprias
convicções. (RDHC, 2009, s/p).

Em nível nacional, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5, item 6, que


trata dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, versa sobre a inviolabilidade
da liberdade de consciência e de crença, quando assegura que “o livre exercício dos
cultos religiosos é garantida, na forma da lei” como também o é “a proteção aos locais
de culto e a suas liturgias” (CF, 2003, p.6).
Já a regulamentação da garantia constitucional do oferecimento do ensino
religioso cabe aos estados e municípios. Ficando livres para decidir a forma como esse
ensino será implantado em suas instituições de ensino, foi necessária a criação da Lei
10

de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, que regulamentasse essa oferta de ensino.


Esta por sua vez, foi inserida no contexto dos Parâmetros Curriculares Nacionais –
PCNs, como se pode observar pelo texto do Artigo 33, transcrito a seguir:

O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante


da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos
horários normais das escolas públicas de Educação Básica,
assegurando respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil,
vedadas quaisquer formas de proselitismo (OLIVEIRA et al,
2007, p.55).

Estas determinações colocam em evidência o fato do Estado brasileiro


reconhecer, em princípio, sua obrigação para com os seus cidadãos no que tange à
promoção de um ambiente de estudo e investigação sobre o fenômeno religioso.
Como se pode observar, as questões dos direitos humanos e, dos direitos
relativos a liberdade de expressão religiosa e do combate à intolerância, continuam
sendo um problema atual, sendo fonte de preocupação para políticos, educadores,
religiosos e sociedade em geral.

NOTAS CONCLUSIVAS

A intolerância religiosa ainda é uma realidade no Brasil e no mundo. Dentre as


formas de combatê-lo estão as disposições legais regulamentadas por leis, as
manifestações internacionais de repúdio através de documentos elaborados em
convenções mundiais e a educação.
Esta última representa a forma mais eficaz de combate à intolerância religiosa
à longo prazo, pois sedimentará as noções de tolerância e esclarecerá sobre os
direitos humanos, coadjuvante a modificação da visão do educando em relação às
manifestações de religião/religiosidade.
A trajetória da Educação no Brasil refletiu a situação histórico-cultural do país.
A adoção do catolicismo como religião oficial influencia ainda hoje a forma ele como se
estrutura, e até mesmo as novas formas de manifestação de religiosidade.
A formação de novos paradigmas para a implementação de uma educação que
se adeque ao regime de laicidade adotado no Brasil, constitui um desafio para
educadores e educandos e para as entidades que trabalham em prol dos direitos
humanos. A implantação de seus objetivos, não serão facilmente alcançada sem as
mudanças políticas e institucionais no país, sem o trabalho criterioso e contínuo de
todos aqueles que desejam contribuir para a construção de uma educação cidadã.
Uma das formas de acelerar a mudança na forma de passar ensinamentos
sobre religião nas escolas é capacitando um corpo docente devidamente esclarecido
11

através de cursos de formação na área, a exemplo das Licenciaturas em Ciências das


Religiões, educação em direitos humanos, que tenham por objetivo real o estudo sério
que levará ao entendimento da religião e da dinâmica religiosa, o respeito ao ser em
suas escolhas e diversidades e não a catequese ou mesmo a conversão.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas, RJ: Jorge Zahar, 1999.


CALIMAN, Cleto. A sedução do sagrado: o fenômeno religioso na virada do milênio, 2
ed. RJ: Vozes, 1998.
CF – Constituição da República Federativa do Brasil, 31 ed. SP: Saraiva, 2003.
CNEDH – Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos, Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos, DF: Secretaria Especial dos Direitos Humanos,
Ministério da Educação, Ministério da Justiça, UNESCO, 2007.
CRUZ, Eduardo Rodrigues da. A persistência dos deuses: religião, cultura e natureza,
SP: UNESP, 2004.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia, SP: Paz e terra, 1996.
GRESCHAT, Hans-Jürgen. O que é ciência da religião? SP: Paulinas, 2005. Coleção
Repensando a Religião.
MAFESSOLI, Michael. A contemplação do mundo, Tradução de Francisco Franke. Porto
Alegre: Artes e ofícios, 1995.
MEC – Ministério da Educação. Parâmetros curriculares nacionais: bases legais. DF:
Ministério da Educação, 2000. Disponível em
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/blegais.pdf. Acesso em 18.04.2012.
OLIVEIRA, at al. Ensino religioso: no ensino fundamental. SP: Cortez, 2007.
ONU –Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos,
1948. Disponível em http://www.onu-brasil.org.br/ documentos_direitoshumanos.php.
Acesso em 22.04.2012.
RDHC – Rede Direitos Humanos e Cultura. Pacto internacional dos direitos civis e
políticos. Disponível em http://dhnet.Org.br/direitos/sip/onu/doc/pacto2.htm
PASSOS, João Décio. Ensino religioso: construção de uma proposta. SP: Paulinas,
2007.
PPGCR – Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões, Sobre o PPGCR.
2009. Disponível em http://www.ce.ufpb.br/ppgcr/?secao=1. Acesso em 18.04.2012.
Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2006). Disponível em:
http://www.redhbrasil.net/documentos/bilbioteca_on_line/diretrizes.pdf. acesso em:
27/03/2013.
ROHDEN, Huberto. Mahatma Gandhi: o apóstolo da não violência, SP: Martin Claret,
2004.
SEDH – Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Cartilha Diversidade religiosa e
direitos humanos. DF: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2004.
UNESCO. Declaração de princípios sobre a tolerância, Conferência Geral da Unesco –
28ª Reunião. 16.11.95. Disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/
0013/001315/131524PORb.pdf Acesso em 20.04.2012.
VILHENA, Maria Ângela, Ritos: expressões e propriedades. SP: Paulinas, 2005.
(coleção temas do ensino religioso).
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ROMARIAS E EX-VOTOS NA SERRA DO PEDRO

Priscila Costa Matias¹


Gisele Menezes da Silva²
Lydiane Batista de Vasconcelos³

Resumo
O presente trabalho busca mostrar como o fenômeno da romaria e ex-votos na
Serra do Pedro localizada na cidade de Lagoa do Ouro- PE ganhou força através da
oralidade e como a crença influencia na vida dos fiéis. O tipo de fé praticada no
local se caracteriza como catolicismo popular, comum no Brasil. Se trata de um
fenômeno que ocorre no âmbito regional e se inicia, em geral, através da oralidade.
Dessa forma, o trabalho foi desenvolvido em sua maior parte através das entrevistas
orais feitas com romeiros e moradores dos arredores do local.

Palavras-chave: romaria, ex-voto, oralidade.

1
Autora –Graduanda em Licenciatura em História (UPE-Campus Garanhuns)
² Coautora – Graduanda em Licenciatura em História (UPE – Campus Garanhuns)
³ Orientadora – Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História (UFPE)
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Sumário

1. Introdução
2. Romaria
3. Peregrinação até a Serra do Pedro
4. Profanação sacralizada
5. Relatos sobre milagres e ex-votos na Serra do Pedro
6. História oral
7. Memória e história
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1. Introdução

As peregrinações e ex-votos no Brasil se faz muito presente na vida do cristão


católico. Esse fenômeno pode ser explicado pela forte influência trazida pelos
colonizadores portugueses. A crença nos santos como intercessores faz com que muitos
fiéis católicos façam promessas para esses santos, e essas podem ser as mais variadas:
doação de bens, peregrinações, oferendas e outras formas de agradecimento. As romarias e
ex-votos, atualmente, costumam serem as formas de agradecimento mais comum dos fiéis
brasileiros. Ambas as formas de agradecimento são tidas como catolicismo popular, por
serem fenômenos que se originam no âmbito regional. Sobre essa questão o historiador
Süss diz que:

Por religião popular entendemos aqui a totalidade de convicções e


práticas religiosas, formadas por grupos étnicos e sociais na
confrontação de culturas típicas com o cristianismo, como cultura dos
povos dominantes. É uma tentativa de conservarem a sua identidade e
existência como povo, que sabe que na religião, na sua fé e nas suas
celebrações rituais, pode afirmar a modalidade de ser homem e cristão.”
(Süss, 1978, pg.14).

As peregrinações feitas pelos cristãos católicos para lugares sagrados remete a


Idade Média, onde uma das formas de se redimir dos pecados era peregrinando para algum
lugar tido como sagrado, por exemplo, Jerusalém. No Brasil, essas peregrinações
costumam ser chamadas de romaria, e os peregrinos são denominados de romeiro.

As romarias são, em geral, caracterizadas por iniciarem no âmbito regional para


depois ganharem reconhecimento mais abrangente. Esse reconhecimento, em geral, se dá
através dos relatos de milagres atribuídos ao local, que em sua maioria, são relatos orais.

A crença em lugares sagrados, permeados de forças capazes de operar milagres e


atender preces está presente no imaginário das pessoas há tempos sem que haja uma
datação específica para o início nessa crença. Mas, é notória a importância dada aos locais
sagrados e oferendas oferecidas como forma de redimir-se.
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2. Romaria

O ato da romaria consiste em caminhar até o local tido como sagrado objetivando
alcançar uma união com Deus. O romeiro ou peregrino costuma fazer essa caminhada para
agradecer ou pedi algo para um deus ou para algum santo, no caso dos católicos. Blainey,
2012, diz que: Para os devotos, a peregrinação representava a concretização da esperança
cultivada por toda a vida. (pg. 164)

Deve-se entender o local sagrado como o lugar onde se encontram referenciais que
remetam a uma determinada divindade religiosa, ou local onde determinado grupo de
pessoas atribui acontecimentos “milagrosos” que acabam por se popularizar ao longo do
tempo e o lugar assim se sacralizar através do popular.

Valendo-se disso, pode-se dizer que a Serra do Pedro localizada no munícipio de


Lagoa do Ouro-PE tornou-se um lugar sagrado através das “histórias de milagres” contadas
pelos romeiros por meio da oralidade. Essas histórias são de milagres atribuídos ao santo
que dá o nome a serra, São Pedro.

Dessa forma, ex-votos são deixados na capela e romarias são feitas até a Serra,
assim os milagres continuam a acontecer e a fé nesses milagres continua a ser repassada.

3. Peregrinação até a Serra do Pedro

A cidade de Lagoa do Ouro está situada no agreste pernambucano. Possui uma


população de pouco mais de 12 mil habitantes. Tem forte influência da Igreja Católica,
apesar da grande difusão das igrejas protestantes nos últimos dez anos, causando evasão
dos fiéis católicos para essas igrejas.

Por haver uma presença muito forte do catolicismo na cidade, grande parte das
festividades da cidade é realizada em comemoração a alguns santos, com isso, não poderia
ser diferente a festa em homenagem ao santo que operou e opera segundo as narrativas dos
moradores uma série de milagres na cidade, São Pedro.

Não há uma história precisa que conte o início das romarias e promessas até a Serra
Pedro, porém os relatos de milagres atribuídos ao Santo são dados pelos mais diversos
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moradores das mais variadas idades. O que podemos concluir pelos relatos recolhidos, é de
que essa devoção tem mais de cem anos.

Conta-se que por volta de 1900 ocorreu uma doença que estava matando muitas
pessoas. Nos relatos, ela foi denominada com os seguintes nomes: peste do rato, bubônica
e febre espanhola. Quanto ao nome dado à doença, os entrevistados se mostraram
confusos, mas a história contada sobre o milagre que deu origem a capela foi unânime. A
doença assolava a cidade e muitas pessoas estavam morrendo.

(...)o pai dessa minha mulher minha aqui, quando ia pro enterro de um
bem cedo, quando chegava, às vezes nem ia almoçar ,almoçava, pra
levar outro cadáver de outro morto. É doença triste. (José Francisco
Filho, conhecido como Seu Xito com 77 anos)

A crença na história é tão forte que fica perceptível até mesmo conversando com os
entrevistados. A presença do mal para os cidadãos da localidade se encontra até mesmo
nos relatos sobre doença. Durante o trabalho de campo, algo que chamou atenção ao
entrevistar Seu Xito, foi a presença da sua esposa, Dona Olívia, 75 anos, que juntamente
com o esposo nos cedeu algumas informações, essa sempre que falava o nome da doença
ou sobre a doença, falava antes “ave maria, ave maria”, comportamento esse que pode ter
sido repetido por ela quando reproduzido em outra geração. O que nos lembra do que
Hobsbaw fala sobre ritualização e repetição dos costumes.

Seu Xito mora na Serra há 75 anos, é um dos bacamarteiros vivo mais antigo da
cidade, e comemora a festa de São Pedro juntamente com outros bacamarteiros atirando
com suas riunas2. Geralmente na região do Nordeste o ritual do Bacamarte tem caráter
religioso, neste caso acontece com intenção de celebrar e agradecer os milagres realizados
pelo santo. Sobre Festas e atos religiosos Egidio Vittorio Segna 1977 diz que: “Em
correlação a falta de padres na área rural, a prática religiosa dá ênfase a ritos não-sacramentais
e menos ligados à ortodoxia da Igreja oficial. As grandes festas religiosas atraem a populações
dispersas.[...]As praticas religiosas que refletem o alto nível da sacralidade da cultura local,
podem ser assim resumidas em: procissões, promessas, acender velas, atos de devoção a santos,
rezas, romarias ao santuários, mandar rezar missas, depor ex-votos nas igrejas, devoção aos

2
De cano curto e largo, também conhecida como granadeira, reiuna, reuna ou riuna. As granadeiras ou bacamarte foram
usados pelos soldados Nordestinos na Guerra do Paraguai, em 1865. Elas foram modificadas para que as armas se
adaptassem ao uso dos bacamarteiros nos festejos.
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defuntos, bênção de objetos etc.” O meio social cristão encontram suas maneiras para
manifestar a gratidão, culturalmente as festas carregam esse poder ritualístico.

Com isso, percebe-se que estas comemorações funcionam como afirmação de um


dado fato histórico que merece ser lembrado como vencido. E é essa vitória que deve ser
celebrada. A tradição em manter uma celebração não é apenas um título de boa posição no
campo religioso, mas é também um lembrete onde o fiel se sentirá sempre em dívida com o
sagrado.

Na Serra havia somente um cruzeiro que foi posto no local por haver uma lenda de
que São Pedro apareceu naquele local. E por esse motivo, a Serra recebe o mesmo nome do
santo. Não conseguimos saber por meio dos relatos e pesquisas a média de tempo em que o
cruzeiro foi erguido na Serra. Mas, sabe-se que a construção da capela levou a remoção do
local primeiro do cruzeiro para outro ponto da serra, onde está localizado atualmente.

Imagem 1 ( Cruzeiro e a capela que foi construída posteriormente ao cruzeiro por causa de uma promessa.)

A construção da capela deu-se através de uma promessa ao santo, por volta dos
anos de 1900 por causa das várias mortes que estavam ocorrendo por causa da doença já
citada. A família de Maria Xingó e Sr. Odilon foi uma das que sofreram com a doença e
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assim fizeram uma promessa para que São Pedro ajudasse no combate daquela doença,
para as pessoas parassem de morrer; se assim o santo ajudasse, eles ergueriam uma capela
no alto da Serra com o nome do santo. E assim foi feito.

Não há registro sobre o ano de construção da capela, nem quanto tempo essa levou
para ser erguida, mas sabe-se que Maria do Xingó e Sr. Odilon construíram a capela
juntamente com outros fiéis. Com relação à construção da capela, o Sr. Pedro Barbosa de
Lima, com 74 anos, sobrinho de Dona Maria Xingó e Sr. Odilon, relatou que a capela foi
construída por Sr. Odilon depois que seu pai (do senhor Pedro), irmão de Sr. Odilon,
falecido por causa da doença, apareceu em sonho para ele (Sr. Odilon) pedindo para que
esse construísse uma capela na Serra em homenagem a São Pedro, pois assim a doença
deixaria de assolar a região. Dessa forma, a capela foi construída com a ajuda de outros
habitantes, mas o Sr. Odilon e Maria do Xingó como os personagens principais dessa
construção.

4. Sacralização profanada

Os fiéis costumam comemorar no dia 29 de julho, o dia de São Pedro, subindo a


serra a pé, a típica romaria. Porém há alguns anos esses fiéis estão deixando a tradição de
subi a Serra no dia 29 para subi no dia anterior ou em outra data, pois a cavalgada e
romarias que antes eram feitas para agradecer e homenagear o santo, hoje serve para os não
fiéis festejarem de forma profana, e não mais religiosa. A cavalgada tem seu início na
cidade até o alto da Serra. Ao chegar na Serra é celebrada uma missa, há os disparos de
riunas, os agradecimentos e ex-votos são deixados na capela.

Mircea Eliade diz que; O homem toma conhecimento do sagrado porque este se
manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. (pg. 17) O autor dá o nome
de hierofania a questão da sacralização de algo dito como profano; uma árvore, uma pedra,
um lugar.

...Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de


algo “de ordem diferente” – de uma realidade que não pertence ao nosso
mundo - em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo
“natural”, “profano”. (Eliade, 2008, Pg17)
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A cavalgada para a Serra, segundo a atual secretária de administração do município,


é organizada pela prefeitura da cidade de Lagoa do Ouro há 14 anos em média, porém
antes disso, a cavalgada já acontecia. Se pudermos fazer um marco de quando a cavalgada
começou a perder seu caráter sagrado e passou a ser um evento profano, esse marco
poderia ser o início da organização do evento pela prefeitura, pois a partir de então passou
a ter um caráter festivo, onde as pessoas sobem a serra ingerindo bebidas alcóolicas
durante o percurso, o que acaba por poluir o local, pois latas e garrafas são jogadas durante
o percurso. E após seu termino e a volta para cidade, há um “forró” de graça para as
pessoas. Dessa forma, a cavalgada paulatinamente, tem perdido seu caráter sagrado e
ganhando características profanas. Houve ano em que o antigo padre da cidade se recusou
a celebrar a missa antes da cavalgada, pois alegou ter mais pessoas bêbadas preocupadas
com a “farra” do que romeiros que iam de fato fazer a peregrinação.

As cavalgadas tornaram-se um tipo de tradição na cidade. Durante o ano há uma


série de cavalgadas que representam algumas comemorações e o caráter rural da cidade.
Além da cavalgada de São Pedro, há a Cavalgada das Mulheres, a Cavalgada dos Amigos,
Cavalgada de Igapó e outras.

Imagem 2 (Camisa da cavalgada para Serra do Pedro do ano 2012)


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5. Relatos sobre milagres e ex-votos na Serra do Pedro

Os ex-votos carregam um significado simbólico de agradecimento do fiel para com


o santo ou deus que supostamente atendeu ao seu pedido. Logo, consiste em uma relação
de troca entre a pessoa que pede e o santo que atende ao pedido. Pedido atendido,
promessa cumprida.

Além de simbolizar um agradecimento, também simboliza o fortalecimento da fé e


da união com o sagrado, com Deus, com o santo.

Dona Maria do Carmo Ferreira, conhecida como Carminha tem 67 anos e mora aos
arredores da Serra faz 40 anos em média. Relatou que sempre que está com algum
problema faz uma promessa para o santo. Certa vez, ela havia levado uma pancada na
perna, onde a ferida estava incomodando muito e não sarava há tempos. Prometeu que se
fosse curada irei levar fogos para soltar no alto da Serra e velas para acender na capela. A
mesma já levou ex-votos quando estava com um problema na mão, entre outras promessas
que ela disse sempre fazer.

Alikaely de Araújo Barros com 18 anos de idade, mora na Serra faz 14 anos e ajuda
a cuidar da capela. Relatou sobre sua promessa:

(...)“Eu paguei minha promessa, né?!Que eu peguei um problema no


seio, aí o médico não curava de jeito nenhum, aí eu fiz a promessa pro
São Pedro, aí fiz pra ir de roupa preta e descalça até lá e botar a minha
foto nos pés dele. Aí graças a Deus com um ano, resolveu fiz, os exames
de novo e quando eu cheguei lá o médico ficou bestinha porque não tinha
mais problema no seio... Graças a Deus, eu paguei minha promessa e foi
valida.” (Alikaely de Araújo Barros, 18 anos)

Outros entrevistados relataram não fazer promessas, mas dizem que veem muitas
pessoas que fazem.

Imagem 3 ( Ex-votos são deixados em agradecimento na capela.)


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Imagem 4 ( Interior da capela de São Pedro – a direita a representação esculpida do santo.)

6. História oral

Trabalhar com oralidade requer muito cuidado pelo fato de tratar-se de relatos de
memória. É comum a pessoa que está sendo entrevistado apresentar alguma dificuldade
para lembrar-se do fato corretamente, além do que, os mesmos fatos podem apresentar
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versões diferentes se for descrito por mais de uma pessoa, pois o entrevistado trará consigo
não só o relato do fato, mas suas crenças e formações pessoais. Logo, o trabalho com
entrevista oral deve ser cuidadoso quanto à análise do que virá a ser o fato histórico
contado na pesquisa.

Podemos perceber que com o passar do tempo a história oral vai ganhando ou
perdendo elementos. Podemos demonstrar isso de forma simples: na brincadeira do
“telefone sem fio”; é dita uma frase para uma pessoa e essa passa para a próxima e assim
por diante até chegar à última pessoa do jogo. Ao termino, podemos notar que a frase não
chegará da mesma forma que a primeira pessoa havia falado. Essa frase terá perdido ou
ganhado alguma(s) palavra(s) ou poderá ter sido totalmente modificada, de forma que o
seu sentido também possa vir a sofrer modificações.

Assim acontece com a história oral, ao longo do tempo e do contexto vivido por
determinado povo, ela sofre modificações. A história se modifica, sem que possamos
analisar ao certo como o fato ocorreu. Por isso, é necessário que se faça pesquisas com
mais de uma pessoa, se possível. Pois, o entrevistado tende a falar a história do seu ponto
de vista e de suas memórias lembradas, o que pode se torna perigoso de se trabalhar com
somente uma fonte oral, dependendo do fato. Diz José Carlos Sebe, 2011: A história oral ao
valer-se da memória estabelece vínculos com a identidade do grupo entrevistado e assim remete à
construção de comunidades afins.

7. Memória e história

A memória tem se tornado uma das fontes de pesquisa para se fazer história, mas
quando memória é história é um ponto que tem sido posto em debate e deve-se ter cuidado
ao usar a memória como um recurso para se fazer história, para que o parecer do
pesquisador não se sobreponha ao relato do entrevistado. A tradição oral é uma das formas
de preservação histórico-cultural que caracteriza um mecanismo usado por determinados
grupos para manter uma história viva.

Fonte oral é mais que história oral. Fonte oral é o registro de qualquer
recurso que guarda vestígios de manifestações da oralidade humana.
Entrevistas esporádicas feitas sem propósito explícito, gravações de
músicas, absolutamente tudo que é gravado e preservado se constitui em
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documento oral. Entrevista, porém, é história oral em sentido estrito.


(Meihy, 2011, pg. 13).

O pesquisador que trabalha com memória deve atentar para os sentimentos


expressos pelo entrevistado quando este estiver relembrando o fato, no intuito de não
alterar a visão do entrevistado, quando for fazer a análise e publicação dos dados. Pois,
esses dados irão fazer parte de acervos historiográficos que estarão disponíveis para
consultas, então faz-se necessária a integridade do conteúdo construído.

8. Considerações Finais

Perceber a importância de uma determinada crença religiosa, na vida das pessoas se


faz relevante a partir do momento que isso influencia a vida social dessa pessoa.

Quando essa crença passa a interferi na vida de uma pessoa de forma mais ampla, e
não mais somente no campo religioso, como é o caso de pessoas que pagam promessas
para se curar de alguma doença, isso deve ser um ponto importante para o estudo das
religiões. A cura acontecendo por causa da promessa ou não, a crença nisso faz com que a
pessoa sinta-se melhor por saber que há algo ou alguém mais poderoso que vela por ela.

Essa divulgação de milagres, que em geral se é dado através da história oral, é o


principal fator colaborador da divulgação do sagrado no âmbito popular. As romarias
ganham mais adeptos justamente através da história oral dos milagres alcançados. Essas
crenças, por muitas vezes, acabam por se tornarem tradições que caracterizam um
determinado local, como pode se perceber, no presente trabalho.

Portanto, registrar os fatos culturais, mesmo os que ainda não tenham um registro
documentado, se faz importante para manter viva a memória dessas tradições, ajudando
assim a construir novas fontes historiográficas na tentativa de não deixar que a memória da
tradição morra com seus personagens.

3
As entrevistas orais foram realizadas no ano de 2012.
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Referências

BLAINEY, Geoffrey
Uma breve história do cristianismo / Geoffrey Blainey; [versão brasileira da editora] –
1.ed. – São Paulo – SP: Editora Fundamento Educacional Ltda., 2012.

ELIADE, Mircea, 1907-1986.


O sagrado e profano: a essência das religiões / Mircea Eliade; tradução Rogério Fernandes.
– 2ªed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom


História oral: como fazer, como pensar / José Carlos Sebe Bom Meihy, Fabíola Holanda. –
2. Ed., 1ª reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2011.

SÜSS, Günter Paulo


Günter Paulo Süss – Catolicismo Popular no Brasil: tipologia e estratégia de uma realidade
vivida – Edição Loyola, Alemanha, 1978.

HOBSBAWN, Eric Robsbawn


A invenção das tradições / Eric Hobsbawn e Terence Ranger /Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1997. Coleção Pensamento Crítico; v. 55.

Santuários, romarias e discipulado cristão


(Sanctuaries, pilgrimages and Christian discipleship)
Edênio Valle, SVD*

Disponível em:<http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/501/526>

Revista de Estudos da Religião Nº 3 / 2003 / pp. 99-107


ISSN 1677-1222
O Símbolo e o Ex-Voto em Canindé - Marcelo João Soares de Oliveira
Disponível em: http://pucsp.br/rever/rv3_2003/p_oliveira.pdf
O DESAPARECIMENTO DO CRISTIANISMO DA PALESTINA, A VIOLAÇÃO DOS
DIREITOS HUMANOS E O “CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES”
01.INTRODUÇÃO

O Cristianismo, apesar de ser uma das mais antigas religiões do mundo, é também
uma das mais dinâmicas e que mais tende a crescer, principalmente no sul global,
em especial na África e América Latina, como demonstra Philip Jenkins (2002,
p.17). Entretanto, quanto mais a fé cristã cresce nessas áreas do globo, menores
são os números de fies no Oriente Médio, onde surgiu a religião. De acordo com
dados recentes, como um estudo do Pew Forum on Religion and Public Life (2012),
de todos os 2,2 bilhões de cristãos espalhados pelo mundo, apenas 6% deles estão
no Oriente Médio, menos de 13 milhões. Dentre os quais apenas 154.000
permanecem em Israel e nos territórios ocupados; sendo 35.000 na Cisjordânia e
menos de 3.000 na Faixa de Gaza, segundo o jornal online israelense Israel Today
(2012).

São diversas as causas que tem gerado o desparecimento do Cristianismo no


Oriente Médio e muitas delas estão relacionadas desde fatores como baixa
fertilidade a consequências de conflitos e violações de direitos humanos, como atos
de perseguição religiosa por parte da maioria islâmica que hoje habita a região. Na
Palestina1 não tem sido diferente, e um conjunto desses fatores é que tem
ocasionado às altas taxas de migração entre as minorias cristãs (Sabella, 2007,
pp. 6-7). Contudo, o foco maior deste trabalho será a crescente perseguição
religiosa impetrada por parte de adeptos do Islã contra os cristãos palestinos.

Assim, o principal objetivo desse trabalho é analisar o como se dão as violações de


Direitos Humanos de liberdade religiosa na Palestina, principalmente na Faixa de
Gaza e na Cisjordânia e como elas tem contribuído para o desaparecimento do
Cristianismo na região. A fim de relacionar tal fato com a teoria do “Choque de
Civilizações” de Samuel P. Huntington (1997).

02.A SITUAÇÃO DOS CRISTÃOS NA FAIXA DE GAZA

1
Neste trabalho o termo Palestina refere-se apenas aos territórios ocupados pelo Estado de Israel, a saber: a
Faixa de Gaza e a Cisjordânia.
A Palestina ocupa a 36º posição entre os 50 países mais intolerantes ao
Cristianismo, segundo a última World Watch List (2013) da ONG Open Doors e isso
se dá principalmente, devido à crescente perseguição aos cristãos da Faixa de
Gaza. A Palestina passou a ocupar um lugar entre os 50 países que mais
perseguem os cristãos em 2008, ocupando a 42º posição.

A situação dos cristãos da Faixa de Gaza começou a se deteriorar em 2007 quando


o Hamas obteve o controle sob a região e o crescente aumento do radicalismo
islâmico que o seguiu. O sequestro e assassinato de Ramy Ayyad por radicais
islâmicos é uma prova clara disso. Ayyad trabalhava para a Sociedade Bíblica
Palestina e gerenciava uma livraria cristã em Gaza. Ibrahim, irmão de Ramy, disse
ao jornal Haaretz (2007) que apesar de os cristãos aparentemente manterem boas
relações com os muçulmanos de Gaza, sempre houve certo tipo de discriminação
pelo fato dos cristãos serem minoria.

De acordo com o relato de Ibrahim, a morte de Ayyad se deu pelo fato dele
trabalhar em conjunto com a Igreja Batista de Gaza, que é frequentemente
relacionada ao Ocidente, por sempre receber auxílio de clérigos americanos. Os
extremistas, assim, esperavam receber algum tipo de legitimidade pelo Hamas, o
qual, por sua vez, condenou o homicídio.

Embora muitos cristãos de Gaza afirmem que as crescentes violações de seus


direitos humanos nada tem a ver com o Hamas, segundo Schanzer (2009), desde
que obteve o poder da Faixa de Gaza, tal partido político tem desencorajado
atividades relacionadas ao Ocidente e ao Cristianismo e oprimido minorias não
muçulmanas; além de impor a Sharia como lei oficial; e criado uma política que
fortalece tais leis. O fato é que desde então, como o próprio Schanzer aponta,
além da morte de Ayyad, mais de 50 ataques contra cristãos foram contabilizados
no governo do Hamas, incluindo o ataque a uma escola da ONU (Neese, 2007,
p.9).

Toda essa onda de ataques contra cristãos após o Hamas assumir o controle de
Gaza, fez com que grande parte dos cristãos da região emigrasse, temerosos de
que o Hamas não lhes assegure os seus direitos como minoria ou que implantasse
aos poucos a agenda jihadista, segundo a qual os cristãos deveriam se converter
ao Islã ou deixar Gaza, como afirma Sana al-Sayegh, cristã palestina professora da
Universidade Palestina que foi sequestrada, convertida à força ao Islã e obrigada a
casar-se com um muçulmano (Jones, 2007).
Hoje o número de cristãos que reside em Gaza é cada vez menor e as informações
ainda mais escassas. Algumas notícias recentes afirmam haver hoje apenas 1.500
cristãos em Gaza, os quais tem sido severamente perseguidos por extremistas
islâmicos, sendo muitas vezes forçados a tonarem-se muçulmanos e sem nenhuma
garantia de seus direitos por parte do Hamas (Fund, 2012). O que parece
confirmar as terríveis previsões de al-Sayegh.

03.A SITUAÇÃO DOS CRISTÃOS NA CISJORDÂNIA

A perseguição aos cristãos na Cisjordânia, assim como na Faixa de Gaza, teve


início após mudanças políticas, relacionadas à forma de governo da região. Tendo
em vista que a partir de 1993 o controle da Cisjordânia deixou de ser de Israel e
foi transferido à Autoridade Palestina. A situação agravou-se ainda mais em 2000,
com o início da Segunda Intifada.

Segundo Sabella (2007), durante o Mandato Britânico na Palestina em 1948, os


cristãos e os muçulmanos mantinham ótimas relações e conviviam em paz uns
com os outros. Contudo, após a Autoridade Palestina assumir o governo da
Cisjordânia e com a erupção das Intifadas, o Ressurgimento Islâmico teve notável
crescimento na sociedade palestina, mudando completamente a situação das
minorias cristãs, que passaram a receber o status de cidadãos de segunda classe,
de acordo com as leis islâmicas, que de certo modo, passaram a vigorar na
sociedade palestina, desde então. Para os estudiosos, essa situação se chama
“cidadania imperfeita” e se origina das relações indefinidas entre o Estado e a
nação, o que explica o fato de cristãos e outras minorias terem direitos e
oportunidades iguais negados pela existência de práticas sociais e legais (Pacini,
1998).

Embora a Constituição elaborada pela Autoridade Palestina assegure que as


religiões monoteístas devem ser respeitadas e que deve haver liberdade de culto,
também afirma que o Islã deve ser a religião oficial e a Sharia, sua principal
forma de legislação (Bedein, 2003). O que deixa os cristãos em uma situação
delicada, já que a Sharia os considera cidadãos inferiores aos muçulmanos.

Tal situação agravou-se ainda mais com o Ressurgimento Islâmico resultante da


Segunda Intifada. Como ressalta o professor Tsimhoni (1993, p.29), o
crescimento da influência islâmica sobre a sociedade árabe após a Intifada
aumentou as hostilidades e a violência contra os cristãos e suas instituições,
aprofundando a sua crise de identidade e desesperando-os ainda mais quanto ao
futuro. Isso se dá devido, sobretudo, ao posicionamento dos cristãos palestinos
frente às manifestações das Intifadas.

Enquanto que os pais muçulmanos incentivavam seus filhos a participarem dos


protestos, os pais cristãos agiam de modo diferente, instruindo seus filhos a não
se envolverem com as manifestações, por acreditarem; como afirma Mona, uma
cristã de 50 anos residente em Belém, que a melhor forma de se alcançar um
Estado Palestino não é pela violência (Weiner, 2005, p.8). Tal postura gerava
grande descontentamento entre os muçulmanos, que passaram a acusar os
cristãos de não se importarem com a causa palestina. De acordo com o Irmão
André (2005), as crianças cristãs que se recusavam a atirar pedras nos soldados
israelenses eram agredidos por seus colegas palestinos.

O crescimento do Ressurgimento Islâmico na sociedade Palestina torna os cristãos


alvos ainda mais frágeis aos radicais islâmicos, que os veem como Sionistas e
associados ao imperialismo do Ocidente (Nammar, 2002). Justificando assim, os
frequentes ataques a indivíduos cristãos e a igrejas; as conversões forçadas ao
islamismo; discriminação econômica e social e outras formas de perseguição
religiosa, oferecendo aos cristãos nenhuma outra saída a não ser emigrar para
Europa ou América do Norte, em busca de liberdade religiosa. O que de fato, tem
ocorrido. De acordo Weiner (2007), nos últimos anos o principal fator que tem
levado os cristãos a emigrarem dos territórios controlados pela Autoridade
Palestina é exatamente a perseguição religiosa.

4 O CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES

De acordo com Samuel P. Huntington (1997), em seu livro “O Choque de


Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial”, o mundo pós-Guerra Fria é
marcado não mais por diferenças de cunho econômico, político ou ideológico; mas
sim por diferenças culturais. No qual, as pessoas tem buscado cada vez mais
descobrirem suas identidades, recorrendo às coisas que mais lhe importam, como
a história, costumes, idiomas e religião, se identificando, sobretudo, em
civilizações. As quais, segundo ele, mesmo não sendo os atores principais no
cenário internacional, exercem grande influência no relacionamento global. Nesse
novo mundo, as principais civilizações são as não-ocidentais, que “cada vez mais
afirmam seus próprios valores culturais e repudiam aqueles que lhes foram
impostos pelo Ocidente.” (p.21) e os principais conflitos não se restringem apenas
às diferenças de interesses entre os Estados. São, em essência, choques entre
civilizações.

Como sustenta Huntington,

A política mundial está sendo reconfigurada seguindo linhas


culturais e civilizacionais. Nesse mundo, os conflitos mais
abrangentes, importantes e perigosos não se darão entre
classes sociais, ricos e pobres, ou entre outros grupos definidos
em termos econômicos, mas sim entre povos pertencentes a
diferentes entidades culturais. (p. 21)

Uma civilização é formada pelos diversos costumes e valores de uma


sociedade, inclusive sua cultura e religião; sendo a religião, geralmente, o
elemento mais importante. A qual pode ser motivo de grandes conflitos dentro da
própria civilização. Também vale ressaltar, que civilização e raça não são a
mesma coisa.

Povos da mesma raça podem estar profundamente divididos


pela civilização e povos de raças diferentes podem estar unidos
pela civilização. Em especial as grandes religiões missionárias, o
Cristianismo e o Islã, abrangem sociedades com variedades de
raças. (p.47).

Assim, pode-se afirmar que as civilizações são o nível mais amplo de


identificação que os seres humanos se utilizam para se diferenciarem dos demais
indivíduos, bem como das demais espécies. Huntington defende a existência de
cerca de oito civilizações contemporâneas: a Sínica, a Japonesa, a Hindu, a
Islâmica, a Ortodoxa, a Ocidental, a Latino-americana e a Africana.

Ao analisar as causas para os altos índices de migração entre os cristãos


palestinos, sobretudo, após os crescentes ataques por extremistas islâmicos e a
erupção da Segunda Intifada, é possível perceber nitidamente a tese de
Huntington, acerca do “Choque de Civilizações”, podendo afirmar que esse é na
verdade, uma das principais razões de tal fluxo migratório. As terríveis condições
de vida que a criação do Estado israelense, bem como sua crescente ocupação
trouxeram para os palestinos, somados à inexistência de um Estado Palestino
independente geraram no povo palestino uma grave crise de identidade, o que os
levou a buscar elementos com os quais pudessem se identificar e se integrarem a
uma civilização.

Os principais elementos utilizados pelos palestinos para se identificarem foram


a língua árabe e a religião islâmica, o que os permitiu estabelecerem fortes
ligações com a civilização islâmica, já que como aponta Huntington, a religião é o
principal elemento das sociedades, e inevitavelmente o que mais causa conflitos.
Todo esse processo de busca de identidade por parte dos palestinos pode ser
notado no histórico de migração das minorias cristãs. Como já exposto aqui, logo
após a criação do Estado de Israel e as guerras que o seguiram, as principais
razões para o êxodo dos cristãos da Palestina eram questões socioeconômicas,
relacionadas, sobretudo, à instabilidade política da época. Segundo Sabella
(2007), nesse período, cristãos e muçulmanos, inclusive, mantinham ótimas
relações. Ou seja, nesse período, os palestinos ainda não se identificavam como
parte da civilização islâmica. O que mudou bastante após as intifadas.

Após o controle da Cisjordânia ter sido passado para a Autoridade Palestina e


do Faixa, em 1993 e o início das Intifadas, em 2000; bem como após o Hamas
assumir o poder na Faixa de Gaza, em 2008, o Ressurgimento Islâmico –
movimento de renovação Islâmico comparado à Reforma Protestante no
Cristianismo para Huntington – passou a exercer forte influência sobre a
sociedade palestina, aumentando de forma significativa as diferenças entre os
muçulmanos e cristãos. A partir daí, os palestinos, em sua maioria, passaram a se
ver como partes da civilização islâmica. Muitos dos cristãos palestinos, é claro,
mesmo falando árabe não professavam o Islamismo, e por isso, ficaram exclusos
dessa civilização que passou a moldar a sociedade palestina como um todo. O que
refletiu mais uma vez nas taxas de migração dos cristãos palestinos, como já
demonstrado.

Assim, por não se encaixarem na civilização islâmica, foi a vez dos cristãos
palestinos de redescobrirem a sua identidade e buscarem a civilização a qual
deviam pertencer, e nessa busca por identidade os elemento mais importantes
foram a religião e a história dos seus antepassados, levando-os a se identificarem
principalmente com a Civilização Ocidental, a única majoritariamente “cristã” e
com a qual, seus antepassados haviam mantido vínculos durante o século XIX.
Isso tornou a migração para o Ocidente como a melhor saída para os cristãos
palestinos. Sendo possível, encontrar hoje diversas comunidades de cristãos
palestinos que falam árabe em países da Europa e América do Norte.
Soma-se a isso o fato de que grande parte dos ataques contra cristãos,
sobretudo na Faixa de Gaza, são movidos principalmente por essa divisão de
“civilizações” já que os extremistas islâmicos ao associarem os cristãos palestinos
que se identificam com o Ocidente como seus inimigos, e não como integrantes de
uma mesma sociedade.
5 CONCLUSÃO

Os principais Direitos Humanos dos cristãos palestinos que tem sido violados
tanto na Faixa de Gaza quanto na Cisjordânia, são os direitos do Artigo 18 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, segundo os quais todo ser
humano tem o direito de ter uma fé e de professá-la publicamente sem ser
submetido a nenhum tipo de ação coercitiva que restrinja a sua liberdade de
escolher a religião que deseja seguir.

Como demonstra todo esse trabalho, tais direitos são desrespeitados na


sociedade palestina seja por coerção advinda da própria sociedade como um todo,
como por complacência das autoridades públicas e falta de interesse das mesmas
em assegurar os direitos das minorias religiosas. O que tem sido um dos grandes
responsáveis para o desaparecimento do Cristianismo da região, ao contribuir de
forma significativa para o aumento das taxas de migração dos cristãos palestinos.

Assim, é possível concluir que grande parte dos fatores responsáveis pelo
desaparecimento do Cristianismo da Palestina é de ordem cultural e de identidade,
podendo ser analisada e explicada à luz do paradigma do “Choque de Civilizações”
de Samuel Huntington.
1

DIVERSIDADE RELIGIOSA: reflexão necessária

Maria do Rosário de Araújo Lima1 - rosario@alcirlima.com.br


Maria Luísa de Almeida Nunes2 - falecomluisa@gmail.com

Reflexões iniciais

O presente texto tem como objetivo evidenciar a diversidade religiosa,


com vistas à desconstrução de preconceitos. Compreendemos a relevância da
discussão sobre a temática para contribuir com o desabrochar da sensibilidade, da
compaixão e do respeito pela crença do outro; e para despertar a necessidade de
se promover a maximização das potencialidades das pessoas na perspectiva da
diversidade de valores universais.
Na contemporaneidade, a diversidade religiosa vem sendo discutida pela
sociedade brasileira. Este profícuo debate é importante por possibilitar o
fortalecimento dos princípios, como: democracia, liberdade, igualdade e cidadania.
O termo diversidade diz respeito à variedade, diferença, multiplicidade e a
convivência de ideias. Tem conceito amplo e se encontra imbricado com alteridade,
multiculturalismo e pluralidade. Há aplicação em diferentes campos de
conhecimento humano, como na antropologia cultural, direito, sexologia, biologia,
meio ambiente, entre outros.
No Brasil, a religião majoritária é a Católi ca, com um percentual de 64,6 %.
Em seguida a Evangélica, Espírita, Testemunhas de Jeová, Umbanda, Budismo,
Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Candomblé, Tradições
Indígenas, Religiões Orientais e Judaísmo (IBGE, 2010). Portanto, o Brasil já não é
mais um país de hegemonia religiosa.
Na concepção de F avero (2010), essa diversidade de crenças religiosas e
étnicas se expressa no país de maneira muito intensa pela multiplicidade dos povos
indígenas aqui existentes, pelo processo de colonização ocorrido com os europeus e
pelo elevado número de escravos trazidos da África com seus saberes, ritos e
crenças.
O intenso fluxo migratório de povos do Oriente Médio e do continente
asiático, ocorrido devido ao processo de globalização acentuou esse processo de
diversificação cultural e religiosa. A imigração dos espanhóis, portugueses,
alemães, italianos, açorianos, eslavos, dentre outros, por meio de processos de
intercâmbio e hibridações, intensificou a diversidade étnica, cultural e religiosa de

1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Ci ências das Religiões da UFPB/PB. Enfermeira.


Especialista em Saúde Coletiva e em Educação Profissional da área de Saúde: Enfermagem.
2 Mestre em Enfermagem. Docente da disciplina Saúde Mental da U FCG/PB.

1
2

nossa sociedade (PRANDI, 2000). Assim, é possível considerar a diversidade


religiosa com suas práticas ritualísticas , cujo desempenho é fundamental na esfera
privada dos indivíduos e junto à sociedade, como fator de coesão social.
Essa diversidade religiosa é profunda, entre ateus e religiosos, formas
distintas de religi ão (cristãos e budistas, por exemplo), ramos religiosos com
pontos em comum (como judeus e muçulmanos), expressões internas de uma
mesma religião (católicos carismáticos e adeptos da Teologia da Libertação) e
expressões geográfico-históricas da mesma fé (católicos espanhóis e norte-
americanos). Em nenhum período da história da humanidade houve uma única
religião em todo o mundo (SILVA, 2004).
Nesse sentido, as compreensões religiosas interagem com os meios
sociais, culturais e escolares. Daí ser importante perceber que somos diversos
quanto a historia, etnia, linguística, religiosidade e expressão do sagrado.
As tradições religiosas cimentam a união entre grupos humanos, sejam
tribos, povos ou países, representando um corpo de crenças comuns ao grupo, com
as quais se identifica. Ao mesmo tempo, baseado em um conjunto de crenças, a
religião legitima estruturas sociais, leis, costumes e práticas políticas (DURKHEIM,
1989).
As concepções religiosas são vivas, não estáticas, podendo ser inúmeras em
uma mesma sociedade e, por isso, não podem ser ignoradas nos espaços
acadêmicos. Portanto, “as visões de religiões são a comunhão e a expressão
própria do vínculo entre o profano e o sagrado que estão presentes nas
comunidades” (FAVERO, 2010, p.3).
Vale ressaltar que o catolicismo ao ceder espaço para as explicações
seculares do mundo, desencadeou um esvaziamento significat ivo dos devotos em
suas igrejas. Na década de 1960 ocorreu o Concílio Vaticano II, momento em que
foi inserido valores, como cidadania e democracia ao discurso da Igreja Católica
(ORTIZ, 2001). Ainda assim, esta religião se encontra em declínio.
Quanto ao fenômeno da secularização, a religião perdeu para o
conhecimento laico-científico a prerrogativa de explicar e justificar a vida, em seus
mais variados aspectos. Portanto, a religião foi colocada de lado pela sociedade,
que pretendia ser laica e racional, passando pouco a pouco para o território p rivado
do indivíduo (SOUZA, 2012).
Observamos que o processo de secularização produziu em seus fiéis um
sentimento de desamparo, fragilidade e incerteza perante os acontecimentos
cotidianos, além da perda de sentido de vida para alguns , tendo em vista que
perceberam que a ciência não era capaz de dá respostas para todas as quest ões
existenciais.

2
3

O poder público, em especial, o da educação e saúde, representado pela


ciência, não tem dado conta de acolher tais sentimentos e nem de produzir sentido
de vida de forma satisfatória. Tal omiss ão do Estado contribui para que as pessoas
busquem cada vez mais as diversas formas de práticas religiosas para aliviar
tensões e produzir sentido da existência.
As pessoas não encontrando sentido para tudo no progresso científico,
favorece a expansão de outras denominações religiosas, como as evangélicas
(Presbiteriana, Batista e Luterana), as pentecostais tradicionais (Assembleia de
Deus e Congregação Cristã), as neopentecostais (Universal do Reino de Deus e
Igreja da Graça) e as afro-brasileiras (os vários candomblés e a Umbanda e suas
variações), como refúgios nos quais os “órfãos, desamparados e oprimidos” iriam
buscar acolhida e sentido para existência (CONSORTE, 2006, p.82).
Nesse movimento, as religiões recém-criadas se enfrentam com as mais
antigas e assumem novas formas, renovando os conteúdos para enfrentar a
concorrência mais acirrada no mercado religioso.
Contudo, nesse panorama religioso “novo”, o universo espiritual está
tomado por pessoas que constroem a sua religiosidade/espiritualidade sem seguir o
modelo de uma denominação religiosa formal, sobretudo na classe média e
letrada. Pesquisas mostram resultados de enfraquecimento da transmissão das
tradições religiosas, do trânsito religioso e do aumento do número de pessoas que
se declaram sem religi ão, atualmente atingindo 8% da populaç ão brasileira (IBGE,
2010).
Andrade (2009, p.106) observa que “o culto espetáculo ou performático,
antes vinculado ao catolicismo popular das procissões e romarias e,
particularmente, aos ritos e festas d os cultos afro-brasileiros, se tornou um padrão
e as outras novas religiões aderiram à sua maneira”.
Tal consideração nos leva a pensar nas manifestações culturais nos espaços
de culto nas diversas modalidades religiosas, que se transformaram em palcos com
grande ênfase no louvor, como forma de atrair os fiéis. Os hinos se diferenciam
das músicas em geral, apenas pelas suas letras religiosas, pois os ritmos são
parecidos.
Os louvores católicos ou protestantes estão caracterizados pela música, que
se diferencia do padrão dos hinários tradicionais, adotando os ritmos e o gosto,
com a introdução de instrumentos eletrônicos e de percussão, como o atabaque.
Alguns dos novos hinos s ão cantados indistintamente em ambas as vertentes
religiosas, sobretudo aqueles dedicados ao Espírito Santo. Também a dança ou
expressão corporal se associam à música, em ambos os contextos, influenciados
pelo modelo Gospel das igrejas evangélicas norte-americanas (ANDRADE, 2009).

3
4

Com o fim do monopólio católico, surge um marco fundamental na história


religiosa brasileira e a crescente abertura para o pluralismo religioso. Foram
introduzidos no Brasil diferentes sistemas religiosos , com destaque para a vertente
Protestante e o Espiritismo kardecista, paulatinamente conquistando segmentos
cada vez maiores da população. Porém, foi na virada do “século XIX para o XX que
se instalou no país a verdadeira diversidade religiosa com a penetração de uma
multiplicidade de crenças e ritos pertencentes as mais distintas tendências
religiosas” (ANDRADE, 2009, p.109).
Segundo Zacharias (s/d.), seguidor da linha junguiana, a chamada “onda
mística que assola o país”, desde a década de 1970 com o movimento carismático
católico, torna-se mais evidente na atualidade. Este fenômeno deve ser
considerado pela ciência, cuja quest ão não é t ão simples. Pois, religiosidade é uma
questão histórica, cultural, psicológica, política e de poder que carece de amplo
debate.
Observamos uma crescente onda mística derivada dos diversos modos de
práticas religiosas na população brasileira representando uma das formas de
expressão de liberdade religiosa e de significados relevantes para a cultura.
Zacharias (s/d, p.2), ainda pondera "em muitas regiões do Brasil as
pessoas buscam mães e pais-de-santo, médiuns, padres, pastores, benzedeiras,
raizeiros, entre outros, para resolução de seus problemas de saúde, ao invés das
práticas médicas convencionais”.
Esse dado denota uma sociedade organizada na extrema desigualdade, em
que muitos indivíduos ainda não têm acesso a tratamentos médicos adequados e
revelam o apoio místico e social que esses sujeitos sociais exercem diante do
sofrimento físico, emocional e espiritual das pessoas. Reconhecemos sua
importância nas comunidades, porém observamos que não é intenção negar o
conhecimento científico, nem t ão pouco sua importância no desenvolvimento
humano. Queremos alertar que a ciência não é a única verdade pela qual deva se
pautar a vida humana na sociedade.
O dinamismo humano inclui outros saberes/verdades que, embora não
sejam científicos, compõe o substrato de experi ência no cotidiano. Referimos aos
campos das artes, das filosofias, das religiões, da medicina popular, entre outros,
em que cada qual possui suas verdades, e conjunto de saberes, ainda que por
métodos diferentes.
Atualmente, a competitividade entre religiões, cujas mercadorias são o
avivamento do sagrado e a recuperação da relação com o sobrenatural se dá por
via daquelas que se convencionou chamar de religiões de consumo, ditas mágicas
ou do ‘aqui e agora’, as neopentecostais que o cupam espaços na mídia, na política

4
5

e na filantropia, bem como também as afro-brasileiras (ANDRADE, 2009).


As religiões de consumo são caracterizadas pela grande facilidade pela qual
o indivíduo pode utilizá-la e trocá-la, uma após outra, sem que isso venha
acarretar conflitos de visões de mundo. Outra característica dessas tendências são
as obrigações pecuniárias, o que difere do catolicismo que deixa, em grande
medida, o fiel livre de compromissos financeiros para com a igreja (PRANDI,
2006).
O mesmo autor alega que as religiões de consumo exigem o pagamento
pelos seus bens de serviço. Nas afro-brasileiras, os “deuses necessitam alimentar-
se”, enquanto nas de tendências pentecostais é preciso que se pague dízimo para
que o indivíduo conheça a “Palavra” e consiga alcançar uma vida de abundância e
paz ao lado do “Senhor”, no além. Nas neopentecostais, a concepção sobre a
pobreza se potencializa e se transfigura em um “aqui e agora”, no qual a pobreza é
vista como “obra do inimigo” e, portanto, indigno do filho de Deus. Enquanto nas
afro-brasileiras, o dinheiro é ‘dado de comer’ aos deuses e nas pentecostais é dado
à Igreja para que “Ide e Pregai” e nas neopentecostais claramente é “dando que se
recebe”.
Oportunamente, observamos que os grupos étnicos africanos também
contribuíram para a formação da pluralidade religiosa e com a cultura nacional, em
diversos itens, desde a língua, a culinária, a música e arte variadas, até valores
sociais, representações míticas e místicas.
A espiritualidade é inerente ao ser humano que exterioriza sua experi ência
com o Sagrado em forma de mitos, símbolos, linguagem , ritos, artes e atitudes,
desencadeando o fenômeno - sincretismo religioso. Este, entendido como um
processo que diz respeito “ àqueles trânsitos entre elementos culturais nativos e
alheios que levam a modificações, justaposições e reinterpretações” (ANDRADE,
2009, p.109). Entendemos que há uma dialética do comportamento religioso como
uma relação entre psique e espiritualidade, que se entrelaça, se constrói e
reconstrói ao longo da vida e da história.
A religião africana, em especial o candomblé, apesar das inevitáveis
adaptações recriou no Brasil uma África simbólica que se tornou, pelo menos
durante um século, a mais completa referência cultural para o negro brasileiro,
ainda que o negro de hoje opte por outros símbolos de negritude, a exemplo de
cabelo e música – samba, pagode - rap. Em detrimento da esfera religiosa, é
importante ressaltar que na população nacional religiosa, negritude e candomblé
estão fortemente ligados (CONSORTE, 2006).
No Brasil, os negros trazidos como escravos foram separados de seus
parentes, tiveram que reinventar as suas formas de viv ências culturais expressadas

5
6

pela religiosidade.
O candomblé, na atualidade considerada como uma religião é uma
comunidade detentora de uma diversificada herança cultural, no qual se mesclam
elementos provenientes, sobretudo, da África Ocidental. Caracteriza-se como uma
religião onde o valor das coisas profanas está centrado no indivíduo. Por não
utilizar a lógica do pecado, está bem mais afinado com a sociedade
contemporânea. Sua popularização tem se dado através da música (samba e
carnaval), dos meios de comunicação, jogo de búzios, dentre outros (CONSORTE,
2006).
Desde os anos de 1960, o caminho foi preparado para o crescimento e o
reconhecimento da cultura e da religi ão afro-brasileira e africana, atraindo a classe
média branca aos centros de candomblé, contribuindo para a sua legitimação e sua
popularização (PRANDI, 2006).
Assim, a espiritualidade produzida por esta religião se ajusta à sociedade
pós-moderna de hoje . O reconhecimento dessas religi ões desponta como espaços
importantes de apoio para acolher sentimentos e sofrimentos decorrentes das
desigualdades sociais de seus fiéis. Esse processo histórico influenciado
diretamente pelo campo religioso converge para um novo paradigma que busca
sentido para a existência, mediado pela expressão do sagrado. Isso reforça a
presença da espiritualidade correlacionada às questões de produção de propósito de
vida para justificar a exist ência, podendo ou não incluir a participação religiosa
formal.
Cortez (2009) aponta que a espiritualidade responde a questões
existenciais, conforta, alivia ansiedade, dá segurança emocional e espiritual para
as pessoas que compartilham seus significados, auxilia na autoestima, na
automotivação, no enfrentamento de doenças físicas, transtornos psíquicos,
sofrimentos e limitações.
Ponderando o exposto, consideramos ser preciso estar aptos a entender e
interpretar as diversas manifestações de crenças e práticas religiosas que nos
cercam e, dessa forma, exercitar uma compreensão respeitosa frente às religiões
com seus valores. Temos a consciência de que lidamos com sistemas vivos, em
fluxo contínuo, em relação ao qual o valor da experiência subjetiva é tão precioso
quanto à avaliação racional.

Reflexões finais

O Brasil atual é um país religiosamente diverso e de extrema desigualdade


social, porém, com tendência à intolerância religiosa. Para tanto, foi criado o Dia

6
7

Nacional de Combate à Intolerância Religiosa em 21 de janeiro, por meio da Lei


Federal nº 11.635 de 2007. O sincretismo derivado dessa diversidade religiosa,
agora mais do que nunca, precisa de níveis mais elevados de compreensão como
modo de subsidiar a formação dos profissionais de todas as áreas de
conhecimentos, e, em especial, da educação e da saúde.
Pois, em momentos dramáticos, o ser humano mergulha na profundidade do
Ser e reflete o que está fazendo neste mundo; qual o seu lugar no conjunto dos
seres, e como agir para garantir o futuro, dentre outras reflex ões. Espiritualidade
tem a ver com “experiência, não com doutrina, não com dogmas, não com ritos,
não com celebrações, que são apenas caminhos institucionais capazes de nos
ajudar a alcançá-la, mas que são posteriores a ela” (BOFF, 2006, p.43).
Entendemos existir uma dívida histórica para com a memória dos povos
indígenas e afrodescendentes no que se refere às ricas contribuições à cultura do
país. Então, compreender o fenômeno da diversidade de práticas religiosas, na
perspectiva de desconstrução de preconceitos relacionados à religi ão do outro, se
reveste de relevância para uma sociedade democrática.
Também, a espiritualidade se apresenta como um possível caminho a ser
trilhado no enfrentamento de preconceito relacionado às religiões e de demandas
sociais, como: saúde e educação, pelo caráter relacional ou comunicacional
assumidas em suas práticas.
Os saberes envolvidos na espiritualidade, como: filosofia, ética, arte,
mitologia, antropologia, sociologia, psicologia, história das religi ões, dentre outros,
conformam um campo de conhecimento válido e coerente com o paradigma da
integralidade do ser. Este paradigma favorece a interação interdisciplinar e carece
ampliar a articulação entre os diversos campos dos saberes religiosos, ou os
saberes comunitários. Tudo isso, sem desconsiderar a perspectiva da cidadania,
diante da dinâmica cultural da sociedade em tempo de globalização.
Entendemos ainda, ser preciso maior valorizaç ão das culturas locais, como
um possível caminho para o desenvolvimento comunitário em busca do direito à
cidadania. Assim, possibilita a elevação dos Índices de Desenvolvimento Humano
dos brasileiros, especialmente dos povos nordestinos, dado à sua singularidade
regional, como forma de cooperar com uma sociedade civil forte, mais acolhedora,
autônoma, legítima e inteligente.
A intolerância de qualquer natureza, para com o outro, diferente de nós,
gera discriminação, conflito, violência e até guerra. Divergências religiosas
resolvidas desse modo são anti-religiosas. Por que a minha religião seria melhor do
que a do outro? Enfim, historicamente, há muitas religiões que guardam muitas
aproximações entre si. O desconhecimento, a ignorância mesmo, a respeito dessas

7
8

afinidades, é uma das fontes da intolerância. A outra é a arrogância de alguém se


considerar dono da verdade divina.

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9
A ESCRITURA SAGRADA, UMA ARMA, UMA PRISÃO OU SALVAÇÃO?!

Aluna: Carla Masson Honório Gaspar1

Quanto mais os governantes tentam reduzir a liberdade de


expressão mais resistência sofre, não por parte dos avarentos
bajuladores e imbecis que crêem que a salvação esta em forrar o
estômago e vangloriar os bolsos, mas por aqueles que através da
cultura, moralidade e virtude tornaram se livres.
Baruch de Espinosa.

RESUMO

A Escritura Sagrada cristã é tida como verdade absoluta, pregando a caridade,


boas obras, fé e acima de tudo amor ao próximo, mas seu maior objetivo não tem sido a
salvação dos fiéis e sim sua obediência a Deus. As muitas interpretações da Escritura
podem causar divergências entre seus livros, escritos de apóstolos guiados pela razão é
sua composição, tendo muita complicação em coisas tão simples para que possam obter
domínio do vulgo, mas Espinosa acredita que Deus estava na natureza e a natureza
estava em Deus, não havendo necessidade de dogmas, dominação e obediência a outros
homens institucionalizados pela religião, seguindo apenas seu coração, sua mente, ou
seja, sua razão.

PALAVRA – CHAVE: Escritura; Interpretação; Espinosa; Voltaire; Eliade.

As Escrituras Sagradas cristã são tidas como as palavras de Deus, seus


ensinamentos levam ao caminho da salvação espiritual, a verdade absoluta, mas
segundo Espinosa o vulgo não está mais preocupado em seguir os ensinamentos das
Escrituras Sagradas e sim em como utilizar a interpretação das Escrituras para justificar
seus atos.
Então as Escrituras Sagradas tornou-se uma arma que visa moldar os indivíduos
com pensamentos iguais, para satisfação de um individuo ou de um grupo pequeno e
seleto. Segundo Espinosa as Escrituras não se asseguram de verdade natural, mas de
verdade moral adaptada conforme o povo que se dirige, e não se iluda em pensar que

1
Aluna de Graduação do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.
quando suas facetas são descobertas temem a mão de Deus sobre eles, mas a perda de
autoridade frente a seus inimigos.
As Escrituras Sagradas está sendo o alicerce de tanta discórdia, ódio, guerras e
tragédias entre os seres humanos ao longo da história, legitimam suas atitudes com o
discurso de que é ordem de Deus. A religião deixou de ser o amor a Deus e passou a ser
uma prática de crenças e preconceitos, obscurecendo a religião e se rodeia de mistérios
para obter mais poder.

[...] a ambição e o crime foram tão longe que a religião acaba por
consistir menos em obedecer aos ensinamentos do Espírito Santo
que em defender humanas fantasias, e por não se traduzir pela
propagação da caridade, mas pela disseminação das discórdias e
do ódio mais feroz entre os homens, disfarçado embora de zelo
divino e fervor ardente (Espinosa, 2003, pag.115).

Para Espinosa, a religião tornou se fruto do medo, da esperança e da superstição,


sentimentos que fragilizam a liberdade facilitando o domínio, ou seja, todos esses males
buscam através das Escrituras Sagradas, desprezarem a natureza e a razão, para que
possam melhor dominar seus seguidores, que é o que o vulgo se tornou. Para se libertar
Espinosa acredita que seja necessário um método de interpretação das Escrituras
Sagradas igualmente utilizado para com a natureza, interpreta-la segundo ela mesma.

[...] para interpretar a Escritura é necessário elaborar a sua


história autêntica e, depois, com base em dados e princípios
certos, deduzir daí como legitima conseqüência o pensamento dos
seus autores. Desse modo, quer dizer, se na interpretação da
Escritura e na discussão do seu conteúdo não se admitirem outros
princípios nem outros dados além dos que podem extrair dela
mesma e da sua história, estaremos procedendo sem perigo de
errar e poderemos discutir com tanta segurança as coisas que
ultrapassam a nossa compreensão como aquelas que conhecemos
pela luz natural. [...] de quase tudo que vem da Escritura deve
investigar-se unicamente na própria Escritura, do mesmo modo
que o conhecimento da natureza se investiga na própria natureza.
[...] se quisermos provar sem preconceitos a divindade da
Escritura, terá de se provar, com base exclusivamente nela, que
estão lá contidos verdadeiros ensinamentos morais. (Espinosa,
2003, pag. 116)

Espinosa coloca que a história da Escritura deve contar a natureza e as


propriedades da língua em que os livros foram escritos e em que seus autores
costumavam falar, deve coligir as opiniões contidas em cada livro e reduzi-las aos pontos
principais de forma que se encontrem todas as que se referem aos mesmos assuntos.
A história da Escritura deve descrever os pormenores de todos os livros e dos
profetas que chegaram até nós, desde seus costumes, estudos, quem eram quem foram,
a língua que escreviam até os livros que escreveram, quantas versões existem quem
designou estar na Escritura Sagrada, em que tempo foi escrito, para quais indivíduos.
Pois se pode melhor explicar o significado dos escritos quando se conhece melhor quem
os escreveu.
Como na natureza, nas Escrituras Sagradas é preciso começar estudar daquilo
que é mais universal, que constitui a base e fundamento de toda ela e seguindo para a
menos universal que se referem aos aspectos práticos da vida. Pois os livros que
compõem as Escrituras Sagradas foram escritos por diversos profetas de acordo com sua
época, sua necessidade, sua cultura, seu povo, proporcionando diferenças, divergências
entre os escritos, havendo apenas concordância nos ensinos universais.
A preocupação de Cristo era ensinar aos homens a corrigir mais seu interior que o
exterior, mas o exterior é que tem sido a maior preocupação de alguns líderes religiosos.
Mas há dificuldades nesse método segundo Espinosa, com relação à língua hebraica, não
resta praticamente nada para se estudar os sentidos das palavras, podendo causar
incertezas no sentido de algumas palavras, advérbios, conjunções e os verbos.
Pois não possuíam uma temporalidade e não havia naquela época, vogais e sinais
como acentuação, assim Espinosa reforça que para interpretar a Escritura deve
desconfiar e reexaminar tudo desde o princípio.
Porém pode haver outras dificuldades como não ter os escritos na língua original,
em não saber quem é o autor, para quem escreveu, em que época, proporcionando uma
leitura obscura e incompreensível. Todavia se houver conhecimento dessas informações
citadas teremos facilmente a compreensão dos sentidos das palavras que o autor
escrevera, pois conhecendo os escritos originais e os autores, saberiam o sentido de suas
mensagens.
Essas dificuldades impossibilitam a compreensão do pensamento dos autores
frente a coisas ininteligíveis, porque se percebessem com facilidade não haveria mistério
nem necessidade de conhecer a vida do autor ou para quem e quando escreveu etc.
Conforme Espinosa, pode perceber nos ensinamentos morais das Escrituras que vem de
dados históricos obtidos dentro dela e através da luz natural, a razão passa compreender
a obscura história que há nas Escrituras Sagradas.
Em contrapartida Espinosa relata que há aqueles que acreditam que a
interpretação da Escritura Sagrada se dá unicamente através da luz sobrenatural, mas
para ele é falácia, estes que dizem que a luz natural não é suficiente e que somente
através da luz sobrenatural se dará a interpretação da Escritura Sagrada estão é sem a
luz natural, já que as análises feitas são idênticas as dos que usam luz natural e
sobrenatural.
Assim explicita Espinosa, que a luz sobrenatural é concedida em dom divino aos
fiéis que pregam a todos quanto quiserem ouvir e profecia é o conhecimento revelado
por Deus ao homem ou profeta que interpreta, por razão dos outros homens não terem
esse conhecimento, partilhando pela fé.
Para Espinosa Deus é a natureza, o conhecimento natural é divino e todos aqueles
que tomam parte desse conhecimento natural se tornam indivíduos comuns devido à
fonte “Deus” ser partilhada entre todos não podendo chamá-los de profetas e não
havendo distinção. O profeta convence pelo status exigindo a fé, mas o filósofo não
convence pela crença no que diz, nem por sinal exterior (milagres), mas pela evidência
de seu divino.
Para a leitura da Escritura Sagrada o conhecimento natural fará uma leitura
racional sendo que no conhecimento revelado a razão limita o desejo e a potência do
indivíduo, assim todos terão de obedecer à soberania suprema livremente ou por receio
da pena capital. Então Espinosa coloca que quando o indivíduo renúncia ou desiste de
sua liberdade perdera seu direito natural tornando se escravo desse enorme aparato
religioso e político.

AS DIVERGÊNCIAS DOS LIVROS SAGRADOS – OBTENÇÃO DE PODER.

Algumas religiões elegem um livro como sagrado o declarando como verdade


absoluta e quem pensasse diferente desse livro era tido como heterodoxo. Mas não se
fecha apenas nisso, existem livros que se intitulam escritos por indivíduos que muitas
vezes não os escreveram, como caso do Pentateuco que muitos acreditam ser escrito por
Moisés, mas Aben Esdra estudado por Espinosa e Voltaire2 estão certos de que não foi
ele devido aos fatos citado no livro de Pentateuco ser divergentes a fatos dos qual Moisés
não teve participação, conhecimento ou por já haver falecido.
O livro que Moisés porventura viera a escrever segundo os rabinos eram doze
pedras apenas e o Pentateuco e muito mais extenso. Quem escreveu o Pentateuco cita
Moisés inúmeras vezes na terceira pessoa. Nos escritos fala como Moisés morreu, foi
enterrado e faz comparações com outros profetas que viveram anos depois de sua
existência, cita localidades com nomes atuais sendo que no tempo de Moisés não eram
esses nomes, os escritos são para muito além do tempo de vida de Moisés.
Segundo Voltaire, há divergências também estão nos livros de Josué, Juízes,
Samuel e Reis, no caso de Josué o livro não menciona a sua pessoa descrevendo ações e
acontecimentos dirigidos pelo próprio povo sem a sua presença, no de Juízes não há

2
Voltaire, O túmulo do fanatismo, São Paulo, 2006.
possibilidade de ter sido escrito por juízes já que o próprio escrito relata não haver
naquele tempo nem mesmo reis.
No livro de Samuel foi escrito séculos depois de sua existência e o livro dos Reis
são descrição dos feitos de Salomão; crônicas dos reis de Judá; crônicas dos reis de
Israel são escritos de um mesmo historiador como pode ser observado pela forma da
narrativa e temporalidade.
Então esses livros tinham apenas um objetivo ensinar os decretos e doutrinas,
entretanto Voltaire coloca que esses livros são para enganar os tolos, a gentalha, pois
não possuem nenhuma coerência entre eles. Não são nem ao menos escrito por quem se
intitula ser escrito, evidentemente são escritos forjados com claro objetivo de obtenção
de poder.
Essas divergências não ficam apenas nesses livros, abrangem muitos outros livros
como Daniel, Esdras, Ester e Neemias com erros de temporalidade, nos nomes das
localidades, na ordem dos fatos ocorridos e muitas vezes repetem as fábulas de formas
diferentes em vários livros.
Há explicações para esses fatos, dentre elas acreditam se que os livros foram
transcritos dos originais que já obtinha erros, que há falhas nas traduções; que são as
próprias interpretações dos originais, a substituição de palavras que acabam causando
divergências nos significados, tendo as Escrituras Sagradas que adotar anotações à
margem devidas o fato de que alguns termos terem caindo em desuso ou mesmo ficando
inapropriado para uma leitura pública.

[...] acabaram criando uma religião à sua moda e compuseram


para si história cheia de fábulas. Pegaram parte da fábula do
antigo Back ou Baco, com a qual fizeram seu Moisés. No entanto, o
que indigna os sábios é que essas fábulas sejam reverenciadas por
nós; que tenhamos feito delas a base de nossa religião e que essas
mesmas fábulas ainda tenham crédito no século da filosofia.
(Voltaire, 2006, pag. 25)

Para Voltaire o que temos então é uma Escritura Sagrada cristã forjando verdades
e as promovendo como verdade absoluta que por sua vez é utilizada pelo poder político
como Lei. Há uma forte união entre religião e política, onde a religião prega verdades e a
política utiliza dessas verdades para fazer Leis e ambas se beneficiam do poder.
Espinosa defende que as Escrituras Sagradas se tornaram vitima de preconceitos
e de superstição onde a adoração a Deus passa para seus livros, mas adorar a Deus não
significa adorar as Escrituras Sagradas e sim praticar a justiça, o amor na sua concepção.

RAZÃO X SOBRENATURAL
São notáveis as diferenças nos escritos dos profetas para com os dos apóstolos,
isso segundo Espinosa devido os profetas escreverem por revelação divina e os apóstolos
pelo raciocínio. Assim os profetas buscam profetizar e os apóstolos discutirem.
Os profetas não se utilizam da luz da razão para compreensão das ações divinas,
isto é visível quando analisamos racionalmente as Escrituras Sagradas e percebemos as
divergências existentes diante dos escritos dos profetas que são movidos pela
imaginação.

[...] se conta que Deus, por outras palavras embora, já tinha


revelado isso mesmo a Moisés, o qual, evidentemente não
precisava de argumentos verossímeis para ficar ciente dessa
profecia divina: precisa, sim, como vimos o capitulo I, que ela se
lhe representasse na imaginação com a maior expressividade; e,
para o conseguir, nada melhor que imaginar como futura a
presente insubmissão do povo que ele tantas vezes
experimentara. Assim é que devem interpretar todos os
argumentos de Moisés [...] não como algo extraído dos escrínios
da razão, mas unicamente como maneiras de dizer através das
quais ele exprimia mais eficazmente e imaginava com maior
vivacidade as ordens de Deus. (Espinosa, 2003, pag. 188,189)

Contudo Espinosa, não descarta o fato de que as revelações aproximam os


profetas do conhecimento natural, em termos de dogmas, decretos ou sentenças,
possuem uma revelação sobrenatural. Abordando os apóstolos, estes não pregavam por
revelação iam a todos os lugares e pregavam como doutores escreviam as epístolas
tendo como base a razão, percebendo que não é preciso a luz sobrenatural para adaptar
a religião aos parâmetros de dominação, de poder sobre o vulgo. Tendo a opção de
escolher os métodos de ensino que lhe acreditassem mais apropriado ao seu povo.

[...] Ora, o objetivo das epístolas era precisamente esse: ensinar e


admoestar os homens através dos meios que cada um dos
apóstolos considerasse melhor para os confirmar na religião. [...]
pela sua missão de apóstolos, eram não só profetas como
doutores. Isso, se não quisermos apelar para a razão, segundo a
qual quem tem autoridade para ensinar tem também autoridade
para escolher o método que entender.(Espinosa, 2003, pag. 192,
193)

As conseqüências são marcantes até os dias atuais na vida religiosa em


relação aos meios de ensinar as Escrituras Sagradas, segundo a vontade do apóstolo que
visava à dominação dos ignorantes que não duvidaria de sua pregação que as Escrituras
Sagradas é o livro de Deus com seus ensinamentos a serem seguidos.
Para Espinosa, se vê pela razão que a verdadeira religião, o pacto de Deus para
com os homens não se resume nos escritos dos livros e sim em escrever nos corações
dos indivíduos, tornando se sagrado tudo quanto tiver o exercício da piedade e de amor.
Caso o mesmo objeto deixe de ter esse exercício deixa de ser sagrado e se o
mesmo objeto passar a ser usado de forma profana o objeto passa a ser profano
também, isso abrange não apenas o objeto utilizado para dar o exemplo, mas em tudo
que faz parte de nossas vidas.
Assim as Escrituras só serão Sagradas até o momento que induzirem a devoção a
Deus, quando o indivíduo não der mais esse devido valor passará a ser nada mais que
um simples livro. Mas não deve haver adoração ao livro e sim a Deus e a verdadeira
regra da vida consiste na caridade e na obediência.

VELHO E NOVO TESTAMENTO – OBEDIÊNCIA REQUERIDA.

Para Espinosa, o principal objetivo das Escrituras Sagradas é a plena obediência


do indivíduo, aquele que obedece a Deus é feliz, do contrário é tido como insubmisso,
rebelde, ateu, etc. Assim os livros da Escritura Sagrada são designados como de autoria
divina com a justificativa de ser o único caminho de salvação. Sua divisão de velho e
novo testamento se dá porque o velho é baseado nas leis de Moisés e o novo na paixão
de Cristo.
Então vivemos diariamente a palavra de Deus, pois ela esta presente na
sociedade dentro dos ambientes políticos, culturais e sociais dos seres humanos.
Segundo Voltaire e Espinosa, os escritos sagrados foram desenvolvidos de acordo com as
necessidades de suas respectivas épocas e povos, para que houvesse a manutenção da
ordem através do que viam como sagrado.
Havendo uma diferença entre as muitas interpretações de profetas e apóstolos
perante a vontade de Deus, sendo possível acontecer muitas vezes falas, ações e escritos
segundo a vontade do indivíduo e dizer ser divina. Pois poucos ou ninguém saberia
detectar essa diferença, mas se tratando de um livro sagrado,

[...] Se lessem essas extravagâncias e essas impurezas num dos


livros chamados profanos, descartariam o livro com horror. Trata-
se da Bíblia: elas ficam confusas; hesitam, condenam essas
abominações, mas inicialmente não ousam condenar o livro que as
contém (Voltaire, 2006, pag.39).

Para a seleção dos livros que formariam o antigo e o novo testamento, devemos
compreender que suas seleções foram realizadas em épocas diferentes com peritos e
doutores diferentes, mas com apenas um critério sobre os livros A PALAVRA DE DEUS.
Para maior compreensão de seus fiéis foram escolhidos os livros mais claros de
interpretar. Entretanto Espinosa coloca que o novo testamento é repetitivo em seus
escritos, tentando formular uma obscuridade em contos tão simples.
Portanto os livros da Escritura Sagrada que são tidos como divinos dentro da
religião, como instrumento sacralizado não poderia haver erros ou falhas no significado
da mensagem que vem sendo repassada há séculos, são pautados de uma incoerência
com sua linguagem, época e povos. Contudo não alterou o sentido, que é a obediência e
amor o próximo.
O mandamento “amar ao próximo como a ti mesmo” é o único critério da fé cristã
e em cima deste molda outros dogmas da fé para o/a fiel. Mas como saber quem é fiel,
quem tem fé se não são visíveis? Espinosa declara que apenas as obras poderão
demonstrar, e ainda coloca que quem faz obras boas é fiel ainda que não concorde com
os dogmas religiosos.
Todavia aqueles/as que faz obras más é infiel mesmo concordando com os
dogmas religiosos. Para haver obediência há fé e quando há fé há obras é uma
consequência ligada uma a outra. A caridade é o próprio Deus, então quem a possui tem
o espírito de Deus, se pressente Deus através da caridade para com o próximo, se
conhece Deus através da obediência e em função do amor ao próximo.
Cada indivíduo está em Deus e Deus está em cada indivíduo. Diante dos
diferentes indivíduos se veem que o que é devoção para uns muitas vezes não é para
outros, causando controversas sobre os dogmas religiosos. A salvação se dá a quem é
obediente, adora a Deus, pratica a justiça e a caridade para com o próximo, conforme
determina a Escritura Sagrada.
Portanto essas atitudes ditadas pela Escritura e seguidas pelos seres humanos ao
longo dos anos esculpiu a cultura dos cristãos. Para Eliade, todos os costumes, as
culturas e a vida descendem de uma sociedade religiosa que está impregnada no
inconsciente dos indivíduos. Entretanto o autor esclarece que essa perca de atividades,
conhecimentos e práticas tidas como sagradas para o profano ocorreu por causa da
modernidade (desencantamento).
Segundo a análise de Eliade, o homem religioso crê no sagrado e no
transcendente que vai além da razão dando significado a sua existência, porém o homem
a-religioso é descrente e sua existência vem de muitos anos atrás, mas é na
modernidade que começam a ganhar maior espaço, para este o sagrado é uma prisão a
sua ideia de liberdade.

[...] o homem a-religioso no estado puro é um fenômeno muito


raro, mesmo na mais dessacralizada das sociedades modernas. A
maioria dos “sem-religião” ainda se comporta religiosamente,
embora não esteja consciente de fato. Não se trata somente da
massa das “superstições” ou dos “tabus” do homem moderno, que
têm todos uma estrutura e uma origem mágico-religiosas. O
homem moderno que se sente e se pretende a-religioso carrega
ainda toda uma mitologia camuflada e numerosos ritualismos
degradados. (Eliade, 1999, 166)

O homem a-religioso descende do homem religioso e mesmo tomando uma


ideologia de vida contrária aos seus antepassados está interligado pelo inconsciente a
religiosidade de seus antepassados, isso é perceptível nas ações do dia-dia que se
originam de rituais mágicos, religiosos camuflados como não religiosos.
É interessante notar que a leitura leva o homem a outras histórias, outros mundos
mágicos e místicos, então homens sem religião não estão livres de comportamentos
religiosos, pois estão inseridos na cultura de sua sociedade que eternizam fatos religiosos
e místicos. É o que Eliade chama de gangorra entre sagrado e profano e vive versa na
modernidade onde o indivíduo vive sem perceber que isso venha acontecendo.
Por isso Nietzsche vai pensar em como acreditar que algo seja sagrado se antes
era tido como profano, ou acreditar que algo é profano se antes era tido como sagrado, é
o embate que a modernidade nos coloca, quando tentamos analisar profano e sagrado
diante de algumas instituições religiosas.
Assim essas transformações “sagrado X profano” ocasionam crises existências em
massa, pois desde muitos séculos escuta-se o discurso de que o indivíduo necessita de
uma religião, um Deus. Apesar da religião ter sido a razão de muitos males para a
humanidade, proporcionou alguns benefícios.

[...] Pois a religião é uma solução exemplar de toda crise


existencial, não apenas porque é indefinidamente repetível, mas
também porque é considerada de origem transcendental e,
portanto, valorizada como revelação recebida de um outro mundo,
trans-humano. A solução religiosa não somente resolve a crise,
mas, ao mesmo tempo, torna a existência “aberta” a valores que
já não são contingentes nem particulares, permitindo assim o
homem ultrapassar as situações pessoais e, no fim das contas,
alcançar o mundo do espírito. (Eliade, 1999, 171)

A religião, as Escrituras trouxeram consigo toda uma bagagem de séculos que


influenciam na vida dos indivíduos, pois até aqueles a-religiosos estão envolvidos pela
religião e suas práticas sagradas, que com o passar dos anos passaram a serem tidas
como profanas, mas estão presentes nossos dias.
Os seres humanos não possuem meios de viver desligados do religioso, do
sagrado, pois Espinosa coloca que a natureza é sagrada, Deus esta na natureza e
fazemos parte deste ciclo da natureza, sendo assim somos parte do sagrado, parte de
Deus, estamos interligados.
Mas para algumas religiões isso não é suficiente necessitando de uma doutrina a
ser seguida e ordenada, por isso a existência das Escrituras Sagradas cristãs que vem ao
longo de sua história trazendo consigo uma multidão de fiéis, estudiosos, críticos,
políticos que se aproveitam de seu poder simbólico3 na vida do vulgo.
Sendo assim a filosofia de vida de muitos fiéis, um caminho de salvação, de apoio,
mas servindo para os aproveitadores como uma arma que favoreceria na busca de
benefícios individuais. Voltaire e Espinosa através de suas pesquisas veem a Escritura
Sagrada como uma prisão sobre a razão do indivíduo.
Contudo é um livro escrito há muitos séculos e que continua influenciando várias
sociedades de diversas formas, cabe a cada um buscar entender a forma que mais lhe
traz satisfação, realização ou liberdade.

“O único evangelho que se deve ler é o grande livro da natureza, escrito pela mão de
Deus e marcado por sua chancela. A única religião que se deve professar é a de adorar a
Deus e ser um homem honesto.” (Voltaire, 2006, pag. 157).

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

AQUINO, Jefferson Alves de. Hermenêutica e Ambigüidade: a estratégia discursiva de


Espinosa. In: Revista Conatus, Filosofia de Espinoza, Vol.1 N.1 Jul/2007, pp. 37- 45.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o Profano. São Paulo. Martins Flores, 1999, pp163 – 175.

ESPINOSA, Baruch. Tratado Teológico.São Paulo, Martins Fontes, 2003, pp. 114 – 233.

MENDONÇA, Antonio Gouvêa. Baruch de Espinosa e a Bíblia: notas á margem do Tratado


Teológico Político. In: NUNEM: revista de estudos e pesquisa da religiao, UFJF, Vol.7, n.
2, pp. 27-57.

3
Poder simbólico é um tema apresentado e discutido por Pierre Bourdieu em seu livro: O PODER SIMBÓLICO.
VOLTAIRE, O túmulo do Fanatismo. São Paulo, Martins Fontes, 2006.
ENTRE O MODERNO E O SAGRADO: ORDEM FAMILIAR NO DISCURSO
CRISTÃO (1931-1945)

Jorilene Barros da Silva Gomes – PPGH – UFPB


Jorilene.jp@hotmail.com

É de suma importância compreender que este trabalho corresponde a um


projeto que ainda está em fase de desenvolvimento e que não tem objetivo neste
primeiro momento de responder inquietações que por ventura surjam, mas sim
levantá-las a ponto que suas perguntas sejam mais importantes do que algumas
respostas que poderiam simplificar a pesquisa que tem caráter social – religioso
que poderá ser enriquecedor para historiografia Paraibana.
Conforme isto é imprescindível indagar as fontes e a origem da pesquisa,
portanto a análise de alguns periódicos é parte indispensável no que concerne o
desenvolvimento deste trabalho. Entre os periódicos destaca-se A Imprensa que
funcionou no final do século XIX e início do século XX, neste verificou-se a presença
sutil, porém sempre presente do tema abordado neste trabalho, que com o passar
dos anos ganhou entendimento diferenciado e com arranjos que possibilitaram um
exame distinto desta sociedade.
A mulher cristã tem a liberdade em si, não precisa ser
emancipada. Todos os atos de sua vida estão dependentes
de Deus e esta dependência a obrigará á dependência dos
pais, esposo ou superiores. Que nunca se abram nossos
lábios para dizer: sou livre. Seu lugar é provedor da família,
obediente ao marido cuidado de seus filhos. Família que deve
ser guardada pela Igreja e pelo estado em nome da nação.
Deus Sente-se feliz quando vê a família reunida para celebrar
ao senhor. (A IMPRENSA, 22 de novembro de 1918)

Negavam lhe confiança é o mais elementar principio de


liberdade – resultado de uma educação mesquinha. Esses
tempos já vão bem longe. Tudo isso foi no passado. Com as
vantagens dos tempos atuais ela pode pensar e agir, coisa
mais lógica. Contudo, isto não a retira do seu lugar lógico. O
de senhora responsável pela família, pelo estado, pela nação.
A Família é guiada pela mulher e liderada pelo homem, uma
união perfeita que Deus fez para salvação dos homens bons.
A família com cristo é o que o Núcleo Noelista defende. E
defenderemos contra todos os mal que vier sobre a família.
(11 de agosto de 1933)

Os trechos supracitados elucidam como diferentes noções e modos de ser e


estar em sociedade vão delineando-se no decurso do tempo; neste sentido
exemplifica concretamente a “ferocidade” de tais transformações alteraram o perfil
da sociedade e das relações de poder existentes (HOBSBAWN, 1995). Logo a
família brasileira acompanhou estes novos ventos que ditavam o que era ser
moderno. O jornal A Imprensa registrou estas mudanças e noticiou em cada
momento a situação da família, fortalecendo em seus escritos os laços familiares
contra os excessos de futilidades que a modernidade oferecia. Não obstante, o
mesmo acompanhou e modificou-se em determinados momentos em nome da
apropriação do saber.
O jornal A Imprensa foi fundado1 no final do século dezenove e marcou a
sua época por ser um dos primeiros a circular no cenário paraibano. Criado pelo I
Bispo e Arcebispo da Paraíba D. Adaulto Aurélio de Miranda Henrique no dia 27 de
maio de 1897, este impresso teve o subtítulo denominado Órgão Hebdomadário
Doutrinário e Noticioso. Este jornal noticioso/político trazia ideários e preceitos da
vida católica, do cotidiano na sociedade paraibana e da política local e nacional (e
em casos extraordinários noticias internacionais).
Os colunistas em sua maioria eram pessoas da elite como: religiosos,
padres, professores, políticos e escritores que escreviam neste órgão com a
intenção de informar e forma a sociedade paraibana de acordo com os valores da
época. Entre os nomes em destaque do jornal o primeiro redator chefe do jornal foi
o Pe. José Gomes da Silva que tinha ajuda do religioso Manoel Antonio Paiva
(ambos militantes católicos). Além de colaboradores e vigários que tinham a
obrigação de assinar o jornal e fazer a divulgação da paróquia. (FERREIRA, 1994).
O jornal contava com correspondentes (coronéis, professores, padres, cônegos,
majores, capitães e promotores) em cerca de quinze municípios do estado da
Paraíba relatando os principais acontecimentos. Este espaço no jornal era chamado
de “Interior da Paraíba” e continha caráter político, literário, recreativo ou
noticioso2.
Nesta breve descrição do jornal é importante destaca a Cultura Feminina.
Seção que passou a ser apresentada quinzenalmente no jornal supracitado, com
fins de informar e/ou formar as mulheres e moças o seu lugar social e suas
práticas, o de gestora / provedora da família. O Núcleo Noelista atuou

1
O jornal ao longo de seus anos de atividade enfrentou inúmeros fechamentos (ora, por falta de verbas
para manutenção e em último episódio por atritos políticos). A manutenção do jornal ocorria através da
arrecadação das verbas e de pedidos em massas de ajuda da sociedade paraibana. O primeiro
encerramento ocorreu no ano de 1903 voltando a serem editados dez anos depois no dia 05 de agosto de
1912.
2
Ao longo do jornal é impossível não perceber os inúmeros anúncios/propagandas que convidam o leitor
para o comparecimento em estabelecimentos e esclarecimentos oportunos para o dia-a-dia. Pode-se
destacar entre os anúncios presentes no jornal – propagandas de advogados, médicos, hotéis, casas de
costura, tabelas da cesta básica, horários dos ônibus e trens, do preço da moeda, remédios milagrosos,
óculos entre outros.
intensamente através desta coluna, sendo algumas vezes representantes oficiais
desta parte do jornal. Os relatos literários variam desde poemas românticos,
códigos de condutas, religiosidades até receitas de comidas. A grande nuance desta
coluna era sua ingerência sobre a família, em resguardá-la dos pecados e das
futilidades (A Imprensa, 1934).
Ao falar sobre família é relevante esclarecer qual é o entendimento sobre
esta instituição. Neste sentido recorre-se a textos que versem sobre família na
primeira metade do século vinte com o intuito de verificar e compreender as
mudanças e permanências acerca desta instituição que se formou a partir de
modelos pré-concebidos. Contudo, apresento a definição de alguns tipos de família
para captação dos mecanismos que operaram (e operam), fazendo desta entidade
“pulsante” lugar permanente de transição.
A família pode ser pensada a partir de diversos aspectos como: unidade
doméstica, instituição, sobrevivência, laços fraternais e consanguíneos. É válido
ressaltar que inúmeros teóricos já perpassaram seus olhos por este campo que
para muitos é o princípio da nação. O termo família é conceituado diferentemente
nas mais variadas ciências como a Antropologia, Sociologia e não obstante na
História.
Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é um conjunto
de pessoas conectadas por vínculos de parentesco, sujeição doméstica, convivência
ou que reside em um único domicilio. A família passou por alterações, a figura
materna que era única e exclusivamente feita para o lar passou a protestar por
novos postos.
Segundo Freyre (1951 e 1953) que escreveu sobre família brasileira no
período colonial e concluiu-a como sendo família extensa e patriarcal. Esta família
versava a partir do regime patriarcal e a miscigenação das três raças3. Guiada pelo
patriarca, sendo função deste prover e defender a honra de todos os envolvidos.
Como esteio desta família o patriarca regulava, desde a família escrava até o
capataz e seus parentes. A casa grande era o palco central desta grande família.
Diferindo de Freyre, para Samara (2000) a família brasileira foi o resultado
do transplante e adaptação da família portuguesa e suas especificidades como:
normas, costumes e tradições às peculiaridades do Brasil – colônia. Logo o que
seguiu foi uma família patriarcal e conservadora. Samara ainda afirmou que o
modelo concebido a partir da estrutura Freyriana não se aplica a outras áreas do
Brasil que não seja o Nordeste, a exemplo de São Paulo que diferiu da estrutura
supracitada. A autora defendeu que este modelo aplicava-se a uma parte da

3
Ver FREIRE, Gilberto. Casa Grande e senzala (1980); Sobrados e Mocambos (1951).
população “o casamento era uma opção para apenas uma parcela da população”,
ou seja, nem todos tinham acesso aos padrões pregados por Freyre.
O que ocorreu foi à generalização de um único ideário de família para todos
os lugares do Brasil, sem reconhecer as especificidades de cada região (CORRÊA:
1993). Segundo Teruya (2000) outra teoria oriunda na década de vinte do século
passado nos Estados Unidos foi a Família nuclear, alicerçada principalmente nos
movimentos de urbanização e industrialização. Este novo pensamento fomentou um
novo modelo de família que constitui-se como padrão de modernização da
sociedade.
Para Cândido (1951) uma série de transformações ocorreram no seio
familiar e social alterando o modelo existente. Contudo, práticas de cunho
conservadoras continuaram a configurar-se na sociedade. O enfraquecimento do
modelo Patriarcal Extenso para o Nuclear Burguês ocorreu devido à urbanização e
industrialização. O controle a que restringia-se as famílias passou para as mãos dos
produtores econômicos e concomitantemente ao estado, comprometendo a relação
estável que existia entre os agregados da família.
Já no fim do século vinte, Almeida (1987) enfatizou dizendo que o modelo
de Freyre foi de suma importância como referencial para a sociedade brasileira, e
este modelo possibilitou confluir para o novo arquétipo nuclear, ou seja, esta “nova
– velha” família adaptou-se.
É acerca da organização familiar que inquire e perpassa a pesquisa, pois
compreender como a família paraibana vivenciou a transformação social e
econômica possibilita uma analise da abrangência ou limitação deste processo de
modernização. Algo corroborou para que o discurso conservador investisse sua
atenção, pois o núcleo noelista “levantou a bandeira” para proteger a família da
modernidade “o progresso do século vinte e a sua organização de vida vai cedendo
lugar os direitos que a muito lhe são devidos. A mulher apenas não deve se iludir
com a futilidade, ela deve ser caridosa e amável com todos, deve proteger a
instituição formadora da nação 4”.
É válido ressaltar que desde o século cinco a família deixou de ter o poder
em suas mãos, deslocando para Igreja Católica o poder de resguardar os princípios;
O Direito Canônico foi um modo utilizado pela igreja para normatizar as atividades
e contestar em nome de Deus quem operasse de forma contrária. Existindo assim,
uma dualidade que corroborava para que os chefes católicos investissem atenção e
cuidado. Segundo Fachin (2001) o casamento e a união familiar ganhou conotação
de respeito, ascensão e segurança, contrapondo assim a qualquer união familiar
que não tivesse as bênçãos clericais.

4
A IMPRENSA. Cultura Feminina. João Pessoa, pg. 8, 04/10/1936.
Logo, os dogmas católicos inferiram diretamente nas uniões e nas relações
pessoais. A sociedade do século vinte passou a aceitar os vínculos pessoais
remetendo-os como uniões estáveis, transformando os valores e costumes a uma
nova ideologia para o estado e sociedade. É a partir destas mudanças que o grupo
supracitado comprometeu-se em resguardar a moralidade Cristã.
Certeau (2002) foi de suma importância para utilizar e analisar os
documentos, pois torna-se necessário analisar quem o produziu, para quem
produziu e quais suas intenções, portanto fomenta-se neste trabalho a criticidade
e/ou problematização das fontes. Ao utilizar os textos foi possível compilar
resultados de negociações ou transações entre a invenção literária e os discursos
ou práticas do mundo social, ou seja, a literatura anuncia e difunde as mudanças
ocorridas na sociedade (CHARTIER; 1999).
Ao usar os textos dos periódicos supracitados abordam-se as tessituras
familiares e os embates com o processo de modernização social e cultural que
emergiu no século vinte. Utilizo a historiografia contemporânea, pois possibilita
formar narrativas e debates que foram “esquecidos” pela sociedade. Segundo
Hobsbawm (1997) o passado é uma extensão constante e permanente da
consciência humana, “um componente inevitável das instituições, valores e outros
padrões da sociedade humana”. Para o autor o passado e presente formam uma
continuação em que os seres humanos estão elados com os movimentos
transcorridos.
Entendimento como estes são frutos das transformações historiográficas
que coincidiram com as mudanças de percepções do mundo do presente, visto que
é a partir deste que se levantam questionamentos ao passado. A denominada “crise
intelectual” fomenta inéditos discursos, a emergência de outros olhares e com eles
novas problematizações. Com a emergência destes diferentes objetos, os
historiadores puderam deliberar sobre distintos campos do saber, para além da
hegemônica história econômica e social e, principalmente, medraram as
possibilidades de se pensar a história não mais como um todo, como um grupo
homogêneo, mas de investigá-la tomando como exemplo e exercício, casos
reduzidos. É a emergência da micro-história. O enfoque estava na redução da
escala de analise para poder investigar minuciosamente o objeto, “tal escolha
implica o recurso do uso da metonímia como figura metodológica de ação, o que
permite que, a partir do fragmento, consiga obter um espectro mais amplo de
possibilidades de interpretação” (PESAVENTO, 2005), ou seja, vendo no “micro”
possíveis respostas ao “macro”, sendo este representativo de um contexto mais
amplo.
A família paraibana conserva este arquétipo de preservação social? Na
contemporaneidade comumente encontramos na sociedade paraibana o apreço
religioso impregnado na essência social, o casamento, a família, a reprodução
marital alicerceis constantemente valorizados. Porém, para compreender esta
tradição marital e familiar torna-se necessário verificar/analisar como foi o processo
que fomentou esta “tradição” familiar. Segundo D’Assunção Barros (2009), o
arquivo tem voz própria que faz o historiador interagir e compreender dimensões
ainda desconhecidas sobre o homem no tempo.
Para estudarmos as tessituras acerca da família na Paraíba dispomos de
algumas fontes como: as estatísticas que são os registros paroquiais, civis e o
censo; as literárias que podem ser periódicos, livros, diários e cartas; as
normativas como: regras familiares e modelos de etiquetas e modelos religiosos.
Utilizamos em especial nesta pesquisa os periódicos, pois representam um vasto
campo de pesquisa que em sua maioria continuam intactos.
A partir disto perquirimos esta pesquisa através de três periódicos
substanciais, pois encontramos em suas narrativas vestígios e estigmas do tempo e
lugares sociais relevantes a pesquisa. Não consideramos as fontes literárias como
copia fiel daquele passado, contudo avaliamos e analisamos como algo que
possibilita a compreensão e a representação de um ideário de família.
Enfim, a seleção dos periódicos ocorreu em consonância com o acervo
sobre o movimento pesquisado e os discursos liberais e modernizadores que
“afastava-se” da moral vigente. Entre as fontes destaca-se em um grau mais
utilitário como já foi supracitado o jornal A Imprensa.
As outras duas fontes são os periódicos A União5 e Era Nova6. Para uma
maior compreensão das características do período a utilização do jornal estatal A
União, pois através de suas campanhas publicitárias destacava o que era e o que
deveria ser consumido por esta sociedade. Em face desta pesquisa desenvolver-se
no campo da sensibilidade e representatividade, elencar a revista Era Nova foi
oportuno, pois esta tinha um posicionamento noticioso e ilustrativo e trazia em sua
escrita um caráter moderno, aludindo às novas práticas da mulher e da família
moderna.
A renovação historiográfica desencadeada no século vinte possibilitou
novos olhares sobre a forma de ver o passado. Possibilitando uma versatilidade
sobre as fontes e os mecanismos para entrar em contato com passado. Para Bloch
(2001) a sociedade é dinâmica de acordo com seu tempo e suas especificidades;

5
Começou a circular em 1893, ocorrendo algumas interrupções devido a problemas políticos, porém
circula até os dias atuais.
6
Circulou entre os anos de 1921 1926.
existindo possibilidades múltiplas. Segundo Chartier (2002) a utilização de novos
objetos/fontes nas problemáticas históricas, representou uma gama de novos
territórios ao historiador.
Neste sentido, “Os objetos e as marcas deixadas pelo passado não traziam
em sim mesmo seu sentido”, Albuquerque Jr.(2007, 53; 54), nos incitou a pensar
quando em seu texto “História: A arte de inventar o passado” nos levou a refletir
como a história vem se constituindo enquanto ciência, como a mesma possibilitou e
possibilita o historiador a se questionar quanto à fonte que ele deve usar, ou seja,
“o passado não era o documento, nem os vestígios por ele deixado”. Neste sentido
torna-se imprescindível analisar como o historiador deve percorrer suas tessituras,
já que a fonte não é a história em si e que é tarefa do historiador é reavivar e
remover as memórias ocultas pelo silenciamento do tempo, memórias que foram
estigmatizadas, e que só poderão conhecer a “luz” da contemporaneidade através
de um historiador que tenha o “saber histórico e uma erudição previamente
adquirida”.

Partindo desta perspectiva o historiador de hoje não deve ter o discurso da


verdade única, do linear, do progressivo, mas sim aquele do estatuto da
desconstrução, de pensar os fragmentos, as multiplicidades que somos, ou seja, a
tarefa é garimpar os vestígios e compreender os dinamismos inerentes a realidade
social da contemporaneidade e ao mesmo tempo a efemeridade que marca a
sociedade, sobretudo a contemporânea em que pensamentos e gostos são
rapidamente descartáveis, ou seja, o que hora é “bom” pode não ser no momento
seguinte. Sendo assim, tornou-se necessário que o historiador questione discursos
homogeneizantes, criticar o estatuto de verdade, perceber as minúcias, ou seja,
torna-se importante o historiador ter sensibilidade, intuição e imaginação para tecer
seus caminhos entre o nômade e o aventureiro, entre a fúria e calmaria, entre a
multiplicidade e o singular encontrando nos textos de sentidos múltiplos, pois
através deles somos capazes de enxergar o mundo de inúmeras maneiras.

Desta forma, nos conduzimos por uma história problema tal como
denominada por L. Febvre marcada por questionamentos em relação ao fato, pela
formulação de hipóteses e indagações. Segundo Le Goff (1994) não existe
documento – verdadeiro; é necessário analisa-lo a partir de sua produção,
“desmontar, demolir” e desmistificá-lo sem esquecer da força inerente ao mesmo.
Logo, recorro aos textos produzidos pelo Núcleo Noelista para “desmonta-lo” e
analisa-lo em seu lócus e todas as reminiscências oriundas deste para adentrar a
essência de sua produção. Porém é válido ressaltar quando Le Goff afirma:
O documento não é inócuo. É antes de mais nada resultado
de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história,
da época, da sociedade que o produziram, mas também das
épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez
esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado,
ainda que pelo silêncio.

No que tange a nossa pesquisa as três fontes são de suma importância, pois
estas possibilitam enveredar através de sua escrita a códigos, condutas e práticas
que revestiram a família paraibana de preceitos. A representatividade da imprensa
no cenário nacional e local torna o jornal potencialmente importante, pois guarda
as memórias e as legitimam como verdade.
Ao analisarmos os periódicos é de suma importância compreender as
estratégias na qual ele foi formado, pois este foi escrito a partir de um propósito,
ou seja, a imprensa trata-se de um exercício político – ideológico que é influenciada
pelo seu meio social e histórico. Portanto, nos escritos jornalísticos não existe
imparcialidade, mediante que esta prática é substancialmente influenciável por
fatores externos. Mediante estas premissas este trabalho ocorrerá analisando os
aspectos sociais, culturais e econômicos desta sociedade em processo de
transformação.

BIBLIOGRAFIA

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 VAINFAS, Ronaldo. História das Mentalidades e História Cultural. In.
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História. Rio
de Janeiro: Ed. Campus. 1997
GT 17 - Diversidade Religiosa e Intolerância: nas interfaces entre Ciências e História
das Religiões Coordenadores: Carlos André Cavalcanti (UFPB), Romero Venâncio (UFS)

ENSINO RELIGIOSO COMO INSTRUMENTO DE PROMOÇÃO DA CIDADANIA E


DIVERSIDADE

Thalisson Pinto Trindade de Lacerda1

Camilo de Lélis Diniz de Farias2

RESUMO

O Brasil define-se como Estado laico desde 1891. Até então, o catolicismo era a
religião oficial, e a única a ter permissão para manifestações públicas, uma vez que às
demais crenças só eram permitidos os cultos domésticos. Desde então, o tratamento
dado ao ensino religioso variou historicamente. O presente estudo é uma alternativa
ao ensino religioso, que não assuma cultos em particular, mas que se paute no
respeito à alteridade, constituindo-se como instrumento hábil para a promoção da
cidadania e reconhecimento da diversidade religiosa. Este trabalho insere-se no
contexto dos estudos acerca da viabilidade de um novo ensino religioso, nos moldes
acima relatados, em contraposição ao recorrente modelo confessional e tem como
objetivos demonstrar a importância do ensino religioso na formação cidadã dos
indivíduos, Analisar a atual situação do ensino religioso no contexto da rede pública de
ensino brasileira e propor ferramentas de efetivação dos parâmetros constitucionais e
legais para o ensino religioso brasileiro. O trabalho consistirá em pesquisa
bibliográfica, assentada na literatura específica e jurídica, somada ao levantamento de
dados para dar mais consistência ao estudo.

Palavra- Chave: Constituição. Estado Laico. Ensino Religioso. Diversidade religiosa.

1. INTRODUÇÃO

1.1. A formação do Estado Laico brasileiro

1
Graduando em Ciência das Religiões pela UFPB. Membro do Grupo de Estudos FIDELID: Formação,
Identidade, Desenvolvimento e Liderança de Professores de Ensino Religioso. Email:
thalisson_pinto@hotmail.com.
2
Graduando em Direito pela UEPB. Membro do Grupo de Estudos Direito, Tecnologia e Realidade Social:
Paradoxos, Desafios e Alternativas. Estagiário do Ministério Público na Promotoria da Educação em
Campina Grande – PB. Email: camilo_diniz@hotmail.com.
Um dos temas mais sensíveis no que se refere à educação pública brasileira é,
sem dúvidas, a oferta do ensino religioso num Estado Laico. Embora a previsão
Constitucional vede a adoção de uma crença oficial por parte do Estado,
frequentemente este ensino encontra-se vinculado a uma doutrina religiosa específica,
apresentando cunho catequético, em detrimento da enorme diversidade cultural
presente em nosso território, contribuindo para o desconhecimento acerca da mesma
e para a perpetuação das opressões religiosas.

Enquanto um país de formação cultural profundamente ligada à religião,


especialmente o cristianismo católico, foi automática a associação do ensino religioso
com a propagação da doutrina da Igreja Católica, inclusive considerando que, até o
ano de 1890, não havia por aqui a noção de Estado Laico, conforme se notabiliza
neste trecho da Constituição imperial de 1824: "Art. 5. A Religião Católica Apostólica
Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão
permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem
forma alguma exterior do Templo".

Tal previsão representava, portanto, a ausência de liberdade religiosa e o dever


estatal de, enquanto porta voz da Igreja de Roma, de veicular a sua doutrina nos
estabelecimentos de ensino que, frequentemente, confundiam-se com a própria
catequese ofertada pelas paróquias em sede de preparação para recebimento dos
sacramentos3. Sobre o tema, pronuncia-se SEVERINO:

No processo ideológico da política educacional desenvolvida


pelo Estado brasileiro, é característica a utilização do ideário
católico como concepção de mundo, exercendo a função
ideológica para a sustentação e a reprodução desse modelo de
sociedade. A cosmovisão católica serviu de ideologia adequada
para a promoção e a defesa dos interesses da classe dominante
ao mesmo tempo que fundamentava a legitimação, junto às
classes dominadas, dessa situação econômico-social,
objetivamente marcada pela exploração e dominação da maioria
por uma minoria. (SEVERINO, 1986, p. 70).

Com a proclamação da República em 1899, sob a notória influência do


positivismo de August Comte e, principalmente, dos ideais das revoluções liberais,
com destaque para as revoluções francesas de 1789, 1830 e 1849, além da
independência dos Estados Unidos da América (1776), e dos próprios movimentos
revolucionários que sacudiram o império durante o período colonial e imperial, foi

3
Ainda, por exemplo, eram inelegíveis aqueles que não professassem a fé católica.
decretada a laicidade do Estado (1890), como uma espécie de ruptura com a antiga
estrutura de vinculação entre a Igreja e o poder público.

Assim rezava a Carta Magna republicana:

Art 11 - É vedado aos Estados, como à União:

2 º ) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de


cultos religiosos;

Art 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros


residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à
liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos
seguintes: ]

§ 3º - Todos os indivíduos e confissões religiosas podem


exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para
esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito
comum.

§ 4º - A República só reconhece o casamento civil, cuja


celebração será gratuita.

§ 5º - Os cemitérios terão caráter secular e serão


administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos
os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação
aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as
leis.

§ 6º - Será leigo o ensino ministrado nos


estabelecimentos públicos.

§ 7º - Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial,


nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da
União ou dos Estados.

§ 28 - Por motivo de crença ou de função religiosa, nenhum


cidadão brasileiro poderá ser privado de seus direitos civis e
políticos nem eximir-se do cumprimento de qualquer dever
cívico.

As previsões constantes na Constituição de 1891 representaram, até o atual


momento , a maior ruptura entre Estado e religião no que se refere à inserção de um
ensino religioso no currículo escolar. Destaque-se que tal distanciamento é, em parte,
fruto do ranço existente entre a Igreja Católica e os republicanos, dado o apoio dado
pela mesma ao Império, bem como à sua vinculação já demonstrada com a causa
monárquica, havendo a necessidade de romper com a normalidade do antigo regime,
de modo a consagrar o novo modelo perante a sociedade e os meios judiciais.

Com a ascensão de Vargas ao poder, em 1930, inaugura-se o parâmetro do


ensino religioso facultativo, como uma forma de estabelecer relações mais cordiais
com as igrejas. Em tese, ele deveria ser voltado à formação religiosa particular do
aluno, o que criou diversos inconvenientes de ordem prática, considerando a grande
diversidade religiosa do Brasil, bem como o déficit de formação acadêmica daqueles
responsáveis por ministrá-lo.

Nas próximas Constituições, a tendência se manteve, consagrando-se a


expletividade do ensino religioso, e o seu caráter multiconfessional - ao menos em
teoria. Anote-se, porém que, no período da ditadura militar, a inclusão da disciplina de
educação moral e cívica eclipsou o ensino religioso, dando-lhe um tom de coadjuvante
dentro das grades curriculares das escolas públicas (CAETANO; OLIVEIRA, 2006).

2. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E AS NOVAS DIMENSÕES DO ENSINO


RELIGIOSO

Após duas décadas de regime de exceção, notabilizou-se a superação do então


paradigma constitucional, sendo gritante a necessidade de elaboração de uma nova
Carta Magna que suprisse as demandas sociais e fizesse jus ao momento de
efervescência política pelo qual passava a República Federativa do Brasil. Assim, em
1988, depois de um processo marcado pela participação popular e pela pluralidade de
ideias, foi promulgada a nova Constituição, alcunhada de cidadã.

Ainda, sob a égide do chamado neoconstitucionalismo, a nova norma


fundamental consagra os direitos fundamentais como epicentro do ordenamento
jurídico, numa perspectiva essencialmente humanista, fortemente pautada no respeito
à diversidade e no reconhecimento das diferenças enquanto meio eficaz de tutelar os
direitos humanos.

Neste contexto, é essencial que o Estado esteja livre de ingerências religiosas


(e que as religiões estejam livres da ingerência do poder público), devendo afirmar a
sua laicidade. A Constituição ora em vigor o consagra em seu artigo 19, o qual reza
que

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos


Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,


embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus
representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada,
na forma da lei, a colaboração de interesse público;

De tal modo, depreende-se que o ensino religioso porventura ofertado nos


estabelecimentos públicos de ensino não deve ser confessional, como forma de
instrumentalização da laicidade do Estado. A Carta Magna disciplina de modo esparso
o ensino religioso, reafirmando o seu caráter facultativo, deixando para a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional a tarefa de regulamentá-lo.

Neste sentido, a LDB dispõe:

Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte


integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina
dos horários normais das escolas públicas de ensino
fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural
religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.

§ 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos


para a definição dos conteúdos do ensino religioso e
estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos
professores.

§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída


pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos
conteúdos do ensino religioso."

O excerto legal traz em seu conteúdo duas preocupações principais: em


primeiro lugar, a definição dos conteúdos, os quais devem ser baseados em uma
perspectiva pluralista e alteritária, diante da vedação do proselitismo e do ensino
catequético e, em segundo lugar, o estabelecimento de parâmetros para a seleção dos
docentes.

Ainda, há a previsão da necessidade de participação pluralista das diversas


denominações religiosas na elaboração destes conteúdos, o que dificilmente ocorre, na
prática. Por fim, ressaltamos o desafio de se elaborar um material didático que possa
cumprir as exigências legais.

Destarte, a grande preocupação é a da efetivação das previsões legais e


constitucionais, tendo em vista o baixo contingente de profissionais capacitados para
exercer a licenciatura em Ensino Religioso e, especialmente, a dificuldade para
estabelecimento de fato plural dos conteúdos a serem ministrados. Tal situação,
portanto, requer trabalho diante esse cenário que está em constante construção,
segundo os autores:

É importante destacar, que além das mudanças pretendidas na


concepção de ER é imprescindível ampliar o papel desse
profissional que deve integrar o sistema escolar, devidamente
habilitado, com incentivo e direito a uma formação continuada
nos termos da atual reforma de Ensino Superior no Brasil. É
nesse sentido que se busca definir as bases sobre as quais se
devem construir as Diretrizes Nacionais para a Formação desse
professor em nível Superior, Curso de Licenciatura de
Graduação Plena, Cursos de Pós-Graduação e outras
modalidades de formação continuada constituídas por princípios
e critérios, entre os quais: Assim, a disciplina do Ensino
Religioso ampliada pela Educação Religiosa como área de
conhecimento, aos poucos vai tomando o seu espaço no
currículo como tal, para desempenhar a sua função no ambiente
escolar de forma pedagogicamente adequada às urgências e
necessidades dos novos tempos. (JUNQUEIRA, GILZ,
RODRIGUES, PEROBELLI, 2006, 2006 p. 445).

A afirmação refere-se aos desafios contínuos que os professores enfrentam


para o reconhecimento da profissão no contexto escolar, e através da integração dos
sistemas públicos de ensino, estão abrindo o espaço para cursos de formações em
Licenciatura plena com habilitação em Ensino Religioso, tendo em vista que o
crescimento da área aflora cada vez mais, quando o próprio profissional só pode
reconhecer o outro, quando reconhece a si mesmo, ou seja, a partir do momento em
que o professor passa a abrir o dialogo, respeitar os limites do diferente, ele se auto
constrói dentro desse espaço critico, reflexivo e socializante.
Entre o favorecimento dos professores, e sua contribuição sobre a
compreensão da razão do papel do educador de Ensino religioso no sistema de ensino
público e no entendimento de que esse componente curricular tem um significado
próprio e profundo e que tem algo de transcendente que é um fenômeno religioso e
por isso é o objeto de estudo do Ensino Religioso. É também importante compreender
o ER como área de conhecimento científico e a escola como espaço social promotor de
experiências no dia-a-dia no contexto escolar.

Segundo Domingues:

A ação do professor reflexivo no Ensino Religioso, ainda, requer


desse profissional a atitude de abrir-se a discussão e a crítica
frente ao objeto de estudo em questão, o qual deve ser
reposicionado nos discursos, nas representações e nos fazeres
dos diferentes grupos sociais presentes em seu fazer educativo.
(DOMINGUES, 2011, p.18046)

De acordo com a autora, construção da identidade profissional e da formação


docente é uma questão a ser enfrentada e reforça a necessidade da sistematização
desses processos através de pesquisa, cursos de formações e estudos na área.
Entretanto é preciso desconstruir o preconceito religioso bem como qualquer forma
preconceituosa de proselitismo que afetam o dialogo entre as religiões e provoca certa
indiferença entre as pessoas.

O estudo tem a intenção de promover o dialogo, o respeito e a aceitação dos


envolvidos no processo de Ensino religioso, eliminando as diversas formas de
preconceito existente no espaço escolar. Destarte, passo a passo o ensino religioso
vai conquistando seu espaço no contexto escolar, na medida em que os profissionais
forem assumindo o caráter cientifico, buscando ferramentas epistemológicos, teóricas
e metodológico, ou seja, levando a sala de aula um conhecimento e uma prática
social construída pelo ensino laico e sem opressões individuais.

2.1. Ensino religioso e cidadania

Conforme foi ressaltado, a Constituição de 1988 é fortemente construída sobre


a noção do respeito aos direitos humanos e da universalidade da cidadania. Sob a
influência da terceira geração dos direitos fundamentais, a diversidade se apresenta
como elemento chave no processo de sedimentação e consolidação da dignidade da
pessoa humana, valor central da nova ordem constitucional.

De modo que, conforme explicita BOBBIO (1992, p. 68), a proliferação dos


direitos humanos se dá, também, "porque o próprio homem não é mais considerado
como ente genérico, ou homem em abstrato, mas é visto na especificidade ou na
concreticidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade".

Portanto, diante de uma Constituição que elenca o pluralismo político como um


de seus fundamentos, todo o aparato estatal deve estar orientada para a reflexão
deste princípio, de modo que o ensino religioso, neste contexto, deve ser utilizado
enquanto instrumento que reafirme e promova o respeito à diversidade, e como
mecanismo eficaz para a consolidação da noção universal de cidadania, Uma vez que,
conforme DALLARI (1998,p. 14):

A cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a


possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de
seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou
excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa
posição de inferioridade dentro do grupo social.

O ensino religioso plural e sem proselitismos apresenta, neste contexto, um


caráter dúplice: em primeiro lugar reafirma a laicidade do Estado e, em segundo
lugar, promove, por meio de seus conteúdos, o conhecimento da diversidade e da
necessidade do reconhecimento do outro, especificamente da multiplicidade de credos
e do dever de convivência harmônica entre eles numa sociedade democrática. É a
chamada educação em direitos humanos, sobre a qual se pronuncia de modo brilhante
MARCONI PEQUENO (2008, p. 27):

O homem é um ser em construção que pode ser melhorado.


Sua existência é resultado dessa busca de aperfeiçoamento e da
sua capacidade de superar os instintos egoístas e nocivos à vida
em sociedade. Por isso, é possível defender e promover a
dignidade do indivíduo mediante meios educativos apropriados,
como é o caso de uma educação voltada para os direitos
humanos. Esta deve, pois, preparar o sujeito para o exercício da
cidadania e, sobretudo, para o reconhecimento da dignidade
que define sua natureza e condição. O processo educacional
pode fornecer ao homem os instrumentos necessários para que
ele possa constituir as bases de um viver compartilhado e
baseado nos valores de solidariedade, justiça,respeito mútuo,
liberdade e responsabilidade. A realização desses valores o
torna mais apto a viver com dignidade. Porém, sem eles o
homem se revela destituído de sua essência fundamental, ou
seja, ele perde aquilo que define o seu ser: a sua humanidade.
A educação em direitos humanos é, pois, uma forma de o
sujeito reconhecer a importância da dignidade e, sobretudo,
agir visando a conquista, a preservação e a promoção de uma
vida digna.

Grande é a responsabilidade do professor de ensino religioso pois, conforme


assevera SILVA (2010, p. 13) " numa sala de aula há uma grande diversidade, não só
religiosa, mas também étnica cultural Social e de gênero. Essa diversidade se estende
ao campo das opiniões e formas de pensamento”.

Com uma visão holística e alteritária, o docente tem como contribuição


fortalecer o profissionalismo na prática escolar e proporcionando as escolas e
consequentemente aos alunos, o respeito necessário dentro de um processo dinâmico
e interpessoal, através desses pressupostos abre um espaço para ao diálogo, usando
métodos contundentes com a disciplina, e promovendo a diversidade na sala de aula.
Vejamos;

A educação é um bem público no Brasil. Por meio da educação


se promovem princípios e valores centrais à democracia, tais
como a liberdade de pensamento e crença, a cidadania e a
igualdade. A escola pública é um dos espaços privilegiados para
a plena vigência da Laicidade do Estado, dada a centralidade da
educação para a cidadania. (DINIZ; LIONÇO; CARRIÃO, 2010, p
11).

A complexidade no que refere-se ao preconceito na modernidade torna-se mas


frequente as relações, tornado-se um obstáculo opressor, anulando a democracia! As
autoras, resaltam claramente que a educação é a base para o desenvolvimento da
sociedade, mas a escola é o outro espaço no qual acontece à troca de conhecimento,
experiências, em fim todo esse contexto evoca uma camada de fatores, tais como
projetos educacionais, que possibilite a participação de todos dentro desse processo
de ensino que precisa ser dinâmico e prático.
Infelizmente para alcançar tal ato, precisamos continuar pesquisando e
buscando mecanismos empíricos e sistemáticos para os Professores de Ensino
Religioso, iniciativas como essas, quebram paradigmas e constantemente no combate
a intolerância religiosa, pois o comprometimento desses profissionais em formação e
habilitados para o Ensino Religioso, podem mudar a realidade, visando contribuir para
processos educativos com responsabilidade ética e social e estabelecer a todos o
incentivo no desenvolvimento de um ensino religioso que busque o lado humano
social.

3. CONSIDENRAÇÕES FINAIS

A despeito da importância da concepção de um ensino religioso plural e


alteritário, percebe-se que, na prática, o proselitismo ainda vigora em grande parte
dos estabelecimentos educacionais brasileiros. Consequência disso é a incompreensão
da diversidade e a crescente intolerância religiosa em nosso território, o que
enfraquece a ideia da cidadania universal. Torna-se necessária, portanto, a
concretização real dos parâmetros legalmente exigidos para o ensino religioso,
embora reconheçamos a dificuldade de tal intento.

Destarte, inaugura-se uma nova perspectiva para o ensino religioso, cuja


finalidade passa a compreensão do fenômeno religioso, e não mais de angariar
seguidores para cultos em particular. Tal visão encontra-se em consonância com a
nova ordem constitucional, na qual o pluralismo é elemento essencial da construção
do Estado, compreendendo que, a partir do reconhecimento das particularidades –
dentre as quais a religião – dos indivíduos e grupos sociais é que se constroem os
direitos e a cidadania, que deve ter caráter universal. Assim, o ensino religioso poderá
superar o paradigma doutrinário e se tornar mecanismo essencial na efetivação do
respeito às diferenças, necessário no contexto de uma sociedade multicultural como a
brasileira.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Campus. Rio de Janeiro, 1992.

CAETANO, Maria Cristina; OLVEIRA, Maria Auxiliadora Monteiro. Ensino religioso:


sua trajetória na educação brasileira. In: Anais IV CBEH. Goiânia, 2006.
Disponível em: http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe4/individuais-
coautorais/eixo01/Maria%20Cristina%20Caetano%20e%20Maria%20Auxiliadora%20
Monteiro%20Oliveira.pdf. Acesso em 27/03/2013.

DALLARI, Dalmo. Direitos humanos e cidadania. São Paulo: Moderna, 1998.

DINIZ, Débora; LIONÇO, Tatiana; CARRIÃO, Vanessa. Laicidade e Ensino Religioso


no Brasil. Brasília:UNB, 2010, p 11.

DOMINGUES, Gleyds Silva, A Ação do Professor Reflexivo No Ensino Religioso:


Autonomia E Identidade. In: Curitiba, 2012, p.18046. Disponível em<
http://educere.bruc.com.br/CD2011/pdf/6414_3874.pdf> acesso em 28/03/2013

ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 2002.

JUNQUEIRA, Sergio Rogério Azevedo, GILZ, Claudino, RODRIGUES, Edine Maria


Fracaso, PEROBELLI, Rachel de Morais Borgues. Formação de Professores de
Ensino Religioso: Uma Realidade Desafiadora no Brasil. In Paraná, 2006, p. 445.
Disponivelem<http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2006/anaisEvento/docs/
CI-041-TC.pdf> Acesso em: 28/03/2013.

PEQUENO, Marconi. O Fundamento dos Direitos Humanos. In: ZENAIDE, Maria de


Nazaré; GUERRA, Lúcia de Fátima. Educação em Direitos Humanos: Capacitação
de Educadores. João Pessoa, Editora da UFPB, pp 23-28, 2008.

PIOVESAN, Flávia. Ações Afirmativas Da Perspectiva dos Direitos Humanos. In:


Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, jan/abr 2005.

SEVERINO, Antonio Joaquim. Educação, Ideologia e Contra-ideologia. São Paulo:


EPU, 1986.
SILVA, Marinilson Barbosa da, Em Busca do Significado do Ser Professor de
Ensino Religioso. João Pessoa: UFPB, 2010. p. 13.
1

TODO ANO TEM: Devoções, ritos e memórias no festejo de São Bernardo.

Ronilson de Oliveira Sousa1


Keliane da Silva Viana2

1. Introdução

Inscrito num conjunto de pesquisas que têm renovado o interesse de estudo das
devoções e festas religiosas no Brasil (COUTO, 2008), o objetivo central deste trabalho
consiste em analisar os significados, as continuidades e rupturas do festejo do padroeiro
do município de São Bernardo, Estado do Maranhão, como também os acontecimentos,
personagens e lugares que marcaram a memória coletiva por meio da socialização
histórica ocorrida como um fenômeno de projeção ou de um determinado passado que
arrolam na memória lembranças, que podem ser uma lembrança pessoal, mas também
pode ter apoio no tempo cronológico. O material mobilizado como fonte de informação é
constituído fundamentalmente de entrevistas em profundidade realizadas com lideranças
comunitárias, moradores mais antigos, devotos e organizadores da referida festa,
contando ainda com pesquisa documental em livros, artigos, registros fotográficos,
documentos arquivados no Fórum municipal e documentário sobre essa festa religiosa.
Na medida em que a pesquisa avança, diversos outros materiais têm sido levantados de
arquivos pessoais, bem como novas entrevistas vêm sendo realizadas. De maneira geral,
este trabalho se situa em uma agenda de pesquisas sobre as configurações do espaço
religioso na Microrregião Baixo Parnaíba, região que abrange diversos outros municípios
além de São Bernardo3, e que vem sendo desenvolvida no Curso de Ciências
Humanas/Campus São Bernardo/UFMA.
No presente trabalho, parte-se do pressuposto de que a festa é uma produção
humana, submetida a diferentes visões, perspectivas e representações (ALBUQUERQUE
JR., 2007), que podem ocorrer em relação a eventos, lugares e personagens. Além disso,
há também o problema dos vestígios datados na memória, ou seja, aquilo que fica
gravado como data precisa de um acontecimento. Os relatos dos entrevistados sobre o
festejo fornecem, nesse sentido, um aporte fundamental tanto para apreensão das

1
Graduando do quinto semestre do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas na Universidade Federal do
Maranhão
2
Graduanda do quinto semestre do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas na Universidade Federal do
Maranhão
3
Microrregião do Baixo Parnaíba maranhense é uma das microrregiões do estado do maranhão pertencente à
mesorregião Leste Maranhense. Sua população foi estimada em 2006 pelo IBGE em 129.381 habitantes e está
dividida em seis municípios. Possui uma área total de 6.872.865 Km. Municípios: Água Doce do Maranhão,
Araioses, Magalhães de Almeida, Santa Quitéria do Maranhão, Santana do Maranhão, São Bernardo. Etc.
2

interpretações cristalizadas na memória coletiva acerca da festa, quanto para a


compreensão das redes de sociabilidade e do processo contínuo de negociação das
identidades sociais que perpassa a produção desse ritual coletivo. É claro que não
podemos interpretar isso exclusivamente como uma espécie de sobre-construção da
memória coletiva. De fato, embora tenhamos encontrado representações que não são
homogêneas sobre elementos específicos da festa, para os entrevistados, nunca esteve
em questão a importância do evento como algo que faz parte de sua própria existência
social e que desempenha uma importante função coletiva. Em outros termos, a
identificação desses agentes com a cerimônia não apenas atesta a importância do
pertencimento religioso, como também indica um grau de identidade objetiva com todos
os outros agentes envolvidos no cotidiano da assistência à messe. Isso ajuda a entender
a notável receptividade obtida pelos pesquisadores ao longo da pesquisa e o interesse
presente nos relatos dos entrevistados em resgatar a própria “memória do festejo”.

Numa perspectiva mais ampla, este trabalho confirma as constatações de diversas


outras pesquisas quanto à importância que as festas, em suas diferentes acepções, têm
na própria cultura brasileira e o fato de que as mesmas traduzem, em grande medida, as
experiências, as expectativas, as imagens e as formas de representação da vida social de
agentes concretos (ABREU, 1999; AMARAL, 1998; DAMATTA, 1998). Cumpre ressaltar
ainda que pela própria seleção dos entrevistados (em sua maioria, membros de famílias
tradicionais locais envolvidos na organização do festejo), fomos levados a incorporar uma
reflexão sobre a forma como a festa é organizada, sua estrutura, suas hierarquias
(QUEIROZ, 1992), e também os elementos de estruturação da memória. Foi à atenção a
esses aspectos que permitiu conceber o festejo de São Bernardo como um fenômeno
social cuja existência não está separada dos princípios que regem a própria di-visão do
espaço social e simbólico em pauta. Assim, se o festejo evidencia o universo religioso e a
importância das crenças coletivas, também comunica acerca do enquadramento da
memória e das próprias categorias de representação da vida social em São Bernardo e
sobre o imbricamento entre o social, o político e o cultural. Pode-se, nesse caso,
conceber o festejo um pouco além de sua dimensão propriamente cerimonial,
identificando como através do mesmo realiza-se uma complexa mediação entre esferas
sociais (religiosa, familiar, cultural, política, social), entre anseios individuais e coletivos,
entre passado, presente e futuro, entre o sagrado e o profano (AMARAL, 1998).
Ante o exposto, o texto que segue apresenta a seguinte estrutura: primeiro,
realizaremos uma descrição etnográfica da festa com base nas entrevistas e materiais
recolhidos. Em seguida, discutiremos o modo como a festa se organiza do ponto de vista
das funções exercidas por cada um dos organizadores e das modalidades de negociação
que permeiam a construção desse ritual coletivo. Após, discutiremos a questão dos
3

vínculos mantidos com o sagrado e a memória através das lembranças sobre dois
acontecimentos que os entrevistados associam à história do festejo: o roubo do santo e o
assassinato do padre Nestor. Ao término, voltaremos à questão da mediação entre
sagrado e profano.

2. TODO ANO TEM: o tempo do festejo.

O mês de agosto, no Município de São Bernardo, Estado do Maranhão, demarca um


momento distinto na experiência temporal comunitária: algo a que poderíamos chamar
de tempo do festejo. Esse deslocamento temporal consiste na festa religiosa que ocorre
entre os dias 10 e 20 de agosto em comemoração à São Bernardo, padroeiro do
município. A festa é organizada pelos moradores mais antigos, devotos, leigos da
paróquia e autoridades eclesiásticas locais. Sua programação religiosa se estende
durante dez dias (compondo-se, entre outros, de missas, novenários, romarias, leilões,
batizados, casamentos, primeira comunhão, pagamentos de promessas ao Santo, levanto
do Mastro, festas Sociais e procissão), e conta com intensa participação da população da
região. Há toda uma programação voltada para os romeiros, através de grupos de
acolhimento, hospedagens e momentos propícios dedicados à oração e inclusão dos
mesmos na festa. Nesse período, diversos devotos vão agradecer os milagres ao “Santo”
e/ou fazer novas promessas para serem pagas nos anos vindouros.
No tempo do festejo, o fluxo populacional destoa do dia-a-dia da pacata cidade de
São Bernardo. Caminhões, ônibus e carros de passeios trazem os romeiros de várias
localidades da região. Alguns destes realizam o percurso a pé e a cavalo. Como dito, a
ambiência comunitária se torna mais intensa nesse período: além da participação dos
populares em momentos centrais do festejo, é todo o espaço urbano que se dinamiza.
Diuturnamente as ruas ficam movimentadas. Na fala de seus moradores, “As ruas do
centro antigo se enchem de brilho, as casas ganham novas cores”, “barracas com suas
bebidas e jogos são montados nos becos e esquinas”. Botecos e botequins feitos de palha
de buriti preparam o ambiente festivo para receber seus freqüentadores em busca de
conversas e prosas, esquecendo por um instante as dificuldades do dia-a-dia. Camelôs e
vendedores ambulantes circulam pela cidade vendendo objetos e artigos religiosos
dentre eles a imagem do “Padroeiro”, despertando assim, o interesse dos devotos e
romeiros que querem levar uma lembrança do festejo.
O comércio “aquece” com o entra e sai de clientes desejosos de levar a melhor roupa
para usar e destacar-se no meio da multidão. Porém, o uso de “roupas novas” não se
restringe à participação nas procissões; são também importantes para ganho de
visibilidade nos diversos passeios e festas dançantes que são organizadas nos clubes da
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cidade. Esses bailes tradicionais constituem o ambiente de concentração da Elite


bernardense. O “baile dos anos dourados”, por exemplo, que acontece todo ano no dia
18 de agosto, busca resgatar os primeiros bailes que aconteciam nos anos 1980. Neste
baile, as diversas famílias do meio social e político de São Bernardo marcam presença
transformando o momento em um encontro de aproximação e manutenção de vínculos
de sociabilidade. Enquanto isso, a “gente comum” também festeja nos bares e botequins
na orla do rio buriti, que banha São Bernardo, onde os divertimentos também são
regados à bebidas e comidas típicas da festa. Momento de divertimento, de êxtase e
efervescência, a excitação provocada pela festa também comporta alguns conflitos, e
excessos são recordados quando se relembra o “corre-corre” de sujeitos levados pela
policia, em meio a gritos e boatos. È neste ambiente sagrado e profano que se configura
o reencontro de pessoas que se confraternizam em um clima efusivo que se monta nos
arredores da igreja, nas praças e nas ruas da cidade.
De maneira geral, a festa de São Bernardo apresenta um caráter misto, oscilando
entre dois pólos: a cerimônia e a festividade. Nas representações dos entrevistados, essa
divisão é concebida através de uma divisão categorial entre a vertente “religiosa” e a
vertente “social” do festejo. Com base nessa classificação, antes da programação
“propriamente religiosa”, acontece uma festa popular um dia antes do inicio do festejo,
com o “Levantamento do mastro”. Esta manifestação é organizada pelos “caboclos de
São Bernardo” e consiste em um “movimento popular” que acontece no dia 09 de agosto
com a retirada da árvore mais alta da chapada do povoado “Ladeira”, localizado em um
município vizinho à São Bernardo (Santa Quitéria/Ma). Neste dia são montadas barracas
com palhas de palmeira de babaçu atraindo visitantes para passar o dia inteiro comendo
e dançando ao som de uma bandinha. Terminada a festa, os “caboclos” se reúnem nos
arredores da árvore levantando a mesma do chão e dando gritos de “VIVA SÂO
BERNARDO”. O Juiz do mastro dá a voz de comando para a saída em direção à matriz, a
fim de ser fincado na praça da igreja. Na chegada, à meia noite do mesmo dia, na capela
de São Sebastião, na entrada da cidade, é montada outra festa para receber o mastro.
Nesse momento, tambores de crioula, bumbas e quadrilhas fazem a alegria da moçada.
Na tarde do dia seguinte (10), uma grande procissão toma conta da rua principal da
cidade: é o povo carregando nos ombros o mastro com a bandeira contendo a imagem
do santo. A bandinha anima a multidão durante todo o percurso. Os fogueteiros também
se encarregam de anunciar que o mastro está chegando. Outra multidão espera
ansiosamente nos arredores da igreja. Após adentrá-la, o mastro é jogado três vezes
para cima com gritos de “Viva São Bernardo”, demarcando assim a abertura de mais um
ano do festejo. Em seguida o mastro é levado para fora do Santuário. Trata-se de um
dos momentos-chave da festa: o mastro é fincado no chão e começa a brincadeira.
Homens sobem no mastro para agarrar os prêmios que geralmente são “galinhas e
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dinheiro”. Nessa hora, são jogados bolos, biscoitos e pipocas para as pessoas que se
encontram no local onde o mastro é fincado.
Ao longo dos dias de festejo, e especialmente no dia 20 de agosto, nos quais se
concentram os momentos mais cerimoniais (missas, romarias, novenário, procissões),
desde a manhã pode-se ouvir as batidas da bandinha de música, animadas por pessoas
mais idosas (que, segundo os relatos, mantêm viva a tradição do “Padre Nestor, Senhora
Semíramis Coelho Lima (dona Mimi), Dona Nilza Coêlho, Francisco Coutinho de Almeida,
Bernardo Onésimo de Almeida, Adalberto Alves da Costa, dona Magnólia, dona Zina, José
Coutinho de Almeida e tantos outros”), e que demarcam a fusão da sacralização do
espaço festivo. O movimento se intensifica aos arredores do Santuário: a igreja fica
lotada de fiéis e romeiros para assistirem as três missas que acontecem pela manhã na
igreja Matriz. È nesta ocasião que os romeiros, fiéis e devotos pagam suas promessas e
acendem suas velas. No dia 20 também ocorre a esperada “Procissão”. Trata-se de um
dos momentos de maior afloramento da emoção. O objeto simbólico de maior
importância na procissão sai de seu Santuário em um andor ornamentado e conduzido
pelo próprio povo. As cantigas são as tradicionais do festejo: “Ó Santo Glorioso São
Bernardo, Padroeiro Sagrado desta Terra...” Uma multidão irmanada em torno do andor
acompanha todo o trajeto. Pagadores de promessas são vistos com suas túnicas beges
ou roupas brancas; pessoas descalças, crianças vestidas de anjos e pessoas rezando com
velas na mão são mais comuns. Ao longo da procissão, pode-se ver diversas casas
enfeitadas com flores, balões e panos brancos em suas portas e janelas, demarcando a
diluição das fronteiras entre vida pública e particular. Tendo percorrido o trajeto, na
chegada em frente ao seu Santuário, o andor pára por um instante: é o momento de
ouvir as palavras do Bispo, dos Padres e de um dos “Filhos da terra”. Findo o espetáculo
de fogos, a imagem é conduzida novamente ao altar. Nesse momento, diversos fiéis
aproveitam a ocasião para tirar as flores do arranjo para guardarem como lembrança em
suas residências.

3. As representações quanto ao surgimento e à organização do festejo.

A análise dos relatos dos entrevistados quanto ao surgimento e à organização do


festejo de São Bernardo indica a existência de diferentes versões. Para alguns, o festejo
surgiu a partir do processo de colonização dos indígenas na região do Baixo Parnaíba. Os
Jesuítas teriam vindo para esta região aproximadamente no ano de 1700, período em
que teriam fundado uma pequena vila, levantado uma casa e uma capela sobre a
proteção de um Santo chamado “São Bernardo”. Alguns relatos afirmam que a opção
pela devoção ao santo deriva do fato de que esses Jesuítas eram membros da ordem de
Claraval, pertencente ao Mosteiro fundado pelo Monge Bernardo de Claraval, em
6

Portugal. Porem, essa versão também conta com peculiaridades, como aquela na qual os
Jesuítas teriam escondido a imagem de São Bernardo numa “moita” e que, após a
mesma ter sido encontrada pelos índios gamelas da tribo Tupinambá, que habitavam a
região, foi interpretada pelos religiosos como um milagre. Para alguns dos entrevistados,
essa representação se apóia, inclusive, no próprio peso da transmissão memorialística
dos antepassados: “Todas essas histórias dos Jesuítas, vocês podem ter como verdade,
porque quem me contou foi meu pai, ele era autoridade, era de uma cultura fora do
comum, e ele passava tudo pra mim” (M.E.A.L). Tal acontecimento teria demarcado a
origem da devoção e da festa ao padroeiro para alguns. Para outros, no entanto, essa
origem é inverossímil como no seguinte depoimento:

Sabemos que a festa de São Bernardo é bem antiga. A Senhora


poderia nos contar (com suas próprias palavras) um pouco da
história desse festejo? Como surgiu o festejo?
A festa não é por causa dos jesuítas, eu acredito que a festa é
própria da igreja. Sempre houve a festa dos padroeiros. Agente
sempre houve falar nessas histórias, dos jesuítas. Essa imagem é
francesa, eu acredito que nem foram os jesuítas que trouxeram o
santo pra cá. Como é que os índios trouxeram uma imagem
francesa pra cá, ela foi doação parece. Já andei em vários lugares
e não vi nenhuma imagem parecida com esta. Eu ouço lendas de
como São Bernardo veio para cá (C.R.C.L.S.S).

Para outros entrevistados, no entanto, a origem do festejo de São Bernardo esteve


associada à vinda de famílias do Estado do Piauí e do Ceará, que migraram para essa
região, e entre as quais se encontrava um certo “vaqueiro” cujo nome era Bernardo de
Claraval. Teria sido esse indivíduo que, em suas andanças à procura de uma vaca, teria
caído por terra e achado a imagem de São Bernardo no alto de um morro, no mesmo
local onde foi edificada a atual igreja. Tal evento mítico teria como que “sacralizado o
lugar” (Eliade, 1992) e desencadeado a festa em homenagem ao Santo São Bernardo.
Outro relato pouco conhecido reporta a vinda de um lusitano por nome Bernardo de
Carvalho e Aguiar (capitão) que chegou nesta região nos anos de 1708, este era
pacificador de indígenas no estado da Bahia, Pernambuco e Piauí, sendo convocado pelo
governador do Maranhão (Cristóvão da Costa Freire – 1712) para pacificar esta região,
possibilitando a entrada de Padres Jesuítas para o processo de catequização (MELO 1988.
P. 25).
Para o que importa ressaltar aqui, porém, antes de optar por uma ou outra versão,
importa entender que as representações formuladas sobre a origem da festa misturam
elementos que dizem respeito tanto a aspectos históricos (como os processos migratórios
que fazem da região um local de passagem e conexão), quanto a dimensões culturais
que estão associados á própria cultura campesina e sua estrutura social (para outro
contexto, ver: PRADO, 20007). É assim que se pode compreender o sentido da presença
7

dos religiosos, dos gamelas da tribo Tupinambá, do Vaqueiro, do capitão, e a própria


mescla entre o mítico e o religioso que se pode identificar nos elementos que estruturam
as falas. Como temos notado em conversas informais, existem outras versões (além das
aqui mencionadas) que também indicam a polivalência dos significados simbólicos
associados á própria explicação da origem do festejo.
Da mesma forma que a origem do festejo, a própria lógica de organização do mesmo
encontra-se estritamente ligada às histórias, costumes e cultura dos moradores. Ao que
se sabe, a festa começou a ganhar espaço no cenário religioso da região a partir das
iniciativas do “Padre Nestor”. “Pelo que ele me falou, ele chegou aqui ainda novinho com
vinte, vinte dois anos, na realidade, essa região aqui Município de Santa Quitéria-MA,
São Bernardo e Magalhães de Almeida, foi uma catequese feita pelo Padre Nestor”. A
partir de então, começou a fundar nos povoados as capelas, os centros de catequeses
religiosas. “Toda a formação religiosa desses municípios agradeça a esse homem”. Ele foi
o pioneiro na introdução de novos elementos no festejo, como a banda de música, os
leilões para angariar fundos e a construção de uma nova igreja em estilo gótico, a fim de
receber seus fiéis e romeiros. Conforme uma das organizadoras, “do meu conhecimento
vem do tempo do Padre Nestor, na época eu era criança e lembro que ele era um Padre
muito dedicado, ele se empenhava mesmo em realizar a festa, em levar a palavra de
Deus e motivar as pessoas na questão da fé, na presença da igreja, evangelizando os
moradores da cidade” (M.N.C.N).
De maneira geral, os organizadores são sempre pessoas ligadas aos grupos de
orações, pastorais e demais movimentos da paróquia, o que atesta que o festejo é
produzido dentro de uma rede comunitária eclesial dependente de diferentes categorias
de leigos. Embora conte com o auxílio de “Comerciantes, prefeito, devotos, romeiros e
familiares da cidade e dos povoados” (F.C.S), a organização e coordenação do evento é
realizada pelo Conselho Pastoral Paroquial (CPP) que se encarrega da distribuição das
funções com antecedência (geralmente nos meses de junho/julho), dado a repercussão
do festejo a nível regional. São os membros dessa coordenação os responsáveis por
“procurar os patrocinadores, as pessoas que nos apóiam. Os políticos, a polícia e o
pessoal que vem de fora” (M.J.M). Uma das entrevistadas destaca, por exemplo, que
entre os principais apoiadores da festa encontram-se: “polícia militar, secretaria de
cultura, educação, saúde, da prefeitura e dos moradores mesmo, daqueles que são
devotos. “Agente reúne com essas lideranças e cada um contribui dentro do seu
território”. Os comerciantes colaboram com “jóias”, e desses prêmios, jóias, agente faz
bingo, rifas. Eles também participam, tem às noites que eles participam dentro da
programação religiosa” (M.N.C.N). Para essa organização, as comunidades e os grupos
de orações se reúnem e dividem as tarefas a serem cumpridas nos dez dias de festa. São
montados grupos de acolhida e venda de objetos e artigos religiosos, bem como de
8

comidas típicas. Após as missas e o novenário acontecem os leilões com doações da


própria comunidade, cuja renda é destinada para os trabalhos da paróquia. Enfim, trata-
se aqui, sem dúvida, de uma festa que combina tanto uma intensa participação da
comunidade em seu conjunto (preparação, organização), quanto fornece uma
representação da mesma para os indivíduos que vêm de fora.
Aos indivíduos que participam da festa, é visível através da realização do festejo (e
de momentos-chave que o marcam como o “tocar o sino”, o “levantamento da bandeira”,
ou o próprio ato de “discursar para a população”) que o mesmo encontra-se fortemente
vinculado à uma rede de famílias antigas que, há várias gerações, não apenas atuam em
comum para manutenção das tradições locais, como também compartilham um estoque
de lembranças e de ligações afetivas que perpassa a sua própria história familiar, a
história do festejo e o pertencimento religioso. De fato, é por se tratar de um evento que
engloba a própria história religiosa do local e que estabelece mediações com a própria
vivência comunitária que podemos compreender ainda a presença de elementos em
comum nas memórias dos entrevistados, como os eventos traumáticos associados à
morte do padre Nestor de Carvalho Cunha e o episódio do furto da imagem do santo,
sobre os quais trataremos em seguida.

4. A MEMÓRIA DE UM ACONTECIMENTO TRAUMÁTICO: O furto da imagem do


Santo.

Para Clifford Geertz (1989; p. 93), a religião nunca é apenas metafísica: em todos
os povos, as formas, os veículos e os objetos de culto são rodeados por uma aura de
profunda seriedade moral. Nessa perspectiva, qualquer ato ou ação que atinja tais
símbolos religiosos, sobretudo aqueles dramatizados em rituais e celebrações nas quais
detêm uma centralidade, afetam a coletividade como um todo e a dimensão simbólica e
afetiva que perpassa esses símbolos. Tal concepção ajuda a entender o porquê do roubo
da imagem de São Bernardo ser rememorado pelo viés traumático para os fiéis que
testemunharam tal acontecimento. Conforme a narrativa dos entrevistados, a trama se
desenvolve da seguinte maneira:

O “roubo do santo”, bem como de alguns objetos sacros, ocorreu


no dia 09 de março do ano de 1976. Segundo os relatos dos
moradores entrevistados, apareceu na cidade um carro vermelho
que causou estranhamento nos moradores. O cidadão que dirigia o
carro entrou na igreja e sentiu admiração pelo santo. Pelo que se
tornou conhecido posteriormente, o mesmo era vendedor de
imagens e peças sacras. Em um “momento de distração”, à noite,
o sujeito teria entrado na igreja pela janela de trás e levado o
santo. No dia seguinte, a sacristã viu a janela aberta e adentrou ao
templo onde sentiu falta da imagem e correu as pressas para bater
o sino da igreja e avisar os moradores. Em uma cidade fortemente
9

integrada como São Bernardo, o intercâmbio contínuo de notícias


favoreceu uma rápida difusão do ocorrido. Os entrevistados
recordam com certa angústia o desespero gerado nessa ocasião...
Rapidamente, porém, diversas “autoridades” e “filhos da terra”,
tanto os que permaneciam em São Bernardo, quanto aqueles que
moravam fora, mobilizaram contatos de cidade em cidade para
conseguir pistas para saber onde estava o santo. Uma das
entrevistadas relatou ter recebido uma carta de uma amiga que
dizia que a imagem de São Bernardo estava na cidade de Bacabal-
Ma. Tendo informado as autoridades acerca do teor da referida
carta, rapidamente foi destacado um “filho da terra”, que era
coronel da policia militar do Maranhão, para entrar em contato
com a polícia da capital e montar uma estratégia para recuperar a
imagem e os demais objetos. O Coronel foi até a cidade de
Bacabal juntamente com alguns homens da polícia e, sem levantar
suspeitas, encontrou o autor do furto. Tendo ocorrido a
investigação, e constatado que se tratava efetivamente do “santo
roubado”, a polícia foi acionada e os objetos furtados foram
reavidos. Relatos afirmam que o santo não fora enviado para São
Paulo por que, conforme o responsável pelo furto, “toda vez que
passava pelo santo se sentia mal e a noite não conseguia dormir
com uma coisa ruim no pensamento”. Depois de reconhecidos os
objetos pela Sacristã, as peças roubadas e a imagem foram
abrigadas provisoriamente na residência de um dos devotos ”onde
de uma hora para outra a casa ficou pequena para tanta gente,
que em romaria queriam ver a imagem do padroeiro”. O episódio
do retorno do santo resgatado suscitou, assim como o festejo,
uma intensa participação da população, culminando na realização
de uma procissão. Na ocasião, foi celebrada ainda uma missa de
recepção pelo bispo da arquidiocese, seguida de discursos das
autoridades. Pouco tempo depois, a imagem precisou ser
restaurada, a fim de corrigir danos em partes de sua estrutura.
Após a restauração alguns fiéis relatam uma certa insatisfação
com o resultado final (”a imagem teria perdido o brilho do
semblante e o olhar reluzente”).

Para o que importa ressaltar aqui, memória do “roubo da imagem do santo”


evidencia alguns elementos importantes acerca dos vínculos subjetivos com os símbolos
sagrados: em primeiro lugar, indicam que a violação do espaço sagrado (a igreja) e
qualquer ato contra os símbolos sacros que abriga constituem, na realidade, um ataque á
própria coletividade; em segundo lugar, a própria interpretação do evento se articula à
manutenção de uma interpretação religiosa de mundo, uma vez que nas narrativas sobre
o sumiço do santo e o seu retorno são reiteradas como mais uma prova de que ele é
milagroso; por fim, e não menos importante, pode-se notar que a cerimônia de retorno
do santo não diferiu muito da própria realização de um festejo, contando com forte
presença popular e também de autoridades civis e eclesiásticas. A questão é que: tal
qual em uma procissão na qual se desloca o objeto sagrado no espaço, tal evento
também contribuiu para agudizar a própria percepção da importância do objeto, de sua
centralidade simbólica, de suas propriedades e também de suas características míticas.
10

5. O assassinato do Cônego Nestor.

São diversos os pontos de referência e os marcos que estruturam o trabalho


simultaneamente individual e coletivo de (re)construção da memória de eventos,
personagens e lugares (POLLAK, 1992, p. 2). Ao longo das entrevistas que recolhemos,
além do caso do roubo do santo, tratado acima, a maior parte dos indivíduos menciona
outro acontecimento considerado marcante: o assassinato do Cônego Nestor. Embora
num primeiro momento isso pudesse ser concebido como simples resultado do papel
exercido pelo Padre na extensão da festa de São Bernardo, como mencionamos acima,
temos tentado investigar de maneira mais minuciosa quais as outras dimensões desse
mesmo fenômeno. Adentrando os meandros da memória, concebemos que é possível
refletir sobre os procedimentos coletivos de construção de interpretações sobre os
acontecimentos, e como essas representações podem ter o efeito de reforço sobre
sentimentos de pertencimento e coesão de grupos que compõem o espaço social em
questão (POLLAK, 1992; 1989). Tudo indica que é precisamente por esses meios que
determinados acontecimentos, personagens e lugares de memória são agrupados,
permitindo dotar as diversas narrativas recolhidas de pontos em comum e,
simultaneamente, permitindo controvérsias em torno do significado do ocorrido. É, pois,
justamente através da observação do processo complexo de gestão da memória herdada
que se pode apreender as formas de mediação inseparavelmente simbólica, cultural e
política que temos mencionado.
Podemos dizer que o acontecimento do assassinato do padre Nestor pode ser
concebido como um desses fenômenos de construção e enquadramento da memória, no
sentido que lhe dá Michel Pollak (1992. p.4), uma vez que resulta de uma operação de
seleção e (re)organização que engloba dimensões individuais e coletivas. È considerável
que a memória construída em torno do padre Nestor possa ser motivo de valorização e
disputa entre os vários agentes que compõem o meio social em pauta. Mais intrigante
ainda é como essas memórias são associadas e/ou projetadas quando se trata de pensar
a história do festejo de São Bernardo. É verdade que, como dissemos acima, isto se deve
à própria modalidade de relação que o Padre constituiu entre as atividades propriamente
religiosas e as de outros domínios, notadamente o político e o cultural. O que entra aqui
em questão, no entanto, não é o esclarecimento dos motivos do crime ou a elucidação de
suas causas. Mais interessante para o trabalho de análise é perceber não apenas o lugar
que esse evento tem no conjunto de memórias herdadas e gestadas pelas famílias, como
também o incessante trabalho de redefinição, ênfase e esquecimento que perpassa os
diferentes discursos e opiniões sobre o ocorrido. Um estrato retirado do processo
arquivado no Fórum municipal da cidade permite introduzir aspectos do evento:
11

As 13 hrs do dia 23 de agosto de 1970, um domingo logo após a


festa do padroeiro São Bernardo, todos repousavam em um
silencio rotineiro da pacata cidade. Notas vibrantes quebram-se
esse silencio, era a amplificadora Claraval, voz da paróquia de São
Bernardo que anunciava ao povo que Cônego Nestor iria falar.
Prestou conta do resultado financeiro e pediu perdão ao povo por
ter cooperado indiretamente com o roubo do cofre da igreja,
porque o cansaço e a falta de saúde o impossibilitariam de fazer a
retirada do dinheiro logo após a procissão (o cofre fora roubado de
20 para 21 de agosto). Em seguida, elogiou e agradeceu á
assiduidade dos trabalhos da senhora Mimi Coêlho Lima, fez a
leitura de todo o movimento, inclusive das devidas despesas,
dando logo o resultado liquido. Fez elogios a policia pela argilância
dedicada ao movimento externo da festa, evitando brigas, mortes
e outros. Logo após este comentário, Cônego Nestor pôs para
tocar uma valsa muito sentimental, valsa de sua predileção.
Enquanto isso, mesmo á distancia ouviu-se alguém bater á porta e
em seguida á resposta: Já vou! Cada lance do crime se deu ao
vivo pelo serviço do auto falante seguido de um disparo de arma
de fogo que reboou nas quebradas dos morros adjacentes,
deixando em pânico toda a população de menos de 5 mil
habitantes. Cônego então conseguiu sair rápido pela única porta
aberta, correu para a praça que ficava entre a igreja e o prédio
bazar, o cabo logo o perseguiu, correndo atrás dele, dedilhando-se
sempre o gatilho no revolver, sem jamais conseguir dele outro
tiro. Em seguida chegaram muitas pessoas, que subjugaram o
Cabo e lhe tomaram a arma. Um Sr. aposentado de sua patente de
capitão da guarda nacional, deu ordem de prisão ao cabo. O Cabo
foi conduzido para a cadeia por três pessoas, depois de prezo na
sela, a chave foi entregue ao juiz de direito da Comarca, por que o
delegado não estava na cidade. O Padre foi ainda caminhando para
a casa de uma família tradicional que residia próxima a igreja. A
casa ficou cheinha de gente, gente chorando, gente gritando,
gente praguejando, gente se valendo de São Bernardo. Após um
tempo ele foi levado para Luzilândia, cidade do Estado do Piauí,
rumo à Teresina-PI. Depois de cinco dias, Cônego Nestor não
suportou os ferimentos e foi a óbito.

Para a construção acerca do imaginário fundamentado em uma análise é


imperioso destacar que o assassinato do padre Nestor carrega em si uma amálgama
complexidade de situações interligadas em suposições e opiniões diversificadas. Na
verdade, ao reinterpretar este acontecimento inevitavelmente nos direcionamos à
multiplicidade de memórias fragmentadas e internamente divididas e culturalmente
mediadas, (PORTELLI, 1998: 127) que envolvem a população, os representantes públicos
e fiéis da igreja, que carregam dentro de si dramaticidade do acontecimento pela emoção
e dor do testemunho. Analisando as interpretações dos depoentes contidas no processo
instaurado para investigar as causas do assassinato do vigário, quatro testemunhas
ouvidas disseram que “entre a vitima e o réu não havia qualquer desentendimento, ou
conflitos que causassem tamanha consequência”. Porém, as mesmas testemunhas
confirmam que, logo após o ocorrido, o cabo proferiu palavras de baixo escalão
condizente com o desejo de proferir mais tiros, porém a arma teria falhado. Esta mesma
12

versão recai sobre o acusado a respeito do qual se dizia que “há uma semana praticava
nas carnaubeiras a pontaria da arma e que na hora em que mais precisa lhe havia
falhado”. Todas essas palavras teriam sido ditas logo após o ataque a vitima. No entanto,
essas versões não se reproduzem da mesma forma nas demais representações e relatos
de outros contemporâneos. Um dos suportes das demais explicações sãs as cartas que
foram enviadas pelo réu, após sua prisão, para duas supostas namoradas que o mesmo
teria. Sem adentrar em meandros que não nos interessam diretamente, ao que parece o
padre teria intervido anteriormente nessa dinâmica relacional, o que teria acionado a
cadeia de causalidades. O que fica evidenciado, em todo caso, é que na memória dos
entrevistados as explicações para o crime estão divididas: para alguns a memória das
testemunhas, de fato, nunca teria coincidido com o discurso e versões apontadas mais
tarde pelo próprio réu. Para outros, a narrativa oficial se confunde pelo próprio fato de
não explicar ou esclarecer a história. Uma outra hipótese explicativa desdobra-se pelo
estabelecimento de conexões entre dimensões da personalidade do padre (atributos
como “forte”, “veemente” são mencionados), suas tomadas de posição sobre diversas
questões (sociais, políticas, religiosas) e os riscos disso em um período crítico, como
aquele que caracterizou as décadas de 1960/1970.
Tudo isso que permite, enfim, atribuir uma aura enigmática ao acontecimento, a
reiteração narrativa do personagem nos relatos e a associação desses aspectos à
memória do festejo que é transformada, a um só golpe, em memória do lugar, de um
grupo, da matriz, da paróquia, da comunidade, etc. Assim, se por um lado essas
narrativas fazem parte do processo histórico-social de definição e gestão da memória,
por outro elas se encarregam de oficializar intencionalmente uma narrativa mítica na
qual se sobressai a própria importância do sujeito vitimado que representaria a própria
comunidade em todos os seus aspectos, sociais, culturais e políticos. Tal qual a imagem
do santo, o padre Nestor incorporaria toda a comunidade. Ademais, cabe ressaltar,
finalmente, que essas representações não deixam de ser o produto de agentes que eram
próximos ao pároco, que mantiveram relações mais ou menos diretas com o sacerdote e
que, atualmente na organização do festejo, estimam dar continuidade ao legado e
exemplo do estimado cônego Nestor.

6. O FESTEJO DE SÃO BERNARDO COMO MEDIAÇÃO.

Como nas demais festas religiosas cristãs que acontecem no Brasil a relação entre
o Sagrado e o Profano se estabelece em uma dinâmica indissociável. As manifestações
sagradas revelam-se nos ritos e cerimoniais que tentam transcender a fé do homem,
criando as dimensões entre o homem e o divino. Através das representações sagradas o
13

homem busca consolidar uma intimidade com aquilo que ultrapassa o humano. Ao
mesmo tempo nessa intima relação que o homem estabelece com o sagrado através de
ritos e ações de festejar divindades, o ambiente é transpassado pelo sagrado e pelo
profano. A religiosidade enraizada na cultura brasileira fez criar e recrear as
representações festivas em homenagens aos Santos. O modelo do cristianismo
encaminhado no processo de colonização fez florescer um ambiente embebido pelo
Sagrado e pelo Profano. A comunicação mística por meio de cerimônias sacras e outros
rituais buscam ultrapassar as barreiras do profano que se cristaliza tanto no individual
quanto no coletivo. Segundo Mircea Elíade (1992 p. 17) a relação entre o que é Sagrado
e o que se manifesta como contrário é o fato de que este se mostra como algo
completamente diferente. Dessa forma, o Sagrado e o Profano coexistem de diferentes
posições que são tomadas pelos indivíduos no ato festivo.
Um marco que mantêm viva as tradições festivas populares no município de São
Bernardo, identifica-se com aspectos culturais e costumes de manutenção da
religiosidade por meio do festejo de São Bernardo. Esta festa religiosa atrai milhares de
romeiros e devotos que alimentam a tradição e mantêm viva a ritualização e a fé
ocasionando transformações espaciais e culturais. São momentos de grandes vivencias
para os moradores da região que contemplam momentos da representação do sagrado
(missas, novenário, pagamentos de promessas e procissão) e do profano (festas
dançantes, leilões e outros) que acontece de maneira simultânea e não separados um do
outro.

REFERÊNCIAS:
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A história em jogo: a atuação de Michel Foucault
no campo da historiografia. In: História a Arte de inventar o passado. Bauru, EDUSC,
2007.

AMARAL, Rita de Cássia de Mello Peixoto. Festa à brasileira. Significados do festejar, no


país que “não é sério”. Tese de doutorado apresentada ao departamento de Antropologia
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP), 1998, 387p.

BARROS, A. Evaldo A. USOS E ABUSOS DO ENCONTRO FESTIVO: Identidades,


Diferenças e Desigualdades no Maranhão dos Bumbas (1900-50). Outros Tempos , v.
6, p. 1-23, 2009.

COUTO, Edilece S. Devoções, festas e ritos: algumas considerações. Revista Brasileira


de História das Religiões , v. 1, p. 1-10, 2008

DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis – Para uma sociologia do dilema


brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.
14

DUVIGNAUD, Jean. Festas e Civilizações. Ed. Universidade Federal do Ceará. Rio de


Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.

GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

HALBWACHS. M. A MEMÓRIA COLETIVA. Tradução. Trad.de Beatriz Sidou. São Paulo:


Centauro,2006.

MELO. Claudio. Bernardo de Carvalho. Teresina, EDUFPI, 1988

PRADO, Regina Paula dos Santos. Todo Ano Tem. As Festas na Estrutura Social
Camponesa. São Luís: PPGCS/GERUR/EDUFMA, 2007. 200 p.

PORTELLI, Alessandro. Ensaios de história oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010. 258p.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro:


CPDOC, nº. 10, 1992.

_______. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2,


n. 3, 1989, p. 3-15.

QUEIROZ, Maria Isaura P. Carnaval Brasileiro – o Vivido e o mito. São Paulo,


Brasiliense, 1992.
1

A FESTA À CRUZ DA BAIXA RASA E SUAS DIMENSÕES


RELIGIOSAS

Ana Cristina de Sales – (cristina_hi_storia@hotmail.com)


Discente de Mestrado pelo Programa de Pós-graduação em História, Cultura e
Sociedade - PPGH da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG.

Reinhart Koselleck (2006, p. 305) aponta que quando o historiador mergulha no


passado ultrapassa suas próprias vivências e recordações, sendo conduzido por
perguntas, desejos, esperanças e inquietudes.
É a partir dos vestígios que foram conservados, sejam eles, armazenados em
arquivos, laboratórios, departamentos ou nas trilhas da memória, que os historiadores
formulam hipóteses e reconstroem os fatos. Nesse sentido,

o escrever história é o fenômeno, o ato, o momento, o espaço e o tempo


privilegiado de reflexão sobre as ações dos seres humanos e as dinâmicas
sociais que compõem e compuseram a vida de um povo na longa, contínua,
dolorosa e alegre estruturação de uma determinada sociedade. Num processo
de exercício de seleção e resgate de fatos guardados, vividos e construídos ou
apagados pela memória individual e coletiva, ancorando-se numa necessária
inter ou transdiciplinaridade, recorre-se à pesquisa documental, à história
oral, à bibliografia memorialista ou analítica dos fatos a serem apresentados,
agora com o selo legitimador do saber acadêmico, fazendo-se,
cientificamente, a História social e cultural de um povo (BARROS, 2012, p.
11).

Surgida na Grécia pelos Fenícios, a escrita da História ao longo dos tempos


passou por uma série de transformações. De início a escrita foi usada para fazer
inscrições sobre os monumentos ou comemorar um acontecimento (HARTOG, 1999, p.
287), usada também, como um meio de comunicação, através da escrita de cartas.
Com o passar das eras, surgiram várias correntes de pensamento e/ou teóricas
para explicar os acontecimentos históricos. Com as transformações vivenciadas na
sociedade determinadas explicações hoje em dia não respondem mais a determinadas
perguntas, a cada dia novos paradigmas são quebrados.
No decorrer do século XX a historiografia deu início a um diálogo com outras
ciências, a exemplo, a sociologia e a antropologia. Através deste diálogo com as
Ciências Sociais o campo da história multiplicou-se com novas temáticas e novas
formas de ver e usar as fontes. Com o advento da História Cultural em meados de 1970
padrões antes consagrados pelos historiadores, foram repensados. Por muito tempo os
2

historiadores se preocuparam com os aspectos políticos, sociais e econômicos, deixando


o cultural de lado, como fosse algo menor.
Com o advento da Nova História o modo de pensar está atrelado a novos
objetos, estes dizem respeito às atitudes dos seres humanos sejam elas diante da vida ou
da morte, do comportamento, das sensibilidades, do sentimento, da memória, das
formas de sociabilidades, etc. Neste sentido, “a história cultural, tal como a
entendermos, tem por principal artefato identificar o modo como em diferentes lugares e
momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”
(CHARTIER, 1990, p. 16).
É nesse sentido, que o texto discute sobre as dimensões religiosas referentes à
festa ao culto à Cruz da Baixa Rasa que se dá na zona rural do Crato-CE. Essa tradição
tem na sua origem a morte de um homem que se perdeu e morreu de sede e fome, no
final do século XIX, na Floresta Nacional do Araripe (FLONA). Tal acontecimento foi
responsável por despertar na população do cariri cearense múltiplas sensibilidades que
deram origem a crença de que o morto passara a realizar milagres a partir de 1914.
Desde então os devotos passaram a cultuar o monumento erigido no local e a
realizar homenagens póstumas todo dia 25 de janeiro, alimentando um ciclo de romarias
na localidade. Na ocasião os visitantes levam bebidas e comidas típicas para festejarem
o pagamento de promessas.
Para Mary Del Priore (2000, p. 09) o tempo da festa é o tempo da fantasia e
liberdades, de ações burlescas e vivazes, o território da festa é lúdico, onde se exprimem
as frustações, revanches e reivindicações dos variados grupos.
Discorrer sobre a romaria da Cruz da Baixa Rasa é pensar nas suas diversas
particularidades. Por exemplo, a forma como é organizado o evento, como as pessoas
vão vestidas, o transporte que usam, a dimensão festiva, etc. Ou seja, é buscar suas
formas de sociabilidades, atravessando tanto o individual como o coletivo.
Assim, as romarias oferecem-se como um campo rico em possibilidades de
investigação. Seu potencial de estabelecer identidades culturais, a imbricação com o
fenômeno das viagens, as possibilidades de continuidades e mudanças que surgem a
partir de tensões e contradições na concepção do fenômeno, as persistências culturais
com o revisitar das tradições e as inúmeras apropriações feitas ao longo dos anos
(CORDEIRO, 2010, p. 29).
Logo, Romaria é uma atividade de cunho religioso, uma peregrinação ligada à
relação entre os devotos e seu santo de devoção. É caracterizada por viagens individuais
3

ou em grupos a lugares considerados sagrados, a romaria tem na sua finalidade cumprir


uma promessa, agradecer a seu intercessor ou pedir por clemência.
Consoante Câmara Cascudo (1972) à tradição da romaria foi trazida ao Brasil
pelos portugueses, pois, não consta que os indígenas pertencesse a algum grupo
religioso. As primeiras romarias acontecidas no Brasil datam do final da primeira
metade do século XVIII, e só no final do século XIX começaram as grandes romarias,
estas por sua vez tinham o incentivo da Igreja Católica que as anunciavam pelos meios
de comunicação, a exemplo, as rádios religiosas.
Ainda seguindo o raciocínio de Cascudo a romaria é constituída de uma viagem
ou peregrinação a um espaço religioso ou de devoção. Já o romeiro é a pessoa que vai a
romaria para cumprimento de promessa.

O romeiro, durante o deslocamento, procura a realização de desejos diversos,


nada concretos e quantificáveis (bênçãos, curas), diferenciando-se, assim, do
caminhar cotidiano que é estruturado na funcionalidade, racionalidade e
operacionalidade, ou seja, há um ponto de chegada determinado e seguro que
promove uma condição de monotonia do sujeito em relação ao meio
ambiente, como o trabalho e o estudo (MARTINS, 2005, p. 11).

A romaria é identificada como um lugar de sobrevivência, onde as pessoas são


acolhidas e organizadas de maneira comunitária, identificando-se com suas demandas
de direito à vida. É na romaria que os grupos se encontram, compartilham objetos de
cunho material, fazem suas orações e pedidos para seus santos intercessores (idem, pp.
8-9).
Essas relações (re)elaboram um mapa sociocultural que por sua vez definem
campos de significação e demarcação de identidade. Concordamos com Roger Chartier
(2002, p. 75) quando pensa a construção das identidades sociais como resultado sempre
de uma relação de força entre as representações impostas por aqueles que têm o poder
de classificar e de nomear.
Sandra Jatahy Pesavento retrata que “a identidade é uma construção simbólica
de sentido, que organiza um sistema compreensivo a partir da ideia de pertencimento”
(PENSAVENTO, 2008, p. 89). Ou seja, a marcação da compreensão da identidade na
romaria, está permeada no estudo das diversas práticas das representações que
dispuseram e organizaram a sua realidade social.
Para os romeiros que vão pagar suas promessas, seus intercessores são Santos,
no entanto, na Instituição Católica para ser autorizado culto a um Santo, este deve ser
beatificado e depois canonizado. Sendo o primeiro termo o meio em que o Papa autoriza
4

a veneração pública da pessoa na Igreja local em que frequentava. Já a canonização é


quando o Papa declara que o indivíduo a ser canonizado praticou virtudes heroicas e,
viveu com fidelidade na graça de Deus, podendo ser exaltado em qualquer lugar.
No entanto, na religiosidade católica são encontrados cultos aos santos oficiais e
não oficiais. Os nãos oficiais, são aqueles que não são legitimados pela Igreja, temos
como exemplos os conhecidos, Padre Cícero do Juazeiro e Frei Damião, que são
validados como santos pela fé das pessoas, que as consideram seus sucessores junto a
Deus.
A veneração e o culto aos santos, anjos, pedras e cruzes no Brasil são
preservados em vários lugares, temos a peregrinação a Basílica de Nossa Senhora
Aparecida, em São Paulo, Senhor do Bonfim na Bahia, Santa Cruz dos Milagres no
Piauí, Padre Cícero em Juazeiro do Norte, São Francisco em Canindé, etc.
Pensando numa conjuntura local (Cariri cearense), além dos romeiros que vão a
Juazeiro do Norte, para pagar promessas ao Padre Cícero, têm as romarias à Cruz da
Rufina em Porteiras1, e a romaria à Cruz da Baixa Rasa, na zona rural do Munícipio do
Crato.
Nesse sentido, para pensar o quanto há de representatividade em um vento social
de cunho religioso é, necessário envolver o conjunto como o todo, analisar as práticas
de sociabilidades, os sentido e sensibilidades que a abrangem, permeado na
“subjetividade dos autores sociais, que por sua vez reelaboram, em sua vivência social,
a tessitura de uma gama de percepções e intepretações sobre o mundo” (SANTOS,
2011, p. 69). Ou seja, para pensar nas representatividades e identidades do culto
religioso do culto à Cruz da Baixa Rasa é importante abarcar o campo das sensibilidades
e sociabilidades dos sujeitos, que através de suas práticas identitárias moldam as visões
de mundo por eles construídas.
A romaria à Cruz da Baixa Rasa, celebrada todo dia 25 de janeiro trás em sua
conjuntura uma série de ressignificações re(inventadas) pelos agentes envolvidos. O
evento é organizado em dois momentos, o primeiro, organizado por uma família que há
cem anos tem a tradição de cultuar o espaço da cruz, e o segundo momento organizado
pelos vaqueiros da região, que de acordo com eles o homem que padeceu na Baixa Rasa
era um vaqueiro, figura mística do sertão, homem bravo e forte.

1
Ver: SANTOS, Cícero Joaquim dos. No entremeio dos mundos: Tessituras da morte da Rufina na
tradição oral. Fortaleza: UECE, 2009. (Dissertação de Mestrado em História).
5

Cacá Araújo em uma nota para o blog do Cariri conta que (BLOG DO CARIRI,
2011) vinha um vaqueiro de Pernambuco para a Floresta do Araripe. Ao chegar à Baixa
Rasa parou para descansar, este já estava exausto, fraco e faminto, e ficou por ali a
espera de alguém para lhe ajudar, aguentou ainda alguns dias com sua valentia de
sertanejo. O homem mesmo sem forças e com a vista turva, viu uns comboieiros
passando, gritou mais sua voz não foi ouvida. Um dos comboieiros lembra e comenta
com o colega que viu um homem caído a beira da estrada e voltam para ajudá-lo. Mas,
quando chegaram já era tarde, e o indivíduo tinha morrido,
o homem teve uma morte silente, testemunhada pelos pássaros e pelas plantas
que pareciam chorar diante daquele quadro de desventura. Encontram-no
sobre folhas secas, a cabeça escorada numa raiz de árvore, os olhos abertos
ainda reclamando um sopro de misericórdia. Fecharam-lhe os olhos.
Libertaram sua alma. Seu corpo foi enterrado ali mesmo, no encantado teatro
da agonia. Com varas da mata fizeram a cruz que cravaram em sua cova
(ARAÚJO, 2011).

Não se sabe se o indivíduo era vaqueiro ou não, e não cabe a nós tomarmos um
partido. Concordamos com a assertiva de Alessandro Portelli (2006, p. 106) que a
“tarefa do especialista, após recebido o impacto, é se afastar, respirar fundo, e pensar,
com o devido respeito nas pessoas envolvidas, nossa tarefa é interpretar criticamente
todos os documentos e narrativas...”.
De acordo com a família Firmino, hoje residente na Cidade do Crato, a
peregrinação à Cruz da Baixa Rasa se deu quando uma senhora conhecida por Pretinha,
moradora do Sítio Luanda – Barbalha/CE em 1914 fez uma promessa que, se a peste
(doença que assolava a região naquele momento) não atacasse sua família, faria uma
peregrinação ao espaço da Cruz todo dia 25 de janeiro. Daí, a sitiante obteve a graça e
até hoje seus descendentes celebram o monumento, já estando na quarta geração.
A celebração era organizada com um caráter bem simples, as pessoas iam bem
cedo à Cruz, rezavam o terço e voltavam para suas casas. Como relata Elvira Gadelha,

antigamente era nós que celebrava o terço, ia de pé, tudo caminhando,


ninguém ia de carro, ia tudo andando pelo caminho, uma vez nós ia dez hora
do dia, não, onze horas, ai uma e meia quando nós já ia no Lameiro bateu um
toró, a sorte que eu levava uma roupa num saco de plástico, dado um nó
dentro de uma bolsa tiracolo, eu e umas colegas minhas, ai eu disse vamos
subir quando chegar lá na Serra a chuva tem parado, umas queriam voltar
outras não, mais nós subimos a serra, uma chuvona, quando nós fomos
chegando em cima da serra, na casa do guarda que tem lá do Ibama a chuva
parou ai nós fomos trocar a roupa que tava toda molhada, ai fomos entrar na
varedinha, ai fomos pagar a promessa (Entrevista em abril de 2011).

Com o passar dos anos, as pessoas foram tendo informações sobre o evento, e a
6

festa foi se ressignificando. Com a nova roupagem dada pelos vaqueiros, as pessoas
começam a se reunirem para a festa ainda de madrugada, por volta de cinco horas da
manhã, todos se reúnem em um bar, conhecido por todos como o bar do Wilson do
Lameiro, os vaqueiros vão chegando, todos vestidos com seus chapéus, botas e gibões
de couro. Músicas e aboios alegram a manhã destes que querem festejar. Os
organizadores da festa distribuem pães e caldo aos devotos e visitantes.
Parte dos vaqueiros começa a consumir bebidas alcoólicas antes mesmo de subir
a serra, é uma verdadeira festa, som ligado, as pessoas dançando músicas apaixonadas,
mostrando que o vaqueiro é um homem forte, guerreiro, se rendendo apenas quando
está apaixonado por uma mulher.
De acordo com a historiografia brasileira o termo vaqueiro é em geral
especializado no manejo do gado vacum. No Brasil o espaço para o surgimento do
vaqueiro ocorreu com a instalação das fazendas de gado no interior do Nordeste, no
século XVII. Entretanto, foi no longínquo sertão que essa figura adquiriu importância
social. Esta se efetivou graças à concentração da propriedade fundiária e do absenteísmo
próprios da economia local desde o período colonial (BRANDÃO, 2008, p. 127).
No interior do Nordeste nos meandros do século XVII, as fazendas
compreendiam ao mesmo tempo unidade de produção e espaço de residências dos
habitantes, as fazendas eram administradas por vaqueiros que, eram pessoas
juridicamente livres e trabalhavam sob a forma de parceria.
Nesta configuração de parceria o vaqueiro podia “sonhar” em elevar-se
socialmente, podendo comprar através de seus ganhos, uma porção de escravos e vir a
possuir um curral de gados, mas, na prática isso não acontecia. Neste período o
“vaqueiro tinha como função distribuir entre os moradores da fazenda as terras para a
agricultura de subsistência, também cabia a ele definição do local de residência dos
mesmos” (idem, p. 127). Ou seja, o vaqueiro conduzia o patrimônio do senhor sendo
responsabilizado pela manutenção e ordem da fazenda.
No campo o vaqueiro montado em seu cavalo era dono de seu tempo livre,
podendo se dirigir a lugares diferentes. “A ideia construída de vaqueiro é difusora da
liberdade de locomoção e possibilidades de “elevação social”. O vaqueiro é neste caso,
a personificação da liberdade que se admite grassar no sertão” (idem, 2008, p. 128).
Percebe-se na historiografia que aos poucos foi se construindo uma identidade
para o homem “bravo” do sertão, pelos seus traços marcantes. E, é nesse
direcionamento que a romaria da Baixa Rasa se torna diferentes de tantas outras.
7

Destacamos como a principal diferenciação a forma de vestirem-se; alguns dos devotos vão
com trajes de vaqueiros (calça jeans, botas, chapéu, pára-peito ou peitoral, perneiras, e
gibão de couros). Percebe-se neste sentido que, “a identidade é uma construção imaginária
que produz a coesão, permitindo a identificação da parte com um todo”
(PENSAVENTO, 2008, p. 90).
Para Joaquim de Sousa Teixeira (2011, p. 15) à identificação é o elemento
formal da festa, (as representações e crenças) os imperativos ou o porquê do rito, o para
quê, ou porquê da celebração, o objeto intencional da festa tem a primazia sobre o seu
elemento material (os ingredientes da festividade). Ou seja, a forma como as pessoas
vão à celebração ajudam nos processos de identificação.
Seguindo as prerrogativas de Kathryn Woodward (2005, p. 10-11) a identidade é
marcada por meios simbólicos e pela construção social. E, estes meios simbólicos são
assinalados pela diferença, ou seja, podemos associar uma pessoa pelo que ela usa, pelo
lugar que ela frequenta. Logo, constata-se que, a construção da identidade é tanto
simbólica quanto social.
Kathryn Woodward (idem, p. 12) pontua duas definições para identidade. A
primeira, uma definição essencialista é aquela onde todos partilham e que não se altera
ao longo do tempo. Já a segunda definição a não-essencialista está centrada na
diferença, ou seja, as pessoas mudam de acordo com o tempo.
Partindo por este viés, a romaria da Baixa Rasa está localizada nesta segunda
definição, onde a romaria em si se relaciona com a organização social, e, por sua vez,
seu tempo não é cíclico, “a função hermenêutica de inovação e tradição é, pois essencial
na questão da identidade” (TEIXEIRA, 2011, p. 22).
Outro fator que torna a romaria da Baixa Rasa diferente de tantas outras é a
cavalgada, a cavalgada deve ser entendida não apenas por que os devotos são vaqueiros,
mas também, uma forma de locomoção, visto que, a Floresta Nacional do Araripe é
situada a 20 km do Crato, um percurso considerado distante para as pessoas que vão a
pé. Pois, poucos são os carros que pode adentrar a floresta.
Neste caso, ir a cavalo também, é uma estratégia para chegar até o espaço
religioso, pois, nem todos que vão montados em cavalos são realmente vaqueiros, ou
tem a crença que ali se realiza milagres, há que ressaltar que muitos, em conversas ou
entrevistas, vão para o evento depois de conhecer através do intermédio de alguém a
história, e querem conferir o fato. Buscam também uma forma de divertimento.
8

Em uma reportagem, a Revista Região (1972, p. 02), destaca que o espaço é


favorável para encontros e namoricos devido às árvores frondosas e a baixa
temperatura, onde “os casais de namorados, sob as árvores, fazem juras de amor, em
plena serra ao passar da brisa doce que corre livre... em um canto qualquer, um conjunto
de sanfona, pandeiro e cavaquinho para alegrar a festa” dos enamorados.
Através dessa prerrogativa destaca-se outro traço marcante do evento, o Espaço,
este é cheio de árvores, a temperatura baixa do alto da serra, vizinho a inúmeras fontes.
Michel de Certeau (1998, p. 202) aborda que “o espaço é o efeito produzido pelas
operações que o orientam, o circunstanciam o temporalizam e o levam a funcionar em
unidades polivalentes de programas conflituais ou proximidades contratuais”.
Ou seja, o espaço é um lugar praticado, se existe a Baixa Rasa é por que ela foi
moldada ou transformada pelas pessoas que visitam à Cruz, através de um sistema de
signos por eles escritos.

Uma clareira aberta no coração da mata virgem. Ventos soprando a


ancestralidade de um povo religioso, que ainda tem o privilégio de conviver
com a natureza divina, mãe de todas as crenças e mitos e desejos e
esperanças. Um oráculo nordestino onde os filhos da terra procuram
respostas que lhes livrem da ação implacável da esfinge que a todo tempo
lhes apavora com a possibilidade de condenação ao inferno. Aqui e
“adepois”. A Santa Cruz da Baixa Rasa é magia matuta. É a busca incansável
da felicidade. É o céu que se insinua aos impuros que buscam a clemência de
Deus (ARAÚJO, 2011).

Além destas características próprias do evento, há também as escolhas das


rainhas do Vaqueiro e da Baixada. Como mostra Elisângela Santos, no Diário Regional
(2010).
É impressionante como a cada ano cresce esse acontecimento. “As pessoas
vêm com a maior alegria", diz ele. Alguns dias antes, há a festa para a
escolha da Rainha da Baixada e a Rainha do Vaqueiro. O acontecimento é
preparatório. As escolhidas saem na frente, numa charrete. Em seguida, os
vaqueiros, todos caracterizados à frente do cortejo, com as imagens de Nossa
Senhora Aparecida na mão e a de São Jorge.

Por volta de nove ou dez horas da manhã, além dos vaqueiros, sobem a serra,
devotos e grupos de cultura popular. O percurso é realizado a cavalo, a pé ou de carro.
O local da romaria encontra-se inserido na área que recobre a Floresta Nacional do
Araripe (FLONA). Este órgão visando a uma melhor organização da festa proibiu o uso
de bebidas alcoólicas naquela proximidade, desde o ano de 2005.
9

Entretanto, os visitantes da romaria burlam as regras, usando suas táticas de


levarem bebidas escondidas dentro de suas roupas, ou mesmo indo deixar na mata no
dia anterior à festa.
Grupos de cultura popular se apresentam na ocasião, a exemplo: banda cabaçal,
maneiro pau, coco, reisado e lapinha. Algumas pessoas como forma de obtenção de
graças levam comida para que possa ser distribuída, uma forma dos visitantes não
sentirem fome, que foi um dos motivos da morte do homem.
O que era uma simples peregrinação deu lugar a uma romaria de caráter festivo.
Não tratamos aqui a dimensão sagrado e profano, por que não sabemos até que ponto
sagrado e profano estão juntos ou separados.
É sabido que as memórias estão em disputas, e o passado é usado e apropriado
de diversas formas. Assim, as percepções sobre a romaria serão de acordo com as
estratégias de quem as produz. Para Chartier,

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à


universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas
pelos interesses do grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário
relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza
(CHARTIER, 1995, pp. 179-192).

Estas memórias divergentes será o que Portelli chamará de memória dividida e,


esta ocorre por gerações “e o que é mais dramático, até mesmo as individuais dividem-
se internamente entre o desejo de silenciar e esquecer e a necessidade de se expressar...”
(PORTELLI, 2000, pp. 103-130).
Pontuando Certeau, as operações dos espaços exercem um papel cotidiano,
como uma instância de demarcação, e as “operações de demarcações são compostas de
fragmentos tirados de histórias anteriores e bricolados num todo único” (CERTEAU,
1998, p. 208). Neste sentido, para Certeau são esclarecidos a formação dos mitos e
articulação dos espaços.
Para a organização ou articulação dos espaços, os relatos tem um papel decisivo,
é através desses relatos que os devotos demarcam sua opinião de como preferem a
romaria. Cada grupo prefere ou se identifica com a sua forma.
Kathryn Woodward (2005) aponta que o conceito de identidade é pertinente para
que o sujeito se insira em uma determinada cultura, tal cultura molda a identidade ao dar
sentido à experiência e ao tornar as várias identidades possíveis, por um modo
específico de subjetividade. Quando uma pessoa assume sua identidade é porque a uma
10

identificação, seja pela ausência de uma consciência da diferença ou da separação, seja


como resultado de supostas similaridades.
Tomaz Tadeu (2005, p. 75-76) enfatiza que identidade é aquilo que se é, ou seja,
sou brasileiro, sou homossexual, sou mulher, a identidade parece ser um fato autônomo
e neste viés só tem como referência a si própria. Neste mesmo intento a diferença é
concebida como uma entidade independente. De acordo com Tadeu a identidade e a
diferença estão em uma relação de estreita dependência.
Quando afirmamos que preferimos a forma da organização da peregrinação
antes, é uma forma de negar a atual organização, isso por que nós nos identificamos
com a primeira.
Para Stuart Hall (2005, p. 108) as origens das identidades residem em um
passado histórico com o qual elas continuariam a manter certa correspondência.
Segundo Hall, isso tem a haver com a questão da utilização dos recursos da história, da
linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo que
nos tornamos. As identidades são as posições que o sujeito é obrigado a assumir por
meio das representações.
As representações de identidade são características e valores sociabilizados entre
os diferentes sujeitos, e cabe a nós perceber que tais representações não acontecem de
forma isolada. Portelli (2000) enfatiza que as “representações se utilizam de fatos e
alegam que são fatos, os fatos são reconhecidos e organizados de acordo com as
representações”. Tanto os fatos como as representações convergem na subjetividade dos
seres humanos e são envoltos em sua linguagem.
Com relação aos fatos que originaram a crença à Cruz da Baixa Rasa são
múltiplas as narrativas que relatam o acontecimento. Como também são múltiplos os
relatos de pedidos e de graças obtidas. Como narra D. Elvira Gadelha,

eu morava em Santana do Cariri, aí eu tava grávida de uma menina, o nome


dela é Ana Luzia, casada mora em Imperatriz sabe, aí eu ia ganhar ela com
uma parteira, uma parteira muito boa, nesse tempo tinha, ai eu tava bem fraca
sem coragem de ganhar a menina, eu comecei sentir as cinco horas da tarde
só sentindo dores, ai quando foi dez e meia da noite foi onde eu me lembrei
que no tempo de eu moça, mesmo casando muito nova, eu tinha ido a essa
festa, ai me lembrei, santa cruz da alma da Baixa Rasa ajuda-me eu ter essa
criança, quando eu disse assim ajuda-me eu ter essa criança pelo amor de
Deus, ajuda-me a força que eu fiz a menina saiu, ai a parteira pegou enrolou,
ai ela disse comadre você vai me dizer a história dessa Santa tão milagrosa
(Entrevista realizada em abril de 2011).
11

Neste relato percebe-se o sofrimento da depoente na hora do parto, segundo D.


Elvira esta era uma época difícil, não tinha as facilidades de hoje, morava na zona rural,
com o mínimo para sobreviver, na localidade não tinha hospital. Neste período era
comum se fazerem os partos em casa, acompanhado por uma parteira que ajudava no
momento do nascimento da criança.
Seu Francisco mais conhecido como Ticão do Sitio Bel Monte relata que sempre
quando está em apuros recorre a Cruz, e na maioria das vezes é atendido, Ticão fala que
seu pai Antônio Cassoá quando vivo teve um sério problema na perna e recorreu a Cruz
da Baixa Rasa.

Meu pai fez uma promessa com a cruz quando teve um problema na perna,
sentiu uma dor na perna dele que estourou o osso mais ou menos em 1967 ou
1968 por ai, a perna doía totalmente, ele fez a promessa que se ficasse bom,
todo ano ele faria a limpeza do caminho da cruz e levaria os zabumbeiros...
essa promessa ele fez para levar uma perna de madeira se ficasse bom, levou
e ficou sendo devoto (Entrevista em julho de 2011).

Mirian uma das narradoras destaca que é devota da Cruz da Baixa Rasa há
vários anos, esta pediu uma graça e alcançou, quando perguntamos qual foi o motivo de
sua promessa. Ela ressalta que esqueceu, mas, sabe que alcançou a graça. “Tu acredita
que eu nem me lembro mais, o que foi, eu me esqueci o que foi, já pelejei muito pra me
lembrar mas eu alcancei a graça e fui durante dois anos...” (ENTREVISTA EM 2011).
Nesse sentido, é evidente o aspecto fragmentário da memória, Segundo Beatriz
Sarlo esse aspecto fragmentário decorre do vazio entre a lembrança e aquilo que se
lembra. Beatriz Sarlo acrescenta:

O “vazio” entre a lembrança e aquilo que se lembra é ocupado pelas


operações linguísticas, discursivas, subjetivas e sociais do relato da memória:
as tipologias e os modelos narrativos da experiência, os princípios morais,
religiosos, que limitam o campo do lembrável, o trauma que cria obstáculos à
emergência da lembrança, os julgamentos já realizados que incidem como
guias de avaliação. O vazio trata-se de um sistema de defasagens... (SARLO,
2007, p. 101).

Essas razões evidenciam que na memória existem lacunas, que são incapazes de
reconstituir os relatos como um todo. Verena Alberti (2004, p. 16) pontua que não
“existe filme sem cortes, edições, mudanças de cenário. Como em um filme, a entrevista
nos revela pedaços do passado, encadeados em um sentido do momento em que são
contados e em que perguntamos a respeito”.
Alberti continua expondo que “ao combinar “vivido” e “concebido”
“concebemos” o mundo sempre de modo descontínuo, agrupando e relacionando
12

conceitos, justapondo contradições e procurando resolvê-la em sínteses...” (Idem, p. 16).


As repetições e os detalhes na hora da entrevista é uma forma de diminuir as
descontinuidades. Assim, o passado só “retorna” através de trabalhos de síntese da
memória, e só é possível recuperar o vivido pelo viés do concebido (Idem, p. 16).
Pensar o vivido através da constituição da memória é importante porque está
atrelada à construção da identidade. Alberti, pontuando Michel Pollak ressalta que a
memória

resiste a alteridade e à mudança e é essencial na percepção de si e dos outros.


Ela é resultado de um trabalho de organização e de seleção daquilo que é
importante para o sentimento de unidade, de continuidade e de coerência –
isto é, de identidade. E porque a memória é mutante, é possível falar de uma
história das memórias de pessoas ou grupos, passível de ser estudada através
de entrevistas de história oral. (ALBERTI, 2004, p. 27).

A história oral é um terreno propício para o estudo da subjetividade e das


representações do passado tomados como dados objetivos, capazes de incidir (de agir,
portanto) sobre a realidade e sobre nosso entendimento do passado (Idem, p. 42).
O entendimento do passado sobre viés da memória “segue muitas trilhas,
algumas vezes obedecendo às margens que o tempo lhe ofereceu, outras vezes
rompendo os limites e ocupando vastos territórios” (MONTENEGRO, 2010, p. 101).
Nessa prática, percorrer as trilhas dos relatos a respeito da Baixa Rasa “é visitar
um labirinto de muitas voltas, de muitas dobras, que ao se desfazerem aproximam
passado e presente” (MONTENEGRO, 2010, p. 102), fazendo-se um campo minado de
possibilidades.
Diante do exposto a romaria da Baixa Rasa está no calendário dos devotos, há
aproximadamente um século, produzindo graças no Sul cearense. Aqueles que recorrem
a ela além de fé tem a sua volta a comprovação, pelo menos para eles, do milagre, sendo
assim fácil acreditar que eles, como devotos, um dia terão seus pedidos atendidos.
Assim como o Padre Cícero (LIMA, 2004, p,113-127) o padecimento do
“vaqueiro” funciona enquanto “elemento purificador e eliminador das possíveis máculas
terrenas, promovendo-o à condição de santo. A transcendência da morte lhe permite
interceder por seus fiéis junto às forças celestiais”. Ainda de acordo Marinalva Vilar, o
morto nas representações do homo religioso, atinge uma dimensão superior em relação
àquela em que habitam os vivos. A Morte santifica. Logo,

É através de uma visão que leva em conta uma inter-relação deste com o
“outro mundo que podem situar-se esperanças para rupturas de quadros
sociais fortemente hierarquizados no mundo dos vivos: “o outro mundo” é
13

(...) um local de síntese, um plano onde tudo pode se encontrar e fazer


sentido. (...) É também uma realidade social marcada por esperanças, desejos
que aqui ainda não puderam se realizar pessoal ou coletivamente” (LIMA,
2004, p, 122-123).

Portanto, o padecimento do homem é “apresentado como um estágio transitório,


durante o qual lhes é inculcada uma purificação final que garante a continuidade da
atuação. No “outro mundo”, seus poderes tornam-se ampliados, pois que já habitam o
paraíso” (LIMA, 2004, p, 124).
Através do padecimento do homem muitas narrativas foram construídas sobre
sua morte, muitas “milagres” foram obtidos, traços identitários partilhados de diferentes
formas, uma romaria diferente de tantas outras, mas, que os devotos têm em mente, um
mundo melhor, e uma preocupação tanto com a vida terrena, quanto com o fim físico
desta.
FONTES/DOCUMENTAÇÃO ORAL
ENTREVISTAS REALIZADAS:
 Padre Ágio. 93 anos. Capelão do Sítio Belmonte. Entrevista realizada em julho
de 2011.
 Elvira Gadelha. 80 anos. Agricultora e dona de casa aposentada. Entrevista
realizada em fevereiro de 2011.
 Francisco. 38 anos. Professor de música. Entrevista realizada em julho de 2011.
 Mirian Esmeraldo. 86 anos. Dona de casa aposentada. Entrevista realizada em
maio de 2011.
REVISTA CONSULTADA
SOUSA. Osvaldo Alves. Revista Região. Crato/Ceará, 26 de Novembro de 1972, n3-
ano 2.
JORNAIS CONSULTADOS
Jornal Diário do Nordeste. Fortaleza: Anos: 2000 a 2011. Disponível no Site oficial do
Jornal. p, Diário Regional. Acesso em agosto de 2011.
Jornal do Cariri. Região do Cariri. Anos: 2000 a 2011. Acesso em agosto de 2011.
Jornal O Povo. Fortaleza. Anos: 2000 a 2011. Acesso em agosto de 2011.
BLOGS E SITES CONSULTADOS
 http://caririhistoria.blogspot.com/2011/05/festa-da-santa-cruz-da-baixa-
rasa.html?spref=fb, acessado em 27 de abril de 2011.
 http://tvverdesmarescariri/cariri/2010/01/festa-da-cruz-da-baixa-rasa.html.
14

acessado em 26 de janeiro de 2011.


 http://www.universocatolico.com.br/index.php?/beatificacao-qual-e-o-
significado.html acessado em 01 de outubro de 2012.
 http://www1.folhape.com.br/cms/opencms/folhape/pt/Hotsite-
LuizG/Gonzaga_Sertanejo/Morte_do_vaqueiro_virou_letra_de_mxsica_em_196
3.html acessado em 15 de novembro de 2012.
 http://www.priberam.pt/dlpo/ acessado em 15 de novembro de 2012.
 http://pernambucoparaomundo.blogspot.com.br/search/label/ABOIOS%20E%20
TOADAS. acessado em 15 de novembro de 2012.

BIBLIOGRAFIA

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ARIÈS, Philippe. História da morte no ocidente. Tradução Priscila Viana de Siqueira.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti (Org.) ; CAMURCA, M. A. (Org.) ;
DANTAS, R. (Org.) ; PINHO, M. F. M. (Org.) ; RAMOS, F. R. L. (Org.) . Padre Cicero
Romão Baptista e o fatos do Joaseiro Autonomia Politico - Administrativa. 01. ed.
Fortaleza: Senac Ceará, 2012. v. 02. 520p .
BRANDÃO, Tanya Maria Pires. O Vaqueiro: Símbolo da liberdade e mantenedor da
ordem no sertão. In: MONTENEGRO, Antônio Torres de. História, Cultura e
Sentimento: outras histórias do Brasil. Pernambuco: Editora UFPE, 2008.
CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 3.ed. Brasília:
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DAS NOVENAS COM BALÕES ÀS GARÇONETES DA PADROEIRA

Janielly Souza dos Santos

Depois de uma semana trabalhando no roçado, na casa, no comércio, nada


melhor para as pessoas habitantes das Braúnas/Baraúnas do que juntar-se a outros
sujeitos, e promoverem seus afetos religiosos na missa ou na novena, algumas vezes
no final ainda ganhado um aperitivo de redes de sociabilidades profanas. Fora do
espaço sagrado, no terraço, podia-se paquerar, namorar, colocar as fofocas em dia,
seja ao lado da fogueira de flores do derradeiro de maio, ou junto a outros eventos
acoplados a novena como a soltura de balões, e ainda a festa da padroeira com direito
as garçonetes.
Neste âmbito, convém pensar que o ano de 1956 foi marcante para a
comunidade católica da povoação emergente das Braúnas/Baraúnas, e sítios
circunvizinhos. No instante em que as necessidades cotidianas produzem
historicamente as espacialidades, a demolição da primeira capela e construção da
segunda influi diretamente no cotidiano e na história dos sujeitos e da sociedade que
se coloca nas Braúnas.
As imagens que seguem, ajuda-nos a pensar o formato da primeira e da
segunda capela nas décadas de 1950 e 1960, apesar de nenhum retratar o espaço
como era, já que a primeira imagem é um desenho produzido com base em descrições
dos depoentes, usado no momento que não foi encontrada nenhuma fotografia de
época; e a segunda é uma fotografia recente em relação às referidas décadas, mais
precisamente de 2003 na ocasião de sua demolição para a construção da nova Igreja.

Imagem 1: Desenho da Primeira Capela das Braúnas. Imagem 2: Foto


da Segunda Capela no início de sua demolição.
Fonte: SANTOS1, Erik Silva dos. Outubro de 2011. Fonte: DANTAS,
Lourani Celeste de Medeiros. Junho de 2003.
Neste conjunto, quais motivos teriam levado a necessidade de construção de
uma nova capela ou igreja? De acordo com Araújo (2005, p.12):

O crescimento da povoação tornou a capelinha, inaugurada na


década de 1930, insuficiente para acomodar os fiéis. Foi quando
surgiu a idéia de demolir a Capela Nossa Senhora do Desterro e
construir outra maior. Assim, em 1956 a primeira capelinha foi
demolida e a população passou a se mobilizar na construção da
nova capela de Nossa Senhora do Desterro. Todos procuravam
participar com o que podia: tijolos, areia, dinheiro, dia de
trabalho, um verdadeiro mutirão. Para adquirir a peça principal
da capela, o sino, como era um pouco caro, tiveram a idéia de
colocar uma rifa. [...]

Crescimento que também se deu a partir da própria capelinha, como era


chamada, pois passou a acolher os fiéis que antes se deslocavam para Picuí. Não que
estes naquele momento não pudessem ir mais às missas na cidade de Picuí, mas
devido à distância e a falta de meios de transporte, o que deixava a viagem cansativa.
Era mais cômodo vir a habitar a capelinha de Nossa Senhora do Desterro.
Convém observar que as missas não eram semanalmente, às vezes demorava
até meses entre uma missa e outra, nas décadas de 1930 e 1940, todavia, ainda
continuava sendo mais cômodo adentrar o espaço de oração da capelinha. Cabe notar
que boa parte da população que ocupava as terras, que hoje vêm a ser o município de
Baraúna, deslocava-se para as missas em Picuí de seis em seis meses, por ocasião de
um batizado e/ou casamento.
Quando o padre não estava presente junto à capelinha, esta, ainda poderia
continuar em atividade, com as novenas celebradas pela comunidade. Situação esta,
não somente observada durante a primeira capela, mas principalmente com a nova
que se erguera; até porque foi a época em que boa parte das pessoas colocaram-se
junto à povoação das Braúnas não somente para visitar e estabelecer suas relações
comerciais, religiosas e afetivas, mas para residir. As famílias, ainda em pequena
quantidade, chegavam a procura de uma sede para moldá-la com suas próprias mãos,
“um quadro para anichar a sua memória” (PESAVENTO, 2004, p.175).
Neste campo de atuação, a nova capela, além de espaço de oração,
celebrações religiosas, ocupava também o posto de espaço de sociabilidades nas
décadas de 1950 e 1960. Sociabilidades no momento em que há comunicação, trocas,
reciprocidade nas conversas, nos olhares; atividades desenvolvidas entre pessoas que
provocam efeitos do sensível nos outros, e em si; pessoas que estabelecem conexão
nas redes de amizades, vizinhança e parentesco. Sociabilidades para os sujeitos que
residira já no espaço das Braúnas e para os que se colocara em sítios/fazendas
vizinhas.
No fazer do jogo das sensibilidades religiosas e das sociabilidades, o
trabalhador do roçado, da casa, do comércio deveria encontrar tempo para ir/vir à
missa ou a novena ficar mais perto de Deus, e também dos homens. Nestes
cruzamentos de pessoas, as sensibilidades religiosas partilhadas ajudam na produção
das sociabilidades, da própria sociedade que se ser construir.
A Igreja Católica, tanto figurada na primeira, quanto na segunda capela, era
palco para muitos eventos importantes na vida das pessoas. Celebrações que iam do
batizado, a primeira comunhão, a crisma, passando pelo casamento, e chegando a
ritualizar algumas vezes até a morte. Lá dentro, o respeito a Deus e a Igreja era
exigido rigidamente. O senhor Severino Passos, através do exemplo de um padre,
atenta-nos ao silêncio exigido pelos padres durante a celebração da missa:

[...] No sermão dele, num era pra ninguém dá atenção a


ninguém. Ele tava fazendo o sermão dele, acho que hoje não é
mais sermão, eu não sei nem o que é, quando via uma mulher
fazer assim.
_ Mulher! Deixe pra conversar em casa, aqui você ta
rezando! (risos)2

Nesta fala além dos códigos da Igreja propostos aos seus fiéis, podemos
observar uma imagem de gênero. A partir do padre, figura masculina, a mulher é
adjetivada como faladeira, que fala demais. Na medida que o homem tinha outros
espaços de falas, estabelecimentos de conversas, como a bodega, o bar, muitas vezes
restava a mulher o lugar da missa, espaço público, para estabelecer conversas e
relacionamentos com as amigas, até porque muitas não podiam vir ao eventos do
terraço de Zé Lourenço, nem frequentavam os forrós nos sítios circunvizinhos as
Braúnas/Baraúnas.
Também fica evidente na narrativa acima a marcação de um lugar para a
missa: o do silêncio dos fiéis, ainda possibilitando perceber que este lugar podia ser
burlado, podia ser movimentado para além da ordem estabelecida, mesmo correndo o
risco de ser chamado(a) a atenção diante de todos os participantes da celebração. A
saída da missa era o momento propício de encontrar e contar as últimas novidades
aos conhecidos, familiares e amigos, estabelecendo assim vínculos com a coletividade;
todavia, principalmente no que se refere ao gênero feminino, nem todas tinham esta
possibilidade, pois necessitavam de voltar urgentemente para casa para concluir com
os afazeres domésticos, o almoço ou a janta do marido. Além disso, a exposição ao
público podia ser considerada, por parte de alguns homens, um perigo a honra da
família.
Mas voltando um pouco no tempo, antes das missas e sociabilidades durante e
depois dela, convém notar uma prática das pessoas que vinham dos sítios
circunvizinhos. Para adentrar a missa, a capela, alguns destes sujeitos usavam do
lugar e do modo de vida que lhes era imposto cotidianamente, criando suas astúcias,
suas práticas do espaço. Propomos aqui um exemplo interessante das astúcias da
população que vinha de outros sítios/fazendas. Como o meio de transporte era muito
raro, nos finais da década de 1950 e início de 1960, até mesmo a bicicleta não era tão
comum, as pessoas tinham que ir, na maioria das vezes, a pé do seu sítio até a
capela, onde se realizaria a missa, chegando a percorrer, muitas vezes, quilômetros.
Como as estradas eram de areia ou barro, período de seca, e com lamas e
águas no período chuvoso, caso as pessoas já viessem com os sapatos de participar
da missa, ou de outro evento, chegariam com eles cobertos de poeira ou de lama.
Deste modo, a senhora Socorro de Zé Lourenço remete-nos a inventabilidade dos
sujeitos, aos usos do lugar que lhes era proposto,

Sempre tinha missa, havia missa [...] De tempos em tempos


[...] Interessante aquele tempo, interessante, o povo vinha do
sítio, aí vinha tudo de sandália, aí tinha a casa de seu Pedro
Cassiano, Antonio Cassiano [...] Pois é, aí o povo vinha do sítio,
aí trazia os sapato nas bolsas. (risos) Aí quando chegavam lá
em Antonio Cassiano, aí tirava, aí trocava as sandália, pra
chegar em Baraúna de sapato. Era engraçado antigamente.3

As pessoas gostavam de andar o mais alinhado4 possível quando iam à missa


ou a algum evento no Povoado das Braúnas/Distrito de Baraúnas, principalmente
moças e rapazes deveriam mostrar-se impecáveis junto à celebração eucarística, que
poderia agrupar ainda um batizado, uma primeira comunhão, a crisma, um
casamento, sociabilidades capazes de produzir jogo de olhares, que causariam
encantamento entre jovens; e quem sabe dali não surgiria um princípio de namoro.
Deste modo, as vestimentas deveriam ser produzidas com cuidado. E não
somente os jovens, que estavam em busca de namoro e/ou casamento, realizavam
‘um desfile de moda’. A roupa representaria muito mais junto a Igreja e à sociedade,
principalmente no que se refere ao corte de certo do modelo escolhido. Os códigos
sociais, neste âmbito, instituíam o que era permitido e o que era proibido no modelo
feminino principalmente.
Observemos, por exemplo, como poderiam/deveriam vestir-se os meninos e
meninas que viriam fazer a primeira comunhão, a partir da fotografia adiante
elencada, lembrando ainda junto à Carvalho e Lima (2009, p.49) que, “O retratar-se é
uma prática cultural que integra uma rede de comunicação e atua, como tantos outros
processos, na regulagem da sociedade”.

Imagem 3: Primeira Comunhão realizada na Capela de Nossa Senhora do Desterro nas


Braúnas/Baraúnas
Fonte: Arquivo pessoal de Maria Amélia Araújo Dantas (Socorro de Zé Lourenço),
(1956-1968)5

Nesta fotografia podemos perceber as vestimentas como parte da


regulamentação da sociedade em termos de gêneros. A menina vestia-se com um
vestido similar a um vestido de noiva, completado ainda o traje com o arranjo ou
coroa na cabeça, também chamada de capela. O menino também era formal, podendo
usar calça comprida, ou calça curta como no caso deste da fotografia. Neste sentido, a
senhora Otília Mariano da Silva Souza (71 anos) nos informa:

Zé Mariano era pegado com eu demais. Eu mais Zé Mariano


fizemos a primeira comunhão [...] Ele trajadinho de noivo e eu
trajadinha de noiva [...] Capela, véu, capela, e ele todo
trajadinho de manga comprida. Era bonitim demais. [...] Eu fiz
a primeira comunhão, graças a Deus, era tanto menino. [...]
Há, lá eu usava vestido comprido, manga comprida, e de
capela, capelona alta, era daquelas alta, num era dessas
coroinha não, era capela mesmo. [...] Eu ia tirar um retrato aí
Maria num deixou. Num deixou não, porque disse que num
tinha dinheiro, pai era pobre não tinha dinheiro pra pagá. Eu
trajadinha de noiva.6

Neste conjunto, a narrativa acima e a fotografia anterior nos remete a outro


ritual de passagem na vida das pessoas, sob custódia da Igreja Católica, o casamento.
No caso da menina, vestir-se como uma pequena noiva, ‘uma noivinha’, ser agraciada
pela emoção de estar ali no altar, colocava a necessidade familiar dela vir anos mais
tarde para efetivar seu casamento perante a família e a sociedade. Além disso, a
vestimenta feminina representada na fotografia, também nos remete a condição de
pureza. Usar vestido branco ao casar, era declarar-se virgem e pura perante a
sociedade. Na Primeira Comunhão era necessário se colocar como pura(o) para estar
mais perto de Deus, comungar com Deus.
O depoimento da senhora Otília Mariano, citado anteriormente, possibilita-nos
pensar que a fotografia não se colocava como acessível a todas as pessoas. Aqueles
que não tinham recursos financeiros, por mais que desejassem não podiam tê-la. O
que nos coloca diante da percepção que Zé Lourenço e Socorro, sua esposa, tinham
condições financeiras para produção de álbuns de família, que nos foram
disponibilizados, e servem à construção de nossa dissertação.
Diferente do que aconteceu com a senhora Otília Mariano que, durante a
narrativa, ao falar desta fotografia que não pode existir, devido à falta de recursos
financeiros, lacrimejou. Naquele momento, a imagem dela preparada para primeira
comunhão, trajada de noiva (noivinha) juntamente com seu irmão, chegou-lhes à
memória. Somente ela tem esse momento guardado junto a suas memórias.
No espaço sagrado configurado na capela, além das missas, que incluíam os
batizados, a Primeira Comunhão, a crisma, o casamento e algumas vezes a passagem
do morto, havia, também a celebração das novenas. Algumas delas tinham dois
momentos, o dentro da Capela e o fora dela. Falemos num primeiro momento das
novenas do mês de maio, de Maria, que culminaria no ‘derradeiro de maio’, quando a
população vinha celebrar, estabelecer seus vínculos com a Igreja e a sociedade.
Segundo Socorro de Zé Lourenço,

Tinha, rezava o mês de maio todinho, aí juntava as flores, todo


dia aquele pessoal, todo dia levava as flores, levava um buquê
de flores, aí colocava lá na santa, quando era no outro dia,
aquelas flores eram recolhidas e botadas lá no recanto, aí
quando era no último de maio, aquelas flores, fazia uma
fogueira e queimava as flores [...] Aí o pessoal cantando ao
redor da fogueira [...] depois da novena.7

Era no espaço fora da capela, ao redor da fogueira que moças e rapazes sob
suspeita de olhos vigilantes podiam estabelecer o flirt8. Os namorados e noivos
podiam estabelecer conversas com suas namoradas sob a vigilância dos pais ou de
uma senhora casada e ‘de respeito’. Os familiares e amigos conversavam entre si, e
ainda quem estava ali para cumprir os rituais sagrados até o fim, iria entoar os hinos a
Nossa Senhora. Não cessavam também os pedidos de casamento junto a Maria, já que
se estava no mês das noivas. Nada melhor do que pedir para que naquele ou no
próximo ano estivessem realizando o matrimônio.
A troca de alianças e a construção de uma família era um desejo a ser
alcançado por homens e mulheres no Povoado das Braúnas/Distrito de Baraúnas nas
décadas de 1950 e 1960, as últimas em maior intensidade que os primeiros. Neste
campo de atuação, o modelo de família seguia os padrões da sociedade brasileira dos
chamados anos dourados, como nos convida a perceber Bassanezi (2004, p.608-609):

Na família-modelo dessa época, os homens tinham autoridade e


poder sobre as mulheres e eram os responsáveis pelo sustento
da esposa e dos filhos. A mulher ideal era definida a partir dos
papéis femininos tradicionais – e das características próprias da
feminilidade, como instinto materno, pureza, resignação e
doçura. [...]

No que concerne às cerimônias de casamento, a partir do espaço de estudo


proposto, observamos que estas poderiam ser realizadas nos sítios, na casa dos pais
e/ou familiares da noiva, e com menor regularidade do noivo9, na igreja de Picuí ou na
capela das Braúnas/Baraúnas, e que serviam para reunir família e amigos no local da
cerimônia, transformando-o em espaço de sociabilidades.
Os casamentos, assim como outras celebrações católicas, propostas junto à
capela, não demoravam em demasia, colocavam-se como simples e curtos. Um dos
motivos que explica esse não prolongamento era que além da missa e do casamento,
colocava-se como constante a realização de outros rituais cristãos e católicos, a
exemplo do batizado; dessa maneira, uma mesma ocasião servia para muitos
momentos, não podendo assim o padre agir em demora. No sítio seguia o mesmo
roteiro, num casamento, aproveitava-se para batizar uma criança, ou mesmo se fazia
mais de um casamento.
O beijo na boca, assim como durante o namoro, não era evidenciado na
cerimônia do casamento, nem tão pouco em público nas décadas 1950 e 1960 nas
Braúnas/Baraúnas. De acordo as normas de conduta da sociedade, não era permitido
o desfrute, pois além de expor a si, estava expondo as outras moças e rapazes a
comportamentos não interessantes à comunidade. Como a honra da família,
principalmente do pai, dependia da honra da moça, esta era bem mais vigiada do que
os homens, não somente pela família, mas por toda a sociedade. Com Bassanezi
(2004, p.613) observamos que, “O código de moralidade era de domínio geral e
praticamente todos se sentiam aptos a julgar os comportamentos de uma jovem: os
pais, o vizinhos, os amigos e amigas [...] A moralidade defendia a boa família, ou
melhor, o modelo dominante de família.”
Viver em sociedade é está em meio a um conjunto de códigos
comportamentais, costumes e crenças, que cabe ao sujeito assumi-los ou não. Os
caminhos colocam-se a nossa frente cotidianamente, cada direção vai levar a
possibilidades diferentes no seguimento da caminhada da vida e do relacionamento
com os outros sujeitos. Nos meandros da constituição das identidades, necessita-se
perceber que elas são históricas e produzidas a partir de discursos colocados na
constituição do espaço. Dessa forma, assim como nos coloca Hall (2000, p.109):

É precisamente porque as identidades são constituídas dentro e


não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como
produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no
interior de formações e práticas discursivas específicas, por
estratégias e iniciativas específicas.

A sociedade das Braúnas/Baraúnas, e sítios circunvizinhos, na temporalidade


aqui estudada, propôs-se como lugar histórico interessante a propagação de
identidades. Neste campo de ação, a capela, tanto a primeira quanto a segunda, faz
parte de toda uma rede de significados que acabaram por contribuir diretamente na
constituição do espaço das Braúnas/Baraúnas.
Assim, para além das novenas do mês de maio, que tem seu ápice no último
dia do mês, outra aguçava a curiosidade da população, e o desejo de se fazer
presente quando anunciada, que se colocara também fora da capela após o término
das orações, era a que envolvia o soltar balões. O senhor Severino Passos narra como
foi a primeira que aconteceu aqui, no espaço das Braúnas,

Severino Passos: [...] Que Baraúna deve muito, muito


mesmo a Zé Lourenço. Porque aí tinha a capelinha bem
pequeneninha que foi do tempo de Chico Italiano. Zé Lourenço
chegou, fez um terraço, onde foi também a primeira feira e ali
praticava todo tipo de festa, inclusive, anunciou que ia haver
uma novena com queima de balão, vixe Maria! Só ficou em casa
mulhé de resguardo, porque o resguardo naquele tempo era
trinta dia, o resguardo era trinta dia, aí num pudia í, né. Eu vim
também, vei muita gente, o pessoal era pouco, mas o pouco
que tinha vei todo. Porque custaram a acreditar como era um
saco de papel, butar uma vela dentro e acender e num queimar,
foi essa a razão de vim muita gente, quer dizer, foi o primeiro
balão que foi soltado dentro de Baraúna.
Janielly: Mas soltava pra ele voar [...]
Severino Passos: Soltava, ele vuava, ia caí [...] uns cinco,
não [...] teve um que caiu, o mais perto, com uns quatro
quilometro, mas era uns cinco quilometro, lá no Seridó. Isso daí
foi um sucesso, eu tava nesse dia, eu morava pertim [...]10

É interessante pensar junto a esta fala um código comportamental da


sociedade, nas décadas de 1950 e 1960, em relação à mulher, o resguardo. Severino
Passos informa que eram trinta dias o resguardo após a chegada do bebê, isto porque
pelo costume dá época à mulher passava os quinze primeiros dias tomando banho
morno da cabeça pra baixo, no décimo quinto dia lavava a cabeça com água morna, e
com mais quinze dias é que ela tomava banho e lavava a cabeça com água fria, assim
encerrado o período de resguardo. Para as mais cautelosas este período somente era
encerrado no décimo dia subsequente ao banho frio.
Durante o período de quarenta dias pós-parto, a mulher permaneceria dentro
de casa, e neste período eram proibidas de ter relações sexuais. Acreditavam que caso
quebrassem o resguardo, o fluxo sanguíneo subiria a cabeça, provocando dores na
cabeça constantes, além de ficar doente e nervosa para o resto da vida. Portanto, no
período de resguardo as mulheres tinham regras e normas que deveriam ser
guardadas, respeitadas, e caso viessem a quebrá-las criariam uma predisposição a
doenças ao longo de sua vida.
Voltando a falar sobre novenas, é interessante perceber, que a realização das
novenas com soltura de balões remete as festas juninas, período iniciado na região
com a fogueira de Santo Antônio, produzida na véspera, dia 12 de junho, dia em que
também comemora-se o dia dos namorados, e finalizado dia 29 de junho, dia
reservado a homenagem de São Pedro. Estas novenas também poderiam acontecer
em outras datas comemorativas e/ou considerados santificados, de acordo com o
interesse da comunidade.
Neste sentido, é importante registrar que tais novenas também se faziam junto
à festa da padroeira. Se hoje, os dias reservados a Nossa Senhora do Desterro, na
festa sagrada em sua homenagem, contam com missas celebradas por padres de
cidades circunvizinhas, nas décadas de 1950 e 1960 isto não era comum. Deste modo,
na maior parte do período reservado a santa, na sua festa religiosa, ao invés da missa
eram realizadas novenas. No final da década de 1950 e na década de 1960, existiam
casais responsáveis pela organização, das novenas da festa da padroeira,
principalmente no que concerne a arcar com as despesas da noite, tornando a
celebração mais atrativa aos olhos dos participantes.
A compra de velas para iluminar a capela, fogos para soltar em homenagem a
santa, a confecção e organização da soltura de balões; assim como, em algumas
novenas, lanternas feitas com papel de seda colorido e velas para iluminar e colorir o
terraço que se transformava em espaço do sagrado durante a novena era uma
produção realizada por casais da sociedade, e “cada um que queria fazer mais
bonito”11. Isso se colocara com maior veemência, quando para além dos interesses
religiosos e sociais, estavam os políticos, pois era um momento ideal para os
vereadores e representantes políticos da comunidade colocarem-se como
patrocinadores do espetáculo. Neste caso, as figuras masculinas eram privilegiadas,
tornavam-se os provedores do evento.
Nesta perspectiva, Santos e Santiago (2008, p.155) chama-nos a atenção para
que percebamos “a celebração da padroeira deve ser vista como a auto-representação
de um grupo, uma expressão que busca reforçar a identidade e, ao mesmo tempo,
delimitar territorialidades.” Territorialidades de devoção a santa protetora, mas
também territorialidades simbólicas de devoção àqueles que podiam economicamente
promover o espetáculo, e o faziam, atuando ainda junto à produção de identidades
dos participantes do(s) evento(s).
Diante disso, se partirmos do princípio que “[...] o poder simbólico é, com
efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade [...]”
(BOURDIEU, 1989, p.8), o masculino se coloca com um poder simbólico perante a
sociedade e as figuras femininas, que assumem essa cumplicidade, não naturalmente,
mas historicamente, pelas produções sociais e culturais construídas ao longo do
tempo.
Esta condição de provedor do evento por parte do masculino, não se aplica
somente as manifestações religiosas, mas aos momentos considerados profanos da
festa. Cabia ao homem pagar pelo divertimento, e quando fosse o caso, pela bebida.
Nas festas da padroeira, assim como outras festas regidas pelo tocador do fole de oito
ou doze baixos, concertina e/ou sanfona, os homens pagavam a cota12. Era uma
atribuição masculina, que se colocara pelos códigos sociais da época, e que através de
narrativas de memórias percebemos a construção de uma identidade social e cultural
para a figura masculina junto às festas. Consideremos a fala do senhor José Galdino
dos Santos, exímio admirador dos espaços em festa, principalmente daqueles ligados
aos sons dos foles ou sanfonas:

Não, só pagava os zome, mulé não. Mulé vei pagá festa aqui
quisso é muito errado, viu. Olhe é muito errado esse negócio de
numa festa... eu quero vê qual é a festa que funciona sem tê
mulher. Num tem não, pruquê inté mesmo uma currida de gado
só vai si tiver mulher, né não?13

A partir desta narrativa, podemos notar que este senhor negocia os usos das
temporalidades a partir de um lugar socialmente estabelecido. Ele, na sua fala, produz
uma comparação de temporalidades distintas a partir de seu lugar hierárquico de
provedor do divertimento. Deste modo, é importante refletir que nos usos das
narrativas de memória há confluência de temporalidades diferentes, o que também
possibilita refletirmos que identidades foram construídas nesta sociedade ao longo das
décadas de 1950 e 1960, que ainda estão presentes junto às sensibilidades de seus
narradores.
Na fala do senhor José Galdino, outra colocação chama a atenção, no instante
em que ele diz “qual é a festa que funciona sem tê mulher”. Nisto podemos notar a
categoria relacional dos gêneros no espaço em festa, no momento que percebemos
que um gênero, o masculino, deseja ocupar o espaço festivo interessado na presença
do oposto. Desta forma, tanto o masculino quanto o feminino elabora a si na e através
da produção do outro.
Seguindo o caminho da fala do senhor José Galdino, para os homens a figura
feminina colocava-se como importante na festa, sobretudo pelo desejo da relação
entre os corpos14 durante o dançar e da expectativa do namoro, já que neste espaço
havia a possibilidade de um momento privilegiado para o contato físico entre os
gêneros, entre os corpos masculinos e femininos, ao contrário do que ocorria no dia-a-
dia da convivência social.
No caso das festas da padroeira, algumas moças destacavam-se ainda por
outro motivo. Era comum no dia-a-dia do universo feminino servir ao homem. Na
festa da padroeira não era diferente, contudo, algumas delas se destacavam aos olhos
do público nesta atividade, era o caso das garçonetes. Observemos a fotografia
abaixo, e em seguida a descrição dela feita por Socorro de Zé Lourenço:

Imagem 4: Foto do desfile das garçonetes no terraço na Festa da Padroeira Nossa


Senhora do Desterro.
Fonte: Arquivo pessoal de Dona Socorro.
Socorro: Num era a festa da padroeira. Tinha as
garçonete, nas festas tinha as garçonete. Quando era pra
começar o pavilhão, quando terminava a novena, aí tinha as
garçonete, né. Cada qual ia com um padrinho, uma paraninfo
como se diz. Se fosse doze garçonete era doze padrim, aí ia
desfilando até o pavilhão, quando chegava no pavilhão, no bufê
do pavilhão, aí elas de distribuíam cada qual ia fazer, atender a,
o pessoal né.
Janielly: Eram elas que serviam?
Socorro: Elas que serviam. Tudo fardada, era tudo
fardada. [...] Tinha valsa e tudo das garçonetes.15

Para a moça, ser garçonete tinha um significado especial, pois ela se


apresentava a sociedade enquanto modelo ideal de futura esposa a ser desejada para
efetivação de um namoro, e quem sabe um casamento. No caso daquela que estivera
apresentando-se durante o desfile, tendo como padrinho ou paraninfo seu namorado,
ainda estava presente a finalidade de mostrar para a sociedade a constituição de um
casal respeitado.
Além do desfile, a valsa servia de prêmio às moças que eram garçonetes. Para
algumas delas, mais do que mostrar-se para os candidatos a futuros namorados,
ainda tinham o gostinho de vitória perante as outras moças, que as observavam,
algumas vezes, com olhar de inveja, do querer estar no lugar delas, tomar o lugar do
outro.

Imagem 5: Foto do senhor Zé Lourenço dançado a valsa com uma garçonete.


Fonte: Arquivo pessoal de Dona Socorro.
Nessa fotografia16, onde Zé Lourenço dança a valsa com uma garçonete,
podemos perceber ao fundo muitas moças e/ou mulheres casadas a observar o
momento do bailar das garçonetes. O desejo de trocar de lugar com estas garçonetes
ainda podia vir, na medida que, algumas delas tinham como padrinho uma pessoa
importante da sociedade, o prestígio de quem estivesse com esta pessoa era
ressaltado, ainda podendo ser motivo de comentários naquela noite e por dias que se
seguiam. Dançar, ou ter como padrinho, homens considerados influentes na sociedade
era ter os olhos desta voltado para si.
Diante da visualização da imagem 5, fotografia da valsa, observamos que há
enfeites no terraço, bandeirolas mais precisamente, o que faz necessário frisar que
apesar dos enfeites que hoje são considerados do período junino, a festa da padroeira
de Nossa Senhora do Desterro em Baraúna não acontecia no mês de junho, mas em
dezembro. Outro ponto que deve ser observado é que o mês oficial de comemoração
desta santa é fevereiro. Dia 16 é o dia reservado a esta santa de devoção de Baraúna.
Mas o que levou a comunidade a preparar a festa da padroeira em dezembro?
Segundo depoimentos realizados, como no calendário cristão das décadas de 1950 e
1960, os ciclos principais de comemoração durante o ano, para a comunidade católica
baraunense, seriam a Semana Santa, as festas juninas e o ciclo natalino. Como na
Semana Santa, segundo os preceitos religiosos, não se podia fazer a festa dita
profana, e as festas juninas eram uma comemoração a parte, inclusive com a Festa da
Colheita (da Rainha), o período natalino, ou dias que o antecediam, foram os
escolhidos para abarcar as comemorações da padroeira das Braúnas/Baraúnas. Até
porque o período natalino era o momento do ano em que familiares e amigos
reuniam-se com maior ênfase, pessoas que moravam em outras localidades vinham
visitar seus familiares e aproveitar as festividades da padroeira.
Neste conjunto, convém refletir com Reis (2011, p.8):

[...] A sociedade constrói “representações” da sua presença no


mundo e as inculca nos indivíduos, tornando-se neles um
habitus, estruturando a sua visão de si mesmos, dos outros e
da história. Toda sociedade é governada por um “regime de
historicidade”, por um discurso sobre o tempo que dá sentido e
localização aos seus membros. Estas “ordens do tempo” são
criações, narrativas de si de uma sociedade, mas, depois de
criadas, tornam-se o próprio real [...]

A Festa de Nossa Senhora do Desterro foi comemorada em dezembro até o ano


de 2010, o que possibilita pensar que o hábito construiu uma narrativa do real.
Durante décadas, poucos fiéis souberam que o mês oficial de prestar homenagem a
santa era fevereiro e não dezembro. O tempo deu sentido a esta construção social,
que se rompeu a pouco, causando ainda, confusão nas mentes dos baraunenses
devotos de Nossa Senhora do Desterro. A mentalidade dos sujeitos, construídos
historicamente, não muda ‘de um dia para a noite’.
O terraço construído entre a capela e a casa de Zé Lourenço, extensão de
ambas, foi palco de muitos eventos e festas ligadas a religião, ou não. Neste sentido,
podemos pensar nas práticas do espaço que foram produzidas no desenrolar dos
relacionamentos entre os gêneros em meio à construção da história. Neste campo de
ação, convém refletir os conceitos de lugar e espaço em Certeau (2007, p.201-202),

Inicialmente, entre espaço e lugar, coloco uma distinção


que delimitará um campo. Um lugar é a ordem (seja qual for)
segundo a qual se distribuem elementos nas relações de
coexistência. [...] Um lugar é portanto uma configuração
instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade.
Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de
direção, quantidades de velocidade e a variável tempo. O
espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado
pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram. [...]

A capela aparecerá como um lugar que adquirirá a partir dos sujeitos que a
usam histórias plurais, dependendo também dos eventos e práticas desenroladas
nela17, sejam elas sagradas e/ou profanas. Desta forma, passa a existir enquanto
espaço praticado pelos sujeitos, durante os atos de religiosidade e/ou sociabilidades.
Costumeiramente, definimos o sagrado como algo ‘santo’, ligado as coisas
divinas, a religião; em contrapartida, o profano seria o não sagrado, o que não
pertence à religião. Para Eliade (1992, p.14-15) “[...] o sagrado e o profano
constituem duas modalidades de ser no Mundo, duas situações existenciais assumidas
pelo homem ao longo de sua história.” Duas posições assumidas pelos sujeitos, que
necessariamente não precisam estar separadas no cotidiano, muito pelo contrário, no
caso das festas da padroeira relatadas aqui, o profano abraça o sagrado no espaço
praticado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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memória e pesquisa de Severino Passos. Baraúna, PB: [s.n.], 2005.

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GOELLNER, Silvana Vilodre; LOURO, Guacira Lopes. (orgs.). Corpo, gênero e
sexualidade: um debate contemporâneo na educação. 3. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
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brasileira dessacralizada. In:_____. (org.) Escrita, linguagem, objetos: leituras de
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REIS, José Carlos. O tempo histórico como “Representação cultural”. In: Revista
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n.1, 2011. p.8-29.

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festa de Nossa Senhora D’Ajuda em Itaporanga. In: Revista Fórum Identidades.
Ano 2, Volume 4, Jul-Dez de 2008. p.153-160.

SILVEIRA, Paulo Webber da. Guia dos namorados. São Paulo: Prelúdio, 1959.

1
Aluno da 1ª série da EEEM de Baraúna (2011).
2
Entrevista realizada em 02 de Agosto de 2011.
3
Entrevista realizada em 23 de Agosto de 2011.
4
No sentido de elegante; todavia, dentro de suas possibilidades econômicas.
5
Como a senhora Maria Amélia de Araújo Dantas (Socorro de Zé Lourenço) não se lembra da maioria das
datas das fotos que nos cedeu para digitalização, mas afirmou que foi do período que morava em Baraúna,
consideremos as que estão sem datação entre os anos de 1956 e 1968.
6
Entrevista realizada em 9 de Julho de 2011.
7
Entrevista realizada em 23 de Agosto de 2011.
8
“O flirt é uma troca de olhares. E’ talvez o início normal de quase todos os namorados, ou melhor, da
maioria deles. Muitas vezes, um homem atraído por uma mulher segue-a olhando insistentemente. Se o olhar
é correspondido, ele pode atrever-se a dirigir a palavra à mulher, e daí talvez resulte o namoro. Isso é o flirt.”
(SILVEIRA, 1959, p.5)
9
O pai da noiva era responsável direto pela maioria dos gastos do casamento, inclusive no que se refere à
festa.
10
Entrevista realizada em 02 de Agosto de 2011.
11
Entrevista realizada com Otília Mariano da Silva Souza em 09 de Julho de 2011.
12
Era como chamavam a quantia em dinheiro paga pelos homens ao mestre-sala, e/ou organizador da festa
(forró, bale ou samba), destinada a pagar o tocador e/ou sanfoneiro.
13
Entrevista realizada em 15 de Outubro de 2007.
14
“A produção do corpo se opera, simultaneamente, no coletivo e no individual. [...] Por essa razão, podemos
pensar no corpo como algo que se produz historicamente [...]” (GOELLNER, 2007, p.39)
15
Entrevista realizada em 23 de Agosto de 2011.
16
Devido a observação de que há nesta fotografia pontos luminosos, como que lâmpadas a iluminar o terraço
preparado para este evento, acreditamos que esta festa da padroeira seja entre os anos de 1966 e 1968, já que
66 foi o ano que chegou o motor para iluminar as Braúnas, e 68 foi o ano que Dona Socorro e seu Zé
Lourenço foram morar em Picuí, e Dona Socorro afirmou em entrevista que estas fotografias foram da época
que ela residia em Baraúna (nas Braúnas).
17
Aqui serve como referência os usos da capela enquanto espaço interno, porta adentro, quanto para além
deste, o lado de fora, a exemplo do terraço.
FESTA DO CARREIRO COMO PATRIMÔNIO IMATERIAL DO MUNICÍPIO
IBIRAJUBA (PE): HOMEM, HISTÓRIA E RELIGIOSIDADE

Bruno Rodrigues Torres*


Maria Giseuda De Barros Machado**

Resumo
A Festa do Carreiro no município de Ibirajuba (PE), tem sido buscada historicamente na
evocação de memórias, simbolismos e práticas culturais do homem do campo que faz uso do
carro de boi, haja vista que marca presença do plantio à colheita, à cultura festiva, a
religiosidade, à manutenção da vida com a básica produção agrícola no interior do
Estado, vinculando à tradição, sem perder de vista os impactos vivenciados. O carreiro,
nesse locus, se inter-relaciona à alimentação da população no cultivo do feijão e do milho,
ao transporte campo--cidade, à construção civil, às comemorações, às crenças. Na pesquisa,
busca-se compreender a relação passado-presente que envolve o carreiro, o carro de bois, a
relação como patrimônio imaterial no envolvimento sociocultural que ao tratar do labor no
campo traz continuidade à vida , atribuindo múltiplos significados que se revelam na
cultura festiva. Metodologicamente, buscamos registros de jornais locais, eletrônicos,
imagens em pintura, fotografias, poesias, assim como fizemos uso da metodologia oral, em
busca de memórias com entrevistas de sujeitos nessa história com a cultura local,
articuladas ao estudo bibliográfico. Neste cenário, a festa aproxima os carreiros de modo
mais visível na identificação religiosa com o padroeiro da cidade, conhecido no seio da
Igreja Católica como Santo Isidro, o lavrador, de modo a ser entendido que a Festa do
Carreiro possibilita uma revitalização das práticas socioculturais na mediação trabalho
homem-natureza e religiosidade. Essas práticas as representam, as identificam e reinventam
o passado, tornando-se bastante visível na primeira semana de dezembro, anualmente, no
espaço de religiosidade, ampliando no lugar o Carreiro em suas relações, com o
simbolismo religioso no Brasil em sua representação no Agreste Pernambucano.

Introdução
A palavra homem deriva deHúmus, chão fértil, cultivável. (Ecléa Bosi)

Buscamos deter o olhar no município de Ibirajuba no Agreste Meridional, de


Pernambuco, com ênfase à Festa do Carreiro no entrelaçamento de práticas
culturais que envolvem o mundo do trabalho, às crenças religiosas, as
comemorações, à cultura festiva. O nome do Município, como vocábulo de origem
indígena, significa “árvore amarela”, advinda do Tupi ybirá: árvore, tronco,
madeira com o termo yuba que significa amarelo, louro. Ibirajuba, originou-se do
povoado de Gameleira e pertenceu ao município de Altinho, tendo sido emancipado
no ano de 1963 pela Lei Estadual n° 4.943.Sua Sede, dista da capital do Estado
185 km, tem uma área de 190 km² e população de 7.534 habitantes ( CENSO DO
IBGE, 2010).
Na história do lugar, assim entendida no conceito, a relação com o santo
padroeiro ultrapassa os 90 anos, quando então Distrito de Altinho , o Pároco do
município, Padre Manuel Zacarias , ao perceber que a maioria dos moradores era

*
Licenciando em História UPE-Campus Garanhuns
**
Professora do Curso de História da UPE-Campus Garanhuns
formada por agricultores, decidiu trazer ao local a imagem de São Isidro da
Espanha, visto que é natural desse país, e padroeiro dos fazendeiros e
trabalhadores do campo (JORNAL TRIBUNA DO AGRESTE, 2013) . Foi denominado
padroeiro de Ibirajuba, São Isidro, Lavrador, portanto Patrono dos lavradores.
Situar o espaço econômico de Ibirajuba é também compreender que nesse
município é basilar no campo a produção agrícola, especialmente do feijão e do
milho, que são presentes na alimentação cotidiana local, além de pequena
comercialização que se expande pelos municípios vizinhos. No conjunto dos
trabalhadores de atividades agropecuárias, nesse cenário, há aqueles que vivem
de empregos públicos, assim como os pensionistas ou aposentados de maneira
geral. No campo, especificamente, estão os carreiros com os seus carros de bois
que fazem parte integrante de uma economia de subsistência, cujas relações
sociais são mediadas pela interação do homem com a natureza, a referida
produção.
Neste sentido, os carreiros se encontram também como agentes sociais que
atuam ainda no transporte para revenda e compra de produtos para sua
sobrevivência, apesar de identificados nos grupo de classes subalternas valorizam
as suas crenças, costumes, tradições, atribuindo significados à cultura do lugar.
Ginzburg vai interpretar que todos os povos mesmos que tardiamente reconhecidos
são portadores de cultura, assim expressando
Todavia, o emprego do termo cultura para definir o conjunto de
atitudes, crenças, códigos de comportamento próprios das classes
subalternas num certo período histórico é relativamente tardio e foi
emprestado da antropologia cultural. Só através do conceito de ‘cultura
primitiva’ é que se chegou de fato a reconhecer que aqueles indivíduos
outrora definidos de forma paternalista como ‘camadas inferiores dos
povos civilizados” possuíam cultura.’ (GINZBURG, 2006,p. 12).

Sob o olhar da legislação brasileira vinculamos trazer o objeto da pesquisa


ao Patrimônio Cultural, de maneira que podemos estar contribuindo para a
inserção da Festa do Carreiro como Patrimônio Cultural Imaterial, considerando o
que dispomos no art. 216 da Carta Magna do país, visto que o Patrimônio Cultural
Brasileiro é constituído de "[...] bens de natureza material e imaterial, tomados no
conjunto portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: as formas de
expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e
tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de
valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e
científico. (BRASIL,CF, 1988).
Assim, entende-se que todos os bens materiais e materiais precisam
também ser protegidos pela sua comunidade. Para tal finalidade, a Festa em
estudos pode ser encaminhada pela própria comunidade ou por uma entidade, de
modo que seja efetuada a justificativa apropriada.
Na perspectiva de valorização das festas, ao voltar-se às manifestações
regionais e locais a comunidade possibilita-se fortalecer a auto-estima e
identidades, de modo que se fazem enormes os ganhos culturais à sociedade
envolvida, tendo ainda relevância na esfera da sustentabilidade, contribuindo, em
muitos casos, para a geração de renda de comunidades inteiras ( PELEGRINI;
FUNARI, 2008). Por sua vez, a pesquisa traz como objetivo principal compreender
a relação passado presente com o envolvimento do carreiro, com o uso do carro de
boi, na relação campo cidade, percebido como patrimônio imaterial ao envolver o
labor do campo, especificamente, ao atribuir novos sentidos à cultura da Festa do
Carreiro em Ibirajuba (PE), sem perder de vista as transformações que envolvem o
carreiro, o carro de boi na relação campo-cidade, como meio de trabalho,
transporte e comemorações, assim como a festa aproxima os carreiros na
identificação do padroeiro da cidade, expressando assim a dimensão religiosa.
A metodologia, em sua trilha, relaciona o estudo bibliográfico ao mesmo
tempo que busca o registro de memórias, entendendo-as como chave da
contemporaneidade, como nos diz Diehl (2002). Trabalhamos com fontes orais,
situadas na história oral, através dos discursos dos moradores do lugar que são
envolvidos com a Festa na abrangência campo-cidade. Com Delgado (2006) vamos
entender que a construção será enriquecida no campo histórico, considerando que
a História Oral é um procedimento metodológico que procura na construção de
fontes e documentos, registrar através de narrativas induzidas e estimuladas os
testemunhos, versões e interpretações sobre a História em suas múltiplas
dimensões .
Ao serem evocados novos sentidos à Festa são constituídas representações
com novos significados à cultura, vista a continuidade das tradições do luga,
naquilo que emerge da relação de pertencimento, nas práticas sociais que lhes dão
vida, liberdade, valorização, ética, e, novos conhecimentos ambientais aos que
compõem o mundo do universo, do transporte usual do carro de boi com os
ibirajubenses, numa relação que trouxe a dimensão religiosa à cultura, pois assim
diz Chauí que “A cultura é mais do que belas artes. É memória, é política, é
trabalho, é História, é técnica, é cozinha, é vestuário, é religião, é festa. Ali onde
seres humanos criaram símbolos, valores, práticas, há cultura [...] (1982: 37).
Este trabalho, em sua abordagem propicia uma relevância acadêmica,
contribuindo para a História ao tratar do homem do campo e seu meio de trabalho,
tendo a festa como forma de valorização e reconhecimento dos sujeitos históricos
através da memória e da cultura no campo-cidade..Com os resultados esperados
ao término da pesquisa pretende-se realizar uma socialização desse
conhecimento histórico que nos tem incentivado com Festa do Carreiro. Assim,
como na continuidade da produção científica da pesquisa. revelar o
reconhecimento e valorização dos diferentes sujeitos da História em suas ações
individuais e coletivas.

A Festa do Carreiro: sociedade e cultura entre o sagrado e o profano


A festa, de maneira ampla constitui um movimento que ocorre no tempo
social de grupos humanos, em que o passado na festa se revitaliza quando
instituído socialmente, uma vez que festejar é reviver fatos sociais, pois se
aproximam na busca de sentidos no interior das festas, no tempo vivido, em que
muitos passam a se interagir bem mais. Qualquer que seja a festa vem as
comemorações que abrem espaço de liberdade e a sociedade seja qual for o lugar,
possui um conjunto de valores que as definem e as representam (PESAVENTO,
2008).
Nesta perspectiva, ouvimos de um dos habitantes do município de
Ibirajuba (PE), até mesmo conhecido como o fundador da Festa do Carreiro, que ao
ser entrevistado diz ter sido motivado ao pensar a festa, criar a festa:
Olha a Festa do Carreiro [..] é houve na verdade[...] O motivo, a gente
teria que valorizar as pessoas que viviam dentro do nosso município
buscando melhoria, uma renda melhor, e eu vi os carreiros. Levando
terra, vendia areia pra alguém, carregando palma, e aquelas pessoas
não estavam sendo reconhecidas, então eu tive a ideia, uma ideia feliz,
de mostrar ao povo de Ibirajuba, não só ao povo de Ibirajuba,
principalmente, mas ao pessoal de fora, também que este pessoal
existe, e merece ser valorizado. (DEPOIMENTO DE JUSTINO IZIDORO
DA SILVA,56 anos).

Nas mediações entre práticas socioculturais e trabalho busca-se o lugar nas


culturas festivas, possibilitando atribuir diferentes significados às relações campo-
cidade nessa Festa do Carreiro que se realiza no município de Ibirajuba (PE).Entre
o mito, a irrupção do sagrado e o profano situamos essa Festa visto que se procura
explicar o “porque” da existência dela em que se vai ao “como” em que se encontra
nesse campo simbólico imbricada aos atos religiosos, haja vista que a sociedade
ampliada do município, assim como os próprios carreiros são percebidos,
simbolicamente, interligados ao padroeiro do município, São Isidro, tendo em
vista que todos aqueles participantes dos atos religiosos se consideram católicos,
fato que correlaciona esses atos religiosos da Igreja a preceitos antigos.
Segundo Rita Amaral, ao referir-se à festa na dimensão religiosa, esta vai
ser interpretada além do tempo,
Guardar as festas é importante característica do judaísmo e do
catolicismo, preceito que encontra seu sentido, para estas religiões, no
mito de criação do próprio mundo, pois já durante a criação, Deus
ordena ‘Que haja luzeiros no firmamento do céu para separar o dia e a
noite: que eles sirvam de sinais, tanto para as festas quanto para os
dias e os anos’(GÊNESIS, 1:14,15.In:AMARAL, 1988,p.66). [...]Os
luzeiros são o sol e a lua, indicando deste modo que eles devem marcar
não apenas a passagem do tempo mas, antes ainda, o tempo da festa.

Portanto, no simbolismo dessa linguagem há sinais da história de vida dos


carreiros, identificados num dos aspectos da história vivenciada por Isidro, o
Santo Lavrador, tendo em vista que ambos se relacionam ao campo, e são
influenciados pelas crenças na existência de cada tempo vivido, quer seja pelo
católico que se tornou santo, quer seja pelos carreiros, como dá-se a perceber na
citação de Amaral ( Op.cit, p.66).A Festa do Carreiro em sua segunda década
existente tem sua comemoração na primeira semana de dezembro, constituindo,
portanto, um bem cultural, com o qual a sociedade pode compreender e identificar
a cultura desse povo.
Por outro lado, na Festa não se perde a renda, não se perde o ganho
econômico. Quanto ao tempo da festa em que se busca a comemoração Eliade
(2008, p.86-87) vai dizer que sempre ocorrem em estações mais ricas, mais
abundantes, pois entende-se haver uma vertente de uma manifestação sagrada,
fazendo lembrar de que ao contar essa ontofonia sagrada, que não deixa de
“fixar” modelos exemplares vão se enchendo de ritos de atividades humanas que
são significativas, quer seja na alimentação, no trabalho, buscando imitar os bons,
aliás vistos como bons, comportando-se como seres responsáveis, nesta
investigação os carreiros, alguém que está sempre presente nos mais distintos
lugares, repetindo ações similares importantes, no campo, numa atividade social ,
cultural ou econômica.
Neste sentido constata-se que a população ibirajubense é muito participativa
nas celebrações da Igreja de São Isidro, durante a semana dedicada à Festa do
Carreiro, e expressa predominante que a grande parte das pessoas participantes
dos atos religiosos são os adultos e idosos. Os jovens estão bem mais ligados à
dimensão mais profana , considerando como diz Mircéa Eliade (2008) que o
profano jamais se encontra em estado puro, visto que na festa .participam com
maior intensidade no desfile da rainha dos carreiros, uma vez que várias jovens
desfilam, enquanto estão sendo apreciadas por uma comissão julgadora. Não
obstante, os jovens e os adultos ao participam das apresentações das bandas
locais, somente assim fazem após a celebração eucarística. No domingo, último
dia da Festa do Carreiro, no horário matinal, acontece uma missa dedicada aos
carreiros. Nesse momento, tendo à frente a imagem de São Isidro, o Pároco local
caminha, seguido dos carreiros, quando ao passar em frente à Igreja do Padroeiro
Santo Isidro, vai invocar à Bênção para todos os Carreiros.
A Festa como patrimônio imaterial
A Festa do Carreiro ao ser percebida como um patrimônio imaterial trata
das heranças que não podem ser tocadas, mas que são sentidas, também situadas
no imaginário das pessoas. Todavia, essas manifestações imateriais, só conseguem
ser concebidas pelas pessoas se tiverem uma representação material delas. A
Festa não pode ser tocada com as mãos, como se toca uma escultura, mas,
existiria de fato todo um arcabouço simbólico para identificarmos quem é o
carreiro, o personagem carreiro. Essa festa, existe como movimento que possui
relevância na cultura local, principalmente para grupos econômicos que se situam
como pessoas de classes socialmente menos favorecidas no município, vistos na
relação direta que tem o carreiro, na sua interação campo-cidade e com a própria
história do representante na Não utilizar vara com ponta perfurante (ferrão); não
trazer animais que não sejam domesticados (selvagens); após os festejos, não
permanecer com os animais amarrados até altas horas;hagiografia católica.
Ao pesquisar sobre a Festa do Carreiro em Ibirajuba (PE), como patrimônio
imaterial, apresentaram-se inquietações em direção à análise do sujeito carreiro,
visto em sua importância cultural, social e econômica no seio da sociedade do
município. No decorrer deste artigo, também se busca a identificação da
sociedade, nesta visualização do carreiro no município, motivações que os fazem
articular-se religiosamente com o padroeiro do município, criando assim uma
relação que permeia o mundo do trabalho, naquilo que se representa nos dias
festivos. Vincula-se ainda à labuta as relações desses trabalhadores com a
natureza ao tornar os animais essenciais ao seu trabalho, de maneira que se faça
produzir voltado ao ambiente sem trazer danos.
Neste espaço da cultura da festa, através dos vestígios do passado, tem
emergido as músicas, assim com imagens, poesias, memórias, o código da festa,.
Na afirmação de Delgado (2003, p. 15) “A memória é reviver, representar,
reativar, reconstruir, relembrar, é acima de tudo um resgate do tempo passado que
não se perdeu.” Assim, o trabalho com as memórias possibilitará expressar a festa
nas relações com o lugar e como os que nele se identificam e a concebem. A
cultura enquanto representação de um povo permite reinventar suas práticas seus
anseios, seus modos de tratamento, não somente com os humanos, mas ainda com
a natureza mais ampla, também com os animais que venham a utilizar no campo,
no trabalho.
As narrativas são outro elemento importante em relação às heranças
identitárias e das tradições. Narrativas essas que são feitas escritas e
por registros orais, transmitidas pela arte de contar, onde traduzem em
palavras, as lembranças da memória (DELGADO, 2003,p.21).
Ao pensarmos a Festa do Carreiro, sendo um patrimônio imaterial do
município de Ibirajuba (PE), como o evento que naquele momento da festividade,
reúne os grupos sociais diversificada os da região, haja vista que ricos e pobres,
(financeiramente), comungam de um passado em comum, tradicional, ligado ao
homem do campo, seja por vivenciar pessoalmente tal realidade, ou por ter algum
parente que vivencie tal prática de trabalho no campo – cidade, sem perder de
vista que a maioria da população que participa da festa é das camadas econômicas
mais simples, de maneira que nas culturas festivas a maior participação é muito
mais do povo. De forma que já foi bastante interpretado que
[...] as parcelas do povo que mais intensa participação têm na
festividade são formadas de pessoas mais simples originárias das
camadas mais modestas da sociedade. É indispensável, por isso, que a
festa se constitua numa oportunidade extraordinária para a participação
do povo na cultura (ALVES, 1980,p.80).

Assim, a festa busca reviver tais tradições inventadas, uma vez que o
coletivo social evoca uma ligação de passado e presente por meio da Festa do
Carreiro, ao expressar a reafirmação das práticas culturais perante a sociedade,
numa ligação do homem com a História e natureza, quer seja pela sua ligação e ou
identificação direta com seu carro de boi, dentre outras práticas sociais
correlacionadas ao campo – cidade, mesmo que par isto não necessite de uma
longa duração na História.
Por sua vez, Hobsbawm vai defender que
O termo ‘tradição inventada’ é utilizado num sentido amplo, mas nunca
indefinido. inclui tanto as ‘tradições’ realmente inventadas, construídas
e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira
mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo –
às vezes coisa de poucos anos apenas – e se estabeleceram com
enorme rapidez. (Hobsbawm, 1997, p.9)

A Festa do Carreiro em Ibirajuba (PE) atribui uma multiplicidade de


significados, do ato religioso, da valorização do homem do campo e seu meio de
trabalho, de um coletivo social que se estreita com a cerimônia religiosa e vive o
profano na festividade correlacionada aos desfiles, danças, exposições de trabalhos
artesanais, poemas, enfim ao reconhecimento da sociedade ibirajubense ao
carreiro pela sua “força e determinação”, e acima de tudo pela base fundadora do
município de Ibirajuba, tanto na economia de subsistência, como na construção da
sede do Município e demais construções existentes no seu entorno. Um outro dos
carreiros entrevistados traz à memória e se pronuncia numa das entrevistas
Para a fundação da cidade, se tirar o que o boi serviu para colocar,
praticamente a cidade não existe! A importância do boi na cidade foi
erguer a cidade... Por isso que existe a tradição Festa do Carreiro, por
conta, do que a cidade cresceu e em volta do carreiro” (GEOVANIL
PAULO FERREIRA, 26 ANOS).
Nesse sentido que diz Geovanil, sobre a tradição recorremos ainda a
Hobsbawm que diz “Consideramos que a invenção de tradições é essencialmente
um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao
passado, mesmo que apenas pela imposição da repetição” (HOBSBAWM, 199, p.
12). O Município terá este ano sua décima oitava Festa do Carreiro. A última festa
contou com a participação de cinquenta e cinco carreiros no desfile pelas principais
ruas da cidade de Ibirajuba. (PE).
Tendo em vista a relevância da festa para os carreiros numa sociedade, que
se encontra inserida no espaço campo-cidade de Ibirajuba( PE) o carreiro,
presente, se faz ativamente, seja trabalhando em uma economia de subsistência
no plantio do feijão e milho, especialmente, ou na construção civil, transportando
pedra para alicerce, areia e água, considerando que a festa do carreiro traz consigo
as tradições, costumes, valores, simbolismos religiosos, ao buscarem homenagear,
valorizar e, principalmente reconhecer nesses trabalhadores atuantes a sua
contribuição ao município de Ibirajuba

O carreiro em ação se modifica


Os carreiros são homens simples, humildes do cotidiano, que tem suas
origens correlacionadas ao campo, vistos desde cedo como observadores dos seus
pais trabalhando na agropecuária, para manter o sustento da família, e tiveram que
seguir os passos que se assemelham aos seus pais, contribuindo com a
agricultura, inicialmente no plantio, depois apreendendo a lidar com o carro de boi,
atuando na economia muitas vezes na própria família.
Neste sentido ouvimos como respondente durante a entrevista sobre a vida
de iniciação do carreiro, suas funções, a importância do carreiro, com atua em
seu trabalho, como carreiro residente no município de Ibirajuba.
Eu comecei com doze anos de idade a carrear no carro de boi, na
agricultura, arar a terra, carregar lenha no carro de boi, água, areia,
tudo agente carregava. É muito importante para o homem do campo, se
não fosse o carro de boi , a junta de boi tirou o peso do homem do
campo todinho. O carreiro é muito importante para todos os
agricultores, se não fosse o carro de boi, para carrear as coisas, arar a
terra, nada tinha. Se não fosse os carreiros a situação não era boa né...
homem trabalhador do campo. (DEPOENTE GERALDO PAULO FERREIRA,
62 ANOS).

Percebe-se como o depoente se auto valoriza, e coloca os carreiros de


modo essencial no município, coloca os carreiros como protagonistas no campo,
trabalhando com os bois, mas é interessante salientar, que o homem nem sempre
contou com os animais em suas atividades na agricultura, os animais ajudam com
certeza, mas com ou sem eles o homem produziria seus alimentos.
Muitos desses carreiros relatam que ao iniciaram o trabalho de carreiro, em
épocas difíceis, visto que todos tinham que contribuir de alguma forma na
economia da família, mantendo assim o sustento da casa. Portanto, os carreiros
revelam como foi decisivo tornarem-se carreiros, num desafio perante a situação
econômica de suas vidas, posto numa visão mítica para alguns ao terem tamanhas
agruras sociais e econômicas. Não vistos como explorados do campo, ou pela
ausência de incentivos mais significativos à vida agrícola, distinguiam o que lhes
restava: trabalhar ou morrer de fome. Não se tinha escolha, a partir disso
aprenderam com os seus pais e outros parentes a lidar com os carros de bois, e
acabaram seguindo a profissão.
Não obstante, sabem na contradição valorizar o trabalho que realizam com
maior importância especialmente no campo. Apesar de afetados na escolarização
quando crianças e jovens revelam que hoje põem seus filhos para estudar, pois
outrora não se valorizava tanto os estudos como hodiernamente.
O que vem a ser carro de boi, como parte integrante do trabalho do
carreiro? Sem este boa parte do serviço não poderia ser concluído, como, por
exemplo, na aração da terra, no transporte dos produtos plantados, como o feijão e
milho, além dos materiais ligados à construção civil, areia, água e pedra para
alicerce; a madeira que pode ser revendida no campo e na cidade. Além do carro
de boi, como meio de transporte para o carreiro e sua família, interligando- os à
cidade ou ao campo revelando-se como o carro de boi se faz necessário e
indispensável ao carreiro, na consecução do seu trabalho com significado nessa
integração do trabalho do carreiro, no processo homem natureza.

A relação cidade campo mediada pela crença religiosa: São Isidro Lavrador
na representação local de trabalhadores
Além do reconhecimento e identificação por parte da sociedade e do próprio
carreiro, em relação ao padroeiro da cidade, Santo Isidro, homem do campo,
humilde e simples (Séc.XI-XII) como madrilenho que teve uma vida honesta
ajudando ao próximo. Esse reconhecimento, tanto pelo carreiro como pela
sociedade, se imbricam durante os atos religiosos, formando uma identidade deste
homem do campo com o padroeiro do município de Ibirajuba Isidro, que em sua
história de vida, também fora agricultor.
No decorrer de outro depoimento de Justino Izidoro, já referido entre os
entrevistados, morador residente no município de Ibirajuba, este diz sobre essa
relação do Santo Isidro com os Carreiros:
A história de Santo Isidro, se agente for atrás, ele nasceu... ele era na
verdade um carreiro da Espanha ele era um carreiro, né Santo Isidio,
vivia da agricultura e trabalhou muito... e acho não sei, é um dom a
vida da gente, e eu tive a felicidade de estar nessa festa, onde ele é o
padroeiro, onde ele foi uma das pessoas, que foi agricultor e que
trabalhava também com o carro de boi. (JUSTINO IZIDORO,56
ANOS(sic)
Portanto, percebe-se que a relação do padroeiro, São Isidro, Lavrador, com
os carreiros não foi premeditada pelo fundador da festa, na origem do berço do
padroeiro, o que bem revelou ao certo foi que este era agricultor. O carreiro
Geraldo Paulo Ferreira, em seu depoimento mostra que a festa é muito importante
para a categoria de carreiros, quando diz
Na festa, todos nós carreiros ficamos com bastante alegria, na
passeata com todos carros de bois, pra mim é muito importante. Santo
Isidio era agricultor, nós comemoramos essa Festa do Carreiro
colocando Santo Isidro, também [. ]seguindo a tradição de São Isidro,
(GERALDO, 62 anos).

A tradição concebida por Geraldo na abordagem sobre Santo constitui


uma relação com o próprio trabalho do campo, visto que na história ambos tiveram
e tem atuação no plantio, lidam com os animais trabalham com a força destes.
Identificam-se portanto, através de suas práticas sociais, culturais, de maneira que
nos atos religiosos, essa relação chega aos pontos máximos nas crenças,
costumes, tradições e valores,
Geovanil (2013), o último depoente, acrescenta que o carreiro teve e
continua com tamanha importância na constituição do Município, embora não
possamos deixar os demais sujeitos historicamente participantes da formação do
município, por exemplo, o pedreiro, o servente, os donos de mercearias, os
funcionários públicos, neste espaço histórico, cujos carreiros são marcas históricas
na formação do município. A sociedade ibirajubense reconhece e valoriza a
participação do carreiro nesse processo de construção do município de Ibirajuba.
Contemporaneamente o poema de Adenilza Batista, residente no município
de Ibirajuba, e colaboradora voluntária da coordenação da Festa do Carreiro, evoca
a memória do seu pai ao situar como era a vida da sociedade ibirajubense, antes
dos transportes modernos. A população demandava os serviços dos carreiros,
sujeitos importantes nesse processo de locomoção dos produtos agrícolas do
município, fazendo uma interligação campo-cidade, e, além disso, utilizando os
carros de bois como próprio meio de transporte, para se locomover de uma região
a outra que de maneira poética nos diz sobre Ibirajuba
Antigamente não tinha
Os carros de vários portes
Não tinha nenhum transporte
Nem devagar nem ligeiro
Isso era de primeiro
Foi pai quem falou
Que o pobre agricultor
Se valia do carreiro1

1
Poema cedido: Por Padre Ednaldo Alves da Silva da Paróquia de Santo Isidro-Ibirajuba (PE),
presente em seu acervo no período.
Portanto, nesse verso se pode perceber que tanto no campo como na
cidade, o carro de boi, foi transporte principal da sociedade ibirajubense em sua
fundação. O jornal do município de Lajedo (PE), denominado de O Jornal, traz
pequena reportagem que fala obre a Festa do Carreiro, e a importância do
carreiro, mesmo antes da fundação do município de Ibirajuba (PE), que diz: “A
presença do carreiro no município é muito antiga, pois mesmo antes da
emancipação e quando ainda não existiam veículos motorizados, o carro de boi já
fazia parte do cotidiano local, seja na zona urbana quanto na zona rural sendo o
principal meio de transporte” (O JORNAL, nov. 2010: 09).

O carreiro nas transformações sociais com a Festa: surge o Código


À medida que a festa existe na tradição, à qual vai se concebendo como
patrimônio imaterial ao ser respeitado nessa prática sociocultural vamos entender
que sempre serão considerados critérios éticos a serem estabelecidos neste espaço
que se constitui, também, espaço de direitos, com o surgimento de novas atitudes
de valorização patrimonial, da maneira que surgiu o Código de Conduta que não
poderia estar ausente da Festa. O carreiro assitiu outras mudanças, as mais
ousadas como as rodas do carro de boi que que eram de madeira e passaram a
ser de pneus. Ele se dá conta da chamada modernidade e sente que há novas
exigências pertinentes ao mundo do trabalho e da festa, disso precisará
compreender as exigências e implicações do mundo atual,e envolvido com as
tecnologias. Mas, este resiste ao tradicional, às praticas culturais antigas. Todavia o
capitalismo não exerceu um papel de mudança total na sociedade, as dificuldades
ao homem do campo tem permanecido no Brasil. A atividade exercida pelo homem
do campo se encontra com o serviço remunerado, de maneira mais intensiva, já
não é mais troca de trabalho , nem mesmo a frequente prática do mutirão, como se
realizara outrora no município de Ibirajuba (PE), considerando que homem do
campo continua mantendo suas raízes e vivenciando impactos. Neste cenário
Martins vai indagar
A que parâmetros recorre a modernidade para “ver-se”, situar-se,
compreender-se (recusar-se) nessas situações? Recorre ao
in(moderno), ao não moderno, ao mundo rústico, ao sertão onde
estariam nossas raízes e nossa autenticidade.” (2000: 28).

Por outro lado, enquanto Hobsbawm vai referenciar-nos face às novas


exigências, às normas, inserindo nas tradições inventadas, vai atribuir outros
sentidos, interpretando que
Por ‘tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas,
normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais
práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e
normas de comportamento através da repetição, o que implica,
automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. Aliás,
sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um
passado histórico apropriado (HOBSBAWN, 1997, p. 09).

Assim vista, vai implicar no dizer do historiador que continuará com um


passado histórico, bem mais pela força da repetição. Na atualidade, a Comissão
Organizadora da Festa do Carreiro de Ibirajuba (PE), apresentou o Código de
Conduta do Carreiro, na abrangência de oito tópicos Este documento se encontra
atualmente em posse da Paróquia de Santo Isidro, no município de Ibirajuba (PE).
1 Não utilizar vara com ponta perfurante (ferrão); não trazer animais que
não sejam domesticados (selvagens); após os festejos, não permanecer
com os animais amarrados até altas horas;
2 Proibido levar bebidas alcoólicas, não levar mais de 4(quatro) pessoas
em cima dos carros de boi durante a caminhada;
3Presença de crianças em cima dos carros de boi, só será permitida com
autorização dos pais ou responsáveis.
4 O carreiro não deve fazer ultrapassagem durante a procissão, a ordem
dos carreiros será definida pelo número de inscrição;
5 Não é permitida a ultrapassagem de motos ou veículos barulhentos
durante a caminhada a frente dos animais durante o trajeto, para evitar
stress dos animais, motivo pelo qual poderá ocorrer acidentes;
6 O carreiro que não cumprir com as regras, prescritas no regulamento
deverá ser retirado automaticamente da caminhada sem advertência;
7Proibida a queima de fogos de artifício durante a caminhada;
8 Casos omissos serão resolvidos pela comissão organizadora e comissão
dos carreiros. 2;

O Código traz consigo uma abordagem ética de conduta a ser seguida


durante a Festa, visto que o bem estar da sociedade e dos animais está em
primeiro lugar, cujo documento revela novos entendimentos ao carreiro. Portanto,
o carreiro se mostra como o homem que entre as permanências e mudanças, da
tradição às mudanças, em um busca de manter o elo do passado no presente,
continuando o tradicional numa relação nem sempre integrada à modernidade. A
festa, busca ao emergir suas práticas sociais, nas simbologias que se revigoram,
de maneira que a sociedade compartilhe das representações de sua história, sendo
também da Festa do Carreiro, uma vez que se valoriza e reconhece o carreiro,
agente social de importância na História do município de Ibirajuba (PE) embora
que nem sempre os carreiros se sintam contemplados face às novas demandas
exigidas pela modernidade na ordem do Capitalismo.Do lado do Código, visto como
o Código do Carreiro a festa inseriu de maneira normativa a relação de respeito e
conduta ética, que existe entre o carreiro e seu transporte, carreiro e a população
durante seu trabalho no dia – a – dia, quanto no desfile, nessa tradição inventada.
O Código se correlaciona com normas reguladas por regras que devem ser aceitas e
colocadas em prática durante o percurso, concebendo ser a Festa do Carreiro uma
relação social que transpõe barreiras, que evoca mudanças que se põe circulante

2
Documento Código do Carreiro cedido: Por Padre Ednaldo Alves da Silva da Paróquia de Santo
Isidro-Ibirajuba (PE), presente em seu acervo no período.
, que caminha como Patrimonio imaterial a ser compreendido aos ibirajubenses,
também aos pesquisadores e assim ao público.

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Nazaré, em Belém. Petrópolis, Vozes, 1980.
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história na modernidade anômala/ José de Souza Martins. – São Paulo : Hucitec,
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OJORNAL. Ibirajuba realiza XV festa do carreiro. Ano I, número 7, Nov. 2010.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História cultural. 2. Ed. 2. Remp. – Belo
Horizonte; Autêntica, 2008.
O JORNAL, nov. 2010: 09
Depoentes
 Justino Izidoro da Silva. Morador residente no município de Ibirajuba (PE),
Fundador da Festa do Carreiro. (56 anos)
 Geraldo Paulo Ferreira. Carreiro morador residente no município de Ibirajuba
(PE). (62 anos).
 Geovanil Paulo Ferreira. Carreiro morador residente no município de Ibirajuba
(PE). (26 anos).
VIVA! SÃO BENEDITO, SANTO ANTÔNIO E SÃO JOÃO.

Liliane de Jesus Oliveira Lima 1

RESUMO:

Este ensaio é parte da Dissertação de Mestrado que busca historiar os diversos momentos
festivos que ocorriam em Santo Antônio de Jesus/BA entre 1910 e 1950. Tem-se por
objetivo estudar as festas religiosas como espaços de sociabilidade e solidariedade, visa
ainda analisar a participação da população nos diferentes espaços dedicados a estas festas.
Utilizamos como fontes jornais e entrevistas. Observamos ate o momento que a realização
dessas festas envolvia o espaço religioso e o espaço adaptado ao seu contexto, que estão
vinculados a um espaço social, convencionalmente chamado de sagrado e profano, que são
o local de comunicação da festividade religiosa, pois, quando há oportunidade estes
espaços interagem. Assim, estas festas eram também espaços onde os rituais sacros
interagiam com outras manifestações, e, constituíam-se em um momento no qual os
costumes cotidianos se reelaboravam e subvertiam determinadas ordens e fronteiras
sociais.

Palavras-chave: Santo Antônio de Jesus; Religião; Festas.

A vida da população de Santo Antônio de Jesus, na primeira metade do século XX,


não se resumia apenas ao trabalho e a casa. Existiam múltiplas formas de festejar que
proporcionavam descontração e prazer, tornando, assim, o cotidiano mais agradável.
Mais afinal o que é uma festa? E um festejo e festejar?2 Não almejamos aqui
principiar uma discussão acerca dos conceitos existentes sobre o termo festa3 ou da
polissemia4 do mesmo, nem tampouco minimizar as diferenças existentes nas múltiplas
festas e formas de festejar existentes no Brasil.
Desejamos propor uma reflexão que nos leve a pensar a festa para além da forma
convencional, preestabelecida e totalizadora que geralmente temos, pois como nos diz
Norberto Guarinello, “[...] essa concepção quase intuitiva da festa choca-se,
frequentemente, com a diversidade de interpretações de um mesmo ato coletivo: o que é
festa para uns, pode não ser para outros” (GUARINELLO, 2001, p 96 e 97). Lembremos
que há pouco tempo atrás, no século XIX, a morte era uma festa5, sendo ainda possível
acontecer estes cortejos fúnebres que faziam da morte uma festa em algum lugar no país.
Será então que podemos considerar como festa, outras formas além dos eventos
oficiais com datas marcadas, que acontecem periodicamente, organizadas pela Igreja, pelo
Estado ou pela família nas quais a cidade se prepara e espera ansiosamente dias antes para
a quebra da rotina?
A exemplo destes eventos, temos o Carnaval, as comemorações de aniversário, as
comemorações do Dois de Julho, ou as festas religiosas como a ocorrida no Arraial de
Baiacu, na Ilha de Itaparica, narrada por Xavier Marques no Conto de Maria Rosa,

Essa vida, uniforme e lisa, só se interrompia duas semanas em cada ano,


para as festas da freguesia [...] Um mascate que apareceu no arraial
deixou lá tudo o que levava no Baú. E faltavam apenas três semanas para
começar o festejo [...] Que alarido no outeiro! Que alegria na
vida!...Depois da missa veio o missionário e levou à pia do batismo um
lote de fedelhos [...] Copos de aguardente e vinho andavam de mão em
mão. Pelas vertentes referviam sambas. O templo já estava quase vazio.
A maior festa roncava lá fora, ao som da charanga, de cavaquinhos,
pandeiros, violas e harmônicas [...] Quando terminou o conflito, o mulato
da Matarandiba, impando de orgulho, sacudiu ao chão os destroços da sua
viola. (MARQUES, 1969, p. 118, 135,137 e 145).

Ensejamos pensar que sim, claro que este é um exemplo maravilhoso do festejar,
com a presença de quase todos os elementos que compõem uma festa, entretanto podemos
considerar outros momentos de divertimento e gozo como festa, como as conversas de fim
tarde, a campanha eleitoral, o cinema, futebol, o jogo, o almoço em família, e quem sabe
até o trabalho, pois ao observarmos atentamente estes momentos podemos encontrar a
maioria dos componentes festivos; a música, a comida, a reunião de pessoas, o riso fácil, o
grotesco, as sociabilidades, a bebida, os conflitos, os lugares preestabelecidos e as
diferenças sociais.
Desta forma, propomos pensar a festa, sem pretensão de generalizar ou reificar
termo tão polissêmico, as inúmeras formas de se divertir, de festejar, que nos momentos
fúlgidos em que ocorrem contemplem a maioria dos elementos que acreditamos ser a
própria festa, oportunidade de descanso, distrações, contentamento, confraternização,
sociabilidades e até conflitos. Além de fornecerem importantes informações sobre o
fenômeno de circularidade cultural e da sociedade estudada.
Portanto, em Santo Antônio de Jesus, o cotidiano era composto por várias formas
de festejar; entretanto, é importante destacar que alguns espaços eram mais elitizados, onde
apenas os mais abastados podiam frequentar e outros, mais populares, como as festas de
momo e religiosas, que atraíam várias pessoas e representavam a convivência entre os
diversos grupos sociais que compunham a cidade.
É importante destacar que neste trabalho daremos destaque apenas às festas
religiosas em comemoração a São Benedito, Santo Antônio e São João que ocorriam em
Santo Antônio de Jesus, abordaremos ainda de forma breve a festa de Cosme e Damião.
“As atividades religiosas eram as mais ordenadas. Os presépios de Guilhermina, que
morreu em 1940, despertavam interesse dos roceiros e dos cidadãos” (ALVES, 1967,
p.295).
As atividades religiosas faziam parte do calendário festivo de Santo Antônio de
Jesus. Como observamos na citação acima as festas eram ansiosamente esperadas pelos
moradores, Dona Venância, em seu depoimento, afirma a sua preferência pela festa de
Reis,
Quando mocinha, nós morava na roça, eu gostava era da festa de Reis,
papai levava a gente para a casa de um compadre dele que era aqui na
cidade... e não me alembro mais onde ele morava, e nós ficava lá a
semana toda, tinha baile, quando os rapazes queria dançar com a gente
jogava um lencinho no chão, ai se a gente pegasse estava liberado podia
dançar (risos) e se deixasse o paninho lá caído eles voltavam pega o pano
e se entufava6.

Segundo a depoente este momentos era de muita diversão, quando surgia a


oportunidade de ficar fora de casa, da dança e do flerte.
Entretanto, no período estudado, as festas religiosas mais apreciadas pelos
moradores da cidade eram a de Santo Antônio, o padroeiro, São Benedito, São João e as
festas de Cosme e Damião. Segundo Albuquerque, as festas religiosas, as comemorações
populares e o Carnaval permitem a investigação de particularidades da sociedade baiana e
concepções culturais, nem sempre conciliadoras sobre o sentido de ser e de estar na festa e
na rua. “As festas públicas nos parecem um bom ângulo para tentarmos perceber esta velha
Bahia em tempos republicanos, já que enquanto duravam se tornavam palco de disputas
sociais e políticas, assimilações e recriações culturais, todas girando em torno das formas
de apropriação do espaço urbano”. (ALBUQUERQUE, 1996, p. 107).
Em Santo Antônio de Jesus, as festas religiosas que povoavam o calendário o ano
inteiro, também eram formas de apropriação do espaço público em momentos consagrados
como de confraternização e alegria. A praça pública ou as ruas propiciavam o encontro de
grande parte da população que queria se divertir e homenagear o santo do mês, a cidade se
enfeitava para celebrar com barraquinhas e queima de fogos de artifício. Segundo Amaral:
O constante festejar brasileiro, de caráter essencialmente religioso, de
fato, não é recente e a literatura dos viajantes nos prova isto. Chegando
ao Brasil, muitos deles ficavam simplesmente admirados quando, já a
partir da porta das primeiras igrejas avistadas, e por todo o percurso das
inúmeras procissões que se realizavam constantemente, contemplavam as
imensas “alas” compostas por carros alegóricos. Neles, gente fantasiada
dos mais diversos personagens, ricamente vestidos e adornados,
corporações de ofício e irmandades religiosas, os grupos de dançarinos e
músicos, desfilavam, lado a lado, todos juntos. A cidade e os habitantes
preparavam-se cuidadosa e caprichosamente para que, nos dias de festa,
pudessem realizar com primor seu espetáculo e todos os participassem
extraindo da festa a maior alegria possível, com devoção e entusiasmo.
(AMARAL, 2001, P.59).

De acordo com a autora, as festas brasileiras serviam como mediação entre os


diferentes indivíduos que aqui habitavam, tornando mais fácil a vivência em um lugar
desconhecido, “[...] as festas religiosas foram importante mediação simbólica, constituindo
uma linguagem em que diferentes sujeitos podiam se comunicar [...]” (AMARAL, 2001,
P.59).
Vale ressaltar que, no período acima descrito, era obrigatória a participação nas
festas religiosas, de todos aqueles que compunham a sociedade da época, inicialmente os
portugueses e índios e posteriormente os escravos. Amaral afirma ainda, que já
encontramos menções sobre a festa desde o mito da criação do mundo, “[...] guardar
domingos e festas de guarda, pois, desde a criação, Deus ordena que haja luzeiros [...] que
eles sirvam de sinais, tanto para as festas quanto para os dias e os anos” (AMARAL, 2001.
P.59), assim, as festas religiosas, aos poucos, foram se incorporando ao cotidiano dos
brasileiros.
No entanto, é importante destacar que essas festas foram reconfiguradas
culturalmente; recriadas, adaptadas e transformadas para novos fins e, assim,
caracterizadas também por uma forma de resistência e oposição as velhas e novas ordens.
Trata-se, portanto, de múltiplas assimilações, dos costumes ancestrais trazidos a bordo dos
navios negreiros e dos ritos católicos, adaptadas aos costumes aqui já existentes.
Para os santoantonienses, o calendário das festas se iniciava com a festa de São
Benedito, que era realizada no mês de janeiro. Segundo Maria Rosa, essa festa atraía a
atenção de muita gente: As festas eram muito divertidas, tinha muitas barraquinhas e as
ruas ficavam cheias de gente. “As pessoas vinham de todos os lugares em busca das
atrações da festa. Tinha até quem viajava nos carros de boi e na carroça, mais tinha gente
que mesmo longe, das roças também vinham e vinham a pé” 7.
Os habitantes da cidade e das regiões vizinhas esperavam e se preparavam para
estas festas durante todo ano e migravam para Santo Antônio de diversas maneiras, numa
época em que as distâncias pareciam maiores e os transportes eram poucos, a distância não
era empecilho para estar nas festas.
Maria de Xangô, em seu depoimento, declarou, ainda, que apreciava a festa de São
Benedito e que a parte que mais lhe agradava era quando a Marujada percorria as ruas do
centro da cidade; “[...] era lindo, todo mundo vestido de branco, tocando as espadas e
dançando”8.
A festa de Santo Antônio, o padroeiro da cidade, também atraía muitas pessoas de
todos os bairros. O trezenário iniciava no dia 31 de maio – com uma caminhada pelas
principais ruas da cidade, todos cantando o hino em louvor ao santo homenageado, [...]
bem mereceste ter com amor em vossos braços oh Salvador. Salve Grande Antônio Santo
Universal que amparais aflitos contra todo mal.[...] Lançai vosso olhar em piedade Santo
Antônio fiel ao senhor, abençoai também esta cidade, que vos rende um culto de amor.9
Encerrava com uma missa na manhã do dia 13 de junho. De acordo com os
depoentes e os jornais pesquisados, nas festas religiosas, o espaço era compartilhado por
toda a cidade, sem limites ou fronteiras visíveis.
A festa do padroeiro. Segunda feira 13 a cidade sentira a impressão viva
que lhe há de transmitir a fulgurante homenagem do povo ao santo
padroeiro que é o glorioso Antonio. A trezena começada na Matriz desta
Freguezia desde a 1° noite é assistida de modo que a área interna da santa
igreja vive literalmente cheia de fieis. O ardor da devoção domina tanto a
alma do adulto como o animo da criança10.

Contudo, Santos, em sua dissertação que discute o estudo do cotidiano de homens e


mulheres que se deslocavam de áreas rurais para trabalhar como feirantes na feira livre de
Santo Antônio de Jesus-Bahia, entre os anos de 1948 a 1971, nos diz que:
Espaços de intercâmbios e interações culturais, a procissão de Santo
Antônio exprimia dimensões do mundo espiritual do qual alguns feirantes
faziam parte e reafirmava a presença desses homens e mulheres
praticando o espaço urbano também no tempo da festa. Longe de ser um
espaço isento de hierarquias, o cortejo apresentava uma ordem que, na
prática, também reproduzia hierarquias sociais. Essas diferenças eram
marcadas pelo caráter multifacetado da procissão. Os fogos de artifício
que embelezavam o cortejo e asseguravam uma estética particular à festa,
conferiam um grau de importância também aos homens responsáveis por
tal função naquele momento. Junto ao andor, homens da roça ou da
cidade, ora disputavam, ora se revezavam na condução do Santo,
excluindo as mulheres dessa função. Assim como as mulheres da roça,
inclusive as feirantes, não eram escolhidas para fazerem parte da
comissão da festa. Mas, mesmo diante dessa realidade, cada um marcava
seu lugar na procissão. (SANTOS, 2007, p. 128.).

Nota-se, que, nas festas religiosas, o espaço era compartilhado por todos: pobres e
ricos, pretos e brancos. Entretanto, em um ambiente de suposta liberdade, as diferenças
sociais estavam bem delimitadas, “À frente do cortejo, o pároco e demais eclesiásticos,
dividiam espaço com a elite local que geralmente eram os escolhidos para fazerem parte da
comissão da festa a cada ano” (SANTOS, 2007, p. 128). Mesmo diante desta realidade, a
população pobre não deixava de comparecer nesses festejos, cada um marcava seu lugar na
luta pela conquista do seu espaço.
Assim sendo, se em alguns momentos as festas religiosas simbolizavam a
participação de todos, algumas ações, em contraposto, caracterizavam-se por reproduzir
dependências, conflitos e diferenças sociais.
A festa de São João era mais uma das festas do calendário religioso que agitava o
cotidiano dos santoantonienses, para Maria Rosa, a festa era boa tanto na cidade quanto na
roça:
Para as pessoas da igreja todos os esforços eram para São João, todas as
homenagens prestadas era para ele, até pular a fogueira. Às vezes quando
eu era criança nós íamos para a festa de São João na roça. Era uma
fartura, tinha milho, amendoim, galinha cozida, a gente não ficava só em
uma casa visitava também a casa dos outros amigos. Depois de um tempo
nos não íamos mais para roça, mas aqui na cidade tinha tudo isso
também. Mais também tinha algumas pessoas que iam pra missa e depois
ia atrás de dançar, beber e jogar. Ia mesmo era para fuzarca11.

No depoimento acima, percebemos que os festejos juninos em Santo Antônio de


Jesus eram comemorados tanto na zona rural, quanto na cidade e que eram regados de
muita comida e bebida. Ficam evidentes, também, os diferentes modos de agir, pensar e
interagir dentro da festa, bem como a dimensão espiritual desses participantes. Assim, o
depoimento de Maria Rosa é relevante também para refletirmos acerca da relação entre os
espaços construídos nas festas, pois o espaço destinado à devoção também se tornava
disponível ao lazer e às socializações.
Aceita e auxiliada pelo espirito religioso do povo, a festa ontem
concluída em lôuvor do padroeiro Santo Antonio, teve todo esplendor. As
trezenas, que a precederam, estiveram muito concorridas, atuando no
coro da Matriz uma orquestra excelente. A festa começou quase ás 11
horas [...] e a orquestra esteve magnifica. Fôra da Matriz o movimento de
girandolas, balões, trancafios e bombas foi retumbante e atraiu também o
povo. A empresa de Luiz Eletrica serviu magistralmente, expondo a
serviço da festa mais de mil lampadas12.

Verifica-se, portanto, que a realização dessas festas envolve o espaço religioso e o


espaço que é construído ou adaptado dentro do seu contexto. Essa manifestação
cultural/religiosa é considerada por Serra como festa de largo, já que envolve espaços de
rituais sagrados e de folguedos populares.
Uma festa de largo compreende sempre um rito, ou um conjunto de ritos
sacros, cujo foco espacial é um templo. [...] Mas as cerimônias sagradas
centradas no templo não constituem a totalidade da festa desse tipo. Ela
inclui ainda a realização de outros desempenhos, que têm lugar nas
imediações do templo – [...] Esses outros desempenhos vêm a ser,
principalmente, folguedos populares. [...] atividades que associam
comércio com diversão pública. (SERRA, 1999, p. 56).

É válido ressaltar que estes espaços que envolvem o templo e o entorno estão
sempre vinculados a um espaço social, onde os sujeitos ali presentes, em sua maioria não
demarcavam fronteiras entre estes espaços, convencionalmente chamado de sagrado e
profano, categorias que sugerem oposição e dualidade, sendo que estes espaços são, ao
mesmo tempo, o local de comunicação da festividade religiosa, visto que, quando há
oportunidade estes espaços interagem entre si, pois os participantes ali presentes viviam a
festa em sua totalidade, com todos os elementos que a constituem.
A festa de Cosme e Damião também apresentava este misto constituinte das festas
religiosas. A celebração em homenagem a esses santos ocorre no mês de setembro, e na
festa, havia o costume de distribuir doces para as crianças, oferecer caruru e rezar
ladainhas. De acordo com Santos:
A festa das Rezas de Cosme muitas vezes durava toda a noite e se
estendia até a manhã do dia seguinte com sambas, batucadas, às vezes
incorporações de santos e caboclos e outros signos e emblemas que fazem
parte do universo das religiões brasileiras de matrizes africanas ou
indígenas. Essa dinâmica reafirmava as diferentes convicções religiosas
dos vários sujeitos que faziam aquela festa, ao passo que balizava
fronteiras e ligava possíveis oposições entre o mundo profano e sagrado
daqueles indivíduos. (Santos, 2007. p. 138)

Assim, as celebrações dedicadas a São Cosme e São Damião eram também


exemplos de espaços onde os rituais sacros interagiam paralelamente com outras múltiplas
manifestações, dessa forma, constituíam-se em mais um momento no qual os costumes
cotidianos se reelaboravam e subvertiam determinadas ordens e fronteiras sociais.
As comemorações dedicadas aos santos “gêmeos” também atraíam muitos
santoantonienses e não se restringiam apenas aos espaços urbanos da cidade. No período
estudado, muitas pessoas celebravam a data, o que é possível verificar nos periódicos que
aqui circulavam com muitos anúncios convidando e divulgado a data em que realizariam a
celebração, bem como os atrativos que ofereceriam na noite.
Rua Maria Nunes, n 8 – Srs. Diretores d’O Detetive, como nos anos
anteriores, faço questão vossas presenças nas festas de Cosme e Damião,
efetuarei dia 30, contando concurso gentis senhorinhas nos tradicionais e
suaves hinos. Além das vozes excelentes e melodiosas dos jovens Manoel
Jambeiro e Alvorino Vargas, que farão ouvir depois da devoção com suas
modinhas, assim também se manifestarão no gozado candomblé, nossos
camaradas: Ernesto, Lindo, Astério, Jesuíno, Bernardo Joãozinho e muita
gente… O caruru será um sucesso e a orgia tomará o seu predileto lugar.
– Aguardo as vossas pessoas e ficarei satisfeito se ouvir um improviso
d’um representante da imprensa. Gracindo13

O anúncio acima nos traz várias informações sobre a festa na cidade, no período
estudado, a exemplo do local onde seria realizado o caruru; na Rua Maria Nunes,
conhecida na cidade como morada de negros e alvo de constantes batidas coercitivas.
Outra característica observada na programação é que, após a ladainha, haverá modinhas
cantadas pelos jovens Manoel Jambeiro e Alvorino Vargas, além do Candomblé.
Como os jornais também funcionavam como agentes moralizadores e as práticas
religiosas da população negra eram comumente vistas como incivilizadas e perigosas, era
comum a perseguição e a repressão às pessoas que professavam essas religiões14.
Por isso, é possível que o anúncio não tenha sido escrito por um morador da Rua
Maria Nunes; Gracindo poderia ter sido apenas o pseudônimo de um jornalista do
periódico que tivesse exagerado na dose de humor colocado no anúncio ou estivesse
estigmatizando as manifestações religiosas da população negra santoantoniense. Não
obstante, independente de o anúncio ter sido verídico ou não, através dele podemos
verificar algumas características das festas dedicadas a Cosme e Damião.
Notamos ainda, que havia nas festas dedicadas aos Santos gêmeos, a possibilidade
de uma intensa imbricação de outras religiões como o Candomblé, demonstrando que os
indivíduos ali presentes experimentam diferentes formas pertencimento a religião - ou
religiões -, assim, ao ser candomblecista não significava rejeitar alguns preceitos do
catolicismo, ou de outra religião, e vice e versa, e sim, a possibilidade de imbricar dois
saberes religiosos, através de uma relação de complementaridade, sem uma relação de
dualidade ou oposição.
É valido ressaltar, que essas possibilidades de imbricamento existiam, entretanto,
muitas vezes os rituais católicos foram utilizados como formas de resistência, ou seja, a
população negra sabia como eram vistas as suas práticas e muitas vezes se apropriavam
destes rituais para poderem manter viva, mesmo que reconfigurada as suas manifestações
religiosas.
Outra comemoração de rito religioso que atraía muita gente eram os batizados,
ocasiões especiais em que compadres, comadres, familiares, vizinhos e amigos se reuniam
para celebrar o acontecimento com muita comida e bebida.
Segundo Venância:
Quando nós éramos convidados para um batizado, nós íamos para ficar
na casa da pessoa que convidou. A festa começava num dia e terminava
no outro. Todo mundo dançava e se divertia até de manhãzinha. O dono
da casa dava café e até almoço. As festas daquele tempo não eram como
as festa de hoje15.

No depoimento de Dona Venância, podemos observar que ela expõe a memória do


passado com a influência do presente, “[...] as festa daquele tempo não era como as festa
de hoje”, ou seja, ela rememora o seu passado a partir do presente. Rememorar não é o
mesmo que viver novamente o passado, mas sim a releitura do sujeito que o produz numa
sociedade que se diferencia daquela a qual se refere à lembrança. Em virtude dessa relação
entre presente e passado, tem-se a possibilidade de circulação dos significados, devido aos
fatos lembrados, pois estes podem alterar-se de acordo com o momento em que estão
sendo revisitados na memória.
Podemos pensar ainda, que nesses momentos de alegria e descontração havia uma
intensa relação cultural de permuta contínua que influenciava os diferentes níveis culturais,
ou seja, uma circularidade cultural, conforme utilizado por Ginzburg analisando a obra de
Bakhtin, para designar essas influências como “[...] o influxo recíproco entre cultura
subalterna e cultura hegemônica [...]” (GINZBURG, 1987, p. 15).
Dessa forma, o conceito de circularidade sugere que os elementos da cultura
popular e da cultura hegemônica interagem entre si, ou seja, podemos encontrar entre as
classes populares e hegemônicas, características que aparentemente não fariam parte
culturalmente dos sujeitos analisados, o que “[...] permite problematizar a influência mútua
entre as manifestações populares e hegemônicas, perceber a imprecisão de suas fronteiras,
sugerindo, assim, um fluxo regular de interações entre elas” (FRESSATO, 2009, p.12).
Fica evidenciada, então, a existência de trocas culturais entre os segmentos da
sociedade santoantoniense que se influenciavam mutuamente; vale lembrar que estas trocas
se davam em um contexto que as manifestações dos negros e pobres eram -“rejeitadas”-.
Da mesma forma, como a população negra e pobre estava presente nas festas
públicas organizadas pelas elites, seja para lutar por um espaço no contexto da cidade, seja
para subverter “[...] com sua simples presença as regras da civilidade do bom-tom”
(CUNHA, 2001 p.174.), ou simplesmente por apreciar a festividade e se divertir, alguns
membros da elite também se faziam presentes nas festas promovidas pela população negra
por inúmeros motivos. Demonstrando assim, que mesmo com todas as imposições e
restrições as manifestações culturais da população negra na cidade, muitas pessoas
independente da classe social ou da cor da pele não deixaram de fazer parte destes
momentos contagiantes e conflituosos, nos quais o riso era fácil e o divertimento garantido.
As comemorações não se limitavam aos santos aqui citados, mas a muitos outros,
como as homenagens ao Mês de Maria, Senhor do Bonfim, São José e São Roque entre
outros. Enfim, com analise dos jornais, processos crimes e dos depoimentos orais,
percebemos que no período estudado as celebrações religiosas, estavam presentes no
cotidiano dos moradores de Santo Antônio de Jesus, que mesmo com manutenção de
privilégios, hierarquias e diferenças sociais as pessoas não deixaram de participar, seja para
reverenciar seu santo protetor, para impor a presença, para cair na fuzarca, ou até mesmo,
viver todos estes momentos em sua plenitude.

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local/UNEB-CAMPUS V. Graduada
em Licenciatura em História pela Universidade do Estado da Bahia-Campus V. Orientador: Raphael
Rodrigues Vieira Filho. Bolsista CAPES. liulimab@hotmail.com.
2
Sobre estes termos consultar AMARAL, Rita. Para uma antropologia da festa: Questões metodológico-
organizativas do campo festivo brasileiro. Festa como perspectiva e em perspectiva. Org.: Lea Freitas Perez,
Leila Amaral, Wania Mesquita, Editora: Garamond, 2012, p. 69-86.
3
Para Sigmund Freud festa é um excesso permitido, ou melhor, obrigatório, a ruptura solene de uma
proibição. (Freud, 1974: 168). Segundo Durkheim, as principais características de todo tipo de festa são: (1)
— a superação das distâncias entre os indivíduos, (2) — a produção de um estado de “efervescência coletiva”
e (3) — a transgressão das normas coletivas. De acordo com Jean Duvignaud festa é ruptura, anarquia total,
poder subversivo, negador, que perpassa todas as culturas como grande destruidor. Festa como perspectiva e
em perspectiva. Org: Lea Freitas Perez, Leila Amaral, Wania Mesquita, Editora: Garamond, 2012.
4
O Dicionário Eletrônico Aurélio Eletrônico Século XXI, versão 3.0 , registra os verbetes: festa, festas,
festança, festão, festarola, festim, festejo, festival, festividade, festivo, festo, folguedo, folgança, folia, fufia,
fuzuê, banga, banzé, brincadeira, brinquedo, comemoração, refestelo, zambê e mais os verbos festejar, foliar,
enfestar e festar. O Dicionário Eletrônico Houaiss, versão 3.0, registra, além dos mencionados acima os
verbetes balacobaco, bochinchada, esbórnia, evento, furdunço, jiquipanga, oba-oba, e solenidade como
sinônimos de festa.
5
Para saber mais sobre o assunto ler REIS, João José. A Morte É uma Festa: Ritos Fúnebres e Revolta
Popular no Brasil do Século XIX.
6
Dona Venância Maria dos Santos, 95 anos, aposentada, moradora do Bairro Irmã Dulce. Depoimento
concedido no dia 01/10/2011.
7
Maria Rosa Soares, 90 anos, aposentada, moradora do Bairro Irmã Dulce, Santo Antônio de Jesus.
8
Maria Gonçalves, conhecida como Maria de Xangô, 92 anos, aposentada, moradora da URBIS 02, Santo
Antônio de Jesus - Bahia.
9
Festividade religiosa. O Palládio. 02 de Jun. 1939. AP.
10
A Festa do Padroeiro. O Paladio. 11 de Jun. de 1949. AP.
11
Maria Rosa Soares, 90 anos, aposentada, moradora do Bairro Irmã Dulce, Santo Antônio de Jesus.
12
A festa do padroeiro. O Paladio. 14 de Jun. 1945. AP.
13
Festa de Cosme e Damião. O Detetive. Santo Antônio de Jesus. 09 de Setembro de 1950. AP.
14
Sobre as perseguições às pessoas que professavam religiões de matrizes africanas ver o trabalho SANTOS,
Denílson Lessa. Nas encruzilhadas da cura: crenças, saberes e diferentes práticas curativas – Santo Antônio
de Jesus- Recôncavo Sul – Bahia (1940-1980). 2004. 241p. Dissertação (Mestrado) - Programa de pós-
graduação em História na FFCH, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004.
15
Venância Maria dos Santos, 95 anos, aposentada, moradora do Bairro Irmã Dulce. Santo Antônio de Jesus
– Bahia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Livro:
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. Santos, deuses e heróis nas ruas da Bahia:
identidade cultural na primeira república. Revista Afro – Ásia, Salvador, n. 18. CEAO –
UFBA. 1996.

CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da folia: Uma história social do Carnaval
carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

GINZBURG, C. O queijo e os vermes. O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido


pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

MARQUES, Xavier. Maria Rosa. In: Praieiros. Edição GRD, 1969

Capítulo de livro:
GUARINELLO, Norberto Luiz. Festa. Trabalho e Cotidiano. In: JANCSÓ István;
KANTOR, Iris (org.). Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo:
Hucitec/ Editora da USP/Fapesp/Imprensa Oficial, v, v 1, 2001.

Artigo:
AMARAL, Rita. Festa à Brasileira - Sentidos do festejar no país. Ed. e-books Brasil,
2001.

Tese ou dissertação:
SANTOS, Hamilton Rodrigues dos. Vidas nas fronteiras: práticas sociais e experiências de
feirantes no Recôncavo Sul da Bahia: Santo Antônio de Jesus 1948-1971. Dissertação de
Mestrado. Santo Antônio de Jesus, 2007.

Artigo na internet:
FRESSATO, Soleni Biscouto. Cultura popular: reflexões sobre um conceito complexo. In:
O sagrado é profano na Bahia. Imagens e representações da cultura popular. Oficina
Cinema-História Núcleo de Produção e Pesquisas da Relação Imagem-História. 2009.
www.oficinacinemahistoria.org. Acesso em 24/02/2013.
I Simpósio Regional Nordeste da Associação Brasileira da História das Religiões – Campina Grande
– 28 a 31 de maio, 2013.

ROMARIAS E EX-VOTOS NA SERRA DO PEDRO

Priscila Costa Matias¹


Gisele Menezes da Silva²
Lydiane Batista de Vasconcelos³

Resumo
O presente trabalho busca mostrar como o fenômeno da romaria e ex-votos na
Serra do Pedro localizada na cidade de Lagoa do Ouro- PE ganhou força através
da oralidade e como a crença influencia na vida dos fiéis. O tipo de fé praticada
no local se caracteriza como catolicismo popular, comum no Brasil. Se trata de
um fenômeno que ocorre no âmbito regional e se inicia, em geral, através da
oralidade. Dessa forma, o trabalho foi desenvolvido em sua maior parte através
das entrevistas orais feitas com romeiros e moradores dos arredores do local.

Palavras-chave: romaria, ex-voto, oralidade.

Sumário

1. Introdução

1
Autora –Graduanda em Licenciatura em História (UPE-Campus Garanhuns)
² Coautora – Graduanda em Licenciatura em História (UPE – Campus Garanhuns)
³ Orientadora – Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História (UFPE)
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– 28 a 31 de maio, 2013.

2. Romaria
3. Peregrinação até a Serra do Pedro
4. Profanação sacralizada
5. Relatos sobre milagres e ex-votos na Serra do Pedro
6. História oral
7. Memória e história

1. Introdução

As peregrinações e ex-votos no Brasil se faz muito presente na vida do cristão


católico. Esse fenômeno pode ser explicado pela forte influência trazida pelos
colonizadores portugueses. A crença nos santos como intercessores faz com que
muitos fiéis católicos façam promessas para esses santos, e essas podem ser as mais
variadas: doação de bens, peregrinações, oferendas e outras formas de
agradecimento. As romarias e ex-votos, atualmente, costumam serem as formas de
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– 28 a 31 de maio, 2013.

agradecimento mais comum dos fiéis brasileiros. Ambas as formas de agradecimento


são tidas como catolicismo popular, por serem fenômenos que se originam no âmbito
regional. Sobre essa questão o historiador Süss diz que:

Por religião popular entendemos aqui a totalidade de


convicções e práticas religiosas, formadas por grupos étnicos e
sociais na confrontação de culturas típicas com o cristianismo,
como cultura dos povos dominantes. É uma tentativa de
conservarem a sua identidade e existência como povo, que sabe
que na religião, na sua fé e nas suas celebrações rituais, pode
afirmar a modalidade de ser homem e cristão.” (Süss, 1978,
pg.14).

As peregrinações feitas pelos cristãos católicos para lugares sagrados remete a


Idade Média, onde uma das formas de se redimir dos pecados era peregrinando para
algum lugar tido como sagrado, por exemplo, Jerusalém. No Brasil, essas
peregrinações costumam ser chamadas de romaria, e os peregrinos são denominados
de romeiro.

As romarias são, em geral, caracterizadas por iniciarem no âmbito regional


para depois ganharem reconhecimento mais abrangente. Esse reconhecimento, em
geral, se dá através dos relatos de milagres atribuídos ao local, que em sua maioria,
são relatos orais.

A crença em lugares sagrados, permeados de forças capazes de operar


milagres e atender preces está presente no imaginário das pessoas há tempos sem
que haja uma datação específica para o início nessa crença. Mas, é notória a
importância dada aos locais sagrados e oferendas oferecidas como forma de redimir-
se.

2. Romaria

O ato da romaria consiste em caminhar até o local tido como sagrado


objetivando alcançar uma união com Deus. O romeiro ou peregrino costuma fazer
essa caminhada para agradecer ou pedi algo para um deus ou para algum santo, no
caso dos católicos. Blainey, 2012, diz que: Para os devotos, a peregrinação
representava a concretização da esperança cultivada por toda a vida. (pg. 164)
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– 28 a 31 de maio, 2013.

Deve-se entender o local sagrado como o lugar onde se encontram referenciais


que remetam a uma determinada divindade religiosa, ou local onde determinado
grupo de pessoas atribui acontecimentos “milagrosos” que acabam por se popularizar
ao longo do tempo e o lugar assim se sacralizar através do popular.

Valendo-se disso, pode-se dizer que a Serra do Pedro localizada no munícipio


de Lagoa do Ouro-PE tornou-se um lugar sagrado através das “histórias de milagres”
contadas pelos romeiros por meio da oralidade. Essas histórias são de milagres
atribuídos ao santo que dá o nome a serra, São Pedro.

Dessa forma, ex-votos são deixados na capela e romarias são feitas até a
Serra, assim os milagres continuam a acontecer e a fé nesses milagres continua a ser
repassada.

3. Peregrinação até a Serra do Pedro

A cidade de Lagoa do Ouro está situada no agreste pernambucano. Possui uma


população de pouco mais de 12 mil habitantes. Tem forte influência da Igreja Católica,
apesar da grande difusão das igrejas protestantes nos últimos dez anos, causando
evasão dos fiéis católicos para essas igrejas.

Por haver uma presença muito forte do catolicismo na cidade, grande parte das
festividades da cidade é realizada em comemoração a alguns santos, com isso, não
poderia ser diferente a festa em homenagem ao santo que operou e opera segundo as
narrativas dos moradores uma série de milagres na cidade, São Pedro.

Não há uma história precisa que conte o início das romarias e promessas até a
Serra Pedro, porém os relatos de milagres atribuídos ao Santo são dados pelos mais
diversos moradores das mais variadas idades. O que podemos concluir pelos relatos
recolhidos, é de que essa devoção tem mais de cem anos.

Conta-se que por volta de 1900 ocorreu uma doença que estava matando
muitas pessoas. Nos relatos, ela foi denominada com os seguintes nomes: peste do
rato, bubônica e febre espanhola. Quanto ao nome dado à doença, os entrevistados se
mostraram confusos, mas a história contada sobre o milagre que deu origem a capela
foi unânime. A doença assolava a cidade e muitas pessoas estavam morrendo.

(...)o pai dessa minha mulher minha aqui, quando ia pro


enterro de um bem cedo, quando chegava, às vezes nem ia
almoçar ,almoçava, pra levar outro cadáver de outro morto. É
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– 28 a 31 de maio, 2013.

doença triste. (José Francisco Filho, conhecido como Seu Xito


com 77 anos)

A crença na história é tão forte que fica perceptível até mesmo conversando
com os entrevistados. A presença do mal para os cidadãos da localidade se encontra
até mesmo nos relatos sobre doença. Durante o trabalho de campo, algo que chamou
atenção ao entrevistar Seu Xito, foi a presença da sua esposa, Dona Olívia, 75 anos,
que juntamente com o esposo nos cedeu algumas informações, essa sempre que
falava o nome da doença ou sobre a doença, falava antes “ave maria, ave maria”,
comportamento esse que pode ter sido repetido por ela quando reproduzido em outra
geração. O que nos lembra do que Hobsbaw fala sobre ritualização e repetição dos
costumes.

Seu Xito mora na Serra há 75 anos, é um dos bacamarteiros vivo mais antigo
da cidade, e comemora a festa de São Pedro juntamente com outros bacamarteiros
atirando com suas riunas2. Geralmente na região do Nordeste o ritual do Bacamarte
tem caráter religioso, neste caso acontece com intenção de celebrar e agradecer os
milagres realizados pelo santo. Sobre Festas e atos religiosos Egidio Vittorio Segna
1977 diz que: “Em correlação a falta de padres na área rural, a prática religiosa dá
ênfase a ritos não-sacramentais e menos ligados à ortodoxia da Igreja oficial. As
grandes festas religiosas atraem a populações dispersas.[...]As praticas religiosas que
refletem o alto nível da sacralidade da cultura local, podem ser assim resumidas em:
procissões, promessas, acender velas, atos de devoção a santos, rezas, romarias ao
santuários, mandar rezar missas, depor ex-votos nas igrejas, devoção aos defuntos,
bênção de objetos etc.” O meio social cristão encontram suas maneiras para
manifestar a gratidão, culturalmente as festas carregam esse poder ritualístico.

Com isso, percebe-se que estas comemorações funcionam como afirmação de


um dado fato histórico que merece ser lembrado como vencido. E é essa vitória que
deve ser celebrada. A tradição em manter uma celebração não é apenas um título de
boa posição no campo religioso, mas é também um lembrete onde o fiel se sentirá
sempre em dívida com o sagrado.

Na Serra havia somente um cruzeiro que foi posto no local por haver uma
lenda de que São Pedro apareceu naquele local. E por esse motivo, a Serra recebe o
mesmo nome do santo. Não conseguimos saber por meio dos relatos e pesquisas a
média de tempo em que o cruzeiro foi erguido na Serra. Mas, sabe-se que a

2
De cano curto e largo, também conhecida como granadeira, reiuna, reuna ou riuna. As granadeiras ou bacamarte foram
usados pelos soldados Nordestinos na Guerra do Paraguai, em 1865. Elas foram modificadas para que as armas se
adaptassem ao uso dos bacamarteiros nos festejos.
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– 28 a 31 de maio, 2013.

construção da capela levou a remoção do local primeiro do cruzeiro para outro ponto
da serra, onde está localizado atualmente.

Imagem 1 ( Cruzeiro e a capela que foi construída posteriormente ao cruzeiro


por causa de uma promessa.)

A construção da capela deu-se através de uma promessa ao santo, por volta


dos anos de 1900 por causa das várias mortes que estavam ocorrendo por causa da
doença já citada. A família de Maria Xingó e Sr. Odilon foi uma das que sofreram com
a doença e assim fizeram uma promessa para que São Pedro ajudasse no combate
daquela doença, para as pessoas parassem de morrer; se assim o santo ajudasse,
eles ergueriam uma capela no alto da Serra com o nome do santo. E assim foi feito.

Não há registro sobre o ano de construção da capela, nem quanto tempo essa
levou para ser erguida, mas sabe-se que Maria do Xingó e Sr. Odilon construíram a
capela juntamente com outros fiéis. Com relação à construção da capela, o Sr. Pedro
Barbosa de Lima, com 74 anos, sobrinho de Dona Maria Xingó e Sr. Odilon, relatou
que a capela foi construída por Sr. Odilon depois que seu pai (do senhor Pedro), irmão
de Sr. Odilon, falecido por causa da doença, apareceu em sonho para ele (Sr. Odilon)
pedindo para que esse construísse uma capela na Serra em homenagem a São Pedro,
pois assim a doença deixaria de assolar a região. Dessa forma, a capela foi construída
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– 28 a 31 de maio, 2013.

com a ajuda de outros habitantes, mas o Sr. Odilon e Maria do Xingó como os
personagens principais dessa construção.

4. Sacralização profanada

Os fiéis costumam comemorar no dia 29 de julho, o dia de São Pedro, subindo


a serra a pé, a típica romaria. Porém há alguns anos esses fiéis estão deixando a
tradição de subi a Serra no dia 29 para subi no dia anterior ou em outra data, pois a
cavalgada e romarias que antes eram feitas para agradecer e homenagear o santo,
hoje serve para os não fiéis festejarem de forma profana, e não mais religiosa. A
cavalgada tem seu início na cidade até o alto da Serra. Ao chegar na Serra é
celebrada uma missa, há os disparos de riunas, os agradecimentos e ex-votos são
deixados na capela.

Mircea Eliade diz que; O homem toma conhecimento do sagrado porque este se
manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. (pg. 17) O autor
dá o nome de hierofania a questão da sacralização de algo dito como profano; uma
árvore, uma pedra, um lugar.

...Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a


manifestação de algo “de ordem diferente” – de uma realidade
que não pertence ao nosso mundo - em objetos que fazem
parte integrante do nosso mundo “natural”, “profano”. (Eliade,
2008, Pg17)

A cavalgada para a Serra, segundo a atual secretária de administração do


município, é organizada pela prefeitura da cidade de Lagoa do Ouro há 14 anos em
média, porém antes disso, a cavalgada já acontecia. Se pudermos fazer um marco de
quando a cavalgada começou a perder seu caráter sagrado e passou a ser um evento
profano, esse marco poderia ser o início da organização do evento pela prefeitura, pois
a partir de então passou a ter um caráter festivo, onde as pessoas sobem a serra
ingerindo bebidas alcóolicas durante o percurso, o que acaba por poluir o local, pois
latas e garrafas são jogadas durante o percurso. E após seu termino e a volta para
cidade, há um “forró” de graça para as pessoas. Dessa forma, a cavalgada
paulatinamente, tem perdido seu caráter sagrado e ganhando características profanas.
Houve ano em que o antigo padre da cidade se recusou a celebrar a missa antes da
cavalgada, pois alegou ter mais pessoas bêbadas preocupadas com a “farra” do que
romeiros que iam de fato fazer a peregrinação.
I Simpósio Regional Nordeste da Associação Brasileira da História das Religiões – Campina Grande
– 28 a 31 de maio, 2013.

As cavalgadas tornaram-se um tipo de tradição na cidade. Durante o ano há


uma série de cavalgadas que representam algumas comemorações e o caráter rural
da cidade. Além da cavalgada de São Pedro, há a Cavalgada das Mulheres, a
Cavalgada dos Amigos, Cavalgada de Igapó e outras.

Imagem 2 (Camisa da cavalgada para Serra do Pedro do ano 2012.)

5. Relatos sobre milagres e ex-votos na Serra do Pedro

Os ex-votos carregam um significado simbólico de agradecimento do fiel para


com o santo ou deus que supostamente atendeu ao seu pedido. Logo, consiste em
uma relação de troca entre a pessoa que pede e o santo que atende ao pedido. Pedido
atendido, promessa cumprida.

Além de simbolizar um agradecimento, também simboliza o fortalecimento da


fé e da união com o sagrado, com Deus, com o santo.

Dona Maria do Carmo Ferreira, conhecida como Carminha tem 67 anos e mora
aos arredores da Serra faz 40 anos em média. Relatou que sempre que está com
algum problema faz uma promessa para o santo. Certa vez, ela havia levado uma
pancada na perna, onde a ferida estava incomodando muito e não sarava há tempos.
Prometeu que se fosse curada irei levar fogos para soltar no alto da Serra e velas para
acender na capela. A mesma já levou ex-votos quando estava com um problema na
mão, entre outras promessas que ela disse sempre fazer.
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Alikaely de Araújo Barros com 18 anos de idade, mora na Serra faz 14 anos e
ajuda a cuidar da capela. Relatou sobre sua promessa:

(...)“Eu paguei minha promessa, né?!Que eu peguei um


problema no seio, aí o médico não curava de jeito nenhum, aí
eu fiz a promessa pro São Pedro, aí fiz pra ir de roupa preta e
descalça até lá e botar a minha foto nos pés dele. Aí graças a
Deus com um ano, resolveu fiz, os exames de novo e quando
eu cheguei lá o médico ficou bestinha porque não tinha mais
problema no seio... Graças a Deus, eu paguei minha promessa
e foi valida.” (Alikaely de Araújo Barros, 18 anos)

Outros entrevistados relataram não fazer promessas, mas dizem que veem
muitas pessoas que fazem.

Imagem 3 ( Ex-votos são deixados em agradecimento na capela.)

Imagem 4 ( Interior da capela de São Pedro – a direita a representação esculpida do


santo.)
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6. História oral

Trabalhar com oralidade requer muito cuidado pelo fato de tratar-se de relatos
de memória. É comum a pessoa que está sendo entrevistado apresentar alguma
dificuldade para lembrar-se do fato corretamente, além do que, os mesmos fatos
podem apresentar versões diferentes se for descrito por mais de uma pessoa, pois o
entrevistado trará consigo não só o relato do fato, mas suas crenças e formações
pessoais. Logo, o trabalho com entrevista oral deve ser cuidadoso quanto à análise do
que virá a ser o fato histórico contado na pesquisa.

Podemos perceber que com o passar do tempo a história oral vai ganhando ou
perdendo elementos. Podemos demonstrar isso de forma simples: na brincadeira do
“telefone sem fio”; é dita uma frase para uma pessoa e essa passa para a próxima e
assim por diante até chegar à última pessoa do jogo. Ao termino, podemos notar que
a frase não chegará da mesma forma que a primeira pessoa havia falado. Essa frase
terá perdido ou ganhado alguma(s) palavra(s) ou poderá ter sido totalmente
modificada, de forma que o seu sentido também possa vir a sofrer modificações.

Assim acontece com a história oral, ao longo do tempo e do contexto vivido por
determinado povo, ela sofre modificações. A história se modifica, sem que possamos
analisar ao certo como o fato ocorreu. Por isso, é necessário que se faça pesquisas
com mais de uma pessoa, se possível. Pois, o entrevistado tende a falar a história do
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– 28 a 31 de maio, 2013.

seu ponto de vista e de suas memórias lembradas, o que pode se torna perigoso de se
trabalhar com somente uma fonte oral, dependendo do fato. Diz José Carlos Sebe,
2011: A história oral ao valer-se da memória estabelece vínculos com a identidade do
grupo entrevistado e assim remete à construção de comunidades afins.

7. Memória e história

A memória tem se tornado uma das fontes de pesquisa para se fazer história,
mas quando memória é história é um ponto que tem sido posto em debate e deve-se
ter cuidado ao usar a memória como um recurso para se fazer história, para que o
parecer do pesquisador não se sobreponha ao relato do entrevistado. A tradição oral é
uma das formas de preservação histórico-cultural que caracteriza um mecanismo
usado por determinados grupos para manter uma história viva.

Fonte oral é mais que história oral. Fonte oral é o registro de


qualquer recurso que guarda vestígios de manifestações da
oralidade humana. Entrevistas esporádicas feitas sem propósito
explícito, gravações de músicas, absolutamente tudo que é
gravado e preservado se constitui em documento oral.
Entrevista, porém, é história oral em sentido estrito. (Meihy,
2011, pg. 13).

O pesquisador que trabalha com memória deve atentar para os sentimentos


expressos pelo entrevistado quando este estiver relembrando o fato, no intuito de não
alterar a visão do entrevistado, quando for fazer a análise e publicação dos dados.
Pois, esses dados irão fazer parte de acervos historiográficos que estarão disponíveis
para consultas, então faz-se necessária a integridade do conteúdo construído.

8. Considerações Finais

Perceber a importância de uma determinada crença religiosa, na vida das


pessoas se faz relevante a partir do momento que isso influencia a vida social dessa
pessoa.

Quando essa crença passa a interferi na vida de uma pessoa de forma mais
ampla, e não mais somente no campo religioso, como é o caso de pessoas que pagam
promessas para se curar de alguma doença, isso deve ser um ponto importante para o
estudo das religiões. A cura acontecendo por causa da promessa ou não, a crença
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nisso faz com que a pessoa sinta-se melhor por saber que há algo ou alguém mais
poderoso que vela por ela.

Essa divulgação de milagres, que em geral se é dado através da história oral, é


o principal fator colaborador da divulgação do sagrado no âmbito popular. As romarias
ganham mais adeptos justamente através da história oral dos milagres alcançados.
Essas crenças, por muitas vezes, acabam por se tornarem tradições que caracterizam
um determinado local, como pode se perceber, no presente trabalho.

Portanto, registrar os fatos culturais, mesmo os que ainda não tenham um


registro documentado, se faz importante para manter viva a memória dessas
tradições, ajudando assim a construir novas fontes historiográficas na tentativa de não
deixar que a memória da tradição morra com seus personagens.

Referências

BLAINEY, Geoffrey
Uma breve história do cristianismo / Geoffrey Blainey; [versão brasileira da editora] –
1.ed. – São Paulo – SP: Editora Fundamento Educacional Ltda., 2012.

ELIADE, Mircea, 1907-1986.


O sagrado e profano: a essência das religiões / Mircea Eliade; tradução Rogério
Fernandes. – 2ªed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom


História oral: como fazer, como pensar / José Carlos Sebe Bom Meihy, Fabíola
Holanda. – 2. Ed., 1ª reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2011.

SÜSS, Günter Paulo


Günter Paulo Süss – Catolicismo Popular no Brasil: tipologia e estratégia de uma
realidade vivida – Edição Loyola, Alemanha, 1978.

HOBSBAWN, Eric Robsbawn

3
As entrevistas orais foram realizadas no ano de 2012.
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– 28 a 31 de maio, 2013.

A invenção das tradições / Eric Hobsbawn e Terence Ranger /Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997. Coleção Pensamento Crítico; v. 55.

Santuários, romarias e discipulado cristão


(Sanctuaries, pilgrimages and Christian discipleship)
Edênio Valle, SVD*

Disponível
em:<http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/501/526>

Revista de Estudos da Religião Nº 3 / 2003 / pp. 99-107


ISSN 1677-1222
O Símbolo e o Ex-Voto em Canindé - Marcelo João Soares de Oliveira
Disponível em: http://pucsp.br/rever/rv3_2003/p_oliveira.pdf
Religião e Pós-modernidade: Dexter e a representação da fé na era da
fragmentação

Bruno Rafael Vilar Lima1


2
Lucila Jenille Moraes Vilar

Resumo

A cada dia novas definições nascem, para complementar, ou para ratificar o que já
foi dito, bem como para refutar ideias, que tentam definir o que é o período
histórico-cultural que vivemos hoje. O termo para designar a fluidez da atualidade
varia de autor para autor: pós-industrial, modernidade líquida, pós-modernidade.
Nesse contexto, os meios de comunicação são fundamentais para disseminar ideias
e reflexões sociais, e é através de seus produtos que realizam tal atividade. As
séries televisivas contribuem de maneira significante para visualizarmos como
aspectos contemporâneos estão sendo representados. A religião e a religiosidade
não estão livres de tais representações. O presente artigo pretende analisar como é
apresentado o conceito de fé na sexta temporada da série de tv norte americana
Dexter. Tendo como pano de fundo a pós-modernidade e suas contradições.

Palavras-chave: Pós-modernidade; Religião; Fragmentação; Dexter.

Sente-se e aprecie a paisagem

A cada dia novas definições nascem, ou para complementar, ou para


ratificar o que já foi dito, bem como para refutar ideias, que tentam definir o que é
o período histórico-cultural que vivemos hoje. O termo para designar a fluidez da
atualidade varia de autor para autor: pós-industrial, modernidade líquida, pós-
modernidade. De fato o que importa não é como chamamos a realidade atual, mas
sim o que analisamos dela. Nesse contexto, os meios de comunicação são
fundamentais para disseminar idéias e reflexões sociais, e, é através de seus
produtos que realizam tal atividade. O consumismo é a palavra que sinaliza a
direção por onde caminha a sociedade pós-moderna. Atualmente o indivíduo
consome informações, ideias, produtos, pessoas, séries de TV. Dentro desse
contexto está inserido discussões sobre diversos temas que pautam a sociedade,
mas o que nos interessa nesse artigo é como a religião é vista por um personagem
que pode, sem problema nenhum, representar diversos aspectos do indivíduo pós-
moderno.

Dexter: Hey, wanna play?

As séries, seriados e minisséries estão cada vez mais populares,


diversificadas e sofisticadas. Há os seriados que cativam no primeiro episódio e os

1
Graduado em Ciências da Religião, na Universidade do Estado do Pará (UEPA), em 2012.
2
Graduada em Comunicação Social, habilitação em jornalismo pela UFPA, em 2011. Graduanda em Ciências da
Religião, na Universidade do Estado do Pará.
que demoram algum tempo para gerar frenesi. Outros mantêm a audiência pelos
atores, trilha sonora, figurino. Enfim, são diversos os porquês da crescente
quantidade e ousadia desse formato televisivo. Dexter é uma série televisiva
estadunidense, centrada em Dexter Morgan (Michael C. Hall), assassino em série,
que trabalha como analista forense, especialista em padrões de dispersão de
sangue, no Departamento de Polícia do Condado de Miami-Dade. Com seis
temporadas já produzidas, a série caminha para a sétima e oitava temporadas, em
2012 e 2013, respectivamente.
O personagem nasceu no livro Darkly Dreaming Dexter, lançado em 2004,
do escritor Jeff Lindsay. O autor teve a idéia de escrever sobre um serial killer
quando fez uma palestra para um grupo de executivos em Miami, com o tema: “A
importância da arte”. Em entrevista ao site Brainstorm9 (2011), Jeff Lindsay contou
que após observar, por algumas horas, homens de negócios, pensou: “Assassinatos
em série não precisam ser sempre algo ruim…”. Anotou em guardanapos o que
pensou, e retornou para casa com os rascunhos que formavam o conceito básico do
personagem. As temporadas seguintes apresentam uma evolução diferente das
obras de Lindsay. O livro foi adaptado para a televisão pelo roteirista James Manos
Jr., que escreveu o episódio piloto. O programa estreou em 1° de outubro de 2006,
no canal Showtime. Situado em Miami, sua primeira temporada contém 12
episódios.

Figura 1 – Imagem de Dexter Morgan (Michael C. Hall), protagonista


da série.

Resumo da sexta temporada:

Aprendi que tempos de escuridão podem nos dominar a


qualquer momento. Mas também descobri que posso
agüentar. (Dexter Morgan, primeiro episódio da sexta
temporada)

Um ano depois do final da quinta temporada, Dexter volta às raízes de quem


ele é: um ótimo assassino em série. O protagonista da série é ateu e acredita
somente na ciência e no "código de Harry"3. Mas encontra diversas pessoas cheias
de crenças e religiosidades e começa a questionar-se sobre a existência e
importância de Deus.
Para deixar mais conturbado esse momento de contato com o “mundo
religioso” uma série de assassinatos começa a acontecer em Miami e o
departamento de homicídios da cidade percebe que os atos estão ligados a rituais
religiosos mencionados no livro do Apocalipse, da Bíblia, então batizam o serial
killer como "Assassino do Apocalipse" (AA). Contudo o “Assassino do Apocalipse”
não é um assassino facilmente compreendido por Dexter, pois como o protagonista
não tinha e nem fazia questão alguma de ter contato com elementos religiosos, não
consegue entender as “dicas” que o AA deixa nas cenas dos crimes, principalmente,
nos corpos das vítimas. Além do surgimento de um assassino em série que Dexter
não consegue decifrar há ainda na sexta temporada os dilemas do protagonista no
que tange a educação de seu filho¸ Harrison Morgan. Dexter começa a perceber
que não pode criar seu filho como foi criado, seguindo apenas um “código” para não
ser pega. Começa a se preocupar com os valores que gostaria que Harrison
acreditasse. E para tentar começar da maneira “correta”, matricula o filho numa
escola cristã.
Para tentar entender (para poder capturar e matar o ‘Assassino do
Apocalipse’) Dexter passa a vigiar um ex-presidiário, o ‘irmão Sam’ que se diz
mudado pela fé e que quer ajudar as "ovelhas desgarradas" a largarem o crime e
as drogas. Dexter acha que tudo não passa de uma fachada, porém descobre que a
fé realmente pode mudar as pessoas, se tornando amigo do irmão Sam.
A sexta temporada, em 12 episódios4, apresenta a Dexter dilemas e
reflexões sobre o que é ‘ter fé’ e como essa atitude pode interferir de maneira
positiva (no exemplo do irmão Sam) e negativa (nas ações do Assassino do
Apocalipse), além de continuar abordando os dilemas de um serial killer¸
fragmentado e vazio, tentando criar seu filho e continuar tirando a vida de outros
serial killers.

3
Harry Morgan considera o filho adotivo um serial killer e constrói uma forma de deter seus impulsos. Preocupado
com o futuro de Dexter, Harry formula alguns códigos de conduta e ensina ao menino que matar uma pessoa não é
apenas assassiná-la, mas privá-la de tudo que ela pode se tornar um dia. Harry aproveita os desejos de Dexter para
transformá-lo em um serial killer de serial killers, um ‘monstro’, cujo distúrbio é regulado por um código de
normalidade, já que, para o policial, a essência perturbada do filho não poderia ser transformada.
4
Episódios da sexta temporada: Those Kinds of Things; Once Upon a Time...; Smokey and the Bandit; A Horse of
a Different Color; The Angel of Death; Just Let Go; Nebraska; Sin of Omission; Get Gellar; Ricochet Rabbit; Talk to
the Hand; This is the Way the World Ends.
Pós-Modernidade?Onde?

Para além de uma percepção dogmaticamente contínua do processo social,


por meio da qual se acredita que os aspectos da coletividade e os papéis sociais
estão pré-definidos, pode-se dizer que a contemporaneidade é a desconstrução da
vanguarda, uma vez que o novo tem ‘prazo de validade’. Segundo Tavares (2004)
o mundo pós-moderno equivale a um presente eterno, sem origem ou destino,
passado ou futuro; um mundo no qual é impossível achar um centro ou qualquer
ponto ou perspectiva do qual seja possível olhá-lo firmemente e considerá-lo como
um todo. É importante perceber que, da mesma forma que o moderno tem como
essência a racionalidade, o pós-moderno conduz ao pensamento da desestrutura,
da desconstrução. Jean-François Lyottard (1979), um dos teóricos que
fundamentou o conceito, define a pós-modernidade como uma:

Incredulidade em relação aos metarrelatos. E, sem duvida,


um efeito do progresso das ciências; mas este progresso, por
sua vez, a supõe. Ao desuso do dispositivo metanarrativo de
legitimação corresponde, sobretudo, a crise da filosofia
metafísica e a da instituição universitária que dela dependia.
A função narrativa perde , seus atores (functeurs), os
grandes heróis, os grandes perigos, os grandes périplos e o
grande objetivo. Ela se dispersa em nuvens de elementos de
linguagem narrativos, mas também denotativos, prescritivos,
descritivos etc., cada um veiculando consigo validades
pragmáticas sui generis. Cada um de nós vive em muitas
destas encruzilhadas. Não formamos combinações de
linguagem necessariamente estáveis, e as propriedades
destas por nós formadas não são necessariamente
comunicáveis. (LYOTTARD, 1979, p. 26).

A descrença no progresso científico é reflexo de inúmeras falhas de um


processo que pretendia desbancar visões míticas de aspectos sociais e culturais.
Quando o discurso racionalista começou a tomar conta do mundo europeu,
acreditava-se que as respostas que não eram possíveis de serem obtidas em
explicações dadas pelo conhecimento tradicional seriam fornecidas pelo rigor do
método científico. Essa nova forma de ver o mundo proporcionaria o início do
surgimento de uma sociedade baseada em ideais grandes e solidificados, nas
narrativas que, através da comprovação científica, não poderiam ser refutadas. Por
algum tempo, a crença, que outrora era depositada em instituições religiosas ou em
explicações metafísicas foram, durante a modernidade, depositadas nas explicações
generalizantes do poder da razão. O progresso, o Estado laico, as promessas de
cura de doenças, os heróis, os estudos para tentar sistematizar o comportamento
de comunidades humanas, eram ações propostas pelo discurso moderno, de
‘liberdade’ e valorização da individualidade do sujeito.
Nascem, então, na modernidade os paradigmas que seriam os pressupostos
para os grandes discursos. Conceitos como nação, estado, indivíduo são formados
e viram pautas, tenta-se construir grandes representações do que seria o Estado
perfeito, a melhor representação cultural, o povo ideal, padrões de conduta
aceitáveis e que deveriam ser seguidos pelos que acreditavam na ‘religião’ que
tentava racionalizar o mundo. A crença que havia na tradição nos preceitos
religiosos e explicações mitologias para ações naturais foi substituída pela fé
desmedida na racionalização totalizante das ações. Contudo, foi por pouco tempo
que o discurso unificante dos metarrelatos conseguiu acalmar os questionamentos
e inquietações de indivíduos que diariamente viviam as decepções causadas pelo
discurso moderno progressista. As guerras, epidemias, violências (simbólicas e
físicas), descrença, angustia, autonomia, foram palavras que passaram a fazer
parte da modernidade.
Pouco a pouco a descrença nos metarrelatos tornou-se algo mais popular,
mesmo sem ter tido campanhas “anti-modernidade”, a não crença nas odisséias
modernas passou a ser realidade. Lyottard (1979) considera que a modernidade
perdeu seus atores principais e o seu grande objetivo. Atualmente há a dispersão
em diversos elementos, onde a pretensão do indivíduo não é formar narrativas
estáveis e estáticas, mas sim ter a percepção de que o processo de criação e
recriação é algo presente e constante.

Dexter: sujeito fragmentado

A pós-modernidade fragmenta, mas também une. Giddens (2002) explica


que o primeiro dilema é o que opõe unificação e fragmentação. Desde o nível do
indivíduo até o dos sistemas planetários completos, tendências à dispersão
competem com as que promovem a integração. Em relação ao eu, o problema da
unificação refere-se à proteção e à reconstrução da narrativa da auto-identidade
diante das intensas e extensas mudanças que a modernização provoca. Na maioria
dos contextos pré-modernos, a fragmentação da experiência não era uma fonte
importante de ansiedade. As relações de confiança eram localizadas e enfocadas
através de laços pessoais, ainda que em geral não existisse a intimidade no sentido
moderno. Numa ordem pós-tradicional, entretanto, uma gama indeterminada de
possibilidades se apresenta, não só em relação a opções de comportamento, mas
também em relação à "abertura do mundo" para o indivíduo. "O mundo" não é uma
ordem de tempo e espaço sem costuras que se estende para além do indivíduo, ele
se faz presente por uma série de canais e fontes variadas.
Em muitos ambientes modernos, os indivíduos estão presos a uma
variedade de encontros e meios diferentes, cada um dos quais requer formas
diferentes de comportamento "apropriado". Giddens (2002) explica:
Quando o indivíduo sai de um encontro e entra em outro,
sensivelmente ajusta a "apresentação do eu" em relação ao
que lhe for demandado na situação em questão. Imagina-se
muitas vezes que tal visão implica que o indivíduo tem um
número de eus equivalente ao dos diferentes contextos de
interação, uma idéia de certa maneira semelhante às
interpretações pós-estruturalistas do eu, ainda que de uma
perspectiva teórica diferente. Mas outra vez não seria correto
ver a diversidade contextual como simples e inevitavelmente
promovendo a fragmentação do eu, quanto mais sua
desintegração em "eus" múltiplos. Essa diversidade também
pode, pelo menos em muitas circunstâncias, promover uma
integração do eu. Uma pessoa pode fazer uso da diversidade
a fim de criar uma auto-identidade distinta que incorpore
positivamente elementos de diferentes ambientes numa
narrativa integrada. O dilema unificação versus fragmentação
tem suas patologias. (GIDDENS, 2002 p.175).

Giddens, no parágrafo acima, fala do ‘cotidiano nosso de cada dia’, onde o


indivíduo ‘X’ é: o filho educado, o namorado ciumento, o funcionário relapso, o
travesti da noite, o orador da igreja. Ajusta sua identidade ao meio em que se
encontra, contudo é bom deixar claro que estar fragmentado não quer dizer estar
reduzido ou despedaçado. O fragmento é a parte de um todo que sozinho consegue
dizer o que representa e, quando está junto de todos os outros fragmentos,
constrói uma imagem transversal, que não é a imagem de nenhum dos pequenos
pedaços, mas que precisa de todos para ter a forma e o significado que apresenta.
Na série é possível observar o protagonista transitar entre: Dexter Irmão; Dexter
Pai; Dexter Analista Forense, Dexter Assassino e o Dexter Cidadão.
Atualmente, o que há é a incerteza sobre qual identidade escolher, em meio
a tantas opções. E após escolher, quanto tempo se apegar a ela? Na pós-
modernidade as identidades são voláteis, ou como Bauman (2005) gosta de
denominar, líquidas, pois são altamente mutáveis, maleáveis e se adéquam ao
espaço, local e tempo. São experiências infindáveis, pois a possibilidade no novo é
constante. Para entender a formação da identidade do personagem Dexter convém
trazer para a discussão a noção de simulacro proposta por Baudrillard (1991):
Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter
o que não se tem. O primeiro refere-se a uma presença, o
segundo a uma ausência. Mas é mais complicado, pois
simular não é fingir: “Aquele que finge uma doença pode
simplesmente meter-se na cama e fazer crer que está
doente. Aquele que simula uma doença determina em si
próprio alguns dos respectivos sintomas” (Littré). Logo fingir,
ou dissimular, deixam intacto o princípio da realidade: a
diferença continua a ser clara, está apenas disfarçada,
enquanto que a simulação põe em causa a diferença do
“verdadeiro” e do “falso” do “real” e do “imaginário”.
(BAUDRILLARD, 1991 p.9).
Dexter, quando representa o analista forense pacato e educado, constrói
uma identidade baseada na simulação de sentimentos, ações e reações : “As
pessoas fingem muitas das interações humanas, mas me sinto fingindo todas. E as
finjo muito bem ” afirma o protagonista da série. A ausência de sentimentos acaba
caracterizando o indivíduo que aprende a fingir ter o que não tem para fazer parte
de uma realidade social.
‘A simulação parte do princípio da equivalência do signo e do real, parte da
negação radical do signo como valor, parte do signo como reversão e aniquilamento
de toda a referência’, afirma Baudrillard (1991, p.13). Dexter, quando pensa a
realidade, faz julgamentos sobre ela, fala (para si mesmo) o que está pensando,
como deve reagir diante das situações tidas como normais. O personagem simula
ser alguém que não é, finge ‘ser normal’ para ser aceito, não esconde emoções
para parecer outro alguém. Pelo contrário, simula sentir alegrias, pena, espanto,
saudade, tesão.

Fé: considerações importantes


A sexta temporada da série Dexter tem como um dos principais dilemas a
relação do protagonista com um aspecto religioso que até cinco temporadas
anteriores não existia: a Fé. Não só a Fé em elementos religiosos, mas em pessoas
também. Contudo, antes de tentarmos entender como Dexter se relaciona com tal
elemento é importante entender o que seria Fé.
Dentro de um contexto cristão, Arboith (2008:2) considera que o termo “Fé”
é utilizado basicamente para expressar um relacionamento interpessoal com Deus.
“Crer, de fato, significa entregar-se a Deus (Gn 15,6; Ex 14,31; Nm 14,11). O
termo “Fé” é utilizado para designar o ato de ser firme e fiel a algo. Trata-se ainda
do ato de aceitar algo como firme ou verdadeiro.
Ainda num contexto do teísmo cristão Miranda (s.d: 7-8) acredita que Fé
“pode ser definida como a convicção da existência de um único Deus auto-
existente, criador e diferente da criação”. Segundo Miranda, a Bíblia apresenta o
conceito de fé cerca de duzentas e cinqüenta vezes, em todo o seu escopo. A
definição mais clara, encontra-se na carta aos Hebreus, onde a Fé é apresentada
como “a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem”
(Hb 11.1).
Saindo do contexto cristão e religioso, tanto Miranda como Arboith
acreditam que há a possibilidade de existir Fé. Miranda considera que a Fé não está
restrita ao contexto cristão, ou religioso, pois transborda suas paredes. Para o
autor, toda e qualquer aceitação de proposições estão precedidas, em algum
sentido, pela Fé, por parte daquele que confia nas afirmações. Como exemplo de tal
situação, o autor afirma (s.d: 4): “mesmo para advogar a favor da invalidade da
religião ou da inexistência do transcendente, é fundamental que este alguém creia
em sua tese”. Ele considera a Fé como a capacidade do ser humano de dar
credibilidade a assertivas que julga ser verdadeiras. Já Arboith acredita que a “Fé
permite uma maior intelecção da realidade, pois legitima a inteligência, mostrando
que é racional confiar no testemunho de outro sujeito” (2008:10).

Dexter e a Fé

A Sexta temporada de Dexter apresenta o protagonista: serial killer que


mata serial killers, que se vê numa realidade fragmentada interpretando vários
papéis: irmão, pai, analista forence, bom cidadão. Mas que sempre esteve tão
empenhado em viver seguindo o código de conduta que seu pai lhe ensinou (para
continuar matando e nunca ser pego) que ainda não havia entrado em contato com
aspectos religiosos, de nenhuma espécie. Essa não relação com aspectos
religiosos, em especial, interpretações sobre o que é ter Fé, deixa de existir quando
Dexter é apresentado às “obras” do Assassino do Apocalipse, serial killer que utiliza
passagens da Bíblia, em especial do livro de Apocalipse, para justificar suas ações.
Em outra extremidade, Dexter observa e começa a desenvolver uma relação de
‘amizade’ com o irmão Sam, ex-bandido, que após não ir para o corredor da morte
resolve tentar salvar outras “ovelhas”5 de seus lados obscuros. Além dessas duas
novas realidades Dexter começa a pensar nos “valores” que pretende deixar para
seu filho Harrison. Um momento na série que marca de maneira clara o surgimento
da preocupação é num diálogo entre Dexter e a sua irmã Debra, após visitarem a
nova escola de Harrison, que é de freiras. Após ser questionado pela freira sobre
sua crença religiosa e de ter respondido que não acreditava em nada, Dexter é
surpreendido pela afirmação de Debra: “Parece meio frio, vazio. Sei lá, acredite no
que quiser. Ou não acredite no que quiser, mas não é mais só sobre você. Você é
pai. E o Harrison? Tem que pensar no que você quer que ele acredite”. Já entre
diversos momentos importantes da temporada, sobre as representações do que
seria fé, podemos destacar o diálogo de Dexter com o irmão Sam no episódio
“Smokey and the Bandit”:

Dexter: Um assassino com fé?

5
Termo usado pelo irmão Sam para denominar os outros bandidos que estão saindo do mundo do crime,
por causa da religião.
Brother Sam: Ele está usando o nome de Deus. O diabo é culpado.
Dexter: Acha que ele está usando o nome de Deus como desculpa para matar?
Brother Sam: Usam Deus como desculpa para várias coisas. Só porque ele
acredita em coisas malucas não quer dizer que a fé dele é falsa.
Dexter: Se a fé faz as pessoas fazerem loucuras, por que ter?
Brother Sam: É a natureza humana. Temos que acreditar em algo. Não é?

Durante os diálogos que abordam aspectos das características de quem tem Fé ou


sobre o que é Fé, Dexter representa o papel do cético, de alguém que está muito
envolvido com seus conflitos internos e como se portar em sociedade para não se
meter em problemas que acaba ignorando que a Fé, como disse Miranda e Arboith
e agora o irmão Sam, está para além do fenômeno religioso, pois “faz parte da
natureza humana. Temos que acreditar em algo”. No decorrer da temporada, o
personagem se depara com diversas demonstrações de Fé, tanto do Assassino do
Apocalipse, do irmão Sam e dele mesmo. Dexter percebe que tem Fé, mas que ao
invés de acreditar em aspectos religiosos, acredita no código de conduta criado por
seu pai adotivo e acredita que seu filho Harrison, tem grandes chances de não ser
“danificado” como ele.

Conclusões
O presente artigo buscou apresentar de maneira sucinta a possibilidade de
representação de elementos religiosos, em especial a Fé, na sexta temporada da
série televisiva norte-americana Dexter. Mas não apenas isso, trazendo para o
diálogo conceitos que podem representar o contexto atual que vivemos: a
contemporaneidade. Mesmo fazendo isso de maneira tímida, o texto desenvolvido
considera o personagem Dexter como possível representante de muitas
características do indivíduo pós-moderno, no que tange sua capacidade de
fragmentação, adaptação, solidão e na sua habilidade mais que apurada em simular
situações, realidades e emoções. Nesse sentido, tentou-se observar como esse
indivíduo contemporâneo, representado pelo personagem Dexter, dialoga com a
representação da Fé religiosa, tanto a fundamentalista como a que “produz
resultados positivos”. Além de perceber que existem mais características do Dexter
no indivíduo contemporâneo do que se queria perceber, foi possível identificar que
a relação do personagem com a Fé é antiga, uma vez que, mesmo sem ter
convicções religiosas, acredita no código criado por seu pai para que possa conviver
em sociedade e continuar alimentando sua doença (matar pessoas). No aspecto
religioso da Fé, Dexter não faz julgamentos sobre como ela pode acontecer, apenas
transita e questiona as duas formas apresentadas na temporada: a do fanatismo
religioso (vivida pelo Assassino do Apocalipse, que acaba tendo sua vida ceifada por
Dexter na última cena do último episódio da temporada) e a do ex-bandido (irmão
Sam) que, após entrar em contato com o “chamado divino”, largou o mundo do
crime e passou a tentar salvar outras “ovelhas” (o irmão Sam acaba sendo
assassinado por uma de suas ovelhas, mas antes de morrer, perdoa seu assassino
e pede para Dexter fazer o mesmo. Dexter não perdoa e mata a “ovelha” afogada).

Referências

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“Fé, Carnaval e muito Samba”: A Lavagem de Senhora Santana toma
as ruas da cidade1.

Nas primeiras décadas do século XX, segundo o memorialista Boaventura


(2006a) “obra das dez horas, a manhã se estremecia e com ela [a Lavagem2] toda a
cidade com a lírica e surupemba música do terno desengonçado dos Zabumbas.” Antes
dos toques da Zabumbas, bem cedo, homens e mulheres iam buscar água e suas
vassouras para lavar o templo, dando suporte estavam os burricos todos enfeitados com
laçarotes e ornamentados a caráter para dia tão especial, eles auxiliavam o transporte
das águas carregando esse elemento simbolicamente purificador nas suas cangaias. As
águas eram trazidas das fontes dos Olhos d’ Água, nome revelador da região em que
brotavam olhos de água, do minadouro e outros pontos.
Homens comuns eram os guiadores desses animais. No dia da Lavagem eles
quebravam parte de sua lógica cotidiana, se permitindo viver uma experiência
diferenciada da sua rotina anual. Essa efeméride se apresentava como ritual composto
de vários símbolos, sendo uma espécie de ritual de renovação e reafirmação dos laços
daqueles crentes com sua fé e esperança de novas conquista.
O ritual era encenado de forma cadenciada através das várias performances dos
sujeitos integrante dessa etapa da Festa, dividida em dois momentos supostamente
distintos, porém complementares:um mais contrito com a entrada de pessoas no templo
e outro que pode ser considerado uma grande festa momesca devido a sua organização
de ritual-cortejo.
Sendo o ritual como expressa Cox (1974, p.79) uma “forma de ação humana,
que alimenta a fantasia e corporifica-a na sociedade e na história”, nessa manifestação
popular de caráter historicamente construído, os partícipes se liberavam de suas
restrições morais e sociais, expressando corporalmente seus desejos e fantasias através
dos gestos, movimentos e dança embalada pelos sons das zabumbas e bandinhas.
Nesse dia muito se era permitido: homem se vestir de mulher, mulher se vestir
de homem, se mascarar ou até mesmo se vestir de baiana, sendo a criatividade o grande
marcador da originalidade das fantasias materializadas para serem usadas na Festa da
Lavagem.

1
Comunicação produzida por Rennan Pinto de Oliveira, mestrando na Universidade Estadual de Feira de
Santana-UEFS no Mestrado de História, cultura e poder
2
Minha anotação.
Esse dia pode ser comparado a uma grande manifestação carnavalesca, não com
um caráter de inversão como aponta Da Matta (1986) em seus estudos sobre Carnaval,
também não parece se apresentar hermeticamente como um rito de reforço como discute
o autor. A Lavagem de Santana parece ser composta por manifestações de caráter
polissêmico apresentado pelas suas multivivências, produtoras de significados para seus
partícipes.
Eles se apropriavam da Festa para revelar seus sentimentos e representar, mesmo
por um curto tempo, a sua fé na padroeira da cidade, participar da Festa podia ter um
sentido muito mais amplo de compartilhamento, cumplicidade, curtição e até mesmo de
homenagem, sendo possível também unir todos esses sentidos.
A Festa da Lavagem com bandinhas, em outros momentos com trio elétrico,
acontecia na Praça da Matriz. Esta festa, dita profana, devia e acontecia fora dos muros
da Igreja, imageticamente o templo religioso deveria ser resguardado da profanação,
sendo possível apenas a Lavagem de seu chão e santuários no turno oposto à Lavagem
“carnavalesca” que acontecia sempre à tarde normalmente depois das 16h.
A separação e divisão de espaços evidenciam as fronteiras desses dois
universos - o sagrado e o profano - proibidos pela Igreja Católica de se imiscuirem,
porém o grande paradoxo é saber que a Lavagem também fazia parte da festa em
homenagem a Santana e era indissociável dela. Essa separação não aconteceu apenas
nos anos 60-80, a Igreja Católica já assumia essa postura desde as primeiras décadas do
século XX quando proibiu os batuques e festança nos espaços considerados sagrados e
no interior da Igreja Matriz.
Aquela proibição seguia o Concilio Plenário Brasileiro e as determinações de
Pio X, o qual “proibi[a] as bandas de músicas tocar dentro das igrejas. Fora delas são
permitidas nas procissões, contanto que os músicos se comportem com respeito e
edificação cristã e se abstenham de executar composições profanas e ligeiras3”. Essa
postura da Igreja Católica seguia a perspectiva de neocristandade, esta tinha como base
os princípios do ultramontanismo que desejava o fortalecimento da doutrina e a criação
de zonas para separar as expressões de religiosidade oficiais da religiosidade popular
considerada como práticas de profanação. Silva (2009a) 4, Mainwaring (1985) 5 e Azzi
(1994) 6.

3
Idem. p. 55 Apud,, Livro tombo I da Catedral de Santana, Feira de Santana( 1930-1968) f.97.
4
. Segundo Cândido da Costa a romanização se iniciou no século XIX e seu objetivo era a criação de um
clero ilustrado e probo, ligando-se diretamente à Santa Sé e afastando-se da órbita política e de
As determinações de proibição da Igreja representavam também uma
reformulação da sua estrutura que passava por uma crise, após a laicização do estado
durante a proclamação da república. O rompimento entre o Estado e a Igreja provocava,
naquela antiquíssima instituição, novas perspectivas e formulas de autogerenciamento e
sobrevivência no Estado brasileiro republicano como aponta Silva(2009b). E os
primeiros anos do século XX ainda sentiam as reverberações das mudanças nas suas
estruturas, isso parecia ressoar também na Feira de Santana dos anos vinte e trinta.
O desejo da Igreja Católica por normatizar esse ritual segue praticamente todo o
século XX, ganhando mais força nos finais dos anos oitenta. Este período é o marcador
do fim da festa considerada profana e realocação da festa apenas religiosa do mês de
janeiro para o mês de julho considerado pela Igreja Católica como o mês original de
comemorações em homenagens a Senhora Santana. A lavagem de Santana, assim como
a Festa, sofreu profundos processos de remodelamento e organização, alterando, com
isso, as relações produzidas para sua sustentação e reprodução até o final das décadas de
1980. No entanto, as mudanças mais marcantes e definidoras do seu ordenamento
ocorreram entre os anos 1960- 1987, período estudado pela comunicação.
A Lavagem de Santana parecia se organizar em seus diferentes momentos
históricos de forma muito parecida, sofrendo algumas alterações ou inclusões de novos
elementos folclóricos ao longo do século XX. Ela se organizava em um grande cortejo
composto pelo que poderíamos chamar de alas ou grupos partícipes distribuídos nas
ruas, os quais ocupavam as artérias do centro comercial para cumprir seu trajeto, em um
espaço que em dias normais tinha outras funções. Este cortejo era possuidor de
características próprias e se diferenciava da procissão religiosa efetuada pela Igreja
Católica como última etapa das homenagens à Padroeira.
A Lavagem era um lugar de participação de todos, inclusive dos mais abastados
da cidade. Os filhos de empresários, comerciantes, médicos, populares, homens,
mulheres, crianças e outros que estudavam na capital vinham se fantasiar para se

subordinação do Império, com intuito de influenciar a vida nacional, tendo como principais características
a “espiritualização” do clero, distanciando-o da realidade social e de seus problemas. In Segadores e a
messe.
5
Conforme Scott, as fronteiras cronológicas da Neocristandade podem ser fixadas entre os anos de
1916 e 1955, tendo seu apogeu durante o governo Vargas (1930- 1945), sendo seu percussor Dom Leme.
6
Segundo AZZI (1994) nesse período, a Igreja católica começou a dar mais atenção a seus problemas
institucionais, relativo às suas fragilidades, deficiência nas práticas religiosas populares, sua falta de
padres, precariedade da educação religiosa na sociedade brasileira, ausência de intelectuais católicos,
limitada influência política da Igreja e frágil situação financeira.
entregar à diversão e saírem pelas ruas. O universo da Lavagem era composto por
agentes fixos e outros flutuantes, misturados em prol de um interesse comum: a
diversão e a fé. Puxando a Lavagem, tradicionalmente, estavam as porta-bandeiras.

No começo, de manhã, corria o zabumba a recolher os porta-


bandeiras. Apanhou Calu e lá se foi o grupo buscar Paciência. Eram
velhas raparigas, agora de respeito, de idade provecta, que se
apresentavam de saia bem rodada e bata aberta em rendas, como
costumavam vestir-se. Apanhavam agora Feliciana Carneiro.
(BOAVENTURA, 2006b, p.22).

A narrativa do memorialista nos remete ao cenário das primeiras décadas do


século XX, apesar de não citar parece ser as baianas a quem se refere. Nos anos
cinquenta o grande destaque na comissão de frente da Lavagem é a baiana Dolores do
acarajé7, já entre os anos de 60 e oitenta a Lavagem era pensada e levada pelos terreiros
de candomblé da Ialorixá Mãe Socorro e do Babalorixá Zeca de Iemanjá, figuras cativas
e marcantes na Lavagem8. Na sequência, organizadas pelos barraqueiros, em sua
maioria, vinham às carroças sempre enfeitadas e prontas para a disputa da mais bela.
Durante o desfile era promovida a famosa guerra de talco entre os seus
“passageiros”. Acompanhando as carroças estavam os cavaleiros montados, ignorando
sempre as críticas feitas pelos jornais quanto a sua presença no evento, pois
questionavam o risco de pisoteamento9 dos acompanhantes do festejo.
Misturando-se aos partícipes da Lavagem estavam os mascarados e os
fantasiados diluídos entre as pessoas. Valia de tudo, o mais importante era a criatividade
e a capacidade de singularizar-se no meio de uma manifestação coletiva de tantos atores
criando e elaborando de forma hilária suas performances, apresentadas aos espectadores
a partir dos diversos temas. Os mascarados parecem ter presença mais forte na primeira
metade do século XX, segundo os depoimentos de seu Antonio Ramos participante da
Lavagem.
A.R - Os caretas que eram danados mudando de fala, mudando de voz
com máscara, para a gente conhecer um mascarado era difícil.
R.O-E eles faziam o que durante a Lavagem?

7
Sua presença na Lavagem é narrada nas memórias de Lajedinho em seu livro de memórias: A Feira na
década de 30 (memórias); [s.n] Feira de Santana, 2004.p.24
8
A presença dessas duas figuras é comentada nos jornais Feira Hoje e Folha do Norte durante anos de
1960 a 1987.
9
Essas discussões sobre o risco de pisoteamento foi noticiado no Feira Hoje entre os anos de 1960-19787.
A.R- Eles pediam beijo, davam beijos, diziam piadas, declaração de
amor era uma brincadeira gostosa viu! A verdade é que era gostosa 10.

No depoimento, é perceptível o comportamento e práticas dos caretas durante a


Lavagem, especialmente nas décadas de 40, 50, 60 e 70, período de participação mais
ativa do Senhor Antonio Ramos na Lavagem , seja fantasiado ou simplesmente como
espectador. Porém nas Lavagem da década de 70, Magalhães (2009) relata em seu livro
a quase ausência dos mascarados.

No rodapé da foto, o autor revela as imagens já rarefeitas de mascarados na


Lavagem, a foto se refere também ao grupo folclórico presente na Lavagem “Segura a
veia” organizado e apresentado pelo mestre Muritiba11, homem que durante os anos 70
e 80 lutou pela valorização das expressões folclóricas. Seu grupo era formado por um
pequeno núcleo, inclusive sua esposa que após a sua morte deu continuidade ao grupo.
Seus palcos de encenações eram as ruas da cidade, mas seu palco principal era a Praça
da Matriz onde se apresentava para os espectadores presentes fazendo graça e
interagindo com as crianças. Suas apresentações não se restringiam a Lavagem, também
se apresentava nas cidades circunvizinhas, parecia que o grupo usava essas
performances/ encenações como um meio de sustentação da família, mas também não

10
Entrevista concedida pelo Senhor Antonio Ramos em (05/02/13). Ele também é conhecido por Antonio
Feirense. Católico ativo participava de eventos da Igreja Católica se destacando em especial no ano de
1979, ao renunciar a presidência da Festa de Santana.
11 Mestre Muritiba esteve presente na Lavagem até o ano de 1986 após seu falecimento sua esposa
assumiu o grupo que desfilou no ano de 1986 e 1987. Como assinala o jornal Feira Hoje, 24/06/1986.
era só isso, era uma expressão cultural resistente ao tempo e às mudanças de hábitos
culturais presente no século XX.
A Lavagem pode ser lida como um texto no qual estava presente uma linguagem
com códigos próprios. Este texto trazido por ela pode ser passível de compreensão,
assim como fizeram Darnton (1986), ao buscar interpretar as procissões que
aconteceram em Montpellier no século XVIII e Ryan (2001a), ao investigar sobre a
Parada Norte-Americana. Ryan (2001p.180b) concorda com Darnton quando interpreta
o seu objeto de pesquisa como “um texto especial, intricadamente emaranhado em seu
contexto histórico e social. Tendo múltiplos autores: os milhares de participantes que
levaram, para uma cerimônia composta, dos símbolos que eles próprios escolheram”,
sendo passíveis de leitura pelos historiadores.
Assim como a Parada estudada por Ryan (2001c), considero a Lavagem de
Santana uma espécie de performance cultural. Esta, segundo Geertz (1989) é encenada
publicamente também como rituais religiosos, sendo
“unidades de ação discrimináveis, caracterizadas por ocorrerem
durante um determinado período de tempo; englobando ainda, um
programa organizado de atividades, um conjunto de performers, uma
audiência e um lugar ou ocasião para realizar a performance12”.

Santos (2006a) afirma ser a performance cultural também composta da mídia


cultural, referindo-se aos modos de comunicação que incluem igualmente a linguagem
falada e os meios de comunicação não linguísticas, tais como o canto, a dança, a
encenação, as artes plásticas e gráficas - que se combinam de várias maneiras para
expressar e comunicar o conteúdo de uma determinada cultura.
Como uma performance cultural e texto passível de ser lido, a Lavagem de
Santana se organizava a partir de uma linguagem com códigos compartilhados entre os
sujeitos participantes envolvido em um enredo desdobrado em multivivências. Sua
composição heterogênea sugere que o cortejo seja visto não só em seu aspecto religioso.
Contudo, como discute Santos (2006b) a respeito da Lavagem do Bonfim, em Salvador,
este tipo de festejo deve ser visto “como um instrumento vivo e abrangente de
comunicação social utilizado pelos diferentes grupos que dela participavam para

12 SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes, com base nos estudos do antropólogo americano Milton Singer,
criador do termo Performance cultural; e de Geertz. In Performances culturais nas Festa de Largo da
Bahia.Depois apresentada como paper no GT: Performance, Drama e Sociedade, durante o 30º Encontro
Anula da Anpocs, Caxambu, out de 2006, com o Título: Performances culturais nas Festas de Largo da
Bahia. Site http://www.antropologia.com.br/arti/colab/a40-esantos.pdf acesso 02 de fevereiro de 2012, às
21h00.
tornarem públicos os conteúdos, valores e símbolos13”, e no transcorrer do cortejo era
possível “impor um panorama móvel”, uma espécie de imagem pública, repleta de
significados14.
Assim como a Lavagem do Bonfim, a Lavagem de Santana também possuía seu
panorama móvel marcado pelas práticas dos participantes em suas performances,
constituído por uma forma de ser e acontecer singularizando-se diante das outras
manifestações presentes nas homenagens a Santana15. As condutas dos participantes os
identificam a partir de suas práticas expressas através de seu jogo corporal e dança
cadenciada pela energia rítmica e sonora do som das bandinhas e zabumbas. Nesse
movimento se exalava sensualidade e outras simbologias aceitas no universo da
Lavagem, mas totalmente rejeitadas em outro universo social-moral.
Essa expressão corporal simbolizante da Festa era uma marca de
representatividade transmitida e reproduzida pelos participantes nos seus ciclos de
mudanças e transformações da Festa. Ela tinha práticas e formas verticalizantes ao
longo de sua existência tais como a presença das baianas, as músicas com tom de
ambigüidade e ironia, as brincadeiras e as irreverências.
Muitas práticas vivenciadas e vista no festejo não deixaram de serem,
representações apropriadas e reproduzidas pela comunidade feirense ao longo dos anos
na festa. Essas práticas eram transmitidas e reinventadas de geração em geração. Em
alguns momentos acreditamos que a forma da Lavagem estava posta, quem mudava
eram seus personagens e à medida que aconteciam as mudanças, muitas práticas eram
redefinidas e resignificadas, sejam pelos seus participantes ou até mesmo pelos seus
espectadores.
Havia uma fusão e interação muito forte entre ambos, pois, ir à Festa da
Lavagem mesmo que apenas para olhar, não podia deixar de ser em certa medida
aprovação a esse tipo de manifestação cultural. As performances apresentadas não se
ligavam somente ao corpo, mas, por meio dele, ao espaço não delimitado - apenas as
ruas e a Praça da Matriz – no qual os ecos da festa parecia se arrastar e fixar-se nas
memórias tanto dos participantes como dos espectadores, que, possivelmente, levavam

13 Ibidem p.12
14 Ibidem p.12
15
Para Paul Zumthor (2007), a performance “ está marcada por sua prática –manifestação cultural lúdica
não importa de que ordem ( conto, canção, rito, dança), a performance é sempre constituída de forma.
p.30.
para suas casas lembranças marcadas no corpo, nos ouvidos e na memória,
comportamentos e práticas vistas e vivenciadas durante a Festa e que, em certa medida,
era reproduzida em outros espaços. Um sinal disso é fala de seu Antonio Ramos.

R.O-Gostaria de saber em que momento a Lavagem e o bando ficaram


pornográficos. Por que o Senhor disse que naquele tempo eles já
cantavam coisas pornográficas. Nas décadas de 40 e 50 eles já
cantavam coisas pornográficas? O Bando e Lavagem cantavam coisas
pornográficas?
A.R- O Bando não tanto, o Bando podia acontecer de vez em quando,
mas esse pau dentro pau fora era uma cantiga quase que popular o
pau dentro pau fora quem tiver pau pequeno vá embora sempre se
cantava isso, e aquela quando eu vim da Bahia, e Eu não notava nada,
cantava abria a boca e um dia papai reclamou, porque você está
cantando isso, mas ela não definia a palavra buceta. Quando Eu vim
da Bahia eta! Encontrei Seu Tim vuceTA ,esse negócio ela não dizia,
mas ai foi percebendo, a gente vai esquecendo que essas coisas da rua.
Ai se deixou de cantar e nunca mais se cantou em casa, mas se
cantava na rua e nessas lavagens e levagens16.

È difícil avaliar, mas também não é possível deixar de acreditar que esses
sujeitos ouvintes ou partícipes não levassem para casa um pouco da Lavagem dentro de
si. A narrativa de seu Antonio Ramos sobre a repreensão de seu pai ao reproduzir em
casa uma música que deveria ser restrita às ruas e à Lavagem, negava a prática de cantar
músicas ambíguas e de duplo sentido fora de espaços definidos. A sua fala nos permite
fazer essa dedução e reflexão do quanto àquela manifestação se desdobrava e ecoava em
outros espaços.
Podemos considerar que esses tipos de músicas em sua dimensão material,
foram elaborados, transmitidos e apropriados pelos indivíduos mediante os processos de
produção, circulação e recepção. Pois elas se propagaram e se reproduziram durante
longos anos na Festa, sendo ouvidas e repetidas em muitas Lavagens, em diferentes
épocas.
Levados pelas músicas de duplo sentido logo atrás das baianas, das carroças, das
bandinhas e zabumbas vinham os travestidos17, transitando entre sua ala e as das
baianas, pois muitas vezes eles se fantasiavam de baianas, mas eram facilmente

16
Entrevista com seu Antonio Ramos (em 05/02/13).
17
O jornal os coloca como travesti, porém os diferenciam dos travestidos que ganham a vida usando
roupas de mulher, denominando eles de Travesti de carnaval pois tinham outros objetivos. Discussão
travada no jornal Feira Hoje (26/01/82). Ano XII, n.2305.p.5-6
reconhecidos por destoarem delas pelos tons de cores extravagantes estampado nas suas
roupas e enfeites.

Foto 2: O Travesti passa, uma Foto 3: Ilkias, o “Momo” de travesti:


Foto 1: Travesti caricato: sutiã de Senhora o aponta e a criança fica eufórico. Feira Hoje (26/01/82). Ano
maiô, saia midi de chita, lenço. Feira espantada. Feira Hoje (26/01/82). XII n.2305.p.6
Hoje (26/01/82). Ano XII n.2305.p.6
Ano XII n.2305.p.6

A festa da Lavagem para eles parecia ser um avesso18 ou travessura, rompiam


em certa medida com a ordem estabelecida, mas não fazia dela uma inversão total como
acontecia nos carnavais medievais apontados por Burke (2010), nos quais ficavam em
suspensão por um tempo a ordem estabelecida e tudo era permitido desde mudança de
hierarquia à liberação total do prazer corporal. Como no Carnaval europeu o no próprio
Carnaval brasileiro, a Lavagem dentre suas manifestações apresentava encenações e
performances próprias, nestas eram representados temas e mensagens diversos, falando
de sexo, formas de fé, religião, maternidade e política.
Participavam do grupo dos travestidos, tanto homens comuns, quanto filhos de
comerciantes, empresários, industriários, além de homens solteiros, casados ou até os
enrustidos que não podiam se expressar no cotidiano, pelos tabus e preconceitos
existentes. De forma lúdico-festiva, eles tinham seus corpos modelados por roupas
femininas e maquiagem para, de forma irreverente, fazer suas performances para o
público. No ano de 1982 o jornal Feira Hoje os descrevia:

Grandes bustos postiços, saias de cores variadas, tipos


carnavalescos vestindo “maxi-sais”, “mulheres”, maternalmente

18
Tomo emprestado o conceito explicitado pela Marlene Soares Pinheiro (1995) em seu estudo sobre o
carnaval-“em termos sócio-culturais, a noção de avesso se prende a toda e qualquer linguagem,
principalmente a comportamental, que contradiga as “boas normas” da moral vigente. P. 21. Avesso é
toda e qualquer linguagem que - de inusitada-, de súbito, perverte o hábito de estar e de ser, instaurando
uma nova interrogação, captação pura, ao textualizar ou ler um nascedouro nuança do mundo. P.21
embalando “bebês” de trapos, fantasias de “velhas’, quase 400
travestis continuaram a velha tradição da Lavagem, com seus trajes
pitorescos, destacando-se da multidão em ritmo de samba e
arrancando aplausos pela ousadia de muitas de suas criações.
O predomínio foi das “mães” e dos travestis caricatos. Eles
espalharam-se atrás da procissão de carroças. Estavam animados,
sorridentes, posavam para fotografia e nada traziam que o
escondesse o rosto. (Jornal Feira Hoje, 20/01/1985, Ano XV,
nº3213, p.05)

No momento do desfile, os homens comuns, vestidos de mulher , quebravam sua


rotina - como apresentado nas fotos 1, 2 e 3 - se abandonando ao divertimento, à
irreverência e de forma ousada rompiam como já foi dito os limites e regras sociais, se
deixando fotografar sem nenhum temor. Eles brincavam, a exemplo de “Um casal, “ele”
de uns 30 anos, ela de uns 45 anos, perguntavam aos espectadores se queriam ver “um
beijo”, mas logo depois explicavam: “é um beijo de mentirinha19”. Os travestis se
entregavam ao som esfuziante das bandinhas.
Basta à bandinha soltar o primeiro acorde que não sobra nada para
ninguém. Cada um se segura, pois daí em diante só se vê muita
animação, e é justamente nessa hora que aparecem os travestis,
alguns assumidos, enquanto outros aproveitam para atravessar as
tensões dos dias de trabalho.
Loucas, desvairadas, soltando piadinhas e paquerando todo mundo
que passa, As “bonecas” não deixam escapar nada, atraindo todas
as atenções para si, o que lhes transformam numa das principais
atrações da Lavagem. (Jornal Feira Hoje, 25/01/1985, Ano XV,
nº3218, p.05)

Eles eram a grande maioria da Lavagem, sempre engrossavam o cortejo com


suas centenas de participantes distribuídos nas ruas e eram admirados por seus
observadores das calçadas pela ousadia (quase transgressão), apesar de muitas vezes
serem criticados, eles já faziam parte da identidade da Lavagem, como descreve o jornal
Feira Hoje, no ano de 1987: “os personagens que nos últimos anos tanta polêmica vêm
despertando na comunidade feirense, ora estimulando elogios, ora conduzindo as
críticas ferrenhas - no sentido de estarem desvirtuando a intenção sacro-folclórica da
lavagem, de Santana20”.
Dando continuidade ao cortejo estavam os grupos folclóricos, entre este o do
Mestre Muritiba com “Segura a véia” e tantos outros que se misturavam ao desfile com
samba-de-roda e encenações do bumba-meu-boi, do maculelê, roda de capoeira e dos

19 Noticia publicada no Jornal Feira Hoje, 20/01/1985, Ano XV, nº3213, p.05.
20 Noticia publicada no Jornal Feira Hoje, 23/01/1987 ,Ano XVI, nº3611, p.03.
grupos pastoris. O mestre Muritiba solicitava dos órgãos públicos uma maior
valorização das manifestações folclóricas na Festa e na conservação da tradição.
Após percorrer seu itinerário, o cortejo sempre voltava para o largo da Catedral,
apesar da Lavagem ter cumprido seu percurso, a Festa no Largo da Matriz continuava
como uma extensão dela. O público transitava entre as barracas e o coreto para assistir
as apresentações dos grupos folclóricos com seus sambas de roda e se entregar ao samba
ou ser apenas um mero espectador para escutar os sons mecânicos das barracas ou
shows, quando aconteciam no palco da Praça Padre Ovídio ou para acompanhar os trios
elétricos.
No seu panorama móvel a Lavagem levava para seus participantes e
espectadores imagens e representações repelidas e negadas pela Igreja Católica em
especial nos anos 70 e 80. O resultado foi o choque de representações21 entre o que se
expressava na Lavagem e como a Igreja desejava ser representada. Nesse momento o
jogo de equilíbrio e sustentação da Lavagem é posto em risco. Os interesses do Clero,
dos organizadores e participantes da Lavagem parecem não entra mais em negociação e
conciliação, por conseguinte, ela parece apresentar sinais de que poderia acabar. Em
alguns momentos essa ordem se tensionou e quase rompeu, mas se recriaram novas
relações ou se tirou de linha o objeto tensionado, destarte o ponto de equilíbrio dura até
1987, quando ela é extinta juntamente com o Bando, a Levagem e todas outras
manifestações consideradas profanas pela Igreja Católica feirense.

Referências:

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Santana. Feira de Santana: UEFS Editora, 2006.

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São Paulo, SP: Companhia das Letras,2010.

COSTA e SILVA, Cândido. Os Segadores e a messe: o clero oitocentista na Bahia,


Salvador: EDUFBA, 2000.

21
Discussão baseada nos estudos de Roger Chartier.
______. Roteiro da Vida e da Morte. São Paulo, Ática, 1982.
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LOPES, Antonio Herculano, VELLOSO, Monica Pimenta e PESAVENTO, Sandra
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janeiro: 7Letras, 2006, p.29-44.

______. O mundo como representação. Estudos Avançados. São Paulo, v. 11, n. 5, jan-
abril 1991. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-
40141991000100010&script=sci_arttext. Acesso em: 20 ago. 2010.

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DA MATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

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francesa. Tradução de Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

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Largo da Bahia. Paper apresentado, 30º Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, out de
2006.http://www.antropologia.com.br/arti/colab/a40-esantos.pdf

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução: Jerusa Pires Ferreira e


Suely Fenerich.São Paulo: Cosac Naify, 2007.
O imaginário simbólico da Congada dos Catopês: expressão de uma
religiosidade afro - sertaneja do sertão das Gerais

Maria Socorro Isidório 1


O trabalho tratará de uma importante manifestação cultural-religiosa de Montes Claros,
cidade do norte das Minas Gerais. Objetivamos abordar as congadas dos Catopês como
uma expressão da religiosidade sincrética e popular montesclarense destacando o
imaginário simbólico que compõe a manifestação. Essa religiosidade é manifestada
através de uma arte simbólica “sagrada e profana” elaborada pelos devotos dos ternos
que encanta e denota uma religiosidade de um colorido sincrético. O método do trabalho
foi levantamento bibliográfico e observação de campo. A pesquisa nos mostrou que o
símbolo é um poderoso meio de expressão religiosa e a arte que compõe os grupos,
revelando-os, se afigura uma importante mediadora com o sagrado.
Palavras-chave: Imaginário simbólico - Congada- Catopê.

1
Mestre (2010) e doutoranda em Ciências da Religião pela PUC-SP. Professora da Universidade Estadual
de Montes Claros- UNIMONTES. E-mail: socorroisis@yahoo.com.br.
Congado
O Congado é uma importante expressão da religiosidade popular brasileira. Os
termos usados para nominar a manifestação variam entre Congados, Congo ou
Congadas, conforme a região. As festas congadeiras têm como marco em praticamente
todas as regiões, as figuras representativas de reis e rainhas negros, em referência a reis
congos ou do Congo, país africano localizado ao sul do deserto do Saara. Três quartos
dos africanos que vieram da África para o Brasil, via escravidão, eram provenientes do
Congo - Angola.
Estas manifestações rememorativas aconteciam em forma de coroações de
rainhas e reis negros, que para os escravos das áreas urbanas eram permitidas de tempos
em tempos. Dito de outro modo, em sua origem o congado foi uma manifestação
cultural religiosa de raiz africana vivenciada festivamente no País, como um meio de os
africanos não perderem suas referências humanas. Performaticamente, Queiroz (2005)
acresce que, no fundo, “Os Congos são uma dança dramática, de origem africana,
rememorando costumes e fatos da vida tribal. Na sua manifestação mais primitiva e
generalizada, não passam dum simples cortejo real (...)”. (P. 30). Além disso, é uma mostra
da capacidade criativa e de sobrevivência desse povo, que fez sobressair um frondoso
sincretismo cultural - religioso que arquitetou um modo de ser brasileiro.
Sobre este aspecto Queiroz apresenta o seguinte:

Essa festa de devoção (...) pode ser identificada como uma expressão da
religiosidade negra que sobreviveu ao processo de imposição cultural,
presente no sistema escravista brasileiro, pela reinterpretação e reelaboração
de valores alheios à concepção de mundo dos negros. Para Brandão (1976;
1985), o Congado combina simbolicamente a memória de acontecimentos e
costumes “tribais” com valores da devoção católica aprendidos na catequese.
(QUEIROZ, 2005, p. 28).

Segundo Ferretti, sincretismo é um fenômeno existente em todas as religiões e é


muito forte na sociedade brasileira. De acordo com o autor, são vários os usos e sentidos
do conceito de sincretismo, dentre estes, “junção, fusão, mistura, adaptação.” (1995,
p.90). Dada a variedade de termos, Ferretti esclarece que se pode localizar os vários
tipos empregados de acordo com o aspecto abordado.
Em Montes Claros, cidade fincada no sertão das Minas Gerais, os grupos de
Congado existem há mais de cem anos e vêm praticando e reproduzindo essa tradição
cultural. Na cidade há três expressões do Congado, que revelam um sincretismo de
bases étnicas afro, Catopês; ameríndia, Caboclinhos; e luso - espanhola, Marujada. Ao
todo são três ternos de Catopê, dois grupos de Marujos e um grupo de Caboclinho. Estas
manifestações são vividas simbolicamente de forma plena conferindo sentido
existencial aos seus mantenedores e a boa parte dos montesclarenses.
Congado e o imaginário simbólico: preâmbulo
O símbolo foi a linguagem originária e fundante da experiência religiosa, ou
seja, da experiência do ‘Mistério’, tão difícil de ser explicitado. Essa experiência é
totalmente afetiva e sua comunicação possui um valor sacramental no sentido de repetir
a presença do sagrado. Croatto (2001).
O Mistério é percebido no nível da mediação; o sagrado, enquanto realidade
transcendente mostra-se (hierofania) e ao mostrar-se, limita-se. Mas, ao revestir uma
coisa ou uma pessoa de sacralidade, torna possível ao ser humano comunicar-se com o
transcendente. O símbolo religioso está localizado em primeiro lugar “entre” o sagrado
e o sujeito humano que o experimenta.
Etimologicamente, do grego sum-ballo ou sym-ballo, refere-se à união de duas
coisas. Uma parte remete a outra. No símbolo estão presente dois elementos que de
alguma forma se inter-relacionam. Porém, cada coisa tem sua própria identidade, e o se
próprio sentido. Mas o ser humano pode “atravessar” esse primeiro sentido pra ver nas
coisas de sua experiência fenomênica um segundo sentido.
Sobre o imaginário simbólico, para o filósofo e historiador das religiões Mircea
Eliade (1907-1986), imaginação simbólica está ligada à imago, representação;
“imitação”, a “imitar, re-produzir”; a imaginação humana imita modelos exemplares_
que são as Imagens _ reproduzindo-os, repetindo-os infinitamente. Concordamos com o
autor quando intui que ao devanear nas diversas formas da matéria, o homem buscou
entender a realidade profunda das coisas, que se afiguravam caóticas demais para serem
conceituadas, trazendo à tona sentimentos antagônicos. O devaneio é esse momento de
imaginação das coisas; é uma tentativa da consciência de compreendê-las, nelas
mergulhando, recortando-as, reconstruíndo-as. Dessa maneira, a imaginação humana, ao
ser dinamizada pelo devaneio e pelas imagens das formas da matéria, costurou um
vínculo com o Cosmos. (ELIADE, 1991, p.09).
Para o filósofo – poeta Gaston Bachelard (1884-1962), imaginação é
consubstancial ao ser humano, precedendo a razão e a linguagem discursiva. Para ele, as
imagens da matéria têm o poder de evocar ou inspirar. Absorvidas da capa do real são
apreendidas em camaleônicas imagens e significadas a partir daquilo que é
experienciado. Em consonância com os primeiros filósofos gregos, o filósofo considera
a matéria como o fundamento originário de tudo e que dá unidade ao Universo. Matéria
para Bachelard não é uma massa grosseira e corruptível que compõe o mundo, mas uma
energia viva que pulsa e flui existência.
Religião e imaginário, portanto remetem à compreensão de que as estruturas e os
conteúdos do inconsciente humano são resultados de situações imemoriais, que faz o
inconsciente apresentar uma aura religiosa. Pois a religião é a solução exemplar de toda
crise existencial, não somente porque é indefinidamente repetível, mas também porque
é considerada de origem transcendental e, portanto, valorizada como revelação recebida
de um outro mundo, trans-humano.
A religião, como uma experiência vivificante do mito, da narrativa de origem
sagrada, dinamiza o imaginário, levando o homem a ultrapassar os muros das
convenções humanas e alcançar um mundo espiritual. O homem não está acorrentado às
grades desse mundo, ele projeta-se para além das brumas mundanas que insinuam
formas, a um espaço e tempo virtuais. Um sonhador profundo consegue contemplar
além das formas, imagens da matéria.
Nesse sentido, a Imagem é uma gênese, um começo absoluto numa experiência
de vivência entre o homem e a matéria, que transcende a história e as instituições
humanas. E o mundo espiritual é um mundo sagrado, vivido simbolicamente, como
veremos nas imagens simbólicas dos catopés.

Imagens e símbolos dos Catopes


Os catopés vivenciam valiosas bases culturais e religiosas em dimensões
materiais (estéticas, coreográficas, musicais, etc.) e espirituais que revelando um
complexo sistema simbólico. Os elementos estéticos que compõem os ternos, como
veremos adiante, trazem á superfície formas simbólicas de Imagens sagradas para os
seus componentes.
A visualização das formas simbólicas que se mostram no ritual congadeiro dos
Catopês, pode ser capturada através das indumentárias, das cores, dos objetos materiais,
dos ritmos, gestos e outras sutilezas que compõem o seu todo. Estes elementos sensuais
portam então uma significação profunda se afigurando um importante meio de ligação
da dimensão mundana ordinária com a dimensão sagrada, extra - ordinária. Perscrutar
os significados simbólicos destas materialidades é objeto de desejo deste trabalho.
Comecemos pela cor. A cor das vestes dos Catopês é branca, apresentando
pequenas variações de cores referentes aos santos de devoção e outros. Dos três Ternos
de Catopês, dois são devotos de Nossa Senhora do Rosário e um devoto de São
Benedito.
De acordo com Chevalier ((1982, p. 275) um primeiro aspecto relativo ao
simbolismo da cor é a sua universalidade em todos os níveis do ser e do conhecimento.
Suas significações podem varias de acordo as culturas, mas permanece o sentido de
fundamento do pensamento simbólico.
Ela se afigura para a consciência religiosa (não de todos os povos) como a cor
iniciadora, da revelação e da Graça. É uma cor teofônica. O simbolismo religioso da cor
na tradição cristã, por exemplo, incide que cor é participação da luz. Nesta tradição
religiosa, luz alude à Deus, pois, “o Verbo de Deus é chamado de luz que procede da
luz”. (P. 277).
Quando perguntados sobre a cor branca das vestes, os integrantes remetem à
origem africana dizendo que é a cor que tradicionalmente seus ancestrais africanos
escravizados usavam “naquele tempo”, aludindo a um princípio originário. O
simbolismo é informado em linguagem cifrada.
Outro adereço de destaque dos catopés são as fitas de diversas cores que caem
do topo dos seus capacetes até o chão. Para os cristãos as fitas portam um sentido
místico, como se fossem um elemento intermediário entre o homem e Deus. Ao se
apossar de uma fita do capacete do catopé, o crente faz um pedido ou uma promessa
que, se alcançados, o obriga a devolver a fita sagrada ao indivíduo no próximo ano.
Temos aí um simbolismo orientado para a manifestação de uma vitória. O seu
simbolismo também alude ao nó/laço de forma positiva, de desabrochar. Para os
integrantes, a fita contém uma força sagrada intermediadora e pode operar milagres ao
pedinte. E eles se sentem honrados em carregar um símbolo do sagrado. (CHEVALIER,
p. 432).
Os catopés usam um adereço imponente sobre a cabeça, chamado por eles de
capacete. É dele que caem as belas fitas coloridas que levam movimento, leveza e
encantamento. Também é composto de penas de pavão que imprimem um toque
majestoso. Colorido, é acobertado por contas coloridas luminosas. É o adereço mais
notório e sedutor.
O símbolo do capacete ou do elmo é a invisibilidade, a invulnerabilidade e a
potência. Mitos gregos fantásticos apresentam narrativas que envolvem os poderes do
capacete. O simbolismo envolve a cabeça. Neste caso, como o capacete protege os
pensamentos, pode também ocultá-lo; o simbolismo alude à elevação e dissimulação.
(CHEVALIER, p. 184).
Assim como o elmo ou capacete, a pena, penacho, pluma, está acima da cabeça,
manifestando um esforço de elevação, auto - elevação. (Chevalier, p. 706). Chevalier
esclarece que “a função simbólica da pluma está ligada, no xamanismo, aos rituais de
ascensão celeste e, por conseguinte, de clarividência e de adivinhação”. (P. 724). Não à
toa, é o adereço que parece poder “encarnar” no homem comum, um outro ser; um ser
especial coroado por uma auréola especial, luminosa, encantada e sagrada. Pelo seu
caráter simbólico de libertação dos pesos deste mundo, na época dos festejos, nos
deparamos com outrora homens “comuns”, agora, poderoso reis em estado de êxtase.

Foto: Suzana Fonseca/2009.

Cada terno de catopê usa bandeiras ou estandartes estampando os santos de suas


devoções. As cores, os enfeites e dizeres, variam de acordo com a divindade. As
sociedades humanas usavam (e ainda usam) brasões, totens, bandeiras e estandartes
colocadas no alto para mostrar –se emblematicamente (simbolicamente). Chevalier diz
que, de maneira geral, a bandeira alude a comando de reunião e emblema de um chefe
ou grupo.
Observando os ternos desfilando sobre as ruas da cidade, ladeados por inúmeras
pessoas, vemos que o estandarte à frente não só apresnta o grupo como também mostra
a sua essencia, o seu ser, simbolicamente. (CHEVALIER, p. 402). As bandeiras, assim
como os estandartes, estão acima da cabeça do homem, simbolizamdo proteção,
“concedida ou implorada”, conforme observa Chevalier (P. 118). O ato de protar uma
bandeira de cunho religioso concede um elo entre entre o mundo e o transcendente;entre
o baixo e o alto; o celeste e o terrestre, significando” Deus é minha proteção”. (P.119).
O ato de içar as bandeiras em frente à igreja dos catopês, se constitue no ápice
do ritual em que vemos os integrantes em estado de êxtase, contagiando os observantes
e imprimindo um sentido de ascenção espiritual. O ritual possibilita os integrantes dos
Catopês experienciarem um tempo especial, sagrado, vivificado na festa religiosa.
Assim, o ritual não só abre o sagrado para os componentes dos catopés como também
pode estender essa possibilidade até mesmo ao homem não –religioso que se dirige ao
ritual de forma festiva, mas que parece ter a esperança de ser contemplado pela
sacralidade presente no espaço e nos homens.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ritual dos Catopês em Montes Claros instala e dinamiza uma atmosfera
religiosa que atrai inúmeras pessoas em torno de si, estruturando um chão que torna
diferentes em iguais, derrubando muros de convenções sociais. A junção das pessoas,
religiosas ou não, acontece de forma tal, que no momento do ritual parece haver uma
comunhão entre todos e um forte religare. Ritual que revela um frondoso simbolismo
religioso.
Em contato com os integrantes dos catopés, buscamos extrair os sentidos dos
festejos e suas indumentárias, numa tentativa de vislumbrar os seus simbolismos. O que
vimos e ouvimos foi exprimido em linguagem simbólica, conduzida por uma lógica
transcendental, que nos mostrou que para além de explicações teóricas ou científicas, há
uma compreensão profunda do vivido. Do seu simbolismo.
O sentido de expressão que buscamos capturar refere-se a uma força que se
exprime (sentimentos) e uma forma que a exprime (um ritual, uma indumentária, etc.).
É uma enunciação do espírito por meio de uma linguagem (simbólica) que denota
sentimentos; é uma representação de algo (através de ritos, Imagens, performances,
músicas, danças, cores, cantos, vestes, olhares, inflexão, etc.). Na dinâmica da
expressão, há uma inseparabilidade entre exterior e interior, tudo se funde _ no canto,
nas orações, nas pautas, nos gestos, os afetos vividos estariam em conexão bastante
forte. Foi a essa dinâmica expressiva e simbólica que buscamos nos voltar para dialogar
com essa encarnação da experiência sensível, esse “existir sensível”.

BIBLIOGRAFIA

CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT. Alain. Dicionário de Símbolos: (mitos, sonhos,


costumes, gestos, figuras, cores, números) Com a colaboração de André Barbault (et
al). Coordenação Carlos Sussekind. Tradução Vera da Costa e Silva (et al). 23. ed. Rio
de Janeiro: José Olímpio, 2009.

ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso.


Tradução Sonia Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Usos e Sentidos do Conceito de Sincretismo Religioso. In.


Repensando o Sincretismo: Estudos sobre a Casa das Minas. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo; São Luis: FAPEMA. 1995.

QUEIROZ, Luiz Ricardo. Perfomance musical dos Ternos nos Catopês de Montes
Claros. Tese de Doutorado em Etnomusicologia. Universidade Federal da Bahia. 2005.
1

IMAGENS DAS CELEBRAÇÕES RELIGIOSAS


NO CONTEXTO ESCOLAR

Jailson da Silva1
Profª. Pós Drª Eunice Simões Lins Gomes2

Este artigo consiste em descreve a análise de um rito no contexto escolar,


considerando a interface sagrado e profano que, de forma simbiótica, propiciam e
permutam convivências e sociabilidades. Nosso objetivo consistiu em descrever o
caráter lúdico presente no rito e identificar a sua relação com os eventos religiosos.
Esse estudo faz parte da pesquisa do mestrado que estamos desenvolvendo assim
apresentamos um recorte do estudo como primeiro resultado da pesquisa. A
metodologia utilizada consistiu na pesquisa descritiva com abordagem qualitativa e
bibliográfica. Entendemos o rito como sistema simbólico onde as experiências exigem
significados entre aquilo que é vivido e o imaginado. Como resultado de nosso olhar
investigativo sobre o rito da páscoa foi possível analisar os costumes presentes no
contexto escolar e o processo de convivências e sociabilidades que este rito suscita.

Palavras-chave: Rito. Símbolos. Sagrado. Profano.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

1
Jailson da Silva. Historiador, Professor do Ensino Religioso. Mestrando em Ciências das Religiões pela
Universidade Federal da Paraíba – UFPB, e-mail: jailsondasc@gmail.com
2
Profª Pós Drª do departamento e no programa de Pós Graduação em Ciências das Religiões da UFPB, e-
mail euniceslgomes@gmail.com grupo de estudo e pesquisa em Antropologia do Imaginário - gepai
http://gepai.yolasite.com/
2

Neste artigo procuramos analisar as imagens das celebrações religiosas no contexto


escolar. Deste modo, fizemos uma analise do rito da páscoa, que consiste em uma
celebração religiosa que faz parte do feriado nacional e que em geral, faz parte do
calendário escolar brasileiro. Tivemos como objetivo apreender as imagens que
emanam desse rito por meio da interface sagrado e profano no mesmo espaço, como
também, ressaltar a importância desse rito como ferramenta pedagógica para
convivência e consequentemente a sociabilidade entre os participantes.

Esse estudo faz parte da pesquisa do mestrado que estamos desenvolvendo assim
apresentamos um recorte do estudo como primeiro resultado da pesquisa. A
metodologia utilizada consistiu na pesquisa descritiva com abordagem qualitativa e
bibliográfica. Entendemos o rito como sistema simbólico onde as experiências exigem
significados entre aquilo que é vivido e o imaginado.

Com base nessas considerações, estruturamos o nosso estudo em três momentos:


No primeiro ressaltamos a importância do rito para o ser humano, pois desconfiamos
que através dos ritos tenhamos a oportunidade de conhecermos os outros e a nós
mesmo. Em seguida ressaltamos sobre o espaço escolar como ambiente de
convivência e sociabilidade, pois acreditamos que depois da nossa casa é nela que
passamos a maior parte de nossas vidas, e por fim na terceira parte surgimos com o
rito da páscoa com seu universo simbólico religioso como ferramenta lúdica
metodológica que fortalece interação dos participantes no ambiente escolar.

Então por estarmos interessados em fazer emergir as imagens das celebrações no


contexto escolar, fizemos opção em nossa análise pelo rito, por ser uma prática que
existe desde aparecimento do ser humano na história. Compreendemos que os ritos
são celebrações das tradições e manifestações culturais que possibilitam um encontro
interpessoal, servem à memória e a preservação da identidade, seja ela cultural,
social, religiosa, em fim abrange todos os aspectos da vida. Portanto, o rito da páscoa
que é compreendido como uma recapitulação de um acontecimento sagrado anterior.

Atribuímos à páscoa um sentido simbólico, que no contexto escolar por meio da


encenação da via sacra, ou seja, do trajeto que Jesus Cristo faz carregando a cruz,
sua morte e ressurreição no domingo de páscoa, vêm para dar movimento e sentido
prático à ideia de sagrado. Consiste em um ritual com alto teor simbólico, refletidas
nas imagens de cada participante, seja atuando ou assistindo.

2. A IMPORTÂNCIA DO RITO PARA O SER HUMANO

Justamente em virtude de descrever sobre as imagens das celebrações religiosas


no contexto escolar e entendermos que essas celebrações nada mais são do que ritos
que se repetem todos os anos em muitas escolas do Brasil. Achamos por bem, antes
3

de falarmos a respeito do rito ao qual nós analisamos que foi o da páscoa,


apresentarmos de forma a enriquecer nosso estudo algumas considerações a respeito
da importância do rito para o ser humano.

Tendo em vista a importância do rito para humanidade, nossa proposta nesse


momento consistiu em analisar bibliograficamente alguns subsídios que legitimavam
essa hipótese sobre o rito. O nosso objetivo foi ressaltar o rito como elemento
organizador da vida individual e coletiva. Adotamos para análise, como critério de
seleção, o conceito e classificação dos ritos, a finalidade dos ritos, e os aspectos dos
ritos.

Partindo de situações concretas do cotidiano no dia a dia dos seres humanos mais
próximos, nos fez entender a real valor que o rito tem para o ser humano.
Originalmente, o termo “rito” significa ato ou ação ligado à prática de comportamentos
repetidos, tanto individuais como coletivos, cumprindo regras pré-estabelecidas.
Segundo Benveniste, rito vem do latim ritus, que indica a ordem estabelecida e, mais
atrás, liga-se ao grego artýs, como o significado também de “prescrição, decreto”.
(BENVENISTE, 1969, apud TERRIN, 2004, p. 18).

Compreendemos que o termo rito é empregado para denominar uma regra, ordem
e método, ou seja, os ritos orientam, pois carregam em si os hábitos necessários que
comprometem a vida. Portanto, as cerimônias ampliam o conhecimento que educa
para a vida pessoal e coletiva. As orientações para a vida seja ela em que esfera for,
são inseridas por rituais carregados de grande valor, através de normas pré-
estabelecidas pelo grupo no sentido de manter viva a memórias, a tradição, a cultura.

2.1O conceito e classificação do rito


Neste momento, salientamos que ao falarmos em conceito de rito presumivelmente
podemos perceber com frequência o rito com sua funcionalidade de colocar em ordem
o caótico. Tendo como componente em suas realizações práticas, os gestos, as cores,
os sinais, os símbolos, as palavras e os sons de forma padronizada. “O rito nos
permite viver num mundo organizado e não caótico, permite-nos sentir em casa, num
mundo que, do contrário, apresentar-se-ia a nós como hostil, violento, impossível”
(TERRIN, 2004, p. 19).

É importante notar que o rito passa a inserir nas pessoas o hábito cerimonial, um
sentimento preconizado, de compromisso, ligados a conduta humana, seja pela
orientação, ordem, sentido, método, diretriz. Os ritos na medida em que são
externados através dos eventos, os elementos que o compõe o ritual se reveste de um
teor simbólico. Dessa forma, o rito estabelece uma conexão entre os objetos
4

utilizados, as figuras ali representadas, os gestos, as palavras pronunciadas e os


participantes do ritual.

Quanto à classificação dos ritos, entre tantas que existem, consideramos os


pressupostos teóricos, desenvolvido por Terrin (2004) na referida obra o rito
antropologia e fenomenologia da ritualidade. Na tentativa de resgatar uma
classificação mais próxima dos ritos não podíamos deixar de lado a sua contribuição.
Terrin traz a memoria aquilo que entendemos como aspecto fundamental na vida do
ser humano que é o rito.

Justifica-se essa escola no sentido que Terrin classifica o rito a partir de vários
critérios, como a operatividade e a formalidade do rito, bem como, sua essência no
nível histórico, fenomenológico, religioso. Aldo Natale Terrin nos chama a atenção
para o fato que o rito perpassa os tempos, continuando vivo, estabelecendo ordem e
sentido.

Apesar de tratarmos nesse capítulo da importância do rito para humanidade. Nesse


ponto, onde trata da classificação dos ritos, por contemplar uma grande variedade
tipológica dos ritos, se fez necessário fazer alguns recortes, neste sentido, citamos os
tipos de ritos que Terrin destaca, porém, apenas relatamos, o que interessa a
dissertação. A classificação transcursa da seguinte forma: Os ritos apotropaicos,
eliminatórios, purificação, negativos, sacrificais, repetição do drama divino, passagem,
cíclicos, crise, inversão, rebelião, gracejo, meditação e transe.

2.2 A finalidade do rito

Consideramos assim, que o rito seja ele religioso ou não possui proposições
cerimoniais que estão ligados às raízes humanas em um tempo que não pode ser
determinado, mas traz em si implicações ontológicas do ser, tendo em vista todo um
sistema simbólico de que os ritos de um modo geral estão carregados.

O processo desenvolvido através do rito é revestido de um teor simbólico para o


desenvolvimento dos costumes, portanto ele se torna possuidor de um aspecto
religioso e antropológico. O rito é uma ação e se desenvolve em primeira instância
pela expressão humana no tempo e no espaço através do corpo.

Como vemos no texto acima, o corpo tem uma importância muito significativa na
prática do rito. O corpo é a via de acesso para que o homem exista no mundo.
Portanto, através das ações corporais encontramos expressos anseios, necessidades,
emoções, conflitos, necessidade de ser bem-querido, de pertencer a um grupo e
construir uma identidade social.

Dessa forma, todas as ações dos ritos são desenvolvidas para um determinado
objetivo, para uma finalidade. Nessa direção há ritos que podem ser conscientes ou
inconscientes, de forma explícita ou implícita, ações essas que acontecem em algum
5

lugar e em algum tempo. “Os ritos, portanto, para serem vividos e compreendidos,
devem ser localizados em suas dimensões espaciais e temporais”. (VILHENA, 2005, p.
22).

O rito traz consigo a convergência harmoniosa do homem com ele mesmo, com os
outros, com a natureza, com o cosmo e o sagrado. Algo que é vivido e realizado em
determinada religião ou cultura. Considerando a indicação de uma ordem cósmica que
vem da etimologia mais antiga do rito. Esse conceito de ordem é muito importante,
pois revela a força organizadora do rito.

O rito cadencia o dia-a-dia, estando presente no tempo, nas estações do ano, cada
lugar é marcado por um determinado ritmo, cada pessoa age de acordo com seu estilo
de vida, portanto seu ritmo. Assim, dentro do meio sociocultural ou religioso, se
estabelece um campo simbólico que viabiliza acréscimo de valores e estabelece
relações. Justamente associando a esta ideia buscamos relacionar a finalidade do rito
no espaço escolar com uma abordagem simbólica do primeiro dia de aula. Segundo
Aldo Natale Terrin:

O rito coloca ordem, classifica, estabelece as prioridades, dá o


sentido do que é importante e do que é secundário. O rito nos
permite viver num mundo organizado e não caótico, permite-
nos sentir em casa, num mundo que, do contrário, apresentar-
se-ia a nós como hostil, violento, impossível (TERRIN, 2004, p.
19).
Todo esse processo desencadeado pelo rito traz uma concepção de que sem o rito
não conhecíamos os outros e nem a nós mesmo. Por isso, é importante procurarmos
analisar alguns aspectos do rito.

2.3 ASPECTOS DO RITO


2.3.1. Aspectos culturais
A ideia de cultura em qualquer escala, estágio, conceito, definição, ou a maneira
como é vista ou entendida, independente como venha a ser compreendida, seja por
autonomia ou evolução, ou qualquer outra forma, o que as ciências que estudam o ser
humano não podem descartar ou ignorar é o fato de o rito ser intrínseco a todas as
culturas. E neste sentido no campo da pesquisa tanto o rito como a ritualidade passam
a ser uma fonte singular para interpretar o ser humano e a cultura.

Com efeito, ao estudar o rito, temos a oportunidade de conhecer um pouco mais do


ser humano dentro de uma cultura; além de perpassar os tempos, a geografia como
também a própria cultura. O rito, que contempla as sociedades e grupos humanos
desde os tempos mais arcaicos aos mais modernos, é uma unidade antropológica de
sentidos e significados diversos de uma grande riqueza humana, revelando uma
6

humanidade possuidora de um imaginário que vai além do imaginário individual e


cultural.

Desde o início dos tempos históricos, sabe-se que todas as culturas e civilizações
criaram seus próprios ritos. Nas culturas ágrafas que não tinham um sistema de
escrita, nas religiões primitivas encontramos os ritos de passagem com aspectos
sociais nas mais variadas culturas. Um exemplo contundente do que estamos falando
é dos povos tribais, através de um processo alongado, que vai desde a concepção e só
termina quando a criança é admitida na tribo. A mãe, que se torna impura pelo fato
de ter dado à luz, passa por uma série de ritos de purificação para então ser inserida
novamente no convívio com os demais.

Evidenciando assim um rito próprio da cultura marcando profundamente os laços de


identificação e pertença, tudo vai sendo moldado por esses processos via ritos, seja o
nascimento, a entrada na idade adulta, o casamento e a morte. Essas etapas, criadas
nas diversas culturas sob a forma de ações nos rituais, regulam a conduta humana e
torna viável a vida social. “Estudar o rito é uma das mais fascinantes vias de acesso
para a compreensão dos seres humanos em suas culturas” (VILHENA, 2005, p. 13).

2.3.2. Aspectos sociais

A ação do rito está atrelada a sua utilidade social, dessa forma a sua efetivação é
indispensável para recriar periodicamente o ser moral, ético. Os ritos ocorrem em
todas as sociedades humanas atuais e passadas, basta ressaltar as civilizações em
suas respectivas épocas, por meio das tradições orais e escritas. Logo, deve estar
profundamente direcionado para um determinado objetivo ou fim, partindo sempre de
situações concretas apresentadas diariamente no cotidiano. Justamente, mais uma
vez lembrando, que essa utilidade social do rito, está evidenciada no terceiro capítulo,
onde falamos do rito no espaço escolar.

É possível também compreender o rito como sendo aquilo que fazemos todos os
dias, como o ato de acordar e escovar os dentes, tomar banho, alimentar-se, ir à
escola ou ir ao trabalho. São atos repetitivos que fazemos sem nos perguntar o
porquê, mas sempre repetimos todos os dias. Os ritos, com seus rituais são uma
espécie de sinal do grupo. É certo que indivíduo sem sociedade, isolado, fica com sua
formação comprometida, tendo em vista que o ser humano está sempre sendo
construído e para viver em grupo harmonizar-se às exigências do grupo.

De tal modo podemos entender o rito como fenômeno humano que estrutura todas
as dimensões do indivíduo e da sociedade em que está inserido. É nesse espaço social
em que o ser humano é construído. Durkheim (1989) explica as regras entre indivíduo
e sociedade. O indivíduo é antes da sociedade, mas é um ser social quando passa a
7

viver em grupo de forma racional, desta forma segue as regras estabelecidas pelo
grupo. As regras são construídas pelo grupo e para o grupo.

A verdade é que realizamos ritos a toda hora, estamos sempre


a inventar ritualidades novas, embora nos recusemos a
reconhecer que os ritos constituem uma parte dominante de
nossa vida, tanto religiosa quanto não religiosa (TERRIN, 2004,
p. 09).

2.3.3 Aspectos religiosos

Segundo Mardones (2006), a religião ou a espiritualidade apontam sempre para um


encontro ou relação que se realiza com o Transcendente. Cada tradição religiosa ver
no rito a possibilidade dessa relação, de envolver-se com os mistérios da vida, o
sentimento de se relacionar com Deus ou os deuses e o que está para além, essa
busca pelo sagrado torna-se patente. Logo, o rito trona-se uma das vias de acesso
com o Absoluto.
Portanto, tudo aquilo que se relaciona com o sagrado possui a primazia, dando
sentido e direção aos seres humanos. Por meio do ritual torna-se possível um contato
com o transcendente, serve como reavivamento de um acontecimento sagrado
original. O ritual é um conjunto de práticas que se concretizam no mundo do sagrado
e é um caminho que traz crescimento humano. Logo, cada sociedade busca relacionar-
se com a divindade que sustenta a vida do universo. “Continuamente ‘tocado’ pela
essência divina no decorrer da história, o ser humano concretiza sua relação com o
sagrado na vida através de símbolos, ritos e expressões estéticas culturalmente pré-
estruturadas” (USARSKI, 2006, p 35).
Justamente, o rito permite essa conexão entre o ser humano e o sagrado, os ritos
vêm para dar movimento e sentido prático à ideia de Sagrado. No dizer de Eliade
(1992) nas sociedades arcaicas existia a tendência de se viver perto dos objetos
sagrados, a ideia do sagrado associado ao poder, o sagrado como realidade por
excelência, o necessário, o que realmente importa. Seja pelo rito, mito, crença ou
figura divina na medida em que exprime a experiência do sagrado trás consigo o que
é verdadeiro, significativo, importante.

Os ritos estão presentes em todas as religiões do mundo, não existe religião sem
rito. São os ritos que dão cadencia as liturgias, e credibilidade às instituições, através
dos festejos, as danças, do batismo, da iniciação, das orações, dos sacrifícios,
consagração de pessoas ou lugares, passando a certeza de pertença daquela tradição
religiosa, criando laços e identidade. Fazendo com que o indivíduo sinta-se bem
consigo, com o próximo e com o transcendente. No rito é possível reviver um
acontecimento sagrado, tornar presente, ser vivenciado.
8

Ao observamos a grandeza que é o rito e sua dimensão simbólica foi que pensamos
em retratar tais dimensões a partir das imagens das celebrações religiosas no
contexto escolar. Nada mais significativo que a semana santa culminando com o dia
de páscoa. Partimos então no sentido de descrever de forma mais apurada as imagens
que foram mais evocadas, usando a analise das imagens captadas nessa celebração, e
interpretando cada imagem segundo o que Gilbert Durand, Mircea Eliade, Mardones e
outros autores que trabalham com símbolo.

3. O RITO DA PÁSCOA NO CONTEXTO ESCOLAR

O rito da páscoa no contexto escolar desvela imagens que nos esclarece mensagens
que traduzem a cultura brasileira. Os ritos são práticas que fazem o homem
compreender a si mesmo e o mundo ao seu redor. Desta forma pode-se no rito da
páscoa ainda que um rito religioso perceber sua função social.

Compreendemos aqui o sagrado presente na escola, portanto na vida dos educando


e demais profissionais da escola. Configura-se que “alguns aspectos do rito, podemos
afirmar que incidem em todas as dimensões na vida pessoal e coletiva”. (VILHENA,
2005. p34) O rito estrutura tanto uma pessoa como uma sociedade.

“O rito parece um elemento de estruturação e organização do


mundo, inalienável em sua factualidade e decisionalidade
operativa. É o mundo que no rito, faz-se e torna-se um todo
organizado para a consciência. E esse elemento comporta como
tentamos demonstrar – uma encarnação que supera todas as
outras categorias de suporte e de apoio do homem e do seu ser
no mundo” (TERRIN, 2004, p.192).

As imagens, presentes na celebração do rito da páscoa na escola se apresenta


intensamente tendo em vista os fatos que ocorrem antes do dia exato de sua
comemoração. Como a morte do cordeiro. Segundo a tradição Cristã, rememoram-se
todos os dias que antecedem o dia da páscoa. É lembrada a morte de Jesus Cristo e
na páscoa sua nova vida. Sua ressureição! Ou seja, para os cristãos, a páscoa é a
passagem de Jesus Cristo da morte para a vida. Tanto é a passagem de Deus entre
nós como nossa passagem para Deus. Uma nova vida!

Vamos por partes na compreensão simbólica do fato da crucificação. A imagem do


sofrimento, da morte na crucificação, da ressurreição e de Jesus com o corpo
glorificado estrutura toda historia da páscoa que é ainda hoje vivenciada no contexto
escolar. Compreendemos que perpassa pela áurea do imaginário dos que celebram o
rito. Nas imagens evocadas na historia da páscoa apreendemos uma significação
9

simbólica. Para essa abordagem percorreremos o método de convergência proposto


por Gilbert Durand (2001) nas Estruturas Antropológicas do Imaginário.

No imaginário da dor e sofrimento de Jesus Cristo quando ele percorre a via sacra e
sobe a cruz; depois desce ao calvário e em seguida ressurge para a nova vida.
“Veremos que os símbolos constelam porque são desenvolvidos de um mesmo tema
arquetipal, porque é variações sobre um arquétipo” (DURAND, 2001, p. 43) O que no
dizer de Pitta (2005) é a representação do schèmes, que são imagens inatas e
coletivas, toda uma representação que faz aparecer um sentido.

A condição humana do contexto escolar brasileiro com relação ao rito da páscoa foi
formada por imagens que são valorizadas pela cultura, da sensibilidade da própria
cultura brasileira. A descida de Jesus Cristo, filho de Deus a terra se junta ao
sofrimento do peso da cruz traz presente o schèmes da descida que corresponde ao
gesto de engolir, que denota divisão. Ai percebeu-se a separação de Jesus Deus na
tradição cristã, agora figura de Jesus homem, uma descida, uma humilhação extrema,
um profundo sofrimento.

3.1 A crucificação

Nessa descida, os que acompanham o desenvolver do rito vivencia o sofrimento, a


luta, a dor. “Os soldados, tendo tecido uma coroa de espinhos, pusera-la na cabeça e
vestiram-no com um manto de púrpura. Chegava-se a ele e diziam: salve-se rei dos
judeus! E davam-lhe bofetadas” (JOÃO, 19, 2-3). Contemplamos imagens diurnas na
sua significação simbólica, aspectos da angustia.

Na multidão que caminha atrás de Jesus e deseja sua morte pode-se compreender
o caos. Pessoas, multidão, gente por todos os lados. Gente como formigas querem a
morte de Jesus. A serpente ataca veloz e cruelmente. “Uma das primitivas
manifestações é o formigamento, ‘imagem fugida, mas primeira’. Não retenhamos
pela etimologia da palavra o trabalho das formigas que aparenta a imagem destas
últimas à da serpente” (DURAND, 2001, p. 73). Formigas na terra! Serpentes na terra!
Elas estão em seu habita-te.

O aspecto angustiante da morte que se aproximava “Tomaram eles, pois, Jesus; e


ele próprio, carregando a sua cruz, saiu para o lugar chamado Calvário gólgota em
hebraico, onde o crucificaram...” (JOÃO 19, 17-18a) que ficava no lado norte da
cidade velha de Jerusalém chamado de monte caveira, pois forma com as sombras a
figura semelhante a um rosto. Nesta configuração percebemos esses aspectos do fim
na presença isomórfica dos símbolos com a mesma forma de terror do fim no aspecto
negativo dos símbolos animais na presença figurada do leão, A morte desvela o
aspecto angustiante da animalidade a ‘mendicância’ como a boca aberta cheia de
10

dentes e aqui a presença do leão como diz Pitta (2005) terror e morte temas
negativos do simbolismo animal.

Das trevas no próprio monte gólgota e do barulho pelas pessoas que gritavam para
que o crucificasse conforme o texto bíblico. “Eles, porém, clamavam: Fora! Crucifica-o!
[...]” (JOÃO, 19.15a). Nesse momento de sofrimento ante da morte e crucificação, o
terror se aproxima. Aqui se faz presente o arquétipo das trevas, quando o dia já
estava passando e a tarde chegando, assim o crepúsculo se aproximava e assim a
noite chegaria. “E era a parasceve pascal, cerca da hora sexta...” (JOÃO 19.14a)

Na tradição judaica o Talmude mostra Adão e Eva vendo ‘ com


terror a noite cobrir o horizonte e o horror da morte invadir os
corações trêmulos’ [...],a hora do fim do dia, ou a meia-noite
sinistra, deixa numerosas marcas terrificantes: é a hora em que
os animais maléficos infernais se apoderam dos corpos e das
almas. Esta imaginação das trevas nefastas parece ser um dado
fundamental, opondo-se à imaginação da luz e do dia. As trevas
noturnas constituem o primeiro símbolo do tempo, e entre
quase todos os primitivos como entre os indo-europeus ou
semitas ‘conta-se o tempo por noites e não por dias’. (DURAND,
2001, p. 91-92)

3.2 A morte

Na morte uma situação de trevas se faz presente. “Já era quase a hora sexta, e
escurecendo-se o sol, houve trevas sobre toda a terra até a hora nona [...] então,
Jesus clamou em alta voz: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espirito! E, dito isto,
expirou.” (LUCAS 23. 44 e 46). Compreendemos a morte como a maior, piore a mais
grave queda que qualquer mortal inevitavelmente passará. Algo que a humanidade
não pode fugir: Nem o tempo, nem a morte são imagens da queda humana. “A queda
resume e condensa os aspectos temíveis do tempo.” (DURAND, 2001, p.113).

Um tempo negativo, o filho do homem, que pela compreensão Bíblica e da igreja é


filho de Deus e o próprio Deus, ele mesmo agora vai às entranhas da terra. A solução
é pegar as armas para destruir o monstro da morte ou compreender pela visão cíclica
do tempo em que a morte não é nada mais que um renascimento.

Foi crucificado em um madeiro “E tirando-o do madeiro, envolveu-o num lençol de


linho, e o depositou em um tumulo aberto em rocha, onde ainda ninguém havia sido
sepultado” (LUCAS, 23. 53) traz a luz da imaginação a árvore e traz a memoria uma
grande árvore“ ‘A axís mundo’ é também um símbolo de verticalidade do cosmos
compreendido pelo espaço que se constitui sagrado e é reconhecido facilmente pelo
grupo, pela cultura, nele estão contidos os valores comuns inerentes à coletividade”
(SILVA, 2011, p.58).
11

Compreendemos que o grupo, ou a cultura que constitui na cruz em todo seu


contexto histórico o sagrado, rememora na cruz, no madeiro essa imagem coletiva e
primitiva da árvore, ou seja, existe um “enraizamento profundo nos símbolos bíblicos
no húmus antropológico universal” (GIRARD, 1997, p.6). Estamos tratando de
símbolos presentes Nas culturas que deram origem aos símbolos bíblicos, a israelita e
judaico-cristã.

A cruz cristã, enquanto madeira erguida, árvore artificial,


apenas drena as acepções simbólicas próprias a todo
simbolismo vegetal. Com efeito, a cruz é muitas vezes
identificada a uma árvore, tanto pela iconografia como pela
lenda, tornando-se como escada de ascensão, por que a árvore
é contaminada pelos arquétipos ascensionais. (DURAND, 2001,
p. 328-329)

Na realidade o símbolo da madeira, influencia a imaginação criando metáforas


entendendo a cruz como a árvore figura o homem e sua existência. Portanto na
imaginação não só cristã é vivenciado todo esse imaginário. A posição vertical que da
cruz que Jesus foi crucificado, bem como o lugar, o monte onde a cruz foi colocada em
que remonta uma organização não só de uma cultura ou de uma tradição religiosa
especifica, mas nos leva a imagens de verticalidade, sagradas e presente em várias
religiões.

Bem antes do acontecimento dramático do Gólgota, desde a


mais alta antiguidade, a cruz já existia e servia de símbolo
antropológico, cósmico e/ou religioso. Atestam-se muitas fontes
em Creta, no Egito, na Mesopotâmia, na Índia, na China, no
México, no Peru e até na África negra [...] foi até sugerido de
ver nela ‘o mais totalizante dos símbolos’, ou o ‘símbolo dos
símbolos’ (GIRARD, 1997, p478).

Compreendemos que a dimensão desse simbolismo não consegue ser colocada


apenas nesse artigo tendo em vista a amplitude de sua significação. Porém podemos
apreciar como esse simbolismo influencia a vida dos que o vivencia na páscoa.

3.3 A ressurreição

Na ressurreição, transparece um inicio indispensável à imaginação que é a


representação do tempo que causa angustia com a certeza da morte, mas transparece
ao mesmo tempo e conjectura-se a dominação destas representações. Na ressurreição
o cetro e o gládio, símbolos ligados aos schèmes de elevação estão presentes na
imaginação. Aquele que estava em baixo, caído, sem vida, morto; ressurge! “E
encontraram a pedra removida do sepulcro; mas ao entrarem não acharam o corpo do
12

Senhor Jesus [...] Ele não está aqui, mas ressuscitou. Lembrai-vos de como vos
preveniu, estando ainda na Galileia, [...].” (LUCAS 24. 2-3; 6).

Há um isomorfismo entre a cruz ereta e a árvore em toda potencia cíclica do


símbolo com a saída do tumulo na ressurreição, tudo chama para o alto, para a vida.
Potencializa-se a vitória da morte que é compreendida em estar voltada para o alto. O
que no dizer de Girard (1997) quando um cristão olha para a cruz, não se lembra do
túmulo, mas do único meio de subir aos céus.

Outra imagem que traduz a ressurreição é a do chefe que reconquista uma potência
perdida. Ele perdeu para a morte, perdeu a vida. Com a implacável morte e fim de
tudo, foi-se o reinado. Entretanto com a ressurreição a vida, o reino, o lugar, a
posição é recuperada imagem expressa do cetro e do gladio, em que temos o bastão
simbólico.

Não obstante, os primeiros cristãos viram na cruz menos uma


recordação dos sofrimentos dramáticos de Jesus do que um
verdadeiro símbolo da glória divina e/ou da ampliação cósmica
da salvação: testemunham-no as inscrições funerárias das
catacumbas e a arte cristã primitiva, não menos do que alguns
apologistas importantes como são Justino e santo Irineu, desde
o século II. (GIRARD, 1997, p. 486)

A cruz, figura da árvore assume a compreensão do símbolo diairético em que há


uma separação cortante entre o bem e o mal. Contemplando a cruz e sua posição de
verticalidade, assim como a árvore cujas raízes estão em baixo e o tronco na terra,
cujas folhas voam aos céus; bem como a significação do tempo cíclico presente no
simbolismo assemelha-se na imaginação uma metáfora de vida constante.

Até bem pouco tempo eram bem duras às renuncias na quaresma, período em que
os cristãos da tradição católica reservam para as comemorações da chamada semana
santa que inicia no último dia de carnaval, e rememora-se simbolicamente na semana
da páscoa: a via sacra, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo. É como se os cristãos
católicos quisessem vivenciar um pouco das dores de Cristo.

Atualmente existe uma reverencia por toda cristandade e uma rememoração do


rito, e assim se faz presente o mito, ou aflora o mito já existente na cultura, o mito do
herói. “O drama temporal é desarmado de seus poderes maléficos pela busca de um
fator de constância e fluidez do tempo, pela promessa da aurora. Nela simulam-se os
arquétipos e símbolos messiânicos e os mitos históricos.” (GOMES, 2010, p19).

O mito do Herói ressoa na páscoa. Um herói como Noé “É o herói que escuta a voz
da vida, e obedecem-lhe as estratégias de combate contra a morte. Suas ações não
são decorrentes da raiva ou da excitação do combate, mas da obediência. Ele não é
símbolo de coragem, mas da bondade.” (GOMES, 2009, p. 148).
13

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como resultado de nosso olhar investigativo sobre o rito da páscoa foi possível
analisar os costumes presentes no contexto escolar e o processo de convivências e
sociabilidades que este rito suscita. O ato teatral, o cenário, os figurinos e os atores
(alunos), criam um clima de ansiedade, nervosismo, preocupação e desejo que tudo
venha sair como ensaiado, planejado. Chegado o grande dia da encenação todos na
escola direta ou indiretamente se envolve, uns ajudando os outros na ornamentação,
nos preparativos, criando um ambiente singular na socialização dos alunos,
professores, direção, enfim, a comunidade escolar, a escola de braços dados para
celebrar a páscoa. Está celebração que emociona até mesmo aqueles que se dizem
indiferentes quando se trata a respeito de religião. Cada cena, cada passagem, é
visível a comoção dos participantes, dos ouvintes, dos que assistem ao espetáculo.
14

REFERÊNCIAS
BÍBLIA SAGRADA. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e
Atualizada no Brasil. 2 ed. Barueri – SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário, introdução a
arquetipologia geral. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas,
1989.
GIRARD, Marc. Os símbolos na Bíblia, ensaio da teologia bíblica enraizada na
experiência humana universal. São Paulo: Paulus, 1997.
GOMES, Eunice Simões Lins. A catástrofe e o imaginário dos sobreviventes, quando a
imaginação molda o social. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2009.
______. A palavra de Jesus, uma mitocrítica do Evangelho de Marcos. In
Fabrício Possebon (Org.) O Evangelho de Marcos. João Pessoa: Editora Universitária
da UFPB, 2010. .p. 9-23
MARDONES, José Maria. A vida do símbolo, a dimensão simbólica da religião. São
Paulo: Paulinas, 2006.
MIRCEA, Eliade. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
PITTA, Danielle Perin Rocha. Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand. Rio de
Janeiro: Atlântica, 2005.
SILVA, Iêda de Oliveira. A árvore na torá, uma análise simbólica e mítica. Dissertação
(mestrado em Ciências das Religiões), UFPB, João Pessoa, 2011.
TERRIN, Aldo Natale. O rito, antropologia e fenomenologia da ritualidade. Sao Paulo:
Paulus, 2004.
USARSKI, Frank. Constituintes da ciência da religião, cinco ensaios em prol de uma
disciplina autônoma. São Paulo: Paulinas, 2006.
VILHENA, Maria Ângela. Ritos, expressões e propriedades. São Paulo: Paulinas, 2005.
OS BEATOS E O CATOLICISMO DEVOCIONAL, MÍSTICO DO
SÉCULO XIX NOS SERTÕES NORDESTINOS.

Gilvan Gomes das Neves1

RESUMO

Este trabalho é parte de uma pesquisa ainda em andamento, cujo objeto de estudo é
um alagoano “o beato Franciscano”, cujo nome era Antônio Fernandes Amorim.
.Esta pesquisa será pautada em análise textual, documental e entrevistas. O
aparecimento do ‘Franciscano’ em 1936, no sertão de Alagoas, se deu logo após a
morte do Padre Cícero Romão Batista, no Ceará. Pretende-se abordar a formação
dos beatos e sua tipificação, dentro do Catolicismo devocional, místico e beato que
tem sua expressão mais forte no século XIX, e que com a chamada Romanização
da Igreja Católica e seus interesses antagônicos, são perseguidos, desautorizados e
alguns eliminados. Pretende-se, ainda, investigar a existência de ‘comunidades
fraternais’ em torno destes beatos, com suas ‘comunidades fraternais’, construídas a
partir de mutirões, romarias e festas no Nordeste brasileiro.

Palavras-chave: Religião; Igreja; Messianismo; Poder; Política.

1. O Capitalismo Agrário:

O século XIX é o século das mudanças que desembocarão na passagem


do escravismo ao capitalismo. Esse século começa assim com o renascimento da
agricultura e sob o reforço da agro exportação e evolui para fechar com o
esgotamento do ciclo agrícola.
Quatro acontecimentos também permeiam esse século. O nascimento e a
consolidação do Estado nacional (1822 a 1840), o nascimento do mercado de terras

1
Graduado em Filosofia e Teologia.
Mestrando em Ciências da Religião – Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
1
(Lei 1850), o nascimento do regime liberal-republicano (1889). Isto é, todas as
instituições da ordem burguesa, que irão desenvolver-se no decurso do século XX.
A implantação do regime republicano não modificou a situação das
famílias de trabalhadores do campo, que representava naquela época mais de dois
terços da população nacional. As grandes propriedades continuavam imperando
tanto no litoral, quanto no interior do país (onde predominavam os latifúndios
improdutivos). Eram eles a razão principal da miséria e da submissão da massa
rural.
Como diz Pedro Oliveira:

“O capitalismo agrário traz consigo a dissolução da dominação


pessoal, exercida pela classe senhorial sobre a massa camponesa.
Tendo perdida a força de trabalho escravo, a classe senhorial
transforma-se, em parte, em classe de latifundiários que obtém a
terra explorando, por diversos meios, os camponeses que nela
trabalham” (OLIVEIRA, 1985, p. 239).

2. A crise da religião no início o capitalismo agrário:


2.1. A ética religiosa do sistema feudal se desfaz:

A ética religiosa do sistema feudal, a relação entre estrutura e


superestrutura, dominação e hegemonia, entre realidade social e religião, para
OLIVEIRA (1985) podem ser mostradas no seguinte esquema: “assim na terra, como
no céu”. Diz o referido autor:

“O catolicismo popular, representando a dominação pessoal como


uma reprodução terrena das relações que ligam o homem a seus
protetores celestiais, desempenham uma função social importante
para a dominação senhorial, uma vez que ele a identifica como a
ordem do mundo desejada por Deus” (OLIVEIRA, 1985, p. 239).

No sistema feudal houve uma forte e muitas vezes brutal dominação; ela
foi porém, tolerada: “Tal dominação funda-se nos laços de lealdade entre
dominantes e dominados”, dentro de uma “aliança que se exprime pelo código
familial: poderosos e fracos constituem uma única família espiritual” (OLIVEIRA, p.
239).
NO Catolicismo popular aparece, assim, a relação entre fazendeiro e
camponês como espelho da relação entre Santo e fiel, ou a dominação como
espelho da hegemonia, enquanto na verdade, as relações são invertidas: A relação

2
entre Santo e fiel é espelho da relação entre fazendeiro e camponês, e a hegemonia
espelho da dominação. A mudança de dominação (estrutura) provoca a crise da
hegemonia (superestrutura). A nova ordem social não tem uma legitimidade em que
poderia se apoiar.

2.2. A religião e o Estado burguês:

Após a proclamação da República, é instaurado um Estado laico. A


separação da Igreja e do Estado parte da iniciativa do próprio governo. O
Episcopado brasileiro se opõe, por razões dogmáticas, mas a burguesia acha que
“não precisa de justificação religiosa para legitimar-se. Sua ideologia não requer
uma referência à religião para sustentar-se” (1985, p. 269). Assim, o aparelho
religioso

“perde o seu papel de organizador da vida coletiva, sem entretanto


ser substituído por outro aparelho capaz de desempenhar o mesmo
papel (...) As grandes massas mantêm-se fora do alcance dos
aparelhos de hegemonia de que dispõe a burguesia agrária e seus
intelectuais orgânicos” (1985, p. 271s).

Os dominados não são levados a reconhecer que seja do seu interesse


entrar nas relações de produção capitalistas. Eles não reconhecem a legitimidade
dessas relações sociais nas quais são obrigados a viverem.
Por outro lado surge a Questão Religiosa, tal conflito é em suma uma
expressão brasileira da grande luta entre a Igreja de então e o mundo liberal. A
referida questão foi em primeiro lugar uma transplantação para o Brasil da
controvérsia liberal e ultramontana, que agitava os países católicos da Europa; a
partir das condenações de Pio IX (através do Syllabus), em 1864, das doutrinas
liberais exacerbaram também os paladinos do liberalismo nacional (FRAGOSO, p.
188). Apesar de toda ambiguidade da referida questão, ela serviu como uma espécie
de grito de independência da Igreja com relação ao Estado. Dois grandes bispos
brasileiros: D. Macedo e D. Vital deram um “chega pra lá” na pretensão do governo
imperial em transformar a Igreja num ramo de sua administração. Mais uma vez o
povo ficou alheio aos acontecimentos, valendo Acusação de Joaquim Nabuco: “os
bispos foram corajosos em atacar a maçonaria, mas, nenhum bispo pregava do
púlpito contra a escravidão negra” (p.192).

3
Juntando tudo isso, a Igreja via a decadência moral do clero e a falta de
preparação intelectual do mesmo. Confiscam os bens das ordens religiosas, proíbem
o ingresso de noviços nas mesmas. Restando a Igreja a importação de religiosos
para o trabalho de educação, catequese, orientação nos seminários de formação
sacerdotal.
Os pobres sempre objeto da caridade da Igreja e nunca de justiça. Mas,
isoladamente apareceram grandes Apóstolos que apontavam para um outro
caminho: Fr. Caetano de Messina e Padre Ibiapina, exemplos de uma alternativa de
lidar com o povo e sua religião.

“a fidelidade do povo do interior a Igreja Oficial não era


incondicionada. Os sertanejos dispunham de um ideário religioso
próprio. Era um catolicismo autônomo e leigo, expressão específica
de sua vida” (OTTEN, 1990, p. 301).

A ausência da Igreja oficial deixou o caminho aberto pela influência dos


padres e missionários. Com a Reforma isto mudou: ela quer acabar com o
“fanatismo” e a “superstição” do povo ignorante. As instruções constituem, de fato,
uma agressão a fé e o catolicismo dos simples. Comenta Azzi (1976, p. 130):

“De repente ele (o povo, ndA) se viu separado dos seus santos,
impedido de cumprir suas típica promessas. E o clero passou a
reprovar suas atitudes e seus costumes religiosos. Não, é pois, de
estranhar que alguns desses grupos marginalizados vissem no
sacerdote um inimigo de sua religião e de sua fé”.

Daí é preciso entender um pouco mais esse “universo” do chamado


catolicismo do povo com seu ideário rústico. Para que a análise desse fenômeno
não seja marcada por preconceitos ou uma visão determinista da religião e da
realidade vivida.

4
2.3 O Catolicismo do povo – declínio do Catolicismo sertanejo:

O capitalismo agrário e os desastres climáticos trazem dificuldades para


os latifundiários que estes querem resolver com uma maior exploração dos pobres.
Tomam-lhes a terra ou exigem renda dos moradores. Assim, as leis sagradas caem:
“A sagrada instituição do compadrio se rompe. Há uma outra transgressão das mais
sagradas leis: a de não roubar a terra cultivada” (OTTEN, 1990, p. 258). O universo
do sertanejo se desagrega. A justiça não funciona: o pobre parte para a vingança
porque, no sertão, a honra masculina vale mais do que os dez mandamentos com
“Não matarás”. Há uma violenta disputa dos poucos bens.
A dissolução não veio só de fora, porém, Queiroz (2003) alerta que a
“anomia” reinava no sertão desde a origem da sociedade sertaneja (p.319).
Documentos da época falam de brancos com 60 filhos de várias mulheres. Famílias
desorganizadas e sem solidariedade; esta é afirmada como valor, mas,
negligenciada como comportamento. Há prostituição, violência e abusos. O povo
sertanejo é descrito como povo capanga e matador, como povo relaxado,
barulhento, cachaceiro, sem religião e soberbo. Esta crise não vem do capitalismo
agrário: vem do berço. Mas, o novo sistema econômico acelera o processo de
desfazer os grupos, acabar com as novenas, festas de santo, etc., aumenta o
número de migrantes nus e moribundos, contribui para que o povo sertanejo perca
não só os costumes, mas a fé.

“Foram-lhe roubados, de uma vez, a vida na terra e no céu. Neste


contexto cabe o depoimento daquele pai que evita falar de Deus aos
seus filhos para não precisar falar-lhes mal dele. Não conhece e não
lhe reconhece a bondade (...) Abundam no sertão os benditos
penitenciais” (OTTEN, 1990, p.263).

Segundo Roger Bastide (1978, p. 93):

“Deus nosso Senhor / se apiede de nós;/ a seca é tão grande,/ a


poeira é atroz.

A poeira é atroz; / por nossos pecados, / tão grande são eles / que
fomos castigados”.

Os males dependem de Deus; no sertão, as marcas mais profundas


parecem ser marcas de morte e não da vida. A resposta religiosa são penitências
sem fim. As revoltas e os bandos de cangaceiros são reprimidas pelas autoridades
5
com extrema crueldade e esvaziadas pelos sermões dos frades, a um alto custo,
porém: a religião não é mais hegemônica.

“É provável que o Deus que levaram aos rebeldes não atendesse às


misérias dos sertanejos. Era o Deus das autoridades que os frades
proclamavam, e não o do povo ignorado e desatendido (...) O Deus
que levarão, por sua vez, Ibiapina e Antônio Conselheiro atende ao
povo e é atendido pelo povo do sertão, mas causará irritação e a
reação das autoridades” (1990, p. 265).

6
2.3.1 O exemplo do Padre Ibiapina:

Parece-me ter sido o Padre Ibiabina quem melhor compreendeu a alma


do sertanejo, especificamente o seu jeito de viver a sua religião. Faz o curso de
Direito e como advogado, defendeu os pobres, muda a partir de uma “visão da
eternidade” a sua vida. É logo ordenado padre e recebe um alto cargo na instituição
Igreja, na Cúria da Arquidiocese de Olinda e Recife, mas, se desfaz. Larga tudo para
ser missionário, para buscar o povo perdido do sertão. Encontra a sociedade em
dissolução e os costumes em ruínas. Vive e prega o seguimento da cruz do “Jesus
doce” e tem uma fé profunda na bondade de Deus. Combate a maçonaria com a
arma da cruz, imitação do sofrimento do Bom Jesus e sinal de sofrimento e vitória.
Constroem Casas de Caridade pelo sertão a fora, age como um São Vicente da
caridade e discípulo do “Bom Jesus dos pobres e aflitos”. O Conselheiro e tantos
outros beatos o acompanham em tempo de missão do Pe. Ibiapina e sofrem fortes
influências.

“Tanto o Pe. Cícero como o Pe. Ibiapina e o Beato Antônio


Conselheiro lembram o processo de marginalização e
desclassificação ao qual o Nordeste estava sendo submetido desde
os meados do século XIX e que chegou aos níveis de um genocídio
pragmático...”(HOORNEART,1985,p.12).

Coincidentemente foi durante a peregrinação do Padre Ibiapina,


conhecido no interior dos sertões nordestinos como “Padre-Mestre”, que a Igreja
começou o processo de romanização, criando assim dificuldades para a sua ação.
Como nos diz o Padre Comblin (1993:46):

“Os bispos da época queriam destruir as formas populares e mais ou


menos carismáticas de lideranças religiosas. Quiseram destruir o
papel dos conselheiros, beatos ou beatas. Queriam promover a única
autoridade religiosa prevista pelo direito canônico, a autoridade dos
párocos. A herança de Ibiapina fora atacada diretamente. Deixaram-
na morrer sem fazer nenhum esforço para renová-la”.

Segundo Hoornaert (1985), tanto o Padre Ibiapina, como Antônio


Conselheiro e os outros beatos que surgiram nessa época lembram o processo de
marginalização e desclassificação ao qual o Nordeste estava sendo submetido
desde os meados do século XIX e que chegou aos níveis de um genocídio
pragmático”(p.12).

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3. Os Beatos: vocação e vivência:

Hoornaert (1987, p. 16) chama a atenção que os beatos e beatas que


surgiram em meados do século XIX eram como uma ponta de um iceberg de uma
estrutura rígida que tinha muito a ver com o que, mais na perspectiva do
pensamento de Thales de Azevedo do que na de Roger Bastide, estávamos
acostumados a chamar de ‘religiosidade popular’. E que estas figuras de cunho
social e eclesial foram se delineando com contornos ‘fluídos e imprecisos’ , como
razão disto, a falta de documentação escrita.

“Fui aprendendo que os beatos não podiam ser simplesmente ser


considerados ‘leigos’, no sentido que o Direito Canônico atribuiu a
essa palavra, pois não agiam ao lado dos padres no seio de uma
mesma Igreja hierárquica, mas, sim, experimentavam uma
experiência eclesial específica, dentro do mesmo campo religioso
católico” (1987, p.16).

A vocação, a eleição dos beatos, dos conselheiros é envolvida de um


certo mistério...(só para os iniciados: os romeiros, os seguidores). “Esse caráter
mistérico pertence à cultura popular de sempre, que é muito vulnerável diante dos
que detêm os meios de comunicação social e o controle sobre o pensar de uma
sociedade. Só conseguem escapar à influência da cultura dominante os que seguem
com fidelidade as orientações dos conselheiros, legítimos representantes da tradição
popular, e não se deixam seduzir pelas novidades que aparecem ( protestantismo,
espiritismo, casamento civil, novas modas, maçonaria, república, separação entre
Igreja e estado, liberdades sexuais e sobretudo o comunismo). O recurso à tradição
é condição necessária para a preservação da cultura popular” (p.12).

“A religião católica sertaneja conhecia dois degraus de liderança


religiosa: os beatos e os Conselheiros. O beato tirava as rezas e
pedia esmolas, enquanto o Conselheiro pregava e dava conselhos. O
Conselheiro sabia mais que o beato, conhecia melhor a doutrina. O
Pe. Cícero foi interpretado pelo povo a partir desta estrutura que
emergia do carisma, não era imposta de cima para baixo”. (p. 19).

Segundo Eduardo Hoornaert (1991, pp. 106-111), tratando sobre a


alternativa criada pelos beatos na vida da Igreja, podemos tipifica-los a partir de
algumas categorias:

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1. O radicalismo itinerante: o autor nos lembra que se trata de “uma
estrutura muita antiga na história do cristianismo” (p. 107). Porque,
Jesus não organizou nenhuma comunidade e sim o seguimento de
pessoas que percorriam o ‘caminho’. “Estamos diante de um
cristianismo de pobres, vivido no meio da pobreza”(p. 108). Mas, o
autor não o considera como um movimento superficial. É o que brota
dessa itinerância dos beatos é a lucidez. Ele desconstrói uma pseudo
imagem do beato como uma pessoa ‘tola’, ‘ignorante’ retratadas em
diversos estudos. E quando o beato uso esse artificio,” é por motivos
táticos” (p.108).
2. A continência sexual: o autor situa histórico e culturalmente a vida dos
beatos como herança de uma corrente que influenciou o início do
Cristianismo até o século IV, o encratismo, que se colocava contra
qualquer manifestação erótica, inclusive o casamento. Isso fazia parte
do chamado ‘caminho da perfeição’. O autor vê essa mentalidade
compartilhada pelos beatos “que encaram a mulher como ocasião
próxima ao pecado”(p. 108).
3. O zelo pela casa de Deus: “reina entre os beatos um zelo inegável pela
casa de Deus”(p. 108). Isso é manifestado através do “esforço do
beato em tirar esmola para a Igreja” (p. 109). Também na
preocupação em construir, reformar Igrejas, cemitérios com a ajuda de
mutirão popular.
4. A questão da violência: Apesar de toda violência deflagrada e
respondida por Antônio Conselheiro, em Canudos, José Lourenço, no
Caldeirão, “normalmente os beatos optaram pela não-violência. As
comunidades eventualmente formadas por beatos tinham algo de
convento, (...) Foi pelo trabalho honesto que muitos beatos
enfrentavam as dificuldades, congregavam em torno de si uma
comunidade e evitavam ficar no pedestal acima dos demais membros
da comunidade”(p.110).
5. A formação da Comunidade: “Uma consequência sociológica do modo
de vida dos beatos no mundo rural foi a formação de
comunidades”(p.110). O carisma do beato influenciava na organização

9
da comunidade “por causa da abundância dos alimentos que
conseguiam produzir em pouco tempo”(p.110). O autor chama atenção
para o estudo de Max Weber que “chama a atenção para a
importância das ‘comunidades fraternais’, nas quais reinaria a mística
e a fraternidade” (p.111). A base da comunidade fraternal seria a
solidariedade. “O elo que unia os camponeses não era no fundo, o
outro do que o espírito de fraternidade e solidariedade, o entusiasmo
de realizar algo em benefício de todos”(p.111).
Como vimos, o beato vive de esmola, se faz casto e a sua função é ser
útil ao próximo: é um tipo de serviço social, que se faz principalmente nas rezas
pelos vivos e pelos mortos. Somente depois de algum tempo de exercício de sua
vocação que o mesmo é reconhecido pelo povo como ‘beato’.
Essa característica “leiga” da religião do povo fazia que “a sua atuação
(do beato) prescindia da do padre, não se necessitava de um padre na presença de
um beato: o relicário do beato substituía a missa do padre e a imagem do santo
substituía o sacrário, enquanto a capela substituía a matriz:
Muita reza, pouca missa,
Muito santo, pouco padre.
Ainda, segundo Hoornaert (1983) foi instalada desta maneira uma
alternativa de poder na Igreja do Brasil: o poder era dividido entre a instituição
eclesiástica, ligada ao sistema colonial, e o livre caminhar para os santuários que
surgiram por toda a parte. Claro que nestas condições, a instituição começou a
perceber a importância das romarias e a tentar a recuperar as forças vivas que nelas
se manifestavam (pp. 339-340).

4. Considerações finais:

No tempo do capitalismo agrário emergente, em que para os sertanejos a


situação econômica piora significativamente, as relações sociais se desfazem e o
universo simbólico cai por terra, nossos beatos, Conselheiros vivem e pregam o
êxodo desta sociedade que os sertanejos não entendem mais. O “potencial
evangelizador dos pobres” (Puebla 1147) e sua “sabedoria” (Puebla 448) que os

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Bispos da América Latina invocaram na Terceira Assembleia Geral em Puebla, se
articularam muitas vezes, ao longo da história, na rejeição do progresso. Assim,
nossos beatos e Conselheiros expressam a desconfiança dos pobres contra o
progresso que, a despeito das promessas contrárias, não costumam trazer nenhuma
vantagem para os pobres, aumentando somente o seu sofrimento. Neste sentido,
eles representam a tradição que normalmente é conectada pelos sociólogos à
conformidade. Sociedades tradicionais são vistas como sociedades da passividade,
e para Karl Marx é o Deus Onipotente que deixa o homem passivo. No caso do
Conselheiro e nossos beatos, acontece o contrário, é o Deus Onipotente suas
maravilhas que o fazem, como força propulsora criar espaços de sobrevivência. É a
tradição que deve ser reativado, como algo operante”, como diz Balandier:

“A tradição é como um reservatório latente de ideias podem que


podem provocar uma mudança social. J. Berque “mostra que toda
sociedade dispõe de uma ‘latitude de escolha’, e uma flexibilidade de
existência’ e que ‘uma parte importante do dinamismo social reside
na possibilidade de mudança de eixos (...) O passado ressurge, ‘ele
se projeta, às vezes, sob as formas mais diferentes de seus
costumes anteriores” (BALANDIER, 1976, p. 175 e 110),

Se opondo ao presente. A tradição provoca, neste caso, não conformismo, mas a


resitência; CHAUÍ, 1986 vê nos movimentos de protestos sociorreligiosos, do
catolicismo popular “uma resposta concreta, de caráter religioso, articulada a
transformações políticas na sociedade brasileira e percebidas como adversas para
os fracos e desprotegidos” (p.75).
A história do nosso catolicismo popular, que nas palavras do Pe. Comblin
foi o que sobreviveu na alma do povo, ecoa nos nossos ouvidos e nos provoca a
perguntar qual é o espaço que os pobres e seu projeto de libertação popular hoje
tem na Igreja: Espaço sem imposição coercitiva, mas também sem tutelismo de
padres que já sabem qual o caminho a trilhar. Espaço para viver a Lei de Deus, o
projeto de vida comunitária e no Espírito das primeiras comunidades. Talvez as
Comunidades Eclesiais de Base, os Encontros de Irmãos, poderiam ter sido esse
espaço.
Era esse o contexto religioso que surgiram, viveram, foram perseguidos e
morreram nossos beatos e beatas, cristãos anônimos e marginalizados, cuja
memória, foi emergida em documentos escritos como “caos de polícia”, e que hoje

11
precisa ser resgatada como um grande desafio para a História e as Ciências da
Religião.

REFERÊNCIAS:

AZZI, Riolando. A Teologia no Brasil: considerações históricas. In: VV. AA. História da
Teologia no Brasil e na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1981.
BALANDIER, Georges. Antro-pológicas. São Paulo: Cultrix, 1976.
BASTIDE, Roger. Brasil, terra de contrastes. Série Corpo e Alma do Brasil, tomo 2, Rio de
Janeiro: Difel, 8ª edição, 1978.
CAMPINA, Maria C. L. Voz do Padre Cícero e outras memórias. São Paulo: Paulinas,
1985.
CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1986.
FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos: gênese e lutas. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978.
HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1974.
______ . Introdução - Nota do Organizador. In: CAMPINA, Maria C. Lima. Voz do Padre
Cícero e outras memórias. São Paulo: Paulinas, 1985.
______ . Ambientes e movimentos alternativos. In: História da Igreja no Brasil.
Tomo II/1, Petrópolis :Vozes, 1983.
______ . O cristianismo moreno do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1991.
_______ A Devoção dos Beatos Negros. In: Revista de Ciências Sociais. Fortaleza:
EUFC, vol. 18/19, no. 12, pp.15-36, 1987/1988.
OLIVEIRA, Pedro A. R. Religião e dominação de classes. Petrópolis: Vozes, 1985.
OTTEN, Alexandre. Só Deus é Grande. São Paulo: Loyola, 1990.

12
13
CONGREGADOS MARIANOS: MILITANTES DE CRISTO A
SERVIÇO DO ESTADO NOVO EM PERNAMBUCO (1937-1945)
Prof. Carlos Alberto Cunha Miranda*

Durante os séculos XVIII e XIX, os católicos da Europa se cindiram em dois grupos:


os chamados católicos regalistas, galicanos ou jansenistas que resguardavam os interesses de uma
Igreja mais vinculada à sua nação sob certa dependência do poder civil e com um caráter de ação
marcadamente político; e os Ultramontanos que proclamavam uma adesão incondicional ao Papa
dentro de uma Igreja com caráter universal e orientação exclusiva da Santa Sé. (AZZI, 1977, p. 125)
No Brasil, essa vinculação a Roma foi muito insignificante pela maneira como a Igreja fora
conduzida dentro do regime do Padroado, no qual concessões e privilégios da Santa Sé aos reis de
Portugal determinou que eles assumissem a tarefa de evangelização das novas terras conquistadas,
utilizando, para esta finalidade, os dízimos eclesiásticos cuja arrecadação ficava em seu poder. Desse
modo, durante o período colonial, tudo estava nas mãos do poder civil: a construção de Igrejas,
capelas, designação de Bispos e párocos, manutenção do culto e a subvenção do clero. Mas, a partir do
século XIX, especialmente por influência do novo espírito trazido pelos padres Lazaristas, a Igreja do
Brasil passa a proclamar sua adesão total ao Papa, tentando desvencilhar-se das poderosas malhas do
padroado imperial. Esse caráter romanista, que marca a renovação católica, significou uma opção
consciente dos bispos reformadores.
É para Roma que D. Viçoso, Bispo de Mariana, mandou seus melhores alunos e
colaboradores, com a finalidade de complementar a formação sacerdotal, capacitando-os para a direção
de seus seminários, entre eles: Luiz Antônio dos Santos, Pedro Maia de Lacerda e João Antônio dos
Santos que integraram, posteriormente, o grupo de bispos reformadores em diversas dioceses do
Brasil. Foi também em Roma que se formou D. Macedo Costa, o grande líder da Reforma da Igreja no
Brasil. ² (AZZI, 1974, p. 649)
O regalismo tem no Pe. Feijó um forte aliado, em virtude do seu apoio ao movimento
pela abolição do celibato eclesiástico e pela sua participação na elaboração da constituição Eclesiástica
para o Bispado de São Paulo em 1835, em que havia predomínio das ideias regalistas. Durante toda a
sua vida política como ministro da justiça, (regente de 1835 a 1837 e Senador) o Pe. Feijó empenhou-
se ao máximo em limitar as pretensões da Santa Sé no Brasil.
Regalista é também a posição do ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, que proibiu a
admissão de novos membros nas ordens religiosas do Brasil até que o assunto fosse regulado por uma

1
concordata que nunca chegou a ser feita. Algumas dessas ordens mandaram os noviços estudar em
seus seminários na Itália, quando um aviso do governo Imperial, datado de outubro de 1870, proibiu a
repatriação desses religiosos, o que mostra o propósito firme do Estado em manter uma política
rigorosamente regalista. ³ (AZZI, 1976, p. 117)
Em Pernambuco, os bispos Dom Medeiros, Dom Cardoso Ayres e, principalmente, Dom Vital
estavam muito envolvidos com a teologia ultramontanista de Roma e tendiam a julgar que somente
estes eram os verdadeiros católicos, desprezando o catolicismo luso-brasileiro. (AZEVEDO, 1983, p.
76)
Quando o Papa Pio IX resolveu definir a condenação aos erros modernos, principalmente ao
espírito do liberalismo, na encíclica Quanta Cura, de 1864, e no anexo Syllabus, alguns bispos
formados na Europa inevitavelmente entraram em choque com a coroa e, consequentemente, com a
ideologia regalista e liberal, pois neste momento aflorou na consciência católica o elemento de respeito
à autoridade da Igreja . O Syllabus condenava violentamente o liberalismo e a maçonaria e, nessa
época, no Brasil, os padres mais importantes e o próprio Imperador pertenciam às lojas maçônicas.
Apressaram-se então os bispos em excluir os maçons das irmandades e reivindicar a autonomia da
Igreja na gerência de seus negócios, o que implicou para os estadistas do império um atentado à
soberania da coroa. O conflito dos bispos com o Estado tinha necessariamente de chegar a um
desfecho. A motivação jurídica surgiu com a suspensão, por parte de várias irmandades e ordens
terceiras que se negaram, em desobediência formal às exigências do bispo, a afastar de seus quadros os
membros maçons. A suspensão era acompanhada do interdito das capelas das referidas associações
religiosas. Houve, então, recursos ao conselho de Estado que deu ganho de causa às irmandades que
queriam ser católicas e maçons ao mesmo tempo. D.Vital, contestando e rejeitando a decisão do
conselho de Estado, respondeu a importância de obedecer antes a Deus que aos homens e concluiu
que, em matéria religiosa, o poder civil não era autoridade, mas pelo contrário: “tem estrita obrigação
de obedecer à Igreja”. (BEOZZO, 1981, p. 187) D. Macedo Costa, bispo do Pará, acompanhou a
posição de D. Vital na referida questão. Diante da atitude dos dois bispos, foi expedido contra eles um
mandato de prisão pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Os dois foram presos, julgados e
condenados a quatro anos de prisão com trabalhos forçados, sendo anistiados dois anos depois.
Com a Proclamação da República, realizou-se a separação entre a Igreja e o Estado. A atitude
dos bispos brasileiros perante o novo regime foi de expectativa. Não defenderam a Monarquia porque
entre esta e a Igreja não se havia restabelecido um clima de compatibilidade desde a prisão dos bispos
D. Vital e D. Macedo Costa decorrente da “Questão dos Bispos”. Não opinaram sobre a organização
política do novo Estado, mas quando foi promulgado o Decreto, de 07 de janeiro de 1890, foram

2
veementes na sua condenação. Este Decreto introduziu a liberdade religiosa e privou a Igreja Católica
que havia gozado até então como a religião oficial do Estado. Em 19 de Março de 1890, os bispos do
Brasil publicaram a primeira Pastoral Coletiva da República, na qual condenavam os seguintes
dispositivos da nova legislação: a) a obrigatoriedade do ato civil antes do casamento religioso; b) a
plena laicização dos cemitérios; c) a inelegibilidade dos cléricos; d) o impedimento dos religiosos
votarem nas eleições; e) a proibição do ensino religioso nas escolas públicas; f) e a conservação das
leis referentes aos bens de “mão- morta”.
Os bispos brasileiros, desde então, iniciaram um combate acirrado sistemático à filosofia da
secularização instaurada com a República. O que eles pretendem, de acordo com a doutrina da Igreja, é
a distinção entre os poderes temporal e espiritual, mas não a sua separação ou ideia de oposição. A
posição da Igreja na final do século XIX, por um lado combatendo a interferência do poder político
que se exercia sob pretexto de proteção, por outro, defendendo a aliança entre Igreja e Estado,
apresentou uma aparente paradoxo. Na realidade, a Igreja afirma que não havia contradição, na medida
em que pretendia uma união respeitada da liberdade das esferas de competência entre o poder temporal
e o espiritual. (RODRIGUES, 1981, pp. 4-5)
Visando fortalecer a posição da Igreja nesses novos tempos, após a questão Religiosa e a
Proclamação da República, D. Macedo Costa, em 1890, apresentou um documento intitulado “Pontos
das Reformas na Igreja do Brasil”, cujo objetivo maior foi a reformulação do aparelho eclesiástico.
Neste documento, D. Macedo salienta a necessidade dos bispos atuarem em perfeita unidade e que, nas
suas dioceses, garantam a união do clero devendo reforçar sua autoridades e seu controle sobre as
atividades da Igreja, mantendo-se informado do que se passa nas paróquias, especialmente através
das visitas pastorais.
Sugere D. Macedo que os bispos sejam rigorosos na vigilância do clero de modo a curar seus
males e recomenda que os poderes ampliem seu campo de atividade pastoral, exortando-os
especialmente a se dedicarem à: pregação dominical, promoção de festa religiosas, visita à hospitais,
criação e direção de conferência vicentino e difusão da boa imprensa católica. Sugere ainda que os
seminaristas recebessem um ensino religioso e ortodoxo visando à preparação do futuro sacerdote
“exemplar”. Apresenta também D. Macedo outros meios para a reforma do clero: estimular o estudo
da moral, promover excursões espirituais e fazer reuniões mensais do clero. Ainda nesse documento, o
bispo reformador estimula a vinda da Europa de congregações religiosas masculinas e femininas para
fundar e dirigir escolas católicas. Os pontos de reforma assinalados por D. Macedo são como súmula
do processo de Romanização do catolicismo Brasileiro.

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A ação dos bispos reformadores pautou-se também no que Pedro Ribeiro chamou de
desvalorização do catolicismo leigo das irmandades e confrarias, substituindo-o por um catolicismo
romanizado. Isto foi feito, principalmente, por meio da transferência das devoções aos Santos
tradicionais como: Santo Antônio, São José, São Sebastião, Santa Bárbara, São Benedito e as diversas
denominações Marianas de origem portuguesas por devoções em voga na Europa, especialmente as
devoções Marianas e a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, na época em grande florescimento na
Europa, inclusive servindo como instrumento de Luta contra o “modernismo” e o liberalismo anti-
clerical. Aqui, desempenham papel de grande importância as novas congregações religiosas que tratam
de difundir suas devoções próprias (como os Salesianos e a devoção de Nossa Senhora das graças, os
Redentoristas e a devoção a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, São Geraldo Magella e Santo
Afonso) fazendo com que os “ novos” Santos ocupassem o lugar dos tradicionais. (RIBEIRO, 1995,
pp 278-280)
O resultado prático deste trabalho religioso foi a desarticulação das antigas irmandades e
confrarias voltadas para os santos “tradicionais” e sua substituição por novas organizações leigas,
voltadas para a devoção aos “novos” Santos. Neste ponto, a introdução da devoção ao Sagrado
Coração de Jesus assumiu grande importância uma vez que se efetivou um novo organismo leigo: o
“Apostolado da Oração”, que se difunde com enorme rapidez, no final do século XIX, seguindo quase
passo a passo a ação dos Bispos Reformadores”. O Apostolado da Oração, bem como as outras
associações religiosas para leigos, como a Pia Associação das Filhas da Maria, a Liga Católica, a
Cruzada Eucaristica, a Congregação Mariana e as Conferências Vicentinas, para citarmos as mais
atuantes, distinguem-se radicalmente das antigas irmandades e confrarias pela posição nelas ocupadas
pelos leigos. Embora sejam associações de leigos, sua direção esteve diretamente subordinada ao
pároco que, estatutariamente, faz parte da diretoria e, de fato, tinha sob seu controle as decisões
concernentes a essas associações. (RIBEIRO, 1978, pp 19-20) O centro D. Vital tornou-se uma fonte
inspiradora de novas tendências de afirmação e defesa dos princípios católicos. Em Pernambuco,
surgiram vários outros movimentos católicos, dentre os quais a Congregação Mariana da Mocidade
Acadêmica, iniciativa do arcebispo de Olinda e Recife, D. Miguel de Lima Valverde. Dois aspectos
vão destacar essa Congregação no âmbito deste trabalho:
1º Trata-se de um movimento atrelado à Igreja, seguindo a linha do catolicismo reformado;
2º É dos quadros da Congregação Mariana que saem os futuros dirigentes do Estado Novo, o
qual mantinha intima relação com a Igreja.
Era intenção de D. Valverde estimular na sua arquidiocese um movimento cujos bons
resultados foram observados no Estado da Bahia. Em 1923, demonstra ao Pe. João Batista Gonçalves,

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Reitor do Colégio Nóbrega, seu decidido empenho em implantar o movimento mariano na sua
arquidiocese. Nessa época, o colégio não contava com vastas acomodações, sendo impossível ceder
um local para as reuniões.
No ano seguinte, o novo diretor, Pe. Domingos Gomes, destinou à Congregação Mariana
um amplo salão do antigo Palácio da Soledade para o seu funcionamento. Em março do mesmo ano, o
Pe. Antônio Magalhães iniciou os trabalhos, convidando jovens para a primeira reunião preparatória
que aconteceria no dia 16 de março, à qual compareceram treze rapazes que, em comum, evocavam a
proteção da Virgem Maria. Em seguida, o Pe. Magalhães expôs os motivos da reunião e descreveu o
objetivo maior do movimento: o de acabar com o indiferentismo religioso dos católicos e combater as
ideias consideradas até então “pagãs”. Os congregados passaram a se reunir semanalmente na capela
do antigo Palácio da Soledade, onde recebiam instruções para a luta contra as ideias consideradas
liberais. É desses encontros que surge, em 31 de agosto de 1924, o Círculo de Estudo da Mocidade
Acadêmico, cujos sócios pertenciam aos quadros da Congregação Mariana. (ARQUIVO, vol I, pp 30-
31)
Nesses círculos eram discutidos temas religiosos, filosóficos e científicos dos quais surgem
as primeiras lideranças católica, dentre as quais destacamos: Luiz delgado, Nilo Pereira, Arnóbio
Tenório, Willy Lewin, Manuel Lubambo, Tadeu Rocha, José Colier, Milton Pontes e Ruy Marques.
É Também desse grupo que, em 1931, nasce a Revista Fronteiras, sob a orientação de Manuel
Lubambo, seguindo a mesma linha de luta em defesa das tradições cristãs, exercendo uma forte
influência nos meios conservadores, pelos seus temas nacionalistas religiosos e anticomunistas.
(ARQUIVO, vol II, p. 11).
Segundo, ainda, orientação do Arcebispo D. Manuel Valverde, foi criada, em 1929, uma
nova organização para os jovens: “A Liga para Restauração das Ideias”. Esta associação tinha o intuito
“patriótico- religioso e anti-comunista” de combater as doutrinas de esquerda, bem como o espiritismo,
protestantismo e a maçonaria. Visavam também a formação de futuros dirigentes católicos para
exercerem uma ação opositora a tudo o que fosse de encontro aos princípios cristãos, principalmente
junto à imprensa e à intelectualidade.
No primeiro ano de existência, a Liga organiza-se no sentido de realizar dois ideais: o
primeiro de incentivar e praticar o ensino da Doutrina Cristã, sendo para isso realizados vários cursos
sobre apologética cristã; o segundo, de intensificar a prática de retiros espirituais, adotada pelos
membros da Congregação Mariana, os quais fortaleciam ainda mais suas convicções sobre os
princípios católicos.

5
Fazia parte de Congregação Mariana, a Associação Desportiva Acadêmica (ADA), fundada
em 1929. Em sua bandeira e escudo, havia as cores azul e vermelho que simbolizavam Nossa Senhora
e o Sagrado Coração de Jesus. Foi criada com a finalidade de seus associados, paralelamente ao
desenvolvimento do físico, através da prática de esportes, cultivassem ideias que fortalecessem os
princípios religiosos da Congregação. A ADA chegou a contar com 150 rapazes filiados mas, devido à
severa disciplina e obediência dos mesmos às normas norteadoras da ADA, este número decaiu para
50 (ARQUIVO, vol II, pp. 80-82). A preocupação com a “moral” era uma constante na Associação,
como exemplo dessa rigidez, observa-se o artigo 4º do Estatuto da ADA que diz ser proibido na sede e
nos jogos, toda e qualquer palavra, gesto ou brincadeira que destoasse da boa educação cristã e da
moralidade a que se propunha o Estatuto da Congregação.
O Dr. Andrade Bezerra, falando em nome da congregação, na Páscoa de 1929, a cerca dos
ideais de desportos na vida dos acadêmicos ressaltou: a natureza exige da mocidade o movimento dos
músculos para o desenvolvimento e robustecimento do organismo. Os estudantes, de um modo
particular, os das Faculdades, necessitam de interromper os seus trabalhos com jogos, e de preferência
ao ar livre, para não se cansarem demais e pra tirarem maior proveito dos estudos. Há ainda vantagens
morais. Na sua idade de exuberância juvenil, há necessidade de fazer cansar o corpo, sacudir e expedir
os humores. Esta profilaxia diminui os estímulos da carne. A preocupação entusiástica dos jogos e das
competições moderadas absorve a mente e afasta o pensamento dos objetos maus. Existe ainda a teoria
moderna das glândulas endócrinas que explica a razão da diminuição da concupiscência em virtude do
exercício físico. É motivo porque todos os colégios católicos fazem tanta questão de jogos para os
seus alunos” .¹² (ARQUIVO, vol.II, p.95)
No início dos anos 30, iniciava a congregação Mariana uma campanha em prol da
implantação do ensino religioso no Estado de Pernambuco. Em janeiro de 1931, tendo à frente o Profº
Laurindo Oliveira, é iniciada a propaganda com distribuição de boletim pró-ensino religioso. Um
incidente porém radicalizou a campanha: os congregados, em número de vinte, resolveram assistir a
uma sessão da loja Maçônica Conciliação, situada na atual Conde da Boa Vista, na qual falava o Sr.
Nilo Câmara, presidente do Instituto da Ordem dos Advogados. Os congregados interromperam a
reunião com o grito “de não apoiado”, gerando assim um conflito de grandes proporções, o que levou
maçons e marianos aos hospitais.
Após este episódio, os congregados decidiram criar sua tropa de choque obtendo do Pe.
Fernandes, diretor da congregação, total apoio. Foi criada então a UNICDP – União Nacional Católica
por Deus e pela Pátria, com o objetivo de reunir seus membros, com maior rapidez possível, em caso

6
de embate. A UNICDP organizou um minucioso fichário no qual contavam nome, residência, telefone,
entre outros dados, de seus associados.
Os membros da União dos Moços Católicos eram chamados “Soldados de Cristo” e, como
faltasse um hino de guerra, o Prof. Laurindo Oliveira e Silva acomodou às circunstância do momento a
marcha de Cristo Rei que os Católicos Mexicanos tinham composto para o seu movimento.
Nos estatutos da UNCDP, ficam explícitas as reivindicações dos católicos para a
Constituinte de 34, conforme observa-se: Que a constituição seja promulgada em catolicismo como
religião do povo brasileiro; que se mantenha a indissolubilidade do casamento; que seja incorporado
aos cursos primário e secundário o ensino religioso; e que seja oficialmente autorizada a assistência
religiosa às classes armadas, às penitenciárias, aos hospitais e asilos ao Estados etc. (ARQUIVO, vol.
III, pp.188-190)
A campanha feita pelos católicos em prol do ensino religioso se intensificou com a prática
de comícios realizados pela UNCDP nos bairros e cidades vizinhas. Dentre esses comícios destacamos
o realizado em Paudalho, onde houve violência física e recursos às armas de fogo, ferindo várias
pessoas. Os comícios ocorriam geralmente aos domingos à tarde. Imprimiam-se milhares de folhas de
volantes apropriadas a cada comício. Na tarde de sábado e manhã de domingo, os próprios
congregados e outros sócios da UNCDP distribuíam pessoalmente às portas das Igrejas, nas praças e
bondes. Na tarde de domingo, à hora marcada, juntavam-se todos na Avenida Rio Branco, onde
tomavam o bonde e seguiam cantando “Queremos Deus” e outros hinos mas, principalmente, o Cristo
Rei”. (ARQUIVO, vol III, pp. 126-127)
É dos quadros da UNCDP que saem os principais elementos que vão compor a
“inteligentzia” totalitária do interventor Agamenon Magalhães, dentro os quais destacamos: Etelvino
Lins, na Secretaria da Segurança; Manuel Lubambo, na Secretaria da Fazenda; Arnóbio Tenório, na
Secretaria da Justiça; Apolônio Sales, na Agricultura; e Nilo Pereira no setor de Imprensa e Educação.
Ao analisarmos a Congregação Mariana como uma organização ligada à Igreja Católica, constatamos:

 A sua total dependência da hierarquia eclesiástica, uma vez que o sentido do seu apostolado
estava na firme disposição de ajudar os padres a seguirem as diretrizes estabelecidas pelos
Bispos;
 Era tarefa da congregação Mariana, a formação, dentro de seus quadros, de uma elite
intelectual cujo objetivo maior era defender a hegemonia da Igreja Católica perante as outras
religiões e contribuir, decisivamente, para ortodoxia da doutrina católica;
 Colaborar junto à Igreja em sua campanha anticomunista, tão acentuada na década de 30;

7
 Uma total ausência de propostas e preocupações para com as questões sociais. A atividade da
congregação Mariana, junto aos pobres, limitava-se, tão somente, a instituir a prática de retiro
espiritual junto à classe operária;

Por último, ressaltamos as relações de cooperação dos dirigentes da Congregação Mariana para
com as forças da Segurança. Em Pernambuco, a partir dos anos 30, a congregação Mariana passou
a organizar e promover a páscoa das cerimônias religiosas, nas quais eram realizados discursos de
ambas as partes, enaltecendo o “espírito ordeiro e religioso do povo brasileiro”. (MIRANDA,
1988, pp. 65-66)

8
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARQUIVO da Congregação Mariana da Mocidade Acadêmica. Recife: [s.n], 1938- 1939. 3v.

AZEVEDO, Pe. FERDINANDO S. J. A Vida Religiosa na Brasil – Espiritualidade Ultramontanista no

Nordeste (1866 – 1874). São Paulo: Ed. Paulinas, 1983.

AZZI, Riolando. Elementos para a História do Catolicismo Popular. Petrópolis: Editora Vozes, 1976.

AZZI, Riolando. Catolicismo Popular e Autoridade Eclesiástica na Evolução Histórica do Brasil Religião e

Sociedade. São Paulo: Gráfica das Revistas dos Tribunais S.A., 1977.

AZZI, Riolando. O Movimento Brasileiro de Reforma Católica Durante o Séc. XIX. Rio de Janeiro: Reb.

Petrópolis, 1974.

BEOZZO, José Oscar (Coordenador). História da Igreja no Brasil. 2ª Ed., Petrópolis: Edições Vozes.

1981.

MIRANDA, Carlos Alberto Cunha. Igreja Católica do Brasil: Uma Trajetória Reformista (1872-1945).

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em História da Universidade Federal de Pernambuco.

Recife, 1988.

RIBEIRO, A. Pedro de Oliveira. O Catolicismo Romano e a noção de Catolicismo Popular. Petrópolis:

Editora Vozes, 1978.

RIBEIRO, A. Pedro de Oliveira. Religião e Dominação de classe- gênese, Estruturação e Função do

Catolicismo Romanizada no Brasil. Petropolis: Ed. Vozes, 1995.

RODRIGUES, Anna Maria Moog. A Igreja na República. Brasileira: Editora Universidade de Brasília,

1981.

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1

NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DO PROTESTANTISMO NA ZONA DA MATA


NORTE DE PERNAMBUCO – 1890/1910

CLÁUDIO ROBERTO DE SOUZA*

RESUMO

Este artigo analisa o processo de implantação das igrejas evangélicas na Zona da Mata Norte
de Pernambuco, entre 1890 e 1910, quando os batistas, os congregacionais e os presbiterianos
abriram suas primeiras frentes missionárias na região. Examinamos a relação da dinâmica de
criação e organização destas igrejas com o processo de integração territorial da Zona da Mata
à capital, através da construção da ferrovia que ligou o Recife a Campina Grande; as
estratégias de difusão da fé e o enfrentamento dos protestantes com a cultura popular católica
e o próprio clero; a articulação, incluindo confrontos e acomodações, dos líderes missionários
com a nova ordem republicana, para garantir direitos ou inserir-se, voluntariamente ou não,
nas disputas políticas locais; as estratégias de formação de líderes locais; e as relações entre as
próprias denominações, que atuavam naquele momento, na região.

INTRODUÇÃO

No dia 1° de maio de 1915, o jornal A Serra, editado semanalmente em Timbaúba, informava


aos seus leitores que “no último domingo tiveram lugar na Egreja Evangélica, diversas
cerimônias religiosas que se revestiram de grande brilhantismo”. Estiveram presentes os
pastores Júlio Leitão de Mello e James Holden, “empolgando o grande e seleto audictorio
com phrases fluentes”. Foi realizado naquele dia, o batismo de “quatro senhoras e três
cavalheiros”. O reverendo Júlio Leitão era um dos filhos de uma das famílias mais antigas de
São Vicente Férrer, que eram ligados à cafeicultura. Foi batizado em 1905 por um missionário
da Igreja Evangélica Pernambucana, estabelecida em Recife e centro de difusão do
congregacionalismo no Nordeste, tendo sido consagrado pastor em 1912, por ocasião da
organização da igreja congregacional de Monte Alegre, em Pirauá, Macaparana, depois de ter
cursado o Seminário Presbiteriano de Garanhuns. O pastor James Holden, ou Haldane, por
sua vez, era um missionário congregacional escocês que chegou ao Brasil em 1911, e assumiu
*
Mestrando em História no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal de Pernambuco.
PPGH/UFPE.
2

a direção da Igreja Evangélica Pernambucana, onde trabalhou fortemente na abertura de


frentes missionárias desta igreja.

Macapá e São Vicente Férrer eram, àquela época, distritos do município de Timbaúba, uma
região localizada na região de fronteira da Zona da Mata Norte de Pernambuco com a Paraíba
cuja economia estava ligada ao comércio, ao algodão, ao café e, no caso de Timbaúba, à
tecelagem do algodão. Antes da Igreja Evangélica Congregacional, fundada na cidade em
1911, os batistas haviam fundado a sua igreja em 1901, a partir de uma frente missionária
aberta pela Igreja Batista em Nazaré da Mata e pelo pastor Salomão Ginzburg. Este último era
um judeu polonês que se converteu ao evangelho na Inglaterra e emigrou para os EUA, onde
se tornou missionário da Igreja Congregacional, destacado para trabalhar em Portugal, de
onde veio ao Brasil em 1891. Aqui, ligou-se aos batistas e à Junta de Missões de Richmond,
sul dos EUA, passando a desenvolver suas atividades por todo o território nacional,
radicando-se em Pernambuco entre 1900 e 1909.

A notícia publicada n’A Serra daquele 1° de maio, portanto, remete-nos a um momento


particular na história da igreja cristã no Nordeste, que foi o intenso trabalho desenvolvido
pelos missionários protestantes das igrejas batista, congregacional e presbiteriana, para
realizar a difusão de sua fé. As igrejas evangélicas constituíam uma nova cultura religiosa,
diferente dos padrões católicos praticados tanto pelo clero, quanto pelo povo; tanto do
catolicismo romanizado que expandia sua influência sobre o clero naquele momento, quanto
sobre a cultura religiosa católica popular, que muitas vezes se desenvolvia amparada em
devoções e ritos que cresciam à margem das instruções oficiais do clero.

A implantação destas igrejas dependia de condições de infraestrutura de transporte, envolvia o


processo de recrutamento e formação de líderes e pastores locais; o relacionamento entre as
denominações, que ora de colaboração, ora de conflito por questões doutrinárias; as
estratégias de proselitismo; o enfrentamento e o conflito com a cultura católica; o provimento
dos recursos necessários ao trabalho e ao funcionamento das novas igrejas; e a criação de uma
identidade cultural entre os conversos que fortalecesse seus laços internos e dificultassem a
dispersão dos membros das novas igrejas.
3

1. A ZONA DA MATA DE PERNAMBUCO EM PRINCÍPIOS DO SÉCULO XX

Detalhe da Carta Chorographica do estado de Pernambuco, indicando os quatro municípios da Zona da Mata
Norte (Timbaúba, Itambé, Goiana e Nazareth). A linha amarela indica o roteiro da ferrovia, que saía do Recife,
atravessa a região e seguia para Campina Grande.

A Zona da Mata Norte de Pernambuco é uma extensa área formada no início do século XX
por quatro grandes municípios, quais sejam, Goiana, Nazaré da Mata, Itambé e Timbaúba.
Estas quatro cidades envolviam os distritos que se emancipariam ao longo do século.
Vicência, Aliança e Tracunhaém eram distritos de Nazaré da Mata; Camutanga, Ferreiros,
Serrinha eram distritos de Itambé; Macapá e São Vicente Férrer eram distritos de Timbaúba; e
Condado e outra parte do que viria a ser Aliança, eram distritos de Goiana. Juntos, os quatro
municípios possuíam cerca de 100 mil habitantes. Até há um pouco de tempo, toda a faixa
fronteiriça com a Paraíba era o município de Goiana, até que houve a criação da vila de
Itambé em 1867, que passava a ter jurisdição sobre o território que abarcava os atuais
municípios de Serrinha, Camutanga, Ferreiros, Timbaúba, Macaparana e São Vicente Férrer.
Doze anos depois, em 1879, Timbaúba foi separada de Itambé, ficando até 1928 com o
controle sobre Macapá e São Vicente Férrer. O desmembramento de todas elas está associado
à existência de atividades econômicas que proporcionaram um dinamismo e o desejo de
autonomia nas elites locais. No caso de São Vicente Férrer, a região é de uma altitude
elevada, com temperaturas bem mais baixas, com um perfil fisiográfico muito diferente de sua
sede original (Goiana) ou mesmo de Timbaúba, a quem ficou posteriormente jurisdicionada.
É uma área fronteiriça com o Agreste que teve nas últimas décadas do XIX o
desenvolvimento de uma importante cultura cafeeira. A região entre Nazaré da Mata e
Timbaúba era largamente ocupada por algodoais, pequenos proprietários, pela fruticultura,
4

que possibilitaram o surgimento de importantes feiras nestes municípios, tornando-os o centro


de uma rede relações comerciais e políticas com a capital, que marcaram inclusive os grandes
conflitos políticos da segunda metade do XIX. A região foi palco da Praieira, dos Quebra-
Quilos, do Ronco da Abelha, todas elas, sublevações associadas à presença de pequenos
agricultores e homens livres pobres nesta região de Pernambuco.

2. A FERROVIA GREAT WESTERN: DO RECIFE A CAMPINA GRANDE, PELO


CORAÇÃO DA ZONA DA MATA NORTE

A implantação das ferrovias e o traçado que elas seguiram foi outro fator importante que
contribuiu para o surgimento de diferenças econômicas no interior de vilas, promovendo o
crescimento de certas localidades e o seu futuro desmembramento. Contribuiu mesmo para a
alteração econômica das relações entre os municípios já estabelecidos, possibilitando o
dinamismo de uns em detrimento de outros. Mas, não apenas isso. As relações sociais e a
cultura seriam dinamizadas pelo contato com o elemento externo, o estrangeiro, o caixeiro,
que agora tem o seu deslocamento facilitado, a viagem e o contato com a capital levando
menos tempo, os jornais circulando mais rapidamente, as ideias circulando mais
intensamente. O mundo religioso é um dos melhores exemplos dessa interação cultural
provocada e acelerada pela ferrovia. Os missionários seguem a rota da estrada de ferro na
abertura de seus pontos de pregação, de suas bases de atuação. Isso é claramente perceptível
através da relação entre as datas de abertura das estações ferroviárias e das igrejas na região,
conforme a tabela abaixo.

ESTAÇÕES FERROVIÁRIAS/ABERTURA DE IGREJAS EVANGÉLICAS


MUNICÍPIO ESTAÇÃO FERROVIÁRIA IGREJA
NAZARÉ DA MATA 1882 Presbiterianos, 1890; batistas,
1900.
TIMBAÚBA 1888 Batistas, 1900.
Congregacionais, 1910
Sirigi (São Vicente) Ramal Timbaúba Batistas, 1903.
São Vicente Ramal Timbaúba Batistas, 1914.
PIRAUÁ Ramal Timbaúba Congregacionais, 1910
GOIANA Não há ferrovia, mas a cidade já Presbiterianos, 1900. Batistas,
se liga a Recife por estrada de 1892.
rodagem no início do século.
Campina Grande 1907 Batistas, 1923.
Congregacionais, 1920.
Vicência Ramal Pureza, 1883 Batistas, 1941.
Aliança 1883 Batistas, 1935
Limoeiro Batistas, 1901.
Fonte: Tabela consolidada a partir de dados colhidos em MELO, 2008; PEREIRA, 2001; e SOARES, 2009.
5

A segunda metade do século XIX assistiu, portanto, ao surgimento e criação de uma rede de
ferrovias, a maior parte sob a direção da Great Western do Brasil, que detinha inicialmente
um ramal que ia do Forte do Brum até Limoeiro, início do Agreste. À altura da atual cidade
de Carpina, a GWBR começou a construção de outro ramal em direção ao norte para
encontrar-se com a Estrada de Ferro Conde D’Eu, que seguia em direção a Natal, Rio Grande
do Norte. A construção do ramal norte da ferrovia seguiu o roteiro Carpina (1881),
Tracunhaém (1882), Nazaré da Mata (1882), Upatininga/Aliança (1882), Baraúna/Aliança
(1883), Centro de Aliança (1883), Pureza/Timbaúba (1883), Centro/Timbaúba (1888) e Rosa
e Silva/Timbaúba (1900), de onde seguiu para a Paraíba, ligando-se aos ramais de Campina
Grande e de Natal. As igrejas evangélicas surgiram seguindo esta rota e datas, um fato que foi
evidenciado pelo reverendo Ginzburg em seu livro de memórias, quando relembra os fatores
que ajudaram a ampliação do trabalho missionário na região. Segundo o reverendo, tratando
sobre a igreja de Limoeiro, mas com um arrazoado que pode perfeitamente ser estendido para
o restante da região,

“A cidade de Limoeiro é um centro muito estratégico no campo


pernambucano, não somente por causa da sua população e facilidades da
estrada de ferro, mas também por sua vizinhança com plantios de algodão e
de cana de açúcar.” (GINZBURG: 142)
Em um estudo sobre as estradas de ferro no Nordeste e em Pernambuco, o professor Josemir
Camilo demonstra que havia uma relação entre as ferrovias e a atração de investimentos que
não eram apenas ligados ao açúcar. Demonstrando seu argumento através do estabelecimento
das tecelagens no estado, ele afirma que

“destas fábricas [têxteis], apenas Goiana e Paulista foram assentadas fora de


qualquer linha ferroviária. Isso prova que, em sua maioria, as ferrovias e
tramways atraíram não somente engenhos centrais e usinas, mas fábricas
têxteis, mesmo em outras províncias, como Alagoas e Rio Grande do Norte”
(CAMILO, 2008: 93)
Podemos acrescentar que atraíram não apenas novos investimentos, mas contribuíram para a
circulação de novas ideias em toda a extensão que atingiram.

3. “INFORTUNADOS FILHOS DE LUTHERO E CALVINO”: CONFLITOS ENTRE


CATÓLICOS E EVANGÉLICOS

A nova forma de exercício da fé cristã que se propaga pela Zona da Mata Norte, na década de
1890, possui as diferenças doutrinárias óbvias com o catolicismo romano, que diz respeito às
devoções aos santos, aos sacramentos, o papel do clero na relação entre o crente e Deus, na
6

organização eclesial, na leitura da bíblia. Mas, podemos perceber essas diferenças como parte
de algo maior, que é a forma de compreender o próprio mundo, as relações culturais, o papel
de si, como indivíduo, diante da vida e das coisas do sagrado. Nesse sentido, o choque entre
católicos e evangélicos, as conhecidas ‘perseguições religiosas’ que estes sofrem, não
ocorrem apenas por uma mera diferença doutrinária, mas porque esta diferença acende um
debate sobre as diferenças culturais mais amplas entre estes sistemas de mundo, estas
cosmovisões. Desta forma, podemos compreender como os conflitos ocorrem, mesmo com o
país estando já sob o signo da constituição republicana de 1891, que havia separado
oficialmente a religião e o Estado, que havia criado instrumentos de secularização das
relações sociais e políticas para reger o próprio Estado. Mesmo que a legislação garantisse a
liberdade religiosa e a liberdade plena de culto, nas vilas, cidades, distritos e fazendas do
interior, o que está em jogo não é apenas o cumprimento da lei, mas o confronto entre dois
conjuntos de padrões culturais religiosos que trazem diferenças marcantes nos seus exercícios
religiosos, mas, também nos relacionamentos sociais mais amplos.

Os relatos de confrontos podem ser encontrados facilmente nos livros de memórias das igrejas
e dos missionários que atuaram na região. Neste artigo, servimo-nos dos relatos de
perseguição consignados no livro de memórias do reverendo Ginsburg, na sistematização
procedida pela professora Joyce Every-Clayton e pelos professores Zaqueu Moreira Reis e
Caleb Soares em seus livros que tratam, respectivamente, do início da Igreja Evangélica
Pernambucana, das perseguições religiosas aos batistas e aos presbiterianos, especificamente,
os capítulos destas duas últimas obras que tratam de Pernambuco. Evidente, que tais relatos
precisam sempre ser conferidos com uma documentação produzida fora do âmbito eclesial,
para evitar a armadilha de um discurso hagiológico e de vitimização destinado a criar heróis
da fé. A imprensa secular, entretanto, registra também com assiduidade relatos de diversos
tipos de confrontos entre os evangélicos e os católicos, e para este artigo examinamos o jornal
diário A Província, onde a os capuchinhos e a Liga contra o Protestantismo escreviam com
frequência e divulgavam as ações de resistência ao avanço dos ‘nova-seita’.

Encontramos um conjunto de enfrentamentos que poderíamos dizer que são conduzidos por
um debate de natureza ideológica entre os dois sistemas, o católico e o evangélico, a exemplo
de quando os capuchinhos recolheram bíblias distribuídas por colportores e as incendiaram
numa fogueira em frente à Igreja da Penha, em Recife (ARAUJO, 1906: VII-X). Outros
relatos dão conta de agressões aos templos construídos ou que eram utilizados para esse uso.
Foi o caso da Igreja Batista de Nazaré da Mata, incendiada em 1896, logo depois de iniciado o
7

trabalho batista neste município (PIMENTA, 1994: 80). Há relatos de conflitos internos
familiares, como no caso do ministro congregacional Júlio Leitão de Mello, que depois de sua
conversão em 1896 foi expulso de casa (entrevista do neto do reverendo ao autor).

E, ainda, situações inusitadas que levaram a catástrofes, como a que ocorreu em Bom Jardim,
no agreste de Pernambuco, no dia 15 de abril, o domingo de páscoa de 1900. Ali, o trabalho
batista resultou na conversão de um político local, que passou a organizar cultos em sua
fazenda, levando a luta política que travava com o coronel local a travestir-se em conflito
religioso, resultando em um choque armado e na morte de dezenas de pessoas. O relato feito
pelo reverendo Ginsburg em seu livro de memórias inicia descrevendo Bom Jardim como
“rodeada de ricos plantios de cana de açúcar e criação de gado bovino, um centro de riquezas
e com um grande futuro, principalmente se o plano para [a construção de] uma ferrovia
chegar a ser feito”. O pastor destaca um elemento desprezado na crônica de diversos outros
evangelistas, tratando do comportamento assumido pelos conversos à nova fé em suas
relações cotidianas com a comunidade, marcado pelo ímpeto proselitista, decorrente da
percepção dos evangélicos sobre a necessidade de conversão da alma e do comportamento
social para a salvação da alma. Segundo o pastor, “como acontece muitas vezes, os conversos
neófitos, cheios de zelo e falta de prudência, começaram a rir e zombar dos católicos e dos
padres”. Tal enfrentamento evoluiu gravemente por “ser aquele convertido de influência e
alguns fazendeiros interessados pertencentes ao partido político da oposição e em cujas
fazendas estavam havendo as pregações”. Pelo mando do chefe político,

“mais de 80 cangaceiros vieram para atacar um grupo de 15 crentes, desarmados,


inofensivos e sem proteção! O sinal para o ataque do grupo que vinha pelos fundos
era um tiro de espingarda, dado à toa. (...) Cerca de oito horas da noite, os
perseguidores entraram na cidade com grande alarido. O povo, não sabendo o
motivo de sua vinda, pensou que vinham roubar e matar toda a gente, como
acontecera recentemente em muitos lugares. (...) o chefe político, porém, instado
pelo chefe da cidade, vendo o que se dava no teatro, encontrou o grupo e conseguiu
fazer-se ouvido pelo chefe dos cangaceiros. Pediu-lhe que voltasse, pois que a sua
presença estava causando grande consternação. O tal chefe consentiu,
aparentemente, em retirar-se, mas, propositalmente ou não, levantou a espingarda e
deu um tiro à toa e gritou: ‘Viva Nossa Senhora Santa Ana!’ O grupo que vinha
pelos fundos, não sabendo o que se passava, logo que ouviram o tiro, ergueram as
armas e começaram a fazer fogo, cuidando que estavam atacando os protestantes. O
grupo das ruas, vendo que estavam sendo atacados, pensaram que eram os
protestantes que os atacavam e fizeram fogo no grupo oposto. Antes que se
descobrisse o engano, uns vinte e cinco estavam mortos e mais de cem, feridos.”
As imprecisões deste relato deve-se a sua natureza, que não era a de realizar um registro
histórico, com a fixação precisa de datas, nomes e lugares, mas, produzir um relato
memorialístico destinado à animação de sua comunidade de fé, em uma espécie de
testemunho pessoal das dificuldades e superações que os evangélicos enfrentaram no trabalho
8

de estabelecimento de suas igrejas. Tal estratégia argumentativa, conscientemente ou não,


importa-se menos com a precisão documental do fato, do que com a sua interpretação. Desta
forma, o relato enaltece e potencializa os aspectos positivos do comportamento dos
missionários, dos conversos, dos seus simpatizantes, ao mesmo tempo em que atribui ao
outro, aqueles que não partilham da nova fé, a responsabilidade pelos obstáculos, dificuldades
e perseguições que o trabalho missionário tenha sofrido. Não estamos afirmando que tais
relatos sejam mentirosos, no sentido dos fatos não terem ocorrido, mas, que o seu objetivo,
qual seja, o de constituir-se em um relato pedagógico, para animar os crentes na atividade
missionária, traz prejuízos para situar com precisão o evento em tela. Sendo assim, o trabalho
do historiador é repor o evento no contexto da teia de relações sociais em que ele esteve
inserido, analisando o fato, mas tomando também a interpretação dada pelo seu narrador
como objeto de análise.

O relato feito por Ginsburg é um tanto confuso, não faz referências aos nomes dos
personagens, não especifica os nomes das fazendas nem das autoridades. Um ponto que
merece atenção é a invocação a Nossa Senhora de Santana, por parte do chefe daqueles que
estão atacando os protestantes. A narração cria uma sensação de estarmos diante de uma
guerra religiosa, e era esta a intenção do autor, considerando ainda que o seu livro foi escrito
mais de uma década depois da tragédia. O episódio de Bom Jardim ganha mais luzes a partir
da identificação do pároco local, padre João Bezerra, que ocupava o cargo de senador
estadual, do fazendeiro Antonio Marques, que fazia oposição ao pároco também nas questões
políticas, trazendo para a questão religiosa, que já não era algo simples, um ingrediente
potencialmente explosivo, que era a sua interação com o mundo das relações de poder
clientelistas e lideradas por chefes políticos poderosos (REIS, 1999, 100-105).

O chefe político local teria armado uma emboscada para o seu adversário porque agora, a
expansão dos evangélicos estava sendo interpretado pelo coronel como um desafio ao seu
poder. O confronto está repleto de elementos da cultura religiosa de ambos os grupos. ,
resultaram No relato do missionário, o fazendeiro converso não estava com tais intenções,
mas a hipótese de uso da nova fé para algum tipo de mobilização política não é implausível
(GINZBURG, 1970, 123-126).

Em um trabalho sobre o protestantismo no sertão, o professor Severino Vicente relata um


episódio ocorrido em Belém do São Francisco, em que o padre local “exige que o proprietário
do imóvel onde os cultos eram realizados, tome de volta o prédio e, após a saída dos
inquilinos, é feito o exorcismo do prédio após uma procissão” (SILVA, 2010, 82). A memória
9

produzida por evangélicos sobre as perseguições também é farta em relatar tentativas de


assassinatos sofridas pelos missionários, como esta coletada pelo batista Antonio Mesquita,
sobre o atentado sofrido pelo pastor João Borges da Rocha, em Timbaúba:

Em 17 de abril de 1901, ao retornar do culto o pastor Borges sofreu tentativa de


assassinato, ficando ferido, fato que não o impediu de pregar na noite seguinte.
Salomão Ginzburg pediu providencias ao Governador do Estado, o qual determinou
ao Juiz de Direito dar garantia de vida ao pastor Borges e responsabilizou o vigário
de Timbaúba pelo que acontecesse a este. O padre, sentindo-se humilhado e irado,
sofreu uma convulsão a caminho para Recife, onde faleceu (MESQUITA, 1929, 74).

4. AS IGREJAS.

Procedemos a um breve balanço sobre a abertura de igrejas na região, situando os locais, datas
e personagens envolvidos. Estes dados são coletados de memórias eclesiais e pessoais dos que
estiveram envolvidos no processo e não são exaustivos, mas apontam importantes tendências
para compreender a presença e as estratégias de implantação dos evangélicos na região.

a) Presbiterianos em Nazaré da Mata. 1890

O trabalho presbiteriano em Nazaré teve inicio com a presença do missionário presbiteriano


John Rockwell Smith (1846-1918), natural do Kentucky/EUA, que chegou a Pernambuco em
15 de janeiro de 1873, depois de organizar a Igreja Presbiteriana de São Paulo. Organizou a
Igreja Presbiteriana do Recife, em 11 de agosto de 1878, e diversos trabalhos missionários
que abarcavam toda a faixa litorânea até Fortaleza, Ceará. A dificuldade em acompanhar o
núcleo presbiteriano em Nazaré, aliada à saída de John Rockwell Smith do estado em 1890,
deixou os presbiterianos de Nazaré sem assistência e apoio necessários, que teria coincidindo
com uma perseguição movida pelos católicos, que lhes destruíram a casa que servia de
templo, causando a dispersão do trabalho. Remanescentes deste grupo foram reagrupados em
1895 pelos batistas, através do reverendo Salomão Ginzburg.

b) Batistas em Nazaré da Mata. 1895.

O trabalho batista em Nazaré teve início em março de 1895 e em 12 de janeiro 1896, foi
organizada como Igreja, com dezesseis membros. A instituição da Igreja foi presidida pelo
pastor William Edwin Entzminger, e secretariado pelo pastor Mello Lins. Na mesma ocasião,
foi eleito como pastor o missionário William Entzminger e o converso local João Borges da
Rocha, para o diaconato. João Borges foi posteriormente, ordenador pastor, tendo sido pastor
da Igreja Batista em Timbaúba e da Primeira Igreja Batista em Recife.
10

c) Batistas em Timbaúba. 1901.

A Igreja Batista de Timbaúba foi organizada em 12 de dezembro de 1901 por Salomão


Ginzburg. O missionário Salomão Ginzburg, em março de 1901, alugou uma casa, onde
realizou uma série de cultos e depois passou a fazer reuniões semanais. Salomão deixou o
grupo sob os cuidados do pastor João Borges da Rocha, de Nazaré da Mata.

d) Congregacionais em Pirauá, Timbaúba.

Timbaúba foi um dos pontos centrais de difusão do protestantismo no extremo da Mata Norte,
em decorrência de sua estação da Great Western. Por ela, os missionários da Igreja
Evangélica Pernambucana chegaram à região do Vale do Sirigi, já no começo do século, com
a abertura de congregações em Orobó, no Sítio Cavunga, nas proximidades da atual Vila de
Sirigi, um distrito de São Vicente Férrer; também, em Balanço e Monte Alegre, além de
vários pontos de pregação, espalhados nas redondezas. O trabalho era conduzido sob a
liderança do missionário Alexander Telford, escocês, e Charles Kingston, inglês,
ambos obreiros mantidos pela entidade britânica HELP FOR BRAZIL, e auxiliados pelo
presbítero português Manoel de Souza Andrade, e pelos evangelistas nacionais Pedro
Campelo e Hermenegildo Sena, alunos do Seminário Presbiteriano em Garanhuns aos quais
se juntaria o jovem Júlio Leitão de Melo, natural da região de São Vicente e um dos primeiros
pastores congregacionais da região.

e) Batistas em Goiana. 1892.

A Igreja Batista de Goiana foi organizada em 1892, pelo trabalho missionário de dois alunos
da classe teológica de William Edwin Entzminger, Emigdio Bento Alves e Juvêncio Índio do
Brasil. O missionário Entzminger fez duas visitas, realizou o batismo vários convertidos, o
que devia ser um evento, no mínimo estranho para a cultura religiosa predominante. Afinal, o
ritual possui uma dimensão estética que não é nem um pouco desprezível. Imaginemos um
grupo que se dispunha a dirigir-se às margens do rio local, vestidos com longas túnicas
brancas a fim de serem mergulhados sob a condução de religiosa de um pastor de sotaque
inglês, em um ambiente com a prevalência até bem pouco tempo dos rituais religiosos
católicos romanos e podemos imaginar as discussões que o evento pode ter entre a
comunidade local.

f) Batistas em Aliança

A narrativa consignada pelo reverendo Antonio Mesquita sobre a chegada dos batistas em
Aliança traz outro capítulo da narrativa evangélica acerca das perseguições religiosas. Um
11

grupo de famílias havia se convertido e batizado em Goiana, moradores de um engenho


chamado Jardim, desde 1906. Mas, ao longo do tempo, conflitos entre os conversos e o dono
do engenho levaram à saída do grupo, que se fixou nas terras do engenho Lagedo, em
Aliança.

Em 19 de Julho corrente (1912), o pastor Eloy Correia, pastor da Igreja de Goyana,


fez uma visita ao engenho “Jardim” e alli baptizou 22 pessoas, organizando a Igreja
de Jardim, em seguida. Esta igreja conforme registrou no seu livro de Actas, ficou se
chamando de “União Baptista Pernambucana”. Como a vida dos engenhos é sempre
incerta devido a vida accidentada de seus trabalhadores assim também é a vida das
igrejas organizadas nestes lugares. Pouco tempo depois, o dono do engenho
“Jardim” fez aos crentes exigências que elles não podiam submeter-se, determinando
a mudança da igreja para o engenho “Juca”, no mesmo município de Igarassu,
passando a chamar-se Igreja Baptista de Juca. A acta da sessão de Dezembro de
1912 já mostra esta mudança. Mais tarde foi offertada á Igreja, por um irmão, um
pedaço de terra um pouco distante para nelle ser edificado o templo da igreja. Este
terreno fica no lugar “Lagedo”, nome que a Igreja tomou logo que mudou para ali
sua sede. Hoje é a Igreja Baptista de Lagedo. A sessão de 8 de Maio de 1921 já foi
effectuada em seu novo templo, em Lagedo. Foi dirigida nos primeiros dois annos
pelo pastor Eloy Correia. Em 12 de Fevereiro de 1908, o pastor Salomão faz ver á
Igreja que as necessidades do campo forçavam o pastor Eloy Correia a renunciar ao
pastorado, escolhendo a Igreja o pastor Manoel da Paz para alli fazer uma visita
mensal. Entretanto nos meses seguintes encontramos de novo o pastor Eloy Correia
moderando as sessões. De Janeiro a Setembro esta igreja não teve visita pastoral,
sendo eleito nesta ultima data o pastor Augusto Santiago para pastor. Tal foi, por
vezes, a intermittencia das actividades pastoraes que a igreja passou mais de um
anno sem receber uma visita pastoral. A 4 de Março de de 1923 preside a sessão o
pastor L. L. Johnson que parece dirigiu a igreja por algum tempo. Actualmente é seu
pastor novamente o rev. Eloy Correia. A igreja possue um dos melhores templos da
roça, e um respeitável número de membros. (MESQUITA, 1940)

5. A FORMAÇÃO DE LIDERANÇAS LOCAIS

Desde o início, ficou clara a intenção dos missionários em trabalhar a formação de lideranças
locais, que pudessem conduzir as congregações e futuras igrejas. Todas as igrejas possuíam os
seus jornais que funcionavam como fonte de informação sobre as diversas frentes de atuação
denominacional, quanto para a divulgação de estudos doutrinários. As duas principais
denominações criaram, rapidamente, seus próprios seminários, ambos já seculares. O
Seminário Batista e o Seminário Presbiteriano, em Recife, mas os presbiterianos foram além e
criaram um seminário em Garanhuns, que serviu de centro de formação de lideranças locais
tanto para os próprios presbiterianos, quanto para os congregacionais. No caso dos
congregacionais de Macapá e Pirauá, sua principal liderança, Júlio Leitão de Mello, foi
formado naquele seminário. O recrutamento e formação de pastores autóctones era uma tarefa
urgente, parece que não apenas para o interior, mas também para a própria capital. João
Borges da Rocha, converso de Nazaré da Mata em 1895, foi diácono em 1896, pastor da
igreja de Nazaré e Timbaúba em 1900 e 1901, e depois, pastor da Primeira Igreja Batista no
12

Recife, na década de 1910. Júlio Leitão de Mello, converso em 1896, pastor em Pirauá em
1912, pastor na década de 1940 em Caruaru, influente na abertura dos trabalhos
congregacionais em Campina Grande e egresso do Seminário Presbiteriano em Garanhuns.

BIBLIOGRAFIA

ARAUJO, Vicente Férrer de Barros. Seitas protestantes em Pernambuco. Recife,


Typographia do Jornal do Recife, 1906.

EVERY-CLAYTON, Joyce Elizabeth W. Um grão de mostarda, documentando os inícios


da Igreja Evangélica Pernambucana. Recife, Edição do Autor, 1998.

GINZBURG, Salomão. Um judeu errante no Brasil. Rio de Janeiro, Casa Publicadora


Batista/JUERP, 1970.

MELO, Josemir Camilo de. Ferrovias Inglesas e Mobilidade Social no Nordeste (1850-
1900). Campina Grande-PB: EDUFCG, 2008.

MESQUITA, Antônio Neves de. História dos Batistas do Brasil: 1907 até 1935. Rio de
Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1940.

PIMENTA, Renan. Igreja Batista em Nazaré, um século. In Revista de História Municipal,


Recife, FIAM/CEHM, n. 6, 1994.

REIS, Zaqueu Moreira. Perseguidos, mas não desamparados. 90 anos de perseguições


religiosas contra os batistas brasileiros – 1880/1970. Rio de Janeiro, JUERP, 1999.

SILVA, Severino Vicente da. Protestantismo no Sertão do Médio São Francisco. In


ROSAS, Susana Cavani, BRANDÃO, Tanya Maria Pires. Os Sertões: espaços, tempos,
movimentos. Recife, Ed. Universitária da UFPE, 2010.

SOARES, Caleb. 150 anos de paixão missionária – O presbiterianismo no Brasil. São


Paulo, IPC, 2009.
DO PAPEL EM BRANCO AS MEMÓRIAS REGISTRADAS: HISTÓRIAS
JUDAICAS NO BRASIL OITOCENTISTA.

ANTONIO GUTEMBERG DA SILVA – PPGH/UFCG

Quem diz mal dos Judeus nega a


Escritura

E não sabe o que leu, co’a lei alego,

Pois não distingue Deus judeu nem grego

Para lhes dar no céu alta ventura.

Se a Igreja, que é do céu clara figura,

Lhes não denega todo o honesto


emprego,

Como intenta de alguns o furor cego

Avivar-lhe outra vez a mancha impura?

Se eles, por lei de Deus, são atendidos,

E pela lei real habilitados,

Sem dúvida que estão bem admitidos.

Ninguém se lembre já dos seus pecados,

Que eles estão de todos arrependidos,

Mas é de dar quinhentos mil cruzados!

António Lobo de Carvalho1

1
Soneto à lei de 25 de Maio de 1773, que aboliu a distinção de cristãos velhos e cristãos novos, pela qual
se disse ter dado os Judeus 500 mil cruzados.
Embora este capítulo tenha iniciado com um tema audacioso ao anunciar “Do Papel em
Branco às Memórias Registradas”, procuramos problematizar e perceber como as vidas dos
judaizantes vão se inscrevendo em meio ao fim do Tribunal do Santo Ofício e à formação de um
Brasil Independente.

Sendo assim, não partimos de fato de um ponto em branco, onde o nada impera e as
incertezas são o que acompanha. Partimos de uma aquarela que fora adormecida pelos Tribunais
Inquisitorias e pela cultura antijudaica que se perpetuou durante séculos, mas que a simples
existência de um povo se fez pintar traços marcantes que merecem compor não uma história de
silenciados e vencidos, porque os judaizantes jamais foram calados. Mas de se pintar algumas
páginas para entender a riqueza e a pluralidade da cultura brasileira que começa a ganhar novas
linhas com a emancipação em relação a Portugal.

No preâmbulo de formação da Constituição brasileira que se inicia logo após a


Independência, em 1823, temos intensas e profícuas discussões de representantes do clero
brasileiro na Câmara dos Deputados2, que trataram da organização de nossa primeira Carta
Constitucional e nela esboçam claramente a preocupação com ordens religiosas secretas, sejam
alguns a favor e outros contras.

JOSÉ MARTINIANO DE ALENCAR Vota urgência para o projeto do Sr.


Deputado João Antônio Rodrigues de Carvalho, que cassa e revoga o Alvará
de 30 de março de 1818, pela barbaridade das penas impostas contra as
sociedades secretas: “Talvez em virtude do citado Alvará estejam homens
presos, sofrendo penosos incômodos, cujos males se terminarão com a
revogação do mesmo Alvará3.” 7 de maio de 1823, t. I, P. 35.

Não temos uma descrição clara, direta e objetiva que mostre que tais sociedades secretas
fossem pertencentes a judaizantes, porém o documento verbaliza que eram considerados
sociedades secretas todo e qualquer grupo que se opusesse à ordem cristã, sendo assim os
judeus pertencentes à outra religião poderiam estar inseridos dentro deste Alvará, mesmo não
sendo concebidos como sociedades secretas.

2
Para podermos mapear melhor a vida nos primórdios do Império, investigamos uma série de livros
intitulada “O Clero no Parlamento Brasileiro, que trata das discussões prévias para elaboração da Carta
Constitucional de 1824 no Brasil. os livros por nós analisados é uma série distribuída em quatro volumes,
versando acerca da participação do clero no construto da primeira constituição do Brasil.
3
Trata-se do Alvará de D. João VI mandando fechar todas as sociedades secretas, isto é, a maçonaria, que
estava difundindo na própria Corte. Entretanto as sociedades secretas descritas neste Alvará foram além
da maçonaria, pois em seu Artigo 4º estabelecia que: serão consideradas sociedades secretas as que não
participarem ao Governo a sua existência, os fins gerais da associação, com protesto de que não se opõem
à ordem social, ao sistema constitucional estabelecido neste Império, à moral e à religião cristã, etc.” (
BRASIL. Congresso . Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e Informação. 1978:52).
Em outro momento, temos uma opinião contrária em relação à revogação do Alvará que
punia as sociedades secretas. O parlamentar Antonio da Rocha Franco retoma a discussão,
entretanto sobre ponto de vista antagônico, deliberando total desprezo em relação a aceitação a
sociedades secretas.

“Art. 3º - Não é, contudo da intenção da Assembléia que pelo presente


decreto se entendam permitidas as sociedades secretas, antes as reprova, e de
novo proíbe debaixo da pena de degredo para fora da comarca pelo tempo de
seis meses.” 2 de junho de 1823, t. II, p. 2. ( BRASIL. Congresso . Câmara
dos Deputados. Centro de Documentação e Informação. 1978:82).

O impasse estava assim decretado e neste mesmo dia dois de junho, sob prescrição do
parlamentar Belchior Pinheiro de Oliveira, fora adiada a proposta de qualquer revogação, seja
contra ou a favor das sociedades secretas, porém, nas sessões subsequentes, encontraremos
debates acalorados acerca destas sociedades, evidenciando fortemente a existência das mesmas
e as preocupações que se tinha em manter o Estado completamente arraigado ao poder do
Estado Régio e da proteção Imaculada da Igreja Católica como religião oficial da Nação recém
emancipada 4.

Em outras sessões deste mesmo ano (1823), as discussões se voltariam calorosamente


para as liberdades religiosas. O problema que fora crucial será relevante à construção de um
Estado Régio e Católico, mas que ao mesmo tempo possa promover as liberdades aferidas pelos
modelos constitucionais liberais.

Para tanto, foram inúmeros debates com opiniões divergentes, mas com um ponto
marcante em comum. A manutenção da Igreja Católica como Instituição pilar e oficial do
Império brasileiro. A grande questão então que se esboçará fora no tocante aos limites impostos
aos demais segmentos religiosos e até onde iria a permissão às outras crenças. Tendo mais de 30
intervenções.

Segundo Guilherme Pereira Neves na obra o Brasil Imperial organizado pela Keyla
Grinberg e pelo Ricardo Salles quase todos os debates acerca das liberdades religiosas eram
unânimes ao conclamar a superioridade da Igreja e a manutenção dessa Instituição como
majoritária nos destinos religiosos e culturais do Brasil.

4
Ao longo da Obra BRASIL, Congresso. Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e
Informação. O Clero no parlamento brasileiro. Brasília; Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa,
1978, temos todas as passagens e discussões referentes ao trato com as sociedades secretas.
Nenhum deles pretendia abrir mão da condição de fiéis depositários da
tradição católica, ainda que, para alguns poucos, já contaminados pela
literatura antireligiosa do século XVIII, se possa desconfiar de atitude ditada
por conveniências políticas do momento. Da mesma maneira, ambos os
grupos continuavam a ver na religião o fundamento moral da sociedade,
ainda mais quando esta continha uma parcela considerável tão pouco
cultivada, como era o caso da população brasileira no período. (2009:388).

No âmbito destas liberdades, os parlamentares vão deliberar de maneiras distintas


quanto aos limites da liberdade. A exemplo, temos Venâncio Henriques de Resende, que em 7
de outubro de 1823 declara que a matéria relativa à liberdade religiosa,deveria declarar melhor
os limites dessa liberdade. D. José Caetano da Silva Coutinho, porém, não aprova a liberdade no
sentido amplíssimo, e de modo mais contundente e contrário à permissão de liberdades, Manuel
Rodrigues da Costa declara que:

“Na verdade estabelecer-se entre nós como artigo constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado. Se não tivéssemos uma religião
revelada, pela qual Deus nos fez conhecer como o devemos adorar, tanto
interior quanto exteriormente, poderia admitir-se esta liberdade; porém nós
temos essa religião revelada que devemos manter. ( BRASIL. Congresso .
Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e Informação. 1978:262).

Houve ainda o caso de parlamentares que defenderam um ideal de liberdade mais


próximo aos auspícios de Montesquieu, aparando-se na política das liberdades individuais;
entretanto, as raízes cristãs sempre acabavam falando mais alto e mesmo com discursos que
pareciam totalmente liberais, é lugar social desses indivíduos prevalecia.

“Eu quero que o homem tenha uma religião. Se for a católica romana,
melhor. Mas, ainda que não seja, quero sempre que observe exatamente,
porque da sua observância pende a boa moral e com ela formam-se os bons
cidadãos.” 8 de outubro de 1823, t. VI, p. 43. (idem:263).

Quem comparasse a necessidade de liberdade religiosa referendando o extinto Tribunal


do Santo Ofício como sendo de grande empecilho nas prerrogativas religiosas e que a nova
constituição deveria contemplar uma ação contrária permitindo as liberdades e combatendo as
perseguições. É o caso de D. José Caetano da Silva Coutinho.
“fanatismo ou barbaridades parecidas com os procedimentos do estinto
tribunal intitulado Santo ofício, igualmente não podia admitir a tolerância
legal de todas as religiões sem necessidade legítima, ou por outra, o
indeferentismo filosófico.” 9 de outubro de 1823, t. VI. P. 64. (idem:263)

Todos os debates se colocaram de extrema importância na composição dos assuntos


religiosos da Constituição brasileira, a qual adotou, por fim, um artigo que procurasse
contemplar os anseios postulados nos discursos da maioria e assim resultaria no artigo 5º
outorgado na Constituição de 1824.

Este artigo 5º da Constituição de 1824 estabelece liberdades, fazendo com que pela lei
muitos judaizantes secretos possam pleitear certas prerrogativas. No entanto, as leis não farão
apagar séculos de perseguição que se entranharam na cultura lusitana e, consequentemente, no
Brasil.

Dessa maneira, muitos judeus continuaram o jogo de sobrevivência apreendido desde os


tempos coloniais, sendo judeu secreto sob a proteção do íntimo de seus lares e cristão para além
de suas fronteiras domésticas, continuando de certa forma os estigmas do tempo colonial.

Assim como em Portugal em fins do século XVIII e início do século XIX, a expulsão
dos judeus, as perseguições do Tribunal do Santo Ofício, o confisco de sua religião, de seus
costumes e de seus bens não mais caberia nas transformações que a nação independente
almejava. Entretanto, como eliminar um Tribunal que por mais de dois séculos esteve enraizado
na mente de um povo?

Faz-se importante pensar que em meio à permissão e à perseguição às leis que


deliberaram privilégios, iam auferindo normas que se estabeleciam no seio cultural dos
habitantes e que indiscutivelmente pendiam mais para as questões perseguitórias e punitivas do
que no âmbito das liberdades e igualdades. Kayserling faz uma observação que aqui se torna
amplamente pertinente ao se referir ao fim da Inquisição em Portugal.

O que remanesceu da fé original, nestas famílias, limita-se aos costumes


quotidianos transmitidos pela tradição herdada. Não observam os sábados e
os dias de festa, nem ensinam as leis judaicas a seus filhos. No entanto,
praticam um misto dos cultos judaico e cristão e ainda hoje casam-se
principalmente entre si. (1971, p. 290).
Com a Independência, muitos marranos reverteram para o judaísmo. Fato que pode ser
visto mediante as mudanças de beneficiamento amparadas na Constituição, bem como da
participação social dos judeus na corte imperial carioca visto nos códices impressos.

A Constituição Imperial de 1824 previa em seu artigo 5º que A Religião Católica


Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão
permitidas com seu culto domestico, ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma
alguma exterior do Templo.

O artigo 5º ampliou-se ainda para interpretações que desembocariam num controle mais
contundente de outras Igrejas e religiões não católicas, sendo proibido o proselitismo, a tentativa
de conversão de católicos a outros credos, bem como críticas ao catolicismo e manifestações
religiosas não católicas.

Vale ressaltar, que outras normas estabelecidas na Constituição de 1824 limitarão as


liberdades postuladas no artigo 5º. É o que se pode observar no capítulo IV, que diz respeito às
questões inerentes às eleições, apresentando no artigo 94º que podem ser Eleitores, e votar na
eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Província todos os que podem
votar na Assembléa Paroquial. Exceptuam-se: III. Os que não professarem a Religião do
Estado.

Dessa forma, estavam alheios ao direito de voto no Império os indivíduos que


confessarem-se judeus e de qualquer outro credo religioso que não fosse católico, sendo este
inciso do artigo 94º um dos fatores que contribuiu para a parca presença judia nos ditames
políticos do Império. A não ser os que se confessaram publicamente cristãos e abandonam seus
ideias moseístas.

Os judeus, assim, foram beneficiados com tal liberdade de culto, todavia o campo em
que os judeus mais irão se destacar não será na religião propriamente, mas sim nos campos
sociais e econômicos, e isso será auferido aos nos reportarmos para os primeiros jornais do
Império dando destaque a um conjunto de atividades exercidas por judeus dentro desta
temporalidade.

Com a transformação do Tribunal do Santo Ofício em uma Instituição Política nas mãos
do Marquês de Pombal, e o fim da distinção entre cristãos novos e cristãos velhos, promulgada
e abolida nas terras lusitanas pela Lei de 25 de Maio de 1773, os cristãos novos praticamente
desaparecerão nas décadas subsequentes. Assimilados pela cultura heterogenia e pela distância
de instituições rabínicas, aqui no Brasil, suas práticas judaizantes caminharam gradativamente
para uma diminuição.
Logo, encontrar os sinais, as marcas, os vestígios de descendentes de cristãos novos e
judeus no início do Império brasileiro, não é uma tarefa de fácil execução. Os anos de
perseguição aos cristãos novos e a convivência com os cristãos velhos, alinhados a força do
tempo e do esquecimento, fizeram com que muitos desaparecessem no advento de um novo
tempo.

Será a partir do século XIX, que os primeiros Judeus chegaram ao Brasil, com o intuito
não apenas de fazer negócios passageiros, mas de se fazer morada, numa terra que lhes podia
legar tranquilidade e ao mesmo tempo liberdades. (religiosa social e econômica).

A STANDARD JEWISH ENCYCLOPEDIA de Cecil Roth menciona (p.


352-3): “Em 1822, com a proclamação da Independência do Brasil, alguns
marranos reverteram para o judaísmo. Depois, europeus começaram a imigrar
e foram estabelecidas comunidades em Belém, São Paulo, Bahia, Recife,
Manaus e especialmente Rio de janeiro...”5

Keila Grinberg nos aponta que, grande parte dos judeus que imigraram para o Brasil,
vinha em busca de melhores condições de vida e, consequentemente, de maior liberdade de
culto. O que não nos impede de ampliar a ideia de uma busca de vida com maior liberdade e
sem preconceito, onde nem sempre a fuga religiosa se fará presente, mas a fuga para uma vida
mais próspera em todos os aspectos sociais.

Boa parte da diversidade étnica vislumbrada por João do Rio está relacionada
à imigração de judeus marroquinos, iniciada ainda na década de 1820,
quando começaram a cruzar o Oceano Atlântico em busca de melhores
condições de vida e da liberdade religiosa de que não dispunham em seu país
de origem. A seu favor, tinham o conhecimento do espanhol e do português,
por serem descendentes diretos das comunidades expulsas da Península
Ibérica em fins do século XV. (Grinberg, 2005:03).

Segundo João do Rio, pseudônimo do jornalista Paulo Barreto, o qual publicara em


1904 no jornal a Gazeta de Notícias, os judeus apresentavam uma significativa presença e
organização no Rio de Janeiro, aonde, a maioria dos judeus que chegaram ao Brasil, até meados
do século XIX, eram de origem Sefaradita. Já no tempo que se segue, começam a chegar com
maior intensidade Asquenazitas e Marroquinos. “cerca de quatro mil famílias, dez mil judeus”...

5
Ver Egon e Frieda Wolff. Judeus no Brasil Imperial. In ROTH, Cecil, A STANDARD JEWISH
ENCYCLOPEDIA. Doubleday & C., Garden City, N. Y. 1962.
“Há judeus franceses, quase todos da Alsácia e Lorena, marroquinos, ingleses, turcos,
árabes...” ( WOLFF, 1979:31).

Para Reginaldo Heller, em busca de uma nova vida, de riquezas e de liberdades um


Brasil de imigrantes judaizantes começa a se desenhar no início do século XIX, amparando-se,
nas novas condições políticas que imperava no Brasil, desde a Vinda da Família Real até a
Proclamação da Independência.

A cidade do Rio de Janeiro foi, no século XIX, uma das principais portas de
entrada dos judeus no Brasil. Outra foi Belém. Antes de 1808, essa hipótese
era impossível, uma vez que era vedada a presença de judeus em todo o
Império Português. Após o Tratado de Amizade com a Inglaterra, em 1808,
chegaram, à, então, sede do reino, os primeiros comerciantes judeus a quem
foram estendidos os mesmos privilégios dados aos cristãos não católicos.
Eram sefarditas (de origem ibérica) ingleses ou franceses e ashquenazitas (de
origem germânica) alemães ou russos. Considerando o levantamento feito,
esta leva de imigrantes que durou mais de cinco décadas, teve uma efetiva
predominância ashquenazita6.

Fatores ainda como, a abertura dos portos as nações amigas traz um grande número de
imigrantes e consequentemente aumenta o fluxo de pessoas no Brasil a partir de 1808, também
o Tratado de 1810 que assegurava em seu artigo 12 liberdade de culto aos súditos britânicos
livrava-os de uma eventual perseguição por parte da Inquisição, e isto se fará perceber pela
quantidade de imigrantes ingleses que despontam no Brasil no início do Século XIX7.

[...], a maioria das famílias judaicas que emigraram para o Brasil no século
XIX, veio da Alsácia-Lorena, da Alemanha, da Holanda e de Marrocos. Os
de Marrocos (judeus sefardins) estabeleceram-se na região do Amazonas. Os
da Alsácia-Lorena, da Alemanha, da Holanda estabeleceram-se no sul do
Brasil8.

As transformações oriundas do crescimento capitalista, das ideias liberais, do


desequilíbrio demográfico da Europa, somados ao sonho de refazer a vida na América, ganham

6
HELLER, Reginaldo Jonas. In - Judeus nos primórdios do Brasil República. Biblioteca Bialik, Rio de
Janeiro, 1979.
7
[...] Artigo 12 do Tratado, Portugal concedia aos súditos britânicos completa liberdade religiosa “dentro
de suas igrejas e capelas particulares” desde que estas igrejas e capelas “tivessem sempre o aspecto
exterior de residências”. Não poderiam também falar mal da Igreja Católica e nem fazer proselitismo.
(DREHER: 1993, 134).
8
VIEIRA, David Gueiros, 1929 – O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília,
Editora Universidade de Brasília, c1980. P. 55
maior proporção em fins do século XVIII e durante grande parte do século XIX. E, o Brasil,
será um grande convite a muitos imigrantes de partes diversas do globo. Para Martin Dreher,
diversos são os fatores para se explicar as imigrações no Brasil do século XIX, a exemplo
destaca:

A Europa do século XIX está repleta de fatores de repulsão de contingentes


humanos estigmatizados pela pobreza, falta de trabalho, falta de terra. A
urbanização e a industrialização mostram-se incapaz de absorver os
excedentes populacionais. (DREHER: 1993, 111)9.

Nestas levas de imigrantes se destacam os judeus, que, além de vislumbrarem a


possibilidade de melhoria na qualidade de vida, social e economicamente, também podiam
associar a ideia de maior liberdade de culto.

Durante todo o Império, as ondas migratórias dariam notoriedade a judeus e outros


grupos de imigrantes, e, os jornais registravam notícias da vida cotidiana dos imigrantes no
Brasil, dano-nos a entender, seus primeiros passos numa nova terra e, consequentemente suas
novas realidades, quanto a sua atuação e aceitação, enquanto imigrantes e estrangeiros.

“Comunicam-se que há nas ruas de S. Pedro da Cidade Nova, Bom jardim,


Formosa e Sacco do Alferes, casas onde a noite se reúnem alguns devotos
que se entretem na pratica de doutrinas em nada orthodoxas. A bíblia que
serve a estes novos sectários é pouco volumosa: consta apenas de quarenta
paginas”. (Diário do Rio de Janeiro: 9-11-1860).

“os israelitas residentes nesta corte celebraram hontem num sallão particular
a primeira ceremonia do seu culto, o Kipour ou Dia do grande perdão.”
(Diário do Rio de Janeiro em 1-10-1965).

É-nos evidente, a presença judaica no Império, porém, vale salientar, que a falta de
conhecimentos, em relação às práticas culturais mais aparentes dos judeus, no que se refere aos
seus costumes, principalmente em relação aos seus cultos, tornará muitas vezes ignorante o

9
Martin Dreher, em sua obra: Migrações e História da Igreja no Brasil, publicado em 1993, enumera os
fatores que contribuíram para a presença imigrante no Brasil Oitocentista. Mesmo dando destaque a
questão protestante, o contexto pode ser aplicado à onda migratória como um todo. “Foram vários os
contextos dentro dos quais o sistema brasileiro usou o imigrante [...] 1. O branqueamento da raça; 2. A
eliminação das nações indígenas; 3. A segurança nacional; 4. A valorização fundiária; 5. A mão-de-obra
barata; 6. A construção e conservação de Estradas; 7. A criação de uma classe média brasileira.
(DREHER: 1993,112-118)
conhecimento do povo, tratando não raras vezes, os imigrantes de modo generalizado e
associando práticas de outros credos aos judeus.

No Jornal do Commercio editado em 1861, e também no diário do Rio de Janeiro, duas


notícias nos chamaram atenção. Encontramos um caso curioso de aparente ignorância aos
costumes antagônicos a Igreja Oficial do Império (Católica), sendo confundido a cultos
judaizantes.

“... às 7.1/2 horas da noite de 11 do corrente apresentou-se em frente da dita


casa um grupo de duzentas a trezentas pessoas, do meio do qual sahião
vociferações e gritos: deve-se dar cabo aos JUDÊOS ( nossos grifos) – sendo
que alguns indivíduos apupavão o Dr. Kalby...” (Jornal do Commercio: 13-8-
1861).10

“Na casa da rua do Proposito n. 52 residem os estrangeiros Dr. Kalby e


Rancisco da Gama, e nella reúnem-se em certos dias da semana e nos
domingos varias pessoas para a leitura da Biblia em commum.” (Diario do
rio de Janeiro: 13-8-1861).

Os imigrantes eram aceitos pelas necessidades que o Império imputava, porém ser
judeu, ainda não significava de fato poder ser um judaizante, mesmo amparados pela nova
legislação, os olhares preconceituosos legados de alguns séculos, não legitimavam a liberdade
de culto.

Num mesmo dia, os dois Jornais de maior circulação no Império, publicam uma notícia,
acerca das reuniões da casa do Dr. Kalby, provável judeu que acolhera outros judaizantes para
reunião de cultos. Porém, antes de conferirmos se aqui se tratava realmente de judeus ou
judaizantes, faz-se importante perceber, a forma como os códices tratam das reuniões.

Retomando o Artigo 5º da Constituição brasileira de 1824, o qual rezava que a religião


Católica Apostólica Romana, continuaria a ser religião Oficial do Brasil, e, que as demais
religiões, seriam, permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso
destinadas, sem forma alguma exterior do Templo, nos explicam a princípio o ato dos jornais
verbalizarem, os encontros na casa da Rua do Proposito no Rio de Janeiro.

10
WOLF, Frieda e Egon. Judeus no Brasil Imperial. Uma Pesquisa nos Documentos e Noticiários
Carioca da Época. Centro de Estudos Judaicos, Rio de Janeiro. 1975, pag. 8-9.
Dado importante, também para se notar e questionar, é o fato de que, de alguma forma
aqueles cultos incomodavam, seja pelo fato da diferença na condução do rito, seja pela questão
de que se trata de uma religião e de um espaço não Oficial, quer dizer, não Católico.

O Diário do Rio Janeiro, já havia mencionado os cultos, associados aos judeus em datas
bem anteriores, apresentando-os como ações de incômodo social e um caso no qual a polícia
deveria interferir.

“Communicam-se que há nas ruas de S. Pedro da Cidade Nova, Bom Jardim,


Formosa e Sacco do Alferes, casas onde a noite se reúnem alguns devotos
que se entretem na pratica de doutrinas em nada orthodoxas. A bíblia que
serve estes novos sectários é pouco volumosa: consta apenas de quarenta
paginas.

“Discípulos e rabinos apostam entre si durante toda a noite, a quem melhor


resolverá ou explicará certos pontos obscuros da nova religião. Convidamos a
policia a dar um passeio por aquellas bandas e alojar em um só edifício tão
aproveitáveis apóstolos.” (Diário do Rio de janeiro: 9-11-1860)

Mesmo cientes da prerrogativa aplicada no Artigo 179, contido no Título 8º, Das
Disposições Gerais, e Garantias dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros,
presente na constituinte de 1824, dizendo que, ninguém pode ser perseguido por motivo de
Religião, uma vez que respeite a do Estado, e não ofenda a Moral Pública 11, os cultos, estranhos
aos católicos, era culturalmente relegados e marginalizados. Contribuindo para se criar uma
certa clandestinidade.

Sendo assim, os cultos vociferantes na casa do Dr. Kalby, como são delatados no Jornal
do Commercio, não poderia ser colocado como crimes, entretanto, as notícias soam como
denúncias, e o próprio termo dar cabo, exposto no noticiário do Diário do Rio de janeiro, nos
evocam uma ação um tanto excludente, de interesse social, para por fim a tais manifestações.

“Somos informados de que o bairro da Gamboa se acha desde hontem em


alvoroto, e que apezar da intervenção da polícia ainda perdura nos espíritos
uma excitação que não deixa de ter perigos. É o caso que desde alguns mezes
se acha estabelecida, na rua do propósito a synagoga de uma grande
eloquência os seus adptos, recrutados em todas as nacionalidades e cores.”
(Diário do Rio de Janeiro: 13—8-1961).

11
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a
liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira
seguinte. Constituição política do império do Brasil (de 25 de março de 1824).
Segundo Wolf e Frieda Egon12, ocorreram nestas notícias um erro de interpretação
quanto aos indivíduos que se encontravam as centenas, pois tratava-se na verdade, não de
notícias acerca de judeus e judaizantes, mas de cultos evangélicos, uma vez que, o nome Kalby,
fora confundido, com Robert Reid Kalley13, pioneiro nas missões protestantes que chegara ao
Brasil em meados do século XIX.

As notas do diário do Rio de Janeiro e do Jornal do Commercio tornam-se importantes,


não somente para verificar a indiferença em relação, seja às práticas judaizantes e/ou
protestantes,como também, as descrições dos Códices, levantando uma diversidade, uma
heterogeneidade, apresentada no grupo que se reunia na Rua do Proposito, ao se tratar de
pessoas de diferentes nacionalidades e cores, marcando fortemente o tempo vivido no Brasil, de
intensa migração estrangeira, legando-nos uma nova configuração, tanto no quadro religioso,
como também a conversão de pessoas de cores distintas, marcando uma nova demografia na
construção identitária no Brasil Oitocentista.

Os protestantes, assim como os judeus, começam a ter maior intensidade de imigração


para o Brasil, no início do século XIX, e, não raras às vezes, foram confundidos e
estigmatizados por apresentarem cultos que fugiam da oficialidade Católica do Império, mesmo
com as promessas mirabolantes, de assegurar para o imigrante uma vida melhor no Brasil, e das
prerrogativas do amparo legislativo, dando permissão de um culto não católico no Brasil, a
cultura religiosa brasileira não se torna democrática. Segundo Dreher [...], em virtude da falta de
alteração nas bases legais, o imigrante vai permanecer um marginal. Esse mesmo aspecto de
marginalidade pode-se aplicar a toda sua existência social. (1993:119)14.

O professor David Gueiros, estudioso do protestantismo no Brasil, descreve que, no


século XIX, ocorre uma acentuada migração de protestantes e judeus para o Brasil, e que estes
grupos chegaram a “negociar”, suas marcas, presenças e vidas no Brasil Imperial, reinventando
formas tanto de sobrevivência social quanto cultural.

12
Wolf e Frieda Egon, 1975:9.
13
Robert Reid Kalley é um dos primeiros missionários protestantes a virem para o Brasil no início do
século XIX, sendo responsável por um vasto projeto, dentre eles a fundação da primeira comunidade
protestante lusitana. Chegou aqui no Brasil em 1855. Fundou a Igreja Evangélica Fluminense, e foi
responsável por um vasto projeto de evangelização e sanitarização na capital do Brasil.
14
Martin Dreher, enfatizando a questão do imigrante protestante vai complementa exata ótica de
marginalidade ao pontuar que: “O protestante é cidadão de segunda categoria, pois é inelegível, vive em
concubinato, pois seu matrimônio não é reconhecido, seus filhos são filhos naturais. (1993:119)
Em 1861, [...], morava em Belém do Pará um certo rabino chamado Elias,
que foi solicitado por Tito Franco de Almeida a da opinião numa questão
sobre o Decálogo, suscitado pelo missionário episcopal Richard Holden.
Encontra-se também no diário do Dr. Kalley que “100 judeus tinham se
reunido no Rio, no sábado transato, que foi o Dia da Expiação, e que
esperavam conseguir um cemitério”. (VIEIRA, 1980:55).

A busca pela criação de um cemitério ao qual podiam depositar judeus e protestantes é


um exemplo oportuno para demarcar os interesses comuns entre judeus e protestantes,
‘negociando’ formas de sobrevivência e até mesmo de morte, pois existir um local, no qual seus
entes falecidos pudessem ser colocados, segundo seus ritos e tradições, lhes conferiam marcas,
presenças e maiores condições para viverem e morrerem nesta nova terra.

Mesmo havendo o direito de se construir um cemitério, seja para os protestantes,


seja para os judeus, o fato é que, estes grupos não tinham ainda uma organização precisa
para elaborar uma construção de tal magnitude. Assim, havia o direito, mas faltava-lhes
a organização necessária para se fazer valer a obra.
Desde o artigo 12 do Tratado de 1810, os ingleses ganharam o direito de ter seus
próprios cemitérios, e poder realizar seus funerais de acordo com seus rituais,
entretanto, foi necessária a união entre judeus e protestantes para que o primeiro
cemitério não católico fosse construído no Império.
No Diário do Rio de Janeiro encontram-se registros de judeus que foram enterrados
neste cemitério, é o caso de uma das famílias mais tradicionais de judeus no Brasil, Os Nathan,
da Inglaterra, com vasta genealogia, e com fortuita participação na história imperial brasileira.
Seu patriarca é o Corretor Joseph Nathan, com inúmeras notas de suas laboriosas atividades
econômicas na Corte.

Egon e Frieda Wolff encontraram passagens dos Nathan em todo o período Imperial
brasileiro, inclusive uma nota na qual se tem conhecimento de que a família Nathan, possuía um
jazigo no Cemitério dos Ingleses.

“[...] No cemitério dos ingleses encontrávamos entre os enterros, sem registro


adicional, um Child Of Nathan (filho de Nathan), sepultado em 22 de
novembro de 1824. [...] (1975:97).

Joshua Samuel, [...], enterrado no cemitério dos Ingleses no Rio de Janeiro


em 26 de junho de 1834. (Wolff:1975,167).
As vidas de protestantes e judeus estariam próximas, tanto no que se refere às
necessidades liberais do novo Estado brasileiro, referendado pela necessidade do imigrante,
social e economicamente, quanto às limitações na tolerância religiosa, representada numa
Constituição que garantia a presença de grupos acatólicos, mas com intrínsecas restrições, que
iam desde o direito de voto, ao reconhecimento do direito matrimonial em seus templos sem
fachadas.

Outro elemento, que seria análogo a judeus e protestantes, seria o fato de que no plano
da vida cotidiana, o Império ainda trazia heranças de uma Colônia forjada na Cruz, o direito de
viverem e estabelecerem suas vidas nesta Nova Nação que se constitui em forma de lei em
1824, não lhes dava um status de igualdade em relação aos cristãos católicos, merecendo dos
imigrantes, uma contínua e infinda ‘negociação’ de sobrevivência e aceitação.

As atividades comerciais e consequentemente sociais dos imigrantes é o que fará muitas


vezes indispensável para o estabelecimento de um Império que nascia, seja pelo comércio
indispensável de produtos importados, seja pela filantropia, os judeus aos poucos, foram
‘elevando’ a Estrela de Davi, em meio a Cruz da oficialidade Católica enquanto religião do
Império.

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1

POLITICA E RELIGIÃO NA PARAIBA REPUBLICANA (1889 – 1930)

JOSE PEREIRA DE SOUSA JUNIOR – PPGH/UFPE.

A proclamação da Republica foi o ponto final de um processo em


desenvolvimento havia quase três décadas. Em termos políticos, a República Velha
(1889 – 1930), encerrava várias contradições intrínsecas ao Império. Seu inicio deveu-
se principalmente aos efeitos amadurecedores das forças liberais e modernizadoras da
segunda metade do século XIX, no entanto a sobrevivência do sistema político em si
dependia do continuo apoio e da manipulação do poder pelas oligarquias1 tradicionais
em várias regiões do país, e na Paraíba a questão não foge a regra.
A rápida expansão econômica da região centro-sul foi o fator que desempenhou o
papel mais relevante na fundação e fortalecimento da Republica, porém depois de 1889
os oligarcas da economia de exportação (café, gado, algodão e minerais), devido á
diversidade de interesses, passaram a competir entre si para crescer. Assim, talvez, uma
das características política mais marcante da primeira República tenha sido sua
variação, em composição e em estilo das oligarquias regionais, apenas poucas
conseguiram fazer parte da política da federação, tanto coletivamente como
individualmente, possibilitando-lhes ditar suas condições ás outras.
Com a Republica em sua primeira fase, iniciou-se um processo de harmonizar as
reivindicações conflitantes das oligarquias regionais. Neste contexto Nacional, alguns
estados como Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul procuram obter a
hegemonia política nacional através de alianças com lideranças oligárquicas regionais,
mas, nem sempre estas alianças surtiam efeito devido aos interesses conflitantes
existentes dentro da própria região, seja de ordem política, econômica e social.
Analisando este momento político brasileiro, e em particular a Província da
Paraíba, observamos que durante este período de transição da monarquia para republica,
ocorreu uma crise de legitimidade e eficiência do governo, isto porque, muito lideres
políticos locais passam a serem preferidos em lugar da autoridade formal e distante do
Estado. A Primeira República constituiu uma dessas fases de transição em termos de
diversidade regional no desenvolvimento social e econômico e no comportamento

1
Entende-se por Oligarquia, um sistema de domínio político por uma ou mais pessoas, representando um
clã ou grupo consangüíneo ou não, mantido unido por metas econômicas comuns, interesses políticos e
crenças ideológicas e religiosas, ou pelo desejo coletivo de glorificação de um líder carismático, tudo para
promover e defender o bem comum.
2

político das classes dominantes. As incongruências levaram a uma ordem política


instável, na qual grande parte do poder político era retido e exercido pelas oligarquias
tradicionais, e nos municípios por uma coligação de partidos ou alas dirigidos por
personalidades fortes ou interesses de classe nas capitais dos estados, e por alianças
formais ou informais das oligarquias estaduais na capital federal.
Como o País foi surpreendido com a mudança do regime é evidente que muitos
estados não tomaram conhecimento dos planos e conspirações que resultaram no golpe
de 1889. A maior participação era dos políticos residentes no Rio de Janeiro e em São
Paulo; algumas lideranças de Minas, Pernambuco e Rio Grande do Sul, opinavam a
longa distância, sem, porém, acreditarem num desenlace tão rápido. Em muitos Estados
a preocupação maior visava as próximas disputas eleitorais entre conservadores e
liberais.
Sobre a Paraíba a maioria dos autores registra o total desconhecimento do
movimento. Edgard Carone (1977) escreve: “As notícias sobre a proclamação da
República chegam a Paraíba num clima de total indiferença, pois não existe no Estado
nenhum movimento republicano” e, emenda Horácio de Almeida (1978) “A República
chegou à Paraíba sem ter quem a recebesse”.
Portanto, nos parece que a notícia da Proclamação da República foi acolhida com
indiferença, com incredulidade e nem despertou a curiosidade publica, nem causou
nenhuma alteração na ordem social e administrativa na província e no dia seguinte a
Gazeta Paraibana jornal que pertencia a Eugênio Toscano de Brito em editorial sereno e
frio divulgou a noticia dos acontecimentos da véspera a qual foi recebida pelo povo com
indiferença, sem comemorações, sem parada militar, diferente das Províncias do Rio de
Janeiro, São Paulo, Minas Gerais que foram marcadas por festas e desfile militar.
As analises nos leva a pensar que o movimento, as idéias e as vozes republicanas
em terras paraibanas não encontraram campo fértil para vingarem e não encontraram
muita recepção no seio da sociedade e dos políticos mais influentes, que na sua maioria
eram monarquistas e ainda viviam o saudosismo monárquico, inclusive o jornal que
circulava á época tinha conteúdo monarquista. A saber, Jornal da Paraíba. Enquanto que
os jornais Gazeta do Sertão, Gazeta da Paraíba, fundados em 1888 por Eugênio Toscano
de Brito e Irineu Joffily continha ainda de forma tímida idéias republicanas.
Assim, podemos perceber que, não houve uma ampla e concisa propaganda de
maior vulto acerca das idéias e da própria proclamação da República na província
paraibana. Os propagandistas republicanos, nascido na Paraíba, como Aristides Lobo,
3

Coelho Lisboa e Albino Meira, não residiam aqui, este fato provavelmente, tenha
prejudicado a expansão de idéias e discussões acerca da republica em solo paraibano.
Por isso, ao ser proclamada a república, não tínhamos naquele momento subsídios e
intelectuais ligados a causa republicana para a organização do novo regime que se
implantara no Brasil. Este fato vai dar inicio as disputas de poder na Paraíba.
Na Paraíba a dificuldade se centrava na ausência do Partido Republicano,
reconhecendo-se apenas a existência de elementos republicanos infiltrados
dispersamente nos partidos existentes. O paraibano Aristides Lobo, que fazia parte da
cúpula nacional como Ministro do Interior e da Justiça do Governo Provisório, chegou a
indicar o nome de Albino Meira para a presidência do Estado. Albino era um declarado
republicano, propagandista do movimento, que atuava no Recife, onde era professor da
Faculdade de Direito.
Mas, como os militares estavam com mais força na cúpula, deu-se a intervenção
dos generais Almeida Barreto, João Neiva e Tude Neiva. Em dezembro de 1889 saiu a
nomeação de Venâncio Augusto de Magalhães Neiva para governar a Paraíba, então
juiz de Direito de Catolé do Rocha, apesar dele ser considerado conservador foi
nomeado Presidente da Província da Paraíba do Norte.
Durante o primeiro período republicano o poder passou a ser exercido pelos
coronéis e as oligarquias que controlavam a Paraíba. Como as coisas não mudaram
muito e a Província agora convertida em Estado, continuou pobre com a população
ainda mais carente, as oligarquias assumiram o lugar do Império unitário. Com isso, a
chamada República Velha de 1889 a 1930, é também denominada na Paraíba como no
Brasil, de república oligárquica, isto é, de predomínio das oligarquias. Nesta fase o
Estado passou por três oligarquias: o venancismo (Venâncio Neiva), o alvarismo
(Álvaro Machado), epitacismo (Epitácio Pessoa).
Durante toda a República Velha (1889 – 1930) a Paraíba vivenciou um fenômeno
social e político chamado “coronelismo”. Essa estrutura de poder se sustentava em três
colunas basilares: no domínio político por meio da formação de grupos de base familiar,
na formação de uma força paramilitar (os jagunços) e no comprometimento da Igreja
como doutrinadora de almas e mantenedora do status quo.
Baseado na propriedade rural, o coronelismo atuava nos mesmos moldes do
feudalismo – com poucas variantes –, dadas as semelhanças pela forma como mantinha
o homem atrelado à terra por dívidas, e se assegurando do poder local mediante
ameaças e violências. E assim as parentelas se uniam em torno de objetivos comuns:
4

dominar as ações políticas, preencher os cargos da localidade com apaniguados e


manter a população das cidades sob suas rédeas. Nada devia mexer nessa estrutura onde
o “barão feudal” fora substituído pelo “coronel republicano”.
De acordo com as narrativas de Faoro e Queiroz (1977), a legitimidade do
coronelismo é vista como uma questão de status ou de honra social. Nesta linha de
pensamento temos ainda o historiador Eul-Soo Pang (1979) de origem coreana e
formação intelectual nos Estados Unidos, nos diz a respeito do coronelismo;

O coronelismo é um exercício do poder monopolizante por um


coronel cuja legitimidade e aceitação se baseiam em seu status de
senhor absoluto e nele se fortalecem como elemento dominante nas
instituições sociais, econômicas e políticas, tais como as que
prevaleceram durante um período de transição de uma nação rural e
agrária para uma nação industrial. Os anos limites desta fase
compreendem-se entre os anos de 1850 – 1950. (PANG, 1979, 20).

O coronelismo pode ser caracterizado como uma estrutura de clientela política,


como um mandonismo e a barganha, o carisma e a parentela são apontados como seus
principais elementos. Esses elementos são importantes para se entender o jogo político
porque possibilitam uma visualização da rede de reciprocidades, de deveres e de direitos
que, nesse contexto se institucionalizam. De acordo com a socióloga Maria Isaura P de
Queiroz (1977);
A liderança coronelística que era sempre uma liderança econômica e
uma liderança de parentela assumia além de tudo um aspecto
nitidamente carismático (...) o chefe por excelência era aquele que
apresentasse as qualidades indispensáveis (...)aquela inexplicável
qualidade que despertava a adesão afetiva e entusiástica dos homens,
levando-os espontaneamente á obediência. (QUEIROZ, 1977,
177/78).

Os municípios se tornaram a base político-administrativo de um coronel e sua


oligarquia familiar. Na maioria dos estados, era a unidade administrativa e legislativa
mais baixa da federação brasileira. Era dividido em um ou mais distritos, porém o chefe
do executivo e o legislativo eram situados na sede do município. Era lá que o coronel
lutava com seus rivais para manter o domínio político dos processos administrativos e
5

legislativos. De modo geral, um coronel era o principal chefe de um município e de vez


em quando chegava ao cargo de deputado ou senador e governador de estado.
Ocorre que todas as conquistas da parentela passavam pela formação de grupos
familiares bem organizados e estruturados política e economicamente. Dentro desta
estrutura de poder encontramos além do coronel, o “cabra do coroné”, os aliados
políticos, a justiça, os proprietários rurais (origem do poder senhorial), a Igreja
(fundamento de toda obediência) e tudo o mais que integrasse esse corolário de poder.
Pelo sistema ora em questão havia certas regras as quais não deviam ser jamais
violadas. Uma delas se centrava no desestímulo às faculdades intelectuais dos filhos dos
camponeses, para estes, a de escola representava algo muito distante, quase intocável, as
relações eram caracterizadas no mandonismo, na dependência e no protecionismo
político e econômico, tornando a sociedade daquele reduto eleitoral em verdadeiros
“currais eleitorais”.
No contexto da oligarquia de base familiar na Paraíba, o personalismo teve papel
crescente e importante ao longo da Republica Velha. No entanto, o parentesco
permaneceu fundamentado e integrado a profundas redes de interesses político e
econômico. Secundariamente, o parentesco também propiciava aos indivíduos
condições para se aproximarem politicamente dentro do mesmo grupo familiar, fazendo
uso da referencia a um ancestral comum (ligação por hereditariedade) ou mesmo a um
parente vivo e distante. Na Paraíba, afirma Linda Lewin (1993), “o poder familiar ao
nível local foi quase sempre exercido oligarquicamente por diversas famílias
entrecasadas que dominavam enquanto aliadas políticas”.
De acordo com a historiadora Eliete Gurjão (1994) em importante estudo sobre as
oligarquias paraibanas no contexto da Republica Velha no Brasil, nos informa que as
parentelas disputavam entre si o controle da política dos municípios, destacando-se
comumente uma delas que monopolizava o poder de empreguismo e os cargos
burocráticos. Alguns exemplos da Paraíba no período republicanos esta assim
representada, Família / localidade, a saber; Dantas – Texeira, Suassuna – Catolé do
Rocha, Cunha Lima – Areia, Pessoa – Umbuzeiro, Sátiro – Patos. (GURJÃO, 1994).
Neste período, as lutas entre famílias foram uma constante na Paraíba durante a
República. A corrupção e a violência caracterizavam as lutas entre a oligarquia
situacionista e oposicionista nos municípios. Era comum os ditos coronéis mandarem
seus “cabras” emboscar e agredir pessoas adversárias, e em muitos momentos chegavam
a contar com a participação de cangaceiros para maior concretização do delito. Quando
6

se era governista, os privilégios dos parentes no município eram excelentes, pois os


meus gozavam de prestigio e poder junto as autoridades e ao próprio povo, permitindo-
lhes o controle administrativo as diversas esferas de poder que ia do judiciário a
autoridade eclesiástica.
Outro aspecto a ser considerado, trata-se da violência utilizada com freqüência
pelos lideres políticos para manterem seu poder e a utilização de distribuição de cargos
públicos. Em muitos municípios paraibanos, assim como em outros do Brasil, o estado
não possuía meios de fazer cumprir a lei e o funcionamento da justiça, esses vazios de
poder institucionais foram rapidamente preenchidos pela justiça dos próprios coronéis
que desrespeitava a lei instituída e criava suas próprias leis. Na prática, os grupos
armados sob o comando de um proprietário de terra (fazendeiro) escapavam ao controle
das autoridades reais e instituídas legalmente pelo estado. Tendo sido a violência assim
institucionalizada, a transformação do poder privado em poder público foi um processo
rápido. Segundo Pang,
O partido dominante empregava meios variados, inclusive a violência,
para evitar o registro de eleitores que apoiassem o candidato rival,
uma vez feito o registro, as facções rivais inundavam o município com
capangas, geralmente bem armados, com o objetivo de intimidar os
eleitores. (PANG, 1979, 34).

Na Paraíba republicana, testemunhamos o florescimento e fortalecimento da


política de parentela até o período dos anos 30, depois com a morte de João Pessoa
presidente da província em 1928, este tipo de relações de poder vão se enfraquecer,
mais não acabar, pois depois de 1930 o cenário político nacional vai sofrer alterações
com a política varguista, tanto no que tange a economia, as relações de trabalho
campo/cidade, com no aspecto político, pois outros arranjos serão necessários dentro
desta nova conjuntura política brasileira, e a Paraíba não foge a regra. De acordo com
Lewin (1993);
O poder de base familiar durou (e ainda dura – grifo nosso) porque a
mudança socioeconômica foi insuficiente para um realinhamento das
afiliações grupais de acordo com novos interesses. Mas a organização
de parentesco brasileira proporcionou uma explicação igualmente
significativa para a comunidade na base grupal da organização
política. Suas características possibilitaram ao grupo de base familiar
deslocar-se para linhas mais horizontais de recrutamento, mobilização
7

e especialização econômica, ao mesmo tempo em que mantiveram o


desenvolvimento de recursos que conservaram os meios da família
com uma entidade quase corporativa. Os laços entre “parentes e afins”
puderam satisfazer ás novas prioridades das unidades familiares
extensas. (LEWIN, 1993, 198).

A Republica, Dom Adauto, Igreja e a Romanização.


A polêmica discussão acerca da separação entre Igreja e Estado no Brasil, não
fora unânime para ambas as partes. Setores da Igreja, como os denominados de
“nacionalistas”, posicionavam-se a favor da integração em detrimento da separação,
outros, adeptos da “romanização”, defendiam uma maior liberdade de ação ante o poder
temporal, isto é, reivindicavam condições para que o Episcopado brasileiro viesse a ter
uma postura de “verdadeiro poder espiritual, orientador da vida da sociedade brasileira”
com estreita relação de fidelidade ao Papa, que só seriam possíveis através da extinção
do sistema de Padroado. (AZZI, 1982).
De acordo com Azzi (1982), entre os membros do recém-nascido Governo
Republicano, a discussão também não foi una. Apresentado na primeira conferência
Ministerial, pelo então Ministro da Agricultura Demétrio Ribeiro, o projeto de
Separação entre Igreja e Estado passou a ser prioridade do Governo Republicano. Com
o apoio de Bejamin Constant e Campos Sales a seu projeto, Demétrio Ribeiro pretendia
estabelecer uma separação brusca e imediata, além de por em voga suas pretensões em
institucionalizar o Casamento Civil e a Secularização dos Cemitérios.
No entanto, o projeto do Ministro da Agricultura fora sustado por Rui Barbosa,
Ministro da Fazenda, após ter declarado que tinha relações pessoais com um respeitável
prelado, Dom Macedo Costa, com o qual desejava conferenciar. 2 Após vinte e oito dias
da referida Conferência Ministerial é que Rui Barbosa, na sessão de Gabinete de sete de
janeiro de 1890, apresenta sua versão do projeto. Campos Sales, Ministro da Justiça,
declara-se favorável ao decreto apresentado por Rui Barbosa, solicitando apenas que no
Art. 6°, relativo aos seminários, o prazo ali fixado fosse reduzido de seis para um ano.

2
Ficou convencionado na historiografia brasileira que o texto do Decreto 119-A de 7 de janeiro de 1890
foi elaborado em conjunto por Rui Barbosa e Dom Macedo Costa. No entanto, há também a defesa da
participação de Dom Esberard como um dos mentores intelectuais do referido decreto. Cf. PIVA, Elói
Dionísio. Transição Republicana: desafio e chance para a Igreja (I). Revista Eclesiástica Brasileira. V. 49,
nº 195. Petrópolis, 1989. p. 620-639, [jul./set.]; PIVA, Elói Dionísio. Transição Republicana: desafio e
chance para a Igreja (II). Revista Eclesiástica Brasileira. V. 50, nº 198. Petrópolis, 1990. p. 415-432,
[abr./jun.].
8

Campos Sales teve sua sugestão aceita e incorporada ao texto final. (BRASIL. Leis,
Decretos, etc., 1931).
Vejamos o que diz alguns artigos do decreto que causou dissabores entre Igreja e
Estado;
“O Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, chefe do Governo
Provisório constituído pelo Exército e Armada, em nome da Nação,
decreta:
Art. 1º - É proibido à autoridade federal, assim como à dos estados
federados, expedir leis, regulamentos ou atos administrativos
estabelecendo alguma religião ou vedando-a e criar diferenças entre os
habitantes do país ou nos serviços sustentados à custa do orçamento,
por motivo de crenças ou opiniões filosóficas ou religiosas.
Art. 2º - A todas as confissões religiosas pertence por igual a
faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não
serem contrariadas nos atos particulares ou públicos que interessem o
exercício deste decreto.
Art. 3º - A liberdade aqui instituída abrange não só os indivíduos por
atos individuais, senão também as igrejas, associações e instituições
em que se acharem agremiados, cabendo a todos o pleno direito de se
constituírem e viverem coletivamente, segundo o seu credo e a sua
disciplina, sem intervenção do poder público.
Art. 4º - Fica extinto o padroado com todas as suas instituições,
recursos e prerrogativas.
Art. 5º - A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a
personalidade jurídica para adquirirem bens e os administrarem sob os
limites postos pelas leis concernentes à propriedade de mão - morta,
mantendo-se a cada uma o domínio de seus haveres atuais bem como
de seus edifícios de culto.
Art. 6º - O governo federal continua a côngrua, sustentação dos atuais
serventuários do culto católico e subvencionará por um ano as
cadeiras dos seminários, ficando livre a cada estado o arbítrio de
manter os futuros ministros desse ou de outro culto, sem contravenção
do disposto nos artigos antecedentes.
Art. 7º - Revogam-se as disposições em contrário.
9

Sala das sessões do Governo Provisório da República dos Estados


Unidos do Brasil, 7 de janeiro de 1890, 2º da República." Seguem-se
as assinaturas”. (BRASIL. Decreto 119-A,1890).
Para a historiadora Jacqueline Hermann (2003), este decreto provocou alívio e
apreensão foram os sentimentos que nortearam os representantes da Igreja Católica
Romana no Brasil ante o decreto de separação entre Igreja e Estado. Alívio, porque a
nova estrutura permitiria uma maior liberdade de ação em relação ao poder temporal.
Apreensão, pois a partir deste decreto a Igreja passou a ser consciente que medidas
complementares seriam tomadas pelo governo, encaradas como evidentes propostas de
limitação da esfera de atuação da Igreja e de seus religiosos, como o reconhecimento e
obrigatoriedade do Casamento Civil, a Secularização dos Cemitérios e a Laicização do
Ensino Público.
No ano de 1890 foi elaborado um documento pelo episcopado, conhecido como
“Pastoral Coletiva” e dirigida ao clero e a população brasileira fora um recurso político
de demonstração de força e união do episcopado brasileiro para enfrentar os políticos e
intelectuais do novo sistema de governo, em sua maioria, adeptos da secularização
como separação entre Igreja e Estado. O episcopado esteve mais envolvido desde o final
do primeiro reinado com o processo de romanização, empreendido pela Santa Sé, do
que com a movimentação político-partidária do país. A Pastoral Coletiva desenvolveria
o papel de chamar a atenção dos religiosos e principalmente dos fiéis e concentrá-las na
defesa e manutenção do catolicismo, isto é, colocando-os a par da situação que a Igreja
Católica estava enfrentando naquele momento. Vejamos alguns trechos desta Pastoral
que conclamava o clero e a sociedade brasileira a se unirem em defesa da Igreja
Católica.
Melindrosa, cheia de perigos, de imensas conseqüências para o
futuro, dignos cooperadores e filhos muito amados, é a crise, que,
neste revolto período de sua história, vai atravessando nossa pátria.
Crise para a vida ou para a morte. Para a vida, se todo o nosso
progresso social for baseado na religião; para a morte se o não for.
A causa que defendemos, dignos cooperadores e filhos muito
amados, não é precisamente a da nossa fé católica como tal, é a causa
da religião, é a causa de Deus. Queremos que a sociedade brasileira
toda inteira, compreendida sua parte dirigente, respeite a religião,
ame a Religião, não se separe da religião, antes em seus atos públicos
10

ou privados, se inspire nos ditames sagrados que ela impõe à


consciência.
[...] primeiramente, que se há de pensar dessa separação da Igreja e do
Estado, que infelizmente está consumada entre nós pelo decreto do
governo provisório de 7 de janeiro do corrente ano? É porventura, em
si, boa, e deve ser aceita e aplaudida por nós católicos?
Em segundo lugar, que havemos de pensar do decreto enquanto
franqueia liberdade a todos os cultos?
Em terceiro lugar, enfim, que temos de fazer os católicos do Brasil em
face da nova situação criada à nossa Igreja?
(EPISCOPADO BRASILEIRO, 1890 apud RODRIGUES, 1981, pp.
17-18).

Para os Bispos brasileiros, os “cidadãos devem obediência às leis do Estado; fiéis


devem obediência às leis da Igreja”. Logo, os religiosos católicos defendem a união em
detrimento da separação, acreditam que o Estado não poderá avançar sem a orientação
da Igreja, que não podem ser distintos, porque há um ponto que os une, o próprio
cidadão brasileiro, que também é fiel da Igreja. Os Bispos convocam os brasileiros a
repelirem a separação da Igreja do Estado e exigem a união entre os dois poderes. No
entanto, colocam que são desejosos de uma união distinta da estabelecida na
Constituição brasileira de 1824, caracterizada como uma união de incorporação e de
subordinação, pois a Igreja, segundo os artigos da referida Constituição, seria mais um
ramo da administração pública, não cumprindo seu papel de orientadora da sociedade.
A romanização nasceu dos esforços da Igreja para reafirmar seu poder e influência
em meio ás grandes mudanças produzidas pelo mundo moderno. No Brasil, a
romanização representou a modernização conservadora do catolicismo e a tentativa de
preservar suas tradições. Mas, a romanização iniciada pela Igreja procurou se adaptar a
uma nova sociedade, defendeu a ortodoxia, a autoridade clerical e o fim da autonomia
leiga. Este processo de transformação da Igreja, familiarizou o brasileiro com os
ensinamentos tridentinos e com os rituais prescritos para o nascimento, o casamento, a
procriação e a morte. Levou ainda, a construção de muitas Igrejas, seminários e colégios
de cunho religioso.
11

Após a proclamação da República no Brasil, algumas medidas foram tomadas


pelo governo especialmente em relação à Igreja que davam fim ao padroado3 e do
regalismo.4 Essas medidas, entre elas o ensino laico, a secularização dos cemitérios e o
casamento civil obrigatório, geraram sentimentos dicotômicos de alívio e apreensão.
Neste período e posterior, a Igreja conseguiu se reorganizar devido à sua liberdade de
ação, tendo como base de sustentação a criação de várias dioceses e arquidioceses em
todo o Brasil, a exemplo temos a fundação da diocese da Paraíba em 1892 pelo bispo
Dom Adauto Aurélio de Miranda Henriques.
Foi o primeiro bispo da diocese da Paraíba, criada pelo papa Leão XIII em 1892,
por nomeação episcopal em Roma, a 2 de janeiro de 1894, e ordenação a 7 do mesmo
mês; como também foi o seu primeiro arcebispo (14 de julho de 1914). Dirigiu a
arquidiocese com pulso firme e polêmicas, notabilizando-se pelas pastorais em que
condenava o liberalismo, o ateísmo, o socialismo, a maçonaria, o comunismo, o
casamento civil, a emancipação da mulher e o relaxamento de costumes trazido pelo
urbanismo e a industrialização. Faremos uso de uma passagem contida no Jornal A
Imprensa datado de 1915, em artigo intitulado “Maçon e Catholicos?”, a saber;

Impossivel, ou uma coisa ou outra ninguem póde servir a dois


senhores. Ou se serve a Deus como catholico ou ao demonio como
maçon.
A maçonaria é uma seita condenada pela igreja. Contra os maçons são
comminadas sevéras penas: o maçon é escommungado e como tal é
privado de tomar parteem cectas funcções solemnes da igreja p. es. `.
ser padrinho; é privado dos sufragios solemnes da igreja, como a
sepultura ecclasiastica, exequias, etc,etc.
Porque, apesar de seus bonitos rotolos de beneficencia e philantropia,
a maçonaria condenada por muitos códigos nacionaes é uma seita que
occulta os mais tetricos e horríveis planos ante-sociaes e inhumanos.
O maçon, quando não vinga coom o punhal ou a dynamite a
frustração de seus caprichos satanicos, procura manhosamente, como

3
O Padroado foi criado através de um tratado entre a Igreja Católica e os Reinos de Portugal e de
Espanha. A Igreja delegava aos monarcas destes reinos ibéricos a administração e organização da Igreja
Católica em seus domínios. O rei mandava construir igrejas, nomeava os padres e os bispos, sendo estes
depois aprovados pelo Papa.

4
Doutrina que defende a ingerência do chefe de Estado em questões religiosas.
12

vil serpente senhores levar ao lar, á família, á sociedade e aos


indivíduos da corrupção moral, proporcionado ás doses. (Fonte: IHGP
- Jornal A Imprensa Bi-semanario catholico - Parahyba- Terça-feira,
17 de Novembro de 1914 - ANNO XII – A grafia foi mantida a
mesma da época).

A passagem acima demonstra toda divergência de idéias e pensamentos com


relação a maçonaria, vista pelo clero como seita diabólica e um atraso a sociedade
católica da época, os membros da Igreja diziam não ser possível servir simultaneamente
a dois senhores. Assim, podemos perceber, que no Brasil, tanto na fase do Império
como nas primeiras décadas da Republica, Igreja e Maçonaria eram entidades
inconciliáveis. Isto, porém, não encerra o debate e não implica dizer que não haja
possibilidade de conciliação entre um sacerdote católico e um maçon católico.
Afora as contendas políticas e religiosas, Dom Adauto fundou treze colégios,
erigiu dezenove novas paróquias, realizou quase duzentas visitas pastorais, fundou em
João Pessoa o Seminário Arquidiocesano, o Colégio Pio X e em 1897 o semanário A
Imprensa, edificando ainda, o Palácio do Bispo, sede da arquidiocese. Ordenou dezenas
de padres, criou novas dioceses, abriu e reformou seminários, fundou colégios e
orientou as irmandades no que se refere ás manifestações da religiosidade popular,
visando maior ortodoxia eclesial. A base de sua administração estava centrada nas
Cartas Pastorais, vistas como veiculo de suas orientações do episcopado reformador.
(DIAS, 2008, 96).
A criação do Jornal A Imprensa, possivelmente foi um ato de promover a Igreja
através de seus escritos, assim como disseminar entre seus leitores as bases de uma
conduta moral, social e religiosa. Era um jornal a serviço da Igreja e em defesa da
“verdade” pautada na religião católica. Vale salientar, que em muitos momentos de
entusiasmo e orientados pelo clero, cometeu preconceitos hostis, intolerâncias religiosas
e políticas, fazendo duras criticas ao espiritismo, ao protestantismo e travou debates
acalourados contra a maçonaria. Dizia D. Adauto, “Á imprensa católica, sobretudo, está
confiada a missão de salvar a sociedade, de vivificá-la. A ela cabe defender Jesus Cristo
e a sua Igreja” (LIMA, 2007, 175)
Ao longo da sua administração, Dom Adauto incentivou as visitas pastorais como
sendo de fundamental importância para o fortalecimento da igreja e por esta se fazer
mais próxima do povo e ouvir suas queixas. Para Dom Adauto tudo na visita pastoral
13

era um encanto, as viagens, a visão dos campos cultivados, o contato com aquela gente
laboriosa e honesta de mãos calejadas e alma pura, a ingenuidade das crianças, a atitude
curiosa das mulheres, enfim nada escapava aos olhos atentos do Bispo. Para ele, as
visitas pastorais eram conforto e higiene do corpo e da alma, conforme confessava.
(LIMA, 2007, 171).
Esta pesquisa ainda em fase preliminar tem nos mostrado as varias facetas da
primeira Republica, em particular na Paraíba, assim como os arranjos políticos, as
relações de parentela para conseguir e permanecer no poder, o uso da violência como
demonstração de força e poder nos municípios em que a justiça não operava ou que era
subordinada a autoridade dos coronéis, enfim uma fase de instabilidade política e
também religiosa, visto que, a separação entre Igreja e Estado, também marcaria
profundamente a primeira Republica, pois a Igreja na Paraíba capitaneada pelo Bispo
Dom Adauto buscou medidas de implementação e reforma religiosa alinhada ao
processo de romanização proposto pela Igreja para seu fortalecimento ante as mudanças
que o sistema republicano provocaria. Tal esforço corporativo e doutrinário se
manifestou de varias maneiras, desde a firme disposição em implantar o estilo de mando
episcopal europeizado, passando pela adoção das pastorais como instrumento de difusão
religiosa das ordens eclesiásticas, pelas visitas pastorais regulares e a criação de novas
dioceses e um Jornal (A Imprensa) para a divulgação da propaganda religiosa e o
combate aos maus costumes, leia-se - valores morais - segundo o clero, trazido pela
Republica.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS.

AZZI, Riolando. Presença da Igreja na sociedade brasileira e formação das dioceses no


período republicano, In: Rogério L. Souza e Clarícia Otto (orgs.). Faces do catolicismo.
Florianópolis-SC, Editora Insular, 2008. pp. 17-40.
__________________. (org.). A vida religiosa no Brasil: enfoques históricos. São
Paulo, Editora Paulinas, 1983.
AZEVEDO, Thales de. A religião civil brasileira, um instrumento político. Petrópolis:
Vozes, 1981.
___________________. Estado e Igreja em tensão e crise. São Paulo: Ática, 1978.
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AQUI JAZ OS QUE NÃO FORAM: QUANDO OS MORTOS SÃO INDESEJÁVEIS NO
MUNDO DOS VIVOS

FRANCISCA EUDÉSIA NOBRE BEZERRA

Resumo

A obra “Incidente em Antares”, de Érico Veríssimo, está dividida em duas


partes onde o autor mescla acontecimentos reais da história brasileira com a ficção,
tendo como contexto a fictícia cidade gaucha de “Antares” que é apresentada na
primeira parte do texto juntamente com as personagens da trama. A segunda parte,
ápice da obra, ocorre o incidente propriamente dito, onde sete pessoas morrem e são
impedidas de serem sepultadas por conta de uma greve de coveiros na cidade, esses
mortos ganham vida novamente e para reivindicar um enterro digno de qualquer
cristão resolvem atormentar os vivos apontando a podridão moral da sociedade.
Considerando que o autor reflete muito da sociedade em que vive e que ficção e
realidade muitas vezes caminham juntas, é que buscamos refletir sobre o imaginário
acerca das crenças e ritos da religiosidade popular em relação à morte e o
sobrenatural através da análise da obra em questão.

Palavras-chave: Literatua; História; Ficção; Morte

A relação entre História e Literatura é assunto antigo no âmbito do discurso


histórico e tem suscitado opiniões distintas entre os teóricos. O termo história nos
remete a realidade por se utilizar de documentos que comprove o estatus de verdade
do que foi narrado, enquanto a literatura se utiliza da ficção para compor sua
narrativa. Vezes a história se utiliza da literatura como objeto e os textos literários
apresentam fatos históricos, uma vez que quem escreve está historicamente
posicionado e influenciado pelo momento (Ferreira, 2010).

Partindo dessa premissa é que buscamos refleti sobre a morte e o


sobrenatural, no que se refere ao sistema imaginário de crenças, mitos e idéias
religiosas acerca desta temática na obra literária “Incidente em Antares”. Este foi o
último romance do escritor gaucho Érico Veríssimo, publicada em 1971, em plena
ditadura militar, o que lhe rendeu um contexto que ao mesmo tempo mesclava ficção
e realidade de uma forma que em alguns momentos a linha que separa ficção e
realidade se fundiam na narrativa. O autor evidenciou os interesses políticos como
determinantes das relações sociais e a denuncia da violência em qualquer nível, seja
ideológico, político ou físico

A morte sempre foi temida pelos vivos na história da humanidade, seja por
instinto de vida em alguns momentos, seja pela incapacidade humana de
2

compreensão da mesma. O fato é que por desconhecer os mistérios que envolvem a


finitude da vida, o homem, sobretudo através das religiões e sistemas filosóficos - que
buscam explicar a ideia do fim da vida através de suas reflexões - criou mitos,
crenças, símbolos e desenvolveu sentimentos e atitudes diante da morte e do
sobrenatural que para o filósofo Arthur Shopenhauer (2001), funcionam como uma
espécie de antídoto da consciência contra a inevitável certeza do morrer. Desta feita
se delineia o medo que atormenta os vivos quando o assunto é a morte e o
sobrenatural.

Recorrendo aos estudos sobre a história do medo do historiador francês Jean


Delumeau (2009), nota-se que os medos que envolvem o ser humano, fome, guerra
pestes etc. decorre do medo da sua aniquilação, que por ter desde cedo a consciência
de sua morte, o homem conhece o medo num grau temível e duradouro. Nesse
sentido é que a imaginação humana é permeada por questões relacionadas aos
mistérios que envolvem o fim da vida.

Considerando que a morte é o destino final da vida, e que cada ser humano,
inevitavelmente morrerá, é que durante a sua existência homens e mulheres
desenvolvem culturalmente, vivendo em sociedade, seus sistemas de crenças, de
idéias etc. sobre sua própria existência e também sobre o fim da vida, e é entorno
desse fim que se concentram os sistemas religiosos e filosóficos funcionando como
uma preparação do homem para seu fim.Talvez a principal dessas crenças seja a da
imortalidade da alma e da existência de outra vida após a morte, que sofre variações
de acordo com o sistema religioso e cultural das sociedades ao longo do tempo e dos
vários espaços percorrido pela humanidade no curso de sua história.

A morte está presente no decorrer de toda história da fictícia cidade de Antares


que tem início em meados da década de 30 do século XIX, funcionando como uma
espécie de marco temporal entre as gerações e sucessivos acontecimentos ao longo
do tempo, com implicações interessantes para análise, porém, apesar desta
constatação visível, neste momento focaremos apenas na segunda parte da obra,
mais precisamente no incidente, recorrendo a esse primeiro momento apenas
esporadicamente quando necessário.

O caso ocorreu quando na sexta-feira 13 de dezembro de 1963, sete pessoas


morrem no mesmo dia em que os coveiros da cidade resolvem aderir à greve iniciada
pelos trabalhadores da cidade, em conseqüência, esses grevistas não permitem que os
corpos sejam sepultados, gerando um transtorno para a cidade e, sobretudo para a
elite política. Érico Veríssimo brilhantemente conseguiu concentrar nos sete mortos
3

insepultos da fictícia Antares, a representação dos vários setores sociais, que são
reflexos da realidade brasileira, que descreveremos aqui brevemente por ordem de
importância dentro dessa ótica social.

A primeira da lista é Dona Quitéria, matriarca dos Campolargos, morreu de um


ataque do coração. Mulher forte que comandava a família com pulso firme mesmo
antes da morte de seu esposo Zózimo Campolargo. Nutria um interesse peculiar pela
vida política do país, católica fervorosa, estava sempre em dias com os seus deveres
de cristã para com Deus e a Igreja. O segundo é o Dr. Cícero Branco, vítima de um
derrame cerebral que lhe tirou a vida. Era advogado e estava a serviço dos negócios
escusos da elite antarense, advogava sempre a favor dos seus interesses, mesmo
que para isso tivesse que se utilizar dos meios ilícitos para driblar a lei. O terceiro da
lista é o professor Menandro Olinda, cometeu suicídio cortando as veias do pulso.
Frustrado por nunca ter conseguido fazer carreira como pianista de sucesso, apesar do
apoio de sua família desde sua infância. Menandro era um homem solitário, que
perseguia um único objetivo que era conseguir ser um grande pianista de sucesso e
prestígio internacional. O quarto é João Paz, acusado de ser comunista, foi torturado e
morto pelos policiais do delegado Inocêncio que representava os interesses da
ditadura militar. Jovem idealista, pacifista, e que sonhava com uma sociedade
igualitária. O próximo é José Ruiz, vulgo Barcelona, morreu de uma ruptura de
aneurisma. Trabalhava como sapateiro, se autodenominava anarcosindicalista, apesar
de ser conhecido como o sapateiro comunista, viúvo e sozinho contou com um caixão
doado pela prefeitura para que seu corpo fosse levado até o cemitério.

Os dois mortos que se segue podem ser considerados os representantes do que


há de mais decadente na escala social. O primeiro é o maior beberrão de Antares,
conhecido como Pudim de Cachaça, morto por envenenamento, tendo sua esposa
como carrasco. Homem de meia idade, alcoólatra e dependia do trabalho de sua
companheira para sobreviver, que por sua vez sofria com os maus tratos do marido ao
chegar a casa embriagado, motivo pelo qual ela cometeu o crime. A última das
criaturas, ao lado de Pudim de cachaça é Erotildes, morreu tísica na ala dos indigentes
de um dos hospitais de Antares, foi vítima do desprezo social e desrespeito pela vida
humana, uma vez que foi esquecida no leito sem que tivesse a chance de tomar o
medicamento que poderia lhe ter poupado a vida. Uma mulher de um pouco mais de
quarenta anos, prostituta desde adolescente, passou pelas mãos de muitos poderosos
de Antares, que desfrutaram de sua beleza e juventude, inclusive o coronel Vacariano.
Com o passar do tempo, que levou consigo também sua beleza, solitária Erotildes
vendia seu corpo nas ruas de Antares a qualquer um e por qualquer trocado para
sobreviver.
4

Pelas circunstâncias de sua partida, no leito de um hospital, pode-se afirmar


que das sete mortes, a de Erotildes é a que mais representa a realidade
contemporânea em relação às atitudes diante da morte, dentro da perspectiva de
Norbert Elias ao refleti sobre o tabu da morte nos dias atuais, em que a sociedade,
dentro de um processo civilizador, afastou a morte do convívio do lar, talvez para
tentar afastar ao máximo essa ameaça de suas vidas, “hoje as coisas são diferentes.
Nunca antes na história da humanidade foram os moribundos afastados de maneira
tão asséptica para os bastidores da vida social (...). Para os moribundos essa pode ser
uma experiência amarga. Ainda vivos, já haviam sido abandonados”. (Elias, 2001. p.
30-31)

E para a sociedade antarense o que seria a morte? O que acontece após o fim
da vida? Existiria uma vida após a morte? Recorreremos ao diálogo entre os
representantes da elite, ao deliberarem em busca de solução para o problema dos
mortos de Antares, afim de buscarmos uma resposta a essas indagações.

- Mas o que é a morte? – Pergunta o professor Libindo


Olivares...
Lucas Faia apressa-se a responder, entre sério e gaiato:
- A morte é a ausência da vida.
O promotor público sacode negativamente angélica e repele a
definição.
- Pense nos milhões, nos bilhões, nos trilhões de seres humanos
que ainda não nasceram e portanto sofrem (se posso usar o
verbo) duma “ausência de vida”... nem por isso se pode
afirmar,que os ainda não nascidos estão mortos (Veríssimo,
2006. p. 317)

O pensamento do promotor público vai de encontro com o pensamento


filosófico de Arthur Schopenhauer, quando este afirma que

Se o que faz a morte nos parecer tão assustadora fosse a idéia


do não-ser, então deveríamos experimentar o mesmo temor
diante do tempo que ainda não éramos. Pois é incontestável
que o não-ser do depois da morte não pode ser diferente
daquele anterior ao nascimento; ele não merece, portanto, ser
mais lamentado. Toda uma infinidade de tempo flui quando
ainda não éramos, mas isso não nos aflige de modo algum. Mas
ao contrário, o fato de que após o intermédio momentâneo de
uma existência efêmera uma segunda infinidade de tempo deva
se seguir, na qual não seremos mais, para nós parece uma dura
e até mesmo intolerável condição. ( 2001. p. 27)
5

Para o filósofo esse medo do não ser não faz sentido, pois ocorre a morte da
consciência, assim como não existe uma consciência do antes da vida, de quando
ainda não éramos. No entanto a inexistência do não ser antes da vida perde o sentido
exatamente pela falta da consciência, pois essa se manifesta apenas com o
nascimento e desenvolvimento do ser humano, porém durante essa existência
efêmera é que homens e mulheres desenvolvem culturalmente e vivendo em
sociedade, essa certeza desse processo irreversível de caminhar com destino a morte.

Voltemos ao diálogo para falarmos sobre o pós-morte:

-Eu acho que quem morre se acaba! – exclama o coronel


Vacariano.
O Pe. Gerôncio protesta timidamente:
- Não blasfeme, coronel. Quem morre vai para o céu, o
purgatório ou o inferno, conforme os desígnios de Deus.
- Bueno- retruca o outro-, mas não volta para Antares. Isso é
que quero dizer(Veríssimo, 2006. p. 316)

Segundo o pensamento de Pe. Gerôncio, representante da religião católica


cristã, os mortos teriam três destinos, que dependeria da vontade de Deus que
designaria qual desses três lugares cada morto seria destinado.

No grupo dos sete mortos observa-se três tipos de mortes com diferentes
perspectivas a luz do imaginário religioso cristão. A morte natural, a exemplo de Dona
Quitéria, que tinha convicção de sua preparação para esse momento, tendo em vista
suas atitudes religiosas, como a própria narrou ainda em vida uma conversa com seu
amigo Coronel Vacariano no leito de morte de seu esposo Zózimo Campolargo:

- Nenhum de nós se faz ilusões. Sabemos que todos um dia


teremos de morrer gente melhor que nós tem morrido. A
virgem Maria por exemplo, Napoleão Bonaparte... Morrer não é
privilégio de ninguém. Todos morrem. Os ricos e os pobres,
inteligentes e os estúpidos. Uma das coisas que aprendi com a
velhice foi fazer as pazes com a minha morte. Quando a Moura
Torta bater na minha porta eu digo: “Entre comadre, tome um
mate. Ah, não quer? Então vamos embora”...
- o que acontece é que tu és um homem sem fé, sem religião,
eu acredito em Deus e na Outra Vida, que deve ser melhor que
esta. Reconheço meus defeitos, mas não tenho sido a pior das
esposas,, nem das mães, nem das sogras. Tenho feito as
minhas caridades. Rezo todas as noites. Vou à missa todos os
domingos e me confesso todas as semanas, estou certa que
depois da nossa morte, o Zózimo e eu vamos nos encontrar de
novo em algum lugar (Veríssimo,2006. p. 117)
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Dona Quitéria demonstra aceitar tranquilamente a ideia do fim da vida e


descreve exatamente a conduta cristã para uma boa morte. Neste grupo se
enquadram também o Dr. Cícero Branco, Erotildes e o sapateiro Barcelona, porém se
diferenciam da matriarca pelo estilo de vida, princípios religiosos e diferença de
pensamento sobre o fim da vida, ficando a mercê de destinos diferentes após a morte.
Pela conduta do Dr. Cícero Branco durante a vida, ele teria contas a acertar com Deus
pelos pecados terrenos. Erotildes, assim como este, teve uma vida desregrada e de
práticas condenáveis pela Igreja, com a diferença de que neste caso ela foi levada por
circunstâncias impostas pelas condições sociais. E no caso de Barcelona, claramente
ateu, era descrente em relação a vida após a morte e até mesmo a separação do
espírito do corpo, para ele tanto fazia apodrecer embaixo da terra como encima dela.

No segundo tipo se apresenta a morte do professor Menandro Olinda, que


cometeu suicídio, como afirma Dona Quitéria com uma expressão de reprovação:

D. Quitéria ergue-se, aproxima-se do professor e senta-se a seu


lado.
- Me diga uma coisa professor, como foi que o senhor teve a
coragem de matar-se? Não sabe que só Deus é capaz de nos
dar vida e só Ele tem o direito de nos tirar essa vida?
O pianista olha para as próprias mãos, e depois de curto
silêncio, fala.
- Foi a hora do diabo, dona Quitéria(...)
D. Quitéria escutou em silêncio e depois perguntou.
- Mas o senhor sabe que os suicidas não podem entrar no céu?
- Dona Quitéria, eu tive em Antares uma amostra do inferno. A
incompreensão, o sarcasmo , a impiedade dos antarenses me
doíam fundo. O inferno não pode ser pior que Antares.
- Acho que o senhor tá sendo injusto com a sua cidade e os
seus conterrâneos.
A velha lançou para o maestro um olhar duro, quase inimigo:
- e o senhor sabe que, como suicida, não pode ser sepultado
em campo-santo? (Veríssimo, 2006. p. 252-254)

De fato para o pensamento religioso cristão, esse tipo de morte vai contra os
ensinamentos de Deus, pois somente a Ele cabe o poder de dá e tirar a vida, aquele
que tirava a própria vida, excluíra-se da comunidade cristã, se isentaria do perdão
divino (Delumeau, 2009).

E finalmente temos a morte de João Paz e Pudim de Cachaça, que tiveram suas
vidas interrompidas, porém de uma forma diferente da morte do professor, pois
foram assassinados, portanto sofreram uma ruptura brusca de vida fora dos desígnios
de Deus. João Paz, com menos intensidade que Barcelona, não acreditava em uma
vida após a morte, como declarou para o segundo Padre de Antares, Pe. Pedro Paulo,
que por sua vez registrou em seu diário, os acontecimentos daquele dia:
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- Por favor, não se aproxime. Sou um cadáver, é terrível a gente


saber, sentir que está se desintegrando, apodrecendo aos
poucos. É pavoroso ter consciência disso. Eu queria acreditar em
Deus e na vida eterna.mas não posso. Nunca pude. Mas acredito
nesta vida. E como! Tenho esperança num futuro melhor para
nossa terra, para o mundo. Quero que meu filho nasça, cresça e
viva para participar desse mundo.
- Isso é religião – disse-lhe eu baixinho. – Você diz que não
acredita em Deus, mas vejo que acredita em todos os seus
pseudônimos. (Veríssimo, 2006. p. 301)

Após serem abandonados, insepultos fora do cemitério, começa a saga dos


sete mortos reivindicando um direito que lhes assegura, o de uma sepultura. Essa
atitude de proibir o sepultamento vai contra o pensamento cristão de respeito para
com os mortos, constituindo-se como um ato sacrilégio, como fala Padre Gerôncio:
“Todos os mortos merecem o nosso respeito. Ricos e pobres. Brancos e pretos.
Devemos venerar os mortos” (Veríssimo, 2006. p. 230).

Como não foram enterrados e levantaram de seus caixões, não se pode dizer
que seriam espíritos ou almas, porém, perderam a vida e estão mortos, portanto uma
situação em que se apresentam na fronteira entre a vida e a morte, e através da
licença poética da ficção, Érico Veríssimo ainda os dotou de consciência, como falou
João Paz na citação acima e como podemos observar no diálogo entre Dona Quitéria e
Cícero Branco;

- Se somos mesmo Cadáveres, como se explica que estamos


aqui falando, trocando opiniões e idéias... com a memória
funcionando... – indaga d. Quita...
- Minha senhora – Responde o advogado –, eu não explico.
Confesso que não sou versado em ocultismo, teologia e
espiritualismo. De tanatologia conheço apenas o que um
advogado que se preza deve conhecer... no mais, tenho lido
livros da minha especialidade. Há milênios os melhores cérebros
que a humanidade tem produzido vêm se debruçando sobre os
mistérios da vida e da morte. ninguém, que eu saiba, disse
ainda a palavra definitiva. (Veríssimo, 2006. p. 250)

É essa consciência que os leva a pressionar os vivos a tomarem uma decisão


quanto aos seus objetivos: o de serem enterrados dignamente como cristãos. Nesse
sentido é que resolvem voltar à cidade e exigir seus diretos, e assim é feito naquela
manhã de dezembro, os sete mortos fizeram uma marcha até o centro da cidade,
causando tumulto por onde passavam, no caminho aqueles que os viam eram
acometidos pelo pavor ao extremo, e de imediato a notícia da chegada dos mortos se
espalhou pela cidade. Nesse momento a Igreja estava lotada de fiéi que escutavam
atentamente ao sermão do Pe. Gerônimo, que avisado sobre o acontecimento, deixou
os fieis na Igreja e foi conferir os acontecimentos, e retornando a Igreja em um
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estado de choque emocional o vigário anuncia para os fiéis o que seus olhos
presenciaram . O que se sucedeu foi narrado em prosa barroca pelo jornalista Lucas
Faia.

Ao recobrar a voz o padre acercou-se do microfone, ergueu os


braços e bradou: “Sete mortos acabam de ressuscitar e de sair
de seus caixões. É o juízo Final! Deus Todo Poderoso vai
começar o julgamento dos vivos e dos mortos. Arrependei-vos
de vossos pecados enquanto é tempo! Ó Senhor, tende piedade
de nós. Oremos! Oremos! Todos de joelhos. Oremos!”.(...). E o
Padre continuava a gritar: É o juízo final! Arrependei-vos
enquanto é tempo! Orai! Orai! Orai! Muitos, de joelhos, oravam
de mãos postas voltada para o altar-mor. (...). com lágrimas a
rolarem pelas faces alguns homens e mulheres, velhos inimigos,
conciliavam-se,esqueciam velhos e novos agravos enfim,
abraçavam-se, beijavam-se, enfim, faziam as pazes
cristãmente. Muitas pessoas encaminhavam-se para o
confessionário, onde a presença do Pe. Gerôncio foi exigida,
primeiro com calma e depois aos gritos, e no afã de disputarem
um lugar na fila dos que queriam confessar-se, as pessoas
acotovelavam-se, empurravam-se... (Veríssimo, 2006. p. 269-
270)

Nesse momento Veríssimo, através do jornalista Lucas Faia, e com uma pitada
de humor, narra na ficção o que de fato faz parte do imaginário cristão acerca do fim
do mundo. O julgamento dos vivos e dos mortos no Juízo final, que seria o momento
de prestar contas com Deus sobre as ações aqui na terra, é responsável por esse
imaginário, crenças, ideias e comportamentos diante da possibilidade de um
julgamento final. Nota-se no decorrer da história da humanidade, em que o
cristianismo desempenhou o papel de responsável pela vida espiritual das sociedades,
que o seu discurso, variando de acordo com o tempo, o espaço e a sensibilidade de
cada época foi responsável por esse medo que permeia a imaginação social sobre o
fim da vida e a eternidade, amparada em um discurso de um Cristo Juiz.

Vi então um grande trono branco, e aquele que nele se


assentava, Os céus e a terra fugiram de sua face e já não se
achou lugar para eles. Vi os mortos, grandes e pequenos, de
pé, diante do trono, abriram-se livros, e ainda outro livro, que é
o livro da vida. E os mortos foram julgados conforme o que
estava escrito nesse livro, segundo as suas obras. O mar
restituiu os mortos que nele estavam. Do mesmo modo a morte
e a morada subterrânea foram lançadas no tanque de fogo. A
segunda morte é esta: o tanque de fogo. Todo que não
encontrado no livro da vida foi lançado ao fogo. (Apocalipse 20:
11-15)
9

O historiador Phillipe Ariès estudou as atitudes diante da morte no ocidente,


desde a Idade Média até o século XX, ressaltando todo o sistema de crenças a partir
de uma postura religiosa de aproximação com a morte (morte domada), até a atitude
de total negação por parte da sociedade (morte selvagem), e “como muitos outros
fatos de mentalidade que se situam em um longo período, a atitude diante da morte
parece quase imóvel através de períodos quase imóvel de tempo” (2003). Nesse
sentido é que encontramos na nossa sociedade atitudes e crenças antigas mas ainda
vivas na nossa cultura, ditando regras, pensamentos e condutas.

Esse Deus julgador e apocalíptico, também é representado como Aquele


piedoso, que cuida dos seus filhos e lhes concede o perdão, porém é necessário
caminhar no caminho do bem. Decorre daí o apelo do Padre Gerônimo para que seus
fiéis orassem, pedissem perdão e confessassem seus pecados antes do juízo final.
Pode-se inferir que o desespero que tomou conta de todos está intimamente ligado ao
estilo de vida e por consequência ao destino após a morte, apoiado no tripé, céu,
purgatório, inferno. Este se configurando no grande temor de todos, pois remetia ao
sofrimento eterno, ao contrário do céu que seria traquilidade e paz ao lado de Deus
por toda eternidade. No caso do purgatório, seria um terceiro local criado por Deus
para a expiação dos pecados daqueles que ainda teriam uma chance de regeneração.
Porém no decorrer da história podemos notar que ocorre uma metamorfose no
decorrer dos séculos XIX e XX, como podemos perceber através do trabalho de Michel
Vovelle (2010) que estudou as representações do purgatório através de documentos
imagéticos, desde o século XV até a contemporaneidade.

Após o episódio da Igreja os mortos resolvem que ficarão no coreto da praça


central até que seus pedidos sejam atendidos pelos vivos. Essa presença se
transforma em um pesadelo para a população, e sobretudo para a elite, tendo em
vista que os mortos, como em um julgamento, aproveitam-se de sua condição de
inatingíveis diante das condutas e amarras sociais por não fazerem mais parte dessa
comédia humana, para simplesmente expor perante ao público que se aglomera no
centro da cidade, os comportamentos indignos e podres daquela sociedade fajuta.
Para além desse momento, espalham por toda cidade os sinais da morte, pois o mau
cheiro de cadáver se espalhava pelo ar e penetrava no olfato das pessoas despertando
no pensamento a idéia da morte. Moscas urubus e ratos, rondavam os mortos e
depois penetravam nas casas levando o povo ao desespero.

Diante da situação, em que o medo tomava conta de Antares, e que o livro da


vida de muitos tinha sido aberto pelos mortos, numa espécie de julgamento coletivo,
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as pessoas passam a refletirem sobre a vida, a morte, o que é importante e o que não
é para sua existência.

Os mortos voltaram para o cemitério da cidade, conduzidos de uma forma


violenta, através de um apedrejamento dos policiais, e conseguiram seus objetivos,
que era o sepultamento como manda o ritual necessário para o fim da vida de todo
cristão.

A cidade de Antares voltou a normalidade e passaram a considerar que o


acontecido não passou de uma alucinação coletiva, que era preciso esquecer para que
o povo conseguisse voltar a vida de outrora.

A obra Incidente em Antares, de uma forma cômica, reflete sobre a certeza da


morte e do sobrenatural, demonstrando que apesar do medo, são aspectos
necessários de compreensão da vida, apesar do afastamento que a sociedade mantém
sobre esse assunto, se faz necessário a reflexão, porém essas questões ficam restritas
muitas vezes dentro de um discurso religioso, ou científico. Através de alguns
personagens Veríssimo tenta mostrar a dificuldade das pessoas em falar sobre o
assunto, reflexo da sociedade ocidental que nutre um certo pavor a medida que se
fala no assunto.

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11
COSMOGONIA E LITERATURA DE FANTASIA: O CASO TOLKIEN

Felix Antonio de Medeiros Filho

RESUMO: Tomando como objetivo evidenciar aspectos míticos na cosmogonia de


J. R. R. Tolkien por meio de uma análise da estrutura narrativa, observa-se que
a obra do autor, mais conhecida por sua contraparte cinematográfica, O Senhor
dos Anéis e O Hobbit, apresenta uma grande riqueza mítica e religiosa. A criação
do mundo por meio de uma música, a presença de deuses criadores, a revolta
de Melkor e a vinda dos Valar para a Terra são alguns dos principais elementos
cosmogônicos presentes em obras como O Silmarillion, As Aventuras de Tom
Bombadil e Contos Inacabados. Dessta forma, a cosmogonia tolkieniana é
estética por excelência, e na análise da divisão de seus deuses e da origem de
suas raças pode-se verificar se há ou não a presença de uma estética
cosmogônica cristã em sua produção.

O escritor John Ronald Reuel Tolkien é mais conhecido atualmente pelas


adaptações cinematográficas de suas obras por Peter Jackson, O Senhor dos Anéis e O
Hobbit, frutos de um recurso estético desenvolvido pelo autor conhecido como
mitopeia, que consiste em criar uma mitologia nova sobre a qual repousa sua
narrativa principal (MARTINS FILHO, 2002).
Tolkien nasceu em Bloemfontein, na África do Sul, em 1892, onde desde cedo
foi apresentado aos dois universos que mais tarde serviriam de substrato para a sua
obra: a Religião Cristã e a Literatura de Fantasia. Com a morte do pai e um início de
aracnofobia na infância que o acompanhou por toda a vida, foi ainda criança com sua
mãe para a Inglaterra, onde viria a converter-se ao Catolicismo. Enquanto progredia
em seus estudos no King Edward’s School, J.R.R. Tolkien viria formando pouco a
pouco o substrato católico conservador que permearia suas principais obras. Ainda
chegou a lutar duas guerras e a formar-se em Letras pela Universidade de Oxford,
onde mais tarde lecionaria a cadeira de Línguas Arcaicas (MARTINS FILHO, 2002).
Suas obras não foram todas oriundas de uma mesma fonte. Parte dela nasceu
dos estudos da mitologia escandinava, outra parte da cosmogonia e da ética cristã, e
uma parte dela de uma releitura do Kalevala e das sagas islandesas1. Porém,
independente de sua fonte, a Religião Cristã é a que mais influenciou seus escritos
(MARTINS FILHO, 2002).
Por isso fez-se aqui uma análise das concepções centradas na estrutura da
cosmogonia nos mitos de caçadores e plantadores relacionados à obra de Tolkien,
que faz sua releitura do mito de origem do universo, pontuado por aventuras e
guerras das três primeiras eras nomeadas Tempos Antigos2.
A cosmogonia tolkieniana se faz por elementos híbridos de mitologias
diferenciadas, todas presentes em O Silmarillion, de publicação póstuma, revisada por
seu filho Christopher Tolkien, considerada por muitos a maior obra de fantasia escrita
no século XX (MARTINS FILHO, 2002); mais especificamente o Ainulindalë (A Música
dos Ainur), correspondendo ao primeiro capítulo da obra, e o Valaquenta (Relato dos
Valar e dos Maiar), correspondendo ao segundo capítulo.
Pressupondo-a como narrativa de entretenimento, mas com pontuações
constantes a mitos sagrados, apreende-se nela uma alegoria da angústia do homem
contemporâneo em seus símbolos mais universais (DURAND, 1993). Mas a definição
dos deuses tolkienianos não pode ser consequência única deste projeto, pois a
cosmogonia narrada na literatura fantástica de Tolkien reflete uma busca
contemporânea de retomada das narrativas míticas do passado sobre os anseios da
massa em suas múltiplas estruturas (ADORNO, 2002; ELIADE, 1992a).
O Silmarillion e todo o conjunto da obra de Tolkien podem ser classificados
como subgênero fantástico. É importante traçar uma caracterização das obras da
literatura fantásticas. Todorov diz que o fantástico ocorre quando um fato inverossímil
dispensa explicações, pois, ocorrendo isso, pela ciência ou pela mitologia, o fantástico
é invalidado (TODOROV, 1975). Eduardo Torelli3 explica que o mesmo aparece quando
fatos inverossímeis, que não precisam ser explicados, “existem porque o autor o quer
e o público aceita essa justificativa simplória em troca do drama, no desenvolvimento
da fábula”.
Lembrando que é o próprio ato do narrar que caracteriza o mito, mas que sua
sacralidade é que determina sua religiosidade, e que é a cultura que determina sua
sacralidade (CROATTO, 2010). Sendo a cultura um “sistema de signos que
estabelecem a distinção entre o humano e o não-humano” (NOGUEIRA, 2012, p. 13),
então pode-se afirmar que Tolkien, como membro e produtor nessa cultura, assume
para si a função de codificador dos mitos presentes nela, ou mesmo de codificador de
novos mitos.

1. As origens da cosmogonia cristã

Para sistematizar os deuses cosmogônicos em qualquer mitologia ou obra que


os contenha é necessário primeiro separar aquilo que é criador daquilo que é criado.
Significa que muitos deuses são criados, e não são criadores, mas apenas
representativos (como Ártemis como deusa da caça, e não criadora da caça),
enquanto que outros assumem essa postura de criadores (Gaia, Cronos, Zeus). Os
deuses cosmogônicos em O Silmarillion apresentam uma dificuldade extra por serem
representações simbólicas de princípios, sincréticos em relação às religiões de povos
plantadores e caçadores – proposto pela classificação de Campbell (2000) e Eliade
(1984) –, e chegam inclusive a classificar-se como elementos de uma religião pós-
axial, como é o caso do Cristianismo (ARMSTRONG, 2005).
A estrutura de um sistema cosmogônico implica em universos cíclicos, em que
o início e o fim dos tempos se complementam, guiados por um deus ou grande
espírito, geralmente em forma de animal (JUBAINVILLE, 2003), e como um deus
assassinado se transforma em vegetal (CAMPBELL, 2000). Para a maioria desses
povos, o tempo sempre tem modificações cíclicas e recorrentes (ELIADE, 1992a). O
caçador, em sua organização social e mítica, é centrado na figura masculina, por ser o
provedor de alimento para a família, assumindo o poderoso papel xamânico do Animal
Mestre, enquanto que o plantador centra sua sociedade na figura da mulher, muitas
vezes encarnada em deusas ou deuses assassinados por aqueles que são beneficiados
pelo ato criador (ELIADE, 1984; ARMSTRONG, 2005).
A estrutura de uma narrativa cosmogônica apresenta-se concomitantemente
com o ritual iniciático de renovação, pois povos primitivos atualizam simbolicamente
esse ritual na vida pública, para o imitatio da vida dos deuses, condição necessária
para a vida prática (CROATTO, 2010; CAMPBELL, 2002; ELIADE, 1992b). Mas o mito
cosmogônico tem fundamentalmente uma função social. No ritual de iniciação, a
cosmogonia é representada através dos símbolos de orgia e casamento. Esse rito
remete a vários mitos: cosmogônico, teogônico e antropogônico; simbolizando, assim,
o caos como princípio de um ato criador e por isto transmitido como exempla aos
povos (ELIADE, 1976).
A palavra mito, do grego mythós (= fábula, narrativa) (CHANTRAINE, 1968),
indica um conjunto de mitemas sobre feitos arquetípicos dos heróis ou de seres
espirituais (ELIADE, 1976). Esse mito desenvolve-se em gerações sucessivas, a partir
do inconsciente coletivo (JUNG, 2000). Observe-se que a narrativa de hoje é uma
manifestação da tensão sempre prestes a explodir (CAMPBELL, 2004). As histórias de
origem dos povos são narrativas recorrentes na literatura. A Teogonia atribui a origem
do universo à ordenação do Caos pelo nascimento de deuses iniciais, movidos por
casamentos endógamos que geram, além de toda a geração dos titãs e deuses
olímpicos, o homem e o mundo natural. A Enuma Elish narra a mutilação de um deus
primordial, Tiamat, por Marduc, do qual surge o mundo e o homem. O livro de
Gêneses coloca o mundo como originário da manifestação verbal do criador, que fez o
mundo em seis dias e descansou no sétimo. A recorrência desse mito propõe uma
visão ascensorial ao homem (SCHAEFFER, 2001; ARMSTRONG, 2005). Segundo Jung
(2000), a cosmogonia seria uma manifestação da busca pelo self de cada ser humano.
Dois cultos são primordiais na construção do mito cosmogônico na história: o
culto ao animal e o culto ao vegetal. O primeiro sinaliza o contato cotidiano com a
morte e, consequentemente, o contato com os símbolos de regeneração, traduzido
pela sexualidade, porque, na cultura dos caçadores, este tem um simbolismo
transcendente do Eros – vida –, afastando o Tânatos – morte. O mito cosmogônico é
centrado em elementos semelhantes à vida diária, com deuses zoomórficos e Animais
Mestres como figuras centrais de seus ritos. O caçador primitivo vê na renovação da
manada todos os anos uma espécie de milagre, repetido sempre como uma recriação
mística do xamã primordial. Os povos plantadores decodificam em suas narrativas o
mito da mãe terra. O sistema simbólico da terra é o espelhamento do próprio ciclo de
procriação: ser ser arada e fecundada para emergir a fertilidade (CAMPBELL, 2000).
Apreende-se em O Silmarillion a presença de um terceiro mito: há um deus criador
propondo uma música da criação aos Ainur (deuses menores), simbolizada por
elementos harmônicos da cosmogonia dos caçadores. Sua natureza representa os
deuses: há o deus Manwë, dos céus, que representa o ar e os ventos; há a deusa
Varda, que representa as estrelas, e há a deusa Yavanna representando todas as
coisas vivas, também guardiã das florestas. Esses deuses, por exemplo, em muito nos
remetem aos deuses de povos caçadores do Período Paleolítico (ELIADE, 1984).

2. Milenarismo Cristão

Um exemplo do que a religião fez à obra de Tolkien pode ser visto em sua saga
mais famosa, O Senhor dos Anéis. É comum a ideia de um reino futuro que
perserverará pela eternidade afora – Reino de Deus, Quinto Império, Sebastianismo,
Rei Arthur de Avalon, Enéias e Roma de Mil Anos – compartilhando um conjunto
básico de motivos (CAMPBELL, 2000) ao aguardar a chegada de uma nova Idade de
Ouro, quando se harmonizarão o homem selvagem e o civilizado. Tal ideologia, apesar
de antiga, é ainda hoje cultivada pelo homem moderno. Pois “apesar de se ter tornado
tão erudito, o Homo sapiens não deixou de ser um macaco pelado e, embora tenha
adquirido motivações muito requintadas, não perdeu nenhuma das mais primitivas e
comezinhas” (MORRIS, 1967, p. 7).
Somos uma espécie que é, por vezes, compelida a crer na continuidade em
outro plano no pós-morte (JUNG, 2000). Isso interfere na ideia de civilização, como
aquela que segue viva após seu termo, num progresso ininterrupto, numa esfera
diferente. Toda obra milenarista reflete a ânsia pelo Reino Milenar, quando,
aprisionado o Diabo, o Cristo reinará por mil anos com cetro de ferro (Apocalipse 19).
E a literatura de fantasia é uma apropriação pela indústria cultural dos processos
motivacionais do mito e da arte (ADORNO, 2002, p. 18), ou:

A formulação linguística primária das atitudes arquetipais do


espírito humano, as “formas simples”[...] , seriam os modelos
de toda “expressão”: modelos que, na medida da sua
atualização, se literarizam aindamais” (ZUMTHOR, 1993, p. 52).

Como a ideia do Milenarismo se sustenta no Messianismo, é natural que as


esperanças na instauração do novo império recaiam na geração descrita na saga
(BENJAMIN, 1985). Nesse plano, o messias-governante não seria apenas remissor das
gerações passadas, mas também o vencedor do mal na última batalha (Apocalipse
20:7-10). A trilogia O Senhor dos Aneis apresenta o tema do milenarismo de duas
formas: uma profética, representada pelo herói, Aragorn (Elessar, Passolargo), predito
nos motes antigos de seu povo desde que o último rei, Isildur, morreu nas mãos dos
inimigos. A segunda aparece de forma política, como uma restauração do antigo reino
perdido de Numenorë, de cujos reis Aragorn é também descendente.
Compreendendo o símbolo do Rei Vindouro como um rei esvaziado de seu
significado e então preenchido por outro, de teor mais esperançoso (DURAND, 1993),
a relação entre Rei (Aragorn) e Anti-Rei (Sauron) se realiza como o reino que será
governado por Cristo, que vence e castiga o Anticristo na Batalha Final. Vencedor, seu
reinado dura mil anos, até Satanás desafiá-lo a uma última batalha. Desse momento
em diante, Cristo estabelece um reino eterno. É o que podemos ver na fala de Aragorn
a seus amigos, diante da iminente batalha: “eu pensei que o Olho de Sauron deveria
ser atraído para fora de sua própria terra. Pouquíssimas vezes ele foi desafiado depois
que retornou para sua Torre” (TOLKIEN, 2000c, p. 149).
Da mesma forma com que Cristo nasceu humilde e lutou contra a vaidade
diabólica, em O Senhor dos Aneis a vitória se consegue não pela força, mas pela
virtuosidade dos hobbits. A mesma análise hermenêutica poderia ser feita aqui,
colocando O Senhor do Escuro como o Anticristo, e seus servidores, os Nazgûl, como
infiéis que usam a marca (os nove anéis). A Comitiva do Anel, no livro, acaba sendo
criada para contrapor-se aos poderes do mal, os Nazgûl, Cavaleiros Negros: “A
Comitiva do Anel deverá ser composta de Nove; e os Nove Andantes devem ser
colocados contra os Nove Cavaleiros, que são maus” (TOLKIEN, 2000a, p. 293).
Finalmente, a força profética e política se fundem numa única imagem
redentora, como no mote de Aragorn:

Das cinzas um fogo há de vir,


Das sombras a luz vai jorrar,
A espada há de, nova, luzir,
O sem-coroa há de reinar (TOLKIEN, 2000a, p. 180).

Sauron, como Anticristo, visa dominar completamente a Arda (mundo),


governando sobre todos os seres. Mas o herói, Passolargo, se vale da ajuda de todos
os povos livres da Terra Média, sobre os quais irá governar no futuro na imagem de
um redentor. Para tanto, a dualidade Remissor-Anticristo é bem patente, pois o temor
de Sauron é ter de enfrentar Aragorn, que passou toda a sua vida se preparando para
o embate final (TOLKIEN, 2000b, pp. 202, 203), o que significa a destruição de
Mordor, Reino de Sauron.

3. A cosmogonia de Tolkien

Como verifica-se no mito milenarista, há uma forte presença da religiosidade


cristã na obra de Tolkien. O mito cosmogônico se vale da forte presença de elementos
judaico-cristãos. Pelo menos dois fatores importantes remetem ao paralelo com a
Gênese Bíblica: deus único e criação verbal.
Primeiramente, o monoteísmo de Tolkien tende a destoar um pouco das demais
obras do gênero. Enquanto Michael Ende preocupa-se com um mundo mais “laico”, e
Terry Pratchet imerge um mundo de fantasia em uma espécie de “Ateísmo Cósmico”,
Tolkien faz questão de retratar a existência de um deus único em sua obra. Apesar de
existirem deuses tolkienianos, esses deuses são, segundo o próprio autor, os anjos
bíblicos (TOLKIEN, 1999).

Dessa forma, tornou-se reduzida a felicidade de Ponente; mais


ainda assim seu poderio e seu esplendor aumentavam. Pois os
reis e seu povo ainda não haviam abandonado a sabedoria; e,
se não amavam mais os Valar, pelo menos ainda ostemiam.
Não ousavam desrespeitar abertamente a Interdição ou navegar
para além dos limites estabelecidos. Ainda para o leste dirigiam
suas altas embarcações. Contudo, o medo da morte cada vez
mais se adensava sobre eles; e eles procuravam adiá-la por
todos os meios a seu alcance. Começaram então a construir
casas imensas para os mortos, equanto seus sábios
trabalhavam sem cessar para descobrir, se possível, o segredo
de fazer voltar a vida ou, no mínimo, prolongar os dias dos
homens. Conseguiramapenas aprender a arte de preservar
inalterada a carne morta dos homens; e encheram toda a terra
com túmulos silenciosos, nos quais a ideia da morte ficava
encerrada na escuridão. Já os que estavam vivos se voltavam
ainda com maior avidez para o prazer e a folia, desejando cada
vez mais bens e riquezas. E, a partir do tempo de Tar-
Ancalimon, a oferenda dos primeiros frutos a Eru passoou a ser
negligenciada, e os homens raramente iam ao Local Sagrado
nas alturas da Meneltarma, no meio da Terra (TOLKIEN, 1999,
p. 339).

Como verifica-se no trecho acima, há uma preocupação moral do autor em


relação à religiosidade e à vida ético-social dos homens. Valores cristãos como fé,
humildade e enfrentamento da morte, faltosos no povo de Númenor, eram
alegoricamente criticados por Tolkien, que via a falta desses valores no mundo
moderno no qual vivia (MARTINS FILHO, 2002). Esses e outros valores cristãos podem
ser encontrados em inúmeros outros pontos de sua obra, alguns deles bastante
recorrentes até mesmo nas obras mais famosas, como O Hobbit e O Senhor dos Aneis,
como a fé e o virtuosismo do martírio.
Porém, como afirmar que em vez de uma coleção de deuses, Tolkien estipulou
um monoteísmo dentro do fantástico? Para responder, observe-se o trecho de
abertura do livro abaixo:

Havia Eru, o Único, que em Arda é chamado de Ilúvatar. Ele


criou primeiro os Ainur, os Sagrados, gerados por seu
pensamento, e eles lhe faziam companhia antes que tudo o
mais fosse criado. E ele lhes falou, propondo-lhes temas
musicais; e eles cantaram em sua presença, e ele se alegrou.
[...] Então, falou Ilúvatar e disse: – Poderosos são os Ainur, e o
mais poderoso dentre eles é Melkor; mas, para que ele saiba, e
saibam todos os Ainur, que eu sou Ilúvatar, essas melodias que
vocês entoaram, irei mostrá-las para que vejam o que fizeram.
[...] quando eles entraram no Vazio, Ilúvatar lhes disse: –
Contemplem sua Música! – e lhes mostrou uma visão, dando-
lhes uma imagem onde antes havia somente o som. E eles
viram um novo Mundo tornar-se visível aos seus olhos
(TOLKIEN, 1999, pp. 3-6).

O atributo principal de Eru, ou Ilúvatar, é a Unicidade, o mesmo atributo


encontrado no Deus do Cristianismo. Porém, diferente do que ocorre com Javé, Eru é
um deus que já nasce único, sem decantações de deuses anteriores em sua estrutura
(DEBRAY, 2004). Por outro lado, Eru nasceu da imaginação de um escritor católico e
conservador, que coloca elementos morais do Cristianismo em sua obra, então
estruturalmente poderíamos verificar atributos similares entre o Deus Imaginado e o
Deus Cristão.
Historicamente, o atual Deus Cristão é o resultado de uma pluralidade que em
algum momento da história passou a se designar como unidade, deixando suas
marcas no Eloim (designação plural) (DEBRAY, 2004), mas o deus de Tolkien não
apresenta elementos de decantação, tanto que Eru, em Quenya (língua criada por
Tolkien) significa “O Um” ou “O Que é Só” (TOLKIEN, 1999, p. 416), implicando que,
em sua concepção, ele já nasceu com o atributo da unidade. Um dos resultados de
uma divindade que se torna una é que “o Deus de Israel é o Deus de toda a
humanidade, um Deus universal” (PETERS, 2007, p.54). Ou seja, a Unidade preconiza
a Universalidade.
É precisamente essa característica que se observa na outra denominação de
Ilúvatar, outro nome dado a esse deus pelo autor, significa “Pai de Todos” (TOLKIEN,
1999, p. 425), o que reafirma Universalidade. Porém, por ser praticante de uma
religião que resultou dessa decantação conceitual e nessa universalização da
divindade, Tolkien não estava isento de permitir com que o discurso religioso
interferisse na atividade criativa (PÊCHEUX, 1997). Dessa forma, a própria estrutura
do Deus Tolkieniano denuncia seu superestrato linguístico cristão.
Outra característica da cosmogonia tolkieniana que encontra paralelo com o
livro de Gêneses é a verbalização da criação. Deus cria o mundo em seis dias
simplesmente ordenando às coisas que venham à existência. Esse tipo de cosmogonia
é uma Criação Verbal. Ong (1998) afirma que a palavra torna-se um símbolo por meio
do qual as propriedades de um mundo são transferidas a outro mundo. Dessa forma,
a Criação Verbal não seria uma criação Ex Nihilo, como proporia o próprio livro de
Gêneses, mas uma transferência de algo que já existe em outro plano (o pensamento)
para o plano da existência.
Por essa razão, a palavra que refere-se à criação do mundo para Tolkien,
Ainulindalë, é traduzida como A Música dos Ainur. A canção é a realização do ato
criador dentro da linguagem. É o que verificamos também dentro do mito africano de
Muso Koroni:

“No princípio, não havia necessidade de linguagem, pois tudo o


que existia estava integrado numa ‘palavra inaudível’, um
sussurro contínuo que o criador rude, fálico e arborícola Bemba
confiou ao criador celeste, requintado e aquático, Faro. Muso
Koroni, mulher de Bemba, que engendrava as plantas e os
animais, sentiu ciúme do marido, que copulava com todas as
mulheres criadas por Faro. Por isso, traiu-o, e Bemba
perseguiu-a e agarrou-a pela garganta, estrangulando-a. Desse
tratamento vilento da esposa, infiel ao marido infiel, nasceram
as rupturas no fluxo sonoro contínuo, absolutamente
necessárias para engendrar palavras, uma linguagem” (ELIADE
& COULIANO, 1999, p. 52).

Similaridades com a obra e Tolkien são patentes. Os Ainur são responsáveis


pelo ato criador, mas suas ações dependem de uma origem do próprio ato em Eru (p.
6). Não existe, portanto, uma criação politeísta em si, mas uma monoteísta, que usa
os deuses (Ainur) como um instrumento.
4. Conclusão

Assim como se verificou no Milenarismo, em que um elemento patente do


Cristianismo Católico encontra-se dentro da estrutura mítica de uma obra literária, o
mesmo observamos na cosmogonia. Nisso, podemos afirmar que o mito trabalhado
por Tolkien tem raízes nas suas próprias crenças enquanto católico, enquanto que
seus desdobramentos, apesar de singulares em relação à Gênese Bíblica, não se
afastam dos ideais morais e metafísicos do Catolicismo. A cosmogonia tolkieniana, por
excelência uma cosmogonia ficcional, não se afasta dos objetivos basilares dos mitos
naturais, pois o consumidor de relilgião moderno reune os fragmentos de vários textos
religiosos, trazidos pela diversidade da própria religião (NOGUEIRA, 2012),
permitindo, dentre outras coisas, que a estrutura presente em mitos não cristãos
pudessem ser usados como estrutura arquetípica única na qual repousaria a religião
cristã do escritor.

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2
BARRETO JR, Felipe. Op. Cit.
3
TORELLI, Eduardo. “Mundos da Fantasia”, in: Herói, número 1. Coleção Livros.
A REPRESENTAÇÃO DO MEDO NO FILME “AS BRUXAS DE SALEM”: UMA
ANÁLISE SOBRE O MISTICISMO RELIGIOSO DO SÉCULO XVII

Cleber Silva Santos

RESUMO: A presente proposta de trabalho pretende realizar um estudo sobre as


representações do medo social construída a partir de determinantes políticos e
religiosos dentro do contexto histórico do século XVII nas colônias estadunidenses,
presentes nos arquétipos do filme As Bruxas de Salem. Abrindo caminhos para
pesquisa no campo das representações do medo, como contraponto do misticismo
religioso puritano e como mecanismo psicológico de controle social e de adequação
dos sujeitos históricos. Sopesando assim o imaginário da sociedade moderna norte
americana como a pedra angular para a respectiva pesquisa.

PALAVRAS-CHAVES: medo - representação social - protestantismo puritano -


cinema.

INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é analisar as relações de poder de ordem religiosa
presentes no filme As Bruxas de Salem, buscando compreender a conjuntura social da
época de sua produção a partir das representações simbólicas do contexto histórico
em que ele é ambientado. Dentro desta proposta avaliaremos as representações
sociais, signos e gestos trabalhados como forma de compor o imaginário da
população, presentes na película, a fim de entender as estruturas e os recortes do
medo presentes no filme, como forma de apresentar o contexto estudado, sob a óptica
do diretor sobre a sociedade.
Buscando entender as representações do medo social, bem como as relações de
poder evidenciados no filme As Bruxas de Salem, tornou-se necessário fazer o
seguinte questionamento: Quais as representações do medo social presentes no filme
As Bruxas de Salem possíveis de serem mensuradas historicamente a partir de uma
analise da realidade social e religiosa nos fins do século XVII e inicio do século XVIII
nas colônias inglesas da América Norte?
Partindo deste mote, percebemos que o medo do sobrenatural presente no
imaginário social da época foi utilizado pelas autoridades eclesiásticas como
ferramenta de adequação e de controle social da população e dos subordinados nas
colônias da Nova Inglaterra. Medo este envolto não só das práticas de bruxaria, da
demonização e do infortúnio, como também das duras penalidades empreendidas
pelas autoridades religiosas sobre aqueles considerados infiéis aos preceitos
dogmáticos do protestantismo puritano, por serem suspeitos de praticar feitiçaria.


Graduando do curso em Licenciatura de Historia pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Campus
XVIII (Eunápolis-Ba)
AS BRUXAS DE SALEM: POSSIBILIDADES DE ANÁLISE HISTORICA
Ambientado num pequeno vilarejo Norte americano do século XVII, o filme As
Bruxas de Salem, que é baseado na obra “Livro Perdido das Bruxas de Salem” de
Katherine Howe, descreve em seu enredo um episódio verídico que sucedeu num
povoado chamado Salem, localizado no Estado de Massachusetts, EUA, em 1692. A
história trata de um julgamento coletivo e sumário envolvendo dezenas de pessoas
acusadas de bruxaria. A narrativa, do longo dirigido por Nicholas Hytner, começa com
um ritual realizado por algumas jovens do referido povoado, que se reuniram numa
floresta, sob orientação de uma escrava africana chamada Tituba. A finalidade das
jovens era obter o amor dos homens com os quais as mesmas desejavam casar.
Assim durante o ritual, que aparentemente era uma simples manifestação de
simpatias de algumas culturas africanas, passa a ter um caráter de magia negra,
quando uma das jovens por nome Abigail, ao matar e beber o sangue de uma galinha
pede a morte da mulher de John Proctor, o homem que a mesma tinha um caso. Em
êxtase, as respectivas jovens dançam e correm pela floresta, quando são
surpreendidas pelo tio de Abigail, o Reverendo Parris, que é autoridade religiosa do
vilarejo. Mediante a surpresa as jovens começam a gritar e a correr pelo bosque, e
uma das garotas, a filha do próprio reverendo, por ocasião do susto fica paralisada.
Descobertas no seu “ritual”, as jovens são acusadas de bruxaria, e provocam uma
histeria coletiva, ao simularem que estão inconscientes em razão do medo de seus
pais. Aproveitando a situação algumas das garotas passa a culpar várias pessoas
inclusive Elizabeth, mulher de John Proctor, de praticarem feitiçaria. O comportamento
das meninas assusta todo povoado. Assim, acreditando que as jovens estariam sob os
feitiços de uma bruxaria ligada ao demônio, os membros influentes do povoado de
Salem se reúnem e decidem chamar o Reverendo Hale que aparece no filme como um
exorcista. A partir daí começa o desenrolar e o desfecho da trama com acusações
alheias, julgamentos e sentenças. Quase 20 pessoas foram condenadas à morte por
praticarem feitiçaria após as jovens terem feito acusações de envolvimento com o
demônio contra outras pessoas. É um filme dramático, que suscita tristeza e
questionamentos sobre a perda da razão de algumas pessoas que motivaram
consequências terríveis.

SALEM: BREVE CONTEXTO HISTÓRICO


Colonizada por protestantes ingleses, por conta das perseguições religiosas
empreendidas na Grã-Bretanha ao longo século XVI e XVII, as colônias da nova
Inglaterra em especial e em grande destaque Massachusetts tiveram forte influencia
dos preceitos calvinistas, devido à intensa presença de colonos puritanos advindos do
Estado Britânico. Segundo Karnal estes são:

(...) Os “pais peregrinos” (...) tomados como fundadores dos


Estados Unidos. (...) (branco, anglo-saxão e protestante) (...)
Os “puritanos” (protestantes calvinistas) tinham em altíssima
conta a ideia de que constituíam uma “nova Canaã”, um novo
“povo de Israel”: um grupo escolhido por Deus para criar uma
sociedade de “eleitos”(...) A ideia de povo eleito e especial
diante do mundo é uma das marcas mais fortes na constituição
da cultura dos Estados Unidos.1 .

Durante o século XVII, os respectivos povos fundaram o Estado de


Massachusetts, estado este de grande importância econômica, politica e cultural para
a colônia. Localizado estrategicamente na costa leste, esta importante colônia, tornou-
se pioneiro na educação norte americano, tendo constituído a primeira instituição de
educação superior dos Estados Unidos, a Faculdade de Harvard em 1636.
No âmbito politico e jurídico a referida colônia, segundo Karnal, aproximava-se
dos ideais católicos teocráticos, no qual havia aproximação direta entre Igreja-Estado
caracterizada por um princípio onde “(...) somente os membros da igreja Puritana
poderiam votar e ter cargos públicos (...) fato que não acontecia no resto das igrejas
protestantes (...). Todos os novos credos deveriam ser aprovados pela Igreja e pelo
Estado (...) atuariam juntos para punir as desobediências a essas e outras normas,” 2.
É nesta conjuntura de poder e de influência dos ideais eclesiásticos sobre o
Estado, que sucedeu um episódio conhecido como o surto de Salem em 1692, fato
este que culminou numa verdadeira caça às bruxas comparáveis aos tempos
medievais.
Desde o século XIV a presença das bruxas no imaginário ocidental cristão
desencadeou eventos sangrentos através dos processos inquisitórios. Consideradas
como agentes de Satã, as feiticeiras, assim como a morte, a peste, à noite, o mar,
provocavam profundamente temores aos que acreditavam piamente no misticismo, a
saber das ordens eclesiásticas. Tal conjuntura se deve ao papel da Igreja Católica
sobre o imaginário social no ocidente. Segundo Delumeau o cristianismo encarregou-
se então pouco a pouco da crença no espectro, dando-lhe uma significação moral e
integrando-a numa perspectiva da salvação eterna3. Assim utilizado como instrumento
de controle social o medo do sobrenatural, sobretudo de Satã e seus agentes, serviu
como mecanismo de cristianização àqueles que desejavam como alento os preceitos

1
KARNAL, 2007, pg.46-47
2
KARNAL, 2007, pg. 51
3
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada. Tradução Mª Lucia
Machado: tradução de notas Heloisa Jahn - São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
eclesiásticos. Todas as práticas consideradas subversivas, como paganismo, heresias,
sobretudo bruxaria eram duramente reprimidas. Nesta última, a maior parte dos
acusados eram mulheres. Conforme Delumeau a mulher, vem sendo relacionada ao
demoníaco e distanciada do “bem” desde tempos remotos4. Como avalia o
medievalista, a afirmação do temor da mulher por autoridades religiosas e
relacionadas à lei fez com que um medo espontâneo se propagasse. Medo que
“naturalmente” encontraram justificativas e fundamentações religiosas e legais.
Delumeau afirma que a emergência da modernidade na Europa Ocidental foi
acompanhada de um inacreditável medo do diabo e que a Renascença havia herdado
conceitos e imagens demoníacas que foram definidos e paulatinamente difundidos no
medievo. Para Karnal “As acusações de bruxaria, uma constante em todo o mundo
cristão da época, existiam desde o início da colonização”5 . É neste contexto que os
episódios que marcaram o ano de 1692 em Salem encontram ecos sobre o imaginário
e as práticas inquisitórias, ainda que sobre os arquétipos do protestantismo puritano,
cujas, consequências foram desastrosas, culminando na prisão de 200 pessoas e a
execução de 14 mulheres e 06 homens.
É nessa perspectiva que se faz necessário examinar e avaliar o quanto a
representação do medo e suas variáveis estão presentes no mundo ocidental, em
especial nas colônias da Nova Inglaterra do século XVII, partindo do entendimento de
que a mentalidade da sociedade medieval cristã influenciou profundamente o coletivo
universal ao longo da história.

CINEMA E HISTÓRIA: SIGNIFICANDO SABERES


Desde a sua existência, o cinema foi considerado por muitos a “Arte do século
XX”. Entendida como “(...) Forma de expressão artística para a qual concorrem
diversas outras artes – como a Música, o Teatro, a Literatura, a Fotografia e as demais
6
Artes Visuais (...)” a sétima arte ao longo do século XX impactou profundamente a
sociedade contemporânea, como uma nova forma de fazer arte a partir da
reprodutibilidade técnica, evidenciada pelas transformações significativas que o
desenvolvimento tecnológico impunha sob a vida cotidiana, principalmente por
aqueles que viam na arte cinematográfica uma via de propagação ideológica.
Após as décadas de 40, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, a arte
audiovisual passa a ter lugar cativo no universo acadêmico, principalmente para os

4
DELUMEAU Jean. História do medo no Ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada. Tradução Mª Lucia
Machado: tradução de notas Heloisa Jahn - São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
5
KARNAL, 2007, pg. 51
6
BARROS, 2008, pg.16
sociólogos e antropólogos, que acreditava que a partir da utilização dos instrumentos
de reprodução visual e sonora poderia estudar sobre uma dada realidade social.
O exímio cronista, Marc Ferro, um dos primeiros historiadores a utilizar como
fonte documental a obra fílmica, concluiu a partir de suas análises, que a produção
fílmica trás em si um status de revelador político, ideológico, social e cultural de uma
determinada sociedade, que às vezes não são evidenciados de modo explícito, mas,
que podem ser sujeitos às observações nas entrelinhas das representações presentes
no filme. Nesta perspectiva o cinema trouxe em sua essência uma importância
significativa para estudo da realidade histórica, onde o historiador ao analisar as
etapas da produção fílmica, como a narrativa, o cenário, o texto, e as relações do
filme com o autor, a produção, o público e a crítica, descortina a intencionalidade da
respectiva obra e identifica o tipo de percepção que a sociedade absorve e revela
sobre seu modo de existência.
Segundo Barros “O cinema não é apenas uma forma de expressão cultural, mas
também um ‘meio de representação’. Através de um filme representa-se algo, seja
uma realidade percebida e interpretada, ou seja, um mundo imaginário livremente
criado pelos autores de um filme” 7.
Os Annales e os novos marxismos estenderam o conceito de fonte histórica,
considerando, por exemplo, que a iconografia, o Cinema, a cultura material enfim uma
variedade de produção humana poderia ser utilizada como tal. A partir de então,
fontes de natureza, visual, oral e sonora foram incorporadas ao conjunto de
compreensão do passado. Por conta disso, estabeleceram-se novos posicionamentos
teóricos e metodológicos para os historiadores, como se sucedeu com os
antropólogos. Nesta perspectiva ampliou-se o entendimento de que o cinema, assim
como qualquer produção midiática podem ser consideradas, em termos de ilustração e
difusão de pesquisas, como ferramentas de observação, de transcrição e de
interpretação de realidades diversas.
Mediante ao respectivo pressuposto e tratando-se de uma obra fílmica de
ambientação histórica, acredita-se que, o estudo e a análise da respeitante obra,
como fonte documental, induzirão a uma interessante visão acerca do medo, das
relações de poder, bem com o discurso ideológico presente nas esferas sociais de
dominação representados na trama. Para Barros “(...) A partir de uma fonte fílmica,
(...) dos discursos e práticas cinematográficas relacionadas aos diversos contextos
contemporâneos, os historiadores podem apreender de uma nova perspectiva da
própria história do século XX e da contemporaneidade (...) 8.

7
BARROS, 2008, pg.10
8
BARROS, 2008, pg.06
A partir dessa perspectiva, procuramos embasar nossa análise percebendo a
relevância da história do medo para a acadêmica. Haja vista que a história do medo
ocupa lugar de destaque na história das mentalidades, corrente esta que ampliou
consideravelmente uma série de temas concernente à vida cotidiana.
Para a efetivação do presente trabalho, fez-se necessário recorrer às ideias de
autores que trouxeram uma grande contribuição para a Nova História, em sua
essência para a História das Mentalidades, dando assim ênfase a estudos que antes
não tinha significado para Historiografia. Portanto para entender as representações
individuais e coletivas e as estruturas mentais sociais ante ao medo tomaremos como
acepção de “medo” as ideias de Jean Delumeau (2009), que consideram o medo
com um dos sentimentos mais negativos do ser humano. O autor afirma que não
apenas o individuo, mas também o coletivo está em constante diálogo com o medo.
Nosso autor procura captar um complexo de medos que faziam parte da constituição
da mentalidade coletiva do homem europeu, ao apresentar as aflições sentidas pela
civilização ocidental cristão, durante o medievo e no final da modernidade, diante dos
infortúnios sociais presentes na respectiva sociedade. Delumeau acredita que a
história do medo é um instrumento não só de mudança, como também é um meio de
revelar novos campos de investigação, derrubando barreiras que existem entre as
gerações Ocidentais. Ele afirma ainda que “Em nossos dias, são incontáveis as obras
científicas, os romances, as autobiografias, os filmes que trazem no título o medo.
Curiosamente, a historiografia, que em nosso tempo deslindou tantos novos domínios,
o negligenciou”9. Outros autores que nos serviram como fundamento teórico quanto
ao conceito de medo será Claudia Barcellos Rezende In. Mª Claudia Coelho
(2010), que define, em consonância com as ideias de Elias (1993) o medo como
“(...) um canal de transmissão das estruturas sociais às estruturas psicológica
individual(...)”10. Para as mesmas “O potencial de sentir medo em sua visão, faz parte
da natureza humana. Entretanto as formas pelas quais cada grupo dará vida a essa
capacidade são fruto de circunstâncias históricas e culturais (...)”11
Na noção de representação utilizaremos como referencial as ideias Roger
Chartier (1990), que assevera que as representações são sempre motivadas por
interesse de grupos que as forjam, assim “(...) as percepções do social não são de
forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e praticas (sociais, escolares,
politicas) que tende impor uma autoridade a custa de outros, por elas menosprezados
12
(...)” . Chartier afirma ainda que em “diferentes lugares e momentos uma

9
DELUMEAU, 2009, pg. 18
10
REZENDE In. COELHO, 2010, pg.13
11
REZENDE In. COELHO, 2010, pg.14
12
CHARTIER, 1990, pg.17
determinada realidade é construída, pensada, dada a ler por diferentes grupos sociais”
13
. Segundo o mesmo a constituição das identidades sociais implicaria em uma “(...)
relação de força entre as representações impostas por aqueles que têm poder de
classificar e de nomear e a definição, submetida ou resistente, que cada comunidade
produz de si mesma” 14.
Quanto às representações constituídas a partir de ferramentas midiáticas, em
especial através do cinema, procuraremos trabalhar com os conceitos de Marc Ferro
que trás em eu seu desígnio a relação entre cinema e historia, afirmando que é tão
antiga como o próprio cinema. Para o autor, o filme “(...) possui uma tensão que lhe
é própria, trazendo à tona elementos que viabilizam uma análise da sociedade diversa
da proposta pelos seus segmentos, tanto o poder constituído quanto a oposição (...)”
15
. É nessa conjuntura que a obra cinematográfica é tratada como “novo objeto”, bem
como uma fonte preciosa, dentro dos domínios da chamada História Novo. Isto se
deve ao fato de que a obra fílmica na sua magnitude ,seja, ela ficção, documentário
ou cinejornal é carregado por representações, que refletem, para quem o analisar,
visões de mundo, valores, comportamentos, identidades e ideologias de uma
determinada sociedade num determinado contexto histórico e social. Nesse sentido
Ferro acredita que o cinema:

destrói a imagem do duplo que cada instituição ,cada indivíduo


se tinha constituído diante da sociedade. A câmara revela o
funcionamento real daquela, diz mais sobre cada um do que
queria mostrar. Ela descobre o segredo, ela ilude os feiticeiros,
tira as máscaras, mostra o inverso de uma sociedade, seus
“lapsus”. É mais do que preciso para que, após a hora do
desprezo venha a da desconfiança, a do temor (...). A ideia
deque um gesto poderia ser uma frase, esse olhar, um longo
discurso é totalmente insuportável: significaria que a imagem,
as imagens (...) constituem a matéria de uma outra história que
não a História, uma contra-análise da sociedade16

José de D’Assunção Barros (2008) afirma que o Cinema constituiu a partir de


si mesmo uma linguagem própria e uma indústria também específica não deixando de
interferir na história contemporânea ao mesmo tempo em que seu discurso e suas
práticas foram se transformando com esta própria história contemporânea. No seu
artigo “Cinema e História – entre expressões e representações”, Barros vai
delineando a atuação do cinema como agente-histórico afirmando que:

13
CHARTIER, 1990, pg.16
14
CHARTIER, 2002, pg. 73
15
MORETTIN, 2003, pg.13
16
FERRO, 1976, pg.202-203
O Cinema mostra-se um ‘agente histórico’ importante no
sentido de que interfere direta ou indiretamente na História. Ou,
mais propriamente, poderíamos acrescentar que o Cinema tem
se mostrado como instrumento particularmente importante ou
como veículo significativo para a ação dos vários agentes
históricos, para a interferência destes agentes na própria
História. O Cinema, então, mostra-se como poderoso
instrumento de difusão ideológica, ou mesmo como arma
imprescindível no seio de um bem articulado sistema de
propaganda e marketing. Por isso mesmo, em uma primeira
instância já se mostra muito interessante para os historiadores
a possibilidade de examinar sistematicamente as relações entre
Cinema e Poder, o que – como se verá adiante – fará da arte
fílmica e das práticas cinematográficas importante objeto de
estudo para a História Política e igualmente complexa. Desde
cedo, as diversas agências associadas aos poderes instituídos
compreenderam a importância do Cinema como veículo de
comunicação, de difusão e até de imposição de ideias e
ideologias 17

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
É relevante salientar a importância do estudo desses autores, pois a obra em
análise possibilita o estudo do medo no espaço coletivo onde as representações e as
relações de poder, tem um papel preponderante em evidenciar a tipicidade de medo a
partir de uma análise, de uma perspectiva da micro historia para o macro, de uma
sociedade capitalista forjada pelos valores e costumes cristã.
Cabe aqui ressaltar que o nosso trabalho se encontra no processo inicial de
investigação com possibilidades de estudos e usos de outras fontes direcionada ao
Ensino de História em sala de aula.

REFERÊNCIAS:

FONTES

Filme: As Bruxas de Salem Título “The Crucible”, Fox Filmes. EUA, 1996

DIREITO e Literatura: do fato a ficção. Programa exibido em 02/05/2010. Disponível


em: http://player.vimeo.com/video/17849844?autoplay =1, acessado em 16 de julho
de 2012.

http://www.historia.uff.br/nec/materia/grandes-processos/cinema-e-hist%C3%B3ria-
abordagens-e-metodologia. Acessado em 16 de julho de 2012.

http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/historia/article/viewFile/2713/2250. Acessado
em 16 de julho de 2012

BIBLIOGRAFIAS

17
BARROS, 2008, pg.16
BARROS, José D’Assunção. Cinema e história: entre expressões e representações. In
NÓVOA, Jorge e BARROS, José D’Assunção (org.). Cinema-História: teoria e
representações sociais no cinema. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.

CAMPOS, Thiago, In. PEIXOTO, Carolina, e SERRANO, Ana Paula. Cinema e História:
abordagens e metodologia, 2009.

DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada.
Tradução Mª Lucia Machado: tradução de notas Heloisa Jahn - São Paulo: Companhia
das Letras, 2009, 700 páginas.

FERRO, M. O filme: uma contra análise da sociedade? In: LE GOFF, J. NORA, P.


(Orgs.).História: novos objetos. Trad.: Terezinha Marinho. Rio de Janeiro: F. Alves,
1976. P. 202-203.

FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

KARNAL, Leandro. Et. al.: História dos Estados Unidos: das origens ao século
XXI. 2. Ed. São Paulo, Contexto, 2007.

KORNIS, Mônica Almeida. HISTÓRIA E CINEMA: um debate metodológico*


Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 237-250.

MEZZAROBA, O. ; MONTEIRO, C. S. Manual de Metodologia de Pesquisa no


Direito:
Atualizado de acordo com as últimas normas da ABNT. São Paulo: Saraiva, 2003.

MORETTIN, Eduardo Victorio. O cinema como fonte histórica na obra de Marc


Ferro. História: Questões & Debates, Curitiba n 38,2003.

.
A REPRESENTAÇÃO DO MEDO NO FILME “AS BRUXAS DE SALEM”: UMA
ANÁLISE SOBRE O MISTICISMO RELIGIOSO DO SÉCULO XVII

Cleber Silva Santos

RESUMO: A presente proposta de trabalho pretende realizar um estudo sobre as


representações do medo social construída a partir de determinantes políticos e
religiosos dentro do contexto histórico do século XVII nas colônias estadunidenses,
presentes nos arquétipos do filme As Bruxas de Salem. Abrindo caminhos para
pesquisa no campo das representações do medo, como contraponto do misticismo
religioso puritano e como mecanismo psicológico de controle social e de adequação
dos sujeitos históricos. Sopesando assim o imaginário da sociedade moderna norte
americana como a pedra angular para a respectiva pesquisa.

PALAVRAS-CHAVES: medo - representação social - protestantismo puritano -


cinema.

INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é analisar as relações de poder de ordem religiosa
presentes no filme As Bruxas de Salem, buscando compreender a conjuntura social da
época de sua produção a partir das representações simbólicas do contexto histórico
em que ele é ambientado. Dentro desta proposta avaliaremos as representações
sociais, signos e gestos trabalhados como forma de compor o imaginário da
população, presentes na película, a fim de entender as estruturas e os recortes do
medo presentes no filme, como forma de apresentar o contexto estudado, sob a óptica
do diretor sobre a sociedade.
Buscando entender as representações do medo social, bem como as relações de
poder evidenciados no filme As Bruxas de Salem, tornou-se necessário fazer o
seguinte questionamento: Quais as representações do medo social presentes no filme
As Bruxas de Salem possíveis de serem mensuradas historicamente a partir de uma
analise da realidade social e religiosa nos fins do século XVII e inicio do século XVIII
nas colônias inglesas da América Norte?
Partindo deste mote, percebemos que o medo do sobrenatural presente no
imaginário social da época foi utilizado pelas autoridades eclesiásticas como
ferramenta de adequação e de controle social da população e dos subordinados nas
colônias da Nova Inglaterra. Medo este envolto não só das práticas de bruxaria, da
demonização e do infortúnio, como também das duras penalidades empreendidas
pelas autoridades religiosas sobre aqueles considerados infiéis aos preceitos
dogmáticos do protestantismo puritano, por serem suspeitos de praticar feitiçaria.


Graduando do curso em Licenciatura de Historia pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Campus
XVIII (Eunápolis-Ba)
AS BRUXAS DE SALEM: POSSIBILIDADES DE ANÁLISE HISTORICA
Ambientado num pequeno vilarejo Norte americano do século XVII, o filme As
Bruxas de Salem, que é baseado na obra “Livro Perdido das Bruxas de Salem” de
Katherine Howe, descreve em seu enredo um episódio verídico que sucedeu num
povoado chamado Salem, localizado no Estado de Massachusetts, EUA, em 1692. A
história trata de um julgamento coletivo e sumário envolvendo dezenas de pessoas
acusadas de bruxaria. A narrativa, do longo dirigido por Nicholas Hytner, começa com
um ritual realizado por algumas jovens do referido povoado, que se reuniram numa
floresta, sob orientação de uma escrava africana chamada Tituba. A finalidade das
jovens era obter o amor dos homens com os quais as mesmas desejavam casar.
Assim durante o ritual, que aparentemente era uma simples manifestação de
simpatias de algumas culturas africanas, passa a ter um caráter de magia negra,
quando uma das jovens por nome Abigail, ao matar e beber o sangue de uma galinha
pede a morte da mulher de John Proctor, o homem que a mesma tinha um caso. Em
êxtase, as respectivas jovens dançam e correm pela floresta, quando são
surpreendidas pelo tio de Abigail, o Reverendo Parris, que é autoridade religiosa do
vilarejo. Mediante a surpresa as jovens começam a gritar e a correr pelo bosque, e
uma das garotas, a filha do próprio reverendo, por ocasião do susto fica paralisada.
Descobertas no seu “ritual”, as jovens são acusadas de bruxaria, e provocam uma
histeria coletiva, ao simularem que estão inconscientes em razão do medo de seus
pais. Aproveitando a situação algumas das garotas passa a culpar várias pessoas
inclusive Elizabeth, mulher de John Proctor, de praticarem feitiçaria. O comportamento
das meninas assusta todo povoado. Assim, acreditando que as jovens estariam sob os
feitiços de uma bruxaria ligada ao demônio, os membros influentes do povoado de
Salem se reúnem e decidem chamar o Reverendo Hale que aparece no filme como um
exorcista. A partir daí começa o desenrolar e o desfecho da trama com acusações
alheias, julgamentos e sentenças. Quase 20 pessoas foram condenadas à morte por
praticarem feitiçaria após as jovens terem feito acusações de envolvimento com o
demônio contra outras pessoas. É um filme dramático, que suscita tristeza e
questionamentos sobre a perda da razão de algumas pessoas que motivaram
consequências terríveis.

SALEM: BREVE CONTEXTO HISTÓRICO


Colonizada por protestantes ingleses, por conta das perseguições religiosas
empreendidas na Grã-Bretanha ao longo século XVI e XVII, as colônias da nova
Inglaterra em especial e em grande destaque Massachusetts tiveram forte influencia
dos preceitos calvinistas, devido à intensa presença de colonos puritanos advindos do
Estado Britânico. Segundo Karnal estes são:

(...) Os “pais peregrinos” (...) tomados como fundadores dos


Estados Unidos. (...) (branco, anglo-saxão e protestante) (...)
Os “puritanos” (protestantes calvinistas) tinham em altíssima
conta a ideia de que constituíam uma “nova Canaã”, um novo
“povo de Israel”: um grupo escolhido por Deus para criar uma
sociedade de “eleitos”(...) A ideia de povo eleito e especial
diante do mundo é uma das marcas mais fortes na constituição
da cultura dos Estados Unidos.1 .

Durante o século XVII, os respectivos povos fundaram o Estado de


Massachusetts, estado este de grande importância econômica, politica e cultural para
a colônia. Localizado estrategicamente na costa leste, esta importante colônia, tornou-
se pioneiro na educação norte americano, tendo constituído a primeira instituição de
educação superior dos Estados Unidos, a Faculdade de Harvard em 1636.
No âmbito politico e jurídico a referida colônia, segundo Karnal, aproximava-se
dos ideais católicos teocráticos, no qual havia aproximação direta entre Igreja-Estado
caracterizada por um princípio onde “(...) somente os membros da igreja Puritana
poderiam votar e ter cargos públicos (...) fato que não acontecia no resto das igrejas
protestantes (...). Todos os novos credos deveriam ser aprovados pela Igreja e pelo
Estado (...) atuariam juntos para punir as desobediências a essas e outras normas,” 2.
É nesta conjuntura de poder e de influência dos ideais eclesiásticos sobre o
Estado, que sucedeu um episódio conhecido como o surto de Salem em 1692, fato
este que culminou numa verdadeira caça às bruxas comparáveis aos tempos
medievais.
Desde o século XIV a presença das bruxas no imaginário ocidental cristão
desencadeou eventos sangrentos através dos processos inquisitórios. Consideradas
como agentes de Satã, as feiticeiras, assim como a morte, a peste, à noite, o mar,
provocavam profundamente temores aos que acreditavam piamente no misticismo, a
saber das ordens eclesiásticas. Tal conjuntura se deve ao papel da Igreja Católica
sobre o imaginário social no ocidente. Segundo Delumeau o cristianismo encarregou-
se então pouco a pouco da crença no espectro, dando-lhe uma significação moral e
integrando-a numa perspectiva da salvação eterna3. Assim utilizado como instrumento
de controle social o medo do sobrenatural, sobretudo de Satã e seus agentes, serviu
como mecanismo de cristianização àqueles que desejavam como alento os preceitos

1
KARNAL, 2007, pg.46-47
2
KARNAL, 2007, pg. 51
3
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada. Tradução Mª Lucia
Machado: tradução de notas Heloisa Jahn - São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
eclesiásticos. Todas as práticas consideradas subversivas, como paganismo, heresias,
sobretudo bruxaria eram duramente reprimidas. Nesta última, a maior parte dos
acusados eram mulheres. Conforme Delumeau a mulher, vem sendo relacionada ao
demoníaco e distanciada do “bem” desde tempos remotos4. Como avalia o
medievalista, a afirmação do temor da mulher por autoridades religiosas e
relacionadas à lei fez com que um medo espontâneo se propagasse. Medo que
“naturalmente” encontraram justificativas e fundamentações religiosas e legais.
Delumeau afirma que a emergência da modernidade na Europa Ocidental foi
acompanhada de um inacreditável medo do diabo e que a Renascença havia herdado
conceitos e imagens demoníacas que foram definidos e paulatinamente difundidos no
medievo. Para Karnal “As acusações de bruxaria, uma constante em todo o mundo
cristão da época, existiam desde o início da colonização”5 . É neste contexto que os
episódios que marcaram o ano de 1692 em Salem encontram ecos sobre o imaginário
e as práticas inquisitórias, ainda que sobre os arquétipos do protestantismo puritano,
cujas, consequências foram desastrosas, culminando na prisão de 200 pessoas e a
execução de 14 mulheres e 06 homens.
É nessa perspectiva que se faz necessário examinar e avaliar o quanto a
representação do medo e suas variáveis estão presentes no mundo ocidental, em
especial nas colônias da Nova Inglaterra do século XVII, partindo do entendimento de
que a mentalidade da sociedade medieval cristã influenciou profundamente o coletivo
universal ao longo da história.

CINEMA E HISTÓRIA: SIGNIFICANDO SABERES


Desde a sua existência, o cinema foi considerado por muitos a “Arte do século
XX”. Entendida como “(...) Forma de expressão artística para a qual concorrem
diversas outras artes – como a Música, o Teatro, a Literatura, a Fotografia e as demais
6
Artes Visuais (...)” a sétima arte ao longo do século XX impactou profundamente a
sociedade contemporânea, como uma nova forma de fazer arte a partir da
reprodutibilidade técnica, evidenciada pelas transformações significativas que o
desenvolvimento tecnológico impunha sob a vida cotidiana, principalmente por
aqueles que viam na arte cinematográfica uma via de propagação ideológica.
Após as décadas de 40, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, a arte
audiovisual passa a ter lugar cativo no universo acadêmico, principalmente para os

4
DELUMEAU Jean. História do medo no Ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada. Tradução Mª Lucia
Machado: tradução de notas Heloisa Jahn - São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
5
KARNAL, 2007, pg. 51
6
BARROS, 2008, pg.16
sociólogos e antropólogos, que acreditava que a partir da utilização dos instrumentos
de reprodução visual e sonora poderia estudar sobre uma dada realidade social.
O exímio cronista, Marc Ferro, um dos primeiros historiadores a utilizar como
fonte documental a obra fílmica, concluiu a partir de suas análises, que a produção
fílmica trás em si um status de revelador político, ideológico, social e cultural de uma
determinada sociedade, que às vezes não são evidenciados de modo explícito, mas,
que podem ser sujeitos às observações nas entrelinhas das representações presentes
no filme. Nesta perspectiva o cinema trouxe em sua essência uma importância
significativa para estudo da realidade histórica, onde o historiador ao analisar as
etapas da produção fílmica, como a narrativa, o cenário, o texto, e as relações do
filme com o autor, a produção, o público e a crítica, descortina a intencionalidade da
respectiva obra e identifica o tipo de percepção que a sociedade absorve e revela
sobre seu modo de existência.
Segundo Barros “O cinema não é apenas uma forma de expressão cultural, mas
também um ‘meio de representação’. Através de um filme representa-se algo, seja
uma realidade percebida e interpretada, ou seja, um mundo imaginário livremente
criado pelos autores de um filme” 7.
Os Annales e os novos marxismos estenderam o conceito de fonte histórica,
considerando, por exemplo, que a iconografia, o Cinema, a cultura material enfim uma
variedade de produção humana poderia ser utilizada como tal. A partir de então,
fontes de natureza, visual, oral e sonora foram incorporadas ao conjunto de
compreensão do passado. Por conta disso, estabeleceram-se novos posicionamentos
teóricos e metodológicos para os historiadores, como se sucedeu com os
antropólogos. Nesta perspectiva ampliou-se o entendimento de que o cinema, assim
como qualquer produção midiática podem ser consideradas, em termos de ilustração e
difusão de pesquisas, como ferramentas de observação, de transcrição e de
interpretação de realidades diversas.
Mediante ao respectivo pressuposto e tratando-se de uma obra fílmica de
ambientação histórica, acredita-se que, o estudo e a análise da respeitante obra,
como fonte documental, induzirão a uma interessante visão acerca do medo, das
relações de poder, bem com o discurso ideológico presente nas esferas sociais de
dominação representados na trama. Para Barros “(...) A partir de uma fonte fílmica,
(...) dos discursos e práticas cinematográficas relacionadas aos diversos contextos
contemporâneos, os historiadores podem apreender de uma nova perspectiva da
própria história do século XX e da contemporaneidade (...) 8.

7
BARROS, 2008, pg.10
8
BARROS, 2008, pg.06
A partir dessa perspectiva, procuramos embasar nossa análise percebendo a
relevância da história do medo para a acadêmica. Haja vista que a história do medo
ocupa lugar de destaque na história das mentalidades, corrente esta que ampliou
consideravelmente uma série de temas concernente à vida cotidiana.
Para a efetivação do presente trabalho, fez-se necessário recorrer às ideias de
autores que trouxeram uma grande contribuição para a Nova História, em sua
essência para a História das Mentalidades, dando assim ênfase a estudos que antes
não tinha significado para Historiografia. Portanto para entender as representações
individuais e coletivas e as estruturas mentais sociais ante ao medo tomaremos como
acepção de “medo” as ideias de Jean Delumeau (2009), que consideram o medo
com um dos sentimentos mais negativos do ser humano. O autor afirma que não
apenas o individuo, mas também o coletivo está em constante diálogo com o medo.
Nosso autor procura captar um complexo de medos que faziam parte da constituição
da mentalidade coletiva do homem europeu, ao apresentar as aflições sentidas pela
civilização ocidental cristão, durante o medievo e no final da modernidade, diante dos
infortúnios sociais presentes na respectiva sociedade. Delumeau acredita que a
história do medo é um instrumento não só de mudança, como também é um meio de
revelar novos campos de investigação, derrubando barreiras que existem entre as
gerações Ocidentais. Ele afirma ainda que “Em nossos dias, são incontáveis as obras
científicas, os romances, as autobiografias, os filmes que trazem no título o medo.
Curiosamente, a historiografia, que em nosso tempo deslindou tantos novos domínios,
o negligenciou”9. Outros autores que nos serviram como fundamento teórico quanto
ao conceito de medo será Claudia Barcellos Rezende In. Mª Claudia Coelho
(2010), que define, em consonância com as ideias de Elias (1993) o medo como
“(...) um canal de transmissão das estruturas sociais às estruturas psicológica
individual(...)”10. Para as mesmas “O potencial de sentir medo em sua visão, faz parte
da natureza humana. Entretanto as formas pelas quais cada grupo dará vida a essa
capacidade são fruto de circunstâncias históricas e culturais (...)”11
Na noção de representação utilizaremos como referencial as ideias Roger
Chartier (1990), que assevera que as representações são sempre motivadas por
interesse de grupos que as forjam, assim “(...) as percepções do social não são de
forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e praticas (sociais, escolares,
politicas) que tende impor uma autoridade a custa de outros, por elas menosprezados
12
(...)” . Chartier afirma ainda que em “diferentes lugares e momentos uma

9
DELUMEAU, 2009, pg. 18
10
REZENDE In. COELHO, 2010, pg.13
11
REZENDE In. COELHO, 2010, pg.14
12
CHARTIER, 1990, pg.17
determinada realidade é construída, pensada, dada a ler por diferentes grupos sociais”
13
. Segundo o mesmo a constituição das identidades sociais implicaria em uma “(...)
relação de força entre as representações impostas por aqueles que têm poder de
classificar e de nomear e a definição, submetida ou resistente, que cada comunidade
produz de si mesma” 14.
Quanto às representações constituídas a partir de ferramentas midiáticas, em
especial através do cinema, procuraremos trabalhar com os conceitos de Marc Ferro
que trás em eu seu desígnio a relação entre cinema e historia, afirmando que é tão
antiga como o próprio cinema. Para o autor, o filme “(...) possui uma tensão que lhe
é própria, trazendo à tona elementos que viabilizam uma análise da sociedade diversa
da proposta pelos seus segmentos, tanto o poder constituído quanto a oposição (...)”
15
. É nessa conjuntura que a obra cinematográfica é tratada como “novo objeto”, bem
como uma fonte preciosa, dentro dos domínios da chamada História Novo. Isto se
deve ao fato de que a obra fílmica na sua magnitude ,seja, ela ficção, documentário
ou cinejornal é carregado por representações, que refletem, para quem o analisar,
visões de mundo, valores, comportamentos, identidades e ideologias de uma
determinada sociedade num determinado contexto histórico e social. Nesse sentido
Ferro acredita que o cinema:

destrói a imagem do duplo que cada instituição ,cada indivíduo


se tinha constituído diante da sociedade. A câmara revela o
funcionamento real daquela, diz mais sobre cada um do que
queria mostrar. Ela descobre o segredo, ela ilude os feiticeiros,
tira as máscaras, mostra o inverso de uma sociedade, seus
“lapsus”. É mais do que preciso para que, após a hora do
desprezo venha a da desconfiança, a do temor (...). A ideia
deque um gesto poderia ser uma frase, esse olhar, um longo
discurso é totalmente insuportável: significaria que a imagem,
as imagens (...) constituem a matéria de uma outra história que
não a História, uma contra-análise da sociedade16

José de D’Assunção Barros (2008) afirma que o Cinema constituiu a partir de


si mesmo uma linguagem própria e uma indústria também específica não deixando de
interferir na história contemporânea ao mesmo tempo em que seu discurso e suas
práticas foram se transformando com esta própria história contemporânea. No seu
artigo “Cinema e História – entre expressões e representações”, Barros vai
delineando a atuação do cinema como agente-histórico afirmando que:

13
CHARTIER, 1990, pg.16
14
CHARTIER, 2002, pg. 73
15
MORETTIN, 2003, pg.13
16
FERRO, 1976, pg.202-203
O Cinema mostra-se um ‘agente histórico’ importante no
sentido de que interfere direta ou indiretamente na História. Ou,
mais propriamente, poderíamos acrescentar que o Cinema tem
se mostrado como instrumento particularmente importante ou
como veículo significativo para a ação dos vários agentes
históricos, para a interferência destes agentes na própria
História. O Cinema, então, mostra-se como poderoso
instrumento de difusão ideológica, ou mesmo como arma
imprescindível no seio de um bem articulado sistema de
propaganda e marketing. Por isso mesmo, em uma primeira
instância já se mostra muito interessante para os historiadores
a possibilidade de examinar sistematicamente as relações entre
Cinema e Poder, o que – como se verá adiante – fará da arte
fílmica e das práticas cinematográficas importante objeto de
estudo para a História Política e igualmente complexa. Desde
cedo, as diversas agências associadas aos poderes instituídos
compreenderam a importância do Cinema como veículo de
comunicação, de difusão e até de imposição de ideias e
ideologias 17

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
É relevante salientar a importância do estudo desses autores, pois a obra em
análise possibilita o estudo do medo no espaço coletivo onde as representações e as
relações de poder, tem um papel preponderante em evidenciar a tipicidade de medo a
partir de uma análise, de uma perspectiva da micro historia para o macro, de uma
sociedade capitalista forjada pelos valores e costumes cristã.
Cabe aqui ressaltar que o nosso trabalho se encontra no processo inicial de
investigação com possibilidades de estudos e usos de outras fontes direcionada ao
Ensino de História em sala de aula.

REFERÊNCIAS:

FONTES

Filme: As Bruxas de Salem Título “The Crucible”, Fox Filmes. EUA, 1996

DIREITO e Literatura: do fato a ficção. Programa exibido em 02/05/2010. Disponível


em: http://player.vimeo.com/video/17849844?autoplay =1, acessado em 16 de julho
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http://www.historia.uff.br/nec/materia/grandes-processos/cinema-e-hist%C3%B3ria-
abordagens-e-metodologia. Acessado em 16 de julho de 2012.

http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/historia/article/viewFile/2713/2250. Acessado
em 16 de julho de 2012

BIBLIOGRAFIAS

17
BARROS, 2008, pg.16
BARROS, José D’Assunção. Cinema e história: entre expressões e representações. In
NÓVOA, Jorge e BARROS, José D’Assunção (org.). Cinema-História: teoria e
representações sociais no cinema. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.

CAMPOS, Thiago, In. PEIXOTO, Carolina, e SERRANO, Ana Paula. Cinema e História:
abordagens e metodologia, 2009.

DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada.
Tradução Mª Lucia Machado: tradução de notas Heloisa Jahn - São Paulo: Companhia
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FERRO, M. O filme: uma contra análise da sociedade? In: LE GOFF, J. NORA, P.


(Orgs.).História: novos objetos. Trad.: Terezinha Marinho. Rio de Janeiro: F. Alves,
1976. P. 202-203.

FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

KARNAL, Leandro. Et. al.: História dos Estados Unidos: das origens ao século
XXI. 2. Ed. São Paulo, Contexto, 2007.

KORNIS, Mônica Almeida. HISTÓRIA E CINEMA: um debate metodológico*


Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 237-250.

MEZZAROBA, O. ; MONTEIRO, C. S. Manual de Metodologia de Pesquisa no


Direito:
Atualizado de acordo com as últimas normas da ABNT. São Paulo: Saraiva, 2003.

MORETTIN, Eduardo Victorio. O cinema como fonte histórica na obra de Marc


Ferro. História: Questões & Debates, Curitiba n 38,2003.

.
COSMOGONIA E LITERATURA DE FANTASIA: O CASO TOLKIEN

Felix Antonio de Medeiros Filho

RESUMO: Tomando como objetivo evidenciar aspectos míticos na cosmogonia de J. R.


R. Tolkien por meio de uma análise da estrutura narrativa, observa-se que a obra do
autor, mais conhecida por sua contraparte cinematográfica, O Senhor dos Anéis e O
Hobbit, apresenta uma grande riqueza mítica e religiosa. A criação do mundo por meio
de uma música, a presença de deuses criadores, a revolta de Melkor e a vinda dos
Valar para a Terra são alguns dos principais elementos cosmogônicos presentes em
obras como O Silmarillion, As Aventuras de Tom Bombadil e Contos Inacabados. Desta
forma, a cosmogonia tolkieniana é estética por excelência, e na análise da divisão de
seus deuses e da origem de suas raças pode-se verificar se há ou não a presença de
uma estética cosmogônica cristã em sua produção.

Palavras-chave: Literatura de Fantasia, Cosmogonia, Milenarismo, Tolkien, Religião.

O escritor John Ronald Reuel Tolkien é mais conhecido atualmente pelas


adaptações cinematográficas de suas obras por Peter Jackson, O Senhor dos Anéis e O
Hobbit, frutos de um recurso estético desenvolvido pelo autor conhecido como
mitopeia, que consiste em criar uma mitologia nova sobre a qual repousa sua
narrativa principal (MARTINS FILHO, 2002).
Tolkien nasceu em Bloemfontein, na África do Sul, em 1892, onde desde cedo
foi apresentado aos dois universos que mais tarde serviriam de substrato para a sua
obra: a Religião Cristã e a Literatura de Fantasia. Com a morte do pai e um início de
aracnofobia na infância que o acompanhou por toda a vida, foi ainda criança com sua
mãe para a Inglaterra, onde viria a converter-se ao Catolicismo. Enquanto progredia
em seus estudos no King Edward’s School, J.R.R. Tolkien viria formando pouco a
pouco o substrato católico conservador que permearia suas principais obras. Ainda
chegou a lutar duas guerras e a formar-se em Letras pela Universidade de Oxford,
onde mais tarde lecionaria a cadeira de Línguas Arcaicas (MARTINS FILHO, 2002).
Suas obras não foram todas oriundas de uma mesma fonte. Parte dela nasceu
dos estudos da mitologia escandinava, outra parte da cosmogonia e da ética cristã, e
uma parte dela de uma releitura do Kalevala e das sagas escandinavas1. Porém,
independente de sua fonte, a Religião Cristã é a que mais influenciou seus escritos
(MARTINS FILHO, 2002).
Por isso fez-se aqui uma análise das concepções centradas na estrutura da
cosmogonia nos mitos de caçadores e plantadores relacionados à obra de Tolkien,
que faz sua releitura do mito de origem do universo, pontuado por aventuras e
guerras das três primeiras eras nomeadas Tempos Antigos2.
A cosmogonia tolkieniana se faz por elementos híbridos de mitologias
diferenciadas, todas presentes em O Silmarillion, de publicação póstuma, revisada por
seu filho Christopher Tolkien, considerada por muitos a maior obra de fantasia escrita
no século XX (MARTINS FILHO, 2002); mais especificamente o Ainulindalë (A Música
dos Ainur), correspondendo ao primeiro capítulo da obra, e o Valaquenta (Relato dos
Valar e dos Maiar), correspondendo ao segundo capítulo.
Pressupondo-a como narrativa de entretenimento, mas com pontuações
constantes a mitos sagrados, apreende-se nela uma alegoria da angústia do homem
contemporâneo em seus símbolos mais universais (DURAND, 1993). Mas a definição
dos deuses tolkienianos não pode ser consequência única deste projeto, pois a
cosmogonia narrada na literatura fantástica de Tolkien reflete uma busca
contemporânea de retomada das narrativas míticas do passado sobre os anseios da
massa (ADORNO, 2002; ELIADE, 1992a).
O Silmarillion e todo o conjunto da obra de Tolkien podem ser classificados
como subgênero fantástico. É importante traçar uma caracterização das obras da
literatura fantásticas. Todorov diz que o fantástico ocorre quando um fato inverossímil
dispensa explicações, pois, ocorrendo isso, pela ciência ou pela mitologia, o fantástico
é invalidado (TODOROV, 1975). Eduardo Torelli3 explica que o mesmo aparece quando
fatos inverossímeis, que não precisam ser explicados, “existem porque o autor o quer
e o público aceita essa justificativa simplória em troca do drama, no desenvolvimento
da fábula”.
É o próprio ato do narrar que caracteriza o mito, mas sua sacralidade
determina sua religiosidade, e a cultura determina sua sacralidade (CROATTO, 2010).
Sendo a cultura um “sistema de signos que estabelecem a distinção entre o humano e
o não-humano” (NOGUEIRA, 2012, p. 13), então pode-se afirmar que Tolkien, como
membro e produtor nessa cultura, assume para si a função de codificador dos mitos
presentes nela, ou mesmo de codificador de novos mitos.

1. As origens da cosmogonia cristã

Para sistematizar os deuses cosmogônicos em qualquer mitologia ou obra que


os contenha é necessário primeiro separar aquilo que é criador daquilo que é criado.
Significa que muitos deuses são criados, e não são criadores, mas apenas
representativos (como Ártemis como deusa da caça, e não criadora da caça),
enquanto que outros assumem essa postura de criadores (Gaia, Cronos, Zeus). Os
deuses cosmogônicos em O Silmarillion apresentam uma dificuldade extra por serem
representações simbólicas de princípios, sincréticos em relação às religiões de povos
plantadores e caçadores – proposto pela classificação de Campbell (2000) e Eliade
(1984) –, e chegam inclusive a classificar-se como elementos de uma religião pós-
axial, como é o caso do Cristianismo (ARMSTRONG, 2005).
A estrutura de um sistema cosmogônico implica em universos cíclicos, em que
o início e o fim dos tempos se complementam, guiados por um deus ou grande
espírito, geralmente em forma de animal (JUBAINVILLE, 2003), e como um deus
assassinado se transforma em vegetal (CAMPBELL, 2000). Para a maioria desses
povos, o tempo sempre tem modificações cíclicas e recorrentes (ELIADE, 1992a). O
caçador, em sua organização social e mítica, é centrado na figura masculina, por ser o
provedor de alimento para a família, assumindo o poderoso papel xamânico do Animal
Mestre, enquanto que o plantador centra sua sociedade na figura da mulher, muitas
vezes encarnada em deusas ou deuses assassinados por aqueles que são beneficiados
pelo ato criador (ELIADE, 1984; ARMSTRONG, 2005).
A estrutura de uma narrativa cosmogônica apresenta-se concomitantemente
com o ritual iniciático de renovação, pois povos primitivos atualizam simbolicamente
esse ritual na vida pública, para o imitatio da vida dos deuses, condição necessária
para a vida prática (CROATTO, 2010; CAMPBELL, 2002; ELIADE, 1992b). Mas o mito
cosmogônico tem fundamentalmente uma função social. No ritual de iniciação, a
cosmogonia é representada através dos símbolos de orgia e casamento. Esse rito
remete a vários mitos: cosmogônico, teogônico e antropogônico; simbolizando, assim,
o caos como princípio de um ato criador e por isto transmitido como exempla aos
povos (ELIADE, 1976).
A palavra mito, do grego mythós (= fábula, narrativa) (CHANTRAINE, 1968),
indica um conjunto de mitemas sobre feitos arquetípicos dos heróis ou de seres
espirituais (ELIADE, 1976). Esse mito desenvolve-se em gerações sucessivas, a partir
do inconsciente coletivo (JUNG, 2000). Observe-se que a narrativa de hoje é uma
manifestação da tensão sempre prestes a explodir (CAMPBELL, 2004). As histórias de
origem dos povos são narrativas recorrentes na literatura. A Teogonia atribui a origem
do universo à ordenação do Caos pelo nascimento de deuses iniciais, movidos por
casamentos endógamos que geram, além de toda a geração dos titãs e deuses
olímpicos, o homem e o mundo natural. A Enuma Elish narra a mutilação de um deus
primordial, Tiamat, por Marduc, do qual surge o mundo e o homem. O livro de
Gêneses coloca o mundo como originário da manifestação verbal do criador, que fez o
mundo em seis dias e descansou no sétimo. A recorrência desse mito propõe uma
visão ascensorial ao homem (SCHAEFFER, 2001; ARMSTRONG, 2005). Segundo Jung
(2000), a cosmogonia seria uma manifestação da busca pelo self de cada ser humano.
Dois cultos são primordiais na construção do mito cosmogônico na história: o
culto ao animal e o culto ao vegetal. O primeiro sinaliza o contato cotidiano com a
morte e, consequentemente, o contato com os símbolos de regeneração, traduzido
pela sexualidade, porque, na cultura dos caçadores, este tem um simbolismo
transcendente do Eros – vida –, afastando o Tânatos – morte. O mito cosmogônico é
centrado em elementos semelhantes à vida diária, com deuses zoomórficos e Animais
Mestres como figuras centrais de seus ritos. O caçador primitivo vê na renovação da
manada todos os anos uma espécie de milagre, repetido sempre como uma recriação
mística do xamã primordial. Os povos plantadores decodificam em suas narrativas o
mito da mãe terra. O sistema simbólico da terra é o espelhamento do próprio ciclo de
procriação: ser ser arada e fecundada para emergir a fertilidade (CAMPBELL, 2000).
Apreende-se em O Silmarillion a presença de um terceiro mito: há um deus criador
propondo uma música da criação aos Ainur (deuses menores), simbolizada por
elementos harmônicos da cosmogonia dos caçadores. Sua natureza representa os
deuses: há o deus Manwë, dos céus, que representa o ar e os ventos; há a deusa
Varda, que representa as estrelas, e há a deusa Yavanna representando todas as
coisas vivas, também guardiã das florestas. Esses deuses, por exemplo, em muito
remetem aos deuses de povos caçadores do Período Paleolítico (ELIADE, 1984).

2. Milenarismo Cristão

Um exemplo do que a religião fez à obra de Tolkien pode ser visto em sua saga
mais famosa, O Senhor dos Anéis. É comum a ideia de um reino futuro que
perserverará pela eternidade afora – Reino de Deus, Quinto Império, Sebastianismo,
Rei Arthur de Avalon, Enéias e Roma de Mil Anos – compartilhando um conjunto
básico de motivos (CAMPBELL, 2000) ao aguardar a chegada de uma nova Idade de
Ouro, quando se harmonizarão o homem selvagem e o civilizado. Tal ideologia, apesar
de antiga, é ainda hoje cultivada pelo homem moderno. Pois “apesar de se ter tornado
tão erudito, o Homo sapiens não deixou de ser um macaco pelado e, embora tenha
adquirido motivações muito requintadas, não perdeu nenhuma das mais primitivas e
comezinhas” (MORRIS, 1967, p. 7).
Somos uma espécie que é, por vezes, compelida a crer na continuidade em
outro plano no pós-morte (JUNG, 2000). Isso interfere na ideia de civilização, como
aquela que segue viva após seu termo, num progresso ininterrupto, numa esfera
diferente. Toda obra milenarista reflete a ânsia pelo Reino Milenar, quando,
aprisionado o Diabo, o Cristo reinará por mil anos com cetro de ferro (Apocalipse 19).
E a literatura de fantasia é uma apropriação pela indústria cultural dos processos
motivacionais do mito e da arte (ADORNO, 2002, p. 18), ou:

A formulação linguística primária das atitudes arquetipais do


espírito humano, as “formas simples” [...] , seriam os modelos
de toda “expressão”: modelos que, na medida da sua
atualização, se literarizam ainda mais” (ZUMTHOR, 1993, p.
52).

Como a ideia do Milenarismo se sustenta no Messianismo, é natural que as


esperanças na instauração do novo império recaiam na geração descrita na saga
(BENJAMIN, 1985). Nesse plano, o messias-governante não seria apenas remissor das
gerações passadas, mas também o vencedor do mal na última batalha (Apocalipse
20:7-10). A trilogia O Senhor dos Aneis apresenta o tema do Milenarismo de duas
formas: uma profética, representada pelo herói, Aragorn (Elessar, Passolargo), predito
nos motes antigos de seu povo desde que o último rei, Isildur, morreu nas mãos dos
inimigos. A segunda aparece de forma política, como uma restauração do antigo reino
perdido de Numenorë, de cujos reis Aragorn é também descendente.
Compreendendo o símbolo do Rei Vindouro como um rei esvaziado de seu
significado e então preenchido por outro, de teor mais esperançoso (DURAND, 1993),
a relação entre Rei (Aragorn) e Anti-Rei (Sauron) se realiza como o reino que será
governado por Cristo, que vence e castiga o Anticristo na Batalha Final. Vencedor, seu
reinado dura mil anos, até Satanás desafiá-lo a uma última batalha. Desse momento
em diante, Cristo estabelece um reino eterno. É o que podemos ver na fala de Aragorn
a seus amigos, diante da iminente batalha: “eu pensei que o Olho de Sauron deveria
ser atraído para fora de sua própria terra. Pouquíssimas vezes ele foi desafiado depois
que retornou para sua Torre” (TOLKIEN, 2000c, p. 149).
Da mesma forma com que Cristo nasceu humilde e lutou contra a vaidade
diabólica, em O Senhor dos Aneis a vitória se consegue não pela força, mas pela
virtuosidade dos hobbits. A mesma análise hermenêutica poderia ser feita aqui,
colocando O Senhor do Escuro como o Anticristo, e seus servidores, os Nazgûl, como
infiéis que usam a marca (os nove anéis). A Comitiva do Anel, no livro, acaba sendo
criada para contrapor-se aos poderes do mal, os Nazgûl, Cavaleiros Negros: “A
Comitiva do Anel deverá ser composta de Nove; e os Nove Andantes devem ser
colocados contra os Nove Cavaleiros, que são maus” (TOLKIEN, 2000a, p. 293).
Finalmente, a força profética e política se fundem numa única imagem
redentora, como no mote de Aragorn:

Das cinzas um fogo há de vir,


Das sombras a luz vai jorrar,
A espada há de, nova, luzir,
O sem-coroa há de reinar (TOLKIEN, 2000a, p. 180).

Sauron, como Anticristo, visa dominar completamente a Arda (mundo),


governando sobre todos os seres. Mas o herói, Passolargo, se vale da ajuda de todos
os povos livres da Terra Média, sobre os quais irá governar no futuro na imagem de
um redentor. Para tanto, a dualidade Remissor-Anticristo é bem patente, pois o temor
de Sauron é ter de enfrentar Aragorn, que passou toda a sua vida se preparando para
o embate final (TOLKIEN, 2000b, pp. 202, 203), o que significa a destruição de
Mordor, Reino de Sauron.

3. A cosmogonia de Tolkien

Como verifica-se no mito milenarista, há uma forte presença da religiosidade


cristã na obra de Tolkien. Seu mito cosmogônico se vale de elementos judaico-
cristãos. Pelo menos dois fatores importantes remetem ao paralelo com a Gênese
Bíblica: deus único e criação verbal.
Primeiramente, o monoteísmo de Tolkien tende a destoar um pouco das demais
obras do gênero. Enquanto Michael Ende preocupa-se com um mundo mais “laico”, e
Terry Pratchet imerge um mundo de fantasia em uma espécie de “Ateísmo Cósmico”,
Tolkien faz questão de retratar a existência de um deus único em sua obra. Apesar de
existirem deuses tolkienianos, esses deuses são, segundo o próprio autor, os anjos
bíblicos (TOLKIEN, 1999).

Dessa forma, tornou-se reduzida a felicidade de Ponente; mais


ainda assim seu poderio e seu esplendor aumentavam. Pois os
reis e seu povo ainda não haviam abandonado a sabedoria; e,
se não amavam mais os Valar, pelo menos ainda os temiam.
Não ousavam desrespeitar abertamente a Interdição ou navegar
para além dos limites estabelecidos. Ainda para o leste dirigiam
suas altas embarcações. Contudo, o medo da morte cada vez
mais se adensava sobre eles; e eles procuravam adiá-la por
todos os meios a seu alcance. Começaram então a construir
casas imensas para os mortos, enquanto seus sábios
trabalhavam sem cessar para descobrir, se possível, o segredo
de fazer voltar a vida ou, no mínimo, prolongar os dias dos
homens. Conseguiram apenas aprender a arte de preservar
inalterada a carne morta dos homens; e encheram toda a terra
com túmulos silenciosos, nos quais a ideia da morte ficava
encerrada na escuridão. Já os que estavam vivos se voltavam
ainda com maior avidez para o prazer e a folia, desejando cada
vez mais bens e riquezas. E, a partir do tempo de Tar-
Ancalimon, a oferenda dos primeiros frutos a Eru passou a ser
negligenciada, e os homens raramente iam ao Local Sagrado
nas alturas da Meneltarma, no meio da Terra (TOLKIEN, 1999,
p. 339).

Como verifica-se no trecho acima, há uma preocupação moral do autor em


relação à religiosidade e à vida ético-social dos homens. Valores cristãos como fé,
humildade e enfrentamento da morte, faltosos no povo de Númenor, eram
alegoricamente criticados por Tolkien, que via a falta desses valores no mundo
moderno no qual vivia (MARTINS FILHO, 2002). Esses e outros valores cristãos podem
ser encontrados em inúmeros outros pontos de sua obra, alguns deles bastante
recorrentes até mesmo nas obras mais famosas, como O Hobbit e O Senhor dos Anéis,
como a fé e o virtuosismo do martírio.
Porém, como afirmar que em vez de uma coleção de deuses, Tolkien estipulou
um monoteísmo dentro do fantástico? Para responder, observe-se o trecho de
abertura do livro abaixo:

Havia Eru, o Único, que em Arda é chamado de Ilúvatar. Ele


criou primeiro os Ainur, os Sagrados, gerados por seu
pensamento, e eles lhe faziam companhia antes que tudo o
mais fosse criado. E ele lhes falou, propondo-lhes temas
musicais; e eles cantaram em sua presença, e ele se alegrou.
[...] Então, falou Ilúvatar e disse: – Poderosos são os Ainur, e o
mais poderoso dentre eles é Melkor; mas, para que ele saiba, e
saibam todos os Ainur, que eu sou Ilúvatar, essas melodias que
vocês entoaram, irei mostrá-las para que vejam o que fizeram.
[...] quando eles entraram no Vazio, Ilúvatar lhes disse: –
Contemplem sua Música! – e lhes mostrou uma visão, dando-
lhes uma imagem onde antes havia somente o som. E eles
viram um novo Mundo tornar-se visível aos seus olhos
(TOLKIEN, 1999, pp. 3-6).

O atributo principal de Eru, ou Ilúvatar, é a Unicidade, o mesmo atributo


encontrado no Deus do Cristianismo. Porém, diferente do que ocorre com Javé, Eru é
um deus que já nasce único, sem decantações de deuses anteriores em sua estrutura
(DEBRAY, 2004). Por outro lado, Eru nasceu da imaginação de um escritor católico e
conservador, que coloca elementos morais do Cristianismo em sua obra, então
estruturalmente poderíamos verificar atributos similares entre o Deus Imaginado e o
Deus Cristão.
Historicamente, o atual Deus Cristão é o resultado de uma pluralidade que em
algum momento da história passou a se designar como unidade, deixando suas
marcas no Eloim (designação plural) (DEBRAY, 2004), mas o deus de Tolkien não
apresenta elementos de decantação, tanto que Eru, em Quenya (língua criada por
Tolkien) significa “O Um” ou “O Que é Só” (TOLKIEN, 1999, p. 416), implicando que,
em sua concepção, ele já nasceu com o atributo da unidade. Um dos resultados de
uma divindade que se torna una é que “o Deus de Israel é o Deus de toda a
humanidade, um Deus universal” (PETERS, 2007, p.54). Ou seja, a unidade preconiza
a universalidade.
É precisamente essa característica que se observa na outra denominação de
Ilúvatar, dada a esse deus pelo autor, que significa “Pai de Todos” (TOLKIEN, 1999, p.
425), o que reafirma universalidade. Porém, por ser praticante de uma religião que
resultou dessa decantação conceitual e nessa universalização da divindade, Tolkien
não estava isento de permitir com que o discurso religioso interferisse na atividade
criativa (PÊCHEUX, 1997). Dessa forma, a própria estrutura do Deus Tolkieniano
denuncia seu superestrato linguístico cristão. Esse superestrato se torna mais claro
quando Melkor se revolta contra Eru, criando uma raiva secreta no coração, e quanto
os Ainur resolvem descer à Terra, sendo por isso chamados de Valar (= poderes),
como ocorre às designações da angelologia cristã.
Outra característica da cosmogonia tolkieniana que encontra paralelo com o
livro de Gêneses é a verbalização da criação. Deus cria o mundo em seis dias
simplesmente ordenando às coisas que venham à existência. Esse tipo de cosmogonia
é uma Criação Verbal. Ong (1998) afirma que a palavra torna-se um símbolo por meio
do qual as propriedades de um mundo são transferidas a outro mundo. Dessa forma,
a Criação Verbal não seria uma criação Ex Nihilo, como proporia o próprio livro de
Gêneses, mas uma transferência de algo que já existe em outro plano (o pensamento)
para o plano da existência.
Por essa razão, a palavra que refere-se à criação do mundo para Tolkien,
Ainulindalë, é traduzida como A Música dos Ainur. A canção é a realização do ato
criador dentro da linguagem. É o que verificamos também dentro do mito africano de
Muso Koroni:

No princípio, não havia necessidade de linguagem, pois tudo o


que existia estava integrado numa “palavra inaudível”, um
sussurro contínuo que o criador rude, fálico e arborícola Bemba
confiou ao criador celeste, requintado e aquático, Faro. Muso
Koroni, mulher de Bemba, que engendrava as plantas e os
animais, sentiu ciúme do marido, que copulava com todas as
mulheres criadas por Faro. Por isso, traiu-o, e Bemba
perseguiu-a e agarrou-a pela garganta, estrangulando-a. Desse
tratamento vilento da esposa, infiel ao marido infiel, nasceram
as rupturas no fluxo sonoro contínuo, absolutamente
necessárias para engendrar palavras, uma linguagem. (ELIADE
& COULIANO, 1999, p. 52).

Similaridades com a obra e Tolkien são patentes. Os Ainur são responsáveis


pelo ato criador, mas suas ações dependem de uma origem do próprio ato em Eru.
Não existe, portanto, uma criação politeísta em si, mas uma monoteísta, que usa os
deuses (Ainur) como um instrumento.

4. Conclusão

Assim como se verificou no Milenarismo, em que um elemento patente do


Cristianismo Católico encontra-se dentro da estrutura mítica de uma obra literária, o
mesmo observamos na cosmogonia. Nisso, podemos afirmar que o mito trabalhado
por Tolkien tem raízes nas suas próprias crenças enquanto católico, enquanto que
seus desdobramentos, apesar de singulares em relação à Gênese Bíblica, não se
afastam dos ideais morais e metafísicos do Catolicismo. A cosmogonia tolkieniana, por
excelência uma cosmogonia ficcional, não se afasta dos objetivos basilares dos mitos
naturais, pois o consumidor de religião moderno reúne os fragmentos de vários textos
religiosos, trazidos pela diversidade da própria religião (NOGUEIRA, 2012),
permitindo, dentre outras coisas, que a estrutura presente em mitos não cristãos
pudessem ser usados como estrutura arquetípica única na qual repousaria a religião
cristã do escritor.

BIBLIOGRAFIA

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TORELLI, Eduardo. “Mundos de Fantasia”, in: Herói, número 1. Coleção Livros.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.

1
BARRETO JR., Felipe. “O mais antigo dos testamentos: o mundo de Tolkien e seu delicado equilíbrio”, in
Herói, número 1. Coleção Livros.
2
BARRETO JR, Felipe. Op. Cit.
3
TORELLI, Eduardo. “Mundos da Fantasia”, in: Herói, número 1. Coleção Livros.
A INCORPORAÇÃO DO BUDISMO ZEN N’O LIVRO DOS CINCO ANÉIS DE
MIYAMOTO MUSASHI: ENTRE O ZEN E O KEN(JUTSU)

Diodoro Soares1 e Jonathan Vilar2

RESUMO: O artigo “A incorporação do budismo zen n’O Livro dos Cinco Anéis de
Miyamoto Musashi: entre o zen e o ken(jutsu)” procura entender como o renomado
samurai japonês do século XVI, Miyamoto Musashi, incorporou o budismo zen em sua
obra mor chamada “O livro dos cinco anéis” mesmo afirmando na obra que seu livro não
tratava do budismo, e sim apenas da técnica de espadas criada por ele (o Ni Ten Ichi
Ryu: o estilo das duas espadas). A partir disso iremos mostrar como o Budismo Zen,
através do famoso mestre zen Takuan Soho, influenciou através do seu grande livro
“Mente Liberta”, Musashi que em outrora teve contato com o monge e recebeu seus
ensinamentos do Zen e através disso o incorporou, mesmo inconscientemente, em sua
filosofia e técnica espadachim. Para isso utilizaremos a teoria da recepção e apropriação
de Roger Chartier para identificar os pontos da filosofia budista que foram incorporados
na obra de Musashi e como o samurai, em si, acaba sendo moldado por essa filosofia.

PALAVRAS CHAVE: Musashi, Budismo, Samurai.

1.0 – Mapeando Mushashi, mapeando o samurai:

Shinmen Musashi No Kami Fujiwara no Genshin, mais conhecido como Miyamoto


Musashi, foi um dos maiores samurais reconhecido ainda hoje no Japão por tamanha
habilidade e invencibilidade. Nasceu na vila de Miyamoto (daí o seu nome vulgar), na
província de Mimasaka, em 1584 e vinha de uma ramificação de um poderoso clã da ilha
de Jyushu, mais ao sul do Japão.

Nesse período o qual Musashi viveu, ser samurai não era mais como se foi nos
primórdios de seu surgimento em meados do século IX, onde muitos deles eram
agricultores mal treinados e mal armados em sua maior parte. Ser samurai no tempo de
Miyamoto Musashi era desfrutar de regalias sociais, ser altamente prestigiado,
enobrecido e geralmente sinônimo de conhecimento e técnica com espada(s). Com o
passar do tempo, eles aprimoraram seus métodos de luta, aperfeiçoaram suas armas, “e
mais que isso, os samurais se tornam uma casta com seu código de valores próprios, o
bushido [1].” (SAKURAI, Célia. 2010, p. 79)

1
Graduando em História pela UFCG.
2
Graduando em História, bolsista do Programa de Educação Tutorial e integrante do grupo de estudo de Teoria
e Metodologia da História.
Aos 13 anos já derrota seu primeiro oponente, e aos 16 ao derrotar devido sua
força bruta e grande tamanho, um conhecido samurai chamado Tadashima Akiyama,
Musashi tona-se um ronin [2] e passa a vagar por terras inóspitas e desconhecidas onde
passou por dificuldades e onde botou em prática sua grande habilidade de esculpir e
desenhar para ganhar algo que pudesse o manter vivendo nessa vida de andarilho.

Fato curioso de se analisar é que o grande samurai nasce justamente após um


período muito conturbado na Japão, onde acontecem guerras por durante quase dois
séculos (1392-1573) [3]. E é justamente nesse período onde surge a figura do Ronin,
visto que neste momento o poder passa a se tornar descentralizado e se inicia uma
guerra de todos contra todos em que o mais forte vencia. Esse período ficou marcado por
séries de traições, assassinatos, uso de forças armadas e apropriação de terras de uma
família por outra (SAKURAI, Célia. 2010, p. 95). Neste contexto, os ronins começam a
surgir justamente em cidades comerciais onde não são “subordinados a nenhum senhor,
mas trabalham exclusivamente para a defesa dessas cidades comerciais” (SAKURAI.
2010, p. 97).

No decorrer do tempo, em meio a suas andanças, o jovem samurai aos 21 anos


consegue derrotar o chefe da família Yoshioka, chamado Seijiro, conhecido pela sua
refinada técnica com katanas, utilizando apenas sua espada de madeira (bogu). E não só
isso, o jovem Miyamoto também derrotou também o irmão de Seijiro que tinha o
desafiado com apenas um golpe, utilizando mais uma vez a bogu, acertando-o na cabeça
e o matando instantaneamente. Hanshichiro, o jovem filho de Seijiro, já campeão, pede
um duelo contra Musashi para tentar vingar seu pai e tio, entretanto ele usa de má fé e
leva consigo um grupo armado de partidários, mas como o lendário samurai já era muito
astuto, chegou antes do horário combinado e escondeu-se até aguardar o momento em
que os homens estivessem descuidados e então ele aniquilou o garoto enquanto usando
as duas espadas abriu caminho entre o grupo armado e fugiu.

Outro grande duelo que ficou eternizado na história do samurai foi a luta contra
Sasaki Kojiro onde ele improvisou uma espada de madeira utilizando um remo de barco.
Ao descer do barco o samurai logo correu na direção de Kojiro, que estava com uma
excelente espada forjada pelo famoso Nagamitsu e deu seu primeiro golpe; Miyamoto
com um salto para esquivar-se do golpe, acertou-o bem na cabeça ganhando a batalha
de forma magistral, tendo rasgado apenas sua camisa e a toalha que havia na cabeça
segundo as histórias.

Além dessa série batalhas exuberantes, Musashi também participou em 1614 de


outra guerra, dessa vez ao lado de Ieyatsu Tokugawa [4], contra aqueles que em outrora
foram seus aliados na batalha de Seki ga Hara e que estavam apoiando uma insurreição
contra a família Ashikaga em Osaka.

Após uma série de outras vitórias, Musashi continua vagando pelo Japão e nessa
jornada acaba conhecendo e tornando-se amigo e discípulo de um grande monge budista
zen: Takuan Soho, que irá passar vários ensinamentos do zen budismo ao samurai, os
quais o mesmo irá acabar incorporando em sua filosofia (marcial) [5] e mais
precisamente na sua própria técnica também: o Ni Ten Ichi Ryu [6].

Com isso os anos vão se passando e o grande samurai vai conseguindo, com o
passar do tempo, maiores conquistas até que chega à terceira idade onde decide viver
numa caverna conhecida como Reigendo, aos 59 anos onde escreveu poucas semanas
antes de morrer, um livro para seu pupilo Teruo Nobuyuki. Dois anos após esse fato, em
19 de Maio de 1645, Musashi morre.

Foi justamente esse livro, O Go Rin No Sho ou Livro dos Cinco Aneis, umas das
principais obras do samurai, escultor, desenhista e escritor [7] que o consagrou como o
grande mestre do Kenjutsu [8]/Kendo [9] e da estratégia de combate. E mais, não é só
isso; hoje em dia “os empresários japoneses têm usado o Go Rin No Sho como guia de
prática empresarial, realizando campanhas de vendas como se fossem operações
militares, usando os mesmos métodos estratégicos.” (MUSASHI, Miyamoto. 2008, p.36)

2.0 – Entre o Ni Tem Ichi Ryu e o zen:

É inegável a influência que o modo de vida dos samurais e sua doutrina tiveram
grande influência do budismo zen – que já possuía grande força no Japão desde o século
XII - em suas vidas e muitos deles passaram isso a frente, utilizando este para guiar seu
estilo de luta e suas vidas, Myiamoto Musashi não difere disto, que foi extremamente
influenciado pelo zen do mestre Takuan Soho, o qual influenciou, também, outros
espadachins japoneses com seus escritos, gerando pela primeira vez uma genuína união
entre o zen e o Ken-Justu.

Musashi, que teve contato direto com Takuan Soho que influenciou seu estilo de
luta em associação com uma doutrina filosófica samurai, a qual foi passada para o livro
escrito por ele, descrevendo seu estilo de luta e passando seus ensinamentos – o Go Rin
No Sho - , o qual fora ensinar as técnicas aprendidas durante a vida dele, trás em si
grande influência zen do próprio Takuan Soho, apesar do próprio Musashi escrever que
tenta se manter racional e dizer que seu livro não é uma obra zen, mesmo que alguns
estudiosos afirmem o mesmo, como o autor do documentário sobre a vida deste
samurai, o diretor Mizuho Nishikubo que afirma exatamente que Musashi não se utiliza
do zen budismo em sua obra, o que vemos ser uma teoria de difícil sustentação quando
analisamos sua obra e a comparamos com obras da doutrina zen, inclusive sendo um dos
capítulos do seu livro exatamente com uma reflexão interna daquele que quer seguir,
como ele mesmo fala, O caminho da estratégia (MUSASHI, 2008, p. 39) no chamado O
Livro Do Vazio, parte final da sua obra.

O monge zen já atenta para essa questão do Vazio, mencionada posteriormente


por Musashi. Pois para ele, é o Vazio que nos faz perceber o que está ao nosso redor e
não só atentar à ínfimos detalhes [10]. É de se salientar também que o próprio termo
Vazio ou Nada é um termo budista para a natureza ilusória das coisas terrenas.

O próprio nome do livro já esta remetido aos Go Dai (os Cinco Grandes) do
Budismo e que são justamente os cinco elementos que compõem o cosmo: terra,
água,fogo,vento e vazio.

Não só n’O Livro do Vazio e no título da obra que vemos influência do zen no Ni
Ten Ichi Ryu. O Livro da Água - segundo capítulo da obra - trás logo no seu início como
primeiro ponto, o tópico: “A Relevância Espiritual na Estratégia” o qual trás logo no início
o seguinte: Em estratégia, sua disposição espiritual não deve ser diferente da normal.
Tanto em luta quanto em vida cotidiana, esforce-se para permanecer calmo. Aborde a
situação sem ficar tenso, porém sempre alerta, e com espírito apaziguado e imparcial.
(MUSASHI, Miyamoto. 2008 p. 62)

A relação intrínseca com o zen é explicitamente firmada justamente em uma das


principais obras de Takuan Soho, a qual ele direciona especialmente para os
espadachins: A Mente liberta, em que ele aborda essa relação do zen com o caminho da
espada dizendo que o indicado para o samurai é “Não lutar para ganhar nem para
perder, não se importar com a força nem com a fraqueza significa não ansiar pela vitória
nem temer a derrota, e não se importar com as funções de força ou fraqueza.” (SOHO,
Takuan. p. 96).

Nesse trecho podemos remeter a outro ponto em comum da obra de Musashi


quando o mesmo se refere à “atitude de não-atitude” onde o guerreiro não deve manter
seus pensamentos somente em golpear, saltar, atingir ou tocar o inimigo, pois assim não
será capaz de derrotá-lo (MUSASHI, Miyamoto. 2008, p.70). O objetivo do guerreiro em
batalha é se manter vivo, e para isso deve acertar o inimigo, de uma forma ou de outra,
sem nervosismo ou focar demais o pensamento nas ações ditas acima. Se o samurai
anda no Caminho da Espada, ele saberá a maneira certa de vencer a batalha sem perder
a sua paz de espírito.
Esta percepção de Musashi não se deu de forma alguma através de uma
neutralidade discursiva onde ele acaba utilizando o zen budismo meramente por acaso;
foi antes sim uma estratégia e uma prática que tende a impor uma autoridade para
legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os demais indivíduos, as suas
condutas (CHARTIER, 1990, p. 17). Não é a toa que foi justamente após ter passado um
bom tempo aprendendo mais da filosofia zen budista ao lado do monge que o
espadachim passou a utilizar aquilo de forma prática para incorporar à sua prática e
antes de mais nada para fazê-la existir(!). Antes de conhecer Takuan, Musashi era tido
como um espadachim sem muita disciplina e muito instintivo [11], onde apenas após ter
passado três anos ao lado do monge exercitando sua alma através de meditação e
reflexões filosóficas que o samurai evoluiu de forma perceptível e passou inclusive a
chamar mais atenção à vista de outros samurais, passando inclusive a possuir discípulos
os quais ele pôde passar de sua técnica e a filosofia da mesma.

Embora não seja escrito por um historiador e seja na verdade um romance, a obra
de Eiji Yoshikawa, intitulada Musashi, que é dividida em três enormes livros, onde o
primeiro volume conta com incríveis 905 páginas de uma narrativa não só bem elaborada
como também mostra ser fruto de uma cautelosa pesquisa quando o mesmo fala da vida
do samurai. E é neste primeiro volume que vemos o marcante primeiro encontro entre o
mestre zen budista e o áspero espadachim que já em seus primeiros momentos começa
aprendendo lições acerca de sua própria maneira violenta e instintiva de ser e que é
apontada por Takuan enquanto Takezo (como Musashi era chamado em sua juventude)
está pendurado numa árvore durante dois dias e se quando o monge chega perto da
árvore para falar com ele, o mesmo se agita fortemente na árvore: “Céus, que força
impressionante! Você está conseguindo balançar até a árvore! Mas veja a terra: nem se
abala, reparou? Sabe por quê? Porque não há força em seu ódio — seu ódio é pequeno, é
privado, tem origem em rancores pessoais. A indignação de um homem deve ser
desprovida de interesses pessoais, devotada à causa pública. Encolerizar-se levado por
mesquinhas emoções pessoais é histeria feminina.” (YOSHIKAWA, 1999, p. 119).

Sendo assim a partir do momento em que Musashi se apropria desta filosofia zen
budista para aplicá-la – mesmo que de forma inconsciente – n’ O livro dos cinco anéis,
tem por objetivo inscrever práticas específicas a partir de sua própria posição de samurai
onde tem por objetivo trazer o aprendizado através de um caminho de iluminação
pessoal e técnica apurada onde alma e espada estão interligados um ao outro para que o
bushido possa ser vivido pelo samurai. É uma resignificação do zen budismo pregado e
ensinado por Takuan Soho para elevar a alma do samurai de forma que este não deixe
sua mente ser levada pela cegueira da ambição, pelo medo, pela impaciência, pelo ódio
ou pela matança. É Miyamoto Musashi e Takuan Soho mostrando suas preocupações com
o tempo em que viviam e o rumo que o caminho dos samurais se encaminhavam através
de um caminho de matanças, crimes, cobiça e livre de quaisquer princípios e muitas
vezes desconhecendo até do próprio bushido. Desta forma o zen budismo aparece com
um papel fundamental para trazer novamente a religião para dentro da prática do
kenjutsu, unindo-as novamente entretanto estreitando mais ainda os laços entre o Zen e
o Ken (espada).

NOTAS:

[1] O bushido, que significa “Caminho do guerreiro”, era um código de honra não escrito
que era seguido pelos samurais. O bushido tem influência budista, xintoísta e
confucionista que dá valor a uma série de valores como lealdade, fidelidade, auto-
sacrifício, justiça, modos refinados, humildade, espírito marcial, honra acima de tudo e
morrer com dignidade.

[2] Ronin é o termo designado para denominar aqueles samurais que não possuíam
senhor, que eram andarilhos e faziam trabalhos pagos para trabalhar geralmente
protegendo quem o pagou ou algo similar.

[3] Sobre “Tempo de Guerras”, ver com mais detalhes em Sakurai (2010, p. 92 – 98).

[4] O Xogun que dominou o Japão e fez sua dinastia durar de 1603 até 1867.

[5] Não deixando de lembrar que de forma sutil e indireta o próprio Musashi já era
influenciado pelo Budismo só pelo fato de ser samurai, e subsequentemente, seguir o
bushido (que possui, também, raízes budistas).

[6] Estilo criado por Musashi onde se usam principalmente as duas espadas em mãos
(uma katana grande e a katana “companheira”, uma espécie de katana de tamanho
menor) com técnicas criadas pelo próprio Musashi.

[7] Dizem que além de ter escrito livros, Musashi também provavelmente escrevia
canções e poemas, entretanto eles não conseguiram ser achados até hoje.

[8] Arte samurai da espada com uma série de técnicas com katana(s). Para maiores
esclarecimentos, consultar: http://www.niten.org.br/kenjutsu.

[9] Criado no século XX a partir do Kenjutsu, é uma forma mais simplificada do mesmo
onde se usa como arma a bogu, uma espada de madeira a qual inclusive Musashi
costumava usar várias vezes, tanto quanto a katana. Ver mais em:
http://www.niten.org.br/kendo.

[10] “Quando o olho não se volta para nenhuma folha em particular e tu olhas a árvore
com a mente absolutamente vazia, o olho é capaz de captar um número ilimitado de
folhas. Mas quando uma única folha prende o olhar, é como se as demais folhas não
estivessem lá.” (SOHO,Takuan. p.25).

[11] Segundo Edwin O. Reischauer no prefácio ao romance “Musashi” de Eiji Yoshikawa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
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- SOHO, Takuan. Mente Liberta: escritos de um mestre zen a um mestre da espada.


Tradução: Mercelo Brandão Cipolla. São Paulo: Cultrix, sem ano.

- SAKURAI, Célia. Os Japoneses - 1ª Edição - São Paulo: Contexto, 2007.

- MUSASHI, Miyamoto. O Livro dos Cinco Aneis. Tradução: Marcos Malvezzi Leal – 9ª
edição – São Paulo: Madras, 2008.
A CASA:
MISTICISMO RELIGIOSO QUE ATRAVESSA GERAÇÕES

Liliane Viana da Silva1

Resumo
Nosso objeto de estudo trata-se da obra A Casa da autora cearense Natércia Campos,
uma narrativa de 89 páginas com escrita simples, porém, rica em descrições.
Natércia, autêntica cearense da gema, viveu a maior parte de sua vida em Fortaleza,
principalmente na praia de Iracema, sempre teve encantos pelas contações de
histórias dos mais velhos, e pelas fantasias, crenças e superstições vivenciados pelo
povo cearense. Nessa narrativa extremamente poética a autora faz um resgate da
cultura de seu povo dando voz a uma casa que se mostra narrador-espaço-
personagem; uma casa antropomorfizada que vai tecendo as histórias de três
gerações que passam por suas dependências, como também os anseios e
pensamentos dos humanos e sua participação na vida de cada geração, ou seja, ela é
uma verdadeira contadora de histórias. O referido trabalho tem como objetivo discutir
o misticismo religioso que acompanha as pessoas dessas gerações perante suas
ações, bem como as crenças e superstições que se entrelaçam na fé dessas mesmas
pessoas. Percebemos a fusão do sobrenatural com o humano, as pessoas seguem ritos
religiosos e acreditam na força sobre-humana da natureza; seres, até então
inanimados, ganham presença constante na rotina diária e a Vida e a Morte são temas
indiscutíveis dentro da narrativa. Em um trabalho que se encontra em andamento
apresentamos como aparato teórico-metodológico, assim como apoio fundamental, os
escritos do autor, pesquisador e sociólogo Câmara Cascudo, tendo em vista que a
própria autora o cita em depoimentos como inspiração e grande contribuição para sua
busca em função das raízes do povo cearense.

Palavras-chave: misticismo religioso, crenças, superstições

Imagine você deitado em uma rede no alpendre de uma Casa Grande,


respirando o cheiro de terra molhada ou paralisado pelo sol escaldante de um sertão
nordestino. Ao seu redor é nítido ver as crianças crescerem, as mulheres casarem, a
morte chegar, a vida finalizar e recomeçar; e quando menos espera escuta uma voz
relatando como se deu a criação dessa Casa Grande e a vida de seus habitantes
dentro daquele espaço. Ao olhar para trás percebe-se que não há nenhum humano, e
que essa voz narradora direcionada a você vem da memória da própria Casa. É para
esse ambiente encantatório e poético que Natércia Campos nos leva para uma viagem
dentro de sua obra A Casa.

Natércia Campos, cearense nascida em Fortaleza, é filha do escritor Moreira


Campos; herdando do pai esse pendor para a ficção ela torna-se uma ficcionista da
mais pura linhagem. Ao escrever A Casa (1999) Natércia surge com uma narrativa
extremamente poética e histórica; trata-se de um romance que contém a estrutura de

1
Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Ceará (UECE); Pós-Graduanda em Literatura e
Formação do Leitor pela mesma instituição e Professora substituta da Universidade Regional do Cariri
(URCA).
2

uma novela, por causa de suas 89 páginas, mas que nas palavras da própria autora
tem “segredos múltiplos de reminiscência, o mundo que vive em nós, obscuro e
palpitante”; descrevendo, impecavelmente, imagens, personagens e histórias de um
sertão de lendas e superstições que entrelaçam à vida humana por intermédio de uma
uma voz primeira que é da própria Casa.

Desde o início dos tempos o homem sente a necessidade de ter uma casa, um
lugar seu que guarda e condensa todas as histórias ali passadas. Gaston Bachelard
fala muito bem dessa significação da casa para o homem em A poética do espaço
(1993) quando diz que “a casa é, evidentemente, um ser privilegiado” (p.23)
complementando que “todo espaço realmente habitado traz essência da noção de
casa.” (p.25). Porém, o grande diferencial da Casa de Natércia Campos, é que ela
além de ser o espaço ocupado por seus habitantes mostra-se ser a voz dominante
dentro da obra como também o elo de ligação entre as pessoas. Bachelard exemplifica
bem o que a casa representa para o homem:

O passado, o presente e o futuro dão a casa dinamismos


diferentes, dinamismos que não raro interferem, às vezes se
opondo, às vezes excitando-se mutuamente. Na vida do
homem, a casa afasta contigências, multiplica seus conselhos
de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela
mantém o homem através das tempestades do céu e das
tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do
ser humano. Antes de ser “jogado no mundo”, como o
professam as metafísicas apressadas, o homem é colocado no
berço da casa. (p. 26)

Como narradora a Casa é capaz de contar e recontar, com o auxílio da


memória, as grandes histórias de seus viventes e passantes, principalmente, porque
como não se trata de uma narradora essencialmente humana, seu tempo é
diferenciado do tempo dos humanos.

Com esse tempo diferenciado a Casa narradora se mostra uma personagem


típica do sertão, construindo, ou melhor, teando as histórias da cultura de um povo
sertanejo, enfatizando o imaginário fantástico e místico desse povo. O homem como
um ser pensante e crente de um destino, torna-se rico em pensamento, elevando em
seu interior atos espirituais que o levam a crer em ações, situações e pensamentos
que regem toda uma cultura que, podemos dizer, mostra-se crente e religiosa.

A história da humanidade é envolta em suas crenças e valores religiosos


porque o homem é um ser histórico e sua existência é vista dentro de uma cultura;
cultura essa regida pelo povo, atravessando gerações e sujeita a modificações. O ato
3

de crer em superstições é uma forma antiga em que o humano precisa para ter
sustentação em seu meio material e espitual. Neves, em seu Dicionário de
Superstições afirma essa questão:

O homem comum permanece na nossa contemporaneidade,


muito longe de observar os fenómenos sob esse espíriro – está
ainda próximo da perplexidade do homem primitivo. Daí que,
para ter equilíbrio emocional, procure nas religiões e nas
crenças – por mais absurdas que se nos apresentem –
explicação para a complexidade dos fenónemos e do mundo em
geral. É esta espécie de conforto moral que explica a
permanência das superstições no ser humano como forma de
ordenar o caos mental em que se encontra. (2044, p. 4-5)

Ao longo da história o ser humano sente-se angustiado diante do sobrenatural,


do acaso, por não saber defini-los; assim, procura nas crenças, nas superstições, no
misticismo uma explicação para levá-lo a equilibrar o emocional e o mental. O povo
nordestino, assim como em outras regiões carregam suas crenças em amuletos,
objetos; mostram-se supersticiosos nas ideias populares comuns e naturais; sentem-
se e precisam de um elo religioso para direcionar seu ser no mundo. Natércia
exemplifica bem essas manifestações dentro da obra e como uma legítima sertaneja e
cearense nos convida para ouvirmos as histórias dessa Casa numa linguagem tanto
erudita como popular.

As primeiras páginas da narrativa é destinada a criação da Casa tanto como


espaço como seu primeiro sopro de vida. Com uma voz antropomorfizada e um tempo
de vida diferente do tempo dos humanos a Casa, de nome Trindades e com o apelido
de Casa Grande nos relata as crenças e superstições destinadas a sua criação:

Fui feita com esmero, contaram os ventos, antes que eu mesma


dessa verdade tomasse tento. Meu embasamento, desde as
pedras brutas quebradas pelos homens a marrão aos baldrames
ensamblados nos esteios, deu-me solidez. As madeiras de lei
duras e pesadas com que me construíram até a cumeeira têm o
cerne de ferro, de veios escuros, violáceos e algumas mal
podiam ser lavradas. Todas elas foram cortadas na lua
minguante para não virem a apodrecer e resistirem, mesmo
expostas ao tempo: o estipe das carnaúbas, os troncos do jucá,
os da ibiraúna, a braúna, a madeira preta dos índios fechada à
umidade por ser impregnada de resinas e tanino. (Campos,
2004, p.7).

Percebemos que as madeiras eram bem selecionadas, de acordo com os


momentos e vitalidade da natureza, e eram cortadas em dia de lua crescente para
assim durarem por longos anos, anos esses que viraram séculos. Segundo a própria
4

Casa sua estrutura foi levantada em um local de águas enfeitaçadas “Meus alicerces
foram feitos muito depois que a lagoa de aguás salinas se evaporou. A causa foi o
aprisionamento da fonte por gigantesca pedra ali colocada com magia e silêncio pelos
índios cariris” (Campos, 2004, p. 11); no entanto ela tinha ciência que um dia tais
águas iriam voltar a sua origem, sentindo-se parte daquele espaço mágico “Esta a
única a ouvir dia e noite o fragor das águas contidas, que um dia retornarão à luz do
sol e das estrelas apossando-se do seu antigo leito. Certa noite, escutei este fragor e
deu-me a sensação de que deste mundo marinho, latente, faço parte” (Campos, 2004,
p. 12).

Seu construtor José Gonçalves Campos, português, e também seu primeiro


dono “o dono vindo do Ente-Douro e Minho” (Campos, 2004, p. 8) deu-lhe vida
quando colocaste uma pedra de lioz na soleira da casa. Nesse momento a Casa explica
todo um ritual de crenças com o intuito de dar-lhe segurança e permanência de seus
habitantes, visando as dependências da própria casa:

Fui tocada pelo sopro da vida quando foi colocada a pedra de


lioz da sagrada soleira que doravante protegeria meus domínios
familiares. Meu dono descobriu-se solenemente antes de
levantá-la, ajudado por dois mestres em cantaria. Os três em
silêncio a fixaram na entrada, defensora e guardiã, daí em
diante, dos malefícios. Sob ela se guardariam amuletos,
simpatias e seriam enterrados os umbigos dos recém-nascidos
para que fossem apegados à casa paterna. Nela se pediriam
graças e se dariam bênçãos nas partidas. Era no seu limiar que
a mãe recebia, de volta dos braços da madrinha, a criança já
batizada (Campos, 2004, p. 09-10).

E falando em batismo, assim como todas as crianças que ali nasceram, a Casa
também fora batizada ganhando o nome de Trindades “Foi em junho, na Hora-Aberta
e solene do toque das Aves-Marias (...) que fui batizada pela chuva repentina e
alvissareira, molhando e avivando a cor das minhas grossas telhas-canais de barro
cozido. Sorvi e senti-me renascer. Encantei-me com aquelas gotas de água vindas do
céu” (Campos, 2004, p. 15). O foco do seu batismo como em outras situações ao
longo dos anos é a superstição das horas do meio-dia e meia-noite, também
conhecidas como Horas-Abertas, que segundo os antigos são as horas para pragas e
rezas de grande força “Meu dono falou aos homens sobre esta Hora-Aberta, a
meridiana, hora sem defesa em que os demônios do meio-dia libertam-se. Hora grave
de ameaças, já que pragas e rogos são atendidos pelos céus” (Campos, 2004, p. 10).

Camâra Cascudo em seus estudos sobre o folclore, superstições e impressões


do povo brasileiro mostra no seu livro Coisas que o povo diz o que são essas Horas-
5

Abertas e a hora meridiana do meio dia “As horas abertas são quatro: meio-dia, meia-
noite, anoitecer e amanhecer. São as horas em que se morre, em que se piora, em
que os feitiços agem fortemente, em que as pragas e as súplicas ganham expansões
maiores. Horas sem defesa, liberdade para as forças malévolas, os entes ignorados
pelo nosso entendimento e dedicados ao trabalho da destruição” (2009, p. 49).
Encontramos nas próprias palavras da autora Natércia Campos que Luís de Câmara
Cascudo foi sua grande inspiração, afinidade e influência “Através de seus livros,
aprofundei-me nos costumes, tradições populares, fábulas, cantigas, acalantos,
assombros, jogos, danças de roda (a milenar ciranda), artesanatos, superstições de
antigas culturas que nos procederam e as que nos colonizaram” (Gutiérrez; Moraes,
2007, p. 37).

Câmara cascudo ainda em seu livro nos mostra a definição de algumas


superstições contidas ao longo da nossa narrativa estudada. Um exemplo forte é
quando a Casa relata o fato de um homem ter que abraçar a bananeira para torná-la
fértil, Câmara nos diz que “ [..] Certas árvores de fruto dependem de ser ou não
tocadas ou tratadas por mulheres outras o plantio é privativo de um sexo [..] Outras
espécies, como o mamão ou a babaneira, só o homem deve plantar e colher. Algumas
devem ser abraçadas por homem para que frutifiquem” (2009, p. 98).

A própria Casa diz que “as superstições do além-mar, logo aliaram-se às que
aqui existiam” (Campos, p.13). Uma crença que atravessa gerações e que também
atravessou esse além-mar da narradora que remete a Portugal são as metamorfoses
da Morte. A palavra metamorfoses é utilizada dentro da narrativa para demonstrar as
facetas e as situações que a Morte se posta na vida dos humanos. Vida e Morte são
tratados como entidades sobrenaturais que ganham espaço dentro da narrativa, até
porque fazem parte da existência humana na terra. Cascudo fala: “O povo acredita
que a Morte tenha forma e limitações somáticas” (2009, p. 105) e ainda ressalta que
“A crendice fixa um conceito popular sobre a personificação da Morte. (2009, p. 106).

A Morte é vista como aquela que invade as dependências da casa sempre com
uma missão a realizar. Observemos a primeira vez que a Casa sentiu a sua visita:
“Lembro-me da primeira vez, e havia de ser nas Trindades, quando Ela aqui chegara
em missão. Uma das portas abriu-se sem que ninguém a empurrasse e nem a frágil
aragem a tocasse. Os ventos haviam me alertado que a Morte assim entra nas casas
quando, silenciosas e inexplicáveis, as portas se abrem” (Campos, 2004, p. 15). Ela
lhe daria o nome de Moça Caetana para designar-lhe o pavor e a sangrenta morte do
sertão, como também em situações de mau agouro, vista na narrativa pela aparição e
6

pio estridente da Rasga-Mortalha “A crença agoureira da morte, pousou nesta terra


sobre as asas da pequena coruja alvacenta, a rasga-Mortalha [..] Era esta coruja de
canto lúgubre voar baixo e insistente sobre uma casa onde houvesse um doente de
cama, para se acatar seu prenúncio.” (Campos, 2004, p. 13).
Retornando ao nosso pesquisador Câmara Cascudo vejamos o que ele tem a
nos dizer sobre isso:

Há uma família inteira que não merece relações de amizade.


São as sisudas strix. Todas as corujas são da intimidade da
Morte e se dão ao desplante de vir rasgar mortalha, quando o
defunto ainda está vivo, ou piar-lhe à porta numa cantiga que é
um arrepio sinistro. As penas da coruja, molhadas no próprio
sangue e enterradas na soleira da porta ou morão da porteita
do curral, afugentam fantasmas e anulam bruxarias. (2009, p.
136)

No sertão a morte também vem acompanhada pelo flagelo da seca, que traz a
fome como sua representante. Assim como a Morte possui um nome para designá-la a
fome é conhecida como a Velha-do-Chapéu-Grande, esta que assiste o padecer dos
viventes e leva os sertanejos em tempo de seca a tornarem-se retirantes, deixando
sua moradia e só voltarem quando os céus mandarem chuva. Tal situação também é
percebida na narrativa, a Casa aos poucos fora entendendo o porquê de seu
abandono: “Longo foi o tempo sem chuva e de estranha solidão de sons, pios e vozes.
As cigarras eram as únicas a continuarem a cantar, chamando o sol e provocando o
sono. Os vaga-lumes apagaram-se na Grande-Seca, e quando isto ocorreu, soube que
fora abandonada.” (Campos, 2004, p. 23)

Uma prática forte do sertanejo é o clamor aos santos. Em época de seca os


homens rezam a seus protetores pedindo-lhes chuva, e as superstições são colocadas
em prática para que tal pedido venha logo a se realizar. Notamos que a Casa faz
referência aos ritos religiosos e que de acordo com o tempo o homem vem praticando
superstições, chegando a modificá-las, mas permanecendo sua intenção. Podemos
entender melhor tal ideia no trecho narrado pela Casa:

Os homens demoraram a infligir aos seus santos os maltratos


de colocá-los ao relento, expostos à ardência e calor do sol para
melhor sentirem o horror da sede, do flagelo da seca. [...] Se
ela não caía, era castigo infligido por não respeitarem as leis
divinas. Desde aí vem a colocaçao das seis pedrinhas de sal
expostas e alinhadas ao relento no final do dia, véspera de
Santa Luzia, a representarem os seis primeiros meses do ano.
Na manhã seguinte, antes do sol esquentar, se as pedrinhas de
sal não chorarem, é presságio de seca e, naquele ano, nenhuma
se transmudara em aljôfar, em lágrima. (Campos, 2004, p. 14)
7

Percebemos que na narrativa muitos foram os santos rogados, porém três


nutriam a esperança de mudança no tempo. No dia de São Vicente os homens
atearram fogo em gravetos com intenção de espreitar os ventos e assim as fumaças
se espalharem como as águas, mas não aconteceu, a fumaça subiu linheira
continuando sua empreitada. O dia de Nossa Senhora da Purificação, Nossa Senhora
das Candeias foram sua segunda tentativa, rezavam à noite ascendendo velas à
santa; neste mesmo dia tinham uma prática de batizar os pagãos e as crianças
mortas, despejando águas nas suas sepulturas, porteiras dos currais e caminhos em
forma de cruz.

O dia de São José eram sua terceira e última tentativa de mudanças no tempo;
sabiam que se não chuvesse nesse dia seria tempo de seca e assim se fez. Padroeiro
do Ceará e patrono da Igreja Católica, São José é visto, principalmente, pelos
nordestinos como o santo para um bom período de chuva. Em várias tradições
religiosas, trabalhadores da terra desenvolvem mitos, ritos e louvores a santos para
conseguirem boas colheitas.

A Casa, assim como um humano, vai aprendendo as coisas pelo o que chega a
ouvir e vivenciar por seus habitantes. Suas primeiras lições sobre manifestações
religiosas veio do seu primeiro dono “Aprendíamos com ele, por suas histórias, sobre
os Santos do Dia, das estrelas cadentes que eram as lágrimas de São Lourenço, morto
em braseiro de fogo ardente” (Campos, 2004, p. 19); porém foi com Tia Alma que
aprendera as histórias de vida dos santos, as superstições das almas penadas que
vagueiam na terra e períodos santos como a Quaresma, Semana Santa e Natal.

Em dezembro tia Alma era quem armava, em dois nichos


próximos à lapinha, o presépio e o calvário, unindo nascimento
e morte. Tinha saudade do detonar da pólvora nas ronqueiras e
as melodias dos pífanos no Natal. Os seus santos do oratório,
ela os amortalhava de roxo por toda a Quaresma, mas os
deixava iluminados com a luz mortiça da lamparina de prata
com azeite. Na noite de Sexta-feira da Paixão para o Sábado de
Aleluia, nas doze badaladas da meia-noite, rezava de olhos
fechados o Rosário das Alvíssaras para Nossa Senhora, pedindo
graças pela ressurreição do crucificado, seu Bento Filho
(Campos, 2004, p. 29).

Tia Alma a personagem de maior representação religiosa em toda narrativa,


ganhara tal apelido dos sobrinhos por ser muito devota. Fora batizada de Maria por
sua mãe e por possuir o nome santo e ter boa mão era destinada a tarefa de semear a
horta. Ela esteve junto a Trindades por quase cem anos e por esse longo tempo
8

demonstrou sua veia religiosa sempre ligada as superstições da terra “Sorria tia Alma
ao dizer que não se deve passar a mão nos cabelos ao despertar de um bom sonho,
pois este virá a se perder, esfumaçado e esquecido nas voltas da memória” (Campos,
2004, p. 27-28) e ainda dizia “Não se deve pronunciar o nome de alguém que já
morreu para não interromper seu repouso, fazendo-o voltar. Antes do nome ponham a
palavra – finado -, pois ele ao ouvi-la saberá sua nova condição” (Campos, 2004, p.
29).

Foi também no tempo de tia Alma que notamos as mudanças de costumes


sentidas de geração a geração:

Noite de guarda ao morto, de choros e orações. Derramaram


toda a água aqui existente, a dos cântaros, gametas, jarras,
cabaças, quartinhas, vasilhas, ancoretas e potes. Preceito dos
antigos. Lei Velha, pois a alma do morto podia vir banhar-se e
nelas o Anjo lavara sua espada percuciente. [..] Nas gerações
seguintes o preceito de derramar as águas foi sendo esquecido
e outros costumes surgiram, entre eles, os cantos entoados nos
velórios diante do morto, as excelências, e o de cobrirem com
crepes na primeira semana nos lutos e nas noites de trovoadas
e relâmpagos o belo espelho oval, emoldurado por querubins,
laços e folhas de acanto de madeira. (Campos, 2004, p. 30).

O belo espelho oval citado acima é uma das superstições fortes dentro da casa.
Feito por um artesão chamado de o mago dos espelhos, chegou na Trindades já com a
superstição que o seu criador não viu o próprio reflexo, sinal que a morte estava por
vir. O espelho não é um mero objeto/refletor de imagens, em momentos chaves da
narrativa percebemos que ele está sempre ligado à figura da morte como na parte em
que seu próprio criador não consegue ver seu refleto que anunciava a chegada de sua
morte. Após, há o momento em que a Casa vê a entrada da morte pelo espelho às
vezes repentina e em outras demorada: “Presenciei durante várias gerações a
chegada Dela abrindo portas, refletindo-se no grande espelho ao invadir meus espaços
e muito aprendi sobre suas metamorfoses e disfarces” (Campos, 2004, p. 17). E
finalizando quando acontece a morte do Bisneto, o responsável por trazer o espelho a
Trindades: “Ele a viu chegar pelo espelho. Seus olhos a fixaram levemente surpresos.
Enfrentou-a sem medo. O espelho trincou de alto a baixo e só notaram quando mais
velas foram acesas naquela sala onde o velaram.” (Campos, 2004, p. 83).

Na cultura popular o espelho é sinal tanto de azar como de sorte, vejamos o


que diz Chaves sobre essa questão:
9

Surgido na Itália, tal qual conhecemos hoje, o espelho é visto


como algo mágico, aquilo que reflete a imagem do que somos.
Associado à magia, muitos são os que creem que ele guarda
todas as cargas positivas ou negativas adquiridas ao longo de
sua existência e vislumbrado por ele. Tantos outros acreditam
que quem o quebra, carregará consigo sete anos de azar; é
consolo saber que se enterrados os cacos, o azar será enterrado
com eles; absolvendo o indelicado que ousou quebrar. (2012, p.
33)

Para a Casa o espelho era também uma fonte de visão externa que ao abrir
portas e janelas lhe dava a possibilidade de ampliar sua visão: “Nas noites do Senhor
São João Batista, na sua festa de superstições, de plantas e águas purificadoras, as
labaredas da fogueira dançavam no espelho, e quando portas e janelas eram cerradas,
só a luz das velas e das candeias dava-lhe vida” (Campos, 2004, p. 31); ou seja, a
Casa só conhece o que se passava em seu interior, ficando a escuta o que dizem os
Ventos e os outros contadores de histórias.

O tempo de Trindades durou alguns séculos, seus donos foram mudando e com
eles o cuidado com sua estrutura “Há muitos anos, quando fui doada de porta cerrada,
o novo dono mandou ferrar o tabuado da minha grande porta com o seu ferro. Posse
vã”. A mudança geográfica do sertão também é descrita “O sertão não era mais a
vastidão de terras sem limites, começara a ser demarcado com cercas e arames
farpados”; como também as atitudes humanas “Muitos foram os que furaram meu
chão, cavaram ao meu redor à procura de botijas” (Campos, 2004, p. 84). Ao findar-
se a Casa encontra-se submersa no mundo das águas de uma bacia hidrográfica, as
mesmas águas aprisionadas do tempo de sua criação e que tanto sentia fazer parte.

Ao transformar um espaço físico em moradia projetamos nele nossos sonhos,


desejos e intimidade. A Casa de Natércia não é diferente porque além de sentirmos
parte da narrativa por representar uma casa sertaneja, somos puxados a nos
entrelaçarmos no seu tear de histórias fantásticas, envoltas nas crenças e superstições
da cultura popular com apoio em ritos e manifestações religiosas.

Trabalhar com Natércia Campos é tornar relevante como uma autora da


pancada do mar consegue captar e transcrever os aspectos e detalhes de um sertão
nordestino. É se deitar plenamente na rede de um alpendre e se debruçar ouvindo
uma verdadeira contadora de histórias, estas histórias que, independente de onde
morarmos, farão parte da cultura nordestina e será espelho para nossa literatura.

Referências
10

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço; [tradução Antônio de Pádua Danesi;


revisão da tradução Rosemary Costhek Abílio]. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
(Coleção tópicos).

CAMPOS, Natércia. A Casa. Fortaleza: Editora UFC, 2004.

CASCUDO, Luis da Câmara. Coisas que o povo diz. 2ª ed. São Paulo: Global, 2009.

CHAVES, Sérgio Wellington Freire. Transculturalidade em solo sertanejo: aspectos da


brasilidade no romance A Casa. Dissertação (Mestrado em Letras), UERN, Pau dos
Ferros,2012.

GUTIÉRREZ Angela; MORAES Vera (Org.). Tributo a Moreira Campos e Natércia


Campos. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2007.

NEVES, Orlando. Dicionário de Superstições. Portugal: Oficina do Livro, 2004.


ANDANÇAS DE DANIEL P. KIDDER: AS IDENTIDADES NORTISTAS SOB O
ESPECTRO DO PROTESTANTISMO

SILVA, Alisson Pereira (PPGH/UFCG)*

Introdução: formação das identidades e relações de alteridade


Este trabalho pretende ser um ensaio. Como em qualquer estudo em história,
este presente artigo não tem pretensões de dar palavras finais acerca das problemáticas
que abordaremos a seguir. Não obstante, nosso estudo foi fruto das reflexões que
fizemos enquanto cursávamos a disciplina História do Nordeste. Durante o curso da
disciplina, pensamos muito acerca da formação das identidades, e isto subsidiados pelas
leituras de autores como Durval Muniz, Stuart Hall, Pierre Bourdieu e Ruben George
Oliven.
Fazendo uma primeira aproximação entre alguns destes autores, bem como
tomando o que julgamos ser mais pertinente de cada um deles, fomos instigados a
considerar alguns aspectos acerca das identidades, dentre eles a ideia de que as
identidades são formadas e fomentadas em um duplo movimento: ora elas são
inventadas internamente, ora são produzidas externamente.
No que diz respeito a estes aspectos, escolhemos trabalhar com o segundo
movimento supracitado, a saber, as identidades enquanto invenções externas. Desta
maneira, propomos leitura em sentido inverso ao que havia sido feita por Durval Muniz,
historiador que trabalhou a invenção da identidade nordestina através de suas tramas
internas, dos discursos políticos e movimentos artístico-literários. Portanto, escolhemos
este tipo de leitura a fim de complementar a escolha feita por Muniz.
Tendo fixado os fundamentos acerca do que mencionaríamos como construção
das identidades, nos deparamos com outra problemática: recuar no tempo e trazer o
Nordeste para onde ele não poderia estar em termos cronológicos. Embora
encontrássemos nas fontes que pesquisamos referências à paisagem nordestina1, o lugar
que pretendemos falar não é o Nordeste inventado por Durval Muniz. Não obstante,

*
Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
Campina Grande (PPGH-UFCG). Atuou na Graduação como aluno bolsista-PIBIC do Cnpq, pesquisador
na área de história das religiões, realizando estudos sobre o protestantismo no Brasil Império.
1
Lemos as seguintes palavras escritas por Daniel P. Kidder: “[...] Como é lindo admirar-se o seu
resplendor, quer quando em Julho e Agosto se reveste de folhas novas, quer no outono nordestino,
quando se cobre de folhas rosadas e brancas [...]” (KIDDER, 1980, pág. 122. Grifo nosso).
2

falaremos de lugares que posteriormente fariam parte do que se convencionou como


Nordeste.
Pensamos também que este lugar não seria o Nordeste durvalino pelo fato de que
a formação identitária do povo desta região seria caracterizada por outro aspecto, a
saber, o religioso. Neste sentido, nosso trabalho buscou colaborar para o conhecimento
da construção das identidades através deste viés. Esta proposta é bastante importante,
uma vez que nos leva a fazer outras leituras acerca das identidades, em especial a
identidade nordestina2. As identidades religiosas abrangem o universo das relações de
alteridade, aspecto esse que encontra-se sintetizado nas palavras do historiador João
Marcos, ao mencionar que

Ao mesmo tempo, a identidade religiosa não basta para oferecer a


identidade social, pois as identidades nunca estão acabadas, mas em
falta, que é a existência do Outro, frente ao qual uma identidade se
afirma. Por isso, nunca acabados, os sujeitos têm uma identidade, e
empenham-se em sua construção por meio de atos de identificação,
como processo dinâmico (SANTOS, 2008, pág. 255)

Ou seja, no que se refere às identidades religiosas, atenuam-se as relações de


estranhamento e de afirmação de lugares próprios, tendo em vista que estas se dão
através de processos dinâmicos. Seguindo a linha de pensamento do antropólogo
François Laplantine, estas relações de estranhamento ocasionam dois movimentos. O
primeiro refere-se à atitude de detratação do Outro, impondo-o juízos de valores
negativos; o segundo movimento diz respeito à admiração do Outro, elevando-o ao
patamar de arquétipo para qualquer valor a ser julgado. Destes dois movimentos,
percebemos que as fontes que pesquisamos subtendem o primeiro comportamento
citado anteriormente.

Protestantismo no Brasil Imperial e identidades: a relevância do estudo


O protestantismo, desde sua formação no século XVI, apresentou-se com uma
proposta de cosmovisão diferente da que era legitimada pelo Catolicismo romano.
Doutrinas como a do Sacerdócio Universal reforçavam os princípios de liberdade que
florescera desde a Baixa Idade Média, ideia essa que seria um contraponto à defesa de

2
Nordestinidade essa que não se pode confundir com o que Durval propõe para o Nordeste. Durante
nosso trabalho preferimos deixar as nomenclaturas nordeste e nordestinos, a fim de que nossa
compreensão do contexto espacial torne-se mais fluido. Essa nota de rodapé torna-se necessária para que
não recorramos a mais uma explicação acerca do que estamos nos referindo quando falamos de nordeste.
3

uma sociedade hierarquizada, baseada em valores como submissão e subserviência.


Além do mais, a lógica Calvinista – pensamento esse que acabou sendo hegemônico no
corpo protestante – determinava quais os padrões que o indivíduo precisaria ter em
relação ao trabalho, às finanças e às condutas morais e éticas.
Ao chegar ao Brasil, o protestantismo se configurou de maneira mais conflituosa
em relação ao Catolicismo que já havia no Brasil. Para que possamos falar sobre isto,
precisamos fazer um acerto de contas, demarcando nosso recorte temporal.
Primeiramente, não pretendemos falar sobre as duas clássicas experiências protestantes
no Brasil colonial, tendo em vista que perderíamos o foco de nosso estudo. Em segundo
lugar, não estamos falando daquele protestantismo que se tornou efetivo no Brasil a
partir da segunda metade do século XIX, não obstante nossa lente de observação estará
sendo focada no segundo quartel do século XIX.
Neste período presenciamos a presença de vários viajantes ingleses e americanos
em território brasileiro. As intenções de estarem no Brasil foram as mais diversas, mas
uma em particular nos chamou a atenção: alguns deles enfrentaram os mares para
distribuir exemplares de Bíblias e folhetos. Nos relatórios de viagens destes indivíduos
em particular, percebemos a relação conflituosa entre a cosmovisão que possuíam – a
protestante – e as percepções e representações daqueles que tinham uma prática
religiosa diferente, em especial dos católicos. Contidos em um cenário onde o script da
peça tinha como temática central o estranhamento, estes viajantes protestantes
acabaram descrevendo as pessoas e suas práticas sem deixar de imprimir em suas
descrições valores de sua própria cultura e de seu lugar religioso.
Ponderando sobre estes aspectos, fomos Instigados a pensar no presente estudo
sobre um destes viajantes. O nome dele é Daniel Parish Kidder, um missionário
metodista norte-americano, membro da sociedade bíblica norte americana. Ele havia
feito suas andanças pelo Brasil durante meados do século XIX, vendendo Bíblias e
distribuindo folhetos contendo mensagens sobre o evangelho. Mesmo proibido pela
Constituição Imperial de promover proselitismo protestante, Daniel Kidder andava
disseminando ensinamentos que caracterizavam como sendo protestantismo. Kidder
perambulou pelos quatro cantos do Brasil, permanecendo um bom tempo no Norte do
Brasil, visitando os atuais Estados de Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Ceará e Paraíba.
Suas andanças pelo Brasil rendeu um relato de viagem, intitulada em português
como Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do Norte do Brasil.
Relato esse que em nossos dias tomamos como sendo uma fonte histórica. Baseados
4

nesta obra, selecionamos alguns aspectos que julgamos importantes para percebermos a
maneira como este viajante constrói uma identidade religiosa para os nortistas – futuros
nordestinos. Em outras palavras, como este inventa o seu Nordeste.

Um lugar de idolatria
Chegando à Província de Pernambuco, Daniel Kidder visitou alguns lugares
acompanhados de amigos e acompanhantes. Sua intenção era conhecer o local para ver
se porventura acharia condições favoráveis à distribuição de materiais religiosos. Ao
chegar no povoado de Pombal, ele descreve a paisagem desta maneira: “À extremidade
ocidental da ponte erguia-se o que o Sr. Sourtey chamaria um ‘idol house’, ou melhor,
uma capelinha [...]” (KIDDER, 1980, pág. 98).
Percebamos então nesta passagem a caracterização que ele faz do lugar, em
especial o espaço religioso. Kidder reproduz a fala de um estrangeiro – que inferimos
ser também um protestante – que mencionava a capela do povoado como sendo uma
casa do ídolo. Na mentalidade protestante, o uso de imagens com fins de culto era uma
profanação à divindade expressa na pessoa de Jesus Cristo. Logo, só ele deveria ser
adorado ou venerado. Na qualidade de cristão reformado, Daniel Kidder desqualifica o
espaço religioso de quem não é seu páreo. O nordeste, então, é um lugar da idolatria,
que precisava ser evangelizado por aqueles que detinham a verdade libertadora dos
enganos.
Em outra feita, Kidder parece pasmar-se com a atitude de uma das várias
pessoas que o acolheram em suas andanças pelo Nordeste. Trata-se do Sr. Martinho.
Este possuía em sua residência um armário que continha uma imagem de Nossa
Senhora, e juntamente com ela inúmeros rosários destinados à oração. Ao tratar do
assunto com o Sr. Martinho, Kidder menciona que ele “deu-nos a impressão de ter sobre
ele ideias tão claras e enradicadas quanto os que se acham que se devem fazer
reverências a imagens de madeira, de barro ou de pedra” (idem, pág. 121).
Daniel Kidder estranha a atitude do Sr. Martinho, uma vez que em sua mente
paira no ar uma possível leitura de que a mentira não se sustentaria face a verdade, dado
que não se apoiaria em argumentos – coisa que o Sr. Martinho mostraria o contrário.
Convidado para ver o objeto de veneração do dono da casa, Kidder menciona que
declinou o oferecimento, o que nos aponta para outro aspecto: em um momento,
enquanto protestante, ele recusa-se a compactuar com algo tão estranho ao seu lugar
religioso. Esta ação nos possibilita pensar sobre a afirmação da identidade protestante.
5

Se por um lado, Daniel Kidder começa a inventar o Norte do Brasil como um lugar da
idolatria, ele se afirma como o diferente, aquele que não se amolda aos padrões
oferecidos diante dele e para ele, oportunidade essa que seria utilizada por ele para
deixar marcas identitárias no Outro3.
Nesta mesma ocasião, seu estranhamento em relação à religiosidade alheia
torna-se detectável nas entrelinhas do comentário que ele faz da seguinte prática: “Á
tarde, passou uma imagem de Nosso Senhor Bom Jesus, à qual o dono da casa não deu
esmola, mas beijou reverentemente. Depois, passou-a às outras pessoas da família,
ordenando as crianças que fizessem o mesmo, a fim de ganhar o céu” (Ibid., pág. 121).
Este comentário poderia soar para Kidder como algo estranho – e porque não dizer
reprovável – para alguém protestante, uma vez que o protestantismo não admitiria que a
salvação se desse através de um ato de veneração a imagens, mesmo que ela seja a do
próprio Jesus Cristo.
Lutero havia afirmado que apenas a fé subjetiva na morte de Cristo salvaria os
homens, como podemos atestar em suas palavras: “Não é pelas obras, mas pela fé em
Cristo, que nos redimiremos, nem pela crença no valor das obras, isto é, pela suposição
insensata de que estaremos justificados por meio das obras. A fé redime as nossas
consciências [...]” (LUTERO apud DUNSTAN, 1964, pág. 37). Logo, a leitura
protestante do que seria a fé, excluiria as outras manifestações, que também são atos de
fé. Para o protestantismo, existiria uma só fé, como está escrito nas cartas paulinas. É
interessante pensar nesta articulação de pensamento, pois percebemos como o
protestantismo se afirma perante o universo religioso de sua época, e em especial, nos
dias em que Daniel Kidder esteve visitando o Brasil.

Um culto desordenado e irracional?


Este ponto é bastante curioso, pois muito nos aponta para o imaginário
protestante acerca das cerimônias religiosas. É importante frisar que o protestantismo é
bastante diverso neste aspecto, acentuando essa diversidade após o movimento
denominado pentecostalismo. Não obstante, o período que estamos fazendo referência

3
Isto nos lembra o que Stuart Hall fala acerca das identidades enquanto construção fluida, processo
dinâmico que conta com a interação entre dois modelos de identidades diferentes. Cada grupo social, cada
indivíduo, imprimem suas marcas nos outros, o que nos faz pensar as identidades como resultado das
relações interpessoais e intersociais.
6

ao nosso estudo exclui o movimento pentecostal, o que nos ajuda a pensar em


determinado ponto em comum no culto público protestante de então.
Embora elogiasse a devoção dos festejadores nas cerimônias religiosas, Daniel
Kidder transparece seu descontentamento em relação à falta de organização tanto na
novena quanto na festa subsequente à missa. Em uma certa feita, quando passava pela
cidade da Paraíba, ele teria sido convidado a ver uma festa religiosa em homenagem a
Nossa Senhora das Neves. Em relato, Kidder menciona:

Terminada a novela, todo o povo acorria ao campo, para apreciar os


fogos de artifício que se queimavam desde às nove horas até depois de
meia-noite. Os que tivemos ocasião de ver eram muito mal feitos. Não
obstante, o povo se pasmava e aplaudia freneticamente. Se se tratasse
de divertimento para africanos ignorantes, seriam mais
compreensíveis essas funções, mas, como parte de festejos religiosos
(em honra a Nossa Senhora Padroeira), celebrados em dia santificado
e com a presença entusiástica de padres, monges e do povo, temos que
confessar francamente que nos chocou bastante e teria sido melhor
que não os tivéssemos presenciado (KIDDER, 1980, pág. 133)

Tal relato é bastante emblemático, uma vez que nos permite pensar em alguns
aspectos. Para Kidder, o povo aplaudia em honra ao que não sabia, pois se soubesse
quem eles estariam homenageando, teriam preparado algo mais solene. É claro que
Daniel Kidder se espanta com tal atitude. Afinal, além de ser protestante, ele tinha
contato com um tipo de catolicismo que não se configura no catolicismo desenvolvido
no Brasil.
Ainda mencionando os juízos de valores que ele expõe em seu relato, vejamos o
que ele diz:

Soubemos que naquela ocasião é que se realizavam as maiores


festividades religiosas do ano, na Paraíba, pois no dia 5 de
Agosto celebrava-se a festa de Nossa Senhora das Neves,
padroeira da cidade. Perguntamos que santa era essa e apenas
souberam nos dizer que essa Nossa Senhora era a mesma Nossa
Senhora da Conceição, Nossa Senhora do Rosário e diversos
outros nomes que são à Virgem Maria! Duvidamos que a
mitologia grega ou romana tivesse sido mais confusa (Idem,
pág. 132).

De acordo com a leitura que Kidder faz da religiosidade nordestina, não havia
um conhecimento preciso, por parte dos adoradores, do que eles estavam venerando.
Seria como se ele estivesse revivendo os dias em que Paulo de Tarso visitou a cidade de
7

Atenas e se deparou com uma divindade que os atenienses haviam intitulado de O Deus
Desconhecido4. Daniel Kidder ironiza a confusão que os habitantes faziam em relação à
Nossa Senhora, mencionando que a mitologia greco-romana seria mais racional do que
a lógica católica. Logo, percebemos a detratação que ele faz da religiosidade da região.
Região essa que lhe é estranha e que, segundo o seu olhar, precisaria de salvação.
A situação fica acentuada quando Kidder discorre sobre as festas que eram
realizadas após as novenas – movimentos estes que supracitamos parcialmente. De
acordo com seu raciocínio, tais festejos propiciavam a perda de valores morais,
chegando a ser adjetivados por ele como ridículos5. Tais atos consistiriam no pecado de
profanação do Domingo, conhecido como o Dia do Senhor. Todo este comportamento
de estranhamento esboçado por Kidder precisa estar relacionado com o seu lugar
religioso, enquanto um metodista. O metodismo, uma das ramificações do
protestantismo, fora fundado pelo Inglês John Wesley. Este pregava um padrão de
moral rígido, reminiscências da moral puritana. Portanto, as práticas em nome da
religião deveriam ser feitas com a maior discrição possível, pois o relaxamento destas
práticas era interpretado como falta de respeito a Deus. Logo, não é de se estranhar que
Daniel Kidder, um missionário metodista, reproduza esse tipo de discurso, fazendo uso
deste para inventar uma identidade alheia.

A solução: as Escrituras como redenção do homem nordestino


Como havíamos citado anteriormente, Daniel Kidder distribuía Bíblias e
panfletos contendo mensagens religiosas. Entretanto ele precisou caracterizar a região
por onde ele passou, bem como as práticas nela desenvolvidas, a fim de que sua prática
fosse legitimada. Além de tratar da religiosidade nordestina como sendo práticas
idólatras e sem sentido à lógica protestante, Kidder menciona nas entrelinhas de seu
relatório que povo nordestino é um povo sem conhecimento da Bíblia. Mais do que isto:
o pouco contato que eles tinham com as Escrituras não lhes surtiu o efeito de
acreditarem que este livro seria sagrado. Nas palavras de Kidder: “[...] eles não o tinham
como sagrado”. Em seguida, ele expõe o que parecia ser o motivo: “[...] talvez porque

4
Esta narrativa encontra-se escrita em um dos livros da Bíblia. Cf. Atos, capítulo 17, versículos 16-31.
5
Ele diz: “Uma das maiores impressões que colhemos foi ver famílias inteiras, inclusive senhoras e
senhoritas, ao ar úmido da noite, admirando cenas que não só tocavam às raias do ridículo, mas, ainda,
eram acentuadamente imorais – e dizer-se que tudo isto se fazia em nome da religião!” (KIDDER, 1980,
pág. 133).
8

nele não houvesse ligação evidente com a religião que aprenderam” (KIDDER, 1980,
pág. 132).
Para um protestante, o conhecimento das Escrituras é algo bastante fundamental.
Quase em todas as chamadas Confissões de Fé produzidas no contexto da Reforma
Religiosa do século XVI evidenciavam a importância da Bíblia em questões de fé e
prática. Em uma destas confissões, elaborada em meados do século XVII na Abadia de
Westminster, Inglaterra, lemos a seguinte declaração: “Todo o conselho de Deus
concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida
do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser, lógica e claramente,
deduzido dela”6.
Percebamos, então, o lugar que as Escrituras ocupavam no pensamento
protestante. Para este, a Bíblia seria como um manual daquilo que o ser humano deveria
crer e praticar, um regrador de costumes e culturas7. As tradições deveriam estar
submetidas pelo crivo das Escrituras, e neste sentido observamos um contraponto que o
pensamento protestante faz em relação à ideia que o catolicismo desenvolveu sobre as
mesmas tradições.
É farto desta percepção que Daniel Kidder fará suas observações sobre os
nordestinos e o hipotético papel que a Bíblia exerceria no meio deste povo. Para ele, a
distribuição de Bíblias e sua consequente leitura faria com que os nordestinos fossem
libertos da falsidade que a religião católica oferecia. Citando o exemplo de certo
indivíduo nomeado por ele como Reverendo R. ele menciona que “em sua opinião
nenhuma outra ocasião seria melhor que a presente para a divulgação da verdade e do
culto puro, nesta região brasileira” (Ibid, pág. 110). O curioso desta observação de
Kidder é o fato dele citar a disseminação do que ele chama de verdade e de culto puro
logo após fazer uma narração de um ato que foi taxado por ele de fanatismo. Logo, era
de suma importância distribuir Bíblias e panfletos entre o povo nordestino, a fim de que
o Nordeste deixasse de ser uma região idólatra e palco de atos fanáticos.
Daniel Kidder transparece alegria e satisfação ao citar exemplos de pessoas –
principalmente clérigos – que se interessavam em estudar a Bíblia. Kidder constrói a

6
Capítulo I, 6. Confissão de Fé de Westminster. In.: Bíblia de Estudo de Genebra. 2ª Ed. Barueri:
Sociedade Bíblica do Brasil; São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2009.
7
Aspecto esse que poderia ser alvo de outras ponderações que não caberiam neste estudo, pois se trataria
da pluralidade de leituras que o protestantismo proporcionou da Bíblia. As denominações protestantes, em
certo grau, foram filhas destas múltiplas leituras sobre a Bíblia, o que nos faz problematizar sobre a frágil
unidade do protestantismo.
9

imagem destas pessoas como contentes e alegres por terem conhecido a verdade, quase
como que protestinizando-os. Em visita a uma destas pessoas, ele narra que

Encontramo-lo poucos dias após nossa chegada à cidade [de Recife].


Veio à casa de um amigo onde então jantamos e, vendo algumas das
publicações que trazíamos, teve expressões de viva satisfação, dizendo
poder colocar grande número de tais folhetos. Além de seu conteúdo,
satisfez-lhe muito ver que as publicações tinham sido impressas no
Rio de Janeiro, circunstância essa que indicava já estar a luz
irradiando na capital do país (Ibid., pág. 112. Grifos nossos)

Na ótica de Kidder, o Nordeste estaria livre do pensamento supersticioso


promovido pelo Catolicismo se as pessoas tivessem acesso às Escrituras. Provavelmente
por este motivo, Kidder perambulava não só pelo Nordeste, mas por todos os cantos do
país, distribuindo Bíblias e panfletos religiosos. Qualquer ocasião era oportuna para que
ele concedesse a alguém um exemplar das Escrituras ou presenteasse alguém com um
panfleto, mesmo que este não soubesse ler, como foi um caso em que Kidder havia dado
um panfleto a um jovem na Cidade da Paraíba. Embora o mancebo não soubesse ler, o
argumento do missionário foi que ele poderia aprender a ler através do referido panfleto,
ou então o jovem solicitasse que alguém o lesse por ele e então compreendesse a
verdade do evangelho.

Considerações finais
Este breve ensaio nos foi bastante importante, uma vez que nos ajuda a
compreender como as identidades vão sendo forjadas. Além do mais, em se tratando da
invenção do Nordeste, este estudo nos permitiu pensar em pelo menos três aspectos:
primeiramente, no fato de que as identidades também são forjadas externamente,
movimento esse que complementa – pelo menos timidamente – a leitura que Durval
Muniz faz da construção da identidade nordestina, enquanto construção interna. Em
segundo lugar, percebemos que há uma possibilidade de trabalharmos com a ideia de
Nordestes. O que falamos foi de um Nordeste possibilitado no relato feito por Daniel
Kidder, muito embora ele não tivesse pensado neste sentido. Em terceiro lugar,
pudemos verificar o lugar do protestantismo como elemento construtor de mais uma
identidade para o Nordeste. Protestantismo este que se configura não apenas como
corpus religioso, mas, sobretudo, como ideologia, cosmovisão. Pensando a sociedade
através de padrões e categorias diferentes do catolicismo, o protestantismo deixou suas
10

impressões acerca da religiosidade nordestina, o que nos possibilitou pensar nas


caracterizações das práticas religiosas nordestinas sob um olhar protestante.
Reconhecemos que muito ainda falta no que diz respeito à exploração e
aprofundamento desta temática. Acreditamos que as discussões não param por aqui,
pois as fontes sempre se renovam, apontando para detalhes que passamos
despercebidamente, sugerindo novos enfoques. Muita coisa deixamos de lado neste
estudo, devido à riqueza e complexidade das informações obtidas, somadas à falta de
tempo hábil para abarcar todas elas em um só trabalho. Nosso desejo é dar continuidade
a estes estudos, uma vez que acreditamos ser pesquisas que colaborarão para a
ampliação do conhecimento histórico desta temática.

Referências Bibliográficas

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histórica da região Nordeste do Brasil. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos
(orgs). Habitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. Tradução de Semíramis
Gorini da Veiga. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 139-161

BOURDIEU, Pierre. A identidade e a representação: elementos para uma reflexão


crítica sobre a idéia de região. In.: O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2006.

DUNSTAN, J. Leslie. Protestantismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1964;

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu


da Silva, Guaracira Lopes Louro. 4. ed. Rio de Janeiro: DP&A 2000. 102p.

KIDDER, Daniel. Reminiscências de viagens e Permanências nas Províncias do


Norte do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: EDUSP, 1980.

LAPLANTINE, F. Aprender Antropologia. São Paulo, Ed. brasiliense. 1994;

MATOS, Alderi Souza de. Erasmo Braga, o protestantismo e a sociedade brasileira.


São Paulo: Cultura Cristã, 2008.
11

OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil-nação.


Petrópolis: Vozes, 1992.

SANTOS, João Marcos Leitão. A ordem social em crise: A inserção do


protestantismo em Pernambuco: 1860-1891. São Paulo: USP, 2008. 403 p. Tese
(Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História Social, São Paulo, 2008.

SILVA, Alisson Pereira. “Educando-os em nome do Pai”: a Igreja Batista de


Bodocongó e a fundação da Escola Visão Mundial – 1982. In.: II Colóquio
Internacional de História. Campina Grande: UFCG, 2010;

________. Protestantismo e ideologia política no Brasil Império: 1822–1840. VIII


Congresso de Iniciação Científica da UFCG. Campina Grande: UFCG, 2011;
IGREJA BATISTA NAZARETH: IDEIAS E TENSÕES NO MOVIMENTO ECUMÊNICO
ENTRE BATISTAS PROGRESSISTAS (1974 A 1990)

A segunda metade do século XX, em especial as décadas de 1950 a 70 existiu


um espaço muito rico para os movimentos sociais e culturais no Brasil, mesmo com o
país sendo governado por militares num regime ditatorial. Foi nesse espaço que em
1975, a Igreja Batista Nazareth foi organizada na cidade de Salvador, Bahia. Mas essa
não seria apenas mais uma Igreja evangélica na terra de todos os santos. Como um
grupo de caráter ecumênico, Nazareth, assumiu uma postura progressista para a
época defendendo transformações sociais, além de ter lutado contra os desmandes da
Ditadura Militar no Brasil.

É inevitável abordar a formação das ideias ecumênicas no Brasil relacionando-


as com a situação política do país. Percebemos que os conflitos entre progressistas e
conservadores, revelam uma convergência da vertente progressista do protestantismo
brasileiro com o bloco de forças políticas e sociais existente no país, o mesmo ocorreu
com as forças conservadoras da igreja que se associaram a grupos reacionários da
sociedade. (Ferreira, 2010, p. 83-103).

O golpe civil-militar vem em resposta a essa efervescência político-social


existente no Brasil. Foi apoiado por setores conservadores do país, representados em
sua maioria por grupos civis da sociedade ligados ao empresariado e a classe média
alta (Santana, 2009, p. 20). Com o golpe, os progressistas e ecumênicos foram
derrotados, vencendo um grupo que ao longo desse tempo se opunham com
hostilidade crescente às articulações progressistas. (Ferreira, 2010, p.84.).

Durante muito tempo os grupos protestantes se omitiram da participação


política no país, entretanto Muniz Ferreira afirma que o campo religioso passou a
reproduzir o clima da sociedadTe brasileira, onde a efervescência cultural e política no
Brasil incitavam e influenciavam a uma nova ala de protestantes (Ferreira, 2010,
p.85). Essa juventude que viria a formar o setor ecumênico e progressista do país
olhava a realidade brasileira com um olhar crítico e via nos instrumentos políticos as
possibilidades de mudança, “havia uma efervescência cultural e política no Brasil que a
juventude protestante queria acompanhar e participar.” (Silva, 2010, p.98, 99).

Diversos encontros foram organizados com a intensão de encontrar formas de


resolver problemas tão antigos ao Brasil como a pobreza, por exemplo. Entre esses
encontros, a quarta reunião de estudos foi a mais representativa para o setor,
realizada no Recife, conhecida como Conferência do Nordeste (Almeida, 2008, p.105.),
nela buscou-se convergir vertentes progressistas do protestantismo brasileiro com
grupos progressistas políticos e sociais do país no ano de 1962 (Ferreira, 2010, p.85).

Entretanto a Conferência do Nordeste, em 1962, foi um marco não só para os


progressistas e ecumênicos, como também para os conservadores. Como podemos
perceber, assim como houve uma mobilização de protestantes a favor das
transformações sociais, a resposta conservadora foi forte e encontrou em setores
políticos e sociais tradicionais o apoio necessário para conter o avanço das ideias
progressistas. A efervescência política muito preocupava as camadas detentoras de
poder. Desta forma, setores conservadores das igrejas protestantes tomaram um
posicionamento ativo no cenário político aliando-se com setores também
conservadores do Estado. Assim sendo, fundiram-se os inimigos dos conservadores,
quer seja no meio político ou no religioso, ambos passaram a receber o rótulo de
comunistas1. Desta forma ficou claro que os conflitos nos meios evangélicos se
tornariam, em grande medida, uma extensão dos conflitos sociais do país.
Contrapunham-se dois modelos de projetos: mudança/transformação versus
conservação/reação (Ferreira, 2010, p.83).

A Ditadura Militar serviu como um entrave para a continuidade dos trabalhos


ecumênicos e progressistas. As conferências, como a do Nordeste de 1962 foram
proibidas, os conservadores passaram a ser maioria nas instituições tendo uma
postura antiecumênica além da instauração do clima de “caça às bruxas” perseguindo
aos progressistas e ecumênicos dentro das igrejas como se fossem comunistas
(Almeida, 2011, p. 108).

Até a década de 1950, sendo acentuado ainda mais com o Golpe Civil-Militar de
1964, o meio protestante manteve a imagem de um posicionamento de não
interferência nas questões políticas desde que suas ideias e princípios não fossem
ameaçados de algum modo. Na verdade o principio tão tradicional de não participação
política não passava de um argumento retórico (Silva, 2009, p. 31), pois desde a
década de 1940 os evangélicos ofereciam a obediência e o respeito às autoridades
constituídas e recebiam em troca apoio e manutenção das liberdades de consciência e
religiosa. Essa foi a tática utilizada por muitas denominações evangélicas para se
estabelecerem no Brasil. Entretanto, isso começa a ser modificado com a inserção de
novas linhas teológicas na ambiência protestante, como a teoria do Evangelho Social
em 1950, associando-se a isso “uma nova geração de jovens reformados começava a
se inquietar com a realidade brasileira, de forma sistemática e organizada” (Silva,
2010, p. 20,66).
Inconformados com a postura da maioria das igrejas evangélicas, de silêncio,
apoio e até conivência frente ao Governo ditador, um grupo de jovens da Igreja
Batista Dois de Julho se movimentou recriminando tal atitude2, ainda que ela viesse
da Convenção Batista Baiana ou Brasileira (maiores instâncias organizacionais da
denominação Batista), que buscavam no apoio ao Governo o espaço necessário para a
autoafirmação no país, à época majoritariamente católico. Esse grupo, tido como
inconformado e rebelde, seria expulso de sua igreja e viria a organizar a Igreja Batista
Nazareth.

Da dialética da reforma para a dialética de ruptura.

A origem dos grupos protestantes esteve calcada em princípios de contestação,


e liberdade. Seus três pressupostos essenciais consistem na centralidade das
escrituras, a justificação pela fé e o sacerdócio de todos os crentes, o que retirou a
necessidade dos lideres religiosos como intercessores entre o fiel e a divindade.
(Matos, 2013, p.1) Formalmente, essas igrejas se definem como democráticas,
abertas e defensoras do livre exame. Em contrapartida, a Igreja Católica que se define
formalmente como uma estrutura hierárquica, monárquica, com pretensões de
infalibilidade, tem se mostrado muito mais elástica que as igrejas protestantes. (Alves,
2004, p.59).

O termo “elasticidade” é utilizado por Rubem Alves fazendo referência a


possibilidade que uma igreja tem de estender seus limites conceituais para englobar
fieis que possuam ideias, em alguma medida, divergentes do pensamento dominante.
Na Igreja Batista Dois de Julho, a ruptura com a Mocidade e a formação de uma nova
igreja, indicam que havia chegado ao limite de sua elasticidade como instituição
Batista.

Ela não faz lugar, no seu interior, para interpretações


divergentes de fé. É absolutista. Em decorrência disso, a
dialética da reforma é abordada no seu interior e transformada
em dialética de ruptura (...) não sobra nenhuma área aberta a
discordância. Assim, o livre exame protestante não significa que
o crente possa interpretar o texto livremente, pois a leitura
correta já esta definida pela confissão. (Alves, 2004, p.60,61).

Existe, portanto, espaços que, apesar da liberdade, não podem ser


questionados ou problematizados dentro de uma religião, pois corre-se o risco do
rompimento. Pierre Bourdieu nos diz que a religião funciona como principio de
estruturação que constrói a experiência. Dentro dessa experiência existe um sistema
de questões indiscutíveis “delimitando o campo do que merece ser discutido em
oposição ao que esta fora de discussão.” A religião teria, portanto, uma predisposição
a “assumir uma função ideológica, prática e politica de absolutização do relativo e de
legitimação do arbitrário” (Bourdieu, 2009, p.45,46).

Quando se entra em conflito a ideia dominante e a nova interpretação, o


discurso não resolve quem tem a ultima palavra, mas sim o grupo de maior poder, de
maior autoridade. Após esse acirramento, a ideia que perde no embate das forças é
transformada em heresia. “(...) a heresia é a voz dos fracos (...)” (Alves, 2004, p.56).

Mocidade da “Primeira Igreja”.3

Inicialmente esse grupo de jovens participava de um conceituado coral com


grande visibilidade para a Igreja Batista Dois de Julho, e integravam a União da
Mocidade Batista. Entretanto, a atitude progressista deles muito incomodou a
organização da Igreja a qual faziam parte, pois o posicionamento desta voltou-se para
o fundamentalismo bíblico dando atenção quase que exclusiva a salvação das almas,
além de apoiarem ao Governo Militar. Essa era a postura majoritária das Igrejas
Batistas, dando a aparência de não envolvimento com questões políticas e sociais.
Contudo, tal representação é questionada quando se observa eventos exclusivamente
de cunho religioso, como as campanhas evangelísticas que mostravam o regime
militar como uma resposta às suas orações, significando assim mais uma
demonstração de apoio a política reacionária do Governo Militar (Almeida, 2008,
p.56).

No dia 19 de Setembro de 1974, 17 jovens do grupo da Mocidade da Igreja


Batista Dois de Julho entregaram um Manifesto escrito por eles para a direção da
igreja criticando a postura do seu Pastor, Ebenézer Cavalcanti. Entre as posturas
criticáveis está a acusação de comunistas e perniciosos feita pelo referido pastor a
membros da igreja. O manifesto informa da ocorrência de inúmeras outras acusações
sendo agravadas no mês de abril de 1974, quando a Igreja proibiu a participação de
visitantes às reuniões da Mocidade, uma forma de restringir o espaço e influência das
ideias defendidas por esse grupo. Cerceou a liberdade de expressão do grupo vetando
toda e qualquer circulação de material impresso por esses jovens, tendo agora a
necessidade da aprovação da Igreja (Pastor e Diretoria) para a realização das
atividades do grupo, veto da divulgação em órgãos da imprensa de seus projetos,
além da retirada do irmão Agostinho J. Muniz Filho do rol de membros da igreja,
acrescentado da ameaça a outros jovens de serem afastados de igual forma4.
Aqui vale a pena fazermos um parêntese a essa situação e informar que essa
postura de distanciamento das questões sociais e de critica a ações ecumênicas não
eram atitudes recorrentes da Igreja Batista Dois de Julho. As entrevistas realizadas
com antigos membros informam que houve uma ruptura com as posturas
progressistas da Igreja após o seu Pastor, Ebenézer Cavalcanti, ter passado por
alguns problemas de saúde, sendo assessorado e influenciado por membros que
tinham grande simpatia, quando não algum tipo de relação com o Governo Militar,
além de possuírem uma leitura da bíblia mais conservadora5.

Em entrevista, Liane, um dos membros fundadores da Igreja Batista Nazareth,


destaca a grande estima e consideração que tinha pelo pastor Ebenézer Cavalcanti:

[...] uma pessoa muito inteligente, um líder de grande


caminhada, uma pessoa muito atuante, inicialmente muito além
da sua realidade da época. Ele permitia que a mocidade da
Igreja Batista dois de julho, que o seu Coral, participasse de
coisas fora da igreja, inclusive com a igreja católica. Não tinha
nada a ver com a realidade da época. [...] Nós cantávamos em
Latim, nós cantávamos em alemão, nós éramos muitos
avançados.6.

Liane ainda destaca que o pastor Ebenézer Cavalcanti já havia até recebido aos
Padres Dom Gerônimo e Dom Timóteo para pregarem na Igreja Dois de Julho e que
fazia convites para membros de diferentes Igrejas para entrarem no Coral da
Mocidade da Igreja Batista Dois de Julho. “(...) ele trazia essas pessoas para o coral e
ele aceitava, não pergunta a origem, não perguntava nada.”

[...] Pastor Ebenézer ficou doente, teve um derrame e


ficou um tempo afastado da Igreja. Quando ele voltou da igreja,
ele era uma outra pessoa. Ele passou por uma transformação,
não sei como se explica, ele passou por uma transformação que
ele voltou uma outra pessoa, ao lado de Adlair e Rufino, o
secretario e o tesoureiro. E foi daí que partiu essa aversão, esse
horror, q eles começaram a ter para os jovens [...] a primeira
coisa q ele fez foi isso: ele quis caçar quem não fosse batista,
batista batizado! Ele quis caçar!7

De jovens atuantes a hostilizados, esse grupo passou a ser impedido de discutir


e opinar nas reuniões da Igreja. Em resposta ao Manifesto entregue pela Mocidade, a
Diretoria da Igreja Batista Dois de Julho afirmou ter chegado “[...] o tempo de se
dizer: B A S T A” a esse “grupinho”, fazendo-lhes o convite a saírem da Igreja e critica
o uso “do nome de Cristo como bandeira para alcançar seus ideais, que não são os da
Igreja”8.

Esses jovens estavam também muito indignados pela Igreja Dois de Julho ter
decidido pela Carta Compulsória a Agostinho e Balbino, que faziam criticas ao governo
militar.9 Chegou-se ao ápice desse conflito no dia 10 de Outubro de 1974, quando,
numa reunião muito tensa, aproximadamente 25 jovens da União da Mocidade da
Igreja Batista Dois de Julho teve a sua fala cerceada, indignados, foram forçados a
10
requererem suas cartas demissórias (espécie de documento de expulsão da Igreja) .
Liane foi a primeira a fazer o pedido, e foi prontamente seguida por parte dos
integrantes do Coral.

Não mais suportando os demandes de seu antigo Pastor, Ebenézer Cavalcanti,


esses jovens buscavam agora um espaço que estivesse em sintonia com suas ideias.
Esses homens e mulheres em momento algum negaram a sua crença nos princípios
Batistas, continuariam com uma Igreja de base neotestamentária, em consonância
com essa fé11, concordando com a plena autonomia das igrejas locais, repudiando
qualquer ingerência na sua economia interna (Cavalcanti, 1970, p. 33).

A relação com as questões sociais sempre foi uma característica do grupo de jovens,
que encontrou nas mudanças de pensamentos teológicos as fontes necessárias para o
seu posicionamento, que apoiava transformações na sociedade, transformações que
ultrapassassem o assistencialismo tradicional protestante. Em grande medida essas
correntes eram elaboradas na Europa e nos EUA e adaptadas a realidade brasileira
como o Evangelho Social que apontava como característica necessária ao
protestantismo a ação social e política (Silva, 2009, p. 76-77).

“Pode algo bom vir de Nazareth?” – A formação de uma nova Igreja.

Organização do grupo e a (dis)filiação à Junta Batista

Esses jovens não queriam romper com a Igreja Batista, mas sim com a
Igreja Batista Dois de Julho por considerar impossível a convivência. Em carta enviada
à Convenção Batista Baiana no dia 12 de Outubro de 197412, Paulo Torres afirma o
interesse do grupo em “organizar uma nova igreja com base neotestamentária e em
consonância com os princípios Batistas.”

Ao informar o ocorrido, buscando aconselhamento pastoral com o


Presidente da Convenção Batista Baiana, Pr. Djalma Torres, Miriam G. Pinillos relatou
o trágico ocorrido, informando ainda que “nós, jovens Batistas, membros da Igreja
Batista Dois de Julho, fomos forçados a requerer nossas cartas demissórias.”13
Em entrevista, o Pastor Djalma Torres informou ter tido grande interesse e
cuidado com o grupo:
Esse grupo então saiu da igreja e meio solto foi acolhido
por mim que na época pastoreava a Igreja Batista da Graça,
mas dei ampla cobertura ao grupo sugerindo inclusive que o
grupo se mantivesse unido com o propósito de formar uma
comunidade religiosa e não se dispersasse por diversas outras
igrejas onde as ideias deles iam ser pulverizadas dentro da
igreja14.

A princípio o grupo realizava as reuniões nas suas casas e nas casas de amigos,
sem um ponto fixo. No dia 31 de dezembro de 1974, o Reverendo Enoque Sena,
Pastor presbiteriano e Diretor do Colégio Dois de Julho, instituição educacional de
caráter ecumênico, ligada à Igreja Presbiteriana, ofereceu as dependências do Colégio
para o encontro do grupo enquanto lhes fossem necessárias.15 Logo em seguida, sob o
auxilio do Pastor Djalma Torres, a Igreja Batista Moriá acolheu a esses jovens, “já
sabendo que esse grupo não ia se integrar na igreja, mas ia fazer reuniões
separadamente das reuniões normais da igreja até se organizarem também em uma
comunidade religiosa, ou seja, numa Igreja Batista”16.

O processo de organização da nova Igreja estava sendo acompanhado, em


especial, por dois líderes Batistas: os pastores Djalma Torres e Eliabe Barbosa. Nesse
momento o grupo já contava com o apoio e participação de aproximadamente 40
pessoas de outras igrejas e interessados, que aguardavam a organização da Igreja
Nazareth para regularizarem a sua situação. A carta dos jovens compulsoriados
encaminhada a Igreja Batista Moriá conclui com a afirmação de que “(...) já reunimos
as condições necessárias para sermos mais uma Igreja de Jesus Cristo nesta Cidade,
contribuindo para a expansão do reino de Deus entre os homens.” 17.

O grupo então foi oficializado no dia 14 de fevereiro de 1975, quando


ocorreu a cerimônia de organização da Igreja Batista Nazareth, dirigida pelo Pastor
José Luis de Carvalho18.

(...) concedendo a palavra ao examinador, Missionário


Burleu Cader, que após as perguntas e respostas apresentadas
declarou-se satisfeito. Em prosseguimento o pr. Djalma Torres é
convidado a apresentar o Pacto das Igrejas [conjunto de
normas acatadas por todos os membros da Igreja Batista]19 e
sua declaração de fé, a cujos princípios todos se revelaram
unânimes em observa-los, aceitando-os na sua integridade.
Num ato solene, os membros da novel Igreja são solicitados a,
de pé, confirmarem a aceitação de todas as responsabilidades
assumidas, sendo diante de tais demonstrações proposta a
transformação em IGREJA da congregação cujo nome já foi
proposto: IGREJA BATISTA NAZARETH (...)20

Em entrevista, Djalma Torres declara que “o grupo se organizou como Igreja


Batista dentro do figurino Batista, com um concilio, leitura do pacto das igrejas, com a
presença e participação de lideres religiosos batista, uma igreja pronta para também
21
fazer parte da denominação batista” . Entretanto, tamanha foi a surpresa quando ao
pedir a filiação à Convenção Batista Brasileira, foi-lhe negada.

(...) o órgão encarregado disso que era a Junta Geral da


Convenção Batista Baiana recusou o pedido alegando que o
grupo era caracterizado por uma forte influencia ecumenista,
comunista e mundana, e a igreja foi rejeitada. A partir daí a
igreja começou a ter uma vida isolada. Só com o passar do
tempo ela foi se relacionando com outras igrejas,
presbiterianas, por exemplo, episcopal, e depois com a própria
igreja Católica em alguns trabalhos específicos22.

O motivo justificado pela Junta Batista Baiana da não aceitação da Igreja


Batista Nazareth em seu rol de membros foi a postura ecumênica defendida pelo
grupo. Ironicamente, esses mesmo jovens, quando ainda faziam parte da Igreja dois
de Julho tinham participado de diversos eventos de caráter ecumênicos sob a
orientação do pastor Ebenézer Cavalcanti, como apresentação do Coral em diversas
igrejas católicas, e nunca tinham sido penalizados, pois essas medidas eram
justificadas de acordo com o principio Batista de liberdade religiosa.

Nesse contexto, uma carta anônima foi encaminhada à Junta Geral da


Convenção Batista Baiana questionando os motivos usados por ela, para a não
aceitação de Nazareth em seu corpo. Nesse documento acrescentou-se ainda a
informação de diversos lideres batistas apontados como corruptos e maus
administradores, cabendo a esses uma resposta mais enérgica da Convenção.23

A Igreja Batista Nazareth (IBN) negou ter enviado uma carta com tal teor,
onde detratava pessoas sob o pretexto de solicitar reconsideração dessa junta sobre o
pedido de filiação.24. Por esse motivo, a Convenção Batista Baiana (CBBa) pediu à
Nazareth permissão para publicar no Jornal Batista a carta de negação sobre o
documento anônimo, pois esse documento tinha sido enviado a muitos pastores como
circular.25 Prontamente a IBN aceitou a publicação de seu pronunciamento a respeito
da carta anônima26 sendo parabenizada pela Convenção Batista Brasileira por terem
demostrado “um louvado espirito conciliador, de coragem e prudência.”27 A Igreja
Batista Dois de Julho, nesse interim, também lança um documento informando não ter
nenhuma relação com a negação de pertencimento de Nazareth à CBBa e que nem
mesmo tem algum conhecimento da existência do referido grupo.28

Após uma solicitação verbal do Pastor Djalma Torres à CBBA, no dia 20 de


maio de 1975, esta decidiu q enviaria “uma comissão da Junta para estudar o assunto
com a comissão da Igreja”, contudo o próprio pastor da IBN recusou a forma como
seria analisada a questão29. Finalmente, em 23 de julho de 1976 a Igreja Batista
Nazareth é aceita para ingressar no Rol Cooperativo da Convenção Batista, sendo
oficializado na primeira sessão da 53ª assembleia da CBBa.30

A exclusão final de Nazareth

Após 12 anos fazendo parte do rol cooperativo da Convenção Batista


Baiana, em Junho de 1988, a Junta Executiva da CBBa cria uma comissão especial
para o esclarecimento de ações ecumênicas adotadas pela Igreja Batista Nazareth,
atitudes essas que feriam ao Estatuto Batista. As ações de Nazareth passaram a ser
noticiadas por alguns jornais como o A Tarde, e essas mesmas matérias foram
utilizadas como provas questionáveis da postura da IBN. De acordo com o artigo 2º,
Capitulo VIII da Declaração Doutrinária “o relacionamento com outras entidades, quer
sejam de natureza eclesiásticas ou outra, não deve envolver a violação da consciência
ou o comprometimento da lealdade a Cristo e sua Palavra.”31

Foi esse o argumento utilizado pela junta para colocar em questionamento a


postura da IBN. Em carta a Convenção Batista explica:

Entendemos que o envolvimento dos irmãos com grupos


não evangélicos, como vemos nos artigos citados acima, viola a
nossa consciência batista e cristã, deixando também claro o
nosso comprometimento da Palavra de Cristo (...)”.
Gostaríamos portanto de saber a vossa posição como igreja em
relação a este assunto e se o mesmo não for entendido pelos
irmãos como um descumprimento do capitulo VIII da
Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira, que os
irmãos se posicionem sobre o interesse de continuar ou não no
rol cooperativo da Convenção Batista Baiana.32.

Um mês após o envio da Carta da Junta Executiva da CBBa, Nazareth encaminha uma
carta documento representando a posição da Igreja. É clara ao afirmar que não abdica
do direito de ser considerada uma Igreja Batista e que tem por fundamentação
eclesiástica a “Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira”, salientando
que houve uma interpretação duvidosa e parcial dessa Declaração por parte da
CBBa.33 Nessa mesma carta, Nazareth enumera uma serie de tópicos destacando suas
crenças. Algumas delas:

(...) Crê que é missão da Igreja atuar profeticamente no


Mundo, proclamando (combatendo) a injustiça dos poderosos
quem mantem sob opressão e miséria os povos do terceiro
mundo, denunciando a corrupção dos que estão no poder, os
desiquilíbrios do sistema social e as muitas formas de
autoritarismo religioso.
Crê que os batistas brasileiros têm perdido a
credibilidade, ao aceitar que, em seu nome, sejam feitas
honrarias religiosas, em troca de benefícios duvidosos e
vantagens pessoais, concedidas pelos poderes públicos.

Crê que a omissão, em face de problemas tão graves


como a Dívida externa, Direitos Humanos, desemprego e sub-
emprego, inflação, reforma agrária, violência,
homossexualismo, droga, preconceitos etc., constituem-se em
pecado diante de Deus e a quebra dos dois grandes
mandamentos divinos (mat. 22:37-39)34.

Nazareth reafirma ainda o seu posicionamento informando que tem


levantado problemas como estes, “solidarizando-se com outras igrejas evangélicas
e/ou entidades, publicando muitas de suas posições com determinação cristã
consoante o que esta disposto pelo capitulo XVI – Ordem Social – da Declaração
Batista Brasileira”.

Lembra ainda quem em 1975 a Junta geral negou o egresso de Nazareth ao


seu rol cooperativo por motivos similares ao que nesse momento estava sendo
utilizado e que em 1976 a Igreja foi aceita “sem que nada tenha havido, de sua parte,
que justificasse a mudança de atitude da Junta. A Igreja fez saber a Junta que suas
posições continuavam as mesmas”.

Foi exatamente nesse período, entre a rejeição e a aceitação pela Junta (1975/76),
continua a carta, que Nazareth começou a estabelecer relacionamentos mais estreitos
com demais grupos evangélicos, o que possibilitou “a descoberta da grande riqueza
doutrinária, teológica, litúrgica e fraternal dessas igrejas (...) Deus transformara,
assim, a marginalização batista numa grande e concreta manifestação de apoio,
compreensão e ajuda no meio evangélico.

Em Julho de 1988, a Convenção Batista Baiana decide em meio a 65ª


Assembleia anual, realizada em Alagoinhas, remover a Igreja Batista Nazareth de seu
rol de membros cooperativos.

O Julgamento da Igreja Batista Nazareth foi feito de


forma sumaria, e a assembleia da convenção, com base no
relatório de uma comissão de três membros, já no final de uma
sessão, decidiu pela exclusão (...) O amplo documento sobre o
seu credo e a pratica doutrinária que a Igreja Nazareth
encaminhou à comissão não lhe serviu como defesa, porque o
mesmo sequer foi lido para a assembleia.35

Para a Igreja Batista Nazareth, o ocorrido tem um caráter claro de


obscurantismo denominacional além de uma manifestação evidente de intolerância.
Em nota do Jornal A Tarde, extraído do Boletim dominical da própria Igreja, Nazareth
desabafa: A fidelidade aos nossos princípios custou o afastamento da convenção. “Nós
preferimos ficar com os nossos princípios.”.

Considerações finais

De inicio, a liberdade não era violentada abertamente pela força, mas sim
conquistada de forma ideológica e discursiva. Contudo, em meio a esse período, as
práticas inquisitoriais permaneceram vivas no seio protestante. Essas práticas
punitivas e excludentes faziam parte de um conjunto de procedimentos institucionais
cuja função era identificar e eliminar o pensamento divergente, pois ameaça a sua
unidade politica e teológica. Para tal havia os controles de pensamentos, de
comportamento moral (desviante) e de comportamento intelectual, que seria o mais
perigoso, pois trazia criticas ao sistema. (Alves, 2004, p.96, 112 e 114).

Como bem salientou Rubem Alves, esse conflito ideológico não se dá no campo
do debate, mas sim do poder, da força. “A decisão é feita por um processo politico.”
Nesse embate, o discurso dos vencidos é transformado ou tido como heréticos e dos
ortodoxos os vencedores, a verdade, cabendo então aos hereges a represália e
exclusão. Pensam os ortodoxos: Porque toleraríamos o pensamento divergente se
nossa instituição é possuidora da verdade? Porque um diálogo ecumênico se nada há
para aprender? (Alves, 2004, p.114-116).

O ecumenismo tem em sua origem uma proposta de aproximação entre os


cristãos para a ampliação da obra missionária, porém “(...) no Brasil passou de um
esforço de colaboração entre as igrejas para ser um agente histórico de transformação
política e social no país.”36. Em grande medida esse é um dos motivos que explicam o
porquê da maioria das igrejas evangélicas, aqui me refiro em especial à igreja batista,
mantiveram uma postura de recusa a participar desse movimento ecumênico
buscando reafirmar os seus princípios denominacionais como verdade bíblica a ser
seguida (Silva, 2010, p.59).

A Igreja Batista Nazareth se propõe a estabelecer relações com religiões de


diferentes matrizes por meio do ecumenismo, combatendo assim a intolerância e
questionando problemas sociais. Numa região como o estado da Bahia, de tão grande
diversidade cultural e de exclusão social, propostas como essas devem ser cada vez
mais germinadas na sociedade. Esse combate à intolerância não se restringe apenas a
questão religiosa, mas também às questões sociais, culturais, políticas e até mesmo
sexuais37.
Notas

1
Para maior compreensão do tema ler a Dissertação do mestrado de Luciane Silva de Almeida: ALMEIDA,
Luciane S. de. A Igreja Anticomunista: Representações dos Batistas e dos Fundamentalistas sobre o Regime
Militar em Feira De Santana (1964-1980). Relatório Final. PROBIC/ UEFS, Feira de Santana, 2008.
2
IGREJA BATISTA NAZARETH. Igreja Batista Nazareth: Uma história de resistência, luta e fé, 1975 –
2000. Salvador/Ba: [s.n.], 2000, p. XI
3
“Primeira Igreja” – Referência à Igreja Batista Dois de Julho. Foi um termo recorrente utilizado nas
entrevistas que fiz por muitos membros da Igreja Batista Nazareth.
4
Manifesto da União da Mocidade da Igreja Batista Dois de Julho, in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Anexo
I; Ata nº 1005 de 12 de Setembro de 1974. Não paginado
5
Entrevista gravada na Igreja Batista Nazareth, no dia 10 de março de 2013, em comemoração ao 38º
aniversário da Igreja.
6
Entrevista gravada na Igreja Batista Nazareth, no dia 10 de março de 2013, em comemoração ao 38º
aniversário da Igreja.
7
Entrevista gravada na Igreja Batista Nazareth, no dia 10 de março de 2013, em comemoração ao 38º
aniversário da Igreja.
8
Carta do diácono Adlair de F. Pacheco à Igreja Batista Dois de Julho em resposta ao Manifesto da
Mocidade. Salvador, 16 de outubro de 1974. Documentação da IBN.
9
Carta de Agostinho Muniz em comemoração aos 15 anos da IBN. In Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não
paginado.
10
Carta de Miriam Guerra Pinillos ao Presidente da Convenção Batista Baiana. 11 de setembro de 1974 in
Igreja Batista Nazareth, op. cit., Anexo I. Não paginado.
11
Carta de Paulo Rosa Torres ao Pastor Djalma Torres. Salvador, 12 de outubro de 1974. Documentação IBN
12
Carta de Paulo Rosa Torres ao Pastor Djalma Torres. Salvador, 12 de outubro de 1974. Documentação IBN
13
Carta de Miriam Guerra Pinillos ao Pastor Djalma Torres. Salvador, 11 de outubro de 1974. Documentação
IBN
14
Entrevista com o Pastor Djalma Torres no dia 08 de julho de 2012
15
Carta à Igreja Batista Moriá, 31 de dezembro de 1974. In Igreja Batista Nazareth, op. cit., Anexo I. Não
paginado.
16
Entrevista com o Pastor Djalma Torres no dia 08 de julho de 2012
17
Carta à Igreja Batista Moriá, 31 de dezembro de 1974. In Igreja Batista Nazareth, op. cit., Anexo I. Não
paginado.
18
Carta convite para a cerimônia de organização da Igreja Batista Nazareth. Documentação IBN
19
Nota do Autor.
20
Ata de organização da Igreja Batista Nazareth, 14 de fevereiro de 1975, In Igreja Batista Nazareth, op. cit.,
Anexo I. Não paginado.
21
Entrevista com o Pastor Djalma Torres no dia 08 de julho de 2012
22
Entrevista com o Pastor Djalma Torres no dia 08 de julho de 2012
23
Carta anônima à Junta Geral da Convenção Batista Baiana. in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não
paginado.
24
Carta do Pastor da IBN, Djalma Torres, à Junta Executiva da Convenção Batista Baiana, em 25 de Agosto
de 1975, in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
25
Carta da Junta Executiva da Convenção Batista Baiana, Itapetinga, 29 de Agosto de 1975, in Igreja Batista
Nazareth, op. cit., Não paginado.
26
Carta da Igreja Batista Nazareth à Junta executiva da Convenção Batista Baiana. Salvador, 15 de setembro
de 1975, in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
27
Carta da Junta Executiva da Convenção Batista Brasileira, Rio de Janeiro, 27 de Novembro de 1975, in
Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
28
Carta da Igreja Batista Dois de Julho à Denominação Batista, Salvador, 3 de Setembro de 1975, in Igreja
Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
29
Carta da Junta Geral da Convenção Batista Baiana à Igreja Batista Nazareth, Salvador, 8 de abril de 1976,
in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
30
Carta da Junta Geral da Convenção Batista Baiana à Igreja Batista Nazareth, em 23 de Julho de 1976. in
Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
31
Artigo 2º, Capitulo VIII da Declaração Doutrinária do Estatuto Batista. In Igreja Batista Nazareth: Uma
história de resistência, luta e fé, 1975 – 2000. Salvador/Ba: [s.n.], 2000. Não paginado.
32
Carta da Junta Geral da Convenção Batista Baiana à Igreja Batista Nazareth, em 03 de junho de 1988, in
Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
33
Carta da Igreja Batista Nazareth à Junta executiva da Convenção Batista Baiana. Salvador, 4 de Julho de
1988, in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
34
Documento da Igreja Batista Nazareth em resposta à Carta da Junta Executiva da Convenção Batista
Baiana, Salvador, 4 de Julho de 1988, in Igreja Batista Nazareth, op. cit., Não paginado.
35
Jornal A Tarde. Salvador (Ba), Terça-feira, 26 de julho de 1988.
36
Agemir de Carvalho Dias. O ECUMENISMO : Uma ótica protestante.
Professor da FEPAR. Este texto foi apresentado no I Simpósio Internacional de Religião, Religiosidades e
Cultura, promovido pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, p.1.
37
Filosofia da igreja Nazareth, outra abordagem in Igreja Batista Nazareth op. cit.. Não paginado.

Referências Bibliográficas

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MULHERES PASTORAS: RUPTURAS E PERMANÊNCIAS NA CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE FEMININA EVANGÉLICA NO BRASIL

Eliana Coelho da Silva


elianacoelho84@yahoo.com.br
Júlia Miranda
juliamiranda@uol.com.br
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará

RESUMO:
Este artigo pretendeu apresentar o processo de rupturas e permanências na
construção da identidade feminina evangélica através da análise das trajetórias de
vida de pastoras da cidade de Fortaleza. O presente trabalho é fruto da construção da
dissertação da autora sobre “mulheres pastoras”. A pesquisa é qualitativa e utilizou-se
de entrevistas narrativas com dez pastoras, de diferentes segmentos denominacionais,
realizadas no ano de 2012. As mulheres que estão à frente de ministérios continuam
reproduzindo os discursos fundamentalistas, porém a participação destas como líderes
coopera para maior participação destas na esfera pública representando assim uma
conquista para as mulheres. Esta aparente contradição aponta para uma mudança
morfológica cultural de gênero ocorrida na sociedade e que se reflete no campo
religioso, onde convivem mudança e adequação.
Palavras-chave: identidade feminina evangélica; mulheres pastoras; mudança e
adequação.

1. Introdução

Segundo dados do IBGE (2010) no Ceará existem 1.236.435 de evangélicos e


na cidade de Fortaleza 523.456, destes 223.966 são homens e 299.490 são mulheres.
Desta população evangélica, segundo dados da Ordem dos Ministros Evangélicos do
Ceará têm-se 317 pastores (as), dos quais 33 são mulheres.i

Assim, percebe-se que o número de mulheres líderes de igrejas ainda é


pequeno comparado ao número de homens pastores, contudo em um ambiente que
até um passado recente não havia mulheres pastoras esse número parece
significativo. A pesquisa a que me debruço não se utiliza da metodologia quantitativa,
e sim qualitativa, portanto os dados estatísticos elencados para ela nos serviram para
demonstração do contexto da análise. Dito isto, a questão que se emerge quando se
pensa no assunto é: Quando esse fenômeno começouii? Quem foi a primeira pastora?

1
Em que momento da história do protestantismo uma mulher invoca para si o direito
de liderar a igreja?

Quando tentamos explicar a causa da proibição da participação


feminina na Igreja, onde elas deveriam aprender em silêncio,
sem poderem exercer qualquer função, percebemos que essas
medidas visavam a afastar a possibilidade de uma divisão do
poder, pelo medo que sentiam da concorrência [...] O
cristianismo primitivo não proibiu que as mulheres ensinassem,
debatessem, profetizassem... Foi a ortodoxia que as afastou
dessas atividades e permitiu, apenas a virgens e viúvas, o
cuidado com os doentes, a assistência a suas necessidades, os
banhos, a preparação da comida, os trabalhos manuais, que
sempre foram seus atributos, a preparação dos rituais
litúrgicos. Se no inicio podiam ser diaconisas, no século V foi
decretada a proibição de ordená-las. Acredita-se que o pouco
poder que lhes restou foi legando seus bens às igrejas e
mosteiros, onde lhes eram outorgados alguns direitos.
Entretanto, ao mesmo tempo que a ortodoxia tinha por
precaução limitar o poder feminino, propiciava também a
emancipação feminina. A Igreja aceitou que as mulheres se
afastassem da sociedade e ingressassem nas abadias. A célula
do convento, sem qualquer dúvida, as desligava do mundo, mas
por outro lado lhes permitia ter acesso à leitura, ao estudo, à
escrita. Se eram responsáveis pelas iluminuras, aproveitavam
os textos para debates e discussões de seus conteúdos com os
teólogos, filósofos e doutores. Algumas ultrapassaram os
claustros e as grade dos conventos e exerceram atividades
comunitárias, transformando-se, muitas vezes, em santas
padroeiras das cidades. (BARROS, 2004, p. 197)

O sacerdócio (ato de ministrar os sacramentos) na igreja cristã se tornou


masculino no processo de construção da história da mesma, herdado do patriarcalismo
judaico antigo, graças às interpretações ortodoxas dos escritos do apóstolo São Paulo.
Como em todas as Igrejas dos santos, fiquem as mulheres
caladas nas assembléias, porque não é permitido que tomem a
palavra. Mas fiquem submissas como ordena a lei. E quando
quiserem se instruir sobre alguma questão, perguntem a seus
maridos em casa. É inconveniente para a mulher falar na
assembléia. (BÍBLIA, Novo Testamento, 1 Coríntios 14: 34-35)

A mulher aprenda em silêncio, com toda a sujeição. Não


permito, porém, que a mulher ensine, nem use de autoridade
sobre o marido, mas que esteja em silêncio [...] E Adão não foi
enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em
transgressão. (BÍBLIA, Novo Testamento, 1 Timóteo 2: 9-12;
14)

No Brasiliii, é referência importante a vinda da Igreja do Evangelho


Quadrangular ao Brasil, igreja pentecostal fundada por uma mulher no inicio do século
passado nos Estados Unidos. No Brasil, esta igreja foi fundada em São João da Boa
Vista, no estado de São Paulo, no dia 15 de novembro de 1951, pelo missionário

2
Harold Edwin Williams que, auxiliado pelo Pastor Jesus Hermirio Vasquez Ramos
fundaram a primeira congregação quadrangular no Brasil. Esta denominação foi
responsável pelo alastramento dessas “tendas de cura” nas regiões do sudeste e
centro-oeste na década de 80, dando os alicerces para a criação de outras igrejas
evangélicas neo-pentecostais brasileiras (MARIANO, 1999; FRESTON, 1993). Nesse
período há emergência de mulheres no Brasil com títulos de pastoras, fundando novas
denominações pentecostais com estilo diferenciado e usando a mídia televisiva para a
propagação de suas mensagens. Citarei dois exemplos: Bispa Sônia Hernandes e
Valnice Milhomens, conhecidas nacionalmente como pastoras evangélicas.
Valnice Milhomens Coelho é fundadora e presidente do Ministério Palavra da
fé e da Igreja Evangélica INSEJEC (Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo). Valnice
nasceu na cidade de Carolina, Maranhão, em 16 de julho de 1947. Converteu-se ao
protestantismo aos 15 anos de idade. Após fazer um seminário, em janeiro de 1971 é
enviada como a primeira missionária da Convenção Batista Brasileira à África. Retorna
ao Brasil e em 5 de dezembro de 1987 funda em Recife o Ministério Palavra da Fé,
uma organização interdenominacional. Valnice foi a primeira mulher evangélica a usar
a televisão como ferramenta para o proselitismo. No dia 24 de junho de 1989 entra no
ar o programa “A Palavra da Fé” no canal que hoje é a RedeTV. Mas foi somente em
30 de abril de 1993 a pastora Valnice Milhomes Coelho foi ordenada pastora.iv
Sônia Haddad Morais Hernandes nasceu em São Paulo no dia 22 de novembro
de 1958. Mais conhecida como Bispa Sônia é fundadora e líder da Igreja Apostólica
Renascer em Cristo, onde foi consagrada com tal título. É casada com Estevam
Hernandes, fundador da mesma igreja, autoproclamado apóstolo. No final da década
de 1980, ela e sua família deixaram a antiga denominação evangélica da qual faziam
parte e começaram a organizar reuniões informais com algumas famílias, o que mais
tarde se tornaria uma das maiores igrejas neo-pentecostais do Brasil.v
Em Fortaleza, a primeira mulher a ser consagrada pastora foi a Pastora
Arildes Guimarães, fundadora da Igreja Batista Peniel de Fortaleza, consagrada
pastora em 1985. Sua trajetória de vida foi objeto da minha primeira pesquisa na área
culminando na construção da monografia de título: “Entre a doutrina e o chamado de
Deus: História de vida da pastora Arildes Guimarães, da Igreja Batista Peniel de
Fortaleza” (2010). Neste trabalho eu descrevo os passos da trajetória da pastora
fundadora da igreja a que pertenço, desde a sua criação dentro de um ambiente
evangélico, seu casamento, seu “chamado” para pregar, seus conflitos com a
liderança de sua igreja (presbiteriana), seu contato com o pentecostalismo, sua saída
da igreja presbiteriana e a fundação da nova igreja e posterior consagração.

3
Algumas questões sobre o tema foram tratadas no trabalho acima citado, tais
como:

1. Dentro das igrejas que “descendem” da Reforma não existe consenso


sobre ordenação pastoral de mulheres.
Entre os evangélicos existem, de forma muito geral, duas
posições básicas quanto ao assunto: os igualitaristas e os
diferencialistas. Os igualitaristas afirmam que Deus
originalmente criou o homem e mulher iguais; a subordinação
feminina foi parte do castigo divino por causa da queda, com
conseqüente reflexões sócio-culturais. Em Cristo, essa punição
(e seus reflexos) é removida; assim, com o advento do
evangelho, as mulheres tem direitos iguais aos dos homens de
ocupar cargos de oficialato na igreja. Os diferencialistas, por
sua vez, entendem que desde a criação – e portanto, antes da
queda – Deus estabeleceu papeis distintos para o homem e a
mulher, visto que ambos são peculiarmente diferentes. A
diferença entre ele é complementar. Ou seja, o homem e a
mulher, com suas características e funções distintas, se
completam. [...] O homem foi feito como cabeça da mulher –
esse princípio implica em diferente papel funcional do homem,
que é o de liderar. (LOPES, p. 1-2, 1997).
2. Diante disso, o status de uma mulher pastora muda de uma denominação
para outra, elas podem ser consideradas “profetas”, “sacerdotes” ou
“hereges”. Isso também pode ocorre dentro da mesma denominação.
Uma forma particular da luta pelo monopólio que se instaura
quando a Igreja detém um monopólio total dos instrumentos de
salvação consiste na oposição entre a ortodoxia e a heresia
(homologa da oposição entre a Igreja e o profeta) que se
desenvolve segundo um processo mais ou menos constante. O
conflito pela autoridade propriamente religiosa entre os
especialistas (conflito teológico) e/ ou o conflito pelo poder no
interior da Igreja conduz a uma contestação da hierarquia
eclesiástica que toma a forma de uma heresia do momento em
que, em meio a uma situação de crise, a contestação da
monopolização do monopólio eclesiástico por parte de uma
fração dos leigos e conduz a uma contestação do monopólio
eclesiástico enquanto tal. (BOURDIEU , 1992, p.62)
3. Por último, mulheres pastoras existem desde a chegada da Igreja do
Evangelho Quadrangular no Brasil (já que esta denominação foi fundada
por uma mulher), porém reitero que a expansão da consagração de
mulheres pastoras está relacionada ao advento do neo-pentecostalismo
no Brasil, além dos debates sobre a teologia feminista nos seminários.

[...] ainda que as mulheres representem a maior parte do


séqüito das igrejas evangélicas, a parcela feminina é impedida
de exercer o pastorado na maioria das congregações. Em uma
perspectiva histórica, vemos que apenas as igrejas históricas
(metodistas, luteranas e anglicanas), duas igrejas pentecostais
(Exército da Salvação e Igreja do Evangelho Quadrangular)vie,

4
posteriormente, a Presbiteriana Unida, não vetavam o
pastorado feminino (SANTOS, 2002). Este quadro começa a
mudar consideravelmente na década de 1980, pois, neste
período, inicia-se o crescimento das vertentes pentecostal e
neopentecostal e, simultaneamente a tal crescimento, a
abertura para o surgimento de novas lideranças religiosas
femininas no âmbito das igrejas evangélicas . (SILVA, 2010, p.
154).

2. Narrativas de vida das pastoras de Fortaleza


Utilizo a classificação feita por Freston (1992) para apresentar o contexto
especifico das pastoras, antes expor suas narrativas. A contextualização é importante
para evitar conjecturas como as apontadas por Bourdieu (1996). Dentro do campo
religioso evangélico existem basicamente quatro tipos de correntes protestantes no
Brasil, são elas: 1. Protestantismo histórico (século XIX): igrejas que possuem uma
ligação com a tradição da Reforma Protestante e/ou com a teologia calvinista, são
elas: Batistas , Presbiterianos , Luteranos e Congregacionais ; 2. Pentecostais (inicio
do século XX): igrejas cujo principal marca é a crença na atualização de “dons do
Espírito” (glossolalia, cura, profecia, exorcismo), são estas classificadas em três ondas
(as ondas refletem o tempo histórico de fundação no Brasil): Primeira onda
(pentecostalismo clássico) - Assembléia de Deus , Congregação Cristã do Brasi ;
Segunda onda (década de 1950) – Igreja do Evangelho Quadrangular , Deus é Amor;
Terceira onda ou Neo-Pentecostais (ênfase na teologia da prosperidade, cura divina e
exorcismo – década de 1980) – Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça de
Deus , Renascer em Cristo , Mundial . 4. Novas comunidades (pentecostais ou não –
década de 1990 aos dias atuais): Bola de Neve , Novidade de Vida, entre outras.
Na minha pesquisa com as pastoras da cidade de Fortaleza cruzando os dados
com esta classificação, apresentou-se o seguinte quadro:

Pra. Rosângela (Batista)


Igreja Protestante Histórica
Pra. Betinha (Igreja Presbiteriana
(IPB, IPI, Luterana e Batista)
Independente –IPI)

Pentecostal 1ª e 2ª onda
(Assembleia de Deus, Deus é Amor, Somente a quadrangular consagra
Congregação Cristã no Brasil e pastoras. Não tenho nenhuma entrevista.
Quadrangular)

Neo-pentecostal Pra. Janilce (Igreja Internacional da Graça


(IIGD, Universal e Mundial) de Deus)

5
Pra. Arildes (Batista Peniel)
Pra. Ruth (Betel para as Nações)
Pra. Fernanda (Novidade de Vida)
Pentecostais independentes e/ou novas Pra. Ilzinha (Batista Peniel)
comunidades Pra. Nenem (Comunidade Cristã Videira)
Pra. Rosenir (Igreja Apóstolica da
Restauração)
Bispa Simone (Ministério Leão de Judá)

Destas dez narrativas, selecionei quatro principais, como narrativas-eixo, são


elas:
 Pastora Arildes: Tem 80 anos, é casada, tem 9 filhos (todos adultos,
evangélicos, sete são pastores). Nasceu no Maranhão, mas mudou-se para Fortaleza
com o esposo já casada e com filhos. Seus pais eram da presbiteriana, cresceu indo a
igreja. Segundo a mesma, “nunca quis conhecer o mundo”. Iniciou a evangelização de
pessoas de modo itinerário e independente por conta de um “chamado de Deus”. Por
conta do seu trabalho como evangelista, começou a estudar a Bíblia com alguns
membros da presbiteriana do Brasil em Fortaleza e liderou um movimento de oração
vii
que se tornou a fagulha da “fogueira” que foi o “movimento de renovação” das
igrejas tradicionais reformadas. Capitaneou um grupo que foi expulso da igreja por
causa da glossolalia praticada por eles e não permitida nestas igrejas naquele
momento histórico. Junto com os filhos, mas sem o auxilio direto do marido (ele
continua na presbiteriana) fundou o que hoje é chamado de Igreja Batista Peniel de
Fortaleza. Foi ordenada no ano de 1985. Ela fez um curso de contabilidade, mas nunca
atuou na área, sempre trabalhou na igreja, primeiro na presbiteriana e depois na
Peniel. Segundo ela, “nunca quis ser pastora”. Tem salário da igreja.
 Pastora Rosângela: 54 anos, casada e com um filho (jovem, portador de
necessidade especial). Seu esposo não é pastor e nem seu auxiliar. Pastoreia a Igreja
Presbiteriana Independente da Barra do Ceará. Foi a primeira pastora mulher
presidente de presbitério na IPI nacionalmente. Nasceu em uma casa onde os pais já
eram evangélicos.Sua mãe extremamente atuante na igreja, trabalhava intensamente
com evangelização, mas não era reconhecida(somente deram a mãe da pastora o
título de missionária) nem paga devidamente pelo trabalho. Não queria que isso se
repetisse com ela. Desde a adolescência já liderava grupos de jovens. Formou-se em
Agronomia e tem mestrado na área. Decidiu sair da igreja de sua adolescência por
entender que não iria crescer ali hierarquicamente. Mas no processo de saída, já
estava fazendo um seminário teológico da IPI (porém a IPI também não consagrava
mulheres ao pastorado). Decidiu ir para IPI, inicia seu trabalho de evangelização e
ensino. Ela enfrenta “desafetos” (seus pares homens, líderes, “extremamente

6
machistas” e algumas mulheres também) enquanto lidera uma igreja da IPI, mesmo
sem poder dar a ceia ou batizar ninguém. Pastora Rosângela possui a qualificação
técnica (seminário teológico, com uma monografia de nota 10), mas não possuía a
“autoridade” para realizar tais sacramentos. Mas em 2000, a IPI permite a
consagração de mulheres e ela foi uma das que se tornaram pastoras. Segundo ela,
só foi a permissão ser dada, no ano seguinte, metade da liderança já era formada por
mulheres (nacionalmente). Trabalhou na área acadêmica-profissional até a gestação
de seu filho, recebia uma espécie de salário da igreja, mas não era o suficiente para
sua renda. Porém, depois do nascimento do filho, trabalha integralmente na igreja e
recebe salário da igreja.
 Pastora Fernanda: 39 anos, casada com um pastor, paulista, nascida em
uma família classe média alta. Os pais acabaram por se separar, pois o pai era muito
violento. Foi criada pela mãe católica, que “acreditava no espiritismo”. Sua mãe decide
ficar sozinha mesmo separada. Passaram por uma situação complicada
financeiramente depois do divórcio. Ela começou a trabalhar com 13 anos, auxiliando
a professora do colégio que a mãe era dona (“Eu queria ganhar dinheiro”). Começou a
estudar alemão. Com 15 anos entra na Mercedez Benz, passando por um concurso e
foi a mais nova estagiária desta empresa. Namorou um rapaz por 5 anos, chegando a
ficar noiva. Mas, quando ela viajou para Alemanha e voltou , não quis mais namorar
com este rapaz. Fez faculdade de Direito e conheceu um jovem que seria o seu futuro
marido. Ela era envolvida com o que ela chamou de “bruxaria” (ocultismo) e seu
futuro marido era muito católico. Eles ficavam juntos, mesmo o futuro marido tendo
uma noiva. Então ele foi a um acampamento da igreja Metodista (de um amigo dele) e
se converteu. Segundo ela, “ela era bem envolvida com as coisas de bruxaria” e ele
“bem envolvido com as coisas da igreja”. Mas mesmo assim, eles ficavam juntos. Ele
então rompe o noivado e eles começam a namorar sério. Ela começa a frequentar a
igreja dele, mas diz que “escutava as coisas do diabo” e reconhecia “pessoas
endemoniadas” dentro da igreja. Em 1995, ela vai a um acampamento da igreja do
namorado e se converte. O líder de jovens da igreja sai da igreja, por causa de uma
“profecia” dada a ele de um pastor do Instituto Shekinah, e eles resolvem sair junto
com este líder. No último ano da faculdade de Direito, uma amiga das “festas
doideira” sofre um acidente de carro e quando Fernanda vai visitá-la, a jovem
acidentada já pergunta quando seria a próxima saída para festa. Esse evento a deixou
“chocada” e quando chega em casa, ela faz uma oração no quarto dela, renunciando
a vida “do mundo”. Ela afirma que “um homem de branco” (para ela, Jesus) a visitara
naquele dia. Então, eles (ela e o namorado) ficam frequentando a igreja do líder de
jovens (eles mais seis pessoas), que foi o núcleo da igreja em que ela é líder hoje

7
(Igreja Novidade de Vida). Eles decidem se casar. Eles se mudam por conta do
emprego do marido e ela resolve ser dona de casa porque “Deus queria a tratar para
ser submissa ao marido”. “Deus falou assim: Eu quero que você seja dona de casa”.
Eles fundam um núcleo da igreja Novidade de Vida em Uberlândia. “Quando eu vi já
estava trabalhando”. O marido foi consagrado pastor primeiro. E quando eles tinham
um “rebanho de 60 pessoas”, ela foi “consagrada” também. Ela tinha vergonha de
dizer que era pastora, e segundo ela, o marido que a apresentava como sendo uma:
“Aqui é a minha esposa, Fernanda, mas ela é pastora também”. O marido se
transferiu novamente para Fortaleza e eles fundaram a Igreja Novidade de Vida em
Fortaleza em 2003. É pastora em tempo integral, recebe salário. O marido tem outra
profissão também. Tem mais de 25 igrejas em Fortaleza. São pastores de outros
pastores, seis casais na sede. Não tem pastor solteiro, nem divorciado, nem viúvo,
muito menos mulher separada. “A gente espera que o casal tenha a mesma visão”,
“na mesma unção”. “Quem não governa bem a sua casa, não governa bem a igreja”.
 Bispa Simone: Tem 50 anos, é divorciada, tem um filho de 21 anos.
Seus pais eram católicos. Os pais se separam quando tinha 8 anos.Estudou em colégio
católico, fez escola técnica (Curso de Turismo) e tem graduação em Administração
pela Unifor. Casou com um marroquino e se mudou para o Marrocos com 24 anos.
Trabalhou na embaixada do Brasil em Marrocos. O marido era muçulmano. “A familia
dele tinha muito preconceito com os ocidentais”. “Eles acham que as mulheres
brasileiras são amorais”. “Mas depois a minha sogra era louca por mim”. Seis meses
depois de estar casada ela já estava arrependida, ela atribui isso pela cultura que era
muito diferente da dela. Mas o casamento durou 6 anos. Então, ela voltou ao Brasil
“fugida”, o filho de 1 ano e meio ficou preso no aeroporto, porque o pai tinha o
“pátrio-poder” e ela ficou sem o filho por três anos. Segundo ela, a família do ex-
marido, apesar de muçulmana, praticava a feitiçaria. Ela conta que se sentia muito
mal quando voltou ao Brasil e frequentou a umbanda, para “desfazer” as “macumbas”
da família do marido. Até que conheceu uma pessoa evangélica que a apresentou a
uma igreja e ela começou a frequentar um grupo de oração da Primeira Igreja Batista.
Depois de três meses convertida, “consegui recuperar meu filho”. Conseguiu uma
autorização para tratamento de doença do filho aqui no Brasil, pois o marido escrevia
cartas dizendo que o filho estava muito doente. Segundo ela, era chantagem. Além
disso, ele cobrava dinheiro para pagamento de um apartamento que eles tinha lá no
Marrocos. Ao final, a Bispa conseguiu a guarda provisória. Enquanto o ex-marido veio
no aeroporto pegar as malas, ela com auxilio da policia foge com o filho. “Passei três
meses fugida”. A Bispa só voltou para Fortaleza quando o marido voltou para o
Marrocos. O filho era muito inquieto, “me mordia, cuspia na minha cara”. A criança

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não sabia que a Bispa era a sua mãe, o marido deixou que a criança achasse que a
irmã dele fosse a mãe da criança. Depois que o filho foi ao colégio, com pouco tempo
falava o português, no inicio ele só falava árabe e ela respondia em francês para ele.
Ela se emocionou ao falar da gratidão que sente por ter seu filho em casa. “Não peço
nada [a Deus] além do que ele já fez que foi trazer meu filho”. Depois de alguns
meses, ela consegue a guarda definitiva do filho. Ela é convidada a participar de um
retiro de carnaval de uma igreja diferente da que pertencia. Lá uma “uma profeta de
Deus” falou que a partir daquele momento “eu era escolhida de Deus para uma
grande obra”. Segundo a mesma, nesse retiro ela se converteu “realmente”. Segundo
ela deixa de “praticar fornicação”. Rompe com um namorado. “Já tem 12 anos que
estou em santidade”. No mesmo acampamento, ela conhece outra evangélica que se
tornaria uma espécie de sócia (“Deus fez uma aliança no reino espiritual”) no que
seria o núcleo do “Ministério Leão de Judá”.Ela lidera a 10 anos um centro de
recuperação de dependentes químicos. E o tratamento envolve muita oração, o dia
todo com eles, e segundo ela “libertação”. Ela foi consagrada Bispa por esse ministério
que é uma instituição interdenominacional fundada primeiramente em Brasília. Ela é
voluntária, e vive da renda da família, pois faz parte da classe média alta de Fortaleza
e tem muitos bens.
As quatro histórias individuais deste trabalho não são “representativas” no
sentido típico-ideal de Weber (1991), mas representam as graduações de rupturas e
permanências do modelo feminino dentro do campo, o quanto cada uma delas percebe
sua conquista como independente ou não da relação conjugal e/ou familiar e que tipo
de sociabilidade se estabelece a partir daí entre os seus liderados. Considero os quatro
trajetos principais como tendências do campo, do que como regras ou exemplos a
serem encontrados.
Este escolha também revela o tempo cronológico do aparecimento destas
pastoras. Primeiro, emerge a primeira pastora de Fortaleza (Arildes) protagonista do
movimento de renovação na cidade, funda uma igreja, consagra-se pastora e mantém
uma igreja, enquanto educa seus filhos com a “disposição” de fundadores de igrejas.
Há aí neste caso, a formação de uma corporação religiosa, capitaneada por uma
mulher, o que é fato inédito no campo religioso evangélico. Inédito, pois no campo a
que me refiro, é comum ter famílias de crentes dedicados, e até mesmo de pastores,
mas estas famílias têm como referência sempre um homem (patriarca) iniciador do
carisma familiar. Que tipo de igreja surge desta fundação familiar? Segundo, nas
igrejas evangélicas é quase “natural”, no sentido sociológico do termo, a consagração
de uma mulher ao pastorado, quando esta já é casada com um pastor (Pastora
Fernanda). Também há nesse tipo de modelo, o fato de que muitas vezes os dois são

9
consagrados juntos. Qual o modelo de comunidade se tem aqui? Terceiro, nas
trincheiras do protestantismo histórico (Pastora Rosângela), onde é mais difícil a
aceitação às mudanças litúrgicas e /ou doutrinárias. Tudo é discutido racionalmente
pelos conselhos hierarquicamente postos. Mesmo nas igrejas autogovernadas (como
as batistas), as mudanças são permitidas, mas somente legitimadas de cima para
baixo. Qual o caminho a percorrer da mulher que se diz “vocacionada” neste
ambiente? Qual o significado destas “rachaduras” dentro do protestantismo histórico?
O interessante dos dois casos encontrados no campo do protestantismo histórico
(Pastora Betinha e Pastora Rosângela) é o da não vinculação do marido ao ministério.
Por último, mulheres solteiras, separadas e/ou divorciadas, cujo carisma não tem
relação alguma com o cônjuge ou com uma tradição familiar não eram muito comuns
nas igrejas evangélicas. Geralmente, estas mulheres “sem marido” eram (e são)
estigmatizadas dentro e fora das igrejas. Como elas construíram seu capital religioso?
Quem as legitimo? Qual tipo de comunidade elas assistem?
As novas comunidades e/ou igrejas neo-pentecostais são o ambiente propicio
da emergência e aceitação destas pastoras (Bispa Simone). Estas igrejas têm portas
mais largas para a aceitação desta categoria de pastora, pois elas possuem uma
compreensão mais aberta teologicamente ou simplesmente não veem a necessidade
de discutir o assunto, já que as pastoras já apresentam perfis necessários para o
pastoreio nestas igrejas: um carisma reconhecido pela comunidade através do
discurso e do trabalho religioso intenso.
3. Considerações sobre o tema “mulheres pastoras”
A tendência de consagração de mulheres é que a partir do último caso haja
um retorno ao primeiro caso. Explicando melhor: de um pastorado ligado ao cônjuge
ou a família (primeiras pastoras) para um pastorado cujo carisma é de posse somente
da mulher enquanto individuo (pastora divorciada e/ou solteira), possibilitando a
existência de um modelo de liderança feminino reproduzível a homens e a mulheres,
como é o caso da Pastora Arildes, que tem sete filhos pastores, seguidores do modelo
materno de liderança.
Também é preciso observar que há rupturas e permanências no carisma
pastoral evangélico pela emergência de mulheres pastoras.
Cada retrato individual, que não tinha a função de ilustrar
culturas de grupos, de classes ou de frações de classe,
mostrava bem que, longe de se limitar a um registro cultural
único, as pessoas entrevistadas manifestavam ambivalências,
oscilações ou alternâncias dentro de cada campo e/ou de um
campo cultural a outro(LAHIRE,p. 18, 2006).

A teoria das múltiplas socializações de Lahire (2004) é dentre a extensa


bibliografia de tratamento sociológico de disposições individuais a que melhor se

10
encaixa na pesquisa com as pastoras. Segundo este autor, as múltiplas expressões de
socialização formariam possibilidades de ação que o individuo iria utilizar em diversas
situações. Não havendo então que a necessidade do pesquisador construir
ficcionalmente uma narrativa fictícia para colocar coerência nas escolhas que os
indivíduos fazem. Além disso, a escolha dos casos não se referiria a “pessoas
singulares”, mas por elas revelarem parte daquilo que o social refletiu nelas (LAHIRE,
2004).

Ocupar uma posição é situar-se (BOURDIEU, 1996), e isto é crucial para a


existência social, e envolve desta maneira questões de identidade, mas a identidade
também não é um conceito estanque. A identidade também é terreno de contestação
(SCOTT, 1999) como também a evidência da experiência. Para Ricoeur (2010) o que
chamamos subjetividade na verdade não é “nem uma sequência incoerente de
acontecimentos, nem uma substancialidade imutável inacessível do devir. É
precisamente a espécie de identidade que exclusivamente a composição narrativa
pode criar seu dinamismo” (RICOEUR, p. 210, 2010).

Como podemos historicizar a “experiência”? Como podemos


escrever sobre a identidade sem sensibilizá-la? Respostas à
segunda pergunta devem apontar na direção de respostas para
a primeira, visto que tanto a identidade como a experiência são
categorias normalmente tidas como auto-evidentes, como
venho sugerindo que não deveriam ser (SCOTT, p. 40, 1999)

O imaginário evangélico da vocação feminina para o pastorado pode ser vista


dessa forma, tanto da mudança como da continuidade.

A minha monografia foi exatamente sobre isso. Sobre atos 2,


que o espírito santo vem sobre homens e mulheres, vossos
filhos e vossas filhas profetizarão. E o que é um pastor ou
pastora? É um profeta, então se o espírito santo escolhe, ele
não escolhe por sexo [...] Então se Deus escolhe quem ele
quer, então que somos nós pra dizer para Deus que ele não
pode escolher uma mulher para ser pastora? [...]O espírito
santo chama quem ele quer não quer saber do sexo só quer
saber se a pessoa se abre pra ele. Então eu vejo as igrejas que
não se abrem pras mulheres, os homens são tão frágeis que
não suportam que uma mulher possa ser igual ou melhor do
que eles. Como existem homens que são excelentes lideres, há
mulheres que são excelentes lideres. Isso não depende da
gente, depende do espírito santo(Pastora Rosângela – IPI -16
de abril de 2012).
A idéia é de que homens e mulheres podem ser líderes é inovadora neste
ambiente, apesar de não ser novo o conceito de que tantos homens e mulheres serem
porta-vozes da divindade. O imaginário religioso da vocação para o pastorado

11
feminino, desse modo, torna-se o elemento subversivo para mudanças nas relações
de gênero dentro das igrejas.
Para as mulheres conquistarem seu próprio nome e novos
espaços sociais, elas precisaram muitas vezes, subverter e
reinterpretar as convenções sociais, desenvolvendo um
processo de empoderamento, a partir das relações entre
família, casamento e igreja. Afinal, elas estavam excluídas das
tomadas de decisões, do acesso aos recursos e do exercício de
suas capacidades. [...] Enquanto as mulheres estavam no
“palco”, foi possível apontar a presença de lógicas hegemônicas
e a maneira delas subverterem, por meio da criação de
“cunhas” capazes de cavarem espaços de poder na estrutura
religiosa, predominantemente masculina. [...] Tais
comportamentos e pensamentos coletivos e individuais tornam-
se possíveis porque as mulheres pentecostais estão construindo
“buracos no poder”; estão ocupando espaços e tendo voz em
âmbitos legitimados, pelo sagrado e pelo social, como espaços
predominantemente masculinos. (BANDINI, 2009, p.273).

Segundo Baczko (1985), os imaginários coletivos operados nas utopias têm


dois lados. Ela é referencia para se questionar a realidade, mas também opera para
legitimar algum sistema totalitário. O importante para este autor é considerar a
inegável relação entre imaginação e poder. No caso das pastoras, quando alguns
atores se sentindo oprimidos pela ordem posta para eles, decidem questionar esta
ordem, não para acabar com ela, mas para interpretá-la de forma diferente, a
mudança acontece, e ela se apresenta nestes micro-espaços chamados de
congregações evangélicas, criando assim novas igrejas, novas pastoras, novas
devoções.
“O essencial da criação não é “descoberta”, mas constituição do novo. [...] E
no plano social, que é aqui nosso interesse central, a emergência de novas instituições
e de novas maneiras de viver, também não é uma “descoberta”, é uma constituição
ativa.” (CASTORIADIS, 1982, p. 162).

4. Referências

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BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. In: Leach, Edmund et all. Anthropos-
Homem. Lisboa,Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.
BANDINI, Claudirene . Costurando Certo Por Linhas Tortas: um estudo das
práticas femininas no interior de igrejas pentecostais. Tese de Doutorado. Programa
de Pós-Graduação em Sociologia. Universidade Federal de São Carlos. 2009.
BARROS, Maria Nazareth Alvim de. As Deusas, as bruxas e a Igreja: séculos de
perseguição. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos, 2004.

12
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva,
1992.
BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. 7ª Edição. Campinas,
São Paulo: Papirus, 1996.
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Janeiro: Paz e Terra, 1982.
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LAHIRE, Bernard. Retratos Sociológicos: disposições e variações individuais. Porto
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LAHIRE, Bernard. O homem plural: as molas da ação. Porto Alegre: Instituto
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dizer?. Fides Reformata. Volume II. 1997. Disponível em:
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compreensiva. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 1991.

i
Dados do Censo IBGE 2010 e informações extraídas por um informante dentro da ORMECE (Ordem dos
Ministros Evangélicos do Ceará).
ii
Faço um recorte no protestantismo, mas precisamente o protestantismo brasileiro para tornar a análise
exequível, mesmo observando que na história do cristianismo há controvérsia sobre participação feminina na
liderança da igreja primitiva em seus primórdios. Mas apesar desta divergência, a Igreja Católica Apostólica
Romana ainda não consagra mulheres ao sacerdócio.

13
iii
Meu trabalho de dissertação visa apresentar um levantamento mais apurado da história da proibição de
mulheres ao sacerdócio, mas devido ao tamanho do artigo, decidi expor diretamente a realidade brasileira.
iv
Fonte: http://www.insejec.com.br/pastores.php.
v
Fonte: http://www.renasceremcristo.com.br/.
vi
A Igreja Batista Peniel de Fortaleza não está elencada na lista exposta por Silva neste artigo, porque essa
denominação só existe aqui no Ceará, não sendo conhecida nacionalmente.
vii
Movimento de renovação foi a pentecostalização de algumas denominações antes de confissão reformada
ocorrida no Brasil na década de 1980. Várias denominações protestantes que eram tradicionais
experimentaram movimentos internos, com manifestações pentecostais. “O fogo pentecostal não ardeu
apenas no arraial do pentecostalismo. Penetrou parcialmente em algumas igrejas protestantes históricas,
dando assim origem a um duplo movimento – o de restauração e o da renovação. As igrejas denominadas “da
renovação” são formadas por grupos de batistas e metodistas wesleyanos. Adotam o estilo pentecostal,
embora conservem a organização de suas igrejas de origem. Incorporam as orações espontâneas, o batismo
no Espírito Santo, o acesso dos leigos à pregação, os depoimentos, os cânticos populares” (ROLIM, 1985, p.
59).

14
AS CRENÇAS RELIGIOSAS NOS SÍMBOLOS LITÚRGICOS DA IGREJA ANGLICANA

Josilene Silva da Cruz - DCR-UFPB1


Eunice Simões Lins Gomes- DCR-PPGCR-UFPB2

RESUMO

Consideramos o homem como homo symbolicus apoiados em Cassirer (2001) e


vislumbramos na religiosidade um “jogo simbólico” (Mardones, 2005). Contemplamos a
integração entre razão e imaginação, pois o simbólico se inscreve de maneira profunda
na alma humana (Gomes, 2011) e o imaginário se manifesta nas culturas através das
imagens e símbolos, cuja a função é colocar o homem em relação de significado com o
mundo, com o outro e consigo mesmo (Durand, 2001). Nesse sentindo, o objetivo de
nossa pesquisa consistiu em analisar em que medida o uso dos símbolos litúrgicos são
relevantes para os membros comungantes da igreja anglicana que fazem parte do grupo
do protestantismo histórico presente em nosso país desde o séc. XIX. A metodologia de
investigação foi à pesquisa descritiva, de campo, a etnografia e a observação
participante. Apresentamos como resultado da análise um recorte dos símbolos que
revelam a confirmação da identidade anglicana no seu percurso histórico.

Palavras-chave: Imaginação. Símbolos. Protestantismo.

1 – Considerações iniciais

Na observação efetuada durante o culto litúrgico da Igreja Anglicana, foi possível


perceber um rico entrelaçamento entre o universo dos símbolos e da religião. Este fato
proporcionou no decorrer da pesquisa analisar o universo da religiosidade, do simbolismo
e do imaginário anglicano.
Percebemos em nosso estudo o grande desafio e ao mesmo tempo a oportunidade
de trabalhar com os símbolos pois ao tratarmos do imaginário e da religião, adentramos
em um caminho de várias possibilidades o que nos indica assim como em outras análises
no âmbito da ciência que estamos apresentando ‘mais um olhar’ sobre a questão do

1
Graduanda do Curso de Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba – josileneufpb@gmail.com
2
Profª Pós Drª no Departamento e no Programa de Pós Graduação em Ciências das Religiões da UFPB –
euniceslgomes@gmail.com - Grupo de estudo e pesquisa em Antropologia do Imaginário – gepai
http://gepai.yolasite.com/
simbolismo e sua relevância. Assim o objetivo de nossa pesquisa consistiu em selecionar
alguns dos símbolos presentes no culto litúrgico da Igreja Anglicana para desenvolver
uma análise através da teoria do imaginário.
Corroboramos com muitos dos teóricos que utilizamos no referencial da nossa
pesquisa e ressaltamos a proposição de Mardones (2006) que vai tratar a relação com o
símbolo como algo que contém vida, e que dentro das religiões esta vivência simbólica se
concretiza. Na prática religiosa de forma geral o símbolo se manifesta conforme o grupo
que está inserido e como algo que pode remeter à vários significados ele alcança seu
maior objetivo dentro das religiões, ao transcender e conduzir comungantes de várias
vertentes religiosas à fazer esta conexão com o sagrado.
Com o intuito de contextualizar nosso grupo de investigação apresentaremos a
seguir uma pequena síntese de sua história e presença em nosso país. E posteriormente
relacionar as principais teorias utilizadas como pressupostos teóricos em nossa análise.

2 - Contextualizando a Igreja Anglicana

A história do anglicanismo nos remete a história do protestantismo, porém com


algumas peculiaridades como as várias oscilações entre catolicismo romano e
protestantismo ocorridos na história de existência desta vertente cristã, por isso a Igreja
Anglicana buscou uma identidade própria que lhe assegurou uma posição de igreja
evangélica e católica ao mesmo tempo. Conforme nos indica Jean-Paul Durand (2003)
O anglicanismo diz ser ainda uma Igreja católica e reformada, ao
mesmo tempo: um via meio difícil, que atesta a morte de dois
arcebispos de Canterbury: Thomas Crammer, sob a rainha católica
Maria Tudor, em 1556, e William Laud, decapitado em 1645 por
seus adversários protestantes, puritanos. (DURAND, 2003, p. 138)

A Igreja Anglicana presente em nosso país desde o séc. XIX (a partir de 1819
sendo a 1ª igreja protestante presente em nosso país), teve sua “origem” inicialmente na
Inglaterra após o rompimento do Rei Henrique VIII com a Igreja Católica, que se deu por
não ter conseguido a anulação de seu casamento pelo Papa da Igreja Romana, porém
não se resume a este fato. Segundo a exposição do Bispo Robinson “De seus
casamentos, o Rei Henrique VIII, ao falecer, deixara três filhos, de três esposas
diferentes, que seguiam a religião de suas mães: Eduardo, o mais velho e Elizabeth, a
mais nova, eram protestantes; e Maria, a do meio, era católica romana.” (CAVALCANTI,
2009) trazendo para o anglicanismo a herança histórica de seus líderes sempre ligados à
coroa inglesa.3
Localizada na cidade de João Pessoa (PB), a Igreja por nós selecionada encontra-
se no estado desde a década de 80, sendo formada majoritariamente por mulheres, mas

3
A Igreja Anglicana é também conhecida como a Igreja Católica Inglesa.
com presença marcante de homens e crianças. Em sua liderança encontram-se as figuras
dos Reverendos (dentro de algumas Igrejas da Comunhão Anglicana permite-se a
ordenação de mulheres, mas no nosso grupo seus líderes eram apenas homens).
É uma paróquia emancipada, ou seja, possui mais de sessenta membros
confirmados4 é formada por um número aproximado de cento e vinte membros tem
como principal fonte de fé: a Bíblia. Os Sacramentos presentes em sua liturgias são
Batismo e a Ceia do Senhor (Comunhão), realizam Batismo de crianças (assim como
Luteranos, Presbiterianos e Católicos Romanos) costumam apresentar uma identidade:
Cristãos Anglicanos. Seus líderes religiosos podem ser denominados de Reverendos,
Pastores, entre outros termos, tendo como representante maior a figura do Bispo.
Sua organização está vinculada ao que eles denominam de Comunhão Anglicana
que consiste na submissão aos chamados instrumentos de unidade: o Arcebispo de
Cantuária, a Conferência de Lambeth, o Encontro dos Primazes e o Conselho Consultivo
Anglicano (ACC), o conjunto destes instrumentos de unidade denomina-se “Quadrilátero
de Lambeth”. Além da chamada Comunhão existe também a organização em Províncias,
Dioceses e Comunidades. As Províncias constituem entidades regionais que
correspondem à junção de três Dioceses; as Dioceses são as chamadas Igrejas Locais,
que se constituem em unidade eclesiástica básica do Anglicanismo; as comunidades são
representadas por suas Paróquias, Missões e Ponto Missionário, que são como uma
espécie de extensão da Diocese. (CAVALCANTI, 2009, p. 66-73)

3 - Nosso pressuposto teórico: A Teoria Geral do Imaginário de Gilbert Durand

Ressaltamos que durante o desenvolvimento de nossa pesquisa foi possível


perceber que no culto litúrgico anglicano são utilizados vários símbolos litúrgicos que
poderiam ser utilizados para nossa análise como o cálice, a patena, as galhetas, a caixa
de obreias, o purificador, o corporal, o lavabo, a água, o vinho entre outros não citados
aqui, sendo necessário fazer um recorte para realizar nossa abordagem pelo viés
antropológico que adotamos.
Ao tratar sobre o imaginário Gilbert Durand nos remete a outras indagações e
suposições relacionadas com o social, entre outros o mítico e o inconsciente, que
segundo ele, estão diretamente ligados às questões da existência humana como o
mesmo afirma
O mítico seria como o inconsciente onde se formulam e tentam
resolver-se em imagens as grandes questões às quais o consciente
nunca consegue dar respostas lógicas sem antinomias, as grandes
questões da condição humana: Donde vimos? Quem somos nós?

4
Membros confirmados são aqueles que passaram pelo rito da confirmação, que diferentemente de católicos
romanos consideram como sacramento, é uma espécie de renovação do batismo e amadurecimento da fé.
(CAVALCANTI, 2009 - Grifo nosso)
Para onde vamos? O que é que nos identifica e fundamenta o
nosso consenso social? Donde vêm o mundo e o homem.
(DURAND, 1996, p. 133-134, apud GOMES, 2009, p. 80)

Gomes (2009) vai descrever e relacionar o mito com o imaginário social,


afirmando que o este último não se trata de um conjunto aleatório de imagens que
vagueiam livremente, mas que se organizam dentro de uma certa ordem que relaciona a
configuração mítica e as nossas fantasias. Reafirmamos a teoria durandiana sobre
imaginário dizendo:
O imaginário é um dinamismo equilibrador que se apresenta como
a tensão entre duas “forças de coesão” de dois “regimes” – o
diurno e o noturno -, cada um relacionando as imagens em dois
universos antagonistas (o heróico e o místico) [...] Nesse processo
dinâmico, encontram-se confrontados os dois regimes da imagem
ditando uma sintaxe e uma lógica que fundamentam a
mentalidade dominante. (GOMES, 2009, p. 82-83)

Desse modo os estudos sobre o imaginário e os símbolos nos remetem a várias


exposições de épocas diferentes e autores diversos. Trazemos para nossa pesquisa mais
uma exposição acerca do universo do homus simbolicus e sua ligação com o mítico, como
os estudos de C. G. Jung, que segundo Whitmont (2006), um de seus estudiosos, afirma
que
Esta abordagem simbólica pode mediar uma experiência de algo
indefinível, intuitivo ou imaginativo, ou uma sensação de algo que
não pode ser conhecido ou transmitido de nenhuma outra
maneira, já que termos abstratos não são suficientes em todos os
casos. Enquanto, para a maioria das pessoas de nossos dias, a
única abordagem compreensível da realidade baseia-se na
definição de tudo através de conceituações literais, abstratas e
impessoais, este desafio às faculdades intuitivas e emocionais
e a confiança nelas constituem o caráter fundamentalmente novo
de Jung. (WHITMONT, 2006 p. 16 – Grifo nosso)

A contribuição de Jung para os estudos sobre o imaginário foram de grande


relevância devido sua relação com Freud e seus destaques acerca da psique humana,
inconsciente coletivo, individuação e arquétipos. Jung devido experiências pessoais com
sonhos e visões despertou curiosidades que o instigaram a se aprofundar nestes estudos
sobre o inconsciente expostos posteriormente em sua obra “Memórias, Sonhos,
Reflexões” (1961). Em sua última obra escrita (dez dias antes de morrer aos 81 anos),
Jung acentua que o homem só se realiza através do conhecimento e aceitação do seu
inconsciente — conhecimento que ele adquire por meio dos sonhos e seus símbolos.
(JUNG, 2005)
Desse modo o imaginário proposto por Gilbert Durand ressalta sobre os regimes
das imagens (diurno e noturno) e sobre as estruturas do imaginário (heróica, mística e
sintética), cada qual com seus respectivos símbolos. No decorrer da análise pretendemos
desenvolvemos a convergência simbólica das imagens catalogadas, ou seja, remetemos
aos regimes e as estruturas do imaginário proposta por Durand.
Dentre vários outros estudiosos que desenvolveram suas teorias sobre a dinâmica
do símbolo dentro das religiões, optamos por ressaltar a exposição de Mardones (2006)
que vai tratar da importância do símbolo afirmando que
O símbolo, como a própria palavra indica, lança uma corda e
procura unir e vincular o separado, o que aparentemente não tem
relação. Por isso, move-se no mundo das religações com o não-
apresentável, com o indizível. [...] O símbolo é a linguagem
expressiva da experiência religiosa. Sem símbolo não saímos da
clausura no mundo da imanência nem nos abrimos à alteridade, ao
Outro. (MARDONES, 2006, p. 92-103)

No desenvolvimento de nosso estudo percebemos esta dinâmica da “vida do


símbolo” e isso se deu pela observação durante o culto anglicano e por meio de sua
liturgia. Desconfiamos que a liturgia seja de grande relevância para se identificar a
conexão com o sagrado, pois é nela que a linguagem simbólica se faz presente como um
conjunto de sinais que têm a função de transcender e isso podemos observar por meio
da etnografia do culto litúrgico.
Ressaltamos que é muito comum nas religiões cristãs que através da liturgia
ocorra esta conexão com o sagrado, aqui no caso o próprio Cristo, havendo uma
comunhão com o inacessível e é considerada uma verdadeira comunicação que envolve
gestos, movimentos, símbolos e ações. (ALDAZÁBAL, 2005). Assim a relevância da
liturgia para os ritos cristãos é percebida em várias celebrações, mas principalmente na
celebração eucarística, na qual o membro comungante busca este contato direto com o
seu Deus de forma palpável e não apenas simbólica.

4 – As crenças religiosas nos símbolos litúrgicos: um recorte no imaginário


anglicano

A relevância do símbolo no contexto das religiões é ressaltada em vários autores e


no caso do autor que usamos como referência Gilbert Durand também encontramos esta
indicação, que segundo ele ocorre em função do uso da ‘imaginação simbólica’ conforme
pudemos constatar em sua exposição a seguir
O objeto ausente é re-presentado na consciência por uma imagem
[...] chegamos à imaginação simbólica propriamente dita quando o
significado não é de modo algum apresentável e o signo só pode
referir-se a um sentido e não a uma coisa sensível. [...] O símbolo
é, como a alegoria, recondução do sensível, do figurado ao
significado, mas é também, pela própria natureza do significado
inacessível, epifania, isto é, aparição, através do e no significante,
do indizível. (DURAND, 1993, pp. 7-11 – grifos do autor)

Desse modo encontramos a referência de que no símbolo podemos encontrar uma


“representação do ausente” do inacessível, e esta também é a proposta da liturgia cristã
principalmente no sacramento da Eucaristia de acordo com as palavras do próprio
Durand “A liturgia cristã ortodoxa, na ornamentação do iconostase ou no sacramento da
Eucaristia, mostra bem a imagem simbólica (ícone) é simultaneamente anamnese cujo
tipo de sacramento de comunhão, e epiclese cujo tipo é o de Pentecostes”. (DURAND,
1993, p. 11)
Numa primeira análise fizemos um recorte dos vários símbolos coletados em
nosso estudo. Então selecionamos e destacamos algumas imagens dentre os símbolos
litúrgicos presentes no culto anglicano. Como critério utilizado para realizar o recorte,
selecionamos os três símbolos mais representativos para o grupo pesquisado, no qual
por meio de questionário aplicado indicaram os símbolos litúrgicos como os mais
significativos classificados na pesquisa como “muito importante” para demonstrar o grau
de relevância de cada um deles conforme propomos em nosso objetivo que foi o de
analisar em que medida o uso dos símbolos litúrgicos são relevantes para seus membros.
Conforme veremos a seguir:

(Fig. 1 – Bíblia Sagrada)


1 – O símbolo da Bíblia (Figura 1) que é um dos elementos que
ficam sobre o altar anglicano também visto como um
símbolo litúrgico porque ela é essencial no momento em
que celebra-se a liturgia da palavra. E assim ela foi

classificada como o Fonte: CRUZ, 2011. símbolo mais significativo sendo


(Foto da própria autora)

considerado ‘muito importante’ entre jovens e adultos que colaboraram com a pesquisa.
Conforme a imagem coletada ela se encontra sobre o altar sempre aberta o que nos
remete à um sentido conforme a indicação de Aldazábal (2005)
Esse livro aberto, à vista do povo, continua sendo o que ilumina o
restante da celebração eucarística e toda a vida da comunidade.
Foi uma palavra comprometedora, cheia de força, que tem por
finalidade continuar sendo, em todos os momentos, a luz e o
estímulo de uma vida conforme o Evangelho. [...] Os gestos
simbólicos foram introduzidos para isto: para nos recordar e nos
tornar mais fácil a sintonia com o mistério que celebramos, a
Palavra viva de Deus nesta ocasião, a comunhão com o Cristo que
nos fala. (p. 278)

No imaginário anglicano a Palavra é percebida num lugar privilegiado e de suma


importância o que foi apreendido por seus discursos também captados nos questionários
aplicados. Já na relação com a teoria de Gilbert Durand podemos encontrar este símbolo
no regime diurno inserido no grupo dos símbolos da estrutura heróica mais
especificamente no grupo dos símbolos espetaculares (relativos à visão) de acordo
com a colocação de Danielle Pitta (2005) que baseada no trajeto antropológico proposto
por Durand faz uma convergência dos símbolos classificando-os
dentro dos regimes e dos grupos como a seguir
[...] parte do isomorfismo luz-visão [...]
Luz e palavra andam juntas, por
exemplo, nos textos bíblicos e nas
mitologias de culturas totalmente
diversas. Existem diversas dimensões do
isomorfismo da luz e da palavra: assim
como a visão, a palavra (o verbo) traz, o conhecimento a
distância. Gilbert Durand diz que “toda transcendência se
acompanha de métodos de distinção e de purificação”. (PITTA,
2005, p. 28 – Grifo nosso)

Assim se fizermos uma comparação com o sentido das duas exposições acima,
uma baseada no sentido teológico do uso da bíblia e a outra convergindo-a dentro da
classificação das estruturas do imaginário, a que nos propomos em nosso estudo,
perceberemos a semelhança de sentido sendo a palavra entendida como luz, como aquilo
que ilumina o caminho. E neste sentido também encontramos na própria escritura a
menção a esta luz na passagem do Salmo (Sl 119, 105-106), que diz
105
Tua palavra é lâmpada para os meus pés,
e luz para o meu caminho.
106
Jurei, e sustento:
observar as tuas normas justas.
(BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2003, p. 994)

Deste modo confirmamos a nossa colocação tanto na teoria do imaginário quanto


no sentido teológico, pois é para guiar, iluminar, esclarecer, descortinar as obscuridades
da vida que se propõe a palavra. E por isso ser tão relevante para os anglicanos este
símbolo litúrgico que também é bastante representativo para grupos evangélicos de
outras denominações.

2 - O Cálice (Figura 2 – imagem à direita) que na comunhão


(Fig. 2 - Cálice e Âmbula)
contém o vinho que simboliza o sangue de Cristo é um dos mais
significativos (juntamente com a Âmbula – Figura 2 lado esquerdo) por conter o vinho
que é uma das substâncias que representa o sacrifício de Cristo nos dando seu corpo e
seu sangue. O cálice é tradicionalmente associado a um vaso sagrado, por ter sido
utilizado pelo próprio Cristo na instituição da Eucaristia, na última ceia. Recomenda-se
que estes símbolos (cálice e âmbula) sejam os mais visíveis no altar por serem os mais
representativos na celebração eucarística. Esta necessidade de Fonte: CRUZ, 2011.
visibilidade se confirma na exposição de Aldazábal (2005) (Foto da própria autora)

O pão e o vinho são elementos mais plenos de sentido e de


simbolismo na celebração da Eucaristia, juntamente com as
pessoas celebrantes e o livro da Palavra. Por isso, deveriam
mostrar-se muito visivelmente nos diversos momentos de seu uso.
[...] Sobre o altar, o pão e o vinho são os dois elementos que
devem ficar mais visíveis para a comunidade [...] O cálice para o
vinho é o “vaso” litúrgico mais importante. Deve ser digno,
artístico, “de materiais sólidos, que sejam considerados nobres
segundo o apreço comum em cada região”. (p. 229-230)

De igual modo temos a Âmbula (Figura 2 – imagem à esquerda) que assim como
o cálice contém o outro elemento simbólico mais representativo que representa o corpo
de Cristo. Conforme a exposição acima é um símbolo tão significativo quanto o cálice,
por serem os símbolos que contém as substâncias mais importantes da Comunhão. A
âmbula também é conhecida como píxide ou cibório e é também uma espécie de cálice
de tamanho maior e com tampa. É nela que é feita a consagração das obréias5.
Na relação com a teoria durandiana estes símbolos (Figura 2) podem ser
classificados no regime noturno no grupo dos símbolos da intimidade mais
especificamente à moradia e à taça, pois são aqueles que contém e no isomorfismo6
trazido por Pitta (2005) temos

A moradia e a taça [...] com o sentido de centro de espiritualidade


íntima, ainda vão ser encontradas as imagens de nave (da igreja)
e nave (do navio), a arca [...] o ovo cósmico (como aqueles dos
quadros de J. Bosch), o vaso (vaisseu significa vasilha, vaso,
nave), as taças litúrgicas (destinadas a rituais religiosos: o
Santo Graal, por exemplo) o estômago, todos contendo a
intimidade secreta e preciosa. (PITTA, 2005, p. 32 – Grifo nosso)

As taças litúrgicas também podem ser simbolicamente associadas à moradia,


lugar de repouso, de encontro, de intimidade e de refúgio, pois nelas estão contidas “o
alimento” que sustentam e fortalecem a fé dos cristãos que acreditam na Eucaristia.
Todas as aflições, e perturbações que encontramos no dia a dia são minimizados quando
conseguimos entrar num estado de repouso, de recolhimento, como nos sugerem estes
símbolos que nos indicam este lugar especial de refúgio e ao mesmo tempo de
restabelecimento da força por meio do alimento.
Na teoria durandiana estes símbolos da intimidade também estão ligados à
estrutura de sensibilidade mística ou digestiva o que reforça a nossa proposta de
associação com a as taças que contém o alimento, e segundo as palavras do próprio
Durand
O vaso situa-se a meio caminho entre as imagens do ventre
digestivo ou sexual e as do líquido nutritivo, do elixir de vida e de
juventude [...] o gesto da descida digestiva e o esquema do

5
As obréias são os elementos que representam o corpo de Cristo e que no rito católico romano (Missa) são
conhecidas como hóstias, constituídas de farinha de trigo e água.
6
Isomorfismo equivale a uma correspondência biunívoca entre os elementos de dois grupos que preserva as
operações de ambos (FERREIRA, 1997)
engolimento, conduzindo às fantasias da profundidade e aos
arquétipos da intimidade, subtendiam todo simbolismo noturno.
(DURAND, 2002, p. 256)

Esta estrutura de sensibilidade remete à um sentido de penetração, a um centro,


que nesta perspectiva de análise propõe um sentido de inversão, que são características
própria da estrutura mística numa descida, ao ventre, ao centro, numa oposição à
elevação transcendente para uma penetração da profundidade,como podemos perceber
no ocorrido com a digestão. (FERREIRA-SANTOS, ALMEIDA, 2012)
Em nosso recorte ainda temos a análise da terceira mais significativa imagem
para os anglicanos: a cruz. No nosso entendimento desta escolha se deve em função de
sua própria identidade de cristãos, mas a imagem da cruz anglicana é um pouco
diferente da forma de cruz que comumente encontramos e que estaremos esclarecendo a
seguir:
(Fig. 3 – Cruz Anglicana)
3 - A imagem da cruz anglicana (Figura 3) encontra-se na parte
de trás do altar ficando na parte central e é uma menção às
origens do anglicanismo. Trata-se da cruz celta que simboliza com
este circulo o mundo e com a cruz no meio simbolizando o próprio
Jesus Cristo no centro do mundo7.

Talvez esta imagem tenha sido escolhida por levar os anglicanos a uma referência
Fonte: CRUZ, 2011.
tanto a sua identidade como cristãos anglicanos como também às
(Foto da própria autora)
origens desta ramificação cristã. Sobre o simbolismo da cruz
celta trazemos a exposição de Chevalier (2009) dizendo que
Na explicação da cruz celta, é necessário remeter o leitor ao
simbolismo geral da cruz. Mas a cruz celta se inscreve num círculo
que suas extremidades ultrapassam, de modo que ela conjuga o
simbolismo da cruz e do círculo. Poder-se-ia acrescentar um
terceiro: o do centro, pelo fato da existência de uma pequena
esfera no centro geométrico da cruz e no meio dos braços de
inúmeros exemplos arcaicos de cruz. (CHEVALIER, 2009, p. 313)

Ainda sobre o simbolismo da cruz recorremos a Aldazábal que nos indica que
A cruz é o símbolo radical, primordial para os cristãos: um dos
poucos símbolos universais, comuns a todas as confissões.
Durante os três primeiros séculos, a cruz parece não ter sido
representada plasticamente: as figuras do pastor, do peixe, da
âncora e da pomba eram as preferidas [...] A cruz resume toda
teologia sobre Deus, sobre o mistério da salvação em Cristo, sobre
a vida cristã. (ALDAZÁBAL, 2005, p.147-148)

A cruz vazia é o que representa para os anglicanos a vitória de Cristo sobre a


morte. A cruz simboliza o próprio Cristo e condensa segundo a tradição cristã toda a

7
Informação verbal dada pelo Reverendo Deão da Igreja Concatedral Anglicana em João Pessoa.
história da salvação. Ela é um dos símbolos existentes desde a antiguidade em lugares
como a China, Egito, Creta entre outros. (CHEVALIER, 2009)
Podemos ainda destacar sobre a representação da cruz seus aspectos de
horizontalidade, colocando o Cristo numa condição de igualdade humana, e na
verticalidade apontando para cima e para o alto, indicando sua condição divina e
soberana. E na relação que estamos fazendo com a Teoria do Imaginário podemos
associar a cruz ao grupo dos símbolos de ascensão que se encontram no regime diurno
ligados a elevação. Este grupo se subdivide nos grupos dos símbolos da verticalidade,
asa e angelismo, a soberania uraniana e o chefe, e nas palavras de Bachelard “é mesma
operação do espírito humano que nos leva para a luz e para o alto”. Assim ressaltamos a
representação da cruz no grupo dos símbolos ascensionais ligados à verticalidade como
uma referência à subida e à elevação.

5 – Considerações finais

A análise realizada a partir da teoria proposta por Gilbert Durand, favoreceu


abstrair que os símbolos litúrgicos podem ser classificados dentro da convergência
simbólica realizada na perspectiva durandiana ora no regime diurno, e ora no regime
noturno. Quando tratamos do regime diurno estamos tratando mais especificamente da
estrutura de sensibilidade heróica inserido no grupo dos símbolos ascensionais e
espetaculares. A exemplo da Bíblia que se encontra dentro do conjunto dos símbolos
espetaculares que se opõem às trevas, e a cruz que se identifica como símbolo de
elevação que é também uma modalidade de símbolo ascensional, que por sua vez se
opõe à queda. (FERREIRA-SANTOS, ALMEIDA, 2012)
Os símbolos ascensionais segundo Durand (1998) remetem à elevação, à
verticalidade, ao alto. Eles representam a vontade da conquista sobre a própria condição
natural do homem, o esforço do espírito para elevar-se sobre a animalidade e a
temporalidade que destrói a existência física, são a busca da superação da queda. Nas
palavras de Durand (2002) “A ascensão é, assim, a “viagem em si”, a “viagem
imaginária mais real de todas” com que sonha a nostalgia inata da verticalidade pura, do
desejo de evasão para o lugar hiper ou supraceleste [...]”.
Além destes símbolos acima citados ainda temos as taças litúrgicas que remetem
na proposição teórica de Durand, ao simbolismo do regime noturno integrados ao
conjunto de símbolos da estrutura de sensibilidade mística que diferentemente da
estrutura ascensional que remete ao cimo e à elevação nesta estrutura encontramos a
penetração, uma condução ao centro estando diretamente ligada à dominante digestiva.
Assim identificamos estes símbolos litúrgicos como fio condutores que levam os
anglicanos no rito da comunhão à uma conexão com a sua divindade, no caso o próprio
Jesus Cristo, pois conforme exposição de um Reverendo anglicano, em seu rito
diferentemente de outras denominações evangélicas Jesus é presença real8 no ato da
comunhão e não se faz um rito em memória para apenas recordar seu sacrifício, a morte
na cruz, mas se realiza um encontro com o próprio Cristo.
Além disso podemos perceber em nosso estudo um imaginário cristão anglicano
que se fundamenta nos pilares da fé sustentados pela Palavra, pelo alimento eucarístico
e pela sua própria identidade, muitas vezes se colocando como “Os católicos mais
evangélicos e os evangélicos mais católicos” demonstrando um ethos pautado na
chamada via média, que busca uma união mais do que uma separação.

REFERÊNCIAS
ALDAZÁBAL, José. Gestos e símbolos. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.
CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CAVALCANTI, Robinson. Anglicanismo: identidade, relevância, desafios. Recife: Edição
do Autor, 2009.
CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à
fenomenologia da religião. Trad. Carlos Maria Vásquez Gutiérrez. São Paulo: Paulinas,
2001.
CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,
figuras, cores, números. Trad. Vera da Costa e Silva. 24 ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2009.
DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, Editora da Universidade
de São Paulo, 1993.
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WHITMONT, Edward C. A busca do símbolo: conceitos básicos de psicologia analítica.
São Paulo: Ed. Cultrix, 2006.

8
Informação verbal dada pelo Reverendo Deão da Concatedral Anglicana de João Pessoa.
Protestantes em confronto na Era Vargas: Um era de discussões através da
imprensa

Junia de Lima Nascimento1

João Marcos Leitão Santos


2

Resumo

Por mais familiar que seja a palavra protestantismo, é importante


compreender que durante muito tempo este sujeito, esteve á margem não apenas
da sociedade como também da historiografia, o que seria fruto de seu caráter
tardio. Pois no Brasil durante muito tempo a religião oficial foi o catolicismo
romano, o que reforçara o caráter tardio do protestantismo que chega ao seu
caráter definitivo apenas no sec.XIX. Apesar de tardio, o protestantismo foi
alcançando espaços na sociedade, apresentando-se não apenas como objeto
religioso, mas também como sujeito social. Após a reforma o protestantismo
mostrou suas varias faces doutrinarias, que posteriormente envolverá e costumes e
dogmas, é justamente a partir deste múltiplo caráter doutrinário, que muitos
lideres, divergiam de opiniões em relação a questões dogmáticas e
doutrinarias.Partindo desta afirmativa ,que em nosso artigo procuramos analisar, o
modo como se deram os principais confrontos entre os presbiterianos, que
utilizaram a imprensa como principal objeto deste confrontos.

Palavras-chaves

Protestantismo, imprensa, O estandarte, Era Vargas

Introdução

Se analisarmos o modo como o protestantismo foi inserido no Brasil,


levaríamos em consideração um serie de fatores que contribuíram par sua inserção,
porém levando em conta as hostilidades que os protestantes tiveram que enfrentar
durante muito tempo no Brasil, observamos que estas hostilidades sobrepujam os
fatores que contribuíram para sua inserção. O que tornou este sujeito ausente de

1
Graduando do curso de Historia pela Universidade Federal de Campina Grande, como também Bolsista
PIBIC, tendo como orientador o Professor doutor, João Marcos Leitão Santos. Email:
Junia_lima_@hotmail.com
2
Professor doutor da Unidade Acadêmica de História, da Universidade Federal de Campina Grande,
email: tmejph@bol.com.br
nossas investigações, por seu caráter tardio, como também pela conjuntura social o
qual estava inserido. E como forma de se sobressair nesta conjuntura social, o
protestantismo usou de vários mecanismos, pré se fazer presente na sociedade.
Logicamente que o uso de tais mecanismos não levou o protestantismo à condição
de sujeito social do dia para noite, isto se deu de forma lenta e gradual, pois a
partir de 1855 as missões protestantes começam a chegar ao Brasil, graças ao
movimento de imigração, apenas no sec.XIX é que ele ganhará caráter definitivo,
pois todas as missões protestantes já se encontravam em atividade no Brasil. E a
partir desta definição o protestantismo começa a ganhar espaço não apenas na
religião, mas também no que se diz tocante a atuação na sociedade contribuindo
até mesmo com a educação no Brasil. E tratando-se de alguns mecanismos
utilizados pelos protestantes não só como objetos difusor de sua doutrina e religião,
mas também como objetos de divulgação de opinião. É a partir destas estratégias
de resistência que a imprensa terá um importante papel na historia do
protestantismo isto desde a reforma. A imprensa desde a reforma teve um papel
preponderante, pois atingir os grupos mais amplos os protestantes irão se utilizar
da distribuição de panfletos é bom também entendermos que esta questão de
publicação leva em consideração a questão da subjetividade do sujeito, a partir
desta afirmativa podemos observar o que Asa Brigs dia a respeito da importância
da imprensa na reforma protestante, sobre a aquela ele diz:

Por outro lado na primeira geração os protestantes se


baseavam no poder chamado de “ofensiva mídia”, não
somente para comunicar suas próprias mensagens,
mas também para enfraquecer a Igreja Católica. (ASE
BRIGS, 2004. Pag. 84)

Este movimento através da imprensa também foi de muita importância para


legitimar a presença do protestantismo no Brasil. A igreja Presbiteriana surge no
Brasil a partir da presença Ashbel Green, o fundador da Igreja Presbiteriana no Rio
de Janeiro em 1862, pois com a fundação da Igreja ficava mais fácil de alcançar o
seu propósito de evangelizar e ganhar cada vez mais discípulos. O protestantismo
presbiteriano não ocultou seu vinculo com os ideais liberalistas, mesmo que suas
pregações estivessem apoiadas, pelo escolasticismo, pietismo, anticatolicismo e
apocalipitismo. O uso da imprensa também fazia parte de suas estratégias, pois
seus líderes tiveram como preocupação fundar dói principais jornais da Igreja
Presbiteriana, O puritano fundado em 1899 e O Estandarte, tendo como objetivo
publicar suas opiniões, como também o jornal O manifesto.

Desenvolvimento

Quando falamos protestantismo no Brasil sabemos que não foi um fenômeno


que surgiu do di apara noite, mas fora, uma religião a ser inserida em nosso país
paulatinamente. No Brasil sabemos que por este caráter tardio o protestantismo irá
enfrentar uma serie de dificuldades para inserir-e no Brasil o quanto sujeito social.
Pois apenas no sec.XIX que irão surgir às primeiras igrejas protestantes. Tendo o
medico escocês Kalley como fundador da primeira Igreja no Brasil, e
posteriormente surge em 1862. Os primeiros lideres da Igreja presbiteriana no
Brasil foram formados pela influência norte-americana, e aí começam a pregar o
evangelho e muitas pessoas do mundo do café aderem a fé protestante,e colocam
seus filhos para estudarem nos seminários protestantes.Dois lideres de grande
destaque na historia da Igreja presbiteriana foram: Álvaro Reis e Eduardo Carlos
,ambos lideraram a IPB3 no final do sec.XIX. Álvaro Reis era de São Paulo e fora
ordenado a pastor sendo um dos fundadores do jornal O puritano. O rev. Carlos
Eduardo foi ordenado a pastor em 1881,um homem que teve um grande destaque
na imprensa fundando o jornal O Estandarte em 1893. A partir destas afirmativas
podemos observar o grande interesse desses religiosos pela imprensa,sendo ela um
grande difusor não só da religião como também de ideologias quer sejam políticas
que sejam doutrinarias,utilizando a imprensa como um fator muito importante do
qual Lindon Fala:

Podemos tomar a criação do jornal O Christão como um


marco divisor na imprensa protestante no Brasil no final do
século XIX. Os jornais existentes como O Estandarte e
Expositor Cristão eram ligados ás denominações Presbiteriana
e Metodista.

E isto nos mostra a importância da imprensa dentro do movimento


protestante no Brasil. Levando em consideração que o protestantismo desde a
reforma não se mostrou como uma religião coesa, mas uma religião de varias
ramificações e vertentes doutrinarias. O que irá acontecer na Igreja Presbiteriana
no Brasil, pois Álvaro Reis e Eduardo divergiam em varias opiniões, como por
exemplo, a questão da educação, e o que vai tornar o grande divisor de águas a
questão maçônica. Que se tornou um objeto de discussão a partir de1898,quando o
Dr.Nicolau Soares do Couto,escreve uma serie de artigos em O Estandarte á
respeito da questão maçônica, onde questiona se a Igreja aceitaria alguém que
professase ser marçom. Quando o ver. Carlos Eduardo toma uma posição, até
então silenciada durante muito tempo, dizendo que a maçonaria era uma religião
que tinha outro deus que não era cristão e isto trouxe descontentamento para os
presbiterianos maçons. E isto acarretou uma serie de confrontos internos, o que vai
culminar em 1903 o ver. Eduardo com um grupo de seis pastores declara-se
desligado do Sínodo, retirando-se para o local onde fundaria a Igreja Presbyteriana
Independente Brasileira. Nesta ocasião Álvaro Reis torna-se um dos principais
lideres da Igreja Presbiteriana do Brasil. O grupo Formador da IPI era muito mais
complexo do que imaginamos, pois sua base era composta basicamente por dois
grupos: Os dos mais velhos, homens rústicos que não tinham tanto conhecimento e
o grupo dos mais novos, jovens que não tinham nem três anos de ordenados a
pastor, jovens intelectuais que tinham uma boa base teológica. Dentre este grupo
mais jovem poderíamos destacar a figura do ver. Texeira que na década de 30
quando algumas Igrejas resolvem ingressar numa experiência comum teológica,
criando o programa de cooperação no Seminário, onde a igreja IPI escolhe rev.
Teixeira como seu principal representante, uma representação que dura até1932;
quando ele retorna para São Paulo, para reabertura do Seminário da IPI fazendo
ele parte do corpo docente, um corpo docente considerado teologicamente liberal. E

3
IPB trata-se da Igreja Presbiteriana no Brasil fundada em 1862
são justamente estas diferentes vertentes teológicas que irão fomentar a maioria
dos confrontos entre eles, confrontos que na maioria das vezes eles usarão a
imprensa, ou seja, o jornal impresso como objeto de difusão destes confrontos. São
justamente estes confrontos que irão mostrar a heterogeneidade do grupo fundador
da IPI, do qual o Eber Ferreira4 irá declarar:

“A razão principal do estudo do grupo fundador é a de


confirmar, a heterogeneidade do mesmo. Ou seja: embora
pareça a Igreja Presbiteriana Independente tenha sido
formada por um grupo de pastores de mesmo pensamento,
sua idéias mostraram-se divergentes” (Eber
Ferreira.2005.Pag.59)

Estas diferenças irão tomar corpo após a morte do ver. Eduardo, um grande
conservador, pois aderiu ao liberalismo dizendo ele ser um liberalismo conservador.
E após a sua morte em 1923 surgem às tensões entre os conservadores mais
velhos e os liberais, o que será ainda mais notável durante a Era Vargas. Onde
havia uma tensa relação entre o governo Vargas e a imprensa, pois era controlada
pelo DIP, mas embora a historiografia busque negar a autonomia da imprensa no
Brasil, haviam revistas de caráter literário,como também jornais de cunho religioso
que circulava no Brasil. E foi justamente na Era Vargas que ocorre uma grave crise
da IPIB,pois a partir deste momento irão se intensificar os confrontos entre os
liberais e conservadores.Pois em 1938 cria-se um coligação conservadora tendo
como principal líder Bento Ferraz.Ao lado dele lideres da coligação conservadora
subscreveram uma plataforma e publicaram no Jornal O Presbiteriano em 15 de
Março de 1938 este jornal fora justamente criado pelos conservadores para se
oporem aos liberais.O jornal não era utilizado apenas para publicar suas posições
pessoais teológicas ,mas também para publicarem,opiniões que respondiam as
“ofensas dos liberais”,dentre os quais podemos destacar a figura de Themudo Lessa
e Othoniel Motta, líderes que estiveram a frente da segunda geração de
presbiterianos.Foram justamente estes lideres que estiveram á frente de muitas
confrontos teológicos e doutrinários, e dentre estes confrontos poderemos destacar
a questão da doutrina das penas eternas5,esta polemica se deu quando um aluno
recém formado do seminário presbiteriano é interrogado á respeito desta questão,
e ao responder ele mostra uma certa duvida.Esta declaração levou a Igreja ao
Sínodo Ordinário em 1938,para assim fazer uma revisão de profissão de fé.O que
levara a expulsão de Othoniel Motta,fruto de um velho problema entre ele e Bento
Ferraz. E um editorial de O Estandarte Themudo Lessa irá apontar o grave perigo
das ofensas pessoais dirigidas pelos conservadores, podemos ver esta declaração a
partir de um fragmento do Jornal O Estandarte:

4
Pastor da IPI do Brasil e professor Seminário Teológico em São Paulo, é graduado em Teologia e
história, pós graduado em Filosofia, Mestre em Ciências Sociais e doutorando em Historia pela UNESP,
Campus de Assis, São Paulo
5
Esta doutrina baseava-se em textos que dizia que o homem que não alcançasse a salvação estaria
sujeito a condenação eterna.
“A prudência e a caridade nos aconselham a
fugir do labirinto das invetivas, das ironias, das
reticências, dos sofismas, das provocações, da
desvirtuação do significado das frases, das insinuações
malévolas, das alusões e referências pessoais que
muitas vezes nada tem haver com a discussão de idéias
e princípios sem diminuir o adversário. Com isso nada
lucra a defesa de uma coisa boa ou má. No caso da
vertente serve apenas para desprestigiar a causa do
evangelho e atrair o desrespeito para com o ministério
sagrado. Mais do que tudo redunda em prejuízo para os
que se deleitam no cultivo desse gênero literário. Causa
tristeza e magua nos piedosos” (Themudo Lessa, Notas
e comentos, O estandarte, 1938, p.1)

Podemos percebe a importância da imprensa, como objeto de defesa em


meio às trocas de acusações entre liberais e moderados. Podemos perceber o uso
de um discurso, que defende sua linha teológica, onde o jornal será o maior meio
de difusão de suas idéias. Pois estes confrontos que perduraram durante muito
tempo, e levou a divisão da Igreja, ocasionando diversos rachas no seio da Eclésia,
não se deram apenas através do jornal, mas também a través de documentos nos
quais eles podiam defender suas opiniões, que levaram a vias de fato ocasionando
a divisão da Igreja. Porém nem todos eram a favor da divisão da Igreja, pois no
Sínodo de 1938 criou-se a Via Média, que não desejava a saída nem de liberais
nem de conservadores, isto por causa dos laços familiares e amigáveis que foram
criados entre eles. Mas ao final das grandes discussões em 1940 os conservadores
deixam a IPIB.

Conclusão

Ao longo de nossa pesquisa observamos o quanto o protestantismo no


Brasil, ainda que com seu caráter tardio foi adquirindo espaço,na sociedade,embora
na sua condição minoritária,o protestantismo foi conseguindo galgar muitos
espaços no Brasil. Levando em consideração este caráter,podemos observar a
contribuição da Igreja Presbiteriana no Brasil,e sua atuação enquanto célula social
no Brasil.Porém é importante observar que por mais que o protestantismo em seus
discursos defendam a união do corpo de Cristo,ele não se deu de uma forma
coesa,pois nos seio da Igreja havia grandes embates teológicos,que se deram de
forma a partir de suas diferenças.Os confrontos entre estas duas vertentes Liberais
e conservadores foram acarretando cada vez mais discursos acirrados entre
eles,onde ao principal objeto deste confronto fora a imprensa,principalmente
ultilizando-se do jornal O Estandarte.Isto nos mostra o quanto fora importante o
uso da imprensa para fomentar entes discursos que foram mais acirrados durante a
Era Vargas;uma era marcada pelas intensos confrontos teológicos entre Liberais e
Conservadores.

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na época de Vargas (1930-1945). São Paulo: Editora Pendão real, 2005.

SANTOS, Lyndon de Araújo. As outras faces do sagrado: protestantismo e cultura


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BRIGGS, Asa, 1921. Uma historia da mídia: Rio Janeiro: Jorge Zahar Ed.2004.
SEPARADOS POR UM ATLÂNTICO DE IDEIAS: Cosmologias e
traduções culturais na América Portuguesa do Século XVI

DANIEL SANTANA LEITE DA SILVA1

Resumo

Este trabalho é fruto de estudos vinculados ao grupo de pesquisa Estado e Sociedade


no Nordeste Colonial - Universidade Federal da Paraíba. De acordo com a nova história
indígena – que tem como aliada teórica a antropologia –, o encontro entre europeus
portugueses no século XVI (especialmente missionários) e indígenas foi marcado por
traduções mútuas. Através delas o europeu interpretava o indígena a partir dos seus
ditos e escritos – especialmente a sagrada escritura – e o índio, por sua vez, via no
missionário os seus pajés e caraíbas. O papel do missionário foi fundamental para a
compreensão daquele universo, pois o mesmo tinha, como principal objetivo, trazer
aquele gentio para a civilização cristã. Foi, o missionário, um dos mais importantes
responsáveis pela mediação cultural ocorrida no período. Com base nestes postulados,
nesta etapa de nossa pesquisa, apontamos questões teórico-metodológicas acerca
dessas traduções que os missionários fizeram acerca das práticas cosmológicas
indígenas, buscando discutir os possíveis filtros teóricos necessários para esta
operação.

Palavras-chave: Povos indígenas; missionários, tradução cultural; representação;


cosmologia.

Introdução

Os povos indígenas se tornaram nos últimos anos importantes


protagonistas da história e historiografia brasileiras, principalmente no que diz
respeito ao período colonial de um modo geral. Esse movimento se deve, em parte, à
nova articulação interdisciplinar entre a História e a Antropologia – movimento este
que é denominado, por alguns historiadores e antropólogos, como nova história
indígena, que começa a se articular por volta da década de 1970 e 19802. Graças a
essa articulação, certos paradigmas e equívocos que estavam, até então, dentro da
2

historiografia de um modo geral passam a ser questionados e rompidos, a exemplo do


binarismo vencido/vencedor, e do estigma do indígena ingênuo e submisso. Os
contatos foram repensados em termos de relações entre seres até então estranhos,
contato que passaram por inúmeras esferas conflituosas, fossem elas relações das
mais triviais até verdadeiras querelas filosóficas. Os índios passam, a partir de então,
a serem vistos como agentes ativos do processo histórico, e não mais como fósseis
vivos, incorporando “elementos da cultura ocidental, dando a eles significados próprios
e utilizando-os para possíveis ganhos nas novas situações em que vivem” (Almeida,
2010, p.22). Torna-se perceptível que, naquela conjuntura, existiram conflituosas
relações de interesse e poder nas mais diversas perspectivas, baseadas em distintas
representações.
O encontro3 foi marcado por traduções mútuas; traduções estas entre
indígenas e europeus, os quais, segundo seus princípios culturais, interligam o outro
segundo seus signos. Esse processo pode ser percebido em diversos tipos de fontes e
com diversos tipos de autores, seja ele um cronista ou um missionário. Neste
trabalho, destacaremos em especial aquele que tinha consigo um significante papel no
que diz respeito a essa relação: o missionário.
O papel do missionário foi fundamental para a compreensão do universo
indígena, pois o mesmo não tinha apenas, como principal objetivo, trazer o gentio
para a civilização cristã, mas também trazê-lo à ordem colonial, promovendo –
consciente ou inconscientemente – um processo de ocidentalização4 daquela gente
que compunha o Novo Mundo. Para tanto, ele precisava entender aquela nova
expressão do gênero humano, o que significava um exercício de grande complexidade.
O índio deveria ser catalogado e entendido segundo suas semelhanças e diferenças,
fosse no ponto de vista religioso – como a cristandade pensaria o Novo Mundo e sua
gente - , fosse do ponto de vista legislativo – se eram, por exemplo, escravos por
natureza5. Entender o outro como um todo, sem deixar de lado suas [obvias]
diferenças, era um desafio que deveria ser superado por esses mediadores: uma
verdadeira terra de contradições e estranhos, para além de um imenso rio atlântico.

Experimentando a mediação cultural como ‘filtro’ (ou ‘ponto de partida’)

Na operação historiográfica, os documentos são transformados em fontes.


Consequentemente, das fontes estabelecemos nossos limites operacionais, seja no
recorte temporal/espacial, seja quanto a quem a produziu e para quem a produziu.
Portanto, a partir dela estabelecemos os interesses e os métodos pelos quais, talvez,
possamos, de fato, produzir um material satisfatório (científico) para o(s)
3

historiador(es). No que diz respeito às fontes documentais sobre as relações de


contato entre indígenas e europeus no Brasil colonial, o trabalho desenvolvido pelo
missionário “de desconstrução e reconstrução dos códigos comunicativos” (Monteiro,
2006, p.32) dos povos indígenas, faz deste um ponto de partida importante para o
estudo de ambos os cosmos6. O missionário representou significativo destaque no
processo de mediação cultural entre europeus e índios, uma porta de locução que
tinha como responsabilidade mediar os interesses da Coroa, os interesses da colônia –
que necessariamente estão vinculados aos interesses do primeiro – e, mesmo que
intrinsicamente, os interesses dos indígenas naquela situação. Entretanto, mediação
cultural não é

[...] observar do encontro de duas sociedades e/ou culturas


distintas (e desiguais) e os efeitos de uma sobre a outra, mas
de compreender como agentes em interação acessam alguns de
seus códigos próprios ou se apropriam de alguns códigos
alheios para significar (Monteiro, 2006, p.51).

Dentro daquelas conflituosas relações de poder, de ideias e de interesses,


podemos afirmar que o missionário foi um dos mais importantes responsáveis pela
mediação cultural ocorrida no período, pois esse mediador foi quem promoveu um
espaço simbólico das relações entre ambos, uma mediação, que busca códigos
compartilhados. Os missionários, ao se fixarem com índios nas aldeias, puderam, além
de passar à frente metodologias pedagógicas de sua cultura para que este gentio, por
fim, adentrasse na dinâmica cultural europeia, precisaram compreender, ainda que
com seus próprios códigos comunicativos – baseados numa cultura segregada por um
oceano de ideias –, o cosmo do outro.

[...] esse mundo e esta história já estavam “ditos” e “escritos”


com uma linguagem peculiar, a da sagrada escritura, da
Escolástica e dos documentos eclesiásticos, por um lado, e a
dos mitos e dos rituais, por outro. O encontro fez com que este
mundo acabasse, e esta história fosse recontada e reescrita,
com linguagens que, procurando manter a mesma gramatica,
tiveram, porém que incorporar termos do outro. (Pompa, 2003,
p.7)

As representações7 elaboradas a partir de ambos os pontos de vista sobre um e


sobre o outro, podem – ou não – responderem seus interesses ocultos em questão.
Enquanto, de um lado, temos um personagem que está disposto a passar a doutrina
cosmogônica do universo cristão – afirmando que toda e qualquer manifestação da
realidade está associada às escrituras antigas e às interpretações européias do Novo
Mundo, como o mito Português de São Tomé, por exemplo8 –, do outro lado temos um
4

outro personágem até então estranho para o primeiro, o qual não negava um interesse
na absorção do outro, só que segundo os seus costumes e práticas. Essa relação, por
exemplo, pode ser associada ao fato de os indígenas terem certo interesse de perceber
o missionário como seu pajé, traduzindo-o conforme o papel social do lider religioso na
aldeia.
A nebulosidade das fontes em revelar o ponto de vista do indígena é uma
constante. Essa relação de mediação cultural proposta pelos missionários permitiu
alguns apontamentos de como esse lado indígena pode se manifestar. Entretanto, o
problema da definição do universo de pertencimento das práticas culturais que o
missionário põe em circulação, ou, dito de outro modo, uma vez que a construção
simbólica do outro não é prerrogativa da cultura ocidental, será preciso construir uma
abordagem que, de algum modo, incorpore à análise o ponto de vista nativo.
Trabalhos apoiados no ponto de vista do “perspectivismo” proposto por Eduardo
Viveiros de Castro são apontamentos hipotéticos de como podemos perceber a
dinâmica cultural dos povos tupis com os missionários. O exemplo do Mármore e a
Murta – usado por Antônio Vieira para explicar o quão volúvel era a natureza daquele
gentio – e a inconstância da alma selvagem é um significativo avanço da
inteligibilidade do documento: a apropriação dos rituais católico-cristãos por parte do
índio e a relação de alteridade dos significados destes rituais é um exemplo de como a
apropriação e a ressignificação de práticas, signos e outros mecanismos de uma
cultura foi, pelo menos até certo ponto, uma real constante naquela vida de “mundos
numa mesma terra” (Viveiros de Castro, 2002).
Outro ponto que é interessante ressaltar é o de que, ainda segundo Viveiros de
Castro, muitos povos do continente americano compartilham do pressuposto de que a
humanidade é a “matéria primordial”, ou a forma originária de virtualmente todo ser
(Viveiros de Castro, apud Monteiro, 2006): do mesmo modo que concebemos o
substrato animal de nossa humanidade, o pensamento indígena concebe o substrato
humano dos seres do cosmos como condição universal, ainda que esta não possa ser
percebi da de maneira imediata. Esse pode ser considerado um importante filtro para
entender as representações do ponto de vista do indígena, pois os sentidos cosmogônicos
do indígena podem (ou não) estarem evidentes dentro dos relatos dos missionários, pois:

A perspectiva histórica precisa partir da hipótese de que até o


que chamamos de "sentido da vida e da morte" bem como
todas as noções que projetamos no plano universal sejam na
verdade o produto histórico das relações entre as civilizações da
Idade Moderna, que, não por acaso, se abre com a descoberta
do Novo Mundo e a conseguinte necessidade social e cultural de
repensar o mundo (Gasbarro, in: Monteiro, 2003, p. 71).
5

Este é um importante passo para problematizar o lado indígena das fontes.


Contudo, ainda são necessários outros trabalhos tanto do campo antropológico,
passando pelo sociológico, quanto do histórico.

Traduções culturais e simbolismos mestiços

Cronistas e missionários produziram uma linguagem simbólica negociada a partir de


uma tolerância recíproca: da mesma maneira que o missionário tinha que desenvolver um
papel importante em trazer aquele ‘gentio’ para a fé cristã indo na aldeia e desenvolvendo
missões catequizadoras naquele espaço, os índios buscava incorporar o missionário
segundo seus signos culturais e de linguagem em primeiro momento. Isso permitiu que
pudessem ser narrados universos simbólicos distintos, ainda que possuindo uma “imagem
deformada no espelho” (Pompa, 2003, p.27). Noutras palavras: a experiência
catequizadora, principalmente no século XVI, permitiu que toda a produção documental
eclesiástica atribuísse as características culturais do outro segundo a inteligibilidade possível
naquele espaço, naquele tempo, naquele contexto e naquelas circunstâncias; e a
experiência foi recíproca no tocante a forma com que se incorporavam, por parte dos
indígenas, as características culturais e simbólicas do missionário.
A experiência de identificação e conversão da religião dos selvagens da terra de
Santa Cruz possuía uma característica peculiar se pensarmos segundo as interpretações e
identificações das religiões no Renascimento: os selvagens daquela terra não possuíam fé,
nem lei, nem rei. A religião era definida segundo a identificação de três elementos básicos:
ídolos, templos e sacerdotes. No ‘restante’ da América eram perceptíveis tais elementos nos
mais inúmeros povos com qual a colonização se encontrava, mas na América portuguesa
isso se tornou uma das primeiras querelas com as quais os servos de Deus precisaram lidar.
Dessa maneira, os missionários ‘construíram’ toda uma religião indígena, com suas
escatologias e seus representantes sacerdotais. Essa construção tinha como alicerce as
estruturas do milenarismo medieval – através do qual, também, se acreditava que partes
das escatologias da bíblia estavam acontecendo com a descoberta do Novo Mundo – e do
paganismo clássico (transformado em idolatria pelo cristianismo); a composição deste
“hibridismo cultural” eram os mitos e ritos dos nativos, afim de promover a ação, uma
verdadeira faca de dois gumes: mostrar, através de uma linguagem de fácil interpretação
para esses índios, o caminho para a fé cristã ocidental.
A necessidade da ‘criação’ – ou identificação/mapeamento – de um panorama
religioso na América portuguesa quinhentista – ou seja, uma religião tupi, a princípio – era
absolutamente importante, pois a superação religiosa do cristianismo tridentino perante o
paganismo indígena deveria ser executada de imediato. O procedimento de conquista do
6

novo mundo via a necessidade de combate às religiões xamânicas, necessidade esta que
estava tanto entrelaçada a um dever material – o progresso e real ‘controle’ da colônia e da
sua extensão humana e natural – quanto sobrenatural – propagar a doutrina cristã a fim de
trazer mais adeptos para a religião e para seus representantes na terra: o rei e o papa.
Todo esse movimento se deve ao fato de que no Brasil não havia uma “religião pagã
única”, como entre os incas e os cultos mesoamericanos de outros povos. Os portugueses
do contato, até certo ponto, perceberam o sucesso da conquista espanhola, e a tomaram
como uma espécie de modelo a ser compartilhado no tocante à questão dos índios do
Brasil.
Por outro lado, como dito anteriormente, os indígenas mostraram-se dispostos
a aceitar essas doutrinas e construções messiânicas. Contudo, isso tudo tinha um
preço: as interpretações estavam associadas segundo os seus sentidos, executando-os
segundo suas práticas e termos. Essa prática fazia com que o missionário tivesse
interpretações possíveis segundo suas tradições9; essa relação começa a se
reconfigurar no decorrer dos contatos posteriores, possuindo outras características e
outros encontros (lembrando que o encontro é um conceito que deve ser
problematizado segundo o contexto/forma pelo qual se deu).
Inclusive quem descreveu – destaque para a nacionalidade; pertencia a qual
instituição eclesiástica etc. – também traz consigo características de uma ótica
diferenciadora, com perspectivas e interesses que muitas vezes podem ser singulares.
Tomando como exemplo disto, temos a ideia de que os cronistas associavam o
demônio como o estopim que alimentava as idolatrias ameríndias.

O diabo, o rei da mentira, é quem macaqueia e corrompe as


puras imagens da fé para conquistar as almas dos índios...
através dos grandes xamâs, dos pajés ou caraíbas, que as fontes
chamam, obviamente, de feiticeiros e, menos obviamente, de
“santos”, “santidades”, ou, finalmente, “profetas”... os
intermediários entre o diabo e as almas selvagens (Pompa, 2003,
p.49).

A presença dos elementos da cultura cosmológica (e cosmogônica) europeia


tinha espaço nas linguagens iconográficas.
7

10

Aygnan Cacodaemon Barbaros Vexat. Ilustração do Texto de


Jean de Léry Le Voyage au Brésil, editado por De Bry
em America Tretia Pars..., 3° volume de Grands Voyages,
Frankfurt, 1592, p.223. (BELLUZZO, 2000, p.43)

Na obra Aygnan Cacodaemon Barbaros Vexat Theodore De Bry traz, em


ilustração, o imaginário representado por ele do novo mundo e da gente que o
compunha, destacando ostensivamente a participação destes elementos peculiares da
cultura cristã europeia sobre a vida dos povos ameríndios. Contudo, ainda que “as
imagens apresentadas pela editoria do século XVI discrepam frequentemente dos
textos dos viajantes,... [as] representações dos costumes indígenas não se pauta pela
observação empírica (...)” (Pompa, 2003, p.37), mas sim como um estigma do
“imaginário ocidental, recebendo uma classificação de valor” (idem, p. 38).
A partir destas interpretações, acreditava-se que as idolatrias ameríndias “(...)
se assentavam na macaqueação grosseira das obras de Deus, expressas nos
sacrifícios humanos, na antropofagia, na sodomia, na adivinhação onde o diabo
intervia oralmente” (SOUZA, 1993, p.35) uma vez que o corpo eclesiástico acreditava,
de inicio, que o demônio havia ‘fugido’ da Europa e tinha se assentado no restante do
mundo, sendo o missionário o responsável pela aplicação da fé cristã nos cantos
daquele Novo Mundo, sendo chamariz da salvação.

Considerações Finais

A incondicional colaboração e articulação da Antropologia com a História foi (e


é!) um dos pontos-chave dentro dessa discussão. Nos últimos anos temos uma
significante articulação interdisciplinar para podermos problematizar a história
indígena de um modo geral, gerando significativos resultados. Contudo, além de ser
um processo relativamente lento e precoce, a problematização temática, segundo essa
perspectiva, ainda não possui uma grande quantidade de trabalhos – mesmo que haja
certo esforço.
8

A construção da fonte no tocante a quem a produziu revela o valor por trás das
representações das práticas dos indígenas. Seja no campo das relações de mediação
cultural, seja no ponto de vista da tradução cultural, passando pelos planos teórico-
metodológicos da história cultural – como o de representação, por exemplo –, os
filtros metodológicos para discutir as relações de contato entre indígenas e europeus
são importantes mecanismos para o historiador que estuda esse período – e outros
também, ainda que trabalhe com outros imensuráveis contextos – que tem como
protagonista, para aquela época, um confuso e ‘selvagem’ espaço simbólico. Os
trabalhos como de Cristina Pompa sobre tradução cultural e o de Paula Monteiro sobre
mediação cultural são importantíssimos aportes teórico-metodológico dentro desse
leque de possibilidades da leitura do outro no viés religioso, problematizando desde
pequenos detalhes que pertencem ao cotidiano produzido durante as fontes (não em
seus mínimos detalhes, mas como articular aquilo que se produziu –
documentalmente falando - numa conjuntura espacial/temporal a partir destes aportes
teórico-metodológicos) até perceber o quão importante é entender a questão do
imaginário cosmológico de ambas as partes – como, em parte, propõe Viveiros de
Castro.
Em suma, a exigência de maior número de trabalhos no campo é uma
constante para qualquer tema historiográfico. No que diz respeito a essa nova história
indígena (seja ela no período colonial, imperial e contemporâneo), ainda temos muito
que avançar, principalmente na formação dos profissionais; é interessante formar
profissionais que possuam uma bagagem teórica que percorra entre a história e a
antropologia, permitindo um dialogo interdisciplinar mais próximo e um
desenvolvimento historiográfico mais rico. Estreitar o diálogo entre as duas áreas
humanas e dialogar com outras (como a sociologia e a filosofia, por exemplo) deve ser
uma constante neste debate.

Referências

ALMEIDA, Maria Regina celestino de. Identidades Étnicas e culturais. Novas


perspectivas para a história indígena. In: ABREU, Marta & SOIHET, Rachel (Org.).
Ensino de história; conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2003.

____________. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro, FGV, 2010.

BELLUZZO, Ana Maria Moraes de. O Brasil dos Viajantes. Rio de Janeiro, Objetiva,
2000.

CHARTIER, Roger. A história Cultural: entre práticas e representações culturais. Rio


9

de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

GRUZINSKI, Serge. A Colonização do Imaginário. São Paulo, Companhia das


Letras, 2003.

____________. O Historiador, o macaco e a centaura: a ‘História Cultural’ no novo


Milênio. In: Revista Estudos Avançados. 17(49) São Paulo, 2003, p. 321-342.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no


descobrimento e colonização do Brasil, São Paulo, Editora Brasiliense, 2002.

MONTEIRO, John M. Tupis, Tapuias e Historiadores. Estudos de História Indígena e


do Indigenismo. Tese de Livre Docência. Unicamp, 2001.

MONTEIRO, Paula (Org). Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural.


São Paulo: Globo, 2006.

POMPA, Cristina . Religião como Tradução. Missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil


Colonial. Bauru, Edusc, 2003.

SILVA, Aracy Lopez da. Mitos e cosmologias indígenas no Brasil: Breve introdução. In:
GRUPIONI, Luiz Donisete Benzi (org). Índios no Brasil. São Paulo, Globo, 2005.

SOUZA, Laura de Melo e. O conjunto da América diabólica. São Paulo, Companhia


das Letras, 1993.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da Alma Selvagem. São Paulo:


Cosac& Naifa, 2002.


Graduando em História pela Universidade Federal da Paraíba, sob orientação da Profª. Drª. Regina Célia
Gonçalves no grupo de pesquisa Estado e Sociedade no Nordeste Colonial.
2
Os trabalhos do John Manuel Monteiro (2001) e de Maria Regina Celestino (2010) são ótimas referências
para apreciar essas discussões sobre a nova história indígena.
3
Para Paula Monteiro, o termo “encontro” deve apresentar um caráter simbólico/metafórico para designar
um espaço (que não é físico), aonde o jogo das mediações vai sendo permanentemente feito e refeito (2006).
4
Utilizamos o conceito de ocidentalização formulado por Serge Gruzinski. Para ele, a ocidentalização não é,
de modo algum, um processo fixo. Ela reajusta continuamente seus objetivos. (...) a ocidentalização iniciada
no século XVI não estava à altura de suas ambições e era atormentada por interesses e objetivos
contraditórios, que representavam um obstáculo considerável para os projetos de integração à sociedade
colonial. (2003).
5
Essa discussão nasceu de um processo longo e bastante detalhado de debates dentro da Espanha, tendo
como desfecho principal a famosa disputa de Valladolid, ocorrida entre 1550 e 1551, no qual o imperador
Espanhol, em resposta às críticas da igreja e a violência do desbravamento espanhol nas Américas, só dava
continuidade nas conquistas após o desfecho do debate entre os teólogos Bartolomeu de Las Casas e
Sepúlveda; debate esse que discutia a relação da humanidade indígena: se este possuía alma, ou seja, e
consequentemente, se poderia ser escravizado segundo as leis da escravidão por natureza de Aristóteles ou
não (TOSI, 2003).
6
Segundo Aracy Lopez da Silva, cosmologias são teorias do mundo. Da ordem do mundo, do movimento no
mundo, no espaço e no tempo, no qual a humanidade é apenas um dos muitos personagens em cena.
Definem o lugar que ela ocupa no cenário total e expressam concepções que revelam a interdependência
permanente e a reciprocidade constante nas trocas de energias e forças vitais, de conhecimentos, habilidades
e capacidades que dão aos personagens a fonte de sua renovação, perpetuação e criatividade. Na vivência
cotidiana, essas concepções orientam, dão sentido, permitem interpretar acontecimentos e ponderar decisões.
São, de modo sintético, expressas com clareza exemplar através da linguagem altamente simbólica da
10

dramaturgia dos rituais. Música, gestualidade estereotipada mas sempre criadora, ornamentos corporais mais
ou menos exuberantes, entre outros recursos, permitem o contato com outras dimensões cósmicas que aquela
habitualmente ocupada pelos humanos e com momentos outros do mundo e do processo da vida (e da morte).
(In: GRUPIONI, 2005, p. 75.)
7
As representações, segundo Roger Chartier (1990), são sempre determinadas pelos interesses dos grupos
que a forjam.
8
Acreditavam-se, como nos mostra Sérgio Buarque em Visão do Paraíso (2002), que no continente
americano se encontra o paraíso terreal, produzindo interpretações e visões daquele mundo de acordo com
cada experiência colonizadora. No caso Português, por exemplo, o mito de São Tomé revela a ideia de que os
apóstolos haviam se espalhado no restante do mundo para fim de propagar a fé cristã. E este mito foi tratado
de forma diacrítica quanto a outros mitos Tupinambá (POMPA, 2003).
9
Para Maria Regina Celestino, o conceito de tradição (...) tem sido repensado, prevalecendo, hoje, o
pressuposto de que ela sempre se modifica ao ser transmitida. Tudo que se transmite é recebido conforme a
maneira do recebedor, o que implica em valorizar mais a apropriação do que a transmissão.
10
Imagem retirada do livro “Andanças pelo Brasil colonial” (2008), de Jean Marcel Carvalho França &
Ronald Raminelli.
1

BRANCOS POR FORA, VERMELHOS POR DENTRO

Dávila Andrade
Sheila Accioly

Resumo:

A bebida ritual conhecida como ayahuasca tem sido utilizada ritualísticamente por
povos amazônicos desde tempos pré-colombianos. Das práticas xamânicas das
florestas equatoriais da América do Sul, a ayahuasca passou a ser utilizada por
populações não-índias no século XX, tendo como referência mais conhecida a
doutrina do Santo Daime. O artigo propõe uma análise inicial acerca da
reconfiguração daimista do milenar culto xamânico vegetalista e da consequente
divulgação global de elementos da identidade cultural indígena amazônica. Tece,
ainda, sob uma perspectiva compreensiva, considerações sobre os deslocamentos
resultantes de contínuos fluxos de hibridismo e sincretismo, sobre as movências
discursivas e sobre o ethos nômade, forjado nos trânsitos entre tradição e
modernidade.

Palavras-chave: Identidade indígena. Ayahuasca. Santo Daime.

Quando o Tempo do Búfalo estiver para chegar, a


terceira geração de crianças de olhos brancos deixará
crescer os cabelos, e começará a falar do Amor que
trará a cura para todos os filhos da Terra. Estas
crianças buscarão novas maneiras de compreender a si
próprias e aos outros. Usarão penas, colares de contas,
e pintarão os rostos. Buscarão os Anciões da nossa
Raça Vermelha para beber da fonte de sua Sabedoria.
Estas crianças de olhos brancos servirão como sinal de
que os nossos Ancestrais estão retornado em corpos
brancos por fora, mas vermelhos por dentro. E elas
aprenderão a caminhar novamente em equilíbrio na
superfície da Mãe Terra, e saberão levar nossas ideias
aos chefes brancos. Estas crianças também terão de
passar por provas, como acontecia quando ainda eram
Ancestrais Vermelhos... A Roda do Arco-íris surgirá sob
a forma de um Cachorro do Sol para todos aqueles que
estiverem prontos para vê-la. O Cachorro do Sol forma
um círculo de arco-íris apontando para as quatro
direções... Esta será a linguagem que o céu usará para
nos dizer que já chegou o momento de compartilhar os
ensinamentos secretos e sagrados entre todas as
raças.

Profecia do Arco-Íris, versão da nação indígena norte-


americana Navajo
2

Introdução
A ayahuasca1 é uma bebida ritual presente entre muitos povos indígenas da
Amazônia central. O uso tribal remete ao xamanismo, às práticas de cura e aos
mitos de origem dos grupos sociais que a produzem e consomem. A referência,
milenar, remonta às origens da religiosidade tribal. O uso sagrado das plantas de
2
poder ou de substâncias enteógenas para fins ritualísticos ou religiosos é
referenciado, desde tempos remotos, nas mais diferentes culturas. A experiência do
sagrado ou ligação com o divino manifestado no sacramento mostra-se como algo
absolutamente diferente do profano, hierofania: algo de sagrado se nos revela
(ELIADE, 2008, p. 17).
Antes restrita aos povos da floresta e periferias de capitais nortistas, a
bebida aportou nos meios urbanos de outras regiões do Brasil há cerca de 30 anos,
“descoberta” no Acre por andarilhos da chamada contracultura dos anos 1970, em
plena onda de misticismo, a caminho de Machu Picchu. Da Amazônia, saiu para
grandes centros urbanos como Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, mais conhecida
na forma do Santo Daime, impelido pela adesão de muitos artistas nacionalmente
conhecidos, como Lucélia Santos, Ney Matogrosso e Maitê Proença.
Ao longo do tempo, os cultos ayahuasqueiros passaram a disputar espaço no
cenário religioso nacional, posteriormente redimensionando sua abrangência e
alargando suas fronteiras para além do território brasileiro, como nos casos mais
notórios do Santo Daime e da União do Vegetal. Atualmente, o chá é consumido
ritualisticamente em 21 países, em quatro continentes. Além disto, pesquisas
registram entre 50 e 70 comunidades indígenas produtoras e consumidoras de
ayahuasca, concentradas, principalmente, nas florestas amazônicas do Brasil, Peru,
Bolívia, Equador, Venezuela, Colômbia, Guiana Francesa e Suriname (STEWARD,
1949; BOLSANELLO, 1995, p. 40). Interessante notar que apenas no Brasil
emergiram religiões de matriz vegetalista institucionalizadas e adaptadas à
realidade urbana, fora do contexto nativo de uso dos povos da floresta. Mesmo
assim, enquanto no Peru, por exemplo, a ayahuasca encontra-se, hoje, no patamar
de patrimônio imaterial do povo daquela nação, no caso brasileiro, o que assegura
o uso ritual por populações urbanas está garantido apenas na lei que institui a
liberdade de culto. No Brasil, o projeto de tombamento que, inicialmente, abarcaria
apenas as regiões onde foram fundadas as doutrinas, está em andamento e
possível ampliação.
A tradição vegetalista brasileira nasceu na região amazônica, de onde se
originam as espécimes botânicas utilizadas na produção da bebida, em um contexto
de uso popular de plantas enteógenas, vastamente empregadas pelas populações
3

locais, costume possivelmente inflenciado por pueblos andinos que, por sua vez,
herdaram da cultura incaica (RIBEIRO, 2005). A ayahuasca, à qual são atribuídos
poderes transcendentais, é mais um elemento amazônico que, na lógica da
globalização, através de processos de expansão de algumas vertentes doutrinárias,
chega à Europa, Ásia, África e Estados Unidos. A religião cabocla figura como
difusora de uma identidade cultural claramente brasileira, afirmada nos patrimônios
materiais e imateriais, além da língua portuguesa.
O artigo em tela, como pesquisa em andamento, discute, em caráter
preliminar, a ressurgência e reconfigurações da identidade indígena através de
diálogos e alianças com comunidades e lideranças daimistas. Tece, ainda, sob uma
perspectiva compreensiva, considerações sobre os deslocamentos resultantes de
contínuos fluxos de hibridismo e sincretismo, sobre as movências discursivas e
sobre o ethos nômade, forjado nos trânsitos entre tradição e modernidade.

Mapa da ayahuasca

O preparo e consumo da ayahuasca foram referenciados em 52 tribos dos


troncos Pano, Aruak, Tukano e Maku (TAUSSIG, 1993; BOLSANELLO, 1995; LUZ,
2011; STEWARD, 1949). No entanto, há quem registre até 72 tribos vegetalistas
(BOLSANELLO, 1995). O contato de não-índios com a bebida passa a se intensificar
desde que os primeiros seringueiros aportaram no norte.

Figura 1: Mapa da cultura da ayahuasca entre povos indígenas da América Latina


4

Fonte: http://www.ayahuasca.com/spirit/primordial-and-traditional-culture/what-
indigenous-groups-traditionally-use-ayahuasca/3

O mapa situa o uso tradicional indígena. No entanto, pode-se dizer que,


hoje, a expansão ayahuasqueira desenha outro mapa, difuso e global. Luna (2011)
destaca que os primeiros colonizadores das Américas logo conheceram plantas de
uso ritual, entre elas, a ayahuasca. Mircea Eliade (2002) afirma que o uso das
plantas de poder foi considerado uma forma primitiva de conhecimento, advindo do
transe ou alterações de consciência. German Zuluaga (2004) define o conceito de
transe como mudanças de consciência no indivíduo, há vários séculos interpretadas
como perturbações ou patologias rotuladas sob o termo alucinação. O uso dessas
plantas não são bem compreendidas pela ciência ocidental, porém,

A busca do transe parece ser uma constante do chamado


Homo sapiens. É próprio das diferentes tradições
religiosas promover o transe através de mecanismos
endógenos: oração, mantras, meditação, jejuns, vigília,
mortificação, exercícios corporais, respiração, entre outros
(...) Os trabalhos sobre o fenômeno do xamanismo
revelam que também o transe se converte no objetivo
mais importante. Entretanto isso é feito aqui através de
mecanismos exóganos; ou seja, mediante consumo de
substâncias e plantas que produzem alterações de
consciência. (ZULUAGA, 2002, p.129)

No entanto, por influências de igreja católica da época, foram decretadas


demoníacas, banidas, perseguidas ou, simplesmente, ignoradas. Séculos se
passaram até que os primeiros contatos dos seringueiros com a bebida assinalaram
o começo de processos de des-re-territorialização do vegetalismo, que se desloca
dos lugares típicos da tradição, forjando laços com a modernidade através da
contracultura. Desta forma, pode-se afirmar que a cartografia também se
reconfigura do ponto de vista da geografia humana.

No berço acreano, por exemplo, além do uso indígena, tem-se, nos meios
urbanos, que a ayahuasca é cultura de classes populares, repassada entre
familiares. Neste contexto nortista, a maior parte dos adeptos são pessoas pobres
ou de classe média. Muitos jovens acreanos desprezam a tradição, que consideram
“coisa de gente velha”. Já no Sul e Sudeste, ao contrário, jovens formam a maioria
dos adeptos dos cultos vegetalistas, vistos como movimentos transgressores e
contraculturais. Pois, no bojo do seu discurso contra-hegemônico, a contracultura
trouxe, na busca por estéticas alternativas, a revalorização de antigos saberes
(ROSZAK, 1972, p. 33) e a intensificação dos trânsitos entre sagrado e profano
5

(CARRIÓN, 1999; ELIADE, 2008). O papel da religião nas migrações e diásporas


culturais é uma questão relevante: “estreitamente, mas não somente, em razão da
globalização nos anos 1990, estamos lidando, mundialmente, com amplos
movimentos de migração, graças aos quais se modificou o perfil de regiões inteiras”
(HOCK, 2010, p. 231).

Santo, dai-me ayahuasca

Em idos de 1930, o seringueiro maranhense Raimundo Irineu Serra (1892-


1971), neto de escravos, posteriormente chamado Mestre Irineu, abriu
publicamente a doutrina do Santo Daime, um complexo sincrético e mestiço de
referenciais religiosos e esotéricos adaptado ao uso ritual da bebida. Irineu
conheceu a bebida entre 1914 e 1916, em seringais fronteiriços, na região
compreendida entre Brasileia (AC) e a cidade boliviana de Cobija, arredores da
tríplice fronteira entre Brasil, Bolívia e Peru. Segundo Moreira e MacRae (2011, p.
59), Mestre Irineu “efetuou, assim, uma importante atualização dos códigos
ayahuasqueiros, até então somente compreensíveis para determinados grupos
étnicos”; para tanto, “paulatinamente foi descartando ou dando menor ênfase aos
traços de origem indígena”, assim como “repeliu energicamente os antigos usos
agressivos da ayahuasca, como o exercício da feitiçaria para os mais variados fins”.
Ao uso tradicional da bebida como medicina indígena, incorporou referenciais do
catolicismo, esoterismo e espiritismo, compondo um culto diferenciado.
Moreira e MacRae (2011, p. 137-139) chamam a atenção para a quantidade
de alusões indígenas nos “chamados” e cantos que compõem uma coletânea de
hinos recebidos por Irineu. Os chamados procedem dos icaros vegetalistas,
empregados por ayahuasqueiros. Há relatos de emissões sonoras específicas para
chamada de uma entidade espiritual denominada Pakaconshinawá, atribuída pelos
pesquisadores a algum contato de Irineu com a cultura indígena do tronco
linguístico Pano, provavelmente no Alto Purus. Mas a maioria dos nomes presentes
em seus cânticos vem do tronco tupi, remetendo às suas origens maranhenses:
Tuperci (filho de Deus), Jaci (lua), Ripi (curioso, pessoa, você), Tarumim (Mãe
D’Água), Currupipipiraguá (Curupira), Soloína (p. 137); já Titango, Tintuma e
Agarrube, (identificados com os três reis magos) são de matriz desconhecida.

[...] nomes desse tipo ocorrem muito mais nos primeiros


tempos da formação da nova doutrina, uma vez que,
posteriormente, tanto a cosmologia indígena quanto a
africana, foram perdendo espaço para elementos do
catolicismo, numa espécie de “branqueamento” de seus
6

valores e de perda de lembrança de seus significados


originais. (p. 139)

No entanto, como o hinário do Mestre Irineu é o bastião da doutrina,


conservam-se as marcas primitivas e o Santo Daime apresenta-se no cenário da
religiosidade brasiliana como um culto de fortes referenciais indígenas
reconfigurados. Além da ayahuasca, a cultura daimista reelabora, em sua paisagem
religiosa, algumas medicinas indígenas, como o kambô, o tabaco e o rapé.

Indianidade, etnicidade, identidade

O conceito de indianidade navega na fluidez das ideias coletivamente


construídas e historicamente negociadas, sujeita a movências sempre-já
discursivas. Pode-se dizer que o conceito de indianidade abarca definições que se
estendem sobre um imanente devir. Portanto, o provisório é sua marca. Para
Viveiros de Castro (2011, p. 265),

[...] índio não é um conceito que remete apenas, ou mesmo


principalmente, ao passado – é-se índio porque se foi índio –,
mas também um conceito que remete ao futuro – é possível
voltar a ser índio, é possível tornar-se índio. A indianidade é
um projeto de futuro, não uma memória do passado.

Dessa forma, visando um futuro, ou uma ponte entre um passado e um


futuro, o conceito se refaz constantemente.
Por outro lado, o conceito de etnicidade é uma afirmação étnico-política
da indianidade e uma construção sócio-científica que conjuga e articula a ideia de
etnia em pactos de integração social de grupos, organizando a diferença cultural.
Segundo Barth (1969), grupos étnicos são unidades portadoras de cultura,
resultando de interações sociais. Estas interações estabelecem características
físicas e culturais, além de valores e instituições. O círculo se fecha de volta ao
começo quando as características definem formas, regras e padrões de
relacionamento que, por sua vez, criam e mantêm as fronteiras étnicas. A
intersecção entre os conceitos resulta em um espaço simbólico de socialização ou
identificação étnica.

Ethos nômade

Entre as diversas tribos que lutam pela afirmação étnica no Brasil,


apontamos, aqui, o caso específico do povo Yawanawá, habitantes do estado do
7

Acre, no qual se vê claramente que a etnicidade é marcada e afirmada pelo


referencial identitário ayahuasqueiro. O mesmo se observa em relação a outras
etnias, notadamente naquelas que sofreram rupturas devidas ao aculturamento em
suas tradições e recuperaram alguma coesão social em reafirmações do paradigma
religioso de matriz xamânica.
Neste contexto, o que chamamos aqui de ethos nômade refere-se ao sentido
adaptativo e plástico dos discursos através das reconfigurações possíveis, não
propriamente a deslocamentos físicos. O trabalho carismático de reengendramento
identitário efetuado pelo cacique e pajé Biraci, começando pela expulsão de
evangelizadores pentecostais, centra-se na busca da reconstrução de uma
identidade sincrônica, tradicional e religiosa, ou seja, um eixo axial ao redor do qual
a identidade da tribo possa gravitar, fluir em equilíbrio dinâmico, evitando a
estagnação e a desagregação eventualmente produzidas por fatores diacrônicos. A
retomada da cultura oasqueira é a marca de sua liderança teocrática, ao mesmo
tempo política e religiosa, da qual emana seu poder e sua proposta integradora.

Políticas étnicas e territorialização


Os Yawanawás foram, historicamente, submetidos por seringalistas em suas
próprias terras. Em meados do século XX, missionários evangélicos estrangeiros do
projeto Novas Tribos do Brasil instalaram-se entre eles. Entre fricções e fissuras
internas, foi somente após a demarcação de terras indígenas pelo governo federal,
iniciada entre o final dos anos 1970 e implementada no início da década de 80, que
tiveram o direito à terra reconhecido. Pode-se afirmar que as políticas indigenistas
propiciaram uma retomada da cultura pelo povo Yawanawá. Liderados por alguns
de seus jovens que tiveram a oportunidade de estudar nas cidades, expulsaram os
missionários e (re)tomaram as rédeas de seu próprio destino. A terra dos
Yawanawás fica no alto rio Gregório (Tarauacá/AC), subindo até as cabeceiras do
rio Juruá, contando mais de 186 mil hectares. O acesso fluvial é mais fácil e rápido
até a aldeia principal, a Nova Esperança.
Em 2008, Gilberto Gil, então Ministro da Cultura, encaminhou ao Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) um pedido de abertura de
processo para tombamento da ayahuasca como patrimônio imaterial brasileiro. Dois
anos depois, representantes acreanos dos povos Pano reivindicaram participação no
processo (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2010), buscando uma maior participação
política na defesa de seus interesses. Em março de 2013, o cacique Biraci Brasil
participou do Fórum Social Mundial na Tunísia, zelando pelas esperanças
yawanawás.
8

Pode-se dizer que os Yawanawás passam, atualmente, por um período de


etnodesenvolvimento. Ou seja, de ampliação de seu capital étnico pela divulgação e
afirmação de seus valores e pela participação cada vez maior no cenário das
etnopolíticas, redefinindo não apenas mapas territoriais e identitários, mas as
representações sociais sobre a indianidade no Brasil.

Aliança Yawanawá
Os Yawanawá, da etnia Pano (que significa povo da ‘queixada', denominação
local para os javalis, caça abundante na região, próximo ao município acreano de
Tarauacá), passaram por um período de dominação branca, primeiro pelos
seringalistas, depois por missionários protestantes norte-americanos, expulsos pelo
cacique e pajé Biraci Brasil (Nixiwaca), responsável pelo revigoramento da cultura,
a partir da construção da aldeia Nova Esperança, em 1982, reempoderando as
forças de liderança pela união de fé e política. O próprio Biraci conta que

No passado foi muita humilhação, discriminação, tanta que


nós recolhemos nossa felicidade e nossa alegria, por que o
branco nos criticava, mangava da gente, nós éramos feios
para a sociedade. Hoje é diferente, a sociedade branca vem
de várias partes do Brasil e do mundo nos prestigiar, tira
suas roupas, pinta seus corpos com jenipapo e urucum,
brinca junto com a gente. Isso nos orgulha [...]. (apud
SCHNEIDER, s/d)

Desde 2002, o povo Yawanawá entrou no circuito do etnoturismo mundial


com o Festival Yawa, uma celebração de cinco dias de ritos, cantos, danças e jogos,
recebendo, além de tribos vizinhas, como os Ashinanka, Katuquina, Puyanawa,
Nukini e Kuntanawa, convidados de outras regiões do Brasil e de outros países. O
que os Yawanawás fizeram foi expandir a festa tradicional da tribo e admitir a
presença de brancos, muitos via agências de turismo.
Segundo Labate & Feeney (2011)4,

A participação em cerimônias xamânicas locais, ou


workshops, tornou-se uma atração em países como Peru,
Equador e Colômbia, e muitos dos xamãs que coordenam
retiros para estrangeiros começam a viajar para o exterior,
dividindo suas tradições e práticas culturais com um público
mais amplo.

O Festival Yawa tornou-se referência de espiritualidade e cultura indígena no


Acre, destacando-se entre 14 povos indígenas e inserindo-se no calendário de
atrações turísticas e no roteiro do etnoturismo do estado. O governo auxilia,
9

organizando a visitação e inserindo o evento no roteiro Caminhos das Aldeias e da


Biodiversidade.

Figura 2: Cacique Biraci (ao centro, com cocar amarelo)


Foto: Onofre Brito (Assessoria de Comunicação do Governo do Estado do Acre)
Fonte:
http://www.agencia.ac.gov.br/index.php?Itemid=26&id=10939&option=com_conte
nt&task=view

Os rituais religiosos são a principal atração para os visitantes que vão ao


festival, assim como também para as pessoas interessadas em conhecer as
medicinas da floresta: o veneno do sapo kambô 5 , o rapé 6 e uni, que é a
denominação nativa para a ayahuasca. Dentre os apreciadores e curiosos, a
maioria é composta por daimistas.

A aliança entre Yawanawás e daimistas começou em 2009, com a retomada


da religiosidade tradicional da tribo, após 27 anos de submissão a missionários
evangélicos. Daimistas oriundos do Centro de Estudos da Ayahuasca Flor de
Jurema, comunidade ribeirinha do Rio Croa (AC), contribuíram com a matéria-
prima, com a construção conjunta de uma estação de feitio de ayahuasca e com a
participação nas primeiras sessões. “Não resta dúvidas na aldeia de que o povo do
Daime é irmão, quase como se fosse outro povo indígena”, afirma o jornalista e
daimista Flaviano Schneider (S/D).

Não foi a primeira vez que daimistas foram chamados a auxiliar retomadas
culturais indígenas em território acreano. Em 1993, um grupo liderado por Wilson
Carneiro de Souza, patriarca da Colônia Cinco Mil, saiu das proximidades de Rio
Branco (AC) rumo ao município de Boca-do-Acre (AM), para realizar um trabalho
espiritual dedicado à cura do cacique dos Apurinãs, pois o pajé da tribo havia
10

morrido sem repassar seus saberes, posto que os jovens, encantados com a cultura
branca, não se interessavam pelos valores tradicionais. Na avaliação de Bolsanello
(1995, p. 31),

As culturas nativas amazônicas sucumbiram ao poderio


branco não por não possuírem complexos sistemas religiosos
que pudessem barrar as práticas religiosas dos
colonizadores, mas por causa das doenças e mortes
causadas pelo “civilizador”, por sua tecnologia, que foi
despersonalizando o índio e dispersando tribos, fazendo-os
desacreditar nas soluções de vida que sua própria cultura
poderia oferecer.

Entre os dias 27 de outubro e 4 de novembro de 2012 aconteceu, no Rio de


Janeiro, um festival religioso em comemoração aos 30 anos da Igreja Céu do Mar,
primeiro reduto daimista fora da Região Norte. Foram realizados rituais “de
terreiro” e “de salão”, reunindo índios e adeptos com suas fardas tradicionais;
contíguo ao ritual daimista, abriu-se a sessão Yawanawá, com cantos e danças. Na
ocasião, o dirigente da casa, Paulo Roberto Silva e Souza, foi presenteado
oficialmente com um cocar, simbolizando a irmandade com os índios e a renovação
de uma aliança entre as duas linhas ayahuasqueiras. A presença dos índios no Céu
do Mar não foi um evento casual. Esta aproximação simbiótica já tem alguns anos,
o que tem enriquecido e contribuído com um novo e vigoroso valor agregado à
cultura daimista, assim como tem auxiliado na ressurgência e re-apresentação
social da cultura indígena. Após o festival, a mesma comitiva indígena percorreu
parte do país, subindo para o Nordeste, em uma longa jornada de apresentações
locais de suas medicinas, que se estendeu até março de 2013, acompanhando a
trilha aberta pela aliança daimista por onde passou.
11

Figura 3: Grafite nos muros de entrada da Igreja Céu do Mar, representando a


união entre daimistas e Yawanawás.
Fonte: http://3.bp.blogspot.com/-kvoYFXLgI-
A/Tebu0bxc09I/AAAAAAAAAdw/_fYXaiMBAEY/s1600/230002_226104650736161_1
00000098843778_1022201_5611104_n.jpg

As marcas da presença indígena, aqui exemplificada pelo caso particular dos


Yawanawás e representada pelos membros de seu povo que acompanham e
colaboram com o Santo Daime, somando com medicinas ancestrais, surgem, agora,
mais fortes, como antigos aliados, no contexto daimista, replantando, assim, a
cultura dos povos da floresta.

Pluralismo e hibridismo
Há estudos que discutem a apropriação de referenciais indígenas pelos
cultos umbandistas, notadamente os do catimbó, como é o caso do culto da Jurema
(SALLES, 2010). Por outro lado, o uso urbano da ayahuasca tem resultado em
religiosidades híbridas e múltiplas, seguindo uma tendência apontada pelo Censo
2010 do IBGE (2010) e pela antropóloga Beatriz Labate (apud ARRAES, 2010), que
confirmam o diálogo entre práticas vegetalistas e tradições “orientalistas,
hinduístas, umbanda e terapias humanísticas como meditação, yoga, expressões
artísticas diferentes”. Como um dos resultados destes diálogos, surge o
umbandaime, fusão do Daime com umbanda, incorporando o uso ritual
da ayahuasca.
12

Dentro da perspectiva do imaginário afro-brasileiro, o elemento indígena


passa a constituir uma vertente do panteão de entidades caboclas, ora mesclando-
se ao cortejo do orixá Oxossi, senhor das matas, ora ligado à legião de Ogum, orixá
guerreiro; ou, ainda, na corrente dos seres das águas.

Quem são os índios destas matas / Que aqui vêm trabalhar


Eles têm pena, estes caboclos / E agora vão chacoalhar

Não é Tupi, não é Guarani / Esta tribo é do Astral


O seu cacique é Oxóssi / O Rei deste Jagubal

Entre nascendo e renascendo / Aqui e em outros planos


Em uma vida foi sacerdote / Em outra, índio americano
(MARQUES, s/d)

Caboclos e índios, personagens típicos de uma brasilidade, se afirmam no


cenário de novos movimentos religiosos, campo das novas expressões religiosas no
qual o popular e o local figuram no centro. Assim se revaloriza a tradição indígena,
historicamente marginalizada por concepções universalistas de mundo e cultura.

Pequeno inventário de referências indígenas na cultura daimista

Não obstante ser apresentado como inovação diante de abordagens


consideradas mais ortodoxas, o uso do tabaco já havia sido incorporado pelo Mestre
Irineu, conforme afirmam Moreira e MacRae (p. 139-140, 2011):

Inicialmente, Mestre Irineu também costumava fazer uma


prática análoga, soprando fumaça de tabaco sobre a bebida,
para fazer o que chamava de “daime curado”. [...] Mas,
Mestre Irineu raramente repassou aos seus seguidores o
conhecimento específico sobre diferentes usos rituais do
tabaco, como assoprar fumaça no copo para “curar” o daime
ou usar um charuto para tirar “afluído forte”, ou miração, de
quem estava em agonia. [...] Embora fossem poucos os que
receberam a sua autorização para trabalhar dessa forma com
o tabaco, muitos se sentiram estimulados a usá-lo em
conjunto com o daime, para aumentar o “afluído”. Antigos
seguidores de Mestre Irineu se lembram de discursos que ele
fazia estimulando esse uso: “o bom aoasqueiro usa tabaco”.

Da mesma forma, o rapé já era velho companheiro de Irineu: “Mestre Irineu


fazia o seu próprio rapé [...] (cravo [...], erva doce [...], imburana de cheiro [...],
pião do Paraguai [...], cabacinha [...] e tabaco [...])” (MOREIRA; MACRAE, 2011, p.
13

141-142). Os pesquisadores registram ainda o uso do rapé nos feitios da bebida,


para evitar resfriados.
Na performance ritual daimista, um elemento mostra a clara influência
cultural indígena: o uso do maracá, instrumento indispensável nas liturgias,
apontado por muitos como item obrigatório aos membros “fardados”. De forma não
necessária, vê-se também, muitas vezes, a adoção do tambor para embalar os
cultos. Nestes casos, juntamente com o maracá, este instrumento torna-se
fundamental na marcação rítmica, na qual “seu simbolismo é complexo, suas
funções mágicas são múltiplas” (ELIADE, 2002).
Além das substâncias ritualísticas de origem indígena, incorporadas como
medicinas ao universo daimista, ocorrem referências registradas nos únicos
arquivos doutrinários: as coletâneas de hinos cantados nas liturgias. Então, um
ponto valioso a ser observado é a musicalidade dos cultos, de elevada importância
tanto para os indígenas quanto para os daimistas, posto que o Santo Daime é tido
como uma doutrina musical. Encontram-se nas coletâneas de cânticos ou hinários
os registros doutrinários e filosóficos, além dos elementos cosmológicos. Nos
louvores a Deus e a todo universo, recebidos pelo Mestre Irineu, estão contidas as
primeiras e principais instruções.
Os hinos são elementos centrais do ritual, que é todo cantado. São entoados
na forma em que foram revelados ou recebidos, conservando, inclusive,
características das variações linguísticas caboclas, transmitidas pela cultura oral.
Cânticos e instrumentos específicos desses ritos fazem parte das técnicas do
êxtase; são caminhos seguros a seguir, bússolas que orientam, guiando os passos
do viajante no acesso a outras dimensões ou estados alterados de percepção.
Existe, aí, uma relação entre cantos, visões e ensinamentos.
A musicalidade é uma característica da experiência religiosa com o uso
cultural-ritual das chamadas “plantas de poder”. Tanto que a aliança entre Yawá, o
pajé do povo Yawanawá, e lideranças daimistas, representadas por Paulo Roberto
Souza e sua esposa, Nonata Mello, dirigentes da igreja Céu do Mar, no Rio de
Janeiro, está registrada em hino e selada em sessões de trabalhos espirituais
conjuntos:

Vejo na Montanha Sagrada/ O espírito que nela está/ É uma


cabocla pintada/ Que pescava na beira-mar... A senhora da
Pedra Grande/ Veio aqui para me curar/ Quem chamou foi
Yawá/ Pajé dos Yawanawá... Aos noventa e sete anos/ Pisou
na beira-mar/ Entrou em minha casa/ e começou a cantar
(...) Com as santas medicinas/ E a magia dos animais/
Trouxe a força da floresta/ Das plantas sacramentais.
(SOUZA, 2009)
14

O líder daimista Paulo Roberto já havia, há anos, estabelecido ligações com


a cultura indígena, não apenas no Brasil. A conexão está refletida igualmente em
seu hinário mais antigo, Luz na Escuridão, no qual consta uma menção a uma visita
que fez a uma igreja daimista mexicana, associando índios a entidades típicas
umbandistas:

Eu vi Ogum em seu cavalo branco / Cavalgando no deserto


Com uns índios americanos / Ogum, Oxóssi, Cheyene,
Cherokee
As falanges de caboclo / Mais bonitas que eu já vi
(SOUZA, s/d)

Outra liderança daimista, Leo Artese, foi dos primeiros a levantar a bandeira
do xamanismo em moldes indígenas, realizando jornadas xamânicas concorridas.
Seus hinos são fartos de referências:

Sou do fogo, eu sou do ar / Águia Dourada eu sou e vou


dançar
Sou guerreiro e vou lutar / Índio Vermelho eu sou, vou
alinhar (ARTESE, s/d-a)

Deus de Jesus, Buda e Maomé / Deus de Quetzal e Moisés,


Deus Zambi e Tupã / Deus de todos é meu Pai
(ARTESE, s/d-b)

Ultimamente, Artese desenvolve terapias xamânicas que envolvem


medicinas ancestrais, como tabaco e rapé, além de outros elementos típicos do
vegetalismo amazônico:

Salve, Salve Deusa da Floresta / Que traz medicinas para nos


curar
Cura, Cura, Cura Curandeiro / O poder dos caboclos, xamãs
e pajés

Dá licença, Mamãe Natureza / Eu chamo seus filhos para


trabalhar
Dá licença, eu unir medicinas / Somando Ayahuasca, tabaco
e rapé

Soma, soma, soma medicinas / O Condor, a Águia e o Gavião


Medicina que não tem fronteiras / Trazendo saúde, paz,
muita bênção

Ayahuasca, Sol, Lua e Estrelas / O Daime, o Mestre Rei


Juramidam
Sirvo o Vinho Sagrado da Mata / Força da Floresta, Luz da
Miração
15

Pai Tabaco, com o Poder do Fogo / Protege e fecha meu


corpo do mal
Sobe, sobe Sagrada Fumaça / Sou Águia Dourada, vou te
acompanhar

Dá licença eu passar medicina / Soprando a Jiboia vou te


levantar
Ela chega, vem e serpenteia / Carrega a força que vem do
rapé

Agradeço, Santas Medicinas / Celeste Aliança e um mesmo


Senhor
Criador, Deus Pai do mundo inteiro / Protege seus filhos com
Vosso Amor.
(ARTESE, s/d-c)

Reflexões finais

Ao se apresentarem juntamente com os daimistas, os índios colaboram


como a legitimação dos rituais, recebendo, em troca, a mesma deferência. A
dimensão do saber ancestral alcançada pela expansão da consciência envolve
estudos da natureza, do universo e do mais íntimo do potencial humano,
atualizando-se perante o novo humanismo refletido nas correntes ambientalistas e
de preservação de tradições. A experiência religiosa alcançada nos cultos que se
valem do uni ou ayahuasca transita na cultura brasileira em fluxos de tradições
diferenciadas e independentes, que por vezes se (re)encontram, embora já
naveguem nas ondas do mesmo mar (ou usem a mesma bebida sagrada), unindo-
se também no mesmo barco, entre hibridismos, sincretismos e simbioses.

Esses movimentos acontecem tanto no sentido do contexto indígena para as


religiões ayahuasqueiras derivadas – aqui, de modo mais particular, o Santo Daime
–, como no sentido oposto, no qual os próprios daimistas buscam os ensinos
indígenas como quem busca o resgate de suas próprias raízes. Pois tanto o Santo
Daime quanto os cultos indígenas são religiosidades vivas e moventes que, por
vezes, tomam novos fôlegos, atualizando a tradição, ao mesmo tempo em que
revigoram os rituais já institucionalizados.

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anos.
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16

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em:
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1. Bebida ritual, também denominada yagé, caapi, huasca. Palavra da língua quéchua. De acordo com
Luna (1986, p. 57), aya quer dizer ‘pessoa morta, “alma”, “espírito” e waska significa “liana”, “cipó”.
Assim, poder-se-ia traduzir ayahuasca como “liana dos espíritos”.
2. O termo “enteógeno” significaria, literalmente, “manifestação do interior divino”. É um neologismo
proposto por investigadores como Gordon Watson, que, na década de 70, estudaram estados alterados de
consciência e plantas de poder (FERREIRA; GNERRE; POSSEBON, 2011, p. 60).
18

3. Na área vermelha do mapa, todas as tribos usam a ayahusca. A área rosa demarca o território de
diversas tribos vegetalistas da floresta amazônica. A bebida é usada também, tanto fora quanto dentro
deste traçado, por povos mestiços e brancos, notadamente nas cidades peruanas de Iquitos e Pucallpa.
Além de tribos esparsas, como os Tsachila e os Chachi no Equador; os Embera e os Choco colombianos.
[tradução das pesquisadoras]
4. P. 15 [paginação atribuída pelas pesquisadoras]
5. A secreção produzida pelo kambô (Phyllomedusa bicolor) é aplicada como vacina, através de discretas
lesões na pele, produzidas artificialmente.
6. Pó medicinal para inalação, feito de raspas vegetais.
MISSÕES PROTESTANTES NA ALDEIA INDÍGENA PATAXÓ HÃ-HÃ-HÃE

Simone Silva de Jesus1

RESUMO

Esse trabalho analisará a presença de duas denominações protestantes na aldeia


indígena Pataxó hã-hã-hãe sendo estas: A Metodista Weslyana e a Assembleia de
Deus Pahai Tupã, esta encontrar-se na aldeia desde 1980. Foram objetos de
investigação: os indígenas protestantes atuantes do trabalho missionário
atualmente, e os anciões indígenas que lutaram no principio para acomodação das
igrejas na comunidade. No inicio a primeira igreja sofreu muita perseguição os
quais proferiam que a presença das igrejas protestantes interferia na cultura, mas
essas manifestações não foram suficientes para impedir sua acomodação e
propagação.

Palavras-chave: Aldeia Indígena- perseguição- trabalho missionário.

INTRODUÇÃO

O objetivo desse trabalho é discorrer sobre como se deu a chegada do


protestantismo na comunidade indígena Pataxó hã-hã-hãe, á trinta anos e com se
deu esse processo de adaptação. Este artigo é resultado de uma serie de
entrevistas realizadas na aldeia onde o foco é conhecer a visão dos indígenas sobre
o protestantismo e o possível sincretismo com a cultura indígena a fim de tentar
perceber como se da essa analogia. Os depoentes foram os protestantes indígenas
anciões fundadores das denominações e outros que trabalham no campo
missionário.

Atualmente, os próprios indígenas contribuem para o crescimento das


igrejas locais, evangelizando os próprios parentes e outros membros da
comunidade, conforme informou a líder de jovens Midian Oliveira Reis, Indígena
Pataxó Hã-Hã-Hãe2. Mesmo assim ainda é um trabalho árduo e segundo Midian eles

1
Licenciada em Historia pela universidade Estadual de Feira de Santana 6º semestre
participante do CPR( Campo de pesquisa da Religião). Bolsista do PIBID- Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência)
2
Depoente Midian Oliveira Reis Indígena Pataxó-Hã-Hã-Hãe.
não desistem por que: - a Bíblia diz que a missão dos cristãos é divulgar a palavra
de Deus pelo mundo3.

Uma das questões a serem abordada neste trabalho foram as dificuldades


de instalação da igreja Pahae tupã e da Metodista Weslyana na Aldeia Indígena
Caramuru Paraguaçu. Os indígenas afirmam que são índios independentes de ser
crentes, pois nos cultos eles dançam o toré, usam suas tangas se pintam e através
de relatos mostram que não perderam seus costumes.

A inserção e a permanecia das igrejas Assembleia de Deus Pahae Tupã e a


Metodista Weslyana

A Assembleia de Deus Pahae Tupã foi a primeira a chegar a aldeia


Caramuru, por volta de 1981 através do casal Valdivino e Esposa eles foram
evangelizados fora da aldeia em 1978 quando tiveram que sair da comunidade por
questões de segurança uma vez que no território estavam ocorrendo disputas pela
posse das terras pelos fazendeiros da região. Nesse período afastado de seu povo e
de seus costumes, converteram-se ao protestantismo aceitando o batismo, que
para eles é a representação da união do pecador a cristo.

Voltando para a aldeia decidiram começar o trabalho missionário levando o


evangelho a cada um, sabiam das dificuldades que enfrentariam, mas não
rejeitaram, começaram as reuniões em seu lar com filhos e os vizinhos mais
próximos. Até ai tudo bem eles não enfrentavam problemas, mas quando decidiram
propagar o evangelho ao resto da comunidade as dificuldades começaram a surgir,
primeiro Sr. Valdivino, hoje Presbítero da igreja, foi a cidade vizinha Pau Brasil
buscar ajudar do pastor e dos irmãos brancos para apoiar no trabalho missionário.
Foi a partir dai que começou a insatisfação do cacique pajé e os demais indígenas.

Os indígenas não aceitavam de forma nenhuma a presença dos “brancos” e


nem a instalação da igreja protestante na Aldeia. O Sr. valdivino foi proibido de
tirar madeira para a construção do templo, contudo decidiu construir com barro,
mas foi derrubada. Os indígenas que se posicionavam contra a permanência da
igreja, diziam que na aldeia indígena não era lugar de crente, pois eles tinham sua
própria cultura e os crentes só viriam acabar com seus costumes, e que tinham
autorização da FUNAI proibindo a instalação, mas na verdade essa autorização não
existia, quando o casal soube disso decidiu enfrentar a todos. A igreja de Pau Brasil

3
Depoente Midian Oliveira Reis, 18 anos Indígena Pataxó-Hã-Hã-Hãe missionária na Igreja Assembleia
de Deus.
decidiu dar a madeira para a construção. Na inauguração eles tentaram derrubar
entrando em conflitos, e alguns desistiram de frequentar a igreja, mas os cultos
continuaram. Então quando viram que os Assembléianos não iriam desistir não
insistiam mais.

Segundo o Presbítero Valdivino Timoteo Atualmente a igreja tem mais de


150 membros, todos indígena Pataxó Hã hã hãe. A aldeia é muito grande e a igreja
não abastece toda a localidade por esse motivo foi construída outra denominação
na comunida de são Vicente, essa liderada pela cacique Ilza.

A cacique Ilza é interrogada sobre o que acha da construção da igreja na


localidade e ela responde:

Essa construção é obra de Deus e ta sobre o controle do


senhor porque a gente sabe que tudo que tem a mão do
senhor não tem impedimento que não cai por terra, teve
muitos impedimentos para essa construção os irmãos tem
lutado muito para que essa construção seja feita mas eu
creio em nome de Jesus que vai sair sim a construção, por
que Deus esta aqui no controle. E não é diferente, essa
construção das outras também, eu me lembro de quando não
era evangélica né , é onde que agente via muito
impedimento dos outros irmãos ali de caramuru, quando
tinha outras construção também, até mesmo satanás se
levantava contra os irmãos que estava fazendo a construção
mas quando Deus falou assim agora é a hora eu creio que
assim também vai ser assim.4 (YOUTUBE, 2013)

Diferente da primeira construção a segunda não sofreu perseguição.


Entretanto, curiosamente os líderes e os demais indígenas que ajudaram na
perseguição da primeira Assembleia, hoje fazem parte da congregação.

A Metodista Weslyana esta na comunidade desde 1997 chegou à


5
comunidade através do Sr. Valeriano Ferreira que recebeu a mensagem fora da
comunidade em São Paulo. Mesmo com a instalação do primeiro templo, os
metodistas tiveram dificuldades para se instalar. Com ajuda de um missionário
vindo de São Paulo começou a pregação de casa em casa, porém, as pessoas
recusavam recebê-lo em seus lares. De acordo com Valeriano ele foi cortado de
facão e teve a bíblia rasgada por tentar pregar para um ancião da Aldeia, mesmo
assim continuou propagando o evangelho. Atualmente a denominação tem 60
membros a maioria jovens, segundo eles as pessoas mais velhas tem mais

4
CONSTRUÇÃO ASSEMBLEIA DE DEUS ALDEIA SÃO VICENTE. Disponível em: http:/www.
youtube.com/watch?v=ZD8Nmo_ghws. Acesso em 16 de janeiro de 2013.
5
Valeriano Ferreira Lima, 76 anos Pataxó-hã-hã-hãe fundador da Metodista Weslyana
dificuldades de aceitar o evangelho, pois dizem que quando o índio se converte ao
protestantismo perde sua cultura.

A missão do trabalho missionário

No campo religioso, toda atividade religiosa que visa à conversão de um


indivíduo pode ser considerada missão, na medida em que todos os cristãos estão
imbuídos do dever de propagar o Evangelho àqueles que não o conhecem.
Segundo Ronaldo M. A. Almeida (1995, p. 12), o termo missão no seu sentido é a
propagação do Evangelho em lugares pouco ou não cristianizados, mais
precisamente onde a ordem social não está estruturada sob aquilo que
genericamente chamamos de cultura cristã.
É a partir do significado da missão que o trabalho missionário na localidade,
vem crescendo, os números de indígenas convertidos é altivo. Os próprios
indígenas contribuem para o crescimento da igreja, evangelizando os próprios
parentes e outros membros da comunidade, mesmo assim é um trabalho árduo
conforme informou a líder do ministério jovem Midian. Segundo ela, eles não
desistem por que: - a Bíblia diz que a missão dos cristãos é divulgar a palavra de
Deus pelo mundo.

As missões evangélicas na comunidade começaram não diferente uma das


outras, a equipe de missionários procurou desenvolver atividades que pudessem
atrair os índios e a população da então aldeia Caramuru. Mas a primeira conversão
se deu fora da aldeia onde um casal fundador da Assembleia de Deus, tiveram que
passar um período fora da comunidade devido aos conflitos de terra que estava
ocorrendo, tiveram que sair da Aldeia por alguns meses, lá converteram-se ao
protestantismo, ao retornar a localidade fundou a primeira igreja Assembleia de
Deus Pahae Tupã. Os pastores não indígenas, juntamente com os índios, saiam em
casa e casa evangelizando.

No inicio a denominação Assembleia de Deus Pahae Tupã fazia um trabalho


social na Aldeia, oferecia alimentos roupas e laser isso faziam as pessoas se
aproximarem da igreja. Esses costumes não foram diferentes em outras
comunidades Indígenas na Aldeia de Panambazinho segundo relata Carvalho
(2004), os religiosos fizeram uma primeira distribuição de roupas e brindes aos
índios com o envolvimento dos funcionários do S.P.I. na própria sede do posto,
sendo que até o caminhão existente foi colocado à disposição dos missionários
(CARVALHO, 2004, p.59-60).
Segundo o Presbítero da Pahae Tupã Valdivino6 no inicio da instalação a
igreja fazia trabalho social muito bonito isso atraia um maior números de visitas a
medida que o trabalho social diminuía e ou parava as pessoas deixavam de
frequentar.

Os próprios missionários reconheciam que os índios que frequentavam os


cultos e o fazia muito mais com o intuito de obter as doações, como roupas,
calçados e objetos diversos, do que preocupados em aprender novos costumes.

A partir dai a igreja decidiu parar com as obras sociais por que o verdadeiro
interesse estavam nas doações e não na palavra de Deus diz o Presbítero
Valdivino. Segundo ele essa decisão foi tomada porque o intuito da igreja é
aproximar a pessoas por causa de Tupã que é Deus e não por interesse em bens
matérias. De acordo com Valdivino os verdadeiros interessados continuam na
igreja mas outros só frequentava interessados só vão em ocasiões especiais como
por exemplo: aniversário do templo, festa dos jovens etc.

Na Metodista Weslyana o trabalho missionário e social não para, há


comunidade reconhece o trabalho desenvolvido pela igreja. O número de visitas na
congregação é ativo. Segundo Almeida(2011) A compreensão Weberiana de ação
social como uma prática voltada para o exterior se aplica ao termo que a igreja
Metodista do Brasil cunhou para designar suas práticas de intervenção na
sociedade abrangente. (ALMEIDA,2011.p.259)

. A metodista tem o apoio de reverendos vindo do Rio de Janeiro e de


Itabuna, estes trabalham na comunidade a cerca de um ano pretendendo ficar por
mais dois. Uma das depoentes, Monica afirma: - o trabalho é difícil agente vai fala
pra um, fala pra outro e eles não ouvem7. Os alimentos e as roupas que são dadas
na comunidade são recolhidos pelos próprios, estes beneficiam todos
independentes de ser ou não participante da congregação.

Quando ambas as denominações chegaram a comunidade a Aldeia estava


em guerras com os fazendeiros, vários índios foram encontrados mortos e a maioria
achavam que os evangélicos queriam tomar as terras. (Índios na visão dos índios
Pataxó Há-há-hae 2004. p.7).

Considerações Finais

6
Presbítero Valdivino Timóteo Cardoso Pataxó 62 anos fundador da Assembleia de Deus
Pahae Tupã.
7
Monica vieira de Azevedo, 30 anos Indígena Pataxó-hã-há-hãe membro da Igreja Metodista
Weslyana
Ambas as denominações enfrentaram e enfrentam dificuldades para manter
a denominação na localidade, o trabalho é árduo mais os missionários indígenas e
brancos continuam pois eles tem o propósito de evangelizar todos na Aldeia. Este
trabalho é uma preliminar, pois ainda encontra em andamento no inicio da
pesquisa. Pretendo ver as versões das indígenas que não apoiam a presença dos
evangélicos na aldeia e sim finalizarei a pesquisa.

Referencias:

ALMEIDA, Vasni de. A Igreja metodista no Brasil. In: SILVA, Elizete de (org.).
SANTOS, Lyndow Araujo dos, (org.). ALMEIDA, Vasni de. Fiel é a Palavra
UEFS/editora. Ed.2011.

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USP/CEBRAP, 1995. p.12.

CARVALHO, R.A. Os missionários metodistas na região de Dourados e a


educação indígena na Missão Evangélica Caiuá (1928-1944). 2004.
Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Metodista
de Piracicaba, Piracicaba, 2004.

PATAXO-HÃ-HÃ-HÃE, Comunidade. Editora Sebastián Gerlic, Ed.2004.

Vídeos:

CONSTRUÇÃO ASSEMBLEIA DE DEUS ALDEIA SÃO VICENTE. Disponível em:


http:/www.youtube.com/watch?v=ZD8Nmo_ghws. Acesso em 16 de março de
2013.

DANÇA DO TORE DOS ÍNDIOS PATAXÓS HÃ-HÃ-HÃES DA ALDEIA CARAMURÚ. Disponivel


em : https://www.youtube.com/watch?v=R2ng71stIs4. Acesso em 16 de março de 2013.
AS FASES DO PROTESTANTISMO: O PENTECOSTALISMO E SUA
INFLUÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DA MENTALIDADE CULTURAL DO BRASIL -
SÉCULO XX

Agda Priscila da Silva (Graduanda em História-UFRN)


Débora Quezia Brito da Cunha (Mestranda em História-UFRN)

Resumo
Com cultos muito concorridos e entusiásticos, leitura de textos bíblicos, uso de
linguagem e músicas populares, o pentecostalismo tornou-se, na segunda metade do
século XX, o movimento religioso de grande expansão no mundo ocidental. No Brasil,
o desenvolvimento do protestantismo foi constante durante todo o século XX e o
número de protestantes está ainda em contínuo aumento, devido, sobretudo, ao
grande incremento que tiveram as igrejas pentecostais nas últimas décadas por meio
da mídia e da divulgação do movimento. Há três tipos principais de protestantismo no
Brasil: Protestantismo de imigração: começou em 1823 com a vinda dos colonos
protestantes, na maioria alemães, mas que ficou limitado às regiões de cultura alemã;
Protestantismo trazido pelos missionários estrangeiros: em geral veio através dos
anglo-saxões, a partir de 1853. Também nesse caso os resultados foram limitados.
Protestantismo pentecostal: iniciado em 1910, começou a ter uma difusão maior a
partir de 1950, com o nascimento das primeiras denominações brasileiras. Trata-se de
uma verdadeira “explosão”, como se constata nos últimos 30 anos. Durante metade
do século XX, o protestantismo no Brasil observou o inicio do sucesso das igrejas
pentecostais que pode ser, em parte, explicado também pelas diversas crises pelas
quais passaram as igrejas históricas e tradicionais, especialmente a católica e será
sobre esse movimento que trataremos nesse trabalho. Algumas características dele
são claras: dar muita importância a avisos, revelações e sonhos que influenciam o
comportamento futuro e as escolhas que seus adeptos fazem. A religiosidade que
propõem dá muita importância ao aspecto afetivo, à sugestão, às emoções.
Interpretam com muita facilidade os acontecimentos como intervenções milagrosas de
Deus, mesmo assim, essas igrejas estão em constante crescimento e se proliferam
dando origem a outros movimentos e congregações. O que nos leva a refletir: Como
essas igrejas ganharam tanto espaço? Como se proliferaram com tanta rapidez no
Brasil? Qual os espaços que a envolve e as identidades que se formam a partir dela?.
Dessa forma, a pesquisa tem como objetivos analisar a influência do protestantismo
no século XX na mentalidade e na elaboração de novas identidades no Brasil e na
construção de novos espaços, assim como, também analisar os principais meios que
possibilitaram sua proliferação. Para tanto nos muniremos CERVEIRA (2008),
GOLDMAN (1972), CAIRNS (1988) e MENDONÇA (2008) que trataram de como se deu
esse movimento e sua repercussão no Brasil e no mundo. Dessa forma, traremos uma
pesquisa que mostrará a importância da atuação e influencia do pentecostalismo na
mentalidade dos brasileiros.

Introdução
O termo "evangélico" na América Latina designa as religiões cristãs originadas
ou descendentes da Reforma Protestante Europeia do século XVI. Está dividido em
duas grandes vertentes: o protestantismo tradicional ou histórico, e o
pentecostalismo. Os evangélicos que hoje representam 17% dos brasileiros, ou mais
de 32 milhões de pessoas, vem tendo um crescimento notável (no Censo de 1991
eram apenas 9% da população - 13,1 milhões). As denominações pentecostais são as
responsáveis por esse aumento.
Antes de adentrarmos no protestantismo no Brasil, julgamos
importante dar uma definição de protestante. Cerveira afirma
que “Em suma, o protestante é o homem que se sente liberto
por Cristo, segue exclusivamente a Bíblia “como única regra de
fé e prática”, cultiva uma ética racional de desempenho para
contribuir para a glória de Deus e vive moralmente segundo os
“10 mandamentos” e os padrões da moral burguesa vitoriana.”
(Mendonça, 2008, p. 51)

O Protestantismo Histórico surge no Brasil de duas formas: uma decorre da


imigração e a outra, do trabalho missionário. O protestantismo de imigração forma-se
na primeira metade do século XIX, com a chegada de imigrantes alemães ao Brasil,
em especial à Região Sul, onde fundam, em 1824, a Igreja Evangélica de Confissão
Luterana do Brasil. As igrejas do protestantismo de missão são instituídas no país na
segunda metade do século XIX, por missionários norte-americanos vindos
principalmente do sul dos Estados Unidos e por europeus. Em 1855, o escocês Robert
Reid Kelley funda, no Rio de Janeiro, a Igreja Congregacional do Brasil. Segundo o
Censo de 1991, os protestantes tradicionais são 3% da população brasileira e estão
concentrados, em sua maioria, no sul do país. Nas últimas décadas, com exceção da
Batista, as igrejas protestantes brasileiras ou estão estagnadas, apenas em
crescimento vegetativo, ou em declínio. Seus integrantes têm, em média, renda e
grau de escolaridade maiores que os dos pentecostais.
Históricos de surgimentos
Antes de realizarmos um breve histórico de como variados segmentos
protestantes surgiram no Brasil, ressaltaremos o cenário nacional que tais
movimentos encontraram ao chegarem em terras brasileiras, cuja cultura era muita
diferente e cheio de festas religiosas ligadas ao catolicismo. Quanto a isto, Mendonça
afirma que:
Em primeiro lugar, o protestantismo, ao chegar ao Brasil,
encontra uma cultura inteiramente adversa à sua: uma cultura
mágica e determinista, um calendário recheado de feriados,
dias santos e festas religiosas que deixava pouco espaço para o
trabalho, isto é, mais lazer do que atividade produtiva, uma
dupla moral para o casamento e, sob o ponto de vista político,
uma monarquia supostamente “esclarecida” e socialmente
escravista. Era tamanho o fosso que o protestantismo não teve
outra saída senão converter os católicos e retirá-los para outro
mundo, isto é, o da comunidade da fé. (Mendonça, 2007, p.
171)

A adversidade que o protestantismo encontrou em terras brasileiras dificultou


sua fixação, pois a cultura presente no Brasil ia de encontro com seus ideias. Vale
agora, percebemos o caminho percorrido pelos segmentos protestantes que vieram
para o Brasil, até conseguirem se expandir.
O surgimento do presbiterianismo no Brasil resultou do pioneirismo e
desprendimento do Rev. Ashbel Green Simonton (1833-1867). Nascido em West
Hanover, na Pensilvânia, Simonton estudou no Colégio de Nova Jersey e inicialmente
pensou em ser professor ou advogado. Influenciado por um reavivamento em 1855,
fez a sua profissão de fé e, pouco depois, ingressou no Seminário de Princeton. Um
sermão pregado por seu professor, o famoso teólogo Charles Hodge, levou-o a
considerar o trabalho missionário no estrangeiro. Três anos depois, candidatou-se
perante a Junta de Missões da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, citando o
Brasil como campo de sua preferência. Dois meses após a sua ordenação, embarcou
para o Brasil, chegando ao Rio de Janeiro em 12 de agosto de 1859, aos 26 anos de
idade. Em abril de 1860, Simonton dirigiu o seu primeiro culto em português. Em
janeiro de 1862, recebeu os primeiros conversos, sendo fundada a Igreja Presbiteriana
do Rio de Janeiro. No breve período em que viveu no Brasil, Simonton, auxiliado por
alguns colegas, fundou o primeiro periódico evangélico do país (Imprensa Evangélica,
1864), criou o Presbitério do Rio de Janeiro (1865) e organizou um seminário (1867).
O Rev. Ashbel Simonton morreu vitimado pela febre amarela aos 34 anos, em 1867
(sua esposa, Helen Murdoch, havia falecido três anos antes). Atualmente, calcula-se,
são 750 mil membros, com mais de 2.000 igrejas e pastores. Na década de 70
surgiram grupos com características pentecostais, como a Igreja Cristã Presbiteriana,
a Igreja Presbiteriana Renovada e a Igreja Cristã Reformada. Os presbiterianos
mantêm, na capital paulista, uma das mais importantes universidades do Brasil, a
Mackenzie.
A Igreja Luterana tem origem em Martinho Lutero, filho de João Lutero, que
aos 18 anos tornou-se aluno da Universidade de Erfurt, em cuja biblioteca descobriu
uma Bíblia Latina. Na porta da Igreja de Wittemberg afixou suas 95 teses nas quais
PROTESTAVA contra os desvios da Igreja Católica (daí o nome Protestantismo,
Protestante). Isso ocorreu em 31.10.1517. As primeiras comunidades luteranas de
imigrantes alemães se estabelecem no Brasil a partir de 1824, nas cidades de São
Leopoldo (RS), Nova Friburgo (RJ), Três Forquilhas (RS) e Rio de Janeiro (RJ). O
primeiro templo é construído em 1829, em Campo Bom (RS), e os pastores europeus
chegam depois de 1860. Em 1991, há 1 milhão de membros, localizados
principalmente no Rio Grande do Sul, e 1,1 milhão em 1995. Até 2000, o número de
luteranos, bem como dos demais protestantes históricos, não sofre alteração
significativa. Os luteranos, como os anglicanos, estão mais próximos da teologia
professada pela Igreja Católica. Em 1999 chegam a assinar um documento histórico
em que colocam fim às suas divergências sobre a salvação pela fé. Das correntes
luteranas, a maior e mais antiga no Brasil é a Igreja Evangélica de Confissão Luterana
do Brasil, com 410 paróquias espalhadas por todos os estados brasileiros, segundo
dados da própria igreja. Posteriormente, surgem outras correntes luteranas, como a
Igreja Evangélica Luterana do Brasil, vinda dos Estados Unidos no início do século XX.
Primeiro grupo de missionários protestantes a chegar ao Brasil, os metodistas
tentam fixar-se no Rio de Janeiro em 1835. A missão fracassa, mas é retomada por
Junnius Newman em 1867, que começa a pregar no oeste do estado de São Paulo. A
primeira igreja metodista brasileira é fundada em 1876, por John James Ranson, no
Rio de Janeiro. Concentrados sobretudo na Região Sudeste, os metodistas reúnem
138 mil fiéis e 600 igrejas em 1991, conforme censo do IBGE. De acordo com o livro
Panorama da Educação Metodista no Brasil, publicado pelo Conselho Geral das
Instituições Metodistas de Ensino (Cogeime), atualmente são 120 mil membros,
distribuídos em 1,1 mil igrejas. Entre os ramos da igreja metodista, o maior e o mais
antigo é a Igreja Metodista do Brasil. Sobressaem também a Igreja Metodista Livre,
introduzida com a imigração japonesa, e a Igreja Metodista Wesleyana, de influência
pentecostal, estabelecida no Brasil em 1967. Os metodistas participam ativamente de
cultos ecumênicos. Na educação têm atuação de destaque no ensino superior, com 23
mil alunos matriculados em 2000.
Os primeiros adeptos da Igreja Adventista surgem em 1879, em Santa
Catarina. A Igreja Adventista do Sétimo Dia, a maior desse ramo no país, é
organizada em Gaspar Alto (SC), em 1896. Em 2000, a instituição estimava ter quase
1 milhão de membros e 3.696 igrejas. Entre os outros ramos que aqui se
desenvolvem estão a Igreja Adventista da Promessa e a Igreja Adventista da Reforma.
Os adventistas mantêm uma extensa rede hospitalar e estão em todos os estados
brasileiros.
Os batistas chegam ao Brasil após a Guerra Civil Americana e se estabelecem
no interior de São Paulo. Um dos grupos instala-se em Santa Bárbara d'Oeste (SP) e
funda, em 1871, a Igreja Batista de Santa Bárbara d'Oeste, de língua inglesa. Os
primeiros missionários desembarcam no Brasil em 1881 e criam no ano seguinte, em
Salvador, a primeira Igreja Batista brasileira. Em 1907 lançam a Convenção Batista
Brasileira. Em meados do século, surgem os batistas nacionais, os batistas bíblicos e
os batistas regulares, que somam 233 mil membros. Em 1991, o censo do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, registrava 1,5 milhão de membros em
todo o país; Em 2009 esse número havia subido para 3,9 milhões (crescimento de
21% entre 2003 e 2009).

O Pentecostalismo
Até 1950, o protestantismo de matriz pentecostal estava reduzido, no Brasil, a
três organizações religiosas de matriz americana: Assembléia de Deus, Congregação
Cristã do Brasil e Igreja do Evangelho Quadrangular.
A partir dessa data, começou a se impor um pentecostalismo autônomo, com
matriz brasileira e independente do exterior. As quatro Igrejas que mais se impuseram
foram:
 A Igreja Brasil para Cristo, fundada em 1956 por Manoel de Mello,
substituído depois da morte pelo filho, Paulo Lutero de Mello e Silva;
 A Igreja Deus é Amor, fundada em 1962 por Davi Miranda;
 A Igreja Casa da Bênção, presumivelmente fundada em 1974;
 A Igreja Universal do Reino de Deus, fundada em 1977 por Edir Macedo.
O sucesso das igrejas pentecostais pode ser, em parte, explicado também
pelas diversas crises pelas quais passaram as igrejas históricas e tradicionais,
especialmente a católica.
A migração de fiéis da Igreja católica para as evangélicas atingiu 64% de todos
os que ultimamente a elas aderiram. Parece haver algo nas Igrejas tradicionais que
faz com que as pessoas não se sintam mais atraídas por elas.
A seguir, neste artigo, apresentamos duas destas igrejas pentecostais.
A Assembléia De Deus
Foi a primeira a originar-se do pentecostalismo. Nos primeiros anos do século,
formaram-se comunidades (ou congregações) pentecostais não organizadas em
movimentos. Foi em 1914 que, em Hot Spring (EUA), reuniram-se em assembléia
geral centenas dessas comunidades pentecostais, até então independentes, e seus
pastores decidiram formar uma só entidade que passou a ser chamada de “Assembléia
de Deus”.
Gunnar Vingren e Daniel Berg, suecos, foram os primeiros missionários dessa
Igreja que vieram ao Brasil. O primeiro, na Suécia, pertencia à Igreja batista mas,
quando foi para os Estados Unidos, recebeu o batismo no Espírito Santo e o dom das
línguas, conforme suas próprias palavras. Gunnar tinha a viva sensação da presença
de Deus dentro de si.
Os membros do movimento recém-formado, exatamente como Paulo e
Barnabé em Antioquia, sentiram-se chamados a anunciar Cristo entre as nações.
Durante uma reunião, Gunnar e Daniel ouviram insistentemente, em língua estranha,
a palavra “Pará”. Será que se tratava do lugar para onde o Espírito Santo queria
enviá-los? Consultaram vários mapas e descobriram que a palavra indicava um Estado
no Brasil, na Amazônia. E foi para o Pará que, em 1910, vieram para anunciar a
mensagem pentecostal.
Pelo que foi dito até aqui e pelo que se encontra nos depoimentos dos
primeiros missionários da Assembleia no Brasil, tornam-se evidentes algumas
características desse movimento: dar muita importância a avisos, revelações e sonhos
que influenciam o comportamento futuro e as escolhas que seus adeptos fazem.
A religiosidade que propõem dá muita importância ao aspecto afetivo, à
sugestão, às emoções. Interpretam com muita facilidade os acontecimentos como
intervenções milagrosas de Deus. Isso pode ser visto na narração que Daniel Berg faz
de algumas circunstâncias a respeito de sua viagem ao Brasil: “Deus confirmou que
devíamos ir para o Pará.” Se ainda houvesse qualquer dúvida, esta desapareceria dias
mais tarde, quando o irmão Vingren, durante um de seus longos passeios de
meditação, ouviu claramente uma voz que lhe falava ao ouvido, dizendo: “Se forem,
nada lhes faltará”.
A Congregação Cristã Do Brasil
A Congregação Cristã do Brasil é outro movimento do grupo pentecostal,
fundada pelo italiano Luigi Francescon, imigrante nos Estados Unidos. Antes de aderir
ao movimento pentecostal, o fundador foi presbiteriano e batista. Suas atividades
religiosas começam com a organização de comunidades entre os colonos italianos dos
Estados Unidos.
Em 1909 e 1910, fez uma viagem à Argentina e ao Brasil e aqui fundou sua
primeira congregação pentecostal, em Santo Antônio da Platina (Paraná), sempre
entre imigrantes italianos. Até 1935 a Congregação Cristã do Brasil ficou restrita às
pessoas dessa origem, só em seguida abriu-se a outros.
A Congregação Cristã do Brasil apresenta algumas características que a
distingue de todas as Igrejas de matriz pentecostal:
 Há menos participação emotiva, menos agitação em suas reuniões;
 Seus membros evitam o título de pentecostais e também a colaboração
com outras correntes do protestantismo;
 São muito severos quanto ao comportamento das mulheres e sua
apresentação exterior, não permitindo roupas curtas e que cortem os cabelos;
 Não gostam dos membros que se sobressaem; preferem os humildes e
até os pouco instruídos, pois dizem que Jesus pregou a humildade e a simplicidade;
 Chamam o batismo no Espírito Santo de “promessa do Espírito Santo”;
 Não gostam de manifestações, tais como: pregação nas ruas, pelo rádio
ou pela TV.
Sua prática se limita aos seus cultos e sua missão consiste em convidar
parentes, amigos e outras pessoas que encontram nas ruas, no trabalho e em
viagens, para que frequentem o culto em suas igrejas.
Muitas denominações do ramo pentecostal têm facilidade em interpretar, como
intervenções divinas ou até mesmo milagres, os fatos comuns de suas vidas.
Retomando, o protestantismo histórico no fim do século XX, se defrontou com o
movimentos carismáticos que arrebataram muitos fiéis, por sua maneira diferente de
agir e congregar. Assim como os movimentos carismáticos surgidos dentro da Igreja
Católica. Os carismáticos fizeram frente às igrejas tradicionais, protestantes e
católicas, ao conquistarem grande número de fiéis, identificados com o movimento.
Sendo assim cabe afirmar que “O último e grande desafio às igrejas protestantes
históricas nesse período foi o avanço do movimento carismático no interior delas
mesmas gerando divisões que produziram as chamadas igrejas “renovadas”. O
neopentecostalismo, como se sabe, provocou verdadeira devastação nessas igrejas.”
(Mendonça, 2005, p. 65)
É, nesse período também, que as igrejas conseguem maior espaço dentro da
sociedade brasileira, num cenário novo no país e na América Latina. A afirmação a
seguir, ilustra este momento:
Na América Latina dois acontecimentos iriam centralizar o grande
debate em torno da situação social, econômica e política. A
ideologia desenvolvimentista seria questionada pela tese da
dependência elaborada por Fernando Henrique Cardoso e Enzo
Faletto (Dependência e Desenvolvimento na América Latina,
1965-67). A teoria se completava com a obra de Celso Furtado,
já citada, sobre as origens do subdesenvolvimento. Nesse ponto,
tanto alguns setores das igrejas protestantes quanto da Igreja
Católica avançaram mais ou menos na mesma direção, isto é, no
sentido de envolver as igrejas na luta pela conquista de uma
sociedade mais justa diante de um cenário aberto a profundas
mudanças. (Mendonça, 2005, p. 64)

As igrejas passaram a desenvolver um papel no concernente à situação política,


social e econômica na América Latina, tendo como direção, ajudar na conquista de
uma sociedade menos injusta socialmente, num continente marcado pelo
subdesenvolvimento de seus países.

Considerações finais
Como discorremos ao longo do texto, o protestantismo surgido séculos atrás,
ao chegar ao Brasil encontrou um cenário muito adverso. Uma cultura embasada no
catolicismo e uma postura social patriarcalista escravista, vamos colocar assim.
Contudo os movimentos foram ganhando força e forma com o passar dos anos, nos
territórios nacional e continental. Sendo hoje, um movimento com inúmeros adeptos
no Brasil, que vem aumentando a cada dia, de acordo com os censos, principalmente
graças aos movimentos pentecostais e neopentecostais.
Seguindo isto, podemos utilizar da afirmação de Cerveira, ao dizer que “Ser
evangélico, portanto, é uma identidade social e historicamente elaborada. As diversas
denominações brasileiras, mesmo autóctones, foram influenciadas, de maneiras
diferentes, por diversos movimentos históricos do protestantismo internacional.”
(Cerveira, 2008, p. 47). Nesta afirmação, Cerveiro aponta dois aspectos do
“evangélico” no Brasil. Primeiro e inegável, é a questão de identidade social, elaborada
historicamente, como demonstramos anteriormente. Segundo, a influência dos
movimentos históricos internacionais do protestantismo, como congressos e reuniões,
que afetaram os segmentos nacionais.
As igrejas protestantes, a partir de meados do século XX, com o início de sua
expansão, passam a exercer um papel na questão social do Brasil. Assim como
passam a serem responsáveis por uma nova postura e mentalidade na sociedade
brasileira.

Finalmente, a presença evangélica, no Brasil, em condição de


religião minoritária frente a uma igreja oficial, forçou-os a
pressionarem o estado e a sociedade pelo reconhecimento de
direitos civis individuais, inicialmente, e mais tarde a uma luta
por isonomia social e política. O crescimento do número de
igrejas lutando por espaço e direitos na mesma sociedade foi
um dos fatores mais importantes, segundo Stuart Mill (1968),
para a laicização do estado durante os tempos modernos, pois,
não havendo apenas uma igreja legítima, são necessários a
tolerância e o não-compromentimento do estado com esta ou
aquela vertente, sob o risco de tornar a disputa religiosa em
disputa política e, eventualmente, em guerra. [...] A partir
desses termos, ao contrário da tradicional idéia que vincula o
religioso, em especial os evangélicos, ao conservadorismo e à
posturas antidemocráticas, é possível propor que a pluralização
do campo religioso, as conseqüências da propagação de uma
religião internalizada para o fortalecimento da noção de
indivíduo e a secularização que se alimenta também deste
processo, são fatores importantes na democratização da
sociedade, elemento fundamental para a construção do arranjo
democrático institucional. (Cerveira, 2008, p.49-50)

Como podemos ver os movimentos de origem pentecostal surgiram e se


alastraram rapidamente no Brasil, ganhando inúmeros adeptos a cada dia. Este novo
cenário brasileiro, muito diferente do que encontrado pelos primeiros adeptos ao
chegarem ao Brasil, como pudemos ver na fala de Mendonça (2007), se configura na
inserção de praticamente metade da população seguidora das religiões cristãs, nas
igrejas protestantes/evangélicas. Determinando uma nova realidade social brasileira.
Sendo que tal fenômeno de constante expansão destas igrejas, pentecostais e
neopentecostais, necessita ser estudado profundamente.

Referências bibliográficas
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(São Paulo: Vida Nova, 1988).

CERVEIRA, Sandro Amadeu. Protestantismo Tupiniquim, Modernidade e Democracia:


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Cristãs, 2ª ed. (São Paulo: Vida Nova, 1996).
VESTINDO UMA NOVA RELIGIÃO: A INDUMENTÁRIA COMO SÍMBOLO DE
ADESÃO A IDENTIDADE ASSEMBLEIANA.

ROK SÔNIA NAIÁRIA DE OLIVEIRA1

RESUMO: Conversão significa a internalização de novos conceitos e valores religiosos,


estes são refletidos diretamente nos comportamentos do indivíduo que adere a um
novo conjunto de doutrinas. Deste modo, este artigo tem por intento analisar a
mudança de vestimentas e a adesão a uma nova aparência como um fator essencial
para caracterizar a identidade da mulher que se converte a Igreja Assembleia de Deus
de Milhã- CE. Percebemos, pois, que não basta apenas ser considerada uma nova
convertida, para as fieis é necessário comunicar a conversão para toda a sociedade, e
isso é facilmente evidenciado através da adesão aos signos indumentários do grupo,
que são as saias e vestidos compridos, as blusas sem decotes e com mangas, além do
não uso de acessórios extravagantes. Esta pesquisa esta sendo desenvolvida no
mestrado acadêmico em história da Universidade Estadual do Ceará, onde temos
analisado a indumentária como um objeto cultural de múltiplas facetas, portador e
gerador de identidades.

Palavras-Chave: Conversão. Identidade. Assembleia de Deus.

1. Considerações Iniciais

Converter-se para uma Igreja pentecostal significa simbolicamente aceitar


Jesus, o novo fiel passa a ser considerado um renascido em cristo ou nascido de novo.
Na Assembleia de Deus de Milhã2, no ato da conversão é necessário repetir uma
tradicional frase que confirma a adesão ao novo grupo, eu aceito Jesus como meu
único e suficientemente salvador. Essa espécie de ritual não é algo exclusivo dessa
Igreja. Acreditamos que sua presença é muito forte em todas as Igrejas pentecostais,
isso porque os fiéis dessa vertente “acreditam que Deus, por intermédio do Espírito
Santo e em nome de Cristo” (MARIANO, 2012) age nos fiéis, distribuindo dons
espirituais e o perdão dos pecados3. Esse sinal de adesão pode significar ainda a
negação da crença nos santos cultuados pela Igreja Católica, ou a rejeição de mártires
e divindades cultuadas em outras religiões como o budismo ou espiritismo, dentre
outras.
De forma objetiva, converter-se é mudar de religião, e tratando-se
especificamente de religiões protestantes, é sair de qualquer outra religião para aderir
a alguma vertente do protestantismo, isso porque segundo Sousa (2011),

Um protestante que muda de denominação não precisa


converter-se novamente, pois, mesmo se sair de uma Igreja
protestante tradicional para uma pentecostal, são instituições
que possuem virtualmente os mesmos referenciais simbólicos
de sentido a vida. No caso do catolicismo é diferente, embora
catolicismo e protestantismo pertençam a mesma vertente- o
Cristianismo- o segundo está em oposto ao primeiro na
pregação religiosa. Ou seja, doutrinalmente são distintos e em
alguns temas até antagônicos, em relação ao comportamento
cristão. (p.100-101).

Nesse sentido, é importante entender a conversão como um processo que


traz uma série de mudanças na vida do fiel, mudanças que não ocorrem apenas na
esfera religiosa, mas que interferem diretamente na vida social e nos comportamentos
do indivíduo através da adesão a um novo conjunto de doutrinas. Pois como salienta
Sousa (2011), “a conversão é tanto o ato de adesão à nova fé, como também uma
guinada de reordenação da personalidade.”(p.100). Após a conversão o fiel passa por
um período de discipulado, que é a internalização de conceitos e valores religiosos.
Depois ele é batizado nas águas, como uma forma de lavar seus pecados e viver uma
nova vida em santidade.
Deste modo, o principal intuito deste artigo é analisar a mudança de
vestimentas e a adesão a uma nova aparência como um fator essencial para
caracterizar a transformação na identidade da mulher que se converte a Igreja
Assembleia de Deus Templo Central de Milhã- CE4. Isso porque devemos “pensar a
religião não apenas no âmbito do sagrado, mas, sobretudo, como campo de produção
de identidades” (SOUSA, 2010, p.11), onde as questões de ordem doutrinária
interferem na reordenação identitária dos fiéis.
Destacamos, porém, que o processo de conversão muitas vezes é lento e
conflitoso. O novo convertido encontra uma série de princípios morais que devem ser
aderidos como características centrais daquele que se converte inteiramente, que se
arrepende de seus pecados e que busca obter a salvação de sua alma. Segundo as
revistas Lições Bíblicas, “Quando não há conversão a Deus, não existe salvação. A
conversão é a milagrosa transformação que ocorre na alma e na vida da pessoa [...]
Somente arrependimento não é conversão: ele precede a conversão ( At. 3.19).”
(CPAD, 1996, p.35). Portanto, só converter-se se baseado em arrependimentos não é
suficiente, como deixa claro o trecho anterior. É necessário que ocorra uma
trasnformação espitirtual do fiel, mas que deve ser refletida também em sua vida
material.

2. A conversão como um ritual de passagem.


Pensando em como ocorre à conversão feminina na Igreja Assembleia de
Deus de Milhã, destacamos a necessidade de compreender como os membros do
grupo empreendem a ideia de novo (a) convertido (a), que significa também entender
em que momento o grupo considera que um fiel concretizou sua adesão. Assim, de
acordo com algumas mulheres da Igreja Assembleia de Deus, o fiel de modo geral é
considerado novo (a) convertido (a) quando mesmo depois de terem aceitado Jesus
ou até mesmo já estar batizado nas águas5, não segue fielmente todos os costumes
do grupo. Segundo elas, o membro pode ter ingressado na Igreja a um, dois ou mais
anos, mas se não mudou totalmente seu comportamento, se não está de acordo com
o que é pregado nos usos e costumes da instituição, ele permanece sendo um ou
neoconvertido.
Com isso, percebemos que o novo convertido enfrenta um processo de
transição até ser considerado um verdadeiro assembleiano, ou definindo melhor a
situação ele passa por um de ritual de passagem, onde é incitado a esquecer de seu
passado, abandonar suas antigas práticas e só assim iniciar-se em um novo universo
religioso. Portanto, enfatizamos que todo rito pressupões uma morte e um
renascimento e que todos os grupos, em suas variadas culturas “tem sua vida
ritmada” por cerimónias consideradas ritos de passagem. Na passagem há um limite
que precisa ser ultrapassado, ela exige transformação, separação (AUGRAS,1984:36).
Sobre isso Da Matta (2010) também faz suas considerações, acrescentando que a
morte simbólica no rito funciona como um mecanismo de obtenção de status no novo
grupo, na nova vida. Segundo o autor, “Inúmeros exemplos sugerem que o rito de
passagem equivale a uma “morte”, condição necessária para o posterior renascimento
do indivíduo. Terminando o ritual, a pessoa recebe um novo nome, goza de um novo
status, tem acesso a conhecimentos e privilégios antes impensáveis. Com efeito, não
se trata mais do mesmo indivíduo, mas de um outro.” (DA MATTA, 2010: 131).
Ainda nesse sentido Eliade (1996) afirma que “Os ritos de passagem
desempenham um papel importante na vida do homem religioso (...) envolve sempre
uma mudança radical de regime ontológico e estatuto social.” (p.150). Onde através
do quadro iniciático que equivale ao amadurecimento espiritual, ocorre uma espécie
de “morte para a condição profana, seguida do renascimento para o mundo sagrado”
(...) (p.160).
Van Gennep (1978) folclorista francês, que se debruça na compreensão
desses tipos dos rituais, acredita que sem os ritos as coisas seriam puramente vividas
e não vivenciadas. O autor acrescenta que os sistemas sociais são
compartimentalizados, demarcados pelos rituais, onde estes devem ser vistos de
forma dinâmica dentro de um contexto de relações, acreditando deste modo que os
ritos separam e dividem. Van Gennep buscou perceber os elementos constitutivos dos
ritos de passagem, salientando que todos passam por um mesmo processo
caracterizado por três estágios: o preliminar, o liminar e o estágio de agregação. A
iniciação no estágio seguinte só ocorre quando o individuo elimina sua ligação com o
estágio anterior, portanto essas fases funcionam através de uma constante morte, e
renascimento para a fase seguinte do rito.
Utilizando as considerações de Van Gennep (1978), buscaremos analisar o
passo a passo do processo ritual de conversão na Igreja Assembleia de Deus. O
primeiro estágio chamado de preliminar é uma fase de separação, caracterizando um
momento de extrema importância para aquele que se converte, pois é um período em
que o individuo é chamado a uma transformação radical de seus modos de vida. O fiel
é chamado a abandonar a vida que levava, morrendo para práticas e comportamentos
que a Igreja considera mundanos. Assim o novo convertido (a) se sente pressionado a
abandonar aquilo que representa sua vida antes da conversão.
O segundo estágio é um período em que o novo convertido começa a ser
enquadrado nas normas comportamentais do grupo, permanecendo por algum tempo
naquilo que Van Gennep (1978) chama de estágio liminar, ou ritos de margem.
Também conhecidos como fase de limo. Para o autor esse é um tempo mais ou menos
longo, em que o individuo flutua entre dois mundos. É um período “de suspensão, de
ambivalência, em que já não se é o que era antes, mais ainda não se é aquilo que o
rito nos acena e promete.” (DA MATTA, 2010, p.131). Nessa fase o fiel assembleiano
busca um engajamento com novo grupo, na tentativa de aprender seus costumes e se
sentir parte integrante daquela realidade, é o período de doutrinamento nos usos e
costumes assembleianos. Tendo por principal fundamento que o corpo é templo e
morada do espírito santo. No que se refere às mulheres de maneira especifica,
passam a introjetar de gradativamente valores negativos a exibição de seu corpo,
sentem-se, portanto, repreendidas e envergonhadas pela maneira como se vestem
iniciando uma transformação de sua aparência. Tal modificação muitas vezes ocorre
de maneira lenta e conflituosa, isso fica perceptível em muitos relatos de nossas
entrevistadas.
Portanto a maneira como o novo convertido lida essas fases, tendo uma
rápida aceitação, ou, por outro lado, excitando em seguir as novas práticas do grupo,
é o que determina a conclusão de seu ritual de conversão. Assim o fiel chega na
terceira fase apresentada por Van Gennep (1978) chamada de pós liminares ou
período de agregação. Na Igreja Assembleia de Deus de Milhã, concluir esse estágio
depende, portanto da ação individual de cada fiel, que deve esquecer seus antigos
costumes e renascer para o que a Igreja prega como uma forma correta de se viver,
onde a principal característica é se distanciar das coisas do mundo. Para tanto
evocamos novamente algumas discussões levantadas por Van Gennep. Acreditando
que todo rito de passagem cumpre este ciclo, o autor evidencia que ao compreender
os ritos em toda a sua combinação de fases é possível perceber a totalidade do rito e
saber em que momento ele é mais normatizado, pois essa forte normatização seria o
ponto crítico que forneceria a chave dos significados do ritual. Com isso acreditamos
que a fase de agregação, é a que mais prende o fiel as normas da Igreja. Pois após o
limo, onde ele começa a conhecer as doutrinas do grupo e a legitimação destas na
bíblia, é na fase pós-liminar que o fiel deve exercer de maneira concreta tudo que foi
apreendendo no decorrer do processo. O convertido, ou crente deixa de frequentar
determinados lugares como festas, bares, dentre outros. Exclui de seu convívio
pessoas que possam influenciar negativamente em sua conduta e deixa de ouvir
musicas que não possuam um caráter religioso. O fiel passa a considerar a bíblia um
manual de condutas e a única portadora da verdade. No que se refere às mulheres
passam a adotar o uso de trajes condizentes com a doutrina assembleiana (saias,
vestidos e blusas que não evidenciem suas formas corporais). Maquiagens, adereços e
pequenos hábitos de vaidade passam a ser reduzidos de maneira evidente. A principal
busca é alcançar o perfil ideal de mulher assembleiana. É perceptível, portanto que a
importância das vestes está expressa dentro do próprio ritual de passagem da
conversão.
Nesse sentido, a maneira de trajar diferenciada das mulheres
assembleianas pode ser entendida como mecanismo de representação do grupo. Além
da diferença comportamental, que é cobrada de todos os fiéis sejam eles homens ou
mulheres, a vestimenta feminina deve ser sinônimo de decência, evidenciando as
características de uma mulher seguidora da doutrina.

3. A adesão a identidade assembleiana

Encarando o processo de conversão como um nascimento, para a nova


convertida, vida nova, religião nova e também roupas novas, ou seja, uma aparência
totalmente transformada. Ser aceito, respeitado, visto como crente tudo isso está
ligado ao cumprimento de uma saia, as mangas cobrindo os ombros e ao não uso de
decotes em vestidos ou blusas, trazendo ainda um rosto limpo das impurezas do
mundo trazidas nas pinturas. O passado de pecado e vaidades deve ser esquecido em
nome de um futuro de decoro e obediência, que conferem a mulher uma nova
identidade, a de fiel assembleiana.
As neoconvertidas são levadas a investir numa modificação completa de
sua aparência e comportamento, condicionando o corpo e escondendo-o do mundo,
como uma forma necessária e eficaz de alcançar legitimidade no grupo, mais acima de
tudo ganhar o respeito e status de boa assembleiana, perante os membros da Igreja.
Metamorfosear6 a aparência é mais que uma necessidade individual, é algo carregado
de coletividade, pois mesmo que pastores e líderes da Igreja, bem como as próprias
mulheres afirmem que a instituição não obriga ninguém a nada7, as fiéis modificam
suas vestes em nome de uma legitimidade Bíblica dos usos e costumes da instituição,
e em nome de uma distinta identidade assembleiana. É buscando essa nova
identidade que elas transformam sua maneira de vestir. Desta feita, destacamos o
conceito de Identidade enquanto representação social proposto por Pesavento (2008),
onde concordamos que,

a identidade é uma construção simbólica de sentido, que


organiza um sistema compreensivo a partir da ideia de
pertencimento. A identidade é uma construção imaginária que
produz a coesão social, permitindo a identificação da parte com
o todo, do indivíduo frente a uma coletividade, e se estabelece
à diferença (...) é relacional, pois ela se constitui a partir da
identificação de uma alteridade. Frente ao eu ou, aos nós do
pertencimento se coloca a estrangeiridade do outro (p. 89-90).

A identidade produz uma coesão social, uma ideia de pertencimento a uma


determinada coletividade, se constituindo a partir da busca pela identificação com as
características de um determinado grupo, e o distanciamento em relação aos aspectos
de outro, ou seja, uma afirmação a partir do que lhe é diferente.
Para compreendermos como as neoconvertidas buscam assumir a
identidade da mulher assembleiana, expondo-a de maneira visível através da
indumentária é importante considerar o debate realizado por Woodward (1012) de que
a identidade é relacional, sendo ainda marcada pela diferença e por meio de símbolos.
Para o autor “existe uma associação entre a identidade da pessoa e as coisas que uma
pessoa usa.” (p.10). Ou seja, a vestimenta da mulher assembleiana esta diretamente
relacionada aos aspectos constitutivos de sua nova identidade. Nesse sentido, para
aquela que se converte a maneira de trajar é um mecanismo simbólico para obtenção
da identidade assembleiana, onde através da maneira de trajar iguais as demais fiéis
da Igreja, a nova convertida se sentirá igual e aceita. É ainda uma maneira de
diferenciá-la na sociedade, obtendo destaque de nova crente, entre os pecadores do
mundo, tendo nas vestes um sinal de sua diferença.
Portanto, a identidade dos membros desse grupo é definida através das
qualidades do verdadeiro cristão em oposição às falhas das pessoas do mundo. Nesse
sentido acreditamos que “As identidades são fabricadas por meio da marcação da
diferença. Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos
de representação quanto por meio de formas de exclusão social. A identidade, pois,
não é oposto da diferença: a identidade depende da diferença”. (WOODWARD. 2012,
p.40).
Nesse sentido, “uma identidade é sempre produzida em relação a uma
outra.” (WOODWARD, 2012, p.47). Para definir as características do verdadeiro
cristão, membro da Assembleia de Deus, a Igreja precisa traçar um perfil negativo
para aquelas que não se convertem. Segundo a denominação são aqueles que vivem
de forma mundana. É necessário, portanto, fazer um confronto entre um perfil ideal
de “crente” e um perfil abominável aos olhos da Igreja, e dos preceitos divinos. É
com base nisso que concordamos com Silva (2012) ao salientar que “a identidade se
forma a partir de uma intensa cadeia de negações.” (p.75).
Ainda com base nessa relação entre identidade e diferença, os fiéis
assembleianos demarcam uma identidade para o grupo através de suas práticas, ritos,
e símbolos, onde a indumentária é um exemplo nítido dessa delimitação. Isso porque
as Igrejas protestantes, e a Assembleia de Deus de maneira específica, estabelecem
que aquele que se converte e adere aos costumes do grupo, e a uma vida pautada na
doutrina bíblica alcançará a salvação. Excluindo explicitamente aqueles que pertencem
as demais religiões, ou que optam por uma vida laica. Compreendemos, por
conseguinte, que (...) as afirmações sobre a diferença só fazem sentido se
compreendidas em sua relação com as afirmações sobre identidade. (SILVA, 2012,
P.75).
Com base nessas considerações acreditamos, pois, que as “identidades são
contestadas,” (p.20) isso porque os membros da Assembleia de Deus alegam possuir
a conduta considerada correta por Deus. Buscam legitimar suas principais
características identitárias através de um passado bíblico que serve para pautar seus
usos e costumes. Portanto, segundo Woodward (2012), “ao afirmar uma determinada
identidade, podemos buscar legitima - lá por referencia a um suposto e autentico
passado- possivelmente um passado glorioso, mas, de qualquer forma, um passado
que parece “real”- que poderia validar a identidade que reivindicamos.”( p.28).
A identidade assembleiana é contestada e legitimada em nome de um
passado bíblico. E no que se refere à vestimenta feminina, isso é ainda mais explícito,
posto que, o uso de peças vestimentares que imprimam submissão, decoro,
feminilidade dócil, são respaldadas em trechos bíblicos, que segundo a Igreja
caracterizam como deve se adornar uma mulher cristã. Nesse sentido, a Igreja busca
traçar uma identidade imutável, estanque, que condiciona e cobra as fiéis para que
assumam as mesmas características daquelas mulheres narradas pelas escrituras
sagradas.
Hall (2011) se coloca contra qualquer concepção essencialista ou fixa de
identidade (p.10), segundo ele a identidade não é algo permanente, inalterável. No
entanto, para entender o conceito de identidade em sua complexidade, Hall fala de
três concepções distintas de identidade. A primeira, destacando o sujeito do
iluminismo, que se coloca diante de uma concepção individualista, centrada e
unificada, fechada em si mesma. A segunda é a do sujeito sociológico, onde se
destaca uma identidade formada na interação do indivíduo e da sociedade, nesse
sentido o sujeito não era autônomo e sim formado a partir da relação com o outro e
da influência dos mais variados significados. O autor aborda essas noções porque foi a
partir delas que emergiu a noção pós- moderna de identidade, relacionando o
indivíduo e sua cultura. No sujeito pós-moderno,

A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e


transformada continuamente em relação às formas pelas quais
somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que
nos rodeiam (Hall, 1987). É definida historicamente, e não
biologicamente. O sujeito assume diferentes identidades em
diferentes momentos, identidade que não são unificadas ao
redor de um “eu” coerente. [...] à medida que os sistemas de
significação e representação cultural se multiplicam, somos
confrontados por uma multiplicidade desconcertante e
cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais
poderíamos nos identificar- ao menos temporariamente. (HALL,
2011, p.10).

Para o autor as identidades são abertas, contraditórias, plurais e


fragmentadas. E nesse sentido Hall (2011) defende a necessidade de perceber a
identidade não como uma coisa acabada, mas como um processo em andamento,
onde devemos refletir a partir da “identificação”. A identidade assembleiana é,
portanto buscada por aquele que se converte, e para as mulheres essa busca também
passa por uma ressignificação dada a sua maneira de trajar, aprender, pregar e viver
conforme a igreja prega é algo que ocorre de maneira lenta, porém, a transformação
nas vestes é uma forma imediata de assumir e expor, mesmo que superficialmente
essa nova identidade. Nesse sentido para Hall (2011) “a identidade surge não tanto da
plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta
de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das
quais nós imaginamos ser vistos pelos outros.” (P.39).
A nova convertida busca distinguir-se das mulheres não crentes, e ficar o
mais próximo possível do ideal pregado pela Igreja. Destacamos assim, que a
necessidade de mudança na aparência das fieis é algo que não ocorre de maneira
totalmente espontânea, ou melhor, por aspectos puramente individuais. A
transformação nas práticas vestimentares, expressa a necessidade de ser igual às
outras, de ser aceita pelo grupo e poder atuar dentro da Igreja. Como percebemos na
fala da fiel Márcia Pinheiro8,

“quem se converte, é novo convertido, não tem vestes, e no


caso como é saia assim, eu não tinha muitas. E as que eu tinha
eram muito curtas. Então, eu ia de calça entendeu. Mas [...] eu
não me sentia bem, é não porque me disseram algo, ou porque
me obrigaram a mudar. [...] O pastor conversou comigo, e
disse que queria me ajudar, que eu via que era regra da Igreja,
só que[...]no tempo certo Deus ia me tocar disso e no momento
certo eu mesma iria escolher mudar as minhas vestes. Não era
ele, ou ninguém que ia disser pra mim, mude suas vestes! Não.
Era Deus que ia me tocar e falar comigo, e me libertar disso. E
foi realmente o que aconteceu. Com o tempo eu fui me
desprendendo disso, eu queria sentir aquele desejo de ser igual
aos outros. De estar é no grupo de jovens também e tudo.
Então com o tempo, aos poucos eu fui mudando as minhas
vestes, aos poucos fui me acostumando. Hoje em dia não sinto
nem falta.”

A fiel afirma que não foi pressionada de forma direta, mas desejava se
sentir igual a todas as outras e obtiver destaque no grupo, participando dos grupos de
jovens e adoração, ou seja, mesmo depois de convertida, não podia participar
ativamente do cotidiano da Igreja por se vestir de maneira diferente. O desejo de ser
aceita e ter os mesmos privilégios que as irmãs de fé, fez com que ela mudasse sua
aparência.
Portanto, no jogo entre as aparências, a relação entre aquela que se
converte e logo muda sua forma de trajar e aquela que tarda a se adaptar a um novo
hábito indumentário, revela algumas práticas e relações sociais dentro da Igreja. Estas
vão para além de uma mudança espontânea pelo trabalho de Deus, na vida da nova
convertida como muitas de nossas entrevistadas afirmam. É também uma maneira de
ser aceita dentro do grupo. Sobre isso Silva (2012) fala das relações de poder
existentes na construção de identidades, pois para ele “a afirmação da identidade e a
marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e de excluir” (p.82).
Isso porque “traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente
situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais.” (p.81).
Acreditamos que a busca pelo consenso, pelo equilíbrio no grupo, e pela
autoafirmação de uma nova identidade é o que leva a nova convertida a investir na
transformação de suas vestes, deste modo, observemos a fala da fiel Edina Ferreira9,
Você é um novo convertido, o pastor ele fala lá na pregação
dele, ele mostra as passagens da bíblia, mas ele nunca chega
pro novo convertido e diz, você tem que mudar sua roupa se
não você não fica na nossa Igreja. Em nenhum momento ele
chega e fala isso. Você vai mudando conforme você vai sentindo
a necessidade. Entendeu? Porque todo mundo ta ali vestido de
saia, todo mundo ta ali vestido com roupa de manguinha, e só
você vai ta com uma camiseta e com uma bermuda, ou com
uma calça. Você passa a se sentir mal. Poxa se eu faço parte da
membrezia e só eu sou diferente, porque que só eu sou
diferente. Entendeu? Por isso que você vai transformando.

Segundo a fiel, o pastor não obriga a nova convertida a mudar suas vestes,
mas prega sobre a necessidade de mudança para concretizar a conversão e obter a
salvação, tanto que vai mostrando os textos bíblicos, que segundo ele, pregam
importância do trajar decente. Ela diz ainda que a nova convertida vai mudando
porque vê todas as outras mulheres do mesmo jeito, decentes de acordo com a igreja,
e segundo ela, a fiel que estiver diferente vai se sentir constrangida por pertencer ao
grupo e ser a única que se veste diferente do que é pregado como doutrina.
Crane (2006) destaca que “Em geral à medida que as redes sociais do
indivíduo se expandem, ou que seus contatos se tornam mais variados, ele é exposto
a novas formas de cultura e torna-se propenso a adotá-las” (p.33). Com base nisso as
lideranças masculinas da Instituição também acreditam que quando a mulher passa a
conviver na Igreja, com os membros da instituição, e através dos próprios estudos
realizados em grupo ou individualmente, a mudança na maneira de ver o mundo vai
acontecendo gradativamente, já à mudança na forma de vestir é mais rápida e
evidente, para se tornar visivelmente igual as “irmãs” de fé, é o que vem afirmar
ainda o co-pastor da Igreja, Edson Moura10:

“Então a mulher quando ela consegue crer, ela consegue crer


em Jesus Cristo, ela começa a examinar. Então isso é um
processo, um dia ela tira uma coisa, um dia ela vai vendo que
aquilo é uma coisa supérflua, que num tem muito valor, e aí ela
própria é quem vai, a palavra é quem vai fazendo, fazendo com
que ela realmente seja inserida agora nesse contexto bíblico
que Pedro e que Paulo afirmou, para andar com modéstia e
pudor como assim se adornavam as mulheres de antigamente.
Então a própria pessoa é quem vai vendo isso, em todos os
sentidos não só na, na, na, no estereótipo, mas também
principalmente no ser, vai mudando. Se era uma pessoa que
era muito extravagante, voltada a pornografia, a palavrão isso
vai gradativamente saindo e Jesus Cristo vai preenchendo tudo
isso na vida da pessoa(...) nós temos visto isso nos dias atuais,
algumas mulheres que gostavam muito de ser vaidosas, e isso
não só na parte da indumentária, na parte física, mas mudou
completamente”.
Portanto, quando ocorre a conversão, ou um contato mais intenso com a
ideologia da Igreja a mulher passa a evidenciar isso através de sua maneira de trajar.
Isso advém de uma necessidade de expor externamente as mudanças que estão
ocorrendo em seu imaginário e consequentemente em sua vida através da adoção de
novas ideologias e práticas religiosas.

4. Considerações Finais.

“Os evangélicos eles tem, não só pela veste, é uma identidade


as vestes, [...], uma característica própria. Porque se você, se a
pessoa andar da maneira que andava antes, como é que vão
identificar que você é um evangélico? Como é que vão saber? É
muito difícil. Lógico que tem as ações também, é um conjunto.
As ações, a tua mudança de vida, e as vestes. [...] Mas eu acho
que as vestes são a identidade do evangélico. Então como eu
queria, como eu estava congregando e tudo, então como lá é
tudo lindo, que é tudo Igual, então eu também queria me sentir
da mesma forma”

Concluímos, pois, que a transformação na maneira de trajar é um dos


principais aspectos evidenciados pelas mulheres que se convertem a Assembleia de
Deus de Milhã. A busca pela identidade assembleiana é acompanhada uma
transformação na aparência que evidencia os sinais de adesão ao grupo. Tal fato é
salientado pela fiel Marcia Pinheiro11, que no trecho acima citado considera a
indumentária uma parte de extrema importância no processo de conversão.
A fala expressa a necessidade de ser igual as demais, ela considera a
roupa uma das principais características da identidade evangélica, é uma questão de
reconhecimento, de ser vista como evangélica na sociedade, questionando que além
dos comportamentos, se não for através dos trajes, ficaria muito difícil às pessoas
identificarem sua conversão para a Igreja. Não basta acreditarmos “que somos isto ou
aquilo” “É preciso mobilizar um equipamento de identificação, do qual a roupa é
fundamental, para apresentar teatralmente para os outros (e para nós mesmos) o que
imaginamos ser.” (AGUIEIROS, 1999, p.132). Os membros da Assembleia de Deus
reafirmam a necessidade da mulher assembleiana se mostrar diferente das demais
mulheres da sociedade, principalmente, no que se refere à vestimenta feminina, que é
tomada como exemplo de decência pelos membros da igreja, seus cabelos crescidos e
suas vestimentas diferenciadas fazem parte da sua identidade enquanto mulher
assembleiana.
Desta feita, para as mulheres da Igreja Assembleia de Deus de Milhã
dentro do conjunto de normas, existem as peças ‘apropriadamente’ femininas, como
saias e vestidos, que possuem ainda, características mais peculiares, principalmente
no que se refere ao comprimento e decotes. Portanto, não basta fazer uso de saias,
elas devem cobrir o joelho. Já os vestidos, por sua vez, além de longos, não devem
evidenciar decotes, trazendo a marca da elegância, que no discurso moralizante da
Igreja não pode ser dissociada da descendência, assim só é elegante quem é
descente. É importante observar, que o termo ideal é sempre elegância. Não se fala
de beleza, nem sensualidade, que sugerem ligação com o mundano e o sensual.
Assim, o ideal a ser perseguido é o da elegância, que traz implícito a ocultação do
corpo, das formas e da sensualidade feminina, assim, elegância se torna sinônimo de
austeridade e também de decência. Tendo ainda a utilização das mangas, longas ou
curtas, como uma típica característica do grupo. São esse os sinais da identidade
assembleiana. Uma identidade que se faz visível através da mudança nos traços
vestimentares daquelas que se convertem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Martins Fontes, 1992.

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Silva, Guarareira Lopes Louro. 11 ed. Rio de Janeiro: DP & A Editora, 2011. 104p.
Título original: The questionof cultural identity.

MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no


Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.); WOODWARD, Kathryn; HALL, Stuart. Identidade e


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n.7, maio 2010.

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Ética Editora, 2011.

VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem: Estuda sistemático dos ritos da


porta e da soleira, da hospitalidade, de adoção, gravidez e parto, nascimento,
infância, puberdade, iniciação, ordenação, coroação, noivado, casamento,
funerais, estações, etc. Petrópolis: Editora Vozes, 1977.

1
Aluna do Mestrado Acadêmico em História da Universidade Estadual do Ceará, com a pesquisa intitulada
“O Militar de Cristo Todo Mundo Conhece Pelo Uniforme”: A indumentária da Neoconvertida
Assembleiana, Milhã- CE(1990-2011). Bolsista FUNCAP- Fundação Cearense de Apoio ao
Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
2
A cidade de Milhã é localizada no Sertão Central do Ceará, situada a margem direita do rio denominado
Capitão Mor, e distante cerca de 301 km da capital Fortaleza. Conta com uma população de
aproximadamente 13.086 mil habitantes, e uma área de 502, 036 km22. A cidade é povoada por pequenos
agricultores, comerciantes e criadores de espécies diversas, tendo na pecuária a principal fonte de renda e
desenvolvimento econômico. O lazer da cidade se constitui basicamente de shows de forró que acontecem
em pequenos clubes e bares. O município é constituído pela sede (Milhã) e mais 05 distritos, são eles:
Carnaubinha, Monte Grave, Baixa Verde, Ipueiras, e Barra. Fonte IBGE. Disponivel em www.ibge.org.br.
Acesso em: 20/03/2013.
3
Com relação a este assunto, o fieis legitimam a necessidade do uso dessas palavras de aceitação, através da
Carta aos Romanos, capítulo 10, versículo 08 e 09, segundo o qual, “Mas, afinal o que diz a Escritura? A
palavra esta perto de você, em sua boca e em seu coração. Isto é: a palavra que nós pregamos. Pois se você
confessa com sua boca que Jesus é o senhor, e acredita com seu coração que Deus o ressuscitou dos mortos,
você será salvo”.
4
Este artigo faz parte de uma pesquisa maior, intitulada “O militar de Cristo Todo Mundo Conhece pelo
Uniforme: A indumentária da Neoconvertida Assembleiana de Milhã- CE(1990-2011). Nesta tomamos a
indumentária como objeto, e as mulheres da Igreja Assembleia de Deus, como sujeitos da pesquisa.
Buscamos portanto entender como a maneira de trajar dessas mulheres é algo diferenciado, marcado pelas
ideologias religiosas do grupo e pela busca de uma nova identidade. Mudar o estilo indumentário significa
ainda uma nova relação com o corpo, com os espaços e com os hábitos. Já que além da aparência as mulheres
são cobradas por seu comportamento, onde deve dar exemplo de conduta, discrição e respeito para com as
legitimadas submissões que existem dentro do corpo da Igreja. A Assembleia de Deus de Milhã, surgida na
cidade desde meados de 1960, é uma das mais tradicionais no que se refere a conduta feminina. A hierarquia
masculina é visivelmente percebida, tendo credibilidade através de um forte fundamentalismo bíblico. Para a
realização desta pesquisa nos pautamos em fontes orais, onde realizamos entrevistas como lideranças
masculinas da Igreja e principalmente com as mulheres da congregação. Utilizamos ainda fotografias, atas de
conversões da Igreja, e algumas revistas lições bíblicas trabalhadas nas escolas dominicais.
5
Para compreendermos toda a simbologia empreendida no ritual do batismo utilizaremos as reflexões
realizadas por Eliade (1996). Segundo o autor, para o homem religioso a natureza não é puramente natural,
ela é carregada de valores, exprimindo sempre algo relacionado ao transcendente. No que se refere ao
batismo das águas o autor nos chama a compreender melhor os valores religiosos que a água possui, a fim de
perceber sua estrutura e sua função simbólica. Segundo ele, “As águas simbolizam a soma universal das
virtualidades: são fonsetorigo, o reservatório de todas as possibilidades de existência; precedem toda forma e
sustentam toda criação”. Os rituais da água estão presentes na ideia de morte e nascimento simbólico, o
contato com a água proporciona regeneração, fertiliza e multiplica o potencial da vida, dissolve (no caso
assembleiano podemos pensar que a água dissolve os pecados daquele que se converte) e em seguida cria um
no ser (com relação a Assembleia de Deus, esse novo ser é considerado um renascido em Cristo). O batismo,
é pois, uma morte iniciática, faz parte de um rito de passagem. (CF. ELIADE, 1996)
6
Daniel Roche utiliza o termo “Metamorfose” quando se refere à indumentária como uma possibilidade de
transformar a aparência e assumir um novo personagem a cada vez que se troca de roupas.
7
Trecho retirado da entrevista com Marcos Pereira (Nome fictício)- 64 anos, Pastor da Assembleia de Deus
até fins do ano de 2010. Entrevista realizada no dia 10/09/2010.
8
Marcia Pinheiro (Nome Fictício), 26 anos. Estado civil- Solteira. Converteu-se para a Assembleia de Deus;
Templo Central de Milhã, em 17 de junho de 2007. Participa ativamente dos trabalhos da congregação, é
membro do grupo de jovens “rosa de saron”, participa aos domingos da escola dominical e das demais
orações. Entrevista realizada em 08/01/2012.
9
Edina Ferreira (Nome fictício)-41 anos. Estado civil- Solteira. Converteu-se para a Assembleia de Deus
Templo Central no dia 08 de março de 2008. Possui o cargo de “Acomodadora” da instituição. Segundo ela
esse é um cargo novo que foi criado apenas na Assembleia de Deus de Milhã. Sua função é esperar os
membros e visitantes na porta de entrada do templo, e posteriormente auxiliar para que nenhuma pessoa fique
sem lugar para sentar e acompanhar o culto de maneira confortável. Além disso, ela faz trabalhos de
evangelização em hospitais, em residências de enfermos e etc. Entrevista realizada no dia 09/01/2012.
10
Edson de Moura (Nome fictício). Entrevista realizada no dia 11/02/2010. Co-pastor da Igreja Assembleia
de Deus: Templo Central de Milhã, sendo ainda grande conhecedor da trajetória dessa denominação
protestante no município.
11
(nome fictício) Entrevista realizada em 08/01/2012.
RUPTURAS E INOVAÇÕES: UMA ANÁLISE DA RECONFIGURAÇÃO EVANGÉLICA
PELOS NEOPENTECOSTAIS NO JUAZEIRO DO NORTE.

A questão religiosa na contemporaneidade vem se apresentando com grandes e


significativas mudanças, isso advém, sobretudo, do decréscimo no número de
católicos acompanhado de um crescimento evangélico. Uma vez que, nas últimas três
décadas o cenário religioso vem tomando configurações bastante peculiares. Assim o
que estamos vivenciando num contexto geral diz respeito às trajetórias declinantes do
catolicismo, acompanhadas da expansão evangélica e de uma maior visibilidade da
vertente neopentecostal.
Tem sido notável o avanço dessa vertente religiosa que assume
características como a acomodação face à sociedade moderna, o distanciamento de
hábitos sectários e ascéticos e a inovadora valorização de soluções de caráter
pragmático e imediatista para os dilemas do crente. Vale ressaltar, que o
neopentecostalismo possui uma grande especificidade, pois além de ser o principal
palco do trânsito de pessoas entre duas diferentes denominações, é considerado como
um dos principais segmentos que reforçam cada vez mais a busca por uma salvação
individual, onde essas igrejas atuam como verdadeiros prontos-socorros espirituais
(MARIANO, 2000).
Diante disso, as igrejas neopentecostais têm ganhado uma maior visibilidade
justamente pela especificidade na sua forma de atuação. Visto que, são denominações
que rompem com velhos e tradicionais costumes e se apropriam de uma diversidade
de estratégias com a pretensão de marcação de terreno nesse cenário religioso que se
encontra tão plural e dinâmico.
Desse modo, a proposta desse trabalho é elencar as transformações que vem
ocorrendo no cenário religioso contemporâneo, com foco na atuação das igrejas
neopentecostais num contexto localizado que é, portanto, Juazeiro do Norte. Uma vez
que, o que se percebe é que o nopentecostalismo de uma forma geral tem atuado de
uma maneira bastante peculiar e com características que nos levam a pensar que a
forma trabalhada por essas igrejas rompem com paradigmas do universo religioso e
até mesmo do próprio cenário evangélico.
Assim sendo, temos como proposta fazer uma análise acerca das rupturas e
inovações protagonizadas pelo neopentecostalismo no Juazeiro do Norte. Frente a
isso, o que se observa é uma maior particularidade, visto que, no momento que tais
igrejas atuam, as mesmas têm como referência o santo popular da localidade ou,
melhor dizendo, o combate ao Padre Cícero.
As igrejas neopentecostais de uma forma geral têm contribuído imensamente
para a desconstrução de uma imagem estereotipada que se tinha do crente. Uma vez
que, elas atuam de uma maneira que prioriza valores e práticas que se contrapõem de
uma forma bem significativa a comportamentos estereotipados de um crente. Devido
a isso, considerando uma visão do senso comum, o crente é aquele que adota um
comportamento extremamente conservador. Isso implica dizer que a título de senso
comum, ser evangélico é assumir um comportamento como a não ingestão de bebidas
alcoólicas, o fato de não fumar e em relação ao trabalho ser uma pessoa que adota
um comportamento extremamente ético, onde princípios e valores são bastante
observados por pessoas desse grupo.
Pensando dentro dessa perspectiva, falar em evangélicos era como se
estivéssemos nos referindo a pessoas que viviam nesse mundo e atuavam nesse
mundo, mas de uma forma muito particular e específica. Viviam de uma forma
reguladora e correta aos princípios da igreja à espera de um outro mundo onde nesse
outro lugar viveria de uma forma feliz. Assim sendo, os evangélicos atuavam de uma
forma muito curiosa no mundo, pois aguardavam uma recompensa pelo bom e
exemplar comportamento que haviam assumido na terra.
No texto Rejeições Religiosas do Mundo e suas Direções, Max Weber vem tratar
de dois tipos de ascese, a que se refere a mística, onde o mesmo argumenta que essa
ética religiosa de negação ao mundo se refere a uma vida dedicada a crença religiosa
e que segue uma ética voltada para o eu espiritual e não mais para o mundo. E por
outro lado o outro de tipo de ascese que mais nos interessa nesse texto que é
viabilizada pelo protestantismo, onde volta-se não para o espiritual, mas para a ação
neste mundo, através do trabalho e da rejeição aos prazeres mundanos. (WEBER,
1982)
Essas práticas podem ser melhor compreendidas se utilizarmos como
exemplificação a maneira como a dimensão ética atua, como se dá a presença
evangélica a partir dessa ética no mundo. Assim, o que diferenciam evangélicos e
católicos, é, sobretudo, o fato de que no caso dos primeiros os mesmos fazem uso
após a conversão de uma ética orientadora, que conduz, que organiza e que mostra
caminhos. Considerando, por sua vez, que após a conversão o que podemos observar
é que ocorre uma mudança muitas vezes significativa na vida do convertido.
Se considerarmos que o mesmo abandona certos hábitos para aderir a outros que são
orientados pela igreja a qual congrega, são regras que regulam a vida do convertido.
Dentro do universo católico, por sua vez, essa realidade toma uma direção
um pouco diferente. Uma vez que, se considerarmos conversão na perspectiva de uma
adesão individual e racional, dentro do catolicismo não haveriam convertidos, porque
o que se observa dentro do catolicismo são pessoas que são católicas na maioria das
vezes por uma questão tradicional e não uma escolha pessoal. Além disso, a igreja
católica não é nem um pouco rígida no que diz respeito a dizer para os seus membros
o que eles devem ou não devem fazer, essa digamos obrigatoriedade não se faz
presente. Quando me refiro a uma não rigidez quero afirmar que dentro do catolicismo
não se tem um grande apego para a observância de regras. Os princípios da igreja
muitas vezes estão claramente definidos, mas não se tem uma orientação reguladora
que ponha em xeque essas questões, ou seja, que estimulasse a observância dos
hábitos. Contudo, deve-se considerar que é exatamente pensando nessa atuação
diferenciada no mundo que as igrejas neopentecostais vêm de certo modo quebrando
com velhos e estereótipos que caracterizam o crente como pode ser percebido. Uma
vez que, o que se observa é a acomodação de práticas, ou seja, o crente
neopentecostal está longe de ser um crente que vai de casa para a igreja e que é
impossibilitado de freqüentar outros ambientes, pois o que vemos no
neopentecostalismo também é essa ruptura onde a pessoa pode ser evangélica, mas
também pode transitar por universos que estão fora da igreja, como pode ser
percebido no testemunho de um pastor da igreja Mundial do Poder de Deus, ex-
dependente químico.

Quando eu fui na igreja evangélica tudo que eu podia encontrar


no mundo em termo de felicidade sem as drogas eu encontrei
na igreja evangélica, por exemplo, eu gostava muito de futebol,
gostava muito de jogar bola e na igreja evangélica eu encontrei
isso, né, eles tinha lá chamado o grupo jovem e tinha usuário
de droga que tavam se libertando também, tinha muitos jovens,
amigos meus foram comigo, alguns colegas e a gente começou
a se entrosar ali, começou sabe? Eu comecei a me sentir bem,
porque eu vi que eu podia ser feliz sem usar droga, eu podia
jogar uma bola, eu podia ir pra uma praia, eu podia ir pro
cinema sem precisar usar drogas e eu vi ali, sair pra uma
pizzaria, pra comer uma pizza, então eu vi que eu podia ser
feliz sem as drogas, então foi isso que me chamou atenção na
igreja evangélica. (Eduardo. Entrevista realizada por Itamara no
Juazeiro do Norte, 31/01/2012).

Na contemporaneidade, vemos mudanças significativas acontecendo dentro


dessas perspectivas apontadas, não há de se negar que ainda hoje quando pensamos
em crente, nos remetemos a esse estereótipo, mesmo sabendo que nem todas as
pessoas que se afirmam como evangélicas adotam comportamentos como esses
citados mais acima.
Diante disso, o que pode ser demonstrado são mudanças e transformações bastante
expressivas. É digno de nota, contudo, que existem evangélicos neopentecostais com
características bastante conservadoras, não estou negando esse fato, o que estou
afirmando é que dentro das igrejas neopentecostais se percebe um apelo maior para a
questão de se abrir para o mundo.
Isso implica dizer que dentro do neopentecostalismo observamos um grande
esforço por parte das lideranças em ditar uma ética de vida, mas não tão rígida e sim
pautada na atuação do fiel nesse mundo. Dessa forma, o fiel é estimulado a fazer uso
daquilo que o mundo está oferecendo, com uma certa cautela, mas dentro dessa
perspectiva o fiel deve sim gozar desse mundo. Esse fato está de certa forma
fundamentado na Teologia da Prosperidade, onde estimula o fiel a fazer uso de
elementos que estão a sua disposição, ou seja, seria uma negação daquela ideia de
que o crente deve esperar o paraíso para gozar de uma vida feliz, abundante e
próspera. Dessa forma, a intenção com esse trabalho é demonstrar a acomodação ao
mundo que essas igrejas favorecem. Como aponta muito bem Ricardo Mariano:

Mas são as igrejas neopentecostais, formadas a partir de


meados da década de 70, que realizaram as mais profundas
acomodações à sociedade, abandonando vários traços sectários,
hábitos ascéticos, e o velho estereótipo pelo qual os crentes
eram reconhecidos e, implacavelmente estigmatizados. Na
verdade, elas não só aboliram certas marcas distintivas e
tradicionais de sua religião, como propuseram novos ritos,
crenças e práticas, relaxaram costumes e comportamentos e
estabeleceram inusitadas formas de se relacionar com a
sociedade. E como se não bastasse, passaram a priorizar a vida
aqui e agora, em vez de enfatizar, como insistiam antes seus
irmãos de fé, o abrupto fim do apocalíptico deste mundo, ao
qual prontamente se seguiria a bem-aventurança dos eleitos no
paraíso celestial. (2000, p. 22)

Esse novo crente por sua vez, não necessita, por exemplo, esperar a vinda
de um paraíso, pois ele pode fazer desse mundo o próprio paraíso. A teologia da
prosperidade vem corroborar com essa perspectiva, Deus é desejoso de ver os seus
filhos prosperarem, tanto financeiramente como espiritualmente aqui na terra, não
necessitam esperar a vida nesse lugar.
Além disso, o crente neopentecostal não é caracterizado como um filho
submisso, uma vez que ele pode até mesmo exigir de Deus. O velho princípio da
igreja católica e de uma boa parte das igrejas evangélicas de que as coisas devem
acontecer no tempo de Deus também vem sendo desconstruída pela vertente
neopentecostal. Visto que, para essas denominações o crente não apenas é merecedor
de graças, como deve exigir de Deus que a graça aconteça, com uma praticidade e
imediatez nunca antes imaginada. O que percebemos nesse sentido é a providência
divina sendo “questionada” por valores mundanos, como a
mercantilização/mercadorização da fé e dos bens e serviços religiosos,
fluidez/volatilização das relações, consumo individualizado de bens. .
Essas praticidades na realização de graças podem ser bem interessantes
de serem compreendidas considerando, sobretudo, a questão dessa nova forma de se
entender como evangélico. Se pensarmos que um fiel pode ser agraciado com um
milagre, por exemplo, tomando apenas água consagrada e fazendo uso de um azeite
ungido estamos sim falando de mudanças significativas. Se considerarmos que esse,
digamos, que o novo crente não apenas rompe com certos hábitos, mas também se
apropria de outros. Podemos perceber essas mudanças no perfil do crente se
observarmos que esse novo evangélico não apenas quer fazer uso de uma graça como
também quer fazer isso na hora em que ele achar pertinente.
Sendo assim, aquele evangélico que acreditava fielmente que deveria ser
submisso as ordens de Deus, por exemplo, esperando a atuação de Deus na vida dele,
não se ver então no dever de esperar, mas sim de cobrar essa atuação. Cobrar uma
postura mais rápida e mais eficiente do ser divino, que aconteça no tempo desejado e
oportuno para o fiel e não considerando a vontade do Deus Supremo.
A partir de elementos como esses, vemos uma forma bastante peculiar de
atuação das igrejas neopentcostais. Vale considerar também uma outra questão que
caracteriza essas especificidades na performance dessas denominações religiosas,
visto que, a atuação dessas igrejas é de uma forma bem interessante de abertura, ela
abre para o dependente de drogas, para a prostituta, para o homossexual.
Para, além disso, ela abre para as mulheres que vão vestidas de forma não
muito discreta, para homens que vão de brinco na orelha, de bermuda. No caso da
igreja Universal, particularmente ela deixa de fazer uso pelo menos com uma maior
intensidade da bíblia. Desse modo, o crente convertido a igreja Universal vai para as
reuniões sem uma bíblia na maioria das vezes, justamente pelo fato de que na igreja
a liderança muitas das vezes nem se utiliza dela e, quando usa, é apenas para ler um
versículo. Desse modo, as igrejas neopentecostais recebem as pessoas da forma como
elas se encontram trajadas, com seus hábitos e modos de vida sem nenhuma crítica,
sem nenhuma discriminação e faz dos seus fiéis um público bastante específico.
Esse público, por sua vez, encontra na igreja certas rupturas com o universo
evangélico pensando de uma forma mais geral e estereotipada. Encontra um pastor
que não olha as pessoas que, muitas vezes, não se encontram em um padrão digamos
que evangélico com um olhar de reprovação. Ao contrário disso encontram aceitação,
acolhimento e um discurso que muitas vezes rompe com toda e qualquer perspectiva
não apenas pensando em um cenário evangélico, mas pensando em um cenário
religioso de uma forma mais geral. Como está bem explícito na fala desse fiel da
igreja Universal: “porque eles não me conheciam e sabiam do meu passado e não me
criticaram não, não olharam pro meu passado, eles me ajudaram”. (Roberto. 23 anos.
Entrevista realizada por Itamara Meneses em Juazeiro do Norte, 01/12/12).
Dessa forma, os neopentecostais têm causado rupturas no momento em que rompem
com uma forma tradicional de se pensar em evangélicos. No momento em que eles
colocam dentro da igreja o homossexual, o usuário de drogas, a prostituta, é certo
que se trata de uma estratégia para converter essas pessoas, mas no momento em
que a igreja aceita essas pessoas sem nenhuma restrição, sem nenhuma cobrança,
vemos mudanças significativas acontecendo. E para, além disso, trazem inovações no
tempo que se utilizam das mais diversas estratégias para se chegar a um público que
não é um público exclusivo.
O que quero afirmar argumentado que não é um público exclusivo é no sentido
de dizer que as igrejas neopentecostais ofertam bens de todas as espécies, seja de
solução para problemas de ordem afetiva, financeira, familiar, até mesmo na busca de
conseguir um parceiro ou orientação para a manutenção de casamentos, pois essa
seria a função da terapia do amor que é uma das reuniões ofertadas pelas igrejas.
Visto que, são igrejas que ofertam todo e qualquer serviço desde a cura de uma
doença até as estratégias para que o crente encontre um parceiro, ou seja, os
neopentecostais se colocam de forma diferenciada no cenário religioso porque
rompem com ordens estabelecidas e propõem outras nunca antes imaginadas.
Essas rupturas e inovações citadas mais acima podem ser mais bem
aprofundadas e compreendidas numa análise feita da atuação dessas igrejas, nesse
caso em particular da atuação específica das igrejas neopentecostais no Juazeiro do
Norte. É sabido que o município é um dos maiores centros de romarias populares do
país, entretanto, esse fato não têm intimidado essas igrejas, que atuam de forma bem
enfática no combate ao santo popular da localidade, como forma de marcação de
terreno e de identidade.
Devido a isso, o que penso é que os neopentecostais pensando numa
realidade localizada que é, portanto Juazeiro do Norte tem incomodado os católicos
justamente por conta desse mercado religioso em Juazeiro ter um certo monopólio,
sobretudo, pela presença simbólica do Padre Cícero. Considerando, portanto, que os
neopentecostais dentro de um contexto predominantemente católico são vistos como
um grupo inferior, me utilizando também da perspectiva de Norbert Elias, quando o
mesmo evidencia a relação dos estabelecidos e os outsiders.

[...] Quando um grupo deixa de estar em condição de


monopólio das principais fontes de poder existentes numa
sociedade e de excluir da participação nessas fontes outros
grupos interdependentes [...] Tão logo diminuem as
disparidades de força ou, em outras palavras, a desigualdade do
equilíbrio de poder, os antigos grupos outsiders, por sua vez,
tendem a retaliar. (ELIAS, 2000, P. 24).

O que é digno de nota é justamente o que é colocado nessa passagem pelo


autor. No caso de Juazeiro, o que podemos perceber é um tensionamento muito
visível entre os de fora e os de dentro, mas nesse caso os outsiders, que são os
evangélicos, caracterizado nesse caso pela vertente neopentecostal atuam justamente
na tentativa de sair dessa condição dos silenciados.
Os neopentecostais são um grupo que pode ser caracterizado como numa
posição inferior, entretanto, o que se observa é que os evangélicos entram num
espaço predominante católico, ou seja, com uma memória católica muito enraizada.
Devido a isso, os de fora, que são os evangélicos, de fora porque não são
estabelecidos, seria digamos que um grupo novo em disputa com um outro grupo que
já possui raízes fortemente estabelecidas. Todavia, o que se observa no Juazeiro do
Norte é um tensionamente entre esses dois grupos.
Isso implica dizer que os neopentecostais estão inseridos num contexto que
predomina uma cultura extremamente católica e que está enraizado uma forte
devoção ao Padim Ciço, ou seja, na localidade se ver internalizado e naturalizado uma
“memória católica”. “O problema de toda memória oficial é o de sua credibilidade, de
sua aceitação e também de sua organização.” (POLLAK, 1989, p. 09)
Na perspectiva desse autor o sucesso da memória oficial está exatamente na
sua aceitação. Levando em consideração que não é a população que cria uma
memória, mas essa memória que é criada, recriada e reinventada se dar por um
pequeno grupo que possui influência suficiente para dizer o que deve ser revelado e o
que deve ser guardado, silenciado. Assim, o restante da população fica apenas com a
tarefa de tornar legítimo aquilo que foi colocado e essa legitimação ocorre no
momento em que aceitamos o dado como um fato consumado.
Sendo assim, não apenas no Juazeiro, mas no Brasil como um todo o que se
vê é uma cultura extremamente católica e a particularidade do Juazeiro do Norte se dá
pelo fato de que os evangélicos a partir do momento em que crescem e
conseqüentemente ganham visibilidade, vão incomodando.
Vale considerar que para, além disso, esse incômodo é justificado
principalmente pelas disputas no mercado religioso juazeirense. É bom considerar que
o que vivenciamos na contemporaneidade é um mercado religioso caracterizado pela
pluralidade e pela intensa disputa entre as denominações religiosas. As igrejas
almejam a adesão dos fiéis e para isso são constantes as ofertas de bens e serviços
religiosos e que tem como uma de suas finalidades básicas atraírem o fiel para a
igreja. Nessas ofertas o que pode ser observado também diz respeito a um esforço
contínuo das igrejas para demonstrar uma maior eficiência dos resultados promovidos
pelas igrejas. Para, além disso, é um esforço de tornar a igreja mais legítima do que a
outra, diante disso, a tensão e as disputas estão bem definidas e bem visíveis.
Em relação às tensões existentes no Juazeiro do Norte e protagonizadas
pelas igrejas neopentecostais em relação ao Padre Cícero podemos pensar na questão
do agenciamento que é feito acerca do alcance das graças, pautado, sobretudo, na
praticidade e na imediatez. A questão da praticidade tanto ressaltada pelas lideranças
neopentecostais no alcance de algum milagre desejado pelo fiel pode também ser
entendida compreendendo o discurso de que o fiel é autorizado por Deus para que
possibilite o seu próprio milagre. Assim sendo, as igrejas neopentecostais não diferem
dos evangélicos numa perspectiva mais ampla, apenas no quesito ousadia na oferta
de bens religiosos, mas também na preponderância no momento em que assume que
o fiel tem autoridade o suficiente para pedir o afastamento do mal.
Pensando o alcance da graça na perspectiva católica veremos que a mesma
se dá de forma muito diferente das igrejas neopentecostais, pois para o catolicismo o
alcance de uma graça deve passar necessariamente pela questão do sacrifício e da
penitência. Uma vez que, a igreja Católica reconhecendo a condição de pecador dos
seres humanos, acredita que, para que o fiel possa fazer uso de uma benção, ele deve
necessariamente passar por um tipo de sofrimento para merecer a graça.
Como no catolicismo também se tem a crença de que os santos são
intercessores entre Deus e o fiel para que a pessoa possa vir a fazer uso de uma
benção ela, na maioria das vezes, faz uma promessa a determinado santo,
prometendo, por exemplo, subir degraus de uma escada de joelhos. Isso pode ser
trazido para a realidade juazeirense, aonde milhões de romeiros todos os anos vão ao
município em devoção ao Padre Cícero e muitas vezes sobem as escadas do Horto de
joelhos, isso é um ato de sofrimento.
Essa questão está fundamentada, sobretudo, na ideia do sacrifício. Visto que,
na ideologia católica o sacrifício é um meio necessário para o alcance da graça. As
igrejas neopentecostais rompem com essa ideia e propagam a mensagem da graça
alcançada de forma rápida, tranqüila e sem nenhum sofrimento.
Frente a isso, percebe-se a diferença entre formas de alcance de uma graça
tanto na visão católica como na visão de igrejas neopentecostais.
Analisando, por exemplo, a hierarquia celestial numa visão católica, perceberá que o
céu é formado por santos, anjos e Deus. O católico, reconhecendo sua inferioridade
perante Deus, utiliza a intercessão dos santos para tratar da solução dos seus
problemas, visto que os santos são intermediários entre os homens e Deus, pois este,
como autoridade máxima, não lida diretamente com seus servos. Para isso, ele se
utiliza de intercessores, de canais que possibilitam essa interface.
Por outro lado, temos os neopentecostais, que não se conformam de modo
algum em tratar com os santos, pois para o universo evangélico a hierarquia no céu se
dá de forma diferenciada, onde os santos não estão numa condição de superioridade,
pois se assemelham a pecadores e inferiorizados. Essa é uma realidade do mundo
evangélico como um todo, entretanto, os neopentecostais em Juazeiro do Norte
possuem uma particularidade ainda maior, pois os líderes das igrejas, a todo o
momento, estão colocando a figura de Deus em primeiro lugar e condenando a
devoção ao Padre Cícero. Isso pode ser percebido tanto em discursos quanto nas
práticas utilizadas pelas igrejas neopentecostais, onde tais práticas ostentam o poder
de atuação de Deus.
Assim sendo, o fiel que, como ex-católico e, muitas vezes, numa condição de
romeiro, tratava de seus assuntos e da resolução deles com os santos uma categoria
muito inferior a do Deus Supremo. Por conta disso, faziam promessas das mais
diversas possíveis e com uma quantidade enorme de santos; muitas promessas
exigiam até mesmo um esforço físico e um sacrifício por parte do fiel. Afinal de contas,
o que dizer do fiel que necessita subir dezenas de escadas de joelho para a obtenção
de uma cura. Sendo, contudo, que ele pode muito bem se deslocar a uma igreja
neopentecostal fazer uso de um azeite consagrado, de uma água abençoada, de uma
rosa de saron e até mesmo da toalha sê tu uma benção e conquistar a graça
desejada.
Partindo dessa perspectiva, as tensões só tendem a aumentar, visto que, se as
igrejas neopentecostais a todo tempo propagam um discurso de que só o Deus
Supremo pode fazer e acontecer na vida do fiel, de certa forma o neopentecostalismo
está tornando ilegítima a atuação do Padre Cícero como alguém que possui poder de
atuação na vida dos fiéis. Assim sendo, o primeiro conflito se dá no sentido dessa
desconstrução feita pelas igrejas neopentecostais da imagem tradicional que se tem
do Padre Cícero como um santo popular que possui o poder de obrar milagres. As
tensões se intensificam mais ainda no momento em que as igrejas neopentecostais
difundem um discurso de que, no neopentecostalismo, a graça é alcançada de forma
prática, ágil, imediata, diferentemente do catolicismo e da relação mediadora entre
Deus e o Padre Cícero, e isso são bem caracterizados nas correntes realizadas
cotidianamente pelas igrejas neopentecostais.
Diante desse fato, é necessário fazer uma análise acerca da infinidade de
correntes realizadas pelas igrejas neopentecostais, que têm como uma de suas
finalidades, a permanência do fiel na igreja e a contraposição à ineficácia do Padre
Cícero, dos santos e das crenças e práticas católicas de um modo geral. Mas, para,
além disso, essas correntes também são interessantes de serem pensadas como ações
estratégicas para evidenciar os resultados da igreja e a praticidade no processo dessas
campanhas. Na romaria, por exemplo, o fiel vem de uma distância significativa, em
condições muitas vezes nada confortáveis, exigindo sacrifícios em busca de chegar a
Juazeiro e conseguir uma benção.
Todo esse sacrifício que se faz necessário para o alcance de uma benção no
universo católico é simplificado no neopentecostalismo. Visto que, campanhas como
toalhinha, água ungida, azeite consagrado, rosas, todos esses elementos, segundo a
igreja, irão possibilitar alcançar a benção tão almejada pelo fiel. Assim sendo, o azeite,
por exemplo, é um instrumento de alcance de benção muito interessante, uma vez
que o líder da igreja vai a algum lugar considerado por ele sagrado, mais
freqüentemente é um lugar chamando monte. Neste lugar, o pastor consagra o azeite
e entrega aos fiéis para colocarem em alguma enfermidade ou mesmo levar para casa
e curar algum familiar enfermo. Percebe-se então a praticidade do processo: o fiel não
necessita ir a um monte, pois ele tem o pastor que faça isso, ele apenas recebe o
azeite consagrado e, ungindo com esse azeite, cura sua enfermidade. Assim sendo,
diferentemente do romeiro que necessita de todo um sacrifício, o fiel neopentecostal
se abstém dessas práticas.
Outro objeto simbólico interessante de ser pensado faz referência à
toalhinha sê tu uma benção utilizada pela igreja Mundial do Poder de Deus. Essa
toalha é entregue aos freqüentadores da igreja pelo pastor com o objetivo de curar,
de proteger e de conferir uma série de outros benefícios. É um objeto bem prático que
pode ser colocado na bolsa ou no bolso, proporcionando proteção ou até mesmo a
cura de alguma enfermidade. A repercussão que esses objetos simbólicos possuem
está bem caracterizada na fala de uma fiel da igreja Mundial.

Eu tinha uma bursite muito forte no meu braço a trinta e cinco


anos, forte que eu não podia lavar roupa, quando eu lavava
roupa passava a noite toda gemendo, chorando, muito
chorando de dor, minha filha via isso. Fui curada também lá na
igreja Mundial dos Poderes de Deus, tomando água ungida em
casa, dormindo com a toalhinha sê tu uma benção e lá na igreja
Mundial na terça do milagre urgente também eu coloquei a mão
que o pastor pediu, graças a Deus nunca mais. (Eliza, 45 anos.
Entrevista realizada por Itamara Meneses em Juazeiro do Norte,
12/12/2011).

As ações realizadas por meio de objetos simbólicos pelas igrejas


neopentecostais possuem uma praticidade e um imediatismo, como é percebido na
fala dessa fiel da igreja Mundial. Tais práticas são bem aceitas pelos freqüentadores
da igreja, uma vez que é muito cômodo curar uma enfermidade tomando água e
dormindo com uma toalha, sem a exigência de sacrifícios ou penitências. Vale
lembrar, que os discursos que são difundidos pelas lideranças do alcance do milagre
imediato e as práticas que resultam em soluções tão rápidas para os problemas estão
cotidianamente presente nas igrejas neopentecostais
Assim sendo, os neopentecostais, conhecendo a especificidade do lugar, como
um ambiente de grande devoção à imagem de um santo popular não têm medido
esforços para combater o que eles chamam de idolatria. Devido a isso, se tem a
presença de tensões protagonizadas por católicos e evangélicos, onde os evangélicos
se esforçam na tentativa de instaurar em Juazeiro do Norte um ambiente do “Senhor
Jesus Cristo” e desconstruir a idéia de um município cuja existência gira em torno da
devoção ao Padre Cícero. É importante mencionar, contudo, que apesar dos
evangélicos como um todo estarem a todo o momento trabalhando o combate a
idolatria, percebe-se no município que o esforço das igrejas neopentecostais em
desconstruir a idéia tradicional que se tem do Padre Cícero como um homem capaz de
obrar milagres se dar de forma mais intensa.
Diante de tudo que foi colocado o que pode ser dito é que o cenário religioso
plural e dinâmico juazeirense tem ganhando uma outra feição. Isso implica dizer que a
partir de iniciativas dos evangélicos como um todo e das estratégias e inovações em
particular dos neopentecostais, a voz que antes estava silenciada, agora não aceita
essa condição, como decidiu não apenas quebrar o silêncio, mas gritar e gritar com
uma intensidade tamanha até ser ouvida. Dessa forma, as igrejas neopentecostais
operam combatendo a figura do Padre Cícero que, para os devotos, é um santo que
obra milagres em suas vidas.
Frente a isso, as igrejas neopentecostais trabalham incansavelmente na
tentativa de mostrar aos fiéis que o único capaz de mudar a condição de uma pessoa,
de transformá-la, é Deus. Desse modo, são muitas as estratégias utilizadas pelos
líderes para reforçar a mensagem que Jesus Cristo é o único que pode mudar a vida
do fiel, seja na dimensão financeira, afetiva, da saúde, etc. Oferecendo promessas de
resolução de todos os tipos problemas. Assim sendo, o universo neopentecostal, de
uma forma mais ampla, difunde um discurso que faz com que o crente acredite na
legitimidade da igreja, no sentido de crer que a fé e a vinculação àquela igreja farão
com que seus problemas sejam resolvidos.
Referências

Livro:
ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a
partir de uma pequena comunidade/Norbert Elias e John L. Scotson; tradução, Vera
Ribeiro; tradução do posfácio à edição alemã, Pedro Sussekind; apresentação e
revisão técnica, Federico Neiburg – Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil.


São Paulo: Loyola, 1999.

Capítulo de livro:
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cultura e Patrimônio: Um guia. Rio de Janeiro. FGU, 2008.

WEBER, Max. Rejeições Religiosas do Mundo e Suas Direções. In: ensaios de


Sociologia, Guanabara, Rio de Janeiro, 1982.

Artigo:
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Rio de Janeiro: Estudos Históricos,
1989.
1

O PROCESSO DE NAGOIZAÇÃO E A LEGITIMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE


ETNICA EM SALVADOR

As práticas religiosas de origem africana encontraram, no contexto


brasileiro, condições necessárias para sua expressão. Essas religiões expressavam,
inicialmente, uma variedade, tão diversos eram os grupos étnicos a que os
escravos pertenciam. Diante disso, esse artigo tem por objetivo analisar o processo
de nagoização do Candomblé baiano como um importante elemento de afirmação e
legitimação da identidade étnica em Salvador, entre o final do século XIX e o XX,
devendo ser compreendido a partir de uma complexidade e pluralidade de fatores.
Para tanto, analisaremos o final do século XIX, enquanto um contexto de
visibilidade social e prestígio de três importantes casas de culto que reivindicam
pertencer a nação nagô Engelho Velho, fundada em 1850, o Gantois, fim do século
XIX e Opô Afonjá, em 1910. A década de 1930 é relevante discutir a agência dos
praticantes nagôs, aliada à intervenção dos intelectuais, na chamada “ideologia do
prestígio” e os anos 1970 e 1980, com a utilização da religião afro-brasileira pelos
movimentos sociais negros constituindo-se como importantes ícones de resistência
cultural e de orgulho da identidade afro-descendente. Diante do exposto, essa
“africanização” no Candomblé não foi unificadora, ao contrário, privilegiou-se um
grupo (nagô) em detrimento de outras tradições africanas.
Roger Bastide identifica a África enquanto uma referência fundamental no
desenvolvimento do Candomblé, mas reconhece em seu enfoque a característica de
transformação e recriação da religiosidade africana no Brasil.

a religião africana tendeu a reconstituir no novo habitat a


comunidade aldeã à qual estava ligada e, como não o
conseguiu, lançou mão de outros meios; secretou, de algum
modo, como um animal vivo, sua própria concha; suscitou
grupos originais, ao mesmo tempo semelhantes e todavia
diversos dos agrupamentos africanos. O espírito não pode
viver fora da matéria e, se essa lhe falta, ele faz uma nova
(BASTIDE, 1971, p.32).

Desta maneira, reafirma o caráter de recriação e singularidade da religião


afrobrasileira.
Neste artigo não vamos discutir as definições sobre o termo Candomblé, mas
consideramos que a descrição a seguir evidencia aspectos relevantes para uma
compreensão geral:
Candomblé, de étimo banto, vem do umbundo kandombele, já
integrado nos dicionários da língua portuguesa para designar
as religiões populares brasileiras de origem africana na Bahia
2

(como a macumba no Rio de Janeiro e xangô em


Pernambuco), é aqui empregado com o sentindo corrente que
toma entre seus membros e adeptos. Designa os grupos sócio-
religiosos dirigidos por uma classe sacerdotal cuja autoridade
suprema é popularmente chamada de mãe de santo ou pai de
santo, mas que recebe o título genérico de humbondo (étimo
fon) entre as “nações” jeje; de ialorixá ou babalorixá (étimos
iorubas) entre as “nações” nagô, queto e ijexá; de mameto ou
tateto (étimos bantos) entre as “nações” congo, angola. Esses
grupos se caracterizam por um sistema de crenças associadas
ao fenômeno de possessão ou de transe místico provocado por
divindades popularmente chamadas de santos, mas que
recebem o nome genérico de voduns (étimo fon) entre as
“nações” jeje; de orixás (étimo ioruba) entre as “nações”
nagô, queto e ijexá; de inquices (étimo banto) entre as
“nações” congo, angola.Da mesma maneira, durante as
cerimônias públicas festivas dos cultos em geral, canta-se para
voduns em jeje (fon), para orixás em nagô (iorubá), para as
inquices em congo-angola (banto) (CASTRO, 1980. p. 28-29).

Luis Nicolau Parés insere, em seus estudos, contextos que estimularam as


divisões étnicas por nações, como, por exemplo, seu estímulo pelos poderes
públicos, bem como a emergência de uma identidade “africana” associada à cultura
iorubá. Considera a dinâmica de contraste entre os interesses e valores da “classe”
subalterna dos negros e os da camada senhorial determinante, para configurar
importantes características do Candomblé. Nesse sentido, o autor aponta como
uma ressignificação de antigas práticas religiosas com novas intencionalidades, “a
reinterpretação de novas formas religiosas com velhos sentidos”. No confronto com
a cultura ibérica e o Catolicismo popular, o Candomblé emergiu como uma
instituição religiosa periférica, portadora de um discurso cultural paralelo e por
vezes contra-hegemônico. Conforme ele ainda explica:

a gênese do Candomblé não pode ser reduzida a uma posição


de “classe” ou a uma simples resposta de resistência à
escravidão, e deve ser também encarada como o resultado ou
efeito do encontro intra-africano, possuindo uma relativa
autonomia em relação à sociedade mais abrangente
decorrente da sua própria dinâmica interna (PARES, 2006,
p.129).

A importância dos libertos no desenvolvimento e manutenção do Candomblé


foi, principalmente porque eram eles que dispunham de recursos financeiros que
percebiam por seu trabalho, agora remunerado, e pela mobilidade que estes
adquiriram na sociedade, sua circulação em contextos diversificados.
“Foram os libertos aqueles a promover e estabelecer vínculos externos à
comunidade negra. Concomitantemente, essa mobilidade e abertura constituíram-
3

se em indicadores da consolidação e expansão do Candomblé” (PARES, 2006, p.


129).
Isso indica que o Candomblé, já desde o seu início e de forma crescente,
baseou suas atividades numa estratégia de integração social, pelo menos no que se
refere a clientes e participantes.
Na abordagem de tradições religiosas de origem africana, não faz sentido
recorrer à generalização. Isto suporia a existência de uma única África. Não se pode
considerar apenas um homem africano, denominador comum, de todos os grupos
étnicos do continente e, “aplicável” a todas as regiões. Observa-se a existência de
traços semelhantes em toda a África, como a percepção do sagrado; a tensão
relacional permanente entre o mundo visível e o invisível e entre o mundo dos
vivos e o dos mortos; o sentido comunitário de existência; o respeito religioso pelos
ancestrais. Entretanto, observa-se também numerosas diferenças: sistema de
divindades e suas correspondentes mitologias; iconografias sagradas; interdições
religiosas e regulações sociais (inclusive alimentares e sexuais) delas resultantes.
Estes aspectos podem variar de uma região a outra, de uma etnia a outra, de
cidade a cidade.
No Brasil esses elementos da tradição africana serviram de matriz na
composição das religiões afro-brasileiras, formando um amplo repertório mítico
ricamente matizado e produzindo uma considerável diversidade étnico-cultural-
religiosa. No caso do Candomblé, estas especificidades correspondem às variantes
regionais, da presença de divindades relacionadas à região africana de origem, do
culto aos antepassados, das práticas divinatórias, dos elementos rituais e do
transe, componentes das identidades étnicas e base de diferenciação entre as
nações de Candomblé.
O termo nação, utilizado como um demarcador de fronteiras religiosas entre
os grupos, não deve ser pensado de forma dissociada de outros setores da vida
social: étnico, territorial, linguístico e político, uma vez que a religiosidade se
relaciona permanentemente com a vida cotidiana. Isso posto, é preciso que se
perceba a mobilidade deste termo frente aos diversos significados atribuídos a ele
desde o século XVII.
As filigranas semânticas que o termo nação recebeu no Brasil são
importantes para compreendermos o quanto essa divisão do Candomblé em nações
também contribuiu para a construção de uma cosmovisão “primordial de
Candomblé”, centrada na mitologia iorubá, dificultando, em alguns momentos, a
percepção do Candomblé enquanto um complexo cultural legítimo, construído a
4

partir de diferentes heranças culturais africanas no Brasil, incluindo a essa herança


as trocas culturais com os índios e europeus.
Luis Nicolau Parés (2006) aborda o processo da formação de nações de
Candomblé no Brasil numa perspectiva centrada no âmbito de uma etnicidade
relacional. Inicia sua análise sobre o uso do termo a partir de seu caráter
operacional, expresso pela forma utilizada por traficantes de escravos, missionários
e oficiais administrativos dos estados soberanos europeus, num período em que o
termo nação adquiriu o mesmo significado de país ou reino, quando estes se
referiam aos vários grupos autóctones com que se deparavam.
A construção do termo nação, no Brasil, se deu ancorado tanto em práticas
cotidianas, próprias da cultura africana, como através das práticas de dominação
impostas pela visão eurocêntrica de civilização. Foi sob o signo da escravidão que
se formaram as nações africanas no Brasil. Séculos mais tarde, já é possível notar
que o termo se distanciaria dos critérios políticos ou étnicos vigentes na África,
para, sobretudo, se relacionar às novas necessidades da classe dominante colonial,
articulada aos interesses dos senhores de escravos.
A forma de desenvolvimento do tráfico no Brasil contribuiu para uma
diversificação de rotas e portos de origem, que reunia diversas etnias,
corroborando com a necessidade de classificação dos africanos em nações.
Evidencia-se assim que um dos critérios utilizados na construção dessas categorias:
mina, angola, congo, gentio da Costa, da Guiné, etc., era a área geográfica de
embarque, não se levando em conta a pertença.
Um dos elementos culturais significativos na diáspora foi sem dúvida a
língua, responsável pela comunicação e o entendimento entre os africanos. E isso
pode ser observado no campo religioso através da persistência de um repertório
lingüístico de origem africana como forma de expressão simbólica de seus valores
religiosos e de diferenciação. É importante notar que a língua adquire um sentido
singular para os grupos, uma vez que ela extrapola a competência lingüística e se
insere no campo da ação, do desempenho, da religiosidade. Essa dinâmica de
integração língua/religião no contexto brasileiro se constituiu num critério relevante
da divisão do Candomblé em “nações”, representadas da seguinte forma: as
civilizações sudanesas, representada especialmente pelos iorubás (nagô, ijexá,
egbá, ketu, etc.), pelos daomeanos do grupo jeje (ewe, fon...) e pelo grupo fanti-
axanti, chamado na época colonial mina; as civilizações islamizadas representadas,
sobretudo, pelos mandingas, haussas e as civilizações banto do grupo Angola-
Congolês representadas pelos cassanges, bangalas, imbangalas, os congos ou
5

cabindas do estuário do Zaire, os benguela, os bantos da Contra-Costa


representadas pelos moçambiques (BASTIDE, 1971, p.49).
A Bahia, mais precisamente a cidade de Salvador, se constituiu como centro
de excelência no estudo do Candomblé, concentrando a maioria das pesquisas
etnográficas em terreiros de nação nagô e em casas a eles associados, marcando a
diferença entre os estudos realizados em outros contextos, a exemplo do sudeste,
de predominância banto.
Vivaldo da Costa Lima adverte que Nina desconhecia os Candomblés angola
e congo que certamente haviam na Bahia de sua época, cabendo a Carneiro
chamar sua atenção para a existência de casas de cultos organizados de língua
banto. Entretanto, o mesmo Carneiro, ao desenvolver seus estudos sobre essa
cultura, terminou por confirmar uma inferioridade mítico-ritual destes em relação
aos iorubás. Isso pode ser verificado, quando ao falar sobre a autoridade das mães
e pais de santo, Carneiro postulou a autoridade e disciplina como um domínio
importante de diferenciação entre os terreiros nagôs dos não-nagôs. Segundo, ele,
essa autoridade seria:

exercida automaticamente sem necessidade de recorrer a


medidas extremas, salvo caso especiais, de franca indisciplina.
Entretanto, nos Candomblés não-nagôs, a autoridade do chefe
quase sempre reveste uma forma tirânica, que corresponde à
maior frouxidão da hierarquia e da disciplina: a autoridade
deve ser mantida a todo custo (CARNEIRO, 2005, p. 350).

Em relação ao suposto desconhecimento de Nina Rodrigues quanto à


existência de outras nações, Yeda Castro demonstra que não se tratava de
desconhecimento, e sim de desinteresse em estudá-la, utilizando um relato feito
pelo próprio Nina, quando dizia saber da existência de congos e angolas nos
arredores de Salvador, mas que não havia estendido sua pesquisa até esses
grupos. O resultado desse desinteresse por parte dos pesquisadores é descrito por
Capone (2004, p.15), ao constatar o quantitativo de pesquisas sobre o Candomblé
angola-congo.
Com exceção dos estudos clássicos de Édison Carneiro, que confirmam a
inferioridade mítico-ritual dos Bantos, existem apenas duas obras sobre o
Candomblé de Angola: a de Gisèle Binon-Cossard e a de Ordep Trindade Serra. A
esses trabalhos, acrescentamos aqueles realizados por Yêda A. P. Castro, Vivaldo
Costa Lima, Luiz Mott, Renato da Silveira, Nei Lopes, Alberto da Costa e Silva, que
sistematizaram informações importantes sobre os bantos, sua religiosidade,
sistema de organização e tecnologia. Entre esses, a pesquisadora Yêda de Castro é
6

uma pioneira no reconhecimento da contribuição cultural dos grupos étnicos da


Angola e do Congo no processo de formação do Candomblé no Brasil. Todavia,
tanto as pesquisas desenvolvidas nos terreiros jeje-nagô, quanto nos terreiros
angola-congo, em certa medida, serviram como suporte para que, do ponto de
vista acadêmico, se superasse a marca etnocêntrica correspondente à valorização
das nações jeje-nagôs nesse meio.
A produção sobre o Candomblé se pretendeu homogênea, isto é, a partir da
tipificação de um modelo, que logo seria encarnado por diversos atores dos mais
variados campos sociais, influenciando sobremaneira tendências, conceitos e as
próprias tradições afro-religiosas.
Parés analisa o processo de construção da supremacia da tradição nagô
sobre as outras, o que denominou de “processo de nagoização”, o qual deve ser
compreendido como resultado da complexa interação de uma pluralidade de
fatores. Este aspecto foi singular no campo das religiões afro-brasileiras;
primeiramente porque, ao evidenciar a hegemonia nagô, legitimou valores
intrínsecos ao sistema de crenças e práticas religiosas, característicos desse modelo
de culto. Os terreiros que praticavam um culto diferenciado da ortodoxia dos
Candomblés nagôs, de um lado, causavam espanto e mal estar entre os
candomblecistas e, de outro, apresentavam um culto que desde o início foi tido
como “misturado”, e que dada a sua mística nasceu já cultuando caboclos; este
aspecto, outrora, serviu para diferenciar os Candomblés bantos dos nagôs.
A crescente predominância nagô deve ser entendida primeiramente a partir
do século XIX, contexto de visibilidade social e ao prestígio de três importantes
casas de culto que reivindicam pertencer a essa nação: Engelho Velho, fundada em
1850, o Gantois, fim do século XIX e Opô Afonjá, em 1910; o segundo momento na
década de 1930, quando a agência dos praticantes nagôs, aliadou-se à intervenção
dos intelectuais; e o terceiro momento, nos anos 1970 e 1980 com a utilização
pelos movimentos sociais negros como importantes ícones de resistência cultural e
de orgulho da identidade afro-descendente.
O final do século XIX parece estabelecer as bases conceituais para uma
noção de África como lócus original de uma “tradição”, que precisava ser
recuperada, reinventando continuidades, de modo a superar o passado traumático.
É incontestável o fluxo e refluxo atlântico de especialistas religiosos, já na primeira
metade do século XIX, isto é, a viagem dos especialistas religiosos constituiu-se
como um importante capital simbólico e instrumental para a sua promoção
sociorreligiosa. A viagem de volta às origens virou um elemento narrativo central
no mito de fundação do “candomblé mais antigo do Brasil”, o Engenho Velho. As
7

narrativas legitimam a fundação deste Candomblé, reforçando a idéia de um


contato direto com fontes africanas “puras”, enquanto enfatizam a condição livre de
seus atores.
Junto com a habilidade dos líderes religiosos para mobilizar ampla rede
social, contribuíram para acrescentar o prestígio dos seus candomblés e,
consequentemente, práticas rituais como as do Gantois começaram a funcionar
como referentes ideais para muitas das casas de culto, fundadas no pós-abolição.
Cabe notar que a expansão do Candomblé se deu no momento em que o prestígio
nagô estava em ascensão, propiciando, desse modo, a réplica mimética e a difusão
dos padrões rituais nagôs. Portanto, o Gantois, fundado por uma africana, tinha-se
aos poucos transformado num candomblé de crioulos e mulatos. Especula-se que
foi precisamente com a desaparição dos terreiros africanos que os terreiros
“crioulos” como o Gantois, reclamaram uma fundação histórica africana, isto é,
começaram a reivindicar esta identidade.
Salientamos que o movimento intercontinental de produtos, idéias e
pessoas, que continuou a ligar o universo do Candomblé baiano com o continente
africano bem após o fim do tráfico transatlântico de escravos, teve seu efeito
restrito, sobretudo, às casas lideradas por esses sacerdotes transatlânticos, isto
posto, afirmamos que o intercâmbio transatlântico contribuiu para o processo de
nagoização.
No fim do século XIX, o mito da “pureza” africana, associada a um seleto
número de terreiros, na década de 1930 já estaria consolidado. Em 1937, foi
organizado em Salvador o Segundo Congresso Afro-Brasileiro, com a participação
de intelectuais e membros do corpo sacerdotal do Candomblé. Este evento foi
significativo enquanto afirmação da liberdade religiosa e do reconhecimento social
do Candomblé, ao mesmo tempo que sancionava o “tradicionalismo” e a visibilidade
de umas poucas casas de culto nagô. Nesse momento, o antagonismo étnico entre
africanos e crioulos parece transformar-se num antagonismo religioso entre os
cultos de orixá e os de caboclo, discriminando os últimos como “misturados”.
Paralelamente, a influência dos intelectuais na dinâmica interna do Candomblé
começava a ser significativa.
Não podemos deixar de mencionar que algumas lideranças do Candomblé
mantinham contatos regulares e às vezes de estreita amizade com a elite política.
Estratégias essas apontadas sob a perspectiva de uma ideologia do prestígio, o que
propiciava um ambiente político relativamente favorável ao Candomblé.
Apesar dos esforços de Edison Carneiro para incluir representantes de várias
tendências, o Segundo Congresso Afro-Brasileiro reforçou a visibilidade nagô e
8

consolidou, ainda mais, a supremacia das três casas “tradicionais”: Engenho Velho,
Gantois, o Opo Afonjá.
O discurso que ressaltava o étnico passou a dar maior destaque ao
Candomblé como uma religião que representava inclusive certo status e foi
crescentemente reconhecida como legítima pela intelectualidade local.
Como estratégia discursiva das narrativas identitárias está a ênfase nas
origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade. Um dos elementos
mais realçados na narrativa da baianidade (NETO, 1998, p. 54) refere-se à
demarcação da territorialidade como origem da nação, aspecto que seria central na
definição dos traços espaciais e culturais, responsáveis pela diferenciação do seu
povo em relação ao restante do país. Parte destes aspectos cria, em torno da
baianidade, expectativas que muitas vezes assumem um caráter prescritivo que,
por sua vez, se manifesta não apenas na eleição dos elementos que devem integrá-
la, bem como na maneira como estes servem para orientar posturas e um modo
particular de viver (SAMPAIO, 2010, p. 32).
Se até os anos 1950, a baianidade era associada à idéia da “terra mãe” e
todos os elementos que lembrassem à Africa deveriam ser esquecidos, a partir de
então acontece uma redefinição dessa narrativa, isto é, nesse contexto a Bahia
deveria ser singularizada à herança africana
A partir da década de 1970, o discurso da baianidade passou a ser adotado
pelo Estado, tornando mais evidente sua utilização com finalidades políticas. Foi a
partir desse período que o governo estadual, através da BAHIATURSA, começou a
promover a imagem de uma “Bahia feliz”, seja para incrementar a força do turismo
no Estado, seja para construir legitimidade política.
A utilização de um discurso sobre a baianidade, com ênfase nos seus aspectos
festivos e como estratégia política e turística, foi consolidada, no primeiro mandato
do governador Antônio Carlos Magalhães, entre 1971 e 1975. Nesse contexto, ACM
foi visto como um político que se relacionou diretamente com a narrativa da
baianidade e que entendeu a sua dimensão cultural, mas, sobretudo, o seu
potencial estratégico, dentre outras possibilidades, em servir como uma
“gramática” para aqueles que pretendem exercer a política na Bahia.
Apesar do contexto favorável para o reconhecimento do Candomblé, para
exercer o culto, os terreiros ainda necessitavam de um alvará de funcionamento
expedido pela Delegacia Especial de Jogos e Costumes, órgão subordinado à
Secretaria de Segurança Pública. Contudo, a licença policial não oferecia nenhum
tipo de proteção, pois mesmo sendo obrigados a comunicar quando iam realizar
9

seus cultos, a polícia aparecia nos terreiros, quando não destruía os instrumentos e
demais objetos, e levava os religiosos para a delegacia (ALVAREZ, 2006, p. 138).
Provavelmente influenciado por este momento, em 1976 o então governador
Roberto Santos assinou o ato administrativo que garantiu a liberdade de culto para
as religiões de matriz africana no Estado. Só a partir daí os terreiros deixaram de
ser obrigados a pedir licença para funcionarem. Entretanto, independente da
projeção individual e/ou política que tal ato daria ao governador, não podemos
desconsiderar a importância do feito, como um momento favorável para o diálogo
sobre a diversidade de cultos na Bahia.
Coincidindo com um novo momento de reconhecimento social do
Candomblé, a década de 1970 marca o início da terceira fase do processo de
nagoização, embora este processo deva ser entendido como contínuo e não como
fragmentado. Por um lado, o estado político baiano parece dar-se conta do valor da
cultura negra como produto exportável e do seu potencial para projetar uma
atraente imagem da Bahia para o mercado do turismo nacional e internacional.
Reciclando representações da cultura negra baiana, elaboradas desde os anos
1940, por artistas como Jorge Amado, Carybé, Pierre Verger, Dorival Caymmi,
instituições como a Bahiatursa começam a promover Salvador como uma “cidade
mística” e o Candomblé como uma atração turística e um espetáculo exótico. Por
outro lado, nos anos 1970, a organização política negra cresceu de forma
significativa com a fundação do Movimento Negro Unificado e outras associações. A
formação de uma identidade racial negra de natureza étnica encontrou no
Candomblé uma rica fonte de referências culturais, condizentes com a unidade
necessária para atingir os objetivos políticos de adquirir poder e igualdade social. A
noção de uma pureza religiosa africana pode ter se iniciado como parte da dinâmica
interna da comunidade de Candomblé na procura de legitimidade. Porém, desde os
anos 1980, o Movimento Negro participou de forma ativa na sua articulação e na
sua disseminação, inserindo-a num conceito mais amplo de uma Africa mitificada,
como emblema da identidade e do orgulho negro. Certamente, as casas de culto
mais prestigiosas atraíram com maior facilidade os ativistas negros, na procura de
emblemas e valores que dessem contorno à sua identidade diferenciada.
O Candomblé, independentemente da nação, se apresenta de modo que é
possível perceber semelhanças no desenvolvimento do culto, como a crença nas
divindades, o transe, a presença de hierarquias, os sacerdotes do culto, o culto aos
ancestrais e o processo iniciático, entre outros procedimentos e preceitos.
Entretanto, mesmo que pertençam a uma mesma nação e possuam laços de
parentesco com sua família-de-santo, os terreiros guardam entre si um grau
10

considerável de autonomia, implicando uma diversidade de cruzamentos e


inúmeras variáveis componenciais na produção de uma enorme ampliação de
formas variáveis, o que, em certa medida, rompe com a idéia de uma “suposta
uniformidade do culto”.
É preciso reconhecer a presença e importância dos variados grupos étnicos
na formação do Candomblé e, com isso, também reafirma sua dimensão coletiva,
sua diversidade, sua organização social. Este é um aspecto fundamental, quando se
busca compreender o Candomblé, uma vez que a formação de uma coletividade é
uma condição para o desenvolvimento do ritual, onde cada elemento desenvolve
atividades determinadas e o conjunto garante sua continuidade.
Esse diálogo religioso contribuiu para a percepção do Candomblé como um
construtor complexo capaz de tecer relações para além daquelas desenvolvidas
entre os terreiros e suas nações, incluindo de forma singular elementos de outros
sistemas simbólicos, ritos e mitos, sem com isso misturar-se ou mesmo tornar-se
um hibrido representado por uma variedade de componentes. Os cultos no
Candomblé não se encontram, pois, sob um modelo religioso único, acabado, o que
favorece a diferenciação de cada um, no seio dessa totalidade, seja pelos modos
habituais de agir liturgicamente, seja por diferenças que se referem à sua situação
financeira, evidenciada através dos gastos na realização do ritual ou implicando a
sua condição de organização político-econômica. Neste sentido, a autonomia
relativa dos terreiros, ao criar e manter formas de agir, segundo as escolhas que
fazem num mesmo conjunto de meios destinados à prática votiva, pode também
imprimir diferenças entre as nações de Candomblé e entre terreiros de uma mesma
nação ou da mesma família de santo.
A dinâmica do campo religioso afro-brasileiro nos fornece termos cujas
construções empíricas e teóricas se produziram implicadas a significados
ideológicos, políticos e sócio-culturais, em períodos históricos definidos. Isso, de
certa forma, demonstra que seu sentido nunca se encontrou fixado, mas se
deslocou, cumprindo determinadas funções e representações simbólicas na
sociedade, apropriando-se de conceitos e descrições no atendimento de demandas
diferentes e, diversificando, assim, o sentido de seu significado. O diálogo com
esses autores apresentados até aqui evidenciou diferenças, contrastes, rupturas,
intercâmbios e cruzamentos diversos na construção de uma ortodoxia de
Candomblé. De outro lado, possibilitou um amplo conhecimento sobre essa
religiosidade, sua ontologia e sua relação com a sociedade.
O que pode ser observado no confronto entre os termos que figuram nos
estudos afro-brasileiros, é que estes ora foram utilizados como referência histórica,
11

ora como construções narrativas mitológicas, ora como ilustração de


acontecimentos progressivos presente em interpretações que se pretenderam
“objetivas”, ora como legitimação de determinado conhecimento, como suporte
político entre outras. Isso já evidencia minimamente as polaridades, diferenças e
tensões que circulam no campo, passíveis de constante reconsideração.
Em se tratando das configurações afro-religiosas, no entanto, é necessário
também considerar a análise do processo de recriação/representação da África
criado no Brasil como todo, não perdendo de vista a diversidade e multiplicidade
desse quadro sócio-histórico. Esse sistema de representações foi produzido a partir
de uma dinâmica relacional entre as religiões afro-brasileiras e a África tradicional,
especialmente no que concerne à relação entre cultura, religiosidade e meio
ambiente. A relação do nativo com o meio ambiente encontrou nos referenciais
físicos e espaciais constantes da natureza os aportes para a construção de suas
identidades. Trata-se de um vetor relevante para a análise da divisão que ocorreu
do Candomblé em nações no Brasil, sendo que elementos espaciais e étnico-
culturais parecem ter predominado nessa formação.

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