Você está na página 1de 1

JOÃO SIMÕES LOPES NETO

Simões Lopes Neto é o maior escritor regionalista do Rio


Grande do Sul. Nascido na cidade de Pelotas/RS, ele cresceu nas
estâncias dos seus avôs. Quando adulto, teve vários empregos e
iniciativas industriais que não foram frutíferas. No entanto, foi um
importante personagem da literatura do Rio Grande do Sul, pois reuniu
os principais contos e lendas do estado, entre eles as histórias do
Negrinho do Pastoreio, Salamanca do Jarau e Boitatá. Como não teve
sucesso no mundo dos negócios, Simões Lopes Neto morreu pobre.

A BOITATÁ

Em tempos idos, sobre os quais as gentes não guardam mais


lembranças, houve uma noite comprida e escura como breu que foi
tomada por um grande dilúvio. Os campos foram inundados, as
lagoas subiram e se alargaram e todo aquele peso d'água correu
para as sangas e das sangas para os arroios que ficaram bufando
campo afora, afogando as canhadas, batendo no lombo das
coxilhas. Poucos bichos escaparam, quase tudo morreu. Terneiros
e pumas, tourada e potrilhos, perdizes e guaraxains, tudo... Mas a
cobra-grande, chamada pelos índios de Guaçu-boi, escapou. Tinha
se enroscado no galho mais alto da mais alta árvore e lá ficou até
que a enchente deu de si e as águas começaram a baixar e tudo foi
serenando. Vendo aquele mundo de bichos mortos, a Guaçu-boi,
louca de fome, achou o que comer. Mas – coisa estranha! – só
comia os olhos dos mortos.

Como a Guaçu-boi não tinha pêlos como o boi, nem escamas como o dourado, nem penas como o
avestruz, nem casca como o tatu, nem couro grosso como a anta, o seu corpo foi ficando todo
transparente, clareando pelas milhares de luzezinhas, dos tantos olhos que foram sendo esmagados dentro
dele, deixando cada qual sua pequena réstia de luz. A Guaçu-boi toda já era uma luzerna, um clarão sem
chamas, já era um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e fria, saída dos olhos, que fora guardada neles,
quando ainda estavam vivos.
E tantos olhos comeu e tanta luz guardou, que um dia a Guaçu-boi arrebentou e morreu,
espalhando esse clarão gelado por todos os rincões. Os índios, quando viam aquilo, assustavam-se, não
mais reconhecendo a Guaçu-boi.Diziam,

Cheios de medo: "Mboi-tatá! Mboi-tatá!", que lá na língua deles queria


dizer: Cobra de Fogo! Passado um tempo, Boitatá morreu de pura fraqueza,
porque os olhos comidos encheram-lhe o corpo, mas não lhe deram
substância, pois que sustância não tem a luz que os olhos em si entranhada
tiveram quando vivos... E foi então, que a luz que estava presa se desatou por
aí. E até pareceu cousa mandada: o sol apareceu de novo! Quem encontra
Boitatá pode até ficar cego... Quando alguém topa com ela só tem dois meios
de se livrar: ficar parado de olhos fechados e sem respirar, até ir-se ela embora,
ou, se anda a cavalo, desenrodilhar o laço, fazer uma armada grande e
atirar-lha por cima, e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto, todo solto, até
a ilhapa! Boitatá vem acompanhando o ferro da argola... mas de repente,
batendo numa macega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz, para
emulitar-se de novo, com vagar, na aragem que ajuda... Tenho visto!

Você também pode gostar