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Universidade de São Paulo

Faculdade de Direito do Largo de São Francisco


Departamento de Filosofia do Direito
DFD0215- Sociologia Jurídica

O Mito da Pena Enquanto Solução: Possibilidades para uma Sociedade


nuclearmente cindida

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Este ensaio se propõe a discutir a medida de Política Criminal abordada no

terceiro capítulo do livro “Tratado de Direito Penal: Parte Geral (arts. 1º a 120)” de

Cezar Roberto Bittencourt, publicado pela editora Saraiva, atualmente, em sua 29ª

edição (Bittencourt, 2023).

Em brevíssima síntese, o capítulo intitulado “Consequências Jurídicas do Delito”

apresenta uma telegráfica evolução da prisão como decorrência do comportamento

desviante no decurso da história. Para isso, o autor inicia sua apresentação com a

descrição da prisão-custódia —forma característica da prisão nas sociedades da

antiguidade, cuja função era meramente de reservar o delinquente para posterior

aplicação de penas de sevicias corporais —, até alcançar a Modernidade e sua forma

específica de prisão: a Prisão-Pena, caracterizada pela captura do tempo do apenado. É

neste momento Penal-Penitenciário em que nos encontramos.

A questão candente que se apresenta na elaboração doutrinária feita pelo autor

está posta na frase com a qual este escolheu abrir o capitulo: “A prisão é uma exigência

amarga, mas imprescindível. A história da prisão não é a de sua progressiva abolição,

mas de sua permanente reforma”. A partir deste ponto de vista, que pensa recusar que o

fundamento da pena está calcado em bases filosóficas ou religiosas ao afirmar a pena

enquanto necessidade social inevitável para tratar seres imperfeitos, podemos ter em

mente qual é o prisma teórico-crítico com o qual o autor observa a realidade. Apesar de

possuir uma obra dedicada a discutir a falência das prisões, olvida a realidade latente e

se esquiva de questões que clamam por elaborações que ousem ver um horizonte para

além da prisão. Por esta razão, este trabalho se propõe a apresentar breves apontamentos

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sobre o conteúdo interditado que circunda um Manual-Rotina que se dedica a

reprodução da vida social como está posta.

Os Limites Ínsitos Ao Direito Penal: Ubi Societas, Ubi Ius

É um truísmo dizer que “onde há sociedade também há direito”, contudo o

truísmo, por sua natureza, torna-se invisível aos olhos incautos do cotidiano. A vida em

sociedade é um fenômeno complexo, que em todos seus aspectos é marcado por

determinações não-determinantes impostas por suas condições socio-histórico-

concretas, por esta razão importa dizer que, para o campo do Direito Penal, as certezas

que hoje gozam do estatuto de verdades incontestáveis só o fazem em virtude da

realidade material a qual visam manter, desta forma a primeira pergunta não feita pelo

autor impende-se: qual é a função do direito penal e da pena de prisão enquanto

consequência inafastável do delito para sociedade brasileira hoje?

Para responder esta primeira pergunta devemos observar que a questão penal-

penitenciária — e as formas de endereçar possíveis soluções a ela, — é um dos pontos

controvertido da sociedade brasileira, pois consegue coagular em si uma vasta gama de

litígios históricos e, por isso, enseja a produção de violência institucional-sistêmica por

meio do Sistema de Justiça Penal, e violência informal, perpetrada fora da

institucionalidade estatal, não significando que agentes do Estado também não a

perpetrem (Zaffaroni, Batista, Alagia, & Slokar, 2004).

Fato é que diante do acirramento da tensão que é medular desta questão,

e em virtude da precipitação diuturna de novas determinações concretas ligadas aos

sentimentos humanos vitais, a não compreensão do tema ensejada pela fuga intelectual

para observar a vocação para qual o Direito Penal se orienta, não só inviabiliza a

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construção de soluções para questão penal-penitenciária, mas também perpetua a

realidade posta, entronizando-a como único horizonte possível. Por isso, neste primeiro

ponto é pertinente pensar a Questão Penal-Penitenciária por meio das suas

determinações imanentes, isto é, por meio das suas Funções Declaradas e Latentes,

como fez JUAREZ CIRINO DOS SANTOS (Santos, 2022, p. 29). Para esta reflexão,

observemos os dados colecionados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e

apresentados pelo portal Atlas da Violência.

80,000

Quantidade de Homicídios Por UF no Período de 2009-


70,000 68,294
2019
58,957 59,240
60,000

50,000
45,371
41,140 42,093
40,076
40,000
33,378

30,000 28,670 28,200

20,420 21,622
20,000 16,796
14,797 15,374 15,610
11,940 11,188
8,326 9,586
10,000 7,094 6,241 5,901 4,749
2,986 3,237 2,153
-
AC AL AM AP BA CE DF ES GO MA MG MS MT PA PB PE PI PR RJ RN RO RR RS SC SE SP TO

Figura 1 Gráfico elaborado a partir dos dados coletados pelo Sistema de

Informações sobre Mortalidade, disponibilizados pelo portal Atlas da Violência.

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A Função Declarada do Direito Penal, consagrada como a única pela porção

majoritária de seus doutrinadores, diz respeito a proteção de bens jurídicos

fundamentais ou, como pensava Émile Durkheim, a reafirmação estabilizadora de

valores ético-sociais materializados na consciência coletiva da comunidade. Contudo,

devemos nos questionar se o direito penal é capaz de realizar a proteção dos bens que

visa proteger, ou de afirmar valores em uma sociedade marcada pelo conflito.

Figura 2 População Prisional por Ano. Dados fornecidos pelo SISDEPEN- Dados Estatísticos do Sistema Penitenciário.
Painéis Interativos — Secretaria Nacional de Políticas Penais (www.gov.br)

Observe os gráficos e veja que o Bem Jurídico Vida, um dos mais importantes da

sociabilidade humana, a despeito da expansão do número de encarcerados no período de

2009-2019, em conjunto com a expansão do controle social por meio do emprego da

violência policial, não foi protegido pelo Direito que supostamente destina-se a este fim,

ou seja, o superestimado Fantasma da Pena não salvou o Bem que jura proteger, posto

que não tem capacidade para tanto. Em um Estado democrático de Direito, o

fundamento para punição está na Lesão ou Perigo de Lesão Real, portanto o direito

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penal não protege bens jurídicos, apenas “repara” a lesão por meio da expropriação da

vítima, que tem suas dores instrumentalizadas para o exercício do Poder Punitivo

(Zaffaroni, Batista, Alagia, & Slokar, 2004). Veja que a primeira promessa jamais

poderia se cumprir, e a segunda, a respeito da reafirmação de valores éticos-sociais,

também é inexequível posto que pressupõe quer exista um acordo ético-social

intersubjetivo mínimo, o que não ocorre em um país de proporções continentais como o

Brasil, e que tem em si uma multiplicidade de realidades socio-históricas-concretas que

ensejam uma miríade de valores éticos, tornando o segundo discurso tão ilusório quanto

o primeiro.

Ora, se sua função conhecida e alardeada é um mero engodo em razão de

sua inépcia, então qual sua real função? O que é capaz de fazer? Qual sua Função

Latente?

Sob a perspectiva de Vera Malaguti Batista (Batista, 2011, p. 101), o aparelho

repressivo do Estado atua como o tradutor da conflitividade social para forma de

punição, de modo a cumprir com sua real vocação: a reprodução da vida social.

Contudo, devemos nos perguntar quais são os mecanismos que permitem que essa

manutenção se opere de forma inaudita.

Um Fantasmas com “Soluções” Punitivas

Neste momento, uma segunda indagação floresce: Por qual motivo os

conflitos sociais entre nós clamam por soluções na esfera do Direito Penal? Como

vimos, este campo do Direito possui um cariz dúplice e fantasmagórico, o qual lhe

confere a capacidade incomum de conter fugazmente os anseios por “justiça”

esporeados na realidade social, contudo de forma epidérmica, visto que a satisfação por

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ele ensejada é rapidamente degradada, fazendo com que sua presença seja novamente

invocada para lidar com outro objeto, assim provocando um ciclo vicioso de

criminalização da vida. Desta forma, o fantasma do Direito Penal — que é incapaz de

“cumprir com sua palavra”, isto é, proteger bens jurídicos ou estabilizar valores, em

virtude de seu limite ínsito, ou seja, a ação condicionada à lesão ( ou perigo de lesão)

real à um bem jurídico — com sua verve densamente simbólica, mobiliza a sociedade

como um todo, ainda que os grupos que a compõe tenham interesses em litígio: os

conservadores com suas pautas de cunho moralizante; os progressistas, visando a

criminalização de comportamentos discriminatórios; os pobres, que veem neste

fantasma a possibilidade de se fazer “justiça contra os ricos”; e os possuidores, estes

sabem a quem serve o Gasparzinho de nossa discussão. Portanto, diante deste potencial

mefistofélico, que foge à cognição normativa, devemos pensar quem é a figura que

realiza a mediação congregante quando as contradições entram em cena.

Entre nós é cediço a compreensão de que a Lei é categoria fundamental

com a qual o mundo jurídico se estrutura, tendo, em regra, um conteúdo abstrato e

destinatários indefinidos. A supremacia da forma Lei enquanto categoria estruturante do

Sistema da Vida Jurídica implica logicamente a adoção da Igualdade-Social enquanto

valor inegociável, inafastável e norteante para efetivação da Liberdade e Igualdade-

Humana, contudo as determinações sócio-histórico-concretas impuseram à modernidade

a conformação deste atributo em termos ontológicos, privilegiando a Igualdade-

Humana, que se funda em um pensamento voltado a fazer da Igualdade uma frágil

potencialidade, em desfavor da Igualdade-Social-Concreta, materialmente aferível.

Desta forma, tendo em mente que a categoria Lei tem sua estrutura voltada para os

sujeitos formalmente iguais em razão de sua essência humana, por dedução conclui-se

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que os seus efeitos devem se reproduzir homogeneamente. Todavia, enganam-se os

afoitos que pensam que o Mundo-da-Vida e o Incrível Mundo da Norma são distintos e

que este curvaria aquele.

O erro daquele que quer crer que há um mundo regido pelo império da Lei está

em olvidar que a vida enquanto tal ocorre a despeito da Lei, sendo ela capaz de produzir

seus efeitos apenas quando é concretamente materializada pela técnica Hermenêutica,

isto é, pelo esforço através do qual atribui-se sentidos concretos à norma.

Observemos que, portanto, a verdade do real socio-histórico-concreto matiza a

norma por força do esforço hermenêutico, para que desta forma possa ocorrer a

produção dos efeitos decorrentes de suas virtudes. Com isto em mente, podemos

observar o momento em que o ramo do direito em exegese realiza sua função de

manutenção do modo de produção capitalista ao mobilizar os sentidos que colmatarão a

norma: o lugar da norma criminal, em razão de sua forma a-histórica, poderá ser

observado como o campo neutro capaz de receber as demandas por Igualdade-Social,

contudo, a mediação realizada pelo Sistema de Justiça fará o endereçamento do sentido

da norma, constrangido pela demanda socialmente determinada, com vistas a repressão

mantenedora do status quo. (Zaffaroni, Batista, Alagia, & Slokar, 2004, pp. 46-56).

Com esse prisma podemos compreender o fenômeno midiático que acompanha a

expansão penal — responsável por criar as categorias discursivas que legitimam a

violência estatal. É por meio desse mecanismo que se realiza a produção dos

destinatários prioritários de um direito violento. Quando Orlando Zaccone (2015, pp.

107-126) trata da imagem do traficante como forma de criar a figura do “inimigo”,

podemos notar que o que se está perfazendo não é apenas o direcionamento da repressão

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por meio da mediação feita pelo Sistema de Justiça Penal, mas também está se

extirpando o caráter potencial ensejado pela ideia de Igualdade-Humana que estruturava

o alcance da norma, de forma que o que resta aos destinatários da estigmatização, ora

inimigos, é a violência desbragada materializada discursivamente nos “autos de

resistência”, os quais nada mais são do que execuções sumárias legitimadas pelo direito

por meio da absolutização da, soi-disant, Segurança Pública.

A Situação Carcerária

Por fim, há um dever civilizatório na reprovação da solução

penitenciária, ora legitimada por sua função de defesa da sociedade. O cárcere hoje

representa o local da negação do direito, tanto o é que a Arguição de Descumprimento

de Preceito Fundamental 347 declarou que o Cárcere brasileiro configura um estado de

coisas inconstitucional, o que, por decorrência lógica, faz com que toda prisão realizada

no país se torne ilegal, como pontuou Luís Carlos Valois (2021).

À Guisa de Conclusão

Fernando Pessoa, de forma magistral, sintetizou em seu poema intitulado

“Ulisses” o que é o mito, disse ele:

O mito é o nada que é tudo.


O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

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Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre


A entrar na realidade.
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

Pensando no mito de criação da cidade de Lisboa, Fernando Pessoa

conseguiu coagular em suas palavras a essência do Mito enquanto figura redutora de

uma realidade complexa, a qual demanda a produção de consensos mínimos para

manter-se. No caso das sociedades modernas, em especial a brasileira, vemos que um

dos mitos redutores da complexidade social é a punição corporificada no Fantasma do

Direito Penal, no Gasparzinho, o fantasminha camarada, que faz-nos crer que pode

solucionar as tenções, vindas da cisão entre os possuidores e os despossuídos. Apesar de

termos a ciência de que suas soluções não são efetivas, enquanto sociedade voltamos a

apostar no mesmo mecanismo toda vez que algum problema surge ou ressurge. No

lebensraum do senso comum, punição é solução imediata para todas as espécies de

problemas, contudo o intelectual comprometido com a realidade não pode se vincular as

soluções geradas pelo rasteiro conhecimento do Mito. Deve observar o fenômeno do

senso comum como uma manifestação de demandas legítimas, contudo suas respostas

devem se vincular à realidade socio-histórico-concreta, do contrário corre o risco de

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incorrer na legitimação da reprodução dos morticínios, que infelizmente já foram

naturalizados por nós.

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Obras Citadas

Batista, V. M. (2011). Introdução Crítica À Criminologia Brasileira (2ª

ed.). Rio de Janeiro: Revan.

Bittencourt, C. R. (2023). Tratado de Direito Penal: Parte Geral (arts.1º

a 120). Saraiva.

Santos, J. C. (2022). Direito Penal: Parte Geral (10 ed.). São Paulo:

Tirant lo Blanch.

Valois, L. C. (2021). Processo de Execução Penal e o estado de coisas

Inconstitucional. Belo Horizonte: D'Plácido.

Zaccone, O. (2015). Indignos de Vida: A Forma Jurídica da Política de

Extermínio de Inimigos na Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan.

Zaffaroni, E. R., Batista, N., Alagia, A., & Slokar, A. (2004). Direito

Penal Brasileiro. Rio de Janeiro : Revan.

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