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SOBRE FAZER DOCUMENTÁRIOS

São Paulo, 2007


Sumário

6 Apresentação

Outros Retratos – Ensaiando um panorama do documentário independente no Brasil


8
Cláudia Mesquita

A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade


16
José Carlos Avellar

Tendências e perspectivas do documentário contemporâneo: um olhar histórico retrospectivo


30
Sheila Schvarzman

Documentário expandido – Reinvenções do documentário na contemporaneidade


38
Francisco Elinaldo Teixeira

O filme-dispositivo no documentário brasileiro contemporâneo


44
Consuelo Lins

Tendências do documentário contemporâneo


52
Liliana Sulzbach

A expressão cinematográfica no território do documental


60
Luiz Eduardo Jorge

68 Documentário e subjetividade – Uma rua de mão dupla


Cao Guimarães

O documentário como experiência


74
Érika Bauer

82 Filme livre
Carlos Nader
Sobre fazer documentários / Vários autores. – São Paulo : Itaú Cultural, 2007.
124 p. 92 Outros novos rumos
Paschoal Samora

Acompanha 1 DVD
96 Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo: trajetória e perspectiva
Roberto Moreira S. Cruz
1. Audiovisual 2. Documentários 3. Técnica 4. Produção 5. Brasil I. Título
108 Relatório de viagem
CDD 791.43 Flavia Celidônio
 

Desde a retomada da produção cinematográfica no país, em meados da década


de 1990, o documentário cada vez mais tem ocupado espaço nos festivais e
salas exibidoras, despertando a atenção do público e gerando interesse pelas
imagens do gênero. Em sincronia com essa tendência, o Itaú Cultural desenvolveu
uma política de difusão e fomento à produção de documentários por meio do
programa Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo. Nos últimos dez anos foram
realizadas atividades estimulando o pensamento crítico, criando ações de difusão,
exibição e apoiando a realização de mais de 35 filmes e vídeos.

Sobre Fazer Documentários apresenta reflexões e opiniões de cineastas e


pesquisadores, tratando dos processos de realização, tendências e modelos de
Apresentação linguagem e perspectivas históricas sobre essas produções. O livro é o resultado de
uma série de palestras realizadas em 13 cidades durante o período de lançamento
e apresentação da 5ª edição do programa Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo.

Uma contribuição pontual para o leitor que se interessa pelos rumos do audiovisual
no país, especialmente pelo documentário.
 

1
Como aponta Bernardet (1987: 168),
dois filmes curtos realizados em 1959 es-
boçam tendências iniciais para o moder-
no documentário brasileiro: de um lado,
O Poeta do Castelo (Joaquim Pedro de
Andrade) propõe um retrato intimista de
um indivíduo “especial”, o poeta Manuel
Bandeira; de outro, Arraial do Cabo (Paulo
César Saraceni) se volta à abordagem
crítica da problemática vivida por uma
comunidade pobre de pescadores. É
esse veio aberto pelo segundo filme que
estará em pauta neste artigo.

P
roponho com este artigo um panorama breve e sintético da produção documental 2
Estou ciente das ilusões da “periodiza-
brasileira a partir dos anos 1960, quando ganha força e relevância estética o ção”, tão bem expostas por Bernardet em
documentário independente no país. A idéia é relacionar condições de produção Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro
(2004). Será possível seccionar a história
e opções estéticas e temáticas tendo como recorte a questão da alteridade, ou as do documentário brasileiro em “fatias
temporais que tenham uma significação
representações do “outro de classe”1. O texto está estruturado segundo uma periodização dominante intrínseca, bem como uma
da produção, dividida em três “momentos”: documentário moderno (1960-1984), tempos significação para os diversos elementos
que a compõem?” (2004: 59). Apesar dos
de vídeo (1984-1999) e documentário da “retomada” (1999 em diante). A demarcação desses limites do método, que certamente não
períodos não é rigorosa ou exata, mas aproximada, guiando-se por marcos simbólicos2; eu dá conta da diversidade da produção em
cada “momento”, opto pela periodização
a utilizo para apresentar características dominantes em cada “momento”, bem como para por sua eficácia didática. Aqui, o perío-
sugerir transformações no decorrer desse percurso histórico. do do “documentário moderno” inicia-se
com Aruanda (Linduarte Noronha, 1960)
e se encerra com Cabra Marcado para
Morrer (Eduardo Coutinho, 1984). O do-
Documentário moderno (1960-1984): a emergência do “outro” cumentário da “retomada” inicia-se com

Outros Retratos – Ensaiando um panorama do documentário


Santo Forte (Eduardo Coutinho, 1999),
situando-se o período dos “tempos de
Sabemos que, no Brasil, o enfrentamento da alteridade ganhou especial interesse, expressão vídeo” entre os dois marcos (1984-1999).

independente no Brasil e atenção a partir da entrada dos anos 19603. Com a emergência do documentário
independente, entram em pauta, sob olhares críticos, as histórias, os problemas e as
3
Antes da emergência do cinema
novo, a maioria dos documentários
experiências das classes populares. Nesse período, dominaram os curtas e os médias- produzidos – mesmo aqueles sob
metragens, produzidos com baixos orçamentos e com o apoio de instituições que detinham muitos aspectos notáveis – estava
vinculada ao Instituto Nacional de
Cláudia Mesquita e emprestavam os equipamentos básicos. Quando se fala em documentário moderno Cinema Educativo (Ince) e, portanto,
orientada ideologicamente no sentido
brasileiro, portanto, deve-se pensar num contexto não profissionalizado e na circulação
de promover uma imagem favorável
Professora da Universidade Federal de Santa Catarina. Jornalista formada pela UFMG, mestre extremamente restrita das obras – rejeitadas pelo circuito comercial, elas circulavam em e harmoniosa do país. Sem falar nos
em cinema pela ECA/USP e doutoranda na mesma instituição, onde desenvolve pesquisa festivais, cineclubes ou organizações políticas e culturais (Bernardet, 1987: 169). curtas e matérias de cinejornais, es-
sobre representações da experiência religiosa pelo documentário brasileiro. Atuou como timulados nos anos 1930 e 1940 pela
exibição compulsória de complemen-
pesquisadora nos documentários Peões (Eduardo Coutinho, 2004) e Em Trânsito (Henri
Em Cineastas e Imagens do Povo (1985), livro sobre o documentário moderno brasileiro que tos nacionais nos cinemas (legislação
Gervaiseau, 2005), e como assistente de direção em Saudade do Futuro (Cesar e Marie-Clemence de 1932), mas resultando, de modo
Paes, 2000). Realizou Terra da Lua (1992, com Anna Karina e Tania Caliari), A Folia de Adão (2001) se tornou referência indispensável, Jean-Claude Bernardet estabeleceu como eixo para o geral, em propaganda paga por em-
e 5 Mulheres de Paraisópolis (2004). entendimento de sua trajetória uma questão posta justamente pela relação de alteridade: presas e instituições.
10 Cláudia Mesquita Outros retratos – Ensaiando um panorama do documentário independente no Brasil 11

“quem é o dono do discurso?” (Saraiva, 2004). Com base na análise pormenorizada de domina a entrevista como palco do encontro/desencontro (sem roteiro prévio) entre
23 filmes, o autor identificou diferentes modos de construção cinematográfica do “outro “desiguais”: o cineasta, os camponeses. A entrevista aqui não é simples “depoimento”, não
de classe” (“o modelo sociológico ou a voz do dono”, “a voz do documentarista”, “a voz é “dar a voz”. Assumida no filme como diálogo, ela é permanente negociação. Marcando
do outro” etc.). sua voz e presença em cena, Coutinho abre caminho para uma reflexão mais amadurecida
sobre a elaboração de sentidos pelo documentário, pondo em crise tanto as ilusões de
Para caracterizar o que chamou de “modelo sociológico”, dominante nos anos 1960, o conhecimento objetivo do “modelo sociológico” quanto a falsa neutralidade do “dar a voz”:
autor toma Viramundo (1965), de Geraldo Sarno, como exemplo paradigmático. Nesse tudo é negociação, mediação, elaboração de versões, de discursos. Além de realizar uma
filme, já são utilizadas entrevistas, possibilitadas pela emergência técnica de gravação de espécie de “balanço crítico” do período moderno, Cabra sonda o futuro, estabelecendo
som direto. Mas esse uso ainda é bastante restrito, limitado pelas condições materiais de parâmetros de linguagem que se tornariam muito influentes – tanto em termos de
produção e pelo paradigma documental clássico, ainda dominante. A “voz do povo” já se estratégias de abordagem e estilística (domínio da entrevista, assumida como “palco”,
faz presente, portanto, mas ela não é o elemento central, sendo mobilizada na obtenção de desnaturalizada) quanto de temática (a experiência dos “homens ordinários” como foco
informações e ilustrações que apóiam o documentarista na estruturação de um argumento privilegiado de interesse4).
(via de regra elaborado de antemão) sobre a situação real focalizada. De maneira geral,
os documentários desse período estão interessados em estabelecer diagnósticos sobre
situações sociais abrangentes e candentes. Almeja-se a macroanálise: o homem singular, Tempos de vídeo (1984-1999): discursos “de dentro”
a situação particular e o local específico são transformados em “categorias”, pelas quais
se tecem significações genéricas, com a pretensão de iluminar dinâmicas sociais que A carreira de Coutinho é emblemática. Depois do sucesso de Cabra Marcado para Morrer,
conformam a experiência (de modo geral problemática) de muitos brasileiros. A relação o cineasta levaria 15 anos para voltar a produzir documentários longos em formato 35
observada nesse “modelo” é clássica, centrada na intransponível “exterioridade” do sujeito milímetros, destinados às salas de cinema5. Nesse período, produziu quase exclusivamente
que filma em relação aos objetos filmados, como problematizou Omar (1978: 407): “Para em vídeo. Com a crise do cinema brasileiro, a penetração progressiva da TV e a popularização
haver um documentário é preciso uma exterioridade do sujeito e do objeto. Cada qual de dos aparelhos de vídeo, desenvolve-se uma significativa produção documental nesse
um lado da linha, sem se tocarem. Só se documenta aquilo de que não se participa”. formato no Brasil. Essa produção não chega ao cinema e se limita a circuitos exibidores
específicos: festivais, associações, TVs comunitárias. Portanto, diferentemente do cinema
Segundo o julgamento implícito em Cineastas e Imagens do Povo, esse “modelo” resultaria ficcional (notadamente em longa-metragem), o documentário não “sucumbiu” à virada
em representações autoritárias do “outro de classe”, reduzido a objeto de uma interpre- dos anos 1980 para os 1990. Seguiu seu destino de gênero “menor”, apartado do mercado
tação exterior, erudita, unívoca. Em resposta aos limites desse “modelo”, Bernardet inves- de salas, situação que parece se modificar razoavelmente a partir da chamada “retomada”
tigou, em curtas documentais dos anos 1970, experimentos que buscavam “promover” o do cinema brasileiro, como veremos.
sujeito da experiência à posição de sujeito do discurso. Uma dessas vias se materializou no
ímpeto de “dar a voz”, notável em curtas como Tarumã (1975), de Aloysio Raulino, em que De um lado, a produção documental dos “tempos de vídeo” tem fortes relações com os
se observa certa “magreza estética” ou “estilo pobre”, que reduz sua forma de expressão movimentos sociais, que surgiram ou reconquistaram espaço com a redemocratização.
ao mínimo, para que “o outro de classe assuma o discurso e não seja abafado pela voz do Desde o começo dos anos 1980, desenvolve-se a realização de vídeos em que o exercício
cineasta” (1985: 110). Mas, como escreve Bernardet, “o olhar continua sendo o do cineasta” do “processo” de registro e discussão importa tanto quanto os produtos. No chamado
(p. 110); não se problematiza a contento o gesto de “dar a voz”, a natureza da mediação “movimento do vídeo popular”, não vale a escalada da profissionalização em curso no
(ainda obviamente presente) entre o espectador e a experiência do “outro”. mercado audiovisual brasileiro daquela época, observando-se uma notável imbricação
entre produtores de vídeo e atores dos movimentos sociais. Não tematizarei aqui tal
Como adverte ao leitor, Bernardet finalizou seu livro antes de assistir a Cabra Marcado produção, que por suas particularidades mereceria um estudo à parte. Não poderia,
para Morrer. Lançado em 1984, o filme de Eduardo Coutinho foi saudado como um entretanto, deixar de notar a grande influência (temática, estética e de produção) do vídeo
4
“divisor de águas”. Entre as primeiras filmagens (interrompidas pelo golpe militar de popular sobre o documentário independente, num período em que os movimentos Sobre a noção de “homem ordinário” e
sua presença no documentário brasileiro
1964) e o lançamento definitivo, 20 anos se passaram. Cresceu a influência da TV, notável sociais davam o tom das representações. contemporâneo, ver o trabalho de César
Guimarães (2005).
na retomada do projeto, quando Coutinho incorpora a experiência da reportagem
5
A exceção parcial é O Fio da Memória,
televisiva, treinada no Globo Repórter. Em 1964, tentou-se a ficção de matriz neo-realista, É muito freqüente, por exemplo, o projeto de elaborar, “de dentro”, as identidades dos longa em 16 milímetros lançado – de
os camponeses como atores de suas histórias, roteirizadas em cenas e diálogos. Em 1984, grupos sociais retratados, em oposição ao estigma; de dar-lhes visibilidade de uma modo restrito – em 1991.
12 Cláudia Mesquita Outros retratos – Ensaiando um panorama do documentário independente no Brasil 13

perspectiva que se propõe “interna”. Em termos de abordagem, a entrevista é o carro- histórica dificuldade de acesso à televisão, embora alguns experimentos recentes sugiram,
chefe, revelando o ímpeto de “dar a voz”, de abrir o microfone aos sujeitos da experiência, se não mudanças efetivas de rota, novos percursos possíveis9.
opção que tem como correspondente a ausência progressiva de voz over interpretativa
ou totalizadora (numa espécie de continuação do cinema anti-retórico da “voz do outro”). Anomalias e distorções de mercado à parte, creio que a “retomada” documental já merece
É o caso de Santa Marta – Duas Semanas no Morro (1987) e Boca de Lixo (1992), de Eduardo um balanço estético, sendo possível levantar características marcantes e recorrentes. Entre
Coutinho. Embora possam ser considerados trabalhos autorais, eles se vinculam (em termos elas, destacaria uma tendência à particularização do enfoque: em vez de almejarem grandes
de produção) a entidades relacionadas ao movimento do vídeo popular6. Em ambos, a sínteses, os documentários atuais buscam seus temas pelo recorte mínimo, abordando
estratégia de abordagem dominante é a entrevista, embora ainda estejamos distantes da histórias e expressões circunscritas a pequenos grupos10. Nesse sentido, é freqüente a
radicalidade de seu uso na obra recente de Coutinho. Em Santa Marta, sobretudo, ainda se abordagem de experiências estritamente individuais, a investigação de singularidades. Há
observa um esforço “contextualista”: o projeto de associar as experiências dos entrevistados uma valorização da subjetividade do homem comum, um investimento no que, para além
às de um grupo maior, do qual fariam parte e ao qual dariam expressão (a “comunidade”). das determinações e normatizações sociais, é expressão “autêntica”, singular (Senra, 2004).
Visivelmente está em pauta a reconstrução do espaço público no Brasil, após 20 anos de
regime autoritário, e os movimentos sociais organizados (notadamente as associações de Relacionada a essa investigação de subjetividades, há uma tônica de abordagem empírica
moradores) são vistos como atores políticos fundamentais. Para além das relações formais das situações – via experiência, via “encontro” com os personagens, evitando interpretações
de trabalho, outras formas de vínculo e de pertencimento entram em cena: a população prévias. As experiências focalizadas são, de modo geral, tratadas como irredutíveis. Nem
carcerária, os moradores de favelas e de ruas, as prostitutas, os trabalhadores informais. tipos, nem exemplos, nem casos raros ou comuns, entre outros casos. O valor está no
Entram em cena outros “sujeitos” – que “buscam”, na nova conjuntura, sua identidade “registro” e no trato respeitoso com elas, expondo suas singularidades – e não no “olho”
(Oliveira, 2001: 11). É, portanto, nos anos 1980, na esteira do vídeo popular, que se inicia que vê mais longe, relacionando essas experiências à conjuntura ou à estrutura social.
a elaboração de “auto-representações” ou representações efetivamente “de dentro” – tal Como bem observou Ismail Xavier (2000: 104), “a vontade agora é explorar mais os sujeitos
busca será uma das tônicas a partir dos anos 2000, como veremos adiante7. no que têm de singular (…) evitam-se generalizações, a busca dos porquês”.

Santo Forte (1999), que marcou a volta de Coutinho à tela grande, estabeleceu parâmetros
O documentário da “retomada” (1999...): subjetividades e auto-representações de linguagem bastante influentes. O filme compõe-se da montagem de entrevistas
com 11 moradores de uma favela na Zona Sul do Rio, que conversam com o cineasta
9
Convencionou-se falar em “retomada” do cinema brasileiro a partir de meados dos sobre suas experiências religiosas. Optando pela circunscrição espacial, o cineasta evita O DOCTV, por exemplo, representa um
esforço inédito de relacionamento entre
anos 1990. Será essa periodização aplicável à produção de documentários? Também se a tipicidade na escolha dos personagens. Ênfase total é posta na entrevista (ou conversa) a TV aberta e a produção independen-

6
fala em boom do documentário. Mas boom em que sentido? Convém lembrar que o como forma de abordar suas subjetividades. Na montagem, há uma minimização dos te. Parceria entre Ministério da Cultura,
Santa Marta foi produzido pela ONG TV Cultura e Associação Brasileira
carioca Instituto de Estudos da Religião documentário continuou sendo produzido no Brasil nos anos 1980 e 1990, à margem do recursos narrativos, bastante reduzidos (evita-se narração, música, imagens de cobertura das Emissoras Públicas, Educativas e
Culturais (Abepec), o programa, ba-
(Iser); Boca de Lixo teve apoio do Centro mercado de salas. Por outro lado, seria exagerado afirmar que o gênero conquistou na etc.) para não impor (aos sujeitos da experiência) qualquer tipo de comentário externo. seado em concursos estaduais, tem
de Criação de Imagem Popular (Cecip),
uma das principais entidades respon- atual década um mercado sólido8. Mas, mesmo que o público não seja expressivo, há uma Investindo em seqüências individuais, o diretor evita tomar os entrevistados como casos viabilizado a produção regional de do-
sáveis pela produção de vídeos para os cumentários e sua veiculação em rede
movimentos sociais no Rio a partir de
novidade considerável, como aponta Carlos Augusto Calil: o fato de o documentário ter “representativos” ou “tipos” portadores de características que poderiam ser estendidas a nacional, sem a “obediência” a mode-
meados dos anos 1980. “superado a barreira da tela grande” do cinema, “janela do mercado até então interditada um grupo maior de indivíduos. Por meio da ênfase em expressões verbais, todo o poder é los de conteúdo ou formatos prévios.

7 a este gênero” (Calil, 2005: 159). Desde 1992, foram lançados comercialmente mais de 50 dado aos sujeitos na elaboração de sentidos e interpretações sobre sua própria e singular 10
Karla Holanda (2004) diagnosticou
Um dos mais interessantes experimen-
tos surgiu nos anos 1980: o Vídeo nas longas documentais (o formato tradicional até os anos 1990 eram os curtas e os médias- experiência. uma tendência à particularização do
Aldeias. Sua proposta inicial era oferecer enfoque no documentário contempo-
aos índios instrumentos para criarem
metragens, com raras exceções). râneo brasileiro – tendência que ela
suas próprias imagens, usadas para troca Outro marco é O Prisioneiro da Grade de Ferro (Auto-Retratos), de 2003, de Paulo Sacramento, compara à metodologia da micro-his-
de informações entre diferentes povos. tória, em oposição às macroanálises.
Desde 1998, por meio de oficinas, o pro- Essa intensificação da produção de documentários para o cinema tem razões objetivas. principal longa da tendência de “auto-representações”, muito presente na produção
11
jeto tem formado realizadores indígenas, Há maior agilidade e barateamento da produção pela captação com câmeras digitais e audiovisual brasileira atual (ainda que nem sempre chegue à tela grande)11. O Prisioneiro Há uma série de experimentos (via
que assinam seus próprios documentá- oficinas de formação) que visam à elabo-
rios e são hoje “mestres” nos processos montagem com equipamento não-linear. Também há estímulo objetivo à produção por é resultado de iniciativa independente que promoveu oficinas de vídeo com detentos do ração de representações pelos sujeitos
de formação. meio de uma legislação de incentivo ancorada em mecanismos de renúncia fiscal, que extinto Carandiru. Já por seu desenho de produção, como escreveu Saraiva (2004: 176), o da experiência, apartados dos meios de
produção e difusão de imagens. Citaria,
8
Basta dizer que, de todo o montante atrai patrocinadores privados. Mas o incentivo à produção ainda esbarra no problema filme “provoca reflexões cruciais para o cinema, em especial para o documentário”. A busca além do Vídeo nas Aldeias, as Oficinas
arrecadado com filmes nacionais em Kinoforum, realizadas na periferia de
da distribuição. Muitos longas documentais são produzidos, poucos são distribuídos pela afirmação dos sujeitos da experiência (como “donos do discurso”) foi possibilitada, São Paulo, desde 2001, pelo Festival
2003, 92% correspondeu a produções da
Globo Filmes (todas elas ficcionais). satisfatoriamente. Por outro lado, a produção documental independente mantém a nesse caso, pelo uso de pequenas câmeras digitais, de fácil manuseio. Trata-se, portanto, de Internacional de Curtas.
14 Cláudia Mesquita Outros retratos – Ensaiando um panorama do documentário independente no Brasil 15

“uma formulação criativa das potencialidades trazidas pela nova tecnologia” (Saraiva, 2004:
176). Ao final, é notável a desmistificação do espaço do Carandiru promovida por esses
“auto-retratos”. O que aparece é um presídio bem menos violento e mais cotidiano do que
se poderia imaginar: a prisão como uma imensa cidade feita e refeita de práticas variadas
(artesanato, serviços, comércio), compondo “um tecido social que parece prescindir da
instituição” (Xavier, 2004: 12).

Por fim, chamaria a atenção para Estamira (2005), de Marcos Prado, um longo retrato do
personagem de mesmo nome, trabalhadora de um lixão na periferia do Grande Rio. O
filme talvez possa ser visto como uma síntese entre a busca de formas mais plásticas
(numa tendência documental contemporânea que dialoga com a videoarte12) e a atenção
ao encontro praticada por Eduardo Coutinho. O resultado é surpreendente. Não apenas
um trabalho de apreensão e expressão estética do ambiente e do contexto, mas de longo
e denso relacionamento com o personagem, recorridas vezes visitado pela equipe de
gravação. Com seu esforço de contaminação pela subjetividade arrebatada e irredutível
de uma mulher socialmente à margem, Estamira diz muito sobre as questões e enfoques
privilegiados pelo documentário brasileiro atual, em seu renovado enfrentamento da
alteridade de classe e dos abismos sociais.

Referências bibliográficas

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SARAIVA, Leandro. Câmera de mão em mão – O prisioneiro da grade de ferro (Auto-retratos). In: Novos estudos Cebrap, n. 68, maio
2004. p. 176-181.
12
Como se nota nos trabalhos de Marília SARAIVA, Leandro e XAVIER, Ismail. Um novo ciclo. In: Retrato do Brasil n. 6 (Os limites do cinema brasileiro). São Paulo: Revista
Rocha (Aboio, 2005) e Cao Guimarães Reportagem, ed. 75, ano 5, jan.-fev. 2006.
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_______. Humanizadores do inevitável. In: Sinopse – Revista de cinema, n. 10, ano IV, dez. 2004. p. 6-15.
Lobato).
16 17

1
No começo do século XIX, quase no mesmo instante em que Nicéphore Niépce
inventava a fotografia comportando-se como um pintor, deixando-se ficar longo
. tempo diante da paisagem (exageremos um pouco: a objetiva da câmera ficou aberta
durante todo um dia de sol para que se pudesse gravar a imagem), John Constable pintava
comportando-se como se fosse um fotógrafo (exageremos um pouco: fazendo um quadro
numa fração de segundo), registrando instantâneos de nuvens. Óleo ou aquarela sobre
papel, madeira ou tela, pouco mais que esboços para as paisagens que iria pintar mais tarde,
quase fotos jornalísticas que traziam uma espécie de legenda com local, dia, mês, ano, hora
e condições meteorológicas do instante registrado; estudo de nuvens com horizonte de
árvores, meio-dia, depois da chuva, um pouco de vento (Cloud study with an horizon of trees:
noon, September 27, 1821, after rain, wind). Dez da manhã, olhando para o sudeste, nuvens
cinzas correndo rápidas sobre o leito de um céu tingido de amarelo (5th september, 1821, 10
o‘clock, morning, looking south-east, very bright and fresh greys clouds running fast over a yellow
A realidade como crítica de cinema – O cinema como bed, about half way in the sky). Constable antecipava assim o que primeiro a fotografia, que ia
sendo inventada então, e depois o cinema, a fotografia em movimento inventada no fim do
crítica da realidade século, iriam fazer adiante: documentário, um registro (objetivo subjetivo) do que se passa
no instante em que se passa. O cinema, e em particular o filme documentário, nasceu como
expressão desse desejo que se formulou primeiro na pintura.

José Carlos Avellar Entre a pintura e o cinema existe uma relação semelhante à que se encontra entre as
nuvens pintadas muito rapidamente por Constable para preparar as paisagens que ele
Crítico de cinema, autor de ensaios sobre cinema brasileiro e latino-americano, entre eles:
Glauber Rocha, Madri, Editorial Cátedra, 2002; A Ponte Clandestina, Teorias de Cinema na América iria produzir mais tarde – a pintura, de certo modo, esboçou o que o cinema iria fazer
Latina, São Paulo, Editora 34, 1996; Deus e o Diabo na Terra do Sol, Rio de Janeiro, Rocco, 1995; em seguida. Se examinarmos a questão do ponto de vista do cinema documentário,
O Chão da Palavra: Cinema e Literatura no Brasil, Editorial Prêmio, 1994. Foi diretor cultural da interessados em examinar a relação que se estabeleceu entre o filme documentário e o
Embrafilme (1985-1987) e diretor-presidente da Riofilme (1994-2000). Atualmente é consultor filme de ficção, encontraremos na experiência de Constable uma antecipação do que viria
de cinema do Programa Petrobras Cultural.
a ocorrer no cinema brasileiro (não apenas, mas especialmente no cinema brasileiro) no
18 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 19

começo da década de 1960: o documentário (como as rápidas anotações ao vivo das algo parecido com esse espetáculo. Queria mostrar o que se sente com um tal espetáculo”1.
nuvens) como esboço necessário para a ficção (as paisagens pintadas em estúdio). A questão levantada por Turner na metade do século XIX é, a rigor, a mesma que alimenta
a discussão em torno da prática do cinema documentário desde a metade do século XX:
De certo modo, a fotografia e o cinema concretizaram o que já vinha sendo esboçado como ir além do registro puramente (fotográfico? jornalístico?) da superfície, da aparência
pela pintura desde o começo do século XIX. Francisco de Goya, por exemplo: a seqüência visual primeira das coisas? Como levar o espectador a sentir mais do que simplesmente
feita entre 1806 e 1807 (no acervo do Art Institute de Chicago), El Maragato Amenaza ver o que se passa? Como fazer da imagem do documentário algo que mostre a realidade
con el Fusil a Fray Pedro de Zaldivia, e as outras cinco telas que complementam a ação da não exatamente como ela é, mas como foi percebida e sentida pelo realizador?
primeira – frei desvia o fuzil; frei luta para desarmar o Maragato; frei golpeia o Maragato
com o fuzil; frei dispara o fuzil; e frei amarra o Maragato. O que temos aqui é um filme Talvez seja possível dizer que, em Rocha que Voa (2002), Eryk Rocha pinta sua imagem
documentário antes do cinema, tanto nesses seis quadros como nos dois pintados em assim como Turner fotografou sua tempestade de neve. E que em Ônibus 174 (2002) José
1814 (no acervo do Museu do Prado de Madri): El Dos de Mayo de 1808 en Madrid, la Lucha Padilha grava um incidente trágico da vida do Rio de Janeiro tal como Posada fotografou
con los Mamelucos e El Tres de Mayo de 1808 en Madrid: los Fusiliamentos de la Montaña del tiroteios, motins e fuzilamentos em sua gazeta de rua do fim do século XIX. Isto é, esses
Príncipe Pío. Documentário antes do cinema são também as gravuras que José Guadalupe filmes não se apoiaram na pintura de Turner ou na gravura de Posada, mas lembrar
Posada publicou da Gaceta Callejera do México no fim do século XIX, como Ballazos en imagens produzidas mais de um século antes permite situar melhor em que tradição de
Calle de San Hipolito, ou El Motín de los Estudiantes en Mayo de 1892, ou ainda Fusiliamento representação visual se insere o cinema documentário e reconhecer o que se faz hoje no
del Capitán Clodomiro Cota. cinema como a realização de um desejo sonhado muito antes da invenção dos meios
técnicos para realizá-lo; e permite verificar que, de certo modo, o cinema documentário,
Outro exemplo de representação visual que tem algo a ver com o que se concretizaria na hoje, parece voltar-se para o instante em que foi sonhado.
prática do cinema documentário é o quadro que J. M. W. Turner pintou em 1842 e que
surpreende primeiro pela indicação precisa em seu longo título: Snow Storm – Steamboat 2.
off a Harbour’s Mouth Making Signals in Shallow Water, and Going to the Lead. The Author Was Rio de Janeiro, 13 de maio de 1988, 13 horas, avenida 13 de maio: os 13 integrantes da
in this Storm on the Night the Ariel left Harwich. Algo que surpreende ainda mais quando Confraria do Garoto comemoram a seu modo o aniversário da confraria e o centenário da
o título se liga à imagem, pois a pintura parece contrariar a promessa de documentário abolição – diz o narrador de O Fio da Memória sobre imagens que mostram um pequeno
contida no seu meio título, meio legenda. Nenhum detalhe da tempestade de neve e animado grupo que se diverte ao som de Cidade Maravilhosa. Como parte da festa,
imobilizado para uma observação minuciosa, nenhuma forma claramente identificável prossegue o narrador, preparam a coroação da rainha do centenário da abolição em frente
como o navio Ariel que sinaliza ao tentar deixar o porto. Somente manchas pouco precisas à Igreja do Rosário e de São Benedito. Surge então uma imagem que se move para todos 1
O relato de Turner nem sempre é acei-
to como autêntico. Ele tinha 67 anos ao
que compõem um ritmo nervoso. Talvez um traço fino no centro do quadro possa ser os lados, que pega o espectador de assalto, que não deixa tempo para organizar a visão. pintar a tempestade de neve, e não há
compreendido como o mastro de um navio, mas, de fato, nada do registro preciso que se informações de um navio Ariel deixando
o porto de Harwich, nem de uma esta-
poderia esperar do relato de alguém que esteve lá, na tempestade, amarrado no mastro Em frente ao quadro, a festa da coroação: Fátima Ju – anos antes escolhida a mulata da do pintor naquela região. O quadro
do navio, como diz o pintor, que garante ter estado lá: “Pedi aos marinheiros que me mais bonita do Brasil no programa do Chacrinha – recebe a faixa e a coroa de rainha do pode ter sido uma livre invenção a par-
tir da memória de uma tempestade de
amarrassem ao mastro do vapor para contemplar a tempestade. Fiquei amarrado durante centenário da abolição. Por trás da coroação, outra festa na Igreja do Rosário, a da escrava neve que ele atravessara nos Alpes 30
quatro horas, cheguei a achar que não iria sobreviver; mas só pensava em registrar a Anastácia, que muita gente diz ser responsável por milagres e que, insiste um garoto anos antes. Com base nela ele desenhou
diversas notas para “fotografar” rapida-
tempestade se porventura saísse vivo dela”. entrevistado em sala de aula, foi quem de verdade libertou os escravos. Ela, porque ela é mente no papel o que via e pintou em
1812 Snow Storm: Hannibal and his Army
que brigou mesmo pela libertação, ela, a escrava Anastácia, num 13 de maio, seu dia, e não Crossing the Alps. Esses esboços podem
Registrar, documentar, sim, mas registrar de outro modo, documentar outra questão. A a Princesa Isabel, que apenas assinou a lei que pôs fim ao cativeiro. ter servido também para outra Snow
Storm pintada em 1836 na Suíça. De
tempestade de neve em Harwich na noite em que o Ariel deixou o porto foi pintada no qualquer modo, a pintura realizada com
exato momento em que os franceses Nicéphore Niépce, Louis Daguèrre e Hippolyte Bayard, Uma festa ruidosa em frente: alguém coloca nos braços de Fátima Ju um menino de pouco base em anotações, em esboços feitos
ao vivo (como uma filmagem?) e depois
o alemão Peter Voitgländer e o inglês William Fox Talbot aperfeiçoavam os processos, as mais de 1 ano e tenta deslocar a coroa da cabeça dela para a da criança, que protesta e organizados num quadro (como numa
objetivas e os aparelhos fotográficos. Consciente ou não (pouco importa) do registro chora. Outra festa menos barulhenta lá atrás, na igreja. Tudo isso se mistura dentro da montagem?) que não reproduz objetiva,
fiel, fotograficamente o acontecido, mas
essencialmente objetivo da aparência das coisas por meio da fotografia, Turner pinta imagem, e de quando em quando algo que o enquadramento empurra para um canto expressa a sensação sentida durante o
acontecimento, aproxima sua pintura de
movido por uma vontade de documentar de um modo não (ou além do) fotográfico: “Não ou para trás salta para o primeiro plano. É assim que, de repente, perdemos Fátima Ju de certo modo de fazer cinema documen-
pintei a tempestade para que ela pudesse ser compreendida, mas porque queria mostrar vista e nos encontramos diante de uma mulher negra que protesta com força e chama a tário hoje.
20 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 21

atenção de todos: “está provado, a escravidão nunca que acabou!”. Ela fala com voz firme, menores do centro de triagem de meninas abandonadas de Charitas, em Niterói; e, ainda,
se movimenta enquanto fala. A mistura indisciplinada – o riso da rainha, o choro do garoto é ele que nos apresenta o segundo narrador, Gabriel Joaquim dos Santos, que viveu no
com a coroa enfiada na cabeça, a música alegre, o vozeirão zangado da mulher negra, o distrito de Vinhadeiro, município de São Pedro d’Aldeia, quase divisa com Cabo Frio, a
sorriso de ironia de quem passa mais interessado na rainha meio nua do que na festa, a menos de 200 quilômetros do Rio de Janeiro, nasceu em 13 de maio de 1892 e morreu
seriedade que passa com olhos só para a escrava Anastácia, o riso malandro de quem está no começo de 1985, aos 92 anos. O primeiro narrador apresenta e praticamente cede o
só querendo ser filmado –, a aparente desordem da imagem segue sua ordem. lugar ao segundo narrador. A voz é de Milton Gonçalves, o texto é de um depoimento
gravado no fim dos anos 1970 e dos cadernos em que Gabriel anotava (como quem faz
A mulher negra segue protestando: “o preconceito não vai acabar”; a rainha coroada, um documentário?) alternadamente fatos de seu cotidiano, da história da região e da
“magricela, parece mais homem que mulher”; ela “prova e reprova com toda a confiança história do Brasil.
do fundo da alma que o branco não gosta mesmo de preto”; e segue com frases que
param na metade porque um homem branco entra na conversa, decidido a mostrar que Gabriel conta que, por volta de 1926, depois de entrar para a Igreja Batista, conheceu “um
não existe preconceito de cor no Brasil. Ele corta a fala da mulher negra, mas também não menino bem sabido” que ensinou “alguma coisa de leitura” para ele numa “cartilha de
consegue concluir o que queria dizer. “Cinqüenta e um por cento da população brasileira...”, criança” e que desde então começou a anotar o que se passava num caderninho. Fala de
tenta uma primeira vez sem conseguir atenção. Tenta de novo, e de novo, e de novo, tudo, e a informação mais importante não vem propriamente dos fatos narrados, mas de
mas ninguém parece interessado em ouvi-lo. A mulher negra não lhe dá ouvidos, diz que seu modo descontínuo de narrar, que salta de uma frase para outra e de um fato a outro
não está falando com ele, que está falando com o repórter. As pessoas em volta entram por meio de um corte seco. É esse segundo narrador, Gabriel, quem determina o modelo
na discussão, muita gente fala ao mesmo tempo, ninguém escuta nada. Num instante, de construção do filme e o sentimento que o comanda, porque, em algum momento do
aproveitando uma brecha na gritaria, o homem branco solta a voz e quase completa o processo de realização, o homem com a câmera viu a vida de Gabriel, seu jeito de falar e de
que queria dizer: “Cinqüenta e um por cento da população brasileira tem a raça negra. fazer as coisas, como uma imagem da condição do negro brasileiro que constrói seu espaço
Em qualquer companhia, quem tem 51% das ações controla a empresa. Se o negro não à margem do país, tal como Gabriel construiu sua Casa da Flor com pedaços de coisas
consegue controlar o país...” Ao que parece ele ia dizer algo como “é por falta de capacidade” apanhadas no lixo: “Quando acabei a obra da casinha, aí veio um pensamento para enfeitar
ou “é por falta de organização”, ou um qualquer outro “por falta de”. Não consegue. Aí, essa casinha. Enfeitar de que maneira?, pensei. A gente não tinha dinheiro para comprar
sim, toda a gente em volta interfere ruidosamente. Adivinham a conclusão da frase e... certas coisas, então imaginei de apanhar aqueles caquinhos de louça do lixo. Apanhar caco
exatamente aí, quando a ação começa a esquentar mesmo, a cena se interrompe, o filme de vidro, fazer aquelas florzinhas de vidro para pregar na parede da casa para enfeitar. Veio
muda de assunto. aquela coisa na mente. Só apanhar os cacos, resto das grandes obras da cidade”.

Esse fragmento é insuficiente para dar uma idéia precisa do documentário que Eduardo A casa se impôs como exemplo da força do pobre, diz Gabriel: “Os moços do Rio chegam
Coutinho iniciou às vésperas do 13 de maio de 1988 e terminou três anos depois, mas é um aqui e eu digo a eles: lá no Rio tem tanta coisa linda. Eles: não, aquilo não é lindo, nos
bom exemplo da narração fragmentada e aberta para todos os lados de O Fio da Memória. conformemos com o Rio de Janeiro porque lá é a força da riqueza, é a força da engenharia
Esse modo de narrar aparece como parte da coisa narrada, como uma representação do – tem casa, tem palacete, mas é a coisa bem organizada da riqueza. Eles vêm aqui para ver
modo de viver imposto ao negro. a força da pobreza. Eu quero que eles admirem é a força da pobreza”.

Primeiro sinal da fragmentação: dois diferentes narradores. Uma só narração, mas dois Ele conta que começou a trabalhar na salina em 1912 e “saiu de lá no ano 1960, cansado
narradores. O primeiro – o texto é de Coutinho, a voz é de Ferreira Gullar – dá informações e encostado pelo instituto”. Naquele tempo os operários ganhavam por dia: “no ano de
imediatas, introduz as diversas situações, como a festa da Confraria do Garoto. Diz, por 1912, dois cruzeiros; 1920, três cruzeiros; 1930, seis cruzeiros; 1940, sete cruzeiros; 1950,
exemplo, que com a abolição o negro, analfabeto, desaculturado, sem cidadania e sem chegou a 60 cruzeiros”. Logo em seguida anota: “as leis do cativeiro no Brasil começou
família, teve de lutar contra a desagregação e reunir os estilhaços de sua identidade. Esse no tempo da colonização no ano de 1532”. E continua, somando outros fragmentos:
primeiro narrador volta mais tarde para anunciar a marcha de militantes do movimento “Guilherme me deu um vintém feito em 1869. Me deu em 30 de abril de 1955. O preço
negro do Rio de Janeiro, no dia 20 de novembro, aniversário da morte de Zumbi dos dos gêneros alimentícios em 1963: 1 quilo de carne, 700 cruzeiros; 1 quilo de feijão, 180
Palmares e Dia da Consciência Negra. Volta também, sempre como uma voz de poucas cruzeiros; 1 quilo de açúcar, 140 cruzeiros; 1 quilo de arroz, 200 cruzeiros; 1 quilo de farinha,
palavras, para apresentar brevemente os entrevistados, entre outros Manuel Deodoro 70 cruzeiros; um pão, 15 cruzeiros. No dia 17 de abril de 1963 começou a greve na salina.
Maciel, ex-escravo de 120 anos de idade; a família que criou o Cacique de Ramos, os O papa de Roma morreu em 3 de julho de 1963”.
22 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 23

sombra diz que já fez “uma pá de coisas nessa vida”, já fez de tudo, roubou, matou, traficou.
Lembra, adiante, que “José de França amaziou-se com Almerinda em 12 de fevereiro de Longas ou breves, as conversas são sempre abertas, inconclusivas, um primeiro encontro.
1964. Santos Dumont fez o primeiro vôo em 1906. A reforma agrária foi assinada no dia 13 O entrevistado não repete para a câmera um depoimento previamente ensaiado. Ele não
de março de 1964 pelo presidente da República. João Goulart assinou às quatro da tarde no se encontrara antes com o diretor. Coutinho envia um assistente para combinar a conversa,
Rio de Janeiro. A ordem é: quem não obedecer vai para a Ilha das Flores. O marechal Castelo mas só se encontra com a pessoa que vai filmar no instante da filmagem. E começa a filmar
Branco tomou posse em presidente da República em início de abril de 1964. Getúlio Vargas logo que chega, sem combinar previamente sobre o que vai ser a conversa. Entrevistador
enviou as forças brasileiras para a guerra na Europa no dia 13 de novembro de 1943”. e entrevistado se surpreendem ao mesmo tempo um com o outro. Alguma coisa nova,
única, imprevista, se dá então, alguma coisa aberta como a pequena confusão diante da
O texto de Gabriel tem uma construção tão indisciplinada quanto a cena da coroação Igreja do Rosário pouco depois das 13 horas do dia 13 de maio de 1988.
da rainha do centenário da abolição. Filme e texto obedecem a um mesmo princípio
de composição e levam o espectador a sentir (não afirmam diretamente, não explicam, A arquitetura dramática desestruturada, porque inspirada na Casa da Flor e nos textos de
sugerem, levam o espectador a sentir sem se dar conta disso de forma consciente) que Gabriel Joaquim dos Santos, porque preocupada em ser uma imagem viva do tema que
a desagregação imposta ao negro foi transformada por ele num diferente modo de se a inspira, porque solta como uma conversa, não é o que primeiro aparece em O Fio da
agregar e se expressar culturalmente. Ao selecionar uma fala em que Gabriel conta que Memória. Enquanto o filme está na tela o que prende mesmo a atenção não é a câmera,
é governado pelo sonho, O Fio da Memória abre espaço para se explicar por meio de mas as pessoas diante dela. O desenho do quadro e a forma de organização do filme só
Gabriel. O documentário está, como sempre, interessado em ouvir, mas está ao mesmo se percebem depois de terminada a projeção, quando volta à memória o texto de Gabriel
tempo falando, explicando sua dramaturgia: “Eu me deito muito cedo. Não para dormir, que abre e encerra a narração: “O Brasil já foi mandado por Portugal. O Brasil já foi uma roça
para pensar. Eu tenho um pensamento vivo. Meu pensamento é vivo, e quando chega portuguesa. Aqui já foi tudo. Existiu aqui um cativeiro muito perigoso, os portugueses a
meia-noite fico adormecido. Sonho toda noite. Sou governado para fazer essas coisas no carregar negros da costa da África pra botar aqui pra trabalhar na enxada. E essas coisas
pensamento e no sonho. Ninguém me ensinou, é coisa espiritual. A senhora pensa que eu tudo já passou. Aí o português entregou isso. D. Pedro I fez a independência. Botou o Brasil
tinha inteligência para fazer isso? Eu mesmo faço, eu mesmo me admiro”. pra cá e Portugal pra lá. E ficou o Brasil por conta de nós próprio”.

Imaginar um documentário (modo de fazer cinema que em princípio se pretende tão


objetivo, direto e controlado pela razão quanto possível) como forma governada pelo 3.
sonho define a questão principal de O Fio da Memória: um diálogo entre seus dois Imaginemos que o cinema documentário se realize num espaço entre a pintura (o desejo
narradores, o filme está mesmo interessado em conversar: com a câmera, com as pessoas de reproduzir o movimento se movimentando, Goya, Constable, Turner, por exemplo) e a
diante dela no instante da filmagem, com o espectador na sala de projeção depois do pintura (a proibição de reproduzir, René Magritte e La Reproduction Interdite, por exemplo).
filme pronto. Estamos todos (a expressão popular é o que melhor traduz o que se passa)
jogando conversa fora. Os entrevistados estão à vontade na imagem, mas essa sensação o Numa tela de 1937, Magritte antecipa e resume a questão que os filmes documentários (os
espectador só recebe porque a documentação se organiza com um rigor que parece mais brasileiros, mas não só) começaram a se propor mais recentemente. A tela La Reproduction
coisa solta, contraditória, indisciplinada, que rigorosa. Assim, o espectador percebe cada Interdite se propõe como um retrato de Edward James. Nela, um homem diante do espelho
depoimento como uma informação dupla, como uma representação do diálogo entre os vê refletida não a imagem de seu rosto, mas aquela mesma figura que o espectador do
dois narradores que orienta sua estrutura. quadro vê: no espelho ele aparece de costas, como se o essencial de sua imagem não
pudesse se refletir no espelho. Magritte pinta quase como quem fotografa, reproduzindo
De quando em quando a imagem é longa, porque se trata de deixar que o entrevistado se tal e qual as costas de um homem diante do espelho – melhor, de uma pessoa em particular,
revele na conversa: ele não apenas conta determinado episódio que viveu ou presenciou Edward James, com seu penteado, seu porte físico e as dobras do paletó. Pinta como quem
no passado: conta sua memória, conta o que ele próprio é, se revela nos gestos, nas fotografa o livro sobre a bancada de mármore em que se apóia o espelho (e igualmente
expressões, no modo de falar. De quando em quando a conversa é curta, porque uma ou refletido no espelho como o vemos, do mesmo ângulo de visão). É evidente que Magritte
duas frases são o suficiente para levar o homem com a câmera a engolir em seco diante não pintou La Reproduction Interdite para discutir o documentário (por mais que gostasse
de gente de quem se tirou a possibilidade de se expressar, como as crianças abandonadas de cinema; por mais que tivesse, à margem de sua expressão visual, feito experiências com
em centros de triagem: a menina que nem sabe como veio para o centro responde de fotografia e cinema). Mas como tudo na imagem parece fotografar documentalmente o
cabeça baixa que não veio, está ali desde sempre; o menino que com o rosto escondido na homem que diante do espelho vê não o seu rosto, mas as suas costas, o quadro pode ser
24 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 25

tomado como uma representação do problema que o cinema documentário enfrenta


agora: como revelar no quadro o espaço mais amplo fora de quadro? O assunto, o tema, Também em Passaporte Húngaro a pessoa que filma participa da cena com a câmera na mão,
a questão registrada são somente uma forma de compor um quadro que durante todo o age na cena que está filmando2. Usa um pequeno vídeo digital, e as pessoas que estão sendo
tempo joga o olhar para fora dele, para documentar no que está ali, imediatamente visível, filmadas nem percebem a câmera, ou, se percebem, acham natural que ela esteja ali, objeto
o que não se traduz para o olhar: reproduction interdite. semelhante a uma caneta, bolsa, livro ou caderneta. Em cena as pessoas filmadas conversam
na presença de um terceiro olhar, pequenino, discreto, silencioso. Sem esse terceiro olhar, a
4. cena seria diferente ou talvez nem viesse a existir. Na verdade, trata-se de um jogo em que
No começo de Passaporte Húngaro (2002), Sandra Kogut fala ao telefone. Ela pergunta ao a intervenção é de mão dupla. Sandra, a realizadora, age primeiro como um personagem
consulado da Hungria se uma pessoa com um avô húngaro tem direito a um passaporte de seu filme. Lida com a câmera como se estivesse também sendo observada pela objetiva.
daquele país. Na verdade, são duas conversas, em francês, montadas como uma fala Vive o instante que filma como personagem da cena, não como quem a dirige. Não domina
contínua, mas feitas em momentos e em telefones diferentes. A voz masculina que atende a cena nem sabe o que vai acontecer com ela. Busca Passaporte Húngaro e documenta o
a uma das chamadas acha que não, que um neto de húngaro não tem direito a Passaporte processo – que se estendeu por dois anos entre idas a consulados e arquivos, além de visitas
Húngaro. A voz feminina que atende à outra chamada pergunta se ela poderia reunir a familiares, todos filmados. O mesmo ocorre com o projeto de Kiko Goifman: 33, tal como
documentos capazes de provar a origem húngara de seus avós. planejado, só teria sentido se ele mesmo se filmasse3. A idéia de procurar e filmar a procura
da mãe biológica e a idéia de pedir e documentar o pedido de Passaporte Húngaro parecem
No começo de 33 (2003), Kiko Goifman fala com o espectador. Diz que sempre gostou ter surgido ao mesmo tempo, em fusão, uma dentro da outra. Observando a questão sob
de contar que é filho adotivo em momentos inesperados e observar como as pessoas um ponto de vista exclusivamente cinematográfico, é possível supor, com algum exagero,
se sentem nessas ocasiões. Diz que tem 33 anos, que foi adotado por Berta, que nasceu que o fato de procurar a mãe biológica e o de pedir Passaporte Húngaro tenham surgido
em 1933, e que naquele dia, 9 de setembro de 2001, começava a remexer no passado, primeiro como idéia de filme.
partindo em busca de sua mãe biológica por 33 dias e por “um caminho metódico e torto”.
Decidira ir ao escritório de detetives para pedir dicas, usar as manhãs e tardes para as Adotando a expressão com que Geraldo Sarno resumiu a questão4, o que um documentário
investigações e as noites para “a procura de imagens, nas poucas luzes e nos vazios“. documenta com veracidade não é o que está em quadro, e sim o modo de compor o
quadro, a maneira de documentar do documentarista, seu modo de reagir às questões
O que aproxima esses dois filmes não é apenas o começo, com imagens diferentes mas concretas que surgem durante a realização do filme, aquelas criadas pelo objeto a ser
parecidas entre si: um breve discurso para apresentar uma busca e definir seus limites. São documentado e as provocadas pelo sistema de produção. Nos filmes de Sandra e de Kiko,
documentários próximos um do outro porque neles os realizadores estão no centro das além disso, mais do que se mostrar indiretamente no modo de estruturar o discurso, o
2
histórias que contam; porque radicalizam algo presente em todo documentário de forma documentarista documenta a si mesmo. Filma o seu outro eu. Filma sua família. É o que Em depoimento feito para o site de
Passaporte Húngaro (http://www.repú-
velada: o pedaço em que o documentário, filme voltado para o outro, até certo ponto documenta e o que está sendo documentado. Está no centro da história, bem no centro blicapureza.com.br/passaporte), Sandra
Kogut conta por que não aparece na
determinado pelo outro, sem tirar os olhos do outro, se refere a si mesmo, fazendo do retrato – se aceitarmos a possibilidade de um centro excêntrico. imagem do filme: “Foi uma decisão que
do outro também um auto-retrato, como quem diz “ eu sou o outro”. A imagem aqui é um tomei na hora da edição. Achei que, num
filme sobre identidade, seria redutor ter
espelho como o de La Reproduction Interdite. Sandra e Kiko, no centro do filme desde o Nas imagens iniciais de Passaporte Húngaro vemos um telefone e logo um outro filmados, uma imagem, um corpo... Ao mesmo
primeiro instante, aparecem como Edward James na pintura de Magritte: rostos invisíveis. ao que tudo indica, sob o ponto de vista de quem fala ao telefone. A imagem que se produz tempo, não é um filme autobiográfico,
acho mais importante estar presente
então equivale à que se obtém com o gesto automático de riscar uma coisa qualquer no com o olhar: o que me interessa é, atra-
Em muitos planos de 33 vemos a câmera na mão de Kiko. Ele não filma a si mesmo num papel durante uma conversa telefônica. O espectador vê o telefone na tela assim como vés do meu olhar, mostrar outras pessoas
[...] Não existe um motivo central. Se eu
espelho, apenas deixa visível em qualquer superfície lisa capaz de refletir uma imagem a Sandra, no instante da filmagem, viu a imagem: ela foi construída para mostrar a conversa e estivesse pedindo um passaporte por-
que queria uma cidadania européia, acho
câmera com que (se) filma. Conscientemente ou não, define-se como um homem com uma não o aparelho. Olhamos o telefone e vemos Sandra, que fala aqui, e o homem e a mulher que não faria um filme. Eu só quis fazer o
câmera; reafirma a importância de seu instrumental sensível, o cinema; indica que manter que respondem do outro lado da linha. O que vemos nesse momento não é o que está filme porque era uma coisa complexa,
porque não havia um único motivo”.
a atenção voltada para a câmera, para o cinema, é aqui tão importante quanto observar as ao alcance dos olhos, mas o que se constrói pela estrutura de composição – porque num
ações documentadas durante a busca de sua mãe biológica. O personagem que está em filme cada plano, quadro, fragmento é apreendido pelo espectador não somente como a 3
Sobre 33, de Kiko Goifman, ver também
na internet a página do filme: http://
cena filma a cena. O Kiko diretor e o Kiko personagem em cena são ao mesmo tempo dois expressão do que a imagem imediatamente revela, mas como um gesto da ordem expressiva www. uol.com.br/33.
e um só, e reiteram: eu e meu eu/outro, antes de qualquer coisa, fazemos cinema. O Kiko que organiza a imagem. Não importa que Sandra não esteja ali; o que o documentário então
4
SARNO, Geraldo. Quatro notas e um
diretor busca (busca talvez mais importante que a da mãe biológica efetuada pelo Kiko documenta é Sandra, fora de quadro, refletida num falso espelho como o de Magritte. Kiko depoimento sobre o documentário. In:
personagem) imagens para dizer o que ele sente e pensa durante a procura. está igualmente fora de quadro no falso espelho de 33. A imagem apenas sugere um pouco Cinemais, n. 25, set./out. 2000.
26 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 27

do que está fora de quadro: Kiko aparece numa espécie de fusão conseguida graças ao docinho de coco para o público”, para agradecer. Pianista e maestro voltam à cena, curvam-
ângulo da câmera diante da janela, meio vidro, meio espelho, que, enquanto deixa ver o se diante dos aplausos, que não diminuem. De novo nos bastidores, o maestro insiste: um
lado de fora, reflete parte do lado de dentro, a televisão ligada iluminando o rosto de Kiko. extra, um brinde. O pianista diz que não dá. Depois desse concerto, não seria possível.
Mostrar-se assim, fora do campo visual, é um modo de levar o espectador a se dar conta Pede ao maestro que o acompanhe ao palco para novo agradecimento – porque a platéia
da composição como elemento essencial do documentário, que deixa de ser um simples segue aplaudindo. Os dois cumprimentam os músicos. O maestro faz um gesto para que
registro visual e sonoro do fragmento da realidade diante dele. Um documentário não toda a orquestra se levante e volta para os bastidores com o pianista. O plano não acaba aí.
repete, não reapresenta a realidade: representa, pensa. Renova-se o apelo: uma peça pequenina, diz o maestro, um docinho de coco. Cigarrinho
só depois. E nova entrada em cena para mais um agradecimento.
5.
“Não há como negar, Nelson Freire é feito de lacunas.” João Moreira Salles definiu assim Um plano-seqüência mais intervalo que seqüência. Uma observação detalhada de um
seu trabalho, depois de lembrar o que conseguiu registrar: “Nelson tocando o Segundo entreato. O concerto, que não vimos, acabou. Vai começar outra coisa que igualmente
Concerto de Brahms no Municipal do Rio, tocando o mesmo concerto no sul da França não veremos. Nessa nova entrada em cena o pianista senta-se ao piano para tocar algo,
com a Filarmônica de São Petersburgo, tocando a quatro mãos e dois pianos com sua e o plano acaba. Vemos o vazio entre o último pedaço de som do concerto e o gesto
grande amiga Martha Argerich, tocando a Fantasia de Schumann em pelo menos três de sentar-se ao piano – o gesto e só: agora nenhum som – para o extra. O que acabou
ocasiões diferentes (todas elas de tirar o fôlego), tocando Villa-Lobos dentro de uma igreja importa pouco. O que vai começar não faz falta. Vemos o vazio entre uma coisa e outra e,
barroca com vista para o Mediterrâneo. Porém, não há como negar”, conclui, “Nelson Freire graças a ele, percebemos melhor e mais acuradamente o que de fato importa.
(2003) também é feito de lacunas”. E essa é a primeira informação que se recebe do filme.
No pedacinho inicial do que ainda vai ser a primeira imagem se anuncia com clareza: o “Documentaristas têm a estranha mania de achar que tudo, ou quase tudo, deve ser
filme se constrói como fragmento, pedaço, parte, estilhaço, intervalo, fora de quadro. O filmado. Não precisa ser necessariamente assim”, diz João Moreira Salles. “Uma boa
fragmento primeiro é uma unidade mínima de som logo cortada – mal começa, acaba. Um parte do público de música erudita gosta de ver o seu pianista dando golpes de
golpe seco, não se percebe nada além disso. A música acabou, a orquestra parou, a platéia braço à direita e à esquerda, como se o teclado fosse um mar, e ele, um afogado. O
aplaude. O pianista curva-se para agradecer e, ao lado do maestro, caminha na direção da problema desse destempero é que quase sempre a música acaba desaparecendo por
câmera, que está no fundo do palco, por trás dos músicos, escondida nos bastidores. O trás da ginástica. Com Nelson isso nunca acontece. O seu piano é um mar calmíssimo.
quase-som que ouvimos dura pouco e é logo esquecido porque – sem intervalo algum, Acredito que essa elegância seja uma decisão estética; é como se ele dissesse: ‘Prestem
quase sem silêncio entre um e outro – novo som forte cobre a imagem: o aplauso da atenção na música e não se deixem ludibriar pela performance’. E suspeito também
platéia. E, ao contrário da batida inicial, o som do aplauso se alonga, continua. Continua. E que se trata de uma questão de recato [...] Num mundo cada vez mais exibido, esse
continua. Entusiasmado, mais forte e presente na imagem que a conversa entre o pianista recato é o traço mais belo de Nelson e, na minha opinião, a razão da extraordinária
e o maestro nos bastidores. Eles trocam poucas palavras. Comentam que tudo correu pureza de sua música”5.
bem. O pianista diz que gostaria de um cigarro, mas, instado pelo maestro, volta ao palco
para agradecer. A câmera o acompanha. Recato. Lacuna. Intervalo. Bem no instante em que a tecnologia digital aponta
concretamente para a possibilidade de filmar tudo, e bem de perto, até invadir e vencer
A longa duração dessa primeira imagem pode, à primeira vista, dar a sensação contrária, toda e qualquer intimidade, o que começa a aparecer nos filmes como construção mais
de que o filme não é assim como dissemos que ele é. Para fragmento, o plano de abertura refinada – Nelson Freire, 33 e Passaporte Húngaro, por exemplo – pode ser resumido nas
parece grande demais. É um longo plano-seqüência. Quanto dura? Dois, três, quatro palavras acima. O documentário, experiência em que o diretor quase se reduz a um
minutos? Parece mais. Não importa o tempo real, parece mais. Mas igualmente não espectador do filme que dirige, começa a ser pensado como uma expressão recatada, a se
importa aqui a duração real nem a sensação de que dura mais do que o que realmente perguntar se, por acaso, em vez de ser o que mostra todas as coisas do mundo, não seria,
dura. O plano se estica no tempo, mas estruturalmente é um fragmento, mostra só o de fato, o que mostra só o intervalo entre as coisas.
intervalo entre duas apresentações do pianista.
Intervalo, autoria. Quando, em O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), Paulo Sacramento
Ele volta ao palco e a câmera sai dos bastidores, avança, esgueirando-se entre os músicos, entregou a câmera a detentos do presídio do Carandiru para que eles se filmassem, não 5
Em “O elogio do recato”, entrevista a
para ver de perto o agradecimento e o entusiasmo da platéia. Os aplausos seguem, o estava renunciando à autoria de seu filme, mas passando a atuar como um espectador Daniel Schenker Wajnberg, Marcelo Ja-
not e Maria Sílvia Camargo publicada na
pianista volta aos bastidores, e a câmera vem com ele. Bebe um pouco d’água, pede um ativo da realidade ou do filme que produz para discuti-la. É um filme que se realiza edição de 9 de maio de 2003 da revista
cigarrinho, mas o maestro insiste: “cigarrinho, depois”. Antes, um extra, um brinde, “um estimulado por ele mas quase independente dele. Até certo ponto, todo documentário criticos.com.br.
28 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 29

é isso mesmo, filme feito por um espectador ativo, meio distante ou no centro da cena. Brasil, quinta-feira, 28 do 10 de 76, primeiro caderno, página 15: Filmagem causa espanto
Não é a primeira vez que isso ocorre num documentário, nem é tão incomum assim que e irrita filha e amigos. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze...
um realizador construa seu filme montando imagens que não filmou. Aqui, ou porque os Corta! Agora dá um close na cara dele! Barba por fazer, calça de brim azul-marinho, casaco
presos passaram antes por uma breve oficina sobre o uso de câmeras digitais, ou porque, azul-escuro, camisa esporte quadriculada, sapatos marrons, o cineasta Glauber Rocha está
como toda a gente hoje, foram “educados” visualmente pelo contato regular com cinema parado ao lado do caixão do pintor Di Cavalcanti no Museu de Arte Moderna...” .
e televisão, ou ainda porque o manejo das câmeras de vídeo digital é relativamente fácil
graças a controles automáticos, por qualquer uma dessas razões separar o que foi filmado Dominando a imagem com sua voz, entrando em cena e acompanhando o enterro, no
por eles e o que foi registrado pelo realizador não é tão simples nem colabora para a centro do plano, à frente do caixão (e não com o jeito discreto e encolhido com o qual
melhor compreensão do projeto. O diretor não estava presente em boa parte da filmagem, o diretor de um filme documentário costuma aparecer na imagem), Glauber filma a si
mas em nenhum instante se ausentou da concepção do filme, porque de certo modo mesmo para falar do pintor, para falar de cinema. Retomemos a possibilidade de que a
procurou se comportar como o outro, ser um deles, sentir a prisão como uma metáfora idéia de pedir Passaporte Húngaro e buscar a mãe biológica tenha surgido para Sandra e
do mal-estar de nossa sociedade. para Kiko primeiro como idéia de filme. Ou seja: mais do que o pedaço de realidade que
documentam, os filmes de Sandra e de Kiko, como os de Paulo e de Eryk, e antes deles
O Prisioneiro da Grade de Ferro remonta o cotidiano do presídio recém-destruído numa todos os de Coutinho e Glauber, são filmes. Ao mesmo tempo em que nos revelam as
implosão, trabalha no eco do massacre de detentos ocorrido há pouco mais de dez anos. buscas objetivas em que seus realizadores estão empenhados (e sem sair delas, pois elas é
O que os presos filmam revela a prisão como um microcosmo da sociedade do lado de que dão corpo à idéia), expressam a busca subjetiva de seus diretores: discutir na realidade
fora. Exagerando um pouco, corredores e celas do presídio não são muito diferentes dos (o cinema então como um instrumento crítico dela) o cinema (a realidade então como
corredores e apartamentos conjugados do Edifício Master, de Eduardo Coutinho. Nem as instrumento crítico dele), discutir a condição do espectador durante a projeção quando
histórias contadas pelos presos do Carandiru são muito diferentes daquelas contadas pelos (para melhor criticar uma coisa e outra) abre mão de sua identidade como passaporte
moradores do edifício de Copacabana. Uns e outros são excluídos, não são um desvio ou necessário para melhor perceber o filme como expressão vizinha à de Constable, Turner,
deformação dos ideais da sociedade. Goya ou Posada, vizinha, sobretudo, ao espelho de Magritte.

Não é a primeira vez que o cinema sugere o cárcere como uma metáfora da sociedade,
nem a primeira vez que a câmera procura pensar o mundo do ponto de vista de um
prisioneiro – efetivamente preso ou em liberdade condicional, como os moradores de
conjugados. O que importa é observar como os diferentes presos conversam entre si,
confessando a meia-voz o sonho comum a todos os excluídos: mudar de vida.

6.
Os documentários que fazemos hoje parecem abraçar uma construção cinematográfica
que parte de idéias esboçadas entre nós na década de 1960: o cinema como busca/
afirmação/invenção de uma identidade em permanente busca de si mesmo, o impulso
documentário como forma de levar o cinema ao direto enfrentamento do presente. São
6
Di, Prêmio Especial do Júri no Festival filmes que partem do que se esboçou na década de 1960 e que passam pela experiência
de Cannes de 1977, foi um dos filmes
debatidos por Roberto Rosselini no se- de Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho, e de Di (1977)6, de Glauber
minário aberto que ele, presidente do
júri, organizou para discutir o cinema de
Rocha. No primeiro, o realizador se situa no centro da história e fora de quadro (20 anos
autor e os filmes em concurso naquele depois, no Nordeste, em busca dos companheiros de trabalho no filme interrompido pelo
ano. Rosselini discutia a perda de potên-
cia do cinema de autor (“o filme de autor golpe militar de 1964). No segundo, o realizador começa gritando a apresentação do filme
virou uma espécie de gênero, os autores (que não tem letreiros e se anuncia pelo som): “Di Cavalcanti. Título do filme: ninguém
renunciam à invenção e se repetem ao
infinito”), e identificou no filme de Glau- assistirá ao formidável enterro de sua última quimera, somente a ingratidão, aquela pantera,
ber uma nova atitude autoral, em que o foi sua companheira inseparável”. Em seguida, voz alta, exaltada, Glauber lê uma notícia
autor se inseria na história que narrava
como parte inseparável dela. de jornal sobre a filmagem: “Filmagem causa espanto e irrita família e amigos. Jornal do
30 31

O
documentário, gênero que nasce com o cinema, procura lançar a câmera para
mostrar e desvendar o real. Isso significa conhecer as paisagens, a natureza, as
práticas e os modos de viver dos homens. Significa também interrogar o próprio
exercício de documentar.

Sendo assim, questionar o documentário é interrogar a forma como se busca e se expressa


o conhecimento, a empatia ou a rejeição do outro, que está diante da câmera. A questão
central, portanto, é saber como o documentário fez e faz da alteridade o sujeito das
imagens, sobretudo no Brasil, uma vez que o artista – o cineasta – depara com uma relação
com o outro, que envolve, em geral, uma diferença social marcante. Esta não deixa de
influir de forma significativa no resultado do seu trabalho.

Em busca de um objeto
Tendências e perspectivas do documentário contemporâneo:
Se iniciarmos nosso questionamento pelo documentário clássico brasileiro, produzido
um olhar histórico retrospectivo pelo Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince) entre os anos de 1936 e 1945, por
exemplo, veremos que o que se enfoca ali são seres e situações edificantes, buscando criar
modelos pedagógicos a ser seguidos numa sociedade autoritária.

Sheila Schvarzman São assim os grandes heróis cultos que o arqueólogo e diretor do Ince, Roquette Pinto,
associado ao realizador Humberto Mauro, tratou de construir, forjando um panteão de
Historiadora do Condephaat, professora do curso de audiovisual das Faculdades Senac,
professora convidada do Departamento de Multimeios da Unicamp. Realizou pós-doutorado homens exemplares por seus feitos e obras, que deveriam restar como modelos para as
sobre a obra de Octávio Gabus Mendes. É autora de Humberto Mauro e as Imagens do Brasil, novas gerações: Machado de Assis, Castro Alves, Rui Barbosa, Princesa Isabel ou Barão do Rio
São Paulo, Edunesp, 2004, e “Humberto Mauro e o Documentário”, no livro organizado por Branco. Eles eram os grandes mortos, heróis românticos em que se deveria inspirar o Brasil
Francisco Elinaldo Teixeira Documentário no Brasil – Tradição e Transformação, São Paulo, extraordinário que aqueles filmes buscavam moldar.
Summus Editorial, 2004.
Nesse mesmo momento histórico, as reportagens do Departamento de Imprensa e
32 Sheila Schvarzman Tendências e perspectivas do documentário contemporâneo: um olhar histórico retrospectivo 33

Propaganda (DIP) traziam para a tela homens vivos excepcionais – começando pelo Em filmes como Viramundo (Geraldo Sarno, 1965), apesar de as mudanças técnicas e de
presidente Getúlio Vargas, artistas como o pintor Pancetti, artesãos e trabalhadores de concepção cinematográfica do cinema direto terem permitido “dar voz ao povo”, deixando
extração simples, que haviam se destacado em suas atividades. Mas o verdadeiro foco patentes as carências dos homens que ali se enfocavam, a “voz sociológica” se sobrepôs às
desses filmes, o sujeito dessas ações, era antes de tudo o Estado que, na figura do novas vozes; falou por elas, falou no seu lugar1. Isso certamente falou com mais eloqüência
presidente, resguardava o cidadão, ou dava àqueles profissionais a chance de sobressair. da visão do realizador do que daquele que é alvo da câmera.

Tanto em um como em outro exemplo, era muito clara a separação total entre os Esse viés persiste ainda nos anos 1970 e 1980. Mas essa tendência muda, e muito, em
personagens da tela e os da vida real. Na tela, todos eram parte da mesma ficção construída meados dos anos 1980 e 1990.
pelo regime por meio do cinema.
Os anos 1980, fortemente marcados pelo neoliberalismo, sepultaram as utopias socializantes
Nos anos 1950, finda a ditadura, e com novos tempos políticos e culturais, os heróis e as que faziam do povo um objeto a ser salvo e amparado. Ao ruírem, essas crenças permitiram
virtudes pedagógicas construídos pelo Ince se desfizeram. A forma documental se impôs a livre manifestação da persistente linhagem conservadora de parte do pensamento
sobre a pedagogia, e Humberto Mauro passou a registrar de forma sistemática os modos nacional que, desde o final do Império, sempre viu o povo de forma negativa.
de vida tradicionais que o avanço da modernização pareceu ameaçar. São filmes como
Fabricação da Rapadura (1958), Pedra Sabão (1957), ou canções populares românticas – as Se, até os anos 1980, o Nordeste era o objeto de interesse e os filmes documentavam
várias Brasilianas (1945-1958). Entretanto, em todas as obras o homem ainda não aparece um modo de vida tido como arcaico, pobre, miserável – mas respeitosamente tradicional,
como personagem importante. Ele é parte de um sistema no qual está imerso, junto como se vê em A Bolandeira (Vladimir Carvalho, 1969), por exemplo –, a partir desse mo-
com o Carro de Bois (1956) ou o engenho (Engenhos e Usinas, 1955); estes, verdadeiros mento o foco muda. O centro das atenções passam a ser os marginalizados urbanos, que
sujeitos dos filmes que abordavam a cultura brasileira tradicional num momento de forte os efeitos deletérios do “milagre brasileiro” só fizeram multiplicar. Assim, são documenta-
transformação, com a industrialização e a urbanização. dos a vida no morro, as favelas, o apego à religião, o tráfico de drogas, a delinqüência e,
ao mesmo tempo, seus antídotos ou mecanismos de defesa como o rap etc. A imagem
Em Aruanda, de Linduarte Noronha e Rucker Vieira (1960), o homem já tem consistência cruenta, ou intensa, como lembra Fernão Ramos, parece ser a forma de “tematizar, no
e existência própria, não é mais a entidade abstrata dos momentos anteriores. É documentário contemporâneo, a exclusão e a violência social que permeiam a sociedade
nele que se edificam os traços do homem popular como depositário da verdadeira brasileira.(...) um narcisismo às avessas”2.
tradição e dos valores brasileiros. A construção romântica se transfere do grande 1
Bernardet, Jean-Claude. O mode-
homem para o homem simples. Ainda que pobre, ele é a verdadeira nacionalidade Se mudou a geografia, se o urbano substituiu o rural, se o jovem substituiu os homens lo sociológico ou a voz do dono. In:
– sua inconsciente salvaguarda. maduros envolvidos em profissões e atitudes tradicionais, é como se a própria humanidade Cineastas e imagens do povo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003. p. 15.
tivesse se transformado na imagem. Depurado do viés romântico que alimentava no povo
2
Em 5 Vezes Favela (Carlos Diegues e outros, 1962), a beleza e a poesia não escondem o a idéia de raiz, de autenticidade, o elemento popular aparece desprovido de qualidades, Ramos, Fernão Pessoa. Três voltas do
popular e a tradição escatológica do ci-
viés romântico que permeia a abordagem dos tipos populares; viés cujo ponto de vista imensamente carente. Como já observou Ramos, em alguns filmes da época3, “o espectador, nema brasileiro. In: Estudos de cinema
Socine II e III. São Paulo: Annablume,
certamente era motivo de conflito entre os diretores cinema-novistas. Nesse sentido, através de uma postura auto-agressiva, aceita e se deleita com a crueldade narrativa, 2004. p. 48.
Opinião Pública (1967), de Arnaldo Jabor, muda o tom e evita o romantismo, ao abordar a embutida na enunciação, na imagem do HORROR (imagens do grito, da morte, da miséria,
3
Como Notícias de uma Guerra Particular
população de classe média de Copacabana, no Rio. da sordidez, do sofrimento, do dilaceramento corporal, do sangramento, da humilhação, (João Salles, 1999), Uma Avenida Chama-
da sujeira). A favela, os cortiços, a prisão, os lixões, os esgotos, o campo devastado são os da Brasil (Octavio Bezerra, 1989), Boca de
Lixo (Eduardo Coutinho, 1992), Os Car-
A magnificação do homem do povo é marcante nos filmes da Caravana Farkas, que cenários privilegiados dessa imagem. É a fratura de classes da sociedade brasileira que voeiros (Nigle Noble, 1999), Mamazônia,
procurou registrar o “verdadeiro homem brasileiro” a partir de meados dos anos 1960. permite a representação desse ‘outro’ que denominamos ‘representação do popular’ ”4. a Última Floresta (Celso Lucas, Brasília
Mascarenhas, 1996), O Rap do Pequeno
Tratava-se, no dizer de Geraldo Sarno, um de seus realizadores, de mostrar a “nobreza Príncipe contra as Almas Sebosas (Paulo
intrínseca do ocupado e a sua competência”. Uma obrigação tão nobre que certamente Por outro lado, persiste ainda como característica dessa fase – talvez pela urgência Caldas, Marcelo Luna, 2000), O Prisionei-
ro da Grade de Ferro (Paulo Sacramento,
não oculta, no tratamento da imagem e na eloqüência da narração, a culpa e a má dessas questões – um olhar exterior que continua a permear a relação com o outro. Um 2003), Ônibus 174 (José Padilha, 2001),
Falcão, Meninos do Tráfico (MV Bill, Celso
consciência dos realizadores pelos débitos sociais que se explicitam nos filmes. Essa olhar exterior e de classe, que denuncia, mas também revela, na maior parte das vezes, Athayde, 2003).
frase demonstra o grau de idealização em relação ao homem das camadas populares: a má consciência em relação ao outro pobre. Mesmo nas formas cinematográficas mais
4
num país de tanta desigualdade, é difícil tratar o outro de forma igualitária sem chamar despojadas – como no diálogo entre o cineasta e seu entrevistado – , é essa má consciência Ramos, Fernão Pessoa. As três voltas
do popular e a tradição escatológica do
para si – cineasta culto e bem alimentado do Sul – a responsabilidade pela mudança. que se mostra quando se revelam os dispositivos de elaboração de um filme. É nessas cinema brasileiro. Op. cit.
34 Sheila Schvarzman Tendências e perspectivas do documentário contemporâneo: um olhar histórico retrospectivo 35

formas cinematográficas, como mostram os últimos planos de À Margem da Imagem ressaltar, contudo, que eles partiam de olhares e questões infinitamente diversas. Salles nos
(Evaldo Mocarzel, 2003), que as contradições dessa postura supostamente igualitária fala da urgência de uma guerra cotidiana que permeia a sociedade brasileira, na cidade do
afloram. A cena final mostra o entrevistado, morador de rua, respondendo ao cineasta o Rio de Janeiro, onde exclusão, criminalidade, repressão, corrupção e impotência destroem
que achou do filme, do qual participou e no qual se contam suas histórias. O que ele diz o tecido social espraiando-se por toda a sociedade, configurando a guerra retratada nas
é revelador do dispositivo de filmagem e do abismo que a diferença social de classe e de imagens de Notícias de uma Guerra Particular (1999).
educação põe entre os interlocutores: ele diz que, fora do âmbito da filmagem, se batesse
à porta do diretor, pedindo um prato de comida, seria tão rejeitado quanto sempre foi Já Santa Marta: Duas Semanas no Morro (1987), de Eduardo Coutinho, cujo foco central
em todos os outros lugares. Essa fala, excepcionalmente significativa, termina com um também é a vida na favela, acaba por tirar do interlocutor relatos totalmente distintos. Se
corte em que o diretor avisa que “valeu!”. Terminou o filme. Terminou, portanto, para o no primeiro filme, o de João Salles, o morro é concreto e hostil, e corresponde ao imaginário
diretor, essa história toda! Jean-Claude Bernardet5, em seu artigo sobre a entrevista, cobra que do exterior se elabora sobre ele – na mídia, na opinião pública que demoniza a favela
de Mocarzel uma posição diante do interlocutor, algo que não acontece. O entrevistado é como lugar da marginalidade –, no de Coutinho ele é lugar de vivências e de imaginação,
sagrado, resta como um objeto de interesse exterior. Tudo o que diz vale para o filme, mas construído a partir de dentro, por seus moradores. Com Salles, somos intimados a agir,
o interesse, tal como se revela nas imagens, se resume ao filme. a nos posicionar perante essa guerra da qual também somos parte. No documentário
de Coutinho, a palavra está com o morador, que nos esclarece sobre o que é, afinal, esse
O documentário contemporâneo, portanto, incorporando a reflexibilidade que busca deixar morro Santa Marta, o lugar que ama e no qual vive.
transparentes as relações entre quem filma e quem é filmado, termina por engendrar outra
interrogação: quem está no centro do filme? Quem é o verdadeiro alvo: o entrevistado ou Entretanto, essa forma de abordagem de Coutinho que parece aparentemente fácil
o dispositivo empregado pelo diretor para ressaltar seu próprio cuidado com o “objeto”? induziu, e tem induzido, o documentário atual a repetir em grande parte esse sistema,
sem o mesmo sucesso, levando a forma da entrevista a uma crise de saturação devido à
Em se tratando das questões da alteridade no documentário contemporâneo, é sua aparente facilidade, ao baixo custo etc.6
obrigatório falar de Eduardo Coutinho. Sua obra, desde Cabra Marcado para Morrer (1984),
restará certamente como uma baliza na história do documentário que procuramos Se a entrevista se torna uma das formas mais usadas e desgastadas dos filmes recentes,
escrever. Ainda que a reflexibilidade não seja sua invenção, é a partir dos seus trabalhos dela decorrem outras posturas. Uma delas é a idéia de dar aos depoentes a câmera, para
que os vários contratos supostos no documentário se explicitam: o pagamento, o que produzam a sua própria imagem.
caráter encenado do rito da entrevista, a presença da equipe. Essa noção de uma obra
conjunta que se explicita diante do espectador – do entrevistado e de Coutinho e sua Assim têm agido cineastas, antropólogos e outros especialistas que vêm colaborando na
equipe – parece ser uma das chaves que explicam a empatia do interlocutor, bem criação de filmes pelos índios, por exemplo, gênero extremamente fértil desde a obra do
como o acolhimento que se dá a ele. É assim que esse pode se constituir como sujeito Major Thomaz Reis. Essa filmografia hoje é extensa, o que se deve, em grande parte, aos
diante da câmera. Nesse cinema basicamente da palavra, da memória e da fabulação, a aportes de ONGs nacionais e internacionais. Neles, mostram-se temas caros aos índios a
personalidade de Coutinho é o ponto essencial. Ainda que exista aí um dispositivo, ele partir de seu próprio olhar.
parece basear-se, antes de tudo, inteiramente na postura generosa de interlocução do
diretor. Assim, o objeto de interesse deixa de ser o filme em si mesmo, ou o dispositivo, Em Prisioneiro da Grade de Ferro (2004), Paulo Sacramento entregou a câmera aos presos
e o entrevistado pode virar sujeito. do Carandiru. Nessas imagens, o sujeito encarcerado se ergue e se idealiza. Redime-se
e se mostra humano. A exclusão se dissolve numa nova identidade e atesta o princípio
Mais do que a prevalência de um dispositivo há em Coutinho a consistência cinematográfica norteador do documentário de depoimento que estabeleceu, ao longo de sua história, a
de uma prática oriunda dos anos 1960, e que tem seu traço principal na forma de tratar crença inabalável de que todo depoente fala sempre a verdade. Parece – parafraseando
as pessoas, no espaço que lhes é dedicado, no desejo de se aproximar delas, de deixar André Bazin – que a “ontologia da imagem documentária no Brasil” é o primado da verdade
que se mostrem diante da câmera. E isso parece corresponder, antes de tudo, a uma daquele que fala.
evolução de Coutinho que está vinculada à idealização do povo, comum nos anos 1960
e nos documentários da época. E, se o assunto é o depoimento como sinônimo de verdade, vamos nos voltar para o
5
Bernardet, Jean-Claude. A entre-
documentário mais constante nesse período, assim como em toda a história do 6
Bernardet, Jean-Claude. A entrevista
(Casa de Cachorro, À Margem da Ima-
vista (Casa de Cachorro, À Margem da Nesse sentido, é interessante observar o diálogo que se estabelece entre os recortes do documentário brasileiro, aquele que estabelece a ponte com os primórdios da produção gem). In: Cineastas e imagens do povo.
Imagem). In: Cineastas e imagens do
povo. Op. cit. p. 281. morro nas lentes de Eduardo Coutinho, por um lado, e de João Salles, por outro. Deve-se e sua tradição pedagógica e exemplar: a biografia. Op. cit. p. 281.
36 Sheila Schvarzman Tendências e perspectivas do documentário contemporâneo: um olhar histórico retrospectivo 37

Grosso modo, se fossem usados os termos da historiografia para definir as produções Não pretendo com isso apontar um caminho ou perspectiva para o documentário
documentais, veríamos que, na primeira fase do documentário nacional, filmaram-se os nacional. Entretanto, procurei traçar aquilo que interpreto como suas principais tendências
vencedores da história e os personagens caros à chamada “alta cultura”. A partir dos anos atuais, religando-as à nossa tradição e enfocando prioritariamente a questão do sujeito no
1960, foram filmados os vencidos e a cultura popular. Navega-se atualmente por uma documentário. Assistimos hoje a uma multiplicidade de tendências em desenvolvimento,
noção de cultura mais ampla, e os heróis de hoje são os perseguidos e os clandestinos de mas em nenhuma delas – salvo no documentário em primeira pessoa, de matriz artística
ontem. Apesar da mudança de foco, a reverência é a mesma, com outra roupagem, salvo – o documentarista é capaz de falar de sua realidade mais próxima, desprovido de má
algumas exceções, como em Barra 68, de Vladimir Carvalho (2000), sobre a ocupação da consciência, como já se apontou largamente e como mostramos com alguns exemplos.
Universidade de Brasília. Ali, a presença instigante e anti-reverente de Darcy Ribeiro deixa É tempo de falar não apenas de sua individualidade – em primeira pessoa –, mas das
no filme não um memorialismo celebratório comum a tantos outros desse gênero, mas questões que dizem respeito diretamente aos autores, como tem feito o documentário
antes de tudo a lembrança viva da fala, que pode ser partilhada. internacional prioritariamente.

Bem ao contrário disso, e ainda que em mostras de reflexibilidade ostensivas – a cadeira Como escrevi no início deste artigo, a postura do documentarista brasileiro é muito
do diretor montada no meio da praça, a interlocução com o “povo” –, Vladimir Herzog é pautada por suas questões ideológicas, culturais e de classe. Já é tempo de colocar-se
celebrado, lembrado, mas é antes de tudo um herói petrificado em Vlado 30 Anos Depois, como objeto.
de João Batista de Andrade (2005). Ainda que saibamos toda a sua história, suas lutas,
até mesmo sua intimidade, ele segue sendo alguém de quem se fala com reverência:
um mártir cujo sacrifício permitiu mudanças no país, mas cuja identidade se perde nos
reiterados elogios dos depoentes, na câmera fechada em primeiríssimo plano – como
se, ao fim, a distorção nas imagens do rabino Sobel, do jornalista Fernando Morais ou de
Rodolfo Konder, de Clarice Herzog e de seu filho fossem a caução de verdade: lágrimas
nos olhos nos momentos de emoção...

Por outro lado, e como já chamou atenção Jean-Claude Bernardet, os diretores pouco
falaram de suas condições de vida. Pouco falaram daquilo que lhes é próprio. Como se a
situação das classes médias e camadas pensantes e artísticas, de que os cineastas fazem
parte, não fosse objeto de interesse do documentário. Claro, há filmes sobre artistas, ou
sobre o próprio meio cinematográfico, mas talvez seja somente no documentário em
primeira pessoa que possamos encontrar esses diretores, com suas questões que se
mostram não apenas como indagações individuais, mas também humanas, históricas e
universais. É o caso de 33, de Kiko Goiffman, que trata da busca de sua mãe biológica, e
de Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut. Neste último, através das malhas da burocracia
e das mudanças da história, vemos a neta de uma senhora judia húngara, fugida de seu
país, reconquistar a cidadania européia, representada pelo direito a Passaporte Húngaro.
Há muita história incrustada nesses relatos: o nazismo, o anti-semitismo, a Segunda
Guerra, a fuga para cá, o Brasil como terra prometida – agora não o é mais, porque é
mais importante poder estar na Europa – e, por meio dessa história toda, sem falar de
todos os meandros da burocracia, a neta faz com que a avó fugida reate com o passado
de que fora banida. Um belo resgate.

Faltam-nos histórias e falta o olhar do documentarista sobre aquilo que lhe é próprio,
próximo. A sua vida, as suas carências – ou será que, por pudor, o documentarista de classe
média não poderá falar disso? Como se, de alguma forma, não fosse isso mesmo que, de
um lado, pode nos esclarecer sobre a falta do outro.
38 39

O
que é o documentário? Essa questão vem sendo levantada ao longo da história das
imagens técnicas há pelo menos 80 anos, a princípio no interior do cinema e depois,
com o advento da televisão, do vídeo e da internet, não parou mais de reverberar a
cada mudança de paradigma técnico, com grandes ressonâncias no que hoje se denomina
largamente cultura audiovisual.

Indagação ontológica a respeito do ser ou da natureza do documentário como um


domínio ou território particular da imagem, originalmente em relação ao campo do cinema
para em seguida vetorizar-se de modo transmidiático, sua recorrência em momentos
distintos revestiu-se de propósitos também diversos. Nos anos 1920, quando o termo
documentário foi estabelecido, a resposta sobre o que ele era decorria de uma necessidade
de diferenciação em relação à reportagem cinematográfica (“atualidades”) e ao cinema de
ficção, reclamando para si as prerrogativas da realidade. Nos anos 1960, da segunda vaga
ou documentário moderno, com a transformação de sua base técnica (miniaturização dos
Documentário expandido – Reinvenções do documentário equipamentos, maior sensibilidade da película fotoquímica, sincronização da imagem e
na contemporaneidade do som), aliada às novas modalidades narrativas (irrupção da narrativa subjetiva indireta
livre), introduziu-se um primeiro grande estranhamento a respeito de sua natureza
mimética em relação a seu material de base, a realidade, quando então surgiram diversas
denominações substitutivas (cinema-verdade, cinema direto, cinema do vivido, cinema
Francisco Elinaldo Teixeira espontâneo, cinema do comportamento etc.). Das três últimas décadas para cá, desde
quando as tecnologias e estéticas videográficas irromperam no horizonte nos anos 1970,
É mestre e doutor pela FFLCH-USP, pós-doutor em comunicação e semiótica pela PUC/SP com a alternativa do suporte eletrônico analógico e digital em relação à longa duração
e professor participante do Programa de Pós em Multimeios da Unicamp, com pesquisas em do suporte fotoquímico da fotografia e do cinema, produziu-se uma espécie de voragem
cinema experimental e cinema documentário. Autor dos livros: O Terceiro Olho – Ensaios de Cinema
intra, inter e multimeios que parecia tender para uma total pulverização do território do
e Vídeo (Mário Peixoto, Glauber Rocha e Júlio Bressane), São Paulo, Perspectiva, 2003; e organizador
de Documentário no Brasil – Tradição e Transformação, São Paulo, Summus Editorial, 2004. documentário. Mas não foi isso que aconteceu, embora a questão sobre sua natureza
tenha se tornado muito mais escorregadia, de difícil formulação e mais ainda de resposta,
e por isso mesmo muito mais crucial na atualidade.
40 Francisco Elinaldo Teixeira Documentário expandido – Reinvenções do documentário na contemporaneidade 41

Uma nova denominação surgiu nesse meio-tempo, a de cinema de não-ficção. alteridade radical para o documentário em termos de um “estar ali”, operando com
Ambivalente, se por um lado ela nos lança de volta aos debates dos anos 1920, que um registro do “tempo presente” numa dada situação da realidade, do concreto, do
opunham o cinema de realidade ou documentário nascente ao cinema de ficção historicamente dado. Ou seja, estamos diante de uma “metafísica da presença” que desde
estabelecido, oposição hoje (e desde sempre) no mínimo problemática diante das a invenção da fotografia não parou mais de reivindicar o privilégio de um “eu estive lá,
trocas intensas entre ambos, por outro lado ela também inscreve dificuldades existentes eis aqui a prova”, desdobrando-se no documentário no familiar reclamo “eis a vida como
no âmbito das definições, deixando-as em aberto pela negativa, pelo vácuo de uma ela é”. O documentário adquiria, assim, em relação aos outros gêneros ou domínios do
não-definição que abre, o que não deixa de ser um modo de expor algo da consistência cinema, um charme peculiar análogo àquele da palavra oral concernente à escritura:
metamórfica, heteróclita, camaleônica, heterodoxa de que se reveste o documentário diferentemente da mediação que a palavra escrita opera em relação ao pensamento, a
contemporâneo. Consistência essa que se põe em foco também em denominações como palavra falada seria o suporte de um pensamento vivo, direto, sem mediação, portanto,
as de antidocumentário, contradocumentário, paradocumentário ou pós-documentário portador das prerrogativas de autenticidade, verdade e objetividade do ser em sua
que, em vez de remeterem ao paradigma ficcional, detêm-se ludicamente no próprio imediata transparência.
substantivo ao lhe acrescentar prefixos que certamente inscrevem e ampliam muito de
sua feição polifônica. Essa matriz da presença na/da realidade como aquilo que fundava o modo de ser do
documentário, que por décadas o evocou e para muitos ainda hoje o evoca, foi um
De todas essas terminologias que vieram desdobrar a questão ontológica de base – o que dos seus primeiros aspectos a ser desconstruído, já com o advento do documentário
é o documentário? –, a mais recente é essa que sugere um patamar pós-documental para o moderno. Não no âmbito do cinema direto, cuja atitude tendencialmente contemplativa
momento em que nos situamos. O que seria a nossa época como uma era pós-documentário? dava a ver uma realidade que parecia escorrer sem cessar num eterno presente, mas
Significaria que todo o burburinho em torno do documentário nas últimas três décadas, no do cinema-verdade, que a pressionava de tal modo que a fazia se dobrar numa
toda essa ruidosa produção de textos, de filmes, de vídeos, de peças audiovisuais as mais multiplicidade de aspectos que acabavam por transformá-la entre o que ela era antes e
diversas que a ele remetem como um referente espesso e multifacetado, teria a ressonância o que será depois do filme completo.
de um canto de coruja de Minerva ao cair da tarde? Pura tagarelice em torno de algo que
já passou, teve sua época áurea e agora se recolhe e se esfumaça sob a “luz polar” de nossa Com essa mística da realidade em presença se propondo a imprimir suas marcas no
era informacional? Questão difícil, já que os fatos e artefatos culturais nos habituaram a um documentário, os códigos ou as regras que o estruturavam se cercaram de todo um
desenho com esse tipo de trajetória. Por outro lado, já tivemos toda uma seqüência de pós discurso de sobriedade que por décadas funcionou como uma espécie de “abre-te,
e pós-pós também nas últimas décadas, tendo atingido o risível e irônico limiar daquilo que sésamo!”. O documentário, por essa via, requeria-se como uma peça minimalista marcada
o poeta concreto chamou de “pós-tudo” ou “postudo”, quando parecíamos querer deixar de pelo despojamento de materiais, pela austeridade construtiva, pela depuração de formas,
ser contemporâneos de nós mesmos e mergulhar na eternidade. pela ausência de ornamentos, ou seja, todo um requisitório para contornar ou deixar de
lado o que fosse da ordem da expressividade ou da subjetividade, da reflexividade ou
A noção de pós-documentário pode ter outra envergadura. Em vez de um fim ou da auto-reflexividade, tudo que pudesse abalar ou comprometer seus investimentos
esgotamento, ela aponta para novos começos, para formas expandidas do documentário nos poderes de uma realidade que se queria comunicativa, paradoxalmente, quase sem
observáveis em larga escala nos diversos contextos audiovisuais da atualidade. nenhuma mediação. Não é preciso dizer quanto essa ordem comunicacional cedeu
Transmutemos-na, portanto, na noção de “documentário expandido”. Trata-se de uma quase ponto por ponto os seus termos, num novo contexto de entropia da significação
série de operações postas em curso no domínio do documentário que visam à ampliação que veio transformar o aproveitamento do ruído na ponta-de-lança por excelência da
de suas fronteiras e que desmontam o senso comum, as idéias herdadas que dele se criação de novos sentidos para o documentário.
tinham até recentemente. Essa expansão de limites se dá, basicamente, em relação aos
três grandes domínios da ficção, do experimental e do próprio documentário em suas Um segundo deslocamento deu-se em relação à ficção e aos seus códigos, objetos de
feições clássica e moderna. Ou seja, ao mesmo tempo em que transforma sua própria recusa desde as fundações do documentário. Mas se num primeiro momento tal recusa,
tradição, a expansão do documentário desenha novas relações com os domínios ficcional de princípios mais que de fatos, pois uma mínima ficção continuou irresistível, pôde se
e experimental. Circunstanciemos esses três deslocamentos. apoiar na reivindicação da realidade ou da naturalidade contra o sistema artificial de
produção em estúdio e toda sua parafernália técnica, foi igualmente a partir dos anos
Se tivéssemos de contornar e admitir que houve uma “essência” do documentário, 1960 que essas petições de princípios se viram totalmente abaladas. Primeiro, em função
sobretudo no período clássico, qual seria ela? Imediatamente nos ocorreria o grande do lugar estratégico que a nova base técnica passou a ocupar, quase como um fetiche,
rumor em torno do sentido de realidade que lá se produziu e que reivindicou uma quando então fazer documentários tornou-se sinônimo de ter equipamentos leves, som
42 Francisco Elinaldo Teixeira Documentário expandido – Reinvenções do documentário na contemporaneidade 43

e imagem sincronizados, roteiro mínimo ou construído em campo com os personagens Como esbocei anteriormente, o problema do cinema de vanguarda para o
reais, todos esses elementos que foram sendo apropriados pelo cinema ficcional mais documentário era sua feição antiilusionista que, em vez de mergulhar no canto de cisne
criativo do pós-guerra, do neo-realismo à nouvelle vague e cinemas novos. Segundo, com dos aprimoramentos técnicos como suplementos de mais realidade na imagem, tirava
as mudanças operadas na estrutura narrativa, na construção dos relatos, quando o real e proveito justamente da precariedade do dispositivo, de seu artificialismo, fazendo disso
o ficcional se contaminaram numa tal escala de modo que impugnou o discurso anterior uma base de lançamento de uma nova era de criação artística. Essa veia experimental
de demarcação de fronteiras. Essa instabilidade já tivera início com os primeiros filmes do documentário, com grande relevo hoje para as concepções vertovianas de um “cine-
neo-realistas, que haviam lançado para fora dos estúdios suas equipes e as posicionado olho” que contorna e ultrapassa a mera percepção e o alcance do sistema perceptivo e
diante de cenários em ruínas, portanto, frente aos dados de uma realidade que de tão das máquinas sensórias que lhe servem de suporte, tornou-se crucial e estratégica para
extraordinária parecia exceder toda faculdade de imaginação que alimentara o cinema sua renovação quando do surgimento de novas máquinas além da do cinema e seus
ficcional. Curiosamente, uma das sugestões de nomeação do documentário nascente nos desdobramentos internos. Com a irrupção da imagem-vídeo na cultura audiovisual, a
anos 1920 havia sido a de cinema neo-realista! sensação que se tem é a de um completo desbloqueio da construção imagética que
nos lança num novo tempo de investigação e experimentação, que não deixa de
De modo que as trocas entre os domínios da ficção e do documentário aí processadas reverberar aquele das primeiras décadas do século XX com a efervescência de suas
varreram de vez a noção de realismo no cinema ou da imagem como um mero naturalismo. vanguardas artísticas, dispostas a lançar por terra tudo que fosse da ordem de uma “arte
Doravante, qualquer realismo documental passava por um crivo construtivista mínimo retiniana” que por séculos havia erigido a postura vertical humana como condicionante
ou total, ou seja, pela idéia de que o realismo era uma construção estética como outra de nosso universo óptico e a imagem especular, primeiro pictórica, depois fotográfica e
qualquer e não a operação direta de uma realidade que se expunha em sua integridade cinematográfica, como “janela aberta para o mundo”.
ou autenticidade. Esse desbloqueio veio repor um dado aparentemente banal, mas de
grandes conseqüências: o de que, por mais que caminhasse tecnicamente na direção Esses três vetores de deslocamento do documentário – em relação a si, à ficção e ao
de uma mimese cada vez mais aperfeiçoada em relação à realidade (com a imagem experimental – constituem uma expansão de seus limites a princípio rígidos, mas que já há
em movimento, o som, a cor, a profundidade de campo etc.), o cinema continuava certo tempo se abriram à contaminação e à hibridização (conforme expressão hipertrofiada
inscrito no paradigma perspectivista clássico, ou seja, continuava sendo uma simulação posta em circulação pelo espírito da época) de múltiplas maneiras, configurando-se ele, na
do olho humano diante do mundo, a simulação de um ponto de vista lançado sobre atualidade, em geral segundo modalidades eminentemente ensaísticas.
as coisas, uma máquina de visão com todos os seus defeitos ou anomalias (imagem
plana, estática, bidimensional etc.), e não o mundo, as coisas, a realidade em si mesmos. A noção de ensaio é de enorme pertinência para situar essa turbulência metamórfica,
Essa desnaturalização, desfamiliarização ou estranhamento do dispositivo imagético transformacional, posta em curso nos últimos tempos. Não se trata de um formato
encontra-se no cerne das renovações que a imagem videográfica, depois do cinema, vem específico de documentário, mas de tendências de estruturação dele, mesmo os mais
imprimindo no documentário desde os anos 1970. sisudos e reticentes quanto à investigação formal e estilística, que operam com elementos
como a diversidade de materiais, a fragmentação, a falta de univocidade e totalização, a
E aqui chegamos ao nosso terceiro deslocamento, o das relações do documentário com subjetividade e a expressividade, as elipses, os deslocamentos e condensações, sem falar
o domínio do experimental. Talvez aqui se encontre um locus por excelência da expansão dos inúmeros traços de auto-reflexividade que têm marcado a produção em larga escala.
e renovação das formas documentárias na contemporaneidade. A vertente realista do Mas, sobretudo, de reflexividade no sentido de um trabalho de pensamento que se debruça
cinema documental do período entre a Primeira e a Segunda Guerras (documentário sobre suas matérias para moldá-las e manipulá-las conforme propósitos que não estão
griersoniano e quejandos) defrontou-se desde o início com uma vertente “formativista”, dados nelas, que não são evidentes, que nascem da relação mesma do documentarista
de vanguarda ou experimental, atenta às preocupações formais, estilísticas, expressivas, com os entornos que sua vista ou imaginação alcançam, com seus objetos, agentes ou
poéticas do documentário, que nos legou peças como Rien que les Heures (Alberto personagens implicados, suas derivas, oscilações, dúvidas em relação ao processo de
Cavalcanti, 1926), Berlim, Sinfonia de uma Grande Cidade (Walter Ruttman, 1927), O criação, que raramente se esgotam num resultado pronto e acabado.
Homem da Câmera (Dziga Vertov, 1929), Chuva (Joris Ivens, 1929), A Propósito de Nice
(Jean Vigo, 1929) etc. Essa vertente, embora retomada sob vários aspectos desde os Enfim, na distância que percorreu em relação aos primeiros tempos, o documentário se
anos 1950 e 1960, empalideceu diante da maior exposição da tendência realista reinventa na contemporaneidade como uma forma de “escritura” que tem no ensaio suas
hegemônica, do documentário oficial ou espetacular, permanecendo em circulação orientações e estratégias mais criativas.
por uma via subterrânea que, no entanto, não parou de alimentá-lo e realimentá-lo de
diversas maneiras e em diversos momentos.
44 45

O
s filmes de Eduardo Coutinho, Cao Guimarães, João Salles, Sandra Kogut e Kiko
Goifman são distintos entre si e expressam diferentes concepções de cinema,
maneiras singulares de filmar, específicas relações com o mundo e os personagens.
No entanto, apesar das divergências, é possível identificar nos processos de trabalho desses
cineastas ao menos uma prática em comum: eles fazem filmes que prescindem da feitura
de um roteiro em favor de certas estratégias de filmagem que não têm mais por função
refletir uma realidade preexistente, nem obedecer a um argumento construído antes
da filmagem. Para esses diretores, o mundo não está pronto para ser filmado, mas em
constante transformação; e a filmagem não apenas intensifica essa mudança, mas pode
até mesmo provocar acontecimentos para serem especialmente capturados pela câmera.
Para isso, eles constroem procedimentos de filmagem para filmar o mundo, o outro, a si
próprios, assinalando ao espectador, nesse mesmo movimento, as circunstâncias em que
os filmes foram construídos. São cineastas que filmam com base em “dispositivos” – o que
não garante a realização dos documentários, nem a qualidade deles. Mas é um caminho.
O filme-dispositivo no documentário brasileiro contemporâneo
O que é um dispositivo?

Consuelo Lins Precisemos um pouco mais essa noção cada vez mais recorrente no domínio do
documentário e que se tornou central na crítica das artes audiovisuais contemporâneas.
Documentarista e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutorou-se pela Universidade
de Paris 3 (Sorbonne Nouvelle) com tese sobre documentário centrada na obra do cineasta americano Deixemos claro, de imediato, que não nos referimos aqui à concepção do cinema como
Robert Kramer. Realizou, em 1999, Chapéu Mangueira e Babilônia: Histórias do Morro e, em 2001, Jullius dispositivo segundo a formulação de parte da crítica francesa dos anos 1970. Estruturalismo
Bar. Atuou como pesquisadora e diretora de uma das equipes de filmagem dos documentários e psicanálise são convocados por essa crítica totalizante que inclui tanto o dispositivo
Babilônia 2000 e Edifício Master, de Eduardo Coutinho. Dirigiu Lectures em 2005, curta-metragem central de captação de imagens quanto o dispositivo de exibição. Trata-se, por um lado, de
realizado em Paris com um telefone portátil, selecionado para vários festivais e premiado como melhor
associar o cinema a um projeto ideológico: a câmera não é neutra e reproduz os códigos
curta-metragem brasileiro no Festival de Curtas de Belo Horizonte (2006). Fez pós-doutorado na
Universidade de Paris 3 (2005) sobre a produção documental mais marcadamente subjetiva. Escreve que definem a objetividade visual desde o Renascimento, estando assim impregnada da
regularmente artigos sobre a criação audiovisual contemporânea e publicou em 2004 O Documentário cultura dominante. Por outro, trata-se de explicitar as condições psíquicas de recepção
de Eduardo Coutinho: Televisão, Cinema e Vídeo (Jorge Zahar). inerentes ao dispositivo da sala escura, que imobiliza o espectador entre a imagem e o
46 Consuelo Lins O filme-dispositivo no documentário brasileiro contemporâneo 47

projetor, favorecendo a identificação dele com os heróis na tela e com o que produz o
espetáculo, a própria câmera1. Em Eduardo Coutinho (Santo Forte, Babilônia 2000, Edifício Master, O Fim e o Princípio), o
dispositivo é, antes de qualquer coisa, relacional, uma máquina que provoca e permite filmar
O espectador, produto desse dispositivo, é um ser necessariamente alienado: naturaliza encontros. Relações que acontecem dentro de linhas espaciais, temporais, tecnológicas,
o que é artifício, negando a representação como representação; vive a ilusão de que acionadas por ele cada vez que se aproxima de um universo social. A dimensão espacial
é o centro do mundo e que dele emana o sentido das imagens, o que em tempos de desse dispositivo – as filmagens em locações únicas – é a mais importante. Para Coutinho,
desconstrução e de crítica às noções de sujeito e autoria é um ultraje. E o pior, para essa pouco importa um tema ou uma idéia se não estiverem atravessados por um dispositivo,
crítica, é que essa experiência alienante se repete a cada filme, por mais diferentes que que não é a “forma” de um filme, tampouco sua estética, mas impõe determinadas linhas
sejam as histórias narradas, pois é de forma estrutural que o dispositivo cinematográfico à captação do material. Em João Salles (Futebol, Santa Cruz, Entreatos), há uma opção por
define as condições e a natureza da experiência do espectador. filmagens longas, mais observadoras do que interativas, inspiradas nas técnicas do cinema
direto. É um dispositivo em que a dimensão temporal é crucial e produz efeitos no filme,
Tampouco nos deteremos, nos limites deste artigo, em instalações que utilizam vídeo, diferente das intervenções curtas de Coutinho, em que o tempo de filmagem não conta
computador ou cinema em galerias ou museus, embora várias características desses especialmente para a narrativa4.
dispositivos se assemelhem ao uso que fazemos deles aqui. Nesses dispositivos de criação
e/ou exibição das obras, o espectador experimenta sensações físicas e mentais por O tempo também é a principal linha do dispositivo de Passaporte Húngaro, de Sandra
meio da disposição de elementos (telas múltiplas, câmeras etc.) em uma determinada Kogut, mas não se trata de um filme de observação, pois a ação que integra seu dispositivo
organização espacial. Imagens podem ser produzidas antes e/ou durante a exploração – tirar um passaporte – obriga a diretora a muita conversa e negociação. É um filme em
que o espectador faz da obra; em alguns casos, são imagens em circuito fechado, nas que o autor é ator, em que a escrita fílmica está ligada à noção de agir: o diretor age para
quais o que está em questão é o deslocamento perceptivo do espectador. criar suas histórias. O mesmo acontece com 33, de Kiko Goifman5, que também é resultado
de um dispositivo fortemente temporal, mas com limitações no tempo de filmagem que
Contudo, a produção dessas imagens difere da das imagens criadas pelos dispositivos inexistem nos documentários anteriores. Seus 33 anos de idade lhe deram o número de
de filmagem de certos documentários, que são necessariamente anteriores ao momento dias que ele tinha para encontrar sua mãe biológica.
de exibição dos filmes. De toda maneira, “dispositivo” é, nesses dois contextos, um
procedimento produtor, ativo, criador – de realidades, imagens, mundos, sensações, Essa regra ortodoxa imprime ao filme uma tensão: ou ele consegue material suficiente
percepções que não preexistiam a ele. Como enfatiza Anne-Marie Duguet, “todo dispositivo nesses 33 dias de filmagem e investigação, ou não há filme.
visa produzir efeitos específicos”2. O que acontece mesmo na teoria do cinema como
dispositivo: a dimensão produtora está presente, só que o dispositivo cinematográfico “33 dias porque tenho 33 anos”: por mais arbitrário que o dispositivo de Kiko Goifman 4
Evidentemente não me refiro a Cabra
produz, segundo seus críticos dos anos 1970, apenas um tipo de experiência. No caso possa parecer, ele apenas revela, sem meias palavras, a arbitrariedade presente em todo Marcado para Morrer (1964-1984), mas
dos dispositivos artísticos, trata-se de sistemas diferenciados que estruturam experiências aos filmes posteriores do diretor.
e qualquer filme-dispositivo, com mais ou menos força, com mais ou menos sutileza.
sensíveis, a cada vez de modo específico. Não há qualquer fundamento “lógico” para esse número de dias. Da mesma maneira, 5
Jean-Claude Bernardet identifica no
1
Retomo, aqui, de forma muitíssimo bre- movimento dos filmes de Kogut e
ve, alguns argumentos da oportuna sínte-
não é nada “natural” que uma brasileira tire Passaporte Húngaro em Paris, já que no Goifman – em que “a documentação ten-
se e atualização do debate feita por Ismail É também de modo específico que os dispositivos documentais funcionam. Não é, em Brasil seria muito mais fácil, e provavelmente não daria filme. É também da ordem de a se tornar o registro da busca” – um
Xavier em “As aventuras do dispositivo dos mais estimulantes do documentário
(1978-2004)”. Aconselho vivamente a lei-
absoluto, algo que se dá em todo filme de forma semelhante, estrutural, no cinema do artifício produzir encontros para ser filmados ou seguir personagens durante dois recente. “Novos rumos do documentário
tura desse capítulo acrescentado à nova como um todo, mas criado a cada obra, imanente, contingente às circunstâncias de anos, e é bom que seja assim. Por que não seis meses? Por que esses personagens e brasileiro?”, in Catálogo do 7º Festival do
edição do livro O Discurso Cinematográfico: Filme Documentário e Etnográfico. Belo
A Opacidade e a Transparência. São Paulo: filmagem, e submetido às pressões do real. Trata-se de um uso da noção de dispositivo não outros? Ora, porque documentários não brotam do coração do real, espontâneos, Horizonte, nov./dez. 2003.
Paz e Terra, 2005. p. 175. que tem no crítico e cineasta Jean-Louis Comolli seu defensor mais inspirado. Para ele, naturais, recheados de pessoas e situações autênticas, prontas para ser capturadas por
6
Retomamos essas noções de Philippe
2
Dispositifs, in Déjouer l’image. Nîmes: diante da “crescente roteirização das relações sociais e intersubjetivas”, dos “roteiros seres sensíveis, cheios de idéias na cabeça e câmeras na mão; são, sim, gerados pelo Dubois, que as utiliza mais especifica-
Critiques d’Art, Editions Jacqueline que se instalam em todo lugar para agir (e pensar) em nosso lugar”, parte da produção mais “puro” artifício, na acepção literal da palavra: “processo ou meio através do qual se mente para falar de filmes com dimen-
Chambon, 2002. p. 21. sões autobiográficas e relacionados à
documental tem a possibilidade de se ocupar do que resta, do que sobra, do que não obtém um artefato ou um objeto artístico” (Dicionário Aurélio). Muitos deles, e talvez memória, mas que nos parecem férteis
3
Sob o risco do real, in Catálogo do interessa às versões fechadas do mundo que a mídia nos oferece. Ao contrário dos os melhores, são frutos de uma “maquinação”, de uma lógica, de um pensamento, que para pensar os filmes-dispositivos de
5º Festival do Filme Documentário e uma forma mais ampla. “A foto-autobio-
Etnográfico. Belo Horizonte, nov. 2001. roteiros que temem o que neles provoca fissuras e afastam o que é acidental e aleatório, institui condições, regras, limites para que o filme aconteça; e de uma “maquinaria”6 que grafia” , in Revista Imagens. Campinas: Ed.
p. 99, 111. Ver também Voir et Pouvoir. os dispositivos documentais extraem da precariedade, da incerteza e do risco de não se produz concretamente a obra. Unicamp. p. 64-76. Dubois amplia o uso
L’innocence Perdue: Cinema, Telévision, dessas noções em Cinema, Vídeo, Godard.
Fiction, Documentaire. Verdier, 2004. realizar sua vitalidade e condição de invenção3. São Paulo: Cosac & Naif, 2004.
48 Consuelo Lins O filme-dispositivo no documentário brasileiro contemporâneo 49

Dispositivo e jogo filmar; retira deles o direito de recusar uma cidade caso não gostem dela, porque nesse
caso o poema deixaria de funcionar. Reduz o excesso de intencionalidade. É um jogo que
Analisemos mais detidamente dois filmes do mineiro Cao Guimarães: Rua de Mão tem suas regras, às quais eles devem se submeter. Não se trata em absoluto de adaptar
Dupla, concebido inicialmente como videoinstalação para a 25ª Bienal Internacional palavras às coisas, nomes às cidades, mas de construir uma forma de se confrontar com
de São Paulo, em 2002, e Acidente (2005), realizado em parceria com Pablo Lobato. É o caos do mundo sem submergir, de imprimir uma direção inicial, abrindo ao mesmo
como se nesses dois filmes a idéia de dispositivo se lapidasse, ganhasse em limpidez tempo o filme aos acasos, imprevistos e imponderáveis do real.
e incluísse uma dimensão lúdica, de jogo, de brincadeira com o real. Em Rua de Mão
Dupla, Cao Guimarães convidou seis pessoas pertencentes às camadas médias da Mas os dispositivos, como já destacamos, não garantem filmes e podem ser abalados
população de Belo Horizonte para participar de uma experiência inusitada: divididas no confronto com o real. “O movimento do mundo não se interrompe para permitir ao
em duplas, elas trocariam de casa por 24 horas e, munidas de uma pequena câmera documentarista polir seu sistema de escritura.”10 A segunda regra do jogo era buscar a
digital, filmariam o que bem lhes aprouvesse na casa alheia, tentando “elaborar uma origem dos nomes das cidades escolhidas, o que se verificou improdutivo já no início
‘imagem mental’ do outro(a) através da convivência com seus objetos pessoais e seu da filmagem. Se, para chegar a essas cidades anônimas, distantes da imagem de cartão-
universo domiciliar”7. Ao final, dariam um depoimento para a câmera, contando como postal das cidades históricas mineiras, o poema foi fundamental – e respeitado até o
imaginaram esse ”outro”. Portanto, o diretor não filma nem dirige, mas concebe um fim –, a conexão para essa segunda etapa foi abandonada sem pena. Talvez porque
jogo, distribui cartas, determina regras, escolhe jogadores, fornece câmeras, transporte, fosse um caminho conhecido, cujo resultado colocaria o filme próximo do pitoresco,
comida. Provê o necessário e sai de campo. Trata-se de uma maquinação que implica a do que é curioso, do que pode ser turístico no interior mineiro – de tudo aquilo do qual
ausência de controle do diretor sobre o material filmado, propiciando uma espécie de os diretores queriam distância. O poema implicava uma abertura na relação com as
“retirada estética” não propriamente do filme – afinal, o dispositivo é dele, assim como a cidades que essa temática da origem destruía. “Excluiu-se, portanto, o assunto, e o filme
montagem do filme –, mas das imagens e dos sons que seu filme vai conter, atribuindo ficou sobre assunto nenhum”, diz Cao Guimarães.
a seis outros indivíduos a tarefa de filmar e se autodirigir8.
Os documentários que resultaram desses dispositivos são profundamente distintos
O dispositivo que “dispara” a filmagem de Acidente é, de certa maneira, o mais conceitual entre si: Acidente é um filme que reinventa a imagem-tempo em esplêndidos planos-
de todos os que vimos até aqui. Não há inicialmente nenhum interesse particular seqüência, a maioria deles fixa ou com sutis movimentos de câmera, que capturam a
dos cineastas por um aspecto concreto da realidade. É como se houvesse, antes de duração, o tempo que passa, em várias camadas, nas pequenas cidades mineiras. Onde
tudo, pairando no ar, uma questão imensa, questão de vida, em que os cineastas se Acidente mais parece se aproximar da fotografia – em razão dos belíssimos recortes do
perguntassem como se relacionar com o mundo diante de tantas possibilidades, de mundo realizados pela câmera de vídeo ou em película super-8 – é justamente onde
tantos filmes já feitos, de tantas imagens prontas, sem sucumbir nem ao caos nem aos o filme mais se distancia da imagem estática, em razão da duração. Na cidade de Entre
clichês. Ou, como diria J. L. Comolli, “como fazer para que haja filme”9? Cao Guimarães Folhas, por exemplo, vemos o cair da tarde do balcão de um bar onde praticamente
e Pablo Lobato decidem se apegar às palavras: criam um dispositivo-poema e de nada acontece, a não ser os movimentos infra-ordinários de seu proprietário ou a rara
posse dele começam a filmar. Mas não são palavras quaisquer retiradas do dicionário circulação de carros e pessoas do lado de fora. Na cidade de Palma, o filme se atém a
– poderiam ser, mas gerariam outro filme. uma ladeira em que os tempos mortos se alternam com microacontecimentos.

São nomes de cidades mineiras cuja lista eles pesquisaram no site do IBGE. Selecionaram São blocos de espaço-tempo que nos fazem ver e sentir “um pouco de tempo em estado
100 e as imprimiram. Espalharam os papéis sobre a mesa e começaram a brincar com as puro”, à maneira de Ozu11. O filme inteiro é capturado por uma espécie de inação, que
palavras. Sonoridades, sentidos, materialidades, ressonâncias: foi isso que contou para os contamina personagens e cineastas, favorecendo uma atenção inédita e concentrada
cineastas, e não um conhecimento prévio da realidade das cidades, das quais, aliás, eles nas pequenas coisas do mundo, nos seres, nos movimentos, nos gestos, nos ruídos,
7
Cao Guimarães, no texto da contracapa ignoravam tudo. Chegaram a um poema com 20 nomes que evoca uma fábula de amor nas conversas. O espectador também é envolvido nesse circuito em que as conexões
do vídeo Rua de Mão Dupla.
e dor: “Heliodora, Virgem da Lapa, Espera Feliz, Jacinto Olhos d’Água, Entre Folhas, Ferros, entre palavras e coisas, nomes e cidades, acontecimentos e personagens são tênues,
8
Esse filme é analisado por mim mais Palma, Caldas, Vazante, Passos, Pai Pedro Abre Campo, Fervedouro Descoberto, Tiros, frágeis e, finalmente, de pouca importância. Trata-se de um filme em que a dimensão
longamente no artigo “Rua de Mão Tombos, Planura, Águas Vermelhas, Dores de Campos”. propositiva do dispositivo se mistura a uma dimensão mais plástica, contemplativa e 10
Dupla: documentário e arte contempo- Idem, p. 106.
rânea”, in Kátia Maciel. Transcinemas. Rio formal, mesclando em um só tempo dois movimentos que Cao Guimarães identifica em
11
de Janeiro: Contracapa, 2006. Expressão de Gilles Deleuze, referindo-
O dispositivo-poema torna-se, portanto, uma máquina de produzir imagem e adquire, sua trajetória, em trabalhos diferentes. se ao cineasta japonês, em A Imagem-
9
Idem, p. 99. como todos os dispositivos, certo poder sobre os cineastas. Decide por eles onde vão Tempo. São Paulo: Brasiliense, 2006.
50 Consuelo Lins O filme-dispositivo no documentário brasileiro contemporâneo 51

Quanto a Rua de Mão Dupla, a grande invenção do filme, responsável pela solidez da
proposta, é a solicitação do diretor de que os “outros” em questão, os participantes
do filme, se interessem por outros e não por eles mesmos, atitude que redireciona o
desejo da “besta da confissão” (Michel Foucault) em que nos transformamos a partir
do momento em que uma câmera é postada diante de nós. Cao Guimarães não quer
que eles se voltem para si, que falem de sua vida, que se revelem para a câmera;
pede, antes, que falem de pessoas desconhecidas e filmem casas alheias. A mudança
de foco do “eu” para o “outro” faz com que os personagens fiquem menos atentos a
autocontroles, censuras e filtros que normalmente acionamos para oferecer a imagem
que desejamos de nós mesmos. A maneira como se relacionam com o espaço alheio, o
que escolhem filmar, o que dizem, como falam, as palavras, as sintaxes e as entonações
que colocam em cena, tudo isso revela muito mais deles mesmos do que poderíamos
esperar. São imagens do outro fortemente embebidas da visão de mundo e dos afetos
daquele que filma.

O que o filme mostra de modo cristalino é quão encharcado de memórias e afecções


corporais é nosso olhar sobre o mundo, quão arraigados somos a determinadas maneiras
de ver e sentir, o tanto que ignoramos nossos preconceitos, o tanto de impossibilidade de
nos colocarmos no lugar do outro, de aceitá-lo em sua diferença e singularidade. Em suma,
nos mostra que “estamos” onde menos esperamos, não especialmente no “conteúdo” do
que dizemos ou pensamos de forma consciente, tampouco em uma “interioridade” prévia,
já dada, mas em “toneladas de subjetividades”12 que se constituem e se expressam na
nossa relação com o mundo e com o outro.

Por meio de um gesto à primeira vista pequeno – alterar a direção do que se solicita
aos personagens em grande parte dos documentários baseados em conversas –, Cao
Guimarães imprime um estrondoso deslocamento em relação a todas as querelas em
torno da “voz do outro” que atravessam a história do documentário. Se a “eficácia” artística
e política dos dispositivos artísticos é medida pelo potencial produtor e transformador
do que é proposto, os filmes de Cao Guimarães respondem com vigor à possibilidade de
deslocar visões estabelecidas, criar novas maneiras de ver, experimentar outras sensações,
narrativas, espaços e temporalidades.

12
Expressão de Peter Pál Pelbart, in Vida
Capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo:
Iluminuras, 2003. p. 20.
52 53

O
s filmes modernos, também chamados de filmes de tese ou expositivos, são
mais evidentes nas décadas de 1960 e 1970. Neles encontramos características
como a presença de um narrador que tem o poder de “deus” como idéia de
onisciência, em que a imagem está a serviço do argumento do realizador/narração, em
que o “cineasta/intelectual se julga no papel de interpretar e resolver os problemas do
povo” e no qual o realizador pretende dar conta de um tema com “T” maiúsculo.

Já o cinema contemporâneo, que se consolida a partir da década de 1990, em vez de


almejar grandes sínteses, análises ou interpretações de situações sociais, busca seus temas
“através do recorte mínimo, abordando histórias de indivíduos e a verdade de cada um”
(Mesquita, 2006). “Geralmente trabalha com fragmentos de uma realidade, buscando a
reflexão e a compreensão aprofundada da questão abordada, deixando para o espectador
o papel de relacioná-la com seu contexto histórico, econômico, político, social e cultural”

Tendências do documentário contemporâneo (Altafini, 1999).

Essa distinção, no entanto, não pressupõe uma preferência ou um juízo de valor sobre uma
ou outra tendência, ou sobre os filmes que se encaixariam nesta ou naquela abordagem.
Liliana Sulzbach Nem o fato de verificarmos uma nova tendência a partir da década de 1990 significa
afirmar que as produções anteriores estariam ultrapassadas ou seriam filmes menores.
Jornalista e mestre em ciência política pela UFRGS. Estudou ciências da comunicação na Freie Universität Talvez, olhando com distanciamento os filmes chamados modernos, notemos uma certa
Berlin. Coordenadora de produção e do núcleo de Cinema e Televisão da Zeppelin Filmes desde 1996. “arrogância” nessa tentativa de realizar uma macroanálise. Como se fosse possível ao
Coordenadora nacional da International Public Television Conference (Input) de 2002 a 2004. Trabalhou cineasta/realizador não só dar conta de temas complexos, mas apontar soluções e, além
como produtora independente para Hamburger Kino Kompanie/Hamburgo, M. Schmiedt Produções,
disso, falar em nome do povo ou do sujeito representado.
Spiegel TV Alemanha, onde realizou diversos documentários. Como diretora, seus trabalhos mais recentes
são O Continente de Erico (2005), O Cárcere e a Rua (2004), A Invenção da Infância e O Branco (2000).
Essas tendências, no entanto, espelham e estão diretamente ligadas ao desenvolvimento
das distintas manifestações da sociedade de cada período, à forma como a sociedade
pensava e se expressava como um todo, não somente no cinema e no documentário.
54 Liliana Sulzbach Tendências do documentário contemporâneo 55

Esses seriam, na melhor das hipóteses, os precursores e, na maioria dos casos, os porta-vozes a polarização do país entre a força do Estado e a força do Exército Vermelho, gerando uma
dessa forma de interpretar a sociedade. Assim, apontar tendências não significa preferir uma série de conflitos que beiram a guerra civil. Na América Latina, Memórias Del Saqueo (2004),
à outra, mas detectar e realizar um retrato valioso da forma como as pessoas se expressam em do argentino Fernando Solanas, investiga os fatos que levaram à fragilização econômica e
determinado período, por razões que muitas vezes fogem às análises da obra cinematográfica à degradação da Argentina. Solanas também é realizador de La Hora de los Hornos (1968).
propriamente dita. Eu diria que em ambas as tendências podemos encontrar filmes bons e Allende (2004), do chileno Patrício Guzmán, desvenda Salvador Allende, ao mesmo tempo
ruins, realizações preciosas e outras medíocres. Essas tendências também não são estanques. em que defende seu legado para o Chile do século XXI. É também o diretor da estupenda
Exemplos de filmes bem-sucedidos com características modernas foram realizados após os série A Batalha do Chile (1975-1979). Nesses filmes, além do conteúdo claramente político,
anos 1960 e 1970 e não são necessariamente considerados ultrapassados. nota-se uma tendência a apresentar os fatos de forma investigativa, mostrando situações
e reflexões novas sobre assuntos presentes na mídia e no jornalismo cotidiano.
No que tange ao conteúdo/tema eleito pelos filmes de produção nacional, tanto os filmes
considerados modernos como os considerados contemporâneos concentram-se em Justamente essa tendência investigativa que busca trazer fatos novos a assuntos já
temas que representam o Brasil em seu aspecto cultural e simbólico (folclore, religião, pautados, ou que procura esclarecer questões no calor dos acontecimentos, é pouco
linguagem, costumes etc.), socioeconômico (trabalhadores desfavorecidos, disputa de trabalhada pelos documentaristas nacionais. Podemos citar ainda Who Betrayed Che
classes, miséria), mas pouco se ocupam do aspecto político. Certamente temos produções Guevara [Quem Traiu Che Guevara] (2001), em que dois jovens realizadores, Erik Gandini e
de documentários políticos, como o clássico de Eduardo Coutinho Cabra Marcado para Tarik Saleh, vão desvendar, décadas depois, os fatos que levaram o argentino Ciro Bustos
Morrer (1984); os filmes de Silvio Tendler, entre eles Os Anos JK, uma Trajetória (1980), Jango a ser injustamente acusado de trair Che, enquanto outro companheiro, Regis Debray,
(1984), Doutor Getúlio, Últimos Momentos (2002) e Marighella (2002); Jânio a 24 Quadros gozava na França de prestígio como grande amigo do líder revolucionário. Em Na Captura
(1981), de Luis Alberto Pereira; Jânio, 20 Anos Depois (1981) e Revolução de 30 (1980), de dos Friedmans (2003), de Andrew Jarecki, o professor Friedman e seu filho caçula são
Silvio Back; Em Nome da Segurança Nacional (1978), de Renato Tapajós; Barra 68 (2001) e acusados e presos por molestar adolescentes. A família começa a entrar em colapso e o
Conterrâneos Velhos de Guerra (1992), de Vladimir Carvalho; e mais recentemente No Olho documentário não só registra, mas tenta agregar novos fatos ao assunto.
do Furacão (2003), de Renato Tapajós e Toni Venturi; Tempo de Resistência (2004), de André
Ristum; e Entreatos (2004), de João Salles. Mas, curiosamente, e com algumas exceções, Quanto à forma, podemos perceber algumas tendências mundiais também presentes
os filmes são mais biografias do que documentários sobre um determinado momento em documentários brasileiros. Uma delas seria o que Jean-Claude Bernardet chama de
político, mais sobre políticos ou personagens do que sobre política. “documentário de busca”. Nesse sentido, podemos falar de Offspring, do canadense Barry
Stevens, no qual um homem, que é o próprio diretor, foi fruto de uma inseminação artificial.
É claro que, se tomamos o termo “político” num sentido mais amplo, podemos incluir vários O filme é um documentário de busca do realizador, que pesquisa bancos de esperma do
filmes de cunho socioeconômico na esteira de filmes políticos. É impossível pensar o lado mundo atrás do esperma original, para descobrir quem é seu pai e encontrar possíveis
social sem esbarrar no político. Mas o que interessa aqui definir como político são os filmes irmãos espalhados pelo mundo. No Brasil, alguns exemplos poderiam ser definidos como
que desvendam aspectos políticos presentes na agenda de determinado momento do documentários de busca, como 33, de Kiko Goifman, e Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut.
Estado-nação ou mesmo a sua relação política com os demais países. Sem procurar valorar “Os filmes partem de um projeto pessoal de seus realizadores. No caso de Kiko Goifman, é o
o aspecto formal, temos fartos exemplos em outros países, como Farenheit 9/11 (2004), no filho adotivo que se propõe a encontrar a mãe biológica e, no caso de Sandra Kogut, (...) seu
qual Michael Moore investiga como os Estados Unidos se tornaram alvo de terroristas com projeto é obter a nacionalidade e o passaporte húngaro” (Bernardet, 2005). Nesses casos,
base nos eventos ocorridos no atentado de 11 de setembro de 2001. Os filmes produzidos como bem coloca Bernardet, “a filmagem tende a se tornar a documentação do processo.
e/ou dirigidos por Robert Greenwald, como Unprecedent: The 2000 Presidential Election Não há uma preparação do filme (a preparação é a própria filmagem), não há uma pesquisa
(2002), e por Richard Pérez e Joan Sekler, como Iraq for Sale, quem Lucra com a Guerra prévia; a pesquisa, que freqüentemente no documentário é anterior à filmagem, é a própria
(2006) e Outfoxed – A Guerra ao Jornalismo de Rupert Murdoch (2004), são exemplos claros filmagem” (Bernardet, 2005).
de filmes políticos contrários à era George Bush. Também podem-se destacar Sob a Névoa
da Guerra (2003), de Errol Morris, que narra a história militar recente dos Estados Unidos Não pretendo fazer uma análise mais profunda desses filmes, já muito bem realizada por
do ponto de vista do controvertido político norte-americano Robert S. McNamara, ex- Jean-Claude Bernardet, mas gostaria de salientar dois aspectos que envolvem ambos
secretário de Defesa nos governos Kennedy e Johnson; Why We Fight [Por que Lutamos?] os filmes e que acho importante destacar porque nos conduzem e apresentam uma
(2005), de Eugene Jarecki, um olhar crítico sobre a tendência dos Estados Unidos de se proposta de documentário que eu arriscaria chamar de uma tentativa de conferir plot ao
envolver em conflitos armados; Black Box Germany (2001), de Andres Veil, que recorre ao documentário. Seriam os seguintes aspectos:
passado recente da República Federativa da Alemanha nos anos 1970 e 1980 para retratar 1) Nesses filmes, mesmo não existindo um roteiro como base, já é possível “prever” a própria
56 Liliana Sulzbach Tendências do documentário contemporâneo 57

montagem durante a filmagem e se preparar para isso, criando situações que nos conduzam (2002), de Marlo Poras. É um filme que acompanha a vida de uma jovem vietnamita
ao objetivo desejado. Como diz Sandra Kogut, no texto de Jean-Claude Bernardet, “no que vai concluir o colégio nos Estados Unidos. O filme segue sua vida, desde sua
Passaporte Húngaro eu não sabia o que iria acontecer (...), mas isso não quer dizer que cidade natal, expondo suas expectativas perante esse novo mundo e o estilo de vida
eu não tivesse, o tempo todo, consciência de que estava fazendo um filme e tivesse que ocidental – estilo que exerce uma certa fascinação sobre ela. Mas as coisas não se
construir as situações que iam aparecendo, mesmo sem preparação, em função do filme. dão da forma como ela esperava: a família que a “adota” mora no Mississipi rural e ela
Isso não quer dizer que havia menos construção do que num filme mais pré-roteirizado”. enfrenta uma realidade bem diferente daquilo que imaginava ser o modo de vida
norte-americano. Acaba revendo seus valores, sua cultura, e se depara com situações
2) Os filmes criam uma lógica narrativa, mesmo deslocando na montagem cenas que que vão do absurdo ao sublime.
durante a filmagem ocorreram antes do momento em que foram adicionadas na edição.
Portanto, ao inverter a ordem dos acontecimentos para conferir ao filme uma lógica Não dá para deixar de dizer que o cinema digital é o grande responsável pela
narrativa, até que ponto esses filmes são documentários ou ficção? realização da quase totalidade desses filmes. E, dessa forma, se aproxima do cinema
direto, que na época em que surgiu também se beneficiou de câmeras mais leves
Bernardet tende a dizer que seriam “filmes de ficção elaborados com materiais extraídos e da possibilidade de captar o som em sincronia com a imagem. O cinema digital
de situações reais” (Bernardet, 2005). Segundo ele, trata-se de uma espetacularização da permitiu maior mobilidade e reduziu muito os custos, propiciando ao realizador mais
vida pessoal, com duas facetas: como toda arte autobiográfica, é uma arte que expõe tempo e dedicação para seus trabalhos. Mas, se o cinema direto apresentava alguns
a pessoa, mas, ao mesmo tempo, a mascara. Além disso, essas pessoas-personagens dogmas, como a ausência de entrevistas e encenações e a restrição ao uso de tripés,
obedecem a uma construção dramática: os personagens têm objetivos, enfrentam lentes e luzes artificiais, evitando a intervenção nos fatos, o cinema digital, ao mesmo
obstáculos (que eles superam ou não), alcançam seus objetivos ou não, exatamente como tempo em que flerta com o cinema direto, não necessariamente segue seus dogmas,
nos filmes de ficção, e tudo isso organizado numa narrativa. Seria uma ficção que coopta podendo tanto utilizar entrevistas como reencenar situações.
a vida pessoal. Bernardet conclui que esses filmes vivem uma tensão de documentário
com desejos de ficção e uma ficção com desejos de realidade. Ainda segundo o autor, são Ao facilitar a produção de documentários de busca e de acompanhamento, a era
filmes extremamente ricos porque expressam uma subjetividade tal como muitos de nós digital propiciou uma série de documentários mais intimistas, histórias que giram
a vivenciamos atualmente. em torno da própria vida do diretor. Podemos acrescentar ainda My African Family
(2004), de Thomas Thümena, a história de um realizador suíço que casa com uma
Esse flerte com a ficção pressupõe, no mínimo, outra demanda de logística de produção africana e vai até a África encontrar seus parentes. Narra as dificuldades e diferenças
e montagem. Mas, principalmente, outra forma de encarar o tempo no documentário. culturais entre as duas famílias. Tarnation (2003), de Jonathan Caouette, é a história de
Como a narrativa pressupõe um avanço no tempo, e em documentário estamos tratando um realizador que, desde a infância, aprende a lidar com a mãe esquizofrênica. Seria
de fatos e pessoas reais, precisamos realizar um documentário de acompanhamento em um dos expoentes da era digital por lançar mão de uma colagem de elementos que
diversas fases da vida do protagonista ou da etapa do acontecimento, o que também é vão de filmes caseiros, super-8, fotos, a áudios de secretária eletrônica, formando um
evidente nos filmes que possuem um caráter investigativo. grande mosaico que percorre 19 anos da vida do diretor. Assim, 33, Passaporte Húngaro
e Offspring, citados anteriormente como documentários de busca, também abordam a
Se num filme de ficção podemos alterar o tempo na medida em que construímos intimidade de seus realizadores.
cenários, utilizamos atores de diferentes idades para interpretar os mesmos personagens
justamente para conferir essa idéia de passagem do tempo, em documentário que não se Para terminar, pode-se falar de uma tendência apontada por Esther Hamburger de filmes
propõe a fazer reconstituições é importante que se perceba a passagem do tempo real, que expressam diferentes formas de apropriação dos mecanismos de produção de
mesmo que posteriormente esse tempo seja manipulado na montagem. E esse tempo representação. Os filmes “através dos quais ‘o outro’, a respeito do qual o filme fala, participa
precisa ser previsto na produção. da feitura – atuando, emprestando sua ginga corporal, participando da roteirização,
criando a trilha sonora etc. – e expressa diferentes formas de apropriação dos mecanismos
Nessa mesma perspectiva, surgem os filmes de acompanhamento, também capazes de construção da representação” (Hamburger, 2005). A autora cita, entre outros exemplos,
de criar uma lógica narrativa e conferir um plot ao documentário. Citaria como Notícias de uma Guerra Particular (1999) e Ônibus 174 (2002). Assim como em Notícias..., que
exemplo o filme alemão Adicted to Act [Viciados em Atuar] (2003), de Andres Veil, que busca um registro complexo de polícia, tráfico e moradores, Ônibus 174 introduz outro
acompanha um grupo de atores desde o momento em que entram na academia até o aspecto: a TV, as câmeras, o jornalismo. O protagonista apropria-se da própria imagem
momento do ingresso no mercado de trabalho. Outro bom exemplo é Mai´s America veiculada pela mídia que está registrando tudo. Segundo Esther Hamburger, “com
58 Liliana Sulzbach Tendências do documentário contemporâneo 59

estrutura semelhante ao documentário pioneiro Notícias de uma Guerra Particular (1999),


de João Salles, (...) Ônibus 174 (2002) permite levantar questões interessantes sobre a
relação entre performance, mídia, violência e pobreza. A análise sugere que tratamentos
semelhantes para outros filmes podem ser produtivos no sentido de enriquecer o debate
sobre como representar a violência e a pobreza no Brasil sem reproduzi-las”. O programa
Revelando os Brasis seria uma possibilidade de passar a câmera ao outro, deixar que cada
um construa a sua história ou a história que pretende contar.

Com base nisso, podemos detectar possibilidades e apontar alguns caminhos que
seria interessante trilhar. São caminhos não necessariamente novos e, de certa forma, já
abordados por documentaristas tanto estrangeiros como brasileiros. Mas, se muito já foi
feito em termos de documentário independente no Brasil, ainda há muito a fazer e muitos
temas e formatos a serem explorados. O programa Rumos é uma boa oportunidade de pôr
em prática novas tendências e gêneros.

Referências bibliográficas

Altafini, Thiago. Cinema documentário brasileiro. Evolução histórica da linguagem. 1999. Disponível em http://
www.bocc.ubi.pt/pag/Altafini-thiago-Cinema-Documentario-Brasileiro.pdf.
Bernardet, Jean-Claude. Documentários de busca: 33 e Passaporte Húngaro. In: Mourão, M.D. e Labaki, A.
(Org.). O documentário do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
Hamburger, Esther. Políticas da representação: ficção e documentário em Ônibus 174. In: Mourão, M.D. e
Labaki, A. (Org.). O documentário do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
MESQUITA, Cláudia. Em palestra realizada dentro da programação do Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo em 2006.
Ver o texto “Outros retratos – Ensaiando um panorama do documentário independente no Brasil”, neste livro.
REISZ, Karel e MILLAR, Gavin. Geschichte und Technik der Filmmontage. Augsburg: Filmlandpresse, 1988.
60 61

Pavlovskoie, uma aldeia próxima a Moscou. Uma sessão de cinema. A pequena sala está
repleta de camponeses, de camponesas e de operários de uma fábrica vizinha. O filme Kino
Pravda se projeta na tela sem acompanhamento musical. Ouve-se o ruído do projetor. Um
trem aparece na tela. E depois uma menina que caminha até a câmera. De repente, na sala,
soa um grito. Uma mulher corre até a tela, até a menina. Chora. Estende seus braços. Chama a
menina pelo nome. Mas, esta desaparece. E o trem desfila novamente na tela. “O que ocorreu?”,
pergunta o co-responsável operário. Um dos espectadores: “É o Cine-Olho. Filmaram a menina
quando estava viva. Há pouco adoeceu e morreu. A mulher que se lançou até a tela é sua mãe.”
Dziga Vertov

C
omo cineasta posso inferir que o cinema documental, por sua vasta possibilidade de
percorrer as essências do espírito humano, faz nascer, pelo seu caráter humanizante
e por sua transversalidade, múltiplas e distintas formas de apresentar a realidade.
A expressão cinematográfica no território do documental
Significa dizer, entretanto, que esse gênero cinematográfico seguiu sua história
desenvolvendo formas estéticas de olhares compartilhados nas idéias, no fazer e
nas experiências específicas de inúmeros autores que investigaram, e continuam
Luiz Eduardo Jorge investigando, a vida humana nos mais diversos continentes da terra e nos mais diferentes
territórios culturais pelo viés do mundo mítico, psicológico, histórico e antropológico.
Cineasta (diretor e roteirista), historiador e antropólogo. Doutor em artes/cinema pela ECA/USP em
1995. Professor titular da Universidade Católica de Goiás, atuando na graduação e na pós-graduação. Uma busca incessante, direcionada à interiorização do espírito humano, da alma
Dirigiu 15 filmes, entre eles Bubula, o Cara Vermelha (1999), Passageiros da Segunda Classe (2001) e o humana e de sua expressão artística, para ver como os seres humanos são e estão na
longa-metragem Ventos da História (2006). Nos últimos cinco anos, recebeu cerca de 30 prêmios em vida real marcados pelas diferenças étnicas e sociais, sem, contudo, ficcionar, exotizar
festivais nacionais e internacionais. ou reinventar o mundo cotidiano e ritualístico. Enfim, como a textura do filme mostra a
realidade por meio da forma estética do documental.

O cinema documental, desde sua origem, deslocou-se em direção ao outro, em busca do


inusitado, do diferente. Uma ferramenta que serviu, e serve ainda, para revelar as diferentes
62 Luiz Eduardo Jorge A expressão cinematográfica no território do documental 63

culturas humanas e suas formas de organização social, política, econômica e religiosa. Uma científico-experimental no qual emprega o método aludido por meio de um ensaio
necessidade de ir ao encontro da humanidade do homem para saber como ele percebe, dialético-pedagógico mostrando a vida cotidiana de uma grande cidade do amanhecer
pensa, representa e sente a realidade. Porque, assim procedendo, se pretende buscar ao anoitecer. Fazendo uso de inúmeras técnicas de montagem, consagradas até os
expressões em nosso próprio ser, isto é, em nós mesmos, a fim de desvelar o sentido do dias atuais, elabora o cinema documental como um cinema de idéias. E idéias que
nosso próprio mundo. continuam revolucionárias.

Na epígrafe deste texto, a descrição de um trecho do Cine-Olho do diretor russo Dziga O Homem da Câmera, um filme dentro do filme, que demonstra todo o processo de
Vertov é uma sinalização da importância do cinema documental como expressão confecção do documental, indo da idéia ao produto final, coloca em cena o trabalho da
da vida social. O referido realizador tornou-se uma referência clássica e, ao mesmo equipe técnica – filmagem e montagem – como se fossem personagens que participam
tempo, moderna no mundo do cinema como uma escola documental em razão de do filme no contexto do cenário e dos atores sociais documentados.
colocar em prática e teorizar sobre os princípios gramaticais do cinema-verdade.
Por meio dessa expressão, Vertov desenvolveu suas idéias sobre a função do cinema Vertov pesquisou as possibilidades estéticas e científicas do cinema documental a ponto
documental influenciando uma geração de jovens cineastas do pós-guerra que, mais de experimentar inúmeros conceitos e comportamentos de câmera, de montagem e de
tarde, se tornaram também referências do documental em seus países: “na França com inserção da equipe de filmagem no processo de construção da peça cinematográfica.
Jean Rouch (Moi un Noir, La Pyramide Humaine, Chronique d’un Étè), Mario Ruspoli (Lês Além disso, teorizou, nos anos 1920, sobre preocupações ainda atuais correlatas ao
Inconunus de la Terre, Regards sur la Folie), na Itália (especialmente com Baldi), na Grã- cinema-verdade e ao cinema direto, às dicotomias verdade x falsidade, subjetividade x
Bretanha com o Free Cinema, nos Estados Unidos com Rechard Leacock (Primary, Yanqui objetividade, objeto x sujeito e realidade x ficção, colocadas, ainda hoje, como temas dos
No), com Lionel Rogosin (On the Bowery, Come Back África) e diversos seguidores da debates sobre cinema documental e cinema ficcional.
Escola de Nova York” (Sadoul, 1971) Esse recenseamento realizado por Sadoul limita-se,
como ele mesmo afirma, a citar alguns filmes apresentados em Paris ou em festivais Declara Vertov:
internacionais nos anos 1960.
El campo visual es la vida;
Ao chamar atenção para o cine-olho, Dziga Vertov defendia a tese de um cinema-verdade la materia de construcción para el montaje es la vida;
como forma de expressão não-ficcional, para, com base em um plano de trabalho, alcançar los decorados es la vida;
a realidade e apresentá-la no processo de montagem. A montagem, para Vertov, é um los artistas es la vida.” (Vertov, 1927)
conceito, isto é, um exercício subjetivo de concatenação do fluxo dos acontecimentos
por meio da razão. Para ele, entretanto, o conceito é uma relação entre teoria e prática: o Partindo dos princípios técnicos e heurísticos de Vertov, Jean Rouch, em parceria com
pensar, o elaborar e o fazer. Edgar Morin, realizou, teorizou e desenvolveu estudos e produções cinematográficas
com base em uma nova concepção do documental. Tomou para si a expressão cine-olho,
O método de Vertov está baseado na sincronização do som e da imagem que ele transformando o cinema-verdade em um desdobramento de métodos e técnicas aliados
denominou câmera-olho e rádio-orelha para filmar A Vida ao Improviso. A realidade a uma nova prática do cinema documental, balizado com o campo da antropologia.
da forma cinematográfica é uma representação do improviso indo ao encontro dos
acontecimentos do cotidiano para apreendê-los, a fim de compô-los dentro de uma Não é por acaso que Vertov se tornou uma matriz fundamental para Jean Rouch. Esse
lógica dialética da montagem para serem afirmados ou negados. A vida representa-se etnólogo-cineasta passou a praticar e a teorizar o cinema-verdade com vistas à produção
por si mesma no cinema. de filmes antropológicos, numa combinação do método vertoviano e dos princípios
da pesquisa etnográfica. Aliou, também, em muitos de seus filmes sobre o processo
El método del cine-ojo el método de estúdio científico-experimental del migratório dos camponeses nigerianos para a cidade, o método de observação fílmica
mundo visible: a) basado en una fijación planificada de los hechos de la vida de A Vida ao Improviso à “mise-en-scène documental” do irlandês Robert J. Flaherty. Deste
sobre la película; b) basado en una organización planificada de los cine- último, tomou como ponto de partida a gramática do clássico Nanook of the North (1922)
materiales documentales fijados sobre la película. (Vertov, 1927). e também dos filmes de atores naturais como Moana (1926), Tabu (1931), realizado com
Murnau, O Homem de Aran (1936). Histórias reais interpretadas por atores da cultura local
Ao utilizar o material de arquivo do Kino-Pravda, Vertov realiza, em 1928, com seu dirigidos pelo diretor com base em um roteiro pré-elaborado. A respeito desse modelo de
irmão Mikail Kaufman, o longa-metragem intitulado O Homem da Câmera, metafilme documentário etnoficcional de Rouch, pronunciou-se Sadoul:
64 Luiz Eduardo Jorge A expressão cinematográfica no território do documental 65

Rouch foi, pois, tocado pela autenticidade que atingiu suas pesquisas O fundamento do cinema documental está localizado na forma de apresentar a
quando ele ‘deixou falar livremente o ator diante da imagem.’ Ao refletir realidade social e cultural na perspectiva imanente de suas experiências históricas como
sobre este sucesso, disse ainda, disse a mim mesmo que se poderia ir um fenômeno dialético que se manifesta em sua mais profunda essência, revelando-a.
mais longe ainda na verdade, se ao lugar de tomar atores e de lhes fazer
interpretar um papel, se pedisse a homens para representar suas próprias
Desde sua origem, o cinema documental, com suas referências empíricas espelhadas nos
vidas. E este foi Eu um Negro.” (Sadoul, 1971)
formatos fotográficos, escreve sob a ação da luz associada a suportes físicos, químicos
e ópticos pesquisados por meio de métodos de pesquisa e técnicas instrumentais
Procedendo assim, Rouch elaborou um novo método do cinema-verdade e um
elaboradas como indicadores das novas experiências científicas. A ciência de Muybridge,
novo conceito dos vetores essenciais do movimento para o cinema etnográfico na
Marey e Démeny, associada à construção do cinetoscópio Edison e do cinematógrafo
realização de filmes que tratam dos rituais mágico-religiosos do Níger, estabelecendo
Lumière, criou uma nova forma e um novo método para o homem olhar para o mundo
um comportamento da observação fílmica em plano-seqüência a fim de documentar,
e para si mesmo.
na íntegra, os movimentos do corpo das pessoas em transe. Denominou esse cinema
documental de cine-transe. E, ao filmar a passagem da natureza à cultura e o universo de
Por essa razão, o cinema nasce tecnicamente científico1 e documental. Nasce também
representação das etnias tradicionais do Níger, tornou-se o principal propulsor da escola
sob as idéias disseminadas na forma poética de compor a perspectiva para falar do
do cinema etnográfico francês, influenciando, assim, gerações de novos realizadores de
movimento do mundo, dos seres e das coisas por meio do registro do real. A realidade
diversas referências culturais e países do mundo.
material e psicológica é apresentada no fenômeno do processo projetivo: imagens
dadas aos sentidos da psique humana.
O cinema documental, o etnográfico em especial, sempre foi em busca da realidade do
“outro” a fim de tornar visíveis as diferenças sociais e etno-históricas, pela compreensão
No tempo presente, o cinema é remissivo ao tempo passado, às suas origens, aos seus
da complexidade da cultura. São seus símbolos e seus signos culturais os fenômenos que
processos e procedimentos metodológicos, estéticos e filosóficos, antropológicos e
estão à frente das lentes do cine-olho para o desenvolvimento de uma gramática do real.
históricos, cabendo, sempre, pensá-lo em sua dimensão subjetiva porque eleita pelo
pensamento e pelo olhar lançado sobre o mundo observado.
As particularidades do documental e suas imensas possibilidades de expressão
contribuíram para que cineastas clássicos da geração de Flaherty e Vertov desenvolvessem
Salvo raras exceções, notadamente Rituais e Festas Bororo (1917), de Luis Thomas Reis,
suas teorias, com base em suas próprias produções documentais, acerca de sua função
a aurora do documental é marcada pelo registro puro e simples nos documentários
educativa, estética, política, sociológica e antropológica. Entre eles, estão John Grierson,
de viagens, enfatizando o outro. Mais tarde, sob influência das reflexões estéticas,
na Inglaterra, diretor do filme Drifters (1929); Jean Vigo, na França, com À Propos de Nice
sociológicas e antropológicas, fundamenta-se em posturas críticas e arranjos
(1929); Aleksandr Ivanovithc Medvedkin, na Rússia, com O Trem Cinematográfico ou 294
narrativos combinados nos processos de construção de peças fortemente marcadas
Dias sobre Rodas (1932); Alberto Cavalcanti, realizador brasileiro com filmes produzidos
por tons poéticos e ideológicos questionadores, sobretudo por meio do cinema
na Inglaterra por Grierson e autor do livro Filme e Realidade (1957).
político e militante. Atualmente, o acesso aos novos recursos tecnológicos permite
1
Em Palo Alto, Estados Unidos, 1872, em
uma dilacerada “reinvenção” da forma de expressão e da gramática audiovisual com um cenário preparado para diversos tes-
Os estudos e as pesquisas científicas realizados no território do outro, para a produção
base em experiências individuais, que tornam o audiovisual uma prática educativa tes envolvendo estudos do movimento
documental acerca da diversidade cultural, demonstraram a importância do cinema de um cavalo fotografado em alta velo-
em razão das possibilidades que pode criar no exercício do aprofundamento cidade, por meio de um dispositivo que
documental para o desvelamento do território do outro na relação com o eu. O cinema
do conhecimento específico e universal, especialmente no campo das ciências permitiu inicialmente a interface de 12
documental passa, então, a direcionar o seu olhar à complexidade das questões sociais e, posteriormente, de 24 câmeras liga-
humanas e sociais. das em uma mesma bateria, Muybridge
relacionadas aos grupos humanos do campo e da cidade, seguindo, assim, o percurso das permitiu constatar que, no compasso
preocupações específicas e universais das ciências humanas e sociais. O outro passa a ser do galope, o animal realmente fica com
Falo da produção audiovisual de caráter educativo, considerando somente filmes as quatro patas no ar. Com base nessa
redescoberto no eu. síntese fotográfica, o fotógrafo eviden-
que abordam temas e questões de interesse educativo, fundamentados em pesquisa ciou um movimento impossível de ser
e produção do conhecimento científico e/ou estético. Obviamente que produções percebido a simples vista. Essa síntese
Com base nessa postura cinematográfica, há uma argumentação do olhar documental fotográfica possibilitou a Marey criar
que inventam a realidade no extraordinário, no fantástico e no sensacionalismo não o fusil photographique e comprovar a
compartilhado no fazer e nas experiências dos autores que investigam a vida humana
decorrem de tais propósitos e não decorrem de uma reflexão crítica, pois, como venho tese do movimento pela obtenção de
pelo viés do mundo social, psicológico, mítico e antropológico. Uma busca incessante de imagens a 24 quadros por segundo, de
afirmando, a subjetividade e as idéias cinematográficas são formas artísticas de tratar a um pássaro filmado em pleno vôo (Mitry,
interiorização do espírito humano, da alma humana, na expressão poética da imagem. 1967, p. 41).
verdade por meio da expressão documental.
66 Luiz Eduardo Jorge A expressão cinematográfica no território do documental 67

Assim, essa atitude evidenciada no percurso histórico da produção desse gênero olhar nos conceitos e teorias advindos de suas próprias reflexões, ora confirmando-os por
cinematográfico é definidora de estilos e abordagens segundo posturas estéticas, meio das idéias experimentadas em suas produções propriamente ditas.
políticas, científicas e ideológicas dos seus autores. A reflexão teórica em torno dos
fenômenos escolhidos, pesquisados e selecionados para a realização documental Vertov e Flaherty desenvolveram idéias genuínas e diferentes sobre o cinema documental.
consolida as escolas e as correntes teóricas do pensamento documental e as atuais O primeiro experimentou o cinema-verdade baseado no improviso como forma de não-
formas artísticas de criação. interferência no mundo documentado para evitar ficcionar e/ou alterar a realidade. O
segundo “interfere” na realidade para propor a mise-em-scène documental visando a um
Portanto, posso concluir que o cinema é escola. tratamento mais fiel da realidade no cinema. Dessa forma, nota-se, finalmente, que essas
idéias, após 80 anos, estão em pleno exercício, tanto no campo do cinema documental
Essas minhas palavras sobre cinema documental deixam-me à vontade para não quanto no campo do cinema ficcional, ora tratando do cinema documental utilizando
estabelecer linhas divisórias muito rígidas entre o exercício do pensamento científico e atores naturais, como é o caso da recente produção brasileira intitulada Cidade de Deus,
o do pensamento estético, até porque a escrita tende a interpretar e a imagem tende a de Fernando Meirelles, ora tratando do cinema verdade à la Vertov, como faz Eduardo
representar. Pensando assim, sempre compreendi que ciência e arte na construção do Coutinho nos documentários Santo Forte e Edifício Master.
documental se entrelaçam. Dessa forma, não sinto aqui aquela necessidade de formular
problemas para realimentar e sistematizar as idéias guardadas nas gavetas a fim de
comprová-las ou refutá-las, porque, assim procedendo, posso também correr o risco de
pensar que o objeto não tem vida, que o objeto é do sujeito, isto é, o objeto pertence ao
sujeito, é pensado pelo sujeito que o observa e dele tira conclusões, formulações teóricas,
subjetivações, afirmações e julgamentos mantidos sob a mão única da ciência ou da
arte. Não pretendi obedecer a um modelo, seja científico, seja estético, para apresentar
a realidade como essência da forma do cinema documental, até porque ela pode ser
tão variada e diversa quanto o número de filmes realizados. A realização de um filme
documental obedece, assim, a critérios estéticos, científicos e humanos segundo a sua
natureza histórica e antropológica. Um filme não é produzido, realizado e “feito” numa
fôrma, e, sim, numa forma.

No cinema documental ao qual me refiro, o objeto – do latim obicere = algo lançado,


algo posto adiante – não é pensado e constituído pelo olhar impregnante do sujeito da
observação, e sim do realizador cinematográfico que, longe de apossar-se do objeto, procura
expressar por meio da forma cinematográfica a relação humana que se coloca entre ele, o
mundo circundante e os seres humanos documentados. Vejo e entendo o objeto como
corpus do universo social, cultural e humano pensado nos recortes narrativos específicos
e gerais articulados no pensamento documental. O objeto, pensado numa perspectiva
subjetiva e em permanente movimento, portanto, dinâmico e não moldado, não acabado.

O cinema documental confunde-se com a idéia de originalidade, de identidade com a


diversidade cultural em permanente construção. Culturas reinventando a cultura com base
em novos códigos recolocados permanentemente por novas experiências interétnicas,
também, temporariamente redefinidoras de um novo ethos. Referências bibliográficas

MITRY, Jean. Histoire du Cinema (1895-1915). Paris: Éditions Universitaires, 1967.


Este artigo apresenta algumas indagações tecidas na seara das idéias semeadas no território SADOUL, Georges. Dziga Vertov. Paris: Éditions Champ Libre, 1971.
do cinema documental, rondando duas matrizes cinematográficas já consagradas – Vertov VERTOV, Dziga. Del cine-ojo al radio-ojo (La importancia del cine sin actores). 1927. In: ROMAGUERA,
e Flaherty, que impulsionaram a vasta produção de documentários, ora repousando o Joaquim e THEVENET, Homero Alsina. Fuentes y documentos del cine. Barcelona: Editorial Fontamara, 1980.
68 69

1
“Não é o escultor que esculpe a escultura, é a escultura que esculpe o escultor!”
Existe nessa frase de Merleau-Ponty algo que fica no meio, como um canteiro
. entre duas avenidas. Chacoalha-se uma frase como chacoalha-se uma vida.
Uma inversão entre sujeito e predicado, entre sujeito e objeto que pode nos ajudar a
entender um pouco a relação entre arte e vida, realidade e percepção, olhar e deixar-se
olhar, entregar e receber.

Poderíamos, da mesma forma, dizer: não é o cineasta que faz o filme, mas o filme que faz
o cineasta. Ao fazer um filme, algo está nos fazendo e algo está se fazendo para além de
nosso fazer. O filme se faz e com ele me faço.

Se o meu assunto é a realidade, não estou isento dela e nem ela está isenta de mim. Nesse
exercício da reciprocidade, da generosidade da entrega, vários graus de subjetividade estão
Documentário e subjetividade – Uma rua de mão dupla interagindo entre si. A questão não é objetivar o olhar diante da realidade, mas mesclar
sua subjetividade com a subjetividade do outro. Às vezes esvaziando-se no sentido zen-
budista do termo, às vezes potencializando o seu “eu” até o total transbordamento. Não
existem regras definitivas, tudo funciona como uma espécie de pacto fundamentado na
Cao Guimarães cumplicidade recíproca.

Trabalha com cinema e artes plásticas. Desde fins dos anos 1980 vem mostrando seus trabalhos em A percepção dos acontecimentos reais sempre estará intimamente relacionada ao
diferentes museus e galerias, como o Guggenhein Museum de Nova York (seu filme Sopro faz parte da imaginário. Nenhum olhar é isento de si ao olhar para fora. Vejo e, ao ver, também me
coleção do museu); Mori Museum, em Tóquio; Galeria La Caja Negra, em Madri; e em bienais como a
XXV Bienal Internacional de São Paulo, Insite Biennial 2005 (San Diego/Tijuana), entre outras. No fim da
vejo. Vendo-me inserido nisso ou naquilo, aquilo inserido em mim, a coisa se forma, um
década de 1990 começou a fazer filmes, principalmente documentários experimentais, entre eles Rua algo mais, o inesperado. Imagino, ajo na direção do que imagino, depois salto para o lado
de Mão Dupla, A Alma do Osso, O Fim do sem Fim, Da Janela do Meu Quarto e Andarilho. de lá, para o lugar do desconhecido, que é muitas vezes mais forte e intenso do que o
que antes eu imaginava. O cinema do real é a arte desse encontro, um encontro com o
que você imagina e no entanto revela-se de outra forma. Nessa revelação, nesse susto,
somos convocados diante de um espelho que mostra outro rosto. Qualquer realidade é a
70 Cao Guimarães Documentário e subjetividade – Uma rua de mão dupla 71

extensão de você mesmo; e você, a extensão da realidade. passante, algo que incide e elege, no momento mesmo do encontro entre a imagem que
Olhar o mundo através de um aparelho óptico, enquadrar a realidade, já possui em si uma é dada e os olhos que a percebem. Uma atitude, uma opção de posicionamento, como
dimensão subjetiva muito forte. É impossível destituir o documentário da subjetividade. É num campo de batalha, como a posição dos rifles em uma emboscada num faroeste
ontologicamente impossível. americano, como as cenas iniciais de F for Fake, de Orson Welles – a câmera distante
acompanha uma bela mulher que caminha pela rua sendo devorada pelos olhares
Ao planejar um filme, ao escolher um assunto, você de certa forma começa um processo desavergonhados dos homens pelos quais passa.
de múltiplos recortes, do macro ao micro, do todo às partes. Você objetiviza um espaço
real, prepara a cama onde seu olhar vai poder se deitar. Encontra um lugar para se permitir – Poderemos, ainda sentados no barranco ou em pé na margem do lago, lançar uma
estar perdido. Potencializa um descontrole necessário. Esse movimento dialético entre o pedra na água para vê-la reverberar, gerar um movimento tectônico em sua superfície,
que vem de dentro e o que vem de fora gera um espaço, onde o filme habita. O importante embaralhar seus elementos, desorganizar o aparentemente organizado. Essa pedra como
é não perder esse lugar de vista; lugar que é na verdade um fluxo no qual as coisas se um conceito, um dispositivo, uma proposição. Os trabalhos oriundos desse método
embaralham, esvaziam-se de si e revelam-se outras por algum momento. Esse lugar é o são fundamentados no princípio de ação e reação. Uma proposição qualquer aciona
lugar da câmera ligada diante de alguém ou de alguma coisa. Esse lugar é um momento, um movimento que produz uma reação. São trabalhos que jogam com a noção do
um dos muitos momentos mágicos do processo cinematográfico. esvaziamento da autoria ou, pelo menos, nutrem o desejo do compartilhamento desta.
Um jogo não se joga sozinho, jogos são também fundamentados em uma ação que
“Antes de estudar zen, um homem é um homem, uma montanha é uma montanha. Ao espera uma reação.
estudar zen, um homem é uma montanha e uma montanha é um homem. Depois de
estudar zen, um homem é um homem, uma montanha é uma montanha. Só que você – E, finalmente, poderemos nos lançar a nós mesmos nesse lago. Afundarmo-nos inteiros
está com os pés um pouco fora do chão.” nessas misteriosas águas e, de dentro, abrir os olhos e ver o que acontece. Essa atitude
imersiva reflete um desejo de entrega e investigação, uma propensão ao embate, à mescla,
Esse pensamento do doutor Suzuki, via John Cage, retrata bem o processo da feitura de a vivenciar um pouco mais de perto o que se esconde dentro do espelho, no fundo das
um filme que lida com o real. Ao pensar no objeto de um filme, ao imaginar o universo de águas, encarar o peixe nos olhos, deixar-se levar pela correnteza ou hipnotizar-se com a
um determinado assunto, falsas certezas pululam em seu imaginário, você se sente um calmaria do lago.
Deus criando um determinado mundo.
Portanto, existe o lago e existe você. E no meio disso, na margem disso, ronronares de
Ao ir de encontro ao objeto de seu filme, ao acionar o botão do descontrole, todas as sapos dissonantes, balé da vegetação ao vento, metamorfoses de peixes em luz, bolhas de
coisas se transformam, suas certezas desvanecem, você troca o lugar deificado de um ar atravessando a água. Tudo participa dessa experiência e a autoriza. Tudo estimula, seduz,
mundo imaginário pela crueza da realidade diante de seus olhos. desorganiza, afeta sua percepção. Pois no espaço real uma folha que cai é tão expressiva
quanto o vestido de Marilyn Monroe que voa e a sonoridade de um deserto tão intensa
Você volta a brincar de Deus associando imagens e sons uns com os outros e esculpindo quanto uma cantora lírica no palco.
o tempo e o ritmo de seu filme na edição. Fundamental lugar do reencontro, onde o
homem volta a ser homem, e a montanha, montanha. Olhar as coisas pela segunda vez, 2.
realinhar o caos, reinventar o mundo por meio da imagem e não apenas do imaginário. Um helicóptero sobrevoa uma favela lançando um facho de luz sobre seus casebres. Da
Finalmente, na sala de cinema, todos flutuam com os pés um pouco acima do chão. pracinha um homem observa o belo movimento circular do helicóptero e o facho de luz
cortando a noite escura. Eu observo o homem da pracinha observando o helicóptero.
A realidade é uma coisa híbrida, multifacetada pela incidência de olhares diversos, espelho Alguém com um binóculo pode estar me observando observar o homem da pracinha
sem fundo de um homem, uma cultura, um país. Se a pensarmos como uma lâmina observando o helicóptero. Enquanto observo o homem da pracinha observando o
reflexiva, que nos reflete e nos faz pensar, se a compararmos à superfície de um lago, helicóptero imagino o que ele está vendo e imagino também o que o piloto ou o foquista
poderemos nos relacionar com ela de pelo menos três maneiras: da luz estão vendo lá de cima. De repente alguém grita no meio da favela. Movo meus olhos
na direção do grito, por instinto, por curiosidade. Vejo apenas o facho de luz percorrendo
– Poderemos ficar sentados no barranco contemplando sua superfície (e acho que a pele os casebres apagados. O grito se cala, o helicóptero se vai, o homem da pracinha deita
das coisas é um universo imenso que revela muito do que no fundo se esconde). Existe aí a na grama e fecha os olhos. Uma rede de imagens se constrói em minha memória. O que
possibilidade de um distanciamento, uma relação filtrada por um olhar distante, um olhar realmente vi e o que imaginei ter visto? O que realmente aconteceu e o que imaginei ter
72 Cao Guimarães Documentário e subjetividade – Uma rua de mão dupla 73

acontecido? Nessa dúvida alguma coisa existe. O homem da pracinha faz seu filme em
sua memória, eu faço o meu, da mesma forma o piloto, o foquista e a pessoa do binóculo.
Existem diferentes filmes em cada um de nós para uma mesma realidade. Nisso consiste a
beleza e a magia de lidar com a realidade. Ela nos faz pairar para além de nossas certezas e
nos reinventarmos sempre diante das inúmeras possibilidades que se apresentam.

Somos todos espectadores privilegiados de inúmeros filmes que a realidade nos oferece.
E felizmente nunca vemos a mesma coisa do mesmo jeito. Da mesma forma nunca saímos
de uma sala de cinema com a mesma impressão de um filme que a pessoa ao lado. Pois
arte não é ciência e os DNAs e os vetores de uma obra de arte são fundamentados na
imprevisibilidade. A centopéia que habita sua cabeça ao sair de uma sala de cinema não
tem necessariamente 100 patinhas. Tampouco será a mesma centopéia que existiu um
dia na cabeça do diretor quando imaginou o filme. Ter a coragem de se entregar, saltar
do plano deificado da imaginação para o plano real da imagem em ação, recodificar o
transe e perceber o milagre da multiplicação dos sentidos no que se encontra para além
de sua pessoa.

É necessário, de quando em vez, assassinar o sujeito para que a subjetividade exista. Pois
é no lodo abissal de nossa existência que o sujeito real se move. Esse ser inominável que
está dentro de nós, do qual sabemos tão pouco – é esse o outro rosto que se revela do
outro lado do espelho quando nos propomos a encarar a realidade.
74 75

Como é possível que o sofrimento que não é meu, nem de meu interesse, possa afetar-me
imediatamente como se fosse meu, e com tamanha força que me impele à ação?…
Sobre o Fundamento da Moral, Arthur Schopenhauer

D
iante das inúmeras possibilidades que as mídias hoje oferecem, colocando à
disposição do homem um leque de serviços audiovisuais pelos quais possa
manifestar suas opiniões e sintomas no mundo globalizado, me pergunto:
como se dá a construção de nossa identidade/verdade nos inúmeros diálogos que
surgem espontaneamente através dos blogs, do Orkut, dos sites de relacionamento,
dos messengers? É uma tentativa de construir a própria história, ou de desconstruí-la?
Na internet, anônimos e não-anônimos criam diários e conversas a cada segundo, como
um grito nesse imenso espaço virtual, numa tentativa de criar novas identidades. Tenho a
O documentário como experiência impressão de que o importante nesses diálogos não é a permanência do que se diz, mas
o esvaziamento dos sentimentos, da vida corrida, como as marcas deixadas por um meio
que se acende e apaga, como passos na areia. Percebo uma necessidade de diferenciação
misturada a um mergulho na massa globalizada, um medo de não se manter atualizado.
Érika Bauer Como a não-experiência com base nas imagens que nos chegam a todo instante pela TV,
mas sem que as experimentemos, pois já chegam banalizadas e amortecidas pelo texto.
Formada na Escola de Cinema e Televisão de Munique, Alemanha, realizou pesquisas e dirigiu curtas
entre 1987 e 1993. Realizou seu primeiro longa-metragem, Dom Helder Câmara, o Santo Rebelde, que
ganhou, entre outros prêmios, o de melhor roteiro e montagem no Festival do Ceará, em 2004, e o Sinto as notícias e as imagens do mundo amortizadas para que não as sintamos mais, para que
Margarida de Prata, em 2005. É professora de cinema da Faculdade de Comunicação da UnB. não tenhamos atitudes de rebeldia. Mesmo que esteja tudo fora do lugar, está tudo “normal”.

Fazer documentário é um ato político, um posicionamento diante daquilo que se vê e


sente. Um diálogo com o meio em que se vive. Uma demonstração de vigor diante da
vida, uma manifestação do sentimento de estar vivo.
76 Érika Bauer O documentário como experiência 77

É importante também dizer que é um ato de extrema coragem se expor e poderá ser o processo investigativo, conduzido de maneira independente, à luz de uma
desmistificar o conhecido, assumir diferenças e indiferenças. Lançar-se ao mundo pesquisa insistente e impertinente. E muitos serão os obstáculos encontrados nessa busca.
para se diferenciar, mesmo sem buscar nada de novo na forma, se o conteúdo assim Não existe um modelo, e por isso a diversidade deve ser preservada, sem o dever de levar
o exigir. Ser ou não ser. respostas e de ser utilitária.

É uma maneira, também, de juntar os pedaços, aqueles milhares de fragmentos Essa necessidade humana de se comunicar está profundamente associada à
dispersos e mal contados de nossa história coletiva, e nisso redescobrir algo de nossa necessidade de conhecer, de se perguntar e participar. É o que nos move para novos
história pessoal. Reunir episódios, desvelar a história oficial e reconstruir a “crônica dos olhares e para uma compreensão do mundo, nossa maneira de encontrar um lugar
vencedores”. As imagens de arquivo no Brasil são, em sua maioria, sobre aqueles que no mundo.
“deram certo”.
Antes das câmeras, microfones e tantos outros equipamentos, existiam as imagens
O documentário quer ser linguagem, quer se comunicar. E com tal força que influencia pintadas, o teatro de sombras, a palavra falada e também a dança e o ritual. Tínhamos
os filmes de ficção brasileiros. Assistindo ao maravilhoso Cinema, Aspirinas e Urubus, de meios de expressão, da mesma forma que fazemos hoje com nossos filmes.
Marcelo Gomes, me lembrei do documentário de Wladimir Carvalho O País de São Saruê. A
visceralidade das imagens, o sol do sertão convocando o espectador ao calor dos relatos O documentário faz uso das mesmas possibilidades de que o filme de ficção dispõe
dos sobreviventes. O preto no branco. Os galhos secos rasgando a tela. A verdade de para compor uma cena: plano aberto, plano fechado, travelling, panorâmica,
quem desconhece banalidades. flashback, sem falar daquilo que a montagem pode oferecer para um melhor arranjo
entre as imagens. Mas existe um elemento básico que diferencia um do outro, que
A realidade chama, chacoalha, estremece. Precipita novos realizadores, e não tão novos, a é a abordagem do tema, a maneira como um documentarista se aproxima de seu
responder àquilo que incomoda e/ou emociona. Faz-nos nos mover e entrar em choque objeto, mais sujeito a surpresas, levando a um desnudamento, forçando aberturas
com novos dilemas éticos, políticos e estéticos. A história não fala por si só. É preciso que para o indeterminado, e conseqüentemente à abundância inata daquilo que a
a façamos falar! realidade nos oferece.

Existe uma procura muito grande, por parte dos realizadores, por projetos de filmes Segundo Bill Nichols, professor da Universidade de Rochester, os documentários podem
documentários. Isso é gerado não só pelas facilidades dos meios, hoje mais acessíveis, ser expositivos, observacionais, interativos e/ou reflexivos. O formato varia de acordo com
mas também pelas políticas públicas de regionalização e por uma sempre presente o tema e a abordagem que se queira dar a ele.
necessidade de melhor compreender e apreender o mundo à sua volta.
Como no filme Estamira, cujo diretor, depois de intensa pesquisa, optou por uma
Muitos universitários me procuram para apresentar temas como o primeiro bairro em linguagem mais experimental, ao utilizar os recursos visuais do filme para interagir
Brasília, a colonização finlandesa em Penedo, a terceira idade nas cidades-satélites, a com o personagem e sua loucura. O filme traz imagens quase bíblicas, quando a
violência juvenil em Brasília, o rap em Ceilândia... Porém, mostrar não é mais preciso; um tempestade chega e entra o off de Estamira naquele lixão sob um forte vento. Fascinado
telejornal, qualquer dia, o fará. O que importa, para mim, é aproximar a lente, levantar pelas imagens e pelo carisma do personagem, um deslize: ao encontrar um vidro com
novas questões, conviver com o seu objeto e se perguntar por quê. palmitos (provavelmente estragados), Estamira fala dos almoços que faz, do macarrão, de
como fica bom etc. No cinema, espectadores fazem cara de nojo. Em seguida, vemos os
Entender-se nesse processo de busca, buscar dialogar com seu tema, trabalhar o impacto familiares na casa de Estamira comendo justamente o macarrão que ela comentara em
social, ir ao fundo do poço das questões que serão levantadas numa pesquisa sobre o cena poucos minutos atrás... Um pequeno rasgo na ética do filme. E, claro, provavelmente
tema, tudo isso é que vai dar o verdadeiro sentido para o filme. Tudo isso, claro, aliado ao o palmito não estava lá, uma mentira.
tempo, que amadurece tudo. Tanto o tema quanto o realizador, para entender realmente
para onde será preciso ir. Como uma criança diante de diferentes brinquedos, assim se inicia a jornada do
documentarista – aberto, sem idéias fixas e com olhares ainda dispersos. Assim também
O tempo dá e constrói, no amadurecimento desse diálogo, a dimensão humana aos filmes poderia ser o seu amadurecimento, o seu processo de autoconhecimento na fase final
documentários. Como um embrião que vai crescendo até virar filme, lançando luz na história da montagem – aberto às inúmeras possibilidades de interpretação do mesmo fato. E aí
do ser humano, buscando lacunas e construindo outra história, não-oficial. E não-oficial vem a questão fundamental: a ética.
78 Érika Bauer O documentário como experiência 79

Chegar próximo da verdade de fato seria o mesmo que falar de conhecer a si mesmo. que não pode ser dissolvido nem trocado por nenhuma outra coisa. O eu
Somos tantos, somos tão diferentes em diferentes momentos, fazendo leituras diferentes lhe permite permanecer o mesmo em todas as condições de vida. Assumir
o lugar no mundo, buscar idéias que formarão opiniões, analisar pontos de
das experiências que vivemos, que não existe a possibilidade de chegar a uma verdade
vista, composição de quadro, encontrar maneiras de expor um drama.
final. Ela possui diferentes matizes, dependendo da luz em que for vista.

Diria, então, que o documentário é uma sujeição ao tempo. O documentarista precisa


Personagens escolhidos por nós podem sugerir sentimentos diferentes daqueles
estar conectado com seu tempo, assumindo e criando necessidades que vão gerar novas
que nos levaram a escolhê-los. Não existe unanimidade, e é isso que torna o trabalho
invenções formais. Encontrar seu objeto, seu tema, é manter-se ligado aos acontecimentos
do documentarista interessante e fundamental. Quando tentamos humanizar um
do mundo e a suas conexões com o mundo interno. Colocar perguntas que vão desde a
ídolo, um ícone da sociedade, fazendo um plano de 360º sobre ele, nos aproximamos
motivação do tema até as possibilidades de pesquisa, conflitos a ser levantados, conexões
muito mais do que o enaltecendo ou contando fatos relevantes da história que ele
com a política, leituras diversas etc.
ajudou a construir.

É importante perceber a complexidade do mundo hoje e as inúmeras possibilidades que um


Poderia falar de minha experiência com o personagem de Dom Helder e minha
tema pode oferecer. E, fundamental, não se sujeitar à força do mercado, do neo-liberalismo
pesquisa para o documentário O Santo Rebelde. A pesquisa teve várias etapas. Iniciou-
ou da globalização, ou seja, tudo aquilo que limita, que esvazia conteúdos ou nos torna
se com a descoberta do tema, ou “o tema me descobriu”, depois de uma série de
meros espectadores de algo maior do que nós. Não se deixar anestesiar diante da realidade.
“coincidências”. Vi dom Helder numa entrevista sobre Josué de Castro, fiquei curiosa e
Temos de reagir, ir em busca de novas idéias, novos formatos, abraçar nossa subjetividade.
em seguida deparei com uma biografia recém-lançada. Curiosidade e enamoramento
Pessoalmente, sinto-me como um Dom Quixote, e são personagens assim que me inspiram!
pelo personagem. Quando procurei me afastar da biografia escrita para iniciar minha
própria jornada, enfrentei uma nova crise: falta de material de arquivo no Brasil. Fui atrás
Vargas Llosa escreveu:
de outras fontes, como coleções particulares, entrevistas com colegas, pessoas ligadas à
Teologia da Libertação, movimentos iniciados por dom Helder. Também ouvi fontes do
El gran tema de Don Quijote de la Mancha es la ficción, su razón de ser, y la
outro lado, críticos de seu trabalho etc. Seus críticos, no entanto, eram fracos, não valia
manera como ella, al infiltrarse en la vida, la va modelando, transformando...
a pena assumi-los dentro do filme, porque exporiam a fragilidade do próprio discurso. Al mismo tiempo que una novela sobre la ficción, el Quijote es un canto a la
Fui percebendo a amplitude que o trabalho de dom Helder teve no mundo e parti para libertad. Conviene detenerse un momento a reflexionar sobre la famosísima
a busca de imagens e depoimentos fora do Brasil. Foi a fase mais importante, pois me frase de don Quijote a Sancho Panza:
deu a segurança e uma melhor percepção da dimensão do personagem. A partir daí, “La Libertad, Sancho, es uno de los más preciosos dones que a los hombres
o filme cresceu, e pude pensar realmente que o documentário não seria apenas sobre dieron los cielos; con ella no pueden igualarse los tesoros que encierra la tierra
um homem da Igreja, mas sobre um homem de seu tempo no Brasil e no mundo. E por ni el mar encubre; por la libertad así como por la honra se puede y debe
que não dizer que me apaixonei por ele e que me exporia dessa forma na colocação aventurar la vida, y, por el contrario, el cautiverio es el mayor mal que puede
venir a los hombres” (Dom Quixote de La Mancha, Edición del IV Centenario,
das idéias do filme. Apaixonei-me por suas idéias, sua força, sua feiúra e sua beleza,
Alfaguara, II, 58, p. 984-985).
seu humor e sua inteligência, e – por que não dizer? – suas contradições, como sua
familiaridade com o poder.
Como uma manifestação das novas necessidades dos documentaristas no mundo hoje,
diante das novas tecnologias e da invasão constante das imagens, os filmes adquirem
Ao perceber, no processo da montagem, o personagem que construímos, vamos
formas mais complexas. Documentários reflexivos misturam passagens observacionais
entendendo o tempo como aliado. Como o trabalho amadurece, e como criamos nossa
com entrevistas, a voz sobreposta do diretor com intertítulos, deixando bem claro o que
subjetividade em relação ao personagem. E as descobertas profundas são inevitáveis.
já era um pressuposto: “o documentário sempre foi uma forma de representação, e nunca
uma janela aberta para a ‘realidade’ “ (Bill Nichols).
Jung escreveu:

Experimentar o eu significa estar sempre consciente da própria identidade.


Assim, o cineasta se torna testemunha participante, criando e modificando o mundo
Então você fica sabendo que nunca poderá ser outra coisa senão você enquadrado, desenquadrando preconceitos e inquietando com novas maneiras de
mesmo, que nunca poderá perder-se e que nunca se alienará de si. Isto é percepção, para melhor compreensão das inúmeras faces e possibilidades que a realidade
assim porque você sabe que o eu é indestrutível, que é sempre um e o mesmo, pode oferecer. E é interessante observar a inversão do político para o pessoal, que fabrica
80 Érika Bauer O documentário como experiência 81

seu próprio discurso, efeitos, impressões e pontos de vista. É a voz do texto que ouvimos,
que conduz todo o filme, mesmo quando essa voz tenta se apagar. Na vida fazemos uso
de encenações; por que não as utilizar no filme documentário? Por exemplo, quando
fazemos uso de entrevistas. A representação é parte do processo, não perguntamos o
que não nos interessa, de certa forma conduzimos nossos personagens para o local do
filme, daquilo que nos é importante. Interessante também é destacar o presente dos
personagens. O que fazem, além de falar aquilo que o diretor pergunta, ou o que fariam,
caso não estivéssemos lá.

A construção de uma estrutura de mosaicos, revelando a incompletude de uma verdade!


A intensidade da vida no mundo – lembrando que vivemos num continente colonizado,
com mentes colonizadas, com fortes raízes na injustiça, controlado por organizações
políticas ainda confusas, tão próximos à nação mais rica do mundo.

Somos caóticos e a história que conhecemos – sempre a dos vencedores – foi contada
com base em escolhas. Nossos olhares, no entanto, guardam o potencial de liberdade que
Llosa apontou em Dom Quixote. Como a câmera-olho de Vertov, precisam ir onde ainda
não enxergamos, reconstruindo a realidade, expondo outros paradigmas que suavizem
velhas certezas, desvelando a ordem – freqüentemente estranha – por trás do caos. Quem
sabe, como pessoas e nações, não nos reencontremos menos enquadrados?
82 83

Q
uando comecei a fazer documentários, no começo dos anos 1990, o panorama
das expressões artísticas de áudio e/ou vídeo brasileiras que se seguiu ao porrete
collorido vivia um período preto-e-branco de apartheid. Cinema era cinema.
Artes plásticas eram artes plásticas. Música era música. E o que escapava desses grandes
conceitos, alguns subgêneros como o documentário ou a videoarte, era exatamente
aquilo que o nome indicava: subgêneros. Eram manifestações “menores”, relativamente
esquecidas em algum limbo perdido entre as grandes correntes de expressão, sobretudo
quando realizadas sobre suportes à época considerados menos nobres, como a imagem
eletrônica. Havia uma espécie de cânon implícito, mas geralmente aceito, que não só
separava as manifestações culturais, como também as hierarquizava.

O espaço daquele tempo ainda se definia por um apego a fronteiras bastante estritas.
E em nome delas foram travadas grandes discussões que, ainda que depois tenham se
Filme livre revelado quase sempre putativas, mobilizavam ímpetos passionais. Lembro-me, por
exemplo, do longo debate que se travou entre os defensores do vídeo e os advogados da
película. Durante anos, questionou-se (e alguns poucos retardatários ainda questionam)
a legitimidade da imagem eletrônica como suporte de uma obra de arte audiovisual.
Carlos Nader Felizmente, com o passar da própria matéria-prima central da obra audiovisual – ou
seja, o tempo –, ficou claro que tal questionamento existia sobretudo para defender um
Entretecendo linguagens que vão do documentário clássico à videoarte, Carlos Nader teve corporativismo mal escondido. Tratava-se acima de tudo de uma tentativa institucional de
seus vídeos exibidos em centros culturais de mais de 20 países (como o MoMA, de Nova York, proteger um meio estabelecido, o cinemão tradicional, da competição mais ágil e perigosa
em 1999, e o Tate Modern, de Londres, em 2007) e veiculados em mais de uma dezena dos de uma nova tecnologia.
principais canais de TV do planeta (como o inglês Channel 4 e o franco-alemão Arte). Entre
os prêmios que recebeu estão o Mondial de la Vídeo de Bruxelles (1993), o Internationaler
Videokunstpreis da ZKM, na Alemanha, e o Grande Prêmio de Cinema Brasil (2000). Essa competição, que se fosse exclusivamente estética poderia ter gerado um debate
muito frutífero, escondia, assim, em seu bojo, outra competição, meramente financeira. E
era provavelmente ela o principal combustível a motivar tanta celeuma, já que no universo
84 Carlos Nader Filme livre 85

cultural é, via de regra, do consenso estético entre grupos de influência que decorrem as discussão. Irrelevância esta que já era latente no início dos anos 1990, período ao qual,
decisões de alocação de verba, inclusão em leis de incentivo e julgamento de premiações. aliás, eu terei brevemente de voltar para colocar outra discussão, correlata e igualmente
Em decorrência da reação corporativista do establishment cinematográfico, o cinema irrelevante, mas central para mim e, acredito, para esta publicação: “E o documentário,
feito em vídeo, por exemplo, viveu durante algum tempo uma versão às avessas do especificamente, pode ou não ser considerado arte?”.
célebre paradoxo de Tostines (aquele do “vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho
porque vende mais?”). Assim, o biscoito fino do audiovisual eletrônico passou um período Foi no começo de 1992 que essa questão me apareceu pela primeira vez. Para ela, recebi
considerável excluído dos critérios da Lei do Audiovisual, por ser eletrônico, e igualmente basicamente duas respostas. Uma curta e uma longa. A curta foi: “Não”. E a longa foi: “O
excluído dos mecanismos práticos de aprovação na Lei Rouanet, por ser audiovisual e seu documentário não”. O meu primeiro trabalho não foi, a princípio, considerado “arte”.
supostamente já ter uma lei própria, a Lei do Audiovisual, que na verdade também Eu havia acabado de terminá-lo. Era realmente um vídeo sem grandes efeitos, a não ser
o excluía. Felizmente, essas distorções foram corrigidas a tempo em ambas as pontas, o de misturar verdades e mentiras sobre um personagem, José Alves de Moura, também
e a imagem eletrônica foi paulatinamente sendo resgatada de seu limbo financeiro ao conhecido como Beijoqueiro, que para mim era uma alegoria ambulante do Brasil daquela
mesmo tempo em que era retirada do limbo estético. época, maníaco-depressivo entre a violência e o afeto. Durante os dois meses de filmagens,
em que dividi o mesmo teto com meu personagem, a questão “documentário é arte” não
No território de museus e galerias de arte, deu-se um processo semelhante ao ocorrido teve tempo para me ocorrer. Mas logo depois, com o vídeo já pronto debaixo do braço,
nas salas de projeção. É verdade que no princípio de tudo o vídeo foi usado por artistas pude notar que a maioria dos responsáveis pelas principais instituições que exibiam
mainstream, no melhor sentido da palavra, como Anna Bella Geiger no Brasil ou Nam June vídeos na época acreditava que um documentário de formato relativamente televisivo
Paik na cena internacional. Mas um desvio de rota, iniciado nos anos 1980 e ainda não sobre um homem que saía beijando pela rua não era exatamente arte. Por causa disso,
totalmente explicado, fez com que no começo dos anos 1990 a arte do vídeo acabasse o vídeo ficou um ano engavetado, sem espaço para lançamento. Em 1993, O Beijoqueiro
por se encontrar bastante insulada. Nessa época, a chamada videoarte, apesar de já propor teve sua première no World Wide Video Festival, do curador holandês Tom van Vliet, uma
uma fusão efervescente entre cinema, música, mídia e outras artes plásticas ou temporais, importante plataforma de lançamento da “arte do vídeo” da época. A partir dela, o filme
tinha paradoxalmente um sistema de criação e exibição exclusivo, apartado e a princípio correu não só boa parte daquele circuito internacional de videoarte que mencionei acima,
negligenciado pelos circuitos tradicionais das artes. Mas antes ainda que as salas de cinema mas também parte do circuito de festivais e canais de TV que exibiam documentários “de
aceitassem o vídeo em suas exibições, as galerias, os museus e os próprios artistas plásticos qualidade”. Durante essas exibições, notei que, mesmo que alguns espectadores vissem
foram gradualmente abraçando o meio eletrônico. Foi um processo relativamente rápido, no vídeo apenas o coté do Brasil exotique et bizarre que o Primeiro Mundo cultua, muitos
mas essa aceitação não aconteceu sem passar por algumas situações intermediárias outros enxergavam nele uma experiência de contato legítima e profunda entre um autor
esdrúxulas, como a da Bienal de São Paulo de 1994, em que todas as instalações de genuinamente envolvido e um personagem excepcional. Ou seja, arte.
videoarte foram sintomaticamente colocadas sob uma construção efêmera de lona, uma
tenda anexa ao prédio central. A tenda era uma espécie de apêndice inflável da exposição, Meus quatro documentários seguintes – Trovada, de 1995; O Fim da Viagem, de 1996;
alegoria involuntária que expressava muito bem a dificuldade que os cardeais da arte Carlos Nader, de 1998; e Concepção, de 2001 – iniciaram trajetórias que pareciam, a
daquela época tinham em aceitar definitivamente um novo meio em seu panteão. princípio, menos esquizofrênicas. Eles de cara foram aceitos e mesmo premiados por
instituições culturais importantes, como o Videobrasil por aqui e a ZKM na Europa. Assim,
O estado das coisas hoje é bem outro. A incorporação dos meio eletrônicos por aquela arte foram logo reconhecidos como “arte”. O que aconteceu, estranhamente, é que eles
chamada apenas de “arte” seguiu com rapidez as três etapas que Schopenhauer enxerga não foram reconhecidos como “documentários”. Não foram selecionados para nenhum
no surgimento de toda nova verdade. Primeiro, ela foi combatida. Depois, foi ridicularizada. festival do gênero, nem foram exibidos em nenhuma programação documentária de
E, por fim, foi aceita como se sempre tivesse sido a coisa mais óbvia do mundo. Em poucos TV. De certo modo, era compreensível. Se, por um lado, eles têm várias características
anos, a eletrônica passou de penetra a vedete – tanto no circuito das artes internacionais óbvias de uma linguagem “artística” e “experimental”, por outro, Trovoada, Carlos Nader
quanto na palheta dos artistas contemporâneos. Mesmo que com a abertura definitiva e Concepção não têm algo que caracteriza a maioria dos documentários: uma estrutura
da porteira do museu para a boiada do vídeo possa ter havido algum vale-tudo auto- concêntrica ao seu tema, seja esse tema um cantor, seja uma doença. Esses meus ensaios
indulgente, a quebra de qualquer barreira limitante, de qualquer reserva de mercado, é visuais são o que chamei de “documentários sobre uma sensação pessoal”, com uma
sempre muito salutar. E, hoje, com exceção daqueles poucos retardatários que mencionei, estrutura associativa, como a do pensamento livre. Já O Fim da Viagem fugia um pouco
sempre literalmente de plantão, quase mais ninguém discute se o vídeo em particular ou à regra. O vídeo é uma mistura estranha de cinema direto e proto-reality show, em que
qualquer outra tecnologia moderna em geral pode ou não carregar arte. O tempo, sempre a câmera e eu acompanhamos, falsamente ausentes, uma fatia da vida comum de um
ele, se encarregou de despertar definitivamente toda a exuberante irrelevância dessa homem comum. Mesmo que a princípio esses pequenos filmes tenham causado algum
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estranhamento, talvez pela subjetividade excessiva de sua proposta, a aceitação do esquizofrenia com que se deu. Se o (pequeno) público em geral e a crítica de jornal viram no
caráter documental deles também acabou vindo a tempo. Nesse sentido, dois eventos filme sobretudo qualidades, um determinado setor do meio cinematográfico – um grupo
“oficializaram”, pelo menos para mim, esse processo. Em 2000, O Fim da Viagem foi um relativamente pequeno também, mas inteligente e influente – pareceu incomodado. Esse
dos 25 trabalhos escolhidos para compor a New Documentary, uma mostra do MoMA de fato me surpreendeu especialmente por tratar-se de um grupo basicamente formado por
Nova York que apontava novas linguagens documentais para o milênio que se iniciava. pessoas que têm como bandeira, justamente, um cinema experimental, de que muitas
E, em 2003, a Conferência Internacional de Documentários, vinculada ao festival É Tudo vezes gosto e que sempre respeito. Ao perguntar a algumas dessas pessoas quais eram as
Verdade, apresentou, justamente com destaque positivo para a subjetividade no gênero restrições ao filme, recebi respostas muito parecidas às criticas feitas a O Beijoqueiro, mais
documental, vídeos como Carlos Nader, Trovoada e Concepção. de dez anos antes. Entre outros pecados, Preto e Branco fazia uso exagerado da música,
usava uma linguagem parecida demais com a da TV ou a do cinema tradicionais e não
Obviamente não fui o único realizador a participar da Conferência ou a viver essas questões. colocava uma determinada “postura de autor” como protagonista ululante. E, ainda pior
Artistas audiovisuais brasileiros tão diferentes como Arthur Omar, Cao Guimarães, Carlos que O Beijoqueiro, Preto e Branco misturava histórias diferentes, não ia “fundo” em nenhuma
Adriano, Eder Santos, Eduardo Coutinho, Fernando Meirelles, Francisco César Filho, Inês delas, entrevistava “especialistas”, evitava cenas catárticas e não parecia contar com
Cardoso, João Moreira Salles, Joel Pizzini, Karim Aïnouz, Kiko Goifman, Lucas Bambozzi, nenhum dispositivo ou personagem excepcional para abordar a questão.
Lucila Meirelles, Luis Duva, Marcello Dantas, Marcelo Machado, Marcelo Gomes, Marcelo Tas,
Piche Martirani, Roberto Moreira, Sandra Kogut, Tadeu Jungle, Tata Amaral, Walter Silveira, Diante das críticas, eu tentei afirmar que tinha sido sempre absolutamente deliberada
entre outros, também teriam histórias parecidas para contar. Num determinado momento a decisão de que tanto a maioria das técnicas narrativas quanto a maioria das situações
histórico da criação audiovisual, inserido entre aquele fim dos anos 1980 e começo dos cênicas de P&B não se caracterizassem pela excepcionalidade. Em vários momentos da
1990, eles pegaram o bastão dos pioneiros do vídeo e transitaram deliberadamente edição final, as emoções espetaculares que as câmeras costumam extrair de quem está à
pelos dois lados de uma fronteira arbitrária e caduca, contribuindo para apagá-la. Assim, frente delas foram cortadas. Tudo que fosse “gestual” demais, de minha parte ou da parte
ajudaram a transformar o que era um critério de exclusão num parâmetro de inclusão. Se, dos personagens, acabou me parecendo sempre fora de lugar nesse filme. Por isso, além de
no meio das artes plásticas, a eletrônica é hoje um suporte desejado, no meio do cinema buscar uma sobriedade técnica, não quis ver nele mendigos proféticos, nem presidentes
documental, aquilo a que se dá o nome ora de “subjetividade”, ora de “experimentalidade” da República, nem rappers raivosos, nem presidiários carismáticos, nem beijoqueiros.
é algo hoje recorrentemente incentivado na prática. Se nos debruçarmos sobre os últimos Não só porque esse tipo de personagem não garante experimentalidade nenhuma, nem
cinco ou seis anos do mais importante e tradicional festival de documentários brasileiros, porque a “documentografia” nacional recente já está bem servida deles. Minha decisão
o É Tudo Verdade, observaremos que os principais premiados são belos filmes que se deu-se sobretudo em razão de uma fidelidade narrativa a meu tema, o racismo brasileiro,
encaixariam com facilidade nos rótulos de “experimental” ou “subjetivo”. É certamente o cujo modo de operação se caracteriza por um tom bem diverso: a conversa “pequena”
caso de Rocha que Voa (2002), O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), A Alma do Osso (2004) e entre personagens “pequenos”. E antes que algum defensor da moral documental se
Aboio (2005). Vale ressaltar, também, que critérios semelhantes parecem pautar a escolha aflija, digo aqui apressadamente que eu também acredito que de perto nenhuma
de boa parte dos editais públicos de premiação e fomento à produção. Houve, no espaço pessoa real é pequena. Mas digo ainda que essa minha opção por excluir personagens,
de dez anos, uma efetiva e liberadora mudança de paradigmas. O tipo de experimentalismo técnicas ou gestos “grandiosos” se deu exatamente por uma motivação não moral, mas
audiovisual, pelo qual alegremente nos batemos no começo da década passada, tem hoje ética. Simplesmente a de tentar discutir um tema, se não com justiça, pelo menos com
um grau de reconhecimento inédito pelas correntes culturais mais centrais. justeza. Por essa mesma razão, incluí no corte final as entrevistas com “especialistas”, afinal
o embate teórico interminável é um protagonista histórico da questão racial brasileira,
Eu gostaria de estar aqui apenas festejando esse reconhecimento. Eu o festejo, claro, e vivido de forma muito prática na criação de leis ou na formação de opiniões. Fato é que,
muito, mas começo a enxergar na institucionalização dele alguns perigos. Para tentar apesar de não acreditar na existência de uma balança que necessariamente contraponha
explicá-los, terei de lançar mão, mais uma vez, de uma história pessoal. Afinal, não é de ética e estética, creio que minhas decisões em Preto e Branco se pautaram mais por uma
subjetividade que estamos tratando aqui? Passei quatro anos, de 2000 a 2004, envolvido tentativa objetiva de comunicabilidade e justeza em relação ao tema do que pelo desejo
num projeto sobre a questão racial brasileira. Foi um período de dedicação intensa em de expressão de uma subjetividade autoral. Não é o que eu proponho ou defendo para
que intercalei leituras sobre o assunto, conversas com especialistas e acompanhamento todos os documentários; mas é o que eu acredito que esse documentário específico, ao
de personagens que literalmente vivem a questão da raça na pele. O resultado desse longo de seu processo de realização, tenha me pedido.
mergulho, um documentário de longa-metragem chamado Preto e Branco, foi exibido pela
primeira vez no É Tudo Verdade de 2004 e chegou a entrar em cartaz em um pequeno Não me passa pela cabeça, é claro, que Preto e Branco seja um filme livre de defeitos, tanto
cinema comercial de São Paulo. A reação ao filme me surpreendeu, novamente pela estéticos (dolosos) quanto éticos (culposos). E nem é isso que coloco em questão aqui.
88 Carlos Nader Filme livre 89

O que me preocupa de fato é que, ao reunir na cabeça a maioria das críticas, específicas, certamente o fato de que eles não parecem ter tido a preocupação fundamental de se
feitas ao filme, ocorreu-me a possibilidade de que no subsolo desta época mais liberta enquadrar em cânon nenhum (a não ser que estivéssemos falando da marca japonesa
estivesse germinando, geral, uma espécie de catálogo implícito de regras e parâmetros da câmera utilizada).
com os quais seria possível aferir se determinado documentário é ou não experimental.
Uma espécie de cânon do experimentalismo. Cheguei a essa consideração porque as Não estou dizendo aqui que o artista pode estar livre de toda intenção. Nem de todo
críticas, tão uniformes, não questionavam a legitimidade com que tratei o tema racial, mas princípio, nem mesmo de todo artifício. Claro que sempre há uma intenção inicial. Mas
se referiam sobretudo às técnicas fílmicas que utilizei. Todas elas pelo visto tradicionais acredito ser fundamental que, durante a experiência da criação, o criador – e em particular
demais e experimentais de menos. Assim, a princípio fiquei confuso. Mas, se por um lado o o documentarista, que lida com um imponderável bastante externo a si próprio – esteja
conceito do que é um trabalho experimental para esses críticos me pareceu vago (apenas aberto a mudar cada uma de suas intenções iniciais, se a realidade pedir. Foi o que
sinônimo de “artístico” ou mesmo de “bom”?), por outro, aquilo que faria de um trabalho algo aconteceu com Preto e Branco. Em vários momentos da produção, experimentei efeitos
experimental era bastante específico, que parecia seguir alguma cartilha preestabelecida. mais ostensivos de linguagem. Mas o filme – esse ser que, como todo criador sabe, é
Como se o experimentalismo pudesse realmente estar contido num conjunto de ditames dotado de certa vida própria – tratou de expelir alguns desses efeitos. E, se nem sempre
consensuais que devem ser seguidos a priori. E como se, de acordo com tais ditames, um rejeitou todos os efeitos em si, não aceitou em nenhum momento a ostensibilidade deles
documentário experimental, para ser experimental, devesse necessariamente lançar mão ou qualquer expressivismo objetivo demais de uma subjetividade “de autor”. Estou falando
de técnicas bem particulares como, por exemplo, dispositivos de linguagem marcantes e/ de um caso específico. O processo de realização de P&B ensinou-me que a linguagem
ou efeitos que realçassem uma subjetividade autoral ostensiva. Além disso, outro sintoma expressiva não deveria estar entre os protagonistas e que, justamente por isso, ela serviria
de que realmente se tratava de um cânon é que ele parecia ser ainda mais específico em melhor à própria mensagem que naquele momento carregava. Além disso, repito, não é
relação aos seus tabus, ou seja, às técnicas que um documentário experimental não deve que o filme esteja livre de artifícios de linguagem. Nenhum filme existe sem artifícios de
e/ou não pode usar, como, por exemplo, a realização de entrevistas em plano americano linguagem; um filme é, em si, um artifício de linguagem.
com especialistas e/ou a colocação de música que não faça referência explícita ao universo
dos personagens. Que fique claro: tenho grande admiração por vários artistas que dedicam suas trajetórias
a realizar experiências no campo da inovação da linguagem. É algo que especialmente
Ao mesmo tempo em que eu percebia que Preto e Branco não cumpria as exigências me interessa e a que também dedico parte do meu trabalho. Mas, como Richard Rorty,
dos defensores do Cânon do Experimentalismo, eu o via como um trabalho acredito que “as linguagens não são tentativas de copiarmos o que existe, mas sim
profundamente experimental. E experimental, no meu próprio canonzinho de uma ferramentas para lidarmos com o que existe; assim não há como separar a ‘contribuição
regra só, é simplesmente todo trabalho que decorre de uma experiência legítima. Em que o objeto traz ao nosso conhecimento’ da ‘contribuição dada por nossa subjetividade’ ”.
sendo algo que decorre, a experimentalidade é necessariamente uma qualidade que As linguagens não são um espelho, subjetivo ou objetivo, apartado do mundo. São a rede
se dá a posteriori, ou seja, depois da experiência, e não em função da escolha a priori de conexão do mundo. Não é possível dissociá-las nem dos autores, nem dos seus objetos.
de um conjunto de técnicas. Assim, a experimentalidade legítima, para mim, não só Mesmo no caso hipotético de uma obra que tenha a própria linguagem como fim ou
não é um conjunto de pressupostos que norteie a experiência relativa a uma obra, como objeto principal, ela precisará também de linguagem para ter acesso a seu objeto,
como também é seu oposto. A própria legitimidade a que me refiro está intimamente a linguagem. Linguagem sobre linguagem. Assim, um “experimentalismo de linguagem”
associada à liberdade, à abertura, à ausência de regras restritivas com que o ato de – que é, em última instância, aquilo em que os que crêem no cânon vêem como deus
experimentar é encarado. É nesse sentido que eu via e vejo Preto e Branco como um único e que é também uma das divindades da minha cosmogonia – poderá resultar em
trabalho experimental. Ele decorreu de quatro anos de imersão profunda e aberta na trabalhos interessantíssimos ou jogos de espelhos vazios. Uma experiência artística de
questão racial, uma experiência transformadora para mim, que acredito ter resultado, linguagem também terá de ser necessariamente uma experiência artística de vida e, a
por meio do filme, numa experiência também relativamente transformadora para boa meu ver, também terá sua legitimidade diretamente ligada à liberdade com que se dá.
parte dos espectadores. Sobretudo aqueles para os quais as discussões sobre estilos Gosto de pensar o conjunto de linguagens que constituem a arte como um subgênero
entre cineastas é secundária. Ou aqueles que acreditam que o estilo, como disse Proust, do conjunto de linguagens que constituem a vida.
não deve ser uma questão de técnica, mas uma questão de visão. Não vai aqui, é claro,
nenhum tipo de ataque específico a qualquer filme que se utilize de uma ou mais das Preto e Branco não tem entre suas propostas a de discutir ou inovar as linguagens. O filme
técnicas propostas pelo Cânon do Experimentalismo. Gosto de vários filmes, inclusive quer apenas usá-las como ferramenta. Muitas vezes, a linguagem é como a tecnologia:
alguns dirigidos por mim mesmo, que se encaixariam perfeitamente nos ensinamentos torna-se mais eficiente à medida que se torna mais transparente, na medida em que deixa
experimentalistas do Cânon. Mas entre aquilo que me faz gostar desses filmes está de aparecer. Aliviar o peso dos artifícios de linguagem, ou seja, eliminar a ostensibilidade
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com que a subjetividade se manifesta, não significa necessariamente eliminar a própria Claro que não existe um só ser humano sadio livre de conceitos, com os quais, inclusive, ele
subjetividade. Às vezes, pode significar o contrário. Um olhar mais aberto ao P&B, como norteia sua própria experiência de mundo. O reconhecimento de padrões e a decorrente
o da professora da UFRJ Andréa França, em artigo para a revista Contracampo, vê a transformação deles em conceitos norteadores é algo que define a humanidade. Em
subjetividade como definidora dele, “um filme que se ampara na presença do diretor e no razão disso, é inevitável que cânones de toda espécie pipoquem por aí, em toda época,
tipo de relação que ele estabelece com seus personagens, estruturando os momentos em toda área humana. Mas, para a própria humanidade, não será o território das artes
de encenação entre eles como uma espécie de intimidade partilhada”. Outros olhares justamente o espaço fundamental em que determinada subjetividade pode questionar
abertos veriam no filme, além dessa “encenação íntima” que não quer ser nem ostensiva e reinventar esses conceitos, usando-os da maneira mais liberta possível? E não será esse
nem escamoteada, vários momentos de intervenção explícita. Momentos em que a justamente o sentido mais humano do experimentalismo? Acredito que sim. Por isso,
câmera é entregue aos próprios personagens, ou momentos em que a imagem é tratada acho que qualquer tentativa de canonização do experimental ou de institucionalização
como a de um reality show, ou ainda momentos em que ela, ao contrário, é tratada do subjetivo não são apenas grandes contradições em termos, mas também um inimigo
como uma imagem mais típica de videoarte. Talvez então o grande pecado de Preto e interno que todo artista, documentarista ou não, deve combater.
Branco, à vista do cânon, não seja o de dispensar artifícios experimentalistas, mas o de
misturar vários deles sem afirmar um só. A crença em qualquer cânon geralmente implica
um desejo de pureza mesmo que, como no caso do cânon do experimentalismo, essa
crença esteja travestida de seu oposto, já que a experimentação geralmente coincide
com a afirmação de uma mistura inusitada. Nesse caso, o pecado de Preto e Branco
torna-se ainda mais mortal porque o filme realmente se contrapõe a qualquer desejo de
pureza, misturando não só diferentes efeitos geralmente aceitos como “experimentais”,
mas acrescentando ao caldo efeitos considerados “tradicionais”, como as referidas
entrevistas com especialistas ou o uso “careta” da música. E, para piorar tudo ainda mais,
o documentário não hierarquiza esses efeitos.

A cineasta Agnès Varda disse recentemente numa entrevista à Folha de S.Paulo: “Nos
documentários, eu estou a serviço do tema, me transformo em serva das pessoas e das
histórias, estou lá para ajudá-las, estimulá-las a se expressar. Já nas ficções, claro, eu ocupo
o lugar de artista e reinvento de acordo com minha visão expressiva”. Gosto da idéia de
Agnès, em termos. O artista, o escravo da obra, parece estar eternamente condenado a
jogar uma capoeira metafísica entre esses dois senhores, irmãos de criação: o tema e sua
própria autoralidade. Toda obra é resultado dessa dança-luta. Mas, diferentemente de
Varda, a única coisa que faço é documentário. E eu poderia até dizer que alguns deles,
como Trovoada, estão um pouco mais a serviço da autoralidade e alguns outros um
pouco mais a serviço do tema, como é o caso de Preto e Branco. De todo modo, não é
esse tipo de distinção o que mais me interessa. Em qualquer trabalho, existe um grau
de amalgamamento entre o tema e o autor, o mundo e o autor. Na verdade, o trabalho
é justamente esse amálgama. O que importa realmente, para mim, repito, é que ele
seja, nos termos que mencionei, fruto de uma experiência legítima, livre, e que consiga
ser uma boa tradução dessa experiência. E, se vejo com maus olhos um conjunto de
conceitos que norteiam a experiência de uma obra, também só posso desconfiar ainda
mais quando determinado cânon passa a nortear o julgamento de uma obra. Aí é que
mora o perigo maior, ainda mais quando o cânon vem travestido de receita “libertária”
ou “moderna” e é justamente o oposto disso. Um julgamento baseado em conceitos
apriorísticos está sempre correndo o risco iminente de se transformar num julgamento
baseado em preconceitos.
92 93

J
udith Cortezão, uma sábia amiga, certo dia me disse: “O que o fotógrafo enfoca não
deve ser propriamente a realidade, mas, sim, o impacto na sensibilidade e na mente
dessa realidade, isso traz sempre uma imagem de sonho”.

Judith me disse isso em meio a uma espessa neblina, em que, mesmo lado a lado, mal
podíamos nos enxergar. Estávamos próximos ao Chuí, na fronteira entre o Brasil e o Uruguai,
para a filmagem de um documentário, que, depois dessa frase dita num tom “primordial”,
ganhou o título de Paisagens Invisíveis.

A angústia que senti, gerada pela impossibilidade de registrar a amplidão do vale que
havia visitado dois meses antes, na pesquisa do filme, me colocava em busca de outro
dispositivo, pois o imponderável redirecionava o filme a voltar-se para a única paisagem
visível, uma paisagem interna, impressa na alma.

Pode parecer contraditório, mas, na “arte de documentar”, aquilo que nos desestabiliza
Outros novos rumos é, muitas vezes, o fator que nos alimenta e aguça a criatividade, pois não há resposta
mais sincera e “real” do que nossa postura e nossas atitudes diante dos fatos; enfim,
a única certeza que podemos alimentar é a de nos prepararmos para algo que
desconhecemos. O “real” no documentário, de fato, nada mais é do que a arte de lidar
Paschoal Samora com esse imponderável.

Documentarista, realizou os filmes Confidências do Rio das Mortes (1999), a série de documentários Estamos constantemente em busca desse desconhecido, algo em geral não verbalizado
Ao Sul da Paisagem (2000-2001), Rio de Fevereiro (2003) e Diário de Naná (2006). ou ainda impossível de o ser, pois, ao longo de mais de um século, foram as reflexões acerca
dos conflitos dos documentaristas que levaram o gênero a ser um meio de expressão em
si. O documentário “auto-reflexivo” não é necessariamente algo objetivo ou decifrável a
olho nu, pois o processo de sua linguagem criativa já é, em si, a própria linguagem.

A jornada do programa Rumos pôde me proporcionar uma espécie de “desvelamento” dos


motivos pelos quais faço documentários, pois, ao compartilhar esse “pensar o filme” de muitos,
na reflexão acerca das idéias em debate, nos encontros e reencontros com as pessoas e nos
94 Paschoal Samora Outros novos rumos 95

universos de cada projeto lido e falado, encontrei-me novamente diante dessa espessa neblina. qual se atribui o conceito de cinema-dispositivo, citando filmes como 33, de Kiko Goifman,
Vieram à tona durante o ciclo de palestras realizadas em diversas capitais do país ao e O Fim e o Princípio, de Eduardo Coutinho, nos quais o realizador delimita principalmente
longo do programa Rumos questões inesgotáveis, longamente discutidas na história do o tempo e o espaço de seu recorte e, ao estabelecer esses limites na investigação, assume
documentário desde a sua invenção, que atribuem ao processo documental um caráter de antemão sua impossibilidade, que se converte automaticamente em liberdade de
existencial por excelência, por situar-se nos limites entre o que é realidade e o que é sustentar, ou quem sabe suportar, o seu propósito de realização do filme.
invenção ou, ainda, pela transposição para filme de sua matéria-prima tão “concreta”,
“palpável” e ao mesmo tempo tão “inconstante” e “volátil” – o real. O conceito de cinema-dispositivo, de certa forma, liberta o realizador do terrível fardo do
“real”, afinal, esse objeto de estudo, e de desejo, do documentarista é tão infinito, tão vasto,
Com a mesma pertinência de questões capitais como essas, fui contemplado nesse tão concreto, que pode ser uma grande armadilha ante o imponderável.
processo com a convivência com grandes pensadores contemporâneos desse gênero,
com reflexões novas e bastante instigantes acerca do filme documental. De fato, esse realizador talvez busque a si mesmo em cada personagem ou em cada
paragem em que se encontre, e encontra-se, por fim, em busca de um lugar no mundo.
Francisco Elinaldo Teixeira, realizador e teórico de cinema, autor do livro
Documentário no Brasil, defende com muita propriedade o que ele chama de São fatores como esses que caracterizam o documentário hoje como “arte do documento”,
“cinema expandido”, partindo da idéia de que toda forma de experimentação no porque se realimenta, ao longo de sua história, dessa postura de “construção em tempo
âmbito cinematográfico encontra no gênero documental um terreno fértil para o real”, de reflexão sobre a natureza de sua sintaxe que confunde sujeito e objeto, de busca
cruzamento dessas formas de expressão. infinita de acesso a níveis sutis de realidade.

Seja pela linguagem, seja pela própria natureza aberta e visceral, o documentário tornou- É justamente essa vocação existencial do documentário que ponho em questão: a
se a ferramenta de investigação de artistas e profissionais de outras sintaxes, extrapolando natureza de construção, desconstrução e reconstrução de um filme.
os limites entre o documentário, as artes plásticas e a poesia.
De fato o documentarista é um ser em conflito, pois a busca desses níveis sutis de realidade
Em sua argumentação, Teixeira reconstrói a história da linguagem no documentário, se dá geralmente no meio de um turbilhão, a partir de fatos que ele cria ou nos quais
partindo de conflitos entre conceito e resultado na obra de Dziga Vertov e culminando interfere, utilizando-se da ferramenta do filme a fim de torná-los “fatos únicos”.
numa rica discussão a respeito da produção audiovisual brasileira contemporânea, em
que cita Arthur Omar e Cao Guimarães. Um autor imperdível. Paradoxalmente, o documentarista também é aquele que detém a ferramenta do
registro, é o elemento mobilizador do ato documental, mas com o desejo de que, para
José Carlos Avellar, professor e produtor, chama atenção para o fato de que a televisão no além do esperado ou calculado, exista algo muitas vezes indizível a ser flagrado.
Brasil, que seria o espaço dos naturais (documentários), pertence aos posados (ficção), fato
contraditório, mas possível, afinal, a televisão brasileira nasceu do rádio. Nesse sentido, o documentarista passa a ser mais um personagem incondicional de seu
próprio filme, e é nessa busca estética e ética de sua abordagem que o documentário
Avellar faz essa observação a fim de discutir os espaços do cinema documental na “moderno” se apresenta. Um cinema de “descoberta”, em tempo real.
chamada “retomada do cinema brasileiro”, com o difícil objetivo de identificar esse “ser”
invisível chamado “mercado”, num país onde a falta de políticas específicas para o gênero À idéia de documentário, hoje, soma-se a história de sua invenção e reinvenção ao longo
e onde a banalização diante de um modelo televisivo nivelador já seriam suficientes para de mais de um século e essa visceral natureza de busca e descoberta inerente a ele,
empurrar o documentário para um abismo sem precedentes, condicionado a um modelo ao advento do digital, uma espécie de “democratização” da ferramenta que traz certos
de produção medíocre, óbvio e maçante. poderes de expressão a nós, seres documentaristas e marginais por excelência.

Eis a grande contradição: a televisão como espaço natural dos “naturais”, em regra geral, Seja pela verdade, seja pela invenção ou, ainda, pela invenção da verdade que se faz
sempre representou o “túmulo do documentário” no Brasil. urgente e acessível, de fato, o documentário descobriu na última década a possibilidade
de ser e estar no mundo como meio de expressão, por tornar-se algo viável, possível, e
Entretanto, Avellar sinaliza com muita fé e sabedoria para trabalhos recentes como Edifício que brinca e brinda a própria imprevisibilidade.
Master, de Eduardo Coutinho, e Nelson Freire, de João Moreira Salles, que superaram a
própria impossibilidade e se estabeleceram bem nas salas de cinema, espaço natural dos O resultado é nada menos que uma produção efervescente e multilateral que imprime a
posados, sobretudo pela força e personalidade de sua abordagem. necessidade e a urgência desse meio em si.

Consuelo Lins investiga um mecanismo recorrente na produção documental brasileira, ao O documentário carrega como seus maiores trunfos a dualidade, a imprevisibilidade, a
criação e a impossibilidade, fatores esses naturais, comuns à vida e à existência.
96 97

Q
uando, em 1997, foi criado o projeto Rumos Itaú Cultural1, já se vislumbrava a
importância de fomentar a produção audiovisual brasileira, mais especificamente
o gênero do documentário. Naquela época, várias iniciativas promoviam reflexões,
exibiam filmes inéditos, realizavam mostras itinerantes, dando início a um projeto
permanente de fomento e difusão e colocando o documentário no foco dessas ações. O
que se anunciava como uma aposta na renovação da produção artística e no estímulo aos
valores emergentes se tornou um dos projetos mais importantes do Instituto Itaú Cultural
e reconhecidamente um dos mais bem-sucedidos programas de abrangência nacional na
área da cultura.
1
A arte e a produção intelectual brasi-
leiras são a matéria-prima do programa
Uma breve panorâmica nessa quase uma década de atividades voltadas para o Rumos Itaú Cultural. Por meio do apoio a
desenvolvimento da produção de documentários revela uma geografia de projetos que projetos que se enquadrem nessas duas
vertentes, o Instituto contribui para a
se concretizaram graças à credibilidade dada pelo Itaú Cultural a centenas de produtores, reflexão sobre a realidade cultural e so-
diretores, roteiristas, técnicos e pesquisadores que transformaram suas idéias em imagens cial do país. O princípio do programa é a

Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo: trajetória e perspectiva e sons de nossa brasilidade. Ao todo foram 30 documentários finalizados e 13 projetos de
identificação de iniciativas tanto no ter-
reno das artes (cênicas, visuais, musicais,
interativas, audiovisuais, literárias) quan-
pesquisa e roteiro desenvolvidos, com base em 1.359 propostas encaminhadas de todo o
to no do pensamento (pesquisa acadê-
país, nas quatro edições realizadas até aqui. mica, educação, jornalismo). Projetos
inéditos, em fase de produção ou que,
já existentes, ainda não chegaram ao
Roberto Moreira S. Cruz Nesse cenário, é possível estabelecer um paralelo entre a retomada da produção conhecimento do grande público rece-
bem do Rumos o aporte financeiro e de
Gerente do Núcleo de Audiovisual/Itaú Cultural cinematográfica do país a partir de meados da década de 1990 e a nítida efervescência infra-estrutura para se concretizar. O pas-
documentarista nesse período, com a opção do Itaú Cultural de reconhecer e apoiar as so seguinte é a difusão, série de ações
que amplificam a todo o país o conteú-
produções desse gênero. O que se afirma aqui não é uma relação direta de causa e efeito do dessas iniciativas. O Rumos promove
entre a realidade do mercado e a lógica proposta pelo projeto – o que seria superestimar o a circulação de trabalhos selecionados
com a realização de exposições, exibi-
alcance de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo –, mas, sim, o reconhecimento da assertiva ções, espetáculos, registros fonográficos
e videográficos e publicações impressas
dessa proposta, sua coerência conceitual e sua correlação direta com as perspectivas e eletrônicas.
históricas desse contexto e os diagnósticos apurados na experiência de construir um
2
Amir Labaki é crítico de cinema e dire-
projeto de fomento de acordo com a missão do Instituto e que atenda às demandas da tor-fundador do É Tudo Verdade – Festival
área. Como reconhece Amir Labaki2: Internacional de Documentários.
98 Roberto Moreira S. Cruz Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo: trajetória e perspectiva 99

• Sebastianismo no Brasil, de Cláudio Assis


O Itaú Cultural apostou no documentário, muito antes da hegemonia desse Pesquisa e roteiro para documentário sobre o movimento sebastianista no Brasil e suas
gênero no cenário. Um aprimoramento dessa iniciativa foi o Rumos Itaú várias formas de manifestação cultural e religiosa.
Cultural Cinema e Vídeo, voltado para a produção de documentários. Fui
um dos membros da comissão de seleção da edição 2003, cuja participação
• Hélices, de Carmela Gross
foi longa, profunda e instigante. Desconheço qualquer processo similar de
Vídeo experimental inspirado em objetos criados pela artista plástica Carmela Gross e
fomento qualificado à produção no Brasil.
expostos no MAM/RJ em 1993.

• O Livro de Raul, de Arthur Omar


Metodologias e resultados
Documentário experimental realizado com base em imagens realizadas no Chile com o
cineasta Raul Ruiz. Um diálogo entre o processo criativo do cineasta e o do diretor do
As quatro edições de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo apresentaram mecânicas distintas.
documentário.
Essas mudanças foram em grande parte motivadas pelo próprio amadurecimento da
proposta do programa e pela necessidade de adequação à política cultural que orientou
Nessa primeira edição do programa, o Itaú Cultural teve o privilégio de contribuir para a
a instituição nos últimos anos. Uma breve descrição de cada uma das edições ajudará
realização do documentário Santo Forte, de Eduardo Coutinho, filme que é um emblema
na compreensão dos objetivos que estavam ali propostos, dos resultados obtidos e das
da produção documentarista brasileira contemporânea. A marca estilística de seu diretor
perspectivas que se abrem para a continuidade do programa.
nos revela a religiosidade dos moradores da Favela Vila Parque da Cidade, situada na Gávea,
Zona Sul do Rio de Janeiro. Como afirma Consuelo Lins:
Com a crescente retomada da produção audiovisual no país, vários projetos de cinema
e vídeo passaram a ser encaminhados ao Itaú Cultural em busca de apoio e parceria
O que se dá no dia-a-dia dos personagens de Santo Forte está para além de
para sua realização. A qualidade dos projetos e a forte demanda do setor levaram à qualquer tentativa de classificação, de qualquer conceito ou generalização.
consolidação de uma política de apoio à produção voltada especificamente para o Esta é uma das grandezas do filme: nos dar a ver múltiplas formas de se
documentário, enfatizando temas relacionados à arte e à cultura brasileiras. Naquela apropriar das principais religiões praticadas no Brasil, seja umbanda,
época, entre os anos de 1997 e 1998, momento embrionário em que a instituição catolicismo ou evangélica; mostrar diferenças onde outros só vêem
assinalava a necessidade de atuar como apoiadora de projetos audiovisuais, as propostas obediência e mesmice.4
foram enviadas de maneira informal, sem necessariamente passar por um processo
de prospecção – convocação por meio de um edital, por exemplo. Portanto, essa Os resultados obtidos nessa primeira edição estimularam a continuidade do programa.
primeira safra de selecionados se deu por escolha direta, tendo estes sido analisados e Em 1999, um novo programa foi lançado, reformulado e ampliado para três modalidades
escolhidos com base na viabilidade de produção e na pertinência do tema. Os projetos de fomento:
contemplados em 19983 foram:
• Jovens Realizadores: destinou-se a projetos de jovens realizadores com até 25 anos de
• Arte e Tecnologia, de Walter Silveira e Tamara Ká idade e vínculo universitário;
Pesquisa e roteiro de cinco documentários sobre a produção de arte e tecnologia no Brasil. • Desenvolvimento de Projetos: contemplou pesquisa, roteiro e confecção de orçamento
e cronograma com o objetivo de permitir ao realizador formatar seu projeto para a
• Santo Forte, de Eduardo Coutinho produção e posterior veiculação;
Documentário que discute a religião como elemento fundamental no cotidiano brasileiro • Finalização: contemplou projetos que já tinham realizado a captação de imagens e
3
Nesse ano, paralelamente ao progra-
para a compreensão da realidade e de suas contradições eminentes. necessitavam de um aporte para sua conclusão (pós-produção e edição).
ma de apoio à pesquisa e realização
de documentários, foi elaborada uma
programação de mostras periódicas na
• Geraldo de Barros – Trajetória de um Brasil Moderno, de Michel Favre e Fabiana de Barros Ao todo foram 449 projetos enviados de diversas regiões do Brasil, sendo 301 para
sede do Itaú Cultural, em São Paulo. De Desenvolvimento de roteiro sobre o artista, designer e fotógrafo Geraldo de Barros. Desenvolvimento de Projetos, 80 para Jovens Realizadores e 68 para Finalização.
setembro de 1998 a novembro de 1999,
essa programação divulgou obras de re- Submetidos à análise da comissão responsável pela premiação, formada por André 4
Lins, Consuelo. O documentário de
ferência, exibindo a produção nacional e • Peito Vazio, de Paulo Caldas, Lírio Ferreira e Hilton Lacerda Parente, Carlos Alberto de Mattos, Daniela Capelato, Francisco Cesar Filho e Roberto F. Eduardo Coutinho – Televisão, cinema e
internacional em formatos e linguagens
diversas. Desenvolvimento de pesquisa e roteiro para documentário sobre Cartola e a cultura do samba. Moreira, os projetos selecionados foram: vídeo. Rio e Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
100 Roberto Moreira S. Cruz Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo: trajetória e perspectiva 101

Finalização: a cidade dos sãos (Santos/SP) da cidade dos loucos (manicômio do Juquery, em Franco
da Rocha/SP).
• Glauces, o Estudo de um Rosto, de Joel Pizzini
Documentário sobre Glauce Rocha (1930-1971), uma das mais importantes atrizes • Cinema de Casa, de Marcos Toledo
brasileiras, com os principais registros de sua carreira no cinema e no teatro. Documentário sobre o uso doméstico do super-8 no Recife.

• A Pessoa É para o que Nasce, de Roberto Berliner • Filme da Família, de Maya Pinsky
Documentário sobre três irmãs cegas cantadoras dos Cariris Velhos, na Paraíba. Documentário co-realizado por integrantes de uma mesma família que nunca tiveram
experiência com cinema ou direção.
• Barra 68 – sem Perder a Ternura, de Vladimir Carvalho
Mostra a invasão da Universidade de Brasília por tropas militares em 1968, seguida pela • Tom Zé ou quem Irá Colocar uma Dinamite na Cabeça do Século?, de Carla Gallo
promulgação do AI-5 e pelo fechamento do Congresso. Retrato estético do cantor e compositor Tom Zé.

• No Rastro da Navilouca, de Ivan Cardoso • Terra-Mãe, de Andre Francioli


Apresenta amplo painel audiovisual da produção udigrudi e de seus bastidores, no início Conta a experiência de transformar uma rádio comunitária em porta-voz de
dos anos 1970. trabalhadores sem-terra.

Desenvolvimento de Projetos: • Cemitério de Elefantes, de Rodrigo Lorenzetti


Documentário sobre um ator (Kaio César) orientado por um diretor (Zé Carlos Machado) a
• No Olho do Furacão, de Renato Tapajós e Toni Venturi sair à rua para construir seu personagem, observando mendigos bêbados.
Documentário sobre a história dos militantes da luta armada brasileira.
• Internos, de Luciana Rocha
• A Caravana do Brega, de Ursula Vidal Documentário que retrata a produção cultural e artística em uma prisão.
Dois cantores dão fôlego a um ritmo cultuado nas festas de subúrbio da Amazônia: o brega.
Nesse universo em que falta estrutura de mercado, sobram criatividade e extravagância. Mais uma vez uma edição que teve como resultado filmes e projetos que se destacaram
pela qualidade, originalidade temática e expressividade criativa. Barra 68 – sem Perder a
• Koellreutter: Experiência do Tempo, de Carlos Adriano Ternura, de Vladimir Carvalho, é um importante documento histórico sobre a determinação
Documentário sobre Hans-Joachim Koellreutter, um dos mais importantes compositores do antropólogo Darcy Ribeiro de criar a Universidade de Brasília, a interferência autoritária
da música brasileira. do governo sobre esse projeto universitário e a repressão sofrida pelos estudantes
e professores nos anos da década de 1960. Em A Pessoa É para o que Nasce, o cineasta
• O Folclore Urbano nas Páginas do Notícias Populares, de Renata Druck e Janice D’Avila Roberto Berliner conta como sua vida cruzou com a das cantoras populares da Paraíba,
Investiga o significado de três lendas urbanas paulistanas: o Bebê Diabo do ABC, a Loira três irmãs, todas cegas. O documentário acaba por transformar a vida das artistas, que
Fantasma e a Gangue do Palhaço. viviam em estado de pobreza, desamparadas e sem perspectivas5.

• Carranca de Acrílico Azul Piscina, de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz Da mesma forma, os projetos das categorias Desenvolvimento de Projetos e Jovens
Ensaio poético sobre o sertão contemporâneo, traz uma reflexão sobre como a região Realizadores, uma novidade dessa edição, apresentaram pesquisas e roteiros de excelente
marcada pela aridez, pelo isolamento e pela escassez tem convivido com agudos qualidade e diretores iniciantes que tiveram por meio do Rumos Itaú Cultural Cinema e
processos de globalização e modernização cultural. Vídeo a oportunidade de realizar seu primeiro documentário.
A terceira edição do programa repetiu a mesma estratégia da edição anterior, incentivando 5
Esse filme foi definitivamente concluí-
Jovens Realizadores: a produção de documentários em três categorias. Na etapa de recebimento dos projetos, do em 2005 e exibido nacionalmente no
circuito comercial. Mas vale ressaltar que
priorizou-se a divulgação do programa numa tentativa de promover a profissionalização na o projeto teve em Rumos Itaú Cultural
• A Soltura do Louco, de Bernardo de Castro e Cristian Cancino formatação dos projetos dos proponentes. Para isso foram realizadas palestras promovidas Cinema e Vídeo o ponto de partida para
a realização, cerca de quatro anos antes
A fronteira que separa a loucura da sanidade é confrontada com a fronteira que separa em cinco instituições parceiras, para anunciar o programa, apresentar e sugerir modelos de sua finalização.
102 Roberto Moreira S. Cruz Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo: trajetória e perspectiva 103

de propostas e suas formatações mais adequadas. O resultado foram 540 projetos inscritos • Eu Vou de Volta, de Camilo Santos Cavalcante
e um salto qualitativo das propostas. Essa pesquisa descreve o regresso de migrantes nordestinos à terra de origem.

Vale ressaltar o trabalho da comissão de seleção nessa terceira edição que, após • Jardelina Silva e Sua Assinatura do Mundo, de Cristiane Mesquita
uma primeira triagem6, analisou em conjunto 85 projetos de Produção, 39 de Jovens É uma investigação sobre o vestuário surrealista da ex-costureira Jardelina Silva.
Realizadores e 39 de Desenvolvimento. Nessa etapa foi considerado o material
complementar dos projetos (roteiro, currículo e portfólio). Para chegar à seleção final • Linhas de Organdi, de Glauber Filho
dos projetos de produção, foram utilizados critérios de orçamento, para que se atingisse Em Córrego dos Fernandes, município de Aracati (CE), existe um grupo de 12 rendeiras, de
o maior número possível de premiados. Foram eliminados projetos cujo orçamento não várias gerações, que ainda conservam as tradições de seus antepassados.
era coerente com o produto, que se aproximavam do teto de maneira artificial, bem
como projetos que não se adequavam de maneira rígida aos critérios utilizados nas fases • Tão Longe, Tão Perto, de Inês Cardoso
anteriores. Os ganhadores nessa edição foram: Esse projeto investiga as conseqüências deixadas pela extinção do trajeto ferroviário entre
Crato (PE) e Maceió (AL), rota construída pelos ingleses no início do século XX.
Produção:

• 33, de Kiko Goifman Jovens Realizadores:


Documentário em que o diretor Kiko Goifman procura sua mãe biológica com base em
dicas de detetives de São Paulo e Belo Horizonte. • E Agora, José?, de Maya Da-Rin
No alto da Mantiqueira, entre o céu e a terra, dois homens caminham por estradas reais e
• Nasceu o Bebê Diabo em São Paulo, de Renata Druck imaginárias.
Originadas em boatos, as lendas populares foram noticiadas pelo jornal Notícias
Populares. Na busca da origem de cada uma, é revelado um universo no qual fantasia e • Encomenda ao Ganso, de Pablo Lobato
realidade se confundem. O cineasta faz uma proposta ao artista plástico marginal Paulo Pessoa, conhecido em Belo
Horizonte como Ganso, para que este crie uma obra com três espaços vazios e passa a
• Na Garupa de Deus, de Rogério Correa acompanhar o processo criativo.
É uma reflexão sobre a vida na Grande São Paulo com base no perfil das pessoas que tiram
da motocicleta sua sobrevivência: os motoboys. • Outras Amazonas, de Marina Weis
O documentário procura uma aproximação com o mundo das mulheres da tribo indígena
• Me Erra, de Paola Barreto dos waiãpis, no Acre, para registrar seu cotidiano entre a floresta e a cidade.
“Me erra” é um jargão usado pelos boxeadores da Academia Nobre Arte, que funciona há
12 anos no Morro do Cantagalo, no Rio de Janeiro, como uma iniciativa pioneira de boxe • Se Tu Fores, de Ilana Feldman e Guilherme Coelho
amador e trabalho comunitário. Um encontro com personalidades do samba tradicional carioca.

6
• O Atelier de Luzia, de Marcos Jorge • Tranca Abre, de Paula Siqueira e Ricardo Calaça
A comissão de seleção recebeu separa-
damente uma relação de projetos, assim Documentário que propõe analisar os vestígios arqueológicos brasileiros contrapondo Documentário sobre a possessão religiosa em Brasília, que destaca sua importância para
dividida: Bruno Vianna e Francisco Cesar
Filho – 116 projetos de Produção, 27
essa iconografia com as pichações urbanas. os adeptos da umbanda, do neopentecostismo e da doutrina do Vale do Amanhecer.
projetos de Desenvolvimento. Alexandre
Veras – 51 projetos de Produção, 40
projetos de Jovens Realizadores e 43 • O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento Essa foi uma safra extraordinária, em que os filmes tiveram grande repercussão pública,
projetos de Desenvolvimento. Roberto O cotidiano no cárcere do Carandiru, sob o ponto de vista dos presidiários. sendo exibidos no circuito comercial e premiados em festivais e mostras internacionais. O
Moreira dos Santos Cruz – 57 projetos de
Desenvolvimento e 85 projetos de Jovens Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento, é um bom exemplo disso. Foi gravado nas
Realizadores. Paulo Roberto Rego Barros Desenvolvimento de Projeto: dependências do Carandiru, um presídio com mais de 9 mil detentos localizado na região
Biscaia Filho – 51 projetos de Produção,
14 projetos de Desenvolvimento e 45 metropolitana de São Paulo e desativado no ano em que o documentário foi concluído.
projetos de Jovens Realizadores.
Com imagens feitas, em boa parte, pelos próprios detentos em atividades e oficinas de
104 Roberto Moreira S. Cruz Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo: trajetória e perspectiva 105

produção realizadas pelo diretor, esse filme desvenda a rotina dos protagonistas e revela informações sobre o projeto Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo, assiste on demand aos
as condições de vida no cárcere. Premiado na 60ª edição da Mostra Internacional de Arte vídeos da série Brasil 3x4 e a alguns dos filmes produzidos nas edições anteriores.
Cinematográfica de Veneza, no Festival Internacional de Leeds e no Tribeca Film Festival,
Paulo Sacramento reconhece a importância do programa Rumos neste depoimento: Vale a pena lembrar aqui algumas das histórias narradas nos filmes da série. Em
1969, a cidade de Carrapateira, no interior da Paraíba, foi considerada uma das mais
O Itaú Cultural viabilizou parcialmente a realização de O Prisioneiro carentes do Brasil. Naquele mesmo ano a tripulação da Apolo 11 pisava o solo lunar
da Grade de Ferro. O Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo foi pioneiro pela primeira vez. Mais de 30 anos depois, o documentário Carrapateira não Tem Mais
no apoio a documentários, sendo uma iniciativa que já alcançou Ciúmes da Apolo 11, de Fabiano Maciel, mostra como vive o povo daquela cidade nos
extraordinários resultados, merecedor de incrementos para expandir a
dias de hoje e relaciona a conquista da Lua com os sonhos pessoais de progresso e
excelência de sua atuação.
prosperidade no sertão nordestino. Em Garota Zona Sul, Luciano de Paiva Mello revela
as diferentes realidades de duas garotas da mesma idade, mas de classes sociais
Outro documentário que também teve uma repercussão muito positiva foi 33, de
distintas. Uma é carioca, mora com os pais numa casa confortável de classe média, no
Kiko Goifman. Bastante original em sua proposta, o apoio a esse projeto viabilizou
Leblon. A outra mora com a mãe e mais nove pessoas numa casa simples no bairro do
integralmente a produção executiva do filme e permitiu que o realizador se aventurasse
Capão Redondo, periferia de São Paulo. Os cineastas Karim Aïnouz e Marcelo Gomes
na busca por sua mãe biológica. Como declara o próprio diretor, “a equipe do programa
enveredam por uma viagem e um devaneio pelo sertão brasileiro. Em Sertão de Acrílico
Rumos Cinema e Vídeo teve coragem de apostar no documentário 33 e apoiar um projeto
Azul Piscina, lugares remotos revelam tradições e costumes de uma paisagem brasileira
nada convencional”. Kiko Goifman sempre soube que era filho adotivo e, aos 33 anos,
que é ao mesmo tempo primitiva e contemporânea, regional e globalizada. Baseado
num prazo de 33 dias, se aventurou numa experiência em que sua vida pessoal e a de
em entrevistas e com uma rica iconografia da época, Aristocrata Clube, de Jasmin Pinho
seus familiares passaram a ser investigadas. Tendo como referência estética o filme noir
e Aza Pinho, traça um panorama histórico desse clube recreativo exclusivamente de
americano e abordando a realidade sob um olhar detetivesco, o filme mescla elementos
negros, fundado na década de 1960 na cidade de São Paulo. O último filme da série é
narrativos ficcionais elaborados com base no ponto de vista do narrador – o próprio
Invisíveis Prazeres Cotidianos, de Jorane Castro. Um retrato de Belém do Pará com base no
diretor – e do clima de suspense e dramatização em que os protagonistas são envolvidos.
relato de seus jovens moradores, que se expressam e se comunicam pelos blogs. Pelas
Como observa Jean-Claude Bernardet:
distâncias geográfica e cultural, desenvolveu-se em torno de si mesma e da Amazônia
uma cidade que desde sempre viveu afastada do mundo, quase uma autarquia.
Essas pessoas-personagens obedecem a uma construção dramática. Os
personagens têm objetivos, os personagens enfrentam obstáculos (que eles
superam ou não superam), alcançam seus objetivos ou não, exatamente Essa edição de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo também apresentou uma nova
como nos filmes de ficção, e tudo isso organizado numa narrativa.7 proposta no processo de seleção dos projetos. Para permitir uma coerência na seleção
dos filmes e para que a instituição garantisse qualidade conceitual e técnica da série, a
Em 2003, quando foi lançada a quarta edição de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo, uma comissão de seleção atuou como commission editors. Como afirma Amir Labaki, um dos
nova estratégia de fomento foi adotada pela instituição. Visando a uma maior visibilidade participantes da comissão ao lado de Carlos Nader e Renato Barbieri:
dos documentários, o apoio foi direcionado a filmes de 26 minutos para compor uma
série voltada para televisão e mostras itinerantes. Mais uma vez iniciou-se o processo de Cumprimos o papel de consciência crítica externa dos produtores e
realizadores de cada obra, propondo mudanças de edição, novas filmagens,
recebimento, análise e seleção de projetos, que culminou com a realização dos filmes. Da
comentando opções estilísticas, tudo em nome do melhor desenvolvimento
urbanidade ao sertão profundo, de distintos personagens a visões subjetivas da realidade,
do documentário a partir dos rumos inicialmente traçados.
os cinco documentários apresentaram como fio condutor o conceito de contraste. Seja
ele social, cultural ou étnico, a diversidade da cultura brasileira e suas mais distintas
Os resultados de todo o processo foram muito favoráveis e aprovados inclusive pelos
particularidades foram representadas nesses filmes. Lançados em um DVD, foram exibidos
próprios realizadores. Fabiano Maciel, diretor de um dos filmes da série, declara que:
em rede nacional pela TV Cultura, tendo uma excelente receptividade, chegando a
registrar 4 pontos no índice de aferição de recepção na Grande São Paulo – o que equivale A maneira como foi conduzido o processo de seleção do Rumos Itaú Cultural
7 a aproximadamente 350 mil espectadores. A qualidade dessas produções e o olhar vertical Cinema e Vídeo é rara no Brasil e faz dele um modelo a ser seguido. A criação de
Bernardet, Jean-Claude. Documentários
de busca: 33 e Passaporte Húngaro. In: sobre a realidade brasileira valeram à série o convite para participar do Audiovisual E- uma comissão que acompanha o projeto do começo ao fim, com encontros
Mourão, Maria Dora; e Labaki. O Cinema
do Real. São Paulo: Cosac Naify, 2005. p.
platform, programa da Unesco para conteúdos criativos em meios audiovisuais. Nessa com a comissão julgadora, aumenta a visão crítica e aprimora o resultado.
149. plataforma, que funciona como uma rede de informação via internet, o usuário acessa
106 Roberto Moreira S. Cruz Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo: trajetória e perspectiva 107

Em 2006, a proposta da quinta edição do programa, ampliada e com um aporte financeiro • Memórias de uma Mulher Impossível, de Marcia Derraik (RJ)
maior, destaca o Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo como o mais importante programa Um mosaico sobre a vida, a criação e as idéias da escritora e editora Rose Marie Muraro.
de apoio à produção de documentários, desenvolvido por um instituto cultural e com
abrangência nacional. Além do objetivo primeiro desse programa, que é a viabilização Nessa edição, foi concedido um prêmio especial para o projeto Diário de Sintra, de
da produção e a finalização dos filmes, todo o processo de lançamento, difusão, análise Paula Gaitán. Esse documentário se estrutura com base em registros pessoais do
e desenvolvimento estimula o debate e possibilita a criação de uma rede de articulação cotidiano do cineasta Glauber Rocha na cidade portuguesa, onde morou com sua
entre o público interessado, produtores, pesquisadores e realizadores, dinamizando e esposa Paula Gaitán e seus dois filhos Eryk Rocha e Ava Patrya no ano de 1981, tempos
estimulando a reflexão sobre o documentário brasileiro e o contexto de sua produção que antecederam sua morte.
no cenário contemporâneo.

Com a participação de uma comissão de seleção mais integrada no processo de


lançamento e na difusão do programa, amplificou-se a abrangência do programa e
diversificou-se o plano de ação. Liliana Sulzbach, Paschoal Samora e Luís Eduardo Jorge
acompanharam a equipe de coordenação do Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo numa
viagem por 13 cidades, nas quais foram realizados encontros, palestras e mostras com o
intuito de informar o público interessado no programa e discutir com ele. Juntaram-se
a esse grupo os realizadores e pesquisadores Cláudia Mesquita, Cao Guimarães, Érika
Bauer, Francisco Elinaldo Teixeira, José Carlos Avellar, Consuelo Lins, Carlos Nader e
Sheila Schvarzman, colaboradores notáveis no processo de reflexão e compreensão do
cenário da produção de documentários no país.

Resultado: 375 projetos inscritos e a escolha de cinco projetos, que receberam um


financiamento no valor de R$ 100 mil cada um para a produção do filme. Mais uma vez
a diversidade da cultura brasileira foi compreendida em projetos que tratam de questões
contemporâneas como fronteiras, migrações, cidadania e subjetividade. Os projetos
contemplados foram:

• Eu Vou de Volta, de Camilo Santos Cavalcante e Claudio Assis (PE)


Um vídeo sobre a migração nordestina para São Paulo e o regresso à terra de origem.

• Histórias de Morar e Demolições, de Andre Costa (SP)


Quatro famílias paulistanas têm suas casas vendidas para um grande incorporador
imobiliário que as demolirá.

• Margem, de Maya Werneck Da-Rin (RJ)


Uma viagem de barco através do Rio Amazanos e da fronteira tríplice entre o Brasil, a
Colômbia e o Peru, num espaço marginalizado e quase esquecido de nosso país, o fim ou
o início do Brasil, lugar de interseção entre diversos povos, culturas, línguas e credos.

• Procura-se Janaína, de Miriam Chnaiderman, São Paulo (SP)


Por meio da busca de Janaína, criança órfã e com necessidades especiais, pretende
registrar os processos históricos e a situação atual da criança em situação de abandono, e
como se dá, atualmente, o atendimento a psicóticos em São Paulo.
108 109

Manaus
6 de março de 2006

Um casarão antigo em Manaus, à beira do rio Negro, abrigou a primeira palestra de


divulgação do Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007. O encontro aconteceu no
dia 6 de março, na Usina Chaminé, um centro cultural que já funcionou como usina de
estação de tratamento de esgoto.

Kety Fernandes, do Núcleo de Audiovisual do Itaú Cultural, fez a abertura do evento e


apresentou Cláudia Mesquita, jornalista, realizadora e pesquisadora de cinema, que
ministrou a palestra “Panorama da Produção de Documentários no Brasil”. A mediação
ficou a cargo da produtora e diretora Liliana Sulzbach, que realizou o documentário O
Cárcere e a Rua, de 2005, e faz parte da comissão julgadora desta edição de Rumos.

Para fazer um retrato do documentário no Brasil, Cláudia apresentou trechos de Viramundo


(1965), de Geraldo Sarno, e de Santo Forte (1999), de Eduardo Coutinho – filme parcialmente
realizado com apoio recebido na primeira edição de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo.
A exibição foi seguida de comentários de Cláudia e Liliana, que apontaram as diferenças
entre filmes de épocas tão distantes.

Relatório de viagem A principal delas: a abrangência do tema dos dois documentários. Enquanto um mapeia a
espiritualidade apenas de uma pequena comunidade carioca (Santo Forte), o outro fala da
saga de migrantes nordestinos na chegada a São Paulo, sem a preocupação de ater-se a
Flavia Celidônio individualidades. Para Liliana, essa busca pela particularização é reflexo da sociedade atual,
que não acredita em uma única verdade, mas, sim, que tudo tem ângulos diversos.
110 Flavia Celidônio Relatório de viagem 111

BELÉM GOIÂNIA
8 de março de 2006 13 de março de 2006

A segunda palestra de divulgação do Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007 A terceira palestra de divulgação do projeto Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-
aconteceu em Belém do Pará, no dia 8 de março. Cláudia Mesquita, jornalista e pesquisadora 2007 aconteceu em Goiânia.
de cinema, e Liliana Sulzbach, produtora e diretora, autora de O Cárcere e a Rua, compuseram
a mesa que discutiu o panorama da produção de documentários no Brasil. Francisco Elinaldo Teixeira, professor de pós-graduação em multimeios da Unicamp e
autor do livro Documentário no Brasil – Tradição e Transformação, foi o palestrante, com o
Para fazer um retrato histórico da produção nacional, Cláudia destacou dois momentos tema “O Documentário e a Representação: Identidade e Brasilidade”.
importantes do documentário brasileiro. Um deles, os anos 1960, com o filme Viramundo
(1965), de Geraldo Sarno, reconhecido pelo uso, até então inédito, do som direto, Teixeira discorreu sobre os vários modelos de documentário no Brasil e apresentou a tese
que possibilitava a gravação de entrevistas, e o início da produção do documentário de que o nacional contemporâneo se utiliza de todos os modelos já conhecidos. Para ele,
independente no Brasil. Ela apontou fortes características do documentário dessa época, o da atualidade tem uma visão expandida em relação ao que já foi ao longo da história.
como a abordagem de grandes temas, no caso a migração de nordestinos a São Paulo e Como argumentos para provar sua tese, o professor levantou modelos de documentário.
a tentativa de tratar assuntos da atualidade. Mostrando trechos do filme, Cláudia abordou Primeiro o clássico, que tem uma abordagem histórica dos fatos e é uma oposição à ficção.
outros pontos que marcaram a produção desse período, como a utilização ainda tímida O segundo é o do cinema direto, que defende uma mínima intervenção do realizador,
das entrevistas e a opção pela voz em off. tanto na captação quanto na montagem, utilizando planos-seqüência e buscando o
realismo da imagem. Por último o do cinema-verdade, de tradição européia, quando é
O contraponto a essa época é a década de 1990, que assistiu à retomada do cinema introduzida a idéia da intervenção tendo em vista que a realidade não “está dada” e precisa
brasileiro. O filme escolhido por Cláudia para representar esse momento foi Santo Forte ser construída, é um contraponto ao cinema direto, observacional. Na opinião do professor,
(1999), de Eduardo Coutinho. Nesse caso, as entrevistas constituem o ponto principal esses conhecidos modelos de documentário, que foram se contrapondo aos já existentes,
do filme, que não tem narração. Ao contrário de Viramundo, não existe manipulação da constroem o documentário da atualidade, o que ele chama de “docudiversidade”.
informação ou uma tentativa de corroborar a tese do realizador. Quem dá significado
ao conteúdo do filme são os 11 integrantes de uma pequena comunidade carioca que Paschoal Samora, documentarista autor de Confidências do Rio das Mortes (1999), Ao Sul
contam suas experiências religiosas em longas entrevistas. da Paisagem (2000-2001), Rio de Fevereiro (2003) e Diário de Naná (2006) e membro da
comissão julgadora de Rumos, compôs a mesa ao lado do professor Teixeira. Samora
Liliana Sulzbach, membro da comissão julgadora desta edição do Rumos Itaú Cultural preferiu falar daquilo que para ele constitui a principal característica do documentário: a
Cinema e Vídeo, usou as informações de Cláudia para afirmar que hoje em dia há uma matéria-prima, a descoberta em tempo real dos fatos e o método da realização. Para ele, o
busca pela particularização, pelo recorte, uma tentativa de mostrar que não existe uma documentarista deve estar sempre aberto ao que pode acontecer durante as filmagens. Ao
única verdade, o que acontece em Viramundo, em que os migrantes são tratados como mesmo tempo em que o documentarista é aquele que manipula o fato, o desejo essencial
categoria, sem individualidades. Todos eles saíram do Nordeste por causa de problemas do realizador é o de perder o controle. Como dica para o público que assistiu à palestra,
com a terra e nem todos conseguem ser bem-sucedidos em São Paulo. Samora diz que a “descoberta da invenção do documentário” é o que mais interessa.

Liliana ainda deu dicas aos interessados em apresentar projetos ao Rumos Itaú
Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007. Ela acha que existe uma carência de filmes mais
políticos e documentários investigativos. Para ela, as temáticas social e cultural já
foram bastante exploradas.
112 Flavia Celidônio Relatório de viagem 113

CAMPO GRANDE FORTALEZA


15 de março de 2006 20 de março de 2006

Um rico bate-papo, considerado até como um laboratório para alguns participantes. Foi “Documentário como Gênero: Linguagens e Meios”. Esse foi o tema da palestra de
assim o encontro de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007 na capital de Mato divulgação de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007 em Fortaleza, a quinta
Grosso do Sul, Campo Grande. cidade a receber os encontros que marcam o início do projeto.

O documentarista Paschoal Samora, membro da comissão julgadora desta edição de Érika Bauer, professora da Universidade de Brasília e realizadora, autora de Dom Helder
Rumos, e Francisco Elinaldo Teixeira, professor de multimeios da Unicamp e autor de livros Câmara, o Santo Rebelde, foi a palestrante e contemplou a platéia, formada por jovens
sobre documentário, iniciaram uma conversa, curiosos para saber o que se passava na estudantes de comunicação, com a sua própria experiência como realizadora. Humanizar
capital quando o assunto é documentário. o personagem, essa é a “tarefa” mais desafiadora para quem se propõe a fazer um
documentário na opinião da professora. Foi realizando o filme sobre Dom Helder que a
O público presente ao encontro agradeceu a possibilidade de concorrer ao prêmio de questão apareceu de forma mais clara para ela. Estudar a vida do personagem em questão
Rumos e disse achar importante que existam iniciativas como essa. Também lamentaram e buscar elementos que o tornassem mais humano e menos mito é algo que, para Érika,
a não-existência de cursos de cinema nas universidades do estado. A boa notícia é que o deve ser sempre perseguido. A professora acredita que a linguagem e a forma como
Festival de Cinema de Campo Grande já está em sua terceira edição, e há uma tentativa de o documentário vai se dar chegam de maneira quase intuitiva. O importante é ter em
criar uma cultura de produção cinematográfica, pelo menos do ponto de vista de jovens mente que a construção da narrativa passa necessariamente pela forma como o realizador
estudantes ou recém-formados em cursos ligados à comunicação, como jornalismo, e enxerga o personagem. A linha tênue que separa o documental da ficção também é algo
cheios de vontade de produzir em sua cidade. que chama a atenção da realizadora. Para ela, a realidade é muito mais ficcional do que
aparenta ser. Foi uma palestra bastante rica para um público ávido por produzir e encontrar
Um público interessado e ávido por informações ouviu a palestra do professor Teixeira suas próprias linguagens.
sobre o documentário contemporâneo. Ele, mais uma vez, apresentou sua tese do cinema
expandido, da “docudiversidade”, nome dado por ele às produções documentais dos dias Érika também falou sobre o momento atual do cinema documental no Brasil, que, no seu
de hoje que abarcam todos os modelos de documentários na história, desde o clássico, entender, está se aperfeiçoando, acompanhando a maturação dos intelectuais brasileiros,
com a abordagem histórica dos fatos e em oposição à ficção; passando pelo cinema interrompida pela ditadura militar e retomada nos anos 1980.
direto, que defende uma mínima intervenção do realizador, tanto na captação quanto
na montagem, buscando o realismo da imagem; até o modelo do cinema-verdade, de Luis Eduardo Jorge, realizador, antropólogo e membro da comissão julgadora desta
tradição européia, quando é introduzida a idéia da intervenção tendo em vista que a edição de Rumos, também abordou a história do documentário e do cinema no Brasil.
realidade não “está dada” e precisa ser construída, em contraponto ao cinema direto, Ele lamentou que as universidades não sejam mais centros de formação voltados para a
observacional. construção de cidadãos críticos e comprometidos com a sociedade. Eduardo Jorge frisou
a importância de não se perder a visão crítica e questionadora. Para ele, o documentário
Ao perceber que existe certo desânimo com as poucas possibilidades de realizar filmes deve ter uma função social, tem de provocar a reflexão.
em geral na opinião dos participantes, os dois palestrantes deixaram clara a importância
de se formular um projeto mesmo que ele não seja escolhido para receber o prêmio. Roberto Cruz, gerente do Núcleo de Audiovisual do Itaú Cultural, também presente no
Os dois frisaram que, ao formular e organizar as idéias, o projeto amadurece e pode ser encontro, respondeu a dúvidas e questões sobre o edital e afirmou, diante de jovens
aperfeiçoado. céticos quanto às possibilidades de produção, que participar de um concurso como o
Rumos é importante para ganhar maturidade e aperfeiçoar o projeto, mesmo que ele não
A sugestão de Pachoal Samora: “criem um projeto de guerrilha”. seja contemplado.
114 Flavia Celidônio Relatório de viagem 115

RECIFE SALVADOR
22 de março de 2006 27 de março de 2006

O encontro de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007 na Fundação Joaquim A professora Sheila Schvarzman e a jornalista Liliana Sulzbach participaram, no dia 27 de
Nabuco, no Recife, se transformou numa interessante conversa entre o público e os março, da sétima palestra de divulgação do programa Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo
componentes da mesa: Érika Bauer, professora da Universidade de Brasília e realizadora, 2006-2007, realizada em Salvador.
autora de Dom Helder Câmara, o Santo Rebelde, Luis Eduardo Jorge, realizador, antropólogo
e membro da comissão julgadora desta edição de Rumos, e Roberto Cruz, gerente de Sheila abordou as tendências do documentário no Brasil desde os primeiros filmes
Audiovisual do Itaú Cultural. do gênero, produzidos pelo Instituto Nacional do Cinema Educativo (Ince). A
professora projetou cenas de O Despertar da Redentora para mostrar que os temas dos
Érika Bauer falou sobre sua experiência como realizadora e o que a atrai no trabalho como documentários nos anos 1940 não tratavam do homem simples, mas, sim, de ídolos e
diretora. Para ela, lidar com um tema pouco conhecido é o mais interessante para um modelos a ser seguidos.
documentarista. Procura sempre tratar assuntos ou personagens que lhe são “estranhos”,
em vez de fazer um filme sobre algo familiar. Como professora, tenta sugerir aos alunos que Nos anos 1950, com as Brasilianas e a Caravana Farkas, o documentário começou a se
busquem o desafio de pesquisar e mergulhar em um tema mais distante de sua realidade. aproximar do modelo que conhecemos hoje. Ainda que de forma generalizada, sem
individualidades, o “homem” brasileiro aparece.
Usando o exemplo da produção de seu filme sobre Dom Helder, falou sobre a ética que
deve estar sempre presente no tratamento dos personagens do documentário. Ética para Após o intervalo da produção no período da ditadura militar, a retomada do cinema
não distorcer ou manipular a “fala” do entrevistado. Para ela, na montagem, por vezes é no Brasil foi marcada por um negativismo na esteira da queda do Muro de Berlim, nos
melhor abrir mão de certos trechos se não for possível incluir o contexto em que algo foi anos 1980. Esse negativismo marca a retratação do homem de forma radical. Começam
dito. O documentarista deve tratar com máximo respeito o objeto de seu filme. Como a aparecer as favelas, a desigualdade social, a miséria. O tema urbano substitui o rural,
exemplo citou Eduardo Coutinho, em constante busca por essa ética. retratando as mudanças que ocorreram no Brasil com a saída do homem do campo em
busca das grandes cidades. Nas palavras da professora, “passamos do romantismo para
Como sugestão para o público, que queria saber se existem temas mais interessantes a a crueza”. Para Sheila, está na hora de os documentaristas voltarem os olhos para os
ser tratados em documentários, disse que qualquer tema pode ser um grande tema, tudo seus iguais, ou seja, a classe média, mostrando que existe algo além dessa desigualdade
depende da maneira como o realizador trata o assunto. E avisou: sempre há mais por trás social brasileira.
do que se imagina ou se enxerga, há que estar atento às descobertas que ocorrem no
meio da produção de um filme. Um documentarista deve ter os olhos abertos ao que Liliana, membro da comissão julgadora de Rumos, concordou com a professora e sugeriu
pode surgir durante a realização do documentário. outros formatos que gostaria de ver produzidos no Brasil, como os documentários de
busca, a exemplo de 33, de Kiko Goifman – contemplado em edição anterior de Rumos
Provocar a reflexão no espectador, na sociedade. Esse deve ser o papel do documentarista –, ou Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut. Ela também sente falta de documentários
na opinião de Luis Eduardo Jorge. Mas, para isso, é preciso consciência crítica, algo que investigativos, de acompanhamento, e diz que a produção documental brasileira
ele acredita estar em falta na formação do brasileiro. Ele lamenta que as universidades poderia se aproximar mais da ficção, dando dramaticidade ao filme e fazendo com que o
não sejam mais centros de formação voltados para a construção de cidadãos críticos e espectador se pergunte sobre o que vai acontecer.
comprometidos com a sociedade. “Da mesma forma que o brasileiro não lê, também
não tem cultura audiovisual.” Eduardo Jorge defende que o cinema deveria fazer parte da
grade curricular das escolas desde as primeiras séries do ensino fundamental.

Roberto Cruz falou sobre o período atual do documentário no Brasil, que é promissor, no seu
entender. “Está surgindo uma geração nova de documentaristas que não necessariamente
é ligada ao cinema e isso é saudável.” Para ele, há mais interesse em se retratar a realidade
brasileira, o que só vem enriquecer a cultura do audiovisual. Como dica aos que são céticos
em relação ao mercado dedicado ao documentário no país, diz que não se pode pensar em
distribuição, é preciso pensar no antes, no “fazer” do filme, o resto vem depois. Mãos à massa.
116 Flavia Celidônio Relatório de viagem 117

VITÓRIA RIO DE JANEIRO


29 de março de 2006 3 de abril de 2006

O encontro de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007 em Vitória contou com platéia No dia 3 de abril, o Rio de Janeiro foi palco de uma descontraída conversa entre Paschoal
formada por estudantes da Universidade Federal do Espírito Santo. Uma mesa formada por Samora, documentarista e membro da comissão julgadora desta edição de Rumos Itaú
Sheila Schvarzman, historiadora do Condephaat, professora do curso de audiovisual das Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007, e José Carlos Avellar, crítico de cinema, ensaísta e
Faculdades Senac e professora convidada do Departamento de Multimeios da Unicamp; consultor de cinema do Programa Petrobras Cultural.
Liliana Sulzbach, jornalista, realizadora (autora do premiado documentário O Cárcere e a
Rua) e membro da comissão julgadora de Rumos; e Roberto Cruz, gerente do Núcleo de As formas de exibição do cinema e do documentário estão se ampliando. Avellar acredita
Audiovisual do Itaú Cultural. A palestra teve como tema “Tendências e Perspectivas do que em pouco tempo se produzirá especificamente para telas de celular e outras mídias.
Documentário Contemporâneo”. Algo como o que está acontecendo com o mercado fonográfico, em que é possível
comprar apenas algumas faixas de determinado álbum.
Sheila fez um recorte na história do documentário no Brasil. Escolheu falar sobre como o
documental brasileiro fala do “outro”. A professora levantou exemplos para mostrar que o Samora acredita que os modelos e formatos do documentário estão anos-luz à frente
documentário como conhecemos hoje passou a ser realizado nos anos 1950, época das Brasilianas do mercado. Cabe aos realizadores pressionar o mercado a buscar novas maneiras de
e da Caravana Farkas. É nessa época que o “homem” brasileiro, simples e rural, passa a estar distribuição. O negócio é produzir, realizar e acreditar que bons produtos vão encontrar
presente nas produções. O tema rural foi predominante nessa fase do documentário conhecido caminhos para ser exibidos e poderão cumprir seu papel de provocar a reflexão e instigar
como moderno. Antes dessa época, os personagens retratados eram ídolos, personalidades, sentimentos, tanto na grande quanto na pequena tela.
exemplos. A era Getúlio Vargas acreditava que o cinema era uma forma de educar o povo.

Após o intervalo da produção no período da ditadura militar, a retomada do cinema


no Brasil foi marcada por profundas mudanças. O tema urbano substituiu o rural.
Favelas, desigualdade social e miséria passaram a ser retratadas no documentário
dito contemporâneo. E Eduardo Coutinho aparece como um dos expoentes desse
documentário interessado no “homem”, com suas individualidades, defeitos e qualidades.
“Passamos do romantismo para a crueza”, nas palavras da professora. “Ou temos de salvar ou
sermos salvos”, é assim que resume os dois momentos do documental no Brasil, na época
moderna e na contemporânea. Falando em perspectivas, Sheila acredita estar na hora de
os documentaristas voltarem os olhos para seus iguais, para a classe média, mostrando
que existe outro lado nessa desigualdade social brasileira. Esse tópico provoca os alunos,
que ainda acreditam nos temas de cunho social, em que se denuncia o desrespeito aos
direitos humanos, a fome e as agruras do mundo contemporâneo.

Diante do debate, Liliana Sulzbach afirmou que o mais importante é fazer bons
documentários, independentemente do conteúdo. O que importa é o formato. Ela acredita
que a mudança de foco do documentário brasileiro acompanha uma mudança de como
a sociedade olha para ela mesma. Preocupando-se mais com o formato, poderiam ser
produzidos no Brasil mais documentários investigativos, ou de acompanhamento, ou
se poderia ousar mais ao “conferir um plot narrativo ao filme”, inserindo dramaticidade e
instigando o espectador a se perguntar o que vai acontecer no final.

Roberto Cruz e Sheila chamaram a atenção de todos para as portas que se abrem com
as diversas formas de mídia que se tem hoje para a divulgação de trabalhos. Há que ser
inventivo e, principalmente, fazer bons documentários.
118 Flavia Celidônio Relatório de viagem 119

BELO HORIZONTE CURITIBA


5 de abril de 2006 24 de abril de 2006

Realizada no dia 5 de abril, em Belo Horizonte, a palestra “O Documentário no Contexto A palestra de divulgação de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo em Curitiba começou
da Retomada do Cinema Brasileiro: Existe Mercado?” teve a participação do crítico de com uma frase de efeito do realizador Cao Guimarães. “Não existe documentário sem
cinema José Carlos Avellar e do documentarista Paschoal Samora. O encontro marcou subjetividade.” O tema do encontro foi “Documentário e Subjetividade: o Olhar do Autor”.
o décimo evento de divulgação do programa Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006- Diretor premiado, autor de A Alma do Osso e Rua de Mão Dupla, Cao Guimarães dividiu a
2007 pelo Brasil. mesa com o diretor, roteirista e antropólogo Luiz Eduardo Jorge, membro da comissão
de seleção desta edição de Rumos.
Consultor de cinema do Programa Petrobras Cultural, Avellar fez uma analogia entre o
documentário e a pintura do início do século XIX. Lembrou que o inglês John Constable Para ilustrar o que estava dizendo, Cao projetou cenas de seus dois trabalhos. Em Rua de
rompeu com a tradição de retratar naturezas-mortas e personagens da aristocracia pintando Mão Dupla duas pessoas passam 24 horas na casa de um estranho com uma câmera de
paisagens e evidenciando nos quadros a data, a hora e as condições climáticas do momento. vídeo e tentam, por meio dos objetos e da disposição da casa, descobrir quem vive naquele
Uma forma de documentar, mesmo sem uma câmera. O crítico citou ainda a fotografia e o lugar. Para o diretor esse foi o trabalho no qual mais se aproximou de um documentário
fotojornalismo para chegar ao documentário como conhecemos atualmente. com pouca interferência do olhar do autor, mas a subjetividade está fortemente presente
naquele que faz imagens de uma casa estranha, de objetivos e indícios da vida de alguém
Para Avellar, o Brasil tem uma tradição oposta à européia ou norte-americana. Aqui a que não conhece, e imagina quem é.
televisão faz ficção e o cinema bebe no modelo documental. Central do Brasil, Carandiru e
Cidade de Deus têm uma veia documental, e a televisão fica a cargo de produzir ficção. O Em Alma do Osso, filme em que tenta mostrar como vive um ermitão, a subjetividade
Brasil, acredita ele, produz muito mais documentários para a grande tela em comparação do autor está em boa parte do filme. Por meio de imagens, sons e montagem, o diretor
com o cinema europeu ou norte-americano. Avellar citou ainda o cinema novo como especula o que se passa na cabeça desse ermitão sem ter nenhum indicativo do que ele
uma das primeiras formas de fazer cinema usando o modelo do documentário. está realmente pensando. O que está no filme é a subjetividade do autor.

Membro da comissão de seleção do programa, Samora concorda, de certa forma, com Com as diferenças colocadas, Cao Guimarães afirma que não lhe interessa a verdade, mas,
Avellar. Ele acredita que o documentário, no Brasil, deixou de ser um “trampolim” para sim, a expressividade do objeto ou do personagem retratado. Nem a palavra interessa ao
aqueles que desejam fazer ficção e firmou-se como uma forma de “fazer cinema”, um diretor, que acredita que o cinema tem um vício em literatura e em teatro. Cao acredita
instrumento de reflexão da sociedade. Ele acredita que a projeção digital vai ampliar o que cinema é feito de imagens e sons. Para ele, não é o cineasta que faz o filme, mas o
mercado, não só para o documentário, mas para o cinema brasileiro em geral, contribuindo filme que faz o cineasta.
para facilitar a distribuição das produções nacionais.
Luiz Eduardo Jorge representou bem o papel de mediador. Tentou saber de Cao
Guimarães suas estratégias para montar um projeto e conseguir realizar seus trabalhos.
Ouviu, junto com o público, que o projeto tem de expressar bem a idéia do filme, o
objetivo que se quer com o documentário, e ter sempre em mente que tudo pode
mudar durante a captação. Em vista disso, Cao diz ser um apaixonado pela edição do
filme, que é quando o documentário acontece, o momento em que o realizador se dá
conta realmente do que é o produto final de seu trabalho.
120 Flavia Celidônio Relatório de viagem 121

PORTO ALEGRE BRASÍLIA


26 de abril de 2006 3 de maio de 2006

“Documentário e Subjetividade: o Olhar do Autor”, esse foi o tema do encontro de Rumos O último encontro de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007 aconteceu com
Itaú Cultural Cinema e Vídeo em Porto Alegre. uma platéia formada quase inteiramente por estudantes de audiovisual de Brasília.

O diretor Cao Guimarães começou a conversa dizendo que não existe documentário A dupla responsável pela palestra “Panorama da Produção de Documentários no Brasil”
sem subjetividade. Usou uma metáfora para ilustrar que tipos de documentários ele foi a mesma que esteve no primeiro encontro, em Manaus. Cláudia Mesquita, jornalista
produz. Existem pelo menos três maneiras de estar na frente de um lago de água parada. e pesquisadora de cinema, e Liliana Sulzbach, produtora e realizadora, integrante da
Uma delas é contemplando de um barranco, onde não se tem interação com esse lago, comissão de seleção desta edição de Rumos.
apenas a visão – são filmes de contemplação, como Da Janela do Meu Quarto, em que ele
gravou imagens de duas crianças brincando numa rua alagada no Pará, como se fosse A palestra reuniu um pouco de todos os outros encontros. Cláudia fez um histórico do
uma coreografia e sem a interferência do autor. A outra forma é lançando uma pedra cinema documental no Brasil desde os anos 1960, algo já abordado por ela mesma em
nesse lago, provocando ondas e mexendo com a água. Para ele um exemplo é Rua de Manaus. Viramundo, de Geraldo Sarno, marca a era do documentário moderno, com a
Mão Dupla, em que há uma interferência do autor para que a realidade fique “bagunçada”. temática urbana, as agruras do povo e a tentativa de estabelecer um diagnóstico dos
Nesse filme, Cao pediu a pessoas que não se conheciam que trocassem de casa por 24 problemas sociais no Brasil.
horas com uma câmera de vídeo nas mãos e tentassem imaginar os moradores da casa
estranha em que estavam. Uma realidade filtrada pelos olhos de quem está na casa e Cabra Marcado para Morrer é um divisor de águas. O documentário de Eduardo Coutinho,
pode apenas fazer elucubrações. A terceira maneira é atirar-se no lago, mergulhando em finalizado nos anos 1980, depois de ficar na gaveta durante a ditadura militar, inaugura
suas águas. O exemplo é A Alma do Osso, filme que Cao fez sobre a vida de um ermitão a época contemporânea. Cláudia Mesquita classifica essa época, que vai dos anos 1980
de Minas Gerais. Com as imagens do ermitão e de seu cotidiano, Cao procura imaginar ao início dos 1990, como sendo “tempos de vídeo”, o cinema com forte relação com os
o que o personagem está pensando, o que se passa pela mente de alguém que vive movimentos sociais, numa clara demonstração da necessidade de criar uma identidade
sozinho num local distante. Para fazer esse documentário, o diretor passou dias e dias do brasileiro. Uma busca por interiorizar o cinema, como Coutinho também fez em Santa
fazendo imagens e convivendo com o ermitão, colocando sua subjetividade no mergulho Marta. Para Cláudia, os “tempos de vídeo” duraram até a retomada mais forte do cinema
na personalidade da figura de seu filme. brasileiro em 1995, e daí para hoje há uma espécie de boom, com produção mais intensa
de documentários que conseguem chegar a grandes telas, abrindo cada vez mais janelas
O diretor, roteirista e antropólogo Luiz Eduardo Jorge, membro da comissão selecionadora para a produção documental no mercado.
de Rumos, também estava presente no encontro. Subjetividade para ele é algo inerente
ao ser humano. “A partir do momento em que o homem transforma a natureza em cultura Liliana também reiterou em parte o que havia dito em Manaus, Salvador e Vitória, onde
ele está criando uma subjetividade.” Para Luiz Eduardo, Cao Guimarães faz da subjetividade esteve com os encontros de Rumos. Independentemente de tendências, ela acha que
do outro a matéria-prima de seu trabalho, realizando assim uma leitura antropológica da é o momento de mudar o foco dos documentários feitos no Brasil. Cita, por exemplo,
relação que o homem tem com o mundo. os acontecimentos em Brasília, com escândalos de corrupção, e pergunta se há alguém
registrando tudo para transformar em documentário. Liliana acredita que é preciso
produzir mais com temas exclusivamente políticos. E voltar a câmera para outras camadas
da população, no lugar de apenas mostrar miséria ou violência em favelas, afinal, deve
existir uma elite que colabora para perpetuar as desigualdades no país.

Apesar das carências, o que a realizadora de O Cárcere e a Rua realmente acredita é


que existem bons e maus documentários, e as boas idéias são sempre bem-vindas e
bem recebidas.
123

Rumos Cinema e Vídeo Belchior Cabral


Projetos premiados e que compõem a série
Bernardo José de Souza
Cinco sobre Cinco
Palestrantes Bya Cabral
Cao Guimarães Carlos Magalhães
Margem
Carlos Nader Carolina Ferreira
Maya Werneck Da-Rin
Cláudia Mesquita Carolina Porto
Eu Vou de Volta
Consuelo Lins Daniel Queiros
Camilo Santos Cavalcante e Claudio Assis
Érika Bauer Daniela Capelato
Francisco Elinaldo Teixeira Dulcinéia Gil
Histórias de Morar e Demolições
José Carlos Avellar Eudaldo Guimarães
André Costa
Sheila Schvarzman Fernando Segtowick
Francisco de A. Assumpção Neto
Memórias de uma Mulher Impossível
Francisco Liberato
Comissão de seleção da 5ª edição de Rumos Marcia Derraik
Glauber Filho
Itáu Cultural Cinema e Vídeo
Glênio Nicola Póvoas
Liliana Sulzbach Procura-se Janaína
Janine de Souza Malanski
Luiz Eduardo Jorge Miriam Chnaiderman
João Dumans
Paschoal Samora
João Júnior
Prêmio especial
Kléber Mendonça Filho
Instituições parceiras Marcelo Armos
Diário de Sintra
Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira Marcelo Pedroso
Paula Gaitán
– Agepel (GO) Márcia Macedo
Centro Cultural Dragão do Mar (CE) Paulo Bragantini
Centro Cultural Usina Chaminé (AM) Vera Adami
Diretoria de Artes Visuais e Multimeios da Verônica Maia
Fundação Cultural da Bahia – Dimas (BA)
Fundação Athos Bulcão (DF)
Participantes do Laboratório de Projetos
Fundação Clóvis Salgado – Palácio das Artes (MG)
Aroe Jari: Trilogia Bororo
Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul (MS)
Cláudio de Oliveira Alves
Fundação Cultural de Curitiba (PR)
Fundação Joaquim Nabuco (PE)
Biografia das Casas Elástico
Instituto de Artes do Pará (PA)
Alexandre Veras
Instituto Marlin Azul (ES)
Paço Imperial (RJ)
História na Geral
Secretaria de Estado de Cultura do Amazonas (AM)
Anna Azevedo
Universidade Federal do Espírito Santo (ES)
Usina do Gasômetro (RS)
Meninas de Plástico
Tatiana Toffoli e Marta Nehring
Agradecimentos
Alexandre Figueiroa Refugiados
Alexandre Veras Ivan Canabrava e Souza
Ana Azevedo
Andressa Oliveira Sub.Urbanos
Beatriz Lindenberg Rubens Miranda Júnior Sobre fazer documentários

Identidade visual e projeto gráfico


Helga Vaz

Este livro foi organizado, editado, revisado e diagramado pela equipe do Instituto Itaú Cultural.

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