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Abner Mauro Coelho Fortes

DIVÓRCIO E RECASAMENTO

Reflexões sobre o ensino de Jesus em Mateus 19.1-12 e sua harmonia com o N.T.

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Seminário Bíblico Palavra
da Vida em cumprimento parcial dos
requisitos do Bacharelado em Teologia
com ênfase em Ministério Pastoral.

CURSO DE BACHAREL EM TEOLOGIA

SEMINÁRIO BÍBLICO PALAVRA DA VIDA

Atibaia

2007
SUMÁRIO

Páginas

1. INTRODUÇÃO.............................................................................................. 4

1.1. Necessidade ................................................................................................................ 6

1.2. Propósito ..................................................................................................................... 6

1.3. Metodologia ................................................................................................................ 7

1.4. Limitações .................................................................................................................. 7

2. ASPECTOS CONTEXTUAIS ....................................................................... 9

2.1. O Público e o Propósito de Mateus ............................................................................ 9

2.2. O Cenário de Mateus 19 ........................................................................................... 11

2.3. A Armadilha Farisaica .............................................................................................. 12

2.3.1. Pondo Jesus contra o Estado ............................................................................. 12

2.3.2. Pondo Jesus contra Hilel e Shammai ................................................................ 13

2.3.3. Pondo Jesus contra o Povo ............................................................................... 15

3. O ENSINO DE JESUS: PRÓ-CASAMENTO ............................................ 17

3.1. Pró-Escrituras ........................................................................................................... 17

3.2. Pró-Criador ............................................................................................................... 18

3.2.1. O Projeto de Deus ............................................................................................. 18

3.2.1.1. Uma visão panorâmica ............................................................................. 19

3.2.1.2. Uma visão detalhada................................................................................. 20

3.2.2. As Implicações do Projeto de Deus .................................................................. 21

1
4. O ENSINO DE JESUS: CORRIGINDO A HERMENÊUTICA
FARISAICA ........................................................................................................ 24

4.1. O Contra-argumento dos Fariseus ............................................................................ 24

4.2. A correção da hermenêutica dos fariseus ................................................................. 25

4.2.1. Uma correção antropológica............................................................................. 26

4.2.2. Uma correção contextual .................................................................................. 27

4.2.3. Uma correção textual ........................................................................................ 28

5. O ENSINO DE JESUS: A CLÁUSULA DE EXCEÇÃO ........................... 31

5.1. Jesus: o legislador ..................................................................................................... 31

5.2. O Objeto da Exceção ................................................................................................ 34

5.3. O pecado que estabelece a exceção .......................................................................... 37

5.4. A reação à cláusula de exceção ................................................................................ 41

6. O ENSINO DE JESUS: A HARMONIA COM O NOVO TESTAMENTO


44

6.1. O Ensino de Jesus e os Outros Evangelhos .............................................................. 44

6.1.1. O Ensino de Jesus e o Evangelho de Marcos ................................................... 45

6.1.2. O Ensino de Jesus e o Evangelho de Lucas ...................................................... 46

6.2. O Ensino de Jesus e o Ensino de Paulo .................................................................... 47

6.2.1. O Ensino de Jesus e o Ensino aos Coríntios ..................................................... 48

6.2.2. O Ensino de Jesus e o Ensino aos Romanos..................................................... 52

6.2.3. O Ensino de Jesus e o Ensino aos Efésios ........................................................ 53

6.3. Conclusão ................................................................................................................. 56

7. O ENSINO DE JESUS: DÚVIDAS E RESPOSTAS .................................. 58

2
8. CONCLUSÃO.............................................................................................. 73

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .................................................................... 76

3
1. INTRODUÇÃO
“...Até que a morte nos separe”. Que casal nunca usou esta frase como
conclusão em seu voto matrimonial? Ainda que não tenha sido verbalizada, ela certamente
fazia parte dos desejos e dos sentimentos daqueles que casavam: “- Separação?! Nem
morto!...ou melhor, só morto”. Casamento era para toda a vida; só a morte poderia dissolver e
determinar o rompimento daquela união. Essa era a mentalidade que predominava décadas
atrás. Qualquer desvio dessa idéia era encarado como uma lamentável exceção e reprovado
fortemente pela sociedade de então.

Com o passar dos anos, a lamentável exceção de antes começou a assumir o


status de normalidade. É claro, a regra “até que a morte nos separe” continua. O absoluto
permanece. A diferença é que um dos seus elementos – a morte – assumiu um caráter relativo:
“Que morte? Morte de quem? Morte do quê?” O que no passado era uma referência clara à
morte física de um dos cônjuges, hoje, trata-se daquilo que for mais conveniente: a morte da
compatibilidade de gênios; a morte da estabilidade financeira; a morte da individualidade; a
morte da independência; a morte do desejo sexual; a morte da paixão; e, segundo alguns, a
morte até do amor. E uma vez decretado o luto, resta apenas recorrer ao divórcio como último
passo (...nos separe) para o “cumprimento” do absoluto. Depois disso, “o que vier é lucro” –
nova vida, novas possibilidades, ...novo casamento. A lamentável exceção e a forte
reprovação da sociedade deram lugar à simpatia e ao consentimento de todo mundo.

O divórcio seguido de um novo casamento deixou, portanto, de ser visto


como uma catástrofe na relação conjugal para ser considerado uma solução. A revista “Lar
Cristão” em sua edição de julho/agosto de 2007 confirmou essa realidade ao fornecer dados
alarmantes do IBGE que indicam que “...divórcios diretos apresentaram um aumento relativo
de 20%, passando de 60%, em 1994, para 72%, em 2004”.1 De acordo com a mesma revista, o
Brasil tem registrado 1 divórcio para cada 3 casamentos. Os indicadores confirmam: mais e
mais brasileiros têm achado que o divórcio resolve os problemas no casamento. Contudo, as

1 Dados extraídos do artigo “Não quero mais brincar de casamento!” da revista Lar Cristão, nº 98.

4
estatísticas comprovam exatamente o contrário. Na realidade, o divórcio é um dos maiores
vilões que tem corroído os alicerces da sociedade pós-moderna. Dennis Rainey apresenta
alguns dados preocupantes de pesquisas feitas nessa área que denunciam o caráter monstruoso
da ruptura dos casamentos:

 O presidente do Instituto Nacional de Pesquisa sobre Saúde disse o seguinte:


“Estar divorciado e não ser fumante é apenas um pouco menos perigoso do que
fumar um maço de cigarro por dia e permanecer casado. Todos os tipos de câncer
terminal atingem pessoas divorciadas de ambos os sexos, brancos ou não, com
maior freqüência do que as casadas”.

 O risco de suicídio é 29% mais alto entre as pessoas divorciadas do que entre as
casadas.

 As crianças que cresceram num lar de pais solteiros têm duas vezes mais
probabilidade de se divorciar do que as que cresceram numa família em que os
dois pais biológicos estão presentes.

 Jovens em famílias de pais solteiros ou em família substituta têm duas a três vezes
mais probabilidade de portar algum problema emocional ou comportamental que
os que vivem com os pais biológicos no mesmo lar.

 A probabilidade de uma filha sofrer abuso sexual de seu padrasto é pelo menos
sete vezes maior que as chances de sofrer abuso por parte de seu pai biológico.2

Onde estão os supostos benefícios decorrentes da separação? Que


compensações emocionais, físicas e sociais foram produzidas pelo divórcio? De que
vantagens as famílias – tanto a primeira, quanto a segunda – podem desfrutar quando a
“dissolução” do casamento já se instalou? Parece que, diante das estatísticas apresentadas
acima, não há benefícios, nem compensações, muito menos vantagens; só há, sim, prejuízos
incalculáveis com os quais as famílias terão que lidar. Mesmo assim, apesar dos inumeráveis
danos – estatisticamente comprovados – causados pelo divórcio e subseqüente recasamento,
esses têm sido os recursos mais usados por aqueles cuja relação conjugal já fracassou. E entre

2 RAINEY, Dennis. Ministério com Famílias no Século 21. São Paulo: Vida, 2001. p.277 e 279.

5
eles, infelizmente, há um grupo que, a cada ano, tem contribuído mais e mais para o
crescimento daquelas tenebrosas estatísticas: o de casais “evangélicos”.

Atualmente, por incrível que pareça, é normal encontrar casais divorciados e


recasados nas igrejas brasileiras. Dos membros “mais comuns” aos líderes e pastores, o
divórcio e o recasamento têm atingido a todos. E para agravar a situação, muitos deles
justificam suas decisões alegando o amparo das Escrituras, afirmando que a Bíblia (e
conseqüentemente, Deus) autoriza, em certas circunstâncias, essa prática – o que indica que
ainda há muita confusão e nenhuma direção quanto a este assunto. Há muitas vozes
especulativas e pouca orientação bíblica. O resultado: crentes que vivem como o povo de
Israel no período dos juízes quando “...cada um fazia o que parecia bem aos seus olhos”.3 Esse
caos comportamental é um grito por socorro, é um brado por salvamento, um clamor por
direção que só poderá ser suprido na medida em que se faça uma abordagem biblicamente
honesta desse assunto que, sem duvida nenhuma, é um dos maiores desafios, não só dos
“evangélicos” brasileiros, mas da igreja contemporânea como um todo.

1.1. Necessidade
Como foi exposto acima, a atual situação da igreja “evangélica” brasileira
indica que há um clamor das famílias. O motivo: é cada vez maior o número de lares que,
direta ou indiretamente, sofrem em virtude do divórcio e do recasamento. Sofrem por causa
da experiência, mas também por causa da ausência de absolutos. Pastores, diáconos, líderes
em geral, membros “comuns” de comunidades cristãs, todos buscam respostas convincentes
que orientem a postura da igreja em relação à tão grave problema. Este trabalho é uma
tentativa inicial de suprir esta necessidade.

1.2. Propósito
Este trabalho se propõe a verificar como o Novo Testamento se posiciona
quanto ao problema do divócio e recasamento a partir do texto de Mateus 19.1-12 e apresentar
respostas que orientem a igreja contemporânea diante desse tão grave dilema.

3 Juízes 21.25.

6
1.3. Metodologia

O método deste trabalho seguirá a estrutura do texto em Mateus 19.1-12.


Por isso, o primeiro passo será situar a passagem dentro do seu contexto maior. Esse será o
ponto de partida para uma análise mais específica de Mateus 19, quando, então, o cenário do
texto estará sob observação mais detalhada.

Feito isso, o segundo passo se concentrará no ensino de Jesus a respeito do


divórcio e recasamento. Esta seção será composta, basicamente, de três partes. A primeira
ficará concentrada nos fundamentos do casamento; a segunda, na correção da interpretação
farisaica do texto de Deuteronômio 24.1-4; e, a terceira, na conclusão do ensino de Jesus
acerca do divórcio e recasamento à luz da cláusula de exceção.

O terceiro passo focalizará a relação do ensino de Jesus em Mateus 19.1-12


com o correspondente ensino neotestamentário. Aqui, será verificada a harmonia do texto sob
análise com os outros Evangelhos e, também, com o pensamento do apóstolo Paulo para,
assim, determinar a posição do Novo Testamento quanto ao divórcio e recasamento.

Por fim, como último passo, serão levantadas algumas questões a respeito
do assunto deste trabalho. Isso será feito no formato de perguntas e respostas com o objetivo
de, não só responder a dúvidas práticas a respeito de divórcio e recasamento, mas também,
demonstrar que a posição concluída aqui se harmoniza melhor com o ensino de todo o Novo
Testamento.

1.4. Limitações

Não há dúvida que o conteúdo envolvendo o assunto que será abordado aqui
é amplamente extenso. Por isso, levando-se em conta que o objetivo desta monografia não é
esgotar a questão, é importante ressaltar que, de um modo geral, os textos, tanto do Antigo
quanto do Novo Testamento, não serão alvos de uma exegese exaustiva. Não haverá, de igual
forma, preocupação quanto a questões como autoria, data e estilo literário, particularmente, no
que se refere ao texto base deste trabalho. Sendo assim, serão aceitos, sem questionamento, os
aspectos introdutórios da maneira como têm sido historicamente adotados por intérpretes
conservadores.

Este trabalho, como já foi colocado anteriormente, se propõe a verificar qual


é o posicionamento neotestamentário acerca do divórcio e recasamento. O assunto é
7
extremamente debatido e alvo de muitas divergências. Por isso, vale a pena esclarecer que a
estrutura desta monografia não se fundamentará em debates intermináveis com
posicionamentos que, eventualmente, discordem das conclusões alcançadas aqui. Ainda que,
em algum momento, se refute opiniões discordantes à que será constatada nesta monografia, o
objetivo não é apresentar todas as outras posições, nem fazer uma análise profunda do
conteúdo de cada uma, nem desenvolver um debate demorado com elas.

Estas são as “cercas” que envolvem este trabalho e é sob os limites


estabelecidos por elas que esta monografia será orientada.

8
2. ASPECTOS CONTEXTUAIS4
Na seção que trata das limitações deste trabalho, afirmou-se que detalhes
como a crítica da autoria, da data, do estilo literário, entre outros, não seriam alvos de análise
pormenorizada neste trabalho. Contudo, isso não significa que os aspectos contextuais do
texto base desta monografia serão ignorados. Qualquer texto sob investigação depende de um
Sitz im Leben e de uma intenção autoral que estabelecem fronteiras interpretativas da
passagem em questão. Isso inclui Mateus 19.

Portanto, uma aproximação responsável desta passagem deve observar o


mínimo necessário em termos de contexto amplo e imediato, ou seja, deve responder a
questões como: Qual é a audiência final deste Evangelho? Qual é a intenção de Mateus ao
escrever seu livro? Quais são os antecedentes do capítulo 19? Quem são as personagens e
quais são suas motivações no desenrolar da passagem? Responder a todas essas questões é o
que se pretende fazer a seguir.

2.1. O Público e o Propósito de Mateus


“Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que foi dito da parte do
Senhor pelo profeta...” (1.22; 2.15,23; 4.14; 8.17; 12.17; 13.35; 21.4; 27.9). Para a teologia
sistemática, essa frase contribui em muito no entendimento do processo de inspiração das
Escrituras, particularmente, da literatura profética. Mas, em se tratando da teologia bíblica,
aquela sentença ganha outro destaque importante: o de “citação de fórmula”. E isso pode ser
verificado na comparação do Evangelho de Mateus com os demais. À exceção de João, que
faz apenas uma única afirmação correspondente (Jo 12.38), nenhum outro evangelho se
preocupa em registrar aquela frase. Há, portanto, uma forte indicação de que Mateus,
intencionalmente, estabelece um “refrão” que lhe é peculiar: cumprimento, ou em termos
mais específicos, cumprimento das profecias veterotestamentárias na pessoa de Jesus. George
Ladd concorda com essa idéia ao afirmar o seguinte:

4Todas as informações contextuais registradas neste trabalho podem ser encontradas principalmente em Jesus
Teaching on Divorce, de John MacArthur Jr., e no comentário de Mateus, do mesmo autor.

9
“As chamadas 'citações de fórmula', introduzidas com essa oração, são os próprios
comentários de Mateus sobre a história e ilustram a habilidade fértil de seu
pensamento em notar e chamar a atenção para as ligações entre a revelação do
Antigo Testamento e a história de Jesus.”5
Além disso, Mateus apresenta outros elementos que fazem do seu
evangelho totalmente diferenciado. Sua obra contém “... mais de quarenta citações literais e
mais de sessenta alusões ao Antigo Testamento”6 , característica que lhe rendeu o título de
“Evangelho Judaico”. E mais, ele faz questão de apresentar a pessoa de Jesus não só como o
clímax de uma árvore genealógica que começa com Abraão e passa pelo rei Davi, mas
também como aquele que se autodenominava superior a eles e aos outros maiores ícones do
povo judeu: Moisés, a Lei e o templo; ou seja, Jesus era o Messias. Em virtude disso, Jesus foi
alvo da mais profunda oposição e das mais ardilosas conspirações por parte dos representantes
de um judaísmo institucionalizado e incrédulo, como bem registrou o evangelista.

Todos esses dados, inevitavelmente, levam a uma única conclusão: Mateus


tinha planos de, com seu Evangelho, atingir uma audiência cujas raízes estavam no judaísmo
tradicional. Não se pode negar, entretanto, a universalidade dos seus registros, mas, sem
dúvida nenhuma, o evangelista queria atender a um grupo de judeus que haviam depositado a
sua fé em Jesus como o Messias dando-lhes segurança de que não estavam traindo “... os
ideais divinos para a nação de Israel ao tomarem partido de Alguém a quem a nação havia
rejeitado”.7 Por outro lado, Mateus faz também “... uma apologia da messianidade de Jesus
aos judeus que pudessem fazer objeção a um Messias crucificado”.8

Diante do que foi exposto, ficou claro que Mateus, ao escrever seu livro,
tinha em mente um propósito duplo: um didático e outro apologético, que Carlos Osvaldo
resume bem em uma única sentença:

“Eventos e ensinos selecionados do ministério público e particular de Jesus foram


registrados para confirmar para uma audiência judaica que Jesus de Nazaré era o
Messias prometido de Israel, e para esclarecer o programa divino para o reino nesta
presente era, à luz da ultrajante rejeição do Rei-Messias por Israel.”9

5 LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2004. p.286.
6 GONÇALVES, Eder Lourenço. Apostila de Síntese do Novo Testamento. Atibaia: SBPV, 2003. p.24.
7 PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Apostila de Teologia Bíblica do Novo Testamento. Atibaia: SBPV, 2000. p.4.
8 Idem, Ibid.
9 Idem, Ibid.

10
Essa intenção autoral permeia o evangelho de Mateus, dando uma
compreensão mais clara do livro como um todo. Os eventos e ensinos registrados ali, de uma
maneira ou de outra, são as peças que o evangelista usa para atingir seus propósitos, de forma
que, não há como interpretar as partes sem considerar o todo. A intenção do autor (Mateus),
portanto, será a “bússola” orientadora da hermenêutica do livro inteiro. Isso inclui o capítulo
19.

2.2. O Cenário de Mateus 19


O capítulo é introduzido com uma já tradicional expressão: “Quando acabou
de dizer essas coisas, ...”. Essa fórmula é muito usada por Mateus para estabelecer divisões
importantes na estrutura do seu evangelho. Particularmente, ela marca as fronteiras dos cinco
maiores discursos de Jesus no livro. Isso significa, então, que Mateus 19 aparece depois de
um, por assim dizer, “virar de página”. E a informação contida ali diz que Jesus saiu da
Galiléia em direção à Judéia, o que aponta para uma mudança significativa de cenário. E a
razão é muito simples: na Galiléia, Jesus atingiu o auge da sua popularidade e ali encontrou
uma grande receptividade. No momento em que Ele se dispôs a ir para a Judéia, na verdade,
sua decisão envolveu deixar o lugar da aceitação da sua autoridade e mensagem, e ir para a
região de maior concentração judaica, ou seja, para o território onde certamente Ele sofreria
oposições jamais experimentadas até então.

Uma das evidências de que Jesus desfrutava, naquele momento, de uma


fama incalculável, era o fato de, para onde quer que Ele fosse, agora, uma multidão o
acompanhava. Mas, mesmo cercado pelas multidões, isso não desencorajou as abordagens dos
fariseus, que, na época, representavam tudo o que havia de mais exagerado em termos da
observância da lei, razão pela qual eram constantemente repreendidos pelo Senhor Jesus, a
ponto dEle denunciá-los como hipócritas. Naturalmente, isso atingia de maneira frontal o
orgulho dos líderes do judaísmo institucional, alimentando, assim, um ódio por Jesus que,
com o passar do tempo, crescia a proporções exponenciais.

Na medida em que o Senhor Jesus se dirigia para a Judéia, mais Ele se


aproximava do reduto farisaico, e conseqüentemente, mais perto ele estaria das conspirações
daqueles religiosos. A vinda de Jesus para aquela região era a oportunidade que os fariseus
tinham de levar a cabo seus planos de assassinar o Messias. Para tanto, eles não
economizariam estratégias, nem armadilhas. Em Mateus 19, os fariseus se aproximam

11
novamente do Mestre sob o pretexto da dúvida quanto ao divórcio e recasamento; mas, na
verdade, por trás daquela inocente questão, havia um plano, uma armadilha para tirar o
Senhor Jesus de cena.

2.3. A Armadilha Farisaica

“Vieram a Ele alguns fariseus e o experimentavam, perguntando: É lícito ao


marido repudiar a sua mulher por qualquer motivo?”10 Uma observação superficial do
versículo 3 poderia indicar que os fariseus, apesar de serem opositores declarados de Jesus,
estariam apenas levantando uma dúvida inocente. Entretanto, há duas razões para abandonar
essa idéia. A primeira, o Senhor Jesus, enquanto pregava por toda a Galiléia, já havia tratado
do assunto (Mt 5.27-32) e é mais que provável que os fariseus já tinham conhecimento do que
Ele ensinava a respeito. A segunda, o texto em Mt 19.3 afirma que aqueles religiosos
“experimentavam” o Mestre (ou, como em outras versões, o “colocavam à prova”). O verbo
usado por Mateus é 11, que significa literalmente testar alguém maliciosamente, pôr
à prova com astúcia, tentar alguém pela incitação ao pecado. Conclusão: não havia, nem de
longe, um questionamento inocente. Havia, sim, um grupo de fariseus mal intencionados,
procurando uma oportunidade para desferir um golpe mortal contra o Senhor Jesus. A questão
levantada por eles era apenas uma estratégia, uma armadilha para eliminar Aquele que era
uma “pedra no sapato” do farisaísmo de então. Mas, como a questão poderia concretizar o
plano dos fariseus? Como uma simples pergunta poderia pôr em perigo a integridade física de
Jesus? De que maneira a questão do divórcio e recasamento poderia interromper a trajetória
do Filho de Deus?

2.3.1. Pondo Jesus contra o Estado

Mateus 19, versículo 2, afirma que Jesus deixou a Galiléia e foi para o
território da Judéia, além do Jordão. A princípio, essa informação não passa de um mero
detalhe geográfico. Contudo, apesar da aparente irrelevância, esse detalhe fornece mais que
um esclarecimento da geografia do texto. Há um dado significativo ali do qual os fariseus,
com toda perversidade, iriam se aproveitar.

10 Mt 19.3
11 Enhanced Strong’s Lexicon, (Oak Harbor, WA: Logos Research Systems, Inc.) 1995.

12
No momento em que os fariseus abordaram o Senhor Jesus, é quase certo
que eles se encontravam na região da Peréia, que era um território sob a tetrarquia de Herodes
Antipas. Por ali, também, situava-se o seu palácio, o mesmo lugar onde João Batista fora
encarcerado. Esse detalhe é extremamente importante, visto que, de acordo com Mt 14.3, João
fora preso ali por causa de Herodias, mulher de Filipe, irmão de Herodes. Sabe-se que este
tomou a mulher do seu irmão para si e que, por isso, foi duramente repreendido por João, que
afirmou categoricamente não ser lícito tomar a mulher de outro. O resultado: o profeta foi
encarcerado e, posteriormente, executado. Aqui, é importante destacar: João Batista foi preso
e decapitado por expor a Lei de Deus a respeito do divórcio confrontando um casal de
adúlteros.

Os fariseus provavelmente tinham ciência daquelas ocorrências e queriam


aproveitar o fato de estarem na mesma região para complicar a vida do Senhor Jesus. Como?
Pela resposta à questão levantada por eles. Pensavam os fariseus que, se João Batista foi
morto por expor a Lei de Deus quanto ao divórcio e recasamento diante de Herodes, seria
certo que o mesmo aconteceria com Jesus quando Ele expusesse sua visão do assunto no
território sob a jurisdição daquele tetrarca. A intenção, portanto, era pôr o Senhor Jesus em
oposição ao Estado que, uma vez constatando a afronta, se encarregaria de eliminar o
subversivo, condenando-o à morte.

A pergunta tinha uma “roupagem” inocente, mas por trás havia uma
intenção sórdida e perversa. A questão, ao invés de estar impregnada por dúvidas, estava, sim,
carregada de emboscadas: uma delas, pôr o Filho de Deus contra o Estado. Mas, essa não era
a única armadilha. Os fariseus, como será discutido, intentavam, também, colocar Jesus contra
as maiores escolas judaicas da época.

2.3.2. Pondo Jesus contra Hilel e Shammai

Os fariseus viam, naquele encontro com Jesus, uma oportunidade real para
tirá-lo de circulação. Da parte deles, não havia a menor disposição de poupar esforços para
eliminar o Filho de Deus. O plano era cercá-lo de tal maneira que não houvesse escapatória.
Foi por isso que eles levantaram a questão do divórcio e recasamento. Os fariseus sabiam que
o assunto não só colocaria o Senhor Jesus em posição contrária ao Estado, mas também o
lançaria no meio de um “fogo cruzado”, na disputa entre as duas mais tradicionais escolas de
interpretação dentro do judaísmo: Hilel e Shammai.

13
O famoso historiador judeu, Josefo, afirmou que os fariseus nunca foram um
grupo muito numeroso e que, nos tempos de Herodes, eles não ultrapassavam em muito seis
mil indivíduos. Mesmo assim, havia divergências entre eles no que diz respeito à
interpretação das Escrituras. E essas discordâncias ficavam bem cristalizadas na hermenêutica
adotada por Hilel e Shammai, como salienta Champlin:

“O grupo não era totalmente homogêneo. Shammai foi uma figura severa que
interpretava tudo de acordo com o rigor da letra. Hilel, em contraste, era homem do
povo, e interpretava as questões com brandura, favorecendo as debilidades do
povo”12
As diferenças entre Hilel e Shammai se acentuavam mais ainda quando o
assunto era divórcio e recasamento. Shammai, seguindo seu caráter mais rigoroso, ensinava
que não havia a menor possibilidade para o divórcio, não sendo, por isso, muito popular
naquela época. Do outro lado, estava Hilel, cuja perspectiva era por demais liberal. Para se ter
uma idéia, ele defendia que o divórcio era possível por quase qualquer motivo. John
MacArthur comenta que aquele rabino “ensinava que você poderia se divorciar de sua mulher
por ela ter queimado o jantar, por ter colocado muito sal na refeição, ...por falar com outro
homem, ou por ser indelicada com a sogra”.13 Ela, ainda, poderia ser repudiada caso fosse
estéril, ou por não “conseguir” gerar uma criança do sexo masculino. Em suma, a posição
defendida por Hilel era muito condescendente e, em virtude disso, extremamente popular
entre os judeus.

A expectativa dos fariseus ao levantarem a dúvida quanto ao divórcio e


recasamento, era de que o Senhor Jesus, ao tratar do assunto, fosse lançado para o meio de um
conflito de gigantes. Se concordasse com Shammai, Jesus seria alvo do ódio dos partidários
de Hilel; se concordasse com este, os adeptos daquele, do mesmo modo, se enfureceriam.
Aparentemente, não havia meios de driblar aquela situação. Os fariseus estavam certos de que
a resposta do Filho de Deus o colocaria em “maus lençóis”. O posicionamento de Jesus
poderia levá-lo tanto à morte por “afrontar” uma prática adotada pelo governador daquela
região, quanto à exposição a uma reação fortemente contrária dos judeus que estivessem em
qualquer dos lados interpretativos da época. E como se não bastasse armar duas perigosas
emboscadas, os fariseus ainda contavam com outra: a revolta dos ouvintes.

12 CHAMPLIN, R. N. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, vol.2. São Paulo: Hagnos, 2004. p.689.
13 MACARTHUR JR., John. Jesus Teaching on Divorce. California: Word of Grace Communications, 1983.
p.8.

14
2.3.3. Pondo Jesus contra o Povo

O assunto do divórcio e recasamento dividia opiniões, mas, de um modo


geral, a perspectiva liberal adotada por Hilel era largamente aceita. Numa sociedade
pratriarcal, era muito conveniente se posicionar ao lado daquele rabino, visto que, assim, seria
mais fácil justificar os caprichos dos homens daquela sociedade. O fato era que, em termos de
casamento, a ética não era das melhores.

A multidão que, agora, acompanhava os passos de Jesus, era composta


basicamente, por gentios. Mateus 19, versículo 1, registra uma transição do ministério do
Filho de Deus. E essa mudança tem como um de seus principais elementos a saída da Galiléia
em direção à Judéia. Em seguida, o versículo 2 afirma que muitas multidões o seguiram, o que
fortalece a conclusão de que, entre aqueles, havia muitos gentios. O próprio fato do norte da
Galiléia ser chamado de “Galiléia dos Gentios” contribui na afirmação dessa idéia. Portanto, a
realidade era esta: Jesus estava cercado por uma multidão cuja maioria era composta por “não
judeus”.

Os fariseus, não satisfeitos com as armadilhas já discutidas anteriormente,


queriam também se aproveitar daquela multidão. O plano era simples: se os judeus, que eram
(ou, pelo menos, deveriam ser) os representantes do povo de Deus, têm um padrão tão baixo
quanto ao divórcio e recasamento, é certo que os padrões gentílicos seriam mais inferiores
ainda. Ao levantarem a questão, os fariseus tinham a expectativa de que, quando Jesus
expusesse seu elevado ensino, as multidões se desinteressassem por Ele. A intenção era
atingir a popularidade do Mestre colocando-o em frontal oposição aos costumes do povo; o
plano era enfraquecer a credibilidade do Filho de Deus diante daquela multidão de maneira
que ela, não só O abandonasse, mas também, se voltasse contra Ele.

A estratégia farisaica era profundamente maliciosa. A resposta do Senhor


Jesus implicaria, inevitavelmente, em perigos reais de morte ou, no mínimo, num “golpe
fatal” em sua popularidade. Aparentemente, Ele estava cercado. Se não fosse pego pelo
Estado, seria pelos judeus; se não fosse apanhado por aqueles religiosos, seria pela multidão.
O plano, sem dúvida nenhuma, era astuto; entretanto, seus autores desprezaram um dado
essencial: a potencial vítima das suas armadilhas era o próprio Filho de Deus. E Ele, ao
responder à questão do divórcio e recasamento, vai, não só frustrar todas as expectativas

15
farisaicas, mas vai, também, apresentar o padrão de Deus quanto ao relacionamento conjugal
e suas obrigações definitivas.

16
3. O ENSINO DE JESUS: PRÓ-CASAMENTO
A questão foi levantada. As atenções se voltam, agora, para Aquele cujo
ensino provocava profunda admiração nas pessoas. Todos, indubitavelmente, se
concentrariam na resposta de Jesus. Sua fama já havia se espalhado por toda parte e sabia-se
que as multidões se maravilhavam com o seu ensino, “...porque Ele as ensinava como quem
tem autoridade, e não como os mestres da lei”.14 Suas palavras, portanto, despertavam o
fascínio das pessoas de maneira que, quando falava, elas lhe prestavam rigorosa atenção.
Sendo assim, não seria exagero afirmar que a audiência estava numa profunda expectativa
pelo que o Mestre iria dizer.

Ao invés do Senhor Jesus se concentrar numa questão superficial a respeito


da relação conjugal e que dividia opiniões, Ele focaliza sua resposta nos fundamentos do
casamento. Para tanto, Jesus não recorre a uma opinião pessoal, mas ao testemunho das
Escrituras que apontavam para Deus como aquele que, originalmente, lançou as bases da
aliança matrimonial da qual, Ele mesmo, era o autor. Jesus, ao responder à questão dos
fariseus, não se preocupou em manifestar, inicialmente, contrariedades, mas, sim, que era a
favor da relação conjugal, que era pró-casamento. A evidência disso, como será visto adiante,
estava no seu posicionamento pró-Escrituras e pró-Criador, a favor do qual todos deveriam
ser, inclusive os fariseus.

3.1. Pró-Escrituras

“Então respondeu ele: Não tendes lido... desde o princípio... ?”15 Que
constrangimento! Convencidos de que sua questão daria cabo ao ministério de Jesus naquele
momento, os fariseus foram, na verdade, amargamente humilhados. A resposta que eles
receberam, carregada de ironia, foi um golpe fatal no orgulho daqueles religiosos. Conhecidos
tanto pela rigorosa observância das leis rabínicas quanto da mosaica, como poderiam ser tão
negligentes no que diz respeito aos aspectos mais elementares das Escrituras? “Vocês não têm

14 Mt 7.29
15 Mt 19.4

17
lido? Vocês, por acaso, ignoram o que elas dizem? Vocês que têm a Moisés em tão alta conta,
como podem desconhecer o que ele mesmo registrou?” Naquele momento, os fariseus
receberam publicamente um atestado de estupidez.

Entretanto, se por um lado os fariseus desprezavam a orientação da Palavra


de Deus, Jesus, com sua resposta, demonstrou que sua postura era diametralmente oposta. A
base do seu argumento estava nas Escrituras. Ele não recorreu a uma opinião pessoal; não
recorreu às suas prerrogativas; não recorreu ao senso comum; não recorreu aos argumentos
das mais prestigiadas escolas de interpretação da época; ele recorreu às Escrituras. E ao fazer
isso, Jesus reconheceu a autoridade da Palavra de Deus. Havia muitas vozes opinando a
respeito do divórcio e recasamento, mas diante das Escrituras, todas deveriam se calar. Jesus
considerava essa questão inegociável e, sendo assim, jamais se submeteria aos ditames do seu
tempo. Todos poderiam ser partidários deste ou daquele posicionamento, mas Jesus sempre
seria pró-Escrituras, pois nelas encontravam-se os absolutos orientadores daquela questão.

O campo da argumentação, portanto, vai se concentrar agora no que dizem


as Escrituras a respeito das bases do casamento. Enquanto os fariseus buscavam meios para a
dissolução banal do matrimônio, Cristo, recorrendo às Escrituras, apresenta os fundamentos
para sua manutenção, demonstrando que suas raízes não estavam na vontade humana, mas na
obra do próprio Criador.

3.2. Pró-Criador

Jesus, ao tratar do assunto sobre divórcio e recasamento, recorreu às


Escrituras. Diferente do que esperavam os fariseus, seus preliminares não se focalizaram na
apresentação de motivos que autorizassem o repúdio de uma esposa, mas em expor as razões
que impossibilitavam, da maneira como propunham os fariseus, aquela situação. Para tanto,
Jesus remete seus ouvintes aos registros de Gênesis para, a partir dali, apresentar o casamento
não como fruto da criatividade humana, mas como produto de um projeto: o projeto de Deus.

3.2.1. O Projeto de Deus

A pergunta que Jesus propôs como introdução à sua resposta aos fariseus
apresentava elementos que faziam referência a Gênesis. Neste livro (o primeiro do
Pentateuco) encontram-se dois relatos da criação do homem. O primeiro não é tão detalhado

18
quanto o segundo, mas certamente os dois fornecem as bases para se crer que o casamento era
produto da iniciativa e obra de Deus.

3.2.1.1. Uma visão panorâmica

“Então respondeu ele: Não tendes lido que o Criador desde o princípio os
fez homem e mulher...? A primeira parte da resposta de Jesus aponta para o texto de Gn 1.27.
O contexto daquela passagem é o da criação de todas as coisas. Em cinco dias, Yahweh
trouxe à existência o mundo. No sexto, depois de povoar a terra com uma diversidade de
animais, Deus declara sua intenção em criar aquele que seria o clímax de toda a criação: o
homem (Gn 1.26). No versículo 27, Deus executa sua obra-prima: “Criou Deus, pois o
homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”. Não havia nada
comparável; homem e mulher se constituíam na obra mais excelente de todas. A razão:
somente eles, em toda a terra, carregavam em si a imagem do próprio Deus. Não há dúvida de
que a criação, assim como diz o Salmo 19, declara a glória do Altíssimo; contudo, somente a
humanidade revela o caráter dEle. Não obstante o céu e o firmamento fornecerem boas
noções a respeito do Criador, elas, ainda assim, são insuficientes; a melhor referência, o
melhor modelo, o melhor parâmetro da pessoa de Deus é aquele que foi criado à imagem e
semelhança do próprio Criador. Quem na criação poderia, como o Senhor, se relacionar
inteligentemente? Quem, à semelhança do Criador, poderia exercer autoridade e domínio
sobre todas as coisas? Quem, similarmente a Deus, poderia “criar” outros seres capazes de
refletir a glória do Grande Eu Sou? Só há uma resposta: o homem.

É impressionante que o primeiro livro da Bíblia, já em seus primeiros


versículos, fornece a solução para as maiores crises da humanidade: quem somos e por que
existimos? Diferente daqueles que pensam que a existência humana é fruto do acaso e sem
propósito definido, o texto de Gn 1.26-28 afirma, contundentemente, que o homem é o reflexo
da pessoa de Deus e que sua existência é plena quando ele reflete a glória do Criador em
todos os aspectos da sua vida. Isso inclui a relação entre o homem e a mulher. O final do
versículo 27 registra que macho (rkz)16 e fêmea (hbqn)17 foram formados à imagem do seu
Criador. Em outras palavras, com o homem e a mulher, Deus não criou somente seres

16 Enhanced Strong’s Lexicon, (Oak Harbor, WA: Logos Research Systems, Inc.) 1995.
17 Idem.

19
totalmente distintos da criação, mas também criou uma sexualidade (macho e fêmea) que, em
essência, mais do que com o desejo humano, estava relacionada com a glória do próprio Deus.

3.2.1.2. Uma visão detalhada

Ao citar Gn 1.27, Jesus resumiu, em poucas palavras, o processo de criação


do ser humano, particularmente, do homem e da mulher. Mas, não há dúvida de que sua
intenção era a de remeter seus ouvintes para os detalhes daquele processo. A evidência disso
está na segunda parte da sua resposta, cujos termos fazem uma clara referência ao capítulo 2
de Gênesis.

Depois de ter criado o homem de forma singular (Gn 2.7), o versículo 18 do


mesmo capítulo mostra a intenção de Deus em criar a mulher. Nesse sentido, vale destacar o
contraste que há entre o refrão do capítulo 1: “e viu Deus que ficou bom” e a sua declaração
no verso 18 de que não era bom que o homem estivesse só (grifo pessoal). Diante disso,
Deus, então, usa o ambiente do exercício da autoridade do homem – atribuir nome aos
animais - para que este percebesse que algo lhe faltava: alguém que lhe auxiliasse em
correspondência. Até então, o homem não cogitava a necessidade de uma correspondência, ou
mesmo de um auxílio. Entretanto, quando Deus trouxe os animais ao homem, este finalmente
percebeu a ausência de alguém que lhe correspondesse. O Criador, então, executa a última
parte do seu projeto: usando o próprio homem como matéria-prima, a mulher é criada
(Gn 2.21,22).

Uma vez criada, Deus traz a mulher ao homem. É muito interessante que o
verbo que descreve essa ação é o mesmo usado quando os animais foram apresentados a ele
(awb). Deus conduziu, Deus levou, Deus apresentou a mulher ao homem e, diferente da
ocasião em que dava nome aos seres viventes, agora, sua reação demonstra profundo
contentamento, pois, afinal, lhe é apresentada sua correspondente (Gn 2.23).

O relato mais objetivo de Gn 1 demonstrou que Deus tomou a iniciativa de


criar homem e mulher à sua imagem e, com eles, a sexualidade humana, que serviria para
ilustrar o caráter do Criador e difundir a sua glória em toda a terra. Já os registros de Gn 2
detalharam como esse processo se desenvolveu. A conclusão: Deus foi o responsável por cada
fase do projeto: foi ele quem criou o homem; foi ele quem precipitou no homem a percepção
de que algo estava faltando; foi Deus quem criou a mulher; e foi ele quem a apresentou ao
homem. Se, eventualmente, os fariseus esqueceram destas verdades preliminares a respeito do

20
homem e da mulher, a primeira parte da resposta de Jesus certamente “refrescou” a memória
deles. Se, por acaso, aqueles religiosos ignoraram a Palavra de Deus, Jesus fez questão de
chamá-los à atenção para o fato de que ela ensinava claramente que homem e mulher e,
conseqüentemente, o casamento, eram obra do Criador. Não se tratava de algo que era fruto
da engenhosidade humana, mas de um projeto divino diretamente relacionado com a pessoa,
caráter e glória de Deus.

3.2.2. As Implicações do Projeto de Deus


Jesus não havia encerrado a questão ainda. Ele continua a desenvolver o
assunto. Já estava claro: o casamento era um projeto de Deus. Agora, complementando a
matéria, ele vai pontuar as implicações daquele plano. É nesse momento que ele cita,
literalmente, Gn 2.24.

O texto começa com uma expressão: “por isso”. Ela indica que há uma
relação entre o assunto anterior e o argumento a ser apresentado. Qual era, então, o assunto
anterior? A resposta: o projeto de Deus - a criação do homem e da mulher; ou, em termos de
contexto mais próximo, o momento em que Eva é apresentada por Deus a Adão. É nesse
ponto que surge a expressão “por isso”, cujo funcionamento pode ser ilustrado a partir de
sentenças do tipo: “é em virtude de Deus ter criado homem e mulher que...”; ou, “sabendo que
Deus é o autor daquele projeto, então...”; ou ainda, “as implicações do fato de Deus ter
apresentado a mulher ao homem são...” É nesse sentido que o “por isso” conduz seus
ouvintes: na direção das decorrências do projeto de Deus. E quais são elas? São, basicamente,
quatro: a prioridade do relacionamento; a exclusividade do relacionamento; a
heterossexualidade do relacionamento e a indissolubilidade do relacionamento.

Uma vez apresentados um ao outro, homem e mulher devem formar um


novo núcleo familiar. Eles devem deixar pai e mãe, ou seja, depois do casamento, cabe a eles
estabelecer uma nova configuração de prioridades relacionais. Não se trata, primordialmente,
de um afastamento geográfico, ou de um desligamento emocional completo, mas, sim, de um
relacionamento que, em importância, suplanta a todos os outros, inclusive os que envolvem
co-sangüinidade.

Duas outras implicações do projeto de Deus para homem e mulher tratam da


exclusividade e da heterossexualidade no relacionamento conjugal. O texto afirma que “por
esta causa deixará homem pai e mãe, e se unirá a sua mulher...”. O substantivo “mulher” está

21
no singular. O que significa dizer que não há espaço para outras possibilidades. É um homem
para uma mulher. Nesse sentido, a relação entre Adão e Eva era extremamente ilustrativa e
normativa, visto que, na época, eles não tinham outras opções. Do mesmo modo, no
casamento, o relacionamento não contempla outras opções; numericamente falando, trata-se
de uma única e exclusiva mulher para um único homem e vice-versa; em termos de gênero,
trata-se de uma única e exclusiva fêmea para um único e exclusivo macho (heterossexualidade
relacional).

Finalmente, a última implicação se refere ao caráter sobrenatural do


casamento: “...e se unirá a sua mulher, tornando-se os dois uma só carne”. Nesta passagem, o
verbo  (colar, grudar, juntar rente)18 é normalmente traduzido na voz média (se
unirá); mas o verbo se encontra na voz passiva (), de modo que a melhor
tradução seria “será unido”.19 Isso se harmoniza perfeitamente com o argumento de Jesus no
versículo 6 de Mateus 19, que diz: “... o que Deus ajuntou não o separe o homem”. Se foi
Deus quem ajuntou, não faz sentido afirmar que o homem foi responsável por isso. A voz
passiva confirma a realidade de que a união entre o homem e a mulher é fruto de uma ação
sobrenatural cujo agente é o próprio Deus. É uma união tão profunda, que dois tornam-se um.
Não foi à toa que ao referir-se ao mesmo texto, Paulo expressou o caráter misterioso dessa
união, sendo comparável apenas ao relacionamento de Cristo com sua Igreja (Ef 5.31,32). Por
isso, é impossível desfazer aquilo que Deus estabeleceu. Não há força física que possa separar
aquilo que Deus ajuntou. O casamento é, portanto, indissolúvel.

Os fariseus buscavam justificativas para manter suas práticas abomináveis


que denunciavam que eles, na verdade, eram contra o casamento. Diferente deles, Jesus era a
favor; e tinha que ser, afinal, as Escrituras defendiam aquela instituição e declaravam que

18 Enhanced Strong’s Lexicon, (Oak Harbor, WA: Logos Research Systems, Inc.) 1995.
19Em Gn 2.24, o verbo qbd (unir, colar, grudar) é um 3ms do perfeito do Qal, cuja tradução normal seria “ele
uniu”. Contudo, como a frase começa com um verbo no imperfeito do Qal ( bze - deixará) e o verbo “unir” está
precedido por um waw conjuntivo, é natural que qbd siga o tempo de bze .
A voz do verbo qbd em Gn 2.24 apresenta uma aparente discordância com  citado por Jesus
em Mt 19.5. O primeiro sugere uma iniciativa humana, o segundo, uma passividade do homem. Esse aparente
problema pode ser solucionado levando-se em consideração o resultado da união: tornar-se uma só carne. O
produto da união constitui-se em algo tão misterioso e sobrenatural que nenhum esforço humano seria capaz de
produzir; só Deus poderia fazer aquilo. Jesus, ao usar o verbo na voz passiva, não negou a validade do fato do
homem ter tomado a mulher para se unir, em termos humanos, a ela. Mas, demonstrou que, da perspectiva de
Deus e por ação dele, aquela aliança humana uni espiritualmente duas pessoas de tal maneira que elas se tornam
uma só. Nesse sentido, Deus é o único agente e o homem é totalmente passivo.
22
Deus era o seu autor. Ser pró-casamento era uma conseqüência natural de ser pró-Escrituras e
pró-Criador. Ao responder a questão daqueles religiosos, o Messias deixou claro que, quando
se tratava de casamento, o assunto era sério, visto que era um projeto de Deus que implicava
na prioridade, na exclusividade, na heterossexualidade e na indissolubilidade daquela relação.

Não tendo como driblar a contundência dos argumentos de Jesus, restou aos
fariseus recorrer a um outro texto das Escrituras na tentativa de encontrar algum espaço para a
manutenção do seu baixo padrão moral. O campo da discussão vai, portanto, se deslocar de
Gênesis para Deuteronômio, onde os fariseus apresentarão sérios problemas hermenêuticos
que Jesus habilmente corrigirá.

23
4. O ENSINO DE JESUS: CORRIGINDO A HERMENÊUTICA
FARISAICA
Constrangidos por causa dos argumentos de Jesus, que estavam estritamente
em conformidade ao testemunho das Escrituras, os fariseus precisavam encontrar meios
escriturísticos que respaldassem as práticas adotadas por eles no âmbito do casamento. Jesus,
habilmente, fundamentara sua resposta nos escritos de Moisés, contra os quais a comunidade
judaica, que incluía os fariseus, jamais se levantaria. Diante deste impasse, os fariseus se
viram obrigados a apresentar um argumento da lei que fosse à altura daquele de Jesus, caso
contrário, tanto eles quanto seus planos seriam totalmente desarticulados.

Os fariseus propuseram, então, um debate que girava em torno do texto de


Deuteronômio 24 na tentativa de enfraquecer o argumento do Messias. Jesus, em face do
esforço farisaico em relativizar a Palavra de Deus, tratou da questão; e ao fazê-lo, expôs a
fragilidade da perspectiva dos fariseus ao corrigir a interpretação que eles adotavam para
aquele texto.

4.1. O Contra-argumento dos Fariseus


Não havia como discordar de Moisés. Ele era reconhecidamente o autor de
Gênesis, de modo que, insurgir-se contra seus escritos, seria uma insanidade. Vale lembrar
que Moisés era um dos maiores ícones dentro do judaísmo e que os fariseus eram famosos
pelo rigor com que observavam as leis daquele herói da fé. Ao trabalhar com seus registros e
ao apresentar os fundamentos do casamento a partir dali, Jesus colocou os fariseus numa
situação muito difícil, pois qualquer resistência por parte deles aos ensinos de Gênesis os
lançaria contra o grande legislador de Israel, a quem eles devotavam radical obediência.

Entretanto, havia uma alternativa. Era fato, os fariseus não tinham


condições de discutir com Moisés; eles jamais poderiam se colocar em pé de igualdade com
aquele grande líder. Mas, havia alguém que poderia: o próprio Moisés. O debate entre fariseus
e Moisés seria desleal, mas a discussão entre Moisés e Moisés, não. Foi assim que,

24
supostamente, usando as palavras dele, os fariseus contra-argumentaram o que Jesus havia
dito propondo um debate entre gigantes: os textos de Gn 2.24 e Dt 24.1-4.

“Por que mandou, então, Moisés dar carta de divórcio e repudiar?” A


questão estava carregada de ironia. E não era para menos, afinal, Jesus, ironicamente, os
expôs ao constrangimento quando lhes perguntou: “Não tendes lido que...?” Os fariseus,
certamente enfurecidos, revidaram levantando outra questão que pode ser parafraseada da
seguinte forma: “Por acaso, tu (Jesus) ignoras o texto de Dt 24.1-4? Se não, por que mandou,
então, Moisés dar carta de divórcio e repudiar?” Em outras palavras: “Se tens conhecimento
de Dt 24.1-4, como sustentar a idéia da indissolubilidade do casamento se, Moisés, que
defendeu aquela proposta, foi exatamente o mesmo que ordenou dar carta de divórcio e
repudiar?”; “Como ser acusado de desobedecer a Palavra de Deus, quando é justamente para
obedecê-la que se pratica o divórcio e o repúdio?”; ou ainda, “Por que Moisés ordenaria fazer
algo que ele já havia proibido anteriormente?”

É bem provável que, naquele momento, a platéia que já estava se


posicionando ao lado de Jesus, hesitou. A resposta do Mestre fora satisfatória, mas a réplica
dos fariseus levantou sérias dúvidas quanto à aplicabilidade daquele modelo apresentado por
Jesus. E o pior: o contra-argumento daqueles religiosos estava fundamentado, ao que tudo
parecia, nas Escrituras. A questão era séria e de difícil solução. Se os fariseus estavam, até
aquele instante, em desvantagem, ao contra-argumentarem, eles se recompuseram na
discussão. Porém, um detalhe muito importante mais uma vez fora ignorado: do outro lado do
debate estava o Filho de Deus. E, ele, como pleno conhecedor das Escrituras, identificou
alguns elementos na questão dos fariseus que precisavam de uma correção imediata.

4.2. A correção da hermenêutica dos fariseus

Aparentemente, Jesus estava diante de uma questão muito complexa. A


grosso modo, os fariseus estavam levantando uma grave contradição das Escrituras que, uma
vez confirmada, faria ruir sua autoridade dando precedência àquelas práticas que os fariseus
tinham o interesse de manter. Contudo, apesar da suposta dificuldade, a questão daqueles
religiosos apresentava sérios problemas hermenêuticos. Ao contra-argumentarem, os fariseus
demonstraram sua total deficiência de entendimento quanto aos aspectos antropológicos,
históricos e textuais de Deuteronômio 24. A resposta de Jesus se concentrou na correção

25
daqueles três pontos, confirmando assim, que a ignorância dos fariseus fora responsável por
uma interpretação completamente inválida daquele texto.

4.2.1. Uma correção antropológica

“Respondeu-lhes Jesus: Por causa da dureza do vosso coração...; entretanto,


não foi assim desde o princípio.” O primeiro problema da questão dos fariseus era
antropológico. Ao debaterem Gn 2.24 usando Dt 24.1-4, eles propuseram uma equivalência
de natureza humana impossível de se estabelecer entre aqueles textos. Jesus, ao fazer
referência a Gn 2.24, tratou da humanidade dentro de uma esfera isenta de corrupção. No
primeiro estágio da história, ou seja, no princípio, não havia nada que se interpusesse entre o
homem e seu Criador; o coração humano era totalmente inclinado a Deus. Ou seja, no
princípio, o homem atenderia naturalmente às exigências da relação conjugal.

O texto de Deuteronômio, em contrapartida, pertencia à outra fase da


história da humanidade. Uma fase que foi inaugurada em Gênesis, capítulo três. Até então, a
existência era plenamente equilibrada; mas, com a queda, o homem submeteu a si e a criação
a uma profunda tragédia. Deus havia, benevolentemente, orientado ao homem tanto no que
diz respeito à sua responsabilidade quanto à conseqüência caso desobedecesse ao que havia
sido ordenado (Gn 2.17). Raymond C. Ortlund, Jr. demonstrou sua concordância com isso ao
comentar :

Aqui vemos tanto a abundante generosidade de Deus como a responsabilidade moral


do homem. O homem tinha de viver dentro do amplo, mas não irrestrito, círculo
ordenado por Deus. Para o homem, pular fora daquele círculo e tentar uma
existência autônoma seria sua ruína.20
Gênesis 3 narra justamente esta ruína. O coração antes devotado a Deus, agora se rebela
contra ele e sofre as terríveis conseqüências daquela rebelião. O harmonioso exercício do seu
governo sobre a criação sofreu profundas alterações. A disposição obediente em preservar a
relação conjugal nos moldes determinados pelo seu autor deu lugar a um ambiente de disputas
e de desvalorização pessoal como bem registram as Escrituras ao narrarem casos de poligamia
(Gn 4.1); casamentos mistos, divórcios e recasamentos (Gn 6.2); homossexualismo (Gn 19.5);
incesto (Gn 35.22); estupro (Gn 34.2); adultério (Gn 39.7-20); e toda sorte de perversões (Lv
18.23). O coração do homem, literalmente, se petrificou para com seu Criador. A

20 GRUDEM, John Piper e Wayne. Homem e Mulher. São José dos Campos-SP: Fiel, 1996. p.38

26
conseqüência: sua natureza se petrificou para todos os outros aspectos da sua vida, inclusive o
casamento. O homem, infelizmente, já não era mais o mesmo.

4.2.2. Uma correção contextual

A ignorância antropológica dos fariseus ofuscava seu entendimento quanto


ao cenário de Deuteronômio. Isso porque, uma vez assumindo um conceito equivocado a
respeito do homem, certamente, a perspectiva que eles teriam daquela multidão – que estava
prestes a entrar na terra prometida – seguiria naturalmente os equívocos da sua visão. Se o
conceito do homem não era preciso, a compreensão da realidade do povo de Deuteronômio
também não o seria; se a compreensão a respeito daquele povo não era correta, muito menos o
seria a análise contextual do livro; se o contexto era mal entendido, não haveria uma
interpretação satisfatória.

A antropologia apresentada por Jesus caminhava em outra direção. Ela


sinalizava para o fato de que o público de Deuteronômio, bem como aquele que o ouvia
naquela ocasião, era totalmente composto por pessoas de corações endurecidos. Não se
tratava de um povo que inocentemente contraía vários casamentos, mas de uma geração que
seguia os mesmos passos dos seus antepassados, os quais foram repetidas vezes identificados
como sendo de dura cerviz (Ex 33.9;33.3;33.5). Seus pais fizeram parte daquele povo que
passou cerca de quatrocentos anos no Egito, e que, por serem de coração duro, não
demoraram a assumir a idolatria e a baixa moralidade daquele império, como bem destaca
José Laérton:

Deve-se partir do fato histórico de que a sociedade pagã egípcia tinha um baixíssimo
conceito de casamento, de modo que, a dissolubilidade do casamento era tão fácil
que, um egípcio bastava dizer quatro vezes para a esposa: ‘eu repudio você’ e após a
quarta vez da repetição desta frase o casamento estava completamente desfeito. 21
Apesar dos pais terem morrido no deserto em conseqüência da sua insistente
rebeldia para com o Deus da aliança, o público de Deuteronômio – filhos daquela geração
paganizada no Egito – viveu e assimilou o caótico padrão moral dos seus antepassados.
Prestes a receber a terra que o Senhor havia prometido dar por herança a Abraão, Isaque e
Jacó, aquela nova geração, que à semelhança dos pais, também já havia sido caracterizada

21 LAÉRTON, José. A Santidade e Indissolubilidade do Casamento. Fortaleza – CE: 2001. p.49.

27
como de dura cerviz (Dt 9.6,13), precisava tomar conhecimento das estipulações que
regulamentariam a vida daquela sociedade embrionária.

Diferente daquilo que poderia sugerir a questão dos fariseus, Moisés não
estava diante de um povo ingênuo, mas, sim, de pessoas experimentadas no pecado tanto por
natureza quanto por prática. Não havia vítimas, só culpados. Ao corrigir a antropologia dos
fariseus, Jesus também reorientou a perspectiva contextual daqueles religiosos. Entretanto,
ainda havia um outro elemento a ser corrigido; uma sutileza textual proposta pelos fariseus
que Jesus não ignorou.

4.2.3. Uma correção textual


Comparando o contra-argumento dos fariseus com a subseqüente resposta
de Jesus, é possível perceber uma diferença sutil no que diz respeito ao verbo que descrevia a
ação de Moisés. Replicaram os fariseus: “Por que mandou, então, Moisés...? Jesus, em contra-
partida, respondeu: “Por causa da dureza do vosso coração é que Moisés vos permitiu...(grifo
pessoal). Enquanto os fariseus usaram o verbo  (ordenar, mandar que seja feito,
encarregar)22, Jesus retificou usando  (permitir, consentir, instruir)23. Ou seja, ao
empregarem verbos diferentes, ficou evidente que eles discordavam quanto à interpretação do
mesmo texto. Quem estaria com razão? Em outras palavras: qual foi, afinal, a ação de
Moisés? Ele ordenou ou permitiu dar carta de divórcio e repudiar? Para responder a essa
questão, vale observar atentamente o texto sob análise. Deuteronômio 24.1-4 registra:

Se um homem tomar uma mulher e se casar com ela, e se ela não for agradável aos
seus olhos, por ter ele achado cousa indecente nela, e se lhe lavrar um termo de
divórcio, e lho der na mão e a despedir de casa; e se, saindo da sua casa, for, e se
casar com outro homem, e se este a aborrecer, e lhe lavrar termo de divórcio e lho
der na mão, e a despedir da sua casa, ou se este último homem, que a tomou para si
por mulher, vier a morrer, então seu primeiro, que a despediu, não poderá tornar a
desposá-la, para que seja sua mulher, depois que foi contaminada: pois é
abominação perante o Senhor; assim não farás pecar a terra que o Senhor te dá por
herança.
O texto apresenta treze situações condicionadas. Tecnicamente, orações
condicionadas se apresentam “em períodos de duas orações: a primeira das quais (prótase)
contém a suposição, e a segunda (apódose, ou oração principal) contém a conclusão ou

22 Enhanced Strong’s Lexicon, (Oak Harbor, WA: Logos Research Systems, Inc.) 1995.
23 Idem.

28
resultado dependente da suposição.”24 As condições podem ser reais ou hipotéticas,
dependendo da conjunção da frase. Se a condição for introduzida pela conjunção yk, a
suposição será real; se for pela conjunção wl, então, a suposição será irreal. Deuteronômio
24.1-4 é introduzido pela primeira conjunção, o que determina que as condições propostas por
Moisés naquela ocasião eram reais. Isso implica em assumir que, ao registrar aquelas orações
condicionais, Moisés não estava se baseando em situações que eram fruto de um exercício
imaginativo. Pelo contrário, certamente sua referência estava em circunstâncias já observadas
no contexto onde estava inserido. Ou seja, era provável que aquele tipo de ocorrência já tinha
sido notada no meio daquele povo. Sendo assim, e à luz do que foi visto na seção anterior,
confirma-se o fato de que Moisés se defrontou com uma realidade já estabelecida. Aquele
povo sob a sua liderança reproduzia os mesmos erros dos seus antepassados, de modo que não
era improvável encontrar os relacionamentos familiares em profunda desordem. José Laérton
faz esse destaque, ao escrever:

Após a saída do Egito da grande multidão de hebreus, Moisés se depara com uma
espantosa realidade, já solidamente estabelecida entre o povo que acabava de ser
redimido: o divórcio e os recasamentos tinham criado uma gigantesca crise familiar
entre o povo de Deus. Exatamente o povo que fora escolhido para gerarem o
Messias, no contexto de uma família santa e sob a bênção de Deus.
A situação realmente estava fora de controle, pois devido aos múltiplos casamentos,
divórcios e recasamentos, a mesma mulher, poderia ter filhos de vários maridos
diferentes, gerando com isso uma grande confusão, injustiças e sofrimento sem
conta.25
Os múltiplos divórcios seguidos de repúdio eram, portanto, o cenário que
caracterizava aquela sociedade. Como dito acima, a desordem relacional estava solidamente
instalada; não há como negar isso. Mas, de que maneira essa informação responde se Moisés
ordenou ou permitiu aquelas práticas? Preliminarmente, pode-se concluir, a partir do que foi
visto, que Moisés não ordenaria praticar algo que já era praticado. Entretanto, há outro detalhe
do texto que fortalece a interpretação de Jesus: o divórcio e o repúdio não se encontram na
apódose. Em termos mais claros, para que aquelas práticas fossem ordenadas, elas
necesariamente deveriam estar na oração principal (apódose), que contém o resultado da
suposição (ou, onde, satisfeitas as condições, está uma ordem a ser obedecida). No entanto, a

24 PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para Exegese do Antigo Testamento. São Paulo, SP: Vida
Nova, 1998. p.98.
25 LAÉRTON, José. Op. cit. p.49.

29
estrutura de Deuteronomio 24 demonstra que o divórcio e o repúdio estavam relacionados na
lista de condições (na prótase). Sendo assim, a única ordem do texto é: não casar com uma
mulher contaminada. Moisés não ordenou o divórcio e o repúdio, mas, sim, proibiu o
casamento com uma adúltera. O divórcio e o repúdio foram concessões reorientadoras de um
cenário social gravemente desordenado. Em suma, mais uma vez, os fariseus estavam errados.

Vale destacar que, ao contrário do que concluíam os fariseus, além de não


ordenar o divórcio e o repúdio, Deuteronômio, ainda, reafirmava a indissolubilidade do
casamento. A prova disso estava na contaminação da mulher referida no texto. Por que ela
fora contaminada? Porque, ainda que do ponto de vista da sociedade ela estivesse liberada
para casar novamente, da perspectiva divina, o termo de divórcio não tinha efeito nenhum
sobre a realidade de que ela era uma só carne com o primeiro homem e, por isso, quando
recasou, cometeu adultério.

Os fariseus cometeram erros de caráter antropológico, de cunho contextual e


de ordem literária. Por mais sutis que fossem suas colocações, Jesus jamais deixaria de
ignorá-las. E foi exatamente o que aconteceu. Diante daquela hermenêutica tendenciosa, Jesus
imediatamente fez as devidas correções, propondo a interpretação que deveria ser adotada
para o texto de Deuteronômio. O debate foi, assim, encerrado com mais uma demonstração da
autoridade de Cristo; fato que preparou o cenário para ele normatizar, definitivamente, aquela
questão.

30
5. O ENSINO DE JESUS: A CLÁUSULA DE EXCEÇÃO
Jesus sabia que a dureza do coração humano havia transformado o
casamento em uma mera transação comercial, cujo objeto sob negociação – a mulher – era
tido como uma mercadoria qualquer. Em sua abordagem, os fariseus demonstraram
claramente essa realidade quando perguntaram se era lícito repudiar por qualquer motivo
(grifo pessoal). Ou seja, a dignidade da mulher e a preservação da instituição divina pouco
interessavam. Por isso, antes de responder àquela questão, era necessário resgatar os
fundamentos do casamento que, não só o posicionavam em seu elevado lugar, mas também
protegiam o valor e a dignidade feminina. Feito isso e, depois de corrigir a hermenêutica
farisaica, Jesus, finalmente, responde à primeira pergunta, dizendo: “Eu, porém, vos digo:
quem repudiar sua mulher, não sendo por causa de relações sexuais ilícitas, e casar com outra
comete adultério [e o que casa com a repudiada comete adultério]”.

Esta resposta se tornou o texto áureo da matéria “divórcio e recasamento”.


Qualquer um que se proponha a falar sobre “divórcio e recasamento, indubitavelmente,
recorrerá àquele texto clássico. Contudo, se o uso de Mt 19.9 é unânime, sua interpretação
está longe de ser. O motivo: a presença da chamada “cláusula de exceção” na resposta de
Jesus. O que ela excetua: o divórcio, o recasamento, ou os dois? Que pecados estabelecem a
exceção: impureza, relações sexuais ilícitas ou adultério? Para cada questão, há uma
variedade de respostas. Opiniões divergentes não faltam, tanto que o debate continua até hoje.
Mas, qual delas se harmoniza melhor com o argumento de Cristo? Essa resposta começará a
ser construída nesta seção, a partir de uma análise da controvertida “cláusula de exceção”.

5.1. Jesus: o legislador

Antes de focalizar a “cláusula excetiva” propriamente dita, é necessário


fazer uma observação. Destacou-se que o Evangelho de Mateus possui características que o
fazem, comparado com os outros evangelhos, totalmente diferenciado. Um detalhe que
contribui em muito para essa singularidade são as chamadas “citações de fórmula”, que são
expressões intencionalmente repetidas por Mateus para fortalecer a idéia que ele queria
defender com seu evangelho. Por exemplo: “Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que

31
foi dito da parte do Senhor pelo profeta...” é uma citação de presença marcante em Mateus,
pois enfatiza, repetidamente, a pessoa de Jesus como o ponto para onde convergia toda a Lei –
ou seja, ele era o cumprimento das esperanças de Israel.

Ao partir para a conclusão do debate com os fariseus, Jesus introduziu sua


resposta com uma outra expressão nem um pouco inédita: “Eu, porém, vos digo...”. Na
realidade, ele já havia usado esta citação por seis vezes (5.22, 28, 32, 34, 39, 44). Todas elas,
incluindo Mt 19.9, sucedem alguma referência à lei mosaica. Levando em consideração a
intrigante presença da conjunção adversativa “porém” na frase de Jesus, não seria incomum
concluir, a priori, que seu pronunciamento estivesse em antítese com o Antigo Testamento.
Contudo, essa não é, nem de longe, uma idéia aceitável. Comentando o texto de Mt 5.17-48
(onde registram-se seis das sete vezes em que aquela citação ocorre), Tasker afirma:

Seis vezes nesta passagem Jesus parece estar firmando seus próprios
pronunciamentos em antítese ao que havia sido previamente dito, e em cada caso o
que vem antes consiste numa citação da lei mosaica ou pelo menos a inclui. Se,
entretanto, houvesse qualquer antítese real entre o que a lei afirmava e suas
implicações mais plenas apontadas por Jesus, as afirmações dos versos 17-19 seriam
incompreensíveis.26
Ora, se a citação não está em oposição a Moisés, a que (ou a quem) Jesus
contradiz? A resposta é indicada no próprio texto de Mt 5.17-48 pela expressão “ouvistes o
que foi dito”. Quando foi tentado no deserto, Jesus citou alguns textos de Deuteronômio (Dt
6.13,16; 8.3; 10.20). Ao citá-los, em todas as oportunidades ele disse: “está escrito”. Por que
ele não fez o mesmo em Mt 5.17-48? Segundo Champlin,

A maior parte do povo não sabia ler, e ainda que soubesse isso de pouco adiantaria,
porque as Bíblias (Escrituras) não eram numerosas e não eram acessíveis ao povo
comum. Portanto, o povo conhecia as Escrituras de ouvido, devido à leitura feita nas
sinagogas e à exposição feita pelos escribas.27
O contato do povo com a Lei ocorria, portanto, quando alguém lhe expunha as Escrituras.
Como os responsáveis por essa exposição eram os representantes de uma religião distanciada
da mensagem essencial da Palavra de Deus, era natural que a interpretação apresentada por
eles acompanhasse aquele distanciamento. Desse modo, quando ouvia as Escrituras, o povo
recebia com ela todo um conteúdo interpretativo que se afastava radicalmente do espírito da
própria lei. Onde, nas Escrituras, o mandamento para não matar vinha seguido de uma

26 TASKER, R.V.G.. Mateus: Introdução e Comentário. São Paulo, SP: Mundo Cristão, 1991. p.51-2.
27 CHAMPLIN, R. N.. O Novo Testamento Interpretado: Volume 1. São Paulo, SP: Hagnos, 2002. p.310.

32
emenda obrigando aquele que matou a passar por um julgamento (5.21)? Que porção da
Palavra de Deus afirmava que o homem que repudiava sua mulher devia dar a ela carta de
divórcio (5.31)? Em que parte da lei, Moisés incentivava a vingança (5.38)? A expressão
“ouvistes o que foi dito” indicava que a citação a seguir não era literal, mas interpretada.
Quando Jesus se pronunciou dizendo: “Eu, porém, vos digo”, ele não estava, portanto,
contradizendo a Moisés, mas, sim, repudiando aquelas complementações legalistas que, ao
invés de aproximar, mais afastavam o povo do Deus da aliança.

Por outro lado, a citação “Eu, porém, vos digo” revelava a autoridade de
Cristo. Ladd confirma essa idéia ao afirmar que... “Jesus é aquele para quem a lei apontava;
ela encontra seu objetivo nele. De agora em diante, portanto, a lei deve ser entendida e
aplicada somente em relação a ele, que sozinho tem o direito de declarar: ‘Eu, porém, vos
digo’ e que ensina com a sua própria autoridade, de modo diferente dos escribas”. 28

Champlin, comentando que aquela citação era usada com freqüência por Jesus como meio de
expressar uma lei ou uma interpretação superior, principalmente, quando rejeitava as
propostas legalistas como interpretação dos escritos de Moisés, assegurou que “...com aquela
expressão, pois, Jesus assumia a posição de outro Moisés, e falava com grande autoridade.”29
E, não podia ser diferente, afinal, ele era o Messias e como tal “...se declarou autorizado a
suplantar a lei, tirar conclusões e princípios nela latentes, bem como desautorizar as deduções
falsas anteriormente extraídas dela”30

Portanto, a introdução da resposta à questão: “É lícito ao homem repudiar


sua mulher por qualquer motivo?” resumia o repúdio de Cristo em relação às interpretações
vigentes da lei, mas também, apontava para a autoridade de alguém que, uma vez
estabelecendo os critérios que regulamentariam a matéria do “divórcio e recasamento”,
deveria ser diligentemente obedecido como o grande legislador de Israel.

28 LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2004. p.290.
29 CHAMPLIN, R. N.. O Novo Testamento Interpretado: Volume 1. São Paulo, SP: Hagnos, 2002. p.481.
30 TASKER, R.V.G.. Mateus: Introdução e Comentário. São Paulo, SP: Mundo Cristão, 1991. p.53.

33
5.2. O Objeto da Exceção

Grande parte da controvérsia em relação ao texto de Mt 19.9 se encontra na


dificuldade em se determinar o objeto da cláusula excetiva. Seria o divórcio, o recasamento,
ou os dois? O problema é tão grande que Tasker, ao introduzir seu comentário a respeito,
reconheceu que...

Esta passagem sobre o divórcio é tão difícil, e há tantas interpretações diversas,


dadas individualmente por estudiosos e por diferentes ramos da igreja cristã, que um
comentador bem pode ter relutância de expressar alguma opinião sobre ela, temendo
fazer-se culpado de aumentar a confusão exegética e eclesiástica.31
O mesmo autor, consciente de que suas colocações poderiam ser recebidas com muita
desconfiança por outros estudiosos, caracterizou os argumentos que usaria como reflexões
pessoais. Pode-se constatar, a partir de um artigo que aborda o assunto, que John Piper
compartilha um sentimento semelhante ao de Tasker, pois declara: “Eu não afirmo que
encontrei ou disse a última palavra nesta questão, nem que eu estou além de correção caso
prove-se que estou errado. Estou ciente de que homens mais piedosos que eu tiveram opiniões
diferentes.”32 Tanto cuidado assim, só vem a confirmar uma coisa: a questão não é simples.

Para se ter uma idéia da complexidade da matéria, dentre tantas posições, há


aqueles que defendem que a cláusula de exceção não foi originalmente declarada por Jesus,
mas foi inserida por Mateus para tornar os ensinos de Cristo mais aceitáveis na comunidade
humana (o que seria uma justificativa para a ausência da mesma em Marcos e Lucas).33
Alguns insistem que o texto refere-se a uma exceção que só pode ocorrer durante o noivado e,
não, depois do casamento. Outros, ainda, asseveram que a cláusula excetiva autoriza o
divórcio e o recasamento, mas somente da pessoa sem culpa. Em outras palavras, não há

31 TASKER, R.V.G.. Op. cit. p.142-3.


32 PIPER, John. Divórcio e Novo Casamento: Uma Declaração. www.monergismo.com, 1986. p.1.
33A maioria dos intérpretes rejeita essa possibilidade. Aceitar que Mateus acrescentou declarações às palavras de
Jesus, seria assumir que aquele evangelista registrou um falso testemunho, uma vez que ele mesmo escreveu que
Cristo havia feito aquelas declarações: “Eu, porém, vos digo...” Do mesmo modo, não parece ser coerente dizer
que Mateus tenha feito tal acréscimo para que os ensinamentos do Filho de Deus fossem mais abrangentemente
aceitos. Seu evangelho mesmo evidencia isso ao relatar uma variedade de situações em que Jesus não
demonstrava a menor preocupação em ser popular. Outro detalhe: a ausência da cláusula de exceção em Marcos
e Lucas não comprova que Mateus incluiu a mesma em seu evangelho. Há pelo menos três razões para isso: a
primeira: o ensino principal de Jesus com respeito ao divórcio e recasamento é preservado nos três evangelhos; a
segunda: omitir uma declaração não significa, necessariamente, que ela não foi feita; e, terceira: os evangelistas
escreveram para públicos diferentes e, por isso, foram legitimamente seletivos nos seus registros com o objetivo
de apresentar para sua audiência específica a verdade do Evangelho com a maior relevância possível.

34
como negar que assumir qualquer posição existente implica, necessariamente, em
discordâncias intermináveis. Entretanto, as divergências não podem ser uma razão para
interromper um estudo sério sobre a questão. Apesar do presente trabalho não ser um
desenvolvimento que se proponha a esgotar o assunto, pretende-se pelo menos iniciar uma
reflexão consistente que aponte uma solução.

A referida solução pode começar a ser construída respondendo-se à seguinte


sentença: qual é o objeto da exceção? Antes de responder, entretanto, é necessário reconhecer
as possibilidades existentes e verificar qual delas se harmoniza melhor com o argumento de
Cristo. O texto diz: “quem repudiar sua mulher, não sendo por causa de relações sexuais
ilícitas, e casar com outra comete adultério”. Se a cláusula de exceção for suprimida, restará
uma oração condicional mais simples. Apesar da ausência da partícula  (ou ), a
condicionalidade é perfeitamente possível, pois como afirma Lasor, “nem sempre iremos
encontrar uma prótase com , mas também pode ser usado um particípio ... , uma oração
relativa ou alguma outra palavra simples ou locução”.34 A oração condicional do texto é
composta por duas prótases [ quem repudiar ... e (quem) casar] ligadas pela conjunção aditiva
 e por uma única apódose (... comete adultério). Da maneira como está, ou seja, sem a

cláusula excetiva [para efeito de exercício], fica evidente que o adultério se perfaz apenas
quando as duas condições são satisfeitas.35 Se o texto fosse assim, a questão seria facilmente
resolvida. Porém, há uma dificuldade: a cláusula excetiva encontra-se entre as duas prótases
(se divorciar + exceção + se recasar). Com qual delas a exceção se relaciona? Há no mínimo
três possibilidades.

A primeira alternativa refere-se à relação da cláusula excetiva com a


primeira prótase (se divorciar). Neste caso, o repúdio seria possível sob as condições impostas
pela cláusula, mas o recasamento não. A segunda opção seria a relação da exceção com a
segunda prótase (se casar). Aqui, o divórcio poderia acontecer por qualquer motivo, mas o
recasamento estaria sob restrição. A terceira possibilidade seria a relação da excetiva com as
duas prótases. Nela, divórcio e recasamento seriam possíveis, mas com restrição.

34 LASOR, William Sanford. Gramática Sintática do N.T.. São Paulo, SP: Vida Nova, 1973. p.133.
35 É importante enfatizar que esta colocação não quer afirmar que o adultério ocorre somente em casos de
repúdio seguido de recasamento. Ela assegura, apenas, que o divórcio acompanhado de um subseqüente novo
casamento é adultério.

35
De imediato, pode-se descartar a segunda opção pelo fato de que, se ela
fosse possível, seria necessário assumir que o Senhor Jesus estaria autorizando o repúdio por
qualquer motivo, concordando, assim, com a desordem matrimonial tão defendida pelos
falsos religiosos da época. Vale lembrar que Cristo demonstrou claramente seu repúdio àquela
realidade caótica, de modo que seria um absurdo considerar possível a segunda possibilidade.

Restam (eliminada a segunda) duas possibilidades. A primeira autoriza o


repúdio sob restrição, mas impossibilita o recasamento. A terceira prevê a possibilidade tanto
para o divórcio quanto para o recasamento, contudo, ambos restringidos pela cláusula de
exceção. Quando o Senhor Jesus tratou do problema, ele certamente tinha em mente apenas
uma das duas alternativas restantes. Qual delas ele ensinou? Para responder, é fundamental
consultar o contexto, a linha de raciocínio que o Mestre desenvolveu até ali. Por isso, vale
lembrar que antes de responder à questão dos fariseus, Jesus definiu o casamento como um
projeto de Deus que, uma vez estabelecido, produzia uma união espiritual impossível de se
desfazer. Desse modo, Cristo afirmou a indissolubilidade do casamento, visto que o autor
desta união foi o próprio Deus. Em seguida, ele corrigiu a hermenêutica dos seus opositores
mostrando, no texto que supostamente autorizava os desmandos matrimoniais, que a Lei de
Moisés apontava para aquele mesmo padrão divino como regulador das relações conjugais.
Ora, se Jesus defendeu a indissolubilidade do casamento, e se, por definição, autorizar o
recasamento significa assumir a dissolubilidade do matrimônio, conclui-se que o ensino do
Senhor confirma a primeira possibilidade: divórcio possível com restrições e recasamento
impossível.

Jesus contemplava, portanto, somente um objeto sob exceção: o divórcio.36


Alguns poderiam dizer que esta concessão obrigaria, necessariamente, à possibilidade do
recasamento; afinal, de que valeria o repúdio se não fosse possível um novo casamento? Este
raciocínio é lógico, mas equivocado. Para o Mestre, havia um aspecto do matrimônio do qual
ele jamais abriria mão e que normalmente a lógica dos discordantes ignora: a
indissolubilidade do casamento. A impossibilidade do recasamento, mesmo que permitido o
divórcio, preserva aquele princípio. O padrão é alto? Não, é elevadíssimo, pois a questão não

36O divórcio, de modo algum, é uma prática desejada, ou mesmo, incentivada por Cristo. Entretanto, por causa
da dureza do coração e, conseqüentemente, da indisposição humana para a reconciliação, Jesus, à semelhança de
Moisés, permite o divórcio. Contudo, esta concessão tem limites elevadíssimos que, somados à impossibilidade
do novo casamento, restabelece a ordem no núcleo conjugal.

36
trata apenas de um recasamento impossível, mas também da possibilidade de um divórcio sob
uma elevada restrição. Que restrição era essa? O ponto a ser analisado a seguir se concentrará
em responder a esta questão.

5.3. O pecado que estabelece a exceção

Se na seção anterior o compromisso era indicar a que a cláusula de exceção


excetuava, na presente, é mostrar em que ela se constituía. Pelo que tudo indica, o ensino de
Jesus não contemplava a possibilidade do recasamento; entretanto, ainda que não fosse
desejado, nem incentivado, o divórcio poderia ocorrer. Contudo, este recurso estava
condicionado a uma elevada restrição. Para os fariseus, qualquer motivo autorizava o repúdio;
para Jesus, porém, apenas um: .

Há uma variedade de traduções para o termo  : fornicação,


impureza, indecência, infidelidade conjugal, relações sexuais ilícitas37, entre outras. Apesar
deste universo semântico, o adultério tem sido amplamente aceito tanto como significado para
aquele termo, quanto como condição que satisfaz a exceção para o divórcio. “Se você
perguntasse à maioria dos crentes: ‘O que, em sua opinião, é a única coisa que Deus
reconheceria como motivo para o divórcio na Bíblia?’ A maioria responderia: ‘Adultério’.”38
E não poderia ser diferente, afinal, não se pode negar a gravidade deste pecado e o fato de que
ele abre profundas feridas na relação conjugal a ponto de, em muitos casos, ser difícil para o
casal permanecer junto. Mas, será que ao legislar a questão do divórcio, Jesus tinha em mente
o adultério como o pecado que estabeleceria a exceção para repudiar? Há algumas razões para
se crer que não.

A primeira razão para se duvidar que o adultério se constituía no motivo que


autorizava o divórcio está no fato de Jesus, ao se referir àquele pecado, ter usado outro termo:
(moichatai: do substantivo moicheia). “Quem repudiar sua mulher, não sendo por causa de
 , e casar com outra  .” Ora, se este termo () se refere ao adultério39, por
que ele não foi usado no lugar de ? Uma resposta possível seria o uso intercambiável dos

37 Enhanced Strong’s Lexicon, (Oak Harbor, WA: Logos Research Systems, Inc.) 1995.
38 PLEKKER, Robert J.. Divórcio à Luz da Bíblia. São Paulo, SP: Vida Nova, 2000. p.51.
39 Enhanced Strong’s Lexicon. Op. cit.

37
termos. Contudo, além de Mt 5.32 e Mt 19.9, o único outro lugar onde Mateus registra aquelas
palavras juntas é Mt 15.19 e, lá, o evangelista parece usar os termos com significados distintos. John
Piper, ao analisar a questão, concordou com a distinção do uso daquelas palavras e concluiu:

Portanto, não podemos fugir do fato de que a distinção entre o que era considerado
como porneia e o que era considerado como moicheia foi minuciosamente mantido
na literatura judaica pré-cristã e no NT. Porneia pode, é claro, denotar diferentes
formas de relações sexuais proibidas, mas não podemos encontrar exemplos
inequívocos do uso desta palavra para denotar o adultério conjugal. Sob estas
circunstâncias dificilmente poderíamos assumir que esta palavra significa adultério
na cláusula em Mateus.40
Outra razão que impossibilita  (porneia) ser traduzida como
adultério diz respeito à conseqüência sofrida pelos adúlteros. A Lei Mosaica punia o adultério
com a morte. Em Mateus 19.9, tudo indica que o adultério só se estabelecia quando do
recasamento; do contrário, se alguém repudiasse a sua esposa, não sendo em caso de porneia,
e não se casasse com outra mulher, não estaria cometendo adultério. Se porneia tivesse o
mesmo significado que moicheia, o adultério se estabeleceria antes do recasamento e, já nesse
momento, haveria motivo suficiente para aplicar a pena de morte. Em Jo 8.41 e.g., os líderes
judeus acusaram Jesus, indiretamente, de ter nascido de porneia. Esta acusação poderia ser
uma óbvia alusão ao episódio ocorrido em Mt 1.18,19. Naquela ocasião, José resolveu
divorciar-se secretamente de Maria por causa da sua gravidez. É importante lembrar que, na
época, José e Maria eram noivos, ou seja, socialmente falando, eram vistos como marido e
mulher (casados), ainda que sem terem consumado todos os compromissos matrimoniais
(entre eles, a plenitude da aliança de casamento e a relação sexual). Como José ainda não
sabia que aquela gravidez era fruto de uma intervenção divina, concluiu que a condição de
Maria fosse conseqüência de porneia e por isso, não querendo difamá-la, a deixou. Se Maria
fosse considerada adúltera, ela deveria ser penalizada com a morte por apedrejamento;
entretanto, como neste caso parecia estar caracterizada porneia e não moicheia, a pena capital
não veio a ser aplicada. Alguns estudiosos usam este fato para defender que porneia era um
pecado que só poderia ser cometido no período de noivado. Contudo, não é possível sustentar
essa tese. Em Deuteronômio 22.22 e 24.1, um mesmo termo é usado para se referir ao
casamento, a saber, leb (ba‘al)41. Quando, porém, se trata de noivado (Dt 22.25-27), outra

40 PIPER, John. Divórcio e Novo Casamento: Uma declaração. www.monergismo.com, 1986. p.10-1.
41 Op. cit.

38
palavra é usada: sra (‘aras)42. Se a porneia de Mt 19.9 fosse uma referência somente ao
período do noivado, o contexto indicaria alguma passagem usando o termo ‘aras. Como o
contexto de Mateus 19 alude à passagem em Dt 24, onde o termo em questão é ba‘al, a idéia
de que porneia ocorre somente durante o noivado perde todo o sentido. Na verdade, à luz de
Mt1.18-20, fica comprovado que porneia poderia acontecer também no período do noivado,
pois, como já foi dito, naquela sociedade, o noivado já tinha status de casamento. De qualquer
forma, o Senhor Jesus em momento algum se prendeu ao “quando” o divórcio era permitido,
mas sim “àquilo” que o tornava possível: porneia e, não moicheia.

Finalmente, há um outro detalhe que invalida o adultério como tradução


para porneia: o contexto de Deuteronômio 23.14. O equivalente veterotestamentário de
porneia é a palavra hwre (‘ervah) que, normalmente, é traduzida como “coisa indecente” ou
“indecência”43. Pela tradição judaica, a tal “indecência” poderia ser qualquer coisa, chegando
ao absurdo de envolver uma refeição queimada, uma conversa com outro homem, perda de
cabelo, falar impropriamente a respeito da sogra, etc. Contudo, aquela tradição nunca teve
apoio nas Escrituras. Na realidade a palavra ‘ervah é muito abrangente e de difícil tradução. O
próprio texto de Deuteronômio 24 o cita, mas sem dar uma indicação precisa do que ela
significa. Entretanto, Dt 23.12-14, além de mencionar o termo, sugere boas possibilidades de
tradução para ele. John MacArthur afirma que:

Se retrocedermos até o contexto do capítulo 23, acharemos o mesmo termo para


“impureza” sendo usado no versículo 14, como regulamento para a questão dos
excrementos dos filhos de Israel”. Segundo essa passagem, o Senhor passava pelo
meio do acampamento do povo de Israel. Por isso, era santo ao Seus olhos. Sendo
assim, o povo foi orientado a fazer suas necessidades fisiológicas fora do
acampamento. E mais, deveria, ainda assim, cuidar para deixar oculto seus
excrementos. Ao fazer isso, Deus preservava seu povo de ser pego numa situação
indecente, suja, comprometedora. Ou seja, algo que não só expusesse a nudez
pessoal, mas também práticas que eram extremamente íntimas e que não poderiam
ser colocadas à vista de ninguém. 44
Pelo que parece, a indecência de Dt 23 poderia ser qualquer coisa de caráter impuro, sujo,
vergonhoso, impróprio e embaraçoso que fosse socialmente constatável e ferisse a santidade
de Deus. A partir deste significado, MacArthur propõe um exemplo interessante para revelar

42 Op. cit.
43 Idem.
44 MACARTHUR JR., John. Jesus Teaching on Divorce. Panorama City, California: Word of Grace
Communications, 1983.p.43.

39
como a indecência poderia ser praticada, particularmente, por aqueles que tivessem
conhecimento das conseqüências de um adultério:

Se você soubesse que adultério implicaria em morte, certamente você faria muitas
coisas (até aquelas que se aproximassem bastante do adultério), mas, de um modo
geral, você tentaria controlar-se ao máximo para evitar o adultério propriamente
dito, não é verdade? Pois bem, aparentemente, havia pessoas que estavam
mergulhadas em situações vergonhosas, indecentes, bem próximas do adultério,
sem, contudo, cometê-lo.45
Não se pode negar a possibilidade desta proposta, mas ela certamente não é a única. A
indecência não está restrita à questões de sexualidade. O próprio contexto de Dt 23.14 indicou
que a “coisa indecente” estava associada a um procedimento impróprio dentro do
acampamento do Senhor, cuja natureza não era essencialmente sexual.46 Por isso, à luz do
significado abrangente de porneia proposto aqui, a saber: qualquer coisa de caráter impuro,
sujo, vergonhoso, impróprio e embaraçoso que fosse socialmente constatável e ferisse a
santidade de Deus, pode-se afirmar que outros pecados se encaixam nesta definição. Assim,
diferente do que muitos estudiosos asseveram, dizendo que o termo não contempla todas as
situações contemporâneas que possibilitam o divórcio, podem ser, sim, consideradas porneia
práticas como violência doméstica persistente, o uso desenfreado de drogas no lar (bem como
a coação a esta prática), disfunções neurológicas irreversíveis que põem em risco a
integridade física da família ou qualquer atitude que ameace os entes de morte.

Portanto, conclui-se que porneia é diferente de moicheia; “coisa indecente”


não é o mesmo que adultério. Entretanto, não se pretende afirmar com isso que,
contemporaneamente falando, o adultério constantemente praticado não seja um motivo que
possibilite o divórcio, mas que Jesus se referiu a outros pecados quando usou o termo porneia.
A breve observação das razões que comprovam a clara distinção entre porneia e moicheia
contribuiu para se chegar a esta conclusão. O divórcio, como já foi dito, nunca foi desejado,
muito menos incentivado por Jesus, mas ele apresentou uma exceção que, apesar de

45 MACARTHUR JR., John. Op. cit. p.44.


46 Muito embora o Novo Testamento, em geral, relacione porneia unicamente a relações sexuais ilícitas, toda a
argumentação de Mt 19 se fundamenta em textos do Antigo Testamento. Levando em consideração que a
audiência imediata para a qual o Senhor Jesus se dirigia era de judeus, para que a aplicação desses textos fosse
correta e relevante, seria imprescindível que porneia fosse relacionada ao seu equivalente vetero-testamentário
(‘ervah). Por isso, ainda que o entendimento neotestamentário associasse o termo porneia a relações sexuais
ilícitas, parece ser mais natural que a referência ao termo em Mt 19 esteja diretamente associada à mentalidade
do Antigo Testamento, ou seja, a qualquer atitude de caráter impuro, sujo, vergonhoso, impróprio e
embaraçoso que fosse socialmente constatável, reprovável e que ferisse frontalmente a santidade de Deus.

40
abrangente47, era extremamente restrita como bem revelou a reação dos discípulos diante do
conhecimento daquilo que estabelecia a exceção.

5.4. A reação à cláusula de exceção

Uma das evidências mais fortes de que o padrão de Jesus para o casamento
era elevado foi a reação dos discípulos ao ensino do seu Mestre. Acostumados com um
modelo matrimonial extremamente licencioso, que tratava as mulheres como verdadeiras
mercadorias, os discípulos, ao ouvirem as palavras de Cristo concernentes à aliança conjugal,
não se contiveram e, quase que em desabafo, precipitaram sua conclusão: “Se essa é a
condição do homem relativamente à sua mulher, não convém casar”. Por que eles reagiram
assim? Por que eles sugeriram o celibato como uma condição melhor que a de casado?

A resposta pode ser construída da seguinte forma: até então os discípulos


não tinham se dado conta do significado da indissolubilidade do casamento ensinada por Jesus
a partir de fundamentos constantes nas próprias Escrituras. No entanto, quando finalmente o
Mestre respondeu à pergunta dos fariseus, as implicações do alto padrão divino fizeram
sentido para eles. Até o momento em que Jesus discorria a respeito da natureza do casamento,
os discípulos, provavelmente, não percebiam as manifestações práticas daqueles conceitos;
porém, ao eliminar a possibilidade do recasamento e restringir o divórcio a uma situação
pouco provável, os discípulos finalmente entenderam o recado. É quase certo que, finalizadas
as palavras de Jesus, eles raciocinaram: “Se um homem casar, estará definitivamente ligado à
sua esposa; contudo, se a cláusula excetiva for satisfeita, o repúdio será possível, mas o
recasamento não, ou seja, lhe restará apenas o celibato. Ora, entre ser celibatário antes de ter
experimentado as delícias da relação sexual no casamento e sê-lo depois, a melhor opção é,
evidentemente, ser celibatário antes do casamento”. Em resumo, a manifestação dos
discípulos, pelo que tudo indica, foi uma reação natural àquela dura implicação prática da
indissolubilidade do casamento que estabelecia que, em caso de divórcio, não haveria outra
alternativa, senão, a difícil condição celibatária depois de ter desfrutado da relação conjugal.

47Não obstante o termo que “justifica” o divórcio ser abrangente, de acordo com o argumento do Senhor Jesus,
este recurso sempre é resultado da dureza do coração humano. Em outras palavras, divórcio é coisa de incrédulo.
Por isso, os crentes, quando buscam a separação, agem equivalentemente aos que não crêem no Senhor Jesus.

41
A continuação de Jesus, longe de ser um incentivo ao celibato, foi um
reconhecimento de que aquela situação não era das mais fáceis. John Piper comenta que
“Jesus não nega a tremenda dificuldade deste mandamento. Pelo contrário, ele diz no verso 11
que a capacidade de cumprir o mandamento de não casar-se novamente é um dom divino aos
seus discípulos”.48 É interessante que na sentença “aqueles a quem é dado”(v.11) o verbo está
na voz passiva, ou seja, aquela situação difícil (receber aquela palavra) só poderia ser vivida
por pessoas que receberam a capacidade para isso. E quem são essas pessoas? O versículo
seguinte responde. Ali, Jesus apresenta três categorias de celibato: por defeito físico, por
intervenção humana, e por causa do reino de Deus. Tasker defende a idéia de que esta última
categoria refere-se a pessoas que “deliberadamente se negaram a fazê-lo [união física com
uma mulher], para dar-se mais incondicionalmente ao serviço do reino de Deus”.49 Essa
proposta é possível, mas a idéia do Senhor Jesus certamente não era ilustrar que o celibato
facilitava um maior empenho ministerial (ainda que isso seja verdade). Não se pode perder de
vista que o texto trata sobre casamento e não sobre como melhor servir a Deus. Por isso,
levando-se em consideração a afirmação de Cristo de que o celibato, particularmente,
daqueles que vieram a se divorciar, era uma capacidade recebida, e que das três categorias de
celibato, apenas uma envolvia voluntariedade, pode-se concluir então que os celibatários aos
quais Jesus se referiu certamente eram aqueles que receberam a capacidade de obedecer às
exigências do reino de Deus especificamente em questões relacionadas ao casamento. Isso
significa dizer que todos aqueles que crêem em Jesus são capacitados a se manterem castos
mesmo depois de um indesejado divórcio. Piper concorda com isso ao afirmar:

Jesus não está dizendo que alguns de seus discípulos têm a habilidade de obedecer
este mandamento de não casar-se novamente e outros não. Ele está dizendo que a
marca de um discípulo é que eles receberão um dom de contigência, enquanto os
não-discípulos não.50
Jesus encerra a questão dizendo: “Quem é apto para o admitir
admita”(v.12). O verbo traduzido por “apto”51 [(dunamai)] está no particípio
presente e admite tanto a voz média quanto a passiva. Das duas, a opção mais largamente
usada é a primeira. Contextualmente falando, porém, parece melhor assumir a voz passiva,

48 PIPER, John. Op.cit. p.7


49 TASKER, R.V.G.. Op.cit. p.146
50 PIPER, John. Op.cit. p.7
51 Enhanced Strong’s Lexicon, (Oak Harbor, WA: Logos Research Systems, Inc.) 1995.

42
pois ela se harmoniza melhor com a voz usada na sentença “aqueles a quem é dado” do
versículo anterior. Desse modo, ao assumir a tradução “é capacitado” para dunamai, a idéia de
uma capacidade recebida (que já tinha sido destacada no v.11) é mantida. Isso, somado ao
fato do último verbo – (choreo: admitir, receber)52 – estar no imperativo, indica
indiscutivelmente que aqueles que receberam a capacidade do celibato, deveriam
(obrigatoriamente) se manter assim.

A reação dos discípulos, portanto, não era sem razão. As exigências do


reino para os casados eram elevadíssimas. O final do discurso de Jesus confirmou ainda mais
isso. De acordo com o testemunho de Mateus, então, o casamento era indissolúvel; mas, se a
claúsula de exceção fosse satisfeita, o divórcio seria possível, contudo o recasamento não.
Este discurso é muito duro – o próprio Jesus o admitiu; mas será que esta alta exigência é
exclusividade de Mateus? Como o restante do Novo Testamento se manifesta em relação ao
assunto?

52 Idem.

43
6. O ENSINO DE JESUS: A HARMONIA COM O NOVO
TESTAMENTO
Até aqui, a questão do divórcio e recasamento foi analisada a partir do
ensino de Jesus registrado no evangelho de Mateus. O estudo do capítulo 19, particularmente
do texto que trata do assunto, forneceu diretrizes pouco confortáveis para aqueles que
pretendem casar. De acordo com o Mestre, o repúdio, que na época era desordenadamente
praticado, apesar de ser um indesejável recurso, ainda assim era possível, porém, sob
profundas restrições. O mesmo já não acontecia em relação ao recasamento, visto que para
esta possibilidade não havia a menor exceção. Ou seja, o ensino de Jesus, segundo o que
escreveu o evangelista Mateus, apresentou um elevadíssimo padrão matrimonial que
destacava, sobretudo, a indissolubilidade do casamento.

Entretanto, Mateus 19 não é o único texto que fornece orientações naquela


área. Há outras passagens bíblicas que abordam o mesmo assunto e, sendo assim, é
fundamental observá-las para compreender qual é o ensino neotestamentário no que tange o
divórcio e o recasamento. Não se pretende (é claro) fazer uma análise semelhante à que foi
feita com o texto de Mateus; o objetivo da presente seção é verificar a harmonia de tudo o que
foi visto até aqui com as passagens paralelas de Marcos e Lucas, e com o ensino do apóstolo
Paulo.

6.1. O Ensino de Jesus e os Outros Evangelhos

É possível notar algumas diferenças entre o texto de Mateus e os outros


evangelhos. Contudo, estas diferenças em nada afetam a inerrância bíblica e, muito menos, o
ensino de Jesus, principalmente, no que toca o divórcio e recasamento. Não há dúvida que
cada evangelho apresenta particularidades resultantes da individualidade dos seus escritores,
do público para o qual estavam escrevendo e dos propósitos que cada um tinha em mente;
porém, a singularidade dos evangelhos não implica em desacordo das Escrituras. Pelo
contrário; é possível perceber que as perspectivas de cada autor não só confirmavam o ensino
de Jesus, como também esclareciam aspectos de uma mesma matéria que, eventualmente, um
deles não abordou.
44
6.1.1. O Ensino de Jesus e o Evangelho de Marcos

O evangelho de Marcos, por exemplo, apresenta, dentre outras, três


diferenças principais quando comparado com o texto de Mateus 19: quanto ao número de
eventos; quanto à cláusula de exceção; e quanto à iniciativa da mulher em repudiar. Em
Mateus, o cenário parece ser único. Ali, Jesus e seus discípulos, seguidos por uma multidão,
foram abordados por um grupo de fariseus. Naquela mesma cena e naquele mesmo lugar,
Jesus foi argüido por aqueles religiosos, respondeu a questão levantada por eles e ainda tratou
da reação dos seus discípulos diante do ensino que acabara de transmitir. Em Marcos, são
duas cenas: uma com os fariseus e outra com seus discípulos em particular. Além disso,
diferente de Mateus, Marcos não registrou nenhuma cláusula de exceção. E mais, o primeiro
só tratou do caso do homem tomar a iniciativa em repudiar; já o segundo, considerou a
possibilidade da mulher fazer isso também.

Quanto à primeira diferença, deve-se levar em consideração que o fato de


Mateus não ter registrado um segundo evento não significa que ele não ocorreu. João mesmo,
em seu evangelho, assegurou que muitos feitos de Jesus não foram registrados (21.25); e a
razão era muito simples: fazia parte do processo de inspiração a seleção de eventos que
fossem mais relevantes aos propósitos de cada autor. Marcos, nesse aspecto, selecionou mais
eventos que Mateus; mas, ao narrar dois (um a mais que este), certamente ele assegurou a
ocorrência do evento registrado no outro evangelho.

O mesmo raciocínio se aplica à ausência da cláusula excetiva em Marcos. O


fato deste evangelista não ter registrado a exceção, não prova que Jesus não a ensinou; em
outras palavras, a omissão de uma declaração não obriga a conclusão de que ela não foi feita.
Vale, portanto, fazer três destaques: o primeiro, tendo em vista que os públicos de Mateus e
Marcos eram completamente diferentes, é possível que o segundo tenha entendido não ter
sido necessário o registro daquela cláusula por causa da sua audiência; o segundo, a ausência
da exceção não indicava que o ensino de Jesus era mais rigoroso em Marcos do que em
Mateus. Pelo contrário, em ambos o adultério só se estabelecia quando o divórcio era seguido
de um recasamento; e terceiro, o ensino de Marcos preserva o ensino principal de Jesus. Havia
uma exceção; contudo, maior que ela era a regra: o casamento é indissolúvel. Este
ensinamento é permanente, tanto que além de Mateus, não só Marcos o narra, mas Lucas
também.

45
Por fim, a iniciativa feminina em repudiar – possibilidade levantada por
Marcos e não por Mateus – não representa um grande problema. Como a lei judaica não
permitia que uma mulher se divorciasse de seu marido, e como seu público alvo era
predominantemente de judeus, é perfeitamente compreensível Mateus não ter mencionado
esta possibilidade. Por outro lado, Marcos escreveu para uma audiência romana, cuja cultura
permitia que a mulher tomasse a iniciativa do divórcio; desse modo, é justificável não só o
registro de Marcos, mas também sua distinção com Mateus. De qualquer forma,
independentemente de quem tomasse a iniciativa pelo divórcio, ambos seriam considerados
adúlteros caso casassem novamente.

Essa breve análise demonstrou que o evangelho de Marcos preserva o


ensino de Jesus narrado por Mateus. Os aparentes problemas, na realidade, demonstraram a
singularidade dos dois autores e a continuidade do ensinamento de Jesus mesmo quando se
tratava de audiências diferentes (judeus e gentios); ou seja, até aqui, o Novo Testamento
concorda com Mateus 19.

6.1.2. O Ensino de Jesus e o Evangelho de Lucas


À semelhança de Marcos, Lucas também apresenta três fatores distintivos
em relação a Mateus. O primeiro é que, diferente do texto de Marcos 10.11-12, Lucas 16.18
não parece ser uma passagem paralela a Mt 19.9. A razão é explícita: os contextos não são,
nem de longe, equivalentes. Enquanto Mateus e Marcos narram a discussão entre Jesus e
fariseus com respeito ao divórcio e recasamento, Lucas registra a reação daqueles religiosos
diante do ensino de Jesus que alertava contra os perigos do amor às riquezas. O segundo fator,
semelhante a Marcos, trata da ausência da cláusula excetiva; e o terceiro, da condição daquele
que se casa com a repudiada.

Na realidade, o fato de Lucas abordar o assunto do divórcio e recasamento


sob circunstâncias diferentes dos outros evangelhos, não indica necessariamente um problema
de desarmonia entre eles. Mateus, por exemplo, selecionou duas oportunidades em que o
Senhor Jesus falou da questão; o Mestre poderia ter falado do assunto mais vezes? Em se
tratando do assunto, claro que sim. Portanto, o contexto diferente de Lucas 16 pode ser uma
evidência de que o Senhor Jesus mencionou o tema do divórcio e recasamento em outra
ocasião. Essa possibilidade, somada aos argumentos usados para a ausência da exceção em
Marcos, também justificam a omissão daquela cláusula em Lucas.

46
O terceiro fator distintivo é muito importante, pois, se os outros evangelhos
deixam dúvida quanto à situação da parte inocente no divórcio, Lucas esclarece a questão.
Quando o texto de Mateus 19.9 foi analisado, não se mencionou uma sentença com problema
textual:  ()  (“e o que casar com a
repudiada comete adultério”). Normalmente, as versões, quando a registram, apresentam-na
entre colchetes para indicar que não há total segurança em relação ao seu registro nos
manuscritos originais. Champlin, por exemplo, considera muito provável que aquela frase
tenha sido acrescentada por copistas acomodando-a à declaração ao texto de Mt 5.32. Já
Tasker acha que aquela cláusula foi inserida no texto de alguns manuscritos de versões
antigas (ou dos Pais da Igreja) para ajeitar a passagem com Mc 10.12. Seja como for,
considerando a hipótese de que aquela sentença não tenha sido registrada em Mateus, seria
seguro afirmar que aquela que foi repudiada “justamente” não poderia contrair um novo
casamento; porém, não seria totalmente seguro afirmar o mesmo em relação ao “inocente”
que a repudiou. Contudo, se o silêncio de Mateus dava margem para duas possibilidades em
termos da posição do inocente quanto ao recasamento, Lucas resolve o impasse. Em seu
evangelho, ele registra (sem problema textual) a sentença “e aquele que casa com a mulher
repudiada pelo marido também comete adultério”. Ora, aquele que casa com a divorciada é
um “inocente” também; e, se ele, sendo inocente, comete adultério quando casa com uma
mulher repudiada, é certo que o inocente que repudiou também comete o mesmo pecado
quando contrai um novo casamento. É possível contra-argumentar dizendo que o primeiro
adultera por firmar uma aliança com uma mulher ligada a outro homem. Mas, o segundo, por
mais inocente que seja, também está ligado àquela que repudiou de maneira que, se casar de
novo, adultera. Portanto, Lucas, além de lançar luz sobre uma implicação obscura em Mateus,
ainda reafirma contundentemente o argumento deste: o casamento é indissolúvel. A
evidência: tanto inocente quanto culpado cometem adultério quando se lançam ao
recasamento.

6.2. O Ensino de Jesus e o Ensino de Paulo


Falar do ensino do apóstolo Paulo exige um item à parte e, mesmo assim, é
muito pouco dado o volume de material que ele produziu. Não se pode negar sua
incomparável importância para a teologia cristã, não só pelo conteúdo doutrinário que ele
deixou, mas, principalmente, pela enorme contribuição da sua eclesiologia para resolução dos

47
desafios que a Igreja de Cristo enfrenta. O casamento foi um destes aspectos da prática
eclesiológica que ele não ignorou. Na verdade, ninguém escreveu tanto a respeito quanto ele.
Por isso, deixar de fora uma observação do seu ensino concernente àquele tema seria atestar o
presente trabalho como insuficiente.

Portanto, à semelhança do que foi feito com Marcos e Lucas, será verificada
a harmonia do ensino de Paulo com o de Cristo. Não há, como já dito anteriormente, nenhuma
pretensão de exaurir o pensamento de Paulo até aos seus menores detalhes, mas, sim, destacar
os pontos principais do seu ensino sobre o tema divórcio e recasamento em face das
orientações estabelecidas pelo Mestre Jesus.

6.2.1. O Ensino de Jesus e o Ensino aos Coríntios

A carta de Paulo aos coríntios é uma daquelas cartas cujo conteúdo é


nitidamente didático. Nela, pode-se perceber o apóstolo atuando como um verdadeiro
professor. Sabe-se que aqueles irmãos experimentavam sérias dificuldades doutrinárias em
vários segmentos da vida cristã. Ao tomar conhecimento dessa realidade, o mestre Paulo
escreve uma carta que ensinaria aqueles irmãos a lidarem com os dilemas daquela igreja, entre
eles, questões relacionadas ao casamento.

O capítulo 7 de 1 Coríntios é o trecho que lida especificamente com o tema.


Logo de início, é possível notar a concordância entre o ensino de Paulo e o de Jesus. Paulo
incentiva o celibato de solteiros e viúvos (1.1,8), mas reconhece que essa capacidade não
depende da força humana e, sim, de um dom de Deus (1.7).53 Aqueles que não tivessem esse
dom certamente fracassariam em sua tentativa de celibato por causa sua impureza. Por isso,
para estes estava reservado o casamento sob a seguinte orientação: “cada um tenha a sua
própria mulher, e cada uma, o seu próprio marido”(1.2). Aqui, Paulo parece repetir as
palavras de Jesus quando citou Gn 2.24: “...deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher”. Ou

53Vale fazer uma observação aqui: o dom ao qual Paulo se refere não é o mesmo que Jesus mencionou em Mt
19.11,12. Em Mateus, Jesus tratou de uma capacidade que todos os crentes receberam, particularmente, aqueles
que se divorciaram: obedecer às exigências do reino de Deus. Nesse caso, os divorciados especificamente (e não
só solteiros e viúvos) teriam totais condições de seguir a orientação de não se casarem novamente porque foram
capacitados a se submeterem à Palavra de Deus. Em 1 Coríntios, Paulo destaca um dom que nem todos recebem:
o celibato enquanto solteiro ou viúvo. Aqui, apenas alguns solteiros e viúvos poderiam seguir o conselho de não
se casar. Aqueles que não fossem devidamente capacitados nessa área, se se casassem, não estariam pecando,
pois para estes – solteiros e viúvos – era melhor casar do que viver abrasado (1 Co 7.9).

48
seja, Paulo segue o mesmo argumento desenvolvido por Cristo, que fez eco a Moisés: não há
outra possibilidade; no casamento, é um homem para uma mulher.

No versículo 10, Paulo demonstra claramente que suas orientações aos


casados estavam fundamentadas no ensino do próprio Senhor Jesus (“...aos casados,, ordeno,
não eu, mas o Senhor”). A palavra de Paulo para este grupo reproduz exatamente os textos de
Mateus, Marcos e Lucas. Todos eles concordam que o divórcio não é uma alternativa
desejada; todos eles concordam, por outro lado, que o repúdio é possível; e todos eles
concordam com o caráter indissolúvel do casamento, tanto que proíbem o recasamento.

O verso 12 merece alguns esclarecimentos. A passagem é registrada assim


pela versão Revista e Atualizada: “Ao mais digo eu, não o Senhor: se algum irmão tem
mulher incrédula...” (grifo pessoal). Paulo introduz o versículo 12 de uma maneira incomum,
chegando a sugerir que, quanto aos casamentos mistos, ele daria sua opinião sem recorrer à
autoridade de Deus e que, por isso, seria passível de questionamento. Entretanto, Paulo não
pretendia sugerir esse tipo de coisa. O Pr. Fernando Leite, ao pregar uma mensagem baseada
neste texto, explicou:

Alguns entendem erroneamente que, ao dizer ‘eu mesmo digo isto, e não o Senhor’,
Paulo não fora inspirado como foi no versículo 10, onde diz ‘não eu, mas o Senhor’.
Entretanto, sabemos que não há nada nas Escrituras que não tenha sido inspirado.
Portanto, o que Paulo realmente quer dizer nesses versículos é que, no primeiro
caso, ele faz referência a uma passagem do Antigo Testamento ou de algo que
recebeu dos apóstolos em Jerusalém e que tornou-se material para formação dos
evangelhos. No segundo caso, ele dá a sua opinião que é tão inspirada quanto o
mandamento ao qual ele se refere anteriormente. Todas as afirmações de Paulo são
igualmente inspiradas e válidas para os nossos dias.54
Paulo dá a sua opinião em virtude daquele caso não ter sido alvo das considerações do Senhor
Jesus, ou seja, o Mestre não havia enfocado a situação de incrédulos casados com crentes.
Isso não significa, entretanto, que as orientações de Cristo eram insuficientes. Deve-se
entender que, como Paulo, Jesus não se propôs a explorar todos os contornos que o assunto
apresentava. Quando falou do tema, ele forneceu respostas específicas aos questionamentos
específicos feitos a ele. Não faria sentido ele tratar de um assunto que não estava sob
discussão.55 Outro detalhe que merece esclarecimento é o fato de que, ao legislar a situação de

54 LEITE, Fernando. Quando a resposta é o divórcio.www.ibcu.org.br, 2004. p.1.


55 O casamento misto não ocorria na religião judaica. Essa prática era algo totalmente fora de cogitação entre os
judeus. Como os textos de Mateus e Marcos narram uma discussão sobre casamento entre Jesus e homens
ligados àquela religião, é perfeitamente natural que aquela possibilidade não fosse mencionada, uma vez que ela
não fazia parte da realidade das núpcias judaicas.
49
casamentos entre crentes e incrédulos, Paulo não estava incentivando aquele tipo de prática.
Provavelmente, ele estava se dirigindo a pessoas que se casaram quando ambos os cônjuges
eram incrédulos e, com a pregação do evangelho, apenas um dos dois veio a se converter.
Sabendo que o irmão ou a irmã poderiam concluir que a sua conversão dissolveria os laços
matrimoniais, justamente por professarem uma fé diferente do cônjuge incrédulo, Paulo, com
as prerrogativas de um apóstolo de Cristo Jesus, regula aquela situação impedindo que o
crente se separesse do marido ou da esposa. Com isso, pode-se concluir mais uma vez que,
além de fornecer mais elementos relacionados a situações práticas do matrimônio, o ensino de
Paulo, ao desencorajar a separação (mesmo que fosse entre crente e incrédulo), mantém, à
semelhança de Jesus, o valor do casamento.

No versículo 15, Paulo reconhece, entretanto, que por mais que o crente
deva se esforçar para manter seu casamento com um incrédulo, se este quiser se separar, não
deve ser impedido. Alguns defendem a idéia de que, por ter afirmado que nem o irmão, nem a
irmã ficam sujeitos à escravidão, Paulo estaria autorizando o recasamento para aqueles que
foram abandonados pelo cônjuge incrédulo. Contudo, essa tese é difícil de ser sustentada à luz
do contexto da passagem. A orientação do apóstolo para os crentes afirma que, em caso de
separação, o crente não deve casar de novo ou que se reconcilie com seu cônjuge. Se o
incrédulo resolveu se apartar e deseja permanecer assim, só resta uma opção para o crente:
permanecer sem casar. Outro detalhe contextual que invalida o recasamento do crente
abandonado é que a servidão está, claramente, relacionada com a insistência em manter um
casamento para levar o incrédulo, que quer se separar, à conversão. O versículo 15 termina
com a frase “Deus vos tem chamado à paz” que, na seqüência, é explicada no versículo 16:
“Pois, como sabes, ó mulher, se salvarás o teu marido?” Ou seja, a discordância de fé não
pode ser motivo para guerras no lar; o crente deve se empenhar, sim, em testemunhar do
evangelho, mas se o incrédulo rejeita essa pregação e ainda decide deixar seu cônjuge crente,
este deve parar de insistir em manter a relação, visto que não tem garantia nenhuma que seu
testemunho (no casamento) redundará na conversão do descrente. Neste caso, o irmão ou a
irmã está livre deste compromisso.56 Qualquer outra explicação fere o contexto do capítulo,
além de levar o apóstolo Paulo a uma contradição impossível de acontecer.

56A idéia de que este compromisso refere-se às obrigações conjugais não é inválida. Entretanto, à luz do
versículo 16, é mais natural entender a servidão como a insistência em manter o casamento com um incrédulo
50
Outra passagem controvertida é a dos versículos 27 e 28. Ali, Paulo, afirma
que o homem livre de mulher deve permanecer assim, mas se casar, não peca. A polêmica
reside no fato de que “estar livre de mulher” pressupõe um período em que se estava “preso a
ela”, ou seja, casado. Sendo assim, “estar livre de mulher” significaria estar separado –
condição que, segundo o apóstolo Paulo, deveria ser mantida; contudo, se um novo casamento
acontecesse, não haveria pecado. Esse argumento se apóia no verbo  (libertar, deixar ir,
despedir)57 usado tanto na sentença “Estás casado? Não procures separar-te” quanto na frase
seguinte: “Estás livre de mulher? Não procures casamento.” Defende-se, com isso, que se o
verbo na primeira frase foi usado com uma conotação de divórcio, certamente, a mesma
conotação deveria ser aplicada à frase seguinte, uma vez que o verbo é o mesmo. Desse modo,
o segundo casamento estaria autorizado com a garantia de que as novas núpcias não seriam
pecado. A proposta é interessante, mas há três fatores que devem ser considerados. O
primeiro: seria extremamente contraditório Paulo incentivar a permanência no divórcio (v.27),
quando ele mesmo, pouco antes, motivou a reconciliação dos divorciados (v.11). Segundo:
quando o Senhor Jesus foi abordado pelos fariseus em Mt 19, o verbo traduzido por
“repudiar”58 () usado por aqueles religiosos em sua pergunta (Mt 19.3), não foi o
mesmo da resposta do Mestre (Mt 19.6), que usou  (separar, dividir, ir embora)59. Ora,
se verbos diferentes podem se referir a uma mesma situação, por que verbos iguais não podem
se referir a situações diferentes? Terceiro, o contexto demonstra que Paulo havia começado a
tratar da condição das virgens, ou seja, das solteiras. Nessa seção, Paulo mantém seu conselho
das pessoas permanecerem em sua condição atual: se solteiro, solteiro; se casado, casado; se
viúvo, viúvo. Estas eram as três únicas condições incentivadas por Paulo. O incentivo a
permanecer separado não ocorre em lugar nenhum e, mesmo que ocorresse, o apóstolo não
caracterizaria a situação como envolvendo divorciados, mas casados, pois o divórcio não
dissolvia os laços matrimoniais. Contextualmente falando, Paulo usou a situação de homens
casados e viúvos para mostrar às virgens que as orientações dadas a eles, se aplicavam a elas
também. Ou seja, se era melhor que homens casados e viúvos permanecessem assim, o

que quer se separar para levá-lo à conversão. Uma vez abandonado, aí sim, o cônjuge cristão, naturalmente,
estará desobrigado de suas responsabilidades conjugais.
57 Enhanced Strong’s Lexicon, (Oak Harbor, WA: Logos Research Systems, Inc.) 1995.
58 Idem.
59 Idem.
51
mesmo valia para as virgens; se, entretanto, elas viessem a casar, à semelhança dos viúvos (ou
solteiros)60, não estariam pecando. É muito mais coerente e natural entender os versículo 27 e
28 dessa forma, do que defender uma autorização ao recasamento que desde o início do
capítulo o apóstolo vem proibindo.

Finalmente, e confirmando todo o raciocínio desenvolvido até aqui, Paulo


conclui suas considerações a respeito do tema destacando o que já havia sido ensinado pelo
Senhor Jesus: o casamento é indissolúvel. No versículo 39, o apóstolo declara, sem deixar
dúvidas, que não há nada durante a existência que possa desfazer a ligação entre um homem e
uma mulher casados. Enquanto estiverem vivos, se juntos ou separados, se perto ou longe, se
querendo ou não, uma vez casados, marido e mulher permanecerão assim. Só há um aspecto
da vida capaz de romper esta ligação: a morte. Nesse sentido, é interessante notar que, assim
como a união espiritual estabelecida no casamento, o rompimento da ligação matrimonial está
fora do alcance das intervenções humanas. Em outras palavras: adultério, divórcio,
recasamento, ou qualquer outro recurso humano não é capaz de destruir o vínculo do
casamento. Só a morte, que está fora do controle dos homens, pode fazer isso. Neste caso, e
com a ressalva de ser melhor permanecer viúvo, é que Paulo autoriza o recasamento.

Portanto, depois de observar todo o capítulo 7 de 1 Coríntios, é possível


notar a continuidade do ensino de Jesus no pensamento de Paulo. Os aspectos tratados pelo
apóstolo, mesmo que não tenham sido abordados por Cristo, revelaram apenas as implicações
dos fundamentos lançados por Jesus, de maneira que pode-se afirmar, com toda convicção,
que o ensino de Paulo estava integralmente de acordo com os ensinamentos do Senhor Jesus.
Este fato será confirmado em duas outras obras paulinas a serem observadas a seguir.

6.2.2. O Ensino de Jesus e o Ensino aos Romanos


A carta de Paulo aos Romanos é considerada por muitos como sendo o
maior tratado teológico já registrado na história. Os temas e a profundidade da abordagem
paulina presentes nesta carta não encontram precedentes. E não se podia esperar algo
diferente, afinal, esta carta foi escrita num período de relativa paz ministerial. Passado aquele
tempo conturbado, quando teve que resolver os sérios problemas de igrejas como a de

60O “estar livre de mulher” pode ser uma referência aos solteiros ou viúvos. Contudo, diante da progressão do
texto, que primeiro se dirige aos casados e, depois, termina com as virgens (solteiras), parece ser natural entender
que o grupo intermediário era o de viúvos. Assim, em seu argumento, Paulo teria falado a todos os grupos.

52
Corinto, Paulo agora desfrutava de uma tranqüilidade, ou seja, de uma situação que
propiciava condições ideais para o pensar teológico e fazer planos, dentre eles, traçar
estratégias para levar o evangelho à Espanha. A igreja de Roma, cuja fundação não contou
com a participação do apóstolo, sendo já bastante conhecida e ocupando uma posição
geográfica muito favorável, seria um ótimo ponto no roteiro que levaria Paulo à península
ibérica. A carta, portanto, prepararia sua visita aos romanos e, ainda, forneceria a eles material
teológico consistente, tendo em vista que não se sabia como aquela igreja havia surgido.

Diferente da primeira carta aos Coríntios, onde Paulo respondeu à questões


práticas da vida cristã, Romanos trata do tema sobre divórcio e recasamento como uma
ilustração de uma verdade teológica que o apóstolo queria transmitir: o domínio do pecado
vigora até a morte com Cristo (Rm 7). Antes da conversão, os homens jamais poderiam se
livrar da lei do pecado. Por mais que se esforçassem, eles nunca teriam condições de se
desvincular do domínio das suas paixões. Só a morte com Cristo, ou seja, a conversão,
estabeleceria o rompimento do domínio do pecado sobre os homens. A ilustração do
casamento serviu para elucidar esse conceito teológico. Mas, ao fazê-lo, Paulo indicou a
natureza indissolúvel da aliança matrimonial. Assim como a mulher está ligada ao marido
pela lei até a morte, os homens estão ligados à lei do pecado enquanto vivem longe de Cristo.
Entretanto, do mesmo modo como a mulher está livre do domínio da lei conjugal quando o
marido morre, os homens estão livres do domínio do pecado quando se identificam com a
morte de Cristo.

É óbvio que Paulo não propôs o casamento como tema principal do seu
argumento em Rm 7.1-6, mas ficou claro, no entanto, que a indissolubilidade e as implicações
da união entre marido e mulher eram assumidas pelo apóstolo como reais e aplicáveis. Sendo
assim, fazendo eco aos registros de 1 Coríntios, só a morte poderia encerrar o vínculo
matrimonial; do contrário, uma separação, ou qualquer recurso humano, seguida de
recasamento seria considerada adultério. Estaria Paulo fazendo uma alusão ao texto de Mt 19?
Não é possível dizer com segurança; mas, indubitavelmente, os alicerces do seu argumento
estavam no ensino do Senhor Jesus.

6.2.3. O Ensino de Jesus e o Ensino aos Efésios

A carta aos Efésios é uma daquelas chamadas Epístolas da Prisão, pois


como Filipenses, Colossenses e Filemom, foi produzida durante o tempo em que Paulo estava

53
preso em Roma. Aparentemente, esta carta não trata de nenhum problema específico das
igrejas da Ásia Menor. Por isso, ao lado de Romanos, Efésios é mais uma daquelas obras de
forte teor doutrinário, facilmente constatável na segunda divisão da epístola (1.3 – 3.21), que
o apóstolo Paulo escreveu. Não obstante apresentar esse profundo conteúdo teológico, a carta
não deixa de trabalhar com aspectos práticos da igreja. A terceira divisão da carta (4.1 – 6.9),
particularmente, é a seção que vai tratar da postura dos crentes a partir da consciência da
posição que eles ocupavam em Cristo; ou seja, o que se espera daqueles que foram assentados
nos lugares celestiais em Cristo Jesus? A resposta vai apontar para questões bem práticas da
vida cristã, dentre elas, a vida familiar. Nesse ponto, Paulo vai se referir à relação entre
marido e esposa como jamais havia feito antes e, com isso, revelará as bases do seu ensino.

Antes de abordar o texto de Efésios que fala diretamente da vida familiar, é


necessário fazer um destaque. A passagem imediatamente anterior à que trata da relação entre
marido e esposa não pode ser ignorada. Nela, há dois imperativos importantes: “não se
embriagar” e “deixar-se encher pelo Espírito”. Depois deles, o texto vai apresentar uma
seqüência de cinco particípios de uso adverbial que indicam o resultado da ação do verbo
principal (no caso, deixar-se encher). Portanto, o último particípio – sujeitando-vos
() – assim como os anteriores, era uma das atitudes esperadas de quem se
deixava encher pelo Espírito de Deus, ou seja, a relação com a terceira pessoa da trindade
produziria naturalmente o equilíbrio de todas as relações vividas pelos crentes. Para ilustrar
como esse equilíbrio deveria ser vivido nos relacionamentos da igreja, Paulo usa o modelo
divino de relação familiar para transmitir suas orientações. Ao fazer isso, o apóstolo apresenta
uma comparação que demonstra o elevado conceito de casamento que ele abraçava.

A passagem de Efésios 5.22-33 é caracterizada por muitos detalhes


teológicos. Esta seção não focalizará a maioria deles, mas apenas aqueles que são relevantes
para este trabalho e, mesmo estes, não serão alvos de prolongada análise. O primeiro diz
respeito à figura de comparação que Paulo apresenta. São nada mais, nada menos do que
quatro símiles entre o marido e Jesus e, entre a esposa e a igreja. Assim como o marido é o
cabeça da mulher, Cristo é o cabeça da igreja; assim como esta deve estar sujeita ao Senhor,
aquela deve se submeter ao homem; o amor deste por sua mulher deve ser como o amor de
Cristo pela igreja; a mulher é comparada ao corpo do homem, assim como a igreja é o corpo
de Cristo. Paulo, com estas símiles, afirma categoricamente que a relação entre marido e

54
mulher é comparável ao vínculo mais misterioso e profundo que já se tomou conhecimento: o
de Cristo com a igreja. Foi a respeito dessa relação que Paulo, certa vez, afirmou:

Em todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que
nos amou. Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos,
nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem
a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do
amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor. 61
A união da igreja com Cristo é indestrutível. Não há nada que possa desfazer esse vínculo de
amor; nada é capaz de interromper esse “casamento”, nem a morte. À exceção desta, da
mesma forma, nada pode dissolver a união estabelecida por Deus quando homem e mulher se
casam. Pode-se dizer, com isso, que o casamento é uma união cujo padrão é tão elevado que
ela só pode ser comparada com a união de Cristo com a igreja, que é indestrutível. Em outras
palavras: o casamento é indissolúvel.

O segundo detalhe a ser destacado é que Paulo compara o amor do marido


pela esposa como sendo o amor por si mesmo (v.28-29). Aqui, o apóstolo registra a expressão
“a própria carne” e, logo em seguida, ele fornece a fonte da sua afirmação: o mesmo texto
escrito por Moisés, a mesma referência usada por Jesus, o mesmo fundamento do casamento
que percorre todas as Escrituras – Gênesis 2.24. Quando o marido ama a sua mulher, ele ama
a si mesmo porque ele foi feito uma só carne com ela no casamento. Paulo está repetindo o
discurso de Jesus; o apóstolo está concordando com o Mestre; ele está assegurando,
confirmando, reiterando, continuando o ensino de Jesus. Por mais que ele não conseguisse
alcançar a totalidade daquele conceito, este era o fundamento que ele fornecia aos casados e
que servia de modelo para todos os relacionamentos na igreja. Não foi sem razão que o
apóstolo registrou: “grande é este mistério...”(v.32).

Diante de tudo o que foi exposto, pode-se perceber que a teologia do


casamento ensinada por Paulo em todas as suas cartas em nada difere daquilo que o Senhor já
havia ensinado. É claro, alguns aspectos relacionados à aliança matrimonial não foram
abordados por Cristo e, nem deveriam, afinal, o contexto em que ensinava não exigiu isso. De
qualquer forma, seu apóstolo, quando foi necessário, forneceu as devidas orientações,
respaldado na autoridade que recebera do Senhor e, mais, sem comprometer o ensino que já
estava estabelecido. Na realidade, como era de se esperar, o desenvolvimento do assunto

61 Rm 8.37-39

55
depois da ascensão de Cristo concordava com sua teologia, pois ela era a base para o
tratamento de quaisquer facetas que o assunto poderia vir a apresentar. Portanto, a conclusão
desta seção não poderia ser outra senão, que Paulo está perfeitamente harmonizado com o
ensino de Jesus.

6.3. Conclusão

O tema divórcio e recasamento é muito vasto. Por isso, seria uma


ingenuidade afirmar que Mateus 19 representa uma passagem isolada. Não há dúvida que ela
é uma das mais importantes, mas não a única. Sendo assim, o objetivo de descobrir qual é o
ensino neotestamentário sobre aquele tema exige uma investigação que passe, pelo menos,
pelos principais textos que abordam o assunto. É obvio que algumas passagens não foram
sequer mencionadas; mas a razão para esta omissão se explica no fato de que elas apenas
repetiriam as considerações feitas a partir dos textos já analisados aqui. Dessa maneira, todo o
estudo deste capítulo se concentrou naquelas passagens tidas como clássicas e, portanto,
suficientes para alcançar os objetivos traçados.

Conclui-se, a partir de Mt 19, que o casamento se tratava de uma obra sem


precedentes, pois havia sido criada e estabelecida pelo próprio Deus. Seguindo o caráter do
seu criador, a aliança matrimonial era caracterizada por um elevado padrão existencial: a
indissolubilidade. Como implicação desse modelo, o recasamento estaria totalmente fora dos
planos divinos e, em conseqüência disso, plenamente vedado aos casados, inclusive para
aqueles que, eventualmente, já tivessem passado pelo divórcio (que apesar de indesejado, era
possível sob certas condições). Do ensino de Jesus em Mt 19 foi demonstrado, então, que o
casamento era uma aliança indestrutível envolvendo um homem e uma mulher; o divórcio,
por sua vez, era permitido sob a restrita condição de ; e o recasamento, proibido por
violar uma união impossível de ser desfeita, tanto que, uma vez procurado, estabeleceria um
adultério.

Os evangelhos de Marcos e Lucas só vieram a confirmar o que Mateus já


havia ensinado. Entretanto, Marcos, que escreveu aos romanos, deixou claro que as mulheres
que repudiavam seus maridos, estavam de igual forma sujeitas às orientações de Mateus. Por
outro lado, Lucas, que destinou sua obra aos gregos, “acrescentou” uma informação valiosa
que elucidou uma situação que ficara obscura em Mateus: a do cônjuge inocente. Segundo
seus registros, mesmo aquele que repudiou com razão sua esposa não teria direito a um novo
56
casamento. Dessa forma, o ensino de Jesus permaneceu inalterado mesmo em outros
evangelhos.

Em Paulo, outros aspectos relacionados ao casamento, que até então não


haviam sido trabalhados, foram alvo das suas orientações. Foi o caso dos crentes abandonados
por cônjuges incrédulos e dos viúvos. Os primeiros, ainda que desobrigados dos seus
compromissos, não poderiam casar de novo; os últimos, diante da morte dos seus cônjuges,
eram autorizados a casar (porém, com o forte incentivo a que permanecessem da maneira
como estavam) e, com isso, não estariam pecando. Todas essas situações, apesar de diferentes
da do contexto de Mt 19, foram tratadas com base nos fundamentos estabelecidos por Cristo.
Portanto, o ensino de Paulo confirmou a possibilidade do divórcio; confirmou a
impossibilidade do recasamento; confirmou a indissolubilidade da aliança matrimonial;
enfim, confirmou o ensino de Jesus. De Mateus, Marcos, Lucas e Paulo, pode-se concluir que:
o casamento em vida é indissolúvel; o divórcio é possível, mas sob restrição; e o recasamento
é possível só em caso de viuvez. Essa é, portanto, a perspectiva neotestamentária a respeito do
divórcio e recasamento.

57
7. O ENSINO DE JESUS: DÚVIDAS E RESPOSTAS
No início deste trabalho, colocou-se que a igreja contemporânea vive num
tempo onde muitas vozes opinam a respeito do divórcio e recasamento. O fruto dessa
multiplicidade conceitual é um verdadeiro caos eclesiológico. Tanta confusão pode ser vista
na variedade de alternativas que a própria igreja criou para a questão. O tratamento do assunto
muda tanto de igreja para igreja que fica difícil acreditar na possibilidade de um consenso
real. Aliás, nesta matéria, o único ponto de concordância é a incerteza, a insegurança e a falta
de respostas para dúvidas que, com o tempo, se intensificam cada vez mais.

Apesar das limitações deste trabalho, ele não se propõe a ser mais uma voz
naquela já extensa confusão. Pelo contrário, o objetivo era o de apresentar uma perspectiva
neotestamentária sobre o divórcio e o recasamento que pudesse servir de auxílio para aqueles
que estão lidando direta ou indiretamente com a questão. Mesmo assim, e sabendo que as
conclusões apresentadas aqui não são das mais populares, é natural esperar que dúvidas
surjam em face das implicações que elas, naturalmente, vão exigir.

Portanto, o conteúdo a ser desenvolvido a seguir vai ser caracterizado por


vinte perguntas práticas relacionadas com o problema do divórcio e recasamento e suas
respectivas respostas. A idéia é de, com isso, demonstrar como o posicionamento defendido
aqui pode ser adotado na experiência cotidiana da igreja, reforçando, assim, sua coerência
com o ensino do Novo Testamento. Antes, é necessário enfatizar que o objetivo aqui não é
contemplar todas as dúvidas possíveis a respeito do tema, mas apenas algumas que
representam as interrogações mais comuns dos crentes em geral. Ao mesmo tempo, é preciso
reconhecer, também, que nem todas as dúvidas são de fácil resolução. Na verdade, em se
tratando do assunto, a regra é a complexidade. De qualquer forma, o compromisso é de
responder honestamente às questões propostas em coerência às orientações bíblicas
registradas aqui para a questão do divórcio e recasamento.

58
1 . Se o recasamento, à exceção dos casos que envolvem viuvez, é pecado, por que Deus nada
fez com aqueles seus servos que tinham mais de uma mulher (Abraão, Davi, Salomão, etc.)?

Antes de responder, é necessário, primeiro, fazer um esclarecimento. No caso dos grandes


homens citados acima, o pecado deles não era o recasamento, mas a poligamia. O primeiro,
obrigatoriamente, envolvia o repúdio da esposa com subseqüente novo casamento. Já o
segundo, não havia separação, mas “agregamento” de outra esposa. De qualquer forma, esta
distinção não muda o fato de que ambos são pecado. E nesse sentido, pode-se perceber a
integridade das Escrituras, pois elas não fazem o menor esforço em esconder a corrupção dos
homens, mesmo daqueles que foram expressivos na história da salvação. E, mais, ao relatar
suas debilidades, a Bíblia não as registrou para que fossem exemplos a serem seguidos; pelo
contrário, aqueles testemunhos estão ali, justamente, para que sejam evitados (1 Co 10.1-11).
Além disso, deve-se observar que todos os casos de poligamia praticados por aqueles homens
de Deus vieram acompanhados de grandes tragédias (basta ler a história de Abraão, Davi,
Salomão e outros, para perceber isso). Portanto, o mau exemplo dos servos de Deus não é
uma licença para o pecado, mas um alerta para que ele seja evitado. Isso se aplica tanto para a
poligamia, quanto para o recasamento.

2 . Um homem se divorciou da sua mulher e recasou com outra. Passados alguns anos, a
primeira faleceu. Pode-se considerar que os recasados passaram a ser legitimamente
casados?

Essa questão é complexa e lida com algo que não está claramente registrado nas Escrituras:
afinal, o segundo casamento é ou não um casamento? É fundamental reconhecer que é difícil
afirmar algo quando a Bíblia se silencia. Porém, com muito cuidado, pode-se afirmar que o
Senhor Jesus, quando se referiu às novas núpcias, ele às chamou de novo casamento. É claro,
ele não negou que aquela situação era imprópria; mas, ao mesmo tempo, ele também não
disse que o segundo casamento não era casamento (um “possível” exemplo deste caso seria o
da mulher samaritana: “cinco maridos tiveste...” – Jo 4.18). Inclusive, o adultério se perfazia
exatamente por causa de um duplo casamento. Por isso, se por um lado pode-se afirmar com
toda convicção que um segundo casamento é pecado, por outro, não há segurança nenhuma

59
para se afirmar que ele não aconteceu.62 Pensando na pergunta que foi feita, conclui-se que
(com o devido temor), mesmo antes da sua primeira mulher morrer, apesar de estar em
pecado, aquele homem estava efetivamente casado; contudo, sua situação era profundamente
irregular, pois quem recasa comete adultério. Ao falecer a primeira mulher, o segundo
casamento, que já era real, passou para uma nova condição porque o adultério não poderia ser
cometido sem que houvesse um terceiro envolvido.

3 . O homem do caso anterior poderia ensinar na igreja antes do falecimento da primeira


esposa? E depois?

O texto de 1 Tm 3 apresenta alguns requisitos indispensáveis daqueles que tinham a


responsabilidade do ensino na igreja, mais especificamente dos pastores. Entretanto, aquelas
características, principalmente as de caráter, se aplicavam a todos os crentes. Dentre elas está
“ser marido de uma só mulher” (1 Tm 3.2). Quando a primeira esposa estava viva, o homem
do caso anterior estava casado com duas mulheres, sendo, portanto, impossível sua atuação
como professor no ambiente da igreja. A segunda possibilidade inspira alguns cuidados.
Mesmo que com o falecimento da primeira esposa o adultério não fosse mais uma realidade, o
fato é que o segundo casamento foi contraído durante o vigor do primeiro, demonstrando a
rebeldia passada daquele homem. Por isso, seria prudente esperar um tempo para que ele
apresentasse provas do seu arrependimento, da sua submissão às Escrituras e,
conseqüentemente, às orientações da igreja, para depois avaliar essa possibilidade.

4 . Seria certo orientar uma mulher recasada a se divorciar para voltar ao primeiro
casamento?

Robert J. Plekker respondeu a uma questão semelhante a essa dizendo que não se pode
esquecer que um segundo divórcio é tão sem efeito quanto o primeiro. Pecado não anula
pecado. Se o primeiro divórcio não foi capaz de resolver o problema do primeiro casamento,
como o segundo o seria? Incentivar a separação no segundo casamento seria equivalente a
acumular pecado sobre pecado. Deus nunca exigirá que pequemos na tentativa de apagar
pecados já cometidos anteriormente.

62 Afirmar que um segundo casamento aconteceu não implica em dizer que o primeiro foi dissolvido. A
indissolubilidade defendida aqui permanece intacta, pois é justamente a legitimidade do segundo casamento que
reforça a realidade do adultério e, conseqüentemente, a indissolubilidade do primeiro.

60
5 . Depois de algum tempo de casados, a esposa descobriu que seu marido era viciado em
drogas. Sofrendo diariamente com a violência daquele homem, ela estava desesperada por
não saber que atitude tomar. O que fazer? Ela pode se divorciar dele?

Muitas pessoas passam por situações semelhantes e encontram-se desesperadas porque,


enquanto querem obedecer a Deus, correm sérios riscos de morte dentro do próprio lar sem
nada poderem fazer em virtude dos seus cônjuges não terem cometido adultério,
impossibilitando, assim, uma separação. Essa realidade é vivida, principalmente, por aqueles
que acham que as relações sexuais ilícitas são o único motivo que autoriza o divórcio.
Entretanto, como foi defendido aqui, a palavra porneia, normalmente traduzida por
“adultério”, admite outras traduções que não limitam o divórcio somente àquele pecado. Não
há dúvida que as restrições ao divórcio sejam profundas, mas elas também não estão
confinadas à ocorrência de uma traição. Pelo contrário, porneia poderia ser qualquer coisa de
caráter impuro, sujo, vergonhoso, impróprio e embaraçoso que fosse socialmente constatável
e ferisse a santidade de Deus. Nesse pacote caberiam, certamente, situações como violência
doméstica persistente, o uso desenfreado de drogas no lar (bem como a coação a esta prática),
disfunções neurológicas irreversíveis que põem em risco a integridade física da família ou
qualquer atitude que ameace os entes de morte. Entretanto, antes de qualquer iniciativa em
relação ao divórcio, é imprescindível que todas as tentativas sejam esgotadas. Se a ameaça
persistir, então, o indesejável recurso do divórcio poderá ser utilizado.

6 . Uma mulher divorciada, mesmo depois de muita orientação pastoral, resolveu,


obstinadamente, se casar de novo. Antes, ela pediu exclusão à igreja para poder concretizar
seus planos. Passado algum tempo depois de recasada, ela se arrepende e deseja retornar
para aquela comunidade. Qual deveria ser a postura do pastor em relação a este caso?

O texto da primeira carta de João pode esclarecer esta questão: “Meus filhinhos, escrevo-lhes
estas coisas para que vocês não pequem. Se, porém, alguém pecar, temos um intercessor junto
ao Pai, Jesus Cristo, o justo” (1 Jo 2.1). Antes um pouco, o apóstolo já havia afirmado: “Se
confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para perdoar os nossos pecados e nos
purificar de toda injustiça”(1 Jo 1.9). Seria muita ingenuidade achar que alguns dos membros
de uma igreja jamais pecariam, particularmente, em pecados como o recasamento. O próprio
apóstolo João reconheceu que a possibilidade de pecar existia. E caso acontecesse (e
aconteceria) daqueles irmãos pecarem, havia uma solução: recorrer àquele que perdoa todos
os pecados. Seria o recasamento um pecado que o Senhor Jesus não perdoaria? Se a resposta

61
for afirmativa, então há um problema textual sério, pois João afirma que Cristo perdoa os
pecados e purifica de toda injustiça. Se, contudo, a resposta for negativa (e, de fato, deve ser),
então, o caso daquela mulher tem solução. Se o Senhor Jesus a perdoa, por que a igreja não
pode fazer o mesmo? Na verdade, ela deve fazê-lo. O problema é que muitas comunidades
cristãs querem ser mais justas que o próprio Justo. Portanto, aquela mulher pode ser aceita na
igreja, contanto que se submeta às limitações ministeriais que a sua atual condição impõe,
afinal, perdão de pecados não significa anulação das suas conseqüências.

7 . Um rapaz separou-se da sua esposa (com quem não teve filhos) e agora mora com outra
mulher (com quem tem dois filhos). Apesar de não ter casado com a segunda, o fato é que já
existe uma família fruto daquela relação. Seria correto orientá-lo a voltar para sua esposa
(que ainda está sozinha) sabendo que isso implicaria no sofrimento dos filhos, que não tem
culpa pelos erros do pai?

Em primeiro lugar, deve-se levar em consideração que antes dos filhos da situação irregular
sofrerem, a verdadeira esposa já sofria. Em segundo lugar, o sofrimento de um indivíduo que
desobedece à Palavra de Deus, bem como das pessoas envolvidas com ele, é uma
conseqüência natural. Terceiro, a questão essencial não trata de quem deve ou não sofrer, mas
de que as Escrituras devem ser obedecidas. Nesse sentido, o seu primeiro relacionamento, que
é oficial, deve ser priorizado. Quanto ao sofrimento dos filhos, cabe ao pai assumir as
conseqüências das suas más escolhas e se esforçar para dar a assistência devida aos seus.
Retomar o relacionamento com sua esposa não significa que ele abandonará aos filhos; pelo
contrário, agora é que aquele homem terá que se desdobrar na educação, no sustento e no
amor a eles. Vale destacar que ao voltar para a esposa, o pai estará dando exemplo de
obediência a Deus para os filhos. Em termos de futuro, é melhor o exemplo de submissão ao
Senhor do que evitar um sofrimento imediato dos filhos.

8 . Uma moça de 19 anos de idade foi abandonada pelo seu marido seis meses depois do
casamento. Seria justo orientá-la a permanecer sozinha a vida inteira sendo tão jovem e
considerando que seu marido sumiu completamente?

A dúvida levantada nesta questão toca na condição de uma pessoa inocente. E é verdade, a
moça nada fez para que o marido a abandonasse. E pior, sendo tão jovem, e tendo uma vida
inteira pela frente, seria extremamente injusto exigir que ela permaneça assim sem a menor
expectativa de que o marido volte. Não se pode negar que o raciocínio anterior é lógico; mas
será que ele é bíblico? Um dos grandes problemas das pessoas e de algumas igrejas é achar
62
que elas podem ser mais justas que o próprio Senhor Jesus. Em Mt 19.11,12, ficou claro que o
celibato dos separados é possível, pois os crentes receberam a capacidade de obedecer a Deus;
se o divórcio seguido de um recasamento é pecado, então, para evitar o pecado, o crente deve
permanecer na condição em que está. O texto de Lucas 16.18, por outro lado, finaliza a
questão deixando claro que a parte inocente que recasar é tão culpada de adultério quanto a
que tomou iniciativa em repudiar. É verdade que orientar a jovem moça ao celibato é uma
medida dura, mas é, também, amorosa, pois visa protegê-la de uma possível rebeldia contra
Deus. Cabe à igreja dar a ela todo o suporte possível para ajudá-la a se manter firme na
condição em que está.

9 . Uma mulher tomou conhecimento de que seu ex-marido se casou. Aparentemente, ele
estava muito satisfeito com sua atual relação e nem passava pela sua cabeça voltar para ela.
Diante desse quadro “irreversível”, ela poderia pensar em um novo casamento?

Objetivamente, não. O erro do seu marido não justifica, nem autoriza um novo casamento.
Concordar com isso significaria afirmar que o pecado autoriza o pecado (o que é uma
profunda mentira). Só há uma condição que permitiria um novo casamento: a morte do
marido (Rm 7.2,3; 1 Co 7.39). Portanto, enquanto o marido viver, o recasamento será uma
opção impossível para aquela mulher.

10 . Se Jesus permitiu o divórcio, por que não autorizaria o recasamento, visto que a
separação pressupõe uma liberdade para um novo relacionamento?

O pressuposto de que o divórcio implica necessariamente numa liberdade para um novo


casamento é puramente humano. Ao afirmar que o divórcio seguido de um novo
relacionamento é adultério, Cristo assegurou que o seu pressuposto era totalmente contrário.
A separação, da perspectiva divina, nunca fora o primeiro passo autorizado em direção ao
recasamento, mas uma concessão graciosa (não incentivada, nem desejada) para corações
duros (Mt 19.8). Desse modo, afirmar que o divórcio pressupõe liberdade para recasar é
totalmente errado.

63
11 . Um homem e uma mulher eram divorciados e resolveram se casar. Em visita a uma
igreja, ouviram o evangelho e foram convertidos. Como o texto de 2 Co 5.17 afirma que os
convertidos são nova criatura, que as coisas velhas já passaram e que tudo se fez novo, pode-
se afirmar, então, que o casamento daquele casal foi automaticamente regularizado?

Antes de chegar a qualquer conclusão a respeito de um texto bíblico é seguro adotar uma
medida: verificar o contexto da passagem sob análise. Não é necessário retroceder muito para
perceber que a maneira como a questão lida com o texto de 2 Co 5.17 é profundamente
equivocada. Uma breve observação do versículo 15, por exemplo, já dá claras indicações do
erro de interpretação cometido no 17. “E ele morreu por todos, para que os que vivem não
vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou”(2 Co 5.15).
Portanto, as novas criaturas, bem como as coisas velhas que passaram, não significam que os
pecados antes da conversão deixaram de ser pecado depois dela. Antes, significa que aqueles
que viviam de uma maneira egoísta, centrados em si mesmos, e interessados em satisfazer
suas próprias paixões, em Cristo, passaram a ser novas criaturas no sentido de que, depois da
conversão, tudo o que são e têm servem agora para satisfazer e agradar a Cristo. Assim,
diferente do que a presente questão sugere, o texto de 2 Co 5.17 confirma aquilo que Mt
19.11,12 já havia dito, ou seja, que o discípulo de Jesus é capacitado a responder
positivamente às exigências do reino. Sem Cristo, a única realidade esperada era a
desobediência persistente; com Cristo, porém, a atitude esperada é a obediência crescente,
visto que uma das marcas da nova criatura é viver para aquele que por ela morreu e
ressuscitou. Dessa forma, ao invés de se sentirem tranqüilos com sua atual condição, os
recasados que vieram a se converter, como é esperado dos crentes no Senhor Jesus, devem se
arrepender e buscar o perdão de Deus, pois quem recasa adultera, e adultério é pecado.
Defender a idéia de que a conversão transforma o pecado numa condição normal, seria
admitir que o perdão daria direito ao convertido de continuar pecando, o que não é verdade
como bem registra Rm 6.1,2.

64
12 . Um casal realizou sua cerimônia de casamento num terreiro de candomblé. O marido,
que já vinha sendo evangelizado, foi convertido. A esposa, no entanto, estava irredutível
quanto a sua permanência naquela religião. Lendo a Bíblia, o marido se deparou com um
versículo que dizia: “Portanto, o que Deus ajuntou não separe o homem”(Mt 19.6). Ele
concluiu a partir daquela leitura que, como seu casamento fora realizado no candomblé,
certamente Deus não participara daquele ato e, portanto, aquele matrimônio nunca havia
sido consumado. Dessa forma, ele não só poderia deixar a sua esposa, como também, teria
liberdade para casar com outra. Teria ele encontrado uma solução bíblica para o seu caso?

Se o casamento citado acima não fosse legítimo e reconhecido por Deus, nenhuma aliança
matrimonial envolvendo jugo desigual o seria também. No entanto, em 1 Co 7, Paulo, em
momento algum se referiu aos casamentos mistos como sendo ilegítimos. É verdade que o
jugo desigual era pecado e que o casamento de crentes com incrédulos era fortemente
proibido. Contudo, se o casamento acontecesse (fora da igreja, evidentemente), ele seria tão
casamento quanto o dos crentes. E mais, em 1 Co 7.12-16, Paulo regulamentou a situação de
casais que, antes de chegarem para a igreja, já haviam casado e um dos cônjuges se converteu.
Em outras palavras, aqueles casamentos aconteceram fora da igreja. O que fez Paulo diante
daquela realidade? Realizou novos casamentos? Não, ele deu orientações para aquelas
pessoas que ele já reconhecia como legitimamente casadas. Outro detalhe importante, é que,
como foi visto, o texto de Mt 19.6, não afirma que há casamentos que não foram consumados
por Deus. A passagem, de acordo com seu contexto, indica que quando as pessoas se casam,
Deus promove uma aliança espiritual indestrutível entre as pessoas envolvidas, de tal modo
que, elas não poderiam buscar recursos humanos (divórcio) para dissolver o que, por ação de
Deus, era indissolúvel. Sendo assim, ao invés de achar uma referência que defendesse o
divórcio e o recasamento, o homem desta questão encontrou, sim, mais um texto que o
obrigava a permanecer com a mulher com quem casou.

13 . Mas, em Esdras capítulo 10, os homens foram orientados a deixarem suas mulheres,
justamente por serem elas pagãs (incrédulas). O homem do caso anterior não teria, assim,
respaldo bíblico para buscar um divórcio e, posteriormente, um recasamento?

Objetivamente, não. Considerar o texto de Esdras capítulo 10 uma base para o divórcio seria,
na verdade, uma ingenuidade exegética e, por isso, um erro grave. Não se pode ignorar que o

65
livro de Esdras “registra o cumprimento da promessa divina de restaurar Israel à sua terra
depois de setenta anos de cativeiro na Babilônia (Jr 25.11)”.63 Este exílio se deu em virtude da
desobediência do povo de Israel à aliança mosaica, uma vez que a observância da lei era o
fator fundamental para a bênção e permanência na terra prometida. Em Esdras, o povo que
retornava para Israel precisava passar por um profundo reavivamento espiritual, visto que,
depois de quase um século em Babilônia, já havia sido contaminado pela cultura daquela
sociedade pagã. E não poderia ser diferente, afinal, a permanência na terra (como já foi dito)
dependia da obediência aos preceitos da lei mosaica, entre eles, os que tratavam do casamento
misto. Êxodo 34.12-16, por exemplo, deixa claro que Israel estava terminantemente proibido
de fazer alianças com os povos pagãos e isso incluía o casamento. Em Deuteronômio 7, Deus
orienta seu povo a não só descartar a possibilidade de casamento com outros povos, mas
também, a não estabelecer qualquer tipo de aliança ou tratado com eles (Dt 7.1-3). Em Josué,
Deus adverte seu povo quanto à desobediência a esta ordem: seu povo teria que dividir espaço
com os outros povos que seriam, para Israel, armadilha, laços, chicote e espinhos nos olhos
(Js 23.12,13).

Diante deste panorama, vale uma pergunta: Por que a Lei proibia o casamento misto, que era
caracterizado pela união de um judeu com um não-judeu? A experiência de Salomão pode
responder com toda clareza. Suas mulheres o levaram a desviar-se. E mais, à medida que ele
envelhecia, elas o induziam cada vez mais a voltar-se para os seus deuses, de modo que
Salomão não se dedicava mais totalmente ao Senhor (1 Rs 11.3,4). O mesmo aconteceu com
Acabe, que passou a prestar culto a Baal e a adorá-lo (1 Rs 16.30,31). Ao proibir o casamento
misto, a Lei estava levantando cercas de proteção para o seu povo. Yahweh sabia que este tipo
de união levaria seu povo a transgredir o primeiro mandamento, de forma que o coração de
Israel se dividisse com os ídolos pagãos. Permitir o casamento misto seria lançar seu povo na
ruína. A restrição da Lei visava preservar a saúde espiritual de Israel. Os exemplos de Sansão,
Salomão e Acabe são advertências eloqüentes quanto às conseqüências desastrosas da não
observância dessa ordem divina.

Qual era a situação do povo de Israel depois de setenta anos em Babilônia? Milhares de
Judeus casados com pagãos. O que isso significava na antiga aliança? Significava que a

63 Extraído dos aspectos introdutórios do livro de Esdras da Bíblia Anotada Expandida.

66
bênção e a permanência na terra não estavam garantidas; e pior, o relacionamento com o Deus
da aliança estava seriamente comprometido.

Esdras ordenou divórcios em massa? Claro que sim; mas aquela orientação foi dada a judeus,
no período pós-exílico, sob a antiga aliança, para preservar a saúde espiritual de Israel e sua
permanência na terra prometida. Quais são as correspondências entre o texto de Esdras e a
situação do homem da questão anterior? A resposta é simples: não há correspondências. O
homem não era um judeu que veio a casar com uma pagã; era, na verdade, um pagão que
casou com uma pagã e, que depois, foi convertido. Ele não estava sob o contexto da antiga
aliança, mas da nova. Mesmo que aquele homem se propusesse a observar todos os preceitos
da lei mosaica (o que seria impossível sem Cristo), ele não garantiria nem um centímetro
quadrado de terra em Israel. Se não há correspondências, pode-se dizer que o casamento
misto, sob a nova aliança, é permitido? Não, porque o Novo Testamento mantém essa
proibição. Entretanto, casos como o do homem da questão anterior são possíveis (o casamento
se deu quando os cônjuges eram incrédulos e um deles foi convertido). Para os tais, o apóstolo
Paulo deixou as seguintes orientações:

 Não se separe do incrédulo se ele consente em viver com o crente (1 Co 7.12-13);

 Não impeça o cônjuge incrédulo de ir embora caso ele não queira viver com o crente
(1 Co 7.15);

 A iniciativa da separação, entretanto, só poderá ser do incrédulo (1 Co 7.15);

 Se a separação ocorrer, o crente deverá permanecer sozinho ou se reconciliar com o


incrédulo (1 Co 7.10,11);

 O crente abandonado só poderá casar novamente se o cônjuge incrédulo vier a morrer


(1 Co 7.39).

14 . Se o problema em Esdras estava nos casamentos dos filhos de Israel com mulheres de
outros povos, o que dizer do caso de Rute? Ela era uma estrangeira e, no entanto, seu
casamento com Boaz não foi considerado pecado. Como resolver essa aparente contradição?

De fato, Rute era uma estrangeira, uma moabita, nora de Noemi cujo marido era um homem
de Belém de Judá. Porém, é preciso observar o caso de Rute com mais atenção. Com a morte
do marido e dos filhos, Noemi resolve voltar para seu povo. Antes disso, ela incentiva suas
noras a voltarem para sua terra e para seu deus. Após a partida de Órfã, uma das noras, Noemi

67
se volta para Rute insistindo que ela fizesse o mesmo. Contudo, Rute não somente se recusa a
fazer isso, como declara sua firme decisão em assumir Israel como seu povo e Yahweh, como
o seu Deus. O coração de Rute já estava transformado. Não se tratava mais de uma
estrangeira, mas de uma estrangeira convertida. Isso muda completamente a situação,
tornando o casamento de Boaz e Rute aceitável e legítimo.

15 . Por que os membros comuns de uma igreja têm que adotar um padrão tão elevado para
o casamento quando, na verdade, segundo a Bíblia (1 Tm 3), esse rigor só é aplicado aos
presbíteros e diáconos?

Ao escrever para Timóteo, o apóstolo Paulo apresentou as características esperadas dos


líderes da igreja. Era necessário que os presbíteros e diáconos tivessem aquele perfil, pois
como responsáveis pelo ensino formal das Escrituras (no caso específico dos presbíteros), eles
deveriam demonstrar com suas próprias vidas a aplicabilidade da mensagem que pregavam.
Em outras palavras, eles deveriam ser modelo para a igreja. Disso, pode-se levantar a seguinte
questão: para que serve um modelo? A resposta é, obviamente, para ser seguido. Ou seja, os
líderes da igreja deveriam viver aquele alto padrão para que os fiéis não só pudessem perceber
que era possível seguir aquele modelo, mas para que também, de igual forma, eles vivessem a
vida cristã como lhes era ilustrada pela liderança da igreja. Por outro lado, a Bíblia registra
outros textos que obrigam todos os crentes (e não apenas líderes) a adotarem um padrão
elevado de vida (Rm 6.12,13; Gl 5.16-25; 1 Pe 1.14-16). Desse modo, pode-se concluir que o
alto padrão da vida cristã não é exclusividade somente dos líderes da igreja, mas uma
responsabilidade de todos os filhos de Deus.

16 . Um pastor recebeu em seu gabinete um homem que, aos prantos, reconhecia a Jesus
como Salvador da sua vida. Marcados o dia e a hora do seu batismo, ao entrevistar aquele
homem, o pastor descobriu que ele já havia se divorciado e estava casado há cinco anos com
outra mulher. Diante deste cenário, o pastor deveria orientá-lo a não se batizar?

De maneira nenhuma! Em lugar nenhum das Escrituras é possível encontrar um versículo


sequer que impeça que um novo crente passe pelo batismo. O único pré-requisito fundamental
para que uma pessoa venha a ser batizada é a fé na pessoa e obra do Senhor Jesus Cristo. Um
episódio que ilustra claramente isso é o da evangelização do etíope em Atos 8.26-39. Depois
de ter explicado o trecho das Escrituras que o etíope lia e da subseqüente conversão deste,
Filipe foi questionado por aquele eunuco se havia algo que o impedisse de ser batizado. É
interessante notar que Filipe não perguntou com quem o etíope era casado, se ele era honesto
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em seus negócios, ou se tratava bem seus subordinados. A única questão fundamental era crer
no Senhor Jesus. Como o etíope preenchia aquele pré-requisito, Filipe não se opôs ao batismo
daquele homem. Por isso, uma vez que um homem recasado se converte genuinamente, não
há nada que o impeça de ser batizado.

17 . Paulo, ao orientar as viúvas mais novas a que se casassem novamente (1 Tm 5.14), não
estaria reconhecendo que o celibato era uma condição difícil de ser sustentada na juventude
e que, por isso, no caso das jovens divorciadas, o recasamento seria a melhor solução para
evitar o pecado, visto que pelo menos assim, ou seja, nos limites de um casamento, elas
poderiam ter uma vida sexual ativa?

O apóstolo Paulo nunca deixou de mostrar sua preferência pelo celibato. Se a pessoa fosse
solteira, ele a orientava a permanecer assim; se ela era viúva, da mesma forma; se separada,
em caso da ausência de reconciliação, ela deveria ficar só. Entretanto, ele tinha total
consciência de que nem todos os solteiros e viúvos tinham recebido a capacidade de não se
envolverem emocionalmente. Ele reconhecia que alguns optariam pelo celibato, mas outros
não. De qualquer forma, seja qual fosse a decisão dos solteiros e viúvos, eles não pecariam.
Quanto à ordem de Paulo, em 1 Tm 5.14, para que as jovens viúvas se casassem, é necessário
fazer algumas observações. A primeira: ele não estava se contradizendo por dar aquela
orientação, pois, mesmo que sua preferência fosse pelo celibato, o casamento de uma pessoa
viúva, como ele mesmo já havia ensinado, não era pecado (Rm 7.2,3; 1 Co 7.39). A segunda:
sua ordem foi direcionada para viúvas. O fato de que eram jovens não era um fator que
pesasse em favor do recasamento. A possibilidade de um novo matrimônio para elas estava,
primordialmente, na realidade de que não estavam mais comprometidas com ninguém em
virtude da morte dos seus cônjuges. A terceira: a razão para Paulo orientar às jovens viúvas a
um novo casamento era por causa do mau testemunho de algumas, que estavam se desviando;
provavelmente, se envolvendo com relações sexuais fora do casamento. Talvez, elas
quisessem até permanecer sem se casar e não ter as responsabilidades de uma mulher casada;
mas, por causa do apetite sexual, que na juventude é intenso, muitas delas estivessem usando
sua sexualidade de forma indevida. Para evitar esse tipo de coisa, Paulo, então, ordena que
elas re-orientassem suas vidas dentro dos limites do casamento. Com isso, pretende-se afirmar
que, apesar da realidade do celibato ser extremamente difícil para um jovem, não é a
dificuldade e nem a sua juventude que autorizam um casamento, mas sim, se são solteiros ou
viúvos. No caso dos divorciados, um novo matrimônio era algo totalmente fora de cogitação,

69
pois o recasamento era pecado. Como os divorciados crentes, têm todos os recursos, mesmo
sendo jovens, para viverem de acordo com a vontade de Deus, o celibato é a única condição
que devem adotar para evitar o pecado.

18 . Pode-se afirmar que pessoas divorciadas que contraíram novas núpcias estão numa
condição de pecado permanente?

De antemão, é preciso reconhecer que a questão é muito complexa. Grande porção dessa
complexidade se deve ao silêncio das Escrituras. A Bíblia não trata nem categoriza
explicitamente uma situação como essa. Muitos, na tentativa de refutar a idéia do pecado
continuado, recorrem ao texto de Jo 4.16,17, afirmando que Jesus reconheceu todos os
supostos casamentos da mulher samaritana. Por outro lado, outros recorrem a Jo 8.1-11,
particularmente ao “vá e não peques mais”, como uma evidência de que se o cenário do
adultério não for abandonado, as partes envolvidas continuam pecando. Em relação ao
primeiro texto é preciso levar em consideração dois detalhes. O primeiro, a palavra que foi
traduzida como “marido” admite o termo “homem” como outra possibilidade de tradução. De
qualquer forma, fosse “homem” ou “marido”, o fato é que a mulher samaritana afirmou que
não tinha homem (ou marido). Isso torna possível, pelo menos, três situações: a mulher se
casou com cinco homens solteiros, se separou deles e agora estava casada com o sexto; a
mulher viveu com cinco homens sem se casar com eles e agora vivia com o sexto; a mulher
foi amante de cinco homens casados e agora era de mais um. O segundo detalhe, se a mulher
tivesse realmente casado com cinco homens, o fato do Senhor Jesus reconhecer aquela
realidade não implica em Sua concordância com ela. Admitir um fato não significa concordar
com ele. Portanto, pode-se concluir, à luz desses dois detalhes, que o texto de Jo 4.16,17 não é
suficiente para derrubar a idéia do pecado permanente.

Em relação ao segundo texto (Jo 8.1-11), não se pode ignorar o fato de que nenhuma
informação a respeito da mulher adúltera foi fornecida. Ela traía seu marido com um homem
solteiro? O texto não diz. Ela traía seu marido com um homem casado? A passagem não fala.
Ela era solteira, mas amante de um homem casado? A resposta: silêncio. De qualquer
maneira, parece ser muito improvável que o adultério em questão seja resultado de um
segundo casamento. Portanto, à semelhança de Jo 4.16,17, Jo 8.1-11 não é suficiente para
categorizar o segundo casamento como pecado permanente. E a razão para a inconsistência da
aplicabilidade das duas passagens reside no fato delas não tratarem explicitamente de um
contexto envolvendo o recasamento.

70
Questões complexas como a presente não podem ser respondidas na base da especulação. Por
isso, para se fornecer uma resposta aceitável (o que não significa definitiva) é fundamental
que o ponto de partida se apóie em referências bíblicas claras, simples e objetivas. O texto de
1 Jo 1.9 afirma que Deus perdoa aqueles que confessam os pecados. Paulo, em 1 Co 6.9-11,
afirmou que alguns dos seus destinatários se encaixavam na categoria dos adúlteros. E,
inclusive, estes foram lavados, foram santificados, foram justificados no nome do Senhor
Jesus Cristo e no Espírito de nosso Deus. Disso, pode-se afirmar com plena convicção que
Deus perdoa o pecador que, sinceramente, confessa arrependido o seu pecado, seja ele qual
for. Será que é possível, então, uma pessoa recasada compreender que o recasamento é pecado
e se arrepender de todo o coração? Não há dúvida que a resposta é positiva e que a evidência
maior do arrependimento é o abandono das práticas pecaminosas. Daí surge a difícil questão:
como o recasamento pode ser abandonado? Alguns responderiam: “separando-se do segundo
cônjuge e voltando para o primeiro”. O problema é que essa “solução” implicaria em um novo
divórcio, o que seria ilegítimo, ou seja, pecado; e, além disso, voltar para o primeiro cônjuge
seria tão recasamento quanto o anterior. Portanto, por mais que uma pessoa recasada se
arrependa genuinamente, ela sempre estará limitada na expressão do seu arrependimento, pois
a sua plenitude pode levá-la a outro pecado. Seria correto, por isso, afirmar que ela está numa
condição de pecado permanente? Se houve arrependimento genuíno, biblicamente, é muito
difícil dar uma resposta conclusiva. A única afirmação que se pode fazer com segurança
bíblica é a de que a pessoa sofrerá permanentemente as conseqüências do seu pecado. Parece,
então, que a situação do recasado arrependido não é tanto caracterizada por um pecado
continuado, mas por conseqüências irreversíveis e permanentes.

19 . Pensando ainda no caso anterior, interromper as relações sexuais no contexto do


recasamento não seria uma possível solução para o impasse do arrependimento?

Antes de se apresentar uma resposta, é necessário fazer três considerações. A primeira: o


senso comum define sexo como um relacionamento íntimo que envolve necessariamente
penetração. Não obstante ser verdade que a penetração seja algo importante no exercício da
sexualidade humana, afirmar que ela define sexo seria uma agressão ao próprio sexo, pois isso
reduziria demais seu significado. A segunda: semelhante à primeira, casamento não se define
pelo sexo. Ele, sem dúvida nenhuma, é uma parte importante da aliança matrimonial, mas não
é a aliança em si. A terceira: como já foi comentado anteriormente, o segundo casamento é
pecado justamente por ser um casamento real ocorrido posteriormente a outro legítimo.

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Diante dessas observações, pode-se concluir que o sexo poderá ocorrer mesmo sem
penetração e, ainda assim, continuará a ser sexo; um casamento, com ou sem relação sexual,
continuará a ser casamento; e, finalmente, um recasamento é um casamento real, claro, sob
circunstâncias impróprias, mas é real. Sendo assim, com ou sem sexo, o matrimônio
continuará a ser o que é e sempre foi. Portanto, ainda que a interrupção das relações sexuais
possa hipoteticamente alargar as expressões de arrependimento, elas ainda assim estarão sob
profundas e permanentes restrições, de maneira que a abstenção sexual em pouco (ou em
nada) ajudará.

20 . Pastores recasados podem exercer o ministério?

Se o termo ministério se refere ao exercício de autoridade, ao ensino formal numa


comunidade cristã, à participação como membro de um grupo de líderes da igreja, à condução
e orientação de um grupo de crentes, a resposta é não. A Bíblia não deixa dúvida quanto isso.
Em 1 Tm 3.1,2, Paulo exalta o ministério pastoral, afirmando ser uma nobre função; em
outras palavras, o apóstolo reconhece o grande privilégio que era ser pastor de uma das
agências de Cristo. Mas, logo em seguida, ele apresenta as grandes responsabilidades exigidas
por aquela posição, dentre elas, ser marido de uma só mulher. Quantas mulheres um homem
recasado tem? No mínimo, duas. Quantas mulheres, segundo a Bíblia, o ministro deve ter? Só
uma. Se um pastor for recasado, ele tem mais mulheres do que a Palavra de Deus ordena que
ele tenha. Como ele não atende a um dos requisitos fundamentais para que venha a ocupar
aquela posição, o ministério pastoral não pode e nem deve ser exercido por aquele pastor que
se recasou. Para que não haja dúvida, isso inclui também aqueles que se arrependeram. É
importante frisar que o perdão de Deus não é sinônimo de imunidade às conseqüências dos
pecados cometidos. Davi, ao se arrepender do seu adultério, foi imediatamente perdoado por
Deus. No entanto, sofreu as conseqüências do seu pecado até a morte. Da mesma forma, os
pastores que recasaram e se arrependeram têm garantido o perdão de Deus, contudo, terão que
conviver e assumir as conseqüências permanentes das suas más escolhas; uma delas: não
poderem pastorear a igreja de Deus. Infelizmente, apesar de muitos pastores estarem nessa
condição imprópria, alguns deles continuam a exercer o ministério e com a concordância da
igreja, que justifica sua postura por amar e reconhecer as capacidades daqueles homens. As
igrejas que usam essa justificativa, na verdade, estão dizendo: “Amamos mais a estes homens
do que ao Senhor; queremos mais as habilidades deles do que obedecer a Palavra de Deus”.
Essa atitude é lamentável.

72
8. CONCLUSÃO
A igreja contemporânea está em colapso; salvo poucas exceções, a realidade
é que o ambiente eclesiástico está mergulhado num profundo caos comportamental, numa
grave e generalizada confusão existencial. Cada vez mais, pastores e líderes, que deveriam ser
modelo para o rebanho que Deus colocou aos seus cuidados, contribuem para o crescimento
das tenebrosas estatísticas sobre divórcio e recasamento. À medida que o tempo passa, maior
é o número de crentes que já transitaram por dois, três ou, até mais casamentos. Não são
poucos os que, com uma longa estrada na vida cristã, fazem coro com a mentalidade
corrompida deste século simpatizante dos múltiplos casamentos. Mais e mais jovens cristãos
se aproximam do “altar” resistentes à idéia do duradouro “foram felizes para sempre”, mas
receptivos ao romântico, porém diabólico conceito transitório do “eterno enquanto dure”. O
mundo, que antes era veementemente advertido pela maneira egoísta como encarava os
relacionamentos, aos poucos, infelizmente, vem ganhando desenfreada adesão por parte
daquele que o repreendia: a igreja. O cenário, como se pode perceber, não é dos mais
favoráveis.

Contudo, longe de querer atenuar a gravidade da questão, o divórcio e o


recasamento não são a doença que tem debilitado o povo de Deus. Seria ingenuidade achar
que os padrões existenciais, a vida cotidiana, o comportamento adotado pelos crentes,
particularmente, no que se refere aos assuntos ligados ao casamento, sejam o problema
essencial da igreja. Robert J. Plekker, logo no primeiro capítulo do seu livro sobre divórcio,
concordou com isso, dizendo:

Mas sabemos uma coisa. O divórcio não é o problema. O divórcio não é o problema
entre os crentes, não no Brasil, nem mesmo dentro da igreja. Jesus Cristo mesmo
nunca rotulou o divórcio como um problema de tantos casamentos. Antes, ele
identificou o divórcio como o sintoma de uma situação mais profunda. 64
Em outras palavras, e com toda a razão, Plekker sabia que o divórcio e o recasamento não
eram a doença fundamental; eram, sim, sintomas, expressões, evidências externas de uma

64 PLEKKER, Robert J..Divórcio à Luz da Bíblia. São Paulo, SP: Vida Nova, 2000. p.14.

73
patologia interna. Da mesma forma que a fumaça, por mais densa e escura que possa ser, seja
apenas uma clara indicação da tragédia de um incêndio, o divórcio e o recasamento são uma
dramática evidência de uma tragédia crônica agregada à humanidade: a dureza de coração.

Por isso, ninguém deve se enganar achando que o Senhor Jesus não sabe
qual é o cerne da questão. Ao escrever para as sete igrejas da Ásia, o apóstolo João registrou
um refrão que percorre todas aquelas cartas: “Conheço as tuas obras”. O verbo traduzido por
“conhecer” transmite a idéia de discernir, desvendar, saber a respeito de tudo; ou seja, Cristo
não apenas percebia as expressões visíveis das atitudes daqueles irmãos, mas, principalmente,
discernia o que estava por trás daquelas obras. A graça que Cristo oferece e o perdão que ele
disponibiliza aos arrependidos são reais e eficazes; mas ninguém se engane achando que o
Senhor Jesus não conhece a intenção daqueles que querem se aproveitar da abundância da sua
graça para potencializar mais as expressões pecaminosas do coração. Isso seria estupidez.
Pensar que a realidade da misericórdia de Deus equivale a uma licença para pecar; achar que
contrair um novo casamento, mesmo sabendo que é pecado, escorado no fato de que Deus,
sendo paciente e longânimo, perdoará aquela desobediência no futuro; julgar que uma vez
perdoado, as conseqüências dos atos serão automaticamente interrompidas; alegar que o
divórcio e o recasamento foi um recurso buscado depois de muita oração e de “sentir” a paz
de Deus, enfim, fazer tudo isso achando que o Senhor Jesus está alheio às verdadeiras
expressões motivacionais do coração é uma imperdoável estupidez.

Pode parecer que, pelo fato do divórcio e o recasamento serem um sintoma


de um problema cujas raízes estão no interior do homem, a doença não tenha cura; entretanto,
à semelhança das igrejas da Ásia, a esperança da igreja contemporânea, particularmente nos
assuntos a respeito de divórcio e recasamento, está em ouvir o que o Espírito diz a ela. E as
palavras do Espírito estão muito bem registradas nas Escrituras. O próprio apóstolo Paulo, ao
se referir a elas, destacou sua autoridade como escrito de origem divina capaz de habilitar
homens e mulheres para toda a boa obra (2 Tm 3.16,17). Em meio a tantas vozes, em meio a
uma multiplicidade de opiniões, em meio a uma variedade de alternativas, só há um
testemunho autoritativo, fiel e digno de confiança e de ser seguido: o da Palavra de Deus. Só
ela contém tudo que o homem necessita para a vida e a piedade. Davi tinha plena consciência
disso, pois escreveu no Salmo 19.7 que ela (a Lei do Senhor) “é perfeita e restaura a alma; o
testemunho do Senhor é fiel e dá sabedoria aos símplices”. Fazendo uma aplicação bem
específica, só a Palavra de Deus tem a capacidade de dar sabedoria para casais

74
experimentarem sucesso na vida conjugal e restauração para aqueles cuja relação
aparentemente não tem mais solução. Contudo, nada disso será alcançado se as igrejas não
ouvirem o que o Espírito diz a elas.

O objetivo fundamental deste trabalho, ao fazer um estudo panorâmico do


ensino de Jesus em Mateus 19 e, posteriormente, nos textos principais do Novo Testamento,
era apresentar a orientação do “Espírito” concernente ao assunto do divórcio e recasamento.
Nesse sentido, logo de início, ficou claro que, com o casamento, Deus estabelecia entre
homem e mulher uma união mística indestrutível, de maneira que, quaisquer que fossem os
recursos buscados por eles para desfazer aquela união, seriam inúteis. Foi seguindo este
modelo divino que Jesus apresentou uma “exceção” para o divórcio como concessão ao
problema da dureza de coração. Vale lembrar que, além de não ser desejada, nem incentivada,
aquela alternativa ainda estava rigidamente ligada a uma restrição: a impureza do cônjuge.
Por outro lado, não havia a menor possibilidade para o recasamento enquanto eles (marido e
mulher) estivessem vivos. Marcos, concordando com isso, ainda esclareceu que aqueles
princípios valiam tanto para homens quanto para mulheres. Já Lucas deu sua contribuição
eliminando qualquer dúvida quanto à condição da parte inocente no divórcio. Paulo, sendo
alguém que escreveu bastante sobre assunto, fez considerações finais afirmando o plano de
Deus para casais crentes, regulando a situação de casais em jugo desigual e confirmando a
indissolubilidade do casamento ao permitir o recasamento somente no caso da morte de um
dos cônjuges. O produto de todos estes testemunhos, portanto, determinou exatamente o que o
Espírito tem a dizer sobre divórcio e recasamento.

É inegável que a situação da igreja contemporânea seja preocupante. Não se


faz necessário muito esforço para ouvi-la gritando por socorro, bradando por salvamento,
clamando por direção. Contudo, se em meio a todo esse barulho, ela parar e escutar o que a
Bíblia tem a dizer, não há dúvida que ela terá, não só todos os recursos para entender o que
Deus quer para o casamento, mas também terá todas as condições de orientar crentes e
sociedade em geral a chegarem ao altar com uma única disposição: “até que a morte nos
separe”.

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