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Acordei de um sono pesado e me lembrei do meu itinerário.

Olhei pela janela do ônibus e reconheci o


caminho que me levaria em direção ao meu maior temor. Vez ou outra questionava a mim se fora
inteligente a escolha que havia feito de tentar enfrentar o meu passado. Lembrei dos questionamentos
de Sérgio depois de ter aproveitado do prazer que seu corpo proporcionara ao meu "você está
preparado". A pergunta ecoou em minha mente e rodopiou em espiral até desaparecer num silêncio
ensurdecedor que me fez suspirar profundamente.

Pela janela eu reconhecia alguns traços do caminho que durante muito tempo eu percorri. Lembrei-me
das viagens em família que fazia, quando meu pai pegava o seu carro, enchia com nossas malas, e levava
eu e a minha mãe litoral afora desbravando cidades e suas praias. O sentimento desperto inquietou-me
por me confrontar com a aparência de família feliz que nós tínhamos. E então, de repente, tudo acabou.
Minha mãe, um belo dia decidiu no auge do seu egoísmo ir embora e nos deixar, e aos poucos eu e o
meu pai fomos nos afastando até que não sobrasse nenhum resquício da nossa relação. Tudo o que
restou foi apenas uma grande mágoa que cresceu e se tornou uma ancora em minha vida, que sempre
me levava ao fundo do poço.

Observei a estrada pela janela novamente, e não havia muita diferença de quando quatro anos atrás eu
decidi sair de casa e tentar viver uma vida independente. O meu único fracasso foi nunca ter conseguido
deixar de depender do dinheiro do meu pai. De certa forma, ele se achava em dívida comigo, por nunca
ter me dado o suporte paterno de que eu precisei. E a sua maneira de pagar era literalmente com
dinheiro.

O sol invadio o ônibus pelo vidro e senti seus raios lamberem a minha pele mornos. Pelo horário eu já
estava perto de chegar a minha antiga casa, afinal o ônibus havia chegado a rodoiária cerca de 10
minutos adiantado. Sérgio havia me deixado lá eram umas 8h30, horári que saiu do meu apartamento
para ir pra sua casa, se preparar para seus atendimentos diários. Agradeci-o pela noite que tivemos e
pelo suporte que me dava, mesmo que não tivessemos nenhuma relação além de pau amigo e
"peguete". Sorri ao me lembrar dele e do seu jeito. Poderia ser mais facil, nós dois. A gente podia ter se
conhecido em outra circunstância, ele poderia não ter aquel ex namorado insuportável que ficava
ligando e mandando mensagem, mesmo tendo escolhido terminar com ele porque queria um espaço.
Eu poderia ter menos problemas e não ter toda essa personalidade explosiva e autodestrutiva. Mas a
única coisa que nos unia, eram nossos problemas e o desejo que nutriamos um pelo corpo do outro.
Nunca avançariamos para nada além disso.

Entre devaneios e lembranças de momento efêmeros, mesmo com os olhos colados no vidro do ônibus,
não percebi quando chegamos a rodoviária da cidade. Só dei conta quando a moça corpulenta ao meu
lado se levantou e bateu um dos cotovelos no meu rosto, e ter saído sem pedir desculpas. Arrumei-me
sobre banco, tirei o sinto de segurança e me levantei. Peguei a minha mochila no compartimento
superior do ônibus e me preparei para descer. Só nesse momento havia notado como ali estava cheio,
pois as pessoas moviam-se em fila indiana até a saída.

Senti um aperto no peito e de repente o meu coração acelar. Tentei não pensar em nada, mas já era
tarde. Enquanto as pessoas desciam, contei até dez, respirei fundo três vezes, mas nada disso adiantou.
Fechei os olhos e me posicionei dentro de mim. Havia muita inquietação, e tudo se resumia ao enorme
medo de me confrontar com os demônios do meu passado e não ser forte o suficiente.

A sensação era incômoda e demorou a passar. Mas, logo me vi colocando um pé a frente do outro e
dando passos em direção a saída do ônibus. Senti um suor frio escorrer da minha testa até a ponta do
meu nariz. No entanto, agora eu estava firme em minha empreitada e se já estava ali, iria até o final.

Desci do ônibus e fui surpreendido pela luz muito forte do sol. O calor era escaldante. Olhei para todos
os lados reconhecendo pontos específicos que durante aqueles anos não haviam mudado, então dei
passos para o que era a saída da rodoviária enquanto pegava meu celular e ligava a tela. De maneira
desajeitada digitei uma mensagem para Lê avisando da minha chegada.

"Já estou aqui".

"Que bom. Como está se sentindo?" ela inquiriu-me preocupada.

"Pelo sol escaldante, talvez essa seja uma temporada no inferno" respondi-a bem humorado, apesar dos
sentimentos desconexos dentro de mim.

"Já que é assim, abraça o capeta. Vê se não se envolve com homem casado por aí"

"Não sou você, querida" sorri ao enviar a mensagem.

Após falar com Lê, procurei o número do meu pai e liguei para ele. A cada chamada que o celular fazia, o
meu coração batia mais rápido, mas ele precisava me buscar, afinal a fazenda onde moravámos ficava
extremamente longe da cidade, de maneira alguma dava pra ir a pé. O telefone chamou, chamou até
cair a ligação.

Respirei fundo, olhei para o céu azul sem nenhuma nuvem. O sol realmente estava a pino. Olhei para o
relógio do celular e conferi que já era meio dia.

Caminhei me direção a uns bancos que ficavam num longo corredor que dava para a saída da rodoviária
e me sentei esperando. Dez minutos depois, liguei novamente para o meu pai. Lá fora, percebi que um
rapaz de pele morena queimada me olhava do jeito estranho.

"Puta que pariu, mal cheguei e a galera já me olha estranho. Será que tô dando tanta pinta assim?"
pensei. Não estava preocupado em relação a isso, até porque eu não tinha nenhuma intenção de
esconder a minha sexualidade. Até porque, para meu pai isso não era novidade, e na época em que
contei, ele não se importou, apenas bateu o telefone na minha cara e passou alguns meses sem falar
comigo. Mas o problema dos interiores é que as pessoas adoram discorrer sobre a vida alheia.
Geralmente, na verdade, é a única coisa que se tem a fazer, já que não há muita opção de lazer.

Passaram-se mais 10 minutos e eu liguei novamente para o meu pai. Levantei o olhar e percebi que o
homem ainda me olhava. Ele tinha um rosto marcado pelo tempo, castigado pelo sol, mas não era feio.
Até que eu...
— Você é Fernando — ele perguntou aproximando-se de mim e interrompendo o meu pensamento.

Olhei-o de soslaio, desconfiado pela sua aproximação e só depois de me sentir seguro, agarrando-me a
possibilidade de estar num lugar cheio, respondi-o:

— Sim, sou eu — ficamos em silêncio por alguns segundos — Nos conhecemos

— É a gente pensa que quatro anos não são nada, mas são muito tempo — disse o homem
desacreditado — Sou eu Nando, o Gilson.

Busquei na memória o nome que me parecia famíliar e depois de fixar o olhar no rosto do homem
demoradamente me lembrei.

— Gilson, o vaqueiro de meu pai

— Isso mesmo — ele sorriu ao constatar que eu o havia reconhecido.

Levantei-me da cadeira e

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