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Tâmara Bezerra

Ilustração - Wagner Sales

VILA 16
um lugar cheio de histórias
Tâmara Bezerra

VILA 16
um lugar cheio de histórias

Fortaleza (CE)
2023
VILA 16
UM LUGAR CHEIO DE HISTÓRIAS
© 2023 Copyright by Tâmara Bezerra
Impresso no Brasil / Printed in Brazil

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

Diagramação eletrônica
Renan Rodrigues

Ilustração
Wagner Sales

Revisão
Artur Andrade

Capa
Herika Nascimento

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

B 469 v Bezerra, Tâmara


Vila 16: um lugar cheio de histórias/Tâmara Bezerra, ilustrações
Wagner Sales. - Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2016.
104 p.
ISBN: 978-85-7529-708-7
1. Crônicas 2. Sales, Wagner I. Título
CDD: 82-94(813.1)
Dedicatória

Este livro é dedicado à generosidade...

...de minha mãe, Franci Costa, ao me ajudar a pesquisar


sobre os coloridos ipês; dos adolescentes: Rebeca Matos,
Isabella Massari e Júlio Coelho, ao lerem o texto e me
ajudarem a ver com os olhos de sua idade; das primas:
Karla Micheline, Mohanna Úrya e Mirna Stela, ao
embarcaram comigo nas águas do Óros e ouvir seus
narradores; de Artur Andrade, ao me ajudar a atualizar
e amar cada palavra aqui escrita e, principalmente, de
Dona Madalena, Donana, Biró, Maria, Seu Raimundo,
Dona Otília e tantos outros guardiões de histórias.
Sumário

Uma certa vila onde tudo começou������������������������������ 9


Uma história de amor verdadeiro��������������������������������15
Foi aí que nasci��������������������������������������������������������������������21
O exílio����������������������������������������������������������������������������������31
A lenda dos Ipês������������������������������������������������������������������39
Era uma vez histórias vividas����������������������������������������45
O roubo da Santa����������������������������������������������������������������51
As histórias levaram-me de volta��������������������������������57
A tampa que vedava a panela do juízo�������������������������67
Cada casa sua cor, cada família seu valor���������������73
O Compadre da Onça���������������������������������������������������������81
Tem história que mata de medo�������������������������������������89
A noiva do anel de esmeralda����������������������������������������95
O final do exílio�����������������������������������������������������������������99
Uma certa vila onde
tudo começou

Q ual é a diferença entre comunidade, vila e cidade?

Nunca havia pensado no assunto até passar


uma temporada na Vila 16, um conjunto de
casas que fica na zona rural de uma cidade do interior,
que conheci na infância, mas somente aos 16 anos pude
descobrir quantas vidas, quantas famílias e quantas
histórias podem juntar-se à história de uma vila. Passei
a considerar como sendo um lugar mágico. Um recanto
encantado no meio do Sertão.

Uma das primeiras histórias a me ser contada foi


justamente o surgimento do seu verdadeiro nome. Ouvi
de uma senhora que nasceu, cresceu e vive lá até hoje:
dona Madalena. Ela é como se fosse a memória viva

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do lugar, mora na casa número 1. Dona Madalena
conta suas histórias de um jeito tão especial que nem
dá vontade de fazer mais nada: só lhe ouvir. A medida
em que ela vai narrando os fatos, você vai imaginando
tudo, como se passasse um filme em sua cabeça.

Fomos apresentadas por minha tia, quando me levou


pela primeira vez à casa da velha costureira. Mesmo
já bem idosa, dona Madalena continua pedalando sua
máquina de costura na sala da frente de casa. Soube que
já vestiu a Vila inteira, do enxoval de bebê, passando
pelos vestidos de noivas, e até mortalha.

Cada vez que alguém chega para encomendar uma


roupa ou fazer uma prova, dona Madalena oferece um café,
uma fatia de bolo, e começa a contar história. Seus ouvintes
raramente conseguem separar os fatos que realmente acon-
teceram das histórias inventadas. Do jeito que ela conta,
tudo parece ter se passado exatamente como contou.

Foi numa ida à sua casa para pegar o vestido da


minha tia que dona Madalena arrebatou-me com uma
de suas histórias. A partir de então, tornei-me ouvinte
habitual. No início, até disfarçava o interesse, mas
depois passei a lhe ouvir diariamente. Muitas vezes,
ajudava a tirar os alinhavos das peças só para escutar
mais uma história.

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A primeira foi para me responder a uma pergunta:
queria saber sobre o verdadeiro nome da Vila. Para
satisfazer minha curiosidade, dona Madalena contou-me
que 16 é só um apelido referente ao número de casas. Na
verdade, foi batizada com o nome: Vila José Arcádio,
em homenagem a um homem rico que viveu por lá há
muito tempo – no tempo em que a cidade não existia e
aquele lugar ainda era uma grande fazenda.

Foi o Sr. José Arcádio quem construiu as casas para


os trabalhadores. Com o surgimento do município, elas
foram sendo vendidas para outras famílias, mas algumas
permaneceram por lá.

Dona Madalena também me contou que foi ele quem


plantou a fileira de árvores que atravessa a Vila.

A história começou a me atrair por um motivo


especial: ela me disse que ele plantara bem antes da
construção das casas. Nesse tempo, ainda nem era o
patrão. Ele, o filho mais jovem de Antônio Arcádio,
resolveu plantar a grande fileira de ipê-rosa por causa de
uma desilusão amorosa. Após saber o início da história,
vestida de curiosidade, quis ouvir até o fim.

Dona Madalena empolgou-se pelo meu interesse


e, como toda boa contadora de histórias, já começou

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pronunciando as palavras de um jeito especial, quem
escuta quase nem respira.

Assim me contou:
Uma história de
amor verdadeiro

H
á muito e muito tempo, José Arcádio
conheceu uma moça por quem se apai-
xonou. Essa história aconteceu quando
ele era bem jovem, e foi estudar no estrangeiro, a mando
do pai. Quando voltou para casa depois de uns meses, o
rapaz chegou de braços dados com ela, dizendo que dese-
java torná-la a sua esposa, e que já iriam morar juntos.

O velho Arcádio, um homem cheio de tradição,


muito conservador e bastante autoritário, não deixou
que o filho se casasse com uma mulher que falava
enrolado, mais velha que ele, e que certamente não
deveria ser de boa família, pois uma moça de família

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não largaria tudo no estrangeiro para acompanhar um
rapaz que nem conhecia direito.

O velho fazendeiro mandou a coitadinha de volta


para a Argentina. Furioso, proibiu o filho de manter
qualquer tipo de contato. Os dois nunca mais puderam
se encontrar. José Arcádio viveu o resto da vida triste e
amargurado. Com o passar dos anos, terminou os estu-
dos de Agronomia na capital, voltou a viver na fazenda,
e se casou com uma moça da região, recomendada pelo
pai. Porém, tem um porém, nunca foi feliz! Ele era um
homem de olhar penoso e com o coração endurecido
pela tristeza.

Essa fileira de ipê-rosa, que fica bem o meio da


Vila, foi plantada depois desse acontecido e serve como
testemunha até hoje. Dizem que o jovem segredou para
um amigo que conheceu a tal moça na hospedaria onde
ficou durante o curso no estrangeiro.

Ele e os amigos tinham acabado de chegar na cidade


de Buenos Aires, eram filhos de fazendeiros que estuda-
vam na capital, e que decidiram viajar juntos. Pois foi
que José Arcádio ficou adoentado logo nos primeiros
dias. Quando caiu doente, ele já havia avistado a mulher
que trabalhava com os hóspedes, ajudando a família.
Dizem que era muito bonita, e foi logo chamando a

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atenção do moço pela beleza, principalmente pelos
grandes olhos pretos e muito fortes.

Ao perceber que o rapaz estava com uma aparência


abatida, ela se ofereceu para cuidar da sua tosse. Já
foi explicando que sua avó era conhecedora de plantas,
ervas e outras medicinas da natureza, a anciã sempre
cuidou da saúde de todos com seus conhecimentos.

Ao saber o nome daquela mulher tão bonita, Violeta,


José Arcádio logo caiu de paixão. A deusa com nome
de flor, e olhos esticados feito duas sementes, encheu de
encantos o coração do rapaz que estudava a natureza.
O fato é que José Arcádio se deixou cuidar pelas mãos
de Violeta.

Ela levou até seu quarto o remédio sugerido pela


avó: um chá feito da casca interna do ipê-rosa, uma
árvore que ficava bem à porta da hospedaria. A moça
soube pela avó que a bebida era um santo remédio.
Com a desculpa de cuidar da gripe, os dois criaram uma
forte intimidade. Violeta contou a José Arcádio que era
viúva, e que o marido morrera no mesmo ano em que
se casaram. Partiu sem lhe deixar filhos.

O rapaz foi ficando cada dia mais apaixonado, e


nem mesmo se importou com o fato de ter nascido
quatro anos depois dela.

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Bom, quando chegou a primavera, o ipê foi dando
umas flores rosadas, atraindo tudo quanto era beija-flor
que passava. A essa altura, eles já estavam completa-
mente enlaçados um no outro. José brincava dizendo que
a árvore só vestiu sua roupa rosa de festa, para celebrar
o amor dos dois.

Todas as noites, quando voltava do curso, o rapaz


tirava uma das flores do ipê para presentear a amada.
E foi assim que, quando chegou a hora da partida,
não conseguiram se separar. A avó desejou que a neta
encontrasse de novo a felicidade e os abençoou. Mas ao
chegarem nas terras dos Arcádios, tudo ruiu. José, por
medo ou covardia – quem vai saber? – não teve coragem
de enfrentar a tirania do pai, e deixou que ele mandasse
Violeta de volta.

Quem conta diz num lamento que nunca mais se


viram nessa vida.

Para enterrar a tristeza, ele foi atrás de mudas do tal


ipê. Resolveu plantar uma fileira deles em um descam-
pado nas terras do pai, nesse tempo, onde hoje fica a Vila,
não havia nada. E olhe que o plantio demorou. Quem
conhece Ipê sabe bem, da muda até virar árvore é espera
muita. Depois para florir, tome mais tempo! Essa fileira
de ipê só está aí porque José Arcádio perseverou. Talvez,

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a verdadeira intenção do moço fosse fazer um caminho
de ipê até chegar aos pés de Violeta. Como saber?

Quem viveu nesse tempo viu o silêncio que tomou


conta do rapaz. Depois que ela partiu, ele ocupou os
dias só em cuidar das plantas. Passou um tempo até sem
voltar para a faculdade. A única coisa que fazia era se
dedicar à fileira de mudas, de cabeça baixa, em silêncio,
e no meio do nada.

Esse amor verdadeiro acaba triste como a morte.

José Arcádio enterrou essa história como quem


enterra um ente querido.

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Foi aí que nasci

Q
uando dona Madalena terminou de contar,
eu tinha a impressão que conhecia, com
intimidade, José Arcádio e Violeta. Nem
sei bem por que, mas fiquei muito emocionada com
a tristeza do casal. É muito estranho você ser afetada
pela vida de pessoas que nunca viu. Quando ouvi dona
Madalena, descobri que tem muita história dentro de
uma mesma história.

Depois de ouvir a primeira, que realmente parecia


um filme, foi me dando vontade de registrar tudo o que a
velha costureira ia me contando. Como comecei a gostar
muito dos momentos de escuta, provavelmente, fiquei
com medo de perder algum detalhe – podia ser que a
memória não desse conta de guardar tudo. Em pouco
tempo, minhas visitas à casa da contadora de histórias
passaram a ser cada vez mais frequentes.

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Passei a lhe visitar levando sempre um caderninho
e uma caneta. Primeiro ouvia, e depois anotava tudo o
que considerava importante. Fiquei muito interessada
pela história de amor de Violeta e do filho do fazendeiro.
Então, passei a me perguntar se mais alguém a conhecia.
A própria dona Madalena informou-me quem seriam
os outros moradores da Vila que também poderiam
saber mais sobre os dois e, assim, outros narradores
acrescentaram detalhes à história dos ipês-rosa, e do
amor de José Arcádio e Violeta.

Dona Maria, viúva de Seu Gabriel, moradora da


casa 5, contou-me que sua mãe contava que certa vez
ouviu José Arcádio dizer que, a cada florada, aquelas
árvores narravam sua história. Era como se ele fosse
as folhas e, Violeta, as flores – um jamais ficaria junto
do outro.

Professora a vida inteira, dona Maria explicou-me


a razão: ele estava se referindo à uma das mais fortes
características do ipê que é perder todas as folhas para
que as flores possam chegar. Folhas e flores nunca
estão juntas.

Dona Maria confirmou muita coisa contada por


dona Madalena. Eu achava interessante todos na Vila
não a chamarem somente de dona Maria. Ela era sempre

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dona Maria de seu Gabriel. Quando descobri que seu
Gabriel já havia morrido há mais de 30 anos, isso me
impressionou, pois ela continuava sendo dona Maria
de Seu Gabriel. Muito curioso você ter seu nome ligado
ao de alguém para sempre. Acho que encontrei outra
história de amor verdadeiro.

Realmente, fiquei com o coração muito apertado


quando ouvi a história de José Arcádio e Violeta – senti
como se tivesse acontecido comigo. Assim como ela,
também eu estava vivendo um amor que não era aceito.
Talvez, por essa razão, resolvi escrever a história tal
qual me contaram. Ao reler meus próprios escritos,
até chorei com dó de um amor tão bonito ter acabado
sem o “felizes para sempre”, como acabavam os contos
de fada que meu pai lia em voz alta quando eu ainda
era pequena.

Um amor interrompido pela incompreensão, e


para sempre lembrado por uma árvore tão linda! Essa
história, e a imagem da florada dos ipês depois de perder
as folhas, ocuparam meus pensamentos por muitos e
muitos dias.

Ao ouvir a triste história de amor, justo eu que me


encontrava ali na Vila para passar uma temporada
afastada da badalação e, segundo minha mãe, do grude

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com Augusto, meu namorado, identifiquei-me na
mesma hora.

O motivo de todo o desentendimento com meus pais


foi após começar a sair de casa à noite e, às vezes, chegar
depois da bendita hora marcada. Isso fez com que meu
pai e minha mãe achassem que eu não estava estudando
o suficiente, e que tinha me tornado muito desobediente.
Eles insistiam em afirmar que Augusto influenciava em
tudo o que eu fazia. Como se eu fosse uma imatura, que
não tivesse condições de tomar minhas próprias decisões.

Assim que fiquei de férias, não deu outra: eles apenas


comunicaram que eu passaria uns dias na casa da minha
tia. Segundo minha mãe, para sair de circulação e pensar
melhor na vida. Ela esqueceu que a pessoa que tem um
telefone celular não sai de circulação.

A questão é que depois de ouvir a história, senti-me


não só como Violeta, mas também como Capitu, Emma
Bovary, Tereza Batista ou qualquer uma das persona-
gens da Jane Austen. Rapidamente, meus pensamentos
viajaram. Fiquei imaginando quais personagens se
pareciam com as pessoas da minha família. Minha mãe,
certamente, seria Úrsula Iguarán, de Gabriel Garcia
Márquez, em Cem anos de solidão. Já minha tia era
uma verdadeira Macabéa, de Clarice Lispector, em A

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hora da estrela. Pensando bem, será que eu não seria,
na verdade, a mimada Catherine Earnshaw, do Morro
dos ventos uivantes?

Sempre gostei de ler, e tenho a mania de ficar compa-


rando-me com os personagens dos livros e dos filmes,
mas de história, assim, só ouvida, foi a primeira vez.

Quando cheguei à porta da casa 12, onde moram


meus tios, Glorinha e Júlio, senti-me agradecida pelos
livros que ganhei do meu pai, além de sentir uma vontade
enorme de ouvir mais histórias, muitas delas – podiam
até ter finais tristes ou felizes, não me importava.

Depois dos primeiros contatos com dona Madalena,


comecei a me interessar por todas as histórias da Vila. A
de cada família que morava em cada uma daquelas casas.
Como vieram parar aqui? Quem chegou ou partiu?
Quais foram os primeiros moradores?

Toda família tem uma história. Até hoje, imagino


que cada um de nós é feito dessas histórias de família.
Assim, elas vão compondo a narrativa de cada um. Ou
seja, eu descobri a beleza que também mora nas histórias
da vida real.

Foi quando resolvi garimpar as narrativas da Vila 16.


Histórias vividas misturadas aos contos, causos, histórias

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de trancoso, de terror, e muitas outras foram surgindo.
Sobre algumas, nunca saberei se foram inventadas ou se
aconteceram realmente. Descobri, também, que a vida
é feita de histórias.

Depois desse encontro, a viagem que havia sido obri-


gada pelos meus pais, a qual resolvi chamar de exílio,
começou a ganhar outro sentido naquele momento e,
depois, pelo resto da minha vida. Conviver com aquelas
famílias, entrar e sair de suas casas, sentir o aroma que
emanava de cada cozinha, conhecer a intimidade e as
histórias deles, fez-me pertencer àquele lugar, mesmo
estando só de passagem.

Meus pensamentos tornaram-se estranhos – comecei


a imaginar histórias. As oito casas de cada lado da Vila,
por exemplo, quando avistadas de longe, pareciam
abrir alas para a fileira de ipês – as árvores que até
hoje testemunham o amor de Arcádio e Violeta. Já as
linhas, desenhadas pelos paralelepípedos do meio da rua,
davam a impressão que uniam essa imagem com todas
as histórias da Vila.

Foi assim que passei a entrar cada vez mais nesse


universo. Meus caderninhos começaram a se multiplicar
e, para não perder nada, passei a gravar no celular tudo
o que as pessoas iam me contando.

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Todas as noites, antes de dormir, colocava os fones e
ficava ouvindo as gravações. Numa noite dessas, comecei
a lembrar das histórias que ouvia antes de dormir, e foi
assim que lembrei do meu pai. Pela primeira vez, senti
saudade de casa, chorei um choro penoso, como diz
dona Madalena nos seus contos.

Era como se as histórias estivessem diluindo a raiva


que eu até então sentia. Quando cheguei à Vila, estava
muito aborrecida por ter sido levada contra minha
vontade, e justo para um lugar que, para mim, era o fim
do mundo. Ainda por cima, nas férias, quando a cidade
inteira está bombando de festas e praia. No começo foi
revoltante. Não aceitava o fato de terem me tratado feito
criança. Eu tinha o direito de ir e vir, de escolher meus
amigos, e de namorar quem quisesse.

Uma coisa interessante, e que só percebi depois, é


que, mesmo tendo uma ótima câmera, resolvi não filmar.
Queria apenas ouvir – minha sede era de palavras.
Entendi que adorava o momento de ver as expressões
e os gestos que cada narrador fazia enquanto contava.
Eu deixava o gravador ali no cantinho, e vivia a escuta
como quem saboreia um saco inteirinho de churros.
Gosto de churros até hoje!

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Anos depois, ao ler o texto de Carlos Drummond de
Andrade - Biografia: Um escritor nasce, em que ele narra,
de forma poética, a sua descoberta da escrita, entendi
que foi na Vila 16 que nasci escritora. Porém, isso só
veio a acontecer muito tempo depois da volta para casa,
no futuro de uma adolescente exilada.

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O exílio

N
o momento em que meus pais pediram à
irmã da minha mãe para me receber nos dois
meses de férias, jamais poderia imaginar que
seria ali o início do resto da minha vida.

Ao chegar na casa da tia Glorinha e do tio Júlio,


eu estava em conflito com meus pais e comigo mesma,
sem saber o que fazer com uma série de planos e dese-
jos. Continuar o namoro com Augusto mesmo diante
da resistência da minha família? Lutar por liberdade?
Estudar violão? Terminar o curso de balé? Ir para a facul-
dade? Ser ou não ser? Eis que eu tinha muitas questões.

Nasci numa cidade grande, a movimentação da


urbanidade sempre foi, para mim, o único ambiente
capaz de me gerar interesse. Talvez por haver escolas,
universidades, teatros, shopping, livrarias, cinemas, e

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tudo o mais que movimenta a vida nos grandes centros.
Só depois da experiência na Vila é que compreendi que
esses lugares dão movimento à vida em determinados
contextos; em outros, ela é movida de outras formas,
até mesmo em outros ritmos.

E olhe que a Vila 16 não era uma novidade para mim.


Como o pai da minha mãe foi um dos moradores mais anti-
gos daquela região, várias vezes eu havia passado as férias
escolares na casa dos meus avós. Era um casarão enorme,
com paredes largas e janelas que se abriam em duas partes.
Na calçada, todas as noites, os adultos reuniam-se para
esperar a brisa que subia do rio. Enquanto o vento do
Aracati não atravessava a noite, as crianças corriam na
rua com pouco ou quase nenhum movimento de carros.
Ruas que foram feitas para a correria dos meninos – os
automóveis eram invasores que interrompiam brincadeiras.

Muitas vezes, durante essas férias no interior, costu-


mava ser convidada pelas outras crianças para brincar
na Vila 16. Era lá onde a maioria da meninada se reunia
para brincar na rua. Confesso que o lugar sempre me
intrigou. Primeiro por causa das casas serem coloridas e
coladas umas nas outras. E aquela fileira de árvores, bem
no centro, parecia-me mais a paisagem de uma pintura.

Era como se as casas estivessem sempre fazendo


reverência àquelas árvores todas iguais. Tirando minha

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imaginação de criança, nunca pensei que viveria algum
tempo naquela Vila, muito menos que ali seria um lugar
tão sedutor e abarrotado de histórias.

Hoje, penso que as casas de uma vila parecem com


as famílias que vivem nelas. São diferentes e únicas, cada
uma de uma cor, cada uma de um jeito. Antigamente, as
casas da Vila 16 eram todas iguais, só mudavam as cores.
Mas como as pessoas gostam de deixar as coisas do seu
jeito, foi uma janela mudada ali, uma garagem cons-
truída devido à compra do carro, uma varanda fechada
pra dar lugar a mais um quarto, outra transformada
em bodega para ajudar nas despesas, e assim elas foram
ficando bem diferentes.

Quando vemos fotos antigas, podemos perceber que


uma das mudanças mais aparente aconteceu com as portas.
Antes, toda casa da Vila 16 tinha uma porta partida ao
meio. Dona Raimunda, que mora na casa 14, foi quem
me contou, em uma das vezes que fui ajudá-la a colher
siriguelas no quintal, só para perguntar por mais histórias.
Ela me disse que, com o tempo, aquelas portas, que às
vezes cumpriam a função de janelas, foram sendo trocadas
por outras, de outros tipos. Algumas casas ganharam uma
porta inteira, outras com nomes engraçados, como: vene-
ziana, colonial, e até basculante. Assim como os moradores
da Vila, as portas foram mudando também.

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Hoje em dia, as casas são realmente muito diferentes
umas das outras, mas um detalhe permaneceu: cada uma
tem sua cor. Desde o seu nascimento, a Vila 16 é um
festival de cores. Dona Raimunda, certa vez, disse-me
uma frase que até parecia poema: “Desde a construção,
cada casa sua cor, e cada família seu valor”.

Depois da conversa com mais essa narradora, desco-


bri que a variedade de cores e moradores, que se mantém
até hoje, faz da Vila 16 um verdadeiro arco-íris. Dona
Raimunda contou-me que, além de dona Madalena,
outros moradores também contam histórias, como
é o caso de seu Biró, por exemplo. Ele é um antigo
pescador que morou a vida inteira numa ilha no meio
do açude. Vivia afastado de tudo, pescando, contando
histórias e namorando sua Maria, com quem é casado
há muitos anos.

Com a chegada da idade, o fato de viverem tão isola-


dos preocupou a família. Por fim, o casal foi convencido,
pela filha Sulamita, a morar na Vila. Eles vivem na casa
3, bem perto dela que mora com o marido e os filhos na
casa 6, um já adulto e dois adolescentes.

Para não chegar de surpresa, pedi que dona


Raimunda apresentasse-me ao casal. Quando chegamos,
Maria estava fazendo a comida – o cheiro que vinha

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da cozinha era realmente convidativo. Um senhor de
cabelos brancos, magro e bem alto, que estava sentado
na cadeira de balanço, logo se levantou e nos recebeu
na varanda da casa. Eu chamo de varanda, mas na Vila
todo mundo só chama de alpendre.

Após darmos bom dia, dona Raimunda apresentou-


-me ao casal. Logo no começo da conversa, os dois me
proibiram de tratá-los por senhor e senhora. Portanto,
a partir de agora, vou me referir a eles apenas como
Biró e Maria.

Logo ao chegar, também percebi haver um amor


muito grande entre os dois. Maria, de sorriso fácil,
entrou e saiu da conversa para, segundo ela, olhar o
almoço. Mostrou-me com orgulho a panela elétrica
de fazer arroz que ganhou da filha. Biró, com jeito de
menino, apressou-se para pegar o violão que ganhou
da mesma filha. A essa altura, já animei minha escuta.

- O sujeito conta histórias e ainda canta? Vou acabar


com a memória do celular! - Já imaginei.

Quando perguntei a Biró se pescador contava


história, e era mentiroso como diz o povo, ele, imedia-
tamente, respondeu:

35
– Pescador não mente; quem mente muito é caça-
dor. Pescador só conta o que vê, e às vezes o que
outro pescador viu.

Quando questionei se ele conhecia alguma história,


o animado senhor foi logo dizendo que era conhecedor
de muitas. A partir desse momento, não pude mais dizer
uma só palavra. Biró disparou a falar sem parar. Fazia
perguntas, e ele mesmo dava as respostas:

– Você sabe o nome dessa planta que corre a


Vila toda?

Eu, como já havia passado uma longa temporada


com dona Madalena ouvindo sobre os ipês, tentei
responder de pronto. Biró, sem esperar, e com ar de
profundo conhecimento, completou:

– Ipê-rosa. Essa planta tem nome e sobrenome. Você


sabia que existe mais de um ipê? Bastou eu balançar
a cabeça negando conhecimento, para Biró dispa-
rar a explicar:

– Olhe, tem esse rosa, tem do amarelo, tem do roxo


e tem do branco. Veja bem, filha, ipê é como família –
pode até parecer que é tudo igual, mas cada uma tem
seu jeito.

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Tem gente que chama ipê de pau d´arco, dizem
que deram esse nome porque muitos indígenas faziam
os arcos dessa madeira. O ipê é assim, só mostra sua
diferença na florada. E isso tem uma história que explica.
Porque tem história para explicar tudo dessa vida, e até
da outra.

Quando ouvi a palavra “história”, me aproveitei do


segundo em que ele retomou o fôlego para perguntar se
eu podia gravar. Biró prontamente concordou. Nesse
instante, dona Raimunda, que nem havia sentado, foi se
justificando que, com tanta coisa para fazer em casa, não
iria ficar ali ouvindo as mesmas histórias. Rapidamente
se despediu e atravessou a Vila.

Eu preparei o celular e o coração para escutar Biró.

Assim me contou:

37
A lenda dos Ipês

H
ouve um tempo em que bichos e plantas
falavam com as pessoas. Só as pedras não
diziam nada, preferiam ficar quietas e
caladas para enganar a morte. Desse jeito, não seriam
notadas e se tornariam eternas. Depois, os homens foram
fazendo tanta bobagem com a Mãe Natureza que ela
ordenou que os bichos e as plantas parassem de falar
com gente. O certo é que até hoje eles nada dizem, mas
compreendem tudo o que dizemos.

Foi nesse tempo que essa história se passou. Era um


período de florada. A Mãe Natureza estava vestindo
sua roupa colorida de festa. Todas as árvores da Terra
exibiam com orgulho suas flores e cores. A vida fica
muito mais alegre e festeira quando está colorida.

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A questão é que somente os Ipês continuavam sem
florir, e isso deixava a tristeza tomar conta. Como eram
as únicas árvores que não davam nem flor e nem cor, a
cada florada, choravam e se lamuriavam muito. É tanto,
que quando o vento balançava suas folhas, dava para
ouvir de longe o choro penoso dos Ipês.

Em um certo lugar do Sertão, havia quatro ipês


plantados bem pertinho um do outro. Como eram altos
e vistosos, atraíam várias espécies de passarinhos, que
vinham fazer ninhadas em seus galhos: canário da terra,
arara, bem-te-vi, sanhaço, curió, golinha, papa-capim,
assum preto, cacatua, joão-de-barro, periquito, jandaia,
maracanã, e tudo o quanto é tipo de papagaio.

Quando toda essa passarada tentava consolar a dor


dos Ipês, aí é que eles choravam. Nada acalentava a
tristeza de serem os únicos que não podiam adornar a
festa da Mãe Natureza.

Certa manhã, os quatro estavam numa tristeza tão


profunda, mas tão profunda, choraram tanto, que tudo
quanto é folha acabou caindo no chão, ficaram comple-
tamente pelados. Parecia até que haviam se deitado nos
braços de Caetana, a morte.

Foi então que o canário da terra, aquele de um


amarelo que mais parece a luz do Sol, percebendo a

40
tristeza dos ipês, e vendo que agora não tinha uma
folha sequer, resolveu, para agradar, fazer sua ninhada
nos galhos de um dos quatro irmãos. Um canário foi
chamando o outro, que foi chamando o outro, e quando
se viu, o primeiro ipê, que antes parecia sem vida, ficou
todo amarelinho de canários. Ele se achou tão bonito
que deu um sorriso.

Bem ao lado dele, estava o seu irmão, claro que


na mesma situação – a tristeza havia derrubado todas
as folhas. Foi quando a arara, vermelha e azul, teste-
munhando a alegria que tomou conta do primeiro ipê,
resolveu fazer a mesma coisa com o segundo. Uma
arara foi chamando a outra, que foi chamando a outra.
Quando o vermelho e o azul das araras se misturaram,
o que se avistou foi uma cor roxa de encher a vista. E
quando se viu, o ipê, que parecia sem vida, ficou roxinho,
roxinho. Ele se achou tão bonito que deu um sorriso.

Ao ver a boniteza dos dois ipês, a cacatua, teste-


munhando a alegria que tomou conta do primeiro e
do segundo irmão, resolveu fazer a mesma coisa com
o terceiro. Uma cacatua foi chamando a outra, que foi
chamando a outra, e quando se viu, o ipê, que parecia
sem vida, ficou branquinho, branquinho. Ele se achou
tão bonito que deu um sorriso.

41
Aí foi que a questão maior se deu. Estavam todos tão
ocupados com a festa da Mãe Natureza que ninguém
reparou que faltava um dos irmãos. Um papagaio até
tentou ajudá-lo, mas, entenda, verde por verde, ele já
era. Com cada irmão tão colorido, ele queria uma cor
vistosa também.

Pois não é que a Mãe Natureza atentou para a sua


tristeza? E sabe como é mãe diante de dor de filho!
Ela chamou de longe, muito longe, um papagaio bem
diferente dos que a gente costuma ver por aqui, uma ave
que mais parece flor. Você sabia que existe no mundo
um papagaio cor-de-rosa? Pois existe!

Surgiu no alto dos céus, um bando de papagaio rosinha,


rosinha. Parecia um jardim voando. Já chegaram bem
cansados, os coitadinhos. A viagem foi longa! Pousaram
nos galhos da última árvore que faltava. Quando se viu,
o ipê, que parecia sem vida, ficou todo cor-de-rosa. Ele se
achou tão bonito que chorou de alegria.

A Mãe Natureza ficou tão comovida com a felicidade


dos quatro filhos. Você sabe: quem adoça a boca do filho,
a de sua mãe adoça. Como agradecimento ao canário
da terra, que teve a ideia, e aos outros pássaros que
ajudaram, ela concedeu a cada filho a cor que ganhou
das aves.

42
No dia seguinte, dizem que, embaixo do céu mais
azul que aqueles sertões já viram, os ipês floresceram
em quatro cores diferentes. Cada um deles botou a
vestimenta da cor do pássaro que o havia ajudado.

Tudo aconteceu no mês de agosto. E assim, desde


então, todos os ipês nascidos nessa terra florescem na
mesma altura do ano. E como consolo pela demora, o
ipê-rosa é o primeiro a florir – a floração começa no fim
de junho e podemos ver flor rosa até entrar setembro.

Desde esse dia, tudo quanto é ipê espalhado pelo


Brasil deixa nossa terra ainda mais alegre e colorida.

Quanto vale para uma mãe a alegria de um filho!?

43
Era uma vez
histórias vividas

S
aí da casa de Biró e Maria depois de
aceitar o convite para almoçar galinha
caipira com pirão, acompanhados de
um delicioso arroz feito na panela elétrica, claro!

Fui contornando a fileira de ipês para aproveitar a


sombra, enquanto caminhava em direção à casa dos
meus tios. Durante a travessia, pensei muito na minha
mãe. Refletindo sobre as atitudes dela, principalmente
a de planejar meu exílio na Vila. Comecei a pensar se
talvez não fosse um cuidado, mesmo que me pareça
estranho, posso compreender como um gesto cuidadoso.
Automaticamente, lembrei da pergunta feita no final da
história contada por Biró: quanto vale para uma mãe a
alegria de um filho?

45
Essa coisa de ouvir histórias acabou me transfor-
mando em uma ótima observadora. Eu acordava de
manhã cedinho, e sentava no meio-fio da calçada da
casa dos meus tios, um estratégico posto de observação.
Principalmente, no início da manhã, dava para ver o
quanto realmente eram diferentes as famílias dali. As
portas iam abrindo-se e, aos poucos, a Vila ganhava
movimento e vida, saindo do silêncio provocado pela
pausa da madrugada.

A primeira moradora a aparecer na calçada sempre


era dona Amélia. Surgia com sua vassoura de palha
em punho e olhos atentos. Ela me contou tudo sobre a
própria vida logo no primeiro dia em que nos conhece-
mos. Dona Amélia mora na casa 8, ficou viúva há muito
tempo, é dona de casa, e tem duas filhas. Atualmente,
apenas a caçula vive com ela. Chama-se Ana, é solteira,
trabalha durante o dia na farmácia do Centro e, à noite,
cursa o 2º ano do ensino médio na escola estadual que
fica ao lado do rio. O pai morreu quando ela ainda
era muito pequena. Sua irmã, Marcelina, era mocinha
quando teve que dar um duro danado para ajudar a mãe.
Passaram a vender marmita para a vizinhança, depois
da morte do provedor da família.

Marcelina casou com Joaquim, filho do Gringo,


dono da casa 7. Na verdade, o nome do pai de Joaquim é

46
Roberto Ivens, mas todo mundo só o conhece por Gringo.
Ele também me contou sua história. Filho de pai inglês e
mãe portuguesa, assentou praça na marinha. Depois pres-
tou serviços na Índia, em Angola, e foi chefe de algumas
expedições para o Brasil. Chegando aqui, encantou-se por
Donana em uma noite de lua. Seis meses depois do primeiro
encontro, casaram-se na igrejinha da cidade.

Por causa da saúde frágil de Donana, assim que engra-


vidou, mudaram-se para viverem perto da família dela.
Bastava conversar um pouco com Gringo para perceber
que se tratava de um homem muito culto. Ele cuidou do
menino com muita dedicação, principalmente depois da
morte de Donana, quando o filho único fez 15 anos. Jamais
perdeu o sotaque, e também jamais voltou à terra natal.

Dona Amélia contou que, assim que a família do


Gringo se mudou para a Vila, ele insistia em dizer que
se chamava Ivens, mas o povo continuava a chamá-lo
de Gringo, e ficou por Gringo mesmo. Sendo assim, Ana
Maria Correia Ivens era conhecida como Donana do
Gringo e, logicamente, Joaquim Ivens, tanto na Vila,
como em toda a redondeza, até hoje é conhecido por
Joaquim do Gringo.

Joaquim e Marcelina nunca quiseram morar na Vila


16. Assim que casaram, foram viver bem afastados do
cenário que acompanhou o longo namoro dos dois, já

47
que se apaixonaram ainda adolescentes. O período
inteiro de mais essa história de amor, com suas idas e
vindas, declarações e rompimentos, foi testemunhado
e comentado pela Vila inteira. Sendo assim, principal-
mente Joaquim achou melhor começar sua nova família
em outro lugar. Isso garantiria mais privacidade, já que
ficariam afastados do monitoramento constante da mãe
de Marcelina. Dona Amélia é fogo!

Vale ressaltar que me encantei quando soube que a


festa do casamento deles foi no mês de agosto, bem no
meio da Vila, embaixo da florada dos ipês. Dizem que
foi um casamento cor-de-rosa. A boda durou até o dia
amanhecer. Marcelina contou-me que no dia da celebração,
teve a impressão de que todas aquelas famílias estavam
casando seus filhos. Quem mora ou já morou numa vila
sabe bem: os vizinhos acabam se tornando parte da família.

Eu sempre via que dona Amélia, como era a primeira


a sair da casa que estava situada bem no centro da Vila,
também era a primeira a saber de tudo o que se passava.
É certo que sabia de muita coisa, e diante do que não
tinha certeza, possuía uma incrível capacidade de supor.
Por essa razão, até hoje, consegue divulgar todas as
ocorrências, a qualquer hora, seja dia ou seja noite.

Dona Amélia também era a primeira que chegava em


todas as situações extraordinárias, que iam desde feijão

48
queimando, idoso passando mal, até uma queda de bicicleta.
Pude perceber que acidentes com pequenos ciclistas era o
mais frequente acontecimento extraordinário no cotidiano
da Vila 16. Por esse motivo, a farmacinha de dona Amélia
estava sempre de prontidão, bem no acento da cadeira
de balanço que ficava na área da frente. “Para o caso de
qualquer necessidade”, afirmava a socorrista voluntária.

Dona Amélia revelou que guardava em silêncio o


desejo de ter sido enfermeira. Disse-me que acalentou
esse sonho desde menina, e que nunca pôde realizá-lo
porque casou cedo e enviuvou mais cedo ainda. Ela
contou-me que costumava acompanhar as atividades
de tio, dono da farmácia. Na infância de dona Amélia,
o farmacêutico era a única pessoa que cuidava dos
doentes e feridos dos lugares pequenos, raramente havia
médicos. Em seu relato saudoso, ela revelou que ficava
sentada no balcão da farmácia para escutar a conversa
dos adultos e, assim, ouviu muitas histórias. Segundo
afirma, “tudo verdadeira”.

Quando pedi que me contasse uma dessas histórias que


ouviu na farmácia, ela largou a vassoura e a vida alheia,
assumiu o lugar de narradora, e me contou a fantástica
saga de uma comunidade chamada Conceição do Buraco.

Assim me contou:

49
O roubo da Santa

H
á muitos anos, antes da construção do
grande açude, bem perto daqui, existia
uma pacata comunidade de nome Concei-
ção do Buraco, que hoje se encontra no fundo das águas.
Era assim chamada devido estar situada em um grande
baixio, e depois que uma imagem de Nossa Senhora da
Conceição foi encontrada por alguns moradores.

Ouvi uma velha contando o início desse acontecido


para o meu tio, quando eu ainda era uma mocinha. A
localidade sempre foi conhecida por sua religiosidade.
Os moradores ostentavam forte devoção pela Santa, a
qual tinham como padroeira. A imagem, talhada na
madeira, recebia destaque no altar da capela do povoado.

Quando começaram a construção da barragem,


e com o andamento das obras, lamentavelmente os

51
habitantes da comunidade tiveram que enfrentar uma
nova vida, e bater em retirada, já que a grande enchente
começava a alagar ruas e casas. As famílias tiveram
que deixar suas moradas e suas antigas vidas para trás.
Hoje em dia, tudo está debaixo d’água, bem no fundo
do açude.

Os moradores foram deslocados pelo governo para


três localidades distintas, além de terem que deixar suas
casas, e um bocado da sua história para trás, também
perderam o convívio de parte da vizinhança. Foi muito
triste. Essa divisão fez surgir uma disputa acirrada
entre as famílias, e o motivo foi justamente a Santa.
Todos queriam que a imagem ficasse na localidade para
qual se mudaram. Como? Se era uma Santa para três
capelas diferentes? Durante esse desentendimento, um
fato horrorizou os moradores de Conceição do Buraco:
a imagem sumiu da capela.

Quem teria a coragem de roubar uma Santa?

Ninguém sabia dizer. Procuraram dias e dias, de casa


em casa. Homens se organizaram para as revistas, revira-
ram tudo, e nada! As pessoas ficaram acusando umas às
outras, mas nem sinal da Santa. Fizeram buscas em todas
as moradas, entravam sem pedir licença, abriam tudo,
sempre em vão. E, assim, sem encontrarem nenhuma

52
pista de onde a imagem pudesse estar, foi que se deu
o impedimento das famílias continuarem a briga por
sua posse.

Ainda na época, correu um boato de que dona Maria,


uma senhora distinta que descendia dos primeiros mora-
dores de Conceição do Buraco, era quem havia roubado
a Santa. Isso ninguém pôde provar. Passaram-se anos e
anos, e a dúvida ainda persistia na memória de todos:
Quem será que roubou e escondeu a Santa?

Até que um dia, a mesma dona Maria, quando já


estava bem velhinha, adoeceu gravemente. Já no leito
de morte, pediu que a família reunisse o povo da antiga
comunidade, pois precisava revelar um segredo. Aten-
dendo ao pedido da anciã, a família tratou de reunir os
moradores mais velhos da antiga Conceição do Buraco
na sala de sua casa. Já quase sem voz, mesmo em seu
estado grave, a velha senhora finalmente explicou o que
havia acontecido.

Ela confessou o roubo. Contou que entrou de


madrugada na capela, pegou a imagem, e a escondeu,
por vários dias, bem no meio da saca de farinha. Por
essa razão, não foi encontrada na revista que se armou
em sua casa, logo depois do sumiço, e das outras buscas,
resultadas pelos boatos. Dona Maria fez questão de

53
esclarecer que sua atitude não revelava ganância, que
fez isso tão somente para acabar com o conflito, e para
evitar mortes entre as famílias.

Ao pedir perdão aos moradores de Conceição do


Buraco e à Santa, dona Maria suplicou que permitissem
que, a partir daquela data, a imagem ficasse na capela
da nova Vila. Dizem que horas depois da confissão, ela
fez a passagem, serena e em paz.

E assim foi feito. Os moradores atenderam ao pedido


da sábia senhora, e até os dias de hoje, a imagem de
Nossa Senhora da Conceição está exposta na igreja
da comunidade.

A prova maior de que essa história é verdadeira é que,


todos os anos, os descendentes dos antigos moradores
de Conceição do Buraco celebram uma grande festa no
dia 8 de dezembro, justamente no dia de Nossa Senhora
da Conceição.

O que se sabe é que o município foi inteiramente


originado de Conceição do Buraco. Na última grande
seca, as águas do açude baixaram tanto que pescadores
avistaram a torre da igreja que despontou. As ruínas
apareceram, depois de tantos anos, para marcar a
memória daquele lugar. Quando soube dessa notícia,
lembrei de uma história que eu ouvia depois que as águas

54
cobriram Conceição do Buraco: dizem que dentro do
açude existe um peixe gigante que dorme sono profundo,
um tucunaré, e que, no dia em que ele acordar, vai trazer,
em cima do dorso, a igreja retirada do fundo das águas
do açude. Mas essa é uma outra história.

55
As histórias
levaram-me de volta

D
epois de ouvir atentamente a narrativa
de dona Amélia, que, tal qual dona
Madalena, tinha muita expressividade
com palavras e gestos, depois de ouví-las, percebi que,
dependendo da narradora ou do narrador, uma história
da vida real pode parecer um dos contos das mil e uma
noites. A forma como é contada leva quem escuta quase
a viver junto com personagens e acontecimentos.

Ao ouvir a história da santa escondida numa saca


de farinha, fui capaz de imaginar a imagem de madeira
com riqueza de detalhes, mesmo sem nunca ter visto
uma igual. Também pude desenhar, na imaginação,
os homens descendo dos cavalos e revistando as

57
casas, abrindo portas e baús. Pensei até nas feições
da dona Maria, sem jamais ter visto nem mesmo uma
fotografia sequer.

Realmente, esse acontecimento da comunidade de


Conceição do Buraco pareceu-me interessante. Fiquei
muito admirada quando dona Amélia contou-me que
essa história há anos vem sendo repassada de pai para
filho. Imagino que seja porque é a história dos povoados
que formam o município. Dona Amélia sempre dizia que
toda história tem a ver com outra e que, desde o início
do mundo, uma história foi puxando a outra.

Já no fim de uma das nossas conversas, ela me contou


que dona Maria, a mesma que escondeu a santa, ainda
é parente próxima de Donana do Gringo. Essa, por sua
vez, já tem outra história de amor, e de tristeza, dentro
da sua própria.

Até hoje, pego-me refletindo o quanto as histórias


reais também emocionam os ouvintes. Eduardo Galeano
tem toda razão: “somos feitos de histórias”. A nossa
própria vida é cheia de pequenas delas, igualzinha
àqueles filmes que têm vários enredos.

Ouvir e escrever o que me narravam foi mexendo


com a minha imaginação. Às vezes, pegava-me pensando
nos autores dos livros que havia lido, flagrava-me

58
tentando imaginar de onde haviam tirado todas aquelas
ideias, e como elas pousavam no papel.

É bem capaz de algumas terem nascido a partir de


uma história vivida. Quem sabe? Já pensou Machado
ter testemunhado o amor de Arcádio e Violeta? Será
que narraria melhor que dona Margarida? E se Clarice
ouvisse minha história de amor com Augusto? Como
escreveria sobre meu exílio, por exemplo? E minha
revolta? Como descreveria meus pais? Seriam eles vilões
ou heróis?

Descobri que esse mundo é fantástico. Testemunhei


que uma história realmente puxa a outra. Ao pensar em
tudo isso, foi-me dando uma enorme saudade de casa,
deu-me vontade de responder às mensagens enviadas
diariamente por minha mãe. Quase interrompi o silêncio
que até então nos separava.

Minha mãe, mesmo sem eu responder uma só vez,


todas as noites me escrevia: “Durma bem, filha. Deus
te proteja, e te faça feliz!”

Via que a mesma frase chegava todas as noites na


minha caixa de mensagem. Às vezes, lia e me dava raiva;
outras, sentia falta dela; e em outras, não acessava
porque já sabia o que estava escrito. Houve vezes que li
em voz alta. Certa noite, não sei por que, gravei minha

59
voz lendo a frase enviada por minha mãe. Esforcei-me
para imitar sua entonação em cada palavra. Queria
gravar como se fosse ela falando. Lembrei da suavidade
da sua voz, dos seus gestos carinhosos, e de quando
me elogiava só com o olhar. Fiquei com uma saudade
imensa. Também, lembrei das vezes em que brigamos por
causa da minha demora depois da balada, da implicância
dela com Augusto, dos castigos sem o menor sentido, e
da invasão da minha privacidade. Foi assim que mantive
meu protesto silencioso.

A essa altura do exílio, já trazia um caderno cheio


de histórias. Continuava conversando com minhas
amigas por mensagem, só que essas comunicações
também foram ficando espaçadas. As únicas parceiras
fiéis que não deixaram de insistir para que eu desse
notícias foram Ana Rebeca e Isabella. Cada uma do
seu jeito, as duas mantinham m-me conectada com as
férias. Mandavam fotos das festas, da praia, do shopping
e, claro, de Augusto. Até onde me contaram, ele não
ficou com ninguém. Até hoje, não sei se sua fidelidade
foi verdadeira ou se as amigas tentaram me poupar.

Durante um certo tempo, vivi as coisas da Vila e da


minha turma ao mesmo tempo. Carregava o celular no
bolso da calça para ter certeza que saberia da chegada de
cada mensagem e veria, nas redes sociais, as postagens

60
do meu interesse. No começo, eu virava a madrugada
teclando com as meninas. É muito ruim ficar longe e,
ao mesmo tempo, saber minuto por minuto para onde
a galera vai, quem ficou com quem, quem brigou com
quem. Infelizmente, a discussão com Augusto, no dia da
minha viagem, terminou de me abalar. Por essa razão,
com ele, nunca conversei enquanto estive exilada.

Como eu estava com muita vergonha do castigo, não


postava nada nas minhas páginas. Diferente de outras
amigas que viajaram para lugares incríveis, e postavam
uma foto mais legal que a outra. Eu só enxergava uma
vila sem graça, uma fileira de árvores, uns amigos novos
que eu mal conhecia – nada que merecesse destaque
ou que interessasse a alguém. Minha tia até tentou me
apresentar à galera da minha idade, mas fiz questão de
manter distância.

Aos poucos, fui me aproximando deles, das rodi-


nhas de violão que se juntavam à noite em uma e outra
calçada, relacionando-me com pessoas de outras idades e,
lentamente, fui me abrindo mais. As histórias acabaram
me aproximando, principalmente, dos idosos, e olhe
que, tirando meus avós e alguns tios, eu nunca havia
conversado com pessoas mais velhas. Só cumprimentava
por educação. Depois da experiência na Vila 16, descobri
quantas histórias incríveis os mais velhos têm para contar.

61
Acho que o meu distanciamento com a vida da Vila
durou uns vinte dias. Eu vivia grudada no celular e no
computador, não postava nada, mas vasculhava tudo o
que meus amigos escreviam e postavam. Aos poucos, fui
fazendo da geografia da Vila 16 meu único cenário. Só
atendia às cobranças das meninas, mas em nenhuma de
nossas conversas, contei sobre as histórias, os narradores
da Vila, e o que vinha fazendo.

Acho que tinha um pouco de medo que tirassem


onda com a minha cara.

Assim que cheguei na casa dos meus tios, mal saía


do quarto. Ficava horas navegando à procura de alguma
foto, algum comentário, uma curtida ou qualquer pista
que me levasse até Augusto. O certo é que estava cada
vez mais mergulhada no fantástico mundo das histórias
da Vila 16. Dessa forma, parei, pouco a pouco, de entrar
nos meus grupos de mensagem, e de olhar as postagens
nas redes sociais.

De vez em quando, respondia um ou outro amigo


e, às vezes, quando batia saudade, conversava com a
Bella e a Beca. Se por um lado eu protestava sem falar
ao telefone ou responder às mensagens dos meus pais,
por outro, Augusto também havia calado nossa história.
Não me respondia e eu, também muito magoada com

62
sua incompreensão, não queria ficar insistindo. Só Deus
sabe como consegui me controlar.

Quando tentei explicar que não poderia evitar a


ida para casa da minha tia, e muito menos diminuir o
tamanho da pena: dois meses fora de circuito, Augusto,
que nunca obedecia aos pais, ficou sem compreender
por que eu simplesmente não dizia: “não vou e pronto!”.

Cada família tem o seu jeito de estar no mundo, e ver


as coisas de sua forma. Na época do exílio, meus pais
eram pessoas muito ocupadas e, ao mesmo tempo, muito
envolvidos com a minha vida e a do meu irmão pequeno.
Eles sempre estavam por perto, conversavam sobre tudo.
Confesso que muitas vezes atendiam às nossas vontades.
A questão é que, na minha casa, ordem era ordem.

Foi tanta confusão por causa dessa história, tanto


desentendimento. Principalmente, por causa dos meus
horários de chegada, e quando descobriram que alguns
amigos ingeriam bebidas alcoólicas. Mãe e pai parece
que adivinham! Todas as vezes que eu dizia: “eu já tenho
16 anos, posso voltar de madrugada, todo mundo chega”,
lá vinha meu pai responder: “você só tem 16 anos. Você
não é todo mundo, você é minha filha”.

Esses argumentos davam-me uma raiva imensa.


Aquele “minha filha” parecia que eu era superior aos

63
outros adolescentes. Confesso que às vezes também ouvia
esse “minha filha ” como se eu fosse especial para ele.

Durante esse período, o silêncio do Augusto, o fato


de não responder às minhas mensagens, e ter parado
de postar fotos, só para eu não saber dele, fez-me sofrer
muito, depois me deu raiva. Achei estranho quando
percebi que já não lembrava tanto dele. Às vezes, eu
pensava: será que se tivesse mesmo batido o pé, não
teria ficado em casa? Vai que aquela história de dona
Madalena dizer que “em certas ocasiões é melhor pedir
perdão do que engolir um não”, era bem um recadinho
torto pra eu voltar para casa e insistir em ficar. Ou, quem
sabe, ter fugido para passar um tempo na casa de minha
avó paterna, como sugeriu Augusto?

Certamente, isso teria aumentado ainda mais a


confusão em minha casa, e eu já estava cheia de tanta
briga. Tudo bem que o ditado da dona Madalena não
se referia a uma paixão adolescente – ela estava mencio-
nando o amor de José Arcádio e Violeta, sua história
preferida, e agora a minha também.

Depois de tanto ouvir, parecia que estava movida


pelos personagens e acontecimentos. Diante de uma
história de amor, quase morria de saudade do Augusto.
Ficava deitada no escuro do quarto, lembrando dele, de
como me abraçava, e das vezes que corríamos na rua de

64
mãos dadas para chegar em lugar nenhum. Em outras
histórias, lembrava das minhas amigas, dos segredos, do
jeito doce da Rebeca, e da coragem da Isabella.

Já quando ouvia uma história de proteção ou


cuidado, lembrava dos olhos tristes da minha mãe
quando entrei no ônibus com destino ao exílio. Quando
ia ajudar dona Madalena a tirar os alinhavos das costu-
ras, e ela me contava histórias do tempo que os bichos
falavam, imaginava a reação do meu irmãozinho, caso
ouvisse. Nunca pensei que sentiria tanta saudade de uma
criaturinha que só perturbava a minha vida.

Depois das histórias, passei a pensar muito na minha


família. Até quando ouvia sobre o tempo da construção
das casas. Quando me contaram como eram no início,
suas cores, seus formatos semelhantes, lembrava logo do
meu pai que, apesar de ser um arquiteto com projetos
modernos, até hoje passa horas desenhando casinhas
coloridas, como as da Vila.

E foi assim que as histórias foram lentamente me


reconduzindo para a minha própria história, e de volta
à minha família. Um desses momentos de saudade
aconteceu quando dona Madalena narrou a história do
seu irmão Raimundo que mora na casa 9.

Assim me contou:

65
A tampa que vedava
a panela do juízo

R
aimundo sempre foi um menino dife-
rente durante toda a infância. Demorava
muito em tudo, como se ele fosse lento. A
demora maior era quando as coisas vinham puxar pelas
ideias. Uma tia nossa sempre dizia:

– Esse menino nasceu com a tampa da panela do


juízo vedada.

Raimundo chorava por tudo. O único irmão homem,


mas era o mais chorão de todos. Minha irmã Dolores
sentia muito ciúmes do nosso pai com ele. Isso porque
o nosso pai sempre quis ter um filho homem. Ela já era
mocinha, quando finalmente chegou Raimundo. Minha

67
mãe já estava bem adiantada da idade. Dolores, com
despeito, dizia:

– Eu não queria ter nascido macho, e viver chorando


desse jeito!

Raimundo vivia com dificuldades, principalmente,


com as letras. Íamos juntos para a escola, eu estudava na
mesma classe que ele. Peguei várias doenças de criança, e
fiquei muito tempo sem ir à aula. Foi daí que Raimundo
me acompanhou, mas só no ano, porque no saber eu
corria léguas dele. Toda vida que a professora dizia que
ia chamar um aluno à frente, eu era doida que ela me
chamasse. Foi quando comecei a reparar que ela só
chamava para tomar a cartilha quem não sabia. Ela
sabia quem não sabia. Bom, não sei se era muito certo,
mas eu acho que era para o sujeito ter medo de ser
chamado, e assim correr para aprender.

Com Raimundo, meu irmão, não havia jeito.


Quando ela chamava, ele já se levantava chorando. Eu
sentia muita pena!

Até que o nosso pai, com o pouco saber que tinha,


foi ajudando Raimundo. Ele era quase sem estudo, mas
a paciência era de sobra. Toda noite, estudava com
meu irmão. Nesse tempo, aqui na Vila não havia luz
elétrica. Depois do jantar, nosso pai acendia a lamparina,

68
e ajudava Raimundo até tarde da noite. Olhe como meu
pai era inteligente, mesmo tendo passado a vida toda na
roça: ele fez uns quadradinhos de papelão, ia cobrindo
as letras e, quando descobria, dizia o nome daquela letra
para Raimundo. Nunca perdeu a paciência.

Olhe que a gente dormia, e eles ficavam lá na mesa


da cozinha. Vi muitas vezes a sombra da nossa mãe
passando de rede em rede para olhar a gente, enquanto
eu ouvia meu pai ensinando as letras para Raimundo.
Pois tu me acreditas que por fim ele aprendeu? A profes-
sora, por um tempo, até parou de lhe tomar as letras.
Sabia que ele sabia.

Meu irmão até parou de chorar. Meu pai, com toda


a paciência, destampou a panela do juízo do menino.
Que eu me recorde, ele passou um tempão sem ser
chamado lá na frente. Até que voltou a chorar de novo.
Foi quando a professora chegou na parte do: - ele agá
lhá, ele agá lhé, ele agá lhi, ele agá lhó, ele agá lhu.

Olhe, minha filha, isso não entrava na cabeça do meu


irmão de jeito nenhum. Foi choro muito. Quase acabou
a paciência do meu pai, e o querosene da bodega. Mas
ele perseverou – ele não, eles. Raimundo tinha muita
vontade de aprender, e meu pai de ensinar.

69
Hoje em dia, meu irmão é um homem, aprendeu e
foi bem. Trabalha como agente comunitário de saúde.
Por aqui, todo mundo é doido por ele. Tem a sua casa,
a sua família, e um bom emprego. Quando avisto
Raimundo entrar aqui, parece que estou vendo o nosso
pai. O mesmo andar sereno, e o mesmo olhar paciente.

Pode ter certeza, foi o amor de papai que tirou a


vedação que tampava a panela do juízo de Raimundo.
O amor de um pai pode tudo, filha. Pode tudo!

70
Cada casa sua cor,
cada família seu valor

S
aí da casa de dona Madalena com uma
enorme vontade de voltar a falar com
meu pai. Emocionei-me lembrando das
vezes em que ele também destampou a panela do meu
juízo. Até hoje, ensina-me muita coisa!

Fiquei lembrando dos títulos dos livros que me deu,


das viagens que fizemos, ele sempre preocupado em
me contar sobre curiosidades dos lugares, a inspiração
para muitos enredos literários, essas coisas. Meu pai
esteve disponível a vida inteira para me explicar como as
coisas e o mundo funcionam. Sempre foi muito paciente,
saciava todos os “porquês” quando eu era pequena.

73
Eu o amo muito. Adoro nossa mania de assistir a
filme de ficção científica só pra irritar a mamãe que, por
sua vez, só quer ver romances e dramas. Fico contente
quando ela fala do costume que eu e ele temos de dormir
com uma perna cruzada sobre a outra. Lembro até hoje
do choro do meu pai quando me deixou na rodoviária
no dia da viagem para o exílio. Eu fiquei sem entender
por que ele chorava tanto, já que concordou com a ideia
de me isolar de todos, durante dois meses, na casa de
tios, onde nem primos havia.

Quando eu era menor, não entendia por que tia


Glorinha e tio Júlio não tinham filhos. Ouvia as pessoas
lamentando esse fato como se fosse uma fatalidade.
Depois do tempo de convivência com eles, percebi que
não é problema algum o casal não ter filhos. Pelo que
me revelaram foi uma escolha dos dois.

O que mais impressionava a todos era o fato da tia


Glorinha gostar tanto de crianças e não ter parido as
suas. Durante as férias na casa da vovó, era uma maravi-
lha brincar com ela na rua. Nossa tia era o único adulto
que corria e brincava de esconde-esconde conosco. Uma
tia maravilhosa! Depois da temporada em sua casa, mais
um aprendizado: uma família pode ser, sim, formada
só por um casal. Isso não significa que são infelizes ou

74
que falta algo. Tia Glorinha e tio Júlio se completam, e
vivem muito felizes.

Pensando nas famílias da Vila, também posso


concluir que uma família pode não ter uma figura
masculina, como no caso da dona Manuela Arcádio,
da casa 11. De família muito rica, uma das herdeiras
do velho Arcádio, passou a ter uma vida muito simples
quando o marido saiu para comprar cigarros e nunca
mais voltou, levando todo o dinheiro deles. Dona
Manuela começou a trabalhar, mudou-se para a Vila, e
refez a sua vida. Ela tocou a família, e educou sozinha
os quatro filhos. Quem vê dona Manuela, seus filhos e
netos, jamais poderá julgar que não é uma família feliz.

Uma família também pode ser como a das irmãs


da casa 2: dona Cristina e dona Ana Paula. Vivem só
as duas. Os outros irmãos delas casaram e formaram
novas famílias. Eles se reúnem todos no domingo para
visitá-las, que permaneceram na casa que foi de seus pais.
As duas irmãs solteiras, como são chamadas por toda a
Vila, formaram essa família: uma com a outra.

Eu adorava observar quando a dupla sentava na


calçada, passava para missa com o passo igual ou discu-
tia na rua – uma para defender o time do Ceará, já a
outra doente pelo Fortaleza. Percebi logo que a música

75
era o elemento que as unia. Cristina cantava e Ana Paula
tocava acordeon. Essa família era a responsável pela
animação dos festejos da Vila, não importava qual fosse
a festa. Estavam sempre dispostas a musicar a ocasião.

Outro exemplo interessante é o de dona Rita e do


Seu Luiz, da casa 4. O filho mais novo deles é casado
com outro rapaz. Assim que cheguei na Vila, ouvi a notí-
cia que eles haviam adotado uma menina. O aniversário
de um aninho dela também foi embaixo dos ipês, assim
como o casamento de Pedro e Marcelina.

Eu soube que no começo da união dos dos rapazes, o


clima foi um pouco desconfortável. Por essa razão, Luiz
Filho visitava a família sozinho. Dona Amélia contou-
-me que foi Dona Rita quem quebrou essa barreira,
e anunciou para todos que aquele rapaz, que sempre
acompanhava seu filho, era seu genro. Até hoje, todo
mundo da Vila tem esses meninos como filhos, o rapaz
foi sendo acolhido aos poucos. Na chegada da menina,
a festa já foi de todo mundo. Entendi que a família deles,
de uma certa forma, também faz parte da Vila.

Essas histórias puxaram muitas outras. Descobri que


as famílias da Vila 16 são como suas casas: parecidas
e diferentes ao mesmo tempo. Exatamente como me
ensinou dona Raimunda: “cada uma com seu valor”.

76
Acho que ouvir essas histórias fizeram-me pensar
muito sobre o amor, os encontros e desencontros, prin-
cipalmente, sobre o sentido de família. Essas narrativas
estão repletas de tudo isso. Ouvir tanto as histórias reais
como as de bichos que falam, plantas que sentem, e seres
fantásticos, deixaram-me intrigada e, ao mesmo tempo,
esperançosa e romântica. Igualzinho aos filmes água com
açúcar que minha mãe até hoje gosta de assistir.

Pensando bem, será que não são esses mesmos


filmes que levam a doçura dela para a nossa casa? É
bem verdade que quando essa mesma doce criatura fica
com raiva, principalmente por causa da bagunça do meu
quarto, a qual continuo chamando de caos produtivo,
ela mais parece um dos monstros protagonistas dos
filmes que eu e meu pai gostamos. Minha mãe é como
o mar: às vezes tem ondas serenas e relaxantes e, às vezes,
entra em fúria, tal qual a ressaca que arrasta toneladas
de areia para o meio da rua.

Depois de uma dessas escutas de histórias, entrei


no quarto que ocupava na casa dos meus tios, peguei
o celular, e liguei para o meu pai. Quando ouvi sua
voz me chamando de “filhota”, meu coração encheu-se
de alegria. Conversamos por muito tempo. Falamos do
calor, dos tios, ele me contou coisas sobre o meu irmão,
disse de um grupo de alunas que homenageou minha

77
mãe, e do projeto de uma livraria que tinha acabado
de concluir.

Curiosamente, não falamos sobre Augusto, seu


aborrecimento ou o meu castigo. Também não lhe
contei das histórias e das minhas descobertas. Talvez,
nesse momento, ainda quisesse manter como algo
exclusivamente meu. Ele me pareceu admirado, quando
perguntou se eu queria voltar logo para casa, e respondi
que preferia esperar o fim das férias.

Na verdade, eu sabia que ainda havia histórias para


ouvir. Por mais que a Isabella e a Rebeca tenham-me
xingado quando contei isso a elas, eu realmente quis
ficar até o último dia de férias. E estava certa. Depois do
dia que conversei com meu pai, ouvi mais uma história
do tempo em que os bichos falavam. Dona Madalena
contou enquanto costurava o vestido de noiva da Dalva,
a filha dos Oliveira, que moram na casa 10.

A contadora de história revelou-me que “todo


sertanejo que se preza sabe muita história de onça”.
Compreendi que se trata de uma personagem impor-
tante para a literatura oral do Sertão. Ela afirma que,
principalmente nas proximidades da Vila, “a pintada
está em muitas histórias”, justamente porque os antigos

78
chamam de Rio das onças, esse que banha a cidade. Será
que cheguei ao lugar onde onça bebe água?

Assim me contou:

79
O Compadre da Onça

E
ra uma vez um Coelho muito metido, tudo
porque tinha a fama de sortudo. Todos diziam,
por uma boca só, que o Coelho era um sujeito
de muita sorte. Até o dia em que se mudou para a toca
ao lado da sua, ninguém menos que a temida Onça
Pintada. Quando ele soube, ficou apavorado.

- Mais que notícia é essa? Tornar-me vizinho da Onça


foi uma grande falta de sorte, isso sim!

O Coelho passou dias trancado em casa com medo


da nova vizinha. Até que não aguentou mais e resolveu
enfrentar o perigo. Adiantou-se, bateu na porta da Onça,
e já foi logo dando as boas vindas.

- Como vai Dona Onça? Seja muito bem-vinda à


nossa rua, todos que moram por aqui são bem magrinhos,

81
quer dizer, bons vizinhos. - o coitado queria mesmo era
convencer a Onça de que não valia a pena caçar na
região, principalmente quem morava ao seu lado.

A questão é que a Onça Pintada, que também era


grande, feroz e faminta, ao avistar o Coelho bem na sua
porta, já o imaginou assado, deitadinho em uma bandeja,
rodeado de cenouras apetitosas.

Ao perceber a intenção da fera, o Coelho esperto


fez um convite:

- Dona Onça, eu estive pensando e gostaria de convi-


dá-la para ser minha comadre.

A Onça pintada, grande, feroz e faminta, era também


muito abestada, caiu direitinho na conversa do Coelho,
ficou toda contente com o convite, afinal, ninguém quer
ser amigo da Onça, imagine ser seu compadre.

E assim, após o compadrio, os dois tornaram-se bons


vizinhos, e compadres, combinavam sempre todas as
empreitadas, faziam tudo juntos. Os moradores da região
estranhavam muito aquela amizade, a bem da verdade,
o Coelho estava sempre a olhar de lado, desconfiado.

Um certo dia, a Onça disse ao compadre que dese-


java comer queijo, o Coelho que, por medo, concordava
com tudo o que a ela dizia, imediatamente também disse

82
que estava com o mesmo apetite, porém, nem um e nem
o outro tinha dinheiro suficiente para comprar um queijo
inteiro. O Coelho teve uma idéia:

- Não se preocupe comadre, cada um de nós dá o


valor da metade de um queijo, assim seremos vizinhos,
compadres e sócios. - a Onça pintada, grande, feroz,
faminta, e abestada, achava o Coelho o sujeito mais
inteligente do mundo.

- Ô compadre, você só tem idéia boa!

Feita a sociedade, e tendo a quantia necessária, foram


à casa da Dona Cabra para realizarem a compra. No
caminho, a Onça já seguiu resmungando, dizendo que
só compraria queijo curado, que detestava queijo fresco.
Definitivamente, não era o dia de sorte do Coelho, que
morria de medo de que a comadre fosse contrariada. Dona
Cabra não tinha queijo curado, e antes que a Onça ficasse
mais aborrecida, o Coelho já tratou de ter uma nova idéia.

- Não tem o menor problema comadre, a gente pede


um desconto, já que não tem o produto de nossa prefe-
rência, compramos o queijo fresco e esperamos alguns
dias para ele curar.

A Onça pintada, grande, feroz, faminta, e abestada,


realmente achava o Coelho o sujeito mais inteligente do

83
mundo. Compraram o queijo fresco, procuraram uma
árvore bem alta onde pudessem pendurá-lo dentro de
um saco de pano. Foi assim que prenderam o saco no
galho mais alto do cajueiro que ficava bem em frente à
toca dos dois. O plano era esperar até estar no ponto.
A Onça sugeriu:

- Compadre Coelho, como você é mais leve do que


eu, fique com a tarefa de subir na árvore. O Coelho
obedeceu, subiu rapidamente no galho mais alto, amar-
rou as alças do saco com o queijo, e desceu. Decidiram
que a Onça armaria guarda durante a noite, enquanto
o Coelho descansava, e vice versa. Assim foi feito por
um bom tempo.

Depois de uma certa noite bem dormida, o Coelho


passou a vigiar, enquanto a Onça foi descansar. Com
pouco tempo de vigília, a barriga dele começou a roncar
de fome. No começo, ele até que resistiu, mas depois não
teve jeito, subiu na árvore e comeu a metade do queijo.
Já desceu chorando, arrependido, e com medo da fúria
da Onça. Quando anoiteceu, ela chegou para ocupar o
posto, perguntou se estava tudo bem. Ele só assentiu
com a cabeça, com aquela cara que todo mentiroso tem.

A Onça assumiu o posto, mas nada do Coelho


conseguir dormir, ficou a se virar na cama a noite

84
inteira. Antes do dia amanhecer, ele se levantou e foi
até o cajueiro.

- Comadre Onça, está quase no ponto de comermos


nosso queijo, pode deixar que eu fico aqui vigiando o
restante dos dias, a senhora já fez muito. - na verdade,
ele queria ganhar tempo para ter uma nova idéia.

Agradecida pela gentileza do Coelho, a Onça foi


preparar a mesa para comerem juntos a iguaria tão
esperada. Acontece que a barriga do Coelho voltou
a roncar, ele não resistiu. Subiu na árvore mais uma
vez, e comeu todo o restante do queijo. Depois, desceu
chorando muito, arrependido e com medo da Onça
pintada, afinal ela era grande, feroz, faminta, e abestada,
mas nem tanto.

Foi quando o sortudo encontrou uma pedra redon-


dinha como um queijo, e do mesmo tamanho. Colocou
no saco, pendurando de volta na árvore. Quando ele já
estava quase cochilando, a alça do saco rompeu com
o peso da pedra, e despencou, caindo bem no meio da
cabeça do Coelho, que desmaiou imediatamente. Que
falta de sorte! Quando a Onça chegou, e o viu naquele
estado, ficou paralisada, não podia acreditar. Seu vizinho,
compadre e companheiro estava muito ferido.

85
- Pobre compadre, morreu de uma queijada. - dona
Onça ficou penalizada com a falta de sorte do amigo e,
pior ainda, ao imaginar que poderia ter sido ela a vítima.

Nesse momento, o Coelho acordou, ainda zonzo, e


achou que sua vida estava acabada. Porém, quando a
Onça viu que ele não havia morrido, fez uma jura:

- Meu compadre querido, sabe qual o meu maior


desejo? Nunca mais comer um queijo!

Ela pegou o saco com a pedra que achava ser queijo,


deu várias rodadas, e atirou bem longe.

E foi assim que um Coelho sortudo escapou das


garras da Onça Pintada depois de levar uma pedrada.

86
Tem história que
mata de medo

Q
uando dona Madalena terminou a história da
Onça, eu já estava chorando de tanto rir. Como
ouvir pode ser tão divertido? Eu me perguntava
enquanto tirava os alinhavos do vestido branco da Dalva.
Tornei-me uma excelente removedora de fios.

Será que talvez por isso acabei entrando no curso


de Psicologia? Ou seja, continuo a remover alinhavos
até hoje.

Logo que dona Madalena pediu a um menino


para avisar que a noiva fosse fazer a prova do traje,
ela chegou com várias amigas, todas interessadas em
escrever o nome na anágua do vestido. Elas me expli-
caram que, segundo uma crença antiga, quem assina o

89
nome na barra da saia de uma noiva, casa logo depois
dela. Foi uma bagunça. Todas aquelas amigas rindo e
escrevendo no avesso do vestido que ainda nem havia
sido terminado. Lembrei com saudade das minhas duas
melhores amigas.

Enquanto trabalhava, dona Madalena ia contando


suas histórias. A impressão que tinha era que o pano,
a linha e as palavras faziam parte da mesma peça. Ela
ia costurando os pedaços de tecido com os trechos das
histórias que contava.

Certa vez, contou-me que um tio seu viu uma mula


sem cabeça. Segundo ela, esse fato se passou numa
localidade próxima chamada Tanque do Salgado. Dona
Madalena contou a história do tio, quase sussurrando
no meu ouvido, era como se realmente fosse um
grande segredo.

Já começou como toda história de assombra-


ção começa:

– Era noite escura, esse meu tio tinha ido tarrafear


na lagoa. Como chamava muito pelo nome do Coisa
Ruim, nessa noite, meia noite em ponto, ele viu um bicho
sem cabeça passar bem na sua frente. Passava e voltava,
passava e voltava. Pra lá e pra cá.

90
A narradora foi pausando as palavras e falando com
uma voz bem grave:

– Quando o medo apertou, ele começou a rezar o


credo às avessas e bem alto. Só assim, quando o dia
foi clareando, e sem parar a reza, é que ele conseguiu
afugentar o mal assombro para bem longe. Nunca mais
chamou pelo maldito!

Cada vez mais interessada, perguntei como dona


Madalena conhecia tantas histórias. Ela disse que
quando era menina, ainda não havia energia elétrica, a
Vila toda se juntava em volta do fogo pra trançar palha,
contar e ouvir histórias. Revelou-me com ar saudoso:
“na época da debulha do feijão, as histórias vinham
umas atrás das outras. Tinha história e tinha cantoria.
Algumas eram inventadas, outras, como essa do meu tio,
aconteceram mesmo. A mais pura verdade”.

Mesmo sabendo que essa história de mula sem


cabeça era crendice, dona Madalena contava com tanta
convicção que cheguei a ficar realmente com medo.

Ela me jurou que assombração existe e que ali mesmo


na Vila há um lugar mal-assombrado. Contou-me que
na casa 16 ronda uma alma penada. Eu, por acaso, já
havia reparado, só esqueci de perguntar de quem era, e
por que ninguém vivia lá.

91
A costureira me garantiu que muita gente já havia
corrido com medo da alma que aparecia por lá de vez
em quando. Tudo por causa de uma noiva que, supos-
tamente, morreu no dia do seu casamento e andava
vagando na noite. Dona Madalena estava realmente
disposta a me fazer medo.

– Minha filha, triste de quem duvida. Nessa casa,


não para ninguém. A pessoa aluga e com pouco tempo
vai embora. Ela é de um parente da família de Fabiano
Viúvo, que mora na casa 13. Ele foi casado com uma
mulher que também é dos Arcádio. Uma prima dela
herdou essa casa e tenta alugar de todo jeito. Mas, nunca
morou lá uma família que ficasse mais de um ano. E olhe
que Amélia já tentou descobrir o motivo das mudanças,
ninguém revela a verdade.

E, assim, dona Madalena foi contando baixinho, e


dizendo que se tratava de mais um amor mal resolvido.

Assim me contou:

92
A noiva do anel
de esmeralda

D
izem que, há muito tempo, na casa de
número 16, viveu uma moça muito
bonita, de formosura sem igual, a
primeira filha de um casal de agricultores. Assim que a
família mudou-se para a fazenda, a beleza dela chamou a
atenção de um dos Arcádio, o filho mais velho do dono
das terras. Seus pais foram chamados para trabalhar no
plantio do algodão. Por essa razão, mudaram-se com os
sete filhos para a última casa da Vila.

Até hoje, contam essa história. Dizem que a família,


por ganância, logo percebeu o interesse do patrão pela
jovem, e ficou empurrando a coitada para o casamento
lucrativo, mesmo ele sendo muitos anos mais velho. A

95
questão é que ela havia se enamorado de um dos vaquei-
ros da fazenda. Um jovem que também morava na Vila,
quase em frente à sua casa. A família nem chegou a se
comover com o choro sofrido da moça, que implorou
para que aceitassem o seu casamento por amor. A mãe
disse logo que casar com um dos Arcádio era um jeito
de ela ajudar a família a sair da vida de privações. A
pobrezinha não teve escolha, sua mão foi dada em
casamento ao filho do patrão.

Logo chegou o dia do noivado, quando ela ganhou


do homem um anel de esmeralda que parecia a mata
depois das chuvas. Era como se ela carregasse a natureza
toda pendurada no dedo. Pouco a pouco foi ficando
enebriada pelo luxo, ganhava presentes e mais presentes
do noivo rico. Tudo parecia caminhar para um bom final,
mas a questão é que o povo fala muito, conta o que vê,
e o que ouve dizer, mas também inventa. Dizem que ela
exibia a esmeralda o dia inteiro, mas à noite, reinava
mesmo era nos braços do vaqueiro.

Essa conversa chegou na sede da fazenda. O homem


descobriu a suposta traição no dia em que seria celebrado
o casamento. Foi a maior desgraça! Ele expulsou a famí-
lia da igreja, e ordenou que fossem todos imediatamente
embora. Banhado de ira, mandou dar uma surra muito
grande no vaqueiro. O coitado do homem escapou, mas

96
ficou abilolado até morrer. Passou anos e anos andando
todo sujo pela cidade, sem saber quem era, pedindo
comida a um e a outro.

Contam que a família inteira anoiteceu e não


amanheceu. Diz o povo que o pai, a mãe e os irmãos
fugiram para bem longe com medo, mas que ela não teve
a mesma sorte. O noivo convocou os jagunços, mandou
que acertassem as contas com a moça, e que só voltassem
com o maldito anel.

É daí que o povo conta que, até os dias de hoje,


ela anda vagando pela noite escura, toda de branco,
arrastando o traje de noiva pelo chão. Várias pessoas
já me contaram que, principalmente em noite de pouca
lua, você é capaz de avistar um vulto branco e luminoso
arrastando o véu pela calçada. Quem já se encontrou
com a visagem conta que, quando a pessoa se aproxima,
é que percebe se tratar de uma assombração.

– Por isso, cuidado! Evite passar muito tarde da


noite por perto da casa 16. Mas se não tiver medo, olhe
bem para mão direita da moça. Não verá nem anel, e
nem dedo.

97
O final do exílio

T
ive um medo muito grande quando dona Madalena
gritou de uma vez a palavra: “dedo”. Quase caí da
cadeira. Enquanto isso, ela ficou rindo do meu susto.
Sua risada encheu a Vila inteira.

– Como pode? – eu pensava, você sabe que é história,


e mesmo assim quase morre de medo?

Aprendi com dona Madalena que um bom conta-


dor de histórias é mesmo um convencedor. É capaz
até de fazer uma pessoa que se diz corajosa sair
correndo, apavorada.

No fim do segundo mês, quase não mais pensava em


Augusto, mas já estava querendo muito voltar para casa.
Havia escutado tanta história que parecia estar exilada
há mil anos. Ou seriam mil e uma noites?

99
Durante todo esse tempo ouvindo, fui refazendo
as pazes com minha família, tentando fazer planos, e
pensando em reescrever a minha própria história.

Tornei-me amiga da maioria dos moradores da Vila,


menos do Sr. Gilmar, da casa 15. Tentei várias vezes me
aproximar dele, mas nunca consegui passar do portão.
Não arranquei nem mesmo um único: “era uma vez”.

A própria tia Glorinha, que não falava mal de ninguém,


disse-me que ele era um velho solitário e mal-humorado, e
que era melhor eu não insistir em me aproximar. Realmente,
seu Gilmar incomodava-se com tudo: com as folhas dos
ipês que, segundo ele, sujavam a Vila toda, reclamava do
calor, do falatório de dona Amélia, do rádio ligado na casa
de Fabiano, do sotaque do Gringo e, principalmente, do
barulho das crianças e da cantoria dos adolescentes.

Marcus, um dos netos de Biró, tocava violão e


sempre reunia a galera da nossa idade na frente da casa
dele. Neide, mãe deles, fazia suco e servia pra todo
mundo ali mesmo. As noites na calçada eram anima-
das. Às vezes, cantávamos com ele e, de vez em quando,
ouvíamos as histórias de Biró ou de outro morador da
Vila que resolvesse puxar uma cadeira.

Posso garantir que nossas risadas e músicas na


calçada eram poderosas, porque elas atravessavam a

100
Vila e iam parar direto no tímpano do seu Gilmar. Pois
ele se abalava da outra ponta da Vila só pra mandar
baixarmos o volume.

Quando Biró e Maria estavam conosco, até que ele


reclamava pouco, mas se estivéssemos sozinhos, ele xingava
pra valer. O xingamento mais leve era: “bando de desocu-
pados”. A gente ria de tanta zanga por nada. Entre uma
risada e outra, bem que pude reparar nos olhos do Marcus
em mim. No começo não passou disso: olhares cruzados
entre uma música e outra. Tudo mudou no meu último
dia na Vila. Estávamos sentados em cima do muro da sua
casa, e ele me deu um beijo tão intenso que parecia que eu
estava flutuando. Tive medo de cair do muro. No futuro,
ficamos muito mais próximos, mas isso foi só no futuro.

Percebi agora que quase não escrevi sobre os


momentos com as pessoas da minha idade. É verdade
que durante o exílio também me diverti com os adoles-
centes da Vila. As primas da cidade convidaram-me
muitas vezes para uma ou outra saída. Mas, confesso
que esses momentos foram ficando cada vez mais raros,
pois eu gostava mesmo era de ouvir histórias, como você
já deve ter percebido.

Já no final da minha temporada de ouvinte, tentei


aproximar-me do seu Gilmar. Queria conhecer uma

101
história que dona Madalena garantiu-me que ele contava.
Era sobre uma cobra que vivia na Serra da Itaitinga e
guardava um encanto. Ela me disse que, antigamente,
ele contava essa história mais ou menos assim:

– Até hoje, na Serra da Itaitinga, existe uma cobra


encantada. A bicha é tão grande, mas tão grande, que a
bila do olho dela é do tamanho de um pires. Esses que
aparam a xícara de café.

Fiz de tudo, mas seu Gilmar nunca me contou essa


história. Numa das vezes que tentei, ele disse que isso era
conversa, que dona Madalena estava caducando. Uma
pena. Eu teria adorado ficar sabendo mais detalhes sobre
a cobra “Oi de pires”. Deixei a história dependurada.
Acho que desejava um motivo para voltar à Vila 16,
além de sentar outra vez no muro da casa do Marcus,
claro! Imagine você que, depois de um tempo, já havia
voltado do exílio há alguns meses, fui surpreendida em
casa por uma carta do seu Gilmar. Nem acreditei. Mas
isso também é outra história.

Depois de dois meses, chegou a hora de voltar para


casa, retomar minha vida, e descobrir o que fazer com
todas as histórias que estava levando nos cadernos, no
celular e, principalmente, na memória.

102
Na véspera de eu ir embora, dona Madalena
chamou-me até a sua casa. Para minha surpresa, disse
que era para provar um presente que havia costurado
para mim. Um lindo vestido azul. Enquanto ajustava
a roupa no meu corpo, dessa vez em um raro silêncio,
imaginei-me como Narizinho no encontro com a costu-
reira das fadas, a aranha que fez o vestido mais bonito
do mundo.

Emocionei-me, e abracei dona Madalena com


gratidão. Disse ela que iria sentir minha falta e que eu
voltasse para ouvir mais histórias. Enquanto fazia os
últimos ajustes, fiquei observando como pedalava sua
máquina de costura. Era com a mesma segurança com
que contava histórias. Foi nesse momento que chegou
uma mensagem da minha mãe dizendo que me pegariam
na rodoviária.

Quando escrevi de volta, contei do presente que


tinha acabado de ganhar. Minha mãe respondeu assim:
“pois venha vestida nele. Já que estará de volta, vista
também seu sorriso mais florido. Estamos felizes, mesmo
antes da sua chegada”.

Abracei dona Madalena, que me entregou o pacote


amarrado com uma tira de retalho. Saí da sua casa sem
olhar para trás, senti que ela me ajudou a atravessar a

103
Vila com o olhar. As histórias, tanto de dona Madalena
como dos outros moradores, ajudaram-me a atravessar
esse momento da vida.

Jamais esqueci cada um deles. Serei eternamente


grata aos meus tios, que me receberam tão carinhosa-
mente em sua casa, sem nunca me perguntarem nada,
nem cobrarem meu isolamento inicial, e muito menos
se incomodarem com as muitas ausências à mesa,
quando estava em uma outra casa ouvindo histórias e
mais histórias.

Despedi-me deles com um forte abraço. Antes de


entrar no táxi que me levaria à rodoviária, avistei o
Marcus sentado no muro da sua casa. Corri rapidamente,
entreguei-lhe um papel com meu número de telefone
e dei um selinho que quase o derrubou lá de cima. Já
dentro do carro, vi os ipês cheio de folhas e sem flores.
Prometi a mim mesma que voltaria no tempo da florada.
Isso também só aconteceu muito tempo depois. Um certo
alguém me levou de volta!

Ao desembarcar do ônibus, avistei minha família


de longe. Minha mãe e meu irmão adiantaram-se e me
cobriram de beijos. Meu pai esperou pacientemente para
me dar um abraço. Depois de um tempo, bem agarradi-
nhos, olhei nos seus olhos e perguntei:

104
– Pai, qual é a diferença entre comunidade,
vila e cidade?

Ele olhou-me, admirado, e perguntou sorrindo:

– Por que a pergunta?

A minha melhor resposta foi:

– Você nem imagina! Essa pergunta é o começo


da história.

105
Autora | Reconheço-me educadora por
formação, artista contadora de histórias por vocação,
mãe do Júlio e da Cecília por bondade do Universo, e
uma mulher nordestina por muita sorte. Há mais de 25
anos atuo como narradora oral, e em outros trabalhos
cênicos, também como formadora de professores, de
mediadores de leitura e de novos narradores orais.
Nasci menina com nome de fruta em Orós, no estado
brasileiro do Ceará. Os contos que povoam as águas
do seu grande açude arrebataram-me logo na infância.
Ao mudar para a capital, ainda adolescente, o grupo de

107
teatro da escola ampliou minha paixão pelas narrativas.
Tornar-me professora de crianças, logo no início da vida
adulta, foi a ponte para a contadora de histórias que
surgiu. A graduação em Serviço Social, as especializações
em Psicopedagogia e Arte-Educação, uniram o trabalho
social e a prática docente. Atravessei águas para ouvir
pescadores e lavadeiras que cantam e contam contos
enquanto trabalham. Para fazer o curso de mestrado
em Educação Intercultural na Universidade de Lisboa,
e depois seguir com o doutorado em Formação de
Professores, atravessei o grande Oceano Atlântico, fui
em busca de me aventurar a estudar e escrever sobre a
riqueza da oralidade do meu povo. Vivo travessias para
permanecer contando. As histórias da Vila 16, um título
dado em homenagem à rua em que passei toda a infância,
generosamente foram-me partilhadas por narradores
naturais que encontrei pelos caminhos, em barcos, à
beira d´agua, em comunidades quilombolas, ao lume de
lamparinas, e durante debulhas de feijão. Agora, o leitor
desta obra poderá conhecê-las e encantar-se. Assim me
contaram, assim vos contei.

108
Ilustrador | Mineiro de Alpinópolis
Wagner Sales, teve dificuldades de aprendizagem na
infância e adolescência, que o impulsionou no mundo
dos desenhos. Aprendeu a ler e escrever aos 14 anos
e reinventou o seu aparente destino. É Licenciado
em Artes Visuais e Pós-Graduado em Arteterapia
pela UNIFRAN (Franca-SP). Atuou como educador
social na Pastoral do Menor por cinco anos. É
artista de desenho realista à lápis, aquarela e pintura
realista à óleo. É professor de desenho online para

109
crianças e adolescentes brasileiros que residem no
Brasil, Canadá, Estados Unidos e Suíça. Também dá
aulas presenciais de desenho para crianças no Grupo
Encantos em Fortaleza-CE, cidade que reside desde
dezembro de 2020. No Youtube criou o canal @
WagnerSalesArtes no qual ensina sobre história da arte
e partilha os bastidores de suas produções artísticas.
Atua em cursos de formação de educadores e palestras
para escolas. Em 2023 publicou o seu primeiro livro de
poesias “Para quem nunca beijou o Céu” pela editora
Novos Ases. É ilustrador do livro infantojuvenil “O
menino que desenhava o invisível” publicado em 2019
na Bienal Internacional do Livro do Ceará pelo projeto
Eu Sou Cidadão Amigos da Leitura da APDMCE.
Também ilustrou a obra “Zé e a Cacimbinha” e,
em 2023, ilustrou a nova edição do livro “Vila 16”.
Instagram @wagner_sales_reis

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Tâmara Bezerra

VILA 16
um lugar cheio de histórias

Fortaleza (CE)
2023

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