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Vila 16 Livro
Vila 16 Livro
VILA 16
um lugar cheio de histórias
Tâmara Bezerra
VILA 16
um lugar cheio de histórias
Fortaleza (CE)
2023
VILA 16
UM LUGAR CHEIO DE HISTÓRIAS
© 2023 Copyright by Tâmara Bezerra
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Diagramação eletrônica
Renan Rodrigues
Ilustração
Wagner Sales
Revisão
Artur Andrade
Capa
Herika Nascimento
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do lugar, mora na casa número 1. Dona Madalena
conta suas histórias de um jeito tão especial que nem
dá vontade de fazer mais nada: só lhe ouvir. A medida
em que ela vai narrando os fatos, você vai imaginando
tudo, como se passasse um filme em sua cabeça.
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A primeira foi para me responder a uma pergunta:
queria saber sobre o verdadeiro nome da Vila. Para
satisfazer minha curiosidade, dona Madalena contou-me
que 16 é só um apelido referente ao número de casas. Na
verdade, foi batizada com o nome: Vila José Arcádio,
em homenagem a um homem rico que viveu por lá há
muito tempo – no tempo em que a cidade não existia e
aquele lugar ainda era uma grande fazenda.
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pronunciando as palavras de um jeito especial, quem
escuta quase nem respira.
Assim me contou:
Uma história de
amor verdadeiro
H
á muito e muito tempo, José Arcádio
conheceu uma moça por quem se apai-
xonou. Essa história aconteceu quando
ele era bem jovem, e foi estudar no estrangeiro, a mando
do pai. Quando voltou para casa depois de uns meses, o
rapaz chegou de braços dados com ela, dizendo que dese-
java torná-la a sua esposa, e que já iriam morar juntos.
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não largaria tudo no estrangeiro para acompanhar um
rapaz que nem conhecia direito.
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atenção do moço pela beleza, principalmente pelos
grandes olhos pretos e muito fortes.
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Bom, quando chegou a primavera, o ipê foi dando
umas flores rosadas, atraindo tudo quanto era beija-flor
que passava. A essa altura, eles já estavam completa-
mente enlaçados um no outro. José brincava dizendo que
a árvore só vestiu sua roupa rosa de festa, para celebrar
o amor dos dois.
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a verdadeira intenção do moço fosse fazer um caminho
de ipê até chegar aos pés de Violeta. Como saber?
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Foi aí que nasci
Q
uando dona Madalena terminou de contar,
eu tinha a impressão que conhecia, com
intimidade, José Arcádio e Violeta. Nem
sei bem por que, mas fiquei muito emocionada com
a tristeza do casal. É muito estranho você ser afetada
pela vida de pessoas que nunca viu. Quando ouvi dona
Madalena, descobri que tem muita história dentro de
uma mesma história.
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Passei a lhe visitar levando sempre um caderninho
e uma caneta. Primeiro ouvia, e depois anotava tudo o
que considerava importante. Fiquei muito interessada
pela história de amor de Violeta e do filho do fazendeiro.
Então, passei a me perguntar se mais alguém a conhecia.
A própria dona Madalena informou-me quem seriam
os outros moradores da Vila que também poderiam
saber mais sobre os dois e, assim, outros narradores
acrescentaram detalhes à história dos ipês-rosa, e do
amor de José Arcádio e Violeta.
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dona Maria de seu Gabriel. Quando descobri que seu
Gabriel já havia morrido há mais de 30 anos, isso me
impressionou, pois ela continuava sendo dona Maria
de Seu Gabriel. Muito curioso você ter seu nome ligado
ao de alguém para sempre. Acho que encontrei outra
história de amor verdadeiro.
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com Augusto, meu namorado, identifiquei-me na
mesma hora.
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hora da estrela. Pensando bem, será que eu não seria,
na verdade, a mimada Catherine Earnshaw, do Morro
dos ventos uivantes?
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de trancoso, de terror, e muitas outras foram surgindo.
Sobre algumas, nunca saberei se foram inventadas ou se
aconteceram realmente. Descobri, também, que a vida
é feita de histórias.
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Todas as noites, antes de dormir, colocava os fones e
ficava ouvindo as gravações. Numa noite dessas, comecei
a lembrar das histórias que ouvia antes de dormir, e foi
assim que lembrei do meu pai. Pela primeira vez, senti
saudade de casa, chorei um choro penoso, como diz
dona Madalena nos seus contos.
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Anos depois, ao ler o texto de Carlos Drummond de
Andrade - Biografia: Um escritor nasce, em que ele narra,
de forma poética, a sua descoberta da escrita, entendi
que foi na Vila 16 que nasci escritora. Porém, isso só
veio a acontecer muito tempo depois da volta para casa,
no futuro de uma adolescente exilada.
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O exílio
N
o momento em que meus pais pediram à
irmã da minha mãe para me receber nos dois
meses de férias, jamais poderia imaginar que
seria ali o início do resto da minha vida.
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tudo o mais que movimenta a vida nos grandes centros.
Só depois da experiência na Vila é que compreendi que
esses lugares dão movimento à vida em determinados
contextos; em outros, ela é movida de outras formas,
até mesmo em outros ritmos.
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imaginação de criança, nunca pensei que viveria algum
tempo naquela Vila, muito menos que ali seria um lugar
tão sedutor e abarrotado de histórias.
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Hoje em dia, as casas são realmente muito diferentes
umas das outras, mas um detalhe permaneceu: cada uma
tem sua cor. Desde o seu nascimento, a Vila 16 é um
festival de cores. Dona Raimunda, certa vez, disse-me
uma frase que até parecia poema: “Desde a construção,
cada casa sua cor, e cada família seu valor”.
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da cozinha era realmente convidativo. Um senhor de
cabelos brancos, magro e bem alto, que estava sentado
na cadeira de balanço, logo se levantou e nos recebeu
na varanda da casa. Eu chamo de varanda, mas na Vila
todo mundo só chama de alpendre.
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– Pescador não mente; quem mente muito é caça-
dor. Pescador só conta o que vê, e às vezes o que
outro pescador viu.
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Tem gente que chama ipê de pau d´arco, dizem
que deram esse nome porque muitos indígenas faziam
os arcos dessa madeira. O ipê é assim, só mostra sua
diferença na florada. E isso tem uma história que explica.
Porque tem história para explicar tudo dessa vida, e até
da outra.
Assim me contou:
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A lenda dos Ipês
H
ouve um tempo em que bichos e plantas
falavam com as pessoas. Só as pedras não
diziam nada, preferiam ficar quietas e
caladas para enganar a morte. Desse jeito, não seriam
notadas e se tornariam eternas. Depois, os homens foram
fazendo tanta bobagem com a Mãe Natureza que ela
ordenou que os bichos e as plantas parassem de falar
com gente. O certo é que até hoje eles nada dizem, mas
compreendem tudo o que dizemos.
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A questão é que somente os Ipês continuavam sem
florir, e isso deixava a tristeza tomar conta. Como eram
as únicas árvores que não davam nem flor e nem cor, a
cada florada, choravam e se lamuriavam muito. É tanto,
que quando o vento balançava suas folhas, dava para
ouvir de longe o choro penoso dos Ipês.
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tristeza dos ipês, e vendo que agora não tinha uma
folha sequer, resolveu, para agradar, fazer sua ninhada
nos galhos de um dos quatro irmãos. Um canário foi
chamando o outro, que foi chamando o outro, e quando
se viu, o primeiro ipê, que antes parecia sem vida, ficou
todo amarelinho de canários. Ele se achou tão bonito
que deu um sorriso.
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Aí foi que a questão maior se deu. Estavam todos tão
ocupados com a festa da Mãe Natureza que ninguém
reparou que faltava um dos irmãos. Um papagaio até
tentou ajudá-lo, mas, entenda, verde por verde, ele já
era. Com cada irmão tão colorido, ele queria uma cor
vistosa também.
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No dia seguinte, dizem que, embaixo do céu mais
azul que aqueles sertões já viram, os ipês floresceram
em quatro cores diferentes. Cada um deles botou a
vestimenta da cor do pássaro que o havia ajudado.
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Era uma vez
histórias vividas
S
aí da casa de Biró e Maria depois de
aceitar o convite para almoçar galinha
caipira com pirão, acompanhados de
um delicioso arroz feito na panela elétrica, claro!
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Essa coisa de ouvir histórias acabou me transfor-
mando em uma ótima observadora. Eu acordava de
manhã cedinho, e sentava no meio-fio da calçada da
casa dos meus tios, um estratégico posto de observação.
Principalmente, no início da manhã, dava para ver o
quanto realmente eram diferentes as famílias dali. As
portas iam abrindo-se e, aos poucos, a Vila ganhava
movimento e vida, saindo do silêncio provocado pela
pausa da madrugada.
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Roberto Ivens, mas todo mundo só o conhece por Gringo.
Ele também me contou sua história. Filho de pai inglês e
mãe portuguesa, assentou praça na marinha. Depois pres-
tou serviços na Índia, em Angola, e foi chefe de algumas
expedições para o Brasil. Chegando aqui, encantou-se por
Donana em uma noite de lua. Seis meses depois do primeiro
encontro, casaram-se na igrejinha da cidade.
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que se apaixonaram ainda adolescentes. O período
inteiro de mais essa história de amor, com suas idas e
vindas, declarações e rompimentos, foi testemunhado
e comentado pela Vila inteira. Sendo assim, principal-
mente Joaquim achou melhor começar sua nova família
em outro lugar. Isso garantiria mais privacidade, já que
ficariam afastados do monitoramento constante da mãe
de Marcelina. Dona Amélia é fogo!
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queimando, idoso passando mal, até uma queda de bicicleta.
Pude perceber que acidentes com pequenos ciclistas era o
mais frequente acontecimento extraordinário no cotidiano
da Vila 16. Por esse motivo, a farmacinha de dona Amélia
estava sempre de prontidão, bem no acento da cadeira
de balanço que ficava na área da frente. “Para o caso de
qualquer necessidade”, afirmava a socorrista voluntária.
Assim me contou:
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O roubo da Santa
H
á muitos anos, antes da construção do
grande açude, bem perto daqui, existia
uma pacata comunidade de nome Concei-
ção do Buraco, que hoje se encontra no fundo das águas.
Era assim chamada devido estar situada em um grande
baixio, e depois que uma imagem de Nossa Senhora da
Conceição foi encontrada por alguns moradores.
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habitantes da comunidade tiveram que enfrentar uma
nova vida, e bater em retirada, já que a grande enchente
começava a alagar ruas e casas. As famílias tiveram
que deixar suas moradas e suas antigas vidas para trás.
Hoje em dia, tudo está debaixo d’água, bem no fundo
do açude.
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pista de onde a imagem pudesse estar, foi que se deu
o impedimento das famílias continuarem a briga por
sua posse.
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esclarecer que sua atitude não revelava ganância, que
fez isso tão somente para acabar com o conflito, e para
evitar mortes entre as famílias.
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cobriram Conceição do Buraco: dizem que dentro do
açude existe um peixe gigante que dorme sono profundo,
um tucunaré, e que, no dia em que ele acordar, vai trazer,
em cima do dorso, a igreja retirada do fundo das águas
do açude. Mas essa é uma outra história.
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As histórias
levaram-me de volta
D
epois de ouvir atentamente a narrativa
de dona Amélia, que, tal qual dona
Madalena, tinha muita expressividade
com palavras e gestos, depois de ouví-las, percebi que,
dependendo da narradora ou do narrador, uma história
da vida real pode parecer um dos contos das mil e uma
noites. A forma como é contada leva quem escuta quase
a viver junto com personagens e acontecimentos.
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casas, abrindo portas e baús. Pensei até nas feições
da dona Maria, sem jamais ter visto nem mesmo uma
fotografia sequer.
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tentando imaginar de onde haviam tirado todas aquelas
ideias, e como elas pousavam no papel.
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voz lendo a frase enviada por minha mãe. Esforcei-me
para imitar sua entonação em cada palavra. Queria
gravar como se fosse ela falando. Lembrei da suavidade
da sua voz, dos seus gestos carinhosos, e de quando
me elogiava só com o olhar. Fiquei com uma saudade
imensa. Também, lembrei das vezes em que brigamos por
causa da minha demora depois da balada, da implicância
dela com Augusto, dos castigos sem o menor sentido, e
da invasão da minha privacidade. Foi assim que mantive
meu protesto silencioso.
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do meu interesse. No começo, eu virava a madrugada
teclando com as meninas. É muito ruim ficar longe e,
ao mesmo tempo, saber minuto por minuto para onde
a galera vai, quem ficou com quem, quem brigou com
quem. Infelizmente, a discussão com Augusto, no dia da
minha viagem, terminou de me abalar. Por essa razão,
com ele, nunca conversei enquanto estive exilada.
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Acho que o meu distanciamento com a vida da Vila
durou uns vinte dias. Eu vivia grudada no celular e no
computador, não postava nada, mas vasculhava tudo o
que meus amigos escreviam e postavam. Aos poucos, fui
fazendo da geografia da Vila 16 meu único cenário. Só
atendia às cobranças das meninas, mas em nenhuma de
nossas conversas, contei sobre as histórias, os narradores
da Vila, e o que vinha fazendo.
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sua incompreensão, não queria ficar insistindo. Só Deus
sabe como consegui me controlar.
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outros adolescentes. Confesso que às vezes também ouvia
esse “minha filha ” como se eu fosse especial para ele.
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mãos dadas para chegar em lugar nenhum. Em outras
histórias, lembrava das minhas amigas, dos segredos, do
jeito doce da Rebeca, e da coragem da Isabella.
Assim me contou:
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A tampa que vedava
a panela do juízo
R
aimundo sempre foi um menino dife-
rente durante toda a infância. Demorava
muito em tudo, como se ele fosse lento. A
demora maior era quando as coisas vinham puxar pelas
ideias. Uma tia nossa sempre dizia:
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mãe já estava bem adiantada da idade. Dolores, com
despeito, dizia:
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e ajudava Raimundo até tarde da noite. Olhe como meu
pai era inteligente, mesmo tendo passado a vida toda na
roça: ele fez uns quadradinhos de papelão, ia cobrindo
as letras e, quando descobria, dizia o nome daquela letra
para Raimundo. Nunca perdeu a paciência.
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Hoje em dia, meu irmão é um homem, aprendeu e
foi bem. Trabalha como agente comunitário de saúde.
Por aqui, todo mundo é doido por ele. Tem a sua casa,
a sua família, e um bom emprego. Quando avisto
Raimundo entrar aqui, parece que estou vendo o nosso
pai. O mesmo andar sereno, e o mesmo olhar paciente.
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Cada casa sua cor,
cada família seu valor
S
aí da casa de dona Madalena com uma
enorme vontade de voltar a falar com
meu pai. Emocionei-me lembrando das
vezes em que ele também destampou a panela do meu
juízo. Até hoje, ensina-me muita coisa!
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Eu o amo muito. Adoro nossa mania de assistir a
filme de ficção científica só pra irritar a mamãe que, por
sua vez, só quer ver romances e dramas. Fico contente
quando ela fala do costume que eu e ele temos de dormir
com uma perna cruzada sobre a outra. Lembro até hoje
do choro do meu pai quando me deixou na rodoviária
no dia da viagem para o exílio. Eu fiquei sem entender
por que ele chorava tanto, já que concordou com a ideia
de me isolar de todos, durante dois meses, na casa de
tios, onde nem primos havia.
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que falta algo. Tia Glorinha e tio Júlio se completam, e
vivem muito felizes.
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era o elemento que as unia. Cristina cantava e Ana Paula
tocava acordeon. Essa família era a responsável pela
animação dos festejos da Vila, não importava qual fosse
a festa. Estavam sempre dispostas a musicar a ocasião.
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Acho que ouvir essas histórias fizeram-me pensar
muito sobre o amor, os encontros e desencontros, prin-
cipalmente, sobre o sentido de família. Essas narrativas
estão repletas de tudo isso. Ouvir tanto as histórias reais
como as de bichos que falam, plantas que sentem, e seres
fantásticos, deixaram-me intrigada e, ao mesmo tempo,
esperançosa e romântica. Igualzinho aos filmes água com
açúcar que minha mãe até hoje gosta de assistir.
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mãe, e do projeto de uma livraria que tinha acabado
de concluir.
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chamam de Rio das onças, esse que banha a cidade. Será
que cheguei ao lugar onde onça bebe água?
Assim me contou:
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O Compadre da Onça
E
ra uma vez um Coelho muito metido, tudo
porque tinha a fama de sortudo. Todos diziam,
por uma boca só, que o Coelho era um sujeito
de muita sorte. Até o dia em que se mudou para a toca
ao lado da sua, ninguém menos que a temida Onça
Pintada. Quando ele soube, ficou apavorado.
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quer dizer, bons vizinhos. - o coitado queria mesmo era
convencer a Onça de que não valia a pena caçar na
região, principalmente quem morava ao seu lado.
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que estava com o mesmo apetite, porém, nem um e nem
o outro tinha dinheiro suficiente para comprar um queijo
inteiro. O Coelho teve uma idéia:
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mundo. Compraram o queijo fresco, procuraram uma
árvore bem alta onde pudessem pendurá-lo dentro de
um saco de pano. Foi assim que prenderam o saco no
galho mais alto do cajueiro que ficava bem em frente à
toca dos dois. O plano era esperar até estar no ponto.
A Onça sugeriu:
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inteira. Antes do dia amanhecer, ele se levantou e foi
até o cajueiro.
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- Pobre compadre, morreu de uma queijada. - dona
Onça ficou penalizada com a falta de sorte do amigo e,
pior ainda, ao imaginar que poderia ter sido ela a vítima.
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Tem história que
mata de medo
Q
uando dona Madalena terminou a história da
Onça, eu já estava chorando de tanto rir. Como
ouvir pode ser tão divertido? Eu me perguntava
enquanto tirava os alinhavos do vestido branco da Dalva.
Tornei-me uma excelente removedora de fios.
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nome na barra da saia de uma noiva, casa logo depois
dela. Foi uma bagunça. Todas aquelas amigas rindo e
escrevendo no avesso do vestido que ainda nem havia
sido terminado. Lembrei com saudade das minhas duas
melhores amigas.
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A narradora foi pausando as palavras e falando com
uma voz bem grave:
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A costureira me garantiu que muita gente já havia
corrido com medo da alma que aparecia por lá de vez
em quando. Tudo por causa de uma noiva que, supos-
tamente, morreu no dia do seu casamento e andava
vagando na noite. Dona Madalena estava realmente
disposta a me fazer medo.
Assim me contou:
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A noiva do anel
de esmeralda
D
izem que, há muito tempo, na casa de
número 16, viveu uma moça muito
bonita, de formosura sem igual, a
primeira filha de um casal de agricultores. Assim que a
família mudou-se para a fazenda, a beleza dela chamou a
atenção de um dos Arcádio, o filho mais velho do dono
das terras. Seus pais foram chamados para trabalhar no
plantio do algodão. Por essa razão, mudaram-se com os
sete filhos para a última casa da Vila.
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questão é que ela havia se enamorado de um dos vaquei-
ros da fazenda. Um jovem que também morava na Vila,
quase em frente à sua casa. A família nem chegou a se
comover com o choro sofrido da moça, que implorou
para que aceitassem o seu casamento por amor. A mãe
disse logo que casar com um dos Arcádio era um jeito
de ela ajudar a família a sair da vida de privações. A
pobrezinha não teve escolha, sua mão foi dada em
casamento ao filho do patrão.
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ficou abilolado até morrer. Passou anos e anos andando
todo sujo pela cidade, sem saber quem era, pedindo
comida a um e a outro.
97
O final do exílio
T
ive um medo muito grande quando dona Madalena
gritou de uma vez a palavra: “dedo”. Quase caí da
cadeira. Enquanto isso, ela ficou rindo do meu susto.
Sua risada encheu a Vila inteira.
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Durante todo esse tempo ouvindo, fui refazendo
as pazes com minha família, tentando fazer planos, e
pensando em reescrever a minha própria história.
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Vila e iam parar direto no tímpano do seu Gilmar. Pois
ele se abalava da outra ponta da Vila só pra mandar
baixarmos o volume.
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história que dona Madalena garantiu-me que ele contava.
Era sobre uma cobra que vivia na Serra da Itaitinga e
guardava um encanto. Ela me disse que, antigamente,
ele contava essa história mais ou menos assim:
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Na véspera de eu ir embora, dona Madalena
chamou-me até a sua casa. Para minha surpresa, disse
que era para provar um presente que havia costurado
para mim. Um lindo vestido azul. Enquanto ajustava
a roupa no meu corpo, dessa vez em um raro silêncio,
imaginei-me como Narizinho no encontro com a costu-
reira das fadas, a aranha que fez o vestido mais bonito
do mundo.
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Vila com o olhar. As histórias, tanto de dona Madalena
como dos outros moradores, ajudaram-me a atravessar
esse momento da vida.
104
– Pai, qual é a diferença entre comunidade,
vila e cidade?
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Autora | Reconheço-me educadora por
formação, artista contadora de histórias por vocação,
mãe do Júlio e da Cecília por bondade do Universo, e
uma mulher nordestina por muita sorte. Há mais de 25
anos atuo como narradora oral, e em outros trabalhos
cênicos, também como formadora de professores, de
mediadores de leitura e de novos narradores orais.
Nasci menina com nome de fruta em Orós, no estado
brasileiro do Ceará. Os contos que povoam as águas
do seu grande açude arrebataram-me logo na infância.
Ao mudar para a capital, ainda adolescente, o grupo de
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teatro da escola ampliou minha paixão pelas narrativas.
Tornar-me professora de crianças, logo no início da vida
adulta, foi a ponte para a contadora de histórias que
surgiu. A graduação em Serviço Social, as especializações
em Psicopedagogia e Arte-Educação, uniram o trabalho
social e a prática docente. Atravessei águas para ouvir
pescadores e lavadeiras que cantam e contam contos
enquanto trabalham. Para fazer o curso de mestrado
em Educação Intercultural na Universidade de Lisboa,
e depois seguir com o doutorado em Formação de
Professores, atravessei o grande Oceano Atlântico, fui
em busca de me aventurar a estudar e escrever sobre a
riqueza da oralidade do meu povo. Vivo travessias para
permanecer contando. As histórias da Vila 16, um título
dado em homenagem à rua em que passei toda a infância,
generosamente foram-me partilhadas por narradores
naturais que encontrei pelos caminhos, em barcos, à
beira d´agua, em comunidades quilombolas, ao lume de
lamparinas, e durante debulhas de feijão. Agora, o leitor
desta obra poderá conhecê-las e encantar-se. Assim me
contaram, assim vos contei.
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Ilustrador | Mineiro de Alpinópolis
Wagner Sales, teve dificuldades de aprendizagem na
infância e adolescência, que o impulsionou no mundo
dos desenhos. Aprendeu a ler e escrever aos 14 anos
e reinventou o seu aparente destino. É Licenciado
em Artes Visuais e Pós-Graduado em Arteterapia
pela UNIFRAN (Franca-SP). Atuou como educador
social na Pastoral do Menor por cinco anos. É
artista de desenho realista à lápis, aquarela e pintura
realista à óleo. É professor de desenho online para
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crianças e adolescentes brasileiros que residem no
Brasil, Canadá, Estados Unidos e Suíça. Também dá
aulas presenciais de desenho para crianças no Grupo
Encantos em Fortaleza-CE, cidade que reside desde
dezembro de 2020. No Youtube criou o canal @
WagnerSalesArtes no qual ensina sobre história da arte
e partilha os bastidores de suas produções artísticas.
Atua em cursos de formação de educadores e palestras
para escolas. Em 2023 publicou o seu primeiro livro de
poesias “Para quem nunca beijou o Céu” pela editora
Novos Ases. É ilustrador do livro infantojuvenil “O
menino que desenhava o invisível” publicado em 2019
na Bienal Internacional do Livro do Ceará pelo projeto
Eu Sou Cidadão Amigos da Leitura da APDMCE.
Também ilustrou a obra “Zé e a Cacimbinha” e,
em 2023, ilustrou a nova edição do livro “Vila 16”.
Instagram @wagner_sales_reis
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Tâmara Bezerra
VILA 16
um lugar cheio de histórias
Fortaleza (CE)
2023