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Teoria do processo e discurso normativo

Digressões democráticas

Dhennis Cruz Madeira

Sumário
1. Considerações iniciais. 2. O espaço do
soberano e sua incompatibilidade com o Estado
Democrático de Direito. 3. A Constituição como
expressão normativo-política. 4. As normas
constitucionais como demarcadoras do discurso
jurídico. 5. O Estado Democrático de Direito:
uma escolha brasileira. 6. A Teoria do Processo
como medium lingüístico do discurso normativo.
7. Considerações finais.

1. Considerações iniciais
Hodiernamente, os operadores jurídicos
brasileiros se deparam com um sério dilema,
qual seja, o de interpretar e aplicar leis infra-
constitucionais ultrapassadas e que foram,
em sua maior parte, confeccionadas antes do
atual modelo democrático-constitucional.
Nesse tom, o intérprete convive com
duas ordens, uma soerguida pelo paradigma
democrático de 1988, outra ventilada pela
triste realidade oligárquica e militar anterior.
Vive-se e convive-se com dois modelos nor-
mativos totalmente díspares, um democrá-
tico, outro ditatorial. Entretanto, a partir da
Dhennis Cruz Madeira é professor do curso promulgação da atual Constituição, não se
de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Pro- pode admitir tal coabitação: o primeiro para-
cessual do Instituto de Educação Continuada digma deve tomar o lugar do segundo.
da PUC Minas (IEC-PUC Minas). Professor de A Constituição Brasileira prescreve1 que
Teoria Geral do Processo e Direito Processual todo poder emana do povo e, a partir dessa afir-
Civil do curso de graduação em Direito da PUC
Minas. Mestre e especialista em Direito Proces- 1
Parágrafo único do artigo 1o da Constituição da
sual pela PUC Minas. República Federativa do Brasil.

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mação, levando-se em consideração a Teoria Dessa maneira, o exercício de tal poder
da Democracia, não é mais possível ficar indi- é atributo inalienável e insuprimível de seu
ferente às seguintes questões: como aplicar dimanante (povo), o qual, ainda quando
uma norma jurídica de forma democrática? expressa sua vontade soberana por meio de
A norma jurídica (esculpida em lei)2 pode ser representantes, possui o direito de fiscalizar
aplicada sem que se ofertem seus fundamentos as formas de manifestação e aplicação de
e sem que se propicie a fiscalidade popular? tal poder, expondo-se às conseqüências de
E ainda: basta, para legitimidade da norma, perda de legitimidade democrática.
que sejam observados os procedimentos Aproveitando-se as lições de Friedrich
parlamentares da democracia indireta (ou Müller (2003, p. 60), é importante que se
representativa)? A vontade normativa pode ser esclareça o “ciclo de atos de legitimação”
entregue a uma autoridade? Qual o medium dos textos normativos que, sob nenhum
lingüístico do Discurso da Norma? pretexto, pode ser interrompido de modo
Mesmo diante da grande complexidade não-democrático. Essa é a dinâmica estru-
e importância operacional (práxis) das ques- tura de legitimação (MÜLLER, 2003, p. 60)
tões, os escritos jurídicos são escassos. Salvo da Democracia.
raríssimas e louváveis ressalvas, as normas Dessarte, admitir que o povo eleja seus
jurídicas são encaradas de forma tópica, representantes e, após tal eleição, proibir a
casuística e assistemática, não se notando fiscalização popular das atividades gover-
comprometimento epistemológico com o nativas seria, quando nada, desrespeitar
paradigma democrático, o qual impõe uma o paradigma do Estado Democrático de
ressemantização do termo “intérprete”, bem Direito.3
como, uma revisitação completa, irrestrita, Vale salientar que o povo, no Direito
crítica e incessante das normas vigorantes. Democrático, não elege um intérprete da
Além disso, ao estudar e escrever sobre consciência popular (à semelhança do Führer
Direito Processual, é imprescindível que nazista), e, muito menos, admite que o Es-
o pesquisador trace claramente seu marco tado exerça tal função (como apregoava o
teórico, como também, o paradigma de Estado fascismo). Sobre o tema, o grande Eduardo
que orienta suas reflexões. Saliente-se, des- J. Couture (1999, p. 72-73), discorrendo so-
de já, que não se mostra necessário, como bre o Direito Processual no Terceiro Reich
tentou Norberto Bobbio (2000, p. 139-141), alemão, em texto que demonstra o perigo
conciliar Estado Liberal, Estado Social e de se mitificar a expressão “povo”, assim
Estado Democrático de Direito, vez que tais lecionou, in verbis:
modelos possuem vestimentas e moradas “El derecho nacionalsocialista es,
próprias. según sus propios definidores, un es-
tado de conciencia popular. Como el
2. O espaço do soberano e sua 3
Em reflexão constitucional, pode-se dizer que o
incompatibilidade com o Estado Estado, em si, não representa a democracia. Decerto,
o Direito esculpido constitucionalmente é que pode
Democrático de Direito ou não ser democrático, não sendo possível, como
queria Kelsen, agregar Estado e Direito no mesmo
No item anterior, afirmou-se que todo corpo (Cf. KELSEN, 1998, p. 352-353). Assim, a deno-
poder – ali incluindo-se o estatal – emana minação “Estado de Direito Democrático” parece ser
do povo. mais apropriada. Contudo, desde já, impende ressaltar
que utilizaremos, ao longo do presente trabalho, a
2
Impende lembrar que o texto legal é o “meio grá- expressão “Estado Democrático de Direito”, eis que
fico indicativo ou narrativo da norma”, e esta, por sua essa se encontra no caput do artigo 1o da Constituição
vez, é a “descritiva da conduta permitida, devida ou Brasileira. Porém, fica a ressalva semântica. Em senti-
vedada, como padrão de licitude explícita ou implícita do aproximado, pode-se apontar: Dias (2004, p. 97-98);
contido no texto da lei.”(LEAL, 1999, p. 187). Negri (2003, p. 23).

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derecho reside en el pueblo y hay que discursivo indemarcado e não-fiscalizável. Com
interpretarlo, porque el pueblo no isso, fomenta-se o aparecimento do espaço
tiene físicamente un órgano único de do soberano (e não da soberania popular),
expresión, se admite que el intérprete do locutor autorizado (WOLFF, 1996, p. 71)
de la voluntad popular es el Führer.” da lei, que, à semelhança do soberano de
[E mais à frente conclui que] “...el juez Kafka5 (2000, p. 71-72), diz o que pode e
es el Führer dentro del proceso”. o que não pode, sem, contudo, ofertar os
Ainda há de se destacar que o “povo” fundamentos de suas decisões, ou mes-
a quem se faz referência no presente tra- mo, permitir que o destinatário da norma
balho não é um povo ideologizado e que aponte as ausências do discurso normativo.
anseia por tradutores, intermediadores, Esse espaço do soberano, a nosso ver, permite
intérpretes ou mestres, eis que, no Direito a criação de uma “dimensão política acima
Democrático, “todos os homens se torna- da jurídica” (LEAL, 2003a, p. 44).
ram locutores autorizados e não há mais O Estado Democrático de Direito
Mestre.” (WOLFF, 1996, p. 81). apresenta-se como “espacialidade jurídica
No modelo jurídico-democrático, não aberta por uma auto-oferta normativa de
se pode conceber um espaço do soberano em fiscalidade procedimental a todos” (LEAL,
que esse, sem oportunizar ao destinatário 2003a, p. 48), não se propondo a uma inclu-
os fundamentos de suas decisões, veda são social pela vontade de uma autoridade inex-
a fiscalidade popular, olvidando-se, por plicavelmente sensível às desigualdades e
conseguinte, que “a teoria da soberania às diferenças. Diante disso, o Estado De-
popular absoluta se afirmou na titularidade mocrático de Direito não possui as mesmas
indelegável do povo de construir, modificar vestes do Estado Liberal (assegurador das
ou até destruir o Estado e a ordem jurídica, individualidades) ou Social (comunitarista
porque é o povo que decide suas estrutu- e tradutor do bem-comum).
ras.” (LEAL, 2004, p. 46-47). Não é a esmo que Jürgen Habermas
Por esse prisma é que, com relação às (apud BORRADORI, 2004, p. 53) obtem-
normas jurídicas, o povo deve ser capaz de pera, verbis:
“recriar, afirmar, negar, debater, discutir, “No interior de uma comunidade
transformar, substituir, destruir ou reafirmar democrática, cujos cidadãos conce-
o direito, como seu feitor e intérprete originá- bem reciprocamente direitos iguais
rio e intercorrente.” (LEAL, 2001, p. 21). Não uns aos outros, não sobra espaço
basta, pois, elegerem-se (ainda que com o su- para que uma autoridade determine
frágio universal) parlamentares, permitindo unilateralmente as fronteiras do que
que esses, sozinhos, ditem a vontade popular. deve ser tolerado. Na base dos direi-
É preciso, no paradigma democrático, conferir tos iguais dos cidadãos e do respeito
ao destinatário a oportunidade de discutir os recíproco de um pelo outro, ninguém
fundamentos da norma jurídica para, até mes- possui privilégio de estabelecer as
mo, se for o caso, rejeitá-la. O entendimento do fronteiras da tolerância do ponto de
que venha a ser justo, injusto, certo ou errado vista de suas próprias preferências
deve ser compartilhado, e não imposto. e orientações segundo valores. Cer-
Somente assim, a expressão “povo” tamente tolerar as crenças de outras
deixa de ser um fetiche. pessoas sem aceitar a sua verdade,
Por conseguinte, obstruir a fiscalida- e tolerar outros modos de vida sem
de popular sobre a norma jurídica é dar
margem à vida nua4, criando-se um espaço 5
Nesse sentido é que se diz que “o poder da Lei
está precisamente na impossibilidade de entrar no já
4
Lembrando a vida nua de Giorgio Agambem aberto, de atingir o lugar em que já se está.” (AGAM-
(2002, p. 90 et seq). BEM, 2002, p. 57).

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apreciar o seu valor intrínseco, como às anotações weberianas8. Não. Aqui, a
fazemos com relação a nós mesmos, política apresenta-se como expressão voli-
isso requer um padrão comum. No tiva de um povo que, instituindo um texto
caso de uma comunidade democráti- constitucional, demarca seus parâmetros,
ca, essa base de valor comum é encon- fiscalizando irrestritamente toda ativida-
trada no princípio da constituição.” de governativa, em toda estruturação do
Assim, a lei não pode ser um objeto Direito. É uma atividade “que envolve
tangível somente pelo “pequeno grupo de negociações e formas de argumentação”
nobres” (KAFKA, 1993, p. 233). (HABERMAS, 1997, p. 9) inseridas num
Na esfera jurídica, a verdade6 não pode per- espaço formalizado e isonômico.
tencer a alguém, razão pela qual o discurso Nesse enfoque, a política liga-se à ci-
normativo deve admitir a falibilidade e fal- dadania, sendo que essa, desprovida de
seabilidade de seus próprios apontamentos. fetichismo, apresenta-se como “vínculo
jurídico-político-constitucional que qualifi-
3. A Constituição como expressão ca o indivíduo como condutor de decisões,
normativo-política construtor e reconstrutor do ordenamento
jurídico da sociedade política a que se fi-
Há de se ressaltar, desde já, que, quando liou” (LEAL, 2002b, p. 151).
utilizamos a expressão “política”, não se faz No Estado Democrático de Direito, o
nenhuma alusão à pólis grega7, tampouco, poder de política (ANDOLINA, 1997b, p.
63) liga-se ao poder das garantias, sendo
6
Em Direito, não se mostra científico utilizar a ex-
pressão “verdade” como algo imutável e impassível de inquebrantável o trinômio poder-respon-
testabilidade e falseabilidade, a não ser que se encare sabilidade-controle.
a verdade como dogma oriundo de uma crença indivi-
dual, o que não é o objetivo deste trabalho. Por isso, justa distribuição e a ser movido por uma disposição
na ciência jurídica, é mais acertado entender que não a conformar-se a ele. Para tal terá de vir a reconhecer
há verdade absoluta, mas, tão-somente, proposições que bens são devidos a certas pessoas numa varie-
teóricas (pretensões de verdade). Nesse sentido, são dade de situações, algo que, na visão de Aristóteles,
riquíssimas as lições de Karl Raimund Popper (2003, requer experiência e hábito, assim como uma razão
p. 39) que, inclusive, utiliza o termo “semelhança à reta.” (MACINTYRE, 2001b, p. 120-121). Desse modo,
verdade” ou “aproximação da verdade” (POPPER, rejeitamos a sofocracia e o modelo político grego (ao
1994, p. 69) ajudando a desmistificar a expressão. menos em sua concepção original), eis que, hoje, não
7
Pelo que se apresenta, ao menos em sua origem se pode admitir racionalmente a existência de gover-
histórica, o conceito de política utilizado pelos filósofos nantes salvadores e intrinsecamente virtuosos, com
greco-atenienses, em especial, Platão e Aristóteles, a exclusão discursiva dos governados. Entendemos
não se adapta ao atual modelo político-democrático. que, no Direito Democrático, elementos como justiça,
Para os grandes pensadores gregos, a política estaria moralidade, ética e virtude devem ser alçados a uma
vinculada à pólis e essa, por sua vez, seria um espaço discursividade processualizada, não se admitindo a
no qual os cidadãos gregos, em especial, os gover- injunção arbitrária e salvadora de alguns em detri-
nantes, exerciam suas virtudes. Vale lembrar que esse mento de outros. Nesta face, os regimes totalitários
espaço não seria, necessariamente, físico, como anota do século XX (em especial, o nazismo e o fascismo)
Mário Lúcio Quintão Soares (2001, p. 233) e Marcelo nos dão uma amostra dos malefícios de tal escolha
Campos Galuppo (2002, p. 45). A justiça, na visão política. Lembramos a advertência de que “é preciso
grega, também seria uma virtude exercida para o bem desconfiar criticamente dessa hipervalorização do
geral da pólis (MACINTYRE, 2001b, p. 55), sendo certo debate moral em nossa cultura, do fato de que a
que pertencia, via de regra, a uma autoridade, a um ética afinal tornou-se uma moda, pois o que ela pode
governante. Ao tratar da concepção aristotélica de esconder, na verdade, é uma crise profunda.” (CAR-
justiça (distributiva), Alasdair MacIntyre a descreve VALHO, 2000, p. 32).
da seguinte forma: “À medida que passa de papel a 8
Especialmente quando Weber (2004, p. 120) utiliza
papel, como governante e como governado, terá, se expressões como “dedicar-se à política” ou “política em
deve merecer honra, de aprender como exercer toda termos de vocação”, eis que rejeitamos a idéia de que é
uma série de virtudes. Mas em todas elas deverá prin- preciso encontrar seres vocacionados, predestinados,
cipalmente aprender a compreender o princípio da sábios ou líderes (Cf. WEBER, 2004, p. 44-45).

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Nesse sentido é que a Constituição mos- tucional articula e legitima as instituições
tra sua importância. jurídicas (LEAL, 1999, p. 48), não sendo
Na atualidade, o texto constitucional um instrumento nas mãos de um Estado
tem a função de abrigar e proteger, nor- hegelianamente totalizador. Justamente
mativamente, as instituições jurídicas por isso, não se mostra adequado falar,
soerguidas pela vontade popular. Com simplesmente, que a Constituição “é o con-
isso, pode-se dizer que a Constituição junto de normas que organiza os elementos
estampa co9-instituições10 jurídicas, abri- constitutivos do Estado” (SILVA, 2001, p.
gando também institutos11 e princípios12, 38, 2000, p. 27), eis que esse (o Estado) já
articulando-os entre si, fazendo com que não é o todo do ordenamento jurídico. No
ditas figuras, em decorrência de sua eleva- Direito Democrático, o povo, ente partici-
da posição normativa e hierárquica, sirvam pativo e fiscalizador, aparece como centro
de parâmetro para outras instituições, gravitacional do pensar jurídico, sendo
institutos, princípios e regras previstas nas uma “instância global da atribuição de
leis infraconstitucionais. No atual modelo, legitimidade democrática”, tal como bem
deve o intérprete saber que o ordenamento afirmou Friedrich Müller (2003, p. 60).
jurídico é um todo e que a leitura de um Assim, o texto constitucional se apresenta
texto de lei passa, impreterivelmente, pela como depositário de instituições, institutos
lupa constitucional. e princípios jurídico-populares, valendo re-
Com razão, os estudos mais recentes memorar, insistentemente, que todo poder
e abalizados afirmam que o texto consti- emana do povo13, e que esse, por sua vez,
não precisa de guias.
9
“Co”, prefixo latino (cum) que designa correlação,
companhia, contigüidade, concomitância, a par de, ao
Impende ressaltar que todas as afir-
lado um do outro; junto; de par. mações denotadas até aqui valem para
10
Lembrando que instituição jurídica é um “agru- uma Constituição promulgada (e não,
pamento de institutos(s) e princípio(s) que guardam outorgada) e que tem por finalidade ins-
unidade ou afinidade de conteúdos lógico-jurídicos tituir o Estado Democrático de Direito.
no discurso legal” (LEAL, 2004, p. 220), não apresen-
tando, no sentido do texto, contornos sociológicos ou
Sem embargo, de nada adianta solevantar
econômicos. Sobre as diversas acepções do vocábulo instituições, institutos e princípios no texto
“instituição”, sugere-se a leitura de trecho da obra do constitucional (intitulando-os falsamente
processualista uruguaio Eduardo J. Couture (1974, de “populares”) se, quando da aplicação,
p. 141-145). não se propiciar uma interpretação com-
11
Instituto jurídico é um “agrupamento de princí-
pios que guardam unidade ou afinidade de conteúdos
partilhada aos destinatários da norma
lógico-jurídicos no discurso legal” (LEAL, 2004, p. jurídico-constitucional.
220). A existência de um texto constitucional
12
Maurício Godinho Delgado (2001, p. 151) afirma torna o Direito acessível à crítica14, ajudan-
que os princípios jurídicos exibem-se como “diretrizes do a formar a base do discurso jurídico.
gerais induzidas e, ao mesmo tempo, indutoras do direi-
to”, eis que são inferidas de um sistema jurídico para,
Neste ponto, em magistério que merece
após, dinâmica e ciclicamente, informá-lo. No mesmo
sentido é a lição de Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias 13
Como sobredito, a própria Constituição Brasi-
(2004, p. 119). Sobre tal definição, mostra-se interessan- leira de 1988 afirma, no parágrafo único do artigo 1o,
te o confronto com o conceito de Rosemiro Pereira Leal que todo poder emana do povo, sendo que tal norma
(2004, p. 102-103, 220), para quem o princípio jurídico vale, inclusive, para aqueles que ainda encaram o Es-
é “referente lógico-jurídico de invariabilidade perene, tado como instância de poder, não obstante, na atual
estabelecido na Lei Positiva (texto legal), como limite principiologia democrática, não existirem poderes es-
originário da interpretação e aplicação do direito tatais, mas meras funções, ainda assim, subordinadas
legalmente formulado. Marco teórico que, introduzi- aos conteúdos da jurisdição constitucional (Cf. DIAS,
do pela linguagem do discurso legal como referente 2004, p. 70-74; LEAL, 2001, p. 25).
lógico-dedutivo, genérico e fecundo (desdobrável), é 14
Usando aqui a relação entre texto e crítica en-
balizador dos conceitos que lhe são inferentes”. contrada em: POPPER, 1994, p. 68.

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transcrição, Karl Popper (1994, p. 68) apre- insuficiente à legitimidade do Direito e ao
senta reflexão valiosíssima para a Ciência estabelecimento de uma linguagem compa-
Jurídica: tível com a Teoria da Democracia.
“Existe uma diferença importante A tese aqui expendida será melhor elu-
quando exprimimos o nosso pensa- cidada nos itens que se seguem.
mento por palavras ou, melhor ainda,
por escrito. Desta forma o pensamen- 4. As normas constitucionais como
to se torna acessível à crítica. Ante-
demarcadoras do discurso jurídico
riormente os nossos pensamentos
constituíram uma parte de nós mes- Não obstante as diversas definições de
mos. Poderíamos ter dúvidas, mas norma jurídica, no atual sistema, mostra-se
não teríamos podido criticá-las da mais acertado compreendê-la como gênero
mesma forma que podemos criticar do qual são espécies as regras e os princípios
uma afirmação expressa verbalmen- (Cf. ATIENZA, 2003, p. 181; GALUPPO,
te ou, melhor ainda, um relatório 1999, p. 193; LEAL, 2002a, p. 38). Daí o
escrito. Portando, há, pelo menos, porquê de, na atualidade (Cf. DIAS, 2004,
um significado importante de ‘co- p. 119-120), falar-se em normas-disposições
nhecimento’ objetivo: ‘conhecimen- (regras jurídicas) e normas-princípios (prin-
to’ no sentido de ‘teoria formulada cípios jurídicos).
verbalmente, que se expõe à crítica’. A norma jurídica é aquela que abriga
A isso chamo eu ‘conhecimento em a logicidade do sistema jurídico, fixando os
sentido objetivo’. Nele se integram padrões hermenêuticos de licitude (LEAL,
os conhecimentos científicos. Este 2004, p. 117, 246) que, por sua vez, em nosso
conhecimento está armazenado nas sistema, só pode ser extraído interpretati-
nossas bibliotecas e não nas nossas vamente do texto normativo (lei).
cabeças.” [E esclarece adiante:] “Na- Por esse prisma, tanto as regras, quanto
turalmente, nunca teríamos feito uma os princípios delineados constitucional-
descoberta sem ter compreendido mente possuem características normativas
algo das teorias existentes e da situ- e de imperatividade no sistema.
ação objetiva do problema – ou, por Seguindo tal raciocínio, após a lição de
outro lado, sem ter estudado livro Rosemiro Pereira Leal (2003b, p. 338-343),
ou revistas científicas: e tudo isso pode-se falar que os direitos fundamentais,
significa conhecimento em sentido que também possuem caráter normativo e
objetivo.” vinculante no sistema, são auto-executivos
Nessa linha, a escrituração de uma (líquidos) e infungíveis (certos). Indepen-
Constituição é o ponto de partida do discur- dentemente da forma como se apresentam
so normativo, delineando alguns conceitos (como regras, princípios, instituições ou
básicos (falseáveis e abertos à crítica) que institutos jurídicos), é inequívoco que, após
podem, inclusive, ser rejeitados por meio a observância do devido processo constituin-
do discurso processualizado. No Direito te popular, tais direitos fundamentais são
Democrático, o texto normativo não neces- abraçados pelo pré-acertamento cognitivo-
sita de um guardião, daí porque o tirano o constitucional, daí o porquê de serem
vê como um malefício, uma inutilidade, apontados como coisa julgada constituinte
uma ameaça à sua soberania (Cf. DERRIDA, (LEAL, 2003b, p. 342-343).
2005, p. 21-22; LEAL, 2002, p. 96-101). Uma vez ultrapassadas as definições
Embora importantíssimo ao Discurso dos jusnaturalistas e dos positivistas (CAR-
Jurídico, a existência de um escrito nor- VALHO NETTO, 1999, p. 482; LEAL 2002a,
mativo (texto legal), como precitado, é p. 32-37), os princípios jurídicos, principal-

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mente quando alçados à esfera constitucio- Destarte, ao viger uma lei (que deverá
nal, atuam “como normas estruturantes do passar pela regência principiológica do
sistema e como referencial hermenêutico devido processo legislativo)17, a mesma
dos textos infraconstitucionais.” (LEAL, não é capaz de se autolegitimar (Cf. AL-
2002a, p. 37-38). MEIDA, 2003, p. 100-106, 2005, p. 122-130),
Os princípios constitucionais, vale in- razão pela qual anseia por um controle
sistir, não possuem somente uma função popular (discursivo e processualizado).
supletiva (DELGADO, 2001 p. 153)15 do di- Nessa esfera, os argumentos e alegações
reito, mas também, e principalmente, uma dialógicos são circunscritos pelas normas
função interpretativo-normativa (DELGADO, constitucionais, as quais traçam as bases
2001, p. 156-157). e os limites do discurso jurídico que, no
Nesse jaez, em decorrência do Princípio Direito Democrático, clama por um medium
da Supremacia da Constituição, as normas lingüístico.
constitucionais (em sentido amplo) servem Em Direito, não se pode falar em, verbi
de parâmetro condutor e demarcador gratia, lícito, ilícito, moral, ética, bem-estar
do próprio discurso normativo, não se social, costumes, certo, errado, sem que tais
apresentando como topoi16 ou “fórmulas” termos se adaptem ao modelo discursivo
(FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 23), mas, sim, esculpido pela Constituição e sem que tais
como conteúdos-base do discurso norma- concepções, antes da aplicação coativa,
tivo que se ofertam à crítica e à testificação passem pelo crivo da principiologia pro-
processual irrestrita. cessual.
Aliás, se ausente o norte constitucional,
15
A função supletiva dos princípios também é
apontada pelo artigo 4o da Lei de Introdução (Decreto-
o pensar jurídico tornar-se-ia extremamente
Lei 4.657/42) e pelo artigo 126 do Código de Processo penoso numa sociedade “sem centro” (OLI-
Civil. VEIRA, 2000, p. 13), ou seja, numa socieda-
16
Sobre o tema, o professor Tercio Sampaio Fer- de pluralista em que há diversas noções de
raz Júnior (2003, p. 23) leciona que “topoi ou lugares moral, ética, felicidade e bem-estar. O texto
comuns são fórmulas de procura que orientam a ar-
gumentação. Não são dados ou fenômenos, mas cons-
constitucional é, justamente, o articulador
truções ou operações estruturantes, perceptíveis no (não-mítico) dos objetivos comuns18 (falseá-
decurso da discussão.” Afirma ainda que “a presença
de topoi, no discurso, dão à estrutura uma flexibilidade 17
Sobre o Processo Legislativo, conferir: DEL
e abertura característica, pois sua função é antes a de NEGRI, 2003, p. 74.
ajudar a construir um quadro problemático, mais do 18
Pode-se dizer que, no Direito Democrático, os
que resolver problemas”. Para o renomado professor, objetivos comuns estão assentados numa tomada de deci-
expressões como “fins sociais”, “bem comum”, “im- são, e não, numa tábua axiologizada (e metajurídica) só
parcialidade do juiz”, “boa-fé”, “presunção de inocên- compreendida por autoridades sensíveis aos anseios
cia” são exemplos de topoi da argumentação jurídica. populares. Rejeita-se a idéia de que o texto constitu-
Essa é a lição do renomado jurista Ferraz Júnior. Pois cional, por si só, carregue uma razão (ou um ethos)
bem, ao que se apresenta, esse topoi discursivo, em universal. Certamente, a Constituição não é capaz de
sua gênese, não se oferece à crítica, razão pela qual é abrigar pontos de convergência moral de uma sociedade,
desacolhido pela Teoria da Democracia. Tal discurso eis que, pelo discurso moral, não se chega a uma única
se distingue do Discurso Processual-Democrático na conclusão (Cf. MACINTYRE, 2001a, p. 21-49). Com
medida em que esse último não admite a criação de isso, pode-se afirmar que, se a Constituição protege,
fórmulas que imploram pela compreensão do sobe- por exemplo, a propriedade (art. 5o, XXII), o trabalho
rano. Não resta claro quem e como se fixaria os “fins (art. 5o, XIII), a família (art. 226), as religiões (art. 5o,
sociais” ou o “bem-comum”, se é que tais figuras VI), o casamento (art. 226), o meio ambiente (art. 225),
podem ser realmente delimitadas. Nas sociedades a forma federativa (art. 1o), o presidencialismo (art.
pluralistas, mostra-se infrutífera a tentativa de se criar 76) e outras tantas instituições, ela o faz, não com um
acordos morais universalizados (Cf. MACINTYRE, 2001a, acordo social unânime sobre os temas, mas com uma
p. 21-49), sendo insustentável admitir que o Discurso decisão tomada num dado momento histórico. Certo
Democrático se paute no encontro de falas (tal como é que um ou outro indivíduo pode discordar de tais
ocorria na ágora grega). regulamentações, mas, no entanto, deve respeitá-las

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veis e abertos à crítica), institucionalizando críticos, auxiliando na formação de uma
os procedimentos comunicativos de cons- Sociedade Aberta e Democrática. Nesse
trução das decisões (Cf. ALMEIDA, 2003, p. prisma, a contextualização constitucional
40-46, 2005), o que torna o discurso jurídico do discurso amplia a possibilidade de
lingüisticamente viável. correições e controle das eventuais imper-
Após Habermas (apud BORRADORI, feições legais, dificultando o solevamento
2004, p. 80, grifo nosso), já se sabe que “o de grupos despóticos.
discurso acarreta uma certa suspensão de É importante lembrar, aqui, que o discur-
crença em uma determinada norma e indica so jurídico, em especial, o discurso da norma,
o procedimento pelo qual podemos testar sua não é infalível e pode, numa prática ideoló-
validade.” gica, mascarar uma forma de dominação20,
O diálogo, em si, não produz o con- principalmente, quando entrega a vontade
senso, devendo existir uma formalização do povo a um soberano, ainda que esse se
(procedimentalização) dos argumentos apresente com vestimentas dissimuladamente
para que se possam ofertar à testificação, democráticas. O fato de existir uma Consti-
numa condição ideal de fala (espaço proces- tuição não garante, por si só, que a ordem
sualizado), com vistas a obter uma decisão democrática seja instalada e que a vontade
compartilhada e legítima. popular, de fato, seja atendida. Não basta,
A Teoria do Discurso deve ser contex- para implantação do Estado Democrático de
tualizada e limitada, não propriamente Direito, dizer-se que o texto constitucional
por uma Teoria do Estado e do Direito19, expressa a vontade de um povo se, quando
mas pela Teoria da Constituição e, como se da aplicação normativa, não se propiciar a
observará, pela Teoria do Processo. interpretação compartilhada (e procedimen-
Esse enquadramento do discurso jurídi- talizada) do próprio escrito normativo.
co faz com que o mesmo ganhe contornos A Constituição apresenta-se como uma
linha de largada do discurso democrático,
até que outras normas as modifiquem ou as revoguem. pois o discurso jurídico sem limites, sem
As lições de Karl Popper (2003, p. 38-39, grifo do autor)
ajudam a compreender, aproximadamente, o sentido
contexto, sem um pano de fundo paradig-
empregado no texto: “Meu critério de demarcação mático constitucional e processualizado,
deve, portanto, ser encarado como proposta para que fomenta o aparecimento do locutor autorizado
se consiga um acordo ou se estabeleça uma convenção. As (WOLFF, 1996, p. 71; NEGRI, 2003, p. 51)
opiniões podem variar quanto à oportunidade de o que, pelos fatos históricos, é um grande
uma convenção desse gênero. Todavia, uma discussão
razoável dos temas em pauta só é viável se os inter-
risco.
locutores têm um objetivo comum. A determinação Justamente por isso, é mister que se es-
desse objetivo é, em última análise, uma questão de clareça o contexto lingüístico em que a norma
tomada de decisão, ultrapassando, por conseguinte, constitucional é interpretada e aplicada,
a discussão racional.” Daí porque esclarece, em nota não sendo suficiente, repita-se, a existência
de rodapé, que “uma discussão razoável é sempre
possível quando os interlocutores se interessam pela
de um texto normativo.
verdade e estão dispostos a dar atenção ao que dizem
as várias pessoas que se manifestam.” Como se vê, a
expressão “objetivos comuns” empregada no corpo
5. O Estado Democrático de Direito:
do texto não carrega uma proposta universalizante ou uma escolha brasileira
totalizadora. As diretrizes comuns da Constituição são
decisões tomadas em determinado momento histórico, Seria ingênuo negar a existência de atos
passíveis, inclusive, de falseamentos e alterações – são despóticos na prática jurídica brasileira. Há,
bases mínimas para instalação do discurso normati- quando nada, tal possibilidade.
vo. Reconhecemos que o ponto merece estudo mais
aprofundado. 20
Conferir as anotações de Max Weber (2001, p.
19
Como se extrai de: ALEXY, 2001, p. 321; 128-141) sobre formas de dominação (legal, tradicional
ATIENZA, 2003, p. 181. ou carismática).

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Todavia, não resta dúvida, até mesmo o Estado Democrático de Direito visando
para aqueles que no dia-a-dia adotam práti- a assegurar, justamente, o exercício pleno
cas autocráticas, que a Constituição Brasilei- e efetivo dos direitos descritos constitucio-
ra apontou o Estado Democrático de Direito nalmente, sendo isso, aliás, o que se deflui
como paradigma jurídico-institucional21. ao longo de todo texto, inclusive de seu
Dito paradigma, como tudo o que está ex- preâmbulo.
presso na Constituição, possui característica Desse modo, atentar contra a Democra-
vinculante para toda atividade jurídico- cia é atentar contra a ordem constitucional,
discursiva, tal como leciona Ronaldo Brêtas expressão normativa da vontade popular.
de Carvalho Dias (2004, p. 101): Por escolha constitucional brasileira,
“[...] sustentamos que paradigmas a Democracia apresenta-se como marco
do Estado de Direito e do Estado De- insubstituível da prática jurídica e social,
mocrático de Direito devem ser com- sendo inegociável, senão com o rompimen-
preendidos como sistemas jurídico- to da atual ordem constitucional.
normativos consistentes, concebidos Atos despóticos são, assim, atos ilíci-
e estudados pela teoria do Estado e tos.
pela teoria constitucional, no sentido Assim, não é possível ignorar o fato de
técnico de verdadeiros complexos que, como atividade humana, a interpreta-
de idéias, princípios e regras juridi- ção jurídica pressupõe paradigmas (OLI-
camente coordenados, relacionados VEIRA, 2001, p. 143) e que o ordenamento
entre si por conexão lógico-formal, jurídico brasileiro já elegeu o seu, qual seja,
informadores da moderna concepção o do Estado Democrático de Direito.
de Estado e reveladores das atuais
tendências científicas observadas 6. A Teoria do Processo como medium
na sua caracterização e estruturação
lingüístico do discurso normativo
jurídico-constitucional.”
Deflui-se do trecho acima que o Estado Interpretar a lei não é o mesmo que
Democrático de Direito, de forma princi- interpretar o Direito (COUTURE, 2001, p.
piológica e vinculante, rege a prática jurí- 1-2). Antes de interpretar um texto legal, é
dica como um todo, inclusive a atividade importante que o intérprete tenha a noção
administrativo-estatal, correlacionando-se do todo jurídico (ordenamento como um
com as outras normas constitucionais e in- todo), do sistema e das normas constitu-
fraconstitucionais. Tal paradigma serve de cionais.
norte para a estruturação de todo o sistema O grande processualista Eduardo Cou-
jurídico, o qual não poderá inobservá-lo em ture (2001, p. 1) já afirmou que “o intérprete
nenhuma de suas fases, haja vista o Princípio é um intermediário entre o texto e a realida-
da Supremacia da Constituição e o controle de”. Entretanto, no Estado Democrático de
de constitucionalidade irrestrito das leis. Direito, é mister que se pergunte: realidade
A Constituição Brasileira, reconhecendo de quem? Do próprio intérprete? Do povo?
que todo poder emana do povo22, institui Quem e como se determina o conteúdo
(COUTURE, 2001, p. 1) da Lei? Quem é o
21
Recorde-se que, no preâmbulo da Constituição
intérprete?
Brasileira, encontra-se instituído o Estado de Direito
Democrático e, logo em seu artigo 1o, tal paradigma é Na democracia constitucional, o povo é a
apontado novamente um princípio fundamental. Não única fonte de poder, apresentando-se como
bastasse dita importância, vê-se, ao longo de todo o o construtor, intérprete e destinatário da
texto constitucional, o cuidado em preservar e instituir norma jurídica, legitimando o Direito. No
o Direito Democrático.
Brasil, a atividade interpretativa deve-se
22
Conforme prescreve o parágrafo único do art.
1o da Carta Política de 1988. dar dentro de um determinado contexto

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político-jurídico-principiológico, qual seja, belicismo goldschmidtiano27, e, após a pro-
o contexto do Estado Democrático de Di- posta de Fix-Zamúdio (1977, p. 348), o estu-
reito. Nesse pano de fundo paradigmático, do do Processo exige uma aproximação en-
não se pode admitir a interpretação solitária tre os Direitos Constitucional e Processual.
(LEAL, 2000, p. 120) de uma autoridade Ainda sob influência das riquíssimas
supostamente sábia e justa, haja vista que o contribuições de Couture (1974), Fix-Za-
resultado dessa atividade interpretativa (o mudio (1977), Baracho (1984) e Andolina
provimento) deve ser fruto de uma proces- (1997b), o modelo constitucional de pro-
sualidade dialógica constitucionalizada. cesso mereceu ajustes, pois, nos moldes
Diante de uma sociedade pluralista, não originalmente propostos, não se vislum-
se nega que o texto constitucional pode brava a formação de uma “cultura política
abrigar várias interpretações. Em vista libertária” (HABERMAS, 2002, p. 301-303),
disso, a própria Constituição cuidou de com a abertura de discursividade irrestrita
delinear um medium lingüístico para que e isonômica para a criação, aplicação e re-
se realize a interpretação constitucional, jeição do conteúdo da norma jurídica. No
instituindo, assim, procedimentos23 que de- Direito Democrático, o Processo deixa de
marcam o discurso jurídico, possibilitando ser instrumento da jurisdição, passando,
o intercâmbio24 entre o mundo jurídico e as ao revés, a constituir condição sine qua non
instâncias políticas e econômicas. para a legitimidade da própria atividade
Nesse sentido é que, entre todas as ex- jurisdicional (LEAL, 2004, p. 77). Afasta-se,
pressões constitucionais, uma toma singular de pronto, a figura da autoridade solipsista
importância e destaque – o Processo – que, e inesclarecidamente sábia, sendo insusten-
não raro, é citado e protegido ao longo de tável apontar o Judiciário como o único (ou
todo texto constitucional. Como prova de tal último) guardião da Constituição.
importância político-constitucional, tem-se
que o Processo é abraçado, até mesmo, pelo Estado Liberal era diferente do que seguia o Estado
rol dos direitos e garantias fundamentais25. Social. Em assim sendo, urge, na atualidade, formular
um modelo de processo adequado ao Estado Democrá-
O modelo constitucional26, por seu compro- tico de Direito. Decerto, a formulação desse modelo
metimento com a Democracia, já não abriga o passa por um repensar acerca da cidadania, dos direi-
tos fundamentais, da sociedade política, do Estado, da
23
De modo uníssono, é rica a lição de Habermas jurisdição, da norma jurídica e da Constituição. Para
(apud BORRADORI, 2004, p. 54), quando afirma, ipsis esclarecimento, sugere-se: ANDOLINA, 1997a, p. 142-
litteris: “A própria constituição tomou as necessárias 143; NEGRI, 2003, p. 61; LEAL, 2004, p. 48-52.
providências para os conflitos de interpretação consti- 27
Lembrando do conceito de processo de James
tucional. Existem instituições e procedimentos para re- Goldschmidt (1936, p. 58) que chega a fazer a compa-
solver a questão dos limites do que se poderia ainda ou ração entre sua teoria processual (Teoria da Situação
não mais considerar como ‘ser leal à constituição”. Jurídica) e a guerra. É mister transcrever, ipsis litteris:
24
Sobre tal intercâmbio, recomenda-se a leitura “Permítaseme, para ilustrar la diferencia del enfoque,
do trabalho de Andréa Alves de Almeida (2003, p. 34, aducir un ejemplo de política. Durante la paz, la relación
2005) e da obra de Rosemiro Pereira Leal (2002b). de un Estado con sus territorios y súbditos es estática,
25
O título II da Constituição Brasileira de 1988 constituye un imperio intangible. En cuanto la guerra
ganhou a denominação de “direitos e garantias fun- estalla, todo se encuentra en la punta de la espada; los
damentais” sendo que, ao longo de todo o artigo 5o, derechos más intangibles se convierten en expectativas,
vê-se um redobrado zelo no trato do Processo (v.g., posibilidades y cargas, y todo derecho puede aniqui-
incisos LIII, LIV, LV, LVI, LVII, LX, LXI). Vale frisar, larse como consecuencia de haber desaprovechado una
contudo, que dito cuidado é sentido ao longo de todo ocasión o descuidado una carga; como al contrario, la
o texto constitucional, direta ou indiretamente (v.g., guerra puede proporcionar al vencedor el disfrute de
art. 93, IX; 127; 133, 134). un derecho que en realidad no le corresponde. Todo
26
Saliente-se que vários processualistas, em esto puede afirmarse correlativamente respecto del
tempos e modos distintos, apresentaram o que consi- Derecho material de las partes y de la situación en que
deravam o modelo de processo. Obviamente, o modelo las mismas se encuentran con respecto a él, en cuanto
apresentado por processualista comprometido com o se ha entablado pleito sobre el mismo.”

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Diante disso, o conteúdo da norma ju- “[...] positivar um modelo de processo
rídica material (direitos substanciais) deve assegurado na constitucionalidade
ser extraído de uma atividade isonômica e por uma jurisdição exercitada por juí-
procedimentalmente compartilhada, sob a zes como guardiães de direitos funda-
regência principiológica do Processo. mentais ou depositários públicos des-
Nesse sentido é que Rosemiro Pereira ses direitos, porque o que vai designar
Leal (1999, p. 48-52, 175), abandonando a existência do status democrático de
a concepção social e liberal28 de Estado, direito é a auto-abertura irrestrita a
afirma que o Processo apresenta-se como que o ordenamento jurídico se per-
instituição constitucionalizada, formada mite ao oferecer legalmente a todos
pela conjunção dos princípios jurídicos da o exercício da discursividade crítica
ampla defesa, isonomia, contraditório, à fiscalização (correição) processual
visando a assegurar “o exercício, reconhe- continuada para a construção, recons-
cimento ou negação de direitos alegados e trução, confirmação, concreção, atua-
sua definição pelos provimentos nas esferas ção e aplicação do direito vigorante.”
Judiciária, Legislativa e Administrativa.” (LEAL, 2002b, p. 170-171).
Nota-se que, após tal definição científica, o Influenciado pelo pensamento poppe-
Processo deixa de ser uma ferramenta posta riano (Cf. ALMEIDA, 2003, p. 51; 2005),
à disposição do juiz para realização de ines- Rosemiro Leal revisita as diversas teorias e
clarecidos escopos29 metajurídicos. escolas que tentaram demonstrar a natureza
O Processo, como instituição jurídico- jurídica do Processo, e, após rejeitar alguns
constitucionalizada que se define pelo en- conceitos patentemente frágeis, cientifica-
contro de princípios e institutos, constitui mente, colhe os aproveitáveis, dando-lhes
referente lógico-vinculante de exercício, novo formato e significação. Cria, após
aplicação e interpretação dos direitos asse- tal caminho, a Teoria Neo-Institucionalista
gurados no texto legal, eis que possibilita a do Processo. Nessa toada, de forma sóbria,
“estabilização do princípio do discurso pela aceita o insigne jurista mineiro a falibilidade
demarcação teórica dos critérios da forma- do direito positivado, sem que tal aceitação
ção da vontade jurídica.” (LEAL, 2002b, p. autorize, em sua teoria, o desdém aos di-
170). reitos fundamentais constitucionalizados
O discurso jurídico e a vontade da e, muito menos, a outorga de poderes divi-
norma deixam de ser algo indemarcado e natórios a uma autoridade.
autocrático para abraçar a Teoria da Demo- No Direito Democrático, o provimento30
cracia, que encontra, na Teoria do Processo, não advém de uma atividade solitária de
seu medium lingüístico. Fato é que, sem tal uma autoridade, eis que todo poder emana
balizamento jurídico e sem a criação de do povo e, justamente por isso, a garantia de
um espaço discursivo formalizado (com a fiscalização popular não pode ser suplantada
processualização do princípio do discurso), sem prejuízo da legitimidade democrática.
a vontade da norma tende a ser a vontade Nessa base, por assegurar a participa-
de uma autoridade oracular, à semelhança ção plena das partes, em discursividade
do locutor autorizado de Francis Wolff (1996, delimitada pela principiologia processual,
p. 71) ou do juiz-hércules de Ronald Myles a Teoria Neo-Institucionalista do Processo
Dworkin (2003, p. 287). Daí por que, vale
lembrar, não basta 30
Vale lembrar que o provimento é ato decisório
do aparelho Executivo, Legislativo ou Judiciário (Cf.
28
Ou, como anota Jürgen Habermas (1995, p. 107- GONÇALVES, 1992, p. 102). Neste enfoque, a formula-
121), concepção Republicana e Liberal de Estado. ção e aplicação das decisões judiciais, administrativas
29
Em sentido contrário ao do texto, aponta-se: e legislativas devem observar a principiologia do Pro-
DINAMARCO, 2003, p. 181-188. cesso, possibilitando-se a fiscalidade popular.

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apresenta-se como a que melhor orienta o A interpretação dos textos de lei deve
exercício popular de poder assegurado pela ser feita de forma compartilhada (LEAL,
Constituição Brasileira31, já que possibilita 2000, p. 121), haja vista que a legitimação
a auto-inclusão (LEAL, 2002b, p. 172) dos dos provimentos passa pela participação
destinatários da normatividade sistêmica, simétrica33 dos destinatários e, como óbvio,
garantindo o exercício e a confirmação dos pela análise dos argumentos ventilados.
direitos fundamentais. O texto legal não é um ente autopoiético
Vale recordar que a interpretação é ativi- que se compreende por si mesmo.
dade que traça o sentido e o alcance da norma Dizer que uma norma jurídica (constitu-
jurídica, sendo indispensável à aplicação do cional ou infraconstitucional), extraída de
texto legal (SOUZA, 2001, p. 258). Dita in- um texto legal, aplica-se dessa ou daquela
terpretação, como certo, dá-se num contexto forma, na Democracia, implica sua inserção
paradigmático, vez que, ao tentar determinar (crítica e discursiva) na processualidade
o sentido e o alcance da norma jurídica, o jurídica, possibilitando-se ao destinatário
intérprete o faz (ou, pelo menos, deveria um (re)pensar do próprio texto normativo,
fazer) no intuito de buscar a concretização sendo certo que nenhuma lei há que se apli-
do texto constitucional. É atividade voltada car antes de tal labor epistemológico.
para um caso concreto (SOUZA, 2001, p. 258), Ademais, como já visto, tal inserção
porém, como afirmado acima, tal atividade não é feita por uma autoridade anacoreta
não é realizada por uma autoridade eremita e salvadora, e sim, em conjunto pelos des-
e tradutora exclusiva da vontade popular. tinatários da norma, que, na Democracia,
No Estado Democrático de Direito, têm o direito de aferir seu conteúdo, sendo,
tanto a interpretação quanto a hermenêutica32 outrossim, seu intérprete.
jurídica rejeitam fórmulas, brocardos ou O Processo como instituição constitucio-
regras predeterminadas de julgamento, nalizada composta pelos princípios da ampla
visto que somente a normatividade cons- defesa, isonomia, contraditório e pelo insti-
titucional é capaz de conduzir e demarcar tuto do Devido Processo, apresenta-se como
o conteúdo do provimento, ainda assim, regente de toda atividade jurídico-interpreta-
sob a condição de participação dialógica tiva. Assim, não é legítimo falar em criação,
dos destinatários da norma num medium revogação, alteração ou aplicação da norma
lingüístico processualizado. sem que essa, antes, insira-se no espaço de
tal instituição (Processo) regente.
31
Vide parágrafo único do artigo 1o da Constitui- Como duas faces da mesma moeda, o
ção Brasileira. Princípio da Reserva Legal34 vincula o in-
32
A interpretação é atividade que traça o sentido térprete à normatividade jurídica (quer essa
e o limite da norma jurídica, sendo indispensável à
aplicação do texto normativo. É atividade voltada
se expresse na plataforma constitucional,
para um caso concreto. A hermenêutica jurídica, por quer na infraconstitucional), articulando-
sua vez, seria a teoria da interpretação, “capaz de se, sempre, com o Princípio da Supremacia
tornar compreensível o objeto de estudo mais do que da Constituição.
sua simples aparência ou superficialidade” (SOUZA, Nesse sentido, segundo reflexão de
2001, p. 258). Por ser uma teoria jurídica, organiza os
conhecimentos (específicos de uma especialidade)
Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias (2004, p.
adquiridos dentro da esfera do Direito, regendo-se 131), com a qual comungamos, o Princípio
pela principiologia constitucional, haja vista que, no
Direito Democrático, não se pode falar em interpre- 33
Lembrando o conceito de simétrica paridade trazi-
tação ou hermenêutica sem que ambas estejam sob a do por Aroldo Plínio Gonçalves (1992, p. 120).
regência das normas constitucionais. Nesse sentido, 34
Ou Princípio da Prevalência da Lei, como se
a hermenêutica jurídica não pode ser uma “arte” (Cf. extrai da lição de Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias
MAXIMILIANO, 1994, p. 1), pois essa expressão não (2004, p. 132-133). Conferir o inciso II do artigo 5o da
é compreensível pela Ciência do Direito. Constituição Brasileira

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da Vinculação ao Estado Democrático de No discurso jurídico-democrático (dia-
Direito se apresenta como um dos princípios lógico, e não dialético), não basta que os
diretivos da função jurisdicional. interlocutores se valham de uma língua
Assim, como o intérprete deve observar comum; é necessária, também, uma lingua-
as diretrizes normativas do texto constitu- gem37 comum, um medium lingüístico capaz
cional, em sendo o Estado Democrático de de aceitar a falibilidade do direito positiva-
Direito o paradigma escolhido, fica o agente do. Esse medium lingüístico, a nosso ver, é
público inarredavelmente vinculado, no a Teoria do Processo Democrático.
exercício de sua função, ao modelo político
eleito. Aliás, a atividade jurisdicional “exige 7. Considerações finais
adequada e permanente interpretação das
normas jurídicas em conformidade com o A fundamentação do Direito se dá pela
texto da Constituição,” (DIAS, 2004, p. 134) conformidade de opinião e vontade discur-
não sendo mais admissível a patológica siva dos cidadãos (MOREIRA, 2002, p. 174),
postura de Magnaud35 ou atos que lem- e não pelo entendimento de seres inexpli-
bram o obtorto collo (Cf. VIEIRA, 2002, p. cavelmente judiciosos. Expressões como
7) romano. Como sobredito, até mesmo o justiça, bem-estar social, interesse comum,
conteúdo da norma constitucional deve ser moral, ética, não podem ser exclusivamente
processualmente compartilhado, devendo- traduzidas e compreendidas por mentes
se desestimular a criação do espaço do sobe- soberanas.
rano36, ou seja, do espaço infiscalizável da No Direito Democrático, é mister que
autoridade. o discurso da norma seja processualizado
Nesse enfoque, é ditosa a lição de Rose- em toda esfera de formulação, alteração,
miro Pereira Leal (2004, p. 96), que, por sua revogação e aplicação jurídica.
precisão, merece transcrição literal: Não basta, para legitimar o Direito, a
“O fato da maioria do povo, por simples obediência aos trâmites formais de
exclusão social ou cognitiva, não ter criação das leis, vez que suas fases poste-
acesso à compreensão dos direitos riores de aplicação, alteração ou revogação
processuais, instituíveis pela Comu- devem assegurar aos destinatários a ampla
nidade Política, suplica erigir a consti- defesa, o contraditório e a isonomia, em
tuição como medium institucional que, Devido Processo.
na contrafactualidade, há de tornar O texto constitucional, por se ofertar
apto o povo, por direitos fundamen- à crítica, torna-se a base do discurso nor-
tais implementados, a conjecturar, mativo e, uma vez existente, clama por
concretizar ou recriar o discurso da uma interpretação processualizada, sendo
Lei Constitucional Democrática.” desnecessário cogitar-se a mens legislatoris
ou legis38, pois o sentido da norma só pode
35
Postura essa bem descrita por Aroldo Plínio
Gonçalves (1992, p. 45-46), Chaim Perelman (2000, 37
Com razão, Karl Popper (1994, p. 71), obtempera
p. 97-98) e Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias (2004, p. que “é pela linguagem que nos tornamos humanos e
134-135). Ensinam os autores que o francês Jean-Marie que a consciência humana – a consciência do eu – é
Bernard Magnaud, presidiu o Tribunal de Primeira uma conseqüência da linguagem.”
Instância de Château-Thierry no período de 1889 a 38
Com razão, na atualidade, muito se critica a
1904, tornando-se famoso por prolatar decisões que clássica concepção de interpretação jurídica defendida
não se vinculavam à lei, à jurisprudência ou aos li- pelos subjetivistas e objetivistas. Para tais correntes, seria
vros jurídicos. O juiz Magnaud, apontado por alguns função do intérprete (sempre solitário) descobrir o
como “o bom juiz Magnaud”, reputava-se a própria verdadeiro sentido da lei, quer seja desvendando a
encarnação do Direito, decidindo por eqüidade e para vontade do legislador (mens legislatoris) quer seja da
atendimento do (seu) senso de justiça. própria norma (mens legis). A concepção subjetivista
36
Sobre o espaço do soberano, vide item 2 deste (mens legislatores) defende que a interpretação da lei é
trabalho. ex tunc (desde então, no caso, desde a criação da lei),

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ser traçado por seus destinatários, e não, mocrático, sob as conseqüências de perda
exclusivamente, por juízes, promotores, de legitimidade.
advogados, prefeitos, governadores, pre- Nesse sentido, a inobservância dos
sidentes, ministros ou outros. princípios institutivos do Processo (isono-
Nesse sentido, o conceito de Proces- mia, ampla defesa e contraditório) torna a
so, após lutas e vidas, sofreu mutações, norma jurídica obscura e incompreensível,
apresentando-se, na atualidade, como ins- estimulando o aparecimento de um espaço
tituição constitucionalizada que abriga os (não-fiscalizável) do soberano.
princípios39 do contraditório, da isonomia A pós-modernidade desaprova a não-
e da ampla defesa e o instituto de Devido contradição, rejeitando, também, a tentativa
Processo. No Estado Democrático de Direito, (fracassada) de se criar um ethos (e uma
vale insistir, o Processo não se apresenta razão) universal. O desamparo, a complexidade
como um “laboratório de poder” (FOU- e o pluralismo são marcas indeléveis da pós-
CAULT, 2003, p. 169) posto à disposição modernidade, porquanto os indivíduos já
de uma autoridade que vigiaria, de forma não são (deveriam ser) dirigidos por uma
pan-óptica, a atuação dos cidadãos. sofocracia (governo dos sábios) ou por
Por esse prisma, em decorrência dos um direito extra-sistêmico, tal como o é o
Princípios da Supremacia da Constitui- direito natural. A contradição passa a ser
ção e da Reserva Legal, a principiologia aceita. Tal momento pode ser apreendido
constitucional do Processo conduz toda principalmente na pintura pós-moderna,
a interpretação do Direito, vinculando o a qual não guarda nenhum compromisso
intérprete. Com isso, a Teoria do Processo, com a estética e com os modelos tradicio-
ao abrigar uma instituição constitucional, nais de pintura, como a renascentista. Do
demarca e vincula o próprio discurso mesmo modo, a pós-modernidade rejeita a
jurídico, apresentando-se como medium tradição e a idéia de bem-comum.
lingüístico da atividade jurídica. Ao revés do que muitos pensam, os
Todo poder emana do povo e a esse, protestos, as passeatas, as greves de fome
como única fonte do poder, deve ser asse- e os brados proferidos em locais públicos
gurada a possibilidade de fiscalizar a ati- pouco ou nada contribuem para a formação
vidade dos agentes público-governativos, de uma Democracia efetiva, haja que o Dis-
propiciando, outrossim, a oportunidade de curso Democrático, na pós-modernidade,
criar, modificar e revogar a norma jurídica, anseia por um espaço procedimental iso-
via procedimental, sob a regência da Teoria nômico para encaminhamento dos argu-
do Processo, garantindo-se, com esse ciclo, mentos e reivindicações. Para nada serve
a legitimidade normativa. o debate público se os interlocutores (em
O destinatário passa a ser, também, in- especial, o cidadão e o Estado, o patrão e o
térprete e operador da norma jurídica. empregado) não se apresentam no mesmo
Justamente por isso, o Discurso Norma- plano dialogal. Normalmente, o resultado
tivo, em todo iter da estruturação do Direito, de tais agitações nada mais é do que um
deve ser regido pela Teoria do Processo De- analgésico dado pelo soberano como forma
de evitar a radicalização da violência, man-
mitificando o legislador. Por sua vez, a concepção tendo, como certo, a dominação.
objetivista (mens legis) defende que a interpretação
A linguagem jurídico-processual40 é a
é ex nunc (desde agora), mitificando a lei, já que essa
teria uma racionalidade própria que falava por si única capaz de articular de forma democrá-
mesma. Sobre tal crítica, sugere-se: Streck, (2004, p. tica a autonomia pública e privada, pois ela
88, 100-104); Pereira, (2001, p. 108-119).
39
Chamados de Princípios Institutivos do Proces- 40
Presente no espaço procedimental regido pela
so. Sobre o tema (Cf. LEAL, 2004, p. 100-410). isonomia, contraditório e ampla defesa.

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