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Apostila História Do Ceará
Apostila História Do Ceará
2. As tentativas de conquista
A primeira tentativa oficial de colonizar o Ceará
deu-se em 1603, Pero Coelho de Sousa. Na condição de
capitão-mor, esse açoriano organizou uma expedição,
cujo objetivo era explorar estas terras, combater piratas,
estabelecer a paz com os índios e tentar encontrar
metais preciosos.
Após combater franceses e índios na Ibiapaba,
Pero e seus homens instalaram-se nas margens do rio
Ceará, onde foi erguido o Forte de São Tiago (a região
foi batizada de Nova Lusitânia). Não encontrando
riquezas na região, Pero passou a escravizar os índios.
Como estes reagiram, Pero recuou e ergueu o Forte de
São Lourenço nas ribeiras do rio Jaguaribe. Mas, como
as “hostilidades” indígenas continuavam sofrendo os
pesados efeitos da seca de 1605-07, Pero Coelho viu-se
obrigado a deixar o Ceará, indo para o Rio Grande do
Norte.
A segunda tentativa de conquistar a terra
cearense deu-se com os padres jesuítas Francisco Pinto
2 HISTÓRIA DO CEARÁ Prof. Jam
e Luís Filgueira, em 1607. A catequização e colonização colonização e mudam o nome do forte para Fortaleza de
andavam juntas no Brasil – aumentava-se o número de Nossa Senhora da Assunção.
cristãos e garantia-se a posse da terra. Os dois religiosos Bom atentar que por esse período o “Siará”
fizeram praticamente o mesmo percurso de Pero Coelho, esteve submisso a outras entidades administrativas. Em
indo parar na Ibiapaba. Ali procuraram cristianizar os 1621 e 1656, foi gerenciado pelo Maranhão; de 1656 a
nativos. Mas os índios lembravam ainda os maus tratos 1799, esteve submetido a Pernambuco. Isso atrapalhou
impostos por Pero Coelho. Assim, os nativos Tocarijus o crescimento material da capitania.
atacaram os jesuítas e mataram Francisco Pinto. Luís Por anos, o “Siará” dos invasores europeus estava
Filgueira conseguiu escapar, indo para o Rio Grande do restrito ao litoral. Isso, contudo, mudaria a partir da
Norte. segunda metade do século XVII, com a conquista dos
sertões em função da pecuária.
3. Martim Soares Moreno
Outra tentativa de conquista do Ceará deu-se 5. Os Índios Cearenses
com Martim Soares Moreno. “Quem me dera ao menos uma vez,
A primeira vez que Moreno esteve no Ceará foi com a Ter de volta todo o ouro que entreguei
fracassada bandeira de Pero Coelho, em 1603. Seis A quem conseguir me convencer
anos depois, em 1609, na condição de tenente do forte Que era prova de amizade
dos Reis Magos, já dava combate a traficantes franceses Se alguém levasse embora até o que eu não tinha
no litoral cearense. Quem me dera ao menos uma vez
Em 1611, com a ajuda de índios da região, Esquecer que acreditei que era por brincadeira
chefiados por Jacaúna, Moreno fundou às margens do Que se cortava sempre um pano-de-chão
rio Ceará o Forte de São Sebastião. No ano seguinte, De linho nobre pura seda [...]”
apesar de suas pretensões colonizadoras, foi convocado (Índios – Legião Urbana)
para combater os franceses que haviam fundado a
França Equinocial o Maranhão. Genocídio indígena:
Moreno só retornou ao Ceará em 1621, no cargo Quando Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil,
de capitão-mor. Encontrando o Forte de São Sebastião este era habitado por cerca de 4 milhões de indivíduos
praticamente destruído, reconstruiu o possível, também chamados erroneamente de “índios”.
incentivando, sem muito êxito, a pecuária e a cana-de-
açúcar. Aos índios restaram poucas opções:
A falta de recursos e da atenção de Portugal • A escravidão;
fizeram com que Moreno se retirasse do Ceará em 1631, • A morte;
dirigindo-se para Pernambuco, onde foi combater os • A expulsão de terras;
holandeses que então invadiam o Brasil. Anos depois, • Ou ainda uma heroica e infrutífera resistência.
regressou às terras portuguesas, não vindo mais ao
Ceará – tanto que é homenageado como “fundador” do Milhões foram mortos em nome do(a):
Ceará – homenageado pelo escritor José de Alencar no • Capitalismo;
livro Iracema. • Comércio;
• Lucro;
Iracema, a virgem tabajara consagrada a Tupã, • Fé.
apaixona-se por Martim, guerreiro branco inimigo
dos tabajaras. Por esse amor abandona sua tribo, Justificação do holocausto. A ideia que o índio era:
tornando-se esposa do inimigo de seu povo. Quando • “Selvagem”;
mais tarde percebe que Martim sente saudades de • “Pagão”;
sua terra e talvez de alguma mulher, começa a sofrer.
• “Inferior”;
Nasce-lhe o filho, Moacir, enquanto Martim está
• “Indisciplinado”;
lutando em outras regiões. Ao voltar, ele encontra
Iracema prestes a morrer. Parte, então com o filho • “Sujo”;
para outras terras. • “Preguiçoso” e;
• Que precisava adaptar-se à missão progressista do
“branco civilizado”.
4. Tempos flamengos
No ano de 1630, os holandeses invadem
Origem confusa...
Pernambuco na pretensão de dominar a região
açucareira e de encontrar outras riquezas. Assim, em • A teoria mais aceita diz haver o homem americano ter
1637, tropas flamengas conquistaram o forte cearense migrado da Ásia há 12 mil anos, pelo estreito de
de São Sebastião. De início, contaram os holandeses Bering.
com o apoio dos índios. Depois, contudo, a “aliança” se • Entra em choque com as afirmações da arqueóloga da
desfez, pois o holandês não se diferenciava do USP, Niéde Guidon, que haveria encontrado, no
português no mau trato do índio. Revoltados, em 1644, município de São Raimundo Nonato (PI), vestígios
os nativos atacaram e destruíram o fortim, trucidando os confirmando a presença humana há cerca de 40 mil
holandeses. anos.
Os flamengos retornaram em 1649, sob o mando
do capitão Matias Beck, em busca de minas de prata. O historiador Carlos Studart Filho aglutinou-os em 5
Erguem no monte Marajaitiba, nas margens do riacho grupos, a saber:
Pajeú, o forte Schoonemborch, em torno do qual, depois, • Tupis;
iria espontaneamente surgir a atual cidade de Fortaleza. • Cariris;
Os holandeses ficam no Ceará até 1654, quando • Tremembés;
retiram-se em virtude de sua derrota em Pernambuco e • Tarairius e;
expulsão do Brasil. Sob a liderança do capitão-mor • Jês.
Álvaro de Azevedo, os portugueses retomam a
Prof. Jam HISTÓRIA DO CEARÁ 3
Apesar do genocídio (destruição física) e do dóceis” para com os brancos, transformavam-nos em
etnocídio (destruição cultural), os índios sempre semi-servos ou escravos dos latifúndios, ou ainda em
reagiram contra o branco invasor; soldados.
Exemplo maior foi a ”Guerra dos Bárbaros”. A rígida disciplina dos aldeamentos e a própria
imposição do catolicismo contribuíram para o etnocídio
A guerra dos “bárbaros” indígena.
Índios de diversas capitanias nordestinas uniram- A Igreja colonial estava entre os grandes proprietários de
se numa confederação para enfrentar os conquistadores terra nordestinos, usufruindo gratuitamente do trabalho
entre o último quartel do século XVII e a década de indígena.
1820; foram derrotados;
Após a “domesticação”, os índios acabaram na Embora combatessem o genocídio e a escravidão
dependência de grandes senhores de terra, coronéis, indígena – positivos de seu trabalho, os jesuítas
que os utilizavam em confrontos particulares; contribuíram enormemente para a destruição cultural
Assim compreende-se o porquê da participação dos (etnocídio) dos silvícolas, à medida que substituíam
nativos na “guerra” entre famílias montes e feitosas, a centenária vida social destes por uma outra,
ocorrida no Sul cearense nas primeiras décadas do “branca”, preconceituosa, intolerante, maniqueísta,
século XVIII. pretensamente civilizada, que condenava a nudez, a
poligamia, a religião politeísta, as casas coletivas,
Montes e Feitosas enfim, a vida livre e diferente.
O confronto entre Montes (natural de Sergipe) e
Feitosas (originária de Alagoas) provocado por lutas de Andando pelos sertões
terras, terminou após a intervenção das autoridades Com a expulsão dos jesuítas em 1759, os
coloniais, com a aparente vitória da segunda família. aldeamentos foram convertidos em vila e os serviços de
Mesmo após tantas chacinas e sofrimentos, os catequização passaram a ser feitos pelos frades
índios continuam a existir e a resistir no Ceará, lutando franciscanos com as Santas Missões;
pela demarcação de suas terras e preservação da As Santas Missões eram espécies de Missões
cultura. móveis, indo de região em região, para onde fossem
convidadas. Revelou-se um sucesso. Nelas havia um
Catequese e Aldeamento clima de festa.
Aos poucos, o trabalho com índios foi sendo
“A história dos povos indígenas que abandonado; depois com a Lei das Terras de 1850, os
povoaram nosso solo pátrio contém as mais indígenas passaram a perder suas terras com as ações
preciosas lições. O índio não é um ‘selvagem’; ele de grileiros.
não é um ser inferior; é antes, uma criatura humana
de riquezas espirituais e culturais a nós A luz da história, o método de aldeamento foi um
desconhecidas, porque, no decurso dos séculos, não fracasso. Os gentios morriam em grande quantidade,
soubemos olhá-lo a não ser como com olhos de devido ao contato com as doenças trazidas pelos
adversário. Índio não é aquele que deve morrer; é brancos e pelo próprio regime de trabalho
aquele que deve viver. Há toda uma dívida a ser forçosamente estabelecido. Além disso, tratava-se de
resgatada por nós cristãos no século XX.” impor a doutrina, a obediência e a submissão ao
(D. Aloísio Lorscheider, ex-arcebisbo de Fortaleza)
catolicismo. O resultado foi a destruição
sociocultural do índio, sua destribalização,
Fé, Rei e Espada
descaracterização e massificação, de tal sorte que o
Ligada ao estado português, a Igreja católica veio
nativo dificilmente poderia resistir ao avanço do
para o Brasil no período da colonização.
conquistador.
Na colônia, a Igreja organizava-se em clero secular
(bispos, padres, vigários) e clero regular (jesuítas,
franciscanos, carmelitas e beneditinos). EXERCÍCIOS PROPOSTOS
De início os jesuítas tentaram cristianizar os
nativos com danças, presentes, etc; sem sucesso, 01 O texto abaixo foi extraído do documento
adotaram o método dos aldeamentos para afastá-los das “Representação da Câmara de Aquiraz ao Rei de
antigas lideranças tribais; Portugal”.
De modo contrário, os jesuítas e a Igreja “(...) para a conservação desta capitania será vossa
apoiaram a escravidão do negro. majestade servido destruir estes bárbaros para que
fiquemos livres de tão cruel jugo; em duas aldeias deste
A “missão” gentio assistem padres da Companhia que foram já
Os aldeamentos eram aldeias artificiais, expulsos de outras aldeias do sertão (...) estes religiosos
militarizadas, para onde levam-se os índios na pretensão são testemunhas das crueldades que estes tapuias tem
de convertê-los ao catolicismo, muitas vezes a força. feito nos vassalos de vossa majestade. (...) só
Após o fracasso dos jesuítas Luís Filgueiras e representamos a vossa majestade que missões com
Francisco Pinto em 1607, os Jesuítas retornaram ao estes bárbaros são escusadas, por que de humano só
Ceará na segunda metade do século XVII, fundando o tem a forma, e quem disser outra coisa é engano
aldeamento de Nossa Senhora da Assunção da conhecido.”
(Citado em PINHEIRO, Francisco José. “Mundos em confronto: povos nativos e
Ibiapaba, Viçosa do Ceará. europeus na disputa pelo território.” In SOUSA, Simone de (org.) Uma Nova História
do Ceará. Fortaleza. Edições Demócrito Rocha. 2000. p. 39)
Também foram aldeamentos jesuíticos:
• Parangaba, Caucaia, Paiacu, Palpina, Monte-Mor
A partir da leitura do documento acima, é correto afirmar
Novo, Telha, Miranda e Aracati-Mirim.
que:
Os aldeamentos interessavam ao governo A) a acirrada reação indígena constituiu uma forma de
resistência à destruição do seu modo de vida.
português na medida que tornavam os índios “mais
4 HISTÓRIA DO CEARÁ Prof. Jam
B) o projeto português de colonizar, civilizar e catequizar 07 Não existe relação entre a conquista do Ceará e a
contribuiu para manter a organização tribal. luta pela expulsão dos franceses do Maranhão. E
C) a ocupação do interior cearense, em virtude da
reação indígena, foi iniciada na segunda metade do 08 Numa visão tradicional, Martim Soares Moreno é
século XVIII. considerado o fundador oficial do Ceará. (C)
D) o domínio do interior cearense pelo colonizador e a
catequese jesuítica foram realizados de modo a 09 A base da fundação de Fortaleza foi criada pelos
preservar a cultura indígena. holandeses, na figura de Matias Beck, que, chegando ao
E) a Câmara de Aquiraz expressava a preocupação com Ceará, construiu o forte de Schoonenborch, ficando este,
a catequese indígena como forma de apaziguar o conflito após a expulsão dos flamengos, sob a direção
entre os colonizadores e os índios. governamental do capitão-mor Álvaro de Azevedo
Barreto. (C)
02 Em relação à ocupação da Capitania do Ceará pelos
conquistadores europeus, assinale o correto. 10 Os missionários da Companhia de Jesus Francisco
A) A ocupação da capitania cearense ocorreu Pinto e Luís Filgueira, com “objetivos catequéticos”,
concomitante à conquista dos espaços das Capitanias chegaram às terras do Siará Grande em 1607, mas não
da Bahia e Pernambuco. foram bem-sucedidos. (C)
B) A conquista e a ocupação da Capitania do Ceará
tiveram início com o processo de conquista do litoral 11 Os aldeamentos, também chamados de missões,
açucareiro. eram áreas em que se erguiam espécies de aldeias
C) A ocupação da capitania cearense ocorreu de forma artificiais (diferentes das aldeias originais dos nativos),
tardia se comparada com a conquista das áreas para onde se conduziriam e se manteriam os índios, no
açucareiras. intuito de doutriná-los e convertê-los ao catolicismo. (C)
D) A ocupação e conquista do território da capitania do
Ceará deu-se mais facilmente em virtude da cooperação Novos estudos histórico-antropológicos “tem contribuído
do elemento nativo. não apenas para ampliar a visibilidade dos povos
indígenas numa história que sempre os omitiu, como
03 Em 2011, comemoram-se 182 anos do nascimento de também revela as perspectivas destes mesmos povos
José de Alencar, um dos grandes literatos e políticos do sobre seu passado, incluindo visões alternativas de
Império. Sobre sua obra, observe as seguintes contato e de conquista”.
afirmações: MONTEIRO, John M. O desafio da história indígena no Brasil. Brasília: MEC, 1995, p.
221.
I) Um dos seus principais livros, Iracema, trata da
chegada dos portugueses ao Brasil e da conquista do 12 As comemorações “Ceará 400 anos” se inserem na
território através das guerras contra os indígenas. construção de uma memória e história de marcos
II) Procura apresentar a realidade brasileira de uma fundadores. A história a ser lembrada é a dos
forma realista e crua, reproduzindo em seus fundadores, desde a colonização, entendendo a obra
personagens os conflitos sociais e a dependência colonizadora dos portugueses como civilizatória. Nessa
econômica. perspectiva, a história dos povos indígenas é esquecida.
III) Constitui um amplo painel das guerras e conflitos dos (C)
colonizadores com os indígenas, denunciando a
violência e o etnocídio. 13 Os povos indígenas, enquanto sujeitos de sua
IV) Os livros de José de Alencar procuram estabelecer história, dão visibilidade a suas lutas políticas. A partir da
as origens da nacionalidade brasileira nas imagens do década de 1980, a questão indígena ganha expressão
índio idealizado e romantizado. na mídia, nos movimentos populares e nas ONGs. (C)
06 O donatário da capitania do Ceará, Antônio Cardoso 15 O “primeiro cearense” aludido por Alencar é o
de Barros, não chegou sequer a tomar posse de sua mameluco Moacir, o “filho do sofrimento”, nascido da
doação, somente vindo ao Brasil como provedor na relação entre a índia Iracema e o colonizador português
fazenda no governo de Tomé de Souza em 1549. C Martim (Soares Moreno).
Prof. Jam HISTÓRIA DO CEARÁ 5
16. Esse mito obscurece a presença do negro na nossa
formação. (C)
EXERCÍCIOS PROPOSTOS
EXERCÍCIOS PROPOSTOS
Propriedades de Cícero
Para se ter uma ideia desta afirmativa, basta verificar
uma relação de suas propriedades feita pelo próprio
padre em 1923, ao elaborar seu testamento.
Enumerava:
• 5 fazendas;
• 30 sítios;
• Vários terrenos;
• Diversos prédios urbanos (inclusive o prédio da
prisão de Juazeiro) e;
• Uma espantosa criação de gado, cujo numero de
reses não se conhecia;
20 HISTÓRIA DO CEARÁ Prof. Jam
EXERCÍCIOS PROPOSTOS
Isca
Com a seca de 1932, aprimorou-se o projeto de
1915. Foram construídos sete campos. Em Fortaleza
havia dois, para confinar retirantes que lá já estavam.
Ambos chegaram a ter 1.800 presos. Os de Crato e de
Senador Pompeu receberam mais de 16 mil cada um;
Quixeramobim, 4.500; Cariús, 28 mil; e Ipu, cerca de
6.500. “Os sertanejos eram atraídos por promessas de
trabalho, alojamento, alimentação e serviço de saúde”,
afirma Kênia Rios. Mas a multidão era concentrada em
A fé e a emoção unem os mais de 6.000 espaços precários. Tinha a cabeça raspada, usava
romeiros, quase todos vestidos de branco. Partem da roupas feitas com sacos de farinha e trabalhava
igreja matriz do município de Senador Pompeu e praticamente em troca de comida.
percorrem mais de três quilômetros de estrada de terra Os homens lidavam principalmente com
até a capela do Cemitério da Barragem. Acendem velas marcenaria e construção de tijolos, as mulheres na
e rezam pela alma dos enterrados ali. Acreditam que fabricação de sabão e as crianças, que não tinham
sejam intercessores de graças alcançadas. A procissão escola, podiam trabalhar e aprender artes e ofícios.
ocorre há 28 anos e mantém viva a memória de uma das Faltavam comida, água e remédios. Soldados armados
páginas mais cruéis da história brasileira: a morte de detinham aqueles que tentavam fugir. Os campos
milhares de flagelados da seca de 1932 em campos de mantinham locais para punir e encarcerar os rebeldes.
concentração construídos no estado pelo governo “Atestados de óbito mostram que no campo de Ipu a
cearense. O governador Roberto Carneiro de Mendonça, fome e doenças como cólera chegavam a matar oito
interventor nomeado por Getúlio Vargas, atendia aos pessoas por dia”, destaca a historiadora.
interesses da elite política e coronelista da ocasião. E Registros oficiais contabilizam mais de 60 mil
Vargas precisava de apoio ao processo que levaria ao cearenses mortos nesses campos. Estudiosos creem
Estado Novo, posto em andamento a partir do golpe de que morriam mais pessoas em função deles que da
1930. seca. “O flagelo era maior lá dentro, com tamanha
22 HISTÓRIA DO CEARÁ Prof. Jam
concentração de gente doente. Por maior que fosse a conforme a necessidade de cada família, constituindo-se
seca, em liberdade o sertanejo poderia caçar ou se assim numa economia alternativa. Mais que “fanáticos
alimentar de frutos silvestres em muitas regiões, como desprovidos de qualquer organização racional”, seus
no Cariri (região do Ceará)”, ressalta Valdecy Alves. habitantes promoveram uma política de convívio com a
O advogado Otoniel Ajala Dourado, da ONG SOS natureza, desfrutavam de água e alimentos com fartura.
Direitos Humanos, afirma que os flagelados eram A autonomia da comunidade era um modelo ameaçador
aprisionados por ser pobres, forçados a trabalhar para para as relações de exploração vigentes.
prefeituras, sem remuneração, e torturados por se
rebelar. Desde 2009 a entidade move uma ação civil Lembranças do Holocausto
pública contra a União e o estado do Ceará por danos Mãos e rosto enrugados, olhar profundo, voz
morais às vítimas do crime, imprescritível, de lesa- miúda, corpo castigado. Aos 84 anos, uma das últimas
humanidade e genocídio. A indenização pedida é de R$ sobreviventes do campo de concentração de Senador
500 mil para sobreviventes e familiares dos mortos. No Pompeu, Luiza Pereira, dona Lô, ainda recorda
mesmo ano, o juiz substituto da 6ª Vara da Justiça passagens angustiantes do cativeiro erguido no sertão
Federal no Ceará extinguiu a ação sem julgar seu mérito. do Ceará, comparado aos campos nazistas. Única
Nova ação foi protocolada e está para ser julgada. A herdeira viva dos oito filhos do casal de agricultores José
denúncia foi apresentada também à Comissão Pereira e Josefa Bezerra, todos de Tauá, dona Lô
Internacional dos Direitos Humanos, em Nova York. continua solteira, morando em uma casa modesta
Em 1933, quando as chuvas voltaram a cair, os próxima ao centro dessa cidade do sul do estado,
campos foram desativados e os sobreviventes deveriam outrora próspera devido à infraestrutura ferroviária, no
ser encaminhados de volta aos locais de origem. Nem corredor de escoamento do “ouro branco”, como eram
todos, porém, retornaram. Em Fortaleza, a maioria ficou conhecidas as plumas de algodão colhidas na região.
e deu início a uma das maiores favelas, a Moura Brasil, A passageira do “curral do Governo”, como
em Pirambu. “A violência desses campos reflete os também eram conhecidas as áreas de agrupamento de
primeiros anos da República, a crueldade com os pobres retirantes espalhadas pelo Ceará naquele ano de 1932,
e com os negros”, diz Kênia Rios, autora do livro ainda fala com lucidez e firmeza sobre a época. Ao
Campos de Concentração no Ceará – Isolamento e registrar o sofrimento dos pais e da irmã, nascida e
Poder na Seca de 1932, que inspirou documentários e morta no campo onde mais tarde se ergueu a barragem
peças teatrais. Para a pesquisadora, o episódio não do açude Patu, revela o trauma que a fez abdicar de se
findou em 1933. Ainda há projetos políticos que levam às casar e ter filhos.
praticas de repressão, humilhação e segregação. “Tenho muita coisa pra dizer não. Minha mãe não
“Exemplos são os conjuntos habitacionais construídos deixava nós desgrudar dos pé dela. Era muita gente. Ela
em cidades-dormitório para afastar os pobres do usufruto tinha medo de alguém carregar eu e meu irmão. Do resto
dos bens culturais e de lazer oferecidos pelas cidades. todo mundo já sabe. Perdi a conta de quantas vez já
Desestimulados pelo cansaço da semana de trabalho, repeti tudo isso. O sofrimento foi medonho… Quando
pela distância e pelo transporte ruim, os mais humildes chegamos neste lugar, após caminhada de 16 léguas,
acabam deixando para os ricos o que as cidades deitamos ali mesmo, no chão. Exaustos, sem ter o que
oferecem de melhor.” comer, minha mãe ferveu água para passar a fome. Era
apenas o começo dessa miséria que nunca esqueci…
Massacre Desesperado, meu pai resolveu carregar a gente de
Quatro anos depois do fim de seu campo de Tauá para cá (Senador Pompeu) à procura do que
concentração, Crato, no interior do estado, voltou a ser comer e beber. Mas se estava ruim ficou pior.”
palco de violência contra os direitos humanos. Segundo Carmélia Gomes Pinheiro, de 87 anos, foi criada
historiadores, as casas localizadas no Sítio Caldeirão da em Senador Pompeu, na Vila da Comissão, onde ainda
Santa Cruz do Deserto foram destruídas por forças do mora. Seu pai, Antônio Gomes da Silva, foi vigia noturno
Exército e da polícia do estado. A comunidade não do campo. Ela tinha 8 anos quando começou a ver
resistiu, como em Canudos. Os militares metralharam de famílias chegando de todos os cantos do sertão. Pouco
aviões o pouco que sobrou e, em terra, com fuzis, saía. Os pais ficavam preocupados. Das colinas do outro
revólveres, pistolas, facas e facões, liquidaram os lado da vila sabia apenas de imaginar e de ouvir as
sobreviventes. Cerca de mil moradores morreram e descrições da irmã, 12 anos mais velha, que às vezes
foram enterrados em vala comum. Alguns meses depois, doava alimentos aos flagelados.
foram encontrados 16 crânios de crianças numa área da “A maioria era desviada. Medicamentos,
Chapada do Araripe. chegavam poucos para atender a tantos doentes.
A SOS Direitos Humanos move ação civil pública Roupas não eram enviadas. Quando as vestimentas já
contra a União e o estado do Ceará. A ação cobra do estavam aos trapos, os corpos eram cobertos com sacos
poder público: a entrega dos documentos de identidade de mantimentos. Muitos sacos eram costurados e
dos mortos, os documentos secretos da ação militar, a transformados em camisões. E era assim que a maioria
localização da vala comum, a lista de todos que era sepultada. Com receio de arrancarem o fígado dos
participaram da ação criminosa, exames de DNA dos mortos quando eram jogados nas valetas do cemitério,
restos mortais para identificação e enterro digno e muitas famílias enterravam seus mortos no mato,
indenizações a sobreviventes e seus descendentes. A escondido”, conta. Carmélia lembra um momento
ONG defende ainda a inclusão do episódio em livros de marcante naquele ano da concentração, quando
História de todo o país. caminhando pelo campo viu corpos ainda não
O sítio Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, enterrados. Ficou paralisada. “Vi uma lagartixa saindo de
chefiado pelo beato negro José Lourenço, representou dentro da boca de um dos mortos.”
para as elites cearenses um “antro de fanatismo e Por Cida de Oliveira, na Revista do Brasil.
GABARITO
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