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QINGLONG E A GRANDE GUERRA DRAKKAR

1ª Edição
2021
DEDICATÓRIA

Dessa vez já quero começar agradecendo a todos os leitores de


A Saga Draconiana, que diariamente me inspiram a continuar escre-
vendo histórias nesse riquíssimo Universo Drakkar, pelo qual tanto
tenho carinho.
Agradeço especialmente, sempre, às duas mulheres da minha
vida: minha esposa Gleyce Kelly Costa Duarte, e minha mãe Nerci Maria
Godois de Oliveira. Também quero agradecer a todos os meus familia-
res e amigos que tanto me apóiam nessa carreira maravilhosa de
escritor, e que compartilham comigo essa paixão pela fantasia. A
todos vocês, meu mais sincero e grande obrigado.
Sem mais delongas, espero que você, leitor, viaje junto com
QingLong nesse maravilhoso conto de tempo antigos, onde o Uni-
verso Drakkar era um pouco diferente.
Boa Leitura!
A. G. Olyver
SUMÁRIO

I – A PROMESSA
II – VOVÓ WU MEI
III – CHEGANDO AO GRANDE PALÁCIO DOS PROTETORES
IV – A PASSAGEM
V – RUMORES
VI – OS PRIMEIROS CAVALEIROS
VII – A SENTENÇA E O FIM DE UMA HISTÓRIA
VIII – BALANÇO
VIX – NO CENTRO DA ETERNIDADE
X – CONVERGÊNCIA
XI – O COMEÇO DE UMA NOVA HISTÓRIA
XII – A ORDEM DE SEKHEM
XIII – A PALMA CÍCLICA
XIV – O CAMINHO NÃO PERCORRIDO
XV – O INÍCIO DA BUSCA
XVI – AS CINCO ARMAS LENDÁRIAS
XVII – DE VOLTA AO GRANDE PALÁCIO DOS PROTETORES
XVIII – A GRANDE GUERRA DRAKKAR
XIX – O FIM DE UM CICLO
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A PROMESSA

esses milênios de existência compreendi os caminhos infi-


nitos e complexos que permeiam toda a criação, que pre-
enchem o Todo e são dele como um inspirar e expirar eter-
nos. Porém, nem sempre fora assim. Mesmo eu, que hoje vislumbro
parte desse saber profundo, tive meus dias de aprendizado e de
completa ignorância. Afinal, a sabedoria é um percurso, não uma
chegada. É necessário começar a jornada e permanecer nela com
afinco e dedicação; então, todas as antigas e secretas portas do co-
nhecimento se abrirão, e as vozes da sabedoria eterna estarão ao
alcance daqueles que possuem ouvidos para ouvi-las.
– QingLong... digo... Mestra... – gaguejou minha afobada a-
prendiz, enquanto entrava na sala de chá daquele Palácio onde está-
vamos.
Sempre achava graça na pressa que ela tinha em fazer todas as
coisas ao mesmo tempo. Só me restava rir.
– O que houve? – perguntei, mas já sabia do que se tratava.
– Terminei de Cultivar a Essência necessária – ela disse de
forma energética enquanto se sentava à minha frente.
Concordei lentamente com a cabeça, tentando desacelerar sua
agitação enquanto lhe servia uma xícara de chá.
– Muito bem – eu disse – Já está pronta para aplicar tudo o
que lhe ensinei. Foram dias importantes... – comentei.
– Sim – ela disse – Agora acho que venço qualquer um – riu.
Sorri ao vê-la com tanta segurança, com tanta certeza de que
era, naquele momento, a Drakkar mais poderosa que já havia pisado
na face da Terra. E, talvez, durante seu futuro confronto, por uns
instantes, ela atingiria realmente esse posto.
– Você agora precisa descansar – disse a ela – Logo será o
momento de interceder.
– Não – ela foi enfática levantando o dedo, repreendendo-me
– Você disse que ia me contar sobre a Grande Guerra Drakkar; so-
bre você. Foi uma promessa...
– Promessas... – suspirei – É verdade – concordei sorrindo.
Realmente havia prometido contar a ela, mesmo que breve-
mente, como fora nos meus tempos de aprendiz, durante aquele
terrível evento que viríamos a chamar de Grande Guerra Drakkar.
Apesar de ela precisar descansar para estar completamente recupera-
da para o confronto brutal que teria logo mais, não podia me negar
de cumprir minha promessa.
– Se você não contar agora, não sei quando nos veremos de
novo... – ela disse, apelando para meu lado emocional.
– Eu vou contar... resumidamente – ri – Descanse.
Ela se jogou ao chão da sala, com sua xícara na mão, franziu o
queijo com a típica expressão de riso e se pôs atenta.
– Bem... – tomei um gole do doce chá longjin, cujo brilho es-
meraldino refletia meu olhar que começava a divagar por longínquas
lembranças; então, comecei a contar para minha querida aprendiz, a
minha história, desde o começo.

Assim como a Yulanhua floresce depois do frio, quando a neve


derrete, pintando o horizonte com suas flores branco-rosadas, eu
nasci depois do ano novo, em uma pequena aldeia, no vale do rio
Amarelo, poucos anos depois do bondoso Imperador Shun iniciar
seu reinado de pura paz.
Fazia poucos séculos que nosso povo havia se unido de forma
a se identificar como uma só etnia: os Han. Antes disso, nós éramos
apenas tribos esparsas perdidas ao vento pelas planícies e monta-
nhas. Essa unificação foi parte do legado de HuangDi, o Imperador
Amarelo, nosso primeiro governante. Porém, ainda que para nós
aquele acontecimento maravilhoso fosse parte de nossa história, para
a pequena QingLong, tudo começou dois dias depois de seu aniver-
sário de onze anos.
– Long’er! – minha vovó me chamou, da porta de nossa casa,
enquanto eu brincava com meus amigos: Yu e Yue.
Yu e Yue eram irmãos. Yu era um menino da minha idade,
enquanto Yue, sua irmã, tinha apenas nove anos.
– Sim, vovó! – corri em sua direção, deixando-os por um mo-
mento.
Muito diferente dos tempos modernos, naquela época, nossas
casas eram circulares, com paredes de pau a pique e escavadas alguns
centímetros para dentro da terra. Tínhamos no centro daquele case-
bre a nossa fogueira principal, que servia tanto para nos aquecer,
como para cozinhar. Ao redor dela se estendiam bancos para nos
sentarmos e comer e, no extremo, junto às paredes, estavam nossas
camas feitas de tecidos enrolados. Era tudo muito simples, mas a
felicidade que percorria meu coração era genuína e muito forte.
– Está na hora, Long’er – ela disse, dando-me passagem para
entrar em casa.
Minha família e alguns moradores da aldeia, que eram mais
próximos, sempre me chamavam de Long’er; um diminutivo cari-
nhoso para Long. Nome que meu pai me dera, pois, sendo ele um
Drakkar Azul, torcia para que eu herdasse dele o Elemento e me
tornasse uma grande Drakkar. O nome QingLong, isto é, Dragão de
cor azul ciano, era para me inspirar.
Dentro de casa meu pai esperava ansioso junto à minha mãe.
Iríamos testar novamente se eu havia desenvolvido o Elemento.
Minha vovó fazia esse teste regularmente a cada novo início de lua.
– Sente-se – ordenou minha vovó.
Eu havia nascido de um Drakkar com uma humana. Minha
vovó, mãe de minha mãe, chamada Wu Mei, era a matriarca da nossa
aldeia e era também a Terceira Mestra do Clã dos Protetores. Era
um título muito honroso e muito importante. Todos a admiravam e
a respeitavam tanto quanto o próprio Imperador. Suas habilidades
eram magníficas.
Naquela época não havia Institutos e os Drakkars, quando de-
senvolviam Elemento, precisavam ser admitidos por um Mestre
Drakkar subordinado aos Protetores, que podia ter até três aprendi-
zes. Esses Mestres Drakkars prestavam contas ao Clã dos Proteto-
res, que comandava tudo. Eram os fiscais, os juízes e, claro, os car-
rascos. Todos os Drakkars andavam na linha e evitavam ter proble-
mas com eles. O poder de um Protetor era, e sempre foi, insuperá-
vel. Porém, o que colocava medo nos jovens Drakkars que recém
haviam desenvolvido Elemento era que, caso não conseguissem um
Mestre Drakkar para lhes tomar como aprendizes, os Protetores
removiam deles completamente o Elemento, tornando-os totalmen-
te humanos pelo resto da vida. Nenhum de nós queria aquilo.
– Feche os olhos, meu amor – disse minha mãe.
Fechei meus olhos e respirei fundo.
Eu, mesmo naquela idade, já tinha conhecimento sobre o Flu-
xo Primordial e Cultivava a Essência Primordial desde meus sete
anos, pois minha vovó me ensinava a Arte dos Protetores, esperan-
do que eu jamais desenvolvesse Elemento e que eu continuasse no
caminho do Protetorado, seguindo seus passos. Ainda assim, eu
torcia para me tornar uma grande Drakkar, como queria meu pai.
Era claro que a Arte dos Protetores era especial. Ela já havia
sido refinada ao seu máximo, desde o primeiro uso, na Primeira
Guerra Dracônica contra os Lordes, quase mil anos antes. E, qui-
nhentos anos depois, durante a Segunda Guerra Dracônica, quando
os Protetores finalmente prenderam os Lordes, a Arte já possuía
uma estrutura bem definida e seus adeptos já conseguiam ensiná-la
de forma prática aos aprendizes. Essa Arte, que ficou conhecida
como a Palma Servil, com seus cinco níveis, era, naquela época,
chamada de Shurdu; um termo arcaico, criado pelos primeiros Prote-
tores, vindo do oriente médio, mas que minha vovó traduzia como
Pu Zhang. Termo que viria dar origem ao nome Palma Servil. Esses
antigos Protetores, que venceram os Lordes, usuários da Shurdu,
chamavam a si mesmos de Clã Andulène. Um Andùl era aquele que
dominava os três níveis principais da Shurdu e alterava sua Essência
interna, para dominar o Sangue Draconiano.
– Respire fundo, minha Long’er – disse minha vovó enquanto
pegava um galho em chamas da nossa fogueira central.
Respirei e me concentrei. Queria fazer fluir a Essência Pri-
mordial e circulá-la por dentro de meu corpo, aumentando o poder
interno da mesma forma que minha vovó me ensinara desde peque-
na.
– Abra os olhos e concentre-se na chama – ela disse.
Abri e me concentrei o máximo que pude, mas, como de cos-
tume, à minha frente, aquele pau em brasas com uma pequena laba-
reda, nada fazia. Ficava lá, estático, como se nem mesmo o ar que se
movia por dentro de minha casa pudesse movê-lo.
– Ela ainda não desenvolveu o Elemento – meu pai suspirou
desanimado, temeroso de eu não vir a me tornar uma Drakkar.
– De fato – sorriu minha vovó, esperançosa de me fazer Pro-
tetora.
Eu queria ser uma Drakkar, era verdade, mas na minha idade,
também pouca ou nenhuma diferença fazia se eu já tivesse ou não
desenvolvido Elemento. No fim do dia, eu podia voltar a brincar
com Yu e Yue pela aldeia e, naquela época, era só o que me impor-
tava.
Corri para próximo de meus amigos, com a aldeia às minhas
costas e o rio em tom amarelo à minha frente.

– E então? – perguntou Yue, assim que retornei para perto de-


les, que se assentavam embaixo de uma árvore próxima ao rio.
– Nada ainda... – dei de ombros.
– Mas vai conseguir, um dia – disse Yu, cheio de ânimo.
– Vem! – gritou Yue – Sente-se aqui – ela bateu no chão, ao
seu lado.
– Não – desdenhei – Vai sujar minha roupa... – estiquei o teci-
do para desamassá-lo.
Eles riram.
Minha roupa, diferente das da maioria dos aldeões, era feita de
seda. Claro, não era a mesma seda trabalhada tão conhecida nos
tempos modernos, mas uma forma mais rústica e primitiva. Estáva-
mos recém aprendendo a produzi-la e, sendo assim, por essa dificul-
dade, era reservada às famílias mais importantes e ricas e, a minha,
bem, era uma delas.
– Saiam daí! – gritou tio Gun, o pai de Yu e Yue, enquanto
passava longe de nós, observando o rio.
Ficar próximo ao rio era perigoso. As cheias vinham muito rá-
pidas e muitas crianças se afogavam nas aldeias que se erguiam nos
seus arredores por ficar brincando perto do rio. Não eram poucas,
naquele tempo, as crianças que se deitavam nos jarrões de cerâmica,
que serviam de urna, para enterrar os corpos dos mais novos.
– Um dia eu vou mudar esse rio – Yu resmungou indignado
enquanto se levantava e puxava sua irmã – Nunca mais teremos en-
chentes.
Yue e eu rimos.
– Um dia a Long’er vai ser uma Drakkar – disse Yue – E vai
poder mudar o curso desse rio e proteger todos nós.
– Se fosse assim – Yu desdenhou – O tio Liu já teria feito.
Era verdade que meu pai era um Drakkar, mas mesmo sendo
ele do Elemento Água, não poderia mudar o curso do rio. Caso fos-
se do Elemento Terra, um simples Sopro Tectônico faria o serviço.
Talvez se tivéssemos algum Drakkar Verde na nossa aldeia, tudo
seria diferente; Mas Drakkars eram escassos e super vigiados.
Corremos para a praça central, que era circundada por todas as
casas, e nos sentamos em alguns banquinhos de madeira que lá havi-
a. Yue, aproveitando o momento, correu mais um pouco, até sua
casa, para pegar um pouco de milhete para comer.
O Sol, pondo-se no horizonte, aquecia nossos rostos com seu
brilho dourado e suave enquanto uma leve brisa acariciava nossa
pele. Nada podia ser mais gracioso que os dias de criança na nossa
aldeia.
– Sabe, Long’er – disse Yu – Não quero que você se transfor-
me em uma Drakkar... – ele ficou cabisbaixo.
– Por quê? – perguntei curiosa.
– Porque você vai embora... – ele disse coçando o nariz com o
dedo indicador, sem olhar para mim.
– Mas eu vou voltar – expliquei – É só por alguns anos, para
aprender com um Mestre Drakkar.
Não percebia, naquele momento, que Yu gostava de mim mais
do que uma amiga; mas as nossas famílias eram muito diferentes e,
enquanto ele era filho de um nobre, eu era herdeira da matriarca da
aldeia. Mesmo minha família tendo muitas posses, não nos deixariam
casar por eu não ter sangue nobre. Porém, ainda assim, esse não era
um pensamento que me passava pela cabeça naquela idade.
– Um dia vou ser ministro – Yu bateu no peito e apontou para
si com o dedão – E vou me casar com você – disse de supetão apon-
tando para mim.
Aquela frase me deixou em choque. Não sabia o que dizer.
Éramos duas crianças e aquelas conversas não deveriam acontecer.
Sorri e olhei para o chão. Com o canto dos olhos prestava a-
tenção nas pessoas que passavam por nós, retornando para suas
casas depois do dia duro de trabalho no campo ou no rio.
– Vocês dois... sempre juntos – riu o tio Qi enquanto se apro-
ximava, acompanhado de Yue e repleto de tigelas com milhete cozi-
do.
Tio Qi, baixinho e já de idade, era o chefe do Clã Qi e tinha
uma plantação de milhete mais ao norte. Era também de origem
nobre e tratava Yue e Yu como se fossem seus próprios filhos. O tio
Gun e o tio Qi eram como irmãos.
Naquela época, mesmo o Imperador Shun passeava entre o
povo e os nobres andavam pelas aldeias sem maiores problemas. A
única coisa que não havia era casamento entre eles e outras famílias
não nobres; porém, o contato, amizade e companheirismo entre as
pessoas eram muito estimulados.
– E então Yu? – o tio Qi sorriu – Está feliz com a mudança?
Nós nos olhamos sérios. Que mudança?
– Como assim, tio? – perguntou Yu.
– Seu pai não lhe contou que o Imperador o chamou para mo-
rar próximo de ZhongGuo, no pé do Monte Song? – disse o tio Qi.
Yu rapidamente baixou a cabeça. Estava triste; e eu sabia o
porquê. Aquela notícia abrupta, daquela forma, tirou seu chão.
– Eu não quero ir – disse Yu gritando enquanto saía correndo
a esmo sem parar.
– Onde é isso, tio Qi? – perguntou Yue, sem entender direito
o que estava acontecendo.
Eu me levantei e corri atrás de Yu, deixando o tio Qi expli-
cando para Yue sobre sua futura mudança.
Yu e Yue eram meus únicos amigos e, sem eles, eu ficaria re-
almente muito sozinha e sabia que, para Yu, aquela separação o dei-
xaria muito triste, pois ele havia acabado de dizer que queria casar
comigo.
– Yu’er! – gritava enquanto tentava alcançá-lo na corrida.
Ele corria desesperado, deixando as marcas pesadas de seus
pés afoitos e raivosos no chão, como cicatrizes de sua dor. Porém,
depois de alguns minutos, ele parou de súbito.
– Yu’er... – respirei ofegante parando ao seu lado.
Ele, de cabeça baixa, tentava segurar o choro, enquanto meu
coração se enchia de pena e carinho. Queria poder fazer algo para
aliviar sua tristeza.
– Eu não quero deixar a aldeia – ele disse, fungando o nariz.
– Eu sei... – comentei olhando para o chão.
Aquilo era muito ruim e eu começava a me sentir estranha.
Nunca havia perdido amigos tão próximos daquela forma.
– Nós vamos dar um jeito de nos vermos – eu disse – Eu irei
visitar vocês no Monte Song...
– Eu prometo! – ele se virou e me pegou pelos ombros, de
susto, enquanto olhava, lacrimejando, fundo nos meus olhos – Eu
prometo, Long’er... – disse abraçando-me com força – Eu vou ser
ministro e vou voltar para casar com você – apertou-me, por fim.
Eu o abracei com a mesma força e fiquei ali, daquele jeito, jun-
to a ele, por alguns segundos. Pensar que meus amigos iriam embora
me fazia querer sair daquela aldeia também. Precisava despertar meu
Elemento de uma vez, e ir treinar com um Mestre Drakkar. Assim
teria poder e liberdade para ir aonde eu quisesse e, dessa forma, po-
deria ver meus amigos sempre que tivesse vontade.
– Promete que vai me esperar? – ele me perguntou ao pé do
ouvido – Que... vai se casar comigo? – pegou-me de surpresa.
O que eu poderia dizer? Vê-lo daquela forma me partia o co-
ração e eu não queria ver meu melhor amigo chorando.
– Prometo – respondi, cheia de hesitação e completamente
confusa, mas decidida a amenizar seu sofrimento.
– O Clã Si e o Clã Liu juntos... – ele sorriu – Seremos muito
felizes; eu prometo.
Sorri um sorriso perdido. Não queria decepcioná-lo naquela
hora difícil.
Às minhas costas, o Sol se punha lentamente, deixando sua luz
cada vez mais tênue enquanto o vermelho dos céus dava espaço para
a noite. E, depois daquelas promessas todas em desespero, nós dois
voltamos para a praça central e comemos o milhete do tio Qi, como
se nada tivesse acontecido. Essa era a beleza da pureza de ser crian-
ça.
—————|II|—————

VOVÓ WU MEI

epois da partida de Yu e Yue para o Monte Song, eu me


dediquei ao treinamento com minha vovó Wu Mei. Preci-
sava despertar meu Elemento Água o mais depressa possí-
vel, antes de ser enviada para ser treinada como Protetora. Uma vez
que fosse feita Protetora, não poderia mais despertar o Elemento.
Os dias sem meus amigos, claro, eram monótonos. Não tinha
com quem brincar, nem com quem conversar ou reclamar da vida.
O quadro colorido que antes se pintava todas as manhãs quando saía
pela porta de minha casa, agora tinha um tom pastel desbotado e
parecia que aquela época de flores, dava espaço novamente para o
frio e a neve gelada e branca que se estendia pelo vale.
– Long’er – minha vovó me chamou enquanto praticávamos a
Contemplação.
– Sim, vovó? – disse.
– Onde está sua cabeça? – ela me puxou a orelha – Mantenha-
se no presente, ou sua Essência vai se perder. Tenha foco.
– Sim, vovó... – respondi.

O treinamento com minha vovó se iniciava ao nascer do Sol.


Ela e eu seguíamos para o topo de um monte de onde podíamos ver
nossa aldeia e o curso do rio Amarelo como uma obra prima que
cortava a região; e lá nos sentávamos para praticar a Contemplação,
no intuito de Cultivarmos a Essência Primordial, a base do poder
dos Protetores.
Minha vovó, austera e muito focada, nem parecia ter a idade
que tinha. Era uma senhora de mais de sessenta anos, mas mantinha
uma aparência jovial e, seus cabelos, longos e completamente bran-
cos, tinham um brilho sedoso, que refletia em seus olhos azuis cla-
ros; marca de que era uma Protetora plena.
– Um dia, Long’er – ela disse – Você vai ser, ou uma Proteto-
ra, ou uma Drakkar. Seja o que for, transforme isso em uma bênção
para todos à sua volta. Seja doce e gentil, mas sempre seja firme;
como a própria vida, que é um presente, mas também uma professo-
ra rígida. Duro e macio. Firme e flexível. Percorrer os opostos é es-
tar em harmonia.
– Sim, vovó... – concordei.
Pela manhã, depois da Contemplação, praticávamos o Primei-
ro Nível da Palma Servil, chamado “Passar a Pétala de Flor”. Para tal,
Vovó Wu Mei mantinha sua palma virada para cima e, sobre ela,
deitava uma pétala de flor e, usando sua Essência Primordial acumu-
lada, ela a expelia ao ar e a movia graciosamente em direção à minha
palma aberta. Eu, assim como ela, devia fazer fluir o mesmo poder e,
com precisão, devolver a pétala à sua mão. Aquilo servia para que eu
dominasse a transmissão da Essência Primordial acumulada no meu
interior para o mundo externo, podendo usá-la para mover coisas ou
até mesmo empurrar ou golpear pessoas ou objetos.
À tarde, depois do descanso do meio dia, nós seguíamos para
um local mais árido e cheio de obstáculos naturais, com grandes
pedras, córregos e até mesmo alguns desfiladeiros. Lá, minha vovó
me fazia praticar o Segundo Nível da Palma Servil, chamado de
“Corpo das Oito Sedas”.
– De que seu corpo é feito, Long’er? – ela me perguntava.
– De Essência Primordial – eu respondia.
– E como você faz para atravessar um vale com um salto?
– Fazendo a Essência circular e movendo o Fluxo Primordial
de forma a me fundir com a natureza...
– E por que isso permite que você pule o vale?
– Porque meu corpo se torna mais leve e rápido.
– E por que isso acontece?
– Porque eu sigo o fluxo da própria natureza e ela me apóia
em meus movimentos, levando-me aonde quero ir da forma mais
fácil possível.
Assim nós passávamos o resto da tarde saltando, planando e
correndo por aquele local; e, à noite, de volta à nossa casa, em um
canto separado de onde podia ver na rua o cercadinho onde tínha-
mos nossas cabras e ovelhas, minha vovó me fazia praticar o Tercei-
ro Nível da Palma Servil, chamado de “Mover Essência”. Esse nível
era o mais longe que se podia ir no aprendizado da Palma Servil e
era a parada final, antes de me tornar uma Protetora plena.
– Controle seu alvo... – ela dizia.
Eu, tal como ela havia me ensinado e já havia praticado diver-
sas vezes, concentrava-me no corpo de uma ovelha e sentia sua Es-
sência. Com isso, combinava minha própria Essência Primordial
com a dela e, através dessa conexão, ao controlar minha própria
Essência, eu controlava a sua e, desse jeito, podia segurá-la ou movê-
la como bem entendesse. Em um ser humano, aquele nível me per-
mitia ter total controle de seu corpo. Realmente o poder dos Prote-
tores era sublime. Porém, para me tornar definitivamente uma Prote-
tora, deveria seguir para o Grande Palácio dos Protetores, onde o
Clã se reunia, e treinar por mais alguns anos até dominar a forma de
alterar minha própria Essência Primordial, modificando-a para imitar
a Essência Draconiana. E seria nesse momento que meus cabelos se
tornariam completamente brancos, meus olhos azuis e eu poderia
subjugar um Drakkar da mesma forma que fazia com aquela simples
ovelha.
– Mas vovó... – eu a chamei – Se eu já sou filha de um Drak-
kar, eu não possuo a Essência Draconiana?
– Nesse estado em que você se encontra, minha Long’er – dis-
se minha vovó – Você possui sua Essência Draconiana adormecida
no interior de sua Essência Primordial humana. Somente quando ela
despertar, por alguma razão, ela tomará completamente sua Essência
Humana e permeará tudo com Essência Draconiana. Por isso, en-
quanto ainda é humana, quando você fizer a “Transmutação” de sua
Essência Primordial, para simular a Essência Draconiana, esta se
manterá dormente para sempre, pois pensará que já está desperta.
Sendo assim, você seguirá uma Protetora como todos do nosso Clã.
Ser uma Protetora seria uma honra absoluta. Eles eram admi-
rados, respeitados e, claro, temidos; mas em um bom sentido. Todos
viam neles os protetores da raça humana contra o poder dos Drak-
kars e dos próprios Lordes que um dia haviam andado sobre a Terra.
Até mesmo o Imperador os admirava. Tanto que tinha um de-
les como conselheiro. Mas, mesmo assim, algo em mim queria que
eu despertasse o Elemento e me tornasse uma Drakkar Azul, como
meu próprio pai.
– Sabe, Long’er... – cochichou minha vovó, enquanto deitá-
vamos para dormir, nas camas de pano que ficavam nos cantos da
casa, encostadas nas paredes – Hoje recebi uma mensagem. Eu fui
chamada para retornar ao Palácio, mas não posso levar você agora...
Terei que ficar um tempo longe.
Minha vovó era a Terceira Mestra do Clã dos Protetores e, a-
cima dela, só havia a Segunda e a Primeira Mestra, que era quem
mandava definitivamente no Palácio. As três juntas eram conhecidas
como As Três Luzes do Protetorado.
– Por que vovó? – perguntei.
– Um grupo de Drakkars deixou o Palácio e sumiu.
– E por que os Protetores não impediram? – perguntei curio-
sa, já que o controle sob os Drakkars era absoluto.
– É o que queremos descobrir. Por isso preciso que, nesse
meio tempo em que eu estiver fora, você treine todos os dias.
– Sim, vovó...
– Promete? – ela sorriu, dando-me um raro presente.
– Prometo – sorri em resposta.
Naquela época eu ainda não sabia, mas minha vovó havia sido
chamada de volta ao Grande Palácio dos Protetores porque um
Drakkar havia atingido, pela primeira vez, a forma Varanus e, assim,
causou um enorme alvoroço no meio Drakkar. Esse primeiro Vara-
nus fugiu com muitos seguidores e desapareceu, para se dedicarem
sem problemas ao aprendizado do Sangue Draconiano. Foi nesse
momento que nasceu o estudo do sincronismo do nosso sangue.

No dia seguinte minha vovó se despediu e saiu em direção ao


Grande Palácio dos Protetores, cujo local era conhecido somente
por eles, e pelos Drakkars sob seu controle. Um local escondido
justamente para poderem se dedicar sem perturbação ao Cultivo da
Essência Primordial.
Dessa forma, tal como me pedira minha vovó, eu treinei. Mi-
nha rotina árdua seguia como se ela estivesse comigo todos os dias:
Eu Contemplava ao nascer do Sol e me dedicava pelo resto da ma-
nhã a usar a Essência Primordial para empurrar e golpear pedras,
troncos e tudo o que pudesse ver pela frente. Durante a tarde vagava
pelas montanhas, correndo e saltando e, no fim do dia, pobre de
nossas cabras e ovelhas que não aguentavam mais serem paradas,
movidas, deitadas e até mesmo suspensas no ar por mim.

E, tal como uma música tranquila e pacífica de um harmonio-


so GuZheng, os dias se passaram sem que eu percebesse e, logo, me-
ses já haviam se ido e, por fim, um ano.
Nesse tempo, meu pai me contou os rumores que havia ouvi-
do, sobre um grupo de Drakkars que tinha aprendido a atingir uma
forma superior, chamada Varanus, e que estavam buscando novos
seguidores para se juntarem a eles. Meu pai, excitado com a possibi-
lidade, estava seriamente pensando em se juntar ao grupo para atin-
gir níveis mais elevados, porém, era óbvio que fazer isso era buscar a
inimizade dos Protetores e, ninguém queria ser inimigo dos Proteto-
res; principalmente meu pai, que tinha uma como sogra.

Nas semanas seguintes, meu pai, por conta do destino, acabou


tendo contato com esses Drakkars dissidentes através de um de nos-
sos tios que também era Drakkar e, logo, nossa casa era ponto de
encontro de alguns desses novos “participantes” do grupo.
Ainda lembro-me de como suas conversas sobre os conheci-
mentos que tinham sido desenvolvidos eram realmente empolgantes,
e que um deles dizia que o mestre mais velho, o primeiro que havia
atingido a forma Varanus, tinha certeza de que, em alguns anos, po-
deria atingir a forma de um Dragão.
Com o passar do tempo, infelizmente, aquela excitação subiu à
cabeça de meu pai e, depois de outro ano, assim que se aproximou o
dia quando minha vovó estava para retornar à nossa casa, ele decidiu
partir com o grupo para continuar os estudos do sincronismo.
– Long’er, meu amor – ele me acordou no meio da noite.
– Papai? – disse assustada – O que foi?
– Sua vovó está voltando – ele disse – E, por isso, vou deixar
você aos cuidados dela e de sua mãe.
– Aonde vai, papai? – perguntei apreensiva, segurando seu
braço para que não saísse.
– Eu vou aprender mais sobre nós – ele sorriu enquanto acari-
ciava meu rosto, naquela despedida noturna.
– Não vá... – escorreu a primeira lágrima.
– Adeus, minha Long’er. Voltarei um dia – Ele sorriu e, viran-
do as costas, saiu pela porta.
A dor do abandono do meu pai me assolou de uma forma que
eu não podia imaginar. Ele era meu tudo. Meu exemplo, meu ídolo,
meu amor. Era quem eu queria ser, quem eu defenderia e protegeria
com todas as minhas energias quando ele estivesse velhinho. Vê-lo
saindo e me deixando na escuridão, sob um único e fino feixe da luz
da Lua que atravessava uma fresta, era como ver o Sol se pondo em
um dia gelado na estação das neves. A tristeza e a melancolia parecia
se instalar e crescer mais e mais a cada passo que ele dava para longe
de mim.
Passei o resto da noite encolhida, abraçada em minhas pernas,
olhando para a rua através da porta, chorando, esperando que ele
retornasse e que tudo aquilo tivesse sido apenas um sonho ruim; mas
ele jamais voltou.
Minha mãe, ao acordar sozinha no dia seguinte, entrou em de-
sespero. Chorou até minha vovó chegar e tentar consolá-la; porém,
para ela, aquilo era o fim de uma família. Ela se sentia, não apenas
abandonada, mas rejeitada e indigna. Aquela decisão de meu pai, de
nos abandonar em favor do grupo de Drakkars, havia trazido vergo-
nha para o Clã Liu. Nossa família estava amaldiçoada.
E, assim, na semana que se seguiu, minha mãe, em profunda
tristeza, beijou-me a testa sorrindo e disse:
– Minha Long’er, um dia você será uma rainha, e ninguém vai
machucá-la.
Ela seguiu vagarosamente com passos tortos e olhar perdido
no horizonte em direção ao rio Amarelo e se jogou. Todos correram
para salvá-la, mas a correnteza do rio sempre fora forte demais, rapi-
damente engolindo seu corpo. E, foi nesse desespero que disparei
em sua direção e me joguei ao rio para salvá-la e, foi nesse mesmo
desespero, que meu Elemento despertou e, com todas as minhas
forças, obriguei o rio Amarelo a entregá-la de volta a mim, levando-
nos até a margem, onde os aldeões nos acudiram. Meu choque era
tanto que sequer havia percebido o imenso poder que fluiu através
de mim ao fazer explodir o Elemento Água.
Felizmente minha mãe sobreviveu, porém, ainda assim, no fim
do dia, ao entender completamente o que havia acontecido com
minha família, eu fiquei destruída. A dor que percorria meu coração,
o tremor nas pernas e o soluço do choro não faziam jus ao estrago
que eu sentia dentro de mim. Todas aquelas sensações perturbadoras
se misturavam e me faziam sentir um vazio e uma solidão que eu
nunca havia imaginado nem nos meus piores pesadelos. Para mim, a
alegria de viver havia terminado ali mesmo. Eu tinha apenas treze
anos e estava completamente perdida.
—————|III|—————

CHEGANDO AO
GRANDE PALÁCIO DOS PROTETORES

a semana que se seguiu, minha vovó e minha mãe fizeram


um acordo: eu iria treinar com um Mestre Drakkar no
Grande Palácio dos Protetores enquanto elas viajariam o
mundo juntas, para conhecerem novos lugares e fazer com que mi-
nha mãe esquecesse aquela dor que a devorava.
Não era comum para pessoas comuns viajar naquela época.
Não acontecia assim; todavia, os Protetores tinham diversos Postos
de Controle espalhados por muitas regiões e cidadelas ao longo do
velho mundo e, por isso, minha vovó poderia levar minha mãe con-
sigo nessas viagens de rotina. Isso faria muito bem para elas. E, sen-
do minha vovó uma das Três Luzes do Protetorado, elas estariam
completamente seguras.
Então chegou o dia em que me despedi de minha mãe aos
prantos e fui levada pela minha vovó ao Grande Palácio, no topo de
uma montanha a oeste da cordilheira Pamir.
A posição estratégica do Palácio permitia que ambos os lados
do mundo pudessem ser vigiados e controlados. E, não foi à toa que
o Instituto Pamir fora construído nessa cordilheira, pois estaria sob
o controle total dos Protetores.
Recordo ainda o cheiro das flores e o encanto do branco e do
dourado que compunham os detalhes da arquiterura elegante e deli-
cada do Grande Palácio dos Protetores. Era como olhar para um
momento de graça eterno que abraçava o coração com um calor
amável e convidativo. Era como meu lar, mas anos à frente no que
se entendia por qualidade de vida, higiene e beleza. Era um oásis de
modernidade dentro de um deserto árido de dificuldades de aldeias
tribais.
– Seja bem vinda, Long’er, ao Grande Palácio dos Protetores –
disse minha vovó levando-me até o enorme pórtico da entrada.
– Então essa é a famosa Long’er! – disse uma senhora que
veio sorridente ao nosso encontro.
Os cabelos brancos e os olhos azuis não deixavam dúvidas de
que se tratava de uma Protetora.
– Sim, Dvorah – confirmou minha vovó – Essa é minha neta.
– Ela é linda – disse a senhora bastante simpática.
Aquela velha Protetora, chamada Dvorah, tinha feições dife-
rentes de tudo o que eu já havia visto. Não fazia parte do nosso po-
vo Han. Sua pele era bronzeada, seus cabelos eram muito enrolados,
quase crespos.
– Essa é Dvorah – minha vovó me disse – Ela é a Segunda
Mestra do Clã dos Protetores e é quem vai ficar cuidando de você,
enquanto cuido de sua mãe.
Concordei com minha vovó sem pestanejar. Só por estar ali,
no Palácio, sabendo que finalmente seria aprendiz de um Mestre
Drakkar, já me restaurava o ânimo. Aquilo fazia, nem que por um
momento, com que eu me esquecesse dos problemas e do abandono
repentino do meu pai. Queria focar meu aprendizado na raiva que
começava a nascer e queria direcioná-la a ele, completamente. Eu iria
me tornar uma grande Drakkar, como meu pai queria, e iria encon-
trá-lo e fazê-lo implorar o perdão de minha mãe, a qual quase morre-
ra por sua causa.

Depois da segunda despedida, dessa vez de minha vovó, fui


levada por Dvorah até uma grande ala dentro daquele imenso Palá-
cio, onde outros jovens, de diversas etnias, andavam para lá e para
cá, como se morassem ali há muito tempo.
– Sua avó, Wu Mei, contou-nos que você é uma Drakkar Azul
– disse a Segunda Mestra, Dvorah, acariciando-me a cabeça.
– Sim – sorri, orgulhosa de mim.
– Você tem muita sorte de ser sua neta... – disse a Segunda
Mestra.
– Por quê? – perguntei curiosa.
– Porque todos os Mestres estão com seus aprendizes preen-
chidos e, claro, uma nova Drakkar não seria admitida e teria seu E-
lemento destruído. Você está sendo aceita porque é um pedido par-
ticular de Wu Mei.
Baixei a cabeça e deixei o calafrio subir pelas minhas costas
enquanto assimilava o grande problema do qual tinha me livrado
pelo simples fato de ter nascido neta de uma das Mestras do Palácio.
– Como você é uma Han – disse ela – Conseguimos com que
sua Mestra fosse alguém do seu povo. Você será aprendiz dela... – a
Segunda Mestra apontou com a cabeça para uma mulher que se a-
proximava.
A mulher, de feições como as minhas, tinha longos cabelos
pretos que iam até os joelhos. Diferente da etiqueta que nos era im-
posta na aldeia, ela não os prendia com um penteado.
– Lihuá! – a Segunda Mestra a chamou – Essa é QingLong, de
quem falei. Ela será sua quarta aprendiz.
– Seja bem vinda QingLong – ela disse – Venha comigo. Vou
apresentá-la aos seus companheiros.
Despedi-me da Segunda Mestra e segui com Lihuá, minha no-
va Mestra Drakkar, até o pátio dos fundos, onde diversos jovens,
divididos em trios, acompanhavam seus Mestres Drakkars em aulas
particulares.
Ao longe, em um vasto campo, diversos Drakkars praticavam
seus Sopros sob a tutela dos seus respectivos mestres.
– Você parece muito feliz – disse Lihuá sorrindo ao ver meus
olhos brilhando ao presenciar aquilo tudo.
Era verdade que meu coração parecia ter encontrado um cen-
tro, um lugar onde eu não conhecia ninguém, mas mesmo assim me
sentia acolhida e em família. A visão daquelas proezas maravilhosas
me fazia sonhar com as possibilidades e com toda a diversão e a-
prendizado que teria dali para frente.
– Vou ser uma grande Drakkar – eu disse cheia de certeza.
– Você parece muito confiante – ela riu.
Ora, eu era filha de um Drakkar muito poderoso e neta da
Terceira Mestra do Palácio. Tinha aprendido desde pequena a Arte
dos Protetores. Eu estava à frente de todos os que estavam come-
çando junto comigo. Pelo menos eu pensava assim.
– Pessoal – Lihuá chamou seu trio enquanto nos aproximáva-
mos – Essa é QingLong. Ela será nossa nova companheira.
– Mas só pode haver trios – disse a única garota, até então,
como um puxão de orelha.
– A menos que seja ordem das Mestras do Palácio – repreen-
deu um dos garotos enquanto me cumprimentava juntando as mãos
à frente e se curvando, como meu povo, tentando fazer com que eu
me sentisse em casa – Sou Benke. Seja bem vinda – ele disse.
O garoto tinha feições alvas, olhos azuis e cabelos castanhos
claro. Nunca havia visto nada parecido como eles. A garota, que
havia repreendido a Mestra, parecia vir de outro mundo: era muito
branca e tinha feições fortes, nariz longo e retilíneo, e seus cabelos
pareciam sedas feitas com fios de ouro. O outro garoto tinha uma
cor mais escura em um tom bronzeado, com olhos cor de mel e um
sorriso tímido.
– Olá – ele me cumprimentou juntando as mãos em frente ao
rosto, como se fosse rezar – Meu nome é Bandhu.
– Olá – respondi, cumprimentando a todos.
– E essa é Alethea de Ida – a professora apresentou a minha
nova companheira – E sim, Alethea, apenas trios são permitidos... a
não ser com ordem expressa das Mestras do Palácio. O que é o caso.
– Desculpe-me, Mestra – disse Alethea.
– Somos o primeiro quarteto de Drakkars! – riu Benke – Esse
é um momento para se comemorar!
– Tudo você quer comemorar – resmungou Alethea.
– Eu amo comer, vou fazer o quê? – riu Benke.
Bandhu achava graça, mas continha seu sorriso como podia,
porém seus olhos entregavam sua risada interior.
– Agora vamos nos sentar para a aula – disse a Mestra Lihuá
enquanto seguia para uma mesa distante.
Nós seguimos com ela e, tal como os outros trios estavam
com seus Mestres, tendo suas aulas particulares, nós também come-
çamos as nossas sob a tutela da Mestra Lihuá.
Ver todas aquelas pessoas de cores, tamanhos e culturas dife-
rentes me deixava admirada. A vida era tão diversa, tão ramificada,
que eu sequer imaginaria encontrar, em toda a minha vida, uma pes-
soa com a pele em uma cor completamente preta, como muitos ali.
Aquele lugar era fascinante.

***

Nos anos que se seguiram, aprendi tudo o que poderia apren-


der sobre a nossa história Drakkar. Sobre a Mãe Tiamat, sobre os
Lordes Dragões e sobre as duas Guerras Dracônicas que os Proteto-
res haviam travado contra eles, culminando na prisão destes e na
libertação da raça humana de sua tirania.
Aprendi que, durante a Primeira Guerra Dracônica, quase toda
a raça humana fora extinta pelos Lordes, pois eles acreditavam que o
ser humano tinha se corrompido de forma a não poder ser salvo,
porém, com o poder nascente dos Andulène, os primeiros Proteto-
res, uma pequena parte da humanidade foi protegida. Quinhentos
anos depois, uma nova tentativa foi empreendida contra os Lordes e,
os Protetores, agora infundidos com um poder surpreendente, do-
minando a Shurdu, isto é, a Palma Servil, puderam subjugá-los e
prendê-los, utilizando-se de uma gema especial: A Gema Escarlate.
E, a partir dessem momento, impondo seu controle sobre os primei-
ros Drakkars que surgiam, criaram um sistema de aprendizado que
persistia até aquele dia. Sistema esse do qual eu fazia parte.
Como os trios compunham-se de Drakkars do mesmo Ele-
mento, acabou que meus companheiros, nossa Mestra Lihuá e eu
éramos todos Drakkars Azuis; e, por isso, passávamos o dia apren-
dendo e praticando Sopros do Elemento Água, como o Sopro Relâm-
pago, o Sopro de Neblina, o Sopro de Rompimento, o Sopro Trovão, o Sopro
de Rapina e muitos outros. O treinamento era intenso e sem descanso
e, o pouco tempo que tínhamos para nós mesmos, passávamos ob-
servando os outros trios e, sempre que podíamos, fazíamos chacota
de uns ou outros, afinal, éramos adolescentes e bobos.
– Se vocês não se comportarem, a Mestra Lihuá vai lhes trans-
ferir para estudarem com a Trovão Abenuz – brincava Benke.
Trovão Abenuz era o apelido de uma das Mestras Drakkars
mais sérias que havia no Palácio. Ela era uma mulher preta, do ex-
tremo sudoeste, cujos cabelos, sempre presos, levavam diversas ar-
golas brilhantes que pareciam ser feitas de uma espécie de energia
sólida. Todos tinham medo dela, pois não possuía e não queria a-
prendizes e, sendo assim, muitos rumores e piadas se espalhavam
pelos cantos, dizendo que ela era tão severa que matava os aprendi-
zes que não conseguissem acompanhá-la no treinamento. Ela, por
outro lado, não rebatia os rumores e sequer conversava com os ou-
tros. Era muito reservada e introspectiva. Ninguém tinha coragem
de abordá-la, nem mesmo os outros Mestres.
Eu era, ali, muito feliz. Minha amizade, com meus companhei-
ros, florescia e crescia fortemente sob o carinho de nossa Mestra
Drakkar e, eventualmente, para minha alegria, eu era visitada por
minha vovó Wu Mei e minha mãe que, naquele tempo, já estava
animada novamente e cheia de brilho.
Meu pai, que nos abandonara anos antes, jamais dera sinal de
vida e nós nunca mais ouvimos falar dele. Porém, depois de tantos
anos recebendo muito carinho de todos, o sentimento de tristeza
deixado por ele foi sumindo e, no fim, só podia esperar que estivesse
bem em algum lugar do mundo.
Então, depois daqueles cinco anos de aprendizado, crescimen-
to e treinamento, desenvolvendo meu Elemento e aperfeiçoando os
Sopros de Água e os Sopros Neutros, sentia-me cada vez mais con-
fiante e madura. Minha Mestra Lihuá já dizia que ela mesma não
tinha mais conhecimento para me passar e, meus companheiros,
mesmo tendo praticado junto comigo por todo aquele tempo, não
conseguiam ter o mesmo desenvolvimento. Para mim era claro que a
vantagem que eu levava sobre eles era decorrente do treinamento
com minha vovó desde criança, onde aprendera como controlar o
Fluxo Primordial dentro do meu corpo e a Cultivar a Essência Pri-
mordial, podendo até mesmo usá-la através da Palma Servil. Eu ti-
nha sido abençoada por ter nascido em uma família Drakkar e Prote-
tora.
—————|IV|—————

A PASSAGEM

enti, ainda de olhos fechados e enrolada em meus cobertores,


uma presença no meu quarto. Podia sentir o cheiro doce que
aromatizava o ar.
– Parabéns Long’er! – gritou Benke assim que abri meus olhos
no alojamento.
Ele estava parado no pé de minha cama, junto com Alethea e
Bandhu.
– Parabéns! – disseram os outros dois.
Pus-me de pé enquanto sorria, com meu coração tomado por
uma alegria confortante e calorosa. Era meu aniversário de dezoito
anos e, por acaso do destino, era também o dia em que empreende-
ríamos nossa primeira tarefa como Drakkars.
O Palácio dos Protetores utilizava-se de seus Drakkars para
escoltar ou proteger pessoas e artefatos importantes, enquanto os
próprios Protetores ocupavam cargos mais relevantes, como conse-
lheiros, curandeiros e professores de nobres e outras pessoas.
– Depressa... – Alethea trouxe uma vela acesa – Assopre e pe-
ça aos deuses que lhe protejam dos espíritos vis que vão lhe cercar
no dia de hoje...
Eu já estava habituada com seu costume de comemorar o nas-
cimento daquela forma, pois havia passado por aquilo nos últimos
quatro anos.
Fiz meu pedido de proteção e soprei a vela.
– Ótimo! – ela disse jogando um punhado de folhas secas co-
loridas picotadas sobre mim.
Tudo aquilo era para afastar os maus espíritos que me rondari-
am durante meu dia de aniversário.
– Para você, Long’er – disse Bandhu esticando suas duas
mãos, oferecendo-me uma flor lilás de aroma doce.
Tomei-a e a coloquei no cabelo, como já havia feito nos ani-
versários dos anos passados.
Era seu costume sempre me dar flores, e eram sempre muito
perfumadas e coloridas.
– Long’er... – Benke olhou para os lados, como se estivesse se
escondendo de alguém – Aqui... para você – ele esticou a mão, en-
tregando-me um frasco.
Assim que o peguei, ao abrir, senti o cheiro forte de mel mis-
turado com algo fermentado.
– O que é isso? – perguntei curiosa.
Nos anos anteriores, Benke sempre me presenteara com algo
do campo, como flores, mel ou pedras desenhadas, mas aquele mel
ali possuía algo mais.
– É mel – ele disse – Mas adicionei água e ervas, e o deixei fe-
chado, para absorver bem o aroma. Agora se tornou algo que não é
nem mel, nem água. Beba, você vai gostar...
Olhei para os três. Pareciam estar esperando ansiosos para que
eu tomasse aquele mel com água. Certamente já haviam provado.
– Tudo bem – disse dando o primeiro gole.
Aquela bebida desceu doce, mas logo senti um leve ardor na
minha garganta que subiu pelo nariz. Tossi no mesmo instante.
– É forte... – resmunguei tentando respirar.
Todos riram.
– É – disse Benke – É bem forte, mas é muito bom. Deixa a
gente alegre! – ele riu.
– Long’er! – chamou a Mestra Lihuá entrando em meu quarto
– Ah, estão todos aí!
Benke rapidamente se virou, tomando o frasco de minha mão
e tentou guardá-lo.
– O que estão escondendo? – ela perguntou desconfiada o-
lhando para nós.
Nós nos olhamos e rimos.
Benke esticou a mão e mostrou o frasco.
A Mestra Lihuá balançou a cabeça em decepção, mas sorriu
logo em seguida.
– Vocês não têm jeito – ela disse – Vocês são os piores apren-
dizes de todo o Palácio! Todos os outros já estão aprendendo So-
pros avançados e vocês ainda estão brincando como se fossem cri-
anças recém chegadas!
Todos nós baixamos as cabeças, segurando-nos para não rir-
mos.
– Hoje é o dia do primeiro trabalho de vocês – disse a Mestra
Lihuá – Dediquem-se, por favor.
– Sim Mestra Lihuá – nós dissemos em conjunto.
Diferente dos outros aprendizes, por conta de Benke, nosso
quarteto sempre encarava todos os treinamentos com leveza e brin-
cadeira. Sabíamos que ser Drakkar era algo muito sério e que devía-
mos nos dedicar com todas as forças, mas Benke sempre conseguia
tornar tudo muito mais divertido. E, ainda assim, nós aprendíamos
muito bem. Éramos bons Drakkars, mas não gostávamos de mostrar
isso aos outros aprendizes. Mesmo a Mestra Lihuá não percebia co-
mo nós nos dedicávamos depois das aulas, treinando sozinhos em
locais mais distantes.

Depois de comermos, a Mestra Lihuá nos explicou que tería-


mos que escoltar um nobre, desde o Palácio até sua casa, próximo ao
rio Amarelo, minha terra natal.
Como ficara curiosa sobre quem era o nobre que vivia próxi-
mo ao Rio Amarelo, perguntei à Mestra Lihuá e, ela, para minha
tristeza, disse-me que nós não saberíamos a identidade do nobre e
que nosso único trabalho era levá-lo vivo até sua casa. Ele havia vin-
do visitar o Palácio dos Protetores a pedido do Imperador Shun e,
por isso, tínhamos a obrigação de devolvê-lo em segurança. E, como
eu era daquela região, nosso quarteto foi o escolhido.
Então, ao partirmos ao encontro do nobre, tudo o que pude-
mos ver foi uma espécie de carruagem coberta e movida por um
animal que me acostumei a ver naquela região. Ali eles o chamavam
de lox, e tinha sido trazido de um povo vizinho do oeste, chamado
Kashshu. O lox era um quadrúpede entroncado e de pelagem grossa
que viria a ser usado posteriormente em todos os lugares no mundo.
Um dos melhores amigos do ser humano: o cavalo.
– Você virá conosco, não é Mestra? – Benke perguntou a Mes-
tra Lihuá.
– Não – ela respondeu – Vocês estão em plenas condições de
cumprirem com esse trabalho. Vão e voltem sem demora.

E, assim, por conta própria, partimos nós quatro juntos à car-


ruagem com o nobre e mais três pessoas, sendo uma delas o cochei-
ro. As outras duas eram acompanhantes do nosso protegido.
Nosso caminho descia pelas montanhas, desde o Palácio, ru-
mo a Leste, passando pelo vale até o Rio Amarelo. De lá subiríamos
até o Monte Song, onde o nobre ficaria.
– Monte Song... – murmurei para mim mesma.
– O que foi? – perguntou Alethea.
– Nada – sorri – Lembrei de um velho amigo...
Lembrara no mesmo instante de Yu, o qual havia ido, há mui-
tos anos, morar com sua família ao pé do Monte Song. Fiquei va-
gando em pensamentos, imaginando se teria a sorte de encontrá-lo.
E, caso encontrasse, o que faria? Cumpriria a promessa de me casar
com ele? Ele mesmo se lembrava dessa promessa?
– Sabe, Long’er – disse Benke – Sempre quis conhecer seu
povo. Se todas as Han são lindas como você, vou tomar uma como
esposa! – ele gargalhou.
Todos rimos.
– Nós não somos animais para sermos tomadas! – brigou Ale-
thea – Você precisa primeiro nos conquistar...
– Vocês também não são impérios para serem conquistadas! –
riu Benke mais uma vez.
Nós todos rimos novamente.
Durante o trajeto, enquanto caminhávamos aproveitando a luz
do dia, nós conversávamos muito sobre as diferenças de nossos po-
vos. Benke era do extremo noroeste; de regiões geladas. Falava da
Grande Árvore que era o centro do mundo e ficava sob a Estrela do
Norte; Falava também sobre espíritos animais nas estrelas e que os
espíritos dos mortos ficavam embaixo da terra. Alethea era também
do oeste, mas vinha de uma grande ilha em meio a um mar, chamada
Kriti. Ela mesma dizia ser uma Kerete e que descendia dos mais altos
sacerdotes dos deuses que moravam em Mýtikas, no topo de um
monte chamado Olympos. Já Bandhu era mais humilde e dizia vir de
uma tribo de fazendeiros no extremo sul, que vivia próxima a um rio
chamado Sarasvati. Ele falava de seus deuses, como Agni e Indra e
que seu sonho era retornar para casa sendo um Rishi, uma espécie de
sábio iluminado que levaria inspiração e felicidade ao seu povo.
Naquelas conversas, percebi que todos eles tinham motivos
muito claros sobre o que os motivava a se tornarem grandes Drak-
kars e, assim, a mim só me restava refletir sobre o que me fazia que-
rer seguir aquele aprendizado. Era só porque meu pai assim deseja-
va?
À noite nós acampávamos e acendíamos uma fogueira. Os a-
companhantes do nobre eram os únicos a ter contato com ele, mas
ainda assim, nós é que éramos incumbidos de preparar a sua comida
e bebidas. E, depois de todos alimentados, nós nos deitávamos o-
lhando as estrelas e continuávamos nossas conversas até cairmos no
sono.
Dormir depois de um longo dia de caminhada era um presente
que aproveitávamos com todo o prazer e, poder descansar em algum
conforto e liberar nossos pés apertados, fazia-nos querer ficar ali,
naquele aconchego por muito tempo.
– Long’er – ouvi a voz de Bandhu enquanto ele me cutucava
assim que eu fechara os olhos.
– O que foi, Bandhu? – resmunguei sem me mexer.
– Acho que ouvi algo... – ele disse assustado.
– Deve ter sido o vento – expliquei – Vai dormir...
Não havia ouvido nada além dos sons comuns do campo à
noite, combinados com o barulho do vento batendo nos picos das
montanhas.
– Escuta... – eu o ouvi cochichando muito próximo de mim.
– Bandhu... – esbravejei me levantando.
Ele fez sinal de silêncio e apontou para a escuridão que se es-
tendia sobre as montanhas.
Fechei meus olhos e tentei concentrar meus ouvidos, para dis-
tinguir os sons da melhor forma possível.
Ao longe, podia escutar o vento e os galhos secos de árvores
mortas que estalavam. Também ouvia o som da poeira se debatendo
contra as pedras pelo caminho, mas nada além disso.
– Bandhu, você está ouvindo coisas da sua cabeça – eu disse –
Vá se deitar, ou amanhã você vai estar...
Fui interrompida de subido por uma explosão muito forte que
nos jogou para os lados, arrebentando a carruagem e, certamente,
matando o nobre e o cavalo. Seus companheiros, por pouco se sal-
varam, pois dormiam mais ao lado do transporte.
– O que foi isso? – Benke se levantou rapidamente, comple-
tamente assustado.
Nós todos nos pomos de pé e vimos, para nosso desespero,
três vultos que se posicionavam entre nós e os companheiros do
nobre.
Acredito que todos, igual a mim, entraram em desespero.
Nunca tínhamos enfrentado alguém de verdade e, mais que isso,
nunca havíamos visto alguém morrer na nossa frente. Estávamos em
choque; porém, não era hora de ficarmos paralisados, precisávamos
fazer alguma coisa.
Durante nosso aprendizado com a Mestra Lihuá, aprendemos
que o Hasta, isto é, o gesto manual de soprar e tocar a testa, que
usávamos para executar os Sopros, devia ser feito da forma mais
rápida possível, pois isso definia um confronto, caso um dia enfren-
tássemos outros Drakkars. E, sendo assim, não podíamos perder
tempo, pois certamente eram inimigos.
– Vamos! – disse Soprando o Sopro Relâmpago.
O raio que saiu de minha mão, em direção àqueles vultos, cla-
reou o local refletindo a luz nas pedras ao nosso redor e, por um
instante, pudemos ver que nossos inimigos se vestiam de negro,
tampando seus rostos com um lenço preto e tinham, sobre a cabeça,
um chapéu de bambu, típico do meu povo, também na cor escura.
Sem fazer qualquer esforço, um dos nossos atacantes levantou
a mão e conteve meu Sopro, como se não fosse nada. Em seguida,
seus olhos tomaram uma cor vermelha e pudemos sentir o calor ao
nosso redor aumentar de forma assustadora. Certamente era um
Drakkar de Fogo e nós teríamos que nos proteger como pudésse-
mos.
Alethea Soprou o Sopro de Rapina e, com sua velocidade au-
mentada vertiginosamente, correu até o Drakkar de Fogo e começou
a lutar com ele em um combate corpo a corpo.
No Palácio nós aprendíamos uma técnica de combate de con-
tato chamada “Punho do Rei”. Era uma arte marcial muito direta e
simples e, claro, para Sopros que usavam golpes físicos, era um a-
créscimo maravilhoso.
Bandhu Soprou o Sopro de Potência, aumentando sua força, sal-
tando em direção a outro dos agressores, onde também iniciou o
combate corpo a corpo, tal como Alethea.
Bandhu, dentre nós quatro, era o que melhor usava do “Punho
do Rei”, pois dizia aprender algo muito parecido desde criança. Ele
contava que em sua terra, aquela técnica recebia o nome de Payattu.
Fosse ou não realmente parecido, a verdade era que Bandhu era re-
almente muito bom naquela arte.
Benke Soprou o Sopro Relâmpago diversas vezes conforme cor-
ria para cima do terceiro inimigo enquanto eu disparei em direção à
carruagem em chamas, para ver o estado do nosso protegido que,
mesmo com todas as minhas esperanças, já devia estar morto.
Observei os escombros e não vi nem sinal de corpo, nem de
quaisquer restos mortais em chamas ou queimados. Aparentemente,
o Sopro de Fogo daquele Drakkar havia sido realmente poderoso.
Olhei para eles e pude perceber que nossos atacantes não fazi-
am quase nenhum esforço para evitar os ataques dos meus compa-
nheiros.
– Protejam-se! – gritei para os acompanhantes do nobre que
haviam sobrevivido enquanto apontava para uma grande pedra onde
poderiam se esconder por detrás.
Eu não era a líder do quarteto; Alethea o era, mas enquanto
ela, como líder, tinha ido à frente do confronto, eu poderia tomar
aquela atitude para proteger os outros.
Soprei o Sopro Trovão, que começava acumular suas nuvens so-
bre nossas cabeças, condensando os raios que explodiriam sobre
nós. Em seguida Soprei o Sopro de Neblina, fazendo com que toda a
umidade ao nosso redor, que estava no ar, condensasse-se em uma
densa névoa.
Nós, enquanto Drakkars Azuis, tínhamos treinamento cego,
para combater em baixa visibilidade, para usarmos em conjunto de
nosso Sopro de Neblina e, aquele, era o momento de pormos tudo em
prática.
Assim que todo o lugar foi tomando por aquela branca névoa,
impedindo que víssemos um palmo à nossa frente, fechei meus o-
lhos e comecei a ouvir a leve vibração que produzíamos com um
Sopro específico para aquela situação, chamado Sopro Sinalizador. Um
Sopro de Água emissor de uma leve vibração que somente nós,
Drakkars Azuis, conseguíamos sentir. Aquela técnica permitia que
nós soubéssemos onde cada um de nós estava.
Localizando meus companheiros, terminei o Sopro Trovão e pu-
xei dos céus relampejantes, três raios que caíram logo à frente de
cada uma deles, onde eu, com a ajuda da sorte, imaginava que estari-
am nossos inimigos. Porém, antes que os raios chegassem ao chão,
os céus se tornaram vermelhos e uma poderosa chuva de fogo caiu.
– Não! – ouvi os gritos dos três assim que tudo explodiu, jo-
gando-me para longe.
Abri meus olhos em meio à poeira apenas para perceber o vul-
to de um dos atacantes vindo para cima de mim, segurando meus
braços para que eu não pudesse fazer meu Hasta.
O medo que senti naquela hora foi terrível; pensei no mesmo
instante que minha vida estava por um fio e que meus amigos havi-
am morrido instantes antes. Aquilo não podia ser verdade.
– Fique quieta! – berrou o Drakkar enquanto eu me debatia
em desespero.
– Mate-a... – disse o outro se aproximando.
Meu coração disparou. Eu gelei.
Senti que tudo terminaria ali. Que não veria mais minha vovó,
minha mãe ou meus amigos. Foi então que fechei meus olhos e me
lembrei de meu aprendizado com minha vovó e, respirando e mo-
vendo o Fluxo Primordial internamente, fiz meu Elemento fluir do
interior, do Ponto Central de Fluxo, até minhas microescamas. Se
funcionava com minha Essência Primordial humana, deveria funcio-
nar com a Draconiana.
Assim, mesmo sem fazer meu Hasta, gritei o mais alto possível
e fiz com que o meu Elemento Água explodisse através do meu cor-
po, rompendo em incontáveis relâmpagos que se estenderam por
todas as direções, jogando todos para longe e, talvez, até mesmo
ferindo-os gravemente.
– QingLong! – ouvi um grito – Pare agora! – era uma ordem.
A voz era conhecida. Era a voz de nossa Mestra Lihuá.
Abri meus olhos, completamente confusa e assustada.
A neblina começou a se dissipar e, então, pude ver meus ami-
gos amordaçados, em companhia de outros Drakkars do Palácio e,
claro, também de nossa Mestra Lihuá.
– O que foi isso, Lihuá? – um dos nossos agressores removeu
seu lenço e chapéu – Ela poderia ter ferido um de nós gravemente!
Eu estava completamente perdida.
A nossa Mestra se aproximou de mim, olhando-me em des-
crença.
– O que você fez, QingLong? – ela perguntou.
– Por quê? – inquiri apavorada – O que eu fiz?
– Esse era o último teste de vocês... – ela sorriu.
– Nós íamos morrer – eu disse em revolta com aquela revela-
ção.
– Essa era a ideia – disse a Mestra – Pôr vocês de frente à
morte iminente para ver como se comportariam, como encarariam a
morte certa. Era claro que não seriam mortos de verdade... era ape-
nas um teste.
– Mas foi ela que quase nos matou – disse o outro Drakkar
também removendo o lenço, sendo acompanhado pelo terceiro.
– Então não havia nobre? – berrou Alethea.
– Não – disse a Mestra – Era tudo um teste.
– E nós passamos? – perguntou Benke.
– Acho que sim... – a Mestra coçou a cabeça – QingLong – ela
se abaixou pertinho de mim – Você tem um poder aí dentro, que
não é comum. Estou muito feliz de ser sua Mestra – ela sorriu.
E eu estava apenas aliviada de ninguém ter morrido de verda-
de. Aquilo tudo era só um pesadelo.
– Vamos voltar – disse a Mestra Lihuá se levantando – Vamos
voltar ao Palácio para celebrar essa passagem! De hoje em diante
vocês aprenderão técnicas e Sopros avançados.
Nós quatro nos olhamos contentes. Finalmente nós iniciaría-
mos o treinamento avançado e estudaríamos Sopros mais poderosos.
Eu me levantei batendo minha roupa para remover a terra e a
sujeira que havia caído em mim e, ao olhar no horizonte, em frente
ao brilho claro da Lua, pensei ter visto, mesmo que de relance, uma
espécie dragão serpentino, de cor dourada, tal como tínhamos nas
estátuas em nossas vilas às margens do rio Amarelo. Como um pis-
car de olhos, aquela imagem se desvaneceu no ar.
– Sinal de boa sorte... – murmurei para mim mesma.
Ver espíritos de dragões era sempre sinal de boa sorte, mesmo
que os verdadeiros Lordes Dragões quase tivessem exterminado a
humanidade. Para nós, os Han, os “espíritos de dragão” eram sem-
pre representações de bondade e justiça. Símbolos de bons augúrios.
—————|V|—————

RUMORES

urante os meses seguintes, depois de nossa passagem para


os níveis avançados, fizemos inúmeros trabalhos a serviço
do Grande Palácio dos Protetores. Fomos mediadores de
paz entre tribos rivais, fomos escoltas de pessoas nobres, fizemos
resgates e toda uma gama de tarefas das mais variadas.
Meus laços de amizade com Benke, Alethea e Bandhu só au-
mentavam e nossa Mestra Lihuá estava se tornando como uma ter-
ceira mãe para mim, já que minha vovó era como minha segunda
mãe.
Com nossa Mestra aprendíamos Sopros avançados e treiná-
vamos diversas estratégias de combate em grupo e, claro, a Contem-
plação, que agora havia sido inserida pelos Protetores ao nosso cur-
rículo de estudo. O motivo nós não sabíamos, mas descobriríamos
em pouco tempo...

– Pessoal! – berrou um dos jovens Drakkars ao entrar no salão


de refeição durante o jantar – Vocês ouviram os rumores? – ele per-
guntou assustado, esperando uma resposta positiva de alguém.
Em uma das alas do Palácio havia uma grande sala onde fazí-
amos nossas refeições quatro vezes ao dia. Uma pela manhã, uma
próximo ao meio dia, uma à tarde e outra no fim da noite.
– Fala logo! – gritou outro dos Drakkars que já jantava.
– Dois de nossos companheiros que regressaram do oeste... –
ele respirou fundo – Disseram que viram um grande Dragão sobre-
voando uma montanha.
Todos nós no refeitório nos olhamos assustados, mas em se-
guida caíamos na gargalhada. Ora, aquilo obviamente não podia ser
verdade, já que os Lordes estavam presos.
– Pobrezinho – disse uma das jovens que também comia –
Tem treinado tanto que está perdendo o juízo.
– E como era esse Dragão? – outro Drakkar deu corda rindo.
O jovem que entrou assustado balançou a cabeça em negação,
desapontado com a descrença de todos, e saiu pela mesma porta.
– Maluco... – ouvi os comentários ao nosso redor.
Eu mesma havia visto o vulto de um Dragão dourado, mas
sabia que era imaginação, pois ele mesmo desapareceu diante dos
meus olhos sob o brilho da Lua. Não culpava nossos companheiros
por fazer chacota da bobagem contada.
– Pobre coitado – comentou Benke – Deve ter bebido algo es-
tragado...
Bandhu e Alethea riram, mas eu me contive, apesar de ter a-
chado engraçado.

Depois da refeição, antes de ir para nossos alojamentos para


dormir, passei em frente a uma das salas onde os Protetores ficavam
estudando textos escritos em baixo relevo, feitos em cerâmica e ou-
tras formas de barro e argila.
– Se ele atingiu a forma Imane – ouvi a voz de uma das Prote-
toras enquanto passava – Logo estará aqui para nos enfrentar...
– E se ele ensinar isso aos seus companheiros? – disse outra
Protetora – Bem que a Lei do Protetorado nos diz para eliminarmos
qualquer Drakkar que...
– Silêncio! – interrompeu a outra Protetora.
Senti um leve aumento de poder no ambiente e logo a porta se
fechou violentamente. Era claro que as Protetoras ali haviam sentido
minha presença e usado a Palma Servil para mover e trancar a porta.
Porém, o que eu havia ouvido já me bastava para me aguçar a curio-
sidade.

Segui em direção ao alojamento e fui falar com meus compa-


nheiros. Queria saber se eles conheciam aquela expressão.
– Imane? – Alethea indagou confusa – Nunca ouvi essa pala-
vra.
– Nem eu – acrescentou Bandhu.
– Talvez a Mestra Lihuá saiba – disse Benke.
– E se for algo que não devemos saber? – indagou Bandhu –
A Mestra Lihuá pode nos castigar por ficar ouvindo conversa alheia.
– Mas foi por acaso – Alethea deu de ombros – Não foi culpa
da Long’er.
– É verdade – disse Benke.
– O que estão tramando? – ouvimos a Mestra enquanto entra-
va no quarto.
Como já era hora de dormirmos, os Mestres passavam nos
alojamentos de seus aprendizes para verificar se todos estavam bem
e se estavam presentes.
– Mestra... – eu a chamei arriscando a punição – Conhece a
expressão... Imane?
No mesmo instante em que disse a palavra pudemos ver os
olhos da Mestra Lihuá saltarem como se tivessem visto um fantas-
ma.
– Onde ouviram isso? – ela perguntou cochichando em um
tom de repreensão.
– Ouvi... mas foi sem querer – expliquei – Ouvi enquanto pas-
sava perto das Protetoras...
A Mestra Lihuá fez sinal de silêncio e nos chamou para pró-
ximo do canto.
– Nunca digam isso em voz alta... – ela nos avisou – Essa ex-
pressão só é discutida entre os Protetores e alguns Mestres Drakkars
de elite.
Os Mestres Drakkars de elite aos quais ela se referia, pertenci-
am a recém criada Ordem Da Garra do Dragão. Nós não sabíamos
todos os Drakkars que faziam parte da Ordem e nem muito sobre
ela, mas já se comentavam nos corredores do Palácio que a Trovão
Abenuz certamente era parte deles.
– E o que é isso? – perguntou Benke.
– A forma Imane... – A Mestra Lihuá começou a falar – É a
forma final e mais poderosa que um Drakkar pode assumir. É a
forma de Dragão.
Nós nos olhamos completamente chocados. Se aquilo era ver-
dade, então a história que nosso companheiro Drakkar havia conta-
do no refeitório poderia ser verdade.
– Então aquele maluco estava falando a verdade? – inquiriu
Alethea apavorada.
– Há rumores... – A Mestra Lihuá olhou para a porta, vendo
se ninguém se aproximava – De que um Drakkar conseguiu assumir
essa forma Imane e está criando um exército para destruir os Prote-
tores... Por isso eles criaram a Ordem da Garra do Dragão, para en-
sinar aos nossos Drakkars como assumir essa mesma forma. Mas só
os mais poderosos entre nós estão aptos a se unir à Ordem. Lá eles
aprendem a aumentar o sincronismo do nosso Sangue Draconiano.
Nós nos olhamos mais admirados ainda.
– Sincronismo? – perguntou Bandhu.
Foi então que nossa Mestra Lihuá explicou que os Protetores
estavam ensinando aos Drakkars da Ordem da Garra do Dragão
como aumentar o sincronismo com o Sangue Draconiano, primeiro
atingindo a forma Varanus e seguindo em frente, no intuito de as-
sumir a forma Imane. Ela explicou para nós o que era e como fun-
cionava o sincronismo, e que nós podíamos aumentá-lo através da
Contemplação que recém havíamos começado a praticar.
Eu, como neta de uma Protetora, praticava a Contemplação
desde pequena e, se tivesse desenvolvido Elemento quando ainda era
criança, certamente já estaria em níveis altíssimos de sincronismo
com o Sangue Draconiano.
– E nós podemos aumentar nosso sincronismo, então? – per-
guntou Benke.
– Não – disse a Mestra Lihuá – Mesmo aprendendo e prati-
cando a Contemplação, como já começaram, há outras técnicas en-
volvidas para conseguir aumentar o sincronismo.
Todos ficaram desanimados, menos eu.
A parte mais importante daquele conhecimento a Mestra Li-
huá já havia nos dados: a Contemplação permitia aumentar o sincro-
nismo para atingirmos as formas mais poderosas dos Drakkars.
Mesmo que tivessem outras técnicas envolvidas, eu tinha certeza de
que minha vovó já havia me ensinado, pois queria que eu me tornas-
se uma Protetora. E, se era o que eu imaginava, poderia ensinar aos
meus amigos.
– O Reflexo – eu disse, feliz por ter aquele conhecimento.
Minha vovó Wu Mei havia me ensinado que, para Cultivar a
Essência Primordial e aumentar o poder interno, como Protetora, eu
deveria unir a Contemplação com uma habilidade única: O Reflexo;
ensinado aos primeiros seres humanos por um dos Lordes Dragões,
de fato, a única fêmea entre eles: Quetzalcoatl. Essa técnica permitia
limpar completamente os pensamentos, mantendo apenas um obje-
tivo em mente. Então o Universo guiaria a nossa ação de forma per-
feita até nosso objetivo. Era assim que aumentávamos o poder in-
terno, Cultivando Essência Primordial e, certamente, era assim que
aumentaríamos nosso sincronismo. Afinal, o propósito da técnica
deveria ser o mesmo.
– O que é isso? – perguntou Alethea.
– Long’er... Não – fui repreendida pela Mestra Lihuá.
Ela parecia saber do que se tratava e, ao dizer aquilo, confir-
mou para mim que eu havia tirado a conclusão correta.
– O que é esse Reflexo, Mestra? – perguntou Bandhu.
– É algo que está além de vocês – ela disse – E não quero que
fiquem bisbilhotando os Protetores para saber sobre isso. Ouviram?
Concordei rapidamente e, mesmo sem entender muito, os
meus amigos também concordaram.
– Esqueçam tudo isso. Amanhã treinaremos novos Sopros... –
ela disse, para nos animar – Durmam bem.
Após nos despedirmos da Mestra Lihuá, nós nos olhamos e
meus amigos estavam visivelmente decepcionados com a sua puxada
de orelha.
– Queria muito aprender a aumentar esse sincronismo... –
resmungou Alethea indo em direção à porta, para ir ao seu quarto.
– E nós vamos – sorri.
– Como? – inquiriu Benke – A Mestra Lihuá nos proibiu de ir
atrás dessa técnica...
– Mas não proibiu essa técnica de vir até nós... – ri – Eu co-
nheço e pratico a Contemplação e o Reflexo desde pequena, pois fui
aprendiz de Protetora, não recordam?
Eles ficaram muito animados nos mesmo instante.
– Isso é incrível, Long’er – exclamou Bandhu – Mas precisa-
mos praticar escondidos – cochichou – Se não poderemos até mes-
mo ser expulsos...
Expulsão, naquele caso, significava ter o Elemento completa-
mente destruído, antes de ser mandado embora do Palácio.
– E quando começamos? – Alethea ficou animada novamente.
– Por que não agora mesmo? – eu disse.
Era hora de dormir, mas nada nos impedia de continuar nos-
sos treinamentos secretos, como vínhamos fazendo há anos.

***

Então, todas as noites, depois dos outros terem ido dormir,


nosso quarteto se reunia escondido próximo ao campo de treina-
mento. Era difícil passar pela guarda que ficava protegendo o Palácio
à noite, mas já conhecíamos os caminhos mais seguros e, chegando
ao nosso local secreto de treinamento, começávamos a praticar a
Contemplação e o Reflexo.
– O Reflexo – eu ensinava aos meus amigos – Consiste em
limpar a mente de todos os pensamentos, mas manter o objetivo
circulando dentro de si. O curso do Todo é como um rio que se rami-
fica em diversos caminhos. Se soubermos o caminho o qual quere-
mos percorrer e não ficarmos pensando sobre ele, nem questionan-
do ou duvidando dele, o Todo nos guiará por ele naturalmente.
– Nós vamos agir sem pensar? – perguntou Benke.
– Isso – confirmei – Não devemos refletir racionalmente, isto
é, questionar sobre uma ação antes de tomá-la, mas refletir, e nesse
caso, como o reflexo de um lago, imitando as ações inspiradas pelo
Todo; sem pensar, sem hesitar. Refletir os impulsos do Fluxo Pri-
mordial, seguindo seus comandos.
Era difícil para eles entender minhas palavras, por mais claras
que eu as tentasse tornar. Eu mesma só compreendia aquilo por
conta do extensivo treinamento diário com minha vovó desde crian-
ça. Não era realmente fácil se livrar dos pensamentos. Ora, era se
livrar de tudo o que nos definia como seres conscientes. Assim, a-
creditava-se, claro.
Continuamos praticando todas as noites e, com o tempo, eles
começaram a entender melhor o processo e, logo, nossos sincronis-
mos com o Sangue Draconiano começaram a aumentar. O poder
que fluía a partir dos nossos Elementos parecia querer explodir nos-
sos corpos de forma que nos dava até medo.

O tempo foi passando e, depois de seis meses, durante um de


nossos treinamentos na madrugada, sentimos o ar cortando o espaço
com força e ouvimos o bater terrível de asas sobre nossas cabeças.
– O que é aquilo? – gritou Bandhu apontando para o céu.
Ao olharmos, fomos surpreendidos pela visão mais assustado-
ra que jamais imaginaríamos ver: não apenas um, mas três dragões
enormes sobrevoavam o Palácio.
Nós nos levantamos rapidamente e, no mesmo instante, uma
corneta soou poderosa por todo o local. Era o chamado para a bata-
lha, para proteger o lugar.
—————|VI|—————

OS PRIMEIROS CAVALEIROS

e súbito, diversos Drakkars saíram do Grande Palácio dos


Protetores em direção ao pátio, Soprando e saltando para
cima dos dragões que sobrevoavam o local. Os inimigos,
na forma Imane, Sopravam seus Sopros Elementais que, com seu
poder devastador, rapidamente tiravam a vida de diversos dos nos-
sos companheiros.
– Long’er! Alethea! Bandhu e Benke! Venham para cá! – ou-
vimos nossa Mestra Lihuá chamando para um local protegido.
Corremos em sua direção, desviando das diversas explosões e
terremotos que tomavam conta e se espalhavam por todo o lugar.
– Mestra! – nós nos aproximamos dela.
– O que estavam fazendo? – ela nos repreendeu assumindo
uma forma que nunca havíamos visto antes.
Era a forma Varanus.
– Protejam-se e cuidem dos mais novos! – ela disse indo em
direção à batalha.
Logo, junto a ela, outros Drakkars assumiram formas Varanus
e, em frente a eles, a Trovão Abenuz se posicionou, tomando a
mesma forma.
– Soprem! – ela gritou em tom de ordem.
Aqueles Drakkars começaram a Soprar seus Sopros Elemen-
tais em sincronia, diretamente nos dragões que, nesse momento, já
haviam pousado e revezavam entre Sopros e golpes físicos, destru-
indo tudo e todos ao seu redor.
A visão que nós presenciávamos era terrível. Os nossos com-
panheiros eram jogados pelo ar como se não fossem nada e, muitos
deles, partidos ao meio pelos golpes poderosos dos dragões, não
tinham sequer tempo de gritar. Só queríamos que tudo aquilo termi-
nasse. Foi tudo tão rápido e nos pegou de forma tão desprevenida
que não sabíamos nem como reagir.
– É impossível – ouvimos os gritos da Primeira e Segunda
Mestra do Palácio enquanto se juntavam aos Drakkars, em compa-
nhia de outros Protetores e Protetoras – Na forma Imane eles são
intocáveis!
– Mawu! – gritou Dvorah, a Segunda Mestra, chamando a
Trovão Abenuz – Você é nossa única chance! Faça o que tem que
fazer!
A Trovão Abenuz concordou com a cabeça.
– Ninhursag! – A Trovão Abenuz chamou outra Drakkar Va-
ranus – Vá com Djet para o outro lado e distraia-os!
Aqueles Drakkars seguiram como pedido e começaram a ata-
car os dragões somente para distraí-los. A Drakkar Ninhursag era do
Elemento Ar e seus Sopros eram muito poderosos. Seus Sopros Tor-
nados causavam tanto estrago quanto os Sopros dos dragões, mas,
infelizmente, tal como disseram as Mestras do Palácio, nada faziam
aos Imane além de distraí-los. O outro Drakkar, também na forma
Varanus, chamado Djet, era do Elemento Metal. Era um Drakkar de
Ouro e seus Sopros traziam, do chão, diversos servos de metal que,
como um exército, davam algum trabalho aos dragões.
– Eles são incríveis – disse Benke boquiaberto.
Mesmo estando os dragões em visível vantagem, aqueles
Drakkars Varanus os enfrentavam com maestria e poder de uma
forma que jamais havíamos presenciado. Era um nível de combate e
controle dos Sopros que estava muito além de nossas habilidades.
Realmente eram Drakkars de Elite, como dissera nossa Mestra Lihuá
que, agora sabíamos, fazia parte deles.
De repente senti um poder aterrador tomar conta do lugar,
superando o que já sentíamos na presença daqueles dragões e daque-
les Varanus.
– Finalmente – disse a Primeira Mestra do Palácio.
Todos olharam admirados e, claro, atemorizados, em direção a
Trovão Abenuz, que começava a passar sua forma Varanus e cres-
cer, tomando a forma Imane diante de nossos olhos.
– Ela conseguiu... – ouvi a Segunda Mestra, Dvorah.
Meu coração disparou de emoção ao ver aquele enorme dra-
gão azul, cujos relâmpagos vertiam violentamente em todas as dire-
ções. Seu poder parecia superior aos dos inimigos e, sem perder
tempo, a Trovão Abenuz, agora na forma Imane, voou para cima
deles.
Todos se afastaram e observaram atentos enquanto ela, sozi-
nha, subjugava os nossos atacantes usando seus Sopros do Elemento
Água que estavam elevados a uma potência inimaginável.
– Eles não terão chance – comentou a Segunda Mestra com a
Primeira – Nosso treinamento tornou Mawu muito superior a eles.
Os outros não controlam bem a forma Imane. São relaxados. Temos
chance de eliminar todos eles em tempo.
Nós apenas olhávamos de longe, paralisados com todo aquele
confronto violento e monstruoso que acontecia à nossa frente.
Enquanto os dragões tentavam Soprar seus ataques contra a
Trovão Abenuz, ela, com velocidade e perícia, esquivava e os acerta-
va, hora com as garras, hora com a cauda, onde, entre um golpe e
outro, Soprava destruidores Sopros Relâmpagos que saíam de sua boca
ferozmente.
– Protetores! – gritou a Primeira Mestra do Palácio – Forma-
ção Circular!
Os Protetores que ali estavam, com exceção das duas Mestras,
reuniram-se ao redor dos dragões e da Trovão Abenuz e começaram
a fazer movimentos que pareciam criar uma teia de energia. Era uma
quantidade descomunal de Essência Primordial que se concentrava
por volta deles.
O confronto seguiu por mais alguns minutos e, assim que um
dos dragões, acertado violentamente pela Trovão Abenuz caiu ao
chão e retornou à sua forma Drakkar, alguns dos Protetores se mo-
veram e usaram a Palma Servil para contê-lo de joelhos.
Posteriormente soubemos que o controle da Essência Draco-
niana que os Protetores possuíam não afetava Drakkars na forma
Imane. Para poder subjugá-los naquela forma, precisavam trazê-los
de volta à forma humanóide.
A Trovão Abenuz continuou seus ataques precisos e, logo, o
segundo dragão também foi ao chão, sendo rapidamente dominado
pelos outros Protetores assim que voltou a forma normal.
– Maldito! – ouvimos os gritos das Mestras ao vermos o ter-
ceiro dragão conseguir escapar alçando voo rapidamente.
Sentimos o chão tremer e o vento se mover brutalmente ao
tempo em que a Trovão Abenuz também levantou voo e foi atrás do
inimigo, deixando-nos ali, com os outros dois.
Os Protetores, os Drakkars e os Varanus se aglomeraram ao
redor dos dois atacantes subjugados de um jeito que nós não conse-
guíamos vê-los. Sabíamos que eles seriam executados, certamente,
mas rapidamente forma levados de nossas vistas para dentro do Pa-
lácio.
– Vocês estão bem? – a Mestra Lihuá regressou ao nosso en-
contro.
– Sim – respondemos boquiabertos com tudo aquilo que havia
acontecido tão depressa.
– Você é da Ordem da Garra do Dragão – Alethea disse à
nossa Mestra, admirada.
– Precisava manter segredo – disse a Mestra Lihuá – Sinto
muito.
– A Trovão Abenuz é incrível – eu comentei.
– Ela é – respondeu nossa Mestra – A Mawu Àjé é, de longe, a
Drakkar mais poderosa que já vimos. Ela é habilidosa, feroz e impla-
cável. Também é a líder da Ordem.
Nós quatro nos olhamos. Sabia que todos pensavam o mesmo
que eu: queríamos fazer parte daquela Ordem.
– Agora vamos entrar – disse nossa Mestra – Precisam des-
cansar. O que aconteceu hoje estava previsto pelas Mestras há algum
tempo, mas tomou mais vidas do que havíamos imaginado. Muitas
famílias vão chorar hoje. É um dia triste.
Muitos dos nossos companheiros haviam perecido pelo ataque
daqueles três monstros que vieram na calada da noite, de forma vil e
covarde. Aquilo não poderia ficar assim. Precisávamos treinar mais
para poder proteger a todos em um próximo ataque.

Naquela noite, ninguém conseguia dormir, devido ao nervo-


sismo do confronto e, assim, ficamos todos sentados no salão cen-
tral. Então, dentro do Palácio, depois de algumas horas, a Trovão
Abenuz retornou e todos a aplaudiram como heroína. Ela, de cara
fechada, apenas ignorou a todos e seguiu para as câmaras das Mes-
tras, certamente para contar o que havia acontecido.
– Ouvi dizer que vão executar os dois... – disse Bandhu vol-
tando até nós com alguma comida que havia ido buscar.
– Hoje ainda? – perguntou Benke.
– Sim – confirmou Bandhu.
– Merecem sofrer muito primeiro – rosnou Alethea – Aqueles
malditos mataram nossos amigos.
– O que nós fizemos para eles? – indaguei sozinha.
Eram Drakkars como nós. Haviam sido aprendizes do Palácio,
como nós. O que os motivava a nos atacar e matar seus iguais? Por
que faziam aquelas atrocidades?
– Foram corrompidos pelo poder – disse nossa Mestra Lihuá
se aproximando e se sentando conosco – Não é a primeira vez que
algo assim acontece. Por isso existem os Protetores. Para proteger a
raça humana de Drakkars como eles.
– Com a nossa ajuda – lembrou Alethea.
– Nós só existimos pela bondade dos Protetores – disse nossa
Mestra – Eles podiam ter nos eliminado logo depois da Segunda
Guerra Dracônica, mas não o fizeram. Eles nos deram a chance de
viver uma vida justa e boa sob sua tutela.
Os Protetores eram realmente poderosos o suficiente para nos
eliminar completamente e, permitir que existíssemos, era um verda-
deiro ato de bondade e fé em nossa capacidade de sermos bons.
Diferentes dos Lordes Dragões dos quais descendíamos.
– Como faz para entrar na Ordem? – Alethea perguntou de
supetão.
– Você diz na Ordem da Garra do Dragão? – nossa Mestra
sorriu, achando a pergunta fora de hora.
– Sim – disse Alethea – Quero ser uma Drakkar de Elite.
– Uma Cavaleira – corrigiu nossa Mestra – Você quer ser uma
Cavaleira da Ordem da Garra do Dragão.
Nossa Mestra Lihuá contou, agora que já haviam mostrado
que existiam, que a Ordem da Garra do Dragão tinha sido criada
pelos Protetores logo depois do primeiro Drakkar Varanus fugir,
levando consigo alguns aprendizes e Mestres Drakkars. Ela nos ex-
plicou que o propósito da Ordem era preparar os melhores Drakkars
para confrontar aqueles dissidentes que detinham o conhecimento
do Sincronismo. Assim, esses Drakkars de Elite seriam instruídos no
conhecimento do Sangue Draconiano, de como aumentar seu sin-
cronismo através da Contemplação e outras técnicas.
– E quantos vocês são? – perguntou Benke.
– Somos cinco – disse a Mestra – Os cinco que vocês viram na
forma Varanus hoje.
Naquela época as Armas de Marduk ainda eram quase desco-
nhecidas pelos Drakkars, mas mesmo assim, havia apenas cinco Ca-
valeiros. Atingir a forma Varanus era um dos requisitos para ser no-
meado Cavaleiro e aquilo não era fácil. Antes disso, o Drakkar era
um neófito na recém criada Ordem e treinaria o sincronismo noite e
dia até dominá-lo ao nível de cinquenta por centro, atingindo a for-
ma Varanus.
Os primeiros cinco Cavaleiros da Ordem da Garra do Dragão
eram: a líder Trovão Abenuz, a Mestra Lihuá, Ninhursag, Djet e Yae.
Ninhursag e Djet eram do Oeste, da região dos desertos, co-
mo viria a descobrir, enquanto Yae vinha de uma ilha no Leste, cujos
traços lembravam um pouco o meu povo Han.
– Eu quero ser admitida como neófita da Ordem – disse Ale-
thea em tom absoluto.
– E poderá ser, se naturalmente for elevando seu sincronismo.
Quando ele estiver em quarenta por cento, poderá ser admita para
aprender a aumentar o sincronismo ativamente.
– Eu já sei – disse Alethea nos entregando.
Meu coração disparou na mesma hora.
– Como assim? – a Mestra Lihuá perguntou desconfiada.
– Nós estamos praticando isso há algum tempo já – disse Ale-
thea.
Ela queria muito fazer parte daquela Ordem, mesmo que aqui-
lo colocasse todos nós em apuros.
– E como vocês aprenderam a aumentar o sincronismo? –
perguntou a Mestra curiosa enquanto me olhava.
Nós ficamos em silêncio por uns segundos até que eu não tive
escapatória.
– Eu conheço e pratico a Contemplação e o Reflexo desde cri-
ança – expliquei.
– É claro – riu a Mestra – Você é neta de uma Protetora... uma
das Mestras do Palácio... Não me admira tudo o que pode fazer.
A Mestra Lihuá nos chamou com o dedo, para que chegásse-
mos mais perto.
Todos nós a escutamos atenciosamente.
– O que vocês me disseram... – ela começou – Se tivessem di-
to para um dos Protetores, vocês teriam os Elementos destruídos e
seriam expulsos do Palácio.
Nós ficamos em choque.
– A Lei do Protetorado – ela continuou – É muito clara sobre
isso. Nenhum Drakkar pode estudar o Sangue Draconiano, ou prati-
car qualquer arte que acelere o sincronismo sem a tutela direta de um
Protetor. O que vocês vêm fazendo é um crime aos olhos dos Prote-
tores e seriam severamente punidos.
– Mas a Long’er pratica isso desde pequena... – Alethea tentou
argumentar.
– Long’er não havia desenvolvido Elemento – explicou a Mes-
tra – E, por isso, a Lei não se aplicava a ela. Ela estava sendo treina-
da para ser uma Protetora pela avó. E, certamente, quando desen-
volveu Elemento, sua avó cessou seu treinamento.
Concordei com a cabeça. O fato era que, no momento em que
desenvolvi Elemento, fui levada diretamente ao Palácio.
Ouvimos um burburinho e logo as Mestras regressaram ao
centro do Salão, com os dois Drakkars que nos atacaram com capu-
zes cobrindo os rostos. Minha vovó agora estava junto a elas e pude
vê-la, em tom sério, enquanto acompanhava as outras.
Todos nós nos reunimos para ver o que aconteceria.
– Hoje foi um dia de tristeza – iniciou minha vovó, a Terceira
Mestra do Palácio – Pois perdemos amigos e companheiros queri-
dos. Estes que deram suas vidas para nos proteger. Para proteger
cada um de vocês – ela apontou para nós todos.
– Esses dois – a Segunda Mestra, Dvorah, continuou – Vieram
de forma baixa e covarde nos atacar enquanto dormíamos. São trai-
dores corrompidos por seus egos e vícios. Acreditam que os Lordes
estavam certos e que deveriam iniciar uma nova Era de Ouro Dra-
coniana sobre o ser humano... Ridículo – finalizou em desprezo.
– Pela Lei do Protetorado – disse a Primeira Mestra – Que nos
foi entregue pelos primeiros Protetores, e por esse conselho que, a
partir dos fatos de hoje, avaliou o ocorrido, eu, Neledina, Primeira
Mestra do Palácio dos Protetores, em conjunto com minhas compa-
nheiras, sentencio esses dois à morte.
Todo mundo que estava no salão começou a discutir o que
deveria acontecer com eles e o quanto deveriam sofrer por aquela
atrocidade.
– Silêncio – disse a Segunda Mestra, Dvorah – Afastem-se.
Nós nos distanciamos, abrindo um círculo maior entre nós e
os atacantes que, àquela altura, já estavam de joelhos ao lado das
Mestras.
– Wu Mei – disse a Segunda Mestra – Pediu para que essa exe-
cução acontecesse de forma velada, mas a Primeira Mestra e eu a-
chamos que é importante que vocês vejam...
Minha vovó rapidamente me olhou nos olhos. Ela estava tris-
te. Balançou a cabeça e a abaixou.
– Por isso trouxemos os dois diante de vocês – disse a Primei-
ra Mestra – para que entendam o que é justiça; e que ela não escolhe
nobre ou aldeão, nem alto ou baixo. Ela é como o Sol, que sai sobre
a cabeça de todos, e como a chuva, que cai sobre todos.
– Procedamos à execução – disse a Segunda Mestra.
Do corredor que levava até a ala reservada aos Protetores, saiu
uma pessoa, vestida com uma longa veste que cobria todo seu corpo
e um capuz que escondia seu rosto completamente. Certamente era
o carrasco que levaria a vida daqueles dois. Um Executor.
Assim que ele se posicionou em frente aos dois prisioneiros, a
Primeira Mestra disse:
– O que vocês verão aqui, é o nível mais alto e mais aprimora-
do da Palma Servil. Arte dos Protetores por excelência. E entende-
rão que nos enfrentar, é ir de encontro à morte.
Aquelas palavras eram para nos por medo. Não havia outro
motivo. Estava muito claro que os Protetores temiam que outros de
nós se entusiasmassem com as possibilidades de se juntarem aos
dissidentes para estudar o Sangue Draconiano por conta própria.
Aquilo era mais que um aviso, era uma ameaça.
A Segunda Mestra, Dvorah, pôs-se detrás dos dois atacantes e,
de súbito, removeu seus capuzes para que pudessem ver o carrasco
que lhes tiraria a vida.
Senti minhas pernas amolecerem no mesmo instante. O ar não
entrava e meus braços começaram a formigar. A visão começou a
embaçar ao tempo que meus olhos começaram a se encher de lágri-
mas e esconder a imagem horrível que estava à minha frente: meu
pai, de joelhos, prestes a morrer.
– Não... – murmurei baixinho para mim mesma enquanto ten-
tava compreender aquela cena.
– Que seja feita a primeira execução – disse a Primeira Mestra
dando a ordem.
O Executor se distanciou e fez um movimento que era clara-
mente parte do repertório da Palma Servil, porém, ao invés de con-
trolar a Essência Draconiana do atacante, que estava ao lado de meu
pai, ele simplesmente fechou o punho e, em um segundo, o corpo
daquele inimigo explodiu em luz, como milhares de estrelas, e desa-
pareceu por completo antes que ele pudesse sequer gritar.
Todos nós, novamente, ficamos assustados com o poder dos
Protetores. Eu, mais que todos, estava desesperada e em choque.
Não sabia o que fazer. Minha vovó, de cabeça baixa, já havia visto
meu pai enquanto os julgavam e, certamente, não queria que eu visse
a execução por isso.
Todas as lembranças do meu pai, meu herói, na minha infân-
cia em nossa aldeia, sobrepujaram meus pensamentos. Ele era meu
maior exemplo, meu amor. E agora estava ali, de joelhos, por ter
tentado matar outros como ele. A mim.
– Que seja feita a segunda execução – ordenou a Primeira
Mestra, novamente.
O Executor se posicionou em frente ao meu pai e começou os
movimentos.
Fechei os olhos. Não podia ver aquilo. Era meu pai. Era o
Drakkar Azul que havia me dado a vida e me dado seu Elemento.
Era minha família.
Meu sangue ferveu e, no mesmo instante que senti o poder
daquele Protetor, que fazia às vezes de carrasco, se elevar fazendo
fluir a Essência Primordial ao seu redor, eu, sem pensar direito, agi.
– Não! – gritei a plenos pulmões enquanto elevava todo o po-
der do Elemento que já havia Cultivado durante nossos treinamen-
tos da madrugada.
Senti meu corpo querer explodir e o deixei. Deixei aquele po-
der voar livremente e, então, pude sentir as minhas escamas aflora-
rem pelo meu corpo. Era a forma Varanus que despertava.
Sem perder nenhum segundo, com o único pensamento de
salvar meu pai, Soprei o Sopro Relâmpago com todas as minhas forças
contra aquele carrasco. Porém, sem saber como controlar todo aque-
le poder, os relâmpagos que saíram do meu corpo se espalharam por
todo o salão e acertaram diversos Drakkars e Protetores que ali esta-
vam.
Meu pai, assustado, aproveitou o momento de desespero e
confusão de todos e Soprou o Sopro de Rapina, desaparecendo dali a
toda velocidade.
A última visão que tive foi o olhar da Primeira Mestra do Palá-
cio que pareceu trespassar minha consciência, jogando-me em uma
escuridão silenciosa e fria, como se a própria morte houvesse me
atravessado.
O que eu havia feito?
—————|VII|—————

A SENTENÇA E O FIM DE UMA HISTÓRIA

erdida naquele frio tenebroso que me circundava, vagando no


nada, em silencio e perdida nos meus pensamentos, ouvia
apenas um breve eco, muito longe, como o de um zunido
que vibrava constantemente, acompanhado por um som metálico,
quase inaudível, que se repetia regularmente.
– Long’er... – escutei uma voz nos meus pensamentos.
Em seguida ouvi o que parecia ser uma carruagem, como a
dos nobres que tanto protegíamos.
– Long’er! – ouvi novamente a voz, que parecia velha.
De súbito estava em uma estrada e, à minha frente, havia re-
almente uma carruagem com dois cavalos, um branco e um negro e,
o seu cocheiro, um senhor de idade do meu povo Han, de roupas
finas, parecia com um nobre imperador.
– Long’er... Você fica aqui, criança – ele disse sorrindo – Aca-
bamos de passar pela encruzilhada. Achei que nos perderíamos, mas
conseguimos andar em equilíbrio; ainda que cada um dos nossos
cavalos puxasse para lados opostos.
– Quem é você? – perguntei confusa – Onde eu estou?
– Nós nos veremos em breve! – ele disse, gritando em seguida
com os cavalos, que saíram em disparada levando-o embora com a
carruagem.
Lembrei-me de meu pai e das Mestras do Palácio. Da besteira
que havia feito e de que, provavelmente, estivesse morta e aquele era
o outro mundo.
Olhei para os lados. Aquela estrada árida cortava um deserto
vermelho com montanhas de pedra e areia, sem nenhum sinal de
vida. Andei por uns minutos observando aquela desolação, sentindo
aquele vento quente que parecia lixar minha pele a cada soprada.
– Para onde eu vou? – indaguei sozinha depois de um tempo
vagando sem rumo por aquela estrada.
– Para onde? – assustei-me ao ouvir a voz que veio de trás de
mim.
Ao virar-me dei de cara com um pequeno jovem, de olhos cor
de mel e cabelos castanhos encaracolados. Devia ter uns dez anos.
– Quem é você? Onde eu estou? – perguntei a ele, esperando
ter uma resposta que me fosse favorável.
Não queria, em hipótese nenhuma, estar morta.
– Esse lugar é aqui e acolá – ele sorriu.
– Onde? – perguntei mais confusa ainda.
– Se você for para lá – ele apontou para um dos lados da es-
trada – Estará indo ali – ele apontou para o lado oposto.
– Isso não faz sentido – eu resmunguei.
– Mas pode estar indo para lá – ele apontou para o céu – Ou
para lá – apontou para o chão – Enfim, aqui é centro de tudo. E
você não deveria estar aqui. Quem lhe trouxe?
Cocei a cabeça. Não fazia ideia de onde estava e aquele garoto
só estava falando coisas sem nexo. Precisava achar uma forma de
sair dali.
– A última coisa que me lembro foi do olhar da Primeira Mes-
tra... – comecei a falar comigo mesma, tentando formular alguma
ideia – Depois aquele velho me trouxe aqui de carruagem...
Senti um toque no meu braço. Era o garoto tocando-o e o ali-
sando como se estivesse sentindo-o.
– É por isso que está aqui – ele disse como se tudo agora fi-
zesse sentido – a Sela está acordando...
– Sela? – indaguei mais confusa ainda.
– Você precisa ir... – ele disse assustado olhando para o céu –
Ele está observando, está focando aqui. Se vir você, sua Sela, Ele
virá para pegá-la e todos seremos destruídos... vá! – ordenou – Vá!
– Vou aonde? Como? – gritei assustada.
O que era aquilo? Sela? O que significava? E o que era “Ele”
que estava nos observando?
– Vá! – o garoto gritou e me empurrou com força.
Senti meu corpo cair em uma escura vastidão sem limites até
que bateu em algo firme.
– Que lugar é esse? – ouvi como um eco, longínqua, a voz de
uma mulher – É lindo... – ela disse um pouco depois.
Fiquei um tempo de olhos fechados, tentando entender aquela
sensação estranha que me formigava o corpo. O local onde eu caíra
era duro e frio, mas o silêncio que permeava o lugar me deixava, de
certa forma, tranquila.
– Long’er – senti um chacoalhão.
Abri meus olhos. Estava em um local de baixa luminosidade,
feito de pedras e grades de ferro. Era uma prisão.
– Vovó? – disse assim que a vi, acompanhada de outros dois
Protetores.
Eu estava em uma das celas do Palácio. Não havia morrido e
aquele sonho maluco era apenas aquilo: um sonho.
No momento em que me levantei para abraçá-la, feliz em vê-la
ali, fui contida pelos outros Protetores, como se fosse uma prisionei-
ra.
– Vamos. Você será julgada pelo que fez – disse minha vovó.
– Foi sem querer... – murmurei assustada.
E havia sido. Fora uma decisão estúpida e impulsiva. Jamais
atacaria os Protetores nem meus amigos e colegas.
– Intenções não importam – ela disse – O que importa são su-
as ações. Eu fiz o que pude. Implorei às outras Mestras para perdoa-
rem você, mas a Lei é para todos. E sempre será. Torçamos pelo
melhor.
– Mas vovó... – implorei.
– Vamos – ela disse, séria.

Enquanto seguíamos pelos corredores do Palácio, eu tentava


digerir tudo aquilo que havia acontecido de forma tão rápida e im-
previsível. E, conforme passávamos por outros Drakkars e Proteto-
res, ouvia os cochichos de como eu tivera coragem de trair o Palácio
e atacar todos pelas costas. Eu era uma desgraça para o Clã Liu, as-
sim como meu pai era.
Como de praxe, naquelas situações, fui levada, tal como os
dois prisioneiros horas antes, até o Salão Principal, onde as outras
duas Mestras do Palácio já esperavam, junto com outros Mestres
Drakkars e seus aprendizes e, claro, outros Protetores.
– De joelho – disse minha vovó assim que chegamos em fren-
te ao trono das Mestras.
No Salão Principal havia três tronos onde as Três Luzes do
Protetorado sentavam-se e davam suas ordens.
Minha vovó Wu Mei, assim que me ajoelhei, subiu em direção
ao seu trono e se sentou.
– Como já discutimos anteriormente – iniciou a Primeira Mes-
tra – Enquanto QingLong estava presa; sua conduta foi inesperada,
traiçoeira e imperdoável.
Meu coração gelou.
Olhei ao redor e todos estavam me encarando como se eu fos-
se um monstro. Meus amigos, companheiros há anos, viraram o
rosto, como se eu fosse uma estranha. Não sabia se tinham vergonha
de mim ou se não queriam ver minha vergonha. Minha Mestra Lihuá
deixava transparecer com muita facilidade sua decepção e, de onde
eu estava, podia jurar que seus olhos estavam cheios de lágrimas.
– Liu QingLong – Dvorah, a Segunda Mestra me chamou –
Você feriu muitos Drakkars e aprendizes do Protetorado. Essa trai-
ção é punível com a morte.
Fechei meus olhos enquanto as lágrimas, frias, escorriam até
meu queixo. Eu havia cometido um erro terrível, e pagaria com mi-
nha vida, que serviria de exemplo aos demais.
– Por sorte ninguém perdeu a vida – disse a Primeira Mestra –
E, por esse motivo, bem lembrado pela Wu Mei, sua avó, seguindo a
Lei do Protetorado, decidimos que a sua não será tirada por nós.
Não hoje.
Minhas pernas tremeram. Eu estava mole, sem saber como re-
agir.
– Depois de discutirmos a sua pena – continuou a Primeira
Mestra – visto que seria mais branda do que a execução, chegamos a
uma decisão.
Minha vovó baixou a cabeça e fechou os olhos.
– Você foi sentenciada à expulsão – disse a Primeira Mestra.
Todos no salão ficaram boquiabertos. Um burburinho come-
çou e eu podia ouvir muitos reclamando, dizendo que eu merecia a
morte, enquanto outros me defendiam, dizendo que eu era apenas
uma criança.
– Como um pedido particular que atendemos – disse Dvorah,
a Segunda Mestra – deixaremos que sua avó, Wu Mei, cumpra a sen-
tença.
Eu já não sabia o que era pior. Se era perder a vida, ou ser ex-
pulsa do Palácio. Ora, eu sabia que ser expulsa significava ter meu
Elemento destruído, tirando de mim tudo o que me fazia Drakkar.
Eu seria uma humana comum e voltaria para a minha aldeia. Para
mim, naquele momento, aquilo era o mesmo que a morte.
Assim que minha vovó deu o primeiro passo em minha dire-
ção, para cumprir minha sentença, tudo pareceu desacelerar. Uma
angústia tomou conta de mim e eu comecei a chorar. Não queria
deixar o Palácio, meus amigos, minha vida de Drakkar. Aquilo era
tudo o que eu tinha, era tudo o que eu era.
– Long’er – minha vovó me chamou assim que chegou à mi-
nha frente.
Eu a olhei aos prantos e vi que ela também chorava.
– Você terá uma vida boa – ela disse – Voltará para casa e vi-
verá com sua mãe.
Minha vovó colocou sua mão sobre minha cabeça e, aquela
ação, tornou tudo definitivo. Estava realmente acontecendo.
– Eu a amo, Long’er – ela disse – Sempre vou ama... – ela o-
lhou pelo pórtico de entrada por uns instantes e sorriu brevemente.
– Vovó? – indaguei sem entender o que ela estava olhando.
– Cuide-se – ela sorriu uma última vez.
De súbito, senti uma força invadir meu corpo, de forma que
parecia que todos os meus músculos estavam sendo rasgados. Uma
dor excruciante se espalhou por cada pedaço meu e, sem aguentar
mais, gritei. Gritei muito.
Depois de um pico de agonia, aquele ardor foi aliviando e, lo-
go, não senti mais nada.
– Está feito – disse minha vovó virando-se de costas para
mim.
Todos no salão viraram-se de costas.
A Primeira Mestra desceu de seu trono e parou próximo a
mim, olhando-me de frente.
– De hoje em diante – ela disse – Você está expulsa e deson-
rada para com o Grande Palácio dos Protetores. Com isso, sendo
humana, você está proibida de regressar a esse Palácio, ou ter conta-
to com qualquer um que aqui viva ou tenha relações conosco. O
mesmo ocorre para quem vive e tem relações aqui. Eles também
estão proibidos de ter contato com você. Qualquer violação dessa
decisão será punida com a morte.
Fiquei perdida. Sem chão. Nunca mais poderia ver meus ami-
gos? Nunca mais veria minha vovó? Como aquilo era possível? Não
era justo!
– Agora saia imediatamente, ou fique e morra – a Primeira
Mestra virou-se de costas.
Eu me levantei zonza e cambaleei um pouco entre a multidão
que estava de costas. A saída, à minha frente, parecia o único cami-
nho sensato a seguir naquele momento, ainda que parecesse infini-
tamente distante. Eu estava em choque. Não sabia o que fazer, não
sabia o que estava acontecendo. Tudo parecia tão irreal, tão inacredi-
tável.
Andei até a saída e comecei a descer as escadas que, há cinco
anos, havia me trazido até ali, para aprender a ser uma grande Drak-
kar.
Era como se a vida tivesse me dado um golpe baixo, sem que
eu tivesse esperando e não pudesse revidar. Aquela injustiça não
podia ser desfeita e eu não tinha poderes para impedi-la.
Uma vastidão de terras e montanhas se abria à minha frente,
desde o Palácio até minha aldeia próxima ao Rio Amarelo; e eu de-
veria percorrer aquele caminho sozinha e sem nada. Jogada à própria
sorte.
Parecia não haver motivos para seguir em frente, mas minha
mente estava perdida demais para decidir qualquer coisa. Então ape-
nas deixei que meu corpo andasse a esmo, um passo depois do ou-
tro.
—————|VIII|—————

BALANÇO

assei dois dias vagando pela imensidão das planícies e monta-


nhas até que, durante uma noite, com fome e com frio, avis-
tei ao longe o que parecia ser uma pequena fogueira, tímida,
tremulando com o vento forte que soprava. Meus lábios, rachados,
imploravam por uma gota de água e minhas pernas, fracas, só queri-
am se jogar ao chão.
– Eu não... aguento mais... – suspirei sem fôlego enquanto
meu joelho direito tocava a terra.
Estava completamente sem forças.
Meus dedos aravam o chão de areia solta enquanto eu tentava
juntar minhas últimas energias para seguir até aquela tênue luz.
– Ajuda... – resmunguei uma última vez, quase sem ar, antes
de cair definitivamente.

Por alguns minutos, talvez horas, ouvi os sons dos animais no-
turnos que viviam naqueles terrenos áridos. De olhos fechados, sem
condições de me levantar, falar ou mesmo me mexer, só me restava
esperar a morte derradeira que logo me alcançaria.
Então ouvi o som dos grous ao longe que se assustavam com
alguma coisa e batiam suas asas desesperadamente; assim, logo, pas-
sei a ouvir o andar pesado dos Yaks que se aproximavam. Aqueles
bovinos de pelo longo, típicos daquela região, não andavam à noite
e, se passassem por cima de mim, certamente terminariam com meu
sofrimento.
– Vejam só... – ouvi uma voz rouca e cansada – Como eu ha-
via imaginado...
Meu corpo estava tão fraco que minha mente parecia dispersar
em pensamentos, lutando para não se entregar; porém, mesmo as-
sim, a minha consciência se ia de tempos em tempos, como o sono
que nos pega devagar.
Senti minhas pernas sendo puxadas enquanto eu era levada até
alguma base de madeira, onde continuei deitada e, em seguida, ouvi
aquela voz fazer um som como se comandasse os Yaks para que
andassem.
– Quem está aí? – murmurei forçosamente no instante em que
o que parecia ser uma carroça começou a andar.
O chacoalhar e os solavancos daquele transporte em meio à
areia e as pedras não me deixavam perceber se a voz me respondia
ou não.
– Quem é? – insisti, porém sem sucesso.
O silêncio reinou até que minha consciência se foi de vez.

O tempo passou, ainda que eu não conseguisse precisar o


quanto. E, deitada, agora em alguma coisa macia, senti um leve calor
que me aquecia naquela noite fria enquanto gotas de água pingavam
nos meus lábios.
Juntei minhas forças e tentei me levantar.
– Descanse – ouvi a voz enquanto uma mão me empurrava de
volta.
Abri meus olhos.
Uma luz amarela ofuscou minha visão, porém aquele borrão
claro foi tomando forma e percebi que estava deitada em uma espé-
cie de tenda pequena, próxima a uma fogueira.
– Fique calma, criança – reconheci um homem de idade, do
meu povo, que sorria e molhava um pequeno tecido.
Aquele homem, sem dúvida nenhuma, era o mesmo com
quem eu havia sonhado antes de ser expulsa do Palácio.
Sentei-me de súbito na cama.
– Quem é você? – inquiri séria.
Algo não estava certo. Aquilo não podia ser coincidência.
– Eu me chamo GongSun – ele sorriu – Falei que nos encon-
traríamos de novo...
GongSun devia ter em torno de uns sessenta ou setenta anos.
Longos cabelos e barbas brancos. Vestia-se uma roupa comum ao
nosso povo, também na cor clara.
– Aqui... – ele me entregou uma vasilha com um pouco de so-
pa – Tome. Vai repor suas energias.
– Quem é você? – insisti enquanto pegava a vasilha.
– Eu vivo nessa região há muitos anos – ele disse – E nós pre-
cisávamos nos conhecer.
– Como assim? – terminei o primeiro gole da sopa.
– Você é Liu QingLong – ele disse para minha surpresa – E é
filha de um Drakkar com uma herdeira do Protetorado. Aliás, sua
avó é uma das Protetoras mais importantes vivas hoje. É uma das
Três Luzes do Protetorado...
Quem era aquele homem? Como conhecia minha história da-
quela forma?
– Você é um Drakkar? – perguntei curiosa e receosa.
Pela ordem do Palácio, aquilo era quebrar a regra imposta.
– Não – ele disse.
– Um Protetor? – tentei novamente, ainda com medo.
– Também não – ele sorriu – Sou apenas um homem que vi-
veu muito tempo e aprendeu alguns truques nessa longa vida.
– De onde me conhece? – perguntei completamente perdida.
– Eu a conheço, pois você existe porque precisa existir, Qin-
gLong – ele disse – O seu nascimento é resultado de muitas ações,
muitas decisões tomadas no decorrer dos anos. Você nasceu dessas
duas famílias porque nós precisávamos de você...
– Do que você está falando – tentei me levantar, com alguma
dificuldade.
Aquilo estava ficando muito estranho.
– Eu não sou um Drakkar e nem um Protetor – ele continuou
– E, não sendo nenhum e nem outro, também estou fora de balan-
ço. Você, pelo contrário, é o equilíbrio vivo. E, sendo assim, tem
poder suficiente para ativar e usar a Sela completamente. Isso é raro,
mas tende a se repetir no curso da criação.
Sela? Já havia ouvido aquilo no meu sonho.
– O que é isso? – indaguei confusa, com medo, mas curiosa.
Foi então que GongSun me contou que, no início, quando Ti-
amat e Abzu criaram tudo, todo o seu poder criador gerou uma for-
ça equivalente e inversa. Uma entidade Primordial Caótica e absoluta
como eles, porém fora de seu controle e com um único propósito:
destruição. Aquilo se dava por conta do balanço que precisava, por
regra, permear toda a existência. GongSun também me disse que,
para conter essa entidade destruidora, eles fundiram energias Pri-
mordiais Caóticas e forjaram as Sete Selas. Então, armados com elas,
prenderam essa força no centro da criação e, estando tudo em paz,
presentearam os sete primeiros seres vivos, cada um com uma Sela.
Eu nunca havia ouvido sobre aquela história e um velho senil,
no meio daquele deserto árido e rochoso durante a madrugada, con-
tando-me aquilo, não fazia sentido. Devia ser pura loucura de sua
cabeça.
– Eu preciso ir... – segui em direção a saída da tenda.
Como já tinha descansado um pouco, podia continuar minha
penosa caminhada até a aldeia. Já havia recobrado um pouco da lu-
cidez e pensar que não era mais uma Drakkar era o menor dos meus
problemas naquele momento. Precisava deixar aquele velho maluco.
Assim que pus o pé para fora, senti uma pressão no meu ab-
dômen que me puxou de volta para dentro da tenda, como uma mão
invisível. Já havia sentido aquele poder antes. Era a Palma Servil.
– Você... – entrei em desespero – Você é um Protetor! Você
mentiu para mim!
– Se andar por todo esse deserto, vai perder todas as garras
das patas – ele riu – e eu não menti – ele se levantou e juntou os
braços nas costas para descansá-los – Eu não sou nenhum, nem
outro. Sou um ser humano comum...
– Então como pode usar a Palma Servil contra mim? – inquiri.
– Poder manipular a Essência Primordial não é uma exclusivi-
dade da Palma Servil nem dos Protetores – ele disse – A própria
Palma Servil nasceu de um controle mais antigo da Essência que se
iniciou há mais de mil anos...
Como aquilo era possível? Uma habilidade similar à Palma
Servil existia e ninguém sabia?
– Se é assim, como se chama essa técnica? – perguntei.
– Você é uma criança muito curiosa – ele riu – Essa técnica é
secreta, pois é a forma original que deu vida à habilidade dos Prote-
tores e, você, QingLong, vai precisar aprendê-la para usá-la no futu-
ro. Para isso também precisará dominar sua Sela.
– Eu não tenho isso que você chama de Sela – resmunguei.
– Agora tem – ele disse – Eu a passei para você, quando a pro-
tegi do ataque da Primeira Mestra do Palácio.
Ele, aquele velho humano, que nem era Protetor, havia me
protegido da poderosa Primeira Mestra? Não podia ser verdade.
– E o que eu faço com essa Sela? – desdenhei, desacreditando
tudo aquilo.
– As Sete Selas – ele começou a explicar – São Sete Saberes
Primordiais Caóticos, que são dados, nunca tomados. São dados
através de Sete Chaves, que são Sete Palavras. Quando quiser passar
uma Sela para outro ser vivo, basta sussurrar em seu ouvido a Pala-
vra Chave e ela será transferida para o novo portador imediatamente.
Eu sussurrei a você...
– Você me deu a sua Sela, então? – perguntei tentando enten-
der aquela realidade estranha.
– Sim – ele sorriu – A Sela da Eternidade. E seu Saber permite
ao seu portador ver toda a Eternidade, para frente e para trás... Po-
rém – ele suspirou como se estivesse cansado – Eu, sendo um ser
humano, não tenho energia suficiente para usar a Sela em todo seu
potencial. Por isso só conseguia ver uma distância limitada do passa-
do e do futuro. Você – ele apontou para mim – Sendo uma Drakkar
e sabendo manejar o Fluxo Primordial, pode usufruir de todo o seu
poder.
Tudo aquilo parecia realmente incrível. Até demais para ser
verdade; mas, mesmo que fosse maravilhoso, eu não era mais uma
Drakkar. Não poderia usar aquela tal Sela com todo o potencial, com
ele havia dito.
– Você errou de pessoa – ri – Se quiser, posso devolver essa
Sela para você.
– Eu não errei – ele disse – Tudo aconteceu como tinha que
acontecer. Como eu ajustei para que acontecesse.
– Mas eu fui expulsa do Palácio dos Protetores... – resmunguei
– E tive meu Elemento completamente destruído. Não sou mais
uma Drakkar! – disse, por fim.
Sentei-me de volta e senti uma tristeza muito grande. Lembrei
novamente de tudo o que passara e de como a minha vida tinha sido
completamente alterada. Eu havia perdido tudo.
Ele suspirou profundamente e andou até o limite da tenda.
– A Lua está tão bonita, não está? – ele perguntou, olhando-a
no céu, através da entrada da tenda – O que será que acontece com
ela durante o dia, quando não está nos céus?
– O que isso tem a ver? – murmurei indignada com minha si-
tuação.
– Durante o dia ela perde o brilho, desaparece. Some comple-
tamente; e é como se nunca houvera uma Lua nos céus... – ele disse
– O que ela se torna enquanto está apagada?
Aquelas questões não tinham sentido nenhum.
– O que você acha que ela se torna, QingLong? – ele insistiu.
– Não faço ideia – dei de ombros, irritada.
– Mesmo que você não a veja – ele continuou sozinho – Ela
não deixa de ser Lua. Não é o brilho que a faz Lua. Ser Lua é o que
ela é. Está em sua essência e perder sua essência é ser destruída. É
deixar de existir. E, como ela retorna depois, com seu brilho restabe-
lecido, então sabemos, por consequência, que ela nunca foi destruí-
da; ou seja, nunca deixou de ser Lua. Só precisou recuperar seu bri-
lho.
Aquelas palavras pareciam ter um sentido oculto e, começava
a parecer óbvio que não se referia realmente à Lua.
– Do que você está falando? – perguntei.
– Sua Essência é Draconiana, QingLong – ele disse – E, se
você ainda está viva e seu corpo inteiro, isso significa que a sua Es-
sência ainda está aí, intacta. Seu Elemento é produzido pela Essência
Draconiana, não o contrário. Você só precisa despertá-lo novamen-
te. A segunda vez é muito mais difícil, mas não é impossível.
Agora ele havia ganhado minha total atenção.
– E como posso despertar novamente meu Elemento? – in-
quiri curiosa e afobada.
GongSun soltou uma gargalhada muito alta.
– Você não apenas vai despertar seu Elemento novamente,
QingLong, mas vai acessar plenamente sua Sela – ele disse apontan-
do para mim – Porém, para isso, precisarei levar você por um cami-
nho muito perigoso – encerrou gargalhando e sinalizando, com o
dedão, que tudo ia dar certo.
– Onde? – pus-me de pé.
Estava pronta para partir. Tudo o que eu queria era meu Ele-
mento de volta.
– É além daquela encruzilhada que lhe deixei...
– No sonho? – lembrei.
– Aquilo não era um sonho...
Então GongSun me contou uma realidade que partiu meu co-
ração de uma forma que levaria muitos anos para se restabelecer
novamente.
Ele me disse que eu, como Drakkar, possuía uma conexão
muito poderosa com minha Essência Draconiana e isso permitia que
ela se acumulasse naturalmente. Essa habilidade, ao longo da vida,
fazia com que um invólucro de Essência se formasse com as caracte-
rísticas idênticas ao meu corpo físico e, por isso, depois do meu cor-
po perecer, no fim da vida, eu continuaria para além dessa, mergu-
lhada no Fluxo Primordial, mas mantendo minha consciência e indi-
vidualidade, ainda que unida ao Todo. O mesmo ocorria com os Pro-
tetores que, ao longo de sua vida, cultivavam o Fluxo Primordial,
transformando-o em Essência Primordial. Esse acúmulo, tal como
acontecia com os Drakkars, formava um segundo corpo Essencial,
que também resistiria após a morte. Entretanto... o ser humano co-
mum, sem saber disso, nada fazia e, por isso, não construía um cor-
po de Essência Primordial e, assim, ao findar sua vida, deixava de
existir completamente, como se nunca tivesse nascido.
– Isso é tão triste... – murmurei ouvindo aquelas palavras.
– De fato – ele disse – Porém, essa construção de corpos Es-
senciais deu início a um próximo reino além desse. Um que pode-
mos acessar durante certos transes e sonhos, pois temos nossos cor-
pos Essenciais.
– O local da encruzilhada... – comentei.
– É um ponto no Todo onde todas as coisas convergem e, lá,
poderá se conectar com todo o Universo e reaver a ignição de seu
Elemento. Porém, não se engane, você retornará de lá diferente do
que é.
– Eu preciso recuperar meu Elemento – disse confiante.
– Temos um longo caminho pela frente, criança – disse
GongSun.
Minha mãe, minha aldeia e meu futuro marido, que certamente
seria arranjado, poderiam esperar. Sentia nas minhas entranhas que
precisava estar ali, que precisava passar por aquele acontecimento.
Algo profundo me pedia aquilo.
—————|IX|—————

NO CENTRO DA ETERNIDADE

or dois anos vaguei como nômade ao lado de GongSun, que


me ensinou as formas mais brutais e violentas de controle do
Fluxo Primordial. De como poderia acumulá-lo muitas vezes
mais rápido do que fazia qualquer Protetor e, realmente, depois da-
quele tempo de prática, eu sabia que já havia atingido o nível de po-
der e controle do Fluxo e da Essência Primordial das Mestras do
Palácio dos Protetores. Feito que antes me parecia inalcançável.
De início era estranho pensar que largara tudo para aprender
com ele, mas a cada dia que se passava, eu abandonava cada vez
mais a ideia de que um dia fora uma pequena criança em uma vila
próxima ao Rio Amarelo e, posterior, uma Drakkar no Palácio dos
Protetores. Todo aquele passado parecia se tornar um borrão, ainda
que estivesse sempre comigo e, de forma confusa, conseguia me ver
como uma poderosa Drakkar novamente, em algum lugar à frente,
ainda que não tivesse despertado meu Elemento outra vez.
Durante aqueles dois anos, muita coisa havia acontecido. Sabí-
amos que os insurgentes que atingiram a forma Imane, dos quais
meu pai fazia parte, tinham saído pelo mundo espalhando seu con-
trole e recrutando todos os Drakkars que encontravam, fossem ve-
lhos ou jovens, que nem sequer tinham ainda despertado seu Ele-
mento. Seu exército era imenso e os Protetores temiam que um con-
fronto de proporções abissais se daria em pouco tempo.
No Palácio dos Protetores, as notícias diziam que a Ordem Da
Garra do Dragão também estava montando seu exército de Drak-
kars Varanus e que os Cavaleiros, todos eles, já conseguiam atingir a
forma Imane; e, não foram poucas as vezes que esses Cavaleiros
tiveram que proteger o Palácio das incursões violentas dos insurgen-
tes que, também na forma Imane, tentavam atacar as Mestras do
Palácio. Era pura vingança, em nome de uma liberdade da raça
Drakkar que, segundo eles, tinha sido tirada de nós.
– Mestre GongSun – eu o chamei, acordando-o de seu sono
da tarde.
– O que houve, criança? – ele se levantou, ainda sonolento.
– Vou tentar mais uma vez – disse.
No dia anterior eu havia me conectado com o Centro do Todo,
como vinha fazendo desde os primeiros dias de treinamento. O pla-
no era Contemplar nesse Centro, tentando dar ignição no meu Ele-
mento uma vez mais e, em conseguinte, agora que possuía a Sela da
Eternidade, ativá-la de uma vez.
– Sabe de uma coisa... – ele riu – Hoje parece um bom dia pa-
ra tentar, realmente.
GongSun havia me ensinado que aquele tipo de conexão con-
sumia uma quantidade enorme de Essência Primordial acumulada e,
se essa fosse drenada até o fim, eu morreria, seguindo o caminho
natural no Fluxo. Por isso eu devia praticar aquela técnica somente
uma vez por semana.

Como de costume, nós nos sentamos um de frente para o ou-


tro e posicionamos nossas mãos como se fôssemos nos empurrar,
porém sem nos tocar. Começamos a fluir o Fluxo Primordial dentro
dos nossos corpos, fechando o circuito que nos conectava com o
Todo. Era a forma normal para acumulá-lo em Essência Primordial,
porém a diferença era que, mantendo nosso corpo onde estava, pre-
cisávamos jogar nossa consciência para cima, além do físico, para
adentrarmos nas dimensões mais sutis do Universo. E, aquilo, não
era uma técnica fácil de dominar. Na verdade eu havia conseguido
praticá-la plenamente fazia apenas dois meses.
Vagarosamente o silêncio e a escuridão consumiram meus
pensamentos e tudo o que sentia era uma vibração que percorria
todo o meu ser, espaçada por um som metálico que ecoava regular-
mente, como a batida de um gongo. O poder que vertia dessa di-
mensão preenchia meu corpo e transbordava como um vaso que se
põe sob uma poderosa cachoeira.
– Respire fundo, criança – disse GongSun.
– Sim, mestre.
Do mesmo jeito que vinha fazendo, puxei o ar profundamente
e segurei. O tempo em que permanecesse com o ar em meus pul-
mões era o tempo em que meu coração pararia de bater. Um peque-
no instante, mas suficiente para me jogar ao outro mundo.
De súbito fui arremessada para um local longínquo, mas ilu-
minado por todas as estrelas e galáxias onde, sob meus pés, um pe-
queno chão parecia sustentá-los. Entretanto, logo que me senti con-
fortável, aquele chão se estendeu e todo o lugar tomou a aparência
da estrada onde vira GongSun pela primeira vez.
– Aqui estamos – disse ele se juntando a mim.
– Sempre que viemos aqui, eu sinto que aquela força me ob-
serva – comentei olhando para o céu escuro e estrelado.
A força da qual falava era a mesma que a criança me mostrara
a primeira vez que estive ali, quando sofri o ataque da Mestra do
Palácio.
– Sim... – disse GongSun – Ele está lá, observando, dentro de
seu incognoscível centro de eternidade. Essa Entidade Primordial
Caótica de pura destruição, que parte dorme e parte observa, está de
olho em sua Sela.
Então estava explicado o que me observava. Uma entidade de
poder equivalente à soma das energias de Tiamat e Abzu; talvez su-
perior.
– Não tema, criança. Não é hora d’Ele acordar ainda – disse
GongSun sorrindo – Mas ele irá... se falharmos.
Durante aquele tempo sob a tutela de GongSun aprendi que
ele vinha, por muitos anos, tentando entender os eventos que levari-
am ao fim da criação, pelas forças oriundas dessa Entidade Primor-
dial. E, como Tiamat não existia mais, nem Abzu, ninguém era capaz
de pará-lo ou impedi-lo definitivamente. Por esse motivo GongSun
dedicou sua longa vida a descobrir um caminho de eventos que leva-
riam à destruição daquela Entidade e a salvação de toda a criação.
– Nós encontraremos um jeito – disse a ele.
– Você, criança... você encontrará. Disso eu tenho certeza.
Suspirei fundo. Queria acreditar que eu tivesse poder suficien-
te para atender as expectativas dele, mas, mesmo depois de dois anos
de puro aprendizado, de Cultivação da Essência Primordial, de todo
o treinamento Contemplativo e do domínio dos níveis iniciais da
habilidade original da Palma Servil, a Shurdu, eu não havia consegui-
do recuperar meu Elemento.
– Gostaria de deixá-lo orgulhoso, mestre – eu disse cabisbaixa
– mas ainda não sou novamente uma Drakkar e a Sela sequer se
pronunciou em mim até agora.
– Hoje ela irá – ele riu – Hoje... minha criança... Hoje você
começará a se tornará a Drakkar mais poderosa que já existiu!
As palavras de GongSun me animavam de início, mas quando
parava para pensar nos fatos que vinham se acumulando, o mais
provável era que eu jamais conseguisse despertar meu Elemento
Água novamente. Porém eu não perderia as esperanças. Se GongSun
não perdia sua fé em mim, eu não poderia perder a minha fé nele.
– Criança... – ele chamou minha atenção, como se fosse me
contar algo muito importante – Sabe quem foi o primeiro ser huma-
no a aprender a habilidade de dominar o Fluxo Primordial?
Minha vovó havia me ensinado que essa primeira pessoa era
uma mulher nômade das planícies próximas à cordilheira Pamir.
– Aprendi que chamavam de Mãe do Oeste... – respondi.
– Exatamente – disse GongSun – A Primeira Mestra, a Gover-
nante Primordial, Ela dos Nove Numes, a Grande Maravilhosa, a Maravilha
do Aperfeiçoamento e a Grande Mãe do Oeste. A mestra... – ele sorriu – da
minha mestra – bateu no peito.
– Mas ela viveu há mil anos... – comentei assustada.
Como que a Grande Mãe do Oeste podia ter sido mestra da
mestra de GongSun? Aquilo não fazia sentido.
– É verdade – ele gargalhou – A Grande Mestra Xi WangMu
viveu há mais de mil anos e lutou na Primeira Guerra Dracônica; e,
ainda assim – ele levantou o dedo para que eu prestasse atenção –
viveu tempo suficiente para ensinar minha mestra. E minha mestra...
foi ela que coordenou as batalhas da Segunda Guerra Dracônica,
quinhentos anos depois...
– E quinhentos anos atrás... – eu adicionei boquiaberta –
Quantos anos o mestre tem? – perguntei chocada e curiosa.
GongSun soltou uma alta gargalhada.
– Vamos deixar que minha antiga mestra responda – ele apon-
tou para cima, atrás de mim.
Ao virar-me vi, com meus olhos mortais, a visão mais bela que
jamais poderia ter imaginado: uma mulher, de estatura baixa, mas
longos cabelos negros, descia das estrelas em um vestido esvoaçante
de penas de nove cores. Atrás dela, uma centena de flocos de luz
parecia planar como a neve em um dia frio à beira do rio Amarelo,
coberto por uma névoa densa.
No seu olhar rasgado e negro, cujos traços certamente des-
cendiam do meu povo Han, um tom de mistério e sensualidade pa-
recia transbordar. Seu meio sorriso, de lábios finos e fechados, pare-
cia me inspirar temor e respeito ao mesmo tempo. E, ainda que fos-
se graciosa em seus movimentos, percebia que seu poder estava além
de qualquer coisa que eu já havia sentido.
– Mestra Xuannü – GongSun a abraçou como se não a visse
há muito tempo.
Xuannü... Aquele nome ecoou pelos meus ouvidos e me trou-
xe memórias de quando era criança e sentava-me com minha vovó
Wu Mei à beira do rio Amarelo, ouvindo histórias sobre a mulher
misteriosa que, cavalgando uma fênix de fogo, presenteou o Impera-
dor Amarelo com diversos talismãs sagrados e conhecimento secre-
to, permitindo a ele que vencesse todas as batalhas. O nome dessa
mulher misteriosa era Jutian Xuannü, a Senhora Obscura dos Nove Céus.
De súbito me pus de joelhos olhando para o chão. Não impor-
tava minha linhagem, meu conhecimento, minhas habilidades ou
mesmo o quanto havia Cultivado de Essência Primordial. Eu não era
digna de olhar nos olhos daquela que estava à minha frente.
– Criança – riu GongSun – Não seja boba. Levante-se.
– Levante-se, QingLong – disse Xuannü.
Sua voz era fina e estridente como uma espada afiada.
Pus-me de pé novamente, mas me era difícil olhá-la nos olhos.
– Long’er – chamou-me GongSun – Permiti que viesse aqui
hoje, mesmo sendo perigoso, por ter estado nesse local ontem, por-
que recebi em sonho o chamado de minha antiga mestra que está
aqui. O que está acontecendo agora foi o último momento que pude
antever enquanto estava com a Sela que está com você. Entretanto,
não sabia quando iria ocorrer e, finalmente, hoje é o dia; E é um dia
de glória.
– O que vai acontecer? – gaguejei curiosa.
– Eu vou ensiná-la – disse Xuannü – Vou mostra-lhe as artes
mais sublimes e perfeitas da criação, pois você é tudo o que nós vi-
emos planejando há mais de mil anos.
– A Sela que está com você – continuou GongSun – Perten-
ceu à minha mestra Xuannü, antes de mim, e à Xi WangMu antes
dela. Essa Sela vem sendo guardada há muitos anos, pois ela é a ân-
cora para encontrar todas as outras. Você é o ponto onde todas as
naturezas convergem. Você é Drakkar e Protetora e, assim, pode
dominar plenamente as Selas e...
– Bem... – Xuannü interrompeu GongSun – Uma coisa de ca-
da vez.
– É verdade, mestra – riu GongSun – E, assim, vou deixá-las a
sós. Vigiarei seu corpo, criança, para que esteja em segurança – en-
cerrou deixando-nos ali, desaparecendo antes que eu pudesse dizer
qualquer coisa.
– Como você já deve saber – disse Xuannü – O tempo aqui
escorre diferente do plano mais denso e, por isso, ensinarei a você
tudo o que precisa saber e, quando retornar ao seu corpo, estará
plenamente em comunhão com o Todo – ela deu um meio sorriso –
Você sabe o que é o Todo? – perguntou como um desafio.
Como aprendiz de Protetora, eu havia aprendido com minha
vovó Wu Mei o que era o Todo e, claro, naqueles dois anos com
GongSun, eu tinha compreendido muito melhor tudo o que se refe-
ria e ele.
– Sim – disse confiante.
– Ótimo – ela sorriu – Não vou precisar explicar o que são os
Seis Selos Cíclicos de Jia, e os Seis Selos Cíclicos de Ren, nem a Fórmula dos
Cinco Yin e Cinco Yang, usada para ocultar os Selos Cíclicos...
O que era aquilo?
– Você não sabe o que é isso, não é? – ela riu.
– Não... – respondi envergonhada.
Nunca havia ouvido falar naquilo e achava que conhecia o To-
do.
– Fique calma – ela disse – Não há como você conhecer o que
nunca foi lhe ensinado. Porém, a partir de hoje, seu nome será risca-
do da Lista da Morte e será inscrito na Lista de Jade da Vida, e você
será matadora do mal, e protetora da justiça.
Xuannü deu uns passos para trás e abriu os braços.
– Comecemos! – ela disse sorrindo.
Uma energia clara começou a verter de seu corpo ao tempo
em que ela começou a girar lentamente como se dançasse e, em
meio àquela explosão de luzes, ela se vestiu com um vestido de seda
vermelho ornado com fios de ouro, tendo tiras de jade azul pendu-
radas por toda a sua extensão. Suas mangas, trabalhadas com jade
branco, refletiam o vermelho de sua coroa ígnea que parecia ter dra-
gões e fênix se revolvendo uns nos outros. E, ainda que a descrição
tentasse passar a realidade do que eu estava vendo, ela não chegava,
de fato, nem perto, pois seu rosto lindo imortal e seu corpo majesto-
so eram impossíveis de serem descritos plenamente.
– Com todo esse poder... – eu murmurei espantada – Não sei
por que precisam de mim...
– Aqui onde estamos – ela voltou a se aproximar – não há li-
mites; porém aqui é só uma parte da criação. E, no centro de toda a
criação há um trono negro, de onde os tentáculos destruidores de
seu sultão permeiam todas as camadas da existência. Em seu local
ermo de descanso, ele observa e espera, incompreensível e inalcan-
çável. Ninguém pode ou ousa ir até ele; não sem todas as sete Selas.
E quem pode reunir e usar as sete Selas senão alguém que converge
em si todos os atributos da criação?
Ela falava de mim? Seria eu a reunir e usar todas as sete Selas
para enfrentar essa Entidade Suprema? Aquilo não podia ser possí-
vel. Se ela que havia se tornado uma força do universo, uma deusa
suprema, não tinha poderes para conter ou vencer aquela coisa, co-
mo eu, uma simples Drakkar sem Elemento poderia?
– Você não está se referindo a mim, não é? – indaguei confu-
sa.
– Não você – ela tocou em meu peito – Mas quem você vai se
tornar... E essa transformação começa aqui e agora. Sente-se...
Foi então que tudo mudou...
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CONVERGÊNCIA

esde que Xuannü começara a me ensinar os mais sublimes


níveis do conhecimento do Fluxo Primordial e de todo a
malha da realidade, sequer tinha parado para pensar no
tempo em que estivera ali com ela. Sequer me lembrara de GongSun
ou do resto do mundo. Aprender com aquela mestra que comandou
a última guerra que prendeu os Lordes Dragões era um presente que
ninguém havia recebido no mundo há séculos.
Xuannü me explicou que, além do mundo físico, no qual os
seres vivos estavam inseridos, havia sete dimensões internas que se
intercalavam e se moviam através do poderoso Fluxo Primordial que
vibrava a partir do Todo. E, se eu aprendesse a extrair energia de cada
uma dessas dimensões, poderia atingir níveis inimagináveis de poder
para qualquer Drakkar que já tinha vivido até aquele dia.
– O que você sabe sobre as Mansões Lunares? – perguntou
Xuannü.
Ora, minha vovó havia me ensinado que a Lua levava vinte e
sete dias para retornar ao mesmo ponto fixo no firmamento, e vinte
e nove dias para retornar à sua primeira fase. E, assim, as vinte e oito
mansões eram um número médio desses movimentos. Sendo que a
Lua era dividida em quatro direções, ou pontos cardeais, em cada
um deles havia sete mansões.
– Esqueça a Lua com sua forma física – Xuannü sorriu – As
Mansões Lunares são movimentos de dimensões internas. A Lua
física apenas se comporta de forma parecida e, claro, sua observação
ajuda a entender esses movimentos internos. Porém, aqui, esse co-
nhecimento só vai lhe atrapalhar, pois vou lhe ensinar os verdadeiros
movimentos das Sete Mansões Lunares.
Então Xuannü começou a me explicar os conceitos das “fa-
ses” da Lua, que eram Yin-Yin, Yin-Yang, Yang-Yang ou Yang-Yin.
Que, dependendo de cada posição, um desses quatro aspectos seria
predominante no Drakkar e ele poderia percorrer somente este. En-
tretanto, essencialmente, só havia Sete Mansões Lunares que se re-
fletiam nessas quatro posições. Esse fluxo interno das dimensões
vibrava de forma que o Drakkar precisava usar o Reflexo para aces-
sar cada uma dessas Mansões, uma a uma, seguindo o curso do Todo.
– Quando você acessar a Primeira Mansão Lunar, tudo fará
sentido – disse Xuannü – E então as outras Mansões serão mais
simples de percorrer. Você conseguirá dominar as chaves que abrem
suas portas facilmente com o conhecimento que lhe passarei.
– E você as acessa? – perguntei curiosa.
– Não, minha querida – ela respondeu – Não posso, pois não
sou Drakkar, e somente vocês tem esse tipo de ligação com a Essên-
cia Primordial, pois trazem a fagulha de Tiamat dentro de vocês.
Nós, mesmo com o controle do Fluxo Primordial, não podemos nos
conectar com ele da forma como vocês o fazem. Nós, humanos,
acessamos outras características dele que vocês, enquanto Drakkars,
também não podem. É um equilíbrio.
Tudo no Todo se tratava de equilíbrio.
– Mas você, mesmo humana, atingiu um nível que eu jamais
imaginei ser possível – comentei – Nem a Primeira Mestra do Palá-
cio tem esse poder.
– Meu propósito, junto com o de GongSun e de minha finada
mestra WangMu e nossa velha Ordem, é, exclusivamente, impedir o
despertar daquele que pode destruir toda a criação. Esse propósito
ignora conceitos e problemas triviais como os embates humanos e
Drakkars e, por isso, conseguimos prosseguir a níveis além das limi-
tações humanas. Nós nos libertamos do ciclo através do último e
sublime nível da arte que transcende a Shurdu.
– Vocês são imortais... – comentei boquiaberta – E o que você
quer dizer com último nível da arte que transcende a Shurdu?
– Sim, somos imortais – ela disse – Pois atingimos um ponto
que equivale ao que você atingirá, quando acessar a Primeira Man-
são. E sobre a Shurdu, você, inevitavelmente, aprenderá depois.
– Também serei imortal? – indaguei admirada.
– Sim, poderá viver indefinidamente – ela sorriu.
Aquela realidade que se abria à minha frente era inacreditável.
Poder viver para sempre e atingir poderes além dos que os Drakkars
mais incríveis já haviam atingido era algo inimaginável.
Então, depois daquela introdução, Xuannü começou a me en-
sinar as formas únicas de controle interno do Fluxo Primordial que
me fariam percorrer as Mansões Lunares uma a uma e, segundo ela,
esse mesmo treinamento faria com que minha Essência Draconiana
despertasse novamente, permitindo que meu Elemento fluísse mais
uma vez pelo meu corpo.
Xuannü me ensinou todos os cinco níveis originais da Shurdu,
e me instruiu nos onze pontos sincrônicos do Fluxo onde o Elemen-
to se distribuía pelo corpo. E, para que eu me lembrasse da posição
de cada um deles, contou-me sobre as Onze Virtudes de Jade: a Be-
nevolência, para que a morte fosse o último recurso, a Justiça, para que
a decisão de matar fosse perfeita e equilibrada, a Propriedade, para que
as bases da decisão fossem fortes e éticas, a Verdade, para que ela
guiasse todos os movimentos, a Credibilidade, para que a decisão não
pudesse nunca ser duvidosa, o Ritmo, para que a execução fosse feita
plena, de acordo com o Todo, a Fidelidade, para que jamais me afastas-
se dos valores mais sublimes, o Céu, para que minhas ações refletis-
sem a bondade suprema, a Terra, para que as mesmas entendessem
que a divindade está em tudo o que foi criado, a Moralidade, para que
todas as ações fossem em nome do bem de todos e, por último, a
Inteligência, sem a qual nenhum humano ou Drakkar jamais poderia
encontrar o Todo.
Fluir o Fluxo Primordial por todos os onze pontos me fazia
sentir que, lá no fundo, o meu Elemento realmente estava latente e
poderia se desenvolver novamente a qualquer momento. E, ainda
que aqueles exercícios e treinamentos com ela fossem difíceis e
complexos, de uma forma que eu não poderia descrever para alguém
que enxerga apenas as dimensões mais densas, tudo o que praticá-
vamos me fazia sentir um poder vibrando, quase como um zunido.
Conforme o que pareciam dias ia passando, esse som crescia lenta-
mente dentro de mim, no mais profundo das minhas entranhas.
– Chegamos ao fim, mas aqui há um desafio... Faça o possível
para retornar, QingLong – disse Xuannü – Pois se não conseguir,
todo esse tempo será perdido e você será destruída completamente
para sempre... – finalizou, deixando-me apavorada.
De súbito senti meu corpo ser engolido por uma espécie de
buraco que se abriu no ar, abaixo de mim, como se a própria reali-
dade se rasgasse.
Durante minha queda, ouvi milhares de vozes murmurando e
gemendo. Era como o som das dores de todo um povo, lamentando
a sua própria morte. A tristeza que tomou conta de mim subiu pela
garganta e tentou escapar, mas eu não tinha ar. Nenhum som ecoou
para me liberar daquela angústia.
A escuridão se estendia infinitamente para todos os lados que
eu olhava e, ainda caindo, comecei a sentir um cheiro forte, tal como
a terra molhada por uma chuva rápida em um dia muito quente.
– Long’er... isso é lindo – ouvi a voz de um homem.
– Mestra, fico com medo que elas não consigam... – ouvi a voz
de uma mulher.
– É só isso. Isso é a Palma Cíclica? – ouvi outra voz feminina
em tom de deboche.
– Não importa o que você faça, QingLong, sem o poder da
Rainha, não há como reunir a Selas... – ouvi a voz de outro homem.
Enquanto aquelas frases se intercalavam e se sobrepunham, de
súbito, senti o impacto do meu corpo caindo no chão. Ainda não
conseguia ver muito, mas, bem ao longe, uma pequena luz vibrava e
dançava como o fogo de uma fogueira em uma noite no deserto.
Pus-me de pé. Sentia que precisava chegar até aquela luz. Algo
dentro de mim me puxava até ela. E não podia perder tempo.
Dei o primeiro passo.
– Mas o que... – resmunguei ao senti que minha perna estava
presa.
Do chão negro onde eu pisava, diversas mãos pareciam rom-
per do solo e me agarrar.
Forcei minha saída daquele lugar e logo muitos seres negros
subiram do chão. Eram como o piche fétido e gosmento que derre-
tia por corpos humanóides.
Não podia Soprar contra eles, mas meu conhecimento no Pu-
nho do Rei poderia me garantir alguma proteção física. Deixaria para
usar as habilidades da Shurdu somente em último caso.
Assumi a forma básica do Punho do Rei e aguardei o ataque da-
quelas coisas. E, assim que terminaram de se levantar, partiram para
cima de mim como um estouro de animais selvagens.
Conforme eu esquivava de suas tentativas de me agarrar, gira-
va sobre meus pés e golpeava-os pelas costas, em locais que, para
seres humanos, seriam vitais. Entretanto, cada vez que eu os tocava,
mais e mais meu corpo ia se enchendo daquele piche grotesco. E,
em pouco tempo, eram tantos deles que eu já não conseguia mais
evitar que me tocassem.
Fiz fluir a Essência Primordial pelos meus Pontos Sincrônicos
e, usando o segundo nível da Shurdu, saltei sobre eles e fui correndo,
usando suas cabeças como apoio para meus pés. Então, assim que
consegui passar e voltar ao chão, voltei-me para eles e, usando o
primeiro nível da Shurdu, expeli muita Essência Primordial que, co-
mo uma forte onda de energia, jogou todos eles para longe, para o
caminho inverso de onde eu deveria seguir. Era o tempo que preci-
sava para disparar em direção àquela tênue luz dançante.
Em seguida, uma forte ventania se iniciou e, em um piscar de
olhos, um tornado do que parecia ser areia, formou-se à minha fren-
te. Aquele vento, em conjunto dos pequenos cristais sólidos da areia,
rasgavam-me a pele como se fossem navalhas.
– Agora isso! – resmunguei tampando meu rosto para me pro-
teger.
Se eu pudesse Soprar, um simples Sopro de Rapina me levaria
até o outro lado instantaneamente.
Fluí a Essência Primordial para fora do meu corpo, ao redor
dele e a fiz circular rapidamente, usando o quarto nível da Shurdu,
chamado Capa de Jade. Aquela técnica permitia que meu corpo se
protegesse de, virtualmente, qualquer coisa física. Então, protegida
por aquele manto de Essência Primordial, forcei meu caminho atra-
vés daquele tornado.
Com passos lentos, mas contínuos, atravessei aquele terror
enquanto usava toda minha concentração para manter a proteção
circulando.
Do outro lado, um homem me esperava. Estava vestido de
negro e se mantinha de costas. Além dele, mais adiante, a luz perma-
necia, estável e cada vez mais viva.
– Parabéns, Long’er... – ouvi ele dizer enquanto se virava.
Havia reconhecido a voz antes mesmo de ver seu rosto. Era
meu pai. Meu coração disparou. Um mar de emoções tomou conta.
– Pai! – eu corri e o abracei no impulso.
Grande erro.
Senti seu punho me acertar com muita violência no estômago,
jogando-me para longe.
– Pai? – eu inquiri antes de golfar o primeiro sangue.
Nunca havia sentido aquilo. Nunca havia sangrado daquela
forma. O soco descomunal de um Drakkar e um humano era aterra-
dor. A dor que se irradiou pelo meu corpo foi aguda e fez com que
meus músculos se contraíssem de uma única vez, fazendo-me cair
completamente ao chão.
– Você quer aquilo? – ele apontou para a luz ao longe – Então
venha!
Ele me pegou pelo braço e começou a me arrastar em direção
aquele lugar.
– Você é uma vergonha – ele disse.
Aquilo não era real. Não podia ser. Meu pai não diria aquilo e,
claro, não estaria ali. Eu sabia que era uma ilusão. Algo dentro da
minha mente. Tinha que ser.
– Você se achava especial... – ele ironizou – Filha de um
Drakkar Azul, neta de uma das Luzes do Protetorado. Achou que
era única, que era melhor que os outros. Cheia de vantagens... e olha
agora. Não consegue ficar de pé. Você é pior que um humano, você
não é nada!
Aquelas palavras desciam queimando. Ele havia me abando-
nado e minha própria vovó tinha me tirado o Elemento. Eu real-
mente era uma vergonha. Estava ali, derrotada e sem forças para me
levantar.
– É isso que você quer? – ele me jogou ao lado da fogueira
que tremulava, brilhando com um fogo tão vivo quanto a luz do Sol.
Eu não sabia o que dizer. Não queria responder. Ele era meu
pai e, mesmo eu tentando me convencer que aquilo não era real, não
tinha coragem de retrucar. Sentei-me e pus minha cabeça perto dos
joelhos enquanto abraçava minhas pernas.
– É isso que você sabe fazer... – ele riu – Fica com medo e só
sabe chorar.
Ele andou em roda da fogueira e apontou para ela.
– Você só vai sair daqui quando conseguir pegar a pedra que
está no centro desse fogo – ele disse.
Olhei para a fogueira e percebi que, dentro dela, no meio do
fogo, um pequeno cristal parecia reluzir.
Estiquei minha mão rapidamente para pegá-lo e, prontamente,
meu pai chutou-me para o lado.
– Você acha que vou permitir que pegue? – ele riu – Você não
tem valor suficiente para tocar nisso – ele cuspiu em minha direção –
Vai ter que me matar primeiro. Tem coragem? Long’er...
Não era meu pai. Não era meu pai. Não era...
Precisava pôr-me de pé e me livrar daquele medo.
– Você não é meu pai – disse, reunindo minhas forças, e me
levantando, finalmente.
– Você não poderia estar mais enganada... – ele sorriu enquan-
to seus olhos tomavam a cor azul brilhante.
Era o indicativo que iria Soprar contra mim.
Sem ter passado pela Transmutação, eu não era uma Protetora
plena e não conseguiria controlar sua Essência Draconiana e, claro,
não poderia pará-lo. Porém, Xuannü tinha me ensinado os cinco
níveis da Palma Servil original, a Shurdu e, o quinto, era exatamente
aquele possuído pelos carrascos dos Protetores: os Executores. Um
poder devastador que rompia os Pontos Sincrônicos onde a Essên-
cia, fosse Primordial ou Draconiana, fluía e se distribuía pelo corpo.
E, ao rompê-los, toda a energia do corpo atacado entraria em colap-
so e este se destruiria completamente. O nome desse quinto e terrí-
vel nível era Palma Divina do Servo.
O Hasta de meu pai sempre fora extremamente rápido e, usar
o quinto nível da Shurdu me obrigava a fazer uma sequência de ges-
tos que fluiria a energia da forma correta, para que eu pudesse atacá-
lo. Ele, nesse quesito, estava em total vantagem.
Assim que vi seus olhos apertarem, senti seu poder aumentar
e, sem perder tempo, usei o segundo nível da Shurdu e saltei sobre
ele no exato momento em que o Sopro Relâmpago acertou o local on-
de eu antes estava.
Voando sobre sua cabeça, para cair às suas costas, vi que ele
Soprou novamente e, onde eu pousaria, seria o local de um segundo
Sopro Relâmpago fulminante. Então, antes de terminar minha queda,
usei o primeiro nível da Shurdu e expeli Essência em direção ao chão,
jogando-me de volta para o lado de onde eu havia vindo.
Assim que toquei o terreno vi o brilho do Sopro Relâmpago atin-
gindo o lado oposto. Meu pai estava de costas para mim e era tudo o
que eu precisava. Fiz os gestos necessários para usar o quinto nível
da Shurdu e, como se estivessem em minhas mãos, senti os onze
Pontos Sincrônicos do corpo dele.
– Perdoe-me, meu pai – disse enquanto meus olhos se enchi-
am de lágrima.
Sabia que não era ele, de verdade, mas mesmo assim uma tris-
teza e uma melancolia possuíram meu coração como um dia cinza e
nevado em frente às árvores secas à beira do rio Amarelo.
Fechei meus olhos e, junto, cerrei meu punho, rompendo cada
um dos onze Pontos Sincrônicos. Não ouvi gritos. Não ouvi nada.
Apenas senti a enorme quantidade de energia que se libertou do cor-
po de meu pai, que se desvaneceu no ar.
Segui, então, até a fogueira cujo brilho agora já diminuía.
Rapidamente levei minha mão para retirar o cristal e, assim
que o toquei, senti minha mente puxada para trás, como se arranca-
da de meu corpo.
– Long’er! – ouvi minha vovó me chamando à porta de nossa
casinha, no meu vilarejo.
Vi-me correndo para casa, ainda pequena.
Olhei para o outro lado e vi o Palácio dos Protetores e minha
chegada; minha acolhida pela Mestra Lihuá e meus velhos compa-
nheiros e amigos Drakkars.
– Cuidado! – ouvi um grito vindo de trás de mim.
Ao virar-me eu me encontrei no pátio dos fundos do Palácio,
na noite do ataque dos Drakkars Imanes.
– Criança... – ouvi a voz de GongSun e, do meu lado, vi-me
levantando em sua cabana no meio do deserto.
– Lá... – ele apontou – Antes de tudo, impeça aquilo.
Olhei na direção que mostrava e vi um confronto de propor-
ções inimagináveis. Duas ondas de Drakkars se enfrentando com
Sopros tão violentos que eu jamais podia imaginar existir.
Eu estava vestida com uma roupa azul clara e, em meus olhos,
o brilho do firmamento, repleto de estrelas, e tudo o mais que pode-
ria ver nos céus noturnos.
Eu entendia, de alguma forma, tudo o que havia passado até
ali. Como se aquelas visões fossem parte de mim e eu já as tivesse
vivido.
Olhei para trás e me encontrei diante de diversos momentos,
conversas, acontecimentos e decisões importantes. Vi o nascimento
de um casal de gêmeos e senti neles um ponto de mudança. Era algo
importante. Vi também uma jovem Drakkar de cabelos platinados e
poder incrível. E, junto dela, vi você, minha querida aprendiz. E vi
você também, que lê minha história, pois pude, a partir desse mo-
mento, entender todas as dimensões das quais minha essência trans-
punha.
Observei o futuro e, muitos pontos aconteciam e muitos ca-
minhos transcorriam e eu podia escolher alguns deles. Foi então que
entendi, finalmente, o que GongSun e Xuannü haviam falado. Sobre
escolher os acontecimentos para que o destino fosse decidido por
mim. Finalmente tudo fazia sentido.

– QingLong – ouvi uma voz enquanto senti um chacoalhar.


Abri meus olhos. Era GongSun. Estávamos de volta à sua ca-
bana no deserto.
– Onde está Xuannü? – perguntei olhando para os lados.
– Você está pronta – ele sorriu.
– Não – eu me pus de pé – Preciso aprender mais com ela...
– Você já acordou sua Sela – ele disse – Porém ela só vai se
desenvolver com o tempo e, com o tempo você vai aprender a en-
tendê-la. E só isso lhe basta. Foi para isso que minha mestra Xuannü
lhe preparou.
– Mas...
– Sem “mas”. Acalme-se – ele disse – Venha comigo...
GongSun seguiu para fora de sua tenda e olhou para o céu.
O Sol, no ápice, iluminava toda a planície e um vento fresco
soprava calmo.
– Está chegando a minha hora – ele disse – Preciso retornar
para o Todo.
Não podia ser verdade. Não poderia perder outro mestre.
– Não... – disse – Você precisa ficar. O que eu vou fazer? – es-
tava desesperada.
– Você vai voltar ao Palácio dos Protetores e vai iniciar uma
nova era – ele sorriu e me acariciou a cabeça – Você vai ser uma
lenda, QingLong.
– Eu não posso voltar lá, não sou mais Drakkar... – resmun-
guei – Vão me matar...
– Vão? – ele gargalhou – Quem agora possui poder para tan-
to?
– Como assim? – fiquei confusa.
– Procure dentro de você... – ele apontou para o meu peito –
Lembre-se das visões que teve; das sensações, e recobre aquele co-
nhecimento dos seus “eus” da frente, através da Sela – encerrou
afastando-se – Faça como fez a primeira vez que assumiu a forma
Varanus. Deixe o poder maior explodir.
Tentei entender suas palavras e fechei os olhos.
Ao longo daqueles dois anos aprendi a não duvidar da sabedo-
ria de GongSun e, se ele acreditava que eu podia assumir algum po-
der além de mim, eu certamente o podia.
Respirei fundo e tentei me lembrar das imagens e das sensa-
ções que tive.
Rapidamente me senti como se tivesse vivido aquele momento
e que era simples atingir os estágios de que ele falava. Era como se
eu tivesse passado e aprendido tudo aquilo há muito tempo.
– Esse é o conhecimento que você já tem no futuro e, por
causa da Sela, pode acessá-lo agora – ele disse – Todos os seus mo-
mentos, tempos e realidades convergem em um único ponto agora:
em você. Esse é o poder da Sela da Eternidade, criança. Use-a.
Fechei meus punhos e deixei meu poder aumentar. E, tal co-
mo GongSun disse, senti meu Elemento novamente e ele começou a
crescer dentro de mim infinitamente mais rápido do que desde a
primeira vez que despertou. Aquilo era incrível. Senti que não havia
limites e que eu podia ultrapassar até mesmo a forma Varanus, a qual
acabava de assumir.
– Isso é incrível – olhei meu corpo tomado pelas escamas a-
zuis e brilhantes da forma Varanus que recém haviam rompido.
Meu coração disparou. A emoção de poder sentir o Elemento
Água fluindo mais uma vez pelo meu corpo era inexplicável.
– Eu sou uma Drakkar de novo! – ri de felicidade.
– Você é tão mais que isso, minha criança – sorriu GongSun –
Mas o tempo se encarregará de lhe mostrar. Agora regresse ao Palá-
cio, mas deixe sua sabedoria lhe guiar. Não entregue todo seu co-
nhecimento para os Protetores. Eles se pautam pelo bem da huma-
nidade, mas muitas de suas ações podem ser, digamos, contraditó-
rias; e, lembre-se, você também é Drakkar e precisa proteger os seus.
– Sim, mestre – concordei.
– Foi um prazer ensiná-la, Long’er – ele sorriu.
Em um ímpeto eu o abracei. Não havia formas de agradecê-lo
por tudo o que havia feito e me ensinado naqueles dois anos.
– Cuide-se – ele me largou, deu dois passos para trás e fechou
os olhos – Leve minhas mais sinceras saudações à Rainha – disse.
Rapidamente o corpo de GongSun começou a assumir uma
luz dourada brilhante. Uma energia poderosa começou a verter de si
e ele iniciou sua ascensão aos céus deixando um rastro de ilumina-
ção. Então meu coração novamente disparou e me pus em choque
quando percebi que aquela luz, aquela energia, tomava a forma de
um dragão dourado. O mesmo que eu vira na noite de nosso teste
com a mestra Lihuá.
Cai de joelhos. A Sela me revelou um conhecimento que eu
ainda não tinha. Que vinha da QingLong de muitos anos à frente:
Eu havia, por dois anos, aprendido a mais sublime filosofia e arte
com o maior de nosso povo Han. Por dois anos eu andei ao seu lado
sem me dar conta de que dividia meu dia, minhas refeições e meus
pensamentos com o nosso primeiro pai: o Imperador Amarelo.
Sorri. Eu era uma pessoa realmente de sorte. E, agora, precisa-
va dividir aquela sorte com humanos e Drakkars, para o bem do
mundo.
– QingLong – ouvi a voz de Xuannü vindo de trás de mim.
– Mestra Xuannü – disse, feliz em vê-la novamente.
– Você está pronta e, com o tempo, entenderá o que deve fa-
zer. Você poderá alcançar decisões futuras muito mais longínquas
que nós e, por isso, conseguirá guiar o curso do destino de forma
muito melhor, para impedir o fim da criação. Sei que é um fardo
infinitamente pesado...
– Eu farei – disse confiante – Já prometi a GongSun que im-
pediríamos aquela Entidade de acordar e assim farei. Reunirei as
Selas e, conforme for entendendo o que o futuro me pede, eu irei
ajustando os passos até que tudo o que eu possa ver seja felicidade.
– Cuide-se, QingLong – ela me cumprimentou com os pu-
nhos, tal como era costume entre nosso povo Han.
Retribui o cumprimento.
– Você também, mestra Xuannü.
– Nós ainda nos veremos – ela sorriu enquanto desaparecia
envolta numa luz vermelha.
– Sim... – sorri.
Eu sentia que nos veríamos de novo em algum momento no
futuro, porém, naquele instante, tudo o que eu precisava fazer, era
retornar ao Palácio. Tinha que contar às Mestras que precisávamos
impedir o confronto sangrento que eu havia visto, onde milhares de
Drakkars perderiam a vida e que GongSun me dissera para resolver
como prioridade.
—————|XI|—————

O COMEÇO DE UMA NOVA HISTÓRIA

uantas lembranças me saltaram à mente quando cheguei em


frente ao portão de entrada do Grande Palácio dos Proteto-
res. Havia saído de lá há dois anos, mas me parecia uma
eternidade. Lembranças tão distantes que mal conseguia acreditar
que haviam se passado naquela mesma vida.
– Olá! – gritei para quem fosse que estivesse guardando o por-
tão.
– Quem vem lá? – ouvi a pergunta.
– Sou Liu QingLong! – respondi – Drakkar Azul. Ex-aprendiz
da Mestra Lihuá. Neta da Terceira Mestra do Palácio, Wu Mei.
Houve silêncio por alguns minutos.
Certamente deveria ter levado a informação a seus superiores
e, logo, teria minha resposta, se poderia ou não entrar. Entraria de
qualquer jeito, fosse qual fosse a resposta. Isso era certo.
Ouvi um estrondo e logo os gigantescos portões de ferro co-
meçaram a se abrir.
Senti uma nostalgia sem precedentes, assim que pude ver o in-
terior do pátio que levava às escadarias do Palácio. Era como se eu
estivesse entrando pela primeira vez, novamente.
– Por favor – disse um Protetor que me esperava do outro la-
do – Venha comigo.
Segui com ele, confiante em meus propósitos e conhecimento,
sem mais medo de qualquer coisa que pudesse fazer comigo.
A única coisa que me causava um pouco de nervosismo era
que eu havia passado dois longos anos treinando incessantemente
com GongSun, viajando como nômade, comendo o que o deserto
nos provinha. Já estava com vinte e um anos e, com certeza, meus
velhos amigos e mestra já não me reconheceriam mais.
Subimos as escadas e adentramos ao salão principal.
Meu coração acelerou. Estava prestes a rever todo mundo.
– Siga em frente até o centro – disse o Protetor.
Continuei pelo corredor do salão e me aproximei dos tronos.
O local estava cheio e pareciam debater algo. Porém todos se silen-
ciaram e me deram passagem. Olhando-me como se eu fosse uma
assombração.
Ajoelhei-me e acenei com a cabeça em respeito às Três Luzes
do Protetorado que se assentavam em seus tronos.
– Vida longa às Luzes – eu disse.
– Liu QingLong – disse a Primeira Mestra – Como ousa re-
tornar ao Palácio depois de expulsa e sentenciada ao exílio perpétuo
do nosso mundo?
– Nenhum humano pode vir a esse Palácio – disse a Segunda
Mestra – Ou esqueceu-se da Lei do Protetorado?
– Com todo o respeito, Mestras – pus-me de pé – Eu sou uma
Drakkar... – trouxe meu Elemento à superfície, fazendo com que
meus olhos tomassem o característico tom azul brilhante dos Drak-
kars Azuis.
Ouvi um murmúrio entre todos, comentando que aquilo era
impossível. Todos cochicharam e resmungaram que o que eu estava
fazendo ali era loucura.
– Silêncio! – gritou a Terceira Mestra, minha vovó.
Ela desceu do trono e se aproximou de mim.
– É verdade que QingLong foi sentenciada ao exílio, enquanto
humana, já que teve seu Elemento destruído. Porém – ela levantou a
mão – Quem está aqui é uma Drakkar, do Elemento Água, que já
cumpriu sua sentença. Ou vamos ignorar uma Drakkar que vem
bater à nossa porta? – finalizou me defendendo.
– Wu Mei – chamou a Primeira Mestra – Mesmo que ela não
seja mais humana. Que já tenha sido punida e agora está novamente
com seu Elemento... o que é inacreditável... não há mestre para ela.
– Exatamente – disse a Segunda Mestra – Não há Mestres
Drakkars com espaço disponível. Todos possuem seus três aprendi-
zes e, dessa vez, não vamos permitir que venham a ter quatro.
Elas precisavam me ouvir. Não podia ter ido ali para sair de
mãos abanando, sem conseguir sua atenção para impedir aquele con-
fronto que se daria em pouco tempo.
– Eu preciso que as Mestras... – disse, até sentir uma pressão
em meu peito.
– Silêncio – gritou a Primeira Mestra pondo-se de pé enquanto
usava a Palma Servil em mim, contendo-me onde estava – Você veio
aqui com Elemento e não há Mestre Drakkar para lhe acolher e, pela
Lei do Protetorado, sua sentença já está estabelecida. Terá novamen-
te seu Elemento destruído. Porém, dessa vez, isso será feito por
mim, para garantir que nunca mais o desenvolva – encerrou vindo
em minha direção.
O meu conhecimento da Palma Servil era, naquela altura, mui-
to superior ao delas. De fato eu já dominava os cinco níveis da for-
ma original: a Shurdu e, assim, poderia tentar me livrar de seu domí-
nio. Mas, mais que isso, precisava mostrar a elas que eu havia domi-
nado um nível muito superior do nosso Sangue Draconiano e que
poderia ajudar na batalha contra os insurgentes, protegendo o Palá-
cio.
– De alguma forma bizarra – disse a Primeira Mestra chegan-
do à minha frente – Você conseguiu desenvolver novamente seu
Elemento. Isso é incrível, e, mais que isso, uma abominação. Não
poderei, em sã consciência, deixá-la vagar por aí, já que não temos
mestres para você, com esse poder todo latente – terminou colocan-
do a mão sobre minha cabeça.
Não podia mais perder tempo com aquilo.
Fechei os olhos e busquei as memórias futuras, em um mo-
mento onde eu já havia ultrapassado a forma Imane e conseguia
acessar a Primeira Mansão, tal como ensinara a mestra Xuannü. A-
quele poder que provinha daquelas dimensões internas era além da
minha Essência Draconiana e, por isso, estava fora do controle dos
Protetores.
Senti meu poder subir rapidamente. Iria explodir meu Elemen-
to ali mesmo, assumindo a forma que estava além da Imane. Elas
iriam ter que me ouvir.
– Eu a aceito como aprendiz! – ouvi uma voz vinda da multi-
dão, antes que eu pudesse expor meu poder.
Todos se admiraram e logo ficaram em silêncio. Inclusive as
Mestras.
Abri meus olhos e busquei ver quem havia me aceitado como
aprendiz, para que pudesse continuar ali no Palácio; e, para meu
espanto, em minha direção vinha, andando lentamente, a Mestra
Drakkar Mawu Àjé, a Trovão Abenuz.
– Mawu... – resmungou a Primeira Mestra – Você pretende
tomar Liu QingLong como aprendiz? – perguntou com um tom que
mais parecia uma afronta e uma sugestão para não fazer aquilo.
– Pela Lei do Protetorado – disse a Trovão Abenuz – Eu, que
não possuo nenhum aprendiz, tenho todo o direito de tomar essa
Drakkar Azul, meu Elemento, como minha protegida. O que vem
bem a calhar, e em ótima hora, pois preciso que ela venha comigo
logo, já que estou de partida. Tenho uma longa viagem pela frente
como bem sabem as Mestras.
– A Lei é clara – concordou rapidamente minha vovó Wu Mei.
A Primeira e a Segunda Mestra ficaram visivelmente contraria-
das, mas tiveram que aceitar. Elas jamais se opunham à Lei.
– Que assim seja – disse a Primeira Mestra, virando de costas e
retornando ao seu trono.
Minha vovó rapidamente me abraçou, como se sentisse toda a
saudade do mundo. Eu, claro, retribuí com a mesma intensidade.
– Eu não sei bem o que aconteceu – ela disse ao meu ouvido –
Mas estou muito feliz que seu Elemento esteja de volta minha
Long’er!
– Eu também, vovó! – eu a apertei com mais força.
– Venha – disse a Trovão Abenuz, em tom seco, enquanto
passava por mim – Precisamos ir logo.
Minha vovó fez menção com a cabeça para que eu seguisse
com minha nova mestra rapidamente.
Despedi-me de minha vovó e segui com a Trovão Abenuz em
direção ao pátio dos fundos.
– Muito obrigada – disse assim que saímos do salão principal.
– Preciso seguir até o Oeste, até a casa de Djet, para auxiliá-lo
em uma tarefa. Você vem comigo – ela disse em tom de ordem.
– Mestra... – murmurei – Há algo que precisamos ver primei-
ro... eu preciso...
– Não – ela me interrompeu – Sei que você é talentosa. Vi seu
poder emergir violentamente em frente à Primeira Mestra. O que
pensou estar fazendo? – disse em tom de cobrança.
– Não entendi – respondi confusa.
– Você claramente ultrapassou a forma Imane e estava pronta
para se expor na frente de todos...
Ela sabia o que eu estava fazendo? Como aquilo era possível?
– Você sabe? – cochichei.
– Vamos – ela olhou para os lados como se não quisesse con-
versar ali – Não podemos perder mais tempo.
Seguimos em direção as alas dos Mestres, até o local onde era
reservado, pelo que sabíamos enquanto aprendizes, à Ordem da
Garra do Dragão.
– Vista-se – ela apontou para uma espécie de uniforme.
– O que é isso? – peguei aquela vestimenta nas mãos.
Era uma roupa feita de uma seda muito forte e resistente. Sua
coloração azul clara, digna do nosso Elemento, parecia refletir um
brilho prateado.
– Esse é a vestimenta que usamos desde o ano passado, para
aguentar Sopros e lutar com mais liberdade – ela disse.
Foi então que recordei de ter visto aquela roupa. Eu a havia
visto em minha visão do confronto. Era a veste que eu usava.
– O que são essas argolas... – estiquei minha mão para tocar as
diversas argolas brilhantes que mantinham os cabelos dela presos em
tranças.
– Não toque – ela estapeou minha mão – Não são da sua con-
ta. Vista-se. Partiremos em seguida – ela começou a se despir para
vestir uma roupa igual a que tinha me entregado.
– Não vi meus antigos amigos... – comentei enquanto me ar-
rumava.
– Você era aprendiz de Lihuá – disse a Trovão Abenuz – Ela e
seu trio estão dois dias a frente de nós. Ela também se dirige para a
região das Terras Negras, lar de nosso companheiro de Ordem, Djet.
Então, em pouco tempo, reencontraria meus velhos amigos.
Como estariam? O que já haviam aprendido? Estariam seguros?
Lembrei-me do confronto.
– Mestra – eu a chamei – Haverá um confronto entre nós e os
insurgentes. Muitos morr...
Ela pôs o dedo indicador nos meus lábios, calando-me.
– Só fale quando eu falar com você. Entendeu?
Concordei com a cabeça.
– Vamos – ela pegou alguns suprimentos e saiu pela porta.
Por que toda aquela pressa? Eu só precisava passar uma in-
formação importante.
Seguimos até um estábulo e saímos, somente nós duas, com
dois cavalos, em direção ao Oeste.
– Parece que estamos fugindo! – reclamei, assim que saímos
pelo portão. Tudo acontecera tão ligeiro.
A Trovão Abenuz me olhou como se fosse me matar ali mes-
mo. Então, rapidamente, levei o indicador na minha própria boca,
em sinal de silêncio, mas não consegui conter o riso. Ela, por sua
vez, ainda que tentando manter sua carranca, pareceu querer esboçar
uma leve risada, que segurou com todas as forças.
Jamais esperava uma reação daquelas da temida Trovão Abe-
nuz.
Assim, andamos por todo o resto do dia até que paramos para
acampar em uma pequena planície, quase no pé da cordilheira Pamir,
do lado oeste, longe do Palácio dos Protetores.
A Trovão Abenuz acendeu uma fogueira e colocou uma pe-
quena caça para assar. Comeríamos e, provavelmente, dormiríamos
em seguida, para continuarmos a viagem logo cedo.
– Pode falar agora – ela disse.
– Você me escolheu com aprendiz, porque viu o que eu estava
fazendo? – perguntei.
– Sim – ela respondeu – Você ia cometer suicídio.
– Como assim? – fiquei confusa.
– No momento em que assumisse a forma de Primeira Gran-
deza, as duas Mestras se uniriam para destruí-la ali mesmo... Sua avó
não poderia salvá-la.
– Primeira Grandeza? – inquiri sem ter ideia do que falava.
– Exatamente. Você inflamou o poder da Primeira Mansão
Lunar, não é?
Como ela sabia aquilo? Aquele era um conhecimento que a
própria Xuannü tinha me passado. Nem as Mestras do Palácio sabi-
am daquilo.
– Onde você aprendeu isso? – perguntei.
– Estamos indo para as Terras Negras – ela disse – Djet é o
senhor daquelas terras e sua esposa é parte de uma antiga Ordem
que sobreviveu ao tempo e aos Protetores. Essa Ordem conhece
outras facetas do nosso Sangue Draconiano que os próprios Prote-
tores desconhecem. A esposa de Djet me apresentou à Rainha dessa
Ordem e ela me instruiu como dominar a minha forma Imane e re-
gressar ao meu corpo humano, atingindo o que ela chama de Primei-
ra Grandeza.
Rainha. Lembrei-me de GongSun mandando saudações.
– Ela deve ser incrível... – comentei boquiaberta.
– Essa Rainha, a Leonesa, possui um poder antigo que vai a-
lém dos Protetores. Porém, as Leoas, suas companheiras de Ordem
e guarda real, não possuem esse poder. O poder da Rainha só pode
ser possuído por ela. Uma Rainha por vez.
Pensei imediatamente nas Selas. Será que essa pessoa possuía
uma das sete Selas?
– Então você pode assumir esse poder da Primeira Mansão
Lunar... – pensei alto.
– Assim como você...
Ri. Eu conseguia, era verdade. Porém aquele conhecimento
provinha de minha versão no futuro que, graças à Sela, eu podia
acessar. Em contrapartida, minha nova mestra, a Trovão Abenuz,
havia dominado aquele poder por conta própria. Por sua própria
força e garra.
– E por que saímos correndo do Palácio? – perguntei.
Eu tinha a sensação de que algo não estava certo.
– Sim – ela sorriu – Nós fugimos. Quando vi o que podia fa-
zer, tomei uma decisão muito rápida. Precisava trazer você para nos-
so lado. E, se continuasse no Palácio, hoje mesmo estaria morta.
– Por quê? – indaguei assustada.
– Porque você confrontou as Mestras na frente de todos. Isso
colocou o controle delas em dúvida e, assim, elas precisariam re-
compor seu domínio. Para isso teriam que eliminar você. Seria um
desperdício. Então decidi salvá-la e trazê-la comigo.
– Mas a Lei do Protetorado está do nosso lado – comentei.
– Acha mesmo que a Lei iria lhe salvar? A Lei só manteve vo-
cê viva naquela hora, porque todos estavam ali. Você representa um
problema para o poder e o controle das Mestras. Se uma Drakkar
que teve seu Elemento destruído e foi banida pôde voltar com seus
poderes restaurados, então por que os outros Drakkars temeriam as
Mestras? O caos logo se estabelecerá.
A Trovão Abenuz estava certa e eu não havia percebido aqui-
lo. Mesmo com a Sela, com todo o conhecimento que tinha adquiri-
do com GongSun, eu não havia percebido aquele simples aconteci-
mento.
– Você precisa aquietar sua mente, QingLong – disse ela – Só
assim vai poder ver os detalhes e as nuances do que acontece ao seu
redor. Essa habilidade é essencial para ser uma grande Drakkar e
fazer parte da Ordem da Garra do Dragão.
– Sim, Mestra – concordei.
Nós terminamos de comer e nos deitamos sob as estrelas.
O céu limpo permitia que a Lua iluminasse toda aquela peque-
na planície, enquanto nossa fogueira nos provinha um calor gostoso
e aconchegante.
– Estamos seguras aqui, já que as Mestras me querem morta?
– perguntei.
– Sou importante para o Palácio – ela disse – As Mestras vão
esperar você regressar para dar cabo da execução.
– Então não vamos voltar, não é? – inquiri.
– Não agora. Há muito que estudar nas Terras Negras...
– Quem nos espera lá? Somente Lihuá e Djet?
– Lihuá, Djet, Ninhursag e Yae já estão lá acompanhados de
seus aprendizes.
– Toda a Ordem da Garra do Dragão... – comentei.
– Sim.
Olhei para a imensidão do Universo sobre nossas cabeças.
Ter chegado ao Palácio e ter saído correndo de lá em seguida
parecia um acontecimento a se prestar atenção. Sentia aquilo. Seria
uma faceta da Sela? Ela queria me mostrar algo? Eu deveria aprender
a entendê-la melhor, para descobrir quando e como alterar os acon-
tecimentos. Todavia já havia dado o primeiro passo naquela nova
vida e, logo, estaria de volta com meus amigos.
—————|XII|—————

A ORDEM DE SEKHEM

azia dois meses que havíamos partido do Palácio dos Proteto-


res e já nos aproximávamos das Terras Negras de Djet e, ao
longe, eu conseguia ver as colossais construções piramidais
brancas que se erguiam pelo deserto como marcos de um domínio
divino, refletindo o intenso brilho do Sol em suas pontas douradas.
– O que são aquelas coisas? – perguntei à minha mestra, com-
pletamente admirada.
– Diz Djet que, no início, quando só havia as águas primordi-
ais, o primeiro pedaço de Terra criado por Tiamat era um monte
pontiagudo o qual eles chamam de Benben. Essa estrutura gigantesca
representa esse monte e os primeiros raios do Sol que caíram sobre
o mundo.
Continuamos nosso caminho através das areias que ventavam
em nossa direção, a caminho da cidade enorme que se estendia até
onde meus olhos podiam ver. O branco das construções contrastava
com o verde que se levantava da beira do enorme rio que cortava a
região.
Durante aquele tempo com a Trovão Abenuz, tendo apenas
ela para conversar, acabei descobrindo que o primeiro Drakkar in-
surgente que despertou a forma Varanus e, posterior, a forma Ima-
ne, havia sido instruído pela Primeira Mestra do Palácio. Aquela in-
formação era estarrecedora de uma forma que não havia preceden-
tes; pois significava que a Mestra queria que aquele confronto entre
os Drakkars do Palácio e os insurgentes ocorresse. E, segundo a
Trovão Abenuz, a ideia só podia indicar que as Mestras do Palácio
queriam eliminar o máximo possível de Drakkars, jogando uns con-
tra os outros. Ainda que aquilo fosse apenas especulação, os fatos
levavam aquela conclusão.
Ora, era bem sabido que, desde os primórdios de nossa espé-
cie, os Protetores haviam mantido os Drakkars sob seu domínio,
mas sempre temeram que nosso poder se tornasse incontrolável e
que iniciássemos uma nova era de opressão draconiana sobre o ser
humano. Era compreensível que tivessem tomado, finalmente, a
iniciativa de eliminar a todos nós.
– Eu sinto uma força estranha... um arrepio – comentei en-
quanto começávamos a passar pelas casas da cidade.
Fazia algum tempo que uma vibração percorria meu corpo e
me causava uma sensação de desconforto.
– É natural – disse a Trovão Abenuz – É o seu instinto lhe a-
visando do perigo. Estamos sendo seguidas há dois dias pelas Leoas.
Desde que entramos nos domínios da Ordem de Sekhem.
A Ordem de Sekhem, cuja Rainha, a Leonesa, era quem conhecia
o nível mais alto da Shurdu original. O nível que Xuannü disse que eu
logo teria contato. Certamente era sobre esse momento que ela se
referia. Quanta sabedoria.
– Eu não as vi em momento algum... – disse, observando os
arredores, tentando enxergar alguma delas.
– Não perca seu tempo – riu a Trovão Abenuz – Você não
conseguirá vê-las. A arte do Rugido de Sekhem é incrível. Quando você
conhecer a Leonesa, saberá o que quero dizer.
Seguimos o caminho até o grande Palácio Real de Djet que, ali
naquelas terras, era o rei.
– Isso é... – murmurei vislumbrada assim que vi o lugar.
– Gigante – riu a Trovão Abenuz.
O Palácio de Djet era uma das maiores construções que eu já
havia visto em toda a minha vida. Suas paredes brancas se erguiam
quase como uma montanha e os ornamentos em azul, branco e dou-
rado, não deixavam dúvidas de que ali era a casa de uma divindade.
E, realmente, era assim que Djet era tratado em sua terra. Era cha-
mado de “Hórus, O Senhor da Casa mais Alta”. O palácio, não sen-
do suficientemente enorme, era rodeado de estátuas tão grandes
quanto, em diversas posições. Seus tamanhos impunham um medo e
um respeito que nunca havia sentido.
– Parece que vão nos atacar a qualquer momento... – resmun-
guei enquanto passávamos por duas gigantescas estátuas sentadas
seriamente, com coroas estranhas e barbas no queixo.
A Trovão Abenuz fez uma cara de que aquilo talvez fosse pos-
sível de acontecer, caso necessário.
– Deixe que eu conduza a conversa – ela ordenou assim que
entramos no palácio.
O corredor principal era sustentado por colunas colossais que
tinham facilmente mais do que quinze metros de altura. E, cami-
nhando por elas, levamos alguns minutos até chegarmos em frente
ao salão principal, onde havia dois tronos de ouro, os quais estavam
ocupados por Djet e sua esposa. E, à sua frente, estavam os outros
Cavaleiros da Ordem da Garra do Dragão e seus aprendizes.
– Long’er! – ouvi o grito de Benke que veio correndo em mi-
nha direção rindo.
Logo pude ver Bandhu e Alethea, que também vieram corren-
do.
– Você está aqui! – Benke me abraçou como se fosse me partir
em duas e, sem seguida, senti aumentar a pressão do abraço, por
conta da adição de Bandhu e Alethea naquele aperto.
A felicidade deles, e a minha, é claro, era visível. Era muito
bom poder estar novamente com eles.
– Como? – inquiriu Alethea abismada – Como você conse-
guiu? E... – ela olhou para a minha nova mestra – com a Trovão
Abenuz – cochichou incrédula.
– É uma longa história – ri.
– Long’er... – ouvi a voz doce de minha antiga mestra Lihuá.
– Mestra – eu a cumprimentei ao estilo do nosso povo Han.
Seus olhos se encheram de lágrimas e, sem se conter, ao invés
de responder meu cumprimento, jogou-se contra mim e me abraçou
com força.
– Perdoe-me... – ela começou a chorar – Eu devia ter lutado
por você, ter enfrentado todos. Você não merecia aquilo.
– Está tudo bem, Mestra – eu a abracei forte – Foi necessário.
Tudo acontece por um motivo maior – comentei.
– Eu não acredito que você tem uma aprendiz, Mawu! – garga-
lhou Djet enquanto descia do trono e se aproximava de mim.
– Ela é uma Drakkar de Primeira Grandeza – disse a Trovão
Abenuz de supetão, sem rodeios, deixando todos assustados.
– Como isso é possível? – indagou Lihuá e os outros Cavalei-
ros.
– Porque ela é única – ouvi a voz rouca de uma mulher vindo
das minhas costas – E certamente teve contato com alguém muito
especial...
Ao virar-me, dei de cara com uma mulher belíssima, com lon-
gos cabelos negros trançados que iam até as coxas. Seus olhos ne-
gros como a noite pareciam olhar dentro de mim. Suas vestes, típicas
das terras de Djet, e a cor bronzeada de sua pele, deixavam-na com
um ar diferente de tudo o que eu já havia visto. De trás dela, como
se surgissem do ar, uma dúzia de outras mulheres apareceu e se po-
sicionou ao seu redor, como uma escolta. Em suas mãos, nos dedos,
diversos dedais dourados, como garras, reluziam um brilho elegante.
Naquele momento eu não tive dúvidas. Aquela mulher só podia ser...
– Essa é a Leonesa, Rainha da Ordem de Sekhem – disse Djet,
apresentando-a.
– Mestra – ouvi a esposa de Djet se ajoelhando e a cumpri-
mentando.
– Se me permitir, Mawu, quero falar com ela em particular –
disse a Leonesa.
– Com certeza, Rainha – concordou a Trovão Abenuz.
– Permite-nos, meu rei? – ela perguntou a Djet.
– Com toda a certeza – disse Djet com muita humildade.
A Leonesa moveu a mão como se abrisse passagem para que
eu andasse e, obedecendo, segui com ela até outra ala daquele enor-
me palácio repleto de artefatos de ouro e pedras preciosas.
– Você teve contato com GongSun e Xuannü, não é? – ela
perguntou enquanto andávamos.
– Sim – contei.
– Ótimo. Então ela lhe preparou com os cinco níveis da Shur-
du...
– Sim. Eu conheço os cinco níveis da Shurdu. Ela não me en-
sinou o sexto, mas disse que eu aprenderia em um momento propí-
cio.
Contei-lhe que GongSun havia mandado saudações e ela ficou
muito feliz.
Foi então que a Leonesa me contou que, no princípio, um dos
primeiros seres humanos que aprendeu a Cultivar a Essência Pri-
mordial com Quetzalcoatl, muito antes de Xi WangMu, como me
contara GongSun, conectou-se com o Caos Primordial e teve acesso
ao conhecimento da existência de uma Entidade Primordial destrui-
dora que habitava sob a estrela do centro da criação. Esse primeiro
humano não sabia que possuía nele a Sela da Eternidade. Ele chamou
essa entidade de “O Grande Escorpião”. Seu nome, honrado por elas
para sempre, era Órix. Seu corpo repousava em uma região chamada
Abedju.
Órix, que via nesse Grande Escorpião o destruidor de toda a
criação, acabou desenvolvendo suas habilidades da Sela e a passou,
junto com seu conhecimento da Essência Primordial e da Primordial
Caótica, para seus descendentes. Então, gerações depois, após mui-
tos estudos, uma de suas herdeiras, chamada Neithhotep, fundou a
Ordem de Sekhem, com o único objetivo de preparar o mundo para
enfrentar aquela Entidade Primordial de pura destruição e impedir
que despertasse de seu sono.
Em poucos anos, muitas tribos de diversos locais acabaram
enviando pessoas para aprender os Mistérios da Ordem de Sekhem e,
uma tribo em especial, demonstrou ter uma habilidade natural para
dominar a arte do controle do Fluxo e da Essência Primordial. Essa
era a tribo dos Andùl, os Andulène. Entretanto, os Mistérios da Or-
dem de Sekhem eram divididos em dois círculos: O Círculo Externo,
com os Mistérios Menores, era denominado Shurdu, e possuía cinco
níveis de conhecimento. Em seguida vinha o Círculo Interno, com
os Mistérios Maiores, onde se desenvolvia o Rugido de Sekhem, os
últimos níveis dos Mistérios, e os mais poderosos.
Os Andulène, cansados do domínio dos Lordes Dragões, inci-
taram uma revolta e iniciaram a primeira Guerra Dracônica. Porém,
como só conheciam e mal dominavam a Shurdu, acabaram tendo que
pedir auxílio aos outros membros da Ordem de Sekhem que, vendo o
problema que os Andulène haviam criado, tiveram que interceder.
Entretanto, como a Ordem era voltada para o estudo da Entidade
destruidora, O Grande Escorpião, que deveriam impedir de acordar,
eram despreparados para enfrentar os Lordes e, assim, quase todos
foram mortos e a humanidade não fora extinta por pouco.
Nos séculos que se seguiram, os Andulène tentaram aprender
o Rugido de Sekhem, para enfrentar os Lordes novamente, porém, a
Rainha Leonesa da época, Xi WangMu, não confiava nas intenções
dos Andulène e, assim, não permitiu que eles recebessem a habilida-
de do Rugido. Com isso os Andulène se desligaram da Ordem e co-
meçaram a expandir o Clã Andulène, desenvolvendo a Shurdu a ní-
veis muito poderosos. O Clã Andulène, claro, depois deu origem ao
Clã dos Protetores e a Shurdu se tornou, progressivamente, na Palma
Servil, cujo poder e controle sobre a Essência Draconiana eram in-
comparáveis.
A Ordem de Sekhem continuou seus estudos e abandonou a ideia
de enfrentar os Lordes que, por sinal, não viam como inimigos, uma
vez que a própria Quetzalcoatl fora quem lhes instruiu no início de
seu aprendizado. Entretanto, em determinado momento, o então já
formado Clã dos Protetores, achando que já havia desenvolvido
poder suficiente, iniciou uma nova batalha contra os Lordes Dragões
e, novamente, sem habilidade para vencê-los sozinho, pediu auxílio à
Ordem de Sekhem uma vez mais. A Rainha Leonesa da época, Xuannü,
percebendo que, daquela vez os Lordes não perdoariam a humani-
dade e destruiriam todos os seres humanos, decidiu unir forças com
os Protetores e, assim, em conjunto, combinando o poder da Palma
Servil de controlar a Essência Draconiana e o poder do Rugido de
Sekhem, conseguiram aprisionar os Lordes.
O Clã dos Protetores, que naquela altura era enorme e muito
poderoso, aproveitando a união com a Ordem de Sekhem, tentou se
apossar à força do Rugido de Sekhem, fazendo com que a Rainha Leo-
nesa e suas Leoas desaparecem nas areias do tempo por muitos sécu-
los, para proteger os Mistérios da Ordem. Assim, o Clã dos Proteto-
res, sozinho e livre, prosperou e tomou o controle de todos os
Drakkars que surgiam aos poucos, enquanto a Ordem de Sekhem a-
proveitou sua retirada do mundo para se aprofundar mais no estudo
de como impedir que o Grande Escorpião acordasse completamen-
te; seu único e real objetivo de existência.
– E por que vocês reapareceram agora? – perguntei.
– Por sua causa, é claro – disse ela – Estamos, há muitos sécu-
los, ajustando o percurso da vida para que você acontecesse: uma
Drakkar que dominou o poder da Shurdu.
– Mas não poderiam ter ensinado a qualquer outro Drakkar
antes de mim? – indaguei confusa – Um que ainda não tivesse de-
senvolvido Elemento?
– Você não é qualquer Drakkar, QingLong – riu a Leonesa –
Você vem de uma longa linhagem de Drakkars e Protetores. Toda a
sua família Wu é Protetora. Somente sua mãe não seguiu no Proteto-
rado. Do lado do seu pai, todos sempre foram poderosos Drakkars.
E, como você bem sabe... a união entre Drakkars e Protetores é algo
extremamente raro. Para você nascer, tivemos que arquitetar tudo
com muito cuidado. Então, por isso, há um poder especial acumula-
do dentro de você, que provém de ambas as linhagens.
– E por que preciso dominar a Shurdu?
– Porque através dela você poderá aprender o Rugido de Se-
khem... – ela explicou – É claro que não poderá receber o poder de
Rainha, pois é Drakkar, mas, com muito empenho, sei que consegui-
rá desenvolver algo similar, dentro de sua natureza Drakkar e... – ela
deu alguns passos – Desvencilhar-se da Roda Cíclica do mundo.
Porque... somente com esse poder, unido às sete Selas, é que você
terá alguma chance de conter O Grande Escorpião que eventual-
mente acordará.
Aquilo era realmente um fardo maior do que qualquer coisa
que eu poderia imaginar.
– Por isso vou iniciar você nos Antigos Mistérios da Ordem
de Sekhem – disse a Leonesa – E você passará a aprender a sublime
arte do Rugido de Sekhem. Vamos... – ela começou a retornar até
onde estavam os outros.

***

Depois das atualizações e das conversas durante o banquete


que Djet ordenou que nos preparassem, nós nos banhamos em e-
normes tanques de água quente e nos recolhemos. A água quente
fora cortesia da Mestra Yae, cujo Elemento Fogo era muito podero-
so.
Os Cavaleiros da Ordem da Garra do Dragão iriam se reunir
pela manhã, para definir os próximos passos, uma vez que já se sabia
que o exército de insurgentes crescia dia após dia e, já naquele mo-
mento, era duas vezes superior aos Drakkars do Palácio.
Então, depois de toda aquela agitação, era hora de dormir.

***

– QingLong... – ouvi uma voz me chamando durante o sono.


Abri os olhos e vi, ao pé da cama, o vulto de uma mulher.
– Venha – ela disse, virando-se de costas e saído.
Conforme ela ia em direção à luz tênue de uma das tochas na
parede, pude perceber os dedais dourados e afiados em seus dedos.
Era uma das Leoas da Rainha.
Levantei-me e segui com ela.
– Para onde vamos? – perguntei terminando de me vestir en-
quanto saída do quarto pé por pé.
Ela apenas me olhou e sorriu.
Aquela Leoa, de estatura parecida com a minha, tinha uma
trança negra, tal como a Rainha e, seu corpo, bronzeado da mesma
forma, detinha um vigor digno de uma Drakkar. Porém, sabia que
ela não era uma, já que fazia parte da Ordem de Sekhem e, pelo que
havia entendido, eu seria a primeira Drakkar a iniciar com elas.
Saímos do Palácio de Djet e seguimos pelas ruelas da cidade,
onde as pessoas já dormiam.
– Consegue me acompanhar? – ela riu e disparou.
Ora, aquilo era brincadeira. Só podia ser. Eu era uma Drakkar
Azul. O Sopro de Rapina era inalcançável por alguém humano como
ela.
– Claro que consigo – resmunguei para mim mesma enquanto
soprava o Sopro de Rapina, desdenhando suas palavras.
Em um segundo, estava ao seu lado, correndo em direção à sa-
ída da cidade, para o deserto.
Aquela Leoa, cujo nome depois soube, era Meresamun, olhou-
me sorrindo, como se estivesse orgulhosa do meu feito. Então, de
súbito, fez um movimento com as mãos e, como se tivesse se fundi-
do ao vento e à areia, ela sumiu em uma velocidade que superava em
muito meu Sopro.
– Impossível – disse boquiaberta.
Acelerei o que pude, na esperança de alcançá-la, mas tudo o
que via era a areia se abrindo com sua rapidez sobre-humana. Eu
estava, literalmente, comendo pó.
Como uma humana conseguia atingir uma velocidade daque-
las? Nenhum dos cinco níveis da Shurdu ou da Palma Servil permitia
que aquilo fosse feito. Seria parte da habilidade do Rugido de Sekhem?
Corremos por um tempo daquela forma até que a Leoa desa-
celerou e parou de supetão. Eu ainda levei alguns segundos para
chegar ao seu lado.
– Como você faz isso? – indaguei curiosa e abismada.
Ela apenas riu e apontou para frente.
Na nossa cara, levantando-se de forma gigantesca, uma enor-
me estátua de leão, cuja face já estava desgastada pelo tempo. E,
entre suas patas frontais, erguia-se o que parecia ser um pequeno e
discreto templo.
– Ela é enorme... – balbuciei – Vocês que fizeram?
– Não – ela respondeu, com uma voz aveludada e suave – Ela
está aí desde antes do grande congelamento do mundo.
Do que ela estava falando? Congelamento do mundo? O que
era aquilo.
Ouvi um som de pedras sendo arrastadas por cima umas das
outras e, em seguida, um leve tremor passou pelos meus pés. Era a
porta do templo que se abria.
– Vamos – ela seguiu em direção à entrada.
Eu a acompanhei até o interior do templo, porém quase nada
havia ali. Parecia uma ante-sala para lugar nenhum. Nas paredes,
muitos símbolos no idioma deles e desenhos de diversos animais
com corpos de homens e mulheres. Entretanto, em frente a todos
eles, uma estátua me chamou a atenção: uma mulher com cabeça de
leoa, que levava em suas mãos uma pequena cruz estranha e um
cetro.
– Essa é a deusa Sekhmet. Patrona da nossa Ordem – disse a
Leoa – Ela é a protetora do Rei e é ela quem o lidera em guerra.
– Na pessoa da Rainha, acredito – comentei.
– Exatamente – ela disse, andando até a estátua e puxando o
cetro.
A estátua começou a se mover para o lado, revelando sob si
um túnel que cabia não mais do que uma pessoa de diâmetro.
– Vamos – ela disse, cruzando os braços sobre o peito e pu-
lando no túnel.
Olhei para dentro dele, no chão, e não vi nada. Uma escuridão
infinita, como um poço sem fim. Ora, eu era uma Drakkar. Se aquela
humana havia pulado naquele buraco, porque eu não pularia.
– Vamos... – murmurei cruzando meus braços e pulando.
Escorreguei pelo túnel por uns cinco ou dez segundos, caindo
em um local macio, como palha.
À minha frente, uma câmara de tamanho descomunal, susten-
tada por altos pilares, abria-se, iluminada por diversas tochas. Em
seu centro, uma espécie de círculo no chão, como um local de reuni-
ão e, do outro lado, na parede, uma enorme estátua da mesma deusa
Sekhmet, segurando seu cetro e sua cruz estranha.
No local de reunião estavam me esperando as Leoas e, claro, a
Rainha.
Levantei-me daquela palha e caminhei em direção a elas.
Aquela visão era algo que estava além da simples admiração.
Era como se eu sentisse a necessidade de reverenciar aquele lugar.
Um templo dedicado a uma deusa das Terras Negras. Uma deusa
leonina.
Assim que me aproximei, todas as Leoas fizeram um gesto
marcial vigoroso e cheio de poder: cruzaram os braços sobre o peito,
primeiro o direito e depois o esquerdo, e baixaram ambas as mãos ao
lado do corpo em posição de garras. Em cada um dos três movimen-
tos elas gritaram uma parte do rugido “Hu-Ha-Hoar!”.
– Seja bem vinda, QingLong – disse a Rainha Leonesa.

Foi naquela noite que a Rainha e suas Leoas me iniciaram nos


Antigos Mistérios da Ordem de Sekhem através de um ritual repleto de
simbolismo, encantamentos e invocações, cujos detalhes vou manter
para mim, por conta do juramento que prestei a elas.
Depois daquela noite sagrada, onde eu me tornei também uma
das Leoas da Rainha, iniciei minha jornada, onde passaria um ano,
treinando e aprendendo o Rugido de Sekhem.
Então, assim, na Ordem aprendi que Sekhem era o nome que
davam à Essência Primordial Caótica. A essência inicial de antes da
criação, do Caos Primordial. Essa Essência Caótica era escassa e
negra, mas infinitamente mais poderosa do que a que eu conhecia.
Cultivá-la através do Rugido era uma arte muito difícil e, realmente,
ainda que fosse necessário ter aprendido a Shurdu para seguir naquele
aprendizado, seu poder ia além dela ou da própria Palma Servil. O
seu aprendizado se dava por outros caminhos e, para dominá-lo, era
necessário desenvolver um Corpo Solar, como ensinavam minhas
irmãs e a Rainha Leonesa. O Corpo Solar era o único capaz de a-
guentar o poder do acúmulo do Sekhem. Esse corpo chamava-se
Solar em homenagem a outro deus do seu panteão: Rá, cujo poder
final era equivalente ao da própria criação, isto é, de Tiamat e Abzu
combinados.
– Durante o desenvolvimento do Rugido de Sekhem – disse-
me a Rainha Leonesa em um dos dias de instrução – você aprenderá
o caminho para desenvolver o Corpo Solar, e isso só se dá passando
pelos níveis do Rugido. Um por um, passo a passo. O primeiro, o
qual você acabou de aprender, acelera as partículas do qual seu cor-
po é feito, colocando-o e um estado levemente alterado.
De fato, o primeiro nível do Rugido de Sekhem, chamado de
“Vento do Deserto”, por algum motivo ininteligível para mim naquele
momento, fazia com que meu corpo se tornasse uma espécie de
energia quente que vibrava em conjunto com o mundo físico, permi-
tindo que eu me tornasse quase invisível, movesse-me muito rápido
e desferisse golpes em velocidades absurdas. Era um poder que so-
brepunha em muito o próprio Sopro de Rapina.
– No segundo nível – continuou ela – você dominará a habili-
dade de combate com as Garras de Sekhmet...
A “Fúria de Sangue”, que era o nome do segundo nível do Rugi-
do de Sekhem, utilizava-se da habilidade do Reflexo, combinada com a
arte de controlar o Sekhem, para desferir ataques precisos e indefen-
sáveis. Para tanto eu recebi meus próprios dedais dourados e afiados
que eram as Garras de Sekhmet.
O material, do qual as Garras eram feitas, era raro e, como vim
a descobrir, podiam cortar qualquer coisa; inclusive minhas microes-
camas, que muito sofreram nas mãos de minhas irmãs durante os
árduos treinamentos. Porém, através daquela habilidade entendi que
o Reflexo servia para muito mais do que simplesmente aumentar o
sincronismo ou Cultivar Essência Primordial. Como ele servia para
me guiar até qualquer objetivo, servia inclusive para o confronto.
Aquela combinação de técnicas fazia com que a “Fúria de Sangue”
fosse uma arte de combate corpo a corpo impiedosa e fatal, fosse o
inimigo humano ou Drakkar. Isso se dava porque a composição da
qual as Garras de Sekhmet eram feitas era o Oricalco. Um material
produzido através da união de dois metais estranhos que, diziam os
antigos escritos da Ordem, haviam vindo do céu em enormes mon-
tanhas. As Garras feitas de Oricalco eram praticamente indestrutíveis
e podiam cortar qualquer material conhecido.
– Os sete níveis do conhecimento da Ordem de Sekhem – dis-
se a Rainha Leonesa em quanto estávamos alinhadas em fila – com-
posto dos cinco níveis da Shurdu e mais os dois níveis do Rugido de
Sekhem, são a unidade da qual a humanidade progride e evolui. E...
– ela andou em nossa frente – acima dos sete níveis só há um, que é
divino. Esse oitavo e divino nível, que compete somente à Rainha de
nossa Ordem, é, como a maioria de vocês sabem, o “Olho de Rá”.
A Rainha Leonesa ensinou, naqueles últimos dias, que a pró-
pria deusa Sekhmet era uma das formas do olho do deus Rá, cujo
poder era superior ao seu próprio dono. O “Olho de Rá” dava à Rai-
nha um poder incalculável pela mente humana e, para controlá-lo,
era necessário ter desenvolvido o Corpo Solar plenamente. Um feito
muito difícil. Esse era o motivo de só haver um portador do último
nível por geração.
O poder do “Olho de Rá” concedia à Rainha Leonesa a habili-
dade de colocar em si o poder criativo e destrutivo de Rá, removen-
do-se do ciclo físico, transformando seu corpo em uma espécie de
virtualidade, onde ele existia e não existia ao mesmo tempo. Saltando
entre diversas posições dimensionais de diversos universos. Manten-
do-se fora dos domínios do reino físico e suas leis. Fora do tempo e
do espaço. Inclusive permitindo dominar os submundos, o local
onde eles chamavam de Duat. Porém, aquele poder era demais,
mesmo para o Corpo Solar, e, por isso, só podia ser usado por pou-
co tempo devido ao seu terrível e divino poder.
– Eu não posso ensiná-la o último nível do Rugido de Se-
khem, QingLong – disse-me a Rainha Leonesa – Mas posso ajudá-la
a desenvolver algo semelhante, dentro das possibilidades do seu san-
gue draconiano. Afinal, você, tendo dentro de si a faísca da essência
de Tiamat, possui uma potencial ligação natural com o Caos Primor-
dial e, por isso, pode, mesmo que com certa dificuldade, usar seu
poder. O uso dessas distintas Essências é a diferença entre nós e os
Protetores.
Realmente, essa era a maior diferença: enquanto os Protetores
e sua Palma Servil Cultivavam e usavam a Essência Primordial, base
de toda a criação gerada por Tiamat e Abzu, a Ordem de Sekhem
buscava dominar a Essência Primordial Caótica, de antes da criação.
Único poder capaz de tocar uma Entidade gerada durante o Caos
Primordial. Esse era o único motivo do estudo desse poder: o Se-
khem.
Então, depois de quase um ano treinando com minhas irmãs e
a Rainha Leonesa, dominando os dois níveis do Rugido de Sekhem,
passei a desenvolver, com a ajuda de nossa Rainha, uma habilidade
que deveria equivaler ao “Olho de Rá”. Aquela habilidade seria indis-
pensável para poder, em conjunto com as sete Selas, enfrentar aquela
Entidade Primordial, O Grande Escorpião, caso acordasse. Era a
única esperança de toda a criação; de toda a existência.
—————|XIII|—————

A PALMA CÍCLICA

urante todo o treinamento com a Rainha Leonesa na Or-


dem de Sekhem, também dediquei-me ao treinamento
com minha Mestra Drakkar Mawu Àjé, a Trovão Abenuz.
E, junto com ela, fomos capazes de ensinar aos outros Cavaleiros da
Ordem da Garra do Dragão como atingir a forma de Primeira
Grandeza.
Naqueles dias sabíamos também, por conta das informações
trazidas do oriente através das Leoas, que os insurgentes começavam
a atingir também as formas de Primeira Grandeza; e rumores diziam
que o primeiro Drakkar que atingira a forma Imane, assumia agora a
incrível forma de Segunda Grandeza. O que era inimaginável.
Era inegável que o confronto entre os insurgentes e o Palácio
se daria em seguida e seria, com todo aquele poder, devastador para
ambos os lados. Incontáveis vidas se perderiam e aquilo não podia
acontecer.
Eu, por minha vez, aprendia cada vez mais a acessar o poder
da Sela e já podia ver, com alguma limitação, diversos caminhos se
abrindo à minha frente e, infelizmente, nenhum deles me mostrava
como evitar o confronto. Todavia ainda havia esperança.
Sob a tutela da Rainha Leonesa, estudando o poder do “Olho
de Rá”, foi possível desenvolver uma habilidade divina que, de outra
forma, jamais teria conseguido. Os mecanismos por trás daquela
técnica eram impensáveis e nenhuma reflexão lógica chegaria naque-
la conclusão. Todavia o poder para executá-la ainda dependia de um
Corpo Solar, coisa que eu não havia desenvolvido plenamente e,
talvez, não desenvolvesse por muitos anos. Cultivar a Essência Pri-
mordial Caótica não era simples, nem fácil. Era demorada e muito
complicada; e, consolidar o Corpo Solar demandava um tempo co-
lossal que não tínhamos.
Para gerar aquele corpo, parte do processo exigia um ritual
onde eu me colocava em um estado de quase morte, de forma que
minha energia vital, minha Essência Draconiana, já infundida com o
Sekhem, deixava meu corpo e, junto com ela, minha consciência.
Era como realmente morrer. E, enquanto minha Essência permane-
cia vigilante, acompanhando meu corpo semi morto, minha consci-
ência, abandonando-os, vagava por mundos sinistros e tenebrosos,
os quais a Rainha chamava de Duat e, lá, passava por provas e mais
provas.
Retornando ao meu corpo, tentava me unificar com minha
Essência Draconiana novamente e, conseguindo, construía um pou-
co mais do meu Corpo Solar. Era um processo arriscado, mas era
necessário, se quisesse poder usar minha nova habilidade completa-
mente.
– Tente mais uma vez – disse a Rainha.
Eu havia tentado manter o poder da nova técnica por mais de
um segundo, mas era muito difícil. Eu sentia que, ao aplicá-la, meu
corpo assumia um poder além do que eu podia explicar, mas, ao
mesmo tempo, o esgotamento era instantâneo e em seguida eu per-
dia todas as minhas forças. E, no meio do deserto, sob aquele Sol
escaldante, aquilo ficava um pouco mais difícil. Não que eu fosse
realmente afetada pelos seus efeitos desgastantes, mas aquilo me
incomodava muito.
– Sim, Rainha – disse, posicionando-me novamente.
Certos movimentos do corpo, conforme fomos mapeando um
por um, geravam um efeito específico na mente que, em conjunto
com todas as conexões que podia abrir para o Todo usando a Essên-
cia Primordial Caótica, o Sekhem, desencadeavam o poder daquela
técnica.
Assim comecei, espalmando as mãos ao lado do corpo, levan-
do-as de forma circular até o topo da cabeça, lentamente.
– Isso – disse a Rainha – Conecte-se com o Caos Primordial
através do que já pôde cultivar do seu Corpo Solar.
Antes que as mãos se tocassem sobre minha cabeça eu as pu-
xei para o centro, na altura do meu ventre, desenhando um “V” no
ar, encostando seus dorsos.
– Exatamente! – continuou a Rainha – Permita que o fluxo da
Essência Caótica acelere-se em seu corpo, tal como fazemos com o
“Vento do Deserto”.
Então levei rapidamente minhas mãos, unidas por seus dorsos,
de volta à altura da cabeça pela frente do meu rosto com os braços
esticados.
– Sinta seu corpo acelerando, querendo deixar o plano físico...
– comentou a Rainha.
Meu corpo parecia querer explodir, mas não em poder, e sim
fisicamente. Como se fosse se tornar pura energia. Nessa altura já era
difícil continuar a técnica. Tudo doía, parecia que me rasgaria por
completa.
– Concentre-se, QingLong. Continue – ordenou a Rainha –
Dominar essa técnica é nossa única esperança.
Respirei fundo e me acalmei.
Continuei o movimento descendo novamente as mãos unidas,
de forma inversa pela frente do rosto até o ventre e rapidamente as
separei, levanto-as de volta ao topo de minha cabeça pelos lados do
corpo, em forma circular, unindo-as uma vez mais; porém, dessa
vez, unidas pelos dorsos, segurei apenas os dedos indicadores e mé-
dios esticados, mantendo o resto do punho fechado.
– É agora! – exclamou a Rainha – Abra a porta para o infinito!
Estava tremendo. Meu corpo estava no limite e todas as suas
fibras pareciam estar se destruindo inteiramente. A força que fazia
em cada micro-escama era incompreensível. Não sabia quanto tem-
po resistiria e como tinha aguentado até ali.
– Não posso... – grunhi de dor, enquanto começava a lacrime-
jar.
Não queria chorar, mas meu corpo não estava mais segurando
aquele poder.
– Aqui... – A Rainha começou a falar – sob o Sol vermelho.
Pegadas circulam minha coroa. Nossas irmãs sustentam essa Ordem
e todos os que olham nos nossos olhos se sentem ameaçados. Hu-
Ha-Hoar! – ela rugiu – Esse rugido poderoso faz suas patas se volta-
rem para mim. Hu-Ha-Hoar! – ela rugiu mais uma vez – Esse rugido
poderoso faz seu coração e sua mente se voltarem para mim.
Ela se aproximou e me olhou fundo nos olhos. Seu olhar, po-
deroso, não deixava dúvidas de que era um ser divino.
– Quem se atreveria a nos parar? – ela perguntou – Quem se
atreveria a nos controlar? Com nossas garras afiadas nós criamos
novos caminhos. Nada pode nos aprisionar! Nós provamos isso e,
agora, todos tremulam e temem o nosso rugido.
Suas palavras ecoavam pela minha mente, dando-me uma for-
ça que não sabia de onde vinha. Aquele texto, citado por ela, era
parte do juramento que havia tomado no dia de minha iniciação na
Ordem de Sekhem, em conjunto com minhas irmãs Leoas, em frente a
ela e à estátua da deusa Sekhmet.
Respirei fundo uma última vez e juntei minhas energias. Ela,
por sua vez, afastou-se e continuou me olhando.
– Abra a porta, QingLong – ela ordenou uma última vez.
Mantendo as palmas encostadas pelos seus dorsos sobre mi-
nha cabeça, com os dedos indicador e médio esticados, girei os pu-
nhos de forma que elas dessem uma volta completa, batendo nova-
mente os dorsos, por fim. E, assim que os dorsos se tocaram depois
do giro, um poder inexplicável se expandiu a partir de mim. O som,
como o de um badalo único, ecoou por todo o Universo e vozes
entoaram uma nota solitária que vibrava de forma grave e trêmula.
– Isso! – vi os olhos admirados da Rainha – É isso!
Tal como o poder que partiu desde onde eu estava, uma escu-
ridão se expandiu cobrindo tudo o que eu podia ver e, nela, percebi
todas as formas de estrelas e outras belezas que se encontravam se-
cretas no céu noturno, como a própria Via Láctea e infinitas conste-
lações.
Meu corpo, como um borrão, parecia ter transcendido tudo o
que era físico, e eu me sentia em uma união, não com o Universo,
mas com algo mais ancestral, mais profundo e verdadeiramente in-
descritível.
Olhei para o centro daquele infinito e, então o vi, O Grande
Escorpião. Aquela Entidade Primordial de pura destruição. E ele me
viu, fazendo um arrepio gélido e macabro subir por minhas costas,
congelando meu coração completamente.
Tentei segurar aquele poder o máximo que pude, mas a pres-
são descomunal parecia que iria me partir ao meio. Então, em deses-
pero, desfiz a técnica e, sem nenhuma energia, caí de joelhos ao
chão.
– Não... – resmunguei de dor assim que veio a primeira golfa-
da de sangue.
Senti um ar cortando o espaço e logo minha Mestra Drakkar, a
Trovão Abenuz, estava ao meu lado, vindo de longe, certamente por
ver aquele poder todo cobrir os céus.
– O que está acontecendo? O que foi isso? – ela inquiriu as-
sustada ajudando-me a levantar – O que foi todo esse poder?
– QingLong conseguiu usar uma técnica que é superior a qual-
quer outra... – a Rainha sorriu.
– Mas pelo visto ao custo de sua própria vida... – repreendeu a
Trovão Abenuz – Você está proibida de usar isso – ela me deu um
ultimato – Você me entendeu? Como sua Mestra, eu a proíbo.
– Fique tranquila, Mawu. O importante é que ela agora sabe
como usar – disse a Rainha – E, de fato, ela provavelmente só vai
usar no futuro, quando for indispensável para salvar toda a existên-
cia. Todavia, meu trabalho aqui está finalizado. QingLong, no que
dependia de mim, está pronta. Vamos comemorar – encerrou rindo.
Levantei-me, tremendo e fraca, e segui com elas de volta ao
Palácio, apoiada nos braços da Trovão Abenuz.
—————|XIV|—————

O CAMINHO NÃO PERCORRIDO

pós os festejos em comemoração ao fim do meu treinamen-


to como Leoa, depois de ter desenvolvido a Palma Cíclica,
que tinha o poder quase ou equivalente ao “Olho de Rá” do
Rugido de Sekhem, retornamos aos nossos treinamentos para percorrer
as Mansões Lunares.
– Mesmo que consigamos acessar a Segunda Mansão e assu-
mir a forma de Segunda Grandeza... – comentou Djet – É fato de
que os insurgentes estão um passo à nossa frente. Certamente esta-
rão em uma Mansão superior logo, logo.
– E não apenas isso – disse Yae – Da forma como eles estu-
dam o Sangue Draconiano e conhecem a Contemplação e o Reflexo,
é muito provável que diversos Drakkars de seu exército dominem
essas formas; enquanto, do Palácio, até onde sei, somente nós con-
seguimos esse feito.
– Precisamos de uma vantagem além desse conhecimento –
disse minha antiga mestra Lihuá – Pois se somente nós acessarmos
as Mansões Lunares, não poderemos lutar contra tantos Drakkars
insurgentes.
– Para lutar contra tantos... – riu Ninhursag – teríamos que ter
poder para matar cada um com apenas um golpe.
– Isso seria impossível – comentou Djet – Mesmo que esteja-
mos no mesmo nível, jamais venceríamos um deles com um único
golpe.
– Somente Tiamat teria poder para destruir alguém com um
único golpe, estando o inimigo percorrendo as Mansões Lunares... –
comentou a Trovão Abenuz.
– Se pelo menos tivéssemos o poder de Tiamat em nossas
mãos... – Ninhursag ironizou em gargalhada.
Naquele instante lembrei-me das histórias que minha vovó Wu
Mei me contava sobre Tiamat e o início de tudo; de quando seus
filhos, os Lordes Dragões, viraram-se contra ela e, para derrotá-los,
ela criou Marduk, e deu a ele cinco armas imbuídas com seu próprio
poder. Essas armas eram capazes de destruir os Lordes e, por isso,
certamente eram poderosas suficientes para destruir qualquer Drak-
kar com um único golpe, mesmo que estivessem em forma de
Grandeza. Elas eram conhecidas como as lendárias Armas de Marduk.
– E as Armas de Marduk? – joguei.
Todos me olharam surpresos e se puderam pensativos.
– Se tivéssemos as Armas de Marduk – comentou Djet – Cer-
tamente poderíamos vencê-los, fossem quantos fossem.
– Mas elas estão perdidas há muito tempo – disse a Trovão
Abenuz – Não sabemos nem onde começar a procurar. Perderíamos
muito tempo e energia nesse esforço.
Fechei os olhos. Se pudesse acessar minha Sela para que me
mostrasse onde estavam as Armas de Marduk, tudo seria mais fácil.
Se no futuro eu tivesse, de alguma forma, encontrado todas elas,
aquele conhecimento poderia vir a mim.
– Não vejo nada... – resmunguei para mim mesma.
Por mais que me concentrasse, estava tão desgastada pelos e-
xercícios da Palma Cíclica que não conseguia usar a Sela.
– Quando foi a última vez que as Armas de Marduk foram vis-
tas? – perguntou a Trovão Abenuz, tentando raciocinar.
– Acredito que na última Guerra Dracônica, quando prende-
ram os Lordes – disse Lihuá.
– Então os Protetores devem saber onde estão – comentou
Djet.
– Só que não podemos voltar ao Palácio e perguntar – disse
Ninhursag – Não podemos contar com os Protetores.
– Xuannü – comentei baixinho.
A Segunda Guerra Dracônica fora comandada por Xuannü,
unindo a Ordem de Sekhem e os Protetores. Se alguém poderia saber
onde as Armas estavam, seria ela.
– Com licença. Preciso me retirar – eu disse.
– Aonde vai? – perguntou a Trovão Abenuz.
– Tentar descobrir onde estão as Armas de Marduk.
– Como? – indagou Ninhursag, curiosa.
– Vou contatar uma velha mestra... – disse saindo.
Ao passar pela porta da sala onde estávamos, de surpresa, vi
que Benke, Bandhu e Alethea nos espiavam.
– Então... – Benke tentou disfarçar – O que vamos comer ho-
je? – ele riu.
– Nós já comemos – eu disse, brincando – O que vocês estão
fazendo aqui espionando a conversa? – ri também.
Eles não haviam mudado nada. E, se eu estivesse com eles,
certamente seria outra ouvindo escondida.
– É que agora você é especial e exclusiva... – disse Alethea –
Não anda mais com a gente...
– Nós sentimos sua falta – disse Bandhu.
Meu coração partiu. Era verdade que eu tinha deixado meus
amigos um pouco de lado enquanto me dedicava à Ordem de Sekhem e
ao treinamento para as Mansões Lunares. Eram tantas responsabili-
dades que eu não tinha mais me dado ao luxo de ficar com meus
amigos; de aproveitar sua companhia maravilhosa. E eu realmente os
amava.
– Vocês já atingem a forma Varanus, não é? – perguntei.
– Sim – eles responderam em uníssono, orgulhosos de si
mesmos.
Já fazia três anos desde que os deixara no Palácio. Muito já ti-
nham aprendido e, com todo aquele problema com os insurgentes,
as Mestras do Protetorado certamente iriam querer que seus Drak-
kars pudessem defender o Palácio.
– E continuam praticando a Contemplação e o Reflexo como
mostrei naquela época?
– Sim – eles se olharam, confirmando uns aos outros.
– Então venham comigo – sorri saindo em direção à cidade.
Xuannü poderia esperar. Meus amigos eram mais importantes
naquele momento. Então, eu os levei pela cidade, no meio da noite,
até o deserto onde havia praticado com a Rainha Leonesa por quase
um ano. O local era bem afastado e serviria muito bem como local
de instrução.
Ali, durante toda a noite, eu os ensinei os caminhos mais fáceis
de como atingir a forma Imane. E, na companhia deles, eu me es-
quecia dos problemas. Tudo se tornava mais leve. Assim, vagarosa-
mente, eu começava a recobrar o acesso à minha Sela e, com essa
habilidade de volta, eu podia vasculhar o futuro para encontrar a rota
mais rápida e simples para que eles pudessem superar seus limites e
adentrar na Primeira Mansão.
Dessa forma nós quatro Contemplamos juntos e praticamos
visualizações específicas para enganar a mente, fazendo com que ela
acreditasse já terem assumido a forma Imane diversas vezes; pois a
sensação de que aquilo já era parte da vida deles fazia com que seu
corpo acompanhasse a elevação de sincronismo de forma mais fácil.
E, assim, treinamos aquilo até o céu assumir sua cor azulada, pre-
núncio do dia.
Ainda que nenhum deles tivesse atingido a forma Imane, sen-
tia que em pouco tempo conseguiriam. Estavam a um passo de po-
derem percorrer as Mansões Lunares.
– Eu estou com sono... – bocejou Alethea.
– Eu também estou – Benke fez o mesmo – Mas estou muito
feliz de termos passado esse tempo juntos, com antigamente.
Bandhu concordou com a cabeça.
– Estar com vocês é como estar em casa – eu disse, feliz de es-
tar ali em sua companhia – Vamos dormir... – dei o primeiro passo
em direção à cidade.
***
Durante a madrugada, já em sono profundo, sonhava com
minha aldeia, à margem do rio Amarelo. Eu estava sentada sob a
sombra de uma das belíssimas Yulanhua, completamente florida,
admirando a beleza das águas e sentindo o vento fresco que acaricia-
va meu rosto. Tudo estava perfeito e em paz.
Fazia muito tempo que não tinha um sonho tão tranquilo e
harmonioso. Naqueles tempos, com a pressão de aprender tudo o
que podia para impedir aquela Entidade Primordial e sabendo do
confronto terrível que se aproximava, era quase impossível ter uma
boa noite de sono.
Foi então que, de súbito, uma memória futura veio à minha
mente, mostrando-me o confronto contra os insurgentes. Nós está-
vamos próximos ao Palácio dos Protetores; e a Trovão Abenuz e eu
nos encontrávamos cercadas por diversos deles, em suas formas de
Grandeza. Ela segurava uma lança que vertia relâmpagos de luz.
Lembrei-me que aquela fora a última das Armas de Marduk que ha-
via sido recuperada e que a primeira delas, o Escudo Garra, havía-
mos achado em um local remoto...
– Já sei! – gritei, acordando de supetão.
Eu sabia onde encontrar a primeira Arma de Marduk.
Levantei-me rapidamente e corri até os aposentos onde minha
Mestra, a Trovão Abenuz estava.
– Mestr... – segurei-me antes de entrar.
Ouvi alguns sons vindos de dentro do quarto e, foi então que
percebi que ela estava acompanhada. Bastou-me apenas rir baixinho
e sair dali, pé por pé, até o salão principal do Palácio de Djet.
– Como ela encontra paz para esse tipo de coisa? – comentei
comigo mesma rindo.
– Falando sozinha? – ouvi a voz de uma mulher.
Virei-me para ver quem era e, das sombras de um dos enor-
mes pilares, iluminada somente pela luz de algumas lamparinas que
estavam dispostas ali, vi Meresamun, uma das Leoas. Devia estar de
vigia para proteger o lugar.
– Olá, Meresamun – disse.
Ela e eu, durante meu ano aprendendo o Rugido de Sekhem, tí-
nhamos nos tornado boas amigas. Ela sempre fora muito carinhosa
e atenciosa com tudo o que era relacionado a mim e, o fato de ter
sido a primeira Leoa a conversar comigo e me levar à minha inicia-
ção naquela noite sagrada, fazia dela uma pessoa muito especial para
mim.
– Então... – ela se aproximou e passou uma das Garras de Se-
khmet pelo meu braço – O que faz acordada a essa hora?
Seus olhos negros, por algum motivo, fitavam-me como se
tentasse ler meus pensamentos.
– Tive um sonho e vi onde podemos encontrar uma das Ar-
mas de Marduk... – disse – Mas quando fui contar à minha Mestra...
– comecei a rir.
– É... – sorriu Meresamun – Nossas mestras estão muito ocu-
padas no momento...
– O quê? – exclamei boquiaberta – A Trovão Abenuz está
com a Rainha? – cochichei.
– Por que o espanto? – gargalhou Meresamun.
De onde eu vinha, aquilo não era sequer cogitado. Fora criada,
naquela época, dentro de um regime que, ainda que fosse matriarcal,
não tinha aquele tipo de liberdade emocional, nem física.
– Você não está acostumada – disse Meresamun me pegando
pelos ombros e olhando fundo nos meus olhos – Está tudo bem.
São culturas diferentes, não é? Mas... – ela passou a Garra de Sekh-
met pela minha bochecha até meu queixo.
– Mas o quê? – disse nervosa, saindo de perto.
Ela gargalhou novamente.
– Você, QingLong – ela começou a vir em minha direção no-
vamente – É a mulher mais linda que eu já vi em toda a minha vida.
Seus olhos rasgados, negros... e esses lábios finos... seu sorriso do-
ce...
Meu coração disparou. Eu estava em choque.
Meresamun, com aquele olhar feroz e uma beleza estonteante,
única, de pele bronzeada e cabelos pretos longos, certamente mexia
com o coração de qualquer um; mas eu não sabia o que fazer ou
dizer.
– Yu! – gritei de súbito, lembrando de meu velho amigo de in-
fância – Eu sou prometida – disse, referindo-me à minha promessa
de casamento infantil.
Ela continuou se aproximando e me pegou pelos ombros, le-
vando seus lábios próximos aos meus.
Eu tremia. Minhas mãos, suando frio, não sabiam se ficavam
paradas ou se tateavam meu próprio corpo para me acalmar.
– Sua medrosa – ela disse, por fim, desviando dos meus lábios
e encostando os seus no meu ouvido esquerdo.
Meresamun continuou andando para trás de mim e seguiu
embora, certamente de volta à sua ronda; enquanto eu fiquei ali, por
mais alguns minutos, trêmula sem saber como agir.
– Long’er? – ouvi o bocejo da Mestra Lihuá depois de um
tempo – O que faz aqui? – ela vinha de uma das alas do Palácio de
Djet.
Ao vê-la, minha tensão se dissipou no mesmo momento.
– Eu sei onde encontrar uma das Armas de Marduk – disse
rapidamente, sem pensar, respirando aliviada pela distração.
– Como? – ela inquiriu espantada, mas logo sorriu – Você é
cheia de surpresas. Nem sei por que ainda me admiro.
– Sonhei com a Garra Escudo – expliquei – E foi um sonho
especial. Não tenho como esclarecer melhor, mas acredite, sei onde
está – encerrei.
– Vou chamar a Mawu – disse ela indo em direção ao quarto
da Trovão Abenuz.
– Espere! – disse assustada.
– O que houve? – perguntou a Mestra Lihuá.
Eu, novamente, estava congelada. Como dizer o que acontecia
no quarto da Trovão Abenuz para uma Han que, como eu, certa-
mente não estava acostumada com aquelas liberdades?
– Isso mesmo, QingLong – ouvi a Trovão Abenuz se aproxi-
mando – O que houve? – ela deu um meio sorriso.
Por de trás dela, em um canto, vi o vulto que se ia. Pela silhue-
ta, era realmente inegável que fosse a Rainha Leonesa.
– Nada – baixei minha mão, segurando o sorriso.
Não sabia bem se a estranheza que sentia era por minha Mes-
tra Trovão Abenuz estar tendo relações com outra mulher, ou por
ela encontrar tempo para um relacionamento em meio a um mo-
mento tão delicado, tal era o qual nos encontrávamos. Mas, ainda
assim, imaginar que as pessoas podiam achar felicidade em frente a
tantos problemas, era como ver as folhar secas que caiam logo antes
da estação das neves, mas que ainda traziam cores exuberantes e
pintavam o chão, em uma visão de pura beleza em meio ao fim de
um ciclo. A vida sempre encontrava uma forma de trazer a beleza
em meio ao caos.
– Ouvi sobre você saber onde está o Escudo Garra – disse a
Trovão Abenuz – Isso é verdade?
– Sim, Mestra – eu disse.
Logo os outros Mestres, ouvindo as conversas, juntaram-se a
nós, junto com o resto dos aprendizes; incluindo meus amigos can-
sados do treinamento daquela madrugada.
Então contei sobre meu sonho e sobre como poderíamos en-
contrar aquela Arma de Marduk, que seria a primeira das cinco.
– Além do rio Amarelo, a Leste, depois do mar há um conjun-
to de ilhas. Depois dele... muito adentro do oceano, existem outras
ilhas menores com montanhas de fogo...
– QingLong está correta – disse a Mestra Yae.
– É verdade, você vem de lá, não é Yae? – comentou Djet.
– Sim – disse ela – Depois das ilhas de minha terra natal, um
grande oceano se abre e, longe, além dele, é possível encontrar um
conjunto de ilhas menores, onde as montanhas cospem fogo como o
Sopro de Explosão.
– Como o Monte Aítne... – disse Alethea – Quando Athana
matou e enterrou o gigante Encelados, e Haphaistios matou e enter-
rou o irmão de Encelados, Mimas, seus sangues de puro fogo se
espalharam por toda a profundeza da terra, criando enormes forna-
lhas dentro das montanhas, onde Haphaistios podia forjar as armas
de Dyeus. Uma erupção de um lugar assim é devastadora. Talvez
nem mesmo um Drakkar sobreviva.
– Por que alguém esconderia a Garra Escudo dentro de uma
montanha de fogo? – Lihuá divagou.
– Não é na montanha – eu disse – Além dessas ilhas, nas á-
guas, existe um ponto tão profundo e escuro, quase inacessível a
qualquer pessoa. É lá que está o Escudo Garra... – contei.
– Está explicado – disse Djet.
– Se é quase inacessível, como está lá? – brincou um dos a-
prendizes das outras Mestras.
– Foram os Protetores que colocaram lá – comentou Ninhur-
sag – Certamente usaram seu poder para guiar a Arma de Marduk
até essa profundeza.
– Por que você diz que está explicado, Djet? – perguntou a
Trovão Abenuz.
– Ora, Mawu... – ele riu – A Garra Escudo e as Adagas, se-
gundo as lendas, estão infundidas com o poder de Vritra, o Lorde
Dragão Verde... E, com o Elemento Terra sendo sua essência, é
natural que os Protetores colocassem essas Armas em um lugar onde
houvesse o Elemento desarmônico... Água.
– Sim – confirmou Ninhursag – As lendas dizem ainda que
Vritra odiava água.
Naquele mesmo instante sentimos o chão tremer violentamen-
te, de forma que as paredes racharam e diversos pedaços da estrutura
do Palácio de Djet começaram a desabar.
– O que é isso? – ele gritou.
– Todos para fora! – berrou Lihuá.
Corremos para a saída do Palácio de Djet, em direção à cidade
e, assim que chegamos ao pórtico de entrada, vimos um pequeno
exército de Drakkars destruindo as casas próximas, enquanto outros,
na forma Imane, sobrevoavam o lugar, jogando violentamente seus
Elementos sobre as pessoas que saíam assustadas de suas casas.
– Não! – Djet urrou furioso, assumindo instantaneamente sua
forma Imane, alçando voo como um gigantesco dragão dourado.
– Vamos precisar de ajuda – disse Lihuá – Long’er, você pode
chamar as Leoas?
– Não, Mestra – respondi – Não é assunto delas... mas é nos-
so. Temos que cuidar disso nós mesmos. Elas não nos ajudarão.
Andei a frente e deixei meu Elemento explodir, adentrando
nas camadas mais profundas das dimensões interiores, assumindo
minha forma de Primeira Grandeza. Logo os outros Mestres Drak-
kars fizeram o mesmo, enquanto seus aprendizes assumiam suas
formas Varanus.
– Yae... – chamou a Trovão Abenuz – Use o seu Sopro Solar e
faça aqueles desgraçados pousarem.
A Mestra Yae usou o Sopro de Potência e saltou de uma forma
assustadora centenas de metros acima de nós.
– Ninhursag – continuou a Trovão Abenuz – Sopro Tornado,
para a areia cegar todos eles.
A Mestra Ninhursag correu em direção aos Drakkars inimigos
que, certamente, eram os insurgentes e começou a Soprar.
– QingLong, Lihuá... – disse a Trovão Abenuz – Cerquem o
perímetro e usem seus Sopros Relâmpagos para conter qualquer
insurgente que sair da tempestade de Ninhursag. E vocês, aprendizes
– ela apontou para os outros na forma Varanus – Fiquem aqui e
protejam o Palácio. Vamos! – ela Soprou o Sopro de Rapina e desapa-
receu.
Nos céus, ainda que o Sol estivesse nascendo, um segundo
Sol, diversas vezes maior, acendeu seu brilho e calor intensos. Era
muito difícil para nós manter nossos olhos abertos e as chamas que
emanavam dele, pareciam que, mesmo àquela altura, começavam a
queimar nossas microescamas. Certamente os insurgentes Imanes
que voavam, não teriam outra opção a não ser pousar.
– Quanto poder – comentei.
– O Sopro Solar da Yae é talvez o Sopro mais poderoso do
Elemento Fogo – disse Lihuá.
E realmente era e, mais que isso, continuaria sendo para sem-
pre.
De súbito uma tempestade de areia cortou as ruas e corredores
entre as diversas casas da cidade que cercava o Palácio de Djet. As
minúsculas partículas de areia nos acertavam com tanta força que,
mesmo que quiséssemos, mal podíamos abrir os olhos ou respirar.
Assim, Lihuá e eu corremos para fora da tempestade no intuito de
esperar os insurgentes saírem, para atacá-los.
Senti um poder incrível se elevar no meio daquela poeira e,
mesmo que não pudéssemos ver direito, parecia que diversos Sopros
Relâmpagos eram desferidos em diversos locais, uns longes dos ou-
tros, como se fosse uma guerra de Drakkars Azuis.
– Quantos Sopros Relâmpagos! – disse admirada.
– O Sopro dos Mil Raios da Mawu... – riu Lihuá – Não é a toa
que ela é a Drakkar mais poderosa de todos. E, você, como atual
aprendiz dela, tem muito que absorver – ela tocou no meu ombro –
E tenho certeza de que, depois dela, você será a Drakkar mais pode-
rosa do mundo.
Modéstia a parte, depois da Trovão Abenuz, eu seria. Não do
mundo, mas para quase todo o sempre. Até ser superada, mesmo
que por uns instantes, por alguém muito especial para mim.
– Lá! – Lihuá apontou para um dos insurgentes que deixava a
tempestade de areia.
Soprei o Sopro de Rapina e corri até ele, executando o Sopro Re-
lâmpago em seguida. Porém, rapidamente o insurgente usou o Sopro
Tectônico e levantou uma enorme parede de pedra entre meu Sopro e
ele, protegendo-se do impacto.
Sem parar de correr, Soprei o Sopro de Potência e saltei sobre a
parede e, ainda no ar, preparei-me para desferir, diretamente em seu
peito, o Sopro Relâmpago mais uma vez. Porém, detive-me no último
instante, caindo ao lado daquele pobre coitado.
Seus olhos, trêmulos, visíveis por entre seus dedos espalmados
que tentavam cobrir seu rosto, demonstravam um completo medo e
terror. Aquele insurgente estava em choque.
No meio da tempestade, os sons do Sopro dos Mil Raios da Tro-
vão Abenuz ecoavam em conjunto com os tremores dos Sopros de
Terra, as labaredas dos Sopros de Fogo e os gritos de desesperos que
ouvíamos. Era um massacre. Aquele pequeno exército estava sendo
devorado por apenas quatro Drakkars. Algo não estava certo.
Olhando aquele jovem insurgente nos olhos, percebi que, ti-
rando aqueles poucos Drakkars que sobrevoavam na forma Imane, o
resto do exército era composto por Drakkars despreparados, ingê-
nuos, sem nenhum conhecimento do próprio Sangue Draconiano.
Eram descartáveis. Eram crianças que recém haviam despertado seus
Elementos e aprendido alguns poucos Sopros.
– Vá embora – disse.
Ele, sem perder tempo, saiu tropeçando nos próprios pés, em
direção ao deserto.
Vire-me para a cidade coberta em tempestade e, no meu ínti-
mo, sabia que aquele genocídio precisava parar.
– Não! – ouvi o grito do jovem insurgente que fugia.
Olhei rapidamente para o lado de onde estava e vi que Lihuá
tinha terminado o trabalho.
– Por que você o deixou escapar? – ela veio confusa.
Ela não sabia. Talvez nenhum deles tivesse percebido que e-
ram apenas crianças. Eu realmente precisava parar aquilo.
Virei-me novamente para a cidade. Eu tinha que, de alguma
forma, proteger todos os insurgentes, mas de modo que eles tam-
bém não pudessem atacar.
– Se, pelo menos, eu pudesse usar o nível de Mover Essência, da
Palma Servil... em todos eles... – murmurei para mim mesma, pensa-
tiva – Mas para isso eu teria que estar diversos lugares ao mesmo
tempo... e ser uma Protetora.
Como eu faria aquilo?
Fechei meus olhos e busquei na Sela a resposta. Precisava ver
as opções que me levassem até aquele desfecho. O que a QingLong
de amanhã tinha feito para resolver o problema daquele momento?
As memórias futuras começaram a vir aos montes. Eram mi-
lhões de ações e reações, de causas e efeitos e, todas elas, pareciam
que terminavam com o massacre sendo finalizado, sem sobrar ne-
nhum daqueles insurgentes. Diversas vidas eram tiradas e eu nada
podia fazer.
Continuei até minha mente cair em uma escuridão, sem me-
mória, sem causas... só o silêncio.
Precisava haver resposta. Não me daria por vencida.
– Vovó... – ouvi minha voz ainda criança, enquanto treinavam
com minha vovó Wu Mei, aprendendo a Palma Servil – Se eu já sou
filha de um Drakkar, eu não possuo a Essência Draconiana?
Então ela novamente me explicou que, enquanto eu ainda não
tinha desenvolvido Elemento, eu possuía Essência Primordial hu-
mana e poderia usar a Transmutação para controlar a Essência Dra-
coniana. Aquele era o grande segredo dos Protetores e seu maior
poder.
Se eu tivesse tomado outro caminho e fosse uma Protetora,
poderia parar um Drakkar com uma mão, mas mesmo assim, não
poderia parar todos eles. Para isso, eu teria que estar em todos os
lugares ao mesmo tempo e aquilo era algo fora da realidade.
– Fora da realidade... – resmunguei.
Busquei a Sela mais uma vez, querendo ver todos os momen-
tos de minha vida que pudesse. Passado e Futuro. Havia algo mais?
Outras opções? Se eu conseguia ver diversas ações que tinham causa
e efeito, e eu podia escolher um caminho à minha vontade, o que
acontecia com os outros caminhos? Aqueles que eu não havia toma-
do?
Deixei aqueles pensamentos permearem minha mente e então
busquei ver as opções que não havia percorrido. Vi-me casada com
Yu, com meus filhos correndo pelo pé do Monte Song. Vi também
como seria se eu tivesse ficado na aldeia, com minha família, sem
meu pai ir embora e, realmente, seríamos muito felizes. Vi também
eu me tornando uma Protetora com todas as honras e dando orgu-
lho à minha vovó.
– É aí... – foquei naquele resultado de Protetora.
Aquela vida que eu não tinha vivido. Seguindo pelo caminho
do Protetorado, de longos cabelos brancos e olhos azuis; parecia tão
real que eu sentia como se estivesse vivendo aquele momento. Co-
nectada a ele de alguma forma. Senti que podia trazer, mesmo que
temporariamente, aquele efeito sem a causa, para a minha realidade.
Porém aquilo demandaria muito poder e, eu, bem... eu sabia o que
fazer.
Soltei meus braços ao longo do corpo, com as mãos espalma-
das. Respirei fundo e lentamente, com minha mente em total con-
centração, realizei os movimentos da Palma Cíclica.
Seria a primeira vez que tentaria algo daquela magnitude e, se
desse certo, aquilo abriria um universo muito grande para mim. Pois,
além de conseguir unir aquelas duas realidades temporariamente,
para que eu pudesse usar o meu poder de Protetora de outra vida, eu
também estaria fora dos limites físicos do Universo, podendo estar
em todos aqueles lugares ao mesmo tempo.
Assim que terminei o giro dos pulsos sobre minha cabeça e
toquei os dorsos das mãos novamente, um som de badalar poderoso
ecoou e todo o firmamento e seus astros e estrelas se estenderam
dos meus pés até cobrir tudo o que eu podia ver. E, meu corpo, co-
mo um borrão, parecia verter uma luz azul esverdeada que nunca
tinha visto.
Dei meu primeiro passo em direção à tempestade de areia e
senti que um lastro de energia ficava para trás. Senti também que
não estava mais presa ao solo e que podia voar com um pensamento
e, assim, segui até a cidadela, adentrando àquela poeira como se não
fosse nada.
Dentro daquela violenta batalha, percebi que os Drakkars in-
surgentes já não atacavam e apenas tentavam salvar suas vidas dos
ataques da Trovão Abenuz que se movimentava como se houvessem
várias cópias dela, disparando seus Sopros Relâmpagos aos milhares, e
dos ataques de Djet, que, como um dragão, dilacerava os corpos
daqueles inimigos. Yae, ainda no ar, mantinha seu Sopro Solar, en-
quanto Ninhursag segurava o Sopro Tornando naquela tempestade
brutal.
Voei por entre eles todos e vi que me olhavam com espanto e
incredulidade.
– Parem com isso – disse, pousando no meio da cidade e le-
vantando minhas mãos.
Naquele mesmo instante senti que podia tocar a Essência
Draconiana de todos eles, como sempre fizera em minha outra vida,
porém como se estivesse em frente a cada um deles. Era simples. Eu
estava conectada com aquela outra versão e, naquele momento, eu
era parte dela, aliás, era parte do Todo.
Usei o terceiro nível da Palma Servil como uma Protetora ple-
na, chamado de Mover Essência, e fiz com que todos eles parassem de
se mover ou usar seus Sopros. Pus todos de joelhos. Todos. Inclusive
Yae, que eu trouxe dos céus, e Djet, que fiz regressar à forma Drak-
kar. Mesmo a poderosa Trovão Abenuz não pode evitar ser contida
por mim. Naquele momento eu estava além de tudo o que eles, ou
mesmo eu, podia imaginar.
Assim que a areia se assentou, todos me olhavam desespera-
dos.
– Parem com isso – repeti – Isso é um massacre. Esses Drak-
kars não fazem ideia do que estão fazendo. Estão aqui cumprindo
ordens... não.. cumprindo o desejo de um mestre sanguinário que
não se importa com suas vidas. São descartáveis. Vejam! – movi
meus braços para mostrar todos – São apenas crianças que recém
desenvolveram Elemento e estão sendo usados.
Eu me virei para aqueles insurgentes e disse:
– Eu vou liberá-los para que voltem para casa... Mas aviso a
todos vocês: abandonem essa causa injusta e vivam uma vida simples
e feliz. Porque eu prometo a vocês que se nos cruzarmos novamente
no campo de batalha, eu mesma não pouparei nenhum de vocês.
Disse aquilo para impor algum medo neles, pare que, realmen-
te, com todas as esperanças, deixassem aquela vida de violência.
– Vão! – libertei seus corpos.
Eles, aterrorizados, levantaram-se e saíram, às centenas, dispa-
rados em direção ao deserto.

Aguardei alguns minutos e então desfiz a Palma Cíclica e liber-


tei meus companheiros para que pudessem se aproximar e, claro,
esbravejar toda a sua indignação.
Assim, os Mestres Drakkars e seus aprendizes foram vindo,
lentamente, sem entender direito o que havia acontecido; e, no rosto
da Trovão Abenuz, eu vi um medo que, de certa forma, doeu no
meu íntimo. Não queria que temessem a mim, de nenhuma forma.
– O que foi isso, Long’er? – a Mestra Lihuá terminou de se a-
proximar, correndo, vindo de fora da cidade onde eu a havia deixa-
do.
– Que poder terrível – disse a Trovão Abenuz – É esse poder
que você aprendeu com a Rainha?
Concordei com a cabeça.
– Aquilo não era a forma Imane... – disse Djet – Você virou
uma serpente... um dragão serpente.. não sei o que era; mas era lin-
do... – encerrou admirado.
– Um dragão de luz azul esverdeado... – sorriu Ninhursag,
quebrando aquele clima pesado – Parecia mesmo um dragão serpen-
te... de pura energia.
– Com esse poder podemos derrotar os insurgentes faci... –
disse Lihuá antes que eu a interrompesse.
Senti uma dor aguda no peito e caí de joelhos, golfando um
sangue escuro. Aquela habilidade cobrava demais de mim.
– Era o que eu estava esperando... – disse a Trovão Abenuz se
abaixando e me ajudando a levantar.
– O que houve? – Lihuá perguntou desesperada.
– Esse poder que QingLong aprendeu – disse a Trovão Abe-
nuz – precisa de um corpo especial para aguentá-lo. Corpo que ela
ainda não tem. Se usar isso de novo, certamente morrerá.
Ela falava do Corpo Solar. Sem dúvida a Rainha já havia expli-
cado para minha Mestra Drakkar como funcionava.
– Eu posso aguentar... – disse, tentando manter a confiança.
– Não hoje – disse a Trovão Abenuz – Vamos para dentro do
Palácio. Há muito que fazer e Djet precisa ajudar seu povo.

Assim nós regressamos aos aposentos do Palácio de Djet e


descansamos um pouco.
Estava claro que ali não era mais seguro para nós e precisáva-
mos partir logo em busca das Armas de Marduk, já que aquele poder
que eu havia experimentado era incrível, mas morrer usando-o tam-
bém não fazia sentido.
—————|XV|—————

O INÍCIO DA BUSCA

ataque ao Palácio de Djet por aqueles insurgentes inician-


tes tinha deixado claro de que, além de saberem onde
estávamos, também estavam planejando alguma coisa.
Quem sabe nos testando? Esse era o motivo de terem enviado
Drakkars tão fracos com apenas três ou quatro que realmente podi-
am assumir a forma Imane? E, uma das grandes perguntas era: por
que nenhum daqueles Imanes assumiu uma forma de Grandeza?
Aquilo tudo era muito estranho.
– Todos prontos? – perguntou a Trovão Abenuz antes de par-
tirmos em direção à terra natal de Yae.
– Esperem! – ouvimos a voz de alguém que corria ofegante
em nossa direção.
Era Meresamun; e ela vestia uma roupa de longos tecidos
brancos, como se fosse viajar pelo deserto.
– Eu vou com vocês – ela disse.
– Você não pode vir junto – respondeu a Trovão Abenuz.
– Ordens da Rainha – ela retrucou.
A Trovão Abenuz me olhou, parecia esperar que eu dissesse
alguma coisa. Talvez por eu também ser uma das suas Leoas eu ti-
vesse alguma influência sobre as ordens da Rainha Leonesa, mas o
fato era que não tinha.
– Por mim, tudo bem – dei de ombros.
Meresamun soltou um sorriso.
– Então vamos logo – a Trovão Abenuz seguiu em direção
aos cavalos de nossa recém montada caravana.

Partimos das Terras Negras de Djet e seguimos para o deserto


em direção ao Leste. A viagem seria longa, mas praticaríamos a Con-
templação e o Reflexo durante todo o caminho. Qualquer tempo
livre seria direcionado ao treinamento e desenvolvimento das Man-
sões Lunares. Precisávamos ser os Drakkars mais poderosos do
mundo para enfrentar os insurgentes e acabar com aquela insurrei-
ção contra a ordem e a paz que duravam séculos.
– Sabe... – Meresamun cochichou no meu ouvido perto do fim
do primeiro dia de viagem – Eu menti – ela riu.
– Como assim? – indaguei assustada.
– A Rainha não sabe que eu vim junto... – ela riu novamente.
Aquilo não podia ser verdade. A Rainha Leonesa ficaria muito
brava com Meresamun por fazer algo daquela magnitude sem sua
permissão.
– Ela vai matar você – disse, repreendendo-a.
– Não vai... – Meresamun desdenhou – E ela vai me perdoar
quando descobrir que eu consegui fazer você desenvolver seu Corpo
Solar plenamente.
Meresamun sabia como trabalhar o Corpo Solar? Aquilo era
interessante. Era verdade que as Leoas também deveriam desenvol-
ver seus Corpos Solares, uma vez que uma delas herdaria a coroa da
Rainha e se tornaria a próxima Leonesa e, com isso, obrigatoriamen-
te precisava ter poder para aprender o nível final do Rugido de Sekhem,
chamado “Olho de Rá”.
– Long’er... – chamou-me Benke, fazendo sinal para que eu
me aproximasse de seu cavalo.
– O que foi? – perguntei chegando perto.
– Essa sua amiga é linda – ele disse – Será que ela se interessa
por homens do extremo norte? – ele riu.
Meresamun era realmente estonteante. Sua cor era como a de
uma peça de seda dourado escuro que brilhava com o Sol do deser-
to. Seus cabelos negros, trançados até a cintura, tinham um tom re-
luzente como a água refletindo a luz da Lua em uma noite escura.
Seus olhos, como duas azeitonas maduras, eram pintados ao redor
com uma tinta tão preta quanto eles, destacando-os como os olhos
da exímia guerreira que era.
– Deixe de bobagem, Benke! – berrou Alethea se aproximan-
do de nós – Estamos quase em guerra e você fica pensando nessas
tolices?
Senti no mesmo momento o ciúme de Alethea em relação à
Benke e Meresamun.
– Fique tranquila... – eu ri – Tenho para mim que Meresamun
não está de olho em Benke.
– Em Bandhu? – ele inquiriu confuso.
– Não... – disse – Esqueça isso. Foque em Alethea – brinquei,
deixando ambos vermelhos.

Durante nossa viagem, que tomaria muitos dias, nós todos nos
dedicamos à Contemplação. Eu a fazia duas vezes ao dia, como a-
prendera com minha vovó Wu Mei. Uma ao amanhecer e outra ao
anoitecer. Era o melhor momento para Cultivar Essência Primordial
que, no nosso caso, como Drakkars, seria integrada à nossa Essência
Draconiana, fortalecendo-a e se acumulando.
No caminho, com muito tempo para pensar, refletindo, che-
guei à conclusão de que, se não fosse por GongSun e Xuannü, eu
jamais poderia acessar a Primeira Mansão; pois mesmo para a Tro-
vão Abenuz havia sido muito difícil dominar aquele poder. Ensinar a
outros era um trabalho impraticável. Porém, com o conhecimento
que obtive, desde minha vovó Wu Mei até a Leonesa, em conjunto
com a Sela da Eternidade, foi possível desenvolver um treinamento
que possibilitou a todos ali chegar mais rápido à Primeira Mansão
Lunar, mesmo que a maioria dos aprendizes ainda não tivesse con-
seguido. Felizmente os Cavaleiros da Ordem da Garra do Dragão, e
eu, já éramos Drakkars de Primeira Grandeza. E, se eu já era uma
Drakkar acima da média, aquilo tudo era resultado e mérito de todos
que haviam me ajudado a chegar até ali.
Antes do por do Sol, nós parávamos a caravana e montávamos
acampamento, passando a treinar nossos Sopros e sincronismo com
o Sangue Draconiano. Só depois de muito treino é que encerráva-
mos as atividades e nos recolhíamos para comer e dormir. E, depois
da madrugada, logo antes de amanhecer, Meresamun me acordava e
me levava para longe, para me ajudar no desenvolvimento do Corpo
Solar e no Cultivo do Sekhem.
– Quando o Sol se levanta – dizia Meresamun todos os dias –
E sua luz reflete nos seus olhos negros e rasgados... eu fico encanta-
da e, a cada dia, apaixono-me mais por essa beleza indescritível que é
você, Long’er...
Naquela altura ela já havia adotado o tratamento carinhoso
que vinha de Lihuá e meus amigos. E, eu, claro, sempre morria de
vergonha.
Pela manhã, bem cedo, depois do café, levantávamos acam-
pamento e seguíamos com a caravana. Aquela rotina já era um hábi-
to e nem sequer questionávamos mais aqueles modos. Éramos nô-
mades. Aliás, eu já o era há muito tempo, desde que fora aprender
com GongSun, então não sentia tanta mudança na minha forma de
viver, naquela altura.
Depois de algum tempo, eu não tendo mais Sopros para a-
prender, comecei a ocupar o espaço daquele treinamento específico
com outra coisa. Como havia aprendido a técnica da “Fúria de San-
gue” do Rugido de Sekhem, que usava o Reflexo para atingir pontos
vitais do inimigo com as Garras de Sekhmet, pensei em desenvolver
uma habilidade voltada para qualquer um dos que ali estavam. Uma
técnica que não precisasse das Garras de Sekhmet, exclusivas das
Leoas da Ordem de Sekhem.
Assim, sem as Garras de Sekhmet, não haveria formas de cor-
tar as microescamas dos outros Drakkars para atingir seus pontos
letais físicos; mas então me ocorreu algo realmente inovador para a
época. Xuannü havia me ensinado com a Shurdu que, dentro dos
Drakkars, havia onze pontos importantes, por onde fluía a Essência
Draconiana: os Onze Pontos Sincrônicos do Fluxo. A Shurdu possu-
ía os cinco níveis originais da Palma Servil dos Protetores e, o quinto
nível, chamado de “Palma Divina do Servo”, rompia os Pontos Sincrô-
nicos, destruindo o corpo de dentro para fora instantaneamente.
Ora, era claro que não seria possível romper os Pontos Sincrônicos
com as mãos nuas, mas era possível, como tínhamos aprendido com
o “Punho do Rei”, a arte de combate corpo a corpo ensinada no Palá-
cio dos Protetores, impor certa pressão no impacto de forma sufici-
ente para paralisar pontos específicos por uns momentos.
Então, unindo o conhecimento dos Pontos Sincrônicos, o
“Punho do Rei” e o uso do Reflexo aprendido na “Fúria de Sangue”,
desenvolvi uma técnica de combate corpo a corpo especial para ser
usada exclusivamente por Drakkars, e contra Drakkars. Essa técnica
comprimiria seus pontos de pressão por onde se movia a Essência
Draconiana e, assim, impediria a eles de Soprar por alguns instantes.
Séculos depois eu aprimoraria essa habilidade, criando o Caminho da
Garra Óctupla. Porém, naquele momento, aquela habilidade era a
base que eu precisava para transformar meus companheiros em mes-
tres invencíveis do combate corpo a corpo Drakkar.

– Long’er! Venha ver o que fiz! – ouvi os gritos de Bandhu um


dia, do lado de fora de minha tenda, a qual dividia com Meresamun.
– Deve ser aquela coisa de Sopro Cristal que ele vem tentando
criar... – disse Meresamun rindo.
– Talvez tenha finalmente conseguido – disse orgulhosa en-
quanto saía.
Bandhu vinha, durante muitos dias, tentando criar um Sopro
que, diferente da aceleração das partículas que geravam os nossos
relâmpagos, desacelerava-as, fazendo com que o espaço ficasse frio.
Porém, até aquele dia, ele não havia tido sucesso; mas isso não lhe
impedia de já ter um nome pronto para o Sopro: Sopro Cristal.
– Long’er! Long’er! – ele ria, mostrando-me a água congelada.
– Isso é incrível, Bandhu... – eu disse admirada.
Ele parecia ter finalmente criado algo próximo do que queria.
– Tenho certeza de que vi os cristais de gelo se formando an-
tes de congelar a água... – ele ria sozinho.
– E como fez? – perguntei curiosa.
– Agora é simples – ele gargalhou – É uma mistura do Sopro
de Neblina, que aumenta a umidade no ar ao máximo, combinado
com uma forma reversa do Sopro Relâmpago. Isso deixa o ar gelado
e, com a umidade, formam-se os cristais de gelo. Então eu posso
direcionar o aumento do frio para um ponto específico, congelando
ele completamente.
Não era sempre que um novo Sopro nascia. Sopros não são
realmente criados, são entendidos. Eles estão no subconsciente dos
Drakkars, mas é necessário decifrá-los. Bandhu havia feito isso e
trazia uma contribuição maravilhosa ao nosso repertório de Sopros e
à nossa história.
Durante o resto daquele dia nós, Drakkars Azuis, praticamos o
novo Sopro Cristal de Bandhu até que todos conseguissem congelar a
água completamente. Um espetáculo de flocos de neve tomou conta
dos céus e da terra na região onde nos encontrávamos, à beira do
mar, logo antes da terra natal de Yae. Aquelas águas eram conheci-
das entre o povo Han como Jing Hai, ou o Mar da Baleia.
E, assim, haviam se passado muitos dias desde nossa partida
das Terras Negras de Djet. Muito havíamos aprendido e desenvolvi-
do naquele caminho e, muito mais fortes nossos laços haviam se
tornado. Éramos uma grande família, certamente.
– E como vamos atravessar isso? – perguntou Alethea – Não
temos nenhuma embarcação. Se pelo menos tivéssemos um triere,
poderíamos remar até o outro lado.
– A resposta é muito simples – riu Lihuá tomando a frente –
Subam! – ela assumiu a forma Imane.
Voaríamos pelo mar até as ilhas.
– Djet, você pega a caravana? – perguntou a Trovão Abenuz,
assumindo também a forma Imane.
– Mas e os cavalos? – ele perguntou confuso.
– Eu os levo com Sopro de Controle – disse Ninhursag assu-
mindo sua forma Imane.
Todos os aprendizes subiram nas costas de seus Mestres em
forma Imane, com exceção minha, que deixei meu lugar nas costas
da Trovão Abenuz para os pupilos de Djet, e Meresamun, que me
ficou de companhia.
– A Mestra logo busca vocês! – gritou Benke nas costas de Li-
huá conforme ela alçava voo.
Então todos voaram até o outro lado enquanto Djet carregava
em suas poderosas garras Imanes as nossas coisas, deixando somen-
te os cavalos, que foram suspensos no ar pelo Sopro de Controle de
Ninhursag e levados com ela.
Nós ali, vendo-os partir, não precisávamos que Lihuá nos bus-
casse. De fato, nós tínhamos diversas formas de atravessar aquele
Mar; porém uma mais divertida me chamava a atenção naquele ins-
tante.
– Vamos... – eu disse sendo prontamente interrompida.
– Correr? – Meresamun pareceu ler minha mente – Vai usar o
“Vento do Deserto”?
– Sopro de Rapina... – respondi rindo.
– Vai perder... – ela disse irônica.
– Dessa vez eu vou ganhar – disse.
– Se você ganhar... – Meresamun ficou pensativa – Eu paro de
deixar você desconfortável... – ela riu.
– E se eu perder? – arrisquei.
– Você me dá um beijo – ela disse de supetão, tomando sua
posição para correr.
Fiquei nervosa no mesmo instante, mas não perderia. Usar o
Sopro de Rapina na forma de Primeira Grandeza me faria superar infi-
nitamente o “Vento do Deserto” do Rugido de Sekhem.
– Combinado – disse confiante.
Ela apenas deu um sorriso.
– No três... – eu disse.
– Um – ela iniciou.
– Dois... – continuei.
– Três! – gritamos juntas, disparando.
A velocidade inacreditável com a qual corríamos não apenas
nos mantinha sobre a superfície das águas, como as abria ao meio de
forma violenta.
Por algum tempo, ela e eu estivemos, uma ao lado da outra;
mas, como eu precisava ganhar, assumi a forma de Primeira Gran-
deza e isso fez com que o Sopro de Rapina elevasse seu poder enor-
memente. Assim eu a deixei para trás e, mais que isso, passei por
nossos Mestres Drakkars que voavam em direção às ilhas.
Ela podia até ficar indignada e me chamar de trapaceira, mas
não perderia aquela corrida de jeito nenh...
– O que foi isso? – exclamei sentindo uma explosão de energia
atrás de mim e uma enorme onda de ar e água que pareciam me pu-
xar para trás.
As águas se partiram profundamente e um relâmpago de ener-
gia passou por mim em direção à terra firme.
Ainda levei alguns minutos naquela velocidade absurda para
chegar à ilha só para ver, sentada enquanto me esperava, Meresa-
mun, com um sorriso malicioso nos lábios. Com aquilo fora possí-
vel?
– Isso não pode... – cobrei indignada ao chegar até ela – Você
trapaceou! – disse.
– Você usou sua habilidade das Mansões Lunares... – ela gar-
galhou – E eu dei tudo o que tinha... mas não usei nenhum poder
além do Sekhem... Aliás... – ela olhou para baixo, como se disfarças-
se – usei todo ele... – ficou catando sujeita na roupa, desviando a
atenção.
– Como assim “todo ele”? – inquiri.
– Todo o Sekhem acumulado... – ela riu – Explodi tudo! Pre-
ciso recomeçar a Cultivar do zero.
Fiquei boquiaberta com aquilo.
– Você enlouqueceu, Meresamun? – briguei com ela.
Aquilo era loucura. Quantos anos ela havia Cultivado seu Se-
khem para desenvolver seu Corpo Solar, para um dia talvez herdar a
coroa da Leonesa? E, gastar todo aquele poder em uma corrida?
Aquilo era...
– Sua irresponsável! – xinguei novamente – Você destruiu a-
nos de Cultivo por uma corrida?
Ela, de supetão, levantou-se e se aproximou de mim, parando
seu rosto perto do meu.
– Não – ela disse, séria – Por seu beijo...
Ela rapidamente olhou para o chão e então vi que seus olhos
marejaram completamente.
– Eu... – disse, colocando seu cabelo, bagunçado pelo vento,
para trás de sua orelha – Desculpe-me...
– Eu estou... – ela pegou minha mão antes que eu tirasse do
seu rosto – perdidamente apaixonada por você, Long’er...
Meu coração gelou. Ou foi meu estomago? Nunca havia senti-
do aquilo antes. Nem com o pedido de casamento de Yu, quando
éramos pequenos.
– Meresamun... – tirei rapidamente minha mão de seu rosto –
Eu não sei o que dizer...
Estava realmente em choque, sem palavras.
– Não diga nada... – ela suspirou enquanto sentíamos o vento
do bater de asas dos Mestres que chegavam.
– Meresamun! – berrou Benke vindo em nossa direção, cor-
rendo – Você é incrível. O que foi aquilo? Quanto poder!
– Bem vindos à minha terra – disse Yae seguindo em frente –
Vamos por aqui! – ela apontou a direção.
Assim, em silêncio, retomamos nossa caravana até o outro la-
do da grande ilha, para repetirmos nossa travessia em direção ao
local que vira em meu sonho. E, durante todo aquele segundo per-
curso, Meresamun não me dirigiu a palavra e, eu, respeitando sua
vontade, não puxei conversa.
Em minha defesa, não sabia como me comportar com aquilo.
Aquela liberdade não me fora dada e, por mais que meu coração
disparasse cada vez que ela se aproximava de mim, não podia retri-
buir. Não fazia a mínima ideia nem por onde começar. Mas já come-
çava a admitir que o bem que a sua presença me fazia, ia além do
carinho de amiga e irmã Leoa que tinha por ela.
—————|XVI|—————

AS CINCO ARMAS LENDÁRIAS

epois de atravessarmos até as pequenas ilhas com as mon-


tanhas de fogo com as quais eu havia sonhado, nós nos
deparamos com um oceano infinito, cujo horizonte era
repleto de água de um lado ao outro.
Havíamos, naquele meio tempo, passado na vila onde Yae ti-
nha nascido e crescido, e vimos como ela e outros dois Drakkars
provenientes de lá, eram adorados quase como deuses locais. Os
aldeões os chamavam de “As três crianças preciosas”. Eles até mes-
mo haviam dado nomes sagrados para os três; Ali, Yae era chamada
de “Aquela que brilha no Céu”. Ou, em sua língua natal: Amaterasu.
– Tudo bem... – disse Ninhursag – Onde... – ela abanou a mão
mostrando a imensidão das águas – está o Escudo Garra?
– Naquela região – apontei para um espaço naquele oceano
imenso, tal como me lembrava do sonho – Mas é realmente muito
profundo.
– Descer lá não será problema – disse a Trovão Abenuz – O
problema é respirar. Se é muito profundo, talvez não consiga manter
a respiração presa tempo suficiente...
– Mawu... – Ninhursag levantou as mãos como se achasse a-
quela afirmação descabida – Eu posso criar um bolsão de ar e levar
todos nós lá embaixo... – encerrou fazendo parecer simples.
Todos se olharam embasbacados. Como não tinham pensado
naquilo antes? Era claro que Ninhursag poderia fazer aquilo facil-
mente.
– Então não vamos perder tempo! – disse Djet.
Assim Ninhursag Soprou o Sopro da Parede de Ar, que fazia
com que o ar circulasse ao nosso redor tão rapidamente que criava
uma espécie de escudo, impedindo que qualquer coisa o transpuses-
se, inclusive a água. Dessa forma ela criou um bolsão de ar e nos
levou ao fundo daquele abismo oceânico.
Conforme imergíamos rapidamente, a luz do Sol nos abando-
nava na mesma velocidade, deixando-nos cada vez mais na completa
escuridão. Yae não podia usar nenhum Sopro de Fogo e nem nós de
Água para iluminar, pois qualquer coisa que queimasse dentro da-
quele bolsão poderia consumir o ar que nos era escasso.
– Já ouviram a lenda do monstro que dorme no local mais
profundo das águas? – disse Benke.
– Você fala de Ketos? – perguntou Alethea – Ao qual a prin-
cesa Andromeda foi dada como sacrifício?
– Não – riu Benke – O nome dele é Kraken. Ele tem o tama-
nho de uma ilha e cem tentáculos! – disse extasiado.
– Isso não existe, não é Benke? – indagou Bandhu com certo
medo.
– Parem de dizer bobagens – disse Lihuá – Essas coisas não
existem.
– Quando eu era pequena... – disse a Trovão Abenuz – Meu
pai me contava sobre um povo insulano estranho, que vivia no ex-
tremo leste. Ele dizia que eles adoravam uma divindade gigantesca,
maior que os Lordes Dragões, que habitava as profundezas mais
escuras das águas...
– Nós estamos no extremo Leste... – resmungou Bandhu – E,
estamos perto de ilhas... – comentou trêmulo – E estamos indo para
o local mais profundo...
– Tenha calma, Bandhu – eu disse – Nós podemos cortar as
águas, invocar relâmpagos, congelar o ar... Acha mesmo que não
daríamos conta de qualquer monstro marinho que nos aparecesse?
– Long’er tem razão – disse Lihuá, acalmando seu pupilo.
– Mas agora que Mawu comentou... – disse Djet – Há uma
lenda antiga na minha terra...
Percebi no mesmo instante que Bandhu soltou um pequeno
grunhido de medo.
Todos rimos.
– Pare, Djet... – riu Lihuá.
– É verdade... – ele continuou – Para nós o nome é Reheb.
Alguns povos vizinhos chamam de Lotan, outros de Livayatan... A
lenda diz que ele vive nas profundezas mais escuras dos oceanos e
que é, realmente, gigantesco como uma montanha, largo como uma
ilha, e possui milhares de tentáculos e asas de morcego.
– Eu conheço essa lenda – disse Ninhursag – Alguns de meus
ancestrais, os cabeças negras, que viviam nas margens das terras de
Kengir, adoravam essa deidade e oravam a ela gritando “Io! Io! Cathu!”
Mas essa história fica para outro momento. Acabamos de chegar –
terminou ela enquanto tocávamos nossos pés no fundo rochoso do
oceano.
– Se pudéssemos ver alguma coisa... – disse Djet.
A escuridão era tamanha que, mesmo juntos, quase colados,
não conseguíamos ver uns aos outros. E eu tinha certeza de que
Ninhursag só conseguia manter o Sopro da Parede de Ar corretamente
ao nosso redor porque sabia que estávamos todos amontoados ao
seu lado.
Fechei meus olhos e me concentrei na Sela. Precisava saber
qual caminho tomar a fim de encontrar a Arma de Marduk que esta-
va ali.
Busquei minhas memórias futuras e, logo, algumas visões co-
meçaram a aparecer. Sentia como se fosse um instinto, puxando-me
para uma direção. Poderia ser bobagem, mas não havia opção, de
qualquer forma.
– Deem as mãos... – eu disse, pegando a primeira mão que en-
contrei na escuridão.
Aquela mão que toquei era quente, e seu aperto, ainda que
macio, parecia pressionar minha pele como se quisesse sentir melhor
meu toque.
Respirei fundo e dei o primeiro passo na direção que me pu-
xava, e todos me acompanharam, inclusive Ninhursag, que levava o
Sopro ativo junto a nós.
– Você sabe para onde está indo, Long’er? – ouvi a voz de Li-
huá.
– Sim... – disse confiante.
Andamos por alguns minutos, tropeçando e batendo os pés
nas enormes pedras que se levantavam na nossa frente até que che-
gamos no que parecia ser uma escada esculpida em uma enorme
rocha.
Subimos aqueles degraus rochosos e, tateando cegamente, a-
dentramos no que parecia ser uma construção também esculpida na
mesma pedra.
– O que é aquilo? – um dos alunos dos outros Mestres apon-
tou para uma pequena luz azul longe de nós.
Assim que demos mais um passo para frente, uma infinidade
de animais aquáticos, parecidos com cavalos-marinhos, iluminou-se
com uma luz azul e começou a se mover dentro daquele lugar. Era
como as histórias do brilho das milhares de almas que vagavam pelas
florestas escuras ao sul do rio Amarelo.
– Que lindo... – ouvi a voz de Meresamun quando todo o local
ficou iluminado com aquela luz azulada fantasmagórica.
Percebi, no mesmo instante, que segurava sua mão.
Nós nos olhamos por um segundo, mas pude ver em seus o-
lhos que ainda não havia me perdoado por não corresponder ao seu
carinho.
– Vamos procurar a Arma de Marduk – a Trovão Abenuz se-
guiu em frente ao tempo em que Meresamun soltou minha mão
rapidamente.
O lugar era como um templo de pedra escavado em uma mon-
tanha. E tudo aquilo nas profundezas mais abismais do oceano. Os
Protetores realmente não queriam que os Lordes recuperassem suas
Armas de Marduk. Se é que haviam sido eles que esculpiram aquilo.
Continuamos em frente até nos aproximarmos de uma peque-
na entrada onde, do outro lado, parecia haver uma sala e, em seu
centro, um altar de rochas.
– É aquilo? – Ninhursag apontou para a peça que estava sobre
o altar.
Sobre a pedra estava disposto um objeto na forma de um
grande escudo dourado com uma garra e, cruzadas sobre ele, duas
adagas esverdeadas.
Enquanto os aprendizes ficaram para fora da sala, os Mestres,
Meresamun e eu entramos e nos ajeitamos ao redor daqueles obje-
tos.
– Ah, eu quero ver! – disse Benke entrando junto, sendo pron-
tamente acompanhado por Bandhu, Alethea e mais dois aprendizes.
O local ficou cheio.
– Por que trouxemos todo mundo? – Djet perguntou repreen-
dendo aquela bagunça.
– Não sabíamos o que íamos encontrar aqui... – disse a Trovão
Abenuz.
– Pois bem... – disse Djet levando a mão até o Escudo Garra –
Vamos logo embora.
Assim que ele removeu a peça do altar ouvimos um leve baru-
lho de pedra se movendo no interior dele.
De súbito, e violentamente, a porta daquele cômodo se fe-
chou, esmagando os outros dois aprendizes que estavam sob ela.
– Não! – berrou Ninhursag a plenos pulmões.
Eram seus pupilos.
Por pouco meus amigos não tiveram o mesmo destino.
Logo toda a sala começou a tremer e os seus pedaços passa-
ram a cair aos montes. Tudo estava desmoronando. Os outros a-
prendizes que haviam ficado para fora daquele aposento certamente
estavam sem ar, presos sob o peso incalculável da água. Já estavam
mortos.
– Era uma armadilha! – disse Djet tomado pelo ódio.
Ninhursag, aos prantos, moveu o ar para cima, fortalecendo
aquele bolsão de forma que servisse como abrigo das pedras que
caíam sobre nós.
– Nós vamos morrer! – gritou Bandhu.
Djet rapidamente Soprou o Sopro Golem e, então, diversos seres
de metal começaram a surgir do chão, seguindo até as paredes, ten-
tando segurá-las também.
– Precisamos achar uma saída rápida! – disse Yae.
– Se tivéssemos algum Drakkar Verde poderíamos fundir essas
rochas para que se estabilizassem... – comentou Alethea.
– Colá-las? – disse Bandhu.
– Isso! – gritou Benke.
– Há água ao redor dessas pedras... – disse Bandhu, dando
uma ideia.
A Trovão Abenuz, Lihuá, eu e os meus amigos nos olhamos.
Podíamos congelar aquela água para que trabalhasse como uma cola,
segurando todas as pedras juntas. Tudo aquilo graças ao novo Sopro
Cristal de Bandhu.
Sem perder tempo nós assumimos nossas formas de Primeira
Grandeza enquanto os outros assumiram suas formas Varanus e, no
mesmo instante, em sincronia, Sopramos o Sopro Cristal, congelando
toda a água que estava ao nosso redor, até onde podíamos alcançar
com nosso poder.
– Será que aguenta? – perguntou Djet.
– Ninhursag... – Lihuá chamou.
Ninhursag liberou seu Sopro e manteve o ar apenas para nos
oxigenar. O local tremeu levemente, mas pareceu se assentar no gelo
e se estabilizar.
– Tudo bem... – disse Lihuá – Ganhamos algum tempo.
– Meus aprendizes... – Djet fechou os olhos – E tudo por cau-
sa dessa porcaria! – gritou jogando o Escudo Garra no chão.
Ao bater no solo, o escudo se separou das adagas que estavam
presas nele.
– A Arma de Marduk quebrou! – disse Alethea.
Porém, não era o que parecia. De fato, aqueles dois objetos e-
ram separados. Estavam apenas juntos. Era o Escudo Garra e as
Adagas.
– Não... – eu disse me abaixando para pegar – São duas Armas
de Marduk... – terminei, pegando-as.
No mesmo instante senti uma vibração percorrendo meu cor-
po. Um zunido, tal como ouvíamos quando assumíamos a forma de
Primeira Grandeza.
Em um violento movimento, minha consciência pareceu ser
puxada para o interior daquelas Armas de Marduk, conectada a algo
além de mim; Uma vastidão de energias, estrelas e tudo o que era
possível ver no firmamento. Era como estar dentro do efeito da
Palma Cíclica. Porém aquilo não era um trabalho meu.
Senti a Essência Primordial Caótica que vertia daquelas duas
Armas de Marduk, o Sekhem puro que explodia delas. Aquele poder
que havia sido infundido nelas pela própria Tiamat, Mãe dos Dra-
gões. E, naquele momento, conectada a tudo, minha visão se esten-
deu por toda a existência e pude ver onde estavam todas as outras
Armas de Marduk, onde estavam as Essências dos Lordes Dragões,
presos em um templo submerso em dimensões densas, onde estava a
lendária Gema Escarlate, que fora usada para prendê-los, e onde
estavam as outras seis Selas, internamente adormecidas dentro de
seus hospedeiros. Vi, novamente, o Grande Escorpião, de poder
incomensurável, silencioso, mas a espreita em um sono estranha-
mente eterno que parecia pulsar em pequenos lapsos de consciência.
– Isso não é uma tumba, Lyangyong – ouvi meu próprio sus-
surro rindo no ar.
– Não, minha criança – ouvi uma voz poderosa ecoando –
Você é igual a mim...
De súbito senti meu corpo e o tremor do chão e do teto que
começava a desabar novamente naquele cômodo onde estávamos.
– QingLong – chamou-me a Trovão Abenuz – Você está
bem?
– Sim, Mestra – respondi – Precisamos sair daqui... eu sei onde
estão todas as outras Armas de Marduk.
– Precisamos sair a qualquer custo – disse Ninhursag – Não
vou conseguir manter esse Sopro por muito mais tempo...
– Podemos refazer o Sopro Cristal para ganhar mais tempo... –
disse Lihuá.
– Não, não temos escolha, precisamos sair logo – disse a Tro-
vão Abenuz – Afastem-se para o canto – ela ordenou, separando-
nos da porta que havia sido selada.
A Trovão Abenuz passou a mão em seu cabelo e pegou ape-
nas duas daquelas argolas de energia sólida que eram presas nele.
– Protejam-se – ela disse – E, Ninhursag, esteja pronta para
nos tirar daqui pela água com toda a velocidade.
– Sim, Mawu – disse Ninhursag.
A Trovão Abenuz assumiu a forma de Primeira Grandeza e
cerrou seu punho com força, quebrando aquelas duas pequenas ar-
golas em seu interior, fazendo com que uma energia colossal explo-
disse pela sua mão, sendo integrada rapidamente ao seu corpo. Um
brilho intenso, onde infinitos relâmpagos revolviam, emergiu por
cada centímetro de sua pele e, como se ela desferisse um único soco
contra aquela porta, um fluxo de poder brutal fulminou todo aquele
lado do templo, como se fosse nada. Se aquele poder tivesse sido
jogado contra uma montanha gigantesca, certamente nem a monta-
nha ficaria de pé.
Do ingente buraco que se abriu, cuja água ainda estava sus-
pensa pelo poder que havia trespassado por ela, podíamos ver atra-
vés dos resquícios de energia azul, o exterior do templo e, assim,
sem perder tempo, Ninhursag nos colocou de volta em seu bolsão
de ar e nos moveu dali rapidamente.
Todos nós ainda estávamos em silêncio. Assustados pela mag-
nitude do poder da Trovão Abenuz. Um poder que jamais tínhamos
presenciado. Mesmo eu, usando a Palma Cíclica, se tivesse sido atin-
gida por algo daquela magnitude, teria sérios problemas.
E pensar que ela havia usado apenas duas daquelas milhares de
argolas que prendiam seu cabelo. Eu apenas imaginava quanto poder
acumulado ela carregava consigo.
Assim que chegamos à superfície, todos nos atiramos por ter-
ra. Estávamos aliviados e desgastados, ao mesmo tempo.
Com exceção da Trovão Abenuz e Lihuá, os Mestres perde-
ram seus aprendizes e todos lamentaram suas mortes, e eu, claro,
também. Cada um deles estava lutando pelo bem, buscando trilhar o
caminho da retidão ao lado de seus Mestres Drakkars. Eram boas
almas que agora, infelizmente, descansavam no fundo daquele abis-
mo de águas escuras.
De súbito Meresamun me abraçou com força.
Relutei por um instante, mas não havia como não retribuir a-
quele abraço, então a apertei com força.
– Sua amizade é muito importante para mim – ela disse no
meu ouvido – Não quero perdê-la por causa dos meus sentimentos
tolos...
– Seus sentimentos nunca seriam tolos – respondi – Tola sou
eu que não sei como encará-los. E... – eu a olhei nos olhos – Se so-
brevivermos a essa guerra que virá, vou procurar entender melhor
meu coração. Eu prometo.
Meresamun abriu um largo sorriso.
– Farei de tudo para que sobreviva – ela disse.
– Não sei como... – ri brincando – Você gastou todo seu Se-
khem...
Nós duas gargalhamos.
Estávamos felizes por estarmos vivas ali.
Sem demora partimos para o continente, pois ainda havia três
Armas de Marduk para recuperar e não podíamos mais desperdiçar
tempo.
Os Mestres Drakkars, decididos que precisavam buscar as ou-
tras Armas ao mesmo tempo, perguntaram-me onde estava cada
uma delas e, explicando, três deles saíram em busca de cada uma,
ordenando que o resto de nós fosse em direção ao Palácio dos Pro-
tetores numa tentativa de impedir o futuro confronto.
Ora, duas das Armas estavam em locais mais ou menos acessí-
veis, porém a Espada de Marduk estava em um local que eu não
sabia direito nem como descrever. Enquanto o Arco de Marduk
estava no topo da mais alta montanha do mundo, chamada Saghar-
mata, em uma região conhecida por todos como “Morada da Neve”,
que ficava próxima às cordilheiras do Pamir, a Lança de Marduk
estava, esta sim, dentro de uma montanha cuspidora de fogo, próxi-
ma das terras de Alethea, na ilha de Tira, no Mar Egeu. Entretanto, a
Espada de Marduk, esta estava no extremo sul do fim do mundo em
um enorme e desconhecido continente, quase encoberto por puro
gelo.
– As Terras Desconhecidas do Sul – explicou Alethea.
Ela nos contou que, segundo os pensadores de sua terra, no
extremo Sul, depois do oceano, havia um continente enorme e até
então inalcançável, que antes era de pura terra e campos verdes, mas
após as grandes tempestades de neve e gelo, ele havia congelado
completamente. Seu frio era intenso, cem vezes maior do que aquele
que congelava a água e nada podia sobreviver lá.
Assim, com aquela breve e falha descrição, Yae, a Mestra
Drakkar de Fogo, partiu em busca da Espada de Marduk, enquanto
Ninhursag partiu em busca do Arco de Marduk, no topo do Monte
Sagharmata, e a Trovão Abenuz partiu em busca da Lança de Mar-
duk, no interior do monte de fogo, na ilha de Tira. Todas as três, em
suas formas Imanes, alçaram voo e sumiram, enquanto Djet e Lihuá,
ambos decidiram ficar com o Escudo Garra e as Adagas, respecti-
vamente.
Dessa forma seguimos em direção ao Palácio dos Protetores,
na esperança de conseguir uma reconciliação e união para enfrentar
os insurgentes.

***

No caminho, enquanto Djet e Lihuá tentavam entender como


usar e dominar suas Armas de Marduk, meus amigos, Meresamun e
eu, treinávamos para que eles conseguissem assumir a forma de Pri-
meira Grandeza E, assim, pouco antes de nos aproximarmos das
cordilheiras do Pamir, Alethea e Benke já conseguiam, pelo menos,
atingir a forma Imane.
– Eu desisto... – resmungou Bandhu.
– Bandhu, não fique assim – eu disse.
– Não consigo assumir a forma Imane. Não importa o quanto
tente...
– Você vai conseguir, fique calmo – disse Meresamun – Vocês
são jovens e por isso, essa pressa, acaba sendo uma inimiga. Não
faça disso uma corrida com seus companheiros. Tudo ao seu tempo.
Meresamun era sábia, realmente.
Continuamos o treinamento até podermos ver ao longe o
monte onde se encontrava o Palácio dos Protetores.
– De volta ao lar... – disse Lihuá enquanto montávamos a-
campamento, talvez pela última vez.
– Quando saí daqui... – comentei – A Trovão Abenuz disse
que as Mestras do Palácio iriam me matar assim que retornasse...
– Acha que elas têm poder para fazer isso agora? – riu Djet.
Parei para pensar em tudo o que tinha aprendido, tudo o que
havia me tornado. Teriam? Conseguiriam me matar mesmo que u-
nissem seus poderes? Talvez não. Porém, sempre que eu pensava
estar acima dos outros, a vida me colocava no meu lugar.
– Não posso arriscar – respondi – Melhor não baixar a guarda.
– Ótima resposta, Long’er – Lihuá acariciou meu cabelo en-
quanto passava por mim.
Lihuá ajeitou uma fogueira para comermos antes de dormir-
mos.
– Mestra Lihuá... – chamei.
– Não sou mais sua Mestra, Long’er... – ela sorriu – Somos
companheiras agora...
– Ainda assim... – fiquei sem jeito – O que são aquelas argolas
no cabelo da Trovão Abenuz? Ela nunca falou sobre e, depois do
que vi quando pegamos as Armas de Marduk...
– É coisa dela – disse Lihuá – Ela é a única que consegue fazer
aquilo e, sinceramente, não entendo com faz. Condensar nosso E-
lemento de forma sólida, daquele jeito... é um talento incrível.
– Realmente – pensei comigo mesma.
– Agora vamos descansar – disse Lihuá – Amanhã cedo ire-
mos conversar com as Mestras do Palácio.
Assim, todos nós terminamos de comer e fomos dormir.
—————|XVII|—————

DE VOLTA AO
GRANDE PALÁCIO DOS PROTETORES

a manhã seguinte, bem cedo, nós nos arrumamos e parti-


mos em direção ao Grande Palácio dos Protetores, no in-
tuito de convencer as Três Luzes do Protetorado que pre-
cisávamos nos preparar para a grande guerra iminente que estava
para acontecer.
– Quando entrarmos... – disse Djet – Permitam que eu fale,
por favor. Mesmo eu sendo um Drakkar e tendo de ser subordinado
ao Palácio, como rei de uma nação, ainda possuo certa liberdade de
discordar um pouco das Mestras do Palácio.
– Claro, Djet – disse Lihuá.
A nós, aprendizes, só nos cabia concordar.
– E fiquem todos em alerta – continuou Djet – Qualquer mo-
vimento brusco por parte das Mestras, vocês aprendizes corram
enquanto Lihuá e eu ganhamos tempo.
– Sim – respondemos todos.

Nós nos aproximamos do grande portão de entrada, tal como


fizera há mais de três anos, retornando ao Grande Palácio dos Prote-
tores. E, depois de dadas as explicações aos guardiões do portão,
fomos levados, todos, ao salão central dos tronos, onde as Três Lu-
zes nos receberam.
Nós todos, como era esperado, prostramo-nos de joelho, em
respeito a elas.
Ver minha vovó Wu Mei, sentada no terceiro trono me en-
cheu o coração de alegria e carinho. Estava muito feliz por vê-la bem
e saudável, depois de tanto tempo. Ela mesma sorria e, em seus o-
lhos, o brilho das lágrimas não escondia sua saudade.
Djet começou sua saudação e explicou os motivos de nosso
exílio de anos, falando sobre nossos treinamentos e que havia sido
necessário para dominar os poderes que protegeriam o Palácio dos
insurgentes.
– E por que não treinaram aqui? – inquiriu a Primeira Mestra
em tom de sarcasmo.
– Porque ficamos com medo de induzir outros Drakkars daqui
ao erro... – disse Djet, dando uma explicação qualquer.
– Eu penso diferente – disse a Segunda Mestra – Eu acredito
que queriam dominar esse poder sozinhos e serem superiores aos
outros, tal como os próprios insurgentes pensam. Porém, sem con-
seguirem dar segmento ao desenvolvimento de vocês, voltaram aqui,
recorrendo ao Palácio por mais conhecimento.
Meu sangue ferveu. Aquilo não era verdade. A verdade era que
não confiávamos mais nelas.
– Nós... – eu me levantei.
– Long’er... – Lihuá me chamou a atenção para ficar quieta.
– Não... – continuei – Nós fugimos daqui... – disse em tom se-
co – porque não confiamos mais em vocês. Porque eu temia por
minha vida. Porque sei que na primeira oportunidade vocês duas me
matariam – apontei para a Primeira e Segunda Mestras.
– Insolência! – gritou a Segunda Mestra levantando-se abrup-
tamente – Quem você pensa que é? – ela apontou sua mão para
mim, usando a Palma Servil, pondo-me de joelho novamente.
Já era hora de equilibrarmos as coisas. Os Protetores existiam
para proteger a humanidade da opressão draconiana, mas, no fim do
dia, eram eles que, agora, exerciam opressão sobre os Drakkars.
Deixei meu Sekhem fluir e, movimentando minha mão, o fiz
correr pelo meu corpo, libertando-me do controle da Palma Servil.
– Eu sou Liu QingLong, do Clã Liu, neta de Wu Mei, do Clã
Wu. E exijo ser ouvida – disse com firmeza, levantando-me nova-
mente.
Todos os Drakkars e Protetores do Palácio ficaram estáticos e
abismados por eu ter me livrado do poder da Segunda Mestra sem
fazer esforço.
– O Rugido de Sekhem... – balbuciou extasiada a Primeira
Mestra pondo-se de pé – Onde você aprendeu isso? – ela inquiriu
com ódio na voz.
– Com minha Rainha, a Leonesa – Meresamun também se pôs
de pé, ficando ao meu lado, cruzando seus braços, deixando suas
Garras de Sekhmet bem visíveis.
– Uma Leoa... – disse a Segunda Mestra boquiaberta.
Vi um sorriso de orgulho no canto da boca de minha vovó
Wu Mei.
A Primeira Mestra, em choque, ficou pensativa e logo se reti-
rou, pedindo para que a Segunda e Terceira Mestras lhe acompa-
nhassem.
Nós ficamos ali, olhando os outros Drakkars e Protetores que
também pareciam admirados, de uma forma positiva, olhando-nos
maravilhados.
– Se as Mestras nos admitem de volta – disse Djet para eles –
Nós vamos ensinar vocês a atingirem um poder incrível e não mais
precisarão temer os insurgentes.
Todos pareceram ficar muito felizes e esperançosos.

Depois de um tempo, as Três Luzes retornaram e novamente


se sentaram em seus tronos.
– E onde estão Mawu, Yae, Ninhursag e os outros aprendizes?
– perguntou a Primeira Mestra.
– Os aprendizes... – disse Djet – Infelizmente estão mortos,
todos.
Todo mundo ali pareceu sentir a morte deles.
– Mawu, Yae e Ninhursag foram buscar as outras três Armas
de Marduk... – Djet disse, em um tom sarcástico proposital para ver
o espanto das Mestras.
– Nós percebemos que vocês dois estão com duas delas... –
disse a Segunda Mestra, para nosso espanto.
A Primeira Mestra baixou a cabeça. Parecia cansada, desistindo
de algo.
– Nós sempre quisemos o bem de vocês – ela disse, levantan-
do-se e se aproximando de nós – Nós somos severas, mas precisa-
mos ser. Alguém precisa. O poder de vocês é imenso e, a prova dis-
so está aqui – ela apontou para mim – Você, QingLong, libertou-se
da minha Palma Servil. Quem pode pará-la agora? O que acontece se
você se rebelar contra a humanidade? Quem aqui pode contê-la?
Diga-me! – ela provocou.
Era verdade que, pelo que eu podia entender naquele momen-
to, o poder que eu havia dominado e acumulado, era superior a mui-
tos.
– Vocês são perigosos – ela continuou – Não adianta menti-
rem para si mesmos, achando que nós lhes oprimimos e não quere-
mos que sejam tudo o que podem ser. São vocês que não fazem
ideia de tudo o que podem ser... de negativo. O mal está dentro de
vocês...
– Nós somos severas – disse a Segunda Mestra também des-
cendo de seu trono e se aproximando de nós – Porque precisamos
controlar seu crescimento. Não porque, como disse Neledina, que-
remos prender vocês, mas porque queremos que seu aprendizado
moral e ético estejam sempre à frente do aprendizado do Sangue
Draconiano. Para que a evolução de vocês se dê de forma positiva,
para o bem de vocês mesmos e da humanidade.
Aquelas palavras das duas Mestras entravam fundo na minha
alma e, de certa forma, faziam-me me sentir cheia de vergonha por
confrontá-las daquele jeito. Aquilo era real, ou elas estavam apenas
nos manipulando?
– A grande prova de que sempre visamos o bem de vocês –
disse minha vovó Wu Mei, também se aproximando de nós – É que,
mesmo QingLong sendo minha neta, nunca dei preferência ou van-
tagens a ela. Mesmo quando fora expulsa, eu mesma fui quem lhe
tirou o Elemento.
– A Lei do Protetorado é justa – disse a Primeira Mestra – E
nós a seguimos a risca. E, vendo que estão aqui em posse de duas
das cinco Armas de Marduk e, entre vocês há uma Leoa e a própria
QingLong aprendeu o Rugido de Sekhem com a Rainha Leonesa...
entendemos que o que está para acontecer é de proporções inimagi-
náveis e, por isso, estamos abertas e receptivas a vocês.
– Seja o que for que está para acontecer – disse a Segunda
Mestra – Estamos ao seu lado e vamos ouvi-los, para podermos
garantir a segurança de todos.
– Por isso decidimos que são bem vindos de volta ao Palácio –
disse minha vovó Wu Mei, vindo ao meu encontro e me abraçando
com todas as suas forças.
– Vovó... – não segurei as lágrimas.
Vê-la depois de tanto tempo era maravilhoso. Sentir seu abra-
ço, seu cheio e ouvir sua voz. Era realmente voltar para casa depois
de uma longa jornada.
***

Nos dias que se seguiram, enquanto esperávamos o retorno


dos outros Mestres Drakkars com suas Armas de Marduk, passamos
a treinar em uma ala especial, com o auxílio dos Protetores.
Djet, que estava com o Escudo Garra, rapidamente aprendeu a
usar seu poder de proteção impenetrável, e de ataque que podia cor-
tar quase qualquer coisa. As garras do escudo eram muito similares
às Garras de Sekhmet em sua composição e estrutura. Já Lihuá não
conseguia usar as Adagas de forma alguma. Elas, de uma forma má-
gica, haviam se recolhido em uma espécie de medalhão. Um disco
verde feito de um material como o do Escudo Garra.
– É uma Arma do Elemento Terra... – resmungou Lihuá –
Não posso usá-la... – disse desanimada.
Era verdade que as armas haviam sido imbuídas pelo poder de
Tiamat para matar seus filhos, os Lordes Dragões, mas uma coisa
em particular chamou a atenção de Alethea, cuja perspicácia era
maior que a nossa.
– Mas, Mestra... – Alethea chamou Lihuá – Se o Lorde Vritra
deu origem ao Elemento Terra e Metal, porque Tiamat faria duas
Armas para Marduk, para matar o mesmo Lorde? Porque há o Es-
cudo Garra que é do Elemento Metal, e a Adaga que é do Elemento
Terra. Ambos são do Lorde Vritra.
Aquela era uma questão importante.
– E quem revelou a vocês que o Escudo Garra é do Elemento
Metal e as Adagas do Elemento Terra? – perguntou minha vovó Wu
Mei se juntando a nós.
– Pelas cores... – disse Lihuá sem muita certeza – O Escudo
Garra é dourado, e as Adagas são verdes...
– Tolice – disse minha vovó Wu Mei – Tiamat deu as Armas a
Marduk, imbuídas com seu poder e, fez Marduk possuidor de todos
os Elementos. Assim ele poderia impelis nas armas o Elemento que
quisesse, tornando aquela Arma de Marduk na arma do Elemento
que quisesse...
– Mas se fosse assim... – resmungou Benke – Não seria mais
inteligente dar só uma Arma e ele a usaria como quisesse?
Minha vovó Wu Mei riu.
– As Armas de Marduk são feitas para melhor atacar cada um
dos Lordes – disse minha vovó – Jormungandr é rápido, e precisa-se
de uma arma longa para ter mais chances de acertá-lo, e para aterrar
seus Sopros. Para isso, Tiamat deu a Marduk uma Lança. Vritra tem
Sopros ácidos e Marduk precisaria se proteger enquanto atacava e,
por isso, deu a ele o Escudo Garra. Quetzalcoatl é doce e amigável,
então a maldita Tiamat deu a Marduk as Adagas, para lhe ganhar a
confiança e matá-la pelas costas. E, como Dahag é ágil em seus So-
pros de transporte, Marduk precisaria de uma arma que pudesse
atirar para muitos lados em sequência. Para isso deu-lhe o Arco. Por
último, como Ngalyod é poderoso em seus Sopros de Fogo, Tiamat
deu a Marduk a única coisa que faria com que o Lorde assumisse sua
forma humana: uma Espada. Digno e honrado, Ngalyod lutaria con-
tra Marduk de forma justa e, sendo Marduk mais hábil, venceria fa-
cilmente o Lorde em um combate corpo a corpo.
– Então posso imbuir o Elemento Água nessa Adaga? – per-
guntou Lihuá.
– Se as lendas forem verdadeiras... – sorriu minha vovó.
Enquanto vovó Wu Mei ajudava Lihuá infundir seu Elemento
nas Adagas de Marduk, eu segui com Meresamun para auxiliar no
treinamento dos outros Drakkars do Palácio, que estudavam com
Djet como atingir a Primeira Grandeza.
– Uma Cavaleira! – ouvi, depois de algum tempo, os gritos de
alguns Drakkars.
Todos nós corremos para a porta de entrada do salão principal
e vimos, retornando cheia de glória, Ninhursag, com o Arco de
Marduk.
Nós a parabenizamos; e ela se juntou a Lihuá e minha vovó
Wu Mei para imbuir seu Elemento na recém recuperada Arma de
Marduk.

Assim, depois de mais alguns dias de muito treino, felizmente,


Benke e Alethea haviam conseguido acessar a Primeira Mansão e
estavam muito felizes. Eram Drakkars incríveis. Bandhu, por outro
lado, cada vez mais decepcionado consigo mesmo, não conseguia
atingir a forma Imane.
– Não sei mais o que fazer, Long’er – ele me disse uma noite,
depois da refeição, enquanto olhávamos os céus – As notícias dizem
que o exército insurgente está gigantesco e eu nem sequer posso
ajudar de verdade...
– Tenha calma, Bandhu – disse.
– Vocês ficam repetindo para eu ter calma, mas eu só consigo
assumir a forma Varanus... Como poderei enfrentar um Drakkar
insurgente que estiver na Primeira Mansão? Vou morrer sem conse-
guir sequer levar um deles comigo. Sou um inútil – encerrou, total-
mente desmoralizado.
Bandhu dominava muito bem seu sincronismo e sua Contem-
plação era perfeita. Realmente era muito desconcertante que ele ain-
da não tivesse atingido a forma Imane. Com o nível de poder de
seus Sopros, seu sincronismo certamente estava em níveis altíssimos.
– Vou falar com as Mestras – disse, levantando-me e deixando
ele ali.
Segui pelo Palácio atrás da Primeira Mestra, cujo saber do
Sangue Draconiano era maior do que de minha vovó Wu Mei.
Andei por alguns minutos até que me aproximei de uma sala e
ouvi uma conversa. Devia ser a Primeira e a Segunda Mestra.
– Você acha que ela pode ensinar a nós? – ouvi a voz da Se-
gunda Mestra.
– Pense... – respondeu a Primeira Mestra – Depois de tantos
séculos, finalmente o Clã dos Protetores terem o conhecimento fi-
nal, o Rugido de Sekhem.
Contive-me e continuei a ouvir a conversa por mais uns ins-
tantes.
– Fizemos muito mal a ela... – disse a Segunda Mestra – Ela
jamais vai compartilhar esse saber com a gente. E, mesmo que qui-
sesse, será que quebraria seus votos com a Ordem de Sekhem?
– Vamos esperar que sim... – disse a Primeira Mestra.
Esperei uns segundos e dei alguns passos com força, para aler-
tá-las que me aproximava, batendo na porta em seguida.
– Pois não? – gritou a Segunda Mestra.
– Sou eu, Liu QingLong, Mestra – disse.
– Pode entrar – ouvi a Primeira Mestra.
Entrei no aposento e vi as duas, sorridentes, esperando que eu
falasse o que queria.
– O que precisa, QingLong? – perguntou a Primeira Mestra.
Expliquei para elas minha dúvida quanto a Bandhu, dos moti-
vos que impediam que ele assumisse a forma Imane.
Então as Mestras me contaram que, nos primeiros anos do Clã
dos Protetores, estudando o Sangue Draconiano, alguns casos rarís-
simos foram conhecidos e estavam anotados nos registros históricos
do Clã. Em alguns deles é comentado sobre os Drakkars que não
atingem a forma Imane. E, segundo os registros, o fato acontecia
porque, ao que parecia, raríssimas vezes em longos ciclos de desen-
volvimento, alguns Drakkars nasciam com ambas as naturezas. Eram
positivos e negativos, internos e externos, tudo em um.
Elas também me explicaram que o Drakkar assume a forma
Imane somente porque há um desequilíbrio interno, pois o Drakkar
nasce, ou Yin, ou Yang, isto é, ou positivo, ou negativo. Então,
Drakkars equilibrados não eram capazes de assumir essa forma de
Dragão. Portanto, segundo as Mestras, certamente era impossível
que Bandhu pudesse acessar os conhecimentos da Primeira Mansão.
Claro que pensei para mim o que era mais óbvio: eu acessava a
Primeira Mansão e jamais havia assumido a forma Imane. Então era
possível sim.
– Obrigada, Mestras – agradeci indo em direção à porta da sa-
la.
– Ah... – grunhiu a Primeira Mestra – QingLong... deixe-me
perguntar...
Eu virei em direção a elas. Sabia o que iam dizer.
– Você aprendeu o Rugido de Sekhem... – ela disse, confir-
mando minha suspeita.
– Sim, Mestra...
– Inclusive o “Olho de Rá”? – ela perguntou, demonstrando
saber muito sobre a Ordem de Sekhem.
– Não, Mestra – respondi – O “Olho de Rá” é exclusivo da
Rainha e eu, sendo Drakkar, jamais poderia usá-lo.
– Mas os outros níveis... você os dominou? – perguntou a Se-
gunda Mestra.
– Sim, Mestra – respondi.
– E... – ela se olharam – É possível ensiná-los a nós?
Parei um pouco para pensar. Era claro que não poderia ensi-
nar, mas devia fazer de conta que havia uma esperança para elas.
Não queria criar outro conflito ali.
– Eu vou pedir permissão – disse – Então, se for possível, eu
ensinarei com muito carinho – disse.
Elas ficaram aparentemente muito contentes. Porém, sabia
que, no fundo, desconfiavam que eu jamais lhes ensinaria, de fato.
– Obrigada, QingLong – disseram ambas.
Cumprimentei com a cabeça e saí da sala, regressando a Ban-
dhu.

Assim, nos dias que foram se passando, tal como fizera com a
Rainha Leonesa, Bandhu e eu mapeamos os processos mentais que
me faziam acessar a Primeira Mansão e, dessa forma, criamos uma
receita, uma forma de guiar sua mente para acessar a Primeira Man-
são sem a necessidade da forma Imane. Porém, era claro que aquela
técnica só se mostrava possível pelo fato de Bandhu ter ambos os
pólos equilibrados. As energias primordiais pareciam fluir com mais
facilidade através dele. E, com o tempo, felizmente ele conseguiu.
Sua alegria em assumir pela primeira vez a forma de Primeira
Grandeza era comparada somente com a do dia em que conseguira
criar com sucesso seu Sopro Cristal.
– Uma Cavaleira! – ouvimos outros gritos vindos dos portões
de entrada.
Novamente todos nós corremos ao salão principal e vimos,
regressando, cheia de orgulho e ânimo, a Mestra Yae, portando con-
sigo o brilho intenso e as quentes chamas da Espada de Marduk.
Todos nós a parabenizamos e, naquela noite, houve um ban-
quete em sua homenagem, tal como fizéramos com Ninhursag.
A Trovão Abenuz era a única que ainda não havia regressado e
aquilo nos assustava um pouco; pois Yae havia ido a um local muito
mais distante e muito mai inóspito, e já estava de volta.
O regresso das duas Mestras rendera muitas conversas e óti-
mas histórias. Ambas haviam estado em locais extremamente frios.
Ninhursag tinha subido na mais alta montanha do mundo, onde o
gelo nunca some e, disse ela, que lá encontrou uma tribo de pessoas
que vinham de dentro da Terra por uma enorme caverna e que, eles,
ajudando-a a reaver o Arco, convidaram-na para adentrar ao seu
mundo, no interior do nosso mundo externo, e viver com eles. Ni-
nhursag disse que, um dia, certamente os visitaria, mas que naquele
momento não podia. Já Yae nos contou que a Espada estava no
centro daquele continente de gelo, onde o frio congelava até os os-
sos e, que lá, também encontrou um povo, com barcos de metal
reluzente que navegavam pelo ar. Esse povo também vivia no interi-
or da Terra e ia e vinha através de cavernas gigantescas.
Todos nós estávamos ali deslumbrados com aquelas aventuras
estranhas, e felizes de que elas haviam regressado em segurança.
– Estou muito preocupada com a Mawu – disse Lihuá.
– Ela já deveria ter voltado há dias – comentou Djet.
– Nós já estamos muito avançados nos treinamentos – disse
Ninhursag – Não quero que ela fique para trás.
Naquela mesma semana, Djet e Ninhursag conseguiram aces-
sar a Segunda Mansão e assumir a forma de Segunda Grandeza. Era
um motivo de vitória, mas sabíamos, por informações que vinham
de Protetores de diversos cantos do mundo, que os insurgentes tam-
bém já estavam atingindo a forma de Segunda Grandeza e que, o
primeiro Drakkar a assumir a forma Imane, estava prestes a dominar
a forma de Terceira Grandeza. A dedicação dos insurgentes em au-
mentar seu poder era, infelizmente, muito maior que a nossa.
Quanto a mim, estava tão focada em ajudar os outros Drak-
kars em acessar a Primeira Mansão que sequer me dediquei ao meu
próprio treinamento. E, ainda que muitos deles conseguissem, de-
pois de muito empenho, assumir a forma de Primeira Grandeza, a
maioria não conseguia ultrapassar a forma Varanus.
– Ataque! – ouvimos um Protetor entrar correndo no Palácio.
Todos nós nos reunimos no salão principal para ouvir a men-
sagem do batedor, dizendo que a alguns dias de viagem dali, mar-
chavam para o Palácio, um exército de incontáveis Drakkars. Um
exército que ia de um horizonte ao outro.
As Mestras então nos contaram que o exército era muito mai-
or. Que, durante os últimos três anos, muitos Drakkars do Palácio
foram enviados, como pequenos exércitos, para atacar os insurgen-
tes e muitas batalhas já haviam sido travadas distantes dali. Esse era
o único motivo do Palácio ainda estar de pé.
– Essa guerra já começou há mais de dois anos... – disse a
Primeira Mestra para nós – Muitos Drakkars e Protetores já perde-
ram a vida nesse confronto, mas nunca tinham marchado diretamen-
te para cá. Devem ter aumentado suas fileiras de Drakkars.
– Se não tivéssemos deixado o Palácio... – murmurou Djet –
Poderíamos ter treinado todos mais cedo, e os insurgentes já estari-
am completamente destruídos.
– Isso é verdade, Djet – disse a Primeira Mestra – Mas não há
como mudar o passado, só aprender com ele. Precisamos de todos
agora para proteger nossa casa. E, adianto, não vai ser fácil.
—————|XVIII|—————

A GRANDE GUERRA DRAKKAR

odos os Drakkars do Palácio dos Protetores se vestiram com


as novas roupas, feitas para aguentar Sopros mais poderosos.
Cada uma com a cor de seu Elemento. Uma versão melho-
rada da roupa que usara no dia em que deixara aquele lugar ao lado
da minha Mestra, a Trovão Abenuz.
– Eles estão quase na nossa porta – disse Bandhu, trêmulo.
– Não fique com medo, Bandhu – disse Alethea.
– Você não está? – ele perguntou.
Alethea chacoalhou a cabeça em sinal afirmativo.
Todos nós estávamos apreensivos. Éramos poucos Drakkars
e, menos ainda os que podiam assumir formas de Primeira Grande-
za. E, todas as vezes que eu olhava os dias seguintes, minha Sela me
mostrava um massacre.
As Mestras do Palácio e os Mestres Drakkars organizaram di-
versas estratégias de ataque e defesa, para impedir que os insurgentes
ultrapassassem os muros. Deveríamos batalhar com eles na planície
logo abaixo dali, onde o campo aberto nos daria vantagens.
Assim partimos, em grupos, para nos posicionarmos. Seriamos
como camadas intransponíveis e, caso fossemos vencidos, a camada
seguinte, descansada, continuaria o confronto.
Os Cavaleiros da Ordem da Garra do Dragão, empunhados
com suas Armas de Marduk, infundidas com seus Elementos, eram
como generais que nos aumentavam o moral, fazendo-nos sentir
como se fossemos realmente invencíveis.
– Espero que não esteja pronta para morrer – Meresamun se
aproximou de mim, polindo suas Garras de Sekhmet com a borda de
sua roupa – porque eu não estou – ela sorriu.
Durante aqueles dias no Palácio, Meresamun retornara ao seu
treinamento para Cultivar novamente seu Sekhem e, assim, já possu-
ía algum poder para nos ajudar na batalha. Mas eu não queria que ela
se arriscasse daquela forma.
– Vá embora, Meresamun – eu disse – Não quero vê-la ma-
chucada ou pior. Não aguentaria... – resmunguei.
Passando tanto tempo ao seu lado, havia desenvolvido um ca-
rinho enorme por ela. Um carinho realmente especial. Preocupava-
me com seu bem estar e sentia que devia protegê-la a qualquer custo.
– Se formos morrer hoje – ela disse – Quero morrer ao seu la-
do, Long’er... Estou pronta para isso.
Eu não estava. Não queria vê-la morta e, certamente, também
não queria morrer. Porém, o que me dava certa segurança, eram as
vozes que ouvia de vez em quando que, sabia, no meu íntimo, eram
memórias de um futuro distante, onde eu ainda estava viva.
– Você é teimosa – ri.
Meresamun sorriu e ficou ao meu lado.
Abaixo de nós, a planície se estendia.
Nós nos espalhamos por diversos níveis das montanhas e fi-
camos aguardando, em pequenos grupos. Eu, com Meresamun, fi-
quei no grupo liderado por Lihuá, junto com meus amigos e outros
Mestres Drakkars e seus aprendizes. Atrás de nós, o grupo de Ni-
nhursag e, a nossa frente, Djet e seu grupo. Acima, pouco antes do
Palácio, o grupo de Yae se posicionava.
– Quando eles chegarem – disse Lihuá – Nós, os Cavaleiros,
tomaremos a frente junto com o grupo de Djet. Então todos devem
ficar vigilantes e impedir como puder que os insurgentes passem.
– Sim, Mestra – nós dissemos.
– Sei que se importam com a vida de todos – continuou Lihuá
– mas não tenham piedade. Eles não terão de vocês e dos jovens
aprendizes Drakkars e Protetores que recém iniciaram suas jornadas
no Palácio.
– Sim, Mestra – repetimos.
– Não... acredito... – balbuciou Bandhu olhando no horizonte.
Ao olharmos, vimos uma massa enorme de Drakkars que vi-
nham, em passos largos, na direção da planície. Eram tantos que não
dava para contar. Eram como uma gigantesca sombra que ia toman-
do os montes, os vales e as pequenas florestas.
– Eu só queria que Mawu estivesse conosco... – resmungou
Lihuá, preocupada.
– É chegada a hora... – murmurei para mim mesma – Não pu-
de evitar...
Aquele confronto parecia, realmente, inevitável. Nenhuma das
opções que a Sela me mostrava impedia daquele evento terrível a-
contecer.
Em minha mente, fiquei me questionando se meu pai estaria
entre aqueles inimigos e se eu teria de enfrentá-lo até a morte, defini-
tivamente.
Então todos nós ficamos em completo silêncio enquanto os
insurgentes começavam a adentrar a planície. Estávamos tremendo,
suando frio, ainda que não suássemos, de fato. Dava para sentir a
apreensão de todos; o medo de todos. Haveria, realmente, um banho
de sangue ali; e muitos dos nossos amigos e companheiros morreri-
am.
– Eu não quero lutar... – ouvi a voz hesitante de um dos
Drakkars que estavam conosco.
Ele chorava e, assim como ele, outros ao redor também esta-
vam apavorados. Seus olhos, repletos de lágrimas, demonstravam
um coração que não estava disposto a matar e nem perder a vida.
Não eram soldados, nem guerreiros. Eram jovens Drakkars que re-
cém haviam desenvolvido Elemento e aprendido alguns poucos So-
pros. Porém, diferente dos insurgentes, nós nos preocupávamos
com eles. E eu faria tudo para protegê-los, mesmo com minha vida.
– Acalmem-se – eu disse, em voz alta – Hoje é um dia de co-
ragem. Nossa grande família precisa de nós. Nossos pequenos ir-
mãos e irmãs que estão lá dentro daquele Palácio que nos abrigou,
eles precisam de nós. Nós somos tudo o que eles têm. Somos nós
que vamos impedir cada um daqueles monstros – apontei para a
planície – de invadirem nossa casa! – gritei – E machucar nossos
irmãos e irmãs! Nossa família!
Todo mundo ali começou a enxugar as lágrimas.
– Somos aprendizes dos maiores Drakkars que já existiram! –
berrei a plenos pulmões – E eles, os Cavaleiros, estão ao nosso lado.
Venceremos hoje, custe o que custar. E, digo a vocês, custará mais a
eles! – levantei mais a voz, chamando-os à batalha.
Eles levantaram as mãos e gritaram alto.
Meresamun me olhou sorrindo e disse:
– Quem se atreveria a nos parar?
– Quem se atreveria a nos controlar? – eu continuei.
– Com nossas garras afiadas nós criamos novos caminhos –
ela disse.
– Nada pode nos aprisionar! Nós provamos isso e, agora... –
disse.
– ...todos tremulam e temem o nosso rugido – encerramos
juntas.
– Hu-Ha-Hoar! – gritamos fazendo nosso sinal da Ordem de
Sekhem.
Viramos de volta à Planície ao tempo em que aquela massa de
Drakkars insurgentes estava para atingir a metade do lugar, ponto
onde o grupo de Djet deveria partir ao encontro deles com tudo o
que tinham.
De súbito ouvimos um trovão ecoar por todo o céu.
– O que foi isso? – murmuraram os Drakkars que estavam co-
nosco.
Vi, no mesmo instante, o sorriso aliviado de Lihuá.
Um violento relâmpago desceu dos céus no eixo da planície,
acertando a terra e levantando muita poeira. E, em meio a todo a-
quele pó, pudemos ver terríveis raios vertendo do seu centro, quei-
mando tudo ao seu redor.
Então, de toda aquela poeira, saiu, em direção aos insurgentes,
milhares de relâmpagos poderosos que fizeram com que eles paras-
sem e recuassem aterrorizados. O seu moral já havia começado a cair
e o nosso a aumentar.
– É... – balbuciei feliz.
– Sim – disse Lihuá – Finalmente.
Para nossa felicidade, na direção do grupo de Djet, daquela su-
jeira toda, saiu a Trovão Abenuz, empunhando sua Lança de Mar-
duk, cujos brutais raios pareciam incontroláveis e sedentos por san-
gue.
Vi os insurgentes se deterem por um segundo apontando para
ela. Era claro que estavam com medo. Já deveriam saber de seu po-
der desde o ataque ao Palácio de Djet.
Todos os Drakkars do nosso lado gritaram repletos de um â-
nimo indescritível.
Senti, no meu íntimo, um orgulho de mim mesma por ser a-
prendiz daquela Drakkar que, a cada ação, deixava-me mais e mais
boquiaberta. A Trovão Abenuz era sábia, inteligente e, muito, muito
poderosa.
Ela seguiu até Djet e se posicionou ao seu lado. Ambos estari-
am no fronte, para encarar os insurgentes primeiro.
Vimos, ao longe, que os inimigos falavam algo entre eles e le-
vantavam as mãos. Estavam recuperando a coragem.
– É agora... – disse Lihuá.
No mesmo instante, aquele contingente incontável de Drak-
kars disparou na direção do grupo de Djet. Não havia mais volta.
Era hora do banho de sangue.
Ouvimos o som de uma corneta que soou pelos ares, a partir
do Palácio até onde podíamos ouvir. Devíamos nos preparar.
– Atentos! – berrou Lihuá.
– À luta! – ouvi, lá embaixo, os gritos de Djet.
Os Drakkars liderados por Djet e a Trovão Abenuz também
dispararam em direção aos insurgentes.
Ouvimos um bater de asas estrondoso e sentimos um vento
forte. Então, por sobre nossas cabeças, um Dragão vermelho e um
branco voaram em direção ao campo de batalha. Era Yae e Ninhur-
sag, em suas formas Imanes. Assim, seguindo do mesmo modo,
Lihuá tomou forma e alçou voo em direção à planície.
Elas, em suas formas Imanes, passaram um pouco sobre a
massa comandada por Djet e aterrissaram no meio do primeiro gru-
po insurgente que vinha, atacando-os violentamente com as garras,
presas e os rabos; jogando diversos deles para muitos lados. E, en-
tão, em seguida, assumiram suas formas de Primeiras e Segundas
Grandezas, começando o confronto direto.
Quando as duas ondas de Drakkars se chocaram, um espetá-
culo aterrorizante de luzes, explosões e gritos começou.
Havia Drakkars Verdes usando o Sopro Tectônico, criando imen-
sas paredes de pedra para proteção e também usando seu Sopro da
Avalanche, que arremessava enormes rochas do chão sobre os inimi-
gos. Drakkars Vermelhos invocando Sopro de Extinção e Sopro de Ex-
plosão; Drakkars Brancos usando Sopro Tornado e Sopro da Parede de Ar
para se proteger. Enquanto isso, infinitos raios percorriam aquela
zona de guerra nos diversos Sopros Relâmpagos que explodiam nas
mãos dos Drakkars Azuis. E, mesmo que quase não víssemos So-
pros de Drakkars Negros, sabíamos que estavam lá, estrategicamente
lutando, tal vez com seus Sopros de Duplicação e Sopros do Exército de
Sombras.
Nosso grupo era o segundo e a tensão já estava no limite. Os
insurgentes eram muitos e, por mais que nossos Drakkars estivessem
com muita vantagem por conta dos Cavaleiros e suas Armas de
Marduk, o número surreal de inimigos forçava nossos companheiros
a recuar enquanto batalhavam por suas vidas.
Assim, depois de algum tempo de enfrentamento e muitas
mortes para ambos os lados, finalmente aquela massa de ódio chega-
va próximo ao nosso posto.
Era visível a superioridade dos Cavaleiros. Suas Armas de
Marduk realmente permitiam que pudessem matar aqueles insurgen-
tes com um único golpe, mas eles, aos montes, continuavam a se
jogar, uns por cima dos outros, como ondas agitadas de um mar
revolto, salivando pelas vidas dos nossos Drakkars.
– São muitos... – disse Meresamun olhando para aquela ava-
lanche de inimigos e olhando para os grupos de Drakkars acima de
nós – Não vamos ter gente suficiente para vencer todos. Eles, inevi-
tavelmente, chegarão ao Palácio.
– Malditos – disse – Deve ter sido por isso que levaram tanto
tempo acolhendo Drakkars de qualquer lugar... só queriam número.
Número suficiente para sacrificar enquanto avançavam sobre o Palá-
cio.
Os céus escureceram. Logo estariam tomados de raios, do So-
pro Trovão.
– Estão chegando! – gritou Benke.
Subindo pela planície, quase ao pé da montanha onde estáva-
mos, aqueles insurgentes forçavam o grupo de Djet, que lutava bra-
vamente, Soprando com muita maestria e controle.
– Não podemos deixar que saiam da planície – disse Alethea –
A Mestra Lihuá disse que precisamos mantê-los lá!
– Então precisamos ir? – perguntou Bandhu.
A planície era nossa vantagem, mas estavam chegando ao fim
dela. Precisávamos avançar para impedir que subissem.
– É a nossa hora... – disse, engolindo a saliva.
Olhei uma última vez para meus amigos e para todos os ou-
tros Drakkars atrás de nós. Muitos ali morreriam. Muitos deles não
veriam o dia seguinte e eu só podia lamentar por não ter conseguido
evitar aquele derramamento de sangue.
Porém, antes que eu desse um passo em direção à batalha,
Alethea tomou a frente e subiu em uma rocha, olhando para nós.
– Entre nós, hoje... – ela berrou – revive aqui a coragem de
Achilleus. O maior de todos os heróis vivos! E sobre nós repousa
poder de guerra da deusa Athana! Sairemos ilesos, pois somos in-
vencíveis! – gritou com todo seu fôlego, assumindo a forma de Pri-
meira Grandeza.
Todos nossos companheiros gritaram junto com ela e, aqueles
que podiam acessar a primeira Mansão Lunar, assim o fizeram.
– Vamos vencer essa guerra! – ordenou aos gritos, correndo
em direção à planície.
Junto com ela, nosso grupo e o grupo de Ninhursag que esta-
va atrás de nós, dispararam. Seus semblantes eram ferozes e certa-
mente não poupariam ninguém. Era uma batalha de vida ou morte.
Corri, ao lado de Meresamun, Bandhu e Benke, enquanto Ale-
thea ia um pouco à frente. Sabia que, mesmo que tivesse que lutar
com diversos Drakkars, tentaria manter meus olhos naqueles meus
mais queridos amigos, para protegê-los sempre que precisassem.

De repente ouvimos uma explosão no meio do grupo de Djet


e muitos de nossos Drakkars foram violentamente despedaçados.
Entre eles, alguns de Primeira Grandeza. Meu coração gelou no
mesmo instante. Seus pedaços voaram pelos céus como se fossem
restos de roupas maltrapilhas, descartadas aos montes.
Deixando para um momento chave, como uma surpresa terrí-
vel, diversos Drakkars insurgentes tinham se mantido na Primeira
Grandeza, escondendo que podiam assumir a forma de Segunda
Grandeza, pegando os nossos companheiros desprevenidos.
Rapidamente a vantagem dos inimigos aumentou ao tempo
que o moral dos nossos grupos caiu drasticamente. Muitos entraram
em choque e, perdendo o foco, começaram a ser brutalmente mas-
sacrados pelos insurgentes.
– Mantenham a formação! – ouvia os berros de Djet.
O chão se rompia sem piedade, levando consigo diversos
Drakkars de ambos os lados, engolindo-os e esmagando-os. Dos
céus, infinitos raios alvejavam grupos inteiros de amigos e inimigos.
O cheiro de carne queimada e sangue se espalhava por todo o terre-
no. A visão era grotesca e me enjoava muito. O brilho das chamas
que devoravam tudo pela frente e os gritos agonizantes de todos no
campo pareciam ecoar pela minha alma. Todavia, ainda que eu pro-
curasse, felizmente, não via meu pai naquela guerra.
De súbito Yae saltou aos céus. Certamente faria seu Sopro So-
lar, mas, antes que pudesse Soprar, um tornado se formou onde ela
estava e, ao seu lado, diversos Drakkars Brancos inimigos segura-
vam-na. Pareciam saber como lidar com ela.
Senti um poder crescer velozmente e, como num piscar de o-
lhos, um Drakkar Negro passou por Yae, acertando-a e jogando-a de
volta ao chão, sem consciência.
Quem poderia ter um poder daqueles, para ferir e desmaiar
uma Cavaleira daquela forma? Só podia ser o líder dos insurgentes.
– Atacar! – ouvimos o último grupo dos nossos companhei-
ros, que estavam sob o comando de Yae.
Eles eram a última defesa, acima da planície, próximos ao Pa-
lácio dos Protetores. Deveriam ficar posicionados, mas dispararam
em direção à batalha.
– Não! – ouvi os gritos de Ninhursag – Fiquem aí! – ela berra-
va, mas ninguém ouvia.
Em pouco tempo, todos os Drakkars do Palácio estavam na
planície, enfrentando os insurgentes, que pareciam não ter fim.
Ninhursag começou a Soprar seu Sopro Tornado, para tentar de-
sacelerar aquela massa de inimigos com uma tempestade de areia,
mas rapidamente diversas paredes de pedra se levantaram ao redor
da planície, impedindo que as terras e a areia de fora chegassem aos
insurgentes.
Mais uma vez pareciam saber o que estavam fazendo. E aquilo
confirmava a visita deles ao Palácio de Djet. Estavam nos estudando.
– Precisamos empurrá-los de volta! – gritou Djet – Sopro Go-
lem! – berrou para todos os Drakkars de Ouro ali presentes.
De súbito um exército enorme de golens de metal se levantou
do chão e partiu para cima dos insurgentes, batendo e segurando,
forçando-os a diminuir a velocidade.
A Trovão Abenuz Soprou seu Sopro dos Mil Raios e, de forma
surreal, tornou-se como milhares, movendo-se por entre os inimi-
gos, disparando diversos relâmpagos, fulminando vários deles. Era
incrível imaginar que aquele enorme grupo de cópias, de fato, fos-
sem somente uma pessoa, movendo-se com uma velocidade feno-
menal.
Era visível o poder superior dos nossos companheiros. En-
quanto um dos nossos morria, os insurgentes perdiam três ou qua-
tro. Porém, infelizmente, eles pareciam vir aos milhares.
Eu, enquanto me esquivava dos Sopros que vinham contra
mim com o Sopro de Rapina, usava tudo o que tinha em meus Sopros
Relâmpagos contra os inimigos, mantendo meus olhos nos meus ami-
gos. Nós não queríamos matar nossos irmãos Drakkars, mas não
havia escolha. Todos estavam decididos a não perderem a luta.
– Não acredito... – ouvi o fôlego ofegante de Djet quando pa-
rou próximo a mim, falando com Ninhursag – Eles não param de
vir... Quase não tenho mais energia...
– Quantos já caíram? Mil? Dois mil? – resmungou Ninhursag.
– Não vamos conseguir – disse Lihuá se juntando a eles – São
muitos. Não vamos dar conta...
– Por que os malditos Protetores não vêm ajudar? – rosnou
Ninhursag – Yae está inconsciente e isso é muito ruim. Um Cavalei-
ro a menos é muito ruim! – ela gritou voltando para cima dos inimi-
gos.
– Precisamos ganhar tempo para nos recompor – disse Lihuá.
Lihuá olhou para mim e pareceu pensar em algo.
– Sopro Cristal, Long’er! – ela disse – Vamos congelar o que
pudermos!
Acenei em concordância.
Eu havia aprendido, em lendas que, no extremo norte do reino
do Imperador Shun, havia uma terra de puro gelo, onde o frio inten-
so congelava os ossos e a neve nunca parava. Naquela terra inóspita,
a qual o povo nativo Luorawetlan chamava de Severia, nenhuma
vida natural crescia. Se aquele lugar pudesse ser recriado no nosso
campo de batalha, tinha certeza de que os nossos inimigos diminuiri-
am sua marcha.
Fechei os olhos e respirei profundamente. Eu já estava na
forma de Primeira Grandeza, então o Sopro seria realmente potente;
mas eu precisava de mais. Muito mais. Precisava criar uma tempes-
tade como as das lendas daquela região, uma “tempestade severiana”.
Deixei minha Essência explodir em conjunto com o Sekhem.
Poderia acumulá-lo novamente depois. Assim, um poder surpreen-
dente percorreu cada partícula do meu corpo.
– Uma tempestade... – sussurrei para mim mesma enquanto
fazia o Hasta.
Soprei o que, de início, poderia ser o Sopro Cristal, mas devido
as proporções que tomara, seria correto dizer que era um Sopro
completamente novo. Uma forma avançada do Sopro Cristal.
Rapidamente os cristais de gelo começaram a se formar e atra-
vessar a planície. O ar, agora gélido, cortava a pele em uma ventania
terrível, enquanto a pesada neve começava a cair. O chão, cristali-
zando-se, tornou-se escorregadio e todos os Drakkars naquele cam-
po de batalha se detiveram.
Era o tempo que meus companheiros precisavam para se rea-
grupar, tirar Yae dali em segurança, e tomar um fôlego, antes de
prosseguir com o combate.
– Que frio! – ouvi o murmúrio de Bandhu enquanto eu ainda
estava de olhos fechados, mantendo o Sopro no máximo.
– Agora vou poder lutar com vontade! – riu Benke – Esse
frescor matutino me anima!
Naqueles minutos que eu havia ganhado para nós, Yae foi le-
vada por alguns Drakkars em direção ao Palácio, para receber trata-
mento dos Protetores, ao passo que nós nos reunimos novamente
para a próxima onda.
– Estamos só adiando o inevitável – disse Meresamun, ao meu
lado – Devem ter morrido uns dois mil deles e, ainda assim, parece-
me que restam mais uns três mil.
– E dos nossos? – perguntei, tentando contar-nos.
– Pouco mais de quinhentos – ela respondeu.
Perderíamos. Com aquela contagem era, como dissera Mere-
samun, inevitável.
Sentimos, em um instante, o calor subir rapidamente. Dos
céus, uma enorme chuva de fogo desceu. Era o Sopro de Extinção de
diversos Drakkars de Fogo inimigos, equilibrando a tempestade que
eu havia criado.
– Preparem-se! – berrou a Trovão Abenuz.
Novamente aquela onda de insurgentes correu ao nosso en-
contro. E, mais uma vez, os Sopros de ambos os lados, com poderes
devastadores das Mansões, explodiam tudo para todos os cantos.
Eu via Bandhu, mesclando os Sopros Relâmpagos com a técnica
de combate corpo a corpo que eu havia criado e, de onde eu estava,
parecia-me muito eficiente, uma vez que seus atacantes caiam ao
chão logo em seguida. Bloquear os pontos sincrônicos de Fluxo dos
Drakkars era uma boa opção para pará-los sem precisar matá-los.
Benke, por outro lado, parecia estar descarregando toda a sua fúria
sobre os insurgentes, com Sopros poderosos em pontos fatais.
– Cuidado! – ouvi a Trovão Abenuz gritando para Lihuá e a-
pontando para o céu.
Do ar, aquele Drakkar Negro pareceu se mover como uma
sombra até Lihuá, puxando-a para dentro da escuridão que se abria
sobre seus pés.
– Não! – ouvi Alethea, que estava próxima, enquanto dispara-
va para ajudar a Mestra.
De súbito um Sopro Tectônico prendeu seus pés e, de seus flan-
cos, duas paredes de rocha maciça ergueram-se, fechando-se sobre
ela. Meu coração se encheu de dor e ódio, no mesmo instante em
que vi seu sangue se espalhar por todos os Drakkars que estavam
próximos àquelas pedras.
Tudo pareceu desacelerar. Eu ouvia o som em tom baixo, os
gritos trêmulos em uma lentidão brutal. As cenas, embaçadas, dos
nossos companheiros e amigos, matando e sendo mortos pelos in-
surgentes, pareciam se arrastar por minha mente. Eu estava em cho-
que.
– Não! – Benke urrou com todas as suas forças.
Ele, como se estivesse tomado por uma fúria incontrolável,
partiu para cima dos Drakkars próximos de onde estava Alethea,
acertando-os com Sopros Relâmpagos e, ao mesmo tempo, sendo atin-
gido por diversos outros Sopros dos inimigos. Porém, de alguma
forma, parecia que não sentia os ataques, ou pelo menos não eram
suficientes para pará-lo.
– Desgraçados! – ele berrou uma última vez, enquanto era alvo
dos Sopros de Fogo e Terra dos insurgentes pertos dele.
Como um último ataque, poderoso e sublime, Benke puxou
um violento raio dos céus sobre si mesmo e, em suas mãos, invocou
uma bola de puro plasma gelatinoso, que pulsava um poder imenso.
Aquele globo brilhava muito, cegando seus oponentes.
Assim, rapidamente ele jogou aquele globo de plasma sobre os
Drakkars inimigos e uma explosão se alastrou por um grande espa-
ço, matando pelo menos uns vinte deles.
Corri para segurá-lo enquanto caia de joelhos.
– Benke! Benke! – gritei desesperada.
– Mate eles, Long’er... – ele sorriu, golfando sangue – Mate e-
les todos por nós. Por Alethea...
Benke fechou os olhos e não pude mais sentir seu coração.
Sua vida havia se encerrado ali.
Meu peito, apertado, angustiado, não podia conter as lágrimas.
E, a visão, agora embaçada, não me permitia ver direito o que acon-
tecia, mas sabia que estávamos sendo massacrados. Aqueles malditos
insurgentes eram numerosos demais para nós.
– Estão indo para o Palácio! – ouvi os gritos de Djet.
Olhei para cima, além da planície, e vi o grupo enorme de in-
surgentes que seguiam. Haviam passado por nós e continuavam seu
caminho até o Palácio dos Protetores.
Ninhursag voou até eles e começou a atacá-los.
Os Cavaleiros, auxiliados pelas Armas de Marduk, eram os ú-
nicos que tinham uma boa vantagem e conseguiam conter os inimi-
gos mais facilmente. Porém, pelo número enorme deles, era como
tirar água do oceano.
De súbito a terra tremeu e, onde Ninhursag enfrentava os in-
surgentes em pleno voo, o chão começou a verter poderosos gêise-
res de um fogo brutal que os derretia quase instantaneamente.
– Isso! – ouvi Djet.
Como um vento, Yae passou por aqueles inimigos assustados
pelo seu Sopro de Explosão, e terminou de dilacerá-los com sua Espa-
da de Fogo. Ela estava de volta.
Porém, naquela altura, nós já éramos poucos e nosso moral
caia mais e mais, com a morte de nossos companheiros. Assim,
mesmo que ainda em batalha, estávamos sendo empurrados rapida-
mente para o fim da planície, à beira do pé da montanha onde estava
o Palácio.
Eu estava sem ação. Aquela guerra não tinha mais sentido. E-
ram tantas vidas desperdiçadas, tantos sonhos, tantos futuros felizes
jogados fora. Meus amigos, meus queridos amigos.
Olhei para os Cavaleiros que estavam na frente, na primeira li-
nha de ataque e, como se sentisse meu olhar, a Trovão Abenuz se
virou para mim e me encarou nos olhos. Seu semblante era de medo,
tristeza e desapontamento. Não comigo, mas com nosso trágico
destino.
Então, sem que tivesse tempo para tomar qualquer ação, ela
baixou sua cabeça e, de onde eu estava, pude sentir o poder dela
aumentar incontrolavelmente, ao tempo em que cada uma daquelas
pequenas argolas de energia sólida que prendiam seu cabelo se que-
brava.
Como um espetáculo de luz e energia, todo o poder acumula-
do nas argolas se integrou de volta ao corpo dela, deixando-a com os
cabelos completamente soltos, como uma juba de uma poderosa
leoa, cujos cachos pretos brilhosos voavam com o vento que se le-
vantava ao seu redor.
Uma inconcebível explosão de relâmpagos verteu do corpo da
Trovão Abenuz e ela saltou até os céus. As nuvens, completamente
negras, ecoavam trovões de um canto ao outro do horizonte. O dia
havia virado na mais escura noite, clareada apenas pelos raios que se
estendiam por todo o firmamento.
Todos os Drakkars, de ambos os lados, olharam para cima, a-
terrorizados com aquela visão de uma deusa irada, prestes a jogar
sobre a terra um castigo incalculável.
– Protejam-se! – gritou Djet, ordenando que recuássemos.
Dos céus, das mãos de minha Mestra Mawu Àjé, a Trovão
Abenuz, um poder incomensurável, composto por uma infinidade
dos relâmpagos mais poderosos que havia na existência, desceu em
meio àqueles Drakkars insurgentes que, certamente, naquele mo-
mento se arrependiam completamente da tolice que haviam feito.
No mesmo instante, com o impacto daquela energia, milhares
de Drakkars do lado dos inimigos, fossem de Primeira ou Segunda
Grandeza, foram jogados ao ar, tendo seus corpos rasgados e quei-
mados até a completa carbonização.
O horror que se instalou nos rostos dos sobreviventes era as-
sustador até mesmo para nós. Eles tremiam e recuavam aos montes,
temendo por suas vidas, fugindo da morte.
A Trovão Abenuz havia matado, em um único golpe, mais de
mil Drakkars insurgentes.
– Mawu... – ouvi Djet lamentando.
Olhei para cima e percebi que a Trovão Abenuz perdia as for-
ças e caia em queda livre. Então Soprei o Sopro de Pena e em seguida
o Sopro de Potência, saltando alto até onde ela estava, pegando-a nos
braços.
Enquanto caíamos, eu podia ver seus olhos perdendo o brilho
e seu corpo desfalecendo. O poder que havia usado estava consu-
mindo-a completamente.
– Mestra! Mestra... – eu tentei acudi-la assim que tocamos o
chão – Aguente firme...
– Está tudo bem, Long’er – ela sorriu, dizendo meu apelido
carinhoso pela primeira vez.
Não contive as lágrimas. Lihuá, Alethea, Benke... e agora a
Trovão Abenuz. Aquilo não podia estar acontecendo.
– Eles ainda são muitos... – ela tossiu, enquanto soltava sangue
pela boca – Eu vi do alto. São pelo menos mais dois mil...
Enquanto os insurgentes, em choque, mantinham-se parados
um pouco longe sem saber o que fazer, nossos companheiros corre-
ram até nós.
– Aqui... – a Trovão Abenuz pegou minha mão antes que to-
dos chegassem – Não há escolha... – ela disse entregando-me algo –
Se perdermos hoje, não haverá salvação. Os Protetores perecerão, e
a humanidade será vítima desses monstros...
– Mestra... – eu abri minha mão, vendo que ela me entregara
duas de suas argolas de energia.
– Sei que proibi você de usar o poder que desenvolveu com a
Rainha e... – ela tossiu sangue mais uma vez – Sei que pode morrer
fazendo isso; mas não há opção. Não podemos perder... Faça o que
tem que ser feito...
– Mawu! – Djet ajoelhou-se ao nosso lado rapidamente.
Yae, Ninhursag e os outros se juntaram ao nosso lado no
mesmo instante em que Mawu Àjé, a minha Mestra Trovão Abenuz,
deixou nosso mundo em direção ao Todo.
Senti o toque forte no meu ombro, em sinal de pesar. Era Me-
resamun, com os olhos cheios de lágrimas.
Olhamos para os insurgentes e vimos que eles haviam perce-
bido a morte da Trovão Abenuz. Assim, parecia que sua coragem
retornava, já que a mais poderosa de nós havia morrido.
Levantei-me e olhei Meresamun nos olhos. Poderia ser a últi-
ma vez que a via. Mesmo a Sela me mostrando um futuro, aquele
ponto em que me encontrava era claro em se tratar de um cruza-
mento decisório. Era algo que poderia mudar completamente os
eventos adiante. E, sendo dessa forma, eu mesma poderia morrer ali.
Coloquei minha mão direita por de trás dos cabelos de Mere-
samun e a puxei contra minha cabeça, encostando nossas testas.
– Long’er... – ela disse assim que a primeira lágrima escorreu
por sua bochecha.
Ela sabia o que eu ia fazer.
Sem pensar, nem perder tempo, eu beijei seus lábios por três
segundos e saí, em direção ao meio da planície.
Naquele momento os insurgentes, certos da vitória, começa-
ram a correr em nossa direção mais uma vez. Era a última, com cer-
teza. Não tínhamos mais moral, nem energia para continuar lutando.
Se eu não conseguisse fazer com que recuassem, nós morreríamos ali
mesmo e o Grande Palácio dos Protetores cairia, deixando a huma-
nidade a mercê da opressão daqueles Drakkars violentos.
Eu precisava parar todos eles. Mais que isso, imobilizá-los. U-
sar o poder do terceiro nível da Palma Servil não era o bastante. Pre-
cisava aplicar neles a técnica que eu havia criado e que Bandhu usara
com tanta maestria em batalha. Precisava bloquear seus Elementos
para que não pudessem mais Soprar contra nós. Assim nós vencerí-
amos e todos ficariam bem. Porém, deveria fazer isso muito rapida-
mente, acertando os onze pontos sincrônicos do Fluxo em cada um
deles.
– As Onze Virtudes de Jade – lembrei do treinamento de Xu-
annü.
Olhei aquelas duas argolas de energia. Última lembrança da
Trovão Abenuz. Porém, usaria somente uma, e guardaria a outra
para sempre, em sua memória, caso sobrevivesse.
Enquanto aqueles monstros corriam em minha direção, antes
que meus companheiros pudessem chegar para interceptá-los, eu
quebrei a argola e, pela primeira vez, senti o que era integrar um
poder acumulado externamente. Senti meu corpo se recompor ve-
lozmente, como se eu estivesse completamente descansada. Total-
mente recuperada.
Meu Elemento verteu controladamente e somente alguns pou-
cos relâmpagos pareceram querer me deixar. Então respirei fundo e
larguei meus braços ao longo do corpo e afastei meus pés.
Levantei meus braços circularmente pelos lados até o topo da
cabeça, descendo em “v” pela frente até juntar minhas mãos, com os
dorsos colados, sobre meu ventre, subindo-as novamente até acima
de mim e descendo rapidamente pela frente, erguendo-as pelos la-
dos, mais uma vez em círculo, até sobre minha testa, mantendo os
dorsos juntos e os dedos, indicador e médios, esticados.
Ao longe, os inimigos vinham sem piedade. Seus olhos, fero-
zes, estavam determinados a encerrar aquele confronto de uma vez
por todas. Então, à minha frente, a pouco mais de cinco metros,
levantou-se das sombras aquele mesmo Drakkar Negro que levara
Lihuá para a morte. Porém, antes que ele pudesse fazer qualquer
ataque, eu girei meus punhos até se tocarem de novo, finalizando o
movimento da Palma Cíclica.
Um badalo muito poderoso ressoou por todo o Universo e, a
partir de mim, todo o firmamento se estendeu, com suas estrelas e
galáxias, enquanto um cântico profundo vibrava pelas dimensões.
Eu era, naquele momento, e seria, para quase todo o sempre, o
ser vivo mais poderoso que existia na face da Terra. E eu precisava
ser. Sabia que tudo o que faria ali, repercutiria em um futuro distan-
te, mudando a história, preparando terrenos para novos Drakkars,
tornando-me uma lenda. E, mais que isso, aproximando-me mais e
mais do meu destino de protetora da criação, acumulando poder
para enfrentar o Grande Escorpião.
De súbito, a Sela me mostrou uma visão: eu estava em uma
caverna, sentada sobre uma flor de lótus, enquanto um pequeno
grupo de jovens e destemidas Drakkars se aproximava de mim e,
nelas, eu podia ver que tudo o que eu tinha planejado até aquele
momento, havia dado certo. Eu tinha feito a diferença que precisava
fazer.
Então, eu realmente não podia perder aquela batalha.
Assim, conforme eu me preparava para atacá-los, tudo parecia
ir desacelerando gradualmente até quase parar.
Assumi a postura inicial de minha técnica, com o quadril de
lado e a perna esquerda apontada para frente. As mãos levemente
espalmadas em direção aos inimigos mantinham-se de forma que a
esquerda, quase completamente esticada, passava por cima da direita,
que se arqueava um pouco em direção à esquerda.
Fora da realidade, pude sentir cada um daqueles Drakkars que
vinham em minha direção. Cada um dos pontos sincrônicos.
Então, em um único pensamento, deixei o Fluxo passar por
mim e me guiar, partindo em uma velocidade jamais experimentada,
golpeando cada um dos pontos, como um feixe de luz azul, através
de todos aqueles milhares de insurgentes que não podiam fazer nada
além de esperar que eu finalizasse meus movimentos.
Eu nunca havia sentido tamanho poder, nem me movido da-
quela forma. Era quase como se eu fosse pura luz e meus golpes
superassem o corpo dos Drakkars, acertando internamente aqueles
pontos vitais de energia.
Naquele momento eu era como um pensamento; talvez mais
rápida, pois os meus ataques, que cobriram a extensão de todos os
inimigos, duraram uma fração de segundo. E, assim que encerrei,
trespassando aquela massa de insurgentes até o outro lado, senti que,
na ponta contrária, próximo aos meus companheiros, o primeiro
corpo começava a se desintegrar, sendo seguido por todos os outros.
Uma dor cresceu dentro de mim violentamente conforme eu
sentia cada uma daquelas vidas desaparecerem, agonizando sem po-
der gritar, deixando a existência para nunca mais voltar.
De alguma forma, usar a técnica de golpear os pontos sincrô-
nicos de Fluxo em conjunto com a Palma Cíclica, foi como um Exe-
cutor do Protetorado usando a “Palma Divina do Servo” em todos eles
de uma única vez.
Eu não queria aquilo. Eu não queria matar todos eles.
Cai de joelhos e aquela angústia me sobrepujou de vez. O cho-
ro veio sem se segurar e eu me desesperei em prantos. Aquela dor
parecia me consumir. Quantas mortes desnecessárias haviam acon-
tecido naquela planície, quantas famílias haviam sido destruídas,
quantas crianças não teriam um futuro.
Senti o ar cortar rapidamente perto de mim e logo Meresamun
estava ao meu lado.
– Long’er, você está bem? – ela tentou me levantar.
Olhei para nossos amigos. Éramos menos de cem. Pouquíssi-
mos sobreviventes daquele massacre desumano.
De súbito, pegando-nos de surpresa, diversos vultos saltaram
das montanhas em nossa direção e, sem que pudéssemos contra-
atacar, devido ao desgaste e ao susto, aqueles traiçoeiros começaram
a aplicar a “Palma Divina do Servo” em todos os Drakkars que estavam
ali. Matando um por um.
– Não... – eu disse, pondo-me de pé.
Havia entendido tudo. Tudo fazia sentido.
Os Protetores realmente haviam ensinado os primeiros insur-
gentes. Eles haviam planejado aquela guerra para que nós nos matás-
semos, de forma que restassem poucos de nós, o suficiente para que
eles pudessem terminar o trabalho sem medo de sobrar qualquer
um.
Abruptamente senti uma presença se aproximar veloz de nós
duas e, ao olhar, vi minha vovó Wu Mei.
– Minha Long’er... – ela disse – Fuja agora! É uma emboscada!
– Por quê? – perguntei em choque e confusa.
– Eu não sabia... – ela disse aos prantos – Eu juro... Fuja!
– Não! – gritei assumindo a forma de Primeira Grandeza –
Meus amigos! – virei na direção deles.
Porém, antes que eu pudesse seguir até eles, que eram bruta-
mente assassinados sem piedade pelos Protetores, os Executores e as
duas Mestras, senti, pelas minhas costas, uma explosão incrivelmente
poderosa de Essência Primordial, que jogou a Meresamun e a mim,
para milhares de metros dali, fazendo-nos perder a consciência.
Minha vovó havia nos salvado daquela emboscada, naquele
terrível evento que ficou conhecido, por toda a nossa história, como
a Grande Guerra Drakkar.
—————|XIX|—————

O FIM DE UM CICLO

ntão, minha querida aprendiz, naquele dia, duas forças incon-


cebíveis enfrentaram-se e mais de seis mil Drakkars perderam
suas vidas da forma mais grotesca e brutal que se poderia i-
maginar; da qual Meresamun e eu fomos as únicas sobreviventes. E
para quê? Qual o sentido de tantas mortes? Até hoje, mesmo com
todo o conhecimento que adquiri, ainda não entendo.
Enfim, os Protetores tinham recobrado seu poder completo
sobre os novos e jovens Drakkars que nasciam e, claro, todo o co-
nhecimento da forma Imane e das Mansões Lunares foi destruído.
Completamente dizimado pelo medo de que outra insurgência acon-
tecesse no futuro.
Assim, Meresamun e eu regressamos à Ordem de Sekhem nas
Terras Negras e, por muitos anos, nós nos dedicamos a ela, até que
o poder dos Protetores, que crescia enormemente, começasse a a-
meaçar a sua existência. Dessa forma, a Rainha Leonesa e suas Leoas
decidiram desaparecer nas areias do tempo mais uma vez.
Eu, claro, tinha muito que fazer e Drakkars para vigiar. Não
podia desaparecer daquela forma, pois não era apenas uma Leoa, era
uma Drakkar, e uma humana. Minhas obrigações iam muito além do
que elas podiam imaginar. E assim foi tudo como aconteceu durante
aquelas épocas.
– Por favor, Mestra, diga-me que você viveu muitos anos com
Meresamun – riu minha aprendiz, de queixo franzido.
De tudo o que eu havia contado da Grande Guerra Drakkar,
do Grande Escorpião que ameaça a criação, do qual eu ainda busca-
va o conhecimento e as Selas para combater, o que mais lhe chamara
a atenção tinha sido meu romance com minha irmã Leoa.
– Meresamun e eu – eu disse rindo – depois da Ordem desa-
parecer, passamos o resto de sua vida peregrinando pelo mundo;
semeando o conhecimento Drakkar perdido para que, dessa forma,
como veio acontecer, chegasse o dia de hoje. Ela foi minha melhor
companhia e eu amei muito. Estive com ela até que se uniu ao Todo
junto com as outras Mestras da Ordem de Sekhem.
– Você merecia um pouco de felicidade – disse minha apren-
diz – Mas no fim, não se casou com Yu – gargalhou.
– É verdade – ri – Porém eu o vi, anos depois. Estava casado,
com lindos filhos e uma ótima esposa. Era muito feliz... e – senti um
estrondo ecoar no Universo como uma onda poderosa que quebra
nas rochas à beira mar – Está na hora... Na sua hora – disse.
Era chegado o momento de sua partida, depois de todo o seu
treinamento comigo. Ela estava apta a cumprir sua parte e, por um
instante, ela superaria tudo o que eu já havia feito. Ela era realmente
um prodígio. A primeira e única de sua espécie.
– Já? – ela perguntou desanimada – Mas você não me disse se
encontrou seu pai.
– Muitos anos depois, em um local ermo, ao norte das Terras
Negras, eu o encontrei – contei – Ele estava bem, vivendo uma vida
tranquila, com uma nova esposa, e uma nova família. Fiquei feliz,
pois assim como ele, minha mãe também tinha reconstruído sua vida
e eu, bem, eu me mantive longe deles, para mantê-los seguros.
– Você é incrível, Mestra. Não acredito que já preciso ir... – ela
apertou os lábios.
Certamente queria ficar mais ali. E, eu, no fundo, amaria que
ficasse. Sua companhia era a melhor em muito tempo.
– Não sente falta de suas amigas? – brinquei.
– Muito – ela franziu o queixo.
– Então... Esse é o momento de ir salvá-las... – disse.
– Obrigada por tudo, Mestra – ela disse me abraçando – Vou
sentir sua falta.
Eu a abracei com força. Tinha por ela um carinho enorme. E,
estava feliz por saber que a veria novamente, mesmo sem dizer isso
para ela.
– Quando eu chegar lá, é só meter a porrada na cara dela? –
ela riu.
– Isso – eu disse, achando graça do termo – Até ela mudar de
forma, como expliquei. E, me prometa que não vai exagerar na téc-
nica. Use-a somente uma vez.
Ela franziu o queixo uma última vez, olhando-me da porta do
que sobrara do outrora belíssimo Grande Palácio dos Protetores.
– Adeus, Mestra – ela disse suspirando, enquanto seus olhos
brilhavam rapidamente por causa das breves lágrimas que se forma-
ram.
– Boa sorte... – eu disse, enquanto ela partia embora como um
borrão de vento.
Tudo estava acontecendo como planejado.
– Boa sorte, minha querida Ryujin – disse, por fim.

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