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A ESCRITA DE NOSSA HISTÓRIA

Francisca Helena1
Cayo de Sousa Alves2

Resumo

O projeto A Escrita de Nossa História nasce com a perspectiva de fomentar aos


alunos a possibilidade de serem narradores/escritores de sua história e de sua localidade.
Nele, o aluno é colocado como sujeito de seu tempo que pensa e escreve sobre seu
tempo. Além de se preocupar com a criação de uma memória coletiva, o projeto almeja
ser uma ferramenta pedagógica de melhoramento da escrita, leitura e interpretação de
textos. Para isso terá subsídio de outras áreas do conhecimento como Linguagens.
Metodologicamente os alunos serão acompanhados por professores de humanas e
linguagens da EEMTI Vicente de Paulo da Costa 3 na escrita de seus textos, até o
compêndio dos textos e feitura de um livro. O projeto se estrutura em estudos de Michel
de Foucault sobre o poder que existem nos discursos, a dualidade memória/história na
concepção de Michel de Certeau e as novas diretrizes educacionais interdisciplinares
dispostas na Base Nacional Curricular Comum – (BNCC).

Palavras-chave: Memória. Escrita. Interdisciplinaridade.

Introdução

O passado dos homens, adormecido pelo tempo, tem em sua teia de poder
sustentada pelo discurso e pela memória. A fala e a escrita de história apaga, prende no
esquecimento homens e exalta outros. É importante entender que os discursos tem
poder, como já alertava Michel de Foucault em sua obra A ordem do Discurso4. Quem
narra o passado tem o poder de matar e dar vida. Heróis são construídos com base na
memória produzida por aqueles que tem o poder da fala em suas mãos. Do que nos
lembramos quando pensamos em luta pelo fim da escravidão. Por que em nosso
relicário de memórias nos vêm a consciência a Princesa Isabel, Zumbi dos Palmares, e
acabamos por não sermos conscientes de tantos outros que lutaram por essas causas? A
1
Especialista em Psicopedagogia pela Faculdade Padre Dourado – FACPED; Licenciado em Geografia
pela Universidade Estadual do Vale do Acaraú - UVA.

2
Licenciado em Filosofia pela Universidade Estadual do Vale do Acaraú - UVA.
3
Localizada na comunidade de Juritianha – Acaraú – Ceará.
4
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2012.
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memória de um povo é espaço de luta e pode. Michel de Certeau em sua obra, A escrita
da história5 já nos alertava
O sonho de todo guerreiro na Grécia era que seu no me fosse entoado nos
cânticos bélicos após sua morte. Aquiles, na obra de Homero, Ilíada, foi convencido por
sua mãe, a lutar na Guerra de Troia por meio desse argumento. Ora, rapsodos, griôs,
menestréis, todos em seu tempo e espaço histórico tinham o dever de proteger a
memória dos antepassados e difundir essas informações para os mais jovens.
Na atualidade, a aceleração do cotidiano, em detrimento do avanço tecnológico é
bastante perceptível. Essa aceleração está intrinsecamente ligada a forma como nossa
história está sendo contada. A obsolescência programada não viceja apenas nos
produtos. As relações sociais, humanas, a memória do que já foi, é rapidamente
suprimida pelo novo. Se vive um tempo agitado, difícil de detectar a mudança, a partir
do momento em que a mudança é colocada como chave para o sucesso; vista como algo
habitual e necessário para a sobrevivência à modernidade, o homem deve se reinventar a
cada dia.
Deixe que as mãos invisíveis do mercado proposta por Adam Smith guiem seus
rumos. O passado é passado. Não precisa ser fonte de reflexão. Não se sabe para onde
está indo. Na verdade, nem se sabe se está indo. Muitos jovens tem suas vidas ceifadas
ou presas ao eterno retorno de Nietzsche, ou seja, tem suas vidas programadas e
controladas por uma teia bem complexa e danosa. Existem mudanças constantes dentro
de uma esfera materialista, mas as mudanças no cotidiano, podem ser percebidas? ´
Perceba que comumente se fala em problemas psicossomáticos como depressão,
ansiedade. Isso são fenômenos de nosso tempo? Por que não se enfatizava isso há
décadas atrás. Não se nega que o fenômeno não exista. O segredo é saber como ele
aparece, é transmitido. Pode um fenômeno como a depressão estar ligado à difusão em
massa da existência do problema. Perceba que o tempo histórico de uma sociedade é
tecido a todo instante. No entanto a forma como ele aparece para nós, em textos e
imagens, pode estar distante do real e vivido.
Quando temos a chance de exercitarmos a interpretação real do que ocorre em
nossos dias. Quando se pode refletir com textos nascidos das pessoas que compõem esse
cotidiano, nos aproximamos da vida como ela é, como diria Nelson Rodrigues. Essa
vida nua e crua que é pintada todos os dias, que não aparecerá com clareza aos jovens

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Michel de Certeau. A Operação Historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio
de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.
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da segunda metade desse século. Diz-se isso porque o que é capturado do passado é o
selecionado. Como um farol em um oceano à noite, poucas partes serão expostas pela
luz. O passado é manipulável e alimenta governos e líderes que almejam o
autoritarismo. É necessário no presente ter entendimento sobre o vivido e produzir para
não ser esquecido. A escrita aqui é fundamental nesse processo de cristalização do que
foi.
Esse projeto nasce desse anseio em entender o mundo em que se vive e as
transformações latentes que se desdobram a cada dia. Faz-se necessário perceber a
passagem do tempo e suas tessituras, assim não se cai no embotamento mnemônico. A
história como área do conhecimento que discute o homem e sua relação com o tempo é
fundamental para ofertar aos alunos estudos sobre esses fenômenos históricos modernos
que aceleraram o tempo e fizeram o indivíduo perder a sensação da mudança.
Há de se destacar também o papel das linguagens dentro desse projeto. Para se
perceber a mudança é necessário resgatar o passado. Compreender suas estruturas
temporais: como se vive em determinado tempo? O intuito do projeto é, então, construir
material arquivístico produzidos pelos próprios estudantes que falem sobre o presente
imediato. A produção dos arquivos ocorrerá por meio de diários pessoais e entrevistas
com pessoas mais velhas das localidades adjacentes à escola, afim de oportunizar o
debate entre as diversas subjetividades.
Fotografias e vídeos, atualmente são os arquivos mais produzidos pela
sociedade. Entretanto, o projeto se utiliza da escrita para a produção de um inventário de
textos que narrem o passado local por meio de uma leitura do presente. Além de
conceder o poder de fala sobre a memória do passado, o projeto visa desenvolver as
habilidades na escrita e leitura dos jovens. Sem esquecer o papel cidadão no qual se
insere o projeto, à medida que oportuniza ao jovem um momento de envolvimento com
o vivido por cada comunidade. Seus problemas, suas conquistas, suas necessidades
saem do sono do esquecimento e ganham vida nos textos, podendo até serem expostos
posteriormente em espaços públicos.

Metodologia

A execução do projeto se desenvolve em etapas distintas. Em um primeiro


momento os professores Diretores de Turma divulgam os projetos nas suas respectivas
salas. A participação no projeto gera, posteriormente, pontuação nas disciplinas de
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humanas e linguagens. É importante estabelecer um limite de alunos, entre 10 a 20 por


ano. Isso fica mais fácil de organizar e desenvolver com mais eficácia o projeto.
Após o momento de escolha desses alunos, temos a fase de apresentação do
projeto feita pelo professor ou professores responsáveis. Através de uma reunião
bastante didática é exposta a metodologia que será aplicada no decorrer do projeto e
seus objetivos aos alunos selecionados. Esse é um momento de esclarecimento e
motivação para a construção do projeto. Cada aluno receberá um diário de bordo. Esse
instrumental será utilizado ao longo do projeto.
Numa segunda etapa os alunos receberão aulas específicas de gravação e edição
de vídeos para serem utilizadas na produção dos vídeos. Essas aulas podem ser feitas
pela responsável da sala de Multimeios ou LEI 6. Cada aluno será instruído a produzir
cinco entrevistas com pessoas mais velhas de suas respectivas comunidades. Essa fase
se dá por meio do levantamento de informações. As entrevistas gravadas serão usadas a
posteriori para darem subsídio aos textos feitos pelos alunos. As entrevistas podem ser
feitas num período de quinze dias. Após sua feitura dá-se a fase de escrita.
Nessa próxima fase o aluno deve produzir diariamente impressões sobre o seu
dia a dia. O estudante se utiliza das entrevistas para construir paralelos entre o passado e
o presente, além de expor nos textos seus anseios e sentimentos sobre nosso tempo. Essa
fase pode durar um mês. Os textos produzidos passam por revisão do professor de
português semanalmente e todas as observações são apresentadas aos alunos. Nessa
etapa erros na escrita dos textos são corrigidos, sem interferir no pensamento do aluno.
O intuito é qualificar sua escrita no decorrer do projeto.
Após essa fase, os textos produzidos são reunidos em um livro que ficará
disponível aos professores como instrumento pedagógico. Além disso esses livros serão
distribuídos nas escolas municipais. Todo esse processo culmina nessa produção
literária. O livro dá a possibilidade de: entender nossos dias através de diversos olhares,
captar as mudanças no cotidiano de cada localidade, exercitar a leitura e escrita dos
estudantes.

Desenvolvimento

O projeto foi implementado no início desse ano e tinha como objetivo inicial ser
finalizado dentro do primeiro semestre. No entanto, diante das mudanças trazidas pela
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Laboratório Educacional de Informática.
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pandemia do COVID-19, as atividades foram suspensas nesse período de isolamento


social. As dificuldades de manusear os textos produzidos pelos alunos, assim como a
proibição de gravar as entrevistas nas comunidades são alguns empecilhos que se
levantaram com o aparecimento da doença. Não há como implantar o projeto
virtualmente, pois alguns alunos têm dificuldade de acesso à internet, em alguns casos.
Acredito que nesse ano não haverá como implantar o projeto dada as condições
sociais que vivemos. Fica então a esperança para o próximo ano, haja vista a
importância do projeto para o desenvolvimento de uma memória coletiva das
localidades e melhoramento das práticas de leitura, escrita e interpretação de texto.

Considerações finais

A Escrita de Nossa História está em consonância com as diretrizes educacionais


para desse século, a partir do momento que prima pela interdisciplinaridade dos
conteúdos e um ensino integral preocupado no desenvolvimento holístico das
potencialidades do ser. A interação com o social é fundamental em uma educação de
qualidade. Em seu bojo, a proposta pedagógica almeja melhorar as habilidades de
escrita e interpretação, dada a dificuldade de muitos alunos nessa área educativa.
Acreditamos que após esse processo de isolamento social vivido, será possível a
aplicação eficaz da proposta. A escola precisa disponibilizar meios e estratégias de
ensino transformadores que primem por um ensino de perto, preocupado com a
realidade do aluno. Reconhecer por meio da escrita o vivido é registrar o presente. O
presente é fonte de conhecimento. Mesmo difícil de captá-lo, fora dos muros da escola,
o mundo se desenvolve. Problemas surgem, desaparecem, uma juventude vem, outra
vai. É preciso compreender que o tempo presente tem suas características, que
rapidamente serão tragadas pelo movimento dos relógios.

Referências

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. Disponível


em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNC C_20dez_site.pdf. Acesso em:
07 de agosto de 2020.
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FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France,


pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São
Paulo: Edições Loyola, 2012.

CERTEAU, Michel de. A Operação Historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A


Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.

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