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Santo Agostinho. Confissões (12ª Ed.). Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio


de Pina. Petrópolis: Vozes, 1997.

Livro IX – Cap. VII (p. 199-200)


O canto na igreja. Prenúncios da perseguição.

Não havia muito tempo que a igreja de Milão começara a adotar o consolador e edificante
costume dos cânticos, com grande regozijo dos fiéis que uniam num só coro as vozes e os
corações. Havia um ano, ou pouco mais que Justina, mãe do jovem imperador Valentiniano,
perseguia o Vosso servo Ambrósio por causa da heresia com que fora seduzida pelos arianos.

A multidão dos fiéis velava na Igreja, pronta a morrer com o seu Bispo, o Vosso servo. Minha
mãe, Vossa serva, que era a principal nas vigílias e na inquietação geral, vivia em contínua
prece. Nós mesmos ainda frios sem o calos de Vosso espírito, nos comovíamos com a
perturbação e consternação da cidade.

Foi então que, para o povo não se acabrunhar com o tédio e a tristeza, se estabeleceu o canto
de hinos e salmos, segundo o uso das Igrejas do Oriente. Desde então até hoje tem-se mantido
entre nós este costume, sendo imitado por muitos, por quase todos os Vossos rebanhos de fiéis
espalhados no universo.

Ao Vosso Bispo, que acabo de nomear, manifestastes nesta conjuntura, por uma visão, o lugar
onde estavam escondidos os corpos dos mártires Gervásio e Protásio, que por tantos anos
conservastes incorruptos no tesouro dos Vossos segredos para no momento oportuno os
descobrirdes, a fim de refreardes o furor de uma simples mulher, embora imperatriz. Com
efeito, descobertos e desenterrados os corpos, quando os transportavam com todas as honras
à Basílica Ambrosiana, uns possessos vexados por espíritos imundos, foram curados, conforme
confessaram os mesmos demônios.

Também um cego de há vários anos, cidadão muito conhecido na cidade, tendo perguntado a
causa das manifestações de regozijo entre o povo, informado dos acontecimentos levantou-se e
pediu ao guia que o levasse para junto dos corpos dos mártires. Chegando lá, pediu licença
para tocar com um lenço o ataúde dos Vossos “Santos cuja morte fora preciosa aos Vossos
olhos”. Logo que tocou com o lenço e o levou aos olhos, estes se abriram subitamente.

Propagou-se logo a fama do milagre, elevando-se até Vós ardentes e esplendorosos louvores. O
coração da perseguidora, ainda que não tenha se rendido à fé da salvação, contudo reprimiu o
furor na sua luta contra nós.

Graças Vos dou, ó meu Deus! Donde chamastes? Para que parte chamastes a minha memória,
a fim de confessar estes acontecimentos que, apesar da sua importância, omitira por
esquecimento?

Ainda não corria atrás de Vós, quando deste modo se exalava o aroma das Vossas frangâncias,
Por isso mais chorava ouvindo os Vossos hinos. Suspirava outrora por Vós, e enfim, respirava
quanto o permite o ar de uma choça de colmo.

Livro X - CAPÍTULO XXXIII (p. 250-251)


O prazer do ouvido

Os prazeres do ouvido prendem-me e subjugam-me com mais tenacidade. Mas Vós me


desligastes deles, libertando-me. Confesso que ainda agora encontro algum descanso
nos cânticos que as Vossas palavras vivificam, quando são entoadas com suavidade e
arte. Não digo que fique preso por eles. Mas custa-me deixá-los quando quero. Para
que essas melodias se possam intrometer no meu interior, em companhia dos
pensamentos que lhes dão vida, procuram no meu coração um lugar de certa
dignidade. Mas eu apenas concedo o que lhes convém.
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Às vezes, parece-me que lhes tributo mais honra do que a conveniente. Quando ouço
cantar essas Vossas santas palavras com mais piedade e ardor, sinto que o meu
espírito também vibra com devoção mais religiosa e ardente do que se fossem
cantadas de outro modo. Sinto que todos os afetos da minha alma encontram na voz e
no canto, segundo a diversidade de cada um, as suas próprias modulações, vibrando
em razão de um parentesco oculto, para mim desconhecido, que entre eles existe. Mas
o deleite da minha carne, ao qual não se deve dar licença de enervar a alma, engana-
me muitas vezes. Os sentidos, não querendo colocar-se humildemente atrás da razão,
negam-se a acompanhá-la. Só porque, graças à razão, mereceram ser admitidos, já se
esforçam por precedê-la e arrastá-la! Deste modo peco sem consentimento, mas
advirto depois.

Outras vezes, preocupando-me imoderadamente com este embuste, peco por


demasiada severidade. Uso às vezes de tanto rigor, que desejaria desterrar dos meus
ouvidos e da própria Igreja todas as melodias dos suaves cânticos que ordinariamente
costumam acompanhar o saltério de Davi. Nestas ocasiões, parece-me que o mais
seguro é seguir o costume de Atanásio, Bispo de Alexandria. Recordo-me de muitas
vezes me terem dito que aquele Prelado obrigava o leitor a recitar os Salmos com tão
diminuta inflexão de voz que mais parecia um leitor que um cantor.

Porém, quando me lembro das lágrimas derramadas ao ouvir os cânticos da Vossa


Igreja, nos primórdios da minha conversão à fé, e ao sentir-m agora atraído, não pela
música mas pelas letras dessas melodias, cantadas em voz límpida e modulação
apropriada, reconheço, de novo, a grande utilidade deste costume.

Assim flutuo entre o perigo e o prazer e os salutares efeitos que a experiência nos
mostra. Portanto, sem proferir uma sentença irrevogável, inclino-me a aprovar o
costume de cantar na igreja, para que, pelos deleites do ouvido, o espírito, demasiado
fraco, se eleve até aos afetos de piedade. Quando, às vezes, a música me sensibiliza
mais do que as letras que se cantam, confesso com dor que pequei. Neste caso, por
castigo, preferiria não ouvir cantar. Eis em que estado me encontro.

Chorai comigo, chorai por mim. Vós que praticais o bem no Vosso interior donde
nascem as boas ações. Estas coisas, Senhor, não Vos podem impressionar, porque não
as sentis. Porém, ó meu Senhor e meu Deus, olhai para mim, ouvi-me, vede-me,
compadecei-vos de mim e curai-me. Sob o Vosso olhar transformei-me, para mim
mesmo, num enigma que é a minha própria enfermidade.

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