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e 12.181; Caixa 167, doc. 12.456; Caixa l71, doc. 12.680; Caixa 181, doc. 13.210; Cai-
xa 185, doc. 13.549; Caixa 187, doc. 13.523; Caixa 199, doc. 14.092; Caixa 216, doc.
14.905; Macau, Caixa l7, doc. 29.
novcmhro dc l752. lnz MlàNl)()NÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na Era Pom-
bulinu. VUL l. p. 4()8~4l4. Apresentação 13
Fundo Maria Stella Libânio Christo. Acervo Escritores Mineiros. Biblioteca Central da
(século XVIII)
Univcrsidade Federal de Minas Gerais - UFMG.
ANA CAROLINA VIOTTI
'l'abela 3. Caderno de receitasde Maria Guimarães (CRMG), Ouro Preto, 1924. Fonte:
Fundo Maria Stella Libânio Christo. Acervo Escritores Mineiros. Biblioteca Central da Alimentos medicamentosos e remédios temperados:
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. a relação entre alimentação e saúde no Brasil holandés oooooooooooo
Gerais - UFMG.
A água e o preparo de alimentos na Belém do Pará
no século XIX ..............
88
CONCEIÇÃO MARIA ROCHA DE ALMEIDA
ADIiLAIDE GONÇALVES
liURÍPEDES FUNES A escrita culinária e a transmissão de saberes .............................................
Sabores do Brasíh plantas e produtos alimentícios ............................... A dietética nos livros de cozinha e os hábitos alimentares
- 1900 a 1960 .....
471
lnterações culturais e o lugar simbólico do alimentoz SOLANGE MENEZES DA SILVA DEMETERCO
o pão da terra na América portuguesa
235
A Cozinha em Belém: tradiçôes culinárias Acolher, receber, alimentar (Rio de Ianeiroz 1808-1823) 565
e práticas alimentares mestiças
341 LHILA MEZAN ALGRANTI
SIDIANA DA CONSOLAÇÂO FERREIRA DE MACÊDO
Sobre o comer e 0 bem receberz alimentação
A mesa de diferentes agentes sociais: espaços e alimentos ................. c hospitalidade no Rio Grande do Sul oitocentista
u partir de narrativas de viagem 589
Alimentação na vida marítima, séculos XVI-XIX ...................
liVlíR'l'ON LUIZ SIMON
JAIME RODRIGUES lil .l/\Nl*', CRISTINA DECKMANN FLECK
A coreograña de louças e alimentos nas mesas do Brasil
(1860-l930) .................
615
~
líLIANli MORELLI ABRAHAO
633
(Iomcr fora dc casa ...............
RAFAHLA BASSO
o apossar-se de espaço próprio, sua cozinha, sua comida e, assim, sua idcn~
MESA FARTA, GOSTOS DIVERSOS. tam, também, perceber, nos domicílios dessas famílías de maiores posses, uma
(I()ZINHA E PRÁTICAS ALIMENTARES DA ELITE fartura alimentar, ausente nas expectativas de muitos estudos que buscam a
MINEIRA (SÊCULOS XVIII E XIX) compreensão da comida em nosso passado, desatentos à documentação farta
Iosé Newton Coelho Meneses des alimentares no Brasil tem sido pródiga em construir unidades territoriais
A
e africanos, quando deveriam atentar-se ao diálogo aberto dessa diversidade
culturaL por sua vez dialogante com as condições históricas, sociais e ambien-
hístória nos possibilita encontrar o tempo passado e tentar com-
'eendê-lo, capturá-lo em parte para
tais construídas no percurso desses encontros. O complexo e dinâmico diálogo
conhecer melhor o acontecido. Ela nos
entre essas heranças, por sí só diversas em suas especiflcidades, é mais rico que
)ssibilita visitar as casas de D. Anna Perpétua Marcelina da Fonseca e de
ão Azevedo Pereira, no Tejuco do ñnal do século XVIIL ou, ainda, a
a simplicidade interpretativa que as trata como unidades em si. Foram muitos
resi-
)mo expressou Iean~Pierre Vernant, “ao cozinhar o alimento, esse fogo se; 2
A vívência da família escrava em torno de seu “fogo” pode ser pensada em SLENES,
ndário, derivado, artiñcial em relação ao fogo celeste, distingue os homens
Robert W Na senzala, umaflor. Esperanças e recordações na formação da família escrava.
Brasil sudeste, século XIX. Rio de Ianeiroz Nova Fronteira, 1999.
us bichos e os instala na vida civilizada”1. O fogo, também, simbolizava,
3
Trataremos de parcela da população de maior poder econômíc0, nominada por nós, aqui,
de elite. Não queremos denominá-la de “homens bons”, com o objetivo de não esquadrinhar
ra parcela enorme da população de homens escravizados vindos da África, de forma absoluta uma camada social muito diversa, composta de proprietários de escravos,
mas de grande diversidade quanto à ocupação que desempenhavam na vida socíaL Para
deñnição de “homens bons” em sociedades de Antigo Regíme, ver o verbete de Guilherme
'ERNANT, Jean-Pierre. Mito e relígião mz Grécia Antiga. Trad. Ioana Angélica D,Avila
Pereira das Neves em: VAINFAS, Ronaldo (Direção). Dicionário do Bmsil Colonial (1500-
rlo. São Paulo: Martíns Fontes, 2006, p. 64.
1808). Rio de Ianeiroz Objetiva, 2000, p. 284-286.
MESA FARTA, GOSTOS l)IV| IHUN
o apossar-se de espaço próprio, sua cozínha, sua comída e, assim, sua idcn
MESA FARTA, GOSTOS DIVERSOS. tam, também, perceber, nos domicílios dessas famílias de maiores posses, uma
COZINHA E PRÁTICAS ALIMENTARES DA ELITE fartura alimentar, ausente nas expectativas de muitos estudos que buscam a
MINEIRA (SÉCULos XVIII E XIX) compreensão da comída em nosso passado, desatentos à documentação farta
Iosé Newton Coelho Meneses des alimentares no Brasil tem sido pródíga em construir unidades territoriais
A
e africanos, quando deveriam atentar-se ao diálogo aberto dessa diversidade
culturaL por sua vez dialogante com as condíções históricas, sociais e ambien-
história nos possibilita encontrar o tempo passado e tentar com-
tais construídas no percurso desses encontros. O complexo e dinâmico diálogo
preendê-lo, capturá-lo em parte para conhecer melhor o acontecido. Ela nos
entre essas heranças, por si só diversas em suas especiñcidades, é mais rico que
possibilita Visitar as casas de D. Anna Perpétua Marcelina da Fonseca e de
a símplicidade interpretativa que as trata como unidades em si. Foram muitos
Ioão Azevedo Pereira, no Tejuco do final do século XVIIL ou, ainda, a resi-
os índios, os africanos e os portugueses a expressar em suas comídas distintas
dência do Capitão Antônio Gomes de Abreu, em Catas Altas do Mato Dentro,
formas de vivenciar a própria cultura e o encontro delas, em território ameri-
na segunda década dos Oitocentos. As fontes que nos dizem dessas “moradas
cano. Sobretud0, é o encontro cultural 0 que importa.
de casas” nos permitem ler uma grande díversidade de bens adquiridos para
Frequentemente, tais estudos ensaísticos optam por vieses de interpreta-
dar conforto ao morador e nos levam a uma tentativa de adentrar suas co-
ção onde, normalmente, veem o homem português se adaptando e “se servin-
zinhas, aproximando-nos do fogão com fog0, sinal de cocção e de vivências.
do” das culturas autóctones e nada enxergam das várias e simultâneas trocas de
AñnaL o fogo é a marca do domínio deste lugar por mulheres e por homens.
Como expressou Jean-Pierre Vernant, “ao cozínhar o alimento, esse fogo se- 2
A vivência da família escrava em torno de seu “fogo” pode ser pensada em SLENES,
Robert W. Na senzala, umaflor. Esperanças e recordações na formaçâo da família escrava.
cundário, derivado, artiñcial em relação ao fogo celeste, distingue os homens Brasil sudeste, séculoXIX. Rio de Ianeiro: Nova Fronteíra, 1999.
dos bichos e os instala na vida civilizada”1. O fogo, também, simbolizava,
3
Trataremos de parcela da população de maior poder econômico, nominada por nós, aqui,
de elite. Não queremos denominá-la de “homens bons”, com o objetivo de não esquadrinhar
para parcela enorme da população de homens escravizados vindos da África, de forma absoluta uma camada social muíto diversa, composta de proprietários de escravos.
mas de grande diversidade quanto à ocupação que desempenhavam na vida social. Pam
deñnição de “homens bons” em sociedades de Antigo Regime, ver o verbete de Guilhermc
'
VERNANT, Iean-Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga. Trad. Ioana Angélica D,Avila Pereira das Neves emz VAINFAS, Ronaldo (Direçâo). Dicionário do Brasil Colonial 15007
(
Melo. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 64.
1808). Rio de Ianeiroz Objetiva, 2000, p. 284-286.
IOSF NFWTON (ÍOELHO MENESES MESA FARTA, GOSTOS DlVERSOS
instrunwntais, de saberes e de fazeres. Buscam formatar “unidades culínárias” A mesa farta dos habitantes abastados das Minas é o nosso objeto rc-
quando deveriam compreender a diversidade de manifestações no àmbito da flexivo, em análise de uma amostra restríta, porém signiñcativa. Para com-
comida^'. Neste texto, a comida buscará ser compreendida como práticas e dis- preender a alimentação cotidiana nas Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX,
cursos de um tempo, que concorrem para tradições complexas e dinâmicasã buscaremos em algumas fontes documentais específicas indícios do que se co-
Daniel Roche solicita-nos atenção na interpretação sobre o que comiam gostos, gestos, ritos e tantas manifestações culturais quanto à quantidade da
nossos antepassados. Para ele, mesmo com documentação abundante e rica, o oferta alimentar que se coloca sobre ela. As práticas e condutas alimentares são
quadro da alimentação cotidiana “permanece abstrato e incerto”, pois “a reali~ para a Hístória e os historiadores instrumento primordial para a compreensão
dade era rnuito mais diversa e difícil de conhecer”6. Em seu estud0, atentou de identidades e de economias, de sociabilidades e de concepções de saúde, de
para o fato de que os documentos tendem a nos mostrar a monotonia de in- simbologias e de práticas de cocção. Com isso, apreende-se a mesa de forma
gredientes, de preparações e de artefatos, além de “certa grosseria do paladar” mais complexa onde, espacíal e socialmente, se enquadram serviços e oñciais
e desequilíbrio entre “a deñciência e o excesso”7. Ao historiador, no entanto, que os elaboram, lugares da domesticidade em torno das práticas alimentares
é necessárío reconhecer a díñculdade em aquilatar as práticas banais, ou seja, - como o quintaL a cozinha e a sala -, bem como papéis desempenhados por
um cotidiano mais rico e complexo do que os documentos mostram. Os ele- mulheres e homens da casa. A abrangência se amplia quando o alimento e a
mentos materiais das culturas, a comida e a mesa, em nosso caso especíñco, alimentação tornam-se objeto de novas perspectivas de leitura crítica dos arte-
nos falam de si e nos íncitam a narrá-los. Exigem de nós, entretanto, capacida- fatos da alimentação e dos instrumentos da cozinha. Associada a uma tendên-
de de leitura e perspicácia crítica. cia comparativa e de diálogos espaçotemporais enriquecedores, ler a história
nmrcas minciras setecentistas) e da narrativa do naturalísta europeu, Auguste lateiras (mesmo sem evidências do consumo de chocolate), terrínas, sopeíras e
dc Saint-Hílaire, visitante deste espaço de 1816 a 1822. Buscam-se entendi- outros utensílios de mesa, inclusive os guardanapos, descrítos em inventários
mcntos que contribuam com a historiograña e com os estudos sobre a diversi- de pessoas de origem europeia, principalmente, mas, também, nos de famílias
dade socioeconômíca ao ñnal do período coloniaL além de possibilidades de da terra e até nos de mulheres e homens forros, nos dão a medida de que, em
se evidencíarem e questionarem tradições alimentares e domésticas e patrimô- ocasiões especiais, deíxava-se a rusticidade cotidiana para se fazer do ato de
nios simbólicos que a linguagem da comida nos esclarece. comer uma atitude mais cerímonial.
Os inventários post mortem são documentos fundamentais para a Falamos, portanto, das “coisas” contidas no rol dos inventários e des-
história sociaL denotando ao pesquisador questões instigantes para a história critas na narrativa do naturalísta francês como fatos sociais que nos infor-
das famílias, das condições cotidianas de vida, das possibilidades de produção mam e nos levam à compreensão da comida cotidiana. A mim interessam os
e de consumo e, em síntese, da cultura materiaL Para a história das Minas objetos e os artefatos para perceber os gestos que os utilizam e as sociabili-
Gerais no século XVIII e início do XIX, são documentos sístematicamente dades que os vivenciam Quero compreender as vivências de quem os usa,
utilízados, não por sua abundância quantitativa, mas por sua uníversalidade a economia que os fundamenta, as identidades em que eles se inserem As
no que diz respeito aos diversos grupos sociais que o fazem e a inclusão “coisas” são instrumentos de experiências humanas, não são trivialidades.
nestes documentos de bens acumulados ao longo das vidas. Obviamente, Assim, os elementos materiais da cultura alimentar dos habitantes das Minas
há negligências em arrolar bens de pouco valor, como certas roupas e setecentistas e oitocentistas nos permitem inferir sobre a história colonial desse
equipamentos de madeira branca, mas, para o nosso caso, não escondem a sertão português na América para além de suas cozinhas, mesas e quintais.
riqueza da diversidade de objetos de mesa e de cozinha, quase sempre, valiosos. Na perspectiva das condições materiais, essa história da alimentação que dá
Esses nos indicarn pautas e formas de consumo, bem como a construção de perspectiva a este texto não é, simplesmente, uma reflexão sobre os talheres e a
um gosto por alimentos que evidenciam uma base alimentar relativamente comida. É, de outro modo, uma interpretação sobre a linguagem do ato social
uniforme e modos à mesa distintos entre as camadas sociais e entre o cotidiano do comer; sobre 0 sistema de comunicação que a alimentação torna-se ao ser
e as ocasiões mais cerimoniais. lida como um complexo e dinâmico corpus de objetos, de imagens, de proto-
Nas Minas Gerais do século XVIIL os costumes europeus no uso de ta- colos, de usos, de ritos, de situações e de formas de conduta.
lheres são evidenciados pelo grande número de peças descrítas nos inventários
post mortem. O uso dos dedos para o ato de comer é, como analisou Iean-Louis As “c0isas” da mesa no Tejuco e em outras partes
Flandrín, cada vez mais proscrito na Europa desde 0 século XVIIg. O rol de
objetos de mesa, em estanho, latão e prata nos documentos do período Ieva- Para pensarmos os objetos da mesa neste sertão das Minas, devemos
nos a crer que seu uso era cotidiano e, de acordo com a ocasião, variava-se de apreender esse espaço como parte de um contexto português mais amplo,
peças ordinárias a peças mais requintadas. Louças da Índia e do Porto, choco- não limitado a essa physis, sem, no entant0, perder de vista a condição co-
scnlidu. nossa reflexão deve, necessariamente, dialogar com trabalhos acerca mesa em alguns lares do ambiente colonial. O uso de garfos comcçou u scl
do mundo curopeu e de áreas sobre sua influência, considerando, funda- mais difundido na Europa no século XVIL quando os costumes nobrcs quc
mcmalmente, que boa parte de uma elite por nós estudada aqui tem origem influenciaram a alta burguesia inverteram a ideia de que comer com as màns
portuguesa Mesmo que, com certos cuidados, consideremos, por exemplo, era o mais próprio ao homem12. Socialmente, 0 ato de levar a comida à bocu
as interpretações de Norbert Elias sobre a França dos séculos XVI ao XVIIL com as mãos começou, aos poucos, a ser considerado indecoroso. Incorpo-
quando houve, segundo o autor, uma pasteurização civilizada dos modos rou-se, já no ñnal do XVIL o terceiro dente ao garfo que adquiriu, para além
à mesa que permanecem no mundo ocidental até nossa contemporaneida- da função de espetar, a de carrear comida pastosa à boca. No século XVIIL
de1°. A ínfluência da cultura francesa à mesa em todos os países da Europa embora o uso dos dedos continuasse comum, nobreza e burguesia deixaram
Ocidental e, por extensão, em todo o Ocidente é inequívoca. Esse fato Valida de usá-los, pelo menos em público, e elegeram o garfo como o instrumento
uma compreensão mais extensiva dos modos e dos usos, dos gostos e das essencial de apreensão da comida. Seu uso mudou a postura corporal à mesa,
formas de agír à mesa. tornando-a mais elegante: o comensal, ao invés de levar a boca ao recipiente
Adentremos o Arraial do Tejuco, sede do Distrito Diàmantino, e uma com comida, baixando a cabeça em direção à mesa, passou a levar a comida
de suas moradas. Ioão Azevedo Pereira, comerciante e natural da cidade do à boca com o instrumento, mantendo seu dorso mais eret0. À luz da nobreza,
Porto (Portugal), era um homem solteiro e vivia com seus cinco escravos no esses novos modos (gestos e posturas) eram sinal de status social e a tendên-
Rosário, onde se estabeleceu para ganhar a vida“. Peças de indumentária cia da camada mais burguesa foí enobrecer-se no comportamento, também
e de móveis dão-nos conta de um homem que vivia com certo padrão de ci- à mesa. As tigelas fundas, em sequência, foram substituídas por pratos rasos,
Vilidade preconizado para denotar dignidade e posse de uma “fazenda” rica. posto que o gestual do garfo na tigela era menos funcional e a utilização mais
Tinha, para seu uso, garfos e colheres de latão, mas, também, um “faqueír0 corrente da faca, não apenas para efetuar o corte nas peças de carne, mas
de prata com 12 facas e 12 garfos” e “facas com cabo de osso”. No estoque de para partir pedaços no prato e auxiliar o uso do garfo, tornou~se, igualmente,
sua lógea, havia roupas de cama e de mesa, vestimentas, aviamentos, panos mais comum13.
diversos, chapéus, espelhos, armas de fogo, chumbo e pólvora, balanças, fer- O ñnal do século XVIII foi 0 tempo da incorporação do quarto dente
ros de engomar, tesouras de diversos tamanhos e muitos outros objetos que ao garfo. Para alguns, decorrência (e exigêncía) da popularização do con-
ocupam 20 folhas no rol de seu inventário post mortem. Dentre as coisas ar- sumo de arroz; para outros, uma “invenção” de Fernando de Bourbon para
roladas, estão artefatos de mesa em latão e em estanho, gamelas de madeira, apreender melhor seu espaguetel4. Norberto Elias, falando da atitude hi-
mas, ainda, talheres de prata e peças de louça. A população, portanto, tinha gíênica e cívilizada do uso do garfo, disse que seu uso “nada mais é do que
oferta de produtos para uso no serviço das refeições, tanto talheres como
“roupas de mesa”.
yfí
12
A Igreja de Roma chegou a condenar o garfo de dois dentes pela semelhança com a
Garfos e facas presentes em ambiente doméstico e em comércios evi- _í
h forquílha, símbolo do demônio. Iustiñcava, com o uso das mãos, colocando-as como
isso,
É “dádiva divina” e, como tal, ínstrumento ídeal para uso ao comer. FI,ANDRIN, Iean-Louis.
denciam o uso possivelmente cotidiano e mais frequente desses
J
artefatos de Os tempos modem0$, 554.
_›'/:
p.
13
Iean-Louís Flandrin narrou a persistência do uso dos dedos no consumo de nobres
franceses, argumentando a partir de uma gravura de 1763 que mostra “Luís XV e os pode-
10
ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte. Trad. Ana Maria Alves. 2. ed. Lisb0a: Estampa, rosos da corte levando a comida à boca com os dedosyí FLANDRIN, Iean-Louis. Os tempos
1995.
“ modern05, p. 554.
BAT/Inv. 001/1g Of./Maç0 27 (1785-1796). “ FLANDRIN, Iean-Louis. Os tempos
modernos, p. 556.
JOSE NEWTON COELHO MENESES
MESA FARTA, GOSTOS DIVFRSOS
a corporiticação de um padrão especíñco de emoções e um nível especíñco jetos de mesa - ou do Capitão~Mor da Vila, Liberato Iosé Cordeiro”. que
dc nojd
'l.'v
. Não é de se estranhar a presença de muítos garfos nos róis de
descreveu em seu testamento (fato não muito frequente neste tipo documcn-
inventários post mortem, muíto embora os achados arqueológicos, em fun- tal) a mesma tipologia de objetos de mesa mais requintados. Há, ainda, o casn
ção do material metálico e de sua corrosão no tempo, não nos permitam ti-
do Padre Ioão Ferreira Coelh023, morador do Arraial de Minas Novas, com a
píñcar tais objetos nem encontrá-los em profusão em museus ou em acervos descrição, da mesma forma em seu testamento, de “a louça do meu uso tanto
particulares.
da Índia como de estanho (...) que tudo terá os meus testamenteiros em cuida-
No mesmo Arraial do Tejuco, outros casos nos indicam a presença de do logo que eu falecer a ñm de que não haja descaminho”24.
artefatos de uso à mesa, indicadores de modos mais ou menos reñnados. O Os dicionários portugueses de Raphael Bluteau (1728) e de Antônio de
inventário de Felipe Iosé Corrêa de Lacerda16, português, Administrador
Moraes Silva (1789) deñnem “louça” de forma bastante concisa e, ao mesmo
Geral dos Diamantes, detalha objetos de mesa em grande quantidade que tempo, abrangente, conñgurando toda a frascaria de cozinha e de serviço à
vão do latão à prata, da louça símples à da Índia ou do Porto, jogos de pires
mesa, incluindo nesta defmição os objetos de estanh025. Neste termo está
com xícaras, cálices e frascos de vidro, além de gamelas e bandejas de ma- enquadrado tudo 0 que se guarda na cozínha e se põe à mesa “dos de bar-
deira. Os objetos de vidro, branco ou de cor, ou de “vidro mais ordinário”, ro grosseiro ou de pó de pedra da China; de estanhom direcionando nosso
foram descritos com pormenores e possuíam, geralmente, alto valor, quando entendimento para o vasilhame que serve algo mais líquido ou pastoso (“de
comparados com outros objetos de mesa. A mesma evidência podemos ver trazer aguada”), como bem expresso no Diccionario, de Moraes e Silva. A ideia
no inventário de Iosé da Silva Oliveira17, Primeiro Caixa da Real Extração de louça da Índia, como descrito no inventário do Padre Ioão Ferreira Coelho
dos Diamantes e pai do “inconñdente” Padre Rolim: arrola garrafas vazias,
citado, pressupõe louça vinda de fora, do Reino ou do Oriente, portanto, não
garrafas de vidro branco, copos de vidro ordinário, cálices e “24 garrafas
confeccionada no espaço colonia127.
cheias de vinho”. Iosé Soares de Araúj018, artista com pinturas em várias Estudos arqueológicos sobre cerâmica produzida em Minas Geraís no
igrejas da região diamantífera e em quase todas as do arraiaL Capitão Ioão período setecentista vêm se referindo a um tipo dela, produzida localmente,
Pedro Coutinho de Almeida19 e D. Mariana Ioaquina Rosa2°, todos mo-
com influências africanas e indígenas, nomeada como “cabocla”. Tal cerâmica
radores do Tejuco e de origem portuguesa, possuíam objetos de mesa com cabocla englobaria o uso de argilas variadas e com tratamento vidrado, como
igual requinte.
mesma É o
23
Comarca, a Vila do Príncipe, acontecia o Ma- FEL/Test. 035/Livr0 34/Folhas 87-92/ l793.
caso do Padre Luiz
24
Ver MENESES, Iosé Newton Coelho. “A louça do meu uso, tanto da Índia como de esta-
noel da Costa Souza21 - seu inventário descreve um rol signiflcatívo de ob- nho”: rusticidade cotidiana e requinte ocasional nas mesas das Minas Geraís setecentistas.
Saeculum - Revista de História, CCHLAlUFPB/Departamento de História, n~ 27, p. 31-38,
Ioão Pessoa, julho/dezembro, 2012.
15
ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte, p. 231.
25
BLUTEAU, RaphaeL Vocabulario portuguez á latino, vol. 5, p. 186; SILVA, António de
16 Moraes. Dicícionario da lingua portugueza, vol. 2, p. 236. Pesquisado em: <dici0nario.bbm.
BAT/Inv. 005/19 Of./Maço 21 (1794-1828).
17 gâpJE>.
BAT/Inv. 007/ 19 Of./Maç0 28 (1796-1837). 26
SILVA, António de Moraes. Dicicionario da lingua portugueza, vol. 2, p. 236.
18
BAT/Inv. 012/19 Of./Maço 36 (1799-).
19
27
Os dois dicionários setecentistas citados não mencionam a expressão “louça da Índia”. Da
BAT/Inv. 026/19 Of./Maço 28 (1802-l804).
20
mesma forma, o glossário do projeto “Portas Adentro” (www.portasadentraics.uminh0.p1)
BAT/Inv. 030/19 Of./Maç0 54 (1806-1809).
defme apenas “louça de barro caboclo” como “louça de barro não vidrado usada nas casas
21
BAT/Inv7 031/19 Of./Maç0 52 (1807-).
brasileiras mais humildes. Fontez Santos, 1968, p. 82-83. CO”.
MFSA FARTA, (›()Hl()'~. l)|Vl IH()'\
servando suas “lindas formas” e sua fragilidade, devido a uma “espessa camada
0 h In
0 3cm 0 3Cm
de verniz que as peças recebiam”29.
Parece-nos que a produção dessa cerâmica vidrada tenha acontecido
Fonte: Laboratório de Arqueologia UFMG
O inventário post mortem
-
2 pratos grandes vidrados verdes”. Não podemos induzír serem estes produtos
0
-3cm
28
Sobre louça local de uso ordinário, há um estudo em andamento no Programa de Pós-
Graduaçâo em Antropologia da UFMG, de autoria de Evelin Luciana Malaquias Nasci- Fonte: Laboratório de Arqueologia
- UFMG
mento, que, a partir de três sítios arqueológícos estudados na região central e nordeste de
Minas, tenta tipiflcar a “louça de barro vidrad0” produzida e usada no cotidiano de Minas
Gerais, no período setecentista e oitocentista (NASCIMENTO, Evelin Luciana Malaquias.
A louça ordínária: a louça de barro vidrada no cotidíano das Minas Gerais - séculos XVIII
e XIX. Texto de Qualiñcação de Doutorado, PPGAN-FAFICH-UFMG, 2018). Ver, ainda,
o clássico estudo de Eldino da Fonseca Brancante, O Brasil e a cerámíca antiga (S.C.P.,
São Paulo, 1981); LAGE, Paulo R. Cerámica Saramenha: a prímeira manufatura de Minas
Gerais. Belo Horizontez Palco, 2010. Sobre a “louça do Cuieté/Caité”, ver MENESES, Iosé
Newton Coelh0. O continente rústico. Abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecen~
tistas. Díamantinaz Maria Fumaça, 2000, p. 109.
29
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas Províncias do Rio de Ianeiro e Minas Gerais.
elite social do Arraial do Tejuco. O tornar-se órfã pobre tinha feito com que ela
solicitasse apoio para retornar à Corte a flm de Viver com 0 auxílio do Estado.
Sua mãe faleceu em 1769 e, sozinha, Anna Perpétua não se viu em condições
ca”, ela solicitou “transportar-se para Portugal de onde com menos despesa
Luciane Scarato, tendo como objeto a população do entorno do Caminho se pode[ría] recolher a um convento e aonde tem parentes que por caridade
Velho das Minas, no século XVIIL e pesquisando inventários post mortem de pe-
a poderão socorrer em alguma coisa.”37 Não conhecemos a resposta a esse
quenos proprietários, boa parte deles em ambiente rural, constatou que, em 79%
pedido da órfã, mas a vimos apenas seis anos após esta demanda, casada com
dos 62 documentos de sua amostra, havia pratos arrolados e, em 56%, talheres o médico Luís Iosé e com três ñlhos, uma menina e dois meninos, cheñando
mais variados32. Para a referida autora, essa presença era indicativa de hábitos
o domicílío na ausência do marido33. Tal ausência do esposo aconteceu em
mais reñnados à mesa e uma tendência de que eles se difundiam como costumes vários momentos e este fato levou D. Anna Perpétua a cheñar o fogoldomicílio
de camadas amplas da sociedade. Já Luciana da Silva, em sua tese de Doutorado,
constatando a grande presença de mesas em inventários de vários domicílios, Embora com mudanças signifícatívas, parte do texto deste item foi publicado em
34
pnr muilu lcmpn. ndminislrando bem e multiplicando a riqueza da “fazcnda" diversas. Além disso, possuía no rol “louça do cuieté”, provavcllncnlc uma « v
du IauniILL A x unlrupnsiçào dc duas listas de população do Arraial nos eviden- râmica vítriñcada (proibida pelo Alvará de D. Maria I) que ela adquirirn nn
tiu n Iungn lwn urso dcssu scnhora no Tejuco: o Mapa de moradores do Armial região e que evidencia uma produção artesanal rica, talvez precursora du m
dn 'li'jm'u, dc l775”. c a Lista nomínativa do Distrito de Paz de Santo Antônío nhecida “cerâmica saramenha ”,
como comentamos anteriormente.
du 'li'¡'um. dc 1832"”. Viúvu de um homem de posses e influências, rnédico Tentemos sintetizar uma “arquitetura” dos hábitos alimentares dc lkuni
Ihrmudu cm (Ioimhru, cm 1754, ela foi de fato a grande responsável pela pro- lias “portuguesas” das Minas Gerais do século XVIIL na tentativa conlcxluu
duçuu c munulcnção da riqueza familiar, antes e depois da morte do marido. lizadora e buscando uma compreensâo não muito fácil, na medida cm quc u
A fumília vivía confortavelmente em um sobrado com janelas envidra- ocupação deste território, intensiva e com encontros culturais divers05. prcs
çadus, nu Rua Macau do Meio. A casa fazia divisas em seus dois lados com supõe grande oferta de possibilidades, gostos, práticas e formas de exprcssám
moradas, também da propriedade da família, que eram alugadas a terceíros. O A família de D. Anna Perpétua pode funcionar, para nossa busca comprccn
ml dc utensílios da casa e de móveis denotam uma morada acima do padrão siva, como uma unidade exemplar capaz de anunciar concretudes perccbidam
de conforto das habitações usuais no Setecentos na região4'. Além disso, o principalmente por seu arrolamento dos bens do marid0, Visando à partillm
número de joias e a presença de talheres de prata possibilitam pensar em uma justa de sua riqueza entre ela e seus fllhos44.
sociabilidade própria das mulheres e das famílias de elite do arraial, com um Veriñquemos mais detidamente a mesa de D. Anna Perpétua Marcclinu
cotidíano rústico, mas com eventuais momentos de encontros à mesa um pou- da Fonseca. Ela foi cuidadosa em fazer a relação de “Despesas de Mantimcn
co mais requintados42. tos” no período de julho de 1793 a outubro de 1796, 40 meses em que sc dc
Como inventaríante do marido, ela listou, em seu inventário post mor- senrolou o processo de inventário post mortem do marid0. Da mesma fornuL
tem, objetos flnos de mesaz pratos “da Índia”43 (rasos e fundos, grandes e pe- D. Anna Perpétua listou em outro documento, anexo ao inventário, os “Lucr(›s
quenos), chocolateiras de cobre, colheres, garfos e faca de prata, “faqueiro de que tem tido a Erança” no mesmo período. Assim, nos ínformou sobre a pm
u
prata com caixa forrada de veludo
›)
, 1 talher de galhetas de vídro” e bandejas dução de alímentos em suas terras de lavoura e dos produtos que ela, pnr lcr
2014. o arroz, o milho e a sua farinha, carne de boí, leite, hortaliças, algodão (quv
41
Ver análise para a região Sudeste do Brasil em FARIA, Sheíla de Castro. A Colônia em
moviment0. Fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Ianeiroz Nova Fronteira, 1998;
se mandava para ñar), azeite de mamona para iluminaçã0, lenhas, carvocn
FARIA, Sheila de Castro. Cultura Material e Historiograña. Histórias. Boletim do Laborató- e sebo para sabão. O consumo de arroz, claramente percebido, contruriu as
rio e Arquivo de Memória Histórica (LAMH), ano 2, n. 4, Belo Horízonte, Centro Universi-
tário NeWton Paiva, 1999, p. 1.
43
MENESES, Iosé Newton Coelho. O continente rústico. 44
Anna Perpétua deserdou a ñlha mais velha, Luiza, justiñcando que seguia “as lcis dv Sun
43
Novamente a expressão “da Índia” remete-nos a relacíoná-la à produção oriental de lou- Magestade, por ser ela casada contra a sua vontade” quando tttinha quatorze para quinlr
ças que chegavam à América portuguesa. anos”. BAT/Inv. 14/ 19 Of./maço 52, 1793, f1. 2.
JOSÉ NfWTON COELHO MENESES MESA FARTA, GOSTOS DIVERSOS
inlcrprclaçõcs tradicionais que não o colocam como hábito alimentar dos Os portugueses, nas Minas, adaptaram-se à falta desse cereal nobrc. A farinhu
milwir(›s, no período. O arroz está presente nas duas listas, “de Lucros” e de de milho e o fubá conñguraram-se, então, como produtos para a confecção
"l)cspcsas". D. Anna Perpétua, então, produzia arroz em sua roça, armazena- de vários petiscos, substitutos do pão, o que pode nos levar a pensar na fortc
va-(› e consumia-o e, quando ele faltava em suas reservas, encontrava-o no tradição da diversidade das “quitandas” mineiras.
mercado para comprar. Atentos à lista de D. Anna Perpétua, percebemos uma oferta já regular
A díeta cotidiana no domicílio de D. Anna, como era de se esperar, apre- do sal, ao ñnal do século XVIII. O preço do produto vindo do Reino não sofreu
sentava variações mensaís. O consumo de peixe fresco, a título de exemplo, grandes variações, ao contrário do valor do “sal da terra”, origínário das bar-
crescia durante os períodos que incluíam os dias de jejum, notadamente nos rancas do rio São Francisco, que teve no decorrer do tempo da listagem uma
meses de março e de abril, correspondentes ao tempo da Quaresma. O mesmo variação de quatro a sete oitavas de ouro por bruaca.
acontecia com o bacalhau, que era adquirido basicamente nos meses de março, Se, nos primeiros tempos da ocupação territorial das Minas do Ouro, os
abril e dezembro, ou eventualmente como compra “para as sextas e sábados”. seus habitantes tinham “sua melhor bodega nos matos e nos ríos”, como nos
Iá a carne de porco, seus miúdos e o toucinho eram compras cotidianas, o que informou o mestre Sérgio Buarque de Holanda, no decorrer do século XVIII,
nos conñrma o uso do toucinho não apenas como componente de diversos a comida da região foi ampliando e diversiñcando sua base alimentar, fun-
pratos das pessoas de posses ou dos escravos e de pobres (no feijão e em “tor- damentada em uma produção mais diversa, e no acesso a produtos de outras
resmos”, principalmente), mas como ingrediente na cocção de cereais, tubér- áreas do espaço colonial português na América e da Europa. A “civilizaçâo do
culos e hortaliças e, também, como meio de conservação das carnes. milho”, como a interpretou Buarque de Holanda4°, transformou~se e diver-
A mandioca, mesmo não sendo um alimento preferencial como na re- siñcou~se com a sedentarização e com a ñxação das populações nos arraiais
giâo litorânea, era consumida como farinha ou cozida. A família de D. Anna e nas vilas das Minas Gerais. PressupÕe-se que não se perderam os costumes
Perpétua adquiria pouca farinha de mandioca, apenas em dois meses, dos 40 dos primeiros temposz continuaram a ser consumidos os produtos do milho
que compõem a listagem e os da mata. Angu, milho verde em espiga (assado ou cozido), pipoca, curau,
Podemos admitir que a base alimentar das famílias abastadas e das po- pamonha, farinha (“o verdadeiro pão da terra”), canjica grossa, canjiquinha,
bres se diferenciava pouco nas Minas. Os modos à mesa e a presença de um cuscuz, catimpuera, aluá e jacuba, originários do milho, além do broto de sa-
ou outro produto, como 0 bacalhau, o vinho e o sal do Reino, por exemplo, é mambaia, do palmito, das caças e dos peixes, do mel de abelhas e outros pro-
que denotavam as distinções entre as categorias sociaís, como evidenciam as dutos dos matos continuaram a frequentar a mesa dos habitantes das Minas,
análises de Iean-Louis Flandrin para os costumes europeus à mesa, no mesmo associando-se àquela maior oferta de alimentos e, ainda, amalgamando-se
períod045. Alguns produtos eram escassos, inclusive nas mesas das famílias mais quotidianamente aos costumes reinóis e aos de índios e de africanos. O
abastadas. O trigo, por exemplo, de consumo raro - embora fosse produzido milho, entretanto, não deixou de ser o alimento mais consumido e de modo
em pequenas quantidades nas regiões contíguas às Minas - vinha da Capita- mais democrático faz-se presente à mesa de pessoas de posses e do homem do
nia de São Paulo ou da Europa e era caro. O pão de trigo, assim, não foi um povo, como nos denota o costume de comer angu de fubá.
45
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Le-
45
FLANDRIN, Iean-Louís. Os tempos modernos. tras, 1994, p. 181.
Imr Nrme m t I Ho MrNrSES MESA FARTA, (›()S|'()S DIVI R*›( M
Náu podcmos nos esquecer, no entanto, de que o homem português e Eís o seu trivialz ao almoço, feijão preto misturado com tknrinlm
suu lnm iliu nào abdicaram totalmente de seus Costumes alímentares. Além dis- de milho e um pouco de torresmo de toucínho frito ou curnc m
Zida; ao jantar, um pedaço de porco assado; derramam águn cm
so. cmn 0 lempo, encontraram na produção local produtos que satisñzessem o
um prato de farinha de milh0; colocam tudo amontoado na mcsu
goslo por comestíveis de origem animaL baseados em pratos da tradição p0r- e aí põem também um prato de feijão cozid0. Um prato ou dois dc
couve completam o repasto; servem ordínariamente essas comidus
luguesa e da sua influência da cozinha francesa. Esses pratos adquiriram maior
em panelas de barro em que foram cozídas; algumas vezes as c0|0-
complexidade à medida que se juntavam diversos “adubos” à carne de porco, cam em pratos de estanh05°.
azeites doces e ovos em quantidade, porque comida portuguesa que se preze Mawe foi um narrador menos interessado naquilo que fugia ao seu 0b-
não os dispensa47. jetivo cientíñco, mas não deixou de descrever a alimentação dos mineiros e de
Consumiam-se queijos importados e de fatura locaL além das hortaliças caracterizá-la a partir de seus parâmetros e de sua cultura.
e frutas que, cotidianamente, enriqueciam a dieta alimentar48. É provável que É bom ressaltarmos que, a despeito de ser um bom narrador, rigoroso e
essa presença fosse constante à mesa de todas as categorias sociais. Os quintais atento a detalhes, Auguste de Saint-Hilaire, também, tinha essa acuidade nar-
continham bananeiras, frutas de espinho e jabuticabeiras, além de equipamentos rativa voltada muito mais para as questões de seus estudos botânicos do que
e moinhos ›água, tudo muito detalhado nos inventários post mortem e nas nar- propriamente para as ações cotidianas, a não ser quando essas eram impres-
rativas dos Viajantes que visitaram Minas no início do século XIX49. As frutas, cindíveis para a compreensão de seu próprio métier de pesquisador. Mesmo
apreciadas in natura ou em doces, como a marmelada e o doce de cidra, mais as assim, legou-nos observações dignas de atençâo para a compreensão de prá-
hortalíças e os tubérculos dos jardins próprios de muitos domicílíos eram alimen- ticas e de costumes alimentares durante o período de tempo que, por Minas
tos descritos por eles como riqueza e diversídade da alimentação dos mineiros. Gerais, fez seu percurso, ou seja, de 1816 a 1822.
A divcrsidudc c a especiñcidade do que relatou Saint-Hilaire, a partir de suas alimentação frugal dos caminhos, ranchos e vendas, com base no fcijân umcln
vingcns pclo território da Província de Minas Gerais, tornaram-se mote para em caldeirões suspensos em tripeças e no consumo de rapaduras c jaculmw
rcílctir sobre a construção do gosto e de práticas alimentares dos vários “mi- enquanto se esperava por uma alimentação melhor.
nciros”, como bem ressaltou Fríeiro. Uma atenção especial foi dada por Saint-Hilaire à sua estadia cm cusu
Saint-Hilaire, narrando seu percurso de campo, avaliou a alimentação do Capitão Antônio Gomes de Abreu, pai de seu amigo de viagem, Antônln
da gente mineira e a que lhe era, também, ofertada sob observação criteriosa Ildefonso, em Itajuru, fazenda perto de Catas Altas do Mato Dentm Ncssu
de cientista rigoroso. Suas impressões serão por nós refletidas, entretanto res- memória, a narrativa tornou-se extremamente elogiosa ao seu hospedciro c
peitadas como vivências e experiências do narrador e, sobretudo, como me- foi um momento onde ele descreveu as moradias das pessoas mais abastzulus.
mórias que ele construiu em momento posterior à viagem. O que memorizou seus móveis, sua arquitetura; comparou-os com as casas dos pobres. A vidu
Saianilaire e como descreveu a alimentação que consumiu e viu consumir em no campo, afastada dos aglomerados urbanos, era, neste ponto da narativn.
Minas? Como naturalista de um círculo cientíñco em que a pesquisa de campo objeto de distinção bastante interessante. Óbvio que devemos considerar quc
tem valor fundamentaL sua observação foi acurada e buscou envolver aspectos a família recebia um visitante, de nacionalidade diferente e reconhecido comu
amplos que influencíavam a construção da paisagem que observava53. homem de saber e, assim, deveria tomar medidas para ofertar boa comidu c
Os relatos de Saint-Hilaire abordaram a alímentação categorízando-a de bons modos ao comensal estrangeiro. De qualquer modo, o francês encantou~
acordo com grupos sociais, situações, ambientes, estações climáticas, qualida- -se com a hospitalidade, a sociabilidade culta e o interesse do pai de seu amigo
de das terras para cultivo etc. Consideramos esses aspectos em seu conjunto, em conversas na própria língua francesa. Ele, então, comentou as práticas alii
embora nos interesse aqui apenas a mesa farta dos abastados, na tentativa de mentares dos fazendeírosz
Gomes (um negro e um mulato), de um índío botocudo que servia ao cônsul sa, é arroz,ou couve, ou outras ervas picadas, e a planta geralmcmc
preferida é a nossa serralha, que se naturalizou no BrasiL (...)“".
da Rússia e de um criado do próprio Saint-Hilair654. No percurso, descreveu a
Brasíl de 1816 a 1822. O botânica aqui, acompanhava a míssão do duque de Luxemburgo, que permite variedades suprimento emergente para alcmlcl
e criatividade. Basicamente, é
que objetivava resolver 0 conflito entre Portugal e França quanto à posse da Guiana. Para às necessidades calóricas enquanto não se tem algo mais substancioso para comer ("nmln
seu empreendímento de conhecimento cientíñco, Saint-Hilaire teve a aprovação do Museu -fome”), compondo-se de rapadura, café e farinha ou substituindo o café pela água qucnlc
dcspmulv unm mm Ilugcm cspcssa semelhante à cola; mas os quiabos não se Considerações ñnais
n .uml.n nvm nr discussócs sobre seu sabores e a mucilagem (“baba”) que cotidiana (que pode também ser entendida como um gozo reñnado ou reñnu
›_ .| ln
ulnslam nu upmximum os degustadores de urn prato ou de outro. O angu é díssimo) e a trágica obsessão que a escassez ou a falta de alimentos causnu c
nu pmvínciu dc Minas; fazem-se doces de uma multidão de coisas diferen- Há multiplicidade e variedade de sentimentos expressos nas metáforas relacio ›
lcs. mas, na maioria das vezes, não se distingue o gosto de nenhuma [dessas nadas ao ato de comer. A alimentação, assim, como também ressaltou MassL
cnisusL com tanto açúcar são feitos”59. Ele observou, a despeito disso, que a mo Montanari, já cítado neste texto, é linguagem. As narrativas de Auguste dc
subrcmcsa preferida nas Minas é a “canjica”, “nome que se dá ao milho descas- Saint-Hilaire são possibilidades ricas de, a partir de sua apreensão memorialís-
te iguaria, e, no entanto, estranha-se que o estrangeiro tenha o mau gosto de saberes de mineiros dos Oitocentos, quando observados em sua paisagem, cm
como sugeriu Eduardo diversa e rica, de ingredientes alimentares. Partilhavam, no entanto, gostos c
de das comidas e a própria variedade dos mineiros,
Frieiroz as Minas e os mineiros são muitos. Às vezes, a “fartura da sua mesa diferenciavam-se nos modos porque a hierarquia social assim o exigia. Voltandu
não condizia com a pobreza de seus alojamentos. A comida era abundante à lembrança de Daniel Roche, a mesa dos mineiros dos Setecentos e Oitocent(›s.
e seria considerada excelente em qualquer país”, como relatou Saint-Hilaire certamente, não é totalmente apreendida por nós, por mais que a estudemus c
em sua passagem pela casa de Ioão Quintino de Oliveira, Capitã0-Mor de por mais informações que produzamos a partir dos ínventários post mortem c
palavra a adjetivar os habitantes de Minas na maioria das regiões que o via- plexidade de seus gostos e de seus pratos, de seus produtos cotidianos e de suus
58
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas Províncias do Rio de Ianeiro e Minas Gerais,
p. 96.
59
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas Províncias do Rio de Ianeiro e Minas
Gemis, p. 96.
60
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas Províncias do Rio de Ianeiro e Minas Gerais,
p. 96-97.
51
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do Rio Sáo Francisco. Trad. Clado
62
ROSSL Paolo. Comer. Necessidade, desejo, obsessão. Trad. Ivan Rocha. Sâo Paulu:
Ribeiro de Lessa. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975, p. 86. Unesp, 2014, p. 14-15.