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Cara Hunter é autora dos thrillers bestsellers do Sunday Times

Perto de Casa, No Escuro, Sem Saída e Pura Raiva,


protagonizados pelo Inspetor Fawley e a sua equipa de
inspetores de Oxford. Perto de Casa, o primeiro bestseller desta
série, foi também um dos títulos escolhidos pelo Richard and
Judy Book Club e pré-selecionado para “Policial do Ano” nos
British Book Awards de 2019. Sem Saída foi destacado pelo
Sunday Times como um dos cem melhores romances policiais
desde 1945.
A série Inspetor Fawley já vendeu mais de um milhão de
exemplares em todo o mundo, e os direitos para a adaptação
televisiva foram adquiridos pelo grupo Fremantle.
Cara Hunter vive em Oxford, numa rua não muito diferente das
que são descritas nos seus thrillers.
Toda a verdade
Cara Hunter
Publicado por:
Porto Editora
Divisão Editorial Literária – Porto
Email: delporto@portoeditora.pt
Título original:
The Whole Truth
Copyright © Shinleopard Ltd, 2021
by agreement with Johnson & Alcock Ltd.

Tradução: Cláudia Ramos

Design da capa: Nor267


Imagens da capa: © Magdalena Russocka / Trevillion Images
Photo by Irina Iriser on Unsplash

1.ª edição em papel: agosto de 2022

ISBN 978-972-0-67247-6
Para a Judith
Uma senhora muito especial
Anteriormente… nos casos Fawley

Este é o quinto livro da saga Fawley, pelo que, caro leitor, se for
o primeiro que vai ler, gostará certamente de ficar com um resumo
rápido dos elementos-chave da equipa, para começar bem e sem
mais demoras. Começando, claro está, pelo homem em si…

Nome Inspetor-Chefe Adam Fawley


Idade 46
Casamento Sim, com Alex, 44. Advogada, trabalha em Oxford.
Filhos Jake, o único filho do casal Fawley, suicidou-se há dois anos.
Ficaram devastados e acharam que não conseguiriam ter outro filho.
Mas, agora, Alex está de novo grávida…
Personalidade Introspetivo, observador e inteligente, resiliente por fora; por dentro,
nem por isso. Não se importa que Alex ganhe mais do que ele ou que
seja mais alta que ele com saltos. É ótimo em pensamento lateral e
péssimo em política de escritório. É justo e solidário, mas não tem só
qualidades: pode ser impaciente e tem pavio curto. Foi criado num
subúrbio sombrio de North London e é adotado, se bem que só tenha
descoberto por acaso – até hoje, os pais nunca lhe falaram no
assunto.
Não vê crimes na televisão (já lhe chega durante todo o dia); ouve
Oasis, Bach e Roxy Music (Alex disse-lhe uma vez que ele era
parecido com o Bryan Ferry, ao que ele respondeu “quem me dera”);
se tivesse um animal, seria um gato (mas nunca teve nenhum); o seu
vinho preferido é Merlot e adora comida espanhola (mas come
demasiada piza); e, surpresa das surpresas, a sua cor favorita é o
azul.

Nome Inspetor-Coordenador Chris Gislingham


(recentemente promovido de Inspetor)
Idade 42
Casamento Sim, com Janet.
Filhos Billy, quase a fazer 2.
Personalidade Alegre, bem-humorado, trabalhador, boa pessoa. E adepto ferrenho
do Chelsea.
Sempre descrito como “robusto” e “sólido”, e não apenas por estar a
ficar rechonchudo. Qualquer DIC precisa de um Gislingham, e, se
nos estivermos a afogar, vamos querer que seja ele a puxar a corda.

Nome Inspetor Garreth Quinn


(recentemente despromovido de Inspetor-Coordenador, após ter-se
envolvido com uma suspeita)
Idade 36
Casamento Nem pensar.
Personalidade Convencido, ambicioso, bem-parecido. Fawley descreve-o como “o
fatinhos-caros” ou “o navalha romba”.
Quinn lançou-se à promoção de Inspetor-Coordenador como cão à
água – zero de hesitação, mergulho a fundo.

Nome Inspetora Verity Everett


Idade 33
Casamento Não. Mas tem um gato (Hector).
Personalidade De personalidade descontraída, é uma profissional impiedosa. Falta-
lhe confiança nas suas capacidades (facto de que Fawley tem plena
consciência).
Pode ser parecida com a Miss Marple aos trinta e cinco, mas é tão ou
mais implacável. Ou, como Gislingham costuma dizer, a Ev foi de
certeza cão de caça noutra vida.

Nome Inspetora Erica Somer


Idade 29
Casamento Não, mas começou há pouco a namorar com Giles Saumarez, um
Inspetor-Chefe da Polícia de Hampshire.
Personalidade Licenciada em Inglês, foi professora antes de entrar para a polícia
(no primeiro livro, ainda é agente). O apelido é um anagrama de
“Morse” – a minha homenagem ao melhor Inspetor de Oxford!
Vejo os homens a subestimá-la por ser atraente e usar farda, e vejo-a
a registar esse facto e a utilizá-lo a seu favor.

Nome Inspetor Andrew Baxter


Idade 38
Casamento Sim, sem filhos.
Personalidade Calmo e imperturbável, mas confiável. Excelente com computadores,
o que o leva frequentemente a ficar sobrecarregado com esse tipo de
coisas.
Um homem sólido num fato ligeiramente pequeno para ele. Os
botões da camisa estão sempre no limite. A ficar careca, sempre
levemente arquejante. No limite de ter tensão alta. Aparenta ter
quarenta, mas provavelmente será cinco anos mais novo.

Nome Inspetor Anthony Asante


Idade 32
Casamento Não.
Personalidade Entrou para a polícia logo após a licenciatura. É novo na equipa,
tendo sido recentemente transferido da Met. A família é riquíssima; o
pai, um ex-diplomata ganês.
Fawley descreve-o assim: Diligente, inteligente, tecnicamente
excelente. Faz o que lhe pedem e toma a iniciativa quando sente que
deve. No entanto, há qualquer coisa nele que eu não consigo
decifrar. De todas as vezes que penso que estou lá perto, ele troca-
me as voltas.

Os outros elementos da equipa são Alan Challow, Nina


Mukerjee e Clive Conway, na equipa CSI, Colin Boddie, o
patologista, e Bryan Gow, o profiler.
Prólogo
Adam Fawley
7 de julho, 2018
13h15

– Quem é que quer mais frisante? Pai, tu nem sequer vais guiar,
por isso não há desculpas.
O Stephen Sheldon sorri para a filha, atrás dele, com a garrafa
na mão.
– Oh, OK, serve-me lá. A única coisa boa de ser velho que nem
um dinossauro é não ter de me ralar com a porra das diretrizes do
governo quanto ao consumo de álcool.
A mulher lança-lhe um olhar severo, mas compassivo; ambos
sabem que ele tem de ter cuidado com a saúde, mas é o seu
aniversário e ele bem merece uma folga.
A Nell Heneghan debruça-se e serve-lhe o copo.
– Setenta não é velho, pai. Muito menos nos dias de hoje.
– Diz isso aos meus ossos – responde-lhe ele com uma risada,
enquanto ela dá a volta à mesa servindo os restantes.
Procuro a mão da Alex por baixo da mesa e sinto o tecido fino do
vestido resvalar-lhe da coxa nua. Só Deus sabe o que é estar
grávida de trinta e cinco semanas com este calor. Tem gotas de
transpiração sobre o lábio superior e uma leve ruga entre as
sobrancelhas – que os outros provavelmente não veem. Eu tinha
razão: isto tem sido demasiado duro para ela. Bem lhe disse para
não o fazermos, que ninguém estava à espera que o fizéssemos,
sobretudo com este calor, e a Nell, ainda por cima, ofereceu-se para
ser em casa dela – mas a Alex insistiu. Disse que era a nossa vez,
que não era justo que fosse a irmã a fazê-lo dois anos seguidos.
Mas não foi essa a verdadeira razão. Ela sabe; eu sei. À medida que
a gravidez avança, o mundo da Alex contrai-se. Praticamente já não
sai de casa, e quanto a ter de fazer vinte quilómetros até
Abingdon… é para esquecer. Disse à Nell que era apenas
ansiedade com o bebé, e ela concordou, que também se sentira
assim nesta fase, que era normalíssimo a Alex estar apreensiva. E
tem razão. Ou teria, se fosse apenas disso que se trata.
Lá fora, no jardim, os filhos da Nell jogam à bola com o cão,
marcando e defendendo penaltis à vez. Têm onze e nove anos, os
miúdos. O Jake já teria doze. Já não seria um menino pequeno, mas
também não demasiado crescido. Por vezes, antes de a Alex ter
engravidado de novo, dava por mim a imaginar como seriam eles
juntos, o Jake e os primos. Ele nunca se mostrou muito interessado
em desporto, mas será que estaria agora aqui? A jogar à bola com
eles? Uma parte de mim gosta de pensar que o faria por
generosidade ou para agradar à mãe ou porque gostava de cães;
mas outra gostaria de o ver tão rebelde e pouco cooperante quanto
qualquer outro miúdo de doze anos. Aprendi da pior maneira que é
facílimo começar a beatificar um filho que já não está connosco.
A Audrey Sheldon apanha o meu olhar e trocamos sorrisos: o
dela, bondoso; o meu, algo inibido. Os pais da Alex compreendem
melhor do que ninguém aquilo por que passámos quando perdemos
o Jake, mas a simpatia da Audrey é como o seu cheesecake de
limão – agradável, mas só se aguenta até certo ponto. Levanto-me e
começo a retirar os pratos. O Gerry, o marido da Nell, faz uma
tímida tentativa de aproximação, mas eu dou-lhe uma palmada
amigável no ombro, mantendo-o firmemente no seu lugar.
– Tu é que trouxeste tudo; agora, é a minha vez.
A Alex dedica-me um olhar grato quando eu lhe levanto o prato
da sobremesa. O pai tem passado os últimos dez minutos a incitá-la
docemente: “Come, querida.” Há coisas na maternidade e na
paternidade que nunca mudam. A minha mãe faz o mesmo comigo.
E, daqui a vinte anos, estarei eu a fazer igual. Filho és, pai serás.
Na cozinha, vejo a Nell a encher a máquina de lavar e, ainda que
esteja a fazer tudo mal, resisto ao impulso de intervir, porque sei que
isso a chateia; a Alex diz que as máquinas de lavar são como os
barbecues – os homens não resistem a intrometer-se. A Nell sorri
quando me vê. Gosto dela, sempre gostei. Tão inteligente quanto a
irmã e igualmente direta e incisiva. Têm uma boa vida, ela e o Gerry.
Casa (geminada), esqui (Val d’Isère), cão (Dino, supostamente um
cockerpoo1, mas a julgar pelo tamanho das patas há ali qualquer
coisa de urso polar). É avaliador de riscos (o Gerry, não o cão) e,
para ser completamente franco, acho o Dino bem mais interessante
‒ mas a única pessoa a quem eu alguma vez disse isto foi a mim
próprio.
Agora é a Nell que olha para mim, e eu sei exatamente o que é
que esse olhar significa. Ela quer Dizer Qualquer Coisa. E, à boa
maneira da Nell, atira logo a matar. Tal como a irmã.
– Ando um bocado preocupada com ela, Adam. Não me parece
nada bem.
Respiro fundo.
– Sei o que queres dizer, e este maldito calor não ajuda nada.
Mas ela tem sido seguida regularmente. Muito mais do que a
maioria das mulheres no estado dela.
Mas a maioria das mulheres no estado dela nunca foram
hospitalizadas por tensão alta ou obrigadas a ficarem na cama em
repouso total.
A Nell recosta-se na bancada e pega num pano para limpar as
mãos.
– Ela praticamente não comeu nada.
– Eu esforço-me, a sério que sim, mas…
– E parece completamente exausta.
Olha-me de testa franzida. Porque, seja o que for que se passe,
só pode ser culpa minha, certo? Lá fora no jardim, o Ben marca um
golo e desata a correr pela relva com a t-shirt levantada sobre a
cabeça. A Nell olha vagamente para lá e, depois, volta a fixar-me.
Tento de novo:
– Ela não anda a dormir bem… Sabes como é, o último trimestre.
Não consegue arranjar posição.
Mas a Nell continua de testa franzida. Ouvimos o Nicky gritar que
o golo foi aldrabado. O Gerry levanta-se e vai à janela, dizendo ao
filho que tenha fairplay, naquele tom paternalista que todos nós
juramos a pés juntos que não usamos. Outra coisa que parece não
mudar no que toca a ter filhos.
– Ouve – digo –, não é nada fácil com o meu trabalho, mas eu
faço tudo aquilo que posso lá em casa. E temos uma empregada,
uma vez por semana, para as outras tarefas.
A Nell está de olho nos filhos.
– Há pouco, estivemos a conversar – diz, sem olhar para mim. –
Disse-me que estás a dormir no quarto de hóspedes.
Concordo:
– Para não a acordar. Sobretudo porque agora me levanto de
madrugada quatro vezes por semana, para ir à porcaria do ginásio.
Ela volta-se para mim:
– Continua a ser lixado?
A expressão que acompanha as palavras é fria, mas não cruel: a
Nell também é ex-fumadora. Sabe tudo sobre estratégias de
cessação tabágica.
Experimento um sorriso irónico.
– Um pesadelo. Mas estou no bom caminho.
Ela olha-me de alto a baixo.
– E estás a ficar tonificado. Fica-te bem.
Rio-me.
– Bom, isso é o raio de um milagre, considerando que devoro um
tubo de mints por hora.
Após uma pausa, ela acaba por sorrir, ainda que tristemente.
– Cuida dela, Adam. OK? Ela está tão ansiosa… Este bebé
significa tanto para ela. Nem sei o que aconteceria se… – Cala-se,
morde o lábio e afasta o olhar.
– Ouve, Nell… eu não deixo que nada aconteça à Alex. Nem
agora nem nunca. Sabes isso, não sabes?
Ela ergue a cabeça; depois, assente, e eu espero. Sei o que ela
quer dizer e por que razão está com tanta dificuldade em fazê-lo.
– Li no jornal – diz, por fim. – Ele saiu, não foi? O Gavin Parrie?
– Sim, saiu. – Forço-a a olhar para mim. – Mas está em
condicional. E sob regras e condições muito estritas. Onde pode ir,
com quem pode estar…
O lábio treme-lhe ligeiramente.
– E vai ter uma daquelas cenas, tipo… identificador, certo?
Saberão por onde ele anda vinte e quatro horas por dia?
Abano a cabeça:
– A maioria desses aparelhos não é assim tão precisa. Ainda
não. O identificador está associado à morada do agressor. Se ele
sair de um determinado alcance, os serviços de monitorização
recebem um alerta.
– Mas, como disse o Gerry, se ele se aproximar ainda que
remotamente daqui, enfiam-no na prisão na hora. Certo?
Respiro fundo:
– Certo.
– E porque haveria ele de correr um risco tão grande, não é? –
Ela quer claramente que eu concorde, que lhe desvalorize os
medos. – Ele não é estúpido, tem demasiado a perder.
– Claro.
– Desculpa – diz ela, com um suspiro. – Deves estar a pensar
que eu sou uma exagerada. Só que… não consigo deixar de pensar
naquelas ameaças que ele fez no tribunal…
Ela jamais entenderá o quão difícil é ser-se o homem que ela
quer que eu seja. Mas eu tento, mesmo assim:
– Ele estava só a descarregar a raiva, Nell. Acontece muito. E
não acho nada que estejas a exagerar. As famílias preocupam-se
sempre quando os agressores são libertados. As outras vítimas
estão certamente a passar pelo mesmo.
– Mas, pelo menos, a Alex tem-te a ti – diz-me, com um sorriso
vacilante. – O seu agente de proteção privado.
Não confio em mim o suficiente para responder a isto, mas
felizmente não preciso. Ela afaga-me gentilmente o braço e pega na
pilha de pratos sujos.
– Vai lá, que eu já vou. Devem estar todos a perguntar o que é
que estamos para aqui a congeminar.
Enquanto me dirijo à sala, penso no que ela teria dito se
soubesse a verdade.
O Gavin Parrie não é estúpido, lá nisso ela está certa. E teria
mesmo muito a perder, isso também é um facto. Mas ele tem uma
razão. Razão essa que… talvez valha o risco.
Vingança.
Porque ele não estava apenas a descarregar a raiva, naquele
dia, no tribunal.
Ele é culpado. Ele sabe disso, e eu sei disso. Mas há outra coisa
que ambos sabemos.
O Gavin Parrie foi condenado com base numa mentira.

***

Daily Mail
21 de dezembro 1999

PRISÃO PERPÉTUA PARA O “VIOLADOR DA BEIRA DA ESTRADA”


Juiz chama “maléfico, impenitente e depravado” a Gavin Parrie

Por: John Smithson

O predador sexual apelidado de “Violador da Beira da Estrada” foi ontem


condenado a prisão perpétua, após um julgamento de nove semanas
decorrido no Tribunal Central Criminal. O juiz Peter Healey considerou Parrie
“maléfico, impenitente e depravado” e recomendou que cumprisse uma pena
não inferior a quinze anos. Depois de anunciada a sentença, gerou-se um
certo alvoroço nas galerias e ouviram-se injúrias dirigidas tanto ao juiz como
aos jurados, por parte dos familiares de Parrie.
Parrie sempre se clamou inocente das acusações de violação e tentativa de
violação a sete jovens, todas residentes na zona de Oxford, entre janeiro e
dezembro de 1998. O caso foi decidido com base nos indícios forenses
encontrados na oficina de Parrie, ligando-o a uma das vítimas, indícios esses
que ele alega terem sido lá colocados de propósito num conluio com a própria
Polícia de Thames Valley. Ao ser levado da sala de tribunal, Parrie pronunciou
ameaças de morte contra o agente responsável pela sua condenação,
gritando “vou apanhar-te!” e “tu e a tua família que se cuidem!”. O agente em
questão, o Inspetor-Coordenador Adam Fawley, recebeu uma menção
honrosa por parte do Superintendente, precisamente pelo seu trabalho neste
caso.
Em declarações proferidas após o veredito, o Superintendente Michael
Oswald, da Polícia de Thames Valley, garantiu estar confiante de que foi
condenado o homem certo e reafirmou que nunca nenhum outro suspeito
credível foi identificado ao longo daquela que acabou por tornar-se uma
investigação a nível nacional.
“Orgulho-me do trabalho realizado pela minha equipa. Envidaram todos os
esforços para conseguirem chegar ao perpetrador destes crimes hediondos e
levá-lo à justiça, e é completamente inaceitável que eles sejam alvo de
ameaças ou intimidação. Os agentes da polícia arriscam diariamente as suas
vidas de modo a protegerem os cidadãos, e podem estar certos de que
continuaremos a tomar todas as providências necessárias para manter a
segurança dos nossos agentes e suas famílias.”
Jenniffer Goddard, mãe da vítima que se suicidou depois do drama por que
passou, falou aos jornalistas que a aguardavam lá fora. Afirmou que nada
trará a sua filha de volta, mas que espera que ela agora consiga descansar
em paz, sabendo que o homem que lhe destruiu a vida vai finalmente pagar
por aquilo que fez.

***

Em St. Aldate, o Sargento Paul Woods ficou de serviço à receção


durante toda a tarde – e não está nada satisfeito com isso. Hoje em
dia, as suas funções prendem-se com os excelsos procedimentos
da sala de custódia, mas o agente da receção está de férias, e o
rececionista civil que o viria substituir está com uma intoxicação
alimentar. E foi a Woods que calhou a estopada. Para começar, está
um calor do caraças. A BBC Oxford avançou que hoje poderíamos
chegar aos trinta graus. Trinta graus. É indecente, é o que é.
Escancarou as portas da entrada, mas a única coisa que por ali
entra são fumos de escapes. E mais pessoas. Uma boa meia dúzia
delas está só a proteger-se do sol – nunca se viu tanto interesse
pela banca de folhetos, essa é que é essa. Passam-se semanas e
semanas sem ser necessário reabastecê-la, mas de repente já não
há um único Como Proteger a Sua Casa de Assaltos e já só resta
um gastíssimo Cuidados a Ter Quando Faz Compras Online. Neste
momento, há um grupinho de volta da banca – turistas, claramente,
sobretudo chineses.

Woods olha para o relógio na parede. Mais vinte minutos antes


da próxima pausa. Os turistas em torno da banca de folhetos
conversam agora animadamente entre eles. Uma mulher aponta
para Woods; parece estar a arranjar coragem para se dirigir a ele. O
sargento levanta-se em toda a sua autoridade – e num metro e
oitenta e oito centímetros e cento e um quilos há muita seriedade,
em todos os sentidos. Não que ele esteja propriamente a tentar
desencorajá-la, mas sabe por penosa experiência própria que este
tipo de perguntas pode ser respondido através de um mapa
minimamente decente. Já teve a sua conta de dicas turísticas não
oficiais ao longo dos anos.
E eis que se vê salvo, não pelo gongo, mas quase. Assim que a
turista chinesa se aproxima da sua secretária, toca o telefone. É a
tipa da central telefónica – outra civil, uma Marjorie qualquer-coisa.
Também lhe calhou a ela outra estopada.
– Sargento Woods, pode atender esta, por favor? Já tentei o DIC,
mas não está lá ninguém. Estão a ligar da Edith Launceleve.
Ele pega na caneta, irritado por nunca saber como se escreve o
nome desse maldito sítio. Quem é que teve a infeliz ideia de dar a
uma faculdade um nome que ninguém sabe escrever?
– OK – resfolega. – Pode passar.
Levanta a mão à turista chinesa, como se tivesse o
superintendente em pessoa do outro lado da linha.
– Sargento Woods? Fala Jancis Appleby, da Edith Launceleve
College.
É aquele tipo de voz que nos faz endireitar na cadeira.
– Em que posso ajudá-la, Miss Appleby?
– Tenho Hilary Reynolds em linha.
Diz isto como se até um subalterno como Woods já tivesse
ouvido o nome. E, por acaso, ele até ouviu, mas neste preciso
momento não se está a conseguir lembrar de…
– Da Direção – informa-o ela, severamente. – Para o caso de se
ter esquecido. Um momento, por favor.
Isto, sim, fá-lo sentar-se direito. A porra da diretora? O que
poderá ser assim de tão importante para a diretora estar a ligar?
Aliás, que raio faz ela no gabinete num fim de semana?
Há vida do outro lado da linha:
– Sargento Woods?
Não é a voz feminina que ele esperava, e até lhe escapam as
primeiras palavras enquanto tenta recordar-se se Hilary também
pode ser nome de gajo.
– Peço imensa desculpa… Pode repetir? – pergunta.
– Disse que, lamentavelmente, preciso de reportar um incidente
que envolve uma pessoa desta instituição – informa-o aquele que
pelos vistos é o diretor.
Woods semicerra os olhos: incidente pode querer dizer uma
miríade de pecados, dos mortais aos mais mundanos.
– E a que tipo de incidente se refere?
Um inalar educado, elegante, ainda que ligeiramente irritante, a
que se segue:
– Um incidente grave, Sargento. Lamentavelmente, é tudo o que
estou preparado para lhe dizer nesta fase. Pode pôr-me em contacto
com o Inspetor-Chefe Adam Fawley?

***

Também está calor em Boars Hill, mas, seja como for, aqui
parece muito mais suportável. Em parte, devido certamente à
altitude, mas a piscina de dez metros e o respetivo bar, convidativo e
bem abastecido, também são de uma grande ajuda. E isso tem
igualmente que ver com altitude, ainda que seja uma elevação de
um género bastante diferente. Não era preciso ser-se um elemento
do DIC – efetivo e bem remunerado – para deduzir, só pela morada,
que tipo de casa seria, mas Garreth Quinn ficou, mesmo assim,
bastante impressionado quando viu o que estava por detrás dos
portões de ferro que se abriram ao seu Audi A4, acabadinho de
lavar, aspirar e encerar, para a ocasião. Um bom meio hectare de
relvados (também arranjadinhos para a ocasião, mas isso não é
suposto ele saber), um parterre2 e laranjeiras, e uma dispersão do
que os agentes imobiliários provavelmente apelidariam de “anexos
de apoio à zona exterior”, discretamente desviados da vista da
mansão cinzelada em neo-palladiano e da sua perspetiva
ininterrupta d’aquela vista. Ao longe, a fileira de guindastes de
construção resulta claramente infeliz, mas, por outro lado, os
pináculos estendem-se, prazerosos e sonhadores, nesta tarde
quente, tal como Matthew Arnold os viu um dia3.
Quando a conheceu, Quinn não fazia ideia de quanto papel
tinham os pais de Maisie. À primeira vista, ela não passava de mais
uma daquelas miúdas de rabo de cavalo e manicure francesa, com
os seus sorrisos afáveis e vogais abertas. Ele chama-lhes abacates:
rijinhas, prontas e verdes. Se bem que, neste caso, não tão verde ao
ponto de se mostrar disposta a ir para a cama com ele no primeiro
encontro. E, nos dez dias que se seguiram até isso acontecer – um
prazo praticamente inédito para ele –, apercebeu-se de que a miúda
tinha muito mais dentro dela do que o identikit das suas
antecessoras. Fazia-o rir e sabia ouvi-lo, mas não lhe facilitava a
vida, e ele deu por si a ter de explicar os porquês daquilo em que
acreditava, muitos dos quais o surpreenderam. E percebeu – e isto
também se revelou inédito – que gostava mesmo dela, tanto na
cama como fora dela.
Razão pela qual, pese embora sempre ter manifestado uma
reação anafilática à ideia de conhecer os pais das namoradas, ele
não só está aqui, como ainda está aqui, muito depois de ter
concordado com Maisie que estava na hora de irem embora. A
carne estava no ponto, o vinho também, e Ted e Irene Ingram não
são decididamente aquilo que vem escrito no rótulo. Sim, têm
dinheiro a jorros, mas não se inibem de o mostrar. O que, para
Quinn, jamais constituirá um problema. Os dois homens
conversaram durante mais de meia hora sobre a armadilha-de-urso
que foi o Brexit, até que Ingram se descaiu, revelando de que lado
estava. Consequentemente, caíram nos braços um do outro com um
alívio cúmplice.
Posto isto, Quinn tem-se divertido à grande. No momento em que
a chamada lhe chegou ao telemóvel, estava um diabinho a soprar-
lhe a informação de que Maisie era filha única dos Ingram ‒ e, já
que os sogros eram algo de inevitável, estes dois podiam afinal não
ser tão maus quanto isso. Em cima da mesa, uma garrafa de
Sauternes de 1996 e uma caixa de havanos. E claro que Quinn já
tinha passado a chave do carro para as mãos de Maisie. O que,
como indica a expressão no rosto dela, é também algo
absolutamente inédito. Ela está agora a olhá-lo fixamente, enquanto
o telemóvel vai tocando: é o toque das chamadas de trabalho.
Quando pega, finalmente, no telemóvel, Quinn olha em volta com
um sorriso pesaroso.
– Lamento imenso… Não me estariam a ligar se não fosse
realmente importante.
Ingram libera-o com um gesto de mão.
– À vontade. A Maisie já me explicou que isto pode acontecer.
Entendo perfeitamente. O seu trabalho é importantíssimo.
Irene Ingram arrasta discretamente a cadeira para trás, e Maisie
levanta-se de um salto. Começam a levantar os pratos, e Quinn
afasta-se para o jardim. Talvez seja para apanhar mais rede, mas
também pode ser por não querer que o pai de Maisie o oiça a
atender com um “fala o Inspetor Quinn”. A maldita despromoção
sempre presente em tudo o que faz…
Finalmente, e com a devida distância salvaguardada, atende a
chamada:
– Fala o Inspetor Quinn.
– É o Woods.
Quinn ouve o barulho do trânsito em fundo: Woods está de
certeza na receção. Ouve-o pedir mil desculpas por estar a
incomodá-lo a um sábado, mas depreende pelo tom de voz que, se
ele também não teve o raio do fim de semana livre, por que diabos o
DIC haveria de ter?
– Acabei de falar com o diretor da Edith Launceleve. Precisa
urgentemente de falar com o Fawley.
Quinn estranha:
– E que é feito do inspetor de serviço?
– Já tentei, mas não está ninguém. Lamento.
– OK, então…
Woods interrompe-o:
– Teria ligado ao Gislingham, enquanto inspetor-coordenador,
mas uma vez que ele está fora até quarta-feira…
Quinn ignora a picada. Já se habituou às bocas-tudo-menos-
subtis acerca da sua despromoção. Podia ter pedido transferência,
porém, ao decidir não fazê-lo, sabia o preço a pagar. A culpa afinal
era dele e só dele: deixou que o coiso falasse mais alto e envolveu-
se com uma suspeita. Foi uma sorte não ter sido despedido. Mas
eles que esperem para ver: ele vai conseguir recuperar a patente. É
só uma questão de tempo. Aliás, quem sabe… talvez esta chamada
seja a sua oportunidade de ouro. Com Gis fora, talvez seja a sua
grande chance de mostrar a sua categoria. A que tem agora e
sempre teve.
– Sem problema – diz, em tom falsamente ligeiro. – O que é que
tens para mim?
Assim que Woods acaba o seu relato, já não lhe parece tanto
uma oportunidade de vinte e quatro quilates, mas não há razão para
que Ingram perceba isso. No que lhe diz respeito, trata-se de um
caso urgente e seriíssimo de homicídio, que requer a atenção de um
superinspetor designado apenas para causas maiores. O tipo de
homem, segreda-lhe o diabinho, que Ingram de bom grado acolherá
como genro. Quinn endireita os ombros, ergue o queixo e atravessa
de novo o relvado em direção à piscina.

***

Adam Fawley
7 de julho, 2018
14h35
Uma chamada do Quinn era a última coisa de que eu estava à
espera. Ele está em casa dos pais da namorada – fez questão de
mostrar quão descontraído estava em relação ao assunto, o que,
para mim, indica precisamente o oposto. Mas é o Quinn a ser o
Quinn. Está a substituir o Gislingham, enquanto ele está fora, mas
neste momento não temos nenhum caso importante – certamente
nada que mereça um telefonema ao fim de semana. Mas eu devia
ter percebido que o Quinn iria adorar a oportunidade de agir a solo
novamente, ainda que eu tenha deixado bem claro que as funções
dele seriam de apoio não oficial e não de atuação oficial.
Ainda estamos todos à mesa quando ele me liga. A tarde já
atingiu a fase morna, se bem que o pai da Alex continue
animadíssimo – tagarela como já não o via há anos. Sempre gostei
do Stephen. É a vantagem dos sogros: são da mesma idade dos
nossos pais, e podemos até conhecê-los desde crianças, mas, se
tivermos sorte – e eu tive –, eles apoiam-nos sem nos tocarem nos
pontos fracos. Ainda que talvez seja por não saberem quais são os
nossos pontos fracos..
Perante o toque do telemóvel, a Alex lança-me um olhar ansioso,
mas não diz nada. Tem uma mão pousada sobre o ventre redondo,
a outra brinca com o guardanapo. Já está a ficar cansada. Tenho
mesmo de ir preparando esta malta para a eventualidade de terem
de ir embora.
Lá fora no pátio, atendo finalmente a chamada:
– Desculpe incomodá-lo, chefe. É só para informar que vou
agora encontrar-me com a Ev na Edith Launceleve. Houve um
incidente envolvendo um estudante.
Estranho. Sei que, nesta fase, o Quinn tem tido mil cuidados para
não fazer merda, mas por que raio é que ele me está a ligar para
dizer isto? Até que me lembro que a maior parte dos alunos já
entrou de férias, por isso é pouco provável que se trate de um
simples caso de bebedeira, seguida de escaramuça, decorrente dos
festejos de fim de curso.
– De que é que se trata concretamente?
– Ainda não sei.
– Então porque é que…
– O diretor pediu expressamente que fosse o chefe a lá ir.
Chama-se Hilary Reynolds. Diz-lhe alguma coisa?
Pouca, e há já muito tempo… Uma conferência, há coisa de dois
anos?
– Pesquisei-o – diz Quinn –, e parece tratar-se de um conhecido
advogado especializado em direitos humanos.
Eu estava certo. Foi mesmo naquela conferência em…
– Acabou de ser designado para aquela comissão parlamentar
consultiva sobre as tarifas vitalícias4. O chefe sabe… aquela de que
o Bob O’Dwyer faz parte?…
Era mesmo do que estávamos a precisar: o Robert O’Dwyer é o
vice-chefe da polícia. Mas há que dar crédito ao Quinn por ter
verificado tudo isto, em vez de se lançar de cabeça, qual Cavaleiro
Solitário.
– OK, ainda preciso de falar com os meus sogros, mas, em
princípio, estarei lá dentro de uma hora.

***

A Edith Launceleve College – EL, para os seus alunos – ergue-


se sobre mais de cinco hectares jardinados, estendendo-se pela
Banbury Road e a Woodstock Road. Não muito longe da cidade,
segundo qualquer noção geográfica normal, mas tão distante quanto
a Mongólia, no excitável microcosmo que representa a Universidade
de Oxford. A EL é de ensino misto há mais de trinta anos, mas foi
fundada como uma instituição para a educação de jovens mulheres
– por uma robusta e vigorosa solteirona vitoriana que simplesmente
não aceitava um não como resposta – e batizada em homenagem à
padroeira do século XII do vizinho convento de Godstow – que era,
a todos os níveis, igualmente enérgica e casmurra. Nos seus mais
de cem anos de existência, a EL tem acumulado um impressionante
e invejável rol de alumni, incluindo várias gerações de mulheres que
tinham – e precisavam – exatamente a mesma tenacidade. Quinn
não sabe, mas a mãe do Inspetor Asante foi uma delas. Hoje em
dia, é administradora de uma empresa cotada no FTSE 1005, mas
as outras mulheres dignas de tal proeza contam-se pelos dedos de
uma mão. O esplêndido isolamento da cidade que a EL oferece,
bem como todas as suas tentações, sempre foi visto como um
benefício aos olhos da sua intransigente fundadora, mas hoje em dia
é, sem dúvida nenhuma, uma desvantagem – quando a
Universidade tem dias abertos, é necessário recorrer-se a marcas
de giz no pavimento para evitar que alunos do sixth-form6 se
distanciem do campus. Por outro lado, beneficia de um
preciosíssimo “argumento único de venda”: há sempre lugar para
estacionar. Maisie descobre um do outro lado da rua, mesmo em
frente à portaria, e desliga o carro. Quinn, sentado a seu lado, fica
por um momento a olhar para os portões.
– Uma das colegas do meu ano, da Burghley Abbey, andou cá –
diz ela.
Quinn volta-se para a jovem:
– Ai sim?
Ela assente:
– Disse-me que era fixe, mas que não se sentia verdadeiramente
em Oxford. Quer dizer, isto agora já tem rapazes e isso tudo, mas
ela sentiu sempre um espírito de colégio interno feminino.
Quinn volta-se de novo para os portões. Há um grupo de jovens
a conversarem junto à porta principal. Trazem dossiês e as
omnipresentes garrafas de água, mas têm cartões ID pendurados ao
pescoço, pelo que se presume que sejam apenas alunos da Escola
de Verão. Seja como for, parecem felizes. Sorrindo, olhando para o
futuro com confiança, num perfeito equilíbrio de género e raça. O
grupo bem podia ser a foto de capa da brochura da faculdade.
– Queres que eu espere contigo até a tua colega chegar?
Quinn volta-se de novo para ela:
– Não, não é preciso. A Ev estava a dez minutos daqui. Aliás, até
me espanta que ainda não tenha chegado. – Abre a porta do carro.
– Vemo-nos em casa. Se isto for coisa para demorar, eu ligo-te a
avisar.
– OK. Até logo.
Maisie liga a ignição e arranca, virando à direita no cruzamento
com um chiar de pneus. Quinn sorri, não obstante os seus adorados
pneus. A miúda tem garra: conduz quase tão depressa quanto ele.
Atravessa a rua e vê o carro de Ev estacionar no lugar que
Maisie deixou vazio. Achou que ela viria a pé do seu apartamento de
Summertown, mas talvez não estivesse em casa quando recebeu a
chamada. Quinn raramente a vê fora de serviço, por isso a roupa
que ela traz deixa-o surpreendido. O que quer que ela estivesse a
fazer, justificou o uso de saia.
– Mas que elegância – diz-lhe a colega quando se aproxima
dele, apontando para as calças chino bege e a camisa cor-de-rosa.
– Espero que eles tenham ficado devidamente impressionados.
Podia ficar ofendido, mas, em vez disso, decide sorrir.
– Tiro e queda – responde-lhe. – Tenho-os a comer na minha
mão.
Ela ajeita a mala ao ombro.
– E então? O que é que temos aqui?
– Um “incidente” qualquer. Mas nada digno do 112, por isso parto
do princípio de que ninguém morreu. O Woods disse que foi o
próprio diretor que ligou. Recusou-se a avançar o que quer que
fosse, apenas que queria falar com o Fawley.
– Então, é grave.
Ele concorda:
– O chefe vem a caminho. Mas, neste momento, estou tão às
escuras quanto tu.
Por acaso, Ev até tem umas luzes, mas decide guardá-las para
si.
Quinn vai até à portaria anunciar-se. Ev fica cá fora à espera; ele
não precisa que ela o leve pela mão, sobretudo estando ele neste
modo, inchado que nem um pavão nas suas funções de inspetor-
coordenador substituto. O grupo que estava à porta já dispersou, e o
átrio está agora vazio. Há restos de confetes espalhados pelo chão,
últimos resquícios dos exames finais. Ev sente o calor que emana
da pedra, através das sandálias finas.
– OK – diz Quinn, ao regressar para junto dela. – Soube que o
gabinete do Reynolds fica no primeiro andar. Viramos à direita no
fundo do corredor e subimos as escadas. A assistente pessoal
aguarda-nos lá.
Está surpreendentemente fresco lá dentro, mas algo no chão de
parquê e no eco dos passos deles faz Ev pensar em desinfetante e
tacos de hóquei. O corredor lá de cima é alcatifado. A assistente
pessoal aguarda-os, claramente impaciente e irritada. Dá a
sensação de que sabe ao segundo quanto tempo leva a percorrer
aquela distância – e que o desempenho dos agentes foi
manifestamente insuficiente.
– O Professor Reynolds está só a terminar uma chamada.
Queiram sentar-se, ele não demora.
A mulher volta para a sua secretária, mas as cadeiras para os
visitantes têm um ar aguardando-a-detenção, que as torna muito
pouco convidativas. Quanto a Quinn, parece não conseguir ficar
quieto. Passa os cinco minutos seguintes a escrutinar as fotografias
emolduradas do corpo docente, até que o intercomunicador na
secretária da assistente apita e ela levanta-se.
– Acompanhem-me, por favor.
O escritório é no mínimo impressionante, nem que seja só pelo
tamanho. Paredes revestidas a painéis de madeira, grandes janelas
sobre o jardim, mais fotos emolduradas, desta vez de antigos
diretores da faculdade. São todas mulheres. Ao contrário da pessoa
que os recebe, de mão estendida.
– Hilary Reynolds. Deve ser o Inspetor-Coordenador Quinn?
Ev vê o colega abrir a boca, mas Reynolds já está a dirigir-se a
ela:
– Inspetora Everett? Por favor, queiram sentar-se.
– Então… – diz Quinn, passado um momento – Chamou-nos cá
para…
Reynolds franze a testa.
– Não acha que deveríamos esperar pelo Inspetor-Chefe
Fawley?
Quinn move-se nervosamente.
– Ele… quer que vamos avançando, enquanto não chega. Sabe
como é, trânsito de fim de semana, turistas…
Reynolds recosta-se na cadeira, com os dedos entrelaçados.
– Toda esta situação é extremamente delicada.
Quinn assente:
– Nós entendemos, senhor diretor, mas enquanto não
soubermos do que é que se trata…
Ev olha-o de soslaio; depois, vira-se para Reynolds:
– Se ajudar, eu tenho formação em crimes sexuais.
Reynolds observa-a. Não diz nada, mas Ev percebe pela
expressão dele que acertou em cheio.
Reynolds aclara a garganta:
– Sim, Inspetora Everett, excelente suposição. Trata-se de facto
de um caso desses.
Everett saca do bloco de notas. Quinn pode querer armar-se em
bom, ser o homem da relação, mas alguém tem de fazer o trabalho
pesado.
– Talvez eu possa ir tomando nota de alguns detalhes? Presumo
que não haja ninguém com necessidade de assistência médica
imediata?
Reynolds reage com um rápido negar de cabeça:
– Não, não, nada disso.
Quinn chega-se ligeiramente à frente na cadeira; é óbvio que
sente necessidade de reafirmar a iniciativa.
– Foi-lhe endereçada alguma queixa formal? A si, diretamente,
como diretor desta instituição?…
O homem abana a cabeça:
– A seu tempo, os devidos procedimentos internos serão postos
em marcha pelos protocolos da Universidade, mas eu senti que as
circunstâncias exigiam uma denúncia imediata às autoridades civis.
Isto soa quase como um copy-paste do mais recente manual de
políticas pela igualdade e diversidade, pensa Everett, tomando
notas. Para não vir a sobrar para ele mais tarde… isso, sem dúvida.
– Entendo – diz Quinn. – Que tal descrever-nos o incidente tal
como o entende? Disse ao meu colega de St. Aldate que envolve
um estudante vosso?
Reynolds começa a brincar nervosamente com um objeto
qualquer na secretária.
– Sim, está a tirar a pós-graduação. Dos estudantes mais
inteligentes desta instituição, diga-se. Veio transferido da Cardiff, no
início do Michaelmas7. – Olha de relance para Ev e agita um dedo
sobre as notas dela. – Por outras palavras, outubro.
Jura? Obrigadinha, pensa Ev, com um revirar de olhos interior.
Como se uma pacóvia como ela pudesse jamais saber isso.
– E a outra pessoa envolvida? – pergunta-lhe ela, calmamente.
Reynolds fica subitamente sombrio.
– Temo que a outra parte envolvida… seja um elemento do corpo
docente desta faculdade.
Isto não é surpreendente – muito menos para Everett. E não
apenas por ter tido formação em crimes sexuais.
– OK – diz Quinn, que está a um passo muito curto de perder a
paciência, se esta conversa de paninhos quentes se mantiver. –
Talvez seja mais fácil falarmos diretamente com as partes
envolvidas?

***

– Aceitas outro copo de vinho?


Erica Somer olha para cima, protegendo os olhos do sol. Está
sentada na varanda da casa de Giles Saumarez. Três cabanas de
pescadores branquinhas, juntas umas às outras, com chãos de
pedra polida e janelas que se abrem para o Southampton Water8. Lá
dentro, é arejado e fresco, mas, aqui fora, o sol quase que cega.
Bem, ao menos levantou-se uma brisa: no estuário, por entre os
petroleiros que se deslocam lentamente até à refinaria, há quatro ou
cinco pequenos iates velejando ao sabor do vento. Somer nunca
velejou, nunca quis, mas, subitamente, adoraria estar ali, na água,
sozinha. Sem ter de pensar em ninguém, ninguém a quem dar
justificações, plenamente à mercê da corrente e dos azuis do mar e
do céu. Não passa de um impulso momentâneo e, com ele, chega a
mordida do remorso. Devia estar grata apenas por estar aqui –
nesta casa fabulosa, com Giles, que investiu tanto neste fim de
semana e que, ao contrário da maioria dos homens, não faz questão
de lho cobrar de cinco em cinco minutos. Comprou o vinho preferido
dela, encheu o quarto de flores, bonitos jogos de toalhas na casa de
banho. O dia tem estado espetacular, e almoçaram lindamente:
queijo branco, incrivelmente suave e macio, focaccia dourada e
estaladiça, polvilhada com rosmaninho, figos maduros, presunto,
cubos de marmelada de laranja – a mesa gritava por um hashtag de
foodporn.
Somer acorda para a realidade e abana a cabeça – o copo que
Giles lhe serviu há mais de uma hora continua praticamente cheio.
Ele ergue os óculos escuros para poder olhá-la nos olhos.
– Está tudo bem?
Ela assente rapidamente, pegando no copo, fazendo um esforço,
um meio sorriso.
– Sim, tudo ótimo. Sinto uma moleza estranha, mais nada.
Ele senta-se ao lado dela.
– Não temos de sair esta noite, se não te apetecer. É só porque,
da última vez que cá estiveste, disseste que…
– Não, não – interrompe-o ela. – Claro que quero sair. Para lá de
te preocupares, por favor.
Desvia o olhar para a água, as gaivotas, as lanchas a motor. O
que quer que seja que lhe permita esconder a mágoa e o
desconcerto no olhar.

***

Adam Fawley
7 de julho, 2018
15h17

O Hilary Reynolds não é o primeiro big boss com quem tive de


lidar no meu trabalho – nem será o último. Reitores, diretores,
administradores – os títulos podem variar, mas todos eles acabam
por ganhar a mesma postura virtuosística: aquela exagerada
autoconfiança típica da mesa VIP de um salão de jantar, com todo
um organograma de staff doméstico e uma dose generosa de
despotismo. O Reynolds não é diferente, pelo menos, à primeira
vista. Ainda levo um momento até me aperceber da ansiedade que
paira nesta sala. E de quem é o responsável por ela.
Ele está no canto da sala, encostado ao banco da janela. Não
terá mais de vinte e dois, vinte e três: pele muito clara, cabelo cor de
caramelo, meio alourado nas pontas. Uma tatuagem escura num
antebraço, qualquer coisa sinistra, pontiaguda, como uma máscara
veneziana. Mais alto do que eu e também mais robusto. Físico de
atleta. Apostaria no râguebi, se me perguntassem.
– Inspetor Fawley – diz o Reynolds, com um ligeiro pigarrear. –
Que bom poder juntar-se a nós. Este é o Caleb Morgan, da
faculdade de Matemática, atualmente a trabalhar em álgebra linear
aplicada à aprendizagem de maquinaria de larga escala.
Condescendente e inconsequente. Há que dar mérito ao
Reynolds – no que respeita a informação irrelevante, esta merece a
medalha de ouro.
O Quinn deve ter pressentido a minha irritação, já que se
apressa a intervir:
– Houve uma alegação de abuso sexual, chefe.
Cravo os olhos nele. Mas que porra é que ele está a fazer? Isto
vem nos mais básicos manuais dos procedimentos policiais: reúne
os factos antes sequer de referires o agressor. E refiro-me a todos
os factos.
Chamo o Quinn à parte:
– O que é que ele está aqui a fazer? – pergunto, baixinho. – Não
sabes que tens de falar com a vítima primeiro?
Ele cora.
– Sei, chefe – diz-me. – A vítima é ele.
Volto-me para olhar para o Morgan. Os olhos azuis-claros estão
intensamente cravados em mim, e sinto-me corar. E, agora que o
observo melhor, vejo a marca vermelha no seu pescoço. E, não
obstante tudo aquilo para que fomos treinados e contra tudo com
que nos martelam hoje em dia, não consigo deixar de pensar que
este tipo tem quase um metro e noventa, um corpo maciço e que
certamente teria conseguido defender-se de…
– Ora bem – diz o Reynolds, olhando para o Quinn e depois para
mim –, agora, que já temos esta questão esclarecida, imagino que
queiram falar com a Professora Fisher?
A Ev trata de me esclarecer:
– A Professora Fisher é a supervisora do Mr. Morgan e…
O Reynolds interrompe-a:
– Eu preferia claramente que essa entrevista não fosse
conduzida em instalações da faculdade, sobretudo tendo em conta
que o incidente não ocorreu aqui. A morada da Professora Fisher é
Monmouth House, St. Luke Street – acrescenta, voltando a sentar-
se à secretária. – E, uma vez que é sábado à tarde, calculo que seja
mais do que provável que a encontrem em casa.
Professora Fisher?
O agressor do Morgan foi uma mulher?

***

Em Risinghurst, Alex Fawley despede-se da irmã. Foi preciso


uma boa meia hora para conseguirem enfiar tanto o cão como os
rapazes no carro, e o cão foi decididamente o mais solícito dos três.
Gerry está ao volante, impaciente, ansioso por arrancar antes que o
filho decida que precisa de fazer chichi pela terceira vez.
Nell envolve a irmã num longo e forte abraço.
– Dizes-me se precisares seja do que for, não dizes?
– Eu estou ótima, a sério que estou. O Adam tem sido
maravilhoso.
Nell desfaz o abraço.
– Quando não sai de casa, a correr, para uma cena qualquer de
trabalho, quando era suposto tirar um dia de folga. É isso?
– Ele não tem culpa. São ossos do ofício.
A irmã faz uma careta.
– A quem o dizes. Conheço-o há tanto tempo quanto tu.
Há um certo alvoroço cá fora – dois miúdos de skate aproveitam
a descida da rua para ganharem velocidade e acabarem numa
lomba para mostrarem as suas acrobacias –, mas Nell vê a irmã
contrair-se e tentar disfarçar imediatamente a seguir.
– São só putos a andarem de skate… Estás a ficar paranoica.
Aquele homem… o Parrie… está proibido de se aproximar de ti.
Sabes isso, não sabes?
Alex força um sorriso.
– Isto são os nervos… Não me largam um minuto.
Gerry inclina-se para abrir a porta do carro à mulher.
– Vens?
Nell dá à irmã um último abraço rápido.
– Lembra-te do que te disse, OK? Se precisares de alguma coisa
– seja o que for –, estou à distância de um telefonema.
Alex assente, e Nell entra no carro, mas, já depois de
arrancarem, Alex deixa-se ficar, abraçada a si própria. Os dois
skateboarders continuam aos saltos, subindo e descendo a lomba,
fazendo malabarismos no ar, mas ela nem sequer os vê. Está a
olhar através deles, para lá deles, para uma carrinha branca
estacionada umas portas abaixo. Ao volante, um homem com um
boné de beisebol bem enterrado na cabeça.
Não importa quantas vezes lhe digam que Gavin Parrie estará
sempre bem distante dali, que é rigorosamente vigiado, que usa
pulseira eletrónica; ela continua a vê-lo em cada esquina, em cada
carrinha, em cada rosto sombrio e semioculto.
Porque ele sabe. E um dia – talvez não hoje, nem esta semana
ou este mês ou este ano, mas um dia – ele vai encontrá-la e vai
fazê-la pagar pelo que fez.
Estão trinta graus, mas ela começa a tremer, a pele escaldante
gelada de suor.

***
[IVY PARRIE]
Olá, Gav, é a mãe. Só queria que soubesses que recebi a tua mensagem
sobre a audiência. Estamos todos a torcer por ti, aqui, amor, e a Jocelyn e a
sua equipa estão a dar tudo por tudo a teu favor. Até para a semana.

[SOM DA CHAMADA A DESLIGAR-SE]

[JOCELYN]
O meu nome é Jocelyn Naismith e sou a pessoa referida naquele áudio.
A voz que ouviram é da Mrs. Ivy Parrie. Ivy tem setenta e seis anos, vive em
Coventry, e acabaram de a ouvir deixar uma mensagem de voz ao filho. Não
lhe pôde ligar diretamente porque ele está preso. Em Wandsworth, mais
precisamente.
A cumprir uma pena de prisão perpétua por um crime que ele sempre alegou
que não cometeu.

O áudio foi gravado em abril de 2018, pouco antes de o Gavin Parrie se


apresentar perante o Conselho da Liberdade Condicional. Graças ao trabalho
realizado pela minha equipa, e com o apoio do advogado do Gavin, a longa
batalha pela justiça foi finalmente ganha e ele recuperou a sua liberdade em
maio deste ano.

Esta série de podcasts conta a história do Gavin. Antes de mais, como ele foi
condenado, o que a organização “Toda a Verdade” veio a descobrir sobre a
investigação inicial e a razão pela qual acreditamos que o verdadeiro
criminoso continua por aí à solta.

Sou a Jocelyn Smith e sou cofundadora de “Toda a Verdade”, uma


organização sem fins lucrativos que luta pela reposição dos erros de
justiça. Esta é a série 3 de “Fazer do Errado Certo: O Violador da Beira
da Estrada Redimido?”.

Capítulo Um: Prólogo


[TEMA MUSICAL – AARON NEVILLE – VERSÃO COVER DE “I SHALL BE RELEASED”]
[BOB DYLAN]
Standing next to me in this lonely crowd,
Is a man who swears he’s not to blame
All day long I hear him shout so loud
Crying out that he was framed
I see my light come shining
From the west unto the east
Any day now, any day now
I shall be released.

[JOCELYN]
O Bob Dylan escreveu este tema em 1968, o ano em que o Gavin Parrie
nasceu.
O segundo de três rapazes Parrie, ensanduichado entre o mais velho, Neil, e
o mais novo, Robert (a quem a família trata por Bobby). A mãe trabalhava em
part-time como repositora num supermercado da zona, e o pai, Vernon, era
empregado da então fábrica de automóveis British Leyland, nos arredores de
Oxford.
A família vivia numa pequena casa geminada na Cowley Road, e os três
rapazes andaram na escola primária da zona e, mais tarde, na Temple Green
Secondary Modern.

O Ken Waring foi professor do Gavin, no seu primeiro ano, na Temple Green.

[KEN WARING]
Ele era algo rebelde, não há como fugir a isso. Sempre metido em sarilhos.
Mas nunca o achei um mau rapaz. Tinha dificuldades na leitura, mas, vendo
as coisas em retrospetiva, creio que talvez fosse disléxico. Mas, na altura,
claro que não havia esse tipo de diagnósticos, e os apoios eram praticamente
nulos. Miúdos como ele tornavam-se disruptivos apenas porque sentiam
dificuldades em acompanhar o ritmo. Mas lembro-me que ele tinha imenso
jeito de mãos.
Tinha sempre boas notas em trabalhos oficinais, sobretudo a trabalhar com
madeira e metal. Acho que eu assumi que ele seguiria as pisadas do pai na
indústria automóvel. Era o que a maioria dos nossos rapazes fazia.

[JOCELYN]
Por volta de 1984, a família mudou-se para Manchester. O Vernon Parrie fora
despedido da fábrica, mas conseguiu assegurar outro emprego numa fábrica
de montagem de camiões, mais a norte. Foi uma fase complicada para o
Gavin que, como já sabemos, tinha dificuldades na escola. A mudança para
uma escola nova representou um desafio demasiado penoso, e o Gavin
abandonou o ensino nesse verão, sem nenhumas qualificações.

Passou os dois anos seguintes a saltar de emprego em emprego – limpeza de


escritórios, motorista de táxi e, por vezes, ajudava o irmão Bobby que, na
altura, era aprendiz de estucador. Fixem isto – será importante mais tarde.

Foi por essa altura que o Gavin conheceu a mulher que viria a tornar-se sua
esposa.
A Sandra Powell tinha dezasseis anos, e as fotos dela do álbum de família
mostram uma típica adolescente dos anos oitenta, divertida e despreocupada.

[SANDRA]
Eu sei, eu sei, mas nessa altura todas fazíamos permanentes destas. A minha
mãe fazia-mas ela própria, na nossa cozinha.

[SOM DE VIRAR DE PÁGINA]

Nem sequer me lembro da última vez que olhei para estas fotos. E não posso
acreditar que vestia estas roupas – olhem só estas perneiras. Onde raio é que
nós tínhamos a cabeça?

[JOCELYN]
Esta é a Sandra. Como podem ver pelo tom de voz, permanece nela algum do
espírito alegre e atrevido dessa altura, ainda que os anos que se seguiram
não tenham sido nada fáceis. Atualmente, vive na Escócia e voltou a adotar o
nome de solteira (saberemos porquê num episódio mais à frente), mas nunca
deixou de manter contacto com o Gavin e sempre foi uma acérrima defensora
da sua inocência.
Mas já estamos a pôr o carro à frente dos bois. Voltemos a 1986.

[SANDRA]

[SOM DE VIRAR DE PÁGINA]

Ah, eu adoro esta… Sou eu e o Gav em Blackpool, umas semanas depois de


termos começado a namorar.

[JOCELYN]
É uma fotografia melosa, e não é só por estarem a comer algodão-doce. O
Gavin tem um sorriso tímido e um corte de cabelo mullet que o torna parecido
com o David Cassidy. A Sandra faz pose para a câmara e, ainda que tenha
menos dois anos do que ele, parece mais mundana, muito mais madura.
Segundo a própria Sandra, essa é uma reflexão bastante precisa dos
primeiros tempos da relação deles.

[SANDRA]
O Gav ainda precisou de bastante tempo para se adaptar a Manchester.
Deixou todos os seus amigos em Cowley, e creio que se ressentiu com isso.
Também não se dava lá muito bem com o pai, por isso era bastante solitário.
Eu fui a sua primeira namorada a sério, isso eu sei. Nessa altura, ele não era
nada confiante – levou imenso tempo a convidar-me para sair. Tanto, que eu
cheguei a pensar que não estava interessado.

[JOCELYN]
Mas, assim que começaram a namorar, as coisas evoluíram muito depressa.
Três meses depois, a Sandra estava grávida e, no fim desse mesmo ano,
foram pais de uma menina, a Dawn.

[DAWN MACLEAN]
A minha primeira recordação do pai? Acho que foi ele a ensinar-me a andar
de bicicleta, tinha eu uns seis anos.

[JOCELYN]
Esta é a Dawn. Hoje em dia, é esteticista qualificada, casada e com dois
filhos, e vive em Stirling.
[DAWN]
Recebi a bicicleta no dia dos meus anos e lembro-me que choveu a potes
durante todo o dia – sabem como é Manchester –, mas ele passou muitas
horas comigo lá fora, à chuva, enquanto eu me tentava equilibrar, rua abaixo,
rua acima.
Ele nem sempre era assim tão paciente. Lembro-me que odiava tudo o que
implicasse papelada ou preencher formulários – a mãe é que tinha de tratar
das coisas da Segurança Social ou das cenas que tinham que ver com as
nossas escolas. Acho que ele sempre foi um tanto receoso dessas pessoas.
Pessoas com autoridade. Ele dizia que elas estavam sempre prontas para nos
apanhar. E, se pensarmos bem, até tinha razão, certo?

[JOCELYN]
Na década seguinte, a Sandra e o Gavin tiveram mais dois filhos. A Sandra
trabalhava como cabeleireira, mas o Gavin continuava sempre limitado a
trabalhos temporários, por isso o dinheiro nunca chegava e eles não
conseguiam safar-se sem apoios do Estado. Passados uns tempos, a tensão
começou a dar sinais.

[DAWN]
A partir dos meus onze anos, percebi que o meu pai passava por dificuldades.
Ele nunca usaria esta expressão, claro, mas eu sabia que ele não era feliz.
Parecia que estava sempre zangado, e acho que bebia demasiado, e isso
deixava-o ainda mais irritado. E infeliz. Lembro-me, uma vez, de o ter
apanhado lavado em lágrimas, lá em cima no quarto. Foi a primeira vez que
eu vi um homem chorar, e assustei-me imenso. Foi a partir daí que as coisas
começaram a correr mal.

[JOCELYN]
Estávamos em 1997. A 2 de maio desse ano, uma rapariga de dezasseis anos
foi atacada na Lockhart Avenue, em Manchester. Foi arrastada para uma zona
de vegetação rasteira, violada e deixada ali, à beira da estrada.

Três noites depois, a Sandra recebe um telefonema.

Era o Gavin. Estava nas instalações da Gretar Manchester Police – tinha sido
detido.

Por violação.
[MÚSICA DE FUNDO: “I FOUGHT THE LAW AND THE LAW WON” – THE CLASH]

Sou a Jocelyn Naismith, e este é o “Fazer do Errado Certo”. Pode ouvir


este e outros podcasts de “Toda a Verdade” no Spotify ou onde quer que
carregue os seus podcasts.

[FADE OUT]

***

Adam Fawley
7 de julho, 2018
15h49

– Se estiver disponível para nos acompanhar agora, faremos a


videoentrevista e colheremos as amostras que o MP irá necessitar,
caso isto siga para tribunal.
É a Ev que faz a conversa toda. E magistralmente, sem dúvida.
Talvez seja da formação especializada, mas ela consegue mostrar-
se inabalável perante a estranha reviravolta deste caso. Ao contrário
de mim. Até mesmo o Quinn parece ter-se conformado com a coisa,
se bem que talvez seja por ter tido mais tempo do que eu para se
habituar à ideia. E, entretanto, a Ev tem estado calmamente a anotar
os pormenores para a Denúncia Investigativa Inicial e a esclarecer o
Caleb Morgan sobre aquilo que poderá esperar no Centro de Apoio
à Vítima de Violência Sexual e que tipo de apoio poderá requisitar,
com que ajuda poderá contar. No final, quando ela lhe diz que, se
ele preferir, poderá optar por um agente homem como contacto de
apoio policial, não me espanta nada ouvi-lo dizer que prefere ficar
com ela.
Eu não disse grande coisa na última meia hora, muito menos ao
Reynolds, e preferia que as coisas se mantivessem assim, mas,
quando nos levantamos todos para sair, ouço-o aclarar a garganta
antes de se dirigir a mim:
– Pode ficar mais uns minutos, Inspetor?
A Ev lança-me um olhar inquisitivo, mas eu concordo com um
aceno:
– Vão andando, ligo mais tarde para fazermos um ponto de
situação.
O Reynolds deve ter carregado num botão qualquer, já que a
porta do gabinete dele se abre para deixar entrar a assistente, que
traz um tabuleiro de chá. Ou isso ou a mulherzinha esteve a ouvir o
raio da conversa toda através do intercomunicador. Muito
francamente, não me admirava nada.
O Quinn lança um olhar invejoso ao tabuleiro – até agora, nem
sequer água nos ofereceram –, mas é óbvio que nada daquilo foi
providenciado a pensar nele. Bule de prata com o brasão da
faculdade, leiteira, açucareiro e pinça de prata, um pires com fatias
de limão. E duas chávenas apenas.
Quando a porta se fecha, o Reynolds volta-se para mim:
– Há uma razão para eu querer falar consigo a sós, Inspetor. Isto,
com o Caleb Morgan… é mais complicado do que pode parecer à
primeira vista.
Mais complicado? Uma professora acusada de assediar um
aluno? Políticas de género, políticas de universidade. Um verdadeiro
campo minado. O que é que pode haver de pior?
Ele volta a pigarrear:
– Ele usa o apelido do pai, mas a mãe do Caleb… é a Petra
Newson. Calculo que já tenha ouvido falar.
É claro que já ouvi falar, porra. Uma parlamentar regional
extremamente combativa, com uma agenda mais longa do que o
meu histórico profissional. Se o Reynolds ainda não ligou ao Bob O
´Dwyer, o mais provável é que a Petra-Porra-Newson o obrigue a
fazê-lo.
Tento manter um tom neutro:
– Presumo que a Ms. Newson esteja a par do que sucedeu?
Ele concorda com um aceno lento:
– Sim, sei que o Caleb lhe ligou. Ela está nos Estados Unidos,
mas é suposto regressar ao seu círculo eleitoral amanhã.
Então, com sorte, ainda temos mais vinte e quatro horas de
prorrogação. Basta a cada dia o seu mal, como dizia o outro9.
Respiro fundo:
– Fale-me sobre a Professora Fisher.
Se o Reynolds pensa que isto se trata de um desviar da
conversa, pelo menos não o mostra.
Inclina-se para a frente e entretém-se a servir-me um chá.
– A Marina é uma das sumidades mais conceituadas do país no
que concerne a Inteligência Artificial. Não é a minha área,
obviamente – acrescenta, com um daqueles olhares que os
académicos nos dedicam, aparentemente autodepreciativos, só que
não. – Mas diz quem sabe que o trabalho dela tem sido
genuinamente revolucionário. E escusado será dizer que, hoje em
dia, toda essa área é altamente merecedora da atenção mediática.
Escusado será dizer, mas o tipo disse-o na mesma. Lembro-me
agora que, há coisa de umas semanas, ouvi um programa na Radio
4 sobre aprendizagem computacional – que eu recordo apenas
vagamente, visto que estava mais concentrado em cozinhar, logo,
não retive grande coisa. E, pensando bem, acho mesmo que era a
Marina Fisher que liderava o debate. Claro que a BBC quereria ter
uma voz feminina num tema desses.
– Aqui entre nós – disse o Reynolds, passando-me o prato com
as fatias de limão –, ela acabou de ser convidada para as
Conferências de Natal do Royal Institution deste ano.
Apesar de tudo – apesar do crime de que ela acabou de ser
acusada –, ele não consegue, por mais que se esforce, disfarçar a
vaidade no tom de voz. O que me diz tudo o que preciso de saber
sobre o tipo de mais-valia que esta mulher deve representar para a
faculdade. A EL não pode ser equiparada a uma Belliol ou uma
Merton10 – nenhuma das anteriores faculdades femininas pôde,
aliás. Não têm nem o prestígio nem o poder de atração suficientes.
Mas uma sumidade em algo tão excitante quanto a IA… é obra.
Porém, quanto maior o triunfo, mais ampla será a potencial
armadilha: não preciso de vos dizer quão mediática esta história
poderá vir a ser. Se vier cá para fora.
– Ontem à noite, houve um jantar de angariação de fundos –
está ele a dizer neste momento. – Para os mais importantes
financiadores chineses da Universidade. A Marina foi a oradora
principal. A faculdade pretende criar o melhor centro de pesquisa do
mundo em IA, pioneiro no recurso a metodologias interdisciplinares.
Isto já começa a soar a uma proposta de patrocínio – algo, aliás,
de que ele parece aperceber-se, já que cora ligeiramente e repete o
numerozinho da tosse. Confesso que já está a bulir-me com os
nervos.
– Escusado será dizer que tudo isto é altamente confidencial. As
negociações estão ainda numa fase muito embrionária.
– O senhor esteve presente nesse jantar?
Reynolds solta uma risadinha rápida:
– Não, Inspetor, não estive. Mas soube que a Marina roubou
todas as atenções. O Vice-Chanceler já contava que ela tomasse a
dianteira, mas parece que foi bastante mais do que isso. Certamente
não precisarei de lhe dizer que há muita coisa em jogo nisto tudo.
A seguir, vai sugerir fazer-me um diagrama, aposto. Mas eu já
percebi. Clara e perfeitamente. Tanto a faculdade como a
Universidade vão fazer todos os possíveis para evitar que esta
mulher caia em desgraça. Levando-as consigo.
– O Mr. Morgan disse que o incidente ocorreu em casa da
Professora Fisher, ontem à noite.
O Reynolds ergue o sobrolho.
– Sim… É isso que ele alega.
Registo o termo “alega” e pergunto-me se a fachada de
escrupulosa objetividade deste tipo está a começar a ceder.
– E o que é que o Mr. Morgan estava lá a fazer?
Desta vez, o Reynolds franze claramente a testa. Aproveito a
vantagem para o pressionar:
– O senhor acabou de me dizer que a Professora Fisher estava
num jantar da Universidade, e eu deduzo que tenha chegado tarde a
casa. Portanto, vou voltar a perguntar: o que é que estava o Mr.
Morgan a fazer em casa dela àquela hora da noite?
O vinco da testa do Reynolds aprofunda-se.
– Eu… lamento, mas não lhe sei dizer. Os seus agentes terão de
lhe perguntar, a ele, mas eu não vejo nenhuma razão lógica para ele
lá ter estado.
– A Professora Fisher tem por hábito convidar alunos para sua
casa?
– Duvido. Aliás, as regras da faculdade proíbem-no
terminantemente, como a Professora Fisher certamente saberá.
Abrimos exceções para eventos sociais ocasionais, convívios de
Natal, por exemplo. Mas os membros estão estritamente proibidos
de promover reuniões ou tutoriais privados nas suas residências
particulares. Sobretudo nestes tempos conflituosos que correm. E
isto para sua própria proteção.
Agora, está notoriamente nervoso – como se só agora se tivesse
apercebido de quão perturbante é a história do Morgan.
– Quem mais vive com a Professora Fisher? Ela tem família?
Ele mexe-se na cadeira, fazendo o cabedal estalar.
– Tenho de estar consciente das questões de privacidade,
Inspetor. Proteção de dados, e isso tudo. O senhor, na sua posição,
saberá certamente o que isso é. Mas é do conhecimento comum
que a Marina vive com o filho.
– De que idade?
– Oito, creio. Talvez já tenha nove.
Recosto-me, permitindo que a pausa se alongue um nadinha.
– A morada que deu ao Inspetor Quinn… é numa zona bastante
apetecível da cidade.
Isto é um eufemismo. Moradias de arquitetura georgiana. Pedra
dourada, janelas de guilhotina, varandas de ferro forjado. Até o
próprio Pevsner11 ficou impressionado. Atualmente, muitas são
escritórios ou foram divididas em apartamentos, mas, a julgar pela
morada, Marina Fisher habitará os três andares. Este tipo de
propriedade, portanto.
O Reynolds serve-se de mais chá. Aparentemente, para ganhar
tempo.
– O ex-marido da Marina é um importante investidor – acaba por
dizer, erguendo a chávena. – Depois do divórcio, regressou a
Boston. Julgo que a Marina ficou com a casa de Oxford como parte
do acordo. – Consulta o relógio. – Bom, e agora, se me permite…
prometi à minha mulher que ia para casa, isto há mais de uma hora.
Ele parece querer evitar qualquer coisa, e não acho que sejam
apenas as inevitabilidades da Lei de Proteção de Dados. Mas
decido ir no jogo dele. Por enquanto.
A porta abre-se, e o cão de fila da assistente pessoal surge-me à
frente, pronta para me acompanhar para bem longe dali.
– Posso confiar que me irá pondo a par do desenrolar desta
situação, Inspetor? – pergunta o Reynolds, no segundo em que eu
me levanto. – Isto já é suficientemente desagradável; ficar na
ignorância será ainda pior.
– Farei o meu melhor, Diretor. Mas decerto entenderá que
apenas me é permitido pô-lo ao corrente de determinadas coisas.
Não de todas. – Permito-me um breve sorriso. – Proteção de dados,
e isso tudo. O senhor, na sua posição, saberá certamente o que isso
é.

***

Polícia de Thames Valley

DENÚNCIA INVESTIGATIVA INICIAL

Violação e Ofensas Sexuais

IDENTIDADE E Professor Hilary Reynolds, Diretor,


MORADA DA Edith Launceleve College, Oxford OX2
PESSOA QUE FAZ
A DENÚNCIA
MORADA EXATA Monmouth House, St. Luke Street,
(QUANDO Oxford OX1
POSSÍVEL) E DATA
06/07/2018 23h30
DO INCIDENTE
SE A PESSOA QUE ASSÉDIO SEXUAL
FAZ A DENÚNCIA É
A VÍTIMA,
TERCEIRA PESSOA Terceira pessoa (Diretor da faculdade, a quem a
OU TESTEMUNHA, denúncia foi feita inicialmente)
E EM QUE FUNÇÃO
É FEITA A
DENÚNCIA
NATUREZA DO ASSÉDIO SEXUAL
INCIDENTE A suspeita fez avanços sexuais à vítima, que os
rejeitou. A suspeita persistiu, levando a uma
altercação física menor, que resultou em arranhões
ligeiros na vítima, e a toques íntimos na zona da
virilha. Desconhece-se ainda se a suspeita sofreu
danos físicos. Após esta altercação ocorrer, a vítima
conseguiu abandonar o local.
IDENTIDADE E Caleb Owen Morgan, DN 11/11/1995
MORADA DA Morada: Apartamento 34, Bloco de Alojamento de
VÍTIMA (SE
Licenciados, Edith Launceleve College, OX2
CONHECIDA)
IDENTIDADE E Marina Imogen Fisher, DN 17/01/1976
MORADA DO Morada: Monmouth House, St. Luke Street,
SUSPEITO (SE
OXFORD OX1
CONHECIDA)
SE FOI OU NÃO Não aplicável
NECESSÁRIA Arranhões superficiais
ASSISTÊNCIA
MÉDICA E
DETALHES DE
QUAISQUER
FERIMENTOS

UMA PRIMEIRA IDENTIFICAÇÃO DO Sexo feminino, caucasiana, 1,62 m


SUSPEITO (aprox.), 68 kg (aprox.)
SE O SUSPEITO É CONHECIDO DA VÍTIMA, Sim
SE EXISTE UM HISTÓRICO DE VIOLÊNCIA
Nenhum
OU OFENSAS SEXUAIS
SE FORAM TOMADAS PROVIDÊNCIAS PARA A vítima foi aconselhada a não se
PRESERVAR INDÍCIOS lavar e permanecer com as roupas
que usou durante o incidente.
A cena do incidente é a residência
da suspeita, e será selada após a
sua detenção.
Suspeita já foi sujeita a mandado
de detenção.
SE EXISTEM CONSIDERAÇÕES Não aplicável
PARTICULARES, POR EXEMPLO,
DEFICIÊNCIA, LÍNGUA, E SE FOI
NECESSÁRIO UM INTÉRPRETE
DETALHES DA CONDUTA OU DENUNCIANTE A vítima estava calma, articulada e
coerente, e não pareceu estar sob
a influência de álcool ou drogas.
CONTACTO PREFERENCIAL, SE NÃO Não aplicável
PRESENTE NA CENA DO INCIDENTE
SE O DENUNCIANTE PRETENDE MANTER-SE Não aplicável
ANÓNIMO E A RAZÃO PARA TAL

AGENTES Inspetor-Chefe A. DATA E HORA 07/07/2018


RESPONSÁVEIS Fawley 15h45
Inspetor G. Quinn
Inspetora V. Everett

***

Levar Morgan para o Centro de Apoio à Vítima de Violência


Sexual num carro-patrulha só serviria para desencadear uma onda
de boatos; por isso, Everett conduz até St. Aldate e mete-se num
carro descaracterizado da frota do DIC. É um simples Corsa, com o
ar condicionado a dar as últimas, o que torna o espaço reduzido
ainda mais sufocante. Ev tem a desconfortável consciência do
tamanhão de Morgan encafuado no banco de trás, tão próximo dela,
que quase lhe consegue sentir o hálito na nuca.
Nenhum dos dois diz grande coisa. Ev aprendeu ao longo dos
anos que, nestas circunstâncias, o melhor é falar o menos possível,
mesmo quando o passageiro em questão esteja em modo tagarela.
Mas Morgan não parece minimamente interessado em conversar.
Limita-se a olhar pela janela para os turistas, as famílias e os
carrinhos de venda de gelados; silencioso, sem olhar para coisa
alguma, mergulhado nos seus pensamentos. Parece absolutamente
desolado.

***

Sábado, 16h15

Voltou a acontecer. Agora mesmo. Ele esteve lá fora. Eu estava lá em


cima e, quando olhei pela janela, ali estava ele, ao fundo da rua.
Demasiado longe para eu lhe ver o rosto. Ele certifica-se sempre disso.
Sentado atrás do volante, apenas. Ninguém faz isso, pelo menos,
ninguém normal. Desci logo, mas, assim que abri a porta da rua, ele
tinha desaparecido.
Disse a mim mesma que tinha imaginado tudo. Que estou apenas a
ser paranoica e a exagerar. Que existe uma explicação perfeitamente
lógica – um tipo qualquer a consultar inocentemente o telemóvel ou a
olhar para um mapa. Mas eu sei o que vi.
Meu Deus… Até eu começo a soar louca aos meus próprios ouvidos.
Escrever estas coisas é a única coisa que me impede de me passar de
vez. Nem sequer consigo falar com o A, quanto mais com outra pessoa
qualquer. As pessoas olhariam para mim com ar compassivo e diriam
que é compreensível, depois do que me aconteceu, mas eu ver-lhes-ia a
expressão nos olhos. E, da próxima vez que nos víssemos, essa
expressão continuaria lá.

***

Adam Fawley
7 de julho, 2018
16h35

A caminho de St. Luke Street, liguei para o Tony Asante e, ainda


que se trate de uma viagem de apenas dez minutos, ele consegue
cá chegar primeiro do que eu. A sua casa nova fica a uns escassos
oitocentos metros daqui; mais nenhum dos meus homens se pode
dar ao luxo de viver numa zona tão central, mas desconfio que o
facto de a mãe dele ser o tipo de pessoa que faz capa da Forbes
ajuda muito.
Quando estaciono, Asante está do lado de lá da rua, encostado a
uma parede, aparentemente a ver alguma coisa no telemóvel.
Escolheu uma posição estratégica, fora da vista direta da casa; mas,
mesmo que alguém estivesse a ver, não lhe prestaria atenção
particular. De t-shirt branca e Ray Bans, podia ser qualquer pessoa
– turista, estudante… CIA.
Não está tão absorto com o telemóvel quanto parece: vejo-o
junto ao meu carro ainda antes de eu abrir a porta.
– Boa tarde, Inspetor-Chefe.
Pergunto-me se terá mudado de roupa antes de vir para cá –
está uma caloraça tal, que não consigo mexer um músculo sem
transpirar. O Asante parece acabadinho de sair debaixo de um
duche frio. As mangas da t-shirt ainda têm os vincos da
engomadoria.
Aponta discretamente na direção da casa.
– Ainda não vi ninguém entrar ou sair desde que cheguei, mas
as janelas estão abertas, por isso calculo que esteja alguém.
– Está a par de todos os pormenores deste caso?
– Sim, a Inspetora Everett enviou-me um email com todos os
esclarecimentos. Mas, verdade seja dita, também não existem
grandes pormenores.
– Ela e o Quinn levaram agora o Morgan ao Centro de Apoio à
Vítima de Violência Sexual. Saberemos mais alguma coisa
brevemente.
Ele concorda:
– E então? Avançamos?
Tocamos à porta e esperamos. Pouco depois do segundo toque,
a porta é aberta por um rapazinho. O filho da Marina Fisher,
obviamente. Se tem oito, quase nove, é pequeno para a idade.
Calções vermelhos e uma t-shirt do Winnie The Pooh, cabelo louro,
muito suave, mas que, na minha opinião, está a precisar de um
corte. Fica a olhar para nós.
– Quem são vocês?
Reparo que está uma mulher no corredor, atrás dele. É esbelta e
muito bonita, mas parece hesitante, como que desambientada.
Move-se ligeiramente e, reparo, tem um espanador na mão.
Sorrio ao rapazinho e mostro-lhe o meu crachá:
– Olá! Somos da polícia. Gostaríamos de ter uma conversa
rápida com a tua mamã.
Ele abana a cabeça, daquele modo ultravigoroso de que as
crianças pequenas são capazes.
– Ela não ‘tá cá.
– Estou a ver. E sabes para onde é que ela foi?
Ele volta-se para a mulher, que clica em qualquer coisa no
telemóvel e estende-mo. É uma página do Google Tradutor. Leio
faculdade.
Dedico-lhe o meu melhor sorriso do tipo isto-é-só-rotina:
– Calculo que não demore, assim sendo. Podemos entrar e
esperar por ela? OK, por si?
Ela hesita e, depois, assente. Seguimo-los, a ela e ao menino,
escada acima até ao primeiro andar. Nas paredes em torno das
escadas, há molduras com fotografias a preto e branco. Faz-me
lembrar aqueles documentários sobre Downing Street, com todos os
primeiros-ministros emoldurados, só que, neste caso, as fotos são
todas da mesma pessoa. A Marina Fisher tem um ego do tamanho
de um contratorpedeiro. Há dois retratos dela em trajes doutorais
(presumo que um deles seja honorário, mas que sei eu…), uma foto
dela integrando o painel da Newsnight, um grande plano seu no que
parece ser uma conferência TED e mais uma dela, em palco, com o
Vice-Chanceler e a Theresa May. A cada foto, as consequências
agravam-se. E não só para ela.
A sala de estar abrange toda a profundidade da casa. Janelas
altas de correr, com longas cortinas de musselina esvoaçando
suavemente sob a brisa quente. Chão de tábuas envernizadas,
sofás de veludo ocre e, numa parede, uma tela gigante de uma
rodopiante carpa koi, que é quase, quase abstrata – espirais de
azuis e verdes, laranjas e amarelos. Quase que se consegue ver a
água a agitar-se. Ao fundo, as janelas dão para um pátio ajardinado
pequeno, mas imaculado, com arbustos floridos elegantemente
dispostos em vasos terracota. O rapaz deve ter um quarto de brincar
algures, porque não há um único brinquedo à vista nem o menor
sinal de desarrumação infantil. A casa murmura calma, graça e
ordem. E grita dinheiro. Montes e montes de dinheiro.
Entretanto, Asante continua a olhar para o quadro.
– Alan Hydes – diz ele, apontando para a assinatura. – Conheço-
o. Bom, não é propriamente conhecer – os meus pais têm um
quadro dele. Conheceram-no em Maiorca. Ele tem um ateliê na
mesma villa.
Fica subitamente embaraçado e vira costas, como se já tivesse
falado de mais. Talvez tenha sido aquele “na mesma villa”, já que
implica que a família tenha uma segunda casa. Dirige-se a uma
mesa sob a janela e escolhe uma revista de uma pilha. Também a
mim me chamaram a atenção – neste ambiente, seria de esperar
uma Homes & Gardens ou uma House Beautiful, mas estas revistas
têm todas capas azul-marinho e títulos pomposos, como Journal of
AI Research e Neural Transfer Learning for Natural Language
Processing12.
– É uma área fascinante, não acha? – pergunta, enquanto folheia
a revista. – Pelo que sei, a IBM crê que será capaz de replicar um
cérebro humano inteiramente funcional já em 2023.
Olho-o de relance.
– Há certas coisas que máquina nenhuma conseguirá alguma
vez conceber, acredite.
Ele ergue os olhos para mim.
– Diz isso, mas esta tecnologia está a evoluir tão rapidamente…
Pelo que sei, cerca de oitenta por cento dos empregos de escritório
podem eventualmente vir a ser automatizados. Verdadeiros
exércitos de funcionários a trabalharem vinte e quatro horas por dia,
sem precisarem de receber salários, sem errarem e sem nunca se
queixarem aos RH. E, se lhes juntarmos reconhecimento de voz,
perceção visual, capacidade para tomadas de decisão e
planeamento…
Ergo um sobrolho.
– Sim, sim, pois, pois…
– Não, a sério. Sei que pode parecer uma coisa de doidos ou
ficção científica, mas o tipo de máquinas que eles andam
atualmente a desenvolver têm uma real capacidade de aprender –
quanto mais fazem uma determinada coisa, melhores se tornam a
fazê-la. Está a chegar-se ao ponto em que as máquinas conseguem
melhorar as especificações originais. E não apenas em áreas
óbvias, como a manufatura. A IA vai revolucionar o modo como as
empresas farmacêuticas desenvolvem novas drogas, por exemplo.
E, depois, temos os setores dos serviços financeiros, da saúde, da
educação…
Apercebo-me subitamente de que ele está a tentar fazer-me um
briefing de IA Para Totós, sem que a coisa seja demasiado óbvia.
Não consigo decidir se fico grato ou irritado.
– Contudo, não na atividade policial – murmuro. – Não estou a
ver robôs a conduzirem inquéritos de homicídios nos tempos mais
próximos.
– Ah – observa ele rapidamente –, aí é que se engana…
Lanço-lhe um olhar que o faz vacilar.
– Peço desculpa, Inspetor-Chefe. Não quis dizer… Enfim, é que
há dias li um artigo interessantíssimo que…
Mas eu jamais saberei o que ele leu. Lá em baixo, alguém
acabou de entrar em casa.

***

O Centro de Apoio à Vítima de Violência Sexual fica numa rua


discreta e sossegada, a poucos quilómetros da cidade. Quem não
souber do que se trata, não adivinha. Não se anuncia a si mesmo –
apenas o imperioso parque de estacionamento e uma discretíssima
fachada com o logo de uma árvore. Passa perfeitamente por um
consultório médico, um centro comunitário ou uma escola primária.
Lá dentro, a coisa não difere: uma sala de espera com cadeirões,
uma máquina de café e um pequeno parque infantil. E, por detrás
disso, um longo corredor de portas fechadas. Onde o verdadeiro
trabalho é feito.
Ev ligou previamente, por isso a enfermeira forense aguarda-os
na receção; tirando ela, não se vê vivalma. Ev conhece-a
vagamente do curso de formação, mas são ambas sensatamente
contidas nos cumprimentos. Isto não tem que ver com elas.
– Mr. Morgan? – diz ela, estendendo a mão. – Sou a Eileen
Channon e, se concordar, conduzirei o seu exame forense. Se
preferir, providenciamos um enfermeiro, se bem que, por ser fim de
semana, pode vir a ter de aguardar até que chegue algum. Mas o
senhor é que decide, claro.
Morgan abana rapidamente a cabeça:
– Não, não. Eu não quero esperar.
– Certo. E pretende falar com um Conselheiro Independente em
Violência Sexual, nesta fase?
Outro não.
– Muito bem. Percebo que seja muita coisa a processar. Pode
sempre mudar de ideias ao longo do processo, bastando, se for o
caso, avisar a Inspetora Everett.
Channon dedica-lhe um breve sorriso profissional; com um toque
suficientemente humano, mas nada que indique que algum deles
esteja ali para se divertir.
– Preciso que me assine estes formulários – diz ela, estendendo-
lhe uma prancheta. – Lamento, mas não há como rodear a coisa.
São apenas umas perguntas básicas sobre o seu historial médico e
o consentimento para a realização do exame. Volto dentro de
momentos, leve o tempo que precisar.
Morgan dirige-se ao canto da sala de espera e senta-se. Numa
mesa a seu lado, há uma caixa de lenços de papel e uma pilha de
panfletos sobre DST e serviços de apoio e aconselhamento. Ev
segura no braço de Quinn e leva-o para junto da máquina de café.
– Para com esse olhar embasbacado – avisa-o, num silvo. – Não
está a ajudar.
Quinn cora.
– Desculpa. É só que… nunca fiz esta merda na vida.
– Nem o Morgan – responde-lhe ela, em tom grave. – E, se ele
consegue lidar com isso, tu também consegues.

***

Adam Fawley
7 de julho, 2018
16h56

O filho deve ter descido para ir ter com ela, já que ouvimos a
Marina Fisher falar com o miúdo ao fundo das escadas. Uma mãe
de classe média alta perfeitamente afinada: a voz ligeiramente
elevada, sem propriamente ouvir. Parece-me decidida,
descontraída. Despreocupada.
– Quero que vejas o meu desenho, mamã!
– Sim, querido… Que menino talentoso que tu és.
Passos cada vez mais próximos, saltos batendo nos degraus de
madeira.
– Quero mostrar-te agora! – O tom é meio suplicante, meio
birrento. – É importante!
– Querido, a mamã neste momento tem coisas para fazer.
Tobin… para. Já te disse que isso magoa.
Oiço a criança bater com os pés no chão.
– Mas não é justo! Quero que fales comigo! Não com eles!
Uma pausa.
– Eles quem, querido? De que é que estás a falar?
Ao chegar à sala, a sua expressão altera-se:
– Mas… quem são vocês?

***

– Pode deixar as suas roupas atrás do biombo. A Inspetora


Everett depois recolhe aquilo de que nós precisamos. Tem uma bata
pendurada atrás da porta, e temos t-shirts e calças de treino de
vários tamanhos que poderá vestir quando terminarmos.
Ev pergunta-se quantas vezes é que terão sido usados artigos
XXL, mas, ao contrário de Quinn, jamais o diria em voz alta.
Morgan está de cabeça caída – já está assim desde que
entraram no gabinete. Como se, ao evitar qualquer contacto visual,
conseguisse fingir para si próprio que nada disto está a acontecer.
– Precisa que eu me dispa todo? – pergunta, corando imenso. –
Roupa interior e tudo?
– Sim, lamento, mas tem de ser – diz Channon, vigorosa. – E, só
para confirmar, sente-se mesmo à vontade com a presença da
Inspetora Everett durante o exame?
– Sim, não quero saber. Só quero é acabar isto.

***

Adam Fawley
7 de julho, 2018
16h58

Ela tem, sem dúvida, uma forte presença, mesmo nesta sala
enorme. Não é particularmente alta, mas de uma elegância
evidente. E com confiança bastante para se safar lindamente, não
apenas com o vestidinho de verão bem curto, mas também com as
sandálias tipo gladiador pela barriga da perna e um chapéu de palha
de aba larga – acessórios que mereceriam um belo revirar de olhos
por parte da Alex, se ela estivesse aqui. O look resulta num claro
contraste com a formalidade das fotos nas escadas, mas também é
claro que o estilo pessoal da Fisher é muito menos aprumadinho
quando ela não está sob o escrutínio público. Veem-se madeixas
acobreadas no longo rabo de cavalo louro; a maquilhagem está
irrepreensível, mesmo com este calor. Ao ponto de, de onde estou
sentado, ela não parecer ter mais de vinte e cinco anos.
O tom encrespado com que se nos dirigiu é compreensível: dois
estranhos – dois homens estranhos – sozinhos cá em casa, com o
filho de oito anos e uma doméstica que não fala inglês. E não
estamos fardados.
Levanto-me e dirijo-me a ela, exibindo o meu crachá:
– Inspetor-Chefe Adam Fawley. Este é o meu colega, o Inspetor
Asante.
Ela baixa a mão, pousando-a na cabeça do filho, agora
instintivamente protetora. O menino está meio escondido atrás da
mãe, agarrado à sua perna, o polegar na boca.
– Talvez a outra senhora, a que nos recebeu, possa olhar pelo
seu filho, enquanto conversamos? Creio que é melhor.
Ela fixa-me por um momento e assente.
Baixa-se e fala em tom doce:
– Tobin, podes ir pedir à Beatriz que te dê um copo de leite?
– Não quero leite, quero uma Fanta.
– Pronto, está bem. Mas só desta vez. – Soergue-se e empurra-o
suavemente em direção às escadas. – Lindo menino. A mãe não
demora.
Esperamos todos que os passos da criança se desvaneçam
pelas escadas, até que ela se volta de novo para mim:
– Talvez agora me possa explicar o que fazem aqui?…
– Queremos fazer-lhe algumas perguntas. Acerca da noite de
ontem.
Ela parece confusa, perplexa, um resquício do sorriso frio a
pairar-lhe ainda nos lábios vermelho-escuros. Como se isto pudesse
ser um engano. Como se amanhã pudesse divertir as amigas com
este absurdo, ao sabor de gins artesanais de ruibarbo e tamarindo.
– Isto só pode ser alguma piada – comenta.
Mas nenhum de nós está a rir-se.

***

– E, assim como não trocou de roupa, também não tomou duche


desde que ocorreu o incidente, certo?
Ela não precisava realmente de perguntar – o ar no exíguo
gabinete está irrespirável. E não é só do calor.
Morgan abana a cabeça:
– Eu ia tomar, mas a Freya, a minha namorada, disse-me que
não devia.
Ev reage, o ouvido atento: é a primeira vez que ele menciona ter
falado com outra pessoa sem ser o Reynolds. Em casos como este,
qualquer tipo de corroboração pode revelar-se importante.
Channon assente:
– A sua namorada fez muito bem, estava absolutamente certa.
Mas, assim que acabarmos aqui, há um duche mesmo na porta ao
lado que poderá utilizar. A intenção é deixá-lo bem mais confortável.
Depois, podemos oferecer-lhe uma chávena de chá. A Inspetora
Everett vai recolher o seu relato probatório. Que é um termo caro
para declaração – acrescenta, com um sorriso.
– Não há pressa – diz Ev, rapidamente. – Assim que se sentir
preparado.
Faz-se de novo silêncio, enquanto Channon prossegue
calmamente com o processo, explicando de forma breve o que está
a fazer, à medida que recolhe e guarda amostras forenses do corpo
de Morgan. Rosto, pescoço, mãos, peito, virilhas. Pelas marcas
antigas, dir-se-ia que ele praticou algum desporto de contacto;
Channon toma diligentemente nota do facto, mas os sinais que ela
procura são os recentes. O arranhão no pescoço e outros, mais
pequenos, na parte superior do peito.
– É o meu clube – diz ele, depois de reparar no olhar de Ev
sobre a tatuagem do seu antebraço. Esfrega-o, instintivamente. – Os
Ospreys.
Channon pede-lhe que se levante: ele vira-se para a esquerda,
para a direita, levanta os braços, conforme lhe é solicitado, dócil
como uma criança pequena. Esforça-se por parecer corajoso ‒ toda
a gente está a ser impecável, sensível, atenciosa e discreta, mas,
ainda assim, é nítido que ele considera o processo horrivelmente
intrusivo.
Apanha o olhar de Ev por uns segundos e o rosto assume uma
expressão tristemente irónica:
– E pensar que eu nunca percebi realmente por que razão tão
poucas mulheres denunciam quando são violadas.
***

Adam Fawley
7 de julho, 2018
17h04

– Marina Fisher, está detida por suspeita de abuso sexual. Não


precisa de dizer nada, mas aviso-a de que pode ser prejudicial para
a sua defesa não referir, quando interrogada, algo que mais tarde
venha a confiar ao tribunal. Tudo o que disser pode vir a ser
apresentado como prova.
Ela está a abanar a cabeça, recuando, afastando-se de mim:
– Abuso sexual? Do que é que está a falar? – A voz falha-lhe,
leva as mãos ao braço do sofá e senta-se pesadamente. Quando
volta a falar, a respiração está irregular: – Quem… quem é que disse
que…
– Creio que conhecerá um aluno chamado Caleb Morgan?
Ela estranha:
– O Caleb? O Caleb disse que eu abusei dele?
– Professora Fisher, temos mesmo de prosseguir com esta
conversa nas nossas instalações de St. Aldate. Onde pode ser
gravada.
– St. Aldate? Refere-se… à esquadra? – Abre muito os olhos,
pela primeira vez genuinamente aterrorizada.
Concordo:
– É melhor assim. Não apenas por nós, mas por si.
Ela baixa o olhar, lutando para se controlar, e acaba por
concordar:
– Vou precisar de ligar à minha advogada.
– Com certeza. Poderá fazê-lo assim que lá chegarmos. A
Beatriz pode ficar com o menino ou há alguém a quem queira ligar?
Fica em silêncio durante tanto tempo, que duvido que me tenha
ouvido.
– Professora Fisher?
Olha para mim, meio sobressaltada.
– O quê? Ah, sim, a Beatriz toma conta dele.
O Asante dá um passo na direção dela.
– E vamos precisar das roupas que a senhora tinha vestidas
ontem à noite. Presumo que já tenha tomado banho hoje?…
Ela olha-o fixamente.
– É claro que…
Mas parece arrepender-se de ter respondido tão abruptamente,
já que a vejo morder o lábio.
– Desculpe, não quis ser… Tudo isto é tão… – Solta um forte
suspiro: – Sim, tomei um duche logo de manhã.
– Precisamos de tudo o que usou ontem à noite. Incluindo roupa
interior.
Ela abre muito os olhos.
– Eu… temo que já tenha sido tudo lavado. E o vestido foi para
limpar a seco.
Olho para o Asante, que ergue o sobrolho, mas ela interrompe-
nos:
– Oiçam, eu sei que isto pode parecer algo… suspeito, mas eu
entornei vinho no vestido ontem ao jantar, OK? Só isso. E passei
pela lavandaria a caminho da faculdade. – Encolhe os ombros. – Foi
apenas porque me deu jeito, OK? Se não faço uma coisa logo,
esqueço-me… Da próxima vez que tirasse o vestido do roupeiro
para o usar numa festa, seria demasiado tarde.
É capaz de fazer sentido. Ou não. Seja como for, isso vai ter de
esperar. Não vou ter esta conversa aqui.
– Muito bem. Pode então falar com a Beatriz? E a equipa CSI vai
ter de ter acesso à casa para conduzir uma pesquisa forense. O
Inspetor Asante fica cá até eles chegarem.
Ela olha-me atentamente por uns segundos, até que assente:
– OK, vou falar com ela.
Parece à beira das lágrimas.

***
***

A lavandaria situa-se na Woodstock Road e fica de facto entre a


St. Luke Street e a Edith Launceleve. Mas os abastados de North
Oxford têm claramente mais que fazer numa tarde quente de julho
do que tratar da roupa suja. Por essa razão, Asante não se
surpreende minimamente ao constatar que é o único cliente na loja.
Aliás, desconfia até que o rapaz atrás do balcão – que nem parece
ter sequer dezasseis anos – estaria à espera de se baldar mais
cedo, dado o olhar desagradado com que o fulminou assim que ele
empurrou a porta de vidro. Mas depressa se animou quando
percebeu que era um polícia. E não um simples polícia, mas do DIC.
Melhor ainda do que um jogador de futebol.
Asante faz os possíveis por corresponder às expectativas.
– Julgo saber que esta manhã recebeu um vestido de noite para
limpar? – Verifica no tablet. – Vestido comprido cetim vermelho,
corpete lantejoulas, mangas chiffon. Ficou em nome de Marina
Fisher.
O miúdo pega no livro de encomendas e folheia-o.
– Sim – diz, passado um momento. – Deve ser este.
– Posso vê-lo, por favor? O vestido?
O empregado faz uma careta e fecha o livro.
– Nah… peço desculpa, amigo.
Asante franze a testa. Sem dúvida que é aqui que fazem as
limpezas a seco, o cheiro a químicos e o vapor são inconfundíveis.
– Como assim?
– A cliente pediu serviço expresso, certo? Despachado em duas
horas. Ficou logo prontinho.
Asante suspira. DEP, investigação forense. Por vezes, a sorte
está do nosso lado; outras, nem por isso.
– Posso levá-lo, ainda assim?
O rapaz abana a cabeça:
– Não, caro amigo, lamento. Tal como disse.
Asante cerra os dentes; até mesmo um homem paciente como
ele tem os seus limites.
– Porque não, se já está pronto? Oiça, se é de papelada que
precisa…
O jovem ri-se.
– Nah, não é nada disso, amigo. Já foi limpo, sim. Mas não está
cá. A carrinha recolheu-o há coisa de uma hora.
– Não estou a perceber.
– Nós fazemos a limpeza aqui, mas os arranjos… bainhas e
essas cenas, são feitos fora. E, segundo a nota de encomenda, este
artigo pedia arranjos.
Asante semicerra os olhos.
– E de que tipo de “arranjos” é que estamos a falar?

***

Adam Fawley
7 de julho, 2018
18h43

Não estou presente enquanto os CSIs observam a Marina Fisher.


Estou junto à máquina de café quando a Nina Mukerjee sai da sala.
Não parece surpreendida por me ver.
– A aguardar novidades? – pergunta-me, dirigindo-se ao
dispensador de água fresca. Tira um copo do suporte e carrega no
botão. – Recolhemos todas as amostras habituais, mas a única
coisa visível a olho nu é um leve hematoma no pulso direito.
Estranho. Não me lembro de ter reparado nisso. E o vestido floral
que ela usava não tinha mangas.
Até que se me fez luz. Ela usava uma pulseira de prata num
pulso. Pesada. E suficientemente grande para tapar qualquer marca.
– E ela justificou de alguma maneira?… O hematoma?
– Alegou que provavelmente terá sido o filho, mas que não se
lembra como aconteceu. Cá para mim, as marcas eram demasiado
grandes para serem infligidas por uma criança pequena, mas não
temos como provar uma coisa ou outra.
– E pode ter acontecido noutra altura? Tipo… bastantes horas
antes?
– Impossível ter a certeza. Talvez valha a pena dar uma olhadela
a fotografias tiradas no jantar, ver se a marca já lá estava.
– Achas que é possível descobrir algum ADN?
Ela ergue um sobrolho.
– Não teria muitas esperanças. Recolhi raspagens de unhas,
mas duvido que nos digam grande coisa. Mas, como disseste que o
Morgan não tomou banho… se existirem marcas que tenham sido
infligidas por ela, temos grandes probabilidades probatórias.
– Como é que ela te pareceu no geral?
A Mukerjee considera a pergunta.
– Estranhamente serena, por acaso. Assim que chegou, vinha
um tanto stressada… e o facto de a advogada andar em cima dela
como uma mãe-galinha não terá ajudado. Mas, assim que entrámos
na sala, acalmou logo.
– Creio que ela é cientista, algo no género.
– Engraçado, foi precisamente isso que ela disse. Que o
ambiente a acalmava porque estava habituada.
A Mukerjee dá um gole na água.
– Uma coisa posso garantir: ela estava muito mais calma do que
a maioria das pessoas na sua posição. A advogada não via a hora
de sair dali, mas a Fisher fez questão de ir ter comigo e agradecer-
me. Disse-me que, bem vistas as coisas, o meu trabalho era igual
ao dela: tudo se resumia aos factos. E que os factos iriam provar
que ela estava a dizer a verdade.

***

Quando Clive Conway chega à casa da St. Luke Street, é um


agente fardado que lhe abre a porta.
– Boa tarde, Agente Puttergill. Que festão que aconteceu por
aqui ontem à noite, hã? – diz-lhe ele, esfregando os pés no
capacho. – Há bocados de vidros espalhados pelos degraus.
Puttergill olha-o como um boi para um palácio. Depois, espreita a
entrada da casa.
– A sério? Não vejo nada.
– Ossos do ofício de um CSI – diz Conway, com um suspiro. – O
menor resquício de lixo surge-nos como um indício. – Pousa a mala
forense no corredor e fecha a porta atrás de si. – Então, e você?
Também foi despejado aqui?
O agente ri-se.
– É verdade. A bem dizer, eu já estava escalado, e este sítio é
bem mais agradável do que a sala de brigada da Cowley Road. Para
começar, não cheira a couves.
Conway sorri secamente; Puttergill saiu apenas há seis meses
da Escola Prática de Polícia. Vai aprender.
– Está cá mais alguém?
O jovem agente abana a cabeça:
– Só a empregada que toma conta do miúdo. Puto estranho…
Bastou olhar para mim e desatou a fugir que nem um desalmado.
– Para a próxima, tente não fazer essa expressão de espanta-
crianças.
O outro ri-se.
– Espere só até ele o ver, mais a esse seu equipamento de
guerra nuclear – observa, apontando para a mala.
Mais ossos do ofício de um CSI: o macacão hermético em dias
de quarenta graus. Dá um novo sentido à expressão verão
escaldante.
Conway ergue um sobrolho.
– Bom, a não ser que você tenha tropeçado num cadáver no
jardim de inverno, acho que me safo com o básico. – Abre a mala e
tira uma máscara. – Enfim, quanto mais depressa começar, mais
depressa me vejo com uma jola bem gelada à frente.

***

Videoentrevista a Caleb Morgan,


no Centro de Apoio à Vítima de Violência Sexual, Oxford
7 de julho, 2018, 18h15
Conduzida por: Inspetora V. Everett,
visionada na sala contígua pelo Inspetor G. Quinn

VE: OK, tal como expliquei lá fora, vou tentar recolher


o máximo de pormenores, neste momento, para
conseguirmos um depoimento o mais completo
possível. Se pudermos evitá-lo, não vamos pedir-lhe
para passar novamente por tudo isto, por isso, por
favor, conte-me tudo aquilo de que se recorda, OK?
CM: OK.
VE: E, tal como disse, vamos gravar esta entrevista
para poder ser usada como prova, se o caso for a
tribunal. Precisa que eu o esclareça em mais alguma
questão?
CM: Não, eu compreendo. E também tenho aqueles folhetos
todos sobre este assunto.
VE: Muito bem. Então, começo por lhe pedir que me diga
em que circunstâncias é que apareceu em casa da
Professora Fisher ontem à noite?
CM: Prestei-lhe um serviço de baby-sitting. Ela tinha
aquele jantar, e eu fiquei a tomar conta do Tobin.
VE: Já tinha feito isso antes?
CM: [assente]
Sim, faço-o frequentemente. Dá-me jeito o dinheiro,
e o Tobin é um miúdo fantástico. Tenho um irmão da
mesma idade, praticamente. Ou melhor, meio-irmão,
mas eu estou habituado a estar com miúdos destas
idades.
VE: É comum os professores universitários requisitarem
este tipo de serviços aos seus subordinados?
CM: [encolhe os ombros]
Não conheço mais nenhum que o faça. Mas é típico da
Marina… Ela não é nada do género de seguir as
regras.
VE: É assim que a trata? Marina?
CM: A maioria dos pós-graduados trata os supervisores
pelo nome, não é nada de especial.
VE: Como descreveria a vossa relação?
CM: [rapidamente]
Não é uma relação… não nesse sentido, pelo menos.
VE: Nem eu sugeri o que quer que fosse. Estou apenas a
tentar perceber a situação. Então, vocês não eram
exclusivamente aluno e professora… Acha que assim é
mais correto? Uma vez que ela lhe confiava o filho?
CM: Sim, acho que sim. Dávamo-nos bem. E ela é de facto
fenomenal. Intelectualmente falando, claro. É mesmo
muito à frente. Quando eu disse que ela não seguia
as regras, foi no bom sentido. Não se pode seguir
sempre tudo à risca, pelo menos não neste campo.
Temos que arriscar, desafiar o statu quo…
VE: Vê-se que a admira muito.
CM: [encolhe os ombros]
Quem quer que trabalhe com IA daria o braço direito
para poder estar sob a alçada da Marina Fisher. Eu
fiquei megaentusiasmado quando soube. Nunca pensei
que as coisas acabassem assim.
VE: Mas, até à noite passada, nunca houve nada entre
vocês? Nada que não fosse estritamente
profissional?
CM: [nega]
VE: Muito bem. Então, conte-me lá o que se passou
ontem. A que horas é que chegou a Monmouth House?
CM: Oito, oito e um quarto, coisa assim.
VE: E passaram algum tempo juntos nessa altura?
CM: A Marina estava prestes a sair, mas bebemos um copo
rápido antes de ela ir para o jantar. Disse que
precisava de um pouco de coragem holandesa13.
Estava muita coisa em risco, por isso creio que ela
se sentia sob bastante pressão.
VE: O que é que beberam?
CM: Eu bebi uma cerveja; e ela, vinho branco.
VE: E quando é que ela regressou a casa?
CM: Deviam ser umas onze e um quarto, por aí.
VE: E onde é que o senhor estava, nesse momento?
CM: Lá em baixo, na cozinha.
VE: E como é que ela estava?… Qual o estado de
espírito?
CM: Fogo, estava em êxtase total. Não parava de falar…
sobre como tinha corrido o jantar, o quão
impressionados tinham ficado com ela. Dava a ideia
de ter sido a verdadeira rainha da noite.
VE: Pareceu-lhe embriagada?
CM: Bom… na verdade, sim. Mas aquilo foi um jantar,
certo? Terão todos bebido alguma coisa. Muita
coisa, diria eu.
VE: O que é que se passou a seguir?
CM: Ela disse que tínhamos de festejar e foi ao
frigorífico buscar uma garrafa de champanhe. Pediu-
me que a abrisse.
VE: E fê-lo?
CM: Comecei por dizer que não queria, que tinha de me
ir embora, e ela começou a rir e a gozar comigo, a
dizer “é claro que queres”. Eu ainda lhe perguntei
“tem a certeza que quer abrir uma garrafa de
champanhe a esta hora?”. Mas o que eu queria mesmo
dizer era “achas mesmo que devias beber mais,
depois do que já bebeste?”.
VE: Mas não lho disse por essas palavras?
CM: Não… A verdade é que ela continuava a ser minha
supervisora, certo? Enfim, ela insistiu que eu
devia beber pelo menos um copo, porque não queria
festejar sozinha. E depois disse que não tinha
jeito nenhum para abrir garrafas e pediu-me. E eu
fi-lo.
VE: E depois? O que é que aconteceu?
CM: [silêncio]
VE: Mr. Morgan?
***

Adam Fawley
7 de julho, 2018
19h24

A advogada da Fisher é uma personagem temível de seu nome


Niamh Kennedy. Já me esgrimi de razões com ela uma vez. Terá
cobrado couro e cabelo para vir cá a um sábado à noite, isso de
certeza. Pelos vistos, o serviço premium incluiu levar-lhe uma muda
de roupa completa, já que a Fisher surge agora em modo florzinhas
e inocência – vestido floral, cardigã de algodão e sabrinas rasas.
Sem dúvida, tudo escrupulosamente selecionado pela Kennedy para
tornar a sua cliente o menos atraente possível para um predador
sexual. Até arranjou o cabelo em cachos, sem dúvida pela mesma
razão. O resultado é uma estranhíssima vibe Alice no País das
Maravilhas – que me mete um medo do caraças, confesso. Mas não
há nada de infantil no rosto da Fisher. Tem olheiras profundas e um
ar atormentado. A Alice acordou e descobriu que era tudo um
sonho; neste caso, isso não vai acontecer.
Sento-me ao lado do Asante, abro a minha pasta e percorro os
requisitos processuais. A Kennedy, pelo seu lado, vai marcando a
sua própria lista de requisitos e certifica-se de que eu reparo nisso.
Depois de tudo isto, podemos finalmente começar.
– Muito bem, Professora – digo, recostando-me –, talvez nos
possa contar a sua versão dos acontecimentos da noite passada.
A resposta é rápida; ela estava à espera disto.
– O Caleb ofereceu-se para tomar conta do meu filho, enquanto
eu ia ao jantar na Balliol.
– Ofereceu-se ou a senhora pediu-lhe?
Uns segundos de hesitação.
– OK, eu pedi-lhe.
– E ele já o tinha feito anteriormente, certo?
Ela afasta o olhar.
– Umas vezes.
Está claramente a evitar o meu olhar; caminha sobre gelo muito
fino, mas eu tenho muito mais em que me centrar do que em
infrações menores de procedimentos universitários.
– A que horas chegou a casa após o jantar?
Ela encolhe os ombros.
– Onze e um quarto? Por aí.
– E tinha estado a beber?
Agora, sim, olha para mim. Tem as bochechas vermelhas.
– Claro que bebi, era um jantar de oito pratos. Toda a gente
bebeu. Admito que bebi mais do que o habitual, mas não estava
bêbada. De maneira nenhuma.
– E o que é que se passou quando chegou a casa?
– Fui direta à cozinha, ouvi o Caleb por lá. Ele tinha ligado a
música e estava sentado à mesa, em frente ao laptop. Estivemos na
conversa.
– Sobre o trabalho dele?
– Não, por acaso não.
Está cada vez mais corada. Sinto o Asante a mexer-se na
cadeira ao meu lado. A Kennedy estende a mão e toca levemente
no braço da Fisher.
– Está tudo bem, podes falar.
– Oiçam – diz ela –, ele… começou a namoriscar-me, OK?
Passa o tempo a fazer isso. Mas não quer dizer nada.
– E namoriscou-o de volta? Quero dizer, ele é jovem e atraente…
Ela olha-me fixamente.
– Passo a vida a ser namoriscada por homens, Inspetor. E por
algumas mulheres. Colegas, alunos, administradores da faculdade…
pessoas em geral que tentam a sua sorte. Mal de mim se os levasse
a sério.
Concordo com um lento aceno de cabeça:
– Muito bem. E então?
– Ele sugeriu que bebêssemos um copo. Para festejar o meu
alegado triunfo – Há uma nota de amargura na sua voz.
– Alegado? Soube que garantiu um financiador importantíssimo.
Não era razão para festejar? O Hilary Reynolds deixou claro ter-se
tratado de uma enorme conquista.
Ela solta um suspiro irónico:
– Curiosamente, já não parece assim tão enorme.
– Mas ontem à noite terá parecido, não? Antes de tudo isto
acontecer?
Ela recosta-se na cadeira.
– Ele sugeriu que festejássemos. Ele foi buscar o champanhe ao
frigorífico. Ele abriu a garrafa. OK?
– Então, beberam um copo, os dois. Apenas um, presumo?
Ela volta a corar.
– Julgo que sim.
– Julga? Não se recorda?
– Recordo-me que entornei um pouco no vestido. E recordo-me
de ele me ter enchido o copo de novo.
Olha de relance para a Kennedy; depois, para mim. Obviamente
que já debateram este ponto.
Solta um forte suspiro:
– Depois disso, ficou tudo meio enevoado.

***

VE: Mr. Morgan?


CM: [brinca com a garrafa de água]
VE: Eu sei que isto é difícil…
CM: Ela começou a fazer-se a mim, OK? Eu estava
encostado à bancada, e ela aproximou-se de mim,
roçou-se toda e… perguntou se eu me sentia atraído
por ela.
VE: E sente-se? Sentiu-se?
CM: [corando]
Mais ou menos. Quero dizer… ela é bastante mais
velha do que eu, mas… é muito sensual. Toda a gente
concorda nisso. E estava linda naquele vestido,
qualquer pessoa a acharia sexy e…
VE: Não é crime nenhum achá-la sexy, Mr. Morgan.
CM: Caleb. Trate-me por Caleb.
VE: OK, Caleb. E o que é que aconteceu, então?
CM: [solta um longo suspiro]
Bom, ela estava decididamente bêbada por essa
altura. Tinha-se livrado dos stilettos, mas ainda
estava meio trôpega, cambaleante. E entaramelava as
palavras. Mesmo que eu quisesse fazer alguma coisa,
teria sido impossível com ela naquele estado.
VE: Mas poderia ter feito… noutras circunstâncias? Se
percebesse que ela sabia o que estava a fazer?
CM: [corando]
Em teoria, talvez. Mas apenas em teoria – na
prática, resultaria num verdadeiro pesadelo. Para o
meu trabalho de investigação, digo. Além de que eu
tenho namorada. Não compensava de certeza as
chatices todas que isso poderia causar.
VE: O que é que se passou a seguir?
CM: Ela começou a tocar-me… através da roupa. Nos
calções. E disse que… enfim, que aquilo provava que
eu gostava dela.
VE: [suavemente]
Teve uma ereção.
CM: [concorda]
Mas isso não quer dizer que…
VE: Trata-se apenas de uma reação física, Caleb. Não é
algo que necessariamente se consiga controlar. Não
quer dizer que nada disto tenha sido culpa sua e
não significa de todo que não tenha sido vítima de
assédio.
CM: [pausa]
VE: Podemos continuar?
CM: [afasta o olhar e assente]

***
Adam Fawley
7 de julho, 2018
19h47

– Quer dizer que não se lembra do que se passou a seguir?


A Fisher abana a cabeça.
A Kennedy chega-se à frente.
– Oiça, o que é que alega exatamente esse Caleb Morgan?
– Ele diz que a Professora Fisher o assediou sexualmente e que
continuou a investir nesse sentido mesmo depois de ele ter deixado
claro que não queria. Não houve relação sexual propriamente dita,
mas ela tocou-lhe na zona púbica.
A Fisher abana freneticamente a cabeça:
– Isto não passa de um mal-entendido terrível, sinistro, mesmo!
Eu jamais…
Olha para baixo, leva uma mão aos lábios, respira fundo:
– O Caleb está bem? Quero dizer, só pode ser isso, ele deve ter
tido algum surto e… – Falha-lhe a voz. – Oiça, ele ultimamente tem
andado sob uma enorme pressão. O seu trabalho de investigação
exige…
– Então, e para que fique claro, está a afirmar que não se
recorda de ter mantido qualquer contacto físico com o Mr. Morgan?
– Sim, estou.
– E as marcas nos seus pulsos? Como é que as explica?
Ela puxa instintivamente a manga para baixo; depois, apercebe-
se de que está a fazê-lo e pousa as mãos espalmadas na mesa.
– Tal como disse aos vossos peritos, terá sido o meu filho,
provavelmente. As crianças são incrivelmente fortes e nem sempre
sabem o que estão a fazer.
Se se apercebeu da ironia desta afirmação, não dá mostras
disso.
– E quanto a esta manhã?
Ela estranha:
– O que é que tem?
– Quando acordou… Estava na sua própria cama?
– Claro que estava na…
– Completamente vestida? Roupa de dormir… ou quê?
A Fisher ergue um sobrolho trocista.
– Eu não uso habitualmente isso a que o inspetor se refere como
“roupa de dormir”.
– Então, estava nua, mas não se lembra de como foi lá parar?
Um encolher de ombros.
– O meu vestido estava nas costas da cadeira, os meus sapatos,
na sapateira. Tudo no seu lugar, portanto. Tudo normalíssimo,
tirando uma sede e uma dor de cabeça incríveis, e uma criança que
há muito esperava pelo pequeno-almoço. E não me venha dizer que
nunca aconteceu consigo.
– E não a preocupou o facto de não se lembrar de grande coisa
do fim da noite? Já lhe tinha acontecido antes?
Ela respira fundo:
– Uma ou duas vezes, se tem mesmo de saber. Acontece
quando bebo champanhe. Sei que devo mesmo evitar abrir uma
garrafa de Bollinger ao fim da noite, mas…
No que diz respeito a “vai-te lixar” tácitos, este foi dos mais
vigorosos que recebi.
– Se foi esse o caso, assim que acabarmos aqui, vou pedir ao
nosso CSI que lhe recolha uma amostra de sangue. Apenas para
ficarmos absolutamente esclarecidos quanto à quantidade de álcool
de que estamos a falar.
A Fisher olha discretamente para a Kennedy, que concorda:
– Eles estão autorizados a fazê-lo.
O Asante chega-se à frente na cadeira.
– E quanto ao vestido?
A Fisher franze a testa.
– O que é que tem o vestido?
– Porque é que se apressou a mandá-lo limpar?
– Já lhes disse: entornei vinho e não quis deixá-lo no roupeiro
com a nódoa. Tive receio que depois não saísse.
– Mas não foi apenas para limpar, pois não? Pediu que lhe
fizessem uns arranjos.
A expressão da Kennedy assume uma levíssima centelha que
ela não consegue esconder: aparentemente, isto para ela é
novidade.
Abro a pasta e tiro uma folha. Trata-se de uma fotocópia da
página do livro de encomendas da lavandaria.
Coser rasgão no decote e substituir lantejoulas (em saquinho
fornecido pela cliente).
Volto a fechar a pasta e olho para ela.
– O que é que se passou, Professora Fisher? Como é que um
vestido de noite tão caro se rasga num evento tão chique?
– Não me lembro.
– Ou talvez não tenha sido aí que ele se rasgou? Talvez tenha
sido depois?
Ela abre a boca, mas volta a fechá-la.
– Já disse – acaba por retorquir. – Não me lembro.

***

VE: Então, ela começou a tocar-lhe. E depois?


CM: Consegui afastá-la ligeiramente e voltei-me para
despejar o copo de champanhe. Mal lhe tinha tocado.
VE: E ela? Quanto terá bebido?
CM: Creio que, por essa altura, já ia no segundo copo.
VE: E depois?
CM: Eu estava no lava-loiças e senti-a a aproximar-se
de mim, por trás. Abraçou-me e baixou as mãos para
os meus calções… enfim, por dentro, tentando
agarrar-me… o pénis.
VE: E o que é que fez?
CM: Voltei-me para ela e afastei-lhe as mãos. Disse que
não queria fazer aquilo. Ela disse que eu estava a
ser ridículo… que ambos queríamos. E eu, aí,
perguntei: “Então, e a Freya?” E ela limitou-se a
rir. Disse qualquer coisa do género: “Para quê
espumante, quando temos champanhe francês?” Depois,
levou as mãos à minha cara e tentou beijar-me.
VE: E o Caleb tentou impedi-la?
CM: [corando]
Agarrei-lhe o pulso, tentando impedi-la, afastá-la.
Ela ainda tinha o copo na mão e entornou um pouco
em cima dela. Creio que se pode dizer que houve ali
uma certa luta.
[pausa]
Terá sido aí que ela me arranhou… Na altura, nem me
apercebi. Não creio que tenha sido intencional, ela
estava a puxar-me a cara para si, com as unhas no
meu cabelo e… terá acontecido.
[respira fundo]
Oiça, eu não me orgulho disso, mas acabei por
reagir com alguma violência.
VE: Que tipo de violência?
CM: [abalado]
Alguma. Quero dizer… não tanta quanto aquela que eu
poderia, mas eu sabia que tinha de ter cuidado… A
Marina estava bêbada, e eu sou bem mais forte do
que ela. Mas é que… fiquei sem saber o que fazer…
Ela parecia mesmo não aceitar a minha recusa.

* * *

Adam Fawley
7 de julho, 2018
19h53

– Não está preparada para responder a mais nenhuma pergunta,


Professora Fisher?
A Kennedy ergue o sobrolho.
– A posição da minha cliente é claríssima. Estas alegações são
falsas, encenadas e muito provavelmente maliciosas. Não ocorreu
nenhum incidente, o que, por definição, significa que não
encontrarão qualquer indício que o substancie.
– E como é que a sua cliente pode estar tão certa, quando alega
não se recordar de o que quer que seja após terem aberto a garrafa
de champanhe?
A Fisher vai para responder, mas a Kennedy impede-a:
– Porque ela é uma profissional. E porque esse tipo de conduta
está totalmente fora do seu comportamento padrão, tal como, estou
certa, todos os seus colegas confirmarão. Como já disse, se acaso
arranjarem qualquer tipo de prova de que esses factos realmente
aconteceram, agradeço que nos informem. Mas garanto-lhes que
não vão arranjar.
– E que motivo poderia ter o Mr. Morgan para fazer uma falsa
acusação? Tem tudo a perder e rigorosamente nada a ganhar.
A advogada ergue uma sobrancelha.
– Quanto a isso, terá de lhe perguntar a ele, Inspetor.

* * *

Arquivo > 2018 > Maio

Oxford Mail Online Celebrações do Casamento


Quarta-feira, 18 de maio, 2018 Real
previstas para todo o condado
Deputada regional acusa universidades do RU A cerimónia de amanhã, em
de negligenciarem as vítimas de violência Windsor, ficará marcada por
sexual festas de rua e eventos por todo
Por Richard Yates o Oxfordshire… /mais
Petra Newson, membro do Parlamento de Didcot e Homem de 23 anos ameaçado
Cholsey, fez parte de um aceso debate na Oxford por
Union Society, a noite passada. arma branca durante um
Na qualidade de apoiante da moção Esta Casa assalto
Acredita Que as Universidades do RU Estão a Um homem foi detido na semana
Negligenciar a Proteção aos Estudantes Vítimas de passada, na sequência de um
Crimes Sexuais, Ms. Newson descreveu a situação assalto a um residente de Iffley a
atual como um “completo escândalo”. “Parece-me quem foi apontada uma arma
óbvio que as universidades e faculdades não estão branca… /mais
a tomar medidas adequadas ou apropriadas contra Petição para um novo
estudantes acusados de violação e abuso sexual, e memorial a poeta romântico
que, em muitos dos casos, estes incidentes não Em 1810, Percy Bysshe Shelley
são sequer comunicados à polícia. Pior: quando o foi expulso por ateísmo da
pessoal docente é acusado de assédio ou abuso, University College; ganha cada
algumas destas instituições cerram fileiras e vez mais apoiantes para um
protegem os seus. Os docentes – tanto masculinos tributo público no centro urbano
como femininos – funcionam como in loco parentis de Oxford… /mais
para os jovens ao seu cuidado, e, se este dever de
Placa comemorativa no centro
cuidado é negligenciado, devem ser processados e
urbano homenageia cientista
julgados com toda a severidade permitida por lei.”
vanguardista
Uma nova placa comemorativa
será erguida esta semana para
realçar os feitos da Prof.ª Jane
Keating… /mais
Desporto: relatórios dos jogos
e pontuações… /mais
A segunda oradora, Maria Gleeson, ex-aluna de
uma universidade do interior, tentou, há cerca de
dois anos, mover uma ação contra um seu
professor, mas acabou por retirar a queixa devido
ao penoso e angustiante processo por que teve de
passar. “As pessoas que me interrogaram
claramente não tinham experiência em lidar com
este tipo de assunto”, afirmou. “Foi intrusivo e
traumático. Senti que era eu que estava a ser
julgada, não ele.”
O debate teve igualmente a intervenção de Gareth
McFadden, da Associação de Universidades do
RU, que representa 130 das maiores instituições do
país.
McFadden declarou que existe uma preocupação
crescente com a violência sexual nos campus e que
a sua associação publicou, em 2016, um relatório
detalhado sobre assédio, violência sobre as
mulheres e crimes de ódio, que recomenda uma
série de medidas para ajudar as instituições a
lidarem com este assunto e a proporcionarem um
maior e melhor apoio às vítimas.
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* * *
Clive Conway despacha-se rapidamente na casa da St. Luke
Street. Não há muito que possa fazer. As duas flutes de champanhe
já tinham sido lavadas e já estavam a secar. E, sem indícios claros
de luta, ele não sabe muito bem o que é que o DIC espera
encontrar. Tira as últimas fotografias, anota mentalmente que, à
saída, deve ir buscar a garrafa vazia de champanhe ao contentor da
reciclagem e enfia as duas flutes num saco de prova.
Prepara-se para sair quando recebe a chamada:
– Conway? Fala Tony Asante. A Marina Fisher vai ser acusada, e
temos um problema.
– Ai sim?
– Ela não tem o telemóvel com ela. Pensou que o tinha trazido,
mas não o encontra na carteira. Acha que só pode estar na Edith
Launceleve ou aí em casa. Pode ver se o encontra?
Clive olha em volta, na cozinha.
– Aqui em baixo, não vejo nada, mas vou dar uma olhadela lá
acima.
– Ótimo, obrigado. E, já agora, traga também o laptop, se
encontrar algum. O Fawley quer que lhe analisemos o telemóvel,
uma vez que isto se vai tornar bastante delicado. Só para jogar pelo
seguro.
– OK. Se eu encontrar alguma coisa, aviso.
Acaba de guardar o material na mala e sobe até à sala, olhando
atentamente à sua volta. Não tarda a encontrar o telemóvel, deixado
a carregar na mesa de centro. Mete-o num saco de prova e guarda-
o na mala. Só nesse momento repara que o miúdo tem estado na
sala o tempo todo, sentado numa mesa baixa, junto à janela do
fundo, tão absorto no que está a fazer, que nem parece aperceber-
se de que está alguém ali.
Clive observa discretamente o garoto. Trabalha sobre um grande
livro de colorir por números, numa enorme e intricada imagem do
que parece ser São Jorge e o Dragão. Se fosse um dos seus filhos,
as cores estariam esborratadas e fora das linhas, mas este miúdo
tem claramente mais paciência e muito melhor coordenação do que
os seus três rebentos todos juntos.
– Isso está excelente – diz-lhe, em tom alegre. – Deve ajudar
termos tantas cores por onde escolher.
Os rapazes de Conway também tinham caixas Caran d’Ache,
mas ele nunca tinha visto uma daquele tamanho, com três camadas.
Devia haver ali para cima de cem lápis. Fica junto dele por mais uns
segundos e, sempre que o rapazinho acaba de pintar com uma cor,
vê que ele arruma cuidadosamente o lápis no lugar onde estava. A
mesa permanece arrumada, os lápis da caixa num degradê perfeito
‒ o único som que se ouve é o do riscar na folha.

***
Quando Conway sai, ouve-se a porta a fechar-se atrás de si. A
Monmouth House fica numa esquina, por isso, ao contrário da
maioria dos seus vizinhos, Marina Fisher tem acesso lateral a casa e
não tem de lidar com o maior problema dos proprietários das
varandas georgianas, de Bath a Bloomsbury: O Que Fazer Com a
Porra dos Contentores. Os dela estão impecavelmente arrumados
na parte de dentro do portão lateral, fora de vista, num canto
especialmente concebido para tal, rodeado de bonitas plantas
trepadeiras. Conway abre o contentor de reciclagem para vidros e
encontra a garrafa de champanhe, tal como esperava, mesmo por
cima. Mete-a num saco de prova e, quando se prepara para fechar a
tampa, repara em algo que surge logo por baixo. Franze
ligeiramente a testa e hesita por um momento; depois, tira um novo
saco de prova de dentro da sua mala.

***

Adam Fawley
7 de julho, 2018
20h15

– OK, eu sei que já é tarde e que está calor e é sábado e que


preferiam mil vezes estar a interrogar uma cerveja gelada, mas eu
só quero recolher as primeiras impressões, enquanto ainda estão
frescas.
Olho para cada um deles. Ev, Quinn, Asante.
– Então, em qual deles é que acreditam? E, não, não é uma
pergunta traiçoeira.
– Se eu tivesse mesmo de escolher um dos lados, optaria pelo
Morgan – diz a Everett. – Respondeu a todas as perguntas sem
hesitar, manteve contacto visual. Chegou mesmo a admitir que se
sentia atraído por ela, algo que ele sabe certamente que lhe
complica a vida. Mas foi-lhe feita a pergunta, e ele deu uma resposta
honesta.
Volto-me para o Quinn:
– E tu?
Ele encolhe os ombros.
– Continuo sem perceber o que o Morgan foi lá fazer. Não
aconteceu nada, portanto, para quê prestar-se a um número
merdoso daqueles? E, ao mesmo tempo, arriscar-se a lixar a
carreira? Ele não é estúpido – deve saber que há muito poucas
hipóteses de conseguir uma condenação. Não faz sentido.
A Ev olha para ele.
– Tu também dirias não aconteceu nada, se os géneros fossem
ao contrário? Se fosse um professor orientador e uma aluna? Não, é
claro que não.
– Eu sei que todos sabemos isto – interveio o Asante, olhando da
Ev para o Quinn –, mas o assédio sexual não tem que ver com sexo.
Tem que ver com poder. E é a Fisher que tem o poder todo nesta
relação. Se ela tivesse abusado do poder de outro modo –
academicamente, digo –, então o Morgan teria todo o direito de
apresentar queixa. Porque é que assim há de ser diferente?
O Quinn abana a cabeça:
– Ele continua a correr um sério risco de…
– Então… e ela? – apressa-se a Ev a dizer. – Atirar-se a um
aluno daquela maneira sabendo que ele podia ir direitinho à direção
fazer queixa dela? Isso é que eu considero correr um sério risco…
– Mas aí é que está – digo eu. – Ambos são pessoas de arriscar.
O próprio Morgan afirmou isso na entrevista. Disse que quem quer
que trabalhe neste campo tem de estar preparado para arriscar… ou
não chegará a lado nenhum.
A Ev estranha:
– São ambos umas boas peças, é isso que está a dizer?
– Digo que estão ambos mais preparados do que a maioria para
jogar com apostas altas.
Faz-se uma pausa. Eles não percebem muito bem onde é que
isto nos leva, e, muito francamente, nem eu.
– Não percebo sequer porque é que o DIC está metido nisto –
murmura o Quinn. – Muito menos o raio da equipa inteira.
Típico do Quinn, mas, desta vez, concordo com ele. Se me
dessem a escolher, eu próprio não meteria a equipa inteira nisto.
Nem sequer temos a desculpa de se tratar de um caso urgente, e –
ainda mais premente – eu já estou a antever que, mais tarde ou
mais cedo, o chefe da polícia irá “manifestar um interesse” ou
“apenas querer ficar a par” – ou qualquer que seja a frase
aparentemente fortuita que o seu assistente pessoal se lembre de
inventar. Como disse um dia o meu primeiro inspetor, “é apenas uma
sugestão, mas não esqueçamos quem a dá”.
– Há qualquer coisa na Fisher – acaba o Asante por dizer – que
eu não consigo identificar, mas que me cheira a esturro. E aquela
conversa toda de não se lembrar… é demasiado conveniente, na
minha opinião.
– Por outro lado – digo –, porque é que o Morgan não mencionou
o vestido rasgado? Já que foi tão assertivo a afirmar que se deu
uma altercação física, porque não dizer que o vestido se rasgou
durante o processo?
A Ev encolhe os ombros.
– Talvez não tenha reparado? Ou já não se lembre?
O Quinn solta um grunhido irónico:
– Sim, sim. Ele não se lembra, ela não se lembra. Ele disse/ela
disse… é tudo treta.
Vejo que a Ev vai para ripostar e resolvo intervir:
– OK, acho que já tivemos todos a nossa dose diária. Mas o
Inspetor Quinn tem razão numa coisa: o MP jamais seguirá com isto,
tal como está. Se conseguirmos encontrar ADN no corpo do
Morgan, até pode ser que sim, mas, até lá, quer nos agrade quer
não, não podemos ignorar de quem ele é filho. Até porque a própria
Petra Newson não vai deixar que o ignoremos. Lembram-se daquele
debate na Oxford Union Society acerca da violência sexual, há coisa
de dois meses? Ela ia estar em cima disto com as garras de fora,
mesmo que a vítima em questão não fosse o filho dela.
O Quinn solta um longo suspiro:
– Era só o que nos faltava: levarmos na cabeça de uma ativista
histérica e com a mania que é boa.
– Pois – digo, em tom cortante. Porque este género de atitude
não nos leva – nem ao Quinn nem a ninguém – a lado nenhum. –
Por isso, não lhe vamos dar esse gostinho. As análises forenses
ainda vão demorar dois ou três dias, e é se tivermos sorte.
Entretanto, fazemos o trabalho de casa. Precisamos de confirmar a
história do Morgan junto da namorada e de falar com os colegas da
Fisher, não só os atuais como outros com quem trabalhou no
passado. Quero saber se alguma vez terá existido o menor indício
deste tipo de prática. E verifiquem também se algumas dessas
pessoas estiveram presentes no jantar da Balliol… Para tentarmos
perceber se repararam em algum pormenor fora do comum quando
ela saiu, fosse nela ou na porra do vestido.
– Mas temos de ser cuidadosos – diz o Asante cautelosamente.
– Este tipo de alegação pode destruir-lhe a carreira. E se se vier a
saber que ela não fez nada…
– Exato. Sejam discretos, por favor. A nossa intenção é intercetar
e evitar qualquer boato, não lançá-lo.
Levanto-me; o Asante está a tomar notas, a Ev recolhe as suas
coisas, o Quinn parece lixado.
– Vou pedir ao nosso colega Baxter que veja o telemóvel da
Fisher. E também quero ver se consigo que o Bryan Gow analise o
vídeo da entrevista com ela. Se o Asante tiver razão e houver aqui
algo que cheire a esturro, ele é a pessoa ideal para o detetar.
Quanto ao resto, Quinn, tu manténs-te à frente da investigação,
enquanto o Gislingham está fora.
Ergue os olhos para mim.
– Sim, chefe – diz.
Fica logo mais arrebitado.

***

Lusco-fusco: a altura mais ilusória do dia. A memória da luz


permanece no céu, mas a terra escurece cá em baixo. Ninguém
repara no homem estacionado na rua, nem mesmo o vizinho
metediço que acabou de passar por ele ao passear o cão. Mas
porque haveria de reparar? O tipo não mexe um músculo há imenso
tempo – não leu um jornal, não ligou a música, não procurou uma
caixa de mints no porta-luvas. O veículo está em total silêncio, tal
como ele. Ele não faz nada. Nada, claro está, além de observar.
Momentos depois, abre-se a porta de uma casa do lado de lá da
rua e uma mulher dirige-se apressadamente à divisória de treliça,
junto ao portão. Levanta a tampa de um dos contentores e deita lá
dentro um saco de plástico, antes de se voltar e olhar atentamente
para um e outro lado da rua. Olha diretamente para ele, e ele
encolhe-se no banco, mesmo sabendo que está demasiado escuro
e demasiado longe para ela poder ver-lhe o rosto.
Quando o homem volta a erguer o olhar, vê duas mulheres a
caminharem na sua direção, pelo passeio. Cada uma com o seu
carrinho de bebé, enquanto tagarelam. Vem também outra criança,
mais crescida, um menino ruivo e com óculos grandes, saltitando
atrás delas. O homem franze a testa. As mães são demasiado
distraídas, sempre demasiado exauridas para repararem seja no
que for, muito menos em alguém sentado calmamente num carro,
metido na sua vida. Mas as crianças são diferentes. Não querem
saber. Olham fixamente.
As mulheres agora estão muito perto, o som das vozes cada vez
mais audível.

Eu acho que vais ter de lhes dizer que…


Mas tu sabes como é aquele sítio…
Quando eu disse à Pippa o que te aconteceu, ela disse que se
passou o mesmo com ela…

As mulheres passam, mas o miúdo fica para trás. O homem no


carro consegue agora perceber porquê: está a parar junto de cada
automóvel, a olhar para a marca e a anotar qualquer coisa numa
pequena prancheta vermelha. O homem semicerra os olhos. Mas
que porra de sorte a dele, levar com o único miúdo do planeta que
quer ser polícia de trânsito quando for crescido.
O rapaz está cada vez mais perto, mas ainda não o suficiente
para conseguir ler uma matrícula. Muito menos com esta luz. A
mulher do lado de lá da rua ainda lá está, ao portão, a observar a
cena.
O homem solta uma praga entre dentes, leva a mão à ignição e
liga o carro.

***

Quando Niamh Kennedy estaciona em frente à Manmouth


House, do lado de lá da rua, já não se vê nenhuma luz acesa na
fachada da casa.
– A Beatriz deve estar na cozinha – diz Fisher, baixando a
cabeça para espreitar pela janela. – Pobre mulher, nunca pensei
demorar-me tanto.
– Estas coisas são sempre intermináveis – responde a
advogada. – Se queres um conselho: devias beber um bom copo de
vinho, tomar um longo banho e ir direta para a cama.
– É o que penso fazer – diz Fisher. – Mas, primeiro, quero estar
um bocadinho com o Tobin. Sabe Deus o que ele estará a pensar.
– As crianças são muito mais resilientes do que pensamos. Ele
apreende aquilo que tu lhe transmites. Desde que fales calmamente
com ele, fica tudo bem. – Estende a mão e aperta gentilmente o
braço da sua cliente. – Não te preocupes, Marina. Sei que neste
momento te sentes arrasada, mas tu és forte. Se fosses o tipo de
mulher que se deixa derrotar por isto, nem teríamos ido tão longe.
Fisher assente brevemente, sai do carro e atravessa a rua, sem
olhar para trás. Mantém a cabeça erguida, enquanto tenta enfiar a
chave na fechadura com as mãos trémulas; no entanto, assim que
ouve o carro a arrancar, os ombros encovam-se-lhe e cambaleia
ligeiramente ao entrar em casa.
Deixa-se ficar por um momento à entrada, ajustando os olhos à
penumbra. Vê a sombra de um corpo aninhado no último degrau,
que se levanta e dirige-se a ela, com os olhos esbugalhados e
escuros a sobressaírem na pele pálida.
– Onde é que estiveste, mamã? Tu prometeste que vias o meu
desenho. Estou à tua espera há horas. Onde é que estiveste?

***

Sábado, 20h15

Agora mesmo, quando fui aos contentores, ele estava lá. Outra vez.
Estacionado do lado de lá da rua, suficientemente longe para saber que
eu não conseguiria vê-lo – pelo menos, não distintamente. Depois,
passaram duas mulheres por ele, com carrinhos de bebé, que acho que
devem tê-lo topado, porque, assim que elas se aproximaram, ele
arrancou.
Mas eu sei que era ele. Sei que sim.
Ele esteve aqui.

***

Adam Fawley
7 de julho, 2018
21h54

Quando chego a casa, está tudo escuro. Apenas uma luz fraca
na cozinha e um bilhete a dizer que há salada de frango no
frigorífico, se me apetecer. Sirvo-me de um copo de Merlot e subo. A
porta do quarto do bebé está aberta. Era o quarto do Jake. Há coisa
de dois meses, passámos um fim de semana inteiro a emalar
cuidadosamente as coisas dele. Não discutimos o assunto – não
precisámos. Sabíamos que tinha chegado a hora. E, agora, tudo o
que aqui está é novo. Papel de parede, mobília, roupa de cama,
cortinas; pilhas de roupa de bebé ainda nas embalagens,
intercomunicador ao lado do berço. Ainda se sente um ligeiro odor a
tinta. Tinta amarelo-pálido. O quarto é todo em amarelo e branco –
nem o menor laivo de rosa ou azul. A Alex já sabe o sexo da criança
há meses, mas nunca se descaiu nem uma única vez. Lá em baixo,
a lista de nomes continua presa com um íman no frigorífico, cheia de
sugestões femininas e masculinas. Com pontos de interrogação a
vermelho ou vistos verdes à frente de cada nome. Parece termos
acordado em Lily Rose para menina, mas, para rapaz, a coisa não
está nada fácil. Ela gosta de Stephen, em homenagem ao pai, mas
eu detesto Steve; eu gosto de Gabriel, mas ela não suporta Gabe.
Impasse.
Percorro o corredor pé ante pé, entreabro ligeiramente a porta do
nosso quarto e fico ali um momento, à escuta.
Lá fora, oiço uma sirene ao fundo, o ruído abafado do trânsito na
circunvalação, o canto tardio de um melro.
Mas aqui, no quarto, a minha mulher adormecida murmura
docemente no sono, agitada em sonhos inquietos.

***

Na manhã seguinte, pouco depois das nove, Anthony Asante


está sentado à janela saliente do seu apartamento, falando ao
telefone com a mãe. Baixou uma das venezianas por causa do sol,
mas, como ainda está demasiado calor para o seu gosto, não tarda
a sair dali. “Janela saliente” decerto vos remeterá de imediato para
uma daquelas casas vitorianas clássicas de Oxford – quatro
andares, tijolo vermelho e colunas de pedra –, mas não podem estar
mais enganados. Esta janela saliente é retangular e sobressai da
parede como uma porta semiaberta; o apartamento é um
elegantíssimo duplex todo em madeira e branco, que qualquer visita
dificilmente acreditaria ser possível existir nesta cidade, sobretudo
tão próximo do centro. Mas qualquer visita é algo que ainda não
passou por aqui, uma vez que Asante se mudou há apenas duas
semanas. E, mesmo que não fosse esse o caso, ele é o tipo de
pessoa que gosta de manter privado o seu espaço privado. Ainda
que sabendo que terá mesmo de abrir uma exceção para os pais.
Passa o telemóvel para o outro ouvido, sem deixar de fazer scroll no
tablet. Sempre foi ótimo em multitarefas, mas, seja como for, falar
com a mãe não requer uma capacidade cerebral excessiva. Agora,
ela está a considerar a hipótese de o levar a almoçar no fim de
semana. E a dizer qualquer coisa sobre uma festa na faculdade
dela, na noite anterior.
– Não te preocupes – diz ela rapidamente, antes de o deixar
responder. – Passámos lá a noite.
Asante tenta disfarçar o alívio na voz. Adora os pais e – o que é
ainda mais raro – admira-os muito, mas a verdade é que não os
quer com ele. Se a mãe tivesse dado essa sugestão, ele teria dito
que ainda não tinha tido tempo para comprar uma cama extra (o
que, por acaso, até é verdade). Mas sente-se grato, e não pela
primeira vez, pela capacidade que a mãe tem de tratar deste tipo de
combinações sozinha. Sem chatear ninguém.
– Há imensas acomodações disponíveis para estudantes
universitários – ouve agora a mãe dizer. – Podemos não ter tido
grandes luxos, mas se há coisa que a EL sempre teve foi espaço de
sobra.
– E que tal almoçarmos no The Perch? – sugere ele. – O pai
sempre adorou lá ir.
– Perfeito – concorda ela. – Mas é melhor reservar, porque está
sempre à pinha, sobretudo ao fim de semana.
– OK, eu trato disso, não se preocupe.
– Estamos todos tão ansiosos por te ver na tua nova casa,
Anthony. De certeza que não queres nada aqui de casa? Temos
imensos móveis que não usamos, o sótão está a rebentar pelas
costuras e…
Asante sorri. Tudo o que possa ter entrado na enorme casa com
fachada de estuque de Holland Park, onde os pais vivem, jamais
caberia aqui.
– Não, mãe, está tudo ótimo e não preciso de nada.
Terminada a chamada, dirige-se à cozinha, onde, a escassos
metros da janela, uma das laterais do Castelo de Mound se ergue,
qual penhasco. O gato preto e branco do vizinho está a meio da
rampa, à caça de ratos. Tem apenas um olho e bigodes
extravagantes, fazendo-o parecer um pirata garboso. O Mound foi
uma das razões pelas quais Asante comprou esta casa. Para muitas
pessoas, a atração maior seriam os bares e cafés do agora
chiquérrimo bairro da antiga prisão, a escassas centenas de metros
dali; para outras, a grande mais-valia é o percurso de cinco minutos
a pé até à estação. Mas a Asante agrada-lhe a completa
improbabilidade do Mound, o morro milenar erigido por mão
humana, em pleno coração da cidade. Gosta da antiga fábrica de
cerveja e do velho celeiro de malte reabilitado, e gosta dos nomes
evocativos das ruas – Paradise Street, Quaking Bridge, Beef Lane.
No século XIX, existiu algures por aqui um hospital de equídeos e,
cem anos depois, uma fábrica de marmelada. O local em si é pouco
conhecido, eclético e inopinado – aliás, como o próprio Asante.
Serve-se de um copo de água e abre mais um pouco a janela da
cozinha. No verão, produzem-se peças de Shakespeare no pátio
interior do castelo, e ele consegue ver parte do palco e os degraus
onde o público se senta. Ele próprio já assistiu a várias dessas
peças, incluindo um Henrique V, com apenas quatro atores, que não
soava lá muito promissor, mas que acabou por se revelar magistral.
À noite, quando tudo está mais calmo e o topo das árvores surge
iluminado pelos altos projetores, gosta de se sentar na sua varanda
e assistir aos espetáculos do princípio ao fim. Ontem à noite, foi
presenteado com Andrónico. Não conhecia a peça, mas o
entusiasmo dos bandos de jovens presentes animou-o imenso.
Canibalismo, vingança e violação: o que há para não gostar, quando
se tem quinze anos?

***

A dezasseis quilómetros dali em linha reta, Ev está de visita


rápida ao pai. Ele mora nesta residência de idosos há apenas dois
meses e tem-lhe sido difícil habituar-se ao sítio, quanto mais aceitá-
lo. Ev mostrou-se quase tão relutante à ideia quanto ele, mas,
depois de um outono que quase o deixou com uma anca fraturada,
percebeu que já não havia alternativa. O médico afirmou-o, a
diretora da residência também e até o próprio Fawley. Mas nada
disso torna a expressão reprovadora do pai mais suportável de ver
ou a sua exuberante autocomiseração menos penosa de ouvir.
Ev tem-no visitado todos os fins de semana, mas esta é a
primeira vez que se depara com o aquecimento da residência
desligado. Todos os residentes sem problemas de mobilidade estão
lá fora, no jardim ‒ que, embora Ev nunca se tenha aventurado a
visitar antes, acaba por se mostrar bem mais agradável do que ela
imaginava. Canteiros de rosas, calêndulas, petúnias – o tipo de
flores com que a geração do pai se habituou a crescer. Mas, como
era de esperar, ele lá conseguiu arranjar qualquer coisa para criticar
(“o jardineiro é um daqueles fedelhos ambientalistas, mas ele que
não julgue que se consegue livrar da praga de mosquitos negros
com o raio do Fairy líquido!”). Bem, pelo menos, quando o ajuda a
regressar ao seu cadeirão, Ev encontra-o já com alguma cor nas
bochechas. E, pouco depois, são servidos um chá e biscoitos
(demasiado moles), e os programas da tarde da televisão, com os
seus deprimentes anúncios de funerárias e de fixadores de
dentaduras e de mezinhas para – eleito eufemismo da década –
“bexigas sensíveis”. Ev está desconfortavelmente consciente de que
este tipo de publicidade começou a aparecer também no feed do
seu Facebook – mas que idade é que esta gente pensa que ela
tem? Às dez e meia, já está farta e decide-se merecedora de um
café decente na paz e no sossego da sua própria sala. Levanta-se,
murmurando qualquer coisa sobre ter de dar de comer ao Hector, só
para ouvir o pai buzinar-lhe alto e bom som que a sua única filha
“preocupa-se mais com o raio do gato do que comigo”. Um casal de
visitantes fica a olhar fixamente para ela quando sai, mas um deles
dedica-lhe um olhar cúmplice que diz: “Não ligue, eu também oiço
esse tipo de lamúrias.”
Atravessa rapidamente o átrio, já de olho na porta da frente
aberta, quando ouve o seu nome:
– Miss Everett?
Volta-se. É Elaine Baylis, a diretora. Ev sente um baque no
coração. Mais uma boa meia hora entre ela e aquele café. Isto, na
melhor das hipóteses.
– Bem me pareceu que era a senhora. Posso dar-lhe uma
palavrinha? – Baylis deve ter visto a expressão no rosto de Ev, já
que reage, algo aflita: – Não se preocupe, não vou demorá-la muito.
Não deve ter nem mais um ano do que a própria Everett, mas a
combinação de um guarda-roupa ponderadamente sombrio com
uma postura profissionalmente moralista faz com que a mulherzinha
aparente no mínimo uns cinquenta e cinco.
Conduz Ev ao seu gabinete e fecha a porta atrás delas. Ev
senta-se numa das desconfortáveis cadeiras de plástico.
– Antes de mais – começa a diretora sentando-se e ajeitando
pudicamente a saia –, que orgulho teria a mãezinha se a visse.
Quero dizer-lhe que estamos muito felizes por vermos que o seu pai
já se ambientou.
Ev pergunta-se se ela estará a falar em nome de todo o pessoal
ou se será alguma sorte de plural majestático.
– Mas…?
Bailys franze a testa.
– Perdão?
– Pareceu-me que vinha aí um “mas”. – Sorri. – Ou talvez seja eu
que passe demasiado tempo a interrogar suspeitos.
Bailys parece momentaneamente desconcertada. Há sempre
uma primeira vez para tudo, pensa Ev.
– O que quero dizer – diz ela, chegando-se à frente – é que é
sempre um alívio, para toda a gente, quando um residente começa a
sentir-se em casa.
Ev aguarda. Vem aí qualquer coisa. Sem dúvida. Lá está, já anda
no jogo dos interrogatórios há demasiado tempo.
Bailys suspira:
– Sei que já falámos sobre isto, antes de o seu pai se tornar um
de nós. – Esta conversa está estranhamente a soar-lhe a loja
maçónica. – Mas sinto necessidade de voltar a dizê-lo. Meadowhall
é uma residência de idosos, não um lar de cuidados continuados.
Não temos os recursos específicos necessários para…
– A doença de Alzheimer.
Ela pisca os olhos.
– Sim, a doença de Alzheimer.
– O médico dele diz que está ainda numa fase muito inicial. E
prescreveu-lhe aqueles medicamentos…
– Eu sei. E certificamo-nos de que ele os toma. Mas não
podemos fazer muito mais do que isso. – Dá ênfase às palavras. –
Não dispomos de pessoal médico a tempo inteiro. Não estamos
preparados para o ajudar…
– Se ele piorar. Sim, eu sei. Já mo disse.
Baylis dedica-lhe um olhar demorado, quase bondoso.
– Aqui, não se trata de se, Miss Everett. Mas sim de quando. No
final, o Alzheimer acaba sempre por ganhar.
Subitamente, Ev sente a garganta feita num nó.
– Eu sei – diz, um momento depois, deixando-se trair pela voz. –
Eu tenho plena noção disso e só quero… só quero que ele seja
normal até quando lhe for possível. Num sítio onde ele se sinta o
mais possível como em casa.
A mulher concorda:
– E é isso que nós lhe proporcionamos. Mas só enquanto nos for
possível. E quis apenas deixar isto completamente claro.
Everett levanta-se – se Baylis fosse de facto uma suspeita, ela
teria tido exatamente este tipo de resposta rápida e inteligente, a
perfeita combinação de palavras para restabelecer o equilíbrio entre
ambas. Mas qualquer coisa neste gabinete está a provocar-lhe
interferências no cérebro.
– Peço desculpa – murmura. – Tenho mesmo de ir embora.

***

O Diretor do Departamento de Ciência de Computadores da


universidade foi relativamente fácil de contactar, ainda que não
tenha sido assim tão simples convencê-lo a recebê-los no fim de
semana. Quando lhes abre a porta da sua casa de Abingdon House,
apresenta-se ostensivamente de chinelos e pijama púrpura e
turquesa.
– Vocês não são Moonies14, pois não? – observa alegremente. –
O último tipo que me apareceu à porta com um fato desses queria
saber se eu desejava ser salvo.
Quinn avança um passo, exibindo o crachá.
– Inspetor-Coordenador interino Garreth Quinn. Este é o meu
colega, Inspetor Asante. Obrigado por nos ceder um pouco do seu
tempo, Professor Sandford.
Com um aceno, Sandford afasta-se para os deixar passar.
– Eu estava na cozinha. Acompanhem-me, fica cá atrás.
É uma vivenda geminada vitoriana, mas, ao contrário da maioria
das pessoas que vive em casas destas, Sandford não demoliu
nenhuma das divisões do rés do chão, por isso há todo um corredor
de salas e salinhas que resultam num espaço parcamente
iluminado. Isso, combinado com o papel de parede pesadão e as
pilhas e pilhas de revistas e jornais espalhadas por todo o lado,
torna a casa bem mais pequena do que na realidade é. A cozinha
fica numa extensão moderna da casa ‒ se bem que de “moderno”
tenha muito pouco. Anos oitenta, no máximo. Nas traseiras, o que
restou do jardim foi totalmente coberto de lajes; há uma mesa e
cadeiras brancas de plástico sobre o pavimento encardido e alguns
tomateiros meio murchos em canteiros de plástico, encostados à
vedação. E Sandford também não é claramente nenhuma fadinha
do lar no interior da casa. A cozinha está desarrumada e suja, e a
única coisa com aspeto de não ter mais de trinta anos é a máquina
Nespresso. Tudo o resto é vintage de 85: a árvore porta-chávenas,
os frascos de chá e café a condizerem, a torradeira de esmalte a um
canto – esta, sim, original e não uma mera cópia trendy. Há uma
caneca de café fumegante na bancada de pequeno-almoço e um
prato com torradas a escorrerem manteiga. Mas Sandford não
oferece nem uma coisa nem outra. Limita-se a puxar de um banco e
faz-lhes um gesto para fazerem o mesmo.
– Deve ser coisa séria, para vos fazer tirar os rabos de casa num
domingo a esta hora, hã?
Quinn saca do tablet.
– Estamos a trabalhar numa investigação relacionada com a
Professora Fisher.
Sandford ergue um sobrolho, um entressorriso a querer sair cá
para fora.
– A Marina? Olha, olha… quem havia de dizer?
– É um assunto confidencial, pelo menos por enquanto. E é
muito importante que se mantenha assim. Estou certo de que
entenderá.
Sandford faz o gesto de um fecho sobre os lábios.
– Lábios selados, fiquem descansados. – Pega numa torrada e
barra-a generosamente com doce de amora. Asante sente o
estômago começar a roncar.
– Digam lá, então – diz Sandford, com a boca cheia. – O que
querem saber?
– Como é que a Professora Fisher se dá com os alunos dela? –
pergunta Quinn.
O homem inclina a cabeça ligeiramente, mastigando antes de
responder:
– Bom, ela é extremamente popular. Claro que ajuda muito ser
uma estrela dos média, não é? Mas, sim, ela tem uma bela horda de
jovens seguidores, como se diz hoje em dia.
– E entre os colegas? – quer saber Asante. – Também inspira
esse tipo de admiração entre eles?
Sandford considera a pergunta.
– Bom, aí já não é tão linear. Ninguém lhe questiona a
competência, mas estamos em Oxford, certo? A excelência é vista
apenas como ponto de partida.
– E o que opinam eles quanto ao perfil público dela? – prossegue
Asante. – É tido como algo positivo?
Sandford semicerra os olhos.
– Ora bem, a posição “oficial” é que ter uma mulher com a
reputação da Marina no meio deles só pode ser uma coisa positiva.
Se isso ajudar a atrair mais alunas, ainda melhor. Fortalecer as
estatísticas das candidaturas femininas continua a ser um graal
profano para qualquer faculdade de CTEM15.
Quinn ergue um sobrolho.
– E a posição “não oficial”?
Sandford pousa a torrada e limpa as mãos a um guardanapo de
papel.
– Há aqueles que pensam que ela é demasiado exuberante e
que o seu estilo… digamos… idiossincrásico de vestir não ajuda.
Claro que ela não se rala nada, mas isso é típico da Marina.
– A minha experiência diz-me – observa Asante cautelosamente
– que a vida académica pode ser extremamente competitiva…
Sandford já se está a rir.
– Meu Deus, da boca das crianças sai o perfeito louvor!16 Meu
caro e jovem Inspetor… qualquer departamento mediano de Oxford
é um pequeníssimo lago pejado de piranhas do tamanho de
elefantes. E o facto de serem tão raras serve apenas para tornar as
fêmeas dessa espécie ainda mais letais.
Asante e Quinn trocam olhares.
Sandford levanta-se e dirige-se à máquina de café.
– É seguro afirmar que os detratores mais vociferantes da Marina
são, sem dúvida, movidos pela inveja. E, na sua grande maioria,
outras mulheres. Uma delas ficou famosa ao referir-se a ela como “o
tipo de marina onde a opção mais sensata é atracar num
ancoradouro mais amplo”.17
Dedica-lhes um olhar pesado antes de se voltar para ligar a
máquina e meter a cápsula. O som gorgolejante ecoa pela cozinha.
Quinn ainda lança um olhar ostensivo sobre o suporte das
chávenas, mas não obtém o resultado desejado, já que é ignorado
pelo professor, que pega na chávena e regressa para junto deles.
Asante respira fundo; chegaram ao ponto de não-retorno. Para
já, resta-lhes esperar que Sandford mantenha a boca fechada ‒ e,
até agora, a sua conduta inspira tudo menos confiança.
– Tem conhecimento da existência de quaisquer alegações
contra a Professora Fisher? Relacionadas com o seu papel de
docente?
Sandford parece intrigado.
– Que tipo de alegações?
Olha-os fixamente, um olhar que se transforma em perplexidade
perante o silêncio instalado, que o leva a perceber aonde eles
querem chegar.
– Foda-se – murmura. – Estão a gozar, não estão?
– Responda à pergunta, por favor.
O professor recosta-se na cadeira por um momento.
– Bom, se realmente estão a falar daquilo que eu penso que
estão a falar, a ideia é absolutamente absurda. A Marina não é uma
mulher a quem falte companhia masculina, pelo que sempre me foi
dado a perceber… E, mesmo que tivesse, ela é tudo menos
estúpida.
Asante escrevinha uma nota rápida, dando a entender que é
tudo rotina, mas sem a menor esperança de conseguir vir a arrancar
algo de útil a esta testemunha.
– Creio saber que houve um jantar de angariação de fundos na
passada sexta-feira – diz Quinn. – Na Balliol. O senhor esteve
presente?
Sandford assente:
– Claro. E, se me vão perguntar pela Marina, digo-lhes que
esteve fabulosa. Teve os mandachuvas todos nas palminhas,
sobretudo os nossos amigos chineses. Estavam doidos com ela. E
aquele vestido… fez-me lembrar o que disseram da Nicole Kidman
daquela vez: puro Viagra teatral. A dado momento, por altura dos
digestivos, alguém ouviu o vice-chanceler comentar que devia ter
pedido um duplo.
– Esse tipo de sucesso não terá deixado as colegas dela lá muito
satisfeitas, suponho.
O outro sorri secamente.
– Sem dúvida. Mas acontece que ela era a única mulher
presente.
Asante concorda lentamente; é fácil perceber o golpe de
adrenalina que tudo aquilo lhe deve ter provocado. A Fisher deve
ter-se sentido invencível. Suficientemente invencível – e
suficientemente desinibida com tanto álcool – para assumir que
podia pedir tudo aquilo que lhe apetecesse na altura e esperar
consegui-lo?
O jovem inspetor aclara a garganta:
– Quando falámos com ela, a Professora Fisher admitiu ter
bebido bastante nesse jantar.
Sandford ergue as sobrancelhas.
– Todos nós bebemos de mais.
– Sabe se foram tiradas fotografias?
Um leve encolher de ombros.
– Sim, algumas, suponho. Eu não tinha o telemóvel comigo, mas
ainda ontem vi uma série delas publicadas no grupo de WhatsApp
da faculdade.
– E o senhor faz parte desse grupo?
– Para mal dos meus pecados, sim. Presumo que queiram vê-
las?
– Se não se importar.
Sandford levanta a pilha de jornais de domingo e encontra o
telemóvel.
– Aqui tem. Nada de extraordinário, o comum neste tipo de
eventos.
– O vosso grupo chama-se Vogais? – indaga Quinn.
Sandford reage com uma expressão presunçosa:
– Artificial and Experimental Intelligence, Oxford University.
AEIOU.
– Hilariante… – observa Quinn.
O sorrisinho irónico do outro mantém-se.
– Muito obrigado, também achei.
Quinn volta a centrar as atenções no telemóvel. Há duas fotos
formais, provavelmente tiradas antes do jantar – uma fila de homens
de smoking, num tédio de branco e preto, com Fisher destacada no
centro, resplandecente no seu vestido escarlate, como uma espécie
de inseto tropical. Está voltada a três quartos para a câmara, um
ombro descaído, como que habituadíssima a este tipo de sessões.
As últimas fotos são de pessoas com cálices de Porto na mão;
Marina está claramente visível em várias, conversando com dois
homens de meia-idade. Fisher está com as bochechas levemente
rosadas, e, a julgar pelas expressões deles, estão ambos
completamente embevecidos, ainda que seja discutível se será o
decote ou a conversa dela que causa maior impacto. Quinn passa
para a foto seguinte; faz uma pausa e estende o telemóvel a Asante,
com uma expressão carregada de sentido. Marina Fisher, mão
direita erguida, a manga pendendo. Não usa nenhuma pulseira, tem
o pulso nu, sem marca nenhuma.
– Importa-se de me mandar estas fotografias? – pede Asante
educadamente, fazendo deslizar um cartão de visita pela bancada.
Sandford encolhe os ombros.
– Claro… e que lhes façam muito bom proveito.
Quinn levanta-se, dando por findo o encontro:
– Bom, a não ser que se lembre de mais alguma coisa que ache
digna de referência, creio que ficamos por aqui. Muito obrigado pelo
seu tempo. Deixamo-lo a desfrutar do seu pequeno-almoço. E deixa-
nos ir tomar o nosso, sossegados. Obrigado por nada, otário.
Sandford acompanha-os pelo corredor.
– Só mais uma coisa…
– Sim? – diz Quinn, voltando-se para ele.
– Quem é que fez esta “alegação” contra a Marina? Não
chegaram a dizer, creio.
– Não – diz Quinn. – Não chegámos a dizer.

Enquanto sobem a Abingdon Road em direção a St. Aldate,


Asante volta-se para Quinn:
– Quanto é que apostas que esta cena toda vai correr o grupo de
WhatsApp deles na próxima meia hora?
– Nunca aposto quando sei que vou perder – diz Quinn com um
suspiro.

***

Em circunstâncias normais, seria preciso muito para fazer Clive


Conway trabalhar a um domingo, mas há algo no caso Fisher que
não lhe cheira bem, por isso, assim que vê a mulher comodamente
instalada no jardim com o irmão e a família dele, escapa-se lá para
cima, para o escritório, e liga-se à internet.
Fica a olhar para o ecrã e recosta-se na cadeira, fazendo-a
oscilar para a frente e para trás.
Devia sentir-se muito satisfeito consigo próprio neste momento,
confirmado que foi o seu palpite. Mas não é assim tão simples.
Raramente é. Porque, ainda que o que ele acabou de descobrir seja
suficientemente claro, o porquê e o como vão requerer bastantes
mais explicações.
Ouve a mulher a chamá-lo do fundo das escadas, perguntando-
lhe onde diabo se meteu e relembrando-o que tem de ir acender o
barbecue.
Conway inclina-se para a frente, pega no telefone fixo e marca
um número.

***

O porteiro percorre com o dedo a lista numa prancheta.


– Edifício Corwallis… Sobe a rua, vira à direita, é o número 6.
Freya Hughes frequenta uma das faculdades de especialização
para pós-graduados, construída há mais de meio século entre uma
série de casas vitorianas e um refeitório especialmente concebido
para os estudantes, num dos jardins de trás. Everett nunca aqui
esteve, mas a faculdade parece-lhe simpática. Ainda que consiga
imaginar os candidatos estrangeiros mais presunçosos a torcerem-
lhe o nariz por não ser suficientemente Oxford.
O quarto de Hughes fica no andar de cima de um anexo
localizado nas traseiras dos edifícios principais. Tem um aspeto
gasto, com o cimento riscado e manchado, e algumas das janelas
de vidros duplos estão claramente deterioradas. Quando bate à
porta, Ev dá por si a pensar que é curioso que nenhum dos edifícios
modernos da universidade tenha conseguido aproveitar nada
daquilo que já lá estava. E, quanto àquela cena estranhíssima na
Woodstock, que mais parece um tatu metálico…
– Sim?
A rapariga que lhe abre a porta é loira e petite, com a pele muito
branquinha – que deve sofrer um verdadeiro martírio com estas
temperaturas – e pestanas claríssimas, quase invisíveis. Segura a
porta, deixando-a apenas educadamente entreaberta. Parece não
exatamente hostil, mas cuidadosa, resguardada.
Everett mostra-lhe o crachá.
– Inspetora Verity Everett. Vim falar consigo acerca do Caleb
Morgan.
– Ah, sim, o Caleb. Claro, entre.
Tem uma vista agradável: a parte de trás de uma das casas
vitorianas, rodeada pela paisagem de uma bonita zona
pavimentada, com mesas e bancos de madeira, arbustos muito
verdes e uma churrasqueira de tijolo. O quarto em si beneficiaria
talvez de um pé direito mais alto, mas tem uma suite e uma alcatifa
decente. Como o resto do espaço, agradável q.b. Quem sabe não
deveriam usar essa expressão como mote da faculdade? Em latim,
evidentemente.
Everett senta-se na cadeira da secretária, enquanto a jovem
escolhe o assento da janela. Há um telemóvel na secretária, mas,
assim que vê Everett a olhar para ele, a rapariga levanta-se e vai
buscá-lo, guardando-o no bolso.
Everett tira o seu bloco de notas.
– O Caleb é seu namorado, certo?
Hughes concorda.
– Há quanto tempo estão juntos?
– Há cerca de nove meses.
Ev toma nota.
– Julgo saber que ele veio cá ter consigo na sexta-feira à noite…
contar-lhe o que se passou?
Outro aceno:
– Ele nem queria fazer nada, mas eu disse-lhe que não podia
ser. Que ela não devia ter-se comportado daquela maneira.
– Ela… Refere-se à Professora Fisher?
– Ela abusa. Não só com a cena do baby-sitting, mas com outras
coisas. E acha que se safa por ser quem é. Por ser mulher e atrair
tantas atenções.
– Mas conhece a Professora Fisher? Creio que o seu curso não
tem nada que ver com ela, certo? É Inglês, não é verdade?
– Sim. E, não, não a conheço. Já a vi por aí, claro. Difícil seria
não ver…
As palavras sugerem amargura, mas o tom de Hughes é
excessivamente pragmático e o corpo trai-lhe as emoções. Está
tensa, completamente hirta, os dedos entrelaçados no colo.
– Quando esteve com o Caleb, na sexta-feira, o que é que ele
lhe contou?
– Que ela se tinha atirado a ele. Que ele deixou bem claro que
não queria, mas que ela o ignorou e insistiu.
– Sabe se ele falou com mais alguém acerca disto?
Ela muda ligeiramente de posição.
– Contou à mãe.
Eva toma nota.
– Contou à mãe aqui, enquanto estava consigo?
Ela assente:
– Sim, eu obriguei-o, praticamente. E ela concordou comigo que
ele não devia esquecer o assunto.
Ev observa-a por um momento. É difícil imaginar que ela não
tenha grandes ciúmes de Fisher – da sua posição, da sua
popularidade, do seu extremo poder. Sem desconsiderar também
uma dosezinha de inveja sexual, claro está.
Mas isso não significa que não esteja a dizer a verdade.

***

Há um troço, na estrada de regresso a Southampton, em que


Somer sente que está quase em casa. A subida pelo Ridgeway18, a
subtil mudança na paisagem que marca a antecipação da chegada a
Oxford. Ela já fez este percurso dúzias de vezes desde que
começou a namorar com Giles, e este momento, tal como o cenário,
sempre representou para ela uma dicotomia: as saudades dele, por
um lado, e o regresso ao trabalho e a tudo o que ela mais valoriza
na sua vida atual, por outro. Hoje, pela primeira vez, olha apenas em
frente. Recusa-se a pensar naquilo que deixou para trás.
Quando se aproxima da saída para Compton e East Isley, crava
com mais força as mãos no volante e dá por si a pisar a fundo no
acelerador.

***
Adam Fawley
8 de julho, 2018
10h20

Quando saí para o ginásio, a Alex continuava a dormir e eu


decidi não acordá-la. Ela precisa mais de descanso do que eu de
ostentar as minhas credenciais de cuidador fazendo-lhe o pequeno-
almoço. Mas, no regresso, passei no cafezinho preferido dela e levei
cappuccinos e croissants de amêndoa para nós. Só que, pelos
vistos, foi tempo perdido.
A primeira coisa que noto quando meto a chave à porta é o
cheirinho a café; a segunda é o som de vozes. E não é na rádio.
Está gente cá em casa.
Largo as chaves na mesinha da entrada e a pasta no chão, e
dirijo-me à cozinha. A Alex está sentada à mesa, com uma das
minhas t-shirts velhas, descalça, o cabelo apanhado num nó
desleixado. À sua frente, mais uma taça de cereais para crianças de
que ela parece não se fartar nos últimos tempos. Passo a vida a
gozar com isso, mas ela encolhe os ombros e responde que eu
devia agradecer à minha estrelinha da sorte por ser algo tão simples
(e tem toda a razão – com o Jake, ela andava desejosa de arenque).
À sua frente, com as mãos a rodearem a minha caneca Sr.
Perfeito (e, sim, é uma piada), está uma mulher. Já estive com ela.
Emma qualquer-coisa. Foi colega da Alex na faculdade há anos, não
são exatamente amigas, mas um pouco mais do que meras
conhecidas. Trabalha no concelho municipal, nos serviços de
acolhimento e adoção. No ano passado, quando dois operários
encontraram uma jovem traumatizada trancada numa cave com o
seu filho bebé, foi a Emma que conseguiu que a Alex e eu
acolhêssemos a criança durante umas semanas. No entanto, e para
que não pensem que eu sou de facto o Sr. Perfeito, devo dizer que
me opus logo desde o início a essa ideia – e suspeito que a Emma
também, embora nunca tenhamos falado sobre isso. Foi ideia da
minha mulher, que tem tanto de persuasiva como de persistente. E,
se se lembram desse caso e daquele menino e se estão a
perguntar-se o que lhe aconteceu, o Brandon está ótimo. Está com
os pais de acolhimento de longo termo, que aguardam apenas poder
adotá-lo. O caso já não está comigo, mas tenho acompanhado o
processo. Não por ter de o fazer, mas porque quero.
– Adam… Lembras-te da Emma, certo?
Sorrimos um ao outro, de forma um pouco desconfortável.
Arrependo-me agora de não ter tomado um duche no ginásio ‒ e
nem a minha própria mulher parece querer aproximar-se sequer a
um metro de mim neste momento. Deixo-me, por isso, ficar ali à
porta, tentando não parecer um tolinho.
Aceno-lhe.
– Olá.
O sorriso da Emma não lhe chega aos olhos. Tem cabelo
comprido, loiro, com madeixas ruivas, e usa umas argolas de prata
com as quais brinca nervosamente. Tenho ideia de que tinha o
cabelo bem mais escuro da última vez que nos vimos, mas já foi há
muito tempo. Posso estar a fazer confusão.
– A Emma passou por cá para deixar um presente para o bebé –
diz a Alex, recostando-se na cadeira. Reparo agora num ursinho
branco de peluche, sentado na bancada ao lado dela. Tem um laço
vermelho e aquele olhar ligeiramente implorante que os peluches
conseguem sempre ostentar.
– Estávamos aqui a pôr a conversa em dia.
Faço menção de me retirar:
– Ótimo, que bom! Eu… enfim, preciso de um duche, antes de
mais nada. Fiquem à vontade. Até já.

***

– C’um caraças! – exclama Baxter, recostando-se na cadeira.


Arranca os fones e olha em volta para o resto da equipa. – Vocês
têm de ouvir isto!
Quinn e Asante acabaram de chegar do encontro com Sandford
– Quinn ainda está a pendurar o casaco –, mas todos conhecem
bem o Baxter: se ele diz que há alguma coisa é porque há alguma
coisa.
– O que é? – pergunta Quinn, juntando-se a ele, tal como os
colegas.
– Há bocado, recebi uma chamada do Clive Conway – responde-
lhe. – Já tem os resultados das impressões digitais de casa da
Fisher. Nada nas flutes de champanhe, tal como se esperava, mas
na garrafa, sim. Tanto do Morgan como da Fisher.
Quinn estranha:
– Como assim? Não disseram ambos que foi o Morgan que a
abriu? Onde é que isso nos leva?
– Não é só isso. Pelos vistos, quando o Conway sacou a garrafa
do contentor, reparou numa série de vidros partidos lá dentro… E
estavam mesmo por cima, por isso não estariam ali há muito tempo.
– E então? – pergunta Ev, percebendo cada vez menos.
– Então que eram de uma segunda garrafa de vinho, um
prosecco, segundo o Conway. Igualmente com impressões digitais.
Dois conjuntos diferentes. Umas são do Morgan; as outras, não se
sabe. Mas há uma coisa que se sabe: não são da Marina Fisher.
Quinn continua de testa franzida.
– E?… Está-me a escapar alguma coisa?
Mas Baxter ainda não terminou:
– A única razão que levou o Conway a recolher esses vidros foi
porque se lembrou de ter visto pedaços de vidros nos degraus de
entrada da casa, quando chegou. Exatamente os mesmos pedaços.
E não hão de ter lá ido parar por acaso, certo? Muito menos naquela
zona da cidade. Por isso, a não ser que tenha sido um moço de
entregas de supermercado desastrado…
Ev intervém:
– Nem pensar. Acredita que as listas de compras da Marina
Fisher não incluem vinho barato. Duvido até que permita que entre
disso lá em casa.
– Precisamente – diz Baxter, erguendo a sobrancelha. – Foi isso
que eu pensei, por isso decidi pesquisar por conta própria.
Inclina-se e puxa o teclado para si.
– Acontece que uma mulher chamada Pat Hart ligou para a
polícia na noite desse tal jantar, passava pouco das nove. Ia a
caminho do bar Playhouse para se encontrar com um amigo.
Liga o som e carrega no play.

Quem ligou: Estou? Sim, estou a ligar porque aconteceu um


incidente qualquer aqui, na St. Luke Street.
Quem atendeu: Que tipo de incidente, minha senhora?
Quem ligou: Um homem e uma mulher loira a discutirem no meio da
rua. Acabei de passar por lá de táxi, e a coisa estava
feia. Pareceu-me que ela estava bastante bêbada, tinha
uma garrafa na mão e falava aos berros.
Quem atendeu: Houve algum tipo de altercação física?
Quem ligou: Isso não vi, porque ia de passagem, mas vi-o a
empurrá-la. Com bastante força, pelo que percebi, e o
tipo era grandalhão…
[ruídos de fundo]
Espere um momento… Acabei de sair do táxi e estou a
voltar para trás. Acho que ouvi vidros a partirem-se.
Quem atendeu: Vamos já enviar um agente para…
Quem ligou: Não, espere… Eles já cá não estão.
Quem atendeu: Entraram nalguma casa?
Quem ligou: Não sei… Que eu veja, não. Estavam mesmo aqui, na
esquina, mas agora já não estão, e não consegui ver
para onde foram. Desculpe, não era minha intenção
fazer-vos perder tempo…
Quem atendeu: Ora essa, não tem problema algum. Estamos cá para
isso. Importa-se de aguardar um momento em linha?
Para eu poder tomar nota dos pormenores da
ocorrência?

Baxter carrega na pausa e ouve-se um exalar geral. Porque,


mesmo sem a mulher ter dado a localização exata, todos sabem de
quem ela estava a falar.
Caleb Morgan e Freya Hughes.
Ev olha em volta, os olhos muito abertos.
– Estive em casa dela há menos de meia hora, a fazer-lhe
perguntas sobre aquela noite, e ela não disse uma palavra que
fosse acerca disto!
– Mas não é só isso, pois não? – comenta Asante calmamente. –
Aquilo que a mulher descreveu – o empurrão, o facto de a Freya
estar bêbada – é exatamente o que o Morgan disse que se passou
com a Marina Fisher nem duas horas antes.
Quinn concorda veementemente com a cabeça:
– Exato. Por isso, das duas uma: ou ele aviou duas mulheres
diferentes na mesma noite…
– O que não é impossível – observa Ev. – Infelizmente.
– … ou ele está a manipular a memória do momento – acaba
Asante. – Servindo-se do pormenor do verdadeiro incidente para
criar um falso ainda melhor. – Olha para os colegas. – Sabem o que
se costuma dizer: qual a melhor maneira de nos safarmos com uma
mentira? Embrulhá-la numa bela dose de verdade.

***

Adam Fawley
8 de julho, 2018
13h45

– O que é que te apetece comer?


A Emma acabou por ficar mais duas horas. Não sei do que é que
elas falaram, mas pareceu-me bastante intenso. Como estavam no
jardim, não consegui ouvir nada. Ainda assim, decidi esperar que ela
saísse para comer alguma coisa com a minha mulher. Resultado:
estou quase a ficar hipoglicémico.
– Temos frango frio – diz a Alex, olhando para o frigorífico aberto.
– E estes abacates estão no limite de serem comidos.
Muito honestamente, neste momento dava um rim por um bife
com batatas fritas.
– Está tudo bem com a Emma? – pergunto, em grande parte por
mera cortesia. A Alex, contudo, olha-me de relance e solta um forte
suspiro:
– Coitada, está a passar por um mau bocado, neste momento.
Semicerro os olhos, esforçando-me por me lembrar.
– Ela não está num relacionamento novo… ou estou a fazer
confusão?
A Alex tira a maionese do frigorífico e uma colher da gaveta dos
talheres.
– Ela esteve num relacionamento novo.. Passado. Da última vez
que a vi, pareceu-me muito entusiasmada, de facto, mas acho que a
coisa descambou pouco depois. Coitada, não tem mesmo sorte
nenhuma nesse departamento.
Respondo com uma série de grunhidos que espero que ela
considere como evidências de empatia.
– E eu sei que ela também adorava ter filhos.
Não diz mais nada. Nem precisa. A Emma tem mais ou menos a
mesma idade que a Alex. Está mesmo na reta final, tal como nós
estávamos. Só que, connosco, o milagre aconteceu.
Aproximo-me da minha mulher e abraço-a. Ela sobressalta-se
ligeiramente – culpa minha, que a surpreendi –, mas pega-me na
mão e leva-a ao ventre saliente. E sorri.
– Quer-me parecer que somos três dentro deste abraço.

***

– Caleb?
A linha está cheia de ruídos e interferências, mas ele reconhece
a voz:
– Olá, mãe.
– Liguei para… enfim, para saber como estás.
Ele estranha. Há uma demora na linha, entre as frases; uma
demora internacional que não deveria existir.
– Não era suposto teres regressado hoje?
Um suspiro. Ou talvez outra interferência.
– Lamento, querido, mas surgiu um imprevisto. Só consegui
reunião com o senador para sexta-feira. Mas consegui reagendar as
outras e, uma vez que estão em recesso, não vi necessidade de
regressar a correr.
Agora, é ele que suspira. Claramente que ele não é visto como
uma necessidade.
– Já falaste com o teu pai?
Caleb revira os olhos.
– Não. Eles continuam em Sydney. Tu sabes isso.
– Não precisas de usar esse tom – diz ela rispidamente. – Pelo
menos, estou a tentar fazer alguma coisa. Sim, porque ele anda
demasiado ocupado a ser um paizinho modernaço para ter tempo
para apoiar o seu primogénito.
Ele morde a língua. A mãe não é menos ausente do que o pai,
trata-se apenas de um tipo diferente de distância. Mas ele sabe por
experiência própria que não lhe serve de nada dizê-lo.
– Enfim – prossegue a mãe –, eu falei com a Meredith e pu-la a
par de tudo… E eles vão ligar-te, OK?
Agora, ele sente-se na merda, porque de facto, por uma vez, ela
fez alguma coisa.
– Obrigada, mãe.
– Para ti, só o melhor, meu querido – diz ela, num tom meio
cantado de mártir. – Ficas bem entregue, a Meredith tem imensa
experiência nestas situações. Por isso, faz aquilo que ela te disser,
OK? Ah, e outra coisa: não deixes que te intimidem, ouviste? Muitas
vítimas desistem porque a polícia e o MP dificultam demasiado
esses processos.
Ele sorri para si mesmo.
– Não te preocupes, mãe. Tenho tudo controlado.

***

Freya Hughes apresenta-se hostil ainda antes de abrir


completamente a porta de casa.
– O que é agora? Já lhe contei tudo o que sabia.
Ev suspira fortemente:
– Não, não contou, e sabe muito bem que não. Por isso, vai
deixar-me entrar ou prefere fazer isto em St. Aldate? Por mim,
qualquer das hipóteses me serve.
Claramente apanhada de surpresa, a jovem abre os olhos de
espanto e afasta-se para a deixar entrar.
Ev segue-a até à sala, e Hughes volta-se para ela, enquanto
cruza os braços.
A inspetora não perde mais tempo:
– Quando cá estive há pouco, perguntei-lhe pela Marina Fisher, e
a sua resposta foi não a conheço.
Ela franze a testa.
– Mas conhece-a, certo? Pelo menos, sabe perfeitamente onde
fica a casa dela. Foi vista por lá na sexta à noite.
Ela reage, defensiva, nitidamente ignorante de quanto é que Ev
poderá saber:
– E então?…
– Então que nunca me referiu isso. Porquê?
Hughes encolhe os ombros.
– Porque não era nada que lhe dissesse respeito. E continua a
não ser.
– Oh, mas eu acho que é – diz Everett, em tom de enfado. – O
seu namorado faz uma queixa de agressão, e você não menciona o
facto de ter estado lá umas meras duas horas antes, envolvida
numa discussão em plena rua?
– Não foi discussão nenhuma…
– Chame-lhe o que quiser, mas foi suficientemente grave para
alguém ter alertado a polícia.
Hughes volta-lhe as costas.
– Eu estava chateada, só isso. Era suposto sairmos nessa noite,
e o Caleb desmarcou à última da hora por causa da porcaria do
baby-sitting.
– Ficou cheia de ciúmes.
– Sim, fiquei – responde-lhe ela asperamente. – E então?
– Então, apareceu com uma garrafa de vinho na mão, na
esperança de poderem passar um bom momento juntos…? Mas o
meu palpite é que ele não a esperava.
Ela parece amuada.
– Era suposto ser uma surpresa, OK?
– Só que ele não a deixou entrar.
A expressão dela endurece.
– Disse que estava a trabalhar. Que não podia ser perturbado.
Nem mesmo por mim.
– Sobretudo porque você já estava bastante bêbada.
Faz-se silêncio. Até que Hughes se senta pesadamente no
assento da janela.
– OK – diz ela. – Já tinha bebido uns copos com uns amigos
antes de lá chegar. Mas não estava bêbada.
– Mas, mesmo assim, ele não a quis lá em casa.
Ela afasta o olhar.
– Ele disse que eu podia acordar o Tobin e que a Marina não iria
gostar. – O seu sarcasmo é palpável.
– E empurrou-a. Violentamente, segundo a pessoa que ligou
para a polícia.
Ela semicerra os olhos, subitamente cautelosa.
– Pois a pessoa enganou-se. Ele nunca me tocou.
– A pessoa que ligou estava bastante convicta. E não tinha razão
para mentir.
Ao contrário de ti. As palavras mudas ecoam pela sala.
– Tal como disse, isso nunca aconteceu.
Ev suspira para dentro. Quantas vezes ela já ouviu mulheres
dizerem isto? Mulheres que “caíram nas escadas” ou “bateram com
a cara contra uma porta”.
– Sabe que isso pode ser considerado violência doméstica, não
sabe?
Ela revira os olhos.
– Oh, por amor de Deus…
– Falo a sério. Lá por ser inteligente e instruída, não significa que
não possa ser uma vítima. A violência doméstica pode acontecer a
qualquer pessoa. E muitas vezes é precisamente assim que começa
– com coisas que parecem triviais, só que passam a acontecer mais
uma vez e outra e outra…
– Mas você é surda ou quê? Não vai haver outra vez porque
nunca houve a primeira.
Ev anota qualquer coisa, demorando algum tempo,
propositadamente .
– Então, partiu a garrafa que trazia consigo e saiu de lá furiosa?
O olhar da rapariga vacila ligeiramente, mas ela nada diz. Isto,
pelo menos, ela não consegue negar.
– E, mais tarde, nessa noite, ele aparece à sua porta a contar-lhe
que foi assediado e agredido. Pela mesma mulher de quem você
morre de ciúmes há meses e em cuja casa não foi sequer
autorizada a entrar, escassas horas antes. Como é que se sentiu?
Hughes cora.
– Não foi exatamente assim.
– Então, como é que foi?
– Ele precisava de alguém com quem falar… Nem estava a
pensar direito.
– E você aconselhou-o a fazer queixa?
– Claro que sim. Ela agrediu-o. Estava cheio de arranhões e…
completamente na merda. Não é a polícia que passa a vida a dizer
para as pessoas não se calarem? Que muitos abusadores se safam
porque estes crimes não são reportados? Porque haveria de ser
diferente por ele ser gajo?
Ev concorda:
– Sim, tem toda a razão, nós dizemos isso. Mas fazer falsas
alegações é tão mau quanto não fazer de todo. Ou ainda pior. Por
isso, vou-lhe perguntar diretamente e sem rodeios: a Freya
encorajou-o a exagerar o que de facto aconteceu ou, de algum
modo, a falsear informação?
– Não.
– Mesmo tendo em conta que esta mulher tem andado a
monopolizar-lhe o namorado? Mesmo tendo admitido que estava
ciumenta e furiosa?
– Não. Não fiz nada disso. Disse-lhe apenas que fosse à
faculdade contar-lhes a verdade. – Mantém o olhar fixo no de Ev. –
Tal como estou a fazer agora.
Desliza da almofada do assento e levanta-se.
– E, agora, gostaria que saísse, por favor. Não tenho mais nada
a dizer.
***

Adam Fawley
9 de julho, 2018
08h45

Na manhã seguinte, quando chego a St. Aldate, o Quinn já está


de volta do quadro branco. Fotografias ampliadas do Caleb Morgan
e da Freya Hughes – que parecem as dos cartões de estudante –,
quatro ou cinco print screens do jantar na Balliol, alguns meio
desfocados. Calculo que tão desfocados como a maioria dos
empregados de mesa quando aquilo acabou. Numa dessas fotos, o
Quinn colou um Post-it com uma seta a apontar para o pulso da
Marina Fisher.
Sinto-o atrás de mim, enquanto observo o quadro.
– Calculo que já tenha ouvido a chamada para a polícia?
Assinto. Ele enviou-ma por email ontem à tarde.
– E então? Falamos com o Morgan?
Abano a cabeça:
– Não estou a ver a utilidade disso. A Hughes recusa-se a
corroborar aquilo que a testemunha afirmou, e aposto que já terá
contado ao namorado que a Ev esteve lá. Ele vai contar exatamente
a mesma versão da história.
– Mas, ainda assim, faz alguma diferença, certo? Refiro-me às
alegações. Partindo do princípio de que todos concordamos que a
Hughes está a mentir e que ele de facto a empurrou, é mesmo
suposto acreditarmos que ele fez exatamente a mesma coisa duas
vezes na mesma noite?
Encolho os ombros.
– Não podemos provar que não o fez. Talvez ele faça esse tipo
de coisas às mulheres o tempo todo. E, mesmo que tenha
empurrado a Hughes, não significa que não tenha sido agredido
pela Fisher. Mas tens razão numa coisa: não podemos arriscar-nos
a fundamentar todo este caso apenas com base na palavra do
Morgan. Se antes não podíamos, agora muito menos. Por isso, o
que é que temos concretamente?
Ele assume uma expressão resignada.
– Muito pouco. Ontem à noite, consegui falar com alguns ex-
colegas da Fisher da Imperial19. Basicamente, os tipos só falaram
bem dela – como era excelente no seu trabalho, uma lufada de ar
fresco, mesmo aquilo de que o departamento precisava, blá, blá,
blá. E nenhum acredita na cena do assédio. O centro da conversa
foi: se a Fisher pode foder quem ela quer, para quê arriscar-se só
para saltar para a cueca do Morgan? Desculpe, chefe, mas estou a
citá-los, obviamente.
Já perdi a conta à quantidade de vezes que, ao longo dos anos,
ouvi este tipo de coisas da boca de predadores sexuais: posso ter
as mulheres que eu quiser – não preciso de violar ninguém. Isso
nunca serviu para safar nenhum deles e nem vai servir como cartão
você-está-livre-da-prisão para a Fischer. Ou estarei a ser ingénuo?
A lei é cega, ou devia ser, mas as políticas sexuais não são
simétricas. Talvez porque simplesmente não seja possível, por mais
que nos esforcemos por reequilibrar as balanças. Lembram-se
daquela canção antiga do Joe Jackson? Certo ou errado, certo e
errado, é diferente para raparigas.
– E as mulheres que trabalharam com ela?
O Quinn faz uma careta.
– Só houve duas. Uma delas disse que até teria levado a Fisher
mais a sério, se ela não insistisse em vestir-se sempre como uma
prostituta.
Claro. Mais um comentário sobre as roupas dela. Estou tentado a
acreditar que ela faz de propósito, só para provocar uma reação.
Será que não lhe importa o quão discriminatória é essa reação?
– Acredite, chefe – diz o Quinn – Fãs da Marina Fisher é o último
clube só-para-homens que ainda se mantém neste país.
Volto-me e olho para o resto da equipa. Baxter, Asante, Ev e,
agora acabadinha de entrar, Somer. Parece um tanto constrangida
por chegar atrasada, mas exibe um bonito bronzeado, certamente
fruto de um fim de semana ao sol e ao vento. Fica-lhe lindamente,
mas não parece tranquila. Pelo contrário, parece stressada.
– Que bom vê-la, Inspetora Somer. – E, então, conseguiu
recarregar baterias?
Ela faz que sim com a cabeça:
– Sim, chefe. E a Inspetora Everett pôs-me ontem a par dos
últimos acontecimentos.
Recebo uma mensagem. O Bryan Gow está lá em baixo, na
receção.
– OK, equipa, enquanto esperamos pelos resultados de ADN,
vejamos se conseguimos alguns progressos no campo digital. –
Olho em volta. – E, correndo o risco de me repetir, a mãe do Caleb
Morgan vai saltar-nos em cima mais tarde ou mais cedo. E eu
aposto em mais cedo. Por isso, façam-me um grande favor e
mantenham-se atualizados no que respeita à papelada, OK?

***
***

De volta à sua secretária, Andrew Baxter arregaça as mangas.


Em todos os sentidos. Não está tanto calor como no fim de semana,
mas as instalações não têm ar condicionado e a velha ventoinha
limita-se a fazer circular ar quente. Abre uma lata de Red Bull e
pega no telemóvel de Marina Fisher.

***

Adam Fawley
9 de julho, 2018
09h34
O Bryan Gow tem um ar irritantemente fresco nas suas calças
chino cremes e um blazer a condizer, num look que eu nunca lhe vi
antes. Também tem óculos novos e – ainda mais espantoso – um
corte de cabelo decente. Trabalhamos juntos há mais de cinco anos,
mas a sua vida pessoal continua a ser um enigma para mim.
Sempre assumi que ele tinha muitos hobbies-para-totós, daqueles
que consomem o tempo que seria necessário para manter uma
relação, mas este seu novo look sugere que eu estava enganado.
Quem sabe talvez exista mesmo uma mulher por aí que se interesse
por um obcecado por matemática, trainspotting e guerra civil.
– Interessante – diz ele, erguendo os olhos do processo. – Mas
isto não é mais um caso business as usual, pois não?
Faço uma careta.
– Diria que é mais um número de equilibrismo no arame sobre a
porra de um campo minado. A mãe do Morgan é a Petra Newson.
O outro abre os olhos de espanto.
– Ah. Estou a ver. Que grande porra.
– Pois…
– Então, precisas que eu reveja as entrevistas?
Abro o laptop.
– A da Fisher, sobretudo. O Asante diz que lhe cheira a esturro.
Que a linguagem corporal dela está toda errada. Mas pode estar em
jogo um sem-número de hipóteses. Como te digo, é um campo
minado.
– Verdade. Mas o Inspetor Asante é um tipo inteligente. Bom,
deixa-me lá ver isso.

***

– Não sei… pareces-me um pouco… abatida, só isso.


Estão na casa de banho das senhoras do primeiro andar. Somer
está encostada ao lavatório, e Everett está junto da janela,
observando a amiga para decidir se deve ou não ficar preocupada.
Somer parecia-lhe tão mais feliz desde que começou a namorar com
Giles Saumarez. Ev só o tinha visto uma vez, mas parecera-lhe
quase bom demais para ser verdade, sobretudo depois daquele seu
imprudente caso com o inegavelmente atraente, mas
calamitosamente inadequado Gareth Quinn. Saumarez também é
polícia, por isso entende bem as pressões. Mas não está no mesmo
serviço, o que, na opinião de Ev, é uma experiência bem mais
segura (não que ela a tenha vivido alguma vez). Giles é bonitão,
atencioso, solidário, divertido. Não há como não gostar dele. A única
nuvenzinha no horizonte é a iminente chegada das suas duas filhas
adolescentes, que vivem no Canadá, para passarem três semanas
de férias com o pai. Ev sabe que a amiga está apreensiva com a
ideia de as conhecer e que neste último fim de semana se mostrou
bem menos entusiasmada por ir ter com o namorado a
Southampton. Será que é por isso?
– Ouve – diz-lhe ela –, se é por causa das miúdas, é
perfeitamente compreensível que…
Somer abana a cabeça.
– Não é isso. – Respira fundo. – Recebi uma oferta de trabalho.
Em Hampshire. O Giles acha que eu devo aceitar.
Ev abre os olhos de espanto.
– Que tipo de trabalho?
– Na Unidade de Violência Doméstica. Não podem assumir isto
publicamente, mas o Giles sabe que eles gostariam mesmo de
nomear uma mulher. E internamente não há muitas candidatas
óbvias. Se eu aceitar, eles aceleram o meu processo dos exames
para Sargento.
– Bom, assim à primeira vista, eu diria que és louca se não
aceitares. O que é que tens a perder?
Somer desvia o olhar.
– Não sei. Parece-me muita confusão. Teria de me mudar para
lá, arranjar uma casa…
Ev estranha:
– Como assim? Não irias viver com o Giles? Não era essa a
vossa ideia, afinal?
Somer encolhe os ombros.
– Não sei. Ele falou-me no emprego, mas não disse nada sobre
isso.
– OK, mas talvez seja apenas por achar que nem precisa de
dizer… não? – Ev avança para junto da amiga. – Ouve, estás com
muita coisa para gerires em simultâneo. Não estás no DIC há tanto
tempo assim e, depois, há a tua relação com o Giles, a chegada das
filhas dele… Serias no mínimo estranha se não te perguntasses se
fazeres a trouxa e mudares completamente de vida será assim tão
boa ideia. Mas dorme sobre o assunto durante uns dias. Não
precisas de tomar essa decisão assim a correr, pois não?
Somer suspira:
– Não. Tenho tempo.
– Ótimo. Então, para já, foca-te na chegada das miúdas. E isso já
é mais do que suficiente com que te preocupares.
Somer sorri.
– Desculpa… Tens razão. É uma excelente oportunidade. Devo
estar a pensar demasiado nas coisas, como de costume. Eu estou
bem. A sério.
Eva dá-lhe um apertãozinho carinhoso no braço.
– Bom, sabes onde me encontrar se precisares de conversar.
Seja a que horas for. OK?
Depois de a colega sair, Somer volta-se para o espelho e fixa o
seu reflexo por um longo momento. A mulher que vê não parece
alguém no limiar de um empolgante novo capítulo. E também não
parece estar bem. Não parece mesmo nada bem.

***

Adam Fawley
9 de julho, 2018
10h57

Inclino-me para a frente e carrego na pausa. A imagem fica


parada. A Marina Fisher e a advogada, e, sentado em frente delas,
eu próprio. O Asante não surge no plano. A Kennedy está a dizer
qualquer coisa. A Marina tem as mãos cruzadas serenamente em
cima da mesa.
– E então? O que é que achas?
O Gow recosta-se na cadeira.
– Fascinante. A Fisher é qualquer coisa… não é?
Ergo o sobrolho.
– É uma forma de pôr as coisas… sim.
– E as roupas… a expressão perdida de menina pequena… Ela
veste-se sempre assim?
Solto uma gargalhada seca.
– Hum, não. De todo. Uma das suas ex-colegas diz que ela se
veste como uma pega.
Ele abre os olhos.
– Uau… ou melhor… mi au.
– Podes crer.
– Imagino que isso torne a sua vida académica um tanto…
abrasiva, por vezes.
– Sim, e também não torna este caso mais fácil.
– E tu queres saber se ela está a dizer a verdade?
– Bom… Está?
Ele semicerra os olhos na minha direção.
– Não. Não completamente.

***
***

Adam Fawley
9 de julho, 2018
11h20
O Gow anda para trás no vídeo, vê-o de novo, desta vez em slow
motion e sem som. Eu também o vejo, frame a frame. A Fisher
mantém o contacto visual, as mãos em sossego à sua frente. Não
demonstra nenhum nervosismo denunciador nem um simples bater
do pé. Tem o corpo controlado, os movimentos reduzidos ao
mínimo.
– E aqui – diz o Gow –, foi quando lhe perguntaste como é que
rasgou o vestido. Repara como ela reage.
No ecrã, vemos a Fisher fazer uma pausa e vociferar “Não me
lembro”. É tudo. O Gow carrega no stop, anda para trás e passa a
gravação mais uma vez, ainda mais lentamente.
– Reparaste agora?
– Em que é que é suposto eu reparar?
– Mesmo antes de ela falar, faz um pequeníssimo assentir de
cabeça. É quase impercetível, mas está lá. As palavras dela dizem
uma coisa, mas o corpo diz outra. No geral, a postura dela é
bastante impressionante, mas um microgesto como aquele… está
fora do controlo da mente consciente. Mesmo que a mente em
questão pertença a uma professora de Oxford.
– Queres dizer que achas que ela se lembra de como rasgou o
vestido, só que não quer dizer?
– Seria esse o meu palpite, sim.
– Mas, quando ela diz que não se lembra de ter tido qualquer
contacto físico com o Morgan, isso pareceu-te genuíno?
– Sim – responde ele, lentamente, mas agora de testa franzida.
Tal como eu. Há aqui qualquer coisa que não bate certo.
O Gow hesita e chega-se à frente na cadeira.
– Por algum acaso, tens a gravação do depoimento do Morgan?

***
Adam Fawley
9 de julho, 2018
11h52

Carrego o ficheiro e ficamos a ver a gravação. Até que o Gow


anda para trás e passa-a de novo, antes de carregar na pausa.
Recosta-se e dirige-me um olhar curioso. Agora, sim, vejo aquilo
que procurava, vejo-o com os próprios olhos. A Marina Fisher não é
a única que não está a contar toda a verdade. Algo se passou
naquela noite que o Caleb Morgan também não quer admitir. A mim,
à namorada e quem sabe até a si próprio.
Resta-me descobrir o que é.
Batem à porta.
O Quinn.
– Desculpe interromper, chefe, mas estão lá em baixo umas
pessoas para falar consigo.
Franzo a testa.
– Não podes tu tratar disso?
Ele nega:
– Já tentei. Não vão nisso.
Estende-me dois cartões de visita. Cartão de boa qualidade,
espesso e texturado, um logo discreto, mas confiante. Uma firma de
advogados da City, tão famosa, que até eu já ouvi falar nela. E estes
dois são ambos associados. Confesso que estava à espera de uma
firma mais moderna, mas, pelos vistos, a Petra Newson prefere os
clássicos.
– OK – digo, com um suspiro. – Leva-os para a sala de reuniões
do primeiro andar, sim?
O Quinn ergue um sobrolho.
– Vai sentá-los nos “lugares mais baratos”?
– Claro. Não os queremos demasiado confortáveis, pois não?

***
– Alguma coisa interessante?
Baxter olha para a colega. Somer está atrás dele, olhando por
cima do seu ombro para o telemóvel.
Ele aponta para o aparelho.
– A Ev tinha razão quanto ao prosecco. A Marina Fisher compra
o vinho às caixas na Brothers & Rudd. E também gasta um balúrdio
em roupa, pelo menos uma milena por mês. Ah, e tem mais de dez
mil seguidores no Twitter… E esta?
Somer assente:
– Não me espanta. Nada do que disseste, aliás. – Parece
absorta, enquanto brinca com uma madeixa de cabelo.
– Tirando isso – prossegue Baxter –, não tenho muito mais. E,
pelo que percebi, não havia nada entre o Morgan e a Fisher até esta
bomba rebentar.
Somer rodeia a secretária e fica de frente para o colega.
– E que diferença é que isso faria?
Está a olhá-lo fixamente, os punhos cerrados; ele estranha. De
onde é que isto veio? Não é nada o género dela.
– Sim, mas é que…
– Achas que lá por estarmos num relacionamento com alguém
não dizemos que não? É isso?
Baxter cora. Pelo canto do olho, pressente Asante a observá-los.
Tem estado a escrever no laptop, mas já não está. Agora, olha-os
fixamente. E a sala está praticamente em silêncio.
– Claro que não. Mas pode fazer a diferença – em tribunal –, e tu
sabes disso. Olha o que aconteceu com aquele caso da Met…
– Eu não acredito nisto – diz ela, girando nos calcanhares e
afastando-se. – Não acredito mesmo nesta porra!
Baxter fica a vê-la sair; depois, volta-se para Asante:
– Falhou-me aqui alguma coisa?
O outro encolhe os ombros.
– Não me perguntes.

***
Adam Fawley
9 de julho, 2018
12h18

A mulher está de vestido justo; o homem, de camisa branca


aberta no colarinho e um daqueles fatos slim, azulão, que hoje em
dia estão muito na moda. Levantam-se quando me veem entrar, e
cumprimentamo-nos com apertos de mão.
– Meredith Melia – apresenta-se ela, enquanto eu me sento. – E
este é o meu colega Patrick Dunn. Representamos o Caleb Morgan.
– Agradeço a informação, mas não estou a ver porque estão
aqui. O Mr. Morgan é a vítima de um alegado crime, não necessita
de “representação”.
Ela sorri.
– Estou certa de que entenderá que a família do Mr. Morgan está
preocupadíssima e faz questão de que ele receba o melhor apoio
possível.
– Foi-lhe oferecida a assistência de uma Conselheira
Independente de Violência Sexual e tem também um eficientíssimo
agente de contacto de apoio policial. Toda a equipa, aliás, está
profundamente dedicada a este caso, em seu proveito. Não estou a
ver que outro tipo de apoio o Mr. Morgan precisará que a própria
família não lhe possa dar.
Outro sorriso.
– Na verdade, não é assim tão simples, pois não, Inspetor? Esta
situação é extremamente invulgar e as questões são complexas e
bastante sensíveis. A família teme que a privacidade do Mr. Morgan
venha a ser afetada e quer protegê-la.
– Pode ter a certeza de que trataremos o Mr. Morgan com o
mesmo respeito e consideração que concedemos a qualquer pessoa
na mesma situação, seja homem ou mulher. Independentemente de
quem seja… a sua família.
Os advogados trocam um olhar.
– Seria possível porem-nos a par dos indícios que recolheram
até agora?
– Não.
– Está a recusar-se a fazê-lo?
Recosto-me.
– Não tenho a menor obrigação de o fazer. E se, a seu devido
tempo, eu chegar a um ponto em que decida ter essa conversa, tê-
la-ei com o Mr. Morgan. Se ele vai pretender tê-los ou não presentes
nessa conversa, será uma decisão dele e só dele.
A mulher franze a testa.
– Garantiram-nos que nos daria a sua total cooperação e…
– A sério? Quem?
Ela abre a boca para responder, mas oiço o Dunn pigarrear:
– Estamos todos no mesmo barco, Inspetor. Entendo que não lhe
agrade ver dois tanques não autorizados a invadirem o seu relvado,
mas não estamos aqui para o prejudicar, metermo-nos no seu
caminho ou, de um modo geral, complicar-lhe a vida ainda mais do
que já está. Mas pensamos – e espero que concorde – que uma
política de comunicação plena e aberta pode minimizar a
eventualidade de algo desfavorável poder surgir na imprensa e pôr
em causa um desfecho bem-sucedido.
Fico tentado a perguntar-lhes se os seus clientes também têm
aderido a essa “política plena e aberta”, porque, neste momento,
poderia apostar que não.
Dunn olha para a colega.
– Julgo que devemos deixar o Inspetor-Chefe Fawley regressar
ao seu trabalho. Teremos tempo suficiente para um briefing mais
abrangente assim que saírem os resultados do ADN.
Acompanho-os até à receção e fico à porta, vendo-os subirem a
rua. Aquele comentário sobre o ADN não foi uma observação casual
ou um palpite certeiro. Tratou-se de uma mensagem, e não
propriamente muito subtil: estas pessoas têm backchannels e fazem
tenções de os usar. Estão a dar-me a escolher: posso fazer isto da
maneira mais difícil ou da mais fácil, mas, se tiver dois dedos de
testa, calo-me e porto-me bem.
Estão agora a entrar no carro, um Mercedes preto de vidros
fumados que acabou de parar no corredor de bus, um pouco mais
acima. Assim que arrancam, pelo meio de autocarros e bicicletas,
apercebo-me de que está outra pessoa no passeio. Alguém que
reconheço.
Hesito por um momento, pensando se será apenas coincidência.
Mas vocês já sabem o que eu penso sobre coincidências. E, quando
os nossos olhos se encontram, pelo meio do trânsito, sei que estou
certo.
Temos de esperar para deixar passar um autocarro, mas,
segundos depois, estamos cara a cara, no passeio movimentado.
– Olá, Adam – diz ela.

***

Alex Fawley chegou a um ponto da gravidez em que o seu bebé


está bastante mais ativo do que ela. Agora, anda sempre muito
cansada – e não é só do calor. Quando Adam está a trabalhar, ela
passa a maior parte do dia deitada na cama, com os estores
descidos. Não consegue sequer reunir energia para ler: limita-se a
pôr os fones ou a manter a televisão ligada em fundo, ouvindo
apenas, como se de rádio se tratasse.
Serve-se de um copo de água gelada e regressa lentamente à
sala. Não está ninguém estacionado lá fora. Pelo menos, nenhum
estranho. Apenas o SUV dos Hamilton e o Fiat Uno cinzento de uma
senhora que mora mais à frente na rua e que Alex ainda não
conhece. A carrinha branca não voltou. Ela acha que não, pelo
menos. Mas seria ele suficientemente estúpido para usar um veículo
ao qual sabia que ela estaria atenta? Se fosse ela, alugava um
carro. Um modelo discreto e facilmente esquecível. E alugaria um
diferente de cada vez, só para jogar pelo seguro. Este tipo não é
estúpido; se anda sempre com a carrinha branca é porque é
intencional. Porque quer que ela saiba que ele está ali. Para
assustá-la – assustá-la de propósito.
O coração acelera-se-lhe e o bebé mexe-se, desconfortável.
Senta-se lentamente, com todo o cuidado, forçando a pulsação a
abrandar. Adam passa o tempo a perguntar-lhe se está tudo bem –
se voltou a ver a carrinha –, e ela continua a sorrir-lhe e a dizer que
não. Não quer preocupá-lo – ou que ele pense que ela está maluca.
Porque não faz sentido, e ela sabe disso: Gavin Parrie está a
milhas, identificado, monitorizado, confinado. Só que o medo nunca
a abandona.
Embala-se a si própria, sentindo o bebé a acalmar-se.
– Não te preocupes, meu doce – sussurra-lhe, os olhos
marejados de lágrimas. – Estás seguro. O papá e eu nunca
deixaremos que alguém te faça mal. Tu e eu somos tudo para ele.

***

Adam Fawley
9 de julho, 2018
14h25

O Reynolds só me pode receber depois das duas. O seu


assistente informa-me que ele “teve um almoço” e pede-me que “me
dirija aos Alojamentos de Docentes”. Sem dúvida que não me
querem a contaminar-lhes os seus benditos relvados. Uma vez que
até estou com tempo, decido ir a pé subindo a St. Aldate e
atravessando a Cornmarket. Está um dia de sol e talvez por isso
tudo parece mais nítido: testemunhas de Jeová, um coro dos
Adventistas do Sétimo Dia, o centro islâmico local e um quiosque
que me informa que “a Mensagem da Cruz é uma insensatez para
os que estão a perecer”. Se bem que para os que estão a derreter
fosse uma expressão mais indicada, com este calor. E tudo isto
misturado completamente à balda com os alegres e persistentes
ofertantes de crédito consignado, uma banca que vende óculos de
sol e almofadas smiley face, mais aquele habitué de cabelo cor de
cenoura que toca gaita de foles. (Há uma velhota pequenina e de
olhar furioso, que está mesmo à frente dele, com um lenço na
cabeça com nós nas pontas, a empunhar um cartaz que diz:
RECONSTRUA-SE A MURALHA DE ADRIANO! Oxford é isto, caso
não saibam – nunca, jamais, em tempo algum, baixar a guarda.) A
rua está pejada de grupos de turistas, por isso percorrê-la torna-se
desesperadamente lento, ainda que, por um feliz acaso, a maioria
consiga manter-se vestida. Ao contrário dos locais, que correm
desembestados pela rua quase como Deus os trouxe ao mundo. Se
houvesse uma lei que proibisse a presença de homens mamalhudos
e em tronco nu em zonas urbanizadas, então eu estaria neste
momento a pedir reforços.
Assim que chego aos Alojamentos de Docentes, o empregado
que está à porta acompanha-me até ao jardim. Que é, obviamente,
glorioso – uns bons 2 mil metros quadrados de relvados,
madressilvas e roseirais maravilhosamente cuidados. Vejo dois ou
três jardineiros a removerem folhas secas e ervas daninhas, e a
podarem botões de flor secos. Escusado será dizer que estes tipos
mantêm as t-shirts estoicamente vestidas. Tal como o Reynolds, que
está com um look em branco integral, instalado debaixo de um
chapéu de sol, com o laptop aberto à sua frente sobre uma mesa de
mosaicos. Faz-me sinal para que me sente numa cadeira a seu
lado.
– Por favor, sente-se, Inspetor. Dê-me apenas um minuto. Sirva-
se de limonada. É a minha mulher que a faz, uma receita de família.
Obrigar-me a ficar a vê-lo gerir a caixa de correio é um golpe
baixo no que respeita a jogo de forças, mas a limonada não é nada
má; por isso, contento-me com a vista. Perto daqui alguém toca
piano. Mozart. Também nada mau, diga-se.
– Muito bem – diz o Reynolds uns momentos depois, tirando os
óculos e afastando o laptop ligeiramente para o lado. Só que,
reparo, não o fecha completamente. – O que posso fazer por si?
– Bom, Professor, queria informá-lo de que estamos a fazer
progressos na investigação, mas que talvez um pouco mais de
contexto nos fosse bastante útil. Uma imagem mais clara tanto do
Morgan como da Fisher.
Ele pega nos óculos.
– Off the record, calculo.
– Eu não sou jornalista. Não trabalhamos com essas regras. Não
posso garantir que algo que me diga não acabe no domínio público,
mas acredite que não será por nós. Os agentes da polícia podem
ser algo obstinados em certas ocasiões, mas tentamos mesmo
manter-nos afastados de lojas de loiça.
Ele sorri, ligeiramente desconfortável; é óbvio que não sabe o
que responder. Mas desfaz o sorriso.
– Diga-me então o que deseja saber.
– Comecemos pela Marina Fisher. Considero a situação dela
com o ex-marido um pouco esquisita.
Ele estranha:
– Como assim? Eles casaram, separaram-se e o tipo voltou para
Boston. Foi bastante mais limpo que a maioria dos divórcios a que
tenho sido forçado a assistir.
– É precisamente aí que quero chegar. O Joel Johnson
regressou aos Estados Unidos. Que idade tinha o Tobin quando eles
se separaram? Um ano? Menos, talvez? E, no entanto, o pai não
teve o menor problema em deixá-lo para trás, mesmo sabendo que
raramente o veria. Não acha isto no mínimo estranho?
O Reynolds dedica-me um olhar intenso.
– Na verdade, não. O Tobin Fisher não é filho do Joel Johnson.
Então, é isso.
– Aliás, foi precisamente essa a razão do divórcio deles.
– Quer dizer que ela teve um caso extraconjugal?
Depois de dar um gole na limonada, o Reynolds pousa o copo.
– Creio que caso de uma noite será o termo mais adequado.
– Mas ela tem a certeza de que o filho não é do Johnson?
– Ele passava praticamente o ano todo nos Estados Unidos da
América. E, seja como for, o Johnson é afroamericano.
Olha-me como se isto fosse um tutorial e estivesse a constatar
que eu não tinha prestado a devida atenção. E tem razão – irritante,
mas certo: eu devia saber isso. Devia ter pesquisado o Johnson.
– A Professora Fisher já estava na Edith Launceleve nessa
altura?
Ele confirma:
– Sim, já era o seu segundo ou terceiro ano por cá. Mas eu
conheci-a antes disso. Foi sobretudo graças a mim que ela veio para
cá. Fui eu que a convenci a deixar a Imperial. E olhe que me deu
bastante trabalho, acredite.
Se eu lhe tivesse perguntado diretamente de que tamanho é o
cão que ele tem nesta luta, não teria tido uma resposta mais clara: o
tipo está enterrado até ao pescoço nisto. Ao nível Mastim.
– Sei o que está a pensar – observa. – E a resposta é não.
– Não… o quê?
– Não, não sou o pai do Tobin. Nunca tive esse tipo de relação
com a Marina.
Recosto-me ligeiramente na cadeira.
– E sabe quem é o pai?
Ele nega:
– Como disse, ela descreveu-o como caso de uma noite. É
provável que nunca lhe tenha sequer contado que o Tobin existe.
– E ela seguiu com a gravidez, mesmo calculando que isso
resultaria num torpedo sobre o casamento?
Um breve encolher de ombros.
– Ela queria filhos; o Joel, não. E com a idade dela…
Afasta as mãos, como se não fosse preciso dizer mais nada. E
não é. Para mim, sobretudo.
– Ela teve mais alguma relação, depois disso?
Ele parece refletir um pouco.
– Uma ou duas, sim. Mas, antes que pergunte, posso garantir-lhe
que foram todas apropriadas à idade.
– Ou seja, homens na casa dos quarenta.
– Ou mais velhos, sim. Nunca, em todos os anos que conheço a
Marina, a vi minimamente interessada num aluno ou num homem
significativamente mais novo. Isso, nunca. Aliás, todo este…
episódio seria absolutamente desadequado.
Reparo no tempo condicional do verbo. E prossigo:
– E quanto ao Caleb Morgan? Este episódio também seria
absolutamente desadequado para ele?
O Reynolds cruza as mãos no colo.
– Bom, a verdade é que não o conheço há tanto tempo, uma vez
que ele só cá está há menos de um ano. Mas, pelo que sei, é
honesto, muito esforçado e trabalhador e – atrevendo-me a usar um
termo tão mal-amado – um jovem deveras honrado.
– Assim sendo, se eu lhe dissesse, apenas em teoria, que ele
pode ter tido uma altercação com a namorada na noite do alegado
assédio sexual… que pode mesmo tê-la empurrado, o que é que me
diria?
Ele semicerra os olhos.
– Dir-lhe-ia que acho muito difícil de acreditar. – Hesita. – Mas
isso não foi apenas em teoria, pois não?
Deixo que o silêncio se prolongue e noto-lhe a apreensão
crescente.
Pega no jarro e enche de novo o copo.
– Não o invejo, Inspetor, por ter de lidar com isto. Estamos do
lado de lá do espelho, neste caso; e nada nele faz algum sentido.
Mas, lá está, isto é Oxford. Quando se trata de atravessar o
espelho, somos mestres.

***
***

Alex Fawley verifica de novo o telemóvel. Ainda nada de Adam.


Sabe que ele deixa sempre o telemóvel no cacifo quando está no
ginásio; e ele também lhe disse que ainda ia não sei onde depois ‒
mas já está mais de uma hora atrasado .
Pega no tablet e entra na página; depois, carrega no play. Por
um lado, ainda bem que Adam não está aqui, porque ia ficar furioso,
se soubesse. Quando eles souberam que a organização “Toda a
Verdade” ia fazer um podcast sobre o caso Parrie, Adam fê-la
prometer que não o ouviria. Disse-lhe que aquilo era apenas
material para manchetes – que, fosse qual fosse o ponto de vista
deles, desenterrar o passado não conseguiria mudar nada; por isso,
para quê torturar-se passando outra vez por tudo? Não lhe ia fazer
bem nenhum nem ao bebé. E ele tem razão, claro que tem, mas ela
é que não consegue controlar-se. Porque sabe o que aí vem:
qualquer que seja a agenda deles, qualquer que seja o “ponto de
vista deles”, vão sempre ter de falar sobre ela – sobre ela e sobre
Adam.
E se eles não estiverem apenas a desenterrar o passado? E se
encontraram de facto alguma coisa?
E se eles souberem o que ela fez?
Aí… como é que vai ser?
***

Na terça-feira, Quinn é o primeiro a chegar a St. Aldate. É quase


como nos velhos tempos, quando ele era de facto inspetor-
coordenador, como se não estivesse apenas a manter quente o
lugar de Gislingham: preparar-se para a reunião matinal, abrir os
emails para o DIC. Olha à sua volta para uma última verificação
(encontra um marcador extra, liga a ventoinha – ainda que não sirva
para nada); depois, senta-se na fila da frente e abre o tablet. Baxter
é o segundo a chegar. Já todo suado e a refilar por causa do
estacionamento. Olha em volta e estranha:
– A Ev ainda não chegou?
Quinn abana a cabeça:
– Ainda não a vi. Acho que só o Asante é que anda algures por
aí. Mas vai ver na máquina do café.
– Está demasiado calor para café – resmunga Baxter, sem que
isso o impeça de se dirigir até lá.
Quando volta, Ev já está sentada à secretária, sacando do bloco
de notas. Baxter dirige-se logo a ela.
– Bom dia – diz-lhe a colega alegremente; depois, franze a testa.
– Estás bem?
Baxter aproxima-se dela e parece prestes a responder, mas
alguma coisa o faz mudar de ideias e voltar-se.
Quinn também se volta: essa “alguma coisa” é a Somer, vinda do
corredor. Quinn semicerra os olhos. Ontem, apercebeu-se de uma
certa inquietação geral, mas ninguém disse o que quer que fosse.
De facto, Somer parece mais preocupada do que o habitual, isso
sem dúvida. Está de cabeça baixa, os olhos fixos na papelada, a
evitar conversas – o que não é nada o género dela. Vê Ev dirigir-se
a ela e dizer-lhe baixinho uma ou duas palavras, mas nada recebe
em troca a não ser um breve aceno de cabeça.
Ainda têm de esperar mais um quarto de hora até à chegada de
Fawley – o que também não é nada típico dele. Quando finalmente
o chefe aparece, o silêncio na sala já se tornou bastante
desconfortável. Mas das duas uma: ou ele não repara ou,
simplesmente, esta manhã não está lá muito virado para as
cordialidades. Limita-se a puxar de uma cadeira e a dirigir um sinal
de cabeça a Quinn.
– Muito bem – diz Quinn, entrando em modo inspetor-
coordenador. – Recebemos os resultados das análises ao sangue e
aos níveis de toxicidade da Fisher. Confirmou-se que ela tinha
estado a beber.
Fawley, que mantém os olhos fixos no telemóvel, comenta:
– O que não é propriamente uma espantosa revelação, uma vez
que ela própria nos disse isso.
Quinn ignora-lhe o sarcasmo.
– A taxa de álcool no sangue ultrapassa claramente a permitida
por lei para conduzir, mas não é suficientemente alta para causar
qualquer espécie de blackout. Contudo, segundo as análises
toxicológicas, ela anda a tomar medicação para a ansiedade. –
Consulta o tablet. – Algo chamado Fluoxetina. Basicamente, o
mesmo que Prozac. Numa dosagem muito fraca, mas que parece
que pode causar sonolência e torpor quando misturado com álcool.
– Mas sem causar blackout? – pergunta Fawley, erguendo agora
o olhar.
Quinn nega:
– Geralmente, não, mas nenhum médico se vai chegar à frente e
afirmar categoricamente uma coisa ou outra. Pelo menos, segundo
o Challow.
– E quanto ao ADN?
Quinn faz deslizar o ecrã.
– Pois, aí é que a coisa se torna interessante. O ADN da Fisher
estava definitivamente presente nos braços e mãos do Morgan. A
advogada dela vai certamente alegar que isso resulta de um mero
contacto casual ou por estarem juntos na mesma casa… Mas vai-
lhe ser muitíssimo mais difícil explicar como é que o ADN dela está
também na cara do Morgan e nas suas partes baixas. – Olha em
volta com um sorrisinho irónico. – Não é algo que se “apanhe” por
estender um copo de champanhe, pois não?
Baxter ri-se, mas Fawley está de testa franzida.
– Define partes baixas.
Quinn cora levemente.
– Peço desculpa… Basicamente toda a zona que desce até à
virilha e que estava decididamente coberta pelos boxers, por isso
não há maneira de…
– Mas não no pénis?
Quinn nega:
– Não. Só nessa zona da virilha.
– E os arranhões?
– Sim – diz Quinn. – Foram feitos por ela.
Ev assente:
– Tudo isto bate absolutamente certo com o que ele nos contou.
Fawley olha-a de relance.
– Já todos percebemos de que lado estás.
Ev abre os olhos de espanto.
– Eu não quis dizer…
Fawley volta-se para Quinn:
– E a Fisher?
Ele abana a cabeça:
– Nada no corpo dela nem debaixo das unhas, mas, tendo em
conta que ela tomou duche, também já tínhamos descartado essa
hipótese. – Hesita, franze a cara e prossegue: – Oiçam, eu sei que o
ADN confirma a versão dos acontecimentos relatada pelo Morgan,
mas também é consistente com um pouco de enrolanço consensual
que possa ter acontecido. Ele diz que lhe disse para ela parar, mas
jamais conseguiremos provar isso. As únicas pessoas que sabem a
verdade são eles.
– Diz antes ele. – Baxter cruza os braços. – A Fisher não se
lembra de nada. Alegadamente.
Fawley pousa o telemóvel e respira fundo:
– OK. Lá por não termos indícios suficientes para avançar com
isto, não quer dizer que as pessoas não estejam à espera que o
façamos. Pior: se não avançarmos, o mais certo é pensarem que é
por preconceito, incompetência ou abuso de influência. – Levanta-se
e guarda o telemóvel no bolso do casaco. – Eu consegui uma
reunião para esta tarde com o técnico especializado em violações
do MP. Se nos disserem que vale a pena seguir com isto,
avançamos; senão, podemos largar o caso com a consciência limpa
e sem que nos crucifiquem.
– Se largarem este caso, será porque eu vos instruí nesse
sentido. Não antes.
Todos se voltam para a porta. Trata-se do Superintendente
Harrison, parado à entrada da sala.
– E, no entretanto, talvez alguém me possa explicar como é que
isto aparece em força na porra da internet? – A fúria pulsa dele
como se fosse um micro-ondas.
Silêncio.
Quase que se consegue ouvi-los a susterem a respiração, mas
Fawley dirige-se a ele:
– Não tinha noção de que já estava…
– Acorde prá vida, Inspetor – diz Harrison, atravessando a sala e
agitando uma folha na cara dele. – Olhe pra esta porcaria… Twitter,
Facebook… O gabinete de imprensa está a implodir, tenho a
advogada da Fisher ao telefone, o vice-chefe da polícia exige a
cabeça de alguém no cepo…
E não será a dele, isso já todos perceberam.
– Posso garantir-lhe, Superintendente… – começa Fawley –, que
ninguém na minha equipa falou com a imprensa.
Porque simplesmente não vale a pena. Porque isto é
precisamente o tipo de merdas que se espera que aconteça. E todos
eles sabem isso.
Mas Harrison nem está a ouvir.
– Não me garanta nada, Fawley. Se não foram vocês, descubram
quem foi. E depressa. Ou será você a ter de dar explicações ao
vice-chefe, dizer-lhe porque é que falharam. – Olha rapidamente em
volta, para o resto da equipa. – E, entretanto, sugiro que todos
vocês façam a merda do vosso trabalho!
Lança um último olhar fulminante a Fawley e sai da sala –
levando consigo todo o oxigénio que resta.

***
Enviado: Ter 10/07/2018, 10:35 Importância: Alta
De: InspKarlJacobs@PoliciaBritanicadeTransportes.uk
Para: CID@ThamesValley.police.uk

Assunto: ALERTA DE ACIDENTE MORTAL: PONTE DE WALTON WELL

Aproximadamente à 01h25 desta madrugada, 10/07/2018, uma equipa de


engenheiros da Network Rail, que trabalhava na linha norte da estação
ferroviária de Oxford, deparou-se com atividade suspeita na ponte. Uma
locomotiva de carga deveria passar pela linha, debaixo da ponte, mas a
equipa conseguiu contactar o maquinista via telefone e deteve o comboio no
último minuto. Todavia, a pessoa descoberta na linha já estava sem vida. Não
foram encontrados documentos ou quaisquer outros elementos identificativos
no cadáver. De início, pensou-se na hipótese de suicídio, mas um exame mais
minucioso ainda no local identificou algumas lesões que não são consistentes
com uma morte por queda. Nesse sentido, contactei de imediato o post
mortem.
O patologista C. R. Boddie conduzirá o processo com a assistência de um
dos meus homens.
Mantê-los-ei devidamente informados.

Karl Jacobs
Inspetor, Polícia Britânica dos Transportes, Oxfordshire
Centro Ferroviário de Oxford, Park End St., Oxford, OX 1 1HN

***

Baxter decide pesquisar os rumores do Twitter, com o argumento


de que isto acabará por lhe vir parar às mãos mais tarde ou mais
cedo – além de que sabe, por experiência própria, que antecipar é
sempre melhor do que nada fazer.
Apostou consigo próprio que Fawley o iria pressionar que nem
um doido nas próximas horas, mas nem meia hora passou quando
olha por cima do laptop e vê o Inspetor-Chefe especado à sua
frente. Parece perturbado, muito mais do que o costume ‒ ainda que
tenha certamente antecipado alguma interferência do furacão
Superintendente.
– Alguns progressos?
Baxter recosta-se.
– Bom, creio que já descobri de que conta tudo isto começou. O
nome da Fisher nunca foi mencionado, mas basta fazer-se parte
daquela fauna de Oxford para se perceber a quem é que eles se
referem.
Fawley rodeia a secretária e coloca-se atrás dele, a olhar para o
ecrã.
– Mostra-me.
Toca o telefone e Quinn atende:
– DIC… – Fica a ouvir, até que diz: – OK, dê-me lá a morada
para eu anotar… Shrivenham Close, 62, Headington. Certo, vamos
mandar alguém para lá.
Desliga e levanta-se, tirando o casaco das costas da cadeira.
– Ev? Acho que vou precisar de ti nesta.
A colega olha para ele.
– Problemas?
– Mulher dada como desaparecida. Não apareceu no trabalho
esta manhã e não atende o telefone. Uma colega foi lá a casa ver o
que se passava e deu com a porta da rua escancarada… e ninguém
lá dentro. Foi um agente da esquadra local que ligou. Uma vez que
ninguém a viu ou falou com ela há mais de doze horas, não querem
arriscar-se e pedem que seja um de nós a lá ir.
[DISCURSO DE ARQUIVO DO AGRADECIMENTO DE TONY BLAIR, NOITE ELEITORAL
1997.
FADE PARA “THINGS CAN ONLY GET BETTER” – D:REAM]

[FADE OUT]

[JOCELYN]
As coisas podem até vir a melhorar para o país, mas, para algumas pessoas,
o dia 2 de março de 1977 marcou o pior momento das suas vidas.

Uma jovem chamada Paula, para começar. Passou essa noite nas Urgências
do Manchester Royal Infirmary, depois de ter sido atacada e sexualmente
violentada.

E, para o Gavin Parrie, essa noite espoletou uma série de acontecimentos que
conduziram à sua detenção, condenação e pena de prisão de dezoito anos
pela violação e tentativa de violação de sete raparigas da zona de Oxford.

Então, como é que um incidente brutal, mas isolado, decorrido em


Manchester, tem ligação com uma série de ataques que ocorreram quase um
ano depois e a mais de trezentos quilómetros de distância?

Sou a Jocelyn Smith e sou cofundadora de “Toda a Verdade”, uma


organização sem fins lucrativos que luta pela reposição dos erros de
justiça. Esta é a série 3 de “Fazer do Errado Certo: O Violador da Beira
da Estrada Redimido?”.

Capítulo Dois: Paula

[TEMA MUSICAL – AARON NEVILLE – VERSÃO COVER DE “I SHALL BE RELEASED”]

[JOCELYN]
Chamamos Paula a esta jovem, mas não é esse o seu nome verdadeiro. O
caso dela nunca chegou a ir a julgamento, e a sua identidade sempre se
manteve protegida; mas, ainda que não possamos divulgar o seu nome,
conseguimos reconstruir uma narrativa mais ampla da sua vida através das
pessoas que a conheceram.

A Paula fez parte do sistema de cuidados e proteção de menores desde os


seis anos.
A mãe era toxicodependente, e a jovem nunca conheceu o pai. Tal como o
Gavin Parrie, abandonou os estudos desde cedo e aos dezasseis já ganhava
a vida como trabalhadora do sexo. Obviamente que nada disto justifica o que
lhe aconteceu, mas explica, sim, o que estava ela a fazer nas primeiras horas
dessa madrugada numa conhecida zona de prostituição.

Só que a Paula não foi violada por um cliente nem por nenhum dos habituais
consumidores de drogas que por ali circulavam. Ela nunca tinha visto o seu
atacante.

Porém, naquela madrugada, viu-o e bem de perto. Foi-lhe pedido que o


identificasse numa fila de reconhecimento. Uma fila que incluía o Gavin Parrie.

Mas já me estou a adiantar. Sabemos que a Paula estava na Lockhart nessa


noite.
Mas… e o Gavin? Esteve lá? E, se sim, o que é que lá estava a fazer?

A resposta é, obviamente, simples.

Sexo.
Nos inícios de 1997, a relação entre o Gavin e a mulher, Sandra, estava a
desmoronar-se.

[SANDRA]
Tudo o que fazíamos era discutir. Sobre as crianças, a casa, o dinheiro.
Sobretudo o dinheiro. Os irmãos do Gavin tinham ambos empregos fixos, mas
ele continuava com trabalhos temporários e sempre a ter de lhes pedinchar
para lhe arranjarem trabalhos aqui e ali. Eu acho que ele considerava isso
humilhante, sobretudo perante o Bobby, sendo ele o mais novo, e tudo isso.
No fim, ele passava a maior parte do tempo deitado no sofá a ver televisão e a
beber sidra. Depois, saía e ficava fora a noite toda. Chegava de madrugada,
todo marado e maldisposto, quando eu estava a acordar para preparar os
miúdos para a escola.

[JOCELYN]
Estavam longe de ter um estilo de vida desafogado, e deve ter sido por esta
altura que o Gavin começou a desenvolver diabetes tipo 1, ainda que o
diagnóstico oficial só tenha chegado anos depois. E chamo a atenção para o
facto de este ser outro pormenor aparentemente insignificante, mas que virá a
revelar-se importante mais tarde.
Mas, em 1997, não era a apenas a saúde do Gavin que estava ameaçada.

[SANDRA]
Chegou a um ponto em que as coisas começaram a ter um impacto sobre os
miúdos – andavam sempre em bicos de pés na presença dele e o Stacey
começou a arranjar problemas na escola. Foi aí que eu percebi que tinha de
fazer alguma coisa. Não era justo para eles, já nem pensando em mim. Mas
fiz questão de deixar sempre registado que ele nunca me bateu. Sim, era um
homem raivoso, raivoso pra caraças, mas era tudo dirigido a ele próprio. Ele
sentia que tinha falhado. Como marido, como pai. Como homem.

[JOCELYN]
A Sandra não quer ser entrevistada sobre isto na televisão, mas torna-se
claro, ao falar com ela, que este não era o único aspeto no casamento que
tinha dado para o torto. A parte física da relação também se tinha deteriorado,
sobretudo depois do nascimento do terceiro filho, o Ryan, em 1995. Não levou
muito tempo até o Gavin se voltar para as prostitutas, à procura de sexo.

O facto de o Gavin ter escolhido o dia 2 de maio para a sua primeira incursão
no red ligh district de Manchester foi mais um exemplo da sua habitual má
sorte.
Na altura, ele conduzia uma carrinha branca – outro desenrascanço do irmão
mais novo, o Bobby. A maior parte das raparigas que trabalhava nesse troço
lembra-se de o ter visto.

Esta é a Dexi. Também não é o seu nome verdadeiro. Trabalhou na Lockhart


Avenue durante dez anos. Conheceu a Paula, na altura, e lembra-se de como
ela era.

[“DEXI”]
Era uma miúda porreira. Esperta e muito magrinha. As outras costumavam
tratá-la como uma filha. Acho que tinham medo que ela atraísse os
pervertidos, com aquele ar tão novinho, e tudo isso. Ela não era tão frágil
quanto parecia, se bem que por vezes fosse um bocado intensa de mais.
Muito ingénua, ‘tão a ver? Que é a última coisa que devemos ser neste
trabalho. Temos de aprender a ser boas a farejar os tarados. Aqueles que só
querem fazer-nos mal. E ela, nisso, era uma merda.

[JOCELYN]
A Paula pode ter sido um pouco ingénua, sim, mas não se tornou uma vítima
por causa disso. Não se meteu com o toxicodependente errado, porque não
foi um toxicodependente que a atacou. O homem que a atacou agarrou-a por
trás, arrastou-a até a uma zona de vegetação rasteira e amarrou-lhe os pulsos
com fio elétrico, antes de a tentar violar.

E, se acham que isto vos soa familiar, têm razão: estes detalhes acabaram
por se tornar as marcas características do predador que a imprensa mais
tarde haveria de batizar como “O Violador da Beira da Estrada”.

Mas isso foi tudo meses depois. Em 1997, tudo o que a polícia sabia era que
a Paula tinha sido violentamente atacada. E enfrentaram uma penosa batalha
para encontrarem o culpado, porque não havia ADN nem perícias forenses.
Mas tinham uma coisa do lado deles.

A Paula viu quem a atacou. Apenas por um momento, quando ele se levantou
de um salto e fugiu pela noite dentro. Ela viu-lhe o rosto.

Então, tudo o que tinham que fazer era encontrá-lo. Porque sabiam que,
assim que o metessem numa fila de reconhecimento, teriam o seu homem.
Simples, certo? Errado.

[DESMOND WHITE]
A primeira vez que vi o Gavin, ele estava na sala de detenção da esquadra da
Polícia da Northampton Road.

[JOCELYN]
Este é o Des White. Era advogado do Gavin, na altura. Ou melhor, era o
advogado da Legal Aid, que estava de plantão na noite em que o Gavin foi
preso.

Isto passou-se pouco depois das onze do dia 5, três dias após a Paula ter sido
atacada. Mas muita coisa aconteceu nesse espaço de três dias.

[DESMOND]
Depois do ataque, houve uma gigantesca operação policial na Lockhart
Avenue.
E a maioria das raparigas foi extremamente colaborante. Afinal, eram as mais
interessadas em que não houvesse um predador sexual à solta por aí.

[JOCELYN]
Acabou por se verificar que nenhuma das raparigas viu o que aconteceu com
a Paula, ainda que uma delas tenha visto um homem de sweat preta, de
capuz, a fugir, por volta da hora em que o ataque decorreu. Mas isso só por si
não serviu de muito. A polícia precisava de mais. E, dois dias depois,
conseguiram-no.

As câmaras de CCTV recolheram imagens de uma carrinha branca a acelerar


para fora da zona. Era a carrinha do Gavin, na altura ainda registada em
nome do irmão, o Bobby. Mas a polícia não demorou muito a perceber quem é
que a conduzia nessa noite.

Armados da matrícula da carrinha, começaram a reconstituir os passos do


Gavin nas horas anteriores ao ataque. Em breve, não só conseguiram
identificá-lo na cena do crime, como também conseguiram imagens dele,
nessa mesma noite, a meter gasolina, numa estação de serviço a pouco mais
de três quilómetros dali.

E usava uma sweat preta de capuz.


[DESMOND]
Era tudo circunstancial, claro. Não provava rigorosamente nada. Mas foi o
suficiente para a detenção. E foi suficiente para porem o Gavin numa fila de
reconhecimento.

[JOCELYN]
O Gavin foi conduzido para a esquadra da Northampton Road e interrogado
ao longo de várias horas, durante as quais ele se recusou terminantemente a
responder a qualquer pergunta. Mas isso não preocupou a polícia.
Continuavam a achar que tinham o homem certo; precisavam apenas que a
Paula o identificasse.
E o caso ficaria encerrado.

O Gavin era o número três na fila de reconhecimento. Ele lembra-se disso


perfeitamente, porque sempre achou que o três era o seu número da sorte. E
talvez tivesse razão.
Porque, quando perguntaram à Paula se ela reconhecia algum daqueles
homens, ela respondeu de imediato, sem a menor hesitação.

Não.

[DESMOND]
Isto deveria ser assunto encerrado. Mas as coisas nem sempre correm como
deveriam correr, sobretudo quando envolve o sistema de justiça criminal.
A polícia não acreditou que a Paula não reconhecesse ninguém – alguns dos
agentes começaram logo a especular que ela tinha sido intimidada, que o
Gavin havia de ter conseguido contactá-la sabe-se lá como e assustá-la o
suficiente para a manter calada.

E, no dia seguinte, a polícia obteve novas imagens de CCTV, desta vez a


mostrarem o Gavin perto do apartamento da Paula, na manhã do dia em que
foi detido.
Disseram que ele deve ter descoberto onde ela vivia e que a seguiu até lá,
mas felizmente conseguimos justificar o facto de ele se encontrar nessa zona,
já que era pertíssimo do seu Centro de Emprego. E, ao longo de todo este
fiasco, a versão da Paula nunca se alterou – não fora ameaçada por ninguém
e também não identificou ninguém na fila de reconhecimento pela simples
razão de que tinham apanhado o homem errado. Por isso, no final, a polícia
não teve alternativa: tiveram de libertar o Gavin.
[JOCELYN]
E, de facto, o assunto foi encerrado. Ou, pelo menos, foi o que o Gavin
pensou.

Poucos meses depois, ele e a Sandra separaram-se e o Gavin mudou-se para


Cowley.
Na altura, os dois irmãos já tinham voltado para Oxford, por isso a mudança
até fez sentido, mesmo que isso implicasse não ver os filhos tanto quanto
gostaria.
Arranjou um apartamento, começou a namorar, tentou começar de novo. A
vida corria-lhe bem melhor nessa altura.

Até que, a 27 de janeiro de 1998, uma jovem de vinte e três anos chamada
Erin Pope, quando ia para casa depois do trabalho, foi arrastada por uma rua
dos arredores de Oxford. Amarraram-lhe as mãos com um cabo elétrico e
enfiaram-lhe um saco de plástico pela cabeça. Foi encontrada uma hora
depois, gravemente agredida, sem roupa interior e com uma madeixa enorme
arrancada do couro cabeludo.

As Violações da Beira da Estrada tinham começado.

[MÚSICA DE FUNDO: “SEX CRIME 1984” – EURYTHMICS]

Sou a Jocelyn Naismith, e este é o “Fazer do Errado Certo”. Pode ouvir


este e outros podcasts de “Toda a Verdade” no Spotify ou onde quer que
carregue os seus podcasts.

[FADE OUT]

***

Quando eles lá chegam, veem um agente fardado à porta: um


dos novatos recém-admitidos na Cowley Road. Quinn recorda-se
vagamente de já o ter visto em uma ou duas ocasiões.
– Inspetor-Coordenador interino Quinn. O que temos aqui?
O agente endireita-se ligeiramente.
– Cheguei à morada às 11h06, senhor, a pedido de uma cidadã
de nome Ms. Elizabeth Monroe. Ela sentia-se deveras temerosa
com o estado de saúde da ocupante da residência, visto que lhe foi
impossível contactá-la esta manhã, depois de a senhora em causa
ter faltado ao trabalho. Deparei-me com a porta da rua aberta, sem
quaisquer vestígios de entrada forçada, e a habitação vazia, senhor.
Quinn sorri secamente.
– Como é o teu nome?
O outro cora.
– Webster, senhor.
– OK, Webster, não precisas de falar como uma daquelas
balanças que nos debitam o peso e o IMC. Linguagem normal serve
perfeitamente. Mesmo na presença do DIC.
– Sim, senhor.
Quinn dirige-se ao apartamento, e Ev sorri a Webster quando
passa por ele.
– E também não precisas de lhe chamar senhor. – Baixa a voz e
pisca-lhe o olho: – Isso só lhe dá ideias.
É um apartamento pequeno, num rés do chão convertido de uma
casa geminada dos anos trinta. Cozinha, sala, quarto, uma pequena
casa de banho sem janela. Está tudo muito limpo e arrumado, como
se a dona da casa esperasse visitas – convidados, parentes,
potenciais compradores. Se esta casa foi assaltada, o ladrão ter-se-
á dado a um enorme trabalho para o encobrir. Ev tira as luvas do
bolso do casaco, calça-as e estende a mão para a mala de senhora
deixada na mesa de centro.
– Carteira, porta-moedas e chaves – diz, um momento depois. –
Mas não telemóvel.
Quinn ainda anda às voltas pela sala. Pegando em coisas,
pousando-as de novo.
– Isto não é nada… feminino, pois não?
Ev olha-o de relance.
– Vou fingir que não ouvi isso.
Mas ela percebe o que ele quer dizer. Há livros e a revista Odd,
correspondência promocional da Barnardo e da Save The Children,
um envelope de doação para a UNICEF, mas nada de bugigangas,
nada de adornos; rigorosamente nada de pessoal. Nem sequer
fotografias.
Quinn detém-se e põe as mãos nas ancas.
– Só há uma escova de dentes, por isso deve viver sozinha, mas
essa é a única conclusão a que chego ao ver esta casa. Parece uma
daquelas de aluguer de curta duração.
– Bom, mas há isto… – Aponta para a revista Women’s Running,
na mesa de centro. – E três pares de sapatilhas de corrida no hall de
entrada. Por isso, pelo menos sabemos de uma coisa que ela faz
nos tempos livres.
– Quem sabe não foi isso? Aconteceu-lhe qualquer coisa quando
estava a correr?
Ev franze a testa.
– E deixava a porta da rua aberta?
– Ou pode ter sido assaltada e roubaram-lhe as chaves.
Ela continua a argumentar:
– E o assaltante veio cá, decidiu que não havia nada que valesse
a pena levar e deixou-lhe as chaves dentro da carteira? E como é
que ele haveria de adivinhar onde ela morava?
Quinn assente lentamente:
– Certo. Não faz grande sentido.
– Nada faz sentido, eu diria. – Pousa a mala na mesa. – Há algo
de errado aqui, Quinn. Tenho a certeza.

***
***

– Quer dizer que não a conhece muito bem?


O homem encolhe os ombros e abana a cabeça, ainda que deixe
Ev na dúvida se é porque não a conhece mesmo ou se não
entendeu a pergunta. A menina agarrada à perna dele está a
tagarelar no que parece ser polaco.
– OK – diz ela, estendendo-lhe o seu cartão. – Por favor, ligue-
me se se lembrar de alguma coisa.
Despede-se com um aceno e dirige-se à casa seguinte.
Consegue ver Quinn duas casas mais à frente; quando ele se vira,
apanha o olhar dela e encolhe os ombros. Abana a cabeça: parece
que também não teve sorte nenhuma.
Desta vez, quem lhe abre a porta é uma mulher. Terá pouco mais
de um metro e meio e veste um sari amarelo-vivo.
Ev sorri-lhe:
– Desculpe incomodá-la. Sou a Inspetora Everett, da Polícia de
Thames Valley. Estamos a tentar recolher informação sobre a
mulher que vive no número 62A. Por acaso, conhece-a?
A mulher junta as mãos apertando-as firmemente.
– Claro que sim. Uma senhora muito simpática. Mas… ela está
bem, espero? Aconteceu-lhe alguma coisa?
Ev tenta parecer confiável:
– Já não é vista desde a noite anterior. Estamos a tentar localizá-
la. Mas até agora não temos nada que nos indique que se tenha
passado algo de estranho ou suspeito.
A mulher parece preocupada.
– Ah, estou a ver. Meu Deus…
– Por acaso, viu-a ontem à noite, Mrs…?
– Singh. Mrs. Singh.
– Certo. E viu alguma coisa de estranho ontem, ao fim da tarde
ou à noite?
Ela assente com a cabeça lentamente:
– Sim, vi. Estava um homem à porta dela.
Ev sente a pulsação acelerar. Saca do bloco de notas.
– E a que horas foi isso?
– Devia ser por volta das nove. Eu estava a cozinhar e apareceu-
me uma pessoa à porta. A querer vender coisas, já se sabe.
Um vendedor porta a porta, pensa Ev.
– Consegue descrever esse homem, o que viu à porta do 62A?
Ela parece nervosa.
– Eu… peço desculpa, mas na verdade não estava muito
concentrada, queria era que o vendedor se fosse embora. O meu
marido detesta essas pessoas, e eu queria que ele se fosse embora
antes que o Rajesh chegasse.
Ev também não gosta lá muito dessas pessoas. É um daqueles
inesperados benefícios de quem vive num primeiro andar com
sistema de videoporteiro e sem porta direta para a rua.
– E esse homem, o do número 62A, era alto? Novo? Branco?
A mulherzinha assente:
– Branco, sim. De cabelo escuro. Bastante alto, mas a verdade é
que toda a gente é alta, para mim. – Sorri e olha para Quinn, nos
degraus da entrada da casa ao lado. – Parecido ali com o seu
colega, talvez?… Mas eu só o vi de costas, não sei se o
reconheceria se o visse de novo.
– O que é que ele tinha vestido, recorda-se?
– Oh, sim. Estava de calções. Calções e t-shirt. Branca. E
sapatilhas. Daquelas que as pessoas usam para correr, está a ver?
– Claro. E a cor dos calções… lembra-se?
Mrs. Singh franze um pouco a testa.
– Oh, creio que não… Pretos, talvez? Desculpe, mas não tenho a
certeza.
– A conversa que eles estavam a ter, pareceu-lhe amigável?
– Oh, sim. De certeza que se conheciam. Quero dizer, ela
deixou-o entrar, por isso…
– Ela deixou-o entrar?
A outra confirma:
– Sim, sim, eu vi-o entrar.
Ev toma notas num ritmo frenético.
– E viu-o sair?
– Não. Como disse, estava a fazer o jantar. Depois, o Rajesh
chegou e pronto… confusão, confusão, confusão, sabe como são os
maridos.
A senhora dirige-lhe um sorriso cúmplice, que Everett tenta
devolver; mas, como nunca foi casada, resulta meio falso.
– E não viu nem ouviu nada depois disso? Nenhuma discussão,
um carro a arrancar subitamente, algo do género?
Mrs. Singh abana a cabeça:
– Não. Mas estava um carro à porta, que eu nunca tinha visto
antes, disso lembro-me. Mais tarde, quando fechei as cortinas da
frente, já lá não estava.
– E isso terá sido por volta das…
– A hora? Dez e meia. Deito-me sempre à mesma hora.
Ev assente com a cabeça.
– E que tipo de carro era? Sei que isto é difícil, mas se
conseguisse lembrar-se da marca…
A mulher abana a cabeça com um sorriso:
– Eu não percebo nada de carros. E, além disso, estava escuro.
Sei lá… azul, cinzento? Um carro escuro e normalíssimo.
– Normalíssimo?
– Sim, não daqueles grandalhões que parecem da tropa.
– Ah, estou a ver. Tipo um sedan, não um SUV.
A mulher levanta um dedo.
– Isso, isso mesmo! Era mesmo isso que eu queria dizer.

Minutos depois, quando Quinn se junta a ela no passeio, Ev


ainda está a tomar notas.
– Parece que tiveste mais sorte do que eu?
Ela ergue os olhos.
– Esteve um homem no número 62A ontem à noite. Moreno, alto
e, possivelmente, conduzia um carro escuro, tipo sedan.
Quinn abre os olhos de espanto.
– Eh lá, mas isso muda significativamente as coisas!
A expressão da colega é sombria.
– Não foi incidente nenhum, Quinn, e não aconteceu quando ela
estava a correr. Ela deixou este predador entrar-lhe em casa.

***

– OK, Baxter, começa pelas redes sociais dela. Ev, tu ficas com
os pais… e, Somer, quero que vás falar com os colegas dela,
sobretudo aquela que foi lá a casa.
De volta a St. Aldate, com Quinn alegre e freneticamente no
comando. Isto, sim. Um verdadeiro trabalho policial. Não está a
menosprezar o caso do assédio sexual, claro, mas todo esse campo
é uma verdadeira armadilha-de-urso: a mais pequena coisa pode
correr muito mal. Quinn gosta dos seus crimes claros e precisos.
Nada de ciladas ocultas, nada que volte ao local do crime para o
morder no rabo. Uma chance de realmente conquistar alguma coisa.
Chegar a algo concreto. E se por acaso conseguir resolver isto
antes de o Gislingham voltar…
Mas, uma hora depois, o seu ânimo inicial já arrefeceu
sobremaneira.
– Não tem Facebook?! Como assim? Vá lá, Baxter, toda a gente
tem Facebook!
– Não – responde Baxter firmemente. – Há imensas pessoas que
não têm. E esta mulher é uma delas. Tem conta de Instagram, mas
fiquei com a ideia de que só a criou para postar fotos do jogging e
que, ao fim de dez ou doze, perdeu o interesse. Não tem Twitter, e o
LinkedIn é mesmo só uma cena profissional e que tem que ver com
o seu trabalho no concelho municipal. Quem quer que seja o gajo
que ela deixou entrar em casa na noite passada, aposto que não
vamos encontrá-lo aí.
Quinn franze a testa e suspira:
– OK, OK, mas continua essa pesquisa, sim? Ela vive sozinha,
por isso quase que apostava que está no Tinder ou no Match.com…
ou outras cenas dessas.
É a vez de Baxter soltar um longo suspiro, mas não discute.
– Certo – prossegue Quinn. – E quanto ao resto? O telemóvel,
Ev?…
Ela olha para ele.
– O último sinal foi às 21h47 de ontem, no seu apartamento.
Nada mais depois disso.
– E os pais? Conseguiste localizá-los?
Ela confirma:
– Sim, mas não acrescentaram grande coisa. Não faziam sequer
ideia de que pudesse existir um namorado… aliás, não lhe
conhecem amizades masculinas. Fiquei com a sensação de que não
sabem muito sobre a vida privada da filha.
– Quando foi a última vez que falaram com ela?
Ev folheia as suas anotações.
– Há duas semanas, mais ou menos. No aniversário do pai. Mas
ela só telefonou, não apareceu. Eles vivem em Bourne, por isso
seria um belo de um esticão. Olha, eu, por exemplo, não estava
para fazer duas horas de estrada com este calorão.
Quinn estranha:
– Mas eu achei que ela não tinha carro.
– Não – diz-lhe ela, ligeiramente corada. – Pois, não tem. Peço
desculpa, foi só uma força de expressão.
– Então, e a Somer? – pergunta Quinn, olhando em volta. – Não
era suposto ela ir falar com os colegas dela? Onde é que ela anda?
– Ah – responde Everett rapidamente. – Foi só tomar um café
decente, num instante. Deve estar mesmo aí a aparecer.

***

– O Quinn anda à tua procura. Quer saber porque é que ainda


não saíste.
Somer levanta a cabeça para a amiga. Está debruçada em frente
ao lavatório.
– Estás bem? – pergunta Ev, dando um passo na sua direção. –
Estiveste a vomitar?
Somer suspira longamente:
– Deve ter sido alguma coisa que comi.
O que obviamente é possível, mas Everett não acredita. E, se ela
tiver razão, poderá explicar muito mais coisas, além desta. Mas não
vai intrometer-se; Somer irá contar-lhe quando estiver preparada
para isso.
– Não te preocupes – diz-lhe, tocando-lhe afetuosamente no
braço. – Eu peço ao Asante que trate disso. Recompõe-te com
calma.
Somer assente. Neste momento, não confia em si própria para
falar.
Ouve Ev abrir a porta para sair e, depois, vê-la surgir de novo à
porta. Após uma pausa, Ev pergunta:
– Talvez devesses marcar uma consulta? Sei lá… Só para ficares
descansada?
Somer assente de novo; segundos depois, ouve a porta
basculante fechar-se e ela fica sozinha.
Ergue lentamente a cabeça e olha-se ao espelho. Sob a luz
impiedosa, vê a pele macilenta e esverdeada. Ev tem razão. Ela tem
andado a fingir que nada se passa, mas, no seu íntimo, sabe bem
que não pode adiar muito mais.
Ela precisa de saber.
E depois… bom, depois…

***

– Não é tão mau quanto pensei de início – diz Boddie, enfiando


as luvas de látex. – Sempre que leio no registo “acidente ferroviário”,
penso logo que vou precisar de uma peneira.
Os dois técnicos do CSI trocam olhares. O humor mortuário de
Colin Boddie é lendário; chegaram mesmo a criar um grupo de
Instagram chamado “Ouvido na Morgue” (se bem que ainda
ninguém teve coragem de o informar).
– Muito bem, ponham-me lá a par do que temos aqui – diz ele,
rodeando a mesa e posicionando-se à cabeceira.
O corpo da mulher, agora nu, apresenta uma pele cerosa e com
forte lividez cadavérica nas costas e nádegas. Veem-se arranhões,
cortes, raspões superficiais, sujidade incrustada no longo cabelo
loiro, mas os danos – pelos menos, a olho nu – são
surpreendentemente ligeiros.
O agente da Polícia Britânica de Transportes olha para ele.
– Esta madrugada, um grupo de engenheiros encontrou-a na
linha, sob a ponte de Walton Well. Pensaram que ela se tinha
atirado.
Boddie olha-o de relance.
– Mas viram-na saltar?
O agente concorda:
– Dizem que viram alguém cair. E ainda bem que viram. Dali a
dois minutos, passaria um comboio de mercadorias com treze carros
em cima – que não tencionava parar. Se essa equipa não estivesse
lá…
Boddie completa:
– … ficava tipo panqueca.
Inclina-se ligeiramente sobre o cadáver, observando as narinas
ensanguentadas e os olhos escancarados, que começam agora a
enevoar-se.
– OK – diz ele, em tom determinado. – Vamos lá ver o que ela
tem para nos contar.

***

Os escritórios do concelho municipal estão sediados num edifício


vitoriano mesmo à saída da Iffley Road. As palavras “Iffley Parish
Institute” estão gravadas na pedra logo abaixo da porta do prédio,
mas, a julgar pela placa bem mais moderna e chamativa na fachada,
o edifício é agora partilhado não apenas pela equipa de acolhimento
e adoção, como também por um centro comunitário – os
Samaritanos –, um grupo recreativo e um centro de eventos de
confraternização da Silver Threads.
Asante teve a sensatez de ligar antes de vir e marcar uma hora,
mas não se livra de ter de esperar uns bons dez minutos na
receção. Vê uma caixa de brinquedos num canto e cartazes na
parede atrás de si ‒ Evacuação em caso de incêndio, um certificado
de uma seguradora de responsabilidade pública e uma nota escrita
à mão pelo organizador do grupo recreativo: “Por favor, empilhem as
cadeiras no final de cada reunião para as funcionárias da limpeza
fazerem o seu trabalho.”
Finalmente, aparece alguém para o receber e que o conduz até
uma sala que é a imagem viva daquilo que o Google Images mais
nos mostra quando pesquisamos “escritório”: mobília barata, um
vaso com uma planta ressequida, vista para o parque de
estacionamento dos funcionários. A mulher que se levanta da
secretária cinzenta tem um ar fresco, no seu vestidinho de verão
roxo e verde-alface. Trinta e poucos, cabelo castanho apanhado
numa mola e óculos de hastes pesadonas que a fazem parecer uma
secretária dos anos cinquenta. Mas o look dá-lhe uma expressão
confiável, isso, sem dúvida, pensa Asante. A expressão de quem
sabe o que está a fazer.
– Viva, sou a Beth Monroe. Conheço várias pessoas de St.
Aldate, mas creio que nunca nos cruzámos.
Asante sorri, mas não demasiado.
– Eu não estou lá há muito tempo. Vim transferido de Londres há
poucos meses.
– Ai sim? – Faz-lhe um gesto para que se sente. – E veio de
onde?
– Brixton.
Ela assente, já mais animada:
– Eu já trabalhei lá, no Blue Elephant Theatre. Muitas luas atrás.
Sorriem ambos: têm algo em comum. Até que o sorriso se
desvanece.
– Bom, nós por cá estamos todos devastados. É horrível…
pensar que lhe pode ter acontecido alguma coisa…
– Creio ter sido a senhora a ir lá a casa esta manhã?
Faz que sim com a cabeça e cruza as mãos no colo:
– Não era nada típico dela. Não aparecer e não telefonar. Nem
me lembro sequer quando foi a última vez que ela deu parte de
doente.
– Então, a última vez que a viu terá sido ontem?
– Exato. Quando eu saí, por volta das seis, ela ainda ficou cá.
– E como é que ela lhe pareceu?
Ela considera a pergunta por uns segundos.
– OK. Um bocado preocupada, mas isso não é nada estranho.
Nós somos apenas cinco e estamos sempre stressados e cheios de
trabalho. Arranjar novas famílias para as crianças… é um trabalho
tão importante, e ela leva-o tão a sério…
Cala-se e morde o lábio.
– Ainda não consigo acreditar no que está a acontecer.
– Nós temos razões para acreditar que a Ms. Smith recebeu um
homem em sua casa, na noite passada. Alguém que ela conhecia.
Ela abre os olhos de espanto.
– Oh, meu Deus! Acha… acham que esse homem a pode ter
raptado?
– Ainda estamos numa fase muito precoce da investigação – diz
Asante, mudando para o modo assuntos de polícia. – Precisávamos
de falar com ele. Era alto, de cabelo escuro. Tem alguma ideia de
quem possa ser? Um colega, talvez?
Monroe franze a testa.
– Não. O único homem na nossa equipa é o Ed, que não tem
mais do que um metro e sessenta e cinco e é completamente
careca.
– Então… e amigos dela? Namorados? Alguém que se encaixe
nesta descrição?
Ela abana a cabeça:
– Eu não sei grande coisa sobre a vida privada dela, na verdade.
A Emma não é nada o género de pessoa de fofocar junto à máquina
do café.
– Não tiveram recentemente nenhum evento que incluísse os
cônjuges?
Ela esboça um sorriso irónico.
– Hum, não. De todo. Só fazemos a festa de Natal e é exclusiva
para funcionários. E, mesmo aí, o orçamento só nos permite servir
espumante barato e salgadinhos do Aldi.
Asante toma notas.
– E não haverá outra colega de trabalho que possa saber mais
alguma coisa?
Monroe abana a cabeça:
– Não me parece. Eu sou provavelmente a sua colega mais
próxima, aqui no escritório, o mais parecido com uma amiga. Como
disse, ela é uma pessoa muito reservada. Mas posso dar-lhe os
contactos, se quiser falar com eles.
Asante chega-se ligeiramente à frente na cadeira.
– Isto pode soar estranho, mas tenho mesmo de perguntar:
haverá alguém com quem a Ms. Smith se tenha cruzado por motivos
profissionais e que lhe possa ter ficado com algum rancor?
Ela abre os olhos de espanto.
– Refere-se a um cliente?
Ele encolhe os ombros.
– Não é impossível, certo? Tal como disse, aquilo que vocês
fazem é transformador. E, para algumas pessoas, pode ser a sua
última oportunidade – a única forma de alguma vez virem a ter um
filho.
– A maioria dos nossos clientes está nessa posição – concorda
ela. – É muito triste.
– Claro. Mas, em situações dessas, as pessoas podem ficar
desesperadas… fazer coisas que jamais pensariam fazer noutras
circunstâncias.
– Nós garantimos total confidencialidade aos nossos clientes,
Inspetor.
– Eu sei. E entendo perfeitamente porquê.
– Eu quero ajudar, acredite, mas está a colocar-me numa
posição muito difícil. Não que seja essa a sua intenção, claro. Mas
vou precisar de falar com os meus colegas para podermos decidir o
melhor a fazer.
Asante sabe reconhecer uma ordem de marcha. Levanta-se, e
ela rodeia a secretária para lhe dar um aperto de mão. Por detrás
dos óculos pesadões, os olhos verdes brilham, mas a expressão é
de consternação.
– Então, posso ficar à espera do seu contacto?
– Sim, claro. Logo que possível. Tenho noção da urgência do
caso, acredite.
Já lá fora, há um grupo de crianças e mães a dirigirem-se ao
salão principal; a julgar pelo cheiro, a Silver Threads vai servir peixe
ao almoço.
À saída, o Inspetor enfia uma nota de cinco na ranhura da caixa
de donativos dos Samaritanos.

***

Chamada telefónica de Colin Boddie, patologista


10 de julho, 2018, às 12h50
Atendida pelo Inspetor G. Quinn

CB: Ah, Quinn, ouvi dizer que estás na cadeira quente,


enquanto o Gislingham está fora…
GQ: Para mal dos meus pecados. E então? Conta-me tudo.
CB: Acidente mortal na linha ferroviária, a noite
passada. Diz-te alguma coisa?
GC: Sim, acho que vi esse alerta. Suicídio, certo?
CB: Errado. Tinha o pescoço partido, sim, mas não foi
essa a causa da morte. Pela simples razão de que já
estava morta…
GQ: OK.
CB: … e há pelo menos duas horas. Estimo a hora da
morte entre as nove e as onze da noite. As atuais
altas temperaturas noturnas tornam difícil sermos
mais específicos do que isto, infelizmente.
GQ: Dá-me um segundo, estou a anotar isso tudo…
CB: Seja como for, quem quer que a matou quis que
pensássemos que se tratou de suicídio. E o mais
provável era safar-se, não fosse o grupo de
engenheiros civis que a encontrou. De contrário,
não restaria nada dela para autopsiar. Há que dar
crédito a esse sacana – se quisermos obliterar os
indícios, nada melhor do que um comboio de carga de
quinze mil toneladas para nos ajudar nessa missão.
GC: Mas, então, qual foi a verdadeira causa da morte?
CB: Asfixia. Existem lesões à volta do nariz, mas não
há fibras nas vias respiratórias, por isso ele tê-
lo-á feito com as próprias mãos. Já recolhi
amostras para o caso de existir ADN, mas não tenhas
muitas esperanças – o mais certo é ele ter usado
luvas.
GQ: Disseste ele…
CB: Quase de certeza, um gajo.
GQ: Porque quase sempre é?…
CB: Não. Porque há indícios de agressão sexual. Nenhum
sémen presente, mas lesões graves nas coxas e zona
genital. E um pelo púbico que eu suspeito
seriamente que não seja dela.
GQ: Porra.
CB: Ah… e, já agora, não há sinais de que tenha sido
amarrada, nem nos punhos nem em mais lado nenhum.
[ruídos abafados em fundo]
Certo. Penso que é tudo. Vou finalizar as
formalidades e envio-te tudo por email. A PBT vai-
vos passar este caso. Passa a ser um caso Thames
Valley.

***

Quando Everett regressa a St. Aldate, Quinn vai logo ter com ela.
Basta-lhe olhar para ele para perceber que há algo de errado.
– O que foi? – pergunta, com o coração aos pulos. – O que é que
se passa?
– O Colin Boddie mandou-me isto.
Passa-lhe o telemóvel. Ela não quer que seja verdade, mas a
fotografia não deixa margens para dúvidas: o cabelo, o rosto…
– É ela, não é?
Everett engole em seco.
– Sim – diz, num fio de voz. – É ela.

***

Quinn espreita para dentro do gabinete de Fawley e vê-o à


janela, a olhar para a rua. Já não se lembra de quando foi a última
vez que o viu assim.
Aclara a garganta:
– Desculpe incomodá-lo, mas recebi uma chamada do Colin
Boddie. Foi encontrado um corpo na linha férrea em Walton Well,
ontem à noite. A primeira equipa de socorro a chegar ao local julgou
tratar-se de um suicídio, mas acabou por se perceber que ela
morreu de asfixia.
Nada. Fawley mantém-se tão imóvel, que Quinn duvida que ele o
tenha ouvido.
– Chefe?
O Inspetor-Chefe sobressalta-se ligeiramente e volta-se:
– Desculpa. Diz?…
– Encontraram um corpo, na noite passada, na linha férrea sob a
ponte de Walton Well. Parecia suicídio, mas o post mortem diz que
não.
Fawley estranha:
– Têm a certeza?
Quinn anui:
– E há indícios de violência sexual prévia.
Fawley respira fundo:
– Temos identificação?
– A questão é essa. Nós já andávamos à procura dela. Aquela
mulher que foi dada como desaparecida esta manhã?… O Boddie
mandou uma fotografia do cadáver. Ainda precisamos de fazer uma
identificação formal, mas não há dúvidas de que é ela.
– Certo – diz Fawley, já mais vigoroso. – Como se chama?

***

O dia do agente Webster vai de vento em popa. O que começou


por ser um rotineiro serviço de guarda a residência acabou por se
transformar numa supervisão da cena do crime. Já lá estão a equipa
de CSI, dois carros-patrulha junto à porta da casa e uma carrinha de
exteriores da Sky News estacionada uns metros mais abaixo. Por
este andar, não tarda, aparece na televisão. Tira o telemóvel do
bolso do casaco e envia sub-repticiamente uma SMS à mãe.
Convém estar-se preparado.
Lá dentro, Clive Conway percorre o corredor até à sala. Já
guardou a carteira de senhora num saco de prova e tirou
impressões digitais de todas as maçanetas e das superfícies planas
mais óbvias. Dez minutos depois, quando Nina Mukerjee surge à
porta, apanha-o de gatas a retirar amostras da carpete.
– Tiveste sorte?
– Nada de especial. Recolhi uns quantos cabelos do sofá, mas
podem perfeitamente pertencer à vítima. Alguém se deu a um
gigantesco trabalho para que não encontrássemos rigorosamente
nada aqui dentro.
– O DIC disse que ela recebeu um homem cá em casa, ontem à
noite.
Conway ergue os olhos para ela.
– Não quer dizer que isto seja a cena do crime. Ele pode
facilmente tê-la levado para outro sítio qualquer. Sobretudo, se eram
conhecidos.
– Verdade. Mas ele esteve cá, certo? Nem que apenas por uns
breves minutos. Tem de haver ADN dele algures, por mais
cuidadoso que tenha sido.
– Oh, podes crer que foi cuidadoso – comenta Conway
penosamente.
Nina olha em volta.
– Já acabei no quarto, por isso, se precisares de uma
mãozinha…
– Eu também já acabei aqui, praticamente. Mas podes
inspecionar o saco do aspirador. Não estou a vê-lo a dar-se a este
trabalho todo sem dar uma boa aspiradela, antes de sair.

***
[DISCURSO DE ARQUIVO DO SUPERINTENDENTE MICHAEL OSWALD, POLÍCIA DE
THAMES VALLEY, 7 SET 1998]

[JOCELYN]
Este é o Superintendente Michael Oswald a dirigir-se a uma conferência de
imprensa, na segunda-feira, 7 de setembro de 1998. Na noite da sexta-feira
anterior, o Violador da Beira da Estrada tinha atacado a sua terceira vítima,
outra jovem mulher.

A violação de Erin Pope, em janeiro desse ano, fora seguida, quase


exatamente dois meses mais tarde, por um ataque igualmente selvático em
Botley, a oeste de Oxford.

E, agora, o mesmo predador voltara a atacar.

Sou a Jocelyn Smith e sou cofundadora de “Toda a Verdade”, uma


organização sem fins lucrativos que luta pela reposição dos erros de
justiça. Esta é a série 3 de “Fazer do Errado Certo: O Violador da Beira
da Estrada Redimido?”.

Capítulo Três: Predador


[TEMA MUSICAL – AARON NEVILLE – VERSÃO COVER DE “I SHALL BE RELEASED”]

[JOCELYN]
A segunda vítima do violador, Jodie Hewitt, uma estudante de Biologia de
dezanove anos, fora tão brutalmente agredida, que teve de passar dez dias no
hospital. Jodie frequentava na altura o segundo ano na Wykeham College;
nas semanas que se seguiram à sua violação, começaram a circular rumores
de que um violador em série andava a operar na cidade. As pessoas entraram
em pânico, exigindo mais polícia, à noite, nas ruas. Mas depois… nada. Os
dias começaram a ficar mais longos, os estudantes entraram em férias de
verão – e, mesmo não tendo a polícia feito quaisquer progressos óbvios na
investigação dos dois primeiros ataques, pelo menos não houve mais
nenhum.

Isto até ao dia 4 de setembro, sexta-feira. Nessa noite, depois de um copo


com amigos na cidade, uma advogada estagiária de vinte e quatro anos
regressava a casa.
Ia numa sossegada rua lateral de Oxford, a umas escassas centenas de
metros do seu apartamento, quando ocorreu o ataque. Não foi violada, mas
apenas porque um homem que ia a passar viu o que estava a acontecer e
correu em seu socorro na hora certa.

[ROSEY MABIN]
Chamava-se Geral Butler, um antigo soldado do Exército e segurança numa
discoteca da cidade.

[JOCELYN]
Esta é a Rose Mabin, jornalista. Denunciou o ataque do Violador da Beira da
Estrada no Oxford Mail e esteve presente no julgamento do Gavin Parrie, no
Tribunal Central Criminal.

[ROSEY]
O Butler disse ao júri que viu a jovem deitada na beira da estrada, com a cara
para baixo. Tinha um saco de plástico enfiado na cabeça, e estava um homem
em cima dela a tentar amarrar-lhe as mãos com fio elétrico. O atacante era
magro, com cerca de um metro e oitenta, e vestia uma sweat preta de capuz.

[JOCELYN]
Escusado será dizer que, na altura, não existiam redes sociais; por isso, levou
ainda dias – em vez de minutos – para a notícia do terceiro ataque se
espalhar. Mas a Polícia de Thames Valley sabia que os seus piores receios se
tinham confirmado: a sua bête noire estava de volta. Convocaram a
conferência de imprensa que ouvimos no início deste episódio, porque sabiam
que tinham de fazer alguma coisa para acalmar o pânico dos habitantes
locais.

Mas houve outra razão para isso, é claro.

As mulheres tinham de ser avisadas.

[ROSEY]
Por acaso, fui eu que lancei a alcunha de “Violador da Beira da Estrada”. Já
lhe chamavam Oxford Ripper, mas, depois daquela conferência de imprensa,
escrevi uma notícia de primeira página chamando-lhe “Violador da Beira da
Estrada”, e a coisa pegou.
[JOCELYN]
E é fácil perceber porquê. Era um nome que captava todo o terror de um
predador que atacava as suas vítimas a céu aberto, em ruas que elas
percorriam no seu dia a dia, a escassos metros de outros transeuntes. Essas
vítimas eram, regra geral, raparigas que seguiam calmamente nas suas vidas.
Mas era precisamente essa normalidade que era tão aterradora. Porque, se
lhes acontecia a elas, podia acontecer a qualquer uma. Não admira que as
pessoas andassem apavoradas, não admira que as jovens residentes em
Oxford evitassem sair sozinhas, sobretudo ao escurecer.

E, quanto à investigação, a polícia praticamente não saía da estaca zero.


Claro que a ciência do ADN não era tão avançada ou sofisticada como agora
– para começar, o chamado touch DNA só viria a surgir muito mais tarde.
Mas, seja como for, isso não era importante, porque – como se viria a
confirmar no julgamento – o Violador da Beira da Estrada nunca deixou
nenhum ADN. Nenhum cabelo, fragmento de pele, sémen – basicamente, não
existiam vestígios forenses (um facto que também dificultou bastante as
variadas tentativas de reabertura do caso, incluindo a nossa).

Outro desafio para a polícia foi que, ao contrário da Paula, em Manchester,


nenhuma das vítimas de Oxford viu o rosto do seu agressor. A polícia
especulou – com alguma razão – que o violador recorria aos sacos de plástico
precisamente por esse motivo: para se certificar totalmente de que não seria
identificado. E também não havia imagens de CCTV.
Nos anos noventa, poucos eram os prédios que instalavam as suas próprias
câmaras – e talvez por isso não fosse assim tão surpreendente que não
existissem nenhumas imagens das zonas dos crimes. Claro que isto podia ter
sido apenas azar, ou coincidência, mas alguns agentes e inspetores do caso
começaram a perguntar-se se não existiriam outras razões para tal facto.

[“MR. X”]
À medida que o tempo ia passando, via-se claramente um padrão a emergir.

[JOCELYN]
Estas foram as palavras de um dos inspetores que trabalharam no caso. Que
pediu que a voz fosse disfarçada para proteger a sua identidade.

[“MR. X”]
Não era só o MO que era igualzinho de todas as vezes. O saco de plástico, os
fios elétricos, o cabelo, o sacar de troféus, como joias ou roupa interior. Ao fim
de algum tempo, convencemo-nos de que este homem escolhia as zonas dos
ataques com particular cuidado. Todos ocorreram em troços de estradas que
não tinham câmaras escondidas ou sistema de CCTV, onde existia densa
vegetação, praticamente colada ao passeio, e sempre fora da vista de casas
ou prédios. Isto sugeria que este perpetrador fazia um reconhecimento
detalhado dos locais com a devida antecedência.

[JOCELYN]
Os agentes da Thames Valley interrogaram de facto as pessoas que viviam
perto, mas nunca obtiveram nenhuma informação relevante. Não tinham
indícios, não tinham pistas. Mas em devido tempo… chegaram a uma nova
teoria.

[“MR. X”]
Foi um dos inspetores-coordenadores da equipa que sugeriu que o violador
não se limitava a analisar os locais dos crimes com antecedência: também
perseguia as suas vítimas.

[JOCELYN]
O nome desse inspetor-coordenador era Adam Fawley. E este não foi o único
contributo positivo que ele deu a esta investigação. Aliás, o seu trabalho neste
caso acabaria por lhe valer um louvor do Superintendente da Polícia, o que
lhe acelerou a promoção a Inspetor-Coordenador.
Porque foi o Adam Fawley que ajudou a sustentar a evidência que condenou
o Gavin Parrie.

Assim, poderíamos dizer com bastante propriedade que este caso mudou a
vida do Adam Fawley. E não apenas a nível profissional, acrescente-se.

Em setembro de 2000, nem um ano depois de o Gavin Parrie ter sido


declarado culpado e condenado a prisão perpétua, no Tribunal Central
Criminal, o Adam Fawley casou-se com uma mulher chamada Alexandra
Sheldon.

Era uma advogada que toda a vida tinha morado em Oxford. E era também a
terceira vítima do Violador da Beira da Estrada.

[MÚSICA DE FUNDO: “EMOTIONAL RESCUE” – THE ROLLING STONES]


[FADE OUT]

***

Alex Fawley carrega no stop e põe o tablet de lado. Tem as mãos


trémulas.
Ela sabia que isto ia acontecer – preparara-se para tudo aquilo
que eles disseram, mas sabê-lo e ouvi-lo não é a mesma coisa.
Cruza as mãos sobre a barriga para impedir que tremam; a pele
que protege o filho está quente; os dedos dela, gelados.
Precisa de falar com Adam.
Rezara para que não fosse preciso – não queria que ele
soubesse que ela andava a ouvir estas coisas. Mas agora… agora,
não tem alternativa.

***

De volta a St. Aldate, Somer está a sentir na pele a pior forma


possível de ostracismo. Tudo porque não pode culpar mais
ninguém; conseguiu fazê-lo sozinha na perfeição. Desde que
chegaram as notícias de Boddie que a equipa está frenética de
adrenalina, mas ela sente-se isolada, como que em quarentena.
Como aqueles anúncios em que está alguém, no meio de um
escritório fervilhante, praticamente sem se mexer, com gente
atarefadíssima à sua volta em fast forward. Essas pessoas isoladas
têm sempre um problema qualquer – uma constipação, uma
enxaqueca, uma gripe –, mas nunca é algo de grave. Resolve-se
sempre facilmente. Suspira. Não que ela não queira saber do que
aconteceu à mulher na linha férrea; só que não consegue reunir a
energia necessária para fazer alguma coisa sobre isso. A manhã
rendeu-lhe zero, e agora já se esgotaram as tarefas ingratas que
não lhe exigem pôr a cabeça a trabalhar – e que a impedem de
pensar no que não deve.
Levanta-se e dirige-se lentamente à secretária de Baxter, a luz
azul do ecrã do computador refletida no rosto. Ao lado do rato, estão
três invólucros amassados de chocolates. Enquanto indicadores de
stress, são bastante confiáveis.
– Precisas de ajuda nalguma coisa?
Ele olha-a brevemente e franze a testa.
– Eh lá, essa é uma estreia! De certeza que estás bem?
Quanto tempo é que tens?, pensa ela.
– Nunca ouviste dizer a cavalo dado não se olha o dente?
Ele ergue um sobrolho.
– Bom, já que a oferta é real, então podias analisar melhor
aquele feed do Twitter que deixou o Superintendente pior que um
possuído. Aquele que divulgou a cena da Marina Fisher. Já lhe dei
uma olhadela rápida, mas não consegui correr os comentários
todos.
– Fixe – diz ela, dirigindo-se à sua secretária. – Manda-me lá os
pormenores.
Ele lança-lhe um olhar irónico, volta-se para o ecrã e tecla
qualquer coisa.
– Diverte-te.
Somer senta-se, abre o que ele lhe mandou e recosta-se.
– É este? De certeza que é mesmo este o username?
Baxter olha para ela de testa franzida.
– Sim. E então? A mim, não me diz nada.
– Não – diz ela baixinho, quase para si própria. – Mas, ainda
assim, quer dizer alguma coisa.

***

É Everett que atende a chamada:


– Sim?… Um momento. Asante? É para ti, linha três.
Ele reconhece logo a voz:
– Ms. Monroe… O que posso fazer por si?
Uma breve pausa.
– Sobre aquilo que me disse, quando esteve cá…
Asante pega numa caneta.
– Sim?
– Perguntou-me se algum dos nossos clientes poderia ter um
motivo… algum ressentimento? Bom, eu falei com os meus colegas
e, ainda que isto vá contra todos os nossos valores profissionais,
concordámos que as circunstâncias justificam que se abra uma
exceção.
Cala-se e respira fundo. Asante nada diz. Conhece o valor do
silêncio.
– Houve alguém… um casal que ela estava a acompanhar como
eventuais adotantes. Infelizmente, acabamos por perceber que não
eram adequados.
– Compreendo.
– Andavam na casa dos quarenta, e provavelmente aquela era a
sua última chance. O cavalheiro… ficou muito zangado. Gritou, fez
ameaças…
Asante franze a testa.
– Ameaças físicas?
– Oh, não – diz ela rapidamente. – Nada disso. Disse à Emma
que tinha “contactos”, que lhe ia destruir a carreira… esse tipo de
coisas. Foi muito desagradável. Estivemos mesmo quase para
chamar a polícia.
Asante saca do bloco de notas.
– E sabe dizer-me porque é que eles foram rejeitados?
– Não foram “rejeitados”, mas antes “considerados não elegíveis”
– apressa-se a dizer. – E não. Não posso mesmo dizer-lhe mais
nada.
– Mas isso torna difícil o nosso trabalho…
Ela interrompe-o:
– Isto passou-se há duas ou três semanas. Não podem dizer-
lhes que estão a contactar todos os clientes que a Emma recebeu
recentemente?
Perspicaz, esta mulher.
– É justo. E é muito provável que pegue. Pode dar-me a morada
deles, então?
Começa a apontar e dá por si a esbarrar no código postal ‒ e a
confirmar os seus preconceitos. Porque não é em Cowley ou
Blackbird Leys ou Littlemore, mas na muito desejada OX220.
– Muito obrigado – diz. – Vou fazer os possíveis para não a meter
nisto.
Ela suspira:
– Continuo a sentir-me mal com esta história. Mas jamais me
conseguiria perdoar se se descobrisse que era mesmo ele e eu não
tivesse dito nada.
– Eu vou pondo-a a par do correr das coisas.
– Prefiro que não – é a sua resposta rápida. E após uma pausa:
– Mas apareça, se por acaso estiver de passagem pela Iffley Road.
Momentos depois, quando desliga o telefone, Asante tem um
sorriso estampado no rosto.

***

– OK – diz Baxter, recostando-se na cadeira e olhando para


Quinn. – Pesquisei exaustivamente por câmaras de CCTV a toda à
volta da ponte de Walton Bridge e não encontrei porra nenhuma.
Puto. Peva. Niente.
Quinn faz uma careta.
– Eu não acredito… Tem de haver alguma coisa…
– Népia – insiste Baxter. – As câmaras mais próximas ficam na
Walton Street; ele pode facilmente ter chegado à ponte e ter vindo
embora sem passar por nenhuma delas.
Quinn continua a estranhar:
– Tens a certeza absoluta de que não há câmaras na própria
ponte?
Baxter solta um longo e exasperado suspiro:
– Eu sei o que estou a fazer, OK?
– Então, e em Shrivenham Close?
O outro abana a cabeça:
– As câmaras mais próximas são as da rotunda da
circunvalação. Passei as imagens a pente fino e desisti de contar os
sedans escuros quando cheguei aos sessenta. Sem a marca e o
modelo, não chegamos a lado nenhum. E isto partindo do
pressuposto que ele seguiu de facto naquela direção. Há pelo
menos uma dúzia de caminhos alternativos que ele pode ter feito.
– Sim, sim – murmura Quinn. – Não batas mais no ceguinho.

***

– Mr. Cleland?
– Sim… O que é que deseja?
O homem no degrau da entrada da casa veste uns calções
brancos de bom corte e uma camisa às riscas cor-de-rosa vivo, por
fora dos calções. Atrás dele, o casarão em todo o seu esplendor,
florido, imaculadamente preservado e bastante maior do que o
estritamente necessário. Se alguma vez existisse um concurso para
O Proprietário Mais Parecido Com a Sua Casa, este tipo ganhava de
caras.
Asante mostra-lhe o crachá.
– Inspetor Anthony Asante – diz-lhe, na sua melhor voz-de-
colégio-privado. Percebeu que isso ajudava, em OX2.
O homem estranha:
– Ai sim? – Olha rapidamente para o caminho de acesso à casa
e parece aliviado ao constatar que o seu Range Rover ainda lá está.
– Do que é que se trata?
– Posso entrar? É um pouco complicado.
O homem hesita, olha para Asante de alto a baixo, mas decide
claramente que é seguro deixá-lo entrar em casa. Talvez seja da
gravata Burberry. Também isso tende a ajudar.
A sala faz lembrar a Asante a casa dos pais, em Holland Park.
Mobiliário caríssimo, gravuras antigas emolduradas a dourado, livros
de arte em mesas de centro. Mas em casa dos pais há uma
tranquilidade, uma naturalidade que ele não pressente de todo aqui.
Olha em volta, tentando perceber porquê. Talvez seja o exagero de
decantadores (três, ainda vá, mas cinco? Quem é que precisa de
cinco decantadores?) ou o facto de todas as gravuras parecerem
exibir pessoas a matarem coisas. Ou talvez seja por estar tudo tão
imaculado, um tanto arrumado em demasia. Não consegue imaginar
uma criança aqui, por exemplo. Lá fora, no jardim, está uma mulher
sentada debaixo de um guarda-sol, naquilo a que Cleland sem
dúvida apelidará de terraço.
– É a sua mulher?
Cleland franze de novo a testa.
– Sim. Porquê?
– Talvez ela se pudesse juntar a nós? Poupava-me eu ter de
dizer tudo duas vezes.
O sulco da testa de Cleland aprofunda-se, mas nada diz,
limitando-se a dirigir-se às portas francesas.
– Marianne… podes chegar aqui, por favor?
A mulher veste um biquíni turquesa por baixo de um vestidinho
branco translúcido. Tem o mesmo ar próspero e bem conservado do
marido, mas é magra e alongada como um louva-a-deus. Asante
pressente-lhe uma certa fragilidade sob a maquilhagem
irrepreensível e o cabelo de corte e cor caríssimos. Cleland está
agora de pé, mesmo no centro da sala, com as mãos nos bolsos; a
presença dele enche o compartimento.
– E então? Pode dizer-nos do que é que se trata? – quer saber.
– Creio que os senhores são clientes dos serviços de
acolhimento e adoção do concelho municipal?…
A mulher abre os olhos e lança um brevíssimo olhar de relance
ao marido.
– Isso é confidencial, como sabe – responde ele. – E nada que
lhe diga respeito.
– Posso garantir-lhe que não sei rigorosamente nada sobre a
vossa candidatura, Mr. Cleland, ou das vossas circunstâncias. Sei
apenas que estiveram recentemente nos escritórios deles.
Marianne Cleland intervém; tudo nela parece cauteloso.
– Se isto tem que ver alguma coisa com…
– Deixa-me tratar disto – diz, Cleland, cortando-lhe a palavra.
Ergue ligeiramente o queixo e continua: – Sim, estivemos lá há duas
ou três semanas. Toda aquela operação é uma palhaçada. Eles até
deveriam deitar foguetes por terem pessoas como nós, não?
Asante mantém-se absolutamente imperturbável, a expressão
neutra.
– E que tipo de pessoas é esse, Mr. Cleland?
O homem faz um gesto largo com o braço.
– Já viu bem esta casa? Que criança no seu juízo perfeito não
aceitaria o que temos para lhe oferecer?
Em vez de responder, Asante opta por tirar o bloco de notas do
bolso.
– Creio que reuniram com a Ms. Smith, correto?
Cleland parece irritado:
– Para que é que está a perguntar, se já sabe a resposta?
– Preciso de esclarecer as coisas, só isso. Foi com a Ms. Smith
que falaram?
– Ela era a responsável pelo nosso caso, sim – responde a
mulher. – Uma jovem muito simpática e…
– O rosto da incompetência, isso, sim… aliás, como as outras
todas – lança Cleland. – Oiça lá, mas houve alguma queixa ou quê?
Asante nega:
– Não, senhor. A Ms. Smith não fez queixa nenhuma.
– E então?
– A Ms. Smith foi assassinada.
A mulher solta um leve arquejo, mas, até nesse momento, o
olhar dirige-se ao marido.
Cleland fixa Asante, as faces subitamente coradas.
– Se por algum acaso está a sugerir que…
– Não estou a sugerir coisa alguma – diz Asante. – Apenas a
fazer perguntas. É o que se faz numa investigação de homicídio.
A palavra cai como uma bomba.
– Oiça – diz Cleland –, eu não sei que raio aconteceu a essa
mulher, mas nós não tivemos rigorosamente nada que ver com isso.
Pessoas como nós… não andam por aí a matar gente. Mesmo
quando… – Cala-se, afasta o olhar e morde o lábio.
– Mesmo quando…? – repete Asante, impassível.
Cleland respira fundo antes de responder:
– OK. Oiça: você certamente já saberá que tivemos uma
discussão, certo? É por isso que cá está, não é? Pois bem. Sim,
tivemos. Não tenho problema nenhum em admiti-lo. Ela informou-
nos que fomos rejeitados. Que não éramos… – faz o gesto de aspas
com os dedos – … elegíveis. Provavelmente, não conseguimos
suficientes pontos em humildade e comiseração e essas coisas.
Demasiado ricos, demasiado snobes, demasiado brancos… porra, a
verdade é só essa! – Cala-se, parece considerar, passa a mão pelo
cabelo. – Eu fiquei lixado, OK? Chateado. Qualquer um na minha
posição ficaria.
Muito possivelmente, pensa Asante, mas nem todos reagiriam
como tu.
– Viram ou contactaram a Ms. Smith depois dessa última
reunião? – pergunta.
Cleland cora profundamente.
– Eu… posso ter-lhe enviado um email… no calor do momento.
Sabe como é…
– Isso é um sim?
Cleland assente.
– Voltou ao escritório? Tentou encontrá-la de alguma maneira?
– Não. De modo nenhum.
– Falei há pouco com um casal que é acompanhado por uma das
colegas da Ms. Smith, e eles disseram que o senhor foi visto à porta
do escritório deles, poucos dias depois da vossa última reunião. –
Folheia as suas notas. – Por volta das cinco da tarde do dia 25 de
junho, para ser mais preciso.
Cleland pisca os olhos várias vezes.
– Eu… fui às compras. Há uma loja de vinhos mais ou menos
decente nessa rua, umas portas mais abaixo.
Asante concorda:
– Muito bem. Então, a loja deverá ter algum registo?
– Não… não cheguei a comprar nada. Não nesse dia.
Asante toma notas e faz questão de levar o seu tempo.
– Então, não esperava encontrar a Ms. Smith? Talvez tentar
apanhá-la à saída do trabalho, ao fim do dia…?
– De maneira nenhuma!
– Ou talvez tenha pensado que seria mais discreto ir até casa
dela? Ver se conseguia fazê-la mudar de ideias?
– Claro que não! – explode ele. – Para já, não faço a menor ideia
de onde é que ela vive.
A mulher intervém:
– Seja como for, o Hugh jamais…
– Já te disse – lançou Cleland, sem olhar para ela –, deixa-me
ser eu a resolver isto.
– Onde é que esteve na noite passada, Mr. Cleland?
Cleland abre a boca, mas volta a fechá-la.
– Ontem à noite?
Asante assente, de caneta em riste.
Cleland coça a parte de trás do pescoço. O contacto visual foi-se.
– Saí para uma corridinha.
– Exatamente – diz a mulher. – E até levaste o carro.
Asante estranha:
– Não disse que foi correr?
– Disse. Eu geralmente corro em Shotover.
Asante toma nota; a sua expressão é séria, pensativa. Shotover
deve ficar entre cinco a dez quilómetros daqui, o que a torna uma
estranha opção, tendo em conta que Cleland tem os parques da
Universidade praticamente à porta ‒ e não parece nada o género de
homem de aguentar muito mais do que um circuito curto e tranquilo.
E mesmo assim… Mas a proximidade pode não ter nada que ver
com isso: o Shotover Country Park não fica a mais de dez minutos
da morada de Smith, em Shrivenham Close. Uma morada que
Cleland alega desconhecer.
Mas o homem à porta dela usava equipamento de corrida.

***

A porta do gabinete de Fawley está fechada, e Quinn ainda leva


um momento a lembrar-se de que ele tinha uma reunião com
alguém do MP esta tarde. O caso Fisher, presumivelmente. Bom,
mas isso, neste momento, já parece uma coisa antiga.
A advogada do MP anda na casa dos cinquenta: cabelo grisalho
curto, óculos, um ar de não fazer prisioneiros. Nem merda.
– Desculpe incomodá-lo, chefe – diz Quinn, depois de bater e
entrar. – Vamos agora ter uma reunião rápida sobre a investigação
do caso Smith. Os pais já a identificaram formalmente, e parece que
podemos ter já um suspeito: um homem com quem ela teve uma
altercação no trabalho. Ela recusou-os, a ele e à mulher, como
possíveis adotantes e digamos que ele não acatou lá muito bem
essa decisão. Mostrou-se um tanto “suscetível”, se é que me
entende.
A advogada ergue o olhar e suspira.
Fawley acena com a cabeça:
– OK, bom trabalho.
Quinn paira por ali por uns segundos; depois, dirige-se à porta
para voltar para a sala da equipa.
– Tem a certeza de que não quer…
Fawley abana a cabeça:
– Parecem ter tudo controlado. Vão-me mantendo informado.

***
– Então, temos um avistamento categórico do Cleland junto ao
escritório dela a 25 de junho e um homem à sua porta, vestido com
equipamento de corrida, na noite em que ela desapareceu.
Quinn está em frente ao quadro branco, escrevendo
furiosamente. Volta-se para o grupo:
– Que mais?
– Os serviços de adoção não fornecem os contactos nem as
moradas dos seus funcionários – diz Asante. – Por isso, se o
Cleland andou mesmo a rondar por lá nessa noite, é porque
descobriu onde ela morava de outra maneira qualquer.
Quinn pergunta:
– Cadernos eleitorais?
Baxter ergue o olhar do computador, tecla qualquer coisa e
franze a cara.
– Pois, de facto ela consta deles, mas apenas como E. Smith. Há
dúzias e dúzias deles. Ou delas.
– Bom – diz Quinn –, ele pode tê-la seguido até casa. Esse
avistamento… foi perto do final do dia, certo?
– Hum… sim – concorda Asante, claramente pouco convencido
–, mas a vizinha da Smith disse que ela deixou o homem entrar.
Teria alguma razão para convidar o Cleland para casa dela? Ela
sabia como ele era, ele já a tinha ameaçado… mandou-lhe aquele
email ordinário…
Baxter encolhe os ombros.
– Talvez ele lhe tenha dito que queria pedir desculpa pelo seu
comportamento? Gajos como este sabem bem acionar o botão do
charme quando é preciso.
– Continuo a achar que ela não o teria deixado entrar – intervém
Somer, em tom firme. – Se fosse eu, nem a porra da porta lhe abria.
– OK, mas não é impossível, pois não? – insiste Baxter. –
Digamos que ele a convenceu que vinha em paz. Ela oferece-lhe
uma bebida, sentam-se para conversar, mas às tantas ela diz-lhe
alguma coisa que o chateia… sei lá, que não se sente preparada
para alterar a sua decisão. O gajo fica furioso, é corpulento…
enquanto ela terá pouco mais de sessenta quilos. Ou nem isso.
Quinn concorda:
– Sim, estou a ver a cena. Aliás, até estou a vê-lo a matá-la.
Mas… e a violação? Isso já é um bocado exagero, não?
Baxter franze a testa. Mas Quinn tem razão: a coisa não encaixa.
– Por outro lado – prossegue Quinn –, estou definitivamente a
vê-lo a entrar em pânico a seguir e a tentar fazer com que a coisa
pareça suicídio.
Regressa para junto do quadro e bate no mapa com a caneta.
– E a ponte de Walton Well fica praticamente em linha reta do
apartamento da Smith até ao casarão do Cleland, em Lechlade
Road.
– Podemos verificar no sistema automático de reconhecimento
de matrículas – diz Baxter, regressando ao teclado. – Pelo menos,
ficamos a saber do que estamos à procura. Aquele Range Rover
não passa propriamente despercebido.
– E, já agora, verifica também se os Cleland têm um segundo
carro – sugere Asante. – A vizinha disse que viu um carro
normalíssimo, de cor escura, e não um daqueles grandalhões que
parecem da tropa. Palavras dela.
Ev levanta-se e dirige-se ao quadro. Há uma fotografia de
Cleland retirada do site da sua empresa. Está de fato e gravata –
robusto e confiante. Ev volta-se para os colegas:
– A Mrs. Singh disse que o tipo que viu à porta dela era parecido
com o Quinn, lembram-se? Ora, o Cleland não se parece
minimamente com o Quinn.
Quinn dirige-lhe um sorrisinho irónico:
– Entendo isso como um elogio.
Somer olha para Asante.
– Mas o Cleland tem a mesma altura dele, certo?
Asante concorda:
– Sim. Mas tem pelo menos mais uns bons seis quilos.
Somer estranha:
– Bom, a mim parece-me que o Cleland carrega esse peso a
mais na pança. E a Mrs. Singh só o viu de costas.
Olham para a fotografia durante um longo momento. O silêncio
prolonga-se, mas é Baxter quem eventualmente acaba por dizer o
que todos pensam:
– Pode ter sido ele.
– OK – diz Quinn, com o esboço de um sorriso. – Vamos lá
buscá-lo.

***

O estúdio de Caleb Morgan fica no rés do chão de uma das raras


casas de New Oxford ainda dividida em estúdios de aluguer a
estudantes. Uma morada bem mais simpática do que Ev esperava,
até que se recorda de quem ele é filho. Por outro lado, a receção
que lhe fazem corresponde ao que ela esperava.
– Eh pá, baze daqui, OK? – lança-lhe ele, preparando-se para
lhe dar com a porta na cara. – A Freya contou-me do verdadeiro
assédio que vocês lhe fizeram, como se eu fosse o raio de um
agressor de violência doméstica. Não tenho nada para lhe dizer.
Everett avança um passo.
– Olhe que não está a fazer nenhum favor a si próprio, Caleb.
Sabemos que foi você.
– O quê? Mas estão a acusar-me de quê, agora? – diz, em tom
áspero. – Do genocídio do Ruanda? O Onze de Setembro? Não,
espere, já sei… o caso grassy knoll21! Só pode ser isso, era eu que
estava na grassy knoll!
Ela não lhe dá trela.
– É acerca daquela história que corre no Twitter.
Ele estranha:
– Qual história?
– Sabe perfeitamente. Aquela sobre a Marina.
– Não faço a mínima ideia do que está a falar.
– Sabe, Caleb… você não é o único por aqui a perceber alguma
coisa de TI. Conseguimos rastrear essa história até chegarmos ao
tweet original. A conta a partir da qual foi publicado só foi criada
horas antes desse mesmo dia. Em nome de um tal
JosephAndrews2018.
Ele dirige-lhe um olhar premeditadamente vazio.
– Isso não me diz a ponta de um corno.
Everett ergue um sobrolho.
– Pois, mas esse golpezinho não veio de si, pois não? Veio da
Freya.
Os olhos tremem-lhe ligeiramente, e ele afasta o olhar.
– O curso dela é Língua Inglesa, certo? Joseph Andrews é um
romance do século XVIII acerca de um predador sexual. Só que,
desta vez, é ao contrário. Uma mulher em posição de poder escolhe
um jovem bem mais novo como presa. Exatamente como você e a
Marina. – Ela olha-o com desdém. – Aposto que pensou que nós
éramos demasiado burros para decifrar essa, não? Mas, para seu
grande azar, um dos meus colegas também se formou em Língua
Inglesa.
Ele devolve-lhe o olhar: desprezo por desprezo.
– Fale-se em delicadeza… Se é este o cartão de visita para as
detenções na Polícia de Thames Valley…
– E não é só o nome. Quem quer que tenha criado essa conta
sabia o que estava a fazer, sabia como se manter fora dos radares.
– Encolhe os ombros. – Brincadeira de crianças, certo? Para alguém
como o Caleb.
Ele ri ironicamente:
– Vocês… realmente… acham mesmo que eu quero que as
pessoas saibam o que ela me fez?
– Não, acho que não. Mas, como muito bem sabe, não houve
nunca uma única menção do seu nome – nem nesse post nem nos
tweets que se seguiram nem em lado nenhum. Apenas aquelas
referências codificadas relativas a um elemento feminino dos
docentes da universidade que qualquer pessoa com dois dedos de
testa conseguiria decifrar em cinco minutos.
– E então? O que é que estão a fazer acerca disso? Porque, se
andam à procura de uma fuga, a hipótese mais provável é ser
alguém do DIC, se quer saber a minha opinião.
Por detrás dele, algures no apartamento, ouve-se um som
abafado. Não mais do que um rangido, mas o suficiente para indiciar
que ele não está sozinho. Freya, pensa Everett. A Freya está com
ele.
Ele prepara-se para lhe fechar a porta.
– Se tem mais alguma coisa a tratar comigo, fale com os meus
advogados. E, para que não restem dúvidas, se o meu nome vier cá
para fora, agora ou em qualquer momento no futuro, é bom que se
ponham a pau com eles.

***

– Tire o raio dessas mãos de cima de mim! Como é que se


atreve? Vai ter de se haver com o meu advogado!
Levar Cleland para St. Aldate nunca seria um espetáculo bonito
de se ver, mas as coisas só pioram quando ele se recusa
terminantemente a fazê-lo, o que leva à sua detenção forçada.
Dá-se um indecoroso confronto físico à porta de sua casa,
testemunhado com divertida incredulidade por um grupinho de
estudantes da faculdade situada uns metros mais adiante na
estrada. Asante ainda leva uma cotovelada na cara.
– Ainda bem que viemos prevenidos – comenta Quinn, quando
Baxter consegue manietar Cleland a caminho do carro.
Alguns dos estudantes estão agora a tirar fotos, e Cleland berra-
lhes “abuso policial!”, antes de se ver enfiado à má fila dentro do
carro.
– Ainda assim, há que ver o lado bom da situação – prossegue
Quinn. – Agora, não vamos ter problemas em sacar-lhe impressões
digitais nem ADN. – Mostra-lhe dois sacos de prova selados, com
uns calções e uma t-shirt branca meio encardida. – Foi um
verdadeiro “lavar de roupa suja” – acrescenta, com uma risada.
– Verdade – diz Asante, esfregando o queixo dorido. – Por outro
lado, aposto que este tal advogado dele tem um mau feitio do
caraças.
***

Oxford Mail Online


Terça-feira, 10 de julho, 2018 – Última atualização às 15h45

ÚLTIMA HORA: Adensa-se o receio pela segurança das mulheres de


Headington

Por Richard Yates

Sem qualquer avistamento reportado desde que ela saiu para trabalhar na
segunda-feira, amigos e vizinhos de uma mulher de Headington receiam cada
vez mais que algo lhe tenha acontecido. Residentes de Srivenham Close dão
conta de uma insistente inquirição porta a porta por agentes do DIC da Polícia
de Thames Valley, e a chegada de uma equipa de polícia científica reforça os
receios de que a mulher, cujo nome permanece no anonimato, pode
encontrar-se numa situação de sério perigo.

Esta notícia de última hora encontra-se em atualização; em breve serão


publicados mais pormenores.

Vive em Shrivenham Close ou tem alguma informação sobre este caso?


Envie-me um email para Richard.yates@ox-mailnews.co.uk

***

– O senhor acalme-se, por favor.


As triviais humilhações da recolha de impressões digitais e ADN
nada fizeram para melhorar o humor de Hugh Cleland. Mas o
Sargento Woods chega bem para ele, quilo por quilo, e já lidou com
demasiados bêbados revoltosos para se deixar intimidar por um
homem de calças magenta. Cleland continua agitadíssimo e aos
berros, quando Woods fecha a porta da cela e se volta para Quinn:
– Ele já amansa – diz-lhe. – Liga quando quiseres que eu o leve
para cima.
Quinn sorri.
– Oh, eu não tenho pressa. E o advogado dele está na porra da
ópera, por isso o gajo vai andar a marrar com os cornos na cela por
mais algum tempo.
Mais berros e impropérios vindos do interior da cela.
O sorriso de Quinn amplia-se:
– E, seja como for, acho que aqui o nosso amigo bem precisa de
arrefecer um bocadinho, não achas?
– Não sei nada de “arrefecimentos” – responde Woods,
ironicamente. – Muito menos dentro destas celas.

***

Adam Fawley
10 de julho, 2018
17h09

Estou prestes a ter uma breve reunião de atualização com o


Quinn, quando toca o telefone. O Harrison quer ver-me. Para me
chagar a cabeça – mais uma vez – por causa do caso Morgan,
aposto. Reúno a papelada e dirijo-me ao gabinete dele. O calor não
deu tréguas durante todo o dia. O ar na porcaria deste edifício
parece solidificar-se, e a alcatifa cheira a queimado.
– Ah, Adam – diz ele, assim que abro a porta. – Ainda bem que o
apanho. Sente-se, sente-se.
Não parece de todo satisfeito. Mas a verdade é que ele nunca
parece satisfeito.
Abro a pasta à minha frente e retiro as minhas notas.
– Reuni esta tarde com a especialista em Violação e Agressão
Sexual Grave, do MP. Passámos o caso em revista, e ela é da
opinião de que…
Ele franze a testa e interrompe-o:
– Sobre quê?
– A agressão sexual ao Caleb Morgan, Superintendente. O
senhor deixou mais do que claro que queria este caso como
prioritário e…
Ele olha-me fixamente.
– Temos uma mulher morta nas mãos. Creio que isso seja um
nadinha mais… prioritário, não acha?
– As investigações já vão bastante avançadas, Superintendente.
O Inspetor Quinn já identificou um possível suspeito, e pretendo
reunir com ele assim que esta nossa conversa terminar.
O big boss franze a testa.
– Aquilo que eu quero saber, Inspetor-Chefe Fawley, é porque é
que falhou até agora em informar alguém de direito – e já nem falo
de mim – de que tinha uma relação com a vítima.
É a minha vez de o olhar fixamente.
– Perdão?…
– Não me venha com tretas, Adam, não estou com disposição
para isso.
– Com toda a honestidade, Superintendente, não sei mesmo do
que está a falar.
Ele semicerra os olhos.
– De acordo com o Inspetor Quinn, a vítima foi identificada por
volta das 13h00 de hoje, e ele passou-lhe essa mesma informação,
pessoalmente, às 13h15.
Não sei onde é que isto vai parar, mas não me agrada nada.
– Sim, senhor, mas eu ainda não…
Harrison recosta-se na cadeira.
– Qual é o nome da vítima?
Estranho.
– Emma Smith.
– E continua a afirmar que não a conhece? – O homem está
claramente perplexo, de boca entreaberta.
– Claro – respondo. – Porque não a conheço.
– Nesse caso, talvez me consiga explicar o que foi fazer ao
apartamento dela…?
Olho-o, absolutamente pasmado.
– Mas o que é que…
– Há impressões digitais – diz Harrison. – No apartamento da
Smith. As suas impressões digitais.
Até que a coisa me atinge. Com força, e demasiado tarde.
– A não ser…
Ele ergue um sobrolho, sarcástico.
– A não ser?
– A não ser que se trate de uma amiga da minha mulher que…
Falham-me as palavras.
Meu Deus.
– A sério, Superintendente. Acredite que eu não fiz a ligação… E
ainda não estive na Sala de Ocorrências, logo, ainda não vi
nenhumas fotografias, por isso…
– Ela é amiga da sua mulher, e você não lhe reconheceu o
nome?
O ceticismo dele atinge-me como um soco.
Sinto-me a corar.
– Bom, é claro que eu sabia que a amiga da minha mulher se
chamava Emma, mas não estou certo de alguma vez lhe ter ouvido
o apelido. – Chego-me à frente na cadeira. – Eu sei que pode
parecer estranho, mas ela era amiga da Alex, não minha. Andaram
juntas na universidade, encontravam-se raramente, duas ou três
vezes por ano. E eu ainda a via menos.
Mas ele continua descrente.
– Não foi a Emma Smith que vos resolveu aquela situação do
acolhimento a curto termo de uma criança? Processo esse que eu
autorizei?
Engulo em seco.
– De facto, foi, Superintendente, mas foi a Alex que tratou de
tudo… Eu não me envolvi minimamente. Como lhe disse, a Emma
Smith e eu não éramos amigos… Mal podíamos considerar-nos
como conhecidos.
– Então, você continua a insistir nisso, mas ainda assim esteve
no apartamento dela?
Sinto de novo as faces em brasa.
– Ah, OK… Posso explicar isso.
– Espero sinceramente que sim, porque neste momento…
– Eu estive lá… no apartamento. Mas foi a pedido dela. Ela veio
cá ver-me. Tinha um assunto para falar comigo.
Ele volta a franzir a testa.
– E porque não falaram aqui, assim sendo? Creio que teria sido
mais… adequado, digamos.
– E foi precisamente isso que eu lhe disse – apresso-me a
responder. – E tentei convencê-la disso, mas ela não quis tornar a
coisa oficial.
– E quando foi isso?
Merda.
Merda, merda, merda.
– Ontem, senhor Superintendente.
– Ontem? Esteve ontem no apartamento dela?
Tento fixar-lhe o olhar, mas sem sucesso.
– Sim, senhor.
Ele respira fundo uma vez. Depois, outra.
– Então, esteve em casa dela. E a que horas foi isso?
– Por volta das nove. Ela pediu-me que passasse lá depois do
trabalho.
Harrison abre a boca para dizer alguma coisa, mas eu chego lá
primeiro:
– Ela achava que andava a ser perseguida. Tinha visto alguém a
rondar-lhe a casa em duas ocasiões, a deixar-se ficar por lá no
escuro da noite, sem razão aparente. E, pelo menos uma vez, ela
viu alguém dentro de um carro…
Harrison recosta-se e olha para mim.
– Eu segui a linha habitual de investigação, Superintendente.
Perguntei-lhe por ex-namorados, colegas, alguém que a pudesse ter
ameaçado ou assustado. Ela não conseguiu lembrar-se de ninguém.
Eu sabia – pela minha mulher – que ela tinha acabado um
relacionamento há pouco tempo, mas ela garantiu-me que isso
estava mais do que resolvido e que não tinha sido ela a terminar a
relação. Por isso, acabei por lhe dizer que não havia razões para
abrir uma investigação oficial e aconselhei-a a manter um diário. E,
se voltasse a ver o tal homem novamente, que tentasse tirar
fotografias e ligar para o 112, se se sentisse minimamente
ameaçada. Depois, vim-me embora.
Volto a reposicionar-me na cadeira.
– Obviamente que, visto a posteriori, eu devia ter feito alguma
coisa… e lamento muito não ter agido… Sei que isso vai deixar a
nossa polícia mal vista, mas… não havia de facto nenhum indício
claro de que ela corresse perigo iminente. – Estou agora a
reequilibrar-me freneticamente, a tentar pensar. – Mas, pelo que o
Inspetor Quinn disse acerca deste homem, o Cleland, é óbvio que
ele é o suspeito mais forte neste caso e…
Por alguma razão, o Harrison não me está a seguir. Pressinto-lhe
a crescente irritação e o esforço que está a fazer para a controlar.
– Então, a vítima que foi encontrada na linha do comboio é da
mesma idade da amiga da sua mulher, tem as mesmas
características físicas, o mesmo nome próprio e, ainda assim, pelo
menos nas últimas… quê, quatro horas, nunca lhe ocorreu que
poderia ser a mesma pessoa?
Engulo em seco.
– Como já disse, Superintendente…
Mas ele não me está a ouvir.
– A sua própria equipa passou grande parte do dia a tentar
descobrir quem era o homem que a Emma Smith deixou entrar em
casa na noite passada, um homem que corresponde à sua
descrição… E a si nunca lhe passou pela cabeça que isto poderia
ser mais do que uma mera coincidência?
Logo eu, que não acredito em coincidências, como espero que
ele esteja prestes a lembrar-me…
– E quantas vezes eu já o ouvi dizer que…
Não resisto a interrompê-lo:
– Peço desculpa, senhor Superintendente. O Inspetor Quinn tem
coordenado as investigações preliminares e, como já disse, passei
grande parte da tarde em reunião com o MP, não tive tempo para
olhar para os pormenores. Mas agora, sim, estou a ver tudo
claramente.
Mas não tenho de engolir mais sapo nenhum. Porque a porta
atrás de mim abre-se. Eu não estava à espera de ninguém, mas o
Harrison sim, claramente. Ergue a cabeça e faz um breve assentir
de cabeça. Volto-me para trás.
A Inspetora-Chefe Ruth Gallagher. Dos Crimes Graves.
Dedica-me um breve cumprimento de cabeça, com uma
expressão impassível.
– Inspetor-Chefe Fawley…
Inspetor-Chefe Fawley, e não Adam, embora tenhamos
trabalhado juntos no caso do rapto da Faith Appleford nem há três
meses. Mesmo tendo eu achado que nos tornámos na coisa mais
parecida possível com amigos, neste trabalho.
– Ruth. – Oiço a fraqueza da minha própria voz.
A Gallagher ocupa a cadeira livre a meu lado. O Harrison faz-lhe
um gesto – o palco é claramente dela. O meu coração palpita como
o de um cavalo nervoso.
– Acabei de falar com os pais da Ms. Smith, senhor
Superintendente. Não sabem nada sobre um suposto assediador.
Suposto. Foda-se.
Tento fazê-la olhar para mim.
– Eles devem andar na casa dos setenta, no mínimo. Talvez ela
tenha optado por não os preocupar.
Ela mantém teimosamente o seu olhar em frente.
– A Ms. Smith não parece ter muitos amigos fora do âmbito do
trabalho, mas eu estou a tratar de criar uma lista.
Que raio quer ela dizer com criar uma lista? Este caso não é
dela.
– O primeiro nome dessa lista é a Mrs. Alexandra Fawley. A
minha intenção é falar, em primeiro lugar, com ela.
Espera lá, ela vai falar com a minha mulher?!
– Talvez o Inspetor-Chefe Fawley a possa ajudar nisso, Ruth
Gallagher – diz Harrison, sem deixar de me olhar nos olhos. – Afinal,
estou certo de que a Mrs. Fawley já está plenamente a par da
situação, uma vez que a Ms. Smith recorreu ao marido dela para
pedir conselhos.
Ah, OK… então, é aqui que estamos.
Respiro fundo.
– Ainda não falei sobre nada disto com a minha mulher.
Ele franze o sobrolho; vai para falar, mas eu antecipo-me:
– Ela está a poucas semanas de dar à luz e já esteve
hospitalizada uma vez devido à ansiedade. Não ia certamente correr
nenhum risco contando-lhe que havia um assediador na nossa zona.
Até porque ela já está suficientemente aterrorizada mesmo sem
saber dessa possibilidade. Mas isto abstenho-me de dizer.
– A Emma… a Ms. Smith também não quis preocupar a Alex. Foi
por isso que veio ter comigo à esquadra em vez de me ligar para
casa. Ela própria o afirmou. Aliás, disse precisamente isto, com
estas mesmas palavras.
O Harrison olha para mim como quem diz: quanto a isso, temos
apenas a tua palavra. Eu já devia saber. Eu próprio digo isto com
frequência aos meus suspeitos.
A Gallagher mexe-se na cadeira, desconfortável. Ou talvez
embaraçada? Quem sabe? Prefiro pensar que, pelo menos, ela
entende a posição da Alex – ela própria tem filhos. Baseio-me
sobretudo na experiência anterior que tive com ela, quando
estávamos do mesmo lado. Agora, dá a sensação de que isso são
águas passadas.
O Harrison continua a olhar para mim.
– Onde é que esteve?
O tom é bem mais calmo, quase empático.
– Onde é que estive… quando?
– No apartamento dela. Onde é que esteve? Na cozinha, na sala,
no quarto?
Olho-o, desta vez friamente.
– Na sala, Superintendente. Nada mais.
– E esteve lá… o quê… uma hora? Mais?
– Menos. Meia hora, no máximo.
– Mas tomou alguma coisa, enquanto lá esteve.
Não é uma pergunta. Os copos, é claro.
– Tomei meio copo de vinho, se tanto. Ia conduzir. Francamente,
nem sequer me apetecia, mas não quis ser mal-educado. Ela já
estava suficientemente abalada.
Eles trocam olhares entre si.
– Bom, penso que é tudo, por agora – diz ele. – Os Crimes
Graves tratarão deste caso a partir de agora. Mais vale tarde do que
nunca.
Esta foi direitinha para mim: se ele soubesse que eu conhecia a
Emma, jamais me teria dado essa informação.
Move-se na cadeira e ouve-se o chiar do cabedal sob o seu
peso.
– A nível interno, esta reatribuição do caso é um mero assunto
processual e não um reflexo da conduta do Inspetor-Chefe Fawley
nas últimas doze horas.
– Muito obrigado, senhor Superintendente.
Ele reage:
– Não pense que se safa assim tão facilmente. De todo. Mas,
neste momento, temos um caso de homicídio para resolver e a
confiança do público a manter.
Recosta-se e faz girar a cadeira na direção da Gallagher.
– E agora nós, Ruth Gallagher…

***

Entrevista a Hugh Cleland,


realizada nas instalações policiais de St. Aldate, Oxford
10 de julho, 2018, 18h15
Conduzida por: Inspetor G. Quinn, Inspetor A. Asante
Presente: P. Brunswick (advogado)

GQ: Devo lembrá-lo, Mr. Cleland, que se encontra


detido.
Deseja que o recorde igualmente da formulação da
advertência?
HC: Eu vejo televisão, sabe… E não sou nenhum imbecil,
porra!
GQ: Interpreto isso como um “não”. Muito bem: a noite
passada. Descreva-nos de novo os seus passos, por
favor.
HC: [apontando para Asante]
Já lhe disse a ele. Não tenho mais nada a
acrescentar.
GQ: Isto é apenas para que conste na gravação. Não
creio que seja um grande incómodo para si.
HC: Fui fazer uma corrida, em Shotover.
GQ: Conduziu quase dez quilómetros, quando podia ter-se
limitado a descer a rua e correr nos Parks?
HC: Que eu saiba, não há nenhuma lei que me impeça de
me meter no carro para ir fazer exercício.
GQ: Que carro conduziu? O Range Rover?
HC: [pausa]
Não.
GQ: Não? E porquê?
HC: Da última vez que fui para lá no jipe, um fedelho
qualquer riscou-mo com uma chave.
GQ: Oh… que situação tão desagradável…
PB: Não há necessidade de sarcasmos, Inspetor.
GQ: Então, se não foi no Range Rover, que carro levou?
HC: O carro da minha mulher.
AA: Que é…?
HC: Um Honda Civic.
AA: Cor?
HC: Preto.
AA: Matrícula?
HC: [pausa]
Não sei. Raramente ando nele.
PB: Certamente que poderemos fornecer-lhe esses dados,
se necessário.
GQ: Mas o senhor conduziu-o ontem à noite?
HC: Tal como disse…
GQ: Sim, eu sei o que disse.
AA: Um dos vizinhos da Emma Smith disse que viu um
carro escuro, do tipo sedan, estacionado à porta da
casa dela ontem à noite, por volta das nove. E não
se lembra de ter visto esse carro por ali antes
disso.
HC: Bom, o meu é que não era de certeza.
GQ: O senhor não foi a casa da Ms. Smith? Quem sabe
tenha achado que poderia fazê-la mudar de ideias?
Deixá-los adotar uma criança, apesar de tudo?
HC: Primeiro: jamais me rebaixaria ao ponto de ir
implorar a uma funcionariazinha qualquer, que
certamente voltaria a dizer-me que não. E segundo:
mesmo que tivesse desejado fazê-lo, não sabia a
merda da morada dela. Capice?
AA: Podia facilmente tê-la seguido do trabalho até
casa. Até porque foi visto na Iffley Road…
HC: … a comprar vinho…
GQ: Não afirmou que não chegou a comprar vinho nenhum?
HC: Sabe perfeitamente o que eu quero dizer.
GQ: Então, e a que horas é que saiu de casa para essa
sua corridinha?
HC: Por volta das 20h30, mais coisa menos coisa.
AA: E o que é que levava vestido?
HC: O que é que acha? T-shirt, calções, ténis de
corrida.
AA: Aquele equipamento que recolhemos de sua casa? A t-
shirt branca, os calções pretos e as sapatilhas
Nike?
HC: Já respondi a isso.
GQ: E quanto tempo durou essa corrida?
HC: Sei lá… Vinte minutos?
GQ: Parece-me uma viagem de carro demasiado longa para
uma corridinha tão curta. Meia hora para lá, meia
hora para cá, vinte minutos de corrida…
HC: Agora também me controlam os consumos de
combustível?
GQ: Então, pelas minhas contas, terá chegado a casa por
volta das dez.
HC: Mais ou menos por aí.
GQ: A sua esposa poderá confirmar isso, calculo?
HC: Espero bem que o faça.
AA: Viu ou falou com alguém, enquanto corria?
HC: Eu estava a correr, não propriamente num evento
social.

Entrevista interrompida pelo Sargento-Inspetor David King


e o Inspetor Simon Farrow.

DK: Parem a gravação, esta entrevista está suspensa.


GQ: O que é que se passa?
DK: O Mr. Cleland deverá regressar à sala de custódia,
enquanto se aguardam novas investigações e os
resultados das análises forenses.
HC: O quê?! Fico cá uma noite? Vocês não podem fazer
isto!
DK: Oh, eu acho que vai perceber que podemos.
GQ: Mas alguém me diz que porra é que se passa aqui?
DK: [sorrindo]
Temo que isto esteja acima da sua graduação,
Inspetor Quinn.

***

Enviado: Ter 10/07/2018, 19:05 Importância: Alta


De: DIAdamFawley@ThamesValley.police.uk
Para: CID@ThamesValley.police.uk,
AlanChallowCSI@ThamesValley.police.uk, Colin.Boddie@ouh.nhs.uk
cc: DIRuthGallagher@ThamesValley.police.uk
Assunto: Caso n.° 75983/02 Smith, E

Serve o presente para informá-los de que a equipa da Inspetora-Chefe


Ruth Gallagher ficará a cargo desta investigação com efeitos imediatos.
Foi-me comunicado que, uma vez que a Ms. Smith era amiga da minha
esposa, não é apropriado que seja eu a continuar a orientar a investigação.
Para que conste, eu conhecia apenas a Ms. Smith pelo primeiro nome,
“Emma”. Estivemos juntos poucas vezes, geralmente em minha casa, mas
uma vez no apartamento dela. A Inspetora Gallagher está a par das
circunstâncias.
Sei que todos vocês darão à equipa da Inspetora-Chefe Gallagher o maior
apoio e total colaboração.

AJF
Inspetor-Chefe. DIC, Polícia de Thames Valley
Instalações Policiais de St. Aldate, Oxford OX1 1SZorte

***

Adam Fawley
10 de julho, 2018
20h49

Faltam poucos minutos para as nove quando chego a casa.


Sinto-me completamente na merda. E sei que a situação ainda vai
piorar, antes de melhorar. A Alex está à porta para me receber ainda
antes de eu desligar o motor do carro. Mesmo sob a luz ténue por
cima da porta, noto-lhe a expressão pálida.
– Graças a Deus que chegaste – diz-me num arquejo, assim que
a abraço.
– Estás bem? Aconteceu alguma coisa? Voltaste a ver a
carrinha?
– Não. Hoje, ainda não.
Ela sabe que é isto que eu quero ouvir; o que não significa que
seja verdade.
Tenta desvalorizar a coisa com uma risadinha:
– E, tal como já me disseste várias vezes, ele tem pulseira
eletrónica. Sou só eu a fazer filmes na minha cabeça… a exagerar.
A culpa é das hormonas.
– Tu dir-me-ias, certo? Se visses alguma coisa? Alguém
estranho a rondar a casa?…
Ela parece perguntar-se de onde é que esta preocupação vem.
– Claro.
Sigo-a até à cozinha e sento-me pesadamente à mesa. Vejo-a
agitada; nada típico dela.
– Por acaso – diz-me, abrindo o frigorífico –, há um assunto de
que te quero falar…
Volta-se e repara na minha expressão:
– O que é que se passa?
Ela sabe. É claro que sabe. Estamos casados há muito tempo.
Respiro fundo.
– Já viste as notícias locais de hoje?
Ela abana a cabeça com uma risadinha triste:
– Nunca vejo essas cenas, recuso-me. Sempre que passa
alguma notícia terrível, penso logo que tu estás envolvido.
Estendo-lhe os braços e puxo-a para mim.
– Infelizmente, desta vez é esse o caso.
Sinto-a logo tensa, o corpo rígido.
– Encontraram um corpo na linha férrea, a noite passada.
Debaixo da ponte de Walton Well. E eu acabei de saber de quem se
trata.
– Como assim… um corpo? Do que é que estás a falar?
– Tenho tanta pena, Alex… Foi a Emma.
Ela olha-me fixamente; depois, desequilibra-se. Agarro-a.
– Senta-te, querida, por favor. Calma… estás branca que nem
um fantasma.
Levo-a até à cadeira mais próxima e ajudo-a a sentar-se.
Recosta-se, a cabeça para trás, como se estivesse cheia de dores.
– A Emma? – murmura. – Não… não pode ser. Ainda há dias
falei com ela…
Oiço isto demasiadas vezes. “Mas ainda na semana passada
estive com ele…” Ou nesse mês ou na noite anterior. Dizem que o
ciclo da dor começa com a negação, mas a minha experiência
ensinou-me que é antes pura e desconcertada incredulidade.
– Lamento tanto – digo-lhe docemente. – Os pais vieram
identificá-la. É mesmo ela.
Ela estranha:
– Mas não acabaste de dizer que foi numa linha férrea? Que
diabo é que ela fazia ali?
– Alex…
– Foi um acidente?
Deixo que o silêncio se prolongue, que fale por mim.
– Não. Não foi um acidente.
– Oh, meu Deus! Estás a dizer que ela… se matou?
Oiço um arquejo, mas não se trata apenas de choque.
– Alex… O que é que se passa?
Já estou de pé ao lado dela, mas ela empurra-me, afasta a
minha mão. Pressiona o lado esquerdo do ventre.
– São só… contrações falsas de trabalho de parto… Tenho-as
tido o dia todo.
– Era disto que me querias falar?
Ela nega, tentando sorrir para relativizar, mas está com a
respiração superficial e tem uma linha de suor sobre o lábio superior.
– Alex… Tu estás de trinta e cinco semanas, por amor de Deus…
Ela volta a levar a mão ao lado do ventre com um esgar de dor.
Procuro as chaves do carro.
– Pronto, vou levar-te agora ao JR22.
– Não, não… – Agarra-me no braço. – Por favor, Adam, tu sabes
o quanto eu odeio esse sítio. E isto já está a passar, juro.
Respira lentamente. Para dentro, para fora. Inspira, expira.
Passa-se um minuto; a garra no meu braço vai perdendo a força, até
que me sorri.
– Vês? Eu disse-te.
Pouso as chaves na mesa.
– OK, mas precisas de te ir deitar e já. E não é negociável.
– Sim, já vou… Quanto à Emma…
Abano a cabeça. Sim, ela tem de saber a verdade, quanto mais
não seja porque a Ruth Gallagher vai contactá-la e eu quero que ela
esteja preparada. Mas não agora. Não esta noite.
– Falamos nisso amanhã. Agora, tu precisas é de descansar. É a
única condição que eu aceito para não te levar direta para o JR.
Ela baixa a cabeça, e eu pego-lhe na mão. Tem os lábios a
tremerem.
– Oh, meu Deus… – murmura. – Pobre Em… pobre, pobre Em…
– Ergue os olhos marejados de lágrimas para os meus. – Mil
novecentos e noventa e dois. Foi quando nos conhecemos… 1992.
Há vinte e seis anos, porra. Como é que isto foi acontecer? – Leva a
mão à boca. – Quero dizer, eu sei que ela ultimamente andava
infeliz, mas…
Eu podia dizer alguma coisa. Que sei exatamente porque é que a
Emma andava infeliz. Dizer-lhe que fui a casa dela, que tentei ajudá-
la…
Mas não digo. Talvez devesse. Talvez vocês dissessem, se
estivessem no meu lugar. Mas não estão, e eu não digo. Devia ter-
lhe dito que fui a casa dela, muito antes disto. Ontem, assim que
voltei para casa, mesmo tendo-a encontrado exausta e a caminho
da cama. Ou esta manhã, antes de ir trabalhar. Tudo o que fiz foi
protegê-la, criar um casulo para a manter lá, segura, a ela e ao
nosso bebé, mas agora já é tarde. Se lhe contar agora, ela vai
pensar que tenho alguma coisa a esconder. E é perfeitamente
compreensível, não é? Qualquer um pensaria o mesmo. Devem
estar a perguntar-se porque é que só agora estão a saber de tudo
isto – porque é que eu nunca disse uma palavra que fosse até
agora.
Então, deixem-me ser absolutamente claro: lá por não terem
sabido, lá por eu não vos ter contado… ontem, no apartamento da
Emma? Não aconteceu nada.
Ouviram bem?
Não. Aconteceu. Porra. Nenhuma.
***

Desta vez, Quinn não é o único a chegar cedo. Às 07h55,


quando empurra a porta da sala da equipa, há murmúrios e
sussurros por todos os cantos.
– Também já leste o email, pelo que vejo – diz-lhe Ev secamente.
Quinn solta um grunhido descomprometido e dirige-se à sua
secretária. Mas Ev não desiste e vai ter com ele.
– Esta de a Gallagher cair aqui de paraquedas é muito estranho,
não? O Fawley disse-te alguma coisa? Já sabias?
Quinn abana a cabeça. Já estava lixado com o King por este o
ter humilhado em frente ao Cleland. E agora está furioso com o
Fawley por ser ele a razão.
– Eu acho que já começa a ser um hábito – comenta Baxter, no
outro extremo da sala. Está recostado na cadeira, beberricando um
frapuccino.
Everett estranha:
– O quê?
– A Gallagher ter de limpar a porcaria do Fawley.
Somer intervém:
– O que é que supostamente queres dizer com isso?
Baxter encolhe os ombros.
– Bom, aconteceu com o caso Appleford, não foi?
Ev abana a cabeça:
– Por amor da santa, isso foi completamente diferente.
– Não – diz Somer, incisiva. – Se ele tem uma teoria, vamos lá
ouvi-la.
Baxter levanta a mão.
– Nada. Disse por dizer.
Somer vai para responder, mas Ev interrompe-a com um olhar.
Um olhar que diz: Deixa.
Quinn começa a tirar coisas da pasta. É uma messenger bag que
ele comprou na Jekill and Hide23, praticamente igual à de Asante.
Uma semelhança que existe, de facto, mas que ele não assume.
– Se querem a minha opinião – diz –, toda essa conversa de o
Fawley não saber quem era a Smith é uma grande treta.
Ev volta-se para ele:
– O que te leva a dizer isso?
Ele tira o tablet da pasta e pousa-o na secretária.
– Bom, para já, a cena de ele não saber o apelido dela é tanga.
Somer ergue o sobrolho.
– Porquê? Aposto que não sabes o apelido de nenhuma das
amigas da tua namorada.
– Isso é diferente, e tu bem sabes – lança-lhe ele. – Só ando
com ela há poucas semanas, ao passo que o Fawley conhecia esta
mulher há anos.
Somer vira-lhe a cara, a expressão sombria.
– Estás é todo lixado porque se trata de um grande caso e
acabaram de to tirar, isso sim.
Quinn mantém-se firme.
– Por acaso, não estou – diz friamente. – Porque não foi só isso.
Nem de perto nem de longe. Tudo isto… fede.
– Ai sim? – intervém Ev. – Podes ser mais explícito?
Quinn faz-lhe frente.
– Fui eu que atendi a chamada quando a Smith foi dada como
desaparecida.
– E…?
– E… lembro-me de ter repetido a morada em voz alta.
Mas Somer não se fica:
– E o que é que isso tem?
– Tem que o Fawley ouviu. Estava aqui, precisamente nesta sala.
Olha para Baxter, que confirma:
– Sim, estava. É um facto.
Quinn ergue um queixo vitorioso.
– Por isso, mesmo que se pape a cena do apelido, como é que
se explica isso?
– Eu também estava presente, por acaso – diz Somer. – E, se
bem me lembro, o Fawley estava a analisar aquela conta do Twitter
do Joseph Andrews quando a chamada entrou. – Desta vez, é ela
que olha para Baxter. – Certo?
Baxter hesita, mas concorda. Isto está a ficar manifestamente
desconfortável.
– Por isso, é muito possível que o Fawley nem sequer tenha
ouvido o que o Quinn disse – argumenta Somer. – Quero dizer, tu
lembras-te de ter ouvido essa morada?
Baxter abre muito os olhos.
– Quem? Eu?
– Sim, tu. Lembras-te de ouvir o Quinn dizer essa morada em
voz alta?
– Não tenho a certeza…
Ela estala os dedos à frente dele.
– Ora aí está.
– Na minha opinião – diz Asante –, seria muito mais provável
retermos uma morada se se tratasse de alguma que
conhecêssemos. É como alguém dizer o nosso nome. Ficamos logo
mais alerta.
– Certo – diz Quinn, de novo cheio de confiança. – E ele sem
dúvida que conhecia aquela morada porque já lá tinha estado. Ele
próprio o disse.
– Mas o email não diz quando, pois não? – observa Somer. –
Pode ter sido semanas antes. Ou meses.
Quinn ergue uma mão e vira costas.
– Whatever. Que se lixe. Se estão tão determinados em tomar o
partido dele, força. Mas atentem ao que vos digo: há aqui qualquer
coisa que não cheira nada bem.
Começa a fingir que arruma papéis na secretária, e ouve-se-lhe
um murmúrio: aquela altura do mês. Somer está demasiado longe
para ouvir, mas, quando ele ergue a cabeça, vê Everett dardejá-lo
com o olhar.
Baxter ergue o sobrolho e retira-se, escudando-se no ecrã do
computador; quanto a Asante, está claramente arrependido por se
ter envolvido no assunto.
A sala cai no silêncio – o silêncio da discórdia –, e o ambiente
não é muito melhor quando a porta se abre quinze minutos depois.
Para deixar entrar Ruth Gallagher.
Ela conhece bem esta equipa – trabalhou com ela ainda há
poucos meses – e percebe desde logo que há algum problema.
Somer tem duas fortes rosáceas nas faces, e Quinn está com
aquela expressão defensiva-ofensiva que diz a culpa não é minha,
que ela já viu tantas vezes. Ainda que quase sempre no seu filho de
quinze anos.
– Bom dia a todos – diz, olhando à sua volta. – De certeza que já
receberam o email do Inspetor-Chefe Fawley, por isso já saberão
que os Crimes Graves ficarão, a partir de agora, responsáveis pelo
homicídio da Emma Smith.
Ninguém responde. Limitam-se a olhá-la fixamente.
Ela tenta de novo:
– A minha equipa está a organizar uma Sala de Ocorrências no
gabinete mesmo aqui ao lado. Isto assumindo que conseguimos
convencer os da TI a trabalharem, claro.
Uma piada parva, mas que geralmente consegue quebrar o gelo.
Mas não desta vez. Metade deles já está de olhos fixos nos
respetivos computadores.
A porta volta a abrir-se, e Gallagher olha, meio temerosa – e
claramente aliviada um segundo depois.
– Ah, ainda bem que chegas. Pessoal, este é o Inspetor Farrow,
que precisa que lhe disponibilizem a informação reunida sobre o
Hugh Cleland, pelo que vos agradeço desde já que o façam logo
que possível.
Quinn ajeita os papéis numa pilha e estende-os, forçando Farrow
a ir buscá-los. Enquanto manobra de exibição de superioridade, é
tudo menos subtil, mas Gallagher decide não dar importância ao
assunto.
Asante olha para ela.
– Da minha parte, já lhe enviei tudo o que tenho.
– Obrigada, Inspetor Asante. Mais alguma coisa?
Baxter recosta-se na cadeira.
– Eu ia agora mesmo acionar o sistema automático de
reconhecimento de matrículas para aceder ao Honda da mulher do
Cleland. Depois, envio-lhe os dados.
Farrow aguarda no meio da sala, mas tudo indica que não leva
mais nada dali. Ev vê-o hesitar uns segundos junto à secretária de
Somer, mas, quando percebe que está a ser completamente
ignorado, não tem outro remédio senão sair.

***

Quando Nina Mukerjee regressa do dispensador de água fresca,


verifica que recebeu um email do laboratório. Da equipa forense do
caso Smith. Caramba, foram rápidos, pensa, pousando o copo na
secretária e instalando-se. Imprime o anexo – quando se trata de
cenas técnicas, continua a preferir papel a pixéis – e começa a ler.
Dez minutos depois, continua ali, na mesma posição, um sulco
bem vincado entre as sobrancelhas. E o copo de água intacto.
Levanta-se lentamente e dirige-se ao gabinete de Alan Challow.
Já é dele há dez anos, mas continua como se de um hot desking se
tratasse. Nenhuma fotografia, nenhum objeto pessoal na secretária,
nem sequer uma planta murcha. Encontra-o a teclar,
compenetradíssimo, com os olhos fixos no computador.
Ergue o olhar para ela, mas só por um segundo, antes de lhe
apontar a cadeira vazia.
– Recebi o relatório forense do apartamento da Smith – diz-lhe
ela.
– Ai sim? – Mantém-se concentrado no ecrã.
Nina empurra a folha pela secretária na direção do colega. Ele lê,
olha para ela, volta a ler. Por fim, recosta-se.
– Porra.
– O que é que fazemos agora?
Ele larga o papel na secretária.
– Só há uma coisa que podemos fazer.

***

Adam Fawley
11 de julho, 2018
09h42

Já devia ter saído para o trabalho há uma hora. Mas deixei a


Alex dormir até tarde, e depois a enfermeira atrasou-se. Quando
finalmente chegou, a coisa levou muito mais tempo do que eu
esperava. Sentados na sala, a ouvir as recomendações padrão, a
receber os folhetos padrão, a responder às perguntas padrão… Não
sei onde fui buscar tanto autocontrolo para não passar o tempo todo
a olhar para o relógio. Teria sido tão fácil dizer-lhe que já sabemos
isso tudo – que já passámos por isto antes –, mas não é
decididamente assim tão simples. Não para nós. Sim, tivemos um
filho, mas já não o temos. Porque o nosso filho acabou com a
própria vida, e esta mulher sabe disso. Assim, fico sentado e oiço e
arranjo as palavras certas, porque não posso arriscar a que ela
pense que eu tenho coisas melhores, mais prementes e mais
urgentes para fazer.
Até que, finalmente, ela recolhe as suas notas, as suas cenas e
o seu saco de pano artesanal, e eu acompanho-a à porta. Onde ela
se volta para mim e me encara, olhos nos olhos.
– Há alguma coisa que a sua mulher não esteja a querer contar-
me, Mr. Fawley?
Não esperava que ela fosse tão direta. Ou, talvez, tão perspicaz.
Semicerra ligeiramente os olhos.
– Estou certa, não estou?
Hesito; depois, concordo:
– Sim, está. Mas não tem nada que ver com o bebé.
Ela olha-me, desconfiada.
– Neste momento, Mr. Fawley, e dado o historial médico da sua
mulher, tudo tem que ver com o bebé.
– OK, claro, eu percebo isso. A Alex recebeu uma notícia triste.
Morreu uma amiga dela. E isso deixou-a muito em baixo, como
calcula.
– Oh, meu Deus, que horror. Algum acidente?
Abano a cabeça:
– Não. De início, nós pensámos que foi suicídio, mas,
infelizmente, tivemos de abrir uma investigação por homicídio.
Ela regista o nós.
– Ah, claro, lembro-me agora que é agente da polícia, certo?
– Sim. Uns colegas meus vão precisar de falar com a Alex ainda
hoje. Algo que eu sei que está longe de ser o ideal, claro, mas não
há como contornar a situação. A Alex foi uma das últimas pessoas a
falarem com ela.
Ela assente lentamente:
– Estou a ver.
– É por tudo isto que a Alex lhe pareceu perturbada. Estávamos
precisamente a falar no assunto antes de a senhora chegar. E foi
ontem à noite, depois de eu lhe ter dado a triste notícia, que ela
começou com aquelas contrações.
Um novo assentir:
– Compreendo. Para ela deve ser extremamente perturbador.
Mas, obrigada, ajudou-me a ficar com as ideias mais claras. – Pousa
levemente a mão no meu braço. – Se houver algo que eu possa
fazer para ajudar, por favor, ligue-me.
Fico, por um breve momento, a vê-la afastar-se e perscruto
automaticamente a rua. Os carros, as pessoas, os homens dentro
dos automóveis, os homens de um modo geral. Depois, entro em
casa para ir buscar as chaves do carro.
É verdade o que eu disse àquela mulher. A Alex sabe como a
Emma morreu.
Mas ainda não lhe disse que estive em casa dela.

***

Simon Farrow hesita antes de bater à porta do gabinete de Dave


King. Aliás, quase sempre antes de bater à porta de Dave King, ele
hesita. Trata-se de um excelente Sargento-Inspetor, sem dúvida –
durão, intransigente. E obtém resultados, mesmo que por vezes
tenha de ser um bocado sacana. Mas uma coisa é certa: ninguém
pode dizer que ele é uma pessoa de pessoas. Não tem jeito nem
pachorra para motivar uma equipa, por isso a sua vê-se obrigada a
automotivar-se, o que torna tudo bastante mais cansativo e, por
vezes, explosivo. Agora, atrás da porta, Farrow consegue ouvi-lo a
falar ao telefone. Embora não oiça o que ele diz, percebe que King
está ligado à corrente, seja o que for que isso signifique.
Farrow respira fundo, bate e abre ligeiramente a porta do
gabinete.
King está de pé, a enfiar o telemóvel no bolso.
– Desculpe incomodá-lo, chefe, mas vinha saber se quer que eu
submeta o carro do Cleland ao sistema de reconhecimento
automático de matrículas? Corresponde à descrição dada pela
vizinha da Smith, por isso pode ter sido o carro dele que ela viu…
Mas King já está a rechaçar a ideia com a mão.
– Esquece lá essa treta. Os peritos forenses acabaram de me
ligar. Tenho de ir já ter com a Gallagher. Esta merda é pura dinamite.

***

Adam Fawley
11 de julho, 2018
09h59

Quando tocam à porta pela segunda vez, acho que é o carteiro.


Mas não é.
– Não tinha dito que ligaria antes de vir?
A Ruth Gallagher hesita um momento.
– Acontece que…
Desço um degrau e encosto a porta atrás de mim.
– Oiça, isto não pode mesmo esperar? Ainda não tive
oportunidade de falar com a Alex. Pelo menos, ainda não lhe contei
tudo. Ontem à noite, apanhámos um pequeno susto com ela e…
– Lamento. Mas ela está bem?
– Sim, mas com certeza que entenderá porque é que eu não
quero angustiá-la ainda mais. Por isso, pedia-lhe que voltasse mais
tarde, pode ser? Isto, no fundo, é apenas para recolha de um
testemunho, certo?
Ela hesita:
– Bom, por acaso…
Só agora me apercebo de que ela não está sozinha. Um homem
de cabelo louro-escuro e barba acabou de trancar o carro e dirige-se
a nós. Mesmo que não o conhecesse, via-se logo que era do DIC:
somos os únicos palermas a usar blusões com este calor.
Estranho.
– Trouxe o King? São mesmo precisos dois de vocês para isto?
A Gallagher cora, ainda que apenas ligeiramente.
– Lamento… Creio que não nos estamos a entender. Eu de facto
vou precisar de falar com a sua mulher, mas não é isso que me traz
aqui.
O King junta-se a nós nos degraus e concede-me um arrogante
aceno de cabeça; nunca o gramei, e o sentimento é
espetacularmente mútuo. Foi um dos meus inspetores, já lá vão
muitos anos. Mas uma vez e uma vez apenas. Digamos que não me
agradaram os seus métodos. E, quando surgiu o lugar de Sargento-
Inspetor na minha equipa, dei-a ao Jill Murray. Acho que ele jamais
me perdoará.
Dirijo-me à Gallagher, ignorando o King:
– Não estou a entender…
– Não viemos cá pela Alex, Adam. Mas por si.
Agora, sim, ela já me está a irritar. Volto a abrir a porta de casa e
dou um passo atrás.
– Querem voltar a passar por essa treta toda outra vez? Muito
bem. Entrem. Vamos lá acabar com isto de uma vez.
Ela abana a cabeça:
– Lamento, mas não podemos fazê-lo aqui.
– Vão levar-me para a esquadra? A sério?! Por amor de Deus,
Ruth…
Oiço a Alex chamar-me lá de cima, perguntando quem é.
Dirijo-me ao fundo das escadas:
– É só o carteiro. Não precisas de descer.
Volto-me para a Gallagher e baixo o tom de voz:
– Oiça… Como lhe disse, ontem apanhámos um susto… com
falsas contrações. Estive quase para a levar para o hospital. Deixe-
me ao menos descansá-la, deixá-la bem e volto já. Meia hora, no
máximo. Que diferença é que isso pode fazer?
Vejo o King começar a querer intervir, mas a Gallagher impede-o:
– Adam Fawley, está detido por suspeitas de violação e
homicídio da Emma Smith…
Interrompo-a, estupefacto:
– Não! Isto é de doidos… Não pode estar a pensar que…
A Gallagher fixa-me com o seu olhar cinzento e gélido.
– O que eu penso ou não penso não interessa para o caso. Tudo
o que sei é que, confrontados com os fortes indícios, já não nos
restam alternativas. Eu tenho de o deter.
Sinto o suor a escorrer-me pelas costas. Estou a tentar retirar
algum sentido de tudo isto – por pouco que seja –, mas sinto o
cérebro em queda livre. E, de vez em quando, em fundo, o zunir da
voz da Gallagher:
– … não precisa de dizer nada, mas aviso-o de que pode ser
prejudicial para a sua defesa não referir, quando interrogado, algo
que mais tarde venha a confiar ao tribunal. Tudo o que disser pode
vir a ser apresentado como prova…
As palavras prendem-se-me na garganta:
– Eu preciso de falar com a minha mulher.

***

Oxford Mail Online Passageiros em fúria perante


Quarta-feira, 11 de julho 2018 – Atualizado às os trabalhos na ferrovia, que
09h11 continuam a causar atrasos e
viagens canceladas
ÚLTIMA HORA: Mulher de Headington perdeu a Melhoramentos na via e
vida trabalhos de sinalização na linha
Por Richard Yates a norte de Oxford continuam a
causar grandes dores de cabeça
A mulher dada ontem como desaparecida terá,
aos passageiros, que…/mais
infelizmente, perdido a vida num acidente na linha
O grande debate Brexit – com
férrea, logo à saída da estação de Oxford, nas
que contam os deputados
primeiras horas da manhã de terça-feira. A polícia
regionais?
fora contactada ontem, depois de uma residente de
Headington, Emma Smith, de quarenta e quatro A deputada regional de Didcot e
anos, ter faltado ao trabalho sem qualquer aviso. Cholsey, Petra Newson, tem
Pouco depois, a polícia estabeleceu a ligação com mostrado claramente o seu apoio
uma morte ocorrida junto à ponte de Walton Bridge, ao acordo de Theresa May, mas
que se crê ter ocorrido por volta da 01h25 dessa outros deputados regionais de
madrugada. Oxfordshire mostram-se mais
ambivalentes… /mais
Burlões porta a porta ludibriam
pensionista local
Um idoso residente em Cowley
foi burlado em cerca de £1,000,
vítima de um “conto do vigário”
por dois homens que se fizeram
passar por autarcas da zona…
/mais
A Ms. Smith era uma funcionária de longa data nos Aumentam os receios por
Serviços de Acolhimento e Adoção de Oxford City, árvores centenárias devido à
e trabalhava há quase dez anos nas instalações da onda de calor
Iffley Road. Os colegas dizem-se “devastados”. “Ela No seguimento dos danos graves
era tão boa pessoa”, disse uma delas. “Era que a tão amada amendoeira do
dedicadíssima ao seu trabalho e esforçava-se até adro da University Church sofreu,
ao impossível para encontrar novos lares e famílias conservacionistas alertam para
carinhosas para as crianças necessitadas. os perigos de outras árvores
Sentiremos terrivelmente a sua falta.” poderem estar em risco… /mais
Não foi emitida ainda nenhuma nota oficial sobre as “Swan Uppers”24 vão navegar
circunstâncias que rodeiam o incidente na ponte de em Abingdon
Walton Wells, mas a Polícia de Thames Valley A cerimónia anual do “Swan
confirmou que será feita uma declaração a seu Upping” ocorrerá em
devido tempo. Oxfordshire a 20 de julho… /mais
24 comentários
Bradybunch1818
Que coisa mais triste – dá a ideia de que ela deu tanto a outras pessoas e no entanto
não recebeu a ajuda de que ela própria precisava. Acontece tantas vezes. Por favor,
não se esqueçam de que há pessoas que vos podem ajudar – o vosso médico de
família ou organizações como os Samaritanos.
45641JaneyFinch
Amigos meus recorreram a esse serviço de adoção e disseram que eles foram
fantásticos, todo o pessoal. Hoje em dia, este género de instituições está sempre
sobrecarregado de trabalho e com escassíssimos recursos. Talvez se devesse investir
parte daqueles £350M da UE em sítios como estes.
Gail_Mallory_Marston
Que coisa mais terrível de acontecer – os meus #pensamentoseoracoes estão com os
seus familiares e amigos.
***

Adam Fawley
11 de julho, 2018
10h04

– Alex…
Ela está deitada na nossa cama, as janelas abertas, as cortinas
mal se mexem.
Deve ter sido algo no meu tom de voz, já que ela abre os olhos e
faz menção de se levantar.
– O que foi? Estás bem?
Avanço um passo.
– Sim, deixa-te estar… Ouve, isto vai parecer de loucos… aliás,
é de loucos, mas a Ruth Gallagher está lá em baixo.
Ela estranha:
– A Ruth? Porquê?
– Veio deter-me.
– Como assim? Deter-te?
– Por homicídio.
Ela escancara os olhos de choque.
– Hã?! Eles acham que… mataste alguém? Mas…
– Não “alguém”. A Emma. Acham que eu matei a Emma.
– Não acredito.
A voz dela é quase inaudível de tão distante.
Ouve-se um ruído à porta e alguém a abre. O King, no seu
maldito fatinho trendy, mais animado do que alguma vez o vi.
Quando o vejo a olhar para a minha mulher, grávida, vulnerável e
linda, noto-lhe um indisfarçável escárnio naquela tromba e tenho de
me esforçar muito – mas mesmo muito – para não lhe assentar um
murro nos cornos.
Apresso-me a dirigir-me a ela e sento-me a seu lado.
– Ouve… tens de acreditar em mim: eu não fiz isto.
Consigo ouvir o King a soltar sonzinhos impacientes atrás de
mim, mas agarro as mãos da minha mulher com força, obrigando-a
a olhar-me nos olhos. Porque este é o momento. O momento em
que ela decide. É advogada, casada com um inspetor. Sabe que as
pessoas não são detidas por capricho, sobretudo sendo polícias.
– Ouve – digo rapidamente, baixando a voz –, eu estive em casa
da Emma…
Ela franze a testa.
– O quê? Quando?
Engulo em seco.
– Naquela noite. – Ela abre a boca para dizer qualquer coisa,
mas eu impeço-a. Não temos tempo. – Ela precisou de um
conselho, nada mais. Achava que estava a ser perseguida. Deve ser
por isso que eles acham que eu… deve haver ADN meu naquele
apartamento…
Sinto a mão do King no meu ombro.
– Já chega. Temos de ir.
Dou-lhe um safanão.
– Hão de mandar uma equipa de busca cá a casa e não deve
tardar nada. Não entres em pânico, é apenas rotina. Deixa-os
fazerem o que precisarem de fazer, mas, quando acabarem, quero
que vás logo para casa da tua irmã e…
– Não – interrompe-me ela rapidamente. – Eu fico aqui. Quero
ficar cá, por ti…
Nego com veemência:
– Não fará nenhuma diferença, eles não te vão deixar ver-me.
Ouve, isto já vai ser suficientemente mau, não quero, ainda por
cima, ficar preocupado contigo… Percebe isso. Preciso de saber
que estás bem, que estás segura, OK? Em casa deles. Fazes isso,
por favor? Por mim?
Ela morde o lábio e acaba por concordar.
– Ligo-te logo que possa e digo-te para onde me levaram.
Porque não será para St. Aldate, disso tenho a certeza.
Ela volta a assentir. Tem os olhos cheios de lágrimas. Faço-lhe
uma festa suave no rosto e outra, rápida e fora da vista do sacana,
no ventre. E levanto-me.
– OK, King – digo.
***

O ambiente no DIC tem estado glacial desde o início da manhã;


quando Everett decide ir tomar um café decente, é-lhe necessária
uma boa dose de determinação para sair para a torreira do sol e
voltar a uma St. Aldate sobreaquecida e sem ventilação. Mas basta-
lhe uma olhadela rápida pela sala para perceber que algo mudou.
Quando saiu, os colegas olhavam para os ecrãs com expressão
determinada, fingindo estar ocupados, evitando os olhares uns dos
outros. Mas agora não. A sala está afundada no silêncio, mas
aquele silêncio que se sentiria após a queda de um meteoro. O
silêncio de uma catástrofe partilhada.
– O que foi? O que é que aconteceu?
Somer ergue os olhos. Está pálida.
– O Fawley foi detido.
– O quê?!
Ev sustém o fôlego, esperando que um deles comece a rir, dizer-
lhe que é uma piada – Ah ah ah, apanhei-te, tansa! –, mas tudo o
que vê é o olhar sombrio de Asante e a carranca de Baxter.
– Detido porquê, por amor da santa?!
– Por homicídio – diz Somer, baixinho. – Por ter matado a Emma
Smith.
Ev olha para Quinn. Quinn, que disse que havia qualquer coisa a
cheirar mal neste caso, que disse que Fawley estava a esconder
alguma coisa. Ele olha para Ev, encolhe os ombros, mas nada diz.
Parece que, desta vez, ele acha que não precisa de lhes esfregar
isso na cara.
– Meu Deus – murmura Ev. – Mas com certeza que…
Não consegue, contudo, acabar a frase. Atrás dela, abre-se a
porta e, um momento depois, dá de caras com Gislingham. Vem
bronzeado e com um amplo e saudável sorriso-de-férias.
Até que para e olha à sua volta.
– Credo… Morreu alguém?

***
Adam Fawley
11 de julho, 2018
11h35

Optaram pela esquadra de Newsbury. Suficientemente perto,


para ser conveniente; suficientemente longe, para haver uma
razoável hipótese de ninguém me reconhecer. Mais do que razoável,
diria, já que, para ser franco, nem me lembro de quando foi a última
vez que cá pus os pés. Esforçamo-nos por tratar da detenção de
colegas com um certo grau de discrição, mas o King deve ter
mandado soar os trompetes para anunciar a nossa chegada, porque
não acredito que isto esteja sempre assim tão à pinha numa tarde
escaldante de verão. Sinto uma onda de olhares “casuais” à medida
que desfilamos, o King com a mão cravada em torno do meu
antebraço para que não restem dúvidas de quem é que manda e um
ligeiríssimo sururu quando paramos na receção. Mas acho que não
é de espantar este tipo de curiosidade mórbida, como a dos
condutores que abrandam para ver um acidente; afinal, a detenção
de um inspetor-chefe é um desastre bastante aparatoso.
O sargento de serviço também se revela na mesma onda,
folheando e preenchendo o registo de detenção como se fosse a
primeira vez na vida que vê uma merda dessas.
Ergue o olhar para mim.
– Também vou precisar que me entregue o seu telemóvel.
– Não antes de eu ligar à minha mulher.
– Pois, mas não o vai fazer desse aparelho, meu amigo. Passou
a ser propriedade da polícia.
– Prometi-lhe que lhe diria para onde eu ia. Ela está grávida.
Tudo o que menos precisa é deste género de coisa…
Ele ergue um sobrolho. Mais valia ter-me dito na cara: Jura? E de
quem é a culpa?
Estende a mão. Eu saco o telemóvel do bolso e faço-o deslizar
pela bancada.
Sinto o murro-no-estômago que me diz que estou a perder todo o
controlo. A minha vida, os meus sentimentos, até a porra do meu
telemóvel. Não consigo sequer mijar sem pedir permissão. Nesta
profissão, habituamo-nos a assumir o controlo e, quanto mais alto
subimos, pior se torna. Também perdemos o dom da subserviência,
isto assumindo que alguma vez o tivemos. Apercebo-me
subitamente de que me tornei um cliché com pernas. Provando do
meu próprio veneno, vendo a coisa do outro lado da cerca, andando
um quilómetro nos sapatos de outrem. O problema é que estes
sapatos são daqueles usados pelos prisioneiros de guerra, em pleno
exercício das suas punições.
Quando me volto, vejo a tromba do King a cinco centímetros da
minha. Sorri. Consigo ver-lhe os dentes.

***

– Mrs. Fawley?
O homem estende-lhe o crachá. Ela não o reconhece. Não é um
dos do Adam, isso de certeza. Este é magro, hesitante, pouco à
vontade.
– Inspetor Farrow – diz, aproximando um pouco mais o crachá da
cara dela. – Podemos entrar?
Está uma carrinha estacionada um pouco mais abaixo na rua.
Branca.
Ela sente um arrepio de medo. Só que desta vez é diferente.
Desta vez, ela sabe quem está lá dentro.

***

Entrevista a Adam Fawley,


realizada na Esquadra de Polícia de Thames Valley,
Mill Lane, Newbury
11 de julho, 2018, 12h30
Conduzida por: Inspetora-Chefe R. Gallagher, Sargento-
Inspetor D. King
Presente: P. McHugh (advogada)
RG: Entrevista iniciada às 12h30. Estão presentes a
Inspetora-Chefe Ruth Gallagher, o Sargento-Inspetor
David King e o Inspetor-Chefe Adam Fawley. O IC
Fawley foi advertido e faz-se agora acompanhar pela
sua advogada, Mrs. Penelope McHugh. Talvez
devêssemos começar, Inspetor-Chefe, pela sua versão
dos acontecimentos da noite de segunda-feira, 9 de
julho de 2018. Já admitiu anteriormente ter estado
no apartamento da Emma Smith. A que horas foi isso?
AF: Por volta das 21h00.
RG: E creio saber que imediatamente antes tinha estado
no seu ginásio?
AF: Sim, no Headington Health and Leisure. Devo ter
saído de lá por volta das 20h45. Certamente poderão
confirmar isto.
RG: Mudou-se no ginásio, antes de sair?
AF: Não, já estava um tanto atrasado, por isso fui
direto para casa da Ms. Smith.
RG: Então, estava vestido com…
AF: Calções, t-shirt e sapatilhas.
RG: T-shirt de que cor?
AF: Branca.
RG: Estou a ver. E mantém o que disse, que foi a
Shrivenham Close a pedido da própria Ms. Smith?
AF: Não mantenho nada, foi o que aconteceu. Recebi-a em
St. Aldate nessa mesma tarde, e ela pediu-me que
passasse lá em casa.
PM: Dada a localização, calculo que existam câmaras de
CCTV que corroborem isso?
RG: Claro que trataremos de confirmar isso mesmo. E
esse vosso encontro em St. Aldate foi por acaso?
Aconteceu ela lá estar, foi isso?
AF: Não, ela dirigiu-se até lá, vinda da Iffley Road,
intencionalmente e aproveitando a sua hora de
almoço. Queria um conselho meu. Disse que não me
levaria muito tempo, por isso ofereci-me para
passar em casa dela antes de ir para a minha.
DK: E ela disse-lhe qual era o assunto?
AF: Não. Tal como já expliquei, eu estive poucos
minutos com a Ms. Smith, nessa tarde. Só soube qual
era o problema nessa noite, quando fui a casa dela.
RG: Então, chegou lá por volta das nove. E esteve lá
quanto tempo?
AF: Cerca de meia hora.
DK: E o que é que se passou ao longo desses trinta
minutos?
AF: Uma vez mais, como já expliquei, falámos do
assediador…
DK: Mais nada?
AF: Não.
DK: Nenhuma conversa casual, nada? Nem sequer sobre a
sua mulher? Elas eram amigas, certo?
AF: A Ms. Smith perguntou pela minha mulher quando eu
cheguei, mais nada. Não era por isso que eu lá
estava.
RG: E que tipo de rumo é que a conversa levou?
AF: Ela contou-me o que estava a acontecer – incidentes
específicos, datas e horas…
DK: Ela mantinha esses registos?
AF: Informalmente, sim. Era mais como um diário. Não
era algo que se sentisse à vontade para partilhar.
RG: Oficialmente, não foi encontrado nenhum diário
desse género no apartamento da Ms. Smith.
AF: Pois, mas nessa noite estava lá. Eu próprio o vi,
na mesa de centro da sala.
DK: Quando ela verificou essas datas, você tomou notas?
AF: Não. Quando peguei no bloco de apontamentos, ela
ficou muito nervosa, pediu-me que não anotasse
nada. Disse que não estava preparada para fazer uma
queixa oficial.
DK: Quer dizer que temos apenas a sua palavra a esse
respeito.
AF: Como já disse, ela não queria agravar as coisas…
DK: Então, como eu já disse, temos apenas a sua
palavra. Porque, ao que parece, mais ninguém tem
conhecimento desse alegado assediador.
AF: Quanto a isso, não sei. Sei apenas aquilo que ela
me disse. E, como entretanto nós viemos a
descobrir, um homem chamado Hugh Cleland tinha tido
recentemente uma altercação com ela… Pode
perfeitamente ter levado a coisa mais longe.
RG: Mas, uma vez mais oficialmente, as impressões
digitais do Hugh Cleland não foram encontradas em
rigorosamente lado nenhum desse apartamento.
PM: E ADN? Também não?
RG: Já foram extraídas amostras e estamos a aguardar os
resultados.
PM: E esse Cleland tem algum álibi para a noite em
questão?
RG: A investigação ainda está em curso, é tudo o que
lhe posso dizer neste momento.
DK: [para Fawley]
Mas, então, se a Ms. Smith achava que o Cleland
podia andar a persegui-la, porque não contou a
ninguém? À entidade patronal, aos colegas…?
AF: O que ela me disse foi que nunca viu a cara do
homem. Talvez tivesse receio de acusar o Cleland
sem ter evidências inequívocas de que era de facto
ele.
DK: E quanto à família e aos amigos? Podia ter falado
com eles.
AF: A impressão com que fiquei foi que ela era uma
pessoa extremamente reservada…
DK: Reservada ou não, eu continuo a achar estranho.
Muito estranho. Sobretudo se tivermos em
consideração que, segundo os pais, a Ms. Smith já
tinha tido uma experiência parecida uns anos antes.
AF: Desconheço completamente. Ela nunca me disse isso.
DK: Alguém que já tenha passado por uma coisa dessas,
se achar que está de novo a passar por isso,
certamente não vai guardar para si próprio.
AF: Tal como já expliquei, eu não estou em posição de
especular sobre o comportamento da Ms. Smith. Ela
era amiga da minha mulher. Eu mal a conhecia.
DK: Conhecia-a suficientemente para tomar uma bebida
com ela.
AF: Ela ofereceu-me gentilmente um copo de vinho.
Pareceu-me indelicado recusar.
DK: Quanto é que ela bebeu?
AF: Na minha presença, só um copo de vinho.
DK: A autópsia sugere que terá sido bastante mais do
que isso.
PM: Não há forma de se determinar com precisão quando é
que a Ms. Smith consumiu o álcool identificado na
autópsia. O IC Fawley pode apenas comentar o que
sucedeu na sua presença.
DK: Então, ela já tinha bebido uns copitos, estava
muito em baixo, por isso… o que é que fez? Pôs-lhe
o braço ao redor dos ombros?
AF: Não.
DK: Confortou-a de alguma maneira?
AF: Não.
DK: Afinal de contas, ela tinha rompido com uma
relação, estava vulnerável…
AF: Não.
DK: Ela era uma jovem atraente, a sua mulher está
grávida… é fácil perceber como uma coisa pode ter
levado à outra e…
AF: Não aconteceu. E não lhe admito qualquer referência
desse tipo à minha mulher.
DK: Talvez até a própria Ms. Smith tenha alinhado na
coisa, de início, e talvez por isso você tenha
pensado que estaria tudo bem… Ou até mesmo talvez
tenha sido ela a dar o primeiro passo, quem sabe já
gostava de si há anos, não é? Só que, subitamente,
ela muda de ideias, tenta afastá-lo e…
AF: [abana a cabeça]
DK: Até que ela começa a debater-se, desata aos gritos…
AF: Não. Não, não, não…
DK: … você leva-lhe a mão à boca, querendo calá-la de
qualquer jeito…
AF: Não lhe toquei em nenhuma ocasião. E ela estava
viva e de boa saúde quando eu saí de lá.
DK: Não a matou.
AF: Não.
DK: Não a violou…
AF: Não.
DK: Nem sequer fez sexo consensual com ela…
AF: Não. De maneira nenhuma!
RG: [fazendo deslizar uma folha pela mesa]
Isto é a cópia do relatório forense que recebemos
esta manhã. O laboratório isolou uma quantidade de
ADN masculino relacionado com o caso Smith. E não é
do Hugh Cleland.
PM: Mas não disseram que ainda estavam a aguardar os
resultados do ADN dele?
RG: Estamos a aguardar os resultados dele, sim. Mas
este não é dele. E estamos certos disso porque é um
match perfeito com o de outra pessoa. Mais
precisamente com uma amostra guardada na base de
dados nacional da polícia, para efeitos de
eliminação.
AF: Eu estive no apartamento. É claro que o meu ADN
está lá.
RG: Não estou a falar do que eles encontraram no
apartamento. Refiro-me ao que encontraram no
cadáver.
AF: O quê?
RG: É muito simples: o seu ADN foi encontrado no corpo
da Emma Smith. Talvez consiga dar-nos uma
explicação para isso?…
AF: Só pode ser algum erro.
[pausa]
A única coisa que me vem à cabeça é ter havido
algum contacto acidental… Talvez as nossas mãos se
tenham tocado quando ela me deu o copo de vinho.
RG: Está a afirmar que foi isso que aconteceu?
AF: Não. Estou a dizer que pode ter acontecido.
Francamente, não me lembro se sim ou se não.
RG: O seu ADN não foi identificado apenas numa zona,
Inspetor-Chefe Fawley, nem sequer apenas nas mãos.
Estava em todo o corpo dela.
AF: Não. De maneira nenhuma. Não é possível…
DK: Incluindo, e mais importante, na zona genital.
RG: Além de tudo isto, o exame post mortem dessa zona
identificou um único pelo púbico. Um pelo que não
pertencia à vítima. Um pelo masculino. E seu.

***

Alex Fawley está sentada no jardim, a fingir que lê, enquanto


ouve a equipa de busca andar pela casa. Os murmúrios e sussurros,
os passos para trás e para a frente, dentro e fora da casa. Não quer
nem imaginar a cusquice dos vizinhos, os queridos e as queridas
que vão “ali só comprar leite” para poderem ver melhor o que se
passa.
O único CSI que ela conheceu foi Alan Challow, numa das festas
de Natal de St. Aldate. Mas, hoje, nem sinais dele. Deve estar
demasiado embaraçado. Ela sabe que sim. A pessoa que parece
estar aos comandos é uma mulher asiática. Serena, profissional e
minuciosa. Mas há algo nos seus olhos escuros por detrás da
máscara que Alex prefere não ver. Neste momento, simpatia era
algo que ela não ia aguentar.
A porta das traseiras abre-se e o inspetor magricela desce pelo
jardim, na sua direção. Já precisava de um corte de cabelo. Sempre
que ela o vê a afastar a guedelha dos olhos, tem de morder a língua.
– Mrs. Fawley?
Ela ergue o olhar para ele e baixa-o de novo para o livro.
– Desculpe incomodá-la, mas acha que poderia responder a
umas perguntas?
Ela volta a olhar para ele, com uma mão a proteger os olhos do
sol.
– Sobre…?
– Coisas básicas, puramente factuais. A que horas é que o seu
marido chegou a casa na segunda-feira à noite, coisas deste tipo…
Apetece-lhe mandá-lo bugiar, dizer-lhe que se meta na vida dele,
mas ela não é estúpida. Sabe que só pioraria ainda mais a situação.
E a única coisa que ela não pode mesmo encarar é a ideia de ser
levada para St. Aldate. Nas traseiras de um carro-patrulha, a suar
em bica, todos os olhos nela, sentindo-se do tamanho de uma
baleia.
– Creio – diz ela pesadamente – que devia ir buscar uma
cadeira.

***
[TEMA MUSICAL: AARON NEVILLE VERSÃO COVER DE “I SHALL BE RELEASED”]

[JOCELYN]
Sou a Jocelyn Smith e sou cofundadora de “Toda a Verdade”, uma
organização sem fins lucrativos que luta pela reposição dos erros de
justiça. Esta é a série 3 de “Fazer do Errado Certo: O Violador da Beira
da Estrada Redimido?”.

Capítulo Quatro: Gesso

Devem estar a pensar que “Gesso” é um nome estranho para este episódio.
Mas, no que ao Gavin Parrie diz respeito, é apenas horrivelmente relevante.

Antes de avançarmos, devo avisar-vos de que este episódio inclui pormenores


passíveis de ferirem a sensibilidade de alguns ouvintes.

No último episódio, ouvimos como a terceira vítima do Violador da Beira da


Estrada, Alexandra Sheldon, acabou por casar com um dos principais
investigadores do caso, o Sargento-Inspetor – agora, Inspetor-Chefe – Adam
Fawley. No nosso ponto de vista, este é quiçá o mais importante fator a ter em
conta quando se avalia a alegada culpa do Gavin Parrie.
Mas já estou outra vez a pôr a carroça à frente dos bois. Antes de mais,
precisamos de recuar ligeiramente nos nossos passos.

Na noite de 16 de outubro de 1998, Louise Gilchrist ia a caminho de casa,


vinda do seu trabalho num consultório médico em Cuttleslowe, quando se viu
arrastada para uma zona de vegetação rasteira e brutalmente violada. Nem
um mês depois, a quinta vítima, uma parteira estagiária de dezanove anos, foi
atacada a caminho de casa, vinda do John Radcliffe Hospital, em Oxford,
tendo sofrido ferimentos gravíssimos.
O tempo entre cada ataque ia escasseando cada vez mais, e a violência era
cada vez maior. O Violador da Beira da Estrada parecia descontrolado.

[ALISON DONNELLY]
Quero dizer… eu já tinha ouvido falar no Violador da Beira da Estrada – toda a
gente tinha. Mas isso era em Oxford. Abingdon fica a quilómetros de lá. Nunca
ninguém pensou que nos pudesse acontecer a nós.

[JOCELYN]
Esta é a Alison Donnelly. Trata-se da única vítima sobrevivente preparada
para falar publicamente sobre o seu suplício. Na altura, tinha apenas vinte e
um anos.

[ALISON]
Eu ia a caminho de casa e já estava em Larbourough Drive, a escassos
metros do meu apartamento. Tinha estado a chover toda a tarde, as sargetas
estavam todas a transbordar e, quando eu parei para atravessar a rua, passou
um camião enorme e molhou-me toda. Creio que me distraí por um minuto. E
foi aí que aconteceu.

[JOCELYN]
A Alison nem sequer ouviu o homem que lhe apareceu por trás. O homem que
lhe enfiou um saco de plástico pela cabeça e a arrastou para fora da rua até
uma zona de vegetação.

[ALISON]
Eu tentei lutar, resistir, mas não conseguia ver – o plástico colava-se-me à
cara.
Depois, senti-o arrastar-me pelo meio de uns arbustos e atirar-me para as
traseiras de uma carrinha. Senti uma cena de plástico no chão. Nunca tive
tanto medo na minha vida. Julguei que ele me ia matar.

[JOCELYN]
Sabemos agora que o atacante conduziu a Alison até um parque de
estacionamento a mais de dezasseis quilómetros dali, na circunvalação de
Oxford.

[ALISON]
Ele arrastou-me para fora da carrinha e pelo asfalto – pelo menos, foi a
sensação que tive debaixo dos pés. Depois, atirou-me para o chão, de costas,
arrancou-me as cuecas e violou-me. Depois, senti-o sair de cima de mim e
levantar-se, e os passos dele a afastarem-se. Fiquei ali, a suster a respiração,
a rezar para que ele não voltasse.

[JOCELYN]
Mas essas preces não foram ouvidas.

[ALISON]
Uns minutos mais tarde, voltei a ouvir passos, cada vez mais próximos, e,
num segundo, ele já me estava a agarrar e a virar-me brutalmente de cara
para o chão.

Foi tão doloroso… Claro que ele sabia que me estava a magoar, mas isso
nunca o preocupou. Achei que ele me estava a castigar por ter sido tudo tão
rápido da primeira vez.
Tinha uma mão cravada com toda a força na minha nuca, empurrando-me a
cara para o chão, e eu não conseguia respirar. Quando me tentei defender,
ele começou a bater com a minha cabeça no cimento. Dessa vez, não acabou
assim tão depressa.

[JOCELYN]
A Alison sofreu uma fratura do crânio e perdeu a visão de um olho. Os seus
ferimentos foram horrendos.

[ALISON]
A dada altura, devo ter desmaiado, porque, quando dei por mim, só vi luzes
azuis, a polícia e uma ambulância.

[JOCELYN]
A Alison foi imediatamente levada para o JR Hospital, onde foi submetida a
uma cirurgia de urgência. Só cinco semanas depois é que lhe foi dada alta,
considerada suficientemente bem para ir para casa; mesmo assim, passou
por longos meses de reabilitação. Entretanto, e pela primeira vez, a Thames
Valley teve um golpe de sorte.
Encontraram algo impregnado nas solas dos sapatos da Alison, que só pode
ter vindo da parte de trás da carrinha.

Tratava-se de uma substância chamada sulfato de cálcio. Pó de gesso. E


representou a primeira pista real da polícia. E que viria a revelar-se crítica.

E não foi este o único desenvolvimento no caso. Um dos companheiros de


casa da Alison lembrava-se de ter visto uma carrinha branca estacionada
mais abaixo, na rua, em várias ocasiões, nos dias anteriores ao ataque. Foi a
primeira indicação de que a teoria do Sargento-Inspetor Adam Fawley estava
certa: o violador podia de facto ter andado a perseguir as suas vítimas.

Era um progresso importante, mas não chegou a tempo de salvar a vida da


Lucy Henderson, que viria a ser a sétima e última vítima deste monstro. A 12
de dezembro, foi atacada a caminho de casa, quando regressava do trabalho,
manietada e atirada para dentro de uma carrinha, conduzida até um complexo
industrial desmantelado, onde foi selvaticamente violada. Mais uma vez, foram
encontrados vestígios de pó de gesso nos seus sapatos.

[ALISON]
Depois do que aconteceu à Lucy, a polícia pediu-me para fazer uma
reconstituição para ser passada no Crimewatch, e eu disse que sim, porque
queria fazer tudo o que fosse possível para ajudar. Mas foi horrível… foi como
reviver tudo aquilo outra vez.

[JOCELYN]
Como o juiz do tribunal afirmou mais tarde, a Alison mostrou uma coragem e
uma resiliência extraordinárias perante um ataque tão horripilante. E, agora,
vinte anos depois, descobriu uma nova vocação como conselheira, ajudando
outras vítimas de agressão sexual. Por isso, algo de realmente positivo
acabou eventualmente por acontecer à conta do seu verdadeiro martírio.

Mas, tragicamente, o mesmo não viria a acontecer com a vítima seguinte do


Violador da Beira da Estrada.
Na véspera do Natal de 1988, a Jennifer Goddard, a mãe da sua quinta
vítima, chegou a casa e encontrou a filha morta, depois de uma overdose.
Havia um bilhete em cima da cama que dizia que lamentava muito, mas não
conseguia mesmo aguentar mais.

O Violador da Beira da Estrada tinha ceifado a sua primeira vida.

[Música de fundo: UNDER THE BED, “TEARS IN HEAVEN” – ERIC CLAPTON]

Sou a Jocelyn Naismith, e este é o “Fazer do Errado Certo”. Pode ouvir


este e outros podcasts de “Toda a Verdade” no Spotify ou onde quer que
carregue os seus podcasts.

[FADE OUT]

***

RG: Entrevista retomada às 13h10. Presentes os mesmos


intervenientes da primeira parte.
DK: Regressemos aos resultados forenses, sim? Porque,
francamente, tenho-me esforçado imenso para
encontrar uma explicação… para além daquela mais
óbvia.
AF: Só pode ter havido algum engano…
DK: Um engano? A sério? Quantas vezes eu já ouvi
suspeitos, ao longo de todos estes anos, a virem
exatamente com essa treta? “Não fui eu, eu não
estava lá.” Isso é mesmo o melhor que consegue
fazer neste momento?
AF: Oiçam, se eu tivesse tido sexo com ela, vocês
teriam encontrado sémen, não apenas um pelo púbico.
DK: Pode ter usado preservativo.
AF: Você pode ter o tipo de casamento que o leva a
andar com preservativos para alguma feliz
eventualidade, King, mas eu garanto-lhe que não é o
meu caso.
DK: [chega-se à frente]
Explique.
O.
Pelo.
Púbico.
AF: [pausa]
Não existe uma explicação.
DK: [recosta-se de novo]
Oh… eu acho que sim. Você não?

***

– Eu continuo sem acreditar, porra! – diz Gislingham.


Já passa das duas da tarde. Há horas que ninguém faz coisa
nenhuma. Casacos despidos, gravatas aliviadas, a máquina de
bebidas do corredor já sem latas frescas. Alguém sugeriu, há uns
tempos, mudarem-se para o pub, mas ninguém parece ter força de
vontade suficiente para levar as suas coisas e sair.
– Digam-me lá outra vez o que disse a Gallagher?
– Não foi através dela que eu soube – diz Quinn. – Foi aquele
gajo, o Farrow. Segundo ele, o argumento decisivo foi o ADN, mas,
quando apertei com ele, assumiu aquele ar de demasiada
informação. Ainda que não tenha resistido a deixar escapar que nem
mesmo o Fawley se vai conseguir safar desta.
– Foda-se – diz Gislingham. Ainda não consegue acreditar que
regressou da Costa Brava diretamente para isto.
– Queres que eu fale com o Clive Conway? – sugere Baxter. –
Ele deve-me uma. Ou mesmo duas ou três.
Mas Gis está a abanar a cabeça:
– Não, não. É melhor não. Não te quero a aterrar na merda. Já
temos disso em abundância, pelo que estou a ver.
– E, seja como for – observa Ev, em tom desesperançado –, que
diferença é que isso faria? Não há nada que nenhum de nós possa
fazer.
Gis abre a boca para responder, mas muda de ideias. Porque
está alguém à porta. A ocupar todo o espaço da soleira estreita.
Harrison.
Gis endireita-se instintivamente:
– Boa tarde, senhor Superintendente.
– Ah, Inspetor Gislingham, que bom tê-lo de volta. Bem jeito nos
teria dado a sua coordenação por aqui, nestes últimos dias.
Quinn suspira, mas não suficientemente alto para Harrison
reparar.
O Superintendente dirige-se ao centro da sala. Sabe bem como
dominar um espaço.
– Imagino que estejam todos a par da infeliz notícia sobre o
Inspetor-Chefe Fawley. Bom, obviamente não vou discutir o caso ou
entrar em pormenores acerca dos indícios que recaem contra ele.
Seria tão inadequado quanto prematuro. O que direi, sim, é que
espero ou, melhor, confio em vós, enquanto equipa, para
demonstrarem os mais altos padrões de integridade profissional.
Este não é um caso vosso e não deverão em nenhumas
circunstâncias interferir com a investigação ou entravar a equipa da
Inspetora-Chefe Gallagher seja de que modo for.
Olha em volta, lentamente, demorando-se em cada um deles.
– E, para que não reste a menor dúvida, isto inclui explicitamente
qualquer tipo de contacto com a imprensa. Nada de “consta que”,
nada de “fontes próximas à investigação”… Fui claro? Escusado
será dizer que não haverá nenhuma declaração oficial de género
nenhum até ou a não ser que o Inspetor-Chefe Fawley seja
acusado.
Gislingham não é o único que estremece ao ouvir isto: é uma das
frases típicas de Fawley.
Harrison aclara a garganta:
– Já é suficientemente mau que o nosso suspeito de homicídio
seja um inspetor-chefe da Polícia de Thames Valley; será mil vezes
pior se este facto se tornar público.
Volta a olhar em volta. Murmúrios de “sim, senhor”, “claro, senhor
Superintendente”.
– Esta equipa tem muito que fazer. O caso Fisher, para começar.
Ou será que já se esqueceram dele?
Quinn olha para ele.
– Pensei que estávamos a aguardar que o Ministério Público…
Harrison olha-o fixamente; depois, vira-se para Gislingham:
– Espero, então, que se encarregue disso, Sargento-Inspetor.

***

DK: Regressemos ao assediador.


AF: Já expliquei isso.
DK: A mim, não explicou nada.
AF: [pausa; depois, lentamente]
Pedi à Ms. Smith que me desse pormenores dos
incidentes. Depois, falámos de possíveis suspeitos.
Alguém que pudesse ter algum tipo de ressentimento
contra ela, colegas ou ex-namorados…
DK: E o que é que ela disse?
AF: Não fazia a mínima ideia de quem poderia ser.
DK: Quer dizer que ela nunca mencionou este homem, o
Cleland?
AF: [pausa]
Não.
DK: E quanto ao mais recente namorado? O que é que ela
disse sobre ele?
AF: Que já não o via há muito tempo. Que a relação não
foi assim tão séria e que, além do mais, tinha sido
ele a acabar. Não tinha razão nenhuma para a
assediar.
DK: Ela disse mesmo isso, que esse tipo a deixou?
AF: Não disse que ele a “deixou”…
DK: Mas que fora dele a decisão de acabarem a relação.
AF: Sim. Isso, sem dúvida nenhuma.
DK: É que, sabe, é precisamente com isso que eu tenho
um problema. Esse ex-namorado.
AF: Porquê? A mim, parece-me muito simples.
DK: [abanando a cabeça]
Temo que não seja. Nem de longe nem de perto.
Porque não existia nenhum ex-namorado.
AF: Não estou a perceber.
DK: A Emma Smith não tinha namorado. Nem na altura nem
nunca. Porque a Emma Smith era gay.
AF: [silêncio]
Não. Devem ter percebido mal…
DK: Nah… Ela não era propriamente assumida e orgulhosa,
isso dou-lhe de barato. Mas era gay, sim. Andava
envolvida com uma mulher chamada Amanda Haskell –
que nos apareceu depois de ter visto as notícias.
Vimos emails trocados entre elas. Não há a menor
dúvida.
[recosta-se de novo]
Por isso, tudo o que você disse… era mentira.
Aquela treta toda dos antigos namorados…
AF: Não. De maneira nenhuma. Foi ela própria que me
disse…
RG: Eu própria estou parva com isto, devo confessar.
AF: Talvez ela quisesse dizer… Oiçam, a única razão
plausível que eu consigo encontrar é que ela pode
ter-se referido a uma pessoa, e eu parti do
princípio de que…
DK: Não foi isso que você disse. Mais: nunca usou o
termo “uma pessoa”. Nem uma única vez, em altura
nenhuma, quando nos contou essa conversa. Eu sei
porque estive constantemente a tirar notas.
AF: Como disse, posso ter simplesmente presumido que…
quero dizer, a minha mulher nunca sequer sugeriu
que a Emma era gay. E eu certamente me lembraria
disso.
DK: Por falar na sua mulher, vamos lá passar em revista
outra vez tudo o que você fez depois de ter saído
do apartamento da Emma.
AF: Fui direto para casa. Cheguei por volta das 21h45.
A minha mulher estava a preparar-se para ir para a
cama. Fiz-lhe uma chávena de chá.
DF: E o que é que fez depois disso?
AF: Tomei um copo de vinho…
DK: Outro copo de vinho…
AF: Vi um bocado de televisão.
RG: O quê?
AF: Não sei, um programa americano qualquer.
DK: E foi-se deitar a que horas?
AF: Talvez pelas dez. Não me lembro da hora exata.
DK: E a sua mulher pode confirmar isso?
AF: [silêncio]
RG: É uma pergunta muito simples, Inspetor-Chefe
Fawley.
AF: [silêncio]
Não, não pode.
DK: Não a quis acordar quando se foi deitar? Eu faço
sempre isso, a minha mulher chateia-me a cabeça de
todas as vezes…
AF: [silêncio]
DK: Ah, desculpe lá, meu amigo, já me esquecia… Você
agora dorme no quarto de hóspedes, certo?
AF: Mas como raio é que…
DK: Que grande maçada… tão sozinho, há… quanto tempo,
mesmo? Três meses? Quatro? Deve ser muito
frustrante.
Se é que me entende.
AF: A única forma de você ter sabido disso foi através
da minha mulher…
DK: Pois, sabe como são estas coisas. Não há segredos
numa investigação de homicídio, meu amigo.
AF: Eu não sou seu “amigo”…
PM: Isto é absolutamente desnecessário, Inspetor King.
O Inspetor-Chefe Fawley tem o mesmo direito de
qualquer outro suspeito à cortesia e ao respeito.
Quanto a mim, mais ainda.
RG: Peço desculpa por qualquer desrespeito que o
Inspetor King possa ter…
[olhando para ele]
… inadvertidamente mostrado.
PM: Obrigada.
RG: Mas continua a ser um facto que existem numerosas
falhas na versão dos acontecimentos dada pelo seu
cliente. Falhas e incongruências. E, tal como ele
próprio muito bem sabe, confrontada com estas
falhas e incongruências, a polícia não tem
alternativa senão investigar a fundo. Por mais
desconfortável que isso possa ser, em certas
ocasiões. Ainda assim, penso que talvez esta seja
uma boa altura para fazermos uma pausa. Entrevista
suspensa às 14h15.

***

Nina Mukerjee ergue o olhar. Há um homem que segue o


assistente pessoal de Alan Challow até ao seu gabinete, um homem
que ela nunca viu antes.
– Quem é aquele? – pergunta ela a Conway.
Ele olha para lá e faz uma careta.
– Dave King. Sargento-Inspetor nos Crimes Graves.
Ela estranha; já está na Thames Valley há dezoito meses e é a
primeira vez que se cruza com ele.
– É novo?
Conway nega:
– Nah… já cá está há anos. Só que não grama misturar-se com
pessoas como nós, pobres mortais. Geralmente, manda um dos
servos dele.
Nina volta a olhar para King. É a versão cota de um “chui durão”,
isso, sem dúvida. Aliás, representa uma séria ameaça a Gareth
Quinn no que à elegância diz respeito. Camisa cor-de-rosa, fatinho
slim, a barbinha impecável. Faz lembrar alguém saído de um thriller
psicológico de sábado à noite – o tipo sorridente que parece fixe à
superfície, mas quase de certeza que não é.
Conway faz outra careta.
– Nem vale a pena apostar que o gajo está cá pela cena do
Fawley.
Faz sentido. Uma equipa de polícia científica pode não merecer o
esforço da parte de King – ou fazê-lo perder tempo precioso –, mas
meter na choldra um inspetor-chefe é claramente todo um outro
assunto.
O assistente de Challow dirige-se a eles.
– Ai, porra – murmura Conway. – Periscópios pra baixo.
Nina ri-se, apesar de tudo, mas o sorriso desvanece-se quando o
assistente para na secretária dela.
– O Alan pede-te que sejas tu a acompanhar isto, se não vires
problema.
Ela não tem grande escolha. Conway ri-se para ela ao vê-la
reunir os papéis e seguir o assistente de volta ao gabinete de
Challow.
King já está devidamente instalado: café, garrafa de água, tablet.
Realmente… ele e Quinn devem ter sido separados à nascença.
Está recostado na cadeira, de perna cruzada. Não usa meias. A
Nina, bastam-lhe trinta segundos na mesma sala com ele para lhe
ganhar um asco do tamanho do mundo.
– Este é o Sargento-Inspetor King – apresenta-o Challow. –
Gostaria que lhe fizesses um apanhado de tudo de útil encontrado
em casa do Fawley.
– A equipa de busca acabou de chegar de lá…
– Sim, pois – diz King, olhando-a diretamente nos olhos –, mas,
que eu saiba, isso nunca deteve nenhuma equipa CSI competente
com quem eu tenha trabalhado. Vocês têm de ter alguma coisa.
Nina dedica-lhe um olhar desarmante; depois, abre uma pasta.
– As roupas que o Inspetor-Chefe Fawley usou na noite do
homicídio já foram lavadas, por isso não vamos poder retirar nada
de útil daí. A equipa trouxe as sapatilhas de corrida, mas, tendo em
conta o MO que envolveu o crime, duvido muito que encontrem
nelas sangue ou fluidos corporais. Se bem que, evidentemente,
iremos checar tudo isso. – Recosta-se. – E não foi encontrado nada
de nenhum valor ou utilidade no resto da casa. Lamento.
– E preservativos?
– Não.
– Presumo que tenham visto no saco do ginásio?
Um olhar sem viço, desta vez.
– Hum, sim… curiosamente, isso ocorreu-lhes, sim.
Ele franze a testa.
– E no Mondeo?
Ela inspira e conta silenciosamente até dez.
– Não, nada.
– Viram a bagageira?
Ai, foda-se, pensa ela.
– Sim. E não, também não havia nada de significativo. Nada de
fluidos, nada de pelos ou cabelos para lá do óbvio. Mesmo assim,
recolhemos amostras para ADN, para que não restem dúvidas, mas
duvido muito que encontremos alguma coisa. Ah, e antes que
pergunte: o carro não foi lavado nem limpo recentemente.
Resumindo: não há nada que sugira que o Inspetor-Chefe Fawley
tenha utilizado esse veículo para transportar um corpo.
King esboça um sorriso irónico:
– Bom, calculo que, se alguém se lembrasse de o revestir com
plástico, teria de ser um agente de polícia no ativo…
– Isso – observa Challow calmamente –, assumindo que alguma
vez lá esteve um corpo dentro.
O sorriso do outro transforma-se numa risada acre.
– Pois claro.
***

Quando Freya entra em casa, constata que Caleb nem se


mexeu. Continua sentado no banco da janela, a olhar com
expressão vazia para o jardim, exatamente como o deixou quando
saiu, já lá vai meia hora.
– Trouxe-te uma sandes de atum e milho – diz. – A tua preferida.
Soa artificial, e ela sabe. Mas precisa de preencher o silêncio.
Dirige-se à janela, mas ele não se volta – nem parece perceber
que ela ali está.
– Caleb? – diz, um pouco mais alto.
Por fim, ele volta-se e olha para ela.
– Desculpa, baby. Estava a milhas daqui.
Ela senta-se ao lado dele e põe-lhe um braço à volta dos
ombros.
– Vai correr tudo bem, baby. A sério.
Ele concorda, mas já não olha para ela. Freya sente o corpo dele
rígido contra o seu.

***

Gislingham desliga o telefone.


– OK, era a advogada do MP. Parece que ela já tinha
comunicado ao Fawley que ainda há algumas questões sobre o
caso Fisher que quer ver esclarecidas, antes de tomar a decisão
final de prosseguir com a ação judicial ou não.
– Uma perda de tempo do caraças – murmura Quinn. O estado
de espírito do resto da equipa também não é muito mais animado.
– Vá lá, malta – diz Gis, tentando injetar alguma energia na voz.
– Quanto mais depressa nos livrarmos disso, melhor, seja para que
lado for. Contem-me lá onde é que estamos.
Baxter olha de relance para Quinn, mas vê-o demasiado
chateado para responder. Por isso, respira fundo antes de falar:
– Bom, houve decididamente algumas incongruências nas
declarações. Sobretudo a da Fisher. Alegou que não sabia como é
que o vestido se rasgou, mas o Bryan Gow acha que ela está a
mentir. Se bem que, quando ela diz que não se recorda de ter tido
qualquer contacto com o Morgan, está a dizer a verdade. – Encolhe
os ombros. – Seja por que prisma for que se olhe para isto, é
sempre estranho. O que é que há de tão especial no vestido que
justifique mentir?
– Boa pergunta – diz Gis. – E que tal se a trouxéssemos cá e lhe
perguntássemos diretamente?

***

O ambiente no gabinete dos Crimes Graves é bastante mais


animado do que o da porta ao lado. Violação e homicídio, com um
Inspetor-Chefe como principal suspeito; carreiras inteiras foram já
alicerçadas em menos do que isto. Mas Simon Farrow não tem
ilusões quanto à sua posição na cadeia alimentar. Não é inspetor há
muito tempo – nem há um ano sequer –, por isso tem um “facilmente
descartável” tatuado na testa. Não que se queixe. Sempre quis ser
inspetor da polícia, logo desde criança, quando recebeu no Natal um
kit de Sherlock Holmes. A mãe gosta de atribuir isso ao facto de ele
ter crescido num lar em que todos eram absolutamente fanáticos
pelo Inspetor Morse – “e, além disso, vivemos em Oxford” –, mas,
pelo menos, ele conseguiu convencê-la a não dizer essas coisas em
frente às namoradas. Se bem que para Simon seja difícil imaginar o
John Thaw25 a aguentar o tipo de cenas a que neste momento está
a ser sujeito. Isto porque, com os apelos online e o cartaz fixado na
ponte de Walton Bridge, têm sido inundados por telefonemas – e ter
de lidar com isto é só o refugo do refugo da lista de tarefas. Vão
rodando a equipa neste suplício porque, ao fim de pouco tempo, o
cérebro fica em papa. E agora cabe-lhe a ele o turno da merda.
Mas, como a avó costumava dizer-lhe26, “também O serve aquele
que fica e espera”. Ou, neste caso, que fica e atende telefones.
Está prestes a levantar-se para ir buscar outro café quando um
dos seus colegas inspetores o chama:
– Eh, Farrow, deve ser o teu dia de sorte. O King acabou de ligar.
Quer-te em Newbury. Tipo já.

***

DK: Entrevista retomada às 16h10. O Inspetor Simon


Farrow está agora também presente. Bom, vamos lá
diretos ao assunto, OK? Estive a ouvir tudo o que
você disse, Fawley, e algumas coisas fazem sentido.
E sem dúvida que parte delas poderá ser
corroborada. Mas não há como rodear o facto de que,
neste momento, tudo aponta para a mesma conclusão:
algum ato sexual tem de ter ocorrido entre si e a
Emma Smith, e ela acabou morta.
AF: Não. Não foi isso que aconteceu.
DK: Entrou em pânico – a sua carreira, o seu casamento,
a porra da sua vida toda entraria em colapso se
isto se soubesse. Então, envolveu o corpo nalguma
coisa – plástico, um lençol – e…
AF: [abanando a cabeça]
DK: … enfiou-o na mala do carro. O seu Ford Mondeo
azul-escuro.
AF: [enfaticamente]
Não!
DK: O carro foi avistado. Você foi avistado. Os
vizinhos identificaram um veículo que corresponde
ao seu e um homem vestido exatamente com a mesma
roupa que você afirmou que tinha vestida, isto à
porta do apartamento da Emma Smith, na noite de 9
de julho.
AF: Mas quantas vezes terei de repetir… Já vos disse
que estive lá, sim. É claro que me viram…
DK: E, de seguida, foi para casa ter com a sua mulher,
como se nada tivesse acontecido. Ela lembra-se de
terem conversado por uns minutos na cozinha,
enquanto lhe preparava um chá. O que ela não sabia
era que, durante esse tempo todo, o cadáver de uma
das suas melhores amigas estava na mala do seu
carro.
AF: Isto é de doidos…
DF: Bebeu um copo de vinho, viu um pouco de televisão
e, assim que viu que era seguro, escapuliu-se para
o escuro da noite e conduziu até à ponte de Walton
Well. Sabia que tinha de se ver livre do corpo – e
o mais rápido possível. E que melhor local do que a
linha férrea? Um comboio de mercadorias trataria de
apagar rapidamente quaisquer indícios, isto
assumindo que alguém se daria ao trabalho de
investigar. Com sorte, o caso seria arquivado como
suicídio, e ponto final. Só que você não se podia
arriscar a ficar por lá muito tempo, não fosse ser
visto, por isso empurrou o corpo pela balaustrada e
largou-o. Só no dia seguinte é que viria a
aperceber-se do caos que aquilo provocou.
PM: Para que conste, o meu cliente nega categoricamente
cada uma destas alegações perfeitamente ridículas.
DK: Largou os plásticos ou o lençol num contentor
qualquer a caminho de casa e provavelmente fez o
mesmo ao telemóvel dela. Mas não convém esquecer
que o canal fica apenas a escassos metros dessa
ponte, quem sabe ainda apareça…
PM: É de facto uma história verdadeiramente engenhosa,
Inspetor King, mas, falando em termos puramente
práticos, considero muito difícil de acreditar que
o meu cliente possa ter conduzido de Risinghurst à
ponte de Walton Well – uma distância de quê… dez
quilómetros? – sem passar por uma única câmara de
CCTV ou dispositivo de reconhecimento automático de
matrículas.
DK: [passando-lhe uma folha de papel]
Por acaso, e como poderá verificar, há um percurso
perfeitamente praticável. Qualquer pessoa com
Google Maps poderá fazê-lo, quanto mais um agente
de polícia com a patente e experiência do Inspetor-
Chefe Fawley.
AF: [engole em seco]
E as câmaras de CCTV da ponte?
DK: Aqui, quem faz as perguntas sou eu. Não você.

***

É a primeira vez que Gislingham vê Marina Fisher em carne e


osso, ainda que a tenha visto em fotos e recebido uma descrição
objetiva e caracteristicamente adequada da boca de Gareth Quinn
(“entradota, mas decididamente papável”). Assim que a vê, Gis
percebe o que Quinn quis dizer. Fisher tem de facto um je ne sais
quoi, mesmo nestas circunstâncias tão pouco favoráveis. Ele
também já tinha ouvido tudo sobre o seu extravagante modo de
vestir, mas não o surpreende vê-la hoje com um sóbrio tailleur azul-
escuro pelo joelho. Aliás, se não fosse pela sua experiência, ser-lhe-
ia difícil determinar quem era a cliente e quem era a advogada.
Quinn fecha a porta atrás delas, e todos se sentam: mulheres de
um lado, homens do outro.
– Ainda não nos conhecemos, Professora Fisher – diz Gis. – Sou
o Inspetor-Coordenador Chris Gislingham e, para já, serei eu a
conduzir esta investigação.
– E o Inspetor-Chefe Fawley? – pergunta a advogada
rapidamente.
– O Inspetor Fawley foi destacado para outro caso. Mas fique
descansada, que eu estou completamente a par de todos os
pormenores.
Olha para Quinn, que liga o gravador.
– Muito bem – diz Gislingham –, antes de começarmos, terei de
saber se foi informada de que ainda permanece sob a condição de
arguida. E hoje pedimos-lhe que voltasse cá para falarmos acerca
do incidente com o seu vestido.
Fisher olha de relance para a sua advogada, antes de responder:
– Mas eu já vos disse que não me lembro de como o vestido se
rasgou.
– Devo dizer-lhe que recorremos a um profiler para analisar a
entrevista que teve com os meus colegas inspetores. Um
especialista em linguagem corporal. E ele está absolutamente certo
de que a senhora, de facto, sabe exatamente como o vestido se
rasgou. Só nos ocorre uma explicação plausível: a senhora mentiu
porque esse incidente ocorreu durante o assédio sexual que
cometeu sobre o Caleb Morgan. Assédio que continua a afirmar que
nunca existiu.
Faz-se silêncio. Fisher mexe-se na cadeira.
– OK… – diz, por fim –, tem razão. Julgo saber como o vestido
se rasgou. – Inspira fundo e leva a mão ao copo de água que tem na
sua frente. – Eu não reparei no rasgão quando acordei na manhã
seguinte. Tudo o que queria era uma chávena de chá bem forte e
umas aspirinas. Mas depois, quando subi ao quarto do Tobin, vi-o no
chão a brincar com umas lantejoulas, umas lantejoulas vermelhas.
Disse-me que as queria colar no seu desenho.
– Está a dizer que o seu filho lhe rasgou o vestido para arrancar
as lantejoulas?
Ela cora ligeiramente.
– Sim… enquanto eu fui lá abaixo, creio.
– Ele já tinha feito antes algo deste género?
O rubor nas faces aumenta.
– Ele adora coisas que brilham. E creio que não deve ter
percebido o quão difícil seria arrancá-las. – Encolhe os ombros. – Já
se sabe como são as crianças, não têm noção da sua própria força,
tal como eu própria já disse na primeira entrevista.
– E perguntou-lhe se foi ele a rasgar o vestido?
Ela afasta o olhar e assente.
– E o que é que ele lhe disse?
Fisher baixa o olhar.
– Negou. Disse que nunca tinha tocado no vestido. Que
encontrou as lantejoulas no chão da cozinha.
– Mas não acreditou nele.
Ela continua sem olhar para eles.
– Não havia lantejoulas nenhumas no chão da cozinha.
– Voltou a perguntar-lhe, depois disso?
Novo encolher de ombros.
– Continua a negar. – Olha de um inspetor para o outro. – Ora,
vá lá… ele não será certamente a primeira criança a tentar disfarçar
uma asneira com uma mentira.
Gislingham anui lentamente com a cabeça – é pai de uma
criança de dois anos. Sabe muito bem como é.
Mas Quinn continua a pressionar:
– Então, porque é que não nos disse logo isto desde o início?
Ela olha-o de relance e afasta o olhar.
– Era um assunto de família.
Tem a expressão fechada; um véu de gelo desceu-lhe pelo rosto.

***

– Obrigada por nos ajudar nisto, Bryan – diz Gallagher. –


Precisava de mais um par de olhos. Não oficial.
Gow olha para ela por cima do ecrã.
– Sem problema. Eu hoje estava em Kidlington, por acaso.
Volta a olhar para o ecrã; depois, carrega na pausa e uma ligeira
ruga forma-se-lhe no sobrolho.
– E então? – quer saber Gallagher. Está de braços cruzados e
parece inquieta, enervada.
Ele empurra os óculos para cima.
– Isto para mim é uma estreia, sem dúvida. Ter de ver uma coisa
destas para determinar se é um agente de polícia que está a mentir.
– Trata-se de um suspeito. Como outro qualquer.
Gow dedica-lhe um olhar seco; depois, escreve algo num bloco
de notas.
– Então?… Está ou não está? – pergunta ela, algo impaciente. –
A mentir?
Ele olha-a brevemente.
– Não vejo nenhuns indícios disso. Mas vou levar a gravação
para casa e voltar a olhar para tudo com mais calma. Mas, pelo que
vi, não há nada de flagrante. Ele está sob uma enorme pressão, o
que não é propriamente de estranhar, mas, quando nega ter
cometido o crime, as suas palavras e a linguagem corporal não
demonstram divergências. Nenhumas, mesmo.
– O Dave King diria sem dúvida que, se há alguém que sabe
fazer isso, será o Adam Fawley
Gow ergue o sobrolho.
– Sem dúvida.
Gallagher recebe a mensagem.
– Oiça, eu sei que o King consegue ser… muito pouco subtil,
mas é um bom polícia. Tem ótimos instintos.
Gow está de novo a escrever.
– Se a Inspetora o diz…

***

– Então, Professora Fisher, só para que fique claro e para efeitos


da gravação: está agora a alterar o seu depoimento assumindo que,
de facto, sabe como o seu vestido se rasgou.
Fisher solta um profundo suspiro:
– Sim.
Quinn assente:
– Muito bem. E quanto à noite anterior, com o Morgan? Há
alguma coisa acerca disso que não nos tenha dito?
– Passamos bem sem o seu sarcasmo, Inspetor – lança a
advogada.
– A resposta à sua pergunta – diz Fisher – é não. Não me lembro
de rigorosamente mais nada para além de tudo o que já vos disse.
– A sério? – observa Quinn, agora claramente irónico.
Ela fulmina-o com o olhar.
– A sério.
Respira fundo e baixa os olhos; Gis apercebe-se subitamente de
que ela está a tentar engolir as lágrimas.
A advogada olha para ela com ar preocupado e passa-lhe o copo
de água. Depois, volta-se para Gislingham:
– Oiça, Inspetor, tudo isto está a prejudicar enormemente a
Marina, a sua saúde, física e não só. Ela não dorme, o filho anda a
ter pesadelos…
– Não sei o que espera que eu faça em relação a isso…
– O que eu espero que façam é que arquivem este caso
completamente absurdo. Tudo isto é patético, gerou um
politicamente correto quase psicótico.
Gislingham abre a boca para falar, mas ela ainda não acabou:
– Por amor de Deus, olhem para ela. Acreditam realmente que
ela possa ter perpetrado uma agressão sexual contra um jogador de
râguebi de um metro e oitenta e dois, contra a sua vontade?
Olha fixamente para Gis e, depois, para Quinn.
– Então? Acreditam?

***

Não é frequente verem-se crianças em instalações policiais, por


isso, neste fim de dia, quando Somer sai para comprar rapidamente
qualquer coisa para o jantar, é impossível não ver imediatamente o
pequeno Tobin Fisher, sozinho, sentado numa cadeira junto à
entrada. Estranha que a criança esteja sozinha e olha em volta: ao
pé da máquina das bebidas está uma agente fardada a recolher
uma lata de Fanta.
Somer hesita, mas dirige-se a ele. Tem um livro de colorir por
números no colo e, mesmo estando ela agora de frente para ele, a
tapar-lhe a luz, e mesmo com pessoas a passarem e ruídos e
telefones a tocarem, não levanta a cabeça. A Inspetora senta-se na
cadeira ao lado dele.
– O que estás a desenhar, Tobin?
***

Quinn e Gislingham ficam a ver o agente fardado conduzir Fisher


e Kennedy para fora da sala e pelo corredor adiante. Quando
chegam aos elevadores, a advogada põe um braço à volta dos
ombros de Fisher, e ela apoia-se nela, claramente débil.
– O Caleb Morgan também foi assim tão convincente? –
pergunta Gis.
Quinn volta-se para ele:
– Desculpa?
– Estou curioso. A Fisher pareceu-me bastante credível, genuína.
Quando pegou no copo de água, tinha as mãos a tremerem.
– É de todo o seu interesse ser convincente. E não te esqueças
daquelas cenas todas que ela faz na televisão… os debates e
assim. Essa mulher é uma performer. Sabe exatamente como
conquistar uma multidão.

***

A agente regressa da máquina das bebidas e estende a lata de


Fanta a Tobin. Ele aceita-a, mas não olha para ela nem agradece.
As duas cruzam um olhar por sobre a cabeça do menino, e a agente
encolhe os ombros, claramente nada surpreendida. Somer também
não está, na verdade; aliás, começa agora a pensar se Tobin não
estará perdido algures no espectro. Ninguém duvida da sua
inteligência, mas claramente a criança tem problemas de
sociabilidade. Será possível que alguém tão informado e instruído
como a Marina Fisher ainda não tenha reparado no que se passa
com o próprio filho?
O menino continua a colorir, cuidadosa e deliberadamente,
profundamente concentrado na sua tarefa. Está a preencher todos
os espaços cor de laranja de cada página, um arco-íris feito de lápis
dispostos na cadeira ao lado, bicos e pontas perfeitamente
alinhados.
– Posso ver?
O raspar do lápis no papel para. Ele não olha para cima, mas,
segundos depois, pousa o lápis no lugar correto na linha e estende o
livro.
Somer observa o desenho; depois, respira fundo ao perceber
subitamente do que se trata.

***

– Alguma novidade?
Somer está uns metros mais à frente, junto ao quadro branco,
observando as fotografias do caso Morgan. A cozinha de Marina
Fisher, o vestido rasgado, a garrafa vazia de champanhe, as fotos
de Caleb tiradas no Centro de Apoio à Vítima de Violência Sexual.
Ev levanta-se e dirige-se à colega, que finalmente parece reparar
na sua presença.
– Desculpa – diz-lhe –, não percebi que estavas aí.
– Uma moeda pelos teus pensamentos? – brinca Ev.
Somer volta-se de novo para o quadro.
– Vi o Tobin Fisher, agora mesmo. Estava lá em baixo à espera
que a mãe acabasse a entrevista. Tinha um livro de colorir com ele –
uma daquelas cenas “educacionais” que as mães modernas como a
Fisher compram para os filhos. Ilustrações de Shakespeare, os
mitos gregos, essas cenas.
– O… K – diz Ev lentamente, perguntando-se aonde isto levará.
– E o que queres dizer é…
– O que quero dizer é que, até ao momento, ele esteve sempre a
colorir uma imagem de cada vez, página a página, uma a seguir à
outra. Mas aquela que ele está a colorir agora já está quase no fim
do livro. Há imensas páginas em branco pelo meio. Ou seja, ele
escolheu deliberadamente colorir aquele desenho.
– E…?
– É isso. O que ele está agora a colorir é uma imagem do São
Jorge e o Dragão. O livro pede que pintem o dragão em diferentes
tons de verde, mas o Tobin ignorou completamente essa instrução.
E eu estive a verificar: ele nunca fez isso com nenhum dos
desenhos anteriores.
Ev estranha:
– E de que cor é que ele está a pintar o dragão?
– Vermelho – diz Somer. – Todo ele no mesmo tom de vermelho.
– Faz uma careta. – E foi então que eu me lembrei disto.
Aponta para uma das fotografias no quadro. Uma do Morgan
tirada por trás. A cabeça dele, o pescoço e as costas. E a tatuagem
no ombro esquerdo.
Um dragão vermelho.

***

O agente de custódia empurra a porta ruidosamente e depois


recua para deixar passar a advogada.
– Chamem-me quando acabarem.
Penelope McHugh assente:
– Obrigada. – Depois, espera que o agente percorra o corredor e
saia de vista, antes de entrar na cela.
O seu cliente está sentado na cama estreita, a cabeça entre as
mãos, a torrada e os cereais intactos num tabuleiro. Tem grandes
manchas escuras debaixo dos braços. Não deveria surpreendê-la; já
anda nisto há muitos anos e já teve clientes suspeitos de homicídio
várias vezes. Mas nunca, pelo menos até hoje, um inspetor-chefe no
ativo.
Ela tenta respirar o mais pausadamente possível. O ar quente e
estagnado cheira a mijo, suor e desespero.
– Podíamos ter feito isto numa sala própria para consulta com
advogados, como sabes.
Ele ergue a cabeça.
– Passo bem sem mais nenhum passeio-da-vergonha lá em
cima.
É aterradora a rapidez com que um ser humano pode
desmoronar-se. Ela conhece este homem – conhece-o há anos –,
mas vê-lo agora assim… é uma sombra do homem que ela sempre
conheceu… Toda aquela autoridade discreta e serena, aquele
sentido de poder latente tão controlado – desapareceu tudo. Está
encovado, fustigado, a paranoia feita pó incrustado nas rugas em
torno dos olhos.
– Preciso de falar contigo.
Até a voz dele soa tolhida.
McHugh aproxima-se dele.
– OK. Diz.
– Tenho estado a pensar… toda esta história… o ADN, o carro, a
inexistência de sémen… não faz sentido nenhum, porra.
Ela revira os olhos.
– A quem o dizes…
– De tal maneira que só consigo encontrar uma explicação. Uma
hipótese apenas, que eu nem consigo sequer começar a tentar
dissecar…
Ela estranha. Adam está a falar demasiado depressa, os olhos
muito esbugalhados. Se não o conhecesse tão bem, acharia que ele
estava tresloucado. Ou pedrado.
– As provas… foram plantadas. Eu fui tramado.
A frase cai como uma bomba. Os culpados… dizem todos isto. E
ela não quer mesmo que este homem seja um deles.
Ele deve ter visto algo na expressão da advogada, porque se
levanta e aproxima-se dela. E ela tem de fazer um enorme esforço
para se manter firme.
– Ouve, eu sei como isto te deve soar, sei perfeitamente. Já oiço
esta frase da boca de muitos condenados há mais de vinte anos.
Deves achar que eu sou culpado ou doido, certo? Ou ambos,
provavelmente. É suposto eu ser a porra de um agente de polícia e
aqui estou eu a balbuciar, como o raio de um maníaco.
Ela tenta argumentar, mas ele parece ligado à corrente.
– Ouve-me, por favor! Já pensei e pensei e pensei, e é tudo
demasiado coerente, demasiado… sei lá, evidente. – Olha-a,
ansioso como uma criança pequena. – Percebes onde quero
chegar?
Ela franze a testa.
– Acho que sim. Queres dizer que liga tudo demasiado bem para
ser uma mera coincidência?
Os olhos dele acendem-se:
– Exato! Porque tudo se encaixa, tudo resulta. As provas estão
tão bem montadas, que só lhes falta o papel de embrulho. Mas o
crime pura e simplesmente não é assim. Pelo menos, não o crime
puro, o crime não premeditado. É confuso, desorganizado e
aleatório, e o criminoso acaba sempre por lixar pelo menos uma
coisa. Para este ser tão perfeito, alguém há de tê-lo concebido
perfeito. – Cala-se, inspira profundamente, expira. – Toda esta
história foi planeada. É a única teoria que faz sentido.
Penelope McHugh não está tão certa disso. Há pelo menos mais
uma explicação plausível. Ele próprio a deu, mesmo sem saber. Um
homem com duas décadas de experiência na arte e ciência de
matar. Se alguém se conseguiria safar de um homicídio era ele.
– E a pessoa que o cometeu – continua ele, as palavras saindo
agora num jorro, como se já não tivesse muito tempo – é esperta.
Muito esperta. Sabe dos procedimentos policiais e terá um
ressentimento tão, mas tão gigantesco contra mim, que está
disposta a matar para se vingar.
Olha-a fixamente, como se agora fosse tão óbvio, que ela já
deveria ter entendido.
– Eu sei quem fez isto. E tu também.

***

A dezasseis quilómetros dali, em Abingdon, Alex Fawley está


aconchegada entre almofadas, no quarto de hóspedes da casa da
irmã. É difícil ser-se invisível aos oito meses de gravidez, mas ela
está a dar o seu melhor. Tentando não ocupar demasiado espaço na
sala de estar já demasiado apinhada. Não fazer dela própria o tema
de cada refeição e do quão preocupada está com o Adam. Não
entrar na casa de banho quando o Gerry está a tentar arranjar-se
para ir trabalhar. Daí que, se bem que a Nell esteja agora no jardim
com as crianças – ambas em casa, em mais um Inset Day27 –, Alex
resolveu dizer que estava cansada e que precisava de uma sesta.
Cá em cima, está mais fresco, com as cortinas corridas, mas ainda
demasiado quente para se sentir confortável, dado o estado em que
se encontra. Consegue ouvir as vozes deles vindas do pátio. Não
demasiado alto, porque creem que ela está a dormir. Só as
brincadeiras ligeiras dos dois rapazes, um ou outro ladrar do cão, a
Nell a tentar manter a ordem. Barulho típico de uma família feliz.
Neste momento – sabendo onde está o Adam e porquê –, é o
suficiente para lhe despedaçar o coração.
Olha o relógio; finalmente, chegou a hora. Sente o pulso acelerar
um pouquinho quando pega no tablet e põe os fones.

***

[TEMA MUSICAL – AARON NEVILLE – VERSÃO COVER DE “I SHALL BE RELEASED”]

[JOYCELYN]
Como ouvimos no último episódio, a 12 de dezembro de 1998, Lucy
Henderson foi atacada a caminho de casa. Foi atirada para uma carrinha,
levada até a um complexo industrial desmantelado e brutalmente violada.
Uma vez mais, foi encontrado pó de gesso nos seus sapatos e, uma vez mais,
o seu atacante não deixou ADN. Lucy tinha vinte e três anos e era aluna de
pós-graduação na Marchmain College. E foi também a última vítima
conhecida do Violador da Beira da Estrada.

Não que alguém soubesse disso, na altura. Depois de quase um ano sem
aparentes progressos na caça ao homem, o alarme social estava ao rubro.
No Parlamento, faziam-se perguntas, e o chefe da Polícia de Thames Valley
foi pressionado a demitir-se.

Até que, finalmente, se deu a reviravolta por que toda a gente aguardava: a 3
de janeiro de 1999, a polícia faz uma detenção.

Tinham o seu homem.

Sou a Jocelyn Smith e sou cofundadora de “Toda a Verdade”, uma


organização sem fins lucrativos que luta pela reposição dos erros de
justiça. Esta é a série 3 de “Fazer do Errado Certo: O Violador da Beira
da Estrada Redimido?”.

Capítulo Cinco: Perseguição


[TEMA MUSICAL: “VICTIM OF CIRCUNSTANCE” – JOAN JETT]

[JOYCELYN]
A história de como o Gavin Parrie acabou por ser detido é talvez o aspeto
mais estranho e preocupante de todo este caso. Nessa manhã, a Alexandra
Sheldon, a terceira vítima do Violador da Beira da Estrada, encheu o depósito
do carro de combustível numa estação de serviço da circunvalação de Oxford.
Estava na fila para pagar quando reparou numa coisa – uma coisa que lhe
provocou uma reação violenta e aterradora. E não foi algo que viu ou ouviu,
mas sim algo que cheirou.

Era um odor marcante e inconfundível – um odor que ela mais tarde


descreveu ao tribunal como “doce, como a fruta demasiado madura”. E só o
tinha cheirado uma única vez antes disso. A 4 de setembro de 1998. A noite
em que foi atacada.

O Dr. Anisur Malik é um conhecido especialista neste campo e analisou os


indícios na investigação do caso Parrie, no âmbito da reavaliação do caso
Toda a Verdade.
[DR. ANISUR MALIK]
Os estímulos olfativos são particularmente poderosos porque contornam o
tálamo e ligam-se diretamente ao prosencéfalo, também chamado encéfalo
frontal. Daí a capacidade acrescida desses estímulos para espoletar a
recordação.

[JOYCELYN]
Por outras palavras, os cheiros não são processados pela parte pensante da
nossa mente – e é por isso que o impacto deles é tão forte e imediato. Mas é
também por isso que é preciso ter-se muito cuidado quando se considera a
confiabilidade deste tipo de memória enquanto prova.

Mas, então, de onde é que vinha este cheiro tão marcante? Lembram-se, no
segundo episódio, quando falámos de como o Gavin Parrie desenvolveu
diabetes tipo 1? Pouca gente sabe disto, mas este tipo de diabetes, quando
não tratado convenientemente, pode desenvolver no doente um hálito
característico. Um cheiro a fruta demasiado madura…

Na altura desse encontro na estação de serviço, o novo e promissor recomeço


do Gavin em Cowley sofrera um forte revés. A nova namorada deixara-o, e ele
andava com sérias dificuldades em arranjar emprego. Tinha rendas de casa
atrasadas e praticamente não via os filhos, que continuavam com a mãe em
Manchester. Com tudo isto, não é de estranhar que ele tenha descurado a sua
saúde.

Ninguém põe em causa que o Gavin estivesse de facto nessa estação de


serviço, na fila para pagar, logo atrás da Alexandra Sheldon. Nem ninguém
duvida que ela tenha de facto sentido aquele cheiro. Aquilo que nós pomos
em causa é se o homem que estava na fila era o mesmo homem que a
atacara.

[DR. ANISUR MALIK]


O que me preocupou neste caso foi a gravidade da reação. Tinham passado
apenas quatro meses desde o ataque, e a Ms. Sheldon podia estar a sofrer de
SPT.
Há vinte anos, a profissão de médico não era tão bem informada sobre estes
assuntos como é agora.
Sentir um cheiro tão evocativo pela primeira vez desde o incidente pode
facilmente ter espoletado um flashback aterrorizador. O corpo pode ter
entrado em modo lutar-ou-fugir – em que o coração dispara e o cérebro deixa
de conseguir funcionar normalmente.

Consequentemente, os profissionais de polícia têm de ter especial cuidado


quando lidam com os testemunhos prestados por vítimas nestas
circunstâncias.

[JOYCELYN]
E, ainda por cima, a primeira coisa que a Alexandra Sheldon viu, logo a
seguir, foi o Gavin Parrie a sair da estação de serviço e a entrar numa carrinha
branca. Ainda que a polícia nunca tenha falado publicamente no pó de gesso
encontrado nos sapatos das duas últimas vítimas, o facto de que o Violador
da Beira da Estrada tinha passado a utilizar uma carrinha branca foi
reportado. E até à exaustão.

A Alexandra Sheldon reagiu imediatamente – não pensou uma vez, quanto


mais duas. Meteu-se logo no carro e seguiu aquela carrinha. Dez minutos
depois, o condutor parou em frente a um bloco de oficinas privadas junto à
Bottley Road, estacionou e saiu.

[“MR. X”]
Ela ficou a vê-lo chegar à porta de uma das oficinas, tirar uma chave da parte
de cima da porta, entrar, por uns minutos, sair e virar a esquina, para fora de
vista.

[JOYCELYN]
Este é aquele inspetor que ouvimos no terceiro episódio, que trabalhou no
caso Parrie.

[“MR. X”]
A Ms. Sheldon ligou de imediato ao Inspetor Fawley, que a aconselhou a
dirigir-se o mais rápido possível para um sítio público e esperar pela chegada
da polícia. Ela disse-lhe que ia para a loja Co-op, próxima dali, a poucos
minutos de distância. Foi enviada desde logo uma patrulha, e, pouco depois
da meia-noite, o Mr. Parrie estava a ser detido num pub chamado Fox &
Geese.
[JOYCELYN]
O Adam Fawley chegou ao local passavam vinte e cinco minutos da meia-
noite, altura em que uma equipa de CSI já se dirigia para as oficinas privadas
e o Gavin Parrie ia a caminho das instalações de St. Aldate dentro de um
carro-patrulha. A Alexandra Sheldon manteve-se no interior da Co-op durante
todo esse tempo.

Ou não? A loja não tinha câmaras de CCTV, e ninguém de lá se recorda


exatamente a que horas ela lá chegou.

Quanto ao Gavin, alegou desde sempre que, em vez de se dirigir à Co-op


como lhe fora pedido, a Alexandra Sheldon invadiu a sua oficina, usando a tal
chave que ela o tinha visto tirar do cimo da porta. E que, assim que lá entrou,
deixou uns fios do próprio cabelo no chão, sabendo que a polícia os
encontraria.

Por esta altura, vocês devem estar a abanar a cabeça, certo? E a dizerem:
“Ela era uma mulher inteligente, uma advogada, uma pessoa com ética…
Seria capaz de ir assim tão longe, ao ponto de forjar provas?” Mas pensem
melhor. A Alexandra Sheldon estava absolutamente convicta de que o Gavin
Parrie era o homem que a tentou violar. Estava também desesperada por
garantir que esse homem fosse preso – escassos dias antes, a quinta vítima
tinha cometido suicídio com apenas dezanove anos de idade. A Alexandra
sabia isso. E também sabia que a polícia não tinha pistas e que, mesmo que o
homem que ela tinha seguido até Botley fosse de facto o violador, não havia
garantias de se encontrarem indícios naquela oficina que o pudessem provar.
Ele poderia sair impune e vir a atacar mais mulheres, destruir mais vidas.

Por isso, quem a pode julgar por ter chegado à conclusão – num estado de
extrema ansiedade e terror provocados pelo flashback que estava a viver – de
que tinha de fazer alguma coisa? Tinha de se certificar que este homem era
detido de uma vez por todas.

E estava nas suas mãos fazê-lo.

[“MR. X”]
O que quer que o Gavin Parrie possa ter acreditado, nunca existiram provas
de nenhum tipo de que a Ms. Sheldon tivesse plantado indícios para o
incriminar. Não foram descobertas quaisquer impressões digitais ou ADN dela,
nem na chave da oficina nem no seu interior. Também é importante salientar
que os fios de cabelo encontrados tinham cerca de vinte e cinco centímetros.
A Ms. Sheldon tinha cabelo comprido na altura em que foi atacada, mas
cortara-o curtíssimo logo depois. De facto, mesmo que ela quisesse incriminar
o Gavin Parrie, já não tinha as “evidências” necessárias para o fazer.

[JOYCELYN]
Ninguém aqui quer sequer discutir o tamanho do cabelo da Alexandra
Sheldon nesse dia ou quando é que ela o cortou. Mas, como toda a mulher
sabe, muitas vezes trazemos artigos na carteira, como um pente ou uma
escova, ainda com cabelos – cabelos que podem lá ficar semanas ou mesmo
meses.

E há uma coisa que de facto sabemos: foi o cabelo encontrado na oficina que
levou à condenação do Gavin. Isso e apenas isso.
Porque tudo o resto foi circunstancial. Tudo podia ser explicado como mera
coincidência: a diabetes, o facto de o irmão do Gavin, o Bobby, ser estucador
e de o Gavin lhe ter pedido a carrinha emprestada quando a dele avariou
(convém relembrar a esta altura que o Bobby sempre negou veementemente
ter emprestado a carrinha ao irmão nos dias dos ataques, embora tenha sido
impossível provar se sim ou se não).

Havia mais um forte indício que a polícia detinha e que acreditava ser crucial,
mas que a lei existente na altura impediu de ser utilizado em tribunal. Era o
facto de o Gavin ter sido questionado depois do ataque à Paula, a miúda de
dezasseis anos de que falámos no segundo episódio, molestada em
Manchester antes de as Violações da Beira da Estrada começarem.

Mas, mesmo não tendo sido possível usar esse facto em tribunal, ele
manteve-se extremamente relevante no caso do Gavin. E porquê? Porque,
assim que a Polícia de Thames Valley veio a saber do caso da Paula,
basicamente deixou de procurar outra pessoa qualquer. Para eles, o Gavin
cometera oito ataques: um em Manchester e sete em Oxford.

Na cabeça deles, tudo se encaixava: os MO idênticos. O facto de o Gavin ter


vivido em ambas as cidades em alturas relevantes e até o recurso ao saco de
plástico por parte do violador de Oxford – a teoria da polícia era que, depois
de quase ter sido identificado pela Paula, o Gavin começara a enfiar sacos de
plástico na cabeça das suas vítimas para ter a certeza de que isso não
voltaria a acontecer.
Mas nós, em Toda a Verdade, acreditamos que eles estavam enganados.
Mais: acreditamos que eles defraudaram. Defraudaram o Gavin Parrie e a sua
família, sobretudo os filhos, que cresceram sem o pai. Defraudaram o público
e, mais importante, defraudaram as vítimas. Tal como todas as forças policiais
do país, o DIC da Thames Valley tem o dever de investigar crimes graves e
violentos “eficazmente, de forma isenta e imediata”, como foi corroborado pelo
Supremo Tribunal do RU no início deste ano, em relação ao tristemente
famoso caso de John Worboys, o “Violador do Táxi Preto”. E, na nossa
opinião, a Thames Valley pura e simplesmente não fez isso no caso Parrie.

Voltando a 1999, o Gavin Parrie estava convicto de que os indícios cruciais


contra ele tinham sido forjados e que o haviam tramado. Disse a toda a gente
que o quis ouvir que estava a dizer a verdade, mas ninguém acreditou.

Acreditam agora.

[Música de fundo: “TIME FOR TRUTH” – THE JAM]

Sou a Jocelyn Naismith, e este é o “Fazer do Errado Certo”. Pode ouvir


este e outros podcasts de “Toda a Verdade” no Spotify ou onde quer que
carregue os seus podcasts.

[FADE OUT]

***

O coração de Alex está a bater ou, melhor, a martelar tão


fortemente contra a caixa torácica, que até sente dores. Mesmo na
sua mais profunda e exagerada paranoia-de-meio-da-noite, nunca
pensou que pudesse ser assim tão mau. Levanta-se e deambula
pelo espaço acanhado do quarto, sentindo uma intensa pontada de
ódio por Jocelyn Naismith – esta mulher que acha que tem a
resposta, que exige a verdade, que espezinha a vida de outras
pessoas, a dor de outras pessoas, sem saber ou querer saber dos
destroços que possam ter deixado para trás. O bebé mexe-se,
irritado, dentro dela; Alex sente como se estivesse a bombear
adrenalina venenosa no seu próprio filho.
Senta-se pesadamente na cama e pega no tablet para verificar
quando é que o próximo episódio irá para o ar. Três dias. Três dias?
Ela não pode esperar tanto tempo, não pode não saber tanto tempo.
E porque é que haveria de ser agora, de todas as alturas possíveis?
Quando não pode falar com o Adam, perguntar-lhe o que fazer…
Leva a mão à boca, reprimindo um pânico súbito. Quantas vezes
ouviu o marido dizer que as coincidências não existem – pelo
menos, na profissão de polícia. E se este timing não for, afinal,
aleatório?

***

– Repete lá isso?…
A equipa está reunida à volta do quadro branco. Já não apenas
Ev e Somer, mas Gis, Quinn, Baxter, Asante.
– Estive agora mesmo a ver o livro de colorir do Tobin Fisher –
diz Somer. – Ele está a pintar um desenho do São Jorge e o Dragão.
Mas não está a pintá-lo de verde, como é suposto, mas sim de
vermelho. – Aponta para a fotografia no quadro. – Exatamente
assim.
– Coincidência? – sugere Asante.
– Isso não existe – responde Ev. – Como o chefe sempre nos
disse.
Há uma ligeiríssima pausa, um fragmento de tempo durante o
qual todos pensam a mesma coisa, veem a mesma cara; depois,
processam e prosseguem.
– Então, a questão – observa Gis, pensativo – é como é que o
Tobin pode ter sabido da tatuagem do Caleb Morgan.
Baxter encolhe os ombros.
– Talvez o Morgan o tenha levado a nadar? Afinal, ele ficou com
ele várias vezes na ausência da mãe, certo? Não me parece
impossível.
– Ou talvez durante um simples aparar da relva? Estou a vê-lo
facilmente a tirar a t-shirt com este calor.
– A Marina Fisher não tem relvado – diz Asante calmamente. – O
jardim é todo empedrado.
Quinn cruza os braços e franze a testa. Detesta ser corrigido,
sobretudo por Asante.
– Podemos verificar isso facilmente, saber se ele alguma vez o
levou a nadar – diz Everett.
– Mas… e se não foi isso? – pergunta Somer, olhando em volta
para os colegas. – E se o Morgan nunca sequer se aproximou de
uma piscina com o Tobin? Porque, se assim for…
Faz-se silêncio; ninguém precisa de dizer nada.
– Mas não encaixa, pois não? – diz Baxter, finalmente. – O
Morgan nunca disse nada sobre algum deles se ter despido nessa
noite. Aliás, ele disse explicitamente que não o fizeram.
– Então – diz Gis –, ou o rapaz viu a tatuagem noutra altura
qualquer…
– E bem recentemente – interrompe-o Somer. – Porque ele ainda
só vai a meio daquele desenho. Tem de ter sido na última semana,
no máximo.
– … ou o Caleb Morgan está a mentir sobre o que aconteceu
durante o alegado assédio sexual. Depois de, também
convenientemente, não nos ter contado do incidente com a Freya
nos degraus da…
Não acaba a frase. Não precisa.
Ev volta-se para ele:
– Mas isso foi uma mentira por omissão. Não é a mesma coisa.
Ele tinha todas as razões possíveis para não mencionar que
empurrou a Freya, mas porquê mentir acerca do assédio? O que é
que ele ganha com isso?
Gislingham encolhe os ombros, a expressão confusa.
– Não me perguntes.
– Também está presente na bandeira galesa, não está? O
dragão vermelho? – pergunta Asante. – Provavelmente terá sido por
isso que o Morgan o quis tatuar. Quem sabe se o Tobin também não
o viu aí? E não tenha nada que ver com a tatuagem?
Quinn considera a questão:
– Bom, eu acho possível, mas as únicas vezes que eu vi
bandeiras galesas foi no râguebi ou no futebol, e o miúdo não
parece nada interessado em desporto algum.
– E o País de Gales não esteve no Campeonato do Mundo –
acrescenta Baxter, o maníaco de futebol da equipa.
– Então, o miúdo não deve ter visto a bandeira na TV – remata
Quinn. – Pelo menos, não recentemente.
Baxter aclara a garganta:
– Talvez estejamos todos a pensar demasiado. Que mal tem o
óbvio flagrante? A Fisher e o Morgan andavam enrolados e nessa
noite decidiram pinar que nem uns doidos na cozinha. E o puto
apanhou-os. Foi isso.
Gislingham olha à sua volta.
– Mas, se foi esse o caso, por que raio é que a Fisher não nos
disse isso logo diretamente? Para quê deixar as coisas
descontrolarem-se desta maneira?
– Por receio de perder o emprego? – sugere Ev. – Se admitisse
que mantinha uma relação com um aluno, o mais certo era ir para a
rua.
– Muito mais depressa irá, se for condenada por assédio – diz
Quinn em tom sombrio. – A porra dos stilletos dela nem tocam no
chão.
– Sim – diz Ev –, mas dizes bem, se for condenada, não se for
apenas acusada. Quem sabe não tenha decidido que o melhor era
continuar a dizer que não se lembrava, fiando-se em que jamais
haveria evidências suficientes para o MP intentar uma ação.
– OK – diz Gislingham –, então, e como advogado do diabo… se
eles já andavam enrolados em segredo todo este tempo, porque é
que o Morgan sequer faria a queixa?
Ev encolhe os ombros.
– Sei lá. Porque é que as pessoas fazem o que fazem? Pode ser
uma jogada de poder ou por vingança…
– Ou para se safar das garras da Freya – diz Asante. – Sabemos
que ela andava roída de ciúmes, estou facilmente a vê-la a perder a
cabeça se descobrisse que o Morgan andava de facto a ter um
caso.
– E então? – diz Somer. – A Freya descobre nessa noite que
algo se passa entre o Morgan e a Fisher, e ele tenta virar o bico ao
prego, alegando que foi ela que o assediou?…
– Foi o batom no colarinho dele – brinca Baxter – que o
denunciou à Hughes28?
– Foram os arranhões – diz Ev. – Ela própria mo disse.
Quinn sorri ironicamente:
– Sim, não se ganham arranhões a jogar Scrabble, certo?
Baxter concorda:
– E o Morgan não seria o primeiro a alegar assédio sexual para
se safar perante a namorada.
A suposição paira no ar por um momento: pode muito bem ser
um dos truques mais velhos desta vida, mas geralmente quem o usa
são as mulheres. Não propriamente jovens possantes e atléticos.
– Há mais uma coisa – diz Asante, pensativo. – No final da
entrevista, a advogada da Fisher disse que o miúdo andava a ter
pesadelos. Talvez o dragão esteja relacionado com isso?
Olha em volta, mas ninguém está a juntar os pontos. Ainda não.
– O que eu quero dizer – prossegue – é que, se a Fisher teve
mesmo sexo com o Morgan nessa noite e o miúdo os viu, isso pode
explicar o facto de andar tão perturbado. O sexo pode parecer algo
aterrador, se não soubermos o que se está a passar… e tivermos
apenas oito anos.
Ev assente de novo:
– Essa, sim, faz sentido. Sobretudo um miúdo como ele. Pelo
que percebi, é extremamente frágil.
Gis respira fundo.
– OK. Não me parece que tenhamos grande alternativa. Vamos
mesmo ter de pedir à Marina Fisher que nos deixe entrevistar o filho.

***

Adam Fawley
12 de julho, 2018
15h55
O almoço que me trouxeram está a coagular no tabuleiro de
plástico. O que não é de espantar, visto já ali estar há mais de uma
hora. O rapaz que o trouxe nem coragem teve de me olhar nos
olhos: largou-o ali e pirou-se. Bem podia ter pária escrito a giz na
porta desta cela. Daí que, quando ouvi de novo o som das chaves a
tilintarem na fechadura, não contasse com uma visita de cortesia. Já
nem sequer me lembrava que o Gis tinha regressado ao trabalho. É
uma prova de quão rapidamente eu bati no fundo; já nem consigo
reparar na diferença entre mim e o seu humilhante eu de recém-
chegado de férias. Ainda que ele sim, claramente. Hesita, antes de
entrar, e fecha a porta atrás de si.
– Tudo bem, chefe?
Não me parece difícil ver o quão distante eu estou do tudo bem,
mas, coitado, que mais é que ele pode dizer?
– Só passei por cá para saber como se tem aguentado. – Olha
em volta. – Acho que nunca tinha entrado nesta esquadra.
– Nem percebo como te deixaram entrar.
Ele esboça um sorrisinho irónico:
– Acontece que o sargento de custódia é um velho colega meu
da escola de formação.
Abano a cabeça:
– Mesmo assim… Não devias ter vindo. Não acho mesmo boa
ideia.
Ele olha-me de relance e, depois, em frente. Respira fundo:
– Para o caso de se estar a perguntar… Eu e toda a equipa…
nenhum de nós acredita que… bom, o chefe sabe…
Não acreditam que eu tenha violado e assassinado uma mulher
inocente e atirado o corpo dela de uma ponte abaixo. Bom, já é
qualquer coisa.
Encosto-me à parede húmida e pegajosa.
– Obrigado, Gis.
– Mas, afinal, o que é que eles têm?
Abano a cabeça:
– Não vais querer saber, acredita.
– Se não quisesse saber, não teria perguntado.
Olho para ele. Será que é justo arrastá-lo para isto? Ele tem uma
família, uma carreira. Lá por eu parecer estar a deitar a minha para
o lixo, não lhe posso pedir que faça o mesmo. Mas há outra voz na
minha cabeça – e que fala mais alto – que me diz que esta pode ser
a minha única oportunidade de me safar disto. Preciso de ajuda.
Não da Penny McHugh, por mais esperta que ela seja, mas de
alguém que saiba como funciona uma investigação policial. Alguém
de dentro.
– Oiça – diz-me ele, pressentindo a minha apreensão –, eu
jamais me teria tornado inspetor-coordenador se não fosse o chefe.
Devo-lhe isso. Portanto, tudo o que eu puder fazer para o ajudar, por
favor, diga.
– Não te quero metido neste charco de merda.
– Isso cabe-me a mim decidir. Se houver merda, eu lido com ela.
Mas se vier a descobrir alguma coisa, bom, aí…
Já o disse várias vezes: se me estivesse a afogar, seria o Gis
quem eu queria ter a puxar a corda. E, neste momento, a água já
me dá pela testa.
Respiro fundo:
– Eu acho que estou a ser tramado. Ou melhor: eu sei que estou
a ser tramado.
Ele estranha. Não quer ouvir isto, tal como a Penny não quis.
– Como assim?
– Os indícios de ADN só podem ter sido forjados. Sim, eu estive
naquele apartamento, assumi logo desde o início que sim, mas
nunca tive sexo com ela. Nunca sequer lhe toquei.
A ruga na testa do Gis intensifica-se. Não se trata apenas de
saber que as análises forenses não mentem; ele acha que eu lhe
estou a pedir que acredite que a equipa CSI inteira também está a
mentir.
– Mas o chefe e o Challow são amigos de longa data, certo? Por
que raio é que…
– Não – apresso-me a dizer. – Eu não acho que ele tenha
alguma coisa que ver com isto. Aliás, nenhum deles. Limitaram-se a
processar os indícios que lhes forneceram. Mas aí é que está: que
lhes forneceram. Alguém montou aquela cena do crime.
Alguém plantou lá cabelos meus. Não sei como, mas sei porquê.
Os cabelos representam uma mensagem.
Porque, quando a Alex testemunhou em tribunal que nunca
plantou aqueles fios de cabelo na oficina do Gavin Parrie, eu sabia
que era mentira. Sabia-o há meses. Não logo desde o início –
apenas quando já era demasiado tarde. Mas eu sabia. E não disse
nada. Não a impedi, porque era a única forma de o impedir a ele.
Ele era culpado, e nós não tínhamos mais nada. Mas não deixou de
ser uma mentira. Agora, o Gavin Parrie quer fazer-me pagar.
O Gislingham está a olhar-me fixamente, e eu acordo para a
realidade:
– Eles dizem que eu tentei fazer com que parecesse suicídio
para que a polícia não decidisse procurar ADN.
O Gislingham franze a cara; ele sabe que isto faz sentido. Até
certo ponto.
– Só que, depois, dizem eles, eu lixei tudo, porque não fiquei por
lá tempo suficiente para perceber que a equipa de engenheiros
estava por perto e que certamente mandaria parar o comboio
atempadamente.
– OK… E então…
– Então que o gajo teria de ter querido que alguém detivesse o
comboio, certo? Após ter deliberadamente colocado aquele ADN no
corpo dela, precisava que o encontrassem, que acabassem por
fazer a ligação e viessem atrás de mim.
Ele volta a estranhar; vejo que não me está a seguir.
– Desculpe lá… o gajo? Mas de quem é que estamos a falar?
– Do Gavin Parrie.
Os olhos abrem-se-lhe de espanto.
– Do Parrie?! O chefe acha que o Parrie está por detrás disto?
Fixo-lhe o olhar.
– Quem mais poderia ser?
– Mas ele anda controladíssimo, ele…
Concordo:
– Sim, anda. Mas ainda assim…
Ele hesita, mas acaba por assentir:
– Mas então… o que é que o chefe quer que eu faça?
– Descobre-me o tal engenheiro. O que ligou a dar o alerta.
Preciso de saber se ele viu alguém na ponte imediatamente antes
de aquilo acontecer. Porque, se foi o Parrie, ele não podia
simplesmente atirar o corpo lá para baixo e desaparecer de cena.
Teve de esperar – esperar até que os engenheiros estivessem
suficientemente perto da linha para verem o corpo a cair e terem
tempo de fazer parar o comboio.
Gis aponta umas coisas; depois, fecha o bloco de notas e olha
para mim.
– OK, chefe. Verei o que consigo fazer.

***

Marina Fisher para em frente às portas de vidro que dão para o


jardim. O filho está de gatas, observando com atenção um
escaravelho a percorrer lentamente a linha das lajes.
– Tobin, querido, a mãe precisa de falar contigo.
Mas ele parece não a ouvir; está totalmente absorvido,
completamente focado.
O escaravelho ergue uma pata e, depois, outra; as mandíbulas
aferrolham o ar, como que palpando o caminho.
– Tobin?
Ela aproxima-se dele.
– Tobin, estou a falar contigo.
Nada.
– Deixa lá isso, querido – diz-lhe, já naquele tom paciente com
uma vida útil muito limitada. – Preciso de falar contigo só por um
minuto.
Nada. Ela sai para o sol ofuscante, baixa-se para pegar na mão
do filho e fá-lo levantar-se. O escaravelho deve ter sentido alguma
oscilação no ar, já que desata a correr e desaparece por detrás de
um dos vasos de terracota.
– Eu estava a observá-lo! – choraminga Tobin. – E agora fizeste-
o fugir!
– Desculpa, meu amor, mas é importante A mamã precisa de
falar contigo.
O menino amua e recusa-se a olhar para ela, deixando-se levar
pela mão para dentro de casa. A mãe pega nele e fá-lo sentar-se
numa cadeira da cozinha. Tobin começa a balançar os pés, batendo
com eles nas pernas da cadeira.
– Tobin, amorzinho, a mamã recebeu um telefonema daquela
amiga dela, a Niamh. Lembras-te dela, não lembras?
Ele não responde.
– Pois… a polícia foi a casa dela e perguntou-lhe se podiam
fazer-te umas perguntas.
Ele ergue a cabeça, desconfiado, mas curioso.
– Sobre quê?
Ela cora ligeiramente.
– Sobre a última vez que o Caleb esteve cá em casa. Lembras-te
dessa noite?
Ele olha para baixo e recomeça a pontapear as pernas da
cadeira. Já começa a enervá-la.
– OK… A Niamh diz que tu poderás ajudar a mamã, se falares
com eles. Não é nada de assustador, claro, só querem fazer-te
umas perguntas. E a mamã vai estar logo ali, na sala ao lado.
Tum tum tum.
Ela estende a mão e agarra-lhe uma perna, mantendo-a firme.
– Não faças isso, amor.
Ele continua aos pontapés com o outro pé. E ainda sem olhar
para ela. Marina leva-lhe uma mão à testa e puxa-lhe docemente os
caracóis para trás. Sente-lhe a pele quente. Esteve demasiado
tempo ao sol.
– E, então, que me dizes? Ajudas a mamã? Queres ser o meu
ajudante especial e super-hiper-esperto?
Os pontapés cessam. Ele olha para ela, quase timidamente.
– É um jogo, mamã? Como da última vez? Eu gostei muito
desse.

***
Já passa das seis quando Erica Somer chega a casa. Abre a
porta da rua e dirige-se lentamente até ao seu apartamento. Não se
lembra da última vez que se sentiu tão cansada. Ao subir o primeiro
lance de escadas, repara num ramo de flores deixado à sua porta.
Rosas brancas, uma dúzia ou mais, num arranjo lindíssimo,
contrastando com o azul de alguns lírios-do-nilo. Sente os olhos a
marejarem-se de lágrimas. Giles sabe o quanto ela ama essas
flores.
Abre a porta de casa, larga a carteira na entrada e leva as flores
para a cozinha.
Mas não abre a torneira nem procura uma jarra. Vai de imediato
abrir o laptop deixado na bancada.

***

Quando Ev chega a casa, não são flores que a esperam, mas o


gato – bastante ruidoso e deveras desagradado com a qualidade
dos serviços prestados naquele estabelecimento. Ev dá-lhe de
comer e depois liga a chaleira. Esforça-se por ignorar a luz
intermitente do atendedor de chamadas, mas não por muito tempo.
Pouquíssimas pessoas lhe deixam atualmente mensagens pela rede
fixa.
Miss Everett? Fala a Elaine Baylis, de Meadowhall. Não se
preocupe, não aconteceu nada, o seu pai está ótimo. Mas preciso
mesmo de falar consigo. Pode ligar-me amanhã, logo que possível?

***

Gislingham continua em St. Aldate – aliás, é mesmo o único que


por lá se mantém. A mulher já lhe ligou duas vezes. Uma vez para
lhe lembrar que ele prometeu chegar a casa a tempo de contar uma
história ao Billy antes de dormir. E a segunda, uma hora depois e já
mais irritada, para o informar que lhe deixou uma salada no
frigorífico. Não precisou de lhe ligar a dizer que vai estar acordada à
espera dele. É só a maneira que ela tem de marcar a sua posição.
Deu-lhe umas treguazinhas durante uns tempos, sobretudo depois
das férias, mas há limites. E não são elásticos.
O que ele não lhe pode dizer, mesmo que quisesse, é que nem
sequer está a trabalhar. Tem estado a fingir primorosamente que sim
– isto, para um homem sobejamente conhecido por ser péssimo a
mentir –, mas o que tem estado a fazer durante todo este tempo é a
aguardar que o último elemento da equipa da Gallagher se decida a
ir para casa.
Simon Farrow claramente não tem família – ou vida –, visto que
já passa das oito quando finalmente se levanta e tira o casaco das
costas da cadeira. Gis dá-lhe mais vinte minutos para o típico
“merda, esqueci-me de…”, sabendo bem como isso pode
representar um dos maiores perigos neste contexto. Já tomou uma
decisão: é a coisa certa a fazer e vai fazê-la, mas não pode dar-se
ao luxo de ser despedido durante o processo. Só de imaginar a cara
da Janet até treme. Os vinte minutos estendem-se, até que,
finalmente, se levanta, dirigindo-se com deliberada displicência à
sala dos Crimes Graves.
Neste espaço, adotaram uma política de “secretária limpa”. Pelo
menos, em teoria. As pessoas tendem a preguiçar, a criar
pressupostos. Afinal, com que é que têm de se preocupar se não
podem sequer chegar a este andar sem um cartão magnético da
Thames Valley?
Farrow deixou obviamente o seu computador desligado, mas
Gislingham nem quer saber – não é isso que ele procura. Dá mais
uma olhadela rápida à sua volta e vai buscar aquilo de que precisa.

***

Na manhã seguinte, entrevistam Tobin, em Kidlington, na Sala de


Testemunhas Vulneráveis, o espaço utilizado para as vítimas de
maus-tratos infantis. Paredes azul-pálidas, alcatifa azul-escura;
brinquedos, peluches, almofadas, um parquinho, a caixa com
bonecos e bonecas especiais que se usam para ajudar os miúdos a
identificarem partes do corpo e aquilo que as pessoas das próprias
famílias lhes fazem. Ev arrepia-se só de ver a caixa. Está na sala ao
lado, com o resto da equipa, assistindo através de vídeo.
Tobin Fisher está enroscado no sofá, o mais afastado da porta
que lhe é possível. Tem os joelhos chegados ao peito e olha por
debaixo da franja para a agente especialmente treinada para o
efeito. Ela tem estado a tagarelar com ele há uns bons dez minutos.
Ev já se cruzou com ela uma ou duas vezes, e deixou-a bem
impressionada. Parece carinhosa e confiável, e não demasiado
efusiva ao ponto de deixar as crianças receosas e levar a que se
fechem. Mas Tobin pode bem representar o seu maior desafio de
sempre. Já falaram do Toy Story e do Fortnite, e das matérias de
que ele mais gosta na escola, mas, na maior parte do tempo, ela
tem falado para ele e não com ele. Mesmo quando ele por acaso
responde, é sempre depois de pensar tanto, que parece que não vai
falar nunca. Como se estivesse à espera de uma armadilha mesmo
na pergunta mais inócua – como se tivesse sido avisado (e Ev não
se admirava nada que fosse pela mãe) de que estaria rodeado de
dragões. E por falar nisso…
– Os teus desenhos são mesmo bons, Tobin – diz a agente,
abrindo o livro de colorir no colo e folheando-o. – Gosto
especialmente do dragão.
Ele pisca os olhos e mexe-se ligeiramente no sofá.
– Já deves ter visto muito desenhos de dragões, para os pintares
assim tão bem…
Ele encolhe os ombros e murmura qualquer coisa pouco audível
sobre O Hobbit.
A agente volta o livro para ele e mostra-lhe a página.
– Sabes aquela senhora com quem falaste? A Erica? Ela disse-
me que estás a pintar este dragão há já algum tempo, certo?
Um lento assentir.
– Este vermelho é fantástico. Mete mesmo medo. Porque é que
escolheste esta cor?
Silêncio.
– Já viste algum dragão assim?
Outro assentir, mas continua sem olhar para ela.
– E onde foi isso, Tobin? – pergunta ela docemente.
– O Caleb tem um. Nas costas.
– Ai sim? E lembras-te quando é que o viste?
O menino pousa a testa nos joelhos. O cabelo cai-lhe para a
frente, e ela tem de se aproximar mais para conseguir ouvi-lo.
– Na cozinha.
– Naquela noite? Quando ele estava a fazer baby-sitting?
Ele concorda:
– Eu desci para ir buscar um sumo.
– Estou a ver. E o que viste na cozinha?
Ele não responde. Ela estende-lhe uma mão vacilante, mas ele
recusa-a.
Na sala ao lado, todos sustêm a respiração. É 50/50 ela decidir
que consegue forçá-lo mais, mesmo estando ele já no limite do
possível.
Mas, quando o menino fala, é praticamente só um sussurro, e
eles conseguem ver, mesmo no ecrã, que ele começa a chorar.
– Eu já não gosto do Caleb. Ele magoou a mamã. E eu vou
matá-lo. Vou matá-lo com uma espada gigante, como o Jorge e o
Dragão.

***

– E, então, o que é que temos?


Dave King está atrás de Farrow, sentado ao computador, e olha
para o ecrã por cima do ombro dele. Transfere o peso do corpo de
um pé para o outro, fervilhante de energia nervosa.
Farrow olha para trás, para o colega.
– Verificámos a que horas o Inspetor-Chefe Fawley saiu do
ginásio de Headington através das câmaras do estacionamento.
Eram 08h43. E vestia efetivamente t-shirt branca e calções pretos,
tal como a testemunha de Shrivenham Close afirmou.
– Sim – diz King –, mas ele já admitiu que esteve lá, logo, isso
não interessa para nada. Que mais?
– Também verificámos o percurso do ginásio para a casa da
Smith, mas é tudo residencial: nada de câmaras de CCTV ou
reconhecimento de matrículas. Nada.
– Por amor da santa… – começa King.
– O Inspetor Jenkins também fez esse reconhecimento de carro
e demorou doze minutos, o que significa que os timings que o
Fawley nos deu batem certo. Já é alguma coisa.
– Não, não é, porra – diz King. – Esse alguma coisa é três
passos pra frente e dois pra trás.
– Também estou a verificar o reconhecimento de matrículas do
Honda do Cleland e…
King endireita-se.
– Mas tu não ias largar essa merda?
Farrow cora.
– Mas nós temos mesmo de o eliminar, ele…
– Não – diz King, ele próprio a mudar de cor. – Não temos. Não
há indícios forenses de tipo nenhum que liguem esse imbecil a este
crime, ao passo que o Fawley está enterrado nele até ao pescoço. –
Olha o colega fixamente. – Se tiveres algum problema em aceitar
isso, não me custa nada tratar da tua substituição.
– Não, não – diz o outro rapidamente. – Não há necessidade
disso, chefe. Eu estou neste barco. Completamente.

***

– E onde é que eles estavam… a mamã e o Caleb, quando ele


estava a magoá-la?
O rapazinho senta-se. Funga e limpa o nariz às costas da mão. É
difícil perceber o que é que mudou tão de repente, mas algo
aconteceu.
– Em frente ao lava-loiças. A mamã estava no lava-loiças e o
Caleb estava atrás dela, a empurrá-la. E ela estava esquisita.
– A sério? Esquisita como?
Ele encolhe os ombros.
– Sei lá, toda molenga… como se estivesse a dormir em pé.
– E o Caleb tinha despido a t-shirt?
Ele olha para ela; depois, nega com a cabeça.
– Então… a t-shirt descaiu e tu viste a tatuagem, foi isso?
Ele assente.
– E a mamã? Estava vestida?
Ele afasta o olhar.
– Tinha o vestido todo levantado. Como quando ela vai fazer
chichi.
– Estou a perceber… E a mamã viu-te, Tobin? – pergunta-lhe a
agente, em tom doce. – Ela ou o Caleb percebeu que tu estavas ali?

***

– Credo! – exclama Quinn, olhando para o ecrã. – Como se isto


não fosse já suficientemente complicado.
Ev parece perturbadíssima.
– Não estou a ver uma criança de oito anos a inventar uma
história destas, se não tiver realmente assistido a ela.
– Sim, OK – concorda Baxter –, eles fizeram sexo. Mas como é
que podemos saber se foi ou não consensual?
– A sério?! – reage Somer. – Queres mais claro do que isto?
Está pálida. Extremamente pálida. Ev pergunta-se como é que
ela sequer conseguiu vir trabalhar hoje.
Gislingham olha em volta para a sua equipa:
– A Somer tem razão. Tudo indica que foi cometido um crime
naquela noite. Mas a vítima não foi o Morgan. Foi a Fisher.

***

– Eles não me viram – diz o menino, com uma expressão agora


de amuo. – Eu fugi.
– Para o teu quarto?
Ele faz que sim com a cabeça.
– Que fica mesmo lá em cima, não é?
O mesmo gesto.
A agente verifica algo no processo.
– Mas o quarto da mamã é noutro sítio, não é? No andar de
baixo?
Desta vez, ele não responde.
– Então, não a deves ter ouvido a ir para a cama, pois não?
Ele afasta o olhar e murmura qualquer coisa. Ela pede-lhe
docemente que repita, o que ele acaba por fazer:
– Eu estava debaixo da minha cama.
– E o que fazias tu debaixo da cama, Tobin?
O menino baixa a cabeça, os lábios trémulos:
– Escondi-me.

***

– Mas, se o Morgan a violou, porque é que ela não diz? –


pergunta Quinn. – Porque é que não o acusa? Mais: porque é que
não disse logo isso desde o início?
– Porque não se lembra – diz Ev baixinho. – Porque o Caleb lhe
pôs uma cena qualquer na bebida.
Asante concorda:
– Um MO clássico da violação: ela já tem um grãozinho na asa,
ele faz questão de servir as bebidas. E o vinho espumante é o
melhor amigo de um predador. O gasoso disfarça a droga.
– O laboratório não descobriu nada.
– Pois não – diz Asante –, porque provavelmente foi com um boa
noite, Cinderela, que entra no metabolismo demasiado rápido para
deixar registo, mesmo em análises integrais de toxicologia. Aliás, é
precisamente por isso que esses sacanas o usam.
Faz-se silêncio.
É Quinn que o quebra, segundos depois:
– E faz algum sentido que o Morgan tenha lavado as flutes logo a
seguir. Por ter algo a esconder. Ou isso ou é uma verdadeira fadinha
do lar.
Somer lança-lhe um olhar feroz, mas ele ignora-a.
Baxter volta-se para Everett:
– Tu fizeste a formação em ofensas sexuais, certo? O que é que
achas? A Fisher não iria perceber logo na manhã seguinte que tinha
sido violada?
Ev respira fundo:
– Não forçosamente. Muitas vítimas não se apercebem.
Sobretudo, se o violador usar preservativo e for cuidadoso em não
deixar marcas. E se na manhã seguinte estiver tudo normalíssimo.
– Exato. Como o vestido da Fisher, por exemplo, estar
pendurado e os sapatos arrumados – observa Asante, algo sombrio.
– Claro. Precisamente.
– Mas o Tobin ficou bastante assustado – diz Somer, quase num
murmúrio. – O suficiente para se esconder.
Baxter cruza os braços.
– Mas, mesmo que estejas certa, onde é que isso nos deixa?
Vamos quê? Entrar pelo MP adentro e dizer “Malta, desculpem lá,
mas mudámos de ideias. Agora, achamos que ele é que a violou a
ela, mas a única coisa que temos que comprove isto é a palavra de
um miúdo de oito anos um bocado… esquisito, sustentados por
rigorosamente provas nenhumas…”? Ponha a mão no ar quem
achar que eles compram esta.
Ninguém se mexe.
Perante a passividade geral, ele encolhe os ombros.
– Pronto, aí está. Rebolavam-se todos no chão a rir à
gargalhada.
Asante franze a testa.
– É pior do que isso, por acaso. Não só não temos qualquer
prova de que ele a violou, como temos, sim, indícios que vão na
direção oposta: ela tê-lo violado a ele.
– A Fisher já tinha tomado duche – intervém Everett –, logo, isso
vai sempre causar problemas com as análises forenses…
– Não – interrompe-a ele. – Não estou a falar disso, estou a falar
do Morgan. Ele tinha ADN dela na zona genital, mas nada no pénis.
Mesmo que tenha usado um preservativo, teria de lá ter ficado
alguma coisa.
– Certo – concorda Quinn. – Se ele de facto a violou, teria de ter
ADN dela em todo o lado.
– Sim, OK – diz Everett –, mas não me parece ser preciso ter um
curso superior para um gajo se lembrar de usar um pano molhado,
pois não? Até os jogadores de râguebi se lavam.
– Mantendo intacto o ADN dela nas mãos? Pouco provável.
Ev encolhe os ombros.
– Luvas?
Mas Quinn ainda não está convencido.
– Quer dizer que ele viola-a, dá-se a um trabalho do caraças
para se certificar de que ela não se vai lembrar, mas depois faz uma
cena bestial para atrair as atenções sobre ele – causando-lhe toda
uma série de problemas – ao apresentar uma queixa por tentativa
de violação… Que sentido é que isto faz?
– Acho que tens razão – observa Gis. – Há aqui mais qualquer
coisa. Algo que nós não estamos a ver.
Somer olha para ele, o rosto ensombrado por uma ruga.
– Talvez ainda não tenhamos feito as perguntas certas.
– OK – diz Gislingham, lentamente –, então, vamos a isso. E
temos aqui a nossa grande oportunidade: a Marina Fisher está
mesmo aqui na sala ao lado.

***

Entrevista a Marina Fisher, realizada na Sala de


Testemunhas Vulneráveis de Kidlington
13 de julho, 2018, 12h15
Conduzida por: Inspetor-Coordenador C. Gislingham,
Inspetora V. Everett
Presente: N. Kennedy (advogada)

CG: Entrevista iniciada às 12h15 de sexta-feira, 13 de


julho. Esta é a terceira entrevista no âmbito da
queixa de assédio sexual apresentada por Caleb
Morgan. Devo lembrá-la de que se mantém na condição
de arguida. Para efeitos de gravação, o filho da
Professora Fisher, o Tobin, acabou de ser
entrevistado por uma agente especializada da Thames
Valley. Durante esta entrevista, o Tobin foi
interrogado sobre a noite de 6 de julho. Ele diz
que a viu na cozinha, Professora Fisher. Com o
Caleb Morgan.
MF: Como assim? Viu-nos?
CG: A descrição é consistente com vocês os dois a
fazerem sexo.
MF: Mas eu já vos disse que…
CG: Que não consegue lembrar-se, eu sei. Bom, pode
haver uma razão para isso. Pelo modo como o Tobin
descreveu as coisas, o Morgan pode tê-la drogado.
Isso justificaria a sua falta de memória.
MF: [reprime um soluço e desvia o olhar]
CG: E o Tobin também referiu que pensou que o Caleb
estava a magoá-la. Mas claro que podemos atribuir
isso ao facto de ele não saber o que estavam a
fazer e…
MF: [começa a soluçar]
Mas eu teria sabido… na manhã seguinte, eu… tinha
de ter sabido…
NK: [calmamente, para a sua cliente]
Não necessariamente. Se ele tiver usado proteção,
por exemplo.
CG: Assim sendo, e nesse pressuposto…
NK: [interrompendo]
Podem dar-lhe um minuto para ela se recompor, pelo
amor de Deus?
[silêncio]
VE: Professora Fisher, nós compreendemos o quão difícil
tudo isto será para si, mas o que o Tobin disse…
pode vir a mudar tudo.
MF: [esforçando-se por se recompor]
OK…
[pausa]
OK.
NK: Tem a certeza? Não precisa de fazer isto neste
preciso momento, podemos…
MF: Não… Eu quero. Quero acabar com isto de uma vez por
todas e levar o meu filho para casa.
NK: [voltando-se para os agentes]
Bom, o que é que o Tobin disse exatamente?
VE: Disse que a Professora Fisher parecia “molenga” e
“a dormir em pé”. Por isso é que acreditamos que
ela tenha sido drogada, com a droga da violação, ou
algo assim, possivelmente dentro do champanhe.
[para Fisher]
Lembra-se de ter visto o Mr. Morgan a servir as
bebidas?
MF: Não, ele estava de costas para mim. Na altura, nem
achei estranho.
CG: Entendo. Nós já analisámos a garrafa e os copos,
mas não foi detetada nenhuma substância desse tipo.
Bem como nas suas análises toxicológicas, o que,
como deve calcular, vai tornar tudo praticamente
impossível de provar.
NK: Porque é que isso não me surpreende…
CG: Depois de ouvir o que o seu filho relatou, há mais
alguma coisa de que se lembre acerca dessa noite?
Talvez algo que não lhe tenha parecido relevante na
altura?
MF: Não. Lamento imenso, mas já vos contei mesmo tudo
do que consigo lembrar-me.
VE: Se o Morgan nunca tivesse usado uma substância
dessas, é provável que não soubesse quanto tempo é
que levaria a fazer efeito, sobretudo depois de a
senhora ter jantado bem. Isto explicaria os
arranhões – ele pode tê-la começado a assediar
antes de estar totalmente sedada, logo ter-se-á
tentado defender.
Mas tem mesmo a certeza de que não se lembra de
nada disto?
MF: Não… não me lembro de nada.
CG: Se lhe foi dada alguma droga deste género, isso
trará obviamente toda uma outra luz sobre as
subsequentes acusações que lhe foram feitas. Assim
sendo, sabe por que razão o Mr. Morgan faria uma
acusação dessas?
NK: Não lhe parece óbvio? Quis limpar-se do seu próprio
comportamento criminoso, virando a situação e
fazendo da minha cliente a criminosa.
CG: Sim, pode ser uma explicação. Mas pode haver
outras. Vingança, talvez? Há algum motivo que lhe
venha à ideia?
MF: [desesperada]
Não, nenhum! Sempre achei que nos dávamos muito
bem. Fiz tudo o que podia para o apoiar…
NK: Estão a sugerir que acusemos o Morgan?
CG: Bom, claro que vamos ter de o entrevistar de novo
acerca disto.
NK: Vocês nem pensaram duas vezes em deter a Marina.
Não admira que o Tobin ande com pesadelos… ele viu
a mãe a ser violada…

***

– Fogo, o gajo não faz a coisa por menos, hã? Deve ser fixe
termos uns pais destes: é só ligar que eles destacam um pelotão
inteiro para nos defender.
Gislingham e Quinn estão de volta a St. Aldate, vendo Caleb
Morgan a entrar na Sala de Entrevista Um, acompanhado dos seus
advogados. Meredith Melia veste um fato de calças verde-menta e
Patrick Dunn traz o seu fato-assinatura, com uma camisa branca
aberta no colarinho ‒ deve comprá-las à dúzia. Também trouxeram
uma assistente, uma jovem de óculos e expressão sincera,
carregada com duas malas de piloto e uma pilha de dossiês.
– Devem vir cheias de tijolos só para nos impressionar – diz
Quinn, apontando para as malas.
Gislingham olha-o com ar apreensivo.
– Pois olha que está a resultar. – Recompõe-se e volta-se para o
colega: – Encontra-me a Ev, sim? Vamos lá montar o nosso próprio
grupinho armado.
Quinn ri-se.
– Vou ver se te consigo arranjar uma estrela de xerife.

***

Ao contrário dos seus advogados, Caleb Morgan não se deu ao


trabalho de se vestir para a ocasião. Aliás, Ev não se espantaria
nada que o tivessem aconselhado a vestir-se precisamente assim: a
t-shirt ligeiramente encardida e os calções cargo resultam como um
cartaz de néon a dizer “o nosso cliente está completamente
despreocupado em relação a todo este processo”.
Depois de estarem todos sentados e com os respetivos copos de
água à frente, a sala parece uma sauna. Ev começa a invejar aquela
t-shirt. Sente gotas de transpiração a escorrerem-lhe das axilas.
Gislingham olha em volta da mesa e só depois de ver a sala
totalmente em silêncio é que começa a falar:
– Caleb Owen Morgan, está detido por suspeita de agressão
sexual na noite de 6 de julho de 2018. Não precisa de dizer nada,
mas aviso-o de que pode ser prejudicial para a sua defesa não
referir, quando interrogado, algo que mais tarde venha a confiar ao
tribunal. Tudo o que disser pode vir a ser apresentado como prova.
Morgan está estupefacto.
– Mas que porra?!…
– Deixe-nos tratar disto, Caleb – diz Melia, voltando-se para
Gislingham. – O que raio é que se passa aqui? O nosso cliente aqui
é a vítima. Ah, esperem, esqueci-me de que os homens não podem
de modo algum ser vítimas, pois não? Isto é inacreditável…
– O que eu gostava de saber – intervém Dunn, interrompendo-a
– é que provas vocês têm para esta alegação absurda.
Gislingham olha-o friamente.
– Ao contrário do que ao início acreditámos, houve de facto uma
testemunha do que aconteceu nessa noite.
Morgan parece incrédulo.
– O quê?!
– Uma testemunha? – exclama Meredith.
Gislingham saboreia a pausa.
– O Tobin Fisher.
Morgan abana a cabeça:
– Não. Impossível. Ele estava a dormir, eu próprio subi para ver
como ele estava, poucos minutos antes de a Marina chegar.
– Acredito, mas ele contou-nos que desceu para ir buscar um
sumo.
Morgan recosta-se.
– Bom, mas eu nunca o vi.
– Pois não. Ele também disse isso.
Morgan mostra agora uma expressão apreensiva.
– E o que é que ele disse exatamente?
Gis olha para Morgan:
– Disse que o viu a fazer sexo com a mãe.
A sala explode num silêncio ensurdecedor.
– Nunca aconteceu – diz Morgan, lacónico. – Nunca. Aconteceu.
Porra.
– Bom, a descrição dele foi bastante detalhada – observa Quinn.
– E daí?
Quinn ergue um sobrolho.
– Como é que um miúdo de oito anos descreve os mecanismos
do sexo a não ser que os tenha visto? A propósito, ele diz que você
a agarrou por trás. É assim que gosta?
Morgan lança-lhe um olhar assassino e vira-se para Gislingham:
– Quem sabe quantos gajos é que a Marina já terá tido? Ele
pode tê-la visto com qualquer um.
Dunn chega-se à frente na cadeira.
– O meu cliente tem toda a razão, Inspetor. E, para que conste,
considero o último comentário do seu colega extremamente
ofensivo.
– Também eu – diz Melia. – Seja como for, a criança tem apenas
oito anos. Duvido que alguém considere minimamente fiável seja o
que for que ela diga.
– Verdade – concorda Gislingham –, ele é muito novo. Mas nós
temos agentes especialmente treinados e com muita experiência em
interrogar crianças destas idades. Se acaso lá chegarmos, o MP virá
a considerar esta entrevista totalmente admissível. Então, só para
confirmar, a posição do Mr. Morgan…
Quinn disfarça uma fungadela de riso. Melia olha-o severamente:
– A posição do Mr. Morgan é de que não ocorreu tal ato sexual
entre ele e a Professora Fisher.
– Não – insiste Morgan. – Não ocorreu mesmo.
– Segundo o Tobin, o senhor estava a magoar a mãe e…
Morgan abana a cabeça com veemência.
– … não foi apenas isso – prossegue o Inspetor. – Ele disse que
a mãe estava molenga e a dormir em pé. Uma descrição que nos
leva a acreditar que possa ter ocorrido uma violação com recurso a
um qualquer produto estupefaciente.
Morgan tem-se esforçado para controlar a raiva, mas isto já é
demais.
– Foda-se, vocês só podem estar a gozar comigo! Nunca ouvi
nada tão ridículo na porra da minha vida.
– Caleb – intervém Melia; mas ele afasta-lhe a mão, os olhos
fixos em Gislingham.
– Vocês acreditam mesmo nessa merda?
O inspetor encolhe os ombros.
– Porque é que ele haveria de inventar?
O jovem chega-se à frente, os cotovelos na mesa.
– Ele não passa de um miúdo. E um miúdo muito vulnerável,
diga-se. Eu não sou o único a achar que ele tem algum problema.
Por isso, se acham que podem confiar numa única palavra vinda da
boca dele, não sei… Acho que também quero dessa merda que
vocês andam a fumar.
Quinn e Gislingham trocam olhares. Gis vira uma página do
processo.
– Também temos a questão da tatuagem.
Morgan estranha:
– A tatuagem?
– A que tem no ombro. O dragão vermelho.
– O que é que tem? Vocês já sabiam dela.
– O Tobin também sabe – diz Quinn. – Aliás, anda a pintar essa
versão no livro de colorir.
Morgan parece confuso:
– Não estou a perceber…
– Mas os seus advogados estão – responde Gis, secamente,
olhando para eles.
– Caleb – diz Melia, voltando-se para ele –, lembra-se de alguma
ocasião em que o Tobin possa ter visto a sua tatuagem?
– Ah, claro… OK. – Olha o vazio e passa uma mão pelo cabelo.
– Bom, acho que sim… Sim, sim, decididamente. Uma vez, eu
estava a tomar conta do Tobin e ele atirou um brinquedo ao ar e
entornou o sumo em cima de mim. Sei que tirei a t-shirt para lavar a
nódoa. Deve ter sido aí que ele viu a minha tatuagem.
– Pronto, aí têm – diz Melia, rapidamente, com um gesto na
direção de Gislingham. – Satisfeito?
– Seja como for – acrescenta Morgan –, se eu tivesse violado a
Marina, haveria provas. ADN e essas cenas.
– Não forçosamente – observa Gis –, como os seus advogados
certamente saberão.
Mas Melia ainda não acabou:
– E, quanto ao Tobin Fisher, volto a dizer: as crianças destas
idades são extremamente influenciáveis. Nenhum tribunal levará a
sério essa alegada prova.
– Creio que, quanto a isso, caberá ao júri decidir – diz
Gislingham friamente. – Se alguma vez chegarmos a esse ponto.
***

– Então, o que é que achaste? – quer saber Quinn, olhando de


relance para Gis, enquanto tira um café da máquina. Morgan está a
descer as escadas, acompanhado pelo agente de custódia.
Gis franze a testa.
– Interessante o que ele disse acerca do Tobin… E fui só eu a
reparar que ele reagiu de um modo muito estranho quando lhe
falámos na tatuagem?
Quinn dá um pontapé na máquina, que começa a gorgolejar.
– Não, não foste só tu.
Gislingham parece subitamente pensativo.
– Arranja-me uma cópia do vídeo da entrevista. Vou levá-la ao
Bryan Gow.

***

– E então? De que é que me querias falar?


Penelope McHugh senta-se e abre uma pasta, mantendo o tom
de voz vigoroso e otimista. Hoje, o seu cliente parece um pouco
mais animado, mais controlado. A centelha fanática desapareceu-
lhe dos olhos e concordou em subir até à sala de reuniões. É tão
exígua quanto a cela, mas pelo menos só cheira a ambientador
barato. Menos mal. Em cada sala que Penelope entra, parece existir
uma porcaria destas. São ossos do ofício da defesa criminal.
– Das roupas da Emma Smith – diz ele rapidamente. – Que ela
usava quando foi encontrada.
McHugh pega na caneta.
– OK.
– Quando eu saí, ela estava de leggings azuis e t-shirt.
– De que cor?
Ele pensa por uns segundos.
– Amarelo-claro?… Com um logo qualquer à frente?… Para ser
franco, não reparei bem. Na maior parte das vezes, nem sequer sei
dizer o que é que a minha mulher…
Cala-se. Recompõe-se. Respira fundo.
McHugh finge não reparar, enquanto folheia o processo.
– Segundo o que aqui vem, a vítima usava um vestido de
algodão branco. Tens a certeza de que não era isto?
Ele abana a cabeça:
– Não. Não era. De todo, não.
– Então, ela deve ter mudado de roupa depois de tu saíres e
antes de o assassino chegar. É isso que queres dizer? – Recosta-se
na cadeira. – Porque, devo dizer-te, qualquer júri vai ter dificuldades
em entender por que diabos alguém se daria ao trabalho de mudar
de roupa àquela hora da noite.
Ele inclina-se para ela, o olhar intenso:
– Mas é precisamente isso: ela não o fez. Foi ele. O Gavin
Parrie. Atacou-a e matou-a, e depois mudou-lhe a roupa. Tinha de
ter cem por cento de certeza de que o único ADN que eles
encontrariam era o meu.
Então, estamos de volta a isso, pensa ela, com um aperto de
coração. A Vingança do Violador da Beira da Estrada.
Mas o seu cliente não parece ter reparado na súbita onda de ar
gelado naquela sala.
– Tu sabes, não sabes… – começa ela lentamente – … que este
caso podia ser bem mais fácil de defender se tu tivesses tido
relações com ela. – Ele levanta a cabeça e ela prossegue,
rapidamente: – Quero dizer, continuaríamos com bastantes
dificuldades em explicar a inacreditável coincidência de o assassino
ter entrado em casa dela exatamente na mesma noite do que tu,
mas, pelo menos, as análises forenses…
– Mas não aconteceu – diz ele calmamente, prendendo-lhe o
olhar. – Eu amo a minha mulher.
E ama mesmo. Ela nunca viu uma emoção tão dolorosamente
estampada na cara de um homem. Até poderia querer mentir, mas
não mente. Não consegue.
– OK – diz ela, pegando na caneta, agora já mais enérgica. –
Mais alguma coisa?
Ele engole em seco.
– Achas que consegues ter acesso ao relatório da autópsia? –
Ela começa a abanar a cabeça; ele insiste: – Eu sei, eu sei que é
muito improvável, mas vale a pena tentares.
– OK – diz ela, após um momento. – Posso pedir à Gallagher. O
que é que queres saber?
Ele chega-se ligeiramente à frente.
– Se faltava alguma coisa no corpo… joias, brincos… O Parrie
tinha um fetiche por brincos. E tentar perceber se foi cortado ou
arrancado algum cabelo à Emma.
Ela estranha:
– Isso nunca foi referido…
– Mas vai lá estar, vais ver que sim – insiste ele, obstinado. –
Tem de estar. O Parrie não se conseguiu controlar, aposto.
Ela respira fundo:
– Se há coisa que eu aprendi nestes anos todos é que os jurados
detestam teorias da conspiração. E tu estás fartinho de saber isso.
Ele lança-lhe um olhar desesperado. No fundo, é tudo o que ele
tem.
– OK – diz ela, suprimindo um suspiro. – Conta-me lá, enquanto
inspetor da polícia, como é que isso pode ter acontecido.
Os olhos dele acendem-se com o que parece ser uma centelha
de esperança, e ela apercebe-se subitamente de que Adam deve ter
pensado que ela não iria acreditar nele. Durante todo este tempo,
tem estado a sentir que até a própria advogada acha que ele está a
mentir.
– OK… Para começar, o Parrie sabe tudo sobre ADN – começa
ele. – Sempre foi incrivelmente cuidadoso para nunca deixar
vestígios biológicos. E, no caso da Smith, ele teve muito mais tempo
para limpar tudo do que com qualquer uma das suas vítimas
anteriores. Ele só largou o corpo da ponte de Walton Wells perto da
uma e meia da manhã… Pode ter estado naquele apartamento mais
de três horas. Mais do que suficiente para limpar a cena, lavar o
corpo, mudar-lhe a roupa. – Encolhe os ombros. – Seria aquilo que
eu faria se…
Se a tivesses matado.
As palavras pairam no ar como agentes nervosos29, paralisando-
lhe o cérebro.
A advogada recompõe-se.
– E quanto à pulseira eletrónica? Como é que ele conseguiu
contornar isso? Estás a sugerir que ele conseguiu inativá-la de
alguma maneira?
– E porque não? Essas coisas têm problemas de funcionamento.
Não frequentemente, mas acontece. Já verificaste?
– Não, não verifiquei. Mas claro que vou ver isso. Mas não achas
que é arriscado? E se se confirmar que ele estava de facto a
quilómetros de distância, na altura? Que não podia mesmo tê-lo
feito? Podemos estar a dar-lhe um excelente álibi em bandeja de
ouro.
– Sim – concorda ele, calmamente. – Eu sei isso.
– E as análises forenses? – pergunta ela. – Percebo que ele
tenha tido o extremo cuidado de não deixar ADN. O que não
entendo é como é que ele conseguiu o teu.
Vê-se que ele tem tido muito tempo para pensar nisto tudo.
Mexe-se na cadeira, agora mais ávido.
– O facto de terem encontrado ADN meu no corpo é a melhor
prova de que não fui eu que a matei.
Ela olha-o fixamente.
– Desculpa… O quê?
Ele devolve-lhe o olhar sério.
– Tudo aquilo que eu acabei de dizer sobre o Parrie também se
aplica a mim – só que ainda mais. Eu entendo de polícia científica,
eu sei como as cenas do crime são processadas. Por que raio é que
haveria de ser tão estúpido ao ponto de deixar o meu ADN por todo
aquele apartamento? Nela toda? Não sei como é que o fez – não sei
onde é que o arranjou –, mas foi o Gavin Parrie que plantou o meu
ADN lá.
Ela prolonga a pausa, deixa-o transpirar. E, sim, está a suar. Tem
gotas de transpiração na testa.
– Mas isso não é bem verdade, pois não, Adam? Que a mesma
fundamentação do Parrie se aplique a ti?
Ele estranha, o entusiamo esmorece-lhe no rosto.
– Como assim? Queres dizer o quê?
– Tu estás a dizer que, enquanto agente de polícia experiente,
terias limpado a cena, lavado o corpo e vestido a vítima com outra
roupa, certo? Mas tu próprio o afirmaste: tudo isso leva tempo. E
tens razão, se fosse o Gavin Parrie, teria tido mais do que tempo.
Mas tu não, certo? Não podias ficar lá a noite inteira, tinhas de ir
para casa, estar com a tua mulher, criar um álibi. Não terias mais do
que uma hora para te manteres naquele apartamento. Muito menos
do que o tempo necessário.
Ele continua de testa franzida.
– Desculpa – diz-lhe ela, mais docemente. – Estou apenas a
fazer de advogado do diabo. Mas preocupa-me que, se usarmos
esse argumento, isso os leve a voltarem-se contra ti. Vão dizer que
sabias que não ias conseguir limpar eficazmente o apartamento a
tempo, por isso não perdeste tempo e preferiste pensar numa
maneira de te livrares do corpo, que conseguisse contornar
completamente a questão do ADN. Daí, o comboio de carga.
Ele suspira, passa a mão pelo cabelo.
– O Inspetor King disse precisamente isto na última entrevista –
prossegue ela. – Iria parecer um caso de suicídio e o corpo ficaria
de tal modo destruído, que não restaria praticamente nada para
autopsiar. O mais provável é que a polícia nem se desse ao trabalho
de fazer uma busca no apartamento dela, quanto mais tratá-lo como
cena do crime. Se assim fosse, pouco importaria quanto ADN
tivesses deixado para trás, porque nunca ninguém iria encontrá-lo. –
Recosta-se. – Ter-te-ias servido de tudo aquilo que aprendeste nas
décadas em que lidaste com casos de homicídio para cometeres a
coisa mais parecida possível com o crime perfeito. E, se não fosse
aquela equipa de engenheiros, seria exatamente o que se tinha
passado. Mas, tal como tu próprio também já disseste, até os
melhores profissionais cometem erros. Aquele seria o teu.
Ele agora está claramente a tentar controlar-se, a respiração
irregular.
– Então, não tenho hipótese? É isso que me estás a dizer? Seja
o que for que eu diga, não consigo ganhar?
– Não, não estou a dizer isso. Estou apenas a tentar ser realista.
Mas vou falar com a Inspetora Gallagher, tentar descobrir se havia
algumas roupas naquele apartamento parecidas com as leggings e
a t-shirt que viste.
– Não me parece – diz ele, com um suspiro derrotado. – O Parrie
não seria estúpido ao ponto de as deixar lá.
Ela concorda:
– Temo que tenhas razão, mas só saberemos quando eu
perguntar. E, mesmo que não haja nada no apartamento, a vizinha
pode lembrar-se de como a Emma estava vestida quando a viu a
abrir a porta naquela noite. Se isso também falhar, pode haver
outras formas de conseguirmos provar que ela tinha roupas assim.
Se bem que isso implique rastrear ou testemunhas ou fotografias.
Não é impossível, mas nós não temos os recursos da Thames
Valley. Nem a sua capacidade de atrair as atenções do público.
Ele franze a cara e afasta o olhar.
– Quanto mais olho para a vista deste lado da rua, menos gosto
dela.
– Por outro lado – diz ela, tentando soar mais otimista –,
conseguimos montar um caso suficientemente sólido quanto ao
Gavin Parrie ter um motivo. E, se tivermos sorte nisso, há de haver
evidências em algum lado que ou te concedam um álibi ou
incriminem outra pessoa.
– E o Cleland?
– Não tão promissor quanto pareceu no início, segundo soube.
Acho que ainda precisam de excluí-lo formalmente, mas, sem
evidências forenses na roupa dele ou no apartamento da Smith, não
estou a ver o King a avançar.
Pela expressão no rosto de Fawley, ela percebe que ele também
não.
Pega de novo na caneta.
– Mas, se existirem imagens do carro dele em Walton Well, essa
situação pode mudar drasticamente. Tenho mesmo de descobrir se
existem ou não câmaras de CCTV naquela ponte.
Ele assume uma expressão pesarosa.
– Não tenhas grandes esperanças. Conhecendo o Parrie, ele
deve ter verificado essa localização muito antes de a usar.
Ela estranha:
– Como assim?
– Google Earth? – diz ele, com um encolher de ombros. – Se
bem que não me admirasse nada que ele tivesse ido verificar
pessoalmente. A verdade é que sabemos que ele conseguiu
contornar a questão da pulseira eletrónica e que teve transporte –
teve de ter, para chegar cá vindo lá do raio do sítio onde está,
transportar o corpo e fugir. Vale a pena veres a que tipo de veículos
é que ele poderá ter acesso, porque tem de haver algum, isso sem
dúvida nenhuma.
– Provavelmente, não uma carrinha branca, desta vez – diz ela
secamente. – Isso seria demasiado óbvio.
Ele encolhe os ombros.
– Quem sabe? A minha mulher garante que viu uma, na nossa
rua, uma ou duas vezes ultimamente.
– A sério? Tens a matrícula?
Ele nega, tristemente:
– Não. Se tivesse, já teria eu próprio verificado.

***

– Freya? Sou eu.


A voz dele soa abafada, como se estivesse atrás de um vidro.
Ela agarra firmemente o telemóvel.
– Meu Deus, Caleb… Ando há horas a tentar falar contigo! O que
é que se passa? Tens algum problema com o telemóvel? Este não é
o teu número.
– Comprei um cartão recarregável. A polícia ficou com o meu.
Ela abre os olhos de espanto e senta-se devagar.
– A polícia? Porquê?
Ouve barulhos de fundo, de trânsito, como se ele estivesse na
rua.
– Eles prenderam-me, OK? Agora, dizem que o Tobin me viu a
violá-la… que eu lhe pus uma cena de boa noite, Cinderela na
bebida, ou uma merda dessas, e que é por isso que ela não se
lembra de nada.
– Oh, meu Deus!
– Ya, podes crer. Uma cena mesmo fodida.
O coração dela está assustadoramente acelerado.
– Mas, amor… isso não é nada bom… Eles devem estar a levar
isto muito a sério ou não te teriam prendido…
Ele ri amargamente:
– Jura?… Bom, seja como for, fui “libertado na condição de
arguido”, enquanto não descobrem mais nada.
Ela engole em seco.
– O que é que dizem os teus advogados?
– Que eles não vão conseguir provar nada. Que não há provas
forenses e estão apenas a confiar na palavra do Tobin. E nós bem
sabemos como esse puto é todo marado dos cornos, certo?
– Sim – diz ela, lentamente –, se sabemos…

***

Entrevista telefónica a Lloyd Preston, Network Rail


13 de julho, 2018, 17h15
Conduzida por: Inspetor-Coordenador C. Gislingham

CG: Estou? Fala da Polícia de Thames Valley. Estou a


falar com Lloyd Preston?
LP: Sim, o próprio. Thames Valley, disse?
CG: Sim, senhor. Trata-se apenas de algumas perguntas
de rotina acerca do acidente em Walton Well.
LP: Não sei o que lhe possa dizer mais. Já disse ao
outro tipo da polícia tudo o que sabia. Sparrow,
acho eu.
CG: Farrow. Inspetor-Chefe Farrow.
LP: Isso. Então, ele é tipo o seu chefe…?
CG: Mais ou menos. Como já disse, é apenas rotina.
LP: OK. E o que é que quer saber?
CG: Lembra-se de ter visto alguém na ponte nessa noite?
Antes ou depois de ter visto o corpo cair?
LP: Não. E já disse isso ao outro tipo. Por isso é que
eu achei que era suicídio.
CG: E viu algum carro? Uma carrinha?
LP: Dos carris, não se consegue ver a estrada.
CG: Certo. E não poderá ter ouvido alguma coisa? Àquela
hora da noite, com tudo em silêncio, deve ser mais
fácil ouvir um veículo…
LP: Não tenho a certeza…
CG: Leve o seu tempo.
LP: Oiça, não posso ter a certeza, mas acho que sim…
que ouvi qualquer coisa.
CG: Quando? Antes ou depois de ter visto o corpo?
LP: Antes. Assim que vimos a rapariga, concentrámo-nos
apenas a tentar contactar o centro de controlo o
mais rapidamente possível e nem sequer conseguimos
pensar em mais nada. Por isso, eu não teria ouvido
carro nenhum nessa altura.
CG: Quanto tempo antes, mais ou menos? Um minuto?
Cinco?
LP: Mais do que isso, mas não posso precisar.
CG: Certo. Então, se o homem que conduzia esse veículo
era o mesmo que atirou o corpo da ponte, já estaria
ali bastante tempo antes de o fazer, certo? Quem
sabe à espera que vocês chegassem ao ponto certo?
LP: Porra, isso já são suposições a mais.
CG: Mas é possível?
LP: Sim, OK, acho que é possível. Só não me peçam para
ir a tribunal confirmar isso.
***

Bem que podia ter marcado oficialmente uma reunião, mas


Penelope McHugh sente que Ruth Gallagher pode mostrar-se mais
recetiva se for apanhada desprevenida. Sabe que a inspetora tem
uma família jovem e imagina (e bem) que ela não seja muito dada
ao presentismo, muito menos numa sexta-feira. Por isso, deixa-se
ficar por um momento sentada num banco, com o seu kindle e uma
visão alargada da entrada de St. Aldate; pouco depois das seis,
recebe a sua recompensa. Gallagher sai para o sol débil de fim do
dia e dirige-se, apressada, para um velho Volvo estacionado no
parque de estacionamento, lá ao fundo.
Não é de todo o carro que McHugh tinha imaginado – atribuíra-
lhe o reluzente SUV híbrido, estacionado mais perto da entrada.
Descartara desde logo o velho Volvo, ao vê-lo demasiado básico e
desorganizado para uma inspetora-chefe da craveira dela.
Sobretudo o banco de trás. Uma caixa grande de plástico com roupa
usada, provavelmente para dar, brinquedos sem uso, livros velhos e
de cantos dobrados… Em Oxford há todo um esquadrão de
mulheres de meia-idade que andam com os carros carregados deste
tipo de coisas, mas McHugh nunca pensou que Gallagher fosse uma
delas. Prova de que não se deve julgar um livro pela capa.
– Inspetora-Chefe Gallagher? – pergunta a advogada,
ligeiramente ofegante da corridinha que deu até ali.
A outra volta-se. Não parece particularmente entusiasmada por
vê-la.
– Desculpe apanhá-la assim, mas será que lhe posso dar uma
palavrinha?
Quase se consegue ver o coração de Gallagher a afundar-se.
– Não me parece que este seja o sítio indicado para…
– Oh, é só uma ou duas perguntas, coisas factuais apenas. Não
lhe levo tempo nenhum.
Gallagher sopesa a chave do carro na mão.
– Os meus filhos estão à minha espera em casa. O meu marido
saiu, e hoje é noite de piza…
– Oh – diz McHugh alegremente –, vivem em Summertown,
certo? Eu moro em Kidlington. Porque não me dá boleia e
conversamos pelo caminho? Pode deixar-me no shopping, que eu
apanho o meu autocarro de lá.
E é verdade. A advogada vive de facto em Kidlington. E tem o
seu carro num dos pisos do estacionamento do Westgate, mas, isso,
a outra não precisa de saber.
A inspetora-chefe faz um leve trejeito, abre a boca para dizer
algo, mas é já demasiado tarde. McHugh já levou a mão à porta do
lugar do pendura e dirige-lhe um sorriso radioso:
– Obrigadíssima! Fico-lhe mesmo muito grata.

***

Somer é uma das últimas pacientes do dia. Na sala de espera,


estavam apenas um velhote de mãos trémulas, dobrado sobre o
andarilho, e uma mãe ansiosa de duas crianças pequenas
hiperativas, que há muito já deviam estar na cama. Depois dos
guinchos e das birras e do barulho de brinquedos a serem atirados
ao chão, o silêncio agora é de um alívio inacreditável. Ainda assim,
não o suficiente para lhe reduzir a ansiedade instalada nas
entranhas.
Acaba de ajeitar a saia e sai de detrás do biombo. A médica está
sentada à secretária, uma página de notas aberta no computador.
Somer engole em seco.
– Estou grávida, não estou? – É uma declaração, não uma
pergunta. – Enfim, eu sei que o teste deu negativo, mas essas
coisas não são cem por cento fiáveis, certo?
A médica recosta-se na cadeira e ajeita os óculos.
– A Erica tem andado a tentar engravidar?
– Não. Quero dizer, eu quero ter filhos um dia, mas neste
momento… – Levanta as mãos. – É complicado, só isso.
A médica sorri.
– Quase sempre é.
Somer respira fundo:
– Eu e o meu namorado… não estamos juntos há tanto tempo
assim, e o assunto “filhos” ainda não foi discutido. Ele já tem duas
filhas adolescentes e… Bom, nem faço ideia se ele estaria na
disposição de recomeçar tudo de novo. E, em todo o caso, há a
minha carreira… Agora seria mesmo um timing péssimo…
Cala-se, percebendo que tem um soluço entalado na garganta.
A médica observa-a.
– Não está grávida – informa-a.
Somer olha-a fixamente.
– Mas… tem a certeza?
– Absoluta.
– Mas… e os sintomas? Os enjoos…
A médica mexe-se ligeiramente na cadeira.
– Existem outras situações que podem causar isso, mas, regra
geral, os quistos nos ovários são os grandes culpados. E, baseada
no exame interno que acabei de lhe fazer, suspeito que seja
precisamente esse o caso.
Volta-se para o ecrã e tecla qualquer coisa.
– Vou marcar-lhe uma ecografia no JR, só para termos a certeza.
Somer esforça-se por se manter a par dos seus próprios
sentimentos. Nem sequer percebeu ainda se está aliviada ou triste
por não haver bebé nenhum, e agora isto…
– Desculpe… Eu não estava à espera disto. Não sei nada de
quistos nos ovários… Isso é grave? Deverei preocupar-me?
A médica entra em modo mulher-de-negócios:
– Na maioria das vezes, não há problema nenhum. Quando
existem complicações, é geralmente porque infetam, o que por
vezes pode conduzir a algumas dificuldades em engravidar mais
tarde. Por isso lhe perguntei se a Erica e o seu namorado andavam
a tentar ter um filho.
– Mas… – Somer inspira fundo, vendo as unhas cravarem-se-lhe
nas palmas. – A doutora disse que na maioria das vezes não é
preocupante, mas outras, sim… certo?
– São situações muito raras…
– Mas mesmo essas, as raras, são benignas, não são? Não
estamos a falar de…
A médica concede-lhe um rápido sorriso profissional:
– Não vamos precipitar-nos, não há necessidade disso. Tal como
disse, a esmagadora maioria dos quistos ováricos não é grave.
Vamos marcar a ecografia, sim? E logo se vê a partir daí.

***

Depois de se ver forçada a passar vinte minutos com McHugh


num espaço confinado, Gallagher não tenciona facilitar a vida à
advogada, como é lógico. Não pensa oferecer-se para nada, pois já
lhe basta a chatice de estar no para-arranca da Oxpens Road, em
plena hora de ponta.
– O que eu lhe queria perguntar era sobre as câmaras de CCTV
– diz McHugh, olhando pela janela como se a pergunta não fosse
sequer importante.
Há uma fila para entrar no ringue de gelo. Ela costumava levar lá
os filhos, mas isso era quando eles ainda eram adolescentes e
ainda achavam que patinar era fixe. Mas numa noite quente como
esta devia ser bom, pensa ela. O ar brilhante do gelo, os golpes dos
patins…
– Não há – diz Gallagher, que também sabe uma ou duas coisas
sobre gelo. – Câmaras de CCTV, digo.
Foi uma boa tentativa; McHugh tenta outra abordagem:
– Vocês… por acaso, verificaram os movimentos do Gavin Parrie
na noite de 9 de julho?
Gallagher volta-se para olhar para ela e ergue as sobrancelhas;
depois, volta a olhar para a estrada.
– Por acaso, tem noção de que isso é um absurdo?
McHugh encolhe ombros.
– É possível. Mas tenho mesmo de perguntar.
A carrinha à frente delas muda subitamente de direção, e
Gallagher mete a primeira.
– A resposta é sim, verificámos. E não, ele não esteve nem
sequer próximo de Oxford nessa noite.
– E que próximo é esse?
Gallagher franze a testa levemente, ainda que seja difícil
determinar se é o trânsito ou a passageira que está a enervá-la.
– Leamington Spa30 – diz, após um momento. – Ele está numa
casa de recuperação próxima de lá, desde que saiu de Wandsworth.
Esta informação é obviamente confidencial, mas nestas
circunstâncias sabê-lo é capaz de a ajudar.
É capaz de pôr termo a essa teoria louca e implausível: a
mensagem é suficientemente clara, ainda que o tom dela seja
ponderadamente objetivo.
– Sabe se ele tem acesso a algum veículo?
Gallagher lança-lhe um olhar desagradável que diz: o que é que
achas?
– Como está o Adam? – pergunta-lhe, um momento depois, a
voz sempre neutra, os olhos fixos na estrada.
– Como qualquer pessoa na sua situação, imagino – responde a
advogada. – Incrivelmente angustiado e stressado. Zangado.
Preocupado com a mulher. Do que é que estava à espera?
– Ele sempre foi um excelente agente – observa Gallagher –, e,
pessoalmente falando, gosto imenso dele…
– Mas…? – diz McHugh, tendo registado o pretérito perfeito
inicial.
Gallagher olha para ela e, depois, em frente.
– Mas, por mais que nos esforcemos – e acredite que nos
esforçamos muito –, não conseguimos encontrar um único indício
para o absolver. Nem sequer sugerir outra hipótese razoável…
– Nem sequer esse tipo… o Cleland? Ele tinha um motivo.
– Possivelmente. Mas é tudo. Não temos rigorosamente mais
nada que o ligue a este crime. Nem testemunhas, nem análises
forenses, nem nenhuma prova de que ele tenha sequer estado perto
de lá. – Volta a olhá-la de relance. – Lamento imenso, também
gostaria muito que tivesse sido o Cleland, acredite, mas não tenho
como. Tudo o que temos aponta para o Adam, e vocês não me
deram nada que eu possa usar para o refutar. E quanto à obsessão
dele pelo Gavin Parrie, bom… é de loucos.
McHugh vai para responder, mas a outra continua a falar:
– Devo confessar que estou cada vez mais preocupada com o
Adam. A maneira como está a reagir é tão pouco típica dele. Toda a
minha equipa reparou.
Estará a perguntar-me se o Fawley se passou definitivamente?,
pensa McHugh. É mesmo por aí que eles estão a ir?
Gallagher suspira:
– E agora, com o bebé a chegar, tão cedo depois de terem
perdido o Jake… Até a pessoa mais forte do mundo pode colapsar,
sujeita a um stress destes…
Não acaba a frase, mas a inferência surge agora em letras de
néon: tens a certeza de que o teu cliente se encontra no seu perfeito
juízo? Não se pode ter dado o facto de ele, estando tão instável e
sob uma tensão tão forte, ter mesmo feito isto?

***

– Giles? Sou eu. Ouve, tenho muita pena, mas não vou mesmo
poder aparecer aí amanhã. Aconteceu… aconteceu aqui uma
coisa…
Ele não responde logo, mas Giles é assim: ao contrário da
maioria dos homens, pensa antes de falar.
– Mas está tudo bem?
O que significa na verdade “Mas tu estás bem?”. Só que está a
tentar não invadir, não se intrometer na vida dela.
– Sim, sim… – Respira fundo. – Cenas de trabalho, entendes…
É este caso do assédio sexual, mais as avaliações de desempenho
que aí vêm… e agora isto de o Fawley estar preso…
Ela cala-se, mas já não vai a tempo. Ouviu o próprio Fawley dizê-
lo centenas de vezes: consegue apanhar-se um mentiroso pelo
excesso de informação. Três respostas quando uma é suficiente.
– OK – diz ele, após um momento. Ela pressente-lhe a mágoa na
voz. – Tenho mesmo pena de não estar contigo, mas entendo.
Ela acena com a cabeça, mesmo sabendo ser inútil, porque ele
não está a vê-la, mas não confia suficientemente em si própria para
falar.
– Ouve… não quero pressionar-te, mas eu acho que se passa
alguma coisa, que algo te está a preocupar… E, se for o caso, e eu
puder ajudar, basta pedires-me. Espero que saibas isso. Só quero
que sejas feliz, OK? Mais nada.
Ela desliga, pousa o telemóvel e deixa-se ficar sentada, ali, no
seu apartamento vazio. Nunca se sentiu tão profundamente sozinha.

***

Enviado: Sex 13/07/2018, 20:35 Importância: Alta


De: Colin.Boddie@ouh.nhs.uk
Para: DIRuthGallagher@ThamesValley.police.uk

Assunto: Caso n.° 75983/02 Smith, E

A respeito do pedido de Penelope McHugh de informações relacionadas


com o post mortem, posso confirmar que foi apenas recolhido um brinco do
cadáver (uma argola de prata). Uma vez que se encontrava solto, sem o
travão de trás, o segundo terá provavelmente caído durante a luta com o seu
agressor ou quando o corpo foi lançado da ponte. Do mesmo modo, uma
pequena quantidade de cabelo parece de facto ter sido arrancada da parte de
trás do crânio (ver foto em anexo). Mas, como se pode verificar, o quantum é
de tal modo escasso, que não será certamente significativo – e, uma vez
mais, pode ter sido resultante de uma luta.
A fim de evitar incertezas, duvido muito que tanto o brinco como o cabelo
em falta possam representar uma parte deliberada do MO do assassino. Isto,
combinado com a ausência de marcas de atamento quer nos pulsos quer nos
tornozelos da vítima, leva-me a rejeitar qualquer comparação com o caso
Gavin Parrie.
Se surgirem mais indícios que me levem a reconsiderar este ponto de
vista, obviamente que a informarei.

CRB
***

Entrevista telefónica ao Srg. Vince Hall,


Polícia de Warwickshire, Leamington Spa
14 de julho, 2018, 08h15
Conduzida por: Inspetora-Chefe Ruth Gallagher

VH: Desculpe ter levado tanto tempo a devolver-lhe a


chamada, senhora Inspetora, mas estive a verificar
o processo que me pediu e também já falei com a
agente de reinserção social.
RG: Excelente. Obrigada.
VH: Os registos da pulseira eletrónica mostram que o
Gavin Parrie nunca violou os requisitos da
condicional na noite em apreço. Esteve sempre ou na
residência ou, no máximo, a três quilómetros dela,
durante toda a noite. Não há forma de ele ter
estado sequer próximo de Oxford.
RG: E tem a certeza de que a pulseira se encontra
completamente funcional?
VH: Sim. Foi verificada no mês passado e estava tudo em
ordem.
RG: Ótimo. Satisfaz-me que tenhamos podido verificar
isso. E presumo que ele não tenha tido acesso a
nenhuma espécie de veículo automóvel?
VH: Desculpe?
RG: Não, claro, nem devia ter perguntado. Estou apenas
a cobrir todas as frentes. A advogada do nosso
suspeito tem uma pulga atrás da orelha quanto a
isso, digamos assim.
VH: Pois, mas, oficialmente, não, não tem nenhum
acesso. E, vale o que vale, mas a agente de
reinserção afirma que o Parrie tem sido um lindo
menino desde que lá entrou. Passa metade do tempo
em programas que envolvem delinquência juvenil,
alertando-os efusivamente contra os perigos que
correm.
RG: E ela acha que é genuína, essa sua “transformação”,
digamos?
VH: Ela não é nenhuma novata nisto, está neste trabalho
há vinte anos. E o Parrie também foi sempre um
recluso modelo. Por isso, sim, é sempre possível
que esteja a fingir, mas acho difícil alguém
conseguir fingir tanto e durante tanto tempo.

***

Everett também não teve propriamente uma noite de sexta-feira


sossegada. Dedicou-se a pôr em dia uma semana inteira de tarefas
inacabadas e acabou tão exausta, que dormiu de uma assentada
até ao tocar do despertador, na manhã seguinte. Já de saída, desce
a Banbury Road, sob um céu abafado, cinzento-amarelado, que em
nada mitiga a sua dor de cabeça – nem o sentimento de culpa pelo
pai e aquela chamada que ainda não devolveu a Elaine Baylis.
Insiste em dizer a si própria que está a fazer os possíveis, que o pai
está a ser muito bem tratado, está a comer bem, e que as pessoas
estão a esforçar-se por envolvê-lo em atividades de grupo, tipo
bingo e jogos de cartas – coisas que ele despreza alto e bom som a
quem o queira ouvir. E este seu desdém devia descansá-la, afinal,
ele sempre foi assim, mas agora ela nota-lhe uma veemência na voz
que a deixa muito desconfortável.
Quando chega, o resto da equipa já está nas respetivas
secretárias. Somer ergue os olhos por um segundo e parece tão
intensamente dedicada a fingir que está ocupada, que mais valia
levantar um cartaz a dizer Deixem-me em paz! Ev tira o telemóvel e
o bloco de notas da mala, perguntando-se se deve ou não alinhar no
esquema da colega. Tem quase a certeza de que Somer teve uma
consulta, ontem, mas ela nunca chegou a dizer-lho ‒ e as tentativas
de Ev para falar com ela via WhatsApp resultaram em respostas de
apenas uma palavra.

***

Para um especialista em linguagem corporal, Bryan Gow não é lá


grande espingarda a disfarçar a sua. Quando vira no corredor e se
depara com Gislingham à porta do DIC, a sua reação é uma imagem
tão perfeita de embaraço extremo, que devia utilizá-la como
exemplo na sua próxima apresentação de PowerPoint.
Gislingham estranha:
– O teu assistente não disse que não nos podíamos reunir hoje
porque estavas ocupado?
O outro cora ligeiramente.
– E estava, mas… – Hesita. – Bom, se queres mesmo saber, a
Ruth Gallagher pediu-me que viesse cá. – Faz uma careta. –
Hashtag awkward.
Porque ele está a ajudá-la no caso Emma Smith. Porque ele está
a ajudá-la a condenar o Fawley.
Gis afasta esse pensamento – e o ressentimento que vem com
ele. A verdade é que esta merda toda… não é culpa do Gow.
– Já agora, queria pedir-te que desses uma olhadela a umas
imagens nossas. O caso Fisher, mais uma vez.
Gow assente devagar:
– OK, posso fazer isso. Passo cá depois, OK? – Olha em volta. –
E, entretanto, talvez me consigas explicar o que é que a Gallagher
fez à sua equipa, porque o gabinete deles parece uma excelente
imitação do Mary Celeste31.

***

Gow não foi o único apanhado de surpresa, esta manhã. Os


próprios Crimes Graves estavam igualmente confusos. Durante a
noite, sem aviso prévio, toda a sala operacional fora embalada e
transladada para o andar de cima. A primeira coisa em que
repararam foi que o novo gabinete fica o mais afastado possível do
DIC; a segunda, foi no teclado de controlo de acesso seguro na
porta.
E, para o caso de alguém se mostrar particularmente obtuso, o
próprio Dave King faz questão – e com grande espalhafato – de
pedir ao gerente das instalações para restaurar o código mesmo à
frente deles.
– A partir de agora, nós e só nós teremos acesso a esta sala –
informa, olhando à sua volta. – Nem sequer a porra das mulheres da
limpeza põem cá um pé sem um de nós presente. Por isso, se
houver mais alguma fuga acerca desta investigação – externa ou
interna –, eu saberei que foi de alguém daqui e não de um dos
lambe-cus da patrulha da malandragem do Fawley. Fui
suficientemente claro?
É óbvio que sim.
Ele assente, vai para sair, mas muda de ideias:
– Ah, e, se algum de vocês se cruzar com o Inspetor-
Coordenador Gislingham no mijadouro, faça o favor de lhe dar este
recadinho.
Trocam-se olhares, murmura-se baixo.
– Certo – diz King. – Pronto, e agora… ao trabalho. Vamos,
vamos!
A sala entra em modo ação, e King fica a observar a equipa por
uns segundos, antes de se dirigir à secretária de Simon Farrow.
Dedica-lhe um sorriso, que faz o pobre coitado acagaçar-se todo.
– Já agora, faço-te uma pergunta… – diz King, num tom
perigosamente jovial. – Por acaso, não foste tu que deixaste o DIC
espreitar os nossos processos, pois não? Porque houve alguém que
telefonou ontem à noite àquele engenheiro da Network Rail, e não
foi nenhum de nós.
O outro abre muito os olhos.
– E porque é que está a perguntar-me a mim?
King mantém o sorriso maldoso:
– Bom, sei lá… Não é segredo nenhum que tu tens um fraquinho
pela boazona da Erica Somer. Não que te critique por isso, claro, eu
próprio daria uma voltinha com ela…
Farrow baixa o olhar.
– Nunca é boa ideia envolvermo-nos com colegas de trabalho –
murmura.
King solta uma risada seca.
– Pois olha que ela não pensa assim. Andou uns tempos
enrolada com o Gareth Quinn…
Um dos inspetores mais novos olha para ele.
– E com o Fawley também, pelo que ouvi dizer.
– A sério? – diz King, arrebitando as orelhas.
O outro encolhe os ombros.
– Era o que corria por aqui, há uns meses.
– Interessante – observa King, num tom meio pensativo, meio
desdenhoso. – Afinal, o camarada não é um poço de virtudes assim
tão grande, hã?
– Precisa de mais alguma coisa da minha parte, chefe? –
pergunta Farrow. – Ia agora…
– Ah, sim, desculpa lá – diz King. – Por acaso, preciso. Parece
que a advogada do Fawley teve uma conversinha com a Gallagher,
ontem à noite. – Baixa a voz: – Insiste em saber das câmaras de
CCTV na ponte. Presumo que já tenhamos confirmado isso, certo?
É que eu não quero ter surpresas.
Farrow cora ligeiramente, ainda que sem razão nenhuma: ele
próprio já verificou essa questão. Duas vezes.
– Não, chefe. Não existem câmaras nessa área. Nem uma.
– OK. E, quanto às roupas, as que o Fawley diz que a Smith
tinha vestidas, como é que isso está?
Farrow abre um ficheiro no ecrã.
– Tenho aqui o inventário do apartamento… e não vêm
nenhumas leggings ou t-shirts como a que ele descreveu.
– Então, o gajo está a mentir.
Farrow hesita:
– Bom, se foi o Gavin Parrie que a matou, de certeza que se
livrou de tudo o que…
King dedica-lhe um olhar incrédulo.
– Não me digas que acreditas nessa teoria da treta?
Farrow volta a corar.
– Não, chefe, claro que não. Só estou a dizer que, lá por as
roupas não estarem em casa, não significa que não existiram. Falta
de provas não é prova alguma, certo?
– Eh pá, por amor de… – King cala-se ao ouvir um bater na porta
de vidro.
Gallagher está lá fora. Ninguém parece ter-se lembrado de lhe
dar o código de acesso. King pragueja para si próprio, enquanto um
dos inspetores corre a abrir a porta. A Inspetora agradece-lhe num
tom frio e entra na sala.
– Só cá vim informá-los de que finalmente me ligaram de
Warwickshire. Confirmaram que a pulseira eletrónica do Gavin
Parrie está completamente funcional e mostra que, na noite de 9 de
julho, ele esteve na residência da reinserção ou, quando muito, a
três quilómetros de lá. Quem quer que tenha matado a Emma Smith,
não se chama Gavin Parrie de certeza.
Dave King faz o gesto de vitória com o punho.
– Estás no papo!
– Não – diz-lhe Gallagher friamente –, ainda ninguém está no
papo. O Gavin Parrie foi eliminado da investigação; o Hugh Cleland
também o será certamente. O Adam Fawley mantém-se o suspeito
mais provável. Mas, neste momento, é tudo o que ele é: suspeito.
Nem Inspetor-Chefe; apenas Adam Fawley. E ninguém presente
na sala subestima o significado disso.
– Mas, até que eu decida em contrário – prossegue a inspetora
–, ninguém abre a boca. – Olha em volta para a equipa, um por um,
levando o seu tempo. – Fui clara? Por mais tentados que se sintam,
não abrem a boca – nem à família, nem aos amigos, nem sequer a
outros agentes da Thames Valley. E, se houver alguns de vocês que
achem que isso representa um grande desafio, sobretudo depois de
dois ou três copos no Red Lion, sugiro que joguem pelo seguro e
que saiam sempre daqui diretos para casa. Estão a fazer um favor à
vossa carreira, já para não falar nos vossos fígados.
Lança um último e intenso olhar a King, dá meia-volta e sai.

***
Por uma vez, Ev decide sair às cinco. A sala do DIC também já
está meio vazia. Gis desertou há mais de uma hora, e ela não faz
ideia onde Somer se meteu o dia todo. Que se lixe, pensa, é
sábado. Enfia as coisas na mala, antes que mude de ideias, mas
parece que o universo tem sentido de humor… porque o telefone
toca.
Olha em volta, esperando que alguém atenda por ela. E Asante
acaba por lhe fazer essa cortesia.
– DIC, Inspetor Asante.
Everett fica a vê-lo assentir e olhar para ela.
– É para ti. Linha dois.
Ela suspira, pousa a mala na secretária e atende. Mas não vai
voltar a sentar-se, não vai voltar a sentar-se…
– Miss Everett? Fala Elaine Baylis, de novo. – Apenas um ligeiro
stress nas últimas palavras.
– Ah, peço desculpa por ainda não lhe ter ligado, mas…
– Não é por isso – corta ela, algo ríspida. – Lamento dizer-lhe
que o seu pai teve outro incidente…
Ev crava a mão no auscultador e afasta-se do olhar
discretamente curioso de Asante.
– Que tipo de incidente?
– Outra altercação com um residente. Nada de preocupante,
mas, numa comunidade como a nossa, mesmo o mais leve
desacordo pode resultar bastante perturbador. Com certeza que
entenderá isso.
– Claro que sim. Só não sei é o que posso fazer por…
– Pode cá vir amanhã? Duas e meia?
Ela sente um aperto no coração. Já tinha o domingo todo
planeado. Um brunch no Gail’s, um passeio pelo prado de Christ
Church. Não uma viagem de mais de trinta quilómetros, debaixo de
trinta graus, para uma reunião com uma diretora chata num gabinete
que cheira a mijo.
– Eu entendo que tenha um trabalho extremamente exigente –
diz Baylis, num tom que diz temos todos –, mas isto tem que ver
com o bem-estar do seu pai e dos outros residentes a nosso cargo.
– Uma pausa pesada e afetada. – É importante.
– OK – diz Ev, cerrando os dentes e lembrando-se que, por esta
ordem de ideias, a própria Baylis também estará a trabalhar num
domingo. – Duas e meia, então. Até lá.
Desliga e vê que Asante continua a olhar para ela.
– Linha três.
– Estás a gozar?
Mas Asante não está a gozar.
– Lamento, mas é a ti que ela quer.
– Está cá em baixo uma pessoa que lhe quer falar – diz o agente
de serviço à receção, quando ela atende.
– Ai sim? Quem?
– Ela não quer dizer o nome. – O tom da voz do agente subiu,
como que querendo que a pessoa, seja lá quem for, oiça que ele
está chateado.
Ev estranha:
– Mas porque é que...? – E, logo depois, acrescenta: – Porque
tem de ser alguém ligado ao caso Fisher. E tem de ser uma mulher.

***

– Mostra lá outra vez.


Gis anda com o vídeo para trás e carrega no play.
– Repara… Quando lhe perguntámos pela tatuagem, quase
parou de respirar.
Gow assente lentamente:
– É uma reação típica de ansiedade. De manual. Julgo que ele
não estava preparado para essa pergunta. – Olha para Gis, que está
de braços cruzados e expressão pensativa. – Ajuda?
Gislingham parece acordar subitamente; estava a milhas dali.
– Sim – diz. – Ajuda, sim.
Gow levanta-se e pega na pasta que tinha aos pés.
– Bom, se não precisas de mais nada, vou regressar ao meu fim
de semana.
Gis solta uma gargalhada.
– Um encontro escaldante com uma locomotiva a vapor?
O outro pisca-lhe o olho.
– Bom, digamos que estás apenas meio certo.
Dirige-se à porta, mas Gislingham chama-o de novo:
– Achas que foi ele?
Gow volta-se, franzindo a testa:
– Acabei de te dizer que…
Gis abana a cabeça:
– Não estou a falar do Morgan. Estou a falar do Fawley.
Gow leva a mão à maçaneta.
– Não – afirma, após um momento. – Não acho que foi ele.

***

A rapariga escolheu um café que não é um dos habitualmente


frequentados por estudantes, e Ev suspeita que ela o escolheu
precisamente por essa razão. Um snack-bar antigo e demodée
numa das ruazinhas estreitas que vão dar à High Street, entalado
entre uma manicure e um chinês de takeaway, chão de linóleo e um
quadro de ardósia com a oferta de um menu desinteressante e
sensaborão.
Ev conduz a rapariga até à mesa mais longe da porta – muito
para evitar que ela pense em levantar-se e fugir dali – e depois
dirige-se ao balcão para pedir dois chás, sem deixar de lançar
olhares sub-reptícios à rapariga. Deve ter vinte e dois, vinte e três,
olhos verdes e cabelo ruivo-claro, apanhado num rabo de cavalo
curto no alto da cabeça. Em St. Aldate, passou o tempo todo a roer
as unhas e agora brinca nervosamente com o açucareiro. Ev calcula
que a jovem deve ter levado imenso tempo a tomar a decisão de vir
falar com ela.
Pega nas canecas de chá, leva-as para a mesa e senta-se. A
toalha de plástico vermelha e branca está meio pegajosa e o
recipiente do ketchup é um tomate gigante de plástico. Deprimente
q.b.
Tencionava dar à jovem todo o tempo do mundo, deixá-la
abordar a coisa à maneira dela, mas há limites para o tempo que se
concede a alguém para brincar com as unidoses de leite. Por fim,
quando ela já pensava em desistir:
– Chamo-me Zoe. Zoe Longworth.
Ev assente:
– OK.
Ergue os olhos para Ev e de seguida baixa-os para a caneca de
chá.
– Eu vi a história online.
– Sobre a Professora Fisher?
– Sim – diz, com um aceno. – Quero dizer, não vinha lá o nome
dela, mas deu para perceber quem era. Para mim, pelo menos, foi
óbvio.
– E tu conhece-la, Zoe?
Pausa.
– Foi tua professora?
Nova pausa, esta mais longa.
– Sim, foi. Eu agora estou em Londres. Mas já estudei cá, há
dois anos. Se eu não tivesse visto a cena no Twitter, não me
passaria pela cabeça que… não fazia ideia que ela tinha voltado a
fazer aquilo.
Ev acena afirmativamente com a cabeça. Quando surge alguma
controvérsia sobre identificar pessoas acusadas de abusos sexuais,
revela-se sempre a mesma lógica: dizer o nome dos perpetradores
leva sempre a que mais vítimas se queixem a seguir – vítimas que,
de outro modo, permaneceriam caladas. Ou ignorantes. Mas esta
miúda não pode ser uma vítima. Ou pode?
– E porque é que decidiste vir falar connosco, Zoe?
Ela está a mexer o chá, quase obsessivamente, e o bater da
colher consegue deixar Ev com os nervos em franja.
– Ao princípio, foi muito fixe… ter a Marina como supervisora. Ela
era um enorme apoio, envolvia-se mesmo nos meus projetos. Nem
acreditei na sorte que tinha.
Ev recorda-se de Caleb Morgan ter dito exatamente a mesma
coisa.
– Ambos sentimos isso.
Ev estranha:
– Ambos?
Zoe olha rapidamente para ela; depois, em frente.
– Eu e o meu namorado, o Seb. Sebastian Young.
Então, é isso, pensa Ev. Mas esforça-se por manter a expressão
neutra.
– Continua.
– Numa sexta-feira à noite, assim do nada, ela convidou-nos
para tomar um copo em casa dela. Achámos que seria tipo uma
festa, com todos os nossos colegas, mas não. Éramos só os dois.
– Estou a ver.
– O filho dela também lá estava. Já passava muito da hora de
dormir, mas ela não o mandou subir para o quarto. Ela fartou-se de
dizer que ele gostou de nós, que era supertímido com a maior parte
das pessoas, mas que connosco tinha sido diferente, amizade à
primeira vista. Eu estranhei, até porque o miúdo mal abria a boca,
mas ela insistiu imenso nessa história.
– Deixa-me adivinhar: pediu-vos para fazerem baby-sitting ao
Tobin?
Ela anui, com um morder de lábio:
– E ao princípio foi ótimo. Melhor do que ótimo, foi perfeito. Ela
deixava-nos com uma garrafa de vinho, tínhamos o frigorífico à
nossa total disposição, fartávamo-nos de ver filmes e séries. E,
como éramos uns tesos, aquilo era como sair à noite.
Faz-se silêncio. Ev aguarda.
– E o que é que mudou? – pergunta, por fim.
Zoe suspira:
– Eu não vi logo que havia ali qualquer coisa, pelo menos de
início. Até que comecei a perceber que íamos para lá todas as
sextas e, por vezes, outras noites durante a semana. Começou a
parecer-me demasiado. Até porque nós fazíamos baby-sitting, mas
ela deixou de nos pagar. Era como se já não precisasse. E claro que
nós tínhamos vergonha de lhe pedir. Achei que estávamos a ser
usados. – Hesita, pousa a colher, olha para cima. – E depois houve
a cena com o Tobin.
– Que cena, Zoe?
– Bom, ela tinha um jarrão gigante na sala, uma coisa roxa
horrorosa. Parecia-me uma cena saída de um bar de cocktails
foleiro dos anos setenta, mas pelos vistos era supervalioso. Enfim,
uma tarde, estávamos nós a fazer baby-sitting, porque ela tinha um
evento qualquer em Londres, e o Tobin teve uma crise das dele e o
jarrão partiu-se.
– E então?
– Quando ela chegou, contámos-lhe o que tinha acontecido e ela
reagiu bastante bem, foi supercompreensiva. Disse que sabia
perfeitamente que o Tobin às vezes conseguia ser demasiado ativo
e que estava tudo bem, que tinha a peça no seguro e que eles
pagavam. Depois, subiu ao quarto do miúdo para conversarem os
dois. Aconteceu que eu subi segundos depois, para ir à casa de
banho, e… ouvi a conversa. Ele estava a contar-lhe que tínhamos
sido nós a partir o jarro. E o Tobin estava a ser superconvincente,
fiquei com um medo do caraças.
Ev estranha:
– E não o confrontaste? Nem disseste à mãe que ele estava a
mentir?
– Eu queria fazê-lo – diz a rapariga –, mas o Seb disse-me para
esquecer. Que ia ser muito chato ter de admitir que tinha ouvido a
conversa atrás da porta e que, fosse como fosse, ainda arranjava
um problema ao miúdo, porque as crianças desta idade não são lá
muito boas a mentir. – Faz uma careta e um revirar de olhos. –
Então não?…

***

– Ainda bem que o apanho antes de sair. Alguém deixou isto


para si, há bocado. Ainda lhe liguei, mas estava ao telefone.
A mulher na receção sorri a Asante – um sorriso pícaro, meio
comprometido.
– Acho que ela ficou muito triste por não ter falado consigo…
Asante regista o sorriso, mas não lho devolve. Abre o envelope e
despeja o conteúdo no balcão da receção. Umas palavras
manuscritas por Beth Monroe num cartão dos serviços de adoção
informam-no sobre um postal recebido no escritório, dirigido a
Emma, e que ela não sabe se será importante. Asante pega no
postal, de Verona, com umas poucas linhas rabiscadas nas costas,
numa caligrafia grande e confiante:

A antena de detetive de Asante oscila por um momento, mas


para assim que ele vê que o postal foi enviado no mesmo dia em
que Emma morreu. Seja como for, tenciona entregá-lo à equipa de
Gallagher. Por puro profissionalismo, e nada mais.
– Obrigado – diz ele, meio ausente, antes de se dirigir às
escadas.
Quando chega à sala dos Crimes Graves, a única pessoa
presente é Simon Farrow. Asante bate no vidro, e Farrow olha,
estranha e vai recebê-lo.
– Sim? – diz, mantendo a porta entreaberta com o pé.
Asante estende-lhe o postal.
– Isto chegou aos Serviços de Acolhimento e Adoção, para a
Emma Smith. É pessoal, ainda que tenha sido enviado para o
escritório dela e não sugira que seja de alguém muito próximo. Mas
nunca se sabe, certo?
Farrow lê o postal e olha para Asante:
– Provavelmente, da Amanda Haskell, a mulher com quem a
Emma Smith andava a ter um caso.
Asante ergue um sobrolho.
– Uma mulher?… Não fazia ideia de que ela era gay.
– Pois, nós também só descobrimos agora. A Haskell apareceu
cá. Não tinha visto as notícias porque estava fora. – Ergue o cartão.
– E isto é a prova.
– Peço desculpa, mas achei que…
– Não, não, tens razão. Vou entregá-lo ao Inspetor Carroway.
Sempre me distraio um bocado do sortido de tontos, lunáticos e
metediços que se fartam de ligar para aqui.
Assante concorda:
– E das horas e horas de visionamentos das CCTV.
Farrow ri:
– Ainda se fosse isso… Se houvesse a porra de umas câmaras
instaladas naquela ponte, eu não teria de passar o meu sábado a
entortar os olhos a olhar para as outras câmaras todas… Porra,
deve haver um milhão de Mondeos nesta terra… – Cala-se e cora
ligeiramente, ciente de que já falou em demasia.
Asante estranha:
– Andam à procura do carro do Fawley? Já descartaram as
outras pessoas todas?
Farrow parece algo embaraçado:
– Sim, praticamente. O chefe já não está puto interessado no
Hugh Cleland, essa é que é essa. – Larga a porta, que começa a
fechar-se. – Obrigadinho, pá.
– De nada – diz Asante.
Mas, quando a porta se fecha, ele mantém-se ali, a expressão
pensativa.

***
– E então, Zoe? O que é que se passou? Porque é que te deste
ao trabalho de vir de Londres até cá para falar connosco?
A jovem solta um longo suspiro. Pousa a colher, mas ainda não
tocou no chá.
– Era verão. Ela mandou uma mensagem ao Seb num sábado
de manhã a dizer que precisava de mudar uma lâmpada, uma cena
assim, e que não subia a escadotes. Por isso, pedia-lhe que
passasse por lá mais tarde. Penso que ela achou que ele iria
sozinho – ficou claramente chateada quando me viu com ele – e,
tipo… cinco minutos depois, pediu-me que levasse o Tobin ao
cinema.
Ev suspira:
– Quis ver-te fora dali.
Ela concorda, com um revirar de olhos:
– Era o Gru, o Maldisposto… Irónico, não? Enfim, lá fomos e
deixámos o Seb sozinho com ela. E claro está que a lâmpada
fundida era no quarto da Marina. Ele subiu ao escadote para a trocar
e, quando desceu, viu-a atrás dele, à entrada do quarto, toda
produzida, de stilettos e uma cena de cetim vermelho… que bem
podia ter sido comprada numa sex shop, mas, conhecendo-a, acho
que era de certeza da Agent Provocateur32. – Morde o lábio e olha o
vazio. – Que cliché…
– E como é que ele reagiu?
– Riu-se.
– Ah – diz Ev. – E calculo que ela não tenha reagido lá muito
bem.
– Não, não reagiu mesmo. – Há agora uma certa dureza na sua
voz. – Disse-lhe que pensasse muito bem, porque tinha apenas três
minutos para tomar uma decisão, que ela esperava que fosse a
certa. Ela era supervisora dele, OK? Podia fazer dele o que
quisesse. Sei lá, deixá-lo encalhado numa seca qualquer até ao fim
da carreira.
Volta a pegar na colher e começa a desenhar círculos numas
gotas de água vertidas na toalha.
– Ela começou com a conversa de que tinha muito mais para lhe
oferecer do que eu. Que eu não passava de uma tontinha, que eu
era só uma candidata a ganhar um cérebro, assim como
provavelmente também não faria a mínima ideia do que era sexo
verdadeiro. Ao passo que ela… – Cala-se, inspira fundo e reprime
um soluço.
– Está tudo bem – diz-lhe Everett, docemente. – Vai com calma.
Ela pega num guardanapo de papel e limpa os olhos.
– Enfim… Eu levei o Tobin ao cinema, mas, nem dez minutos
depois de o filme começar, ele desatou aos berros… tipo de deitar a
sala abaixo. E eu tive de o trazer para casa.
Ev abana a cabeça:
– Acho que já percebi o que vem aí…
Ela assente, a expressão irada, quase feroz:
– Pois. Eu topei logo o que se estava a passar, assim que entrei.
O barulho que os gajos faziam… Porra. – Atira com a colher para a
mesa. – Disse ao Tobin que fosse para a cozinha e subi direitinha ao
quarto dela. E ali estava ela, em cima dele, nua, a comê-lo.
Ev suspira:
– O que é que fizeste?
Zoe ri-se, toda ela sarcasmo:
– O que é que acha? Tirei-lhes logo uma foto, claro.

***

Oxford Mail Online


Sábado, 14 de julho, 2018 – Última atualização às 18h12

ÚLTIMA HORA: Homem detido por homicídio de mulher de Headington

Por Richard Yates


O Oxford Mail teve conhecimento de que um homem de quarenta e seis anos
foi detido no âmbito da investigação da violação e do homicídio da residente
de Headington, Emma Smith, de quarenta e quatro anos, cujo cadáver foi
descoberto nas primeiras horas da manhã de terça-feira.

Esta notícia de última hora encontra-se em atualização; em breve serão


publicados mais pormenores.

Tem alguma informação sobre este caso? Envie-me um email para


Richard.yates@ox-mailnews.co.uk

***

– E o que é que se passou depois?


– Fui-me logo embora. Para o meu apartamento. O Seb
apareceu lá tipo meia hora depois. Estava num estado lastimoso.
– E foi então que ele te disse que ela o obrigou, que o
chantageou?
Ela confirma:
– Chorava imenso, calculava o que eu estaria a pensar, a sentir.
Jura, Sherlock?, pensa Ev. Eu teria feito um churrasco com os
tomates dele.
– E acreditaste nele.
– De início, não. Mas, sim… no fim, sim.
– E a coisa ficou por ali?
Zoe nega lentamente com a cabeça:
– Não. Isto foi só o princípio. Mais tarde, nessa semana, o Seb
teve uma aula de supervisão com ela, e ela perguntou-lhe quando é
que eles se encontravam de novo. Ele disse-lhe que não, nem
pensar, que aquilo nunca devia ter acontecido…
– Deixa-me adivinhar – diz Ev, com um novo suspiro.
– Claro. Ela continuou a insistir, a tentar convencê-lo, mas ele
manteve-se firme e, no fim, até acreditou que ela tinha respeitado a
postura dele e desistido.
Ev aguarda.
Ela engole em seco.
– Dois dias depois, recebo uma chamada. Dela.
– E o que é que ela queria?
A jovem fica subitamente muito pálida.
– Disse que o Tobin andava a ter pesadelos e que, quando ela
lhe perguntou o que se passava, ele lhe disse que eu o andava a
seduzir. Que ele não tinha usado esse termo, mas foi o que quis
dizer. Que eu andava a seduzi-lo. – Abana a cabeça. – Ele tinha seis
anos, porra. Se não fosse tão asqueroso, era hilariante.
Ev permanece séria.
– Ela tinha de ter alguma prova, para fazer uma acusação
dessas.
– Não tinha nada – responde Zoe, em tom estridente. Tão
estridente que algumas pessoas no café se viram para a mesa
delas. – Ela disse que eu andava a ter uma relação inapropriada
com ele, que lhe andava a mostrar conteúdo desadequado na
televisão, nas costas dela. Era a porcaria do David Attenborough,
por amor da santa! Enquanto lhe tomava conta do filho e ela não
podia ser incomodada…
Terá reparado que estão a olhar para ela, já que baixa a voz.
Tem as bochechas coradas, uma mancha vermelha que lhe sobe
pelo pescoço, como uma brotoeja. Respira fundo uma vez. E outra.
– Apercebi-me de que não havia rigorosamente nada que eu
pudesse fazer. Era a minha palavra contra a dela.
E lá vamos nós outra vez, pensa Ev. Só que agora é um diz que
disse.
– Ela podia dizer o que quisesse, acusar-me das piores
atrocidades, porque o Tobin ia dizer exatamente o que ela lhe
mandasse dizer. Ele andava sempre atrelado a ela, como um
cachorrinho perdido de amor. Faria o que fosse preciso para lhe
agradar.
– Desconfio – diz Everett – que ela tratou logo de arranjar uma
defesa. Uma manobra preventiva, para o caso de o Sebastian
decidir apresentar queixa contra ela.
Zoe concorda:
– Foi mesmo isso que ele disse. Por isso, foi falar com ela, tentar
resolver aquilo. Eu também quis ir, mas ele disse que só iria piorar
as coisas. E, se calhar, tinha razão. O mais certo era eu ter acabado
aos berros com ela.
E nunca foi sobre ti, pensa Ev. Não passavas de um dano
colateral.
– Ele foi a casa dela nessa sexta-feira. Levou uma garrafa de
vinho. Achou que ajudaria se fizesse as coisas de maneira
civilizada, cordial, mas claro que ela percebeu tudo mal, porque
acabou por lhe dizer que sabia que ele mudaria de ideias e que não
se iria arrepender…
– Meu Deus…
– Pois… Claro que acabou por piorar ainda mais as coisas.
Quando ele finalmente conseguiu convencê-la de que não tinha ido
lá para a comer, a mulher passou-se dos carretos. Disse que me ia
destruir. Que ia levar o Tobin à polícia para ele lhes contar o que eu
lhe tinha feito. Chegou mesmo a ir buscar o miúdo e fê-lo repetir a
história toda, ali mesmo, à frente do Seb. Ele contou-me depois que
foi absolutamente aterrador, que quem quer que ouvisse aquilo ia
achar que era mesmo verdade.
– E o que é que vocês fizeram?
Ela ergue as mãos.
– Cedemos. Que mais podíamos fazer? A Marina concordou em
não fazer a queixa contra mim, na condição de eu e o Seb
assinarmos um acordo de confidencialidade segundo o qual jamais
falaríamos sobre ela ou partilharíamos qualquer material sobre ela…
– Claro, a foto.
Ela concorda:
– A foto. E não podíamos revelar rigorosamente nada acerca da
nossa relação com ela, nem privada nem publicamente.
– Calculo que isso incluísse as altas esferas da Universidade.
– E a polícia. – Recosta-se na cadeira. – Ela pode processar-me
apenas por estar aqui, a ter esta conversa.
Pega na mala e saca de um envelope branco.
– Tome, veja com os seus olhos.
Em silêncio, Ev abre-o e retira o documento.
– Agora, já percebe porque é que eu tive medo de ir à polícia? –
diz Zoe, em tom suave. – Eu sei do que é que aquela mulher é
capaz.

***

Ev toma o seu pequeno-almoço tardio, mas tem de se contentar


com fruta e iogurte, em casa, em vez das maravilhosas iguarias do
Gail’s. Quanto ao passeio pelo prado de Christ Church, ficou adiado
sine die. Às onze, quando toca à porta de casa do Gislingham, é a
mulher, Janet, quem lhe abre a porta. Vê-se que tem passado os
últimos dias no jardim – tem os ombros rosados e está a pelar do
nariz. Não estava à espera de Ev, mas sorri-lhe na mesma. A
Inspetora apercebe-se subitamente de que estava algo apreensiva
pela receção da Janet. Sabe quanto tempo é que ela e Gislingham
tiveram de esperar por este filho e o quanto sofreram nos meses
seguintes ao seu nascimento. Houve um período em que era o Gis
que fazia rigorosamente tudo em casa e a Janet mal reagia. Ao
ponto de Ev ter achado que ela estaria com depressão pós-parto.
Mas, depois, as coisas começaram a melhorar um pouco ‒ e cada
vez mais e ainda mais. Gis perdeu o ar sombrio com que andava no
último ano, tornou-se inspetor-coordenador ‒ primeiro,
temporariamente; depois, definitivamente ‒ e começou a falar na
mulher como falava no passado, antes de terem o Billy. E, agora,
mesmo tendo aparecido à porta deles sem se ter anunciado, Janet
acolhe-a amorosamente.
– Olha, olha… quem é viva sempre aparece! – diz, alegremente.
– Não te vejo há anos! Entra, entra… O Chris está lá atrás.
Ev segue-a pelo corredor até à cozinha, e Janet aponta para a
chaleira:
– Um cafezinho?
– Sim, por favor! – responde ela com um sorriso. – Ainda estou
meio zombie.
Janet volta a sorrir-lhe:
– Eu levo-te lá.
Janet deve ter andado a regar os canteiros do pátio todos os
dias, porque as margaridas e os gerânios estão lindos e viçosos,
mas o resto do jardim parece seco e negligenciado. Mesmo no meio,
no relvado acastanhado, Gis está a jogar à bola com Billy – que
enverga orgulhosamente um equipamento miniatura do Chelsea, a
camisola com Gis e o número um escritos nas costas. Está quase a
fazer dois anos e, ainda que pequenino para a sua idade, é robusto
e mais do que capaz de dar ao pai uma verdadeira abada. Gis
passa-lhe a bola, e o menino faz girar o pé e chuta-a diretamente
contra a vedação.
– GOOOOOOOLO!
Gis dobra-se para a frente, as mãos nos joelhos, superofegante,
até que dá pela presença de Ev e endireita-se.
– Caramba, que feliz fico por te ver – diz ele, avançando
lentamente para ela. – Está demasiado calor para estes
programinhas, porra.
– Pa… pá – diz Billy, em tom choramingas.
Mas Gislingham olha-o com expressão firme.
– Então, então… já és um homenzinho, certo? Ninguém gosta de
bebés chorões.
Billy faz beicinho; o pai afaga-lhe o cabelo até que chega um
sorriso ao rosto do miúdo.
– Pronto. Porque não vais ter com a mamã pedir-lhe mais sumo,
enquanto eu tenho aqui uma conversinha rápida com a tia Ev?
– Não sei se gosto desse “tia Ev” – diz ela, olhando-o com ar
severo.
– Privilégios de madrinha – brinca ele, rindo. – E, agora, conta-
me lá o que te fez arrastar-te de Summertown até aqui, num
domingo de manhã.

***

– Por favor, estás no The Perch, tens de comer peixe, não? – diz
Caroline Asante alegremente. – Como é lógico.
Chegaram cedo, porque sabem quão cheio isto fica aos fins de
semana. E, com este tempo, as mesas à sombra no jardim são uma
regalia premium. Mas agora, na posse desse lugar privilegiado,
estão com todo o tempo do mundo. Na mesa ao lado, está outro
casal de meia-idade com a filha e o que parece ser o seu namorado
novo: o jovem sorri muito e esforça-se talvez demasiado. Ao longe,
um grupo de crianças tenta trepar o enorme e secular salgueiro.
Ouve-se jazz vindo de uma tenda, e há pessoas sentadas na relva
porque, por uma vez, está suficientemente seca para se poder fazer
isso num verão inglês. Todo o cenário é quase demasiado perfeito.
– Estou mais inclinado para os mexilhões – diz o pai de Asante,
num tom algo afetado – ou quem sabe a Salsicha Cumberland, que
aqui é divinaaal.
A mãe ri-se, pegando no seu copo de Pinot Grigio:
– A sério, Kwame? Tu consegues sempre dar ares de um
diplomata, mesmo quando estás a pedir salsichas com puré.
Ele sorri-lhe; é já uma piada antiga. Ele foi adido comercial ganês
durante mais de vinte anos.
– Eu vou lá dentro fazer o pedido – diz Asante, fazendo menção
de se levantar. Mas a mãe impede-o:
– Não, não, mas para quê tanta pressa, querido? Temos tanto
que conversar…
Código parental para “tu nunca nos contas nada”. Asante
disfarça um suspiro.
– Então, e o trabalho? – pergunta o pai.
Eles perguntam sempre, quase como um ponto de honra, ainda
que nunca se tenham reconciliado verdadeiramente com o facto de
o único filho ter decidido ser polícia. Ficaram perplexos,
desconcertados, mesmo quando ele foi apenas aceite no programa
de graduação. Mas foram, como sempre, demasiado bem formados,
demasiado “diplomatas” para lho dizerem. Aos vossos filhos deve
ser permitido que façam as suas próprias escolhas, ainda que
preferissem mil vezes que eles optassem por medicina ou direito, ou
até – em falhando tudo o resto – pela City.
– É bom – diz Asante. – Melhor do que em Brixton.
– Em que aspeto? – pergunta a mãe, querendo “mostrar
interesse”.
– O trabalho é mais variado. E a cidade… Tem pessoas bem
mais interessantes.
– Ai sim? – diz Caroline, naquele tom alerta-de-avistamento-de-
namorada que todas as mães parecem desenvolver. Mas, lá está,
Asante não é apenas filho único, mas o filho único.
– Não te entusiasmes muito, mãe – diz-lhe. – Eu praticamente
não saio. Estas pessoas a que eu me refiro… são aquelas que eu
ando a prender.

***

– Porra – murmura Gislingham, recostando-se na cadeira.


– Podes crer – responde Ev, enquanto dá o último gole no seu
café. – E, pela primeira vez na merda deste caso todo, não temos de
nos fiar apenas na palavra dela. Temos o acordo de
confidencialidade.
– Sim – diz ele, puxando de novo a folha para si. – Mas não é
assim tão explícito, pois não? Impede-os apenas de falarem nela.
Não explica porquê. Não há nenhuma referência a ela ter seduzido o
miúdo, nem nada disso.
– Verdade… Mas nós sabemos que a Fisher fez sexo com o
Young. Eu vi a fotografia e, acredita, não há a menor dúvida sobre o
que eles estavam a fazer.
– Mas isso só prova que eles tiveram uma relação sexual. Não
que a Fisher o tenha obrigado a isso. Não me interpretes mal –
apressa-se a acrescentar –, eu estou nisto contigo, estou só a
antecipar o que o MP possa alegar. Ninguém sabe a história toda
exceto eles os três.
Ev aponta para o logotipo no cabeçalho da folha.
– A não ser a Niamh Kennedy, certamente… já que foi ela a
redigir esta cena?
Gislingham encolhe os ombros.
– Possivelmente, ou talvez nem ela saiba de todos os
pormenores. Mas eu aposto um rim em como, mesmo que ela esteja
a par de tudo, vai alegar sigilo profissional.
Ev franze a cara.
– Bom, eu cá acho que ela sabe muitíssimo mais do que diz
saber. Lembrei-me, já depois de ter falado com a Zoe, que, na última
vez que elas estiveram em St. Aldate, ela tratou a Fisher por Marina.
Como se fossem amigas e não apenas advogada e cliente.
Gis volta a recostar-se e ergue o olhar para a casa. Karen está à
janela da cozinha. Olha para eles e acena-lhes.
– Creio que tens razão – responde ele, passado um momento. –
Eu acho, e vale o que vale, que o Caleb Morgan pode bem ser
apenas o último de uma longa fila de putos ingénuos a quem a
Fisher fez isto.
– Só que desta vez é diferente – diz Ev. – Desta vez, o puto
ingénuo está a retaliar.

***

– Não nos custa nada deixar-te em casa, Anthony – diz-lhe a


mãe, abrindo a porta do carro. – Até fica a caminho da…
Mas ele já vinha preparado para isto; sabia que eles se iam
oferecer e sabia que ia precisar de uma boa desculpa.
– Deixa, mãe, a sério. Está um dia lindo e apetece-me imenso
andar a pé. Faço o caminho de volta por Port Meadow e sempre
apanho ar fresco, que só me faz bem.
Ele sabe que a mãe vai evitar discutir, mas, mesmo assim, ela
ainda tenta a sua sorte:
– Não vieste propriamente calçado para caminhar, querido.
Ele sorri.
– OK, hora da confissão: preciso de verificar uma coisa. Tem que
ver com um caso.
Ela cerra os lábios; depois, atira:
– Mas se tem que ver com trabalho devia ser feito nas horas de
trabalho.
– A questão é mesmo essa, mãe. Não é exatamente “oficial”.

***
Ev olha para as horas e pega na carteira.
– Acho que é tudo, chefe. O Young vai aparecer ainda esta tarde
para prestar o seu testemunho, por isso eu depois digo-te como
correu.
– Bom trabalho – diz ele. – Se fosse a ti, pedia à Somer que
também aparecesse para te apoiar nisso.
– Já pedi – diz ela, sorrindo. – E também já avisei a advogada da
Fisher que precisamos de voltar a falar com ela amanhã. – Levanta-
se. – Tenho de ir andando.
Ele franze a testa.
– O teu pai?
– Sim – assente ela, com um suspiro. Será uma visita muito
curta, mas até isso lhe parece injusto. – O meu pai.

***

Quanto a Quinn, está a passar o domingo em Boars Hill. Maisie


estranhou a sua sugestão (“Com os meus pais? Mas tu sentes-te
bem?), mas ele riu e disse que qualquer pessoa gostaria de dar
umas braçadas com aquele calor. E, a bem da verdade, isso até
constituiu metade da sua motivação. Quanto ao resto, bom, isso já é
uma história bastante mais longa.
Os pais dela optaram de forma admirável por se fazerem
pequeninos e ausentes; daí que tenham sido praticamente só os
dois na piscina a manhã toda: Quinn, numa espreguiçadeira, com
um enorme balde de gelo carregado de cervejas ao lado, e Maisie a
uns metros dali, flutuando graciosamente num colchão insuflável às
riscas azuis e brancas (os flamingos rosa-choque são claramente
demasiado Benidorm para Boars Hill). Maisie usa um panamá cor-
de-rosa e óculos escuros, tipo Jackie O; parece diretamente saída
do Caso Profumo33. Lá em baixo, no vale, a cidade brilha como uma
miragem.
– Adoro o chapéu – diz-lhe Quinn.
Ela levanta os olhos do livro.
– Isto? É superantigo, já o tenho desde os meus tempos de
escola.
Com a água, o cabelo dela adquiriu um bonito frisado e, sem
maquilhagem, parece adoravelmente jovem.
– Aposto que os rapazes da tua escola usavam todos chapéus-
palheta. – Ela deita-lhe a língua de fora e ele desata a rir. – Usavam
mesmo! Acertei.
Ela tira um cubo de gelo da sua bebida e atira-lho, mas falha
completamente.
Quinn sorri.
– Ainda o tens?… O uniforme da escola? Aposto que ficavas um
arraso com ele vestido…
Maisie levanta os óculos e olha-o com ar desdenhoso.
– A sério… Vocês, gajos… são todos iguais. Uns pervertidos que
se babam para as fardas de menininha…
– Diz-me que tens uma dessas.
Ela suspira e revira os olhos, regressando calmamente à sua
leitura.
– Que tal é? – pergunta Quinn, apontando o livro. – Alguma coisa
de jeito?
– Até agora, é fixe – responde ela, sem levantar os olhos. – Mas
já se sabe como é com os crimes, tudo depende do final.
– A quem o dizes – diz-lhe ele, com uma risada seca.
– Mas este é bom, por acaso. O fim, digo. Pelo menos, segundo
a opinião da minha mãe.
– Qual é a história?
Ela olha para ele.
– É sobre uma menina desaparecida. Os pais dela são horríveis,
por isso achamos logo que foram eles os responsáveis, mas é claro
que não é assim tão simples. E a miúda é extremamente
manipuladora. – Ri. – Faz-me lembrar eu própria nessa idade.
Inventava as histórias mais inacreditáveis, e o meu pai caía sempre
que nem um patinho.
– E a tua mãe?
Ela sorri:
– Não, era demasiado astuta. Mas o meu pai não acreditava que
a sua princesa de oito aninhos fosse uma mentirosa tão exímia.
Quinn deita a mão a outra cerveja; lá terá de ser Maisie a
conduzir, no regresso a casa. Já é a segunda vez em duas
semanas… Está a tornar-se um hábito.
– Não são só as raparigas – comenta ele. – O miúdo daquele
caso de assédio sexual que eu tenho em mãos?… Tem exatamente
a mesma idade e também diz mentiras terríveis.
Maisie baixa os óculos até à cana do nariz.
– Mas não disseste que ele tinha espectro do autismo… ou lá o
que era?
A lata de Quinn estala ao abrir-se.
– Sim, sim, o puto tem um problema qualquer, na maior parte do
tempo nem parece cá estar. É esperto, mas… sei lá, é meio
estranho. E, já agora, eu nunca disse isto, OK?
Mas a expressão dela é séria.
– Ele mente sobre o quê?
– Sabes aquela chamada que eu recebi quando vínhamos para
cá? Bom, parece que já não é a primeira vez que a mãe se vê
envolvida numa cena destas. Só que, da última vez, ela ameaçou
apresentar queixa contra a namorada do rapaz por lhe seduzir o
filho. Mas claro que foi tudo uma enorme encenação só para os
impedir de falarem.
Ela franze a testa.
– Mas isso faz da mãe mentirosa, não o filho.
Quinn encolhe os ombros.
– Whatever… Tudo o que eu sei é que o puto corroborou
direitinho a história toda.
Maisie pousa o livro no colo.
– Isso não faz sentido nenhum para mim. Se ele é de facto
autista, isso seria muito, mas mesmo muito complicado. Essas
crianças… nem sequer conseguem dizer uma mentira piedosa,
quanto mais dessas, tão rebuscadas. Porque é que achas que eles
têm tantos problemas em lidar com as outras pessoas? Excesso de
verdade também pode ser algo negativo.
Quinn enfia a sua cerveja no balde do gelo.
– Mas a que propósito é que percebes tanto sobre o assunto,
assim de repente?
Ela encolhe os ombros.
– Li alguns artigos sobre isso. Interessei-me depois de ver aquele
programa do Chris Packham 34.
A mãe dela está agora a acenar-lhes do murete do terraço.
Maisie vê as horas.
– Meu Deus, tão tarde… O almoço já deve estar pronto. –
Desliza do colchão para dentro de água e avança até às escadas
para sair da piscina.
– Vens? – vira-se para Quinn, pegando numa toalha.
– Sim, sim, dá-me só um minuto – responde-lhe ele, olhando à
distância e tamborilando com os dedos na mesa de apoio.
– OK – diz ela, enquanto se enfia no seu vestidinho de verão. –
Encontramo-nos lá em cima.
Ele assente com a cabeça, sem olhar para ela.
Assim que Maisie se afasta para fora do ângulo de visão, Quinn
pega no telemóvel.

***

Sebastian Young já se encontra na receção quando Somer


chega, com aparência de quem vai a uma entrevista de emprego no
seu fato claro de algodão e camisa aberta. Ev pedira-lhe imensa
desculpa de a arrastar para ali num domingo, mas, muito
francamente, para ela até foi um alívio. E tudo o que a impeça de
pensar onde era suposto ela estar neste fim de semana. E por que
razão não está. Tem o cuidado, porém, de não chegar a St. Aldate
demasiado cedo, porque não quer arriscar a ter de fazer conversa
de circunstância com Ev. Adora-a e sabe o quão ela se preocupa
consigo, mas, neste momento, não está com disposição para
confissões.
E também não está com paciência para o Dave King. Sente o
coração acelerar quando o vê junto da máquina de café, mesmo à
porta do DIC. E também não ajuda nada parecer-lhe óbvio aquilo
que o arrastou até aqui a um domingo. Tem-se esforçado por não
pensar em Fawley; não quer acreditar que ele seja culpado de algo
tão inimaginável, mas… também não sabe como lidar com as
evidências. É tudo… excessivo, a juntar ao resto – Giles, o bebé que
não era, a ecografia…
King puxa de um copinho e carrega no botão; depois, olha para
ela com um sorriso sinistro. Um sorriso de quem sabe.
– Calculo que não tenhas estado lá muito com o namorado,
ultimamente? Dadas as circunstâncias…
Ela olha-o fixamente; como raio é que ele sabe de Giles? E o
que é que ele tem que ver…
Ele retira o copo e endireita-se, voltando-se para ela:
– Mas, se queres saber, acho que arranjas muito melhor…
mesmo sendo ele um sacana de um inspetor-chefe. – Ao sentir-se
fulminado pelo olhar dela, levanta as mãos, todo ele inocência. – Só
estou a dizer…
– Tu não sabes a ponta de um corno acerca dele, meu merdoso.
Ele parece divertido quando ergue um sobrolho.
– Ora aí é que tu te enganas. Trabalhámos juntos num ou dois
casos, noutros tempos… – Avança um passo para ela. – Sei muito
sobre esse sacana. Muito mais do que tu julgas…
Ele toma o café sem nada, o que é uma grande pena, porque
assim o líquido atinge-o ainda a ferver na cara, nos olhos, no peito –
espalhando-se pelo chão, escorrendo-lhe pelo pescoç o…
– Foda-se! Que merda é esta? – balbucia, recuando. – Cabra de
merda, como é que te atreves? Olha pra minha camisa…
Agora, tem de gritar, já que ela se afastou tranquilamente.
– Puta de merda! Vais pagar-mas! Ouviste bem? Estás lixada
comigo!

***

Alex Fawley volta a consultar o relógio. Dez para as quatro. O


cérebro regista, algures, a irmã na porta ao lado, na casa de banho,
separando a roupa para lavar, Gerry lá em baixo com os miúdos, o
cão de um vizinho a ladrar. Verifica o tablet, faz um refresh à página.
O dedo deixa uma marca húmida no ecrã.

***

[GRAVAÇÃO DE ARQUIVO DE UM JORNALISTA DA BBC, À PORTA DO TCC,


20 DE DEZEMBRO 1999]

Após um julgamento de nove semanas, Gavin Parrie, o chamado “Violador da


Beira da Estrada”, foi hoje condenado pela violação e tentativa de homicídio
de sete raparigas da zona de Oxford. O juiz Peter Healey considerou Parrie
“maléfico, impenitente e depravado” e recomendou que cumprisse uma pena
não inferior a quinze anos. Depois de anunciada a sentença, gerou-se um
certo alvoroço nas galerias e ouviram-se injúrias dirigidas tanto ao juiz como
aos jurados, por parte dos familiares do Parrie. Ao ser levado da sala de
tribunal, este pronunciou ameaças contra o agente responsável pela sua
detenção, gritando “vou apanhar-te!” e “tu e a tua família que se cuidem!”. O
agente em questão, o Inspetor-Coordenador Adam Fawley, recebeu uma
menção honrosa por parte do Superintendente da Thames Valley,
precisamente pelo seu trabalho neste caso.

[JOCELYN]
Eu não estive nesse julgamento. Ainda estava na faculdade. Mas lembro-me
do caso e de ter pensado que tipo de homem conseguia não apenas cometer
aqueles crimes contra mulheres, como ainda ameaçar a família do homem
que ajudou a condená-lo.

Agora, como é óbvio, sei muito mais do que sabia na altura. E também
conversei com o Parrie, à distância, e sei que ele se arrepende sinceramente
do que disse naquele dia, dos distúrbios que isso causou. Também ele ficou
profundamente afetado por todo o mal que o julgamento causou à própria
família, sobretudo aos filhos. Ainda que o casal estivesse separado na altura
em que ele foi condenado, a sua família viu-se atormentada e perseguida –
pela imprensa, por “justiceiros”, pelos vizinhos. Tornaram-se párias, e Sandra
acabou por ser obrigada a mudar-se para a Escócia, tendo de voltar a usar o
nome de solteira apenas para proteger os filhos.

[SANDRA]
Já me era suficientemente difícil criar três filhos sozinha, antes disso – mas foi
mil vezes pior estando tão longe da minha família. O irmão do Gavin
costumava mandar-me dinheiro sempre que podia, mas, na maior parte do
tempo, mal tínhamos para comer. E fazer oitocentos quilómetros para ir visitar
o Gav… bom, isso estava fora de questão.

[JOCELYN]
O que queria dizer que o Gavin praticamente não via a família, mas sabia
aquilo por que eles passavam – sabia que a sua família também era vítima do
Violador da Beira da Estrada, tanto quanto ele próprio e as mulheres. E isso
tornou aquilo que ele considerava uma terrível injustiça ainda mais difícil de
suportar.

Porque a sua posição nunca mudou: ele nunca atacou aquelas mulheres e o
homem que o fez continua cá fora. Ele continua a acreditar que a investigação
da Thames Valley foi fundamentalmente falaciosa, se bem que hoje em dia ele
não use expressões como “tramado” ou “incriminado”. Hoje, está mais velho,
mais sábio e mais ponderado (dezoito anos numa prisão fazem-nos isso).
Mas, independentemente de ter sido uma “cagada” ou uma conspiração, o
resultado final é o mesmo: ele passou os melhores anos da sua vida numa
prisão por crimes que não cometeu.

Sou a Jocelyn Smith e sou cofundadora de “Toda a Verdade”, uma


organização sem fins lucrativos que luta pela reposição dos erros de
justiça. Esta é a série 3 de “Fazer do Errado Certo: O Violador da Beira
da Estrada Redimido?”.
Capítulo Seis: Liberdade Condicional
[TEMA MUSICAL – AARON NEVILLE – VERSÃO COVER DE “I SHALL BE RELEASED”]

[JOCELYN]
Vou começar este episódio com uma confissão. Na primeira vez que o Gavin
e os seus advogados nos abordaram, em Toda a Verdade, para pegarmos
neste caso, recusámos.
E também na segunda. Mas depois este caso voltou a fazer parangonas, e
tudo mudou.

No início deste ano, quando o Gavin ainda estava na prisão de Wandsworth,


ocorreram dois ataques horríveis a jovens de Oxford – ataques esses que
revelavam parecenças tão extraordinárias quanto aterradoras com os ataques
de que o Gavin fora acusado. Seria um copycat ou seriam estes ataques obra
do verdadeiro Violador da Beira da Estrada?

Foi então que o advogado do Gavin, Jeremy Peters, voltou a contactar-nos –


e não foi preciso muito para nos apercebermos de que este caso era digno da
nossa atenção.

[JEREMY PETERS]
Em 2022, a condenação do Gavin foi reanalisada pela Comissão de Revisão
de Casos Criminais, mas eles recusaram-se a enviá-la para o Tribunal de
Segunda Instância. E, embora ele tivesse sido um recluso exemplar, sempre
se recusou a admitir a culpa, o que inviabilizou a possibilidade de lhe ser
concedida liberdade condicional, ainda que fosse elegível a ela após quinze
anos de encarceramento. Posto isto, em inícios de 2018, percebemos que
estávamos a ficar sem alternativas.

[JOCELYN]
O facto de o Gavin Parrie nunca ter vacilado na insistência da sua inocência,
mesmo jogando isso contra ele, foi talvez o fator mais importante na nossa
decisão de pegar no caso dele. Tomada essa decisão, fizemos o que sempre
fazemos: regressámos ao início de tudo e analisámos toda a investigação. Os
depoimentos, os resultados forenses da polícia científica, as testemunhas. O
modo como a polícia conduziu as suas averiguações, as provas apresentadas
ao júri, em tribunal.
E – o mais crucial – as provas que o júri nunca viu. Porque existe um
elemento nesta investigação que o torna único, à luz da nossa experiência: o
facto de um dos principais inspetores vir mais tarde a envolver-se – o que,
aliás, acabou em casamento – com uma das vítimas. E não apenas uma das
vítimas, mas a vítima. A mulher cuja intervenção levou a polícia diretamente à
única pista forense que ligou definitivamente o Gavin Parrie aos crimes: uns
fios do cabelo dela, descobertos na oficina por ele alugada. Cabelos esses
que o Parrie sempre acreditou terem sido plantados. Possivelmente com o
conhecimento do Adam Fawley. Ou mesmo até por sua instigação.

[JEREMY]
O subsequente casamento dos Fawley deveria ter sido mais do que suficiente
para se interpor um recurso, mas eles declararam à CRCC, e sob juramento,
que a sua relação só tinha começado já depois de o julgamento ter acabado.
E isto foi corroborado por outras testemunhas, incluindo vários dos colegas e
superiores dele, e colegas e sócios da firma de advogados dela. A comissão
não teve outro remédio senão aceitar.

[JOCELYN]
Portanto, por mais desconfortáveis que nos sentíssemos sobre a possibilidade
de os Fawley se terem conluiado para plantar as provas contra o Gavin,
sabíamos que seria impossível prová-lo. Assim, desviámos a nossa pesquisa
para outro lado: o que poderia ter acontecido nas fases iniciais da
investigação.
Ao fazê-lo, rapidamente se tornou claro que o caso da Thames Valley contra o
Gavin Parrie era aquilo a que nós chamávamos um “processo Frankenstein”.
Infelizmente, já nos tínhamos esbarrado com isto demasiadas vezes em
acusações que acabaram por se revelar erros judiciários: casos que tinham
sido costurados com trapos e retalhos de provas circunstanciais, que
pareciam conduzir a algo de monstruoso, mas que, basicamente, eram
“fabricadas”.

A polícia alegou que o Gavin Parrie estava furioso, volátil e ressentido. Que se
sentiu abandonado pela vida e dececionado com as mulheres – depois de ter
sido rejeitado, primeiro, pela sua mulher e, depois, pela sua namorada de
Cowley, a Julie. Aliás, chegaram mesmo ao ponto de afirmar que foi
justamente esta segunda rejeição que espoletou o primeiro ataque à Erin
Pope (disseram mesmo que a Erin tinha parecenças físicas com a Julie e
exibiram fotografias no tribunal a prová-lo).
Referiram também a natureza grave da pornografia encontrada na oficina do
Gavin, algo, aliás, que ele nunca negou. Mas consumir pornografia – inclusive
pornografia hardcore – não faz de alguém um violador.
Deram particular ênfase ao facto de ele não ter um emprego estável, o que lhe
daria tempo e a flexibilidade necessária para vigiar as suas vítimas e estudar
muito bem os locais, antes dos ataques.

E salientaram o facto de ele ter a sua própria carrinha e acesso à do irmão.


Este, o Bobby, era estucador e tinha sempre resíduos de sulfato de cálcio no
seu veículo de trabalho.

Na opinião deles, tudo se encaixava.

Mas isso não quer dizer que fosse verdade.

Trabalhámos arduamente e em estreita colaboração com os advogados do


Gavin numa análise detalhada do caso, que foi submetido ao Conselho da
Liberdade Condicional, como parte da sua avaliação. E fico feliz por poder
afirmar que tivemos sucesso. O Gavin foi libertado da prisão de Wandsworth a
23 de maio de 2018. Mas isso não é o mesmo que ser absolvido. A sua
condenação mantém-se. Está obrigado ao uso de pulseira eletrónica, tendo
de cumprir as estritas imposições da condicional que, em termos práticos, o
impedem de levar uma vida minimamente normal. Isso inclui ter o tipo de
contacto social habitual que todos nós damos por garantido.
Quando saiu da prisão, ele tinha uma namorada, mas a relação não foi
suficientemente forte para aguentar o difícil processo de readaptação pós-
liberdade, e agora, mais uma vez, está sozinho.

Mas com sorte e perseverança, este não será o fim da história do Gavin.
Iremos continuar a apoiá-lo, e aos seus advogados, com vista a que seja
criada uma segunda reavaliação para a Comissão de Revisão de Casos
Criminais, já no início do próximo ano.

Entretanto, o Gavin está determinado em fazer dos anos que ainda lhe restam
algo que valha a pena. Passa muito tempo com delinquentes juvenis e
também a reconstruir a sua relação com os filhos. E, claro está, eles já não
são crianças. O Ryan trabalha no setor da saúde e bem-estar e a Dawn tem
agora a sua própria família, tal como o Stacey, que vive e trabalha em
Glasgow.
O Gavin não quis ser entrevistado para este podcast, mas sempre esteve
muito envolvido na produção. Quer que a história dele seja contada, nem que
seja para garantir que outras pessoas não sofram o que ele sofreu.

Vou deixar as útimas palavras para a Sandra, a sua ex-mulher.

[SANDRA]
O Gavin que eu vi desde que foi libertado é o Gavin pelo qual eu me
apaixonei.
As coisas, para ele, podiam ter corrido de maneira tão diferente. Antes de
mais, se ele tivesse qualificações ou se tivesse sido mais astuto a lidar com as
pessoas.
Menos desbocado. O problema com o Gav era que, sempre que ele se metia
numa situação, ia sempre pelo pior caminho. Mas nem sempre foi por culpa
sua, também teve sempre um azar do caraças. Mas, quem sabe, talvez isso
agora esteja a mudar.
Talvez ele finalmente consiga agora tudo aquilo que sempre mereceu.

[MÚSICA DE FUNDO: “I SHALL BE RELEASED”]

Sou a Jocelyn Naismith, e este é o “Fazer do Errado Certo”. Pode ouvir


este e outros podcasts de “Toda a Verdade” no Spotify ou onde quer que
carregue os seus podcasts.

[FADE OUT]

***

Alex pousa o tablet e leva lentamente a mão à boca.


Há algo na sua expressão que é difícil de interpretar.
Mas não é medo.
Não, desta vez.

***

Não é a primeira vez que Dave King dá graças aos céus por ter
sempre uma camisa de reserva no trabalho. Ainda que, depois de se
mudar, tenha ido a correr enfiar a suja dentro de um saco de prova.
E tirar algumas selfies incriminatórias para ficarem guardadas. Vai
mesmo lixar aquela gaja. Mas, primeiro, vai ter de lidar com as
confusões de Fawley. E lidar a sério com isso, desta vez.
Empurra a porta do gabinete de apoio. Podiam fazer isto noutro
sítio qualquer, mas agrada-lhe a ideia de transmitir a sensação de
que é oficial, de aumentar o fator desconforto. E, a julgar pelo olhar
que recebe quando se senta, está a resultar.
– Desculpa o atraso – diz, airosamente. – Consegui entornar café
na porra da camisa toda. – Pousa o tablet na mesa à sua frente e
volta-se para o outro.
– Ouve – diz Anthony Asante –, isto é realmente difícil… Aquilo
que descobrimos… confesso que não estava nada à espera…
King solta uma risada sarcástica.
– Quê? Achas que vais safar o boss, é isso? Dar uma de herói e
ficarem-te reconhecidos, mesmo não valendo de nada? Pois, temos
pena. Tu és chui. As coisas são como são. Mas, vá lá, chuta.
Asante não está nada contente, isso é mais do que óbvio, mas
não tem alternativa e sabe disso.
– São imagens de CCTV. Da noite em que a Emma Smith
morreu.

***

– Apenas lugares em pé, estou a ver – observa Bryan Gow,


secamente, rodeando os móveis até à única cadeira livre.
Gislingham está já instalado em frente aos dois ecrãs de vídeo, e
a procuradora do MP retira da pasta um caderno de notas amarelo,
oficial, com o logo do ministério. Gis sente-se tentado a perguntar-
lhe se ela trouxe mais um ou dois; é que vai precisar.
Gow senta-se e vira-se para Gis:
– Ontem à noite, enviei ao Quinn alguma informação de base, e
falámos sobre ela, por isso ele deve estar totalmente instruído.
– Sim, eu também a li – diz a advogada do MP. – E também já li
o acordo de confidencialidade. – Tira um print da pasta e larga-o na
mesa com o maior desprezo de que é capaz.
– Ele teve um desempenho excelente nisto, devo dizer –
comenta Gow. – O Quinn. Teve uma perceção incrivelmente
perspicaz em relação ao miúdo.
Gislingham concorda:
– Eu sei. E vou certificar-me de que o Harrison também sabe,
caso isso nos traga resultados. Se bem que tenho quase a certeza
de que o próprio Quinn se vai antecipar a mim nessa tarefa.
Trocam um sorriso; Quinn é tão ambicioso quanto previsível.
– E o resto da vossa equipa também está preparada? – quer
saber a advogada, enquanto começa o vídeo. – Estão a par de
tudo?
– Oh, sim – diz Gislingham, tranquilamente. – Eles estão a par de
tudo.

No ecrã da esquerda, Somer e Asante recebem Caleb Morgan e


os advogados numa sala de entrevista. Enquanto se vão sentando e
preparando as coisas, Morgan olha diretamente para a câmara,
prolongando o olhar o tempo suficiente para passar a sua
mensagem: ele sabe que eles estão ali.
Mas há uma coisa que ele não sabe.
Ele não é o único a ser observado.

***

Entrevista a Marina Fisher,


realizada nas instalações de St. Aldate, Oxford
16 de julho, 2018, 09h15
Conduzida por: Inspetor G. Quinn, Inspetora V. Everett
Presente: N. Kennedy (advogada)

GQ: Esta é a quarta entrevista com a Professora Marina


Fisher, no âmbito de uma queixa de assédio e
agressão sexual apresentada por Caleb Morgan,
alegadamente ocorrida a 6 de julho de 2018.
Professora Fisher, devo lembrá-la uma vez mais que
permanece sob a condição de arguida e…
NK: Mas que diabo se passa aqui? Pensei que já tínhamos
determinado que foi a Marina que foi agredida, não
o Morgan. É a ele que devem interrogar, não a ela.
GQ: Continuamos a tentar estabelecer o que aconteceu
exatamente naquela noite e, para isso, precisamos
da ajuda da Professora. E, como estou certo que
entenderão, qualquer caso cuja testemunha principal
seja uma criança tão nova é particularmente
complicado…
NK: Mas…
GQ: … e, uma vez que a Professora Fisher se mantém
detida, pelo menos para já, não temos alternativa
senão conduzir a entrevista com ela na qualidade de
arguida. Como certamente terá conhecimento.
NK: [pausa]
OK. Parece-me justo. O que é que pretendem saber?

***

– Muito bem, Mr. Morgan – diz Asante –, gostaria de começar por


lhe perguntar novamente o que foi aquilo a que o Tobin Fisher
assistiu na noite de 6 de julho…
Meredith Melia revira os olhos.
– Oh, não… Outra vez?
Patrick Dunn aclara a garganta:
– Também digo… Já discutimos isto vezes sem conta. O que
quer que essa criança tenha visto ou pensado que viu, não passa de
uma criança. Uma criança muito nova, impressionável e, logo – por
definição –, pouco fiável.
Morgan volta-se para ele:
– Não, e não é só isso. É um fedelho mentiroso… mente a toda a
hora. Se ele me dissesse que o céu é azul, eu ia confirmar, porra.
Asante olha de relance para Somer. É a vez dela.
– Disse-nos anteriormente que achava que ele “tinha problemas”.
Morgan concorda:
– Certo. Exatamente.
– Uma criança assim provavelmente acharia qualquer ato sexual
extremamente perturbador, não concorda?
Ele franze a testa, subitamente inseguro por desconhecer onde
isto o poderá levar.
– Sabe – diz Somer, chegando-se à frente –, nós achamos que
sabemos o que aconteceu naquela noite. Nunca houve ataque
nenhum, pois não, Caleb?
Ele baixa a cabeça, mas nada diz.
– O que o Tobin viu foi a mãe a fazer sexo. Nunca tinha visto
uma coisa dessas, não fazia ideia do que significava e ficou
assustado. Compreensivelmente. Mas não precisava: a mãe dele
não corria nenhum perigo. Como disse, ela estava apenas a fazer
sexo. Mas, se foi isso que aconteceu – se tudo não passou disso –,
há muitas perguntas a que o Caleb deve respostas. Começando por
esta: por que raio é que nos andou a mentir este tempo todo?

***

GQ: Como eu já disse, é muito mais difícil dar-se uma


condenação por bem-sucedida quando o caso se baseia
numa criança como única testemunha. Os jurados
temem sempre que elas possam ter sido coagidas a
dizer aquilo que afirmam.
MF: Eu jamais faria uma coisa dessas.
GQ: Mas, mesmo assim, há de convir que, antes de
avançarmos, precisamos de determinar se o
testemunho do Tobin pode ser invocado ou sequer
tido em consideração, não?
MF: Não sei se estou a perceber…
VE: Os advogados do Morgan também estão a questionar a
confiabilidade do testemunho do rapaz. O que não é
totalmente injustificado, dada a sua idade.
GQ: E então, Professora Fisher, diga-nos: considera que
o seu filho é uma criança que diz sempre a verdade?

* * *

A sala está em silêncio. Morgan apoia entre as mãos a cabeça,


que vai abanando lentamente, uma e outra vez. O timecode na
gravação move-se continuamente; um minuto, um minuto e meio,
dois…
– Ela ameaçou-o, Caleb? – pergunta Somer, por fim. – Foi por
isso que mentiu?
Meredith Melia inclina-se e põe a mão no ombro de Morgan.
– Caleb – diz-lhe, quase num murmúrio –, sente-se bem?
Não obtém resposta. A advogada volta-se para os agentes:
– Talvez nos possam dar uma explicação para este súbito volte-
face do interrogatório?…
Somer e Asante trocam um olhar.
– A fuga de informação quanto à identidade da Professora Fisher
– declara Asante. – Isso fez com que alguém ganhasse coragem
para se apresentar cá. Alguém que passou por uma experiência
semelhante.
– Porra… Aleluia – diz Dunn, num murmúrio.

***

MF: O que é que estão a insinuar? É claro que ele diz a


verdade, ele…
GQ: Numa das nossas anteriores entrevistas, disse-nos
que ele lhe mentiu acerca do vestido.
MF: Isso é diferente.
GQ: Diferente? Como assim?
MF: [silêncio]
GQ: Portanto, ele de facto mentiu, pelo menos numa
ocasião. Ele também costuma inventar coisas? Contar
histórias sobre coisas que, afinal, nunca
aconteceram?
MF: Não, é claro que não.
GQ: Ah, mas aí é que está o problema. Ontem à tarde, eu
falei com a professora do Tobin. E, antes que
pergunte, Ms. Kennedy, a conversa foi autorizada
por um inspetor ao abrigo do artigo 29 da Lei de
Proteção de Dados de 1998, que permite a divulgação
de informação pessoal sem autorização parental para
os propósitos de detetar ou prevenir o crime.
NK: Mesmo assim…
GQ: E, já que a investigação que estamos a conduzir
pode potencialmente exonerar a Professora Fisher,
seria muito estranho que ela se opusesse a ela,
neste momento.
[pausa]
Não concordam?

***

– Você sabia? – pergunta Somer. – Que isto já tinha acontecido


antes? Que ela já tinha feito o mesmo a alguém?
Morgan abana a cabeça. Parece estar a esforçar-se para
assimilar esta nova informação.
– O jovem em questão pediu transferência para a King’s London
há cerca de dezoito meses – prossegue a Inspetora. – Antes de
você vir para Oxford. Não aguentou ficar aqui depois do que lhe
aconteceu. É por isso que precisamos que fale a verdade. E, desta
vez, toda a verdade.
Morgan recosta-se. Está pálido e com clara dificuldade em
estabelecer contacto visual.
– OK… Eu admito. Fiz sexo com a Marina. Uma vez. Uma. Foi
quando eu e a Freya estivemos separados. E ela nunca soube. –
Ergue os olhos para eles. – E eu não quero que vocês lhe contem
agora.
– Então, quando nos disse que nunca tinha tido sexo com a
Professora Fisher… era mentira?
Ele hesita e assente. Volta a baixar o olhar e, agora, está
visivelmente corado.
– Achei que, se admitisse, vocês nunca iriam acreditar em mim
sobre aquela noite.
Somer confirma discretamente com a cabeça. Quantas mulheres
não pensaram o mesmo, ao longo dos anos? Quantas vítimas de
violação decidiram não se chegar à frente exatamente pela mesma
razão?
– Prossiga – diz-lhe Asante.
Morgan continua, sem olhar para eles:
– Eu disse-lhe que tinha acabado. Que tinha voltado para a
Freya e que o nosso caso acabava ali. Que, aliás, nem sequer
chegou a começar.
– Quando é que lhe disse isso?
Ele olha-os muito brevemente.
– Nessa noite. Depois do tal jantar. Eu só queria pôr um fim
àquela história e sair dali – mas, como já lhes disse, ela estava
bêbada. Insistiu que queria uma bebida e que queria sexo… ’tão a
ver, ali e naquele segundo, em cima da porra da mesa da cozinha.
Ev assente:
– E o que é que lhe respondeu?
– Que não. Que desejava que nem sequer tivesse acontecido
aquela primeira vez e que não ia voltar a cair no mesmo erro. Mas
ela recusou-se a aceitar.
– E o que é que aconteceu a seguir?
Ele cora.
– É o que lhe digo, ela recusou-se a aceitar um “não” da minha
parte. – Cala-se, esfrega a nuca. – Por isso, enfim, ‘tão a ver…
– Fizeram sexo.
O jovem concorda:
– Acabei de lhe dizer “OK, pelos velhos tempos”, e essas cenas.
Mas só mais aquela vez. E, na altura, ela pareceu-me agradada com
a ideia.
– Mas depois mudou de ideias?
Ele ergue o olhar e baixa-o de novo.
– Ya… Eu disse-lhe, depois de… enfim, vocês sabem… disse-lhe
“agora acabou mesmo”… E foi aí que ela se passou dos cornos.

***

GQ: Sabe o que nos disseram na escola, não sabe,


Professora Fisher?
MF: [silêncio]
VE: Segundo a professora, o Tobin foi apanhado a mentir
uma série de vezes nos últimos dois meses.
MF: [silêncio]
GQ: Numa ocasião, mentiu para arranjar problemas a um
colega. Um colega de quem ele não gostava.
MF: Ele nem se apercebeu… foi apenas uma tolice, um
mal-entendido, ele… estava confuso…
NK: Ora, por amor de Deus… Não vão levar a sério essas
patetices de recreio, pois não?
MF: São os outros miúdos… inventam coisas só para o
deixarem malvisto e…
NK: [calmamente]
Creio que não há necessidade de continuarmos esta
discussão, Marina.
GQ: Foi por isso que insistiu em dizer-nos que não se
lembrava do que aconteceu ao vestido? Nós nunca
percebemos isso. Mas agora faz sentido. Teve
vergonha de admitir o excelente mentiroso que é o
seu filho de oito anos.
MF: [silêncio]
GQ: Se bem que, claro está, algumas crianças têm imensa
dificuldade em dizer mentiras. Para elas, é
complicado inventar coisas, porque os seus cérebros
simplesmente não estão conectados dessa forma.
MF: [silêncio]
GQ: Crianças com autismo, por exemplo, ou Asperger. Têm
muita dificuldade em inventar coisas, tal como têm
muita dificuldade em interagir com outras pessoas.
Se alguma destas situações se aplicasse ao Tobin,
então, seria muito mais fácil acreditar que todos
aqueles incidentes com os outros colegas eram
apenas “mal-entendidos” e nunca mentiras.
MF: [silêncio]
GQ: Achou que talvez fosse essa a explicação, certo? Na
altura? Aliás, chegou ao ponto de pedir que o
avaliassem.

***

Morgan respira fundo:


– Ela disse-me que, se eu quisesse a ajuda dela, se quisesse
uma referência decente, então teria de fazer o que ela queria.
Dependia totalmente de mim, mas, se eu recusasse, bom…
– E o que é que respondeu a isso?
Ele passa de novo a mão pelo cabelo.
– Sei lá, eu… senti-me todo virado do avesso, a minha carreira, a
minha pesquisa… todo aquele trabalho árduo… Acho que me
acagacei. Disse-lhe que ia pensar no assunto. Só pensava em
ganhar tempo.
– E depois disso foi para casa? – quer saber Asante.
Ele assente:
– Sim. E fiquei por lá um momento, tentando assimilar aquilo
tudo. Depois, fui ter com a Freya. Senti-me encurralado… não sabia
que porra fazer.
– Ela deve ter ficado chateada – diz Somer. – Quando lhe contou
que fez sexo com a Fisher…? Sobretudo, depois de a ter proibido de
entrar lá em casa. Se a tivesse deixado entrar, nada disto teria
acontecido.
Ele faz uma careta.
– Não pense que isso não me ocorreu. E, sim, ela ficou
superchateada, claro, mas estava completamente furiosa com a
Marina.
Recosta-se e fixa-os, por fim, diretamente nos olhos.
– A queixa por assédio, denunciá-la à faculdade, a vocês… tudo
isso foi ideia da Freya.

***

GQ: Segundo a professora dele, o Tobin foi sujeito a


uma avaliação psicológica o mais abrangente
possível, no início deste ano. E a seu pedido.
NK: [à sua cliente]
Nunca me contou isso.
GQ: Só que aquilo não deu em nada, pois não,
Professora? A pedopsicóloga concluiu que ele de
facto tem dificuldades em socializar com outras
crianças, mas não é por ter algum tipo de “problema
de desenvolvimento”. É bastante mais plausível que
seja um reflexo do seu ambiente familiar e,
particularmente, da relação consigo…
MF: Recuso-me a aceitar isso. Vou pedir uma segunda
opinião, não vou com certeza ficar-me pelo parecer
de uma técnica de segunda categoria…
GQ: Segundo a opinião dos profissionais, o Tobin é
muito inteligente, mas extremamente ansioso,
sobretudo quando separado de si. Tem problemas em
interagir com estranhos e em lidar com emoções
negativas, chegando ao ponto de se tornar
agressivo.
NK: Não faço a mais pálida ideia de onde querem chegar…
GQ: Ah, mas verá que a sua cliente faz. Ela sabe
perfeitamente do que estou a falar.

***

Na sala ao lado, Gislingham está de olhos cravados no ecrã.


– Caramba, ela sempre foi tão convincente – diz, quase para si
mesmo. – Papei mesmo a história toda.
– Não te culpes tanto – diz Gow, anotando qualquer coisa. – Já
lidei com muitos casos como o dela.
– Não admira que o miúdo seja tão disfuncional – comenta,
tristemente, a advogada do MP. – Pobre coitado.
– Sim, é um facto – diz Gow. – A maternidade é uma daquelas
coisas que nem mesmo aqueles sofisticados softwares dela
conseguem falsear.

***

GQ: [pega numa folha]


“O apego inseguro resulta geralmente de uma
parentalidade inconsistente, errática ou ausente.
Estas crianças tornam-se altamente inseguras e
excessivamente centradas no progenitor em questão,
o que se manifesta por reações ansiosas de
apegamento excessivo e uma vontade de fazer
praticamente tudo para agradar a esse progenitor e
garantir a sua atenção.”
“Praticamente tudo”, Professora Fisher. Incluindo,
diria eu, uma disposição para mentir. Desde que a
mamã lhe peça.
MF: [irritada]
O Tobin nunca recebeu um diagnóstico desses.
GQ: Não, nunca recebeu. Pelo menos, oficialmente. Mas
apenas porque a senhora o retirou das consultas de
avaliação antes que isso pudesse acontecer. Tal
corresponderia, porém, e sem a menor dúvida, a tudo
o que a nossa equipa observou nele, na última
semana. Bem como a tudo aquilo que temos vindo a
aprender sobre o seu comportamento no passado. Sim,
porque isto não é a primeira vez que acontece,
certo? Ele já mentiu por si anteriormente.
MF: Hã?… De que raio é que está a falar?
VE: O nome Sebastian Young diz-lhe alguma coisa?

***

– Eu achei a ideia de loucos, achei que jamais acreditariam na


história, mas a Freya insistiu que tínhamos de ser espertos. Disse
que a Marina sempre se achou a última bolachinha do pacote, mas
que nós podíamos alinhar no jogo dela. E vencê-la.
Asante e Somer trocam um olhar.
– E em que é que isso deu, exatamente?
– A Freya disse que, mesmo que apresentássemos logo uma
queixa por assédio sexual e agressão, a polícia só conseguiria
contactar a Marina horas depois. E claro que ela já teria tomado
duche. Seja como for, uma vez que eu usei preservativo, não
haveria nenhuma prova de que nós tínhamos efetivamente feito
sexo.
– A Freya ajudou-o? – pergunta Somer. – A fabricar as provas, a
preservar o ADN nos sítios certos e a livrar-se de tudo o resto…?
Ele anui, claramente desconfortável.
– Mas, mesmo assim, foi um grande risco, não? – indaga Asante.
– Como é que sabiam que a Marina não ia logo a correr ter
connosco e contar-nos que vocês os dois andavam a ter um caso?
Desta vez é Somer quem abana a cabeça:
– Não. Eles sabiam o que estavam a fazer. Sabiam que a Marina
jamais faria isso – sob o risco de perder o emprego.
Morgan olha para ela e desvia o olhar. Tem as bochechas
vermelhas.
– Certo, Caleb?

***

GQ: Sabe de quem estamos a falar, não sabe? O Sebastian


Young? O jovem que assinou aquele acordo todo
elegante que aqui a Ms. Kennedy redigiu para si? Se
por acaso não estiver recordada…
[faz deslizar uma fotografia na direção dela e
aponta]
A Professora Fisher sempre em cima do
acontecimento, hã?
NK: Ah, por favor…
GQ: Marina Imogen Fisher, está detida por suspeita de
abuso sexual de Sebastian Young, a ou por volta de
20 de novembro de 2016. Não precisa de dizer nada,
mas aviso-a de que pode ser prejudicial para a sua
defesa não referir, quando interrogada, algo que
mais tarde venha a confiar ao tribunal. Tudo o que
disser pode vir a ser apresentado como prova.

***

– Oiçam – diz Morgan –, peço desculpa, OK? Não devíamos ter


feito nada daquilo.
– Pois não – diz Somer, gravemente. – É que não deviam
mesmo.
Ele afunda-se na cadeira e levanta as mãos.
– Eu só não sabia que outra coisa fazer. Ela estava a usar-me, a
abusar da posição dela de superioridade…
– A questão não é essa. É perturbação do exercício da justiça.
– E agora estão a dizer que ela já tinha feito isto?
Somer chega-se à frente na cadeira.
– Disse que ela estava a abusar do seu poder, mas então…
porque é que não fez queixa dela por isso? Contar à faculdade o
que se estava a passar?
Ele assume uma expressão irónica.
– A sério?… E dizer o quê, precisamente?
– Que ela estava a chantageá-lo para ter sexo consigo, antes de
mais.
Ele ri-se:
– Sim, sim… e eles iam mesmo acreditar nisso.

***

MF: Isto é de doidos! Eu nunca assediei o Sebastian,


assim como nunca assediei o Caleb. E vocês sabem
que eu nunca o fiz… vocês próprios disseram…
GQ: [aponta a fotografia]
Talvez. Mas sabemos que fez isto.
MF: [respira fundo]
Oiça, foi só aquela vez e foi um enorme erro. Nunca
deveria ter acontecido.
GQ: Creio que nisso todos concordamos.
MF: Vocês não percebem. Eu estava mesmo mal nessa
altura, tinha terminado uma relação, sentia-me
sozinha, vulnerável… E depois veio o divórcio,
tinha acabado de fazer quarenta anos, foi tudo…
esmagador. Mas claro que eu sei que não é desculpa…
Nunca devia ter-me deixado levar naquilo.
VF: Quer dizer que foi ele que a seduziu?
MF: [irritada]
Claro que foi ele que me seduziu. Que tipo de
pessoa pensam que eu sou? E, depois, aquela
namorada dele… criatura sinistra… aparece em cena e
tornou-se tudo um enorme pesadelo. Por isso é que
eu precisei do acordo, aquela rapariga estava a
chantagear-me… a ameaçar mostrar aquelas fotos ao
departamento, à Universidade…
GQ: E então deu-lhe a provar do seu próprio veneno?
Dizendo que ia à polícia e inventar uma história
qualquer sobre a Zoe andar a seduzir o Tobin?…
MF: [cora]
Não foi nada assim.
[olhando de um inspetor para o outro]
Não olhem para mim com essas caras – eu estou a
contar-lhes a verdade…
GQ: Mas levou o Tobin a mentir, certo? Aquela história
que ele contou ao Sebastian Young sobre andar a ser
seduzido… Nada disso era verdade.
MF: Mas…
GQ: A senhora treinou-o.
MF: Sim, pode dizer-se que sim… vistas as coisas desse
prisma. Mas foi só para me livrar deles. Jamais
levaria a coisa mais longe do que isso. Mas será
que não conseguem entender o meu lado? Eu não tinha
alternativa, corria o risco de perder o emprego, a
minha posição… tudo aquilo por que tanto trabalhei…
NK: E devo lembrá-los que, seja o que for que tenha
acontecido nessa altura, não significa que o Tobin
agora não esteja a dizer a verdade.
VE: [silêncio]
Quer que eu lhe diga aquilo que eu acho que é a
verdade?
MF: [afasta o olhar]
VE: Eu acho que a senhora e o Caleb Morgan fizeram sexo
nessa noite. Sexo consensual, puro e duro. E também
não foi essa a primeira vez. Por isso, quando o
Morgan se chegou à frente e a acusou de assédio
sexual e agressão, a senhora ficou completamente
passada, desculpe o termo. Pensou: que raio é que
ele está a fazer? Que jogo é o dele? E não podia
contar-nos o que realmente aconteceu, porque não
podia admitir que andava a dormir com um aluno. Por
isso, a única opção que lhe restou foi esperar que
o tempo apagasse tudo. Como é uma mulher
inteligente, depressa percebeu que tudo não
passaria de um diz-que-disse. Bastava-lhe dizer-nos
que não se lembrava de nada, porque nós não
tínhamos como provar uma coisa ou outra, certo?
MF: Não! Não foi isso que se passou. Eu nunca dormi com
ele, nunca!
VE: Mas aconteceu que foi desmascarada no Twitter, e
tudo mudou. Nessa altura, sim, a sua carreira ficou
em risco. E também não era apenas a sua relação com
o Morgan: a história do Sebastian Young poderia vir
à tona a qualquer momento. Tinha de fazer alguma
coisa. E então fez exatamente o mesmo que fez da
primeira vez, com o Sebastian. Virou o bico ao
prego para ficar em vantagem. Recorreu à mesma
estratégia com o Caleb Morgan.
MF: Não! Não foi nada…
VE: Tornou-se a si própria vítima. Mas tinha de ser
esperta a fazê-lo. Não podia simplesmente aparecer
e desatar a fazer acusações contra o Morgan… A
coisa tinha de ser bem mais subtil do que isso.
Precisava de nos fazer acreditar que fomos nós que
percebemos tudo… que as nossas mentes de “segunda
categoria” até conseguiram deslindar o caso.
MF: [abanando a cabeça]
Isto é de doidos!
VE: Durante todo esse tempo alegou que não se
recordava, esperando que tudo passasse. E só agora
é que percebeu que excelente cartão você-está-
livre-da-prisão isso poderia vir a ser.
MF: Eu não aleguei coisa nenhuma… É a verdade.
VE: Uma droga de violação… Nada mais simples.
MF: Não… não…
VE: A senhora é cientista, sabe quão rápido essas
coisas metabolizam, por isso as análises forenses
não constituíram um problema. Mas não podia ser a
senhora a plantar essa ideia. Para ser mesmo
credível, teria de vir de outro lado qualquer. E
quem melhor do que o seu filho de oito anos,
completamente inocente? Usou o seu próprio filho.
Afinal de contas, sabia como ele podia ser
convincente. Já tinha mentido por si, outras vezes.
MF: [dá mostras de ficar descontrolada]
VE: Ensinou-lhe o que devia dizer, que história contar…
Falou-lhe do dragão vermelho…
MF: [olhando para os inspetores, à vez]
Dragão? Mas que dragão?
VE: Instruiu-o para dizer que o Morgan estava “a magoá-
la”, que tinha o vestido todo para cima, que estava
“molenga” e “sonolenta”… Plantou essas ideias na
cabeça do seu filho, fê-lo ver mentalmente essas
imagens …
MF: [já extremamente perturbada]
Não… eu nunca lhe disse nada dessas coisas… Eu fui
violada… Ele violou-me!
NK: Já chega, Inspetora.

***
Os advogados de Morgan já estão de pé; reúnem, agora, os
papéis, verificam discretamente os telemóveis.
– Entendeu tudo, Mr. Morgan? – pergunta Somer, prendendo-lhe
a atenção. – Vamos precisar de falar com o MP, mas duvido que
eles intentem qualquer outra ação contra si. Mas, se tal acontecer,
será informado através de um aviso formal.
– Não se preocupe, Caleb – diz Melia. – Nós vamos mantendo-o
informado.
– Mas, atenção, isto não é nenhum cartão você-está-livre-da-
prisão – prossegue Somer, olhando-o fixamente. – É grave. E terá
consequências. Compreende isto?

***

Na sala ao lado, Gislingham volta-se para a procuradora do MP:


– O que é que acha? Que devemos entrevistar o Tobin de novo?
Ver se conseguimos levá-lo a admitir que a mãe lhe disse o que ele
deveria dizer?
A advogada suspira:
– Duvido que isso valha o esforço. Nenhum júri vai acreditar
nesta criança, agora. – Começa a reunir a papelada e guarda o
bloco de notas na pasta. – E as evidências físicas estão espalhadas
por todo o lado. Todo este caso é um verdadeiro atoleiro.
Glow olha-a de relance e ergue as sobrancelhas. Concorda,
claramente.
– Deixem-na suar um bocado – diz a advogada. – E depois
libertem-na.
Gis estranha:
– Ele leva com uma advertência e fica com cadastro criminal, e
ela vai alegremente à vida dela?
– Ele admitiu o que fez. Ela continua a negar, e nós não
conseguimos provar. É tudo circunstancial.
– Podemos contactar outros alunos dela. Dizer que, sei lá,
estamos a investigar alegações de assédios sexuais e pedir que
alguém que tenha informações nos contacte?
Ela concorda:
– Não tenho problema nenhum que vocês façam isso. Se servir
para a imprensa deixar de vos morder os calcanhares, por exemplo,
já é bom. Mas, enquanto alguém não se chegar à frente com um
caso que seja efetivamente sustentável em tribunal, temo que não
haja solução.
– Quer dizer que ela se safa, e pronto.
A advogada olha-o com expressão severa.
– Acha que arrastar o nome dela na lama e destruir-lhe a carreira
é “safar-se”?
Gislingham reconsidera:
– Bom, se colocarmos as coisas dessa maneira…

***

Dave King carrega na pausa da imagem que lhe surge no tablet


e volta-se para Ruth Gallagher:
– É suficiente, certo? – diz ele. – Para o prender?
Ela franze a testa.
– Passa de novo.
Ela já viu as imagens de CCTV três vezes e tem consciência de
que raramente se deparou com evidências tão irrefutáveis. Mas nem
são as imagens que a chocam. É a expressão no rosto do homem
que lhas está a mostrar. Nestes últimos dias, ela tem notado um
zelo, quase um fanatismo, em King que a tem deixado deveras
desconfortável. Nenhum agente de polícia devia sentir-se tão
eufórico por destruir a vida de um dos seus, seja o que for que ele
possa ter feito.
King volta a passar as imagens. Ela apercebe-se de quão
esforçado ele está para conter a impaciência. Tem uma veia
pequenina a pulsar-lhe na lateral do pescoço.
A câmara é de um dos blocos de apartamentos na esquina da
William Lucy Way, apanhando a Walton Well Road completamente
de frente. A ponte fica mais à esquerda e fora do ângulo de visão,
mas é possível ver tudo e todos a dirigirem-se para ela. Incluindo o
automóvel que passa por lá, acelerado, à 01h09 de terça-feira, 10
de julho, quinze minutos antes de uma equipa da Network Rail ver
um corpo a cair na linha que segue para norte.
– Aquele troço de estrada não tem saída – diz King, como se
Gallagher não soubesse já. – E com tantos carros estacionados é
demasiado estreito para uma inversão de marcha. Ele teve de
descer até ao parque de estacionamento de Port Meadow para dar a
volta. – Semicerra os olhos. – Foi pena o imbecil que lá colocou a
câmara não a ter posto de maneira a conseguirmos ver a porra da
matrícula.
No ecrã, a mesma estrada surge agora deserta. Ninguém a
passar a pé, nenhum automóvel. Nenhum sinal de vida até à 01h31,
quando o mesmo carro reaparece, seguindo agora na direção
contrária, no sentido da cidade. Gallagher engole em seco. Ela sabe
o que aquele homem acabou de fazer. E o que trazia na mala.
King para a imagem. É impossível ver quem está a conduzir, mas
o carro em si é perfeitamente visível.
Um Ford Mondeo azul-escuro.

***

O dia ainda está sufocante, mas o céu cobriu-se de nuvens. O ar


está pesado com a trovoada iminente, e, não obstante os tetos altos
e as longas janelas, a sala na Luke Street está sombria, opressiva.
No sofá, Marina abraça no colo o filho soluçante, qual Virgem com o
Menino.
– Não é justo – soluça o rapaz. – Eles dizem que eu menti, mas
não menti!
– Eu sei que não, querido – murmura-lhe ela, embalando-o nos
braços. – Eu sei que não mentiste.
– Eu vi-o, mamã! Eu vi-o! Eu vi-o!
– Eu sei, meu amor, eu sei…
Os soluços transformam-se em gaguejos. Senta-se e olha para
ela.
– Então… porque… é que…
Ela acaricia-lhe o cabelo, os olhos enchendo-se de lágrimas.
– É que… muitas vezes não é justo e ficamos de coração partido,
mas as pessoas não acreditam em nós. Mesmo que estejamos a
dizer a verdade.

***

– E, então, tenciona acusá-lo? – quer saber Harrison.


Está sem casaco e com as mangas da camisa arregaçadas. Será
seguro dizer que sente o calor, seja lá qual for o prisma por que se
olhe.
– Sim, Superintendente – responde-lhe Gallagher. – Primeiro,
ainda vamos ter de o confrontar com os novos indícios, em
interrogatório, mas o MP está confiante de que o caso contra o
Inspetor-Chefe Fawley está agora bastante consistente.
– Creio que temos de agradecer ao Inspetor King.
Ela franze ligeiramente a testa; mesmo que isso seja verdade,
King não tinha nada que ir falar com Harrison nas costas dela.
– Por acaso, se me permite, foi o Inspetor Asante que descobriu
as imagens. Ele conhece bem a zona à volta da ponte e achou que
era muito provável que alguns dos residentes tivessem o seu próprio
sistema de segurança instalado. E tinha razão.
Harrison ergue os olhos para ela.
– Ai sim? O Asante a mexer o traseiro e a ter alguma
iniciativa?… Muito bem.
– Sim, mas duvido que ele esteja satisfeito com os resultados.
Ele achava que seria o carro do Cleland a aparecer nas imagens.
– Pois… Trocaram-lhe as voltas.
– Mas eu falo com ele. E tratarei de lhe transmitir os seus
comentários.
– Sim, sim, faça isso. – Recosta-se e parece pensativo: –
Entretanto…
– Entretanto, o Adam Fawley será acusado ainda esta tarde. O
gabinete de imprensa prefere claramente que não o façamos antes
disso e também que ele não se apresente ao magistrado antes de
amanhã de manhã. É conveniente dar-lhes o mais tempo possível
para se prepararem para as manifestações que se avizinham.
– Pois, imagino que não estejam propriamente eufóricos com a
ideia.
Gallagher faz uma careta.
– Não podem dizer que não sabiam que haveria uma forte
possibilidade de isto acontecer.
Ele concorda, com um olhar de quem a entende bem:
– Acredite, Ruth, que nunca se está suficientemente preparado
para uma merda destas.
Por cima das suas cabeças, ouve-se o ribombar dos trovões. O
simbolismo é doloroso.
Harrison recosta-se.
– Como se não bastasse termos um dos nossos envolvido num
caso de violação e homicídio, aparece agora este novo problema…
– Sim, o timing não foi dos melhores. Mas, se o senhor concordar
com a forma como lhe propus tratar disto…
– Sim, sim – diz ele em tom cortante. – O que quer que seja,
desde que ninguém me venha chagar a cabeça. Ah, e que não saia
na porra da primeira página do Oxford Mail.

***

Gislingham aclara a garganta:


– Então, percebeu que, ao aceitar esta advertência, está a
admitir que tentou perturbar o exercício da justiça?
Morgan assente.
– E que essa informação pode vir a ser revelada como parte da
verificação e atualização do registo criminal e pode afetar as
possibilidades de viajar para determinadas jurisdições?
Outro assentir. Dá mostras de começar a ficar impaciente.
– E concorda que recebeu o apoio legal adequado e entende as
plenas implicações de…
– Sim, sim – diz ele, irritado. – Vamos lá acabar com isto, OK?
O Sargento Woods troca um olhar irónico com Gislingham e
estende a Morgan o formulário.
– Assine aqui, por favor.

***

O ambiente na sala do DIC mudou tanto quanto o tempo. Depois


do pico de adrenalina da última hora, agora todos parecem estar a
passar pelo período de abstinência. À exceção de Quinn, claro, que
não está presente. Talvez ande a deambular pelos corredores,
pensa Ev, esperando esbarrar acidentalmente com Harrison e
conseguir relaxar com o calor do seu apreço. Ainda que tenha de
admitir que, desta vez, Quinn merece a sua pancadinha nas costas.
A sua intuição a respeito de Tobin foi o que de facto contribuiu para
este resultado. Mas, quando estiverem a distribuir os aplausos, ela
espera que Gis também receba a sua quota-parte; ele tem lidado
excecionalmente bem com o verdadeiro campo minado que é este
caso, e sempre isento dos benefícios de inspetor-chefe.
Daí que, quando ergue o olhar e se depara com o colega à porta,
fica abalada por alguns segundos. Porque ele está de testa franzida.
Mesmo franzida, como ele raramente faz.
– Eu acho que aquilo correu muito bem – começa ela, calando-
se mal o vê abanar a cabeça.
– Não se trata disso… É a Gallagher. Quer falar contigo. Agora.
Mas não é para Ev que ele está a olhar. É para Somer.

***

– Ah, Inspetora Somer… entre, entre. E feche a porta, por favor.


Gallagher recosta-se na cadeira. É difícil ler-lhe a expressão.
Tem fama de apoiar as agentes juniores, como Ev e Somer bem
sabem, mas neste momento tem uma linha implacável entre as
sobrancelhas. Uma linha que diz desconforto, tanto quanto
desagrado.
– O Sargento-Inspetor King disse-me que você lhe atirou café à
cara. Café a ferver. Mas que raio lhe passou pela cabeça? Sabe que
ele tem todo o direito de a processar por ofensas à integridade
física? Tem noção disso, calculo?
– Sim, senhora Inspetora – diz Somer, os olhos cravados no
chão, o corpo rígido.
Gallagher estranha:
– Inspetora Somer… Erica… eu conheço-a. Ou pelo menos
achava que sim. É astuta e ponderada, o total oposto de impulsiva.
Imagino facilmente o seu colega Quinn a atirar um cappuccino a
alguém num acesso de raiva, mas você?
Somer morde o lábio. Sente lágrimas a arderem-lhe no fundo da
garganta, mas não vai chorar… não vai chorar…
Gallagher não tira os olhos dela.
– Ajude-me lá aqui, sim? Porque eu não entendo mesmo.
Somer respira fundo:
– O Sargento-Inspetor King fez um comentário ofensivo. E eu…
reagi.
A ruga entre as sobrancelhas de Gallagher acentua-se.
– Um comentário sobre si?
Somer abana a cabeça:
– Não. Sobre o meu namorado. De quando eles trabalharam
juntos.
Gallagher é nitidamente apanhada de surpresa.
– Eles trabalharam juntos? Quando?
Somer sente as faces quentes, um fio de transpiração desce-lhe
pelas costas.
– Não sei dizer.
Gallagher fica confusa.
– Mas certamente que terá confirmado com o… Giles, é esse o
nome, certo? O que é que ele diz?
As bochechas de Somer estão agora escaldantes.
– Não falei sobre isso com ele.
Gallagher suspira. Há aqui mais qualquer coisa que ela não
entende, mas não se sente confortável a pressionar a agente.
– Bom, que eu tenha conhecimento, o Sargento-Inspetor King
nunca trabalhou na ou com a Polícia de Hants. Seja como for, há de
haver algum mal-entendido no meio de tudo isto, porque ele disse-
me que estavam a discutir o caso Emma Smith na altura e…
Cala-se. Somer levou subitamente uma mão à boca, engolindo
em seco, como que fazendo um esforço para não vomitar.
– Eu creio, senhora Superintendente, que… – diz ela, baixinho –
que… devo ter percebido mal. O que o Inspetor King disse… acho
que ele devia estar a referir-se ao Inspetor-Chefe Fawley…
– O Inspetor-Chefe Fawley? Mas porquê? Ele não é seu
namorado… – Gallagher cala-se, conta até dez e inspira
profundamente. – A não ser que me esteja a querer dizer que se
passa alguma coisa entre vocês dois?
Somer abana vigorosamente a cabeça e olha-a nos olhos.
– Não. Não se passa nem nunca se passou. Mas há uns meses
houve rumores… algumas pessoas pensaram que… – Faz um gesto
triste, desesperado. – Ele apoiou-me muito… trouxe-me para o
DIC… Por isso, eles pensam que nós… Entende?…
Gallagher assente lentamente. Ela entende, sim, e de que
maneira. Não acerca desta situação específica, mas o quão comum
“isto” ainda é. Como continua a acontecer tão frequentemente. O
assumir de ânimo leve – até mesmo por pessoas que não se têm
como sexistas – que uma mulher atraente e ambiciosa deve andar a
usar a primeira para conseguir a segunda. Ela própria enfrentou isso
muitas vezes ao longo da sua carreira, mas esperava que atitudes
jurássicas como esta estivessem finalmente em vias de extinção.
– O que é que o Inspetor King lhe disse exatamente?
Somer volta a encará-la, se bem que apenas por um segundo.
– Ele… disse que presumia que eu tinha acabado a relação e
que estava muito melhor sem ele. Que, mesmo sendo ele inspetor-
chefe, não passava de um sacana.
Gallagher suspira. Escusado será dizer que a versão de King foi
completamente diferente, se bem que, a julgar pela ânsia com que
ele quer destruir Fawley, ela desconfia que a versão de Somer é
certamente a mais próxima da verdade. Mas, mesmo assim, nada
justifica aquilo que Somer fez.
– OK – diz-lhe –, o que vai acontecer é o seguinte: eu já falei
com o Sargento-Inspetor King e ele não está disposto a resolver isto
informalmente, o que é lamentável. A não ser que ele venha a
reconsiderar, vai ter de ser instigado formalmente um inquérito por
conduta dolosa.
Somer baixa a cabeça, assentindo.
– Mesmo que eu quisesse, não posso fazer nada contra isso. E,
seja como for, o Superintendente Harrison já tomou a decisão de
encaminhar o caso para as Normas Profissionais. Posto isto, aquilo
que você terá de fazer é falar o mais rapidamente possível com um
representante da Federação da Polícia. Ainda hoje, de preferência.
Conte-lhe exatamente o que aconteceu. Tudo, tintim por tintim, as
palavras exatas que ele disse, as suposições que ele fez, a história
toda. Compreende o que lhe estou a dizer?
Somer assente de novo.
– Eu não tenciono recomendar a sua suspensão…
Somer aflige-se. Mas, realmente, já devia ter pensado que isso
seria uma possibilidade.
– … mas vou sugerir a sua transferência temporária para outras
tarefas. Mas agora, neste minuto, quero que vá para casa e contacte
o seu representante. Caramba, rapariga, você parece
completamente exausta.
Somer não diz nada. Há algo na sua conduta – uma espécie de
dramatismo – que faz Gallagher perguntar subitamente se…
– Você está bem, Erica? Há alguma coisa que eu deva saber?
Algo que possa afetar este caso?
Somer abana a cabeça.
– Não, senhora Inspetora – diz ela. – Não se passa
rigorosamente nada.

***

É justo dizer que este tem sido um dia de verdadeira pasmaceira


noticiosa para Richard Yates, no Oxford Mail. Há tantas maneiras de
se dizer “Fogo, que caloraça”, sem dizer realmente “Fogo, que
caloraça”… E com as habituais tretas da silly season, as colheitas
neste momento estão particularmente secas. Folheia
desinteressadamente a última remessa de press releases, mas nada
o anima; uma nova temporada de Endeavour já não pode ser
considerada notícia nos dias de hoje e, quanto à vinda de Martin
Scorsese a Oxford para receber um título honorário, a verdade é
que ele já conseguiu duas parangonas à conta disso ‒ e a sua
sugestão para uma vox pop em plena fila da praça de táxis até
correu bem (“Já chega de referências ao Taxi Driver, Ed”, como o
editor dele teve enorme gáudio em rabiscar no PDA de Yates).
Com um suspiro entediado, recosta-se na cadeira e balança-se
para trás e para a frente. O telemóvel toca, mas ele nem se precipita
a atender. Da maneira como o dia lhe está a correr, o mais certo é
ser a mãe.
– Dick, velho amigo, como é que tu estás?
Só há uma pessoa que o trata assim. Irrita-o supinamente, mas
tem de morder a língua devido à importância que este tipo tem para
ele.
– Tens alguma coisa para mim?
– Mas é off the record, OK? Mesmo off. Porque, se se descobrir
que soubeste isto por mim, é a minha cabeça no cepo.
Yates endireita-se, a antena-de-furo-jornalístico em alerta total.
– Sim, sim – diz, no tom mais casual que consegue. – Alguma
vez te deixei ficar mal?
Ouve-se um suspiro do lado de lá.
– Não, mas precisava de to dizer na mesma.
Yates puxa o bloco de notas para si.
– Então, vá, o que é que tens para mim?
– Caso Emma Smith. Temos uma acusação.
– Aquele tipo de quarenta e seis anos que prenderam?
– Esse mesmo. Não vamos fazer nenhum anúncio, mas o gajo
apresenta-se ao juiz amanhã, logo de manhã cedo. Por isso, vê se
estás lá, OK? E leva a porra de um fotógrafo contigo.
Yates está a anotar tudo furiosamente.
– E têm a certeza de que caçaram mesmo o homem certo?
O orgulho do lado de lá é tangível.
– Oh, sim, é mesmo o nosso homem, pá. Mas não tem que ver
com isso; antes, com quem ele é. A sério, companheiro, esta merda
vai dar primeiras páginas na porra do mundo inteiro.
Yates agarra o telemóvel com mais força.
– Vais dizer-me de quem se trata ou vais continuar nesse
suspense da treta?
– Se eu te disser, não te antecipas? Sabes que tens sempre de
esperar que o tribunal publique a listagem de casos, certo? E olha
que a segurança deste está mais apertada que o cu de um pato.
– Sim, sim…
Ele ri-se.
– Digamos que já te vi a fazer coisas piores do que pesquisar
sobre a vida e a carreira de um tal Adam John Fawley.
Yates franze a testa; ele conhece esse nome. Todos os
jornalistas desta cidade conhecem esse nome.
– Ei, ei, ei… aguenta aí. Estás a querer dizer que…
– Podes crer, meu amigo. É exatamente isso que eu estou a
querer dizer. O sacana que violou e matou a Emma Smith foi nada
mais nada menos que o Inspetor-Chefe Adam Fawley.

***

– Eu queria Cheerios! – queixa-se Ben, em frente ao armário


aberto da despensa. Acabou de vir de um longo passeio de bicicleta,
suado, cheio de pó e doido por uns carboidratos de pacote. – Mas já
não há.
Em frente ao lava-loiças, Nell Heneghan olha-o de relance.
– De certeza que há, querido. Ainda há dois dias comprei dois ou
três pacotes.
Mas Ben insiste:
– Já não há – diz, em tom sofredor –, porque a tia Alex come-os
todos. É suposto serem para mim.
Nell sorri.
– Eu não te disse já que, por vezes, as senhoras grávidas têm
desejos estranhos? Comigo, quando estavas na minha barriga, só
me apetecia cebolinhas de conserva. E desde então nunca mais
consegui comer uma que seja. – Faz uma careta. – Só o cheiro…
Mas a tia Alex, neste momento, anda doida por Cheerios. Não faças
disso um drama, de certeza que ainda há um pacote guardado por
aí algures.
– Não – diz Ben, já em tom amuado. – Não há.
Nell começa a sentir-se irritada.
– Pra variar, de certeza que não procuraste bem.
Igual ao pai e igual ao pai dela. É mesmo uma cena de gajos.
Ben continua amuado e sem se mexer, levando-a a largar o
descascador estrondosamente no lava-loiças e a dirigir-se à
despensa. Mas três frustrantes minutos depois, tem de reconhecer a
derrota.
– Não podes comer outra coisa? Uma torrada… com Nutella?
Mas o filho resmunga, emburrado:
– Então, e para amanhã? E o pequeno-almoço?
Nell vê as horas. Se sair agora, ainda volta a tempo de preparar
o jantar, para, depois, ir buscar o Nicky ao judo. E o Gerry também
está a chegar ‒ mais meia hora, se tanto.
– OK, eu dou um salto à Tesco e trago. Podes ficar atento à tia
Alex até eu voltar?
Ele encolhe os ombros.
– Não posso. Ela agora tem sempre a porta fechada.
– Ai, querido, não sejas tão literal. Sabes o que quero dizer. Vou
lá dizer-lhe que vou sair por quinze minutos. Entretanto – aponta –,
a torradeira está ali, se estiveres a morrrreeer de fome.
Afaga-lhe o cabelo, recebe um abraço amuado e vai lá acima.

Nell hesita quando chega à porta; não se ouve nada no quarto de


hóspedes. Porque o que o Ben disse reacendeu-lhe as suas
próprias preocupações. Alex tem mesmo andado estranha desde
ontem à noite. Ao jantar, praticamente não comeu, sempre com o
tablet atrás dela, o que buliu com os nervos de Gerry, porque ele
simplesmente não permite telemóveis nem tablets à mesa. E, esta
manhã, nem sequer desceu para o pequeno-almoço. Ela levou-lhe
por duas vezes uma chávena de chá lá acima, mas Alex gritou-lhe
que estava tudo bem e que já descia. Nell sabe que a irmã é uma
pessoa reservada – que morre de vergonha de sequer pensar em
ocupar demasiado espaço ou sentir-se um estorvo –, mas isto já
roça o ridículo.
– Alex? – chama-a, batendo à porta com mais firmeza. – Vou dar
um salto à rua. Precisas de alguma coisa?
Silêncio.
O coração de Nell acelera – privacidade é uma coisa, mas a irmã
está grávida, muito grávida…
Hesita, bate uma segunda vez e, de seguida, leva a mão à
maçaneta e abre a porta.

***

O pub está repleto. Pode ser segunda-feira, mas está um calor


incrível e a rapaziada está de férias. O sítio está frenético e
apinhado, já que as primeiras gotas grossas de chuva a baterem no
toldo mandaram as pessoas de volta para a escuridão lá de dentro –
onde as bebidas de cores primárias, com palhinhas e chapelinhos,
parecem agora ridícula e encantadoramente fora de contexto.
Apesar da chuva, a porta está escancarada, permitindo a entrada
de ar fresco vindo da Banbury Road. E, em plena soleira da porta,
está uma mulher vagamente loira, não apenas a querer manter-se
seca, mas descaradamente a perscrutar a multidão. Tem a luz por
detrás de si e a sala está escura, por isso ainda levará alguns
segundos até os vossos olhos se ajustarem. Mas em breve vão
reconhecê-la.
Finalmente, entra, movendo-se pelo meio da multidão em direção
a uma mesa junto às traseiras do pub. Já lá estão duas pessoas
sentadas, um homem e uma mulher jovens, falando baixinho, as
cabeças e os corpos muito juntos. Ele tem uma t-shirt branca e uma
tatuagem no antebraço esquerdo até ao ombro, uma imagem meio
enviesada que parece um falcão, um desenho comum que vocês já
viram várias vezes. Quanto à rapariga, tem cabelo ruivo-claro
apanhado num rabo de cavalo curtinho…
Sobre a mesa, uma garrafa de vinho e três copos. Quando o
casal ergue o olhar, conseguem ver-lhes a expectativa no rosto.
A miúda loira larga a mala e senta-se.
– Está feito – diz, as palavras saindo-lhe num ímpeto, numa
lufada de excitação. – Acabou de ligar da esquadra. Fizeram-lhe
apenas uma advertência, e ele acha que eu também vou receber
uma, mas só isso… nada mais. Acabou-se. Serve-me um copo,
Sebastian, porra… olha que eu bem preciso.
O casal olha um para o outro: o triunfo nos olhos dela; o alívio,
nos dele.
– És a maior, Freya – diz a rapariga, erguendo o copo. – Ficamos
mesmo a dever-te uma.
– É ao Caleb que devem agradecer, não a mim.
– Graças a Deus que lhe fizeram apenas um aviso. Quero dizer,
depois de o prenderem e isso tudo…
Freya concorda:
– Eu sei… Fiquei mesmo passada, na altura. Achei que a história
ia dar em merda e da grossa.
– E tens a certeza de que os chuis não desconfiaram de nada? –
pergunta o jovem, por fim. – Porque, se eles vierem a saber que o
Caleb e eu nos conhecemos do râguebi, chegam lá num instante
e…
Zoe faz-lhe uma carranca:
– Ai, por amor da santa, para lá de seres tão menina, Seb. Mas
porque é que estás a pensar numa coisa dessas? Lembra-te que
limpámos os nossos telemóveis a fundo, não vão descobrir nada,
mesmo que procurem. O que não vai acontecer.
Ele abre muito os olhos e levanta as mãos.
– OK, OK, desculpa. É que… sinto-me um bocado mal no meio
de tudo isto. Quero dizer, a Marina foi uma cabra com aquela
invenção de tu te fazeres ao filho dela, mas foi só por causa daquela
foto… porque ficou cheia de medo. E, quanto ao sexo, enfim, vocês
sabem o quanto eu desejei que nunca tivesse acontecido, mas
aconteceu. Ela nunca me forçou a nada, estava só… chateada…
– Pois, mas forçou o Caleb – diz Freya rapidamente, olhando-o
firme. – Lembras-te?
Mantém os olhos flamejantes nos dele. Segundos depois, ele
baixa o olhar.
– Só continuo sem perceber porque é que precisaram de me
arrastar para isto…
– Porque de outra forma ninguém ia acreditar em nós – insiste
ela. – Seria sempre a palavra dela contra a do Caleb. Teve de
aparecer outra vítima para eles nos levarem a sério. Sobretudo,
depois de ela ter posto o sacana do puto a mentir por ela.
Zoe abana a cabeça:
– Meu Deus, Freya, eu… lamento tanto. Nunca pensei que ela se
atrevesse a fazer o mesmo outra vez.
– E nós concordámos, é bom que te lembres – diz Freya, sem
nunca deixar de olhar para Seb –, naquela noite, depois de
acontecer? Concordámos os quatro: tu, eu, a Zo, o Caleb. Tínhamos
de fazer alguma coisa, lembras-te? Uma vez já era mau, mas duas?
Não se pode fazer isso, não se pode andar a comer os namorados
das outras e esperar que nada aconteça. Ela tinha de ser parada.
Zoe estende a mão para o braço de Sebastian.
– Ela foi uma filha da puta com a cena daquele acordo, baby.
Praticamente, expulsou-nos de Oxford. Como é que a podíamos
deixar safar-se disso?
– E se fosse ao contrário? – diz Freya, rapidamente. – Já
pensaste? Se tivesse sido com a Zo e um professor, o que é que tu
dirias? Achavas bem?
Sebastian continua a olhar para o vinho.
– Porque não há porra de diferença nenhuma – insiste ela. – Ela
está numa posição de poder, e isso significa que o que ela fez foi
abuso. Abusou do Caleb e abusou de ti, quer aches que ela te
“forçou” ou não. A única pessoa que errou aqui foi ela, e vai
finalmente ter o que merece.
Ergue o copo, e a outra rapariga faz o mesmo. Por fim, após um
momento, Sebastian imita-as.
– À vingança – diz Zoe.
– À justiça – diz Freya.
***

É natural que Alex não tenha respondido quando a irmã bateu à


porta. Está sentada na cama, de pernas cruzadas, em pijama, fones
nos ouvidos, a olhar fixamente o laptop e a tomar notas num bloco
de apontamentos de advogado. Está despenteada e claramente não
tomou banho.
– Alex! – grita Nell. – Por amor de Deus, tu não estás a trabalhar,
espero? És doida? Depois de tudo o que a médica te disse?
Alex olha para ela. Está de faces coradas, mas não parece mal –
está excitada, elétrica.
– Nell – diz, tirando apenas um fone. – Desculpa, não te ouvi.
A irmã avança um passo, a expressão grave.
– O que é que estás a fazer? – Aponta para o laptop, o bloco de
notas. – Tu estás de baixa, nem devias sequer pensar nesses
assuntos, quanto mais…
Alex interrompe-a:
– Eu estou ótima, Nell, a sério. E não é trabalho, palavra que
não.
Nell estranha:
– Mas tu devias ir com calma… descansar. Lembras-te do que
disse a médica?
Alex sorri, conciliadora:
– Eu sei. E estou bem, a sério. – Já tem a mão em riste para
colocar de novo o fone no ouvido.
Nell suspira:
– OK… – Sabe melhor do que ninguém que não vale a pena
discutir com a irmã quando ela está neste modo. Pelo menos, já lhe
vê alguma cor nas bochechas. – Vou dar um saltinho à Tesco, mas
só demoro meia hora. O Ben está lá em baixo, se precisares de
alguma coisa. E o Gerry está a chegar.
Alex, contudo, já voltou ao seu programa.
Nell fica ali por mais uns segundos, mas a irmã nem parece notar
a sua presença. Parou o áudio e está a apontar qualquer coisa e a
sublinhar.
Nell sai e fecha a porta devagar atrás de si.

***

9 de julho, 2018, 21h25


Shrivenham Close, 62, Headington, Oxford

Não obstante o calor, ela tem as portas e janelas fechadas. Isso,


porém, não a faz sentir segura, mas ainda mais paranoica. Agora,
tem medo a toda a hora. Em casa, na rua, sozinha, com outras
pessoas. A toda a hora.
Não admira que Amanda a tenha deixado – deve ter sido como
namorar um agente duplo. Se elas se conhecessem melhor, talvez
lhe tivesse contado, mas teve muito medo da sua reação, do seu
olhar, do que ela lhe diria – aquilo que qualquer pessoa diria se
soubesse. Os seus amigos, os pais, a Beth, no trabalho. Iriam
querer ser compreensivos, iriam querer acreditar – claro que sim –,
mas, quanto mais ela contasse, mais dúvidas eles teriam. Mais ela
lhes veria a dúvida nos olhares. Porque, sim, já lhe tinha acontecido
uma coisa destas antes. E ela enganou-se. E o tipo que ela acusou
levou com muita merda que não merecia. Desta vez, ela também
não pode ter cem por cento de certezas. Nunca lhe viu a cara,
nunca o viu, na verdade, pelo menos decentemente. Apenas uma
impressão, uma silhueta, um movimento rápido, sempre fora de
vista, sempre fora de alcance. Tudo não passa de sombras e
vislumbres e más vibrações. Exatamente como da última vez.
Só que agora é diferente. Porque agora é verdade.
Se ao menos ela conseguisse acreditar que era o Hugh
Cleland… Pelo menos, isso seria lógico, algo que ela conseguiria
explicar. Mas ela sabe que não se pode iludir. Este homem – seja
ele quem for – é mais magro, mais pequeno, mais ligeiro. E, seja
como for, tem andado a persegui-la há semanas. Muito antes da
cena com os Cleland.
O toque da campainha fá-la saltar – literalmente. Leva a mão ao
peito por um momento, sentindo as batidas de encontro ao osso.
Por amor de Deus, recompõe-te. Vai ver quem é, não? Não precisas
de abrir a porta, a não ser que queiras. A não ser que conheças a
pessoa.
Respira fundo e vai até ao corredor, obrigando-se a caminhar
firme e direita, a controlar-se. Rodeia o olho mágico da porta com a
mão e espreita. E, então, endireita-se e sorri ‒ um leve sorriso do
tipo lá-estás-tu-com-os-teus-exageros.
Retira a corrente e abre a porta.

***

Afinal, foram quarenta e cinco minutos. Enquanto Nell ainda


estava na loja, a tempestade desabou tipo cataratas do Niagara, e
as ruas ressequidas do verão ficaram inundadas. Mesmo a trinta à
hora, ela praticamente não vê por onde vai – os limpa-para-brisas
não têm velocidade suficiente contra uma carga de água destas e o
carro fica todo embaciado por dentro. O esforço de conduzir em
linha reta faz-lhe doer os olhos. Quando finalmente entra na sua rua,
vê uma mancha de luzes azuis e vermelhas mais acima. Mais
acima, onde eles vivem. Estranha. Não sejas estúpida, diz a si
mesma, em tom severo. Não é lá em casa, claro que não é lá em
casa…
Mas é. A ambulância está à porta de casa deles; é a porta de
casa deles que está aberta.
Sente uma barra de ferro dentro do peito – que não seja nenhum
dos rapazes… por favor, não deixes que seja um deles…
Acelera, perde o controlo por uns segundos, derrapa e o carro
embate nas traseiras de outro, ali estacionado.
Merda.
Merda merda merda.
Para o carro e abre a porta, completamente em pânico. Dois
paramédicos, um homem e uma mulher, carregam uma maca pelo
caminho de acesso à rua.
Que não seja nenhum dos rapazes. Nem o Gerry…
A Alex.
Corre pelo passeio, salpicando água para todos os lados, já
completamente encharcada, a chuva a escorrer-lhe pela cara
abaixo.
Os paramédicos estão agora a levantar a maca para as traseiras
da ambulância, manuseando-a cuidadosamente na posição certa. O
rosto de Alex está branco; os olhos estão fechados e tem uma
máscara de oxigénio colocada sobre a boca e o nariz.
A mulher volta-se para ela:
– É a irmã da senhora? Ela perguntou por si.
– O que é que aconteceu? – pergunta Nell, num arquejo. – Ela
está bem?
– Rebentaram-lhe as águas. Parece que aconteceu muito
repentinamente. O seu filho ligou-nos. E ainda bem que o fez.
Demasiada responsabilidade para um miúdo tão novo, ainda assim.
O franzir da testa dela diz tudo. Nell engole em seco. Oh, meu
Deus, a culpa é toda minha! Que tipo de mãe deixa uma mulher em
avançado estado de gravidez com uma criança de onze anos?
– O meu marido vinha a caminho. Ainda não chegou?
Ela encolhe os ombros.
– Ficou retido no trânsito, segundo o que disse o seu filho.
O outro paramédico desce e faz um sinal à colega. Nell
aproxima-se da maca, antes que as portas se fechem.
– Alex? Sou eu… Vai tudo correr bem, querida, OK? Eu sigo já
atrás de ti.
Alex abre os olhos e tenta sentar-se, estendendo duas mãos
desesperadas, tentando dizer alguma coisa, mas a paramédica já
está a fechar as portas.
– Temos de ir – diz ao colega. – Preocupa-me o batimento
cardíaco, o bebé pode estar em sofrimento. – E voltando-se para
Nell: – Ela pediu que avisasse o marido.
– Sim, sim – diz Nell, enquanto os paramédicos rodeiam a
ambulância e entram na cabina. – Digam-lhe que não se preocupe,
eu aviso-o.
Quando a ambulância arranca, ela dá um passo atrás, fechando
os olhos com força para reter as lágrimas. Este bebé, este tão
aguardado bebé, está prestes a nascer, e a sua irmã está a caminho
do hospital completamente sozinha. Não era suposto acontecer
assim.

***

9 de julho, 2018, 21h26

Ele sorri-lhe. Ela não se interessa por homens, mas percebe por
que razão outras mulheres podem achá-lo interessante. O cabelo
escuro, os olhos da cor de avelã. Dá por ela a pensar –
irrelevantemente – que ele deve ficar lindamente de fato. Não está
nada mal, assim, em velhos trajes de corrida e sapatilhas.
– Olá – diz-lhe ele.

***

Ben está à porta de casa, branco que nem um fantasma, a ver a


ambulância afastar-se.
– Ela… vai ficar bem? – pergunta, num fio de voz.
Nell aproxima-se dele e abraça-o, fingindo uma confiança que
claramente não tem.
– Claro que sim, querido. E, pelos vistos, tenho um filho herói… a
chamar a ambulância mesmo a tempo. És lindo.
Os lábios do rapaz tremem-lhe ligeiramente:
– Ela pediu-me que chamasse o 112. Eu só fiz isso, mais nada.
Ela afaga-lhe o braço.
– Fizeste tudo! E ela vai-te ficar super grata, vais ver.
Ben olha para a mãe com ar triste.
– Foi horrível, mãe. Ela estava com uma respiração bué
esquisita… E devia doer-lhe imenso, deu pra ver. E a cama estava
toda molhada…
Ela puxa-o para si e volta a abraçá-lo, acariciando-lhe as costas.
– Está tudo bem, amorzinho – sussurra-lhe. – Sei que é
assustador quando nunca assistimos a isso, mas é sempre assim
que acontece quando um bebé está para nascer.
Ben está a esforçar-se para não chorar. Ela beija-lhe o cocuruto:
– Foste supercorajoso e eu estou muito orgulhosa de ti. E
desculpa eu não ter estado cá.
Ele funga e liberta-se do abraço.
– Tudo bem – diz, com um esboço de um sorriso nos lábios. – A
culpa foi minha, por causa dos Cheerios e…
Ela leva subitamente a mão à boca.
– Ai, meu Deus, deixei o carro ligado!
Olha para a rua – a porta do carro continua aberta, as luzes
ligadas, mas ninguém por perto. Gerry já vai ficar suficientemente
lixado com os estragos. E tinha mesmo de ser no SUV dos Wilder,
por amor da santa.
– Vou só ao carro buscar as compras…
Volta-se, mas sente o filho a puxá-la pela manga.
– A tia queria que tu ligasses a um senhor chamado Gislingham.
Ela escreveu o número dele.
– Não te preocupes, querido – diz, revirando a gola do casaco
para se proteger da chuva. – Ligo-lhe já, mas primeiro tenho de ir ao
carro.
– Não! – diz ele, surpreendentemente insistente. – Ela disse que
era urgente. É por causa de o tio Adam estar preso.
Nell estranha. Não era suposto os filhos saberem disso. Pelo
menos, para já. Não, enquanto não houver uma réstia de esperança
de que tudo não passe de um horrível mal-entendido.
– Por favor, ela fez-me prometer – suplica Ben. – Ela disse que
descobriu uma coisa. Uma coisa muito importante, mãe.
Ela olha-o fixamente.
– Do que é que estás a falar, filho? Descobriu… mas descobriu o
quê?
Ele encolhe os ombros e olha para o chão.
– Não sei. Ela disse que era demasiado complicado para
explicar. Mas tinha tudo anotado no bloco de notas dela e que tu
devias ler. E dizer a este senhor Gislingham. Ela disse que ele
saberia o que fazer.
Ela franze a testa.
– OK. Então, tu achas que é mesmo muito importante?
Ele fita-a com os seus olhos castanhos, sérios.
– Ya, acho mesmo que é.

***

9 de julho, 2018, 21h27

– Estou a fazer um peditório para a UNICEF – diz-lhe ele,


mostrando-lhe o cartão. – Chama-se “Ajude as Crianças da Síria”.
Por acaso, consideraria…
– Mas eu conheço-o, certo? – interrompe-o ela. – Costuma correr
no Shotover aos sábados de manhã…?
Ele hesita, até que parece reconhecê-la:
– Ah, claro, ajudou-me aí há uns quinze dias… naquela situação
do menino que caiu e se magoou e desatou aos berros…? Coitadito,
só Deus sabe onde estaria a mãe nesse momento…
Ela retribui com um largo sorriso.
– Pois, lembro-me, sim. E o senhor foi espetacular com ele.
Ele retribui com um largo sorriso:
– Tenho muita prática. Não com filhos meus – apressa-se a
acrescentar –, mas tomei muitas vezes conta dos filhos do meu
irmão, sabe… quando ele não pôde mesmo estar presente…
Agora, o rosto assumiu uma expressão séria, mas em segundos
volta a sorrir:
– E esta, hã? Que coincidência.
Ela estica a mão para o envelope que ele lhe estendeu.
– Aguarde um bocadinho, que eu vou só buscar a minha carteira.

***

Quando o telemóvel de Gislingham toca, ele está de frente para


a máquina de café, tentando decidir-se pela opção menos má. Mas
a necessidade fala mais alto, e não está propriamente um dia bom
para ir lá fora. Olha para o ecrã e estranha: não reconhece o
número.
– Estou? É o Inspetor-Coordenador Gislingham?
De início, não percebe o que a mulher está a dizer – fala muito
depressa e parece em pânico –, mas, quando consegue acalmá-la,
a primeira palavra que ele regista é um nome.
Adam.

***

9 de julho, 2018, 21h45

RAIVA
Raiva, medo e frustração pela sua idiotice, a sua completa e
total estupidez

Como é que ela pôde ter sido tão ingénua?

Não devia ter bebido aquele vinho

Não devia ter aberto a porta

Ele sabia que ela não o deixaria entrar – a não ser que o
reconhecesse, a não ser que lhe conhecesse a cara

Ele fê-la sentir que era inofensivo – fê-la pensar que era como
ela, alguém que adora correr, alguém que adora crianças

O envelope da UNICEF, o parque de Shotover, a charada com o


miúdo… tudo aquilo… foi deliberado
Ele não andou a correr naquele parque todas estas semanas por
acaso – fê-lo porque ela estava lá

Há quanto tempo andou ele a planear isto tudo?

Ela esforça-se de novo, tenta retirar a mordaça, aliviar os pulsos,


os tornozelos. O que quer com que a tenha atado é suave na pele,
mas com arame por dentro. Não dá de si.

Ela consegue ouvi-lo. Na casa de banho, no quarto. O correr de


cabides, o abrir e fechar de gavetas. A mexer nas coisas dela com
aquelas luvas de látex sinistras. Ainda há pouco esteve aqui, a rir
para si próprio

Leu-lhe o diário – riu da sua própria esperteza – e viu o quão


patética ela é, quão estúpida, quão assustada

Ela não faz ideia de quem é este homem, mas ele ganha-lhe a
dianteira, de longe, e logo desde o início
E agora…

Agora é demasiado tarde

***

– Inspetora-Chefe? Posso dar-lhe uma palavrinha?


Ruth Gallagher levanta a cabeça. É Gislingham, à porta dela. E
parece perturbado.
Ela faz-lhe sinal para entrar.
– O que é que se passa, Gis?
Aponta-lhe a cadeira, mas ele não se senta. Tem uma folha de
papel na mão.
– Preciso de fazer chegar uma mensagem ao Inspetor Fawley.
Soube que vocês o acusaram?…
Ela suspira:
– Sim, lamento, devia ter-lhe dito. Estamos na posse de novos
indícios: imagens de CCTV de Walton Well.
Ele estranha:
– Como assim, se a ponte não tem câmaras?
– Não tem. Mas existem algumas nos blocos de apartamentos da
William Lucy Way. Foi o Asante que as descobriu e…
Ele quase se engasga:
– O Asante? Têm indícios para acusar o Inspetor Fawley
fornecidos pelo Asante?
Ela parece algo embaraçada.
– Bom, sim… É uma situação algo desconfortável, não foi nada
aquilo que ele esperava…
Mas ele nem quer saber.
– Esqueça, não é por isso que aqui vim. Acabei de receber uma
chamada da Nell Heneghan, a cunhada do Inspetor Fawley. A
mulher entrou em trabalho de parto.
Gallagher parece preocupada:
– Mas… não é demasiado cedo?
Ele assente, igualmente apreensivo:
– Se é.
Ela endireita-se e pega no telemóvel.
– Sim?… Passe-me à extensão da Esquadra de Newbury, por
favor… Estou? Fala a Inspetora-Chefe Gallagher, Crimes Graves.
Gostaria que providenciassem um carro-patrulha para levar o
Inspetor-Chefe Fawley ao Radcliffe Hospital, em Oxford. Sim, o mais
depressa possível, por favor… Sim, para a maternidade. Digam-lhe
que a mulher entrou em trabalho de parto, mas, neste momento, não
sei dizer mais nada.
Pousa o auscultador.
– Obrigada, Inspetora-Chefe – diz Gislingham. Mas não faz
menção de sair.
– Mais alguma coisa?
– Alex… a Mrs. Fawley… Deverá certamente saber que… ela é
advogada.
– Sim, sim, eu sei.
Ele parece meio constrangido.
– Bom, segundo a irmã dela, a Mrs. Fawley acha que descobriu
algo importante. Sobre o caso Parrie.
Gallagher contrai a testa.
– O quê, precisamente?
– Pois, aí é que está. Ninguém sabe bem. Nem sequer a Nell. A
Alex não teve oportunidade de lho dizer, deixou apenas umas notas
num caderno.
Ele pousa o papel à frente dela, na secretária.
– A Nell tirou uma foto e enviou-ma por WhatsApp.
A imagem está ligeiramente descentrada, como que tirada à
pressa. Palavras e frases, siglas, sublinhados, círculos, setas,
pontos de interrogação. Ruth Gallagher olha para Gislingham:
– Como diabos conseguimos nós decifrar isto? Parece-me
simplesmente uma série de anotações aleatórias.
Agora, sim, Gislingham puxa da cadeira em frente dela e senta-
se, posicionando a folha de forma a ambos poderem vê-la.
– Nem tudo – observa ele. – Vê isto aqui… Ep? Deve querer
dizer “episódio”. O que me leva a pensar que a Alex deve ter andado
a ouvir aquele podcast acerca do Parrie. Aquele… “Toda a Verdade”.
– Depois, aponta. – TAV, vê aqui?
– Credo, eu não imagino nada que mais quisesse evitar,
sobretudo sendo uma das vítimas.
Gislingham concorda:
– Sim, eu também. Mas, se é isso que ela tem andado a fazer,
talvez se tenha apercebido de alguma coisa… Sei lá, algo novo? Ela
não terá estado presente ao longo de todo o julgamento… Será que
descobriu agora alguma coisa de que, nesse tempo, não teve
conhecimento? Quem sabe até algo que nós não soubemos na
altura?
Gallagher olha para Gislingham:
– Ela pode ter estado a ouvir o podcast, mas não é nas violações
da Beira da Estrada que ela está interessada, mas, sim, no caso
Smith.
Alex Fawley está à procura de uma maneira de libertar o marido.
Gallagher suspira; tudo isto outra vez, não. Quando já pensava que
toda a gente tinha seguido em frente. Mas, a julgar pela expressão
de Gislingham, é mais toda a gente menos um.
– Não estou certa do que ela pensou que iria conseguir – diz ela,
pesadamente. – De certeza que ela é uma excelente advogada, mas
não tem mesmo como conhecer o caso tão pormenorizadamente
para poder tirar conclusões.

Gis encolhe os ombros.


– Não sei… A mim, parece-me que ela já escarafunchou este
caso tanto quanto nós já fizemos. – Aponta. – Transporte, pulseira
eletrónica, ADN… a lógica está toda lá.
– Na medida do possível – diz a inspetora secamente. – Ainda
que não me pareça que ela tenha conhecimento de que nós
encontrámos um pelo púbico do marido na vagina da vítima.
– Pois… – murmura Gislingham, os olhos no chão. – Não deve
mesmo saber.
Mas Gallagher não parece tê-lo ouvido. Quando olha para ela,
vê-la a ler o papel, com um vinco entre as sobrancelhas.
– Ryan? Mas quem é este Ryan?
– Filho do Parrie. Deve ter uns vinte e poucos, agora.
O vinco acentua-se.
– Parece haver algo relacionado com ele no fim do episódio 6?…
Trocam um olhar, até que Gis saca do telemóvel. Encontra a
página certa, avança até aos últimos cinco minutos e põe em alta-
voz:

O Gavin foi libertado da prisão de Wandsworth a 23 de maio de 2018. Mas


isso não é o mesmo que ser absolvido. A sua condenação mantém-se. Está
obrigado ao uso de pulseira eletrónica, tendo de cumprir as estritas
imposições da condicional que, em termos práticos, o impedem de levar uma
vida minimamente normal. Isso inclui ter o tipo de contacto social habitual que
todos nós damos por garantido.
Quando saiu da prisão, ele tinha uma namorada, mas a relação não foi
suficientemente forte para aguentar o difícil processo de readaptação pós-
liberdade, e agora, mais uma vez, está sozinho.

Mas com sorte e perseverança, este não será o fim da história do Gavin.
Iremos continuar a apoiá-lo, e aos seus advogados, com vista a que seja
criada uma segunda reavaliação para a Comissão de Revisão de Casos
Criminais, já no início do próximo ano.

Entretanto, o Gavin está determinado em fazer dos anos que ainda lhe restam
algo que valha a pena. Passa muito tempo com delinquentes juvenis e
também a reconstruir a sua relação com os filhos. E, claro está, eles já não
são crianças. O Ryan trabalha no setor da saúde e bem-estar e a Dawn tem
agora a sua própria família (…)

– Um ginásio – murmura Gislingham. – O Ryan Powell está a


trabalhar no raio de um ginásio. Meu Deus, como é que não vi isso?
Quanto ADN é que poderá conter uma toalha de ginásio? Um tipo
usa-a, deita-a para um daqueles cestos no balneário e nem pensa
mais nisso. Foi assim que tramaram o Fawley!
– Eh, calma, calma – diz Gallagher, ainda que subitamente muito
branca. – Está a tirar conclusões precipitadas…
Gislingham está a fazer qualquer coisa, furiosamente, no
telemóvel, respirando pesadamente.
– Veja – diz, passado um momento, enquanto lho estende com a
mão trémula de determinação. – Veja: Headington Health and
Leisure… HHL… É o ginásio do chefe…
Uma fila de personal trainers sorridentes, todos frescos e
imaculados nos seus polos brancos personalizados, junto a uma
série de reluzentes máquinas de exercício. Rhoda Hammond, Daryl
Jones, Polly Lewis, Jad Muhammad e… Ryan Powell.
Um rosto vivo e aberto, um bonito e farto cabelo. Tem um ar
respeitável, honesto, genuíno. Mas Gallagher não se deixa enganar.
Gislingham não tira os olhos dela.
– Aquele pelo púbico que referiu?… Aquilo que o chefe nunca
conseguiu explicar?…
Ela olha para ele:
– Sim?
– Se quisermos sacar um pelo desses de alguém, sem essa
pessoa saber, não vejo melhor fonte do que uma toalha de ginásio
usada. Não acha?
Ela abre a boca e volta a fechá-la. Merda, pensa. Merda.

***

Alex vê a médica a observar o monitor das pulsações fetais.


Mesmo com o oxigénio, o seu próprio pulso está tão acelerado, que
se sente atordoada. A enfermeira-parteira está junto dela e pega-lhe
na mão, tentando acalmá-la, mas ela sabe que não teriam chamado
a obstetra, se não houvesse nenhum problema – não teriam trazido
aquela máquina, se não estivessem preocupados…
A médica olha para a enfermeira-parteira:
– A frequência do coração está em taquicardia – diz-lhe, em tom
grave. – Prepare-a para cesariana, por favor, e avise a Sala de
Partos Dois. Temos de fazer nascer este bebé.

***

– Mas, mesmo que você esteja certo em relação ao pelo púbico


– diz Gallagher –, ainda vamos ter de confirmar se de facto é
possível obter ADN viável através de uma toalha de…
Mas Gislingham interrompe-a:
– Mas bate certo, não bate? É que bate mesmo tudo certo. –
Aponta o RP nas notas. – E, pelos vistos, a Alex também acha o
mesmo.
– Sabemos se o Ryan tem tido contacto com o pai?
Gis abana a cabeça:
– Não, mas é fácil de verificar. E, pelo que conheço do Parrie, o
mais certo é tê-lo feito sem deixar vestígios. Apostava em contacto
por carta, o mais simples, no fundo.
Gallagher volta a observar o papel.
– Isto aqui que ela diz… sobre ele ter andado a vigiar a casa
deles…
Gislingham faz uma careta.
– Segundo o que disse a Nell, a Alex está plenamente
convencida de que alguém andava a vigiar a casa deles há
semanas, mas toda a gente lhe dizia que era apenas imaginação,
que o Parrie tinha pulseira eletrónica e que, por isso, não podia ser
ele.
Gallagher assente lentamente:
– E tinham razão. Não era mesmo.
– Pois não, mas, até agora, ninguém pensou no filho. E esse,
sim, andou sempre livremente por aí, fora de todos os radares,
certo? Sobretudo, se se tiver apresentado sempre como Ryan
Powell. E, se andou a vigiar os Fawley, saberá de certeza imenso
acerca dos dois – onde fazem compras, quem são os amigos, o
facto de o chefe frequentar o Headington Health and Leisure…
A Inspetora respira fundo:
– E, então, arranja emprego nesse mesmo ginásio. É isso que
está a pensar?
Gis encolhe os ombros.
– Porque não? Esses sítios andam sempre a recrutar pessoal. E
a Alex também está certa em relação ao carro. Seria facílimo alugar
um Ford Mondeo, deve haver centenas dessas caranguejolas…
– E a pobre da Emma Smith… aconteceu simplesmente fazer a
coisa errada na hora errada.
Gislingham assente.
– Sair, para visitar os Fawley, quando o Ryan estava de vigia à
porta de casa deles. – Recosta-se, agora visivelmente perturbado. –
E ele deve ter achado, e muito bem, que ela era exatamente quem
ele precisava: uma mulher solteira, a viver sozinha e praticamente
sem amigos. A vítima perfeita.
Gallagher suspira. Pobre mulher, pensa. Tinha a certeza de que
andava a ser perseguida ‒ só não sabia porquê.
Ou por quem.
Gislingham está a perscrutar-lhe o rosto.
– A Emma Smith nunca chegou a vê-lo bem, de modo a poder
identificá-lo, mas o Ryan tratou de fazer com que ela percebesse
que ele pairava por ali. Ele queria que ela soubesse.
Gallagher olha-o fixamente:
– Mas porquê?
– Pense comigo, Inspetora: se receasse estar a ser vigiada e
perseguida, e conhecesse um Inspetor-Chefe, a quem é que iria
pedir conselhos?
– Sim, mas ela podia apenas ter falado com ele ao telefone. Não
tinha como ter a certeza de que ele poderia lá passar em casa dela.
– Diz as palavras, mas é apenas o advogado-do-diabo a intervir. Ela
sabe que Gis tem razão.
– O Parrie teve nove anos de uma pena de vinte para planear
isto. Haveria de arranjar uma maneira de fazer o Fawley ir àquele
apartamento, mais tarde ou mais cedo. Sei lá, simular um assalto,
qualquer coisa… – Encolhe os ombros. – E, no minuto em que ele lá
pusesse um pé… zás, a rede estava lançada.
– Então, foi o Ryan que a matou. É isso que está a dizer?
Ele nega:
– Nah… Depois de tantos anos dentro, o Parrie não ia perder a
oportunidade de fazer outra rapariga, pois não? Aquilo que fizeram à
Emma tinha a assinatura dele por todo o lado. Inclusive aqueles
fiozinhos de cabelo que ele não resistiu a arrancar-lhe.
Ela dedica-lhe um olhar irónico.
– Sim, mas ainda temos a questão importantíssima da pulseira
eletrónica. Não obstante o que diz a Alex Fawley, é mesmo muito
raro elas deixarem de funcionar. E, quanto a uma possível
conspiração com a agente de reinserção, acho isso absurdo.
Mas Gislingham abana a cabeça:
– Não há nada de errado com a pulseira, claro que não. Só que o
Parrie não veio de Oxford para matar a Emma Smith, porque não
precisou de o fazer. Teve o sacana do seu filhinho merdoso a
entregar-lha à porta.

***

Adam Fawley
16 de julho, 2018
18h17

– Liguem a porra da sirene, OK?


São cerca de quarenta e oito quilómetros de Newbury ao JR;
quarenta minutos, num dia bom – só que hoje não é um dia bom.
Chuva a cair em bátegas, camiões, camionetas, autocarros de
turistas, merda de gente por todo o lado.
Estamos parados neste semáforo há mais de cinco minutos,
avançando uns míseros centímetros de cada vez, a olhar para as
traseiras de um TIR.
Chego-me à frente.
– A minha mulher está em trabalho de parto.
Os dois agentes trocam olhares, e o que está a conduzir leva a
mão ao interruptor.
As luzes azuis e o som estridente da sirene forçam as pessoas a
afastarem-se para darem passagem ao carro-patrulha, mas, mesmo
assim, ainda é tudo exasperantemente lento…
Recosto-me com força no banco, desesperado de ansiedade,
medo e culpa… porque tudo isto é por minha culpa… se a Alex
perder o bebé… se o meu filho ou filha morrer… será por minha
culpa…
O trânsito desvia-se para nos dar passagem, finalmente, e nós
seguimos a toda a velocidade.

***

Gallagher aproxima o teclado de si e entra no Police National


Computer, com o coração aos pulos, tentando não entrar em pânico
só de pensar nas possíveis consequências e amaldiçoando King
pela sua fixação por Fawley.
– Ryan Sean Powell – começa –, nascido a oito de outubro de
1995. – A voz falha-lhe. – Nada. Rigorosamente nada. Está
completamente limpo.
Gislingham estranha:
– Nada de nada?
Ela abana a cabeça:
– Nem sequer a porcaria de uma multa de excesso de
velocidade.
– Mas tem de ser ele… Tudo encaixa…
– Em teoria, sim. No papel. Mas não temos rigorosamente
nenhuma prova.
– Talvez não para o prender, mas certamente para o interrogar,
não? Isto, se ele não tiver fugido. Pode já ir a caminho da Florida.
– Sim – diz ela, com um tom de pânico crescente na voz, porque
ele tem razão, pode ser já demasiado tarde. – Sim, podemos fazer
isso… ir àquele ginásio… e, mesmo que já lá não trabalhe, hão de
ter ficado com uma morada. Eu ligo aos colegas de Warwickshire e
peço-lhes que se dirijam à residência de reinserção.
Gislingham já está praticamente de saída, quando ela o chama:
– Chris?
Ele volta-se para ela:
– Leve alguém consigo. O Asante…
– Não, Inspetora-Chefe. Peço desculpa, mas não. Levo o Quinn.

***

9 de julho, 2018, 22h50

Cheira-lhe a gasolina, a suor e à própria urina. E, por detrás


disso tudo, uma baforada a químico, a líquido de limpeza. Ele pôs-
lhe uma venda, mas ela percebeu logo onde estava, antes ainda de
ouvir a mala do carro a fechar e o arrancar do motor. Tem os joelhos
dobrados até ao rosto, o plástico quente por baixo dela a colar-se-
lhe à pele. Sem espaço para se estender, para se agarrar onde quer
que seja, quando o carro entra nas curvas. E ele conduz
velozmente, isso dá para perceber, ainda que ela tenha perdido a
noção de há quanto tempo estão em viagem. Não consegue ver,
não consegue folgar os punhos, mas tenta ao máximo contorcer-se
e palpar à sua volta – à procura de uma chave de rodas, um
macaco, qualquer coisa que possa usar. Mas não há nada,
rigorosamente nada. A mala está vazia. Como se o carro não fosse
dele… como se fosse alugado… como se o tivesse alugado
especialmente para isto…
Meu Deus… oh, meu Deus…

Param.
A porta.
Passos.
A mala abre-se.
Uma lufada de ar, outra de som. Vento. Árvores?
Mais passos.
E uma voz.
Mas não é a dele.

***

Gallagher recosta-se na cadeira. Continua com a respiração


excessivamente acelerada. Isto não nos deve fazer nada bem, este
tipo de stress, pensa. E agora está aqui enfiada, estagnada,
impotente, à espera de notícias. Se isto não resume o dilema
feminino desde os mais remotos dos tempos, não sabe o que
poderá ser. Pega na folha que Gislingham lhe deixou na secretária;
tudo o que sirva para desviar alguma desta energia inútil.
Agora, a caligrafia de Alex já lhe parece bastante mais familiar,
por isso é mais fácil detetar o raciocínio claro e metódico na base de
todas aquelas anotações aparentemente aleatórias. Gallagher dá
por si a lembrar-se subitamente daquela libertação de energia quase
eufórica que sentiu imediatamente antes de os filhos nascerem. O
corpo a preparar-se para o parto. Quem sabe não esteja a tentar
encontrar aqui os proveitos disso.
Está prestes a pousar a folha quando algo lhe desperta a
atenção. Aproxima o papel um pouco mais dos olhos, estranha e
muda de ângulo. A caligrafia fotografada e ainda digitalizada, para
depois aquilo ser impresso, torna-se imperfeita, para dizer o mínimo,
e ela pode estar a dar importância a uma coisa de nada. Mas
mesmo assim…
Leva a mão ao telefone.

***

Gislingham também está retido no trânsito, avançando a passo


de caracol pelo centro da cidade. Quinn tamborila nervosamente na
base da janela. Detesta ser conduzido, mesmo quando tudo corre
sobre rodas. Então, assim…
– Devias ter vindo por outro lado – murmura. – Hora de ponta, a
porra das chuvadas da monção, todos os carros de Oxford na
estrada…
Obrigadinho, pensa Gislingham. Nem nunca me teria ocorrido, se
não me dissesses.
Quando o telemóvel toca, ele atende em altifalante:
– Inspetor-Coordenador Gislingham.
– Chris, fala Ruth Gallagher.
– Ah… Estou retido no trânsito, Inspetora-Chefe.
Lamentavelmente…
– Não é isso. Estive a olhar outra vez para as anotações. Diga-
me uma coisa: você imprimiu tudo? Ou pode ter-lhe escapado um
bocadinho da página?
Gislingham estranha:
– Não me parece provável. Mas porquê?
– Há alguma maneira de eu verificar isso?
Gislingham pensa por um segundo; Quinn também parece
subitamente interessado.
– Bom, pode ligar à Nell Henegham? – pede Gis. – Eu já lhe
mando o número de telemóvel dela. Se ela não atender, o de casa
deve vir na lista. Vivem em Abingdon.
Ele ouve-a a anotar. Passa um autocarro do lado de lá da rua,
espichando água para a parte da frente do carro. Quinn pragueja
perante o dilúvio no para-brisas, e Gislingham vê-se obrigado a
travar.
– Há alguma coisa que eu deva saber, Inspetora? – pergunta ele,
levantando ligeiramente a voz.
– Não, não – responde-lhe ela, rapidamente. – Pode não ser
nada. Mas, se for, eu digo-lhe alguma coisa.
E desliga.

***

– Alex Fawley… Acabou de entrar. Sou a irmã.


Nell sente os pulmões a arderem por ter vindo a correr pelo
parque de estacionamento alagado e subido dois lances de
escadas. Encosta-se pesadamente sobre o balcão da receção, o
coração a mil, o cabelo num desalinho encharcado.
A enfermeira dedica-lhe um olhar doce.
– Calma, minha querida, recupere o fôlego, sim? – Sorri-lhe. –
Não queremos ter de a admitir também a si, certo?
Procura no livro que tem à frente e olha para Nell.
– Ela está no Quarto 216. Ao fundo do corredor, do lado
esquerdo.
Nell lança-lhe um sorriso de agradecimento e apressa-se,
virando no corredor e murmurando rezas a um Deus em que ela
nunca acreditou. Vai correr tudo bem, vai correr tudo bem. Mas
encontra Alex já numa maca, a ser conduzida para algures, a soro e
com máscara de oxigénio e… demasiadas máquinas.
– Oh, meu Deus! Alex… Alex!
Corre até apanhar os auxiliares.
– Alex, estás bem?
A irmã agarra-a pela mão, o olhar desesperado, a voz abafada
pela máscara:
– Já falaste… com o Gislingham?
– Sim, sim, liguei-lhe logo e mandei-lhe uma foto das tuas notas.
Alex deixa a cabeça cair na almofada e fecha os olhos.
– O Gis… graças a Deus…
– A senhora vem para a sala de partos? – pergunta-lhe um dos
auxiliares. – É que não podemos perder tempo, desculpe.
– Sim, sim – apressa-se Nell a dizer. – Eu vou com ela.

***

– Estou?
É um homem que atende. Gallagher ouve outras vozes em
fundo. Parece-lhe rádio. A BBC News.
– Estou, Mr. Heneghan? Não nos conhecemos, chamo-me Ruth
Gallagher e sou inspetora da Polícia de Thames Valley.
– Sim?… E qual é o assunto?
– A sua mulher está?
– Não, lamento. Está no JR, com a irmã.
Como é óbvio, pensa Gallagher. É claro que está com a irmã, daí
ter o telemóvel desligado.
– Bom, então, talvez o senhor me possa ajudar. É o seguinte: a
sua mulher enviou há pouco uma foto a um dos nossos inspetores, o
Chris Gislingham…
– Ah, sim, sim, ela falou-me nisso. Mas foi tudo muito à pressa,
ela saiu assim que eu cheguei e… fiquei sem perceber nada, na
verdade.
– Tudo bem. Essa foto era de uma página do bloco de notas da
Mrs. Fawley. Eu precisava que ma enviasse de novo.
– Dê-me um segundo – diz ele. – O Ben está mais a par disso do
que eu.
Ouvem-se ruídos do lado de lá, a voz de Gerry a chamar por Ben
e, por fim, outra voz ao telefone. Mais jovem, mais suave.
– Estou?
– Olá! És o Ben, certo? O meu nome é Ruth. Gostaria que me
ajudasses numa coisa… A tua mãe tirou uma fotografia há pouco,
antes de sair…
– Do bloco de notas da tia Alex.
– Exatamente. É precisamente isso. Bom, creio que a tua mãe
devia estar mesmo aflita para sair e a foto não ficou bem tirada,
penso que lhe falta um bocado. Mesmo no fim da página.
– Sim, ela estava bué preocupada com a tia. Os senhores da
ambulância levaram-na e ligaram as sirenes, e tudo.
Percebe-se como tudo aquilo o aterrorizou, e Gallagher morde o
lábio. É uma grande preocupação sua – culpa, porque não dizê-lo?
– o efeito que tudo isto estará a ter na já ansiosa e vulnerável
mulher de Fawley. E se acontecer alguma coisa àquele bebé…
Esforça-se por se controlar, tentando soar tranquilizadora:
– De certeza que vai tudo correr bem, é um hospital muito bom.
Mas é importante que eu veja melhor essas anotações da tua tia.
– É por causa do tio Adam? Eu gosto bué do tio Adam.
E, do nada, os olhos dela enchem-se de lágrimas.
– Eu também. Também gosto muito dele. Por isso é que quero
muito ajudá-lo.
– OK – diz o garoto, agora já mais descontraído, numa daquelas
súbitas mudanças de estado de ânimo com que as crianças nos
conseguem sempre surpreender. – O que quer que eu faça?
– Podes pedir ao teu pai que te ajude a tirar uma nova fotografia
dessa mesma página? Mas têm de se certificar que apanham a
página toda, OK? E, depois, pedes-lhe para ele ma mandar por
mensagem para o meu número. OK?
Ela diz-lhe o número, repete-o e percebe que ele o anotou.
Depois, agradece-lhe imenso, elogia-o e diz-lhe que o tio Adam e a
tia Alex também lhe vão ficar muito gratos.
Quando finalmente desliga, as lágrimas já lhe correm pela cara
abaixo.

***

O Headington Health and Leisure fica por trás da longa fiada de


lojas e lojinhas da London Road, não muito longe da circunvalação.
Um edifício dos anos trinta algo deteriorado, nitidamente escolhido
pelo tamanho do seu parque de estacionamento. Terão dado o seu
melhor para arrastar o exterior para o novo milénio, mas haveria
sempre de ser um desafio. Lá dentro, todavia, é todo um outro
assunto. O piso térreo foi completamente esventrado e demolido,
embelezado com uma iluminação de última geração, tanto a nível
artístico quanto funcional, decorado com ilustrações modernas e
vibrantes e acrescentado de uma cafetaria de comida saudável, que
mimoseia os sócios com chai lattes e quiches vegan.
Gislingham dirige-se ao balcão da receção (Pergunte-nos como
ajudá-lo a realizar os seus objetivos pessoais) e saca do crachá:
– Inspetor-Coordenador Chris Gislingham, da Polícia de Thames
Valley. Este é o meu colega, o Inspetor Quinn. – E prossegue, sem
papas na língua: – Soube que têm cá um PT a trabalhar chamado
Ryan Powell?
A rapariga da receção parece completamente aterrorizada. Abre
a boca para dizer alguma coisa, mas não lhe sai nada.
Quinn apoia-se no balcão e assume a sua mais afável
expressão:
– Segundo o vosso site, o Powell vai dar uma aula de
abdominais dentro de quinze minutos. Por isso, calculo que ele ande
por aí algures, certo?
Ela engole em seco e abana a cabeça:
– Não.
Gislingham semicerra os olhos.
– Como assim… não?
– Ele está de férias – A rececionista está corada que nem um
pimentão. – Em Málaga. Já lá está há duas semanas.
Os homens trocam um olhar, que rapidamente se transforma
num franzir de testa à medida que fazem contas.
– Duas semanas? – repete Gislingham.
Ela acena que sim.
– OK – diz Quinn, lentamente. – E em que dia ao certo é que ele
viajou?

***

Quando Gallagher ouve o som de uma mensagem a entrar,


quase atira o telemóvel pelo ar. Mal acaba de abrir a mensagem,
ligam. Passa para alta-voz, para poder ver a imagem.
– Boa tarde, Inspetora… Fala o Gislingham.
Ela está demasiado distraída para se aperceber do tom dele. Um
tom de derrota.
Faz scroll para baixo, um zoom… e lá está. Ela tinha razão. Não
era apenas um rabisco ao acaso, era uma seta…
Gis continua a falar:
– Desculpe incomodá-la, Inspetora, mas o Ryan Powell não pode
ter atacado a Emma. Não teve nada que ver com isso, pois está em
Espanha desde o dia 3 de julho. Ainda vamos confirmar se ele de
facto embarcou nesse voo, mas ele mandou fotografias a alguns dos
colegas do ginásio, por isso… creio que o álibi é legítimo.
Suspira tão alto, que ela ouve-o mesmo sob o barulho do
trânsito:
– Regressámos à estaca zero.
– Não – diz ela, ouvindo-o bem, finalmente. – Não, não
regressámos. Eu acho que você tinha razão acerca do Ryan, que
pode bem ter sido ele a obter a fonte do ADN, mas não foi ele que
levou a Emma para Leamington e se livrou do corpo dela. Aquelas
iniciais nas notas da Alex?… RP? Não são de Ryan Powell. RP é
outra pessoa.

***

9 de julho, 2018, 22h55

– Alguém te viu?
Esta voz é diferente. Mais dura. Mais cruel.
– Não. Fui cuidadoso. Tornei-me muito bom nisto, como sabes.
– E sabes o que tens de fazer quando voltares?
– Ya. Já está tudo tratado como tu pediste. E já confirmei… Eles
vão continuar em trabalhos naquela linha. Aquilo vai durar a noite
toda.
– Boa.
Emma sente agora mãos em cima de si, arrancando-a
bruscamente da mala, a pele a ser arranhada contra o metal.
Está de pé, mas não consegue manter-se firme, não consegue
respirar. A urina escorre-lhe pelas pernas, e Emma sente-se corar
de vergonha.
O segundo homem goza:
– Oh, coitadinha, está cheia de medo… Tinhas razão, a gaja é
mesmo perfeita. Vou curtir à brava fazer isto.
– Ya, eu devia-te uma, certo? Por não me teres chibado naquela
cena com o chuchuzinho da Donnelly, em que eu estava contigo…
– Sim, não tiveste culpa que me tenham tramado. E não servia
de nada irmos os dois dentro. Olha, assim pudeste olhar pelos
miúdos.
O clique de um isqueiro, o som de uma inalação.
– Por falar nisso, o Ryan mandou-me uma mensagem. Diz que
em Málaga está ainda mais calor do que cá.
– Foda-se… Deve andar com o cu assado. Mas foi mesmo
perfeito, isto de ele estar fora. Acho que nem mesmo a porra da
Thames Valley vai conseguir associá-lo a este assunto, estando ele
em Espanha, certo?
Um longo exalar.
– ‘Tás a alucinar, mano. Eles nunca farão a ligação. Mas mesmo
nunca. Nem pó.
– Mesmo assim… Tu não achas que o Ryan se apercebeu, pois
não? Refiro-me ao ginásio. Quero dizer, eu não ia querer que o gajo
pensasse que…
Uma risada rápida.
– Nah, não há o menor perigo, coitadito. Esse não ‘tá com nada,
nem se arrisca a porra nenhuma. Estive quase para lhe pedir que
me inscrevesse como sócio daquele ginásio todo finesse e fazer eu
próprio o trabalho. O gajo fartava-se de se queixar, o chorão… –
Outra risada. – “Porra, Gav, este Fawley é um chato do caraças.
Takeaway à sexta, compras ao sábado, ginásio quatro vezes por
semana, os mesmos dias, à mesma hora, até a porra das máquinas
são as mesmas, fogo!”
– Não te queixes tu. Graças a ele foi bem mais fácil ficarmos a
par, não foi?
– Ya. Foi como limpar o cu a meninos.
– Ora bem… – diz o segundo homem. Emma sente mais firmeza
na mão que lhe agarra o ombro. – Queres entrar na festa, ou quê?
Mais uma, em nome dos velhos tempos?
– Nah, meu. Esta é toda tua. Vou fumar um cigarro. E tu vê lá se
não te distrais.
– É justo. Mas não te apresses a voltar. Vou querer levar o meu
tempo. Acho que mereço, não?
Som de passos a afastarem-se; depois, ele força-a para baixo,
obrigando-a deitar-se, até enterrar a cara na erva seca e quente.
***

***

– Eles eram dois?


Gislingham está sentado à secretária de Gallagher, a olhar para
o ecrã do telemóvel dela, a porcaria do fato completamente
encharcado; atrás dele, está Quinn, o cabelo obsessivamente macio
e lisinho, pingos de chuva a correrem-lhe ainda pela nuca.
Gallagher aproxima-se.
– Eu estive a ouvir o episódio 4 do podcast, aquele que a Alex
destacou. Era uma entrevista à Alison Donnelly. Ela foi bastante
articulada, muito clara. Disse que foi violada uma vez e que, depois,
o seu atacante regressou, passados poucos minutos, e a violou de
novo. Mais violento, dessa vez. Mais brutal. – Suspira. – Tinha um
saco de plástico na cabeça, não viu nada e ouvia muito mal. E, seja
como for, ele nunca falou… – Novo suspiro. – Ela não tinha como
saber que, da segunda vez, foi um homem completamente diferente.
– Meu Deus – murmura Gislingham. – Mas como é que ninguém
desconfiou disto, em 98?
Gallagher encolhe os ombros.
– Não havia ADN nem nada que sugerisse que o Parrie tivesse
um cúmplice. Bem, na minha opinião, nunca teve – tirando essa vez.
E estas perguntas que a Alex faz? Tão insistentes. Também estive a
dar uma olhadela ao processo. Ele foi interrogado, mas eles
estavam mais centrados em verificar se ele poderia garantir ao
Parrie um álibi, e não tanto se ele próprio tinha algum. Que, como
acabámos por verificar, até tinha. Pelo menos, para a quarta vítima.
Tinha ido visitar a mãe a Coventry, e isso confirmou-se através das
câmaras de CCTV na estação de comboios e por uma multa de
tempo excedido num parquímetro. Não havia a menor hipótese de
ele ter atacado essa última rapariga, por isso acabou por ser riscado
da lista. Nem nunca ninguém se lembrou de perguntar onde é que
ele estava na noite em que a Alison Donnelly foi violada. Ninguém…
até agora, claro.
– Desculpe – intervém Quinn. – Está-me aqui a falhar alguma
coisa… Se o RP não é o Ryan Powell, então de quem raios é que
estamos a falar?
Ela ergue os olhos para ele.
– Do Robert Parrie. Mais conhecido por Bobby. O irmão mais
novo do Gavin Parrie.

***

– Não sei o que é que vocês pensam que vão encontrar. Não uso
drogas e não tenho álcool em casa.
Encostado à soleira da porta, braços cruzados, falsamente
casual, há nele um quase impercetível nervoso miudinho e alguma
desconfiança no olhar.
Na casa de banho minúscula, está um agente à paisana a
inspecionar o ainda mais minúsculo armário do lavatório. Outro
agente, uma sargento, está no quarto, à volta de uma cómoda com
gavetões. A cama foi toda desfeita e a roupa empilhada no chão,
juntamente com todo o conteúdo do roupeiro. Que não é muito. Dois
ou três pares de jeans, algumas t-shirts, uma sweat preta de capuz.
Há uma estante estreitinha na parede oposta, mas está vazia: nada
de livros, fotos ou objetos pessoais. Nem parece que alguém vive
neste quarto.
– Olha-me só pra esta confusão. A isto chama-se invasão de
privacidade, porra.
A sargento olha para ele.
– Você está em condicional, Parrie – diz-lhe, friamente. – Buscas
aleatórias fazem parte das formalidades e não precisamos da sua
autorização. Está farto de saber isso.
Fecha a gaveta bruscamente e dirige-se à mesa de cabeceira.
Na casa de banho, o agente está agora de gatas, inspecionando
as canalizações por detrás da sanita.
Parrie vê-o e semicerra os olhos.

***

Eles sabem que está gente em casa porque a janela está aberta
e ouve-se música. Os Rolling Stones. Alto. Tal como em tantas
outras casas desta zona de Cowley, o jardim da frente tem o chão
em cimento, com a lama e o lixo varridos pelas enxurradas diárias.
Vê-se um contentor com a tampa aberta, uma grade cheia de latas e
garrafas vazias, uma carrinha branca estacionada à porta.
Estucagens RP – Todos os Trabalhos Importam

***

– Sargento?… Creio que temos aqui qualquer coisa – chama o


agente.
A sargento fulmina Parrie com o olhar e vai até à casa de banho,
agachando-se para ver com os próprios olhos.
– Olha, olha… – diz ela. – O que é que temos aqui?
É tão pequeno e está tão engenhosamente escondido, que seria
quase impossível descobrir – a não ser por um agente treinado. Um
micro saco de plástico com zipper, colado com fita adesiva à parte
de trás do cano. Acontece que estes são agentes treinados. E
sabem perfeitamente do que estão à procura.
Parrie recua um passo em direção à porta, mas já lá está um
terceiro agente a barrar-lhe o caminho.
Um agente que não estava ali nem há cinco minutos.
A sargento descola o saquinho do cano e levanta-se. Vê-se bem
o que lá está dentro: um pedaço de papel de cozinha,
cuidadosamente dobrado, como se no seu interior houvesse algo
precioso, que necessitasse de todo o cuidado e segurança.
Ela abre o zipper e desdobra lentamente o papel, ouvindo o
arquejo dos colegas quando se apercebem do que se trata.
Um brinco. Uma argola de prata, manchada aqui e ali com laivos
escuros.
E uma fina madeixa de cabelo louro comprido, bem enroladinha.

***

– Ainda nos levou algum tempo, porque ele teve de fazer o


caminho todo até Banbury para esconder o rasto, mas já temos o
que queríamos, preto no branco. O Bobby Parrie alugou um Ford
Mondeo azul-escuro no sábado, 7 de julho, e entregou-o – já lavado
e aspirado – três dias depois. Mandei um agente ir buscá-lo.
– Quer dizer que podemos avançar, Inspetora?
Surgem alguns ruídos na linha, mas a voz de Gallagher ouve-se
claramente:
– Podem avançar.
Os dois homens trocam um olhar e, de seguida, em silêncio,
saem do carro e dirigem-se à casa.
O tipo que lhes abre a porta tem uma garrafa de cerveja na mão
e um pano de cozinha ao ombro. Cabelo escuro, olhos cor de avelã,
sorriso pronto. Sorriso esse que depressa se desfaz.
– Robert Craig Parrie? – pergunta o homem no degrau da
entrada, mostrando-lhe o crachá. – Inspetor Anthony Asante, da
Polícia de Thames Valley. Este é o Inspetor Farrow. Estamos aqui
para o deter.

***

Adam Fawley
16 de julho, 2018
19h09

Não sei como consegui obrigar as minhas pernas a mexerem-se


– às tantas, o desgraçado do agente praticamente já me levava em
braços. As pessoas por quem passámos devem ter achado que era
eu que estava em perigo, que era eu quem precisava de cuidados
médicos urgentes. E, na verdade, talvez precise mesmo, porque,
assim que chegamos à sala de partos, sinto o peito a abrir-se em
dois e tudo o que vejo são borrões de pessoas de batas e toucas, e
tudo o que oiço é o cérebro a ribombar…
Alguém se dirige a mim, agarrando-me os braços:
– Adam. – Uma voz baixa. Gentil. Familiar.
Já sei quem é… Nell… A Nell…
– Ela está bem, Adam – diz-me, abanando-me, tentando fazer
com que a ouça. – A Alex está bem…
De repente, a parede verde abre-se… e eu vejo-a. Na cama, o
cabelo espalhado pela almofada, a pele cinzenta de exaustão.
– Adam… – sussurra, num sopro débil, estendendo a mão para
mim, o rosto tolhido de preocupação. – Meu Deus… tu estás…
péssimo…
Sinto alguém a empurrar-me gentilmente para a frente e dou-lhe
a mão, toco-lhe no rosto.
– Alex, meu amor… Eu… lamento tanto, tudo isto é culpa
minha…
– Não… claro que não é – murmura. – Nada. Eu… descobri o
que aconteceu… Sei que não foste tu. – Pega-me na mão e aperta-
a com força. – Já pus o Gis a par de tudo… Vai tudo acabar bem.
Vai tudo ficar bem.
Olho-a, confuso.
– O Gis? Mas como é que…
Sinto a mão da Nell no meu ombro.
– Tudo isto pode esperar – sussurra-me. – Agora… isto é mais
importante. Muito mais importante.
Puxa-me suavemente para si. Vejo uma enfermeira a sorrir
perante a minha expressão fascinada.
– Mr. Fawley – diz-me –, infelizmente perdeu a festa toda. Parece
que esta criança estava mesmo com vontade de nascer.
E ao recebê-lo nos meus braços pela primeira vez, sinto o calor e
o peso do meu bebé real, palpitante, com os seus punhozitos a
agitarem-se no ar, tanto ar, novo e fresco, a boquinha suave abrindo
e fechando apenas uns milímetros, como um passarinho. Depois de
todos estes dias horríveis, em que eu barriquei as minhas emoções
e tranquei o coração a cadeado, as lágrimas correm-me finalmente
pelo rosto, porque ela está aqui e é perfeita.
A minha filha.
Perfeita e viva, tão bonita quanto o seu nome.

1 Arraçado de cocker com poodle. (N. da T.)


2 Trata-se de um “jardim formal”, plantado numa superfície plana, constituído por vários
canteiros de plantas, delimitados por sebes baixas ou pequenos muros de pedra. Os
canteiros e os muretes são normalmente rodeados por estreitos passeios de gravilha,
dispostos simetricamente. O conceito remonta à França do séc. XVIII. (N. da T.)
3 Oxford é conhecida como a “cidade dos pináculos sonhadores” (city of Dreaming Spires),
termo usado pelo poeta Matthew Arnold, em referência aos cumes suaves e à arquitetura
harmoniosa dos edifícios da universidade da cidade. (N. da T.)
4 Whole-life tariff, em inglês. Ordem judicial segundo a qual um preso que foi condenado a
prisão perpétua é forçado a cumprir a pena sem qualquer possibilidade de liberdade
condicional. (N. da T.)
5 O Índice FTSE 100 (Financial Times Stock Exchange Index) é o principal indicador de
ativos da Grã-Bretanha, gerenciado pelo FTSE Group, organização independente. (N. da
T.)
6 No Reino Unido, é comum os alunos fazerem entre 3 e 4 A-levels. A preparação para
estes exames ocorre depois do ensino obrigatório, entre os 16 e os 18 anos. Esse período
é chamado sixth form. (N. da T.)
7 Michaelmas é um feriado celebrado a 29 de setembro, com origens religiosas cristãs e
raízes pagãs de celebração do equinócio de outono. O termo é referenciado nos tribunais
britânicos e na maioria das escolas britânicas como um período que vai do final de
setembro a meados de dezembro. (N. da T.)
8 Estuário dos rios Test e Itchen, a norte de Solent e da Ilha de Wight. A cidade de
Southampton fica no seu extremo mais a norte. (N. da T.)
9 Mateus 6:34 – “Portanto, não vos preocupeis com o amanhã, pois o amanhã trará as
suas próprias preocupações. Basta a cada dia o seu próprio mal.” (N. da T.)
10 Duas das mais antigas e afamadas faculdades da Universidade de Oxford, com origens
que remontam ao século XIII. (N. da T.)
11 Nikolaus Pevsner (1903-1983), alemão, naturalizado britânico, foi um dos mais
importantes historiadores de arte do mundo. (N. da T.)
12 “Revista de Estudos de Inteligência Artificial” e “Transferência de Aprendizagem Neural
para Processamento de Linguagem Natural”, respetivamente. (N. da T.)
13 Dutch courage, no original. Falsa coragem induzida pelo álcool, uma expressão
pejorativa já que os ingleses consideram que os holandeses bebem demasiado. Essa
imagem desfavorável dos holandeses pode ter origem nas guerras do século XVII, entre a
Inglaterra e a Holanda, e as hostilidades da época. (N. da T.)
14 Seguidores do movimento religioso Igreja da Unificação, cujo nome se deve ao seu
fundador, Sun-Myung Moon, mais conhecido por Reverendo Moon. (N. da T.)
15 Ciências, Tecnologias, Engenharia e Matemática. (N. da T.)
16 Mateus 21:16. (N. da T.)
17 Jogo de palavras com marina e a frase “to give a wide berth”, uma expressão que
remonta ao século XVII e que significa permitir um grande espaço entre os navios, para
possibilitar a máxima segurança e manobrabilidade. No sentido figurativo, dar muito
espaço, ou seja, manter distância de alguém ou alguma coisa. (N. da T.)
18 O Ridgeway é uma trilha histórica localizada no Sul da Inglaterra, tida como a estrada
mais antiga da Grã-Bretanha. A rota atual, National Ridgeway Trail, foi inaugurada como
estrada nacional em 1973. (N. da T.)
19 Imperial College London, universidade com o campus principal em Londres,
especializada sobretudo em Ciência, Engenharia e Medicina. (N. da T.)
20 O código postal OX2 corresponde à área mais cara fora de Londres, com casas que
custam atualmente mais de £ 5.000 por metro quadrado. (N. da T.)
21 Teorias de que teria havido um segundo atirador surgiram no mesmo dia do assassinato
de Kennedy. Diversas testemunhas afirmaram que ouviram tiros vindos de uma pequena
colina com o nome de Grassy Knoll, localizada na Dealey Plaza. O maior suspeito de
eventualmente ser o segundo atirador terá sido o homem misterioso, de guarda-chuva
preto, que se encontrava no local relativamente perto da Grassy Knoll. (N. da T.)
22 John Radcliffe Hospital, para onde foi levado o filho de ambos aquando do seu suicídio.
(N. da T.)
23 Famosa loja inglesa de malas e acessórios de couro. (N. da T.)
24 Cerimónia anual ocorrida em Inglaterra em que, no rio Tamisa, cisnes-mudos são
cercados, capturados, anilhados e libertados. Esta atividade é importante para a
conservação da espécie, avaliando a saúde dos cisnes e examinando-os para o tratamento
de eventuais ferimentos. Os Royal Swan Uppers, que usam o uniforme escarlate de Sua
Majestade, percorrem o rio em esquifes a remo tradicionais, e muitas escolas são
convidadas a participarem para que as crianças tenham oportunidade de ver os cisnes de
perto e de fazer perguntas. (N. da T.)
25 Ator britânico (1942-2002), mais conhecido pelo seu papel de protagonista na série
Inspector Morse. (N. da T.)
26 Estrofe do poema “On His Blindness”, de John Milton (1608-1674). A frase significa
essencialmente que aqueles que são pacientes e aguardam o seu tempo, esperando ser
solicitados a fazerem algo, são tão úteis a Deus quanto aqueles que andam sempre a
correr para O servir “sem descanso”. (N. da T.)
27 Abreviatura de In-Service Training Day, série de cinco dias, na maioria das escolas do
Reino Unido, em que, embora as aulas não sejam ministradas e os alunos não frequentem
a escola, os funcionários devem comparecer para formações ou para concluir tarefas
administrativas. Os professores podem acompanhar os trabalhos ou aproveitar a
oportunidade para trabalharem numa nova tecnologia ou em novas abordagens de
docência. (N. da T.)
28 Alusão ao refrão da música Lipstick On Your Collar, de Connie Francis: Lipstick on your
colar told a tale on you (“foi o batom no teu colarinho que te denunciou”). (N. da T.)
29 O uso de agentes nervosos, uma classe de produtos químicos orgânicos, está
sobretudo associado ao terrorismo ou ao uso de armas químicas em contexto bélico. Para
além de apresentarem um risco real para a saúde do indivíduo, em circunstâncias mais
extremas levam à morte. (N. da T.)
30 Cidade-spa no centro do condado de Warwickshire; neste caso, a cerca de uma hora de
carro de Oxford. (N. da T.)
31 Alusão ao bergantim comercial norte-americano que, não obstante as boas condições
de navegabilidade, as velas içadas e o abastecimento de víveres, foi encontrado à deriva e
sem tripulação em pleno Oceano Atlântico (1872). Nunca se soube o que aconteceu aos
que iam a bordo do navio. (N. da T.)
32 Loja de lingerie britânica, exclusiva e caríssima. (N. da T.)
33 Alusão a Christine Keeler, modelo e acompanhante, a figura central do escândalo
político “Profumo”, que em 1963 abalou a política britânica e que culminou na queda do
governo de Harold Macmillan. (N. da T.)
34 Naturalista inglês, fotógrafo de natureza, apresentador de televisão e autor. Em outubro
de 2017, apresentou um documentário da BBC Television sobre a sua própria experiência
como “pessoa de sucesso com Asperger”, numa análise crítica sobre a abordagem adotada
para o autismo e a síndrome de Asperger nos Estados Unidos da América. (N. da T.)
Epílogo

6 de julho, 2018, 23h26


Monmouth House, St. Luke Street, Oxford

Ele está cá em baixo, na cozinha, quando ouve a porta de casa


bater e o som de passos nos degraus de madeira.
Um momento depois, ela surge, toda lantejoulas e saltos altos. O
perfume que traz é tão denso sob o ar quente da noite, que ele
consegue senti-lo na garganta.
Larga a clutch sobre a mesa e lança o cabelo para trás. O rosto
ilumina-se num sorriso radioso.
– Consegui, Caleb – diz-lhe. – Consegui. Duzentos milhões,
porra. E tudo graças a mim – não àquela corja de inúteis com a
mania de que são bons. A mim.
Ele levanta-se e dirige-se a ela, com um sorriso:
– A Marina é espantosa… Aposto que vieram todos comer-lhe à
mão.
O sorriso dela esvai-se ligeiramente; parece que vai dizer
qualquer coisa, mas, pelos vistos, muda de ideias:
– Meu Deus – exclama, olhando o relógio –, já é tão tarde? Estou
exausta.
Ela avança com a intenção de passar por ele, mas é
interrompida. Ele agarra-a pelos antebraços:
– Vá lá, conte-me tudo. Os pormenores todos. O que é que eles
disseram?
Os lábios dele estão a escassos centímetros dos dela, e ele
sente-lhe o calor exalando da pele. A excitação pura… a euforia do
sucesso. Ela já anda há semanas a mandar-lhe sinais do tipo
“come-me”, e, no que lhe diz respeito, este é um jogo em que só
vale a pena alinhar se estivermos preparados para o concretizar.
Além de que… que raio é que o Seb tem que ele não tenha? Sim,
porque ela comeu-o. É suposto ser um grande segredo, mas é claro
que o Seb não resistiu a esfregar-lho na cara, o grande sacana.
Ela franze a testa e afasta-se dele.
– Não, Caleb, já sabes qual é a minha opinião…
Ele sorri.
– Ora, Marina, vá lá… Sabe que quer… e sabe que eu quero.
Não há ninguém como você… ninguém… Essa cara e esse corpo,
esse cheiro, tudo… tudo em si me deixa completamente louco…
Mas ela abana a cabeça e afasta-o:
– Quantas vezes vou precisar de repetir? Já te disse. Eu gosto
de ti, sabes que sim, mas isso só tornaria as coisas muito mais
complicadas.
– É a Freya que a preocupa.
– Não… não é nada disso…
– É que ela, muito honestamente, é um não assunto. É fixe e eu
gosto dela, mas não é nada sério. E olhe bem para a Marina…
porra, não há gajo no mundo que não a preferisse a si do que a ela,
se tivesse de escolher. – Sorri-lhe, acionando o modo charme. –
Quero dizer, para quê espumante, se temos champanhe francês,
certo?
Mas ela continua a negar:
– Não, Caleb. Desculpa, mas não. Parece que não me ouves. Tu
e eu… nunca vai acontecer.
Uma sombra cruza o rosto de Caleb, enquanto ele se volta e
encosta pesadamente à bancada. Ela sente uma pontinha de
remorso. Ele é muito novinho e provavelmente nem seria assim tão
mau na cama. Com umas orientaçõezinhas… até que era papável.
Mas não com ela. Nem pensar. Já caiu nesse erro uma vez. Não
pode arriscar-se a passar por tudo aquilo outra vez.
Ela estende o braço para ele e toca-lhe docemente no ombro.
– Amigos?
Ele fixa-a por um momento; depois, sorri-lhe, pesaroso:
– Claro. – Endireita-se. – Mas acho que temos algo a celebrar. –
Vai ao frigorífico. – Champanhe?
Ela sorri.
– Para mim, não. Já bebi o suficiente esta noite, e o Tobin pode
acordar a qualquer momento.
– Não acorda – diz-lhe ele, com um sorriso breve. – Acabei de ir
lá vê-lo. Ele não vai descer.
– A sério, não me apetece mesmo beber mais…
Mas é demasiado tarde. A rolha salta e o líquido jorra pelas flutes
abaixo, até à bancada. Ela suspira ligeiramente, nas costas dele.
Por amor de Deus, é um Bollinger Grande Année…
Ele segura as duas flutes, limpando com a outra mão aquilo que
entornou. Ela percebe que ele está apenas a mostrar boas
maneiras… Afinal, é bem-nascido e estará algo embaraçado com o
pequeno incidente.
Mas está enganada. Ele está é a ganhar tempo. Uns escassos
segundos cruciais até a efervescência fazer o seu trabalho – para
aquela saquetazinha de pó se desfazer completamente. Porque ele
sabia que haveria sempre o risco de ela se armar em esquisita e,
por isso, veio preparado. Além de que não é estúpido. Nem pensar
que a Fisher vai fazer com ele o que fez com o Seb. Nem pensar,
foda-se. Isto vai ser nos termos dele e sem contragolpes.
Finalmente, ele vira-se para ela e estende-lhe o copo:
– A si – diz-lhe, com um deslumbrante sorriso. – Ao seu triunfo. E
que consiga tudo – e, quando digo tudo, é mesmo tudo – o que
merece.
Agradecimentos

Este foi o livro que eu terminei durante o confinamento, naquele


estranho período de meia vida que me deveria ter facilitado a
concentração, mas que, por uma estranha razão, não conseguiu
fazê-lo. Foi um ano de turbulências para todos, incluindo a indústria
livreira, mas a “Equipa Fawley” somou e seguiu, adaptando-se às
circunstâncias, experimentando novas abordagens e, basicamente,
seguindo em frente e recusando ser derrotada. Por isso, ainda que
eu sempre lhes agradeça a cada livro, acho que, desta vez,
merecem ainda mais a minha gratidão. À minha fabulosa editora
Katy Loftus e a toda a equipa da Penguin Viking – Jane Gentle,
Olivia Mead, Ellie Hudson, Georgia Taylor e Vikki Moynes. À minha
excecional agente Anna Power, à Hélène Butler e também a toda a
malta da Johnson & Alcock, que agora elevaram a 25 as edições no
estrangeiro. À minha revisora, Karen Whitlock, e a toda a equipa de
produção na Penguin, liderada pela Emma Brown. À Jessica
Barnfield e à equipa de audiolivros da Penguin, bem como –
obviamente – ao Lee Ingleby e à Emma Cunniffe, por
desempenharem tão bem o seu papel de narradores. À Julia
Connolly, que concebeu o novo design da capa, que de facto levou o
visual dos livros a todo um outro nível. E, por último, mas não menos
importante, aos dedicadíssimos “amantes do crime” da Dead Good
pelo seu apoio. A minha “equipa auxiliar” foi mais uma vez soberba
– Inspetor-Chefe Andy Thompson, Joey Giddings, Nicholas Syfret
QC e o novo elemento do grupo, o Dr. Paul Zollinger-Read. Nenhum
dos meus livros seriam os mesmos sem o seu know-how
profissional e a incansável disponibilidade de o partilharem.
Quaisquer imprecisões que se mantenham serão da minha
exclusiva responsabilidade.
Agradeço também aos meus “primeiros leitores”, cujas visões e
sugestões fizeram uma enorme diferença nas retas finais – desta
vez, provavelmente mais ainda do que nos livros anteriores: o meu
marido Simon, Sarah Wall, Stephen Gill, Richard Croker, Deborah
Woudhuysen, Andrew Weltch, Peter Croxford, Elizabeth Price,
Neera Gajjar, Stuart Fletcher e Trish Fletcher.
Uma das coisas de que eu mais senti falta este ano foram os
encontros com os meus leitores e outros escritores em feiras,
festivais e vários eventos literários. Ergo o meu copo a um 2022
mais adequado e adaptado às circunstâncias, e, entretanto, gostaria
de agradecer a alguns dos meus colegas escritores pelo seu apoio e
alento, sobretudo online: Ian Rankin, Shari Lapena, John Marrs, JP
Delaney e Simon Lelic.
E mais um agradecimento muito especial neste livro em
particular. Ao longo da minha pesquisa, ouvi muitos podcasts de
crimes reais: em parte, por diversão, claro, mas também para
conseguir encontrar o tom e o estilo certos para os episódios de
“Toda a Verdade” constantes no livro. Um dos melhores foi o Shreds,
feito pela Ceri Jackson, da BBC. Ela foi gentil ao ponto de me
conceder uma entrevista para a minha newsletter e também de
partilhar comigo o layout tipicamente usado nos scripts dos podcasts
(e vocês sabem a nerd que eu sou nesse tipo de coisas!).
Finalmente: é provável que já tenham ouvido a notícia de que
vendemos os direitos televisivos para uma série para a Castlefield
TV, do grupo Freemantle. São uma produtora fabulosa, e, para mim,
isso representou um genuíno momento sonho-tornado-realidade.
Mal posso esperar para ver o que eles vão fazer dos meus livros! E,
claro está, como será o casting…

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