Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Toda A Verdade - Cara Hunter
Toda A Verdade - Cara Hunter
ISBN 978-972-0-67247-6
Para a Judith
Uma senhora muito especial
Anteriormente… nos casos Fawley
Este é o quinto livro da saga Fawley, pelo que, caro leitor, se for
o primeiro que vai ler, gostará certamente de ficar com um resumo
rápido dos elementos-chave da equipa, para começar bem e sem
mais demoras. Começando, claro está, pelo homem em si…
– Quem é que quer mais frisante? Pai, tu nem sequer vais guiar,
por isso não há desculpas.
O Stephen Sheldon sorri para a filha, atrás dele, com a garrafa
na mão.
– Oh, OK, serve-me lá. A única coisa boa de ser velho que nem
um dinossauro é não ter de me ralar com a porra das diretrizes do
governo quanto ao consumo de álcool.
A mulher lança-lhe um olhar severo, mas compassivo; ambos
sabem que ele tem de ter cuidado com a saúde, mas é o seu
aniversário e ele bem merece uma folga.
A Nell Heneghan debruça-se e serve-lhe o copo.
– Setenta não é velho, pai. Muito menos nos dias de hoje.
– Diz isso aos meus ossos – responde-lhe ele com uma risada,
enquanto ela dá a volta à mesa servindo os restantes.
Procuro a mão da Alex por baixo da mesa e sinto o tecido fino do
vestido resvalar-lhe da coxa nua. Só Deus sabe o que é estar
grávida de trinta e cinco semanas com este calor. Tem gotas de
transpiração sobre o lábio superior e uma leve ruga entre as
sobrancelhas – que os outros provavelmente não veem. Eu tinha
razão: isto tem sido demasiado duro para ela. Bem lhe disse para
não o fazermos, que ninguém estava à espera que o fizéssemos,
sobretudo com este calor, e a Nell, ainda por cima, ofereceu-se para
ser em casa dela – mas a Alex insistiu. Disse que era a nossa vez,
que não era justo que fosse a irmã a fazê-lo dois anos seguidos.
Mas não foi essa a verdadeira razão. Ela sabe; eu sei. À medida que
a gravidez avança, o mundo da Alex contrai-se. Praticamente já não
sai de casa, e quanto a ter de fazer vinte quilómetros até
Abingdon… é para esquecer. Disse à Nell que era apenas
ansiedade com o bebé, e ela concordou, que também se sentira
assim nesta fase, que era normalíssimo a Alex estar apreensiva. E
tem razão. Ou teria, se fosse apenas disso que se trata.
Lá fora, no jardim, os filhos da Nell jogam à bola com o cão,
marcando e defendendo penaltis à vez. Têm onze e nove anos, os
miúdos. O Jake já teria doze. Já não seria um menino pequeno, mas
também não demasiado crescido. Por vezes, antes de a Alex ter
engravidado de novo, dava por mim a imaginar como seriam eles
juntos, o Jake e os primos. Ele nunca se mostrou muito interessado
em desporto, mas será que estaria agora aqui? A jogar à bola com
eles? Uma parte de mim gosta de pensar que o faria por
generosidade ou para agradar à mãe ou porque gostava de cães;
mas outra gostaria de o ver tão rebelde e pouco cooperante quanto
qualquer outro miúdo de doze anos. Aprendi da pior maneira que é
facílimo começar a beatificar um filho que já não está connosco.
A Audrey Sheldon apanha o meu olhar e trocamos sorrisos: o
dela, bondoso; o meu, algo inibido. Os pais da Alex compreendem
melhor do que ninguém aquilo por que passámos quando perdemos
o Jake, mas a simpatia da Audrey é como o seu cheesecake de
limão – agradável, mas só se aguenta até certo ponto. Levanto-me e
começo a retirar os pratos. O Gerry, o marido da Nell, faz uma
tímida tentativa de aproximação, mas eu dou-lhe uma palmada
amigável no ombro, mantendo-o firmemente no seu lugar.
– Tu é que trouxeste tudo; agora, é a minha vez.
A Alex dedica-me um olhar grato quando eu lhe levanto o prato
da sobremesa. O pai tem passado os últimos dez minutos a incitá-la
docemente: “Come, querida.” Há coisas na maternidade e na
paternidade que nunca mudam. A minha mãe faz o mesmo comigo.
E, daqui a vinte anos, estarei eu a fazer igual. Filho és, pai serás.
Na cozinha, vejo a Nell a encher a máquina de lavar e, ainda que
esteja a fazer tudo mal, resisto ao impulso de intervir, porque sei que
isso a chateia; a Alex diz que as máquinas de lavar são como os
barbecues – os homens não resistem a intrometer-se. A Nell sorri
quando me vê. Gosto dela, sempre gostei. Tão inteligente quanto a
irmã e igualmente direta e incisiva. Têm uma boa vida, ela e o Gerry.
Casa (geminada), esqui (Val d’Isère), cão (Dino, supostamente um
cockerpoo1, mas a julgar pelo tamanho das patas há ali qualquer
coisa de urso polar). É avaliador de riscos (o Gerry, não o cão) e,
para ser completamente franco, acho o Dino bem mais interessante
‒ mas a única pessoa a quem eu alguma vez disse isto foi a mim
próprio.
Agora é a Nell que olha para mim, e eu sei exatamente o que é
que esse olhar significa. Ela quer Dizer Qualquer Coisa. E, à boa
maneira da Nell, atira logo a matar. Tal como a irmã.
– Ando um bocado preocupada com ela, Adam. Não me parece
nada bem.
Respiro fundo.
– Sei o que queres dizer, e este maldito calor não ajuda nada.
Mas ela tem sido seguida regularmente. Muito mais do que a
maioria das mulheres no estado dela.
Mas a maioria das mulheres no estado dela nunca foram
hospitalizadas por tensão alta ou obrigadas a ficarem na cama em
repouso total.
A Nell recosta-se na bancada e pega num pano para limpar as
mãos.
– Ela praticamente não comeu nada.
– Eu esforço-me, a sério que sim, mas…
– E parece completamente exausta.
Olha-me de testa franzida. Porque, seja o que for que se passe,
só pode ser culpa minha, certo? Lá fora no jardim, o Ben marca um
golo e desata a correr pela relva com a t-shirt levantada sobre a
cabeça. A Nell olha vagamente para lá e, depois, volta a fixar-me.
Tento de novo:
– Ela não anda a dormir bem… Sabes como é, o último trimestre.
Não consegue arranjar posição.
Mas a Nell continua de testa franzida. Ouvimos o Nicky gritar que
o golo foi aldrabado. O Gerry levanta-se e vai à janela, dizendo ao
filho que tenha fairplay, naquele tom paternalista que todos nós
juramos a pés juntos que não usamos. Outra coisa que parece não
mudar no que toca a ter filhos.
– Ouve – digo –, não é nada fácil com o meu trabalho, mas eu
faço tudo aquilo que posso lá em casa. E temos uma empregada,
uma vez por semana, para as outras tarefas.
A Nell está de olho nos filhos.
– Há pouco, estivemos a conversar – diz, sem olhar para mim. –
Disse-me que estás a dormir no quarto de hóspedes.
Concordo:
– Para não a acordar. Sobretudo porque agora me levanto de
madrugada quatro vezes por semana, para ir à porcaria do ginásio.
Ela volta-se para mim:
– Continua a ser lixado?
A expressão que acompanha as palavras é fria, mas não cruel: a
Nell também é ex-fumadora. Sabe tudo sobre estratégias de
cessação tabágica.
Experimento um sorriso irónico.
– Um pesadelo. Mas estou no bom caminho.
Ela olha-me de alto a baixo.
– E estás a ficar tonificado. Fica-te bem.
Rio-me.
– Bom, isso é o raio de um milagre, considerando que devoro um
tubo de mints por hora.
Após uma pausa, ela acaba por sorrir, ainda que tristemente.
– Cuida dela, Adam. OK? Ela está tão ansiosa… Este bebé
significa tanto para ela. Nem sei o que aconteceria se… – Cala-se,
morde o lábio e afasta o olhar.
– Ouve, Nell… eu não deixo que nada aconteça à Alex. Nem
agora nem nunca. Sabes isso, não sabes?
Ela ergue a cabeça; depois, assente, e eu espero. Sei o que ela
quer dizer e por que razão está com tanta dificuldade em fazê-lo.
– Li no jornal – diz, por fim. – Ele saiu, não foi? O Gavin Parrie?
– Sim, saiu. – Forço-a a olhar para mim. – Mas está em
condicional. E sob regras e condições muito estritas. Onde pode ir,
com quem pode estar…
O lábio treme-lhe ligeiramente.
– E vai ter uma daquelas cenas, tipo… identificador, certo?
Saberão por onde ele anda vinte e quatro horas por dia?
Abano a cabeça:
– A maioria desses aparelhos não é assim tão precisa. Ainda
não. O identificador está associado à morada do agressor. Se ele
sair de um determinado alcance, os serviços de monitorização
recebem um alerta.
– Mas, como disse o Gerry, se ele se aproximar ainda que
remotamente daqui, enfiam-no na prisão na hora. Certo?
Respiro fundo:
– Certo.
– E porque haveria ele de correr um risco tão grande, não é? –
Ela quer claramente que eu concorde, que lhe desvalorize os
medos. – Ele não é estúpido, tem demasiado a perder.
– Claro.
– Desculpa – diz ela, com um suspiro. – Deves estar a pensar
que eu sou uma exagerada. Só que… não consigo deixar de pensar
naquelas ameaças que ele fez no tribunal…
Ela jamais entenderá o quão difícil é ser-se o homem que ela
quer que eu seja. Mas eu tento, mesmo assim:
– Ele estava só a descarregar a raiva, Nell. Acontece muito. E
não acho nada que estejas a exagerar. As famílias preocupam-se
sempre quando os agressores são libertados. As outras vítimas
estão certamente a passar pelo mesmo.
– Mas, pelo menos, a Alex tem-te a ti – diz-me, com um sorriso
vacilante. – O seu agente de proteção privado.
Não confio em mim o suficiente para responder a isto, mas
felizmente não preciso. Ela afaga-me gentilmente o braço e pega na
pilha de pratos sujos.
– Vai lá, que eu já vou. Devem estar todos a perguntar o que é
que estamos para aqui a congeminar.
Enquanto me dirijo à sala, penso no que ela teria dito se
soubesse a verdade.
O Gavin Parrie não é estúpido, lá nisso ela está certa. E teria
mesmo muito a perder, isso também é um facto. Mas ele tem uma
razão. Razão essa que… talvez valha o risco.
Vingança.
Porque ele não estava apenas a descarregar a raiva, naquele
dia, no tribunal.
Ele é culpado. Ele sabe disso, e eu sei disso. Mas há outra coisa
que ambos sabemos.
O Gavin Parrie foi condenado com base numa mentira.
***
Daily Mail
21 de dezembro 1999
***
***
Também está calor em Boars Hill, mas, seja como for, aqui
parece muito mais suportável. Em parte, devido certamente à
altitude, mas a piscina de dez metros e o respetivo bar, convidativo e
bem abastecido, também são de uma grande ajuda. E isso tem
igualmente que ver com altitude, ainda que seja uma elevação de
um género bastante diferente. Não era preciso ser-se um elemento
do DIC – efetivo e bem remunerado – para deduzir, só pela morada,
que tipo de casa seria, mas Garreth Quinn ficou, mesmo assim,
bastante impressionado quando viu o que estava por detrás dos
portões de ferro que se abriram ao seu Audi A4, acabadinho de
lavar, aspirar e encerar, para a ocasião. Um bom meio hectare de
relvados (também arranjadinhos para a ocasião, mas isso não é
suposto ele saber), um parterre2 e laranjeiras, e uma dispersão do
que os agentes imobiliários provavelmente apelidariam de “anexos
de apoio à zona exterior”, discretamente desviados da vista da
mansão cinzelada em neo-palladiano e da sua perspetiva
ininterrupta d’aquela vista. Ao longe, a fileira de guindastes de
construção resulta claramente infeliz, mas, por outro lado, os
pináculos estendem-se, prazerosos e sonhadores, nesta tarde
quente, tal como Matthew Arnold os viu um dia3.
Quando a conheceu, Quinn não fazia ideia de quanto papel
tinham os pais de Maisie. À primeira vista, ela não passava de mais
uma daquelas miúdas de rabo de cavalo e manicure francesa, com
os seus sorrisos afáveis e vogais abertas. Ele chama-lhes abacates:
rijinhas, prontas e verdes. Se bem que, neste caso, não tão verde ao
ponto de se mostrar disposta a ir para a cama com ele no primeiro
encontro. E, nos dez dias que se seguiram até isso acontecer – um
prazo praticamente inédito para ele –, apercebeu-se de que a miúda
tinha muito mais dentro dela do que o identikit das suas
antecessoras. Fazia-o rir e sabia ouvi-lo, mas não lhe facilitava a
vida, e ele deu por si a ter de explicar os porquês daquilo em que
acreditava, muitos dos quais o surpreenderam. E percebeu – e isto
também se revelou inédito – que gostava mesmo dela, tanto na
cama como fora dela.
Razão pela qual, pese embora sempre ter manifestado uma
reação anafilática à ideia de conhecer os pais das namoradas, ele
não só está aqui, como ainda está aqui, muito depois de ter
concordado com Maisie que estava na hora de irem embora. A
carne estava no ponto, o vinho também, e Ted e Irene Ingram não
são decididamente aquilo que vem escrito no rótulo. Sim, têm
dinheiro a jorros, mas não se inibem de o mostrar. O que, para
Quinn, jamais constituirá um problema. Os dois homens
conversaram durante mais de meia hora sobre a armadilha-de-urso
que foi o Brexit, até que Ingram se descaiu, revelando de que lado
estava. Consequentemente, caíram nos braços um do outro com um
alívio cúmplice.
Posto isto, Quinn tem-se divertido à grande. No momento em que
a chamada lhe chegou ao telemóvel, estava um diabinho a soprar-
lhe a informação de que Maisie era filha única dos Ingram ‒ e, já
que os sogros eram algo de inevitável, estes dois podiam afinal não
ser tão maus quanto isso. Em cima da mesa, uma garrafa de
Sauternes de 1996 e uma caixa de havanos. E claro que Quinn já
tinha passado a chave do carro para as mãos de Maisie. O que,
como indica a expressão no rosto dela, é também algo
absolutamente inédito. Ela está agora a olhá-lo fixamente, enquanto
o telemóvel vai tocando: é o toque das chamadas de trabalho.
Quando pega, finalmente, no telemóvel, Quinn olha em volta com
um sorriso pesaroso.
– Lamento imenso… Não me estariam a ligar se não fosse
realmente importante.
Ingram libera-o com um gesto de mão.
– À vontade. A Maisie já me explicou que isto pode acontecer.
Entendo perfeitamente. O seu trabalho é importantíssimo.
Irene Ingram arrasta discretamente a cadeira para trás, e Maisie
levanta-se de um salto. Começam a levantar os pratos, e Quinn
afasta-se para o jardim. Talvez seja para apanhar mais rede, mas
também pode ser por não querer que o pai de Maisie o oiça a
atender com um “fala o Inspetor Quinn”. A maldita despromoção
sempre presente em tudo o que faz…
Finalmente, e com a devida distância salvaguardada, atende a
chamada:
– Fala o Inspetor Quinn.
– É o Woods.
Quinn ouve o barulho do trânsito em fundo: Woods está de
certeza na receção. Ouve-o pedir mil desculpas por estar a
incomodá-lo a um sábado, mas depreende pelo tom de voz que, se
ele também não teve o raio do fim de semana livre, por que diabos o
DIC haveria de ter?
– Acabei de falar com o diretor da Edith Launceleve. Precisa
urgentemente de falar com o Fawley.
Quinn estranha:
– E que é feito do inspetor de serviço?
– Já tentei, mas não está ninguém. Lamento.
– OK, então…
Woods interrompe-o:
– Teria ligado ao Gislingham, enquanto inspetor-coordenador,
mas uma vez que ele está fora até quarta-feira…
Quinn ignora a picada. Já se habituou às bocas-tudo-menos-
subtis acerca da sua despromoção. Podia ter pedido transferência,
porém, ao decidir não fazê-lo, sabia o preço a pagar. A culpa afinal
era dele e só dele: deixou que o coiso falasse mais alto e envolveu-
se com uma suspeita. Foi uma sorte não ter sido despedido. Mas
eles que esperem para ver: ele vai conseguir recuperar a patente. É
só uma questão de tempo. Aliás, quem sabe… talvez esta chamada
seja a sua oportunidade de ouro. Com Gis fora, talvez seja a sua
grande chance de mostrar a sua categoria. A que tem agora e
sempre teve.
– Sem problema – diz, em tom falsamente ligeiro. – O que é que
tens para mim?
Assim que Woods acaba o seu relato, já não lhe parece tanto
uma oportunidade de vinte e quatro quilates, mas não há razão para
que Ingram perceba isso. No que lhe diz respeito, trata-se de um
caso urgente e seriíssimo de homicídio, que requer a atenção de um
superinspetor designado apenas para causas maiores. O tipo de
homem, segreda-lhe o diabinho, que Ingram de bom grado acolherá
como genro. Quinn endireita os ombros, ergue o queixo e atravessa
de novo o relvado em direção à piscina.
***
Adam Fawley
7 de julho, 2018
14h35
Uma chamada do Quinn era a última coisa de que eu estava à
espera. Ele está em casa dos pais da namorada – fez questão de
mostrar quão descontraído estava em relação ao assunto, o que,
para mim, indica precisamente o oposto. Mas é o Quinn a ser o
Quinn. Está a substituir o Gislingham, enquanto ele está fora, mas
neste momento não temos nenhum caso importante – certamente
nada que mereça um telefonema ao fim de semana. Mas eu devia
ter percebido que o Quinn iria adorar a oportunidade de agir a solo
novamente, ainda que eu tenha deixado bem claro que as funções
dele seriam de apoio não oficial e não de atuação oficial.
Ainda estamos todos à mesa quando ele me liga. A tarde já
atingiu a fase morna, se bem que o pai da Alex continue
animadíssimo – tagarela como já não o via há anos. Sempre gostei
do Stephen. É a vantagem dos sogros: são da mesma idade dos
nossos pais, e podemos até conhecê-los desde crianças, mas, se
tivermos sorte – e eu tive –, eles apoiam-nos sem nos tocarem nos
pontos fracos. Ainda que talvez seja por não saberem quais são os
nossos pontos fracos..
Perante o toque do telemóvel, a Alex lança-me um olhar ansioso,
mas não diz nada. Tem uma mão pousada sobre o ventre redondo,
a outra brinca com o guardanapo. Já está a ficar cansada. Tenho
mesmo de ir preparando esta malta para a eventualidade de terem
de ir embora.
Lá fora no pátio, atendo finalmente a chamada:
– Desculpe incomodá-lo, chefe. É só para informar que vou
agora encontrar-me com a Ev na Edith Launceleve. Houve um
incidente envolvendo um estudante.
Estranho. Sei que, nesta fase, o Quinn tem tido mil cuidados para
não fazer merda, mas por que raio é que ele me está a ligar para
dizer isto? Até que me lembro que a maior parte dos alunos já
entrou de férias, por isso é pouco provável que se trate de um
simples caso de bebedeira, seguida de escaramuça, decorrente dos
festejos de fim de curso.
– De que é que se trata concretamente?
– Ainda não sei.
– Então porque é que…
– O diretor pediu expressamente que fosse o chefe a lá ir.
Chama-se Hilary Reynolds. Diz-lhe alguma coisa?
Pouca, e há já muito tempo… Uma conferência, há coisa de dois
anos?
– Pesquisei-o – diz Quinn –, e parece tratar-se de um conhecido
advogado especializado em direitos humanos.
Eu estava certo. Foi mesmo naquela conferência em…
– Acabou de ser designado para aquela comissão parlamentar
consultiva sobre as tarifas vitalícias4. O chefe sabe… aquela de que
o Bob O’Dwyer faz parte?…
Era mesmo do que estávamos a precisar: o Robert O’Dwyer é o
vice-chefe da polícia. Mas há que dar crédito ao Quinn por ter
verificado tudo isto, em vez de se lançar de cabeça, qual Cavaleiro
Solitário.
– OK, ainda preciso de falar com os meus sogros, mas, em
princípio, estarei lá dentro de uma hora.
***
***
***
Adam Fawley
7 de julho, 2018
15h17
***
***
[IVY PARRIE]
Olá, Gav, é a mãe. Só queria que soubesses que recebi a tua mensagem
sobre a audiência. Estamos todos a torcer por ti, aqui, amor, e a Jocelyn e a
sua equipa estão a dar tudo por tudo a teu favor. Até para a semana.
[JOCELYN]
O meu nome é Jocelyn Naismith e sou a pessoa referida naquele áudio.
A voz que ouviram é da Mrs. Ivy Parrie. Ivy tem setenta e seis anos, vive em
Coventry, e acabaram de a ouvir deixar uma mensagem de voz ao filho. Não
lhe pôde ligar diretamente porque ele está preso. Em Wandsworth, mais
precisamente.
A cumprir uma pena de prisão perpétua por um crime que ele sempre alegou
que não cometeu.
Esta série de podcasts conta a história do Gavin. Antes de mais, como ele foi
condenado, o que a organização “Toda a Verdade” veio a descobrir sobre a
investigação inicial e a razão pela qual acreditamos que o verdadeiro
criminoso continua por aí à solta.
[JOCELYN]
O Bob Dylan escreveu este tema em 1968, o ano em que o Gavin Parrie
nasceu.
O segundo de três rapazes Parrie, ensanduichado entre o mais velho, Neil, e
o mais novo, Robert (a quem a família trata por Bobby). A mãe trabalhava em
part-time como repositora num supermercado da zona, e o pai, Vernon, era
empregado da então fábrica de automóveis British Leyland, nos arredores de
Oxford.
A família vivia numa pequena casa geminada na Cowley Road, e os três
rapazes andaram na escola primária da zona e, mais tarde, na Temple Green
Secondary Modern.
O Ken Waring foi professor do Gavin, no seu primeiro ano, na Temple Green.
[KEN WARING]
Ele era algo rebelde, não há como fugir a isso. Sempre metido em sarilhos.
Mas nunca o achei um mau rapaz. Tinha dificuldades na leitura, mas, vendo
as coisas em retrospetiva, creio que talvez fosse disléxico. Mas, na altura,
claro que não havia esse tipo de diagnósticos, e os apoios eram praticamente
nulos. Miúdos como ele tornavam-se disruptivos apenas porque sentiam
dificuldades em acompanhar o ritmo. Mas lembro-me que ele tinha imenso
jeito de mãos.
Tinha sempre boas notas em trabalhos oficinais, sobretudo a trabalhar com
madeira e metal. Acho que eu assumi que ele seguiria as pisadas do pai na
indústria automóvel. Era o que a maioria dos nossos rapazes fazia.
[JOCELYN]
Por volta de 1984, a família mudou-se para Manchester. O Vernon Parrie fora
despedido da fábrica, mas conseguiu assegurar outro emprego numa fábrica
de montagem de camiões, mais a norte. Foi uma fase complicada para o
Gavin que, como já sabemos, tinha dificuldades na escola. A mudança para
uma escola nova representou um desafio demasiado penoso, e o Gavin
abandonou o ensino nesse verão, sem nenhumas qualificações.
Foi por essa altura que o Gavin conheceu a mulher que viria a tornar-se sua
esposa.
A Sandra Powell tinha dezasseis anos, e as fotos dela do álbum de família
mostram uma típica adolescente dos anos oitenta, divertida e despreocupada.
[SANDRA]
Eu sei, eu sei, mas nessa altura todas fazíamos permanentes destas. A minha
mãe fazia-mas ela própria, na nossa cozinha.
Nem sequer me lembro da última vez que olhei para estas fotos. E não posso
acreditar que vestia estas roupas – olhem só estas perneiras. Onde raio é que
nós tínhamos a cabeça?
[JOCELYN]
Esta é a Sandra. Como podem ver pelo tom de voz, permanece nela algum do
espírito alegre e atrevido dessa altura, ainda que os anos que se seguiram
não tenham sido nada fáceis. Atualmente, vive na Escócia e voltou a adotar o
nome de solteira (saberemos porquê num episódio mais à frente), mas nunca
deixou de manter contacto com o Gavin e sempre foi uma acérrima defensora
da sua inocência.
Mas já estamos a pôr o carro à frente dos bois. Voltemos a 1986.
[SANDRA]
[JOCELYN]
É uma fotografia melosa, e não é só por estarem a comer algodão-doce. O
Gavin tem um sorriso tímido e um corte de cabelo mullet que o torna parecido
com o David Cassidy. A Sandra faz pose para a câmara e, ainda que tenha
menos dois anos do que ele, parece mais mundana, muito mais madura.
Segundo a própria Sandra, essa é uma reflexão bastante precisa dos
primeiros tempos da relação deles.
[SANDRA]
O Gav ainda precisou de bastante tempo para se adaptar a Manchester.
Deixou todos os seus amigos em Cowley, e creio que se ressentiu com isso.
Também não se dava lá muito bem com o pai, por isso era bastante solitário.
Eu fui a sua primeira namorada a sério, isso eu sei. Nessa altura, ele não era
nada confiante – levou imenso tempo a convidar-me para sair. Tanto, que eu
cheguei a pensar que não estava interessado.
[JOCELYN]
Mas, assim que começaram a namorar, as coisas evoluíram muito depressa.
Três meses depois, a Sandra estava grávida e, no fim desse mesmo ano,
foram pais de uma menina, a Dawn.
[DAWN MACLEAN]
A minha primeira recordação do pai? Acho que foi ele a ensinar-me a andar
de bicicleta, tinha eu uns seis anos.
[JOCELYN]
Esta é a Dawn. Hoje em dia, é esteticista qualificada, casada e com dois
filhos, e vive em Stirling.
[DAWN]
Recebi a bicicleta no dia dos meus anos e lembro-me que choveu a potes
durante todo o dia – sabem como é Manchester –, mas ele passou muitas
horas comigo lá fora, à chuva, enquanto eu me tentava equilibrar, rua abaixo,
rua acima.
Ele nem sempre era assim tão paciente. Lembro-me que odiava tudo o que
implicasse papelada ou preencher formulários – a mãe é que tinha de tratar
das coisas da Segurança Social ou das cenas que tinham que ver com as
nossas escolas. Acho que ele sempre foi um tanto receoso dessas pessoas.
Pessoas com autoridade. Ele dizia que elas estavam sempre prontas para nos
apanhar. E, se pensarmos bem, até tinha razão, certo?
[JOCELYN]
Na década seguinte, a Sandra e o Gavin tiveram mais dois filhos. A Sandra
trabalhava como cabeleireira, mas o Gavin continuava sempre limitado a
trabalhos temporários, por isso o dinheiro nunca chegava e eles não
conseguiam safar-se sem apoios do Estado. Passados uns tempos, a tensão
começou a dar sinais.
[DAWN]
A partir dos meus onze anos, percebi que o meu pai passava por dificuldades.
Ele nunca usaria esta expressão, claro, mas eu sabia que ele não era feliz.
Parecia que estava sempre zangado, e acho que bebia demasiado, e isso
deixava-o ainda mais irritado. E infeliz. Lembro-me, uma vez, de o ter
apanhado lavado em lágrimas, lá em cima no quarto. Foi a primeira vez que
eu vi um homem chorar, e assustei-me imenso. Foi a partir daí que as coisas
começaram a correr mal.
[JOCELYN]
Estávamos em 1997. A 2 de maio desse ano, uma rapariga de dezasseis anos
foi atacada na Lockhart Avenue, em Manchester. Foi arrastada para uma zona
de vegetação rasteira, violada e deixada ali, à beira da estrada.
Era o Gavin. Estava nas instalações da Gretar Manchester Police – tinha sido
detido.
Por violação.
[MÚSICA DE FUNDO: “I FOUGHT THE LAW AND THE LAW WON” – THE CLASH]
[FADE OUT]
***
Adam Fawley
7 de julho, 2018
15h49
***
***
***
Sábado, 16h15
***
Adam Fawley
7 de julho, 2018
16h35
***
***
Adam Fawley
7 de julho, 2018
16h56
O filho deve ter descido para ir ter com ela, já que ouvimos a
Marina Fisher falar com o miúdo ao fundo das escadas. Uma mãe
de classe média alta perfeitamente afinada: a voz ligeiramente
elevada, sem propriamente ouvir. Parece-me decidida,
descontraída. Despreocupada.
– Quero que vejas o meu desenho, mamã!
– Sim, querido… Que menino talentoso que tu és.
Passos cada vez mais próximos, saltos batendo nos degraus de
madeira.
– Quero mostrar-te agora! – O tom é meio suplicante, meio
birrento. – É importante!
– Querido, a mamã neste momento tem coisas para fazer.
Tobin… para. Já te disse que isso magoa.
Oiço a criança bater com os pés no chão.
– Mas não é justo! Quero que fales comigo! Não com eles!
Uma pausa.
– Eles quem, querido? De que é que estás a falar?
Ao chegar à sala, a sua expressão altera-se:
– Mas… quem são vocês?
***
***
Adam Fawley
7 de julho, 2018
16h58
Ela tem, sem dúvida, uma forte presença, mesmo nesta sala
enorme. Não é particularmente alta, mas de uma elegância
evidente. E com confiança bastante para se safar lindamente, não
apenas com o vestidinho de verão bem curto, mas também com as
sandálias tipo gladiador pela barriga da perna e um chapéu de palha
de aba larga – acessórios que mereceriam um belo revirar de olhos
por parte da Alex, se ela estivesse aqui. O look resulta num claro
contraste com a formalidade das fotos nas escadas, mas também é
claro que o estilo pessoal da Fisher é muito menos aprumadinho
quando ela não está sob o escrutínio público. Veem-se madeixas
acobreadas no longo rabo de cavalo louro; a maquilhagem está
irrepreensível, mesmo com este calor. Ao ponto de, de onde estou
sentado, ela não parecer ter mais de vinte e cinco anos.
O tom encrespado com que se nos dirigiu é compreensível: dois
estranhos – dois homens estranhos – sozinhos cá em casa, com o
filho de oito anos e uma doméstica que não fala inglês. E não
estamos fardados.
Levanto-me e dirijo-me a ela, exibindo o meu crachá:
– Inspetor-Chefe Adam Fawley. Este é o meu colega, o Inspetor
Asante.
Ela baixa a mão, pousando-a na cabeça do filho, agora
instintivamente protetora. O menino está meio escondido atrás da
mãe, agarrado à sua perna, o polegar na boca.
– Talvez a outra senhora, a que nos recebeu, possa olhar pelo
seu filho, enquanto conversamos? Creio que é melhor.
Ela fixa-me por um momento e assente.
Baixa-se e fala em tom doce:
– Tobin, podes ir pedir à Beatriz que te dê um copo de leite?
– Não quero leite, quero uma Fanta.
– Pronto, está bem. Mas só desta vez. – Soergue-se e empurra-o
suavemente em direção às escadas. – Lindo menino. A mãe não
demora.
Esperamos todos que os passos da criança se desvaneçam
pelas escadas, até que ela se volta de novo para mim:
– Talvez agora me possa explicar o que fazem aqui?…
– Queremos fazer-lhe algumas perguntas. Acerca da noite de
ontem.
Ela parece confusa, perplexa, um resquício do sorriso frio a
pairar-lhe ainda nos lábios vermelho-escuros. Como se isto pudesse
ser um engano. Como se amanhã pudesse divertir as amigas com
este absurdo, ao sabor de gins artesanais de ruibarbo e tamarindo.
– Isto só pode ser alguma piada – comenta.
Mas nenhum de nós está a rir-se.
***
Adam Fawley
7 de julho, 2018
17h04
***
***
***
Adam Fawley
7 de julho, 2018
18h43
***
***
Adam Fawley
7 de julho, 2018
19h24
***
***
Adam Fawley
7 de julho, 2018
19h47
***
* * *
Adam Fawley
7 de julho, 2018
19h53
* * *
* * *
Clive Conway despacha-se rapidamente na casa da St. Luke
Street. Não há muito que possa fazer. As duas flutes de champanhe
já tinham sido lavadas e já estavam a secar. E, sem indícios claros
de luta, ele não sabe muito bem o que é que o DIC espera
encontrar. Tira as últimas fotografias, anota mentalmente que, à
saída, deve ir buscar a garrafa vazia de champanhe ao contentor da
reciclagem e enfia as duas flutes num saco de prova.
Prepara-se para sair quando recebe a chamada:
– Conway? Fala Tony Asante. A Marina Fisher vai ser acusada, e
temos um problema.
– Ai sim?
– Ela não tem o telemóvel com ela. Pensou que o tinha trazido,
mas não o encontra na carteira. Acha que só pode estar na Edith
Launceleve ou aí em casa. Pode ver se o encontra?
Clive olha em volta, na cozinha.
– Aqui em baixo, não vejo nada, mas vou dar uma olhadela lá
acima.
– Ótimo, obrigado. E, já agora, traga também o laptop, se
encontrar algum. O Fawley quer que lhe analisemos o telemóvel,
uma vez que isto se vai tornar bastante delicado. Só para jogar pelo
seguro.
– OK. Se eu encontrar alguma coisa, aviso.
Acaba de guardar o material na mala e sobe até à sala, olhando
atentamente à sua volta. Não tarda a encontrar o telemóvel, deixado
a carregar na mesa de centro. Mete-o num saco de prova e guarda-
o na mala. Só nesse momento repara que o miúdo tem estado na
sala o tempo todo, sentado numa mesa baixa, junto à janela do
fundo, tão absorto no que está a fazer, que nem parece aperceber-
se de que está alguém ali.
Clive observa discretamente o garoto. Trabalha sobre um grande
livro de colorir por números, numa enorme e intricada imagem do
que parece ser São Jorge e o Dragão. Se fosse um dos seus filhos,
as cores estariam esborratadas e fora das linhas, mas este miúdo
tem claramente mais paciência e muito melhor coordenação do que
os seus três rebentos todos juntos.
– Isso está excelente – diz-lhe, em tom alegre. – Deve ajudar
termos tantas cores por onde escolher.
Os rapazes de Conway também tinham caixas Caran d’Ache,
mas ele nunca tinha visto uma daquele tamanho, com três camadas.
Devia haver ali para cima de cem lápis. Fica junto dele por mais uns
segundos e, sempre que o rapazinho acaba de pintar com uma cor,
vê que ele arruma cuidadosamente o lápis no lugar onde estava. A
mesa permanece arrumada, os lápis da caixa num degradê perfeito
‒ o único som que se ouve é o do riscar na folha.
***
Quando Conway sai, ouve-se a porta a fechar-se atrás de si. A
Monmouth House fica numa esquina, por isso, ao contrário da
maioria dos seus vizinhos, Marina Fisher tem acesso lateral a casa e
não tem de lidar com o maior problema dos proprietários das
varandas georgianas, de Bath a Bloomsbury: O Que Fazer Com a
Porra dos Contentores. Os dela estão impecavelmente arrumados
na parte de dentro do portão lateral, fora de vista, num canto
especialmente concebido para tal, rodeado de bonitas plantas
trepadeiras. Conway abre o contentor de reciclagem para vidros e
encontra a garrafa de champanhe, tal como esperava, mesmo por
cima. Mete-a num saco de prova e, quando se prepara para fechar a
tampa, repara em algo que surge logo por baixo. Franze
ligeiramente a testa e hesita por um momento; depois, tira um novo
saco de prova de dentro da sua mala.
***
Adam Fawley
7 de julho, 2018
20h15
***
***
***
Sábado, 20h15
Agora mesmo, quando fui aos contentores, ele estava lá. Outra vez.
Estacionado do lado de lá da rua, suficientemente longe para saber que
eu não conseguiria vê-lo – pelo menos, não distintamente. Depois,
passaram duas mulheres por ele, com carrinhos de bebé, que acho que
devem tê-lo topado, porque, assim que elas se aproximaram, ele
arrancou.
Mas eu sei que era ele. Sei que sim.
Ele esteve aqui.
***
Adam Fawley
7 de julho, 2018
21h54
Quando chego a casa, está tudo escuro. Apenas uma luz fraca
na cozinha e um bilhete a dizer que há salada de frango no
frigorífico, se me apetecer. Sirvo-me de um copo de Merlot e subo. A
porta do quarto do bebé está aberta. Era o quarto do Jake. Há coisa
de dois meses, passámos um fim de semana inteiro a emalar
cuidadosamente as coisas dele. Não discutimos o assunto – não
precisámos. Sabíamos que tinha chegado a hora. E, agora, tudo o
que aqui está é novo. Papel de parede, mobília, roupa de cama,
cortinas; pilhas de roupa de bebé ainda nas embalagens,
intercomunicador ao lado do berço. Ainda se sente um ligeiro odor a
tinta. Tinta amarelo-pálido. O quarto é todo em amarelo e branco –
nem o menor laivo de rosa ou azul. A Alex já sabe o sexo da criança
há meses, mas nunca se descaiu nem uma única vez. Lá em baixo,
a lista de nomes continua presa com um íman no frigorífico, cheia de
sugestões femininas e masculinas. Com pontos de interrogação a
vermelho ou vistos verdes à frente de cada nome. Parece termos
acordado em Lily Rose para menina, mas, para rapaz, a coisa não
está nada fácil. Ela gosta de Stephen, em homenagem ao pai, mas
eu detesto Steve; eu gosto de Gabriel, mas ela não suporta Gabe.
Impasse.
Percorro o corredor pé ante pé, entreabro ligeiramente a porta do
nosso quarto e fico ali um momento, à escuta.
Lá fora, oiço uma sirene ao fundo, o ruído abafado do trânsito na
circunvalação, o canto tardio de um melro.
Mas aqui, no quarto, a minha mulher adormecida murmura
docemente no sono, agitada em sonhos inquietos.
***
***
***
***
***
***
***
Adam Fawley
8 de julho, 2018
10h20
***
***
Adam Fawley
8 de julho, 2018
13h45
***
– Caleb?
A linha está cheia de ruídos e interferências, mas ele reconhece
a voz:
– Olá, mãe.
– Liguei para… enfim, para saber como estás.
Ele estranha. Há uma demora na linha, entre as frases; uma
demora internacional que não deveria existir.
– Não era suposto teres regressado hoje?
Um suspiro. Ou talvez outra interferência.
– Lamento, querido, mas surgiu um imprevisto. Só consegui
reunião com o senador para sexta-feira. Mas consegui reagendar as
outras e, uma vez que estão em recesso, não vi necessidade de
regressar a correr.
Agora, é ele que suspira. Claramente que ele não é visto como
uma necessidade.
– Já falaste com o teu pai?
Caleb revira os olhos.
– Não. Eles continuam em Sydney. Tu sabes isso.
– Não precisas de usar esse tom – diz ela rispidamente. – Pelo
menos, estou a tentar fazer alguma coisa. Sim, porque ele anda
demasiado ocupado a ser um paizinho modernaço para ter tempo
para apoiar o seu primogénito.
Ele morde a língua. A mãe não é menos ausente do que o pai,
trata-se apenas de um tipo diferente de distância. Mas ele sabe por
experiência própria que não lhe serve de nada dizê-lo.
– Enfim – prossegue a mãe –, eu falei com a Meredith e pu-la a
par de tudo… E eles vão ligar-te, OK?
Agora, ele sente-se na merda, porque de facto, por uma vez, ela
fez alguma coisa.
– Obrigada, mãe.
– Para ti, só o melhor, meu querido – diz ela, num tom meio
cantado de mártir. – Ficas bem entregue, a Meredith tem imensa
experiência nestas situações. Por isso, faz aquilo que ela te disser,
OK? Ah, e outra coisa: não deixes que te intimidem, ouviste? Muitas
vítimas desistem porque a polícia e o MP dificultam demasiado
esses processos.
Ele sorri para si mesmo.
– Não te preocupes, mãe. Tenho tudo controlado.
***
Adam Fawley
9 de julho, 2018
08h45
***
***
***
Adam Fawley
9 de julho, 2018
09h34
O Bryan Gow tem um ar irritantemente fresco nas suas calças
chino cremes e um blazer a condizer, num look que eu nunca lhe vi
antes. Também tem óculos novos e – ainda mais espantoso – um
corte de cabelo decente. Trabalhamos juntos há mais de cinco anos,
mas a sua vida pessoal continua a ser um enigma para mim.
Sempre assumi que ele tinha muitos hobbies-para-totós, daqueles
que consomem o tempo que seria necessário para manter uma
relação, mas este seu novo look sugere que eu estava enganado.
Quem sabe talvez exista mesmo uma mulher por aí que se interesse
por um obcecado por matemática, trainspotting e guerra civil.
– Interessante – diz ele, erguendo os olhos do processo. – Mas
isto não é mais um caso business as usual, pois não?
Faço uma careta.
– Diria que é mais um número de equilibrismo no arame sobre a
porra de um campo minado. A mãe do Morgan é a Petra Newson.
O outro abre os olhos de espanto.
– Ah. Estou a ver. Que grande porra.
– Pois…
– Então, precisas que eu reveja as entrevistas?
Abro o laptop.
– A da Fisher, sobretudo. O Asante diz que lhe cheira a esturro.
Que a linguagem corporal dela está toda errada. Mas pode estar em
jogo um sem-número de hipóteses. Como te digo, é um campo
minado.
– Verdade. Mas o Inspetor Asante é um tipo inteligente. Bom,
deixa-me lá ver isso.
***
***
Adam Fawley
9 de julho, 2018
10h57
***
***
Adam Fawley
9 de julho, 2018
11h20
O Gow anda para trás no vídeo, vê-o de novo, desta vez em slow
motion e sem som. Eu também o vejo, frame a frame. A Fisher
mantém o contacto visual, as mãos em sossego à sua frente. Não
demonstra nenhum nervosismo denunciador nem um simples bater
do pé. Tem o corpo controlado, os movimentos reduzidos ao
mínimo.
– E aqui – diz o Gow –, foi quando lhe perguntaste como é que
rasgou o vestido. Repara como ela reage.
No ecrã, vemos a Fisher fazer uma pausa e vociferar “Não me
lembro”. É tudo. O Gow carrega no stop, anda para trás e passa a
gravação mais uma vez, ainda mais lentamente.
– Reparaste agora?
– Em que é que é suposto eu reparar?
– Mesmo antes de ela falar, faz um pequeníssimo assentir de
cabeça. É quase impercetível, mas está lá. As palavras dela dizem
uma coisa, mas o corpo diz outra. No geral, a postura dela é
bastante impressionante, mas um microgesto como aquele… está
fora do controlo da mente consciente. Mesmo que a mente em
questão pertença a uma professora de Oxford.
– Queres dizer que achas que ela se lembra de como rasgou o
vestido, só que não quer dizer?
– Seria esse o meu palpite, sim.
– Mas, quando ela diz que não se lembra de ter tido qualquer
contacto físico com o Morgan, isso pareceu-te genuíno?
– Sim – responde ele, lentamente, mas agora de testa franzida.
Tal como eu. Há aqui qualquer coisa que não bate certo.
O Gow hesita e chega-se à frente na cadeira.
– Por algum acaso, tens a gravação do depoimento do Morgan?
***
Adam Fawley
9 de julho, 2018
11h52
***
– Alguma coisa interessante?
Baxter olha para a colega. Somer está atrás dele, olhando por
cima do seu ombro para o telemóvel.
Ele aponta para o aparelho.
– A Ev tinha razão quanto ao prosecco. A Marina Fisher compra
o vinho às caixas na Brothers & Rudd. E também gasta um balúrdio
em roupa, pelo menos uma milena por mês. Ah, e tem mais de dez
mil seguidores no Twitter… E esta?
Somer assente:
– Não me espanta. Nada do que disseste, aliás. – Parece
absorta, enquanto brinca com uma madeixa de cabelo.
– Tirando isso – prossegue Baxter –, não tenho muito mais. E,
pelo que percebi, não havia nada entre o Morgan e a Fisher até esta
bomba rebentar.
Somer rodeia a secretária e fica de frente para o colega.
– E que diferença é que isso faria?
Está a olhá-lo fixamente, os punhos cerrados; ele estranha. De
onde é que isto veio? Não é nada o género dela.
– Sim, mas é que…
– Achas que lá por estarmos num relacionamento com alguém
não dizemos que não? É isso?
Baxter cora. Pelo canto do olho, pressente Asante a observá-los.
Tem estado a escrever no laptop, mas já não está. Agora, olha-os
fixamente. E a sala está praticamente em silêncio.
– Claro que não. Mas pode fazer a diferença – em tribunal –, e tu
sabes disso. Olha o que aconteceu com aquele caso da Met…
– Eu não acredito nisto – diz ela, girando nos calcanhares e
afastando-se. – Não acredito mesmo nesta porra!
Baxter fica a vê-la sair; depois, volta-se para Asante:
– Falhou-me aqui alguma coisa?
O outro encolhe os ombros.
– Não me perguntes.
***
Adam Fawley
9 de julho, 2018
12h18
***
***
Adam Fawley
9 de julho, 2018
14h25
***
***
***
Enviado: Ter 10/07/2018, 10:35 Importância: Alta
De: InspKarlJacobs@PoliciaBritanicadeTransportes.uk
Para: CID@ThamesValley.police.uk
Karl Jacobs
Inspetor, Polícia Britânica dos Transportes, Oxfordshire
Centro Ferroviário de Oxford, Park End St., Oxford, OX 1 1HN
***
[FADE OUT]
[JOCELYN]
As coisas podem até vir a melhorar para o país, mas, para algumas pessoas,
o dia 2 de março de 1977 marcou o pior momento das suas vidas.
Uma jovem chamada Paula, para começar. Passou essa noite nas Urgências
do Manchester Royal Infirmary, depois de ter sido atacada e sexualmente
violentada.
E, para o Gavin Parrie, essa noite espoletou uma série de acontecimentos que
conduziram à sua detenção, condenação e pena de prisão de dezoito anos
pela violação e tentativa de violação de sete raparigas da zona de Oxford.
[JOCELYN]
Chamamos Paula a esta jovem, mas não é esse o seu nome verdadeiro. O
caso dela nunca chegou a ir a julgamento, e a sua identidade sempre se
manteve protegida; mas, ainda que não possamos divulgar o seu nome,
conseguimos reconstruir uma narrativa mais ampla da sua vida através das
pessoas que a conheceram.
Só que a Paula não foi violada por um cliente nem por nenhum dos habituais
consumidores de drogas que por ali circulavam. Ela nunca tinha visto o seu
atacante.
Sexo.
Nos inícios de 1997, a relação entre o Gavin e a mulher, Sandra, estava a
desmoronar-se.
[SANDRA]
Tudo o que fazíamos era discutir. Sobre as crianças, a casa, o dinheiro.
Sobretudo o dinheiro. Os irmãos do Gavin tinham ambos empregos fixos, mas
ele continuava com trabalhos temporários e sempre a ter de lhes pedinchar
para lhe arranjarem trabalhos aqui e ali. Eu acho que ele considerava isso
humilhante, sobretudo perante o Bobby, sendo ele o mais novo, e tudo isso.
No fim, ele passava a maior parte do tempo deitado no sofá a ver televisão e a
beber sidra. Depois, saía e ficava fora a noite toda. Chegava de madrugada,
todo marado e maldisposto, quando eu estava a acordar para preparar os
miúdos para a escola.
[JOCELYN]
Estavam longe de ter um estilo de vida desafogado, e deve ter sido por esta
altura que o Gavin começou a desenvolver diabetes tipo 1, ainda que o
diagnóstico oficial só tenha chegado anos depois. E chamo a atenção para o
facto de este ser outro pormenor aparentemente insignificante, mas que virá a
revelar-se importante mais tarde.
Mas, em 1997, não era a apenas a saúde do Gavin que estava ameaçada.
[SANDRA]
Chegou a um ponto em que as coisas começaram a ter um impacto sobre os
miúdos – andavam sempre em bicos de pés na presença dele e o Stacey
começou a arranjar problemas na escola. Foi aí que eu percebi que tinha de
fazer alguma coisa. Não era justo para eles, já nem pensando em mim. Mas
fiz questão de deixar sempre registado que ele nunca me bateu. Sim, era um
homem raivoso, raivoso pra caraças, mas era tudo dirigido a ele próprio. Ele
sentia que tinha falhado. Como marido, como pai. Como homem.
[JOCELYN]
A Sandra não quer ser entrevistada sobre isto na televisão, mas torna-se
claro, ao falar com ela, que este não era o único aspeto no casamento que
tinha dado para o torto. A parte física da relação também se tinha deteriorado,
sobretudo depois do nascimento do terceiro filho, o Ryan, em 1995. Não levou
muito tempo até o Gavin se voltar para as prostitutas, à procura de sexo.
O facto de o Gavin ter escolhido o dia 2 de maio para a sua primeira incursão
no red ligh district de Manchester foi mais um exemplo da sua habitual má
sorte.
Na altura, ele conduzia uma carrinha branca – outro desenrascanço do irmão
mais novo, o Bobby. A maior parte das raparigas que trabalhava nesse troço
lembra-se de o ter visto.
[“DEXI”]
Era uma miúda porreira. Esperta e muito magrinha. As outras costumavam
tratá-la como uma filha. Acho que tinham medo que ela atraísse os
pervertidos, com aquele ar tão novinho, e tudo isso. Ela não era tão frágil
quanto parecia, se bem que por vezes fosse um bocado intensa de mais.
Muito ingénua, ‘tão a ver? Que é a última coisa que devemos ser neste
trabalho. Temos de aprender a ser boas a farejar os tarados. Aqueles que só
querem fazer-nos mal. E ela, nisso, era uma merda.
[JOCELYN]
A Paula pode ter sido um pouco ingénua, sim, mas não se tornou uma vítima
por causa disso. Não se meteu com o toxicodependente errado, porque não
foi um toxicodependente que a atacou. O homem que a atacou agarrou-a por
trás, arrastou-a até a uma zona de vegetação rasteira e amarrou-lhe os pulsos
com fio elétrico, antes de a tentar violar.
E, se acham que isto vos soa familiar, têm razão: estes detalhes acabaram
por se tornar as marcas características do predador que a imprensa mais
tarde haveria de batizar como “O Violador da Beira da Estrada”.
Mas isso foi tudo meses depois. Em 1997, tudo o que a polícia sabia era que
a Paula tinha sido violentamente atacada. E enfrentaram uma penosa batalha
para encontrarem o culpado, porque não havia ADN nem perícias forenses.
Mas tinham uma coisa do lado deles.
A Paula viu quem a atacou. Apenas por um momento, quando ele se levantou
de um salto e fugiu pela noite dentro. Ela viu-lhe o rosto.
Então, tudo o que tinham que fazer era encontrá-lo. Porque sabiam que,
assim que o metessem numa fila de reconhecimento, teriam o seu homem.
Simples, certo? Errado.
[DESMOND WHITE]
A primeira vez que vi o Gavin, ele estava na sala de detenção da esquadra da
Polícia da Northampton Road.
[JOCELYN]
Este é o Des White. Era advogado do Gavin, na altura. Ou melhor, era o
advogado da Legal Aid, que estava de plantão na noite em que o Gavin foi
preso.
Isto passou-se pouco depois das onze do dia 5, três dias após a Paula ter sido
atacada. Mas muita coisa aconteceu nesse espaço de três dias.
[DESMOND]
Depois do ataque, houve uma gigantesca operação policial na Lockhart
Avenue.
E a maioria das raparigas foi extremamente colaborante. Afinal, eram as mais
interessadas em que não houvesse um predador sexual à solta por aí.
[JOCELYN]
Acabou por se verificar que nenhuma das raparigas viu o que aconteceu com
a Paula, ainda que uma delas tenha visto um homem de sweat preta, de
capuz, a fugir, por volta da hora em que o ataque decorreu. Mas isso só por si
não serviu de muito. A polícia precisava de mais. E, dois dias depois,
conseguiram-no.
[JOCELYN]
O Gavin foi conduzido para a esquadra da Northampton Road e interrogado
ao longo de várias horas, durante as quais ele se recusou terminantemente a
responder a qualquer pergunta. Mas isso não preocupou a polícia.
Continuavam a achar que tinham o homem certo; precisavam apenas que a
Paula o identificasse.
E o caso ficaria encerrado.
Não.
[DESMOND]
Isto deveria ser assunto encerrado. Mas as coisas nem sempre correm como
deveriam correr, sobretudo quando envolve o sistema de justiça criminal.
A polícia não acreditou que a Paula não reconhecesse ninguém – alguns dos
agentes começaram logo a especular que ela tinha sido intimidada, que o
Gavin havia de ter conseguido contactá-la sabe-se lá como e assustá-la o
suficiente para a manter calada.
Até que, a 27 de janeiro de 1998, uma jovem de vinte e três anos chamada
Erin Pope, quando ia para casa depois do trabalho, foi arrastada por uma rua
dos arredores de Oxford. Amarraram-lhe as mãos com um cabo elétrico e
enfiaram-lhe um saco de plástico pela cabeça. Foi encontrada uma hora
depois, gravemente agredida, sem roupa interior e com uma madeixa enorme
arrancada do couro cabeludo.
[FADE OUT]
***
***
***
***
– OK, Baxter, começa pelas redes sociais dela. Ev, tu ficas com
os pais… e, Somer, quero que vás falar com os colegas dela,
sobretudo aquela que foi lá a casa.
De volta a St. Aldate, com Quinn alegre e freneticamente no
comando. Isto, sim. Um verdadeiro trabalho policial. Não está a
menosprezar o caso do assédio sexual, claro, mas todo esse campo
é uma verdadeira armadilha-de-urso: a mais pequena coisa pode
correr muito mal. Quinn gosta dos seus crimes claros e precisos.
Nada de ciladas ocultas, nada que volte ao local do crime para o
morder no rabo. Uma chance de realmente conquistar alguma coisa.
Chegar a algo concreto. E se por acaso conseguir resolver isto
antes de o Gislingham voltar…
Mas, uma hora depois, o seu ânimo inicial já arrefeceu
sobremaneira.
– Não tem Facebook?! Como assim? Vá lá, Baxter, toda a gente
tem Facebook!
– Não – responde Baxter firmemente. – Há imensas pessoas que
não têm. E esta mulher é uma delas. Tem conta de Instagram, mas
fiquei com a ideia de que só a criou para postar fotos do jogging e
que, ao fim de dez ou doze, perdeu o interesse. Não tem Twitter, e o
LinkedIn é mesmo só uma cena profissional e que tem que ver com
o seu trabalho no concelho municipal. Quem quer que seja o gajo
que ela deixou entrar em casa na noite passada, aposto que não
vamos encontrá-lo aí.
Quinn franze a testa e suspira:
– OK, OK, mas continua essa pesquisa, sim? Ela vive sozinha,
por isso quase que apostava que está no Tinder ou no Match.com…
ou outras cenas dessas.
É a vez de Baxter soltar um longo suspiro, mas não discute.
– Certo – prossegue Quinn. – E quanto ao resto? O telemóvel,
Ev?…
Ela olha para ele.
– O último sinal foi às 21h47 de ontem, no seu apartamento.
Nada mais depois disso.
– E os pais? Conseguiste localizá-los?
Ela confirma:
– Sim, mas não acrescentaram grande coisa. Não faziam sequer
ideia de que pudesse existir um namorado… aliás, não lhe
conhecem amizades masculinas. Fiquei com a sensação de que não
sabem muito sobre a vida privada da filha.
– Quando foi a última vez que falaram com ela?
Ev folheia as suas anotações.
– Há duas semanas, mais ou menos. No aniversário do pai. Mas
ela só telefonou, não apareceu. Eles vivem em Bourne, por isso
seria um belo de um esticão. Olha, eu, por exemplo, não estava
para fazer duas horas de estrada com este calorão.
Quinn estranha:
– Mas eu achei que ela não tinha carro.
– Não – diz-lhe ela, ligeiramente corada. – Pois, não tem. Peço
desculpa, foi só uma força de expressão.
– Então, e a Somer? – pergunta Quinn, olhando em volta. – Não
era suposto ela ir falar com os colegas dela? Onde é que ela anda?
– Ah – responde Everett rapidamente. – Foi só tomar um café
decente, num instante. Deve estar mesmo aí a aparecer.
***
***
***
***
***
Quando Everett regressa a St. Aldate, Quinn vai logo ter com ela.
Basta-lhe olhar para ele para perceber que há algo de errado.
– O que foi? – pergunta, com o coração aos pulos. – O que é que
se passa?
– O Colin Boddie mandou-me isto.
Passa-lhe o telemóvel. Ela não quer que seja verdade, mas a
fotografia não deixa margens para dúvidas: o cabelo, o rosto…
– É ela, não é?
Everett engole em seco.
– Sim – diz, num fio de voz. – É ela.
***
***
***
[DISCURSO DE ARQUIVO DO SUPERINTENDENTE MICHAEL OSWALD, POLÍCIA DE
THAMES VALLEY, 7 SET 1998]
[JOCELYN]
Este é o Superintendente Michael Oswald a dirigir-se a uma conferência de
imprensa, na segunda-feira, 7 de setembro de 1998. Na noite da sexta-feira
anterior, o Violador da Beira da Estrada tinha atacado a sua terceira vítima,
outra jovem mulher.
[JOCELYN]
A segunda vítima do violador, Jodie Hewitt, uma estudante de Biologia de
dezanove anos, fora tão brutalmente agredida, que teve de passar dez dias no
hospital. Jodie frequentava na altura o segundo ano na Wykeham College;
nas semanas que se seguiram à sua violação, começaram a circular rumores
de que um violador em série andava a operar na cidade. As pessoas entraram
em pânico, exigindo mais polícia, à noite, nas ruas. Mas depois… nada. Os
dias começaram a ficar mais longos, os estudantes entraram em férias de
verão – e, mesmo não tendo a polícia feito quaisquer progressos óbvios na
investigação dos dois primeiros ataques, pelo menos não houve mais
nenhum.
[ROSEY MABIN]
Chamava-se Geral Butler, um antigo soldado do Exército e segurança numa
discoteca da cidade.
[JOCELYN]
Esta é a Rose Mabin, jornalista. Denunciou o ataque do Violador da Beira da
Estrada no Oxford Mail e esteve presente no julgamento do Gavin Parrie, no
Tribunal Central Criminal.
[ROSEY]
O Butler disse ao júri que viu a jovem deitada na beira da estrada, com a cara
para baixo. Tinha um saco de plástico enfiado na cabeça, e estava um homem
em cima dela a tentar amarrar-lhe as mãos com fio elétrico. O atacante era
magro, com cerca de um metro e oitenta, e vestia uma sweat preta de capuz.
[JOCELYN]
Escusado será dizer que, na altura, não existiam redes sociais; por isso, levou
ainda dias – em vez de minutos – para a notícia do terceiro ataque se
espalhar. Mas a Polícia de Thames Valley sabia que os seus piores receios se
tinham confirmado: a sua bête noire estava de volta. Convocaram a
conferência de imprensa que ouvimos no início deste episódio, porque sabiam
que tinham de fazer alguma coisa para acalmar o pânico dos habitantes
locais.
[ROSEY]
Por acaso, fui eu que lancei a alcunha de “Violador da Beira da Estrada”. Já
lhe chamavam Oxford Ripper, mas, depois daquela conferência de imprensa,
escrevi uma notícia de primeira página chamando-lhe “Violador da Beira da
Estrada”, e a coisa pegou.
[JOCELYN]
E é fácil perceber porquê. Era um nome que captava todo o terror de um
predador que atacava as suas vítimas a céu aberto, em ruas que elas
percorriam no seu dia a dia, a escassos metros de outros transeuntes. Essas
vítimas eram, regra geral, raparigas que seguiam calmamente nas suas vidas.
Mas era precisamente essa normalidade que era tão aterradora. Porque, se
lhes acontecia a elas, podia acontecer a qualquer uma. Não admira que as
pessoas andassem apavoradas, não admira que as jovens residentes em
Oxford evitassem sair sozinhas, sobretudo ao escurecer.
[“MR. X”]
À medida que o tempo ia passando, via-se claramente um padrão a emergir.
[JOCELYN]
Estas foram as palavras de um dos inspetores que trabalharam no caso. Que
pediu que a voz fosse disfarçada para proteger a sua identidade.
[“MR. X”]
Não era só o MO que era igualzinho de todas as vezes. O saco de plástico, os
fios elétricos, o cabelo, o sacar de troféus, como joias ou roupa interior. Ao fim
de algum tempo, convencemo-nos de que este homem escolhia as zonas dos
ataques com particular cuidado. Todos ocorreram em troços de estradas que
não tinham câmaras escondidas ou sistema de CCTV, onde existia densa
vegetação, praticamente colada ao passeio, e sempre fora da vista de casas
ou prédios. Isto sugeria que este perpetrador fazia um reconhecimento
detalhado dos locais com a devida antecedência.
[JOCELYN]
Os agentes da Thames Valley interrogaram de facto as pessoas que viviam
perto, mas nunca obtiveram nenhuma informação relevante. Não tinham
indícios, não tinham pistas. Mas em devido tempo… chegaram a uma nova
teoria.
[“MR. X”]
Foi um dos inspetores-coordenadores da equipa que sugeriu que o violador
não se limitava a analisar os locais dos crimes com antecedência: também
perseguia as suas vítimas.
[JOCELYN]
O nome desse inspetor-coordenador era Adam Fawley. E este não foi o único
contributo positivo que ele deu a esta investigação. Aliás, o seu trabalho neste
caso acabaria por lhe valer um louvor do Superintendente da Polícia, o que
lhe acelerou a promoção a Inspetor-Coordenador.
Porque foi o Adam Fawley que ajudou a sustentar a evidência que condenou
o Gavin Parrie.
Assim, poderíamos dizer com bastante propriedade que este caso mudou a
vida do Adam Fawley. E não apenas a nível profissional, acrescente-se.
Era uma advogada que toda a vida tinha morado em Oxford. E era também a
terceira vítima do Violador da Beira da Estrada.
***
***
***
***
***
– Mr. Cleland?
– Sim… O que é que deseja?
O homem no degrau da entrada da casa veste uns calções
brancos de bom corte e uma camisa às riscas cor-de-rosa vivo, por
fora dos calções. Atrás dele, o casarão em todo o seu esplendor,
florido, imaculadamente preservado e bastante maior do que o
estritamente necessário. Se alguma vez existisse um concurso para
O Proprietário Mais Parecido Com a Sua Casa, este tipo ganhava de
caras.
Asante mostra-lhe o crachá.
– Inspetor Anthony Asante – diz-lhe, na sua melhor voz-de-
colégio-privado. Percebeu que isso ajudava, em OX2.
O homem estranha:
– Ai sim? – Olha rapidamente para o caminho de acesso à casa
e parece aliviado ao constatar que o seu Range Rover ainda lá está.
– Do que é que se trata?
– Posso entrar? É um pouco complicado.
O homem hesita, olha para Asante de alto a baixo, mas decide
claramente que é seguro deixá-lo entrar em casa. Talvez seja da
gravata Burberry. Também isso tende a ajudar.
A sala faz lembrar a Asante a casa dos pais, em Holland Park.
Mobiliário caríssimo, gravuras antigas emolduradas a dourado, livros
de arte em mesas de centro. Mas em casa dos pais há uma
tranquilidade, uma naturalidade que ele não pressente de todo aqui.
Olha em volta, tentando perceber porquê. Talvez seja o exagero de
decantadores (três, ainda vá, mas cinco? Quem é que precisa de
cinco decantadores?) ou o facto de todas as gravuras parecerem
exibir pessoas a matarem coisas. Ou talvez seja por estar tudo tão
imaculado, um tanto arrumado em demasia. Não consegue imaginar
uma criança aqui, por exemplo. Lá fora, no jardim, está uma mulher
sentada debaixo de um guarda-sol, naquilo a que Cleland sem
dúvida apelidará de terraço.
– É a sua mulher?
Cleland franze de novo a testa.
– Sim. Porquê?
– Talvez ela se pudesse juntar a nós? Poupava-me eu ter de
dizer tudo duas vezes.
O sulco da testa de Cleland aprofunda-se, mas nada diz,
limitando-se a dirigir-se às portas francesas.
– Marianne… podes chegar aqui, por favor?
A mulher veste um biquíni turquesa por baixo de um vestidinho
branco translúcido. Tem o mesmo ar próspero e bem conservado do
marido, mas é magra e alongada como um louva-a-deus. Asante
pressente-lhe uma certa fragilidade sob a maquilhagem
irrepreensível e o cabelo de corte e cor caríssimos. Cleland está
agora de pé, mesmo no centro da sala, com as mãos nos bolsos; a
presença dele enche o compartimento.
– E então? Pode dizer-nos do que é que se trata? – quer saber.
– Creio que os senhores são clientes dos serviços de
acolhimento e adoção do concelho municipal?…
A mulher abre os olhos e lança um brevíssimo olhar de relance
ao marido.
– Isso é confidencial, como sabe – responde ele. – E nada que
lhe diga respeito.
– Posso garantir-lhe que não sei rigorosamente nada sobre a
vossa candidatura, Mr. Cleland, ou das vossas circunstâncias. Sei
apenas que estiveram recentemente nos escritórios deles.
Marianne Cleland intervém; tudo nela parece cauteloso.
– Se isto tem que ver alguma coisa com…
– Deixa-me tratar disto – diz, Cleland, cortando-lhe a palavra.
Ergue ligeiramente o queixo e continua: – Sim, estivemos lá há duas
ou três semanas. Toda aquela operação é uma palhaçada. Eles até
deveriam deitar foguetes por terem pessoas como nós, não?
Asante mantém-se absolutamente imperturbável, a expressão
neutra.
– E que tipo de pessoas é esse, Mr. Cleland?
O homem faz um gesto largo com o braço.
– Já viu bem esta casa? Que criança no seu juízo perfeito não
aceitaria o que temos para lhe oferecer?
Em vez de responder, Asante opta por tirar o bloco de notas do
bolso.
– Creio que reuniram com a Ms. Smith, correto?
Cleland parece irritado:
– Para que é que está a perguntar, se já sabe a resposta?
– Preciso de esclarecer as coisas, só isso. Foi com a Ms. Smith
que falaram?
– Ela era a responsável pelo nosso caso, sim – responde a
mulher. – Uma jovem muito simpática e…
– O rosto da incompetência, isso, sim… aliás, como as outras
todas – lança Cleland. – Oiça lá, mas houve alguma queixa ou quê?
Asante nega:
– Não, senhor. A Ms. Smith não fez queixa nenhuma.
– E então?
– A Ms. Smith foi assassinada.
A mulher solta um leve arquejo, mas, até nesse momento, o
olhar dirige-se ao marido.
Cleland fixa Asante, as faces subitamente coradas.
– Se por algum acaso está a sugerir que…
– Não estou a sugerir coisa alguma – diz Asante. – Apenas a
fazer perguntas. É o que se faz numa investigação de homicídio.
A palavra cai como uma bomba.
– Oiça – diz Cleland –, eu não sei que raio aconteceu a essa
mulher, mas nós não tivemos rigorosamente nada que ver com isso.
Pessoas como nós… não andam por aí a matar gente. Mesmo
quando… – Cala-se, afasta o olhar e morde o lábio.
– Mesmo quando…? – repete Asante, impassível.
Cleland respira fundo antes de responder:
– OK. Oiça: você certamente já saberá que tivemos uma
discussão, certo? É por isso que cá está, não é? Pois bem. Sim,
tivemos. Não tenho problema nenhum em admiti-lo. Ela informou-
nos que fomos rejeitados. Que não éramos… – faz o gesto de aspas
com os dedos – … elegíveis. Provavelmente, não conseguimos
suficientes pontos em humildade e comiseração e essas coisas.
Demasiado ricos, demasiado snobes, demasiado brancos… porra, a
verdade é só essa! – Cala-se, parece considerar, passa a mão pelo
cabelo. – Eu fiquei lixado, OK? Chateado. Qualquer um na minha
posição ficaria.
Muito possivelmente, pensa Asante, mas nem todos reagiriam
como tu.
– Viram ou contactaram a Ms. Smith depois dessa última
reunião? – pergunta.
Cleland cora profundamente.
– Eu… posso ter-lhe enviado um email… no calor do momento.
Sabe como é…
– Isso é um sim?
Cleland assente.
– Voltou ao escritório? Tentou encontrá-la de alguma maneira?
– Não. De modo nenhum.
– Falei há pouco com um casal que é acompanhado por uma das
colegas da Ms. Smith, e eles disseram que o senhor foi visto à porta
do escritório deles, poucos dias depois da vossa última reunião. –
Folheia as suas notas. – Por volta das cinco da tarde do dia 25 de
junho, para ser mais preciso.
Cleland pisca os olhos várias vezes.
– Eu… fui às compras. Há uma loja de vinhos mais ou menos
decente nessa rua, umas portas mais abaixo.
Asante concorda:
– Muito bem. Então, a loja deverá ter algum registo?
– Não… não cheguei a comprar nada. Não nesse dia.
Asante toma notas e faz questão de levar o seu tempo.
– Então, não esperava encontrar a Ms. Smith? Talvez tentar
apanhá-la à saída do trabalho, ao fim do dia…?
– De maneira nenhuma!
– Ou talvez tenha pensado que seria mais discreto ir até casa
dela? Ver se conseguia fazê-la mudar de ideias?
– Claro que não! – explode ele. – Para já, não faço a menor ideia
de onde é que ela vive.
A mulher intervém:
– Seja como for, o Hugh jamais…
– Já te disse – lançou Cleland, sem olhar para ela –, deixa-me
ser eu a resolver isto.
– Onde é que esteve na noite passada, Mr. Cleland?
Cleland abre a boca, mas volta a fechá-la.
– Ontem à noite?
Asante assente, de caneta em riste.
Cleland coça a parte de trás do pescoço. O contacto visual foi-se.
– Saí para uma corridinha.
– Exatamente – diz a mulher. – E até levaste o carro.
Asante estranha:
– Não disse que foi correr?
– Disse. Eu geralmente corro em Shotover.
Asante toma nota; a sua expressão é séria, pensativa. Shotover
deve ficar entre cinco a dez quilómetros daqui, o que a torna uma
estranha opção, tendo em conta que Cleland tem os parques da
Universidade praticamente à porta ‒ e não parece nada o género de
homem de aguentar muito mais do que um circuito curto e tranquilo.
E mesmo assim… Mas a proximidade pode não ter nada que ver
com isso: o Shotover Country Park não fica a mais de dez minutos
da morada de Smith, em Shrivenham Close. Uma morada que
Cleland alega desconhecer.
Mas o homem à porta dela usava equipamento de corrida.
***
***
– Então, temos um avistamento categórico do Cleland junto ao
escritório dela a 25 de junho e um homem à sua porta, vestido com
equipamento de corrida, na noite em que ela desapareceu.
Quinn está em frente ao quadro branco, escrevendo
furiosamente. Volta-se para o grupo:
– Que mais?
– Os serviços de adoção não fornecem os contactos nem as
moradas dos seus funcionários – diz Asante. – Por isso, se o
Cleland andou mesmo a rondar por lá nessa noite, é porque
descobriu onde ela morava de outra maneira qualquer.
Quinn pergunta:
– Cadernos eleitorais?
Baxter ergue o olhar do computador, tecla qualquer coisa e
franze a cara.
– Pois, de facto ela consta deles, mas apenas como E. Smith. Há
dúzias e dúzias deles. Ou delas.
– Bom – diz Quinn –, ele pode tê-la seguido até casa. Esse
avistamento… foi perto do final do dia, certo?
– Hum… sim – concorda Asante, claramente pouco convencido
–, mas a vizinha da Smith disse que ela deixou o homem entrar.
Teria alguma razão para convidar o Cleland para casa dela? Ela
sabia como ele era, ele já a tinha ameaçado… mandou-lhe aquele
email ordinário…
Baxter encolhe os ombros.
– Talvez ele lhe tenha dito que queria pedir desculpa pelo seu
comportamento? Gajos como este sabem bem acionar o botão do
charme quando é preciso.
– Continuo a achar que ela não o teria deixado entrar – intervém
Somer, em tom firme. – Se fosse eu, nem a porra da porta lhe abria.
– OK, mas não é impossível, pois não? – insiste Baxter. –
Digamos que ele a convenceu que vinha em paz. Ela oferece-lhe
uma bebida, sentam-se para conversar, mas às tantas ela diz-lhe
alguma coisa que o chateia… sei lá, que não se sente preparada
para alterar a sua decisão. O gajo fica furioso, é corpulento…
enquanto ela terá pouco mais de sessenta quilos. Ou nem isso.
Quinn concorda:
– Sim, estou a ver a cena. Aliás, até estou a vê-lo a matá-la.
Mas… e a violação? Isso já é um bocado exagero, não?
Baxter franze a testa. Mas Quinn tem razão: a coisa não encaixa.
– Por outro lado – prossegue Quinn –, estou definitivamente a
vê-lo a entrar em pânico a seguir e a tentar fazer com que a coisa
pareça suicídio.
Regressa para junto do quadro e bate no mapa com a caneta.
– E a ponte de Walton Well fica praticamente em linha reta do
apartamento da Smith até ao casarão do Cleland, em Lechlade
Road.
– Podemos verificar no sistema automático de reconhecimento
de matrículas – diz Baxter, regressando ao teclado. – Pelo menos,
ficamos a saber do que estamos à procura. Aquele Range Rover
não passa propriamente despercebido.
– E, já agora, verifica também se os Cleland têm um segundo
carro – sugere Asante. – A vizinha disse que viu um carro
normalíssimo, de cor escura, e não um daqueles grandalhões que
parecem da tropa. Palavras dela.
Ev levanta-se e dirige-se ao quadro. Há uma fotografia de
Cleland retirada do site da sua empresa. Está de fato e gravata –
robusto e confiante. Ev volta-se para os colegas:
– A Mrs. Singh disse que o tipo que viu à porta dela era parecido
com o Quinn, lembram-se? Ora, o Cleland não se parece
minimamente com o Quinn.
Quinn dirige-lhe um sorrisinho irónico:
– Entendo isso como um elogio.
Somer olha para Asante.
– Mas o Cleland tem a mesma altura dele, certo?
Asante concorda:
– Sim. Mas tem pelo menos mais uns bons seis quilos.
Somer estranha:
– Bom, a mim parece-me que o Cleland carrega esse peso a
mais na pança. E a Mrs. Singh só o viu de costas.
Olham para a fotografia durante um longo momento. O silêncio
prolonga-se, mas é Baxter quem eventualmente acaba por dizer o
que todos pensam:
– Pode ter sido ele.
– OK – diz Quinn, com o esboço de um sorriso. – Vamos lá
buscá-lo.
***
***
Sem qualquer avistamento reportado desde que ela saiu para trabalhar na
segunda-feira, amigos e vizinhos de uma mulher de Headington receiam cada
vez mais que algo lhe tenha acontecido. Residentes de Srivenham Close dão
conta de uma insistente inquirição porta a porta por agentes do DIC da Polícia
de Thames Valley, e a chegada de uma equipa de polícia científica reforça os
receios de que a mulher, cujo nome permanece no anonimato, pode
encontrar-se numa situação de sério perigo.
***
***
Adam Fawley
10 de julho, 2018
17h09
***
***
AJF
Inspetor-Chefe. DIC, Polícia de Thames Valley
Instalações Policiais de St. Aldate, Oxford OX1 1SZorte
***
Adam Fawley
10 de julho, 2018
20h49
***
***
Adam Fawley
11 de julho, 2018
09h42
***
***
Adam Fawley
11 de julho, 2018
09h59
***
Adam Fawley
11 de julho, 2018
10h04
– Alex…
Ela está deitada na nossa cama, as janelas abertas, as cortinas
mal se mexem.
Deve ter sido algo no meu tom de voz, já que ela abre os olhos e
faz menção de se levantar.
– O que foi? Estás bem?
Avanço um passo.
– Sim, deixa-te estar… Ouve, isto vai parecer de loucos… aliás,
é de loucos, mas a Ruth Gallagher está lá em baixo.
Ela estranha:
– A Ruth? Porquê?
– Veio deter-me.
– Como assim? Deter-te?
– Por homicídio.
Ela escancara os olhos de choque.
– Hã?! Eles acham que… mataste alguém? Mas…
– Não “alguém”. A Emma. Acham que eu matei a Emma.
– Não acredito.
A voz dela é quase inaudível de tão distante.
Ouve-se um ruído à porta e alguém a abre. O King, no seu
maldito fatinho trendy, mais animado do que alguma vez o vi.
Quando o vejo a olhar para a minha mulher, grávida, vulnerável e
linda, noto-lhe um indisfarçável escárnio naquela tromba e tenho de
me esforçar muito – mas mesmo muito – para não lhe assentar um
murro nos cornos.
Apresso-me a dirigir-me a ela e sento-me a seu lado.
– Ouve… tens de acreditar em mim: eu não fiz isto.
Consigo ouvir o King a soltar sonzinhos impacientes atrás de
mim, mas agarro as mãos da minha mulher com força, obrigando-a
a olhar-me nos olhos. Porque este é o momento. O momento em
que ela decide. É advogada, casada com um inspetor. Sabe que as
pessoas não são detidas por capricho, sobretudo sendo polícias.
– Ouve – digo rapidamente, baixando a voz –, eu estive em casa
da Emma…
Ela franze a testa.
– O quê? Quando?
Engulo em seco.
– Naquela noite. – Ela abre a boca para dizer qualquer coisa,
mas eu impeço-a. Não temos tempo. – Ela precisou de um
conselho, nada mais. Achava que estava a ser perseguida. Deve ser
por isso que eles acham que eu… deve haver ADN meu naquele
apartamento…
Sinto a mão do King no meu ombro.
– Já chega. Temos de ir.
Dou-lhe um safanão.
– Hão de mandar uma equipa de busca cá a casa e não deve
tardar nada. Não entres em pânico, é apenas rotina. Deixa-os
fazerem o que precisarem de fazer, mas, quando acabarem, quero
que vás logo para casa da tua irmã e…
– Não – interrompe-me ela rapidamente. – Eu fico aqui. Quero
ficar cá, por ti…
Nego com veemência:
– Não fará nenhuma diferença, eles não te vão deixar ver-me.
Ouve, isto já vai ser suficientemente mau, não quero, ainda por
cima, ficar preocupado contigo… Percebe isso. Preciso de saber
que estás bem, que estás segura, OK? Em casa deles. Fazes isso,
por favor? Por mim?
Ela morde o lábio e acaba por concordar.
– Ligo-te logo que possa e digo-te para onde me levaram.
Porque não será para St. Aldate, disso tenho a certeza.
Ela volta a assentir. Tem os olhos cheios de lágrimas. Faço-lhe
uma festa suave no rosto e outra, rápida e fora da vista do sacana,
no ventre. E levanto-me.
– OK, King – digo.
***
***
Adam Fawley
11 de julho, 2018
11h35
***
– Mrs. Fawley?
O homem estende-lhe o crachá. Ela não o reconhece. Não é um
dos do Adam, isso de certeza. Este é magro, hesitante, pouco à
vontade.
– Inspetor Farrow – diz, aproximando um pouco mais o crachá da
cara dela. – Podemos entrar?
Está uma carrinha estacionada um pouco mais abaixo na rua.
Branca.
Ela sente um arrepio de medo. Só que desta vez é diferente.
Desta vez, ela sabe quem está lá dentro.
***
***
***
[TEMA MUSICAL: AARON NEVILLE VERSÃO COVER DE “I SHALL BE RELEASED”]
[JOCELYN]
Sou a Jocelyn Smith e sou cofundadora de “Toda a Verdade”, uma
organização sem fins lucrativos que luta pela reposição dos erros de
justiça. Esta é a série 3 de “Fazer do Errado Certo: O Violador da Beira
da Estrada Redimido?”.
Devem estar a pensar que “Gesso” é um nome estranho para este episódio.
Mas, no que ao Gavin Parrie diz respeito, é apenas horrivelmente relevante.
[ALISON DONNELLY]
Quero dizer… eu já tinha ouvido falar no Violador da Beira da Estrada – toda a
gente tinha. Mas isso era em Oxford. Abingdon fica a quilómetros de lá. Nunca
ninguém pensou que nos pudesse acontecer a nós.
[JOCELYN]
Esta é a Alison Donnelly. Trata-se da única vítima sobrevivente preparada
para falar publicamente sobre o seu suplício. Na altura, tinha apenas vinte e
um anos.
[ALISON]
Eu ia a caminho de casa e já estava em Larbourough Drive, a escassos
metros do meu apartamento. Tinha estado a chover toda a tarde, as sargetas
estavam todas a transbordar e, quando eu parei para atravessar a rua, passou
um camião enorme e molhou-me toda. Creio que me distraí por um minuto. E
foi aí que aconteceu.
[JOCELYN]
A Alison nem sequer ouviu o homem que lhe apareceu por trás. O homem que
lhe enfiou um saco de plástico pela cabeça e a arrastou para fora da rua até
uma zona de vegetação.
[ALISON]
Eu tentei lutar, resistir, mas não conseguia ver – o plástico colava-se-me à
cara.
Depois, senti-o arrastar-me pelo meio de uns arbustos e atirar-me para as
traseiras de uma carrinha. Senti uma cena de plástico no chão. Nunca tive
tanto medo na minha vida. Julguei que ele me ia matar.
[JOCELYN]
Sabemos agora que o atacante conduziu a Alison até um parque de
estacionamento a mais de dezasseis quilómetros dali, na circunvalação de
Oxford.
[ALISON]
Ele arrastou-me para fora da carrinha e pelo asfalto – pelo menos, foi a
sensação que tive debaixo dos pés. Depois, atirou-me para o chão, de costas,
arrancou-me as cuecas e violou-me. Depois, senti-o sair de cima de mim e
levantar-se, e os passos dele a afastarem-se. Fiquei ali, a suster a respiração,
a rezar para que ele não voltasse.
[JOCELYN]
Mas essas preces não foram ouvidas.
[ALISON]
Uns minutos mais tarde, voltei a ouvir passos, cada vez mais próximos, e,
num segundo, ele já me estava a agarrar e a virar-me brutalmente de cara
para o chão.
Foi tão doloroso… Claro que ele sabia que me estava a magoar, mas isso
nunca o preocupou. Achei que ele me estava a castigar por ter sido tudo tão
rápido da primeira vez.
Tinha uma mão cravada com toda a força na minha nuca, empurrando-me a
cara para o chão, e eu não conseguia respirar. Quando me tentei defender,
ele começou a bater com a minha cabeça no cimento. Dessa vez, não acabou
assim tão depressa.
[JOCELYN]
A Alison sofreu uma fratura do crânio e perdeu a visão de um olho. Os seus
ferimentos foram horrendos.
[ALISON]
A dada altura, devo ter desmaiado, porque, quando dei por mim, só vi luzes
azuis, a polícia e uma ambulância.
[JOCELYN]
A Alison foi imediatamente levada para o JR Hospital, onde foi submetida a
uma cirurgia de urgência. Só cinco semanas depois é que lhe foi dada alta,
considerada suficientemente bem para ir para casa; mesmo assim, passou
por longos meses de reabilitação. Entretanto, e pela primeira vez, a Thames
Valley teve um golpe de sorte.
Encontraram algo impregnado nas solas dos sapatos da Alison, que só pode
ter vindo da parte de trás da carrinha.
[ALISON]
Depois do que aconteceu à Lucy, a polícia pediu-me para fazer uma
reconstituição para ser passada no Crimewatch, e eu disse que sim, porque
queria fazer tudo o que fosse possível para ajudar. Mas foi horrível… foi como
reviver tudo aquilo outra vez.
[JOCELYN]
Como o juiz do tribunal afirmou mais tarde, a Alison mostrou uma coragem e
uma resiliência extraordinárias perante um ataque tão horripilante. E, agora,
vinte anos depois, descobriu uma nova vocação como conselheira, ajudando
outras vítimas de agressão sexual. Por isso, algo de realmente positivo
acabou eventualmente por acontecer à conta do seu verdadeiro martírio.
[FADE OUT]
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
– Alguma novidade?
Somer está uns metros mais à frente, junto ao quadro branco,
observando as fotografias do caso Morgan. A cozinha de Marina
Fisher, o vestido rasgado, a garrafa vazia de champanhe, as fotos
de Caleb tiradas no Centro de Apoio à Vítima de Violência Sexual.
Ev levanta-se e dirige-se à colega, que finalmente parece reparar
na sua presença.
– Desculpa – diz-lhe –, não percebi que estavas aí.
– Uma moeda pelos teus pensamentos? – brinca Ev.
Somer volta-se de novo para o quadro.
– Vi o Tobin Fisher, agora mesmo. Estava lá em baixo à espera
que a mãe acabasse a entrevista. Tinha um livro de colorir com ele –
uma daquelas cenas “educacionais” que as mães modernas como a
Fisher compram para os filhos. Ilustrações de Shakespeare, os
mitos gregos, essas cenas.
– O… K – diz Ev lentamente, perguntando-se aonde isto levará.
– E o que queres dizer é…
– O que quero dizer é que, até ao momento, ele esteve sempre a
colorir uma imagem de cada vez, página a página, uma a seguir à
outra. Mas aquela que ele está a colorir agora já está quase no fim
do livro. Há imensas páginas em branco pelo meio. Ou seja, ele
escolheu deliberadamente colorir aquele desenho.
– E…?
– É isso. O que ele está agora a colorir é uma imagem do São
Jorge e o Dragão. O livro pede que pintem o dragão em diferentes
tons de verde, mas o Tobin ignorou completamente essa instrução.
E eu estive a verificar: ele nunca fez isso com nenhum dos
desenhos anteriores.
Ev estranha:
– E de que cor é que ele está a pintar o dragão?
– Vermelho – diz Somer. – Todo ele no mesmo tom de vermelho.
– Faz uma careta. – E foi então que eu me lembrei disto.
Aponta para uma das fotografias no quadro. Uma do Morgan
tirada por trás. A cabeça dele, o pescoço e as costas. E a tatuagem
no ombro esquerdo.
Um dragão vermelho.
***
***
***
[JOYCELYN]
Como ouvimos no último episódio, a 12 de dezembro de 1998, Lucy
Henderson foi atacada a caminho de casa. Foi atirada para uma carrinha,
levada até a um complexo industrial desmantelado e brutalmente violada.
Uma vez mais, foi encontrado pó de gesso nos seus sapatos e, uma vez mais,
o seu atacante não deixou ADN. Lucy tinha vinte e três anos e era aluna de
pós-graduação na Marchmain College. E foi também a última vítima
conhecida do Violador da Beira da Estrada.
Não que alguém soubesse disso, na altura. Depois de quase um ano sem
aparentes progressos na caça ao homem, o alarme social estava ao rubro.
No Parlamento, faziam-se perguntas, e o chefe da Polícia de Thames Valley
foi pressionado a demitir-se.
Até que, finalmente, se deu a reviravolta por que toda a gente aguardava: a 3
de janeiro de 1999, a polícia faz uma detenção.
[JOYCELYN]
A história de como o Gavin Parrie acabou por ser detido é talvez o aspeto
mais estranho e preocupante de todo este caso. Nessa manhã, a Alexandra
Sheldon, a terceira vítima do Violador da Beira da Estrada, encheu o depósito
do carro de combustível numa estação de serviço da circunvalação de Oxford.
Estava na fila para pagar quando reparou numa coisa – uma coisa que lhe
provocou uma reação violenta e aterradora. E não foi algo que viu ou ouviu,
mas sim algo que cheirou.
[JOYCELYN]
Por outras palavras, os cheiros não são processados pela parte pensante da
nossa mente – e é por isso que o impacto deles é tão forte e imediato. Mas é
também por isso que é preciso ter-se muito cuidado quando se considera a
confiabilidade deste tipo de memória enquanto prova.
Mas, então, de onde é que vinha este cheiro tão marcante? Lembram-se, no
segundo episódio, quando falámos de como o Gavin Parrie desenvolveu
diabetes tipo 1? Pouca gente sabe disto, mas este tipo de diabetes, quando
não tratado convenientemente, pode desenvolver no doente um hálito
característico. Um cheiro a fruta demasiado madura…
[JOYCELYN]
E, ainda por cima, a primeira coisa que a Alexandra Sheldon viu, logo a
seguir, foi o Gavin Parrie a sair da estação de serviço e a entrar numa carrinha
branca. Ainda que a polícia nunca tenha falado publicamente no pó de gesso
encontrado nos sapatos das duas últimas vítimas, o facto de que o Violador
da Beira da Estrada tinha passado a utilizar uma carrinha branca foi
reportado. E até à exaustão.
[“MR. X”]
Ela ficou a vê-lo chegar à porta de uma das oficinas, tirar uma chave da parte
de cima da porta, entrar, por uns minutos, sair e virar a esquina, para fora de
vista.
[JOYCELYN]
Este é aquele inspetor que ouvimos no terceiro episódio, que trabalhou no
caso Parrie.
[“MR. X”]
A Ms. Sheldon ligou de imediato ao Inspetor Fawley, que a aconselhou a
dirigir-se o mais rápido possível para um sítio público e esperar pela chegada
da polícia. Ela disse-lhe que ia para a loja Co-op, próxima dali, a poucos
minutos de distância. Foi enviada desde logo uma patrulha, e, pouco depois
da meia-noite, o Mr. Parrie estava a ser detido num pub chamado Fox &
Geese.
[JOYCELYN]
O Adam Fawley chegou ao local passavam vinte e cinco minutos da meia-
noite, altura em que uma equipa de CSI já se dirigia para as oficinas privadas
e o Gavin Parrie ia a caminho das instalações de St. Aldate dentro de um
carro-patrulha. A Alexandra Sheldon manteve-se no interior da Co-op durante
todo esse tempo.
Por esta altura, vocês devem estar a abanar a cabeça, certo? E a dizerem:
“Ela era uma mulher inteligente, uma advogada, uma pessoa com ética…
Seria capaz de ir assim tão longe, ao ponto de forjar provas?” Mas pensem
melhor. A Alexandra Sheldon estava absolutamente convicta de que o Gavin
Parrie era o homem que a tentou violar. Estava também desesperada por
garantir que esse homem fosse preso – escassos dias antes, a quinta vítima
tinha cometido suicídio com apenas dezanove anos de idade. A Alexandra
sabia isso. E também sabia que a polícia não tinha pistas e que, mesmo que o
homem que ela tinha seguido até Botley fosse de facto o violador, não havia
garantias de se encontrarem indícios naquela oficina que o pudessem provar.
Ele poderia sair impune e vir a atacar mais mulheres, destruir mais vidas.
Por isso, quem a pode julgar por ter chegado à conclusão – num estado de
extrema ansiedade e terror provocados pelo flashback que estava a viver – de
que tinha de fazer alguma coisa? Tinha de se certificar que este homem era
detido de uma vez por todas.
[“MR. X”]
O que quer que o Gavin Parrie possa ter acreditado, nunca existiram provas
de nenhum tipo de que a Ms. Sheldon tivesse plantado indícios para o
incriminar. Não foram descobertas quaisquer impressões digitais ou ADN dela,
nem na chave da oficina nem no seu interior. Também é importante salientar
que os fios de cabelo encontrados tinham cerca de vinte e cinco centímetros.
A Ms. Sheldon tinha cabelo comprido na altura em que foi atacada, mas
cortara-o curtíssimo logo depois. De facto, mesmo que ela quisesse incriminar
o Gavin Parrie, já não tinha as “evidências” necessárias para o fazer.
[JOYCELYN]
Ninguém aqui quer sequer discutir o tamanho do cabelo da Alexandra
Sheldon nesse dia ou quando é que ela o cortou. Mas, como toda a mulher
sabe, muitas vezes trazemos artigos na carteira, como um pente ou uma
escova, ainda com cabelos – cabelos que podem lá ficar semanas ou mesmo
meses.
E há uma coisa que de facto sabemos: foi o cabelo encontrado na oficina que
levou à condenação do Gavin. Isso e apenas isso.
Porque tudo o resto foi circunstancial. Tudo podia ser explicado como mera
coincidência: a diabetes, o facto de o irmão do Gavin, o Bobby, ser estucador
e de o Gavin lhe ter pedido a carrinha emprestada quando a dele avariou
(convém relembrar a esta altura que o Bobby sempre negou veementemente
ter emprestado a carrinha ao irmão nos dias dos ataques, embora tenha sido
impossível provar se sim ou se não).
Havia mais um forte indício que a polícia detinha e que acreditava ser crucial,
mas que a lei existente na altura impediu de ser utilizado em tribunal. Era o
facto de o Gavin ter sido questionado depois do ataque à Paula, a miúda de
dezasseis anos de que falámos no segundo episódio, molestada em
Manchester antes de as Violações da Beira da Estrada começarem.
Mas, mesmo não tendo sido possível usar esse facto em tribunal, ele
manteve-se extremamente relevante no caso do Gavin. E porquê? Porque,
assim que a Polícia de Thames Valley veio a saber do caso da Paula,
basicamente deixou de procurar outra pessoa qualquer. Para eles, o Gavin
cometera oito ataques: um em Manchester e sete em Oxford.
Acreditam agora.
[FADE OUT]
***
***
– Repete lá isso?…
A equipa está reunida à volta do quadro branco. Já não apenas
Ev e Somer, mas Gis, Quinn, Baxter, Asante.
– Estive agora mesmo a ver o livro de colorir do Tobin Fisher –
diz Somer. – Ele está a pintar um desenho do São Jorge e o Dragão.
Mas não está a pintá-lo de verde, como é suposto, mas sim de
vermelho. – Aponta para a fotografia no quadro. – Exatamente
assim.
– Coincidência? – sugere Asante.
– Isso não existe – responde Ev. – Como o chefe sempre nos
disse.
Há uma ligeiríssima pausa, um fragmento de tempo durante o
qual todos pensam a mesma coisa, veem a mesma cara; depois,
processam e prosseguem.
– Então, a questão – observa Gis, pensativo – é como é que o
Tobin pode ter sabido da tatuagem do Caleb Morgan.
Baxter encolhe os ombros.
– Talvez o Morgan o tenha levado a nadar? Afinal, ele ficou com
ele várias vezes na ausência da mãe, certo? Não me parece
impossível.
– Ou talvez durante um simples aparar da relva? Estou a vê-lo
facilmente a tirar a t-shirt com este calor.
– A Marina Fisher não tem relvado – diz Asante calmamente. – O
jardim é todo empedrado.
Quinn cruza os braços e franze a testa. Detesta ser corrigido,
sobretudo por Asante.
– Podemos verificar isso facilmente, saber se ele alguma vez o
levou a nadar – diz Everett.
– Mas… e se não foi isso? – pergunta Somer, olhando em volta
para os colegas. – E se o Morgan nunca sequer se aproximou de
uma piscina com o Tobin? Porque, se assim for…
Faz-se silêncio; ninguém precisa de dizer nada.
– Mas não encaixa, pois não? – diz Baxter, finalmente. – O
Morgan nunca disse nada sobre algum deles se ter despido nessa
noite. Aliás, ele disse explicitamente que não o fizeram.
– Então – diz Gis –, ou o rapaz viu a tatuagem noutra altura
qualquer…
– E bem recentemente – interrompe-o Somer. – Porque ele ainda
só vai a meio daquele desenho. Tem de ter sido na última semana,
no máximo.
– … ou o Caleb Morgan está a mentir sobre o que aconteceu
durante o alegado assédio sexual. Depois de, também
convenientemente, não nos ter contado do incidente com a Freya
nos degraus da…
Não acaba a frase. Não precisa.
Ev volta-se para ele:
– Mas isso foi uma mentira por omissão. Não é a mesma coisa.
Ele tinha todas as razões possíveis para não mencionar que
empurrou a Freya, mas porquê mentir acerca do assédio? O que é
que ele ganha com isso?
Gislingham encolhe os ombros, a expressão confusa.
– Não me perguntes.
– Também está presente na bandeira galesa, não está? O
dragão vermelho? – pergunta Asante. – Provavelmente terá sido por
isso que o Morgan o quis tatuar. Quem sabe se o Tobin também não
o viu aí? E não tenha nada que ver com a tatuagem?
Quinn considera a questão:
– Bom, eu acho possível, mas as únicas vezes que eu vi
bandeiras galesas foi no râguebi ou no futebol, e o miúdo não
parece nada interessado em desporto algum.
– E o País de Gales não esteve no Campeonato do Mundo –
acrescenta Baxter, o maníaco de futebol da equipa.
– Então, o miúdo não deve ter visto a bandeira na TV – remata
Quinn. – Pelo menos, não recentemente.
Baxter aclara a garganta:
– Talvez estejamos todos a pensar demasiado. Que mal tem o
óbvio flagrante? A Fisher e o Morgan andavam enrolados e nessa
noite decidiram pinar que nem uns doidos na cozinha. E o puto
apanhou-os. Foi isso.
Gislingham olha à sua volta.
– Mas, se foi esse o caso, por que raio é que a Fisher não nos
disse isso logo diretamente? Para quê deixar as coisas
descontrolarem-se desta maneira?
– Por receio de perder o emprego? – sugere Ev. – Se admitisse
que mantinha uma relação com um aluno, o mais certo era ir para a
rua.
– Muito mais depressa irá, se for condenada por assédio – diz
Quinn em tom sombrio. – A porra dos stilletos dela nem tocam no
chão.
– Sim – diz Ev –, mas dizes bem, se for condenada, não se for
apenas acusada. Quem sabe não tenha decidido que o melhor era
continuar a dizer que não se lembrava, fiando-se em que jamais
haveria evidências suficientes para o MP intentar uma ação.
– OK – diz Gislingham –, então, e como advogado do diabo… se
eles já andavam enrolados em segredo todo este tempo, porque é
que o Morgan sequer faria a queixa?
Ev encolhe os ombros.
– Sei lá. Porque é que as pessoas fazem o que fazem? Pode ser
uma jogada de poder ou por vingança…
– Ou para se safar das garras da Freya – diz Asante. – Sabemos
que ela andava roída de ciúmes, estou facilmente a vê-la a perder a
cabeça se descobrisse que o Morgan andava de facto a ter um
caso.
– E então? – diz Somer. – A Freya descobre nessa noite que
algo se passa entre o Morgan e a Fisher, e ele tenta virar o bico ao
prego, alegando que foi ela que o assediou?…
– Foi o batom no colarinho dele – brinca Baxter – que o
denunciou à Hughes28?
– Foram os arranhões – diz Ev. – Ela própria mo disse.
Quinn sorri ironicamente:
– Sim, não se ganham arranhões a jogar Scrabble, certo?
Baxter concorda:
– E o Morgan não seria o primeiro a alegar assédio sexual para
se safar perante a namorada.
A suposição paira no ar por um momento: pode muito bem ser
um dos truques mais velhos desta vida, mas geralmente quem o usa
são as mulheres. Não propriamente jovens possantes e atléticos.
– Há mais uma coisa – diz Asante, pensativo. – No final da
entrevista, a advogada da Fisher disse que o miúdo andava a ter
pesadelos. Talvez o dragão esteja relacionado com isso?
Olha em volta, mas ninguém está a juntar os pontos. Ainda não.
– O que eu quero dizer – prossegue – é que, se a Fisher teve
mesmo sexo com o Morgan nessa noite e o miúdo os viu, isso pode
explicar o facto de andar tão perturbado. O sexo pode parecer algo
aterrador, se não soubermos o que se está a passar… e tivermos
apenas oito anos.
Ev assente de novo:
– Essa, sim, faz sentido. Sobretudo um miúdo como ele. Pelo
que percebi, é extremamente frágil.
Gis respira fundo.
– OK. Não me parece que tenhamos grande alternativa. Vamos
mesmo ter de pedir à Marina Fisher que nos deixe entrevistar o filho.
***
Adam Fawley
12 de julho, 2018
15h55
O almoço que me trouxeram está a coagular no tabuleiro de
plástico. O que não é de espantar, visto já ali estar há mais de uma
hora. O rapaz que o trouxe nem coragem teve de me olhar nos
olhos: largou-o ali e pirou-se. Bem podia ter pária escrito a giz na
porta desta cela. Daí que, quando ouvi de novo o som das chaves a
tilintarem na fechadura, não contasse com uma visita de cortesia. Já
nem sequer me lembrava que o Gis tinha regressado ao trabalho. É
uma prova de quão rapidamente eu bati no fundo; já nem consigo
reparar na diferença entre mim e o seu humilhante eu de recém-
chegado de férias. Ainda que ele sim, claramente. Hesita, antes de
entrar, e fecha a porta atrás de si.
– Tudo bem, chefe?
Não me parece difícil ver o quão distante eu estou do tudo bem,
mas, coitado, que mais é que ele pode dizer?
– Só passei por cá para saber como se tem aguentado. – Olha
em volta. – Acho que nunca tinha entrado nesta esquadra.
– Nem percebo como te deixaram entrar.
Ele esboça um sorrisinho irónico:
– Acontece que o sargento de custódia é um velho colega meu
da escola de formação.
Abano a cabeça:
– Mesmo assim… Não devias ter vindo. Não acho mesmo boa
ideia.
Ele olha-me de relance e, depois, em frente. Respira fundo:
– Para o caso de se estar a perguntar… Eu e toda a equipa…
nenhum de nós acredita que… bom, o chefe sabe…
Não acreditam que eu tenha violado e assassinado uma mulher
inocente e atirado o corpo dela de uma ponte abaixo. Bom, já é
qualquer coisa.
Encosto-me à parede húmida e pegajosa.
– Obrigado, Gis.
– Mas, afinal, o que é que eles têm?
Abano a cabeça:
– Não vais querer saber, acredita.
– Se não quisesse saber, não teria perguntado.
Olho para ele. Será que é justo arrastá-lo para isto? Ele tem uma
família, uma carreira. Lá por eu parecer estar a deitar a minha para
o lixo, não lhe posso pedir que faça o mesmo. Mas há outra voz na
minha cabeça – e que fala mais alto – que me diz que esta pode ser
a minha única oportunidade de me safar disto. Preciso de ajuda.
Não da Penny McHugh, por mais esperta que ela seja, mas de
alguém que saiba como funciona uma investigação policial. Alguém
de dentro.
– Oiça – diz-me ele, pressentindo a minha apreensão –, eu
jamais me teria tornado inspetor-coordenador se não fosse o chefe.
Devo-lhe isso. Portanto, tudo o que eu puder fazer para o ajudar, por
favor, diga.
– Não te quero metido neste charco de merda.
– Isso cabe-me a mim decidir. Se houver merda, eu lido com ela.
Mas se vier a descobrir alguma coisa, bom, aí…
Já o disse várias vezes: se me estivesse a afogar, seria o Gis
quem eu queria ter a puxar a corda. E, neste momento, a água já
me dá pela testa.
Respiro fundo:
– Eu acho que estou a ser tramado. Ou melhor: eu sei que estou
a ser tramado.
Ele estranha. Não quer ouvir isto, tal como a Penny não quis.
– Como assim?
– Os indícios de ADN só podem ter sido forjados. Sim, eu estive
naquele apartamento, assumi logo desde o início que sim, mas
nunca tive sexo com ela. Nunca sequer lhe toquei.
A ruga na testa do Gis intensifica-se. Não se trata apenas de
saber que as análises forenses não mentem; ele acha que eu lhe
estou a pedir que acredite que a equipa CSI inteira também está a
mentir.
– Mas o chefe e o Challow são amigos de longa data, certo? Por
que raio é que…
– Não – apresso-me a dizer. – Eu não acho que ele tenha
alguma coisa que ver com isto. Aliás, nenhum deles. Limitaram-se a
processar os indícios que lhes forneceram. Mas aí é que está: que
lhes forneceram. Alguém montou aquela cena do crime.
Alguém plantou lá cabelos meus. Não sei como, mas sei porquê.
Os cabelos representam uma mensagem.
Porque, quando a Alex testemunhou em tribunal que nunca
plantou aqueles fios de cabelo na oficina do Gavin Parrie, eu sabia
que era mentira. Sabia-o há meses. Não logo desde o início –
apenas quando já era demasiado tarde. Mas eu sabia. E não disse
nada. Não a impedi, porque era a única forma de o impedir a ele.
Ele era culpado, e nós não tínhamos mais nada. Mas não deixou de
ser uma mentira. Agora, o Gavin Parrie quer fazer-me pagar.
O Gislingham está a olhar-me fixamente, e eu acordo para a
realidade:
– Eles dizem que eu tentei fazer com que parecesse suicídio
para que a polícia não decidisse procurar ADN.
O Gislingham franze a cara; ele sabe que isto faz sentido. Até
certo ponto.
– Só que, depois, dizem eles, eu lixei tudo, porque não fiquei por
lá tempo suficiente para perceber que a equipa de engenheiros
estava por perto e que certamente mandaria parar o comboio
atempadamente.
– OK… E então…
– Então que o gajo teria de ter querido que alguém detivesse o
comboio, certo? Após ter deliberadamente colocado aquele ADN no
corpo dela, precisava que o encontrassem, que acabassem por
fazer a ligação e viessem atrás de mim.
Ele volta a estranhar; vejo que não me está a seguir.
– Desculpe lá… o gajo? Mas de quem é que estamos a falar?
– Do Gavin Parrie.
Os olhos abrem-se-lhe de espanto.
– Do Parrie?! O chefe acha que o Parrie está por detrás disto?
Fixo-lhe o olhar.
– Quem mais poderia ser?
– Mas ele anda controladíssimo, ele…
Concordo:
– Sim, anda. Mas ainda assim…
Ele hesita, mas acaba por assentir:
– Mas então… o que é que o chefe quer que eu faça?
– Descobre-me o tal engenheiro. O que ligou a dar o alerta.
Preciso de saber se ele viu alguém na ponte imediatamente antes
de aquilo acontecer. Porque, se foi o Parrie, ele não podia
simplesmente atirar o corpo lá para baixo e desaparecer de cena.
Teve de esperar – esperar até que os engenheiros estivessem
suficientemente perto da linha para verem o corpo a cair e terem
tempo de fazer parar o comboio.
Gis aponta umas coisas; depois, fecha o bloco de notas e olha
para mim.
– OK, chefe. Verei o que consigo fazer.
***
***
Já passa das seis quando Erica Somer chega a casa. Abre a
porta da rua e dirige-se lentamente até ao seu apartamento. Não se
lembra da última vez que se sentiu tão cansada. Ao subir o primeiro
lance de escadas, repara num ramo de flores deixado à sua porta.
Rosas brancas, uma dúzia ou mais, num arranjo lindíssimo,
contrastando com o azul de alguns lírios-do-nilo. Sente os olhos a
marejarem-se de lágrimas. Giles sabe o quanto ela ama essas
flores.
Abre a porta de casa, larga a carteira na entrada e leva as flores
para a cozinha.
Mas não abre a torneira nem procura uma jarra. Vai de imediato
abrir o laptop deixado na bancada.
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
– Fogo, o gajo não faz a coisa por menos, hã? Deve ser fixe
termos uns pais destes: é só ligar que eles destacam um pelotão
inteiro para nos defender.
Gislingham e Quinn estão de volta a St. Aldate, vendo Caleb
Morgan a entrar na Sala de Entrevista Um, acompanhado dos seus
advogados. Meredith Melia veste um fato de calças verde-menta e
Patrick Dunn traz o seu fato-assinatura, com uma camisa branca
aberta no colarinho ‒ deve comprá-las à dúzia. Também trouxeram
uma assistente, uma jovem de óculos e expressão sincera,
carregada com duas malas de piloto e uma pilha de dossiês.
– Devem vir cheias de tijolos só para nos impressionar – diz
Quinn, apontando para as malas.
Gislingham olha-o com ar apreensivo.
– Pois olha que está a resultar. – Recompõe-se e volta-se para o
colega: – Encontra-me a Ev, sim? Vamos lá montar o nosso próprio
grupinho armado.
Quinn ri-se.
– Vou ver se te consigo arranjar uma estrela de xerife.
***
***
***
***
***
***
***
– Giles? Sou eu. Ouve, tenho muita pena, mas não vou mesmo
poder aparecer aí amanhã. Aconteceu… aconteceu aqui uma
coisa…
Ele não responde logo, mas Giles é assim: ao contrário da
maioria dos homens, pensa antes de falar.
– Mas está tudo bem?
O que significa na verdade “Mas tu estás bem?”. Só que está a
tentar não invadir, não se intrometer na vida dela.
– Sim, sim… – Respira fundo. – Cenas de trabalho, entendes…
É este caso do assédio sexual, mais as avaliações de desempenho
que aí vêm… e agora isto de o Fawley estar preso…
Ela cala-se, mas já não vai a tempo. Ouviu o próprio Fawley dizê-
lo centenas de vezes: consegue apanhar-se um mentiroso pelo
excesso de informação. Três respostas quando uma é suficiente.
– OK – diz ele, após um momento. Ela pressente-lhe a mágoa na
voz. – Tenho mesmo pena de não estar contigo, mas entendo.
Ela acena com a cabeça, mesmo sabendo ser inútil, porque ele
não está a vê-la, mas não confia suficientemente em si própria para
falar.
– Ouve… não quero pressionar-te, mas eu acho que se passa
alguma coisa, que algo te está a preocupar… E, se for o caso, e eu
puder ajudar, basta pedires-me. Espero que saibas isso. Só quero
que sejas feliz, OK? Mais nada.
Ela desliga, pousa o telemóvel e deixa-se ficar sentada, ali, no
seu apartamento vazio. Nunca se sentiu tão profundamente sozinha.
***
CRB
***
***
***
***
***
Por uma vez, Ev decide sair às cinco. A sala do DIC também já
está meio vazia. Gis desertou há mais de uma hora, e ela não faz
ideia onde Somer se meteu o dia todo. Que se lixe, pensa, é
sábado. Enfia as coisas na mala, antes que mude de ideias, mas
parece que o universo tem sentido de humor… porque o telefone
toca.
Olha em volta, esperando que alguém atenda por ela. E Asante
acaba por lhe fazer essa cortesia.
– DIC, Inspetor Asante.
Everett fica a vê-lo assentir e olhar para ela.
– É para ti. Linha dois.
Ela suspira, pousa a mala na secretária e atende. Mas não vai
voltar a sentar-se, não vai voltar a sentar-se…
– Miss Everett? Fala Elaine Baylis, de novo. – Apenas um ligeiro
stress nas últimas palavras.
– Ah, peço desculpa por ainda não lhe ter ligado, mas…
– Não é por isso – corta ela, algo ríspida. – Lamento dizer-lhe
que o seu pai teve outro incidente…
Ev crava a mão no auscultador e afasta-se do olhar
discretamente curioso de Asante.
– Que tipo de incidente?
– Outra altercação com um residente. Nada de preocupante,
mas, numa comunidade como a nossa, mesmo o mais leve
desacordo pode resultar bastante perturbador. Com certeza que
entenderá isso.
– Claro que sim. Só não sei é o que posso fazer por…
– Pode cá vir amanhã? Duas e meia?
Ela sente um aperto no coração. Já tinha o domingo todo
planeado. Um brunch no Gail’s, um passeio pelo prado de Christ
Church. Não uma viagem de mais de trinta quilómetros, debaixo de
trinta graus, para uma reunião com uma diretora chata num gabinete
que cheira a mijo.
– Eu entendo que tenha um trabalho extremamente exigente –
diz Baylis, num tom que diz temos todos –, mas isto tem que ver
com o bem-estar do seu pai e dos outros residentes a nosso cargo.
– Uma pausa pesada e afetada. – É importante.
– OK – diz Ev, cerrando os dentes e lembrando-se que, por esta
ordem de ideias, a própria Baylis também estará a trabalhar num
domingo. – Duas e meia, então. Até lá.
Desliga e vê que Asante continua a olhar para ela.
– Linha três.
– Estás a gozar?
Mas Asante não está a gozar.
– Lamento, mas é a ti que ela quer.
– Está cá em baixo uma pessoa que lhe quer falar – diz o agente
de serviço à receção, quando ela atende.
– Ai sim? Quem?
– Ela não quer dizer o nome. – O tom da voz do agente subiu,
como que querendo que a pessoa, seja lá quem for, oiça que ele
está chateado.
Ev estranha:
– Mas porque é que...? – E, logo depois, acrescenta: – Porque
tem de ser alguém ligado ao caso Fisher. E tem de ser uma mulher.
***
***
***
***
– E então, Zoe? O que é que se passou? Porque é que te deste
ao trabalho de vir de Londres até cá para falar connosco?
A jovem solta um longo suspiro. Pousa a colher, mas ainda não
tocou no chá.
– Era verão. Ela mandou uma mensagem ao Seb num sábado
de manhã a dizer que precisava de mudar uma lâmpada, uma cena
assim, e que não subia a escadotes. Por isso, pedia-lhe que
passasse por lá mais tarde. Penso que ela achou que ele iria
sozinho – ficou claramente chateada quando me viu com ele – e,
tipo… cinco minutos depois, pediu-me que levasse o Tobin ao
cinema.
Ev suspira:
– Quis ver-te fora dali.
Ela concorda, com um revirar de olhos:
– Era o Gru, o Maldisposto… Irónico, não? Enfim, lá fomos e
deixámos o Seb sozinho com ela. E claro está que a lâmpada
fundida era no quarto da Marina. Ele subiu ao escadote para a trocar
e, quando desceu, viu-a atrás dele, à entrada do quarto, toda
produzida, de stilettos e uma cena de cetim vermelho… que bem
podia ter sido comprada numa sex shop, mas, conhecendo-a, acho
que era de certeza da Agent Provocateur32. – Morde o lábio e olha o
vazio. – Que cliché…
– E como é que ele reagiu?
– Riu-se.
– Ah – diz Ev. – E calculo que ela não tenha reagido lá muito
bem.
– Não, não reagiu mesmo. – Há agora uma certa dureza na sua
voz. – Disse-lhe que pensasse muito bem, porque tinha apenas três
minutos para tomar uma decisão, que ela esperava que fosse a
certa. Ela era supervisora dele, OK? Podia fazer dele o que
quisesse. Sei lá, deixá-lo encalhado numa seca qualquer até ao fim
da carreira.
Volta a pegar na colher e começa a desenhar círculos numas
gotas de água vertidas na toalha.
– Ela começou com a conversa de que tinha muito mais para lhe
oferecer do que eu. Que eu não passava de uma tontinha, que eu
era só uma candidata a ganhar um cérebro, assim como
provavelmente também não faria a mínima ideia do que era sexo
verdadeiro. Ao passo que ela… – Cala-se, inspira fundo e reprime
um soluço.
– Está tudo bem – diz-lhe Everett, docemente. – Vai com calma.
Ela pega num guardanapo de papel e limpa os olhos.
– Enfim… Eu levei o Tobin ao cinema, mas, nem dez minutos
depois de o filme começar, ele desatou aos berros… tipo de deitar a
sala abaixo. E eu tive de o trazer para casa.
Ev abana a cabeça:
– Acho que já percebi o que vem aí…
Ela assente, a expressão irada, quase feroz:
– Pois. Eu topei logo o que se estava a passar, assim que entrei.
O barulho que os gajos faziam… Porra. – Atira com a colher para a
mesa. – Disse ao Tobin que fosse para a cozinha e subi direitinha ao
quarto dela. E ali estava ela, em cima dele, nua, a comê-lo.
Ev suspira:
– O que é que fizeste?
Zoe ri-se, toda ela sarcasmo:
– O que é que acha? Tirei-lhes logo uma foto, claro.
***
***
***
***
– Por favor, estás no The Perch, tens de comer peixe, não? – diz
Caroline Asante alegremente. – Como é lógico.
Chegaram cedo, porque sabem quão cheio isto fica aos fins de
semana. E, com este tempo, as mesas à sombra no jardim são uma
regalia premium. Mas agora, na posse desse lugar privilegiado,
estão com todo o tempo do mundo. Na mesa ao lado, está outro
casal de meia-idade com a filha e o que parece ser o seu namorado
novo: o jovem sorri muito e esforça-se talvez demasiado. Ao longe,
um grupo de crianças tenta trepar o enorme e secular salgueiro.
Ouve-se jazz vindo de uma tenda, e há pessoas sentadas na relva
porque, por uma vez, está suficientemente seca para se poder fazer
isso num verão inglês. Todo o cenário é quase demasiado perfeito.
– Estou mais inclinado para os mexilhões – diz o pai de Asante,
num tom algo afetado – ou quem sabe a Salsicha Cumberland, que
aqui é divinaaal.
A mãe ri-se, pegando no seu copo de Pinot Grigio:
– A sério, Kwame? Tu consegues sempre dar ares de um
diplomata, mesmo quando estás a pedir salsichas com puré.
Ele sorri-lhe; é já uma piada antiga. Ele foi adido comercial ganês
durante mais de vinte anos.
– Eu vou lá dentro fazer o pedido – diz Asante, fazendo menção
de se levantar. Mas a mãe impede-o:
– Não, não, mas para quê tanta pressa, querido? Temos tanto
que conversar…
Código parental para “tu nunca nos contas nada”. Asante
disfarça um suspiro.
– Então, e o trabalho? – pergunta o pai.
Eles perguntam sempre, quase como um ponto de honra, ainda
que nunca se tenham reconciliado verdadeiramente com o facto de
o único filho ter decidido ser polícia. Ficaram perplexos,
desconcertados, mesmo quando ele foi apenas aceite no programa
de graduação. Mas foram, como sempre, demasiado bem formados,
demasiado “diplomatas” para lho dizerem. Aos vossos filhos deve
ser permitido que façam as suas próprias escolhas, ainda que
preferissem mil vezes que eles optassem por medicina ou direito, ou
até – em falhando tudo o resto – pela City.
– É bom – diz Asante. – Melhor do que em Brixton.
– Em que aspeto? – pergunta a mãe, querendo “mostrar
interesse”.
– O trabalho é mais variado. E a cidade… Tem pessoas bem
mais interessantes.
– Ai sim? – diz Caroline, naquele tom alerta-de-avistamento-de-
namorada que todas as mães parecem desenvolver. Mas, lá está,
Asante não é apenas filho único, mas o filho único.
– Não te entusiasmes muito, mãe – diz-lhe. – Eu praticamente
não saio. Estas pessoas a que eu me refiro… são aquelas que eu
ando a prender.
***
***
***
Ev olha para as horas e pega na carteira.
– Acho que é tudo, chefe. O Young vai aparecer ainda esta tarde
para prestar o seu testemunho, por isso eu depois digo-te como
correu.
– Bom trabalho – diz ele. – Se fosse a ti, pedia à Somer que
também aparecesse para te apoiar nisso.
– Já pedi – diz ela, sorrindo. – E também já avisei a advogada da
Fisher que precisamos de voltar a falar com ela amanhã. – Levanta-
se. – Tenho de ir andando.
Ele franze a testa.
– O teu pai?
– Sim – assente ela, com um suspiro. Será uma visita muito
curta, mas até isso lhe parece injusto. – O meu pai.
***
***
***
***
[JOCELYN]
Eu não estive nesse julgamento. Ainda estava na faculdade. Mas lembro-me
do caso e de ter pensado que tipo de homem conseguia não apenas cometer
aqueles crimes contra mulheres, como ainda ameaçar a família do homem
que ajudou a condená-lo.
Agora, como é óbvio, sei muito mais do que sabia na altura. E também
conversei com o Parrie, à distância, e sei que ele se arrepende sinceramente
do que disse naquele dia, dos distúrbios que isso causou. Também ele ficou
profundamente afetado por todo o mal que o julgamento causou à própria
família, sobretudo aos filhos. Ainda que o casal estivesse separado na altura
em que ele foi condenado, a sua família viu-se atormentada e perseguida –
pela imprensa, por “justiceiros”, pelos vizinhos. Tornaram-se párias, e Sandra
acabou por ser obrigada a mudar-se para a Escócia, tendo de voltar a usar o
nome de solteira apenas para proteger os filhos.
[SANDRA]
Já me era suficientemente difícil criar três filhos sozinha, antes disso – mas foi
mil vezes pior estando tão longe da minha família. O irmão do Gavin
costumava mandar-me dinheiro sempre que podia, mas, na maior parte do
tempo, mal tínhamos para comer. E fazer oitocentos quilómetros para ir visitar
o Gav… bom, isso estava fora de questão.
[JOCELYN]
O que queria dizer que o Gavin praticamente não via a família, mas sabia
aquilo por que eles passavam – sabia que a sua família também era vítima do
Violador da Beira da Estrada, tanto quanto ele próprio e as mulheres. E isso
tornou aquilo que ele considerava uma terrível injustiça ainda mais difícil de
suportar.
Porque a sua posição nunca mudou: ele nunca atacou aquelas mulheres e o
homem que o fez continua cá fora. Ele continua a acreditar que a investigação
da Thames Valley foi fundamentalmente falaciosa, se bem que hoje em dia ele
não use expressões como “tramado” ou “incriminado”. Hoje, está mais velho,
mais sábio e mais ponderado (dezoito anos numa prisão fazem-nos isso).
Mas, independentemente de ter sido uma “cagada” ou uma conspiração, o
resultado final é o mesmo: ele passou os melhores anos da sua vida numa
prisão por crimes que não cometeu.
[JOCELYN]
Vou começar este episódio com uma confissão. Na primeira vez que o Gavin
e os seus advogados nos abordaram, em Toda a Verdade, para pegarmos
neste caso, recusámos.
E também na segunda. Mas depois este caso voltou a fazer parangonas, e
tudo mudou.
[JEREMY PETERS]
Em 2022, a condenação do Gavin foi reanalisada pela Comissão de Revisão
de Casos Criminais, mas eles recusaram-se a enviá-la para o Tribunal de
Segunda Instância. E, embora ele tivesse sido um recluso exemplar, sempre
se recusou a admitir a culpa, o que inviabilizou a possibilidade de lhe ser
concedida liberdade condicional, ainda que fosse elegível a ela após quinze
anos de encarceramento. Posto isto, em inícios de 2018, percebemos que
estávamos a ficar sem alternativas.
[JOCELYN]
O facto de o Gavin Parrie nunca ter vacilado na insistência da sua inocência,
mesmo jogando isso contra ele, foi talvez o fator mais importante na nossa
decisão de pegar no caso dele. Tomada essa decisão, fizemos o que sempre
fazemos: regressámos ao início de tudo e analisámos toda a investigação. Os
depoimentos, os resultados forenses da polícia científica, as testemunhas. O
modo como a polícia conduziu as suas averiguações, as provas apresentadas
ao júri, em tribunal.
E – o mais crucial – as provas que o júri nunca viu. Porque existe um
elemento nesta investigação que o torna único, à luz da nossa experiência: o
facto de um dos principais inspetores vir mais tarde a envolver-se – o que,
aliás, acabou em casamento – com uma das vítimas. E não apenas uma das
vítimas, mas a vítima. A mulher cuja intervenção levou a polícia diretamente à
única pista forense que ligou definitivamente o Gavin Parrie aos crimes: uns
fios do cabelo dela, descobertos na oficina por ele alugada. Cabelos esses
que o Parrie sempre acreditou terem sido plantados. Possivelmente com o
conhecimento do Adam Fawley. Ou mesmo até por sua instigação.
[JEREMY]
O subsequente casamento dos Fawley deveria ter sido mais do que suficiente
para se interpor um recurso, mas eles declararam à CRCC, e sob juramento,
que a sua relação só tinha começado já depois de o julgamento ter acabado.
E isto foi corroborado por outras testemunhas, incluindo vários dos colegas e
superiores dele, e colegas e sócios da firma de advogados dela. A comissão
não teve outro remédio senão aceitar.
[JOCELYN]
Portanto, por mais desconfortáveis que nos sentíssemos sobre a possibilidade
de os Fawley se terem conluiado para plantar as provas contra o Gavin,
sabíamos que seria impossível prová-lo. Assim, desviámos a nossa pesquisa
para outro lado: o que poderia ter acontecido nas fases iniciais da
investigação.
Ao fazê-lo, rapidamente se tornou claro que o caso da Thames Valley contra o
Gavin Parrie era aquilo a que nós chamávamos um “processo Frankenstein”.
Infelizmente, já nos tínhamos esbarrado com isto demasiadas vezes em
acusações que acabaram por se revelar erros judiciários: casos que tinham
sido costurados com trapos e retalhos de provas circunstanciais, que
pareciam conduzir a algo de monstruoso, mas que, basicamente, eram
“fabricadas”.
A polícia alegou que o Gavin Parrie estava furioso, volátil e ressentido. Que se
sentiu abandonado pela vida e dececionado com as mulheres – depois de ter
sido rejeitado, primeiro, pela sua mulher e, depois, pela sua namorada de
Cowley, a Julie. Aliás, chegaram mesmo ao ponto de afirmar que foi
justamente esta segunda rejeição que espoletou o primeiro ataque à Erin
Pope (disseram mesmo que a Erin tinha parecenças físicas com a Julie e
exibiram fotografias no tribunal a prová-lo).
Referiram também a natureza grave da pornografia encontrada na oficina do
Gavin, algo, aliás, que ele nunca negou. Mas consumir pornografia – inclusive
pornografia hardcore – não faz de alguém um violador.
Deram particular ênfase ao facto de ele não ter um emprego estável, o que lhe
daria tempo e a flexibilidade necessária para vigiar as suas vítimas e estudar
muito bem os locais, antes dos ataques.
Mas com sorte e perseverança, este não será o fim da história do Gavin.
Iremos continuar a apoiá-lo, e aos seus advogados, com vista a que seja
criada uma segunda reavaliação para a Comissão de Revisão de Casos
Criminais, já no início do próximo ano.
Entretanto, o Gavin está determinado em fazer dos anos que ainda lhe restam
algo que valha a pena. Passa muito tempo com delinquentes juvenis e
também a reconstruir a sua relação com os filhos. E, claro está, eles já não
são crianças. O Ryan trabalha no setor da saúde e bem-estar e a Dawn tem
agora a sua própria família, tal como o Stacey, que vive e trabalha em
Glasgow.
O Gavin não quis ser entrevistado para este podcast, mas sempre esteve
muito envolvido na produção. Quer que a história dele seja contada, nem que
seja para garantir que outras pessoas não sofram o que ele sofreu.
[SANDRA]
O Gavin que eu vi desde que foi libertado é o Gavin pelo qual eu me
apaixonei.
As coisas, para ele, podiam ter corrido de maneira tão diferente. Antes de
mais, se ele tivesse qualificações ou se tivesse sido mais astuto a lidar com as
pessoas.
Menos desbocado. O problema com o Gav era que, sempre que ele se metia
numa situação, ia sempre pelo pior caminho. Mas nem sempre foi por culpa
sua, também teve sempre um azar do caraças. Mas, quem sabe, talvez isso
agora esteja a mudar.
Talvez ele finalmente consiga agora tudo aquilo que sempre mereceu.
[FADE OUT]
***
***
Não é a primeira vez que Dave King dá graças aos céus por ter
sempre uma camisa de reserva no trabalho. Ainda que, depois de se
mudar, tenha ido a correr enfiar a suja dentro de um saco de prova.
E tirar algumas selfies incriminatórias para ficarem guardadas. Vai
mesmo lixar aquela gaja. Mas, primeiro, vai ter de lidar com as
confusões de Fawley. E lidar a sério com isso, desta vez.
Empurra a porta do gabinete de apoio. Podiam fazer isto noutro
sítio qualquer, mas agrada-lhe a ideia de transmitir a sensação de
que é oficial, de aumentar o fator desconforto. E, a julgar pelo olhar
que recebe quando se senta, está a resultar.
– Desculpa o atraso – diz, airosamente. – Consegui entornar café
na porra da camisa toda. – Pousa o tablet na mesa à sua frente e
volta-se para o outro.
– Ouve – diz Anthony Asante –, isto é realmente difícil… Aquilo
que descobrimos… confesso que não estava nada à espera…
King solta uma risada sarcástica.
– Quê? Achas que vais safar o boss, é isso? Dar uma de herói e
ficarem-te reconhecidos, mesmo não valendo de nada? Pois, temos
pena. Tu és chui. As coisas são como são. Mas, vá lá, chuta.
Asante não está nada contente, isso é mais do que óbvio, mas
não tem alternativa e sabe disso.
– São imagens de CCTV. Da noite em que a Emma Smith
morreu.
***
***
***
***
* * *
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
Os advogados de Morgan já estão de pé; reúnem, agora, os
papéis, verificam discretamente os telemóveis.
– Entendeu tudo, Mr. Morgan? – pergunta Somer, prendendo-lhe
a atenção. – Vamos precisar de falar com o MP, mas duvido que
eles intentem qualquer outra ação contra si. Mas, se tal acontecer,
será informado através de um aviso formal.
– Não se preocupe, Caleb – diz Melia. – Nós vamos mantendo-o
informado.
– Mas, atenção, isto não é nenhum cartão você-está-livre-da-
prisão – prossegue Somer, olhando-o fixamente. – É grave. E terá
consequências. Compreende isto?
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
Ele sorri-lhe. Ela não se interessa por homens, mas percebe por
que razão outras mulheres podem achá-lo interessante. O cabelo
escuro, os olhos da cor de avelã. Dá por ela a pensar –
irrelevantemente – que ele deve ficar lindamente de fato. Não está
nada mal, assim, em velhos trajes de corrida e sapatilhas.
– Olá – diz-lhe ele.
***
***
***
***
RAIVA
Raiva, medo e frustração pela sua idiotice, a sua completa e
total estupidez
Ele sabia que ela não o deixaria entrar – a não ser que o
reconhecesse, a não ser que lhe conhecesse a cara
Ele fê-la sentir que era inofensivo – fê-la pensar que era como
ela, alguém que adora correr, alguém que adora crianças
Ela não faz ideia de quem é este homem, mas ele ganha-lhe a
dianteira, de longe, e logo desde o início
E agora…
***
Mas com sorte e perseverança, este não será o fim da história do Gavin.
Iremos continuar a apoiá-lo, e aos seus advogados, com vista a que seja
criada uma segunda reavaliação para a Comissão de Revisão de Casos
Criminais, já no início do próximo ano.
Entretanto, o Gavin está determinado em fazer dos anos que ainda lhe restam
algo que valha a pena. Passa muito tempo com delinquentes juvenis e
também a reconstruir a sua relação com os filhos. E, claro está, eles já não
são crianças. O Ryan trabalha no setor da saúde e bem-estar e a Dawn tem
agora a sua própria família (…)
***
***
***
Adam Fawley
16 de julho, 2018
18h17
***
***
Param.
A porta.
Passos.
A mala abre-se.
Uma lufada de ar, outra de som. Vento. Árvores?
Mais passos.
E uma voz.
Mas não é a dele.
***
***
***
***
– Estou?
É um homem que atende. Gallagher ouve outras vozes em
fundo. Parece-lhe rádio. A BBC News.
– Estou, Mr. Heneghan? Não nos conhecemos, chamo-me Ruth
Gallagher e sou inspetora da Polícia de Thames Valley.
– Sim?… E qual é o assunto?
– A sua mulher está?
– Não, lamento. Está no JR, com a irmã.
Como é óbvio, pensa Gallagher. É claro que está com a irmã, daí
ter o telemóvel desligado.
– Bom, então, talvez o senhor me possa ajudar. É o seguinte: a
sua mulher enviou há pouco uma foto a um dos nossos inspetores, o
Chris Gislingham…
– Ah, sim, sim, ela falou-me nisso. Mas foi tudo muito à pressa,
ela saiu assim que eu cheguei e… fiquei sem perceber nada, na
verdade.
– Tudo bem. Essa foto era de uma página do bloco de notas da
Mrs. Fawley. Eu precisava que ma enviasse de novo.
– Dê-me um segundo – diz ele. – O Ben está mais a par disso do
que eu.
Ouvem-se ruídos do lado de lá, a voz de Gerry a chamar por Ben
e, por fim, outra voz ao telefone. Mais jovem, mais suave.
– Estou?
– Olá! És o Ben, certo? O meu nome é Ruth. Gostaria que me
ajudasses numa coisa… A tua mãe tirou uma fotografia há pouco,
antes de sair…
– Do bloco de notas da tia Alex.
– Exatamente. É precisamente isso. Bom, creio que a tua mãe
devia estar mesmo aflita para sair e a foto não ficou bem tirada,
penso que lhe falta um bocado. Mesmo no fim da página.
– Sim, ela estava bué preocupada com a tia. Os senhores da
ambulância levaram-na e ligaram as sirenes, e tudo.
Percebe-se como tudo aquilo o aterrorizou, e Gallagher morde o
lábio. É uma grande preocupação sua – culpa, porque não dizê-lo?
– o efeito que tudo isto estará a ter na já ansiosa e vulnerável
mulher de Fawley. E se acontecer alguma coisa àquele bebé…
Esforça-se por se controlar, tentando soar tranquilizadora:
– De certeza que vai tudo correr bem, é um hospital muito bom.
Mas é importante que eu veja melhor essas anotações da tua tia.
– É por causa do tio Adam? Eu gosto bué do tio Adam.
E, do nada, os olhos dela enchem-se de lágrimas.
– Eu também. Também gosto muito dele. Por isso é que quero
muito ajudá-lo.
– OK – diz o garoto, agora já mais descontraído, numa daquelas
súbitas mudanças de estado de ânimo com que as crianças nos
conseguem sempre surpreender. – O que quer que eu faça?
– Podes pedir ao teu pai que te ajude a tirar uma nova fotografia
dessa mesma página? Mas têm de se certificar que apanham a
página toda, OK? E, depois, pedes-lhe para ele ma mandar por
mensagem para o meu número. OK?
Ela diz-lhe o número, repete-o e percebe que ele o anotou.
Depois, agradece-lhe imenso, elogia-o e diz-lhe que o tio Adam e a
tia Alex também lhe vão ficar muito gratos.
Quando finalmente desliga, as lágrimas já lhe correm pela cara
abaixo.
***
***
***
– Alguém te viu?
Esta voz é diferente. Mais dura. Mais cruel.
– Não. Fui cuidadoso. Tornei-me muito bom nisto, como sabes.
– E sabes o que tens de fazer quando voltares?
– Ya. Já está tudo tratado como tu pediste. E já confirmei… Eles
vão continuar em trabalhos naquela linha. Aquilo vai durar a noite
toda.
– Boa.
Emma sente agora mãos em cima de si, arrancando-a
bruscamente da mala, a pele a ser arranhada contra o metal.
Está de pé, mas não consegue manter-se firme, não consegue
respirar. A urina escorre-lhe pelas pernas, e Emma sente-se corar
de vergonha.
O segundo homem goza:
– Oh, coitadinha, está cheia de medo… Tinhas razão, a gaja é
mesmo perfeita. Vou curtir à brava fazer isto.
– Ya, eu devia-te uma, certo? Por não me teres chibado naquela
cena com o chuchuzinho da Donnelly, em que eu estava contigo…
– Sim, não tiveste culpa que me tenham tramado. E não servia
de nada irmos os dois dentro. Olha, assim pudeste olhar pelos
miúdos.
O clique de um isqueiro, o som de uma inalação.
– Por falar nisso, o Ryan mandou-me uma mensagem. Diz que
em Málaga está ainda mais calor do que cá.
– Foda-se… Deve andar com o cu assado. Mas foi mesmo
perfeito, isto de ele estar fora. Acho que nem mesmo a porra da
Thames Valley vai conseguir associá-lo a este assunto, estando ele
em Espanha, certo?
Um longo exalar.
– ‘Tás a alucinar, mano. Eles nunca farão a ligação. Mas mesmo
nunca. Nem pó.
– Mesmo assim… Tu não achas que o Ryan se apercebeu, pois
não? Refiro-me ao ginásio. Quero dizer, eu não ia querer que o gajo
pensasse que…
Uma risada rápida.
– Nah, não há o menor perigo, coitadito. Esse não ‘tá com nada,
nem se arrisca a porra nenhuma. Estive quase para lhe pedir que
me inscrevesse como sócio daquele ginásio todo finesse e fazer eu
próprio o trabalho. O gajo fartava-se de se queixar, o chorão… –
Outra risada. – “Porra, Gav, este Fawley é um chato do caraças.
Takeaway à sexta, compras ao sábado, ginásio quatro vezes por
semana, os mesmos dias, à mesma hora, até a porra das máquinas
são as mesmas, fogo!”
– Não te queixes tu. Graças a ele foi bem mais fácil ficarmos a
par, não foi?
– Ya. Foi como limpar o cu a meninos.
– Ora bem… – diz o segundo homem. Emma sente mais firmeza
na mão que lhe agarra o ombro. – Queres entrar na festa, ou quê?
Mais uma, em nome dos velhos tempos?
– Nah, meu. Esta é toda tua. Vou fumar um cigarro. E tu vê lá se
não te distrais.
– É justo. Mas não te apresses a voltar. Vou querer levar o meu
tempo. Acho que mereço, não?
Som de passos a afastarem-se; depois, ele força-a para baixo,
obrigando-a deitar-se, até enterrar a cara na erva seca e quente.
***
***
***
– Não sei o que é que vocês pensam que vão encontrar. Não uso
drogas e não tenho álcool em casa.
Encostado à soleira da porta, braços cruzados, falsamente
casual, há nele um quase impercetível nervoso miudinho e alguma
desconfiança no olhar.
Na casa de banho minúscula, está um agente à paisana a
inspecionar o ainda mais minúsculo armário do lavatório. Outro
agente, uma sargento, está no quarto, à volta de uma cómoda com
gavetões. A cama foi toda desfeita e a roupa empilhada no chão,
juntamente com todo o conteúdo do roupeiro. Que não é muito. Dois
ou três pares de jeans, algumas t-shirts, uma sweat preta de capuz.
Há uma estante estreitinha na parede oposta, mas está vazia: nada
de livros, fotos ou objetos pessoais. Nem parece que alguém vive
neste quarto.
– Olha-me só pra esta confusão. A isto chama-se invasão de
privacidade, porra.
A sargento olha para ele.
– Você está em condicional, Parrie – diz-lhe, friamente. – Buscas
aleatórias fazem parte das formalidades e não precisamos da sua
autorização. Está farto de saber isso.
Fecha a gaveta bruscamente e dirige-se à mesa de cabeceira.
Na casa de banho, o agente está agora de gatas, inspecionando
as canalizações por detrás da sanita.
Parrie vê-o e semicerra os olhos.
***
Eles sabem que está gente em casa porque a janela está aberta
e ouve-se música. Os Rolling Stones. Alto. Tal como em tantas
outras casas desta zona de Cowley, o jardim da frente tem o chão
em cimento, com a lama e o lixo varridos pelas enxurradas diárias.
Vê-se um contentor com a tampa aberta, uma grade cheia de latas e
garrafas vazias, uma carrinha branca estacionada à porta.
Estucagens RP – Todos os Trabalhos Importam
***
***
***
Adam Fawley
16 de julho, 2018
19h09