Você está na página 1de 631

© Russell James

BILL CLINTON foi eleito Presidente dos Estados Unidos em 1992, cargo que
ocupou até 2001. Depois de deixar a Casa Branca, criou a Fundação Clinton, que
contribui para a melhoria da saúde global, através da prevenção de doenças,
a criação de mais oportunidades para jovens raparigas e mulheres, a diminuição da
obesidade infantil, a criação e fomento de oportunidades económicas e a análise
das consequências das alterações climáticas.
O Presidente Desapareceu foi o seu primeiro livro de ficção, a que se junta agora A
Filha do Presidente.
/BillClinton

© David Burnett

JAMES PATTERSON foi agraciado em 2015 com o Literarian Award for Outstanding
Service to the American Literary Community, concedido pela National Book
Foundation. Detém o recorde mundial do Guinness por ter alcançado mais vezes o
primeiro lugar na lista de bestsellers do The New York Times, e já vendeu mais de
375 milhões de exemplares.
Defensor incansável do poder dos livros e da leitura, James Patterson fundou uma
editora especializada em literatura infantil, a JIMMY Patterson, cuja missão é
simples: «Queremos que cada criança termine um livro da JIMMY dizendo:
“Por favor, dá-me outro.”»
/JamesPatterson
A Filha do Presidente
Bill Clinton • James Patterson

Publicado em Portugal por


Porto Editora
Divisão Editorial Literária – Lisboa
Email: dellisboa@portoeditora.pt

Título original:
The President's Daughter
© 2021, James Patterson e William Jefferson Clinton
Publicado por acordo com The Knopf Doubleday Group, uma divisão da Penguin
Random House LLC e Little, Brown and Company, uma divisão da Hachette Book
Group, Inc.

Tradução: Artur Lopes Cardoso

Imagens da capa: © John Finney photography/GettyImages; © Aaron


Foster/GettyImages;

© Claire Gentile/GettyImages

1.ª edição em papel: abril de 2022

Rua da Restauração, 365

4099­-023 Porto

Portugal

www.portoeditora.pt

ISBN 978-972-0-67371-8
Robert Barnett, nosso advogado e amigo, persuadiu-nos
a colaborar em O Presidente Desapareceu, e correu
muito bem. Depois – e talvez devêssemos ter mais juízo
–, convenceu-nos a escrever A Filha do Presidente.
Estamos tão contentes por termos tornado a seguir os
conselhos do Bob.
Fizeste um belo trabalho, Doutor.

Mesmo quando estava recolhido em sua casa, no New


Hampshire, Brendan DuBois esteve a nosso lado ao
longo de toda a pesquisa, de todo o plano geral e de
mais esboços do que conseguimos contar. O Brendan foi
a nossa âncora – e, por vezes, o chato de que
precisávamos.
PRIMEIRA PARTE
Capítulo 1
Duas da manhã, hora local
Golfo de Sirte, ao largo da costa da Líbia

A bordo do helicóptero Black Hawk MH-60M, das Night Stalkers


Special Operations, com o nome de código Spear One, o sargento-
chefe da Marinha Nick Zeppos, da Equipa Seis dos SEAL, olha para o
relógio. Cinco minutos antes, ele e a restante tripulação tinham
partido do navio de assalto anfíbio USS Wasp com destino ao seu
alvo de elevado valor, nesta noite escura como breu. Se ele e a sua
equipa – em conjunto com outros operacionais dos SEAL que se
encontram a bordo do segundo helicóptero Black Hawk, com o nome
de código Spear Two – tiverem sorte, localizarão e matarão Asim Al-
Asheed muito antes do nascer do sol.
Zeppos lança um olhar rápido aos membros da equipa, que se
comprimem a seu lado em duas filas apinhadas. No interior
barulhento e vibrante do helicóptero, mantêm-se sobretudo em
silêncio, alguns bebericando de garrafas de plástico com água, outros
inclinados para a frente, com as mãos entrelaçadas. À frente, o piloto
e copiloto dos Night Stalkers, pertencentes ao famoso 160th Special
Operations Aviation Regiment (Airborne), voam a baixa altitude, cerca
de dez metros acima do mar picado, iluminados pelo clarão verde e
azulado do painel de instrumentos. Zeppos sabe que cada um dos
membros da equipa SEAL dentro daquele helicóptero quase às
escuras está a recapitular a missão iminente, a pensar no seu treino,
e depois a esvaziar a mente para o que se segue:
Matar Asim Al-Asheed.
Há muito que aquele era um objetivo dos serviços de informações
e das forças armadas dos Estados Unidos. Hoje, Zeppos espera que,
após quatro anos de preparação, lhes saia a sorte grande.
As equipas SEAL e as Forças Especiais já tinham perseguido
outros líderes terroristas – nomeadamente, Osama bin Laden e Abu
Bakr al-Baghdadi e os seus muitos adjuntos e aliados, líderes que
ficavam nas sombras, dando ordens, sem sujarem as mãos com atos
que fossem além da realização de vídeos cheios de grão e
promessas rebuscadas de morte e vingança.
«Estamos a chegar a terra firme!», comunica o comandante da
tripulação dos Night Stalkers, dando a saber que estão prestes a
passar do mar para o território da Líbia, uma nação fraturada e em
conflito, um local perfeito para incubar ou dar abrigo a terroristas
como Al-Asheed.
Mas Al-Asheed não é como os outros líderes de organizações
terroristas.
Nos últimos anos, apareceram vídeos mostrando os atos do seu
grupo, e em todos eles Al-Asheed surge no centro do caos sangrento,
graças a uma rede perfeitamente organizada e dissimulada de
apoiantes que o auxiliam e desaparecem imediatamente a seguir.
Al-Asheed num centro comercial cheio de gente, na Bélgica,
segurando num detonador e premindo calmamente o botão, com o
buuum! cavernoso a ecoar pela multidão, fazendo a câmara
estremecer, mas não o suficiente para esconder a nuvem de fumo, os
clientes a correr, aos gritos, com sangue a escorrer-lhes dos rostos
lacerados e dos braços partidos.
Al-Asheed a descer uma rua de Paris, com o operador de câmara
a segui-lo, enquanto engatilha uma espingarda automática, que
escondera debaixo de uma gabardina comprida, e dispara contra os
peões, visando sobretudo mulheres e crianças, até uma furgoneta
branca o recolher e levar para longe.
Al-Asheed atrás de duas trabalhadoras humanitárias das Nações
Unidas, em lágrimas, no deserto sudanês. Desloca-se calmamente de
uma para a outra, brande um grande sabre e decapita-as. O sangue
delas salpica-lhe a roupa.
O sargento-chefe Zeppos estica as pernas e encolhe-as de novo.
Já participou em duas incursões – uma no Iémen e outra no Iraque –
em que os serviços de informações afirmavam haver uma boa
probabilidade de Al-Asheed ser encontrado, mas «boa probabilidade»
não significa certeza. As duas operações tinham-se gorado, sem
resultados para além de SEAL feridos, helicópteros alvejados e
frustração generalizada.
Mas Zeppos espera que à terceira seja de vez.
Há outras gravações em vídeo, demasiado horrendas para serem
difundidas ao público. Uma professora primária no Afeganistão,
acorrentada a um rochedo, regada com gasolina e incendiada. Um
ancião de uma aldeia da Nigéria, imobilizado por homens do Boko
Haram, enquanto Al-Asheed percorre uma fila de familiares seus,
cortando-lhes as gargantas.
E Boyd Tanner…
Zeppos lança um olhar rápido pela escotilha próxima – não quer
pensar em Boyd Tanner, cuja causa de morte é um segredo bem
guardado no seio das Forças Especiais – e vê o clarão brilhante no
horizonte que assinala Trípoli, a cidade portuária e capital em rápida
reconstrução. Os Chineses – no seu programa chamado Nova Rota
da Seda – têm investido no desenvolvimento, em grande quantidade,
aqui e noutros países pobres do mundo.
Oficialmente, o governo chinês diz que é apenas uma forma de,
como nova potência mundial, partilhar a sua prosperidade e os seus
conhecimentos. Em privado, Zeppos e outros receberam informações
secretas mostrando o verdadeiro objetivo dos Chineses: obterem
recursos, aliados e possíveis futuras bases militares para que a China
nunca mais possa ser isolada e humilhada, como aconteceu com
tanta frequência na sua longa história.
O clarão no horizonte desvanece-se. Agora, o Spear One e o
Spear Two estão sobre os ondulados desertos líbios onde, há
décadas, Alemães e Britânicos lutaram desesperadamente, e onde
ainda se veem os seus tanques e camiões enferrujados na areia
inexorável.
Antes deles, estiveram aqui os Italianos, e agora os Chineses,
pensa Zeppos.
Grande coisa.
Começa a verificar de novo o equipamento.
A voz do comandante de bordo regressa ao intercomunicador.
– Sargento-chefe, temos uma comunicação para si.
Zeppos prime o botão do seu microfone.
– Quem é? O JSOC1?
– Não, Nick – retruca o aviador. – Não é o JSOC, de certeza.
Merda, pensa. Quem ousaria incomodá-lo agora?
– Passa-a – diz e ouve-se um crepitar de eletricidade estática, e a
seguir uma voz muito familiar, que ouviu inúmeras vezes na rádio e
televisão.
– Sargento-chefe Zeppos? – pergunta a voz masculina. – Fala
Matt Keating. Desculpe incomodá-lo, sei que está ocupado e não
precisa de mim para perder segundos preciosos, mas queria que
soubesse que não há nada que mais desejasse do que estar aí
convosco, neste momento.
– Ah, obrigado, senhor Presidente! – retruca, erguendo a voz para
se fazer ouvir.
Keating prossegue:
– Tenho plena confiança em si e na sua equipa. Sei que farão o
trabalho. Não há a menor preocupação deste lado. Estou convosco. E
agora, metam esse filho da puta num saco para cadáveres, pelo país,
pelos SEAL e sobretudo por Boyd Tanner.
– Sim, senhor Presidente! – retruca Zeppos, em parte maravilhado
por o homem lhe ter ligado pessoalmente, em parte comovido pelas
suas palavras sinceras. Todavia, odeia reconhecê-lo, sente-se furioso
por ele lhe ter telefonado neste preciso momento, no meio de uma
operação!
Merda, pensa. Não há dúvida de que a política pode lixar um
homem. E, em seguida, dá um desconto ao Presidente. Keating fora
um deles e sabia o que acontecera a Boyd Tanner.
Da Equipa Dois dos SEAL.
Apenas um punhado de pessoas devia saber como ele morrera, e
não tinha sido, como haviam contado à mulher e aos filhos que o
choravam, num acidente nos treinos.
Fora capturado no ano anterior, após uma brutal luta armada no
Afeganistão, gravemente ferido. Asim Al-Asheed e os seus
guerrilheiros tinham retirado o equipamento e as roupas a Boyd
Tanner e haviam-no levado para um pátio, gravando tudo.
Depois, Al-Asheed – usando um martelo e pregos – crucificara-o
numa árvore nodosa. O vídeo gravou a hora inteira, atroz, em que
Tanner esteve lá dependurado até os captores se fartarem e o
degolarem.
Ao fundo do Black Hawk há uns tipos a rir. Zeppos inclina-se e vê
um dos membros da sua equipa – Kowalski – a segurar uma espécie
de lança de madeira com ponta metálica.
– Para que serve essa coisa? – pergunta Zeppos.
Kowalski ri e brande a lança:
– Asim Al-Asheed – grita. – Depois de identificarmos o cadáver
dele, devíamos cortar-lhe a cabeça, cravá-la neste chuço e levá-la à
Sala Oval! Não achas que o Presidente vai adorar?
Mais gargalhadas e Zeppos recosta-se no assento desconfortável,
sorrindo.
Sim.
É bom para ele e os camaradas vingarem as mortes de tantos
inocentes e, por fim, ficarem cara a cara com Asim Al-Asheed, darem-
lhe alguns segundos para reconhecer quem está à sua frente e
depois meter-lhe dois balázios no peito e um na testa.
Este helicóptero Black Hawk, de luzes apagadas, e o seu
companheiro envolto na sombra avançam rapidamente pela noite.

1
Joint Special Operations Command: Comando Conjunto de Operações Especiais.
(N. do T.)
Capítulo 2
Duas e quinze da manhã, hora local
Embaixada da República Popular da China, Trípoli

É tarde que se farta – ou manhã cedo – na sala de receções do


rés do chão da Embaixada da China, na esquina da rua de Menstir
com a Estrada de Gargaresh, e Jiang Lijun, que, na lista de
convidados da embaixada, figura como vice-presidente da China
State Construction Engineering Corporation, contém um bocejo.
A pretensa festa já devia ter terminado há mais de uma hora, mas
os convidados especiais deste maldito país ainda não mostram
vontade de sair. Os líderes políticos, os membros das tribos e os
oficiais das forças armadas – garridos nos seus uniformes, fitas e
medalhas, como rapazinhos numa mascarada – continuam a fumar, a
beber e a falar com os seus pacientes anfitriões, em diversos cantos
da sala.
Jiang vê que os representantes locais da Great Wall Drilling
Company, da CNPC Services & Engineering, da China National
Petroleum Corporation e tantos outros estão a representar
valorosamente a zhōng guó – a Terra do Meio –, sorrindo e rindo
perante os arremedos estúpidos de humor e distraindo de outras
formas os camponeses seus convidados.
E que bárbaros! Mesmo depois de a intensidade das luzes ter sido
baixada, de as bandejas de comida quase vazias serem levadas e de
as bebidas alcoólicas e as garrafas de cerveja – Carlsberg, Heineken,
Tsingtao – serem retiradas, aqueles rústicos não haviam
compreendido que estava na hora de regressarem aos seus casebres
infestados de pulgas. Não, ficaram e mexericaram, e alguns tiraram
inclusive garrafas de bebidas alcoólicas dos bolsos dos casacos,
aqui, neste país pretensamente muçulmano. Quando, como aluno de
um programa de intercâmbio, estivera na UCLA, na Califórnia, e
depois na Columbia, em Nova Iorque, o jovem Jiang pensara que
nunca encontraria um grupo mais infantil, estouvado e ignorante de
gente grosseira, mas estes líbios faziam os americanos parecerem
bastante melhores.
Tira do bolso um maço de cigarros Zonghua e acende um. Está de
pé, sozinho, perto de duas grandes plantas envasadas, vendo quem
fala com quem, que membros da embaixada parecem bêbedos ou
impacientes, observando os grupos de convidados líbios. Um cessar-
fogo e um governo de reconciliação muito frágeis surgiram no ano
passado, mas Jiang ainda quer ver que membros de tribos ficam
longe dos seus pretensos concidadãos, preparando talvez a cena
para uma futura cisão ou guerra civil.
Boas informações para ter com antecedência.
Um funcionário da embaixada, magro e com óculos, envergando
um fato preto que lhe assenta mal, entra vindo do lado mais afastado
da sala de banquetes, observando a multidão enquanto cruza,
pressuroso, o soalho polido. Ling – é esse o nome do rapaz. Jiang dá
uma última passa no cigarro, apaga-o na terra do vaso mais próximo
e espera.
O funcionário chega junto dele, faz uma ligeira vénia e diz:
– Desculpe-me, senhor. Pedem a sua presença na cave. Sala
doze.
Jiang acena com a cabeça, começa a atravessar a sala, onde um
homem corpulento e barbudo, a cambalear de bêbedo e envergando
o traje tradicional das tribos formado por uma túnica branca ondulante
e calções pretos, lhe corta abruptamente o caminho.
– Senhor Jiang – exclama, num inglês com sotaque carregado,
agarrando-o pelos ombros, e Jiang mantém um amplo sorriso fixo no
rosto, tentando não se asfixiar com os vapores alcoólicos que
emanam do camponês sujo. – Vai-se embora? Vai?
Jiang dá umas palmadinhas nas mãos gastas do homem e,
suavemente, sacode-as dos ombros.
– Desculpe, amigo, mas sabe como é – responde, também em
inglês, a língua franca da diplomacia em tantas partes do mundo. – O
dever chama.
O homem – Jiang não consegue lembrar-se do nome, sabe
apenas que é o chefe de uma das cerca de 150 tribos desta terra
árida – cambaleia de novo, arrota e diz:
– Sim, o dever. – Os olhos enchem-se-lhe de lágrimas. – Tenho de
dizer isto… tenho… mas o seu dever, a sua presença aqui, trouxe
tanto à nossa terra. Os Italianos, os Franceses, os Britânicos, os
Catarianos, os malditos Egípcios… todos eles tentaram governar-nos,
tirar-nos os nossos recursos… Quem havia de pensar que a raça
amarela percorreria meio mundo para nos dar a vossa sabedoria e o
vosso conhecimento?
Neste preciso momento, Jiang quer esbofetear com força o rosto
do homem, fazê-lo dar meia-volta, torcer-lhe e partir-lhe o pescoço –
Raça amarela, pois sim! – e deixá-lo cair ao chão.
Em vez disso, lembrando-se de quem é e do que tem de fazer,
Jiang continua a sorrir, aperta as mãos imundas do homem e
assevera:
– Da próxima vez que voltar a Pequim, certificar-me-ei de que as
suas palavras de agradecimento são transmitidas ao nosso
Presidente.
E, dizendo isto, Jiang afasta-se rapidamente, sentindo a
necessidade de ir a uma casa de banho e tirar das mãos o fedor e a
sujidade daquele rústico. Porém, em vez disso, continua.
O dever.

Passa por dois sisudos guardas da embaixada com auriculares


parcialmente escondidos e pistolas mal tapadas pelos fatos, e vai ter
com Ling, que está de pé à entrada do elevador. Ling mantém a porta
aberta para ele e Jiang ignora-o, descendo depressa as escadas para
a cave. Neste pretenso país, a eletricidade ainda tem os seus
apagões súbitos, e apesar dos geradores de reserva do edifício, Jiang
não vai correr o risco de ficar preso entre dois andares.
Abre a porta da cave, passando por outro guarda da embaixada,
percorrendo um corredor mal iluminado até chegar a uma pesada
porta de aço equipada com um mecanismo de leitor de impressões
palmares. Jiang faz pressão com a mão direita, há um breve brilho de
luz e a porta de aço abre-se.
Jiang entra e a porta fecha-se e tranca-se atrás de si. A sala é
agradavelmente fresca e confortável, e agora sente uma vontade
louca de fumar, mas isso não é permitido aqui, no centro de
operações do Ministério da Segurança do Estado na embaixada,
onde há funcionários durante todo o dia e toda a noite.
O funcionário de plantão noturno, Liu Xiaobo, com os seus óculos
de armação preta e vestido informalmente com umas calças pretas e
uma camisa branca de colarinho desapertado, escreve num teclado
diante de um grande monitor informático.
– Como está a correr a festa lá em cima? – pergunta. – Muita
bosta de camelo no soalho?
– Ainda não – responde Jiang. – Que se passa?
A pequena sala está atravancada com armários de arquivo,
balcões, monitores informáticos, ecrãs de televisão onde se veem a
CNN, a BBC e a CCTV-13, o canal noticioso da China Central
Television, bem como ecrãs de plasma que mostram o Norte de
África, o Mediterrâneo e o golfo de Sirte. Nesta madrugada, há mais
oito membros do Ministério da Segurança do Estado a trabalhar.
– Os Americanos estão a tramar alguma.
– Não é o que fazem sempre? Esses filhos de cão. Que é, desta
vez?
– Têm um navio de assalto anfíbio no golfo de Sirte, cerca de vinte
quilómetros ao largo da costa de Trípoli – retruca Liu, apontando para
um mapa de referência no seu grande ecrã de vídeo. – Há trinta
minutos, lançaram dois helicópteros UH-60, Black Hawk. Vão nesta
direção – um dedo manchado de nicotina traça uma rota no ecrã
brilhante – e violaram o espaço aéreo líbio e agora encontram-se…
aqui.
Jiang olha fixamente para o ecrã, para os pequenos triângulos que
assinalam as vilas e aldeias, a geografia tão plana e quase sem
relevo até…
– Dirigem-se para as montanhas de Nafusa – comenta.
– Sim – responde Liu. – Parecem estar a voar a direito e de uma
forma regular… sem manobras evasivas… e, com base no consumo
de combustível dos helicópteros, quase não têm o necessário para
irem lá e regressarem ao Wasp. Para mim, isso quer dizer que vão
atacar algo muito importante nos montes, algo que vale a pena o risco
de ficarem a seco.
Wasp. Vespa, pensa Jiang. Que gente idiota põe o nome de um
inseto a um navio de guerra?
Concentra-se de novo no ecrã.
Liu pergunta, com prudência:
– Não tem… um interesse nas montanhas de Nafusa?
Por uma longa prática e anos de trabalho, Jiang mantém o rosto
impávido, a respiração regular e o corpo calmo. Uma pessoa não
consegue ser promovida mostrando emoção.
– Mais alguma coisa? – pergunta.
– Não – responde Liu. – Só quis que soubesse.
Jiang aperta suavemente o ombro do homem.
– Fico-lhe grato, camarada.
Liu parece gostar de ser alvo da atenção de um homem que se
encontra a um nível mais elevado do que o seu.
– Mais algum serviço que possa prestar-lhe?
Jiang acena com a cabeça.
– Sim. Tem aqui um funcionário chamado Ling, não é verdade?
Aquele que me foi buscar?
A voz de Liu exprime prudência.
– Sim.
– Meta-o no próximo transporte para casa – diz Jiang. – Certifique-
se de que acaba na maior criação de porcos de Liaoning. Há pouco,
quando foi ter comigo, quase atravessou a sala a correr, praticamente
a gritar por mim, dizendo a toda a gente com um cérebro maior do
que uma ervilha que eu era uma pessoa importante e não apenas um
típico tecnocrata. Precisa de ser castigado.
– Muito bem – responde Liu.
– Perfeito. Agora, está na hora de regressar ao andar de cima,
para ver se os camelos chegaram e se os camponeses já andam a
atirar montes de bosta uns aos outros.
Liu ri ao ouvi-lo e regressa ao seu grande ecrã. Jiang afasta-se e
encosta a mão a um scanner para abandonar o centro de operações,
voltando ao corredor vazio. Se virasse à esquerda, regressaria à
escada que conduz à receção, no andar de cima.
Em vez disso, guina à direita, avançando rapidamente para o seu
escritório, no outro extremo, onde Jiang Lijun não é vice-presidente
da China State Construction Engineering Corporation mas sim um alto
funcionário do Ministério da Segurança do Estado.
Que raio andam a tramar os Americanos?
Capítulo 3
Duas e meia da manhã, hora local
Montanhas de Nafusa, Líbia

A bordo do Spear One, o chefe da tripulação grita:


– Dois minutos! Dois minutos até ao alvo!
Nick Zeppos estica dois dedos, mostrando que recebeu a
mensagem. Os outros membros da equipa imitam-no. Retiram o
equipamento de comunicações do helicóptero, põem os capacetes
com óculos de visão noturna, que baixam rapidamente. Zeppos liga
os óculos e o interior do modificado e furtivo Black Hawk torna-se
uma imagem verde, nítida e fantasmagórica.
Dois minutos.
Cento e vinte segundos.
A voz do piloto do Spear One chega a Zeppos:
– Alvo à vista, perto das duas horas.
Zeppos recorda rapidamente outro assassínio horrendo cometido
por Asim Al-Asheed, dois anos atrás, quando, diante dos seus
seguidores, ele e o seu grupo executaram uma família síria que
pensaram que os havia traído, e difundiram por todo o mundo o vídeo
do massacre. Uma execução simples, a família fora conduzida para
uma jaula de aço, regada com gasolina e Al-Asheed acendera o
fósforo.
A última imagem nítida do vídeo, antes de o fumo ondulante
escurecer a lente, fora a forma amarfanhada da mãe no meio das
chamas, cobrindo desesperada e inutilmente o corpo do filho
moribundo com o seu.
– Trinta segundos – anuncia o piloto.
O chefe de bordo destranca a porta lateral e fá-la deslizar para
abrir. Zeppos faz a última verificação do seu equipamento, sente uma
lufada de ar frio e grita:
– Mantenham-se juntos, desloquem-se rapidamente, vamos
despachar isto!
Os membros da equipa assentem com a cabeça e esticam os
polegares. Com o equipamento, as armas e os capacetes com os
óculos de quatro lentes para visão noturna, todos parecem monstros
de olhos arregalados. Zeppos curva-se para sair pela porta aberta,
avalia os edifícios que surgem rapidamente no seu campo de visão.
Três pequenos edifícios à esquerda, um maior à direita, isolado e
recuado.
É a casa de Asim Al-Asheed, onde ele se encontra neste preciso
momento, a crer em todas as informações que foram reunidas para
mandar para aqui Zeppos e a sua equipa, esta noite.
As estruturas têm apenas um andar e são feitas com rochas e
pedras. Ao longe, um curral de cabras, e é tudo. Nem sequer há
edifícios suficientes para que seja uma aldeia.
A frente do helicóptero Black Hawk sobe ligeiramente, fazendo-o
pairar a menos de um metro acima do solo e, alguns segundos
depois, Zeppos é o primeiro a saltar, e as suas botas de combate
Oakley tocam o solo das montanhas ocidentais da Líbia, perto da
fronteira com a Tunísia. Transporta cerca de vinte quilos de
equipamento, juntamente com a sua Heckler & Koch 416 e
carregadores de grande capacidade, porém, sempre que uma
operação destas se inicia, ele sente-se leve e em boa forma.

Pelos seus óculos de visão noturna, vê as sombras dos outros


membros dos SEAL, deixados pelo Spear Two, seguindo o bem
treinado ataque de proteção mútua, com secções a ficarem para trás,
dando cobertura às que vão na vanguarda e depois avançando
rapidamente para ocupar a posição. Nick assume a liderança, com a
cabeça a mexer para trás e para a frente, para trás e para a frente,
vendo, pelos seus óculos de visão noturna, as ténues linhas das
miras de infravermelhos a deslocar-se no ar frio e escuro.
Tudo continua em silêncio.
Sobe a encosta que conduz ao pequeno complexo, observando,
avaliando, vasculhando.
Ainda ninguém fez contacto?
Não há um alvo a aparecer nos telhados dos três pequenos
edifícios?
Está tudo demasiado calmo, porra.
A sua equipa encontra-se espalhada e todos desempenham os
papéis que lhes cabem, com as armas prontas a disparar, as cabeças
movendo-se para trás e para a frente. O seu avanço já devia ter
encontrado resistência.
– Equipa de penetração – sussurra Nick ao homem a seu lado. –
Avancem.
Com os óculos de visão noturna, vê os indicadores de laser
infravermelhos a bruxulear à sua volta enquanto avança. A equipa de
penetração contorna o edifício maior, dirigindo-se a uma janela lateral.
É possível que a porta principal esteja armadilhada.
Sente um leve baque através das solas das botas, um breve
lampejo de luz.
Movimentação da sua equipa a entrar no edifício.
Ele e os outros prosseguem a deslocação silenciosa.
Através do auricular do rádio PRC 148 MBITR, ouve um dos
membros da sua equipa:
– Nick.
– Escuto.
– Estamos na casa-alvo.
– Sim?
– Está vazia – retruca a voz, descoroçoada. – Não está cá
ninguém.
Capítulo 4
Sete e meia da noite, hora local
Sala de Crise da Casa Branca

A Sala de Crise está cheia de pessoas neste tenso final de tarde.


Estou sentado ao topo da mesa, a assistir ao desenrolar do ataque ao
recinto de Asim Al-Asheed. Não há muito espaço, com a vice-
presidente Pamela Barnes sentada num canto próximo, de olhos fixos
nos ecrãs de vídeo, e o almirante Horace McCoy, chefe do Estado-
Maior Conjunto, sentado a meu lado. Perto dele, encontram-se um
capitão de mar e guerra da Marinha e um coronel do Exército, a
escrever nos seus portáteis seguros, sussurrando informações a
McCoy para que este as transmita aos restantes ocupantes desta
sala histórica. Uma coisa engraçada que nunca é dita é que há mais
do que uma sala, estando as outras divisões cheias de pessoal que
transmite e trata informações provenientes de todo o mundo.
A vice-presidente não é a única representante do governo
presente. Também está Jack Lyon, o meu chefe de gabinete; os
membros da minha equipa de Segurança Nacional; e um fotógrafo da
Casa Branca.
Os dois mais importantes são Sandra Powell, a conselheira de
Segurança Nacional – uma mulher negra austera com longo cabelo
entrançado –, e Pridham Collum, secretário da Defesa, um homem de
rosto delicado e óculos que não parece ter os quarenta anos que
efetivamente tem.
Sandra é perita tanto em defesa como em política externa e autora
de diversos livros sobre política que, na verdade, são fáceis de ler.
Pridham foi nomeado porque domina o enorme e complexo
orçamento do Pentágono e pela sua extraordinária capacidade de
passar por cima da selva de regulamentos e concursos públicos para
fazer com que sistemas de armamento necessários passem do
software de conceção para o terreno. Também tem uma experiência
importante no campo da defesa obtida no seu trabalho anterior, como
vice-secretário adjunto para a Política de Segurança Internacional.
Embora os meios de comunicação social se lhes refiram como o
conselho de segurança do Presidente Keating, foram quase todos
nomeados pelo meu antecessor. Ainda não tive tempo de os avaliar e
decidir quem quero que continue quando o meu mandato terminar o
seu primeiro ano completo, que se iniciou há seis meses, quando o
meu predecessor, o Presidente Martin Lovering, morreu na sequência
da rutura de um aneurisma da aorta, enquanto pescava no rio
Columbia, no seu amado Estado de Washington.
– O Spear One e o Spear Two estão a trinta segundos de distância
do alvo – anuncia o almirante McCoy.
Aceno com a cabeça, olhando para as imagens fantasmagóricas
de infravermelhos que surgem no grande ecrã central. Os dois
helicópteros Black Hawk furtivos transformados aproximam-se do
pequeno recinto onde se julga que Asim Al-Asheed e o seu grupo de
seguidores se encontram escondidos. Um dos helicópteros transporta
o sargento-chefe Nick Zeppos. Acho que não lhe devia ter ligado há
minutos, mas a tentação foi demasiado grande. Queria mesmo
desejar-lhe felicidades, e queria mesmo poder ter participado neste
raide, cujos objetivos são claros e onde os inimigos estão a
descoberto, ao contrário do que acontece na arena política de
Washington, onde as motivações são obscuras e os adversários se
mascaram sob fatos elegantes e uma retórica suave.
A anca direita dói-me quando vejo os SEAL a voar para o alvo.
Lembro-me das minhas missões e do helicóptero que se despenhou,
há anos, no Afeganistão, estilhaçando-me a anca e pondo termo à
minha carreira na Marinha. Mais tarde, sem ter um objetivo na vida,
optei por uma nova dose de perigo e risco – entrei para a política, e a
boa gente do Sétimo Círculo Eleitoral do Texas mandou-me
representá-lo em Capitol Hill.
Os helicópteros imobilizam-se e figuras fantasmagóricas emergem
de ambos, avançando na formação de ataque de proteção mútua que
me é tão familiar.
Um leve estalido e apercebo-me de que acabei de partir a caneta.
Ninguém parece notar, a não ser a minha vice-presidente, que me
lança um olhar frio e crítico e depois dirige de novo a atenção para o
ecrã.
Dizem que a política é a arte do compromisso, e o último ano
tumultuoso esteve cheio deles. Quando o senador Martin Lovering
estava prestes a conseguir delegados suficientes para ser nomeado
pelo nosso partido, há dois anos, houve pressão para equilibrar a lista
e reforçar a sua credibilidade em termos de segurança nacional
escolhendo-me a mim… alguém que não estava há muito tempo no
Congresso e, era certo, nunca estivera na dita «corrida à Casa
Branca».
Essa jogada política enfureceu muitos dos membros mais
pacifistas do partido, incluindo a governadora da Florida, Pamela
Barnes, que ficara em segundo lugar, a pouca distância, do senador
Lovering na corrida e que, como é compreensível, pensava que devia
ter sido convidada para vice-presidente de Lovering.
Ora bem, esse sonho acabou por se tornar realidade. Um mês
depois de me ter tornado Presidente, em virtude da morte súbita e
inesperada do Presidente Lovering, nomeei-a para o cargo. Foi a
terceira pessoa a tornar-se vice-presidente deste modo, pois a
Vigésima Quinta Emenda permite-nos agilizar o processo, em caso
de vazio de poder. Escolhi-a porque queria unir o nosso partido,
esperando que conseguíssemos realizar mais coisas, enquanto
cumpria o resto do mandato do meu antecessor. Mas Pamela Barnes
nunca me revelou se ficou feliz ou grata por ter chegado à sua
posição atual.
Entretanto, ladeado pela minha equipa de Segurança Nacional,
faço uma coisa que me é difícil: manter a maldita boca fechada.
E espero.
No ecrã, vejo as formas dos SEAL a deslocarem-se céleres e com
eficiência e afasto as minhas próprias recordações de missões como
esta. Com a equipa, a respirar fundo, de arma na mão, todos os
sentidos do corpo em alerta, em movimento, seguindo o plano
ensaiado, pronto para abrir fogo a qualquer instante.
Já vivi isso. No Iraque, no Afeganistão, no Iémen.
Em todas as operações, o fator constante era estar no exterior à
noite, exposto, rodeado dos melhores amigos e camaradas de armas,
pronto para lançar o grito de ataque e descarregar munições de 5,56
milímetros e granadas sobre os inimigos da nação. Tal como estes
homens agora, na Líbia, a quase oito mil quilómetros de distância,
cujos movimentos e ações observamos nesta sala.
É estranho estar aqui e não lá. Para aumentar a irrealidade, a uma
curta distância desta intensa reunião, encontram-se a minha mulher,
Dr.ª Samantha Rowell Keating, a trabalhar num artigo para uma
importante revista de arqueologia, e a nossa filha, Melanie, a quem
chamamos sempre Mel, a dar uma festa na zona residencial da Casa
Branca, para alguns colegas da escola Sidwell Friends.
Estou contente por ambas, não é fácil manter uma vida normal
neste sítio anormal.
Olho de novo para o ecrã, vendo os vultos a deslocar-se, vejo três
a entrarem num edifício.
E é tudo.
Nem clarões de luz, nem balas disparadas, nenhuma
movimentação frenética de homens armados a correr para atacarem
os nossos soldados.
O almirante McCoy pigarreia:
– Senhor Presidente…
– Eu sei – respondo. – O raide foi um falhanço. Asim Al-Asheed
não está lá.
Capítulo 5
Duas e trinta e cinco da manhã, hora local
Embaixada da República Popular da China, Trípoli

No seu gabinete seguro e discreto num subsolo, Jiang Lijun, alto


funcionário do Ministério chinês da Segurança do Estado para todo o
Norte de África, reflete, sentado à secretária, fumando outro cigarro
Zonghua. O mobiliário da sala é escasso, apenas uma estante e três
pesados armários metálicos de arquivo com fechadura. Há uma
fotografia do Grande Timoneiro na parede, ao lado da do atual
Presidente. Em cima da secretária, tem duas fotografias: uma da
mulher, Zhen, e outra do seu falecido pai. Jiang tinha apenas cinco
anos em 1999, quando ao lado da mãe, que chorava, esperou na
pista do Aeroporto Internacional de Pequim pelas cinzas do pai, que
os americanos haviam matado, juntamente com outras duas pessoas,
na cave da Embaixada da China.
O raide de 7 de maio ocorrera durante a campanha de
bombardeamentos da NATO para impedir os Sérvios de cumprir o seu
justo destino: controlar os seus territórios e vencer os inimigos. Havia
séculos que o Ocidente usava essa tática, no entanto, por serem «os
outros», os Sérvios foram responsabilizados e bombardeados por
fazerem o mesmo que as grandes potências.
O pai estava a trabalhar na Embaixada Chinesa, na Ulica Augusta
Cesarca, como oficial de comunicações quando quatro bombas de
um B-2 Spirit americano atingiram o edifício, pretensamente por erro,
embora ninguém na China acreditasse em tal patranha. Todos sabiam
que fora uma forma de o Ocidente castigar a China por apoiar os
Sérvios.
Mais tarde, à medida que cresceu e frequentou a escola, Jiang
soube que o bombardeiro que matara o pai pertencia ao famoso 509th
Bomb Group da Força Aérea, o mesmo que lançara as bombas
atómicas em 1945, incinerando dezenas de milhares de civis.
Essa unidade tinha decididamente experiência em matar asiáticos
inocentes.
Lança um olhar rápido à fotografia de Zhen, tirada durante a lua de
mel dos dois no Havai. Neste momento, a mulher está em Pequim, de
visita ao pai doente. Trabalha na sede do ministério, no número 14 da
Avenida Dongchangan, como gestora de pessoal.
O avô de Jiang – Jang Yun – fora um camponês iletrado, até se
juntar ao Exército Vermelho e combater tanto os Japoneses como o
Kuomintang. Depois, tornou-se um discreto mas poderoso funcionário
do partido em Xangai. Vivera o tempo suficiente para assistir à
ascensão do filho, e Jiang lamenta amargamente que os Americanos
tenham impedido o seu pai de assistir ao êxito do próprio filho.
Jiang toca na fotografia de Zhen durante um instante. Jurou muitas
vezes que o seu futuro filho crescerá num mundo pacífico e forte,
uma comunidade mundial que reconheça o devido lugar e a força da
China.
Custe o que custar.
Abre a gaveta central da secretária, tira um mapa pormenorizado
da Líbia e avança para o chão frio e atapetado, onde o abre. Há
centenas de mapas digitais de alta qualidade à sua disposição aqui,
no seguro sistema informático do ministério, capazes de mostrar até
uma determinada flor do Roseiral da Casa Branca ou os rostos de
soldados americanos na ponte de um submarino nuclear armado com
mísseis balísticos, a zarpar de Kitsap, no Estado de Washington.
Mas aceder a esses mapas deixa rastos digitais que podem ser
vistos por outros no seu ministério e não só.
Ele é especialista em não deixar rastos.
Um dedo avança do golfo de Sirte para as montanhas de Nafusa.
Jiang olha para a legenda na base do mapa, que marca as distâncias
em quilómetros. Dirige-se à secretária, regressa com uma régua
metálica e pousa-a sobre o mapa.
Gostaria de saber a posição exata daquele navio de guerra
americano – batizado, ainda lhe custa a acreditar, com o nome de um
inseto com ferrão – mas fazer essa pergunta teria suscitado muitas
outras, mais tarde.
O funcionário de plantão – Liu Xiaobo – tem razão. Os americanos
vão pousar muito em breve naquelas montanhas escarpadas sem
grande reserva de combustível. Oh, podem ser abastecidos em voo,
mas na Líbia há muitos olhos e ouvidos eletrónicos da Terra do Meio,
da Rússia, do Irão e de outros. Olhos e ouvidos curiosos fazem surgir
muitas perguntas.
Explora com os dedos os pequenos triângulos representando as
aldeias. Liu tem duplamente razão: Jiang interessa-se, de facto, por
alguém que vive lá e agora pergunta-se que fazer.
Deixa o mapa e a régua no chão, regressa à secretária. Retira
uma corrente fina que traz ao pescoço e de que pende um pequeno
cartão magnético, retangular, que insere na gaveta inferior do lado
direito da secretária. Um ligeiro clique e abre-a. O dispositivo foi-lhe
enviado diretamente pelo fabricante, Schlage – evitando o sistema de
fornecedores do ministério, – e, assim, Jiang tem a certeza de que a
sua gaveta nunca poderá ser forçada ou aberta sem a sua
autorização.
Entre os papéis, pen drives, blocos de apontamentos e outros
bens, encontra-se o mais recente telefone de satélite de edição
limitada, fabricado pela Iridium, uma empresa americana. A sua
vantagem é poder ser utilizado dentro de um edifício. O Ocidente
começa finalmente a compreender que todos aqueles equipamentos
eletrónicos baratos que compraram à Terra do Meio ao longo de
décadas continham spyware e backdoors eletrónicas para os seus
empregadores, e Jiang precisa de fazer telefonemas sem ser
controlado pela sua gente.
Tira um pequeno bloco de apontamentos, com determinados
números escritos no interior. Liga o telefone, esperando alguns
segundos, durante os quais calcula a próxima jogada.
Matar americanos, decide por fim, enquanto o telefone pisca e
ganha vida.
É isso que está destinado a fazer desde aquela noite de maio de
1999.
Capítulo 6
Duas e quarenta da manhã, hora local
Montanhas de Nafusa, Líbia

No ar límpido e frio da montanha, Nick Zeppos ergue o punho


cerrado, fazendo sinal a todos os que se encontram ao alcance da
vista para ficarem em silêncio. A fúria cresce dentro de si. Merda.
Outra vez, não.
À terceira não foi de vez.
Perscruta os pequenos edifícios, vê um caminho juncado de
pedras que conduz a uma colina. Olha-o fixamente, sabendo que as
suas boleias para casa estão por ali, voando em círculos ao longe, à
espera de os levarem de volta ao Wasp, com sorte, transportando
pastas cheias de informações e um saco para transporte de
cadáveres contendo os restos ainda quentes de Asim Al-Asheed.
Mas têm as mãos vazias, e o Spear One e o Spear Two em breve
esgotarão o combustível.
Está na hora de tomar decisões.
Estende a mão para o microfone, pronto a fazer o pedido de
retirada, quando julga ouvir uma campainha.
O quê?
Começa a subir o caminho.
O tilintar torna-se mais forte.
Sabe que os tanques de combustível dos dois helicópteros Black
Hawk estão a ficar mais vazios.
Mas continua a andar.
Capítulo 7
Sete e quarenta da noite, hora local
Sala de Crise da Casa Branca

Na atmosfera cada vez mais tensa da Sala de Crise, a vice-


presidente Pamela Barnes fala pela primeira vez:
– Porque é que os SEAL não se vão embora? – pergunta. – Não
estão a ficar com pouco combustível para o transporte? O tempo
deles em solo líbio é limitado… e acrescento que a sua presença é
ilegal.
Quero responder, mas mantenho a boca fechada. Há anos,
quando era membro das equipas BUD/S (Basic Underwater
Demolition/SEAL) Class 342, podia retorquir em segundos.
Mas já não sou um SEAL.
Sou apenas POTUS, o Presidente dos Estados Unidos.
Serão outros a ter de responder às perguntas.
Ao meu lado, o almirante Horace McCoy, chefe do Estado-Maior
Conjunto, diz:
– Senhora vice-presidente, a situação continua… fluida. Calculo
que as equipas SEAL estejam a explorar e a tirar partido da situação
para ver se há alvos possíveis nas imediações.
– Mais perguntas, Pamela? – inquiro.
Fulmina-me com o olhar e eu devolvo-lho. Faz um bom trabalho
como vice-presidente, trabalhou bastante bem como governadora da
Florida e quase foi para a Sala Oval como candidata há dois anos,
mas é reativa e não sabe grande coisa quando se trata de assuntos
militares. A minha vice-presidente pensa que os membros dos SEAL
e outros são brinquedos de corda que seguem numa direção,
cumprem ordens e regressam rapidamente.
E se ficarem estragados ou destruídos no percurso, bem, qual é o
problema? Arranjam-se outros..
– Senhor Presidente – diz o almirante McCoy. – Olhe para o ecrã.
Desvio os olhos da vice-presidente Barnes e observo as imagens
fantasmagóricas em movimento que nos são enviadas pelo nosso
drone. As formas brancas dos SEAL estão espalhadas numa linha de
ataque e o drone acompanha-lhes os movimentos.
Surgem outros edifícios.
E um recinto com animais de pequeno porte movendo-se em
círculos.
Outras formas brancas fantasmagóricas começam a aparecer, de
armas na mão, nos telhados desses novos edifícios.
O almirante McCoy comenta:
– Penso que a situação está a evoluir, senhor Presidente.
– Ótimo – respondo.
Capítulo 8
Duas e quarenta da manhã, hora local
Montanhas de Nafusa, Líbia

Quando está a aproximar-se do cume da colina, a força de ataque


do sargento-chefe Zeppos deita-se no solo pedregoso e nos tufos de
ervas e mato raquíticos para não se destacarem contra o céu noturno.
Zeppos observa atentamente, com a espingarda de ataque HK416
firme nas suas mãos enluvadas; sente o frio do solo contra o corpo.
– Diabos me levem! – sussurra.
À esquerda, há um pequeno curral de pedra, com cabras, algumas
delas com chocalhos ao pescoço.
Ouve um tilintar mais alto, mas o que realmente lhe chama a
atenção é a disposição do recinto.
É uma imagem simétrica do local onde aterraram há uns longos
minutos.
Um erro de cartografia.
Que surpresa, porra!
Nos auscultadores, um dos membros da equipa sussurra a palavra
reservada a terroristas.
– Fala Blake. Dois tangos no edifício a sudoeste. Atacar.
– Recebido – responde Zeppos, e toda a sua disposição e atitude
se alteram, enquanto pensa: Sim, lá vamos nós, estamos no local
certo. Asim Al-Asheed, vamos apanhar-te.
Um pfft pfft pfft abafado vem da zona do edifício mais pequeno, à
esquerda. Dois homens, com AK-47, caem ao chão.
Neste momento, não é o recinto pacífico de uma tribo, pois não? O
elemento de surpresa acabou, se é que alguma vez existiu.
Semper Gumby, pensa. Sempre flexível.
Zeppos levanta-se e o pelotão entra em ação, em silêncio, rápida
e eficientemente, deslocando-se como uma unidade composta, sem
que nenhum grite e berre o «go, go, go!» que se vê nos piores jogos
de vídeo. Apenas um grupo coeso que avança como foi treinado para
fazer, cumprindo a tarefa o mais discretamente possível.
Um homem, também armado, sai a correr do edifício pequeno
mais próximo e Zeppos abate-o com dois tiros e, ao passar
rapidamente pela forma imóvel, dispara mais duas vezes contra o
peito do homem.
Mais perto do edifício maior, Zeppos pensa que, com drones e
outros meios de recolha de informações a pairar no ar, cada
movimento, sussurro e tiro disparado neste pequeno recinto está a
ser visto pelo pessoal do centro de Operações Especiais conjuntas,
em Bagram, nas salas de projeção do Pentágono e de Langley, e na
Sala de Crise da Casa Branca.
Odeia reconhecê-lo, mas sente um pouco de orgulho e pressão
por saber que o Presidente dos Estados Unidos está a observar a sua
progressão, esta noite, a milhares de quilómetros de distância. Afinal,
o ex-vice-presidente e congressista do Texas já fizera este mesmo
trabalho, tendo prestado serviço nas equipas anos antes, pouco
depois do derrube das Torres Gémeas.
Não o vamos desiludir, senhor Presidente, pensa Zeppos.
– Equipa de penetração – sussurra. – Avançar.
Dois dos seus SEAL abandonam a formação e aproximam-se do
edifício maior, que agora se vê mais claramente, e Zeppos sente-se
ficar calmo e sereno. Dentro de mais ou menos um minuto, haverá
uma entrada dinâmica e qualquer pessoa que lá se encontre vai levar
dois tiros no peito e um na testa. Serão tiradas fotografias do alvo, o
cadáver será medido e as impressões digitais recolhidas; mais tarde,
recolher-se-ão amostras de ADN para análise.
Asim, vamos limpar-te o sebo.
Os dois SEAL estão junto à porta e Zeppos vê que esta é de metal
pesado e fechada a cadeado.
Vai levar um pouco mais de tempo se as janelas estiverem
protegidas do mesmo modo.
Deslocam-se para o lado, procurando uma oportunidade.
Outro sussurro de Miller, membro da equipa:
– Tango avistado.
Pfft, pfft.
Os SEAL estão junto a uma janela do edifício maior, o alvo, e
iniciam o seu trabalho, e…
O clarão e o ruído da explosão projetam Zeppos para o chão.
Cospe sangue e terra e rola, ajoelhando-se, com a HK416 nas mãos,
cego.
Pestaneja, levanta os óculos de visão noturna, protegendo, com
as mãos, os olhos da luz repentina.
O edifício-alvo desmoronou-se devido a uma explosão, e as
chamas e o fumo ondulam.
Armas de fogo crepitam dos outros dois edifícios.
Zeppos estica-se e começa a ripostar.
– Situação – diz. – Situação.
Não há resposta dos seus SEAL.
Dispara mais duas vezes.
– Situação – pede de novo, mais alto. – Situação.
As balas zumbem na sua direção e em seu redor, atingindo rochas
próximas.
– Merda, merda, merda – murmura, trocando o carregador vazio
da pistola de assalto por um cheio.
Desculpe, senhor Presidente, pensa, disparando de novo contra
as luzes tremeluzentes do edifício mais próximo, falhámos.
Capítulo 9
Sete e quarenta e cinco da noite, hora local
Sala de Crise da Casa Branca

– Situação! Os SEAL combatem homens armados no segundo


recinto. Parece que o primeiro local de aterragem foi um erro – diz o
almirante McCoy.
Limito-me a aquiescer.
Que mais posso fazer?
Há um pensamento no fundo da minha mente.
Estarei perante um momento Carter?
Ou um momento Obama?
O infeliz Jimmy Carter, que soube em abril de 1980 que o plano
ousado para resgatar os reféns detidos pelos Iranianos acabou num
fiasco envolto em chamas, no deserto.
Ou o sortudo Obama, ao saber, na mesma sala, que o plano
ousado para matar Osama bin Laden, em maio de 2011, terminou em
triunfo com as palavras vindas de Abbottabad: «Por Deus e pelo país
– Geronimo, Geronimo, Geronimo. Geronimo EKIA2.»
O canto do grande ecrã de vídeo cintila por breves instantes com a
imagem dos helicópteros que dentro de minutos deverão recolher os
SEAL, espera-se que ilesos, e transportando uma grande quantidade
de discos rígidos de computadores, documentos, pens, telemóveis,
e…
Um grande clarão de luz aparece na parte superior direita do ecrã.
Alguns dos que se encontram na sala murmuram e a vice-
presidente Barnes grita:
– Que aconteceu?
Pego noutra caneta, segurando-a com força.
É tudo o que posso fazer.
Está fora do nosso controlo, está fora do controlo deles e, como
tantas vezes antes, uma operação militar planeada cuidadosamente
falhou ao contactar com o inimigo.
Os criminosos têm sempre uma surpresa na manga, dizia-se na
Marinha.
– Algo correu mal – afirma o almirante McCoy.
– Dá para ver – comento.
– Foram os SEAL? – pergunta Barns, rispidamente.
– Não, senhora vice-presidente – responde o almirante. – A
explosão parece interna. Não foi provocada pelas nossas forças no
terreno, nem por nenhum dos nossos ativos aéreos presentes na
zona.
O capitão de mar e guerra da Marinha e o coronel do Exército
sussurram-lhe mais umas coisas.
– Compreendido – digo.
No ecrã, entretanto, vê-se melhor o edifício que se desmoronou.
Mais vultos fantasmagóricos deslocam-se. Tomba um. A seguir, outro.
Os melhores soldados da nossa nação, a cair em solo estrangeiro,
feridos ou mortos.
Enviados por mim.
– Os SEAL estão a ripostar, senhor Presidente. E… três entraram
no edifício destruído. Para examinar… para ver o que se passa –
anuncia o McCoy.
Limito-me a fazer um aceno de cabeça.
Os rostos das outras pessoas na Sala de Crise parecem ter ficado
sem sangue, sem qualquer pensamento. Estamos todos apenas à
espera.
À espera.
– Os helicópteros ainda se encontram a voar por perto, em
segurança, para a exfiltração?
Sussurros ao meu lado e o almirante responde:
– Sim, senhor Presidente. Quer…
– Não – interrompo-o. – Os tipos no terreno, a decisão é deles.
– Sim, senhor – assente.
A vice-presidente olha para mim, com o rosto carrancudo e o
cabelo louro curto perfeitamente penteado e no lugar devido.
O McCoy pigarreia:
– Senhor Presidente… os SEAL estão a preparar a exfiltração.
Eles… hum, sofremos baixas, senhor.
– Quantas?
– Dois mortos em combate, pelo menos três feridos.
Dois mortos e três feridos.
Merda.
– E o Asim Al-Asheed?
Não há resposta. Nova barafunda.
Deixo cair a caneta e bato com a mão no tampo da mesa da sala
de reuniões.
– Almirante! Onde está o Asim Al-Asheed?

2
EKIA: Enemy Killed in Action (Inimigo Morto em Combate). (N. do T.)
Capítulo 10
Duas e quarenta e cinco da manhã, hora local
Montanhas de Nafusa, Líbia

O sargento-chefe Zeppos sente dor na canela esquerda. Baixa os


olhos, vê o tecido rasgado das calças da farda e o sangue a escorrer.
Que se lixe, pensa, enquanto trabalha com os outros membros da
equipa dos SEAL para sair desta emboscada. O edifício grande que
explodiu há minutos desmoronou-se parcialmente, as colunas de
fumo erguem-se no ar, ainda ardem pequenos focos de incêndio.
Continuam debaixo de fogo vindo da colina próxima, mas é
indisciplinado e aleatório, e Lopez, o melhor atirador furtivo do
pelotão, está a eliminar calmamente os atiradores, um a um, com a
sua espingarda Remington MK 13, de mecanismo de ferrolho.
As cabras, que apanharam um susto de morte com a explosão,
andam agora às voltas no seu curral de pedra, à procura de um ser
humano que tome conta delas.
Vai ser uma espera longa que se farta, cabrinhas, pensa Zeppos.
Um dos seus homens, Herez, aproxima-se:
– Temos os feridos estabilizados, Nick.
Faz um aceno de cabeça. Os feridos talvez se safem e os dois
mortos talvez sejam o único custo elevado pago hoje.
Morreu Prudhomme, um bom tipo de Nova Orleães e o pior
cozinheiro da unidade, apesar do seu nome e das suas origens
cajuns.
E Kowalski.
Que queria a cabeça de Asim Al-Asheed num chuço, um troféu
para levar para a Sala Oval.
Saem outros três homens do edifício derrubado, tossindo e
caminhando rapidamente na sua direção.
Picabo informa-o:
– Nenhum homem em idade militar, nem discos informáticos, nem
armários de arquivo… nada de nada, porra! Só roupa de cama,
fogões e comida enlatada.
Há sete terroristas mortos lá dentro. Um exame rápido em redor
do recinto revelou que nenhum deles era Asim Al-Asheed. Zeppos
cospe para o chão, vê os seus três homens a serem tratados e
Wallace de guarda junto aos vultos imóveis de Prudhomme e
Kowalski.
– Mais alguma coisa?
Picabo tosse.
– Merda, chefe, desculpe. Há civis mortos lá dentro.
– Foda-se – retruca Zeppos.
Os tiros parecem ter cessado na colina. Continua a sentir dores na
perna ferida. O edifício-alvo – sem nada no interior que valesse esta
viagem ou os seus feridos e mortos – continua a arder lentamente.
Picabo comenta:
– Aqueles merdosos sabiam que estávamos a chegar.
– Sim.
– Está na hora da exfiltração, chefe?
Zeppos prime o botão do microfone.
– Sim – responde. – Está na hora de sairmos daqui, porra!
Capítulo 11
Sete e quarenta e nove da noite, hora local
Sala de Crise da Casa Branca

No ecrã, vejo as chamas e as colunas de fumo a erguerem-se do


grande edifício que os SEAL visaram nesta noite desastrosa. A
imagem do recinto alarga-se um pouco a partir da plataforma de visão
local, permitindo-nos ver os dois helicópteros furtivos especiais Black
Hawk MH-60M a descer para recolher a equipa. Observo atentamente
enquanto os vultos brancos pouco nítidos avançam para os
helicópteros, alguns deles caminhando ajudados pelos outros
membros da equipa.
Dois grupos de SEAL caminham mais devagar, sobrecarregados
por transportarem os camaradas mortos.
– Senhor Presidente – diz o almirante McCoy.
– Diga – retruco.
– O Asim Al-Asheed não estava lá – prossegue, e oiço algumas
pessoas, na sala, a suspirar descoroçoadas. – Foram mortos sete
terroristas. Examinados atentamente, nenhum correspondia à
descrição dele.
A sala está em silêncio e todos os olhos convergem em mim.
Este espaço apinhado é agora um local muito solitário.
– Conseguiram recuperar alguma coisa de valor?
– Não, senhor Presidente – responde. – Alguns panfletos
jihadistas, os bilhetes de identidade dos terroristas mortos. É tudo.
Nem discos de computador, nem pens, nem telemóveis.
Vejo os helicópteros a levantar voo do recinto e o ecrã não tarda a
mostrar senão fumo e morte.
– Os helicópteros terão combustível suficiente para regressar ao
Wasp? – pergunto.
– Não tenho a certeza – diz o almirante McCoy. – Mas vão chegar
lá em segurança. O Wasp pode manobrar e aproximar-se da costa, e
podemos organizar o reabastecimento em voo a partir do momento
em que sobrevoem o mar.
Tenho os olhos fixos no ecrã, onde, poucos minutos antes,
homens duros e determinados lutavam por um objetivo, pelo nosso
país, por mim… e agora não há nada.
– Almirante – digo.
– Senhor Presidente.
Olho de relance para ele e para os rostos sombrios da minha
equipa. Tenho a certeza de que todos ansiavam ver-me anunciar na
televisão que o Asim Al-Asheed fora morto ou capturado e não duvido
de que alguns teriam descrito mais tarde a amigos e familiares a
«sensação única» de estar ao lado do Presidente dos Estados Unidos
num momento tão decisivo.
– Civis – continuo. – Morreram civis?
O McCoy não hesita, o que só abona em seu favor:
– Sim, senhor. Uma mulher e três meninas. A julgar pela
documentação que os SEAL recolheram, eram a mulher e as três
filhas do Asim Al-Asheed.
Oh, porra, penso.
– Mortas por nós – digo.
– Mortas quando o edifício explodiu – corrige o McCoy.
– E explodiu porque estávamos lá – afirmo. – Por o fogo cruzado
ter atingido um engenho explosivo improvisado, por alguém ter
deixado cair uma granada de RPG e provocado a detonação induzida
pelo calor de uma pilha de munição… algo desse tipo.
A sala fica em silêncio durante um curto instante e digo, sem me
dirigir a ninguém em especial:
– Será que alguém pode desligar aquele maldito vídeo?
Passado um segundo, o ecrã fica negro.
Até que enfim algo funciona esta noite.
Chamo a atenção do meu chefe de gabinete, Jack Lyon. É
entroncado, usa óculos com armações redondas de massa e o cabelo
castanho alisado para trás. É funcionário do partido há anos, foi a
primeira nomeação do meu antecessor e eu mantive-o no cargo
porque ele sabe abrir portas e fazer os telefonemas certos às
pessoas certas, algo que é mais valioso do que ouro nesta cidade.
– Jack – digo.
– Senhor Presidente.
Olho para os relógios. São quase oito da noite. Demasiado cedo.
– Contacta as televisões e as estações de notícias por cabo –
afirmo. – Vou fazer uma comunicação às nove da noite. Nessa altura,
os SEAL já devem estar em segurança a bordo do Wasp.
No meio de um murmúrio de vozes e cabeças a voltarem-se para
mim, o meu chefe de gabinete declara:
– As redes mais importantes poderão ter relutância em interromper
a sua programação se não lhes der informações sobre o que planeia
dizer, senhor Presidente.
– Para haver uma fuga de informação menos de sessenta
segundos após o teu telefonema?
– Pelo menos algo que dê a entender o que dirá. Dê-lhes isso,
senhor Presidente.
Aceno com a cabeça.
– É justo. Diz-lhes que, às nove da noite, tenciono informar o
mundo da ação militar desta noite contra Asim Al-Asheed e explicar
que não cumpriu os nossos objetivos.
Não digas falhou, penso. Os Americanos não gostam da palavra
falhanço.
Sandra Powell, conselheira de Segurança Nacional, diz:
– Senhor Presidente, acho que devia fazer uma pausa e esperar
até os factos serem conhecidos e…
Ergo a mão.
– Não – assevero. – Não esta noite. Fizemos merda. Matámos
civis e nós não somos assim. Foi um acidente, na neblina da guerra,
mas não vou permitir que esta administração tergiverse e emita
declarações cheias de palavras ambíguas sobre não dizermos nada
enquanto os factos não forem conhecidos. Que se lixe isso. Todos
vimos o que aconteceu. Os SEAL avançaram… obedecendo às
minhas ordens e autoridade… e levaram a cabo a sua missão. Não
correu bem e, ao fazerem-no, morreram inocentes. E essa
responsabilidade é nossa.
A sala permanece em silêncio.
O secretário da Defesa, Pridham Collum, pigarreia.
– Se me é permitido, senhor Presidente, as tropas no terreno são
capazes de não gostar dos seus comentários.
Nesse momento, disparo.
– Pridham, quem é que pensa que sabe mais sobre o que os
soldados sentem: um antigo combatente ou um licenciado pela Sloan
School do MIT?
E, de imediato, arrependo-me de ter dito tais palavras.
O rubor invade o rosto do secretário da Defesa, que baixa os olhos
para o seu computador portátil e documentos.
Olho de relance para os meus assessores.
Mantém a calma, lembro-me.
– Esta noite, vou explicar os objetivos da missão e citar os
relatórios dos Serviços Secretos sobre os crimes que o Asim Al-
Asheed cometeu ao longo dos anos – afirmo. – Vou dizer que mandei
avançar os SEAL com base nas melhores informações e relatórios
secretos de que dispúnhamos, e apresentarei as minhas desculpas
pessoais pelo que aconteceu naquele recinto.
O chefe do Estado-Maior, Lyon, pergunta calmamente:
– Um pedido de desculpas, senhor Presidente?
– A responsabilidade acarreta pedido de desculpas – responde. –
É o que deve ser feito.
Powell, a conselheira de Segurança Nacional, pressiona-me:
– Senhor Presidente, se me é permitido, será um erro grave.
Estará a minar a sua posição e autoridade naquela parte do mundo.
Os nossos aliados… embora nos louvem em público… perguntar-se-
ão em privado se não estaremos a ficar fracos.
Agarro na caneta, nos documentos e no bloco de apontamentos e
levanto-me. Uma das regalias de ser Presidente é que, quando nos
levantamos, terminou a reunião.
– Se ser fraco é assumir responsabilidade pelos erros – afirmo –,
então não acho mal.
Mais pessoas tentam intervir enquanto saio pela porta, mas a vice-
presidente Pamela Barnes, sentada ao canto a olhar apenas para
mim, não é uma delas.
Capítulo 12
Nove e seis da noite, hora local
Residência da vice-presidente, Observatório Naval dos Estados
Unidos

Após um longo duche escaldante na sua residência privada nas


instalações do Observatório Naval dos Estados Unidos, a vice-
presidente Pamela Barnes vestiu um roupão azul liso de tecido
felpudo que a acompanhou da mansão do governador em
Tallahassee até aqui, Washington. Tal como tenta fazer na maior
parte das noites, depois de ter vadeado pelo pântano da política de
DC, descontrai numa cadeira confortável com um copo de Glenlivet e
gelo, e o marido, Richard, a seus pés.
Debruçado sobre um escabelo, esfrega-lhe os pés gretados e
doridos com loção hidratante. Os pés têm sido uma fonte constante
de dor desde que, há anos, começou a fazer valer os seus direitos e
os de terceiros e entrou para a política.
A sala de estar luxuosa – a abarrotar de mobiliário e antigos
quadros a óleo – tem pouca luz e, no grande ecrã de televisão que
têm diante deles, o Presidente dos Estados Unidos parece terminar a
sua comunicação.
– … através dos serviços da Cruz Vermelha Internacional, em
Genebra, dei instruções ao Departamento de Estado para iniciar o
processo de indemnização financeira às famílias dos que foram
mortos acidentalmente, esta noite, pelas nossas forças armadas…
O marido da vice-presidente rosna, enquanto as suas mãos fortes
espalham a loção:
– Tonto. Mais valia passar um cheque em branco àquele gajo, o
terrorista. Não percebeu que todo o dinheiro que for entregue aos
parentes daquele homem vai cair diretamente nas mãos de Asim Al-
Asheed?
Pamela Barnes toma um gole gratificante do whisky forte, o único
pequeno vício que se permite todas as noites. Uma bebida e apenas
uma. Passou tempo suficiente em Tallahassee para ver quantas
carreiras promissoras foram destruídas por demasiada bebida e muito
pouco discernimento.
– O Tesouro diz que podem dar a volta a isso – afirma. – Criar
uma espécie de fundo a que apenas terão acesso determinadas
pessoas, e rastreável de modo que não possa ser usado para
comprar explosivos plásticos nem munições.
Richard põe mais hidratante nas mãos fortes e curtidas. Era
criador de gado no condado de Osceola e ganhara a vida assim e
com a venda de parte das suas terras para a construção de um
casino, havia uns anos. Ela conheceu-o quando era senadora
estadual na Florida e ele era membro da câmara dos representantes,
e sentiu-se atraída inicialmente pelo seu corpo musculoso – não era
um representante estadual bonitinho dentro de um belo fato – e,
depois, pela sua grande inteligência política.
Fora graças à estratégia dele que Pamela Barnes chegara à
mansão do governador em Tallahassee e apenas a um punhado de
delegados de distância de se tornar Presidente, um objetivo que
estivera tão desesperadamente perto de se concretizar.
Maldito seja aquele homem, pensa, sorvendo mais um gole,
recordando o senador untuoso e melífluo do Estado de Washington
que não tivera o raio da decência de morrer antes do final da
convenção e escolhera Matt Keating para seu vice, levando-a a
aceitar a nomeação por aclamação. Agora já se falava em dar a
escolas e autoestradas o nome do tonto morto que não lhe dera o
lugar que lhe pertencia por direito.
– … as ações levadas a cabo esta noite pelas forças navais e do
Exército dos Estados Unidos foram executadas por minha ordem. As
nossas forças armadas cumpriram essas ordens com a excelência e
bravura que as distinguem – diz Keating. – Se erros houve na ação
militar desta noite, e decorrentes mortes de civis, o responsável sou
eu e só eu. O Exército e a Marinha tiveram um desempenho
admirável e fizeram tudo o que lhes foi pedido.
Richard recomeça a massajar-lhe os pés. Meu Deus, como ela
gosta das suas mãos fortes e ativas.
– Tretas – diz o marido. – Eles fizeram uma grande cagada e
embrulhares-te numa bandeira não te vai ajudar, marujo. Os eleitores
não gostam de cagadas e, tão certo como dois e dois serem quatro,
não gostam de ver os Estados Unidos a pedir desculpa… para já não
falar em gastar dinheiro com isso.
– Richard, por favor…
Ele cala-se, fita-a com os seus duros olhos cinzentos, o seu
espesso cabelo castanho cortado e penteado.
– Pamela, ouve com atenção. E, por favor, não me interrompas.
Mais um sorvo da bebida.
– Muito bem, fala.
– Tu e eu sabemos que, embora neste momento o Keating esteja
a sair-se bem nas sondagens, tem pouco apoio, sobretudo no partido.
Há muita gente por aí, gente com boa memória e bolsos recheados,
que pensa que foste tramada na convenção, em Denver. Se o
Lovering tivesse tido tomates para fazer o que era justo e te tivesse
escolhido para vice, estarias tu na Sala Oval, em vez daquele cowboy
do Texas. E ambos sabemos que tu nunca aparecerias na televisão a
pedir desculpa pelo que quer que fosse.
O calor do whisky espalha-se-lhe no corpo, a sensação nos pés é
fantástica.
– Isso já passou à história, Richard. São águas passadas.
Ele limpa a mão a uma toalhinha branca e levanta-se:
– A história é o que fazemos dela, Pamela. Sabes o que vai
acontecer. Ele vai ter uma pequena subida nas sondagens por fingir
que é um homem forte, mas, dentro em breve, aparecerão as
historietas e os mexericos. Por ser fraco, por ter aparecido na
televisão esta noite com dois dos nossos corajosos Navy SEAL
mortos e por se ter marimbado para a memória e bravura deles
pedindo desculpa, como um miúdo de escola. E se juntares a isso
que não consegue controlar a Samantha, a puta da mulher, aquela
professora universitária pretensiosa… bem, dentro de seis meses,
não terá apoios.
Ao longo dos anos, o estilo franco de Richard e a sua linguagem
rude enganaram muitos adversários políticos habilidosos e
aparentemente espertos, e Pamela aprendeu a confiar no instinto
dele.
– E falta menos de um ano para as convenções de Iowa e as
primárias do New Hampshire – responde ela.
Um aceno de cabeça agradado.
– É isso mesmo, Pamela. Olha, deixa-me apalpar terreno, falar
com pessoas, ver que recursos temos. Há muita gente no partido
disposta a deixar cair o Keating e apoiar-te quando chegar o
momento. A tua tarefa é certificares-te de que o momento acontece.
Pamela vê o homem na televisão dizer:
– Obrigado e boa noite.
A vice-presidente pega no controlo remoto, desliga o televisor,
termina a sua bebida.
– Então, faz o teu trabalho, Richard – diz.
Capítulo 13
Quatro e cinco da manhã, hora local
Embaixada da República Popular da China, Trípoli

Numa pequena sala de jantar ao lado da cozinha, na Embaixada


Chinesa, Jiang Lijun, do Ministério da Segurança do Estado, e um
punhado de outros funcionários do turno da noite, veem o canal de
notícias CCTV, Televisão Central da China, num televisor suspenso
num dos cantos do teto.
No ecrã, o Presidente americano faz um discurso triste, e as
legendas explicativas sucedem-se. Sentado ao lado de Jiang, numa
mesa de jantar redonda, fumando um cigarro e bebericando uma
chávena de chá, encontra-se Liu Xiaobo, o funcionário do plantão
noturno que o alertou do ataque americano. Faz uma pausa matinal.
– Incrível, não é? – pergunta.
Jiang faz um aceno de cabeça, bebericando a sua chávena de chá
Da Hong Pao.
– Não podia concordar mais.
Liu abana a cabeça, pasmado.
– Espantoso! O tonto está mesmo a pedir desculpa pelo que os
seus soldados fizeram esta noite. A pedir desculpa! Consegue
imaginar o nosso Presidente a pedir desculpa por uma coisa dessas?
Não se atreveria! Mesmo que tentasse fazer uma coisa destas, o
Presidium obrigava-o a parar de imediato… e talvez o demitisse.
Jiang sorri, sorve mais um gole gratificante de chá quente.
– Dentro de dois anos, os eleitores americanos terão oportunidade
de demitir o Keating, se assim o entenderem.
O funcionário do turno da noite responde:
– É verdade. E seria uma dádiva e tanto, hem?
– Concordo – responde Jiang, pensando em tudo o que aconteceu
desde a morte súbita do Presidente anterior. – Desde que assumiu o
cargo, o Keating empurra-nos, pressiona-nos, humilha-nos… queixa-
se à Organização Mundial do Comércio, põe-nos processos judiciais
por causa de patentes e direitos de autor… e até envia navios e
aviões para as nossas bases no mar da China Meridional. Como se
aquelas águas lhes pertencessem.
No ecrã de televisão, Jiang vê o supostamente humilde, embora
arrogante, Presidente dos Estados Unidos expressar as suas
desculpas. O seu companheiro de mesa, Liu, tem toda a razão. O
Presidente da China nunca iria à televisão humilhar-se, quase em
lágrimas.
Nunca.
E é por isso, pensa, que acabaremos por ganhar.
Nada de desculpas.
Simples ações de uma potência mundial a conquistar o lugar que
é seu por direito.
Liu sacode a cinza do cigarro para o pires da chávena.
– Não seria fantástico, camarada Jiang, se, quando chegar a hora
de os Americanos votarem, o raide falhado desta noite e o discurso
cheio de lamentações provocassem a derrota do Keating? Que
resultado feliz.
Jiang acena com a cabeça, satisfeito, recordando o telefonema
que fez, há menos de duas horas, do seu gabinete seguro, na cave.
Um telefonema feito pela sua nação, é claro, mas também pelo seu
filho que ainda não nasceu.
– Um resultado mesmo muito feliz – concorda.
Capítulo 14
Oito da manhã, hora local
Montanhas de Nafusa, Líbia

Numa caverna recuada nestas montanhas históricas da Líbia,


Asim Al-Asheed está sentado, de pernas cruzadas, sobre uma manta
de lã, à espera. A sua chávena de chai matinal está quase terminada.
O ar frio faz com que os cumes pareçam afiados e duros. Envolve-se
num cobertor especial que o seu aliado chinês lhe deu há uns anos e
que foi concebido para ocultar o seu sinal térmico dos malditos
drones que continuamente voam, espiam e tentam caçá-lo. A cor do
cobertor é quase idêntica à das rochas, o que significa que é quase
indetetável, mesmo para um drone com uma câmara potente que voe
perto da entrada da caverna.
A seu lado, uma pequena mochila contendo o seu Alcorão, uma
muda de roupa, comida, água. Encostada à parede rochosa,
encontra-se uma espingarda automática AK-47 carregada e, a seu
lado, uma pistola Tokarev de 7,62 milímetros, de fabrico russo.
Alguns metros atrás de si, mais dentro da caverna, está o
mensageiro que lhe trouxe a notícia da morte da sua família. De noite,
nesta gruta, Asim sonhou com demónios e jinns a despedaçaram a
sua mulher e as meninas e, com a chegada do mensageiro, algumas
horas depois disso, o sonho tornara-se mesmo realidade.
Inna lillahi wa inna ilayhi raji’un, reza de novo. Na verdade, a Deus
pertencemos e a Deus regressaremos.
O mensageiro não se move, não fala. Está envolvido numa faixa
de plástico azul, sentado contra a parede de rocha, quieto.
Asim não se importa com a solidão, a rocha dura, a rudeza do
ambiente simples que o rodeia. Conhece os bons restaurantes, hotéis
e universidades de Nova Iorque, Londres, Paris e Berlim. Visitou
esses locais muitas vezes, distribuindo dinheiro por apoiantes
silenciosos, recebendo garantias de ajuda futura, quando chegasse o
momento, mas a vida no Ocidente, com todas as suas seduções,
tentou-o, bem como os seus irmãos e irmãs, para uma vida de lazer
excessivo e sem deus.
Olha para as mãos, ásperas, gastas e com cicatrizes. Há uns
anos, quando era um mero estudante, eram macias e lisas, e ele
sonhava então vir a ser cirurgião. Graças à generosidade de uma tia
rica que vivia na vizinha Tunísia, pôde passar quase um ano na
Universidade de Tunis El Manat, a estudar Medicina. Ali,
embebedara-se, fora às putas, mas também estudara com afinco e a
vida no Ocidente atraía-o… até o chamamento da jihad se ter tornado
demasiado forte para ser ignorado.
Asim esfrega as mãos ásperas.
Passou muito tempo.
O sol nasceu ainda há pouco e ele continua sentado e tenta
manter-se em paz, recordando como, há mais de um século, Omar
Mukhtar, que a paz esteja com ele, combateu os Italianos, durante
anos, nesta nação, o país natal de Asim. Aquele homem abençoado
viveu e lutou em montanhas como estas, contra os colonialistas e os
Europeus e o Ocidente, que tentaram, durante milénios, conquistar
estas terras e povos.
Asim sempre se inspirou nele.
As suas terras, o seu povo, a sua família.
Deteta movimentações lá em baixo.
Pega nuns binóculos Zeiss de fabrico alemão e foca-os em quem
sobe pelo caminho de montanha, quase invisível.
Ali.
Um homem e uma mulher, subindo cuidadosamente o caminho
estreito e juncado de pedras, enquanto riem e conversam. As suas
mochilas, de um vermelho berrante, destacam-se da terra seca que
percorrem com descontração. O homem parece forte, jovem e o seu
cabelo louro tem uma tonalidade semelhante ao da mulher. Detêm-se
uma vintena de metros abaixo de Asim, ainda a falar.
O homem ajuda a mulher a tirar a mochila. O blusão de malha
polar que traz vestido ajusta-se aos seios dela. O homem livra-se da
própria mochila, ri de novo, e começa a subir pela vereda,
aproximando-se de Asim e da gruta.
Asim agarra na pistola de fabrico russo.
No alto do céu azul-claro das montanhas, aparece um falcão,
voando nas correntes de ar quente ascendente da manhã.
O homem louro detém-se à entrada da caverna, vira-se e acena e
grita à mulher loura mais abaixo, e ela retribui o aceno. Entra na
caverna, baixando a cabeça, e quando os seus olhos se adaptam à
escuridão, sorri e diz:
– As-salaam ’alaykum, primo.
E Asim retruca ao primo:
– Wa ’alaykum as-salaam.
O homem senta-se a seu lado, de pernas cruzadas.
Passam alguns minutos de silêncio e Asim inquire:
– Quem é a puta que está contigo?
– Uma estudante da Dinamarca. Conheci-a num clube em Trípoli.
Está a percorrer o país, de mochila às costas, e dirige-se para a
Tunísia para ver ruínas romanas. Disse-lhe que havia umas ruínas
isoladas escondidas nestas montanhas e acedeu a fazer uma
excursão comigo. Para a convencer, usei as palavras bonitas que
aprendi na faculdade. Foi fácil.
– E ela acreditou? – pergunta Asim.
Faraj passa a mão pelo cabelo longo e louro.
– É uma rapariga estúpida. Acredita em tudo.
Lembrando-se da sua própria mulher quando era estudante, Asim
assente com a cabeça.
– Primo, quando é que posso voltar a pintar o cabelo de castanho?
Sinto-me um ’ahmaq, um tonto – diz Faraj.
– Quando te disser que o faças – responde. – Esse cabelo pintado
e essa puta estão a manter-te vivo enquanto vagueias pelas
montanhas. Nenhum drone americano que esteja em operação
pensará que dois caminhantes loiros são inimigos que têm de ser
seguidos ou mortos.
– Sim, primo.
– Mas fizeste bem em escolher aquela puta para vir contigo. Muito
inteligente.
– Obrigado, primo.
Asim fica sentado em silêncio durante mais um pouco e Faraj
pergunta:
– Desculpa, primo, mas… aquele que está ali atrás de nós é o Ali?
– Sim – responde Asim.
– Está morto.
– Trouxe-me a notícia da minha Layla e das nossas três meninas.
Não foi capaz de responder a nenhuma das minhas perguntas.
Perguntei-lhe sobre a Layla e depois sobre a Amina, a Zara e a
Fatima. Não foi capaz de responder. Ficou… zangado com as minhas
perguntas.
A voz embarga-se-lhe durante um mero segundo.
Força, pensa. Alá, dá-me força.
– Não consegui aguentar aquilo. Cortei-lhe a goela.
– Compreendo, primo – diz Faraj.
Recuperando a força – muito obrigado, Alá –, Asim pede:
– Diz-me o que puderes.
– Os americanos vieram há seis horas. Parece que os nossos
combatentes foram avisados. Houve uma batalha. O edifício principal,
com munições e abastecimentos para a próxima ação em Trípoli,
explodiu. As tuas mulheres… encontrámo-las estendidas ao lado do
edifício, cobertas por sudários. – Faraj cospe para fora da entrada da
gruta. – Como se os cães tivessem pinga de respeito.
Asim entrelaça os dedos.
– Daqui a um ou dois dias, volta e faz uma inspeção, enterra os
nossos mortos, assinala as sepulturas da minha mulher e das
meninas. Um dia irei visitá-las, inshallah.
Uma voz de mulher sobe no ar rarefeito da montanha.
– A puta está a ficar impaciente, primo – diz Faraj. – Preciso de ir
embora. Posso ser-te útil em alguma coisa?
– O Presidente americano… Keating. Tem uma filha, não tem?
– Tem.
– Vou pensar nisso.
– Vais…
– Não, por agora – retruca Asim. – Temos de ser pacientes.
Faraj levanta-se, segura a mão direita do primo e beija-a.
– Choro a morte das tuas mulheres, Asim.
– Obrigado, primo – responde. – São… foram uma bênção e uma
alegria para mim.
Interrompe-se. Sente a garganta apertada.
Faraj dirige-se para a entrada da caverna.
– Mato a puta agora?
– Não – diz Asim. – Ainda não chegou a hora dela. Matá-la pode
suscitar perguntas, preocupações. Mas, quando chegares a casa,
podes voltar a pintar o cabelo com a sua cor natural, Faraj. Prestaste-
me um bom serviço.
– Como queiras, primo.
Faraj parte e Asim espera, sem se dar ao trabalho de o ver
regressar para junto da estudante, que devia rezar ao seu Deus com
profundos agradecimentos durante o resto da sua vida, pois hoje
esteve perto, muito perto de ser mandada para o seu céu.
Ele espera.
O cheiro que emana de Ali intensifica-se. Há de chegar um
momento em que terá de partir.
Mas agora não.
A sua família, a sua mulher, as suas meninas. Morreram todas. Alá
assim o quis, mas…
A dor arde dentro de si.
Vê o falcão a brincar, movendo-se tão lenta e inocentemente,
porém, sempre a caçar, sendo paciente, para atacar no momento
certo.
Asim reza pedindo a mesma paciência.
Capítulo 15
Dia da Tomada de Posse
Sala Oval

Consigo sentir a tensão da Samantha esta manhã, quando um


grupo de fotógrafos tira a última fotografia do Presidente Matthew
Keating e da sua família adorável. Dentro de quatro horas, passarei a
ser o antigo Presidente Matthew Keating. O meu braço esquerdo
envolve-a e o direito envolve a nossa filha, Melanie. Enquanto o
ombro da Mel dá a sensação de pertencer a uma adolescente típica
que espera esgueirar-se para longe do querido e velho pai, o da
minha mulher parece ter sido talhado em granito.
Então, uma das minhas assistentes do gabinete de imprensa da
Casa Branca ergue a mão e anuncia:
– Obrigada, muito obrigada, temos pela frente um dia muito
preenchido. – Dito isto, qual pastora, conduz os jornalistas para fora
da Sala Oval.
Deviam ser apenas fotografias, mas há décadas que os jornalistas
acreditados na Casa Branca se orgulham de forçar os limites e esticar
as regras o mais possível, e este dia histórico não é exceção.
– Senhor Presidente, deixou algum recado na secretária Resolute
para a Presidente-eleita?
– Algum comentário final no último dia da sua administração?
– Como se sente ao ser o único Presidente da história americana
a perder a reeleição para a sua vice-presidente?
O ombro duro da Samantha fica ainda mais tenso e eu mantenho
um sorriso firme no rosto enquanto os tagarelas são levados, passam
pelo agente dos Serviços Secretos, e a porta ligeiramente curva é
fechada atrás deles, deixando-nos só os três.
A Mel afasta-se e diz:
– Meu Deus, julguei que nunca mais se iam embora. Não foram
capazes de perder uma oportunidade de serem idiotas.
Traz um vestido verde e um casaco amarelo-pálido, e o seu
cabelo louro – que costuma ser um emaranhado de caracóis – está
bem penteado para este dia histórico. Uns óculos com armação clara
de acrílico emolduram-lhe os olhos azul-claros, que, infelizmente,
estão duplamente afetados: miopia e astigmatismo.
– Mãe, pai, posso ir espreitar uma última vez o meu quarto, antes
de irmos embora?
– Vais procurar tesouros perdidos? – pergunto.
Revira um pouco os olhos.
– Pai, por favor, sim, ando à procura da minha Barbie preferida.
– A Barbie do kung fu ou a que tem os revólveres Colt?
Os olhos reviram-se um pouco mais.
– Pai… pronto, vemo-nos daqui a pouco.
A Samantha faz um sorriso cúmplice à nossa filha adolescente.
– Nada de pregar partidas ou fazer gracinhas hoje, está bem?
Temos um calendário apertado.
– Claro, mãe.
– E, se puderes, encontra aqueles óculos que perdeste no mês
passado.
– Mãe! – protesta a Mel. – Até parece que os perdi de propósito.
Com um sorriso, a minha mulher diz:
– Vai lá. Mas não te atrases.
A Mel deixa a Sala Oval, passando junto ao agente dos Serviços
Secretos, que sussurra para o microfone no punho da camisa –
dizendo provavelmente «Hope a caminho dos aposentos da família»
–, e inspiro fundo, tentando aliviar a faixa apertada que me oprime o
peito. Foram uns seis meses deprimentes e péssimos desde que a
vice-presidente Pamela Barnes me derrotou na convenção do nosso
partido em Chicago e eu atenciosamente assumi a derrota e exortei o
partido a apoiá-la.
Desde Chicago que tenho a sensação de cumprir uma pena de
prisão. Quando a convenção terminou, eu era um peso morto e não
consegui fazer grande coisa quando ela entrou em campanha. Nunca
me pediu ajuda e, por isso, tive tempo para cismar nas primárias.
Embora eu tenha vencido por pouco na votação total, ela varreu as
convenções e conquistou mais superdelegados e garantiu claramente
a nomeação.
Sob a orientação astuta do seu implacável marido, usou a
malograda operação na Líbia e a minha intervenção televisiva
honesta sobre a operação para me fazer parecer, em simultâneo,
demasiado fraco e demasiado belicoso. Foi um truque bem feito, que
caiu no goto da imprensa política e dos jovens eleitores sempre à
procura de algo novo.
Devia ter encontrado uma maneira de ganhar, fosse como fosse,
mas não consegui. Infelizmente, entrei numa dura campanha
presidencial tendo mais experiência como Navy SEAL em combates
no estrangeiro do que em guerras políticas nacionais. E continuava
furioso com tudo aquilo, tão furioso que tive por vezes a tentação de
me demitir e deixá-la ficar com o maldito cargo antes de ela marchar
para a vitória nas eleições de novembro.
Mas não consegui fazê-lo. Nenhum SEAL, no ativo ou não, desiste
antes de a missão terminar. Como não desiste um Presidente.
A Samantha suspira. Traz um vestido bordeaux e o seu cabelo
negro está penteado voluptuosamente. Ao pescoço, um simples fio de
ouro. É uma mulher bonita que me conquistou quando nos
conhecemos, perto de San Diego, onde eu me formava, e ela
frequentava em Stanford uma pós-graduação em Antropologia,
fazendo investigação sobre assentamentos pré-colombianos de
índios americanos.
A sua pele bronzeada é impecável e, ao longo dos anos, tenho-me
metido com ela, ternamente, dizendo que tem o físico e o cérebro
para ser modelo, e ela responde sempre que não, que tem o nariz
demasiado grande. Discordo sempre, com doçura.
– Achas que podemos confiar que a Mel regressa a tempo? –
pergunta.
– Ela nunca gosta de ficar para trás – respondo. – Por isso, acho
que sim.
– Quanto tempo falta?
Olho para o relógio.
– Cerca de cinco minutos até termos de nos pôr a andar.
– Podes fazer uma coisa por mim?
– Claro – assinto. – Ainda sou Presidente durante mais quatro
horas. Queres que bombardeie a Albânia?
– Pode ser antes o conselho pedagógico de Stanford? – pergunta,
com o aço que tão bem conheço a aparecer entre o seu sorriso, por
causa de um velho rancor que a minha querida mulher nunca, nunca
esquecerá.
– Dá-me as coordenadas de GPS deles e está feito – digo.
Agarra-me na mão e sentamo-nos num dos dois sofás iguais de
cor creme e penso em todas as pessoas que recebi aqui, na Sala
Oval, ao longo dos anos – desde o primeiro-ministro de Israel a uma
delegação de escoteiros constituída pelas maiores vendedoras de
bolachas do país – e afirmo:
– Apesar do meu alto cargo oficial, não te posso ordenar que
mudes de ideias, pois não?
Acaricia-me a mão.
– Nem sequer quando estavas na Marinha conseguiste fazê-lo,
Matt. Mas foi uma bela tentativa.
– Quando?
– Mais cedo do que eu pensava – responde. – A Universidade de
Boston prometeu-me a entrada no segundo semestre para o
Departamento de Arqueologia e foi-me comunicado hoje de manhã.
Professora catedrática. Começa dentro de uma semana. E aceitei.
Sou assaltado por muitos pensamentos, mas escolho o caminho
mais fácil.
– Parabéns. Sei que isso significa muito para ti. E vais fazer um
excelente trabalho.
– Também dizem que podias…
– Obrigado, mas continuo a não estar interessado – respondo.
A mente viva da minha mulher inteligente e culta conquistou a sua
cátedra e oportunidades de investigação. Já eu não estou pronto para
tomar o lugar de um verdadeiro docente e dirigir seminários sobre
política ou democracia ou outra treta qualquer.
A Sam vai para Boston e eu para uma casa à beira de um lago, no
interior do New Hampshire. Desde o início do meu curto mandato na
Casa Branca que eu sabia que este dia havia de chegar. Um dia, ela
deixaria de ser mulher do Presidente e retomaria as rédeas da sua
vida. E a Sam, sendo inteligente, está a fazer precisamente isso. A
determinar o seu lugar no mundo.
Deslizo a minha mão sobre a dela e aperto-a um pouco.
– Os meios de comunicação vão adorar a notícia de que assumi o
lugar na Universidade de Boston – diz. – Uma primeira-dama que
nunca se integrou verdadeiramente abandona o marido e a filha para
se ir embora e escavar a terra quando o mandato dele termina.
– Que se lixem – digo.
– Oh, têm razão, Matt. Ambos sabemos que nunca me integrei
realmente em Washington, desempenhando o papel tradicional da
primeira-dama tradicional. Mas a perspetiva de publicarem mais
artigos negativos vai fazê-los esfregar as mãos de contentes.
– Diz-lhes que vais para Oak Island. Isso talvez os cale…
excetuando o Canal HISTÓRIA. Esses vão pensar que o teu projeto é
mais importante do que ser primeira-dama.
Devolve-me o aperto de mão.
– Se tiver sorte. – Samantha percorre a Sala Oval com o olhar e
continua. – Desculpa, Matt, mas nunca gostei deste lugar, desta sala.
Ver-te a trabalhar aqui… era como se fosses guia de um museu, a
representar um papel.
– Segundo os delegados do meu partido, não estava a fazer
grande trabalho. Mesmo assim, foi um tempo e peras, Sam, não foi?
Ela dá-me um beijo na cara.
– Prometeste-me aventuras e viagens depois de nos casarmos,
Matt, mas nunca isto.
– O teu homem é assim, prometendo menos e dando mais.
– Também prometeste que ias fazer História e que eu ia descobrir
a História. A parte que me coube não correu muito bem.
E não correra. Muitas escolas ofereceram cargos de ensino a
Samantha depois de ela se ter tornado primeira-dama, de um
momento para o outro, mas ela recusou-os todos por uma boa razão:
queriam o título dela, a publicidade, não dar-lhe a possibilidade de
fazer verdadeiro trabalho académico.
– Achas que vai ser difícil seres o antigo Presidente Keating?
– Não vou ter saudades dos telefonemas às três da manhã.
Ela levanta-se.
– Oh, penso que, de vez em quando, vais ter saudades, Matt. Não
vais ser tu a mandar. Vais ver as notícias nos próximos meses e
pensar: eu faria um trabalho melhor. Contudo, eu não terei saudades
de ser a primeira-dama Samantha Keating. Sem desprimor para todas
as visitas oficiais que fiz ao longo dos anos, mas anseio por regressar
ao ensino e sujar as mãos.
A porta curva da Sala Oval abre-se. Surge a cabeça do meu chefe
de gabinete, Jack Lyon.
– Senhor Presidente, senhora Keating, está na hora.
Ela começa a andar à minha frente.
– Está mesmo.
Avançamos e sei que o agente dos Serviços Secretos que se
encontra junto à porta sussurra «Harbor e Harp em movimento»; e,
quando saímos para o corredor, dou a mão à Samantha e sussurro-
lhe ao ouvido, e ela ri alto, e sei que Jack Lyon e outros membros do
meu pessoal mais próximo se perguntarão o que acabei de dizer.
Nunca saberão.
Mas a Samantha sabe.
Ainda temos tempo para arrasar aquele conselho pedagógico.
Capítulo 16
Aeroporto de Manchester, New Hampshire

Dez horas depois, sou o antigo Presidente Matthew Keating,


presidente de um só mandato, conhecido na História como o primeiro
que perdeu o cargo contra uma vice-presidente sublevada. Enquanto
ela e o marido se divertem, dançando num dos dez ou mais bailes de
tomada de posse no Distrito de Columbia, eu estou ao ar livre, num
hangar recuado do Aeroporto de Manchester, no New Hampshire, a
ver as tempestades de neve de janeiro fustigar a pista. Os flocos de
neve esbatem as luzes, tornando-as amareladas. A Samantha está a
uns metros de distância, a consultar o iPhone. Alguns dos meus
apoiantes indefetíveis do New Hampshire apareceram com cartazes
de boas-vindas.
A Mel está no outro extremo do hangar, envolta num blusão de
penas azul, a beber café que lhe é dado por dois polícias estaduais e
uma jovem agente dos Serviços Secretos. Está a tentar sorrir e rir
abertamente com os três elementos das forças da ordem, mas é tudo
fingido. Penso que ainda se não habituou ao facto de o pai e a mãe –
embora se não separem oficialmente – irem fazer vidas separadas
num futuro próximo. O meu plano é descontrair depois destes anos
brutais na Sala Oval, e a Sam vai regressar ao seu primeiro amor:
ensinar e fazer investigação. Apenas temporariamente, dizemos um
ao outro e à Mel, e espero que tenhamos razão.
Com a Samantha a consultar o iPhone e a Mel a beber café, estou
sozinho, com um agente dos Serviços Secretos atrás de mim e outro
em posição junto à porta. Vou levar algum tempo a adaptar-me ao
meu novo estatuto, eu sei, mas uma coisa ficou igual: a minha
proteção constante pelos Serviços Secretos, que ficarão a meu lado
até ao final da minha vida, juntamente com o meu nome de código –
Harbor.
Mas não sinto saudades de uma pessoa: o funcionário que passou
a acompanhar-me, desde o dia em que prestei juramento,
transportando a pasta pesada e volumosa conhecida como «futebol»,
com os códigos de dispositivos de comunicações que me davam o
horrível poder de lançar armas nucleares.
Durante o meu mandato, esse fardo proporcionou-me muitos
pesadelos, que vinham lado a lado com os sonhos duros e violentos
envolvendo as minhas missões de combate quando pertencia às
equipas.
Esse funcionário desapareceu hoje, cerca do meio-dia, para se
colocar ao lado de Pamela Barnes, e a nova Presidente pode ficar
com ele.
A Samantha levanta os olhos do iPhone e anuncia:
– Então, está tudo resolvido.
– Está mesmo? – pergunto.
Sorri-me.
– Estava a falar do meu apartamento em Boston. As luzes e o
aquecimento estão ligados.
A Samantha dirige-se para mim, olhando a neve lá fora, que
parece cair com mais força. Pouco antes, o nosso transporte da Força
Aérea – já não o Air Force One, é claro – levantou antes de a neve
chegar.
Não encontro palavras. Que dizer num momento como este?
Pedir-lhe que mude de ideias?
Não.
Não no momento em que está prestes a recuperar a vida anterior
de professora universitária e arqueóloga, a vida que teve enquanto eu
estive nas equipas e, mais tarde, no Congresso. Mas depois chegou
aquele dia terrível do falecimento do Presidente Martin Lovering,
quando o seu vice-chefe de gabinete e um juiz do US Court of
Appeals local entraram pelo meu gabinete, no Old Executive Office
Building e mudaram a sua vida, juntamente com a minha.
A partir do momento em que a Samantha toma uma decisão, um
mero mortal como eu não tem qualquer poder para a alterar.
Além disso, por mais que odeie reconhecê-lo, ela tem razão.
Chegou a sua hora.
– Em que estás a pensar? – pergunta-me.
– Estou a pensar em que tens melhores condições de condução
do que eu – assevero. – Sobretudo autoestrada até Boston… sortuda.
– Podes aproveitar a boleia.
– Fica para outra vez. Se não nevar.
Chegou a hora dela, mas também a minha. Há uma zona rural
remota à minha espera e anseio tanto pela ausência de cidades e
edifícios altos e luzes brilhantes. O silêncio será uma bênção.
Sim, a nossa filha Mel estará comigo, mas aprendi a dormir em
alojamentos temporários nas montanhas do Afeganistão, por isso
tenho a certeza de que me consigo adaptar à vida com uma
adolescente que vai terminar, à distância, o curso na Sidwell Friends.
Ou assim o espero.
– Há repórteres por aí? – pergunta a Samantha.
– Penso que estão escondidos no terminal – respondo. – Os
jornalistas mais importantes estão em Washington DC e em
Georgetown, a brindar à Administração Barnes, nos bailes e festas da
tomada de posse. Não têm o menor interesse em ver o antigo
Presidente repudiado pelo seu partido a retirar-se furtivamente no
meio da neve e dos bosques.
– Eles é que perdem – comenta, aproximando-se para que a
abrace e beije, e depois sussurra. – Fizeste o teu melhor, Matt. Não
és um político profissional ou alguém que procura desesperadamente
o cargo. Foste empurrado para uma situação muito difícil e fizeste o
teu melhor. A História vai reconhecê-lo.
– Não tenho grande esperança.
Luzes deslocam-se no outro extremo da pista e ela afasta-se
suavemente.
– Matt, podias ter feito tantas coisas mais se o sistema não tivesse
ficado inválido muito antes de chegares à Sala Oval. Entre os grupos
do Twitter e os grupos de discussão já não se pode fazer nada. A
culpa não é tua.
– Queres dizer que eu era bom de mais para o povo americano? –
pergunto.
Um novo sorriso, um beijinho rápido no rosto.
– Não te estiques, fuzileiro. É complicado, tal como tu. As pessoas
reais ainda andam por aí, com os seus problemas e o seu potencial,
esperanças e sonhos. Só que têm dificuldade em tomar boas
decisões quando os cérebros estão cheios e as mentes destruídas
com tanto lixo. Telefono-te logo que chegar a Boston e apareço no
próximo fim de semana para ver o que desembalaste, se
desembalares alguma coisa. Em março, vou passar contigo e com a
Mel as férias da universidade.
Aparecem mais luzes.
Um Chevrolet Suburban negro encosta ao nosso lado. É
conduzido por um polícia estadual do New Hampshire, à paisana, e
há outro no lugar do pendura. Como era seu direito, a Sam recusou a
proteção dos Serviços Secretos e, por uma questão de cortesia, estes
polícias vão levá-la a Boston.
Aproxima-se outro Suburban, seguido por mais dois, escoltados
atrás e à frente por carros da Polícia Estadual do New Hampshire,
com as luzes a piscar. Pelo menos a minha condição de antigo
Presidente merece um transporte mais vistoso e mais seguro até ao
meu novo lar, no Norte.
A Mel avança para mim, trazendo dois copos de café, um para ela,
outro para mim.
Samantha dá-lhe um beijo, um abraço e um sussurro rápidos e
depois dirige-se ao seu transporte para Boston. Entra e o Suburban
desliza pela pista com neve.
A nossa filha Mel estende-me o copo e limpa os olhos.
Envolvo-a com o braço.
– Como estão as coisas, miúda?
– Horríveis.
– Claro que sim – respondo. – Parabéns, mais uma vez, por teres
sido aceite em Dartmouth. Já escolheste uma especialização?
– Não.
– Faculdade?
– Também não – afirma. Continua envolvida pelo meu braço e
estou a adorar este momento calmo e especial com ela.
– Não há nada que te apeteça estudar?
– Ainda não – responde.
Dou-lhe um apertão carinhoso.
– E coisas que não te apeteça estudar?
Ri e bebe um gole do café.
– Ciência política, pai. Desculpa. E, com toda a certeza,
jornalismo. Ou algo que tenha que ver com televisão.
Sinto aflorar uma velha ira. Poucos dias depois de eu ter feito o
discurso em que aceitava a responsabilidade pela morte da família do
Asim Al-Asheed, o Saturday Night Live fez uma sátira com uma atriz
que representava a Mel – com uns óculos espessos como fundos de
garrafa – a acertar sempre no centro do alvo, numa carreira de tiro, e
a piada era que pelo menos um membro da família Keating acertava
no alvo.
Foi um fim de semana duro, e a Mel levou meses a recuperar da
humilhação pública perante milhões de pessoas. Passado um tempo,
o produtor do SNL pediu desculpa por ter incluído a minha filha de
uma forma trocista como aquela e, a partir de então, escolheu atores
que me apresentavam como um robot militar obtuso. Eu era uma
presa fácil e eles eram engraçados. Aceitei as desculpas e a chefe da
NBC achou que podia tornar a exceder-se com toda a segurança.
– E as forças armadas? Seguir as pisadas do teu velho?
– Pai?
– Sim?
– Fartaste-te de saltar de aviões, não é?
– Sim. E de helicópteros. Mas sempre com um paraquedas.
– Achas realmente que eu vou gostar de fazer isso?
– Bem, a esperança é a última a morrer.
– Vamos embora, está bem? – pede a Mel.
– Vamos, miúda.
Avançamos para a neve que esvoaça, enquanto as possibilidades
prometidas e as verdadeiras realizações da presidência de Matthew
Keating chegam, por fim, ao seu termo.
SEGUNDA PARTE
Capítulo 17
Pós-presidência de Matthew Keating, ano dois
Lago Marie, New Hampshire

– Força, David, faça os Serviços Secretos sentirem orgulho de si.


Vou dar-lhe uma abada – grito.
Estamos a remar em canoas idênticas, Old Town, verde-escuras,
cruzando o lago Marie, e a dele vem meio metro atrás da minha,
enquanto o seu rosto forte ostenta uma mistura de divertimento e
esforço para chegar à liderança.
Estou sem camisa, neste dia quente de junho, mas o David Stahl,
o agente especial que comanda o meu destacamento dos Serviços
Secretos, enverga uma T-shirt preta larga que esconde tanto a sua
força como quaisquer armas e equipamento de comunicações que
tenha com ele. Esta corrida nas águas azul-escuras é um exercício
diário que se destina a manter-nos a ambos em forma, embora ele
seja cerca de dez anos mais novo do que eu e provavelmente não
precise de exercício extra.
Passando a doca, onde se encontra atracado um barco-pontão de
um só motor, fica a grande casa antiga junto ao lago que comprei
durante o interregno entre a eleição da Pamela Barnes e a sua
tomada de posse. Tem dois andares, é castanho-escura, com um
alpendre fechado em toda a volta e três anexos, uma garagem
separada para dois carros, um barracão para o meu equipamento de
treino e um pequeno celeiro remodelado para o destacamento dos
Serviços Secretos. Há pinheiros e bétulas espalhados pela
propriedade, que tem terrenos protegidos de ambos os lados, o que
significa que não há vizinhos barulhentos.
– Só mais uns metros, David, vá lá, esforce-se! – grito. – Não
desista agora! Força, vamos, força!
É injusto, eu sei, mas sinto-me entusiasmado por saber que,
embora seja mais novo que eu, e esteja em melhor forma, lhe vou dar
mesmo uma abada. E ele sabe que não vou permitir que abrande só
para eu poder gabar-me da vitória.
É uma corrida de canoas e não uma partida de golfe, e é
impossível alterar os resultados, por exemplo, usando handicaps ou
mulligans. É simples, ganhar ou perder, sem desculpas.
Gosto dessa clareza.
Sinto o roçar áspero da proa da minha canoa a bater na areia
primeiro e solto um grito de alegria, saltando desajeitadamente para a
água, que me dá pelas canelas, enquanto o agente David Stahl
continua a remar e chega logo a seguir. A minha anca direita, partida
há muito tempo numa queda de um helicóptero no Afeganistão, quase
não me dói hoje de manhã. É bom. Arrasto a canoa alguns metros
pela nossa pequena praia e vejo o David, com o cabelo negro curto
empapado em suor, mesmo atrás de mim.
– Muito bom, senhor, muito bom – diz, arquejante.
Chapinha na água do lago e ajudo-o a arrastar a sua canoa da
doca até à pequena estrutura aberta onde guardamos as
embarcações. Quando estamos a pôr de pé os nossos remos, oiço
uma voz feminina:
– Senhor Presidente, tem um minuto?
Há um frigorífico junto aos meus pés e abro-o, tiro uma garrafa de
água, estendo-a ao chefe dos meus agentes dos Serviços Secretos e
depois tiro outra para mim.
A Madeline Perry, a minha chefe de gabinete – se bem que ainda
me esteja a habituar à minha pós-presidência – vem a descer o
caminho lajeado que parte de casa. Tem mais ou menos a minha
idade e, como diria a revista Glamour, é bem constituída, com um
cabelo negro até aos ombros e uma pele muito clara que não aguenta
o sol. Ofereceu-se como voluntária para se juntar a mim no meu exílio
no New Hampshire, quando a maior parte dos membros do meu
pessoal ficou em Washington DC para arranjar trabalho na nova
Administração Barnes ou algures em DC. Hoje, a Madeline enverga o
seu uniforme normal de calças pretas compridas e largas e blusa
solta em tons pastel.
Tiro a tampa da garrafa de água e bebo um longo gole gelado. A
Madeline aproxima-se e anuncia:
– Vou para o escritório de Manchester, senhor, e depois tenho um
voo para Manhattan.
– Boa viagem – digo.
– Tenho a certeza de que será boa, mas o que a tornaria
memorável seria o senhor dizer sim.
– Sim a quê? – pergunto, embora me esteja a meter com ela. Sei
o que pretende. Quatro editoras, pelo menos, mostraram interesse
pela minha autobiografia. Agora tenho de aceder a escrevê-la.
Os seus lábios finos comprimem-se e eu ergo a mão, num gesto
de rendição.
– Maddie, Maddie, OK. Hoje não, mas em breve. Está bem? Juro.
Abana a cabeça.
– Senhor Presidente, quanto mais tempo tiver passado desde que
abandonou o cargo, mais rapidamente se fecha a janela para poder
contar a sua história. O interesse começará a esbater-se e os editores
vão procurar outros projetos.
Outro gole de água fria.
– Dito assim, até parece mau.
A Madeline regressa a casa, virando a cabeça para mim.
– É mau se tudo o que quiser fazer for quase não conseguir
ganhar dinheiro suficiente para si e a sua família, e ainda menos para
criar uma fundação destinada a ajudar os antigos combatentes, seus
camaradas, com problemas muito maiores do que a sua derrota nas
eleições.
Ufa, penso, e viro-me para o agente Stahl em busca de apoio ou
compreensão, mas ele, que é um tipo esperto, regressou para junto
das embarcações a fim de cuidar das canoas, fingindo não ouvir a
minha pequena troca de palavras com a Maddie.
Vejo a minha chefe de gabinete dirigir-se às traseiras da garagem,
onde está estacionado o seu Volvo. Sei que não devia ser tão duro
com ela. O trabalho de gerir a minha pós-presidência é ingrato e
anónimo. Durante o primeiro ano após à minha saída recebi cerca de
cem mil cartas, tratadas na sua maioria por voluntários, e agora esse
número desceu para cerca de vinte mil, e a Madeline controla essa e
muitas outras tarefas, desde os pedidos de discursos às pessoas que
querem que lhes conte a verdade verdadeira sobre o que se esconde
na Área 51 e se Roswell foi um encontro com alienígenas.
Por vezes tenho inveja dos dias de descontração após a tomada
de posse de Eisenhower, em 1953, quando Harry Truman e a mulher,
Bess, se meteram no carro e regressaram a casa sozinhos, no
Missouri. Ainda não estou preparado para desistir da alegria de ser
apenas um homem, um pai.
Lá em cima, na casa, a parte exterior de uma porta dupla fecha-se
com estrondo e a Mel desce as escadas do alpendre, gritando:
– Pai, estou quase a pôr-me a andar com o Tim. Quem ganhou a
corrida?
– Quem pensas que ganhou?
Ri-se.
– São dez seguidas, certo?
– Ei, são nove. Vamos manter os números certos – intervém o
agente Stahl.
– Como queira, Dave – responde a Mel, sorrindo abertamente. –
Precisam de alguma coisa da loja?
Paro um momento a contemplar a minha filha a descer
rapidamente o caminho lajeado, com os óculos firmes no rosto, o
cabelo louro ainda húmido do duche matinal. Traz uma mochila
verde-escura às costas, botas de escalada, calções de caqui e uma
sweatshirt cinzento-clara que tem impresso DARTMOUTH. A Mel tem
dezanove anos, é mais inteligente do que eu quanto tinha a sua idade
– os meus interesses eram cerveja, miúdas, armas e cavalos,
enquanto a Mel ficou no 1% mais bem classificado nos exames de
acesso à faculdade.
– Que queres dizer com «da loja»? Só deves voltar amanhã –
digo.
Ela detém-se à minha frente, com um sorriso aberto que mostra os
seus dentes brancos.
– Eu sei. Mas também sei que adoras aqueles bolos quadrados de
ácer que se vendem na Cook’s General Store. Queres que traga uma
caixa quando voltar para casa?
Ah, a Cook’s General Store. Recordo, corando de vergonha, o
primeiro dia em que lá fui fazer compras, há dois anos, e nem
acreditei no preço de um garrafão de leite. Quase quatro dólares? A
sério? Quando é que isso aconteceu?
Foi aí que soube que estivera numa bolha durante demasiado
tempo.
Abano a cabeça, dou um abraço e um beijo na face à Mel.
– Adoraria, mas o mesmo não posso dizer do meu nível de
colesterol. Obrigado pela oferta.
A Mel dá-me um abraço rápido.
– Depois, diz-me quando o nível do teu colesterol capitular, está
bem?
– Sim. E diverte-te com o teu Tim, está bem?
Um pequeno revirar de olhos.
– O meu Tim… está bem, pai.
– E telefona-me amanhã, quando voltares a ter rede, pode ser?
Uma gargalhada.
– Claro, pai. Acredita em mim! Estarei sã e salva. Olha, tenho de
me apressar. Ele vem apanhar-me na estrada de acesso. Já lá deve
estar.
A minha filha rodopia e sobe o caminho lajeado, entre a casa e a
garagem, e fico a olhá-la até desaparecer de vista.
O agente David Stahl pergunta:
– Que tem programado, senhor?
– Oh, nada de especial. Segunda chávena de café, ler os jornais
da manhã, primeiro duche do dia e depois limpar algumas árvores
jovens e roçar mato junto ao velho muro de pedra.
Extraordinariamente excitante, não é?
– E a Mel?
Quando terminei o meu mandato, a Mel já não tinha idade para
gozar de proteção dos Serviços Secretos – a idade-limite para os
filhos de antigos Presidentes é aos dezasseis anos – e é espantoso
como se descontraiu e se abriu desde que aqueles guardiões
profissionais deixaram de estar a seu lado. Mesmo assim, o agente
Stahl gosta de se manter informado do que a nossa filha faz e vê e eu
gosto de saber que ele o faz.
– Uma caminhada com o Tim Kenyon, o amigo da faculdade –
respondo. – Vão subir o Monte Rollins, passar a noite numa cabana
que pertence ao Dartmouth Outing Club e regressam amanhã.
– O tempo está ótimo – comenta. – Devem divertir-se. Gosta dele?
– Do Tim? A Mel gosta dele e, por isso, eu também. Ela disse-me
que ele até pensou fazer o ROTC3 em Dartmouth, o que é um ponto a
seu favor. Estava um pouco nervoso quando me conheceu, mas tudo
se resolveu a partir do momento em que tive uma conversinha com
ele para lhe dar ânimo.
– Que lhe disse?
Sorrio ao agente Stahl, que ainda está cansado e suado por causa
da nossa corrida de canoa.
– Disse-lhe que tinha uma pistola de nove milímetros e uma pá, e
que sabia usar as duas. Até já, David.

3
Reserve Officer’s Training Corps, um programa baseado nas faculdades e
universidades com a finalidade de formar oficiais para as forças armadas dos EUA.
(N. do T.)
Capítulo 18
Perto da fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá

Lloyd Franklin está ao volante da sua velha carrinha de caixa


aberta Ford F-150 preta e o seu primo Josh viaja ao lado, quando
Lloyd vê dois vultos a sair da floresta espessa que ladeia a estreita
estrada de terra batida, oito quilómetros para sul da fronteira
canadiana.
Josh está a dormir, com o rosto barbudo inclinado para a frente e
quase a tocar a T-shirt dos Boston Bruins coberta de nódoas que lhe
tapa a barriga de cerveja, e Lloyd dá-lhe uma cotovelada, dizendo:
– Acorda.
Josh tosse, esfrega os olhos e pergunta:
– Há problemas? Que se passa? A Patrulha de Fronteira?
Boa pergunta, já que, escondidas sob um encerado azul muito
gasto, na traseira da carrinha de Lloyd, há dez caixas de cigarros
Marlboro – quinhentos volumes no total – destinados ao seu sócio de
contrabando, no Ontário. Tendo-os comprado a quarenta e oito
dólares por volume em diversas lojas de Lebanon, no New
Hampshire, e arredores, Lloyd e Josh cobram oitenta dólares
americanos por eles, no Ontário.
Mesmo com o custo da gasolina e o pagamento ao sócio
canadiano, Lloyd e o primo vão ter um lucro de mais de quinze mil
dólares nesta viagem rápida pela estreita estrada de terra batida que
é uma das muitas travessias ilegais para entrar e sair no seu vizinho
do norte. Os trabalhos que Lloyd e o primo poderiam fazer aqui foram
desaparecendo e os vales de alimentação e as promoções de queijo
e papas de aveia simplesmente não chegam.
Lloyd espreita pelo para-brisas sujo.
– Não sei quem eles são, porra. Todos vestidos de branco.
– Padres, talvez? – pergunta Josh.
– Eu… ai, idiota!
Os dois estranhos avançam para o meio da estrada de terra e o
mais alto e mais velho dos dois tem uma mão erguida. Lloyd trava –
sente o rangido sob os seus pés; com o dinheiro que vão receber,
pode finalmente dar-se ao luxo de substituir os discos – e detém-se a
pouco mais de um metro dos dois tipos.
– Olha-me para isto! – diz, enquanto pensa Estão vestidos com
macacões brancos e parecem muito esquisitos aqui, no meio de coisa
nenhuma.
Josh respira fundo, esticando a mão para debaixo do assento e
puxa de um coldre com um revólver Ruger .357. Tira a arma do
coldre, pousa-a na barriga generosa e afirma:
– Se estes dois não saírem da frente, eu trato do assunto.
Lloyd baixa o vidro quando o homem mais alto e mais velho
começa a avançar na sua direção.
– Descontrai, Josh. Provavelmente são só dois anormais perdidos
na floresta à procura dos parceiros do ioga, ou coisa que o valha.
– Descontrai tu – rosna Josh. – O maldito Citizens Bank estás
prestes a penhorar-me a casa, a pôr-me na rua com a Lisa e os
miúdos, e não vou permitir que isso aconteça. Não quero saber se
estes dois estão a morrer de fome ou perdidos há um mês: não
vamos ajudar e vamos chegar a horas à entrega.
O homem que se aproxima do lado do condutor, sorrindo, tem a
pele escura, sobrancelhas espessas e diz, com um forte sotaque:
– Desculpe incomodá-lo.
– Qual é o problema? – inquire Lloyd. – E porque é que estão a
usar esses… fatos para materiais perigosos, é isso?
O homem continua a sorrir, com um brilho estranho nos olhos.
– É isso mesmo, é um tipo esperto. E não há nenhum problema.
Só precisamos da sua furgoneta. Já.
Há um certo tom de divertimento na voz do homem, mas o medo
sobe pela espinha de Lloyd, e Josh diz:
– Ele que se foda. Põe-te a andar, primo.
– Ah, sim, que se foda – retruca o homem. – Aposto que vos
estamos a interromper. Prontos para se satisfazerem um ao outro?
Lloyd põe a caixa de velocidades na posição «Parking» e Josh
grita «Vocês os dois…», e Lloyd abre a porta com um estrondo,
batendo no tipo. Ele e Josh repararam telhados, construíram casas de
madeira, foram lenhadores e alinharam durante anos com o bando de
motards North Mountain Boys e aqueles dois merdosos sinistros vão
levar uma boa afinação. Ele e Josh têm pelo menos mais quinze
centímetros do que qualquer um dos dois e mais vinte quilos também.
Vai ser divertido.
Josh enfia o revólver na cintura e avança para o tipo mais magro e
mais baixo, agarrando-o pelos colarinhos e dizendo:
– Achas que isso tem piada? Achas que somos rabetas ou quê?
Lloyd está a avançar para o primeiro tipo, mas para, à espera de
ver Josh encaixar o primeiro soco forte no baixinho, e…
O tipo mais baixo contorce-se, fazendo algo rapidamente com as
mãos.
Josh berra.
Dá meia-volta, com bastante rapidez para um gajo grande e
pesado.
Tem as mãos em redor da garganta.
Olha fixamente para Lloyd.
Gorgoleja.
Tosse.
O sangue jorra-lhe por entre os dedos, que tentam manter unida a
garganta cortada, dá dois passos a cambalear e cai pesadamente na
estrada de terra.
Lloyd entra em pânico, vendo o primeiro tipo a avançar na sua
direção, ainda a sorrir, e compreende, com vivo terror, porque é que
os dois vestem fatos para manusear materiais perigosos – para não
ficarem empapados em sangue. Vira-se e já começou a correr
quando sente um murro forte nas costas.
As pernas dobram-se sob ele.
Cai por terra com força, sentido o gosto do pó, e depois é virado
pelo primeiro homem, que empunha uma faca, afiada e fina. Há uma
gota de sangue vermelho-vivo na ponta da faca. Lloyd olha-a
fixamente. A sua respiração torna-se mais lenta.
– Seccionei-te a espinal medula entre as vértebras L3 e L4 – diz o
homem. – Aprendi esta técnica na faculdade de Medicina, há anos,
na Tunísia, e usei-a muitas vezes em combate em todo o mundo.
Nunca mais voltarás a andar. – E, então, ri. – Mas, no teu caso, esse
período não será longo, não é?
O outro homem aproxima-se, também a sorrir.
– Porquê? – sussurra Lloyd.
– Porque não? – responde o homem, fazendo a faca descer pela
última vez.
Capítulo 19
Lago Marie, New Hampshire

Mais ou menos uma hora após a partida da Mel, já tomei duche, li


os jornais – na verdade, limitei-me a folheá-los porque é muito triste
quando uma pessoa se apercebe dos muitos erros feitos pelos
jornalistas na cobertura dos acontecimentos – e acabei de tomar a
minha segunda chávena de café enquanto mastigava uma salsicha
de carne de veado que sobrou do pequeno-almoço.
Em novembro passado, esta carne era um veado que se
deslocava por um cume do outro lado do lago, antes de eu o abater
com um tiro de espingarda Remington .308 com mira telescópica. A
acuidade do meu tiro agradou-me, e o meu destacamento dos
Serviços Secretos ficou contente por o seu protegido já ter
conseguido uma presa na temporada de caça ao veado desse ano e
poder regressar à segurança do seu recinto, sem andar a céu aberto
com outros caçadores.
Depois de ter terminado a minha pequena refeição pós-pequeno-
almoço, pego num serrote e numa tesoura de podar e dirijo-me ao
lado sul da nossa propriedade.
É um lugar especial, embora a Samantha tenha passado menos
de um mês aqui em todas as suas visitas. A maior parte do que nos
rodeia são terrenos protegidos, onde nunca se poderá construir, e as
pessoas que aqui vivem seguem quase todas a velha tradição do
New Hampshire de nunca incomodarem os vizinhos, nem
mexericarem a seu respeito com visitantes ou repórteres.
No meio do lago, encontra-se um Boston Whaler branco que
transporta dois pescadores que, na verdade, são agentes dos
Serviços Secretos. No ano passado, o Union Leader fez um pequeno
artigo em que chamava aos agentes os pescadores com menos sorte
do Estado, mas, de então para cá, a imprensa deixou-os mais ou
menos em paz.
Enquanto estou a talhar, cortar e empilhar silvados, penso em dois
outros célebres Presidentes americanos que também cortavam silvas
– Ronald Reagan e George W. Bush – e como essa sua atividade
nunca fez realmente sentido para muita gente, que pensava:
Estiveste no ponto mais alto da fama e do poder; porque é que sais
de casa e vais sujar as mãos?
Vi uma teimosa muda de pinheiro que se encontra perto de um
velho muro de pedra da propriedade. Para salvar o muro, vou ter de
arrancar a pequena árvore. O trabalho mantém-me a mente ocupada,
suficientemente ativa para evitar os flashbacks contínuos do meu
mandato de três anos e meio e o modo como terminou.
Houve tantas reuniões compridas e infrutíferas com líderes das
duas bancadas do congresso em que falei, discuti e por vezes
implorei: «Com os diabos, somos todos americanos. Não há nada em
que possamos concordar para fazer avançar o nosso país?»
Ouvi continuamente as mesmas respostas presunçosas e
superiores:
– Não nos culpe, senhor Presidente. Culpe-os a eles.
Também passei muitos longos serões na Sala Oval, a assinar
cartas de condolências para as famílias dos nossos melhores homens
e mulheres, que morreram por uma ideia de América, e não pela
nação quezilenta e desejosa de vingança em que nos tínhamos
tornado. Por três vezes encontrei nomes de homens que conhecia e
com os quais lutara quando era mais novo, estava em melhor forma e
pertencia às equipas.
E também empreguei longos serões a passar em revista aquilo a
que se chamava, à habitual maneira burocrática inócua, a base de
dados Disposition Matrix, preparada pelo Centro Nacional de
Contraterrorismo, mas conhecida realmente como «lista da morte».
Meses de trabalho, investigação, vigilância e interceção de
informações permitiam fazer uma lista de terroristas que
representavam um perigo real e imediato para os Estados Unidos. E
ali estava eu, sentado, sozinho, como um imperador romano, a pôr
uma marca ao lado daqueles que iam ser mortos dentro de poucos
dias. Eis uma coisa que estou contente por já não ter de fazer.
A pequena árvore tomba finalmente.
Missão cumprida. Quase. Vou acabar de arrancar as raízes
amanhã, quando precisar de mais distração.
Olho para cima e vejo algo estranho a voar ao longe.
Paro, ponho a mão em pala por cima dos olhos. Desde que me
mudei para cá, habituei-me aos diversos tipos de aves que voam
sobre o lago Marie e à sua volta, incluindo os mergulhões, cujos pios
noturnos parecem de alguém que está a ser estrangulado, mas não
reconheço o que anda a voar lá ao fundo.
Observo o ponto preto durante alguns segundos e depois ele
desaparece atrás da fileira distante de árvores.
E volto ao trabalho, mas algo me incomoda de súbito, algo que
não consigo nomear.
Capítulo 20
Sopé do Huntsmen Trail
Monte Rollins, New Hampshire

No banco dianteiro de um Cadillac Escalade negro, o homem mais


velho esfrega o queixo escanhoado e olha para o ecrã de vídeo do
computador portátil que está sobre a consola central. O mais novo,
sentado a seu lado, tem na mão um sistema de controlo retangular,
com dois pequenos joysticks e outros interruptores. Está a controlar
um drone com sistema de vídeo e acabaram de ver desaparecer a
casa do antigo Presidente Matthew Keating.
O homem mais velho está contente por ver a famosa tecnologia
ocidental dos drones virada contra eles. Há anos que mobiliza as
suas redes sem fios, telemóveis, acionando dispositivos para criar as
bombas que despedaçaram tantos corpos e semearam tanto terror.
E a Internet – que, quando surgiu, prometia unir o mundo –
acabou por se transformar numa rede de comunicações muito usada
e segura para ele e os seus combatentes.
Depois de terem escondido a furgoneta furtada hoje de manhã,
roubaram o Cadillac a uma família jovem, no norte de Vermont. Ainda
há algum sangue e massa encefálica no tabliê e, na traseira, uma
cadeirinha de bebé vazia, bem como um saco de pano estampado
com flores cheio de brinquedos e outras coisas infantis. Se ficarem
com o carro, vão ter de limpar o sangue.
– E agora? – pergunta o mais velho.
– Encontramos a rapariga – retruca o mais novo. – Não deve
demorar muito.
– Força – diz o velho, olhando com uma inveja e um fascínio
silenciosos o modo como o jovem manipula os controlos da máquina
complexa que projeta no ecrã do computador as imagens captadas
pela câmara do drone.
– Ali. Está ali.
Vejo o que as águias veem, pensa o jovem, com os olhos fixos no
ecrã. Um Sedan vermelho que se desloca por estradas estreitas e
pavimentadas.
– E tens a certeza de que os Americanos não te detetam? –
inquire o mais velho.
– Impossível – assevera, com confiança, o homem a seu lado. –
Há milhares de drones destes em ação por todo o território, neste
momento. Os funcionários que controlam o espaço aéreo têm normas
acerca de onde os drones podem ir, a altura a que podem voar, mas a
maior parte das pessoas ignora as regras.
– Mas os Serviços Secretos deles…
– A partir do momento em que ele deixou o cargo, a filha já não
tinha direito a proteção dos Serviços Secretos. É a lei, por mais
estranho que pareça… Em circunstâncias especiais, pode ser
solicitada, mas não, não é o caso dela. A filha quer ser independente,
frequentar a faculdade, sem guardas armados por perto.
– Uma rapariga corajosa, portanto – murmura.
– E tonta – é a resposta.
E um pai estúpido, pensa, que deixa a filha andar à vontade, sem
guardas nem segurança.
A câmara que se encontra no ar segue o veículo sem dificuldade e
o mais velho abana a cabeça, olhando de novo em seu redor para a
terra fértil e as florestas. Um país tão insuportavelmente farto e
dotado… mas, por Alá, porque raio continuam a imiscuir-se e interferir
e querer colonizar todo o mundo?
Um arrepio de ira percorre-o.
Se ficassem no seu país, tantos inocentes estariam ainda vivos.
– Ali – diz o companheiro. – Como previsto… vão parar ali. No
começo de um carreiro chamado Sherman’s Path.
O veículo entra num recinto de terra batida que ainda é visível a
partir do ar. Uma vez mais, o homem mais novo fica espantado com a
facilidade com que descobriu os horários desta rapariga: consultando
websites e placards informativos da sua faculdade, a partir de uma
coisa chamada Dartmouth Outing Club. Menos de uma hora de
trabalho e pesquisa trouxeram-no até aqui, a olhar do alto para ela,
como um qualquer espírito abençoado a supervisionar tudo.
Reconhece, no entanto, que ter percorrido o campus daquela
faculdade despertou em si um desejo ardente que julgava ter
sufocado há muito, um desejo ardente de ser estudante e não se
preocupar com mais nada além de amigos e notas.
Já não é tão inocente.
Fixa de novo os olhos no ecrã. Há outros veículos estacionados no
parque, e a rapariga e o rapaz saem e retiram mochilas da traseira do
veículo. Há um abraço, um beijo e depois afastam-se dos veículos e
desaparecem no bosque.
– Contente? – pergunta o companheiro.
Durante anos, pensa, o Ocidente usou estes drones para fazer
cair o fogo do inferno sobre os seus amigos, os seus guerrilheiros e,
sim, a sua família e outras famílias. Homens (e mulheres) gordos,
sentados confortavelmente, bebericando as suas bebidas açucaradas
em segurança, matando a milhares de quilómetros de distância,
vendo as explosões silenciosas, sem nunca as ouvirem, nem os gritos
e choros dos feridos e moribundos, e depois voltando para casa sem
a menor preocupação.
Agora, chegou a sua vez.
A sua vez de olhar do alto do céu.
Como um falcão a caçar, pensa.
Esperando paciente e silenciosamente para atacar.
Capítulo 21
Sherman’s Path
Monte Rollins, New Hampshire

Está um dia límpido, frio e maravilhoso no Sherman’s Path e Mel


Keating está a gostar desta subida ao monte Rollins, onde ela e o
namorado, Tim Kenyon, vão passar a noite com outros membros do
Dartmouth Outing Club, numa pequena cabana que o clube tem perto
do cume. Detém-se por um momento junto a um afloramento granítico
e põe os polegares sob as alças da mochila.
Tim aparece vindo do carreiro e do mato circundante, a sorrir, com
o rosto um pouco suado, a mochila azul-clara às costas e ela agarra-
lhe na mão quando chega perto.
– Uma bela vista, Mel – diz.
Ela beija-o.
– Tens uma melhor mais adiante.
– Onde?
– Espera um pouco.
Solta-lhe a mão e limita-se a contemplar os picos ondulados das
White Mountains e o verde-escuro das florestas, com algumas das
suas árvores mostrando um tom ainda mais escuro de verde devido
às nuvens que, lá no alto, se deslocam rapidamente. Para lá deles
ficam o rio Connecticut e as montanhas do Vermont.
Mel inspira profundamente uma lufada de ar purificante.
Só ela e Tim e mais ninguém.
Baixa os óculos e tudo se transforma de imediato em formas
confusas de verde e azul. Nada para ver, nada para fixar. Recorda os
momentos aborrecidos nos jantares de gala na Casa Branca, com o
pai e a mãe, quando baixava os óculos para ver apenas manchas
coloridas, o que fazia passar o tempo. Na verdade, não queria estar
ali, não queria ver todos aqueles homens e mulheres bem-vestidos
que fingiam gostar do pai e ser seus amigos para poderem obter
qualquer coisa em troca.
Mel sobe de novo os óculos e tudo volta a ficar focado.
É disso que gosta.
Ser ignorada e ver apenas o que quer ver.
Tim estende a mão por cima da mochila e esfrega-lhe o pescoço.
– Que estás a ver?
– Nada.
– Ui, isso não parece bom.
Mel ri.
– Meu parvo, é o melhor! Nem pessoal, nem repórteres, nem
câmaras, nem agentes dos Serviços Secretos especados como
estátuas a um canto. Ninguém! Só tu e eu.
– Parece solitário – retruca Tim.
Ela dá-lhe uma palmada no rabo.
– Não percebes? Não há ninguém a vigiar-me, e estou a adorar
cada segundo que passa. Anda. Vamos andando.

Alguns minutos mais tarde, Tim está sentado na orla de um


pequeno lago de montanha rodeado de rochedos, árvores jovens e
arbustos, a molhar os pés, deliciando-se com o sol nas costas e a
sensação doce e calma do charro que ele e Mel acabaram de
partilhar. Está a pensar na imensa sorte que tem.
Nos primeiros tempos em que ele e Mel – a sua identidade não
era um segredo no campus de Dartmouth – partilharam uma cadeira
de História de África, no semestre anterior, acanhou-se. Não tinha
qualquer interesse em sequer tentar falar com ela, até que um dia, na
aula, Mel referiu a importância do microfinanciamento em África, e
alguns fala-baratos começaram a atacá-la por não saber nada do
mundo real, ser privilegiada e não ter uma vida a sério.
Quando os fala-baratos se calaram um momento para recuperar o
fôlego, Tim ficou surpreendido consigo mesmo ao dizer:
– Cresci num apartamento de terceiro andar em Southie, o meu
pai era guarda-fios na Eversource, a minha mãe trabalhava na
limpeza dos apartamentos dos outros e recortava cupões para
comprar mercearias e, meu, trocaria de muito bom grado essa minha
vida a sério pelos privilégios.
Um grupo de alunos riu, Mel olhou-o sorrindo e, depois da aula,
Tim convidou-a para tomar um café na Lou’s Bakery. Tinha sido assim
que começara.
Tim, aluno bolseiro, a namorar com a filha do Presidente Matt
Keating.
Que mundo.
Que vida.
Sentada num rochedo coberto de musgo, Mel dá-lhe uma
cotovelada e pergunta:
– Como estão aos teus pés?
– Frios e a sentir-se bem.
– Então, vamos fazer o número todo – diz ela, levantando-se e
começando a tirar a sua sweatshirt cinzenta de Dartmouth. –
Apetece-te nadar?
Ele sorri, ainda um pouco atordoado.
– Mel… podem ver-nos.
Ela devolve-lhe o sorriso e encolhe os ombros, mostrando o
soutien desportivo bege que traz sob a sweatshirt e depois começa a
baixar os calções.
– Aqui? No meio de uma floresta nacional? Relaxa, querido. Não
há ninguém num raio de quilómetros.

Depois de se despir, Mel grita ao saltar para o lago, mantendo a


cabeça e os óculos fora de água. A água está fria e revigorante. Tim
demora algum tempo, avançando, transferindo o peso de um pé para
o outro enquanto tenta manter o equilíbrio nas rochas escorregadias e
uiva como um cachorrinho magoado quando a água lhe chega
imediatamente abaixo da cintura.
O lago é pequeno e, com três braçadas fortes, Mel alcança o lado
contrário e depois regressa, com a água fria a tonificá-la, fazendo o
seu coração acelerar. Todo o corpo entorpece. Atira a cabeça para
trás, olhando para além dos pinheiros altos e vendo o pedaço azul-
claro e nu do céu. Nada. Ninguém a observá-la, a segui-la, a gravá-la.
Que felicidade!
Outro berro de Tim e ela vira a cabeça na sua direção. Tim queria
entrar para o ROTC da Marinha, mas uns problemas pulmonares
impediram-no de o fazer e, embora Mel saiba que o pai gostaria que
ele cortasse o cabelo, as suas origens modestas e o interesse pela
Marinha fizeram-no cair nas boas graças do pai.
Tim mergulha um pouco mais na água, até esta lhe chegar aos
ombros fortes.
– Viste a lista de inscrições para passar a noite na cabana? –
pergunta. – Lamento informar-te, mas o Cam Carlucci vem.
– Eu sei – retruca Mel, cortando a água, inclinando-se para trás,
deixando o cabelo ficar ensopado, olhando para céu azul vivo e vazio.
– Sabes que ele vai querer que tu…
Mel olha de novo para Tim.
– Sim. Ele e os amigos querem ir à central nuclear de Seabrook,
neste fim de semana do Dia do Trabalhador, ocupá-la e desligá-la.
Parece que os lábios do pobre Tim estão a ficar azuis.
– E é mais do que certo que te querem lá.
Com um tom de troça, Mel imita Cam e diz:
– «Oh, Mel, podes ter tanto impacto se fores detida. Pensa nas
parangonas. Pensa na tua influência.» Que vá para o diabo. Não me
querem a mim, querem um fantoche para conseguir cobertura
mediática.
Tim ri.
– Vais dizer-lhe isso, esta noite?
– Não – retorque. – Vou dizer-lhe que já tenho planos para o fim
de semana do Dia do Trabalhador.
O namorado parece perplexo.
– Tens?
Nada até ele e dá-lhe um beijo, pousando as mãos nos seus
ombros.
– Sim, palerma: contigo.
As mãos dele movem-se dentro de água e agarram-na pela cintura
e está a adorar esse toque no preciso momento em que ouve vozes.
Mel levanta os olhos.
Pela primeira vez desde há muito, sente-se assustada.
Capítulo 22
Lago Marie, New Hampshire

Depois de sair do duche pela segunda vez neste dia (na


sequência de uma queda espetacular num troço de terra enlameado),
perscruto as minhas várias cicatrizes pensando nas respetivas
operações quando o meu iPhone toca. Embrulho-me numa toalha e
pego no telefone, sabendo que só umas vinte pessoas em todo o
mundo têm este número. De vez em quando, porém, recebo uma
chamada do «John», de Bombaim, que finge ser um funcionário da
Microsoft em Redmond, e sinto-me tentado a dizer ao John com
quem está a falar, mas resisto ao impulso.
Desta vez, no entanto, o número é confidencial. Intrigado, atendo.
– Keating.
Chega-me uma voz forte de mulher.
– Senhor Presidente? Fala Sarah Palumbo e estou a ligar-lhe do
Conselho de Segurança Nacional.
O nome acende rapidamente uma luz no meu espírito. A Sarah,
ex-general de brigada do Exército e vice-diretora da CIA, é vice-
conselheira de Segurança Nacional desde o meu mandato. Quando a
Sandra Powell regressou à vida académica, a Sarah devia ter sido
promovida a diretora, mas a Presidente Barnes atribuiu o lugar a
alguém a quem devia um favor. Sarah conhece os dossiês: desde a
produção anual dos campos petrolíferos russos até à situação dos
submarinos que trazem o contrabando dos cartéis colombianos.
– Sarah… que alegria ouvi-la – digo, ainda a pingar água para o
chão de azulejo da casa de banho. – Como têm passado a sua mãe e
o seu pai? A gozar o calor da Florida?
A Sarah e a família cresceram em Búfalo, onde as tempestades de
inverno, devido à proximidade dos lagos, podem fazer cair até um
metro e meio de neve numa tarde. Ela ri e responde:
– Estão a adorar cada raio de sol. Tem um momento?
– O meu dia está cheio de momentos – respondo. – Que se
passa?
– Senhor… – o tom de voz muda imediatamente, deixando-me
preocupado –, isto é oficioso, mas queria comunicar-lhe que soube
algo hoje de manhã. Por vezes, a burocracia demora muito a
responder aos acontecimentos que surgem e não quero que isso
aconteça neste caso. É demasiado importante.
– Continue – digo.
– Estou a substituir o diretor na reunião de hoje para avaliação de
ameaças, a ler o President’s Daily Brief e outros relatórios
interagências.
A gíria faz-me lembrar os meus tempos de presidência e não
tenho muita certeza de gostar.
– Que se passa, Sarah?
Uma pausa curtíssima.
– Reparei num aumento de agitação em diversas células
terroristas do Médio Oriente, Europa e Canadá. Nada a que
possamos atribuir nome ou data específicos, mas algo paira no
horizonte, algo mau, algo que vai gerar muita atenção.
Merda, penso.
– Está bem – afirmo. – Os terroristas estão cheios de vontade de
atacar. Mas porque é que me telefona? Quem é o alvo deles?
– O senhor. Pretendem atacá-lo, senhor Presidente – responde.
Visto-me enquanto a vice-conselheira de Segurança Nacional
continua a falar em alta-voz.
– As conversas e os e-mails intercetados estão a ser difíceis de
decifrar, mas o seu nome não para de aparecer, juntamente com
inúmeras frases que expressam um desejo de vingança, exortando os
jihadistas leais, onde quer que estejam, a pegar em armas e matá-lo.
É suficientemente grave para exigir que as informações sejam
transmitidas à Segurança Interna e ao FBI, mas isso pode levar
algum tempo… e foi por isso que lhe telefonei. Para que o senhor e o
seu destacamento dos Serviços Secretos fiquem a saber desde já.
Limpo o rosto molhado com uma toalha.
– Obrigado, Sarah. Fico-lhe muito grato… mas contornar os canais
adequados pode trazer-lhe problemas.
– Senhor Presidente, não gostei do modo como foi tratado quando
a vice-presidente o enfrentou. Aquela campanha… deu-me volta ao
estômago e não ia guardar segredo destas informações, não ia deixar
de o prevenir.
– Também não gostei muito da campanha – declaro. – Obrigado
pelo aviso.
– Tenha cuidado, senhor Presidente.

Encontro o agente Stahl sentado no grande alpendre circular, a


martelar nas teclas de um computador portátil oficial preto, longe do
celeiro remodelado que serve de quartel-general ao destacamento.
Faço-lhe um resumo breve da situação e ele escuta atentamente
cada palavra, com o rosto sério.
– Quero que fale com o seu escritório de Portland ou com a Polícia
do Estado do Maine. Protejam a minha mulher. Está na estação
arqueológica da Universidade de Boston, em… Hitchcock. Sim, é
isso, Hitchcock, no Maine. Ela vai barafustar, mas veja se conseguem
transferi-la rapidamente para um local seguro até descobrirmos que
raio se passa.
Acena com a cabeça e fecha com força a tampa do portátil.
– Entendido, senhor Presidente.
– Depois, quero que ligue o motor do Suburban – prossigo. – Nós
os dois vamos buscar a Mel. E talvez levemos outro agente e todo o
poder militar destrutivo que conseguirmos.
Levanta-se, põe o computador debaixo do braço e hesita durante
um segundo.
– Desculpe, senhor, tenho de o aconselhar, com toda a
veemência, a não o fazer – retruca. – Não é seguro.
– Que se lixe isso, David! Se existe uma ameaça séria de
terroristas virem atrás de mim, tanto a Samantha como a Mel podem
correr perigo. Sabe isso muito bem, David. Vamos meter-nos no
Suburban, conduzir até àquele caminho de montanha e começar a
correr por aquela vereda acima o mais rápido que pudermos. Vamos
encontrá-la e trazê-la de volta.
– Senhor Presidente… o Suburban que temos não é blindado nem
oferece o mesmo grau de proteção da limusina presidencial. É
demasiado arriscado. – Mostra-se incomodado.
– Não quero saber – respondo, sentindo a pressão a instalar-se na
base do pescoço.
– Eu quero saber, senhor, e esse é o meu trabalho – diz. – As
ameaças que circulam por aí… talvez queiram que abandone o
recinto, que se exponha com apenas um ou dos agentes para o
ajudar. Pode haver um grupo de atacantes à espera de que saia
daqui.
– Então, reúna os homens de serviço diurno e vamos. Força
numérica.
– Senhor Presidente, por favor. Precisamos de o proteger e
defender o recinto. Não posso privar este local de agentes para os
mandar avançar para a montanha e trazer a Mel. E, mesmo que
levássemos todos os veículos que temos, nenhum é blindado.
Quaisquer armas automáticas nas mãos de terroristas na berma da
estrada destruiriam todos os veículos e matariam quem estivesse
dentro deles.
– David…
Parece tenso.
– Vou contactar a Polícia do Estado do New Hampshire, o
Departamento do Xerife do Condado de Grafton, o Departamento de
Pesca e Caça, e porei algum pessoal a subir a montanha, o mais
cedo que puder – declara. – Podem proteger a Mel e trazê-la de volta.
– Não chega – rosno.
Abana a cabeça.
– Senhor, também vou contactar o nosso escritório local em
Burlington e mandar uns agentes acompanhar o pessoal que vai para
o monte Rollins. Vamos tomar conta da sua mulher e vamos tomar
conta da Mel. É o melhor que posso fazer, com base na sua…
posição.
Sei o que quer dizer; o agente Stahl é demasiado educado para o
dizer em voz alta.
Se eu ainda fosse Presidente, teria um exército de agentes às
ordens e haveria um helicóptero a caminho do monte Rollins para
recolher a Mel e trazê-la imediatamente de volta. Membros da CAT4
dos Serviços Secretos estariam a andar pelo recinto e haveria postos
de controlo com armamento pesado em todas as estradas num raio
de quilómetros, a parar e inspecionar o tráfego. Snipers e cães que
farejam explosivos estariam a percorrer os bosques e estradas
secundárias.
Mas já não sou Presidente e eu e a minha família já não gozamos,
nem de perto nem de longe, do nível de proteção dos tempos do
número 1600 da Pennsylvania Avenue.
– Senhor – diz o agente Stahl. – Por favor, deixe-me fazer os
telefonemas. Imediatamente. Quando tudo estiver em segurança,
comunico-lhe. E vou começar a arranjar mais pessoal para guardar o
recinto.
Limito-me a acenar com a cabeça e dar meia-volta, sabendo que o
agente Stahl tem razão.

4
Counter Assault Team. (N. do T.)
Capítulo 23
Sherman’s Path
Monte Rollins, New Hampshire

Mel afasta-se do toque terno de Tim. Sim, está tudo mal. Os dois
homens sorriem, porém não há benevolência ou humor nos seus
olhares fixos. E as calças largas, os sapatos urbanos e camisas que
usam, sem mochilas ou sequer cantis, são completamente
inadequados para andar pelas montanhas.
Tim olha para os dois homens e depois para Mel e sussurra:
– Parece que fomos apanhados, hem?
Ela avança lentamente pela água e sussurra:
– Tim, põe-te a andar. Agora. Vai para o outro do lado do lago,
entra na floresta. Corre.
Tim está confuso.
– Mel, qual é o problema?
Os dois homens estão a aproximar-se, sempre a sorrir.
Ela sabe.
Quando o pai se candidatou pela primeira vez ao Congresso e um
tipo qualquer do Rotary Club estava a discursar num restaurante
Bonefish, um jornalista que fazia a cobertura do evento perguntou a
uma entediada Mel o que pensava e ela respondeu: «Ele fala de
mais.»
O que era verdade, contudo, na altura, aquilo causara-lhe
problemas com a mãe. Mel sempre tivera jeito para ver as pessoas
como realmente eram.
E aqueles dois não são caminheiros.
São assassinos.
O homem mais alto detém-se.
– Mel Keating, vista-se por favor e venha connosco. E o seu amigo
também.
– Quem são vocês, porra? – grita Tim. – E porque é que temos de
ir convosco?
O outro homem saca de uma pistola.
Oh, meu Deus, pensa Mel, e a água parece muito mais fria.
– Aquilo responde à tua questão? – pergunta o homem mais
próximo, ainda a sorrir.
Mel ergue a voz, tentando ser forte diante de Tim.
– Pode desviar os olhos enquanto saio?
Ele encolhe os ombros:
– Oh, Mel Keating. Já vi muito pior.

Além de sentir um medo que lhe faz tremer as pernas e os braços,


Mel Keating está absolutamente zangada consigo enquanto desce a
montanha com os dois homens armados e Tim, com o cabelo ainda
molhado e os pés encharcados dentro das botas. Quando eles
apareceram de súbito, Mel soube de imediato que algo estava errado,
mesmo antes de reparar na sua falta de vestuário adequado para
atividades ao ar livre.
Eram os rostos.
Eram sorridentes e abertos, mas Mel observou-lhes os olhos e viu
olhos de caçadores. Tendo crescido no Texas, sabia que a maior
parte dos seus familiares eram caçadores e, quando o pai estava na
Marinha e alguns dos seus amigos iam visitá-lo, pouco antes de
partirem para uma missão, vira o mesmo olhar.
Sempre em movimento, a pestanejar, a avaliar, pronto para atacar.
Se não estivessem dentro de água – sugestão sua! – mas na
vereda, teria empurrado Tim para dentro do bosque e teriam
começado a correr, aproveitando o mato emaranhado e as árvores
para fugir.
Mas na água não houvera escapatória. Existira apenas a
humilhação de sair do lago, vestir-se sob os olhares fixos dos
homens, ser obrigada a voltar ao carreiro e, depois, a tomar um
caminho diferente para descer a montanha.
Tim está à sua frente, com o rosto pálido sempre que se vira a fim
de olhar para Mel e, à frente dele, descendo rapidamente o trilho, o
homem mais novo. O mais velho está mesmo atrás de si e, enquanto
o homem mais novo abranda e contorna com calma uma área de
rochedos partidos, Mel pergunta ao mais velho:
– Porque estão a fazer isto?
O homem sorri e o seu sotaque não é tão cerrado como antes.
– Tu sabes.
– Mas o meu pai… já não é Presidente! Se está à procura de…
– Mel Keating, não fazes a menor ideia do que queremos, pois
não?
– Mas não têm de fazer isto – continua, pensando bastante, e Tim
olha para trás, com os olhos esbugalhados de susto. Ela prossegue. –
Deixe-nos ir embora, mais nada.
– A vontade de Alá é diferente, receio.
Pensando profundamente, Mel retruca:
– Por favor. O islão é uma religião de paz, não é? Prove isso
mesmo. Deixe-nos ir embora. Se tem uma mensagem, uma
preocupação, ou uma queixa, eu transmito-a ao meu pai e ele fará
com que chegue às pessoas certas.
O homem não diz palavra e depois solta uma gargalhada.
– Rapariguinha ignorante. O que não sabes sobre mim e o islão
podia encher um petroleiro, mas tenho sido um professor paciente ao
longo de muitos, muitos anos… Tu e o teu pai têm tanto a aprender, e
eu tenho tanto a ensinar. Há muito, muito tempo que espero por isto.
Acaricia-lhe suavemente o pescoço com a ponta do cano da
pistola.
– Agora mexe-te – ordena. – Esta discussão é muito interessante,
mas tenho a sensação de que estás a tentar… como é? Empatar.
Empatar para o caso de encontrarmos outros caminhantes porque
esperas uma distração ou uma escapatória. Tem dó. Não planeámos
tudo isto e não viemos tão longe para permitir que um ou dois
caminhantes desgarrados nos atrasem. Toca a andar, Melanie
Keating.
Tim continua a fixá-la, com os olhos esbugalhados pelo medo e
cheios de lágrimas, e Mel quer parar um momento e dizer Desculpa,
Tim, namorar com a filha do Presidente não correu como esperavas,
pois não?
Outro empurrão da pistola.
Começa a descer a vereda, abrandando o passo e isso é notado
de imediato.
O homem mais velho diz:
– Mais depressa, menina Keating, ou eu perco a paciência e deixo
a tua cabeça num dos sinais do caminho.
Capítulo 24
Huntsmen Trail
Monte Rollins, New Hampshire

Os minutos passam rapidamente e, a cada passo, Mel sabe que


depende dela livrar-se, a si e a Tim, destes homens. Se tivesse ficado
encurralada por um grande nevão nas montanhas, ou tivesse
naufragado numa ilha deserta do Maine, não havia ninguém que
desejasse mais ter a seu lado do que Tim.
Mas isto é diferente.
Pensa em todos os jovens duros – alguns dos quais mulheres –
que conheceu quando o pai estava na Marinha e, mais tarde, quando
fez campanha para o Congresso. Ouviu os relatos, por vezes
escutando atrás das portas quando devia estar deitada, e aprendeu
muito sobre o que havia realmente do outro lado das fronteiras e dos
oceanos. Daria tudo para ter aqui, agora, um desses voluntários da
campanha, em vez do doce e inocente Tim.
Com os diabos, a sua mãe – que esteve ao lado do pai desde o
início e trabalhava no mundo nojento e traiçoeiro do Ensino Superior
– pensaria como ela neste preciso momento, à procura de opções, de
uma saída.
Os bosques rarefazem-se.
O carreiro alarga.
Aparece o parque de estacionamento de terra batida e ela olha,
uma e outra vez…
Raios.
Só há um veículo no início deste trilho, a alguns quilómetros do
local onde Tim estacionou o carro.
Um Cadillac Escalade preto.
Oh, se ao menos houvesse dois ou três carros aqui, cheios de
caminheiros, talvez uns duros e fortes jogadores de futebol americano
ou de rugby da faculdade.
Continua a depender de si mesma.
– Anda mais depressa – diz o homem mais velho, atrás dela.
Estão na superfície de terra batida do parque de estacionamento.
Tim para e dá dois passos na sua direção, sussurrando:
– Vai correr tudo bem, juro.

Tim tenta manter o controlo enquanto observa os dois homens


armados, com os pensamentos a desfilarem-lhe na mente à
velocidade de rápidos de Classe IV. Como quando se está num rio
célere e perigoso e se observam as condições e se pensa nas
melhores opções de sobrevivência.
Porra, pensa. Devia ter dado ouvidos a Mel, no lago, ter-se
levantado e fugido. É claro que correr nu pelo meio das árvores
doeria como o raio, mas pelo menos podia ter encontrado alguém,
talvez alguém com telemóvel, que comunicasse que Mel Keating
estava a ser raptada.
No lago, Mel fora a filha do Presidente, sensível ao perigo, e não
Mel, a aluna normal de Dartmouth.
Ela avança e diz:
– Muito bem. Olhem. Aquilo que querem, aquilo de que precisam,
seja lá o que for, tem tudo que ver comigo e não com o meu amigo
que aqui está… – aponta para Tim. – Levem-me, mas deixem-no
ficar.
Tim não consegue acreditar na coragem e na calma de Mel. Ouve
atentamente as palavras e pensa: Ora bem, talvez consigamos fazer
qualquer coisa.
Num bolso lateral da mochila tem um canivete que pode abrir
rapidamente. No lago, ao pôr a mochila às costas, abrira
silenciosamente o fecho-éclair do bolso. Se conseguir convencer
aqueles dois a deixarem-no tirar a mochila, poderia meter a mão
naquele bolso lateral e…
O homem mais velho baixa a pistola e pergunta:
– É o que queres? Deixar o teu companheiro para trás? Ir sozinha
connosco?
Mel acena com a cabeça enquanto o mais novo se aproxima de
Tim.
Talvez funcione.
Continua a falar, Mel, pensa. Continua a falar.
E Tim diz:
– Oiçam, doem-me as costas. Importam-se que tire a mochila?
Mel responde:
– Sim. É o que quero. Deixem ficar o Tim. Vou convosco.
Tim começa a soltar as alças, desesperado, porém, se conseguir
tirar a mochila, pode atirá-la ao tipo que tem a arma e depois atacar o
outro com a faca. Cortá-lo ou apunhalá-lo, qualquer coisa que o
magoe, e ele e Mel podem correr para os bosques.
– Que diz, senhor? Vai fazer isso? Não faz sentido? – pergunta
Mel.
O homem mais velho responde:
– Não há dúvida de que faz.
Tim está a pensar OK, vamos a isto.
– Jovem – diz ele. – Juras que ficas aqui se nos formos embora?
Juras?
Tim pensa: Meu Deus, vai funcionar. O tipo está a baixar a guarda.
– Pode crer – responde Tim. – Juro.
Mel pensa: Estou a impressioná-los. Talvez o tipo faça mesmo
isso. Vai deixar o Tim ir embora e, não tarda nada, o Tim vai ter com
os polícias e descreve-lhes estes dois tipos armados, o Cadillac e a
direção que tomaram… isto talvez funcione.
Para sua surpresa e choque, o mais velho pergunta a Tim se ele
jura ficar ali.
Tim parece aliviado.
– Pode crer. Juro.
O homem diz qualquer coisa rapidamente – em árabe, talvez? – e
depois anuncia em inglês:
– Muito bem, deixamos-te aqui.
O mais novo avança, enfia a ponta da arma na orelha esquerda de
Tim, e Mel olha, num silêncio aterrado, quando Tim tenta afastar a
cabeça do toque do metal e se ouve um estampido sonoro.
Um jato de sangue.
Tim ronca, dobra-se sobre si mesmo, cai no solo de terra batida do
parque de estacionamento, estremece e morre rapidamente.
Capítulo 25
Início do Huntsmen Trail
Monte Rollins, New Hampshire

Foi preciso alguma conversa da sua parte e gastar dinheiro com


uma babysitter, mas Clem Townsend é um tipo feliz esta manhã, com
a mulher, Sheila, ao seu lado, subindo a estrada de terra batida até ao
Huntsmen Trail, que conduz ao pico do monte Rollins. Há dez anos,
neste mesmo dia, os dois caminharam até lá acima e ele fizera a
pergunta, de súbito, no cume, segurando um belo anel de noivado
que comprara no Walmart, em West Lebanon. É claro que ela dissera
que sim e esta montanha e este carreiro ocuparam sempre um lugar
especial nas suas recordações e, a cada aniversário, fazem questão
de repetir a escalada. Dez anos e três filhos depois, Sheila ainda está
muito bem, mesmo com uns quilos suplementares e Deus sabe que
ele também tem mais uns quantos, pensa.
– Clem, cuidado!
Guina para a esquerda o volante do seu velho Subaru Forrester
enquanto um grande SUV preto desce, em fúria, a estreita estrada de
terra, ficando a poucos centímetros de lhes raspar o lado direito. Grita
«idiota!» e as rodas esquerdas do Subaru resvalam para uma valeta
pouco profunda. Sheila agarra-se ao tabliê enquanto o carro vai
fazendo bum bum bum e depois consegue voltar à estrada de terra.
Clem trava, ofegante.
– Meu Deus, foi por pouco – exclama. – Estás bem, querida?
Sheila faz um aceno de cabeça.
– Que palhaço. Passou tão perto que julguei que nos ia arrancar o
espelho.
Clem solta o travão e avançam devagar durante mais ou menos
um minuto, chegam ao parque de estacionamento do trilho e,
enquanto Clem estaciona perto do sinal de madeira com letras
amarelas, Sheila diz:
– Oh, olha aquilo. Aqueles idiotas deixaram para trás um monte de
lixo. Não admira que estivessem com pressa.
Ele espreita pela janela e fica estarrecido. Clem e Sheila têm uma
pequena estação de serviço e loja de conveniência em Spencer, uma
vila próxima, onde ele é bombeiro voluntário e técnico de emergência
médica. Sabe o que está a ver, e não é lixo.
Clem desliga o motor.
– Sheila, pega no telemóvel. Vê se há rede.
Sheila remexe na carteira e ele sai do Subaru para o frio do fim da
manhã. No início do carreiro encontra-se um vulto enrodilhado e Clem
dirige-se rapidamente para lá, perguntando:
– Olá, está bem? Está bem?
Um jovem com os olhos abertos de surpresa, envergando calções
de cáqui e uma T-shirt dos Patriots, enrolado de lado, com a mochila
presa às costas e o lado da cabeça transformado numa massa
confusa de sangue a gotejar.
Meu Deus, pensa Clem.
Sheila está a seu lado, o telefone Galaxy treme-lhe nas mãos.
– Clem, temos rede.
– Liga para as emergências. Diz ao telefonista onde estamos e
que há aqui um homem morto.
Ela faz a chamada e Clem mantém-se longe do corpo, sabendo o
que fazer e não fazer. O rapaz está morto e já não há ajuda possível.
Não há razão para ir inspecionar o corpo, neste momento. Deixa estar
o rapaz, juntamente com quaisquer indícios que a polícia possa
encontrar. Ouve Sheila ao telefone, com voz pausada e calma. Uma
bela mulher forte, pensa Clem. Que sorte tê-la.
Mas há outra coisa estranha.
Outra mochila atirada para o chão a cerca de dois metros.
Outro caminhante? O atirador? Este tipo que se encontra no chão
estaria a tentar roubar aquela mochila, houve uma luta e depois
alguém puxou de uma arma?
– Estás a ouvir? – pergunta Sheila.
O som fraco de uma sirene.
– Alguém está a andar depressa – responde.
– O telefonista conseguiu contactar o Donny Brooks, da Patrulha
F. Aposto que é ele – afirma Sheila.
Clem fica satisfeito. Nesta zona do Estado, as cidades pequenas
dispõem de poucos ou nenhuns departamentos de polícia, o que
significa que a polícia estadual e o xerife do condado são amiúde os
primeiros a responder às emergências. Por causa da sua lojinha, ele
e Sheila conhecem todos os adjuntos do xerife e polícias estaduais
num raio de oitenta quilómetros.
Tal como conhecem o polícia que conduz o Dodge Charger verde-
escuro que aparece à vista, com a barra de luzes a piscar enquanto o
carro-patrulha trava, derrapando. Donny Brooks está ao volante e
Clem vê-o usar o rádio do carro para anunciar o fim da comunicação
no local do crime. Sai rapidamente do carro, envergando o uniforme
normal de polícia, camisa verde-escura e calças bege, e no seu rosto
espelham-se preocupação e energia enquanto se dirige para eles,
enfiando o chapéu redondo de escoteiro sobre o cabelo curto e louro.
Tem perto de trinta anos, ombros corpulentos e desloca-se
rapidamente.
Donny dá uma olhadela rápida ao corpo, mantendo-se a uma curta
distância.
– Clem – diz. – Quando o encontraste?
– Há uns dez minutos, Donny. A Sheila e eu viemos fazer uma
caminhada…
– Alguém na zona? Viram ou ouviram alguma coisa a caminho
daqui?
– Quase fomos abalroados por um grande SUV preto. O filho da
mãe por pouco não nos atirou para fora da estrada – responde Sheila.
Donny continua a olhar fixamente para o corpo. Tira um pequeno
bloco de apontamentos do bolso esquerdo da camisa, juntamente
com uma caneta, e começa a tirar notas.
– Quanto tempo passou entre terem visto o SUV e encontrado o
corpo?
– Cerca de três minutos – responde Sheila.
– De que marca era o carro?
– Não sei – afirma Clem.
– Cadillac Escalade, era o que era. O raio da coisa quase me
bateu, quase nos arrancou o espelho lateral – diz Sheila.
– Viste a placa de matrícula? – pergunta Donny.
– Não, não vi. Sinto muito, mas não vi de que estado era.
O agente estadual olha para o relógio e, por ter observado polícias
de todos os tipos a trabalhar ao longo dos anos, Clem sabe o que ele
está a fazer: a calcular a distância que o Cadillac percorreu desde
que os dois quase foram abalroados.
Donny prime o botão do microfone que tem no ombro e comunica:
– Central, um um quatro. Emitam um ALERTA para um Cadillac
Escalade preto. Partiu da zona em direção à Upper Valley Road.
Possível testemunha ou suspeito. Transmitir mesmo alerta aos
departamentos de Purmort, Montcalm, Spencer, Monmouth e Leah.
Contactem o sargento Wagner. Ele que venha ao local.
Há mais conversa pela rádio, nos dois sentidos, e numa pausa
Clem diz:
– Estás a ver aquela segunda mochila? Deixada ali? Não achas
que é estranho, Donny?
O jovem polícia responde:
– Sim. Reparei nela logo quando cheguei.
– Vais dar-lhe uma vista de olhos?
– Devia esperar que o meu supervisor aparecesse, mas… merda,
talvez seja útil.
Donny dá uma volta em redor da mochila, calça umas luvas de
látex, agacha-se e abre-a. Clem move-se para ver o que poderá
haver na mochila e dela saem uma garrafa de água, duas barras de
granola, uma sweatshirt azul-escura, um par de meias de lã para
caminhada e uma carteira bege.
– Isso é útil – comenta Clem.
Sheila está a seu lado, suficientemente perto para a ouvir respirar.
O polícia abre a carteira, retira o que parece ser um cartão de
estudante e Clem fixa o olhar e fica espantado com a fotografia e o
nome de uma bela jovem loura.
MELANIE R. KEATING.
– Oh, merda – diz Donny. Ouvem-se mais sirenes ao longe.
– É… é a filha do Presidente Keating? – pergunta Sheila.
Clem não consegue dizer nada.
Este vai ser um aniversário para recordar.
Capítulo 26
Noroeste do New Hampshire

Mel Keating tenta acalmar a sua respiração rápida, tarefa difícil,


uma vez que tem os braços e as pernas presos com fita adesiva, a
cabeça coberta por um capuz de tecido atado em redor da base do
pescoço, e a boca coberta com fita adesiva e cheia com um pedaço
de tecido enchumaçado. Felizmente, os óculos continuam presos no
rosto. Uma parte de si está a tremer pelo profundo horror e choque de
ter visto Tim ser assassinado à sua frente, morto ainda antes de ter
idade legal para beber, abatido a tiro por dois terroristas num parque
de estacionamento de terra batida.
Tangos, pensa, em lágrimas, usando o calão militar para designar
terroristas. Assassinos. Escumalha.
O tipo de gente que o pai combateu quando pertencia aos SEAL e,
mais tarde, quando era Presidente.
Espanta-a a ignorância e apatia dos seus colegas de turma em
relação ao mundo real e aprendeu a ficar calada durante as saídas
noturnas, quando os colegas de faculdade arengavam repetidamente
sobre as verdadeiras causas do terrorismo serem a pobreza, o
desespero e a desigualdade.
Uma noite, chamara a atenção para o facto de Osama bin Laden
ser originário de uma família de ricos construtores sauditas e jamais
ter sido indigente nem oprimido e, caramba, nunca mais voltara a cair
nesse erro depois de ter passado uma hora a ouvir chamarem-lhe
ignorante, insensível e privilegiada.
O capuz é de lona e cheira a cereais. Continua a esforçar-se por
manter a respiração regular e tenta desesperadamente ouvir os dois
captores, enquanto avançam a alta velocidade.
Ela.
Queriam-na a ela.
A filha do Presidente.
Mas porquê?
O pai já terminou o mandato há quase dois anos. Não tem poder,
nem influência, nem forma de pegar no telefone e satisfazer as
exigências deles.
Cala-te, pensa.
Concentra-te.
Há um minuto, o SUV onde se encontra saiu da estrada de terra
batida e virou à esquerda, para uma estrada asfaltada.
Pensa.
Ouve.
Numa estrada asfaltada.
Raios, pensa, devia ter prestado atenção.
Endurece, rapariga.
Mantém-te calma, continua a respirar pelo nariz, descontrai-te.
Não penses no doce Tim, não penses nele a ser assassinado, não
penses.
Ouve.
O zumbido dos pneus numa estrada asfaltada.
Continuam a rodar sobre o asfalto, Upper Valley Road.
Presta atenção.
O SUV detém-se.
Recua.
De novo numa estrada de terra batida.
Começa a contar.
Mil e um, mil e dois, mil e três…
Está a ser transportada, levada para um esconderijo, um local
afastado para os seus raptores a manterem presa e enviarem um
pedido de resgate. Contando e estando atenta pode refazer a sua
viagem a dada altura e…
O SUV para.
Desloca-se.
De novo na estrada asfaltada.
Muito bem, quantos segundos passaram?
Dez, onze?
O SUV descreve um círculo, mantém-se num círculo, rodando e…
De novo na estrada de terra batida.
Agora, uma estrada alcatroada.
As lágrimas descem-lhe pelo rosto.
Aqueles tipos são competentes: estão a confundi-la, certificando-
se de que não consegue controlar merda nenhuma.
As lágrimas descem mais depressa.
Mel pensa OK, são bons no que fazem.
Mas eu também sou bastante boa.
Inspira fundo para se acalmar, recorda: estrada asfaltada, estrada
de terra batida, estrada asfaltada, terra batida de novo; e começa a
contar de novo enquanto os raptores aceleram sobre o asfalto liso.
Se pensam que raptaram uma miúda típica da faculdade que vai
exigir uma almofada e um local seguro, Mel anseia pela oportunidade
de lhes mostrar que estão redondamente enganados.
Capítulo 27
Noroeste do New Hampshire

Mais tarde, Mel sente que o SUV se mantém numa estrada de


terra batida durante um bom período e recomeça a contagem a partir
de mil e um, mil e dois, mantendo-se atenta.
As lágrimas pararam. Não é hora de chorar. Tem cãibras nas
pernas e nos braços, a boca seca e esfolada com o pano lá metido e
pergunta-se quanto tempo demorará até o corpo de Tim ser
encontrado.
O tiro repentino da pistola, o olhar de choque no rosto dele, o
esguicho de sangue no ar…
Sente um estalido nos ouvidos.
Estão a subir em altitude, portanto.
O SUV abranda.
Para.
Precisamente aos sessenta e três segundos.
Lembra-te disso.
As portas da frente abrem-se e fecham-se.
Murmúrio de vozes. A porta traseira abre-se e ela apercebe-se
vagamente da luz do sol, através do capuz de tecido. Umas mãos
agarram-na e é levantada com facilidade, e esforça-se por não gemer,
resmungar ou debater-se. Não vai dar àqueles filhos da mãe a
satisfação de a verem estremecer de medo.
Não.
Não vai dar-lhes isso.
Levam-na e sente que está numa casa porque consegue ouvir os
passos dos dois captores e o rangido de uma porta a abrir-se e agora
estão numa escada.
E…
Mel é pousada delicadamente numa cama.
Umas mãos percorrem-lhe o corpo e ela encolhe-se ao sentir o
toque, mas são rápidas, formais, rasgando a fita adesiva e usando…
uma navalha de barba? uma tesoura?… para cortar e retirar outras
faixas de fita.
O capuz é a última coisa.
É retirado e ela pestaneja várias vezes por detrás dos óculos, e
então o tipo mais novo aproxima-se e traz qualquer coisa na mão,
uma garrafinha de…
Óleo vegetal?
Esfrega um pouco na orla da fita adesiva que lhe cobre a boca e
depois puxa, com delicadeza, e repete o processo várias vezes, até a
fita ser retirada sem muita dor.
A sério? Matam o Tim e raptam-na e agora fazem tudo para não a
magoar?
A fita desapareceu e ela empurra o pano com a língua, mas o tipo
que retirou a fita faz o mesmo com o pano enrolado e ela diz «Ai» e
depois ele dá-lhe de beber de uma garrafa de água.
Mel engole, engole e depois cospe um jato contra o tipo, atingindo-
o diretamente no rosto presunçoso.
– Filhos da puta! – grita. – Assassinos! Miseráveis! Hão de…
O homem mais velho, que tem as sobrancelhas cerradas,
aproxima-se e algo nos seus olhos mortos a detém. Inspira, sentindo-
se verdadeiramente assustada. Não querendo olhar para ele, dá uma
rápida vista de olhos ao quarto.
Um cubo de betão, sem janelas e tendo como única saída uma
pesada porta de metal. Está numa cama pequena. Há um candeeiro,
ao canto. Uma mesinha e uma cadeira aparafusadas ao chão. Uma
retrete química.
E é tudo.
O homem mais velho diz:
– Chegaste, Melanie Keating, e aqui ficarás, a não ser que o teu
pai aceite as minhas exigências.
Quer cuspir-lhe para cima, de novo, mas não tem saliva.
– O meu pai é mais duro do que pensam. Não sabem isso, seus
idiotas? Pensam que ele vai ceder às vossas exigências?
O homem mais velho faz um sorriso cansado e acena ao
companheiro, que se dirige para a porta e a destranca.
– Pode ser um homem duro, como dizes.
Faz-lhe uma festa terna na cabeça, como se ela fosse um animal
de companhia ou um brinquedo apreciado.
– Mas será um pai duro?
Sai rapidamente do quarto, a porta fecha-se atrás dele e é
trancada, e Mel sente-se mais só do que alguma vez se sentiu na
vida.
Enrosca-se na cama, abraçando-se a si mesma, rezando.
Meu Deus, por favor, faz com o meu pai me tire daqui.
Por favor.
Passam alguns minutos e então para de rezar, desfaz o abraço.
Senta-se e enxuga os olhos.
Muito bem, pensa. Já choraste o suficiente.
Talvez o pai a encontre.
Talvez não.
Mas não haverá mais lágrimas.
Está na hora de pensar e planear.
Mel pensa: Dependo de mim para sair daqui.
De mais ninguém.
Capítulo 28
Lago Marie, New Hampshire

Depois do telefonema da vice-conselheira de Segurança Nacional


Sarah Palumbo e da discussão deprimente e insatisfatória com o
agente David Stahl, tento dar vazão às frustrações nas minhas tarefas
de final da manhã.
Não há muito mais que um antigo Presidente possa fazer nestas
circunstâncias. Há um bocado, David recomendou delicadamente que
me mantivesse dentro de casa durante o dia e eu recusei de uma
forma igualmente delicada.
Bem, talvez não tão delicada como isso.
Aquilo que quero fazer é limpar o mato e as árvores novas e
arbustos velhos que estrangularam este muro de pedra antigo,
construído talvez há duzentos anos. Vai ficar bonito, sobretudo depois
de eu ter arado o terreno e plantado alguma relva. Ponho-me de pé,
estico as costas, tento gozar a vista, tento acalmar a preocupação no
meu espírito. Custa a acreditar vendo toda a floresta, mas estas
árvores são relativamente jovens. Há séculos, a maior parte das
árvores que aqui havia foi cortada pelos primeiros colonos e
agricultores, e depois, quando foram desbravadas terras mais baratas
e mais férteis no Oeste (após os ameríndios terem sido quase
eliminados, claro), muitas quintas foram abandonadas e as árvores
reivindicaram o seu direito de primogenitura.
E porquê New Hampshire?
Cresci no Texas, vivi vários anos onde quer que Marinha me
mandasse, regressei ao Texas, mas decidi repousar aqui, no Estado
do Granito, que me ofereceu uma tábua de salvação depois de a
minha vice-presidente amotinada me ter dado um chuto nas nádegas
nas convenções do Iowa. A gente daqui deu-me uma vitória sólida
nas famosas primeiras primárias a nível nacional.
Gosto da lealdade – admiro-a.
Procuro o meu iPhone no bolso, vejo as horas e faço um vídeo
rápido, com o meu trabalho em pano de fundo.
– Olá, Sam, aqui vai a minha atualização diária. A fazer
progressos. Dentro de uns meses, vai estar tudo limpo. Olha, talvez tu
e a tua equipa possam vir cá e fazer uma escavação. Quem sabe o
que encontrarás? Amo-te. Ligo-te logo à noite.
Desligo, enviando o meu vídeo diário para o e-mail de trabalho da
Sam, ansioso por voltar ao trabalho. Desde que a Sam está na
Universidade de Boston, temo-nos esforçado por que as coisas
funcionem, passando tempo juntos, geralmente a cada dois fins de
semana, e durante períodos mais longos durante o verão. As férias, é
claro, e alguns eventos em Dartmouth com a Melanie.
É uma relação estranha, eu sei, mas a família tradicional da
década de 1950 já acabou há muito.
Regresso ao muro de pedra e um vulto surge detrás das rochas
informes, envergando roupa de camuflagem, luvas pretas, uma capa
de sniper, e empunhando uma espingarda de assalto SR-16 CQB de
5,56 milímetros.
A minha memória muscular é ativada e levo a mão à anca direita,
onde está…
Nada.
Nenhuma arma, evidentemente.
Estou prestes a atirar o serrote ao vulto quando este baixa de
súbito a arma, abre a capa de sniper e aparece o rosto suado de uma
jovem loura… A agente Stacy Fields, dos Serviços Secretos,
empunhando uma arma regulamentar… e a falar ao microfone que
tem no pulso:
– Fala Fields. Tenho o Harbor junto ao velho muro de pedra.
Repito, o Harbor está no velho muro de pedra.
Dou meia-volta ao ouvir o som de um motor de corrida.
O Boston Whaler precipita-se na minha direção, os dois agentes já
não empunham canas de pesca, mas sim armas. Há um fluxo de
água na proa e regresso aos meus dias na Marinha, recordando, Não
há dúvida de que aquele barco vai depressa. Tem a frente cheia de
espuma.
Passa-se algo muitíssimo grave.
Aquele aviso da vice-conselheira de Segurança Nacional Sarah
Palumbo acertou no alvo.
Outro motor ruge mais alto e um UTV Yamaha, mosqueado de
verde, de quatro lugares, saltita na minha direção, tendo ao volante o
agente David Stahl, com um colete de Kevlar, e vêm com ele outros
dois agentes dos Serviços Secretos – Ron Dalton e Paula Chin –,
envergando também coletes de Kevlar e empunhando as suas
espingardas de assalto SR-16 CQB de 5,56 milímetros.
O UTV detém-se, derrapando, e a agente Fields agarra-me pelo
cós dos calções e a gola da T-shirt e diz:
– Senhor Presidente, temos de o levar para um local seguro. Já!
Por favor!
O Boston Whaler guina junto à margem e os dois agentes
armados saltam do barco, avançam rapidamente pela água,
ajoelhando-se junto à beira, olhando para o lago com as armas
prontas a disparar. Deixo cair o serrote e a agente Fields impele-me
para o banco traseiro aberto do UTV. Sou empurrado lá para dentro,
põem-me o cinto de segurança, e o UTV dá meia-volta enquanto me
empurram para baixo e me atiram para cima uma manta de Kevlar à
prova de balas. Mal tive tempo de me adaptar à posição
desconfortável quando o UTV parte a toda a velocidade.
Passa-se algo muitíssimo grave.

Saltito e agito-me. O motor ruge mais alto e há uma paragem


rápida, em derrapagem. Retiram a manta com que me cobriram,
libertam-me do assento traseiro e sou transportado para a garagem
de dois carros adjacente à minha casa do lago. A porta esquerda da
garagem sobe, revelando um bunker de betão reforçado com uma
pesada porta de metal no centro.
A sala de segurança da minha casa no lago.
Há uma agitação de movimento e ordens «Go, go, go» e a porta é
aberta do interior pela agente Nicole Washington, dos Serviços
Secretos. Sou impelido e rodeado por outros agentes armados.
Empurram-me lá para dentro.
A agente Paula Chin fica na retaguarda, de pé junto à porta, com a
espingarda de assalto SR-16 CQB frente ao rosto, bloqueando
qualquer visão ou arma apontada do exterior enquanto a pesada
porta é fechada e penso que é isto que querem dizer com aquela
simples expressão «escudo humano».
A porta fecha-se.
Ela recua.
Sento-me num cadeirão de couro preto.
– David! – digo rapidamente. – Que se passa? Que sabe?
A sala foi construída antes de eu me ter mudado para cá e
destina-se a proteger-me, a mim e à Mel – e à Sam, se cá estiver –,
em caso de ameaça externa. Há um sistema autónomo de ar, comida,
água armazenada e uma casa de banho, e a única coisa que poderia
abrir uma brecha neste cubinho no interior da minha garagem seria
uma arma nuclear tática lançada sobre o telhado. Há cadeirões que
se desdobram em camas e uma pequena área de jantar, com um
frigorífico e um fogão, e é quase tão alegre como a cela de uma
prisão.
– David! – chamo de novo.
Há uma consola de comunicações instalada do outro lado da sala,
com monitores de circuito interno de televisão que controlam diversas
partes da minha propriedade. Num deles vejo o fim do caminho de
acesso, em terra batida. O omnipresente carro-patrulha da Polícia do
Estado do New Hampshire mudou de posição para bloquear a
entrada e dois agentes da polícia estadual estão ajoelhados atrás
dele, de armas automáticas na mão.
A agente Nicole Washington está sentada junto à consola, com
auscultadores e microfone na cabeça, e o agente Stahl encontra-se
de pé a seu lado, falando calma mas firmemente.
– Contactem os escritórios locais de Burlington, Concord Boston –
diz. – Precisamos de mais gente aqui, imediatamente. Depois, falem
pela linha segura com Washington DC. Precisamos de os alertar e
precisamos de que o FBI…
– Agente Stahl, que se passa, porra? – grito.
Volta-se rapidamente para mim e já não parece o feliz subordinado
de há umas horas, após a sua derrota na nossa corrida de canoas.
Tem o rosto endurecido, cheio de fúria e preocupação, e o aspeto
de um homem com uma missão, um homem que está ao comando,
apesar de ter um antigo Presidente sentado diante de si.
As suas palavras saem e atingem-me como um murro na barriga.
– Sinto muito dizer-lhe isto, senhor Presidente – afirma Stahl. – A
sua informação sobre as ameaças era correta. A Mel foi raptada.
Capítulo 29
Lago Marie, New Hampshire

O agente David Stahl, dos Serviços Secretos, é originário de


Bakersville, na Califórnia, e depois de ter servido nos Marines – três
comissões no Afeganistão – entrou para os Serviços Secretos e, ao
longo dos últimos dez anos, foi subindo no Destacamento de
Proteção Presidencial.
Mesmo assim, apesar de toda a formação, de todas as
simulações, de todos os treinos, sente que todo o peso dos Serviços
Secretos e da Segurança Interna lhe aterrou nos ombros à medida
que reage à situação e toma decisões que, daqui a um ano, serão
examinadas, criticadas e questionadas retroativamente.
E depois, porra?, pensa.
Foi para isto que se alistou.
E a primeira tarefa neste preciso momento é manter o Harbor no
devido lugar antes que o ex-operacional SEAL à sua frente pegue
numa arma e saia a correr para procurar a filha sozinho.
O corpo de Keating está tenso e em compressão, um guerreiro
que precisa de atacar e atacar já.
David conhece bem a sensação.
– Conte-me o que sabe – pede Keating.
– Senhor, vou ser rápido, e por favor… temos muito que fazer para
localizar a sua filha e protegermo-lo também.
O rosto de Keating cora.
– Não me insulte. Sei isso. Fale.
– O pessoal do Departamento de Pesca e Caça e do
Departamento do Xerife do Condado de Grafton ia a caminho do
monte Rollins, só que não chegou a tempo. A mochila da sua filha foi
encontrada no início do Huntsmen Trail. O corpo do amigo dela, Tim
Kenyon, foi encontrado perto. Atingido a tiro na cabeça. Até agora,
não apareceu nenhum pedido de resgate.
O antigo Presidente faz um aceno de cabeça, tem o rosto pálido.
David prossegue:
– A Polícia do Estado do New Hampshire foi a primeira a
comparecer no local. Emitiram um alerta para um Cadillac Escalade
negro que foi visto a afastar-se, a grande velocidade, do trilho. Estão
a ser feitos bloqueios de estrada e pedimos às unidades
aerotransportadas da Polícia do Estado de Vermont e da Polícia do
Estado do New Hampshire para iniciarem uma busca aérea.
Estamos…
Keating ergue uma mão.
– Estou a impedi-lo de fazer o seu trabalho. Volte ao que estava a
fazer… mas há mais alguma coisa que eu deva saber neste
momento?
– Não, senhor Presidente – retruca Stahl.
Quando regressa para junto da agente Nicole Washington, a fim
de retomar os procedimentos e as comunicações necessárias, o
agente Stahl sabe que acabou de mentir a Matthew Keating.
Porque a culpa do rapto de Mel é sua.
E não só por causa da sua reação ao aviso desta manhã.

Dois meses antes, estava no seu pequeno escritório no primeiro


andar do celeiro remodelado da propriedade de Keating quando o
telefone da secretária tocou. Atendeu – «Stahl» – e a agente
Washington estava no outro extremo da linha.
– David, tenho a diretora Murray em linha – diz. – Estás aqui ou
saíste?
Esfrega os olhos cansados. Tem estado a trabalhar na escala da
equipa para os próximos três meses e, como sempre, tem falta de
pessoal, tendo de pedir ao destacamento que aqui se encontra para
fazer horas extraordinárias obrigatórias, que é uma maneira rápida de
esgotar bons agentes e mandá-los para o setor privado. É o agente
especial que comanda o destacamento e devia ter um agente
especial adjunto que assumisse uma parte do fardo, mas esse lugar
há meses que está por preencher.
– Quem me dera ter saído – responde. – Passa-a.
Faith Murray é a vice-diretora adjunta responsável pelo
Destacamento de Proteção Presidencial e vai direta ao assunto:
– Stahl, raios, que está a fazer aí no New Hampshire?
Ele endireita-se na cadeira, devagar.
– O meu trabalho – responde. – Qual é o problema?
– O problema é que está a violar tanto as normas como os
procedimentos ao fazer a segurança da Mel Keating – rosna ela. –
Sabe em que sarilho está metido?
– Não estamos a fazer a segurança da Mel Keating.
– Não foi o que ouvi dizer. Deixe-se de tretas. Que anda a fazer?
Ele esfrega os olhos de novo e olha pela janela. Há música e risos
e uma rede de voleibol, uma vez que Mel Keating está a fazer um
churrasco com alguns amigos, alunos de Dartmouth. Neste momento,
Stahl deseja ter a idade deles e, como únicas preocupações, as
próximas aulas e não levar com uma bola na cara.
Há também uma dor surda dentro de si devido às saudades da
sua mulher, Hannah, que morreu de leucemia há cinco anos, fazendo
dele um viúvo solitário sem tempo ou interesse em voltar para o grupo
dos candidatos a namoro.
– Formação no terreno – diz. – Não quero que o destacamento
que aqui está perca qualidades e, por isso, fazemos exercícios em
que vigiamos e seguimos pessoas. Fazia sentido mandá-los seguir
Mel Keating.
– Ela sabe?
– Não, senhora.
– E o pai dela?
– Não, senhora.
– Então, acabe com isso – ordena Faith Murray. – Há módulos de
formação aprovados. Siga-os. E Mel Keating é suficientemente
crescida para não precisar de proteção.
– Senhora, eu…
– Que se passa?
Range os dentes durante um momento.
– O pai é um antigo Presidente e um ex-operacional dos SEAL. É
lógico que tenha inúmeros inimigos por aí. Muitos inimigos.
– Protegemo-lo e mais nada.
– Não é suficiente.
– Eu digo que é – retruca ela. – Estou atrasada para uma reunião
com o secretário da Segurança Interna. Mais alguma coisa?
Despache-se.
Quer dizer que não, não é suficiente, porra. E, se tivesse
trabalhado mais no terreno, sob a chuva e a neve, fazendo turnos
longos e estando alerta todo o tempo, saberia que assim é. Em vez
de ter frequentado seminários e retiros e escolas de formação, de ser
promovida pela via burocrática em vez de ter vindo do terreno,
saberia, no fundo do seu ser, quão exposta e vulnerável está Mel
Keating.
Com os diabos, pensa, até este recinto é vulnerável. Nas casas
dos outros antigos Presidentes, os centros de operações ficam
sempre num edifício exterior para que o destacamento de proteção,
no seu todo, não seja um alvo único num local, porém a
administração Barnes e os seus apoiantes no Congresso cortaram e
reduziram o orçamento dos Serviços Secretos – alguns comentadores
de Washington DC disseram que fora uma vingança por o Presidente
Keating ter decidido responder ao desafio eleitoral da sua vice-
presidente – e o resultado foi a falta de agentes e recursos aqui.
– Não, de momento, diretora – responde e ela desliga.

Stahl olha para os ecrãs do circuito interno de televisão e diz:


– Manda o Towler e o Wrenn voltarem para a água. Ninguém
chega a menos de cem metros da margem do lago. Percebeste?
– Estou a tratar disso – responde Nicole Washington, enquanto
começa a falar lentamente ao microfone, como fizeram noutras
ocasiões em simulações e exercícios de treino, os dois a trabalharem
sincronizados, mantendo-se concentrados na tarefa e nada mais.
Proteger Harbor, custe o que custar.
Mesmo assim, neste momento, tem a sensação de que falhou ao
Presidente e à sua filha raptada.
Capítulo 30
Lago Marie, New Hampshire

Dentro da sala de segurança, ouve-se agora um murmúrio suave


quando o caro e secreto sistema de aquecimento, ventilação e ar
condicionado começa a funcionar, bombeando ar fresco para o
espaço e filtrando quaisquer elementos patogénicos de guerra
biológica que pudessem ter sido libertados na propriedade.
Stahl abana a cabeça.
Para de te lamentar. Faz o teu trabalho.
– Alarguem o perímetro externo – ordena. – Coloquem-nos na
linha defensiva secundária.
Os telefones tocam, mensagens de rádio cheias de estática
crepitam freneticamente através de pequenos altifalantes. A agente
Chin está atrás de uma espessa barricada móvel de Kevlar e metal,
alinhando cuidadosamente no chão carregadores quadrados para a
sua espingarda automática, e mantendo uma máscara antigás perto
de si para o caso de haver uma tentativa de arrombamento da porta.
Mel Keating foi raptada. Foi um acontecimento único ou o início de
outra coisa qualquer? Os terroristas quererão que Stahl tente retirar
Harbor neste momento, antes de terem chegado reforços? Aniquilá-lo
por meio de um RPG ou de um grupo emboscado quando Keating
estiver em movimento?
Ou haverá uma equipa de assalto a avançar pelos bosques, neste
preciso momento, fortemente armada e com explosivos, para cercar a
sala de segurança?
Nicole Washington comunica:
– A equipa de intervenção da polícia estadual está a responder e
dirige-se para a zona intermédia previamente aprovada.
Stahl faz um aceno de cabeça. Se Keating ainda fosse Presidente,
Stahl teria mais uma série de recursos à sua disposição. Veículos,
limusinas, helicópteros e aeronaves blindados a uma pequena
distância de carro e a Counter Assault Team dos Serviços Secretos,
que podia envolver-se numa troca de fogo com qualquer pelotão
normal de qualquer exército do mundo e vencer.
– Temos três agentes a dirigirem-se para cá vindos de Burlington,
quatro de Concord e oito de Boston – diz Nicole Washington.
– Quem está na casa? – pergunta Stahl.
– Emma Curtis.
O nosso cordeiro sacrificial, pensa Stahl. O grosso dos agentes
está aqui, na sala de segurança, ou foi retirado da propriedade de
Keating para criar um perímetro de defesa mais definido e localizado,
mas um agente tem de estar de serviço na casa principal a fim de
receber e dar instruções a esses agentes e outros membros das
forças de segurança à medida que chegam para reforçar as defesas
do recinto, porque ninguém entra nem sai da sala de segurança
enquanto não chegar a hora de retirar Harbor.
Coisa que não vai acontecer tão depressa.
Mas isso também significa que Emma Curtis estará entregue a si
própria na casa de estrutura de madeira, e indefesa caso haja um
ataque.
– A Polícia do Estado de Vermont está a oferecer a sua equipa de
intervenção – anuncia Nicole Washington
– Agradece-lhes e contacta Concord.
Mais um breve segundo e Nicole diz:
– O secretário Charles está em linha.
O secretário de Segurança Interna, Paul Charles, pensa Stahl.
Comandava a Polícia Rodoviária da Florida antes de a nova
Presidente o ter escolhido para dirigir a Segurança Interna, que tem
tido poderes de supervisão sobre os Serviços Secretos desde o 11 de
Setembro.
E é totalmente imprestável.
– Diz-lhe que estamos ocupados – responde Stahl.
Olha à sua volta.
Ninguém diz palavra.
Estão todos concentrados nas suas diferentes áreas de
responsabilidade, ocupando as posições predefinidas e treinadas
previamente.
Keating está sentado no sofá, de mandíbula cerrada, olhando
direta e fixamente para Stahl, que tem de desviar o olhar.
– David, recebemos uma ajuda do FBI – comunica Nicole.
– Aí está uma boa novidade – afirma Stahl. – Que é?
5
– Têm oito membros da Equipa de Resgate de Reféns a fazer um
treino na Base Aérea de Hanscon, no Massachusetts. Podem estar
no ar dentro de cinco minutos.
– Ficamos com eles.
Uma voz baixa que mal consegue reconhecer soa atrás de si.
– David.
Vira-se e Keating está de pé.
– Duas coisas – diz. – Qual é a situação da minha mulher?
– A professora Keating ainda se encontra na estação arqueológica
de Hitchcock, com meia dúzia de alunos de pós-graduação e
voluntários.
– A proteção dela já chegou?
– A Polícia do Estado do Maine já deve lá estar neste momento –
responde Stahl. – Há um arsenal da Guarda Nacional a menos de
três quilómetros do local onde ela se encontra. Vão levá-la para lá.
Keating acena com a cabeça.
– Muito bem.
Stahl está ansioso por voltar à tarefa que tem em mãos: controlar
o perímetro de defesa, ver se consegue obter mais dois agentes num
barco no lago, elaborar um plano para tirar finalmente Harbor dali e
levá-lo para um local maior e mais fácil de defender.
– Qual é a outra coisa, senhor Presidente?
– Ouvi bem? Há uma equipa de salvamento de reféns a dirigir-se
para cá? De helicóptero?
– Sim. Estarão cá em menos de uma hora.
Keating faz um aceno de cabeça e Stahl vê mudar a sua
expressão facial, passando da de quem está sob proteção para a de
alguém que agora está ao comando.
– Bom – afirma. – Mal eles cheguem, entramos no Black Hawk e
pomo-nos a andar daqui.

5
Hostage Rescue Team, com a sigla HRT. (N. do T.)
Capítulo 31
Hitchcock, Maine

Ao final da manhã, na pequena aldeia piscatória de Hitchcock, no


Maine, a professora da Universidade de Boston e antiga primeira-
dama Samantha Keating está sobre os seus joelhos doridos e
inflamados, olhando para o que é retirado lentamente – oh, tão
lentamente! – por dois dos seus alunos de pós-graduação de um
metro de terra mais abaixo.
Está transpirada, tem as mãos cobertas de terra, bolhas a formar-
se nos dois polegares, as suas roupas cheiram mal, e por nada deste
mundo quereria estar noutro lugar. Tantas escavações que ficaram
para trás por se ver presa num qualquer acontecimento político,
envergando um vestido que lhe assentava mal, comendo frango duro
e batatas frias, tentando fazer conversa frívola com um homem ou
mulher melífluos que se candidatavam a um cargo.
Mas não agora, nem aqui.
Este é o seu lugar, é aqui que se sente bem. Não no maldito palco
plástico e artificial da política, mas aqui no terreno, descobrindo
lentamente histórias e segredos do passado.
Uma jovem aluna de pós-graduação, Cameron Dane, varre,
entusiasmada, a terra fina com um pincel de pelo de camelo quando
diz:
– Professora, está a ver isto? Está?
Ergueu-se um toldo sobre esta parte da escavação a fim de
proteger do sol forte do Maine o solo e os artefactos descobertos,
mas Samantha vê facilmente o que está a aparecer: tijolos curvos
vermelhos, feitos por seres humanos, e da Europa.
– Sim – exclama, com a voz a subir devido à excitação. – Sim,
estou!
Paul Juarez, outro aluno de pós-graduação, diz, com imenso
respeito:
– Professora, isso é basco. Não existe a menor dúvida quanto a
isso.
O sorriso de Samantha abre-se ainda mais.
– É bom saber que, por vezes, as jogadas compensam, não é?
Os alunos riem à medida que vão surgindo mais tijolos vermelhos.
Jackpot, pensa ela.
Apesar de todos os livros mal escritos e mal distribuídos que, na
escola primária e no secundário, falavam sobre primeiros
exploradores e colonos franceses e ingleses destas costas, a
verdadeira História é mais complexa e intrigante. Na Terra Nova e
noutras províncias do Canadá, há estações arqueológicas que
mostram que pescadores bascos do século XV – muito antes de
Colombo ter chegado às Caraíbas – se aproveitavam da enorme
abundância de bacalhau e baleias que se juntavam em redor destas
costas.
Sempre houvera sugestões e teorias de que os Bascos podiam ter
vindo mais para sul, até aqui ao Maine, e caso fossem descobertos
alguns indícios, isso alteraria para todo o sempre a História da Nova
Inglaterra.
Essa História nunca foi encontrada. Até hoje.
– Cuidado com isso, Paul – diz Samantha a Juarez, suavemente.
– Esses tijolos não veem a luz do dia há mais de seiscentos anos.
Mais seis minutos ou coisa que o valha não farão diferença.
Os sons predominantes na estação arqueológica de Hitchcock
vêm das ondas do oceano Atlântico a bater nas duras rochas e
pedregulhos, até lhe chegar aos ouvidos o rugido de um motor.
Grande coisa! Neste momento não quer saber do século XXI, da
sua tecnologia, das suas querelas e, meu Deus, não quer pensar em
todas aquelas horas e dias e semanas desperdiçados a ser primeira-
dama, fingindo que isso lhe interessava.
Esta é a sua época, o seu lugar, e imagina como teria sido para os
pescadores bascos do século XV navegar até aqui e descobrir ricos
cardumes de peixe, uma riqueza incrível e muito diferente dos seus
pesqueiros tradicionais em França e Espanha. Não vieram para
conquistar ou erguer um império – não, vieram tão-só explorar as
águas.
Um dos voluntários da escavação, um cavalheiro mais velho que
enverga jeans e uma sweatshirt cinzenta, corre para a tenda.
– Professora, estão ali dois homens à sua procura!
– Diga-lhes que se vão embora. Estou ocupada – responde.
Samantha continua a olhar fixamente para os tijolos que vão
aparecendo. Encontrar um acampamento de pescadores bascos,
aqui, no Maine… as parangonas que isso daria, os artigos que
poderia escrever, inclusive uma história do tamanho de um livro. Há
dois anos, a revista People publicou um artigo com o seu perfil
quando iniciou o trabalho de campo aqui e, de então para cá, os
meios de comunicação social deixaram-na em paz.
Mas tê-los a prestar atenção a isto, agora…
O voluntário é insistente:
– Professora Keating, eles…
Samantha ergue a mão.
– Podem esperar. Ou ir-se embora. Como queiram. Paul, estás a
fazer um bom trabalho.
Ao longe, vindos do pequeno parque de estacionamento de terra
batida, vê dois homens a correr para a tenda, passando pelas outras
duas tendas mais pequenas, as três peneiras onde a terra é
examinada à procura de artefactos, avançando na sua direção,
ambos envergando fatos cinzento-escuros com camisas brancas e
gravatas, e põe-se de pé lentamente.
Os dois usam coldres axilares.
É como se um pedaço frio desta terra do Maine lhe tivesse
penetrado no peito.
– Cameron – diz.
– Sim, professora Keating – responde a aluna, sem afastar os
olhos da História que é desenterrada à sua frente.
– Passa-se alguma coisa. Até ao meu regresso, és a responsável.
Cameron ergue a cabeça e Samantha sai para a luz do sol e o
homem corado mostra-lhe uma carteira de couro com um crachá
dourado no interior.
– Senhora Keating – diz, arfando. – Sargento-detetive Frank
Courtney, da Polícia do Estado do Maine. Tem de nos acompanhar.
Matt, pensa de imediato. Ai, Matt, que te fizeram?
– Deixe-me ir buscar a minha mala – pede, e então a voz do outro
agente fá-la imobilizar-se.
– Senhora Keating, não temos tempo. Temos de a tirar daqui –
comunica.
A pausa mais breve e terrível.
– A sua filha foi raptada.
Capítulo 32
Noroeste do New Hampshire

Mel não tem a certeza de há quanto tempo se encontra na cela da


cave, mas tem a sensação de que passaram horas. Tem sede, fome e
frio, pelo que desentalou um cobertor da cama e se enrolou nele. Está
sentada na cama, de pernas cruzadas, pensando, ouvindo e olhando.
Não há muito que ver. Já explorou a pequena divisão e, quando a
porta foi aberta, reparou que tem dobradiças no exterior e é fechada
com um cadeado. A cama, a cadeira, a mesa e o candeeiro estão
todos presos com firmeza ao solo. O mesmo se passa com a retrete
química. Não há um fio elétrico exterior que parta do candeeiro e a luz
não pode ser apagada. A dada altura, Mel sentiu a tentação de partir
a lâmpada, transformar o vidro afiado numa espécie de arma, mas
apercebeu-se rapidamente de que isso mergulharia o quarto na
escuridão total, e tal ideia fê-la estremecer.
Mexe-se na cama, a tentar analisar as coisas, tentando não se
lembrar…
A maneira divertida como Tim imitava o apresentador de The Daily
Show.
Tim a defendê-la naquela vez, na aula de História Africana.
O hábito amoroso de Tim, quando estavam sentados lado a lado
ao almoço ou no carro ou a passar o tempo e estudar, de por vezes
estender apenas a mão e fazer-lhe uma carícia terna no pescoço.
Não numa tentativa de a levar para a cama ou de lhe tirar a roupa
– não, apenas uma maneira amorosa de dizer Olha, estou aqui, diz-
me se precisares de alguma coisa.
Limpa os olhos.
Silêncio.
Está tudo demasiado silencioso.
Levanta-se da cama, põe-se em bicos de pés, inclina a cabeça
para ver se consegue ouvir alguma coisa lá em cima.
Nada.
Nem passos, nem conversas, nem portas a bater.
A sua cela está muito bem isolada.
Tira os óculos porque sabe, pela sua longa experiência, que, por
um motivo qualquer, quanto os tira, quando a sua má visão não é
corrigida, a capacidade auditiva parece melhorar.
Mas nada se altera. Não consegue ouvir nada.
Mel senta-se, faz o inventário. As suas roupas, mais nada.
Retiraram-lhe as botas de caminhada quando foi metida dentro do
SUV e, por isso, não há hipótese de usar os atacadores para fazer
um garrote qualquer para estrangular um dos tangos… como se ela o
conseguisse fazer.
Um fino fio de ouro ao pescoço, presente do pai no seu décimo
quarto aniversário.
E, na mão direita, um anel de ouro que pertenceu à avó da mãe.
Levanta-se e dá novamente a volta ao quarto. Não há sistema de
ventilação e, por isso, não poderá retirar uma grelha e rastejar para a
liberdade como em Die Hard ou noutro filme qualquer. Um tilintar,
vindo do outro lado da porta. Mel dirige-se para a cama, porém não
se senta.
Não, pensa, limpando as lágrimas e os pensamentos que teimam
em fugir para Tim.
Vai ficar de pé diante daqueles dois filhos da puta.
A porta abre-se e o homem mais velho entra, seguido pelo seu
companheiro. Traz na mão o que parece ser uma câmara de vídeo e
estende-lhe um jornal.
Ambos têm pistolas metidas em coldres, nos flancos.
– Vamos fornecer-te em breve uma refeição e água. Mas essa
refeição tem um preço – diz o mais velho.
Uma rápida explosão em árabe e o jornal é empurrado na sua
direção, um número do US Today.
O homem que empunha a câmara suspira.
– Vai ser rápido e não exige nada da tua parte além de segurares
no jornal para provares ao teu pai que estás viva no dia de hoje. Se
não cooperares, o meu primo vai… incentivar-te. Será doloroso e, no
final, vais segurar o jornal à mesma.
As suas palavras, ditas tão bem e com tanta simplicidade, como
um professor a explicar com delicadeza a diferença entre John Locke
e Karl Marx, são glaciais, magoam.
– Só isso? – pergunta.
Ele faz um aceno de cabeça.
– Sim. Nem sequer te vamos pedir que fales. Limita-te a segurar
no jornal durante um momento e depois vamos embora e serás
alimentada.
Estende a mão, agarra no jornal, pestaneja para parar as lágrimas
e em seguida abre o jornal e segura-o abaixo do queixo.
– Muito bem – diz o homem da câmara, aproximando-se, e Mel
sente que os seus dedos começam a tremer.
O papel está a abanar.
Sente-se envergonhada e assustada e porque é que este parvo
não se despacha, termina e vai embora?
– Já está – diz ele, baixando a câmara. Estende o braço e tira-lhe
o jornal das mãos. – Vais ser alimentada em breve.
– Que sorte! – ironiza. – Que é o menu? Vocês não parecem
capazes de usar sequer um micro-ondas.
O homem mais velho responde:
– Será satisfatório, prometo.
– E depois?
Ele avança até à porta, com o companheiro mesmo a seu lado.
– Depende do teu pai e de Alá. Vai receber em breve este vídeo e
uma mensagem minha.
– Que lhe vai pedir?
Ele abre a porta, sorrindo:
– Algo que o teu pai nunca me poderá dar.
A porta começa a fechar-se e Mel diz:
– Espere… espere um pouco. Posso pedir um favor?
O homem detém-se no umbral, ficando um momento em silêncio.
– Podes pedir.
Mel aponta para ele.
– Eu… tenho medo de armas. Desculpem, mas é assim. Na
próxima vez em que o senhor e o seu amigo cá vierem podem deixar
as armas lá fora, por favor?
O homem sorri e acena com a cabeça.
– Não.
Saem e trancam a porta.

Alguns minutos depois, ela está de novo em cima da cama, outra


vez de pernas cruzadas, com o cobertor sobre os ombros frios,
recordando e pensando.
Recordando um tempo, alguns anos antes, quando o pai se tornou
Presidente e houve aquelas semanas estranhas em que se mudaram
para a Casa Branca, e havia reuniões e excursões e briefings. Um
agente dos Serviços Secretos – David Stahl – chamou-a à parte e
disse: «Mel, vai ter proteção 24 horas por dia, sete dias por semana
aqui e onde quer que vá, mas pode haver um momento em que haja
um erro, uma trapalhada ou uma investida avassaladora. Pode estar
sozinha. Vamos falar sobre o que pode fazer nesse momento.»
Foi uma conversa interessante, de facto, e, embora tivesse ficado
borrada de medo com algumas das coisas que o agente Stahl dissera
que podiam acontecer, também ficou orgulhosa por, apesar de não
passar de uma adolescente, ele a tratar como adulta.
Lembra-se de tudo o que ele disse.
E agora pensa no que acabou de acontecer, e em como o pai e a
mãe vão reagir quando virem aquele vídeo e souberem o que aquele
terrorista imbecil vai exigir.
Mel esboça um sorriso.
Pelo menos, ele pareceu acreditar no que ela disse há pouco,
sobre o seu medo de armas.
É uma treta.
O pai ensinou-a a usar armas de fogo quando andava na primeira
classe e, de então para cá, já disparou tudo, desde uma pistola Ruger
.22 a uma espingarda de assalto M44 totalmente automática.
Ela sabe-o.
Mas o idiota não sabe
A pequena vitória anima-a.
Capítulo 33
Lago Marie, New Hampshire

O agente David Stahl parece bastante furioso e frustrado e não o


censuro. Estou a propor que viole todos os procedimentos e formação
que aprendeu ao longo dos anos, sendo minha função, nos próximos
segundos, abrir uma brecha nessa formação.
Tentando manter a voz calma, digo:
– Se a Mel foi raptada, haverá um pedido de resgate.
Uma parte de mim começa a rezar em silêncio, pensando, Por
favor, por favor, por favor que haja um pedido de resgate. Por favor,
que ela esteja viva. Por favor, meu Deus, ajuda-me a recuperar a
minha filha.
Porque sei que tenho inimigos por aí com memória longa e, neste
momento, um pedido de resgate é a nossa melhor opção.
Não me permitirei imaginar mais nada.
– Talvez, senhor Presidente. Mais uma vez, isto pode ser um
truque para o pôr em movimento e vulnerável, exposto a um ataque –
declara Stahl.
– Talvez, mas se houver um pedido de resgate, o FBI e a
Segurança Interna entram em campo, juntamente com todas as
forças de manutenção da ordem de Nova Inglaterra. A Samantha e eu
precisamos de saber o que se passa, qual é a exigência, que opções
há. Tenho razão, David?
Ele mantém a boca fechada, mas acena com a cabeça. Os outros
agentes dos Serviços Secretos presentes nesta sala de segurança
estão a fazer um enorme esforço para nos ignorarem. Que mudança,
que diferença. Ontem à noite, fiz um churrasco de cheeseburgers e
cachorros-quentes para esta malta, mais tarde fiz os possíveis por
lhes ganhar ao póquer e agora aquele grupo alegre e feliz
transformou-se naquilo que verdadeiramente é: homens e mulheres
treinados e dispostos a matar para me proteger.
– Isso significa reuniões, telefonemas, briefings e
videoconferências. – Faço um gesto com a mão. – Algo que não pode
acontecer nesta caixa de betão. Preciso de sair daqui, David, e já.
– Mas, senhor Presidente, eu…
Interrompo-o:
– Não sou o Presidente. A Pamela Barnes é que é. Sou apenas
um antigo Presidente, sem poder, nem influência, nem
responsabilidades. Você e os outros que aqui estão juraram proteger-
me e nunca poderei agradecer-vos o suficiente, mas não vou ficar
aqui sentado, envolto em algodão, à espera.
– Senhor, vamos receber outros ativos para o transportarmos para
um local mais seguro.
– Quanto tempo vai demorar? – pergunto. – Temos um helicóptero
a chegar, tripulado pelo FBI. Esperemos que a equipa HRT se
espalhe pelo terreno e, quando todos abandonarem o helicóptero,
você e eu e talvez outro agente metemo-nos lá dentro e partimos.
Tem uma expressão dura; eu odiaria estar sob a sua supervisão e
ser chamado ao seu pequeno escritório na minha casa para levar
uma bronca.
Mas, seja como for, vou pôr-me a andar daqui.
Olhamo-nos fixamente.
Ele é o primeiro a ceder.
– Para onde iria?
– Para o Aeroporto de Manchester – respondo. – De lá, para o
Reagan National e depois para o Saunders Hotel, em Crystal City.
– Porquê o Saunders?
– A minha campanha de reeleição ainda tem lá um escritório,
ainda estão a encaixotar a papelada e outra tralha da Comissão
Eleitoral Federal. Já foi revistado pela sua gente. E fica do outro lado
do rio, em relação a Washington DC.
– Como vai até lá?
– Preciso do meu iPhone, que está na casa.
Stahl abana a cabeça.
– Não posso abrir a porta, senhor.
– Pode, sim – retruco. – Peça à agente de serviço na casa que
traga o meu iPhone e o saco de emergência: está no primeiro armário
do meu quarto. Farei as diligências necessárias para conseguir um
voo.
Passam mais uns segundos pesados.
– Isso vai custar-me o emprego – afirma.
– Ainda tenho alguns amigos em Washington – contraponho. –
Farei o que puder para o ajudar.
Olha-me fixamente e, sem quebrar o contacto visual comigo, diz:
– Nicole.
– David – responde a agente junto à consola de comunicações.
– Contacta a Emma. Ela que traga cá o iPhone e o saco de
emergência do Harbor.
– Está bem.
O meu rosto descontrai-se um pouco e a expressão de David
também parece animar-se enquanto diz a Nicole:
– Depois, contacta a HRT. Mal desembarquem, vão levar duas
pessoas ao Aeroporto de Manchester.
– Está bem.
Aceno com a cabeça.
– Está bem – repito.
Uma pequena vitória, um pequeno passo no caminho para
encontrar a minha filha, mas vou dá-lo.
Capítulo 34
Lago Marie, New Hampshire

Seis minutos mais tarde, estou a um canto da sala de segurança


enquanto o meu destacamento continua a usar o telefone e outros
sistemas de comunicações. Há muita conversa calma, telefones a
tocar e mais mensagens de rádio crepitantes. Percorro a lista de
contactos do meu iPhone, pensando furiosamente e tendo esperança,
vendo que amigos tenho.
A verdade é que não são muitos.
Uma coisa que aprendi rapidamente na política, numa curva de
aprendizagem e tanto, foi que das pessoas que conhecemos muito
poucas vêm a ser amigos verdadeiros. A maioria das pessoas que se
conhecem na política, por mais abertos que sejam os sorrisos e
sentidos os elogios, só se interessa pelo nosso cargo e, a partir do
momento em que deixamos de o ocupar, esfuma-se.
Mas um punhado fica.
Aí está.
Trask Floyd.
Pertenceu às equipas, como eu, encontrou uma segunda carreira
como duplo em Hollywood, depois uma terceira como ator e abastado
realizador de cinema. Tornámo-nos amigos quando eu era
congressista e precisei da ajuda da Texas Film Commission.
O telefone toca uma vez e uma jovem voz masculina responde:
– Ligou para o telefone de Trask Floyd.
– Fala Matt Keating. Preciso de falar com o Trask.
Outrora, o meu nome permitiria que a famosa central telefónica da
Casa Branca me pusesse em ligação com quase toda a gente do
planeta com acesso a um telefone.
Porém, já não é assim.
– Desculpe, senhor, mas ele não está disponível.
– Onde está?
– Está a filmar uma cena, e já estamos atrasados, por isso…
Recorro à minha voz de comando.
– Miúdo, vais pôr o Trask Floyd ao telefone nos próximos sessenta
segundos ou vais arrepender-te durante os próximos sessenta anos
da tua vida. Vai.
O telefone fica em silêncio.
Passam longos segundos.
Mel, penso.
Oh, Mel, onde estás, com os diabos? Quem te apanhou?
O telefone volta à vida.
– Matt – diz Trask. – Não sei o que acabaste de dizer ao Tommy,
mas parece que alguém lhe tirou um litro de sangue.
– Onde estás?
– Em Vasquez Rocks, na Califórnia. A preparar-me para rebentar
umas merdas e fazer um filme com isso.
Califórnia, penso. Raios. Esperava que estivesse mais perto.
– Preciso da tua ajuda – acrescento.
– Toda, Matt.
O velho Trask. Sem perguntas, sem exigências, sem informações.
– De que precisas?
– Preciso de um avião no Aeroporto de Manchester, no New
Hampshire, para me levar, juntamente com um agente dos Serviços
Secretos, a Washington DC.
– Quando precisas dele?
– Há cinco minutos.
– Merda – retruca.
Consigo ouvir vozes ao fundo, do outro lado. Parece que há
pessoas no seu local de filmagem que querem que as oiça.
– Senhor Floyd…
– Trask, temos de…
– Estamos a perder o sol…
– Não desligues – diz Trask. Parece comprimir o telefone contra o
peito, ouve-se um chorrilho abafado de palavrões e depois volta ao
telefone e prossegue. – Tudo bem, já está.
Fecho os olhos aliviado.
– Não queres saber o que se passa?
– Não – responde. – Eu tenho de fazer telefonemas e tu tens de
fazer o que tens de fazer. Deus te abençoe, senhor Presidente. Tens
todo o meu apoio.

Uns minutos depois, ouço um zumbido surdo de um helicóptero


nas proximidades, um ruído que consegue penetrar no betão. Estou
junto à porta, de saco de emergência na mão, e o agente Stahl
encontra-se de pé a meu lado, segurando também um saco de lona
preta. Na outra mão, tem uma pistola SIG Sauer.
Da consola, a agente Washington anuncia:
– O Black Hawk posou.
A porta é destrancada e a agente Chin abre-a. O agente Stahl sai
primeiro e eu vou logo atrás dele. À nossa frente, no relvado que
desce até uma praia de areia na margem do lago, está pousado um
helicóptero Black Hawk, com os rotores ainda a rugir.
Uma fila de membros da famosa Equipa de Resgate de Reféns do
FBI, vestidos de preto, de capacete e botas, sai e David e eu
passamos por eles a correr, de cabeça baixa devido à agitação
provocada pela pesada hélice, com pedaços de gravilha e terra a
atingirem-nos.
Meu Deus, sou assaltado por tantas recordações de embarques
em helicópteros como este, a caminho de missões perigosas e
terríveis, mas nenhuma, nenhuma delas, tão terrível como esta.
O agente Stahl é o primeiro a entrar no helicóptero, ajuda-me a
subir e um chefe de equipa faz deslizar a porta, fechando-a.
Encaminhamo-nos para os assentos de rede e sentamo-nos, um
diante do outro.
Ambos pomos os auscultadores, embora eu não tenha nada para
dizer enquanto o Black Hawk levanta voo sobre os picos arborizados
desta parte do New Hampshire. Olho para baixo, com a raiva e o
medo a vibrarem dentro de mim, pensando A Mel pode estar ali em
baixo. A Mel pode estar mesmo debaixo de nós.
Que fazer?
Como Presidente, as únicas armas que tive perto de mim
pertenciam aos Serviços Secretos e à sua equipa de contra-ataque.
Mas, no meu saco, tenho uma pistola SIG Sauer P226 de 9
milímetros e uma espingarda automática Colt M4, desmontada, com
uma mira térmica TAWS 32 e muita munição para ambas.
Agora, sou um antigo Presidente.
Sou também um pai disposto a ir a qualquer lado, e matar todos
os envolvidos para recuperar a filha.
Capítulo 35
Sala Oval
Casa Branca

A Presidente Pamela Barnes está a tirar uma fotografia com uma


delegação da Junior Chamber of Commerce e a pensar
despreocupadamente em que cara fará hoje. Ao longo da sua carreira
na política, tomou nota em segredo das diferentes caras que faz em
diferentes ocasiões, de afetuosa e delicada a irada e difícil, e perante
este grupo de jovens está a fazer a sua cara de interessada, mas
muito cheia de quefazeres.
Dirige-se ao meio do grupo enquanto as câmaras zumbem e
clicam, e faz acenos de cabeça e ignora as perguntas que os
jornalistas acreditados na Casa Branca lhe atiram como balões de
água.
– Senhora Presidente, o presidente da Câmara dos
Representantes diz que as conversações sobre o orçamento estão
suspensas até a senhora…
– Senhora Presidente, como responde às ameaças chinesas de
encerramento do Estreito de Taiwan…
– Senhora Presidente, apesar das promessas pessoais que lhe
foram feitas, parece que o orçamento médio de defesa da NATO vai
voltar a diminuir este ano…
Mantém o sorriso fixo no rosto e um dos seus jovens funcionários
olha para o relógio, dizendo «Chega, por agora, obrigado, muito
obrigado» e abre as mãos para empurrar para a saída os jornalistas e
os membros, jovens e entusiastas, da delegação da Junior Chamber
of Commerce.
Um dos convidados adultos, uma asiática atarracada que enverga
um saia-casaco azul-escuro, deixa-se ficar para trás e estende a mão,
que Pamela aperta rapidamente.
– Obrigada por ter vindo – diz Pamela. – Espero que tenha um
bom resto de dia.
Os olhos da mulher estão marejados de lágrimas.
– Muito obrigada, muito obrigada, senhora Presidente… acredite,
estamos todos a torcer por si. Todos gostamos de si. Deus a
abençoe, senhora Presidente.
O sorriso de Pamela é verdadeiro quando estende a mão e toca
no ombro da mulher.
– Obrigada. É muito amável da sua parte – diz, e embora tenha
ficado comovida com a súbita explosão emocional da visitante,
começa a pensar rapidamente: Bem, nem todos estão a torcer por
mim, em especial o líder da Câmara, a China, a Rússia, o Irão, uma
boa parte dos meios de comunicação social e da Internet, e uma
grande parte do país que ainda não acredita que uma mulher possa
liderar o mundo livre.
Por fim, o grupo abandona a Sala Oval e o marido de Pamela,
Richard, entra, com uma pasta de arquivo encadernada a couro nas
suas mãos fortes e curtidas, e ela sente de novo aquele aumento
súbito de amor e gratidão pelo marido, conforme ele se aproxima.
Enverga o uniforme quotidiano, um fato cinzento-escuro de Savile
Row e uma gravata vermelho-escura, e antes de ela ter chegado ao
seu devido lugar – aqui, na Casa Branca – houvera comentários
desagradáveis sobre o custo dos daqueles fatos.
Na altura, Richard afirmara:
– Olhe, cresci no condado de Osceola com a roupa cheia de bosta
de vaca e agora censuram-me por poder andar limpo?
Pamela pergunta ao único homem em quem pode confiar a cem
por cento nesta cidade:
– O que vem a seguir na minha agenda?
– Cancelei tudo – responde ele, sem hesitar.
Isso apanha-a de surpresa. Depois da vitória à justa, há dois anos,
Richard chefiou a sua equipa de transição, e houve uivos de
indignação quando ela deu uma de JFK (que nomeou o irmão, Bobby,
procurador-geral) e o nomeou chefe de gabinete. Mas a sua vitória
histórica moderou os protestos e agora havia dias como este, em que
desejava estar no segundo dia do seu mandato, quando ainda havia
boa vontade.
– Que aconteceu? – pergunta, regressando à histórica secretária
Resolute, usada por tantos Presidentes do passado.
A porta da Sala Oval fecha-se e Richard senta-se a seu lado, à
secretária.
– A Mel Keating foi raptada.
– O quê? – Está espantada, estarrecida. – A filha do Matt Keating?
Preparara-se para um ataque terrorista, uma operação militar, a
morte de alguém importante… mas isto?
Richard abre a pasta de arquivo encadernada a couro.
– Há coisa de duas horas. Recebi informações do secretário
Charles, da Segurança Interna. A Mel Keating e o namorado estavam
a fazer uma caminhada nas White Mountains, a uma meia hora de
carro da casa do Matt, junto ao lago Marie. O corpo do namorado foi
encontrado num parque de estacionamento de terra batida, no início
de um carreiro. Assassinado, com um tiro na cabeça. A mochila da
Mel estava no chão, perto dele.
– Que raio… onde estavam os agentes dos Serviços Secretos que
a protegem?
– O pai já não é Presidente e a lei diz que a proteção dela termina
quando faz dezasseis anos. A Mel Keating tem dezanove.
Pamela inspira fundo.
– Algumas exigências de resgate?
– Ainda não.
– Alguma ideia de quem possa estar envolvido?
– A folha de serviço do Matt nos SEAL e o seu passado político
implicam uma longa lista de inimigos, senhora Presidente. Estou certo
de que o FBI está a reduzi-la neste momento – responde Richard.
– Que se passa agora?
– As forças locais de manutenção da ordem estão a responder.
Temos no terreno, na casa do Matt, a Equipa de Resgate de Reféns,
do FBI, e o Bureau está a enviar todos os agentes disponíveis de
Boston a Búfalo.
– Meios de comunicação social?
– Até agora, apenas uns zunzuns na Internet de que está a
acontecer algo fora do vulgar no New Hampshire, mas podes apostar
que a coisa vai rebentar muito em breve – afirma Richard. –
Devíamos pôr-te a fazer uma comunicação o mais cedo possível, a
assumir a liderança de imediato.
Pamela esfrega os olhos.
– Não devia ser a Lisa Blair a assumir o comando? As pessoas
não querem ouvir a chefe do FBI?
– Não, senhora – responde Richard, com confiança. – Se fosse
outro rapto importante, concordaria contigo. Mas não tratando-se do
rapto da filha do antigo Presidente. Tens de assumir a liderança, o
controlo, mostrar ao país que estás por cima de tudo.
Pamela acena com a cabeça. O que o seu marido e chefe de
gabinete diz faz sentido.
– Muito bem – afirma. – Quero a diretora Blair aqui o mais cedo
possível, para um briefing. Convoca também o secretário Charles e o
chefe dos Serviços Secretos, e o general Perkins e Fred Munroe.
Toda a imprensa acreditada. Oh… onde está o vice-presidente?
– Num avião, a caminho da América do Sul – responde. – Mas o
chefe do Estado-Maior e a tua conselheira de Segurança Nacional…
Tens a certeza, senhora Presidente?
– Absoluta, Richard. Que hipótese há de a Mel ter sido raptada por
uns labregos locais para receberem dinheiro? Há uma vertente de
segurança nacional e militar neste rapto e quero ter a certeza de que
fazemos planos para todas as contingências possíveis.
– A tratar disso, senhora Presidente – afirma.
Pamela abana a cabeça. Há uns anos, ela e Richard tentaram ter
filhos, em vão, e nenhum dos dois quis seguir o caminho penoso e
talvez infrutífero da fertilização in vitro. Por isso, dedicaram toda a sua
atenção às sobrinhas, sobrinhos e primos (e é espantosa a
quantidade de primos que se deram a conhecer depois de ela ter
prestado juramento!). Não consegue imaginar o horror de lhe
raptarem um filho.
– Quero falar com o Matt Keating – assevera.
– Ah, não é possível, de momento.
– Porque não, com os diabos?
– Está a bordo de um Black Hawk do FBI, a caminho do Aeroporto
de Manchester. Penso que, de lá, virá para Washington DC para estar
perto do centro de comando e saber tudo o que se passa.
– E a Samantha Keating?
– Também está a caminho.
– Muito bem, quero vê-los pessoalmente assim que possível. Sem
imprensa.
– Vou tratar disso.
Pamela pensa: Quem mais devo chamar? Tem toda a fé e
confiança na diretora do FBI, Linda Blair, apesar de ter sido nomeada
pelo antecessor de Pamela. Não há ninguém melhor neste mundo
quando se trata de resolver raptos. No entanto, o seu secretário para
a Segurança Interna é um polícia da Florida com pouca imaginação e
ela certificar-se-á de que ele vai permanecer de boca fechada e fazer
o que o FBI quiser que a Segurança Interna faça. E que tal a NSA6?
São os melhores a intercetar comunicações, e tem de se certificar de
que…
O seu marido e chefe de gabinete continua ali sentado.
Sabe, por experiência própria, que é um sinal importante.
– Que mais, Richard?
Ele fixa nela o seu olhar intenso e diz:
– Isto é uma crise, senhora Presidente. Mas também é uma
oportunidade. Estes últimos meses não têm sido bons para nós, pois
não?
– Richard, só que…
Ele interrompe-a:
– Pamela, estamos a afundar-nos, a desmoronar. A tua façanha
histórica já está no espelho retrovisor de toda a gente. Agora, há uma
oportunidade de assumir o controlo, mostrar uma verdadeira
capacidade de liderança e tomar as decisões difíceis que
impressionarão o nosso povo e outros países.
Pamela devolve o olhar do homem que ajudou a pô-la no gabinete
mais famoso do mundo.
– Que tipo de decisões difíceis, Richard?
O olhar dele é firme e calmo.
– Pamela, quando descobrires o que querem como resgate, vais
dizer não.

6
National Security Agency, Agência de Segurança Nacional. (N. do T.)
Capítulo 36
Saunders Hotel
Arlington, Virgínia

O caos reina no quinto andar do Saunders Hotel alguns minutos


antes da minha chegada e estou a fazer o meu melhor para o
transformar em caos controlado. Fomos recebidos no Aeroporto
Dulles por dois Suburban e mais três agentes dos Serviços Secretos,
vindos do escritório local em 1100 L Street NW, no distrito de
Columbia. O agente sentado a meu lado no banco traseiro do
segundo Suburban era hispânico e surpreendi-o ao perguntar:
– Agente Morales, como está? Como estão os gémeos?
Espantado, conseguiu gaguejar:
– Muito… muito bem, senhor Presidente. Estão ambos na primeira
classe, a dar dores de cabeça às freiras.
– Fazem bem – respondi, grato por ter acabado de passar um ou
dois minutos a pensar em algo para além da Mel. O agente Morales
passou seis meses na Divisão de Proteção Presidencial quando eu
era Presidente e, quando se passam quase todos os minutos de
vigília com agentes como ele, acabamos por conhecer as suas vidas,
famílias e experiências.
No quinto andar, o agente Morales está de guarda junto à porta
aberta que faz a ligação entre a suite que pertence à campanha da
minha reeleição malograda e outro quarto vazio, o que nos
proporciona mais espaço de escritório. As duas divisões estão cheias
de pessoal de segurança, gerentes e trabalhadores do hotel que
trazem mais secretárias e cadeiras e terminais informáticos, e estou a
pagar tudo isto com um cartão Visa emitido em nome do ainda
existente Comité para a Reeleição de Matthew Keating. Devo estar a
acumular uma conta danada e, na verdade, estou-me nas tintas.
As luzes brilham, os telefones tocam e há um grande ecrã de
televisão, com o som cortado, sintonizado na CNN, a estação
noticiosa que é o décimo oitavo organismo oficioso de informações
dos Estados Unidos para difundir notícias de última hora antes de
estas chegarem à Casa Branca ou ao Departamento de Estado.
De poucos em poucos segundos, ouve-se um «senhor Presidente,
senhor Presidente» – perguntas sobre arranjar mais pessoal de
secretariado, quartos suplementares para dormir, qual o tipo de café e
refeições a encomendar – e estou no centro desta maldita
tempestade, sentindo saudades da simplicidade e organização da
Sala de Crise da Casa Branca.
Quero ter pelo menos um minuto para mim, para descobrir onde
está a Samantha, e pergunto ao agente Stahl se tem mais notícias da
Polícia do Estado do New Hampshire ou do FBI, porém, sempre que
me viro, há outra pessoa à minha frente com um telemóvel ou um
computador portátil, a fazer-me uma pergunta.
– Fechem o raio da matraca, já! Todos! – berra uma voz feminina.
– Não quero ouvir nem mais um pio, seja de quem for!
Viro-me e quase desfaleço de alívio no silêncio súbito, quando
vejo Madeline Perry, a minha chefe de gabinete, avançar por ali
dentro, com os olhos a brilhar, virando a cabeça, como um desafio
evidente a que se metam no seu caminho.
Dá-me um abraço rápido.
– Oh, senhor Presidente…
Afasto-me, pestanejando por causa das lágrimas inesperadas.
– Obrigado por ter vindo tão depressa, Madeline.
Agarra-me ambas as mãos e aperta-as por breves instantes.
– Quase tive de subornar toda a gente para conseguir o melhor
voo disponível entre LaGuardia e Dulles. Alguma novidade?
– Não, que eu saiba.
Larga-me as mãos, avista o agente Stahl ao telefone e grita:
– David! Hora de se reunir comigo e o Harbor. Já.
Seguimo-la até à divisão vazia mais próxima, que por acaso é a
grande casa de banho da suite. A Madeline manda-nos entrar e,
antes de fechar a porta, diz:
– Qualquer pessoa que venha bater a esta porta vai ficar com os
dedos partidos, garanto-vos, porra!
Dentro da casa de banho, pergunta:
– Agente Stahl, quais são as últimas? Algum pedido de resgate?
– Não, que eu saiba – abana a cabeça. – As últimas são que a
HRT do FBI continua no lago Marie, todos os agentes do FBI que
possam andar pelo Noroeste estão a chegar lá, há um alerta que
abrange toda a Nova Inglaterra sobre um Cadillac Escalade que
desconfiamos que tenha sido usado no rapto da Mel e, neste
momento, todos os postos fronteiriços na Nova Inglaterra e no estado
de Nova Iorque estão a ser encerrados.
Madeleine pergunta:
– Senhor Presidente, foi contactado pela Casa Branca? O FBI? A
Segurança Interna?
– Ainda não – respondo. – Tenho estado em bastante movimento
nas últimas horas. Se parar de responder a perguntas sobre o tipo de
sistemas telefónicos a instalar, tenciono avançar, e não ficar à espera.
– Ótimo. Acredite que, quando eu sair desta divisão, ninguém o vai
incomodar. – Respira fundo, por um instante. – Ainda não vi nada nos
meios noticiosos acerca da… situação da Mel, mas isso vai mudar
muito em breve. Vou começar a trabalhar na declaração que vai
emitir. – Esforça-se por conter as emoções. – Oh, aquela pobre
rapariga.
– Agente Stahl, alguma notícia da minha mulher? – pergunto.
– Estava precisamente a receber informações atualizadas quando
a Maddie chegou, senhor Presidente. A Polícia do Estado do Maine e
agentes do escritório local de Portland meteram-na num voo da
United para Dulles, que aterrou há cerca de trinta minutos. Um
destacamento está a trazê-la para cá.
Volto a sentir algum alívio.
Preciso da Samantha.
A minha mulher, a mãe da Mel e, mais importante, a minha
parceira. Não vou conseguir passar por isto e trazer a Mel de volta
sem ela ao meu lado.
– É bom saber – digo. – Maddie, quanto tempo temos antes de a
história ser conhecida?
– Uns minutos, quando muito.
Passo uma mão pelo rosto.
– E quando o mundo souber disto, todos os loucos com um motivo
de queixa ou médiuns com visões vão começar a entupir as linhas
telefónicas e contas de e-mail do FBI, da Segurança Interna e de
todos os serviços intermédios.
Madeline acena com a cabeça.
– É verdade, senhor. Mas vamos sair daqui e deixá-lo trabalhar.
Faça os seus telefonemas antes de tudo ficar entupido com
disparates.
Estendo a mão para o puxador, mas Madeline diz:
– Não, senhor, eu saio primeiro.
Abre a porta e levanta de novo a voz:
– Oiçam, minha gente, e oiçam bem! Sou a Madeline Perry, chefe
de gabinete do Presidente Matthew Keating e todas as perguntas,
pedidos ou comunicações são encaminhados para mim e só para
mim. Perceberam? Dito de outro modo, deixem-no em paz, porra.
Vamos ficar no quarto ao lado e, se precisarem dele, vêm ter comigo.
– E depois, virando-se para mim. – Por aqui, senhor Presidente.
Sigo Madeline até à porta que dá para outra suite e o plano dela
desmorona-se de imediato quando a outra porta se abre, a Samantha
entra de rompante e, vendo-me, exclama:
– Matt!
Passam alguns segundos e dou-lhe um abraço apertado, sentindo
o cabelo dela contra o rosto, cheirando o sal e o pó do Maine e
pensando em tempos passados – a confirmação da sua gravidez, eu
de regresso da minha primeira comissão no estrangeiro, aquele dia
horrível, dois anos antes, quando a atual Presidente Barnes me
derrotou nas primárias da Califórnia – e em todos esses momentos,
não quis separar-me da Samantha.
Como agora.
Mas afasto-me, beijo-a e ela está a chorar e pergunta:
– Alguma coisa? Seja o que for?
Seguro-lhe o rosto entre as mãos e estou a pensar no que posso
dizer, quando Madeline Perry grita:
– Subam o volume! Subam o volume.
Viramo-nos todos para o televisor de ecrã plano, onde uma mulher
de aspeto familiar está sentada na mesa do pivô da CNN, umas letras
vermelhas deslizam – úLTIMA HORA – e alguém encontra finalmente o
controlo remoto e a voz da mulher ribomba na suite de hotel
apinhada.
– «… A CNN soube através de duas fontes de alto nível nas forças
federais de manutenção da ordem que Melanie Keating, a filha do
antigo Presidente Matthew Keating, foi raptada enquanto fazia uma
caminhada nas White Mountains, no noroeste do New Hampshire, e
que o seu companheiro de caminhada, do sexo masculino, foi
brutalmente assassinado…»
Capítulo 37
Monmouth, New Hampshire

A agente Corinne Bradford do Departamento de Polícia de


Monmouth estaciona o seu carro-patrulha, com dez anos, num dos
espaços reservados perto da esquadra e desliga o motor. Há minutos,
o chefe Randy Grambler ligou-lhe para o telemóvel, pedindo que
regressasse à esquadra.
Pergunta-se o que se passará para o chefe querer que ela se
apresente sem fazer qualquer comunicação através da central de
rádio normal e, por isso, espera que tenha algo que ver com o rapto
da filha do Presidente, Mel Keating.
Corinne sai do carro, com a prancheta metálica debaixo do braço,
no preciso momento em que um carro-patrulha da polícia estadual
passa a roncar na Route 3, seguido por outro do xerife do condado de
Grafton e dois Chevy Suburban pretos com luzes a piscar nas grelhas
dos radiadores e palas do para-brisas. Dois helicópteros Black Hawk
voam em direção a sul, onde fica o monte Rollins, a apenas vinte
minutos de viagem da sua nova cidade de residência.
Ainda está a habituar-se a chamar residência a este local. Há um
ano, vivia em Brockton, no Massachusetts, tinha um emprego
fantástico na Polícia do Estado de Massachusetts, até que uma série
de escândalos envolvendo o seu grupo – mas não diretamente a sua
pessoa, graças a Deus – levou a uma remodelação geral dos
estaduais e a deixou desempregada e à procura de um novo trabalho.
Que, agora, é ser polícia num departamento de três pessoas no
meio dos malditos bosques e montanhas, chefiado por um autóctone
que aparentemente é chefe desde a última idade do gelo.
Dirige-se à parte lateral de um edifício térreo de ripas brancas com
altas portadas pretas nas janelas e que representa todo o governo
local e a força de polícia de Monmouth, ocupando a referida polícia as
traseiras da cave. Corinne abre a porta pegajosa e o chefe Grambler
está sentado atrás de uma secretária de metal cinzento-fosco, com as
pernas compridas esticadas. O seu corpo, com um metro e noventa e
oito, é tão seco que parece que, se saltar uma refeição, desmaia.
Enverga o mesmo tipo de uniforme azul-escuro que Corinne porém,
no dele, os joelhos e cotovelos estão cheios de lustro devido à idade.
Faz uns rabiscos num pedaço de papel e estende-o a Corinne. Os
canos que passam por cima da sua cabeça e fazem parte da
canalização da câmara municipal chocalham quando alguém puxa o
autoclismo, no rés do chão. O escritório atafulhado do departamento
contém duas secretárias, cadeiras, armários de arquivo e caixas de
cartão cheias de velhos registos do século passado. Não há cadeia
nem cela de detenção. As poucas pessoas que Corinne prendeu
desde a sua chegada, dois meses antes, foram todas levadas para a
cadeia do condado de Grafton, em Haverhill, para serem registadas.
– Toma – diz Grambler. – Vai a casa de Yvonne Clarkson, em Mast
Road. Número quatro. Alguém lhe roubou uma coisa hoje de manhã e
ela está bastante chateada com isso.
Corinne agarra no papel, pensando: Estás a gozar? Logo no
primeiro dia aprendeu que os polícias, nesta vilória, são chamados
para tudo desde uma caixa de correio partida a um cão que se soltou
e anda a perseguir as galinhas de alguém.
– Está bem – responde. – Mas porque é que me telefonou? Teria
sido mais rápido contactar-me pela central.
Grambler sorri, põe as mãos atrás da cabeça, recosta-se para
Corinne poder ouvir tanto a sua cadeira como as suas costas a
ranger.
– A Yvonne já cá anda há muitos anos. Foi membro do conselho
municipal e pertenceu à junta de urbanismo. Muita gente não gosta
dela e, por isso, para quê dar que falar aos mexeriqueiros que
escutam as comunicações de rádio da polícia?
Olha para o endereço, dobra o papel ao meio.
– Alguma novidade sobre o rapto da Mel Keating?
– Não.
– Soube alguma coisa da polícia estadual ou do xerife do
condado?
– Népia.
Aperta o papel com força. Quando estava na Polícia do Estado do
Massachusetts, fez duas vezes parte de um destacamento de
segurança que deu assistência aos Serviços Secretos durante uma
visita presidencial e adorou a adrenalina e a azáfama de pertencer a
uma coisa maior, uma coisa importante.
– Podíamos ajudar nas buscas, sabe? – diz. – Podíamos cobrir
zonas que…
– Corinne, vai fazer o teu trabalho, está bem? – ordena Grambler,
pegando num exemplar do Union Leader. – E o teu trabalho é ir ver a
Yvonne Clarkson. Vai.

Está há vinte minutos na sala atravancada e coberta de pó de


Yvonne Clarkson, bebendo um chá que devia ser gelado, mas estava
quente, feito com pó concentrado, ouvindo as queixas de saúde da
mulher e os seus comentários políticos, antes de tentar pela quarta
vez orientar a conversa para o motivo da sua visita.
– Minha senhora, sim, terei todo o cuidado em recordar o que
disse sobre o Dr. Yahn, se algum dia for operada a um pé em
Dartmouth-Hitchcock – declara. – Mas, por favor, pode contar-me o
que aconteceu hoje de manhã?
A mulher parece estar na casa dos setenta, cabelo pintado de
preto, com sobrancelhas igualmente escuras e veste uma blusa solta
amarela e uns calções de caqui que lhe chegam aos joelhos
engelhados. As unhas dos dedos dos pés estão pintadas de
vermelho-vivo, a condizer com o batom.
– Bem, é assim – diz, suspirando com aparente frustração. –
Monmouth mudou tanto desde que vivo aqui, desde que a faculdade
e o centro médico se foram expandindo cada vez mais e obrigaram os
bons habitantes locais a sair por causa dos impostos e rendas
altíssimas. Acontecem coisas que não aconteciam, pura e
simplesmente.
– Como o quê? – pergunta Corinne pela quarta vez.
Yvonne Clarkson inclina-se para a frente e a voz torna-se um
sussurro.
– Roubo. Na verdade, furto a propriedade privada. Antigamente,
não era necessário fecharmos as portas à chave, e os carros ficavam
parados no caminho de acesso às casas com as chaves na ignição.
Mas agora já não.
– E o que foi roubado? – inquire Corinne.
– O meu jornal da manhã, foi isso. Dá para acreditar? Diretamente
da caixa de entrega.
Corinne esforça-se por manter o rosto impassível e pensa:
Quando estava em Massachusetts, fui chamada para acidentes
provocados por condução sob efeito do álcool e salvei pelo menos
duas vidas prestando primeiros socorros. Em quatro ocasiões,
mandei parar carros e o resultado foi a apreensão de pelo menos
cinquenta quilos de heroína. Uma vez passei um turno inteiro a dar
apoio numa situação de tomada armada de reféns em Melrose.
– O seu jornal? – pergunta.
– Precisamente. O meu USA Today. Começaram há pouco a
entrega domiciliária na zona e aqueles malditos ladrões levaram-no
hoje de manhã.
– Ladrões?
Um aceno de cabeça triunfal.
– Levanto-me cedo. Vi o sacaninha… desculpe a linguagem… sair
de um SUV preto e retirá-lo diretamente da caixa do jornal, na maior
das calmas.
Corinne escrevinha uns apontamentos.
– Tem a certeza?
– Absoluta – retruca a mulher. – Dois caras de cu. Um ao volante e
o outro que saiu e levou o meu jornal. Acha que consegue encontrá-
los?
Corinne tenta não suspirar.
Um jornal roubado, com um valor comercial – tenta não rir! – de
dois dólares.
– Bem, vamos tentar, de certeza, mas não temos muito a que nos
agarrar. Quero dizer, um tipo e um SUV preto.
Os lábios dela franzem-se.
– É de fora, por isso não conheceu o meu tio Caleb, pois não?
– Não, minha senhora – responde Corinne, obrigada uma vez
mais a defender-se do crime de ter nascido em Massachusetts.
– Era gerente de um dos maiores concessionários de automóveis
de Manchester – diz Yvonne Clarkson. – Double-C Fine Autos.
Trabalhei lá nos verões, durante muitos anos, a dar uma ajuda, desde
datilografar a trabalhar na secção de peças. Conhecia os carros,
então, e conheço carros agora. Posso dizer-lhe exatamente que tipo
de SUV estava diante da minha casa, hoje, de manhã cedo.
– Que tipo era?
Um aceno de cabeça, de satisfação.
– Um Cadillac Escalade deste ano. Preto. Com vidros fumados.
Capítulo 38
Sala Oval
Casa Branca

Quando a porta curva da Sala Oval se abre silenciosamente, a


Presidente Pamela Barnes levanta-se, sai de trás da secretária
Resolute e caminha ao encontro do seu antecessor, Matthew Keating,
e da mulher dele, Samantha. Ambos parecem esgotados e
perturbados e Pamela Barnes recorda por instantes um dia, quando
era governadora, em que recebeu uma delegação de pais que haviam
perdido os filhos em tiroteios. As duas pessoas que se encontram à
sua frente têm o mesmo olhar nos seus rostos pálidos.
– Matt, Samantha – diz Pamela Barnes, avançando com grandes
passadas. – Fiquei tão triste quando ouvi o que aconteceu à Mel e,
acreditem, estamos a fazer os possíveis por recuperá-la em
segurança.
Samantha Keating parece um pouco aturdida enquanto avança
com cuidado, mas o marido está com ar de quem quer matar alguém,
o olhar vivo e duro. Pamela Barnes recorda um pouco de História:
quando o Presidente William McKinley foi assassinado, o seu bom
amigo e eminência parda, o senador Mark Hanna, disse acerca de
Theodore Roosevelt: «Aquele maldito cowboy é Presidente dos
Estados Unidos!»
Há três anos, ela teve a mesma reação ao ouvir a notícia da morte
súbita do Presidente Lovering, e disse ao marido: «Aquele maldito
SEAL é Presidente agora!»
Tenta pôr tudo isso para trás das costas. Dá um abraço rápido a
Samantha, aperta a mão a Matt e condu-los aos dois sofás no centro
da Sala Oval. Estão acompanhados por Lisa Blair, a diretora do FBI, e
Paul Charles, secretário de Segurança Interna, bem como pelo
marido de Pamela Barns, Richard, e uma jovem assessora, Lydia
Wang.
Matt e Samantha sentam-se lado a lado no sofá que fica em frente
de Pamela Barnes, de mãos entrelaçadas com força, e esta diz:
– Sinto muito o que aconteceu à Mel e juro-vos que toda a força e
recursos do governo federal estão em campo para a encontrarmos sã
e salva.
Mas as palavras que o marido e a chefe de gabinete lhe disseram
antes apunhalam-na:
Pamela, quando descobrires o que querem como resgate, vais
dizer não.
Samantha acena com a cabeça ao ouvir as suas palavras
tranquilizadoras, mas Matt vai direito ao assunto.
– Diga-me o que estão a fazer.
Direto e cingindo-se ao que interessa, sem um grama de cortesia
ou delicadeza – e é por essa razão que esta agora é a minha casa e
não a tua, pensa ela.
– Diretora Blair? – inquire. – As últimas.
Lisa Blair move-se para a frente, no sofá creme, com os dedos das
mãos entrelaçados à sua frente.
– Estamos a encher a zona, senhora Presidente, e fomos inclusive
buscar agentes aos escritórios locais no Canadá. A nossa
investigação está a seguir atualmente duas vias. A primeira é falar
com colegas de faculdade, amigos, professores da Mel e com quem
vive na residência de estudantes para ver se aconteceu alguma coisa
fora do comum nas últimas semanas. Estranhos a deambular pelo
campus e a fazer perguntas sobre a Mel, assaltos ou acontecimentos
pouco habituais.
– Qual é a segunda via? – pergunta Pamela Barnes.
– Tentar encontrá-la – responde Lisa Blair. – Assumimos a
liderança e estamos a trabalhar com a Polícia do Estado do New
Hampshire e todas as forças locais de manutenção da ordem
presentes na zona, incluindo o pessoal do Departamento de Pesca e
Caça. Estão a ser instalados bloqueios em todas as estradas
secundárias e principais perto do monte Rollins e todas as casas e
empresas num raio de quarenta quilómetros do local do rapto estão a
ser investigadas e os residentes e empresários, interrogados.
Também temos unidades cinotécnicas a percorrer os trilhos de
caminhada mais populares da área.
– Quantas travessias de fronteira para o Canadá existem lá? –
pergunta Matt.
O secretário de Segurança Interna, Paul Charles, parece
surpreendido por lhe fazerem uma pergunta e Pamela Barns lamenta
uma vez mais o acordo político que o guindou ao cargo que
desempenha. Como um velho polícia, tira do bolso um bloco de
apontamentos esfarrapado, folheia-o, para numa página e diz:
– Há vinte e quatro entre o Maine e o Canadá, uma no New
Hampshire e quinze em Vermont. As nossas, hum, as unidades de
patrulha de fronteiras estão em alerta. Há um enorme engarrafamento
do trânsito que sai dos Estados Unidos e se dirige para o Canadá.
Tenho a certeza de que não haverá muitos protestos agora, mas,
senhora Presidente, vai haver uma grande gritaria se, hum, não
abrandarmos essas restrições. E em breve.
Antes de Matt poder falar, Pamela Barnes afirma:
– Agora não, Paul, agora não. Qual é a situação dos Serviços
Secretos?
Charles encolhe os ombros.
– Nada de especial. – Esboça um sorriso. – Quero dizer, é aquela
coisa de casa roubada, trancas à porta, não é? Quero dizer, o senhor
e a senhora Keating estão aqui, a residência deles no lago Marie está
a ser protegida, e a Mel… bem, só quero que fique claro desde já,
antes que avancemos, que os Serviços Secretos não eram
responsáveis pela proteção da Mel Keating. Ela tinha dezanove anos
e…
A voz de Matt, grave e fria como granito, diz:
– Ninguém está a culpar os Serviços Secretos de nada. Senhora
Presidente, posso?
– Claro, Matt, diga.
– Senhora Presidente, houve decisões judiciais recentes que
incidiram sobre o intercâmbio de informações entre o FBI e a NSA.
Um pedido oficial para a NSA intervir e ajudar o FBI vai demorar. Será
que pode pensar em emitir diretrizes e contactar o general Winship,
da NSA, de modo a obter a sua cooperação imediata?
A diretora Blair vira-se no sofá, olha para Pamela Barnes, faz um
aceno de cabeça.
– Isso podia poupar-nos algumas horas importantes, senhora
Presidente.
– Está feito – diz. – Diretora Blair, podemos…
A porta da Sala Oval abre-se suavemente e Felicia Taft, uma
jovem negra que é a vice-chefe de gabinete, entra, trazendo um
computador portátil.
Todos os ocupantes da sala se viram para ela, e a Presidente
pergunta:
– Que se passa, Felicia?
Esta dirige-se rapidamente ao centro da sala e pousa o portátil na
mesa de apoio.
– Senhora Presidente, acabámos de receber um alerta de notícias
da Al Jazeera – declara, ofegante. – Receberam um pedido de
resgate relativo à Mel Keating e planeiam difundi-lo dentro de um
minuto.
Capítulo 39
Sala Oval
Casa Branca

Continuo a agarrar a mão da Sam, porém, nesta sala familiar,


sinto-me atirado para fora do tempo, deslocado. A última vez que aqui
estive foi há um ano e meio, nas horas finais da minha presidência, e
agora regressei, não como Presidente mas como pai furioso e
assustado, ouvindo com pouca atenção a mulher à minha frente –
uma política delicada que encontrou sempre o sentido e as frases
adequadas para trepar pelo pau de sebo da carreira política – a fazer
as promessas e juras habituais.
Quero acreditar nela, porém sou demasiado experiente,
demasiado desconfiado.
Os homens e mulheres que estão no terreno, a dar o seu melhor
para encontrar a Mel – é neles que confio e acredito.
Mas os seus superiores, os diretores e burocratas com unhas
limpas e consciências manchadas?
Não tanto.
Lá fora, naqueles edifícios governamentais, há acordos a fazer,
ressentimentos a manter e, nesta crise emergente, sei que algumas
almas de coração de pedra verão tudo isto como uma oportunidade
de progresso pessoal e nada mais.
O portátil roda e olho para o ecrã e vejo um pivô de televisão, um
homem que discorre sobre o rapto da Mel, o horror que foi e a dor
que a Sam e eu devemos estar a sentir, e ignoro-o, desejando que
um produtor qualquer, lá em Doha, no Qatar, apresse aquela merda.
Sentadas comigo no sofá estão Sam e Lydia Wang, uma
assessora da Presidente. À nossa frente, encontram-se a Presidente,
a diretora Blair e o secretário Charles. O marido da Presidente está
de pé atrás dela.
O rosto do pivô desaparece.
Surge um ecrã azul.
Aparece um homem escanhoado com uma tez olivácea, cabelo
negro e uma camisa branca cuidadosamente abotoada até ao
pescoço. Ao que parece, está sentado diante de uma parede de
cimento negra. (Bom conhecimento do ofício, pensa o operacional
que existe dentro de mim, não fornecer quaisquer pormenores do
fundo que possam permitir uma identificação.) O homem faz um
aceno de cabeça, com o rosto determinado, os olhos escuros duros
como pederneira, e a sua primeira frase atinge-me como uma
pancada da coronha de uma M4 na barriga.
– Sou Asim Al-Asheed, um guerreiro de Alá, e isto é para ti,
Matthew Keating – começa. – Tenho a tua filha Melanie em meu
poder.
A Sam aperta-me a mão e geme:
– Ai, Matt, é aquele…
– Sim – respondo. Não penso, as palavras saem
automaticamente. – É o terrorista cujas filhas e a mulher foram mortas
por minha causa.
E a voz do antigo operacional sussurra-me de novo.
Independentemente do que for dito ou prometido, nunca mais
voltarás a ver a Mel.

Olho fixamente para o ecrã, mantendo-me concentrado.


Faz uma pausa e sei que o filho da mãe está a agir assim para
prolongar o sofrimento da Sam e meu.
Olho-o fixamente e é como se ele também tivesse os olhos fixos
em mim.
– A tua filha está viva – afirma. – Está bem.
E então a sua voz baixa.
– Ao contrário das minhas filhas mortas, assassinadas sob as tuas
ordens, o teu comando. Consegues imaginar a dor de um pai,
sabendo que faleceram não só a sua mulher, mas também as suas
filhas, a sua querida prole?
Parece movimentar as mãos sob o ecrã e depois mostra três
pequenas fotografias a cores de umas meninas sorridentes de cabelo
escuro e caracóis, usando roupas garridas, e diz:
– Estas são as meninas que amo. Amina, Zara e Fatima. As que
foram queimadas, esmagadas e desmembradas por ti, Matthew
Keating. Qualquer pai razoável procuraria vingança, não é? Vingança
para a morte das suas filhas.
Ergue outra fotografia, uma mulher com um xador negro, mas o
seu rosto rechonchudo e sorridente é visível.
– E a minha mulher, Layla – diz Asim. – Uma companheira e mãe
maravilhosa e devota. Tu, Matthew Keating, tens sorte: a tua mulher
ainda está viva. Sentada a teu lado neste momento, tenho a certeza.
Baixa a fotografia e parece inspirar.
– Como disse, a vingança seria um caminho lógico, não seria?
Razoável? Mas a tua filha Melanie ainda está viva. Vou prová-lo
agora.
O vídeo transforma-se em vários segundos de uma Mel
assustada, de olhos fixos na câmara, os olhos orlados de vermelho
por detrás dos óculos, o cabelo em desalinho, segurando um
exemplar do USA Today. Olho atentamente, certifico-me de que
respira, está viva. Tudo o que vejo é o seu rosto assustado mas
desafiante e o jornal debaixo do queixo.
A Sam soluça a meu lado.
O vídeo regressa a Asim Al-Asheed.
– Aí está. Com o jornal de hoje. Podes ver que neste momento
está viva e bem. Tu, Matthew Keating, mataste a minha mulher e as
minhas filhas. Provei-te que a tua filha, Melanie, ainda está viva. E
agora diz-me: quem é o verdadeiro terrorista? O verdadeiro
assassino? O verdadeiro bárbaro?
Outra pausa.
O cabrão está a atormentar-me.
– Matthew Keating: tens até ao meio-dia de amanhã para
satisfazer as seguintes exigências.
Oiço Richard Barnes sussurrar «Oh merda, lá vêm elas», e Asim
continua:
– Ao meio-dia de amanhã, hora da Costa Leste, libertarei Melanie
Keating, sã e ilesa, se forem satisfeitas estas condições.
»Primeira. A libertação de três guerreiros nossos, detidos
atualmente em condições bárbaras e desumanas naquela a que
chamam a vossa prisão de segurança máxima em Florence Colorado:
Ayaan al-Amin, Nawaf al-Khattab e Arda al-Hadid.
Guerreiros, penso a toda a velocidade e lembro-me. Assassinos
cruéis e orgulhosos de o serem, que chacinaram muitos inocentes
pela Europa e pelo Norte de África.
– Esses três homens deverão ser libertados de Florence e
transportados de avião para um aeródromo abandonado na Líbia,
coordenadas vinte e oito graus, vinte e quatro minutos e doze
segundos norte e treze graus, dez minutos e vinte e seis segundos
leste. Qualquer tentativa de os seguir ou impedir a sua viagem terá
como resultado a morte de Melanie Keating, e isso inclui vigilância
pelos vossos drones.
»Segunda. Um resgate de cem milhões de dólares em bitcoins
que deverá ser pago dentro das próximas trinta e seis horas. Acedes
a um browser Tor e inseres as letras e números seguintes na janela
do browser – Asim diz muito depressa uma série de letras e números
– e segues as instruções que aparecem. O não-pagamento do
resgate terá como resultado a morte de Melanie Keating.
Sinto o corpo da Sam a tremer ao meu lado.
– Terceira. Um perdão total e absoluto da Presidente Pamela
Barnes para todo e qualquer crime que eu possa ou não ter cometido
contra americanos nos Estados Unidos ou no estrangeiro.
Faz um sorriso entendido e agradado ao dizer aquela última.
– Se o perdão não for concedido e publicado, sabes certamente o
que acontecerá a seguir.
Faz uma pausa, olhando diretamente para o centro da lente.
– Matthew Keating – diz. – Agora, por fim, tens uma ideia, um
brevíssimo gosto do que me fizeste há uns anos.
Sorri.
– Até nos encontrarmos, talvez, Matthew Keating, ma’al-salāmah.

O vídeo termina. O pivô da Al Jazeera regressa. A Sala Oval está


silenciosa e eu quebro o silêncio.
– Aquele doido maldito – digo. – Acabou de cometer um erro
enorme.
Capítulo 40
Sala Oval
Casa Branca

Todos os que se encontram na Sala Oval se viram para mim, e


vejo uma levíssima expressão de irritação no rosto da Presidente
Barnes porque este é o espaço dela e agora todos estão a prestar-me
atenção.
– Matt – diz. – Continue.
– Acabou de nos facilitar a tarefa de o descobrirmos, e de que
maneira. Em que pé estaríamos caso se tivesse limitado a enviar-nos
um e-mail com a lista das suas exigências e a fotografia da Mel como
anexo? Não saberíamos quem era, quem estava por detrás do rapto,
ou qualquer outra coisa. Agora sabemos. A diretora Blair e todos os
nossos serviços de informações começam a ver onde está o gato.
Tenho ou não razão, diretora Blair?
– Inteira razão, senhor Presidente – responde a diretora do FBI.
A Presidente Barnes diz:
– Expliquem-me o que significa essa frase, por favor.
E o marido e chefe de gabinete acrescenta, por deferência:
– Só para termos a certeza de que estamos em sintonia.
– Ver onde está o gato significa que agora, que sabemos quem
está por detrás de rapto de Mel Keating – afirma a diretora Barnes – e
que ele nos forneceu uma fotografia, podemos analisar o trânsito de
mensagens, fotografias, cruzamentos de fronteiras. Encontrar-lhe o
rasto. Descobrir quem são os seus cúmplices e onde se encontram.
Começar a seguir pistas. Senhor Presidente, senhora Presidente, são
muito boas notícias.
Há um murmúrio de vozes e a diretora Blair prossegue:
– Senhor Presidente, preciso de lhe fazer algumas perguntas, a si
e à sua mulher.
A Samantha acena com a cabeça e eu digo:
– Força.
– Algum dos dois recebeu bilhetes ou telefonemas com ameaças,
recentemente?
– Não – digo.
– Não – responde a Samantha.
– Algum visitante inesperado ou estranho junto à casa do lago?
– Não – digo.
A diretora Blair está prestes a recomeçar a falar quando
intervenho:
– Faça a mesma pergunta à minha mulher.
– Senhor?
Numa voz lúgubre, a Samantha assevera:
– Tenho passado estes últimos meses em Hitchcock, no Maine, a
realizar uma escavação arqueológica. Ninguém me incomodou, não
houve bilhetes nem e-mails com ameaças, nem visitantes
inesperados.
Sinto-a tremer.
A diretora Blair diz:
– Se me permite, senhora Presidente, preciso de regressar à
sede. Estamos a criar uma força operacional lá e no nosso escritório
em Manchester.
– Diretora, tudo aquilo de que precisar, quando precisar, telefone-
me e ser-lhe-á dado.
A diretora do FBI começa a afastar-se dos sofás, acompanhada
por um silencioso secretário Charles e eu pergunto:
– E o seu daily brief, senhora Presidente?
Fita-me diretamente, com um olhar duro e frio, tal como aconteceu
nesta mesma sala quando me disse que ia concorrer contra mim nas
primárias do nosso partido.
– Não sei de que está a falar, Matt.
Tento ser cauteloso, ao avançar por este campo minado. Acabei
de envergonhar a líder do mundo livre diante de terceiros e isso não é
aceitável, pura e simplesmente.
– Disseram-me hoje de manhã que o daily brief ia conter
informações sobre um aumento das comunicações nos circuitos
terroristas, que indiciavam um ataque em fase de planeamento –
declaro. – Um ataque contra mim.
O marido e chefe de gabinete de Pamela Barnes não hesita um
momento:
– Quem lhe disse isso?
– Neste momento, Richard, isso não têm importância, pois não? O
que é importante é que os serviços de informações receberam
indicações de um ataque contra mim. A diretora Blair tem de tomar
conhecimento disso.
– Concordo – diz a Presidente. – Vou certificar-me de que assim é.
– Obrigado, senhora Presidente – diz a diretora Blair, que se dirige
para a porta, seguida pelo secretário Charles, Lydia Wang e Felicia
Taft, que leva o portátil. E então uma voz surpreende-me e penso que
surpreende todos os que estão na sala.
– Idiotas! – exclama a minha mulher, Samantha. – Está mesmo à
vossa frente e não conseguem ver. Estão todos enganados, incluindo
tu, Matt.
Fico surpreendido com as suas palavras duras e sei que o melhor
é ficar de boca calada.
Mas o chefe de gabinete Richard Barnes não sabe.
– Que raio quer dizer com isso, enganados? – pergunta, com as
mãos nas costas do sofá onde a mulher está sentada. – Que é que
consegue ver que mais ninguém vê?
Assisti a algumas aulas da Samantha e reparei que o rosto se lhe
ruboriza e a mandíbula assume uma determinada posição quando
está prestes a humilhar alguém.
Como agora.
– Tudo, seu idiota – retruca, e a sua voz forte não treme. – Estão a
analisar isto como se fosse um maldito ataque terrorista normal com
as exigências normais feitas por terroristas. – Inspira fundo. – Idiotas.
O Asim não está a fazer exigências ao governo dos Estados Unidos.
Revejam a mensagem. Ele está a fazer exigências ao pai da Mel
Keating. Está a submeter o meu marido a uma pressão incrível
porque quer fazer sofrer o Matt, quer que o Matt passe mais um
tempo a pensar e, acima de tudo, quer que o Matt sinta medo. Quer
que o Matt tenha uma amostra da sensação de ser impotente para
defender a família.
A Sala Oval está em silêncio e até a diretora Blair e o secretário
Charles pararam a meio caminho na carpete amarelo-clara com o
selo do Presidente no centro; estão atentos ao que a minha mulher
diz.
A Samantha olha para todos e cada um de nós e acrescenta:
– Ele quer que o Matt sinta medo. E não só medo do que o Asim
pode fazer à… – a voz da Samantha altera-se um pouco – … nossa
filha. Não, ele quer que o Matt também tenha medo do seu governo,
das pessoas em quem agora tem de confiar explicitamente para
satisfazerem essas exigências e fazer com que a Mel seja libertada.
O Matt já não é Presidente. Não tem poder, nem autoridade. Por isso,
a pergunta que faço a todos vós, boas pessoas, presentes nesta
sala… O Matt também deve ter medo de vós?
Capítulo 41
Monmouth, New Hampshire

Menos de meia hora depois da difusão do vídeo de pedido de


resgate de Mel Keating, a agente Corinne Bradford encontra o chefe
sentado num compartimento do seu segundo escritório, Karl’s Diner.
Tem as pernas compridas esticadas até meio do chão de ladrilhos e,
ao aproximar-se, Corinne vê que está em amena cavaqueira com
duas mulheres mais velhas e um homem mais velho. Os três colegas
são gente que vive desde sempre em Monmouth: respetivamente, um
membro do conselho municipal, um membro da junta de urbanismo e
um correspondente em part-time que escreve artigos para o Union
Leader estadual e alguns semanários locais.
Fazem sorrisos afetados quando Corinne se aproxima e ela
pergunta-se, durante breves instantes, que tipo de histórias é que o
chefe Grambler conta aos habitantes da vila, porque as pessoas de
fora são sempre uma boa piada para aqueles que conseguem fazer
recuar a história das suas famílias até aos primeiros colonos que
chegaram a este vale em 1785.
Uma das mulheres levanta-se, bebendo um grande gole do seu
café.
– Chefe, parece que a Corinne viu bicho. Acho que vamos deixá-lo
a sós com ela.
Há murmúrios de «obrigado» e «até logo» e Corinne senta-se em
frente ao chefe, que pergunta:
– Com fome?
– Não, chefe, nem por isso. Descobri…
– Café? Há sempre espaço para cafeína. Mary! Uma caneca para
aqui, está bem?
Corinne faz uma careta, odiando mais uma vez os agentes da
Polícia do Estado do Massachusetts que fizeram uma cagada tão
grande que a atirou para aqui, para um emprego com o triplo das
horas e metade do salário, e a trabalhar para um chefe para quem os
progressos no policiamento terminaram em 1932.
– Chefe, ouviu a notícia sobre o pedido de resgate da Mel
Keating?
– Raios – diz ele, olhando de novo para o televisor suspenso do
teto manchado, por cima do balcão dos almoços, sempre sintonizada
na FOX News. – Na última hora, não falaram senão dessa fedelha de
olhos esbugalhados. Daqui a um dia, vais ver que foi tudo arranjado.
Uma intrujice.
Uma nova caneca de café é colocada à sua frente por uma
empregada de mesa adolescente, cuja barriga de grávida quase
rebenta os botões do uniforme cor-de-rosa. O chefe Grambler bebe
um gole, faz um aceno de satisfação com a cabeça, e diz:
– Por outras palavras, notícia falsa.
Em qualquer outra altura, Corinne teria reagido à ignorância do
chefe, mas este não é um momento qualquer. Tira o iPhone do bolso,
passa por uma série de ecrãs e põe-no diante do rosto carnudo e
vermelho dele.
– Está a ver? – pergunta. – Esta é a fotografia de Mel Keating que
o raptor publicou hoje, com ela a segurar no USA Today. E, antes de
isso ser anunciado, estive em casa de Yvonne Clarkson,
precisamente como o senhor queria. E ela disse-me que, de manhã
cedo, o USA Today dela foi tirado da sua caixa de entrega de jornais
por um tipo que conduzia um Escalade.
O chefe bebe mais um gole de café e parece incomodado.
– Valha-me Deus!
– Chefe, não está a ver? Há um alerta de nível nacional para um
Escalade preto e o tipo que rouba o jornal da Yvonne estava a
conduzir um Escalade?
– Caramba, Corinne, isso parece ser aquilo a que, nas forças de
segurança, se chama um indício – diz, alegremente, e depois o seu
estado de espírito altera-se. – E depois? Começas a trabalhar nisso,
a meter o nariz nessa lura de coelho, dedicando-lhe horas
extraordinárias enquanto ignoras os teus verdadeiros deveres? Que é
que vão achar disso os membros do conselho municipal? E julgas
que alguém, entre a polícia federal, vai avançar para compensar a
vila?
– Mas, chefe, podíamos pelo menos…
Um abanão de cabeça firme, outro gole de café.
– E não, não vais passar por cima de mim para telefonar ao FBI ou
aos Serviços Secretos. Ignoram-nos sempre e chamam-nos labregos
quando lhes pedimos ajuda. Que se fodam.
Corinne sente o rosto a arder, mas espera que nenhum dos
ocupantes dos compartimentos vizinhos consiga ver ou aperceber-se
da sua humilhação.
– Mas isto é o que podes e vais fazer – diz ele. – Mete-te no teu
carro-patrulha e vai até ao parque de estacionamento da velha
estação de serviço da Esso, logo após a Saída 16. Andam muitos
repórteres de fora e agentes federais a acelerar pela I-89 para
chegarem a esta parte do mundo. Põe o radar em funcionamento. Há
boas hipóteses de obter alguma receita de multas e de eu, os
membros do conselho municipal e os contribuintes ficarmos
contentes. Percebeste?
Corinne não se dá ao trabalho de discutir, sabendo que o calhau
com olhos que tem à sua frente não vai mudar de ideias.
– Sim, chefe – retruca.
– Ótimo. Está na hora de fazeres verdadeiro trabalho policial.

Mais tarde, depois de ter passado várias vezes pela casa de


Yvonne Clarkson e pelo início do Huntsmen Trail, Corinne Bradford
circula pela Upper Valley Road, observando tudo, sabendo que está a
cerca de vinte e cinco quilómetros da saída e verdadeiramente nas
tintas para isso.
Aqui, a Upper Valley Road entronca na Route 113 e mais à frente
fica aquilo que localmente é considerado «expansão urbana»: um
McDonald’s, um Burger King, um posto de gasolina Irving e uma
agência do Citizens Bank, com um postigo paralelo à estrada.
Corinne toma uma decisão súbita e entra no parque de
estacionamento do banco.

Nove minutos depois, encontra-se no gabinete de Jackie Lynch, a


gerente da agência, que está sentada à secretária enquanto as duas
veem imagens de televisão de circuito interno do postigo da agência.
Jackie é esbelta e tem um rosto duro e um cabelo louro cortado
curto. Cada orelha tem uma meia dúzia de pequenos brincos, e ela
veste um fato antracite. Passa uma das mãos pelo tampo da
secretária brilhante e diz:
– Sabe, na verdade estou a pôr em risco o meu emprego, neste
momento, ao não seguir os canais adequados e exigir que volte com
um mandado.
– Eu sei, Jackie – retorque Corinne –, e a responsabilidade é toda
minha. O departamento agradece a sua cooperação, mas estou a
investigar uma pista relacionada com o rapto de Mel Keating. O
tempo é fundamental.
– Bem… penso que isso justifica tudo.
Corinne está de olhos fixos nas imagens a preto e branco
captadas da janela, vendo um Volkswagen carocha a chegar, a
gaveta abaixo do postigo a ser aberta, um springer spaniel inglês a
rastejar para o colo do condutor, à procura de uma guloseima e…
Está a ignorar tudo isso.
A olhar para a estrada.
Não há muito trânsito.
Passa uma furgoneta branca, a acelerar.
Um autocarro escolar amarelo.
Nada.
Uma carrinha de caixa aberta, seguida por outra e…
Corinne quase grita:
– Pare a gravação precisamente aqui. Agora!
Os dedos de Jackie batem no teclado, imobilizando um Cadillac
Escalade preto com vidros fumados, de passagem.
Olha para a hora.
Presumindo que o jornal foi roubado pelos homens que iam
naquele Escalade, dirigiram-se para norte para o Huntsmen Trail,
raptaram Mel Keating e naquele momento – com o jornal e Mel já no
carro – continuaram para norte.
A hora faz sentido.
O coração de Corinne parece inchar de satisfação.
– Jackie – pergunta –, pode dar-me uma impressão deste ecrã?
Os dedos de Jackie deslocam-se novo no teclado.
– Isto é importante, agente Bradford?
– Penso que sim. Penso mesmo que sim.
Capítulo 42
Chinatown
Nova Iorque, Nova Iorque

Jiang Lijun, do Ministério da Segurança do Estado, acreditado


oficialmente como membro da missão do seu governo junto das
Nações Unidas, está sentado num banco de jardim no Columbus
Park, junto a Mulberry Street. A seu lado, encontra-se um corpulento
e suado professor associado do John Jay College of Criminal Justice,
e Jiang está a destruir a vida deste homem patético e a adorar cada
minuto.
Zhen, a mulher de Jiang, tem um primo afastado que faz
espetáculos com o Teatro Acrobático Chinês, e Jiang sempre ficou
fascinado com a habilidade do homem na corda esticada. Embora
nunca o dissesse em voz alta a Zhen, Jiang sempre pensou que os
dois – ele e o primo dela – eram parecidos nas suas profissões:
caminhando com cuidado nas alturas, equilibrando-se para contrariar
mudanças ou rajadas repentinas de vento.
E é isso que Jiang faz neste momento: caminha nas alturas, sem
rede de proteção. O seu encontro com este homem grande devia ser
uma negociação para o convencer a transmitir informações acerca
dos seus colegas de turma quando começar a frequentar a Academia
Nacional do FBI.
Mas Jiang faz uma jogada, espremendo este homem, indo além
das suas instruções precisas. Manobrar e abrir caminho no Ministério
exige uma vontade férrea e a determinação de jogar no momento
certo e, sob a luz do sol neste pequeno parque de Nova Iorque, Jiang
sabe que essa hora chegou.
O professor, especialista em Direito, Ciências Policiais e
Administração de Justiça Penal, foi outrora vice-comandante da
Polícia de Nova Iorque e torce de novo as suas enormes mãos, com o
cabelo castanho ralo empapado de suor e colado à grande testa,
dentro de um fato bege demasiado grande e que lhe assenta mal.
– Foi um acidente, mais nada – diz, pela quinta vez. – Depois de
ter partido o tornozelo, não fui capaz de suportar a dor… e com as
medidas contra os opiáceos… não queria que as coisas ficassem fora
de controlo.
Jiang dá umas pancadinhas delicadas no ombro do homem, tendo
a sensação de acariciar um boi irracional, e comenta:
– É claro que não queria que as coisas chegassem a este ponto,
mas pagou muito dinheiro a outros fornecedores, fornecedores
ilegais. Quase cem mil dólares. Cem mil dólares que desviou dos
subsídios que recebiam do Departamento de Justiça.
O professor associado grunhe e diz:
– Por favor, por favor, pare de mo lembrar.
O meu trabalho é esse, parvo, pensa Jiang e acrescenta:
– Mas aceitou a minha proposta, não é? Fazemos com que receba
fundos secretamente, de modo a corrigir as coisas, e pode atirar as
culpas do défice de financiamento atual a um erro contabilístico. Em
troca, quando frequentar a academia do FBI em Quantico, na Virgínia,
neste outono, e receber informações sobre o novo programa de
software chamado MOGUL, transmitirá todas essas informações a
mim ou a um colega. Os meus superiores em Taipé ficarão muito
gratos.
O antigo polícia do NYPD7 ergue para ele os olhos marejados de
lágrimas:
– Mas porque é que não podem obter essas informações através
de canais normais?
Jiang sorri. O idiota que se encontra a seu lado pensa que Jiang é
um operacional dos serviços de informações daquela maldita
província separatista, Taiwan, e é por essa razão que se encontra
sempre com os seus contactos em Chinatown: embora todos o
neguem, para os funcionários da CIA e do FBI e da unidade de
combate ao terrorismo do NYPD, todos os chineses parecem iguais.
Inclusive para este ex-polícia do NYPD.
– Pequim tem meios de pressionar este país, a ONU e muitos
países. Somos pequenos, a apenas algumas milhas de distância de
milhões de comunistas e temos de fazer o que podemos para nos
protegermos. Compreende, não é verdade?
Um lento aceno de cabeça.
– Sim. Compreendo. O meu avô perdeu um pé no Reservatório de
Chosin a lutar contra os malditos comunas chinocas. Compreendo
muito bem.
Tanta compreensão. Bohai, tio de Jiang, é comandante no
Ministério de Segurança Pública em Pequim e um estudioso do
taoismo. Quando Jiang era mais novo, Bohai transmitiu-lhe os
ensinamentos do Livro da Iluminação do Sábio Imperador Guan. Por
exemplo: «É por meio da piedade filial, harmonia entre irmãos,
dedicação, honestidade, correção, sacrifício, honra e consciência de
vergonha que nos tornamos plenamente humanos.»
Este homem chorão a seu lado, antigo funcionário importante
desta cidade de mais de oito milhões de habitantes, nunca aprendeu
esses conceitos de correção, honra ou mesmo honestidade.
E foi por isso que Jiang teve tanta facilidade em controlá-lo.
Porque não é plenamente humano.
Mais uma pancadinha no ombro deste boi, enquanto o iPhone de
Jang vibra no bolso do seu casaco. Levanta-se e diz:
– Entrarei em contacto consigo no momento certo. Entretanto… é
um homem esperto. Não preciso de lhe explicar o que acontecerá se
fugir ao nosso acordo. Certo?
– Mas foi tudo um erro, não queria… – começa a argumentar.
Mas Jiang já se afasta, rapidamente, do homem patético,
procurando as mensagens no telefone, e lendo uma muito simples.

POR FAVOR NÃO CHEGUE ATRASADO AO ALMOÇO

Estuga o passo.

Para ir do Columbus Park à Missão Permanente da República


Popular da China junto das Nações Unidas, situada na East 35th
Street, costuma demorar quinze minutos de táxi, mas Jiang demora
quase uma hora a chegar lá, devido aos diversos truques do ofício
que utiliza e são conhecidos como percursos de deteção de
vigilância. Durante esses quase sessenta minutos passados a
deslocar-se até à East 35th Street, livrou-se do casaco, enfiou um
boné de beisebol com uma pala comprida e limpou alguma da
maquilhagem que lhe tornava o rosto mais escuro.
Agora, encontra-se na cave, no gabinete do seu superior, Li
Baodong, num cubo de betão sem janelas nem orifícios que
permitissem qualquer tipo de penetração por um serviço de
informações ou serviço de segurança empresarial em busca de
informações. A sala é quente e alcatifada, com plantas artificiais,
armários de arquivo fechados à chave, e Li, que pesa bem mais de
110 quilos, parece dar-se bem naquele ambiente.
Enverga uma camisa branca – suada nas axilas –, uma gravata
vermelha e calças pretas, e o seu rosto bolachudo é gordo e redondo,
realçado por um cabelo negro liso e uns óculos de aros dourados.
Entre o outro pessoal dos serviços de informações que se
encontra na missão, Li é conhecido como Pàng mógū – cogumelo
gordo –, por se sentir tão bem nesta cave, porém o seu rosto gordo e
feliz oculta uma mente acutilante e uma maneira de agir que já
mandou diversos funcionários de informações com mau desempenho
para o exílio no Chade ou no Norte do Canadá.
– Como correu o encontro? – pergunta.
Jiang senta-se numa fria cadeira de couro diante da secretária de
Li, preparando-se para o que o chefe possa dizer a seguir.
– O homem estava a desmoronar-se. Decidi dar-lhe um empurrão.
– Como?
– Fiz uma jogada. Disse-lhe que lhe daremos dinheiro para pagar
o seu desfalque e, em troca, ele passa-nos informações sobre aquele
novo programa de software, MOGUL.
Li pestaneja lentamente por detrás das lentes.
– Não era isso que se esperava que fizesses.
Jiang olha-o fixamente, pensando: Um destes dias, vou ficar com
o teu lugar porque estás demasiado gordo para ir para o terreno e
fazer o que tem de ser feito para proteger o Império do Meio. E diz:
– Surgiu uma oportunidade. Aproveitei-a. Vai ser compensadora
para nós.
– Mas se ele for ter com o FBI e confessar tudo?
– O idiota pensa que eu trabalho para os tái bāzi e, se confessar…
algo de que duvido seriamente, senhor… o ricochete será contra
Taipé e não nós.
– Isso foi perigoso – afirma Li.
– As probabilidades são a nosso favor.
– Talvez. Mas és realmente alguém que bào dàtuǐ, tenho de
reconhecer.
Bào dàtuǐ, pensa Jiang, que se aproxima das pessoas. Por outras
palavras, que procura cair nas boas graças.
Mas Li está enganado.
Jiang não procura cair nas boas graças do chefe. Está a montar-
lhe uma cilada para que seja substituído no momento certo.
– Noutras circunstâncias, camarada, reprendia-te por teres
excedido a tua autoridade, mas não tenho tempo. Apareceu uma
coisa nas notícias de hoje que te envolve. A filha do Presidente foi
raptada – diz Li.
– Pensava que a velha puta era estéril.
Li abana a cabeça.
– Não, não é dela. Do Presidente anterior, Keating. A filha
adolescente foi raptada.
Jiang está confuso, uma sensação que odeia.
– Como é que isso me envolve?
– O bandido que assumiu a autoria do rapto da rapariga é Asim Al-
Asheed – retruca Li, baixando os olhos para uma folha de papel que
tem sobre a secretária ao lado de um terminal informático seguro. –
Foi um dos teus espiões durante um determinado período, na Líbia,
não foi? E controlado por ti?
Asim, pensa Jiang. Um guerreiro competente que aceitava de bom
grado a ajuda de estrangeiros, mas era um diabo para controlar.
Jiang orgulha-se de várias coisas na sua vida: ter saído da Líbia e
não ter de voltar a encontrar-se cara a cara com aquele bárbaro é
uma delas.
Asim é apenas um instrumento, mais nada. E não é, de modo
algum, plenamente humano.
– Sim, claro – retruca Jiang. – Ajudou-nos a resolver divergências
entre tribos em vários projetos de oleodutos e expedições de
perfuração. Onde havia concorrência e caos, o Asim impôs paz para
que o nosso trabalho não fosse interrompido.
O superior franze os lábios gordos.
– «Resolver divergências». Uma bela escolha de palavras. Bem,
ele tem uma divergência com o Presidente Keating e raptou-lhe a filha
hoje de manhã, algures na província deles do New Hampshire, perto
daquela faculdade. Dartmouth.
Jiang fica em silêncio. Não tem nada a propor e, por conseguinte,
não há qualquer hipótese de dizer algo inquietante.
Bùzuō bú huì sǐ. Não te meterás em sarilhos se não procurares
sarilhos.
Li suspira.
– Tens alguma forma de contactar este Asim Al-Asheed?
Jiang pensa rapidamente. A resposta simples seria dizer não,
porque teme a ideia de voltar a entrar no mundo daquele bárbaro,
onde uma descortesia ou uma divergência de pensamento religioso
podem resultar numa garganta cortada, mas Jiang não chegou onde
chegou fazendo o que é fácil.
Vingar o pai e causar danos à nação que o matou significa correr
riscos e este é apenas o risco mais recente a enfrentar.
– Sim – diz. – Tenho.
Li acena com a cabeça, vira uma folha de papel.
– Então, fá-lo. As negociações e outras conversações com os
Americanos sobre comércio, tecnologia e relações militares estão
congeladas. Pequim procura qualquer hipótese ou oportunidade de
quebrar o impasse com os Americanos e obter uma vantagem. A
pressão e oposição que lhes fizemos não produziram os resultados
que Pequim quer. Trabalharmos para garantir o regresso, sã e salva,
da filha do antigo Presidente fará precisamente isso. Vai tornar-nos
heróis aos olhos do mundo e, o que é mais importante, do povo
comum.
– Estou a ver. Tenho de contactar Asim Al-Asheed e fazer o que
puder para que a rapariga seja libertada.
O rosto gordo de Li enrubesce.
– Não, não vais fazer isso. Vais encontrar-te pessoalmente com
essa criatura, o Asim, e convencê-lo, seja de que forma for, a libertar
a rapariga. Entendido? Pequim exige que assim seja e eu também.
Com anos de prática, Jiang mantém o rosto imóvel e suave. Está a
pensar naquelas ordens, mas também a lembrar-se de outra coisa.
De estar naquela pista varrida pelo vento, em criança, em maio de
1999, com a sua mãe que chorava, a receber a urna contendo as
cinzas do pai, morto por bombas americanas, e jurar naquele
momento e naquele lugar que dedicaria a vida a opor-se aos
Americanos.
Mesmo que isso signifique desobedecer a uma ordem direta como
esta e não erguer um dedo para evitar a morte da filha raptada do
antigo Presidente. Tudo o que prejudique e envergonhe esta nação.
– Compreendo bem – mente Jiang, delicadamente, pondo-se de
pé. – Vou começar já a trabalhar.

7
New York Police Department. (N. do T.)
Capítulo 43
Sala Oval
Casa Branca

Depois de a porta curva da Sala Oval se fechar, deixando os


quatro sozinhos, Samantha Keating olha para os rostos furiosos da
Presidente Barnes e do marido e chefe de gabinete dela, e diz:
– Então? Alguém quer responder à minha pergunta. O Matt e eu
temos alguma coisa que temer?
Com voz irada, Richard Barnes responde:
– Senhora Keating, com todo o respeito, não acredito que tenha
acabado de dizer isso!
– Richard – começa ela, sentindo o rosto aquecer –, você e eu e
todos os que nos encontramos nesta sala passámos pelos fogos, os
discursos ambíguos, as traições, para aqui chegar. Todos temos
bastante mais em comum do que gostamos de reconhecer. Aqui não
há inocentes. A pergunta que fiz era legítima. Podem responder?
Inspira fundo. As recordações do tempo passado neste lugar
desagradável, os compromissos, as discussões, as traições estão a
vir à tona. Tentou com tanta força enterrar tudo isso quando saiu
daqui há dois anos. Tem à sua frente o homem e a mulher que,
tempos antes, decidiram trair a confiança do seu marido e obrigá-lo a
abandonar o cargo.
Tudo isso lhe vem à ideia, e prossegue:
– Neste último ano e meio, regressei ao mundo real, trabalhando
com alunos que se preocupam com os seus empréstimos, as suas
notas e como irão arranjar emprego depois de licenciados. Tem sido
muitíssimo refrescante estar no meio de pessoas que não se
preocupam com sondagens, grupos de análise nem com quem está
acima de quem. Posso confiar neles. O Matt e eu podemos confiar
em vós?
A Presidente Barnes inclina-se para a frente e, com uma voz
suave, diz:
– Samantha, acredite em mim quando digo isto: toda a força do
governo federal vai trabalhar em uníssono para encontrar a Mel e
trazê-la de volta sã e salva.
Matt aperta a mão de Samantha, porém permanece em silêncio.
Esta responde:
– Então, está bem. – Continua a manter a voz controlada. –
Apesar dos meus desvios pela política, no fundo sou apenas uma
professora universitária. Não lido com especulações, apenas factos. E
queria ouvir aqui, nesta sala, que, apesar dos esforços daquele filho
da puta Asim Al-Asheed, o Matt e eu não temos nada a temer por
parte desta administração.
O marido e chefe de gabinete da Presidente assevera:
– Sem tretas, senhora Keating. A senhora e o seu marido não
deviam ter quaisquer preocupações. É assim. Não vamos abandonar-
vos. Dou-lhe a minha palavra.
Ela quase morde a língua e, em seguida, abana a cabeça.
– A sua palavra – ergue os olhos para ele. – Muito bem, Richard.
Que seja a sua palavra.
Algo nos olhos de Richard diz-lhe que ela atingiu o alvo e uma
recordação de há mais de dois anos vem à sua mente, como um
velho pesadelo que se recusa a morrer, mesmo no meio de um dia
soalheiro.
Na altura, estava a trabalhar tarde no seu escritório na Ala Leste,
quando apareceu um visitante inesperado, trazido pela sua chefe de
gabinete, June Walters, que Samantha sabia que, no fundo, desejava
que a vice-presidente de Matt o derrotasse na convenção seguinte. O
visitante identificara-se na cabina dos Serviços Secretos no portão
nordeste e, mal o seu nome lhe fora transmitido, Samantha fizera as
diligências necessárias.
Sorriu ao ver entrar o jovem que conhecia tão bem, vestido
informalmente com jeans, T-shirt verde-escura e um blusão de
cabedal curto. Samantha saiu de trás da sua secretária
desorganizada – estivera a tentar conciliar a sua agenda pessoal com
as necessidades vorazes do Comité para a Reeleição de Matthew
Keating – e estendeu-lhe a mão.
– Carl – disse-lhe. – Que bela surpresa.
– Obrigado, professora – retrucou Carl Sanchez, sentando-se
numa cadeira depois de lhe ter dado um breve aperto de mão.
Quando ensinava em Stanford, ele fora um dos seus mais espertos e
capazes alunos de pós-graduação e, ao terminar a pós-graduação,
escrevera para ele uma das suas melhores cartas de recomendação.
Samantha fez um aceno com a mão, regressou à secretária e
disse:
– De momento, não sou professora, Carl. Sou a primeira-dama da
nação… e, na maior parte dos dias, o meu único desejo é estar na
Califórnia. E você? Por favor, diga-me que está numa escola, a dar
aulas a caloiros e a supervisionar uma escavação algures.
Carl abanou a cabeça.
– Não, as coisas não correram assim, professora… hum, senhora
Keating.
– Por favor. Já passou tempo suficiente. Chame-me Samantha.
Um encolher de ombros cúmplice.
– Sabe como é. Candidatos a mais, vagas a menos, as faculdades
a reduzirem os salários, a gastarem dinheiro com administradores e
refeitórios elegantes. Lecionei durante alguns semestres como
assistente e, no meu último emprego, vivia no banco traseiro do meu
carro e tomava duche no ginásio. Então, decidi mudar de carreira e
comecei a trabalhar para o meu tio, que tem uma empresa de
segurança. Bom salário, regalias simpáticas, algumas viagens.
Samantha recordou-se dos excelentes ensaios e projetos que Carl
apresentara em Stanford, centrados na história esquecida das tribos
de índios ignoradas do condado de Siskiyou, e pensou: Que pena.
– E agora?
– Não vou fazê-la perder tempo, profe… Samantha. É assim. Há
alguns meses, estava em Macau, a supervisionar a atualização de um
sistema de segurança que a empresa do meu tio instalou num novo
casino e hotel, o Golden Palace Macau. Muito caro, destinado aos
ditos peixes graúdos, grandes apostadores.
Samantha apercebeu-se de um piscar de olhos nervoso de Carl,
mas, como boa professora que sabia que o seu aluno estava prestes
a dizer algo importante, manteve a boca calada e limitou-se a dizer:
– Continue.
Carl esfregou ambas as mãos nas pernas, inspirou fundo.
– Um dia, estava a trabalhar no centro de operações de segurança
às duas da manhã, a beber café nojento, enquanto tentava depurar
um sistema e manter debaixo de olho algumas das imagens do
circuito interno de televisão… Isto é, os peixes graúdos e outros que
têm dinheiro para comprar sistemas portáteis de interferência não
sabem que estes não funcionam com o que os Chineses têm no bolso
de trás.
– Que viu? – pergunta Samantha.
– Alguém que não devia ter visto.
– Quem?
O seu olhar percorreu o escritório atravancado, como se não fosse
capaz de a olhar nos olhos.
– O marido da vice-presidente. Aquele cowboy da Florida. Aquele
que, há pouco tempo, vendeu uma parte dos terrenos da sua quinta
para um casino.
– Richard Barnes?
Carl fixou os olhos na carpete.
– Sim. Mas não estava sozinho… estava, hum, bem, enfim, não
quero dizê-lo em voz alta. Não estava só… Entende o que quero
dizer? Fazia algo… que é ilegal em muitíssimos países.
Samantha teve a sensação de que o café que bebera para se
manter acordada estava prestes a sair-lhe do estômago embrulhado.
Carl levantou-se.
– Ele é… não gosto dele. E não gosto da mulher dele. E não gosto
do que ambos estão a fazer ao seu marido. Não está certo.
Meteu a mão no bolso, tirou um pequeno pedaço retangular de
plástico preto, pousou-o suavemente sobre uma pilha de papéis.
– Isto é para si.
Samantha olhou para o objeto como se fosse um escorpião ou um
qualquer inseto com ferrão.
– Que é, Carl?
Ele começou a abandonar o escritório.
– É uma pen drive com uma gravação do maridinho da vice-
presidente em Macau, a milhares de quilómetros da mulher e do país,
a julgar que não pode ser apanhado… e, professora Keating, use
esse vídeo no momento certo e o seu marido não tem como perder.
Apaguei a gravação na fonte e, por isso, os Chineses não a têm. Só a
senhora.
Saiu rapidamente do escritório e ela não disse palavra, ficando
apenas de olhos fixos no pequeno pedaço de metal e plástico.

Depois de terem deixado a Sala Oval, está a percorrer com Matt


um dos corredores históricos e bem mobilados do lugar que já foi a
sua casa, e diz:
– Matt, desculpa ter-me passado lá dentro.
Matt dá-lhe na mão, apertando-a com força. Estão rodeados por
agentes dos Serviços Secretos, membros do pessoal desta
administração e, enquanto avança, rígida, por este corredor familiar,
sussurra:
– Ai, Matt… onde está ela?
Uma coisa que aprendeu há muitos anos foi a nunca deixar que
eles – incluindo o seu próprio pessoal – a vissem suar ou perder a
calma em público porque os mexericos e as fugas podem chegar aos
meios de comunicação social e aos blogues vorazes. Mesmo assim,
limpa os olhos com a mão livre e as lágrimas aparecem.
Em menos de um segundo, Matt está a abraçá-la com força, as
lágrimas correm realmente enquanto pensa que a filha – a sua
menina! – está nas mãos de um monstro capaz de matar com tanta
facilidade e prazer.
– Neste momento, milhares de pessoas, em todo país, estão a
procurar a Mel – sussurra Matt. – Não estamos sós. Vamos recuperá-
la. Juro, vamos recuperá-la.
E ela remexe-se e murmura:
– Ai, Matt, a culpa é minha… minha.
Ele afasta-se devagar, passa-lhe a mão pelo cabelo, beija-lhe a
testa e retruca:
– Sam, a culpa não é tua. Como podes dizer isso? A culpa não é
tua.
Morde o lábio inferior e espreita por cima do ombro dele,
reparando que o pessoal e os agentes dos Serviços Secretos estão a
envidar todos os esforços para não olharem para eles, e pensa: Mas
a culpa é minha, Matt. Tinha na mão a chave para a tua reeleição, a
pen drive com as perversões de Richard Barnes gravadas, e não a
usei.
Não pude usá-la.
E não a usaria.
Samantha limpa os olhos, tenta sorrir ao seu marido forte e
perturbado.
– Eu sei, só que… é muito.
Mas está a pensar: Não, na altura, Matt, não queria que
ganhasses. Queria deixar esta cidade horrível e construir uma vida
nova para nós, e foi por minha culpa que não ganhaste a reeleição.
Se tivesses vencido, ainda estaríamos aqui na Casa Branca, com
toda a proteção e a Mel estaria a salvo.
– Tudo bem? – pergunta Matt, com preocupação.
Um aceno de cabeça, com os olhos ainda marejados de lágrimas.
– Sim. Vamos para o hotel.
Capítulo 44
Noroeste do New Hampshire

Mel Keating está sentada na beira da sua cama bem-feita, na sua


cela de betão, pronta para fugir, pronta para humilhar os raptores.
A primeira refeição do dia foi um prato qualquer com frango e
arroz, servido num prato de papel com uma colher e um copo de
plástico vermelho com água.
Porém, ao bebericar a água, apercebeu-se de que os raptores lhe
tinham dado acidentalmente dois copos de plástico, um metido no
outro.
Tirou o copo suplementar e escondeu-o sob a roupa de cama e
estava sentada, calma e educadamente, quando o homem mais novo
– chamado Faraj – entrou para recolher os pratos.
Um erro.
Deram-lhe uma coisa suplementar e ela vai usá-la em proveito
próprio.
Recorda de novo as instruções que recebeu do agente Stahl
durante aquelas semanas muito movimentadas em que ela, a mãe e
o pai se mudaram para a Casa Branca.

O agente dos Serviços Secretos David Stahl estava sentado numa


cadeira de madeira vulgar no seu novo quarto na Casa Branca e
disse com voz calma, mas firme:
– Outra coisa, Mel. Se for raptada, as primeiras horas são as mais
importantes.
– Porquê? – inquiriu, ainda a tentar apreender que tudo isto era
real, que já não vivia no Observatório Naval com a mãe e o pai, que o
pai era mesmo o Presidente, e agora vivia na Casa Branca.
Inacreditável!
O agente Stahl disse:
– Os primeiros minutos, as primeiras horas… são um tempo de
agitação. Os captores estarão nervosos, tensos, tentando adaptar-se
ao que acabaram de fazer. Um ou dois dias depois, já se instalaram
numa rotina, já criaram o plano horário, é a sua prisioneira. Nesse
momento, será demasiado tarde. As primeiras horas… são a sua
dádiva. Use-a.
Fizera um aceno de cabeça, assustada com o que ele havia dito,
mas tentando mesmo assim absorver tudo.
Agora, era a filha do Presidente.
– Mel – inquiriu o agente Stahl. – Algumas perguntas?
– Não, por agora.
Ele sorriu.
– Não se preocupe, as hipóteses de isso acontecer são
infinitesimamente pequenas. Mas é bom estar preparado.
Queria rir ou fazer uma piada perante a ideia de ser raptada, mas
a expressão dura nos olhos do agente do serviço secreto – tão
parecida com a do pai! – fê-la ficar de boca calada.

Mel ouve a porta ser destrancada, inspira fundo, tira os óculos


com uma mão e esfrega de novo os olhos com força, belisca as
maçãs do rosto, faz correr as lágrimas.
Os óculos são postos de novo com a sua mão livre.
Está preparada, recorda.
As primeiras horas… são a tua dádiva. Usa-a.
A porta abre-se e é outra vez o mais novo dos dois, Faraj. Entra,
trazendo um tabuleiro de plástico amarelo com um prato coberto e
outro copo de plástico vermelho. Está vestido com jeans e uma
camisa de flanela aos quadrados e tem uma pistola no coldre do seu
lado direito.
Avança para ela e Mel tosse, engasga-se e faz o seu melhor para
começar a chorar, dizendo:
– Por favor… estou tão assustada… Não me libertam? Por favor?
Tenho a certeza de que o meu pai vos dará uma recompensa!
Faraj faz um sorriso de desprezo e Mel pensa, Só mais dois
passos, mais dois passos, e eu apago-te esse maldito sorriso
escarninho da cara, idiota.

Faraj Al-Asheed aproxima-se da criancinha chorosa e pensa: Que


miúda mimada, que parva. Tem toda a vida agradável pela frente e
chora como se perdesse uma bonequinha. A sua vida tem sido
mimada e segura, sem preocupações com refeições que não
existirão, sede, roupas esfarrapadas ou a explosão súbita de uma
bomba caída do céu.
E ele? Uma vez, há anos, Faraj teve a oportunidade de fugir das
milícias e tribos que se batiam nos arredores de Trípoli e foi para
Paris e, graças à boa sorte e a ligações, passou dois semestres com
uma bolsa na escola de cinema, a École Internationale de Création
Audiovisuelle et de Réalisation, a aprender realização e produção de
filmes e efeitos especiais e querendo fazer filmes e…
– Para de chorar, rapariguinha – ordena Faraj. – O teu…
Ela levanta-se atira-lhe um líquido aos olhos, queimando-os.
Mel grita, «Não sou uma rapariguinha!» enquanto atira o líquido
fedorento no copo de plástico vermelho, uma mistura do produto
químico líquido da retrete e – uf! – a sua própria urina, à cara do
patife, mas a coisa funciona, pois o homem deixa cair o tabuleiro e
recua a cambalear. Mel não hesita e dá um pontapé forte entre as
pernas do raptor.
Este grita qualquer coisa agressiva em árabe, dobra-se sobre si
mesmo e Mel retira-lhe a pistola de 9 milímetros do coldre.
– Não te mexas! – grita, enquanto tenta passar a seu lado e
chegar àquela bela porta aberta, porém o idiota avança, tentando
bloqueá-la.
Eu avisei-te, pensa ao puxar para trás o cão da pistola e, suave e
rapidamente, prime o gatilho.
Capítulo 45
Noroeste do New Hampshire

O estalido do cão a bater na pistola espanta Mel, e com uma


ligeireza vinda da prática, de muitas idas à carreira de tiro com o pai,
puxa rapidamente a culatra atrás, tentando resolver qualquer possível
encravamento, de novo…
Clique.
Faraj põe-se de pé, sorrindo ironicamente, puxa pela fralda da
camisa de flanela, levanta-a para secar os olhos e Mel atira a pistola
inútil àquele filho da mãe sorridente, passa a correr por ele, e…
Choca de frente com Asim Al-Asheed, que a agarra pela garganta
com uma mão direita forte e começa a apertar.
Mel não consegue respirar.
Não consegue gritar.
Bate-lhe nos braços e no peito forte e no rosto e ele regressa à
cela e atira-a para cima da cama.
Mel arfa, engasga-se e leva as mãos à garganta dorida.
Um acesso de tosse fá-la dobrar-se sobre si mesma e as lágrimas
falsas de há instantes são substituídas por umas verdadeiras.
Asim está de pé junto dela e, num tom lento e ameaçador, diz:
– Miúda estúpida, pensas mesmo que eu ia deixar o meu primo
entrar aqui com uma arma carregada? Pensas?
Faraj está de pé ao lado de Asim, a sorrir embora os seus olhos
estejam vermelhos.
Asim prossegue:
– Sabemos tudo a teu respeito, como foste educada, como foste
ensinada. Sabemos que não te sentes mal perto de armas de fogo.
Sabemos que mentiste há pouco. Fazer o meu primo parecer estar
armado foi um… ardil. Sim, um ardil, para te dar esperança, para te
dar a sensação de que tinhas uma hipótese, e funcionou. Agora
sabes, Mel Keating, no teu âmago, que não podes fugir, que nunca
vais fugir e que nos pertences, na vida e na morte.
As lágrimas correm mais depressa e Mel tem de desviar o olhar.
– Para sempre – acrescenta ele.

Asim diz algumas palavras em árabe e Faraj regressa com uma


cadeira metálica articulada. Asim senta-se fixando em Mel um olhar
firme. Está contente por tudo ter corrido tão bem, contente por o seu
plano se ter desenrolado tão bem. A dada altura, ela ia tentar
apoderar-se da pistola de Faraj e fugir. Só está um pouco
surpreendido por tê-lo feito tão rapidamente.
Mel para de chorar, tira os óculos, esfrega os olhos e depois fixa-
os em Asim. Não com medo, ou tristeza, mas com provocação.
Ver o rosto determinado daquela jovem é como uma punhalada,
lembra-lhe a sua filha mais velha, Amina, que tem – tinha! – quase a
idade desta rapariga. Não existem semelhanças entre elas, nem no
cabelo nem na tez, porém a ferocidade nos seus olhos… Amina era
uma boa filha e obedecia sempre à mãe e ajudava na cozinha e a
lavar a roupa, mas havia sempre uma provocação latente naqueles
olhos.
Como nos desta jovem à sua frente, na sua posse.
– Por que razão pensas que estás aqui? – pergunta Asim.
Mel cruza os braços.
– Gosta de miúdas louras?
Contém-se, pois ouvir aquelas palavras fá-lo querer dar-lhe uma
bofetada forte na cara, deixar-lhe uma equimose na bochecha, um
lábio fendido, sangue a pingar.
– Porque és prisioneira de guerra, é por isso – diz Asim. – Uma
guerra que dura há séculos.
Mel encolhe os ombros.
– O quê, vai dar-me uma lição sobre o choque das civilizações,
Ocidente versus Oriente, islão versus cristianismo? As obras de
Samuel Huntington, prós e contras? Por favor. Já ouvi tudo isso, de
profissionais que sabem muito mais disto do que você.
Asim cerra os punhos.
– Académicos. Homens fracos. Ratos de biblioteca. Conheci-os
bem quando tinha a tua idade e frequentava a universidade, antes de
a jihad me ter chamado. Que sabem eles sobre a guerra?
– Guerra? – riposta a filha do Presidente. – Bela guerra. Decapitar
inocentes. Mandar pelos ares centros comerciais. Sacar de uma
metralhadora e disparar por uma rua de Paris. Tenho a certeza de
que, daqui a muitos anos, os poetas cantarão louvores à vossa
coragem, enfrentando as crianças desarmadas e em lágrimas.
– Que sabes tu sobre a guerra? – inquire, esforçando-se por
manter a voz calma.
– Muito. Ou já se esqueceu de quem é o meu pai e o que fazia
antes de se tornar congressista?
– O teu pai… – diz, com desprezo. – Falas em guerreiros
corajosos. Ele e os da sua laia, fortemente armados, ligados à
Internet, capazes de ver o campo de batalha graças aos vossos
satélites e drones de vigilância… que hipóteses têm guerreiros como
eu contra uma tecnologia e umas armas tão avassaladoras?
A jovem de olhos vermelhos não hesita:
– Incendiar um infantário, matando crianças que mal sabem andar
e falar… Mas que grande guerreiro.
– Sim, por mais tétrico que seja, é uma ação de guerreiro. Olha
para ti, olha para o teu pai, quando era Presidente. Quando um drone
dispara e falha um alvo, obliterando uma festa de casamento, quanto
tempo choram os inocentes, com que força exigem uma investigação
do acontecido? Ou se um soldado americano assustado, num país
estrangeiro, enfrenta uma furgoneta que não trava a tempo e
metralha o pai e a mãe e as crianças que estão lá dentro, que vos
importa isso? Não, Mel Keating, tu e o resto do teu povo limitam-se a
encolher os ombros, voltam-se para os ecrãs dos vossos telemóveis e
não prestam atenção.
Ela vai responder, mas Asim antecipa-se, brandindo a mão.
– Um país tão rico, afortunado, gordo, corrupto e ímpio. Como te
sentirias, como reagirias, Mel Keating, se estas terras fossem tão
ricas mas tão fracas que potências estrangeiras se sentissem no
direito de as percorrer com à-vontade, nomeando e depondo os
governadores do vosso Estado a seu bel-prazer, matando civis, tudo
em nome do que acham ser santo? Como te sentirias?
Há uma hesitação nos seus olhos antes fortes. Asim sente que,
por fim, se infiltra na agradável autoconfiança dela.
– Vou dizer-te como te sentirias – continua. – Sentir-te-ias
oprimida, esmagada e tu e os teus concidadãos pegariam em armas
para expulsarem esses estrangeiros das vossas terras. Fosse a que
preço fosse, por mais sangue que se derramasse.
Mel pigarreia:
– Essa é apenas uma explicação simples. Mais nada.
Asim levanta-se.
– Tu e o teu povo deviam ter seguido a filosofia do vosso sexto
Presidente. Era um homem sábio.
Mel não diz nada.
Asim sorri.
– Confusa, menina? Ousas pregar-me um sermão sobre a minha
história e crenças, mas a referência ao vosso sexto Presidente deixa-
te sem saber o que dizer? Vou ajudar-te. Foi John Quincy Adams e
disse um dia: «Os Americanos não deviam ir para o estrangeiro matar
dragões que não compreendem em nome da expansão da
democracia.» Já percebes agora? Vocês viajaram e espalharam-se
por todo o globo para matar dragões. Não fiquem surpreendidos se os
dragões devolverem a gentileza.
Mel aperta mais os braços e Asim assevera:
– Considera-te afortunada. Em qualquer outro local ou momento,
um cativo que tivesse atacado o meu primo teria sido castigado
severamente… de uma forma criativa e sangrenta. Mas para ti, Mel
Keating, a filha do Presidente, o meu único castigo é este.
Aponta para o chão, onde a comida derramada e o prato de papel
e a loiça de plástico se encontram espalhados.
– Esta é a tua refeição da noite. Vais ter de a comer do chão,
como tantas pessoas deslocadas pelo teu governo são obrigadas a
fazer.
Asim vira-se e afasta-se, mas Mel interpela-o:
– Desculpe… disse uma coisa há pouco. Que queria dizer? Acerca
de ficar comigo… para sempre. Porque disse isso? Não fez um
pedido de resgate? Não… me vai deixar partir se a exigência for
satisfeita?
Ele digita o código que destranca a porta e vira-se para ela com
um enorme sorriso.
– És uma jovem culta. Tenho a certeza de que vais entender o que
significa para sempre.
Capítulo 46
Saunders Hotel
Arlington, Virgínia

Graças aos esforços da minha muito competente e um pouco


assustadora chefe de gabinete, Madeline Perry, a minha mulher e eu
estamos de vigia na segunda suite comunicante no Saunders Hotel.
O quarto está cheio de tabuleiros de comida do serviço de quartos
que mal foram tocados, o televisor está sintonizado na CNN mas sem
som, e a Samantha está numa das duas camas, enrolada,
observando em silêncio os correspondentes e peritos que, no ecrã,
falam entre si e para os milhões de espectadores.
Desliguei o som há cerca de meia hora, depois de um pretenso
«perito» em raptos e na tomada de reféns ter afirmado
presunçosamente que, com toda a probabilidade, a nossa filha já
estava morta e a Samantha ter gritado, havendo uma corrida entre
mim e o agente Stahl para calar o maldito televisor.
Guardei silêncio, mas tomei nota do nome do homem, sabendo
que, de alguma forma, algures, ele e eu íamos ter um encontro
interessante num dia destes.
Movimento-me de cá para lá na grande suite como um animal
enjaulado e a maldita impotência é que está a dar cabo de mim.
Quando pertenci às equipas, havia treinos, planeamento, mais treinos
e depois execução. Como congressista, vice-presidente e depois
Presidente, tinha pelo menos a ilusão de que podia tomar decisões e
fazer escolhas e, na maior parte das vezes, estas eram levadas até
ao fim depois de passarem pela burocracia.
E agora?
Estou dependente de outras pessoas para a segurança da minha
filha e odeio cada segundo sombrio e assustador. Vejo o meu saco ao
canto e quase rio do patético saco de lona negra. Lá dentro, há armas
e munições, prontas para… o quê? Para apanhar o voo de regresso a
New Hampshire e avançar cegamente pelos bosques, à caça?
Oiço telefones a tocar e vozes abafadas da suite contígua, onde
Madeline Perry mantém um controlo apertado das coisas, e preciso
de continuar a confiar nela. Ela virá se houver uma novidade ou se for
preciso tomar uma decisão.
Olho para a minha mulher. Tem os olhos fechados. Parece
dormitar.
O agente Stahl está a trabalhar num computador portátil.
E eu?
Aparentemente inútil.
Deixo passar um ou dois segundos, e depois murmuro: «Reage,
florzinha!»
Se algum dos membros da minha antiga equipa pudesse, por
artes mágicas, estar aqui, ficaria chocado com o que estou a fazer.
Que é nada.
As persianas estão corridas. Olho para o ecrã e a CNN transmite
uma imagem do trânsito que se acumula num posto de controlo numa
estrada rural do New Hampshire.
Está na hora de alterar essa equação.
Dirijo-me a um canto da grande suite, onde se encontra uma zona
de trabalho com uma mesa e cadeiras, puxo do iPhone e começo a
trabalhar.

A primeira chamada é para Sarah Palumbo, vice-conselheira do


Conselho de Segurança Nacional, que me avisou, há algumas horas
e uma eternidade, do President’s Daily Brief que referia que eu era o
alvo de um aumento de conversas e interesse por parte de terroristas.
Claro.
Como muitas análises dos serviços de informações, era exata em
termos gerais embora não suficientemente específica.
Iam atingir-me, claro. Raptando a Mel.
O telefone toca uma vez, depois toca repetidamente e vai para o
voicemail.
– Fala Palumbo – diz uma voz familiar. – Sabe como isto funciona.
– Sarah, fala Matt Keating… por favor, ligue-me quando puder.
Obrigado.
Desligo.
E agora, a quem?
Poderia telefonar a outras pessoas que conheço, nas forças de
manutenção da ordem em Washington DC e nas forças armadas, que
estão a esforçar-se ao máximo por encontrar a Mel, mas que lucraria
com isso, a não ser afastá-las do seu trabalho? E talvez irritar a
Presidente Barnes e a sua gente, num momento em que não posso
dar-me ao luxo de o fazer?
Está na hora de recorrer ao estrangeiro.
Olho para o relógio, surpreendido por ver que é de madrugada.
Mas, na verdade, não devia estar surpreendido. Quando fazia
parte das equipas, no meio do planeamento ou execução de uma
operação, conseguia aguentar-me facilmente com quatro horas de
sono diárias, e Deus sabe que me encontro no meio de uma
operação.

Tenho de fazer dois telefonemas e decido começar pelo mais


difícil.
Como congressista, vice-presidente e Presidente, conheci muitos
líderes, militares e funcionários de serviços de informações
estrangeiros, e seus variados assessores e conselheiros. Encontrei-
me com a maior parte para um aperto de mão e um sorriso no meu
gabinete, ou depois na Sala Oval, e mais nada, mas por vezes
estabelece-se uma ligação, uma compreensão súbita de que
poderíamos colaborar com aquele homem ou mulher de um governo
estrangeiro que conhece as questões e sabe como fazer as coisas.
Isso leva a canais alternativos, linhas de comunicação oficiosas e
negociações com homens e mulheres que temos a certeza de que
não nos estão a contar patranhas.
Como o homem a quem telefono neste momento.
O telefone toca e alguém atende:
– Sim?
Temo este telefonema, mas reconheço que estou contente por
terem respondido.
– Ahmad? Fala Matt Keating.
Um suspiro do outro lado da linha, algures no deserto ou nos
arranha-céus com ar condicionado da Arábia Saudita.
– Ah, Matt, toda a minha solidariedade – diz Ahmad, na sua voz
culta com uma sugestão de sotaque britânico. – Sabes que transmito
os meus melhores votos, a ti e à Samantha, de que Melanie seja
libertada sã e salva.
– Obrigado.
Durante uns segundos, o tempo passa lentamente enquanto
Ahmad, também conhecido como major-general Ahmad Bin Nayef,
antigo vice-diretor da Direção-Geral de Informações da Arábia
Saudita, me faz esperar. Há uns anos, quando eu era um mero
congressista do Texas, soube que um dos filhos de Ahmad, que se
encontrava a fazer formação de voo na Base Aérea de Sheppard, no
condado de Winchita, estava a ser alvo de praxes mais intensas do
que as normalmente reservadas aos estrangeiros.
Pus termo àquele disparate com um telefonema para o
comandante da base e outro para o secretário da Força Aérea.
– Ahmad, por favor – digo. – Estou à espera de qualquer ajuda
que tu ou os teus colaboradores nos possam dar.
– Esse nós és tu ou os Estados Unidos?
Aperto o iPhone com mais força.
– Quem quer que consiga recuperar a minha filha.
– Ah, bem, isso apresenta uma dificuldade, como estou certo de
que sabes. A Presidente Barnes e o seu secretário de Estado não são
particularmente queridos no Reino. A sua insistência em que
alteremos o nosso governo e modo de vida para aquilo que se vê no
vosso condado de Palm Beach não foi bem recebida. O chefe do
posto da CIA e o nosso contacto no FBI pediram oficialmente a nossa
ajuda, mas há muita gente aqui em Riade que tem boa memória e o
orgulho ofendido. Sinto muito ter de o dizer, mas isso vai ter influência
na nossa ajuda.
Fecho os olhos e esfrego-os. Como o velho e matreiro Henry
Kissinger disse uma vez, «A América não tem amigos ou inimigos
permanentes, apenas interesses». E, desde que Roosevelt
concordou, em 1945, proporcionar ajuda militar à Arábia Saudita,
aquele lugar rico e inquietante tem sido um dos nossos maiores
interesses no Médio Oriente.
Eu e outros Presidentes anteriores concordamos com tudo o que
eles fazem? Claro que não, sobretudo quando se trata de direitos
humanos. Mas têm uns serviços de informações de grande alcance e
embora alguns, no Reino, tenham canalizado dinheiro para terroristas
de todo o mundo, há lá outros, amigos do Ocidente, que financiaram
missões clandestinas importantes, nossas, dos britânicos ou dos
franceses, para nos mantermos à frente daqueles que gostam de
estropiar e matar inocentes.
Como Asim.
E quando se tratou de combates sangrentos como o destinado a
deter e esmagar o ISIS, os Sauditas foram um aliado vital e
silencioso.
– Eu sei, Ahmad – retruco. – E, dentro das minhas possibilidades,
fiz o máximo por moderar as exigências e propostas da Administração
Barnes, mas não posso fazer muito. Sou um antigo Presidente e sei
como é ser-se ignorado e depreciado pela atual administração.
Ahmad, por favor: de um pai para outro pai, estou a pedir-te ajuda.
E, sem mais, Ahmad responde:
– Então, vais tê-la, meu amigo. Já fiz algumas averiguações, mas
até agora não foram encorajadoras. Essa… criatura, o Asim Al-
Asheed, é temida inclusive pelos homens mais duros do Reino. Tem
demasiado prazer em matar, usando como escudo as abençoadas
palavras do Profeta. Tem muitos amigos e agentes, uma rede
mundial, mas tenho de te dizer que há uma coisa que me perturba.
– Que é, Ahmad?
– A CIA e o FBI não insistiram connosco, têm-nos deixado
demorar, protelar – retruca. – É como se esperassem a nossa
resistência e a tivessem achado ótima. E isso, Matt, assusta-me, por
tua causa, quase tanto como Asim Al-Asheed.
Capítulo 47
Lagoa Williams
Leah, New Hampshire

Jiang Lijun do Ministério da Segurança do Estado chinês boceja


de novo, enquanto o sol começa a tornar-se visível por entre os picos
das White Mountains. Está, no seu sedan GMC alugado, à espera
neste parque de estacionamento de terra batida, junto a uma grande
massa de água na parte setentrional deste Estado do New
Hampshire.
Depois da reunião com o chefe, Li Baodong, quase todos os seus
segundos livres foram dedicados ao planeamento e execução desta
viagem. Jiang Lijun foi de carro até Newark, apanhou um voo para
Montreal, depois conduziu um carro alugado até Sherbrooke e então
outro carro alugado até aqui, a esta pequena vila. Na passagem da
fronteira, em Vermont, a fila de carros e camiões em direção ao
Canadá andava a passo de caracol, enquanto homens fardados e
com cães pareciam inspecionar tudo e todos.
No caminho para cá, helicópteros Black Hawk e outras aeronaves
foram uma presença constante no ar e teve de encostar duas vezes à
berma para deixar passar carros-patrulha que surgiram atrás de si
com luzes a piscar e sirenes.
Mas agora aguarda a chegada de Asim Al-Asheed.
Ao fintar os seus vigilantes, viajar ilegalmente para o Canadá e
reentrar também ilegalmente nos Estados Unidos, Jiang violou
inúmeros protocolos diplomáticos americanos para os representantes
chineses, e seria expulso de imediato caso fosse apanhado. E daí?
Mais uma travessia na corda bamba.
Boceja de novo, pensa na mulher, Zhen, e em como ela ficou
preocupada por ele ter de partir tão inesperadamente. Zhen é uma
mulher inteligente, sabe qual é o trabalho de Jiang, está colocada na
missão como supervisora de pessoal administrativo e, com a filha de
ambos, Li Na, nos braços, perguntara:
– Tens mesmo de ir?
Em qualquer outra altura, Jiang tê-la-ia ignorado abruptamente,
mas o pequeno vulto da filha e os seus olhos doces e inocentes… oh,
isso comoveu-o.
Talvez ser pai o esteja a mudar.
Continuaria este tipo de trabalho de campo a fazer parte do seu
futuro?
Antes, Jiang contactara Asim e ficara contente ao receber as
respostas rápidas daquele homem desprezível. O sistema para o
fazer era simples e quase indetetável. Uns anos antes, quando Jiang
controlava Asim na Líbia, criara uma conta anónima de e-mail através
de uma empresa, sediada na Suíça, que proporcionava a encriptação
mais segura do mundo, e partilhara o endereço e palavra-passe com
Asim. Usando essa conta partilhada, podiam deixar mensagens na
pasta de rascunhos do sistema de e-mail sem que ninguém, da NSA
ao Quartel-General de Comunicações do Governo da Grã-Bretanha,
visse o menor indício do que estavam a fazer.
A cada seis meses, contactava Asim, apenas para manter aberta
aquela via de comunicação, mas o último e-mail era o importante:
marcava este encontro.
Sobre o tabliê está um maço de cigarros Marlboro. Está na hora
de um cigarro. No seu gabinete da embaixada de Nova Iorque só
fuma Zhonghuas. Sai do carro e contempla o lago e o pequeno
parque. Já há visitantes, na sua maioria pescadores e crianças. Dois
homens estão inclinados sobre uma mesa de piquenique, com
chávenas de café e bolos. Adiante, noutra mesa de piquenique, há
crianças que brigam com os pais.
Piedade filial, para estes bárbaros?
Nunca.
O horror de viver num local tão vazio e arborizado.
Há uns anos, a querida mãe chorou quando ele partiu para
estudar na América. Pensava que nunca regressaria, mas não tinha
nada com que se preocupar. Na UCLA e depois na Columbia, onde
fizera o mestrado em Relações Internacionais, achara os Americanos
preguiçosos e com tendência para a dispersão, e embora
arengassem repetidamente sobre a liberdade, ele e os estudantes
chineses seus colegas eram obrigados a ouvir os Americanos
pregarem-lhe sermões.
Um dia, ao almoço, no Ferris Booth Commons em Lerner Hall,
uma circunspecta aluna de pós-graduação de Cambridge – de
Massachusetts e não de Inglaterra – começara a dar-lhe um sermão
sobre Tiananmen e só se calou quando ele lhe perguntou se tinha
sequer ouvido falar dos massacres da Kent State e Jackson State.
Uma carrinha preta de caixa aberta entra no parque com grande
ruído e estaciona perto. Um velho, curvado e com uma cana de pesca
na mão, sai lentamente da cabina. Veste uns jeans largos e um sujo
blusão amarelo, e tem na cabeça um gorro negro de tricot. Jiang lê os
autocolantes na traseira da carrinha: REGISTEM OS CRIMINOSOS E NãO
AS ARMAS. MOLON LABE (VENHAM BUSCá-LAS). TENHO MEDO DO MEU
GOVERNO.
Jiang abana a cabeça. Como é que esta gentalha indisciplinada
conseguiu fazer qualquer coisa continua a ser um mistério para ele. O
seu país só entrou na cena mundial quando o partido assumiu o
controlo em 1949. Um partido, um regime, um líder forte. Foi assim
que o seu avô passou de soldado iletrado a funcionário respeitado do
partido que conseguiu, inclusive, passar incólume pela Revolução
Cultural.
Jiang olha para o relógio. Asim está atrasado. Claro. Os homens
do Médio Oriente com que lidou ao longo dos anos podem matar
crianças, fazer explodir aviões comerciais e chacinar os clientes de
um centro comercial, mas são incapazes de saber as horas ou ser…
O velho passa a coxear, volta-se e choca com o flanco de Jiang,
deixando cair a cana de pesca.
Uma coisa dura pressiona as costelas de Jiang.
– Olá, meu velho amigo chinês – diz Asim Al-Asheed.

Asim sorri de prazer ao ver a expressão chocada no rosto de


Jiang. Asim respeita o dinheiro e as armas do homem, mas mais
nada. É um funcionário de mãos e rosto delicados, e é tudo. Não é,
de modo algum, um guerreiro que teve de lavar da própria roupa o
sangue dos inimigos.
Jiang mal reparou em Asim quando ele chegou ao volante da
malcheirosa carrinha de caixa aberta, aquela de que ele e o primo se
apoderaram dois dias antes, depois de terem matado os
contrabandistas de cigarros, nos bosques do Estado de Vermont.
Com roupas velhas, seixos nos sapatos para o fazerem coxear, um
pedaço de fita adesiva entre os ombros para o tornar corcunda e uma
mancha de tinta nas sobrancelhas para parecerem grisalhas,
enganou este funcionário dos «serviços de informações».
Asim recolhe a pistola.
– Estou aqui, Jiang Lijun. Não faças esse ar tão surpreendido. E
não me faças perder tempo. Que queres?
O chinês recupera rapidamente, sorri, acende um cigarro sem
oferecer um a Asim, que ignora o insulto, e diz:
– Parabéns, Asim. De um profissional para outro, foi uma
operação impressionante. Deve ter levado anos a preparar.
Admirável, de facto.
– Obrigado – agradece Asim. – Os meus contactos e redes são
bem pagos, estão bem preparados e há anos que se encontram no
terreno. E respondem sempre aos meus pedidos, quer se trate de
armas, dinheiro ou transportes.
– E agora, Asim?
– Conheces as minhas exigências.
Jiang encolhe os ombros.
– É um disparate e sabes que assim é. Se satisfizerem as tuas
exigências e a rapariga for libertada, os Americanos vão perseguir-te
até ao fim do mundo e matar-te. E, se não forem satisfeitas e matares
a rapariga, farão o mesmo, só que mais rapidamente. Os Americanos
são uma malta de coração mole e cabeça mole. Matar uma rapariga
só os enfurece. – Dá mais uma passa no cigarro. – Então?
– Os meus planos são meus – responde Asim. – Quais são os
teus?
Jiang deixa cair o cigarro e apaga-o com o salto do sapato.
– Oficialmente, estou aqui para te pedir… como cortesia e um
favor… que me entregues a rapariga. Alivia-te de um fardo perigoso e
ajuda o meu governo a melhorar as relações com os Estados Unidos.
Em troca, seremos muito generosos a recompensar-te, a ti e ao teu
primo. Uma bela maquia em dinheiro e uma transferência para
qualquer local seguro no mundo. Incluindo a China.
Asim sorri, abana a cabeça.
– Nesse caso, transportavas-nos para a província de Xin Jiang?
Onde viveríamos entre os nossos primos, os Uigures? E depois
seríamos internados em campos, reeducados, obrigados a trabalhar
em fábricas em regime de escravatura?
O chinês permanece silencioso, estoico, e Asim prossegue:
– Disse… oficialmente. Há uma posição não oficial?
Jiang contempla as águas calmas do lago.
– Sim.
– E?
Uma longa pausa, como se Jiang pensasse no que dizer a seguir.
A sua voz torna-se mais doce.
– Quero que sejas bem-sucedido, independentemente do que
estiveres a planear fazer. Posso fornecer-te fundos, meios de
transporte, armas. Algumas informações sobre o que os Americanos
andam a fazer. Tudo o que for preciso para humilhar esta nação.
Estou ao teu lado.
Asim reflete sobre isto.
– Porque farias isso por mim?
– Isso é comigo – retruca Jiang. – E pus a minha carreira e a
minha vida em risco ao fazer-te esta proposta. Lembra-te disso,
porque eu não me vou esquecer.
Asim pega na cana de pesca e começa a regressar à carrinha.
– Recordar-me-ei do teu risco e analisarei a tua oferta generosa e
oficiosa. Obrigado pela visita, velho amigo. Fiquemos em contacto.
Jiang abre a porta do carro.
– Sim. Fiquemos.

Dez minutos mais tarde, percorre uma estrada secundária quando,


após uma curva, se lhe depara um bloqueio de estrada feito pela
polícia. Há carros-patrulha e uma barricada de madeira pintada de
laranja e agentes com macacões pretos e capacetes e armas
automáticas.
Jiang abranda o seu GMC alugado e baixa o vidro da janela.
Aproximam-se dois homens. Um vem à porta, o outro fica atrás,
cobrindo-o com uma pistola automática.
– Carta de condução e registo, por favor – pede o que está mais
próximo. Tem o rosto corado, os olhos orlados de vermelho, como se
tivesse trabalhado demasiadas horas sem descansar.
– Com certeza, senhor agente – diz Jiang, estendendo-lhe os
documentos do aluguer do automóvel e a sua carta de condução, que
o agente analisa com atenção.
– É cidadão canadiano, senhor Yang?
– Sou.
– Tem o seu passaporte consigo?
– Certamente – retruca Jiang. – Um momento, por favor.
Estende-lhe o seu passaporte azul-escuro, cuja capa tem gravado
o escudo do Canadá, bem como PASSPORT/PASSEPORT em letras de
um amarelo berrante.
O agente inquire:
– O que vem fazer a New Hampshire, senhor Yang?
– Vou a caminho de Boston – responde, pensando que está de
novo na corda bamba e está tudo bem. – Trabalho para a Resolve
Forest Products em Montreal e estou a fazer visitas de vendas a
diversas empresas em Manchester e Boston. Quer ver o meu cartão
de visita profissional?
Um abanar de cabeça, e o passaporte e os papéis são-lhe
devolvidos.
– Não é necessário. Pode abrir a bagageira, por favor?
Puxa a alavanca que abre a bagageira e outros polícias
inspecionam-na. O homem armado que se encontra perto de si
mostra duas fotografias e pergunta:
– Viu algum destes dois homens nas suas deslocações? Por favor,
observe com atenção.
Jiang mantém o rosto inexpressivo enquanto olha para as
fotografias a cores de Asim Al-Asheed e o seu primo, Faraj, um com
barba e o outro escanhoado.
Ocorre-lhe um pensamento.
Podia dizer a estes homens que viu Asim naquela carrinha de
caixa aberta, fornecer-lhes o número da matrícula e, ao fim de uns
minutos, estabeleceriam um cordão e depois centenas, se não
milhares de polícias e investigadores do governo e das forças
armadas encheriam esta zona.
Asim seria capturado, a rapariga seria libertada, e Jiang teria
cumprido a sua missão.
A sua missão oficial. Seria felicitado, receberia uma promoção e
louvores e as relações entre a sua pátria e este país não virtuoso
talvez melhorassem.
Porém, a sua missão não oficial está mais próxima dele e é-lhe
mais querida. Por ti, pai, pensa, e por ti também, filha.
Sorri.
– Não, senhor agente, não vi esses dois homens.
– Muito bem – diz o agente, afastando-se e fazendo um sinal para
fecharem a bagageira de Jiang e afastarem a barreira. Há mais carros
em fila atrás de Jiang. – Pode seguir.
– Obrigado – retruca, dizendo para com os seus botões cào nǐ mā,
para ti e para todo este lugar imundo.
Capítulo 48
Saunders Hotel
Arlington, Virgínia

Depois de ter desligado a minha chamada para a Arábia Saudita,


espero um minuto antes de tentar a minha segunda chamada
intercontinental. Samantha – Deus a abençoe – ainda parece dormir e
dirijo-me em silêncio ao agente Stahl, que dactilografa no seu portátil
fornecido pelo governo, numa mesa redonda neste lado da suite.
Preciso que verifique uma coisa.
Mantendo a voz baixa, digo:
– David?
– Senhor Presidente?
– Tem contactos no Departamento do Tesouro?
David levanta a cabeça. Tem o cabelo revolto, o rosto pálido, os
olhos inchados e cansados.
– Claro, senhor Presidente.
– Há um fundo no Departamento do Tesouro… o Judgement Fund
– digo, recorrendo às minhas recordações de congressista que
pertenceu ao Financial Services Committee. – É uma forma fácil e
rápida de a Presidente transferir fundos, como bitcoins, para o
pagamento do resgate da Mel.
– Parece-me familiar – retruca o agente Stahl, reprimindo um
bocejo.
– Fale com os seus contactos. Descubra que medidas estão a ser
tomadas para preparar o pagamento em bitcoins.
Olho para o relógio, com o coração a parecer de chumbo. Só
faltam sete horas para a hora-limite do resgate.
– Vou tratar disso, senhor Presidente – diz David.

Volto para a minha zona de trabalho, vejo como está a Samantha.


Continua a dormir.
Espero que não se lembre dos sonhos que está a ter, sejam eles
quais forem.
Pego no meu iPhone, ligo outro número e vai para o voicemail.
– Fala Palumbo – diz a voz familiar. – Sabe como isto funciona.
Sim, penso, sei como isto funciona, sem a menor dúvida.
A vice-conselheira do Conselho de Segurança Nacional não está a
atender as minhas chamadas.

A chamada seguinte decorre sem problemas e é atendida ao


segundo toque.
– Senhor Presidente – diz a voz, com um sotaque que tem um
pouco de Brooklyn e hebraico, e que pertence a Danny Cohen, o
chefe aposentado da Mossad de Israel. – Estava à espera do seu
telefonema. Como está e como é que a sua querida mulher está a
aguentar?
– Tão bem quanto se pode esperar – respondo. – Estamos numa
suite de hotel no outro lado do rio, em frente a Washington DC,
tentando estar em cima dos acontecimentos. E Danny… como é que
a reforma o tem tratado?
Um riso baixo.
– Bem, de certa forma… já que o maior problema do dia é
encontrar uma bomba de substituição para o sistema de irrigação de
modo que o laranjal não seque. Mas… não me ligou para saber da
minha reforma. Que posso fazer por si, senhor Presidente?
– Em primeiro lugar, chame-me Matt e, em segundo… Sei que
estão em curso comunicações oficiais e trocas de informações entre
Langley e Telavive, mas há alguma coisa que possa ter ouvido
oficiosamente e me possa ser útil? Eu… não me posso limitar a ficar
sentado e esperar que tudo se resolva, Danny.
– Asim Al-Asheed foi sempre um homem duro, Matt.
– Eu sei. Um terrorista freelance sem vínculos a um Estado-nação,
como um daqueles tipos malvados que Ian Fleming costumava
inventar quando as coisas eram mais simples. E este tem uma rede
de apoiantes em todo o mundo.
– Uma boa analogia, Matt – diz Danny. – A nossa gente está a
trabalhar com afinco, muito afinco para encontrar algo sólido,
tentando ver se conseguimos seguir a pista da viagem de Asim para
os Estados Unidos e até à vossa casa. Mas ele e o primo são
cuidadosos no que fazem, usam intermediários e identidades falsas.
São frios e astutos, com aliados discretos em todo o mundo. Mas o
trabalho continua a ser feito em Telavive, posso garantir-lhe. Estão a
ser cobrados muito favores e está a exercer-se pressão.
Aceno com a cabeça. A Mossad é lendária pelo seu trabalho,
pelas suas operações de espionagem, e com boas razões. Desde o
início, um pré-requisito da sobrevivência de Israel foi saber o que os
seus inimigos andavam a tramar. E, à medida que cada vez mais
judeus chegaram a Israel, como refugiados e migrantes, idos de
países como a Rússia e o Cazaquistão, Marrocos e a Etiópia,
Estados Unidos e Canadá, Israel conseguiu estabelecer canais
alternativos e redes de recolha direta de informações, não só em
regiões mas também em nações de todo o mundo, incluindo aquelas
que desejam publicamente a sua morte.
Se existe um serviço de informações capaz de encontrar o rasto
das viagens de Asim Al-Asheed, é a antiga casa de Danny Cohen.
– Obrigado, Danny – digo. Oiço o agente Stahl, no outro lado da
sala, a falar ao telefone com alguém.
– Gostava de poder fazer mais, Matt – afirma Danny, com
compaixão –, e quem me dera ter podido fazer mais no período em
que esteve na Casa Branca. Herdou uma situação difícil, mas estou
certo de que teria feito muito mais num segundo mandato, que a
traição da sua vice-presidente lhe negou.
Danny está a ser demasiado generoso. Houve Presidentes antes
de mim que tentaram resolver as questões espinhosas que dividem
Israelitas e Palestinos e os Presidentes futuros continuarão a tentar. A
fórmula do êxito parece simples: terra em troca da paz – terra para
um Estado palestino independente, garantias de segurança para
Israel. É como a velha piada de como cozinhar um elefante. Primeiro:
pôr uma grande panela de água a ferver. A seguir: apanhar um
elefante.
Embora a violência entre Israel e os Palestinos tenha diminuído, a
possibilidade de paz que outrora parecera tão próxima desvaneceu-
se: a expansão continuada dos colonatos na Cisjordânia deixa menos
terra para um Estado palestino e a ascensão do Irão e do seu
denominado crescente xiita, que se estende a partes do Iraque, Síria,
Iémen e Bahrein, aproximou Israel dos Estados árabes sunitas, mais
preocupados com as suas relações económicas e de segurança com
Israel do que com a resolução do problema palestino. Esses fatores,
a que se junta o domínio férreo do Hamas, há mais de uma década,
sobre os palestinos de Gaza, vão atormentar quem quer que ocupe a
Sala Oval.
É claro que Danny sabe tudo isso melhor do que eu.
– Fiz o que pude com o tempo que tinha – retruco. – Que não foi
muito. Um dia destes, se a paz acontecer mesmo, serei apenas uma
nota de rodapé. Talvez nem isso.
Danny também sabe isso. O que lhe interessa é que não duvidava
do meu empenho na segurança de Israel. Com a administração atual,
não está tão certo. Quer mesmo ajudar.
– É um homem bom, senhor Presidente, e que Deus o abençoe, a
si, à Samantha e à Mel. Contactá-lo-ei se souber alguma coisa, seja o
que for.
Quando desligo a chamada com o antigo chefe da Mossad, oiço
uma praga abafada atrás de mim e viro-me. O agente Stahl está a
usar o seu portátil.
– Filhos da mãe. Filhos da mãe sem coração – sussurra.
Aproximo-me.
– David?
Tem os olhos marejados de lágrimas.
– Nada – diz, erguendo a voz. – Nada! Não há qualquer iniciativa,
nem planos, nem procedimentos a serem postos em prática para
preparar aquelas bitcoins para serem transferidas. Nada, senhor
Presidente.
Oiço um soluço atrás de mim.
Viro-me.
A Samantha está sentada na cama, com a mão no rosto.
– Eu tinha razão! Matt… tinha razão! Não vão trazer a nossa filha
de volta, pois não?
Tento não perder a cabeça.
– Não, não vão.
Tem os olhos cheios de lágrimas, mas a sua voz é forte:
– Matt, o que vamos fazer?
Olho para o agente Stahl e depois para o meu saco cheio de
armas e munições e estou totalmente alerta, consciente, todos os
meus sentidos vibram, como se estivesse prestes a entrar num Black
Hawk a meio da noite, pronto para atacar qualquer inimigo que ande
por aí.
– O que for possível – digo. – Vamos buscar a Mel.
Capítulo 49
Monmouth, New Hampshire

A agente Corinne Bradford está deitada de borco numa pequena


mata de bosque e arbustos, vigiando uma casa grande lá em baixo, a
cerca de trinta metros. Sente o solo frio e húmido contra a pele gelada
enquanto pega de novo nos binóculos, observando o pátio silencioso.
A manhã está fria e espera ansiosamente que este pequeno fio,
esta pequena pista, tenha êxito.
As horas anteriores foram passadas andando para cá e para lá na
Route 113, parando em todas as bancas de quintas, estações de
serviço e lojinhas, mostrando a fotografia do Cadillac Escalade tirada
pelo sistema de televisão de circuito interno do Citizens Bank e
dizendo a toda a gente que se tratava de uma investigação
confidencial e não poderiam contar nada ao idiota do seu chefe. Por
fim, na RJ’s Hardware, obteve um resultado.
– Sim – disse, há uma hora, Bing Torrance, o gerente da loja. – No
outro dia, vi uma coisa parecida subir por uma estrada de terra batida
até à casa dos Macomber. Sei que eles têm andado a arrendá-la,
intermitentemente, há anos, mas achei bizarro ver lá um carro
estranho porque há mais de um ano que não a arrendam.
E, portanto, ei-la aqui. Com frio e sede. O que não daria por um
café e uma sanduíche de pequeno-almoço do McDonald’s. Ou duas.
Corinne olha para o relógio.
Dentro de uma hora tem de apresentar-se ao serviço na esquadra.
Devia ir trabalhar e dizer ao chefe Grambler o que descobriu?
Claro.
Um tipo de uma loja de ferragens julgou ter visto um Cadillac
Escalade subir em direção àquela casa e eu vigiei-a durante umas
horas e não vi uma luz, uma pessoa, o que quer que fosse.
E o chefe Grambler vai pô-la no olho da rua, por insubordinação.
Corinne olha de novo pelos binóculos. Uma impressionante casa
de madeira de dois andares, castanho-escura, com uma garagem
independente para três carros. Cara. Por detrás da casa, o relvado
bem aparado desce até uma grande lagoa isolada, onde existe um
pontão fixo que entra pela água.
Olha de novo para o relógio e pensa: Raios, aconteça o que
acontecer, não me mexo. Telefono a dizer que estou doente ou coisa
que o valha. Vou ficar aqui mesmo.
Torna a baixar os binóculos e esfrega os olhos cansados e frios.
Café quente.
Porque raios não veio preparada, com um termo e talvez…
O ruído de um motor fá-la sair imediatamente do devaneio.
Os binóculos voltam às suas mãos.
O seu coração bate fortemente.
Há um espaço aberto diante da garagem de que se tem uma boa
vista e algo vem a subir a estrada de terra, e o motor está cada vez
mais ruidoso.
– Raios – sussurra.
Não é um Cadillac Escalade.
Uma carrinha de caixa aberta velha e esmurrada. Ford.
– Raios – murmura de novo.
Todo este tempo, toda esta espera, a roupa ensopada e fria, só
para ver uma velha carrinha Ford de caixa aberta.
A porta do meio da garagem sobe silenciosamente e a carrinha
entra para o espaço vazio.
Espera.
Espera aí!
Tenta acalmar a respiração, os tremores que lhe começam nos
pulsos e mãos.
No espaço do lado esquerdo da garagem encontra-se um Cadillac
Escalade preto.
O tipo da loja de ferragens tinha razão.
Espera.
Inspira fundo, várias vezes.
Movimento.
Um homem sai da garagem enquanto a porta desce lentamente
atrás dele. Tem um casaco amarelo-pálido no braço, está a esfregar a
testa com um pano e, quando baixa o pano, Corinne quase arqueja.
É o raptor terrorista.
Asim Al-Asheed.
Aqui mesmo na sua frente.

Corinne pega nos binóculos, recua lentamente até um maciço de


árvores e tira o telefone do bolso.
SEM REDE
Raios, que vá tudo para o inferno!
É uma coisa a que ainda se não habituou: as muitas zonas aqui
em cima onde não há serviço de antenas de telemóvel. É como se
tivesse sido atirada de novo para os anos noventa.
Corinne torna a olhar para o local donde veio.
Tem a sua SIG Sauer de 9 milímetros no coldre, no flanco.
Está convencida, no mais profundo do seu ser, de que a filha do
Presidente se encontra naquela casa.
Deveria tentar resgatá-la?
Agora?
Corinne sente ódio por si mesma, mas não, seria um suicídio.
Tem de contactar…
Quem?
O chefe Grambler?
Não.
Aquele idiota discutiria, desvalorizaria e desdenharia do que ela
descobriu.
Está na hora de pensar noutra pessoa. E rezar para que tenha
rede.

Alguns minutos mais tarde – graças a Deus! – consegue ter rede e


procura nos seus contactos até encontrar o nome de Clark Yates, que
esteve com ela na Polícia do Estado de Massachusetts e que teve a
sorte de escapar para a Polícia do Estado do New Hampshire antes
de a grande purga ter começado. O telefone toca.
Toca.
Toca.
– Atende, atende, atende – murmura.
– Estou?
Mergulha no alívio.
– Clark, fala Corinne Bradford.
– Corinne… porra, é cedo. Quero dizer…
– Clark – interrompe-o. – Tens de me ajudar. Sei onde se encontra
a filha do Presidente. Encontrei o raptor e vi o carro dele.
– Corinne… tens a certeza? E porque é que me estás a dizer
isso? Não devias…
– Sim, eu sei – responde, olhando em redor para as árvores, os
afloramentos de granito e o mato. – Mas o meu chefe é um idiota.
Olha, considera-a uma informação fiável. Na parte setentrional de
Monmouth, numa estrada de terra batida que tem um sinal de
madeira que diz Macomber, junto à Route 113, logo a seguir ao RJ’s
Hardware. No final da estrada de terra há uma casa de dois andares,
de estilo rural, com uma grande lagoa nas traseiras.
– Corinne…
– Eu vi-o! Vi o maldito raptor terrorista, Clark. E o Cadillac
Escalade. Juro por Deus.
Ouve qualquer coisa a restolhar por ali, provavelmente o vento a
mover as árvores altas para cá e para lá, fazendo-as esfregar-se
umas nas outras.
– Está bem – diz Clark. – Percebi. Vou começar a fazer
telefonemas. Meu Deus, espero que estejas certa.
– Também eu – retruca. – Também eu. Adeus, até mais ver. Não
me deixes ficar mal!
Corinne desliga a chamada e ouve um estalido, como se tivessem
quebrado um raminho. Olha para trás, para o homem que viu no
exterior da garagem. Avança na sua direção empunhando uma faca e
sorrindo com uma confiança tranquila.
Capítulo 50
Noroeste do New Hampshire

Mel Keating rola na cama e senta-se quando a porta da sua cela


se abre, rangendo. Não sabe bem que horas são, com aquela luz
ainda a cintilar à sua frente, e está confusa e sonolenta, mas sabe
que isto se insere no processo que têm para a acordar. Mel ouviu o
pai e os seus camaradas das equipas contarem histórias sobre o
treino SERE – survival, evasion, resistance and escape8 –, onde
aprendem a sobreviver enquanto prisioneiros de guerra. E uma parte
do SERE inclui privação do sono ou interferência com os padrões de
sono.
O mais novo, Faraj, entra, e Mel sente um forte arrepio de medo.
Tem as mãos vazias.
Não está na hora do pequeno-almoço?
Porque é que ele veio?
Sorri, com os olhos ainda ligeiramente avermelhados em virtude
do seu ataque de ontem, e Mel levanta-se, não querendo continuar
sentada, uma vítima assustada pronta para o que quer que lhe vá
acontecer.
Se o filho da puta planeia violá-la, ela vai envidar todos os
esforços para que ele falhe ou pague com arranhões, testículos
magoados ou um olho vazado.
Ele avança e faz um aceno com a cabeça.
– Tens fome? – pergunta.
– É uma rasteira? – retruca Mel.
– Uma ras… quê?
– Uma pergunta que é uma provocação. Ou um insulto e não uma
verdadeira pergunta.
Ele acena de novo com a cabeça, sorrindo.
– Não, é uma verdadeira pergunta. Mais nada. Tens fome?
A verdade é que o seu estômago já está a roncar há algum tempo
e não sabe muito bem quanto tempo passou desde que apanhou, do
chão de cimento, a sopa fria de legumes e a comeu como…
Como uma refugiada assustada e faminta.
Precisamente como Asim queria.
– Sim, tenho.
– Está na hora do pequeno-almoço – diz Faraj. – Que te apetecia?
– Tomar o pequeno-almoço no Pope’s Diner, em Spence. Vocês os
dois também podiam vir, se quisessem.
Isso diverte-o e o seu sorriso alarga-se:
– Não é possível. Fala-me do teu pequeno-almoço preferido. O
que é? Farei o melhor que puder para o preparar.
Mel responde sem pensar:
– Panquecas. Com manteiga. E xarope de ácer verdadeiro, não
aquela bodega de açúcar de cana que vendem nos supermercados. E
bacon. Extremamente estaladiço. Sumo de laranja. Café.
Faraj ouve-a e comenta:
– Sabes o que queres.
– É… – a sua voz anima-se. – O meu pai gosta de me preparar o
pequeno-almoço aos domingos. E também para os agentes dos
Serviços Secretos que estão em nossa casa. E… por vezes vai às
cidades das proximidades, e ajuda as igrejas locais quando servem
brunches de domingo aos fiéis.
– Nunca tinha ouvido isso – retruca Faraj.
Mel cruza os braços, desejando que os seus olhos parem de
chorar.
– Porque ele não publicita, não autoriza a cobertura mediática.
Limita-se… a fazê-lo.
– És uma menina com sorte.
– Não sou uma menina – retruca. – E sim, eu sei, tenho sorte. E
se me vais pregar um sermão sobre a sorte que tenho porque vivo no
Ocidente, porque não tenho medo de passar fome nem de adoecer
sem tratamentos, podes ficar calado. Já ouvi isso tudo.
O rosto de Faraj fica tenso.
– Não, não era isso que ia dizer. Estás enganada.
– Ah sim?
– Ouviste falar de uma prisão em Trípoli? Chamada Abu Salim? –
inquire o seu raptor.
– Não – responde Mel, pensando: Porquê o constrangimento?
Porquê a troça? Desembucha.
– A mais famosa e diabólica de todas as prisões do meu país – diz
Faraj, com voz doce. – Era lá que aquele cão vadio, aquele
coronelzinho, aquele doido mascarado, encarcerava quem se opunha
a ele, ou o insultava, ou apenas porque lhe dava na veneta que um
homem devia ser castigado. Em 1996, os detidos revoltaram-se e
mais de mil e duzentos foram massacrados. E, depois de os corpos
terem sido trazidos cá para fora e o sangue lavado, continuou tudo
igual.
Mel vê o rosto do jovem mudar à sua frente, do que era – um
terrorista, assassino e raptor – para um filho oprimido por
recordações.
– Não conheci a minha mãe – continua. – O meu pai, Hassan,
tinha uma loja de chá em Trípoli… e lembro-me dele a dar-me doces
ao final do dia, aqueles que não conseguia vender. E quando eu tinha
cinco ou seis anos, foi levado para Abu Salim e nunca saiu.
Mel quer dizer alguma coisa, no silêncio que se segue na sua cela
de betão, mas não consegue encontrar as palavras.
O seu captor abana a cabeça durante um breve instante, como se
tentasse regressar ao presente.
A sua voz continua doce:
– Quando disse que tinhas sorte, foi porque conheces o teu pai e
ainda tens o teu pai. – E, virando-se, acrescenta. – O teu pequeno-
almoço estará aqui em breve.

O pequeno-almoço que Mel acabou de comer foi uma agradável


surpresa, pois foi exatamente o que pediu e, desesperadamente
faminta por ter comido a refeição fria do chão há umas horas, come
tudo até ao fim.
Ao colocar o tabuleiro no chão, boceja de súbito. Está tão
cansada.
Mel senta-se de novo na cama, torna a bocejar. Porque é que não
estaria cansada? Tem funcionado com base no choque e na
adrenalina desde que foi raptada e viu Tim ser assassinado…
Deita-se na cama. Pensa em tudo. Lembra-se de novo do agente
Stahl e do briefing na Casa Branca.
Mel retira lentamente a aliança de ouro que tem no dedo anular da
mão direita e volta-a contra a luz brilhante que nunca se apaga. As
velhas iniciais continuam visíveis no interior: DE ST PARA KM 12/10/1941.
Um presente do avô da mãe à namorada, que viria a ser sua
mulher – e avó da mãe –, depois de ele se ter alistado na Marinha,
pouco depois do ataque a Pearl Harbor.
Agarra a aliança com força no punho cerrado. Tão cansada.
8
Sobrevivência, evasão, resistência e fuga (N. do T.)
Capítulo 51
Sala Oval
Casa Branca

A Presidente Pamela Barnes diz ao secretário de Segurança


Interna e à diretora do FBI:
– São oito da manhã. Faltam quatro horas para terminar o prazo
dado por Asim Al-Asheed. Quais são as últimas?
O secretário Paul Charles vai começar a falar, mas a diretora do
FBI passa por cima dele e diz:
– Temos pelo menos cem agentes no terreno à volta do monte
Rollins, e mais em meios aéreos e a deslocarem-se de carro para lá a
cada hora que passa. Colaboram com as autoridades locais na
instalação de bloqueios de estrada, no controlo de viajantes e a
investigar possíveis pistas. O nosso problema atual é que esta zona
do New Hampshire e do vizinho Vermont é densamente arborizada,
muito rural, com muitas residências e casas isoladas, e campos de
caça, para não referir os trilhos de caminhada e estradas de terra
batida que não aparecem nos mapas nem no GPS. Foram feitas
muitas deslocações, bateu-se a muitas portas e interrogaram-se
condutores, porém, até agora, não surgiram verdadeiras pistas.
Além desses dois, a única outra pessoa presente na Sala Oval é o
marido e chefe de gabinete de Pamela Barnes, Richard. Este dissera
que não era o momento de terem assessores ou gente a tomar notas,
deixando em papel um rasto dos temas sensíveis em discussão.
– E em relação ao veículo avistado a deixar o local do rapto? O
Escalade preto? – pergunta Richard.
Lisa Blair e Charles estão sentados em cadeirões de couro diante
da secretária Resolute, enquanto o marido de Pamela Barnes está
sentado à sua esquerda, de pernas cruzadas, inclinado para diante,
impaciente.
A diretora Blair franze os lábios, furiosa.
– Essa era uma pista que esperávamos manter confidencial, mas
houve alguém que a revelou a um semanário local e essa notícia foi
aproveitada pelo escritório da Associated Press em Concord e
espalhou-se rapidamente.
– Porque é que isso constitui um problema, diretora? – pergunta
Pamela Barnes.
A chefe do FBI retruca:
– Porque todos os cidadãos preocupados, excêntricos ou doidos
de uma ponta à outra do Connecticut River Valley têm estado a
entupir as linhas de pistas de todas as esquadras de polícia desde a
fronteira do Canadá ao estuário de Long Island, dizendo que viram o
Escalade preto passar, ou entrar num parque de estacionamento
coberto ou no de um bloco de apartamentos. Cada uma dessas pistas
tem de ser investigada, senhora Presidente. É uma tarefa dos diabos.
– Estou a ver. E a cooperação interagências?
– Tão boa quanto se pode esperar. A CIA tem estado a trabalhar
as suas fontes no estrangeiro e a NSA a passar a pente fino os seus
registos telefónicos e de e-mails. O problema é que a CIA trabalha
numa selva de espelhos e labirintos… As informações que recebe
são verdadeiras ou está a ser enganada por alguém com segundas
intenções? Serão as informações recebidas válidas? Quanto à NSA,
têm de peneirar milhares de terabytes de informações gravadas e
sabemos por dolorosa experiência própria que Asim Al-Asheed, o seu
primo Faraj e os seus apoiantes são extremamente cuidadosos nas
suas comunicações.
– Portanto, nada de boas notícias – diz Richard.
– As coisas falam por si, senhor Barnes – declara a diretora Blair.
– Algo mais a acrescentar? – pergunta a Presidente.
– Já colocámos uma unidade da Equipa de Resgate de Reféns
numa escola secundária regional nas imediações de Spencer, a cerca
de oito quilómetros do monte Rollins, onde a Mel Keating foi raptada e
vai a caminho outra unidade para lhes dar apoio. A unidade que lá se
encontra tem meios de transporte aéreos e terrestres para responder
de imediato se recebermos algumas informações úteis. Ademais,
também temos acesso aos recursos do Departamento de Defesa e há
um representante da NSA no local para dar apoio.
A Presidente olha para o seu desgrenhado e confuso secretário de
Segurança Interna e lamenta uma vez mais tê-lo nomeado para o
lugar após as eleições, porém, como chefe da Polícia Rodoviária da
Florida e agente político, Paul Charles granjeara-lhe muito apoio
quando iniciou a sua insurreição contra Matt Keating.
Devia ter exigido a sua demissão ontem, mas despedi-lo seria um
terrível sinal de fraqueza neste momento.
– E o Paul? Tem alguma coisa?
– Estamos a trabalhar o melhor que podemos com os nossos
amigos do FBI – a sua voz tem um tom de desprezo – e vamos enviar
duas unidades da Equipa de Contra-Ataque dos Serviços Secretos
para prestar apoio à Equipa de Resgate de Reféns.
– Não precisamos dela – rosna a diretora Blair.
– Bem, mas vai tê-la – retruca, com um sorriso irónico.
– Chega – diz Pamela Barnes. – Mais alguma coisa, Paul?
– As travessias fronteiriças. Precisamos mesmo de analisar
atentamente a situação, senhora Presidente. O engarrafamento de
trânsito que quer atravessar para o Canadá…
– Não – corta Pamela Barnes.
– Com todo o respeito, senhora Presidente – afirma o secretário
de Segurança Interna –, as probabilidades de os terroristas
atravessarem a fronteira para o Canadá com Mel Keating em seu
poder são muito, muito remotas.
– Mas existe uma possibilidade remota, não é? Continuem com as
inspeções.
– Sim, senhora.
– Mais alguma coisa?
Charles olha para Lisa Blair e depois encolhe os ombros e diz:
– Hum, acho que terei de ser eu a fazer a pergunta em que todos
pensam. O resgate.
– Que é que tem? – inquire Richard.
– Hum… vai ser pago?
Pamela Barnes responde agressivamente:
– Não. Não pagamos resgates a terroristas.
– Mas – continua Charles – é a filha de Matt Keating.
– Sim – retruca a Presidente – e por isso é que não vos quero
prender mais aqui. Ponham-se ao trabalho, diretora Blair e secretário
Charles. Encontrem-na. Só temos quatro horas.

Quando fica sozinha com o marido, a Presidente Barnes recosta-


se na cadeira e esfrega a testa.
– Meu Deus, Richard. Estou a fazer o que devo?
– Sem a menor dúvida.
– Mas a Mel Keating pode estar morta ao final do dia.
– E de quem é a culpa? – pergunta o seu chefe de gabinete. – Vou
dizer-te: do Asim e do carniceiro do primo dele. E do FBI e da
Segurança Interna por não terem feito o seu trabalho. E há mais uma
pessoa.
– Quem?
– Não vais gostar, Pamela, mas a culpa é do Matt Keating.
– Richard…
Ele move a cadeira para a ver melhor.
– É isso que penso. É um antigo Presidente e ex-membro dos
SEAL, com inúmeros inimigos em todo o mundo. Ele não protegeu a
filha. A culpa é dele.
– Mas a Mel Keating não tinha direito a proteção dos Serviços
Secretos depois de ter feito dezoito anos.
Richard insiste.
– Então, devia ter feito alguma coisa quanto a isso. Restringir-lhe
os movimentos. Mudar-se para um lugar mais habitado. Contratar
segurança privada. Ou pedir uma diretiva presidencial, uma isenção
especial para a filha, para que ela pudesse ter proteção dos Serviços
Secretos. O Matt Keating não fez nada disso.
Richard levanta-se.
– Manter a firmeza perante os raptores da Mel Keating… apesar
da pressão a que estás a ser submetida… vai valer-te respeito e
admiração do mundo inteiro, incluindo de uma quantidade de
mauzões na Coreia do Norte, Irão, Rússia e dos chatos dos teus
constantes concorrentes, os Chineses. A longo prazo, vai poupar
muito mais vidas do que a de uma rapariga raptada.
– Percebo o que queres dizer, Richard, mas isso não significa que
tenha de gostar.
Richard dirige-se à porta que conduz ao corredor principal junto à
Sala Oval e diz:
– Dentro de uma hora terei uma declaração para fazeres à
imprensa expressando a tua deceção por o prazo se ter esgotado e
Mel Keating não ter sido localizada.
– Mas se ela for encontrada viva nas próximas quatro horas?
O marido limita-se a abanar a cabeça e abre a porta.
A Presidente Barnes esfrega de novo a testa, tentando lembrar-se
do motivo pelo qual quis tanto este cargo.

A caminho do átrio da Casa Branca depois de ter deixado a Sala


Oval com o secretário de Segurança Interna Charles, a diretora Blair
lembra-se do momento, há uns anos, em que veio a este edifício para
ser entrevistada pelo Presidente Matt Keating para o seu cargo atual.
Ele estava prestes a apresentar o seu nome ao Senado para
confirmação, e essa reunião era o último passo, e o mais importante.
Viera preparada para falar sobre a sua carreira na Divisão de
Investigação Criminal do Exército, os seus anos como chefe do
Kansas Bureau of Investigation e o seu último cargo como vice-
diretora adjunta do FBI.
Mas a entrevista durou cerca de cinco minutos. Enquanto lhe
servia uma chávena de café numa mesinha que se encontrava diante
do sofá que partilhavam, o Presidente Keating afirmou:
– O FBI ficou demasiado politizado nestes últimos anos. Quero
que regresse às suas raízes de aplicação da lei, e se mantenha, tanto
quanto possível, afastado da política. Que acha?
– Concordo, senhor Presidente – respondeu.
– Ótimo. O lugar é seu.
Confusa, Lisa Blair perguntara:
– É tudo?
Keating, sorrindo, estendera-lhe a chávena de café:
– Quer ir até Quantico e ver quem se sai melhor em Hogan’s
9
Alley?
Recorda com melancolia essa ordem simples e direta. Lisa Blair
nunca o reconheceria em voz alta, mas tem saudades de quando
estava sob as ordens de Keating.
Em voz baixa, diz:
– Meu Deus, em dias como este odeio esta cidade.
O secretário Charles pergunta:
– Que disse?
Mas ela ignora-o.
O telemóvel está a vibrar com força contra a sua anca.

9
Campo de treino do FBI que tem a forma de uma cidade. (N. do T.)
Capítulo 52
Saunders Hotel
Arlington, Virgínia

Ando para cá e para lá na minha suite com tanta raiva e violência


que estou convencido de que os cozinheiros me ouvem na cozinha da
cave. Dirijo-me à porta de ligação com a outra suite, abro-a de par em
par e grito:
– Maddie!
Ela surge de um amontoado de agentes dos Serviços Secretos,
pessoal do hotel e alguma da minha gente pertencente ao que resta
da campanha de reeleição do Presidente Keating. Vem ter comigo,
com o cabelo revolto, os olhos vermelhos e inchados e pergunta:
– Senhor Presidente?
– Tem uma ligação com o Federal Bureau of Prisons, não é?
Uma… irmã? Prima?
– Sobrinha, senhor – responde. – A minha sobrinha Sharon.
– Pode telefonar-lhe? – inquiro. – Descubra se há alguma
diligência para libertar aqueles três prisioneiros da cadeia de
segurança máxima. Aqueles que Asim Al-Asheed quer que sejam
libertados no âmbito do pedido de resgate.
Uma brevíssima pausa e penso: Foste demasiado longe,
pressionaste-a demasiado, no entanto, antes de eu poder voltar atrás,
Maddie diz:
– Sim, claro, senhor Presidente. Vou já tratar disso.
Regresso à suite. O agente Stahl fala ao telefone, em voz baixa, e
a Samantha está sentada de pernas cruzadas na cama, abraçada a
uma almofada. Digo-lhe:
– Estou a trabalhar. Vamos buscá-la.
A Sam responde «eu sei» e os seus olhos, apesar de ainda
húmidos devido a um acesso de choro anterior, estão cheios de raiva
e desprezo. Acrescenta:
– Mentiram-nos quando estávamos na Sala Oval.
– Não. A Presidente e o chefe de gabinete dir-nos-ão mais tarde
que nos disseram a verdade enquanto lá estávamos. Depois de
termos saído, os factos no terreno alteraram-se, ocorreram coisas
novas, notícias que não puderam transmitir-nos por limitações de
tempo.
– Como, por exemplo?
– Vou descobrir.
Regresso à minha pequena zona de trabalho e tento ligar de novo
para a Sarah Palumbo, a vice-conselheira do Conselho de Segurança
Nacional, e a chamada vai de novo para o voicemail. Que mensagem
deixar?
– Sarah, penso que está a ter um dia difícil, não é?
Desligo e batem à porta.
– Entre – grito.
A minha chefe de gabinete, Maddie, entra, com o rosto tenso e
preocupado, e diz:
– Senhor Presidente… falei com a Sharon. A minha sobrinha. Do
Federal Bureau of Prisons.
A expressão dela diz tudo.
– Nada, não é? Nenhuma movimentação daqueles reclusos da
prisão de segurança máxima.
Assente com a cabeça a acrescenta:
– Vou… vou voltar ao trabalho, senhor Presidente.
– Obrigado, Maddie.
Está na hora de telefonar à Presidente Barnes.

Ao contrário do que é mostrado em maus romances e em filmes


ainda piores, os antigos Presidentes e os Presidentes atuais
raramente telefonam uns aos outros, porque a nação tem apenas um
Presidente de cada vez e a atual chama-se Pamela Barnes e vive no
número 1600 da Pennsylvania Avenue. E se há um telefonema,
costuma ser do atual Presidente para o anterior e não o contrário.
Mas continuo a precisar de falar com ela e vai ser o cabo dos
trabalhos ir além dos filtros todos. Há um número confidencial que
passa pela central telefónica da Casa Branca para que os amigos e
membros de família do Presidente possam ser postos em contacto
sem mais delongas, mas esse número é alterado sempre que entra
uma nova administração.
Por isso, ligo para a central telefónica principal da Casa Branca –
202-456-1414 – e depois de ter sido atendido após o primeiro toque
por um jovem cheio de energia que diz «Casa Branca», digo: «Fala
Matt Keating. Pode pôr-me em contacto com a Felicia Taft?»
A Felicia é a vice-chefe de gabinete e segue-se um momento de
silêncio, sem dúvida enquanto o telefonista lhe pergunta se quer
receber a minha chamada. Depois a Felicia aparece na linha e diz:
– Bom dia, senhor Presidente. Em que posso ser-lhe útil?
Da cama por fazer, Samantha lança-me um olhar duro e sinto que
regressei ao treino dos SEAL, e estou a ser avaliado inflexivelmente
por um instrutor que julga cada coisa que digo e faço.
– Felicia, preciso de falar com o Richard. O mais depressa
possível.
– E posso perguntar de que se trata, senhor Presidente?
– Tem mesmo de perguntar, Felicia? – questiono e lamento de
imediato o meu tom, porque a coloquei numa situação terrível e é ela
que vai decidir se esta chamada avança, mas a Felicia é profissional
e responde:
– Não desligue, senhor Presidente. Vou ver se ele está disponível.
– Obrigado – digo, e sento-me, esfrego o rosto, penso na Mel
algures, prisioneira, cansada, faminta, perguntando-se se o pai a vai
encontrar, e então surge na linha uma voz familiar.
– Matt, fala Richard Barnes.
– Richard, preciso de falar com a Presidente.
– Ah, Matt, isso vai ser um problema.
– Richard, tudo o que ontem disse à Sam e a mim foi um punhado
de tretas e sabe bem que sim – prossigo. – Não foi feito nada para
arranjar as bitcoins para o resgate e aqueles três presos que Asim Al-
Asheed queria que fossem libertados continuam na solitária da cadeia
de segurança máxima. Que se passa?
– Matt, sabe tão bem como eu que as circunstâncias se alteram
e…
– Richard, quero falar com a Presidente. Já. – Olho para o relógio.
Meu Deus, já são mesmo quase nove da manhã?
– Vou ver o que posso fazer. Ela está bastante ocupada.
– Dentro de três horas termina o prazo – declaro. – Que estão a
fazer, com os diabos?
– O nosso trabalho – responde. – Juntamente com o FBI, a
Segurança Interna, os Serviços Secretos, todos…
– Não se atreva a insultar-me desse modo, Richard. Vou libertar a
minha filha, com ou sem vocês.
Uma pausa fria.
– Que quer dizer com isso?
– Ainda tenho alguns amigos nos meios de comunicação social.
Como pensa que reagirão quando lhes disser que vocês estão a
brincar com a vida da minha filha? Que, por um motivo qualquer,
estão a protelar e não fazem a menor tenção de pagar o resgate?
– Matt, não se atreva.
– Então, não se atreva a ignorar-me, Richard, porque eu farei com
que isso aconteça – digo, subindo a voz com raiva. – E se o prazo
expirar e a Mel não for libertada, o sangue dela vai estar nas suas
mãos e nas da sua maldita mulher.
Passei-me.
Não devia ter-me passado.
A voz do Richard é dura.
– A Presidente é uma mulher muito, muito ocupada. A sua filha é
apenas uma das suas preocupações. O mundo é um lugar grande,
sórdido e perigoso e sabe isso tão bem como eu. Deixamos a missão
de a encontrar a cargo de profissionais, e se transmitir uma história
louca de que não estamos a fazer nada para encontrar a sua miúda,
esta administração vai cair-lhe em cima como uma tonelada de
cimento. Percebeu?
– Encontrem a minha filha, Richard.
– Estamos a trabalhar nisso. E, se ela puder, peço à Presidente
que o contacte mais tarde, ainda hoje. Mas não conte muito com isso.
Desligo o telefone e expiro sonoramente. Levanto-me, ando mais
um pouco para cá e para lá, e o agente Stahl olha para mim, como
olha a Samantha também. Chegou a hora de entrar em alerta
máximo.
Pego no telefone, começo a percorrer os meus contactos,
sabendo que estou prestes a violar meia dúzia de normas,
convenções sociais e modos oficiosos de tratar das coisas em
Washington DC, mas não me preocupo com nada disso.
Mel.
Mais nada.
Disse à Samantha que a ia trazer de volta e agora não posso
parar.
Aí está.
Encontro um número de telemóvel confidencial, primo-o sem
hesitar e toca, toca e é atendido por uma mulher, quase sem fôlego.
– Diretora Blair – diz. – Quem fala, raios?
Apercebendo-me de que o meu contacto aparece como
DESCONHECIDO no seu telemóvel, apresso-me a dizer:
– Lisa, é o Matt Keating.
– Oh, senhor Presidente, eu…
– Lisa, não tenho tempo para amabilidades – digo rapidamente. –
Que raio está a acontecer?
– Senhor Presidente, eu…
– Lisa, diga-me que eles não estão a protelar. Diga-me que as
bitcoins estão a ser preparadas, diga-me que os três reclusos estão a
ser preparados para o transporte para a Líbia. Que se passa?
– Senhor Presidente…
– Lisa…
E a resposta brusca vem pelas ondas hertzianas:
– Senhor Presidente, deixe-me falar, caramba!
Paro, a meio do que ia dizer, respirando fundo.
– Diretora – consigo dizer. – Continue.
O universo parece contrair-se apenas no meu telefone e na voz
excitada da diretora do FBI, que comunica:
– Estava a tentar dizer-lhe que recebemos uma boa informação do
New Hampshire e pensamos ter encontrado a sua filha.
Capítulo 53
Escola Secundária de Eastfield
Eastfield, New Hampshire

No ginásio da Escola Secundária de Eastfield, perto das faixas


que pendem das vigas e comemoram as façanhas dos Eastfield
Explorers em basquetebol e lacrosse, o agente especial Ross
Faulkner, chefe da Equipa de Resgate de Reféns do FBI, envida
todos os esforços para não derrubar com um soco um major da
Polícia do Estado do New Hampshire que se encontra à sua frente,
quase a chegar a vias de facto. Ross é um veterano com dez anos na
unidade de elite máxima do FBI e, antes de entrar para o Bureau, foi
sargento de artilharia dos Marines, tendo feito três comissões no
Iraque. Tem experiência de negociação com diversas tribos e milícias
no Iraque setentrional, mas este polícia local está realmente a
enfurecê-lo.
O major Harry Croteau, da Polícia do Estado do New Hampshire,
está vestido com um fato-macaco e botas pretos, como todos os
outros homens neste ginásio vigiado, e o seu rosto rechonchudo está
vermelho de raiva.
– Vou dizer-lhe outra vez, agente Faulkner, não tem competência
aqui.
– E eu digo o contrário – retruca Ross. – É um rapto.
Croteau ergue a voz:
– Só é um crime federal em determinadas circunstâncias, como
ser levada uma criança menor, cruzamento de fronteiras estaduais
com a vítima ou o crime ser cometido a bordo de uma aeronave.
Nenhuma delas se enquadra nesta situação. É um crime estadual e
nós assumimos o comando.
– Com todo o respeito, major, não tenho tempo para estas merdas.
Estamos aqui, a filha do Presidente está algures nas proximidades e
um terrorista conhecido tem-na em seu poder. É tudo aquilo de que
preciso e é tudo o que vai acontecer.
– Isso diz você, porra!
Os telefones tocam, alguns dos vinte membros da equipa de Ross
encontram-se no ginásio, com as suas armas e equipamento
espalhados por mesas rebatíveis, os veículos estacionados no
exterior em lugares com a indicação RESERVADO A PROFESSORES.
Estão aqui há quase um dia, depois de terem levantado voo da Base
Aérea do Marine Corps, em Quantico, num avião de transporte C-17
Globemaster emprestado pela Força Aérea, e aterrado no vizinho
Aeroporto de Lebanon. A Equipa de Resgate de Reféns orgulha-se de
estar apenas a quatro horas de distância de qualquer local dos
Estados Unidos e esta viagem não foi diferente.
– Sim, sou eu que digo, porra – replica Ross –, como diz a diretora
do FBI e o procurador-geral. A operação é nossa e…
– Ross! – gritam do outro lado do ginásio. – Vem cá, já!
– Major, ponha-se a andar daqui! – ordena. – Antes que o prenda
por suspeita de evasão fiscal ou outra porra qualquer.
Ross dirige-se à mesa onde Gus Donaldson, um dos membros da
equipa, gira numa cadeira articulada, com o equipamento de
comunicações e os telefones atrás de si, tendo na mão uma folha de
papel com coisas escritas.
– Ross – diz Gus, com a voz tensa pela excitação –, tivemos sorte.
Muita.
Outros membros da equipa juntam-se à sua volta.
– Fala – diz Ross.
– Hoje de manhã cedo, uma polícia avistou um Cadillac Escalade
preto a entrar para a garagem de uma grande casa de férias no final
de uma estrada de terra batida não sinalizada, perto de um lago,
isolada. A estrada de terra fica ao lado da Route 113, e tem um sinal
que diz Macomber. Perto de uma loja de ferragens da RJ. Viu o
condutor a sair da garagem. Tem a certeza de que era Asim Al-
Asheed.
– Ela telefonou-nos?
– Não – diz Gus. – Contactou um sargento da Polícia do Estado
NH que conhece, este passou a informação ao seu superior na força
local e foi assim que a coisa foi subindo na escada. O sargento
responde por ela, diz que é uma pessoa honesta. Não entra em
esquemas.
– Onde se encontra ela, neste momento?
– Incontactável. A cobertura de rede dos telemóveis é bastante
irregular nesta zona.
– Tyler! – grita Ross a outro membro da equipa. – Ouviste as
informações sobre esse local?
Tyler é o perito em pesquisa da equipa e está instalado diante de
dois grandes terminais. Responde: «Estou a tratar disso» e começa a
digitar. Ross avança e, nos poucos segundos que demora a
aproximar-se de Tyler, o investigador anuncia, com alegria na voz:
– Já está! Fica em Monmouth, perto da fronteira com Spencer. A
propriedade pertence a um tal Dan Macomber, de Salem,
Massachusetts. Eis a caderneta predial.
Os membros da equipa tornam a juntar-se, olhando para o ecrã da
direita. A caderneta predial, disponível no site da repartição de
finanças local, tem não só uma planta, mas também uma fotografia da
residência.
Uma casa de madeira de dois andares. Uma garagem
independente para três carros. Porta principal e secundária da casa.
Uma grande janela saliente à direita da porta principal. Uma janela
vulgar à esquerda da porta. Janelas no andar superior.
A planta mostra dois grandes quartos e uma casa de banho no
primeiro andar. Casa de banho no rés do chão. Uma grande sala de
estar e um pequeno quarto à direita da porta de entrada, cozinha e
sala de jantar à esquerda.
Graças aos anos de treino e de operações no terreno, Ross
começa a analisar rapidamente opções de disposição das forças,
vendo onde poderão ficar os grupos iniciais. Diz:
– Equipa de reconhecimento de snipers, em frente. Separem-se
quando lá chegarem, um grupo para leste e outro para oeste. Quero
olhos no alvo o mais cedo possível. Confirmem quando estiverem em
segurança… e saiam calmamente, como se fossem ao Dunkin’
Donuts. Há tantos repórteres por aí que não queremos uma escolta
dos malditos meios de comunicação.
Como um só corpo, os membros da equipa correm para as mesas,
recolhem as armas e o equipamento, seguem para a porta traseira do
ginásio, com as botas a produzirem um eco sonoro. Ross sente-se
cansado, tenso, elétrico. Em qualquer outra situação envolvendo
reféns, haveria tempo para construir um modelo em tamanho natural
da casa-alvo de modo a permitir que as equipas de assalto
ensaiassem várias vezes a sua entrada dinâmica.
Mas o tempo está a fugir. Vai ser uma operação rápida.
Percorre a fila de mesas, parando no final, onde se encontra uma
jovem ruiva com óculos de armação preta e a T-shirt de um grupo de
rock de que Ross nunca ouviu falar. Está sentada diante de um
conjunto de teclados complexos, olhando com atenção para um
terminal percorrido por filas de letras e números.
– Minha senhora – diz, sem se lembrar do nome dela, de
momento, sabendo apenas que pertence à Agência de Segurança
Nacional e que diz que se ofereceu como voluntária –, ouviu a nossa
atualização.
– Iá – retruca, mordendo o lábio inferior. – Ouvi, pois, obrigada.
Neste momento, estou a recolher dados.
Ao lado da representante da NSA encontra-se um jovem negro
magro com a farda da Força Aérea, as divisas de primeiro-tenente e
uma placa com o nome COLLINS, que murmura para com os seus
botões enquanto movimenta um joystick. No grande monitor à sua
frente há uma vista aérea de um cume arborizado, e filas de números
deslizam rapidamente na base e de lado. E então, surge uma lagoa e,
em seguida, uma casa.
A casa-alvo, pensa Ross. Ei-la.
Estás aí dentro, Mel Keating?
– Há alguma hipótese de quem está lá dentro vos ver ou ouvir? –
pergunta Ross.
– Só se tiverem um equipamento de imagiologia térmica e deteção
acústica da próxima geração, que nem os Chineses nem os Russos
têm ainda. O Kestrel é uma maravilha e muito bom no que faz…
estamos a cerca de três mil metros de altitude, praticamente
invisíveis… e aqui vamos – responde Collins.
Ross está habituado ao equipamento de alta qualidade que o
Departamento de Defesa tem e empresta por vezes ao FBI, mas esta
filmagem do drone é tão nítida e clara que tem a sensação de pairar
sobre a casa. O equipamento é tão secreto que ele e os outros
membros da equipa tiveram de assinar documentos que subiam o seu
nível de classificação para poderem ver o que ele faz. Distingue
inclusive de manchas de líquenes e musgo na orla das ripas de
madeira do telhado da casa.
A câmara faz aumentar o zoom, inclinando-se e fazendo um
desvio, e a casa parece vazia. Ninguém no relvado da frente ou das
traseiras. A pequena praia de terra vazia. Nenhum barco amarrado no
cais.
– Há rastos recentes de pneus no solo do caminho de acesso –
diz Collins.
Ross olha para o relógio. Qual a distância entre o lugar onde se
encontra e aquela estrada de terra batida? Quantos minutos mais até
as primeiras equipas darem informações a partir de lá?
– Eh, senhor FBI!
Volta-se para Claire – sim, é assim que se chama, Claire Boone da
NSA, uma jovem com ar duro, mesmo com a T-shirt e os jeans
rasgados –, que lhe diz:
– A companhia elétrica local chama-se Liberty Utilities. Acedi ao
sistema deles e obtive uma leitura em tempo real do contador de
eletricidade daquela casa, que é um daqueles contadores
inteligentes. Esteve bastante parada durante os últimos três meses,
mas houve uma subida de cerca de 50% da utilização de quilowatts-
hora nos últimos três dias.
Um dos membros da equipa de Ross aproxima-se dele e diz:
– Entrou alguém.
– Muito bem, agente Faulkner – afirma Collins –, vamos ver se
conseguimos espreitar lá para dentro.
O tenente da Força Aérea mexe no teclado e, num ápice, a vista
aérea da casa transforma-se numa imagem espectral a preto e
branco que lê as fontes de calor no interior.
Aparecem três borrões brancos imprecisos.
Dois parecem estar juntos, na zona da cozinha.
O terceiro borrão é mais esbatido.
– Tenente, que estamos a ver? – pergunta Ross.
– O Kestrel está a mostrar duas pessoas na cozinha da casa-alvo.
Com base na sua localização, parece que estão sentadas a uma
mesa, ou coisa que o valha. Talvez a tomar um pequeno-almoço
tardio. Também vejo a marca térmica ténue do que parece ser um
fogão.
Ross tenta manter-se concentrado, firme, mas o seu ritmo
cardíaco e respiração estão a acelerar.
– E a terceira imagem?
– Bastante esbatida – retruca Collins. – Como se a pessoa
estivesse numa cave por debaixo das outras duas pessoas.
– Gus – diz rapidamente ao seu oficial de comunicações. – Passa
a informação à diretora. Temos uma boa pista e vamos reagir.
Ross ergue a voz:
– Equipas de assalto, preparem-se! Vamos buscar a filha do
Presidente!
Capítulo 54
Saunders Hotel
Arlington, Virgínia

Abro a porta de comunicação entre as duas suites a tempo de ver


Lisa Blair, diretora do FBI, entrar vinda do corredor, com quatro
agentes a segui-la, sendo que dois transportam grandes estojos de
plástico rígido, negro. Passam pela Madeline Perry, a minha chefe de
gabinete, por outros agentes dos Serviços Secretos e pelo reduzido
pessoal da minha malograda campanha de reeleição de há dois anos.
– Senhor Presidente – diz Lisa, ao aproximar-se de mim. –
Desculpe ter-lhe falado com dureza, há pouco.
Abro mais a porta.
– Eu mereci. Que se passa?
O agente David Stahl levanta-se da sua mesa com o portátil e a
minha mulher sai da cama, com o rosto a alegrar-se, as mãos juntas
à sua frente, e os quatro agentes de Lisa Blair – duas mulheres e dois
homens – entram e põem-se rapidamente ao trabalho, abrindo o
estojo de plástico rígido, retirando teclados, computadores e ecrãs de
terminal. Madeline Perry também entra, de mãos juntas, como se
fizesse uma prece silenciosa.
– Uma agente da polícia comunicou que viu e localizou um
Cadillac Escalade negro na garagem de uma casa isolada, perto de
uma lagoa, no final de uma longa estrada de terra batida. A agente
afirma que viu Asim Al-Asheed a dirigir-se da garagem para a casa,
há umas horas – diz Lisa.
Os meus punhos cerram-se instintivamente.
Apanhei-te, meu filho da mãe escorregadio.
– Há confirmação? – pergunto. A Sam põe-se a meu lado e passo-
lhe um braço pela cintura.
– A nossa secção da Equipa de Resgate de Reféns está colocada
num liceu perto da cidade de Monmouth. Tem representantes da NSA
e da Força Aérea. A NSA recuperou os registos das empresas de
serviços públicos da casa-alvo. A utilização de quilowatts-hora foi
bastante uniforme até há pouco. A casa devia estar vazia… mas está
a ser usada.
– E a Força Aérea? – inquiro.
Na mesa onde eu estava a trabalhar há pouco, os agentes
montam um fino ecrã de terminal e ligam um cabo de alimentação e
outros fios a caixas negras e teclados.
– Dê-me um segundo e mostramos-lhe – diz a diretora do FBI. –
Cynthia, mostre-nos as últimas imagens da casa-alvo.
– Sim, senhora – responde uma esguia agente do FBI.
Volto-me para a diretora do FBI e digo:
– Lisa… não me interprete mal. Estou-lhe grato, mais do que
poderá saber. Mas porque é que não está na Casa Branca ou no
edifício Hoover?
Lança-me um olhar duro.
– É aqui que quero estar. É aqui o meu lugar, senhor Presidente.
– Diretora – anuncia Cynthia, a agente do FBI. – Eis as imagens
em tempo real de Monmouth.
Reconheço de imediato o tipo de filmagem a preto e branco que
aparece no ecrã, a vista aérea de uma casa de boas dimensões, com
os números de lado e na base a indicar altitude, hora e data, a
longitude e latitude do local sobre o qual paira o drone, mas o que me
atrai verdadeiramente a atenção são as formas brancas na casa,
duas mais brilhantes do que a terceira. Penso saber o que estou a
ver, mas não quero dar um palpite.
Lisa assume o controlo, pondo um dedo sobre as três pequenas
sombras brancas.
– Imagiologia térmica. O oficial de ligação da Força Aérea afirma
que as duas formas mais brilhantes são pessoas na cozinha. A
terceira forma, mais esbatida, é alguém na cave.
A Samantha arfa e leva a mão ao rosto.
A Maddie, de pé a seu lado, agarra-lhe na mão e dá-lhe um aperto
reconfortante.
Um funcionário anafado do FBI – ocorre-me um pensamento
casual: como conseguiu ultrapassar os difíceis requisitos físicos do
Bureau? – usando uns auscultadores com microfone comunica:
– Senhora diretora, tenho o agente Faulkner ao telefone.
– Vamos ouvi-lo – ordena e acrescenta, dirigindo-se a mim. – É o
chefe de secção da Equipa de Resgate de Reféns no New
Hampshire.
Ouvem-se assobios e estalidos vindos dos altifalantes do terminal
e a Lisa pergunta, numa voz mais forte:
– Agente Faulkner, fala a diretora Blair. Está a ouvir-me?
– Claramente, senhora diretora – responde uma voz masculina
forte. Já ouvi este tipo de voz. Pertence a um operacional experiente
e perspicaz, no seu lugar e pronto para fazer o trabalho.
Meu Deus, quem me dera estar lá com ele e com os outros.
A Lisa prossegue:
– Tenho o Presidente Keating e a mulher a meu lado, juntamente
com outras pessoas. Estamos a receber imagens do aparelho da
Força Aérea. Qual é a vossa situação?
– Temos quatro snipers-observadores na propriedade. Estão,
neste momento, a ocupar as posições e vão fazer-nos um relatório
dentro em pouco. Agora, estamos a enviar uma equipa de assalto e
outras unidades para o local.
Em voz baixa, peço à diretora Blair:
– Pergunte ao agente Faulkner se consegue que a imagem do
drone se afaste. Quero ver mais zonas da propriedade.
– Agente Faulkner – diz Lisa. – Pode pedir ao oficial de ligação da
Força Aérea que reduza o zoom das imagens atuais para termos uma
visão mais ampla da zona-alvo?
– Sim, senhora diretora.
Lentamente, a imagem a preto e branco vai-se afastando,
mostrando uma lagoa, um pontão e o que parece ser um caminho de
acesso de terra batida e depois vejo o que tanto queria ver.
Quatro imagens térmicas, duas de cada lado do caminho de
acesso, no bosque, aproximando-se lentamente da casa.
Tal como ao agente Faulkner prometeu, quatro snipers batedores
do FBI estão a avançar.
Procuro a mão livre da Samantha e ela encosta-se a mim. A
Maddie continua a agarrá-la do lado direito.
– Sam, olha – murmuro. – Vamos ter a nossa menina de volta.
Capítulo 55
Residência dos Macomber
Monmouth, New Hampshire

O agente especial do FBI Chris Whitney é um veterano com três


anos na Equipa de Resgate, e embora tenha participado em centenas
de missões de treino e meia dúzia de operações reais, está a
esforçar-se muito para se manter concentrado e trabalhar com a
equipa para fazer o trabalho e não agir como um maçarico a tremer.
Nada de tremuras hoje.
Faz o trabalho.
Recupera a filha do Presidente sã e salva.
Está bem escondido numa fileira de árvores e mato baixo, a cerca
de vinte metros do caminho de acesso de terra batida, com uma boa
visão da fachada da garagem de três lugares e da casa próxima.
Veste um camuflado Nomex, capacete antibala e um colete MOLLE
com uma pistola Springfield .45 num coldre anexo a ele, bem como
uma espingarda automática HK416 .223 e munições suplementares
para as duas armas.
Os outros três snipers-observadores têm armamento semelhante
e, antes de terem ido para lá, o Chris e aqueles três tipos chegaram a
um entendimento oficioso. As regras de ataque normais são que não
devem abrir fogo a não ser que um dos dois terroristas no interior –
Asim Al-Asheed ou o primo Faraj – empunhe uma arma.
Que se lixe. O Chris e os outros operacionais da equipa conhecem
a história de Boyd Tanner, da Equipa Dois dos SEAL, e de como foi
pregado numa árvore, no Afeganistão, pelo filho da puta que está
dentro daquela casa e os seus amigos. Por isso, se o Chris ou
qualquer outro tiver uma boa hipótese de espetar um tiro em Asim,
mesmo que este esteja apenas a segurar um gatinho, uma bala
encamisada de calibre .308 vai separar-lhe o tronco cerebral da
espinha e que se lixem todos aqueles que venham dizer depois que
deviam ter agido de forma diferente.
Lentamente, o Chris aproxima-se um pouco, continuando a ter
uma visão desimpedida da fachada da casa. O seu camarada sniper
Javier Delgado está perto da garagem e o Henry Ford e o Tom
Plunket encontram-se no outro lado da casa.
O auricular inserido no seu ouvido direito traz-lhe as palavras
calmas e profissionais dos camaradas.
– Delgado está no local
– Ford no local.
– Plunkett no local.
Essas transmissões costumavam ser em código, como Serra Um
ou Hotel Quatro, mas anos de experiência mostraram que nomes
claros e linguagem clara reduziam as hipóteses de falhas de
comunicação.
O Chris prime um interruptor.
– Faulkner, fala Whitney. Todos no local, de olhos no alvo.
Ouve-se a voz do líder da equipa:
– Recebido. A Equipa de Ação Imediata está em posição no fim da
estrada. Vão a caminho.
O Chris mantém os olhos no alvo, segurando com firmeza a sua
espingarda personalizada Remington modelo 700, de mecanismo de
ferrolho. Olha através de uma mira telescópica Leupold Mark 6 -3-
18x44mm. Em cada semana de treino, ele e os outros operacionais
da equipa disparam mais de uma centena de projéteis contra diversos
alvos.
Hoje, espera ter uma hipótese de acrescentar mais um ou dois a
esse total.
– Whitney, fala Delgado – ouve, através do auricular.
– Escuto – diz.
– Dei uma olhadela rápida à garagem – continua o Javier. –
Aparentemente está vazia de pessoas. Mas vi um Cadillac Escalade
preto lá dentro.
– Compreendido – retruca o Chris. – Faulkner, recebeste?
– Afirmativo – confirma o líder da equipa. – A Equipa de Ação
Imediata deve estar junto de vós dentro de sessenta segundos.
O Chuck olha de relance para o relógio. Quase meio-dia.
Surpresa, surpresa, Asim, pensa, as tuas exigências vão ser
satisfeitas em menos de um minuto.
Com amor e os melhores cumprimentos.
Um lampejo de movimento.
Dois grupos de três homens armados vestidos de negro irrompem
da fileira de árvores mais próxima e, ao fim de uns segundos, estão
junto à janela saliente da fachada da casa e à porta lateral.
O Chris olha pela mira telescópica, com o dedo perto do gatilho,
precisando apenas de uns gramas de pressão para disparar um tiro.
Vamos, Asim, pensa.
Vem ter comigo.
Capítulo 56
Sala de Crise da Casa Branca

A Presidente Pamela Barnes está à cabeça da mesa na Sala de


Crise, com o marido, Richard, à esquerda, e Gary Reynolds, vice-
diretor do FBI, à direita. Estão presentes outros membros do pessoal
da Sala de Crise da Casa Branca, bem como duas agentes do FBI
que acompanham o vice-diretor. Em circunstâncias normais, o seu
vice-presidente – o senador Coleman Pelletier, do Oregon – estaria ali
mas, felizmente, anda numa digressão de cortesia, de dez dias, pela
América do Sul, longe dos meios de comunicação social da Casa
Branca e de Richard, que despreza o homem. Ainda recentemente,
Richard disse: «Aquele tonto ajudou-nos a chegar à Casa Branca,
mas dizer que é um fato vazio é um insulto aos tecidos de qualidade.»
Há três grandes ecrãs de vídeo na parede, no outro extremo da
mesa. Um está desligado. O da esquerda mostra o final de uma
estrada de terra batida que entronca numa outra asfaltada e esse
pequeno cruzamento está cheio de carros-patrulha da Polícia do
Estado do New Hampshire, Humvees e Chevrolets Suburban negros
pertencentes à Equipa de Resgate de Reféns. Na estrada principal,
foi instalado um cordão de polícia com barricadas de madeira e
parece que toda a imprensa da Nova Inglaterra se concentra ali.
Anteriormente, Pamela Barnes recebeu uma comunicação de que a
FAA havia interditado todo o espaço aéreo em redor daquela parte do
New Hampshire para que nenhum helicóptero de serviços noticiosos
interfira com a operação em curso.
O terceiro ecrã de vídeo apresenta uma vista da casa-alvo, cuja
imagem térmica mostra duas pessoas no andar principal e uma
terceira imagem, mais esbatida, indicia a presença de alguém na
cave.
O vice-diretor Reynolds é magro e parece tenso no seu fato
cinzento-escuro. Tem um auricular na orelha esquerda. Está a narrar
o que se passa e – pelo amor da santa, pensa Pamela Barnes – o
que está prestes a acontecer.
– O chefe da equipa comunica que os snipers batedores estão no
local e que um deles confirmou a que há um Cadillac Escalade negro
na garagem.
Pamela Barnes limita-se a fazer um aceno de cabeça.
– A equipa de assalto está a pôr-se em posição. Vão arrombar a
casa e entrar dentro de menos de um minuto.
Uma sensação cálida de satisfação e expectativa começa a
crescer dentro de si.
Richard tinha razão. Recusa-te a pagar o resgate, deixa os
profissionais resolverem a questão.
Vira-se e sorri ao marido e chefe de gabinete, mas este, em vez
de devolver o sorriso, murmura:
– Continuo a dizer que é uma treta a diretora do FBI, Lisa Blair, ter
ido para o quarto de hotel do Matt Keating. Era ela que devia estar
aqui e não o vice. É a função dela, porra.
– Há tempo para isso – responde Pamela Barnes, num sussurro. –
Deixa passar este dia.
Isso alegra o rosto de Richard.
– Disse-te que tudo ia dar certo, senhora Presidente. Daqui a uma
semana, os teus números nas sondagens terão subido pelo menos
vinte pontos e, então, vais despedir a diretora Blair e aquele patego
idiota que está à frente da Segurança Interna.
Pamela Barnes olha de novo para a vista aérea da estrada. É
espantoso como aquele filme é nítido e claro, o que lhe recorda de
novo o desperdício e os recursos tremendos que se escondem no
orçamento do Departamento da Defesa e como em breve chegará a
hora de olhar para ele com atenção e acabar com aquela má
utilização, independentemente do número de fornecedores das forças
armadas que protestem.
– As equipas de assalto estão em posição – diz Reynolds.
A sensação cálida de excitação e expectativa de Pamela Barnes
aumenta. Richard passa-lhe um pedaço de papel que retira da pasta
de couro e diz:
– Senhora Presidente, daremos uma conferência de imprensa, no
Roseiral, ao meio-dia e meia. Estão aqui as notas para reveres
quando tiveres tempo.
Pamela ergue a mão, um gesto destinado ao seu chefe de
gabinete, que significa: Agora não, mais tarde, por favor, e Reynolds
diz:
– Dez segundos, senhora Presidente.
– Muito bem – retruca.
Concentrada no ecrã à sua frente, ouve o vice-diretor Reynolds
anunciar:
– Estão a avançar agora.
E embora, ao longo dos anos, tenha sido convidada para sessões
de treino de todos, desde os Boinas Verdes aos Marine Recon, todos
a mostrar quão bons são com as suas armas e brinquedos militares
de preço elevado numa tentativa de receber mais fundos, Pamela
Barnes sente, a contragosto, respeito pela rapidez destes agentes do
FBI.
Dois grupos de três homens (e porque é que não há mulheres
entre eles?) irrompem das árvores e dirigem-se para a casa.
Separam-se e três avançam para a parte da frente, para uma grande
janela, e os outros para o lado, onde há outra janela e uma porta.
Richard murmura-lhe ao ouvido:
– Vamos passar estas imagens dia e noite nos teus anúncios
televisivos quando te candidatares à reeleição, senhora Presidente.
Pamela sorri.
Afinal, vai correr tudo bem.
Capítulo 57
Saunders Hotel
Arlington, Virgínia

Vem-me à mente uma torrente de recordações ao ver as imagens


a cores, claras e nítidas, do drone que paira sobre o local, mostrando
com grande pormenor o ataque da equipa à casa onde se encontram
Asim Al-Asheed, Faraj Al-Asheed e a minha filha.
Continuo a agarrar na mão esquerda da minha mulher. Madeline
Perry ainda se encontra do outro lado. Olho fixamente e recordo
todos os meus treinos e operações do passado, no Iraque e no
Afeganistão, lembrando a sensação fria e calma de fazer o meu
trabalho, aquilo para que fui treinado, confiante nas minhas
capacidades e nas dos membros da equipa. É difícil acreditar, mas
não se sente um medo real, só se vê o que há pela frente, o que está
em jogo.
Digo silenciosamente «Go, go, go» ao ver grupos de três homens
surgirem das árvores, sabendo que há quatro snipers na floresta a
supervisionar e que, neste momento, há veículos da Equipa de
Resgate de Reféns a acelerar pela estrada de terra batida acima para
se juntarem à operação.
Há mensagens de rádio a sair dos altifalantes e até a diretora Blair
está em silêncio à medida que a operação se desenrola.
A primeira equipa chega à janela saliente da fachada, com os seus
membros agrupados e funcionando como se fossem um só, todos
com fatos-macaco camuflados Nomex, capacetes e óculos, com as
armas e o equipamento fixados firmemente nas costas.
O homem da frente agita uma barra Halligan, quebrando a janela e
afastando os vidros partidos, baixando-se e desviando-se em
seguida, enquanto o segundo homem encosta um escadote de metal
à parede, debaixo da janela.
Penso: Granadas atordoantes, M84, e o operacional que tem o
escadote atira uma através da janela aberta. Há um clarão brilhante
de luz e uma nuvem de fumo, e uma luz e fumo semelhantes
irrompem no outro lado da casa.
O terceiro operacional sobe depressa o escadote, seguido pelos
seus dois companheiros de equipa, e tudo isto acontece em
segundos, enquanto entram rapidamente na casa. Agora penso no
caos controlado que irrompe pelo interior, os operacionais armados a
movimentarem-se com rapidez, gritando: «No chão, no chão, no
chão, mãos, mãos, mãos.»
O princípio da Equipa de Resgate de Reféns em operações como
esta é Velocidade, surpresa e violência na ação.
A voz contente do líder da equipa sai dos altifalantes:
– A equipa de assalto comunica que deteve dois homens. Não
foram disparados tiros.
A Samantha diz «Ai, obrigada, obrigada», e a Maddie limpa os
olhos com a mão livre, sorrindo aliviada.
O chefe da equipa anuncia:
– As equipas de assalto avançam para cave.
Meu Deus, o que a Mel deve estar a pensar e ouvir neste
momento, penso, as explosões das granadas atordoantes, os pés a
bater no andar de cima, os gritos, e sorrio no meio das minhas
lágrimas, sabendo que faltam meros segundos para a nossa menina
ser libertada.
E quanto faltará para o regresso a New Hampshire? Para o
reencontro de todos os reencontros? Será que conseguiremos dormir
nas próximas vinte e quatro horas, com toda a excitação e alegria?
E alguma vez a deixaremos sair sozinha do recinto da nossa
propriedade?
– Equipa a avançar para a cave.
O meu sorriso alarga-se.
– Equipa na cave.
A Samantha inclina-se para mim, alegre e em silêncio, e então
tudo acaba.
A voz confiante do chefe da equipa já não é confiante.
– Podes repetir? – pergunta a alguém que se encontra no New
Hampshire. – Repete. Confirma.
A Samantha inquire:
– Matt, o que se passa?
Não sei, pura e simplesmente, e o que oiço em seguida faz-me
cambalear, como um murro de escuridão pura no estômago.
A voz que sai dos altifalantes:
– A equipa de assalto confirma: terceiro indivíduo do sexo
masculino detido na cave. Repito: terceiro indivíduo do sexo
masculino.
A diretora Blair responde:
– Chefe da HRT, preciso de confirmação. Está a dizer que há um
indivíduo do sexo masculino na cave? E não do sexo feminino? Não é
a Mel Keating?
Uns segundos de crepitação de eletricidade estática.
– Confirmado, diretora Blair – responde a voz, cansada. – Três
homens detidos. Parecem ser habitantes locais. Nenhuma mulher,
não é a Mel Keating. Há mais informações a chegar.
O rosto da diretora Blair está pálido e mal posso imaginar que
aspeto teremos, a Sam e eu.
Pais aterrados e assustados, a poucos segundos de receberem a
notícia mais alegre das suas vidas, prontos para festejarem, para se
abraçarem e chorarem pela felicidade absoluta de verem a filha, que
havia sido raptada, ser libertada sã e salva e devolvida à família.
E, então, tombar por um precipício oculto.
– Matt, Sam… eu… nós vamos descobrir o que aconteceu. Juro.
Vamos descobrir dentro de minutos. Prometo – diz a diretora Blair.
Olho para o relógio.
É meio-dia e um quarto, quinze minutos para além do prazo dado
por Asim Al-Asheed.
Que não foi cumprido.
A minha mulher vê-me olhar para o relógio e também repara na
hora.
Tentando manter a voz firme por entre as lágrimas que correm,
diz:
– Matt, eles não pagaram o resgate, mataram a nossa filha.
Capítulo 58
Residência dos Macomber
Monmouth, New Hampshire

O chefe da HRT e agente especial do FBI Ross Faulkner entra na


cozinha da casa-alvo, retira o capacete antibala, observa o local, e os
seus pés calçados com botas rangem sobre o vidro quebrado das
janelas. Há uma mesa de madeira ao lado dela, duas cadeiras
estilhaçadas e o ar cheira a foguetes rebentados; o odor provém das
cargas de magnésio das granadas atordoantes. Quatro membros da
sua equipa estão na cozinha e os outros encontram-se espalhados
pela casa. Uma equipa de análise de provas chegará dentro de
escassos minutos para perscrutar cada quarto, armário e roupeiro,
bem como na garagem próxima
Os jovens descalços estão sentados de costas apoiadas na
parede, tremendo, de rostos vermelhos, olhos lacrimosos, braços
atrás das costas, bem presos com algemas plásticas. O da direita
enverga apenas um par de cuecas de tecido escocês e os outros dois
têm vestidas calças de fato de treino e camisolas de alças. A do que
se encontra no meio é azul com letras vermelhas que dizem
UNIVERSIDADE DO MASSACHUSETTS, LOWELL.
Todos têm grandes nódoas húmidas abaixo da cintura.
O procedimento habitual seria separar estas três personagens e
começar a interrogá-las separadamente, mas Ross e a sua equipa
não têm tempo, e o dia de hoje é tudo menos normal. A centenas de
quilómetros de distância, Lisa Blair, diretora do FBI, Matt e Samantha
Keating estão à espera de respostas.
– Quem são vocês, rapazes? – pergunta Ross. – E o que estão a
fazer aqui, porra?
O que se encontra mais à esquerda, mais corpulento do que os
outros, com o cabelo louro rapado dos lados e à escovinha no alto da
cabeça, responde:
– Chamo-me Bruce Hardy. Este é o Gus Miller e aquele, Lenny
Atkins. Somos alunos universitários em Lowell.
– Tu ou os teus pais são donos desta casa?
Bruce protesta:
– Não invadimos a propriedade de ninguém! Juro por Deus!
Estamos aqui com autorização.
– Quando chegaram? – Retruca Ross.
– Há cerca… de uma hora. Talvez noventa minutos.
– Se nenhum de vocês é o dono, conhecem os donos?
O do meio, enfezado, ruivo, com sardas no rosto e os ombros nus,
responde:
– Ganhámos esta casa.
– Ganhámos? Que queres dizer com isso?
O tipo ruivo – Gus Miller – começa a tossir repetidamente e, a seu
lado, Bruce diz:
– Sim. Ganhei-a. Recebi um e-mail de uma organização qualquer,
dizendo que tinha ganhado uma semana aqui, de graça. Que tinham
tirado o meu nome do Facebook. Um daqueles jogos em que
respondes a perguntas sobre que tipo de estrela de cinema és, sabe?
Foi assim que se passou.
Ross não sabe, mas acena com a cabeça como se soubesse.
– Continua. E despacha-te.
– A organização transferiu mil paus para a minha conta – continua.
– Disse que havia mais mil paus em dinheiro à minha espera e à
espera dos meus amigos quando cá chegássemos. O local estaria
aberto, não eram precisas chaves. E sim, tal como dizia o e-mail,
havia mil paus em dinheiro. Dez notas de cem dólares, enfiadas na
gaveta dos talheres.
As coisas estão todas a tornar-se claras para Ross, de uma forma
lógica e horrenda; conhece a habilidade de Asim para criar redes
clandestinas de apoio. Afirma:
– E se chegassem a uma determinada hora, e se fossem três,
receberiam outro pagamento de mil dólares no final da semana.
Certo?
– Não – responde Bruce. – Haveria mais dois mil e não mil.
Enviados por mais duas transferências bancárias. Oiça, era legal ou
não? Merda, se não era, não vou devolver o dinheiro. É meu. Ganhei-
o honestamente.
Ross volta-se para o rapaz da direita, Lenny Atkins, que tem
apenas vestidas as cuecas de tecido escocês:
– E que raio estavas a fazer na cave?
Lenny está pálido e não para de engolir em seco, como se
tentasse, como todas as suas forças, não vomitar.
– Hum, quando cá chegámos, eu ainda estava com a ressaca de
ontem à noite. Só precisava de dormir mais um pouco para me
passar. Esses dois não paravam de falar e conversar em voz alta e
peidar-se e não consegui aguentar. Havia uma cama lá em baixo e eu
desci e apaguei-me.
Ross vira-se quando Neil Spooner, membro da HRT, regressa
vindo da cave.
– Lá em baixo, há uma cela construída contra os alicerces de
betão. Cama, retrete química, candeeiro. Mais nada. Fizeram
inclusive a cama.
Ross acena com a cabeça e sai para a sala de estar principal,
sentindo na boca o gosto amargo da derrota. Ele e a equipa fizeram
precisamente o que lhes disseram que fizessem. Realizaram um
arrombamento e entrada perfeitos com escassos minutos de
preparação e, em qualquer outro universo, esta operação seria
classificada como um êxito.
De certeza.
Como aquela velha anedota que diz que a operação foi um êxito,
mas o doente morreu.
Asim Al-Asheed e o primo Faraj estiveram mesmo aqui? E Mel
Keating?
Atrás de si, um dos três prisioneiros grita:
– Eh! Quando é que vamos sair daqui? Quero telefonar ao meu
pai!
Ross ignora-o.
Merda.
Uma voz chega-lhe através do auricular.
– Faulkner, fala Martinez.
– Martinez, fala.
– Temos uma mulher morta na propriedade, cerca de trinta metros
a leste da casa.
Algo frio parece alojar-se-lhe na garganta. Vê as horas. É meio-dia
e trinta e cinco, o prazo para o resgate já terminou há muito.
– É a filha do Presidente? – pergunta.
– Não – é a resposta categórica. – É uma mulher de trinta e
poucos anos, vestida com um camuflado, com uma SIG Sauer no
coldre e um bilhete de identidade que diz que é agente do
Departamento de Polícia de Monmouth. Deve ter sido ela a fazer o
telefonema original a comunicar o avistamento. E foi por isso que não
a conseguimos encontrar a seguir.
Faulkner suspira.
– Compreendi. Causa da morte?
– Garganta cortada. Muito sangue. E eu diria que morreu há
poucas horas.
Uma voz feminina chega-lhe através do auricular.
– Agente Faulkner, fala a diretora Blair. Só quero confirmar o que
tenho estado a ouvir na troca de comunicações. Têm uma agente da
polícia morta na propriedade, correto?
– Afirmativo, senhora diretora. Temos equipas de recolha de
provas a esmiuçar a casa, a ver se conseguimos obter informações
que nos permitam agir, mas diria que, com o avistamento comunicado
pela agente e o seu posterior homicídio, estou certo de que Asim Al-
Asheed esteve aqui.
A diretora não responde a esta mensagem, mas não precisa de o
fazer.
Ross sabe que estão ambos a pensar o mesmo.
Com muita probabilidade Asim Al-Asheed esteve aqui.
Mas e o que se passa com Mel Keating?
Onde está a filha do Presidente?
Capítulo 59
Saunders Hotel
Arlington, Virgínia

O agente David Stahl, dos Serviços Secretos, está afundado numa


cadeira na suite dos Keating, sabendo que a sua carreira e a sua vida
estão bastante complicadas. Não que seja algo comparável ao que
está a acontecer ao Presidente e à mulher dele, mas são suas e
pertencem-lhe. Ao longo dos anos, ele e outros agentes, durante
farras e discussões informais, comentavam e discutiam proteções
bem-sucedidas – a de Rawhide10, em Washington, a 30 de março de
1981 – e o maior falhanço do serviço, Lancer11, em Dallas, a 22 de
novembro de 1963.
Agora, os historiadores acrescentarão Hope a essa lista, com o
nome de David firmemente associado a ela.
Pensa no perturbado agente Clint Hill, dos Serviços Secretos, que
se encontrava no veículo dos Serviços Secretos que seguia atrás da
limusina presidencial naquele dia, em Dallas. Embora tivesse
arriscado tudo para saltar sobre o carro e proteger a primeira-dama e
Lancer, mortalmente ferido, com o próprio corpo, carregou durante
anos uma profunda culpa, pensando que, se tivesse sido um ou dois
segundos mais rápido, poderia ter sido atingido pela terceira bala e
salvado o Presidente.
Com a sua própria culpa a roê-lo, Stahl afasta-se das expressões
aflitas de Matt e Samantha Keating e fixa os olhos numa gravura
emoldurada de um quadro de Winslow Homer que mostra uma cena
marinha. Mesmo depois daquele dia horrível, o agente Hill ficou nos
Serviços Secretos, com um desempenho honroso, tornando-se
agente especial encarregado da proteção presidencial e depois, antes
de se reformar, diretor-adjunto dos Serviços Secretos.
Stahl sabe que não pode fazer nada semelhante. Despedir-se-á
dos Serviços Secretos, neste mês ou no próximo. Devia ter
desobedecido às ordens, devia ter mantido uma proteção discreta a
Mel Keating com o subterfúgio de umas «sessões de treino» do seu
destacamento. Ou devia ter convencido Harbor a gastar dinheiro para
proporcionar segurança privada a Mel.
Porra, Harbor queria sair e subir àquele monte e encontrar e
recuperar Mel ele mesmo, e em vez de ter seguido os procedimentos,
Stahl devia ter aceitado a proposta, devia ter-se juntado a Harbor na
busca, com mais dois ou três agentes do destacamento. Fazer o
trabalho, cagar nos procedimentos e nas políticas.
Fazer melhor do que Asim Al -Asheed.
A conversa que ocorre do outro lado do quarto, entre a diretora do
FBI, os Keating e Madeline Perry, chama-lhe a atenção quando o
Presidente diz:
– Está bem, com o homicídio daquela polícia, parece lógico que
Asim Al-Asheed lá esteve. Mas isso não significa que a Mel fosse
mantida ali, certo?
A chefe de gabinete do Presidente retruca:
– Havia a cela artesanal na cave.
Keating abana a cabeça:
– Não tem qualquer significado. Aquele filho da mãe é bom a
cobrir as pistas, a criar manobras de diversão. Até onde nos é dado
saber, a Mel está com o primo, o Faraj.
Stahl consegue falar.
– Revistem a cela.
A diretora Blair, do FBI, lança-lhe um olhar fulminante, o de um
membro dos serviços de manutenção da ordem que contempla o
falhanço de outro.
– Já foi feito.
Stahl senta-se direito e diz:
– Não, mandem para lá uma equipa de recolha de provas e
revistem realmente o local. Cada recanto e fenda, cada centímetro
quadrado.
– E o que vão procurar? – pergunta ela, com um desprezo
maldisfarçado na voz.
– Quando o encontrarem, saberão.
Ela fica quieta e o Presidente pede:
– Lisa, por favor.
– Está bem, então – diz, e contacta o chefe da HRT no local.
Stahl senta-se e espera.
E recorda.

No quarto de Mel Keating, no segundo andar da Casa Branca,


num daqueles dias muito atarefados depois de Matt Keating ter
prestado juramento como Presidente, Stahl disse:
– Menina Keating, espero não a ter assustado.
Ela abanou a cabeça e Stahl pensou: Não, é filha de dois pais
inteligentes e duros. Não se assusta.
Mel respondeu:
– Não, estou bem. Quero dizer, quando o pai estava nas equipas,
andávamos sempre em alerta em casa, para o caso de haver
estranhos por perto ou telefonemas que eram desligados quando
atendíamos.
– É uma boa experiência, porém, se for raptada, os raptores
podem decidir transferi-la de lugar ao fim de um dia ou dois. Depois
de ter conhecimento do que a rodeia, tenha o cuidado de tentar deixar
algo para trás que nos ajude a saber que esteve lá. Um bilhete
escondido. Um pequeno grafiti. Ou um objeto pessoal que só o seu
pai e a sua mãe reconheceriam. Acha que consegue lembrar-se
disto?
E Mel olhara-o quase com orgulho.
– Claro, agente Stahl.

A espera termina cerca de seis minutos depois.


– Diretora – diz a voz que sai dos altifalantes do computador. –
Fala Faulkner.
– Escuto – responde a diretora Blair.
– Encontrámos uma coisa.
Stahl levanta-se. Os Keating e a chefe de gabinete aproximam-se
do terminal de computador e dos seus altifalantes.
– Continue – diz Lisa Blair.
– Estava debaixo da cama, entalado num dos pés metálicos que a
mantinham no lugar. Uma aliança de ouro. Tem uma inscrição no
interior que diz…
Samantha Keating fala, com a alegria a fazer-lhe tremer a voz:
– «DE ST PARA KM 12/10/1941.» O meu avô Stevie deu essa aliança
à minha avó Kim, pouco antes de se alistar na Marinha, quando Pearl
Harbor foi bombardeado. Dei essa aliança à Mel quando ela fez
dezasseis anos.
Agora estão todos a olhar para Stahl e a diretora Blair pergunta:
– Como sabia?
– Poucos dias depois do juramento do Presidente Keating –
responde Stahl –, quando a família estava a mudar-se do
Observatório Naval, tive uma reunião com a Mel. Expliquei-lhe os
problemas de viver na Casa Branca e como a sua proteção por parte
dos Serviços Secretos ia aumentar, por ser a filha do Presidente.
Entre as coisas de que falámos, disse-lhe o que poderia fazer caso
fosse raptada. Disse-lhe que, mesmo com a nossa proteção, podia
acontecer alguma coisa.
Madeline Perry sussurra algo e Stahl tem a certeza de que ela
acabou de dizer «Isso é um eufemismo, porra», mas ignora-a e
prossegue.
– Disse-lhe que haveria sempre a hipótese de os raptores a
tentarem transferir de um local para outro e que devia deixar ficar
alguma coisa, um recado escrito, um pedaço de tecido, ou uma joia,
para que soubéssemos que estivera lá.
– Uma rapariga esperta e dura – comenta a diretora Blair.
Samantha Keating olha para o marido.
– Então, ela esteve lá. Esteve lá!
E a próxima pergunta paira no ar, atormentando-os a todos.
Onde está Mel Keating, agora?
A culpa de Stahl aumenta.
Não tem resposta para isso, e pensa de novo: A culpa é toda
minha.

10
Nome de código de Ronald Reagan. (N. do T.)
11
Nome de código de John Fitzgerald Kennedy. (N. do T.)
Capítulo 60
Zona residencial
Casa Branca

A Presidente Pamela Barnes está sentada numa cadeira


confortável nos seus aposentos privados no segundo andar da Casa
Branca, a tomar a sua dose diária de Glenlivet com gelo, três horas
antes do habitual. O marido, Richard, está sentado a seu lado,
bebericando um copo de água gelada, com as suas longas pernas e
as caras botas de cowboy Lucchese Romia esticadas à sua frente.
Ele começa a falar e ela ergue a mão, fazendo-o calar
rapidamente.
Uma das regalias, pensa, de o teu marido trabalhar para ti.
– Não voltámos a ouvir nada do Tesouro, pois não? – pergunta
ela.
Richard abana a cabeça.
– Não, Pamela. Estão a tentar diversas opções para localizar a
conta, mas desapareceu.
Recorda aqueles primeiros minutos frenéticos na Sala de Crise
depois de a operação de resgate ter falhado, quando se voltou para
Richard e disse: «Paga o resgate. Já. Faz com que aconteça. Tira
aqueles presos da cadeia de segurança máxima, redige o maldito
perdão. Vejamos se conseguimos salvar alguma coisa desta maldita
catástrofe.»
Mas não há nada para salvar. A conta que fora preparada para
receber o resgate através de um browser Tor, na chamada Dark Web,
foi retirada.
Parece que a janela para pagar o resgate foi fechada com firmeza
por Asim Al-Asheed.
Bebe um grande gole da bebida revigorante, sentindo que a
abana, a acorda, e pensa no que tem pela frente. Diz:
– Foi uma verdadeira viagem de montanha-russa, há pouco, não
foi?
– Sim, Pamela, foi.
– Tínhamos pela frente uma tarde radiosa e todos os dias
seguintes, não era? – prossegue, recostando-se na cadeira. – A filha
do antigo Presidente resgatada, um dos terroristas mais procurados
do mundo capturado. Umas imagens soberbas do nosso FBI em
ação, sem lixar tudo, para variar, que seria ótimo. Notícias
maravilhosas na imprensa sobre a família Keating ter sido reunida.
Talvez até um encontro, mais tarde, na Sala Oval, comigo a
condecorar os agentes do FBI que a resgataram, com a família
Keating a assistir. Sorrisos e apertos de mão e abraços por todo o
lado.
O marido e chefe de gabinete mantém-se em silêncio.
Ótimo.
– Os nossos números nas sondagens a irem por ali acima –
prossegue. – E com tantas notícias maravilhosas, outro benefício
suplementar seria a ala machista e patrioteira do partido, que ainda
adora aquele fuzileiro, calar-se finalmente e juntar-se à equipa para a
futura campanha de reeleição. Mas isso não vai acontecer, Richard,
pois não?
– Não, Pamela.
Passa o copo de vidro frio pela testa, contempla as fotografias
emolduradas e as placas e outras recordações de quando era
governadora da Florida. No topo, encontra-se uma bandeira da
Florida do final dos anos 1800, que ostenta o brasão do Estado sobre
um fundo branco, antes de a maldita cruz de Santo André ter sido
acrescentada em 1900. A maior parte dos historiadores acha que foi
acrescentada para mostrar as saudades da velha Confederação.
Um dos objetivos secretos de Pamela Barnes como governadora
era tirar aquela cruz vermelha da bandeira antes de terminar o
mandato, mas sabia que a maior parte dos eleitores e os seus
representantes em Tallahassee nunca concordaria.
Essa é a alegria e o flagelo da política. Fazer o que está certo,
mas também conhecer os limites impostos.
Outro grande gole e diz:
– Vais fazer com que, na próxima hora, uma história chegue aos
ouvidos de um repórter de confiança, bem cotado no meio, e tem de
ser mesmo de confiança, Richard. Este tiro não pode sair pela culatra,
não pode haver nada que o ligue a ti ou a mim. Sobretudo a mim.
– Com certeza!
A voz dela torna-se mais dura:
– Estou a falar a sério, Richard.
Ele entrelaça diante de si os dedos das suas mãos de criador de
gado e sorri.
– Um consultor de política externa de um dos teus antecessores e
que era digno de toda a confiança afirmou que, na sua maioria, os
jornalistas de Washington têm vinte e sete anos, nenhuma verdadeira
experiência além de noticiarem campanhas políticas e não sabem
literalmente nada. Por sorte, isso ainda é verdade hoje em dia.
– Ainda bem – retruca Pamela Barnes. – A história que quero ver
aparecer na Internet é que a Administração Barnes foi enganada por
uma falha de informações dos níveis mais elevados do FBI e da
Segurança Interna. Que a Administração Barnes estava pronta e
disposta a pagar secretamente o resgate para libertar a Mel Keating,
mas foi instada vivamente, por esses conselheiros, a não o fazer.
Organismos em que confiava disseram à Presidente Barnes que
tinham uma pista segura quanto à localização da Melanie Keating e
ela, confiando na opinião profissional desses organismos, deixou que
os profissionais fizessem o seu trabalho. Foi por isso que o resgate
não foi pago.
Richard nada diz e ela continua, sentindo regressar a força a cada
palavra que profere:
– A história deverá dizer também que a Presidente Barnes está
tristíssima devido à malograda missão de resgate de hoje e garante
que todos os funcionários responsáveis pela manutenção da ordem,
tanto federais como locais, estão a redobrar os seus esforços para
encontrar a Mel Keating. Percebeste?
Richard faz um aceno de cabeça.
– Isso é… bastante audaz.
– Como é o velho ditado? A sorte protege os audazes? Ou os
corajosos? Como fizeste notar há uns dias, Richard, a nossa sorte
está em queda. Temos de subir, custe o que custar.
– A diretora Blair e aquele idiota do Paul Charles, da Segurança
Interna vão reagir. Vão negar tudo.
– Ótimo. Durante a nossa última reunião não estiveram presentes
assessores nem ninguém que tirasse notas. O FBI pode negar tudo o
que quiser e o Paul Charles nem sequer vai ver que está a ser
manipulado. Vai fazer saber aos seus jornalistas de estimação que
concordou comigo quanto ao pagamento do resgate e dirá que a
culpa foi toda do FBI. O tonto não se vai aperceber de que, ao
defender-se, só vai confirmar a nossa posição.
– Impressionante – comenta o marido. – Quando queres isso?
– Já – é a resposta, e Richard levanta-se da cadeira. Antes de ele
se ir embora, Pamela acrescenta. – Oh, mais uma coisa.
– Sim?
A Presidente estende o seu copo vazio.
– Tem sido um dia difícil. Prepara-me outra bebida.
Richard pega no copo que ela lhe estende.
– Com certeza, senhora Presidente.
Capítulo 61
Saunders Hotel
Arlington, Virgínia

Samantha Keating está sentada numa cadeira, na suite de hotel,


com os olhos fixos no exterior. Não aguenta olhar para o televisor de
ecrã gigante, mesmo sem som, ver o vídeo da operação de resgate
falhada repetido uma e outra vez, e os diversos comentadores a
debater, analisar e discutir se a rapariga ainda estará viva.
Vão para o inferno!
Matt está a falar com Lisa Blair, a diretora do FBI, e o agente Stahl
também participa na conversa. A seu lado, a doce Maddie Perry
mantém-se em silêncio, com uma Bíblia na mão, lendo e rezando
silenciosamente por Mel.
Samantha fecha os olhos, recordando de novo a vista aérea
daquela maldita casa e a lagoa próxima, e não sabe bem porquê,
mas tem uma sensação incómoda de déjà vu, como se tivesse estado
naquela casa, mas sabe que isso não pode ser verdade.
É impossível.
Porém, mesmo assim, a sensação mantém-se.
Tem um doutoramento e é professora universitária, só acredita em
provas e, sobretudo quando se trata de arqueologia, provas sólidas.
Nem pesquisa nem escavações com base em lendas de druidas ou
monges irlandeses a desembarcar na América do Norte – apenas
factos. Foi isso que a impeliu a investigar os Bascos. Os factos das
suas viagens para a América do Norte eram verdadeiros e deram-lhe
pistas para as suas pesquisas e escavações posteriores,
nomeadamente aquela maravilhosa descoberta de um assentamento
basco desconhecido, nas Américas.
Gostava de poder recordar a alegria pura e inocente da
descoberta ocorrida uns dias antes, naquela vila costeira de
Hitchcock, antes de aqueles dois detetives da Polícia do Estado do
Maine terem vindo a correr dizer-lhe que a sua vida estava
destroçada.
Mais conversa ao canto com o marido e o FBI e os Serviços
Secretos, a debitar opiniões, onde ir a seguir, e como avançar. Uma
grande pergunta é como o terrorista mais procurado do mundo e o
seu primo conseguiram tirar Mel daquela casa, com um cordão tão
cerrado de forças da ordem.
Porque tanto Samantha como os outros têm a certeza de que Mel
lá esteve.
A aliança de ouro, cuidadosamente escondida, prova-o.
E os três continuam a tagarelar ao canto.
E regressa a recordação de ter estado naquela casa, junto à
água… e lembra-se.
Há quase dois anos, Samantha foi contactada por uma amiga sua
da Universidade do Maine, em Orono, cujo tio dizia ter uma peça de
cerâmica basca que havia encontrado quando trabalhara num
arrastão. O tio foi convencido pela sobrinha a entregar a cerâmica a
Samantha, mas o problema era que ele tinha deixado a vida de
pescador e passara a ser militante do sobrevivencialismo, mudando-
se para um lago isolado nos Great North Woods, no alto Maine.
Chegar lá implicava conduzir durante horas por estradas de terra
batida, ou…
– Matt – diz Samantha, levantando-se e indo ter com ele, o agente
Stahl e a diretora Blair, do FBI.
– Sim?
– A pequena lagoa… a que fica ao lado da casa onde tinham a
Mel. Que tamanho tem?
– O quê? – pergunta Matt, confuso.
– Que tamanho tem? A maior extensão?
– Não vejo porquê… – diz a diretora Blair.
– David – interrompe Matt –, é melhor do que eu a pesquisar no
Google. Descubra.
– É para já, senhor Presidente.
O agente Stahl dirige-se ao teclado e a diretora Blair continua a
parecer confusa, mas Samantha vê na expressão de Matt que ele
percebe o que ela procura.
– Aqui está, senhor Presidente – anuncia Stahl. – Long Pea Pond.
A sua maior extensão são pouco mais de novecentos metros.
Samantha diz:
– Hidroavião. Foi assim que saíram sem serem detetados… um
hidroavião foi lá buscar os três.
– Como sabe? – inquire a diretora Blair.
Os olhos de Samantha marejam-se de lágrimas ao recordar
aquele dia soalheiro, um dia calmo e agradável, sem verdadeiras
preocupações. Lembra-se de voar sobre terrenos e picos arborizados,
distinguindo lagoas e lagos, ansiosa por ver o que aquele velho
pescador encontrara… e que se revelou ser uma malga de sopa da
Sears and Roebuck, de cerca de 1930.
Samantha responde:
– Um hidroavião Cessna T206 com quatro passageiros a bordo
pode aterrar e levantar de uma massa de água com oitocentos e
noventa e quatro metros de comprimento. Sei que é assim porque
voei num há dois anos. Foi assim que fizeram. Voando perto do solo,
indo e voltando, e depois…
O marido diz:
– Se ele ou ela fosse um bom piloto e voasse perto do solo para
evitar o radar… podia funcionar.
A diretora Blair afasta-se, pega no telefone e começa a falar rápida
e firmemente com quem se encontra do outro lado da linha.
O agente Stahl faz o mesmo.
Matt olha para a mulher, obviamente cansado e angustiado, mas
transmitindo apesar de tudo o seu respeito terno. Em qualquer outro
momento ou local ou situação, Samantha teria adorado aquele olhar.
– Bom trabalho – diz ele.
Samantha retruca:
– Sei como a tiraram de lá. Não sei onde se encontra agora. Não
chega. De modo nenhum.
Capítulo 62
Saunders Hotel
Arlington, Virgínia

Na sequência da revelação da Sam, há alguns minutos de


azáfama ao telefone e depois a diretora Blair diz:
– Senhor Presidente, senhora Keating, sinto muito, mas…
Faço um aceno cansado com a cabeça.
– Tem de ir. De voltar ao escritório. Compreendo. E,
provavelmente, atender um telefonema desagradável do chefe de
gabinete da Presidente.
Aponta para o agente rechonchudo de há pouco:
– O agente especial Burke vai ficar aqui, será o meu oficial de
ligação pessoal com o senhor e a sua mulher. Mantê-los-ei
informados de tudo o que acontecer. E receber telefonemas
desagradáveis de Richard Barnes faz parte das alegrias da minha
função.
– Obrigado, Lisa.
Lisa Blair dirige-se à Samantha e dá-lhe um abraço, depois dá-me
também um. Uma falta de profissionalismo desnecessária, mas
reconfortante.
– Vamos recuperá-la sã e salva, juro – diz-me.
– Sei que o farão – retruco, mas a Samantha tem os olhos fixos no
soalho alcatifado e não diz nada quando a diretora Blair e três dos
seus agentes se vão embora.
Madeline Perry, a minha chefe de gabinete, comunica-me:
– Vou voltar ao trabalho no quarto ao lado, senhor Presidente. Vou
mandar vir comida para todos. Que quer?
– Qualquer coisa – respondo. – Nada.

A dada altura, há um silêncio pesado no quarto, que condiz com o


cheiro a suor, desespero, sanduíches e cheeseburgers por comer. A
Sam está no seu lado da cama, a dormitar, e o agente especial Burke,
do FBI, está recostado na cadeira, com os braços cruzados no peito.
O agente Stahl está no seu lugar, no outro lado do quarto, e dorme.
Na prática, o único facto novo surgiu há horas, quando três
testemunhas na zona do Long Pea Pond disseram ter visto um
hidroavião cinzento-claro nas proximidades, de manhã cedo, voando
baixo, a rasar as árvores e os picos.
Uma das testemunhas tem a certeza de que o avião se dirigia para
norte.
Outra está igualmente certa de que foi para oeste.
E a terceira não faz qualquer ideia da direção e só conseguiu
dizer, vagamente, «Estava algures ali em cima. Tenho a certeza.»
Avanço e abro a porta que conduz à suite adjacente. Reina o
silêncio lá dentro, com os membros do pessoal e outros a dormitar
nas cadeiras ou no chão, mas Madeline Perry olha atentamente para
o ecrã do computador.
– Maddie?
Parece sobressaltada e olha-me de relance.
– Oh, senhor Presidente, desculpe. Apanhou-me de surpresa. Que
se passa?
– Agora está tudo calmo. Preciso de fazer uma coisa, algo que
devia ter feito há horas.
– O que é?
– Falar com os pais do Tim Kenyon. Consegue fazer isso?
– Claro que sim.
Menos de quinze minutos depois, Madeline Perry entra na
segunda suite e estende-me o telefone.
– Bill Kenyon, senhor Presidente – anuncia. – E a mulher, Laura.
Pego no telefone, inspiro fundo. Quando era Presidente, fiz
telefonemas semelhantes a mães e pais, maridos e mulheres, de
pessoal morto em serviço. Nenhum deles foi fácil, mas havia um
protocolo a seguir, o comandante-chefe a transmitir as condolências
da nação à família daqueles que tinham feito o sacrifício supremo.
Mas agora?
Agora estava a transmitir as minhas condolências pessoais a um
pai e uma mãe que tinham perdido um filho por ele namorar com a
minha filha.
– Senhor Kenyon? Senhora Kenyon? Fala Matt Keating.
Uma voz masculina cansada – «Estou, senhor Presidente.» – e
uma voz feminina, mais fraca que diz apenas «Estou.»
– Posso chamar-lhe Bill? E Laura?
– Acho que sim – responde, e a mulher não diz nada.
Fecho os olhos. Estamos todos a sofrer, cada um à sua maneira,
porém o sofrimento deles é real e sólido. O meu é o sofrimento
causado por não saber o que acontecerá à minha filha, com cada
segundo preenchido por pensamentos terríveis quanto ao que possa
estar a suceder-lhe.
– Bill e Laura, lamento muito o que aconteceu ao Tim. Vi-o
algumas vezes nestes últimos meses, era um jovem extraordinário,
muito inteligente, muito bem-parecido. Sei que a Mel adorava estar
com ele. Eu…
Fico sem nada para dizer. Que mais? Desculpem-me por o vosso
querido filho ter tido a infelicidade de namorar com a filha do
Presidente, que fez tantos inimigos, e por ter morrido como dano
colateral?
Por fim, afirmo:
– O FBI, a Segurança Interna e centenas de agentes da polícia e
outros investigadores estão a perseguir o assassino do Tim. Sei que
deve ser de pouco conforto, mas ele não vai escapar. Juro-vos.
Segue-se um longo silêncio e pergunto-me se terão desligado.
Depois, oiço o suspiro triste do pai do Tim, que diz:
– São palavras simpáticas, senhor Presidente, e fico agradecido,
mas neste momento são apenas palavras, não é? Quero dizer,
assistimos aos noticiários, lemos os jornais e que vemos? Uma data
de notícias sobre a sua filha e quase nada sobre o meu rapaz. E o
pouco que há sobre o meu filho é lixo… escrevem mal o nome, ou
enganam-se na idade.
Oiço alguns soluços e depois um clique e imagino que seja a mãe
de Tim a desligar.
Mas o pai continua:
– A sua filha tem tudo. Uma vida confortável, as melhores escolas
que quis, podia escolher qualquer vida que desejasse. O meu Tim – a
voz embarga-se-lhe – teve de andar atrás de bolsas de estudo,
subsídios e trabalhar depois das aulas e durante o verão para juntar o
suficiente para entrar numa faculdade como Dartmouth. Ele tinha
esperanças, senhor Presidente, e a Laura e eu também tínhamos
esperanças por ele. Agora morreu. Porque subiu demasiado alto, quis
namorar com a sua filha e isso matou-o.
Aguardo, não querendo interromper este homem que sofre e ele
prossegue, contendo as lágrimas:
– A minha mulher e eu vamos voltar a rezar, esta noite, pelo nosso
rapaz. E depois vamos rezar por si e pela sua mulher. Rezar para que
não tenha de passar por aquilo que vivemos neste momento, senhor
Presidente.
Desliga a chamada.
Pouso o telefone de Maddie, espreguiço-me e olho para o teto de
gesso branco, desejando que, se esta noite estiver na disposição de
responder, Deus responda às orações dos Kenyon.
Mel.
Onde estás?

Quando era um miúdo a crescer numa zona rural do Texas,


algumas horas a oeste de Austin, sentia-me fascinado com a
Marinha, apesar de não haver rios ou lagos de monta perto da nossa
vilória poeirenta. Mas estávamos perto de Fredericksburg, onde
nasceu Chester Nimitz, o célebre almirante da Segunda Guerra
Mundial, e devo ter ido meia dúzia de vezes ao museu que honra a
sua vida.
Entre os muitos livros que, nesses anos, li sobre a Marinha, houve
um chamado The Terrible Hours, sobre as tentativas desesperadas
de salvar os marinheiros presos no USS Squalus, um submarino que,
em 1939, se afundou ao largo da costa do New Hampshire durante
um acidente de treino.
Um grande livro, um grande título, e não pretendo mostrar
desrespeito por aqueles trinta e três homens salvos e que já
morreram há muito, mas trocaria de bom grado as suas horas
terríveis pelas minhas, nesta passagem glacial do tempo após o
resgate falhado da Mel.
As horas passam devagar, com refeições comidas parcialmente,
telefonemas, visitas de representantes da Segurança Interna e dos
Serviços Secretos e mesmo alguns briefings crípticos por parte de
funcionários da CIA. Troco palavras de conforto com a Samantha,
cada um de nós a tentar animar o outro enquanto os algarismos
vermelhos dos diversos relógios avançam para o novo dia.
Maddie Perry também está atarefada na sala ao lado, conciliando
uma data de telefonemas e visitas, sendo um número espantoso
deles de médiuns que afirmam saber onde se encontra a Mel. Por
vezes, as «leituras» são precisas, com o nome de uma rua e um
número, e noutras é um médium que pensa que a Mel está perto de
uma via-férrea junto a uma massa de água.
No entanto, um telefonema que não chega é o de Pamela Barnes,
Presidente dos Estados Unidos.
A determinado momento, a meio da noite, o meu corpo rende-se e
caio num sono agitado, na cama por fazer, com a Samantha enrolada
a meu lado.

Um toque no ombro e acordo de imediato. Um homem


rechonchudo olha para mim e, durante um momento, não o
reconheço sob a luz fraca do quarto.
– Senhor Presidente?
Agora sei quem é. O agente especial Burke, do FBI, que continua
a envergar o seu fato cinzento, embora a camisa branca esteja
enrugada e com nódoas e a sua gravata azul-marinha, desatada.
Viro-me na cama, tentando não acordar a Samantha, mas ela tem
um sono tão leve como o meu e pergunta:
– Que se passa? Que está a acontecer?
– Senhor, minha senhora. A diretora Blair vem a caminho. Deve
chegar dentro de dez minutos.
– Que horas são? – inquire Samantha.
Olho para o relógio da mesa de cabeceira.
– São duas da manhã. Agente Burke, porque é que ela está a vir
para cá?
Burke parece cansado, perturbado.
– Senhor, disseram-me que Asim Al-Asheed vai fazer uma
declaração na próxima hora.
Capítulo 63
Zona residencial
Casa Branca

Entre as coisas que a Presidente Pamela Barnes odeia no seu


cargo conta-se saber que o seu tempo nunca lhe pertence realmente,
que outras pessoas têm exigências a fazer-lhe e que, a qualquer
minuto do dia ou da noite, vai ter de dar resposta a uma crise ou
catástrofe repentina.
Durante anos, os seus antecessores fizeram passar anúncios na
televisão, em tempo de campanha eleitoral, nos quais afirmavam que
tudo fariam para atender o telefone às três da manhã numa
emergência, mas a pura verdade é que nunca havia sido acordada
por um telefonema durante a noite.
Como agora. É apenas uma leve pancada na porta do quarto,
seguida de outra mais forte. Acende o candeeiro da mesa de
cabeceira e diz:
– Entre. Estou acordada.
Depois da tomada de posse, Pamela Barnes deixou bem claro ao
marido, Richard, que o seu pessoal nunca devia demorar a acordá-la
caso estivesse a ocorrer algo de importância nacional. Estava a
lembrar-se do comentário de um célebre colunista do The New York
Times citando um assessor da Casa Branca que aparentemente
dissera: «Não se pode ser despedido por acordar o Presidente, só se
pode ser despedido por não o acordar.»
Ou a acordar.
Uma figura familiar entra no quarto, vinda do corredor, até onde
um agente dos Serviços Secretos parece ter acompanhado Felicia
Taft, a vice-chefe de gabinete.
– Desculpe incomodá-la, senhora Presidente – diz Felicia.
O chefe de gabinete de Pamela Barnes dorme ferrado a seu lado,
com uma almofada por cima da cabeça. Ela meteu-se muitas vezes,
carinhosamente, com Richard dizendo que ele conseguia dormir
durante um tremor de terra, algo a que ele respondia jocosamente,
«Nunca houve um tremor de terra na Florida desde que por cá ando.
Portanto, nunca saberemos, pois não?»
Sai da cama, veste o seu velho roupão de veludo azul, que já fez
muitos quilómetros e muitos anos com ela.
– São novidades sobre a Mel Keating? – pergunta.
– Sim, senhora.
– Que se passa?
– Os funcionários de plantão na Sala de Crise receberam
informações de que a Al Jazeera vai difundir uma declaração de Asim
Al-Asheed na próxima hora. A vice-conselheira de segurança nacional
está a ir para lá neste momento.
Pamela Barnes enfia os pés numas sandálias de couro macio e
diz:
– Também estarei lá dentro em pouco.
Felicia Taft sai, fechando suavemente a porta atrás de si, e
Pamela Barnes inclina-se sobre a cama, acorda o marido e chefe de
gabinete, abanando-o.
Ele tosse, resmunga e senta-se, de tronco nu, vestindo apenas
umas calças de pijama azuis.
– Que se passa, Pamela?
– Levanta-te, veste-te – ordena. – Está na hora de justificares o
teu salário. Asim Al-Asheed vai anunciar qualquer coisa na próxima
hora. Precisamos de ir para a Sala de Crise.
Richard boceja e coça a nuca.
– Sabemos o que vai dizer?
– Algo horrendo e sangrento.
Move-se para sair da cama.
– De certeza?
Pamela Barnes responde:
– Um palpite baseado na experiência. Ou será que pensas que ele
vai libertar a Mel Keating porque gosta dela e a vai perdoar? Vem daí,
Richard, não há tempo a perder.
Capítulo 64
Saunders Hotel
Arlington, Virgínia

A suite está outra vez apinhada, com a diretora do FBI, Lisa Blair,
e mais três agentes do FBI. Instalaram outro ecrã de televisão, que
recebe imagens provenientes diretamente da Al Jazeera, em Doha,
no Qatar. O televisor da suite está sintonizado na CNN. Apesar de ser
tarde e más horas, Lisa usa a farda das pessoas que detêm o poder
em Washington DC – calças compridas largas e casaco pretos, blusa
branca – e tem o cabelo perfeitamente penteado.
A Samantha está na borda da cama, a olhar fixamente, com os
dedos entrelaçados e as mãos pousadas no regaço. Chamo-lhe a
atenção, e a expressão dos seus olhos é perturbada, vendo-me e ao
mesmo tempo olhando fixamente para mil metros mais longe. Já vi
aquele olhar, em camaradas das equipas ou Marines no terreno que
já lá se encontram há demasiado tempo e viram demasiadas coisas.
Quando aquela expressão se instala nos olhos de alguém, ele ou
ela está perigosamente à beira do colapso.
Abraço-a, mas é como se abraçasse o manequim de uma loja.
Recuo e a Lisa olha para o relógio e diz:
– O nosso oficial de ligação do FBI em Doha diz-nos que é uma
mensagem em vídeo, entregue por um mensageiro. Um cartão flash
ou uma pen. Estamos a tentar encontrar o mensageiro, mas…
A sua voz perde-se…
Claro. Sei o que vai dizer a seguir. Qualquer autoridade policial
americana num país estrangeiro trabalha com limitações tremendas,
seguida pelos serviços de informações do país anfitrião, incapaz de
realizar qualquer investigação sem a cooperação dos locais e incapaz
de trabalhar rapidamente ou reagir a novos factos.
É como lutar com os braços e as pernas cobertos de caramelo.
As imagens que chegam aos dois televisores são as mesmas,
embora as da CNN tenham alguns segundos de atraso em relação às
provenientes da Al Jazeera.
Estou sentado ao lado da Samantha, enlaço-a pela cintura e ela
inclina-se ligeiramente para mim enquanto esperamos.
O pivô da Al Jazeera está bem vestido e tem cabelo e bigode
negros. Fala rapidamente, com o rosto radiante devido à excitação de
apresentar uma notícia de última hora.
– Podem ligar o som, por favor? – peço. – Da Al Jazeera?
Um dos agentes do FBI faz isso mesmo e recua.
Entre os que se encontram na sala contam-se o agente dos
Serviços Secretos David Stahl e a minha chefe de gabinete, Maddie
Perry, que aperta uma Bíblia contra o peito e tem ar de quem não
dorme há dois dias. O caos e medo que sinto misturam-se com afeto
por aquela mulher inteligente e determinada. Podia ter ido longe na
Administração Barnes ou na indústria privada, mas decidiu
acompanhar-me da Casa Branca para o exílio.
Com uma voz nítida, o apresentador diz:
– Agora, vamos difundir o vídeo que nos foi fornecido por Asim Al-
Asheed. Não o vimos antecipadamente devido à sua oportunidade e
atualidade. Os nossos estimados espectadores serão os primeiros a
vê-lo.
A mesa do pivô desaparece e surge um ecrã azul, erupções de
linhas de estática, e a imagem torna-se nítida.
Uma parede nua de pedra, algum musgo e plantas minúsculas na
base, conduzindo a uma saliência rochosa.
Asim Al-Asheed entra no enquadramento e vemo-lo da cintura
para cima; enverga uma T-shirt preta e ostenta um sorriso no rosto.
Parece mais astuto, mais duro, mais mortífero sem a barba.
Faz um aceno de cabeça.
– As-salam alaykom, Matthew Keating, Samantha Keating,
Presidente Pamela Barnes e todos aqueles que estão a ver isto. Peço
desculpa por esta não ser uma… aquilo a que chamam transmissão
ao vivo mas sim uma gravação, de há algumas horas, depois de
termos saído da casa do senhor Macomber, nas vossas White
Mountains, e aqui estamos, ainda nestas montanhas. Os meus
agradecimentos ao senhor Macomber pela sua hospitalidade
involuntária e as minhas desculpas pelo que aconteceu à sua casa.
Estou certo de que as autoridades competentes o indemnizarão pelos
danos provocados pelo FBI.
A suite encontra-se imersa em silêncio. A Sam está bem
encostada a mim e o meu braço continua a envolver-lhe a cintura.
– E porque é que chegámos aqui, Matthew Keating? Uma
resposta simples: porque tudo se deve aos teus atos de há dois anos,
quando mataste a minha mulher, Layla Al-Asheed, e as minhas doces
filhas, Amina, Zara e Fatima. Sou um jihadista, um guerreiro de Alá, e
sabia que o meu destino era morrer no campo de batalha. Mas a
minha mulher? As minhas filhas? Eram inocentes e mataste-as. O
sangue delas vai estar nas tuas mãos até morreres.
Uma longa pausa. É como se me olhasse fixamente.
– Aqui estamos. Segundo o grande legislador Hamurábi e as leis
do profeta sagrado Moisés e as leis do islão, é-me devida uma
indemnização. É-me devida uma reparação. É-me devida… justiça.
Pedi tudo isso e fui ignorado, fui escarnecido e, ontem de manhã,
homens armados tentaram matar-me.
Olha para o lado durante um segundo, como se algo estivesse a
interrompê-lo, e diz:
– E aquilo que pedi era assim tão irrazoável? Pedi uma quantia
muito inferior à que pagam por um dos vossos aviões F-22 Raptor. A
vida da tua filha não vale o custo de um dos vossos aviões que
bombardeiam e metralham inocentes?
O seu sorriso abre-se. O filho da puta sabe que está a dizer algo
que será aceite por muitas pessoas, aqui e em todo o mundo.
– Pedi a libertação de três dos meus camaradas de armas –
afirma. – Conheço a desculpa para não os libertar. «Este governo não
negoceia com terroristas.» Por favor. O governo dos Estados Unidos
negoceia com terroristas sempre que isso convém aos seus
interesses, aos seus desejos. Os Estados Unidos têm como aliados
governos que fazem o mesmo que eu, só que a uma escala muito
maior. Então, pergunta a ti mesmo, Matthew Keating: porque é que o
teu governo não deseja a libertação da tua filha?
A Samantha treme encostada a mim, como se estivéssemos no
meio de uma tempestade de neve com o aquecimento desligado no
nosso quarto.
– Por fim, pedi um pedaço de papel com a promessa da
Presidente Pamela Barnes de que garantiria a minha segurança. Um
pedido razoável, estou certo de que compreendes, e uma troca justa
pela segurança da tua filha. Mas qual foi a sua resposta? Homens
armados a tentarem matar-me, a mim e ao meu primo Faraj.
Asim abana a cabeça.
– De acordo com as leis e a tradição que aprendi ao crescer, tudo
o que procurava era mera justiça. E ela não me foi dada. Ai, Matthew
Keating, isto é o que sou obrigado a dar em troca.
Os segundos imediatos trazem-me de volta, de uma forma brutal,
ao meu primeiro salto noturno em paraquedas quando treinava para
SEAL. A primeira meia dúzia de saltos que dei aconteceu durante o
dia, quando podia ver a paisagem lá em baixo, os outros
paraquedistas, o horizonte distante e o céu azul e as nuvens por cima
da minha cabeça. Mas numa noite ventosa, a partir de um
quadrimotor Hercules C-130, saltei para a escuridão, para o
desconhecido, esperando e confiando no meu treino e no meu
equipamento.
Agora não há confiança – em nada.
Apenas saltar uma vez mais para a escuridão implacável.
Porque a câmara recua lentamente, mostrando Asim Al-Asheed e,
a seu lado, ajoelhada, a nossa filha, Mel Keating, com os olhos
esbugalhados pelo medo atrás dos seus óculos e os braços atados
firmemente atrás das costas.
Capítulo 65
East 33rd Street
Nova Iorque, Nova Iorque

No escritório de sua casa, nos Great Bay Condominiums, Jiang


Lijun, do Ministério da Segurança do Estado, fuma um cigarro
Zhonghua e assiste à cena, filmada algures nas White Mountains
americanas e a desenrolar-se à sua frente num televisor montado na
parede. O escritório é modesto e não tem janelas porque Jiang não
quer que as câmaras de vigilância e os espiões que andam lá fora
vigiem as suas atividades. Uma luz a acender-se a esta hora da
madrugada poderia suscitar a preocupação, no seio da CIA, de algo
se passar com os Chineses.
O que é verdade.
Há alguns minutos, o seu relógio de pulso vibrou, acordando-o e,
na escuridão, levantou-se da cama sem acordar a mulher, Zhen, nem
a filha, Li Na. No seu escritório, pegou no telefone seguro que o ligava
à missão, que fica apenas a dois quarteirões, e o funcionário de
plantão disse: «Aconselhamo-lo vivamente a ligar um dos canais de
televisão por cabo, camarada Jiang.»
Dá mais uma passa no cigarro. O seu escritório tem estantes com
livros, na maioria obras históricas e políticas sobre os Estados Unidos
e a China, e não existe um terminal de computador que possa ser
pirateado nem armários de arquivo para arrombar. Metade dos
andares deste edifício são propriedade da missão para alojar os seus
diplomatas e pessoal, e Jiang usa esta sala para pensar, ler e
meditar.
Na televisão passa um vídeo nítido de Asim Al-Asheed a falar
clara e confiantemente para a câmara:
– … Pedi uma quantia muito inferior à que pagam por um dos
vossos aviões F-22 Raptor. A vida da tua filha não vale o custo de um
dos vossos aviões que bombardeiam e metralham inocentes?
Não é uma má pergunta, pensa Jiang, sentado confortavelmente
com o seu pijama de algodão e um robe de seda vermelha que
pertenceu ao pai.
O homem na televisão fala de uma forma simples e verdadeira, e
Jiang tem de admirar a sua compostura. As suas palavras são fortes
e, em qualquer momento e local, Asim Al-Asheed podia ter-se tornado
um líder político preeminente no seu mundo, ou, como Jiang sabe,
um médico, o sonho e desejo originais daquele homem.

Mas escolheu o caminho sangrento do terrorismo e, embora haja


milhões de bèn dàn – idiotas – aqui e no estrangeiro que agora
pensam bem dele, Jiang lembra-se de outro Asim Al-Asheed.

Quatro anos antes.


Num conjunto de cabanas e caminhos de terra batida, poeirento e
varrido pelo vento, chamado caricatamente uma aldeia na Líbia
meridional, Jiang fora encarregado de supervisionar a construção de
um oleoduto vital naquela região, porém o equipamento fornecido
pela China State Construction Engineering Corporation fora sabotado
e os trabalhadores da indústria petrolífera contratados na Geórgia
haviam sido ameaçados e expulsos.
A tribo que vivia nessa aldeia e outras da área recusava-se a
colaborar na construção do oleoduto, mesmo com a promessa de
dinheiro e postos de trabalho para os seus homens.
O oleoduto tinha um atraso de um mês.
E foi dito a Jiang que resolvesse o assunto. Sem ordens
pormenorizadas, nem sugestões nem recomendações.
Que resolvesse o assunto, mais nada.
Jiang estava de pé ao lado de uma escalavrada carrinha de caixa
aberta Toyota, com dois guardas pessoais de uma força contratada
paquistanesa que o haviam acompanhado desde Trípoli, e ficaram a
observar enquanto Asim Al-Asheed convencia a tribo a pôr termo às
suas ações contra o projeto do oleoduto. E havia mais uma meia
dúzia de outras carrinhas de caixa aberta estacionadas em
semicírculo.
Tiros. Berros. Um grito. Al-Asheed e o seu grupo de combatentes
conduziram oito homens e mulheres até à zona de terra batida diante
das carrinhas estacionadas. Foram obrigados a ajoelhar-se. Uma
multidão de cerca de cinquenta aldeões foi reunida, mantida no lugar
pelos homens armados e por Asim. Vários rapazes e raparigas foram
trazidos para a frente e depois Asim percorreu a linha dos homens e
mulheres ajoelhados e deu um tiro na nuca de cada um.
As aldeãs gritaram e lamentaram-se numa melopeia árabe que
gelou Jiang e, quando se aproximou dele, Asim Al-Asheed disse-lhe,
muito satisfeito: «Não vai ter mais problemas nesta aldeia.»
– Porque é que obrigou as crianças a verem?
Asim pareceu surpreendido por lhe fazerem tal pergunta.
– Porque vão lembrar-se para sempre do que aconteceu aqui, e
contarão aos seus filhos, e aos filhos dos seus filhos, o que acontece
quando alguém se opõe a Asim Al-Asheed e à tua grande e poderosa
China.

Em cima da sua secretária há exemplares com um dia do


Reference News, do Diário do Povo e The Global Times, que são
enviados todos os dias de Pequim por via aérea. É sempre bom estar
ao corrente do que acontece no país natal, não confiar nas notícias
publicadas na Internet, que podiam ser reeditadas ou desaparecer em
segundos. O telefone de Jiang está ao lado dos jornais e um ecrã
ilumina-se, o que significa que há uma chamada a entrar. Pega no
auscultador.
– Sim?
Ouve-se a respiração pesada do seu chefe, Li Baodong, que diz:
– O teu rapaz está a falar bem na televisão, não está?
Jan eriça-se com o tom da voz de Li, e pensa: Um dia, gordo, vais
ter o que mereces e eu ocuparei a tua cadeira.
Embora, quando chegar o momento, eu vá ter o cuidado de
encomendar uma nova, porque não quero sentar-me onde o teu cu
gordo e suado esteve ao longo dos anos.
Jiang responde:
– Ele tem os seus talentos.
– E também teimosia e estupidez – comenta Li. – Que pena não o
teres conseguido convencer a libertar a filha do Presidente… ah, olha,
está ali agora.
Nada de piedade, pensa Jiang. Nada de nada de piedade.
Li pergunta:
– Que irá fazer o hún dàn a seguir?
Satisfeito, Jiang vê movimento no ecrã de televisão.
– Penso que estamos prestes a descobrir, camarada Li – declara,
recostando-se na cadeira.
Capítulo 66
Sala de Crise da Casa Branca

A Presidente Pamela Barnes boceja e quer desesperadamente


uma chávena de café mas tem juízo, compreendendo que uma dose
de cafeína neste momento terá como resultado nunca mais voltar a
adormecer. Tem vestidas umas calças de fato de treino cinzentas e
uma T-shirt de manga comprida, cor de laranja, dos Florida Gators.
Richard está sentado a seu lado, com a vice-conselheira de
Segurança Nacional Sarah Palumbo do outro lado.
No ecrã principal está o pivô da Al Jazeera, no Qatar, e Pamela
Barnes pensa sorumbaticamente que, na sua maioria, os seus
predecessores passaram meses sem serem conduzidos à Sala de
Crise, e ela aqui está, nesta zona da cave, pela segunda vez em dois
dias.
– Oh, merda, ali está o filho da mãe – diz Richard.
Pamela olha para o rosto presunçoso e arrogante de Asim Al-
Asheed, de pé diante de uma formação rochosa nua algures nas
White Mountains. Asim fala fluente e energicamente em bom inglês
sobre injustiça e dinheiro e o preço de um F-22.
Pamela Barnes pergunta:
– Sarah, há alguma coisa que possamos retirar daqui, sobre onde
ele está, como esta gravação chegou à Al Jazeera?
A sua vice-conselheira de segurança nacional responde:
– Receio que muito pouco, minha senhora. Infelizmente, ele é bom
no que faz. Se esta mensagem foi gravada há algumas horas, então
ele avançou para outro lado. Diria que gravou esta mensagem numa
pen ou num cartão flash, a entregou a um mensageiro de confiança
que, por sua vez, a mandou por e-mail para outro mensageiro no
Qatar, que a entregou em mão nos estúdios da Al Jazeera.
Richard murmura:
– Esse maldito estúdio devia ter sido destruído acidentalmente há
anos. Malditos apoiantes de terroristas. Uma real cambada de chatos,
é o que são.
Pamela pergunta a Sarah:
– Qual é a avaliação de Asim Al-Asheed? Parece tão…
controlado.
No ecrã, Asim fala agora sobre os seus próprios atos e ela
desejaria que as inúteis forças armadas que por aí andam
conhecessem perfeitamente as suas coordenadas de GPS porque,
embora sempre se tenha oposto a execuções extrajudiciais por meio
de drones, sentiria a enorme tentação de lançar um míssil Hellfire
contra a cara daquele homem.
– Senhora Presidente – diz a vice-conselheira de Segurança
Nacional Sarah Palumbo –, a última análise que recebemos de
psicólogos contratados pela CIA é que Asim Al-Asheed é um
psicopata narcisista clássico, que teve uma infância perturbada e
pobre, e que procura constantemente atenção e reafirmação da sua
importância.
– E isso significa o quê?
– Adora atenção. Adora as luzes da ribalta. Não quer que isso
acabe. Previram que, se ele aparecesse de novo depois de expirado
o prazo do resgate, acrescentaria novas condições, novas exigências,
para mostrar a sua importância e natureza especial. Para manter o
seu rosto e o seu nome nas notícias.
– Mas aquele homem é um assassino – retruca Pamela Barnes. –
Mulheres, crianças, famílias… matou-os a todos pelas próprias mãos.
A vice-conselheira de Segurança Nacional comenta:
– Faz parte das tendências sociopáticas dele. Quanto mais
chocantes forem os crimes, mais atenção recebe. Como agora. Está
no seu elemento. Todo o mundo concentrado no que está a dizer e
em qual será o próximo conjunto de exigências. E será tudo o que
fará hoje.
A câmara recua e, com um movimento brusco que faz com que
Pamela Barnes acorde de imediato, a filha de Matthew e Samantha
Keating fica visível. Está ajoelhada numa superfície rochosa, com os
braços atados atrás das costas, e veste uns calções de caqui e uma
sweatshirt cinzento-clara de Dartmouth, suja e rasgada.
Mel Keating olha fixamente para cima, com a cabeça a tremer, os
olhos muito abertos atrás dos óculos e o cabelo emaranhado. Pamela
Barnes recorda a última vez em que viu Mel Keating, no dia da sua
tomada de posse, quando parecia uma adolescente típica, um pouco
esmagada por tudo o que se passava em seu redor, por toda a
pompa e cerimónia.
Asim Al-Asheed diz qualquer coisa em árabe. Pamela Barnes arfa,
vê o que ele tem nas mãos e, numa voz que treme e que se sobrepõe
aos horríveis segundos seguintes, o seu marido, Richard, diz:
– Com todo o respeito, senhora Palumbo, os peritos contratados
pela CIA são uma boa merda.
Capítulo 67
Saunders Hotel
Arlington, Virgínia

No ecrã, está a nossa filha, Mel, olhando fixamente para cima


através dos óculos, de olhos esbugalhados e vejo, como uma
recordação dolorosa, que ainda tem vestida aquela sweatshirt de
Dartmouth que levava na última vez que a vi, naquele belo dia claro,
quando estava prestes a sair para uma caminhada com o namorado e
se ofereceu para, na volta, trazer bolos da loja local.
Oh, Mel.
Asim Al-Asheed desaparece do ângulo de visão da câmara
durante um momento, regressa e mostra o que tem nas mãos fortes:
Um sabre que parece afiado.
Na suite, há arquejos e choros, e eu olho fixamente e penso…

Naquela bendita noite alta, há dezanove anos, num quarto do


Naval Medical Center San Diego, com uma Samantha esgotada mas
sorridente numa cama, apertando um bebezinho cor-de-rosa contra si
e dizendo: «Oh, Matt, é tão perfeita… é tão perfeita.»

O rosto de Asim Al-Asheed endurece enquanto ladra uma frase


em árabe.

A pequena Mel aos cinco anos, com o rosto sério e os óculos


presos por uma tira que lhe passa pela nuca, as pernas roliças
arranhadas e com cortes, T-shirt cor-de-rosa e calções brancos,
levantando do chão a pequena bicicleta de duas rodas e dizendo:
«Papá, desta vez consigo fazer, eu sei que consigo.»

A espada sobe e sobe e sobe. A luz a brilhar na lâmina. A Mel


ajoelhada, imóvel, com os olhos cerrados com força, os lábios juntos.
A meu lado, a Samantha geme, os sons dilacerantes de uma mãe
dilacerada.
Estou na borda daquele avião, de noite, pronto a saltar para a
escuridão.

No seu quarto, no andar superior da Casa Branca, a Mel enrolada


na cama. Com os cobertores quase por cima da cabeça, o rosto
vermelho e os olhos inchados de tanto chorar, dizendo: «Papá,
porque é que me odeiam? Estavam a rir-se de mim! A rir-se de mim
na televisão! E milhões de pessoas estavam a rir também… Papá…
que é que fiz de mal?»
E eu acariciando-lhe docemente o cabelo por debaixo dos
cobertores, sabendo que não tenho nenhuma boa resposta.

A espada está a deslocar-se rapidamente, descendo em direção à


minha filha.
O ecrã de televisão da esquerda desliga-se, pois um produtor de
Atlanta sabe o que está prestes a acontecer. O ecrã apresenta agora
o sinal de transmissão da CNN com um dos pivôs da noite, chocado.
A Al Jazeera continua a transmitir, embora pareça que o pivô está
a gritar para alguém, fora do ecrã, dizendo-lhe que desligue.
Estou prestes a pular para a escuridão.
Há apenas três dias – só três dias! –, a Mel, feliz e sorridente, com
o cabelo molhado por ter acabado de sair do duche, parecendo tão
verdadeiramente feliz, tão viva, tão pronta para o dia e a perguntar-
me se eu queria que fizesse algo por mim e depois rindo antes de se
afastar, eu a pedir-lhe que me ligasse quando tivesse rede, no dia
seguinte.
E a sua resposta:
Claro, pai. Acredita em mim! Estarei sã e salva.

O relâmpago da espada a descer, tudo suspenso aqui neste


quarto, e mesmo no último segundo, a Mel abre os olhos e grita, com
uma voz forte e firme: «Mamã, não olhes!»
Agarro na cabeça da Samantha, puxo-a para o meu ombro,
enquanto…
A espada bate.
Uma explosão de sangue salpica as lentes da câmara.
Um «Oooooh» surdo e triste vem de alguém que se encontra na
sala.
Aperto a Samantha com força, muita, muita força.
Quero desviar os olhos.
Mas não vou permitir-me fazê-lo.
Um dedo parece limpar algum do sangue da lente da câmara,
espalhando-o, mas deixando a lente suficientemente limpa para ver o
que se encontra na superfície rochosa.
Um vulto enrolado de lado, a palavra DARTMOUTH ainda visível na
sweatshirt suja e rasgada, umas pernas nuas e fortes, umas plantas
dos pés sujas.
A alguns centímetros de distância uma…
Não posso dizer o que vejo.
Apenas uma forma oval com cabelo louro encaracolado, a poça de
sangue.
E uns óculos, abandonados no rochedo.

Salto para a escuridão e caio para todo o sempre.


TERCEIRA PARTE
Capítulo 68
Duas semanas depois
Lago Marie, New Hampshire

Estou sentado numa cadeira de vime no alpendre fechado da


minha casa, a olhar fixamente para as vagas de chuva que batem
violentamente no lago e nas colinas arborizadas das imediações. Há
dois Boston Whalers no lago, cada qual com agentes dos Serviços
Secretos, duplicando a vigia aquática habitual. Nos bosques que
rodeiam a minha casa, membros da CAT dos Serviços Secretos
realizam patrulhas agressivas e a Polícia do Estado do New
Hampshire montou bloqueios nas estradas, desviando o trânsito para
longe da minha estrada de acesso.
Não me lembro de ter ouvido falar de um melhor exemplo de pôr
trancas à porta depois de casa roubada.
A chuva continua a cair.
Faz frio e chove há duas semanas sem parar.
Tirando os agentes dos Serviços Secretos dentro e em redor do
recinto, cujo número também duplicou, estou sozinho em casa. A
Samantha regressou ao Maine na semana passada e atirou-se de
novo à sua escavação arqueológica. Os nossos poucos telefonemas
foram corteses e tensos. Antes da sua partida houve muitas lágrimas,
abraços, fúrias, recriminações, portas a bater e mais lágrimas e
abraços, e longas conversas até altas horas da noite, a partilhar
recordações da Mel.
A minha chefe de gabinete, Madeline Perry, veio visitar-me duas
vezes, trazendo em ambas as vezes uma seleção de cartões e cartas
de condolências vindos de todas as partes do mundo, incluindo um
bilhete manuscrito que veio por engano no conjunto: «Ainda bem que
a tua filha feia morreu. A puta da tua mulher e tu deviam ser os
próximos, traidor.»
Na semana passada, Yvette Cloutier, uma canadiana francófona
que reside na zona e trabalha aqui há seis meses como encarregada
da limpeza, rebentou num pranto quando me viu na sala de estar.
Agarrou-me nas mãos e rezou em voz alta em francês, e só parou
quando um dos novos agentes dos Serviços Secretos delicadamente
a levou embora.
Sinto-me como que preso numa grande capela mortuária, sem
corpo para chorar, mas vendo muita gente que assiste ao funeral e
anda para cá e para lá e não ousa falar demasiado alto ou rir na
minha presença.
Tenho tentado evitar, tanto quanto possível, a cobertura mediática,
mas o que vi é, em simultâneo, encorajante e desanimador. Houve
vigílias de oração em memória da Mel em instituições religiosas por
toda a nação, incursões da polícia e das forças armadas contra
células aliadas de Asim Al-Asheed, tanto aqui como no Canadá, Grã-
Bretanha e França, e centenas de pessoas reuniram-se nas estradas
que conduzem a minha casa, trazendo flores e cartões.
Mas também há quem se aproveite da morte da Mel para fazer
passar as suas ideias pessoais, desde os políticos que censuram a
Administração Barnes por ter permitido que isto acontecesse, a outros
que criticam o governador do New Hampshire por não ter dado
poderes imediatos a todos os proprietários de armas do Estado para
colaborarem na busca inicial.
Há também rumores de que a minha sucessora planeia uma ação
militar. Mas onde? E como? Quem sabe onde se encontra agora Asim
Al-Asheed, depois de ter regressado às sombras como fez tantas
vezes antes. Está no Canadá, nos Estados Unidos ou escondido
entre os seus apoiantes espalhados pelo mundo?
Praticamente, a única convulsão aqui foi quando, pouco depois de
a Samantha ter regressado ao trabalho, vieram de Washington três
agentes do FBI, com o fito de irem ao quarto vazio da Mel a fim de
passarem em revista os seus pertences e levarem o portátil dela para
análise forense.
Fiquei de pé à porta do quarto.
– Isso não vai acontecer – anunciei, incapaz de aguentar a ideia
de estranhos a remexerem nos pertences da Mel, nos seus papéis e
lendo os seus pensamentos e pesquisas privados no computador.
– Senhor Presidente – disse o agente do FBI que os comandava
–, precisamos de ver se existe algum indício de que a sua filha tenha
tido contactos anteriores com…
– Isso não vai acontecer. Ninguém vai entrar no quarto da Mel.
Ninguém vai analisar o computador dela.
– Senhor…
– A única forma de entrarem no quarto da minha filha é passando
por cima de mim, e os Serviços Secretos poderiam ter alguma coisa a
dizer sobre isso.
O FBI foi-se embora e, nessa noite, dormi no chão do quarto da
Mel, enrolado num cobertor, apenas a chorar, a recordar, e a chorar
um pouco mais.
Esfrego o rosto e a barba por fazer. Há vários dias que me não
barbeio. Os primeiros dias após o regresso ao lago Marie foram
preenchidos com muita bebida e culpa. Em seguida, sacudi tudo isso
e voltei ao trabalho, fazendo longas corridas pela estrada de acesso e
trilhos das proximidades – nunca sozinho, claro – e exercícios numa
pequena cabana junto à garagem, onde se encontram alguns pesos e
outro equipamento de treino. E fiz outro treino, um treino que tenho
escondido do meu destacamento de proteção.
Vejo as horas.
Cinco da tarde.
Tiro o iPhone do bolso, seguro-o à minha frente e começo a gravar
uma pequena mensagem em vídeo para a minha mulher.
– Olá, Sam, sou eu – digo. – O tempo está assim no lago Marie. –
Rodo o telefone lentamente para ela poder ver o cais, o barco-pontão
atracado e a praia. Aproximo o telefone de novo e continuo. – Muita
chuva. Pelo menos, mantém afastados os turistas e basbaques.
Espero que o tempo esteja melhor aí no Maine, espero que estejas a
fazer progressos, espero que estejas a fazer História aí…
Paro, pensando Idiota: Sim, está a fazer História, de facto, a
pesarosa primeira-dama, longe do marido, a única primeira-dama cuja
filha foi assassinada.
– De qualquer modo, se amanhã fizer sol, vou pegar nas
ferramentas e voltar a limpar o mato. Não se passa grande coisa…
O que significa: Não, Sam, o corpo da tua filha ainda não foi
encontrado.
– E estas são as notícias do lago Marie. Amo-te. Tenho saudades
tuas… telefona-me se tiveres oportunidade. Por agora, adeus.
Desligo e mando a massagem à Sam por e-mail, perguntando-me
se me irá telefonar.
Contemplo a chuva de novo, as canoas paradas. A recordação da
corrida de canoas e da última vez que vi a Mel abate-se sobre mim e
limpo os olhos.
A porta dupla exterior abre-se e o agente Stahl sai, acena com a
cabeça e depois olha para as águas frias e cinzento-escuras do lago.
Perdeu peso, tem o rosto crispado e cansado e parece que foi há
anos que ele e eu estivemos naquelas águas banhadas pelo sol.
– Sente-se e descanse, David – digo.
– Obrigado, senhor Presidente.
Puxa uma cadeira de vime e senta-se. Calça sapatos de vela, traz
umas calças largas bege um polo azul-escuro amarrotado.
Passam uns segundos e diz:
– Senhor, temos cá alguns agentes novos. Penso que hoje à noite
seria um bom momento para lhes dar a conhecer as suas habilidades
no póquer.
Em qualquer outro momento, teria sorrido e respondido de bom
grado que sim porque uma das alegrias simples que tive foi jogar
póquer, por vezes em sessões que duravam toda a noite, com os
agentes aqui colocados, ganhando mais vezes do que perdia.
Mas este não é outro momento qualquer.
– Hoje talvez não – respondo –, e talvez nunca, se o agente
Peyton estiver de serviço.
David faz um esgar. Um dos novos agentes é Brett Peyton, que é
rude e está cheio de si mesmo e que, desconfio, depende
diretamente de Faith Murray, vice-diretora-adjunta responsável pelo
Destacamento de Proteção Presidencial, que está a preparar uma
purga e ação disciplinar contra o meu destacamento original.
– Quais são as últimas? – pergunto.
– A busca está a ser alargada ao Maine e ao Estado de Nova
Iorque, bem como ao Sul de Vermont e ao Sul do Ontário e do
Quebeque. Tem havido muitas comunicações e pistas sobre o
hidroavião, no entanto, infelizmente, ninguém consegue lembrar-se
de um número de registo e, por isso, não podemos procurá-lo. E com
o número de lagos, lagoas e rios isolados considerando a autonomia
de voo daquele hidroavião…
Para, e ambos sabemos que não tem de continuar.
As probabilidades de o corpo da Mel ser encontrado em breve
são, de facto, muito reduzidas.
Faço um enorme esforço para dizer as frases seguintes com uma
voz firme e resoluta, como se fizesse um discurso sobre o estado da
União, e falho logo nas primeiras palavras.
– Quando for encontrada, seja onde for, David… e chegar o
momento de ser retirada… quero que esteja lá, com mais cinco
agentes do destacamento original… quero que a traga para casa.
Está bem?
As lágrimas correm-lhe pelo rosto e responde, com voz rouca:
– Senhor Presidente, não podemos fazer isso.
– Porquê?
– Porque faltámos ao que lhe tínhamos prometido… e também
falhámos consigo e a senhora Keating. Não estaria certo.
Abano a cabeça.
– Todos faltámos ao que lhe havíamos prometido, David. Faça-o.
Está bem? Traga a minha menina para casa.
Limita-se a assentir com a cabeça e eu retribuo.
Depois de terem passado mais minutos cinzentos, acrescento:
– Admiro-o, David, a si e aos outros agentes, pelo trabalho que
fazem, por se manterem alerta durante longas horas de tédio,
viajando comigo e ouvindo o mesmo discurso monótono, uma e outra
vez, e aturando-nos a nós, os protegidos. É um trabalho difícil de que
a maior parte das pessoas não sabe senão as tretas que vê na
televisão ou no cinema.
Não diz nada, o que é ótimo.
– As minhas desculpas antecipadas, David, porque, neste mau
bocado, vou tornar a sua vida e as vidas dos outros agentes muito,
muito difíceis na verdade.
– Como assim, senhor Presidente?
Contemplo de novo a praia impregnada de água pela chuva.
Penso na altura em que a rede de voleibol estava colocada, na Mel e
nos seus amigos de Dartmouth a rir e jogar, gozando os melhores
momentos das suas vidas, sendo todos os dias aqui um dia perfeito
com muito sol, sem chuva, nem nuvens, nunca.
– Vou desaparecer nas próximas semanas – digo. – Irei a lugares,
falarei com pessoas. Algumas não serão, provavelmente, gente boa.
E virá um dia em que encontrarei Asim Al-Asheed e vou olhar para
ele, cara a cara para que saiba que estou ali, de pé à sua frente,
durante os seus últimos segundos.
Faço uma pausa.
– E depois vou rebentar-lhe aquela maldita cabeça.
Capítulo 69
Lago Marie, New Hampshire

Tenho de reconhecer que o agente Stahl, honra lhe seja feita, não
pestaneja, não protesta, não diz uma palavra.
Continuo:
– Pelo caminho talvez possa encontrar o piloto do hidroavião que
ajudou Asim a fugir com a minha filha. Talvez encontre o homem que
lhe vendeu a corda com que ela foi atada e o homem que deu a Asim
a espada que usou para a decapitar. E, se encontrar essas pessoas,
matá-las-ei a todas.
Faço uma nova pausa.
Nem uma palavra do agente Stahl.
– A determinado momento vou sair daqui, sem a sua aprovação e
sem o conhecimento do diretor dos Serviços Secretos, nem do
secretário de Segurança Interna. Está a compreender o que digo,
David?
– Sim, senhor Presidente.
– Não há nada neste mundo que me vá impedir – digo, com a voz
calma e sem tremer, não como quando falei em recuperar o corpo da
Mel. – Se quiser apresentar os seus argumentos para me convencer
a fazer outra coisa, força. Vai ser um desperdício de tempo, mas serei
educado e ouvi-lo-ei. Se você e os restantes agentes que aqui se
encontram quiserem impedir-me de o fazer, vão ter de me algemar na
sala de segurança.
David retruca:
– Está bem, senhor Presidente. Nesse caso, oiça, por favor, o que
tenho a dizer.
– Concordei que o faria.
Olha-me diretamente com o seu rosto cansado e olhos
perturbados, declarando:
– Quero ir consigo.

Após um momento de surpresa do meu lado, digo:


– Calma, David, calma. Vai ser difícil, duro e, na sua maior parte,
ilegal. Se vier comigo…
Abana a cabeça.
– O quê? Se for consigo, a minha carreira acaba? Já acabou.
Tudo o que resta são audições no Congresso e procedimentos
disciplinares. Terei sorte se conseguir ficar com a minha pensão e,
neste momento, estou a cagar-me para tudo isso. Quero ajudá-lo,
senhor Presidente.
– David…
Inclina-se para a frente na gasta cadeira de vime.
– Senhor Presidente, deixe-me alterar o que acabei de lhe dizer.
Preciso de ir consigo.
Os seus olhos continuam perturbados, mas também há neles uma
súplica.
– O que procura, David? Redenção?
Um abanar brusco da cabeça.
– Não, senhor. Tal como no seu caso, justiça.
Há determinação nos seus olhos e tenho a certeza de que procura
justiça, mas vejo o que quer dizer quando afirma que precisa disto.
Todos precisamos.
– Muito bem – retruco, entrelaçando os dedos das minhas mãos
cansadas. – Vou precisar de muitos telefones pré-pagos e cartões de
débito pré-pagos emitidos com endereços de e-mail falsos. E talvez
venha a precisar que alguns operacionais de confiança se juntem a
mim. Vou fazer muita investigação, muita pesquisa fora dos canais
oficiais. Se quer ajudar-me, passe um dia ou dois a deslocar-se a
diferentes lojas da zona… certifique-se de que usa um chapéu ou
algo que lhe oculte as feições. Compre um portátil Chrome, ou algo
semelhante, no Best Buy. Os telefones em lojas diferentes. Precisa de
criar uma conta encriptada de e-mail para ativar os telefones e
comprar alguns cartões de débito pré-pagos. Depois…
Paro.
Há um leve sorriso no rosto dele.
– Desculpe, David – digo. – Estou a explicar-lhe o seu trabalho, a
ensinar o padre-nosso ao vigário. Não precisa que lhe diga estas
coisas. Sabe do que preciso e qual a melhor forma de o conseguir.
– Tudo bem, senhor Presidente – afirma, levantando-se da
cadeira. – Dentro de minutos vou fazer a ronda do perímetro. Se o
senhor tiver o dinheiro quando eu voltar, posso pôr-me ao trabalho.
– Obrigado, David.
– Mas devo dizer, e com as minhas desculpas, que já sabia o que
andava a preparar.
Isto surpreende-me.
– Como?
– Porque sei que, enquanto fazia exercícios na cabana durante as
duas últimas semanas, tinha as suas armas consigo e esteve a fazer
treinos de disparo sem munição, para se habituar de novo a
empunhar uma espingarda automática ou uma pistola. É bastante
claro se uma pessoa se aproximar o suficiente da cabana e escutar.
Talvez devesse ficar preocupado. Porém, em vez disso, estou
impressionado.
– Uma vez mais, bom trabalho, David. Obrigado.
Ao avançar para a porta dupla, faz algo que não é nada
profissional nem próprio dos Serviços Secretos. Um aperto delicado
no meu ombro.
– Não, senhor Presidente – diz. – Eu é que devia agradecer-lhe.
Regressa à casa principal e eu espero durante algum tempo,
olhando para o céu nublado onde parece que a chuva parou
finalmente, reduzindo pelo menos o nível de sofrimento daqueles
agentes encharcados que estão nos dois Boston Whalers.
Esfrego o rosto e o queixo.
Está na hora de me barbear, tomar um duche e vestir roupas
lavadas.
Está na hora de voltar ao trabalho.
Capítulo 70
Lago Marie, New Hampshire

Depois de ter verificado a segurança do perímetro – e descoberto


que uma equipa de dois agentes da CAT acabou de prender um
fotógrafo de um tabloide sensacionalista que tentava infiltrar-se na
propriedade com o objetivo de tirar fotografias ao antigo presidente
enlutado –, o agente David Stahl dirige-se à cozinha para beber um
copo de água fria antes de sair. Alguns minutos antes, esteve no seu
escritório, no celeiro, onde encontrou um envelope branco com vinte
notas de cem dólares, novas em folha, em cima da cadeira.
Mas a chefe de gabinete Madeline Perry está a bloquear-lhe o
caminho para o frigorífico de aço inoxidável na grande cozinha, e
ostenta uma expressão dura e determinada no rosto. Veste calças
largas pretas, uma camisola de malha vermelha com as mangas
arregaçadas, e não parece contente.
– Precisamos de falar, David.
– Está bem – assente, sem saber qual é o problema e esperando
que não seja nada importante. David teve anos de experiência a lidar
com pessoal da Casa Branca e essa gente tinha pontos de vista
sobre os agentes dos Serviços Secretos, que iam desde pensarem
que eram criados às suas ordens, anjos da morte carrancudos ou
parte do fundo a ignorar. Considerando bem as coisas, David prefere
ser ignorado. Fazer parte do fundo: é a isso que se resume a sua
função.
No que se refere a Madeline, David descobriu que é dura, embora
razoável. Compreende a função dos Serviços Secretos na casa deste
antigo Presidente, contudo não tem medo de os fazer recuar, quando
pensa que alguns agentes são demasiado agressivos a impor as
normas.
Na maior parte das vezes, gostou de trabalhar com ela, mas
alguns segundos depois essa imagem despenha-se em chamas,
como um bombardeiro da Segunda Guerra Mundial abatido por
caças.
Diz-lhe, com voz fria:
– Que raio de ideia é essa de ajudar o Harbor a planear uma
missão para assassinar Asim Al-Asheed? Isso é uma loucura.
Como, com os diabos?, pensa, e ela prossegue:
– Sei o que está a pensar. Não me orgulho disso, e reconheço-o,
mas estava a passar junto à porta dupla de acesso ao alpendre
quando o ouvi a falar com o Harbor. David, com os diabos, em que
está a pensar?
David está a pensar a toda a velocidade – é nisso que está a
pensar. Sabia que, mais adiante, teria de fazer alguma manipulação e
falsificação a sério a fim de que as coisas se concretizassem para o
Presidente e para si, mas não esperava que o raio da coisa ficasse
comprometida ainda antes de ter começado.
– Não é uma loucura – afirma.
– Pode ter a certeza de que parece, porra! – diz ela. – Sei que ele
está a sofrer, sei que procura vingança… todos procuramos!… mas
isto é demência. Deixem os profissionais tratar do assunto e não um
antigo Presidente com uma anca inútil que está esmagado pela dor e
a culpa.
– Profissionais? A Administração Barnes não se cobriu de glória,
agora, pois não? Em especial com aquela história da treta de que a
Presidente queria, na verdade, pagar o resgate, mas foi impedida
pelo FBI e outros. Viu os artigos posteriores. A manipulação dela foi
tão má.
– Não temos a certeza disso, pois não? – argumenta Madeline. –
Trata-se apenas de um lado a manipular para atingir o outro. As tretas
típicas de Washington, eu sei, mas, por favor, sabe que isto devia ser
entregue aos profissionais.
– Bem, os profissionais andam há anos à procura de Asim Al-
Asheed e voltaram de mãos a abanar, uma e outra vez. Porque é que
desta vez será diferente?
– E pensa que o Harbor vai ser capaz de o fazer? A sério?
Stahl inspira fundo, tenta mudar de assunto e manter a calma.
– Maddie… que se passa? Trabalhou durante anos com o Harbor,
a mulher e a filha. Porquê esta oposição?
Ela desvia o olhar e Stahl sabe que acertou no alvo. Há qualquer
coisa por detrás da atitude intempestiva da chefe de gabinete, além
do seu mero desejo de desviar o Harbor de fazer o que tem de ser
feito.
Os olhos de Madeline estão agora virados para ele, muito abertos,
turvos.
– Acreditei nele, David, e achei nojento quando lhe foi negado um
segundo mandato. E pensei que podia respeitá-lo acompanhando-o
na sua pós-presidência, sobretudo quando disse que ia criar uma
fundação de beneficência para os ex-combatentes.
As lágrimas começam a correr.
– O Harbor não sabe isto e, portanto, não lhe conte, por favor, mas
um dos meus primos serviu com honra nos Rangers. No final do
mandato do Harbor, morreu de frio nas ruas de Detroit, como outros
ex-combatentes sem-abrigo por todo o país. O Harbor disse que isso
nunca mais voltaria a acontecer, e que a sua fundação ia cuidar dos
ex-combatentes… de todas as suas necessidades.
Agora tudo faz sentido, pensa Stahl.
– A fundação ainda não foi criada, pois não?
Madeline Perry abana a cabeça.
– No papel, sim. Mas onde é importante, nas contas, quase não há
dinheiro. Estávamos a planear que ele escrevesse as suas memórias,
cobrindo tudo, desde o facto de ter crescido pobre no Texas ao
serviço militar nas equipas, depois uma carreira na política e em
seguida o choque de ser Presidente. Esse livro ia gerar milhões de
dólares para ele e para a sua fundação de beneficência, e então a
ajuda começaria a circular de modo que nunca mais haveria um ex-
combatente sem-abrigo nas ruas.
Inspira fundo.
– Mas não escreveu uma única palavra, porra. É sempre
«Amanhã, amanhã ou para a semana», enquanto eu tento ajudar o
Robert Barnett, o seu agente literário, a negociar um bom contrato de
edição sem que haja sequer um maldito esboço. Agora… quer partir
numa missão de vingança. Você sabe que não vai funcionar. Vai
acabar em humilhação.
– É possível – retruca Stahl. – Mas isso não tem importância
agora, pois não? Ele vai.
– Tem importância, sim – diz Madeline Perry, com voz firme. – Se
falhar, e eu sei que falhará, os editores vão deixar de me atender o
telefone e os ex-combatentes que ele quer ajudar serão ignorados.
– Maddie, está a apresentar bons argumentos, mas isso está
acima da minha responsabilidade. Ele vai fazê-lo e não o podemos
impedir.
– Por favor, David. Deixe que sejam os organismos especializados
a perseguir Asim Al-Asheed. Têm muito mais recursos do que o
Harbor poderá alguma vez reunir sozinho.
Stahl começa a afastar-se da chefe de gabinete do Presidente,
pensando que vai ter de esperar um pouco mais para beber a sua
água fria.
– Mas não têm uma coisa, Maddie – diz.
– O quê?
– Um pai determinado a fazer o trabalho, custe o que custar.
Capítulo 71
Lago Marie, New Hampshire

Sozinho no meu escritório, algo que poderia ser um bom título


para um livro, num destes dias, a intensidade das luzes foi reduzida e
recosto-me na velha cadeira giratória de couro que veio com a casa.
O computador está desligado, e não se vê nada para fora da minha
pequena janela, o que é ótimo. Não há luzes distantes no lago que
assinalem a presença de vizinhos a divertir-se, a viver a vida, a rir e a
conversar.
As estantes do meu pequeno escritório estão cheias de livros de
História, autobiografias e livros de referência sobre assuntos militares
e há outros semelhantes empilhados no chão. A Samantha metia-se
comigo amiúde dizendo que tenho demasiados livros e eu retrucava:
«Não, o problema é não ter estantes suficientes.»
O pouco espaço que sobra na parede ostenta fotos de família
emolduradas, alguns debotados instantâneos a cores da minha
infância e adolescência no Texas com Lucile Keating, a minha mãe,
que morreu há dez anos com um cancro de pulmão. O meu pai era
Gus Keating, que trabalhava numa plataforma petrolífera no golfo do
México, que se embebedou com whisky Jack Daniel’s de
contrabando, caiu ao mar e se afogou, quando eu tinha cinco anos.
Há inúmeros livros e estudos sobre os SEAL, e um facto estranho que
sobressaiu foi que a maior parte dos operacionais – tal como eu –
vem de um lar desfeito ou foi criado por um único progenitor.
Ao longo dos anos, resisti à tentação de criar uma parede «Vejam-
como-eu-sou-bom», com placas, troféus e certificados emoldurados.
É um sinal de que se está a olhar para trás e sempre fui de olhar para
a frente.
Sobre a minha secretária, com o computador silencioso,
encontram-se as fotografias que mais significado têm para mim: da
jovem Mel a crescer, de mim orgulhosamente ao lado da Samantha
quando se doutorou, e uma tirada há um par de invernos, aqui, no
pátio da frente coberto de neve, com os três de pé e a sorrir no meio
da brancura, prontos para o que quer que estivesse à nossa frente
durante a minha pós-presidência.
Retiro um bloco de apontamentos amarelo de uma pilha que a
Maddie Perry arranjou há uns meses para me ajudar na escrita da
minha autobiografia. Pego numa caneta e meto-me ao trabalho.
Não tenho tempo para me preocupar com o passado, penso.
A meus pés, encontra-se um saco de plástico branco e azul do
Walmart, e retiro dele o primeiro de cerca de uma dúzia de telefones
da Tracfone carregados e ativados, adquiridos em diversas lojas por
todo o condado. Usando o meu iPhone pessoal como lista telefónica,
faço a primeira chamada internacional. Toca repetidamente e depois
uma voz irritada, com uns laivos do sotaque de Brooklyn, responde.
– Quem fala, porra? – pergunta Danny Cohen, o chefe reformado
da Mossad. – E como obteve este número?
– Danny, por favor não desligue – digo. – Fala Matt Keating.
O seu tom de voz muda de imediato e retruca:
– Oh, Matt, Matt, desculpe ter respondido assim. O meu telefone
dizia número desconhecido e…
Interrompo-o:
– Estou a usar um telefone descartável. O seu é seguro?
– É. Matt, repito, a Dora e eu damos-lhe as nossas mais sentidas
condolências pela perda da Mel. De partir o coração.
– Eu sei – retruco, segurando a caneta com firmeza. – O cartão e
a carta que nos enviaram foram muito bem acolhidos. Mas, Danny…
– Sim – diz, frontalmente. – Está a usar um telefone pré-pago. Não
é um telefonema de cortesia. Que tipo de ajuda procura?
– Tudo e mais alguma coisa sobre Asim Al-Asheed, os seus
amigos, cúmplices, qualquer coisa que me possa dar uma boa pista
quanto ao seu paradeiro atual.
– Feito – responde. – Quanto tempo vai ter em seu poder esse
telefone descartável?
– Um dia – informo, espantado com a resposta rápida e afirmativa
de Danny. – Amanhã, começo a utilizar um novo.
– Nesse caso, sinta-se à vontade para me telefonar a qualquer
hora, seja por que motivo for, para atualizações. Vou começar a
trabalhar nisto. Sei que os seus serviços de informações também
andam à procura do Asim, mas ambos sabemos o que acontece
quando serviços concorrentes procuram a mesma informação.
Não preciso de que me lembrem. A catástrofe do 11 de Setembro
poderia ter sido evitada se a CIA, o FBI, as Alfândegas e outros
tivessem posto de lado as suas disputas territoriais e se o Congresso
tivesse autorizado comunicações entre os canais que permitissem
que esses organismos trocassem facilmente dados e informações.
As coisas melhoraram desde essa terça-feira negra, mas ainda há
algum caminho a percorrer.
– Danny… isso é de uma generosidade incrível. Estava mais ou
menos à espera de alguma resistência. Ou muitas perguntas.
– Não tenho perguntas a fazer-lhe porque sei o que está a planear
e não estou em posição de discutir consigo ou tentar desencorajá-lo.
Conhece a nossa história, Matt. Sabemos a importância da família e a
importância de ajustar contas, por mais tempo que passe, custe o que
custar. Uma vez mais, telefone a qualquer momento. É uma honra
ajudar. Shalom lekha, meu amigo.
Desliga. Esfrego os olhos e volto ao trabalho.

A segunda chamada é quase idêntica à primeira, só que o sotaque


é um misto de árabe e inglês britânico.
– Quem fala? – é a pergunta brusca de Ahmad Bin Nayef, antigo
vice-diretor da Direção-Geral de Informações da Arábia Saudita. –
Donde está a falar?
– Do New Hampshire, Ahmad – respondo. – Fala Matt Keating.
Tal como aconteceu com Danny, o tom de voz altera-se.
– Ah, Matt, é bom ouvir-te e, uma vez mais, as minhas mais
sentidas condolências. Como estás e como está a Samantha?
– A Samantha voltou ao trabalho, a tentar sobreviver, dia a dia.
Quanto a mim, faço o melhor que posso… Ahmad, esta chamada é
segura? Estou a usar um telemóvel descartável.
– Sim, sim, muito segura, caso contrário o meu sobrinho e eu
teríamos problemas. Matt, por favor, que posso fazer por ti?
– Tudo o que souberes sobre o paradeiro de Asim Al-Asheed. Não
tem de ser cem por cento, pode ser qualquer coisa que dê origem a
uma pista. Tudo o que tiveres que possas partilhar.
Passam uns instantes.
– Tens a certeza, meu amigo?
– Absoluta.
– A tarefa que vais empreender é perigosa.
– Estás a dar-me uma resposta negativa?
– Ó Matt, de modo algum, de modo algum. Só que… e, por favor,
isto é dito com o mais profundo e verdadeiro afeto, e com o maior
respeito, mas é uma tarefa para um homem mais novo. Ou homens
mais novos. Com capacidades mais recentes e que não tenham,
infelizmente, uma anca em mau estado.
– Isto tem de ser feito.
– Sim, claro – concorda Ahmad. – Mas deixa-me propor-te uma
alternativa. Se tiver uma sorte incrível e, de alguma forma, conseguir
obter informações sobre o Asim com que possamos fazer alguma
coisa, encarregar-me-ei pessoalmente disso. Podia transmiti-las aos
funcionários competentes aqui do Reino, mas talvez fiquem por lá
para serem analisadas e reanalisadas, sem ser partilhadas com
outros organismos. Aqui, em Riade, lamento dizê-lo, há quem admire
Asim Al-Asheed.
É difícil de ouvir, mas sei que o Ahmad tem razão. E prossegue:
– Quanto a mim, porém, se souber onde está, graças à sorte e à
bondade de Alá, posso enviar um esquadrão de homens, muito fortes,
muito duros, treinados pelos vossos SEAL e os SAS britânicos, e eles
farão o trabalho por ti.
Meu Deus, que oferta tentadora, mas não posso aceitar, se
esperar viver de consciência tranquila nos anos vindouros.
– Ahmad, estou mais comovido e honrado do que consigo dizer,
mas tenho de ser eu a fazer isto. Pela… minha família.
Responde sem delongas.
– Compreendo perfeitamente. Sabes como contactar-me e
prometo não te rosnar da próxima vez que me aparecer número
desconhecido no ecrã do telefone. Mas, a todo o momento, Matt, a
minha oferta mantém-se. Podemos fazer isso por ti.
– Mais uma vez, obrigado, Ahmad, mas tenho de resolver isto
pessoalmente.
– Muito bem – retruca. – Wadaeaan, Matt.
Terminada a minha segunda chamada e antes de voltar ao
trabalho, penso na estranheza do que aconteceu. Há anos, o avô do
Danny e o avô do Ahmad sem dúvida que se odiavam, odiavam o
país e o povo do outro e cada qual, à sua maneira, teria tido um
imenso prazer em ver o outro destruído.
E agora?
Os seus netos não só trabalham secretamente em conjunto,
naquela região agitada para alcançar uma qualquer forma de paz e
estabilidade, mas também se esforçam agora por ajudar um antigo
Presidente americano na sua missão pessoal.
Talvez ainda haja esperança naquelas paragens, algures.
Volto aos meus telefones e regresso à tarefa que tenho entre
mãos.
Capítulo 72
Lago Marie, New Hampshire

São duas da manhã no Montana quando faço a terceira chamada.


Enquanto o telefone toca repetidamente, pergunto-me quem irá
atender por fim na linha fixa pertencente a uma casa de campo
isolada, perto das montanhas Beartooth, pertencente a Trask Floyd,
realizador de cinema, ator de filmes de ação e antigo operacional que
me proporcionou o transporte para Washington há uns longos dias. O
telefone toca durante um bom bocado e depois uma voz masculina
ensonada responde e diz lentamente, com elegância:
– Se é uma aspirante a atriz convencida de que o seu lugar é no
meu próximo filme porque consegue rir na hora H, desligue. E se é
um antigo operacional que procura uma esmola, envie o seu CV para
a minha caixa postal. Fora esses casos, se ligar de novo, vou
persegui-lo e dar-lhe um pontapé no cu.
– E que tal o ex-líder do mundo livre? – pergunto.
Um palavrão rápido e uma voz, já completamente acordada,
responde:
– Senhor Presidente, desculpe. Não reconheci o número.
– E há um motivo para tal, Trask. Estou a usar um telefone pré-
pago e a ligar para a tua linha fixa. E, por favor, chama-me Matt.
Um bocejo do outro lado do fio.
– Desculpa, Matt, foi uma reação automática. E, raios, continuo
tão triste com o que aconteceu à Mel. Meu Deus.
– Obrigado, Trask.
– Como sabias que eu estaria em casa?
– Vi uma notícia no Google sobre estares a assistir a um festival
de cinema em Boise e calculei que provavelmente irias para a cama
depois de uma farra como aquela.
Começa a falar e depois cala-se e pergunta:
– Telefone pré-pago, hem?
– Sim.
– Do que precisas?
O bom do Trask a ir direito ao assunto.
– De dois operacionais hábeis que conheças e em quem confies.
Têm de ter passado à reforma recentemente ou estar em licença
prolongada. Têm de estar disponíveis rapidamente e de poder
desaparecer por algum tempo sem que haja perguntas.
Trask responde:
– Basta um, eu serei o segundo.
– Trask, é uma ótima oferta, mas…
– Matt – interrompe-me –, estou em tão boa forma como quando
saí das equipas. Vou quase todos os dias à carreira de tiro e, comigo,
tens fundos e opções.
– Mas também tenho o Trask Floyd, ator e realizador de cinema.
Extremamente reconhecível, com uma data de fãs esquisitos a
acompanharem todos os teus movimentos.
– E tu? – contrapõe, com incredulidade. – O antigo Presidente?
– O antigo Presidente vestido com roupas velhas, e com óculos
escuros, a barba por fazer e um boné de beisebol – digo. – Sou só
mais um tipo num carro ou a apanhar um voo. Os antigos Presidentes
são reconhecíveis quando estão bem-vestidos, rodeados por um
grupo de agentes dos Serviços Secretos, a fazer um discurso ou
presentes num programa de televisão por cabo. Não é isso que vou
fazer.
– Nesse caso, deviam ser três. Matt, quero participar.
– Arranja-me dois operacionais e alguns fundos e apoio adicionais
quando eu precisar, e já estarás a participar, Trask. Não tornes as
coisas mais difíceis.
Um suspiro.
– Está bem. Combinado. Dois operacionais. Para onde os mando?
– Telefono-te ao meio-dia, tua hora local, dentro de dois dias. Está
bem?
– Tem de estar, claro, não é?
– Obrigado.
Trask diz:
– OK. Mesmo que não vá andar de arma em punho contigo para
onde quer que vais, continuo a apoiar-te. E se voltares com a cabeça
daquele filho da puta numa caixa cheia de gelo, faremos uma festa no
meu rancho que será falada durante cem anos. Tem cuidado contigo,
senhor Presidente.
– Obrigado, Trask – digo, desligando a chamada. Abro a tampa
traseira do Tracfone, retiro a bateria e o cartão SIM e depois parto-o
ao meio. Levanto-me da cadeira e, alguns minutos depois, estou no
final do pontão, nesta alta noite calma no lago Marie.
As nuvens desaparecerem do céu noturno do New Hampshire
setentrional. Contemplo todas as estrelas durante um momento, bem
como todos os milhares de milhões de galáxias existentes. Em
algumas noites, uma vista como esta enche-me de assombro, a
pensar num Criador que montou tudo isto. Noutras, enche-me de
desespero, a pensar naquela grandeza distante e neste pequeno grão
de pó, onde tanto tempo é gasto a odiar e matar.
Atiro o cartão SIM partido e o telefone para as águas escuras do
lago e paro de contemplar as estrelas. Meto a mão no bolso das
calças e toco no anel da Mel, aquele que deixou para trás quando foi
raptada e mais tarde nos foi devolvido pelo FBI.
– Asim – murmuro –, vou encontrar-te.
Capítulo 73
Lago Marie, New Hampshire

O agente David Stahl, dos Serviços Secretos, está do lado de fora


da garagem da casa do Presidente Matt Keating, perto da cabana
onde Harbor faz exercício físico, pronto para se deslocar à vila para
fazer alguns recados agora, ao princípio da noite, quando uma voz
masculina aguda o chama:
– Eh, David! Antes de ires embora. Tens um segundo?
O agente Brett Peyton, seu colega dos Serviços Secretos,
caminha na sua direção com um sorriso e um olhar feliz, e David
contém-se para não suspirar de desagrado com a aproximação do
homem. Peyton tem o aspeto do agente de sonho de qualquer
funcionário do recrutamento da Segurança Interna: alto e bem
constituído, bronzeado e tonificado, um cabelo castanho perfeito que
nunca está desgrenhado e um ar encantador.
Também é o agente preferido de Faith Murray, vice-diretora-
adjunta responsável pelo Destacamento de Proteção Presidencial; ela
é a chefe de David e a mulher que, há uns meses, lhe disse para
parar de proteger oficiosamente Mel Keating. Ademais, há muitas
semanas que David tem feito pressão para ter apoio de um agente
especial e Brett foi nomeado para o lugar.
– Claro, Brett. Que se passa?
– Vais à cidade?
Não, idiota, pensa David, vou dar uma volta de automóvel até
Cape Cod.
– Pois. Queres que te traga alguma coisa? Café Green Mountain?
Um cruller? Uma garrafa de Moxie?
– Não, não, não – riposta Peyton, calmamente. – Só acho
estranho, mais nada. És o chefe deste destacamento de proteção e,
no entanto, estás a fazer algo que devia ser pedido a um agente
novato.
– Gosto de sair de vez em quando, ver o que se passa na
comunidade, sentir o pulso à zona.
– Insere-se nos teus procedimentos habituais, é isso? – pergunta
Peyton, e David lembra-se de novo do verdadeiro motivo da presença
dele: não para colaborar na proteção de Harbor ou ajudar David,
como seu adjunto, mas para reunir informações sobre David e o
destacamento, para que possam ser humilhados pública e
sonoramente, e despedidos, no momento certo, por terem permitido
que a filha do Presidente fosse raptada e assassinada.
– Não, Brett – responde David, passando a mão pelo lado
esquerdo da cabeça. – Faz parte da minha experiência no terreno.
Devias tentar, um dia.
Peyton continua a sorrir e David entra para um dos quatro
Chevrolet Suburban negros que pertencem ao destacamento e
arranca para Monmouth.
A estrada de acesso é de terra batida, mas está bem mantida e,
enquanto conduz, pensa em Harbor e no que este quer, e
surpreende-o pensar que esta missão improvável melhorou o seu
estado de espírito, lhe recarregou as baterias.
Não existe a menor probabilidade de ter êxito, sabe bem disso,
porque há demasiada gente atenta por aí, a seguir Harbor, no
entanto, por Deus, ele e Harbor e quem quer que for recrutado farão o
melhor que puderem.
À frente fica a nova portaria de madeira, guarnecida por dois dos
novos agentes transferidos, que lhe fazem sinal mandando-o passar,
e vira à direita, dirigindo-se para a pequena vila de Monmouth. Chega
junto de um bloqueio de estrada feito por agentes bem armados da
Polícia do Estado do New Hampshire, que também o deixam passar.
Apercebe-se dos fumos negros nos seus distintivos – ainda de luto
pela morte da agente Corinne Bradford, de Monmouth, que tanto fez
para encontrar o local de cativeiro de Mel Keating.
Observa com prazer o número reduzido de pessoas que se juntam
de cada lado da estrada de campo, basbaques que procuram um
qualquer vestígio de um Harbor solitário e triste. Há mais de duas
semanas que a vila de Monmouth está cercada pelos meios de
comunicação social e diversos tipos de falhados, médiuns e gente
que procura atenção, e David deseja que uma tempestade de neve se
abata de súbito sobre o lugar, alguns meses antes do habitual, para
fazer com que estas pessoas regressassem aos seus tristes lares.

Rodney Pace caminha para cá e para lá, para cá e para lá, no


apinhado parque de estacionamento de terra batida do Cook’s
General Store, à espera, sabendo que, se não se encontrar com Matt
Keating esta noite, passará mais uma noite a dormir no banco traseiro
do seu velho sedan Monte Carlo, e não tem a certeza de que as suas
costas consigam sobreviver a isso.
Há três dias, tomou a importante decisão de deixar o seu
atravancado estúdio de merda, em Baltimore, vir encontrar-se
pessoalmente com o antigo presidente e explicar o que está a
acontecer na realidade, mas as suas tentativas de se aproximar da
casa de Keating, junto ao lago, não estiveram sequer perto de ser
bem-sucedidas.
Demasiados bloqueios de estrada, demasiados polícias e, acima
de tudo, demasiada gente.
Ao fazer pesquisa sobre esta localidade rural, Rodney ficou a
saber que Monmouth tem uma população estimada de apenas mais
ou menos seiscentas almas, mas, olhando em seu redor no parque
de estacionamento, pensa que parece mesmo que a população da
vila duplicou. No estacionamento, há carrinhas de noticiários de
diversos canais de televisão por cabo e estações locais, carrinhas e
carros alugados, e pessoas que se limitam a vaguear com copos de
café, conversando e mexericando, todos à espera.
Não aguardam pelo fim das buscas e salvamento. Não, essas
palavras mudaram.
Agora, é uma recuperação.
O corpo de Mel Keating.
Como se fosse simples.
A loja parece uma casa vitoriana de dois andares, recuperada,
amarela e com um alpendre frontal aberto. Cartazes desenhados à
mão e dependurados no exterior anunciam pequenos-almoços de
panquecas aos domingos, patrocinados pela igreja, feno para venda
por agricultores, rifas para ajudar a pagar o transplante renal de
alguém. No interior, ao longo dos soalhos de madeira que rangem e
devem ter pelo menos cem anos, há caixas de cereais à venda a um
corredor de distância do óleo para motores e a mais um dos corta-
unhas e escovas para cavalos.
O estômago de Rodney ronca.
O seu plano era encontrar-se com o Presidente, ser
recompensado pelos seus esforços, mas está sem dinheiro, com
menos de um dólar em trocos no bolso direito do casaco.
E agora?
Um Chevrolet Suburban negro detém-se do outro lado da estrada
estreita e um homem musculado sai de lá de dentro. Rodney deixa de
andar para trás e para a frente, para trás e para a frente, maravilhado
com o que vê.
Um agente dos Serviços Secretos.
É quem aquele homem é.
Precisamente ali.
Agora, a única coisa que tem de fazer é convencer o agente dos
Serviços Secretos a levá-lo à presença do Presidente Keating.
Rodney começa a avançar para se encontrar com ele e enfia a
mão no bolso direito do seu casaco de tecido fino, agarrando na
coronha do revólver Smith & Wesson calibre .38 que pertenceu ao pai
quando, há anos, era polícia em Baltimore.
De uma forma ou de outra, Rodney vai ver o Presidente Keating.
Capítulo 74
Monmouth, New Hampshire

O agente David Stahl, dos Serviços Secretos, sai do Suburban,


começa a atravessar a estreita estrada rural em direção ao Cook’s
General Store, abanando a cabeça ao ver a confusão que por ali vai.
Há três semanas, podia ter estacionado mesmo à porta da loja, talvez
com dois ou três carros e uma ou duas carrinhas de caixa aberta
salpicadas de lama no parque de gravilha e agora não há espaço
para mais veículos. O interior também costuma estar cheio de gente
e, em vez de passar alguns minutos divertidos a conversar com a
senhora Grissom, a dona da loja, ou os seus dois filhos, Clay e Todd,
agora David limita-se a entrar, compra o que que tem a comprar e
regressa a casa.
Hoje, trata-se de comprar café para o turno da noite, bem como
alguns artigos avulsos, e David espera ser capaz de sair sem nenhum
jornalista o reconhecer e lhe fazer perguntas, a começar por Como é
que deixaram que a filha do Presidente fosse raptada e assassinada?
O alpendre e o parque de estacionamento estão cheios daqueles
malditos repórteres, basbaques, chorões e pessoas que procuram
emoções, que esperam ver Harbor aparecer ou – mais excitante! –
ver passar um furgão verde-escuro do Instituto de Medicina Legal do
New Hampshire, escoltado por carros-patrulha da Polícia do Estado
do New Hampshire, transportando os restos mortais de Mel Keating,
de dezanove anos.
Que vão todos para o inferno!
David muda do seu desejo anterior de que uma extemporânea
tempestade de neve atinja estes parvos e, ao invés, anseia que o
fogo do Inferno referido no Antigo Testamento faça a sua aparição,
quando repara em alguém que vem na sua direção e parece um
profeta do Antigo Testamento. Escanzelado, com uns jeans largos,
casaco bege rasgado, barba áspera e cabelo espesso e oleoso, um
olho inchado, uma expressão alucinada no rosto e David pensa
Fantástico: mais um.
Há fãs dos Serviços Secretos, parasitas que gostam de transmitir
notícias sobre locais de aterragem de óvnis ou edifícios de escritórios
ocupados por lagartos extraterrestres, e este…
O bolso direito do casaco deste tem lá dentro algo pesado que o
faz pender.
Algo como uma arma.
O homem mete a mão no bolso e diz:
– Agente Stahl, agente Stahl, preciso de ver o Presidente, de
imediato!
A mão começa a sair, segurando algo, e David reage
instantaneamente.

Meu Deus, como aquele agente é rápido e mau, levando a mão ao


lado, tirando um bastão que se expande de imediato e estala contra a
mão de Rodney, enviando um raio de dor por todo o seu braço e
ombro direitos.
Rodney berra, deixando cair o revólver, e o bastão gira de novo,
atingindo-o na parte de trás dos joelhos e fazendo-o cair ao chão.
Mãos fortes palpam, batem e sondam, e ouve-se um estalido quando
as algemas se fecham em redor dos seus pulsos. Rodney não
consegue conter-se e começa a soluçar, pensando Falhei de novo,
falhei de novo, falhei de novo.
O agente fala por um rádio, ao que parece – Rodney ouve algo
como «… é necessária uma carrinha no Cook’s General Store,
indivíduo detido» –, e depois fá-lo rolar sobre as costas.
O agente dos Serviços Secretos fita-o com fúria, o que lembra a
Rodney o presidente da sua universidade a olhá-lo com repugnância
ao longo do inquérito do ano passado.
– Quem és e o que fazes aqui? – pergunta o agente Stahl.
Rodney tem gravilha e terra na boca, cospe-as e diz:
– Agente Stahl, sou eu! Não me reconhece?
O agente está por cima dele e então inclina-se um pouco.
– Eu… não, acho que não.
– Sou eu, Rodney Pace. Da Universidade de Baltimore. Vocês…
quando eu era lá professor, dei alguns seminários no vosso Rowley
Training Center. Esteve em dois dos meus seminários, tenho a
certeza.
O agente Stahl agacha-se para ver mais de perto.
– Professor Pace… é mesmo o senhor? Ciências Forenses?
Um alívio doce percorre Rodney. Talvez isto funcione, ao fim e ao
cabo.
– Sim, sou eu – responde.
– O senhor… com os diabos, que está a fazer aqui?
– Preciso de ver o Presidente… desesperadamente. Tenho
informações vitais para ele.
– Que tipo de informações?
Rodney diz-lhe e o rosto irado do agente Stahl muda de imediato,
agarra os braços de Rodney, põe-no de pé e começa a levá-lo
rapidamente para o Suburban do outro lado da estrada.
Imediatamente antes de chegarem ao veículo estacionado, Stahl diz:
– Espere um segundo.
Os pulsos de Rodney latejam de alívio quando as algemas são
retiradas e Stahl comunica rapidamente via rádio com alguém,
falando para o microfone do pulso.
– Fala Stahl. Cancelem o meu pedido de carrinha.
A seguir, Rodney é colocado no banco traseiro do Suburban e,
antes de conseguir sequer pôr o cinto de segurança, Stahl está no
banco do condutor, o motor ruge ao regressar à vida, e o Suburban
faz uma rápida inversão de marcha, com os pneus a chiar, e afasta-se
da loja.
Capítulo 75
Lago Marie, New Hampshire

Estou no alpendre da minha casa junto ao lago, com o bloco de


apontamentos no colo, cheio de rabiscos que registam o meu trabalho
diário. É final da tarde, mais do que provavelmente perto da hora de
jantar, mas não tenho fome. Há três semanas que não sinto fome. As
luzes estão acesas e diversos insetos debatem-se e chocam com a
rede do alpendre.
Nestas últimas horas, tenho estado a delinear um plano de
operações e, se pusermos de lado o facto de não ter apoio oficial,
nem operacionais por agora, nem meios de transporte, nem
equipamento tático ou armazéns e, sem a menor dúvida, nenhumas
informações que possam conduzir a qualquer ação, foi uma tarde
terrivelmente produtiva.
A porta range ao abrir-se e o agente David Stahl entra. Olho com
intensidade na sua direção e ele abana a cabeça, rápida e
tristemente.
Não preciso de lhe perguntar nada. Acabou de me responder. O
corpo da Mel ainda não foi recuperado.
Mas parece que é a vez de ele fazer uma pergunta.
– Senhor Presidente, pode vir comigo um momento?
– Pode esperar? – inquiro.
Surpresa.
– Não, senhor Presidente, não pode. Preciso de lhe mostrar uma
coisa na sala da caldeira.
Levanto-me, levo comigo o meu bloco e a caneta – costumo
confiar no meu destacamento, mas ainda não conheço realmente os
novos agentes –, e sigo o David através da sala de estar, grande e
escura, percorrendo um corredor que conduz a uma casa de banho e
uma despensa bem fornecida e a uma porta, que David abre para eu
passar. Descemos pesadamente os degraus de madeira, com as
luzes já acesas, e chegamos ao chão de terra desta parte da cave.
Muitas das velhas casas da zona ainda têm caves com este tipo de
piso e lembro-me de me meter amorosamente com a Samantha
dizendo-lhe que se alguma vez se cansasse de escavar no exterior,
poderia começar aqui e descobrir se há alguma coisa interessante na
nossa cave.
– Como um cemitério índio oculto – disse. – Isso explicaria a
chiadeira que se ouve de noite.
E ela retrucou de imediato, rindo:
– Mas continua a não explicar a chiadeira estranha com que
partilho a cama.
Há muito, numa vida feliz, parece.
Ao fundo, estão o aglomerado confuso de canos, respiradouros e
fios e a caldeira e o depósito escuro de combustível. Antes,
assentaram lajes de betão sobre a terra. No lado mais afastado da
parede de pedra encontra-se uma bancada de trabalho coberta de
ferramentas e um homem de aspeto estranho sentado num banco de
metal, ao lado dela.
Sobre a bancada, um grande computador portátil aberto, com o
ecrã sem imagem.
– Senhor Presidente – diz David –, este é o Professor Rodney
Pace, que foi chefe do Departamento de Ciências Forenses da
Universidade de Baltimore.
O homem sorri e acena com a cabeça. O seu cabelo escuro e
espesso está emaranhado e oleoso. Enverga uns jeans sujos e um
casaco de pano bege que está rasgado e foi reparado com fita
adesiva. Inclina-se para a frente, estende-me a mão, que aperto
automaticamente. Tem a pele fria e seca.
– Ah, senhor Presidente, é uma honra e tenho de reconhecer que
sou um ex-chefe de departamento e, infelizmente, ex-professor
universitário. – Senta-se de novo no banco, encolhe os ombros e
prossegue. – Um acontecimento infeliz que envolveu alguns dos
meus alunos, um acampamento e determinadas substâncias ilegais…
bem, uma história sórdida. Não há tempo para discutir o que
aconteceu à minha carreira, mas aqui estou.
Olho para o David, com descrença, mas ele afirma:
– Senhor Presidente, acredite em mim, o Professor Pace é uma
autoridade em Ciências Forenses. Antes de ter sido obrigado a
abandonar a universidade, deu inclusive algumas aulas no nosso
Rowley Training Center, em Maryland. É o melhor no seu campo,
sabe do que fala e quer mostrar-lhe uma coisa.
Olho para o ecrã do portátil aberto, e sei o que se encontra
escondido ali, em longas cadeias de código informático, de uns e
zeros: o último momento da minha filha decomposto em algo que
poderia ser guardado para sempre.
– Não quero ver.
– Eu sei, senhor Presidente – contrapõe David. – Acredite que
sei… mas, por favor. Oiça o que o professor Pace tem a dizer.
– E que é? – pergunto, rispidamente.
– Senhor Presidente, confie em mim, neste caso. Tem de ver a
frio. Sem ideias preconcebidas – diz o David.
O meu bloco de apontamentos parece inútil e disparatado nas
minhas mãos. Sou um antigo Presidente, um ex-SEAL e um ex-pai.
Não é grande legado.
– Adiante – digo.
O meu visitante salta do banco e dirige-se ao teclado.
– Teria sido melhor se eu tivesse o vídeo-fonte, poderia reduzir a
quantidade de pixelização e degradação para o meu exame, mas faz-
se o que se pode. Agora, preste muita atenção. – Prime algumas
teclas.
Ouve-se um som, o angustiado «Mamã, não…». Rodney prime
uma tecla e o áudio fica em silêncio e ali, em toda a sua cor e sangue
derramado e excesso, estão os últimos segundos da vida da minha
filha, e não desvio os olhos, não os desviarei. Nas equipas e quando
era Presidente, vi vídeos granulosos de mortes com sangue em
número suficiente para os ver durante várias vidas, mas este é o
único que me faz acordar a meio da noite, aos gritos e com os punhos
cerrados de desespero.
– Viu? – pergunta o professor. – Viu?
Engasgo-me nas palavras.
– Vi, sim.
Pace suspira, como se eu fosse um aluno que vai ter de se
esforçar para ter uns meros 65 por cento no exame.
– Penso que não viu. Os últimos segundos. Preste atenção.
Os últimos segundos… um jorro de sangue que atinge a lente da
câmara, um dedo enluvado a esfregá-lo, a forma nas rochas, o cabelo
encaracolado e, sozinhos de novo, os óculos.
– Ali – diz o professor com satisfação na voz. – Viu? Viu?
– Vi o quê? – pergunto, com a frustração e a raiva e a tristeza a
agitarem-se dentro de mim. – Que devia eu ver?
Ele faz tsk-tsk, passa de novo o vídeo, abrandando, muito, a partir
da espada a descer…
Oh, Mel.
O relampejar, o sangue a jorrar e a salpicar a lente.
– Ali – repete, com a voz cheia da impaciência de uma Cassandra,
a tentar partilhar o que sabe com as multidões alheadas que, a seu
lado, ignoram a palavra de Deus.
O agente Stahl faz de intermediário.
– Professor, por favor, têm sido umas semanas longas. O
Presidente Keating tem estado submetido a uma pressão tremenda.
Pode explicar, de forma simples, em que é que ele devia estar a
reparar?
– Ah, claro – responde. – As minhas desculpas. Está a ver,
quando o sangue sai de um ferimento acabado de fazer e atinge um
objeto, como a lente da câmara, neste caso, obtemos um tipo de
padrão e salpicos de sangue que é observável de uma certa forma.
Mas, quando o sangue não provém instantaneamente da sua fonte,
parece e age de uma forma totalmente diferente. Foi o que vi aqui. E
foi por isso que insisti tanto em vê-lo, senhor Presidente.
No fundo, bem no fundo de mim, acabou de se acender uma
pequena chama de algo.
Oh, Deus, penso, por favor faz com que assim seja.
Por favor.
– Professor, está a dizer o que penso que está a dizer? – inquiro.
Um aceno de cabeça confiante.
– O vídeo da decapitação é falso – responde.
Capítulo 76
Lago Marie, New Hampshire

Estou tão próximo do professor caído em desgraça que consigo


cheirar-lhe as roupas e o suor, e não me importo. Digo-lhe:
– Explique de novo. Devagar, com pormenores que eu possa
entender. Por favor, professor.
E penso: Se és doido ou me estás a enfiar uma treta qualquer, há
uma pá ali ao canto e um chão de terra atrás de mim.
– Com certeza – responde. – Foi um estudo que desenvolvi há uns
anos, com a ajuda de dois dos meus mais inteligentes alunos de pós-
graduação. Era costume os investigadores forenses olharem apenas
para o padrão do sangue, os ditos salpicos. Pode examinar-se um
padrão no local de um crime e, na maior parte das vezes, deduzir
onde a vítima se encontrava, de pé ou sentada, se resistiu, e como o
corpo foi transportado mais tarde. Está lá tudo, se soubermos ler os
salpicos.
Dá uma pancadinha no lado da cabeça, sorri. Tem os dentes
amarelos. E prossegue:
– Levei a investigação a outro nível, ao introduzir o conceito de
dinâmica de fluidos. Quando um fluido como o sangue é expelido, faz
uma enorme diferença se for fresco ou tiver estado armazenado.
Agem como dois tipos de fluidos completamente diferentes. A
consistência, os níveis de oxigenação… tudo isso tem de ser
considerado e, então, pode determinar-se se os salpicos fizeram
parte do crime em si ou se foram posteriores de forma a criar um local
do crime que transmite uma mensagem falsa. Escrevi dois artigos
sobre o assunto que foram publicados na revista Forensic Science
International e suscitaram reações muito positivas dos meus colegas.
Dá uma nova pancadinha, desta vez no ecrã.
– Isto não é sangue fresco. Com efeito, se tivesse uma versão
melhor desta gravação, conseguiria provar inclusive que não é
sangue humano.
A pequena chama de esperança dentro de mim cresce muito e
depressa, ameaçando sobrepor-se ao meu senso comum e ceticismo.
– Mas a parte anterior do vídeo – digo. – A… a espada e a
decapitação. Não podiam ser reais?
Abana a cabeça, senta-se de novo no banco, cruza os braços.
– Com que fim? Uma decapitação verdadeira seguida por um jorro
de sangue falso? Para que serviria? Além disso, antes de ter sido
obrigado a abandonar a universidade, já estavam a ser realizados
estudos, devido à preocupação com os chamados vídeos deepfake.
Por exemplo, pegar numa gravação real da Presidente Barnes e
transformar o seu fato formal em látex e penas, como uma corista de
Las Vegas, para fazer crer que ela participou num espetáculo picante.
Qualquer pessoa com experiência de realização de cinema ou efeitos
especiais é capaz de descobrir uma forma de fazer um vídeo
verdadeiro da sua filha e depois inserir uma cena de decapitação.
O agente Stahl começa a dizer algo e salto, com rudeza:
– Não, agora não! Calem-se todos, por favor, não digam uma
palavra.
Fecho os olhos.
Faço um grande esforço para me lembrar.
Quando era Presidente, cada minuto, cada meia hora e cada hora
estavam programados ao segundo, todos os dias, incluindo os fins de
semana. Com reuniões, briefings e relatórios. Era-me pedido que
tomasse decisões e desse pareceres em áreas que iam da economia
à diplomacia, e problemas e política internos. Uma semana após o
início da minha presidência, não muito depois do funeral do meu
antecessor, tive uma recordação de infância. Lembrei-me de estar a
ler um romance brochado – com a capa rasgada – que fora um dos
poucos pertences do meu pai a voltar da plataforma petrolífera, após
a sua morte.
O livro, chamado The Multiple Man, foi publicado em 1976, e a sua
ação decorria algures num futuro imaginado em que o mundo era tão
mortífero e complexo que o Presidente eleito tinha seis irmãos
clonados secretamente, todos eles peritos numa área. Trabalhando
em conjunto, cada um podia oferecer os seus conhecimentos
especializados para a sua administração coletiva durante um período
muito difícil.
Na altura, parecia fantástico e excêntrico, mas mais tarde, ao
tentar recordar todos os pormenores daquela constante azáfama de
reuniões e briefings quando estava na Sala Oval, tudo começou,
estranhamente, a fazer sentido: um futuro de ficção científica, na
página ou no ecrã…
Abro os olhos.
– Faraj Al-Asheed – digo. – O primo mais novo do Asim. Recebi
inúmeros briefings com informações sobre ele, durante a preparação
do raide. Antes de ter aderido à jihad com o Asim, viveu em Paris,
onde frequentou a escola de cinema. Tem um interesse especial por
fantasia, ficção científica e efeitos especiais.
Estendo a mão para o teclado e afasto-a em seguida.
Tenho o desejo desesperado de não estragar nada.
Tentando afastar o entusiasmo crescente da voz, peço:
– Professor, por favor, passe de novo o vídeo, desde o início.
– Com certeza – responde.
Levanta-se do banco, mexe no teclado. O vídeo volta atrás
rapidamente – Falso, falso, falso!, quero gritar; A morte da minha filha
foi forjada! – e então ele passa-o desde o início.
Volta a aparecer o mesmo Asim Al-Asheed de expressão dura e a
sua voz sai dos altifalantes do computador. Após as saudações
iniciais, prossegue:
«Peço desculpa por esta não ser uma… aquilo a que chamam
transmissão ao vivo, mas sim uma gravação, de há algumas horas,
depois de termos saído da casa do senhor Macomber, nas vossas
White Mountains, e aqui estamos, ainda nestas montanhas.»
– Ali! – exclamo. – Recue mesmo até ao início, antes de ele
aparecer.
Alguns segundos depois, o vídeo recomeça e ordeno:
– Pare! Aí mesmo.
Percorro suavemente o ecrã à minha frente, que mostra uma
parede rochosa e uma plataforma adjacente, e com voz calma digo:
– Ele afirma que isto está a ser gravado nas White Mountains, mas
olhem para aquela formação rochosa. Em todas as caminhadas que
aqui fiz com a Sam e a Mel, há sempre vegetação, líquenes, ervas e
mato, entre as formações rochosas. Aqui, não temos nada disso.
Temos a certeza de que foi filmado aqui, no New Hampshire? Ou terá
sido noutro sítio qualquer?
O agente Stahl retruca:
– Senhor Presidente… isso está muito bem visto.
Bato no ecrã com alguma força, fazendo-o vibrar.
– Vamos descobrir, já.
E penso na noite de ontem, quando estava lá fora no pontão, na
escuridão e prometi: Asim, vou encontrar-te.
Agora, ousarei acreditar em mais uma coisa?
Mel, também te vou encontrar.
Capítulo 77
Enfield, New Hampshire

Trent Youngblood, professor associado de Ciências da Terra no


Dartmouth College, está a secar o último prato do jantar quando ouve
uma forte pancada na porta de casa, seguida pelo toque frenético da
campainha.
Olha para o pequeno relógio de cuco bávaro que está
dependurado na cozinha em desordem e é uma recordação que a
mulher, Carol, trouxe de um cruzeiro fluvial que fizeram na Alemanha,
no ano passado. O relógio parece antigo e feito à mão, mas é um
artigo kitsch irrisório fabricado no Camboja e acionado por uma pilha
oculta.
Trent pensa que aquela coisa ridícula é uma boa metáfora para o
seu trabalho: algo que tem um aspeto à superfície, revelando-se
completamente diferente quando se começa a cavar.
O relógio diz que são quase nove da noite.
Quem lhe estará a dar murros na porta a esta hora, raios?
Carol saiu para uma aula noturna de tai chi, e o filho de ambos,
Greg, encontra-se na Califórnia, onde frequenta a Stanford Graduate
School of Business; o vizinho mais próximo vive a cerca de um
quilómetro. Em vez de ir abrir a porta rapidamente, Trent dirige-se
para o portátil na bancada da cozinha, ao lado das pilhas de correio, e
vê as imagens transmitidas pela sua câmara Nest Hello, ligada à
campainha.
O que vê perturba-o.
Três vultos que envergam casacos, com bonés enterrados na
cabeça. O que está à frente torna a dar um murro na porta e Trent vê
que é uma mulher negra.
Trent não é racista, de todo, mas que está uma negra a fazer aqui,
a esta hora? Nesta zona rural do New Hampshire? E que deve ele
fazer? Chamar a polícia?
Boa, pensa. Imagine-se o que lhe aconteceria, a ele e à sua
carreira, se essa notícia se espalhasse: um professor universitário
branco, privilegiado, a chamar a polícia por uma negra lhe bater à
porta, de noite. Até onde lhe é dado saber, aqueles três podem estar
perdidos e à procura de indicações.
Mas, por outro lado, quem é que se perde hoje em dia, quando
toda a gente tem um telemóvel com GPS incorporado?
A campainha soa de novo.
Que se lixe.
Vai abrir a porta.
Enquanto avança pelo vestíbulo, detém-se um instante, abre a
porta de um armário e tira um revólver Colt .357, carregado, da
prateleira superior. Esteve em escavações em locais potencialmente
perigosos deste mundo e, há pouco mais de vinte anos, dois
professores de Dartmouth foram assassinados em casa por dois
falhados locais adolescentes. Trent não vai ser uma vítima esta noite.
Acende a luz exterior, com a arma parcialmente tapada pela anca,
destranca a porta, abre-a e pergunta:
– Em que posso ajudá-la?
E, então, a negra grita «arma, arma, arma» e Trent é atirado ao
chão da sua própria casa.

É posto de pé, a tremer de medo e raiva, depois de lhe terem


tirado o revólver. A mulher negra e outro homem estão de pé a seu
lado e um terceiro entra, dizendo, com voz familiar:
– Professor Youngblood, desculpe lá, mas a agente Washington e
o agente Stahl são verdadeiros profissionais. Espero que não esteja
ferido.
O homem tira o boné de beisebol azul-escuro liso, revelando o
rosto do antigo Presidente Matthew Keating. Trent pestaneja. Não é
nada de especial tê-lo por aqui, uma vez que vive na zona – com os
diabos, avistou Keating duas vezes, nestes anos, no Whole Foods
local. Mas o que está a fazer na sua casa?
– Senhor Presidente… ah, em que posso ajudá-lo?
O rosto do antigo Presidente está abatido, cansado e os seus
olhos parecem encovados. Trent sente de súbito uma profunda pena
daquele homem cuja filha foi executada publicamente há apenas
duas semanas, e que lhe diz:
– Preciso da sua ajuda. Fizemos alguma pesquisa e descobrimos
que é um dos melhores peritos de geologia de Dartmouth. Preciso
que observe uma imagem de um rochedo e me diga o que vê. É
possível?
Ai, merda, pensa Trent. Ele e a mulher, Carol, passaram inúmeras
horas, há dois anos, a trabalhar como voluntários para eleger a vice-
presidente deste homem para a Sala Oval: fazendo telefonemas,
batendo às portas e empunhando cartazes durante as primárias do
New Hampshire. Houve reuniões políticas em sua casa, a beber vinho
e cerveja até altas horas da noite e com promessas determinadas de
tirar aquele maldito assassino da Casa Branca. Havia piadas acerca
do seu sotaque texano e da sua querida e tão inteligente mulher.
Entregaram autocolantes que diziam FORA KEATING, O ERRO DA ERA.
E, agora, o erro da era está à sua frente.
Que pensaria Carol? Que pensariam os seus amigos?
Trent faz um aceno de cabeça.
– Certamente, senhor Presidente. Posso começar quando quiser.
Alguns minutos depois, estão no escritório atravancado de Trent,
no primeiro andar, com uma bancada de trabalho, estantes com livros
e dossiês, computadores e armários de arquivo, prateleiras com
amostras de rochas dos quatro cantos do mundo. A agente dos
Serviços Secretos começa a trabalhar e Trent está um pouco
ofendido por ela não lhe ter pedido desculpa por tê-lo atirado
violentamente ao chão. Abre um portátil que trouxe consigo e, ao fim
de uns segundos, aparece uma imagem.
Parede de rocha, saliência de rocha.
Já as viu.
Oh, meu Deus, pensa. O local onde foi assassinada a filha deste
pobre homem.
Com voz ligeiramente tensa, Keating diz:
– Professor, olhe bem para aquela escarpa. Sei que não é uma
imagem muito boa, mas pode dizer-nos… é de algum local nas White
Mountains?
Trent inclina-se, olha fixamente a imagem durante uns instantes e
retruca:
– De modo algum.

Keating pousa-lhe a mão no ombro.


– Tem a certeza? O que vê?
Trent sente um certo orgulho infantil ao explicar o seu trabalho a
um antigo Presidente dos Estados Unidos.
– Se fosse algures no New Hampshire… ou mesmo Vermont ou
Maine… a superfície rochosa seria leucocrática, com veios cruzados
de quartzo e a presença de fraturas superficiais que são típicas da
ação meteorológica de congelação e degelo sobre a rocha granitoide
que se encontra nesta parte do mundo. Contudo, vê-se que a
superfície da rocha é castanha e mostra a estratificação nítida de uma
rocha sedimentar. Mas há uma falta de veios clásticos nítidos, o que
significa que é provável que esta rocha seja um calcário ou um
dolomito.
A mão de Keating aperta ligeiramente o ombro de Trent.
– Consegue dizer-nos onde se encontra?
– Não, não consigo – responde.
Há um sentimento de desilusão nos seus três visitantes e apressa-
se a acrescentar:
– Não, não, não se preocupem. Eu não consigo, mas o meu avô
sim. Esperem. Deem-me uns minutos.

Trent dirige-se para os dossiês de uma das secções das suas


estantes atafulhadas, encontra o marcador que procura e retira o
velho dossiê negro. O anterior Presidente e os agentes dos Serviços
Secretos reúnem-se à sua volta enquanto abre o livro, mostrando
fotografias antigas, a preto e branco, e anotações manuscritas feitas
no terreno, numa caligrafia ainda nítida décadas depois.
– O meu avô Enoch – conta – era um grande geólogo, porém, em
vez da vida académica, trabalhou para empresas petrolíferas. Foi
assim que aprendi a gostar de geologia… por ele me trazer amostras
de rochas. Viajou por todo o mundo, das selvas aos desertos… mas
essa formação rochosa que me mostrou lembrou-me de algo que ele
me mostrou há uns anos. Ah, aqui está.
Desliza o dedo para cima e para baixo de duas imagens,
protegidas por páginas de papel cristal, lado a lado.
– Aqui está. Praticamente um duplo da que está no ecrã do
computador, não é? Veja, tal como eu disse, vê-se a estratificação da
rocha sedimentar, mas a ausência de veios clásticos nítidos significa
que esta rocha é um calcário ou um dolomito. Além disso, pode ver a
presença de horizontes nítidos de cherte, o que reduz
consideravelmente o âmbito.
– E redu-lo a quê? – pergunta o antigo Presidente.
– Oh, não há dúvida – responde Trent. – Líbia. As montanhas de
Nafusa.
Capítulo 78
Hitchcock, Maine

Samantha Keating acorda no seu quarto de motel com alguém a


bater firmemente à porta. Vê as horas.
Pouco passa das cinco da manhã.
Sai da cama, descalça sobre a superfície áspera da alcatifa verde-
clara, vestindo uns calções largos e uma T-shirt da Universidade de
Boston, e acende a luz da mesinha de cabeceira. Tem de fazer três
tentativas até conseguir porque os seus dedos tremem e sabe
porquê.
Só há uma razão para alguém lhe vir bater à porta a esta hora da
madrugada.
Chega lá em segundos, começa a retirar a corrente e a rodar a
chave, tentando manter a calma apesar do arrepio súbito nas mãos e
pés, pensando na sua Mel, algures num local deserto, os seus restos
expostos aos elementos, a aves e coiotes e…
Samantha consegue abrir a porta.
Ainda está escuro no exterior.
Sob a luz dos candeeiros de iluminação pública do pequeno
parque de estacionamento do motel, vê Matt à sua frente e de
imediato sente amor e medo e muita culpa, a culpa de saber que há
anos podia ter garantido a reeleição fácil de Matt e a segurança da
filha, mas preferiu não o fazer, culpa pelo modo como tem ignorado
friamente as mensagens de vídeo, desesperadamente animadoras,
que ele lhe envia da casa do lago.
Encosta-se à aduela da porta, à procura de apoio.
– Oh, Matt, onde? – pergunta, com voz embargada.
Ele agarra-lhe as mãos.
– Sam – diz –, penso que ela ainda está viva.
Samantha cai-lhe nos braços.

Um minuto mais tarde está sentada na sua cama ainda quente


com Matt ao lado, com o braço em redor dos seus ombros, e a mão
livre a segurar na sua.
– Ontem, um cientista forense foi lá casa, oficiosamente e de moto
próprio. É muito respeitado, sabe do seu ofício, e o agente Stahl
confia nele. Está convencido de que o filme do homicídio da Mel foi
forjado.
– Mas… eu vi-o! Tu viste-o!
– O sangue que atingiu a lente da câmara, perto do final –
prossegue o marido. – O professor está convencido de que é falso. O
modo como se deslocou, escorreu… não tinha a consistência de
sangue fresco. Pensa que existe uma boa probabilidade de nem
sequer ser humano.
Samantha sente-se como que numa daquelas atrações das feiras
da sua juventude, que giravam vertiginosamente, em todas as
direções, para cima e para baixo e para os lados, sem sequer ter a
certeza do que é verdadeiro e certo. Esta visita inesperada, Matt a
aparecer sem avisar, parece boa de mais para ser verdade, um sonho
que vai a meio, um sonho em que a Mel ainda está viva.
– Matt… tens a certeza? Parecia tão real!
Ele retruca, com confiança:
– Faraj, o primo de Asim Al-Asheed, passou meses em Paris a
estudar cinema e efeitos especiais. Foi assim que pode ter sido
forjado. E há outra informação.
Agora, Samantha teme rebentar num pranto se disser alguma
coisa e limita-se a acenar com a cabeça.
– Se a decapitação foi fingida, porque não a localização? –
continua Matt, estreitando-a ainda. – O Asim disse que ele e a Mel
ainda estavam no New Hampshire. Ontem à noite, encontrei um
professor de Geologia de Dartmouth. Garantiu que a escarpa que
aparece no vídeo não fica no New Hampshire e nem sequer na Nova
Inglaterra. O vídeo foi gravado na Líbia, o país natal do Asim e onde
ele gosta de se esconder.
– Aquele hidroavião – diz Samantha, recuperando a voz. – Levou-
a para norte, para um aeroporto algures. Foi por isso que o vídeo
demorou. Tinham de ter tempo suficiente para a levar para a Líbia.
– Precisamente.
Agora, Samantha sente uma leveza incrível em todo o corpo,
como se pudesse elevar-se da cama a flutuar e bater suavemente no
teto, se Matt não a segurasse com tanta força.
– Matt, aquele professor forense está contigo? E o geólogo?
– Não. Apenas os agentes Stahl e Washington.
– Mas…
Para. Sabe o que está a sentir. Provas. É necessário ter provas
sólidas antes de propor uma teoria, sobretudo uma teoria como esta,
tão bem-vinda, mas tão pouco corroborada. Quero acreditar, pensa.
Tenho de acreditar, mas preciso de ver as provas, pessoalmente,
antes de recomeçar a ter esperança.
Preciso de ver as provas.
Matt pergunta calmamente:
– Sam? Vais dizer alguma coisa?
Ela aperta-lhe a mão.
Confia nele. Confia no teu marido.
– Sim. Estas informações. Achas que mais alguém as tem?
Alguém do FBI ou da Segurança Interna?
– Não, de momento, não.
– Ótimo.
Matt solta-a para a poder ver melhor.
– Sam? Que acabaste de dizer?
– Ouviste bem – responde, sentindo-se mais forte, mais feliz. –
Quais são as hipóteses de, caso alguém no governo as descobrisse,
se manterem secretas? Talvez alguém quisesse levar a cabo uma
fuga de informações para impressionar o marido ou a mulher ou obter
um favor de um jornalista. Não se importariam. É apenas mais uma
manchete, mais um depósito no banco de favores a alguém. Ou
levariam tempo a tentar confirmar e reconfirmar antes de fazerem o
que quer que fosse.
Matt levanta-se, segurando-lhe as mãos, dobrando-se para a
beijar e depois afastando-se, ainda de mãos dadas.
– Sam, vou trazer a nossa filha de volta.
– Eu sei que vais. Encontra a Mel, encontra-a sã e salva, e trá-la
para casa. Mas vais fazer mais uma coisa.
– O quê?
Ela beija-lhe a mão.
– Depois de teres recuperado a Mel, sã e salva, mata aquele filho
da puta do Asim.
Capítulo 79
Lago Marie, New Hampshire

O agente David Stahl, dos Serviços Secretos, observa um dos


Boston Whalers da Segurança Interna a avançar para as águas
calmas e límpidas do lago e contém um bocejo. Já bebeu mais três
chávenas de café do que a sua ração diária habitual, no entanto
continua a ter a sensação de que seria capaz de fechar os olhos e
dormir até o sol se erguer no dia seguinte.
Uma noite muito longa e uma alvorada precoce, a conduzir de
Enfield para Hitchcock, no Maine, e depois de volta para o lago Marie,
viajando na maior parte das vezes por estradas de campo, tendo sido
obrigado duas vezes a desviar-se de um alce que vagueava à frente
do Suburban. A caminho do Maine, Harbor deu informações à agente
Washington e agora ela faz parte do planeamento da missão de
resgate. David tem a certeza de que ela quer ajudar Harbor.
É agradável confiar na equipa.
Ainda está a percorrer, mentalmente, uma lista de controlo da
missão de Harbor quando ouve passos no pontão. Vira-se enquanto o
agente Brett Peyton, o seu putativo adjunto aqui no destacamento, se
aproxima. David tem a sensação irracional de que, se tivesse saído
durante tanto tempo como ele ontem à noite, Peyton não pareceria
cansado nem teria um cabelo sequer fora do lugar.
– Como vão as coisas, David? – pergunta Peyton.
– Vão.
Quer regressar ao seu escritório no celeiro, mas Peyton coloca-se
à sua frente, devagar e, com o sorriso ainda aberto, diz:
– É estranho que, durante o pouco tempo que levo aqui, penso ter
descoberto a razão pela qual este destacamento falhou. Demasiado
confortável, demasiado relaxado. Como as tuas viagens durante toda
a noite de ontem com o Harbor. Sem planeamento nem logística. Só
entrar no carro e ir.
– O Harbor sentia-se a enlouquecer – argumenta David –, por ter
estado aqui enfiado desde que regressou da Virgínia. A agente
Washington e eu levámo-lo a dar uma volta. O estado de espírito dele
melhorou. Depois, quis ir ver a Harp. Há algum tempo que se não
viam.
Peyton continua a ter aquela expressão de sabichão colada no
rosto e comenta:
– Mesmo assim. Não é ortodoxo.
– Sabes como são as coisas, Brett. Tens de estabelecer um
equilíbrio entre manter a pessoa que proteges em segurança e não a
manteres encerrada num quarto, envolta em plástico de bolhas.
Manter a pessoa que proteges simultaneamente em segurança e
feliz. Uma tarefa dos diabos, não é? Se a maior parte da tua carreira
tivesse sido passada no terreno em vez de estares atrás de uma
secretária a caçar cibercriminosos, terias mais consciência desse
facto.
O sorriso de Peyton desvanece-se.
– É um trabalho importante.
– É verdade, mas não tão importante como proteger Presidentes,
funcionários do governo e dignitários estrangeiros – responde David.
– Isso e a moeda falsa foram os nossos papéis originais. Depois, há
alguns anos, uns loucos acharam que era uma boa ideia fazer uma
tomada de poder, levar os Serviços Secretos para áreas onde não
tinham de estar, como o cibercrime, que parece ser a atividade que
adoras.
Peyton aproxima-se e o seu sorriso desapareceu.
– Seria melhor para ti e para o serviço se tu e todo este
destacamento se demitissem. Esta semana. Sei de fonte segura que
o diretor e o secretário de Segurança Nacional veriam isso com bons
olhos.
– Mas nada por escrito, estou certo.
– Claro que não.
– Bem, vou pensar no assunto, Brett, não te preocupes.
Entretanto, tenho muito trabalho para fazer.
– Incluindo mais viagens não ortodoxas com o Harbor?
Aquelas palavras fazem com que David sinta que acabaram de lhe
pregar os pés no pontão.
Que raio sabe o Peyton?
Mantém a voz controlada.
– Dentro do que for razoável, sim, sem dúvida. O Harbor não está
em prisão domiciliária. Se quiser sair deste recinto, faremos com que
possa.
– Imagino que seja outra viagem grande… Como ontem à noite?
– Tal como te disse, dentro do que razoável.
– O problema é esse, não é? – continua Brett. – Tens um
protegido que está em sofrimento profundo, e talvez a sentir culpa
pelo que aconteceu à filha, culpa por saber que os seus atos como
Presidente levaram à morte dela. Isso poderia pressioná-lo a fazer
algo… imprudente. E a tua missão é mantê-lo em segurança e quieto.
Certo?
David sabe que está a uns trinta segundos de atirar Peyton ao
lago.
Brett baixa a voz:
– Demite-te, já. És demasiado próximo do Harbor. Se ele fizesse
qualquer coisa insensata, poderias não o querer impedir. David, ias
fazer-lhe bem, a ele e ao serviço, se te fosses embora. E antes mais
cedo do que mais tarde.
David faz um aceno lento de cabeça.
– Segundo o teu ponto de vista, Brett, tenho a certeza de que faz
sentido. Ir embora. Lavar as mãos. Baixar a cabeça e pôr-me a andar.
Mas, do meu, e que vai continuar a ser o mesmo até me dizerem o
contrário, ir-me embora é mais uma forma de desistir.
Avança, contente por dar um encontrão a Peyton quando passa
por ele no pontão.
– Se tivesses estado nos Marines, como eu, saberias que não sou
homem para desistir – assevera. – E, se ainda não te apercebeste
disso, o Harbor também não é.
Capítulo 80
Primeira Igreja Congregacional de Spencer
Spencer, New Hampshire

Passam poucos minutos das 11 da manhã nesta igreja


congregacional branca, construída quando a América ainda era
apenas treze colónias, e estou a gostar de todos os minutos que aqui
passei. Nasci numa pequena vila de encruzilhada nas planícies lisas
do Texas, e a sua história – ameríndios, primeiros colonos,
explorações agrícolas de algodão, conflitos aqui e ali, e a alegria da
libertação dos escravos em junho de 1865, e mais uns longos anos
de seca e privações – podia ser escrita num panfleto.
Nesta cidade, colonizada pela primeira vez em 1758, a História
enche três volumes encadernados a pele, e um professor de História
reformado do liceu da localidade trabalha com afinco no quarto
volume. Um dos meus passatempos discretos é ler sobre a História
do meu novo lar e cidades limítrofes e reter na memória estranhos
fragmentos de saber, como o facto de, neste condado, haver cinco
estações falsas da Underground Railroad12 por cada estação
verdadeira que ajudou os escravos em fuga a cruzar a fronteira
canadiana próxima.
E porque é que existem tantas falsas?
Porque costumam aumentar em dez por cento o valor da venda de
casas históricas.
Mais cedo, os bancos da igreja foram empilhados ao canto,
enquanto eu trabalhava com outros membros da igreja na pequena
cozinha das traseiras. A minha especialidade são flapjacks, a que
estes nortistas teimosos chamam panquecas, e é bom estar a
trabalhar com afinco na pequena cozinha, com risos e brincadeiras e
provocações simpáticas enquanto os flapjacks, o bacon, as salsichas,
os ovos mexidos e as rabanadas vão saindo por uma abertura
retangular onde voluntários da igreja recolhem a comida acabada de
fazer e a levam aos nossos convidados.
A igreja não cobra nada por este banquete de domingo, que é
gerido por voluntários, e a maior parte da comida é doada, embora
haja um grande pote de vidro à entrada para as contribuições. É
sobretudo um lugar para saber o que se passa com os vizinhos,
transmitir as últimas notícias ou mexericos da família e manter
apenas aquele sentimento fugidio de comunidade. Enquanto ajudo a
lavar os pratos, sinto uma certa ternura por saber que esta tradição se
mantém há mais de dois séculos.
Pego num prato de flapjacks e bacon – os voluntários são os
últimos a comer –, e o agente David Stahl entra e exclama:
– Parece que o trabalho lhe abriu o apetite, senhor Presidente.
– E aposto que o David já comeu – respondo.
– Acertou. Venha por aqui.
Sigo-o pisando o velho soalho, cujas tábuas rangem, e a grande
maioria dos convidados que terminam o pequeno-almoço nem sequer
repara em mim, demorando-se a beber chávenas de café e chá.
Outra razão pela qual gosto de viver por estas bandas é que, no
verdadeiro sentido ianque, as pessoas só se interessam pelo que lhes
diz respeito.
Aproximo-me de uma pequena mesa de jogo dobrável sob uma
grande fotografia a preto e branco de um pastor, de aspeto severo, de
1901, onde se encontram sentados dois homens, de trinta e poucos
anos, um de bigode e outro com uma barba bem aparada, vestindo
jeans e polos. O da barba enverga um polo liso de cor vermelha e o
do bigode, uma preta.
Fazem um aceno de cabeça enquanto me sento e pergunto:
– Estão a gostar da refeição?
– Boa que se farta – diz o barbudo, à minha esquerda. O outro
assente com a cabeça.
Uma voluntária mais velha sorri, avança e deita café numa caneca
branca lascada, e eu bebo um gole para me retemperar. Mesmo
como eu gosto: sem leite e com dois cubos de açúcar.
O barbudo começa:
– Senhor Presidente, eu…
Ataco os flapjacks.
– Parem com isso. A partir de agora, é Matt. Está bem?
Acena com a cabeça, com ar cúmplice.
– Com certeza, senhor.
– Raios, e parem com essa treta do senhor, também.
– Ah… – Uma pausa e acrescenta. – É o hábito. Desculpe.
– Não tem problema. Desde que o seu amigalhaço e você tenham
mantido outros hábitos igualmente afinados.
O companheiro comenta:
– Pode crer. Estamos dispostos a ir onde quer que precise de nós.
– Qual é a vossa situação?
O barbudo retruca:
– Estamos ambos a gozar de catorze dias de licença e, se não
forem suficientes, pensaremos noutra coisa. E também estamos
preparados.
Faço um aceno de cabeça e continuo a comer. Os flapjacks estão
deliciosos, é claro, e embora os habitantes da Nova Inglaterra tenham
a sua maneira de ser, adoro que insistam em usar xarope de ácer
verdadeiro. A primeira vez que provei o verdadeiro foi quando me
mudei para cá, há dezoito meses, e nunca me arrependi.
– A que equipas pertencem?
O homem da direita diz:
– Seis. Pertencemos ambos à Seis.
– E sabem para que é que se ofereceram como voluntários, certo?
– interrogo. – Estou certo de que sim, mas quero ter a certeza de que
há um entendimento total. É uma coisa não oficial, ilegal e, mesmo
que tenha êxito, existe a possibilidade real de uma pena de prisão.
O SEAL da esquerda diz:
– Conte connosco!
E o companheiro acrescenta:
– Queremos fazer o que é certo, por causa do que aconteceu à
sua filha.
A minha filha!
Sorrio.
– Desde que falei com o Trask Floyd, o âmbito da nossa missão
alargou-se. Já não se trata apenas de uma missão-relâmpago.
Também é um resgate. Aquele vídeo da decapitação era falso. Estou
convencido de que a Mel se encontra detida nas montanhas de
Nafusa, na Líbia.
Diverte-me ver as expressões de choque nos rostos deles. Há um
mito de que os SEAL têm dois metros de altura e uma data de
músculos bem definidos por cima de outros músculos. A verdade é
que o que contam são os músculos que se encontram entre as
orelhas. No treino BUD/S, eram em geral os recrutas com grande
corpanzil e excesso de exercício que chumbavam. Os que mantinham
a determinação e pensavam friamente é que acabavam por ganhar os
tridentes.
Meto a mão no bolso do casaco, tiro um pedaço de papel,
estendo-lho.
– Foi alugado um quarto neste motel, em Contoocoock.
Encontramo-nos lá amanhã, ao meio-dia.
– Vai ser complicado para si – comenta o SEAL da direita.
– As complicações vão ser o nosso modo de vida durante os
próximos dias – digo. – Mas, antes de se irem embora, desculpem,
devia ter-vos perguntado os nomes.
O do bigode responde:
– Alejandro Lopez, contramestre de primeira classe, mas chamam-
me Al ou Alejandro.
– Muito bem – digo, e o outro SEAL faz um sorriso rasgado, como
se guardasse um segredo maravilhoso.
– Sargento-chefe Nick Zeppos – anuncia. – E, Matt, pode chamar-
me apenas Nick.
O nome. Aquela voz familiar.
Eu a falar com ele, há mais de dois anos.
Da minha cadeira na Sala de Crise.
E agora, metam esse filho da puta num saco para cadáveres, pelo
país, pelos SEAL e sobretudo por Boyd Tanner.
– Sargento-chefe Zeppos – digo. – Com os diabos, você foi o
chefe daquela missão para abater o Asim há mais de dois anos.
Continua a sorrir, mas não é um sorriso amistoso.
É a expressão de um lobo, pronto para caçar.
– É por isso que aqui estou, Matt – afirma. – Desta vez, vamos
acabar o trabalho.
12
Rede secreta de rotas e esconderijos clandestinos destinada a permitir a fuga dos
escravos para os Estados livres ou o Canadá. (N. do T.)
Capítulo 81
Mary’s Diner
Leah, New Hampshire

O agente Brett Peyton, dos Serviços Secretos, está a deslocar-se


no Chevrolet Suburban negro porque Harbor decidiu ir tomar o
pequeno-almoço numa espelunca local a cerca de vinte minutos da
sua casa. Mais uma saída típica de um antigo Presidente muito
atípico, e Peyton gostaria que o maldito homem se limitasse a ficar no
seu recinto e cismasse, se lamentasse e jogasse póquer – o jogo de
cartas preferido de Peyton é cribagge, que depende mais da
inteligência do que da maldita sorte – em vez de sair tanto. Aquele
tipo patético parece ter necessidade de se misturar com a chamada
gente simples destas pequenas vilas setentrionais, e sentir-se bem a
fazê-lo.
A agente Kelly Ferguson, uma mulher negra e esguia, conduz este
Suburban, e atrás vem um outro com Harbor no banco traseiro e os
agentes Stahl e Washington nos da frente. Havia uma pequena
multidão junto ao bloqueio rodoviário da polícia estadual a saudar o
cortejo de dois veículos, e Brett pergunta-se se Harbor lhes acenou
por detrás dos vidros fumados.
E é estranho: Kelly parece ter-lhe lido os pensamentos. Pergunta:
– Achas que o Harbor acenou?
– Sei lá.
– A Tarpon não o faria – afirma, usando o nome de código da
Presidente Barnes. – Demasiado ocupada a ler, conspirar contra os
inimigos ou a ouvir o marido. Mas o Harbor… sim. É assim que ele é.
Brett ri.
– Estás aqui há menos de um mês. E já estás disposta a beber o
Kool-Aid? Ele é só um antigo Presidente. Mais nada.
– Essa é a tua opinião, mais nada. E aquela gente que se suicidou
no templo de Jamestown não bebeu Kool-Aid; foi Flavor Aid. Tens de
citar os factos corretamente.
– Cala-te e conduz – riposta Brett, que fica ligeiramente
surpreendido por se ter irritado tanto. A verdade é que o agente Stahl
e os outros do destacamento original estão a dar-lhe cabo dos
nervos. Quando foi transferido para cá, Brett esperava encontrar um
grupo traumatizado por aquilo que acontecera à filha do Presidente,
nervoso por causa do martelo que em breve se abateria sobre si.
Mas o destacamento não agiu dessa forma. Deslocavam-se e
faziam o seu trabalho e reagiam às piadas e às provocações
simpáticas de Harbor como se nada se tivesse passado. É um
segredo de polichinelo que ele foi enviado para cá para recolher
informações para as audições e processos disciplinares futuros,
contudo, na maior parte das vezes, é ignorado alegremente pelo
destacamento original.
E o comentário feito por Stahl, no pontão dos barcos, sobre o
cibercrime também calou fundo, porque a maior parte da carreira de
Brett foi passada na Divisão de Investigação Criminal dos Serviços
Secretos, em Washington DC, a trabalhar em investigações de crimes
informáticos e outros crimes financeiros. Há uns anos, foi transferido
das Operações de Proteção no âmbito da sua subida na carreira e,
embora não o reconheça perante ninguém, está ansioso por deixar o
trabalho de campo.
O Mary’s Diner surge à sua frente na Route 115, enquanto a
agente Ferguson liga o pisca-pisca e Brett repara nas carrinhas de
caixa aberta amolgadas e nos velhos Volvos e Toyotas estacionados
no parque de terra batida. Não há grandes hipóteses de um
cibercrime ocorrer aqui e, diga-se em abono da verdade, é por isso
que Brett está farto de pertencer ao DPP. As longas horas em que
apenas… se está por perto. É isso. Estar simplesmente por perto, a
perder tempo. Preferia estar num gabinete fresco e resguardado,
algures, das nove às cinco diante de um terminal de computador,
sendo muitíssimo mais produtivo do que se sente de pé à porta de um
restaurante num cu de Judas, enquanto o protegido come ovos com
presunto e dá apertos de mão aos habitantes locais.
O Suburban detém-se e ele e a agente Ferguson saem, juntando-
se aos agentes Washington e Stahl enquanto Harbor sai pela porta
traseira, parecendo mais descontraído e malvestido do que é
costume. Harbor veste um casaco de couro castanho-escuro puído,
um boné de beisebol de Dartmouth, jeans e ténis pretos e parece não
se barbear há dois ou três dias.
Stahl assume a dianteira e entra no restaurante – um edifício de
um único andar, de tijolos de madeira com um telhado de duas águas,
cujas traseiras ficam perto de um rio – com Harbor imediatamente
atrás de si e Nicole Washington a fechar a marcha. Brett acena com a
cabeça a Kelly Ferguson e diz «Muito bem, então» e esta contorna o
edifício em direção à porta das traseiras, enquanto ele se conserva no
seu posto no exterior da porta principal.
Não consegue evitar.
Brett boceja.
Uma neblina matinal paira sobre o verde-escuro das colinas
arborizadas que rodeiam esta parte da vila de Leah. Há um posto de
gasolina e loja de conveniência do outro lado da rua, algumas casas
mais pequenas ao fundo da rua e, a cerca de trinta metros, uma casa
amarela, maior e inclinada para o lado, daquelas que aqui são
conhecidas como coloniais. Brett cresceu em Phoenix, trabalhou no
Departamento de Segurança Pública do Arizona antes de entrar para
os Serviços Secretos e uma grande surpresa é ver quão velho é tudo
por estes lados. Com os diabos, Phoenix só se tornou uma cidade
oficial em 1881 ou por aí, e aqui as pessoas não consideram especial
terem uma casa construída nos anos 1700.
Boceja de novo.
Brett pensa que um dia alguém devia escrever um livro chamado
Aborrecimento: Memórias de Um Agente dos Serviços Secretos.
Através do seu auricular, ouve dizer do interior do restaurante:
«Aqui Stahl com o Harbor.»
Brett fala junto ao punho – «Entendido» – e há respostas
semelhantes de Kelly Ferguson e uma das agentes que se encontram
de serviço em casa do anterior Presidente.
– Lago Marie, recebido – diz uma voz feminina.

Mais de uma hora depois, Brett anda para cá e para lá no parque


de terra batida e já não está aborrecido.
Porque raio é que Harbor está a demorar tanto?
Ao longo da última hora, houve atualizações rápidas de Stahl, que
repetiam todas o mesmo. «Harbor está seguro.»
Mas a fazer o quê? A comer o terceiro pequeno-almoço?
Brett aproxima da boca o microfone do pulso e pergunta:
– Ferguson, o Harbor está aí atrás a ajudar a esvaziar o lixo?
– A única coisa que está a acontecer aqui é uma disputa de
território entre chipmunks e esquilos – diz-lhe a voz dela, pelo seu
auricular.
– Stahl, fala Peyton, qual é a tua posição?
Um casal de idosos sai do restaurante e o homem vem a dizer:
– Não sei porque é que tens sempre de dar gorjetas enormes,
Jenny…
Não há resposta.
– Stahl, fala Peyton. Responde, por favor.
O casal de idosos entra para um sedan Volvo azul-escuro. Ela liga
o motor e afastam-se pela estrada de campo estreita e vazia.
Com os diabos…
– Ferguson, fala Peyton – comunica, com voz tensa. – Há
qualquer coisa errada. Vou entrar.
– Vemo-nos lá dentro – responde ela.
Afasta o casaco leve para o lado, com a mão na sua pistola
semiautomática SIG Sauer P229, e entra rapidamente no restaurante.
Visualização instantânea.
Mesas e compartimentos à esquerda.
Balcão com bancos altos redondos em frente, estando mais ou
menos metade ocupados.
Todos os que lá se encontram viram a cabeça para ele e, depois,
para a agente Ferguson que entra, pela área da cozinha, da direita.
Não vê o Presidente Keating.
Nem o agente Stahl.
Nem a agente Washington.
Uma mulher esquelética de cabelo branco, que usa umas calças
largas pretas e uma camisola cor-de-rosa, aparece, equilibrando
destramente uma bandeja no ombro esquerdo, e Brett põe-se à sua
frente.
– O Presidente Keating? Onde está?
Ela encolhe os ombros,
– Foi para ali há um bocado.
– Para onde? – pergunta Brett. – Foi para onde?
Com o ombro livre, aponta para o canto mais distante do
restaurante, onde há uma porta de madeira fechada ao lado de pilhas
enormes de caixas de cartão, e ele dirige-se para a porta, abre-a de
par em par, vê umas escadas que conduzem a uma escada.
Acende o interruptor.
Desce os degraus de madeira até à cave, de teto baixo.
– Senhor Presidente? – chama. – Stahl? Washington?
Há dois congeladores, prateleiras cheias de artigos enlatados.
Kelly Ferguson passa por ele, e Brett sente um rugido nos ouvidos.
As mãos que agora seguram a sua SIG Sauer estão frias e ele pensa:
Uma emboscada? Outro rapto? Porque é que não houve tiros?
– Peyton! Aqui!
Contorna uma estante, chega a uns alicerces antigos de tijolos e
pedra e encontra uma pesada porta de madeira inserida no centro.
Kelly Ferguson abre a porta, entra, de lanterna na mão, iluminando o
interior.
Um túnel com revestimento de tijolos, que penetra na escuridão.
Brett está de pé ao lado de Kelly e exclama:
– Valha-me Deus!
Ouve-se uma voz feminina atrás deles – «Isto não tem nada que
ver com Deus» – e depois uma gargalhada.
Brett vira-se, a senhora das calças largas pretas e da camisola
cor-de-rosa está ali, com um sorriso no rosto enrugado. Brett
pergunta-lhe:
– Que é isto? Um armazém? Uma cave para guardar as colheitas?
Um abanar firme de cabeça.
– Não. Um túnel de contrabandistas durante a Lei Seca.
– Aonde vai dar? – inquire Kelly.
– Tem uns trinta metros, até à casa dos Trainor. Nesse tempo, os
barcos desciam o rio Trinity desde o Ontário, carregados com o belo
whisky e cerveja canadianos. Descarregavam-nos do lado de fora da
casa e depois eram trazidos para aqui através do túnel, quando isto
era um restaurante à beira da estrada. Tempos entusiasmantes.
– Peyton, temos de participar isto – diz Kelly Ferguson.
Antes de ele responder, a idosa mete a mão no bolso das calças,
tira um envelope dobrado e pergunta:
– É o agente Peyton, dos Serviços Secretos?
Ele assente com a cabeça.
– Nesse caso, isto é para si – declara ela, estendendo-lhe o
envelope.
O sobrescrito é de cor creme, de bom fabrico. No canto superior
esquerdo tem o brasão dos Estados Unidos e, por baixo, as palavras
GABINETE DE MATT KEATING.
O nome de Brett foi manuscrito no centro.
Abre o envelope, lê rapidamente a única folha de papel, sabendo
de modo bastante claro, como se um raio ali tivesse caído, que tanto
a sua carreira como o antigo Presidente se esfumaram.
Capítulo 82
Autumn Leaves Motel
Contoocoock, New Hampshire

O maior quarto que o Autumn Leaves Motel tem para oferecer está
apinhado. Hoje de manhã, comigo, o agente David Stahl, dos
Serviços Secretos, e os dois Navy SEAL, Alejandro Lopez e Nick
Zeppos, que desmancharam a estrutura de uma das duas camas e a
encostaram à parede, juntamente com o estrado e o colchão de
molas.
A um canto, empilham-se diversos sacos contendo o nosso
equipamento e, sobre a fina alcatifa azul, estendemos um mapa
topográfico em grande escala da Líbia. Bebemos café de um Dunkin’s
local e continuamos o planeamento.
É difícil explicar, mas sinto orgulho, esperança e satisfação por
estar com estes guerreiros a preparar-me para ir para o terreno mais
uma vez. O cliché do famoso discurso de Henrique V, na peça
homónima de Shakespeare, antes da Batalha de Azincourt:

Nós poucos, felizes poucos, bando de irmãos;


Porque aquele que hoje derramar o seu sangue comigo
Será meu irmão.

É um cliché… por ser verdade.


Estes homens que aqui estão, seja qual for o resultado, serão
sempre meus irmãos.
Pergunto ao chefe do meu destacamento dos Serviços Secretos:
– David, quanto tempo temos até os serviços se mobilizarem e
começarem a bater os campos à minha procura?
– Nenhum – responde.
Até os dois SEAL parecem endireitar-se nas cadeiras e prestar
atenção.
– Porquê? – inquiro.
– A partir do momento em que deixou de estar sob a proteção dos
Serviços Secretos, tornou-se um assunto do FBI. Aconteceu o mesmo
quando a Mel foi raptada. O FBI assumiu o controlo.
Alejandro sorri.
– Mas ele não deixou de estar sob proteção dos Serviços
Secretos. Ainda está aqui, não é?
David não sorri quando responde.
– Proteção oficial e não o que está a acontecer aqui. A partir do
momento em que o… a partir do momento em que o Matt veio
embora, o assunto passou a ser da responsabilidade do FBI. É
possível que a notícia tenha sido transmitida diretamente à chefia, à
diretora Blair, e neste momento estão a preparar-se para iniciar as
buscas. Vai ser uma operação intensa, senhor Presidente.
– Mas o bilhete que deixei no restaurante… não nos vai fazer
ganhar algum tempo? – inquiro.
– Duvido. O FBI não pode acreditar na carta. Terão de presumir
que se insere numa conspiração de rapto, talvez uma continuação do
rapto da Mel e reagir em conformidade – afirma o David.
– Ótimo.
Agora, todos os meus camaradas de armas me olham fixamente e
o Nick diz:
– Como assim, senhor Presidente?
– Ótimo – repito. – Neste momento, a diretora Blair já informou a
Presidente Barnes. Acham que ela quer que se espalhe a notícia de
que eu desapareci? Depois das fugas de informações e das crónicas
sobre a sua reação atamancada ao rapto da minha filha? Não, não
querem a humilhação suplementar. Essa é a principal razão pela qual
os governos guardam segredos. Não é por serem sensíveis, mas
porque os segredos são embaraçosos.
– Vai acabar por se saber – comenta Alejandro.
– Claro – concordo. – Dentro de um ou dois dias e, nessa altura,
estaremos no Norte de África, se Deus quiser e tudo correr bem. E se
a agente Washington se tiver afastado muito, antes de ser apanhada.
A agente Nicole Washington, dos Serviços Secretos, dedicada à
sua carreira e a proteger-me. Uma mulher negra de Anacostia, em
Washington DC, mas não daquela zona de Anacostia aburguesada
com cafés e passeios de tijolo. Quando lhe pedi para cumprir esta
única tarefa que, com boa probabilidade, lhe vai dar cabo da vida e
carreira – conduzir por estradas secundárias do Maine rural levando o
meu iPhone, o Android e o equipamento de rádio do David, para o
caso de os que nos procuram localizarem esses instrumentos –,
limitou-se fazer um aceno de cabeça e dizer: «Será uma honra,
senhor Presidente.»
Que fizemos eu e o país para merecer pessoas assim?

Ingiro um gole de café forte:


– Voltando à pergunta original. Por onde entramos na Líbia?
Posso fazer algumas chamadas e arranjar um transporte privado
através de um dos meus doadores de algibeiras fundas… embora
encontrar um jato transatlântico que nos leve até lá possa demorar
algum tempo.
– As alfândegas líbias são capazes de franzir o sobrolho quando
nos virem a querer entrar com tanto equipamento – comenta o David.
– Nesse caso, o nosso transporte aéreo vai para uma pista
particular. Há dinheiro a trocar de mãos, e os tipos da Alfândega
decidem, de repente, atar os atacadores dos sapatos enquanto nós
seguimos caminho. Mas a seguir? Roubar ou alugar um transporte
terrestre e avançar a alta velocidade para as montanhas de Nafusa,
na esperança de, quando lá chegarmos, já termos informações que
nos permitam agir?
Alejandro faz um aceno de cabeça.
– Senhor Presidente, eu… desculpe, Matt. Não gosto disso. Estive
lá há seis meses. A Líbia está muito fragilizada, sobretudo quando
deixamos as cidades costeiras como Trípoli ou Misurata. Na prática,
só há duas vias rápidas importantes a ligar a zona ocidental e o
interior do país e é bastante provável que haja postos de controlo com
pessoal armado. Dependendo de quem está a ser pago e do dia da
semana, esses postos de controlo podem ser do exército líbio, de
milícias ou de membros de uma tribo que pretendem receber um
tributo. Demasiado confuso.
Assinto, acenando com a cabeça.
– Um bom argumento. Além disso, tenho a certeza de que os
nossos amigos chineses estão espalhados por todo o país, e
continuam a injetar dinheiro na sua Nova Rota da Seda. Se virem
aparecer quatro americanos num aeródromo qualquer, teremos um
espião no tereno ou um drone a seguir-nos mal deixemos a pista de
aterragem.
O Nick inclina-se sobre o grande mapa, bate nele com um dedo e
diz:
– A Tunísia. Vamos para a Tunísia, para a base aérea de Sfax-
Thyna, junto à costa. Têm uma unidade do Groupe des Forces
Spéciales… o grupo de forças especiais deles… lá instalada. Eu e o
pelotão passámos ali cinco meses no ano passado, a treinar.
Gosto do que estou a ouvir.
– Continue, Nick.
– Com algum… incentivo, aposto que podemos pô-los a participar
numa missão de treino. E se cruzar a fronteira e entrar na Líbia, bem,
acidentes de navegação acontecem a toda a hora. Mas é uma base
fechada. Não são permitidos aviões civis.
– Nesse caso, vamos num voo militar – retruco, com os olhos fixos
no mapa pormenorizado da Líbia, enquanto a minha mente vê um
mapa da Nova Inglaterra. – Vermont tem uma unidade da Guarda
Nacional Aérea em Burlington, mas só lá estão colocados caças a
jato F-35. Não serve. E a base da Guarda Nacional Aérea no Maine
fica em Bangore e são pelo menos quatro horas de carro e, meus
senhores, não temos quatro horas. Vai ser Pease, na costa do New
Hampshire. Em Newington. A menos de uma hora de distância, se
acelerarmos.
– O que há lá, Matt? – inquire o David.
– Aviões-tanque de reabastecimento, tanto KC-135 como KC-46,
mais recentes. Os dois têm autonomia para nos pôr lá, mas
conseguirmos entrar num daqueles aviões…
Fico em silêncio, sabendo que, com os telefonemas certos, posso
obter as informações necessárias sobre que jatos de reabastecimento
estão estacionados em Pease: Há algum que vá descolar nas
próximas horas, e oh, a propósito, algum deles vai para o
Mediterrâneo, e teria algum problema em levar quatro passageiros
com armamento suficiente para defrontar um esquadrão de
combatentes do ISIS?
Mas fazer telefonemas equivale a deixar migalhas digitais que
poderão ser localizadas pelo FBI ou a Casa Branca.
Que fazer, que fazer, que…
Alguém bate à porta, com firmeza.
Olhamos todos na mesma direção.
Tornam a bater, com mais força.
– Se for o FBI, fico verdadeiramente surpreendido.
– Custa a acreditar, senhor – comenta o Nick. – Pagámos o quarto
com dinheiro vivo. Com identificações falsas. Não há qualquer
vestígio de que aqui estamos.
Outra pancada na porta e digo:
– David, vá abrir a maldita porta. Não queremos que alguém no
parque de estacionamento comunique uma perturbação. Nick, dobre
o mapa.
– Talvez fosse melhor esconder-se na casa de banho – diz
Alejandro.
A sugestão irrita-me. Sento-me ao canto e enfio na cabeça um
boné de beisebol preto e liso.
– Não estou a esconder-me, mas, David, livre-se de quem quer
que esteja lá fora.
Nick dobra o mapa rapidamente e Alejandro pega num dos lençóis
da cama desarmada e atira-o para cima da pilha de sacos pretos que
contêm o nosso equipamento. David dirige-se à porta, destranca-a e
abre-a.
Depara-se-lhe uma jovem elegante, de vinte e poucos anos,
envergando jeans e uma T-shirt preta com um símbolo anarquista
vermelho na parte da frente. Tem o cabelo ruivo cortado curto e uns
óculos com uma simples armação preta, e diz:
– Oh, ótimo, ainda não se foram embora.
– Desculpa, que disseste? E quem és tu, porra?
Ela baixa-se, pega numa mala de computador e no seu saco de
desporto preto e entra no quarto, aparentemente sem a menor
preocupação. Avista-me, pousa as coisas e acena com a cabeça.
– Senhor Presidente – diz. – Chamo-me Claire Boone. National
Security Agency. Estive aqui há umas semanas, a participar na
missão de resgate da sua filha e não existe a menor dúvida de que se
transformou numa merda de confusão de proporções épicas, certo?
Desta vez, vamos fazer as coisas como deve ser, está bem?
Tiro o boné de beisebol e levanto-me.
– Que quer dizer com fazer as coisas como deve ser?
Pousa a mala do computador em cima da cama, abre o fecho
éclair, tira um portátil e senta-se na cama a meu lado.
– Precisamos de ir para o Mediterrâneo o mais depressa que
pudermos e acho que sei como.
A rapariga da NSA liga o computador e olha para os quatro
homens calados no quarto.
– O quê, não podem falar? Querem que me vá embora?
– Não – respondo, avançando para ela e o seu portátil. – Não
quero que se vá embora.
Capítulo 83
Autumn Leaves Motel
Contoocoock, New Hampshire

Enquanto o computador da Claire volta à vida, pergunto:


– Eu… como é que nos descobriu?
– Sim, também estava a pensar isso. Com os diabos! – diz o Nick.
– Eu também, sargento-chefe – acrescenta o seu camarada SEAL.
O responsável pela minha escolta dos Serviços Secretos afirma:
– Senhor Presidente, conheço-a. Estive com ela no debriefing
conjunto das agências após aquele raide contra a casa em
Monmouth, a casa onde pensávamos que a Mel estava presa.
A Claire ergue os olhos para o David.
– Meu Deus, não é uma sensação maravilhosa? Um homem dizer-
lhe o que eu já lhe disse há uns segundos… Fá-lo sentir-se especial?
Inteligente?
O David parece perplexo e não o censuro.
A Claire olha para o ecrã do computador e prossegue:
– Como é que vos encontrei? Tudo se resumiu a números. Todos
usamos a matemática todos os dias, mesmo quando não nos
apercebemos disso. Para prever o tempo meteorológico, conceber
software, ganhar dinheiro. A matemática é lógica. É racional e não
mente. Quando descobri que um aeroporto local tivera um aumento
inesperado de alugueres de automóveis, apesar de pequeno, tomei
nota. E um motel rural à beira da falência faz um depósito grande em
dinheiro? Isso também me chamou a atenção. E quando, no
manifesto dos passageiros desse aeroporto, constavam dois
passageiros com identificações e informações assessórias demasiado
perfeitas, bastou-me escavar um pouco para saber quem realmente
eram.
Claire suspira de prazer.
– E depois há o senhor, senhor Presidente. Tem noção de quantas
cabeças estão a explodir em Washington por causa do seu
desaparecimento? Vão escrever livros, haverá noticiários especiais…
isto é, se chegar ao Mediterrâneo e trouxer a Mel de volta.
Sinto a boca seca.
– Você… eles sabem que a minha filha está viva?
Mexe no teclado.
– Não existem informações concretas, receio. Diversas teorias e
suposições. Parece que existem provas digitais de que o vídeo da
decapitação… não consegui vê-lo… foi forjado e que, provavelmente,
a filmagem não foi feita nas White Mountains. Mas nada que possa
servir de base a ações. Há reuniões, debates, discussões,
seminários… e conhece Washington: vão levar umas semanas a tirar
conclusões. E hão de ser conclusões erradas… Então, muito bem,
vamos lá.
O quarto está em silêncio, com exceção dos dedos da Claire a
trabalhar no teclado.
– Base de Pease, da Guarda Nacional Aérea, em Newington.
Posto da 157.ª esquadrilha de reabastecimento em voo. Estão a
participar nuns exercícios em grande escala no Mediterrâneo oriental,
centrados da Base Naval de Rota, em Espanha. A colocação no
terreno de um dos aviões foi adiada doze horas devido a um
problema de manutenção. Este KC-135… parece ter Granite Four
como nome de código para a missão que vai levar a cabo. Parte
dentro de noventa minutos. Fiz o que posso, senhor Presidente. Está
nas suas mãos pôr-nos dentro deste avião.
Tenho a sensação de me encontrar num sonho, num estúdio de
filmagem onde todos os outros conhecem as suas deixas e papéis,
exceto eu.
– Claire… porque é que está a fazer isto?
Sorri.
– Não me reconhece, senhor Presidente?
Um ligeiro rubor de vergonha.
– Não, receio que não.
A Claire mexe de novo no computador, roda-o, e há uma fotografia
no centro do ecrã. Com um sobressalto, reconheço a Mel, outra
jovem e Claire Boone, mais roliça, com o cabelo preto em vez de
vermelho. Estão sentadas na cama do quarto da Mel na zona
residencial da Casa Branca. Com voz doce, a Claire diz:
– Era amiga da Mel, quando frequentámos a Sidwell Friends. Ah.
Belo nome, não tão amigável como dizem. Eu estava no décimo
segundo, ela no nono e, não sei porquê, ela começou a gostar de
mim. Talvez porque eu era vítima de bullying e passavam a vida a
gozar-me. Era gorda e, como talvez possa aperceber-se, insiro-me no
espectro do autismo. Falo demasiado depressa, mais habituada a
números do que a pessoas. Mas a Mel fez com que o bullying
acabasse. Quando soube que íamos ser enviados para cá a fim de
ajudarmos na busca inicial, certifiquei-me de que era colocada no
terreno. E depois fiquei por cá.
Roda o portátil.
– Depois da Sidwell, alistei-me no Exército, sobretudo para
chatear os meus pais. Tornei-me batedora de infantaria, raios! Fiz
mais uns testes, a NSA gostou do que viu, e entrei para o serviço
clandestino, tornei-me operacional no terreno. Bom trabalho, mas
passei o tempo em demasiados cibercafés de Berlim e Paris, com
muito fumo de cigarros, à caça de hackers e cibercriminosos. Chega?
Precisa de saber mais? Ou pode fazer um ou dois telefonemas e pôr-
nos a bordo do avião de reabastecimento antes que seja demasiado
tarde? Quero dizer, estou a circular em alguns sistemas restritos onde
não devia estar. Não vai fazer o que lhe cabe?
– Nós? – pergunto. – Vem connosco?
Sorri.
– Quer lhe agrade, quer não, precisa de mim, senhor Presidente.
Quer discutir isso ou fazer o raio do telefonema?
– Faço – respondo. – Procure-me um número de telefone.
O sorriso abre-se.
– Caramba, penso que tenho os recursos necessário para fazer
isso.
Capítulo 84
Pentágono
Arlington, Virgínia

Kimberley Bouchard, secretária da Força Aérea, está sentada no


seu gabinete no Pentágono com uma sanduíche de corned beef por
comer. Está a batalhar com um maço de papéis que explicam um
problema relativo à manutenção da frota envelhecida de
bombardeiros furtivos B-2, quando o seu telefone toca,
proporcionando-lhe uma pausa abençoada.
– Senhora secretária? – Diz o seu assistente administrativo, Martin
Hernandez.
– Sim?
– Senhora… está um homem em linha. Diz que é o Matt Keating.
O…
– O Presidente Keating? – Esfrega os olhos e deixa
imediatamente de pensar em números e peças. – Tem a certeza?
– Ele disse que reconheceria a frase «Ficaria preocupado se fosse
um raio de um jogo de bingo numa igreja». Senhora?
Meu Deus, pensa.
– Passe a chamada – diz e lembra-se.

Há mais de três anos, sentada sozinha com o Presidente Matt


Keating na Sala Oval, cada qual num sofá diferente no centro da
divisão, ele de calças pretas, camisa azul com botões no colarinho e
a gravata vermelha sem nó a balançar à sua frente. Um minuto antes,
fora conduzida até lá pelo chefe de gabinete Jack Lyon, que lhe
lançou um olhar de desprezo, porque Kimberley infringira a primeira
regra de Washington: nunca, nunca embaraçar o patrão.
Keating pergunta:
– Quer beber alguma coisa? Água? Coca-cola? Algo mais forte?
Kimberley abana a cabeça. Quer que este momento humilhante e
constrangedor da sua vida acabe tão rapidamente quanto possível.
– Senhor Presidente, ainda estou muito pesarosa por estas
informações terem vindo a lume – diz. – Pensava que o processo de
aprovação seria confidencial, mas a notícia da minha adição…
Suspira, tira uma folha de papel dobrada do bolso interior do
casaco.
– Quando terminarmos, saio e faço uma declaração, anunciando
que retiro a minha candidatura a secretária da Força Aérea.
Keating recosta-se no sofá, com as mãos na nuca.
– Lembre-me, Kimberley: o processo de aprovação também referiu
que cresceu numa exploração leiteira na Pensilvânia, foi para a
Universidade da Pensilvânia com uma bolsa ROTC da Força Aérea,
subiu na carreira, tornou-se perita em manutenção e aquisição de
peças e depois, aparentemente entediada, também frequentou a
escola de formação de pilotos na Base Aérea de Laughlin, no Texas.
Certo?
Faz um aceno de cabeça, sem saber aonde isto vai dar e o
Presidente prossegue:
– Mais tarde, pilotou um avião de medidas defensivas eletrónicas
Lockheed EC-130. Voou em zonas perigosas e sinistras do mundo.
Deixou a Força Aérea, trabalhou em alguns grupos de reflexão e
como consultora na Lockheed. Pelo caminho, teve um problema de
jogo, não é verdade? O seu marido deixou-a por causa disso, certo?
Ela faz um aceno de cabeça, com os lábios fechados de vergonha.
Ele continua:
– Mais tarde, frequentou os Jogadores Anónimos. Pagou, até ao
último cêntimo, o que devia aos bancos e a pessoas a quem pedira
dinheiro emprestado, com juros. Há pelo menos quatro anos que não
joga, não é verdade?
– Sim, senhor Presidente, mas…
– Corrigiu os erros. Pagou a toda a gente. Não tem jogado.
Ele sorri-lhe e Kimberley sente-se totalmente à vontade.
– Ora bem, ficaria preocupado se tivesse sido apanhada num raio
de um jogo de bingo numa igreja, ou coisa que o valha, mas isso não
aconteceu, pois não? O que aconteceu foi que um idiota qualquer em
Capitol Hill que queria ajustar contas comigo decidiu prejudicar-me
tornando público esse inquérito privado do FBI, na esperança de que
me obrigasse a livrar-me de si. Uma escaramuça e uma vitória
menores para o senador ou membro de pessoal, seja ele quem for, e
se, entretanto, a destruírem, bem, é assim que se joga aqui em
Washington. Deixe-me ver esse seu discurso.
Kimberley estende-lhe o papel dobrado e, sem sequer olhar para
ele, o Presidente rasga-o ao meio, depois em quartos e em seguida
deixa cair o papel rasgado sobre a mesa de apoio.
Levanta-se, começa a refazer o nó da gravata.
– Vou dizer-lhe uma coisa. Se não estiver muito ocupada, futura
senhora secretária, vamos até ao Roseiral dizer à imprensa que
continuo a apoiá-la a cem por cento.
Não sabe o que responder e Keating acrescenta:
– E é assim que eu jogo. A minha gente, as minhas regras. Venha
daí. Queremos que seja a primeira notícia das estações de televisão
por cabo.
Kimberley sai da Sala Oval atrás dele, ainda sem conseguir dizer
nada, sentindo apenas os olhos a humedecer enquanto um sorriso
começa a formar-se no seu rosto aliviado.

Ao telefone, o anterior Presidente diz:


– Kimberley, que bom que me atendeu.
– Senhor Presidente, sinto muito…
– Por favor, Kimberley, odeio interrompê-la, mas preciso de uma
coisa. Preciso da sua ajuda. E não tenho muito tempo.
– O que é, senhor Presidente?
O tom da voz dele é completamente diferente do que já lhe ouviu:
conciso, duro, controlado.
– Há um KC-135 – diz ele – que vai partir da base da Guarda
Nacional Aérea de Pease, no New Hampshire, dentro de menos de
duas horas. Nome de código Granite Four. Dirige-se para a Base
Naval de Rota. Kimberley, preciso de ir nesse avião com mais quatro
pessoas. E, antes de chegar a Rota, precisa de fazer escala na
Tunísia. No aeródromo militar deles em Sfax-Thyna. Quero
autorização, desse lado, para o Granite Four aterrar.
Alguns segundos tensos.
– Kimberley, preciso de chegar lá, com a minha gente. Estou a
pedir-lhe um favor terrível, eu sei, mas…
Ela interrompe-o:
– Chega, senhor Presidente. Alinho. Pode contar comigo.
– Kimberley, eu…
Consegue aperceber-se do alívio na voz dele.
– Está com pressa. Penso que sei porquê, mas não pergunto. Vá
com Deus, senhor Presidente, e faça o que tem de ser feito.
Desliga o telefone, levanta de novo o auscultador e fala com o seu
assistente administrativo.
– Martin?
– Sim, senhora secretária?
– Ponha-me a falar, já, com o comandante da esquadrilha ou o
oficial de patente mais elevada da base de Pease da Guarda
Nacional Aérea, no New Hampshire.
– Sim, espere um momento, enquanto faço a ligação.
Enquanto aguarda, olha para o trabalho burocrático monótono
relacionado com peças, aquisições e manutenção. Pega nas páginas
com uma mão e atira-as ao ar, atrás de si.
É bom fazer uma coisa importante, para variar, pensa.
Capítulo 85
Autumn Leaves Motel
Contoocoock, New Hampshire

Pouso o meu telemóvel pré-pago e olho para os meus quatro


camaradas – agora um bando de irmãos e uma irmã – e comunico:
– Está a andar. Vamos fazer as malas.
David exclama:
– Boa, senhor Presidente.
Penso durante um momento, agarro no telemóvel pré-pago e
dirijo-me à pequena e malcheirosa casa de banho do quarto.
– Preciso de fazer mais uma chamada antes de partirmos.
Particular, compreendem.
– Claro – diz o David.
– E Alejandro e Nick, tornem a montar a cama. Não é assim que
faço as coisas – ordeno.
Entro na casa de banho imunda, tento não respirar pelo nariz e
fecho a porta.
Tiro o telemóvel do bolso, primo os números e oiço tocar.
Tocar.
Tocar.
Onde anda ela?
E então, Sam atende, ofegante.
– Sim, quem fala?
– Sam, é o Matt – digo. – Só queria dar-te informações
atualizadas. Consegui transporte. Um jato de reabastecimento em
Pease. Vamos partir dentro de menos de duas horas. O David Stahl
está comigo, juntamente com dois Navy SEAL e uma operacional no
terreno da NSA.
– Matt… são suficientes?
– Vão ter de ser, Sam – retruco. – Temos de ser poucos,
precisamos de nos deslocar depressa.
Então, apercebo-me do que acabei de fazer: pela primeira vez na
vida, disse à minha mulher o que estou prestes a fazer. Geralmente,
as minhas deslocações, nos velhos tempos, eram anunciadas com
um calmo «Olá, vou estar fora durante uns tempos, em treinos» ou
«Preciso de estar fora, em trabalho, durante uns tempos. Mando-te
um e-mail quando puder.»
Mas não agora.
A Sam sabe tudo: que vou para o outro lado do Atlântico para
trazer a nossa filha e matar quem se meter no caminho.
– Força, Matt. Avança – diz, com voz tensa mas feroz. Oiço ruídos
de fundo e pergunto:
– Sam, estás bem? Que barulho é esse?
Uma leve gargalhada.
– Vamos ambos fazer viagens imprevistas. Pediram-me que
entregasse um prémio na reunião anual da Society for American
Archeology, em Georgetown. A pessoa escolhida originalmente para
o fazer está com gripe e, por isso, cá estou. Assim, boa viagem para
ambos, não é? Estou em Dulles à espera de que me venham buscar.
– Amo-te, Sam. E não volto sem ela, sã e salva. Vou manter-te ao
corrente, sempre que puder.
– Também te amo, Matt. E sei que vais fazê-lo. Merda, o meu Uber
chegou. Adeus, Matt.
– Adeus, Sam – retruco e desligo a chamada, respiro fundo e oiço
ruídos no quarto, enquanto os nossos sacos cheios de equipamento
são levados lá para fora para os dois carros alugados.
Olho para o meu telemóvel pré-pago.
Mais uma chamada, penso.
Mais uma chamada para ajustar contas.
Capítulo 86
A bordo do Granite Four
Base de Pease da Guarda Nacional Aérea, New Hampshire

O capitão Ray Josephs, da 157.ª esquadrilha de reabastecimento


em voo da Guarda Nacional Aérea do New Hampshire, está sentado
no estreito assento do piloto no lado esquerdo deste velho avião-
tanque KC-135, preparando-se para o voo transatlântico de final da
tarde, que devia ter-se realizado ontem.
Uma bomba do sistema hidráulico do lado esquerdo do avião
avariou-se e teve de ser substituída, provocando o atraso, mas isso
não devia constituir grande surpresa. Este avião de reabastecimento
e mais algumas centenas que ainda voam entraram ao serviço em
1957 – baseados no desenho do Boeing 707 dos anos 1950 – e o
último foi entregue à Força Aérea em 1965.
Ray conhece algumas histórias sobre pilotos atuais de KC-135
que voam no mesmo avião em que os avós voaram quando estavam
na Força Aérea e acredita nelas. Esta carlinga ainda está atafulhada
de botões, mostradores e interruptores, sem nenhum ecrã táctil de
computador à vista. À direita de Ray, a menos de um metro, o seu
copiloto, a tenente Ginny Zimmerman, passa em revista a pilha de
documentos de missão do seu voo para Rota. Tal como Ray, enverga
o fato-macaco verde com fecho éclair e botas verde-sálvia
regulamentares, e tem um volumoso auscultador e sistema de
microfone sobre o curto cabelo louro.
– Ginny – diz o piloto –, é verdade o que dizem? Vocês, da Delta,
vão fazer uma greve de zelo?
Ela abana a cabeça e começa a folhear as páginas.
– Alguém tem de ceder e não vamos ser nós.
Ray ri e folheia o seu dossiê. Ele é piloto da United e Ginny, da
Delta, e servir nesta esquadrilha faz parte dos seus deveres como
membros da Guarda Nacional Aérea do New Hampshire.
Na contracapa do seu dossiê com a lista de controlo tem um velho
autocolante que mostra Pégaso a voar, circundado pelo acrónimo
NKAWTG, Nobody kicks ass without tanker gas!13
Uma coisa engraçada que aprendeu há muito tempo é que,
quando se trata de operações militares, os amadores discutem a
tática e os profissionais discutem a logística. E, quando se trata de
guerra aérea, nada se faz sem a logística destes velhos postos de
gasolina voadores, que reabastecem tudo desde caças a jato a
bombardeiros, pelo mundo inteiro.
E a tarefa de transferir o combustível necessário cabe ao terceiro
membro da tripulação, o sargento técnico Frank Palmer, que manobra
a lança de abastecimento na popa do avião. Neste momento,
encontra-se na pequena cozinha da aeronave, a guardar as refeições
para o voo transatlântico com duração de meio dia.
Ray prepara-se para perguntar à copiloto se podem começar a
rever a lista de controlo de voo, quando de súbito lhe chega uma voz
através dos auscultadores.
– Controlo de Pease para Granite Four – diz uma voz feminina.
Prime o interruptor de resposta.
– Granite Four, diga.
– Aguarde – comunica a controladora.
Ginny olha para Ray, que alça as sobrancelhas e encolhe os
ombros.
E, então, ouve-se uma voz inesperada.
– Capitão Josephs, fala o coronel Tighe. – Ray fica
momentaneamente imóvel.
O comandante da esquadrilha. Agora?
– Sim, senhor.
– Um grupo de cinco pessoas vai embarcar no seu avião dentro
dos próximos minutos. Conceda-lhes todos os cuidados possíveis,
dentro do razoável.
– Senhor… – Ray está a pensar a toda a velocidade. – São
passageiros Space A?
Nos termos das normas da Força Aérea, caso haja disponibilidade
nas aeronaves, determinadas pessoas – das forças armadas no ativo
ou reformados, familiares dependentes ou até condecorados com a
Medalha de Honra – podem voar no âmbito da chamada
disponibilidade Space A, mas esse tipo de embarque tão em cima da
descolagem é altamente irregular.
– De certa maneira – responde o coronel Tighe, com voz bem
articulada. – Viajam a pedido da secretária da Força Aérea. Sei que
estamos em cima da hora e é altamente irregular, mas confio em que
fará com que as coisas funcionem, capitão.
– E o manifesto deles?
– Eu trato do manifesto – retruca Tighe. – Responsabilizo-me pela
bagagem e identificação deles. E é em cima da hora, eu sei, mas o
destino vai ser a base da Força Aérea da Tunísia em Sfax-Thyna. Já
foram realizadas as diligências necessárias para ser autorizado a
aterrar e abastecer. Alguma pergunta?
Ray tem cem ou mais perguntas a fazer, porém sabe o suficiente
para fazer inteligentemente continência – é uma forma de dizer – e
manter a boca calada.
– Não, meu coronel. Entendido.
– Ótimo – diz o coronel Tighe, e desliga.
Quando a transmissão termina, Ginny, que também a ouviu, fita
Ray, com os olhos esbugalhados.
– Que raio foi isto?
Ele retira os auscultadores e o microfone da cabeça e levanta-se.
– Não sei, mas estou prestes a descobrir. Entretanto, calcula
quanto mais combustível vamos necessitar para chegar à Tunísia.

Ray apressa-se a sair da carlinga estreita e dirige-se à ré, onde


existe apenas um convés plano de metal com argolas embutidas,
para prender paletes, e uns assentos de rede vermelha encostados a
cada lado da fuselagem. No extremo mais distante fica o
compartimento de reabastecimento guarnecido pelo seu sargento
técnico, ou operador de lança, que é responsável por controlar a
lança de reabastecimento ar-ar. Por debaixo do convés, estão
armazenadas mais de 90 toneladas de combustível JP-8 para jatos.
Ray vira à direita, para a escotilha de carga, que está aberta. Com as
luzes dos edifícios próximos e da pista, consegue ver a carrinha de
caixa aberta com a escada ajustável na traseira. Cinco passageiros
sobem a escada, transportando cada um dois sacos. Ray fica ali de
pé, à espera, sentindo-se um pouco nervoso e excitado, perguntando-
se como e porquê este voo transatlântico de rotina se transformou
numa coisa assustadora e diferente.
O sargento técnico Palmer, com o seu cabelo preto cortado à
escovinha à moda antiga e a barriga a fazer pressão contra o fato-
macaco verde, vem ter com ele:
– Que se passa, capitão?
– Passageiros de última hora, Frank. Importas-te de fixar a
escada?
A escada móvel sobe até à porta aberta e o seu operador de lança
fixa-a.
Os primeiros três passageiros sobem a escada, entram no avião e
limitam-se a baixar a cabeça a Ray e avançar para a popa. Baixam os
assentos de rede vermelha e prendem os sacos, como se já tivessem
feito isto. Embora nunca tenha tido uma verdadeira experiência com
membros das forças especiais, Ray tem a sensação de que estes três
são operacionais – ou pelo menos militares –, pela forma como se
deslocam fácil e rapidamente, sem movimentos supérfluos.
O quarto passageiro é uma pequena surpresa: uma ruiva alta com
óculos de armação preta e que baixa a cabeça e pergunta:
– Não vai haver filme durante o voo, pois não?
Ray vai responder, quando o quinto passageiro chega ao convés.
O piloto imobiliza-se, ao reconhecer o homem.
O Presidente Matt Keating.
Chiça, penico, chapéu de coco, pensa. Que é esta merda?
Keating diz, calmamente:
– Peço desculpa por incomodá-lo, capitão, mas fico-lhe mais grato
do que alguma vez poderá saber.
Ray recupera a voz.
– É um prazer ajudar.
O antigo Presidente avança para junto dos outros quatro
passageiros. O operador de lança, Palmer, olha para Ray, abana a
cabeça e diz calmamente:
– Estou há quase quinze anos na Força Aérea e agora posso dizer
que vi de tudo.
Roy regressa à carlinga, ainda abalado pelo que viu, e põe de
novo o conjunto de auscultadores e microfone enquanto se enfia no
assento do piloto.
Com uma voz ansiosa, a sua copiloto pergunta:
– Quem está lá atrás? E qual é o problema?
– Ginny, não sabes e, confia em mim, nunca vais querer saber.
Vamos mas é pôr este pássaro a voar.

13
Ninguém dá cabo dos criminosos sem a gasolina do avião-tanque! (N. do T.)
Capítulo 87
Sala Oval
Casa Branca

Depois de a diretora do FBI, Lisa Blair, lhe ter fornecido


informações atualizadas sobre as buscas para encontrar Matt Keating
– «Estamos a saturar a zona com agentes do FBI, estamos a
trabalhar com autoridades locais sem alertar os meios noticiosos, mas
ele cobriu belissimamente o rasto, senhora Presidente» –, a
Presidente Pamela Barnes olha de novo para a cópia impressa do
bilhete manuscrito que Matt Keating deixou para trás no local do
pequeno-almoço, no interior do Estado do New Hampshire, e
pergunta à diretora Blair:
– Que raio significa a última frase?
Lisa Blair olha de soslaio para o agente do FBI, mais velho,
sentado a seu lado – estão ambos em frente de Pamela, do outro
lado da secretária Resolute – e diz:
– Preferia que fosse o Dr. Abrams a explicar isso, senhora
Presidente. É o melhor psicólogo forense do Bureau.
Pamela Barnes ergue uma mão.
– Um momento, quero ler outra vez essa maldita coisa.
Olha de novo para a caligrafia clara e enérgica do seu antecessor,
a mensagem dirigida ao chefe da Segurança Interna, que é o
responsável máximo pelo Serviços Secretos.

Caro secretário Charles,


Estou a escrever isto de livre vontade, sem
estar submetido a coação ou ordens de qualquer
agente externo. A decisão de abandonar a minha
residência junto ao Lago Marie é pessoal e está a
ser tomada contrariando os conselhos e
recomendações enérgicos do meu destacamento
dos Serviços Secretos.
Nenhum dos membros do meu destacamento
deve ser responsabilizado ou castigado pela
minha decisão e, na verdade, há que louvar o
chefe do meu destacamento, David Stahl, que
decidiu acompanhar-me, sabendo os danos
irreparáveis que isso causará à sua carreira.
Quanto ao porquê e para onde vou…
Vou apenas lá fora e talvez por algum tempo.
Atenciosamente,
Matt Keating

Pamela Barnes abana a cabeça. Aquela maldita caligrafia. Aquela


mesma maldita arrogância de há um ano e meio, quando leu a carta
que ele pusera nesta mesma secretária.
A carta, na secretária Resolute, de um Presidente para outro é
uma tradição para comemorar a transição pacífica do poder, mas o
filho da puta tinha de a levar um pouco mais longe naquele 20 de
janeiro.
Pamela Barnes olha para o Dr. Clint Abrams, o psicólogo forense
do FBI, e afirma:
– Diga-me. Pensa que ele está a dizer a verdade, que não está
sob coação?
O Dr. Abrams, magro, bem vestido num fato cinzento e
completamente careca, excetuando duas hirsutas sobrancelhas
brancas, responde:
– Sim, penso. Sem a menor dúvida. A caligrafia é firme, sem
hesitações nem tremuras. As expressões que usa são fortes,
confiantes e é muito improvável que tenha escrito isto com uma arma
encostada à cabeça, ou uma faca à garganta.
Pamela Barnes bate no papel.
– Mas aquela última linha. A citação. Donde provém? Que
significa?
– É um comentário histórico – retruca o médico do FBI. – Do
capitão do exército britânico Lawrence Oates, que participou na
expedição de Robert Scott ao Polo Sul, em 1912. Pretendiam ser os
primeiros a chegar lá, mas foram vencidos por Roald Amundsen, da
Noruega. Por uma diferença de cerca de seis dias.
– Fascinante como o raio, tenho a certeza, mas o que está a dizer
o Keating?
– Quando a expedição de Scott regressava ao seu acampamento
de base, foi atrasada por umas condições meteorológicas terríveis e
alguns dos seus membros ficaram gravemente doentes. Oates foi um
deles, com os pés gravemente gangrenados, e sabia que o seu
estado podia acabar por matar todos os outros. Durante uma violenta
tempestade de neve, abandonou a tenda e proferiu essas mesmas
palavras: «Vou apenas lá fora e talvez por algum tempo.» É
considerado um dos grandes atos de autossacrifício e um exemplo da
calma lendária dos Britânicos quando em perigo.
– Mas o Keating não é britânico, não está doente com gangrena e,
com toda a certeza, não está a sair para enfrentar uma tempestade
de neve.
– Do meu ponto de vista, senhora Presidente – diz Lisa Blair – é
uma jactância. Ou uma declaração. O Matt está a dizer que talvez
esteja a sacrificar-se por um bem maior e que não se importa.
– Recuperar a filha – retruca Pamela Barnes. – Mas não temos a
certeza de que esteja viva. Nem de onde poderá estar. Isso ainda
está a ser investigado.
– É verdade, senhora Presidente, e…
Há uma pancada brusca na porta e o marido e chefe de gabinete
da Presidente entra, com o rosto corado, parecendo deslocado num
smoking, vestido para uma angariação de fundos nessa noite.
– Apanhámo-lo – diz Richard. – Está a tentar voar para fora do
país a bordo de um avião-tanque de reabastecimento da Força Aérea,
numa base no New Hampshire. Parece que tem uns militares com
ele. Já não está desaparecido, senhora Presidente.
– Para onde se dirige o avião?
– Rota, em Espanha.
– No Sudoeste de Espanha, não é? É só um pulinho até ao Norte
de África.
O marido, Richard, assente, baixando a cabeça.
– Certíssimo, senhora Presidente. Com homens armados a
acompanharem-no. Parece que vai fazer uma busca para encontrar a
filha.
Maldito, pensa Pamela Barnes, sabendo o tipo de tempestade
mediática e política prestes a abater-se sobre a sua cabeça, caso se
saiba que Matt Keating está a iniciar uma missão de resgate sozinho.
Quem manda? Ela ou o anterior Presidente?
Vira-se para a chefe do FBI.
– Diretora Blair, ele não pode realizar operações militares por sua
iniciativa. Tem de mandar agentes para lá e impedi-lo.
A voz da diretora do FBI é cética.
– Impedi-lo de fazer o quê? É ex-militar e antigo Presidente. Tenho
a certeza de que cobrou alguns favores para embarcar no avião da
Força Aérea. Isso não infringe o direito federal, senhora Presidente.
O olhar gelado de Pamela Barnes responde imediatamente ao de
Lisa Blair e a Presidente decide que, a dada altura, esta maldita
mulher nomeada por Keating vai ter o que merece.
– Muito bem – diz, e dirige-se para o telefone, levantando de
seguida o auscultador. Não tem tempo para discutir com esta teimosa
diretora do FBI. Segundo o protocolo, o que está prestes a fazer devia
passar pelo seu secretário de Defesa, mas ele anda numa digressão
pela Coreia do Sul e pelo Japão, e ela sabe que não tem tempo para
ser agradável com os burocratas do Departamento de Defesa.
– Senhora Presidente? – diz o seu secretário, Paul McQuire, do
outro lado da linha.
– Paul, preciso de falar imediatamente para o National Military
Command Center, no Pentágono.
– Com certeza, senhora Presidente. Um momento.
Um breve instante de vazio. O marido de Pamela, a diretora e o
psicólogo forense do FBI estão todos a olhar para ela. Apesar da sua
aversão intrínseca aos militares, caramba, há dias em que é bom ser
comandante-chefe.
A voz do seu secretário regressa e diz:
– Senhora Presidente, tenho em linha a coronel Susan Sinclair, do
Exército.
– Coronel Sinclair? – pergunta.
– Sim, senhora Presidente – responde uma voz feminina.
– Há um avião-tanque da Força Aérea a levantar voo da base
aérea de Pease, no New Hampshire. O voo dirige-se para Rota,
Espanha. Quero que essa aeronave fique em terra. Não pode partir
sem a minha autorização expressa. Compreende, coronel?
Uma breve hesitação, e Pamela Barnes imagina a coronel presa
algures nas entranhas do Pentágono, com todos os ecrãs de
computador, equipamento, procedimentos e planos memorizados… e
depois a receber uma chamada como esta.
E depois?, pensa. Faz o teu trabalho, raios.
– Sim, senhora Presidente. Compreendo.
– Ótimo. Não quero saber se tem de contactar o Estado-Maior, o
comandante da base ou o próprio piloto, mas esse avião não pode
descolar.
– Entendido, senhora Presidente
– Ótimo. Contacte o Gabinete de Comunicações da Casa Branca
quando tiver uma confirmação, para eu ter a certeza de que o avião
ficou em terra.
– Sim, senhora Presidente.
– Muito bem.
Pamela Barnes desliga o telefone e diz à diretora Blair:
– Não me interessa como vai fazer, ou que leis vão ser infringidas
ou contornadas, mas quero que os agentes do FBI vão a Pease e
escoltem o Matt Keating para fora do avião. Diga que estamos a fazê-
lo para sua proteção pessoal, ou porque estamos preocupados com o
atual estado da sua saúde mental, o porque precisamos de lhe fazer
perguntas sobre um caso criminal… na verdade, não me interessa.
Retirem o Keating daquele jato da Força Aérea.
Lisa Blair responde:
– É capaz de levar algum tempo, senhora Presidente. Temos de
chegar a um acordo com a segurança da base e os seus
comandantes para que os nossos agentes sejam autorizados a entrar
naquele campo.
– Como aquele jato não vai a parte alguma, não me preocupa
quanto tempo vai levar.
Vê o olhar aprovador do marido, Richard, e isso fá-la sentir que
está a agir bem.
É uma boa sensação, de facto. E acrescenta:
– Mas quero que seja feito.
A diretora Blair começa a levantar-se e o Dr. Abrams acompanha-
a.
– Muito bem, senhora Presidente.
Capítulo 88
A bordo do Granite Four
Base de Pease da Guarda Nacional Aérea, New Hampshire

Estou sentado no assento de rede vermelha ao longo da


fuselagem interior do KC-135, a apertar o cinto de segurança e, ao
meu lado, o agente Stahl comenta:
– Não é como da última vez em que levantou voo de Pease, pois
não?
Tenho de sorrir. O interior do Air Force One é como um hotel de
luxo, o sistema de comunicações é de nível internacional, as
refeições são gourmet e as camas são comparáveis às da suite de
um hotel de quatro estrelas que de vez em quando dá uns saltos.
E estive no Air Force One e nesta base durante aquele período
brutal das primárias em que a minha vice-presidente se estava a
candidatar contra mim. Depois de ter sido humilhado nas convenções
de Iowa, voei até cá para uma ação de campanha de última hora que
teve como resultado uma vitória estreita que me deu esperança de
conseguir sobreviver ao desafio da Pamela.
Essa esperança não se concretizou, mas aposto que a minha
sorte mudará neste jato despojado da Força Aérea, onde estou
sentado a beber água engarrafada e comer barras energéticas
enquanto tento ficar confortável neste assento de rede. Não há
janelas, nem vista do exterior, apenas o isolamento verde-
acinzentado da fuselagem do jato.
Faço dois rápidos telefonemas intercontinentais, para Danny
Cohen da Mossad e para o major-general Ahmad Bin Nayef da
Direção-Geral de Informações da Arábia Saudita, e conto-lhes os
meus planos.
Ambos me desejam sorte e me dizem que continuam a tentar
localizar Asim Al-Asheed.
Do outro lado, em frente a mim, encontram-se Nick Zeppos,
Alejandro Lopez e Claire Boone. Alejandro está reclinado no assento
desconfortável, de braços cruzados e olhos fechados.
Claire joga no seu iPhone.
Nick fala rapidamente com alguém num telefone de satélite e
depois sorri na minha direção, desliga o telefone, desaperta o cinto de
segurança e avança, sempre a sorrir.
Agacha-se à minha frente, erguendo a voz enquanto os motores
do jato guincham mais alto e começamos a taxiar para a descolagem
na única pista da base.
– Tenho ótimas notícias, senhor… hum, Matt. Ótimas notícias.
– Dê-mas.
– Acabei de falar ao telefone com um amigo que está a fazer o
serviço num pelotão de Equipa Seis. Estão numa missão de treino na
Tunísia. Adivinhe onde estão colocados?
Quase não consigo acreditar no que oiço.
– Sfax-Thyna.
Um aceno de cabeça, uma palmada no meu joelho e torna a
levantar-se.
– Precisamente, Matt. E há mais dezasseis operacionais a juntar-
se ao passeio… sabemos que saltarão a bordo mal lá cheguemos e
os informemos da missão. Transportes, comunicações, armamento
pesado… as probabilidades aumentaram como o raio em nosso favor.
Batemos com os punhos e ele regressa ao seu lado do avião.
– É uma boa oportunidade, Matt – comenta o David.
– Vou aproveitar todas as oportunidades que tivermos.
Os motores do avião gemem mais alto e sei que estamos a
instantes da descolagem.
Fecho os olhos, como o meu companheiro Alejandro, do outro
lado.
Estive tantas vezes em aviões militares, com os olhos fechados, a
ouvir o gemido dos motores – tanto a jato como a hélice – e a
preparar-me para a missão que aí vinha. Muitíssimo bem treinados,
bem equipados, partindo para algures, por Deus e pela pátria… A
verdade, porém, é que nunca vamos por Deus e pela pátria.
Vamos pelos membros das nossas equipas, os nossos amigos, os
nossos camaradas de armas.
O mesmo se passa esta noite.
E vamos também pela minha família.
Os motores guincham mais alto e há um ligeiro impulso e penso:
Mel, vamos a caminho… aguenta-te, vamos a caminho.
Está a tornar-se real.
E, em poucos segundos, tudo se desmorona.
O guincho dos motores esmorece e o KC-135 acaba por se deter.
– Que porra é esta? – Exclama David.
Até Alejandro, que dormitava, abre os olhos.
Esperamos.
Claire continua a jogar no seu iPhone.
A porta de metal da carlinga abre-se de par em par e o capitão
Josephs, com ar envergonhado, sai de lá, dirige-se a mim e abana a
cabeça.
– Desculpe, senhor Presidente. Mandaram-me parar. Não vamos a
lado nenhum nesta noite.
Capítulo 89
Missão Permanente da República Popular da China
Nova Iorque, Nova Iorque

Jiang Lijun, do Ministério da Segurança do Estado, está a


caminhar pela East 35th Street, em Nova Iorque, perguntando-se
porque é que o seu chefe, Li Baodong, o mandou regressar à missão.
Jiang não cede à tentação de estugar o passo. Para os que andam
por aí a observá-lo, uma passada descontraída não teria qualquer
significado, mas a pressa suscitaria perguntas, aumentaria a atenção.
Hoje não se apressará, embora esteja furioso. Há minutos estava
com a mulher, Zhen, e a filha de ambos, Li Na, durante um tempo
livre raro, deliciando-se a ver a criança dar os primeiros passos
incertos atravessando a sala de estar, enquanto ele e Zhen batiam
palmas e a animavam.
E então o relógio vibrou, dirigiu-se ao seu pequeno escritório, fez o
telefonema e, ao sair, disse a Zhen, com brusquidão, «Trabalho».
Apenas uma palavra, mas viu a expressão magoada no olhar dela
e até Li Na pareceu aperceber-se da mudança de disposição dos
pais. Os seus gritinhos foram a última coisa que Jiang ouviu ao deixar
o apartamento.
Ao chegar à entrada da missão, pergunta-se de novo se está
demasiado velho e se tornou demasiado ligado ao seu papel de pai
para continuar neste lugar, estar no estrangeiro, ser enviado num
trabalho em segundos.
Como é que o pai enfrentou os mesmos desafios quando estava
ao serviço do seu país?
Jiang franze o sobrolho. Poderia perguntar-lhe se os malditos
Americanos o não tivessem matado.

Onze minutos mais tarde está na cave, no cubo de betão que é o


gabinete do seu gordo supervisor. Depois de Jiang se sentar, Li
Baodong pestaneja por detrás dos óculos espessos de armação
dourada e diz:
– Demoraste algum tempo, Lijun. Fizeste bem em aproveitar, uma
vez que estás prestes a deixar Nova Iorque.
– Camarada? – diz Jiang, sentindo um súbito temor. Vai ser
transferido? Mandado para casa mais ou menos em desgraça?
Despromovido e humilhado aqui entre os seus pares?
– Sim, vais partir para a Líbia. Em breve.
– Mas, a Líbia… porquê? Há dois anos que lá não vou.
Os olhos do cogumelo gordo à sua frente dardejam de fúria.
– Porque o teu agente Asim Al-Asheed regressou à Líbia e temos
informações viáveis de que Mel Keating, a sua vítima de rapto, ainda
se encontra viva e com ele.
– Mas o vídeo da execução…
– Os Americanos acham que é falso, um truque de magia em
vídeo – afirma Li, tamborilando com os dedos gordos na secretária. –
Os nossos peritos concordam. E a nossa embaixada em Trípoli
recebeu informações fiáveis de que Asim Al-Asheed e o primo se
encontram lá. Vais tirar da Líbia a filha do antigo Presidente. Custe o
que custar.
Jiang está pasmado com o que ouve.
– Tenho dúvidas de que mude de ideias, considerando o nosso
último encontro.
Li arqueia uma espessa sobrancelha preta.
– Ah, sim. O teu encontro com o Asim, no New Hampshire.
Comunicaste que o Asim não te entregou Mel Keating, apesar de
todos os teus pedidos, das ameaças, do suborno.
Jiang acena com a cabeça, assentindo.
– É correto, camarada.
Li limita-se a olhá-lo fixamente, uma e outra vez, e de súbito Jiang
sente-se muito desconfortável. Já viu aquela expressão do Pàng
mógū – cogumelo gordo – e sabe o que significa: há uma ratoeira que
vai fechar-se em breve e Jiang sabe que se fechará sobre si.
– Muito bem, recordemos isso – diz o chefe, que se dirige para o
seu computador e teclado, digita alguns comandos, e em seguida vira
o ecrã para que ele e Jiang possam ver.
Um vídeo aéreo, que mostra uma pequena massa de água e
depois árvores, um parque de estacionamento de terra batida e…
Um carro alugado, do Canadá.
Dois vultos de pé no exterior, a conversar.
Jiang tem a sensação de que os seus braços e pernas morreram.
– Parece-te familiar? – pergunta Li, com um desprezo calmo.
Tentando mostrar confiança na voz, Jiang retruca:
– Sim. Lagoa Williams. Onde me encontrei com Asim Al-Asheed.
– Muito bem – diz Li. – Nesse caso, consegues explicar isto?
Li prime outra tecla. O som sai dos altifalantes e o estômago de
Jiang parece querer trepar-lhe até à garganta apertada, ao ouvir-se a
falar com a criatura líbia, semanas antes.
«Parabéns, Asim. De um profissional para outro, foi uma operação
impressionante. Deve ter levado anos…»
Alguma estática – felizmente! – mas a gravação de vídeo continua
a passar enquanto Li se recosta na cadeira, com as mãos cruzadas
sobre a barriga roliça.
«Obrigado.»
«E agora, Asim?»
«Conhece as…»
Mais estática.
O chefe de Jiang pergunta, calmamente:
– Pensaste que ia deixar-te desempenhar uma missão tão
importante sem utilizar a nossa própria vigilância? Infelizmente, o
nosso programa de drone ainda tem problemas com os aparelhos de
escuta.
A gravação prossegue e Jiang sente o suor a escorrer-lhe pela
espinha abaixo.
Mantém o rosto calmo, diz para com os seus botões. Não mostres
um vestígio de emoção.
Sobretudo à medida que o vídeo se aproxima dos segundos finais
do seu encontro.
A sua voz: «Posso fornecer-te fundos, meios de transporte, armas.
Algumas informações…»
«Porque farias isso…?»
«Isso é comigo. E pus a minha carreira e a minha vida…»
«…analisarei a tua oferta generosa e oficiosa».
Mais estática e depois o vídeo fica preto, e o chefe corpulento de
Jiang suspira e torna a orientar o ecrã para si.
– Não dá a ideia de que tenhas tentado convencê-lo a devolver
Mel Keating, pois não?
Jiang tenta manter-se descontraído, com o rosto impassível.
– Essa gravação… faltam partes.
– Ah, então as partes em que cumpres as ordens e tentas
convencer o Asim a libertar a filha do Presidente… são aquelas que
faltam. Que conveniente.
Jiang encolhe ligeiramente os ombros. Não esmoreças, pensa. Fá-
lo falar.
O chefe abana a cabeça, com as bochechas a tremer.
– Vais partir de imediato para a Líbia, encontrar-te com as tuas
velhas ligações e agentes, e trazer a Mel Keating. Entendido? Custe o
que custar. Trá-la.
Jiang fica em silêncio, com as emoções num caos, sabendo que
esteve pertíssimo de ser executado por desobedecer a ordens.
– Há alguma coisa que te preocupe? – pergunta Li.
– Eu sei que as ordens vêm de Pequim, mas odeio ajudar os
Americanos.
– Por causa do que fizeram à tua família em 1999?
– Entre outras coisas. Mas sim, odeio-os porque assassinaram o
meu pai.
– Pensarias de outro modo se os Americanos não o tivessem
assassinado?
Jiang tenta manter a voz calma e serena.
– Mas assassinaram-no mesmo, bombardeando a nossa
embaixada. Foi um ataque não provocado, realizado pela Força
Aérea deles, e os Americanos tentaram encobri-lo, atirando as culpas
para um mapa inexato.
Li sorri e coça a orelha esquerda.
– Sim, foi uma tentativa de dissimulação particularmente estúpida,
não foi? Mas muitos estão dispostos a acreditar nas histórias dos
Americanos estúpidos e trapalhões a despejarem bombas do céu e,
por isso, a dissimulação foi aceite pela maioria. Mas o que aconteceu
foi provocado.
Jiang só consegue dizer:
– Camarada?
Li abana a cabeça com tristeza.
– Durante esses bombardeamentos da NATO para convencer os
Sérvios a pararem de massacrar os seus vizinhos muçulmanos, os
Sérvios abateram um dos aviões furtivos americanos, o F-117
Nighthawk. Os Sérvios reuniram todos os destroços que puderam e
fizeram um negócio.
– Um negócio? – inquire Jiang.
– Sim, um negócio – retruca o chefe. – A NATO estava a rebentar
com os sistemas de comunicações militares dos Sérvios e estes
ofereceram-nos os destroços do F-117… o que nos proporcionou um
avanço de quase cinco anos em termos de tecnologia «furtiva»… se
os deixássemos transmitir ordens e informações militares a partir da
cave da nossa embaixada. Nunca soubemos ao certo se a NATO
descobriu a fonte dessas informações, mas o bombardeamento
americano destruiu as instalações militares sérvias na nossa
embaixada. Eles disseram que foi um erro e nós fingimos acreditar.
Perdemos três dos nossos queridos camaradas, incluindo o teu pai,
mas ganhámos muito com a tecnologia americana roubada.
Jiang humedece os lábios secos.
Li inclina-se sobre a secretária, com voz dura.
– Põe de lado o teu ódio irracional aos Americanos por causa da
morte do teu pai e faz o teu trabalho. Traz a filha do Presidente para a
nossa guarda. Pequim precisa de qualquer coisa para descongelar as
nossas relações com Washington, e esta adolescente é a chave. E,
agora, desaparece-me da vista.
Jiang levanta-se, quase tropeça na cadeira e dirige-se à saída,
pensando na quantidade de vezes que ele e a mãe queimaram
oferendas de incenso em memória do pai, incluindo mansões de
papel de conceção requintada, para honrar o seu espírito no além e
jurar vingança pela sua morte desnecessária.
Agora, Jiang sente que toda a sua vida e força se transformaram
numa estrutura de incenso, fabricada e criada intrincadamente…
apenas para ficar reduzida a cinzas com uma única faísca.
Está na hora de fazer o que deve.
Resgatar a filha do Presidente, pelo seu partido e pelo seu país.
Capítulo 90
Universidade de Georgetown
Washington, DC

Samantha Keating encontra-se no seu quarto no Georgetown


University Hotel and Conference Center em Washington, DC, cerca
de dez minutos antes de ir a um cocktail e receção da reunião anual
de cinco dias da Society of American Archeology. Sente-se cansada
mas também excitada, sabendo que Mel está viva e Matt e a sua
equipa vão a caminho para a resgatar.
Pensa: O Matt vai fazê-lo.
Samantha não se vai permitir pensar outra coisa.
Mesmo ter vindo aqui surpreende-a. Nestes dias tem uma energia
nervosa: anda para cá e para lá, lê um jornal, pousa-o, vê um
programa de televisão durante uns segundos e muda para outro
canal.
Mas aqui, em Georgetown, pelo menos vai estar ocupada com
algo, e não sentada num motel no Maine, de olhos fixos no telefone,
vendo a lenta passagem dos minutos, perguntando-se quando é que
Matt chegará à Líbia.
À espera, sempre à espera.
Não.
É melhor estar a fazer qualquer coisa, mesmo que tenha voltado à
cidade que odiou durante anos.
Na abertura oficial da reunião anual, amanhã, vai entregar o Gene
S. Stuart Award para o melhor artigo publicado sobre Arqueologia, no
último ano, num jornal ou revista, e sente-se um pouco zonza, com a
esperança de que, no momento da entrega do prémio, já lhe tenham
dado outro prémio a meio mundo de distância.
O regresso de Mel, sã e salva.
O seu estado de espírito calmo e esperançoso é perturbado pelo
toque do iPhone.
Pega nele, olha para o número no ecrã e reconhece-os como
vindos do telefone pré-pago de Matt.
Olha para o relógio.
Neste momento, não deviam estar no ar sobre o Atlântico?
Oh, meu Deus, correu mal.
Atende a chamada.
– Matt?
– … imobilizado.
A receção é péssima.
Dirige-se à janela, põe um dedo na orelha esquerda.
– Matt, não te consigo ouvir.
– … o voo foi imobilizado. Continuamos em Pease.
– Quem fez isso?
De súbito, a receção fica nítida.
– A ordem veio diretamente do Pentágono – diz o marido, com
uma voz tensa de raiva. – O que significa que passaram por cima da
secretária da Força Aérea. Ou seja, foi a Casa Branca, Sam.
Ela cerra os olhos com força.
– E agora?
– Estou a procurar opções, Sam, mas as coisas não parecem
boas…
A receção cai durante uns segundos.
– … não vou desistir. Confia em mim, Sam. Não vou desistir.
Espera. O piloto vem de novo aí… tenho de desligar.
Ele desliga e ela baixa o telefone.
Não desistir.
– Nem eu – diz.
Remexe durante uns instantes na bagagem, pega na carteira, num
pequeno embrulho e abandona o quarto.
Fica à espera durante um tempo diante do elevador.
À espera.
Ding!
Um casal mais velho, bem-vestido e com ar de quem vai jantar
fora, junta-se-lhe, quando finalmente entra na cabina aberta. Prime o
botão para o átrio, observa a porta que desliza para se fechar,
pensando, Despacha-te, despacha-te, despacha-te.
O elevador começa a mover-se.
– Desculpe? – diz o homem.
Samantha ignora-o, vendo o piscar das luzes que identificam os
andares.
A Casa Branca imobilizou o voo de Matt.
A Presidente Barnes ou o marido descobriram, não sabe bem
como, o voo de Matt.
– Desculpe, minha senhora – insiste o homem. – Não é…
Ding!
A porta desliza, abrindo-se.
– Não! – retruca Sam, brusca, e depois cruza rapidamente o átrio,
mantendo-se concentrada, sem olhar para ninguém, ignorando as
poucas interpelações: «Dr.ª Keating! Dr.ª Keating!»
Lá fora, graças a Deus.
Um porteiro bem fardado.
– Que posso fazer por si, minha senhora?
– Um táxi – responde. – Por favor.
Ele ergue o braço, um táxi Diamond verde avança, Sam remexe
dentro da carteira, mete duas notas de um dólar na mão do porteiro.
No táxi.
– Para onde, minha senhora? – pergunta o motorista.
– Para a Casa Branca.
O motorista volta-se para ela, sorrindo, com o ar de residente de
Washington que sabe muito mais do que esta mulher de fora.
– Minha senhora, é tarde – diz-lhe. – Não deixam entrar turistas.
– A mim deixarão – responde. – Leve-me ao portão da Casa
Branca na 15th Street Northwest. E depressa.
O taxista arranca pela West Road e Samantha recosta-se, com a
mão no rosto, esperando ter coragem para ir até ao fim.
Capítulo 91
Sala Oval
Casa Branca

A Presidente Pamela Barnes afasta-se da secretária Resolute,


pega na pasta de couro macio onde leva a leitura noturna, que é feita
no andar de cima, na zona residencial. Memorandos, e-mails
impressos e documentos com informações. Os fins de tarde em que
se recosta, bebericando o seu whisky, e folheando o The Washington
Post ou o The New York Times acabaram há muito.
Richard, atraído pelo seu gosto por cavalos de corrida, está num
espetáculo de beneficência, em Georgetown, a favor da Equus
Foundation. Como Pamela sempre foi alérgica a cavalos e quer
realmente passar a noite aqui, Richard foi sozinho.
O que é ótimo.
Depois de ter sabido do plano louco de Matt Keating para uma
missão de resgate do outro lado do Atlântico – as últimas notícias são
de agentes do FBI a caminho do avião imobilizado –, Pamela Barnes
pensa que uma noite tranquila é precisamente aquilo de que precisa.
Estremece ao pensar no que poderia ter acontecido se ele tivesse
realmente cruzado o Atlântico. E se o matassem? Ou o capturassem?
E tenta esquecer o que Richard lhe disse imediatamente antes de
sair: Pam, imagina que ele consegue… seria pior do que ser
capturado ou morto.
É verdade, por mais que odeie reconhecê-lo.
A porta curva da Sala Oval abre-se, e uma das suas funcionárias,
Lydia Wang, envergando um fato de calças e casaco preto, entra,
parecendo preocupada.
– Senhora Presidente?
– Sim, que se passa?
– Senhora, os Serviços Secretos estão a comunicar um problema
junto ao portão da 15th Street Northwest.
– O quê, alguém a tentar entrar? A proferir ameaças?
– Não, minha senhora – responde Lydia Wang. – É a Samantha
Keating, diz que precisa de a ver imediatamente e não aceita uma
resposta negativa.

Alguns minutos mais tarde, Pamela Barnes está sentada de novo


na sua cadeira, com os dedos das mãos entrelaçados sobre a
secretária. A pasta continua no chão.
Percorre-a uma raiva fria, como um impetuoso riacho de montanha
que empurra tudo para o lado.
A porta abre-se e Samantha Keating entra. Está bem vestida, mas
tem o cabelo desgrenhado e o rosto tenso, fazendo com que o seu
nariz proeminente ainda pareça maior.
– Senhora Presidente – diz, enquanto avança para a secretária. –
Muito obrigada por me receber tão em cima da hora.
– É um gosto – mente Pamela, pensando: Como ousas ameaçar-
me, como ousas voltar a um lugar onde não te inseres, como ousas…
Pamela Barnes tem noventa por cento de certeza do motivo da
vinda de Samantha, mas macacos a mordam se fizer a primeira
jogada.
Ela que trate disso.
Pamela Barnes faz um gesto em direção a uma das cadeiras que
estão diante da sua secretária. Não se levanta, nem estende a mão
ou faz menção de a abraçar.
– Sente-se – diz, sem se dar ao trabalho de oferecer uma bebida
ou o que quer que seja. – E, por favor, pode ser breve? Tenho uma
pilha de documentos oficiais para passar em revista e assinar antes
de poder jantar sequer.
Samantha senta-se e afirma:
– Vou ser rápida. Há um avião da Força Aérea pronto para
levantar voo de uma base no New Hampshire. O meu marido e outras
pessoas estão a bordo. Por favor, autorize a partida.
Pamela Barnes faz um sorriso gelado.
– Porque raio faria isso?
– Porque é o que é justo fazer, senhora Presidente. O Matt está
numa missão, por favor, deixe-o realizá-la.
A Presidente abana a cabeça com firmeza.
– Não, não há a menor possibilidade.
– Por favor – pede Samantha.
– Não – retruca rapidamente Pamela Barnes. – Este país tem uma
Presidente, uma política externa, um Departamento de Defesa. Não
posso permitir que o seu marido vá numa missão-pirata, por mais que
esteja a sofrer. Confie em mim, Samantha, vamos fazer tudo o que
pudermos para trazer os assassinos da Mel à justiça.
– O problema é esse. O Matt acha que ela ainda está viva.
Com os diabos, como é que ele obteve essa informação?, pensa a
Presidente.
– Talvez – reconhece em voz alta. – Os nossos serviços de
informações e profissionais das forças armadas estão a explorar essa
possibilidade, mas isso não significa que eu permita que um antigo
Presidente dos Estados Unidos, armado, apanhe um avião militar
para resolver uma questão pessoal. Por mais que esteja a sofrer, não
posso permitir que isso aconteça.
– Pamela…
– Senhora Presidente, se não se importa. E, para além de tudo o
mais, não posso ter um antigo presidente a expor-se à possibilidade
de ser ferido, capturado ou morto.
Pamela Barnes faz questão de olhar para o relógio de pulso.
– Agora, Samantha, tal como eu disse, tenho muitos documentos
para passar em revista e assinar ainda hoje. Sinto muito, mas não
posso permitir que o Matt voe para o outro lado do Atlântico. Tenho de
vos pedir que confiem nos profissionais, nesta questão. Se houver
indícios de que a Mel está viva, vamos procurá-la e encontrá-la. Não
permitiremos que nada se meta no nosso caminho.
A voz de Samantha é tão débil que Pamela tem de se esforçar por
ouvi-la.
– Como quando se recusaram a pagar o resgate? É isso que quer
dizer com não deixar que ninguém se meta no vosso caminho?
Pamela Barnes levanta-se, inclina-se e pega na pasta.
– Não acredite em tudo o que lê nos jornais ou na Internet. Pensei
que tivesse aprendido isso quando esteve na Casa Branca.
Samantha permanece sentada.
– E não há nada que eu possa fazer para que mude de ideias?
Pamela Barnes está de pé atrás da secretária, perguntando-se
como é que, com mil diabos, poderá tirar esta mulher daqui sem
ordenar que a agarrem por um braço e a arrastem lá para fora.
– Nada – retruca.
Samantha estende a mão para a sua carteira, tira de lá uma coisa
que deixa cair suavemente no meio da secretária Resolute.
– E que tal uma coisa que pode destruir a sua presidência nas
próximas quarenta e oito horas?
Capítulo 92
Sala Oval
Casa Branca

Samantha Keating tem uma sensação forte de satisfação ao ver a


Presidente olhar para a pen drive e, em seguida, sentar-se
lentamente atrás da secretária histórica que já foi de Matt.
Lembra-se de todas as vezes em que viu Matt derrotar o
destacamento dos Serviços Secretos de sua casa no póquer durante
a noite, mesmo quando as cartas não lhe eram favoráveis. Um dia,
disse-lhe: Sam, está tudo na forma como te comportas. Se
conseguires manter-te calma e serena, podes ganhar com um par de
dois. Mas se o teu adversário vir que os teus olhos pestanejam, as
tuas mãos tremem, ou se pareceres ausente… destrói-te num abrir e
fechar de olhos.
Póquer de parada alta, pensa Samantha.
É o que está a jogar esta noite.
– O que é isso? – inquire Pamela.
– Uma pen drive – retruca Samantha. – Com um vídeo gravado.
Samantha mantém a boca fechada.
O primeiro a recuar e falar, pensa, perde.
Olha fixamente para Pamela Barnes, que a fita também.
– Muito bem – diz a Presidente. – O que está nesse vídeo e
porque é que deve preocupar-me?
Samantha continua, calmamente.
– Faz três anos na próxima semana – começa, proferindo as
frases que ensaiou, repetidamente, na viagem de táxi de quinze
minutos até à Casa Branca –, o seu marido voou para Macau, para
estar presente numa receção e festa de aniversário de um dos
investidores do seu casino. Na altura, a Pamela desempenhava o
cargo de vice-presidente e, por isso, o Richard viajou sozinho.
Pamela abana a cabeça.
– Não me lembro disso, desculpe.
– Oh, ele foi lá, não duvide. Há notícias, fotografias e diversas
publicações em blogues, incluindo algumas a criticar o seu marido por
passar tempo num território controlado pelos Chineses.
Pamela Barnes tenta fazer humor.
– E o que tem o vídeo, então? O Richard a cantar «Parabéns a
Você» em mandarim a um apparatchik do Partido Comunista Chinês?
– Não – retruca Samantha. – O vídeo mostra o seu marido a ter
relações sexuais com três rapazes, num quarto de hotel, sendo que
nenhum deles parece ter atingido a puberdade.

O rosto da Presidente empalidece e ela diz:


– Não acredito em si. O quê, essa pen aparece por artes mágicas
na sua caixa de correio da Universidade de Boston? Depois de ter
sido congeminada numa qualquer empresa cibernética em Moscovo
ou Pequim? Tudo tretas, Samantha. Devia ter vergonha.
Samantha antecipou esta reação e retruca:
– Quando o Richard estava hospedado no Golden Palace Macau,
um ex-aluno meu de pós-graduação estava no mesmo edifício a
trabalhar para uma conceituada empresa internacional, a atualizar o
software de segurança. Viu o que estava a acontecer… apesar do
instrumento de interferência com os dispositivos de vigilância que o
Richard levava; os Chineses sabem como contornar isso… O meu
aluno ficou tão chocado com o que viu que gravou as atividades do
seu marido. Tenho a certeza de que ele terá todo o gosto em
testemunhar sobre o que viu e gravou.
– E ele só lhe deu isto agora?
Fica calma, pensa Samantha. Não te desvies do alvo.
– Não. Deu-mo imediatamente depois de a Pamela ter anunciado
que ia concorrer contra o Matt.
Os olhos de Pamela Barnes baixam rapidamente para a pen negra
e fitam-na como se fosse um réptil venenoso, prestes a avançar pela
secretária e mordê-la.
– Mas…
– Mas porque é que não a usei nessa altura, durante as primárias?
– pergunta Samantha. – Porque não sou como você. Ou o seu
Richard. Não ia usar isto para ganhar umas eleições. Era demasiado
nojento só de pensar.
Silêncio durante uns segundos.
Samantha dá uma leve pancada na pen drive.
– Mas usá-la-ei para salvar a minha filha. Faça o telefonema,
permita que aquele avião com o Matt e a sua equipa parta e eu não
difundo o vídeo.
Pamela Barnes diz:
– Força. Difunda o vídeo. Quem vai acreditar em si? Ninguém vai
tocar nisso. É demasiado…
– Repugnante? Oh, tenho a certeza de que os principais meios de
comunicação social não lhe vão tocar, mas há sites de notícias na
Internet que adorariam publicar a história. Será notícia em todo o
mundo em menos de um dia. As chamadas organizações noticiosas
legítimas serão obrigadas a referi-lo. As imagens estarão em todo o
lado.
Nova pausa. Vê o rosto de Pamela Barnes a lutar com as
emoções e acrescenta:
– O acordo é esse. Faça o telefonema já e eu nunca difundirei o
vídeo.
Com voz tensa, a Presidente retruca:
– Não chega. Quero essa pen e quero que jure que não há cópias.
– Não existem mais cópias e esta pen não vai sair da minha
posse. – E, dizendo isto, recolhe-a e enfia-a no bolso do casaco do
fato. – Pamela. Faça o telefonema.
Cara de jogador de póquer, pensa Samantha.
Silêncio.
O tiquetaque de um relógio antigo na Sala Oval.
Uma sirene distante, na rua.
Pamela Barnes pega no telefone.
– Paul – diz –, ligue-me de novo ao National Military Command
Center.
Palmela Barnes espera.
Samantha espera.
– Coronel Sinclair? Fala a Presidente Barnes. Estou a revogar a
minha ordem anterior que mantinha no solo o voo da Guarda
Nacional em Pease. Contacte o comandante da esquadrilha. Esse
voo deve descolar de imediato.
Pousa o auscultador com estrondo.
– Feito. Está contente?
Samantha levanta-se e diz:
– Boa noite, senhora Presidente. Fico feliz por termos resolvido
isto.
Dez minutos depois, Samantha Keating encontra-se no exterior, na
15th Street Northwest, tendo atrás de si a Casa Branca e o seu
recinto, com as pernas a tremer, as vísceras a contorcerem-se com
violência, como se estivesse prestes a vomitar.
Recompõe-se, esforça-se por mandar parar um táxi no trânsito
compacto.
Enquanto espera, mete uma mão na carteira e acaricia
suavemente a pen que contém uma cópia de segurança das suas
observações para amanhã à noite.
Matt, pensa, obrigada pela lição de póquer.
Agora, vai buscar a nossa miúda.
Capítulo 93
A bordo do Granite Four
Base de Pease da Guarda Nacional Aérea, New Hampshire

A carlinga do KC-135, de cinquenta anos, já por si só é apertada,


mas com o Palmer e eu a tentarmos meter-nos lá dentro com o piloto
e a copiloto para sermos atualizados sobre que raio se passa, é como
uma daquelas velhas fotografias da revista Life que mostravam
miúdos doidos das repúblicas académicas a tentarem meter-se em
cabinas telefónicas.
Na pista abaixo de nós encontram-se três homens, um que
enverga um uniforme da Força Aérea e dois vestem fatos formais. Os
dois civis agitam muito os braços, mas o oficial da Força Aérea – de
bivaque azul-escuro com insígnias de coronel – está de pé, de braços
cruzados.
– Pode dizer-me quem é o coronel que está ali em baixo?
– É o coronel Tighe, o nosso comandante de esquadrilha –
responde o capitão Josephs.
– E os outros dois cavalheiros?
– São agentes do FBI do escritório local de Portsmouth. Estão a
exigir acesso ao avião para se certificarem de que se encontra aqui
de livre vontade e não está a ser mantido prisioneiro. O coronel Tighe
diz que isso é impossível.
– Porquê?
– Lembra-se da carrinha que transportava o passadiço que
usaram para entrar a bordo? Chamamos-lhe escada. Ao que parece,
a escada não está a funcionar. Um pneu furado, o motor não
arranca… algo assim.
– Não existe uma escada que desce da fuselagem e é usada pela
tripulação? – inquiro.
– Claro – responde Josephs, com um sorriso a espalhar-se pelo
rosto. – Chamamos-lhe a calha de entrada. Só para tripulantes. O FBI
quer utilizá-la para aceder ao avião e interrogá-lo. O coronel Tighe diz
que o pessoal que não é da Força Aérea só pode usar a calha de
entrada se estiver a participar num módulo de formação de segurança
que dura quatro horas.
A copiloto também sorri. E Josephs acrescenta:
– Como pode ver, estão a ter uma troca de impressões, franca e
aberta, sobre outros métodos para virem a bordo deste avião.
A discussão continua e digo:
– Quando estava nas equipas, costumávamos chamar-vos a Chair
Force. – Dou-lhe uma pancada no ombro, começo a regressar à popa
do aparelho. – Retiro tudo isso e muito mais.
O capitão grita:
– Obrigado, senhor Presidente, mas trata-se apenas de uma
manobra dilatória. O coronel Tighe vai acabar por levar a martelada e
aqueles agentes do FBI vão entrar.
– Entendido – digo e volto para o interior.

Os quatro membros da minha equipa estão de pé, num grupo, a


meio caminho do interior quase vazio e anuncio:
– Os agentes do FBI estão aqui, à espera de entrar a bordo e
certificarem-se de que estou vivo e bem de saúde.
– E, entretanto, garantirem que não descola – retruca David.
– Há outra saída? – inquire Claire.
– A porta de carga por onde entrámos e a escada da tripulação, lá
à frente – explica Nick Zeppos.
E Alejandro acrescenta:
– Pegamos no machado de incêndio do avião e talvez consigamos
rebentar a fuselagem num ponto de acesso de emergência de
incêndio, mas isso ia deixar os nossos anfitriões realmente zangados.
E até o FBI acabaria por se aperceber de que alguém estava a abrir
uma saída.
– E depois, senhor Presidente? Saímos e tentamos fugir? –
pergunta Nick.
– Se tiver de ser… bem, esqueçam o machado. Saímos pela
escada da tripulação na calha de entrada e…
O sargento técnico sai subitamente da carlinga.
– Eh! Que estão os passageiros todos a fazer, de pé, assim?
Sentem-se e apertem os cintos. Este pássaro vai levantar voo dentro
de minutos.
Olho-o fixamente durante um segundo abençoado:
– Que raio acabou de acontecer?
– Altas, muito altas patentes, senhor – diz-me. – O que sei é que o
controlo de Pease contactou o capitão Josephs, disse-lhe que estava
autorizado a descolar. Diretamente pelo Pentágono. E foi tudo o que
disse.
Um e depois dois e em seguida os outros dois motores começam
a uivar, regressando à vida.
– Que acha, Matt? – inquire o agente Stahl.
– Acho que temos de obedecer às ordens do sargento técnico.
Regresso ao meu lugar no assento de rede vermelha, aperto o
cinto, e o agente Stahl senta-se ao meu lado e faz o mesmo. Do outro
lado, Nick Zeppos e Alejandro Lopez também apertam os cintos e
Claire Boone, da NSA, fá-lo com uma mão enquanto continua a jogar
um jogo de vídeo com a outra.
O sargento técnico verifica todos os nossos cintos, faz um aceno
de cabeça e diz:
– Parece que ainda sabe o que faz, senhor Presidente.
– É pena que a maior parte dos Americanos não tenha acreditado
nisso, há uns anos.
– Eles é que ficaram a perder – responde-me enquanto se dirige
para o seu assento. – Nós é que ficámos a perder, senhor.
O velho avião começa a mover-se, taxiando, e depois há uma
curva e uma pausa.
Imagino a conversa lá à frente entre o piloto e a copiloto,
desempenhando as suas tarefas com todo o profissionalismo, mas
sem dúvida a pensar, lá no fundo: Foi para isto que nos alistámos?
Esta treta de operações clandestinas e ordens de Washington?
Os motores uivam mais alto.
Quase.
Mas…
Uma nova ordem do controlo de Pease podia parar-nos.
Um destes velhos motores podia perder uma pá da turbina, o que
o faria explodir.
Os dois agentes do FBI podiam dar uma de J. Edgar Hoover e
avançar com o seu veículo oficial para a pista, obrigando o piloto a
borregar.
Mais depressa, agora.
O aumento de velocidade empurra-me para o lado, para o assento
de rede.
O avião inclina-se e sobe.
No ar.
Um guincho e uma pancada quando o trem de aterragem encolhe
e os meus olhos dilatam.
Estamos a caminho.
Mel, vamos buscar-te.
Olho para o relógio.
Um voo de mais de doze horas até à Tunísia.
Durante essas horas, estarei tranquilo por cima do Atlântico, mas
os meus amigos dos serviços de informações israelitas e sauditas
estarão a trabalhar para encontrar Asim Al-Asheed, que regressou ao
Norte de África, na sua vizinhança.
Temos sorte por conseguirmos descolar na América.
Será que a nossa sorte se manterá quando desembarcarmos no
Norte de África, com informações dos israelitas e sauditas que nos
permitam entrar em ação?
Olho de novo para o relógio.
Já estamos no ar há cerca de dez minutos, avançando para leste.
Mel, penso. Onde estás?
QUARTA PARTE
Capítulo 94
Algures no Nordeste da Líbia

Mel Keating está nas traseiras de uma carrinha branca suja,


estacionada algures numa aldeia muito pequena de um país que tem
bastante certeza, ao avaliar a sua situação, que é a Líbia.
Ainda lhe dói a nuca por ter sido atingida pelo fio embotado de
uma espada há mais de uma semana. Tem a certeza de que, desde
então, os pais julgam que está morta. Lamenta mais a dor e o
sofrimento que aquele idiota Asim lhes infligiu do que chora por si.
Ficou envergonhada ao aperceber-se de que se borrou quando
julgou que estavam prestes a cortar-lhe a cabeça. Num pequeno
regato lamacento, conseguiu lavar as roupas à mão e vesti-las de
novo depois de terem secado ao sol, estendidas num rochedo, mas
foi apenas um enxaguamento.
Sente-se suja, tem o cabelo desgrenhado, e os tornozelos e
pulsos doem-lhe por estarem amarrados com força com algemas
plásticas. Mas houve um momento bom nesse dia.
Pediu a um dos seus captores para lhe mudar as mãos amarradas
das costas para a frente. O tipo – não sabia o nome dele mas
chamou-lhe Alfa, por ser a primeira pessoa que viu depois de terem
filmado a cena da falsa execução – sabia bastante inglês e, depois de
ter soluçado, dito que lhe doíam os pulsos e que tinha comichão nas
costas, ele disse: «Um beijo. Dás-me um beijo e eu faço-te isso.»
Ficou horrorizada com a perspetiva de o beijar nos lábios – sentir-
se-ia tentada a morder e arrancar-lhe o lábio inferior –, mas o Alfa
estendeu-lhe uma bochecha com barba. Fingiu que estava a beijar
um coiote miserável e ele cortou as algemas de plástico nas costas e
colocou-lhe umas novas, à frente.
– Bem-vinda à Líbia – disse, rindo, como se o divertisse prestar-
lhe aquele pequeno favor.
Idiota. Já vai ver como elas mordem.
Olha de novo em volta, no interior do veículo. Metal nu e
enferrujado, cobertores velhos e almofadas na traseira. À frente, uma
fila vazia de assentos para passageiros e, à frente desta, os assentos
do condutor e do pendura.
Estamos a meio da noite, e o banco do condutor é ocupado pelo
captor a que chamou Beta, armado com uma AK-47 – a arma
preferida dos revolucionários e falhados de todo o mundo, disse-lhe o
pai há uns anos, e o Beta é sem dúvida alguma um falhado.
Dorme.
O seu outro captor, o Alfa, estava no lugar do pendura até há
cerca de vinte minutos, quando uma mulher apareceu, ao que parece,
e começou a conversar com ele através da janela aberta. Mel não a
distinguiu, mas ouviu-lhe a voz e viu os resultados: o Alfa sussurrou
algo ao Beta, a porta abriu-se, e o Alfa desapareceu.
Agora estão apenas os dois.
Embora seja meio da noite, há um candeeiro de iluminação
pública no exterior e a sua luz bruxuleante permite ver o interior da
carrinha. Desloca-se e vê que o Beta dorme profundamente e
ressona.
É a sua oportunidade.
Mel roda até ficar na posição certa. Está a recordar-se do tempo
em que o pai pensava apenas em candidatar-se ao Congresso e
recebeu a visita de uns amigos das equipas, e juntamente com as
bebidas e as histórias e o rebuliço no seu pequeno pátio das
traseiras, fizeram alguns jogos desordenados, também conhecidos
como macacadas.
Um deles envolvia tentarem amarrar ou atar alguém e aquele que
conseguisse libertar-se mais rapidamente ganhava um pack de
cervejas Lone Star.
Mel, que na altura era uma miúda, escondeu-se no pátio e ficou a
observar.
E aprendeu.
Neste momento, está de joelhos, perto do cubo de metal por cima
do pneu traseiro do lado direito. Leva ao rosto os pulsos atados e vê o
mecanismo de fecho no lado direito, morde a ponta livre das algemas
plásticas, puxa e dá esticões e puxa até as algemas plásticas
rodarem e o mecanismo de fecho ficar no meio.
Mel ergue os braços, o mais alto que consegue, arqueia as costas
e bate com força com os pulsos atados no cubo metálico.
A dor trepa-lhe pelos braços e ela cai para trás, tentando ficar o
mais silenciosa possível.
Ui, raios o partam!
Dá um puxão nas algemas.
Continuam fechadas.
Outra vez.
De novo, os braços no ar, as pontas dos dedos a roçar no teto de
metal e de novo…
A dor é pior do que antes.
Morde o lábio inferior. Os olhos estão marejados de lágrimas.
Porque é que não está a resultar?
Devia resultar.
Tem de resultar.
Tem os pulsos a latejar devido à dor forte.
A apenas alguns metros, o Beta dorme profundamente e a música
vinda do rádio lá de fora torna-se mais alta.
Além do rádio, Mel ouve uma mulher e um homem a rir. Pensa que
é o Alfa divertir-se e lembra-se de ter beijado aquele rosto
cartilaginoso e nojento, sentindo-se assustada e humilhada, e inspira
fundo, ergue de novo os braços doridos e…
Pam!
Mel volta a cair para trás, arfando, com os pulsos livres. Esfrega-
os, tirando as algemas plásticas partidas.
Quase chora de alegria. Os meus pulsos e braços estão livres.
Dá uma volta, com os pés atados à frente e lança uma olhadela a
um pedaço de metal denteado perto da porta. Avança um pouco,
esfrega o plástico no metal, esfrega-o e puxa para baixo e esfrega…
Um estalido baixo.
Passa alguns segundos a esfregar os tornozelos doridos.
E agora?
Há uma ira quente dentro de si enquanto pensa no rapto. O
assassínio de Tim, ser tratada com rudeza, empurrada, drogada –
sim, foi por isso que adormeceu depois de ter comido aquele
pequeno-almoço no New Hampshire –, esbofeteada, para acordar
num edifício de pedra e tijolo algures perto do oceano, cujo cheiro
podia sentir.
Depois na bagageira de um carro, uma viagem aos saltos e…
Aquela lâmina de espada embotada no pescoço, fazendo-a
contorcer-se de dor.
A AK-47 está mesmo ali. Basta saltar por cima da fila de assentos
para os passageiros, apanhá-la, certificar-se de que o fecho de
segurança está desativado, premir o gatilho e livra-se do Beta para
sempre.
Depois, sair da carrinha, encontrar o Alfa, fazer o mesmo.
E depois?
Uma adolescente armada? Quantos guerrilheiros há por ali? Onde
estão Asim e o seu primo Faraj? Que fariam se ela saltasse de
repente e começasse a disparar? E quantas balas terá? O carregador
normal de uma AK-47 tem trinta balas. Haverá ali carregadores
suplementares?
Cala-te, pensa.
Estás a perder tempo.
Vai até às traseiras da carrinha, encontra o fecho, gira-o.
Abre-se com um clique.
Aberto!
Lá fora, está frio. Agarra num cobertor, enrola-o em volta dos
ombros e cabeça, sai…
Raios!
A estrada parece ser apenas terra batida e rochas, e torce o pé
direito. Um choque de dor quente explode no seu tornozelo.
Raios, que fuga tão fácil, pensa.
Desloca-se tão silenciosamente quanto pode, vendo por fim o que
a rodeia, uma espécie de aldeola. Grupos de edifícios de pedra de um
e dois andares. Estrada e vielas de terra batida. Dois candeeiros de
iluminação pública, bruxuleantes. A carrinha onde esteve e dois SUV,
talvez Suburban. Luzes acesas no edifício mais próximo, um cão a
ladrar algures.
Bater a uma porta, pedir ajuda?
Não, aqui não!
Bater a uma porta e Asim vir abri-la?
Enrola-se melhor no cobertor sujo e começa a afastar-se, a
coxear, dos veículos estacionados, tentando apressar-se, sabendo
que a qualquer momento o Beta vai acordar ou o Alfa, regressar, e
então o diabo vai andar à solta.
Mel tenta acelerar, tropeça e cai.
Fecha os olhos com força, rola para a beira da estrada e começa a
chorar em silêncio. Só tem vestidos os calções e sweatshirt dos
Estados Unidos, meias e o cobertor malcheiroso em redor dos
ombros.
Pai, pensa. Por favor, pai, encontra-me.
Mantendo os olhos fechados, para de chorar. Espera.

Passam uns minutos.


Mel abre os olhos.
Agora já adaptados à escuridão.
A visão do que está lá no alto é incrível, o céu noturno do deserto.
Tantas constelações ficam visíveis. A mãe ensinou-lhe a história das
estrelas e como os seus antepassados humanos lhes tinham
chamado. Mel olha e identifica a velha amiga Ursa Maior e segue as
duas estrelas da ponta do corpo até cruzar o céu e encontrar a Ursa
Menor.
Polaris.
Estrela Polar.
Mel levanta-se, sem olhar para o lugar onde estava deitada.
Olhando apenas para norte.
A norte fica o mar Mediterrâneo e, ao longo dele, há cidades e
aldeias e haverá pessoas que falem inglês e a ajudem, tem a certeza
disso.
Mel recomeça a andar, vendo os contornos da estrada de terra à
luz das estrelas e, embora o seu tornozelo direito lateje e lhe doam os
pulsos, sorri por entre as lágrimas.
Está livre.
Capítulo 95
Algures no Nordeste da Líbia

Asim Al-Asheed está sentado confortavelmente num sofá


almofadado, com uma chávena de chá doce na mão, uma bandeja
com tâmaras, passas e pequenos biscoitos numa mesa à sua frente,
e sorri educadamente ao seu anfitrião desta noite, Omar al-
Muntasser.
Omar é gordo, barbudo, veste calças largas e camisa de algodão
branco, e faz passar um rosário de contas pelos dedos rechonchudos.
Se fosse outra noite qualquer, Asim levantar-se-ia delicadamente do
seu sofá demasiado almofadado, passaria por detrás de Omar,
agarrá-lo-ia pelo cabelo e cortaria a garganta do gordo.
Omar sorri, as suas palavras parecem embebidas em mel, mas
não está a ceder.
– Meu caro amigo Asim, peço desculpa de novo, mas continua a
ser-me impossível arranjar alojamento para ti e os teus amigos, esta
noite – diz Omar. – Vou alimentar-te, abastecer os teus veículos e
preparar refeições e bebidas para onde quer que a tua viagem possa
levar-te, mas não posso alojar-vos. As minhas desculpas.
A sala de visitas do homem encontra-se cheia de tapetes,
tapeçarias, fotografias emolduradas de Omar Mukhtar, o líder mais
famoso da resistência líbia e herói pessoal do próprio Asim, e de
Ahmed El-Trbi, o maior futebolista líbio.
Três dos filhos de Omar estão de pé, encostados à parede,
armados de pistolas, olhando Asim com raiva, sabendo que a
presença daquele homem põe o seu pai e as suas famílias em perigo.
Um pouco antes, Omar «dispensou» o primo de Asim, Faraj, para ir
verificar quanta gasolina seria precisa para os dois Suburban e a
carrinha GMC de Asim, e este sabe que o subterfúgio foi usado para
o deixar sozinho com este chefe tribal, outrora seu aliado.
– Meu abençoado amigo, Omar – diz Asim –, repito, é uma honra
estar sob o teu teto e com os teus filhos fortes e devotos, mas
pergunto-me: que tipo de exemplo lhes dás recusando uma
hospitalidade tão simples a um velho amigo?
Um aceno de mão do gordo.
– Ah, mas estes tempos não são simples como eram quando
iniciaste a jihad, pois não? Então, podias viver e reorganizar-te aqui,
com poucas preocupações, e os teus vizinhos estariam sempre
dispostos a ajudar. Hoje? Os Russos, os Turcos e os Chineses
rastejam, todos eles, pelas nossas terras, com dinheiro e influência e
armas, e agora os Americanos vêm aí.
– Os Americanos estão sempre a vir – retruca Asim. – Até ficarem
cobertos de sangue, como na Somália, no Iraque e no Afeganistão, e
então partem.
O sorriso de Omar mantém-se, ainda que temperado com um
aceno brusco de cabeça.
– Desta vez é diferente. Mataste a filha de um antigo presidente.
Os Americanos são um povo brando, de facto, mas, quando lhes
atacam as crianças deste modo, sobretudo uma tão importante, não
desistem enquanto não estiveres morto.
– Um risco que nunca tive dificuldade em enfrentar – declara Asim,
com a ira a endurecer dentro de si.
– O teu risco, sim, é bastante admirável. Mas a tua presença aqui
está a pôr a minha família, e o meu povo, em risco. – Omar aponta
para o teto. – Neste preciso momento, um drone americano pode
estar a voar em círculos por cima de nós, e agentes da CIA podem
estar a ver esse filme, a ver-te sair… e depois os mísseis choverão
sobre nós. Muitos de nós morrerão, incluindo mulheres e crianças,
mas pensas que isso importaria aos Americanos? Não. Só se
importariam com o facto de te terem matado. A minha família e eu
seríamos, como dizem, danos colaterais.
– Omar, meu amigo…
– Não – diz, levantando-se da sua cadeira. – Já chega. Os teus
veículos foram reabastecidos, foram-te dadas água e comida. Parte.
Agora.
Asim levanta-se lentamente, faz um rápido aceno de cabeça na
direção de Omar e diz, baixo:
– Estou em dívida para contigo por me ofereceres abrigo, mesmo
que tenha sido por pouco tempo. Mas os Chineses, os Russos, os
Turcos e mesmo os Americanos partirão um dia. E tu ficarás e eu
também. E voltaremos a encontrar-nos, caro amigo.
– Se estiveres vivo nessa altura, ficarei ansioso por isso.
A porta para o exterior abre-se e Asim passa pelos filhos com ares
de poucos amigos e aproxima-se de uma escadaria de betão, que
termina num pequeno pátio modesto. Pequenos candeeiros elétricos
iluminam o caminho para o exterior e Faraj encontra-se no pátio,
juntamente com os dois homens que estavam a guardar a filha do
Presidente.
Pelas expressões nos rostos dos três, Asim sabe o que
aconteceu.
– Como? – pergunta.
Faraj começa a falar e Asim muda de ideias.
– Não, mais tarde – diz, sabendo que os filhos de Omar estão a
vê-lo e não querendo dar-lhes qualquer satisfação ou mexerico que
possam levar ao pai e, desse modo, aos membros da tribo local e a
outros nestas montanhas.

O seu comboio de três veículos demora apenas alguns minutos a


partir da aldeia de Omar, e Asim, que viaja no Suburban da frente, diz
ao seu motorista, Tareq, que pare e depois reúne toda a gente sob a
luz dos máximos do veículo.
Há uma conversa confusa que dura dois ou três minutos, durante
os quais os homens encarregados de guardar Mel Keating se culpam
mutuamente pela sua fuga e, quando param de se lamentar e rogar,
Asim saca da sua pistola Beretta de 9 milímetros e dá um tiro na
cabeça do primeiro. O homem cai no chão e o companheiro põe-se
em fuga. Asim dispara duas vezes, atingindo-o nas costas, e depois
dirige-se para o vulto no chão e acaba com ele com uma bala na
testa.
Inspira profundamente.
A ira ainda se agita dentro de si.
Ordena ao primo Faraj:
– Pega nesses dois e arrasta-os até ao deserto. Deixa os corpos
deles para as aves e as ratazanas.
Faraj grita uma ordem ao grupo de homens, aproxima-se de Asim
e inquire:
– E agora, Asim?
Este enfia a pistola ainda quente no coldre oculto na cintura.
– Encontramos a Mel Keating – responde – e terminamos as
coisas.
Capítulo 96
Zona residencial da Casa Branca

A Presidente Pamela Barnes está sozinha numa sala que faz parte
da chamada zona residencial, no primeiro andar da Casa Branca,
com um copo de Glenlivet com gelo na mão. Dá mais um gole,
sentindo o gosto acre refrescá-la, e resiste à tentação de emborcar a
bebida e preparar outra.
Só uma, pensa. É tudo o que se permite, apesar do dia que
acabou de ter. À sua frente está um enorme televisor, sintonizado no
Canal HISTÓRIA, mas sem som. O documentário de hoje é sobre o
edifício onde vive e quando e como foi construído.
Mais outro golinho, tentando racioná-lo. Pensa amargamente no
seu antecessor de há muito, John Adams, cujas palavras foram
gravadas no lintel de uma lareira na Sala dos Banquetes de Estado,
em 1945:

Rezo aos céus para que concedam as maiores bênçãos a esta


casa e a todos que doravante a habitem. Que ninguém a não ser
homens sábios e honestos governe alguma vez sob este teto.

Baixa o copo e sussurra: «Acho que nunca imaginaste as


senhoras a governar aqui, hem, Johnny?»
A porta abre-se e o seu marido e chefe de gabinete, Richard
Barnes, entra, ainda de smoking, mas com o laço sem nó e a baloiçar
diante da sua camisa de cerimónia branca e engomada. Esfrega o
rosto e diz:
– Caramba, que noite. Podia tomar mais uma bebida.
– Senta-te, Richard – diz ela.
– Claro, num segundo. Tenho uma sede que precisa de ser
saciada.
– Já, Richard – ordena ela com rudeza e espera. Ele, tal como um
rapaz repreendido, aproxima-se e senta-se no sofá adjacente à
cadeira confortável da mulher. A emissão do Canal HISTÓRIA
prossegue em silêncio.
Silêncio.
Richard fala, por fim.
– O Matt Keating está detido?
– Em certa medida – diz ela, de olhos fixos no televisor, e o
programa mostra agora a nova decoração interior feita por Jacqueline
Kennedy, com as cores e a dor da história ainda tão fortes. E
acrescenta. – Está detido, sim, mas detido pela Guarda Nacional
Aérea do New Hampshire, a atravessar o Atlântico, tal como queria.
Richard mexe-se no assento com a ira a subir-lhe ao rosto.
– Como é que isso aconteceu, porra? Qual foi o oficial da Força
Aérea que desobedeceu às ordens? Quem permitiu que isso
acontecesse?
– Tu. Tu permitiste que isso acontecesse, Richard. Tu.
Ele parece irado e confuso.
– Desculpa, Pamela. Não sei do que estás a falar.
Ela estende o braço e pega na sua pasta.
– Está aqui o meu conjunto diário de documentos, briefings e
análises de diversos problemas mundiais, mas não existe um único
documento aqui dentro que me conte os pormenores de uma viagem
que fizeste a Macau há quase três anos. Quando eu era vice-
presidente. Quando tinhas vendido há pouco aquela herdade para a
construção de um casino. E voaste para Macau a fim de festejares o
aniversário de um dos teus investidores. Não é verdade?
Richard começa a esfregar as mãos.
– Já… passou algum tempo, Pamela. Três anos.
– Está bem. Esta noite, enquanto andavas na farra, fui
inesperadamente informada do que se passou durante a tua viagem.
No Golden Palace Macau. Passaste uns momentos maravilhosos.
Mas a dada altura, perto das duas da manhã, hora local, recebeste
três visitantes. Três jovens visitantes.
O rosto dele fica ainda mais sombrio e o queixo parece tremer.
– Penso que julgaste que tinhas tudo controlado. Tenho a certeza
de que levaste contigo um certo brinquedo que me mostraste na
altura, um dispositivo de interferência de nível militar que bloqueava a
gravação de quaisquer vozes ou imagens no quarto. Mas o
dispositivo não funcionou, Richard. Há uma gravação das tuas…
atividades nessa noite.
Esfrega as mãos ainda mais depressa, quase freneticamente.
– Como… como é que isso tem alguma coisa que ver com o Matt
Keating?
– Estou desiludida… de novo… contigo, Richard. Não consegues
ver o óbvio? Em troca de que esse vídeo não seja difundido
publicamente, tive de deixar partir o Matt Keating.
A voz de Richard, outrora forte, está trémula.
– Quem tinha o vídeo?
– A Samantha Keating. Veio cá há cerca de três horas, disse-me
que recebeu uma pen drive com o vídeo de um ex-aluno de pós-
graduação que estava a trabalhar em Macau e te viu, Richard. Estava
lá, naquele dia, a atualizar o software de segurança do hotel. A
Samantha propôs-me um negócio. Deixe partir o meu marido e o
vídeo nunca será divulgado.
– Mas deixar o Matt voar assim… devias ter feito bluff, Pamela.
Exigido mais tempo, pedido para ver o vídeo e confirmar…
Pamela Barnes quase deixa cair o copo.
– Confirmar? Pelo amor de Deus, Richard, pensas que eu queria
ver nem que fossem cinco segundos daquele vídeo?
Richard não responde, baixa os olhos para a alcatifa da sala.
Pamela suspira.
– Amanhã à tarde vais anunciar a tua demissão do cargo de meu
chefe de gabinete por razões médicas. Eu, é claro, aceitá-la-ei com
lágrimas e desgosto, considerando que a tua saúde é tão importante
para mim. Faremos um breve encontro com a imprensa no Roseiral,
tu dirás umas palavras simpáticas e eu umas ainda mais simpáticas.
Será uma despedida maravilhosa, Richard, mas, antes de o fazeres,
quero todo o material de escritório que te pertence empacotado e a
sair da Casa Branca.
Ele argumenta, com voz entrecortada:
– Mas… eu não estou doente, Pamela.
– Oh, sim, estás, onde verdadeiramente importa. – Faz tilintar os
cubos de gelo no seu copo. – Mas podes continuar a ser primeiro-
cavalheiro. Sorrirás, manterás a boca fechada, e não falarás com a
imprensa nem com mais ninguém do governo. Vais dar contigo a
viajar muito nos próximos meses, enquanto planeamos a minha
reeleição. Mas, no que se refere à política quotidiana aqui, Richard,
acabou.
– Mas… Pamela, por favor…
No ecrã de televisão aparece Pat Nixon. A pobre e querida Pat
Nixon… uma primeira-dama que nunca pareceu dar-se bem na
chamada Casa do Povo.
– Richard, não te posso ter como chefe de gabinete. Há um risco
demasiado elevado de poderes ser exposto se os serviços de
informações chineses tiverem o mesmo vídeo que a senhora Keating.
Richard levanta-se lentamente, seca os olhos com a mão direita.
– É tudo, Pamela?
A Presidente bebe o gole de água gelada com sabor a whisky que
restou no copo.
– Quase. Esta noite… não és bem-vindo no meu quarto.
– Mas… para onde vou?
– Há dezasseis quartos nesta casa – responde, com rudeza. – Vai
procurar um.
Capítulo 97
Algures no Nordeste da Líbia

Pelo clarear do horizonte, Mel Keating vê que o sol está prestes a


nascer e as últimas estrelas do céu acabarão por se dissipar. Doem-
lhe os pés, o tornozelo direito lateja ferozmente, e está cheia de sede.
Sabe que o nascer do sol vai tornar o dia ainda mais quente, mas
pelo menos conseguirá ver. Desde que fugiu dos homens de Asim Al-
Asheed há umas horas – há quantas, não faz a menor ideia –, tem-se
mantido quase sempre na estrada de terra batida, grata por esta se
dirigir sobretudo para Norte, segundo a Estrela Polar. Durante as
pausas para descansar, deixava a estrada e ia para as areias, onde
uma vez algo lhe rastejara sobre as pernas fazendo-a soltar um grito
suficientemente sonoro para ser ouvido a quilómetros de distância.
E, duas vezes durante a longa noite, ouvira o ruído forte de um
veículo a acelerar na sua direção, com os máximos a iluminar a
grande distância e, em ambas, correra para o deserto e atirara-se
para o chão, cobrindo-se com o cobertor imundo, rezando para que
os escorpiões e as aranhas se não metessem lá debaixo com ela.
Uma vez, um veículo parou nas imediações, suficientemente perto
para conseguir ouvir vozes e o ruído surdo do motor em ponto morto.
Um holofote manual acendera-se, varrendo os dois lados da estrada.
Mel fechou os olhos, recordando quando era mais nova e tinha medo
de fantasmas no seu quarto e pensava: Se fechar os olhos, não
consigo vê-los e eles não conseguem ver-me.
Se fechar os olhos, não consigo vê-los e eles não conseguem ver-
me.
Manteve os olhos fechados até ouvir um resmungo de
desapontamento e depois o rugido do motor e o veículo a partir.
Mesmo assim, não se mexeu e foi uma decisão inteligente, porque
o veículo – uma carrinha de caixa aberta ou uma camioneta, talvez? –
parou de súbito e o holofote continuou a mover-se, como se quisesse
apanhá-la a sair do local onde se escondia.
Está a ficar mais claro.
A sede aumenta e chupa a língua e o interior das bochechas,
tentando fazer surgir alguma humidade.
Nada.
Apanha um seixo, mete-o na boca e começa a chupá-lo. Surge um
pouco de saliva mas, meu Deus, não é grande ajuda, de facto.
Mel sabe que a maneira tradicional de sobreviver no deserto é
deslocar-se de noite, quando está fresco, e abrigar-se e conservar a
energia e a água à luz do dia. Encontrar um local com sombra.
Procurar uma depressão na areia, onde talvez cresçam plantas.
Cavar o solo nesse local, encontrar água. Encontrar um pedaço de
metal brilhante e fazer um sinal de SOS a qualquer aeronave que
passe no céu.
Tudo ideias maravilhosas, mas que só valem a pena se estiveres
perdida sozinha no deserto, pensa e não se assassinos brutais como
Asim e os seus seguidores andarem por aí a perseguir-te. Esconder-
se nessas areias e rochas significa não se deslocar, e ela tem de
continuar em movimento, tem de encontrar água, abrigo e, se tudo
correr bem, pessoas.
Pessoas que a possam ajudar.
Que falem inglês.
E tenham um camião ou um carro ou uma motocicleta que faça
aumentar a distância entre ela e Asim.
Com o sol a começar a nascer, a paisagem torna-se mais nítida.
Areia, rochas nuas, mato rasteiro. Estrada de terra batida por onde
caminha, com um ou outro sulco onde os pneus a desgastaram.
Montanhas e mesetas baixas a toda a volta. Bons locais para se
esconder; não admira que Asim a tenha trazido para aqui.
Onde quer que seja aqui.
Está a ficar mais claro.
Começa a olhar com atenção para o que se encontra de ambos os
lados da estrada, vê latas vazias, algumas caixas de cartão
achatadas e sacos de plástico brancos para lixo, que provavelmente
vão durar mais mil anos.
Ali.
Uma caixa de madeira partida, umas belas ripas. Mel ajoelha-se,
arranca a ripa mais longa, com um puxão. Num pedaço de terra
plano, enterra a ripa cerca de quinze centímetros e depois senta-se e
olha para os pés.
Que raio de trapalhada.
Não tem ténis nem botas desde que foi raptada, o que a deixou
apenas com umas meias fortes para caminhada. Ao longo dos dias,
as meias foram muito maltratadas, rasgando-se e ficando puídas. Os
pés têm bolhas e cortes, mas não vale a pena tirar as meias se não
tiver água e sabão para os lavar nem ligaduras para os envolver.
Mel apanha dois dos sacos plásticos, mete os pés dentro deles,
enrola-os bem justos. Com fios longos rasgados da orla do seu
cobertor, ata os sacos tão bem quanto pode.
Tem calor, sente-se infeliz, mas pelo menos os pés estarão mais
protegidos.
Agora, o sol está mais alto. Mel dirige-se à ripa de madeira que
enfiou na terra. Uma sombra estende-se a partir da madeira,
apontando para oeste, uma vez que o sol está a leste. O que significa
que… o Norte é por ali.
Mel avista um rochedo com um formato estranho projetar-se de
um cume próximo. Ali. Avança para aquele rochedo e estás a dirigir-te
para norte.
Norte, para o mar e aldeias e cidades.
Mel retoma a caminhada, coxeando sobre o tornozelo torcido, com
o cobertor em volta da cabeça e dos ombros e, então, a estrada de
terra bifurca-se para a esquerda e a direita.
E agora?
A esquerda fica mais perto do Norte.
E vai ser norte e recomeça a andar, com o estômago a roncar e a
boca tão, tão seca.
Papá, pensa. Oh, se ele ainda fosse Presidente, imaginem o que
poderia fazer. Todos os agentes do FBI e da CIA espalhados pelo
mundo andariam à sua procura e todos os drones e satélites em
órbita também estariam a tentar encontrá-la.
Mas, e depois?, pensa.
Asim não precisou de dizer nada, mas Mel sabe que, com a sua
execução simulada, Asim queria que o pai e outros pensassem que
estava morta.
O pai e a mãe… provavelmente juntos no lago Marie, a chorá-la –
com os diabos, talvez a preparar inclusive uma espécie de serviço
fúnebre.
Que sinistro: um serviço fúnebre quando ainda está viva.
Continua a avançar, apressando-se o mais que pode. Os únicos
sinais de vida que vê são uma ou duas aves indiferentes, à distância.
Os sons viajam longe neste terreno seco e, quando ouve o ruído
de um motor a tornar-se mais audível atrás de si, abandona a estrada
de terra e esconde-se atrás de uns rochedos. Surge uma nuvem de
poeira, que se estende talvez por uns trinta metros, e depois aparece
uma pequena carrinha de caixa aberta Toyota, em mau estado, com
quatro pessoas comprimindo-se na parte da frente e a traseira a
transbordar de caixas e sacos de tecido, amarrados com uma série
de cordas.
A carrinha passa por ela a rugir e o taipal traseiro encontra-se
aberto. Duas mulheres e duas crianças estão lá sentadas, com os pés
a baloiçar, rindo enquanto tentam resistir a cada salto e encontrão.
Mel toma uma decisão rapidamente.
Põe-se de pé com um salto, berra, agita os braços.
Agita os braços, tira o cobertor e agita-o para cima e para baixo,
para cima e para baixo.
– Socorro! – grita.
A carrinha continua a andar, desaparecendo numa nuvem de
poeira.
O som do motor começa a desvanecer.
Mel dá um pontapé numa pedra, começa a soluçar em seco,
perguntando-se o que vai fazer, quanto mais tempo conseguirá
arrastar-se daquele modo.
Põe o cobertor sobre os ombros.
Torna a ouvir-se o ruído do motor, gemendo, e a carrinha regressa,
em marcha-atrás. As duas mulheres e as crianças, envergando
túnicas bege e pretas cobertas de pó, olham-na com espanto.
Mel pensa nas muitas coisas que aprendeu com o pai, uma das
quais é: Está sempre atenta ao que te rodeia – sempre. Foi assim que
soube de imediato, no monte Rollins – quando estava a tomar banho
naquele lago isolado com o Tim –, que aqueles dois homens que se
aproximavam iam trazer problemas. Não se encaixavam ali.
Mas este grupo… homens, mulheres, crianças, a traseira da
carrinha cheia de caixas e pertences.
Mel não pensa que sejam jihadistas.
Avança a coxear, com a boca seca e gretada e sussurra:
– Por favor … ajudem-me… Podem ajudar-me? Por favor…
As mulheres começam a falar rapidamente numa língua que não
conhece – e que não parece propriamente árabe – e uma delas põe
uma criança ao colo e a outra faz o mesmo, ambas acenam a Mel
para que se aproxime.
Mel senta-se entre as duas mulheres, comprimindo-se no painel
traseiro de metal. A mulher que está à sua direita grita qualquer coisa
ao condutor e o Toyota arranca.
Quase cai, mas as mãos fortes das mulheres mantêm-na no lugar,
e elas riem-lhe e Mel devolve o riso, sem sentir já qualquer dor.
Capítulo 98
Al Sheyah, Líbia

Asim Al-Asheed está sentado na zona de sombra de um pequeno


pátio na residência de um líder tribal local disposto a recebê-lo e aos
seus camaradas para aí repousarem durante o dia quente no deserto,
ao contrário do desleal Omar al-Muntasser. Os veículos de Asim
encontram-se estacionados nas proximidades, cobertos com um toldo
de lona, e em breve chegarão veículos de substituição, vindos da
aldeia maior de Badr, para que possam continuar viagem.
Asim come um pequeno-almoço tardio composto por café, dois
ovos e sfinz quando o seu primo Faraj entra, arrastando uma jovem
pelo pulso. Asim levanta os olhos, limpa os dedos a um guardanapo
de pano bege e pergunta:
– Então?
Faraj empurra a mulher para a frente. Tem os olhos arregalados,
assustados, enverga uma túnica preta e tem a cabeça coberta. Nos
pés, tem calçados uns ténis Nike cobertos de pó.
– Tira-lhe o pano da cabeça – ordena Asim.
Faraj arranca-lhe o véu, a mulher grita e ele dá-lhe uma bofetada
na cara, pondo-a no seu lugar.
Asim olha-a fixa e demoradamente. A mulher baixa os olhos. O
corpo, o rosto, a estrutura óssea… sim, vai resultar. Parece estar no
final da adolescência e Asim diz:
– Fizeste bem, primo.
– Obrigado – agradece Faraj.
Asim não pode deixar de pensar na sua mulher, Layla Al-Asheed,
e nas suas três meninas, Amina, Zara e Fatima – agora no Paraíso,
sem dúvida – e em como, quando estavam vivas, nunca se permitiria
ficar sozinho na mesma sala com outra mulher, fosse de que idade
fosse, para evitar a tentação.
E agora?
Faz o que tem de fazer para obter a sua vingança.
– Onde a encontraste? – pergunta.
– Num mercado especial a sul de Brak – responde Faraj. – É
francesa, e já foi casada com um jihadista do ISIS vindo da Síria. Ele
foi morto… e ela está aqui.
– Muito bem, mesmo – diz Asim. – E a procura de Mel Keating?
Faraj franze o sobrolho.
– Continua. Tenho a certeza de que vamos encontrá-la, primo.
Asim volta ao pequeno-almoço.
– Também eu. Mas não contigo aqui de pé com esta triste
rapariga. Volta à caça… e quero que a encontrem antes do final do
dia.
Sente que Faraj está zangado, mas e depois?
Faraj sabe o que tem a fazer e, mais importante, sabe qual é o seu
lugar.
– Sim, Asim – retruca Faraj e sai, levando atrás de si a rapariga
que começa a lamentar-se enquanto se dirigem para a porta, falando
francês, num tom de quem pede e suplica.
Asim encolhe os ombros e volta à refeição.
Capítulo 99
Na Estrada 19, Líbia

Jiang Lijun, do Ministério chinês da Segurança do Estado, está


sentado no banco traseiro de um Land Rover Defender apinhado, que
saltita ao longo da estrada cheia de buracos, em direção ao Sul e às
montanhas de Nafusa, esforçando-se por manter abertos os olhos
cansados. Há mais dois Defender à frente deste, saltando e
balançando enquanto avançam e levantam nuvens de pó.
Um grande solavanco quase lhe rebenta o crânio contra o teto e, a
seu lado, Walid Ali Osman ri. Walid é, desde há muito, um dos
espiões de Jiang, que contratou aquele líder tribal e dez membros da
tribo para irem às montanhas de Nafusa a fim de encontrarem Asim
Al-Asheed e libertarem a filha do Presidente.
Walid, um homem magro e barbudo, usa uma farda de
camuflagem bege, tal como Jiang, que também enverga um colete
antibala. Tem uma pistola QSZ-92 de 9 milímetros, de fabrico chinês,
num coldre no flanco, com quatro carregadores suplementares. Tenta
não voltar a bocejar. Tem sido um dia brutalmente longo, que
começou em Nova Iorque, onde nem sequer teve tempo de voltar a
casa antes de apanhar um voo da Turkish Airlines que por fim o levou
a Trípoli.
Um dia longo, sem fim à vista e, quando chegou a Trípoli, o seu
primeiro pensamento foi que o chefe o mandara numa missão suicida.
Enviado sozinho à Líbia para resgatar Mel Keating, sem apoio! Mas
Jiang tinha de obedecer às ordens do homem; caso contrário, seria
levado para uma pequena sala de aço com o chão de terra inclinado,
na cave da embaixada, onde lhe teriam metido uma bala na nuca.
Walid ri de novo devido a outro solavanco, enquanto aceleram
através de uma paisagem monótona de terra, rochas e mato, com as
montanhas escarpadas e as mesetas a ficarem à vista e diz, em bom
inglês:
– Parece que ainda há muitos lugares para os meus amigos
chineses gastarem na vossa Rota da Sede, hem?
– Da Seda – retruca Jiang. – Chama-se Nova Rota da Seda.
O líder tribal ri.
– Seja qual for o nome que lhe queiram dar, é apenas uma
maneira de uma nação rica e distante espalhar riqueza por aí,
tentando comprar influência e amizade. – Uma palmada no joelho de
Jiang. – Como é que as coisas te correm, meu amigo?
– Estás aqui comigo, não estás?
Isso tem como consequência outra risada. Sim, depois de ter
chegado a Trípoli, a boa sorte sorriu a Jiang porque conseguiu entrar
em contacto com Walid e agora está aqui. Esta missão suicida talvez,
mas só talvez, se tenha tornado um pouco menos mortífera.
Outro grande solavanco. Mesmo com as janelas e as portas bem
fechadas, o pó consegue entrar no Defender. À frente, o motorista
murmura e pragueja, enquanto o seu companheiro de banco segura
uma AK-47 com uma mão e grita para um telefone de satélite que tem
na outra.
Jiang devia pensar, planear o que fazer quando localizar Asim,
mas continua a ser perseguido pela última conversa que teve com o
chefe, Li Baodong, na cave do edifício da missão chinesa junto da
ONU, em Nova Iorque.
O pai de Jiang morreu pelo seu país.
Agora, Jiang está sozinho com estes bárbaros do deserto,
saltitando e correndo nesta terra desolada, para resgatar a filha de
um Presidente americano e tem a sensação de que devia ter gritado
ao seu chefe em Nova Iorque.
Cogumelo gordo e estúpido: se, há uns meses, me tivesses
contado a verdade sobre a morte do meu pai, eu teria resgatado a
Mel Keating quando estava detida no New Hampshire!
Então, Asim e o primo estariam mortos ou na Baía de
Guantánamo. Mel Keating teria regressado sã e salva para junto dos
pais.
E Jiang não estaria aqui, no meio desta terra desolada, acelerando
a caminho de uma morte possivelmente solitária e sangrenta numa
dessas montanhas que se aproximam. Abanão, salto, sacudidela.
Desta vez a sua cabeça bate mesmo no teto acolchoado.
Se sobreviver, será a sua última missão no terreno.
Nunca mais.
Mesmo que isso signifique regressar a Pequim em desgraça, ser
despachado para um escritório distante, colocado no meio do ingrato
Tibete ou entre os indisciplinados Uigures, para Jiang, acabou. Quer
viver e ser um bom pai para a filha durante muitos anos vindouros.
O homem com o telefone de satélite vira-se e matraqueia diversas
palavras rápidas a Walid, que bate palmas de alegria.
– Conseguimos – anuncia. – Um pequeno conjunto de casas de
uma família, a menos de uma hora de distância, inshallah. Espalhou-
se o boato de que uma rapariga americana se encontra agora numa
das casas, e estão a cuidar dela, como hóspede.
– Mais depressa. Precisamos de ir mais depressa, diz Jiang.
Walid dá uma pancadinha no ombro do motorista, diz-lhe qualquer
coisa, e depois repete uma torrente de palavras semelhante ao
homem armado que tem o telefone e está sentado à frente. Os dois
Land Rover que vão adiante aumentam a velocidade e este também
acelera.
Ao fim e ao cabo, talvez sobreviva a este dia, pensa Jiang.
Capítulo 100
Residência da família Abrika, Líbia

Mel Keating bebe mais um pouco da água ligeiramente fresca e


reconfortante de uma chávena metálica e conclui uma vez mais que é
o melhor líquido que já engoliu. Está a descansar num quartinho
dentro de uma casa fresca de gesso e pedra, deitada sobre um monte
de tapetes e almofadas, enquanto uma mulher mais velha – talvez a
avó desta família? – supervisiona as duas mulheres que lavaram e
agora secam suavemente os pés doridos e magoados de Mel. Todas
vestem túnica pretas largas com lenços coloridos em volta das
cabeças e as duas mais novas parecem ter mais ou menos a idade
de Mel. Conversam e riem no que julga ser um dialeto árabe.
A água! Nunca provou nada tão delicioso, tão refrescante, tão
saciante. A água parece arrastar suavemente o pó e a sede e a
secura que faziam com que a sua boca lhe desse a sensação de
mastigar bolas de algodão. Os pés continuam a doer-lhe, porém é
uma dor agradável, que faz parte de estar a ser limpa e curada.
No entanto, apesar de confortável, Mel sente-se agitada,
temerosa, virando-se a cada ruído ou alteração. Sabe que Asim Al-
Asheed anda por aí à sua procura e estar aqui não é o mesmo que
tentar esconder-se em Georgetown, com todos os seus edifícios, ruas
e travessas. Está numa planície rochosa de um deserto no sopé
destas montanhas e calcula que não haja outro aglomerado de casas
num raio de quilómetros.
Apesar de se sentir melhor, Mel precisa de sair daqui.
Antes, teve um momento de pânico, quando uma das jovens lhe
tirou os óculos, tornando-a instantaneamente cega, mas regressou
mais ou menos um minuto mais tarde, depois de os ter lavado e
secado com cuidado, e Mel teve vergonha do seu medo.
Entra outra mulher, o seu véu é azul-claro, e pousa, no colo de
Mel, uma travessa de barro contendo uns bolinhos castanho-claros
que parecem os flapjacks que o pai prepara – e pensar nele faz com
que lhe venham lágrimas aos olhos. Foram regados com mel e come
um, a seguir dois e, depois de beber mais um pouco, pergunta:
– Desculpe, mas há aqui alguém que fale inglês? Por favor?
A mulher que lhe serve os bolos sorri.
– Sim, eu… um pouco. Frequentei a universidade de Trípoli
durante dois anos…
– Oh, meu Deus, obrigada, muito obrigada por me terem recolhido.
Tinha tanta sede… e estava tão perdida.
A mulher recua.
– Chamo-me Tala Abrika. Como te chamas?
Mel hesita. Está bem, foi socorrida, mas quem é esta gente? Pode
confiar neles? Serão amigos de Asim Al-Asheed?
O gosto a água mantém-se na sua boca que já não está seca.
– Chamo-me Mel – responde. – Mel Keating. Obrigada mais uma
vez por me terem recolhido.
Tala sorri e faz um aceno de cabeça.
– É o que fazemos.
Mel mordisca mais um daqueles bolos deliciosos enquanto as
outras mulheres que estão no quarto conversam entre si.
– Ouvi dizer que o povo líbio é cortês e amável com estranhos –
diz Mel a Tala.
O sorriso de Tala desvanece um pouco.
– Não somos líbios, somos Amazigh, a que alguns chamam
berberes.
Mel vê que algo turva os olhos escuros de Tala e tem a sensação
de que cometeu um erro.
– Desculpa – diz. – Não quis faltar ao respeito a ninguém.
– Não te preocupes – retruca Tala. – Nós, os Amazigh, que
vivemos aqui nas montanhas de Nafusa, fomos caçados, mortos e
oprimidos por todos os homens cruéis que governaram a Líbia, pelo
crime de sermos diferentes. Só nestes últimos anos é que tivemos
uma espécie de paz.
As outras mulheres, que continuam a rir e conversar, abandonam
o quarto e Tala fica a sós com Mel e fixa nela os seus astutos olhos
escuros.
Com voz firme, pergunta-lhe:
– Como é que te perdeste, Mel Keating? Uma jovem americana
como tu, vestida com as roupas erradas, sem sapatos, na nossa
terra?
Mel recorda as alturas em que ouviu o pai a trocar histórias e a
contar episódios aos seus camaradas SEAL sobre como – apesar de
anos de treino e experiência – as pessoas por vezes têm de seguir o
seu instinto, aquilo que ele lhes diz, o que estão a sentir.
Mel segue o seu instinto.
Confia nesta mulher.
– Fui raptada nos Estados Unidos por terroristas e trazida para cá.
Fugi na noite passada. Por favor, podem ajudar-me? Têm um
telemóvel?
O rosto de Tala fica sério.
– Temos, mas não há… como dizem, rede. Aqui. Uma pessoa tem
de ir até Miraz, para funcionar.
– Por favor…
O rosto de Tala abre-se num sorriso.
– O meu primo, Abu Sag, vem cá dentro de uma ou duas horas.
Ele leva-te a Miraz e lá podes fazer o teu telefonema. E estarás em
segurança, Mel Keating. Musshiiyat Allah, estarás em segurança.

Mel tem calçados uns chinelos brancos macios que a mulher mais
velha lhe enfiou nos pés ligados, e até dormita durante algum tempo.
É acordada quando Tala volta e diz:
– Depressa. O meu primo Abu chegou.
Tala ajuda Mel a levantar-se. Segurando o braço de Tala, é levada
lá para fora, para um poeirento pátio de terra batida. Vê a velha
carrinha que a recolheu e agora um Toyota Land Cruiser cinzento-
escuro está estacionado nas proximidades. Um jovem barbudo
atarracado envergando jeans azuis e uma camisa branca com botões
no colarinho salta do banco da frente, sorri e faz um breve aceno na
sua direção.
As outras mulheres estão de pé perto da entrada da residência
térrea. Há casas semelhantes, construídas em semicírculo. Cabras e
galinhas deambulam por ali e duas das casas têm antenas
parabólicas.
Tala agarra na mão de Mel e aperta-a.
– Boas viagens, Mel Keating. Espero que nos voltemos a
encontrar.
Mel fica engasgada, lembrando-se de a mãe lhe ter dito, há anos:
As pessoas, na sua maioria, são boas, Mel. A nossa maldição é
serem as más a receber tanta atenção.
– Eu também – responde.
Abu acena com a mão.
– Venha. Vamos embora, menina, vamos embora!
O interior do Land Cruiser cheira a incenso e canela e há contas e
berloques a baloiçar suspensos do retrovisor. Abu é um condutor
louco e temerário, e Mel descobre que o mecanismo do cinto de
segurança não funciona, por isso, ata-o à cintura com um nó e espera
que tudo corra bem.
O rádio toca alto e Abu canta em simultâneo. A estrada não é bem
uma estrada, apenas uma faixa de rodagem larga, de terra batida,
com muitos sulcos, mas Abu conduz como se pudesse fazê-lo de
olhos fechados.
O sol está alto e o céu é azul-escuro, sem que se veja uma
nuvem, e Abu diz:
– Chegamos a Miraz, deixo-te usar o meu telefone, verdade?
– É isso.
Ele lança-lhe um breve olhar lúbrico.
– Dás-me alguma coisa em troca?
Bolas, pensa Mel.
– Fechamos negócio depois de eu fazer a chamada.
– Ah ah – ri Abu, e continuam a avançar pela estrada larga e
deserta, através do deserto. E então ele diz. – Ah, olha. Olha além. Lá
à frente.
O para-brisas está sujo de terra e pó e Mel não consegue ver o
que Abu avistou a não ser quando estão quase lá.
Três SUV estacionados em fila, um amontoado de homens à volta
do primeiro, estudando um mapa no capô.
Abu passa por eles a acelerar.
– Viste aquilo? Viste?
– O quê? – pergunta Mel. – Que há ali?
– Um homem do Japão. Ou da China. De pé, com os outros. –
Outra gargalhada sonora. – Tão perdido, hem?
– Conheço a sensação – responde Mel.

Alguns minutos depois, Abu parece praguejar em árabe e dá umas


pancadas no mostrador por cima do volante.
– Ah, tão estúpido, caramba. Esqueci-me de reabastecer. Estamos
a ficar com pouca gasolina.
Mel põe uma mão no cinto e outra na alavanca da porta,
pensando, Se este palhaço tentar o truque de merda «Estamos sem
gasolina», salto porta fora quando ele abrandar.
– Não te preocupes – diz ele. – Ali. No cruzamento. A família
Dajout. Uma estação de serviço, pequena loja. Mel, queres uma
Coca-Cola? Queres?
Se quer!
– Sim – responde. – Seria ótimo.
Ele assobia, dá-lhe uma pancada no joelho – está bem, vai deixar
passar essa – e comunica:
– Terei muito gosto e, ao contrário do telefonema, é grátis.
A estrada alarga e Mel vê duas carrinhas de caixa aberta
cruzarem-se à sua frente, ambas levantando nuvens de pó, e há três
edifícios de um só andar em fila, com outras carrinhas paradas nas
proximidades e homens com túnicas brancas compridas ou calças e
camisas de pé no exterior, falando entre si.
Abu para numa viela estreita e diz:
– Só uns minutos, menina. Vou reabastecer, buscar a bebida
prometida e muito em breve estarás a fazer o tal telefonema.
Uma gargalhada e depois sai, fecha a porta e entra pelas traseiras
do edifício mais próximo. Outra carrinha passa a rugir na estrada
principal. Mel esfrega com cuidado um pé dorido contra o outro.
A quem falar? Como falar?
É claro que o 112 não funciona.
Mas há um número de telefone que o agente David Stahl a
obrigou a decorar quando o Pai estava na Casa Branca.
Usa este número e nós encontramos-te, dissera.
Mas funcionará no estrangeiro?
Qual é o código para ligar do estrangeiro para os Estados Unidos?
Não sabe, mas talvez Abu possa descobrir.
Mel desata o cinto de segurança e está a baixar-se para esfregar
de novo os pés quando a porta do condutor se abre.
Olha para a esquerda e fica imóvel.
Faraj Al-Asheed, sorridente e satisfeito, está a olhar para ela.
A seu lado encontra-se Abu, bebericando calmamente uma
garrafa de Coca-Cola.
– Pensas, minha menina – pergunta Abu –, que eu ponho em risco
a segurança da minha família por ti, uma estrangeira?
Faraj estende o braço e agarra o ombro de Mel, com força.
– Vem – ordena. – O Asim está ansioso por te ver.
Mel esbofeteia-o – com força! – e solta-se, abrindo a porta do seu
lado, saltando para o exterior e quase soltando um berro devido ao
abanão de dor no seu pé direito. Desloca-se o mais rapidamente que
pode pela viela e vê a estrada lá à frente. Talvez consiga mandar
parar alguém, ou gritar a pedir ajuda ou…
Dois homens com pistolas bloqueiam o final da viela.
Mel volta-se.
Faraj e Abu avançam na sua direção, com ar descontraído e
confiante.
– Mas eu não quero ver o Asim – diz Mel.
Faraj ri e agarra-lhe o ombro e, quando é levada e passa por Abu,
estende o cotovelo livre e empurra a garrafa de vidro duro, com força,
contra a cara do homem.
Capítulo 101
A bordo do Granite Four
Mar Mediterrâneo

Estamos a cerca de quinze minutos da base da Força Aérea da


Tunísia em Sfax-Thyna, quando Claire Boone – amiga da Mel e
operacional da National Security Agency – sai da casa de banho do
KC-135, se dirige para mim e se agacha. A meu lado, o agente David
Stahl dorme profundamente, com tampões nos ouvidos e os braços
cruzados sobre o peito.
– Matt? – diz ela.
– Sim?
Inclina-se para a poder ouvir melhor.
– Vamos estar bastante ocupados quando aterrarmos. E sei que
nunca me perdoaria se não aproveitasse esta oportunidade para lhe
fazer uma pergunta sobre um mistério que me mói há anos. O que
dizia na carta à Presidente Barnes? A que deixou na secretária da
Sala Oval no Dia da Tomada de Posse. Geralmente, o texto é
difundido, mas desta vez não foi assim. Porquê?
Tenho vontade de lhe dizer rispidamente Com tudo o que se está a
passar, estás preocupada com isso?, mas sou salvo pelo sargento
técnico Palmer, que aparece e anuncia:
– Muito bem, minha gente, estamos a chegar. Sentem-se e
apertem os cintos.
Claire levanta-se, apercebe-se da expressão no meu rosto e corre
para o seu lado da fuselagem.
O avião vira de vez em quando, inclinando-se para o lado de
dentro, o ruído dos motores muda de tom e sinto o KC-135 mergulhar
e perder altitude à medida que nos aproximamos da pista de
aterragem. Não há janelas nem escotilhas que me permitam avaliar a
nossa aproximação e, como tantas outras vezes na minha carreira
militar anterior, deposito confiança e fé na tripulação.
O trem de aterragem geme e fixa-se com um estampido, uma
nova mudança na abordagem e o KC-135 pousa suavemente, com os
inversores de impulso a entrarem em ação e o jato a abrandar
rapidamente.
O meu pequeno grupo de guerreiros acorda ou fica alerta
enquanto o avião abranda e o sargento técnico Palmer se aproxima
de nós, dizendo:
– Bem-vindos à Tunísia, minha gente. Se desapertarem os cintos,
trouxerem os equipamentos e me acompanharem, pomo-los no solo.
Não há escadas e, por isso, sairão pela calha de saída.
Seguimo-lo em fila indiana até ao compartimento da tripulação na
proa, e o sargento técnico põe-se ao trabalho, levantando uma parte
do convés de voo e pondo à vista uma grade metálica amarela, que
retira. Baixa uma escada de metal e fixa-a. Em seguida, desce e abre
uma pequena escotilha na fuselagem inferior. O nosso piloto levanta-
se e Nick Zeppos é o primeiro, seguido por Alejandro Lopez, e o
David passa os nossos sacos de equipamento aos dois SEAL que
estão lá em baixo.
Enquanto isto continua, balanço de um pé para o outro, tentando
esperar pela minha vez, sabendo apenas que tenho de chegar ao
solo e começar a trabalhar.
Paciência, penso. Sê paciente ou vais avançar com demasiada
rapidez e lixar tudo.
Dirijo-me à escada e o capitão Josephs estende-me a mão,
enquanto a sua copiloto verifica alguma papelada. Dou-lhe um breve
aperto de mão.
– Boa sorte, senhor – diz-me. – Vamos rezar por si e a sua equipa.
– Obrigado, capitão.

Observo a paisagem da base aérea de Sfax-Thyna e não há muito


que ver. Encontramo-nos no final de um aeroporto comercial que
pertence a um pequeno destacamento da Força Aérea tunisina, com
um punhado de hangares e edifícios de apoio apinhados a um canto.
Há quatro aviões monomotores de treino e um conjunto de
helicópteros, uma mistura de Huey mais antigos e Black Hawk mais
novos. Um aglomerado de edifícios térreos ergue-se do outro lado
das vedações do aeródromo. A paisagem é plana e castanha, e o ar
húmido, mas não demasiado quente.
Já estive em sítios piores.
O Nick Zeppos está a falar com um homem que enverga uma
farda verde-escura, botas pretas e um boné de beisebol bege e
ambos riem. O Nick dá-lhe uma pancada no ombro e depois diz-me:
– O alojamento temporário está resolvido. Por aqui.
Começamos a andar rapidamente e um camião de combustível
acelera em direção ao KC-135. Vejo a tripulação do Granite Four
reunida diante da proa, a esticar as pernas e à espera de que o avião
seja abastecido.
Mexe-te, mexe-te, penso.
O Nick conduz-nos a um pequeno edifício de betão e metal que
parece uma área de manutenção, com bancadas de trabalho, paletes
e ferramentas dependuradas na parede. Lá dentro, está quente e
abafado e não há ar condicionado. O Alejandro e o David começam a
desimpedir as bancadas e o Nick diz:
– Espere um pouco, senhor… ah, Matt. Vou ter com o pelotão dos
SEAL e ver se podemos fazer um briefing em menos de uma hora.
– Parece-me bem, Nick – respondo. Abro o meu saco, tiro uma
garrafa de água morna e bebo um longo gole.
– O pelotão de SEAL que aqui está… qual pode ser o seu
contributo? – pergunta o David.
– Em primeiro lugar, dezasseis operacionais profissionais.
Provavelmente dois Black Hawk e, se tivermos sorte, são da última
versão furtiva, o que significa que será muito mais fácil cruzar a
fronteira despercebidos. Equipamento de visão noturna, armas de
pequeno calibre, espingardas de sniper, lança-granadas, explosivos
para rebentar portas ou barreiras e pelo menos um oficial médico.
David, não podemos fazer isto sem eles.
Com as bancadas desimpedidas, o David e o Alejandro começam
a trabalhar, abrindo os seus sacos, tirando armas e diversos
equipamentos. Vou buscar o meu e começo a fazer o mesmo.
Olho para o relógio.
Uma da tarde, hora local.
– Claire, a que horas é o pôr do sol? – pergunto.
– Um momento, senhor Presidente – retruca. Enquanto nós os três
descarregamos as nossas armas, a Claire esteve a ligar e pôr a
funcionar o seu computador da NSA.
Prioridades.
– O pôr do sol local é… às 19 horas e 41 minutos, Matt.
Começo a pensar. Está fora de cogitação fazermos um raide
transfronteiriço durante o dia.
E também não logo a seguir ao pôr do sol.
Não, a melhor altura é sempre a mesma: a meio da noite. Boa
parte dos inimigos está a dormir, drogada ou bêbeda e os que se
encontram de guarda costumam estar aborrecidos ou sonolentos.
As boas notícias são que temos pelo menos quatro horas – um
belo meio dia – para nos prepararmos e exercitarmos com o pelotão
SEAL fortemente armado para a ação desta noite.
As más notícias?
Muitas más notícias. Continuamos sem saber onde está a Mel,
apenas que está algures a cerca de duzentos quilómetros para leste,
nas montanhas de Nafusa, na Líbia.
E se neste momento está num local, onde se encontrará daqui a
cinco horas?
Tanta coisa com que me preocupar, tanta coisa a planear.
A porta abre-se e o sargento-chefe Nick Zeppos entra, de rosto
abatido, e sei que as más notícias estão prestes a piorar.
– Desculpe, Matt – diz, com olhar alucinado. – Os SEAL foram
chamados para dar ajuda a uma unidade de paraquedistas franceses,
no Sul.
Ficamos todos em silêncio. Penso no que acabei de dizer ao meu
agente dos Serviços Secretos.
David, não podemos fazer isto sem eles.
O Nick acrescenta:
– Não estão cá e só regressam dentro de alguns dias.
Capítulo 102
Montanhas de Nafuja, Líbia

Os ossos e músculos de Jiang Lijun estão doridos por causa do


percurso difícil que fez de carro na última meia hora. Está dentro do
único Range Rover Defender que sobe e se entranha mais nestas
montanhas, e vai sentado na traseira, ao lado de Walid Ali Osman. O
motorista e outro homem armado vão no banco da frente e os outros
dois Land Rover estão estacionados cerca de meio quilómetro atrás.
Os homens armados que viajavam nesses veículos estão a trepar
rapidamente à sua frente para darem cobertura quando Jiang e Walid
chegarem por fim ao conjunto de edifícios habitados por Asim Al-
Asheed e os seus seguidores – informação que um dos homens da
tribo de Walid lhes transmitiu há umas horas.
O Land Rover salta, oscila, guina. Esta estrada de terra batida faz
com que a anterior estrada de terra batida que percorreram pareça a
autoestrada G45 a sul de Pequim. Desde a reunião em Nova Iorque,
Jiang enviou três e-mails a Asim, dizendo-lhe que vai a caminho, mas
nenhum obteve resposta.
Outro grande solavanco.
Walid mostra um rádio manual.
– Os meus homens vão a caminho. Quando chegarmos à
residência de Asim, contacto-os. Começará o combate e resgatamos
a rapariga americana.
O motor geme mais alto, à medida que a encosta se torna mais
abrupta. As paredes de rocha estão tão próximas que, se a janela
estivesse aberta, Jiang poderia tocar-lhes.
– Pensas que o Asim e os seus homens vão ficar quietos
enquanto falas pelo rádio? – inquire Jiang.
Walid ri.
– Sei o que estou a fazer. O rádio vai estar no meu bolso. Quando
estivermos em posição, a única coisa que faço é pressionar três
vezes o botão de transmissão… enviando um sinal. Bastará isso.
– E sabem que não devem magoar quaisquer mulheres que
vejam, certo? Não sabemos como é que a Mel Keating está vestida,
nem onde…
O Land Rover chega ao topo de uma crista.
Um homem bloqueia o caminho, com uma AK-47 na bandoleira.
Enverga um dólman verde-escuro, calças brancas e um lenço preto
ao pescoço.
O veículo abranda e detém-se.
O homem avança.
É Faraj Al-Asheed, o primo mais novo de Asim.
Pela primeira vez desde que voltou a aterrar neste maldito país,
Jiang sente algum otimismo.
Asim é um fanático, um jihadista, frio quando toma uma decisão e
a executa.
O seu primo, Faraj, é um seguidor, mais culto e, em alguns dias,
aberto a ouvir a voz da razão.
A sua presença aqui é uma bênção e Jiang repensa a estratégia
que delineou com Walid ao longo destas últimas horas.
Jiang desaperta o cinto de segurança:
– Deixa-me ir falar com ele. Talvez consiga encontrar uma solução
que não implique tiroteio.
– Se é o que pretendes – Walid parece cético. – Mas continuo a
esperar ser pago, mesmo que não haja luta.
– Se convencer o Faraj a libertar a americana sem luta – retruca
Jiang –, pagar-te-ei e darei um bónus tanto a ti como aos teus
homens. Fica aqui dentro.
Sai para a terra compacta e ergue os dois braços para Faraj,
enquanto começa a avançar para ele. Jiang continua a trazer consigo
a pistola, mas está enfiada do coldre e visível. Quer deixar Faraj
descontraído, mostrar que a sua visita não representa uma ameaça.
Faraj sorri.
– És tu, não é verdade? Jiang Lijun… que surpresa.
O primo de Asim avança para Jiang, com os dois braços
estendidos, e este pensa: Oh, não, um abraço malcheiroso, não, mas
Faraj limita-se a agarrar nas duas mãos de Jiang e apertá-las,
dizendo:
– O Asim tinha-me dito que vinhas cá, à nossa casinha afastada.
Que honra! Que prazer! Que te traz cá, então?
Jiang força uma gargalhada como resposta e baixa rapidamente
as mãos.
– Negócios, é claro… negócios sobre os quais quero falar com o
teu primo.
Faraj recua, sorrindo, abana a cabeça.
– Sim, o Asim está sempre disposto a falar… exceto quando não
está. Disse-me que não ia responder aos teus últimos e-mails. Disse:
«Se aquele chinês quiser falar comigo, ele que venha às minhas
montanhas.» E aqui estás. Nas montanhas dele. Como o
encontraste?
– Os meus guias e os meus serviços de informações pessoais.
– Temos sorte em os Americanos não serem tão sábios como tu. E
os teus negócios… têm que ver com a filha do Presidente, certo?
– É verdade – responde Jiang. – Quero propor-lhe um… acordo.
Um entendimento. Algo que poderia ir ao encontro dos interesses de
ambos. Talvez o pudesses convencer a pensar na minha proposta:
libertar a Mel Keating, entregando-ma em troca de diversas
compensações.
Faraj coça o queixo, onde a barba recomeça a crescer lentamente.
– Não sei nada disso, Lijun. Como disse, ele está sempre disposto
a falar. – Faz uma pausa. – Exceto quando não está.
Faraj ergue o braço direito, faz um movimento circular com a mão
e, dos rochedos lá em cima e à sua esquerda, ouve-se o estampido
de uma explosão, um leve sopro e uma forte explosão atrás de Jiang,
que se atira automaticamente ao chão, tapando a cabeça e os
ouvidos, enquanto a explosão ecoa e reverbera atrás de si.
Tenta levantar-se, e Faraj tira-lhe a pistola que tem no flanco.
Depois agarra-o pelo ombro e levanta-o.
Jiang gira a cabeça.
O Land Rover está atrás de si, envolto em chamas brilhantes, com
nuvens de fumo negro a erguerem-se, as chamas a crepitar e rugir, e
até os pneus ardem.
Faraj está ao lado de Jiang, com o braço a envolver-lhe o ombro.
Ao longe, ouvem-se diversos tiros rápidos e Jiang sabe que os
guerrilheiros de Walid estão a ser ceifados, um a um.
Agora está sozinho com Faraj, excetuando o guerrilheiro que
desce dos rochedos atrás de si, trazendo nas mãos o lança-foguetes
RPG-7. Jiang sente uma dor no peito e não foi por ter caído ao chão.
Teria sido mais simples, pensa, se estivesse naquele veículo
destruído.
Faraj aperta-lhe o ombro.
– Pronto, agora que resolvemos o problema dos teus… guias,
como lhes chamas, chegou o momento de te encontrares com o
Asim. Tenho a certeza de que os dois terão muito que conversar.
Jiang pestaneja ao ver as chamas a rugir. Ouve-se um curto grito
vindo do interior do veículo destruído.
– Se tiveres sorte – acrescenta Faraj.
Capítulo 103
Montanhas de Nafuja, Líbia

Mel Keating está no segundo período de exercício desta tarde, e


embora lhe agrade que lhe tenham concedido este pequeno prazer,
continua a sentir umas dores diabólicas no tornozelo direito, que
arrasta pela terra enquanto é seguida por dois homens de calças
bege, dólmanes e bonés militares, empunhando cada qual uma AK-
47. Os homens são jovens, com barbas desgrenhadas e olhos
nervosos. O pai diria que os dois não sabem que não se devem pôr
os dedos dentro do guarda-mato, como estão a fazer, porque
qualquer desequilíbrio, tropeção ou espirro forte poderia provocar um
disparo.
Os pulsos de Mel estão algemados e presos a um cinto largo de
couro fechado nas costas. Acabaram as algemas de plástico e,
mesmo com esta sujeição adicional, os seus dois guardas parecem
nervosos, e com razão. São responsáveis por Mel e esta tem a
certeza de que o Alfa e o Beta não receberam apenas uma avaliação
de desempenho insatisfatória quando se verificou que ela
desaparecera.
Provavelmente dois balázios na nuca, pensa, ou algo semelhante.
Continua a caminhar, arrastando o pé, afastando-se diretamente
do edifício térreo de pedra que é a sua prisão atual. Há mais cinco
edifícios de pedra nesta aldeola, recinto, ou campo de treino de
terroristas, consoante o ponto de vista de cada um. Têm todos
apenas um andar, embora apresentem diversas formas e dimensões.
Há cerca de uma dúzia de guerrilheiros neste local, mas não há
mulheres nem crianças. Num pequeno edifício ao lado daquele onde
a mantêm presa, há um aglomerado de parabólicas e antenas,
ocultas pelas redes e lonas que ficam por cima. O mesmo tipo de
camuflagem cobre quatro carrinhas de caixa aberta Nissan, todas
pretas.
Talvez o concessionário lhes faça um desconto na cor, pensa,
amargamente.
No final do passeio, dá meia-volta e recomeça a marcha lenta de
regresso à sua prisão. Os edifícios ficam num troço de terra plana,
com encostas rochosas íngremes por detrás e à direita, a estrada
estreita de terra e pedras à esquerda e, lá em cima, um pedaço de
um muro de rocha escavado e a desmoronar-se, que sobe em
direção a uma montanha chata. Lá em cima há dois homens armados
e com binóculos encostados ao rosto. O ar é frio e o céu, azul-claro.
Ouve-se um grito. Asim Al-Asheed sai do maior dos edifícios de
pedra, acompanhado por dois dos seus lacaios, e há risos e
gargalhadas. Mel gostaria de ter os braços livres, para poder dominar
o guarda mais próximo, tirar-lhe a AK-47 e ceifá-los a todos.
Asim dirige-se a ela, ainda a sorrir, e Mel fica gelada, recordando a
receção que teve há umas horas, quando Faraj a trouxe para cá.
Pensou que ia ser espancada, que lhe dariam socos, ou algo ainda
pior, mas Asim estava de boa catadura, a sorrir, e tocara-lhe
levemente com os dedos na face. «Que menina tão traquinas que tu
és», dissera, e agora ela desejava ter tido a presença de espírito
suficiente para lhe morder os dedos.
Ele fala rapidamente em árabe com os dois guardas, que recuam,
e em seguida diz a Mel:
– Deixa-me levar-te de volta aos teus aposentos.
Mel recomeça a andar devagar.
– Belos aposentos. Parece que foram estábulos. Ainda fedem.
– Mas demos-te a melhor divisão que lá existe. Porque é que não
estás grata por isso?
Mel mantém o olhar fixo em frente porque não quer olhar para o
seu captor.
– Quer a minha gratidão? Mande dois dos seus tipos levar-me
daqui e deixarem-me à porta da embaixada americana em Trípoli.
Ficarei tão grata que o incluirei na minha lista de cartões de boas-
festas.
Asim ri, apesar de ela continuar a ignorá-lo, não olhando para ele.
Asim começou a falar quando se ouve ao longe o ruído de uma
explosão distante.
Mel para, olha para a estrada estreita que conduz ao exterior do
acampamento. Não tem a certeza, mas pareciam estouros rápidos de
tiroteio.
Sente o peito oprimido e aperta as mãos algemadas. Será
possível? Vem aí alguém buscá-la? Agora? Uma tentativa de
resgate? Deve começar a correr para longe de Asim?
Ele exclama:
– Ah, aí está. – Olha para o relógio. – Mais ou menos à hora.
Mel esforça-se por controlar a voz:
– Que se passa?
– Oh – retruca ele, com leveza na voz. – Não ouviste? Havia um
grupo a dirigir-se para cá para te resgatar. O meu primo e alguns dos
meus guerreiros despacharam-no antes da chegada.
Mel vira-se, não querendo que Asim veja as lágrimas e o
desapontamento nos seus olhos, mas é demasiado, é tudo
demasiado, e soluça.
Tão perto!
– Ah, não chores, Mel Keating – diz Asim. – Não eram os
americanos. Nem os britânicos. Nem os franceses. Se dá para
acreditares, alguém da China, o vosso poderoso rival, tentou
arrebatar-te a mim. As coisas estranhas deste mundo, quando uma
nação rival tenta salvar-te. E agora, basta de lágrimas, está bem?
Chegam à zona guardada do edifício principal e ele acrescenta:
– Resigna-te ao teu destino. Estás aqui, comigo, para sempre. O
papá não te vem buscar. E a mamã não te vem buscar. Ninguém te
vem buscar. Acreditamos que Alá escreveu na al-lawh al-mahfooz
tudo o que aconteceu e acontecerá, e o que acontecerá conforme
escrito. Isso significa que os nossos fados e destinos respetivos já
foram determinados por Alá.
Mel decide ignorar este último chorrilho de asneiras. Esfrega os
pés e Asim pergunta:
– Que é isso?
– Posso estar a viver num celeiro de pedra – retruca –, mas não
nasci num. Estou a tirar a terra e o pó dos pés.
Há dois homens armados a ladear a pesada porta de madeira e
Asim abre-a, faz um aceno de cabeça e anuncia:
– Entra, Mel.
E ela entra na escuridão.
Capítulo 104
Base aérea de Sfax-Thyna, Tunísia

Depois de o sargento-chefe Nick Zeppos anunciar a partida do


pelotão SEAL com que estavam a contar, a divisão quente e
malcheirosa fica em silêncio, e Matt Keating parece endurecer e
crescer uns centímetros. Com a barba maior, as roupas que enverga
e a expressão dos seus olhos escuros, a Nick o homem não parece
um antigo Presidente dos Estados Unidos: o que ele vê é um
operacional dos SEAL como ele.
– Sargento-chefe – diz Matt, falando dura e claramente –,
prometeu-nos transporte. Não o temos. Vai voltar lá fora e arranjá-lo.
– Sim, senhor.
E Matt prossegue:
– Não quero saber se suborna um piloto, ameaça um piloto ou
desvia uma aeronave. Ou a aluga. E se não houver por aí um
helicóptero ou uma aeronave de asa fixa, arranje um camião. Ou um
veículo todo-o-terreno. Porque, seja como for, esta noite vamos
cruzar a fronteira com a Líbia e avançar até às montanhas de Nafusa.
Não vou esperar pelas informações e não vou esperar pelo
transporte. Vamos partir esta noite para recuperar a minha filha.

No exterior, Nick avança até ao pequeno grupo de aeronaves no


final da pista e começa a analisar opções e possibilidades. O
transporte é um dado, sabe-o, mas de que serve, sem informações a
partir das quais se possa agir? Sabe que os amigos do Presidente
Keating na Mossad e nos serviços de informações da Arábia Saudita
estão a trabalhar com afinco para localizar Asim Al-Asheed, mas
também sabe, por amarga experiência própria, que as boas
informações surgem naturalmente. Não podem ser forçadas, ou
apressadas porque então acaba-se com informações de merda
conducentes a uma missão de merda e a baixas.
O rugido surdo de motores a jato chega até ele, e o KC-135 da
Guarda Nacional Aérea do New Hampshire que os trouxe descola,
dirigindo-se para o seu destino original, Rota, em Espanha. Nick
sente uma ponta de inveja dessa tripulação. São militares, têm uma
tarefa a fazer e, embora possa ser problemática, não têm que passar
por cima de regras para a cumprirem.
Nick recorda uma frase vital do credo SEAL: «Esperamos
inovação.»
Por isso, inova, já!, pensa.
À medida que se aproxima do grupo de aeronaves, chega-lhe aos
ouvidos outro ruído, mais ténue, de motores, e observa o límpido céu
tunisino. Dois helicópteros Black Hawk aproximam-se vindos do Sul e
parecem vir pousar. Movem-se quase em uníssono e Nick admira a
perícia dos seus pilotos enquanto uma aeronave e depois a outra
aterram rápida e cuidadosamente. Têm as fuselagens pintadas de
negro, com uma rodela branca e um crescente e uma estrela
vermelhas.
Um punhado de tripulantes sai do hangar mais próximo e corre
para os helicópteros, cujos rotores abrandam, e, quando as
tripulações saem, tirando os capacetes, Nick estaca, espantado.
Reconhece um dos pilotos da visita de treino do ano passado.
Ora aí está a inovação!
Recomeça a andar enquanto o piloto alto, com um espesso bigode
preto, parte, brincando e sorrindo com o seu copiloto e dois membros
da tripulação. Nick grita:
– Joe! És tu, Joe?
O homem a quem chama Joe para, olha e sorri enquanto Nick se
aproxima.
– Sargento-chefe Zeppos? – pergunta. – Que estás a fazer aqui,
porra? – O seu inglês tem vestígios de sotaque árabe e francês.
Nick estende a mão, que é apertada prontamente por Youssef
Zbidi, também conhecido pelos formadores dos SEAL como Joe,
capitão do Groupe des Forces Spéciales do Exército tunisino. Com a
mão livre, Joe segura uma pasta de couro e o seu capacete de voo.
Usa um fato de voo verde-escuro, com o nome inscrito na placa em
caracteres árabes. As dragonas em cada ombro mostram o seu
posto: três estrelas.
Nick responde:
– Estou em missão.
– A sério? – inquire o capitão. – Que surpresa. Eu devia ter sido
informado de que vinhas. Não estás cá para te juntar ao pelotão
SEAL que tem estado aqui desde há três semanas, pois não? Receio
que estejam longe, a dar uma ajuda a uma unidade de paraquedistas
franceses, a sul.
– Não – retruca Nick. – É uma coisa diferente. Altamente secreta.
Clandestina, Joe, preciso mesmo da tua ajuda.
– É importante?
– Muito – responde Nick, pensando: Isto tem de funcionar, tem de
funcionar!
Mas em apenas um segundo o estado de espírito do capitão Zbidi
altera-se, as suas sobrancelhas estreitam-se, o rosto torna-se
sombrio.
– Na última vez que nos encontrámos, sargento-chefe Nick,
disseste-me que as minhas competências como piloto eram, como
vocês dizem, uma merda. Disseste que o meu lugar era num dos
carrocéis de crianças num parque de diversões americano. Não te
limitaste a dizer que eu voava como um porco a caminhar sobre gelo,
disseste que eu voo como um porco bêbedo a caminhar sobre gelo.
Nick pensa merda, e o capitão Zbidi cospe para o chão entre eles.
– Porque é que te ajudaria no que quer que fosse, porra? –
pergunta.
Capítulo 105
Base aérea de Sfax-Thyna, Tunísia

Com Nick lá fora à procura de transporte, afasto esse problema da


cabeça e regresso ao trabalho. Nas equipas, aprendemos
rapidamente que temos de contar com que os membros da nossa
equipa façam o que lhes compete, enquanto nos concentramos na
nossa parte da missão.
Tenho de me centrar na tarefa que tenho em mãos: preparar o
meu equipamento.
Dos meus dois sacos, retiro a espingarda automática Colt M4 e
começo a montá-la, inserindo primeiro o ferrolho na armação.
Seguem-se outras peças e componentes e é quase reconfortante
quando a minha memória assume o controlo e me permite montar de
novo a arma. Posso fazê-lo à chuva, numa selva, na mais completa
escuridão e os cliques e estalos gratificantes parecem acalmar-me.
O Alejandro Lopez e o David Stahl dedicam-se a atividades
semelhantes e Claire Boone – mais rápida do que todos nós – já
montou a sua M4 e está a trabalhar com a sua arma principal, o
portátil que lhe foi entregue pela NSA, com auriculares sem fios em
ambos os ouvidos.
Depois de ter emparelhado e ligado a armação superior da M4
com a inferior, testo-a puxando o ferrolho para trás e premindo o
gatilho.
Clique.
Está na hora de preparar as munições.
Abro as caixas de munições de 5,56 milímetros e começo a
encher carregadores de trinta balas, empurrando cada uma delas
para o carregador metálico munido de mola. Decido ter um
carregador na Colt M4 e seis em bolsas.
A seguir vem a minha pistola SIG Sauer P226 de 9 milímetros e
vou avançar com um carregador de vinte e duas balas na pistola e
mais quatro noutras bolsas.
– Matt – diz a Claire do outro lado da divisão quente e
malcheirosa.
– Sim – respondo, tentando encontrar, dentro do meu saco, as
bolsas para as munições da pistola. – Dá-me um segundo.
A Claire levanta a voz.
– Não tem um segundo. Mexa esse rabo até aqui.
Levanto a cabeça.
– O quê?
A Claire tira os auriculares e diz:
– A CNN International diz que o Asim Al-Asheed vai difundir outro
vídeo, desta vez em direto.
Largo tudo o que tenho nas mãos e corro para ela, enquanto me
anuncia:
– E a Mel vai aparecer.

Estou atrás da Claire, sentada, com o Alejandro à minha esquerda


e o David à minha direita. A Claire bate no teclado e a apresentadora
da CNN Internacional em Londres diz: «…Notícia de última hora: a
CNN soube que, dentro de poucos momentos, vai ser feita uma
comunicação em direto pelo cabecilha terrorista Asim Al-Asheed
através da estação Al Jazeera… e… esperem…»
A apresentadora desvia o olhar e as palavras seguintes quase me
fazem arfar de alívio, porque torna a olhar diretamente para a câmara
e prossegue: «Parece agora que a filha do Presidente, Mel Keating,
está de facto viva e bem… e que o vídeo da execução de há umas
semanas era uma falsificação. E… eis a emissão…»
As minhas mãos estão nas costas da cadeira onde a Claire está
sentada e os meus dedos cerram-se sobre o metal quando aparece
uma imagem:
A minha filha, Mel Keating, com o rosto cansado, sujo, de óculos
postos, com uma túnica preta que lhe cobre a cabeça e os ombros, e
um pouco do cabelo frisado a sair. O vídeo em direto tem muito grão
e não é tão nítido como o primeiro que vi no Saunders Hotel, na
Virgínia.
Segura um jornal com as mãos sujas e o jornal abana ligeiramente
nas suas mãos, que tremem.
– Oh – é tudo o que consigo dizer.
Mas, dentro de mim, estou a gritar: Está viva, está viva, chega de
esperanças, está ali, está viva.
A voz calma e feliz de Asim Al-Asheed torna-se audível enquanto
narra o vídeo em direto.
«Ora bom dia, Matt Keating», diz, «como podes ver, tenho muito
boas notícias para ti. Mel Keating está viva e bem.»
A Claire diz:
– Matt, ela tem na mão um exemplar do Daily News Egypt, um
jornal em língua inglesa publicado no Cairo.
Asim ri, durante um segundo insano.
«Portanto, enganei-te, não foi? Tal como o Ocidente enganou
constantemente o meu povo ao longo dos anos, desde o Acordo
Sykes-Picot durante a vossa Primeira Guerra Mundial, que retalhou
terras que vos não pertenciam entre Britânicos e Franceses; à
Declaração Balfour, que autorizou os Sionistas a invadir e expulsar os
Árabes, até e incluindo a vossa guerra ao terrorismo e invasões
baseadas em fantasias de armas de destruição maciça.»
Estou a ouvir a voz do Asim, mas continuo de olhos fixos na Mel,
vendo-a olhar para a câmara, parecendo esforçar-se por parecer
calma. O jornal continua a tremer-lhe nas mãos.
«Portanto, menti-te. Fiz com que tu e a tua mulher vivessem em
luto durante algumas semanas… só para vos dar um leve gosto do
que tenho sentido desde que tu, Matt Keating, mataste a minha
mulher e as minhas filhas. Agora, as minhas mentiras terminaram.
Chegou a hora da verdade, de te dizer o que vai acontecer a seguir.»
Faz uma pausa e depois declara devagar e com uma firme
clareza:
«Roubaste-me a minha família. E, como a lei permite, tenho direito
a uma compensação e essa compensação, Matt Keating, é que a tua
filha agora é minha.»
– Que diabo? – sussurra o David.
Asim continua:
«A tua filha é agora minha filha, para pagar o que fizeste à minha
família. Em breve receberá um novo nome e ficará junto de mim, até
ao fim da sua vida, enquanto a crio como se fosse minha. E tens de
pensar nisto. Ainda tens tanta pressa de me encontrar? De me
matar? De deitar uma das tuas bombas ou mísseis sobre mim?
Pensa bem nisso, Matt Keating, porque, se o fizeres, o dano colateral,
que vocês gostam de usar com tanta frequência como desculpa, será
a tua filha. Deixa-me em paz. Deixa-me viver. Porque, ao fazê-lo, vais
deixar viver a tua filha. Masalama, Matt Keating.»
O som é cortado e vejo a minha filha durante apenas mais uns
segundos até o ecrã ficar negro.
O Alejandro murmura «Foda-se», e essa expressão explica tudo.
O filho da mãe pôs-me entre a espada e a parede, e sem muita
margem.
Uma vez que a Mel já não é a sua prisioneira, mas sim a sua
pretensa filha, o Asim vai tê-la sempre perto de si, agora, amanhã e
nos anos que virão.
Desafiando-me a resgatá-la e atacá-lo e pôr a Mel em perigo
imediato.
Maldito filho da mãe.
Um telefone começa a tocar e grito:
– Alguém pode atender essa coisa maldita? Estou a tentar pensar.
O David responde:
– Matt, é o seu telefone.

Dirijo-me ao local onde se encontram os meus sacos e


equipamento, pego no telefone pré-pago – NúMERO NãO IDENTIFICADO,
diz o ecrã – e atendo:
– Sim?
– Matt? – pergunta uma voz excitada.
– Sim – respondo, reconhecendo David Cohen, da Mossad. –
Danny, que se passa?
Com alegria na voz, responde:
– Encontrámo-la. Sabemos onde está a Mel. Não há a menor
dúvida quanto a isso.
Capítulo 106
Montanhas de Nafuja, Líbia

Jiang Lijun, do Ministério chinês da Segurança do Estado, está


numa pequena sala com paredes e teto de pedra, sentado numa
cadeira de madeira, com os tornozelos e pulsos acorrentados a ela.
Há uma porta de madeira fechada à chave a cerca de dois metros e,
de cada lado da porta, pequenas janelas quadradas na pedra abrem
para fora, bloqueadas por barras de metal. O chão é de terra batida.
Está sentado em silêncio, calmamente, sem saber se existe
algures uma câmara de vigilância a seguir o que faz. Não vai dar a
quem quer que se encontre lá fora o prazer de o ver a debater-se ou
a testar as correntes.
Para afastar o espírito das que serão sem dúvida as suas últimas
horas de vida, recorda a história do almirante Zheng He que, há mais
de seiscentos anos, zarpou com grandes frotas de exploradores e
comerciantes a bordo de navios que eram muito superiores aos
navios europeus da época. Nas suas viagens, tornou-se um dos
primeiros chineses que desembarcaram em África e a exploraram.
Não esta parte da África, claro, porém, se os líderes desse tempo
tivessem dado continuação às viagens do almirante Zheng – o
equivalente no século XV à atual Nova Rota da Seda –, oh, como a
história teria mudado.
A chave roda na fechadura, a porta é aberta e Asim Al-Asheed
entra, sorrindo. Lá fora, de pé, estão dois dos homens armados de
Asim, que o olham como se nunca tivessem visto um homem chinês.
– Lijun – diz Asim. – Admiro a tua dedicação e persistência, fazer
todo este caminho, passando por tantas provações, para falar
comigo.
– É o meu trabalho – responde Jiang.
– Oh? E era o teu trabalho trazer contigo um esquadrão de
assassinos para me atacar a mim e aos meus seguidores?
Jiang retruca cautelosamente.
– Sabes como estas terras são perigosas. Estava só a ser
previdente, com os recursos que tinha à disposição. Nunca se
ponderou sequer um ataque à tua pessoa.
Asim sorri.
– Tenho a certeza. – Vira-se, grita uma ordem e trazem-lhe uma
cadeira metálica articulada. Senta-se. – Bem, aqui estás. Da última
vez que falámos, na América, disseste que admiravas o que eu tinha
feito e estavas disposto a ajudar-me. Essa oferta continua de pé?
Ainda queres ajudar?
– As circunstâncias mudaram. E o mesmo se passou com a minha
oferta para ti.
– Estou a ver. Mais alguma coisa.
– O facto de eu aqui estar é a prova provada de que podes ser
encontrado. Se os Americanos acreditam que Mel Keating está viva…
– Agora, sim – interrompe-o Asim. – Acabei de difundir um filme
em direto que mostra que está viva. E obrigado pelo teu aviso. Não
tenciono ficar muito mais tempo nestas montanhas. Continua.
Jiang diz:
– Sabendo que está viva, os Americanos não vão parar de a
procurar e tentar matar-te. Entrega-ma, e eu devolvo-a aos
Americanos. O meu governo dar-te-á uma recompensa generosa,
satisfará qualquer desejo ou necessidade que tenhas. Basta que me
entregues a rapariga.
Asim parece ponderar a questão, no entanto Jiang não se deixa
enganar. Há uma expressão trocista naqueles olhos castanho-
escuros.
– Ah, sim, tu o teu país de comerciantes, sempre desejosos de
comerciar, de negociar, de ter lucros – assevera Asim. – Tenho a
certeza de que é isso que queres dizer quando falas em recompensa,
certo? Generosas quantias em dinheiro. Transferência em segurança
para outro país. Uma vida de lazer, conforto e riqueza. Apenas se te
entregar aquela adolescente.
Asim levanta-se rapidamente, pega na cadeira.
– Mas há pessoas neste mundo, meu amigo, que não precisam de
riqueza e luxo. Que respondem apenas perante Deus. Mais logo, vou
mostrar-te o que quero dizer, com mais pormenores. E depois serás
libertado, são e salvo, para regressares a casa, e dizeres aos teus
amos que encontraste finalmente um homem que não podia ser
persuadido ou subornado contra as suas crenças.
Asim sai, a porta fecha-se atrás dele e a chave roda na fechadura.
Jiang suspira. Vivo por agora, mas tem dúvidas de que Asim
esteja a dizer a verdade.
Porque o libertaria?
Está só.
Mas não fica só durante muito tempo.

Poucos minutos mais tarde, a porta é destrancada e aberta de


novo e, desta vez, quem entra é o primo de Asim, Faraj, trazendo na
mão direita uma pasta escolar quadrada cor de caqui que pousa no
chão de terra.
Fecha a porta atrás de si e diz:
– Fizeste uma oferta ao meu primo. Repete-ma.
– Mel Keating é libertada sã e salva à minha guarda e serás
generosamente recompensado.
– Os pormenores – diz Faraj. – Dá-me os pormenores.
– Vinte milhões de euros, numa qualquer conta bancária
numerada confidencial, que tenhas ou que possamos abrir.
Transporte seguro para qualquer local do mundo e habitação gratuita.
Nova identidade para que os serviços americanos, britânicos e
israelitas nunca te encontrem.
Faraj faz um aceno de cabeça.
– Esse acordo é para o Asim ou para qualquer outra pessoa?
Jiang está agradavelmente espantado.
– Quem quer que liberte Mel Keating e ma entregue e nos
proporcione transporte seguro para sair de Trípoli.
– Então, faço-o eu – retruca Faraj. – Não o meu primo. Estou farto
de jihad, de comida detestável, de dormir em grutas, temendo sempre
que um drone dispare um míssil contra mim. Tu e eu vamos fazer
esse negócio.
Fascinante, mas Jiang tem dúvidas de que não se trate de uma
armadilha. Estes dois primos, que derramaram tanto sangue em
conjunto, estarão realmente a ter um desentendimento ou haverá
outra coisa planeada?
Estará Faraj a armar-lhe uma esparrela?
Está na hora de ser cauteloso. Diz:
– Não tenho a certeza de poder confiar em ti. E não tenho a
certeza de me sentir bem a trair Asim.
Faraj cruza o chão de terra batida e agacha-se a fim de que os
seus olhos fiquem ao nível dos de Jiang.
– Vais cooperar comigo, vais pagar-me, ou eu direi ao Asim que
foste tu que assassinaste a família dele, há três anos – afirma Faraj. –
E não os Americanos.
Jiang fica paralisado, incapaz de dizer uma palavra.
– Como te sentes agora? – pergunta Faraj.
Capítulo 107
Base aérea de Sfax-Thyna, Tunísia

Peço ao ex-chefe da Mossad:


– Danny, por favor, diga-me mais. O que sabe?
– Aquele vídeo da Mel foi transmitido em direto – declara, com
uma voz triunfante. – Não era uma gravação. A nossa Unidade 8200
conseguiu descodificar o sinal logo no início e descobriu que estava a
ser transmitido para um simpatizante do Asim, no Qatar, que
conseguiu passá-lo para outro simpatizante com ligações à Al
Jazeera. Mas, Matt, melhor ainda, conseguimos identificar donde
vinha a transmissão.
A Unidade 8200 israelita, equivalente à nossa National Security
Agency, é composta de profissionais em todos os sentidos quando se
trata de conseguir informações sobre transmissões, códigos e
descodificação. Depois de eu ter tomado posse e de me terem posto
a par dos diversos problemas e zonas sob tensão no mundo,
disseram-me que a Unidade 8200 era tão boa como a NSA e até
melhor em algumas áreas.
– Danny, de onde vinha a transmissão?
– Da Líbia, das montanhas de Nafusa. Eis as coordenadas, Matt:
trinta e um graus, cinquenta e quatro minutos, trinta e seis vírgula oito
segundos norte e onze graus, dezanove minutos, três vírgula
sessenta e seis segundos leste.
Agarro numa caneta e escrevinho os números vitais na palma da
mão.
– Recapitulando, Danny: coordenadas trinta e um graus, cinquenta
e quatro minutos, trinta e seis vírgula oito segundos norte e onze
graus, dezanove minutos, três vírgula sessenta e seis segundos leste.
– Perfeito – retruca Danny. – É onde ela está. Deus o abençoe.
Desligo e descubro que o sargento-chefe Nick Zeppos e outro
homem entraram no pequeno hangar de manutenção.
– Matt – diz Nick. – Apresento-lhe o capitão Youssef Zbidi, piloto
de Black Hawk do Groupe de Forces Spéciales do Exército tunisino,
as forças especiais deles. Tive a… honra de trabalhar com o capitão
Zbidi no ano passado, numa missão de treino.
Levo um breve momento a escrever as coordenadas num pedaço
de papel, que passo a Claire Boone, e depois avanço para o Nick e
baixo a cabeça.
– Capitão Zbidi – digo.
O piloto enverga um fato de voo e é musculoso, muito moreno,
com um bigode espesso e o seu rosto passa de ceticismo para um
leve assombro.
– Falei com o Joe… foi essa a alcunha que lhe pusemos então… e
disse-lhe o que pretendíamos fazer. Como é natural, não acreditou
em mim, mas persuadi-o a pelo menos vir cá e ver com os seus
próprios olhos.
Nesse momento, apercebo-me de uma abrasão debaixo do olho
esquerdo do Nick e reparo que a bochecha direita do piloto tunisino
parece inchada.
Bela persuasão.
– Capitão Zbidi – digo-lhe –, já sabe o que pretendemos fazer.
Pode ajudar-nos?
Ele faz um aceno de cabeça e diz:
– Apenas sob uma condição. Cumpram-na… e podem contar
comigo.
A parte de mim que está cansada, esgotada e é mercenária
pergunta-se o que quererá o piloto – dinheiro, naturalização, barras
de ouro – e dou-lhe a única resposta que posso.
– Certamente. Qual é?
Avança com um ligeiro sorriso e estende a mão direita.
– Ter a honra de apertar a mão do Presidente americano.
Aperto-lhe a mão rapidamente. Sorri para mim e o Nick, e anuncia:
– Para si, senhor Presidente, e para o resgate da sua filha, o meu
aparelho e tripulação são seus.

Há uns minutos, estava tão exausto e deprimido que tinha a


sensação de estar prestes a arrastar-me pelo chão, mas isso passou.
Estou desperto, estimulado e, então a Claire, anuncia:
– Tenho-a. Tenho-a aqui.
Estou a avançar para junto da Claire quando o meu telefone
recomeça a tocar. Sinto a tentação de o ignorar, porém, como poucas
pessoas conhecem o número deste telefone pré-pago, respondo.
– Keating.
Outra voz familiar surge em linha.
– Matt? Estás bem? Podes falar?
É Ahmad Bin Nayef, antigo vice-diretor da Direção-Geral de
Informações da Arábia Saudita.
– Ahmad, claro, que se passa? – respondo.
E então parece que é Natal em junho porque diz:
– Temos a localização. Sabemos onde está a Mel.
Sinto-me quase estonteado de alívio. Há uns minutos não fazia a
menor ideia de onde estava detida a minha filha e agora tenho dois
dos melhores serviços de informações do Médio Oriente a comunicar
comigo no último momento.
Duas fontes que confirmam onde está.
Não é possível obter melhores informações.
– É nas montanhas de Nafusa, na Líbia?
– Sim – confirma. – Há um mensageiro que faz entregas especiais
ao Faraj, o primo do Asim. Uns subcontratados que trabalham para
nós encontraram-no precisamente quando vinha a sair do recinto do
Asim. Foi… interrogado e forneceu a localização. Diz que consta no
campo que se encontra lá uma prisioneira muito importante, uma
jovem, filha do anterior Presidente americano. Matt, estou tão
contente por ti.
– Ahmad, muitíssimo obrigado – agradeço, com a voz a ficar
embargada na garganta. – A Samantha e eu teremos uma dívida
eterna para contigo.
– Precisas de mais ajuda? Talvez pudesse reunir uma força de
homens para ti nas próximas vinte e quatro horas.
– Não temos tempo, Ahmad, mas muito obrigado. Vamos partir
esta noite.
– Então, adhhab mae allah, meu amigo. Eis as coordenadas do
local onde está detida. Também lá estão vinte e tal guerrilheiros. Tem
cuidado.
Ahmad comunica-me as coordenadas, lenta e eficientemente, e eu
escrevo-as num pedaço de papel e…
Há qualquer coisa seriamente errada.
– Ahmad, podes repetir?
– Claro.
Fá-lo e escrevo as coordenadas de novo. Ainda com o telefone na
mão, dirijo-me a Claire e entrego-lhe o pedaço de papel.
– Claire, os serviços de informações sauditas estão a dizer que
estas são as coordenadas do local onde a Mel está presa. Digite-as,
sim?
– Com certeza – responde e começa a usar o teclado. Neste
momento, todos, incluindo o piloto tunisino, formamos um semicírculo
silencioso atrás dela.
No ecrã do seu portátil vê-se um mapa topográfico das rudes e
rugosas montanhas de Nafusa e, com os dados fornecidos pelo seu
teclado, aparece um triângulo vermelho a piscar.
Não sou, de modo algum, perito em cartografia informatizada, mas
também vejo que há um triângulo anterior a piscar.
– Claire? – inquiro.
Ela roda na cadeira e olha para mim.
– Lamento, Matt, mas as coordenadas não correspondem. Os
israelitas dizem que ela está num local e os sauditas, noutro, a cerca
de vinte quilómetros de distância.
Capítulo 108
Montanhas de Nafusa, Líbia

Jiang Lijun continua sentado e em silêncio, não ousando proferir


uma palavra, ou mexer-se, ou fazer qualquer outra coisa que atraia
ainda mais a atenção de Faraj, mas o primo de Asim levanta-se e diz:
– Vamos fazer progressos, está bem? Vamos estipular que
passaste mais ou menos dez minutos a negar tudo o que eu disse.
Muito bem. Agora é a minha vez de falar.
Faraj pega na pasta que trouxe consigo e começa a abrir o fecho.
– Há três anos, a família do Asim foi morta quando os SEAL
americanos atacaram a aldeola onde ela vivia. Tenho a certeza de
que te lembras disto… sobretudo porque estavas colocado na vossa
embaixada cá quando se deu o raide.
Para de abrir a pasta e prossegue:
– Foi horrível, não foi? Uma mulher e as suas três filhas, todas
inocentes, mortas numa explosão. Notícia em todo o mundo, com o
Matt Keating a aparecer na televisão mais tarde para pedir desculpas
pela sua operação militar atamancada.
Nova pausa.
– Mas suponhamos que não foram os americanos que o fizeram…
Jiang retruca por fim.
– Não sei de que estás a falar.
Faraj ri.
– Oh, não me insultes, meu caro Lijun. Deixa-me terminar e a
seguir podes insultar-me. Depois de o raide ter terminado, e os
corpos terem sido enterrados, as notícias deixaram-me a pensar.
Falei com sobreviventes do ataque e todos estavam de acordo quanto
ao que acontecera. Os americanos chegaram, o combate começou,
mas, antes de eles terem alcançado a casa onde residia a família do
Asim, esta explodiu.
– Um míssil Hellfire, tenho a certeza – comenta Jiang.
– Oh, não, não me parece – declara Faraj. – Porque é que os
Americanos usariam um Hellfire com tantos dos seus soldados nas
proximidades, expondo-os desnecessariamente ao perigo? E, quando
mais tarde fui lá investigar com um bom amigo meu, um homem a
quem chamamos o Engenheiro, bem, a primeira coisa que ficámos a
saber foi que a explosão veio do interior do edifício. E não do exterior.
Fácil de ver, se lá estiveres.
Jiang continua calado e o suor começa a escorrer-lhe pela nuca.
Faraj abre a tampa da pasta.
– O Engenheiro… é um estudioso e perito em tudo o que é
eletrónica e explosivos, licenciou-se com altíssima classificação na
Universidade Americana de Beirute. Irónico, não é? Mas ele disse-me
que tivemos sorte por a explosão ter ocorrido dentro do edifício,
porque ainda podia lá haver pistas e componentes importantes.
A atenção de Jiang está receosamente concentrada na pasta
escolar que Faraj trouxe consigo. Que poderá estar lá dentro? Um
maçarico? Tesouras de poda? Facas afiadas?
E Faraj continua:
– Devias tê-lo visto em ação. Muito metódico, muito lento mas, ao
fim de dois dias de buscas, encontrou-o. Havia um dispositivo de
acionamento eletrónico dentro de um carregamento de granadas de
morteiro de 82 milímetros que se encontravam lá armazenadas
temporariamente. Granadas de morteiro que tinham sido enviadas ao
Asim por… ti. E o dispositivo seria acionado por uma chamada de
telemóvel.
Faraj estende a mão para a pasta e tira uma e depois duas…
Latas?
Os olhos de Jiang esbugalham-se quando vê o logótipo familiar,
branco e azul, com um alpinista a escalar um pico e os caracteres
chineses escritos ao lado.
Cerveja Snow.
– Como… – diz Jiang.
Faraj abre uma lata com destreza, leva-a para junto de Jiang e,
levando-lhe a lata aos lábios, deixa que o chinês tome um gole longo
e refrescante da bebida. Recua, abre a segunda lata e ingere também
um longo gole.
– O meu primo não conhece nada para além de Alá, jihad e
vingança. Eu, por outro lado, gosto das tecnologias que o Ocidente
nos proporcionou. Como esta. – Bate suavemente com o pé na pasta.
– Um refrigerador acionado por baterias. Engenhoso, hem? Como o
dispositivo explosivo que prendeste àquelas granadas de morteiro.
– Obrigado pela cerveja – diz Jiang. – É muito refrescante.
Faraj ri.
– Caramba, nada te parece preocupar. Não admira que sejas um
espião tão bom. Provavelmente continuarias a negar tudo mesmo que
eu te torcesse os tomates até os arrancar. Mas faz sentido… tudo faz
sentido. O Asim foi um dos teus trunfos, durante muitos anos, mas
chega sempre um momento em que um trunfo se torna um fardo, um
constrangimento. Tem de ser afastado. E, não sei bem como, nessa
noite, há três anos, soubeste que os Americanos iam atacar o Asim e
pensaste que um simples telefonema teu, meu inteligente amigo,
podia afastar o teu espião e também matar ou humilhar os
Americanos. Como se costuma dizer, ficavam todos a ganhar.
– Estás a contar uma bela história, Faraj.
Este aproxima-se e estende-lhe de novo a lata de cerveja. Jiang
pensa nas apostas de bebida em que entrou quando estudava na
Universidade de Columbia e engole.
Terminada a lata, Faraj recua e afirma:
– Mas o Asim ficou vivo e a família dele morreu. E os teus atos
causaram provavelmente a derrota de Matt Keating nas eleições. Em
suma, uma boa troca, não é verdade? Mas esta é a troca desta noite.
Mais logo, terei uma oportunidade de matar o Asim. Quando isso
estiver terminado, farás as diligências para que me paguem, e me
forneçam uma nova identidade e uma nova casa. E, depois, tens a
rapariga.
– Vai levar algum tempo a fazer isso – retruca Jang.
Faraj termina a sua cerveja.
– Eu tenho todo o tempo do mundo, mas quero lembrar-te apenas
que tu não.
– O quê?
Faraj mete as duas latas vazias no refrigerador, corre o fecho
éclair e levanta-se.
– Se me traíres seja de que forma for, todos os outros parentes e
amigos do Asim serão informados do que fizeste e não chegas vivo
ao fim de semana.
Capítulo 109
Montanhas de Nafusa, Líbia

Mel Keating está sentada no chão de terra e pedras da sua cela,


com os joelhos encolhidos e os braços a envolver as pernas. Pensa e
observa e, com os diabos, não gosta do que vê.
Ou não vê.
O quarto de pedra tem uma lâmpada dependurada de um fio que
passa por um orifício no caixilho da porta, uma prateleira de madeira
com garrafas de água e diversas bolachas e gomas de frutas, e…
É isso.
Nenhuma retrete.
E mais importante.
Nada de cama.
O que significa que Asim não tenciona mantê-la aqui durante
muito tempo.
Mas ele disse que será sua «para sempre».
Muitas formas de interpretar isso, nenhuma delas boa.
Mel esforça-se por se levantar porque o maldito tornozelo continua
a latejar com força. Vêm-lhe lágrimas aos olhos e não é apenas por
causa da dor.
Encurralada.
Oh, meu Deus, está tão encurralada.
Mal se põe de pé, dirige-se para a prateleira, bebe um pouco de
água, come umas bolachas secas e depois algumas gomas de fruta.
Uma delas parece feita com um xarope qualquer de cereja e fica com
todos os dedos sujos de sumo vermelho.
Interessante.
Deixa ficar o sumo nos dedos e brinca com ele durante algum
tempo e depois lambe-os para os limpar e bebe mais um trago de
água.
Inspira fundo, tenta acalmar as tremuras nos braços e nas pernas
porque sabe que ninguém a vem buscar. A mãe e o pai pensam que
está morta. Asim é um terrorista assassino, mas tem razão quanto a
uma coisa: está entregue a si própria.
Está na hora de sair daqui.
Mas como?
Dá a volta ao pequeno recinto, com os dedos na rocha nua,
olhando e avaliando e…
É rocha nua.
A única entrada e saída é através daquela porta fortemente
trancada.
Claro, pensa, irrompo porta fora e domino os guardas armados
que estão lá fora e depois coxeio em direção à liberdade.
Dá um chuto na porta com o pé bom e depois começa a martelar
com os punhos, gritando: «Eh! Eh! Eh!»
Recua. Ótimo, agora doem-me os dois pés.
Espera.
Alto aí!
A fechadura da porta está a ser aberta.
A porta gira para dentro da cela e estão dois homens armados a
olhar para ela, ambos talvez com dezanove ou vinte anos, barbas
ralas, calças brancas, casacos castanhos sobre camisas azul-
escuras. Aquele que está mais perto tem uma AK-47 pendente do
ombro por uma correia, e o seu companheiro, de pé alguns metros
mais atrás, tem a sua AK-47 a apontar diretamente para ela. Atrás
deles há um corredor que conduz diretamente à porta principal para o
exterior. O corredor é ladeado por antigos estábulos de pedra cheios
de rações, garrafas de água, caixas de munição e armas.
– Sim? – pergunta o primeiro homem.
Pensando rapidamente, Mel responde:
– Sabem quem eu sou, não é? A filha do anterior Presidente. Seja
o que for que vos paguem aqui, nós pagaremos muito mais, uma pipa
de massa para me libertarem.
O primeiro homem vira-se para o segundo, ri, e voltando-se de
novo para ela, inquire:
– Sim?
– Precisamente, precisamente. O meu pai certificar-se-á de que
vocês vão para a América… com as vossas famílias. Iniciar uma nova
vida. Sãos e salvos. Pagar-vos-á o que quiserem, juro-vos. Tirem-me
apenas daqui para fora.
– Sim, sim – diz ele e Mel pensa: A sério? Vai ser assim tão fácil?
O homem avança, tira a arma do ombro, espicaça-a com a ponta
do cano da AK-47 e, rindo de novo, recua pela porta, fecha-a e
tranca-a.
Não, pensa, virando-se, com os olhos marejados de lágrimas, não
vai ser assim tão fácil.
Olha uma vez mais à sua volta. Nem casa de banho, nem onde
dormir.
Com uma sensação de frio no ventre, Mel sabe que para sempre é
algo que lhe vai acontecer muito em breve.
Capítulo 110
Base aérea de Sfax-Thyna, Tunísia

Voltando ao telefone, digo:


– Ahmad, alguma coisa não está certa. Tens a certeza destas
coordenadas?
– Absoluta, Matt. Estive presente durante o interrogatório e
confirmámo-las com o mensageiro analisando mapas de satélite e
outros recursos. As coordenadas são essas.
– Mas ele viu a Mel?
– Não. Ouviu apenas as histórias que circulavam no
acampamento. Sobre uma rapariga muito importante que lá estava, a
filha do Presidente. Matt, o que é que está errado?
Esfrego a testa e continuo a olhar fixamente para o ecrã do
computador da Claire e aqueles dois malditos ícones a piscar, tão
distantes.
– O que está errado é que a Mossad está a dizer-me que ela está
detida noutro local, nas montanhas de Nafusa, a cerca de vinte
quilómetros de distância – digo. – O vídeo que o Asim Al-Asheed
difundiu há pouco era uma transmissão direta. Os israelitas
conseguiram descobrir de onde provinha a transmissão. Não é o
mesmo local que a sua fonte referiu.
Ahmad suspira:
– A luta constante, certo? Informações humanas versus
informações de transmissões.
– Podes falar de novo com o mensageiro? Só para te certificares.
Um segundo de hesitação.
– Temo não poder fazer isso, Matt. O mensageiro… já não está
disponível.
Naquela única frase, Ahmad acabou de me dizer que o
mensageiro está morto. Ou morreu durante o interrogatório ou foi
abatido enquanto tentava fugir, ou porque um rival de Ahmad e
apoiante de Asim o fez desaparecer por artes mágicas e depois o
matou para o impedir de falar mais.
– Compreendo – digo. – Há mais alguma coisa que possas dizer-
me?
– Não, não posso, Matt. As minhas desculpas.
A chamada é desligada.
A sala está em silêncio, todos olham para mim, que estou a meio
de tomar a conhecida decisão de vida ou morte. Apesar das histórias
interesseiras dos assessores presidenciais e do que acontece nos
filmes para o grande público, não há assim tantas decisões
presidenciais que sejam de vida ou morte. Com efeito, a maior parte
das decisões presidenciais já está tomada quando uma ordem ou um
memorando chega à sua secretária. As decisões são tomadas em
sessões de trabalho, encontros de gabinete, briefings em Capitol Hill
e, quando chegam à Sala Oval, são quase rotina.
Mas não agora.
Os dois ícones a piscar parecem troçar de mim.
– Senhor… – começa o Nick e depois cala-se.
Sei o que está a pensar, o que todos os outros estão a pensar.
Não temos efetivos para fazer duas missões esta noite.
Apenas uma.
Mas qual? Ahmad tem razão. Informações humanas versus
informações de comunicações. HUMINT versus SIGINT. Esquerda ou
direita. Cara ou coroa.
Onde vamos?
Tudo depende de mim.
Tudo nos meus ombros.
O fardo de quem comanda.
E agora?
– Claire – digo. – Passe de novo o vídeo da Mel, mas sem som,
por favor.
Os seus dedos movem-se rapidamente e o vídeo torna a aparecer.
Olho fixamente para o rosto triste da Mel, os seus dedos sujos que
seguram o jornal egípcio de hoje, o olhar quase exaurido, os olhos
cansados atrás dos óculos, a imagem com grão.
Uma recordação antiga vem-me à mente.
Depois de o meu pai ter morrido no golfo do México, os seus dois
irmãos – meus tios – decidiram ajudar a minha mãe a criar-me e isso
costumava querer dizer caçadas, beber cerveja quando ainda era
menor e aprender a jogar póquer. Os meandros de dar as cartas,
apostar e, mais importante, os comportamentos que são vitais. Ler o
adversário. Sentir se ele ou ela está a fazer bluff. Tudo se resume a…
Os olhos, rapaz. Olha sempre para os olhos. Se estiverem
gelados, não estão a fazer bluff. Mas se estiverem a piscar, instáveis,
a olhar para baixo, então não têm nada nas mãos.
Os olhos.
O olhar fixo da Mel, firme e regular e, apesar da má qualidade do
vídeo, tudo fica claro.
– Não é a Mel – quase grito. – Aquela não é a minha filha.
Alguns murmúrios da minha equipa e digo:
– David, venha cá. Diga-me o que vê.
O agente David Stahl, dos Serviços Secretos, que esteve ao lado
da Mel durante mais de quatro anos, avança, inclina-se sobre a
Claire, de olhos fixos no ecrã. Tenho uma imensa vontade de lhe dizer
o que vejo, mas preciso de ficar de boca fechada.
David recua.
– Matt, tem razão. Não é a Mel… os olhos…
Digo a todos os outros:
– A Mel tem miopia num olho e astigmatismo no outro. Devido às
lentes de correção que usa, se a olharmos de frente, um dos olhos
parece maior do que o outro.
Bato no ecrã.
– Essa rapariga… parece a Mel, mas não é ela.
Quase sinto tonturas devido à amplitude das emoções por que
passei durante os últimos minutos.
– Os olhos desta rapariga são perfeitos. A minha filha está no
outro local. E vamos lá buscá-la o mais depressa que pudermos.
Capítulo 111
Montanhas de Nafusa, Líbia

Mel Keating está sentada na escuridão, porque há pouco – com os


dedos humedecidos – desenroscou a lâmpada da sua cela, deixando-
a no casquilho. Com os óculos na mão, obriga-se a descontrair,
escutar, pensar e manter-se em silêncio.
Uma vez, o pai disse: Sempre que te sentires encurralada e
desamparada, inspira muito, muito fundo e olha para tudo de novo.
Talvez fiques surpreendida com o que vês.
Começa a chorar.
Pai, estou a fazer o melhor que posso, juro por Deus, pensa. Mas
estou encurralada e estou assustada, e sei o que vai acontecer-me
esta noite, a sério. Sem mais fraudes.
Ajuda-me, por favor.
Algo treme contra a sua nuca.
Mel solta um gritinho, bate na nuca e torna a pôr os óculos.
Aranhas.
Insetos.
Escorpiões.
Que raio foi aquilo?
Tateia na escuridão, com a mão acima dela – Boa, e se houver ali
uma ratazana, preparada para me morder os dedos? – e encontra a
lâmpada ainda quente, enrosca-a e a bendita luz torna a inundar a
cela.
Que raio foi aquilo no seu pescoço?
Não há nada no chão.
Olha para cima. Não parece haver nada a voar.
Mas havia qualquer coisa no seu pescoço. Tem a certeza absoluta
disso.
Mel quer mesmo continuar de pé, mas obriga-se a voltar ao local
onde estava sentada.
Senta-se, com a luz acesa e os óculos postos, e espera.
Do outro lado da porta chegam-lhe conversas em voz baixa dos
homens de Asim, que também usam estes antigos estábulos como
residência.
Um pouco de música.
Um pum-pum-pum abafado enquanto alguém dispara uma
espingarda.
Mel imobiliza-se.
Umas pequenas cócegas na parte de trás do pescoço.
Vai lá com a mão, lentamente, mas não sente nada.
Mas as cócegas continuam.
Levanta-se rapidamente, avança para a parede atrás de si e
estende os braços para uma zona perto do teto. Lambe os dedos e
estica-os diante da pedra e da terra e…
Uma pequena corrente de ar.
Uma ligeira brisa.
Mel começa a escavar freneticamente a pedra e a terra, e esta
começa a cair. Aqui, a pedra está solta e ela cava, cava.
Cai mais terra. A corrente de ar aumenta.
Oh, meu Deus, por favor, pensa.
Dirige-se para a prateleira de madeira, tira tudo o que lá está e
depois liberta a madeira de dois suportes metálicos. Equilibra a
prateleira numa pedra e baixa o pé são com força, partindo-a em
pedaços.
Pega no maior, com uma aresta afiada e denteada no final, e
regressa ao trabalho.
O fio inicial de pedras e terra quase se torna uma inundação.
Outrora, houve ali uma velha chaminé, depósito de água ou uma
passagem que foi fechada.
Mel bate repetidamente com a madeira na abertura, que vai
ficando cada vez maior.
A porta do quarto é tão espessa que tem a certeza de que não a
podem ouvir.
Ótimo.
Vai pôr-se a andar daqui.
Capítulo 112
Base aérea de Sfax-Thyna, Tunísia

Digo à nossa representante da NSA:


– Claire, precisamos de tudo e mais alguma coisa que possa
descobrir sobre esse local.
– Estou a tratar disso, Matt – responde e os seus dedos voam pelo
teclado.
O nosso grupinho está reunido atrás dela, há sussurros, mas ergo
a mão e ordeno:
– Fechem as matracas. A Claire está a trabalhar. Não a
perturbem.
Silêncio, enquanto a Claire murmura para com os seus botões e
alterna entre vários ecrãs e links, e no momento em que me apercebo
do que estava a ver, já passou para outra coisa três links mais
adiante.
– Aqui – anuncia.
«Aqui» é uma fotografia aérea de um terreno de montanha,
pedregulhos e gargantas estreitas, duas zonas planas separadas pelo
que parece ser uma parede de rocha, e deslizamentos.
Sem vegetação.
Nem veículos.
Ou edifícios.
– Claire, qual é a data e origem? – pergunto.
– Desculpe, Matt – responde. – Tem dez anos. Serviços
Cartográficos da Defesa. É o melhor que posso fazer.
– Raios, tem de haver lá mais do que isto.
O Nick pergunta:
– Tentou…
Ela diz, com voz dura:
– Tem uma ideia melhor? Tem? Algum de vós? Alguém se quer
sentar diante do meu teclado?
Merda, penso.
– Desculpe, Claire – digo, querendo mantê-la concentrada. – A
perita aqui é você. Recuem todos. Deixem-na trabalhar.
Solta um suspiro forte de frustração, regressa ao trabalho no
teclado, e vejo:
Linhas de código.
Mapas do Norte de África.
Elementos da órbita global.
Mais linhas de código.
– Preciso de um telefone de satélite, já – diz.
O Nick afasta-se, regressa e dá-lhe o seu telefone de satélite. Ela
pega nele, morde o lábio inferior durante um momento e começa a
premir uma série de números enquanto nós falamos em voz baixa
atrás dela.
– Malta? Adoro-vos, mas calem as putas das matracas, está bem?
Parece que atenderam o telefone e a Claire diz, com voz calma:
– Acesso.
Passam um ou dois segundos e prossegue:
– Bravo, Oscar, Oscar, November, Echo. Um, quatro, nove, quatro.
Oiço um avião descolar nas proximidades e o David a respirar a
meu lado.
– Extensão doze.
Mais alguns segundos e o tom de voz da Claire muda num
instante.
– Olá, Josh, como vão as coisas em Cheyenne? Tens saudades
da luz do dia? Não? Bem, a tua pele é tão clara que provavelmente
entravas em combustão se fosses à praia.
Ri.
O Nick olha para mim e lanço-lhe um olhar para que mantenha a
seriedade e fique de boca fechada.
– Olha, Josh, preciso de um favor. Extraoficial. É…
Cala-se.
– Josh. Josh… vá lá, olha, tenho de te lembrar que me deves um
favor? Tenho? Nunca terias chegado ao décimo segundo nível do
Universal Conflict sem mim.
Espera, esfregando os olhos e a testa.
– Josh, não me faças suplicar… está bem? Não…
À espera.
À espera.
Mel, tão perto, raios… e tão longe, porra.
A Claire endireita-se na cadeira, olha para mim, sorri.
– Josh, perfeito. És um querido… a sério. Muito bem, preciso de
um varrimento completo do local seguinte, todos os ângulos, todos os
espectros.
A Claire lê, lentamente, as coordenadas que nos foram fornecidas
por Ahmad Bin Nayef.
Depois, repete-as.
Espera.
– Obrigada pela repetição, Josh. Tens um Jason que poderá dar-
nos uma bela imagem ao vivo dentro de dez minutos. Não preciso de
mais nada.
Outra pausa.
– Claro que não te acontece nada, eu sei – continua. – O raio da
coisa ainda tem problemas de estabilização. Sei que tens um horário
de calibragem desse pássaro. Fá-lo antes da hora. Diz que é um
teste, mais nada.
Ri de novo.
– Como é que sei isso? Estás a esquecer-te de onde passo o
tempo? Está bem, vou deixar-te trabalhar… e fico a dever-te a valer.
Mesmo a valer.
A Claire desliga o telefone de satélite, devolve-o ao Nick e depois
dobra-se pela cintura.
– Caramba, acho que vou vomit…. uau.
Endireita-se na cadeira, esfrega os olhos e anuncia:
– Muito bem, vamos ver o que é o quê.
O ecrã fica subitamente negro.
Uma linha de letras e números verdes aparece no topo do ecrã
e…
Uma vista aérea nítida de montanhas e vales e cristas sob uma
iluminação verde-clara. A vista desliza lentamente para o cimo do
ecrã e tenho uma sensação estranha na base do crânio. Como
Presidente, temos por vezes uma visão «de bastidores» do que os
nossos sistemas militares e de informações podem fornecer e este é
decididamente um desses momentos. É como se pairássemos quinze
ou vinte metros acima do solo.
Em direto.
De noite.
– Edifícios – diz a Claire. – Aí vamos nós. Houve muitas mudanças
de há dez anos para cá.
– Meu Deus – murmura o Alejandro.
Há seis edifícios em semicírculo, aparentemente de pedra ou
tijolo, de diversas formas e dimensões. Uma área plana em frente,
vultos brancos esbatidos a movimentar-se, uma aparente muralha de
pedra a sul e um troço plano de meseta antes de cair a pique.
– Pessoas – diz ela. – E vejam… uma estrada que sobe da
esquerda. Que é oeste.
Aqueles vultos lá em baixo. Seria a Mel? Aperto as mãos.
– Veículos – continua. – Quatro carrinhas.
– Contei doze cabeças – afirma o Nick.
O Alejandro acrescenta:
– Ao fundo da estrada. Dois guardas, um de cada lado. A proteger
os flancos.
– Claire, está a gravar isto, certo? – pergunto.
– Hum-hum – responde.
Olho para os edifícios: parecem brilhar devido às funcionalidades
de visão noturna do satélite de vigilância que paira lá em cima.
Seis edifícios.
Mas onde está a Mel?
Provavelmente, podemos atingir um edifício, talvez dois, antes de
sermos dominados. Mas havendo tiroteio e ataque, o Asim terá um
plano para fazer desaparecer a Mel por artes mágicas? Ou matá-la
antes de ser resgatada? Temos tempo para manter sob vigilância
todos os seis edifícios para sabermos em qual se encontra a Mel?
Onde…
– Que é aquilo? – pergunto.
– O quê? – inquire a Claire.
Inclino-me sobre ela e bato levemente no ecrã.
– Precisamente ali. Aquilo.
A Claire minimiza a transmissão ao vivo e passa para uma
gravação de vídeo.
Fá-la recuar, amplia-a e aumenta-lhe a nitidez.
– Macacos me mordam – exclama o David.
Do edifício maior, que parece ter sido construído mesmo na base
de um pico rochoso, uma linha reta parece estender-se até à laje
plana e suja no meio do recinto.
E no final da linha, estendendo-se até à entrada do edifício, foi
raspada uma forma em ponta de seta.
Alguém fez uma seta na terra, apontando diretamente para o
edifício central.
Como que com um pau ou um pé a arrastar.
A minha filha inteligente.
Bom trabalho, Mel.
– A Mel está ali – digo. – Naquele edifício. Minha gente, está na
hora de irmos trabalhar.
QUINTA PARTE
Capítulo 113
O raide a Nafusa

Após uma hora de briefing, planeamento e mais planeamento,


saímos pela noite numa linha que se desloca rapidamente, ao longo
da pista, até ao helicóptero Black Hawk do Exército tunisino, que nos
aguarda com os rotores já em movimento. Estamos todos equipados
e armados, bastante semelhantes relativamente ao que levamos, mas
cada um de nós tem as suas pequenas bizarrias e preferências
quanto ao modo como nos preparámos.
No que se refere a armas, trago uma espingarda Colt M4 de 5,56
milímetros totalmente automática com uma mira de infravermelhos e,
num coldre no flanco, uma pistola SIG Sauer P226 de 9 milímetros;
carregadores suplementares para cada uma das armas estão metidos
em bolsas. Na cabeça, tenho um capacete curto de nível III, com um
dispositivo de visão noturna ATN PVS14 elevado. Também tenho
vestido um fato blindado Point Blank de nível II e, no meu colete
tático, tenho outro equipamento variado: garrafas de água, IFAK (kit
individual de primeiros socorros), gaze de combate QuickClot para
controlo de hemorragias, pilhas sobresselentes, uma faca Ontario
MOD Mark, uma ferramenta multiusos, e uma pequena mochila com
mais alguns artigos fundamentais.
Uma coisa engraçada: o equipamento é pesado e volumoso, mas
voltar a usá-lo desperta uma memória muscular, e não me sinto
carregado enquanto avanço pelo pavimento desta pista.
Acho que podia caminhar toda a noite.
Todos temos rádios manuais de banda única Motorola SRX 2200,
com a frequência já inserida, e auscultadores Peltor Com Tac para
podermos falar uns com os outros no terreno.
Esta noite, as comunicações vão ser simples, apenas os nomes
próprios, e o piloto do nosso helicóptero Black Hawk responde pela
alcunha que os SEAL lhe atribuíram: Joe.
KISS: Keep it simple, stupid.
A Claire leva uma arma extra, uma espingarda de ferrolho
Remington .308 com uma mira montada, uma vez que será a nossa
sniper esta noite. Após uma discussão breve e acalorada, no
barracão de manutenção, verificou-se que era melhor atiradora do
que qualquer de nós.
Já passaram duas horas desde o pôr do sol. Em tempos normais,
avançaríamos às duas ou três da manhã, a melhor hora para atacar,
pois há um mínimo de bandidos despertos e alerta, mas não estamos
em tempos normais. Sei onde se encontra a Mel e estou a correr um
risco, indo mais cedo.
Perto do helicóptero, pedaços de terra e gravilha são atirados
contra nós e recordo as últimas horas no nosso último alojamento.

Olhando para o ecrã do portátil da Claire na esperança de


determinar um meio de entrada e saída, o Joe apontou para uma
pequena zona a oeste do recinto e disse:
– Este uade aqui. Posso deixar-vos lá. Fica a cerca de um
quilómetro e meio da casa do Asim. É suficientemente estreito e fica
cerca de mil metros mais abaixo. Isso deve camuflar suficientemente
o ruído para não serem detetados.
Acenei com a cabeça, e retorqui:
– Aqui. Esta zona plana diante dos edifícios, logo após aquele
muro baixo de pedra… assinalamo-lo com bastões fluorescentes IV
quando chegar o momento da exfiltração. Esteja preparado para nos
recolher menos de quarenta e cinco minutos depois de nos ter
deixado. Não podemos ficar lá mais tempo.
– Oh, quem me dera ter um atirador de porta.
O Nick, o Alejandro e eu mantemo-nos delicadamente calados.
Estamos contentes por ele não ter um atirador de porta porque não
treinámos com nenhum e não sabemos que qualidade teria. Seria o
diabo chegarmos à zona de exfiltração e sermos ceifados por fogo
amigo.
– Estes dois postos de guarda – disse o Nick. – O Alejandro e eu
saltamos à frente e eliminamo-los antes da última fase.
Olhei para o relógio.
Estava na hora.
– Matt, para que não haja confusão: regras de abordagem? –
perguntou o David.
– Trata-se de uma operação de resgate. Mais nada. Não me
interessa se encontrarmos documentos ou pilhas de discos rígidos ou
planos para uma bomba suja. A Mel é o nosso único objetivo. Não
vamos trazer prisioneiros. Nem cadáveres.
Todos moveram a cabeça em assentimento e apercebi-me da
composição deste estranho grupo: um piloto das Forças Especiais
tunisinas, dois SEAL, uma operacional da NSA, um agente dos
Serviços Secretos e um antigo Presidente. De facto, aquele era um
estranho grupo de irmãos e uma irmã.
E acrescentei:
– Ali, excetuando a Mel, não há inocentes. Armados ou
desarmados, a fugir ou avançar para nós, matem-nos a todos.

À medida que me aproximo do helicóptero Black Hawk, sou


assaltado por um espasmo de dúvida, mesmo no último momento.
Estou a fazer o que é certo? É mesmo uma missão de resgate ou
uma tentativa, por parte de um pai irado e humilhado, de obter
vingança por causa do que aconteceu à sua filha?
Um telefonema rápido meu, do Nick ou do Alejandro para o JSOC,
o Comando Conjunto de Operações Especiais, dizendo-lhes onde se
encontra a Mel faria com que os profissionais entrassem em ação.
Mas esse é o ponto fundamental.
Entrar em ação.
Ao contrário do que alguns programas do Canal HISTÓRIA
possam ter levado os espectadores a acreditar, as Forças Especiais
não estão armazenadas algures, equipadas e de prontidão, presas
por uma trela, prontas a avançar quase de imediato. Não, teria de
haver ativação, planeamento, preparação, telefonemas ao longo da
cadeia de comando e, quando o sol nascer amanhã, talvez – com
sorte – uma unidade esteja a caminho das montanhas de Nafusa.
Demasiado tarde.
Um a um, subimos para o helicóptero, ocupamos os nossos
lugares nos assentos de lona. Por cima de nós está suspenso um
conjunto de auscultadores com microfone e eu tiro o capacete, ponho
o conjunto e digo:
– Joe, é o Matt. Estamos todos a bordo.
– Obrigado, Matt – responde, e o chefe da tripulação do
helicóptero fecha a porta de correr, sorri-nos de polegar erguido, e
esperamos.
E esperamos.
E esperamos.
– Joe, que se passa? – pergunto através do intercomunicador.
– Ah, senhor Presidente, um pequeno problema – responde.
– Qual é?
Um ligeiro silvo de estática.
– Parece que a torre não está contente por este ser um voo de
treino noturno não comunicado. E, neste momento, há um coronel a
correr para cá para nos deter.
O Nick Zeppos é o único, além de mim, que está a usar o
equipamento de comunicações do Black Hawk e os seus olhos
cruzam-se com os meus; parece preocupado.
– Joe, que pensa fazer?
Ri-se.
– Penso num problema de comunicação, mais nada.
O tom e o ruído dos motores do Black Hawk aumentam e há uma
ligeira oscilação enquanto descolamos e nos embrenhamos na noite,
para leste.
Mel, penso, só mais uns minutos.
Só mais uns minutos.
Capítulo 114
Mel Keating inspira rapidamente e contempla os seus progressos.
Trabalhando com o pedaço denteado da prateleira de madeira,
alargou tanto o buraco que consegue fazer passar por ele a cabeça e
os ombros, mas tem as mãos com bolhas e cortes.
E depois?
Bebe um longo gole de água engarrafada quente e depois põe-se
de pé sobre o monte de terra e pedras para poder trabalhar mais
acima com a madeira.
Cava, cava, cava.
Raspa, raspa, raspa.
Calhaus e terra caem lá de cima, metendo-se no seu cabelo e na
sua boca e continua a cavar com frenesim.
Raspa.
Cava.
Mel espera.
Que é isso?
Vozes, do outro lado da porta.
A sua respiração acelera.
Se a porta for aberta e alguém entrar, que pode dizer? Que de
súbito se sentiu inspirada pela carreira da mãe e decidiu iniciar uma
escavação arqueológica nas últimas horas da sua vida?
Não, pensa, saltando do monte recente de terra e pedras e
dirigindo-se para a porta.
Se a porta se abrir, vai pegar neste pedaço de madeira denteada e
enfiá-lo na garganta do primeiro tipo que entrar.
Sem súplicas, sem choros.
Saindo como uma durona.
Espera.
Já não há vozes.
O som fraco de música a tocar no rádio.
– Está bem – sussurra.
De volta ao monte de terra.
Cava, raspa, cava…
O pedaço de madeira desliza para cima inesperadamente e uma
lufada de ar fresco desce e acaricia-lhe o rosto sujo e transpirado.
Conseguiu abrir uma passagem para o exterior!
Mel tosse, limpa o rosto e regressa rapidamente ao trabalho.
Tão perto.
Tão, tão perto.
Mais pedras e terra jorram e caem.
Estica-se e…
Cai.
O seu tornozelo direito grita-lhe e a dor irradia pela perna e a
espinha acima.
Mel rola, cerra o punho, tenta inspirar fundo.
Levanta-te, pensa. Levanta-te.
És filha de duas pessoas duras e determinadas.
Prova-o.
Mel levanta-se, saltitando sobre o pé bom, agarra no pedaço de
madeira e recomeça a martelar.
Nada a vai deter agora.
Nada.
Capítulo 115
Os primeiros cento e cinquenta quilómetros da nossa viagem são
sobre águas calmas, o famoso golfo de Sirte, e o Joe diz calmamente
pelo intercomunicador:
– Estamos sobre terra firme, senhor Presidente. Entrámos no
espaço aéreo líbio.
– Entendido, Joe – respondo e olho para os meus camaradas
guerreiros dentro do Balck Hawk. Tal como em tantas outras missões
em que participei, cada uma das pessoas que aqui se encontra está
no seu próprio mundo. Não há entusiasmos, nem discursos, nem
palavras de incitamento épico. Estamos todos sentados em silêncio,
alguns bebem água das garrafas, outro olham em frente ou tentam
dormir.
O rugido regular dos motores, o interior iluminado a vermelho, as
correias e as redes e o equipamento – tudo me é tão familiar. Estive
inúmeras vezes dentro de Black Hawks como este, tanto em missões
de treino como em operações reais, e é como estar com um velho
amigo, salvo numa coisa.
Esta não é uma operação oficial ou um exercício de treino.
Isto é a sério. Vamos resgatar a minha filha.
E embora um falhanço num treino ou numa operação real possa
ser esperado, ou até desculpado, não é assim esta noite.
Nenhum falhanço.
Não pode acontecer.
Não o vou permitir.
Aceleramos noite dentro, sobre o deserto pedregoso e a paisagem
noturna da Líbia.
Um crepitar nos meus auscultadores.
– Dois minutos, senhor Presidente – anuncia o Joe. – Dois
minutos.
– Entendido. – Tiro os auscultadores, reajusto os meus
auscultadores Peltor ComTac e mostro dois dedos ao resto da minha
equipa.
– Dois minutos – exclamo. – Dois minutos.
Pomos os capacetes, baixamos o equipamento de visão noturna,
ligamo-lo e, instantaneamente, tudo o que se encontra dentro do
helicóptero tem um brilho verde fantasmagórico. Grito:
– Avancem com firmeza, avancem depressa, vamos despachar
isto!
O ângulo de abordagem e velocidade do Black Hawk mudam e o
chefe da tripulação junta-se a nós, liberta o fecho da porta corrediça
próxima e abre-a.
O ar frio da noite entra e o solo aproxima-se, com as paredes de
rocha perigosamente perto e ali está o uade estreito que o Joe
escolheu. A velocidade do helicóptero muda de novo, baixamos,
baixamos, baixamos…
E saímos, um a um.
O Nick Zeppos é o último e acotovelamo-nos, com as cabeças
baixas, enquanto o Black Hawk sobe, afastando-se, e ficamos sós.
– Verificação de comunicações – digo. – Fala o Matt.
– Claire.
– Nick.
– Alejandro.
– David – diz a última voz.
– Todos recebidos, ótimo – digo, olhando em todas as direções,
verificando os rochedos e alcantilados planos acima de nós.
Nada.
– Nico e Alejandro, é a vossa vez. Seguimo-los dentro de dez
minutos.
– Entendido – responde o Nick.
– Entendido – diz o Alejandro.
Sobem pelas rochas como jovens cabras montesas, saltando para
cima e em frente, e o aperto no meu peito abranda um pouco.
Chegámos sem problemas. Sem tiros, nem granadas de morteiro
a cair, nada. O ruído do Black Hawk é um zumbido distante. Hoje não
há luar, mas o céu está tão limpo e frio que a própria luz das estrelas
nos proporciona uma visibilidade bastante boa, mesmo sem os
nossos óculos de visão noturna.
Olho para o meu relógio e os seus algarismos brilhantes.
Passaram dez minutos.
– Vamos embora, minha gente – digo, e começamos a subida.

Ao fim de mais dez minutos de escalada e marcha, parando de


poucos em poucos minutos para observar o que nos rodeia,
chegamos à estreita estrada de terra que sobe até ao recinto da Asim
Al-Asheed. Todos nos ajoelhamos a coberto de rochas e rochedos
próximos.
Dou uma volta de 360 graus para observar o terreno.
Tudo calmo, sem vida.
A M4 – com o travão de segurança desligado e uma bala na
câmara – está firme nas minhas mãos enluvadas.
Os meus auscultadores continuam em silêncio.
Um pouco mais acima, na estrada, o Nick e o Alejandro estão a
trabalhar e sei bem que não os devo incomodar. Olho para o cimo da
estrada íngreme e estreita.
Há uns dias, a Mel veio para cá, viu estas mesmas paredes de
rocha, respirou este mesmo ar de montanha.
Tão perto, raios.
Os meus auscultadores despertam.
– Matt, fala o Nick.
– Força, Nick.
– Matt, tudo bem aqui. À espera do Alejandro.
E é tudo. Um homem ou um adolescente, a sonhar com a glória e
a jihad e o céu, sentado na terra fria, a fazer o seu turno de guarda a
um dos terroristas mais procurados do mundo, foi abatido com uma
bala silenciada de 5,56 milímetros entre os olhos.
– Entendido, Nick – sussurro. – Bom trabalho.
Próximo: Alejandro.
Esperamos.
Nada se mexe, nada grita na noite fria.
Apenas tudo banhado em luz verde fantasmagórica.
Espero.
Olho para o relógio.
Passam minutos lentos.
– Nick, fala o Matt. Situação?
– Matt, fala o Nick. À espera do Alejandro.
Estamos todos.
Baloiço-me de um pé para outro, com a impaciência a roer-me.
Deixa-o fazer o seu trabalho, penso.
Mas há tantas coisas que podiam ter corrido mal no curto espaço
de tempo desde que aterrámos.
O Alejandro a ser emboscado.
Ou a tropeçar e cair numa fenda.
Ou a não encontrar o guarda, que mudou de posição.
Que poderá estar a ver-nos agora.
A comunicar ao Asim, através do seu rádio portátil, que há um
grupo armado a avançar na sua direção.
Primo o botão de Transmitir.
– Alejandro – sussurro. – Fala o Matt. Situação?
Não há resposta.
Repito:
– Alejandro. Fala o Matt. Situação?
Nada.
Tenho a sensação de que tudo está a fugir.
Capítulo 116
Jiang Lijun levanta os olhos quando a porta é aberta e Faraj entra,
trazendo uma pequena lanterna na mão direita.
– Está na hora – diz Faraj, aproximando-se, ajoelhando-se para
abrir os cadeados que prendem as correntes de Jiang à cadeira.
– Porquê tão tarde? – pergunta este.
– O Asim teve de esperar pela sua refeição e depois quis ficar
algum tempo a sós com o motorista, Taraq. Está a planear deixar toda
a gente e partir esta noite, mais tarde, depois de ter concluído a sua
tarefa.
Jiang esfrega as mãos e tornozelos e levanta-se.
– Que tarefa?
Faraj recua, atira as correntes e cadeados para o chão de terra.
– Quer que o vejas matar a Mel Keating para que possas
regressar a Pequim e dizer aos teus amos que encontraste um
verdadeiro homem de Deus, que não pode ser subornado nem
tentado pelas riquezas desta vida. Depois, planeia usar uma sósia
nos anos vindouros, difundindo um vídeo aqui e ali, para atormentar o
Matt Keating fazendo-o pensar que a filha ainda está viva. E num
certo momento, daqui a umas décadas, após anos de angústia mental
do Keating, o meu primo planeia contar a verdade e revelar a
localização dos ossos da Mel Keating. O último capítulo da sua
vingança.
Jiang avança.
– Mas… não podes permitir isso.
Faraj faz um gesto com a lanterna.
– E não vou permitir. Vem daí. Eu trato do meu primo e depois
vamos buscar a Mel Keating.
Jiang pensa rapidamente.
– A minha pistola. Devolve-ma, por favor.
Faraj abana a cabeça.
– Já tens sorte por eu te deixar ficar com o colete antibala. É tudo
o que vais precisar.
Jiang segue Faraj para a escuridão do recinto, feliz, sim, por
conservar o seu colete antibala e também por saber que,
dissimulados no colete, há diversos artigos que se vão revelar úteis
nos próximos minutos. Felizmente, estes bravos e estúpidos
guerreiros não se deram ao trabalho de o revistar a fundo no
momento da captura.
Mesmo assim, pensa, gostava de ter a sua pistola QSZ-92 de 9
milímetros no flanco.
Mas irá em frente.
Em termos de planeamento, os desejos não contam.

Demoram apenas alguns minutos a chegar a um edifício grande


no centro do recinto. Está uma noite estrelada e há duas fogueiras a
tremeluzir em velhos barris de petróleo, e Jiang abana a cabeça ao
ver o enorme descuido dos guerrilheiros de Asim. Não há a menor
disciplina.
À frente, Asim exclama:
– Ah, primo. Fico contente por ver connosco o nosso amigo
chinês. Por favor, venham cá. Que noite histórica!
Asim está diante de uma pesada porta de madeira e Jiang inspira
de novo o ar frio da montanha. Uma noite encantadora para fazer o
que tem de ser feito e, acima de tudo, viver.
Jiang permite-se ter esperança de sobreviver a esta noite e decide
fazer uma nova tentativa, apesar do que Faraj ofereceu.
– Asim – diz –, estou contente uma vez mais por te ver… e, uma
vez mais, tenho de perguntar… vais libertar a rapariga e entregá-la à
minha guarda? Não será feito nem proposto qualquer pagamento.
Voltarei para junto dos meus superiores, em Pequim, e falar-lhes-ei
de ti, não só um homem de Deus, mas também um homem de
misericórdia.
Na luz ténue, Jiang vê o rosto de Asim abrir-se num sorriso e este
dizer algo a um dos homens que guardam a entrada, e os dois riem.
Jiang pensa: Bem, valeu o esforço.
E Asim responde:
– Foi uma boa tentativa, mas não temas, Jiang. Vais sobreviver a
esta noite. Juro-te. Vocês e o Ocidente esquecem por vezes a
importância de Deus, dos juramentos, da autodisciplina. Como o meu
querido primo Faraj.
Faraj parece preocupado e Jiang recua cautelosamente um passo.
E Asim continua.
– O Faraj é leal, inteligente e um bom combatente para se ter ao
lado, mas é sempre tentado pelas tecnologias. Como os drones. Ou
os refrigeradores a bateria para bebidas proibidas. Ou dispositivos de
escuta.
Salta rapidamente para junto de Faraj e passa-lhe um braço pelos
ombros.
– Mesmo que não se precise de nenhuma dessas tecnologias.
Como quando um bom homem com um bom ouvido e que está a
escutar através de uma janela aberta te pode dizer tudo o que
precisas de saber.
Faraj faz um movimento rápido, mas Asim é mais rápido, tira uma
faca de debaixo do colete e mergulha-a no peito do primo.
Capítulo 117
E então, como uma voz vinda do além, o Alejandro comunica.
– Matt, fala o Alejandro – diz.
– Alejandro, fala o Matt. Força.
E ele acrescenta, calmamente.
– Desculpe a demora, Matt. O meu gajo deixou o posto, foi tirar
água de um joelho. Apanhei-o a meio da operação.
Sou invadido por um enorme alívio e digo:
– Nick, Alejandro, avancem. Encontramo-nos nos pontos de
partida.
Nós os três levantamo-nos em simultâneo e retomamos a marcha,
sendo o único ruído audível o rangido das nossas botas na estrada de
terra, enquanto subimos. Não nos apressamos, mas também não
vamos devagar. Apenas metódicos e perfeitos olhando em volta,
vendo e avaliando, sempre.
A estrada alarga. Há rochas e pedregulhos em grupos, de cada
lado. O terreno torna-se plano. Deslocamo-nos para a direita,
avançando e contornando as rochas e seixos.
Ergo uma mão.
Paramos.
Vozes.
Avançamos mais devagar, espalhando-nos.
Olho através de um hiato nas rochas, e os edifícios ficam à vista.
Dois barris de petróleo a arder.
Homens armados a deambular, em pequenos grupos de dois ou
três.
Risos.
A grande lona que cobre quatro carrinhas é agitada pela brisa,
provocando o som de algo a bater. Junto-me aí em silêncio ao Nick e
ao Alejandro, enquanto o David e a Claire continuam a andar e vão
por detrás do muro baixo de pedra, em direção ao edifício central.
Esse edifício, perto da vertente rochosa, é agora claramente
visível.
A Mel está ali, penso.
A minha filha está ali.
Precisamente ali.
Apenas mais uns segundos.
Tudo o que se passou durante estas últimas semanas, desde o
rapto, ao assassínio do seu namorado, Tim, ao horror sinistro daquele
vídeo da decapitação e as sugestões esperançosas de que estava
viva, até à minha própria viagem para aqui – todas essas recordações
e pensamentos rugem dentro de mim enquanto descanso neste solo
frio e pedregoso na Líbia.
Agora, a menos de cinquenta metros de distância, a minha filha
espera.
Olho para o relógio.
Está quase na hora.
Capítulo 118
Mel Keating inclina-se na sua cela, tossindo e engasgada depois
de uma grande quantidade de terra a ter atingido na boca e no nariz.
Levanta-se, agarra na sua última garrafa de água, bebe um gole.
Está quase.
Mel rolha a garrafa de água, mete-a debaixo da camisa e começa
a tentar sair pelo buraco.
Passa a cabeça.
Ombros.
Contorce-se.
Ombros de lado, entrando, entrando…
Para.
Obstruída.
Raios!
Contorce-se para voltar atrás, quase perdendo os óculos ao fazê-
lo – raios, outra vez! – e está de novo no chão, ofegante.
Pega de novo na tábua.
Escava um pouco mais.
Caem mais pedras.
Aí está!
Deve chegar.
Tem de chegar!
Mel volta atrás, fica de pé no pequeno montículo de terra.
Vozes, que vão ficando mais altas e mais próximas.
Olha pelo buraco e convence-se de que vê o céu noturno e as
estrelas lá no alto.
Liberdade.
Alguém começa a abrir a fechadura da porta.
O tempo acabou.
Capítulo 119
Asim conduz Jiang Lijun para o edifício de pedra de um só andar,
contente por ver o funcionário dos serviços de informações chineses
calado e humilde. Este estrangeiro teve durante demasiado tempo a
faca e o queijo na mão, entregando dinheiro e armas e fornecimentos
quando lhe convinha, a ele e aos seus amos, mas agora é Asim que
detém o controlo. Vai mostrar a Jiang a mulher mais procurada do
planeta – Mel Keating, a filha do Presidente – e mostrará a Jiang a
força da sua mão e da sua lâmina.
E depois o chinês será libertado.
Asim mentiu muitas vezes ao longo dos anos, durante a sua jihad,
mas pelo menos desta vez diz a verdade.
– Vem, vem, e dentro de muito poucos minutos serás livre.

Asim passa pelos antigos estábulos, cheios de provisões e armas


empilhadas, iluminados a partir do teto por lâmpadas isoladas e por
dois dos seus guerrilheiros, agachados, a bebericar chávenas de chá
– franze o sobrolho ao recordar quanto Faraj gostava do álcool dos
infiéis – e estaca junto à porta fechada à chave da cela de Mel.
Outro dos seus guerreiros armados baixa a cabeça e afasta-se
para o lado.
Asim olha para Jiang. O rosto deste funcionário dos serviços de
informações chineses é inexpressivo.
Asim tira a chave do bolso, gira-a na fechadura e empurra a porta
para a abrir.
Ela para.
Empurra-a de novo.
Range um pouco e torna a parar.
Que se passa?, pergunta-se Asim.
– Tu – diz a um guerreiro. – Ajuda-me a abrir esta porta.
O guerreiro põe a AK-47 a tiracolo e junta-se a Asim empurrando a
porta para a abrir. São necessários longos segundos e, depois, algo
se solta e a porta gira para dentro.
Asim vê rapidamente o que aconteceu.
Mel inseriu um pedaço de madeira quebrada por debaixo da porta,
bloqueando-a.
– Não resultou, pois não, Mel? – pergunta, ao entrar.
A cela está vazia.
Ela não está lá.
– O quê? – grita, estupefacto.
Olha em seu redor e vê um monte de terra, algo a serpentear e
dois pés a desaparecerem por um buraco.
Capítulo 120
Entalar aquele pedaço de madeira sob a porta deu a Mel alguns
segundos preciosos e sim, funcionou, funcionou, funcionou.
Dá pontapés, volta a usar os cotovelos e a cabeça passou, mãos
para cima, e já está na parte de rocha e terra do telhado. Contorce-se
e sente-se com um raio de uma rolha a saltar de uma garrafa de
champanhe.
Mel rola para o lado, baixa-se, inspira rapidamente várias vezes.
Fora.
E agora?
Aqui, a montanha é quase uma mera escarpa.
E a estrada está fora de questão. Podem detetá-la com demasiada
facilidade. E aquela parte plana além, com o muro de pedra: não,
demasiado exposta.
Há uma confusão de rochas e pedregulhos quebrados perto do
outro lado do recinto e parece mais fácil chegar lá. Muitos locais para
se esconder e manobrar. Tem a garrafa de água enfiada nas roupas e
ainda traz nos pés os chinelos daquela doce idosa que a recebeu.
Mel rasteja até à beira do telhado, espreita para baixo, não vê
ninguém a deslocar-se por ali, embora isso vá mudar em menos de
um ou dois minutos, quando Asim sair a correr e começar a pôr tudo
em alvoroço.
Mexe-se, baixa-se tão silenciosamente quanto lhe é possível,
suspensa, com as mãos no afiado beiral de pedra do telhado.
Cai ao chão, contente por se ter lembrado no último minuto de
aterrar com o pé são e não com o magoado.
E, em seguida, começa a correr para a liberdade.
Capítulo 121
Jiang Lijun avança para dentro da cela. À sua frente, está o
guarda com a AK-47 e, à frente deste, Asim esticando as duas mãos
para cima, esforçando-se por agarrar os pés de Mel Keating que
desaparecem rapidamente.
Jiang vê isso tudo e age rapidamente.
Metendo a mão por debaixo do colete e da camisa, passando por
duas barras energéticas e um frasco de água, agarra num tubo de
cerâmica, invisível aos detetores de metais.
Puxa-o para fora, encosta a extremidade mais grossa à base do
crânio do guarda de Asim, puxa rapidamente uma argola de plástico
no final de um cabo de nylon.
Um ruído surdo.
A arma de tiro único dispara uma bala de calibre 32 contra o
crânio do homem, matando-o instantaneamente, e ele cai.
Asim começa a virar-se.
Jiang puxa pela AK-47 do morto.
A bandoleira está emaranhada.
Asim não diz palavra, leva apenas a mão ao colete e tira a faca.
Jiang liberta a AK-47, mas está na posição errada, com a ponta do
cano virada para si e a coronha para Asim, que vem na sua direção.
Um dos formadores de Jiang, há muitos anos:
Corre para uma arma de fogo, foge de uma faca.
Jiang bate com força com a extremidade da coronha de madeira
da AK-47 na testa de Asim, que cambaleia para trás e cai, corre para
fora da cela, fecha a porta, desejando ter a chave.
Perde dois segundos à procura de qualquer coisa para prender a
porta com uma corda ou bloqueá-la.
Nada.
Baixa a cabeça, põe a AK-47 ao ombro, começa a percorrer o
corredor, passando pelos estábulos, os mantimentos empilhados, os
dois homens armados que bebericam chá e felizmente o ignoram.
Sai para o ar frio da noite.
Parece que alguém levou o corpo de Faraj, e Jiang fica contente
com isso, porque Faraj é – era – um tipo esperto que descobriu o que
acontecera de facto quando a família de Asim foi morta.
Ainda bem que morreu.
Mas onde está Mel?
Não iria para a estrada. Demasiado longe, demasiados homens a
vaguear por ali e ela é magra e pequena e destacar-se-ia, uma vez
que não leva uma arma.
Ali.
Para leste, onde há uma confusão de pedregulhos e rochas
irregulares, em direção a uma encosta.
Jiang avança.
Também tem um transmissor-recetor escondido debaixo do colete.
Assim que apanhar Mel e ligar o interruptor, uma equipa
contratada virá, com um helicóptero, buscá-los para os levar à
Embaixada chinesa, e deixá-los em segurança.
Tira mais um instrumento, um pequeno óculo de visão noturna,
leva-o ao olho esquerdo e…
Lá está ela, tal como pensara.
A dirigir-se para as rochas.
Capítulo 122
Depois das semanas de medo, tristeza e terror, estou no local
certo, estou na posição adequada. Estou com o Alejandro e o Nick
perto das quatro carrinhas, vigiando o lado ocidental do edifício onde
a Mel está encarcerada.
Os dois barris de petróleo continuam a arder, com três ou quatro
homens armados reunidos à sua volta, tentando manter-se quentes.
Outros homens entram e saem dos três edifícios de pedra próximos,
todos armados.
Aqui não há inocentes, penso, a não ser a minha filha.
– Matt, fala o David – diz-me pelo rádio.
– David, escuto.
– A Claire e eu estamos em posição – murmura. – Para que
saibam, há atividade junto à porta principal. Tangos armados a entrar
e sair.
– David, a Mel está visível?
– Negativo, Matt. Não há sinal da Mel.
– Entendido. Equipa, liguem-nos.
Todos ligamos os nossos lasers infravermelhos, que são invisíveis
a olho nu mas visíveis com os nossos óculos de visão noturna e
letalmente úteis para localizar os nossos alvos. Instantaneamente,
cinco feixes finos de luz brilham e escolhem como alvo cinco homens
armados perto do edifício.
– Avançamos aos três a partir de… agora.
«Entendido» é-me repetido quatro vezes, por quatro vozes
diferentes.
– Três – digo.
A minha filha Mel, com cinco ou seis anos, a guinchar porque caiu
num ninho de formigas-de-fogo, correndo para mim de braços
esticados: «Papá, papá, papá.»
– Dois.
A Mel aos doze anos, a cair de um cavalo quando estava a ter
lições, jazendo imóvel no chão durante uns longos segundos frios até
eu a ver começar a mexer-se, enquanto atravesso o recinto de terra.
– Um.
A Mel a nadar no lago Marie com densas nuvens escuras no
horizonte, um raio atinge uma árvore do outro lado e eu a entrar numa
canoa e a remar na sua direção, com ela a rir quando me aproximo:
«Papá, qual é o problema?»
– Vamos.
Atacamos numa emboscada tradicional em L: a Claire e o David
eliminam qualquer ameaça junto à porta principal; nós, atuais e antigo
SEAL, a varrer toda a gente que se encontra na zona de morte a
oeste do edifício. Ouvem-se baques surdos porque todos usamos
silenciadores nas nossas M4.
Caem cinco homens e depois mais dois, e o David diz-me pelos
auscultadores:
– Porta principal livre, Matt.
– Entendido – respondo e o Nick e o Alejandro juntam-se a mim e
avançamos rapidamente pelo campo aberto de terra e pedras, com a
Claire e o David a darem-nos cobertura enquanto nos aproximamos
da porta.
Em termos técnicos e morais acabámos de matar sete homens e a
única coisa em que consigo pensar é: Antes vocês do que eu e a
minha equipa e a minha filha.
Chegamos junto à pesada porta de madeira com grandes
dobradiças e o Alejandro põe-se ao trabalho rapidamente e
ignoramos os dois corpos estendidos no chão.
Insere uma carga de arrombamento na fechadura e viramo-nos
enquanto ela estala e brilha e, depois, o Nick agarra no puxador da
porta e abre-a.
O Alejandro está mesmo atrás do Nick e atira uma granada
atordoante lá para dentro e depois outra e o forte estrondo parece
explodir pela porta da entrada.
Quem quer que ainda se encontre vivo nos outros edifícios vai sair
a correr, sem dúvida, para investigar, e será ceifado pelo David e pela
Claire.
O Nick entra, roda para esquerda.
– Livre!
O Alejandro roda para a direita.
– Livre.
Avanço por um corredor de pedra, sentindo o odor de foguete
rebentado proveniente das granadas atordoantes, passo por pilhas de
material de guerra, paletes de armas, uma ou duas lâmpadas que
ainda brilham depois da explosão das atordoantes e…
Um homem sai de um dos estábulos, piscando os olhos,
arrastando uma AK-47.
O treino, a experiência e a recordação regressam todos ao mesmo
tempo.
Dou-lhe um tiro na testa e dois no peito.
Giro à esquerda. Um cobertor, rações, uma chaleira.
– Livre – grito.
O Nick e o Alejandro seguem-me e mais três balas são disparadas
perto e o Nick anuncia:
– Livre!
Há outra porta lá à frente.
Entreaberta.
O Alexandro bate-lhe com o ombro e a porta abre-se de par em
par e merda merda merda. Grito «Mel» ao ver um corpo no chão, com
sangue em redor da cabeça, pensando, Demasiado tarde, demasiado
tarde, oh, merda, chegámos demasiado tarde!
O Nick ajoelha-se e diz:
– Matt, é um tipo. Não se preocupe.
Olho rapidamente à minha volta.
Terra a um canto.
Avanço, olho para cima.
Uma chaminé ou calha ou coisa assim foi desimpedida.
A Mel esteve aqui?
Ou foi levada daqui para fora?
O Alejandro chama-me:
– Senhor, aqui.
Aponta para uma pedra lisa, com cerca de um metro de largura e
altura, que faz parte da parede afastada.
Foram lá pintados números e letras.

MK
603

– As suas iniciais, talvez… mas os números – comenta o Nick.


– Seis zero três. O código de zona do New Hampshire.
Toco nas letras. São pegajosas. Fruta ou baga ou algo
semelhante.
A minha filha tão inteligente.
– Parece fresco – anuncio. – Rapazes, ela esteve aqui, esteve
aqui há pouco. Vamos embora.
Avançamos em fila indiana, com o Nick à frente, eu no meio e o
Alejandro a fechar a retaguarda.
– Claire, David, fala o Matt.
– Escuto – respondem ambos.
– A Mel esteve aqui, mas parece que pode ter fugido – continuo. –
David, bate o muro de pedra para sul. O Nick e o Alejandro baterão
os edifícios e a zona a oeste. Eu vou para leste, para a zona
pedregosa. Claire, sobe para o telhado deste edifício e vigia.
Um coro de «Entendido» e corremos lá para fora. Separamo-nos
para encontrarmos a minha filha e penso de novo: Miúda esperta!
Mas por favor, meu Deus, não demasiado esperta.
Temos de a encontrar em poucos minutos, antes de o nosso piloto
tunisino regressar para nos buscar, porque não entro naquele Black
Hawk sem ela.
Capítulo 123
Depois de acontecer, cerca de trinta segundos depois de ter
saltado do telhado dos antigos estábulos, Mel Keating pensa que é a
sua maldita visão noturna miserável que lixa tudo. Não chegou longe
quando choca com alguém que se desloca na escuridão e tenta virar-
se e continuar a andar, mas o tipo diz qualquer coisa.
Ignora-o, continua a andar.
Mais uma explosão de árabe e depois, porra porra porra, um
segundo tipo armado junta-se ao coro e os dois agarram-na,
apalpam-na. Depois, um a seguir ao outro, apercebem-se de quem
capturaram.
Ela debate-se, contorce-se, tenta dar-lhes pontapés, mas eles são
fortes e começam a arrastá-la de novo para os edifícios e um começa
a gritar: «Alshaykh! Alshaykh! Alshaykh!»
E tal como nos malditos filmes de terror em que o monstro surge
da escuridão para nos apanhar, um irado Asim Al-Asheed aparece,
dando grandes passadas, trazendo uma pequena lanterna e um tipo
armado atrás de si. Fala rapidamente em árabe aos dois idiotas que a
prendem e depois diz:
– Mel Keating… estás prestes a ter o que mereces desde o teu
miserável nascimento.
Duas explosões ecoam e sobressaltam-nos a todos. Há um tiroteio
abafado, e Mel grita-lhe, sem ter a certeza, mas querendo atormentar
o filho da mãe:
– Por falar em ter o que mereces… ouviste aquilo, idiota? É o meu
pai e os amigos dele, que vêm buscar-me e matar-te.
E, como que por magia, ouve ao mesmo tempo um assobio, um
estalo e um gemido, e o homem que a segura do lado esquerdo cai e
depois outro assobio, estalo, gemido, e o tipo que está atrás de Asim
cai ao chão e ela cai, rola e começa a gatinhar, afastando-se de todo
o tiroteio.
Aquelas pedras, pensa.
Um bom local para se esconder até o pai, ou os SEAL ou quem
quer que anda por ali, se dar a conhecer.
Mel continua a rastejar pela terra e pedras ásperas, mantendo a
cabeça baixa.
Capítulo 124
Nick Zeppos e Alejandro Lopez contornam o edifício em direção a
oeste e Claire anuncia-lhes através dos auscultadores:
– Olhos abertos, rapazes. Dois edifícios mais perto de vocês: uma
data de tangos a sair.
Nick responde «Entendido», e a miúda da NSA não brincou,
porque os três edifícios mais perto de onde Mel estava presa… raios,
o sítio fervilha de homens armados que saem pelas portas e entradas
laterais e até uma janela aberta.
O melhor abrigo que conseguem arranjar é uma pequena berma
de terra, portanto atiram-se para o chão e põem-se ao trabalho. Não é
grande proteção porque, sempre que abatem um tipo que sai a correr
de uma dessas casas, gritando «Allahu Akbar» e varrendo tudo com
fogo de metralhadora, aparecem mais dois, tomando posições em
redor do solo pedregoso perto dos edifícios. Os tangos começam a
disparar e pedaços de terra e pedras voam quando atingem a berma
atrás da qual se escondem Nick e Alejandro.
Tum tum tum.
Tum tum tum.
Ele e Alejandro mantêm um fogo firme e calmo. Nick anuncia «A
trocar carregadores!» quando o ferrolho recua e ele ejeta o
carregador vazio, insere um cheio na M4, solta o ferrolho e recomeça
a disparar, seguindo o fino fio orientador da sua mira laser
infravermelha.
Alguns segundos depois, Alejandro repete as ações de Nick,
dizendo «A trocar carregadores!» e Nick mantém-se concentrado,
assestando o laser alvo a alvo, ouvindo um estalido sonoro quando
Claire, que está de vigia lá em cima, abate um dos tangos.
De início, os guerrilheiros que estavam lá em cima saíam no estilo
tradicional dispara e reza, agarrando nas suas AK-47 e esvaziando o
carregador numa única pressão assustada do gatilho, mas um
punhado deles sabe o que está a fazer e riposta com um fogo rijo e
disciplinado.
Alejandro comenta:
– Adorava ter um Warthog no ar.
– Ou dois! – retruca Nick.
Vê algo brilhante a vir na sua direção e grita «Granada!»,
comprimindo-se contra o chão, mantendo o capacete baixo e…
Bum!
Levanta os olhos, vê outro conjunto de cintilações.
Bum!
– Merda! – exclama, voltando à posição inicial, devolvendo o fogo,
abatendo um tango, e depois outro, que tentam tomar as suas
posições.
Está tudo demasiado silencioso à sua direita.
Nick rodopia. Alejandro está enroscado de lado. Nick rola para
junto dele e pergunta:
– Al, estás bem? Estás bem?
Ele geme.
– Estúpido, pareço bem? – Alejandro geme de novo. – Um pedaço
de metralha acertou-me no pulso direito. Acho que o filho da mãe está
partido. Ajuda-me a sacar a SIG Sauer.
Nick age rapidamente, sacando do coldre a pistola de Alejandro,
estendendo-lha. Ergue de novo a M4 mesmo a tempo de abater dois
tangos que estavam apenas a dois metros.
Tum tum tum.
– Claire, fala Nick. Precisamos de mais fogo de cobertura.
Mais dois tiros da sua M4. Um ruído mais agudo quando
Alejandro, ferido, usa a sua pistola de 9 milímetros.
– Claire, precisamos de ajuda.
Mas ela não responde.
Capítulo 125
Jiang Lijun mantém-se baixo, deslocando-se em ziguezague,
sabendo que os americanos estão aqui, mas continua decidido a ser
o primeiro a apanhar Mel Keating e pô-la em segurança, para
benefício do seu país e da sua carreira.
Mas tem de ter cuidado porque há um enorme tiroteio a oeste e
não quer ser apanhado num fogo cruzado entre os americanos e os
homens de Asim. Os americanos abatê-lo-iam porque é um homem
com uma AK-47, e os homens de Asim abatê-lo-iam apenas porque
neste momento estão assustados e disparam contra tudo o que
pareça ameaçador.
Abriga-se atrás de um monte de sucata de metal e barris de
petróleo esmagados e observa com o seu óculo de visão noturna e
sim, ela está ali, escondida por atrás de dois rochedos quebrados.
Agora.
Jiang avança, coleando, e com o monte de sucata de metal atrás
de si, aproxima-se e grita:
– Mel! Mel Keating! US SEAL! Vem cá, estou a ver-te!

Há uns anos, o pai deixou que ela e a mãe assistissem a um


exercício noturno e, caramba, aquilo parecia mesmo o que está a
acontecer aqui. Muitos tiros, alguém a usar uma arma de ferrolho de
grande calibre – fácil de identificar pelo estalido forte que é disparado
a um ritmo lento – e agora andam a atirar granadas lá ao fundo.
– Mel! – grita uma voz forte. – Mel Keating! US SEAL! Vem cá,
estou a ver-te!
Oh, que maravilhosa torrente de alívio e alegria lhe corre pelo
corpo ao ouvir o seu nome, ao ouvir quem está aqui para a resgatar, e
devem ser os amigos do pai, aqueles que vão ao fim do mundo para
resgatar um dos seus.
– A caminho! – retruca e gatinha pelas pedras, vendo um vulto
agachado, perfilado vagamente pelos fogos que surgem no lado
ocidental da zona.
– Despacha-te, despacha-te – exorta-a o homem. – Precisamos
de te tirar daqui.
– E eu não sei? – grita, em resposta, quase a rir. – Estou quase aí.

E ali está ela, pensa Jiang.


A filha do Presidente, ao fim de todo este tempo, das
contrariedades e viagens, a sair dos rochedos fendidos e das pedras.
– Aqui – diz, agarrando-a pela mão.
Ele segura-lhe a mão e ela ri e então…
Estaca.
Debate-se e solta a mão.
– Quem és tu, porra? – pergunta ela.
– Navy SEAL – responde Jiang.
– De que equipa?
– O quê?
– De que equipa? – inquire ela, recuando rapidamente. – E essa é
uma AK e não uma M4 ou uma HK. E não tens o equipamento certo.
Onde está o teu capacete? Os teus óculos de visão noturna?
Jiang agarra-a pela gola enquanto ela tenta escapar. Lutam e Mel
morde-lhe a mão. Jiang diz:
– Raios, miúda, estou a tentar resgatar-te.

No telhado do edifício onde Mel esteve presa, Claire Boone da


NSA diverte-se à grande, embora nunca reconhecesse isso perante
alguém da agência, sobretudo no interrogatório que lhe vai tocar pela
proa quando terminar esta operação não autorizada.
Mas isto é como ser a pior, a mais cruel cosplayer do mundo, a
abater mauzões lá do alto. Um dos problemas de estar inserida no
espectro autista é que a sua mente está sempre a trabalhar, sempre a
correr e, neste momento, pensa nos jogadores que conhece na
comunidade e talvez pudesse contactar um par deles com um
investimento e uma ideia para um jogo de atirador único, chamado
Overwatch, claro…
Varre o lado sul da área, vê o agente David Stahl, dos Serviços
Secretos, atrás daquele muro de pedra baixo e a desmoronar-se, e
parece bem. Depois volta para oeste e, caramba, aqueles dois tipos
dos SEAL estão mesmo num buraco, dispara três balas e os
cartuchos tilintam no telhado de pedra.
Claire quer continuar a despejar tiros sobre aqueles idiotas que
estão a ameaçar Nick e Alejandro, mas tem responsabilidades aqui
em cima, claro que tem. Rola para ficar virada para oeste, e identifica
facilmente a mira de laser infravermelho de Matt Keating – o
Presidente anterior, ainda não consegue acreditar que está aqui com
ele – e observa, parando de imediato.
Um tipo com uma AK-47 numa mão está a lutar com alguém mais
pequeno, mais leve e, Deus seja louvado, com cabelo comprido.
Aponta cuidadosamente o trajeto da bala e há vozes no seu
auricular, mas ela ignora-as enquanto prime suavemente o gatilho,
como já fez milhares de vezes em treinos e na vida real. Esta noite
louca e fria nas montanhas da Líbia é a vida no mundo real.
Capítulo 126
A voz calma da Claire no meu auricular faz-me parar de imediato a
busca, que já decorre há longos minutos vazios, passados a observar,
a ajoelhar-me, a olhar para trás e para a frente, tentando ao mesmo
tempo calar o medo que me diz: Imagina que não a consegues
encontrar?
– Matt – diz a Claire –, acabei de abater um tango armado que
estava a agarrar a Mel. Ela está a uns trinta metros para leste de
onde me encontro, perto de um monte de sucata de metal. Vá buscá-
la.
Vá buscá-la!
Viro a cabeça e avisto a sucata de metal que a Claire referiu. Há
cerca de um segundo, estava cansado, com dores na anca, frustrado
e receoso e agora sinto-me com menos vinte anos enquanto corro
para na direção da Mel.
Vá buscá-la!
Estas palavras arderão em alegria dentro de mim, para sempre,
juntamente com as recordações dos instrutores a gritar «Parabéns,
cavalheiros: a Semana Infernal terminou!», da Samantha a dizer o
«Sim», do médico a gritar «É uma menina e parece bem!», e da
Samantha a dar-me um grande beijo, a altas horas da noite, no
Texas, sussurrando: «Parabéns, congressista.»
Corro e corro, com a arma ainda nas mãos e estou a observar e
olhar e, ao aproximar-me do monte de sucata metálica, grito:
– Mel, é o pai! Não te mexas! Estou aí dentro de um segundo!
Vá buscá-la!
Contorno o monte de metal enferrujado e barris de petróleo e há
um corpo caído do lado esquerdo e mais alguém encolhido perto de
mim, como se tentasse abrir um buraco no solo. Corro para ela e,
quando estou muito perto digo:
– Mel, é o pai, vamos. Mel, sou eu.
O vulto salta e roda e é Asim Al-Asheed e, enquanto ergo a minha
M4 para disparar, sinto a faca dele enterrar-se em mim.
Capítulo 127
O agente David Stahl, dos Serviços Secretos, ouve o tiroteio que
se trava a cerca de setenta metros de si, mas concentra-se na sua
missão, que é vigiar este muro de pedra comprido, que se desmorona
lentamente, e até agora não aconteceu nada.
Através dos auscultadores ouve a conversa calma entre os dois
SEAL e Claire, a mulher da NSA que está lá em cima a disparar
descontraidamente balas encamisadas .308 contra os terroristas que
tentam abater Nick e Alejandro. Dentro de cerca de um minuto, David
vai cancelar esta busca e regressar ao recinto.
A voz calma de Claire traz-lhe um sorriso ao rosto e faz com que
uma alegria quente irradie pelo seu corpo frio e cansado.
– Matt – diz ela –, acabei de abater um tango armado que estava a
agarrar a Mel. Ela está a uns trinta metros para leste de onde me
encontro, perto de um monte de sucata de metal. Vá buscá-la.
David prime o botão de transmissão do seu rádio.
– Matt, fala David, precisa de mim?
Mantendo-se agachado, começa a regressar ao longo do muro de
pedra, ainda abrigado porque não sabe quantos jihadistas poderão
estar por aqui nestas montanhas para dar uma ajuda a Asim Al-
Asheed e aos seus guerrilheiros.
– Matt, fala David. Posso ajudar?
Continua a não haver resposta.
Para.
– Claire, fala David. Consegues ver o Matt e a Mel?
Ela responde de imediato.
– De momento, não. Na última vez que a vi, a Mel tinha caído ao
chão e o pai estava a aproximar-se. Estavam ambos atrás de um
monte de sucata metálica. Eu…
– Urgência, urgência – diz a voz tensa de Nick. – David, a tua
ajuda seria muito bem-vinda aqui.
David está dividido. A sua responsabilidade como membro dos
Serviços Secretos é ali, com o antigo Presidente e a filha deste. Devia
ir até lá.
Mas esta noite é um Marine.
E uma vez Marine, sempre Marine.
Nunca se deixa ninguém para trás, nunca se recusa um pedido de
ajuda.
– Nick, vou a caminho – diz e começa a correr em direção ao ruído
das armas.

Asim sente a força a correr dentro de si enquanto atira ao chão o


antigo Presidente, a arma do homem lhe voa das mãos e até o seu
equipamento de rádio rebola para longe. Asim também sente a
alegria rápida de a sua faca ter cortado o homem que matou a sua
família.
Estão a lutar perto de um monte de metal e barris de petróleo
antigos e, como está por cima do homem, Asim avalia rapidamente
que ele está velho e em baixo de forma. Oh, o fraco infiel debate-se
agarrando-se aos punhos de Asim, mas este tem a certeza de que
mais uns segundos porão fim a isso. Mesmo com a cabeça a latejar
devido ao ataque daquele maldito espião chinês – e Asim planeia tirar
uma semana para o matar mal o descubra –, sente a força da ira
justificada a percorrê-lo.
Pressiona os pulsos de Matt Keating e, na escuridão, diz:
– Só tu e eu, Matt Keating, e não tens Serviços Secretos, nem
Exército, nem drones, nem satélites. É como nos bons velhos tempos,
o forte contra o fraco e, depois de te matar, vou procurar a tua filha e
matá-la também.
Asim pressiona de novo todo o seu peso em cima do Presidente,
sabendo que está apenas a uns minutos de quebrar o homem.
Capítulo 128
O meu pulso esquerdo arde terrivelmente e uma pequena parte
racional de mim sabe que o Asim me cortou até ao osso, mas a maior
parte racional de mim está a aperceber-se de que o filho da puta me
apanhou e bem. É musculoso, tem vivido em condições espartanas
nestes últimos anos – enquanto eu amoleci na política – e tem uma
raiva ardente que se precipita sobre mim.
O meu equipamento de comunicações está desligado, a minha M4
está algures por aí e há uma faca e uma pistola SIG Sauer junto aos
meus pés, mas essas duas armas podiam estar nos Estados Unidos,
atendendo a todo o bem que podem fazer-me.
Tenho a mão esquerda no pulso direito de Asim, a direita no seu
pulso esquerdo. E talvez esteja confuso ou alimentado pela
adrenalina, mas estou certo de que a luz das estrelas está a brilhar
naquela faca afiada que ele tem na mão direita.
Tento empurrar, pontapear, deslizar, mas ele responde, movimento
a movimento, e faz mais pressão sobre mim. Fala de vingança e de
destruição e de Alá, e eu não presto atenção ao que diz e não estou
de modo algum a responder-lhe, porque não posso desperdiçar força
e oxigénio.
É fácil ver o que vai acontecer.
O meu pulso esquerdo cortado vai deixar-me ficar mal dentro de
segundos e, com a mão que segura a faca livre, ele vai procurar a
minha garganta e, quando tiver a certeza de que estou morto, tentará
apanhar a Mel.
Por fim, decido gritar:
– Mel! Corre! Sai daqui! Corre para o muro de pedra a sul!
Oh, com os diabos, isto retirou-me alguma força, e Asim começa a
arengar de novo sobre vingança e morte e, sim, o meu pulso
esquerdo está a enfraquecer, dói-me e sei que estou a segundos do
fim.
É quase pacífico.
Será rápido e a Mel juntar-se-á aos outros e estará em segurança.
Mas continuo a lutar.
Pergunto-me se terei um funeral de Estado, o primeiro antigo
Presidente que não morre na cama.
O Asim sussurra:
– Desiste, Matt Keating, desiste… Prometo que farei as coisas
rapidamente… mais rapidamente do que quando mataste a minha
mulher e as minhas filhas.
Tento torcer e afastar a sua outra mão, mas o punho forte mal se
move. Se o soltar e tentar pôr as duas mãos na mão que empunha a
faca, ele limitar-se-á a usar a outra para me asfixiar.
Se ainda fosse jovem, conseguiria levantar-me com as pernas e
desequilibrá-lo, mas já não sou jovem.
E em breve já não serei nada.
– Mel! – grito pela última vez. – Corre!
O sangue escorre-me pelo pulso que, já pouco firme, enfraquece e
está prestes, cada vez mais prestes, a ceder.
Trás!
O Asim arfa e cai para trás. Liberto, sento-me rapidamente, puxo
da minha SIG Sauer e agora estou por cima dele. Pressiono o cano
da minha pistola precisamente sob o seu queixo e digo:
– Falas de mais.
E primo o gatilho duas vezes, rebentando-lhe com o alto da
cabeça.
Recosto-me, derreado.
Uma sombra avança.
Segurando um longo pedaço de metal.
Uma voz hesitante.
– Pai, és tu?
Respondo:
– Oh, Mel, sim, sim, sou eu.
E abraçamo-nos e ambos soluçamos e a parte de mim que é pai
não quer deixá-la ir, mas a parte SEAL – Há mais bandidos por aí? E,
meu Deus, dói-me o pulso! – afirma:
– Vem, querida, vamos pôr-nos a andar daqui para fora.
Capítulo 129
A Mel ajuda-me a recuperar o equipamento e, com o meu sistema
de comunicações novamente ligado, anuncio:
– Urgente, urgente, fala o Matt. Tenho a Mel. Recuem para o ponto
de exfiltração. Recuem para o ponto de exfiltração.
Ela começa a andar e digo:
– Espera. Tira-me esta mochila das costas, está bem?
– Pai, estás ferido?
– É só um arranhão. Vá, Mel, despacha-te.
A mochila cai ao chão e peço:
– Abre-a, veste o que está lá dentro e depois pomo-nos ao fresco.
Ela abre o fecho, tira um colete à prova de bala que a ajudo a
vestir e um pequeno capacete, que põe sem ajuda. Agora que está
vestida para uma zona de combate, envolvo-a com o braço esquerdo,
que sangra, e começo a avançar tão rapidamente quanto possível,
ainda muito atento ao que nos rodeia, com a minha M4 na mão
direita.
O volume de fogo caiu a pique, o que significa que a maior parte
dos homens do Asim está morta, ferida ou fugiu para as montanhas, à
procura de segurança. Avisto o nosso ponto de exfiltração e, através
dos meus óculos de visão noturna, apercebo-me de que há
movimentações lá e dois feixes de laser IV a sondar, à procura de
alvos que possam surgir.
– Matt a chegar – grito, enquanto trepo com esforço por cima do
muro, e a Mel está comigo e afirma de imediato:
– O meu pai está ferido. Alguém o pode ajudar?
O David aproxima-se e a Mel fixa os olhos nele, exclamando com
uma voz excitada e desejosa de acreditar:
– Agente Stahl? É o senhor?
Ele ajoelha-se à minha frente, começa a cortar a manga da minha
camisa de camuflado e responde:
– Claro, Mel. O mero facto de estar a meio mundo de distância
não significa que não venhamos protegê-la. – E, em seguida, dirige-
se a mim. – Meu Deus, Matt, que é que lhe aconteceu?
– Fui cortado pelo Asim.
O David lava-me a ferida com água e eu estremeço e olho para o
outro lado. Ele pergunta:
– Onde está ele agora?
– Noutro lado, a tentar explicar o que andou a fazer nestes últimos
anos.
Estou cansado, dói-me o pulso, parece arder, mas a Mel está
sentada a meu lado, protegida e olho ao longo do muro e vejo que o
Nick continua a vigiar o recinto, que o Alejandro, com uma ligadura,
está faz mesmo e a Claire Boone está…
A guardar outra pessoa?
– David – digo. – Quem é aquele que está com a Claire? Não
vamos levar prisioneiros.
Ele comprime uma compressa de gaze de combate QuickClot
sobre o pulso a fim de parar a hemorragia e depois começa a enrolar
rapidamente uma ligadura de compressão contra a ferida.
– Vai precisar de uns pontos a sério quando regressar à Tunísia.
– Sim, tenho a certeza, mas quem é o tipo com a Claire?
O David ri.
– Um cidadão chinês. Afirma ser representante local da China
State Construction Engineering Corporation. Tem inclusive cartão de
visita e identificação oficial. A Claire diz que o viu a lutar com a Mel há
uns minutos e pensou que era um dos maus. Deu-lhe um tiro, mas ele
tinha um colete à prova de bala. Conseguiu partir-lhe umas costelas.
A Claire ouviu-o pedir socorro quando vinha para cá.
Flexiono o pulso.
Ainda dói.
Olho para o relógio.
Estivemos no solo uns muito longos cinquenta e cinco minutos.
Raios, onde está o nosso Black Hawk?
Mexo no meu Motorola e altero a frequência e chamo:
– Joe, Joe, Joe, fala o Matt. Atenda, por favor.
O Nick dispara um tiro.
– Joe, Joe, Joe, fala o Matt. Qual é a sua situação?
Não há resposta.
– Porra – digo.
A Mel pergunta:
– Quem é o Joe?
– Um piloto das Forças Especiais tunisinas. Trouxe-nos cá e deve
vir buscar-nos. Está apenas um pouco atrasado, mais nada. – E digo
ao David. – Se tiver de ser, levamos uma das carrinhas deles.
Com voz lamentosa, responde:
– Desculpe, Matt. Nós, hum… bem, agora estão bastante
esburacadas. Um grupo de combatentes tentou abrigar-se atrás delas
e nós ventilámo-las bastante.
Fantástico, penso. Verdadeiramente fantástico.
E agora?
Envolvo a Mel com o meu braço são e dou-lhe um pequeno
apertão.
E então, quando o vento muda, oiço ao longe o mais belo som que
um operacional em território inimigo pode ouvir: o matraquear dos
rotores de um helicóptero.
O socorro está a chegar, com os cumprimentos da Sikorsky
Aircraft.
– Preparar para exfiltração – grito e pego em dois bastões
químicos luminosos, parto-os para ativar os produtos químicos e atiro-
os para a pequena zona plana e pedregosa. Invisíveis a olho nu, para
os dispositivos de visão noturna do Joe e do seu copiloto serão um
farol que não podem deixar de ver. O Nick e o Alejandro fazem o
mesmo que eu e, para os tipos das Forças Especiais tunisinas que
estão lá em cima, isto aqui em baixo deve parecer Times Square de
noite.
– Mais uns minutos, querida – digo à Mel. – Só mais uns minutos.
A Mel não diz nada e fico rapidamente preocupado, porém escuto
com mais atenção e oiço apenas a minha filha a soluçar encostada a
mim.
Capítulo 130
Faraj Al-Asheed sabe que está a morrer, mas também sabe que
conseguiu ganhar mais um bom par de minutos nesta terra por se ter
afastado rapidamente depois de o primo, aquele cão nojento, o ter
apunhalado. Em vez de ter matado Faraj instantaneamente, o
ferimento será mortal apenas mais tarde, apesar de tanto ter tentado
ligá-lo.
Arrasta-se em direção ao local onde pensa que se escondem os
americanos, porque as suas vozes insolentes são realmente altas e
este ar rarefeito transporta-as com facilidade. Não ousa levantar-se e
não ousa deslocar-se depressa, mas desloca-se, sim, arrastando uma
AK-47 com a mão direita.
Oh, Alá, como lhe dói o peito!
Enquanto rasteja sobre o chão áspero, mais perto do muro de
pedra, acorrem-lhe as recordações finais: da sua infância em Trípoli,
de ter permanecido vivo durante as guerras civis e as incursões das
milícias, de ter tido aquela bolsa de estudo para a escola de cinema,
de viver em Paris e aprender tanto, e de cometer Haraam, fornicando
com as putas dispostas a isso e bebendo e comendo alimentos
proibidos.
A jihad, para que o seu primo achava ter sido chamado, parecia
uma estrada de redenção, algo para no fim salvar a sua alma, mas,
após anos de banhos de sangue e combates, Faraj estava farto dela,
queria sair. Mas Asim – aquele Ya Ibn el Sharmouta – impediu-o.
Oh, dói tanto!
O ruído do helicóptero aumenta. A aeronave está pronta para
resgatar os americanos e talvez até Mel Keating, levando-os de volta
para o seu conforto e as suas vidas seguras.
Uma nova recordação vem-lhe à mente antes de trocar este
mundo pela escuridão desconhecida lá fora.
Lembra-se das aulas de formação para os recrutas inexperientes
que vinham parar aos muitos acampamentos e recintos do primo. A
primeira coisa que Asim mostrava aos jovens eram vídeos dos muitos
ataques da jihad ao longo dos anos, desde o ataque ao USS Cole aos
atentados à bomba contra as embaixadas americanas em África e o
doce êxito do derrube das Torres Gémeas em Manhattan, ataques no
metropolitano e em autocarros em Londres, e outros ataques em
Bruxelas, Paris e Berlim…
Faraj observava as expressões extasiadas desses jovens e ouvia
as suas risadas e aplausos ao verem civis feitos em pedaços ou
lançando-se para a morte desde os enormes edifícios… e não via
guerreiros santos, nem então, nem agora.
Apenas jovens sem futuro que se deleitavam a partir coisas, matar
pessoas, pisar criaturas. Aquilo que Faraj aprendera em Paris como
jovem vulnerável, aquilo que é chamado niilismo.
Agora faz sentido.
Pega na AK-47, certifica-se de que está destravada e, enquanto o
helicóptero desce, põe-se de pé e prime o gatilho, gozando esses
derradeiros momentos em que é um assassino.
Capítulo 131
O nosso voo de exfiltração atrasou-se, mas pelo menos está aqui.
Projeto a voz e digo:
– Ponham a Mel lá dentro primeiro, depois o Alejandro e o chinês
e nós vamos a seguir.
Os bastões luminosos espalham-se enquanto o Black Hawk
desce, terra e gravilha voam em direção a nós e, então, vai tudo para
o inferno.

Rebenta um tiroteio nos terrenos atrás de nós. Viro-me, o Nick faz


o mesmo e, através dos meus óculos de visão noturna e mira a laser
infravermelho, vejo um homem que balança e dispara uma AK-47. O
Nick e eu fazêmo-lo em pedaços enquanto a Mel grita:

– Pai, fui atingida!


Corpos caem ao chão aqui e ali e o pistoleiro ainda dispara mais
uns tiros antes de cair por terra. A Mel é retirada de debaixo de
alguém e empurrada para dentro do helicóptero. A Claire ajuda o
chinês a entrar a bordo e eu empurro o Alejandro para dentro. O
David está caído e o Nick e eu arrastamo-lo para o interior da
aeronave e então o helicóptero sobe e avança, e o chefe da
tripulação tunisina fecha a porta de correr.
O nosso piloto, Joe, grita da frente:
– Desculpem o atraso… problemas de comunicação a sério,
tentámos resolvê-los e depois desistimos e avançámos.
Não respondo. Estou a pular, frenético, sobre pernas e braços
estendidos, a aproximar-me da Mel, que tem o rosto pálido por detrás
dos óculos. A Claire está a rasgar-lhe a sweatshirt de Dartmouth,
puída e imunda – sinto uma dor, pensando na última vez em que vi a
camisola, naquele dia soalheiro impossível no lago Marie quando ela
partia em segurança para uma caminhada –, e a Claire olha, sonda e
diz:
– Tudo bem, senhor Presidente… isto é, Matt. Merda. Ela vai ficar
bem. Parece pior do que é.
A Mel vira-se e pergunta:
– Claire Boone… que raio estás a fazer aqui?
A Claire remexe num kit de primeiros socorros do Black Hawk.
– A participar no resgate do teu belo rabiosque!
O helicóptero ganha altitude e velocidade e não consigo deixar de
sorrir ao ver a Mel e a Claire juntas. Viro-me e paro de sorrir.

David Stahl está deitado de costas, sem capacete, de olhos


abertos, a boca a mexer-se lentamente, com a pele a ficar cinzenta. O
Nick tenta freneticamente enfiar-lhe um acesso endovenoso no braço
nu e o Alejandro tenta, com desespero e apenas uma mão, parar a
hemorragia do grande ferimento no pescoço do David.
Ajoelho-me, afasto o Alejandro e, depois de o Nick conseguir
espetar a agulha, levantar-se e suspender o balão de soro de um
cabo que passa por cima, vê-me e diz:
– Vi tudo, Matt. O tiroteio começou e o David empurrou a Mel para
o chão e atirou-se para cima dela. Como nos Serviços Secretos, sem
dúvida alguma.
Pressiono uma compressa de gaze de combate QuickClot contra o
ferimento do David, mais outra por cima e empapam-se rapidamente
com sangue. Ponho outra e outra, e todas ficam ensopadas em
segundos.
O Alejandro assobia com força em direção à carlinga e diz:
– Joe! Põe este pássaro a andar! Uma cidade ou vila das
proximidades que tenha um hospital! Leva-nos lá! Mexe-te!
O Nick ajuda-me a colocar mais ligaduras e compressas no
ferimento do David, mas trocamos um olhar e sabemos, com fria
certeza, o que vai acontecer dentro em breve, enquanto a cor da pele
do David começa a esbater-se ainda mais.
Os seus olhos vacilantes fixam-se em mim e diz:
– Hope, Hope, Hope…
– Isso mesmo, não desistas – retruca o Nick –, continua a ter
esperança, pá, vamos levar-te a uma clínica muito em breve.
Aguenta-te, David, continua a ter esperança.
Os meus olhos marejam-se de lágrimas e digo:
– Não, ele está a usar o nome de código dos Serviços Secretos
para a Mel. Eu sou o Harbor, a minha mulher é a Harp… e a Mel é a
Hope. – Levanto os olhos e grito: – Mel, vem cá, já!
Ela faz o melhor que pode para manter o equilíbrio, com o braço
ligado, enquanto a velocidade do helicóptero aumenta. A Claire
segue-a, com o helicóptero a saltar e baloiçar. A Mel ajoelha-se ao
lado do David e eu digo:
– David, veja. Ela está aqui. A Mel está salva. A Hope está salva.
Fez o seu trabalho.
A Mel começa a chorar em silêncio e agarra-lhe na mão direita,
aperta-a, e eu pego na esquerda e faço o mesmo, afirmando:
– David, bom trabalho. Salvou a minha vida. Salvou a Hope.
Os seus olhos pestanejam.
Sorri e murmura:
– Ótimo.
E, em seguida, morre.
Capítulo 132
Universidade de Georgetown
Washington, DC

Rollie Spruce é aluno de pós-graduação em Georgetown,


frequenta o Georgetown University Law Center, mas esta noite faz um
turno duplo no bar durante uma convenção que está a realizar-se no
hotel e centro de conferências da universidade.
Doem-lhe os pés, tem a boca seca devido à farra da noite anterior
e as mãos tremem-lhe um pouco enquanto mistura cocktails e tira
diversas cervejas para os participantes na conferência que hoje
enchem o local.
O que acontece, pensa, é que estes tipos – arqueólogos e outros
tipos de escavadores de terrenos – podem ser peritos nos seus
campos, mas também são peritos em beber devagar e durante horas
e, depois, darem gorjetas como se eles, e não ele, fossem alunos de
pós-graduação pobres.
Há uns anos, em Vermont, o pai disse-lhe: «Rollie, arranja uma
boa profissão, por exemplo, barman. E vais ter sempre trabalho. Nos
tempos bons, as pessoas gostam de beber e, nos maus, ainda
gostam mais.»
Bom conselho e, algumas vezes, ele acumula mesmo gorjetas,
mas esta noite parece com toda a certeza mais um fiasco.
Está a tirar um minuto para lavar alguns copos de cocktail no seu
posto quando uma mulher sentada a uma mesa na esquina mais
próxima começa a gritar alto.
– Com os diabos… – diz, e inclina-se sobre o bar para ver que raio
se passa e então há berros, gritos, aplausos e a mulher que estava a
gritar há apenas um momento está a ser abraçada e beijada por uma
porrada de gente.
Um dos tipos sai da mesa, corre para Rollie e diz:
– Depressa, pá, uma garrafa de champanhe. O melhor que tiveres!
Manda-o para a nossa mesa… raios, champanhe para todos! As
bebidas são por conta da casa!
Rollie não precisa que lho digam duas vezes e começa a trabalhar
enquanto se ouvem mais vivas e aplausos. Vê que muitas pessoas
estão de pé, a olhar para a televisão colocada por cima do bar. Há
uns minutos, estava a mostrar um jogo de beisebol dos Washington
Nationals, mas agora há um pivô de uma das cadeias de televisão, a
sorrir e falar diante da câmara.
Rollie não sabe o que se passa, mas no ecrã por detrás do pivô há
uma fotografia de Mel Keating, a filha do anterior Presidente – que
Rollie sempre achou que era gira num estilo um bocado «marrão» –
e, a julgar pelo que vê, parece que está viva e foi resgatada algures
no Norte de África.
Fixe, pensa e ajoelha-se diante do pequeno frigorífico para
confirmar quantas garrafas de champanhe têm a gelar.
Parece que, ao fim e ao cabo, vai ser uma boa noite.
EPíLOGO
Capítulo 133
Aeroporto Internacional de Bangor
Bangor, Maine

Estamos a regressar a casa num jato de passageiros Boeing C-40


da Força Aérea dos Estados Unidos, que nos foi fornecido após um
telefonema feliz para a secretária da Força Aérea, Kimberley
Bouchard, que o enviou rapidamente a Sfax-Thyna, na Tunísia, para
nos recolher.
Enquanto descemos para Bangor, faltam-nos dois passageiros: o
primeiro, o chinês que afirmou ser da China State Construction
Engineering Corporation, apanhado inocentemente no fogo cruzado.
A Mel contou-me uma história diferente a bordo do nosso Black
Hawk no voo de saída da Líbia e certifiquei-me, quando regressámos
à Tunísia, de que o calado e ferido cidadão chinês fosse entregue à
guarda de um homem de olhar duro e uma mulher de olhar
igualmente duro que eram, pretensamente, representantes do nosso
Departamento de Estado vindos da nossa embaixada na Tunísia.
Deveriam dar-lhe ajuda e assistência, é claro, antes de ser levado
à embaixada do seu país na Tunísia.
O outro passageiro que falta, os restos mortais de um corajoso e
dedicado agente especial dos Serviços Secretos, David Stahl, está a
voar várias horas depois de nós num avião de transporte C-17, que
se dirige para a base da Força Aérea de Dover, no Delaware.
Tem sido um voo calmo e longo, com filas de assentos vazios ao
nosso lado. O Nick e o Alejandro dormiram muito e comeram a
refeição a bordo da Força Aérea, tarifa normal, e a Mel e a Claire
passaram algumas horas a pôr a conversa em dia e a recordar
antigos colegas.
Agora, a Mel está estendida ao longo de dois assentos, tapada
com um cobertor, enquanto dorme, espera-se que sem sonhar.
Fiquei acordado durante a maior parte do tempo. É tradicional nas
Forças Especiais fazerem um debriefing no final das missões, mas
desta vez não. O único debriefing dá-se na minha mente, enquanto
passo em revista o que aconteceu, como aconteceu e se poderia ter
corrido melhor. Porque, embora esteja mais grato do que é possível
dizer por palavras, por a minha filha estar a dormir no meu regaço, o
preço pago foi terrível.
A voz do piloto ouve-se pelo intercomunicador:
– Passageiros, preparem-se para a aterragem.
Uma oficial superior da força aérea aparece, acorda o Nick, a
Claire e o Alejandro, diz-lhes que apertem os cintos de segurança e
depois chega junto da Mel e de mim, sorri e abana a cabeça, dizendo:
– Está tudo bem, senhor Presidente.
– Obrigado.

Depois de aterrarmos, o jato anda um pouco pela pista até que se


detém e a Mel acorda, bocejando. Abraço-a de novo e digo-lhe:
– Espera. Quase me esqueci de te devolver isto.
Tiro do bolso das calças o seu anel de ouro, o presente de
aniversário que a mãe lhe deu pelos dezasseis anos, enfio-lho no
dedo e os seus olhos ficam rasos de lágrimas.
– Pai… Meu Deus, estava cheia de medo de dizer à mãe que
talvez o tivesse perdido.
– Bem, agora não tens de o fazer.
A porta da frente é aberta e uma escada móvel sobe. O Nick e eu
tentamos ajudar a Mel a descer a escada, mas ela sacode-nos:
«Estou ferida, rapazes, mas não incapaz.» Desce sozinha para a
pista, agarrando-se com força ao corrimão.
Um Chevrolet Suburban preto, com vidros fumados, está à espera
nas proximidades, com o motor a trabalhar. O Nick, o Alejandro e a
Claire avançam para ele, levando os seus sacos pretos, e a Mel e eu
seguimo-los. Trocam-se abraços e apertos de mão – o meu pulso dói,
mas porta-se bem – e digo-lhes:
– Não posso dizer-vos quanto a minha mulher e eu vos devemos.
Ficaremos em dívida para convosco. Para sempre.
O Nick retruca:
– Não se preocupe, senhor. Foi bom ajustar contas pela captura e
crucificação de Boyd Tanner. Com uns anos de atraso, mas
resolvemos o assunto, não foi? Além disso, não estamos aqui. Nem
nunca estivemos lá. O Alejandro e eu estivemos de licença e ele
magoou o braço a fazer qualquer coisa. Oficialmente, foi isso que
aconteceu.
Mais uma rodada de apertos de mão.
– Boa viagem – digo. – E para si também, Claire.
E esta pergunta à minha filha:
– Vais à reunião dos ex-alunos de Sidwell, neste outono?
– Meu Deus, não – responde a Mel.
– Boa. Nem eu. Mantêm-te em contacto, está bem?
– Está bem, miúda.
Entram para o Suburban e afastam-se. A Mel enfia um braço no
meu e avançamos para o punhado de estruturas que formam o calmo
Aeroporto Internacional de Bangor, que é rodeado por muitos
pinheiros. Um grupo de pessoas saiu a correr do edifício mais
próximo, batendo palmas e dando vivas e o primeiro lugar na corrida
é para a minha mulher, Samantha, que ao fim de uns segundos está
abraçada à Mel, e depois a mim, e depois a ambos e assim se
passam uns minutos preciosos e cheios de lágrimas.
Trazem uma cadeira de rodas e a Mel diz «Não, não preciso
disso», e a sua mãe afirma: «Vais sentar-te já nessa coisa, menina, e
não te atrevas a dizer não.»
A Mel encolhe os ombros, senta-se e estremece quando os seus
pés ligados e metidos nos chinelos são postos em cima dos estribos
metálicos. Vejo que as pessoas sorridentes que me rodeiam são o
meu destacamento dos Serviços Secretos no lago Marie: os agentes
Stacy Fields, Ron Dalton, Paula Chin, Emma Curtis e Nicole
Washington.
A agente Washington, que nos acompanhou, a David Stahl e a
mim, quando fugimos do Mary’s Diner e que se foi embora com os
nossos telemóveis para afastar da nossa pista os agentes do FBI,
avança. Dou-lhe um abraço e pergunto:
– Está bem? Foi apanhada.
Ri-se.
– Não e fiquei desiludida por não ter sido. Acho que o FBI não
seguiu nada.
Todos os agentes trazem fitas pretas na lapela e lembro-me de
novo do sacrifício e dever do David, na Líbia, muito, muito longe de
casa, onde podia ter ficado em segurança.
Mas o David não era assim.
Madeline Perry, a minha chefe de gabinete, avança e abraça-me,
em seguida abraça a Samantha e a Mel e, com as lágrimas a
correrem-lhe pelo rosto, diz:
– Oh, senhor Presidente, conseguiu… conseguiu… bem-vindo a
casa, bem-vindo a casa, senhor.
Rio-lhe e respondo:
– Pode ter a certeza de que não consegui sozinho.
– Senhor… – prossegue ela. – Talvez não esperasse isto tão cedo,
mas há uma enorme presença dos meios de comunicação social no
terminal.
A Samantha, que está de pé atrás da cadeira de rodas da Mel e
com as mãos nos seus ombros, pergunta:
– Enorme como?
– Mais de cem… Senhor, podia fazer uma curta declaração? Por
favor? Dê-lhes algo agora e talvez o deixem em paz durante o resto
do dia.
A Mel está de sobrolho franzido e a Samantha olha para o
terminal, encolhe os ombros e pergunta:
– Oh, porque não?
Começamos a avançar em direção ao terminal – a Samantha de
mão dada com a Mel, e eu a empurrar a cadeira de rodas – e
chegamos à parte mais baixa do edifício, onde se encontram
membros da polícia do Maine e os agentes da polícia de Bangor, com
uma fita negra sobre os crachás, para nos escoltarem lá para dentro.
Olho a agente Washington nos olhos e peço:
– Nicole, faça-me um favor: pode assumir este dever de empurrar?
Quero ficar um momento a sós com a minha chefe de gabinete.
Trocamos e avisto um gabinete vazio atrás de uma pilha de
bagagem; conduzo a Maddie lá para dentro, sentamo-nos e ela
continua a sorrir.
– Senhor, seja bem-vindo a casa. Mal posso esperar por ouvir
como fez isto e o que aconteceu lá.
– Eu próprio ainda não consigo acreditar.
– Nem me diga nada. Tenho recebido mensagens o dia todo, de
todos os editores importantes de Nova Iorque. O seu livro… vai ser
um bestseller imediato em todo o mundo mal o publicar.
– Tenho a certeza, mas, Maddie, só uma coisa antes de
começarmos a falar de contratos de livros.
– Claro, senhor Presidente – responde, obviamente feliz com os
olhos a brilhar. – O que é?
– Maddie, porque é que me sabotou?
Capítulo 134
Aeroporto Internacional de Bangor
Bangor, Maine

Tenho de dizer isto em abono da minha dura chefe de gabinete.


Não discute comigo, nem nega, nem diz nada.
Mas o brilho desapareceu dos seus olhos.
Está sentada comigo, neste silêncio pesado no pequeno gabinete.
– Imediatamente antes de partirmos para apanhar o voo do avião-
tanque a partir de Pease, fiz dois telefonemas. Um para a Samantha
e outro para si, porque pensei que merecia saber o que eu estava a
fazer. Quando chegámos a Pease, quase não nos deixaram partir. A
Casa Branca ordenou que o avião fosse imobilizado. Com quem
falou? Richard Barnes? – digo.
A cor parece fugir-lhe do rosto.
– Não – responde. – Felicia Taft, a vice. Eu… disse-lhe.
Espero.
– Porquê?
Os seus olhos incham, húmidos.
– Tive medo por si, senhor. Medo de que fosse ferido, capturado
ou morto. De que a missão fosse um falhanço. De que acabasse
por… matar a Mel. Em vez de a resgatar. Não queria que o seu nome,
o seu legado, fossem um falhanço. Se a Mel ainda estava viva,
achei… que deviam ser os profissionais a intervir.
– Era eu que tinha de tomar essa decisão, não era?
– Sim, senhor, mas estava a pensar também no futuro… na
fundação que o senhor pretendia criar para os ex-combatentes. Sem
si… nunca aconteceria. Milhares de ex-combatentes continuariam a
sofrer ou morrer todos os anos.
Quero despachar as coisas.
A minha família reunida aguarda-me.
– Então, negoceie o livro, Maddie. O melhor que puder. E, depois
de os contratos terem sido assinados e de eu começar a escrevê-lo,
quero que gira a fundação. Vamos chamar-lhe Boyd Tanner and
David Stahl Memorial Fund e você ficará à frente dela.
Maddie está confusa:
– Mas, senhor…
Levanto-me.
– Isto significa que deixou de ser minha chefe de gabinete. Já não
posso confiar em si, Maddie, mas posso confiar em si para gerir esta
fundação. Faça um bom trabalho em memória deles.
Ela limita-se a fazer um aceno de cabeça.
– Sinto muito, senhor.
– Também eu – respondo e saio.

Sigo um solícito membro da polícia do Estado do Maine até ao


local onde a minha família me aguarda, num corredor no exterior do
terminal principal e consigo ouvir o zumbido de vozes nas
proximidades. Pergunto à Mel e à Sam «Estão prontas?», e ambas
fazem um aceno de cabeça.
Saímos para o terminal, que tem o mais feio pavimento de
azulejos brancos e pretos que já vi, e à medida que vamos ficando
visíveis, rebentam os aplausos e as perguntas. Há uma mesinha com
uma floresta de microfones. A Samantha empurra a cadeira da Mel
até à mesa, e eu fico de pé à esquerda da minha filha enquanto a
minha mulher ocupa o outro lado.
Por fim, ergo a mão e digo:
– Silêncio, por favor, silêncio. Vou responder ao máximo de
perguntas possível… mas têm de compreender que a minha família
está muito cansada. – Aponto para um pivô de uma das estações
locais de Portland. – Diga.
– Senhor Presidente, quem o acompanhou nesta missão de
resgate? E podemos falar com eles?
– Amigos meus, bem treinados, que me ajudaram na recolha de
informações, planeamento e na sua execução. Pediram para ficar
anónimos e vou respeitar esse desejo. Próximo?
O interrogador pouco cortês que se segue é um repórter de uma
das estações por cabo que fez a sua carreira à procura de
escândalos da Administração Keating e não conseguiu encontrar
nenhum, o que o tornou ainda mais desconfiado. E pergunta:
– Senhor, não é verdade que, ao realizar esta missão arriscada e
não autorizada, expressa o seu desagrado e falta de confiança na
Administração Barnes?
Essa pergunta faz a sala cair em silêncio e, ao fim de uns
segundos, respondo.
– Não. Próximo?
– Senhor, parece que está ferido. Como é que isso aconteceu?
Ergo o punho.
– Cortei-me… mais nada.
– Senhor, Asim Al-Asheed está morto? E houve mão sua nessa
morte?
– Asim Al-Asheed está numa posição em que não ferirá nem
matará mais inocentes. E é tudo o que direi a esse respeito.
– Pediu autorização à Administração Barnes antes de partir para
resgatar a sua filha?
Sorrio.
– Não tive tempo. Mais uma, então, por favor.
O meu pomposo amigo que é repórter da estação por cabo
interrompe de novo ruidosamente e inquire:
– Senhor, não está preocupado com a possibilidade de a
Administração Barnes lhe instaurar um processo nos termos do
Logan Act?
Faço um enorme sorriso a todos e declaro:
– Jake, sabe tão bem como eu que o Logan Act só se aplica a
cidadãos que realizem a cabo diplomacia não autorizada com uma
potência estrangeira. – Faço uma pausa. – O que quer que eu estive
a fazer na Líbia não foi, de modo algum, diplomacia.
Muitas gargalhadas e, quanto terminam, digo:
– E que tal umas perguntas à minha filha? O verdadeiro herói aqui
é ela.
Os meios de comunicação social agarram de imediato na deixa e
espero que a Mel seja a Mel, e ela não me desilude.
– Mel, como se sente?
– Cansada. Dorida. Os meus pés estão feitos num oito e parece
que uma bala me arranhou o braço direito.
– Teve medo?
– Em todos os malditos segundos.
– Agradeceu ao seu pai?
A Mel espera um momento e diz:
– Caramba, que pergunta estúpida. Alguém tem uma inteligente?
Alguns risinhos abafados perante essa saída e alguém grita:
– Qual foi o prato de que sentiu mais saudades?
– Cheeseburgers – responde. – Estou a morrer por um
cheeseburger.
– Donde? – grita uma voz lá de trás. – McDonald’s? Burger King?
In-N-Out?
– Vá lá. Não há restaurantes da In-N-Out Burger na Costa Leste.
E, além disso, o meu pai faz os melhores cheeseburgers do mundo.
Vou esperar pelo dele.
Então, é a vez da Samantha, e um pivô de um canal de Boston
pergunta:
– Senhora Keating, quais são os seus planos, agora?
Isto parece apanhar a Sam desprevenida porque ela baixa os
olhos, abana a cabeça rapidamente e olha para mim enquanto
responde.
Está a chorar em silêncio, mas a sorrir e, com um choque,
apercebo-me de que estou a fazer o mesmo.
Dizem que os políticos nunca devem chorar em público, mas
agora não me importo.
Fizemo-lo.
– Penso que chegou o momento de uma licença sabática para
passar mais tempo com a minha família – afirma, docemente.
Uma pergunta para aprofundar o tema:
– Mas sabemos que, há apenas umas semanas, fez uma
descoberta histórica no Maine, revelando a primeira aldeia basca
encontrada até hoje na América do Norte. Não quer regressar ao
trabalho?
De novo, o seu olhar amoroso e calmo, virado para mim, algumas
lágrimas a rolarem-lhe pelas faces. Devolvo o olhar, amando-a uma
vez mais, para sempre, os dois agarrados à nossa filha com amor e
gratidão.
– Não – retruca. – É para isso que servem os fins de semana e os
alunos de pós-graduação.
Capítulo 135
Missão Permanente da República Popular da China
Nova Iorque, Nova Iorque

Numa sala de jantar apinhada no edifício da missão, Jiang Lijun


sente-se enfartado e dorido. Tem o estômago cheio depois de um
jantar de oito pratos dado em sua honra, embora a verdade seja que
não se sente muito digno de honras, pelo menos depois do que
aconteceu na Líbia. Tem duas costelas partidas, onde a bala da
americana atingiu o seu colete antibala e foi apenas pela sorte de se
ter virado no último momento que a bala só o atingiu de raspão e não
o matou.
A sala está cheia de bandeiras e decorações vermelhas e os
pratos foram desfilando um atrás do outro, desde aperitivos de tofu e
medusa a tigelas da proibida sopa de barbatana de tubarão e fatias
de pato à Pequim, legumes e massa. A presidir a todo o banquete
está o chefe de Jiang, Li Baodong, que mostra um interesse
sorridente pela mulher de Jiang, Zhen, e a filha, Li Na, que gorgoleja
e ri devido a tanta atenção.
Estão presentes uma dúzia de membros da missão, e são-lhe
dirigidos sorrisos e acenos. Por fim, quando parece que Jiang e a
família podem regressar ao seu apartamento, Li Baodong aproxima-
se e diz a Zhen:
– Minha querida, se me permite, preciso de estar alguns minutos a
sós com o nosso herói.
Zhen está a embalar Li Na no regaço e dando-lhe pequenos
gomos de tangerina e acena com a cabeça, agradada. Jiang levanta-
se e segue o chefe, que atravessa a zona de cozinha da missão e
entra num pequeno gabinete sem decorações e com duas cadeiras e
uma secretária metálica.
Li Baodong pestaneja enquanto se instala pesadamente na
cadeira atrás da secretária, tira uma garrafa e dois copos de uma
gaveta e enche cada um deles com um líquido de cor escura.
– Um Huangjiu especial – afirma. – Muito caro, muito raro.
Contrabandeado através da mala diplomática. Bebe um bom trago,
merece-lo.
Jiang faz precisamente isso e, quando pousa o copo, Li pergunta:
– Estás a divertir-te?
– Sim, mas…
– Mas o quê?
– É desconfortável – retruca Jiang. – Considerando…
– Considerando como fodeste tudo aquilo em que tocaste? –
pergunta Li. – Há umas semanas foi-te atribuída uma tarefa simples:
ir àquelas montanhas no New Hampshire e recuperar a Mel Keating.
Em vez disso, desobedeceste às minhas ordens, agiste por conta
própria numa missão pessoal de vingança… e, quando tiveste uma
segunda oportunidade de fazer o teu trabalho, também fodeste essa.
Grande tonto, devias ter resgatado essa rapariga e pôr os
Americanos em dívida para connosco e descongelar as nossas
relações.
– Mas eu…
– Mas, em vez disso, puseste-nos a nós em dívida para com os
Americanos, ao permitir que fosses capturado e tratado pelos seus
serviços de informações na Tunísia antes de nos teres sido entregue.
És uma anedota, rapaz. Foi o que fizeste.
– Mas não lhes disse uma palavra!
Li retorque:
– Não precisavas… decerto que tiraram fotografias de alta
qualidade das tuas feições, para não falar de que recolheram as tuas
impressões digitais e amostras de ADN. Neste momento, afadigam-se
a fazer correr todas essas informações pelas suas bases de dados e,
dentro de umas horas, estarão a eliminar toda e qualquer rede que
tenhas criado, aqui e em toda a parte.
A dor nas costelas de Jiang continua a latejar e o seu estômago
revolve-se com náuseas.
– Os Americanos estão a fazer exigências – prossegue. – Dizem
que interferiste no resgate da filha do Presidente. Dizem que não há
conversações, nem movimentações para melhorar as nossas
relações enquanto a tua situação não for resolvida, Jiang Lijun.
Começa a suar e sente um gosto metálico na boca.
– Resolvida como? – pergunta, surpreendido por a sua voz
parecer tão fraca.
– Permanentemente – responde logo o chefe. – Sinto muito dizê-
lo, mas nunca deixarás os Estados Unidos.
Jiang inquire, aterrado:
– Vão entregar-me aos Americanos?
Li abana a cabeça.
– Claro que não. Nunca faria uma coisa dessas a um dos meus
agentes.
A visão de Jiang está a ficar desfocada. Olha para a secretária.
A bebida de Li continua intacta.
E o seu chefe diz, suavemente:
– Nada mal para um cogumelo gordo, hem? Pensa nisto, meu
caro Lijun: quando tudo isto estiver resolvido, serás um herói, como o
teu pai, e o partido tomará conta da tua mulher e da tua filha.
Prometo-te isso.
Jiang tenta falar, mas a sua língua, maxilar e, em breve, tudo o
resto, não funcionam.
136
Zona residencial
Casa Branca

A Presidente Pamela Barnes está sozinha na sala de estar da


zona residencial da Casa Branca, com os pés descalços sobre uma
almofada, bebericando o seu Glenlivet com gelo diário, a ver os
noticiários deste final de tarde na MSNBC, com o som desligado.
Estas últimas horas têm sido penosas. Pamela Barnes recusa-se a
ver qualquer noticiário com o som ligado porque não consegue
suportar as palavras alegres e congratulatórias que saem das bocas
traiçoeiras dos pivôs dos noticiários e dos peritos das forças armadas
e das Forças Especiais que vieram analisar, em termos respeitosos, a
missão não autorizada, mas coroada de êxito, realizada por Matt
Keating para resgatar a filha.
E a Administração Barnes?
Com os diabos, que mais pode fazer para além de emitir um
boletim de imprensa entusiástico a louvar Matt Keating e a sua equipa
e guerreiros anónimos, incluindo aquele agente dos Serviços
Secretos que foi morto?
E que está prestes a regressar à pátria.
No ecrã, vê-se uma transmissão em direto da Base Aérea de
Dover, em Delaware. Um jato da Força Aérea acabou de aterrar e
seis Marines em uniforme de gala avançaram para a traseira do avião
e estão a regressar agora, transportando o caixão de metal, coberto
com a bandeira, do ex-Marine e falecido agente dos Serviços
Secretos David Stahl.
Bebe mais um gole reconfortante.
Hoje, há algumas horas, foi dito à sua vice-chefe de gabinete,
Felicia Taft, pelos pais de Stahl e o seu congressista da Califórnia,
que nenhum membro da Administração Barnes seria bem-vindo na
cerimónia na Base Aérea de Dover.
Em vez disso, ao lado do chefe dos Serviços Secretos – e não o
secretário de Segurança Interna –, estão Matthew Keating, Samantha
Keating e Mel Keating, sentada calmamente numa cadeira de rodas.
A seu lado, encontram-se diversos membros dos Serviços Secretos e
da família Stahl.
Que imagem, que visão, enquanto o caixão é retirado
solenemente.
Richard, pensa, não há dúvida de que hoje precisava dos teus
conselhos.
Mas Richard está no Iowa, a tentar ser simpático com alguns
produtores de leite irritados com a última política económica da sua
administração. As convenções no Iowa vão acontecer mais cedo do
que as pessoas pensam e ela precisa de se preparar para os desafios
de concorrer a um segundo mandato.
Pamela Barnes levanta-se e dirige-se a uma pequena secretária.
Olha de novo para o ecrã de televisão. Vê-se um gráfico do Noroeste
da Líbia que mostra um raide dos Army Rangers contra o grupo de
edifícios onde Asim Al-Asheed vivia e a notícia é que foram
apreendidos inúmeros documentos importantes, planos e discos
rígidos de computadores.
São boas notícias, sim.
Mas não especialmente para si.
Abre a gaveta do meio da secretária e tira o envelope bege que
encontrou na Resolute, no dia da sua tomada de posse, há mais de
dezoito meses. Retira o bilhete manuscrito no papel timbrado da Casa
Branca e relê as palavras do seu antecessor, dando continuidade a
uma tradição, com quase quarenta anos, do dia da tomada de posse.

Cara Pamela,
Os meus sinceros parabéns pela sua vitória na
sequência de uma batalha política histórica, bem
travada no duro palco do atual ambiente
fortemente partidário.
Hoje torna-se Presidente de um povo
orgulhoso e bom, que é verdadeiramente honesto
nos seus corações e atos e anseia por uma
América em paz, que conheça a prosperidade e
seja líder no mundo.
Dirijo-lhe as minhas orações, apoio e melhores
votos para os meses difíceis que tem pela frente.
Está a iniciar uma viagem incrível que muito
poucos viveram ao longo dos anos e deve sentir-
se honrada por o povo americano a ter escolhido.
Deus abençoe a sua família.
Atenciosamente,
Matt Keating

Pamela Barnes faz uma pausa.


Oh, se aquele maldito SEAL tivesse ficado por ali.
Mas não o fez.

P.S.
Independentemente do que atrás foi dito,
Pamela, tenciono vê-la de novo, frente a frente,
dentro de quatro anos.

Pamela Barnes pega no bilhete histórico, amachuca-o até formar


uma bola, e atira-o para o chão.
Termina a sua bebida.
Decide que está na hora de tomar outra.
Agradecimentos

Pela sua ajuda e conhecimentos inestimáveis, os autores querem


agradecer ao primeiro-sargento Matt Eversmann (Ref.), 75.º
Regimento de Rangers do Exército; ao capitão Joe Roy, piloto de KC-
135, Força Aérea dos Estados Unidos; ao ex-chefe de gabinete da
Casa Branca, John Podesta; e a Richard Clarke, coordenador
nacional de segurança e combate ao terrorismo nas administrações
Clinton e Bush (43).
Um agradecimento especial também a Tina Flournoy, chefe de
gabinete de Bill Clinton; Steve Rinehart; Oscar Flores; Deneen
Howell; Michael O’Connor; e Mary Jordan.

Você também pode gostar