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O CASAMENTO INVENTADO
Para Nana Vaz de Castro, que originou um autêntico movimento.
Sorte a minha, talvez, de não existirem batidos de Ovomaltine do Bob nos Estados Unidos.
Ilha de Manhattan
Junho de 1779
D oía-lhe a cabeça.
Ou melhor, doía-lhe horrivelmente a cabeça.
Porém era-lhe difícil descrever exatamente o tipo de dor. Talvez tivesse sido atingido na cabeça
por uma bala de mosquete. Era plausível, dado viver atualmente em Nova Iorque (ou seria no
Connecticut?) e ser capitão no Exército de Sua Majestade.
Afinal de contas, estavam em guerra.
Mas aquele martelar específico – como se alguém lhe estivesse a esmagar o crânio com um canhão
(não com uma bala de canhão, mas com o próprio canhão) – sugeria ter sido atacado por um objeto
mais contundente do que uma bala.
Uma bigorna, talvez. Atirada de uma janela do primeiro andar.
Porém, vendo o lado positivo, uma dor daquelas sugeria, na verdade, que não estava morto, o que
também seria um resultado plausível, considerando os mesmos factos que o tinham levado a acreditar
ter sido baleado.
A guerra mencionada... tinha certamente matado muita gente.
E com uma regularidade alarmante.
Conclusão: não estava morto. Isso era bom. Mas também não sabia exatamente onde estava. O
próximo passo óbvio seria abrir os olhos, mas a luz filtrada pelas pálpebras fechadas bastava para
ele saber que era pleno dia. Embora, em teoria, pudesse estar disposto a pensar no lado positivo,
tinha a certeza de que, na prática, o resultado seria muito mau.
Portanto, manteve os olhos fechados.
Mas os ouvidos bem abertos.
Não estava sozinho. Embora não conseguisse distinguir a conversa, o burburinho e o movimento de
pessoas eram percetíveis. Objetos a serem pousados em mesas e uma cadeira, talvez, a ser arrastada.
Alguém gemia de dor.
A maioria das vozes era masculina, mas havia, pelo menos, uma mulher, perto o suficiente para lhe
ouvir a respiração. Ela emitia pequenos ruídos enquanto se dedicava a tarefas como, logo percebeu,
aconchegar-lhe cobertores ao corpo e tocar-lhe a testa com as costas da mão.
Gostava daqueles ruídos: os pequenos murmúrios e suspiros de que ela provavelmente nem se
dava conta. O perfume que ela emanava era delicioso, lembrando-lhe uma combinação de limão e
sabão.
E de trabalho árduo.
Reconhecia aquele odor. Já o sentira em si mesmo, embora de forma breve, antes de rapidamente
tresandar.
Porém, vindo dela, era um odor muito agradável. Talvez com notas terrosas. Quem seria ela e
porque o tratava com tal devoção?
– Como está o paciente hoje?
Aquela voz masculina era nova. Edward não se mexeu, hesitando sobre querer que alguém
percebesse que estava acordado.
Embora não soubesse por que razão o fazia.
– Na mesma – respondeu a mulher.
– Preocupa-me. Se não acordar em breve...
– Eu sei – interrompeu ela.
Edward identificou um tom de exasperação que achou curioso.
– Conseguiu persuadi-lo a comer a sopa?
– Apenas algumas colheres. Tive receio de que se engasgasse se o forçasse a mais.
O homem grunhiu em aprovação.
– Recorde-me há quanto tempo exatamente ele se encontra neste estado...
– Há uma semana, sir. Quatro dias antes de eu chegar e mais três desde então.
Uma semana, ponderou Edward. Se estava assim há uma semana, significava que estavam em...
março? Abril?
Não... talvez ainda fosse fevereiro. E mais provável que estivesse em Nova Iorque, não no
Connecticut.
Mas isso não explicava a impiedosa dor de cabeça. Obviamente algum acidente. Ou teria sido
atacado?
– Nenhuma alteração? – perguntou o homem, escusadamente, uma vez que a mulher acabara de o
referir.
Era decerto bem mais paciente do que Edward, pois respondeu numa voz calma e suave:
– Não, sir. Nenhuma.
Ele emitiu um som que não era bem um grunhido. Edward não soube como o interpretar.
– Hã... – começou a mulher, aclarando a garganta. – Recebeu alguma notícia do meu irmão?
Do irmão? Quem seria o irmão dela?
– Temo que não, Mrs. Rokesby.
Mrs. Rokesby?
– Quase três meses se passaram... – disse ela em voz baixa.
Mrs. Rokesby? Edward queria que esclarecessem melhor aquele detalhe. Tanto quanto sabia, só
existia um Rokesby na América do Norte: ele. Portanto, se ela era Mrs. Rokesby...
– Creio que talvez seja melhor dedicar a sua energia a cuidar do seu marido – aconselhou o
homem.
Marido?
– Asseguro-lhe que tenho estado a tratá-lo com toda a dedicação – respondeu ela, denotando mais
uma vez uma certa irritação.
Marido? Estavam a tratá-lo como se ele fosse marido daquela mulher? Seria ele casado?
Impossível. Como podia ser casado e não se lembrar?
Quem seria a mulher?
Edward sentiu o coração acelerar. Que diabo lhe estava a acontecer?
– Ele disse alguma coisa? – perguntou subitamente o homem.
– Eu... julgo que não.
Ela moveu-se com gestos bruscos. Ele sentiu mãos a tocar-lhe o rosto, depois o peito. Embora a
preocupação fosse evidente, os movimentos eram reconfortantes e inegavelmente agradáveis.
– Edward? – chamou ela, pegando-lhe na mão e acariciando-a várias vezes, os dedos roçando
suavemente a pele. – Consegues ouvir-me?
Ele devia responder. Afinal de contas, ela estava preocupada. Que cavalheiro não se apressaria a
acalmar as preocupações de uma senhora?
– Temo que não venha a sobreviver – declarou o homem, com muito pouca delicadeza, pensou
Edward.
– Ele ainda respira – retorquiu ela com teimosia.
O homem não respondeu, mas a expressão deve certamente ter sido de pena, pois ela repetiu, mais
alto agora:
– Ele ainda respira.
– Mrs. Rokesby...
Edward sentiu a mão dela apertar a sua. Em seguida, a outra mão cobriu a dele, os dedos
repousando levemente nos dele. Era uma espécie de pequeno abraço, que penetrou a alma de
Edward.
– Ele ainda respira, coronel – insistiu ela, com determinação. – E, enquanto o fizer, estarei ao lado
dele. Talvez não possa ajudar o Thomas, mas...
Thomas. Thomas Harcourt. Finalmente percebia a ligação. Ela devia ser Cecilia, a irmã de
Thomas. Conhecia-a bem.
Ou não. Na verdade, nunca a conhecera, mas era como se a conhecesse. No regimento, não havia
outro soldado que recebesse cartas com tanta frequência como Thomas. Recebia o dobro da
correspondência de Edward, que tinha quatro irmãos, ao contrário de Thomas, que só tinha uma irmã.
Cecilia Harcourt. O que estaria ela a fazer na América do Norte? Deveria estar no Derbyshire,
naquela pequena povoação que Thomas tanto ansiara por deixar para trás. A que tinha a estância
termal. Matlock. Não, Matlock Bath.
Edward nunca tinha lá estado, mas imaginava-a graciosa. Claro, não com base na descrição de
Thomas; o amigo adorava a agitação da cidade e estava ansioso por ter a patente de oficial e sair da
aldeia. Cecilia, porém, era diferente. A pequena povoação do Derbyshire ganhava vida nas cartas
que ela escrevia e Edward tinha a impressão de ser capaz de reconhecer os vizinhos dela se alguma
vez lá fosse.
Era incrivelmente espirituosa. Thomas ria-se tanto com as cartas da irmã que Edward acabou por
convencê-lo a lê-las em voz alta.
Certo dia, quando Thomas respondia a uma das cartas dela, Edward interrompera-o tantas vezes
que Thomas se levantara repentinamente da cadeira e, entregando-lhe a pena, resmungara:
– Escreve tu!
Edward assim fez.
Não numa carta separada, obviamente. Edward nunca poderia escrever-lhe diretamente. Seria
extremamente impróprio e nunca lhe dirigiria tal insulto. Mas habituara-se a rabiscar algumas linhas
no final das cartas de Thomas e, sempre que Cecilia respondia, dedicava-lhe também algumas linhas.
Thomas tinha um retrato em miniatura da irmã e, embora dissesse que a imagem já tinha vários
anos, Edward apanhava-se a estudar o pequeno retrato da jovem, perguntando-se se o cabelo seria
realmente daquela impressionante cor dourada ou se o sorriso era fiel, os lábios cerrados e
misteriosos.
Por alguma razão, achava que não. Desconfiava que ela fosse uma mulher de segredos. O sorriso
seria certamente aberto e radiante. Edward chegara mesmo a pensar que gostaria de a conhecer
pessoalmente assim que aquela maldita guerra terminasse. Claro que nunca partilhara o pensamento
com Thomas.
Teria sido muito estranho.
Agora, Cecilia estava ali. Nas colónias. O que era incompreensível, mas a verdade é que nada
fazia sentido atualmente. Edward tinha um ferimento na cabeça, aparentemente, Thomas estava
desaparecido e...
Edward esforçou-se por se lembrar...
...tudo indicava que se casara com Cecilia Harcourt.
Abriu os olhos e tentou focar a mulher de olhos verdes que se inclinou sobre ele.
– Cecilia?
*
Cecilia tivera três dias para imaginar o que Edward Rokesby diria quando finalmente acordasse.
Várias possibilidades lhe ocorreram, sendo a mais provável a seguinte: «Quem diabo és tu?»
Não teria sido uma pergunta estúpida.
Pese embora a crença do coronel Stubbs, e de todas as outras pessoas daquele hospital militar mal
equipado, o nome dela não era Cecilia Rokesby, mas Cecilia Harcourt, e não era seguramente mulher
do atraente homem de cabelos escuros deitado na cama.
Quanto à origem do mal-entendido...
Talvez tivesse algo a ver com ela se ter declarado mulher de Mr. Rokesby diante do comandante
dele, de dois soldados e de um secretário.
Na altura, parecera-lhe uma boa ideia.
Não fora de ânimo leve que decidira vir para Nova Iorque. Estava bem ciente dos perigos de
viajar para as colónias devastadas pela guerra, já para não falar da difícil travessia do tempestuoso
oceano Atlântico. Mas, depois de o pai morrer, recebera a notícia de que Thomas tinha sido ferido e,
para piorar, o maldito primo aparecera em Marswell, a meter o nariz em tudo...
Não podia continuar no Derbyshire.
Porém, não tinha para onde ir.
Tomou então talvez a única decisão precipitada da sua vida: enterrou as pratas no quintal e
comprou um bilhete de navio de Liverpool para Nova Iorque. Mas, quando chegou, Thomas estava
desaparecido.
Conseguira localizar o regimento do irmão, mas ninguém tinha respostas às suas perguntas, e
quanto mais insistia em fazê-las, mais era tratada pelas altas patentes militares como um mosquito
incomodativo. Fora ignorada, tratada com condescendência e, muito provavelmente, enganada.
Gastara quase todo o seu dinheiro, comia apenas uma vez por dia e vivia num quarto de pensão,
mesmo ao lado do de uma mulher que poderia ou não ser prostituta.
(Que recebia convidados no quarto, isso era certo; a questão era se recebia dinheiro ou não por
isso. Para ser honesta, Cecilia esperava que sim, pois pelos sons que ouvia do quarto ao lado, o
trabalho dela era muito árduo.)
Depois de quase uma semana infrutífera, Cecilia ouviu, por acaso, um soldado dizer a um
companheiro que, uns dias antes, um homem tinha sido levado para o hospital. Tinha sofrido uma
pancada na cabeça e estava inconsciente. Chamava-se Rokesby.
Edward Rokesby. Só podia ser ele.
Nunca o vira, mas sabia ser o melhor amigo do irmão e, para Cecilia, era como se o conhecesse.
Sabia, por exemplo, que era do Kent, que era o segundo filho do conde de Manston e que tinha um
irmão mais novo na marinha e outro a estudar em Eton. A irmã dele já era casada, mas não tinha
filhos, e sabia ainda que aquilo de que ele tinha mais saudades era da mousse de groselha feita pela
cozinheira de sua casa.
O irmão mais velho chamava-se George e Cecilia ficara bastante surpreendida quando Edward
admitira não lhe invejar a posição de herdeiro do título. Um condado vinha acompanhado de uma
preocupante falta de liberdade, dissera ele certa vez numa carta, e ele sabia que o seu lugar era no
exército, a lutar pela pátria.
Talvez um desconhecido ficasse chocado com o nível de intimidade das cartas, mas Cecilia
aprendera que a guerra transformava os homens em filósofos. Seria essa, sem dúvida, também a
razão pela qual Edward Rokesby começara a acrescentar pequenas mensagens pessoais no final de
cada carta de Thomas para a irmã. Havia algo de reconfortante em partilhar os pensamentos com um
desconhecido. Era fácil ser ousado com alguém que nunca encontraria a uma mesa de jantar ou numa
sala de visitas.
Pelo menos, essa era a teoria de Cecilia. Talvez ele escrevesse exatamente o mesmo à família e
aos amigos do Kent. O irmão contara-lhe que o amigo estava «praticamente noivo» de uma vizinha.
Decerto, Edward também lhe escreveria.
Além do mais, Edward não escrevia pessoalmente a Cecilia. Tudo começara com pequenos
apartes de Thomas: o Edward disse isto ou aquilo ou o capitão Rokesby pediu-me para te dizer
que...
As primeiras mensagens eram terrivelmente engraçadas, e Cecilia, enfiada em Marswell com uma
montanha crescente de contas para pagar e um pai desinteressado, ficara feliz pelo sorriso que as
suas palavras lhe colocavam no rosto. Portanto, respondeu à altura, adicionando pequenas notas às
cartas que enviava ao irmão: diz, por favor, ao capitão Rokesby... e, mais tarde: creio que o capitão
Rokesby iria gostar de...
Então, certo dia, reparou que a última carta do irmão incluía um parágrafo com uma caligrafia
diferente. Uma breve saudação e uma curta descrição das flores silvestres, mas era de Edward. Com
a seguinte despedida:
Com devoção,
Capitão Edward Rokesby
Com devoção.
Devoção.
O rosto abriu-se num sorriso tonto, logo seguido de um sentimento de pura estupidez: suspirava por
um homem que nem sequer conhecia.
Um homem que provavelmente nunca conheceria.
Mas era mais forte do que ela. Não importava que o sol brilhasse com todo o fulgor do verão nas
águas do lago... sem o irmão, a vida no Derbyshire parecia-lhe sempre cinzenta. Os dias
entrelaçavam-se uns nos outros sem qualquer variação. Cecilia tratava da casa, assegurava-se de que
não havia desvios no orçamento e cuidava do pai, não que ele notasse, claro. De tempos a tempos,
eram organizados pequenos bailes na aldeia, mas mais de metade dos homens da idade dela tinha
entrado para o serviço militar, portanto, ao redor da pista de dança, havia sempre duas vezes mais
senhoras do que cavalheiros.
Por isso, quando o filho de um conde lhe escreveu sobre flores silvestres...
O seu coração palpitou.
Era o mais perto de namoriscar que lhe acontecera nos últimos anos.
Contudo, quando decidira viajar para Nova Iorque, era o irmão, e não Edward Rokesby, que lhe
ocupava a mente. Quando o mensageiro chegara com a missiva do comandante de Thomas...
Fora o pior dia da sua vida.
A carta estava dirigida ao pai, é claro. Cecilia agradecera ao mensageiro e certificara-se de que
lhe era dado algo para comer na cozinha, mas não mencionara uma palavra sobre a morte súbita de
Walter Harcourt três dias antes. Levara o envelope selado para o quarto, trancara a porta e ficara,
durante alguns minutos, sem reação, a olhar com temor para a carta antes de reunir toda a sua
coragem e deslizar um dedo sob o lacre.
A primeira coisa que sentiu foi alívio. Estava tão certa de que a carta comunicaria a morte de
Thomas e de que ficaria sozinha no mundo, sem ninguém que realmente amasse, que lhe parecera
quase uma bênção.
Mas logo aparecera o primo, Horace.
Cecilia não ficara surpreendida ao vê-lo no funeral do tio. Afinal de contas, assim recomendavam
as regras de etiqueta, mesmo se a ligação aos familiares não fosse de estreita amizade. Mas, então,
Horace decidira ficar. Santo Deus, como ele era irritante! Não falava, ditava leis, e Cecilia não
podia dar dois passos sem que ele a seguisse expressando uma profunda preocupação com o bem-
estar dela.
Pior, fazia constantemente comentários sobre Thomas, sobre os perigos da vida de soldado nas
colónias e como seria um alívio para todos quando Thomas regressasse para ocupar o lugar, que era
seu por direito, de senhor de Marswell.
Estando obviamente implícita a mensagem de que, se Thomas não regressasse, Horace herdaria
tudo.
Maldito estúpido morgadio! Cecilia sabia que devia respeitar os antepassados, mas, se pudesse
voltar atrás no tempo e encontrar o seu trisavô, estava capaz de jurar que lhe torceria o pescoço. Ele
comprara o terreno e construíra a casa, e no seu delírio de megalomania dinástica impusera uma
herança absolutamente restritiva. Marswell passaria de pai para filho. Não havendo um filho,
qualquer primo homem serviria. Pouco importava que Cecilia ali tivesse vivido toda a vida, que
conhecesse cada recanto e esconderijo e tivesse a confiança e o respeito dos criados. Se Thomas
morresse, Horace deixaria o Lancashire com todo o prazer e ficaria com tudo.
Cecilia tentara esconder dele o facto de Thomas ter sido ferido, mas era impossível manter
segredo sobre uma notícia dessas. Um vizinho bem-intencionado deve ter dado com a língua nos
dentes, pois Horace não demorou nem um dia depois do funeral a declarar que, como parente
masculino mais próximo de Cecilia, assumiria a responsabilidade pelo bem-estar da prima.
Obviamente, deveriam casar-se, anunciara ele.
Não!, pensara Cecilia num silêncio atordoado. Nem pensar em tal barbaridade!
– Tens de aceitar a realidade – continuara Horace, avançando um passo na direção dela. – Estás
sozinha. Não podes permanecer indefinidamente em Marswell sem uma acompanhante.
– Vou para casa da minha tia-avó – declarou Cecilia.
– A Sophie? – questionou Horace em tom depreciativo. – Ela não tem capacidade para tal.
– A minha outra tia-avó. Dorcas.
Os olhos estreitaram-se.
– Nunca ouvi falar de uma tia chamada Dorcas.
– É claro que não – apressou-se Cecilia a responder. – É uma tia materna.
– E onde é que ela vive?
Dado que não passava de um produto da sua imaginação, essa tia de Cecilia não vivia em parte
alguma, mas a avó materna era escocesa, por isso, Cecilia respondeu:
– Edimburgo.
– Deixarias a tua casa?
Se isso significava evitar o casamento com Horace, sim.
– Far-te-ei mudar de ideias – resmungou Horace e, de repente, antes de Cecilia se aperceber das
intenções do primo, beijou-a.
Cecilia respirou fundo quando ele a largou e reagiu dando-lhe uma bofetada.
Horace devolveu prontamente a bofetada e, uma semana depois, Cecilia estava a caminho de Nova
Iorque.
A viagem demorou cinco semanas – tempo mais do que suficiente para Cecilia duvidar da justeza
da decisão. Mas a verdade é que não sabia que mais poderia ter feito. Não sabia por que Horace
insistia tanto em casar-se com ela, se tinha uma boa possibilidade de herdar Marswell de qualquer
maneira. Cecilia só conseguia imaginar que ele tivesse problemas financeiros e precisasse de um
sítio para viver. Caso se casasse com Cecilia, poderia mudar-se de imediato para a propriedade e
fazer figas para que Thomas nunca regressasse.
Cecilia estava ciente de que o casamento com o primo seria a escolha lógica. Se Thomas estivesse,
de facto, morto, ela poderia continuar a viver na sua casa de infância. E passá-la aos filhos que
viesse a ter.
Mas... santo Deus, essas crianças seriam também filhas de Horace, e só de pensar em deitar-se
numa cama com aquele homem... Credo! A ideia de ter de viver com aquele homem...
Não era capaz. Marswell não valia o sacrifício.
No entanto, a situação em que se encontrava era periclitante. Horace não podia forçá-la a aceitar
uma proposta de casamento, mas podia tornar-lhe a vida muito difícil, e ele tinha razão numa coisa:
ela não podia ficar indefinidamente em Marswell sem uma acompanhante. Cecilia era adulta – tinha
acabado de fazer os vinte e dois anos – e os amigos e vizinhos seriam compreensivos durante algum
tempo, dadas as circunstâncias, mas uma jovem a viver sozinha era um convite às más-línguas. Se
Cecilia dava importância à sua reputação, teria de partir.
A ironia dava-lhe vontade de gritar. Preservava a sua reputação atravessando completamente
sozinha um oceano... e só tinha de garantir que ninguém no Derbyshire descobrisse.
Thomas era o seu irmão mais velho, o seu protetor, o seu melhor amigo. Por ele, empreenderia uma
viagem que sabia ser irresponsável e provavelmente infrutífera. As infeções provocavam mais
mortes do que os ferimentos no campo de batalha e ela sabia que, quando chegasse a Nova Iorque, o
irmão podia já estar morto.
O que não esperava era que o irmão tivesse realmente desaparecido.
Foi no meio de um turbilhão de desespero e desamparo que ela soube que Edward fora ferido.
Levada pela necessidade de ajudar alguém, precipitou-se para o hospital. Se não podia ajudar o
irmão, pelo menos cuidaria do melhor amigo do irmão. A viagem até ao Novo Mundo não seria em
vão.
Descobriu que o hospital fora montado numa igreja, ocupada pelo exército britânico, o que já de si
era estranho, mas, quando pediu para ver Edward, Cecilia foi sumariamente informada de que não
era bem-vinda. O capitão Rokesby era um oficial do exército, declarara um guarda com ar
intransigente. Era filho de um conde e um doente demasiado importante para receber visitas de uma
qualquer plebeia.
Cecilia ainda se perguntava sobre o que poderia o homem querer dizer com tal afirmação, quando
ele a olhou com ar arrogante e a informou de que o capitão Rokesby só poderia receber visitas de
outros militares e membros da família.
Foi então que Cecilia exclamou:
– Eu sou a mulher dele!
Depois de tal declaração lhe ter escapado da boca, não havia possibilidade de voltar atrás.
Pensando nisso, era espantoso ter-se safado sem ser descoberta. Provavelmente, tê-la-iam
expulsado à força, não fora o superior de Edward estar presente. O coronel Stubbs não era o homem
mais afável do mundo, mas sabia da amizade entre Edward e Thomas, por isso, não ficou
surpreendido ao saber que Edward se casara com a irmã do amigo.
Antes de Cecilia conseguir parar para pensar nas consequências, viu-se a tecer uma teia de
mentiras sobre um namoro por carta e um casamento por procuração num navio.
Estranhamente, toda a gente acreditou nela.
Porém, não se arrependia da mentira. Era um facto incontestável que Edward melhorara muito sob
os cuidados dela. Secava-lhe a testa quando ele estava febril e ia-o mudando de posição na cama, na
medida das suas possibilidades, para evitar a formação de escaras. Também era verdade que vira
mais do corpo dele do que seria decente para uma mulher solteira, mas, em tempo de guerra, as
regras da sociedade certamente deviam ser postas de lado.
Além de que ninguém saberia.
Ninguém saberia. Repetia isto para si mesma a toda a hora. Estava a oito mil quilómetros do
Derbyshire. Todos os que a conheciam estavam convencidos de que fora visitar a tia solteirona.
Além disso, a família Harcourt não frequentava os mesmos círculos da família Rokesby. Cecilia
supunha que Edward fosse considerado uma pessoa importante pelos coscuvilheiros da alta
sociedade, mas ela não era e parecia-lhe impossível que as histórias do segundo filho do conde de
Manston chegassem aos ouvidos dos habitantes da pequena vila de Matlock Bath.
Quanto ao que faria quando ele acordasse...
Bem, ainda não tinha pensado nisso. Mas, como se via, não era importante. Imaginara centenas de
cenários possíveis, mas nenhum deles contemplava a hipótese de ele a reconhecer.
– Cecilia? – disse ele, os olhos piscando para ela.
Cecilia gelou um instante, hipnotizada pelo azul profundo daqueles olhos.
Deveria conhecer a cor dos olhos dele.
Subitamente, percebeu como tal pensamento era ridículo: por que motivo saberia de que cor eram
os olhos de Edward?
Mesmo assim... de qualquer forma...
Sentia que deveria ter conhecimento desse facto.
– Acordaste... – disse ela, entorpecida.
Tentou dizer mais, mas as palavras ficaram presas na garganta. Custava-lhe respirar, assoberbada
pela emoção inesperada. Debruçou-se sobre ele com as mãos trémulas e tocou-lhe a testa. Não sabia
por que o fazia, pois ele não tinha febre havia quase dois dias. Mas fora dominada por uma vontade
imensa de o tocar, de sentir com a mão o que via com os próprios olhos.
Edward acordara.
Estava vivo.
– Dê-lhe espaço! – comandou o coronel Stubbs. – Vá chamar um médico!
– O senhor chame o médico! – rosnou Cecilia, recuperando um pouco a sensatez. – Eu sou a mu...
A voz sumiu-se-lhe. Não podia proferir aquela mentira. Não à frente de Edward.
Mas o coronel Stubbs entendeu a palavra não dita e, depois de resmungar baixinho algo rude, saiu
em passo duro à procura de um médico.
– Cecilia? – repetiu Edward. – Que fazes aqui?
– Vou explicar tudo – apressou-se ela a sussurrar. O coronel podia voltar a qualquer momento e
preferia não dar explicações perante uma audiência. Por outro lado, não podia deixar que Edward a
desmentisse, por isso, acrescentou: – Mas, por ora, por favor...
– Onde estou? – interrompeu ele.
Cecilia pegou noutro cobertor. Ele precisava de mais uma almofada, mas, como eram escassas, um
cobertor dobrado teria de bastar. Depois de ajudar Edward a erguer-se ligeiramente na cama,
colocou o cobertor a fazer de almofada nas costas e respondeu:
– Estás no hospital.
Ele olhou em volta, com ar desconfiado, pois a arquitetura do espaço era claramente eclesiástica.
– Com janelas de vitral?
– É uma igreja. Ou melhor, era uma igreja. Foi transformada em hospital.
– Mas onde? – voltou ele a perguntar num tom algo insistente.
As mãos de Cecilia interromperam o movimento. Algo não estava bem. Ela virou a cabeça o
suficiente para que os olhos de ambos se cruzassem.
– Estamos na cidade de Nova Iorque.
Ele franziu o sobrolho.
– Julguei que estava...
Ela esperou, mas ele não terminou o pensamento.
– Julgavas que estavas onde? – encorajou-o ela.
– Não sei, eu estava... – respondeu ele, com uma expressão vazia no olhar, e deixando fugir as
palavras, como se o próprio esforço de pensar lhe fosse doloroso. – Eu devia ter ido para o
Connecticut.
Cecilia endireitou lentamente o corpo e explicou:
– E foste para o Connecticut.
– Fui? – perguntou ele com espanto.
– Sim. Passaste mais de um mês lá.
– O quê? – Um clarão perpassou-lhe os olhos. Medo, talvez.
– Não te lembras?
Ele piscou várias vezes, incrédulo.
– Mais de um mês, dizes?
– Foi o que me disseram. Eu tinha acabado de chegar.
– Mais de um mês – repetiu ele, abanando a cabeça. – Como é possível que...
– Não deves esforçar-te – interrompeu Cecilia, agarrando novamente a mão dele.
O gesto pareceu acalmá-lo. Na verdade, acalmou-a a ela.
– Não me lembro... Eu estive no Connecticut? – O olhar tornou-se acutilante e o aperto da mão,
quase desconfortável. – Como voltei a Nova Iorque?
Cecilia encolheu os ombros, desconsolada por não ter respostas para lhe dar.
– Não sei. Eu vim à procura do Thomas e soube que estavas aqui. Pelo que me disseram, foste
encontrado perto de Kip’s Bay com um ferimento na cabeça.
– Estavas à procura do Thomas... – Era quase possível ver-lhe o turbilhão de pensamentos no
cérebro, antes de ele acrescentar: – Por que estavas à procura do Thomas?
– Fui informada de que tinha sido ferido. Mas agora está desaparecido e...
A respiração de Edward tornou-se ofegante.
– Quando é que nós casámos?
Cecilia abriu a boca, mas nada mais lhe escapou além de uns sons gaguejados. Ele pensaria
realmente que eram casados? Considerando que nunca a tinha visto antes de hoje?
– Não me lembro – disse ele.
– Do que é que não te lembras? – perguntou ela, com cautela.
Ele olhou-a com certo ar de pânico.
– Não sei.
Cecilia sabia que devia tentar apaziguá-lo, mas limitou-se a fitá-lo. O olhar dele era vazio e a pele
empalecida pela doença adquiriu um tom acinzentado. Ele agarrou o lençol como se fosse uma
espécie de salva-vidas e Cecilia sentiu uma vontade irresistível de o imitar. O aposento em que
estavam pareceu rodopiar e reduzir-se a um túnel estreito.
Ela não conseguia respirar e ele parecia prestes a desmaiar.
Cecilia forçou-se a encará-lo, para fazer a pergunta que se impunha:
– Lembras-te de alguma coisa?
Capítulo 2
E dward não conseguia respirar. Sentia o coração a querer saltar-lhe do peito e apenas um
pensamento lhe ocupava a mente: sair da cama. Tinha de entender o que estava a acontecer.
Tinha de...
– Para! – exclamou Cecilia, agarrando-o para o impedir de se levantar. – Tens de te acalmar.
– Deixa-me levantar – protestou ele, apesar do vestígio de lucidez a lembrá-lo de que não sabia
para onde ir.
– Por favor – implorou ela, transferindo o peso do corpo e apoiando-se pesadamente nos pulsos de
Edward. – Acalma-te e respira fundo.
Ele olhou-a, o peito ofegante.
– Que se passa?
Ela engoliu em seco e olhou em volta.
– Devemos esperar que o médico venha.
Mas Edward estava demasiado agitado para aceitar o conselho.
– Que dia é hoje? – perguntou ele.
Ela pestanejou, confusa, como se tivesse sido apanhada de surpresa.
– Sexta-feira.
– A data! – rosnou ele.
Ela hesitou e, quando finalmente respondeu, fê-lo com cautela:
– Vinte e cinco de junho.
O coração de Edward voltou a acelerar.
– Como?
– É melhor esperar pelo...
– Não é possível! – exclamou Edward, conseguindo soerguer-se ligeiramente. – Estás enganada.
Ela abanou a cabeça devagar e respondeu:
– Não estou enganada.
– Não, não – repetiu ele, os olhos percorrendo desesperadamente o aposento e gritando: –
Coronel! Doutor! Alguém!
– Edward, para! – Tentou segurá-lo, mas ele conseguiu virar as pernas para fora da cama. – Por
favor, espera até vir o médico.
Ele estendeu um braço trémulo e perguntou a um homem de tez escura que varria o chão:
– Que dia é hoje?
O homem olhou para Cecilia com olhos muito arregalados, como se pedisse conselho.
– Que dia é hoje? – insistiu Edward. – O mês. Diga-me que mês.
Depois de outro olhar rápido para Cecilia, o homem respondeu:
– É junho, sir. O fim do mês.
– Não – murmurou Edward, deixando-se cair para trás na cama. – Não.
Fechou os olhos, lutando contra a dor de cabeça lancinante e tentando raciocinar. Tinha de haver
uma maneira... Se conseguisse concentrar-se o suficiente e focar-se na última coisa de que se
lembrava...
Abriu os olhos bruscamente e olhou para Cecilia.
– Não me lembro de ti.
Ela engoliu em seco, visivelmente perturbada, e Edward sentiu que devia envergonhar-se de a pôr
à beira das lágrimas. Era uma senhora. A mulher dele! Mas decerto o perdoaria, pois ele tinha de
saber... de entender o que estava a acontecer.
– Disseste o meu nome quando acordaste – sussurrou ela.
– Eu sei quem és. Só não te reconheço – respondeu ele.
Com uma expressão trémula, ela endireitou o corpo e prendeu uma madeixa de cabelo atrás da
orelha, antes de apertar as mãos em óbvio nervosismo. Foi então que um pensamento absurdo passou
pela cabeça de Edward. Ela não se parecia muito com a miniatura que o irmão dela lhe mostrara. A
boca dela era grande e carnuda, muito longe do contorno delicado e misterioso do retrato. O cabelo
também não era loiro, pelo menos não daquele tom celestial eleito pelo pintor. Era castanho-claro,
bastante semelhante ao de Thomas, na verdade, embora com menos madeixas ruivas.
Sem dúvida, passava menos tempo do que ele ao sol.
– Cecilia Harcourt, certo? – inquiriu ele, pois acabara de perceber que ela não o tinha ainda
confirmado.
– Sim, claro – anuiu ela.
– E estás aqui, em Nova Iorque... porquê? – acrescentou ele, examinando-lhe a expressão.
Viu o olhar dela desviar-se para o outro lado da divisão e o discreto abanar de cabeça.
– É complicado.
– Mas somos casados – disse ele, sem saber se era uma afirmação ou uma pergunta.
Ela sentou-se na beira da cama com certa relutância. Edward não podia culpá-la por hesitar,
depois de ele esbracejar como um animal enjaulado. Ela devia ser muito forte para ter conseguido
dominá-lo.
Ou ele muito fraco.
Cecilia engoliu em seco, como se estivesse a preparar-se para confessar algo difícil.
– Tenho de confessar que...
– Que se passa aqui?
Ela sobressaltou-se, recuando, e ambos se viraram para fitar o coronel Stubbs, que atravessava a
capela seguido pelo médico.
– O que fazem os cobertores no chão? – exigiu saber o coronel.
Cecilia levantou-se, dando espaço ao médico para se aproximar de Edward.
– Ele debateu-se – explicou ela. – Está desorientado.
– Eu não estou desorientado! – protestou Edward, zangado.
O médico olhou para ela e Edward teve vontade de o esganar. Porque estaria ele a olhar para
Cecilia? Não era ele o doente?
– Ele parece ter... – Cecilia interrompeu-se, mordendo o lábio e transferindo o olhar nervoso para
o médico.
Ela não sabia o que dizer, o que Edward considerou compreensível.
– Mrs. Rokesby? – incentivou o médico.
Ali estava novamente: Mrs. Rokesby. Significava que era casado. Como poderia ser possível?
– Bem – começou ela, hesitante, provavelmente à procura das palavras certas –, acho que ele não
se lembra de... quero dizer...
– Diga de uma vez, mulher! – bradou o coronel Stubbs.
Edward quase saltou da cama antes de se dar conta do que fazia.
– Cuidado com o tom, coronel – rosnou.
– Não, não – apressou-se a intervir Cecilia. – Não te preocupes. O coronel não teve intenção de
me faltar ao respeito. Estamos todos nervosos.
Edward soltou um resmungo e teria revirado os olhos, não fora ela ter decidido naquele momento
pousar gentilmente a mão no seu ombro. A camisa que usava era fina, quase puída, e ele sentiu a
pressão delicada e firme dos dedos dela.
O gesto ajudou a acalmá-lo. A raiva não se evaporou magicamente, mas ele conseguiu respirar
fundo, o suficiente para se controlar e não atacar fisicamente o coronel.
– O Edward não sabia em que dia estamos – esclareceu Cecilia, o tom adquirindo mais confiança.
– Julgo que ele pensava ainda ser...
Interrompeu-se e olhou para Edward.
– Não junho – completou ele, em tom ríspido.
Franzindo o sobrolho, o médico pegou-lhe no pulso e assentiu com a cabeça, enquanto lhe
verificava a pulsação. Em seguida, examinou os olhos de Edward.
– Os meus olhos estão perfeitamente bem – resmungou ele.
– Qual é a sua última lembrança, capitão Rokesby? – perguntou o médico.
Edward abriu a boca com a firme intenção de responder à pergunta, mas a sua mente parecia uma
extensão nebulosa a perder de vista. Era como se estivesse em alto-mar, rodeado de um azul
imperturbável, sem que nenhum pensamento ou memória agitasse a superfície.
Frustrado, agarrou o lençol com força. Como poderia recuperar a memória se nem sequer sabia do
que se lembrava?
– Faça um esforço, Rokesby – resmungou o coronel Stubbs.
– Estou a tentar! – protestou Edward.
Tomá-lo-iam por idiota? Acreditariam realmente que não se esforçava? Eles não faziam ideia do
que se passava na cabeça dele, do que era sentir que a memória não passava de um vasto espaço
vazio.
– Eu não sei – sussurrou por fim. Tinha de se recompor. Afinal de contas, era um soldado, treinado
para permanecer calmo face ao perigo. – Acho que... talvez... sei que tinha de ir para a colónia do
Connecticut.
– O capitão foi mesmo para a colónia do Connecticut – informou o coronel Stubbs. – Não se
lembra?
Edward abanou a cabeça. Tentou... queria muito lembrar-se... mas nada. Apenas a vaga ideia de
que alguém lhe pedira para ir ao Connecticut.
– Era uma missão importante – insistiu o coronel. – Há muita informação que precisamos de saber
de si.
– A probabilidade de isso acontecer agora é nula, não lhe parece? – respondeu Edward, com
amargura.
– Por favor, não o pressione – pediu Cecilia. – Ele acabou de acordar.
– A sua preocupação é louvável – comentou o coronel –, mas trata-se de questões militares vitais
que não podem ser adiadas por causa de uma dor de cabeça. – Dirigindo um olhar rápido a um
soldado, ordenou: – Acompanhe Mrs. Rokesby lá fora. Ela poderá voltar depois de interrogarmos o
capitão.
Fora de questão!, pensou Edward.
– A minha mulher fica comigo – insurgiu-se Edward.
– Não podemos partilhar informações tão sensíveis com ela.
– Não é realmente um problema, uma vez que não tenho nada para lhe dizer.
Cecilia deslizou entre o coronel e a cama.
– Precisam de lhe dar tempo para recuperar a memória.
– Mrs. Rokesby tem razão – disse o médico. – Casos como este são raros, mas é muito provável
que as memórias regressem, pelo menos, em grande parte.
– Quando? – quis saber o coronel Stubbs.
– Não lhe sei dizer. Entretanto, devemos proporcionar-lhe toda a paz e tranquilidade possíveis.
– Não – protestou Edward.
Paz e tranquilidade eram as últimas coisas de que precisava. Não era assim que ele vivia. Para
alcançar a excelência, era preciso trabalhar arduamente, treinar, praticar... não ficar deitado na cama
à espera de paz e sossego.
Olhou para Cecilia. Ela conhecia-o. Talvez ele não se lembrasse do rosto dela, mas tinham
trocado cartas durante mais de um ano, portanto, ela sabia que ele era incapaz de ficar deitado sem
fazer nada.
– Cecilia, entendes, com certeza.
– Creio que o médico tem razão – começou ela, baixinho. – Se descansasses um pouco...
Edward já abanava a cabeça. Estavam todos enganados. Eles não... Caramba! A dor de cabeça era
insuportável.
– Que se passa? – alarmou-se Cecilia. – Que lhe está a acontecer?
A última coisa que ele viu antes de fechar os olhos foi a expressão de pânico de Cecilia.
– A minha cabeça – queixou-se Edward, com um soluço de dor.
Talvez tivesse abanado a cabeça com muita força. Era como se o cérebro embatesse repetidamente
contra o crânio.
– Lembrou-se de alguma coisa? – urgiu o coronel Stubbs.
– Não... – Edward interrompeu-se antes de proferir algum insulto imperdoável. – É muito
doloroso.
– Basta! – exclamou Cecilia. – Não posso permitir que continue a interrogá-lo.
– A senhora é que não me dá permissão? – retorquiu o coronel Stubbs. – Eu sou o superior dele.
Edward não se atreveu a abrir os olhos, o que foi uma pena, pois teria realmente gostado de ver a
cara do coronel quando Cecilia lhe respondeu:
– Mas não é o meu superior.
– Por favor – fez-se ouvir a voz do médico.
Edward sentiu movimento e depois o afundar do colchão, quando o médico se sentou.
– Consegue abrir os olhos?
Edward assentiu com cuidado, desta vez. Parecia-lhe que a única maneira de combater a dor era
manter as pálpebras cerradas.
– Acontece com lesões na cabeça – murmurou o médico. – Podem levar muito tempo a curar e o
processo costuma ser muito doloroso. Infelizmente, é inútil tentar forçar a natureza.
– Compreendo – aceitou Edward, embora com relutância.
– Os médicos não se dão a esse luxo – observou o médico. A voz parecia mais distante, como se
ele tivesse virado a cabeça para se dirigir a outra pessoa. – Há muitas coisas que não sabemos sobre
lesões cerebrais. Na verdade, aposto que aquilo que não sabemos ultrapassa largamente o que
sabemos.
Edward não achou a declaração nada reconfortante.
– A sua mulher cuidou bem de si – continuou o médico, com uma palmadinha no braço de Edward.
– Recomendo que continue a fazê-lo, se possível, fora do hospital.
– Fora do hospital? – repetiu Cecilia.
Com os olhos ainda fechados, Edward ouviu-lhe a nota de pânico na voz.
– Ele já não tem febre e o ferimento na cabeça está a curar bem. Não vejo sinais de infeção –
explicou o médico.
Edward levou a mão à cabeça e encolheu-se de dor.
– No seu lugar, não faria isso – aconselhou o médico.
Forçando-se a abrir as pálpebras, Edward olhou para os dedos, antecipando sangue.
– Eu não posso tirá-lo do hospital – afirmou Cecilia.
– Vai ficar tudo bem – tranquilizou-a o médico. – Nada melhor do que a mulher para lhe prestar os
cuidados necessários.
– Não, não está a compreender. Não tenho para onde o levar.
– Onde estás hospedada? – perguntou Edward, lembrando-se, de repente, de que, como marido
dela, era responsável pela sua segurança e bem-estar.
– Arrendei um quarto. Não fica longe. Mas só tem uma cama.
Pela primeira vez desde que acordara, Edward teve vontade de sorrir.
– Uma cama pequena – corrigiu ela. – Mal dá para mim. Os teus pés ficariam de fora. – Então,
como ninguém interveio com rapidez suficiente para dissipar o óbvio desconforto, ela acrescentou: –
É uma pensão para mulheres. Não permitiriam a estada dele.
Edward virou-se para o coronel Stubbs com estupefação.
– A minha mulher está alojada numa pensão?!
– Nós não sabíamos que ela estava cá – respondeu o coronel.
– Sabe-o há três dias, obviamente.
– Ela já estava instalada...
Uma fúria súbita invadiu Edward, pois sabia bem como eram as pensões femininas na cidade de
Nova Iorque. Não importava se não se lembrava do casamento. Cecilia era sua mulher! E o exército
deixava-a hospedar-se num lugar de má fama?
Edward tinha sido criado para ser um cavalheiro – um Rokesby – e algumas ofensas eram
inadmissíveis. Esqueceu a dor excruciante, até se esqueceu de que havia perdido a memória. Tudo o
que importava era o facto de a sua mulher, a quem ele jurara amar e proteger, ter sido
escandalosamente negligenciada pelas próprias pessoas a quem ele dedicara os últimos três anos da
sua vida.
Foi com uma voz dura como diamante que disse:
– Arranjem-lhe outro sítio para ficar.
Stubbs ergueu as sobrancelhas. Ambos sabiam quem era o coronel e quem era um mero capitão,
mas Edward não se deixou impressionar. Passara grande parte da carreira militar a silenciar
voluntariamente as suas origens aristocráticas. Nas presentes circunstâncias, contudo, não teve
escrúpulos em invocá-las.
– A senhora é a ilustre Mrs. Edward Rokesby – recordou.
O coronel Stubbs abriu a boca, mas Edward não o deixou falar.
– É minha mulher e nora do conde de Manston – continuou num tom de frieza aristocrática,
aperfeiçoado ao longo de muitas gerações. – O lugar dela não é numa pensão.
Visivelmente constrangida, Cecilia tentou intervir.
– Estou bem, garanto.
– Não acredito – replicou Edward, sem tirar os olhos do coronel Stubbs.
– Vamos arranjar-lhe um alojamento mais adequado – respondeu o coronel a contragosto.
– Ainda hoje – exigiu Edward.
A julgar pela expressão, o coronel considerou o pedido irracional e seguiu-se um silêncio tenso.
– Podemos instalá-la na Devil’s Head – propôs, por fim.
Edward assentiu. A estalagem Devil’s Head era o principal poiso dos oficiais britânicos e
considerada a melhor hospedaria em Nova Iorque. O que, em si, não era dizer grande coisa, mas,
tirando um apartamento privado, Edward não imaginava sítio mais adequado. Nova Iorque era uma
cidade sobrelotada e parecia que o exército dedicava metade dos seus recursos a encontrar uma
cama para os seus soldados. A estalagem Devil’s Head não seria apropriada para uma senhora que
viajasse sozinha, mas, como mulher de um oficial, Cecilia estaria em segurança e seria respeitada.
– O Montby vai-se embora amanhã – disse o coronel Stubbs. – O quarto tem tamanho suficiente
para um casal.
– Ele que fique no quarto de outro oficial – comandou Edward. – A minha mulher precisa de um
quarto esta noite.
– Amanhã serve perfeitamente – assegurou Cecilia.
Edward não lhe deu ouvidos.
– Esta noite!
O coronel Stubbs assentiu.
– Eu falo com o Montby.
Foi a vez de Edward lhe dirigir um breve aceno de cabeça. Conhecia o capitão Montby. Como
todos os oficiais, não hesitaria em ceder o seu quarto para garantir a segurança de uma dama.
– Enquanto isso – disse o médico –, o capitão Rokesby deve permanecer calmo e sereno. Nada
deve perturbá-lo – acrescentou, dirigindo-se a Cecilia.
– Não consigo imaginar-me mais perturbado do que agora – comentou Edward.
O médico sorriu.
– É bom sinal que consiga manter o sentido de humor.
Edward absteve-se de comentar que não estava a brincar.
– Amanhã trataremos de o tirar daqui – afirmou o coronel Stubbs, antes de se virar para Cecilia e
acrescentar: – Enquanto isso, informe-o de tudo o que tem acontecido. Talvez isso sirva para lhe
despertar a memória.
– Excelente ideia! – concordou o médico. – Tenho a certeza de que o seu marido vai querer saber
como veio parar a Nova Iorque, Mrs. Rokesby.
– Sim, doutor – concordou Cecilia, com um sorriso.
– E lembre-se, não o perturbe. Ainda mais, quero dizer – acrescentou o médico, lançando um olhar
complacente a Edward.
O coronel Stubbs deu algumas instruções a Cecilia sobre a mudança para a estalagem Devil’s
Head. Então, os dois homens deixaram Edward sozinho com a mulher. Ou, pelo menos, tão só quanto
alguém poderia ficar numa igreja cheia de soldados acamados.
Ele olhou para Cecilia, que estava de pé, com ar acanhado, junto à cama.
Mulher dele. Caramba!
Ainda não entendia como era possível, mas tinha de ser verdade. O coronel Stubbs parecia
acreditar e sempre fora um rígido seguidor das regras. Além do mais, tratava-se de Cecilia Harcourt,
irmã do seu melhor amigo. Se acabasse casado com uma mulher que julgava nunca ter conhecido, não
poderia ter encontrado ninguém melhor do que ela.
Ainda assim, parecia-lhe o tipo de coisa de que se deveria lembrar.
– Quando é que nos casámos? – perguntou.
O olhar dela estava fixo no final do transepto e ficou sem saber se ela o ouvira.
– Cecilia?
– Há uns meses – respondeu ela, virando-se para o encarar. – Devias dormir.
– Não estou cansado.
– Não? – Com um sorriso trémulo, ela sentou-se na cadeira junto à cama. – Estou exausta.
– Sinto muito – disse ele, imediatamente.
Teria gostado de se levantar, de lhe pegar na mão, de agir como um cavalheiro.
– Eu não pensei nisso.
– Na verdade, não tiveste oportunidade para isso – disse ela, em tom seco.
Os lábios dele entreabriram-se de surpresa e, depois, veio-lhe o pensamento... aquela era Cecilia
Harcourt, a quem conhecia tão bem. Pelo menos, achava que sim. Na verdade, não se lembrava de
alguma vez lhe ter visto o rosto, mas aquele tom era o mesmo das cartas, palavras que guardara no
coração como pequenos tesouros e que o ajudaram a suportar os piores momentos da guerra.
Por vezes, questionava-se se não era estranho ansiar com mais impaciência pelas cartas que ela
escrevia a Thomas do que por aquelas que recebia da sua própria família.
– Perdoa-me – continuou ela –, tenho um sentido de humor muito pouco oportuno.
– Eu gosto – respondeu ele.
Ela dirigiu-lhe um olhar rápido, onde ele julgou vislumbrar um lampejo de gratidão.
A cor dos olhos dela era surpreendente; um verde-mar tão claro que, numa outra realidade, ela
seria confundida com uma fada. O que teria sido um erro, porque ele nunca conhecera ninguém mais
fiável e pragmático. Ou antes, julgava conhecer.
Ela levou a mão à face, parecendo envergonhada.
– Tenho alguma coisa no rosto? – inquiriu ela.
– Estou a olhar para ti, só isso.
– Não há muito para ver.
– Permite-me discordar – contrapôs, com um sorriso.
Ela enrubesceu e ele deu-se conta de que estava a namoriscar com a própria mulher.
Era estranho e, ao mesmo tempo, talvez fosse o acontecimento menos estranho do dia.
– Gostava de me lembrar... – começou ele.
Ela fitou-o com atenção.
Ele gostaria de se lembrar da primeira vez que se conheceram. E do casamento.
Gostaria de se lembrar dos beijos que trocaram.
– Edward? – chamou ela, em voz baixa.
– De tudo – concluiu ele num tom mais ríspido do que pretendia. – Gostaria de me lembrar de tudo.
– Isso virá, tenho a certeza.
Algo não batia certo no sorriso tenso que ela esboçou. Era um sorriso que não chegava aos olhos e
foi então que Edward se deu conta de que ela não o encarara. O que lhe estaria a esconder? Teria ela
mais informação sobre o estado de saúde dele do que partilhara? Mas quando? Não saíra de perto
dele desde que ele acordara.
– És muito parecida com o Thomas – comentou, abruptamente.
– Achas? – respondeu ela, dirigindo-lhe um ar intrigado. – Ninguém parece pensar o mesmo.
Exceto pelo cabelo.
Num gesto provavelmente mecânico, ela levou a mão ao cabelo preso num puxo desajeitado, do
qual escapavam algumas madeixas que lhe caíam sem vida nas faces. Edward não resistiu a pensar
no comprimento que teria, solto pelas costas.
– Sou parecida com a minha mãe – acrescentou ela. – Pelo menos, foi o que me disseram, porque
nunca a conheci. O Thomas sai mais ao nosso pai.
Edward abanou a cabeça e esclareceu:
– É mais nas expressões do que nos traços físicos.
– Perdão?
– Aí está, é exatamente isso! – Edward sorriu, sentindo-se um pouco mais vivo do que alguns
momentos antes. – Tens as mesmas expressões que o Thomas. Quando disseste «Perdão?», inclinaste
a cabeça exatamente como ele.
– Isso significa que ele pede perdão muitas vezes? – questionou ela, com um meio sorriso trocista.
– Não com a frequência que deveria.
A resposta fê-la soltar uma gargalhada e exclamar, limpando as lágrimas de riso:
– Obrigada! Não me ria desde... nem sei há quanto tempo.
– Não tens tido razões para rir ultimamente – disse ele, baixinho, estendendo o braço para pegar na
mão dela.
Cecilia engoliu em seco, abanando a cabeça e, por um terrível momento, Edward pensou que ela
fosse chorar. No entanto, não foi capaz de permanecer em silêncio e perguntou:
– O que aconteceu ao Thomas?
Ela respirou fundo e, exalando devagar, respondeu:
– Disseram-me que ele tinha sido ferido e levado para a cidade de Nova Iorque, para convalescer.
Fiquei preocupada... é facilmente compreensível, como podes ver – disse ela, abarcando com um
gesto todo o aposento. – Não há gente suficiente para tratar dos soldados feridos. Eu não queria que o
meu irmão ficasse sozinho.
– Surpreende-me que o teu pai te tenha deixado empreender tal viagem – admitiu Edward, depois
de fazer uma pausa reflexiva.
– O meu pai morreu.
– Sinto muito – disse Edward, chocado. – Parece que o meu tato se evaporou juntamente com a
minha memória.
A verdade é que ele não poderia ter adivinhado. Ela usava um vestido cor-de-rosa e nada indicava
que estivesse de luto.
Ela deve ter notado o olhar que ele lançou ao vestido rosa-velho, pois explicou com ar contrito:
– Eu sei, devia estar de luto. Mas só tenho um vestido preto e é de bombazina. Já teria morrido de
calor, se o usasse aqui.
– Os nossos uniformes são bastante desconfortáveis no verão – admitiu Edward.
– Sim, o Thomas disse o mesmo nas cartas. Foi exatamente por causa das descrições das
temperaturas de verão de cá que decidi não trazer o vestido.
– Provavelmente ficas muito mais bonita de cor-de-rosa – disse Edward.
O elogio pareceu espantá-la, o que não o surpreendeu. A aparente normalidade de toda a situação
parecia estranhamente deslocada, considerando que estavam num hospital.
Ou antes, numa igreja.
Em plena guerra.
Se acrescentasse a isso a perda de memória e uma mulher inesperada, a sua vida não poderia ter
tomado um rumo mais bizarro.
– Obrigada – sussurrou Cecilia, antes de aclarar a garganta e acrescentar: – Mas tinhas perguntado
sobre o meu pai. Tens razão, ele não teria permitido que eu viajasse para Nova Iorque. Apesar de
não ser o mais consciencioso dos pais, ter-se-ia oposto terminantemente. Embora... – deixou escapar
um riso estrangulado e incomodado – possa perguntar-me quanto tempo passaria até ele reparar na
minha ausência.
– Garanto-te que alguém notaria a tua ausência.
– Não conhecias o meu pai – respondeu ela, lançando-lhe um olhar enviesado. – Desde que a casa
esteja... corrijo, estivesse... a ser bem gerida, ele não se teria apercebido de mais nada.
Edward assentiu devagar. Thomas não lhe falara muito de Walter Harcourt, mas o que dissera
confirmava a descrição de Cecilia. Thomas lamentara mais do que uma vez que o pai estivesse a
reduzir Cecilia ao papel de governanta não remunerada. A irmã precisava de casar, dissera Thomas.
Precisava de sair de Marswell e construir finalmente a sua própria vida.
Estaria Thomas a fazer de casamenteiro? Edward não pensara assim na altura.
– Foi algum acidente? – perguntou Edward.
– Não, mas foi repentino. Ele estava a fazer uma sesta no escritório... – Com um ligeiro e triste
encolher de ombros, acrescentou: – ...e não acordou.
– Foi o coração?
– Segundo o médico, não há forma de saber. Na verdade, que importância tem?
Ela virou-se para ele com uma expressão sábia e sofrida, e Edward teria jurado tê-la sentido. Algo
nos olhos dela... na cor, na limpidez... Quando encontraram os dele, ele teve a impressão de a
respiração lhe ter sido sugada do corpo.
Ia ser sempre assim?
Teria sido por essa razão que se casara com ela?
– Pareces cansado – comentou ela, acrescentando antes que ele a interrompesse: – Embora tenhas
dito que não estás, pareces estar.
Porém, Edward não queria dormir. Não suportava a ideia de deixar a mente regressar à
inconsciência. Já tinha perdido demasiado tempo. Queria guardar cada momento, cada recordação.
– Não me contaste o que aconteceu ao Thomas – insistiu ele.
– Não disse porque... – respondeu ela, com a voz embargada e a expressão preocupada. – Ninguém
parece saber o paradeiro dele.
– Como é isso possível?
Ela encolheu os ombros com desamparo.
– Falaste com o coronel Stubbs?
– Claro.
– E com o general Garth?
– Não fui autorizada a vê-lo.
– O quê?! – exclamou Edward, indignado. – Como minha mulher...
– Eu não lhes disse que era tua mulher.
Ele fitou-a, estupefacto.
– Ora essa, porque não?
– Não sei – respondeu ela, levantando-se abruptamente e abraçando o próprio tronco num gesto
protetor. – Talvez por estar lá como... como irmã do Thomas.
– Mas imagino que tenhas dado o teu nome.
Ela mordeu o lábio inferior antes de responder:
– Julgo que ninguém fez a associação.
– O general Garth não percebeu que Mrs. Edward Rokesby era minha mulher?
– Como disse, eu não o vi – lembrou ela, aproximando-se da cama e inclinando-se para lhe ajeitar
os cobertores. – Este assunto está a perturbar-te. Podemos falar sobre ele amanhã.
– Podes ter a certeza de que falaremos sobre isto amanhã – resmungou ele.
– Ou no dia seguinte. – Os olhos de ambos cruzaram-se e ela acrescentou: – Dependendo de como
estiveres.
– Cecilia...
– Sem discussão – cortou ela. – De momento, não posso fazer nada pelo meu irmão, mas posso
fazer por ti. E se isso significar obrigar-te a controlares...
Edward ficou a observá-la, dividido entre o espanto e a admiração. O maxilar cerrado numa
expressão feroz, um pé adiante como se estivesse a preparar-se para atacar. Quase conseguia
imaginá-la a brandir uma espada acima da cabeça, num grito de guerra.
Era uma Joana d’Arc, uma Boadiceia, ou qualquer fêmea a atacar para proteger a família.
– Minha guerreira – murmurou.
Ela atirou-lhe um olhar enviesado, mas ele não se desculpou.
– Tenho de ir – anunciou ela, abruptamente. – O coronel Stubbs vai mandar alguém buscar-me esta
noite. Tenho de fazer as malas.
Edward não sabia o que poderia ela ter conseguido comprar desde que chegara à América do
Norte, mas sabia ser melhor abster-se de tecer comentários acerca de uma mulher e do seu baú.
– Vais ficar bem sem mim? – perguntou ela.
Ele assentiu.
O gesto fê-la desconfiar e insistir:
– Dir-me-ias se não fosse esse o caso?
– Claro – respondeu ele, com um meio sorriso.
Ela revirou os olhos.
– Volto amanhã de manhã.
– Mal posso esperar.
Não era mentira. Não se lembrava da última vez que ansiara tanto por alguma coisa.
Mas a verdade é que não se lembrava de nada.
Ainda assim, não era impedimento.
Capítulo 3
A lgumas horas mais tarde, enquanto seguia o jovial tenente enviado para a acompanhar à
estalagem Devil’s Head, Cecilia interrogou-se quando iria o seu coração acalmar. Santo Deus,
quantas mentiras teria proferido naquela tarde? Tentara dar respostas o mais próximas possível da
verdade, tanto para aliviar a própria consciência como por duvidar da sua capacidade de não se
contradizer.
Devia ter contado toda a verdade a Edward. Aliás, esteve prestes a fazê-lo, mas o coronel Stubbs
aparecera com o médico e, obviamente, não iria confessar diante de tal audiência. Teria sido
imediatamente expulsa do hospital e Edward ainda precisava dela.
Ela também precisava dele.
Estava sozinha num país estrangeiro, quase sem dinheiro, e agora que a razão por que mantivera a
sanidade tinha acordado, podia admitir: estava aterrorizada.
Se Edward a repudiasse, ficaria sem eira nem beira. Não teria outra hipótese, exceto regressar a
Inglaterra, o que se recusava a fazer, pelo menos enquanto não descobrisse o que tinha acontecido ao
irmão. Sacrificara muita coisa para embarcar naquela aventura. Precisara de toda a sua coragem e
não podia desistir agora.
Mas como podia continuar a mentir-lhe? Edward Rokesby era um homem bom e não merecia ser
enganado de forma tão descarada. Além disso, era o melhor amigo de Thomas. Os dois tinham-se
conhecido quando entraram para o exército e, como oficiais do mesmo regimento, tinham sido
enviados para a América do Norte ao mesmo tempo. Tanto quanto Cecilia sabia, combatiam juntos
desde então.
Sabia que Edward nutria alguma simpatia por ela. Se lhe confessasse a verdade, talvez ele
compreendesse a razão da mentira e a ajudasse. Pelo menos, queria acreditar que sim.
Contudo, a questão não se punha de momento. Ou, pelo menos, podia ser adiada até ao dia
seguinte. A estalagem Devil’s Head surgiu ao fundo da rua e, com ela, a promessa de uma cama
quente e de uma boa refeição. Decerto merecia aquele pequeno mimo.
Objetivo do dia: não se sentir culpada. Pelo menos, não por causa de uma refeição decente.
– Estamos quase a chegar – informou o tenente, com um sorriso.
Ela assentiu. Nova Iorque era realmente um lugar estranho. De acordo com a mulher que
administrava a pensão, mais de vinte mil pessoas viviam amontoadas numa pequena área do extremo
sul da ilha de Manhattan. Cecilia não sabia qual seria a população antes da guerra, mas tinham-lhe
dito que aumentara drasticamente quando os ingleses fizeram da cidade a sua sede. Havia casacas
vermelhas por toda a parte e todos os edifícios disponíveis tinham sido obrigados a hospedá-los. Os
defensores do Congresso Continental tinham deixado a cidade havia muito tempo, sendo substituídos
por um número ainda maior de refugiados lealistas que tinham fugido das colónias vizinhas em busca
da proteção britânica.
No entanto, a visão mais estranha, aos olhos de Cecilia, eram os negros. Nunca vira pessoas com
pele tão escura e ficou chocada com a quantidade das que viviam naquela agitada cidade portuária.
– Escravos que fugiram – explicou o tenente, seguindo-lhe o olhar para um homem de pele escura
que saía da serralharia do outro lado da rua.
– Perdão?
– Chegam às centenas – continuou o tenente, com um encolher de ombros. – O general Clinton
libertou-os a todos no mês passado, mas, como ninguém respeita a ordem nos territórios patrióticos,
os escravos começaram a fugir para junto de nós. Honestamente – continuou ele, franzindo a testa –,
não sei se temos espaço para os receber a todos, mas não se pode culpar um homem por querer ser
livre.
– Não – murmurou Cecilia, lançando um último olhar por cima do ombro.
Quando voltou a atenção para o tenente, ele já estava à entrada da estalagem.
– Chegámos! – anunciou ele, abrindo a porta.
– Obrigada!
Cecilia entrou e cedeu a dianteira, para que ele pudesse dirigir-se ao estalajadeiro. Segurando a
modesta maleta à sua frente, pôs-se a observar a sala principal, que incluía também o pub da
estalagem. Era muito semelhante ao que se podia encontrar em qualquer estalagem inglesa: mal
iluminada, com muita gente, o chão com manchas pegajosas que Cecilia preferia acreditar serem de
cerveja. Uma rapariga roliça serpenteava por entre as mesas, pousando canecas de cerveja com uma
mão e levantando pratos com a outra. Atrás do balcão, um homem com um bigode farfalhudo
resmungava e mexia na torneira da cerveja, que tinha aparentemente encravado.
Poderia ter acreditado estar no seu país, não fora o facto de quase todos os assentos estarem
ocupados por soldados trajados de vermelho.
Entre eles, havia algumas mulheres que, pela forma como estavam vestidas e pelo seu
comportamento, Cecilia concluiu serem respeitáveis. Mulheres de oficiais, talvez. Ouvira dizer que
algumas mulheres tinham decidido acompanhar os maridos ao Novo Mundo. Era uma delas... pelo
menos, por mais um dia.
– Miss Harcourt!
Sobressaltada, Cecilia virou-se. De uma das mesas no meio da sala, levantou-se um soldado, um
homem de meia-idade com cabelo castanho já a rarear.
– Miss Harcourt – repetiu ele. – Que surpresa encontrá-la aqui.
Os lábios dela entreabriram-se de espanto. Conhecia aquele homem. E detestava-o. Fora a
primeira pessoa a quem recorrera quando andava à procura de Thomas e a mais condescendente e
menos prestável de todas.
– Major Wilkins – cumprimentou Cecilia, com uma reverência educada.
Porém, a mente era um turbilhão de mal-estar. Mais mentiras! Precisava de pensar em mais
mentiras e rapidamente.
– Como vai? – perguntou ele, com a sua brusquidão habitual.
– Bem – respondeu ela, lançando um olhar discreto para o tenente, que, afastado, conversava com
outro soldado. – Obrigada por perguntar.
– Julguei que estivesse a preparar o seu regresso a Inglaterra.
A resposta dela limitou-se a um ligeiro sorriso e um encolher de ombros, pois não queria adiantar
conversa com aquele homem. Nunca lhe dera qualquer indicação de que pensava sair de Nova
Iorque.
– Mrs. Rokesby! – chamou o jovem tenente. – Ah, aí está!
Salva pelo jovem tenente, pensou Cecilia com gratidão, vendo-o aproximar-se com uma grande
chave na mão.
– Falei com o estalajadeiro – disse ele – e...
– Mrs. Rokesby? – cortou o major Wilkins.
Ao ver o major, o tenente pôs-se em sentido, mas o major ignorou-o e perguntou:
– Ele tratou-a por Mrs. Rokesby?
– Não é esse o seu nome? – inquiriu o tenente.
Cecilia sentiu como se um punho lhe apertasse o coração.
– Eu...
– Pensei que fosse solteira – disse o major, virando-se para ela de sobrolho franzido.
– Era – atrapalhou-se ela. – Quero dizer... – Santo Deus, não estava a ser nada convincente; não
podia dizer que se casara nos últimos três dias. – Era – repetiu. – Há muito tempo. Fui solteira...
como toda a gente. Quero dizer, se alguém é casado agora, é certo que um dia foi...
Desistiu de tentar terminar a frase. Céus, parecia uma pateta e desprestigiava completamente a
imagem das mulheres.
– Mrs. Rokesby é casada com o capitão Rokesby – ajudou o tenente.
– O capitão Edward Rokesby?! – exclamou o major Wilkins, virando-se para ela com uma
expressão ameaçadora.
Cecilia assentiu. Tanto quanto sabia, não havia outro capitão Rokesby, mas, como já metia os pés
pelas mãos, achou melhor não se enredar ainda mais com um comentário sarcástico.
– Por que diabo... – pigarreou, antes de corrigir – Peço perdão. Porque não o disse antes?
Cecilia lembrou-se da conversa que tivera com Edward. Mantém-te fiel às tuas mentiras,
recordou a si mesma.
– Era do meu irmão que estava à procura – explicou ela. – O grau de parentesco pareceu-me mais
importante.
O major fitou-a como se ela tivesse enlouquecido. Cecilia podia adivinhar facilmente o que ele
estava a pensar. Sendo Edward Rokesby filho de um conde, ela teria de ser estúpida para não ter
jogado a cartada desse parentesco.
Seguiu-se um silêncio pesado, durante o qual o major, com a ajuda de alguns piscares de olhos,
recuperou para uma expressão quase respeitosa. Em seguida, pigarreou e disse:
– Fiquei muito feliz ao saber que o seu marido tinha regressado a Nova Iorque. – O sobrolho
fechou-se, desconfiado, e acrescentou: – Ele esteve uns tempos desaparecido, certo?
A pergunta implícita era: por que razão não procurara ela o marido?
– Eu já tinha sido informada do retorno dele quando fui falar consigo sobre o Thomas – respondeu
ela, assumindo um ar frio.
Não era verdade, mas ele não precisava de saber.
Ele teve o bom senso de se mostrar algo contrito e respondeu:
– Compreendo. Peço desculpa.
Cecilia dirigiu-lhe um aceno de cabeça quase régio, que esperava ter sido digno de uma condessa.
Ou da nora de uma condessa.
Depois de pigarrear novamente, o major Wilkins afirmou:
– Vou aprofundar a investigação sobre o paradeiro do seu irmão.
– Aprofundar? – repetiu Cecilia, convencida de que ele não tinha sequer começado a investigação.
O major corou e perguntou:
– O seu marido vai sair do hospital em breve?
– Amanhã.
– Amanhã?
– Sim.
Teve de se esforçar por não acrescentar: «Tal como acabei de dizer.»
– E vai ficar hospedado aqui, na estalagem?
– O capitão e Mrs. Rokesby vão ficar no quarto do capitão Montby – explicou o tenente, prestativo.
– Ah, muito simpático da parte dele! É um bom homem, o capitão.
– Espero que não seja um inconveniente para ele – disse Cecilia, olhando discretamente para as
mesas e perguntando-se se o capitão Montby estava sentado a uma delas. – Gostaria de lhe agradecer,
se for possível.
– Ele fá-lo de bom grado – assegurou o major Wilkins, embora não tivesse como saber.
– Bem – começou Cecilia, tentando não lançar um olhar ansioso para as escadas que presumia
levarem ao quarto –, foi um prazer vê-lo, mas o dia foi muito longo e gostaria de me recolher.
– Claro – respondeu o major, curvando-se numa vénia breve. – Voltarei amanhã para lhe apresentar
o meu relatório.
– O seu... relatório?
– Com notícias do seu irmão. Ou, no caso de não haver novidades, para lhe comunicar em que
passo estamos na investigação.
– Obrigada – murmurou Cecilia, estupefacta por tanta solicitude repentina.
O major Wilkins virou-se para o tenente.
– A que horas espera a chegada do capitão Rokesby amanhã?
O desplante do homem! Fazia a pergunta ao tenente?
– À tarde – respondeu Cecilia em tom seco, embora ainda não soubesse a que horas iria buscá-lo.
Esperou que o major Wilkins olhasse para ela, para acrescentar: – É improvável que o tenente tenha
esse tipo de informação.
– Mrs. Rokesby tem razão – disse o tenente, alegremente. – As minhas ordens foram para a
acompanhar até às novas acomodações. Amanhã, regresso a Haarlem.
Cecilia brindou o major Wilkins com um sorriso doce.
– Claro – resmungou o major. – Perdoe-me, Mrs. Rokesby.
– Não se preocupe – disse Cecilia.
Por mais que tivesse vontade de lhe bater, preferia evitar fazer do major um inimigo. Não sabia
exatamente quais eram as funções dele, mas parecia responsável pelo aquartelamento dos soldados.
– Estará aqui com o capitão Rokesby por volta das cinco e meia da tarde? – quis ele saber.
Cecilia olhou-o diretamente nos olhos.
– Se trouxer notícias do meu irmão, esteja certo de que nos encontrará cá a essa hora.
– Muito bem. Boa noite, minha senhora – despediu-se ele, com um inclinar de cabeça também
dirigido ao tenente.
O major Wilkins voltou para a sua mesa, deixando Cecilia com o tenente, que soltou uma pequena
exclamação antes de lhe entregar a chave.
– Quase me esquecia, aqui tem a chave!
Cecilia pegou nela e virou-a na mão.
– Quarto número doze – informou o tenente.
– Sim – disse Cecilia, baixando os olhos para o grande número «12» gravado no metal. – Não se
preocupe, eu subo sozinha.
O tenente concordou, com gratidão. Era jovem e, obviamente, a ideia de acompanhar uma mulher
ao quarto constrangia-o, mesmo sendo a dita mulher casada.
Casada. Céus, como ia ela desenredar-se daquela teia de mentiras? E, talvez mais importante,
quando? No dia seguinte não seria certamente. Alegara ser mulher de Edward para poder cuidar
dele, mas era flagrantemente óbvio que, aos olhos do major Wilkins, a mulher do capitão Rokesby
gozava de um prestígio muito maior do que a modesta Miss Harcourt.
Cecilia sabia que devia pôr fim à farsa o mais depressa possível, para bem de Edward, mas estava
em causa o destino do irmão.
Ela confessaria a verdade, claro.
Um dia.
Mas não amanhã. Amanhã, tinha de ser Mrs. Rokesby. E depois de amanhã...
Cecilia suspirou e, enfiando a chave na fechadura do quarto, abriu a porta. Receava ter de ser Mrs.
Rokesby até encontrar o irmão.
– Perdoa-me – sussurrou.
Teria de ser suficiente.
*
Edward tinha toda a intenção de estar levantado, vestido no seu traje militar e pronto para partir
quando Cecilia chegasse ao hospital. Em vez disso, estava na cama, com a mesma camisa que usava
desde sabe Deus quando e dormia tão profundamente que Cecilia, obviamente, pensou que ele
voltara a entrar em coma.
– Edward? – ouviu-a sussurrar, no limite da consciência. – Edward?
Ele murmurou qualquer coisa. Ou talvez tenha grunhido. Não sabia qual era a diferença. A atitude,
talvez.
– Deus seja louvado! – sussurrou ela.
Mais do que ouviu, ele sentiu-a voltar a sentar-se na cadeira ao lado da cama.
Talvez fosse melhor acordar.
Se abrisse os olhos, talvez o mundo tivesse voltado a entrar nos eixos. Seria junho, e o facto de ser
junho faria sentido; ele seria casado, o que também faria sentido, especialmente se se lembrasse da
sensação de beijar Cecilia.
Gostaria realmente de a beijar. Não pensara em mais nada na noite anterior. Ou, pelo menos, em
metade da noite. Sentia desejo, como qualquer homem, especialmente agora que era casado com
Cecilia Harcourt. Mas não perdera o sentido do olfato e desejava, acima de tudo, tomar um banho.
Céus, como fedia!
Permaneceu imóvel durante alguns minutos, as pálpebras cerradas, deixando a mente serenar. O
pensamento naquele estado de imobilidade era agradável. Não precisava de fazer mais nada além de
pensar e não se lembrava da última vez que tivera esse luxo.
Estava bem ciente de os últimos três meses terem sido apagados da sua mente. Era certo, no
entanto, que não os tinha passado a meditar tranquilamente enquanto ouvia os sons abafados feitos
pela sua mulher. Lembrava-se de os ouvir no dia anterior, pouco antes de abrir os olhos. Também
reparara no som da sua respiração. Era diferente, agora que sabia quem ela era. O som era o mesmo,
mas a perceção que tinha dele mudara.
Era muito estranho. Quem teria pensado que um dia se sentiria feliz por ficar deitado na cama a
ouvir uma mulher respirar? Mas não lhe agradou o facto de ela suspirar tanto. Parecia cansada, talvez
preocupada. Ambas as coisas, sem dúvida.
Devia dizer-lhe que estava acordado. Já estava mais do que na hora.
Foi então que a ouviu murmurar:
– O que vou fazer contigo?
Ele não conseguiu resistir. Abriu os olhos e disse:
– Comigo?
Ela deixou escapar um grito de sobressalto, levantando-se com tanta pressa da cadeira que quase
bateu com a cabeça no teto.
Edward desatou a rir. Uma longa gargalhada que lhe magoou as costelas e lhe tirou o fôlego. E nem
o olhar furioso de Cecilia, que o fitava com a mão no coração para decerto acalmar as batidas
aceleradas, lhe conteve o riso.
Mais uma vez, ele soube que havia muito tempo que não ria tanto.
– Estás acordado – disse ela, em tom acusador.
– Não estava, mas alguém sussurrou o meu nome...
– Isso foi há imenso tempo!
Ele encolheu os ombros, sem o menor arrependimento.
– Estás com melhor ar hoje – comentou ela. – Menos... pardacento – acrescentou, ao vê-lo erguer
as sobrancelhas.
Ele congratulou-se por ninguém ter tido a ideia de lhe dar um espelho.
– Preciso de cortar a barba – reconheceu, passando a mão no queixo.
Tinha uma barba de, pelo menos, duas semanas, talvez três. Quando franziu a testa, Cecilia
perguntou-lhe:
– O que é?
– Alguém sabe quanto tempo fiquei inconsciente?
Ela fez que não com a cabeça.
– Julgo que não. Já estavas inconsciente quando foste encontrado. Embora não por muito tempo, na
minha opinião, porque disseram que o ferimento na cabeça era fresco.
Edward não evitou uma careta de desagrado. «Fresco» era o tipo de adjetivo que se associava a
um morango, não a ferimentos no crânio.
– Provavelmente, não mais de oito dias – concluiu ela. – Por que perguntas?
– Por causa da barba. Há bem mais de uma semana que não a corto.
Ela observou-o por um momento.
– Não sei o que isso significa – confessou ela, por fim.
– Nem eu – admitiu ele. – Mas parece-me um pormenor interessante.
– Tens criado pessoal?
Ele fitou-a, perplexo.
– Não me olhes assim – continuou ela. – Sei bem que muitos oficiais viajam com um criado.
– Eu, não.
Seguiu-se uma pausa e, então, Cecilia continuou:
– Deves estar com muita fome. Só consegui que engolisses um pouco de caldo.
Edward levou a mão à barriga. Desde criança que não sentia os ossos das ancas tão proeminentes.
– Perdi peso, aparentemente.
– Comeste depois de eu sair ontem?
– Pouco. Estava cheio de fome, mas comecei logo a sentir-me enjoado.
Ela assentiu e, baixando os olhos para as mãos, disse:
– Não tive oportunidade de te contar ontem, mas tomei a liberdade de escrever à tua família.
Santo Deus! Ele nem sequer pensara na família.
– Eles foram informados de que estavas desaparecido – explicou ela, quando a encarou. – O
general Garth enviou-lhes uma carta há alguns meses.
Edward tapou os olhos com uma mão. Podia imaginar o estado em que a mãe ficara.
– Expliquei na carta que tinhas ficado ferido, mas sem entrar em detalhes – continuou Cecilia. –
Achei mais importante que soubessem que já tinhas sido encontrado.
– Encontrado – repetiu Edward.
A palavra era adequada. Ele não tinha sido libertado, nem tinha escapado. Fora simplesmente
encontrado perto de Kip’s Bay. Ninguém sabia como teria ido lá parar.
– Quando é que chegaste a Nova Iorque? – perguntou ele, abruptamente.
Era melhor fazer perguntas sobre o que não sabia do que martirizar-se com o que não se conseguia
lembrar.
– Há quase quinze dias – respondeu ela.
– Vieste à minha procura?
– Não – admitiu ela. – Eu não... ou antes... não teria cometido a loucura de atravessar o oceano
para vir procurar um homem desaparecido.
– E, no entanto, aqui estás.
– O Thomas foi ferido – lembrou ela. – Precisava de mim.
– Então vieste por causa do teu irmão.
Ela fitou-o com ar indisfarçavelmente franco, como se desconfiasse que ele a submetia a um
interrogatório.
– Fui levada a crer que o encontraria no hospital.
– Ao contrário de mim.
Ela mordeu o lábio inferior.
– Bem, sim. Eu não sabia... isto é... não sabia que tinhas desaparecido.
– O general Garth não te escreveu?
Ela abanou a cabeça.
– Acho que ele não sabia do nosso casamento.
– Mas... espera! – Edward fechou os olhos e voltou a abri-los. Sentia um nervoso miudinho, como
se algo de errado se passasse. A cronologia não parecia fazer sentido. – Nós casámos aqui? Não, é
impossível! Afinal de contas, eu estava desaparecido.
– Foi... foi um casamento por procuração.
Ela enrubesceu, parecendo quase envergonhada pela admissão.
– Casei-me contigo por procuração? – repetiu Edward, estupefacto.
– O Thomas quis assim – murmurou ela.
– Isso é legal?
Ela arregalou os olhos, fazendo-o sentir-se imediatamente um canalha. Aquela mulher cuidara dele
durante três dias, enquanto ele estivera em coma, e ele punha-se a insinuar que podiam não ser
casados. Ela não merecia tal desrespeito.
– Esquece que fiz a pergunta – apressou-se a corrigir. – Podemos falar disso depois.
Ela assentiu, grata, e bocejou discretamente.
– Conseguiste descansar ontem? – perguntou ele.
Os lábios dela curvaram-se num sorriso muito ligeiro e muito cansado.
– Isso pergunto eu.
Ele replicou no mesmo tom irónico:
– Pelo que sei, não tenho feito outra coisa senão descansar nos últimos dias.
Ela inclinou a cabeça, concordando silenciosamente.
– Não respondeste à minha pergunta – insistiu ele. – Descansaste?
– Um pouco. Creio que estou algo destreinada. Além disso, estava num quarto desconhecido. –
Uma madeixa de cabelo escapou do penteado e, franzindo o sobrolho, ela prendeu-a atrás da orelha.
– É-me sempre difícil adormecer na primeira noite, quando estou num ambiente novo.
– Nesse caso, aposto que não dormes bem há semanas.
Desta vez, ela sorriu abertamente.
– Na verdade, dormi muito bem no mar, o movimento do barco embalava-me.
– Que inveja. Passei a maior parte da viagem a vomitar borda fora.
– Lamento – disse ela, abafando uma risada.
– Dá graças por não teres estado lá. Não me terias considerado assim tão bom partido. – Depois de
refletir um instante, acrescentou: – Aliás, também não posso ser considerado grande coisa, de
momento.
– Oh, não sejas...
– Sujo, com a barba por fazer...
– Edward...
– Malcheiroso. – Fez uma pausa antes de acrescentar: – Noto que não me contradizes.
– Admito que emanas um certo... odor.
– E não te esqueças de que me falta um pedacinho do cérebro.
Ela ficou séria, de repente.
– Não devias falar assim.
O tom dele era leve e despreocupado, mas a expressão no olhar era direta e sincera, ao dizer:
– Se eu não encontrar um pouco de humor em tudo isto, terei de chorar.
Ela ficou tão séria que ele apiedou-se dela e acrescentou:
– Era uma força de expressão. Não precisas de te preocupar, não vou desatar num pranto.
– Não pensaria menos de ti se o fizesses – disse ela, um pouco titubeante. – Eu... eu continuaria...
– Cuidarias de mim? Tratarias das minhas feridas? Secarias as minhas lágrimas?
Embora ela tivesse ficado boquiaberta, parecia mais perplexa do que chocada.
– Não me tinha apercebido da tua queda para o sarcasmo – disse ela.
Edward encolheu os ombros.
– Nem eu, para dizer a verdade.
Ela retesou ligeiramente o corpo com ar pensativo, a testa marcada por três rugas. Manteve-se
imóvel alguns segundos e só quando exalou lentamente é que ele percebeu que ela tinha prendido a
respiração.
– Pareces analisar-me – comentou ele.
– Acho muito interessante ver o que te lembras e o que não te lembras – disse ela, sem o
contradizer.
– É-me difícil pensar nisso enquanto objeto de estudo – respondeu ele, sem qualquer tom
rancoroso –, mas não te contenhas, peço-te. Aprecio qualquer luz que possa surgir no meu caso.
– Tiveste alguma recordação nova? – inquiriu ela, mexendo-se no assento.
– Desde ontem?
Ela assentiu e ele confessou:
– Não. Pelo menos, penso que não. É difícil dizer, quando nem sei onde começam as minhas
memórias.
– Disseram-me que partiste para o Connecticut no início de março. – Ela inclinou a cabeça e
aquela madeixa rebelde voltou a cair-lhe para a face. – Lembras-te disso?
– Não – respondeu ele, depois de refletir um momento. – Lembro-me vagamente de ter recebido a
ordem de marcha, ou melhor, a informação de que ia receber a ordem de marcha. – Pressionou um
olho com a mão, sem saber sequer o significado do que acabava de dizer. Ergueu o olhar para
Cecilia e acrescentou: – Mas não sei porquê.
– As memórias acabarão por voltar – assegurou ela. – O médico disse que, após um traumatismo, o
cérebro precisa de tempo para recuperar.
Ao ver-lhe o sobrolho carregado, ela esclareceu:
– Foi antes de teres acordado.
– Ah...
Ficaram em silêncio uns momentos. Então, com um gesto envergonhado para a ferida, ela
perguntou:
– Ainda dói?
– Terrivelmente.
– Vou buscar o láudano – afirmou ela, esboçando um movimento para se levantar.
– Não faças isso – interrompeu-a ele. – Agradeço, mas prefiro manter as ideias claras. –
Apercebendo-se do ridículo da frase, considerando a situação em que se encontrava, acrescentou: –
Pelo menos, claras o suficiente para me lembrar dos acontecimentos do último dia.
Os lábios dela contorceram-se numa risada contida.
– Podes rir, não te acanhes.
– Não devia.
Porém, ela não conseguiu evitar soltar uma pequena risada que ele achou encantadora.
Em seguida, ela tentou esconder um bocejo.
– Dorme – aconselhou ele.
– Não posso, acabei de chegar.
– Eu não digo a ninguém.
– E a quem irias dizer? – revidou ela com um olhar crítico.
– Tens razão – concedeu ele. – No entanto, é óbvio que precisas de dormir.
– Durmo logo à noite – disse ela, antes de se mexer na cadeira em busca de uma posição mais
confortável. – Vou só descansar os olhos um momento.
Ele não conseguiu evitar um riso trocista.
– Não te atrevas a troçar de mim – advertiu ela.
– Ou qual será a consequência? Não ias conseguir ganhar-me.
Ela abriu um olho e respondeu:
– Os meus reflexos são extraordinários.
Edward riu-se, vendo-a fechar a pálpebra e bocejar de novo, desta vez sem tentar disfarçar.
Seria isto, o casamento? Poder bocejar impunemente? Se sim, Edward considerava tratar-se de
uma instituição altamente recomendável.
Ficou a observá-la «descansar os olhos». Era realmente adorável. Thomas dissera que a irmã era
bonita, mas daquela típica maneira casual e fraterna. Ele provavelmente via o mesmo que Edward
via na sua irmã Mary: um rosto agradável, onde todos os elementos se encontravam no lugar certo.
Thomas nunca teria notado, por exemplo, que as pestanas de Cecilia eram mais escuras do que o
cabelo ou que as pálpebras descidas desenhavam dois arcos delicados que evocavam os crescentes
da Lua.
Os lábios eram carnudos, embora não formassem o botão de rosa tão aclamado pelos poetas.
Quando dormia, os lábios entreabriam-se e Edward quase podia imaginar o sussurro do ar que
escapava.
– Achas-te capaz de ir para a Devil’s Head esta tarde? – perguntou ela, subitamente.
– Pensei que estavas a dormir.
– Eu disse que só queria descansar os olhos.
Ela não mentira. Nem uma pestana mexeu, ao falar.
– Sim, devo conseguir – respondeu ele. – O médico quer ver-me antes de eu sair. O quarto da
estalagem é adequado?
Ela assentiu, os olhos ainda fechados.
– É possível que o aches pequeno.
– Só eu?
– Eu não preciso de acomodações sumptuosas.
– Nem eu.
Desta vez, ela abriu os olhos.
– Desculpa, não quis insinuar o contrário.
– Passei muitas noites a dormir em más condições. Qualquer quarto com uma cama será um luxo.
Bem, com exceção deste – comentou ele, passando os olhos pela enfermaria improvisada.
Os bancos de igreja tinham sido encostados às paredes e os homens estavam deitados em catres e
camas desirmanadas. Alguns tiveram de ficar no chão.
– É deprimente – disse ela em voz baixa.
Ele assentiu. Devia dar-se por feliz por estar inteiro. Estava fraco, claro, mas recuperaria. Alguns
dos seus companheiros de infortúnio não teriam a mesma sorte.
No entanto, queria sair dali o mais depressa possível.
– Estou cheio de fome – anunciou ele, subitamente.
Ficou encantado ao vê-la arregalar aqueles magníficos olhos de surpresa.
– Se o médico quiser ver-me, pode... – interrompeu-se antes de dizer um palavrão e corrigiu-se,
depois de pigarrear – pode visitar-me na estalagem.
– Tens a certeza? – insistiu ela, com ar preocupado. – Eu não gostaria de...
– Acho que aquele é o meu uniforme – interrompeu ele, apontando para um monte de roupa em tons
de vermelho e bege pousado num banco próximo. – Não te importas de mo trazer?
– Mas o médico...
– Caso contrário, eu mesmo vou. E aviso já que estou nu por baixo desta camisa.
Ela corou violentamente e, de repente, Edward deu-se conta de uma sucessão de factos:
Primeiro: o casamento fora por procuração.
Segundo: ele estivera vários meses no Connecticut.
Terceiro: ela chegara há duas semanas a Nova Iorque.
Não era de admirar que não a tivesse reconhecido! Nunca a tinha visto.
Conclusão: o casamento nunca fora consumado.
Capítulo 4
E dward insistiu em vestir-se sozinho, por isso, Cecilia aproveitou a oportunidade para ir buscar
algo que pudessem comer. Passara a maior parte da semana naquela zona e conhecia todos os
sítios e as lojas que serviam comida. A opção mais barata – e a que escolhia com mais frequência –
eram os pãezinhos de passas do carrinho de Mr. Mather. Eram saborosos, embora desconfiasse que o
preço baixo só era possível pelo facto de cada pão não conter mais de três passas.
Mr. Lowell, um pouco mais abaixo na rua, vendia pãezinhos doces de passas e canela. Cecilia não
chegara a contar quantas uvas-passas continham, pela simples razão de ter comido apenas um, que
comprara mais barato por ser do dia anterior, e comera-o com demasiada voracidade, deliciada com
a cobertura de açúcar que se desfazia na boca.
Porém, ao virar da esquina, havia a loja de Mr. Rooijakkers, o padeiro holandês. Cecilia só lá
entrara uma vez. Fora o suficiente para chegar a duas conclusões: não podia pagar tais mimos e,
mesmo se pudesse, ficaria gorda como uma baleia em três tempos.
Mas, se havia dia para cometer uma extravagância, era aquele, pois Edward acordara e estava de
boa saúde. Cecilia tinha duas moedas no bolso, o suficiente para um mimo, especialmente porque já
não precisava de se preocupar em pagar o quarto. É certo que devia poupar dinheiro, pois só Deus
sabia o que a esperava nas semanas seguintes, mas não foi capaz de se conter. Não hoje.
Quando abriu a porta, o tilintar da campainha fê-la sorrir e os aromas deliciosos vindos da cozinha
fizeram-na suspirar.
– O que vai ser? – perguntou a mulher ruiva atrás do balcão.
Ela devia ser alguns anos mais velha do que Cecilia e falava com um leve sotaque que Cecilia não
teria sido capaz de identificar, se não soubesse que os donos eram holandeses.
– Um desses pães redondos – disse Cecilia, apontando para três pães-tigre deliciosos, de crosta
dourada, que em nada se assemelhavam ao que via no seu país. – São todos ao mesmo preço?
A mulher inclinou a cabeça para o lado e respondeu:
– Eram. Mas, vendo bem, o da direita parece mais pequeno. Posso fazer um desconto de meio
penny.
Cecilia já pensava onde poderia comprar a manteiga ou o queijo para acompanhar, quando o aroma
que sentia a fez perguntar:
– Que cheiro delicioso é este?
– Speculaas – respondeu a mulher, com um grande sorriso. – Acabadinhos de sair do forno. Já
provou?
Cecilia abanou a cabeça. Estava faminta. Na noite anterior comera finalmente uma refeição
decente, mas, aparentemente, só servira para a recordar do quanto andava a maltratar o estômago. E,
embora a empada de carne da estalagem fosse boa, Cecilia até salivava ao pensar em algo doce.
– Parti um dos biscoitos quando os tirei do tabuleiro – disse a mulher. – Ofereço-lho.
– Ah, não, eu não posso...
Com um gesto, a mulher pôs fim aos protestos.
– Nem pensar! Não posso cobrar dinheiro para provar um dos nossos biscoitos.
– Na verdade, pode – disse Cecilia com um sorriso –, mas não vou discutir mais.
– Nunca a vi na loja – comentou a mulher por cima do ombro, enquanto se dirigia para a cozinha.
– Vim só uma vez – explicou Cecilia, abstendo-se de dizer que não tinha comprado nada. – Na
semana passada. Estava cá um senhor de mais idade.
– Era o meu pai.
– Nesse caso, chama-se Miss Rooey... hum... Roojak... Santo Deus, como se pronuncia o seu nome?
Voltando da cozinha, a mulher riu-se e corrigiu:
– Rooijakkers. Mas, na verdade, uso o meu nome de casada: Mrs. Leverett.
– Graças a Deus! – exclamou Cecilia, com um sorriso de alívio. – Sei que acabou de dizer o nome,
mas seria incapaz de o repetir.
– Costumo dizer ao meu marido que foi por isso que me casei com ele – brincou Mrs. Leverett.
Cecilia acompanhou-a no riso, até se dar conta de que também ela se agarrara a um marido por
causa do nome dele. No caso dela, porém, era para obrigar o major Wilkins a fazer o seu maldito
trabalho.
– O neerlandês não é uma língua fácil – disse Mrs. Leverett –, mas, se pensa ficar na cidade de
Nova Iorque durante algum tempo, aconselho-a a aprender algumas frases.
– Ainda não sei quanto tempo cá estarei – confessou Cecilia.
Esperava que a estada não fosse longa. Só queria encontrar o irmão e certificar-se de que Edward
recuperava completamente. Não podia deixá-lo até ter a certeza de que ficava bem.
– O seu inglês é excelente – elogiou ela a padeira.
– Eu nasci cá. Os meus pais também, mas falamos neerlandês em casa. Aqui tem – disse,
entregando-lhe dois pedaços de um biscoito achatado cor de caramelo. – Prove.
Depois de agradecer, Cecilia levou o pedaço mais pequeno à boca e deu uma mordida.
– É divinal! – exclamou.
– Gosta? – perguntou Mrs. Leverett, o rosto iluminando-se de alegria.
– Como poderia não gostar?
O biscoito sabia a cardamomo, cravo e açúcar levemente caramelizado. Cecilia nunca provara
nada parecido e, no entanto, as saudades de casa invadiram-na. Talvez fosse apenas o gesto de
partilhar um biscoito enquanto conversava. Tinha andado demasiado ocupada para se dar conta da
sua solidão.
– Alguns oficiais dizem que são muito finos e quebradiços – comentou Mrs. Leverett.
– São loucos – disse Cecilia, com a boca cheia. – Embora deva dizer que ficariam ainda mais
perfeitos com chá.
– Não é coisa fácil de arranjar, infelizmente.
– Não, de facto.
Cecilia tivera a boa ideia de trazer chá, mas não fora suficiente e o que trouxera esgotara-se a dois
terços da viagem. Durante a última semana no navio, tivera de se habituar a reutilizar as preciosas
folhas e a só usar metade da dose em cada bule.
– Eu não devia queixar-me – disse Mrs. Leverett. – Ainda podemos comprar açúcar, e isso é muito
mais importante para uma confeitaria.
Cecilia assentiu e mordiscou a segunda metade do biscoito. Este, ia fazê-lo durar um pouco mais.
– Os oficiais bebem chá – continuou Mrs. Leverett. – Não muito, mas mais do que a maioria das
pessoas.
Edward era um oficial. Cecilia não queria aproveitar-se da fortuna dele, mas se ele conseguisse
arranjar chá...
Quase venderia um cantinho da sua alma por uma boa chávena de chá.
– Não me disse o seu nome – inquiriu Mrs. Leverett.
– Desculpe, estou um pouco distraída hoje! Sou Miss Har... perdão, Mrs. Rokesby.
A mulher abriu um sorriso sábio e respondeu:
– Recém-casada?
– Sim.
Mal sabe ela!, pensou Cecilia.
– O meu marido – continuou ela, tentando não tropeçar na palavra – é oficial. Capitão.
– Foi o que suspeitei – observou Mrs. Leverett. – Só essa razão a traria a Nova Iorque no meio de
uma guerra.
– É estranho – disse Cecilia, pensativa –, mas não parece uma guerra. Se eu não tivesse visto os
soldados feridos...
Fez uma pausa, refletindo sobre aquelas palavras. Talvez não testemunhasse diretamente a luta
naquele posto avançado britânico, mas os sinais de sofrimento e de privação estavam por toda a
parte. Havia muitos barcos-prisão no porto e, ao chegar, fora aconselhada a permanecer no camarote
até o barco atracar.
O cheiro, segundo lhe disseram, era insuportável.
– Peço que me desculpe – disse à mulher –, fui precipitada nas minhas palavras. As consequências
de uma guerra não se fazem sentir apenas na frente de batalha.
Mrs. Leverett sorriu, evidenciando uma tristeza misturada com cansaço.
– Não peça desculpa. Tem estado tudo relativamente calmo há dois anos. Queira Deus que continue
assim.
– Sim – murmurou Cecilia, olhando de relance para a janela, sem motivo aparente. – Vou ter de me
ir embora. Mas, antes, embrulhe-me meia dúzia de biscoitos, por favor. – Franzindo o sobrolho, fez
um breve cálculo mental para ver se tinha dinheiro suficiente e corrigiu: – Não, ponha uma dúzia.
– Uma dúzia! – exclamou Mrs. Leverett, antes de acrescentar um sorriso travesso: – Espero que
consiga arranjar o chá.
– Eu também. Tenho uma comemoração a fazer. O meu marido – aquela palavra a persegui-la
novamente – sai do hospital hoje.
– Sinto muito! Mas suponho que isso signifique que ele já está recuperado.
Cecilia pensou em Edward, ainda tão magro e pálido. Ainda nem o vira sair da cama.
– Quase. Ele ainda precisa de descanso, para recuperar as forças.
– Tem muita sorte em ter a mulher a seu lado.
Cecilia assentiu, mas sentiu a boca subitamente seca. Gostaria de acreditar que era por causa dos
biscoitos, mas suspeitava de que era a própria consciência.
– Apesar da guerra tão perto – continuou Mrs. Leverett –, ainda é possível encontrar alguma
diversão em Nova Iorque. A alta sociedade está sempre a dar festas. Eu não sou convidada, é claro,
mas às vezes vejo as senhoras lindamente vestidas.
– Verdade? – indagou Cecilia.
– Ah, sim. E julgo que vai haver uma apresentação da peça Macbeth na próxima semana, no John
Street Theatre.
– Não pode estar a falar a sério!
Mrs. Leverett levantou a mão e declarou:
– Juro pelo forno do meu pai.
Cecilia não evitou uma risada.
– Talvez eu tente ir, nesse caso. Há muito tempo que não vou ao teatro.
– Não posso garantir a qualidade da encenação. Creio que a maioria dos papéis é interpretada por
oficiais britânicos.
Cecilia tentou imaginar o coronel Stubbs ou o major Wilkins como atores dramáticos; não pareceu
agradável.
– A minha irmã foi, quando encenaram o Otelo – continuou Mrs. Leverett – e disse que os cenários
estavam muito bem pintados.
Não era exatamente encorajador, mas, a cavalo dado não se olha o dente, e Cecilia não tinha muitas
oportunidades de ver Shakespeare no Derbyshire. Talvez devesse experimentar.
Se Edward estivesse em condições para isso.
Se eles ainda fossem «casados».
Cecilia suspirou.
– Disse alguma coisa?
Cecilia fez que não com a cabeça, mas a pergunta de Mrs. Leverett deveria ter sido retórica, pois
ela não interrompeu a tarefa de embrulhar os biscoitos num pano.
– Infelizmente, não temos papel – explicou ela, contrita. – Tal como o chá, é difícil de arranjar.
– Significa que terei de lhe devolver o pano. – A perspetiva de voltar a trocar palavras amigáveis
com uma mulher da sua idade encheu-a de tanta felicidade que acrescentou: – Chamo-me Cecilia.
– Eu sou a Beatrix.
– Foi um prazer conhecê-la – disse Cecilia. – E obrigada por... Espere! Como se diz «obrigada»
em neerlandês?
– Dank u – respondeu Beatrix, com um grande sorriso.
Cecilia não conseguiu esconder a surpresa.
– Só assim?
– Escolheu uma palavra fácil – admitiu Beatrix. – Se quisesse aprender «por favor»...
– Não, não me diga! – interrompeu-a Cecilia, sabendo que Beatrix ia dizê-la na mesma.
– Alstublieft – terminou Beatrix, com um sorriso. – E não me diga que soa a espirro.
Cecilia riu-se.
– Fico-me pelo Dank u. Pelo menos, por hoje.
– Sim, é melhor – disse Beatrix. – Volte para o seu marido.
Mais uma vez aquela palavra. Cecilia despediu-se com um sorriso e um profundo desconforto. O
que pensaria Beatrix Leverett, se soubesse que ela não passava de uma fraude?
Apressou-se a sair da loja antes que as lágrimas a traíssem.
*
U ma hora mais tarde, sentada na sala de refeições da estalagem Devil’s Head, Cecilia terminava
metodicamente o seu almoço, enquanto Edward folheava um exemplar recente do jornal Royal
Gazette. Também ela tinha começado a refeição com um jornal diante de si, mas ficara tão chocada
com um anúncio sobre a venda de um «negro, bom cozinheiro, não sujeito a enjoos» que pousara o
jornal e concentrara toda a atenção no prato de porco e batatas à sua frente.
Edward, pelo contrário, lera o jornal de uma ponta à outra. Depois, pedira ao estalajadeiro o
exemplar da semana anterior e repetira o processo. Embora ele não se tivesse dado ao trabalho de
explicar, era óbvio que tentava preencher as lacunas da sua memória. Cecilia duvidava que fosse de
grande ajuda, que ele encontrasse pistas sobre a sua estada no Connecticut num jornal público.
Contudo, mal também não fazia. Além do mais, ele parecia o tipo de homem que gostava de
acompanhar a atualidade. Nisso, era parecido com Thomas. O irmão nunca se levantava da mesa do
pequeno-almoço sem ler o London Times da primeira à última página. O jornal chegava com vários
dias de atraso a Matlock Bath, mas isso nunca o incomodava. Era melhor saber as notícias com
atraso do que não as saber de todo, dizia ele, especialmente se nada podia ser feito acerca do
assunto.
Muda o que podes e aceita o que não podes mudar, dissera-lhe ele certa vez. O que diria o irmão
da sua conduta recente? Suspeitava que ele teria colocado o facto de estar ferido e desaparecido na
categoria «aceita o que não podes mudar» sem pensar duas vezes.
Ela deixou escapar um murmúrio de riso. Era um pouco tarde para isso, agora.
– Disseste alguma coisa? – indagou Edward.
– Não, estava só a pensar no Thomas – respondeu ela, tentando esforçar-se por não mentir, sempre
que possível.
– Nós vamos encontrá-lo – assegurou Edward. – Ou teremos notícias. Uma coisa ou outra.
Cecilia engoliu em seco, tentando desfazer o nó na garganta, e assentiu com gratidão. Já não estava
sozinha naquela provação. Embora ainda sentisse medo, ansiedade e insegurança, não estava sozinha.
E isso fazia uma enorme diferença.
Edward preparava-se para dizer mais, quando foram interrompidos pela rapariga que os servira.
Como toda a gente em Nova Iorque, ela parecia exausta e com excesso de trabalho, pensou Cecilia.
E cheia de calor. Não compreendia como é que as pessoas conseguiam aguentar aqueles verões.
Em Inglaterra, o ar nunca era tão pesado e húmido, a não ser que chovesse.
Ouvira dizer que as temperaturas do inverno também eram extremas e rezou para não estar ali
quando começasse a nevar. Um dos soldados no hospital dissera-lhe que o chão congelava e ficava
duro como pedra e que o vento era como facas afiadas.
– O seu banho está pronto, sir – anunciou a rapariga, com uma discreta reverência.
– Ainda precisas mais dele agora – comentou Cecilia, apontando para os dedos manchados de tinta
de Edward.
Escusado será dizer que ninguém da estalagem tinha tido tempo ou vontade de fixar a tinta do
jornal com um ferro quente.
– Faz-me ter muitas saudades de casa – murmurou ele, depois de olhar para as mãos.
– Verdade? – perguntou ela, erguendo uma sobrancelha. – É disso que sentes mais falta? De um
jornal passado a ferro?
Apesar do olhar enviesado que ele lhe lançou, Cecilia percebeu que ele gostava das suas
provocações. Não era o género de homem que aceitasse ser tratado como inválido, rodeado de gente
a cirandar à sua volta com pezinhos de lã e a medir as palavras. Portanto, quando ele baixou o jornal
e olhou para a porta, Cecilia absteve-se de perguntar se ele queria ajuda para subir as escadas.
Limitou-se, simplesmente, a levantar-se e a oferecer-lhe o braço em silêncio, pois percebera o
quanto lhe custara pedir-lhe a ajuda à saída do hospital.
Algumas coisas requeriam ações, não palavras.
Na verdade, ficou aliviada por ele a ter ignorado durante a refeição, para dedicar toda a atenção
ao jornal. Ainda estava chocada pela oferta dele de a libertar do matrimónio. Nunca, nem por
sombras, esperara que o fizesse. Fora extraordinário não ter caído redonda no chão, ali de pé, com
os biscoitos holandeses na mão, quando ele se oferecera para lhe devolver a liberdade.
Como se tivesse sido ele a prendê-la!
Ela devia ter aproveitado a oportunidade. Mentia a si mesma, ao pensar que o teria feito se...
Se não fosse a expressão no rosto dele.
Ele não mexera um músculo e, no entanto, não parecia ter petrificado. Parecia apenas... imóvel.
Ela julgou que talvez ele tivesse prendido a respiração.
Pensou até que fora um ato inconsciente.
Ele não queria que ela se fosse embora.
Cecilia não sabia por que estava tão certa disso. Não havia razão para conhecer as expressões de
Edward, nem para ser capaz de interpretar as emoções que se calavam no fundo dos seus olhos. Só o
conhecia, pessoalmente, há um dia.
Não imaginava que ele tivesse outro motivo para ela ficar, exceto precisar de uma enfermeira e de
ela estar disponível, mas por que quereria ele ficar casado com ela?
A ironia da situação não parava de crescer.
Cecilia lembrou a si mesma que não podia correr o risco de revelar a verdade antes de saber as
notícias do major Wilkins. Tinha a impressão de que o capitão Edward Rokesby era um modelo de
honestidade e não sabia se ele seria capaz, mesmo se pudesse, de mentir ao seu superior militar por
ela. O sentido de honra talvez o obrigasse a informá-lo de que, embora quisesse ajudar Miss Cecilia
Harcourt a procurar o irmão, não era, na verdade, marido dela.
Cecilia não se atreveu a imaginar o resultado de tal conversa.
Não, para confessar a sua fraude a Edward, teria de ser depois de falarem com o major.
Convenceu-se de que era a única solução aceitável.
Aliás, convenceu-se de muitas coisas.
E, depois, tentou não pensar mais nelas.
– Os degraus são altos e estreitos – avisou ela, quando se aproximaram da escada.
Edward resmungou um agradecimento e, apoiando-se no braço dela, subiu devagar. Cecilia
imaginou como lhe seria difícil depender de outros. Nunca o vira com saúde, mas ele era alto – tinha
cerca de um metro e oitenta – e os ombros deviam ser largos e fortes, assim que os músculos
retomassem o volume habitual.
Não era homem que precisasse de ajuda para subir escadas.
– O quarto fica ao fundo do corredor – informou ela, virando a cabeça para a esquerda quando
chegaram ao patamar. – É o número doze.
Ele assentiu. Quando chegaram à porta, Cecilia deixou cair o braço e entregou-lhe a chave. Não
era muito, mas abrir a porta era um gesto que ele poderia fazer por ela e que, provavelmente, o faria
sentir-se um pouco melhor, mesmo que não entendesse a razão.
No entanto, pouco antes de meter a chave na fechadura, ele disse:
– Esta é a tua última oportunidade.
– Eu... perdão?
Ele rodou a chave, o som metálico ecoando pelo corredor.
– Se quiseres anular o nosso casamento – disse ele num tom firme –, deves dizer-me agora.
Cecilia tentou responder, mas sentia as batidas fortes do coração na garganta e um violento
formigueiro tomou-lhe conta dos dedos das mãos e dos pés. Acreditava que nunca ficara tão
surpreendida na vida. Nem tão aflita.
– Digo-o apenas uma vez – declarou Edward, com uma calma que contrastava com o imenso caos
que a assolava. – Assim que cruzarmos esta porta, o nosso casamento será definitivo.
Ela não pôde conter uma risada nervosa.
– Deixa-te de exageros! Não vais desflorar-me esta tarde, suponho. – Então, apercebendo-se de
que ele poderia sentir-se ofendido na sua masculinidade por aquelas palavras, emendou: – Hum...
pelo menos, não antes do banho.
– Sabes tão bem como eu que não importa quando partilhamos a cama – retorquiu ele, o olhar
perscrutando o dela. – Assim que entrarmos juntos neste quarto, como casal, a tua virtude ficará
comprometida.
– Não é possível comprometer a virtude da própria mulher – tentou ela brincar.
Ele soltou uma imprecação entredentes, a palavra escapando num grunhido frustrado. Pareceu-lhe
tão fora de carácter, que Cecilia, desconcertada, deu um passo atrás.
– Não é algo que deva ser encarado de ânimo leve – replicou ele. Mais uma vez, parecia obrigar-
se a uma escrupulosa imobilidade, mas, desta vez, traído pelo pulsar furioso do pescoço. – Estou a
oferecer-te a oportunidade de te ires embora.
– Mas porquê? – insistiu ela, com um abanar incrédulo de cabeça.
Depois de se certificar de que não havia ninguém no corredor, ele sibilou:
– Porque estou deficiente, caramba!
Teria sido um grito, se não estivessem num lugar público. A intensidade da voz era tal, que ficaria
para sempre gravada na mente de Cecilia.
O que a deixou de coração partido.
– Não, Edward – tentou ela tranquilizá-lo –, não deves pensar assim. É...
– Perdi uma parte do meu cérebro – interrompeu ele.
– Não, não... – foi tudo o que ela conseguiu dizer.
Ele agarrou-a pelos ombros, os dedos afundando-se-lhe na carne.
– Tens de entender, Cecilia, eu já não sou um homem inteiro!
Ela abanou a cabeça. Queria dizer-lhe que era perfeito, que ela não passava de uma fraude e que se
sentia profundamente arrependida de tirar proveito da condição dele.
E que nunca seria capaz de se redimir aos olhos dele.
– Eu não sou o homem com quem te casaste – afirmou ele, soltando-a abruptamente.
– E eu, provavelmente, também não sou a mulher com quem te casaste – murmurou ela.
Ele fixou o olhar nela durante tanto tempo, que ela começou a sentir um formigueiro na pele.
– Mas acho... – sussurrou ela, apercebendo-se da verdade só quando as palavras escaparam – acho
que podes precisar de mim.
– Santo Deus, Cecilia, nem imaginas quanto!
E ali, no meio do corredor, abraçou-a e beijou-a.
Edward não tivera intenção de a beijar. Tudo o que queria era portar-se como um cavalheiro,
caramba! Mas, quando ela ergueu aqueles olhos verde-água para ele e sussurrou que ele precisava
dela...
Apenas uma coisa poderia tê-lo excitado mais: se ela dissesse que também precisava dele.
Embora tivesse, certamente, perdido bem mais de cinco quilos e se sentisse fraco a ponto de não
conseguir subir um lance de escadas sem ajuda, ainda era capaz de beijar a própria mulher.
– Edward... – suspirou ela.
– Está decidido: ficamos casados – declarou ele, puxando-a para o quarto.
– Meu Deus!
Ele não compreendeu o significado da exclamação, mas não se importou.
O quarto era pequeno e a cama ocupava quase metade do espaço, por isso, ele não teve dificuldade
em sentar-se na beira da cama e puxar Cecilia consigo.
– Edward, eu...
– Não fales agora – ordenou ele, tomando-lhe o rosto nas mãos. – Quero olhar para ti.
– Porquê?
Ele sorriu.
– Porque és minha.
Os lábios de Cecilia abriram-se numa oval perfeita e adorável e ele não resistiu a beijá-la
novamente. A princípio, ela não reagiu, mas também não o afastou. Ele teve a impressão de que ela
permanecia intencionalmente imóvel, de respiração suspensa, como se quisesse ter a certeza de que o
momento era real.
Então, quando pensou que deveria terminar o beijo, sentiu um pequeno movimento dos lábios dela,
acompanhado por um gemido quase impercetível.
– Cecilia – murmurou.
Não sabia o que tinha feito nos últimos meses, mas desconfiava que não teria sido nada de que se
orgulhar. Em todo o caso, nada tão puro, tão belo como o que via nos olhos dela.
Naquele beijo saboreava a promessa de redenção.
Roçou a boca na dela com a suavidade de um sussurro. Mas não foi suficiente e, quando ela deixou
escapar um leve gemido de desejo, mordiscou-lhe ao de leve o lábio inferior.
Queria passar a tarde inteira assim. Deitado ao lado dela na cama, a adorá-la como a deusa que
era. Seria apenas um beijo, pois mal tinha forças para mais, mas seria um beijo interminável, doce,
lento e profundo, as carícias fundindo-se umas nas outras.
Aquele desejo sem impaciência era realmente estranho, mas agradava-lhe, pelo menos, por
enquanto. Quando recuperasse as forças e voltasse ao normal, faria amor com ela com toda a sua
alma e conhecia-se o bastante para saber que a experiência seria de uma paixão avassaladora.
– És tão linda – murmurou e, por lhe parecer de extrema importância que ela soubesse que também
via a sua beleza interior, acrescentou: – E tão generosa.
Ela enrijeceu. Foi um movimento quase impercetível, mas os sentidos de Edward estavam tão em
sintonia com ela, que teria notado a mais leve alteração da sua respiração.
– Temos de parar – sussurrou ela.
Embora a voz mostrasse tristeza, não havia falta de determinação.
Edward suspirou. O desejo que sentia por Cecilia crescia a cada instante, mas não podia fazer
amor com ela naquele estado... sujo e exausto. Ela merecia muito mais e, para ser sincero, ele
também.
– A tua... água vai ficar fria – lembrou ela.
Ele olhou de relance para a banheira fumegante. Não era muito grande, mas era suficiente, e ele
sabia que a água não se manteria quente muito mais tempo.
– Eu devia ir lá abaixo – disse ela, levantando-se com certo constrangimento.
Usava um vestido rosa-chá e a mão parecia mesclar-se com o tecido da saia, que amassava com os
dedos.
Edward não pôde deixar de achar adorável aquela sua expressão mortificada.
– Não deves sentir-te constrangida. Sou teu marido – lembrou-a.
– Ainda não – murmurou ela. – Não dessa maneira.
Ele sorriu secretamente.
– Eu devia mesmo ir – repetiu ela, sem dar um único passo.
O sorriso dele manifestou-se agora em pleno.
– Não saias por minha causa. Creio que, segundo as práticas medievais, o banho do marido era
considerado uma parte importante do dever conjugal.
Quando ela revirou os olhos, uma onda de felicidade percorreu-o. Era muito divertido quando ela
ficava envergonhada, mas ele preferia os momentos em que ela o enfrentava.
– Posso afogar-me, sabias? – provocou ele.
– Oh, poupa-me!
– É verdade! Estou tão cansado. E se adormecer na banheira?
Ela não respondeu imediatamente e, por um momento, ele julgou que ela ia acreditar.
– Não vais adormecer na banheira, coisíssima nenhuma – afirmou ela, por fim.
Ele suspirou ostensivamente, como se quisesse dizer «nunca se sabe...», mas teve pena dela e
respondeu:
– Volta daqui a dez minutos.
– Só dez?
– Isso é uma alusão ao meu grau de imundície?
– Sim – respondeu ela, sem rodeios.
Edward soltou uma gargalhada.
– És muito engraçada, Cecilia Rokesby, sabias?
Ela voltou a revirar os olhos e entregou-lhe a toalha que estava cuidadosamente dobrada aos pés
da cama.
Ele fingiu um suspiro e comentou:
– Podia dizer que foi por isso que me casei contigo, mas ambos sabemos que não é verdade.
Ela virou para ele um rosto estranhamente desprovido de expressão.
– Perdão?
Ele encolheu os ombros e tirou o casaco.
– Obviamente não me lembro por que razão me casei consigo.
– Ah! Pensei que querias dizer...
Ele fitou-a de sobrancelhas arqueadas.
– Não importa – concluiu Cecilia.
– Não, diz-me – insistiu ele.
Ela corou violentamente e respondeu:
– Pensei que estivesses a referir-te a...
Ele esperou que ela terminasse a frase. Em vão.
– Ao beijo? – ajudou ele.
Não pensava que ela pudesse corar ainda mais, mas enganou-se. Em dois passos, aproximou-se
dela e, deslizando o dedo indicador sob o queixo, ergueu o rosto dela para o seu.
– Se te tivesse beijado antes do casamento – disse em voz suave –, não haveria nenhuma dúvida,
neste momento, sobre a continuidade do nosso casamento.
Ela franziu a testa com uma perplexidade encantadora e ele roçou ao de leve os lábios nos dela e
sussurrou-lhe junto à face:
– Se eu soubesse como era beijar-te, não teria permitido que o exército me enviasse para longe.
– Dizes isso por dizer – balbuciou ela.
Ele afastou-se, exibindo um sorriso divertido.
– Não serias capaz de recusar uma ordem direta – insistiu ela.
– Tua? Nunca.
– Para com isso – protestou ela, afastando-o com um gesto brincalhão. – Sabes muito bem que não
é isso que eu quero dizer.
Ele agarrou na mão dela e, levando-a aos lábios, depositou um beijo cortês. Sentia-se
ridiculamente romântico.
– Garanto-lhe, Mrs. Rokesby, que teria arranjado tempo para uma noite de núpcias.
– Tens de tomar banho. A menos que gostes de água fria.
Edward começava a pensar que talvez precisasse de água fria.
– Entendido. Mas se eu puder dizer uma última coisa...
– Porque será que desconfio que vou corar daqui a alguns segundos?
– Já estás corada – comentou ele com imenso prazer – e eu só ia dizer...
– Estou de saída! – exclamou ela, correndo em direção à porta.
Com um enorme sorriso presunçoso no rosto, mesmo já tendo apenas como testemunha a porta
fechada, Edward continuou em voz alta e plena de felicidade:
– Só ia dizer que teria sido espetacular.
Vai ser espetacular, pensou, tirando o resto da roupa antes de se sentar na banheira.
E em breve, se dependesse dele.
Capítulo 6
E dward dissera que só precisava de dez minutos, Cecilia esperou, pelo menos, vinte e cinco,
antes de se aventurar a voltar para o quarto. Tinha pensado ficar meia hora, mas começara a
preocupar-se. Edward ainda estava muito fraco. E se tivesse dificuldade em sair da banheira?
A água já devia estar fria. Ele podia apanhar uma constipação. Embora ele tivesse direito à sua
privacidade e ela estivesse disposta a conceder-lha, não o podia fazer em detrimento da sua saúde.
É verdade que já o vira em estado muito pouco decente, quando cuidara dele no hospital. Porém,
não tinha visto tudo. Aprendera a ser muito criativa com o lençol, movendo-o pedaço a pedaço, para
preservar a dignidade de Edward.
E a sua própria modéstia.
A cidade inteira de Nova Iorque podia considerá-la uma mulher casada, mas ela era praticamente
inocente, mesmo se um beijo do capitão Edward Rokesby lhe tivesse tirado completamente o
fôlego... e removido toda a capacidade de raciocínio.
Francamente, devia ser proibido um homem ter olhos daquela cor. Aquela mescla de verde azulado
e safira era o bastante para conquistar uma mulher com um simples olhar. Era verdade que tinha
fechado os olhos quando ele a beijara, mas isso não importava, pois ela só se lembrava daquele
momento, pouco antes de ele encostar os lábios aos dela, em que lhe parecera afogar-se no profundo
azul do seu olhar.
Cecilia sempre gostara dos próprios olhos e orgulhava-se do seu raro verde pálido que a
diferenciava. Mas Edward...
Era um homem lindo, isso era inegável.
Mas ainda estava muito frágil, pensou enquanto subia as escadas, e, se apanhasse frio, uma gripe
poderia ser fatal.
– Edward? – chamou, batendo suavemente à porta.
Lembrou-se de que não tinha motivos para ser discreta, por isso, bateu com um pouco mais de
força.
– Edward?
Sem resposta.
Um arrepio de apreensão percorreu-lhe a espinha. Agarrou a maçaneta e rodou.
Chamou o nome dele novamente, entrando no quarto de olhos baixos. Como ele não respondeu, ela
resignou-se a olhar para a banheira.
– Adormeceste mesmo! – exclamou ela, sem pensar que talvez ele não quisesse ser acordado de
forma tão repentina.
– Hum?!
De facto, Edward acordou com um grito e deu um pulo tão violento, que a água transbordou da
banheira. Cecilia, sem saber porquê, correu em direção a ele. Mas não podia permanecer ali
plantada diante dele. Estava nu!
– Prometeste que não adormecias – acusou ela, de costas voltadas para a banheira.
– Não fui eu que disse que não ia adormecer – contrariou ele.
Bolas, ele tinha razão.
– Bem... – começou ela no tom óbvio de quem não sabia o que fazer. – Imagino que a água esteja
fria.
Um momento de silêncio e logo a resposta:
– É suportável.
Ela gingou de um pé para o outro, depois desistiu e cruzou os braços com força. Não estava
zangada, mas parecia não saber o que fazer com o próprio corpo.
– Não quero que apanhes uma gripe – disse ela, de olhos fixos nos pés.
– Não.
Não? Era tudo o que ele tinha a dizer?
– Hã... Cecilia?
Ela fez um som, mostrando-lhe que estava a ouvir.
– Importas-te de fechar a porta?
– Oh, meu Deus, desculpa!
Atravessou o quarto a correr – o que não era um grande esforço, dado o pouco espaço disponível –
e bateu a porta com mais força do que o necessário.
– Ainda estás aí? – perguntou Edward.
Foi então que Cecilia percebeu que ele não conseguia vê-la. Ele estava quase de costas para a
porta e a banheira era demasiado pequena para ele se virar facilmente.
– Sim? – Sem saber porquê, a resposta saiu como pergunta.
Houve uma breve pausa, durante a qual Edward provavelmente se perguntava como reagir a uma
resposta tão ridícula. Por fim, acabou por perguntar:
– Podes trazer-me a toalha?
– Ah... sim. Claro.
Mantendo-se de costas para a banheira, Cecilia foi até à cama e pegou na toalha. Dali, só tinha de
esticar o braço para trás e entregá-la a Edward.
– Não quero deixar-te desconfortável... – começou ele, pegando na toalha.
O que significava que ela ia ficar desconfortável... e muito.
– ...e agradeço os teus esforços para preservar a minha modéstia, mas não me viste... hã... nu
quando cuidaste de mim?
– Não desta maneira – murmurou ela.
Mais uma pausa. Desta vez, Cecilia imaginou-lhe o sobrolho cerrado enquanto ponderava a
resposta.
– Mantive-te sempre tapado com o lençol – explicou.
– Sempre?
– A minha determinação é forte – defendeu-se ela, provocando uma risada a Edward. – Acho que é
melhor voltar a descer – acrescentou, movendo-se discretamente até à porta. – Eu só queria
certificar-me de que não te constipavas.
– Em junho?
– Estiveste doente – empertigou-se ela.
– Ainda estou – suspirou ele.
Cecilia apertou os lábios tentando reunir coragem. Ele tinha razão, e a saúde dele era mais
importante do que a suscetibilidade dela. Por isso, respirou fundo e perguntou:
– Precisas de ajuda para sair da banheira?
– Não – respondeu ele, baixinho. – Pelo menos, espero que não.
– Talvez eu deva ficar – sugeriu ela, aproximando-se um pouco mais da porta. – Caso precises de
mim enquanto te levantas.
Preferiu que não fosse preciso, pois a toalha não era grande.
Um instante depois, ouviu um ruído de esforço seguido do chapinhar da água.
– Está...
– Está tudo bem – cortou ele, num tom tenso.
– Desculpa.
Não devia ter insistido, pois ele era um homem orgulhoso. Mas cuidara dele durante vários dias e
era-lhe difícil parar, mesmo que se obrigasse a não virar os olhos para ele.
– Não é culpa tua.
Ela assentiu, sem saber se ele estava a olhar para si.
– Já podes virar-te.
– Tens a certeza?
– Estou tapado – respondeu ele, talvez um pouco farto de tanto melindre.
– Obrigada.
Ela virou-se devagar, pois não sabia exatamente o que ele queria dizer com «tapado».
Ele estava na cama, encostado às almofadas, os cobertores puxados até à cintura. O peito estava
nu. Não era mais do que vira quando lhe dava banhos de esponja para lhe aliviar a febre no hospital,
mas parecia-lhe bem diferente agora, que ele tinha os olhos abertos e atentos.
– Pareces melhor – disse ela.
Era verdade. Ele tinha lavado o cabelo, e a pele parecia menos pálida.
Edward abriu um sorriso cansado e esfregou o queixo.
– Não me barbeei.
– Isso não importa. Não é urgente – assegurou ela.
– Não vou sentir-me devidamente limpo enquanto tiver esta barba.
– Ah... bem...
Cecilia sabia que devia oferecer-se para o barbear. Era a única tarefa que podia fazer por ele e
ajudá-lo-ia a ficar mais confortável, mas era demasiado íntimo. O único homem que barbeara fora o
pai. Ele não tinha criado pessoal e, quando a artrite nas mãos o impediu de o fazer, ela assumiu a
tarefa.
– Não precisas de o fazer – disse Edward.
– Não, não me incomoda nada – assegurou ela.
Comportar-se assim, como uma virgem assustada, era ridículo. Fora capaz de atravessar o oceano
Atlântico sozinha, de enfrentar o coronel Zachary Stubbs, do Exército de Sua Majestade, e de lhe
mentir descaradamente para salvar a vida de um homem. Era certamente capaz de barbear esse
mesmo homem!
– Talvez deva perguntar primeiro se alguma vez barbeaste um homem – murmurou Edward.
Escondendo um sorriso, ela olhou ao redor, à procura da lâmina e do pincel.
– A pergunta é realmente prudente, antes de permitires que aproxime uma lâmina do teu pescoço.
Ele soltou uma risada.
– Há uma pequena caixa de couro na minha mala, onde está o meu conjunto de barbear.
Ah, pois, a mala. Os pertences de Edward tinham sido guardados enquanto ele estivera
desaparecido. O coronel Stubbs mandara entregá-los na estalagem naquele dia.
Cecilia aproximou-se da mala, abriu-a e afastou as roupas cuidadosamente dobradas, os livros e os
papéis. Remexer nos pertences de Edward parecia-lhe terrivelmente íntimo. O que levaria um homem
para um país estrangeiro? Não devia ter assim tanta curiosidade; afinal, ela também fizera as malas
para atravessar o oceano. Mas, ao contrário de Edward, nunca tivera a intenção de ficar muito tempo.
Tinha trazido apenas o essencial. A única lembrança que trouxera era um retrato em miniatura do
irmão, apenas por achar que poderia ajudá-la a encontrá-lo.
Suspirou para si mesma. Julgara que podia precisar do retrato para encontrar Thomas num
hospital! Estava longe de imaginar que a procura ia levá-la a percorrer toda a colónia.
– Encontraste? – quis saber Edward.
– Hã... não – murmurou Cecilia, afastando uma camisa de linho branca.
O tecido macio estava gasto, sendo notório que tinha sido lavado muitas vezes. No entanto, ela
sabia o suficiente de costura para perceber que a camisa era de excelente qualidade. Thomas não
tinha camisas tão boas. Teriam as dele resistido tão bem como as de Edward? Tentou imaginar o
irmão a remendar as suas roupas, mas sem sucesso. Fora sempre ela a fazer esse tipo de trabalho por
ele. Reclamava, mas fazia.
O que não daria para voltar a fazê-lo!
– Cecilia?
Reparando no canto de uma caixa de couro, puxou-a.
– Desculpa. A minha mente estava longe.
– Nalgum sítio interessante, espero.
Ela virou-se para ele.
– Estava a pensar no meu irmão.
Edward ficou sério.
– Claro. Desculpa.
– Teria gostado de o ajudar a preparar a mala.
Cecilia lançou um olhar de relance por cima do ombro. Edward não respondeu, mas fez um
pequeno movimento de cabeça, mostrando que entendia.
– Ele não foi a casa antes de partir para a América do Norte – continuou Cecilia. – Não sei se ele
teve alguém para o ajudar a preparar tudo. Sabes?
– A minha mãe – respondeu Edward. – Ela insistiu. Consegui ir a casa despedir-me da minha
família antes de embarcar. A Crake House não fica longe da costa. Com uma montaria rápida,
demora-se menos de duas horas a lá chegar.
Cecilia assentiu com tristeza. O regimento de Edward e Thomas partira do porto de Chatham, no
Kent, em direção ao Novo Mundo. Era demasiado longe do Derbyshire para o irmão considerar ir a
casa.
– O Thomas acompanhou-me a casa muitas vezes – disse Edward.
– Ah, sim?
Cecilia sentiu uma alegria que a surpreendeu. O que Thomas contava da sua vida no quartel era,
por vezes, sinistro, portanto, ficava feliz por ele ter tido a oportunidade de passar algum tempo num
verdadeiro lar, cercado por uma família a sério. Voltou a olhar rapidamente para Edward e, com um
leve sorriso e um abanar de cabeça, disse:
– Ele nunca disse nada.
– E eu a pensar que contavam tudo um ao outro.
– Nem tudo, não – murmurou Cecilia, mais para si mesma.
Ela certamente não contara a Thomas o quanto gostava das intervenções de Edward nas cartas que
o irmão lhe enviava. Se tivesse tido a oportunidade de se sentar com o irmão, de conversar com ele
cara a cara, teria confessado que estava um pouco apaixonada pelo melhor amigo dele?
Provavelmente, não. Algumas coisas eram demasiado íntimas para serem reveladas, até ao irmão
preferido.
Engoliu em seco, tentando desfazer o nó que lhe apertava a garganta. Thomas gostava de dizer que
era o irmão preferido dela, ao que ela sempre respondia que era o seu único irmão. O pai dos dois,
que nunca tivera sentido de humor, costumava resmungar e dizer que já ouvira aquela conversa
muitas vezes e que podiam tentar acabar com a implicância de uma vez por todas.
– Em que estás a pensar? – perguntou Edward.
– Desculpa. No Thomas, ainda. – Com um torcer de lábios, quis saber: – Porquê? Pareço triste?
– Não, pelo contrário. Tens um ar bastante feliz.
– Oh! – Cecilia pestanejou repetidamente. – Suponho que sim.
Edward fez um movimento de cabeça para a mala aberta.
– Disseste que gostarias de o ter ajudado a preparar a mala?
Ela permaneceu pensativa um momento, conquistada pela nostalgia.
– Penso que sim. Teria sido reconfortante pensar nele com os seus pertences.
Edward anuiu.
– Não é essencial, claro, mas teria sido bom – acrescentou ela rapidamente, virando a cabeça para
esconder e engolir as lágrimas que lhe ardiam nos olhos.
– Eu não precisava realmente da ajuda da minha mãe – disse Edward, baixinho.
Ela virou-se lentamente para olhar para o rosto que se tornara tão querido em tão pouco tempo.
Não sabia como era a mãe dele, mas podia imaginar a cena: Edward, alto, forte e competente, a
fingir uma certa falta de jeito, para deixar a mãe preocupar-se com ele.
Fitou-o com respeito solene.
– És um bom homem, Edward Rokesby.
Por um momento, ele pareceu quase surpreendido com o elogio e, em seguida, corou, embora o
rubor ficasse quase escondido pela barba. Cecilia baixou a cabeça para ocultar um sorriso, pensando
que, em breve, ele não teria a desculpa da barba.
– É minha mãe – resmungou ele, baixinho.
Cecilia soltou uma das fivelas que fechavam a caixa de couro.
– Um bom homem, como eu disse.
Ela não o viu corar mais uma vez porque estava de costas viradas, mas podia jurar que o sentira no
ar estagnado do quarto.
Ela gostava que ele corasse.
E adorava ser a causa.
Ainda a sorrir, passou os dedos pela margem do baú. Tal como todos os outros bens de Edward,
era um objeto de alta qualidade, feito de madeira e ferro. Um padrão de tachas desenhava as iniciais
de Edward na tampa.
– O que significa o «G»? – perguntou ela.
– O «G»?
– Nas tuas iniciais. EGR.
– Ah! George.
– Claro – anuiu ela.
– Por que dizes «claro»?
– Que mais poderia ser? – respondeu ela, com um olhar rápido.
– Gregory ou Geoffrey – sugeriu ele, com um revirar de olhos.
– Não – contrapôs ela, com um sorriso travesso.
– Gawain.
Ela revirou os olhos.
– Oh, por favor! É óbvio que és um George.
– O meu irmão é George – corrigiu ele.
– Tu também, aparentemente.
– É um nome de família – explicou ele com um encolher de ombros. Quando ela tirou a navalha da
caixa, perguntou: – Qual é o teu?
– O meu nome do meio? Esmerelda.
Ele arregalou os olhos.
– A sério?
– Não – admitiu ela, com uma gargalhada. – Nada tão exótico. É Anne, como a minha mãe.
– Cecilia Anne... É muito bonito.
Ela sentiu-se corar, o que a surpreendeu, considerando as muitas situações bem mais embaraçosas
que lhe tinham acontecido durante o dia.
– Como te barbeaste enquanto estavas no Connecticut? – perguntou ela.
A navalha fora obviamente guardada com os outros pertences. Edward não a tinha com ele quando
reapareceu em Kip’s Bay.
– Não sei – admitiu ele, depois de hesitar um momento.
– Oh, perdoa-me!
Que idiota que fora! É claro que ele não sabia.
– Mas eu tenho duas navalhas – disse ele, obviamente tentando acabar com o constrangimento dela.
– A que tens nas mãos pertencia ao meu avô. A outra foi comprada pouco antes da minha partida e,
geralmente, é essa que levo quando ando em viagem. Pergunto-me o que lhe terá acontecido –
acrescentou ele, franzindo o sobrolho.
– Não me lembro de a ver entre as tuas coisas no hospital.
– E eu tinha coisas no hospital?
Ela franziu a testa, pensativa.
– Agora que perguntas, não. Apenas as roupas que usavas, segundo me disseram. E o que tinhas nos
bolsos. Eu não estava presente quando foste levado para lá.
– Bem – disse ele, coçando o queixo. – Talvez seja por isso que não viajo com a minha navalha
boa.
– É muito bonita – murmurou Cecilia.
O cabo, com belíssimos entalhes, era de marfim e encaixava na perfeição na mão, e a lâmina era
feita do melhor aço de Sheffield.
– Foi dele que herdei o nome – explicou Edward. – Do meu avô. As iniciais dele estão gravadas
no cabo. Foi por isso que ele ma deu.
Cecilia baixou os olhos e viu que, de facto, as iniciais EGR estavam gravadas no marfim.
– A navalha do meu pai era muito parecida – disse ela, dirigindo-se para o lavatório. Estava vazio,
por isso, encheu a bacia com a água da banheira. – O cabo não era tão bonito, mas o aço é o mesmo.
– És especialista em lâminas de aço? – comentou Edward.
Ela atirou-lhe um olhar irónico.
– Estás com medo?
– Acho que devia estar.
– Qualquer pessoa que viva tão perto de Sheffield conhece as qualidades do aço – respondeu ela,
com uma risada. – Muitos homens deixaram a aldeia nos últimos anos para trabalhar nos altos-
fornos.
– Imagino que seja um trabalho muito ingrato.
Cecilia pensou nos vizinhos – antigos vizinhos, na verdade. Todos jovens, geralmente filhos de
rendeiros. Mas nenhum deles mantinha o ar jovem depois de um ano ou dois nas fundições.
– Sim – concordou ela. – Ouvi dizer que ganham bem mais do que se trabalharem nos campos.
Espero sinceramente que sim.
Depois de colocar um pouco de sabão numa tigela, Cecilia fez a espuma com o pincel de barba que
encontrara no estojo de barbear e aproximou-a da cama. Franziu o sobrolho.
– O que foi?
– A tua barba está muito comprida.
– Não estou assim com tão mau aspeto!
– Mas está muito mais comprida do que a do meu pai.
– Foi com ele que praticaste a arte?
– Todos os dias durante os últimos anos da vida dele. – Inclinou a cabeça para o lado, como um
artista a estudar a sua tela. – Seria melhor cortá-la primeiro.
– Infelizmente, eu não tenho tesoura.
Cecilia imaginou de repente um jardineiro a aparar a barba de Edward com uma tesoura de poda e
teve de conter uma gargalhada.
– O que foi? – exigiu saber Edward.
– É melhor não saberes. – Pegou no pincel e declarou: – Vamos lá então a isto.
Edward levantou o queixo, deixando-a espalhar o sabão pelo lado esquerdo do rosto. A espuma
não era tão densa quanto ela gostaria, mas deveria ser suficiente. Esticando a pele com a outra mão,
ela deslizou a lâmina cuidadosamente, várias vezes, da bochecha até ao queixo. A cada passagem,
mergulhava a lâmina na bacia, cuja água ia ficando gradualmente coberta de espuma misturada com
cabelo.
– Tens muitos pelos ruivos na barba – observou ela. – Um dos teus pais é ruivo?
Ele começou a abanar a cabeça.
– Não te mexas!
Ele olhou-a de viés e respondeu:
– Então, não me faças perguntas.
– Tens razão.
– A minha mãe é loira – explicou Edward, quando ela parou para enxaguar a navalha novamente. –
O cabelo do meu pai é castanho como o meu. Ou melhor, era. Agora está a ficar branco. Ou grisalho,
como ele prefere chamar-lhe. – O semblante fechou-se e os olhos escureceram numa expressão triste.
– Imagino que terá muito mais quando eu voltar a vê-lo.
– Cabelos grisalhos? – perguntou Cecilia, mantendo o tom deliberadamente leve.
– Sim. – Ele levantou o queixo ainda mais, para lhe dar acesso ao pescoço. – Obrigado, mais uma
vez, por lhes teres escrito.
– Não tens de quê. Só gostava que houvesse forma de eles receberem notícias mais depressa.
Ela conseguira enviar a carta para a família Rokesby no primeiro barco, mas, ainda assim, a carta
demoraria, pelo menos, três semanas até chegar a Inglaterra. E mais cinco semanas até receberem
uma resposta.
Permaneceram em silêncio enquanto Cecilia se concentrava na tarefa. Era muito mais difícil
conseguir um resultado satisfatório do que quando barbeava o pai. O comprimento da barba de
Edward era muito superior à barba de um dia a que se acostumara.
Já para não falar do facto de se tratar de Edward, o homem que acabara de a beijar.
E do quanto ela gostara...
Quando se inclinou para ele, o ar pareceu mudar à sua volta, carregado de magnetismo, fazendo-a
tão intensamente ciente da proximidade, que perdeu a respiração e sentiu um formigueiro pelo corpo
todo. E quando finalmente conseguiu respirar, era como se o respirasse a ele. Ele cheirava
deliciosamente bem, o que não fazia sentido, porque cheirava a sabão. E a homem.
E a calor.
Santo Deus, ela estava a enlouquecer! Não era possível sentir o cheiro do calor. E o cheiro a sabão
não era delicioso. Mas nada fazia sentido quando estava tão perto de Edward Rokesby. A sua mente
entorpecia e os pulmões pareciam comprimir-se... ou inchar... ou algo assim.
Na verdade, era um milagre conseguir manter a mão estável.
– Podes virar um pouco a cabeça? – pediu ela. – Preciso de chegar à zona junto à orelha.
Ele obedeceu e ela debruçou-se ainda mais. Teve de inclinar a navalha para evitar cortar-lhe a
pele. Estava tão perto agora, que a sua respiração agitava o cabelo dele. Teria sido tão fácil suspirar,
deixar o corpo encostar-se ao dele e sentir o contacto...
– Cecilia?
Ouviu a voz dele, mas não conseguiu reagir. Era como se estivesse suspensa no ar, como se o ar
fosse espesso o suficiente para lhe suportar o peso. Então, como se o cérebro tivesse precisado de
um instante extra para comunicar com o resto do corpo, endireitou-se e pestanejou para dissipar o
que deveria ser a névoa do desejo.
– Desculpa – disse ela com voz rouca. – Estava perdida em pensamentos.
Não era mentira.
– Não precisa de ser perfeito – disse ele, o tom tenso. – Desde que tenhas retirado a maior parte,
eu serei capaz de me barbear melhor amanhã de manhã.
– Claro – disse ela, dando um passo inseguro para trás. – Eu... hã... Sim, vai demorar muito menos
tempo. E deves estar cansado.
– Isso é verdade – admitiu ele.
– Certamente vais querer... hã... – Ela pestanejou novamente. A visão do torso nu era muito
perturbadora. – Não queres vestir uma camisa?
– Talvez quando terminarmos. Para não ficar molhada.
– Claro – respondeu ela, mais uma vez.
Olhou para o peito de Edward. Um floco de espuma caíra e ficara alojado nos pelos do peito, logo
acima do mamilo. Ela estendeu a mão para o limpar, mas, assim que lhe tocou a pele, ele agarrou-a
pelo pulso.
– Não!
Era um aviso.
Ele desejava-a.
Talvez até mais do que ela a ele.
Ela passou a língua pelos lábios inexplicavelmente secos.
– Não faças isso – acrescentou ele, num tom estrangulado.
Ela ergueu o olhar para o dele e foi apanhada pela intensidade penetrante dos seus olhos azuis.
Sentiu um pulsar surdo no peito que a deixou em silêncio por um momento e sentiu o calor da mão de
Edward e a inesperada ternura daquele toque.
– Não posso deixar-te assim – disse ela.
Ele fitou-a, visivelmente desconcertado ou como se tivesse percebido mal.
Ela apontou para o rosto dele, a face direita ainda com barba e a esquerda já barbeada.
– A barba está pela metade.
Ele levou a mão ao queixo, exatamente no ponto onde os pelos davam lugar à pele nua, e soltou um
suspiro divertido.
– Ficas com um ar ridículo – disse Cecilia.
Ele passou a mão por uma face e depois pela outra.
Cecilia levantou a navalha e o pincel.
– Talvez seja melhor eu terminar o serviço.
Erguendo a sobrancelha direita num arco perfeito, ele respondeu:
– Achas que não devo encontrar-me com o major Wilkins assim?
– Pagaria bom dinheiro para ver isso – admitiu Cecilia, contornando a cama, aliviada por a tensão
entre eles ter desaparecido. – Se tivesse dinheiro.
Edward aproximou-se da beira do colchão e ficou quieto, enquanto ela passava a espuma na outra
face.
– Tens pouco dinheiro? – perguntou.
Cecilia interrompeu o movimento, perguntando-se até que ponto deveria ser franca. Optou por um
simples:
– A viagem foi muito mais cara do que eu esperava.
– Julgo que seja verdade para a maioria das viagens.
– Foi o que me disseram – concordou ela, enxaguando a navalha. – Esta é a primeira vez que me
aventuro a mais de trinta quilómetros do Derbyshire.
– A sério?
– Não te mexas – advertiu-o, pois acabava de encostar a lâmina ao pescoço dele.
– Peço desculpa, mas... isso é verdade? A primeira vez?
Ela mergulhou novamente a navalha em água e encolheu os ombros.
– Aonde teria eu ido?
– A Londres.
– Não tinha motivos para lá ir.
Embora respeitáveis, os Harcourt não eram família de mandar a filha para uma temporada social
em Londres. Além disso, o pai de Cecilia odiava cidades. Fazia um grande alarido pelo simples
facto de ter de ir a Sheffield. E a única vez que foi obrigado a ir a Manchester em negócios fê-lo
reclamar durante dias a fio.
– Nem ninguém para me acompanhar – acrescentou ela.
– Eu levo-te lá.
Cecilia interrompeu o movimento da mão. Ele julgava que estavam casados, por isso, era óbvio
que pensasse em levá-la um dia a Londres.
– Se quiseres, claro – acrescentou ele, interpretando mal a hesitação dela.
Ela forçou um sorriso e respondeu:
– Seria maravilhoso.
– Vamos ao teatro – disse ele, suprimindo um bocejo. – Ou talvez à ópera. Gostas de ópera?
De repente, ela ficou ansiosa por que a conversa terminasse. A sua mente encheu-se de imagens de
um futuro que incluía os dois, um futuro em que o seu sobrenome seria realmente Rokesby, em que
moraria numa linda casa no Kent, com três filhos que teriam os extraordinários olhos azuis do pai.
Um futuro maravilhoso. Mas que não era o dela.
– Cecilia?
– Terminei – anunciou ela, numa voz um pouco alta.
– Já? – Franzindo a testa, ele passou a mão pela face direita. – Fizeste este lado bem mais depressa
do que o outro.
Ela encolheu os ombros.
– Ganhei treino, suponho.
A verdade é que tinha sido menos minuciosa, mas não era visível a menos que se estivesse muito
perto dele. Além disso, ele dissera que voltaria a barbear-se no dia seguinte.
– Vou deixar-te descansar agora. Estás cansado e temos o encontro mais logo.
– Não precisas de sair.
Precisava, sim. Para seu próprio bem.
– Só vou atrapalhar-te – argumentou ela.
– Não se eu estiver a dormir.
Ele voltou a bocejar, depois sorriu e Cecilia ficou deslumbrada com a força daquele sorriso.
– Que foi? – perguntou ele. – Esqueceste-te de algum bocado?
– Pareces diferente quando estás barbeado – disse ela. Ou sussurrou?
Edward abriu um sorriso maroto.
– Fico mais atraente, espero.
Muito mais. Algo que ela não teria julgado possível.
– Vou-me embora. É preciso pedir a alguém que venha esvaziar a banheira e...
– Fica – interrompeu ele. – Gosto de te ter aqui.
Quando Cecilia se sentou com cuidado na outra extremidade da cama, pareceu-lhe impossível que
ele não ouvisse o som do coração dela a partir-se.
Capítulo 7
Oh, pelo amor de Deus, eu sei que o meu nariz não é monstruoso!
Foi uma maneira de falar. Não podes esperar que Mr. Rokesby seja
sincero quando o assunto da conversa é a tua irmã. Ele sente-se
obrigado a fazer um elogio. Calculo que seja uma regra implícita entre
os cavalheiros, certo?
Q uando desceram, às cinco e meia da tarde, o major Wilkins já os aguardava na sala de jantar,
sentado perto da parede, com uma caneca de cerveja e um prato de pão e queijo. Edward
curvou-se numa vénia rápida quando ele se levantou para o cumprimentar. Os caminhos de ambos
tinham-se cruzado com alguma frequência, apesar de não pertencerem ao mesmo regimento. O major
era uma espécie de administrador da guarnição britânica em Nova Iorque, que era certamente o lugar
indicado para começar a procura de um soldado desaparecido.
Edward sempre achara o homem um tanto pomposo, mas esse traço era acompanhado por um apego
absoluto à ordem e às regras, o que, sem dúvida, era uma qualidade necessária num administrador
militar. Para ser honesto, Edward não gostaria de trocar de posto com ele.
Assim que se sentaram, Cecilia foi direta ao assunto:
– Tem notícias do meu irmão?
Depois de a olhar com um ar que o próprio Edward reconheceu de imediato como condescendente,
o major Wilkins respondeu:
– Minha senhora, o teatro de operações é vasto. Não podemos esperar encontrar um homem tão
rapidamente. – Fazendo um gesto para o prato no centro da mesa, ofereceu: – Queijo?
Cecilia ficou momentaneamente desconcertada pela mudança abrupta de assunto, mas depressa se
recompôs.
– Estamos a falar do exército – protestou ela. – Do exército britânico. Não somos a força militar
mais avançada e organizada do mundo?
– Claro, mas...
– Como podemos perder um homem?
Edward pousou uma mão carinhosa no braço dela.
– O caos da guerra pode pôr mesmo os exércitos mais organizados à prova. Eu próprio fui dado
como desaparecido durante vários meses.
– Mas ele não estava desaparecido quando foi dado como desaparecido! – exclamou ela.
O major Wilkins riu-se da má utilização de palavras e Edward quase grunhiu diante de tal
insensibilidade.
– Ah, ah, essa foi boa! – disse o major, cortando uma fatia grossa de queijo cheddar. – Ele não
estava desaparecido quando foi dado como desaparecido. Eh, eh, o coronel vai gostar dessa!
– Expressei-me mal – respondeu Cecilia, com secura.
Edward observou-a com atenção. Ele pensara intervir em nome dela, mas Cecilia parecia controlar
a situação. Ou, pelo menos, os nervos.
– O que eu quis dizer – continuou ela, com um olhar gélido destinado a incutir medo no major
Wilkins – é que o Thomas estava aqui em Nova Iorque. No hospital. E, de repente, deixou de estar.
Não é o mesmo que estar num campo de batalha ou ser enviado como batedor para trás das linhas
inimigas.
Enviado como batedor para trás das linhas inimigas. Edward franziu o sobrolho, pois as palavras
despertaram-lhe curiosidade. Seria isso que estivera a fazer no Connecticut? Parecia-lhe o cenário
mais provável. Mas porquê? Não se lembrava de ter sido enviado nesse tipo de missão antes.
– O problema é esse – disse o major Wilkins. – Não há registo do seu irmão no hospital.
– Como?! – exclamou Cecilia, antes de olhar de Edward para o major. – É impossível!
Wilkins encolheu os ombros, com toda a descontração.
– Pedi ao meu assistente que verificasse os registos. O nome e o posto de cada soldado levado
para o hospital são inscritos num livro de registos. Anotamos a data de chegada e a data de... hã...
saída.
– Saída? – repetiu Cecilia.
– Ou a morte – explicou Wilkins, que teve a dignidade de se mostrar algo desconfortável com tal
eventualidade. – Seja como for, não encontrámos vestígios do seu irmão.
– Mas ele foi ferido – protestou Cecilia. – Nós fomos avisados. – Obviamente agitada, voltou a
olhar para Edward. – O meu pai recebeu uma carta do general Garth, a informar de que o Thomas
tinha sido ferido, que não era fatal e que ele estava a ser tratado no hospital. Existe outro hospital?
Edward olhou para o major Wilkins.
– Não nesta parte da ilha – respondeu o último.
– Não nesta parte? – perguntou Cecilia, estupefacta com a escolha de palavras.
– Há uma espécie de enfermaria em Haarlem – informou Wilkins, com um suspiro que traía o seu
arrependimento por ter tocado no assunto. – Eu não lhe chamaria hospital. – Dirigiu um olhar
carregado de significado a Edward, antes de acrescentar: – Eu não gostaria de lá ir parar, se é que
entende o que quero dizer.
Cecilia empalideceu.
– Pelo amor de Deus! – exclamou Edward, furioso. – Está a falar do irmão da minha mulher!
O major virou-se para Cecilia com uma expressão contrita.
– Peço desculpa, minha senhora.
Ela assentiu, um movimento de cabeça curto e tenso, e engoliu convulsivamente em seco, o que
entristeceu Edward.
– A enfermaria de Haarlem é muito rudimentar – explicou o major a Cecilia. – O seu irmão é um
oficial, portanto, não teria sido levado para um lugar daqueles.
– Se fosse o sítio mais próximo...
– O ferimento dele não era fatal. Teria sido transferido.
Edward não gostava da ideia de os recrutas terem de convalescer em instituições medíocres
apenas por serem de patente inferior, mas, infelizmente, não havia camas suficientes no hospital do
extremo sul da ilha de Manhattan. E o exército transferia sempre primeiro os oficiais.
– O major tem razão – disse ele a Cecilia.
– Talvez o Thomas tivesse um motivo para se recusar a ser transferido – sugeriu ela. – Se estava
com os seus homens, pode não ter querido abandoná-los.
– Isso teria sido há vários meses – disse Edward, lamentando ter de lhe destruir as esperanças. –
Mesmo que ele tivesse ficado com os seus homens, já teria sido transferido para cá.
– Oh, certamente – constatou o major Wilkins, com naturalidade. – É totalmente impossível que ele
ainda esteja em Haarlem.
– Nem se pode chamar povoação àquele sítio – explicou Edward a Cecilia. – Tirando a Mansão
Morris, é mais uma espécie de acampamento colonial abandonado.
– E não temos homens lá?
– Apenas os suficientes para impedir que o sítio caia nas mãos do inimigo – disse o major. – Além
de que é uma boa terra de cultivo. Temos algumas plantações que estão quase prontas para a colheita.
– Temos? – não pôde deixar de indagar Edward.
– Os agricultores de Haarlem são leais ao rei – afirmou o major.
Edward não tinha assim tanta certeza, mas aquele não era o momento para uma discussão sobre as
inclinações políticas locais.
– Analisámos seis meses de registos do hospital – prosseguiu o major Wilkins, voltando ao cerne
da questão. Cortou outro pedaço de pão e de queijo e fez uma careta quando o queijo cheddar se
desfez na faca. – Não encontrámos nenhuma menção ao seu irmão. Francamente, é como se ele nunca
tivesse existido.
Edward susteve outro grunhido. Caramba, o homem era desprovido do mais elementar tato!
– Mas vai continuar a investigação, não vai? – perguntou Cecilia.
– Claro, claro – assegurou o major, virando-se para Edward. – É o mínimo que posso fazer.
– O mínimo, certamente – murmurou Edward.
O major Wilkins recuou, ofendido.
– Perdão?
– Por que não deu esta informação à minha mulher quando falou com ela na semana passada? –
questionou Edward.
O major parou; a comida ficou a meros centímetros da boca.
– Eu não sabia que se tratava da sua mulher.
Edward estava capaz de o estrangular.
– Que diferença faz isso?
Wilkins limitou-se a olhar para ele, sem responder, por isso, Edward continuou:
– Não deixa de ser a irmã do capitão Harcourt, e merecia o seu respeito e atenção,
independentemente do estado civil.
– Não estamos acostumados a responder a perguntas de familiares – respondeu o major, num tom
rígido.
Edward tinha, pelo menos, cinco ou seis respostas àquele comentário, mas decidiu que não havia
nada a ganhar em antagonizar o major, por isso, dirigiu-se a Cecilia:
– Tens a tal carta do general Garth?
– Claro – disse ela, enfiando a mão no bolso da saia. – Trago-a sempre comigo.
Edward pegou na carta e desdobrou o papel. Depois de a ler em silêncio, passou-a ao major
Wilkins.
– O que é? – perguntou Cecilia. – Alguma coisa de errado?
As sobrancelhas espessas do major cerraram-se e, sem levantar os olhos da carta, ele declarou:
– Isto não me parece coisa do general Garth.
– O que quer dizer? – afligiu-se Cecilia. – Edward, o que quer isto dizer?
– Qualquer coisa não bate certo na carta – reconheceu Edward. – Não sei explicar o quê, mas
sinto-o.
– E porque me enviaria alguém esta missiva?
– Não sei – respondeu Edward, pressionando os dedos nas têmporas, que começavam a latejar. O
gesto não escapou a Cecilia, que perguntou:
– Não te sentes bem?
– Não te preocupes, está tudo bem.
– Porque nós podemos...
– Estamos aqui pelo Thomas – cortou ele. – Não por mim.
Edward respirou fundo. Tinha de aguentar até ao fim da reunião. Talvez tivesse de ir para a cama
assim que terminassem, talvez tivesse até de tomar aquela dose de láudano com que Cecilia o
ameaçava, mas tinha de ser capaz de suportar aquela maldita reunião até ao fim.
Não estava assim tão ferido, caramba!
Olhando para cima, viu que Cecilia e o major o observavam com preocupação.
– Espero que o seu ferimento não o incomode demasiado – disse o major, rude.
– Dói terrivelmente – respondeu Edward, com os dentes cerrados. – Mas estou vivo, por isso,
tento dar-me por feliz.
Cecilia olhou para ele com estupefação. Era compreensível, pensou Edward, pois normalmente
não se mostrava tão cáustico.
Wilkins pigarreou.
– Sim, bem. Seja como for, fiquei muito aliviado em saber do seu retorno.
– Perdoe-me – disse Edward com um suspiro. – Fico irascível quando a cabeça me dói mais do
que o normal.
Cecilia inclinou-se para ele e perguntou em voz baixa:
– Queres que te leve para o quarto?
– Não é necessário – murmurou ele. Não pôde, no entanto, conter uma careta quando a dor se
tornou mais aguda. – Pelo menos, não para já.
Voltou a atenção para Wilkins, que, de sobrolho franzido, relia a carta do general.
– Então, que lhe parece? – perguntou Edward.
O major coçou o queixo.
– Não entendo porque é que o general Garth... – Abanou a cabeça e concluiu: – Não importa.
– Não – interveio Cecilia. – Diga!
O major Wilkins hesitou, como se refletisse sobre a melhor maneira de expressar o seu
pensamento.
– Acho estranha esta sucessão de informações – disse, por fim.
– O que quer dizer? – indagou Cecilia.
– Não é o que normalmente se escreve numa carta para a família de um soldado – explicou ele,
antes de olhar para Edward, em busca de confirmação.
– Suponho que não – concordou Edward, ainda a massajar a têmpora, embora não fosse de grande
ajuda. – Pessoalmente, nunca tive de escrever esse tipo de carta.
– Mas disseste que havia algo de errado na carta – lembrou Cecilia.
– Não é nada de específico – respondeu Edward. – É só uma impressão. Eu conheço o general
Garth. Não sei porquê, mas não me parece algo escrito por ele.
– Pois eu já escrevi este tipo de cartas – declarou o major Wilkins. – Muitas, infelizmente.
– E...? – incitou Cecilia.
O major respirou fundo e respondeu:
– Eu nunca diria que um homem foi ferido sem perigo para a sua vida. Não há como saber. O
correio leva um mês a alcançar os destinatários. Tudo pode acontecer durante esse tempo.
Cecilia assentiu e o major continuou:
– Já vi mais homens sucumbir a uma infeção do que em consequência dos ferimentos. No mês
passado, perdi um homem por causa de uma bolha. Uma bolha! – repetiu, olhando para Edward com
uma expressão de estupefação.
Edward lançou um olhar rápido a Cecilia. Ela mantinha-se imóvel, um verdadeiro modelo de
estoicismo britânico. Mas os seus olhos pareciam assombrados, e ele teve a horrível sensação de
que, se lhe tocasse, se lhe encostasse um dedo ao braço, ela colapsaria.
E, no entanto, ansiava por abraçá-la. Queria abraçá-la com força para não a deixar despedaçar-se,
abraçá-la o tempo suficiente para que o seu próprio corpo absorvesse todos os medos e apreensões
dela.
Queria absorver a dor dela.
Queria ser a sua força.
E seria, jurou a si mesmo. Ia recuperar e curar-se, e seria o marido que ela merecia.
O marido que ele merecia ser.
– No pé – continuou o major, insensível à angústia de Cecilia. – A costura das meias deve ter
roçado a pele. Ele atravessou um pântano. É impossível manter os pés secos nessas condições, sabe?
Edward admirou Cecilia por ser capaz de acenar com a cabeça com ar compassivo.
O major fechou a mão ao redor da caneca de cerveja, mas não a levantou. Pareceu esmorecer um
pouco, como se a lembrança ainda tivesse a capacidade de o afetar.
– Aquela maldita bolha deve ter rebentado porque, no espaço de um dia, ficou infetada e, menos de
uma semana depois, ele estava morto.
Cecilia engoliu em seco.
– As minhas condolências.
Ela olhou para as suas mãos entrelaçadas na mesa. Edward teve a nítida sensação de que ela se
esforçava por contrariar o tremor. Como se a única maneira de o fazer fosse olhar fixamente para os
dedos e vigiar qualquer sinal de fraqueza.
A sua mulher era uma pessoa muito forte. Perguntou-se se ela o saberia.
O major piscou os olhos, aparentemente surpreendido com as condolências.
– Obrigado – disse ele, um pouco constrangido. – Foi... Bem, foi uma perda.
– É sempre uma perda – sussurrou Edward e, por um momento, ele e o major, que tinham tão pouco
em comum, tornaram-se irmãos de armas.
Alguns segundos se passaram sem que ninguém falasse. Então, o major pigarreou.
– Posso ficar com isto? – pediu, levantando a carta do general Garth.
Cecilia mal se mexeu, mas, nos seus olhos verde-água, Edward viu a angústia que ela tentava
esconder. O maxilar cerrou-se num movimento quase impercetível e o lábio inferior tremeu, antes de
ela o impedir com os dentes. A carta do general era a sua única ligação ao irmão e era óbvio que lhe
custava desfazer-se dela.
– Deixa o major ficar com ela – aconselhou, quando ela o olhou, num pedido silencioso de
orientação.
Wilkins podia ser abrutalhado, mas era um bom soldado e precisaria da carta para poder avançar
na busca por Thomas.
– Vou ter muito cuidado com ela – assegurou o major Wilkins, guardando a carta no bolso interior
do casaco. – Dou-lhe a minha palavra.
– Obrigada – disse ela. – Peço desculpa se pareço ingrata. Realmente agradeço a sua ajuda.
Um elogio muito gracioso, na opinião de Edward, especialmente considerando a total falta de
cooperação do major até ao momento.
– Pois bem... eu vou indo – disse o major, levantando-se e despedindo-se de Cecilia com uma
vénia, antes de se virar para Edward. – Votos de uma rápida recuperação.
Edward agradeceu com um aceno de cabeça.
– Perdoe-me por não me levantar.
Edward sentiu-se subitamente tonto e teve a horrível sensação de que, se tentasse levantar-se,
poria cá para fora todo o conteúdo do estômago.
– Claro, claro – disse o major, no seu habitual tom rude. – Não se preocupe com isso.
Quando Wilkins se virou, Cecilia levantou-se abruptamente e exclamou:
– Espere!
– Minha senhora? – disse o major, virando a cabeça para ela.
– Pode levar-me a Haarlem amanhã?
– Como?! – protestou Edward, levantando-se de repente, ignorando a tontura.
– Gostava de ir à tal enfermaria – disse Cecilia ao major.
– Eu levo-te lá – declarou Edward.
– Não me parece que estejas em condições de...
– Eu levo-te lá.
Wilkins olhou para ambos com um divertimento mal disfarçado, antes de declarar com um encolher
de ombros:
– Não posso ir contra o desejo de um marido.
– Tenho de ir lá sem demora – protestou Cecilia. – O Thomas pode estar...
– Já chegámos à conclusão de que a presença dele em Haarlem é altamente improvável – referiu
Edward.
Agarrou-se à mesa, esperando que o gesto passasse despercebido. Uma tontura invadira-o ao
levantar-se.
– Mas ele pode ter lá estado – persistiu Cecilia. – E, nesse caso, alguém se há de lembrar dele.
– Eu levo-te lá – repetiu Edward.
O Haarlem ficava a pouco mais de quinze quilómetros, mas, desde que os ingleses haviam perdido,
e depois reconquistado, o território em 1776, parecia mais um posto avançado desolado do que a
aldeia holandesa de outrora. Não era lugar para uma mulher sozinha e, mesmo que Edward não
duvidasse da capacidade do major Wilkins de cuidar de Cecilia, considerava ser seu dever, como
marido, garantir a segurança dela.
– Com a vossa licença – despediu-se o major Wilkins, com mais uma vénia para Cecilia.
Ela assentiu com um aceno breve. Edward suspeitava, no entanto, que a raiva dela não era dirigida
ao major. E, de facto, assim que ele se foi, ela virou-se para Edward e, de maxilar cerrado, disse:
– Tenho de ir à enfermaria.
– E vais. – Edward sentou-se novamente. – Mas não amanhã.
– Mas...
– Um dia a mais ou a menos não vai mudar nada – cortou, demasiado exausto para discutir com ela
sobre o assunto. – O Wilkins vai continuar a investigação e conseguirá mais informações do adido do
general Garth do que se fizer uma viagem a Haarlem.
– Certamente seria mais eficiente seguir as duas linhas de investigação – sugeriu ela, sentando-se
ao lado dele.
– Não digo o contrário – respondeu ele, fechando os olhos brevemente, tentando lutar contra o
cansaço que o invadia. Com um suspiro, continuou: – Não perdemos nada por esperar um dia ou
dois. Prometo.
– Como podes prometer?
Céus, ela era pior do que um cão com um osso! Edward teria admirado a sua tenacidade, se não se
sentisse tão mal.
– Certo – resmungou ele. – Não posso prometer. Tanto quanto sei, o exército continental pode
invadir-nos amanhã e estaremos todos mortos antes de termos tempo de investigar a enfermaria. O
que posso prometer é que, considerando o que sei, e que admito não ser muito, mas ainda assim mais
do tu sabes, alguns dias não farão diferença.
Cecilia fitou-o, chocada. Ocorreu a Edward que talvez não se devesse ter casado com uma mulher
com olhos tão extraordinários. Quando ela o fitava assim, ele tinha de se fazer valer de uma vontade
férrea, para não mostrar qualquer sinal de desconforto.
Se acreditasse na metafísica, poderia pensar que ela era capaz de lhe ver a alma.
– O major Wilkins podia ter-me levado – disse ela, com um toque de desafio.
Edward conteve a vontade de resmungar.
– Queres mesmo passar o dia com o major Wilkins?
– Claro que não, mas...
– E se tiveres de dormir lá? Já consideraste essa hipótese?
– Consegui atravessar o Atlântico sozinha, Edward. Decerto consigo passar uma noite em Haarlem.
– Mas não deves fazê-lo – disse ele, entredentes. – Casaste-te comigo, Cecilia. Pelo amor de Deus,
deixa-me proteger-te.
– Não podes.
Edward estacou de choque. As palavras dela saíram num tom calmo, mas atingiram-no como um
soco no queixo.
– Desculpa – disse ela, imediatamente. – Eu não quis dizer...
– Eu sei o que quiseste dizer.
– Não, não me parece que saibas.
A ebulição interna que ele tentava conter a grande custo explodiu de repente.
– Tens razão – disse ele em voz dura –, não sei. E sabes porquê? Porque não te conheço! Sou
casado contigo, pelo menos é o que me dizem...
Ela estremeceu de medo.
– E embora seja capaz de imaginar variadíssimas razões que possam justificar tal união, não
consigo lembrar-me de nenhuma.
Ela permaneceu em silêncio, imóvel, exceto por um ligeiro tremor dos lábios.
– Porque és minha mulher, certo? – insistiu ele num tom tão agressivo, que imediatamente se
arrependeu. – Perdoa-me – murmurou. – Foi impensado.
Ela observou-o durante mais uns segundos, a expressão impassível. Mas estava extremamente
pálida quando disse:
– Acho que devias descansar.
– Eu sei que devia – respondeu ele, com irritação. – Achas que não sinto o que acontece na minha
cabeça? É como se alguém estivesse a martelar-me o crânio por dentro.
Ela estendeu o braço e pousou a mão na dele.
– Não me sinto bem – confessou ele.
Apenas quatro palavras, mas tão difíceis de pronunciar para um homem. Ainda assim, sentiu-se
muito melhor por o ter feito.
Melhor, não. Aliviado. O que, provavelmente, era semelhante a melhor.
– Estás a recuperar muito bem – afirmou Cecilia. – Não te esqueças de que recuperaste a
consciência há apenas um dia.
Ele observou-a de olhos semicerrados.
– Não há necessidade de me dizeres que devagar se vai ao longe.
– Nunca – prometeu ela, com um sorriso na voz.
– Senti-me melhor esta tarde – disse ele, num tom que lhe soou quase infantil.
– Melhor? Ou com mais força?
– Com mais força – admitiu ele. – Embora, quando te beijei...
Ele sorriu. Quando a beijara, sentira-se quase curado.
Cecilia levantou-se e, gentilmente, enfiou o braço no dele.
– Vamos para cima.
Edward não teve energia para protestar.
– Vou pedir o jantar no quarto – continuou ela, enquanto caminhavam para as escadas.
– Não peças muita coisa. O meu estômago... Não sei se o meu estômago aguenta.
Ela observou-o com atenção, provavelmente a perscrutar a sua pele já esverdeada.
– Sopa – sugeriu ela. – Tens de comer alguma coisa, se queres recuperar as forças.
Ele assentiu. Sopa parecia-lhe plausível.
– E talvez um pouco de láudano – acrescentou ela, baixinho.
– Muito pouco.
– Muito pouco, prometo.
Quando chegaram ao cimo das escadas, Edward enfiou a mão no bolso do casaco e tirou a chave.
Sem uma palavra, entregou-lha e encostou-se à parede, enquanto ela abria a porta.
– Eu ajudo-te com as botas – disse ela, levando-o para dentro e ajudando-o a sentar-se na cama
sem que ele se desse conta. – Devo lembrar-te de que não podes fazer esforços – continuou, tirando-
lhe uma bota –, mas estou ciente de que o teu esforço hoje foi pelo Thomas.
– E por ti – declarou ele.
O movimento das mãos parou, mas foi tão fugaz que ele não teria notado, se não fosse tão
extraordinariamente sensível ao toque dela.
– Obrigada – murmurou ela. Depois de deslizar a mão para o calcanhar da outra bota, puxou com
força e tirou-a. Edward enfiou-se debaixo dos cobertores, enquanto ela foi arrumar as botas a um
canto do quarto. – Vou preparar o láudano.
Ele fechou os olhos. Não tinha sono, mas a dor de cabeça abrandava quando fechava os olhos.
– Pergunto-me se não teria sido melhor teres ficado no hospital mais um dia.
A voz de Cecilia estava mais próxima e ele ouviu-a agitar líquido num frasco.
– Não – respondeu ele. – Prefiro estar aqui contigo.
Mais uma vez, ela parou. Ele não precisava de a ver para saber.
– O hospital era insuportável – continuou ele. – Alguns dos soldados...
Ele não sabia quanto revelar ou quanto ela já sabia. Teria ela passado a noite perto dele quando ele
estava inconsciente? Saberia o que era tentar dormir enquanto, do outro lado do aposento, um
moribundo gemia de agonia e gritava pela mãe?
– Concordo contigo – disse ela, ajudando-o a endireitar-se um pouco. – Este sítio é bem mais
agradável para convalescer. No entanto, é no hospital que o médico está.
– Achas? – respondeu ele, com uma sombra de sorriso. – Aposto que está lá em baixo a beber uma
cerveja. Ou talvez na Fraunces. A cerveja lá é melhor, na minha opinião.
– Por falar em beber – aproveitou Cecilia com uma mistura de pragmatismo e bom humor –, aqui
tens o láudano.
– Bem mais forte do que uma cerveja – disse Edward, abrindo os olhos.
A luz era menos brilhante, porque Cecilia tinha fechado as cortinas. Quando ela lhe aproximou o
copo dos lábios, ele abanou a cabeça ligeiramente e disse:
– Posso fazê-lo sozinho.
– É uma dose muito pequena – assegurou ela.
– O médico deu-te instruções?
– Sim. E tenho alguma experiência com este remédio, porque o meu pai costumava ter enxaquecas.
– Não sabia – murmurou ele.
– Não eram frequentes.
Ele bebeu o remédio, fazendo uma careta ao sabor amargo.
– É horrível, eu sei – admitiu ela, sem grande solidariedade.
– Seria de pensar que o álcool o tornaria tolerável.
Ela abriu um sorriso discreto.
– Julgo que a única coisa que o torna tolerável é a promessa de alívio.
– Dói muito, Cecilia – sussurrou ele, esfregando a têmpora.
– Eu sei.
– Só quero voltar a sentir-me normal.
– É o que todos queremos – disse ela, com um tremor dos lábios.
Edward bocejou, mesmo que ainda fosse muito cedo para o opiáceo fazer efeito.
– Ainda tens de me dizer – disse ele, escorregando novamente para debaixo dos cobertores.
– Dizer-te o quê?
– Hum... – emitiu um ruído agudo enquanto parecia refletir e completou: – Tudo.
– Tudo? Isso talvez seja um pouco ambicioso.
– Temos tempo.
– Ah, sim? – perguntou ela, e a voz soou divertida.
Edward assentiu e percebeu que o remédio já estava a fazer efeito porque se sentia estranho,
demasiado cansado para bocejar. Mas ainda conseguiu articular:
– Nós somos casados. Temos a vida inteira pela frente.
Capítulo 8
T rês horas mais tarde, Cecilia ainda pensava nas palavras de Edward.
Nós somos casados.
Temos a vida inteira pela frente.
Sentada diante de uma mesinha num canto do quarto da estalagem Devil’s Head, Cecilia apoiou a
cabeça nas mãos. Tinha de lhe dizer a verdade. Tinha de lhe contar tudo.
Mas como?
E, ainda mais premente, quando?
Convencera-se a esperar pela reunião com o major Wilkins. Pois bem, isso já acontecera e agora a
saúde de Edward parecia ter piorado. Não podia perturbá-lo. Ele ainda precisava dela.
Oh, para de mentir a ti própria!, quase disse em voz alta. Ele não precisava dela. Ela podia
ajudar a tornar a convalescença mais agradável, e talvez mais rápida, mas, se desaparecesse de
repente da vida dele, ele ficaria bem.
Edward precisara dela quando estava inconsciente. Agora, que estava acordado, ela já não era
indispensável.
Virou-se e viu-o a dormir sossegado. O cabelo escuro caíra para a testa. Precisava de um corte,
mas gostava dele assim, um pouco despenteado e indisciplinado. Dava-lhe um ar malandro, o que era
uma agradável contradição com a sua retidão de carácter. Os caracóis rebeldes lembravam-na de que
aquele homem honrado era capaz de um sentido de humor travesso ou irónico e que também podia ser
vítima de impaciência ou raiva.
Ele não era perfeito.
Era real.
E essa constatação fazia Cecilia sentir-se ainda pior.
Eu hei de compensar-te, prometeu a si mesma.
Conseguiria o perdão dele.
Porém, era-lhe cada vez mais difícil imaginar como tal seria possível. A honradez inflexível de
Edward, exatamente o que a levara a não revelar a mentira antes do encontro com o major Wilkins,
significava que se via diante de um novo dilema.
Aos olhos de Edward, ele tinha-a comprometido.
Podiam não partilhar a cama, mas partilhavam o quarto. Quando Edward soubesse que ela não era
mulher dele, insistiria em casar-se com ela. Era um cavalheiro acima de tudo, e a honra não
permitiria que agisse de outra forma.
Embora Cecilia não pudesse deixar de sonhar, apenas um pouco, com uma vida passada como Mrs.
Edward Rokesby, como poderia viver com a ideia de que o tinha prendido num casamento?
Ele ia ter-lhe rancor. Ou antes, ele ia odiá-la.
Não, ele não ia odiá-la, mas nunca a perdoaria.
Cecilia suspirou. Ele nunca a perdoaria, fosse como fosse.
– Cecilia?
Ela assustou-se.
– Acordaste!
– Não exatamente – disse ele, com um sorriso sonolento.
Ela levantou-se e aproximou-se da cama. Edward tinha adormecido completamente vestido.
Contudo, cerca de uma hora depois, ela decidira tirar-lhe a gravata para o deixar mais confortável.
Graças ao láudano, ele mal se mexera quando lha tirou.
– Como te sentes? – perguntou ela.
Ele franziu o sobrolho e Cecilia pensou que era bom sinal ele ter de pensar nisso.
– Melhor – respondeu ele, antes de fazer um pequeno trejeito com os lábios e corrigir: – Com mais
forças.
– Tens fome?
Ele também teve de refletir sobre a pergunta.
– Sim, mas não sei se o meu estômago vai aguentar.
– Tenta um bocadinho de sopa. – Ela levantou-se para pegar na tigela que fora buscar à cozinha dez
minutos antes. – Ainda está quente.
– Dormi muito tempo? – perguntou ele, sentando-se na cama.
– Cerca de três horas. O láudano agiu rapidamente.
– Três horas – murmurou ele, parecendo surpreendido.
Depois piscou os olhos, com ar pensativo.
– Estás a tentar decidir se ainda te dói a cabeça? – perguntou Cecilia, com um sorriso.
– Não – foi a resposta. – É claro que ainda dói.
– Oh! – Não sabia como reagir, por isso, acrescentou: – Desculpa.
– Mas é uma dor diferente.
Ela pousou a tigela na mesinha de cabeceira e sentou-se ao lado dele.
– Diferente?
– Menos penetrante, parece-me. É uma dor mais surda.
– Deve ser um bom sinal.
– Também acho – murmurou ele, depois de tocar levemente a têmpora.
– Precisas de ajuda? – perguntou Cecilia, fazendo um gesto em direção à terrina.
– Eu consigo. Mas, com uma colher, seria mais fácil – respondeu ele com um leve sorriso.
– Oh! – Cecilia levantou-se de repente. – Desculpa, acho que se esqueceram de me dar uma.
– Não importa. Eu posso bebê-la.
Edward levou a tigela aos lábios e bebeu um gole de sopa.
– Está boa? – perguntou Cecilia, quando ele soltou um suspiro de satisfação.
– Muito boa.
Ela esperou que ele bebesse mais alguns goles para declarar:
– Pareces realmente bem melhor do que durante o encontro com o major Wilkins. – Ocorreu-lhe
então que ele poderia interpretar a observação como um incentivo para a levar a Haarlem mais cedo,
por isso, acrescentou: – Mas não o suficiente para viajarmos amanhã.
– Talvez depois de amanhã – sugeriu ele, divertido.
– Duvido – admitiu ela, com um suspiro. – Pensei na nossa conversa com o major Wilkins. Ele
disse que ia fazer perguntas na enfermaria de Haarlem. Não deixo de querer ir lá pessoalmente, mas,
para já, isso pode esperar. – Engoliu em seco e, sem saber a quem tentava tranquilizar, murmurou: –
Vou ser paciente.
Em todo o caso, que escolha tinha?
Ele pousou a sopa na mesinha de cabeceira e pegou na mão dela.
– Eu também quero muito encontrar o Thomas.
– Eu sei.
Cecilia baixou os olhos para as mãos entrelaçadas de ambos. Era estranho como encaixavam tão
bem. As dele eram grandes e fortes, a pele bronzeada e áspera do trabalho. As dela... bem, já não era
tão alvas e delicadas como antes, mas orgulhava-se dos calos recém-adquiridos. Provavam que era
uma mulher decidida, capaz de escolher o seu destino. Via força nas próprias mãos, uma força que
não sabia possuir.
– Nós vamos encontrá-lo – afirmou Edward.
– Ou não – respondeu ela, erguendo a cabeça.
O olhar dele, quase azul-escuro na penumbra, encontrou o dela.
– Tenho de ser realista – acrescentou ela.
– Realista, sim, mas não fatalista.
– Não. – Cecilia conseguiu sorrir. – Eu não sou fatalista.
Pelo menos, ainda não, pensou.
O silêncio que se seguiu, que começou por ser de companheirismo, tornou-se pesado e incómodo,
quando Cecilia percebeu que Edward procurava a melhor maneira de abordar um assunto delicado.
Finalmente, depois de pigarrear várias vezes, ele disse:
– Gostava de saber mais sobre o nosso casamento.
O coração de Cecilia falhou uma batida. Embora soubesse que o assunto surgiria, o pedido deixou-
a sem fôlego.
– Não duvido da tua palavra – continuou ele. – És irmã do Thomas e espero que não me julgues
muito impertinente se disser que sinto que te conheço através das cartas que lhe escrevias.
Cecilia teve de desviar o olhar.
– Mas gostava de saber como tudo aconteceu.
Cecilia engoliu em seco. Tivera vários dias para inventar uma história, mas havia uma diferença
entre construir uma mentira e dizê-la em voz alta.
– Era a vontade do Thomas – começou ela. Isso, pelo menos, era verdade ou assim supunha. O
irmão teria, sem dúvida, ficado feliz por o melhor amigo se casar com a sua irmã. – Ele estava
preocupado comigo.
– Por causa da morte do teu pai?
– Ele não sabe disso – admitiu Cecilia, honestamente. – Mas sei que ele se preocupa com o meu
futuro há muito tempo.
– Ele disse-me isso, de facto – confirmou Edward.
Cecilia não escondeu a surpresa.
– Disse?
– Perdoa-me. Não quero falar mal dos mortos, mas o Thomas aludiu ao facto de o teu pai dar mais
importância ao seu presente do que ao teu futuro.
Cecilia engoliu em seco. O pai não era má pessoa, apenas profundamente egoísta. Mesmo assim,
amara-o. E sabia que, à sua maneira, ele também a amara.
– Eu tornei a existência do meu pai mais confortável – disse ela, escolhendo as palavras com o
mesmo cuidado de quem colhe uma flor. Tinha havido bons momentos e eram esses que ela queria
guardar como um ramalhete. – E ele deu-me um propósito na vida.
Edward não tirara os olhos dela e, quando ela se atreveu a olhá-lo, viu um vislumbre de algo que
parecia orgulho, misturado com óbvio ceticismo. Ele via além das suas palavras, mas admirava-a
por ter a coragem de as dizer.
– Seja como for – disse ela, tentando aligeirar o tom –, o Thomas sabia que o nosso pai estava
doente.
– Pensei que o desaparecimento dele tivesse sido repentino. – indagou Edward.
– E foi – apressou-se ela a responder. – Quero dizer, julgo que muitas vezes acontece assim: a
evolução é muito lenta e depois tudo se precipita.
Ele permaneceu em silêncio.
– Ou talvez não seja assim – acrescentou. Céus! Parecia uma idiota, mas não conseguia evitar. – Eu
não tenho muita experiência com a morte. Nenhuma, na verdade, exceto pelo meu pai.
– Nem eu – respondeu Edward. – Não com as mortes naturais, pelo menos.
Cecilia olhou-o, interrogativa, e notou o escurecer dos olhos dele.
– Não considero a morte no campo de batalha natural – esclareceu ele, em voz baixa.
– Imagino que não.
Ela preferia não pensar no que ele teria visto. A morte de um soldado no auge da vida era
radicalmente diferente da morte de um homem da idade do pai dela.
Edward bebeu outro gole de sopa e Cecilia interpretou o gesto como sinal de que devia continuar a
sua história.
– Então, o meu primo pediu-me em casamento – contou ela.
– Pelo tom, concluo que o pedido não foi bem-vindo.
– Não – disse ela, evidenciando a tensão.
– O teu pai não o mandou embora? Espera! – Edward levantou a mão, flexionando o indicador
como quem vai fazer uma pergunta. – Isso foi antes ou depois da sua morte?
– Antes – respondeu Cecilia, com o coração apertado.
Era ali que começavam as mentiras. Horace só se tornara uma ameaça após a morte do pai e
Thomas nunca soubera quanto o primo a pressionara a casar-se com ele.
– Claro! Deve ter sido por isso que... – Edward franziu o sobrolho e, soltando a mão de Cecilia,
esfregou o queixo. – Talvez a minha mente esteja um pouco lenta, mas compreendo a linha temporal.
Talvez tenhas de escrever tudo isso, para que eu perceba.
– Claro – consentiu Cecilia, assolada pela culpa. Como podia deixá-lo a pensar que era culpa dele
a história ser tão difícil de seguir? Tentou sorrir, mas só conseguiu um ligeiro torcer de lábios. – Eu
também mal posso acreditar.
– Perdão?
Ela já devia saber que teria de lhe explicar o comentário.
– Nem posso acreditar que estou aqui. Em Nova Iorque.
– Comigo.
Observou aquele homem honrado e generoso que ela não merecia.
– Contigo.
Edward pegou na mão dela novamente e levou-a aos lábios. Apesar da consciência pesada, o
coração de Cecilia derreteu-se um pouco. Porque tinha aquele homem de ser tão amável?
Respirou fundo e continuou:
– Como Marswell é um morgadio, o Horace só a herda se acontecer alguma coisa ao Thomas.
– Foi por isso que ele te pediu em casamento?
– Não acreditas que ele ficou deslumbrado pelo meu charme e pela minha beleza naturais? –
retorquiu ela, com um olhar irritado.
– Não, seria por isso que eu te pediria em casamento. – Edward começou a sorrir, mas o sorriso
transformou-se quase imediatamente numa careta. – Eu pedi-te em casamento, não foi?
– Mais ou menos. – Ela sentiu as faces a arder. – Foi mais... hã... Na verdade, foi o Thomas que
tratou de quase tudo – apressou-se a justificar.
Edward não pareceu feliz ao ouvir aquilo e Cecilia sentiu-se obrigada a acrescentar:
– Não poderia ter sido de outra forma.
– Onde decorreu a cerimónia?
– No barco – respondeu Cecilia, que se tinha preparado para aquela pergunta.
– A sério? – Ele parecia sinceramente desconcertado. – Então, como é que eu...?
– Não sei exatamente.
– Mas se estavas no barco, quando é que eu...
– Pouco antes de partires para o Connecticut – mentiu Cecilia.
– Cumpri as formalidades três meses antes de ti?
– Não precisam de acontecer ao mesmo tempo – disse ela, ciente de estar a cavar um buraco cada
vez mais fundo.
Ela tinha outras justificações preparadas: que o pastor da aldeia se recusara a celebrar um
casamento por procuração ou que ela não quisera fazê-lo até ser absolutamente necessário, para que
Edward pudesse desistir do casamento, caso mudasse de ideias. Estava prestes a proferir outra
mentira, quando percebeu que ele lhe acariciava o dedo anelar, ainda sem anel.
– Nem sequer tens uma aliança de casamento – disse ele.
– Não preciso disso – respondeu ela, imediatamente.
– Claro que precisas – insistiu ele, franzindo a testa numa linha firme.
– Isso pode esperar.
Então, com um gesto rápido que a apanhou de surpresa, especialmente considerando o estado de
saúde dele, Edward endireitou-se, tocou-lhe o queixo e pediu:
– Beija-me.
– O quê?! – exclamou ela, quase num grito.
– Beija-me.
– És louco.
– É possível – admitiu ele alegremente –, mas creio que devia ser prova de sanidade para qualquer
homem ter vontade de te beijar.
– Qualquer homem – repetiu ela, desnorteada.
– Talvez não – corrigiu ele, depois de fingir pensar. – Julgo que devo ser do tipo ciumento. E,
sendo assim, seria loucura da parte deles.
Cecilia abanou a cabeça e revirou os olhos. Depois, repetiu o gesto.
– Precisas de descansar.
– Um beijo, primeiro.
– Edward!
– Cecilia! – imitou-a ele, na perfeição.
Ela ficou boquiaberta, um momento antes de perguntar:
– Estás a fazer-me olhos de carneiro mal morto?
– Está a funcionar?
Sim.
– Não – mentiu ela.
– Não tens grande jeito para mentir, sabias?
Se ele soubesse!
– Acaba a sopa – ordenou ela, tentando em vão imprimir um tom severo.
– Queres insinuar que não tenho força suficiente para te beijar?
– Oh, meu Deus, és insuportável!
Ele ergueu uma sobrancelha arrogante.
– Pois devo avisar-te de que considero isso um desafio.
Ela cerrou os lábios numa tentativa fútil de reprimir um sorriso.
– O que é que te deu?
Ele encolheu os ombros.
– Estou feliz.
Aquelas duas palavras foram suficientes para a deixar sem fôlego. Por baixo daquele exterior de
respeitabilidade, Edward Rokesby possuía uma natureza eminentemente lúdica. Talvez não devesse
ficar tão surpreendida, pois já notara indícios disso nas suas cartas.
E, para libertar aquele traço dele, bastava um instante de felicidade.
– Beija-me – pediu ele, novamente.
– Tens de descansar.
– Acabei de dormir três horas. Estou tremendamente acordado agora.
– Só um beijo – ouviu-se dizer, apesar da voz interior que a aconselhava ao contrário.
– Só um – aceitou ele, antes de acrescentar: – Estou a mentir, é claro.
– Não sei se conta como mentira se confessares antes.
Em resposta, ele tocou na própria face com o dedo indicador.
Cecilia mordeu o lábio. Um só beijo não faria mal. Especialmente na face.
Quando ela se curvou, ele virou a cabeça e os lábios dela roçaram os dele.
– Enganaste-me! – exclamou.
– Eu? – brincou ele, agarrando-a pela nuca.
– Não te faças de inocente.
– Sabias que a sensação de falares contra os meus lábios é como um beijo? – murmurou ele, o
hálito quente e sedutor a acariciar-lhe o canto da boca.
Cecilia conteve um gemido. Não tinha forças para lhe resistir. Não quando o via assim: divertido e
carinhoso e tão obviamente feliz por se ver casado com ela ao acordar.
Os lábios dele roçavam agora os dela vagarosamente, num beijo que poderia parecer casto,
embora não houvesse nada de inocente na maneira como o corpo de Cecilia arqueava em direção ao
dele, ansioso por mais. Já estava meio apaixonada por aquele homem antes mesmo de se
conhecerem, e agora o seu corpo reconhecia o que a mente se recusava a admitir: ela desejava-o
desesperadamente, de todas as maneiras possíveis.
Se Edward não estivesse doente, se não estivesse tão fraco, só Deus sabia o que poderia acontecer.
Porque ela não sabia se teria forças para resistir à consumação de um casamento que não existia.
– Tu és o meu melhor remédio – sussurrou Edward contra a pele dela.
– Não subestimes o láudano – tentou ela brincar, pois precisava de aligeirar o momento.
Ele recuou, apenas o suficiente para lhe perscrutar o olhar, e respondeu:
– Não subestimo. Até agradeço por insistires que o tomasse. Acho que ajudou.
– Não tens de agradecer – disse Cecilia, um pouco hesitante e desorientada pela mudança de
assunto.
– Isso é, em parte, por que digo que és o meu melhor remédio – disse ele, acariciando-lhe a face. –
Sabes, conversei com as pessoas no hospital. Ontem, depois de saíres.
Ela abanou a cabeça, sem saber o que ele pretendia com aquela conversa.
– Contaram-me da tua dedicação por mim. Que foi graças à tua insistência que recebi o melhor
atendimento.
– Eu... sim, claro – gaguejou.
Não tinha nada a ver com ser mulher dele. Ela teria feito o mesmo por qualquer pessoa.
– Uma delas até disse que, na sua opinião, eu nunca teria acordado se não fosse por ti.
– Tenho a certeza de que não é o caso – protestou.
Não queria ficar com os louvores, nem que ele acreditasse que estava em dívida para com ela.
– É engraçado – murmurou ele –, não me lembro de ter pensado em casar. Não tenho memória de
pensar em estar casado. Mas gosto.
As lágrimas assomaram aos olhos de Cecilia.
– Não chores – sussurrou ele, limpando-lhe as lágrimas.
– Eu não estou a chorar – disse ela, apesar da evidência em contrário.
– Creio que é a primeira vez que faço uma mulher chorar com um beijo – disse ele, com um sorriso
indulgente.
– És como o Georgie Porgie da rima infantil, que beijava as meninas e as punha a chorar –
sussurrou ela, em jeito de brincadeira.
– George é o meu nome do meio – respondeu ele, divertido.
Ela afastou-se, pois precisava de colocar alguma distância entre eles. Mas ele deslizou a mão do
seu rosto para o ombro e depois do braço para a mão. Recusava-se a deixá-la ir e, no fundo do seu
coração, Cecilia também sabia que não queria que ele a largasse.
– Está a ficar tarde – disse ele.
Cecilia lançou um olhar para a janela. Por entre as cortinas que há muito fechara, viu que o dia
quase dava lugar à noite.
– Dormes esta noite? – perguntou ele.
Ela entendeu a pergunta implícita: iria ela dormir na cama com ele?
– Não quero que te sintas envergonhada – continuou ele. – Por mais que eu gostasse que fosse
diferente, não estou em condições de fazer amor contigo.
Cecilia não conseguiu evitar corar violentamente.
– Pensei que não estivesses cansado – resmungou ela.
– E não estou. Mas tu estás.
Ele tinha razão. Estava exausta. Devia ter dormido ao mesmo tempo que ele, mas sentira a
necessidade de lhe vigiar o sono. Ele parecia tão mal quando se deitara... Quase pior do que quando
estava no hospital.
Se alguma coisa lhe acontecesse, depois de todas as dificuldades...
Não suportava nem pensar numa coisa dessas.
– Já comeste? – quis ele saber.
Cecilia assentiu. Fizera uma refeição leve quando fora buscar a sopa.
– Ainda bem. A enfermeira não pode transformar-se em doente. Garanto-te que eu não seria tão
eficiente como tu. – A sua expressão tornou-se séria e acrescentou: – Tens de descansar.
Ela sabia disso, claro. Mas simplesmente não via como seria possível.
– Decerto continuas a querer manter a modéstia – continuou ele, o rosto assumindo um ar
descoroçoado, e Cecilia sentiu-se um pouco melhor ao perceber que ele também via a incongruência
da situação. – Dou-te a minha palavra de honra que não olho para ti.
Ela fitou-o sem entender e ele explicou:
– Enquanto mudas de roupa.
– Ah... claro! – Céus. Era mesmo idiota!
– Até tapo a cabeça com os cobertores.
– Não será necessário – disse ela, levantando-se com as pernas um pouco trémulas.
Houve um silêncio e, numa voz rouca, ele disse:
– Talvez seja.
Cecilia deixou escapar um pequeno ruído de surpresa à admissão dele e correu para o armário,
onde guardara o seu parco guarda-roupa. Trouxera apenas uma camisa de dormir, de algodão branco,
sem rendas ou folhos. Não era o tipo de peça passível de ser encontrada no enxoval de uma noiva.
– Vou vestir-me ali no canto.
– Eu já estou debaixo dos cobertores.
De facto, enquanto ela tinha ido buscar a camisa de dormir, ele voltara a deitar-se e desaparecera
debaixo dos cobertores.
Ela teria dado uma boa gargalhada, se não se sentisse tão envergonhada.
Com alguns gestos rápidos e precisos, Cecilia despiu-se e vestiu a camisa de dormir. Cobria-a da
cabeça aos pés, como qualquer um dos seus vestidos diurnos e mais do que um vestido de noite.
Ainda assim, sentia-se indecente e exposta.
Costumava passar a escova cinquenta vezes pelo cabelo antes de ir para a cama, mas hoje parecia-
lhe excessivo, especialmente com Edward escondido debaixo dos cobertores, por isso, limitou-se a
fazer uma trança. Quanto aos dentes... Olhou para a escova e para o pó que trouxera de Inglaterra e,
depois, para a cama. Edward não se movera.
– Não escovo os dentes hoje – disse ela.
Quem sabe isso o dissuadisse de a beijar na manhã seguinte.
Guardou a escova de dentes no armário e aproximou-se do lado oposto da cama. Com todo o
cuidado, deslizou para debaixo dos lençóis.
– Já podes abrir os olhos – anunciou ela.
– Estás muito longe – disse ele, depois de sair de baixo dos cobertores.
Cecilia enfiou a perna direita na cama, ainda pendurada do lado de fora.
– Acho que é melhor – disse ela.
Inclinou-se para soprar a vela, deixando a escuridão inundar o quarto.
Não foi suficiente para diminuir a consciência aguda de ter aquele homem deitado a seu lado.
– Boa noite, Cecilia.
– Boa noite.
Virou-se desajeitadamente para o lado direito. Era assim que dormia geralmente, as mãos juntas
sob a face. Naquela noite, porém, a posição não pareceu confortável nem natural.
Ela nunca seria capaz de adormecer.
E, no entanto, adormeceu.
Capítulo 9
Depois de ler a carta novamente, Edward manteve os olhos fixos na escrita elegante por alguns
segundos, traçando com o dedo indicador as letras do nome dela. A sua amiga, escrevera ela. De
facto, era isso que ela era antes de a conhecer.
Amiga dele.
Agora, mulher dele.
Atrás de si, ouviu os ruídos inconfundíveis de Cecilia a acordar. Dobrou rapidamente a carta e
voltou a guardá-la no meio das outras da família.
– Edward? – ouviu-a chamar.
A voz era arrastada e sonolenta, como se estivesse a reprimir um bocejo.
– Bom dia – cumprimentou ele, virando-se.
– Que estavas a ler?
A mão tamborilou na coxa.
– Apenas uma carta de casa.
– Ah! – Ela fez uma pausa e, em seguida, murmurou: – Deves ter muitas saudades da tua família.
– Eu... sim.
De repente, ele viu-se na pele do menino tímido e inexperiente diante da menina bonita com quem
ninguém se atrevia a falar. Era ridículo, completamente insano. Era um homem adulto, caramba, e há
mais de uma década que uma mulher não tinha o poder de o deixar sem palavras. Mas agora sentia-se
como se tivesse sido apanhado em flagrante.
Se ela descobrisse que ele tinha roubado as cartas dela...
Ficava envergonhado só de pensar nisso.
– Passa-se alguma coisa? – perguntou ela.
– Não, não, está tudo bem – respondeu, virando-se para enfiar o monte de cartas no baú. – Estava
só a... tu entendes... a pensar na família.
Assentindo com a cabeça, ela sentou-se na cama e ajeitou modestamente os cobertores para se
cobrir.
– Não os vejo desde... ai!
Edward soltou um chorrilho de injúrias quando o dedo grande do pé bateu com violência no baú.
Estava tão ansioso por esconder a evidência da sua estúpida paixoneta que não prestara atenção
aonde ia.
– Estás bem? – perguntou Cecilia, visivelmente espantada com a reação dele.
Edward soltou mais um palavrão, antes de pedir desculpa. Não se encontrava na presença de uma
mulher há tanto tempo, que as boas maneiras estavam um pouco enferrujadas.
– Não peças desculpa – disse ela. – Não há nada pior do que bater com o dedo do pé. Só gostava
de poder fazer o mesmo quando isso acontece comigo.
– A Billie faz.
– Quem?
– Oh, desculpa. Billie Bridgerton. A minha vizinha.
Aparentemente, ela ainda lhe ocupava o pensamento, talvez por ter estado a ler as cartas da
família.
– Ah, sim! Já falaste dela.
– Já? – perguntou ele, distraído.
Billie e ele eram grandes amigos. Tinham crescido juntos. Não havia pessoa mais maria-rapaz do
que ela e Edward duvidava que tivesse reparado que ela era uma rapariga antes dos oito anos.
Riu-se, à lembrança.
Cecilia desviou o olhar.
– Não vejo razão para te ter falado dela nas cartas – comentou Edward.
– Não foste tu, foi o Thomas – corrigiu ela.
– O Thomas? – repetiu, desconcertado.
Despreocupada, ela encolheu os ombros.
– Deves ter-lhe falado dela.
– Talvez. – Edward dobrou-se para tirar uma camisa limpa. Aliás, fora por essa razão que abrira o
maldito baú. – Se me dás licença – acrescentou, antes de tirar a camisa suja.
– Oh! Tens uma cicatriz! – exclamou Cecilia.
Ele olhou para ela por cima do ombro.
– O quê?
– Tens uma cicatriz nas costas. Nunca reparei nela. – Franziu o sobrolho. – Suponho que seja
normal não ter reparado. Quando tratei de ti, nunca... bem, isso não importa. – Uma pausa e
perguntou: – Como é que a fizeste?
Ele colocou o braço por cima do ombro e apontou para a omoplata esquerda.
– Esta aqui?
– Sim.
– Caí de uma árvore.
– Recentemente?
Ele fitou-a, incrédulo.
– Tinha nove anos.
A resposta pareceu interessá-la e ela mudou de posição, cruzando as pernas debaixo dos
cobertores.
– O que aconteceu?
– Caí de uma árvore.
Ela soltou um resmungo.
– Tenho a certeza de que a história não acaba aí.
– Na verdade, não – admitiu ele com um encolher de ombros. – Durante quase dois anos, menti e
disse que tinha sido o meu irmão a empurrar-me, mas a verdade é que me desequilibrei. Durante a
queda, bati num ramo, que me rasgou a camisa.
– Deves ter feito a vida impossível à tua mãe – riu-se Cecilia.
– À minha mãe e a quem tivesse de remendar a minha roupa. Embora calcule que aquela camisa
tenha ficado irrecuperável.
– Melhor uma camisa do que um braço ou uma perna.
– Ah, também estragámos alguns!
– Santo Deus!
– A Billie partiu os dois braços – disse, com um grande sorriso.
Cecilia arregalou muito os olhos.
– Ao mesmo tempo?
– Graças a Deus, não, mas o Andrew e eu divertimo-nos muito a imaginar como seria se isso
acontecesse. Quando ela partiu o segundo braço, pusemos-lhe o braço são ao peito, só para ver como
ela se desenrascava.
– E ela deixou-vos fazer isso?
– Deixou-nos? Foi ela que sugeriu.
– Parece ser bastante original – comentou Cecilia, em tom educado.
– A Billie? Não há duas como ela, isso é certo – disse ele, abanando a cabeça.
Cecilia baixou os olhos e começou a beliscar distraidamente a coberta. Parecia desenhar algum
padrão na cabeça.
– E que faz ela agora? – perguntou ela.
– Não faço ideia – admitiu ele, em tom pesaroso.
Era penoso estar tão longe da família. Há mais de quatro meses que não tinha notícias deles. E
provavelmente pensavam que ele estava morto.
– Desculpa – pediu Cecilia. – Eu não devia ter perguntado. Foi irrefletido.
– Não te preocupes – tranquilizou-a, pois obviamente não era culpa dela. – Embora me pergunte se
terei recebido correspondência durante a minha ausência. É provável que a minha família me tenha
escrito antes de saber do meu desaparecimento.
– Não sei, mas podemos perguntar.
Edward começou a apertar os punhos da camisa, primeiro o esquerdo, depois o direito.
– Escreviam-te com frequência? – continuou ela com um sorriso.
O sorriso de Cecilia pareceu forçado. Ou talvez estivesse apenas cansada.
– A minha família?
– Sim – anuiu ela. – E os teus amigos.
– Ninguém me escrevia tantas vezes como tu ao Thomas – respondeu ele, com certa tristeza. – Eu
tinha muita inveja disso. Aliás, tínhamos todos.
– Verdade?
Desta vez, o sorriso de Cecilia iluminou-lhe os olhos.
– Verdade – confirmou ele. – O Thomas recebia mais cartas do que eu e tu eras a única
correspondente.
– Não é possível!
– Garanto-te que sim. Bem, talvez não, se eu contar com a minha mãe – admitiu Edward. – Mas
isso não parece muito justo.
– Que queres dizer? – perguntou ela, com uma risada.
– As mães têm de escrever aos filhos, certo? Enquanto os irmãos e os amigos... nada os obriga a
serem tão diligentes.
– O nosso pai nunca escreveu ao Thomas – confessou Cecilia. – Às vezes pedia-me para lhe enviar
cumprimentos, mas só isso.
Ela não parecia afetada, nem mesmo conformada. Edward lembrou-se subitamente do amigo
ocupado a talhar um pau com o canivete num aquartelamento. Thomas gostava de aforismos, e um dos
seus preferidos era: «Muda o que podes e aceita o que não podes mudar.»
A irmã de Thomas parecia a personificação dessa filosofia.
Observou-a em silêncio. Era uma mulher de força e graça notáveis. Estaria ciente disso?
Voltou a atenção aos punhos, mesmo já estando devidamente abotoados. O desejo de olhar para
Cecilia era muito forte. Acabaria a deixá-la envergonhada ou, o mais provável, acabaria ele
envergonhado. Mas queria contemplá-la. Queria conhecê-la. Queria saber tudo sobre ela, os
segredos e desejos, ouvi-la contar histórias do seu quotidiano, descobrir os pedaços do passado que,
como as peças de um quebra-cabeças, faziam dela um todo.
Era estranho querer conhecer tudo de outra pessoa, por dentro e por fora. Não se lembrava de ter
desejado algo assim antes.
– Já te contei sobre a minha infância – disse ele, tirando uma gravata do baú e começando a fazer o
nó. – Fala-me da tua.
– Que queres saber?
Ela parecia vagamente surpreendida, talvez até divertida.
– Brincavas muito ao ar livre?
– Nunca parti um braço, se é isso que perguntas.
– Não, mas fico aliviado por saber.
– Não podemos todas ser Billies – ironizou ela.
Estupefacto com o comentário, virou-se para ela, convencido de que tinha ouvido mal.
– Que disseste?
– Nada – respondeu ela, com um ligeiro abanar de cabeça para indicar que não valia a pena
elaborar. – Uma parvoíce. Para responder à tua pergunta, não, eu não brincava muito ao ar livre. Não
tanto como tu, pelo menos. Preferia ficar em casa a ler.
– Poesia? Prosa?
– Tudo o que me viesse à mão. O Thomas chamava-me rato de biblioteca.
– Eu diria dragão de biblioteca.
– Por que dizes isso? – riu-se ela.
– És demasiado valente para seres um modesto rato.
Cecilia ergueu os olhos para o teto, vagamente constrangida. E talvez um pouco orgulhosa também.
– És certamente a única pessoa que me vê como valente.
– Atravessaste um oceano para salvar o teu irmão. Parece-me a definição acabada de valentia.
– É possível.
Porém, a vivacidade desaparecera na resposta dela. Edward fitou-a com curiosidade.
– Por que ficaste tão séria de repente?
– É só que... – Ficou pensativa um momento e, depois, suspirou. – Quando parti para Liverpool,
onde apanhei o barco, creio que não foi o meu amor pelo Thomas que me levou a agir.
Edward veio sentar-se ao lado dela, oferecendo-lhe apoio silencioso.
– Acho... acho que foi desespero.
Quando ela virou o rosto para ele, Edward soube que seria assombrado para sempre pelo que lia
nos seus olhos. Não era tristeza nem medo. Era algo muito pior: resignação. Como se, olhando para
dentro, ela encontrasse apenas um grande vazio.
– Eu sentia-me muito só – admitiu ela. – E com medo. Não sei se...
Não terminou logo a frase. Edward manteve-se quieto, deixando que o seu silêncio fosse
encorajador.
– Não sei se teria vindo se não me sentisse tão só – terminou ela, por fim. – Gostava de pensar que
só pensei no Thomas e no quanto ele precisava da minha ajuda, mas pergunto-me se não seria eu que
precisava ainda mais de sair de lá.
– Não é vergonha nenhuma.
– Achas que não? – indagou ela, levantando o olhar.
– Tenho a certeza – afirmou ele com fervor, pegando nas mãos dela. – És muito corajosa e tens um
coração amoroso e sincero. Não é vergonha nenhuma sentir medo ou preocupação.
Porém, ela não conseguia fitá-lo nos olhos.
– E não estás sozinha – insistiu ele. – Prometo que nunca ficarás sozinha.
Ele esperou que ela dissesse alguma coisa, que reagisse à solenidade da declaração, mas em vão.
Percebeu que ela tentava recuperar a compostura. A respiração foi-se tornando mais regular e,
delicadamente, ela soltou uma das mãos para limpar os olhos.
– Gostava de me vestir – anunciou ela.
Era um pedido óbvio para a deixar a sós.
– Claro – disse ele, tentando ignorar a deceção que o invadiu.
Ela agradeceu em voz baixa quando ele se levantou para sair.
– Edward! – chamou, quando ele chegou à porta.
Ele virou-se, sentindo nascer dentro de si uma esperança ridícula.
– As tuas botas – lembrou-o.
Ele olhou para os pés. Ainda estava de meias. Com um breve aceno de cabeça, que pouco fez para
camuflar o rubor que lhe subia pelas faces, agarrou nas malditas botas e saiu. Calçá-las-ia nas
escadas.
Capítulo 10
Q uando Cecilia encontrou Edward na sala de refeições da estalagem, ele estava sentado a tomar
o pequeno-almoço. E com as botas calçadas.
– Oh, não te levantes, por favor! – disse, quando ele empurrou a cadeira para o fazer.
Ele parou o movimento um segundo e, depois, baixou a cabeça em cumprimento. Ela percebeu o
quanto lhe custava renunciar às boas maneiras, mas ele estava doente. Em fase de recuperação, mas
ainda doente. Tinha o direito de poupar energia, sempre que lhe fosse possível.
E cabia-lhe a ela certificar-se de que ele o fazia. Era a dívida que tinha de pagar, mesmo que ele
não soubesse. Estava a aproveitar-se da bondade e do prestígio do nome dele, por isso, o mínimo
que podia fazer em troca era ajudá-lo a curar-se.
Sentou-se à frente dele, feliz por ver que ele parecia ter mais apetite. Estava convencida de que a
fraqueza dele se devia mais ao facto de não ter comido durante uma semana do que ao ferimento na
cabeça.
Objetivo do dia: certificar-se de que Edward se alimentava devidamente.
Um objetivo bem mais fácil do que o do dia anterior, que fora parar de mentir tanto.
– A comida está boa? – perguntou.
Ela ainda não o conhecia o suficiente para lhe adivinhar o humor, mas ele saíra do quarto com tanta
pressa, que nem sequer se dera ao trabalho de calçar as botas. É certo que ela lhe dissera que queria
vestir-se, insinuando que desejava privacidade, mas decerto não era um pedido irracional.
Ele dobrou o jornal que folheava, empurrou um prato de ovos e bacon em direção a ela e disse:
– Sim, está tudo bom. Obrigado por perguntares.
– Há chá? – quis Cecilia saber, esperançosa.
– Infelizmente, não esta manhã. Mas... – Fez um gesto com a cabeça para um papel ao lado do prato
– recebemos um convite.
Cecilia levou alguns instantes a entender aquela frase tão simples.
– Um convite? – repetiu. – Para quê?
E, acima de tudo, de quem? Tanto quanto sabia, apenas alguns oficiais, o médico e o homem que
varria o chão do hospital sabiam que ela e Edward eram casados.
Mais exatamente, eles eram os únicos que pensavam que sabiam.
Forçou um sorriso. O novelo de mentiras estava a emaranhar-se cada vez mais.
– Estás maldisposta? – perguntou Edward.
– Não, está tudo bem – assegurou ela, a voz abrupta. – Por que perguntas?
– Estás com uma expressão muito estranha – explicou ele.
Cecilia teve de aclarar a garganta antes de responder:
– Deve ser fome, suponho.
Deus do céu, era mesmo péssima a mentir!
– É do governador Tryon – continuou Edward, deslizando o convite para ela. – Vai dar um baile.
– Um baile? Agora?
Cecilia sacudiu a cabeça, desconcertada. A mulher da padaria dissera-lhe que a vida social em
Nova Iorque era intensa, mas parecia-lhe bizarro, com batalhas a serem travadas tão perto.
– A filha dele faz dezoito anos. Parece que ele se recusa a não celebrar o acontecimento.
Cecilia pegou no convite em papel de pergaminho – credo, onde é que se arranjava papel de
pergaminho em Nova Iorque? – e leu finalmente o que estava escrito. Não havia dúvida de que o
ilustre capitão e Mrs. Rokesby eram convidados para a casa do governador daí a três dias.
Ela disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça:
– Não tenho nada para vestir.
Edward encolheu os ombros.
– Havemos de encontrar alguma coisa.
Cecilia não pôde deixar de revirar os olhos à típica resposta masculina.
– Em três dias?
– Não faltam costureiras a precisarem de ganhar algum dinheiro.
– Dinheiro que eu não tenho.
Ele fitou-a como se um fragmento do cérebro tivesse acabado de lhe saltar da orelha.
– Mas eu tenho. Logo, tu também tens.
Cecilia não tinha forma de o contradizer, por mais mercenária que isso a fizesse sentir, por isso,
limitou-se a murmurar:
– Podiam ter convidado mais cedo.
Edward inclinou a cabeça para o lado, pensativo.
– Suponho que os convites tenham sido enviados há mais tempo. A questão é que eu acabei de
voltar do mundo dos desaparecidos.
– Claro – apressou-se ela a responder.
Céus, o que ia fazer? Não podia ir a um baile dado pelo governador real de Nova Iorque! A única
justificativa que dera a si mesma para manter aquela farsa era a de que ninguém saberia.
Mordeu o interior da bochecha com força. Ninguém... exceto o governador, a mulher dele e os mais
preeminentes lealistas da cidade.
Que poderiam acabar por regressar a Inglaterra.
Onde poderiam encontrar a família de Edward e fazer perguntas sobre a mulher dele.
Santo Deus!
– O que foi? – perguntou Edward.
Ela levantou a cabeça.
– Estás a franzir o sobrolho – comentou ele.
– Estou?
Ficou francamente surpreendida por não explodir numa risada nervosa.
Edward não reagiu, mas a sua expressão exageradamente paciente dizia claramente: Sim, estás.
Cecilia traçou a letra elegante do convite com o dedo.
– Não achas surpreendente que eu esteja incluída no convite?
– És minha mulher – lembrou ele, com um gesto de espanto da mão.
– Sim, mas como é que o governador sabe disso?
Edward cortou um pedacinho de bacon e respondeu:
– Imagino que saiba disso há meses.
Cecilia encarou-o com espanto. Ele susteve-lhe o olhar e acrescentou:
– Haveria alguma razão para eu não lhe ter contado que nos casámos?
– Tu conheces o governador?! – exclamou ela, desejando que parte da última palavra não tivesse
saído tão estridente.
Ele levou o pedaço de bacon à boca, mastigou e engoliu antes de responder:
– A minha mãe é amiga da mulher dele.
– A tua mãe – repetiu ela, atónita.
– Creio que foram apresentadas à Corte juntas, em Londres. – Refletiu um momento e acrescentou:
– Ela era uma herdeira extraordinária.
– A tua mãe?
– Mrs. Tryon.
– Oh!
– A minha mãe também, na verdade, embora nada como a tia Margaret.
Cecilia permaneceu petrificada por uma fração de segundo.
– A tia... Margaret?
Ele fez um gesto casual, como se isso a sossegasse.
– É a minha madrinha.
Cecilia percebeu que tinha ficado suspensa com a colher de servir cheia de ovos mexidos. O seu
pulso tremeu e os ovos caíram-lhe no prato.
– A mulher do governador é tua madrinha? – quase guinchou.
– Sim – anuiu ele. – E da minha irmã também. Não é verdadeiramente nossa tia, mas sempre a
tratámos assim.
A cabeça de Cecilia assentia mecanicamente e, embora ela se desse conta de que estava de boca
aberta, não conseguia fechá-la.
– Passa-se alguma coisa? – perguntou ele, completamente a leste.
Cecilia precisou de um momento para formar uma frase.
– Não achaste pertinente dizer-me que a tua madrinha é casada com o governador real de Nova
Iorque?
– Não surgiu em conversa.
– Santo Deus!
Cecilia recostou-se na cadeira. Aquele seu novelo de mentiras emaranhado estava a tornar-se
inextricável. E se havia uma coisa de que tinha a certeza era de que não podia ir ao baile e conhecer
a madrinha de Edward. Uma madrinha sabia de coisas, como, por exemplo, que Edward estivera
«quase» noivo e não fora de Cecilia.
Talvez até conhecesse a noiva. Sem dúvida, quereria saber por que razão tinha Edward renunciado
a uma aliança com a família Bridgerton para se casar com uma plebeia como Cecilia.
– O governador – repetiu ela, mal resistindo à vontade de enterrar a cabeça nas mãos.
– É apenas um homem – disse Edward, escusadamente.
– Diz o filho de um conde.
– És muito snobe! – brincou ele, soltando uma risada.
Cecilia recuou, ofendida. Não era perfeita e, ultimamente, nem sequer honesta, mas não era snobe.
– Que queres dizer com isso?
– Estás a condená-lo pela posição que ocupa – respondeu Edward, ainda a sorrir.
– Não estou nada! Credo, não! Pelo contrário, estou a condenar-me a mim pela posição que ocupo.
Ele estendeu o braço para se servir de mais comida.
– Não digas disparates.
– Eu não sou ninguém.
– Isso é categoricamente falso – afirmou ele.
– Edward...
– És minha mulher.
Isso era categoricamente falso. Cecilia teve de tapar a boca com a mão para não desatar a rir. Ou a
chorar.
Ou ambas as coisas.
– Mesmo que não fôssemos casados, serias uma convidada bem-vinda neste tipo de festividades.
– Como o governador não saberia da minha existência, eu não seria convidada para tais
festividades.
– Imagino que ele soubesse quem és. Tem uma memória incrível para nomes e tenho a certeza de
que o Thomas deve ter mencionado que tinha uma irmã.
Cecilia quase se engasgou com os ovos.
– O Thomas conhece o governador?
– Jantou comigo em casa dele algumas vezes – explicou Edward, com toda a naturalidade.
– Claro – reagiu Cecilia. – Porque... claro.
Tinha de pôr fim à conversa, pois estava rapidamente a perder o controlo da situação. Aquilo era...
era...
– Aliás – disse Edward com ar pensativo –, ele pode ser útil.
– Perdão?
– Não sei por que não pensei nisso antes. – Levantou a cabeça, o sobrolho franzindo-se acima dos
olhos muito azuis, e acrescentou: – Devíamos pedir ajuda ao governador Tryon para encontrar o
Thomas.
– Achas que ele pode saber de alguma coisa?
– Não, mas pode pressionar as pessoas certas.
Cecilia tentou engolir lágrimas de frustração. Mais uma vez, voltava à mais simples e inevitável
verdade: no respeitante à busca do irmão, o que importava era conhecer as pessoas certas.
Edward deve ter percebido a inquietação dela, porque estendeu o braço e deu-lhe uma palmadinha
reconfortante na mão.
– Não precisas de te sentir pouco à vontade – disse. – És filha de um cavalheiro e agora és nora do
conde de Manston. Tens todo o direito de estar naquele baile.
– Não é isso – protestou Cecilia, embora até fosse, pelo menos, em parte.
Ela não estava acostumada a socializar com oficiais de alta patente. Aliás, também não tinha o
hábito de socializar com filhos de condes, e ali estava ela, falsamente casada com um deles.
– Sabes dançar? – perguntou Edward.
– Claro que sei dançar! – respondeu, com brusquidão.
– Nesse caso, tudo correrá bem.
Ela encarou-o, furiosa.
– Realmente não entendes, pois não?
Ele recostou-se na cadeira, a bochecha esquerda distendida por ter a língua pressionada contra o
interior. Fazia aquele gesto muitas vezes, percebeu ela, e ainda não tinha descoberto o que
significava.
– Há muitas coisas que eu não entendo – admitiu ele num tom demasiado paciente para ser inócuo.
– Os acontecimentos dos últimos três meses, por exemplo. Como acabei com um papo do tamanho de
um ovo no crânio. Ou como acabei casado contigo.
Cecilia susteve a respiração.
– O que eu sei, no entanto – continuou ele –, é que terei muito prazer em comprar-te um vestido
bonito e ir a uma festa contigo pelo braço. – Inclinou-se para a frente, os olhos brilhantes de uma
estranha e indecifrável ferocidade. – Será uma normalidade alegre e inócua. Tens ideia do quanto
aspiro ao alegre, inócuo e normal?
Cecilia não respondeu.
– Bem me pareceu – murmurou ele. – Então, vamos comprar o vestido?
Ela assentiu. Que mais poderia fazer?
*
Descobriram que não era assim tão fácil arranjar quem fizesse um vestido de noite em três dias.
Uma das costureiras chegou a chorar quando Edward revelou quanto estava disposto a gastar. Não
conseguia tê-lo pronto a tempo, confessou chorosa, a menos que tivesse mais quarenta pares de mãos.
– Pode tirar as medidas da senhora? – perguntou-lhe Edward.
– Para quê? – questionou Cecilia, já exasperada.
– Faz-me este favor – respondeu ele, simplesmente.
Depois de a deixar na estalagem, Edward foi a casa da madrinha. Ela sempre gostara de coisas
bonitas e ele estava convencido de que, entre os vestidos dela e da filha, ela lhe cederia algum.
O governador e a mulher viviam com a filha numa casa arrendada na periferia da cidade. Com
exceção de uma visita a Inglaterra, viviam naquela casa desde que a mansão do governador ficara
completamente destruída num incêndio, em 1773. Edward não estava em Nova Iorque na época, mas
a sua mãe contara-lhe todos os pormenores, que soubera da própria Margaret Tryon. Eles tinham
perdido tudo o que possuíam e quase tinham perdido a filha, também. A pequena Margaret, que era
tratada por May para se diferenciar da mãe, fora salva apenas pela presença de espírito da precetora,
que a atirara para um monte de neve, desde uma janela do primeiro andar.
Edward respirou fundo quando o mordomo se afastou para o deixar entrar. Tinha de manter o
sangue-frio. Margaret Tryon não se deixava enganar facilmente, portanto, não valia a pena fingir estar
de boa saúde. De facto, assim que ele entrou na sala de visitas, as primeiras palavras dela foram:
– Estás com ar péssimo.
– Sempre franca, tia Margaret – comentou ele.
Ela recompensou-o com o seu famoso encolher de um só ombro – uma reminiscência dos seus
tempos de convivência com os franceses, dizia ela, embora Edward não soubesse quando exatamente
é que ela convivera com os franceses. Ela apresentou-lhe a face, que ele beijou obedientemente.
Em seguida, ela recuou, observando-o com curiosidade.
– Seria negligente como tua madrinha, se não referisse que estás muito pálido, que os teus olhos
parecem vazios e que perdeste, pelo menos, seis quilos.
Edward levou um momento a digerir a tirada e, depois, respondeu:
– A tia está linda.
O comentário fê-la sorrir.
– Sempre foste um menino encantador.
Edward absteve-se de salientar que tinha mais de trinta anos. Sem dúvida, as madrinhas tinham o
direito legal de se referirem aos afilhados como «meninos» e «meninas» até estes estarem com os
pés para a cova.
Margaret tocou para que trouxessem o chá, depois fitou-o com franqueza e disse:
– Estou muito zangada contigo.
Ele arqueou uma sobrancelha e sentou-se à sua frente.
– Tenho esperado a tua visita. Voltaste para Nova Iorque há mais de uma semana, certo?
– Estive inconsciente os primeiros oito dias – referiu ele, com brandura.
– Ah... – Ela franziu os lábios para conter a emoção. – Não sabia.
– E talvez seja essa a razão da minha «péssima» aparência, como lhe chamou.
Ela estudou-o por um longo tempo antes de declarar:
– Da próxima vez que escrever à tua mãe, não farei uma descrição detalhada da tua aparência. Pelo
menos, não uma descrição precisa.
– Agradeço-lhe – disse Edward, com honestidade.
– Muito bem – Margaret tamborilou as pontas dos dedos no braço da poltrona, um gesto habitual
quando ficava sem graça, depois de mostrar as suas emoções. – Como te sentes?
– Melhor do que ontem – respondeu Edward, algo pelo qual devia ficar grato.
A madrinha, no entanto, não ficou satisfeita com a resposta.
– Isso não significa nada.
Edward fez um balanço do seu estado de saúde atual. A dor surda na cabeça tornara-se tão
constante que quase conseguia ignorá-la. Mais preocupante era a falta de energia. Tivera de parar
pelo menos um minuto, ou assim lhe pareceu, depois de subir os poucos degraus da entrada de casa
da madrinha. Não apenas para recuperar o fôlego, mas porque precisava de reunir forças para
obrigar as pernas a funcionar. A visita à costureira com Cecilia deixara-o esgotado. Pagara ao
cocheiro o dobro para fazer o caminho mais longo possível entre a pousada e a casa dos Tryon, só
para poder fechar os olhos e não mover um músculo durante a viagem.
Mas a tia Margaret não precisava de saber de nada disso.
– Já ando sem ajuda, o que é um avanço – disse, com um sorriso ligeiro.
Ela arqueou as sobrancelhas.
– Ainda me sinto cansado – admitiu ele – e a cabeça continua a doer-me. Mas estou a melhorar e
estou vivo, portanto, tento não reclamar.
Ela anuiu lentamente.
– É muito estoico da tua parte. Só posso aprovar.
Então, sem dar tempo a Edward para reagir, ela mudou de assunto.
– Não me disseste que tinhas casado.
– Disse a muito poucas pessoas.
– Define «muito poucas» – respondeu ela, estreitando os olhos.
– Bem, sobre isso...
Edward respirou fundo, tentando decidir como explicar a sua situação atual a uma das poucas
pessoas na América do Norte que o conheciam antes de ali ter chegado e, mais pertinente ainda, à
única que conhecia a sua mãe.
Margaret Tryon mostrou uma paciência ostensiva por dez segundos, antes de dizer:
– Desembucha!
Edward não conseguiu reprimir um sorriso. A madrinha era famosa pela sua franqueza.
– Aparentemente, perdi parte da minha memória.
Ela ficou boquiaberta e inclinou-se para a frente. Edward poderia congratular-se por ter
conseguido quebrar a sua impassibilidade habitual, não fora a razão o seu ferimento.
– Fascinante – disse ela, os olhos assumindo um brilho que poderia ser descrito como académico.
– Nunca ouvi falar de tal coisa. Bem, sim, já ouvi falar disso, é claro. Mas foi sempre uma daquelas
histórias de alguém que conhece alguém que pensa ter ouvido um outro alguém dizer que conheceu
alguém... Bem, sabes o que quero dizer.
Edward fitou-a um momento, atordoado, antes de dar a resposta inevitável:
– Certamente.
– Esqueceste muitas coisas?
– Os últimos três ou quatro meses, de acordo com os meus cálculos. É difícil avaliar, porque não
consigo lembrar-me exatamente de qual é a minha última memória – explicou, com um encolher de
ombros.
Margaret recostou-se na cadeira e repetiu:
– Fascinante!
– Não tão fascinante quando é a nossa própria memória a desaparecer sem rasto.
– É óbvio. Perdoa-me. Mas reconhece que, se fosse outra pessoa, ficarias fascinado.
Edward duvidava, mas, no caso da madrinha, acreditava piamente. Ela sempre se interessara por
estudos académicos e científicos, ao ponto de ser criticada por ter um espírito pouco feminino.
Previsivelmente, a tia Margaret tomava isso como um elogio.
– Diz-me – recomeçou ela num tom mais suave –: o que posso fazer para te ajudar?
– Em relação à minha memória? Infelizmente, nada. Em relação à minha mulher? Ela precisa de um
vestido.
– Para o baile? Pois claro que precisa. Eu posso emprestar-lhe um dos meus. Ou um da May –
acrescentou ela. – Provavelmente terá de ser arranjado, mas tu tens meios para pagar isso.
– Obrigado – disse Edward. – Era exatamente isso que eu esperava que propusesse.
– Oh, não tens de agradecer – dispensou ela, com um gesto de mão. – Mas, diz-me, eu conheço essa
jovem?
– Não, mas julgo que conheceu o irmão, Thomas Harcourt.
– Não me recordo desse nome – comentou ela, de sobrolho franzido.
– Ele deve ter vindo cá comigo a um jantar. No final do ano passado, acho.
– O teu amigo loiro? Ah, sim! Um bom rapaz. Convenceu-te a casar com a irmã dele, foi isso?
– Foi o que me disseram.
Edward arrependeu-se imediatamente daquelas palavras porque, claro, a tia Margaret reagiu como
um cão de caça.
– Foi o que te disseram? Que diabo significa isso?
– Esqueça, por favor – pediu Edward, embora soubesse que ela não ia acatar o pedido.
– Explica-te imediatamente, Edward Rokesby, ou juro que escrevo à tua mãe e faço-lhe uma
descrição muito pior da tua aparência.
Edward esfregou a testa. Era o que lhe faltava! Margaret nunca concretizaria a ameaça, sabia
disso. Adorava demasiado a mãe dele para a preocupar desnecessariamente. Mas também não o
deixaria sair de sua casa até ficar satisfeita com as respostas às suas perguntas. E, dada a sua falta de
energia atual, se a coisa chegasse à altercação física, era provável que ela ganhasse. Suspirou e
disse:
– Aqueles meses que eu mencionei, os de que não me lembro...
– Estás a dizer-me que não te lembras de ter casado com ela?
Edward abriu a boca, mas nada saiu.
– Santo Deus, meu rapaz, há testemunhas?
Mais uma vez, ele permaneceu em silêncio.
– Tens a certeza de que és casado com ela?
Desta vez, ele não hesitou.
– Sim.
Ela levantou os braços num gesto de exasperação, o que não era de todo habitual nela.
– Como é que sabes?
– Porque a conheço.
– Tens a certeza?
Edward enterrou os dedos nos braços da poltrona. Uma crescente irritação percorreu-lhe as veias
e foi com muito esforço que respondeu numa voz clara e uniforme:
– O que está a insinuar, tia?
– Viste algum documento? O casamento foi consumado?
– Isso não lhe diz respeito.
– Tu dizes-me respeito, desde o dia em que me postei ao lado da tua mãe na Catedral de
Canterbury e prometi guiar-te na tua vida cristã. Ou já te esqueceste?
– Confesso que a lembrança que guardei desse dia é vaga.
– Edward!
Se ela perdia a paciência com ele, Edward estava prestes a fazer o mesmo. No entanto, foi com
uma voz cuidadosamente controlada que respondeu:
– Peço-lhe que não questione a honra e a honestidade da minha mulher.
Margaret estreitou os olhos.
– O que é que ela fez? Seduziu-te, não foi? Estás enfeitiçado por ela.
– Basta! – cortou Edward, levantando-se com dificuldade. – Irra! – rosnou, entredentes, quando
teve de se agarrar à poltrona para manter o equilíbrio.
– Santo Deus, estás pior do que eu pensava! – exclamou Margaret, que também se levantou,
obrigando-o a sentar-se novamente. – Está decidido: ficas a viver aqui comigo.
Por um momento, Edward sentiu-se tentado a aceitar. Certamente ficariam mais confortáveis ali do
que na Devil’s Head. No entanto, na estalagem, tinham privacidade. Estavam cercados por
desconhecidos, é certo, mas nenhum se interessava por eles. Enquanto ali, na casa da família Tryon,
cada movimento seu – pior, cada movimento de Cecilia – seria observado, dissecado e depois
relatado à sua mãe numa carta semanal.
Não, ele não queria mudar-se para a casa da madrinha.
– Estou muito bem onde estou – respondeu. – Mas agradeço o convite.
Margaret fez uma carranca, obviamente desagradada com a resposta.
– Permites-me fazer uma última pergunta?
Ele assentiu.
– Como é que sabes?
Edward esperou que ela se explicasse, mas em vão.
– Como é que sei o quê?
– Como é que sabes que ela está a dizer a verdade?
Ele nem precisou de refletir.
– Porque a conheço.
Era verdade. Talvez só conhecesse o rosto de Cecilia há alguns dias, mas conhecia-lhe o coração
há muito mais tempo. Nunca duvidaria dela.
– Meu Deus – murmurou Margaret –, tu ama-la!
Edward ficou em silêncio. Era-lhe difícil contradizê-la.
– Muito bem – concedeu ela, com um suspiro. – Consegues subir as escadas?
Ele fitou-a, confuso. Que diabo queria ela dizer?
– Continuas a precisar de um vestido, não é? Não faço ideia do que possa servir à nova Mrs.
Rokesby e prefiro não ter de pedir às criadas para esvaziarem os armários na minha sala de estar.
– Ah, sim, claro. E sim, sou capaz de subir as escadas.
No entanto, deu graças por haver um corrimão.
Capítulo 11
Pobre tenen capitão Rokesby! Espero que a travessia não tenha sido
tão má como temiam. Pelo menos, a vossa recente promoção servirá de
algum consolo. Estou muito orgulhosa por terem sido os dois
promovidos a capitães!
Estamos todos bem aqui na aldeia. Houve um baile há três dias e,
como de costume, éramos duas mulheres para cada homem. Só dancei
duas vezes. E a segunda foi com o pastor, por isso, não sei se conta.
A tua pobre irmã vai acabar solteirona!
Mas não te preocupes. Estou perfeitamente feliz assim. Ou, pelo
menos, imperfeitamente feliz. Isso existe? Deveria.
DE CECILIA HARCOURT
PARA O SEU IRMÃO THOMAS
N a tarde do baile do governador, Edward pousou uma grande caixa na cama que partilhava –
embora não em todos os sentidos da palavra – com a mulher.
– Compraste alguma coisa? – perguntou Cecilia.
– Abre e vê.
Ela atirou-lhe um olhar desconfiado e empoleirou-se na beira do colchão.
– O que é?
– Não posso oferecer um presente à minha mulher?
Cecilia olhou para a caixa, amarrada com uma grande fita vermelha muito festiva e depois para
Edward.
– Eu não esperava um presente.
– Mais um motivo para te oferecer um. Abre – repetiu, empurrando a caixa para ela.
Ela pegou na fita com os dedos delicados, puxou o nó e levantou a tampa. A exclamação abafada
que deixou escapar provocou em Edward um grande sorriso.
– Gostas? – perguntou ele, embora obviamente fosse o caso.
Ainda boquiaberta, Cecilia tocou na delicada seda aconchegada na caixa da modista. A tonalidade
quase verde continha apenas um toque de azul que combinava perfeitamente com a cor dos olhos
dela. Quando Edward vira aquele vestido no roupeiro de May Tryon, soubera que era o vestido certo
para Cecilia.
Não sabia se May tinha conhecimento de que doara o seu vestido de seda, pois não estava em casa
quando a mãe abrira as portas do armário para que ele escolhesse. Edward não podia esquecer-se de
agradecer a May a generosidade, antes de ela descobrir por acaso. Além do mais, se bem conhecia a
família Tryon, May iria certamente usar um vestido novo, espetacular e extraordinariamente caro.
Não ficaria aborrecida com Cecilia pelo vestido arranjado.
– Onde o encontraste? – perguntou Cecilia.
– Eu tenho os meus segredos.
Ficou espantado por ela não insistir. Ela tirou o vestido da caixa, levantou-se e segurou-o à frente
do corpo.
– Não temos um espelho – disse ela, parecendo ainda aturdida.
– Vais ter de confiar em mim, então – disse ele. – Ficas esplendorosa.
Na verdade, Edward não percebia muito de moda feminina. Segundo a tia Margaret, o vestido que
escolhera não era da última moda, mas, aos olhos de Edward, parecia tão bonito como os vestidos
que via nos salões de baile de Londres.
É verdade que tinham passado vários anos desde que pusera os pés num salão de baile de Londres
e suspeitava de que, para Margaret Tryon, a moda se media em meses e não em anos.
– Tem duas partes – disse ele. – O... hã... interior e o exterior.
– O saiote e o vestido – sussurrou Cecilia. – E o peitilho. São três partes, na verdade.
– Sim, claro – concordou ele, depois de pigarrear.
Com delicadeza e reverência, Cecilia acariciou o bordado em fio de prata que cobria, em espirais,
todo o comprimento da saia.
– Eu sei que devia dizer que é demasiado chique – murmurou ela.
– Não, não devias dizer isso de todo.
– Nunca tive nada tão bonito.
Para Edward, isso era uma tragédia de proporções épicas, mas sentia que era mais prudente não o
dizer.
Cecilia levantou a cabeça e olhou-o com uma clarividência súbita.
– Pensei que não íamos ao baile do governador.
– Porque pensaste isso?
Ela franziu os lábios num beicinho adorável.
– Porque eu não tinha nada para vestir.
Edward sorriu, ao vê-la dar-se conta do absurdo das palavras que acabava de proferir.
– Eu devo ser terrivelmente vaidosa – admitiu ela, com um suspiro.
– Porque gostas de coisas bonitas? – Ele curvou-se, aproximando perigosamente os lábios do
ouvido dela. – O que dirás sobre mim, então? Que gosto de te ver vestida com coisas bonitas?
Ou despida. Céus, quando vira a costureira dobrar o vestido na caixa, não pudera deixar de estudar
discretamente os atilhos que apertavam o vestido. Não seria naquela noite que faria amor com a
mulher, disso, infelizmente, tinha a certeza. Ainda estava muito fraco e era demasiado orgulhoso para
correr o risco de um fiasco.
Porém, isso não o impedia de a desejar. E jurou a si mesmo que um dia lhe despiria aquele vestido
lentamente, desembrulhando-a como um presente. Deitá-la-ia na cama, afastar-lhe-ia as coxas e...
– Edward?
Ele pestanejou para voltar à realidade e viu nela uma expressão preocupada.
– Estás um pouco afogueado – disse ela, levando as costas da mão à testa dele. – Tens febre?
– Está calor hoje – mentiu ele. – Não achas?
– Na verdade, não.
– Tu não estás a usar um casaco de lã – contrapôs ele, desabotoando e tirando a casaca vermelha
do uniforme militar. – Decerto irei sentir-me melhor se me sentar perto da janela.
Ela observou-o com curiosidade, o vestido ainda pressionado contra o corpo.
Quando ele se sentou na cadeira, ela sugeriu:
– Não queres abrir a janela?
Sem uma palavra, ele inclinou-se e abriu a janela.
– Tens a certeza de que estás bem?
– Muito bem – assegurou ele.
Sentiu-se um idiota, e provavelmente também parecia um idiota, mas valera a pena, só para ver a
expressão de Cecilia ao admirar o vestido.
– É maravilhoso – disse ela, olhando para o vestido, mas agora a sua expressão era quase... triste?
Não, ele devia estar enganado.
– Passa-se alguma coisa, Cecilia?
– Não – respondeu ela com ar ausente, a atenção ainda no vestido. Depois, pestanejou e encarou-o.
– Não, nada... É só que... eu tenho de...
Edward observou-a um momento, intrigado com aquela mudança repentina de atitude.
– Cecilia?
– Eu tenho de ir buscar uma coisa – anunciou ela, em tom firme.
– Está bem – demorou-se ele.
Ela pegou na bolsa de mão e correu para a porta. Em seguida, parou, a mão na maçaneta.
– É só um minuto. Ou alguns minutos, mas não demoro.
– Cá estarei quando voltares.
Ela dirigiu-lhe um breve aceno, lançando um olhar nostálgico para o vestido agora estendido na
cama, e depois saiu.
Perplexo, Edward manteve os olhos na porta, tentando perceber o que acabara de acontecer. O pai
sempre lhe dissera que as mulheres eram um mistério. Talvez Cecilia achasse que também tinha de
lhe comprar um presente. Que tontinha! Devia saber que não era necessário.
Ainda assim, isso não impediu Edward de se perguntar o que ela escolheria para ele.
Levantou-se, fechou parte da janela e depois acomodou-se na cama. Não tinha intenção de
adormecer, mas quando o sono tomou conta dele...
Tinha um sorriso de satisfação nos lábios.
*
Oh, por favor, por favor, espero que ele esteja lá!
Cecilia desceu a rua a correr, rezando para que o carrinho do vendedor de fruta ainda estivesse na
esquina da Broad Street com a Pearl Street, onde o vira naquela manhã.
Pensara que a história do baile do governador tivesse ficado resolvida havia dois dias, quando não
conseguiram encontrar uma costureira que pudesse fazer um vestido a tempo. Se ela não tivesse
vestido, não poderia ir à festa. Era tão simples quanto isso.
Porém, Edward tivera de encontrar o vestido mais bonito da história dos vestidos e, santo Deus,
como tivera vontade de chorar perante a injustiça, porque queria muito usar aquele vestido.
Ela não podia ir ao baile do governador. Haveria demasiadas pessoas. Era impossível limitar a
mentira ao pequeno círculo atual, se fosse apresentada a toda a sociedade nova-iorquina.
Cecilia mordeu o lábio. Apenas uma coisa poderia impedi-la de ir ao baile do governador. Seria
horrível, mas ela estava desesperada.
Desesperada ao ponto de comer um morango.
Sabia o que aconteceria e não seria bom de se ver. Primeiro, a sua pele ficaria coberta de manchas,
manchas tão espetaculares que, se o capitão do porto a visse, imediatamente a colocaria em
quarentena por varíola. E a comichão ia ser insuportável. Ainda tinha duas cicatrizes nos braços da
última vez que tinha comido um morango acidentalmente e se coçara ao ponto de sangrar.
A seguir, viria o embrulhar do estômago. E, como acabara de comer uma boa refeição mesmo antes
de Edward chegar com o vestido, o mal-estar tomaria proporções épicas.
Durante vinte e quatro horas, ficaria reduzida a um estado deplorável: uma mescla de inchaço,
comichão e vómito. Mas depois recuperaria. Talvez ficasse enjoada por alguns dias, mas acabaria
por recuperar. Contudo, se Edward alguma vez a tivesse achado atraente...
Bem, rapidamente ficaria curado disso.
Virou a esquina para a Pearl Street, os olhos procurando, frenéticos. O vendedor de fruta ainda lá
estava.
Graças a Deus! Cecilia correu como louca e estacou de repente em frente ao carrinho de Mr.
Hopchurch.
Objetivo do dia: envenenar-se.
A que ponto chegara!
– Muito boa tarde – cumprimentou Mr. Hopchurch. – Em que posso servi-la?
Os olhos de Cecilia não deviam refletir o pânico que sentia, uma vez que o homem não recuara de
susto.
Ela examinou a mercadoria. Sendo o fim do dia, já não sobrava muito. Algumas curgetes, várias
espigas de milho que cresciam tão bem ali na América e, num canto, um morango rubro, o maior e
mais monstruoso que Cecilia já vira. Interrogou-se por que ainda ali estaria àquela hora tardia.
Teriam os outros clientes adivinhado o que ela já sabia? Que aquela pirâmide escarlate invertida,
pontilhada de amarelo, não passava de uma pequena bomba de miséria e desespero?
Cecilia engoliu em seco. Tinha de ter coragem.
– É um morango muito grande – disse ela, olhando para o fruto com aversão nauseante.
O estômago já dava voltas só de pensar em comê-lo.
– É verdade! – respondeu Mr. Hopchurch, com entusiasmo. – Já viu um tão formidável? A minha
mulher estava muito orgulhosa dele.
– Eu compro-o – disse Cecilia, quase se engasgando com as palavras.
– Não pode levar só um. Eu vendo-os à meia dúzia – explicou o vendedor.
Era por essa razão, sem dúvida, que não vendera aquele monstro.
– Dê-me seis, nesse caso – disse Cecilia, com um aceno de cabeça resignado.
Ele agarrou no grande morango pela coroa de folhas verdes.
– Tem uma cesta?
Ela olhou para as mãos. Que palerma era, nem tinha pensado nisso!
– Não importa – disse ela. Afinal de contas não precisava de seis, especialmente com um de
tamanho tão colossal. – Eu pago seis, mas levo só o grande.
Mr. Hopchurch olhou-a como se ela fosse louca, mas tinha demasiado bom senso para a contrariar.
Depois de aceitar o dinheiro, pousou o morango gigante nas mãos de Cecilia.
– Acabadinho de colher. Depois, volte e diga-me se gostou.
Convencida de que, se o fizesse, a notícia não lhe agradaria, Cecilia assentiu, agradeceu e virou a
esquina, à procura de um sítio tranquilo.
Céus, agora teria de o comer!
Teria sido assim que a Julieta de Shakespeare se sentira, antes de beber a poção? O corpo
rebelava-se contra a ingestão de algo que sabia ser tóxico. E o corpo de Cecilia sabia que aquele
morango representava quase o mesmo que cicuta.
Encostando-se a um edifício para se apoiar, aproximou o morango da boca e, apesar dos protestos
do estômago, do nariz e de todo o corpo, deu uma dentada.
*
C ecilia rapidamente voltou ao normal, com exceção de algumas cicatrizes nas pernas, onde não
conseguira evitar coçar. Retomou a busca por Thomas, na maioria das vezes acompanhada por
Edward. Ele dera-se conta de que algum exercício moderado o ajudava a recuperar as forças,
portanto, quando o calor excessivo abrandava, ele pegava em Cecilia pelo braço e os dois
palmilhavam a cidade em busca de informações.
E a apaixonarem-se.
Ou, pelo menos, ela estava a apaixonar-se. Cecilia recusava-se a imaginar se Edward sentiria o
mesmo, embora fosse óbvio que gostava da companhia dela.
E de que a desejava fisicamente.
Ele adquirira o hábito de a beijar para lhe desejar boa noite, para lhe dizer bom dia e, às vezes,
para lhe dizer boa tarde. Com cada carícia, a cada olhar trocado, ela sentia-se afundar um pouco
mais numa mentira de sua própria autoria.
Oh, meu Deus, como se arrependia!
Ela podia ser feliz com aquele homem. Podia ser mulher dele, ter filhos dele e levar uma vida
maravilhosa...
A questão é que tudo não passava de uma mentira. E, quando se desmoronasse, ela não conseguiria
escapar engolindo um morango.
Objetivo do dia: parar de se apaixonar.
Nunca um dos seus objetivos fora tão inatingível. Nem mais destinado a um coração partido.
Já havia pequenos sinais de que Edward começava a recuperar a memória. Certa manhã, enquanto
vestia o uniforme, virara-se para Cecilia e dissera:
– Há muito tempo que não faço isto.
Cecilia, que lia o livro de poesia que ele trouxera de casa, olhou para cima e perguntou:
– O quê?
Ele ficou em silêncio um momento, franzindo o sobrolho como se ainda estivesse a construir o
pensamento.
– Vestir o uniforme.
Cecilia usou uma fita para marcar a página e fechou o livro.
– Vestes o uniforme todas as manhãs.
– Não, antes disso. – Mais uma vez, fez uma pausa e pestanejou algumas vezes antes de
acrescentar: – Eu não usava uniforme no Connecticut.
Cecilia engoliu em seco e tentou esconder a apreensão.
– Tens a certeza?
Edward baixou o olhar e passou a mão direita pela casaca vermelha que o definia como um
soldado do Exército de Sua Majestade.
– De onde é que isto veio?
Cecilia levou um momento para entender o que ele estava a perguntar.
– A casaca? Estava na igreja.
– Mas eu não a tinha vestida quando fui levado para lá.
Cecilia percebeu com inquietação que era uma afirmação, não uma pergunta.
– Não sei – respondeu ela. – Talvez não. Não me lembrei de fazer a pergunta.
– Não podia estar a usá-la – concluiu Edward. – Estava demasiado limpa.
– Talvez alguém a tenha mandado lavar?
Ele abanou a cabeça.
– Devíamos perguntar ao coronel Stubbs.
– Claro – murmurou ela.
Ele não respondeu, mas Cecilia sabia o que significava: a mente dele estava num turbilhão, a tentar
delinear os contornos de um quebra-cabeças a que ainda faltavam muitas peças. Ele estava de pé, em
frente à janela, o olhar ausente, a mão a tamborilar na perna, e Cecilia não podia fazer nada além de
esperar. De repente, ele pareceu ficar alerta e, virando-se num gesto brusco, declarou:
– Lembrei-me de outra coisa.
– Do quê?
– Ontem, quando percorríamos a Broad Street, um gato passou por mim.
Cecilia não disse nada. Se tinha passado um gato, ela não notara.
– Fez aquilo que os gatos costumam fazer – continuou Edward –, esfregou a cabeça contra a minha
perna. Então lembrei-me de que havia um gato.
– No Connecticut?
– Sim. Não sei porquê, mas acho que... acho que me fazia companhia.
– Um gato – repetiu ela.
Ele anuiu.
– Provavelmente não significa nada, mas...
A voz esmoreceu e o olhar voltou a ficar distante.
– Isso significa que começas a recordar-te – disse Cecilia, baixinho.
Edward demorou um momento a libertar-se da expressão distante.
– Sim.
– Pelo menos, o gato é uma lembrança feliz – observou ela.
Ele olhou-a com ar inquisitivo e ela explicou:
– Podias ter-te lembrado de ter sido mordido. Ou arranhado. – Levantou-se da cama. – No entanto,
sabes que um animal te fez companhia enquanto estavas sozinho.
A voz de Cecilia embargou-se e ele deu um passo em direção a ela.
– Isso conforta-me – admitiu ela.
– O facto de eu não estar sozinho?
Ela assentiu.
– Sempre gostei de gatos – declarou ele, com ar ausente.
– Ainda mais agora, imagino.
Ele fitou-a com um meio sorriso.
– Vamos recapitular aquilo de que me lembro. Eu não estava a usar o uniforme – começou ele a
enumerar, com os dedos. – Havia um gato.
– Ontem, disseste que tinhas estado num barco – lembrou Cecilia.
Enquanto caminhavam ao longo do rio, a maresia havia despertado uma memória. Ele tinha estado
num barco, dissera-lhe. Não um navio, algo mais pequeno, uma embarcação concebida para se
manter perto da costa.
– Contudo – prosseguiu Cecilia, refletindo mais agora do que no dia anterior –, terias de apanhar
um barco, certo? Caso contrário, como terias chegado a Manhattan? Não há ponte para este lado da
ilha. E não me parece que tenhas atravessado a nado.
– Verdade – murmurou ele.
Cecilia estudou-o um momento e não pôde deixar de rir.
– O que foi?
– Ficas com uma expressão engraçada quando estás a tentar lembrar-te de alguma coisa.
– Ah, sim? – respondeu ele, como se tentasse ser sarcástico, mas ela sabia que era a brincar.
– Sim. Ficas mais ou menos assim...
Ela franziu o sobrolho e assumiu um olhar vago. Desconfiava que a sua imitação não era perfeita e,
na verdade, um homem mais suscetível poderia ter pensado que estava a troçar dele.
– Pareces transtornada – comentou ele, olhando-a fixamente.
– Queres dizer que tu pareces transtornado – revidou ela, acenando com a mão à frente do rosto e
acrescentando: – Sou o teu espelho.
Edward soltou uma gargalhada e puxou-a para si.
– Eu nunca vi nada tão encantador ao espelho, acredita em mim.
Ela não evitou um sorriso, mesmo que soasse um alarme na sua mente. Era tão fácil ser feliz com
ele, tão fácil ser ela mesma. Mas aquela não era a vida dela, e ela não era mulher dele. Era um papel
que desempenhava e que teria de acabar um dia.
No entanto, por mais que se esforçasse por não se sentir demasiado confortável no papel de Mrs.
Rokesby, era impossível resistir ao sorriso de Edward. Ele puxou-a para ainda mais perto, até
encostar o nariz ao dela.
– Já te disse como me alegra que estivesses ao lado da minha cama quando acordei? – disse ele, a
voz cheia de felicidade.
Ela abriu a boca e tentou falar, mas as palavras recusaram-se a sair da garganta. Não, ele não lhe
dissera aquilo, pelo menos não tão diretamente. Ela abanou a cabeça, incapaz de desviar o olhar do
dele e deixou-se mergulhar no conforto daqueles olhos tão azuis.
– Se eu soubesse – continuou ele –, desconfio que te teria dito para não vires. Aliás, tenho a
certeza de que te teria proibido de vires. – Os lábios torceram-se com certa ironia, a meio caminho
entre a careta e o sorriso. – Não que isso te tivesse influenciado, imagino.
– Não era tua mulher quando embarquei – recordou Cecilia, em voz baixa.
Nesse instante, sentiu como se morresse um pouco por dentro, ao perceber que aquela era talvez a
declaração mais honesta que faria o dia todo.
– Não, creio que não – disse Edward. Inclinando a cabeça para o lado, franziu o sobrolho da
maneira que ela acabara de apontar, mas o olhar permaneceu alerta. – E, agora, o que foi? – inquiriu,
quando percebeu que ela o observava atentamente.
– Nada. É só que estavas quase com a mesma expressão de antes. O sobrolho franziu-se da mesma
maneira, mas os olhos não ficaram vítreos.
– Fazes-me parecer muito atraente.
Ela soltou uma risada e respondeu:
– Não, apenas interessante. – Fez uma pausa, tentando pôr em palavras o que estava a pensar. –
Creio que desta vez não estavas a tentar lembrar-te de nada, pois não?
Ele confirmou abanando a cabeça.
– Estava apenas a refletir sobre as grandes questões da vida.
– Oh, para com isso! Que estavas realmente a pensar?
– Na verdade, estava a pensar que devíamos ir consultar a lei que rege os casamentos por
procuração. Devíamos saber a data exata da nossa união, não achas?
Cecilia tentou concordar, mas foi incapaz.
Edward puxou os punhos da camisa e alisou as mangas do casaco.
– Tu foste a segunda a assinar, por isso, deve ter sido quando o capitão celebrou a tua parte da
cerimónia.
Cecilia limitou-se a assentir fracamente, o único gesto possível, considerando o pedregulho que
sentia na garganta.
Porém, Edward não pareceu perceber a sua angústia, ou se percebeu, deve tê-la interpretado como
emoção associada à memória do casamento, porque a beijou rapidamente nos lábios, endireitou-se e
disse:
– É hora de começar o dia. Tenho um encontro com o coronel Stubbs lá em baixo daqui a poucos
minutos e não posso atrasar-me.
– Tens um encontro com o coronel Stubbs e não me disseste?
Edward franziu o nariz.
– Não disse? Foi um lapso, certamente.
Cecilia não duvidou, pois Edward não guardava segredos dela. Ele era extraordinariamente aberto
e, quando lhe pedia opinião, dava realmente atenção à resposta dela. Decerto tinha pouca escolha;
com um buraco tão grande na memória, tinha de confiar no julgamento dela.
Exceto que... não imaginava muitos homens a fazerem o mesmo. Ela sempre se orgulhara de o pai
lhe ter posto nas mãos a administração da casa, mas no fundo sabia que não o fizera por a considerar
particularmente capaz, mas porque simplesmente não queria lidar com tais detalhes.
– Queres vir comigo? – perguntou Edward.
– Ao teu encontro com o coronel? – Cecilia ergueu as sobrancelhas. – Imagino que ele não vá
apreciar a minha presença.
– Mais uma razão para vires. Fico a saber sempre mais coisas quando ele está de mau humor.
– Nesse caso, como posso recusar?
Edward abriu a porta e afastou-se para a deixar passar.
– Acho estranho que ele não se mostre mais comunicativo – disse Cecilia. – Quer certamente que
recuperes a memória.
– Não me parece que ele seja propositadamente reservado – contrapôs Edward.
Ele pegou-a pelo braço, enquanto desciam as escadas, mas, ao contrário da semana anterior, o
gesto era de cavalheirismo e não por precisar de apoio. Era notável como melhorara em tão poucos
dias. Ainda sofria de dores de cabeça e, claro, havia a questão da amnésia, mas a pele perdera
aquela palidez acinzentada tão preocupante e, embora ainda não estivesse apto a caminhar cinco
léguas, já era capaz de permanecer ativo o dia todo sem ter de descansar.
Por vezes, Cecilia achava que ele ainda parecia cansado, mas ele limitava-se a responder que era
apenas a preocupação dela como sua mulher.
Mas dizia-o com um sorriso.
– Creio que é função dele guardar segredos – continuou Edward, referindo-se ainda ao coronel
Stubbs.
– Mas certamente não de ti.
– Talvez – admitiu Edward, com um ligeiro encolher de ombros. – Mas pensa assim: ele não sabe
onde estive nem o que fiz nos últimos meses. Não é certamente do interesse do exército britânico
confiar-me informações sensíveis, de momento.
– Isso é um absurdo!
– Agradeço o teu apoio incondicional – disse ele, com um sorriso irónico quando chegaram ao
andar térreo –, mas o coronel Stubbs tem a obrigação de se certificar da minha lealdade antes de
abrir o jogo.
Cecilia não estava convencida.
– Não posso acreditar que ele ousasse duvidar de ti – resmungou ela.
A honestidade e a honra de Edward eram intrínsecas à sua natureza e ela não entendia como é que
alguém poderia não o ver.
O coronel Stubbs, com a sua carranca habitual, encontrava-se de pé junto à porta quando eles
entraram na sala de jantar.
– Como vai, Rokesby? – cumprimentou ele, logo seguido de: – Ah, a sua mulher também veio.
– Ela estava com fome – respondeu Edward.
– Claro – disse o coronel, cujas narinas estremeceram de irritação.
Cecilia reparou no maxilar cerrado, quando ele os levou até uma mesa próxima.
– O pequeno-almoço é excelente aqui – disse Cecilia, com doçura.
O coronel fixou-a por um momento, depois resmungou qualquer coisa entredentes que poderia ter
sido uma resposta, antes de se virar para Edward.
– Tem novidades? – perguntou Edward.
– Isso pergunto-lhe eu.
– Infelizmente não, mas a Cecilia tem sido muito útil nos meus esforços por recuperar a memória.
Já percorremos a cidade várias vezes em busca de pistas.
Cecilia colocou um sorriso plácido no rosto, que o coronel Stubbs ignorou.
– Não vejo como espera encontrar pistas aqui em Nova Iorque. É no tempo que passou no
Connecticut que precisa de se concentrar.
– Sobre esse assunto – disse Edward em tom conciliador –, estive a pensar... Eu estava de
uniforme?
– Perdão? – reagiu o coronel, num tom brusco e distraído, obviamente irritado com a mudança
abrupta de assunto.
– Lembrei-me de um facto muito estranho esta manhã. Pode não ter importância, mas, quando
estava a vestir a casaca, ocorreu-me que não o fazia há muito tempo.
– Não estou a perceber – respondeu o coronel, com ar confuso.
– A casaca, no hospital... esta que trago, na verdade – explicou Edward, passando a mão pela
manga. – De onde é que ela veio? É minha, obviamente, mas creio que não a tinha comigo.
– Eu guardei-lha – resmungou o coronel Stubbs em resposta. – Era melhor não ser rotulado de
«casaca vermelha» no Connecticut.
– Mas eles não são leais à coroa? – interveio Cecilia.
– Os rebeldes estão por toda a parte – retorquiu Stubbs, atirando-lhe um olhar irritado. –
Espalham-se como o sal e é diabolicamente difícil extirpá-los.
– Extirpá-los? – repetiu Cecilia.
A escolha de palavras incomodou-a. Embora estivesse em Nova Iorque há pouco tempo, até ela
percebia que o cenário político era mais complicado do que os jornais de Inglaterra sugeriam. Tinha,
e sempre teria, orgulho em ser uma súbdita britânica, mas não podia ignorar que certas
reivindicações dos habitantes das colónias eram legítimas.
Contudo, antes de poder dizer mais alguma coisa (o que não pretendia, aliás), sentiu a mão de
Edward pousar na sua coxa debaixo da mesa. Era um aviso para que se calasse.
– Peço desculpa – murmurou ela, obedecendo e baixando os olhos para o colo –, só não conhecia a
expressão.
Era doloroso proferir tal mentira, mas havia uma certa vantagem em deixar o coronel acreditar que
ela não era muito inteligente. Além do mais, a última coisa que desejava era que ele duvidasse da sua
lealdade à Coroa.
– Nesse caso, posso perguntar se a minha falta de uniforme no Connecticut significa que eu estava
lá como espião? – inquiriu Edward, reconduzindo a conversa com destreza.
– Eu não diria isso – resmungou o coronel.
– O que diria então? – questionou Cecilia, mordendo a língua quando a mão de Edward lhe voltou
a apertar a coxa.
Era difícil ficar calada. O coronel era exasperante, largando apenas pedacinhos de informação,
sem nunca dizer a Edward o que ele precisava de saber.
– Peço desculpa – murmurou, novamente.
Edward deu-lhe um olhar frio, alertando-a mais uma vez para não intervir. Tinha de parar de
antagonizar o coronel Stubbs, e não apenas pelo bem de Edward. O coronel também conhecia
Thomas e, embora ainda não tivesse sido de grande ajuda na sua busca até agora, podia vir a ser útil
no futuro.
– Espionagem é um termo tão desagradável – disse o coronel Stubbs, depois de aceitar o pedido
de desculpas de Cecilia com um aceno de cabeça. – Certamente não é assunto que se discuta à frente
de uma senhora.
– Batedor então – sugeriu Edward. – Seria uma descrição mais exata?
Stubbs assentiu com um resmungo.
Os lábios de Edward estreitaram-se numa linha rígida, muito difícil de interpretar. Não parecia
zangado, pelo menos, não tão zangado como Cecilia se sentia. Ela tinha a impressão de que ele
estava a filtrar meticulosamente as informações na mente e a organizá-las para referência futura.
Tinha uma maneira muito lógica de apreender o mundo, característica que devia tornar a sua lacuna
de memória ainda mais difícil de suportar.
– Percebo que está numa posição extremamente delicada – disse Edward, juntando as mãos num
gesto contemplativo. – Mas, se realmente quer que eu me lembre dos acontecimentos dos últimos
meses, terá de me ajudar a lembrar-me deles. – Debruçou-se sobre a mesa e acrescentou: – Estamos
do mesmo lado.
– Nunca duvidei da sua lealdade – disse o coronel e, após um aceno cortês de Edward,
acrescentou: – Mas também não lhe posso fornecer a informação que gostaria de ouvir.
– Quer dizer que sabe o que o Edward estava lá a fazer? – interveio Cecilia.
– Cecilia – advertiu Edward, mas ela ignorou-o.
– Se sabe o que ele esteve a fazer, tem de lhe dizer – insistiu ela. – Recusar-se é uma crueldade da
sua parte. Isso poderia ajudá-lo a recuperar a memória.
– Cecilia! – advertiu Edward novamente, desta vez de forma mais dura.
Mas era-lhe impossível ficar calada. Ignorando o aviso de Edward, olhou fixamente para o coronel
Stubbs e disse:
– Se quer que ele se lembre do que aconteceu no Connecticut, conte-lhe o que sabe.
O coronel susteve o olhar dela e declarou:
– Tudo isso é muito bonito, Mrs. Rokesby, mas já pensou que qualquer informação da minha parte
pode influenciar as memórias do seu marido? Não posso arriscar poluir as memórias dele com factos
que podem ou não ser relevantes.
– Eu...
O espírito combativo de Cecilia esmoreceu um pouco quando percebeu que o coronel tinha uma
certa razão. Ainda assim, a paz de espírito de Edward não tinha também valor?
Linhas profundas formaram-se nos cantos da boca de Edward.
– Permita-me pedir desculpas em nome da minha mulher – disse ele.
– Não – reagiu Cecilia. – Eu é que peço desculpa. É-me difícil ver a situação do seu ponto de
vista.
– Eu sei que quer que o seu marido melhore – disse o coronel Stubbs, com inesperada gentileza.
– Pois quero – disse ela, com fervor. – Mesmo se...
Sentiu o coração parar. Mesmo se isso significasse a sua própria queda? Estava a viver num
castelo de cartas e, assim que Edward recuperasse a memória, o castelo desmoronar-se-ia. Quase se
riu da ironia. Insistia em discutir com o coronel e lutava por um objetivo que lhe partiria o coração.
Mas não conseguia evitar. Mais do que tudo, ela queria que Edward melhorasse. Mais do que... o
pensamento fê-la parar... Mais do que encontrar Thomas?
Não, não era possível. Talvez ela fosse tão cruel como o coronel Stubbs, ocultando factos que
podiam ajudar Edward a recuperar a memória. Mas Thomas era irmão dela. Edward iria entender.
Pelo menos, assim se queria convencer.
– Cecilia?
A voz de Edward chegou-lhe como se atravessasse um longo túnel.
– Minha querida? – Pegou na mão dela e esfregou-a. – Estás bem? Tens as mãos geladas.
Lentamente, Cecilia voltou ao presente e viu a expressão preocupada de Edward.
– Parecias engasgada – explicou ele.
Ela olhou para o coronel, que também a observava com preocupação.
– Peço desculpa – disse ela, entendendo que o ruído sufocante devia ter sido um soluço. – Não sei
o que me deu.
– É normal – disse o coronel Stubbs, para surpresa de Cecilia e de Edward, a julgar pela
expressão dele. – É mulher dele, afinal. Jurou diante de Deus que poria o bem-estar do seu marido
acima de tudo o resto.
Cecilia esperou um momento antes de perguntar:
– É casado, coronel Stubbs?
– Fui – respondeu ele simplesmente e, pelo tom, era fácil de adivinhar o que ele queria dizer.
– Sinto muito – murmurou ela.
O coronel, geralmente tão estoico, engoliu em seco e os olhos lampejaram de tristeza.
– Foi há muitos anos – disse ele –, mas penso nela todos os dias.
Impulsivamente, Cecilia estendeu a mão e pousou-a na dele.
– Tenho a certeza de que ela sabe disso.
O coronel assentiu brevemente e depois fez um ruído, entre o ronco e a fungadela, para se
recompor. Cecilia retirou a mão, pois o momento tinha passado e deixá-la mais tempo seria
embaraçoso.
– Eu tenho de ir – anunciou o coronel Stubbs e virou-se para Edward. – Espero que saiba que torço
para que recupere a memória. E não apenas porque pode ter informações cruciais para a nossa causa.
Não sei o que é ter perdido meses da vida, mas imagino que não nos deixe a alma em paz.
Edward concordou com um aceno de cabeça e ambos se levantaram.
– Se ajudar, capitão Rokesby – continuou o coronel –, posso dizer-lhe que foi enviado para o
Connecticut para reunir informações sobre os portos.
Edward franziu o sobrolho, intrigado, e comentou:
– As minhas capacidades cartográficas estão longe de serem excecionais.
– Julgo que o objetivo não era o levantamento de mapas, embora eles sejam certamente úteis.
– Coronel? – disse Cecilia, levantando-se por sua vez. Quando ele se virou, perguntou: – O
Edward estava lá para investigar algo específico? Ou era uma missão para reunir informações mais
gerais?
– Lamento, mas não posso revelar.
Era algo específico, então, o que lhe parecia mais lógico.
– Obrigada – disse ela, despedindo-o com uma reverência.
O coronel ergueu o chapéu e despediu-se.
– Minha senhora, capitão Rokesby.
Ele virou-se, mas, antes mesmo de avançar um passo, deu meia-volta e perguntou a Cecilia:
– Soube mais notícias do seu irmão, Mrs. Rokesby?
– Não – respondeu ela. – O major Wilkins tem sido de grande ajuda, no entanto. Mandou o
assistente dele verificar os registos do hospital.
– E?
– Nada, infelizmente. Não há qualquer menção a ele.
O coronel assentiu devagar.
– Se há pessoa capaz de o encontrar, é o major Wilkins.
– Iremos a Haarlem em breve – informou Cecilia.
– A Haarlem? – Stubbs olhou para Edward. – Porquê?
– Por causa da enfermaria – explicou Edward. – Sabemos que o Thomas foi ferido. É possível que
tenha sido transportado para lá.
– Mas decerto não teria ficado lá internado.
– Alguém pode saber dele – disse Cecilia. – Vale a pena perguntar.
– Certamente – concordou o coronel Stubbs, com um último aceno para os dois. – Desejo-vos boa
sorte.
Cecilia seguiu-o com os olhos e, assim que ele saiu, virou-se para Edward.
– Desculpa.
Ele arqueou as sobrancelhas num gesto interrogativo.
– Não devia ter aberto a boca – acrescentou ela. – Eras tu a fazer as perguntas, não eu.
– Não te preocupes – tranquilizou-a Edward. – Fiquei aborrecido a princípio, mas conseguiste dar
muito bem a volta à situação. Eu não sabia que ele era viúvo.
– Não sei o que me levou a perguntar – confessou Cecilia.
Edward sorriu, pegou na mão dela e deu-lhe uma palmadinha afetuosa.
– Vamos sentar-nos e comer. Como disseste, o pequeno-almoço daqui é excelente.
Cecilia deixou-se levar até à mesa. Sentia-se estranhamente abalada, como se estivesse à deriva.
Comer far-lhe-ia bem, esperava. Sempre fora o tipo de pessoa que precisa de um bom pequeno-
almoço para enfrentar o dia.
– Devo admitir que adorei ter ao meu lado uma defensora tão acérrima – comentou Edward,
sentando-se à frente dela.
Cecilia levantou a cabeça de repente. Defensora acérrima parecia-lhe um elogio pouco merecido.
– Não sei se estás ciente da força que tens – continuou ele.
– Obrigada – murmurou ela, engolindo em seco.
– Vamos a Haarlem hoje?
– Hoje? – espantou-se ela. – Tens a certeza?
– Sinto-me muito melhor e acho-me capaz de fazer a viagem até ao Norte da ilha.
– Só se tiveres a certeza...
– Tratarei de arranjar uma carruagem depois do pequeno-almoço. – Ele fez sinal ao estalajadeiro
para que lhes trouxesse comida e voltou-se para Cecilia. – Vamos concentrar-nos no Thomas esta
manhã. Para ser sincero, preciso de uma pausa da minha própria missão. Pelo menos, por hoje.
– Obrigada. Não antecipo que fiquemos a saber nenhuma novidade, mas não vou descansar se não
tentar.
– Concordo. Nós devíamos... Ah, bacon!
O rosto de Edward iluminou-se quando o estalajadeiro pousou um prato de torradas e bacon no
centro da mesa. Já não estavam quentes, mas não fazia diferença, face ao seu apetite agora voraz.
– Confessa – disse Edward, mordendo um pedaço de bacon com uma visível falta de boas
maneiras à mesa –, já comeste alguma coisa melhor?
– Melhor? – repetiu Cecilia, duvidosa.
– É bacon! Que tristezas pode haver na vida quando se come bacon?
– É uma filosofia interessante.
Ele brindou-a com um sorriso impertinente.
– Está a funcionar comigo neste momento.
Cecilia rendeu-se ao bom humor e serviu-se. Se o bacon era realmente sinónimo de felicidade,
quem era ela para duvidar?
– Sabes – começou ela, com a boca meio cheia, pois, se Edward podia dispensar as boas
maneiras, ela também podia –, para dizer a verdade, este bacon não é grande coisa.
– Ainda assim, faz-te sentir melhor, certo?
Cecilia parou de mastigar, inclinou a cabeça e refletiu.
– Tens razão – teve de admitir.
Mais uma vez, ele abriu aquele sorriso impertinente.
– Geralmente, tenho.
Porém, ali a devorarem alegremente o pequeno-almoço, Cecilia chegou à conclusão de que não era
o bacon que a fazia feliz, mas o homem sentado do outro lado da mesa.
Se, ao menos, Edward fosse verdadeiramente seu...
Capítulo 13
Apequena morte.
Os franceses provavelmente sabiam do que falavam quando se lembraram dessa expressão.
Porque aquela tensão que se acumulava no corpo de Cecilia... a necessidade pulsante e inexorável de
algo que nem sequer entendia... era como se estivesse a ser levada em direção a algo de que talvez
não saísse viva.
– Edward... – arquejou ela. – Eu não posso...
– Podes, sim – assegurou-lhe ele.
Porém, não foram as palavras dele que absorveu, mas a voz que lhe vibrava na pele enquanto os
lábios dele lhe exploravam, indolentes, os seios.
Ele tocava-a e beijava-a em lugares que ela própria nunca ousara explorar. Estava enfeitiçada. Ou
melhor, era como se tivesse despertado. Depois de viver vinte e dois anos com aquele corpo, só
agora descobria o seu propósito.
– Relaxa – sussurrou Edward.
Teria ele enlouquecido? Não havia nada de relaxante no que ele lhe fazia, nada que a fizesse querer
relaxar! Ela queria agarrar e cravar as unhas e até gritar na luta para chegar ao cume.
Só que não sabia o que era aquele cume ou o que estava do outro lado.
– Por favor – implorou ela.
Não lhe importava não saber por que implorava, porque ele sabia ou, pelo menos, esperava que
sim. Se não, ela iria matá-lo.
Com a boca e os dedos, ele levou-a ao cume da paixão. Então, quando elevou as ancas numa
súplica silenciosa, ele mergulhou um dedo nela e passou a língua pelo seio.
A onda de prazer fê-la gritar o nome dele e arquear o corpo da cama, todos os músculos contraídos
em uníssono, como uma sinfonia feita de uma única nota interminável. Então, depois de o seu corpo
atingir um auge impossível de tensão, voltou a cair no colchão e, finalmente, Cecilia conseguiu
respirar.
Edward retirou o dedo e deitou-se de lado, apoiado num cotovelo. Quando ela recuperou energia
suficiente, abriu os olhos e viu-o a observá-la com um sorriso de plena satisfação.
– O que aconteceu comigo? – perguntou ela, com voz entrecortada.
Ele afastou-lhe uma madeixa transpirada, depois inclinou-se e beijou-a na testa.
– A pequena morte – murmurou ele.
– Ah! – sussurrou ela, resumindo naquela sílaba todo um mundo maravilhoso. – Foi o que pensei.
O comentário pareceu diverti-lo, mas daquela maneira deliciosa que fazia Cecilia corar de prazer.
Ela fizera-o sorrir. Ela fazia-o feliz. Decerto que no Dia do Juízo Final isso teria algum valor.
Contudo, ainda não haviam consumado o casamento.
Ela fechou os olhos. Tinha de parar de pensar assim. Não havia casamento. Aquilo não era uma
consumação, era...
– Que se passa? – perguntou ele.
Ela abriu os olhos. Edward fitava-a com aqueles olhos azuis tão brilhantes na penumbra do
anoitecer.
– Cecilia? – insistiu ele, não exatamente preocupado, mas ciente de que algo havia mudado.
– Eu só estou... – ela esforçou-se por encontrar algo para dizer que fosse verdade – deslumbrada.
O pequeno sorriso que ele lhe dirigiu ficaria para sempre gravado no coração de Cecilia.
– Isso é bom, não é?
Ela conseguiu assentir. Era uma coisa boa, pelo menos por agora. Mas na semana seguinte ou no
mês seguinte, quando a vida dela ruísse...
Preocupar-se-ia com isso quando a hora chegasse.
Ele acariciou-lhe a face com as costas da mão, sem tirar os olhos dela, como se tentasse ler-lhe a
alma.
– Em que pensas?
Em que pensava ela? No quanto o queria. No quanto o amava. Que, mesmo sabendo ser errado, era
como se se sentisse casada com ele e que, mesmo sendo só por uma noite, queria que fosse verdade.
– Beija-me – disse ela, de repente, pois precisava de assumir o controlo daquele momento.
Ela queria estar no presente, não a pensar num futuro incerto, num mundo onde o sorriso de
Edward já não lhe pertenceria.
– Um bocadinho autoritária, de repente – provocou ele.
Ignorando a provocação, ela repousou uma mão na nuca dele e repetiu:
– Beija-me. Agora.
Atraiu-o para si e, quando os lábios se uniram, a fome dela explodiu. Beijou-o como se ele fosse a
sua única salvação, o ar, a água e o alimento de que precisava. Beijou-o com tudo o que lhe ia na
alma. Era uma declaração e um pedido de perdão. Era uma mulher a agarrar-se à felicidade enquanto
podia.
Edward retribuiu o beijo com igual ardor.
Cecilia nunca saberia que instinto fora aquele, ou como as suas mãos adivinhavam o que fazer, e
que a levou a puxar Edward para si e a deslizar a mão para as calças que ele ainda usava.
Deixou escapar uma exclamação frustrada quando ele se afastou e saiu da cama para se livrar
daquela peça de roupa incomodativa. Ela não conseguia tirar os olhos do corpo dele. Deus do céu,
ele era lindo. Lindo e de masculinidade muito imponente, a ponto de ela arregalar os olhos de
apreensão.
Sem dúvida ele notara a expressão dela, porque riu e, quando voltou para a cama, a sua expressão
era selvagem e feroz.
– Não te preocupes, eu caibo – sussurrou-lhe, em voz rouca, ao ouvido.
Ele deslizou a mão entre as coxas dela e só então Cecilia se deu conta de como estava muito quente
e húmida. E carente também. Será que ele a levara ao pico de propósito? Para se assegurar de que
estava pronta para o receber?
Se assim fora, resultara, porque ela sentia uma fome irresistível por ele, um desejo de o ter dentro
de si, de unir o seu corpo ao dele para sempre.
Sentiu-o posicionar-se à entrada da sua feminilidade e susteve a respiração.
– Vou ser cuidadoso – prometeu ele.
– Não sei se quero que sejas.
Um tremor percorreu o corpo de Edward e, quando ela olhou para ele, viu-lhe o maxilar cerrado
num esforço por se controlar.
– Não digas essas coisas – conseguiu ele articular.
Cecilia arqueou o corpo contra o dele, querendo-o mais perto ainda.
– Mas é a verdade.
Ele avançou um pouco e ela sentiu-se abrir para ele.
– Estou a magoar-te? – perguntou ele.
– Não – respondeu ela. – Mas é uma sensação muito... estranha.
– Estranha mas agradável ou estranha mas desagradável?
Cecilia pestanejou, tentando analisar o que sentia.
– Apenas estranha.
– Não sei se gosto dessa resposta – murmurou ele, deslizando as mãos sob ela, abrindo-a ainda
mais; ela arquejou quando ele a penetrou mais um pouco. – Não quero que seja estranho. – Com os
lábios encostados ao ouvido dela, sussurrou: – Acho que vamos ter de fazer isto com muita
frequência.
Ele parecia diferente, quase selvagem, e Cecilia apercebeu-se subitamente do seu próprio poder
feminino. Ela era a responsável por aquilo. Aquele homem – aquele homem grande e poderoso –
estava prestes a perder o autodomínio por causa do desejo que sentia por ela.
Cecilia nunca se sentira tão poderosa.
Porém, o que sentia agora era muito diferente do que experimentara uns momentos antes, quando
Edward a arrastara para uma espiral de desejo usando a mão e a boca. Agora, ela tinha de se
acostumar a senti-lo, a acolher o seu tamanho. Não era doloroso, mas também não era tão
maravilhoso como antes. Pelo menos, para ela.
Para Edward, porém... Ela viu no rosto dele o mesmo prazer que ela experimentara antes. Ele
estava a adorar e aquela revelação era o suficiente para a encher de felicidade.
Mas a ele não, aparentemente, porque franziu o sobrolho e parou o movimento.
Cecilia fitou-o com ar interrogativo.
– Assim não vai funcionar – disse ele, depositando-lhe um beijo no nariz.
– Não te dou prazer?
Ela pensava que sim, mas talvez estivesse enganada.
– Se me desses mais prazer, eu estaria perdido – respondeu ele, em tom irónico. – O problema não
é esse. Eu é que não estou a dar-te prazer.
– Mas deste. Tu sabes que sim.
Ela corou ao dizer as palavras, mas não suportava a ideia de ele pensar que ela estava insatisfeita.
– Julgas que não podes chegar ao pico da paixão duas vezes?
Cecilia arregalou muito os olhos.
Edward deslizou a mão entre os corpos de ambos e começou a acariciar gentilmente o ponto mais
sensível da feminilidade dela.
– Oh! – exclamou Cecilia.
Apesar de saber para onde se dirigia a mão dele, a sensação foi tão intensa, que ela não conseguiu
evitar um gritinho de surpresa.
– Assim está melhor – murmurou ele.
Ela sentiu o desejo renascer. A pressão e a urgência tornaram-se tão irresistíveis que mal notou que
Edward se afundava mais e mais dentro de si. Quando pensava que não poderia haver mais dele, ele
recuava e mergulhava de novo, invadindo-lhe ainda mais a alma.
Ela não sabia ser possível sentir-se tão próxima de outro ser humano, nem que, estando tão
próxima, podia ansiar por ainda mais proximidade.
Arqueou o corpo e agarrou-se aos ombros dele, quando os seus corpos se uniram totalmente.
– Meu Deus! – suspirou ele. – É como se chegasse finalmente a casa.
Ele fitou-a, e Cecilia julgou ter visto uma humidade suspeita nos olhos dele antes de ele lhe
capturar a boca num beijo tórrido.
Então, ele começou a mover-se dentro dela.
Os movimentos começaram lentos e regulares, criando uma fricção maravilhosa dentro dela.
Depois, a respiração dele tornou-se irregular e o ritmo inicial acelerou vertiginosamente. Cecilia
sentiu-se acelerar também, numa corrida até ao precipício, embora não da mesma maneira que
Edward, até que ele mudou de posição e a arrebatou, ao tomar um mamilo com os lábios. Cecilia não
pôde evitar um grito de choque à impossível ligação entre os seios e o ventre. Mas a verdade é que
sentira a carícia lá... Santo Deus, quando os dedos dele começaram a acariciar o outro mamilo,
sentira-a entre as coxas e os músculos internos começaram a contrair-se.
– Sim! – gemeu Edward em voz rouca. – Oh, meu Deus! Sim, aperta-me!
Ele agarrou-lhe o seio com mais firmeza, algo de que ela nunca teria imaginado poder gostar, mas
adorou, e um prazer súbito e penetrante tomou mais uma vez conta de todo o corpo de Cecilia.
– Oh, meu Deus! – continuou Edward. – Oh, meu Deus!
Os movimentos dele tornaram-se quase desvairados, as investidas poderosas e, de repente,
Edward pareceu ficar quase imóvel, suspenso num último impulso, antes de gemer o nome dela e
desmoronar.
– Cecilia – repetiu numa voz sussurrada –, Cecilia.
– Estou aqui – murmurou ela, desenhando círculos preguiçosos ao longo da coluna dele.
– Cecilia – continuou ele. E mais uma vez: – Cecilia.
Ela adorou que ele parecesse incapaz de dizer outra coisa que não o nome dela. Ela própria estava
na mesma situação.
– Estou a esmagar-te – murmurou ele.
Era verdade, mas ela não se importava. Gostava de sentir o peso dele.
Ele rolou para o lado, mas não completamente, deixando parte do corpo sobre o dela.
– Nunca mais quero parar de te tocar – disse ele, numa voz incrivelmente sonolenta.
Ela virou a cabeça para ele. Os olhos estavam fechados e, se ainda não tinha adormecido, não
demoraria muito. A respiração já começava a regularizar e as suas longas e espessas pestanas
repousavam preguiçosamente nas faces.
Ela percebeu que nunca o vira adormecer. Há uma semana que partilhava o quarto com ele, mas,
todas as noites, entrava para o seu lado da cama e, cautelosa, virava-se de costas. Ouvia-o respirar,
quase sustendo a própria respiração no esforço de se manter imóvel e silenciosa. Esperava
testemunhar o momento em que ele adormecesse, mas, infelizmente, era ela que adormecia sempre
primeiro.
De manhã, quando ela abria os olhos e bocejava, ele já estava levantado e vestido, ou quase.
Poder observá-lo assim era, portanto, um prazer inesperado. Ele não tinha um sono agitado, mas a
boca movia-se ligeiramente, como se sussurrasse uma oração. Tinha muita vontade de lhe acariciar a
face, mas não queria acordá-lo. Apesar da recente demonstração de força e resistência, ele ainda não
estava totalmente recuperado e precisava de descansar.
Por isso, contemplou-o e ficou à espera. Esperou pelo sentimento de culpa que acabaria por voltar
e esmagar-lhe o coração. Queria mentir a si mesma e convencer-se de que ele a seduzira, mas sabia
que não fora assim. Sim, ela tinha sido levada pela paixão, mas podia tê-lo impedido de ir mais
longe a qualquer momento. Só tinha de abrir a boca e confessar os seus pecados.
Levou a mão à boca para abafar uma risada amarga. Se lhe tivesse revelado a verdade, Edward
teria saltado da cama num ápice. Teria ficado furioso e, provavelmente, tê-la-ia arrastado até ao
primeiro padre que encontrasse, para se casarem de imediato. Era o tipo de homem para agir assim.
Contudo, ela não podia deixá-lo fazer isso. Ele estava praticamente noivo daquela rapariga em
Inglaterra: Billie Bridgerton. Cecilia sabia que ele gostava muito dela. Sorria sempre, quando falava
dela. Sempre! E se estivessem realmente noivos? Se estivessem prometidos um ao outro, mas ele se
tivesse esquecido disso quando perdeu a memória?
E se ele a amasse? Também podia ter-se esquecido.
Embora Cecilia sentisse o veneno da culpa a espalhar-se agora pelas veias, não conseguia
arrepender-se do que acontecera entre os dois. Um dia, tudo o que lhe restaria daquele homem seriam
lembranças, portanto, queria que elas fossem tão maravilhosas quanto possível.
E se da união dele resultasse uma criança...
Levou a mão ao ventre, onde a semente dele talvez já estivesse a criar raízes. Se houvesse uma
criança...
Não, era improvável. A sua amiga Eliza já estava casada havia um ano quando engravidou. E a
mulher do vigário ainda havia mais tempo. Porém, Cecilia tinha o conhecimento suficiente para
entender que não poderia continuar a desafiar o destino. Talvez pudesse dizer a Edward que tinha
receio de engravidar tão longe de casa. Não seria mentira dizer-lhe que não gostava da ideia de
atravessar o oceano enquanto esperava um filho.
Ou com uma criança nos braços. Santo Deus, a viagem já era difícil sozinha! Embora não tivesse
sofrido de enjoos, a viagem era interminável e, às vezes, assustadora. Fazê-la com uma criança?
Estremeceu. Seria um inferno.
– Que se passa? – perguntou Edward.
Ela virou-se ao som da voz dele.
– Pensei que estavas a dormir.
– E estava. – Ele bocejou. – Ou quase. – Uma das pernas dele ainda a prendia, por isso, ele
moveu-a e puxou o corpo dela contra o dele, encaixando as costas dela no seu peito. – Parecias triste
– comentou.
– Não digas disparates.
Ele deu-lhe um beijo na nuca.
– Algo te incomoda, eu percebi – insistiu ele.
– Enquanto dormias?
– Enquanto eu quase dormia. Sentes alguma dor?
– Não sei – respondeu Cecilia, com sinceridade.
– Vou buscar um pano.
Ele soltou-a e saiu da cama. Cecilia virou o pescoço e observou-o atravessar o quarto até ao
lavatório. Como podia ele sentir-se tão confortável com a própria nudez? Seria uma característica
masculina?
– Aqui está – disse ele, voltando com um pano húmido e começando a limpá-la com gestos
carinhosos.
Era demasiado e Cecilia quase irrompeu em lágrimas.
Quando ele terminou, pousou o pano e voltou a deitar-se ao lado dela, apoiando-se num cotovelo e
começando a brincar com o cabelo dela com a outra mão.
– Diz-me o que te incomoda – murmurou ele.
Reunindo toda a coragem, ela engoliu em seco e disse:
– Não quero engravidar.
A mão de Edward parou e Cecilia sentiu-se aliviada pela pouca luz do quarto, pois não queria ver
a expressão no rosto dele.
– Pode já ser tarde – lembrou ele.
– Eu sei. Eu só...
– Não queres ser mãe?
– Claro que quero! – exclamou ela, espantada com a própria veemência. Era verdade. Pensar em
ter um filho de Edward... o desejo era tão forte que quase a deixava em lágrimas. – Só não quero
ficar grávida aqui. Na América. Eu sei que há médicos e parteiras, mas pretendo voltar para
Inglaterra um dia. E não quero fazer a travessia com um bebé.
– Não – concordou ele, pensativo. – Não, claro.
– Ou grávida – acrescentou ela. – E se acontece alguma coisa?
– As coisas acontecem em qualquer sítio, Cecilia.
– Eu sei. Mas penso que me sentiria mais confortável em casa. Em Inglaterra.
Nada daquilo era mentira, apenas não era toda a verdade.
Edward continuava a acariciar-lhe o cabelo em movimentos suaves e reconfortantes.
– Pareces muito perturbada – murmurou ele.
Não sabendo o que dizer, ela permaneceu em silêncio.
– Não precisas de te preocupar tanto – continuou ele. – Como eu disse, pode ser demasiado tarde,
mas podemos tomar algumas precauções.
– Podemos?
O seu coração deu um pulo, antes de Cecilia se lembrar de que tinha problemas muito maiores do
que aquele.
Edward sorriu e, tocando-lhe no queixo, virou-lhe o rosto para o seu.
– Ah, sim – respondeu. – Fazia-te já uma demonstração, mas precisas de descansar. Dorme. Tudo
ficará mais claro amanhã.
Cecilia não acreditou, mas isso não a impediu de adormecer.
Capítulo 15
N a manhã seguinte, Edward acordou, como de costume, antes de Cecilia. Ela não se mexeu
quando ele saiu da cama, provando estar extremamente cansada.
Ele sorriu, feliz por ser o responsável por essa fadiga.
Ela ia acordar com fome. O pequeno-almoço dela costumava ser a refeição mais importante do dia,
e Edward pensou que um mimo seria apropriado. Algo doce. Pãezinhos com passas, talvez. Ou
speculaas.
Ou ambos. Porque não?
Depois de se vestir, escreveu um bilhete, que deixou na mesa, a informar Cecilia de que voltaria
em breve. As duas padarias não ficavam longe e ele estaria de volta em menos de uma hora, se não
encontrasse ninguém conhecido.
A Rooijakkers ficava mais perto, por isso, foi lá primeiro, sorrindo para si mesmo quando o sino
tilintou acima da sua cabeça, ao entrar na loja. Não foi Mr. Rooijakkers que apareceu, mas a filha
dele, a de cabelo ruivo com quem Cecilia simpatizava. Edward lembrava-se dela, antes de ter
partido para o Connecticut. Ele e Thomas sempre preferiram aquela padaria à inglesa ao virar da
esquina.
Com um sorriso nostálgico, Edward lembrou-se de que Thomas gostava de doces, tal como a irmã.
– Bom dia – disse a mulher, limpando as mãos enfarinhadas no avental.
– Bom dia – cumprimentou Edward, com um leve inclinar de cabeça.
Lamentou não se lembrar do nome dela. Desta vez, pelo menos, não podia culpar a amnésia pelo
esquecimento, pois sempre tivera dificuldade em lembrar-se de nomes.
– É bom vê-lo de novo – disse a mulher. – Já não vinha cá há muito tempo.
– Há meses – confirmou ele. – Estive fora da cidade.
Ela assentiu e, com um sorriso alegre, comentou:
– É difícil para nós ter clientes regulares, com o exército sempre a mandar-vos para todo o lado.
– Foi só até ao Connecticut – respondeu ele.
Ela riu-se e perguntou:
– E como está o seu amigo?
– O meu amigo? – repetiu Edward.
Sabia que ela estava a referir-se a Thomas, contudo, a pergunta incomodou-o. Já ninguém
perguntava por ele ou, quando o fazia, era em tom baixo e constrangido.
– Também já não o vejo há algum tempo – disse Edward.
– Que pena! – Ela inclinou a cabeça num gesto amigável e acrescentou: – Para nós dois. Ele era um
dos meus melhores clientes. Gostava muito de bolos.
– A irmã dele também gosta – murmurou Edward.
Quando ela o fitou com curiosidade, ele explicou:
– Casei-me com a irmã dele.
Por que razão o tinha contado à mulher da padaria? Provavelmente porque o fazia feliz. Estava
casado com Cecilia. E, agora, ela era realmente sua mulher.
A filha de Mr. Rooijakkers ficou em silêncio um momento, franzindo o sobrolho, antes de dizer:
– Peço desculpa, não me lembro do seu nome...
– Capitão Edward Rokesby. E sim, a senhora conhece a minha mulher, Cecilia.
– Claro! Perdoe-me, não fiz a ligação quando ela me disse o nome. É muito parecida com o irmão,
não é? Não tanto os traços, mas...
– As expressões, sim – terminou Edward por ela.
– Nesse caso, deve querer speculaas – adivinhou ela, com um sorriso.
– Exatamente. Uma dúzia, por favor.
– Acho que nunca fomos apresentados – continuou ela, dobrando-se para pegar num tabuleiro de
biscoitos de uma prateleira. – Eu sou Mrs. Beatrix Leverett.
– A Cecilia fala com muita estima de si.
Edward aguardou pacientemente enquanto Mrs. Leverett contava os biscoitos. Estava ansioso por
ver a reação de Cecilia quando lhe servisse o pequeno-almoço na cama. Mais exatamente, biscoitos
na cama, o que era ainda melhor.
O único problema, talvez, seriam as migalhas.
– O irmão de Mrs. Rokesby ainda está no Connecticut?
O agradável devaneio de Edward foi imediatamente interrompido.
– Perdão?
– O irmão de Mrs. Rokesby – repetiu ela, erguendo os olhos para ele. – Pensei que ele tinha ido
consigo para o Connecticut.
Edward petrificou.
– Sabe disso?
– Não deveria saber?
– O Thomas estava comigo no Connecticut – repetiu Edward.
Dissera as palavras em voz baixa, como se pusesse a afirmação à prova, experimentando-a como
um novo casaco.
Assentava-lhe bem?
– Estou enganada? – perguntou Mrs. Leverett.
– Eu...
Que responder? Não queria entrar em detalhes sobre a sua condição diante de uma quase
desconhecida, mas se ela tivesse alguma informação sobre Thomas...
– Estou com uma certa dificuldade em lembrar-me de algumas coisas – admitiu, finalmente.
Levou a mão à cabeça, logo abaixo da aba do chapéu. O inchaço diminuíra, mas continuava
sensível ao toque. – Fui ferido na cabeça.
– Oh, sinto muito! – lamentou Mrs. Leverett, a expressão cheia de compaixão. – Deve ser
terrivelmente frustrante.
– Sim – admitiu ele. No entanto, não era do ferimento que queria falar, por isso, olhou-a fixamente
e continuou: – Mas estava a contar-me do capitão Harcourt.
Ela encolheu os ombros ligeiramente.
– Eu não sei grande coisa. Só que os dois foram para o Connecticut há alguns meses. Vieram cá
comprar mantimentos, mesmo antes de partirem.
– Mantimentos...
– O senhor comprou pão – disse ela, com uma risada. – O seu amigo preferiu doces. Eu avisei-o
de que...
– ... os speculaas não eram bons para levar de viagem – terminou Edward por ela.
– Sim – concordou ela. – Esmigalham-se com facilidade.
– Foi exatamente isso que aconteceu – confirmou Edward em voz baixa. – Todos eles.
E, de repente, tudo voltou à sua mente.
*
– Stubbs!
O coronel ergueu os olhos da mesa, visivelmente aturdido pelo brado furioso de Edward.
– Qual é o problema, capitão Rokesby?
Qual era o problema? O problema? Edward tentou controlar a fúria. Saíra da padaria holandesa
sem as compras e praticamente correra pelas ruas de Nova Iorque para chegar ao quartel-general
britânico, onde ficava o escritório do coronel Stubbs. De punhos cerrados e o sangue a latejar-lhe
nas têmporas como se estivesse no campo de batalha, apenas a ameaça de tribunal marcial o impedia
de atacar o seu superior.
– O coronel sabia! – cuspiu Edward, a voz trémula de raiva. – Sabia sobre o Thomas Harcourt.
O coronel Stubbs corou violentamente e levantou-se devagar.
– A que se refere, exatamente?
– Ele foi comigo para o Connecticut. Porque não mo disse antes?
– Eu expliquei-lhe que não podia correr o risco de influenciar as suas memórias – respondeu
Stubbs, friamente.
– Isso é um absurdo e você sabe disso! – protestou Edward. – Diga-me a verdade.
– Essa é a verdade – sibilou Stubbs, contornando Edward, para fechar a porta do escritório. –
Acha que gostei de mentir à sua mulher?
– À minha mulher – repetiu Edward.
Também se tinha lembrado disso. Não podia alegar ter recuperado toda a memória, mas lembrava-
se de quase tudo, e tinha a certeza de que nunca participara numa cerimónia de casamento por
procuração. E de que Thomas nunca lhe pedira para o fazer.
Edward não sabia o que levara Cecilia a tal logro, mas só podia lidar com um desastre de cada
vez. Com raiva mal contida, dirigiu-se novamente a Stubbs:
– Tem dez segundos para me explicar por que mentiu sobre o Thomas Harcourt.
– Pelo amor de Deus, Rokesby – respondeu o coronel, passando a mão pelo cabelo ralo –, não sou
um monstro. A última coisa que eu queria era dar falsas esperanças à sua mulher.
– Falsas esperanças? – repetiu Edward, petrificado.
O coronel Stubbs olhou-o fixamente e afirmou:
– Não sabe.
– Creio que já estabelecemos que há muita coisa que não sei – disse Edward, a voz entrecortada de
tensão. – Então, por favor, esclareça-me.
– O capitão Harcourt morreu – declarou o coronel, abanando a cabeça com sincero pesar. – Foi
baleado no estômago. Lamento.
– O quê?! – Edward cambaleou para trás e deixou-se cair na cadeira mais próxima. – Como?
Quando?
– Em março – respondeu Stubbs. Atravessou o gabinete e abriu um pequeno armário, de onde tirou
uma garrafa de brandy. – Menos de uma semana depois da vossa partida. Ele enviou uma missiva a
pedir um encontro connosco, em New Rochelle.
Edward observou o coronel servir com mãos trémulas o líquido âmbar em dois copos.
– Quem foi lá?
– Só eu.
– Foi sozinho – disse Edward, num tom de franca descrença.
Stubbs entregou-lhe um copo.
– Era o que tinha de ser feito.
Edward exalou longamente, à medida que as memórias recentes e simultaneamente velhas se iam
desenredando na mente. Thomas e ele tinham ido juntos para o Connecticut, com a missão de estudar
a viabilidade de um ataque naval a partir da zona portuária. A ordem fora dada pelo próprio
governador Tryon. Ele escolhera Edward pessoalmente, porque precisava de um homem de
confiança, e Edward escolhera Thomas pelo mesmo motivo.
Mas os dois tinham viajado apenas alguns dias juntos, pois Thomas regressara a Nova Iorque com
as informações que tinham obtido sobre Norwalk, e Edward seguira para leste em direção a New
Haven.
Fora a última vez que Edward o vira.
Edward levou o copo aos lábios e esvaziou-o de um trago.
Stubbs imitou-o e continuou:
– Posso concluir, então, que recuperou a memória?
Edward assentiu brevemente. O coronel ia interrogá-lo imediatamente, sabia disso, mas não diria
nada até obter respostas sobre Thomas.
– Porque é que mandou o general Garth enviar uma carta à família a dizer que ele estava apenas
ferido?
– Naquele momento, ele estava apenas ferido – respondeu o coronel. – Foi baleado duas vezes,
com alguns dias de intervalo.
– O quê?! – exclamou Edward, tentando dar sentido às palavras. – Que diabo aconteceu?
Com uma espécie de grunhido de desânimo, o coronel inclinou-se sobre a mesa.
– Eu não podia trazê-lo para cá, se duvidava da lealdade dele.
– O Thomas Harcourt não era um traidor!
– Não havia maneira de saber! – defendeu-se Stubbs. – Que mais podia eu pensar? Fui a New
Rochelle, tal como ele tinha pedido, e, antes que ele pudesse dizer outra coisa além do meu nome,
começaram a disparar na minha direção.
– Na direção dele – corrigiu Edward, pois, afinal, fora Thomas a levar um tiro.
Stubbs tragou um segundo copo de brandy e logo se serviu de mais um.
– Não sei a quem eram dirigidos os tiros! Tanto quanto sei, eu podia ser o alvo e falharam. Sabe
perfeitamente que a maioria dos colonos é uma corja de incompetentes. Metade nem é capaz de fazer
pontaria.
Edward permaneceu em silêncio, absorvendo a informação. No fundo, sabia que Thomas não era
um traidor, mas entendia que o coronel Stubbs – que não o conhecia bem – tivesse dúvidas.
– O capitão Harcourt foi ferido no ombro – continuou Stubbs, em tom grave. – A bala trespassou.
Não foi difícil estancar o sangue, mas ele estava com muitas dores.
Edward fechou os olhos e respirou fundo, mas não serviu para se acalmar. Já vira muitos homens
com ferimentos de bala.
– Eu levei-o para Dobbs Ferry – prosseguiu Stubbs. – Temos um pequeno posto avançado perto do
rio. Não é mesmo atrás das linhas inimigas, mas fica perto.
Edward conhecia bem Dobbs Ferry. Os britânicos usavam o local como ponto de encontro, desde a
Batalha de White Plains, três anos antes.
– O que aconteceu então?
– Voltei para Nova Iorque – respondeu o coronel Stubbs, encarando Edward sem expressão.
– Abandonou-o lá?! – exclamou Edward, revoltado.
Que tipo de homem abandonava um soldado ferido no meio do nada?
– Ele não estava sozinho. Tinha três homens a guardá-lo.
– Manteve-o prisioneiro?
– Foi principalmente para sua própria segurança. Eu não sabia se estávamos a impedi-lo de fugir
ou a impedir os rebeldes de o matar. Pelo amor de Deus, Rokesby – acrescentou Stubbs, fitando
Edward com crescente impaciência –, não sou eu o inimigo!
Edward manteve o silêncio.
– Seja como for, ele não estava em condições de fazer a viagem até Nova Iorque – justificou
Stubbs, abanando a cabeça. – Tinha demasiadas dores.
– O coronel podia ter ficado com ele.
– Não, não podia – retorquiu Stubbs. – Eu tinha de voltar para o quartel-general, onde era
esperado. Ninguém sabia sequer que eu estava fora. Acredite em mim, eu só estava à espera de
arranjar uma desculpa para ir buscá-lo. Foram apenas dois dias. – Fez uma pausa, engolindo em
seco, e, pela primeira vez desde a chegada de Edward, o coronel empalideceu. – Mas, quando lá
cheguei, eles estavam mortos.
– Eles?
– Harcourt e os homens que o guardavam. Os quatro.
Edward olhou para o copo que tinha na mão. Esquecera-se dele. Manteve os olhos fixos na mão
enquanto o pousava, como se isso pudesse ajudá-lo a travar o tremor dos dedos.
– O que aconteceu?
– Não sei. – Stubbs fechou os olhos e o rosto refletiu a atrocidade da lembrança. Depois,
murmurou: – Foram todos baleados.
O estômago de Edward revolveu-se de náusea.
– Foi uma execução?
– Não – respondeu Stubbs, abanando a cabeça. – Havia sinais de luta.
– Até o Thomas? Ele não estava prisioneiro?
– Não estava amarrado. Era óbvio que ele também lutara, mesmo ferido. Mas...
Stubbs interrompeu-se e desviou o olhar.
– Mas o quê?
– Era impossível dizer de que lado tinha lutado.
– Não devia duvidar da lealdade dele – afirmou Edward, em voz baixa.
– Não? O capitão nunca duvidou?
– Nunca! – bradou Edward e levantou-se abruptamente.
– Pois bem, eu duvidei – revidou Stubbs. – O meu maldito trabalho é suspeitar de toda a gente. –
Levou a mão à testa, apertando as têmporas com o polegar e o dedo médio. – Estou tão farto disto
tudo.
Edward recuou. Nunca tinha visto o coronel, nem qualquer outra pessoa, naquele estado.
– Sabe o que isso faz a um homem? – perguntou Stubbs, quase num sussurro. – Não confiar em
ninguém?
Edward não respondeu. Ainda estava furioso, mas não sabia mais contra quem direcionar tanta
raiva. Não contra Stubbs. Tirou o copo da mão trémula do coronel e foi até à garrafa, servindo mais
uma dose nos copos de ambos. Não importava que fossem apenas oito horas da manhã. Naquele
momento, nenhum deles precisava de se manter sóbrio.
Desconfiava até de que nenhum dos dois queria.
– Que aconteceu aos corpos? – indagou Edward em voz baixa.
– Enterrei-os.
– Todos?
– Não foi um dia agradável – murmurou o coronel, fechando novamente os olhos.
– Há testemunhas?
Stubbs levantou a cabeça, de repente.
– Não confia em mim?
– Perdoe-me – disse Edward.
Sim, confiava em Stubbs. Neste caso... e em tudo, aliás. Só não entendia por que razão o coronel
guardara segredo. Isso devia estar a matá-lo.
– Pedi ajuda para cavar as sepulturas – explicou Stubbs, numa voz exausta. – Dou-lhe os nomes
dos homens, se quiser.
Edward analisou-o demoradamente, antes de responder:
– Não é preciso. – Então, abanou a cabeça, como se o gesto pudesse ajudá-lo a pôr as ideias em
ordem. – Porque enviou aquela carta?
Stubbs pestanejou, sem perceber.
– Que carta?
– A do general Garth, a dizer que o Thomas estava ferido. Presumo que ele o tenha feito a seu
pedido.
– Como lhe disse, era verdade quando a enviámos – respondeu o coronel. – Eu queria notificar a
família dele o mais depressa possível. Um navio ia zarpar na manhã seguinte a eu o ter deixado em
Dobbs Ferry. Quando penso nisso agora... – Passou a mão pelos cabelos ralos e suspirou com
desânimo. – Fiquei tão satisfeito por conseguir mandá-la tão depressa...
– Não pensou em corrigir o erro e enviar outra carta?
– Havia demasiadas perguntas sem resposta.
– Para avisar a família?! – questionou Edward, incrédulo.
– Eu pretendia escrever-lhes quando tivéssemos mais informações – explicou Stubbs em tom
rígido. – Não esperava que a irmã atravessasse o Atlântico para o ver. Embora talvez ela tenha vindo
por sua causa.
Pouco provável.
Stubbs foi até à secretária e abriu uma gaveta.
– Tenho o anel dele.
Edward viu-o tirar uma caixa com cuidado, abri-la e pegar num anel de sinete.
– Pensei que a família quisesse ficar com isto.
Edward fitou o anel de ouro que Stubbs lhe pousara na mão. Para ser honesto, não o reconhecia,
pois nunca reparara no anel de sinete de Thomas. Sabia, no entanto, que Cecilia o reconheceria.
Ela ia ficar destroçada.
Stubbs pigarreou e perguntou:
– Que vai dizer à sua mulher?
A sua mulher. Outra vez aquela palavra. Cecilia não era sua mulher, caramba! Edward não sabia o
que ela era, mas não era sua mulher.
– Rokesby?
Edward olhou para cima. Haveria tempo para tentar entender a desonestidade de Cecilia. Por
enquanto, tentaria encontrar um pouco de bondade dentro de si e deixar que ela fizesse o luto pelo
irmão, antes de a confrontar com as mentiras.
Edward respirou fundo, encarou fixamente o coronel e declarou:
– Vou dizer à Cecilia que o irmão morreu como um herói. Vou dizer que o coronel lamenta não ter
podido contar-lhe a verdade assim que ela perguntou, por causa da natureza secreta de uma missão
de extrema importância. – Avançou um passo em direção a Stubbs e depois outro. – Vou dizer-lhe que
pretende falar com ela para lhe pedir desculpa pelo sofrimento que lhe causou e lhe entregar
pessoalmente quaisquer insígnias honoríficas que o Thomas tenha recebido a título póstumo.
– Não havia...
– Invente-as!
O coronel susteve o olhar de Edward alguns segundos antes de declarar:
– Tratarei de lhe atribuir uma medalha.
Edward assentiu e dirigiu-se para a porta, mas a voz do coronel deteve-o:
– Tem a certeza de que quer mentir à sua mulher?
Edward virou-se devagar.
– Perdão?
– Não sei muito sobre muita coisa – explicou Stubbs com um suspiro –, mas sei o que é o
casamento. Não é boa política começar a vida de casado com uma mentira.
– A quem o diz.
O coronel fitou-o com ar intrigado.
– Há alguma coisa que não me queira dizer, capitão Rokesby?
Edward abriu a porta e saiu. Só quando ficou fora do alcance de Stubbs é que resmungou baixinho:
– Mal tu sabes.
Capítulo 16
THOMAS HORATIO
– Todos os homens da minha família têm o mesmo anel de sinete – explicou Cecilia. – Cada um tem
o nome próprio gravado no interior.
– Horatio – murmurou Edward. – Eu não sabia.
– Horace era o nome do avô do meu pai – disse ela. Parecia mais calma. Uma conversa banal
tinha, por vezes, essa vantagem. – Mas a minha mãe detestava o nome. E agora...
Ela deixou escapar um riso estrangulado e depois, num gesto pouco elegante, limpou o rosto com
as costas da mão. Edward ter-lhe-ia oferecido um lenço se o tivesse, mas saíra à pressa naquela
manhã, ansioso por a surpreender com doces. Não pensara estar fora mais de vinte minutos.
– O nome do meu primo é Horace – continuou ela, esforçando-se por não revirar os olhos. – O que
queria casar comigo.
Edward baixou o olhar e reparou que estava a rodar o anel de sinete entre os dedos. Pousou-o na
mesa.
– Odeio-o! – confessou ela, com um ímpeto que fez Edward levantar a cabeça.
Os olhos dela flamejavam. Nunca poderia imaginar que uns olhos tão claros pudessem conter tanto
fogo, mas então lembrou-se de que o núcleo de uma labareda também continha matizes frios.
– Odeio-o tanto – insistiu ela. – Se não fosse por ele, eu não teria...
De repente, fungou, um som alto e repentino que, aparentemente, ela não esperava.
– Não terias o quê? – perguntou Edward, baixinho.
Um silêncio e, finalmente, ela engoliu em seco e respondeu:
– Provavelmente nunca teria vindo para cá.
– E não te terias casado comigo.
Ela levantou a cabeça e encarou-o. Se ela queria aliviar a consciência, aquele era o momento
certo. Segundo ela, só celebrara o casamento por procuração quando já estava no navio.
– Se não tivesses vindo para Nova Iorque – insistiu Edward –, quando terias casado comigo?
– Não sei – admitiu ela.
– Então talvez tenha sido melhor assim.
Perguntou-se se ela ouvia o mesmo que ele na própria voz, demasiado baixa e demasiado suave.
Estava a testá-la. Não conseguia evitar.
Ela fitou-o com um ar dúbio.
– Se o teu primo Horace não te tivesse assediado – continuou Edward –, não estaríamos casados.
Embora eu imagine...
Deixou propositadamente as palavras em suspenso, esperando que ela o incitasse.
– Imagines que...?
– Imagine que eu teria pensado que éramos casados – completou ele. – Afinal, cumpri a minha
parte da cerimónia vários meses antes. Agora que penso nisso, todo esse tempo, podia estar solteiro
e não saber.
Ele olhou para cima brevemente. Diz alguma coisa!
Mas ela manteve o silêncio.
Edward pegou no copo e tragou as últimas gotas da bebida.
– Que vai acontecer agora? – sussurrou ela.
– Não sei – respondeu ele, com um encolher de ombros.
– Ele tinha mais pertences? Além do anel?
Edward pensou no último dia antes de Thomas e ele partirem para o Connecticut. Não sabiam
quanto tempo estariam ausentes, portanto, o coronel tratara de mandar guardar os pertences de
ambos.
– O coronel Stubbs deve ter os haveres dele – disse Edward. – Vou pedir que tos entregue.
– Obrigada.
– Ele tinha um retrato teu em miniatura – disse, de repente.
– Perdão?
– Uma miniatura. Tinha-a sempre com ele. Bem, não, ele não andava sempre com ela, mas, quando
mudávamos de sítio, o Thomas tinha sempre o cuidado de ver se não se esquecia dela.
Os lábios de Cecilia tremelicaram com a sombra de um sorriso.
– Eu também tenho uma dele. Nunca ta mostrei?
Edward abanou a cabeça.
– Oh, desculpa! Devia tê-lo feito. – Deixou cair um pouco os ombros, com ar triste e indefeso. –
Os retratos foram pintados na mesma altura. Creio que eu tinha dezasseis anos.
– Sim, pareces muito jovem no retrato.
Por um momento, ela pareceu confusa, mas depois pestanejou várias vezes e disse:
– Ah, sim, viste-o, é claro. O Thomas disse-me que to tinha mostrado.
– Uma ou duas vezes – mentiu ele.
Ela não precisava de saber que ele passara horas a contemplar o retrato, a imaginar se seria
possível que ela fosse tão gentil e engraçada como nas cartas.
– Nunca achei o retrato muito parecido comigo – confessou ela. – O artista pôs-me o cabelo
demasiado claro. E o sorriso não é o meu.
Era verdade, mas concordar seria admitir que conhecia o retrato muito melhor do que a afirmação
«uma ou duas vezes» implicava.
Cecilia pegou no anel e segurou-o com as duas mãos, preso entre os polegares e os indicadores.
Fixou o olhar nele durante uma eternidade, antes de perguntar sem olhar para ele:
– Queres voltar para a estalagem?
Edward, julgando mais prudente não ficar a sós com ela, respondeu:
– Preciso de ficar sozinho agora.
– Claro – reagiu ela, demasiado depressa, e levantou-se. – Eu também.
Era mentira e ambos sabiam disso.
– Vou indo – disse ela, com um gesto escusado para a porta. – Acho que preciso de me deitar.
Ele anuiu.
– Se não te importas, eu fico.
Ela apontou fracamente para o copo vazio.
– Talvez não devesses...
Ele ergueu uma sobrancelha, desafiando-a a terminar a frase.
– Não importa – murmurou ela.
Mulher esperta.
Ela deu um passo para trás e parou.
– Queres...
Finalmente! Ela ia confessar, explicar as razões e tudo ficaria bem; ele não se odiaria e não a
odiaria a ela...
Só se apercebeu de que tinha começado a levantar-se quando as pernas bateram na mesa.
– O quê?
– Não importa – disse ela, abanando a cabeça.
– Diz-me.
Ela dirigiu-lhe um olhar velado e disse:
– Só ia perguntar se querias que fosse buscar alguma coisa à padaria. Mas creio que não quero ver
ninguém de momento, por isso... bem, prefiro ir direta para a estalagem.
A padaria.
Edward deixou-se cair na cadeira e, antes de conseguir conter-se, uma risada dura e furiosa
escapou-lhe da garganta.
Os olhos de Cecilia arregalaram-se.
– Ainda posso ir, se quiseres. Se estás com fome, eu posso...
– Não – cortou ele. – Vai para casa.
– Para casa – repetiu ela.
Ele sentiu um canto da boca subir num sorriso sem alegria.
– A Abadia de Satanás.
Ela assentiu e os lábios tremeram, como se hesitassem em devolver o sorriso.
– Para casa – voltou ela a dizer, antes de olhar para a porta e, em seguida, para ele. – Certo.
Ela hesitou. Os olhos fixaram-se em Edward, como se esperasse algo. Ansiosamente.
Mas ele não reagiu. Não tinha nada para lhe oferecer.
Então, ela foi-se embora.
E Edward pediu mais uma bebida.
Capítulo 17
Várias horas depois, Edward conseguiu, por fim, recompor-se o suficiente para regressar à
estalagem.
Para voltar para Cecilia... que não era sua mulher.
Há muito que parara de beber, portanto, estava sóbrio ou quase. Tivera bastante tempo para se
convencer de que não ia pensar nela naquele dia. O dia era dedicado a Thomas, tinha de ser. Se a
vida de Edward se ia desmoronar num só dia, estava determinado a enfrentar um desastre de cada
vez.
Não ia cismar no que Cecilia fizera ou dissera, e estava fora de questão desperdiçar energia a
pensar no que ela não dissera. Não ia pensar nisso. Não estava a pensar nisso!
Não estava.
Queria gritar-lhe. Agarrá-la pelos ombros e sacudi-la, e depois implorar para que ela lhe
explicasse porquê.
Queria livrar-se dela para sempre.
Queria amarrá-la para toda a eternidade.
Maldição! Não queria pensar nisso hoje.
Hoje, ia chorar a morte do seu amigo e ia ajudar a pessoa que não era sua mulher a chorar a morte
do irmão. Porque ele era esse tipo de homem, caramba!
Em frente ao quarto número doze, respirou fundo e agarrou a maçaneta da porta.
Talvez não fosse capaz de dar a Cecilia o consolo de que ela precisava, mas, pelo menos, podia
dar-lhe alguns dias antes de a confrontar com as mentiras. Ele nunca perdera alguém tão próximo.
Thomas era um grande amigo, mas não eram irmãos, e estava bem ciente de que a sua dor não
poderia ser comparada à de Cecilia. Mas podia imaginar. Se algo acontecesse a Andrew ou a Mary...
ou mesmo a George ou Nicholas, de quem era menos próximo...
Ficaria destruído.
Além disso, tinha muito em que pensar. Cecilia não fugiria, porque nada de bom resultava de
decisões precipitadas.
Quando abriu a porta, a luz que chegou ao corredor escuro fê-lo pestanejar. Como sempre, pensou,
antes de amaldiçoar a própria estupidez. Sempre que ele abria aquela maldita porta, era
surpreendido pelos raios de sol.
– Voltaste – disse Cecilia.
Estava sentada na cama, encostada à cabeceira, as pernas esticadas à sua frente. Ainda usava o
vestido azul, o que era lógico, já que ainda não era hora do jantar.
Ele teria de sair do quarto, quando chegasse a hora de ela vestir aquela austera camisa de dormir
branca de algodão. Decerto preferiria ter alguma privacidade para se despir.
Uma vez que não era realmente sua mulher.
Não houvera casamento por procuração. Ele não tinha assinado nenhum documento. Cecilia era a
irmã do seu melhor amigo, nada mais.
Mas o que teria ela a ganhar ao alegar ser sua mulher? Não fazia sentido. Ela não poderia prever
que ele perderia a memória. Ela podia dizer ao mundo que era casada com um homem inconsciente,
mas devia estar ciente de que, quando ele acordasse, a mentira seria descoberta.
A menos que ela tivesse arriscado... que tivesse apostado na probabilidade de ele não acordar. Se
ele morresse e todos pensassem que eram casados...
Havia coisas piores do que ser mulher de um Rokesby.
Quando voltasse para Inglaterra, os seus pais tê-la-iam recebido de braços abertos. Sabiam da
amizade entre o filho e Thomas. Aliás, conheciam-no e até o tinham convidado para celebrar o Natal
lá em casa. Não teriam motivos para duvidar das palavras de Cecilia, quando ela afirmasse estar
casada com o filho deles.
Mas tudo isso denotava uma mente calculista, algo que não batia certo com o que conhecia de
Cecilia.
Ou bateria?
Depois de fechar a porta atrás de si, Edward dirigiu-lhe um breve aceno de cabeça e foi-se sentar
na única cadeira, para tirar as botas.
– Precisas de ajuda? – perguntou ela.
– Não.
Ele baixou imediatamente os olhos, para não a ver engolir em seco. Era o que ela fazia em
situações daquelas, quando hesitava em dizer alguma coisa. Costumava adorar observá-la, admirar-
lhe a linha delicada do pescoço, a graciosa curva do ombro. Ela apertava os lábios quando engolia,
não como um beijo, mas tão perto disso que ele tinha sempre vontade de se inclinar e transformá-lo
em beijo.
Porém, hoje não tinha vontade de a observar.
– Eu...
Ao som da voz dela, ele levantou logo a cabeça.
– Que foi?
Mas ela limitou-se a abanar a cabeça e dizer:
– Não importa.
Ele susteve o olhar e ficou aliviado por a luz ter diminuído com a aproximação do anoitecer. Se
estivesse demasiado escuro para lhe ver os olhos, conseguiria não se perder neles. Podia fingir que
não eram da cor de um mar raso, ou da primeira folha nascida na primavera, no momento em que a
luz ainda se tinge das riscas laranjas da aurora.
Tirou as botas, levantou-se e foi pousá-las ao lado do baú. O silêncio no quarto era pesado e ele
sentia Cecilia a observar cada um dos seus gestos. Costumava conversar com ela, fazer-lhe perguntas
sobre a sua tarde ou, se tivessem passado o dia juntos, a comentar o que tinham visto e feito. Ela
lembrava-se de coisas que a tinham divertido e ele ria, e quando ele se virava para pendurar a
casaca no armário, perguntava-se o que seria aquele estranho formigueiro que lhe percorria o corpo.
Mas não precisava de se questionar muito tempo, porque a resposta era óbvia.
Era a felicidade.
Era o amor.
Graças a Deus, nunca lho confessara.
– Eu...
Mais uma vez, ele olhou para cima e, mais uma vez, ela começou uma frase e hesitou.
– O que foi, Cecilia?
Ela pestanejou, confusa, ao ouvir o tom dele. Não fora rude, mas fora seco.
– Não sei que fazer com o anel do Thomas – murmurou ela.
Ah, então era isso que ela queria dizer! Ele encolheu os ombros.
– Podes pô-lo num fio e usá-lo ao pescoço.
– É uma hipótese – murmurou ela, passando os dedos nervosos no cobertor gasto da cama.
– Podes guardá-lo para os teus filhos.
Os teus filhos, dissera ele sem querer, não os nossos filhos.
Teria ela notado o lapso? Provavelmente não, pois não mudara de expressão. Continuava pálida e
apática, o que se esperaria de uma mulher que acabara de saber da morte do seu amado irmão.
Quaisquer que fossem as mentiras de Cecilia, não incluíam o seu amor por Thomas. Disso, Edward
tinha a certeza.
Subitamente, sentiu-se a besta mais cruel do mundo. Ela chorava a morte do irmão. Estava a sofrer.
Ele queria odiá-la e talvez isso viesse a acontecer, mas, por enquanto, podia, pelo menos, tentar
amenizar-lhe a dor.
Com um suspiro esgotado, aproximou-se da cama e sentou-se ao lado dela.
– Desculpa – disse, deslizando o braço em volta dos ombros dela.
Ela não relaxou logo. O corpo estava tenso de tristeza e, provavelmente, de perplexidade. Ele não
se mostrara o marido amoroso que tinha sido até ao encontro com o coronel Stubbs, naquela manhã.
Tentou não pensar no que poderia ter acontecido se a notícia da morte de Thomas não tivesse vindo
acompanhada pela revelação do logro de Cecilia.
Que teria ele feito? Como teria reagido?
Teria posto o seu próprio sofrimento de lado.
Tê-la-ia consolado e apoiado.
Tê-la-ia segurado nos braços até que as lágrimas secassem e ela adormecesse e, depois, ter-lhe-ia
beijado a testa antes de a cobrir com os lençóis.
– Como posso ajudar? – perguntou em tom ríspido.
Articular aquelas poucas palavras exigia-lhe um esforço imenso e, simultaneamente, eram as
únicas que sabia dizer.
– Não sei. – A voz saiu abafada, pois ela enterrara o rosto no ombro de Edward. – Podes só... ficar
aqui? Sentado ao meu lado?
Ele assentiu. Sim, podia fazer isso, mesmo que sentisse o lento despedaçar do próprio coração.
Ficaram ali sentados durante horas. Edward mandou vir o jantar, em que nenhum dos dois tocou.
Saiu do quarto para ela vestir a camisa de noite, e quando se deitaram, ela virou-se para a parede
quando ele fez o mesmo.
Era como se a única noite de paixão nunca tivesse acontecido.
Subitamente, ele pensou em como detestava abrir a porta do quarto, por causa daquela luz intensa
para a qual nunca estava preparado.
Que idiota tinha sido. Que maldito idiota!
Capítulo 18
Esta carta é para os dois. Fico tão feliz por se terem um ao outro! A
vida torna-se mais fácil de suportar quando podemos partilhar as
nossas preocupações.
DE CECILIA HARCOURT
PARA THOMAS HARCOURT
E EDWARD ROKESBY
M ais tarde naquela manhã, Cecilia decidiu fazer uma caminhada até ao porto. Durante o
pequeno-almoço, Edward dissera-lhe que tinha um encontro com o coronel Stubbs e que não
sabia o tempo que demoraria. Ela ficaria entregue à sua sorte, talvez o dia todo. Voltara para o quarto
com a intenção de terminar de ler o livro de poemas que começara na semana anterior, mas, depois
de alguns minutos, percebeu que precisava de ir apanhar ar.
O quarto parecia-lhe demasiado pequeno e confinado, a ponto de se sentir sufocada. E, sempre que
tentava concentrar-se nas palavras impressas na página, os olhos enchiam-se de lágrimas.
Estava com os nervos à flor da pele.
Por inúmeras razões.
Por isso, decidiu que o melhor era dar um passeio. O ar fresco far-lhe-ia bem e teria menos
probabilidade de explodir em lágrimas na presença de testemunhas.
Objetivo do dia: não chorar em público.
Não lhe parecia impossível de alcançar.
O tempo estava muito agradável, não muito quente, com uma ligeira brisa marítima. O cheiro a sal
e a algas marinhas flutuava no ar, o que era uma surpresa agradável, porque, na maioria das vezes, o
vento trazia o fedor dos barcos-prisão ancorados ao largo da costa.
Cecilia vivia em Nova Iorque há tempo suficiente para entender como o porto funcionava. Os
navios chegavam quase diariamente, mas quase nunca transportavam passageiros civis. A maioria era
navios mercantes que transportavam as provisões tão necessárias para abastecer o exército britânico.
Alguns desses navios estavam equipados para acomodar passageiros que pagassem a viagem, como
fora o caso do navio em que Cecilia embarcara, em Liverpool. O principal objetivo do navio Lady
Miranda era transportar mantimentos e armas para os militares estacionados em Nova Iorque, mas
também tinha capacidade para acomodar catorze passageiros. Escusado será dizer que Cecilia teve
bastante tempo para conhecer muito bem a maioria deles durante as cinco semanas da travessia.
Pouco tinham em comum, exceto empreenderem uma viagem perigosa, num oceano imprevisível,
rumo a uma zona costeira cercada por inimigos num território em guerra.
Por outras palavras, eram todos completamente doidos.
O pensamento quase a fez sorrir. Ainda mal podia acreditar que tivera a coragem de fazer tal
travessia. É certo que fora levada pelo desespero e tinha poucas alternativas, mas ainda assim...
Estava orgulhosa de si mesma. Pelo menos, por essa decisão.
Naquele dia, vários navios estavam ancorados no porto, entre eles o navio Rhiannon, que Cecilia
soubera pertencer à mesma frota que o Lady Miranda. Provinha de Cork, na Irlanda. A mulher de um
dos oficiais que costumavam jantar na estalagem chegara a Nova Iorque nesse navio. Cecilia não a
conhecia pessoalmente, mas a sua chegada à cidade havia sido foco de muita alegria e comentários.
Com tanto falatório que reinava na sala de refeições da estalagem à hora do jantar, era impossível
não saber.
Caminhou até ao cais, deixando-se guiar pelo enorme mastro do Rhiannon. Conhecia perfeitamente
o caminho, mas parecia-lhe quase uma fantasia ser levada até lá usando o seu método de navegação
primitivo. Há quanto tempo estaria o Rhiannon em Nova Iorque? Há menos de uma semana, se não
estava enganada, o que significava que provavelmente ficaria atracado por mais alguns dias, antes de
regressar ao mar. Os porões tinham de ser descarregados e, depois, preenchidos com nova carga.
Sem falar nos marinheiros, que mereciam passar algum tempo em terra, após uma viagem tão longa.
Quando Cecilia chegou ao porto, o mundo pareceu abrir-se diante dela como uma flor na
primavera. O sol do meio-dia surgiu com força, livre dos obstáculos dos edifícios altos. E mesmo
que as docas não estivessem em mar aberto, a presença da água dava à terra uma impressão de
infinito. Brooklyn era bem visível à distância, e Cecilia sabia a rapidez com que um navio podia
atravessar a baía e chegar ao oceano Atlântico.
A paisagem era muito bonita, mesmo que fosse demasiado diferente das paisagens do seu país para
ficar permanentemente gravada no seu coração. Ainda assim, gostava dela, especialmente da maneira
como a água se transformava em ondas com cristas de espuma, que depois batiam no paredão com
uma impaciência renovada.
Ali, o oceano era cinzento, mas, mais perto do horizonte, escurecia e assumia um azul profundo e
insondável. Às vezes, quando estava agitado, o mar tornava-se verde.
Mais uma coisa que nunca teria sabido se não se tivesse aventurado para fora do seu mundinho
seguro no Derbyshire. Com toda a sinceridade, estava feliz por ter vindo. Partiria com uma tristeza
profunda, por vários motivos, mas tinha valido a pena. A experiência fizera dela uma pessoa
melhor... Não, uma pessoa mais forte.
Uma pessoa melhor não teria sustido uma mentira durante tanto tempo.
Ainda assim, a sua vinda fora uma coisa boa. Para si mesma, e talvez para Edward também. A
febre dele subira perigosamente, dois dias antes de ele acordar. Ela mantivera-se a seu lado toda a
noite, a tentar aliviar-lhe o ardor da pele com panos frios. Nunca saberia se lhe salvara a vida, mas,
se o fizera, então tudo teria valido a pena.
Tinha de se agarrar a essa ideia, pois seria o seu consolo pelo resto da vida.
De repente, percebeu que já estava a pensar em partir. Baixou os olhos para a barriga. Ainda não
sabia se estava grávida, mas, provando-se que não, tinha de começar a preparar-se para a viagem.
Daí a sua ida ao porto. Não tinha pensado na razão por que os seus passos a levavam até ali.
Agora, no entanto, enquanto observava dois estivadores a carregarem caixas para o porão do
Rhiannon, era-lhe evidente que estava ali para saber informações.
Quanto ao que faria quando voltasse para casa... Teria muito tempo para pensar sobre isso no seu
camarote no navio.
– Se faz favor, senhor! – chamou ela o homem que supervisionava o carregamento. – Quando
partem?
Ele ergueu as sobrancelhas espessas e, fazendo um gesto com a cabeça na direção do navio, disse:
– Refere-se ao Rhiannon?
– Sim. Vai voltar para a Grã-Bretanha?
Cecilia sabia que muitos navios faziam um desvio pelas Índias Ocidentais, embora, segundo sabia,
normalmente o fizessem na viagem de ida para a América do Norte.
– Para a Irlanda – confirmou ele. – Para Cork. Partimos na sexta-feira ao fim do dia, se o tempo
estiver bom.
– Sexta-feira – murmurou ela. Faltavam poucos dias. – Aceitam passageiros? – perguntou, mesmo
sabendo que assim fora na viagem para oeste.
– Sim – respondeu ele, com um curto aceno de cabeça. – Pretende um lugar?
– É possível.
A resposta pareceu diverti-lo.
– É possível? Não devia já saber se quer ou não?
Cecilia não se dignou a responder. Dirigiu-lhe um olhar frio, do tipo que um dia pensara ser
condizente com a mulher do filho de um conde, até que ele apontou para outro homem pouco mais
adiante.
– Pergunte ao Timmins. Ele deve saber se temos espaço.
– Obrigada.
Cecilia caminhou em direção a dois homens que estavam junto à proa do navio. Um tinha as mãos
nas ancas, enquanto o outro apontava para a âncora. A atitude de ambos não indicava que a conversa
fosse urgente, por isso, Cecilia aproximou-se.
– Com licença. Qual dos senhores é Mr. Timmins?
O que apontara para a âncora tirou o chapéu em cumprimento.
– Sou eu, minha senhora. Como posso ajudar?
– Aquele senhor ali atrás – e fez um gesto para o sítio de carga – disse-me que poderia haver
espaço para mais um passageiro.
– Homem ou mulher?
– Mulher. – Ela engoliu em seco. – Eu.
Ele assentiu. O rosto dele agradou a Cecilia. Tinha uma expressão honesta.
– Temos espaço para uma mulher, mas é um camarote duplo – explicou ele.
– Claro.
De qualquer forma, duvidava que pudesse pagar um camarote individual. Até um duplo seria muita
despesa, mas ela tinha sido cuidadosa e poupada, pensando exatamente que teria de pagar a viagem
de regresso. Tivera de se sacrificar, claro. As suas finanças já estavam quase esgotadas, antes de
Edward acordar. Nunca passara tanta fome, mas conseguira sobreviver com uma refeição por dia.
– Posso saber o preço, senhor?
Quando ele lhe disse o custo da viagem, Cecilia sentiu o coração parar. Ou talvez acelerar, porque
a passagem era quase uma vez e meia mais cara do que ela pagara para vir para Nova Iorque. Era
mais do que ela tinha poupado. Não sabia porque era mais caro navegar para este do que para oeste.
Talvez porque os armadores se aproveitassem da situação. Os nova-iorquinos eram leais à Coroa e
Cecilia imaginou que muitos estavam mais desesperados por deixar Nova Iorque do que por entrar.
Mas não importava, pois ela não tinha dinheiro suficiente.
– Quer reservar a sua passagem? – perguntou Mr. Timmins.
– Não, agora não – respondeu.
Talvez no próximo navio. Se desviasse algum dinheiro, sempre que Edward lhe desse algum para
as compras...
Suspirou. Já era mentirosa, podia muito bem ser ladra.
*
O baú de Thomas era pesado, por isso, Edward tratou de arranjar que fosse transportado numa
carroça até à estalagem. Sabia que encontraria muitos voluntários na sala principal que o ajudassem
a levá-lo para o andar de cima.
Quando entrou no quarto, viu que Cecilia não estava. Não ficou muito surpreendido. Ela não lhe
dissera que planeava sair, mas certamente não quisera ficar trancada no quarto o dia todo. Ainda
assim, ficou dececionado por se ver sozinho no quarto, com o baú do irmão dela. Afinal, fora por ela
que o fora buscar. Tinha imaginado um retorno mais ou menos heroico, apresentando o baú de
Thomas como um troféu arduamente conquistado.
Sentado na cama, olhou tristemente para o maldito baú que ocupava metade do espaço ainda
disponível.
Edward já tinha visto o que continha. Ainda no gabinete do exército, o coronel Stubbs abrira-o,
antes de Edward poder considerar a hipótese de ser uma violação de privacidade.
– Temos de ter certeza de que está tudo aqui – justificou Stubbs. – Sabe o que ele guardava?
– Mais ou menos – respondeu Edward, que conhecia o conteúdo do baú de Thomas muito mais do
que deveria, pois rebuscara-o muitas vezes à procura das cartas de Cecilia que queria reler.
Às vezes, nem sequer as lia, dando-se por feliz só de contemplar a letra dela.
Às vezes, era tudo o que precisava.
Céus, que idiota era!
Pior do que idiota.
Quando Stubbs levantou a tampa do baú e lhe pediu para inspecionar o conteúdo, a primeira coisa
que Edward viu foi a miniatura de Cecilia. Aquela que, sabia agora, não se parecia com ela. Ou
talvez se parecesse, para alguém que não a conhecesse verdadeiramente. O retrato não captava a
vida do seu sorriso nem a extraordinária cor dos seus olhos.
Duvidava que houvesse uma tinta capaz de captar aquela cor.
O coronel havia voltado para a secretária e, quando Edward levantou a cabeça e notou que ele
estava imerso nos documentos à sua frente, enfiou discretamente a miniatura no bolso.
E ali ela permaneceu, mesmo quando Cecilia regressou do passeio. No bolso do casaco de
Edward, cuidadosamente pendurado no armário.
O que fazia agora de Edward um idiota e um ladrão. Mesmo assim, não se arrependia do gesto.
– Trouxeste o baú do Thomas! – exclamou Cecilia, ao entrar no quarto.
O vento despenteara-lhe um pouco o cabelo, e Edward ficou um momento fascinado por uma fina
madeixa que lhe caíra para o rosto, uma onda loira suave bem mais encaracolada do que quando o
cabelo estava completamente solto.
Que bela maneira de desafiar a gravidade.
E que pensamento estranho e absurdo.
Levantou-se, pigarreou e disse:
– O coronel Stubbs conseguiu encontrá-lo rapidamente.
Cecilia aproximou-se do baú com um passo estranhamente hesitante. Estendeu a mão, mas
interrompeu o gesto antes de tocar no ferrolho.
– Viste o que contém?
– Sim. O coronel Stubbs pediu-me para confirmar se estava tudo em ordem.
– E estava?
Que responder? Se estava tudo em ordem, já não era o caso, pois a miniatura encontrava-se agora
no bolso do seu casaco.
– Tanto quanto sei, sim – respondeu ele, por fim.
Ela engoliu em seco, um gesto de nervosismo e nostalgia.
Quis abraçá-la. Quase o fez, pois avançou um passo, antes de se deter.
Não podia esquecer o que ela fizera.
Ou melhor, não podia permitir-se esquecer.
O que não era a mesma coisa.
No entanto, quando a viu em pé à frente do baú do irmão morto, com olhos cheios de irremediável
tristeza, pegou na mão dela.
– Devias abri-lo – aconselhou ele. – Creio que te ajudaria.
Depois de concordar, ela soltou a mão para levantar a tampa.
– As roupas dele – murmurou, tocando numa camisa branca dobrada que estava por cima. – Que
devo fazer com elas?
Edward não sabia.
– Não vão servir-te – refletiu ela, em voz alta. – Tens os ombros mais largos. E, seja como for, as
tuas roupas são de melhor qualidade.
– Certamente encontraremos alguém precisado – sugeriu Edward.
– Sim. É uma boa ideia. Ele gostaria disso. – Então, soltando uma pequena risada, abanou a cabeça
e afastou aquela pequena madeixa rebelde dos olhos. – Meu Deus, que digo? Ele não se teria
importado com tais minudências.
Edward piscou, pestanejou, e ela explicou:
– Eu amo o meu... – Aclarou a garganta e corrigiu: – Eu amava o meu irmão, mas ele não se
preocupava com as dificuldades dos mais pobres. Não tinha nada contra eles – apressou-se a
acrescentar. – Só acho que não era assunto em que ele pensasse.
Edward assentiu, sem saber o que dizer. Ele provavelmente era culpado do mesmo pecado de
indiferença, como a maioria dos homens.
– Eu, no entanto, vou sentir-me melhor se souber que as roupas dele são úteis a alguém – afirmou
Cecilia.
– Ele gostaria disso – repetiu Edward e clarificou: – De te fazer feliz.
Ela franziu os lábios num quase sorriso irónico e voltou a atenção para o baú.
– Imagino que também devamos encontrar alguém a quem dar o uniforme. Alguém irá precisar. –
Ela passou a mão pela casaca militar de Thomas, os dedos delicados muito pálidos em contraste com
o tecido de lã escarlate. – Quando eu estava no hospital contigo, havia outros soldados – continuou,
pensativa. – Eu... – baixou o olhar, como se em homenagem – ajudei, às vezes. Não tanto como
deveria, certamente, mas não queria deixar-te sozinho.
Quando Edward estava prestes a agradecer-lhe, ela endireitou os ombros e continuou em voz mais
pragmática:
– Vi os uniformes deles. Alguns estavam irrecuperáveis, por isso, alguém certamente poderá
aproveitar este.
As palavras dela continham uma certa interrogação, por isso, Edward assentiu. Esperava-se que os
soldados mantivessem os uniformes impecáveis, o que não era tarefa fácil, dada a quantidade de
tempo que passavam a atravessar campos lamacentos.
E a serem alvejados.
Os buracos de balas eram muito difíceis de passajar, mas o pior eram as feridas de baioneta, tanto
para a carne como para o tecido. Edward, contudo, preferia focar-se no tecido, porque era a única
maneira de não enlouquecer.
Era generoso de Cecilia dar o uniforme de Thomas a outro soldado. Muitas famílias queriam
manter aquele símbolo tangível de heroísmo e cumprimento do dever.
Edward engoliu em seco e recuou, precisando, de repente, de abrir algum espaço entre eles. Não a
entendia. E culpava-se, por não ser capaz de manter a raiva. Apenas um dia se passara. Pouco mais
de vinte e quatro horas desde que recuperara a memória numa onda avassaladora de cores, luzes,
palavras e lugares, nenhum dos quais incluía Cecilia Harcourt.
Ela não era sua mulher e ele devia estar furioso. Tinha um bom motivo para estar furioso.
Mas as perguntas por esclarecer, e que insistiam em não o deixar em paz, não podia fazê-las agora.
Não quando ela tirava os pertences do irmão com gestos amorosos do baú e virava o rosto para secar
furtivamente as lágrimas.
Depois de colocar a casaca de Thomas de lado, ela voltou ao baú.
– Achas que ele guardou as minhas cartas?
– É claro que sim.
Ela ergueu brevemente o olhar e comentou:
– Ah, é verdade, já verificaste o conteúdo da mala.
Não era por essa razão que ele sabia, mas ela não precisava de saber.
Encostado a uma ponta da cama, Edward observou-a explorar os pertences de Thomas. A certa
altura, ajoelhou-se para ficar mais confortável e agora olhava para tudo com um sorriso que Edward
julgou nunca mais ver.
Ou talvez ele é que nunca pensara ter tanta vontade de o ver.
Ainda estava apaixonado por ela.
Contra a sua vontade, contra todo o bom senso, ainda a amava.
Suspirou e ela ergueu o rosto para ele.
– Passa-se alguma coisa?
Sim!
– Não.
Mas ela já voltara a atenção para o baú, antes de ele responder, e ele questionou-se... Se ela não o
tivesse feito, se tivesse sustido o olhar dele...
Ter-lhe-ia lido a verdade nos olhos?
Quase suspirou novamente.
Ela deixou escapar um murmúrio curioso e ele não pôde deixar de se inclinar e perguntar:
– O que é?
Franzindo a testa, ela mergulhou mais as mãos entre as camisas e calças cuidadosamente dobradas.
– Não encontro a miniatura.
Edward abriu a boca, mas não conseguiu falar. Queria. Pensara que ia responder, mas não foi
capaz de vocalizar as palavras.
Queria ficar com a maldita miniatura. Que lhe chamassem tirano ou ladrão, mas queria que fosse só
dele.
– Talvez o Thomas a tenha levado para o Connecticut – supôs Cecilia. – É um pensamento
reconfortante, de certa forma.
– Ele tinha-te sempre no pensamento – assegurou Edward.
Ela olhou para cima.
– É muito querido da tua parte dizê-lo.
– É a verdade. Ele falava tantas vezes de ti, que eu sentia que te conhecia.
O olhar de Cecilia tornou-se mais caloroso e, ao mesmo tempo, mais distante.
– É engraçado – murmurou ela –, eu sentia o mesmo por ti.
Edward questionou-se se estava na hora de lhe contar que recuperara a memória. Como cavalheiro
que era, seria a atitude mais correta, sabia que sim.
– Oh! – exclamou ela, endireitando-se abruptamente e arrancando-o do devaneio. – Quase me
esquecia. Nunca te mostrei a minha miniatura do Thomas, certo?
Edward não precisou de responder. Ela já vasculhava a sua única mala de viagem. Era grande,
mas, ainda assim, Edward ficava espantado que Cecilia tivesse feito a longa travessia até Nova
Iorque com tão poucos pertences.
– Aqui está – disse ela, tirando um pequeno camafeu, que admirou com um sorriso melancólico,
antes de lho entregar. – O que te parece?
– Vê-se que é o mesmo artista – respondeu, sem pensar.
Ela ficou boquiaberta de surpresa.
– Lembras-te assim tão bem do outro?
– O Thomas gostava de o mostrar às pessoas.
Não era mentira. Thomas realmente gostava de mostrar a miniatura de Cecilia aos amigos. Mas não
era por isso que Edward se lembrava tão bem do retrato.
– Isso é verdade? – Os olhos de Cecilia iluminaram-se. – É muito... eu não sei o que é... Querido,
talvez seja uma boa palavra. Fico feliz por saber que ele sentia a minha falta.
Edward assentiu, mas ela já não estava a olhar para ele, pois retomara a sua tarefa, ocupada a
examinar cuidadosamente o resto dos pertences do irmão. Edward sentia-se desconfortável, como se
fosse um observador indesejável.
Não gostou da sensação.
– Que é isto? – murmurou ela.
Mais uma vez, ele inclinou-se para ver melhor.
Ela pegou numa pequena bolsa e virou-se para Edward.
– Achas que ele guardava dinheiro no baú?
– Não faço ideia. Abre e vê.
Ela assim fez. Várias moedas de ouro lhe caíram na palma.
– Céus! – exclamou, estupefacta, de olhos fixos naquela herança inesperada.
A soma não era enorme, pelo menos, aos olhos de Edward. Sabia, no entanto, das dificuldades
económicas de Cecilia quando ele acordara no hospital. Ela tentara esconder, mas não era boa a
mentir, ou, pelo menos, assim ele pensava na altura. Ela deixara escapar alguns detalhes, como o
facto de só fazer uma refeição por dia, por exemplo. Também sabia que a pensão onde ela alugara um
quarto era pouco melhor do que a rua para dormir. Estremeceu só de pensar no que lhe poderia ter
acontecido, se ela não o tivesse encontrado no hospital.
Talvez se tivessem salvado um ao outro.
Cecilia ficara estranhamente quieta, os olhos ainda fixos nas moedas de ouro, como se fosse algo
misterioso.
Desconcertante.
– É teu – disse ele, pensando que ela hesitava sobre o que fazer com aquilo.
Ela assentiu distraidamente, fitando as moedas com uma expressão peculiar.
– Guarda-as com o resto do teu dinheiro – sugeriu ele.
Sabia que ela tinha algum, cuidadosamente guardado no porta-moedas. Já por duas vezes a
apanhara a contá-lo e, de ambas, ela olhara-o com uma expressão envergonhada, ao ver que ele a
observava.
– Sim, claro – murmurou ela.
Levantou-se, meio trôpega, foi abrir o armário e pegou na bolsa. Presumiu que ela as guardasse no
porta-moedas, mas, como estava de costas, não via o que ela fazia.
– Estás bem? – inquiriu.
– Sim – respondeu ela, talvez com demasiada rapidez. – É só que... – Virou-se parcialmente para
trás. – Não pensei que o Thomas tivesse dinheiro guardado no baú. Isso significa que tenho...
Edward esperou, mas, vendo que ela não terminava a frase, insistiu:
– Isso significa que tens o quê?
Ela pestanejou e instalou-se um estranho silêncio, antes de ela desconversar:
– Nada. Apenas que tenho mais dinheiro do que pensava.
A resposta pareceu a Edward a própria definição de óbvio.
– Acho...
Ela voltou a interromper-se e virou-se para olhar para o baú aberto. Algumas camisas estavam
pousadas no chão e a casaca vermelha de Thomas estava dobrada sobre a lateral da mala. Tirando
isso, Cecilia deixara tudo como estava.
– Estou cansada – declarou ela, abruptamente. – Importas-te que me deite um pouco?
– Claro que não – respondeu ele, levantando-se.
Ela baixou o olhar, mas ele ainda lhe surpreendeu uma expressão de angústia, quando ela passou
por ele e se deitou na cama, de costas para ele, puxando os joelhos para cima, o corpo enrolado
como uma foice.
Observou aqueles ombros tão tensos de tristeza. Não lhe parecia que ela estivesse a chorar, mas a
respiração era errática, como se fosse um enorme esforço mantê-la regular.
Levantou a mão, embora estivesse muito longe para poder tocá-la. Não conseguia evitar. Era um
gesto instintivo, como o bater do coração ou o próprio respirar. Se aquela mulher estava a sofrer, ele
oferecia-lhe consolo.
Porém, não deu o último passo. A mão caiu e ele ficou ali, imóvel, submerso numa torrente de
pensamentos tumultuados.
Desde o primeiro momento em que vira Cecilia, quisera protegê-la. Mesmo quando estava tão
fraco que mal conseguia andar, quisera ser a sua força. E agora, quando ela finalmente precisava
dele, sentia-se apavorado.
Se Edward se permitisse ser forte por ela, aliviar-lhe o fardo como tão desesperadamente
desejava, estaria perdido. O fio fino que ainda o segurava e o impedia de a amar completamente
rebentaria.
E o seu coração ficaria despedaçado para sempre.
Sussurrou o nome dela, como se a desafiasse a ouvi-lo.
– É melhor eu ficar sozinha – disse ela, sem se virar.
– Não, não é – respondeu ele, com voz rouca.
Edward deitou-se atrás dela e abraçou-a com força contra si.
Capítulo 20
Caro Edward,
Se estás a ler isto, é porque estou morto. É estranho, na verdade, escrever estas
palavras. Nunca acreditei em fantasmas, mas, neste momento, a sua eventual existência é
uma espécie de conforto. Creio que ia gostar de voltar para te assombrar. É bem o
mereces, depois daquele episódio em Rhode Island com Herr Farmer e os ovos.
Edward sorriu à lembrança. Depois de um dia longo e entediante, o desejo de comer uma omeleta
terminara com eles a serem bombardeados com ovos por um gordo fazendeiro que os insultava em
alemão. Devia ter sido uma tristeza, pois havia muitos dias que as suas refeições eram insípidas, mas
Edward não se lembrava de ter rido tanto. Thomas levara um dia inteiro a remover a gema de ovo do
casaco e Edward passara a noite a tirar fragmentos de casca de ovo do cabelo.
Mas ri melhor quem ri por último, pois vou ser terrivelmente piegas e chato. Talvez até
consiga fazer-te verter uma lágrima por mim. Isso far-me-ia rir, como bem sabes. Sempre
foste tão estoico! Apenas o teu sentido de humor te tornava suportável.
De facto, eras bem mais do que suportável, e quero agradecer-te pela dádiva de uma
verdadeira amizade. Foi algo que me concedeste sem pensar, algo que está
inerentemente em ti. Não tenho vergonha de admitir que passei metade da minha vida
nas colónias aterrorizado. É muito fácil morrer aqui. Não imaginas como foi
reconfortante saber que pude sempre contar com o teu apoio.
Edward reprimiu um soluço e só então percebeu que estava perto das lágrimas. Ele podia ter
escrito exatamente as mesmas palavras a Thomas. Era isso que tornava a guerra tolerável: a amizade
e a certeza de que havia pelo menos uma outra pessoa que dava tanta importância à vida de um amigo
como à sua própria vida.
E, agora, vejo-me obrigado a abusar uma última vez dessa amizade. Peço-te que cuides
da Cecilia. Ela ficará sozinha. O nosso pai não conta. Escreve-lhe, por favor. Conta-lhe o
que me aconteceu, para que ela não receba apenas uma carta do exército. E, se tiveres
oportunidade, vai visitá-la e certifica-te de que ela está bem. Talvez possas apresentá-la
à tua irmã. Acho que isso agradaria à Cecilia. Será um descanso para mim saber que ela
terá a oportunidade de conhecer novas pessoas e de refazer a sua vida longe de Matlock
Bath. Assim que o nosso pai morrer, nada mais a prenderá lá. O nosso primo vai tomar
posse de Marswell e ele sempre foi um tipo untuoso. Por nada neste mundo, quereria que
a Cecilia dependesse da generosidade e boa vontade dele.
Edward também não. Cecilia falara-lhe de Horace. «Untuoso» parecia-lhe uma boa palavra para
descrever o sujeito.
Eu sei que estou a pedir-te muito. O Derbyshire não é exatamente o fim do mundo, pois
ambos sabemos que esse fica aqui, em Nova Iorque, mas acredito que, quando
regressares a Inglaterra, a última coisa que vais querer é viajar ao centro de Inglaterra.
Não, mas não teria de o fazer. Thomas teria ficado abismado ao saber que Cecilia estava ali tão
perto, no quarto número doze da estalagem Devil’s Head. Era realmente um feito notável, ela ter
atravessado um oceano para encontrar o irmão. Edward desconfiava que nem Thomas a teria
imaginado capaz de tal coisa.
Adeus, meu amigo. E obrigado. És a única pessoa em quem posso confiar o bem-estar
da minha irmã. E talvez a tarefa não te seja assim tão árdua. Sei que costumavas ler as
cartas dela quando eu estava fora. Francamente, julgavas mesmo que eu não ia
perceber?
Edward não pôde deixar de rir. Mal podia acreditar que Thomas sempre o tivesse sabido.
Deixo-te o retrato em miniatura dela. Creio que ela gostaria que ficasses com ele. Seja
como for, eu quero que fiques.
Que Deus te abençoe, meu amigo!
Um abraço,
Thomas Harcourt
Edward fixou a carta durante tanto tempo, que a sua visão ficou embaçada. Thomas nunca dera
indícios de saber que Edward tinha um fraquinho pela irmã dele. Era quase embaraçoso pensar nisso.
Era óbvio, no entanto, que esse facto o divertia. Divertia e talvez...
Alimentasse esperanças?
No fundo do seu coração, quereria Thomas fazer de casamenteiro? Era a impressão que dava na
carta. Se ele queria que Edward se casasse com Cecilia...
Será que Thomas escrevera à irmã sobre isso? Ela dissera que ele tinha arranjado o casamento. E
se...
Edward empalideceu. E se Cecilia realmente acreditasse que eram casados? E se ela não tivesse
mentido?
Edward releu a carta várias vezes, procurando em vão uma data. Quando é que Thomas escrevera
a carta? Poderia ele ter dito à irmã para tratar de um casamento por procuração e ter morrido antes
de pedir a Edward para fazer o mesmo?
Levantou-se. Tinha de voltar imediatamente para a estalagem. Sabia que era uma hipótese
rebuscada, mas explicaria muitas coisas. De qualquer forma, estava mais do que na hora de confessar
a Cecilia que recuperara a memória. Tinha de parar com a autocomiseração e simplesmente
perguntar-lhe o que acontecera.
Não correu até à estalagem, mas nunca andou tão depressa.
*
– Cecilia!
Edward abriu a porta do quarto com mais força do que o necessário, mas, quando chegara ao cimo
das escadas, o sangue pulsava-lhe tão violentamente nas veias, que sentia os nervos à flor da pele. A
cabeça estava cheia de perguntas, o coração estava cheio de paixão e, a certa altura, chegara à
conclusão de que não se importava com o que Cecilia tinha feito. Se ela o enganara, devia ter tido as
suas razões. Ele conhecia-a. Conhecia-a a fundo! Não havia pessoa tão boa e admirável à face da
Terra, e mesmo que ela não tivesse dito as palavras, Edward sabia que o amava.
Quase tanto como ele a amava.
– Cecilia?
Repetiu o nome, embora fosse óbvio que ela não estava lá. Maldição! Infelizmente, ia ter de ter
calma e esperar. Não sabia onde ela estava. Ela saía com frequência, para fazer compras ou passear.
Com menos frequência, desde que a procura pelo irmão terminara, mas sabia que ela não gostava de
ficar trancada o dia todo.
Talvez lhe tivesse deixado um bilhete. Por vezes, deixava.
Edward passou os olhos pelo quarto, demorando-se mais nas duas mesas. Sim, ali estava, um
pedaço de papel dobrado em três, meio preso debaixo do lavatório, para não voar.
Cecilia gostava de deixar a janela aberta para arejar o quarto.
Edward desdobrou o bilhete e ficou momentaneamente confuso com a quantidade de linhas no
papel, muito mais do que o necessário para o informar da hora a que regressaria.
Começou a ler.
Caro Edward,
Sou covarde, uma terrível covarde, porque sei que devia dizer-te estas palavras
pessoalmente. Mas não sou capaz. Creio que não ia conseguir chegar ao fim da história,
além de que não terei tempo.
Tenho muito a confessar e nem sei por onde começar. Julgo que será melhor começar
pelo mais importante: não somos casados.
Eu não pretendia cometer tal engano. Garanto-te que começou por uma razão
altruísta. Quando descobri que estavas no hospital, soube que tinha de cuidar de ti, mas
vi-me proibida de te visitar com o argumento de que, dada a tua patente e posição na
sociedade, apenas membros da família eram permitidos. Não sei o que me deu. Nunca me
vi como uma pessoa impulsiva, mas, por outro lado, é verdade que mandei as precauções
à fava e vim para Nova Iorque. Fiquei tão zangada! Só queria ajudar e, sem pensar, gritei
que era tua mulher. Ainda hoje não sei como é que todos acreditaram em mim.
Prometi a mim mesma dizer-te a verdade quando acordasses. Mas, depois, tudo correu
mal. Não, mal, não, foi apenas estranho. Quando acordaste, tinhas perdido a memória.
Mais estranho ainda foi saberes quem eu era. Ainda não entendo como me reconheceste.
Quando recuperares a memória – e isso vai acontecer, tens de acreditar que sim –,
saberás que não nos conhecíamos. Não pessoalmente. Eu sei que o Thomas te mostrou o
meu retrato, mas, para ser franca, a semelhança não é óbvia. Não há razão para me teres
reconhecido quando abriste os olhos.
Não quis contar-te a verdade à frente do médico e do coronel Stubbs. Pensava que eles
nunca me permitiriam ficar e sentia que ainda precisavas de mim. E então, mais tarde
naquela noite, as evidências tornaram-se muito claras na minha cabeça: o exército estava
muito mais disposto a ajudar Mrs. Rokesby do que uma simples Miss Harcourt a
encontrar o irmão.
Por isso, usei-te. Aproveitei-me do teu nome. Por esse facto, peço desculpa, no entanto,
admito que, embora vá carregar essa culpa pelo resto da vida, não me arrependo. Eu
precisava de encontrar o Thomas. Ele era tudo o que me restava.
Mas agora ele foi-se e, com ele, o motivo para ficar em Nova Iorque. Uma vez que não
somos casados, é melhor, e a decisão mais acertada, voltar para o Derbyshire. Não me
vou casar com o Horace. Nada me fará descer tão baixo, garanto-te. Antes de partir,
enterrei as pratas no jardim. Eram da minha mãe e não fazem parte da herança.
Encontrarei um comprador. Não quero que te preocupes comigo.
Edward, és o homem mais honrado que já conheci. Se eu ficasse em Nova Iorque,
insistirias em casar comigo, por teres comprometido a minha virtude. Mas eu não posso
pedir-te tal sacrifício. Nada do que aconteceu foi culpa tua. Pensaste que éramos casados
e comportaste-te como um marido. Não deves ser punido pelo meu logro. Tens uma vida à
tua espera em Inglaterra, uma vida a que eu não pertenço.
A única coisa que te peço é que não fales do que aconteceu aqui. Se eu me casar um
dia, contarei o que aconteceu ao meu futuro marido. Não poderia viver comigo mesma, se
não o fizesse. Mas, até esse dia chegar, creio ser preferível que o mundo continue a
pensar em mim simplesmente como
A tua amiga,
Cecilia Harcourt
P.S.: Não precisas de te preocupar com uma possível consequência da nossa união.
Edward ficou ali, no meio do quarto, estupidificado. Que diabo era aquilo? Que queria ela dizer
com...
Frenético, esquadrinhou a carta até encontrar a frase que procurava. Ali estava! Ela achava que não
ia ter tempo de lhe contar a verdade pessoalmente.
Edward empalideceu.
O Rhiannon! O navio estava no porto e ia partir naquele dia.
Cecilia comprara uma passagem. Tinha a certeza absoluta.
Olhou para o relógio de bolso, que deixara na mesa. Ainda tinha tempo. Não muito, mas o
suficiente.
Teria de ser suficiente. Toda a sua vida dependia disso.
Capítulo 21
Faz tanto tempo que não tenho notícias tuas, Thomas! Eu sei que não
devia preocupar-me, que há dezenas de razões para as cartas se
atrasarem, mas não consigo evitar. Sabias que acompanho a nossa
correspondência com um calendário? Leva uma semana para a minha
carta chegar ao navio, cinco semanas para atravessar o Atlântico,
mais uma semana para chegar até ti. Depois, uma semana para a tua
carta chegar ao navio, três semanas para atravessar o Atlântico (como
vês, prestei atenção quando me disseste que a viagem para leste é mais
rápida) e uma semana para chegar até mim. São três meses para saber
a resposta a uma simples pergunta!
Dito isto, talvez não haja perguntas simples. Ou, se houver, as
respostas não o são.
DE CECILIA HARCOURT
PARA O SEU IRMÃO THOMAS
(CARTA NUNCA RECEBIDA)
O Rhiannon era muito parecido com o Lady Miranda, portanto, Cecilia não teve dificuldade em
encontrar o seu camarote. Quando comprara a passagem, algumas horas antes, fora informada de
que ia partilhar o camarote com Miss Alethea Finch, que regressava a casa depois de servir como
precetora ao serviço de uma preeminente família de Nova Iorque. Não era incomum que completos
desconhecidos tivessem de partilhar um camarote naquele tipo de viagens. Cecilia já o fizera na
travessia para a América. Dera-se muito bem com a sua companheira de viagem e tivera muita pena
de ter de se despedir dela à chegada a Nova Iorque.
Cecilia perguntou-se se Miss Finch era irlandesa ou se, como ela, estava apenas com pressa de
apanhar o primeiro barco para as Ilhas Britânicas, sem se importar de fazer uma paragem antes de
finalmente chegar a Inglaterra. Cecilia não sabia sequer como faria a viagem de Cork até casa, mas
esse obstáculo parecia irrisório, em comparação com o maior desafio de atravessar o Atlântico.
Provavelmente haveria barcos de Cork para Liverpool. Se não, podia subir até Dublin e atravessar
de barco a partir de lá.
Se era capaz de ir do Derbyshire a Nova Iorque, era capaz de tudo. Era forte. Estava determinada.
E estava a chorar.
Irra! Tinha de parar de chorar.
Parou no corredor estreito, à porta do camarote, para respirar fundo. Pelo menos, não estava a
soluçar. Ainda era capaz de manter uma certa pose e não atrair demasiado a atenção. No entanto,
sempre que pensava estar mais recomposta, os pulmões pareciam contrair-se e uma espécie de
soluço estrangulado escapava, os olhos começavam a picar e então... Para com isso! Tinha de parar
de cismar no mesmo.
Objetivo do dia: não chorar em público.
Suspirou. Queria um novo objetivo.
Era hora de seguir em frente. Depois de respirar fundo para se recompor, limpou as lágrimas com a
mão e girou a maçaneta da porta do camarote.
Estava trancada.
Cecilia ficou momentaneamente sem reação. Então, presumindo que a outra ocupante deveria ter
chegado antes dela, bateu à porta. Era mais seguro para uma mulher sozinha trancar a porta. Ela teria
feito o mesmo.
Depois de esperar um momento, bateu novamente. A porta finalmente abriu-se, mas só uma frincha.
Uma mulher magra de meia-idade espreitou. Tapava quase toda a fresta, mas Cecilia conseguiu ver
um beliche de duas camas e um baú aberto no chão. Um candeeiro tinha sido aceso e pousado na
única mesa. Miss Finch estava obviamente a desfazer as malas.
– Posso ajudar? – perguntou.
Cecilia tentou mostrar uma expressão amistosa e disse:
– Creio que vamos partilhar este camarote.
Miss Finch fitou-a com uma expressão desagradada.
– Está enganada.
Diacho, aquilo era inesperado. Cecilia voltou a olhar para a porta que a mulher mantinha meio
aberta com a anca e onde estava cravado um «8» na madeira.
– Camarote oito – disse Cecilia. – A senhora deve ser Miss Finch. Vamos ser companheiras de
viagem. – Ser sociável exigia uma energia que ela não tinha, mas Cecilia sabia que tinha de fazer um
esforço, por isso, fez uma curta reverência e apresentou-se: – Sou Miss Cecilia Harcourt. Como vai?
Miss Finch apertou os lábios.
– Fui informada de que não ia partilhar o camarote.
Cecilia espreitou para o beliche de duas camas. Era obviamente um camarote duplo, por isso,
perguntou:
– Reservou o camarote só para si?
Sabia que algumas pessoas o faziam, mesmo tendo de pagar o dobro do preço.
– Disseram-me que não teria companheiras de viagem.
O que não respondia à pergunta de Cecilia. Embora a sua paciência estivesse periclitante,
procurou manter a calma. Teria de dividir um camarote exíguo com aquela mulher durante, pelo
menos, três semanas, por isso, estampou um sorriso forçado no rosto e explicou:
– Eu só reservei a minha viagem esta tarde.
Miss Finch recuou, em óbvia desaprovação.
– Que tipo de mulher compra passagem para atravessar o Atlântico no próprio dia da partida?
– O meu tipo, suponho – retorquiu Cecilia, cerrando o maxilar. – Os meus planos alteraram-se de
repente e tive a sorte de encontrar um navio que estava de partida.
Miss Finch fungou. Cecilia não sabia como interpretar a fungadela, além da óbvia desaprovação.
Miss Finch finalmente recuou um passo, permitindo que Cecilia entrasse no minúsculo camarote.
– Como pode ver – disse Miss Finch –, já coloquei as minhas coisas na cama de baixo.
– Não me importo de dormir na de cima.
Miss Finch fungou novamente, desta vez um pouco mais alto.
– Se sofre de enjoos, terá de sair do quarto. Não quero o pivete cá dentro.
Cecilia sentiu a vontade de ser educada esvair-se.
– De acordo. Desde que concorde fazer o mesmo.
– Espero que não ressone.
– Se o faço, nunca ninguém mo disse.
Miss Finch abriu a boca, mas Cecilia adiantou-se:
– Tenho a certeza de que a senhora mo dirá, se eu o fizer.
Mais uma vez, Miss Finch abriu a boca e foi impedida de falar por Cecilia, que acrescentou:
– E eu agradeço. Esse é o tipo de coisa que uma pessoa deve saber sobre si própria, não acha?
– É muito impertinente – criticou Miss Finch, com ar chocado.
– Está a impedir-me a passagem.
O quarto era minúsculo e Cecilia ainda não conseguira entrar, por causa do baú aberto no chão.
– Este é o meu quarto – protestou Miss Finch.
– O nosso quarto – corrigiu Cecilia, tentando controlar a fúria – e agradeço-lhe que afaste o seu
baú, para eu poder entrar.
– Muito bem – rosnou Miss Finch, fechando a tampa do baú com força e empurrando-o para
debaixo da cama. – Não sei onde vai colocar o seu baú, mas não espere ocupar o espaço no meio do
quarto, se eu não posso.
Cecilia não tinha baú, apenas a sua grande mala de viagem, mas não havia razão para o mencionar.
Especialmente porque Miss Finch parecia ansiosa por o fazer por ela.
– É só isso que traz?
Cecilia respirou fundo, para se acalmar.
– Como disse, tive de partir à pressa. Não tive tempo de preparar a bagagem adequada.
Miss Finch olhou-a do alto do seu nariz ossudo, antes de fungar novamente. Naquele instante,
Cecilia decidiu passar o maior tempo possível no convés.
Havia uma pequena mesa fixa aos pés do beliche e ela guardou a mala por baixo. Depois de tirar
os poucos objetos que queria ter no beliche, passou por Miss Finch, para subir a escada e ver onde ia
dormir.
– Não ponha os pés na minha cama para chegar à sua.
Cecilia parou, contou até três e respondeu:
– Tentarei restringir os meus movimentos à escada.
– Vou queixar-me de si ao capitão.
– Por quem é – respondeu Cecilia, com um gesto grandioso do braço.
Subiu outro degrau e olhou para o beliche. Estava limpo e arrumado. Não teria muito espaço acima
da cabeça, mas, pelo menos, não veria Miss Finch.
– É uma mulher da vida?
Cecilia virou-se tão bruscamente que quase caiu.
– Como disse?
– É uma mulher da vida? – repetiu Miss Finch, articulando cada palavra com uma pausa dramática.
– Não vejo outra razão para...
– Não, não sou uma mulher da vida – rosnou Cecilia, ciente de que aquela mulher odiosa decerto
discordaria, se soubesse dos acontecimentos do último mês.
– Porque não vou dividir um camarote com uma meretriz.
Foi a gota de água. Cecilia tinha conseguido manter a compostura ao saber da morte do irmão, ao
saber que o coronel Stubbs fora capaz de lhe mentir mesmo vendo a dor e a preocupação estampadas
no seu rosto; conseguira manter a compostura até mesmo ao abandonar o único homem que amaria, de
quem ficaria separada por um oceano e que a odiaria para sempre, e aquela mulher desprezível tinha
o descaramento de lhe chamar meretriz?
Saltou da escada e agarrou Miss Finch pelo colarinho.
– Não sei que tipo de veneno ingeriu esta manhã, mas para mim já chega! – rosnou ela. – Paguei
uma boa maquia por metade deste camarote e, em troca, espero um mínimo de cortesia e educação.
– Educação! Isso dito por uma mulher que nem sequer tem um baú?
– Que diabo significa isso?
Miss Finch levantou os braços e começou a gritar:
– E agora invoca o nome de Satanás!
Oh... meu... Deus! Cecilia estava no inferno, só podia. Talvez fosse a sua punição por ter mentido a
Edward. Três semanas... talvez um mês inteiro na companhia aquela harpia.
– Recuso-me a dividir um camarote consigo! – gritou Miss Finch.
– Garanto-lhe que ficaria muito contente em fazer-lhe a vontade, mas...
Alguém bateu à porta.
– Espero que seja o capitão – disse Miss Finch. – Provavelmente, ouviu-a gritar.
Cecilia atirou-lhe um olhar indignado.
– Por que motivo havia de ser o capitão?
O camarote não tinha escotilha, mas Cecilia sabia, pelos movimentos do barco, que já tinha saído
do cais. O capitão decerto tinha mais que fazer do que arbitrar uma zaragata.
O som de nós dos dedos a bater foi substituído pelo bater de um punho e seguido de um berro:
– Abre a porta!
Era uma voz que Cecilia conhecia muito bem.
Empalideceu. Sentiu realmente o sangue fugir-lhe do rosto e ficou de boca aberta a olhar para a
porta, que vibrava com as batidas.
– Abre a maldita porta, Cecilia!
Miss Finch soltou um gritinho assustado e virou-se para ela.
– Não é o capitão!
– Não...
– Quem é? Sabe quem é? Ele pode ter vindo para nos atacar. Oh, meu Deus... oh, santa
misericórdia...
Com agilidade surpreendente, Miss Finch escondeu-se atrás de Cecilia, para a usar como escudo
contra o monstro que iria deitar a porta abaixo para as atacar.
– Ele não vai atacar-nos – murmurou Cecilia, atordoada.
Sabia que devia fazer alguma coisa – empurrar Miss Finch, abrir a porta –, mas ficou petrificada,
incapaz de entender o que era obviamente uma impossibilidade.
Edward estava ali. No navio. No navio que acabara de sair do porto!
– Oh, meu Deus! – suspirou.
– Ah, agora está com medo! – exclamou Miss Finch.
O barco estava a navegar. Cecilia vira a tripulação soltar as grossas amarras quando atravessara o
convés. Sentira o navio afastar-se da doca e reconhecera o familiar balanço ao cruzar a baía para
chegar ao Atlântico.
Edward estava no navio. E, sendo improvável que voltasse para a costa a nado, isso significava
que abandonara o seu posto e...
As batidas na porta recomeçaram, cada vez mais insistentes.
– Abre esta porta imediatamente ou juro que a arrombo!
Miss Finch gemeu alguma coisa sobre a sua virtude.
E Cecilia sussurrou finalmente o nome de Edward.
– Conhece-o? – acusou Miss Finch.
– Sim, é o meu...
O que era Edward? Não o marido dela.
– Bem, então abra a porta! – Miss Finch deu-lhe um empurrão, apanhando Cecilia desprevenida e
fazendo-a desequilibrar-se e bater na parede oposta. – Mas não o deixe entrar! Está fora de questão
um homem no meu camarote. Leve-o daqui para fora e tratem lá dos... – Miss Finch agitou os dedos
na cara dela com ar enojado – ... dos vossos assuntos!
– Cecilia! – bradou Edward.
– Ele vai partir a porta – guinchou Miss Finch. – Despache-se!
– Estou a despachar-me!
Dado o tamanho do camarote, menos de dois metros e meio de largura, a pressa fazia pouca
diferença, mas Cecilia aproximou-se da porta e pôs a mão na fechadura.
Então, paralisou.
– Do que está à espera?
– Não sei – murmurou ela.
Edward estava ali. Viera atrás dela. O que é que isso significava?
– CECILIA!
Ela abriu a porta e, por um momento abençoado, o tempo parou. Devorou Edward com os olhos,
que tinha o punho ainda levantado para bater. Não trazia chapéu e o cabelo estava terrivelmente
desgrenhado.
Parecia... louco.
– Estás de uniforme – disse ela, estupidamente.
– Estás metida num grande sarilho – ameaçou ele, de dedo em riste.
Miss Finch soltou uma exclamação de alívio.
– Vai prendê-la?
Edward desviou um momento os olhos de Cecilia.
– O quê? – atirou, incrédulo.
– Vai prendê-la? – repetiu Miss Finch, dando um passo em frente e ficando logo atrás de Cecilia. –
Acho que ela é uma...
Cecilia deu-lhe uma cotovelada nas costelas. Para seu próprio bem. Não havia maneira de saber
como Edward reagiria, se Miss Finch lhe chamasse meretriz à sua frente.
Edward olhou Miss Finch com impaciência e perguntou a Cecilia:
– Quem é esta?
– Quem é o senhor, pergunto eu! – indignou-se Miss Finch.
– O marido dela – respondeu Edward, com um gesto de cabeça para Cecilia.
Cecilia tentou contradizê-lo.
– Não, não é...
– Mas vou ser – rosnou ele.
– Isto é altamente impróprio – fungou Miss Finch.
Cecilia girou nos calcanhares e sibilou:
– Faria a gentileza de se afastar?
– Homessa! – bufou Miss Finch e, com grande exagero dramático, recuou os três pequenos passos
necessários para alcançar o seu beliche.
Edward inclinou a cabeça para a mulher e perguntou:
– Tua amiga?
– Não! – enfatizou Cecilia.
– Era o que faltava! – protestou Miss Finch.
Cecilia atirou-lhe um olhar irritado e voltou-se para Edward.
– Não recebeste a minha carta?
– Claro que recebi a tua carta. Por que diabo estaria aqui?
– Eu não disse em que navio...
– Não foi muito difícil adivinhar.
– Mas tu... o teu posto...
Cecilia esforçava-se por encontrar as palavras. Edward era um oficial no Exército de Sua
Majestade. Não podia simplesmente abandonar o posto. Seria levado a tribunal marcial. Céus,
arriscaria a forca? Não enforcavam um oficial por deserção, ou enforcavam? Especialmente se
pertencesse à família Rokesby.
– Tive tempo para tratar do assunto com o coronel Stubbs – explicou Edward, em tom seco. –
Pouco, mas o suficiente.
– Eu... não sei que dizer.
Ele fechou a mão no braço dela e começou em voz muito baixa:
– Diz-me uma coisa...
Cecilia parou de respirar.
Por cima do ombro, Edward olhou para Miss Finch, que acompanhava a conversa com ávido
interesse.
– Importa-se de nos dar um pouco de privacidade? – resmungou ele.
– Este é o meu camarote – replicou ela. – Se quer privacidade, terá de a procurar noutro lugar.
– Oh, pelo amor de Deus! – exclamou Cecilia, virando-se para encarar a detestável mulher. – Não
é capaz de encontrar um pouco de bondade nesse seu coração de pedra para me dar um momento
com... com ele – terminou com um gesto de cabeça para Edward, depois de engolir em seco.
– É casada? – indagou Miss Finch, num tom pudico.
O «não» de Cecilia perdeu a força diante do rotundo e simultâneo «sim» de Edward.
Miss Finch analisou ambos com os seus olhos redondos minúsculos. Então, apertou os lábios e
ergueu as sobrancelhas num arco desagradável, anunciando:
– Vou chamar o capitão.
– Faça isso – respondeu Edward, quase a empurrando para fora do camarote.
Miss Finch soltou um guincho agudo e tropeçou para o corredor. Se tinha algo a acrescentar, não
teve oportunidade de o fazer, porque Edward lhe bateu com a porta na cara.
E trancou-a.
Capítulo 22