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Me puxaram repentinamente e me jogaram dentro de um canhão.

“Vão te disparar em
30 segundos”, disseram às pressas. Sem chance de contestar, questionar, nem entender
exatamente o que aquilo significava, era apenas eu, o cheiro de pólvora e o contexto: Ao redor,
milhões assistindo, novos acrobatas entrando, e minha imaginação funcionando, montando
aquele quebra cabeça que inventei cada peça, emoldurando um fantasma de sentido e
justificativa, para encarar e dormir com um nó levemente mais frouxo na garganta no futuro.
Cada segundo se tornam pequenas eternidades, e o fim deles, grandes vitórias. Deu
tempo pra digerir o ato repentino, por incrível que pareça. Pensei no que fazer após o disparo,
como deveria pousar afinal? Nunca me disseram como fazer, era minha primeira vez, e
ninguém parecia se importar com isso o suficiente para improvisar dicas, apenas assistiam
enquanto o show continuava, e o palhaço principal contava regressivamente os segundos em
longos e espaçados instantes.
Era o último show no circo. Tinha que digerir e fazer minha última performance dentro
daqueles 30 segundos, que agora já eram 22. Cada segundo, uma decisão: “Nada importa
agora, é o meu último show, que tudo nessa lona exploda com o canhão”, “E se eu precisar
voltar? Nunca sabemos o dia seguinte”, “Preciso ser exemplar, para eles terem alguma noção
do que perderam”. Os ciclos de ideias trocavam palavras, refinavam em intenções, mas que se
mostravam diferentes narizes para o mesmo palhaço, mantinham a mesma essência.
Enfim, meu coração dispara ao lado do canhão. Sou arremessado através da abertura
da lona, enquanto observo os olhos atentos da platéia, não em mim, mas no show. Vejo pela
última vez aqueles rostos desconhecidos, em sua maioria, exceto pelos pequenos
simpatizantes das minhas atuações que sempre se agitavam me vendo na corda bamba, “É o
acrobata 3! Ele tá fazendo o número dos outros 2 acrobatas de novo!”. Nunca recebi nada
diferente disso por aqueles números.
Atravessar a lona era belo. Descreveria a cena por horas. Os pássaros voando junto a
mim, as nuvens que pareciam me aguardar no pico dos céus, as montanhas ao longe, que me
faziam sentir dono do mundo, vivo de novo depois de anos. Instantes que poderiam ser
eternos, que são interrompidos por um frio na barriga. Uma fagúlha de incerteza que não pude
ignorar pra seguir vendo o lado mais belo do mundo, até porque meu corpo se virava agora
para o chão.
Sabia que doeria, me perguntava se valia voar, se era doce pagar com a dor da queda
por aqueles vagos instantes de vislumbre de uma vida com cor, sabor, fortes batidas no peito,
vislumbre de realizações. Afinal, meu objetivo nessa vida é ser feliz, não é? Investir nesses
pequenos momentos, montar uma linha do tempo de memórias, para fechar os olhos por uma
última vez satisfeito em algum momento no futuro, sem arrependimentos, apenas fragmentos
de memórias, quadros de um filme de 80 anos que não somavam 10 dias de duração, e
consumiria em outros 30 segundos.
Não valia. Não havia cama elástica me esperando no chão.

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