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1

casa de barro n. 4

2
sozé
Anelise Freitas

SOZÉ

S
macondo
É dito: pelo chão você não pode ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas também você não vai poder ficar
Pelo espaço vazio você também não pode ficar
Porque lugar de cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo

stela do patrocínio

é sempre mais difícil


ancorar um navio no espaço

ana cristina cesar

Por qué aprendiste Rafael


las 6 especies de ese fruto
que ofrecés a la clientela
con entusiasmo, especificando
procedencia, consistencia, dimensiones.
Al final, aput, qana, piqsirpoq, qimuqsuq;
para que elijan en definitiva: “unas bananas”, o:
“aquellas”, o “las sin pintitas”.

alfonsina brión
mamafesto no quintal
para carla diacov
1.

retroalimentação: sf. 1. Modificação em siste-


ma, comportamento ou programa, por efeito de
resposta(s) à ação do próprio sistema, compor-
tamento ou programa. 2. eletron. Qualquer
procedimento em que parte da energia do si-
nal de saída de um circuito dá energia ao sinal
de entrada com o objetivo de reforçar, diminuir
ou controlar a saída do circuito. [Sin. Ger.: reali-
mentação. Pl. – ções.]

11
canção para ingressar

da matéria do mundo
diz respeito não somente
à aparência do mundo,
mas a essência de sua forma
de sua forma

o albatroz, o iceberg e a baleia

12
a mãe doce

dizem:
do cabelo da bisavó
pingava mel,

recém pintado de abelhas

mãezinha do céu
falou assim:
daquelas histórias tão açucaradas

na voz calma
vó índia
mãe doce
chamavam

13
este é um verso eterno

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por enquanto não há previsão
de mudanças

pode ser que eu morra na volta


embora conheça várias formas
pra morrer sem sair de casa,

o sangue grosso aumenta a pressão pode


estourar acabar com a corrente de sangue
sob grande tensão o corpo torna-se agudo
e aflige-se com distúrbios renais, doenças
[vasculares
ou tumores estrategicamente alocados

é pela carla norma bruna


mariana angélica fernanda
laura luísa e alice também
pela mirian, marília, juliana,
cristiane, luana e a vitória

a menstruação a endometriose a cólica


substantivo feminino
no ovário no útero no feto
substantivo masculino

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acompanho os dias
teço frases na barriga com menstruação
altero meu corpo

doce toque das loucuras sinestésicas

16
norma nolan no banheiro
o lábio de lesbos

quando as ruas
se encontram
e as línguas
segredam
na flor da boca
exala o perfume

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ave-do-paraíso

para Honey Boo

it’s five o’clock in the morning


e foi assim que comecei a observar outras
coisas que não só a tua boca
e os teus cabelos
e vi também as tuas unhas por detrás do livro de
[capa vermelha
e um pouco do teu nome.

quando você nasceu, meus irmãos brincavam na


[varanda
e corriam do pai, que ameaçava com a chinela
o vaso quebrado minha mãe
sorria

no dia do teu nascimento João Figueiredo


sancionava a lei 7070, concedendo pensão
[especial, mensal, vitalícia
e intransferível, aos portadores da “Síndrome da
[Talidomida”
na capa dos jornais o Brasil pedia socorro
a Nova York o primeiro-ministro
português deixava o cargo a luz corta o barato,
[declarava
Ney Matogrosso.

20
Macau é devolvida à China após quatrocentos
anos de ocupação portuguesa /
derreteram a Jules Rimet.

21
moradia

a casa a ponta
do cigarro acesa como estrela
descobria o mistério
da alma habitando
o corpo e o corpo
habitando a casa.

o tempo o sonâmbulo
sonhando de olho sentado estuda
rasgando a boca
o poema dizer amor
enquanto não descrevo um cavalo
não estou falando o que é certo
o erótico: mexer com a colher,
adicionar açúcar e
logo beber

/comer bem depois/

gozar a chuva que


pinga entre as pernas

e então gritar
(abafar o rouco)

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poema da luiza

para Luiza Sposito Vilela

você
escrevendo com outro
nome e eu
clicando no about

você
não dorme há
duas semanas
desde que eu te conheci
dream is destiny

teus
olhos caídos em novembro
e a boca carnal
e vermelha
e aberta
e o cabelo trançado

her
friends e ela;
gosta tanto de poemas
e misturar línguas
e eu também

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o estudo do ritual em berlim

de Lisboa a Berlim
ainda não entendi por que saio
a casa para escrever
a casa é já bem velha

a imagem da fumaça entre a boca das meninas


como um subterfúgio
um interregno

Berlim com você


em uma tarde de verão
mostrando suas pernas
e os desenhos feitos a agulha

as filhas de Júpiter e Urano


organizando-se como a tempestade oval
com o mesmo diâmetro da Terra
estamos falando do maior planeta do sistema solar
composto de hidrogênio e hélio, Annie Hall

por que ainda falar do barulho


do som ensurdecedor de algum ponta de lança
a buzina, o paradoxo, a metanfetamina
por que ainda falar do barulho

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que a língua faz com ela
e na busca pelo oriente ela
não sabe a forma que a especiaria dá

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sunset memorial park

o barulho do teu corpo, ava gardner


a cada golpe ou distração da tua roupa o barulho
[que ela faz ao
toque dos braços no tecido grosso

editar esse rascunho doloroso


dos dias que passo com a tua voz
na minha cabeça e os
ouvidos interpelando algum sinal

quanto tempo ainda falta eu


me pergunto como o teu pé
levanta a essa altura e as
mãos fazem esse movimento

a negação é só mais uma fase


como quando nos olhamos
passou teu corpo naqueles segundos
como uma casa sem portas
ou um osso quebrado antes do mundial

26
fanchanté

Agora vamos gravar o poema


e dizer tudo que ele tem por dentro
do que você não vê

Vamos levar folhas pro campo


comprar o tempo e a paz
(correr pra tentar mais cedo)

Se eu tivesse sotaque
ou morasse na Europa
ou fosse latina-americana
e participasse de eventos com recepção

você me diria a tua pele


é muito áspera
ou muito seca
ou muito oleosa
ou muito cheia de cor

e dormiria na cama da brasileira


zona sul que escreve poesia
e publicaria livrinhos de prêmios

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e eu estaria sentada na frente dessa máquina
procurando um verso pra acabar
com você

28
caminho das mãos vazias

a forma japonesa do cheiro


o cheiro que é teu porque
é do corpo que exala mostra
as minhas mãos tocando
o oco do que sobra desse espaço
que fica entre a tua forma e a minha
como um caminho no teu grito
um eco vazio enquanto narciso
proclama a negativa
ficamos em silêncio
somos regiões de um mesmo mapa
mas uma de nós insiste em contar
lentamente até o infinito

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recuperação do território ancestral

para Deborah Damasceno

a terra da gente uma bandeira levantada entre o


[azul da cor
quente entre o verde da natureza que te habita e
[o vermelho do sangue
que ora pinga entre as pernas enquanto bebe
o mesmo radical para selvagem e inimigo
a língua é o som da terra a terra
bem e mal contemplando o mesmo corpo
o universo cosmogônico do teu povo
e a tua forma de habitar
meu corpo baixo o teu corpo
e tua cintura desenhando o círculo
naquela posição eu conhecia
vênus em câncer um infinito ao
redescobrir o seio sob o laranja
a tua parte alaranjada que a língua fala
o corredor nos arrasta
a janela aberta
não há exploração
mas há dominação
a terra mexida na fricção avança
a tua boca miúda

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passear o cachorro

a coleira no pescoço
sem a rédea das mãos o fio solto
arrastado pelo chão na tua
felicidade em fazer fotografias do cão
e o nome do bicho
o nicho no ninho de nossas mãos
cruzar como quem atravessa a praça
ou adentrar outro corpo
passar pela casa e a coleira no chão
o teu corpo no chão se exercitando
me olhando sobre os óculos
mas você não usa óculos

31
o céu azul e você tão nebulosa

32
armour

esse teu músculo que não o das pernas e chutes


o da tua caixa de ossos do peito esse teu músculo
veste uma armadura

quando as coisas atravessam o meu medo


ou as nossas bocas um escudo
ainda existe a fome de você
e a marcha dos soldados

nos dias em que ando mais séria


coloco a tevê pra tocar
qualquer coisa um documentário do real

quando a urina de um bicho é mais forte


que a urina de outro bicho
o gato por exemplo
mijo é

quando a urina de um bicho é uma força


de local tentativa de demarcar o ponto

quando neste país teus pés se confundem entre noites


de dias claros às 9 da noite e sacolas verdes
que empobrecem a tua imagem desaparecida em 24h

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antecedem a tua presença e a presença
que eu faço de você tomando café na manhã escura
é tarde e eu ainda reviso o vídeo que girava ao
[contrário

na expectativa de encontrar você menos barroca


[estilo
de época oposição claro – oscuro zombaria é uma
[condição
e é também uma festa

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greenland

quando ensinava sobre a diferença


entre alongar e descansar
o corpo debaixo do teu peito dizia
que era preciso deitar sobre as pernas
abrir as pernas apoiada nos punhos
enquanto entre gemidos dizia
que o corpo doía pra todos

enjoy some sunshine


a former whaling
port in western Greenland
a fantastic place
to photograph the iconic
colorful

gosta mais dos desenhos das palavras


e as caligrafias ou estudos anatômicos dos cavalos
em três partes ou a arquitetura das casas coloridas
a casa alongada sob as pernas

não reclame hoje não que hoje


meus calcanhares estão remendados não pode
[descer
as pernas fique com elas no ar

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as meninas

para Thalita Portela e Juliana Giese

faziam uma arma


com a mão
e apontavam para a têmpora
(mas sem disparar)

enquanto riam
as mãos descuidavam
as bocas tocavam
(mas sem disparar)

os dedos em forma
mas sem disparar

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o banquete das vontades
não tenho razão de ser nem finalidade própria
como um galopar de cavalos
enquanto fique e vá embora uma onomatopeia
para o orgasmo

dizer o dito o dito corpo entre


mesas e dentes porque
Vênus como a Terra
uma coisa só não fosse

o ácido sulfúrico orbitando


os corpos

eu sou a terra
olharia she looks in
distress she looks impressive
e sua pequena casa dançando dentro do peito

voltando para sua cabeça a tua nuca


através da tua nuca bigger pusher over
a casa a porta o coração dizendo
execute no fundo a ação bata
aa porta no fundo uma mala em que
no fundo há

39
encontra banquete
banque as vontades e depois
não olhe pra trás

40
enquanto falamos sobre diáspora africana
brasileira a mulher terceirizada negra
vem trazendo uma bandeja,
quatro copos e água

exu é aquele que inverte


a ordem do tempo não é orixá
como os outros faz movimentar a estrutura

41
água e terra o princípio de tudo

42
quando a boca se abriu eu vi a pele fina do céu
enquanto pensava o que dizer de boca
aberta pensava em alguma coisa pra dizer
que não fosse um poema excluir
a pele o corpo o poema principalmente
o poema e sua repetição a palavra
pele é uma imagem da pele a palavra
não sente o tato o leite quente ou ácido
não perfura a camada mais fina da pele da tua boca
só a presença do líquido tropical
descendo pela garganta atingindo o estômago pode
criar uma imagem da vida um conhecimento de
[mundo
nunca uma palavra uma sentença uma árvore
tudo é espontâneo nada
é morno uma fricção de dois corpos como
quem pretende acender o fogo com o peito
ou a boca porque quando apaga o fogo
desgraça a tribo

43
uma casa começa como
um apelo para uma visão
da linguagem como você
escolhendo uma estrutura um tema
para uma construção como o corpo
que encontra o corpo e a cor nunca
a cor do corpo que não derrete
o corpo a cor da textura

do leite condensado e a embalagem como um


[resultado
de Nicolas Appert – esterilização e conservação –
tirar a água do leite o leite como um corpo
claro enigma adicionado açúcar a geladeira
de uma guerra da lactose pressurizada a 120º
hermeticamente como um corpo sem água

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um café cremoso adicionado açúcar
ou levantar para pedir um pedaço
da torta ou pagar a conta
e debater da linguagem do
amor da vida ou os cabelos da
menina que pede um bombom josefina
e seu coque que se desfaz como
um borrão no fundo do
copo o café que indica um
futuro um café tinto como meu
corpo uma cor na pele na pele
mais sensível do meu sexo tinto

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pensar uma arma como uma
arma e a biografia da arma
como um desafio nunca
a chegada da bala
pensar a arma como a meta
arma de um disparo como fim
e só o estilhaço
como a rua de uma cidade
pequena irrompida
pelo silêncio e as casas antigas
pensar uma arma como uma casa
não um lar
não uma porta
não um morador
talvez uma visita
e seu silêncio irrompendo a cidade
sua geografia mapeando os passos
de quem habita mora vive
caminha pelas ruas da cidade
atingido pela bala ou
pela casa

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imagine um filme e sua metáfora
para um compromisso o corpo preto
de um horário reservado e seus versos
e a crise como um filme
um verso como um plano
sequência e retirantes de pele
preta como a minha pele
não como a pele do casal
branco às seis da manhã
apostando quem é mais branco
enquanto retiro
a roupa a cor
da roupa o branco
como uma impureza

47
o covarde desafinado como
um covarde desafinado matéria
a poética do invisível
como um tudo ou nada
um poeta invisível como
a cidade que resolvemos mapear
um diário um autorretrato uma viagem
pela geografia do impraticável
invisível
reflexo
como o medo de voar convertido
em talassofobia uma natação
como o treino de peito
borboleta temendo voar o encontro
como el pez dorado
a linguagem
o espaço
o invisível

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uma rede de buracos
texto da aliteração velar-oclusiva i

quando o gato das cordas gastas


pede no cantinho gemido
do ouvido um gesto me distrai
pegaria o resto e o registro
e rasgaria todas as fotos
gritando tus bolas batendo
guá! a onomatopeia ve-
lar e oclusiva enquanto eu pango

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texto da aliteração velar-oclusiva ii

sente enquanto cresce e não tem fim nem pingo


nem ponto nem garantia de que transformar um
[território
em uma coisa capenga será extraordinário não
[garantimos
nada pra hoje gangue gago gota galinha e o
[paralelismo
de um dilema é quando as sílabas apagadas ganham
[equilíbrio
aliteração e assonância = rima
ainda pingamos um pagode aqui
e outro em pindamonhangaba ou
pasárgada mas é preciso que rime, rimemos
riremos (muda o verso)

52
texto da aliteração velar-oclusiva iii

pego um pequeno adendo pra dizer.


diga. digamos que: eu tenha nutrido amor por poeta
e amar é muito mais que corpo, é presença e gosto
[ainda
de você
enquanto chora,
talvez entre aquele cigarro e o agora
o mundo tenha acabado
e eu nem vi.

53
texto da aliteração velar-oclusiva iv

e se eu te dissesse que amo você


que amo a maneira como aquele corpo
se move quando encontra música
que amo o rosto da menina portuguesa enquanto
sorri ou acende um cigarro
(que eu sei, eu estive lá,
eu precisei sair pra encontrar aqueles lábios)
que amo observar as costas
nuas da menina que pratica meditação
que eu amo aquela que dança sobre
a mesa ou veste maiô tatuagem
que eu amo a garota que transforma e
gerencia as coisas e tudo garante engaveta-se nela
que amo também a tua forma
irônica de encarar a vida não
porque eu admire ou me complete, mas
porque é uma forma criativa de ver a poesia
na sujeira dos sapatos que te acompanham
e os críticos guturalmente preveem crise no
pós-guerra

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método

a) o ataque ao estado

“os filmes não são lentos,


os filmes impõem uma temporalidade”
, dizia

no jogo de resistência
- rolando –
é preciso aprender
a parar

b) o ataque à família

tem livros que te pedem para ir


de va gar

a obra de arte lhe impõe um tempo

c) o ataque à religião

tudo opera
numa temporalidade

“a vida necessita de pausas”

55
poema do angu

qual seu jeito predileto de comer angu eu


prefiro sem sal com leite mas qual é o seu jeito
predileto de comer angu talvez
você não tenha um jeito predileto de comer angu,
porque você nunca tenha comido angu,
porque angu é uma comida do interior,
porque só as pessoas que comem angu
têm jeitos prediletos de comer angu qual
seu jeito predileto de puxar alguém contra
seu corpo eu prefiro
pela cintura trazendo o meu corpo junto mas
qual é o teu jeito de encostar o corpo
em outro corpo nem sempre
a gente sabe dizer sobre o corpo do outro
sobre o corpo do outro eu
gostaria de puxar alguém pela cintura,
talvez você quantos romances
influenciaram a tua vida eu
sempre preferi as mulheres elas sabem
como falar sobre as emoções quantas
histórias em prosa você ainda lembra os romances
se inscrevem nas nossas vidas
e o ar continua fraco

56
enquanto os dias continuam bruscos
e eu só quero saber
de dançar

57
o agora

para André Capilé

that hallowed be thy name


porque é difícil estar
sempre um passo atrás
do rabo, quem julga
(?), por fim, o que é sagrado

never say that name in vain


porque todo mundo vai
estar atrás, e é você mesmo que diz
balançando a voz
(!): a briga não é parada

want to touch the skin


mas espera lá, vê bem:
só vale a pena quando é de verdade
mamãe te diz e eu falo grosso
(.) tom de pele não faz vigor

will hurt, baby: and anybody cares


que o rio volta na chuva
e a boca está bem perto
do rabo (;) aperta o passo, alonga
a língua e toca

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na casa da crise

59
um substituto abstrato para
a palavra poema

para os que têm a raiva como um dom


aos poetinhas de plantão
aos menores religiosos da palavra
ao notório saber do nada

escrever como o guitarrista do rage against


the machine em um show do rage against
the machine como a raiva e o dom
da raiva como o guitarrista
dialogando com o amplificador
a sua raiva como um dom

você achando que eu trabalho


pra você como a raiva
o meu dom mas não

a estrela e todas as estrelas


mal compreendidas menos
aquelas que ficam no peito
como os livros que alguém já leu
as estrelas e a luz quando
se apagam um partido
como uma religião ou a raiva
a raiva o meu dom

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como um bis pra dizer
matando em nome
em nome da força
dos que trabalham e matam
em nome de estrelas
mortas
enquanto você continua fazendo o que
eles mandam bebendo de você
no ritual de posse
da estrela vermelha ou azul
meu sangue preto e a minha raiva
meu dom anti-você
como o suor do guitarrista
pingando como a fé
e você rezando ante
meu corpo preto pra mim
meu corpo fechado pra você
você não
não me diz o que fazer
paideuma

os melhores imóveis da zona oeste do rio


e a ordenação do conhecimento
tal qual um apartamento, sobrado ou casa pra alugar
de modo que o próximo homem
possa adentrar os quartos, reconhecer a cozinha
e achar o mais rápido possível
as chaves sem sair de casa
a parte viva dele
e você não precisa ler esse poema
basta aguardar uns dois,
três meses e alguma livraria do shopping
terá um paideuma melhor.

62
conto sobre a medusa protegida
por são brás

criamos cobras em cativeiro


a da cabeça azul, outra
vermelha e o charuteiro maluco
aquário diferente escolha

criamos cobras em cativeiro


para impedir que elas nos piquem
com os dentes venenosos
que nós mesmos imaginamos

criamos cobras em cativeiro


para garantir que quando lhes pisemos nas cabeças
o passo do pé seja certeiro
embora o corpo finja-se completo

pisamos nas cabeças das cobras em cativeiro


para assegurar o fim de seu veneno
e evitar que rastejem até nossos pés
pisamos em suas cabeças

as cobras em cativeiro têm cabeça dura


mas nossos pés são fortes
e depois de pisar ou sapatear sobre suas cabeças
vemos o veneno escorrer

63
criamos cobras em cativeiro
obedecendo à lei do mais fraco
mas, de pé, vemos aquela cabeça
e pisamos

criamos cobras em cativeiro


porque sabemos que elas rastejam
e ao mínimo descuido pisamos em suas cabeças
que escorrem veneno sem efeito

criamos cobras em cativeiro


porque elas rastejam pelo chão e
seu veneno não atinge nossas veias
porque pisamos em suas cabeças

criamos cobras em cativeiro


porque somos medusas
não rastejamos pelo chão
e ninguém pisa em nossas cabeças

criamos cobras em cativeiro


serpentes verdadeiras e o paraíso
ou a anomalia e o meu
pescoço e a cabeça que não cai

criamos cobras e pisamos


em suas cabeças porque
criamos cobras e elas nos picam
e pisamos em suas cabeças

64
criamos cobras em cativeiro
e seu corpo é rabo e de pé
e sua cabeça na altura de nossos olhos
e as mãos apertam suas cabeças

enquanto seu sangue e veneno não significam nada

65
posfácio (katunes)
caliban, o intempestuoso

boas notícias chegam em castelhano rio-platense ana


me escreve em sonho cobrando coisas
porque a vovó ninguém quer
ver louca de loló foi quando
ouvi falar que ele se vira bem s/
a srª foi quando
comecei a fazer 1 ____________
atrás de você a cidade
depois do vidro
alguém insiste um los hermanos
y las jóvenes idealistas e um barquinho a deslizar
mas voltamos correndo
com o risco do assalto e os
fac-símiles não cole mais
e o detalhe
e cadê você?

69
olivetti studio 45

chá de cadeira chá de mato chá das cinco


bem na hora de lavar a roupa suja do almoço
ou requentar uma conversa de mais cedo
no ponto, avarandou a relação e fazia frio

acontece de se descobrir o grande amor of


e calhar de ser búlgara ou dizer ser made of
Bulgária ou de algum lugar ao sul de Lisboa

sagitário júpiter maçã


com segunda casa em touro
e as costas nuas pontos e olhos

mapas de egos & formada


a lista:
sal grosso meditação madeira
do oriente realização brilho
vinho suave de mesa boa sorte
gavetas analógico cruzados novos
uma poética da transcendência
ou um estrondo no nada

quando acaba

70
classe de palavras

para Alexandre Faria

construir
sem verbos
a ação dos corpos

motivar o movimento
das mãos
em marcha e as vozes

como um assobio
ou um canto
e o desejo

a transformação como
palavra voz presença
daquilo que queremos
fora

71
paixonite de papelaria

você se lembra quando


o cavalo mordeu o ombro do
vitor
e ele chorou
por três dias
três noites o vitor
era uma criança
fraca entre
aviamentos e agulhas
grossas as mãos do balconista
escrevendo um número hipotético
infinito como 2 e 2 são 4
enquanto falávamos sobre barragens e
poças de ferro e toda nojeira nociva
enquanto morremos em questão de m³

72
guernica 17

naquele dia será a tradição da coisa prometida


um santo conversa de et cetera quando dizemos
o compromisso
além do céu olhamos para o céu coberto
guardamos no corpo a guerra
e uma pintura da bomba o sangue a falta
de corpo na presença das partes
da casa sobre os povos naquele dia será a tradição
da coisa prometida um santo
o sexo rasurado o cavalo sem beiço
sacralizar o dizer antes mesmo do ato dito
vem caindo é hora de parar os relógios gritar
[e s t i l h a ç a n d o vidros
como um biscoitinho de massa folhada
e açúcar entre os dentes como um verbo uma palavra
quer dizer fracionar
construir a história dos vencidos até o último

caco.

73
um cigarro aceso num cinzeiro

deixe o cigarro diz


deixe o cigarro
de lado trague o cigarro
e a vida e com a fumaça
faça um círculo e escreva
no ar com seus dedos
um segredo entre o ar e o fogo

um hábito um corpo em chamas


a boca a língua o fogo o ar
sugado entre os lábios você
dizendo deixe e trague o cigarro
a pequena morte da manhã ou
após comer ou quando se deitar
o prazer entre os pequenos lábios
que lambem as cinzas
o fogo o ar a boca você
me diz largue tudo
pegue o hábito de habitar
de profanar a língua
amasse os lábios ou
largue tudo como quem solta pelo ar
a fumaça de um cigarro ou
crie um círculo e desenhe no ar com os dedos

74
como quem pega ou amassa
(embora pegar relembre o toque
e amassar reduza o volume)
como quem providencia um carnaval
um incêndio e bocas reduzidas a
ar
fogo
& brasa

75
antiode para as baleias do mar do sul
da china

as andorinhas estão lá fora voando


em círculos / trazendo a chuva

é preciso deixar a construção inacabada


cheia de recortes e sem cabeça
como o corpo boiando no mar
de java ou em algum
lugar ao sul da índia
que todos desconhecem
(com exceção de algum homem por casar,
ou uma jovem que sonhava levar o pai a conhecer
[o delta do rio Mekong,
ou Chang Po, nascido em Taipé, morador de Papua,
que ia de Surakarta ao fundo do oceano – entre
[o índico e o pacífico –
com seus pedacinhos boiando na boca da baleia

jonas,
acidente com avião da airasia
já está
entre os três mais graves de 2014

08 de março
: desaparece o Boeing 777-200 da Malaysia Airlines

76
que decolou de Kuala Lumpur com destino a Pequim;
no avião estavam 239 pessoas
(e até hoje não foram encontrados vestígios da
aeronave)

17 de julho
: cai o Boeing 777, também da Malaysia Airlines
(que vacilo!);
os 298 ocupantes morreram
abatidos por um míssil ucraniano

24 de julho
: 116 passageiros e 6 tripulantes
morreram na que
da do avião
md83
da companhia espanhola S
w
i
f
t
a
i
r

desastres registrados naquele ano em linhas comerciais:


653 pessoas mortas

77
niño devorado por peces
y somente a cabeça e um pouco
das mãos ainda não eram só ossos

y como a moça do youtube:


com as duas pernas moídas entre
o carro e o poste,
mas da cintura pra cima a calma
e a certeza de que metade do que somos
morreu

78
e tudo isso aconteceu com nós duas

79
consciente desprevenido no apêndice
difruço

folhas de ponto e orçamentos para


atestar o nebuloso ar que entre
as tabelas é tangente é ângulo reto

sempre digo o quanto falta sem


notar o que preenche e dá
fluxo aos dias e às nossas palavras

quando é muito escrever falamos


através do próximo outro ouro
nos disfarçamos do mesmo

o oposto de mim não é você


reclamando dos maus tratos
da vida ou do sopro da memória

como a filosofia barata comprada na banca


ou no banco de um bar empurrando cerveja
finalizando os dias no filtro amarelado de um cigarro

enfrentamos os dias mas não vamos


juntos e nossas mãos sem amizade porque vivemos
juntos nas palavras

80
há toques mais perfeitos como
quando os olhos encontram o suor da tarde
ou ardemos em febres noturnas de frases

viver um dia de cada vez porque


até as bananeiras têm coração e carros
da força andam pelo bairro

bocas seladas não concluem amores


a primeira vez que se viu bergman entre as cobertas
e os morangos de las heras

foi quando isak borg e eu nos beijamos no meio


de um sonho mas a sua cabeça girava
em um ritmo descompassado fazendo

um giro entre a minha língua e o céu


que diria da boca o céu uma teoria
para os sonhos que representam desejos

e no dia seguinte sonhei com uma arma


você correu e mirou bem no meio do meu
peito sem ar eu gritava como

se grita no sonho e pedia pra abaixar


a arma na maioria das vezes a arma
desaparecia mas você puxou o gatilho

81
bem na hora que você sorriu e a bala
ganhou o destino do meu peito
abri os olhos sobre a cama

triste órgão reprodutor dos mamíferos

82
Alguns dos poemas que compõem essa edição foram
publicados anteriormente:

fanchanté
(Jornal Tribuna de Minas/Brasil, 2015);

o poema da luiza
(Mallarmargens/Brasil, 2015);

junkbox antiode
(Mallarmargens/Brasil, 2015);

conto sobre a medusa protegida por são brás


(Garupa/Brasil, 2016; Avenida Sul/Brasil, 2016);

Série de poemas texto da aliteração velar-oclusiva


(Garupa/Brasil, 2016; Enfermaria 6/Portugal, 2016; anto-
logia Tropa Voluntaria [Vox/Argentina, 2016]);

método
(Avenida Sul/Brasil, 2016);

um substituto abstrato para um poema


(Literatura Br/Brasil, 2017);

ave-do-paraíso
(Literatura Br/Brasil, 2017).
mamafesto no quintal para
carla diacov
9

norma nolan no banheiro


17

o banquete das vontades


37

uma rede de buracos


49

posfácio (katunes)
67
anelise freitas é poeta. Publicou Vaca con-
templativa em terreno baldio (2011), O tal setem-
bro (2013) e Pode ser que eu morra na volta (2015).
Atualmente se dedica à produção editorial, do-
cência e a revisão, tradução e preparação de textos.
© Anelise Freitas, 2018

Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da


Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no
Brasil em 2009.

coleção casa de barro

Projeto gráfico
Otávio Campos

Revisão
Fernanda Vivacqua
Fred Spada

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

F866s Freitas, Anelise, 1987 - .


Sozé / Anelise Freitas – Juiz de Fora:
Edições Macondo, 2018.

isbn 978-85-93715-10-5

1. Poesia Brasileira I. Título


cdd: B869.91
Índice para catálogo sistemático:
1. Poesia: Literatura brasileira 869.91

[2018]
edições macondo
Rua Barbosa Lima, 259/305
Centro – Juiz de Fora – mg
36010-050
edicoesmacondo.com.br
contato@edicoesmacondo.com.br
Acabam de ser impressos
150 exemplares de Sozé
com miolo em Pólen Bold 90 g/m²
e capa em Cartão Supremo 250 g/m²
para as Edições Macondo
em junho de 2018

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