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casa de barro n. 4
2
sozé
Anelise Freitas
SOZÉ
S
macondo
É dito: pelo chão você não pode ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas também você não vai poder ficar
Pelo espaço vazio você também não pode ficar
Porque lugar de cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
stela do patrocínio
alfonsina brión
mamafesto no quintal
para carla diacov
1.
11
canção para ingressar
da matéria do mundo
diz respeito não somente
à aparência do mundo,
mas a essência de sua forma
de sua forma
12
a mãe doce
dizem:
do cabelo da bisavó
pingava mel,
mãezinha do céu
falou assim:
daquelas histórias tão açucaradas
na voz calma
vó índia
mãe doce
chamavam
13
este é um verso eterno
14
por enquanto não há previsão
de mudanças
15
acompanho os dias
teço frases na barriga com menstruação
altero meu corpo
16
norma nolan no banheiro
o lábio de lesbos
quando as ruas
se encontram
e as línguas
segredam
na flor da boca
exala o perfume
19
ave-do-paraíso
20
Macau é devolvida à China após quatrocentos
anos de ocupação portuguesa /
derreteram a Jules Rimet.
21
moradia
a casa a ponta
do cigarro acesa como estrela
descobria o mistério
da alma habitando
o corpo e o corpo
habitando a casa.
o tempo o sonâmbulo
sonhando de olho sentado estuda
rasgando a boca
o poema dizer amor
enquanto não descrevo um cavalo
não estou falando o que é certo
o erótico: mexer com a colher,
adicionar açúcar e
logo beber
e então gritar
(abafar o rouco)
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poema da luiza
você
escrevendo com outro
nome e eu
clicando no about
você
não dorme há
duas semanas
desde que eu te conheci
dream is destiny
teus
olhos caídos em novembro
e a boca carnal
e vermelha
e aberta
e o cabelo trançado
her
friends e ela;
gosta tanto de poemas
e misturar línguas
e eu também
23
o estudo do ritual em berlim
de Lisboa a Berlim
ainda não entendi por que saio
a casa para escrever
a casa é já bem velha
24
que a língua faz com ela
e na busca pelo oriente ela
não sabe a forma que a especiaria dá
25
sunset memorial park
26
fanchanté
Se eu tivesse sotaque
ou morasse na Europa
ou fosse latina-americana
e participasse de eventos com recepção
27
e eu estaria sentada na frente dessa máquina
procurando um verso pra acabar
com você
28
caminho das mãos vazias
29
recuperação do território ancestral
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passear o cachorro
a coleira no pescoço
sem a rédea das mãos o fio solto
arrastado pelo chão na tua
felicidade em fazer fotografias do cão
e o nome do bicho
o nicho no ninho de nossas mãos
cruzar como quem atravessa a praça
ou adentrar outro corpo
passar pela casa e a coleira no chão
o teu corpo no chão se exercitando
me olhando sobre os óculos
mas você não usa óculos
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o céu azul e você tão nebulosa
32
armour
33
antecedem a tua presença e a presença
que eu faço de você tomando café na manhã escura
é tarde e eu ainda reviso o vídeo que girava ao
[contrário
34
greenland
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as meninas
enquanto riam
as mãos descuidavam
as bocas tocavam
(mas sem disparar)
os dedos em forma
mas sem disparar
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o banquete das vontades
não tenho razão de ser nem finalidade própria
como um galopar de cavalos
enquanto fique e vá embora uma onomatopeia
para o orgasmo
eu sou a terra
olharia she looks in
distress she looks impressive
e sua pequena casa dançando dentro do peito
39
encontra banquete
banque as vontades e depois
não olhe pra trás
40
enquanto falamos sobre diáspora africana
brasileira a mulher terceirizada negra
vem trazendo uma bandeja,
quatro copos e água
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água e terra o princípio de tudo
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quando a boca se abriu eu vi a pele fina do céu
enquanto pensava o que dizer de boca
aberta pensava em alguma coisa pra dizer
que não fosse um poema excluir
a pele o corpo o poema principalmente
o poema e sua repetição a palavra
pele é uma imagem da pele a palavra
não sente o tato o leite quente ou ácido
não perfura a camada mais fina da pele da tua boca
só a presença do líquido tropical
descendo pela garganta atingindo o estômago pode
criar uma imagem da vida um conhecimento de
[mundo
nunca uma palavra uma sentença uma árvore
tudo é espontâneo nada
é morno uma fricção de dois corpos como
quem pretende acender o fogo com o peito
ou a boca porque quando apaga o fogo
desgraça a tribo
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uma casa começa como
um apelo para uma visão
da linguagem como você
escolhendo uma estrutura um tema
para uma construção como o corpo
que encontra o corpo e a cor nunca
a cor do corpo que não derrete
o corpo a cor da textura
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um café cremoso adicionado açúcar
ou levantar para pedir um pedaço
da torta ou pagar a conta
e debater da linguagem do
amor da vida ou os cabelos da
menina que pede um bombom josefina
e seu coque que se desfaz como
um borrão no fundo do
copo o café que indica um
futuro um café tinto como meu
corpo uma cor na pele na pele
mais sensível do meu sexo tinto
45
pensar uma arma como uma
arma e a biografia da arma
como um desafio nunca
a chegada da bala
pensar a arma como a meta
arma de um disparo como fim
e só o estilhaço
como a rua de uma cidade
pequena irrompida
pelo silêncio e as casas antigas
pensar uma arma como uma casa
não um lar
não uma porta
não um morador
talvez uma visita
e seu silêncio irrompendo a cidade
sua geografia mapeando os passos
de quem habita mora vive
caminha pelas ruas da cidade
atingido pela bala ou
pela casa
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imagine um filme e sua metáfora
para um compromisso o corpo preto
de um horário reservado e seus versos
e a crise como um filme
um verso como um plano
sequência e retirantes de pele
preta como a minha pele
não como a pele do casal
branco às seis da manhã
apostando quem é mais branco
enquanto retiro
a roupa a cor
da roupa o branco
como uma impureza
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o covarde desafinado como
um covarde desafinado matéria
a poética do invisível
como um tudo ou nada
um poeta invisível como
a cidade que resolvemos mapear
um diário um autorretrato uma viagem
pela geografia do impraticável
invisível
reflexo
como o medo de voar convertido
em talassofobia uma natação
como o treino de peito
borboleta temendo voar o encontro
como el pez dorado
a linguagem
o espaço
o invisível
48
uma rede de buracos
texto da aliteração velar-oclusiva i
51
texto da aliteração velar-oclusiva ii
52
texto da aliteração velar-oclusiva iii
53
texto da aliteração velar-oclusiva iv
54
método
a) o ataque ao estado
no jogo de resistência
- rolando –
é preciso aprender
a parar
b) o ataque à família
c) o ataque à religião
tudo opera
numa temporalidade
55
poema do angu
56
enquanto os dias continuam bruscos
e eu só quero saber
de dançar
57
o agora
58
na casa da crise
59
um substituto abstrato para
a palavra poema
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como um bis pra dizer
matando em nome
em nome da força
dos que trabalham e matam
em nome de estrelas
mortas
enquanto você continua fazendo o que
eles mandam bebendo de você
no ritual de posse
da estrela vermelha ou azul
meu sangue preto e a minha raiva
meu dom anti-você
como o suor do guitarrista
pingando como a fé
e você rezando ante
meu corpo preto pra mim
meu corpo fechado pra você
você não
não me diz o que fazer
paideuma
62
conto sobre a medusa protegida
por são brás
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criamos cobras em cativeiro
obedecendo à lei do mais fraco
mas, de pé, vemos aquela cabeça
e pisamos
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criamos cobras em cativeiro
e seu corpo é rabo e de pé
e sua cabeça na altura de nossos olhos
e as mãos apertam suas cabeças
65
posfácio (katunes)
caliban, o intempestuoso
69
olivetti studio 45
quando acaba
70
classe de palavras
construir
sem verbos
a ação dos corpos
motivar o movimento
das mãos
em marcha e as vozes
como um assobio
ou um canto
e o desejo
a transformação como
palavra voz presença
daquilo que queremos
fora
71
paixonite de papelaria
72
guernica 17
73
um cigarro aceso num cinzeiro
74
como quem pega ou amassa
(embora pegar relembre o toque
e amassar reduza o volume)
como quem providencia um carnaval
um incêndio e bocas reduzidas a
ar
fogo
& brasa
75
antiode para as baleias do mar do sul
da china
jonas,
acidente com avião da airasia
já está
entre os três mais graves de 2014
08 de março
: desaparece o Boeing 777-200 da Malaysia Airlines
76
que decolou de Kuala Lumpur com destino a Pequim;
no avião estavam 239 pessoas
(e até hoje não foram encontrados vestígios da
aeronave)
17 de julho
: cai o Boeing 777, também da Malaysia Airlines
(que vacilo!);
os 298 ocupantes morreram
abatidos por um míssil ucraniano
24 de julho
: 116 passageiros e 6 tripulantes
morreram na que
da do avião
md83
da companhia espanhola S
w
i
f
t
a
i
r
77
niño devorado por peces
y somente a cabeça e um pouco
das mãos ainda não eram só ossos
78
e tudo isso aconteceu com nós duas
79
consciente desprevenido no apêndice
difruço
80
há toques mais perfeitos como
quando os olhos encontram o suor da tarde
ou ardemos em febres noturnas de frases
81
bem na hora que você sorriu e a bala
ganhou o destino do meu peito
abri os olhos sobre a cama
82
Alguns dos poemas que compõem essa edição foram
publicados anteriormente:
fanchanté
(Jornal Tribuna de Minas/Brasil, 2015);
o poema da luiza
(Mallarmargens/Brasil, 2015);
junkbox antiode
(Mallarmargens/Brasil, 2015);
método
(Avenida Sul/Brasil, 2016);
ave-do-paraíso
(Literatura Br/Brasil, 2017).
mamafesto no quintal para
carla diacov
9
posfácio (katunes)
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anelise freitas é poeta. Publicou Vaca con-
templativa em terreno baldio (2011), O tal setem-
bro (2013) e Pode ser que eu morra na volta (2015).
Atualmente se dedica à produção editorial, do-
cência e a revisão, tradução e preparação de textos.
© Anelise Freitas, 2018
Projeto gráfico
Otávio Campos
Revisão
Fernanda Vivacqua
Fred Spada
isbn 978-85-93715-10-5
[2018]
edições macondo
Rua Barbosa Lima, 259/305
Centro – Juiz de Fora – mg
36010-050
edicoesmacondo.com.br
contato@edicoesmacondo.com.br
Acabam de ser impressos
150 exemplares de Sozé
com miolo em Pólen Bold 90 g/m²
e capa em Cartão Supremo 250 g/m²
para as Edições Macondo
em junho de 2018