Você está na página 1de 29

08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça


Processo: 440/12.2TBBCL.G1.S1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO
DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL
DIREITOS DE PERSONALIDADE
FILIAÇÃO BIOLÓGICA
PRESUNÇÃO DE PATERNIDADE
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 31-01-2017
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITOS DA PERSONALIDADE - DIREITO DA FAMÍLIA / FILIAÇÃO
/ RECONHECIMENTO JUDICIAL DA PATERNIDADE / ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DA
PATERNIDADE ( AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DA PATERNIDADE ) / PRAZO PARA
PROPOSITURA DA ACÇÃO ( PRAZO PARA PROPOSITURA DA AÇÃO ).
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / DIREITOS,
LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
Doutrina:
- GUILHERME DE OLIVEIRA, «Caducidade das ações de investigação», Lex familiae, n.º 1,
2004, 12-13; «Caducidade das ações de investigação», Comemorações dos 35 anos do C. Civil e
dos 25 anos de Reforma de 1977, Vol. I, 10.
- JORGE DUARTE PINHEIRO, O direito da família contemporâneo, 4.ª ed., 2013, 177, 178.
- JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, "Constituição da República Portuguesa” Anotada,
Tomo I, 2010, 552, 609, 814.
- PEREIRA COELHO e GUILHERME OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, vol. II, Tomo
I, 35, 249.
- PEREIRA COELHO, Curso de Direito de Família, Vol. II, tomo I, 2006, 252, 274.
- PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, "Código Civil”, Anotado, Vol. V, 1995, 82 e 83.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 70.º, 1602.º, 1817.º, N.º1, 1871.º, N.ºS 1 E 2, 1873.º,
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 18.º, N.ºS 1 E 2, 25.º,
N.º1, 26.º, N.º1, 36.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-N.º 23/2006, DE 10 DE JANEIRO (PUB. NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, I SÉRIE, DE 08 DE


FEVEREIRO DE 2006); N.º 476/2011, DE 12 DE OUTUBRO DE 2011; N.º 106/2012, DE 06 DE
MARÇO DE 2012; N.º 166/2013, DE 20 DE MARÇO DE 2013; N.º 441/2013, DE 15-06-2013; N.º
350/2013, DE 19-06-2013 E N.º 750/2013, DE 23-10-2013, ACESSÍVEIS IN
WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT .
*
EM SEDE DE FISCALIZAÇÃO CONCRETA, EM PLENÁRIO, O ACÓRDÃO N.º 401/2011,
DE 22.09.2011.
Sumário :
I. A ação de investigação de paternidade tem como escopo a atribuição
jurídica da paternidade do filho ao progenitor biológico deste, pelo que o
facto de onde emerge tal direito é a procriação biológica/geração,
constituindo tal facto jurídico procriador (relação sexual fecundante) a
respetiva causa petendi.

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 1/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

II. Tal facto jurídico pode lograr prova, quer diretamente, enquanto prova
da procriação / filiação biológica (via biológica), quer indiretamente,
através do uso de alguma das presunções legais (da relação biológica) de
paternidade previstas no nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, desde que
não ilididas, nos termos do nº 2 do mesmo normativo (via presuntiva),
podendo tais vias ser invocadas cumulativamente (como sucede no caso
dos autos).
III. Na presente ação de investigação de paternidade, enquanto ação
fundada na presunção de paternidade estabelecida na alínea a) do nº 1 do
no artigo 1871º do Código Civil, à A. cabe provar os factos-base de tal
presunção, em concreto, a posse de estado, a qual é integrada, conjunta e
cumulativamente, por três elementos: (i) a reputação como filho pelo
pretenso pai (nomen); (ii) o tratamento como filho pelo pretenso pai
(tractatus); e (iii) a reputação como filho do pretenso pai pelo público
(fama).

IV. A norma constante do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, na


dimensão interpretativa que prevê um prazo limitador da possibilidade da
A., enquanto filha, propor a presente ação de investigação de paternidade,
com fundamento no facto biológico da filiação, é inconstitucional, uma
vez que o direito a conhecer a ascendência biológica constitui dimensão
essencial do direito à identidade pessoal previsto no artigo 26º, nº 1, da
Constituição da República Portuguesa, e o direito a estabelecer os
concomitantes vínculos jurídicos traduz uma dimensão do direito a
constituir família previsto no artigo 36º, nº 1, da Constituição da
República Portuguesa, consubstanciando tal prazo limitador uma restrição
excessiva ou desproporcionada aos assinalados direito fundamental à
identidade pessoal e direito de constituir família, bem como ao próprio
direito geral de personalidade dos investigantes (cfr. artigo 70º do Código
Civil).
Decisão Texto Integral:

ACÓRDÃO

Acordam na 1ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório
1. AA instaurou, em 07.2.2012, a presente ação declarativa, sob a forma
de processo comum ordinário, contra BB, pedindo que:
— Se declare e condene o R. a reconhecer que a A. é sua filha, com as
consequências legais;
— Se reconheça que a A. tem o direito de obter o registo da referida

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 2/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

paternidade, na Conservatória do Registo Civil, aí devendo ser cancelados


quaisquer registos efetuados em contrário.
Para tanto alegou, em síntese, que:
— A A. nasceu em 00.00.1949, tendo sido registada apenas como filha de
CC, solteira, com 36 anos de idade e natural da freguesia de ..., ..., ..., mas
também é filha do R. e é por ele perfilhável, dado não haver entre ambos
relações de parentesco ou de afinidade que obstem a tal;
— O nascimento da A. ocorreu no termo da gravidez da sua mãe e como
consequência das relações de cópula havidas entre ela e o R., com quem
mantinha uma relação de proximidade e amor, publicamente conhecida,
nunca tendo tido a sua mãe, durante a relação com o R., e, nomeadamente
nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o seu nascimento,
relações sexuais de cópula com qualquer outro homem que não aquele;
— O R. sempre teve para com a A. atitudes que normalmente os pais têm
para com os filhos, nomeadamente, questionando-a se está tudo bem, se
precisa de alguma coisa e inclusive concedendo-lhe a bênção quando a A.
a solicitava, como era costume na época, tendo o R. chegado a propor à
mãe da A. irem residir para Angola, onde este lhes proporcionaria o
sustento para ambas, o que não se concretizou devido à oposição dos avós
maternos da A.;
— Esta situação era conhecida e comentada por todas as pessoas amigas e
conhecidas, da freguesia de ... (...) e arredores, já que todas sabiam que a
A. é filha do R. e onde sempre foi apelidada de "...", "..." em virtude da
alcunha da família do R. ser "...".
Requereu, ainda, produção antecipada de prova, solicitando que A. e R.
«simultaneamente, sejam submetidos a colheitas de sangue e zaragota
bucal e seja realizada perícia de investigação biológica de paternidade,
pelo serviço de genética e biologia forense do Instituto de Medicina
Legal».
2. Citado, o R. apresentou contestação, invocando a exceção perentória da
caducidade do direito da A., e, por impugnação, afirmando nunca ter
ocorrido qualquer relação sexual de cópula completa entre o R. e a mãe
da A., bem como nunca ter tido quaisquer atitudes de pai para com a A..
3. A A. replicou quanto à matéria da exceção, sustentando a
imprescritibilidade do direito a investigar a sua paternidade.
Conclui pela improcedência da exceção de caducidade.
4. Admitida a realização de exame pericial, o R. nunca compareceu, e,
tendo sido determinada a deslocação do Instituto de Medicina Legal à
residência do R., o mesmo, por requerimento de fls. 97-98, veio recusar
submeter-se a tal exame.
5. Perante a recusa do R., a fls. 99, foi proferido o seguinte despacho:

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 3/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

«Tal declaração por parte do R será devidamente tida em conta a seu


tempo».
5.1. E, no ulterior desenvolvimento dos autos, a fls. 225/229, foi proferido
despacho que conclui da forma seguinte:
«(…) Diferente é a cominação prevista no art. 344º, nº 2 do Código Civil.
Na verdade, a prática pela força de um acto médico como é o de recolha
de sangue para realização dos exames necessários é incompatível com o
direito constitucionalmente consagrado à integridade física (cf. Artigo
25º da CRP e Acórdão do Tribunal Constitucional nº 616/98, DR. II série,
de 17/3/99). Opta-se antes por considerar que a recusa ilegítima na
efectivação do exame implicará, deste modo, para o réu o ónus de
demonstrar que não é o pai biológico da investigante, invertendo-se o
ónus da prova a cargo da autora (neste sentido, cf. Carlos Lopes do
Rego, RMP nº58, p.171). E há que fazer tal cominação que se encontra
em falta!
Assim, tendo em conta os considerandos acima tecidos, notifique o Réu
do presente despacho bem como para as consequências legais no que
respeita ao ónus da prova (vejam-se neste sentido, entre outros, Acs. do
STJ de 23.10.2007, da Relação do Porto de 04.07.2001 e 25.11.2004, e o
recente Ac. da Relação de Guimarães de 24.04.2014, in www.dgsi.pt).
Notifique.»
6. Findos os articulados, foi proferido despacho a convidar a A. a
aperfeiçoar a petição inicial, «aduzindo factos integradores de algumas
daquelas estatuições legais (artigo 1817º, nº 3, alíneas a) a c) do Código
Civil)».
6.1. No acatamento do convite formulado, a A. procedeu ao
aperfeiçoamento da petição inicial.
7. Foi proferido despacho saneador, em que se relegou o conhecimento da
exceção de caducidade para final, sendo, de seguida, selecionada a
matéria de facto tida por relevante com organização da base instrutória
8. Realizado o julgamento, foi proferida sentença final, que julgou
procedente a exceção de caducidade do direito à ação, absolvendo o R. do
pedido de investigação da paternidade formulado nestes autos pela A..
9. Não se conformando com esta decisão, a A. interpôs recurso de
apelação para o Tribunal da Relação de ….
10. O Tribunal da Relação de …, julgando improcedente a apelação
(designadamente, quanto à impugnação da decisão relativa à matéria de
facto), confirmou, integralmente, a decisão recorrida.

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 4/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

11. Mais uma vez inconformada, a A. / Apelante veio interpor revista a


título excecional, a qual foi considerada admissível, nos termos da alínea
a) do nº 1 do artigo 672º do Código de Processo Civil, conforme o
acórdão de fls., proferido pela formação dos Juízes deste Supremo
Tribunal prevista no nº 3 do indicado normativo.
12. A A. / Recorrente apresentou alegações, em que formula as seguintes
(transcritas) conclusões:
1ª. Embora o Acórdão recorrido, da Relação de …, tenha confirmado a
decisão proferida na 1ª instância, o presente recurso é admissível, nos
termos do previsto nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 672º do
Código de Processo Civil, já que, os interesses em causa no presente
processo são de particular relevância social.
2ª. A certeza da filiação, ou seja, o direito de ser pai ou ter a certeza da
sua paternidade tem uma relevância social incomensurável, já que, resulta
de tal certeza do direito uma infinidade de demais direitos conexos, quais
sejam as relações patrimoniais.
3ª. Em causa estão interesses que assumem importância na estrutura e
relacionamento social, podendo interferir, designada mente, com a
tranquilidade e segurança relacionadas com o crédito das instituições e a
aplicação do direito, ou ainda quando se trate de questão suscetível de
afetar um grande número de pessoas. A presente questão extravasa as
próprias fronteiras do concreto processo e interessa à sociedade em geral.
4ª. No que respeita à relevância jurídica desta questão, a existência de
prazos de caducidade nas ações de investigação da paternidade, a mesma
prende-se pelo elevado grau de complexidade que apresenta, pela
controvérsia que gera na doutrina e na jurisprudência.
5ª. Assim, a apreciação desta questão concreta pelo Supremo Tribunal de
Justiça tem em vista a obtenção de decisão suscetível de contribuir para a
formação de uma orientação jurisprudencial.
6ª. Pelo que, tendo em vista uma melhor aplicação do direito, a qual é
claramente necessária, também se justifica a interposição desta revista
excecional.
7ª. Acresce ainda que, o presente Acórdão da Relação de … está em
contradição com vários outros Acórdãos, quer proferidos pela Relação,
em especial pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06 de
setembro 2011, processo n.º 1167/10.5TBPTL.S1, 1ª Secção, votado por
unanimidade, e pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de
Janeiro de 2012, processo nº 193/09.1TBPTL.G1.S1, votado também
por unanimidade, transitados em julgado, conforme cópia dos mesmos e
cuja certidão se protesta juntar.

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 5/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

8ª. No Supremo Tribunal de Justiça é clara tendência para considerar


como contrária ao texto constitucional qualquer limitação temporal ao
exercício de ação desta natureza.
9ª. Assim, não restam dúvidas, face ao ora alegado, do direito da
Recorrente apresentar o presente recurso de revista excecional, direito
inalienável e que não lhe pode ser retirado, até porque retirar-lhe tal
direito, por força da caducidade que se encontra plasmada na sentença
recorrida, é claramente injustificado, face aos valores da filiação que
estão em causa nos presentes autos, os quais foram negados à ora
Apelante, pela sentença de que se recorre.
10ª. Contrariamente à douta posição sufragada, entende a Apelante que
ficou amplamente provado que o Réu sempre tratou a Autora como sendo
sua filha. E que a mesma era reputada como tal também pelo público em
geral.
11ª. Ora o tratamento como filha cessou quando o Réu, atenta a sua idade
avançada e debilidade física, deixou de viver sozinho e começou a fazer-
se constantemente acompanhar por familiares.
12ª. À luz do quadro vigente, a pretensão da A. cabe perfeitamente no
disposto na al. a) do n.º 3 do artigo 1817º do CC, tendo ficado
amplamente provado a cessação de tratamento como filha, por parte do R
e, no ano de 2012, estava ainda em prazo para intentar a presente ação.
13ª. E, mais como determina o n.º 4 da citada disposição legal, "nos casos
referidos na al. b) do número anterior, incumbe ao R. a prova da
cessação voluntária do tratamento nos três anos anteriores à propositura
da ação".
14ª. Ora, uma vez mais, a prova do R. quanto a esta questão foi
completamente inexistente. Em contrapartida, a A. logrou provar a
cessação desse tratamento.
15ª. No que toca à prova da filiação biológica, o Tribunal da Relação
alicerçou a sua posição num facto manifestamente equivocado.
16ª. Isto porque resulta efetivamente claro a inversão de ónus de prova. E
não no despacho de fls. 99, o qual foi posteriormente aperfeiçoado pela
Mma. Juíza da 1ª Instância, no seu despacho de fls._, referência
137709321.
17ª. Assim, a recusa do réu, tornando impossível a prova do vínculo
parental, determinou a inversão do ónus da prova, nos termos dos artigos
344º n.º 2 do C. Civil e 471º do CPC e devia ter sido o réu a demonstrar,
através de meio de prova tão significativo como o ADN, que não é o pai
da investigante. O que não fez!

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 6/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

18ª. Ora, a Recorrente resigna-se contra o facto de tal equívoco não ter
sido corrigido pelo Venerando Tribunal da Relação: onde está, afinal,
efetivado o ónus de impugnação a cargo do Réu, em virtude da inversão
operada?
19ª. O Réu não logrou fazer prova da inexistência de qualquer facto
superveniente nos três anos anteriores à propositura da ação, pois não fez
qualquer prova!
20ª. Pelo que entende a Recorrente que o Acórdão recorrido deverá
baixar a Relação para que seia corrigido este flagrante erro judiciário,
o que se requer, ao abrigo do disposto no artigo 682º, n.º 2 e 3 e 683º,
n.º 1 do CPC.
21ª. Pugna a Apelante pelo facto de ter conseguido provar, através de
prova testemunhal, que entre a sua mãe, CC e o R. BB existiu
efetivamente uma relação amorosa secreta e que a sua mãe, à data dos
factos, não tinha nenhum relacionamento com outros homens.
22ª. A existência de prazos de caducidade das ações de investigação de
paternidade, impostos ao investigante, obstando a que, a todo o tempo,
obtenha o reconhecimento judicial da sua ascendência biológica
traduzem-se numa restrição, violadora dos princípios constitucionais
consagrados nos artigos 18º nº 2, 26º nº 1 e 36º nº 1 CRP, configurando
uma restrição desproporcionada do direito à identidade das pessoas.
23ª. À Recorrente não lhe pode ser coartada a possibilidade legal do
investigar a sua paternidade, com todas as demais consequências legais
resultantes desta mesmo proceder, direito que terá que prevalecer sobre
qualquer norma civilista, sob pena de inaceitável discriminação de um
dos elos da relação jurídico-filial.
24ª. Tendo em conta que no nosso ordenamento jurídico, em que a ação
de investigação da paternidade ou maternidade constitui o meio que
assiste ao pretenso filho para obter o reconhecimento judicial da sua
ascendência biológica, não se justifica qualquer limite temporal para o
seu exercício.
25ª. O Estado não pode restringir o estabelecimento da filiação, através de
prazos de caducidade, na medida em que ao condicionar a instauração de
ações de investigação de paternidade/maternidade, está a restringir
desproporcionadamente estes direitos.
26ª. Em suma, pleiteia a Recorrente pela violação dos artigos 1817º, n.º 3,
aI. b) por remissão do 1873º e 1798º todos do C.C.; dos artigos 471º, 639º
e 64º, do CPC e, ainda, o disposto nos artigos 16º, 18º n.º 2, 25º n.º 1, 26º,
n.º 1 e 36º n.º 1 da CRP.
Conclui pela procedência do recurso.
www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 7/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

13. O R. / Recorrido contra-alegou, pugnando pelo infundado da revista e


formulando as seguintes (transcritas) conclusões:
1ª. O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos
recorrentes, não podendo o Tribunal de recurso conhecer de matérias
nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (arts.
635°, nº 4 e 639° do CPC).
2ª. O douto Acórdão revidendo confirmou, com os mesmos fundamentos,
a decisão da 1a Instância, julgando procedente a excepção da caducidade
do direito da A. para o exercício do direito de investigar a paternidade, e
em consequência, absolveu o recorrido do pedido que contra si foi
formulado.
3ª. Da situação de dupla conforme nos autos, a presente Revista
excepcional tem por único objecto a concreta questão de inaplicabilidade
do prazo de caducidade nas acções de investigação de paternidade,
previsto no art° 1817°, nº 1 do Cód. Civil (ex vi art° 1873°), com
fundamento na inconstitucionalidade que a recorrente invoca.
4ª. A questão não é nova, já se encontra estudada e estabilizada na
jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de
Justiça, sendo pacífico o entendimento de que o art° 1817° do Cód. Civil
não padece de qualquer inconstitucionalidade.
5ª. Este entendimento vem, de resto, expresso no recente Ac. do STJ, de
17-11-2015, proferido no processo 30/14.5TBVCD.P1.S1, in
www.dgsi.pt. para cuja fundamentação se remete, e que por unanimidade
decidiu: "O estabelecimento do prazo de caducidade no n.º 1 do art.
1817.° do CC, para a investigação de paternidade - aplicável por força
da remissão prevista no art. 1873. ° do mesmo diploma -, na redacção
dada àquele pela Lei n.º 14/2009, de 01.04, não padece de qualquer
inconstitucionalidade.”
6ª. É sabido que, o Tribunal Constitucional, em Plenário, pelo Acórdão n.º
401/2011 de 22/09/2011 (publicado no DR, 2.a Série, de 03/11/2011)
decidiu "Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.°, n.º 1 do
Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em
que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do
artigo 1873.°, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a
propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do
investigante".
7ª. Este entendimento, sufragado no citado Acórdão nº 401/2011, vem
sendo acolhido por ulteriores Acórdãos do Tribunal Constitucional.
- cfr., entre outros, os Acórdãos n.°s 445/2011, de 11/10/2011; 446/2011
de 11/10/2011; 476/2011 de 12/10/2011; 545/2011 de 16/11/2011;

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 8/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

106/2012, de 06/03/2012; 24/2012 de 17-01-2012 e 247/2012 de


22/05/2012, in www.tribunalconstitucional.pt
8ª. Sendo defendido nas referidas decisões que "o prazo de 10 anos após
a maioridade ou emancipação, consagrado no artigo 1817.°, n.º 1, do
Código Civil, revela-se como suficiente para assegurar que não opera
qualquer prazo de caducidade para a instauração pelo filho duma acção
de investigação de paternidade, durante a fase da vida deste em que ele
poderá ainda não ter a maturidade, a experiência de vida e a autonomia
suficientes para sobre esse assunto tomar uma decisão suficientemente
consolidada".
9ª. Bem como que é "do interesse público que se estabeleça o mais breve
que seja possível a correspondência entre a paternidade biológica e a
paternidade jurídica, fazendo funcionar o estatuto jurídico da filiação
com todos os seus efeitos, duma forma estável e que acompanhe durante
o maior tempo possível a vida dos seus sujeitos"
10ª. E, como defendem, o meio para tutelar estes interesses atendíveis,
públicos e privados (segurança para o investigado e sua família) ligados à
segurança jurídica "é precisamente a consagração de prazos de
caducidade para o exercício do direito em causa. Esses prazos funcionam
como um meio de induzir o titular do direito inerte ou relutante a exercê-
lo com brevidade, não permitindo um prolongamento injustificado duma
situação de indefinição, tendo desta forma uma função compulsória, pelo
que são adequados à protecção dos apontados interesses, os quais
também se fazem sentir nas relações de conteúdo pessoal, as quais, aliás,
têm muitas vezes, como sucede na relação de filiação, importantes efeitos
patrimoniais".
11ª. Princípios, estes, também merecedores de tutela constitucional -
interesse público na certeza e segurança jurídica - sempre presente em
toda a regulamentação jurídica e intimamente ligado à consagração de
qualquer prazo para o exercício de um direito (art.º 20 da C. R.
Portuguesa).
12ª. Na sequência da declaração de constitucionalidade operada no
referido acórdão do Tribunal Constitucional nº 401/2011, a jurisprudência
do Supremo Tribunal de Justiça vem decidindo, de forma unânime, que o
art° 1817° do Cód. Civil não é inconstitucional.
13ª. Da conciliação do prazo geral de dez anos (nº1) com os prazos
especiais de três anos (nº3), fixados pelo art° 1817° do Cód. Civil, é
entendimento pacífico na jurisprudência do Tribunal Constitucional e do
Supremo Tribunal de Justiça que, o actual regime de prazos para a
investigação da filiação, é razoável, proporcional e mostra-se
suficientemente alargado para conceder ao investigante uma real
possibilidade de exercício do seu direito.

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 9/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

14ª. Sendo certo que, ao estabelecer prazos de caducidade, o legislador


não desrespeitou as fronteiras da suficiência da tutela, uma vez que a
limitação estabelecida não impede o titular do direito de o exercer,
impondo-lhe apenas o ónus de o exercer em determinado prazo.
15ª. Nos presentes autos, a recorrente não cita qualquer acórdão do
Tribunal Constitucional que haja decidido no sentido que ela defende
sendo certo que, os Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça referidos
pela recorrente para sustentar o seu entendimento, são todos eles
anteriores às sucessivas declarações de constitucionalidade proferidas
pelo Tribunal Constitucional e por este Supremo Tribunal de Justiça (cfr.
G) das conclusões).
16ª. Encontra-se, assim, estabilizado o entendimento acolhido no Tribunal
Constitucional e no Supremo Tribunal de Justiça, de que o art° 1817° do
Cód. Civil não viola os direitos constitucionais da paternidade biológica e
do estabelecimento do respectivo vínculo jurídico, abrangidos pelos
direitos fundamentais à identidade pessoal (art° 26° nº1 e 36°, nº 1 da
CRP) e, consequentemente NÃO padece de qualquer
inconstitucionalidade.
17ª. Daí que, assente e estabilizada como está a questão, a interposição da
presente revista excepcional, por falta de requisitos, deve ser recusada.
18ª. Como bem refere o douto Acórdão revidendo, tendo a A. nascido em
1.12.1949, e tendo a acção dado entrada em juízo em 7.2.2012, ou seja
decorridos ambos os prazos previstos no nº 1 do artº 1817° do Cód. Civil,
deveria a recorrente, como era seu ónus, alegar e provar quaisquer factos
susceptíveis de integrar alguma das alíneas do nº 3 do preceito.
19ª. Ao contrário da conclusão da recorrente, a prova daqueles factos não
aconteceu: nem que um ano antes da propositura da acção o Réu deixasse
de tratar a A. como filha, nem que tal tratamento alguma vez existisse em
momento anterior (tratamento esse que, por nunca ter existido, não
poderia também alguma vez ter cessado), pelo que o direito da A.
propor a acção com o R. caducou.
20ª. Não resultou demonstrada nos autos a existência de qualquer vínculo
biológico de progenitura que, pretensamente, ligue o recorrido à
recorrente, uma vez que não ficou provada a existência de relações
sexuais mantidas entre o recorrido e a mãe da A., e muito menos causais
do nascimento desta.
21ª. Ao contrário da conclusão da recorrente, o Tribunal a quo"
interpretou e aplicou correctamente o disposto nos art°s 1817° (ex vi dos
art°s 1873° e 1798°), todos do Cód. Civil; nos art°s 471°, 639° e 64° do
CPC, e nos art°s 16°, 18°, 25°, 26° e 36°da CRP, devendo ser mantido o
douto Acórdão revidendo.

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 10/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

14. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II. Delimitação do objeto do recurso
Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto
nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo
Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões
formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da
leitura das conclusões recursórias formuladas pela A. / ora Recorrente
decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes
questões:
No âmbito do estabelecimento judicial da paternidade, por presunção, não
ilidida, enunciada na alínea a) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil:
(i) Da aplicação do disposto nos artigos 682º, nºs 2 e 3, e 683º, nº 1, do
Código de Processo Civil, para correção do "flagrante erro judiciário"
cometido pelo Tribunal da Relação de …;
(ii) Da pretextada prova da "posse de estado" [para efeitos de
estabelecimento da presunção de paternidade enunciada na alínea a) do nº
1 do artigo 1871º do Código Civil] e da "cessação do tratamento como
filha" (para efeitos de aplicação do prazo previsto no nº 3 do artigo 1817º
do Código Civil);
No âmbito da prova direta da filiação biológica:
(iii) Da exceção de caducidade da ação e da invocada
inconstitucionalidade do nº 1 do artigo 1817º, nº 1 do Código Civil;
(iv) Da pretextada violação da inversão do ónus da prova determinada por
despacho de fls. 225/229.
III. Fundamentação.
1. Factualidade dada como provada
Vem provada pelas Instâncias a seguinte factualidade:
1.1. A Autora nasceu no dia 00 de … de 1949, tendo sido registada na
Conservatória de Registo Civil de ... apenas como filha de CC [A) da
matéria assente].
1.2. Sendo sua mãe ao tempo solteira, com 36 anos de idade, e natural da
Freguesia de ... ... deste Concelho e comarca [B) da matéria assente].
1.3. O Réu é natural da Freguesia de ... ... [C) da matéria assente].
1.4. O Réu à data do nascimento da Autora encontrava-se com 21 anos de
idade e no estado de solteiro [D) da matéria assente].

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 11/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

1.5. O Réu sempre que se dirigia à sua casa da Freguesia de ... ... e se
cruzava com a Autora questionava-a se estava tudo bem com ela, bem
como do estado de saúde do seu filho [Pontos 7º e 14º da base
instrutória].
1.6. O Autor fez o serviço militar num quartel da cidade de …, onde
assentou praça em 00 de … de 1949 [ponto 15º da base instrutória].
1.7. Tendo terminado o serviço militar a 00 de … de 1951 [ponto 16º da
base instrutória].
1.8. Em 00 de … de 1951 o Réu teve licença para se ausentar para a então
colónia de Angola para onde veio a emigrar em data não concretamente
apurada [ponto 18º da base instrutória].
1.9. Tendo permanecido em Angola até … de 1975 [ponto 19º da base
instrutória].
1.10. Data em que regressou definitivamente a ..., onde se instalou com a
sua família na Freguesia de ... ... e, logo de seguida, na cidade de ...
[ponto 20º da base instrutória].
1.11. E onde passou a residir até hoje [ponto 21º da base instrutória].
1.12. A Autora sempre foi apelidada de “...” e “...” e a alcunha da família
do Réu é “...” [ponto 11º da base instrutória].
1.13. A ação foi proposta em 07 de Fevereiro de 2012.
2. Da pretextada prova da "posse de estado" [para efeitos de
estabelecimento da presunção de paternidade enunciada na alínea a) do nº
1 do artigo 1871º do Código Civil] e da "cessação do tratamento como
filha" (para efeitos de aplicação do prazo previsto no nº 3 do artigo 1817º
do Código Civil)
2.1. Enquadramento preliminar
Estamos no âmbito de uma ação de investigação da paternidade,
instaurada, em 07.2.2012, pela A., com vista ao reconhecimento pelo R.
da sua paternidade em relação à mesma A.
Tendo tal ação como escopo a atribuição jurídica da paternidade do filho
ao progenitor biológico deste, então, o facto de onde emerge tal direito é a
procriação biológica ou geração, constituindo tal facto jurídico procriador
(relação sexual fecundante) a respetiva causa petendi.
Sucede que tal facto, pode lograr prova:
— diretamente, enquanto prova da procriação / filiação biológica (via
biológica);

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 12/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

— ou indiretamente, através do uso de alguma das presunções legais (da


relação biológica) de paternidade previstas no artigo 1871º do Código
Civil, desde que não ilididas nos termos do nº 2 do mesmo normativo (via
presuntiva),
podendo tais vias ser invocadas cumulativamente (como sucede no caso
dos autos).
No caso em presença, a causa de pedir complexa invocada mostra-se,
então, integrada:
— pelo facto jurídico procriador (procriação biológica: o facto de a A. ter
sido gerada através de cópula fecundante entre a sua mãe e o R.), cuja
prova direta a A. se propõe;
— pelo facto-base da presunção estabelecida na alínea a) no nº 1 do artigo
1871º do Código Civil (posse de estado);
— e pelo facto-base da presunção estabelecida na alínea d) no nº 1 do
artigo 1871º do Código Civil [consignado-se quanto a este fundamento
que, na condensação efetuada, apenas foi selecionada a alegação factual
transposta para os pontos 4º e 5º da Base Instrutória; na impugnação da
matéria de facto provada perante a Relação de Guimarães, pela A. não
foram sequer questionadas as "respostas negativas" a tais pontos 4º e 5º
da Base Instrutória, pelo que a mera declaração de discordância ora
ínsita na conclusão recursória 20ª resulta totalmente ininteligível à luz do
objeto da presente revista, com a consequente inatendibilidade].
À luz da causa de pedir invocada e da exceção de caducidade da ação
invocada pelo R., analisemos, então, as questões suscitadas pela
Recorrente.
2.2. Da pretendida correção do "flagrante erro judiciário" cometido
pelo Tribunal da Relação de Guimarães
Desde logo, vem a A. / Recorrente pugnar pela correção (mediante a
baixa do Acórdão recorrido à Relação) do que designa por "flagrante erro
judiciário", sustentando:
— Por um lado, que ficou amplamente provado que o R. sempre tratou a
A. como sendo sua filha e que a mesma era reputada como tal também
pelo público em geral, tendo tal tratamento como filha cessado quando o
R., atenta a sua idade avançada e debilidade física, deixou de viver
sozinho e começou a fazer-se constantemente acompanhar por familiares;
— Por outro lado, ser a prova do R. completamente inexistente quanto à
cessação voluntária daquele tratamento nos três anos anteriores à
propositura da ação,

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 13/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

e concluindo que, à data da propositura da ação, estava ainda em prazo


para intentar a mesma.
Importa, assim, começar por indagar da possibilidade de o Supremo
Tribunal de Justiça sindicar o juízo emitido pela Relação de …
quanto à impugnação da matéria de facto.
Consabido é que o Supremo Tribunal de Justiça, não "julga de facto" mas
tão-só "de direito" e, nessa conformidade:
— Em regra, ao Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista,
compete somente a aplicação, em definitivo, do regime jurídico que
julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido (cfr.
nº 1 do artigo 682º do Código de Processo Civil);
— À Relação comete-se o dever de modificar a decisão sobre a matéria
de facto, sempre que os factos tidos como assentes, a prova produzida ou
um documento superveniente impuserem decisão diversa, dentro do
quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo
artigo 662º do Código de Processo Civil.
Todavia, excecionalmente, no recurso de revista, o Supremo Tribunal
de Justiça:
(i) Pode corrigir qualquer "erro na apreciação das provas ou na fixação
dos factos materiais da causa" se houver ofensa pelo tribunal recorrido de
uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a
existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de
prova (prova tarifada ou legal), nos termos das disposições conjugadas
dos artigos 682º, nº 2, e 674º, nº 3, ambos do Código de Processo Civil;
(ii) Intervém na decisão sobre a matéria de facto, quando entenda que
a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base
suficiente para a decisão de direito, nos termos do nº 3 do artigo 682º do
Código de Processo Civil;
(iii) Tem intervenção na decisão sobre a matéria de facto se
considerar que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto
que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, nos termos do referido nº 3
do artigo 682º do Código de Processo Civil.
Em síntese:
— Às instâncias compete apurar a factualidade relevante;
— Com carácter residual, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça
destina-se a averiguar da observância das regras de direito probatório
material, a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de
contradições sobre a mesma existentes.

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 14/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

Aqui chegados, averiguemos, então, se o Tribunal da Relação de …, ao


manter a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto provada, violou,
ou não, o artigo 662º do Código de Processo Civil e se tal (eventual)
violação é sindicável por este Tribunal.
No caso dos autos, a A. / Recorrente limita-se a manifestar a sua
discordância relativamente à decisão sobre a matéria de facto (no que
aqui releva, pontos 8º a 14º da Base Instrutória julgados não provados;
quanto à afirmação) e à questão de, em seu entender, não terem sido
extraídas consequências, da circunstância de o R. não ter provado a
cessação voluntária do tratamento nos três anos anteriores à propositura
da ação.
Como assim:
— Não se verifica qualquer inobservância das regras de direito
probatório material, uma vez que a aludida pretensão de aplicação do
regime constante dos nºs 3 e 4 do aludido artigo 1817º do Código Civil,
em matéria da caducidade da ação, só teria lugar caso se verificasse o
preenchimento do facto-base da presunção estabelecida na alínea a) do nº
1 do artigo 1871º do Código Civil, o que não ocorreu (como no
subsequente ponto III.2.3. melhor se analisará);
— Não ocorre qualquer insuficiência da decisão de facto (questão que
não pode ser confundida com qualquer insuficiência de prova para a
decisão de facto proferida, esta inscrita no âmbito do princípio da livre
apreciação), que determine a intervenção deste Supremo Tribunal, nos
termos apontados pelo nº 3 do artigo 682º do Código de Processo Civil,
dado que a decisão sobre a matéria de facto provada proferida pelo
Tribunal da Relação se mostra suficiente para suportar / justificar a
solução jurídica adotada quanto ao não preenchimento da previsão
normativa favorável à pretensão da A., na perspetiva do efeito
pretendido, por incumprimento, por banda da A., do ónus probatório que
sobre si impendia (prova, em primeira linha, dos factos-base da presunção
legal invocada);
— Não ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que
determinem a intervenção deste Supremo Tribunal nos termos
apontados pelo nº 3 do artigo 682º do Código de Processo Civil,
porquanto não há qualquer colisão entre a decisão de não alteração da
matéria de facto que inviabilize a solução jurídica adotada quanto ao
não estabelecimento da presunção de paternidade enunciada na
alínea a) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil e consequente
inaplicabilidade, em matéria de caducidade da ação, do prazo de 3
anos previsto na al. b) do nº 3 do artigo 1817ºdo Código Civil (e
sequencialmente, do nº 4 do mesmo artigo)

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 15/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

E, não se verificando qualquer das anteriormente assinaladas


circunstâncias excecionais que permitem ao Supremo Tribunal de Justiça
sindicar a alteração da decisão sobre a matéria de facto emitida pela
Relação de …, improcedem as razões da Recorrente.
2.3. Do pretextado estabelecimento da presunção de paternidade
enunciada na alínea a) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil e da
aplicação à propositura da ação do prazo previsto na alínea b) do nº 3
do artigo 1817º do mesmo diploma
2.3.1. Enquadramento prévio
Neste particular, vem a A. / Recorrente sustentar que:
— Por um lado, ficou provado que o Recorrido sempre tratou a
Recorrente como sendo sua filha e que a mesma era reputada como tal
também pelo público em geral, e que esse tratamento cessou cerca de um
ano antes de instaurar a ação, pelo que estaria ainda em prazo para
intentar a presente ação;
— Por outro lado, sempre incumbiria ao Réu a prova da cessação
voluntária do tratamento nos três anos anteriores à propositura da ação.
O Acórdão sob recurso, quando discorre, em matéria de caducidade da
ação, sobre a questão da não aplicação do prazo previsto na alínea b) do
nº 3 do artigo 1817º do Cód. Civil, acaba, implícita, mas naturalmente,
por não julgar verificados também os fundamentos do estabelecimento
judicial da paternidade, por presunção, não ilidida, enunciada na alínea a)
do artigo 1871º do Cód. Civil, com fundamento em que a A. não logrou
provar a posse de estado.
Importa, assim, que previamente à apreciação da questão da caducidade,
se indague sobre a presunção de paternidade que a A. se arroga.
Conforme anteriormente referido, a presente ação de investigação de
paternidade sendo, simultaneamente, direta e presuntiva, tem como
fundamento, além da filiação biológica, a presunção legal de posse de
estado estabelecida na alínea a) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil,
que dispõe «a paternidade presume-se quando o filho houver sido
reputado e tratado como tal pelo pretenso pai e reputado como filho
também pelo público».
Assim, enquanto ação de investigação da paternidade fundada na
presunção de paternidade estabelecida naquela alínea a) do nº 1 do
no artigo 1871º do Código Civil, cabe à A. provar os factos-base de tal
presunção, em concreto, a posse de estado, a qual é integrada, conjunta e
cumulativamente, por três elementos: (i) a reputação como filho pelo
pretenso pai (nomen); (ii) o tratamento como filho pelo pretenso pai
(tractatus); e (iii) a reputação como filho do pretenso pai pelo público
(fama).
www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 16/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

Na dilucidação de tais requisitos cujo preenchimento cumulativo se torna


necessário para a verificação da denominada posse de estado de filho,
explicita JORGE DUARTE PINHEIRO: «A reputação como filho
consiste na convicção íntima por parte do investigado, de que é pai do
investigante. O tratamento como filho traduz-se na prática, por parte do
pretenso pai, para com o investigante, dos atos de assistência que os pais
normalmente costumam dispensar aos filhos, incluindo os cuidados,
carinho, amparo, proteção e solicitude próprios de um pai. A reputação
como filho do pretenso pai consiste na convicção, por parte das pessoas
que conhecem o investigante e o investigado, de que este é pai daquele.»
(in "O Direito da Família Contemporâneo", 2015, pág. 165).
Neste mesmo sentido da necessidade de verificação cumulativa dos três
requisitos, sublinham PEREIRA COELHO e GUILHERME DE
OLIVERA, «o filho viveu na posse de estado de filho quando foi
reputado e tratado como filho pelo réu (nomen e tractatus), e foi reputado
como filho pelo público (fama). Estes três elementos tradicionais em que
se traduz a posse de estado devem conjugar-se em cada caso; não haverá
posse de estado se faltar algum deles» (in "Curso de Direito da Família",
vol. II, tomo I, 2006, p. 224/225).
No tocante ao elemento tractatus, que acaba por se exprimir em
comportamentos exteriores de natureza económica e afetiva, de
assistência material e moral, tipicamente paternos, e que resultam da
convicção íntima séria e firme (reputação) do pretenso pai quanto à
filiação, sendo o mesmo um elemento particularmente contingente haverá
que ter presentes as judiciosas considerações tecidas no Ac. STJ de 18 de
Fevereiro de 2015: «tratamento como filho, inerente à filiação sócio-
afectiva, implica por parte do pai comportamento que, no plano afectivo
e material, revele que existe um cuidado e protecção igual aos que os
pais dispensam aos filhos, no quadro da vivência social e idiossincrática,
sendo que a exteriorização dessas manifestações concludentes de
reconhecimento deve ser olhada e apreciada no horizonte temporal dos
costumes imperantes e prevalecentes na contingência do tempo. Assim,
importará saber se o indigitado pai é uma pessoa reservada ou
expansiva, se na comunidade os sentimentos de reprovação social são
intensos, o que justifica resguardo e pudor. É de considerar relevante, no
sentido do tratamento e reconhecimento, que exista uma actuação
reveladora de um mínimo de afecto e ajuda moral e material ao longo do
tempo, sendo de ponderar se existe proximidade territorial ou não, e se
as circunstâncias pessoais do investigante exigem a mesma intensidade
de afecto e ajuda material.» (in Sumários, Fevereiro de 2015, p. 29,
acessível in www.stj.pt)
Ademais, baseando-se o tratamento como filho por parte do pretenso pai
em presunção que favorece o investigante, em matéria de caducidade, do
nº 3 do artigo 1817º do Código Civil resulta que, se o investigante for

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 17/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

tratado como filho pelo pretenso pai, a ação pode ser proposta nos três
anos posteriores à cessação do tratamento como filho pelo pretenso pai
(al. b) do mesmo nº 3 do artigo 1817º Código Civil).
E, no nº 4 do aludido artigo 1817º, coloca-se, então, a cargo do R. o ónus
da prova da cessação voluntária do tratamento nos três anos anteriores à
propositura da ação.
Vejamos se, no caso presente, a A. / Recorrente beneficiou da "posse de
estado".
2.3.2. Da não demostração do facto-base da presunção de paternidade
estabelecida na a) do nº 1 do no artigo 1871º do Código Civil
Os factos que as instâncias consideraram provados (dos alegados
enquanto reveladores da posse de estado), foram (apenas) os seguintes:
— O R. sempre que se dirigia à sua casa da Freguesia de ... ... e se
cruzava com a A. questionava-a se estava tudo bem com ela, bem como
do estado de saúde do seu filho;
— A A. sempre foi apelidada de "..." e "..." e a alcunha da família do R. é
"...".
Ora, mesmo tendo em consideração o anteriormente referido sobre o
requisito de tratamento e não sendo exigido à A. que alegue e prove um
conjunto de atos como se A. e R. vivessem no quadro de uma família
constituída, podendo considerar-se relevantes contactos discretos, certo é
que os factos dados como provados não nos levam a concluir pela
verificação, no caso presente, do tratamento de filha por parte do Réu.
A circunstância de o R., quando se encontrava em sua casa da Freguesia
de ... ..., e, se cruzava com a A., a questionar sobre se estava tudo bem
com ela, bem como do estado de saúde do seu filho, não caracteriza, só
por si, esse tratamento (e a preocupação de um pai para com a vida de um
filho), antes caracterizando um ato de cortesia social entre pessoas que se
conhecem numa pequena localidade.
E, à luz destes factos, numa perspetiva global dos fatores pessoais e
sociais envolventes, não merece qualquer censura que o Tribunal da
Relação tenha considerado que não ficou provado que o R. tenha
dispensado à A. o tratamento que os pais votam aos filhos, mantendo-
se tal segmento decisório.
E tal afastamento do estabelecimento da presunção de paternidade conduz
a que o Tribunal da Relação de Guimarães, sequencialmente, venha a
concluir:
— Pela não aplicação da hipótese prevista no nº 3 do artigo 1817º,
aplicável ex vi do artigo 1873º, ambos do Código Civil, uma vez que a

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 18/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

verificação da hipótese aí configurada implicava a cessação do tratamento


como filha, e, consequentemente, a (prévia) prova do estabelecimento
daquela presunção de paternidade a que alude o artigo 1871º, nº 1, al. a),
do Código Civil (posse de estado), conclusão que igualmente se
mantém;
— E pela aplicação do nº 1 do mesmo preceito, e, consequentemente,
pela caducidade do direito de a A. propor a ação contra o R..
Em conclusão: a não prova pela A. do facto-base da presunção
estabelecida na alínea a) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil
acarreta, necessariamente, a improcedência de tal fundamento de
estabelecidade da paternidade, o que se determina, ficando, assim,
prejudicada a questão da apreciação da caducidade do exercício da ação
com fundamento presuntivo.
3. Da prova direta da filiação biológica
3.1. Da exceção de caducidade da ação e da invocada
inconstitucionalidade do nº 1 do artigo 1817º, nº 1 do Código Civil
Conforme referido no antecedente ponto III.2.1., a A. intentou a presente
ação de investigação de paternidade com fundamento (também) na
filiação biológica, alegando que o seu nascimento ocorreu no termo da
gravidez da sua mãe como consequência das relações de cópula havidas
entre esta e o R..
Na contestação, o R. veio invocar a caducidade da ação, dado que a
mesma tinha sido intentada mais de 10 anos depois da A. ter atingido a
maioridade.
O Tribunal de 1ª instância, considerando não ser inconstitucional a norma
do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, concluiu pela procedência da
exceção da caducidade da ação, pelo decurso do prazo fixado naquele
mesmo nº 1.
Inconformada, a A. recorreu para o Tribunal da Relação de …,
sustentando, no que ora releva, a inconstitucionalidade da norma do
Código Civil que fixa prazos para a propositura da ação de investigação
de paternidade.
O Tribunal da Relação de …, no Acórdão sob recurso, veio a manter a
decisão da 1ª instância, concluindo que o nº 1 do artigo 1817º do Código
Civil, na redação dada pela Lei nº14/2009, de 01 de Abril, não é
inconstitucional.
A A. interpôs revista excecional, contrapondo a inconstitucionalidade das
normas que fixam prazos na ação de investigação de paternidade.
Vejamos, então, os parâmetros constitucionais em questão.

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 19/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

3.2. Dos parâmetros constitucionais da questão da


inconstitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 1817º do Código
Civil e das respetivas consequências no plano da caducidade
No que aqui importa, assume relevo o prazo constante do nº 1 do artigo
1817º do Código Civil (aplicável à ação de investigação de paternidade ex
vi do artigo 1873º do Código Civil), nos termos do qual «a ação só pode
ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos
posteriores à sua maioridade ou emancipação».
A questão da admissibilidade do estabelecimento, por meio da lei
ordinária, de prazos de caducidade das ações de investigação paternidade
sempre foi objeto de grande controvérsia, vindo a merecer acolhimento
no Código Civil de 1966 a posição que apontava no sentido do
estabelecimento de tais prazos, alicerçada em princípios de certeza e
segurança jurídica, passando a dispor o respetivo nº 1 do artigo 1854º
(redação inicial) que «a ação de investigação de maternidade ou
paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante
ou nos dois primeiros anos posteriores à sua emancipação ou
maioridade.
Em anotação, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA explicitaram que
«a nova solução traduziu-se, praticamente, num encurtamento geral do
prazo de proposição da ação» [relativamente ao direito pretérito, a saber,
artigo 37º. do Decreto nº 2, de 25 de Dezembro, de 1910, nos termos do
qual «a ação de investigação da paternidade ou maternidade, só pode ser
intentada em vida do pretenso pai ou mãe, ou dentro do ano posterior à
sua morte, salvas as seguintes exceções(…)»], adiantando que: «esta
solução do direito anterior tinha reconhecidamente graves
inconvenientes, o mais importante dos quais foi o de ter convertido a
ação de determinação legal do pai num puro instrumento de caça à
herança paterna…quando o pai fosse rico.»
E que «a principal razão que determinou entre nós a nova solução de
1966 e certamente pesou na sua manutenção pela reforma de 1977 (…)
foi a tal consideração ético-pragmática de combate à investigação como
puro instrumento de caça à herança paterna e de estímulo à
determinação da paternidade (…) em tempo socialmente útil.» (in
"Código Civil, Anotado", Vol. V, 1995, p. 82 e 83).
A controvérsia não ficou, porém, encerrada com tal inovação legislativa,
vindo o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 23/2006, de 10 de
Janeiro (pub. no Diário da República, I série, de 08 de Fevereiro de
2006), a declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da
norma constante do nº 1 do artigo 1817º do CC (na redação introduzida
pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro), aplicável por força do
artigo 1873º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a
caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos
a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições
www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 20/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

conjugadas dos arts. 26º, nº 1, 36º, nº 1, e 18º, nº 2, da Constituição da


República Portuguesa.
Entretanto, a Lei nº 14/2009, de 01 de Abril, veio alterar a redação do
referido artigo 1817º, n.º 1, alargando (de dois para) para dez anos
posteriores à maioridade ou emancipação o prazo para a propositura da
ação de investigação, regressando com tal alteração a dissensão
jurisprudencial.
Procurando pôr fim à nova controvérsia, o Tribunal Constitucional em
sede de fiscalização concreta, veio a proferir, em plenário, o Acórdão nº
401/2011, de 22.09.2011, decidindo «não julgar inconstitucional a norma
do artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de
1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de
paternidade, por força do artigo 1873º, do mesmo Código, prevê um
prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou
emancipação do investigante.».
[Na mesma linha, vêm sendo proferidas sucessivas decisões do mesmo
Tribunal, de que se citam, a título meramente ilustrativo, os Acórdãos n.º
476/2011, de 12 de Outubro de 2011; n.º 106/2012, de 06 de Março de
2012; n.º 166/2013, de 20 de Março de 2013; n.º 441/2013, de 15-06-
2013; n.º 350/2013, de 19-06-2013 e n.º 750/2013, de 23-10-2013,
acessíveis in www.tribunalconstitucional.pt].
Todavia, não o conseguiu evitar, mantendo-se atual e polémica a questão
da constitucionalidade da norma na jurisprudência deste Supremo
Tribunal de Justiça.
Na doutrina, no quadro constitucional vigente, GUILHERME DE
OLIVEIRA defende a imprescritibilidade do direito de investigar,
sugerindo que se aplique a figura do abuso de direito de modo a que, em
situações extremas, o autor de uma ação de investigação «possa ser
tratado como se não tivesse o direito que invoca», nomeadamente,
quando «não pretende mais do que faturar no seu ativo patrimonial» (in
"Caducidade das ações de investigação", Lex familiae, n.º 1, 2004, pags.
12-13).
De resto, em consonância com a posição ulteriormente expressa, em obra
conjunta com PEREIRA COELHO, aí referindo que «depois de se dar ao
filho um direito imprescritível, uma ação pode merecer o obstáculo do
sistema jurídico, ao menos em casos-limite. Os obstáculos resultarão das
potencialidades da norma geral sobre o "abuso do direito", ou de um
remédio específico como o que vigora no direito de Macau, que
determina a ineficácia patrimonial do estabelecimento do vínculo (artigo
1656º CCiv Mac) quando a ação é intentada mais de quinze anos depois
do conhecimento dos factos de onde se poderia concluir a paternidade e,
além disto, quando se mostre que a intenção principal do autor é a

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 21/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

obtenção de benefícios patrimoniais.» (in "Curso de Direito de Família",


Vol. II, tomo I, 2006, pag. 252).
A esta primeira "solução" de recurso ao abuso de direito, objetando
JORGE DUARTE PINHEIRO que «pode ter, porém, vários
inconvenientes: abre uma brecha na alegada imprescritibilidade do
direito de investigar, cujo alcance será inicialmente difícil de apurar;
remete diretamente para a figura geral do abuso de direito, quando talvez
fosse plausível lançar mão de possíveis concretizações, o que diminuiria
o grau de incerteza: reage ao exercício abusivo do direito paralisando-o
totalmente, em vez de permitir a produção de alguns dos seus efeitos,
dentro do que fosse aceitável (p.e., se a finalidade do investigante é a
mera obtenção de benefícios sucessórios, não bastará negar-lhe tais
benefícios, autorizando a constituição do vínculo de filiação?); ao
paralisar totalmente o direito de investigar, por causa de uma atuação
censurável do investigante, não contempla a posição de terceiros que
possam estar legitimamente interessados no estabelecimento da filiação
entre o investigante e o pretenso pai (v.g. dos filhos do investigante: o
direito à identidade ou historicidade pessoal não se reduz ao
conhecimento e reconhecimento do parentesco no 1º grau da linha reta.»
(in "O direito da família contemporâneo", 4ª ed., 2013, pág. 177)
E propõe este mesmo Autor que «Tudo ponderado e dado que a posição
sucessória legal que é atribuída aos familiares do de cujus não cabe nos
efeitos característicos do direito de constituir família, (…) o melhor
caminho será o de uma interpretação que, acentuando o elemento
teleológico em detrimento do elemento literal, permita extrair do art.º
1817º um sentido compatível com os art.ºs 26º, n.º 1, e 36º, n.º 1, da
C.R.P., com o princípio do aproveitamento das disposições legais (…) e
com o princípio da rejeição do exercício inadmissível de situações
jurídicas (…). Os prazos do art.º 1817º devem ser observados se o
investigante quiser obter benefícios sucessórios do vínculo da filiação
(…) Onde se lê, p.e., no n.º 1, que “a ação de investigação de
maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante
ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação” deve
subentender-se “para efeitos sucessórios” (…)» (in ob. cit., p. 178.).
Feito este breve bosquejo sobre o estado da questão relativamente ao
prazo de caducidade de 10 anos nas ações de investigação de paternidade,
desde já, se consigna que se adere à posição de que a nova redação do
nº 1 do artigo 1817º do Código Civil (introduzida pela Lei nº
14/2009), ao manter uma limitação temporal (10 anos) para a
propositura da ação, não afastou a inconstitucionalidade da norma,
pela ordem de razões que infra se analisará.
Como é sabido, nos termos do nº 1 do artigo 25º da Constituição da
República Portuguesa, «a integridade moral e física das pessoas é
inviolável» surgindo «o reconhecimento e a tutela da integridade pessoal
www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 22/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

indissociavelmente ligados ao reconhecimento constitucional absoluto da


pessoa humana (artigo 1º da Constituição)» (JORGE MIRANDA e RUI
MEDEIROS, in "Constituição da República Portuguesa Anotada", Tomo
I, 2010, pág. 552).
Por sua vez, de harmonia com do nº 1 do artigo 26º do mesmo diploma,
«a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao
desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao
bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da
vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de
discriminação».
E, como notam os Autores citados, «a identidade pessoal é aquilo que
caracteriza cada pessoa enquanto unidade individualizada que se
diferencia de todas as outras pessoas por uma determinada vivência
pessoal. Num sentido muito amplo, o direito à identidade pessoal
abrange o direito de cada pessoa a viver em concordância consiga
própria, sendo, em última análise, expressão da liberdade de consciência
projetada exteriormente em determinadas opções de vida. O direito à
identidade pessoal postula um princípio de verdade pessoal. Ninguém
deve ser obrigado a viver em discordância com aquilo que pessoal e
identitariamente é.»
Acrescentando «(…) a identidade pessoal inclui os vínculos de filiação.
Existe um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da
paternidade e da maternidade» (in ob. cit., p. 609).
Por último, de acordo com o nº 1 do artigo 36º da Constituição da
República Portuguesa, «todos têm o direito de constituir família e de
contrair casamento em condições de plena igualdade».
E desta disposição constitucional, em conjugação com os direitos à
integridade pessoal e à identidade pessoal, resulta «um direito a converter
a filiação biológica em filiação jurídica mediante o estabelecimento das
correspondentes relações de maternidade e paternidade» (PEREIRA
COELHO e GUILHERME OLIVEIRA, in Curso), citado pelos Autores
anteriormente referidos, que adiantam «não podendo, numa situação de
conflito entre um eventual interesse dos pais naturais em ocultar a
relação de filiação e o interesse do filho em estabelecer a filiação, ser
invocado pelos pais, após a procriação, um direito a não constituir
família e, assim, ao não estabelecimento da filiação» (ob. cit., p.814).
À luz destes preceitos, o direito à identidade pessoal, nele se incluindo o
direito de conhecer e ver reconhecida a respetiva ascendência biológica,
configura um direito de índole pessoalíssima (englobando o direito de
conhecer e de ver reconhecida a verdade biológica da filiação, a
ascendência genética de cada pessoa) e imprescritível,
constitucionalmente consagrado.
Ora, «os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e
garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e
privadas» (nº1 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa),
sendo que «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos
www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 23/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições


limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos» (nº 2 do artigo 18º da CRP).
Ou seja, para se limitar um direito fundamental é necessário que as
restrições sejam proporcionais, necessárias e adequadas, pelo que importa
averiguar se, com a negação da "imprescritibilidade" de tais ações, ocorre
uma restrição excessiva ou desproporcionada ao direito fundamental à
identidade pessoal, ao direito de constituir família e até ao direito geral de
personalidade dos investigantes (artigo 70º do Código Civil).
Por outro lado, as "prerrogativas" ligadas ao exercício, a todo o tempo, da
ação de investigação e estabelecimento da filiação jurídica interferem
gravemente com valores que também desfrutam de proteção legal e até
constitucional, como sejam a segurança jurídica, pelo que importa, ainda,
analisar os fundamentos invocados para limitar o direito à investigação da
paternidade.
Procedendo a tal análise:
(i) Quanto ao argumento da segurança jurídica do pretenso pai e
herdeiros.
Os interesses que, tradicionalmente, sustentaram as restrições ao direito
de investigar a paternidade desembocavam, não raras vezes, na tutela da
garantia da "segurança jurídica", exatamente plasmada na segurança
jurídica do pretenso pai e dos seus herdeiros.
Segundo PEREIRA COELHO e GUILHERME OLIVEIRA, «esta
garantia tem sentido principalmente no âmbito patrimonial de onde
emergiu, afinal, todo o direito civil. De facto, compreende-se a
necessidade de definir até que momento é possível formular uma
pretensão com implicações económicas para os indivíduos...(…) os
eventuais onerados precisam, de um ponto de vista da sua organização
patrimonial, de saber a partir de que momento é que podem confiar na
propriedade do bem adquirido, na disponibilidade de uma soma em
dinheiro, ou a partir de que momento é que já não precisam de estar
financeiramente prevenidos para proceder a um pagamento, ou
orçamentar uma despesa de indemnização. Tanto a vida patrimonial dos
indivíduos como a vida comercial das empresas precisam desta
segurança.
(…) A segurança de não ser declarado pai, em qualquer momento,
merece os mesmos cuidados por parte do sistema jurídico? De duas uma:
se o suposto progenitor julga que é o progenitor, está nas suas mãos
acabar com a insegurança – perfilhando – e se tem dúvidas pode mesmo
promover a realização de testes científicos que as dissipem; se, pelo
contrário, não tem a consciência de poder ser declarado como
progenitor, não sente a própria insegurança.» (in "Curso de Direito da
Família ", vol. II, Tomo I, pág. 249).
Deste ensinamento extrai-se que esta garantia só tem pleno sentido no
âmbito da tutela do património, desfrutando, assim, o direito a conhecer o
ascendente biológico e a estabelecer os concomitantes vínculos jurídicos
www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 24/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

de uma valoração qualitativamente superior relativamente a tal valoração


puramente patrimonial assente na segurança e na estabilidade jurídicas, e,
quiçá, eventualmente, desresponsabizadora de atos anteriores praticados
pelo pretenso pai.
(ii) O argumento da perda ou "envelhecimento das provas".
Este argumento deixou atualmente de ser considerado relevante, uma vez
que as ações de investigação são, cada vez mais, julgadas com base nos
testes de ADN, que não envelhecem nunca e que permitem determinar
com grande segurança a maternidade ou a paternidade de uma pessoa,
mesmo muitos anos após a morte do pretenso progenitor, afastando, desta
forma, o risco da incerteza das provas.
Aliás, tenha-se presente que o legislador, logo com a reforma introduzida
no direito da família, com o DL nº 496/77, pretendeu organizar o direito
de família sob a «égide do respeito da verdade biológica e, por esta
razão, pretendia que não houvesse qualquer entrave ao uso dos métodos
científicos que pudessem contribuir para a descoberta dos vínculos
biológicos, quer para os reconhecer juridicamente, quer para impugnar
os reconhecimentos que não se apoiassem na verdade. O texto é
expressivo (referem-se ao artigo 1801º do Código Civil, nas ações
relativas à filiação são admitidas como meios de prova os exames de
sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados) dessa
intenção, da abertura total que o legislador pretendeu fazer para as
provas periciais e para todas as descobertas cientificamente
comprovadas.» (PEREIRA COELHO e GUILHERME OLIVEIRA, ob.
cit., p. 35).
Da assinalada relevância dos métodos científicos nas ações de
investigação da maternidade/paternidade decorre, pois, que o argumento
da perda ou "envelhecimento das provas" perde razão de ser.
(iii) Quanto ao argumento de "caça fortunas".
Segundo este argumento, a consagração de prazos de caducidade da acção
de investigação impede a reclamação de direitos à herança do pretenso
pai, dissuadindo a instauração de acções que visam unicamente a
exigência (tardia) de bens materiais (de resto, o principal motivo
determinante da solução do nº 1 do artº. 1817º, na redacção anterior a
2006, foi o de evitar o uso da acção de investigação exclusivamente para
lograr benefícios sucessórios).
GUILHERME OLIVEIRA tende a desvalorizar este argumento nos
seguintes termos:
— Sustentando que a garantia de segurança jurídica nesta matéria tem
sentido, essencialmente, no âmbito patrimonial. E não se coloca da
mesma forma, se tivermos em consideração a posição do pretenso
progenitor ou a posição dos seus herdeiros. Quanto ao primeiro, ainda que
esteja em causa uma situação em que é “surpreendido com as
consequências de um “acidente” passado há muito tempo, dir-se-á que
tem sempre de assumir as responsabilidades, porque mais ninguém o
pode fazer no lugar dele”;
www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 25/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

— Salientando que o perigo de as ações serem tardiamente intentadas por


razões puramente egoístas, embora não tenha desaparecido, perdeu muita
da sua importância face à alteração da estrutura social e da riqueza, não
tendo qualquer valia em situações em que a ação é intentada entre autores
e réus com meios de fortuna semelhantes ou num momento em que o
investigante não tem pretensões materiais, porque já não está em
condições de formular pretensões de natureza alimentar e ainda não terá
pretensões de natureza sucessória. Outras situações há, ainda, em que tais
pretensões materiais são irrelevantes porque, pura e simplesmente, o
investigado não tem bens (ou não os tem em valor significativo);
— Quanto aos herdeiros, realçando que o sistema jurídico não tem uma
preocupação absoluta com a sua segurança patrimonial e com a tutela das
suas legítimas expetativas, bastando lembrar que qualquer herdeiro
preterido pode intentar uma ação de “petição da herança”, a todo o tempo,
com a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte
deles, contra quem os possua como herdeiro (artigo 2075º do Código
Civil).
(Cfr. "Caducidade das ações de investigação", in "Comemorações dos 35
anos do C. Civil e dos 25 anos de Reforma de 1977 ", Vol. I, pág. 10)
Daí que não seja aceitável que a proteção da certeza ou segurança
patrimonial de outros filhos e do pretenso progenitor possa excluir o
direito, eminentemente pessoal e que integra uma dimensão fundamental
da personalidade, a saber quem é o pai biológico.
(iv) Relativamente ao argumento do interesse público.
Como se sabe, a ordem pública impõe o impedimento dirimente absoluto
do casamento entre duas pessoas parentes na linha reta ou no segundo
grau da linha colateral (artigo 1602º do Código Civil), no propósito de
vedar relações incestuosas «com todas as razões de ordem ética, eugénica
e social que fazem dessa proibição um dos tabus mais profundos da
humanidade» (cfr. PEREIRA COELHO, in "Curso de Direito da
Família", Vol. II, p. 274).
Ora, mediante o reconhecimento jurídico do vínculo biológico, abre-se
uma possibilidade de admissão do incesto, com toda a respetiva carga
negativa para a sociedade, pelo que a demonstração da paternidade
biológica se revela também do interesse do Estado e da sociedade.
Assim, interessará ao Estado que a situação se mostre definida no mais
curto espaço de tempo, mas para os interesses em causa relevará o
conhecimento da verdade biológica em qualquer ocasião.
Efetuada a análise crítica de tais argumentos, concluímos que, no
horizonte de consolidação do princípio da verdade biológica como
"estruturante de todo o regime legal", de reforço da tutela do direito à
historicidade pessoal — enquanto direito à investigação e estabelecimento
do respetivo vínculo biológico (paternidade ou maternidade) e dos
concomitantes vínculos jurídicos —, uma vez que o direito a conhecer tal
ascendência biológica constitui dimensão essencial do direito à
identidade pessoal previsto no artigo 26º, nº 1, da Constituição da
www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 26/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

República Portuguesa, e o direito do investigante a estabelecer os


concomitantes vínculos traduz uma dimensão do direito a constituir
família previsto no artigo 36º, nº 1, da Constituição da República
Portuguesa, se verifica a inconstitucionalidade material do
estabelecimento do prazo de caducidade previsto nº 1 do artigo 1871º
do Código Civil, por tal prazo limitador consubstanciar uma restrição
excessiva ou desproporcionada aos assinalados direito fundamental à
identidade pessoal e direito de constituir família, bem como ao próprio
direito geral de personalidade dos investigantes (cfr. artigo 70º do Código
Civil), o que se declara.
E, sendo a norma constante do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil,
na dimensão interpretativa que prevê um prazo limitador da possibilidade
da A., enquanto filha, propor a presente ação de investigação de
paternidade, com fundamento no facto biológico da filiação,
inconstitucional, não ocorre caducidade do direito, nesta questão,
sendo concedido provimento à revista, revogando-se, em
consequência, o Acórdão da Relação de Guimarães que, julgando
procedente a exceção da caducidade, concluiu pela absolvição do R.
do pedido.

3.3. Da pretextada violação da inversão do ónus da prova


determinada por despacho de fls. 225/229
Vem a A. / Recorrente sustentar, ainda, que o Tribunal da Relação
alicerçou a sua posição, quanto à prova da filiação biológica, num facto
manifestamente equivocado, isto é, (apenas) no despacho de fls. 99,
quando foi proferido despacho posterior, e que a recusa do Réu a
submeter-se ao exame, determinou a inversão do ónus da prova.
Efetivamente, o Tribunal da Relação, apesar de se referir à questão da
inversão do ónus da prova (e de se reportar apenas ao despacho de fls. 99,
não atendendo ao despacho proferido a fls. 225/229), adotou a solução
metodológica de prévia apreciação da exceção da caducidade, e, como
concluiu pela sua procedência, não fez repercutir, quanto ao fundamento
da filiação biológica, as consequências de tal inversão do ónus da prova
Como assim, devem os autos baixar ao Tribunal da Relação para se
pronunciar sobre este fundamento invocado pela A. / Recorrente (a
filiação biológica), no contexto da invocada violação da inversão do
ónus da prova determinada por despacho de fls. 225/229.

IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem a 1ª Secção Cível do
Supremo Tribunal de Justiça, em:
— Conceder parcial provimento à revista, e, em consequência, revogar o
acórdão recorrido no segmento em que, quanto ao fundamento da filiação
biológica, julgou procedente a exceção da caducidade da ação;
— Ordenar que os autos baixem ao Tribunal da Relação de … para que
seja apreciada o fundamento da filiação biológica, no contexto da
www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 27/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

invocada violação da inversão do ónus da prova determinada por


despacho de fls. 225/229.
Custas a cargo da parte vencida a final.

Lisboa, 31 de janeiro de 2017


(Processado e integralmente revisto pelo relator – por vencimento -, que
assina e rubrica as demais folhas)
Pedro de Lima Gonçalves - Relator

Sebastião Póvoas

Alexandre Reis
---*---
DECLARAÇÃO

Como primitivo relator, fiquei vencido na decisão relativa ao tema da


desconformidade constitucional da norma do artigo 1817º nº 1 do CC, por
um conjunto de razões que assim sintetizo:
1. Na ponderação da questão de saber se o estabelecimento de prazos de
caducidade das ações de investigação de paternidade viola o direito
fundamental à identidade pessoal, consagrado no art. 26º nº 1 da CRP, há
muito debatida na nossa jurisprudência, não nos podemos alhear da
orientação que vem sendo adoptada pelo Tribunal Constitucional, ao
negar a questionada inconstitucionalidade, na sequência do acórdão nº
401/2011, proferido pelo Plenário desse Tribunal em 22/9/2011 (no P.
497/10), embora essa decisão careça da força obrigatória (geral) a que
aludem os arts. 282º da CRP e 2º e 66º da Lei 28/82.
2. Competindo a esse Órgão, especificamente, administrar a justiça em
matérias de natureza jurídico-constitucional (art. 30º da LOSJ), os
critérios jurisprudenciais que o mesmo afirme, uniforme e
consistentemente, em matérias de natureza jurídico-constitucional, devem
ser, em princípio, generalizadamente adoptados, para não se pôr em crise
a relativa previsibilidade, a segurança na aplicação do direito e o princípio
da igualdade consagrado no art. 13º da CRP, tendo-se, para tanto, em
consideração «todos os casos que mereçam tratamento análogo», como é
exigido pelo art. 8º nº 3 do CC.
3. É indiscutível que, encerrando a identidade pessoal o conjunto de
atributos e características que permitem individualizar cada pessoa na
sociedade, o «estabelecimento da paternidade insere-se no acervo dos
direitos pessoalíssimos, entre os quais, o de conhecer e de ver
reconhecida a verdade biológica da filiação, a ascendência e marca
genética de cada pessoa» e que, por isso, o direito de investigar a
verdadeira ascendência biológica, por permitir aceder a uma informação

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 28/29
08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

conformadora da identidade própria e da personalidade singular de cada


indivíduo, é um direito fundamental com «protecção constitucional, como
vertente que é, do direito à integridade moral, à identidade pessoal e ao
desenvolvimento da personalidade (arts. 16.º, 18.º, 25.º, n.º 1, e 26.º da
CRP)».
4. Contudo, tal direito, sendo fundamental, não é absoluto e, por isso, não
está o legislador impedido de modelar ou condicionar o respectivo
exercício, para assegurar outros interesses ou valores que com ele
colidam e também constitucionalmente tutelados, mediante a sua
harmonização, a qual sempre implicará o sacrifício, total ou parcial, de
um ou mais valores em conflito.
5. Da fundamentalidade de tal direito não decorre, necessariamente, que
se mostre injustificado qualquer condicionamento ou limite temporal para
o exercício desse direito e que, por isso, o legislador ordinário não possa
restringir o assentamento da filiação/identidade pessoal, através de prazos
de caducidade, por razões que legitimam o incentivo ao exercício, o mais
cedo possível, do direito tendente estabelecer a paternidade biológica.
Trata-se de valores, em geral, conexos com o interesse da certeza e
estabilidade das relações jurídicas, em que se salienta, desde logo, o
interesse de ordem pública em que se esclareça e estabilize o mais cedo
possível o estatuto jurídico da filiação com todos os seus efeitos
(designadamente o dos impedimentos matrimoniais). Este interesse
também se projecta na segurança do investigado e dos membros da sua
família, para os quais a acção de investigação, surgida demasiados anos
após a procriação, é susceptível de gerar sérias perturbações do direito à
reserva da vida privada.
6. Por conseguinte, corresponde a uma opção razoável do legislador
ordinário a regulamentação do exercício do direito do filho ao
reconhecimento da paternidade, em função de outros interesses que no
caso também concorrem, pelo estabelecimento do prazo regra de dez anos
para a propositura da acção de investigação de paternidade, contado da
maioridade ou emancipação do investigante, contida na norma do artigo
1817º nº 1 do CC (aplicável por força do artigo 1873º do mesmo código),
na redacção da Lei 14/2009 de 1/4.
7. Mesmo que já tenham decorrido dez anos a partir da maioridade ou
emancipação, a acção de reconhecimento da filiação é ainda exercitável
dentro dos prazos previstos nos nºs 2 e 3 do referido art. 1817º, que,
sendo prazos especiais de caducidade, funcionam como contra-excepções
à intervenção do dito prazo-regra da caducidade/excepção.

Alexandre Reis

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocument 29/29

Você também pode gostar