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08/11/2020 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça


Processo: 4704/14.2T8VIS.C1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PRAZO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
RETROACTIVIDADE DA LEI
RETROATIVIDADE DA LEI
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 08-11-2016
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DA FAMÍLIA / FILIAÇÃO / ESTABELECIMENTO DA
FILIAÇÃO / RECONHECIMENTO JUDICIAL / ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE
PATERNIDADE.
DIREITO CONSTITUCIONAL - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS - DIREITOS E DEVERES
FUNDAMENTAIS / DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS -
FISCALIZAÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE / EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE
INCONSTITUCIONALIDADE.
Doutrina:
- J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa” Anotada,
2007, Vol. I, 393/394.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1817.º, 1873.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 2.º, 18.º, N.ºS 1 E 3,
36.º, N.º1, 282.º, N.º1.
D.L. N.º 47344, DE 25.11.1966: - ARTIGO 19.º.
LEI N.º 14/09, DE 01.04: - ARTIGOS 1.º, 3.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 23.06.16, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .

-*-

ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-N.º 23/2006, DE 10-01; N.º 401/2011, DE 22-09; N.º 24/2012, DE 17-01; N.º 309/16, DE 18-05; N.º
424/2016, DE 06-07, TODOS DISPONÍVEIS EM WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT .
Sumário :
I- O direito a instaurar a ação de investigação de paternidade (art. 1873º
do CC) não é, por natureza, imprescritível.
II- O preceituado no art. 3º da Lei nº 14/09, de 01.04, não consubstancia
retroatividade autêntica, antes simples retrospetividade ou retroatividade
inautêntica, porquanto não afeta posições jusfundamentais já
estabelecidas no passado ou, mesmo, esgotadas.
III- O mesmo preceito legal não afeta, considerando o consignado em I, o
princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito
democrático (art. 2º da CRP), “maxime” estando em causa uma ação
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instaurada em 12.12.02, tendo o A. nascido em 13.12.34 e o investigado


falecido em 01.01.02.

IV- O mencionado art. 3º da Lei nº14/09, de 01.04, não enferma, pois, de


inconstitucionalidade material.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça


1 - AA, nascido em 00.00.34, instaurou, em 12.12.02, na comarca de …,
ação declarativa, com processo comum e sob a forma (então) ordinária,
contra BB (entretanto falecida e representada pelos demais RR., seus
habilitados herdeiros), CC e DD, pedindo que seja reconhecido como
filho de FF, já falecido, ordenando-se o necessário averbamento, no que
respeita à paternidade e avoenga paterna, ao seu registo de nascimento.
Fundamentando a respetiva pretensão, alegou, em síntese, que nasceu das
relações sexuais havidas, em exclusividade, entre sua mãe, EE, e o
mencionado FF, sendo certo que este sempre o tratou como se seu filho
fosse.
Contestaram os RR.: por exceção, alegando que o A. nasceu, em
00.00.34, tendo atingido a maioridade, em 00.00.55, verificando-se,
assim, o decurso do prazo de caducidade, atento o disposto nos arts.
1817º, nº1, do CC e 19º do DL nº47 344, de 25.11.66 (que aprovou aquele
Cod.), concluindo ter caducado, em 31.05.68, o direito do A. propor a
ação de investigação de paternidade; por impugnação, alegando não ser
verdade que o FF se tivesse relacionado sexualmente com a mãe do A. e
que o tratasse como seu filho ou que se considerasse pai dele.
Replicando, pugnou o A. pela improcedência da deduzida exceção de
caducidade, invocando, em apoio da sua tese, o disposto no art. 1817º, nº4
do CC.
Por despacho de fls. 168 e 169, foi relegado para final o conhecimento
daquela exceção.
Prosseguindo os autos a sua tramitação - com vicissitudes várias que, ora,
irrelevam -, veio, a final, a ser proferida (em 15.07.14) sentença que,
julgando procedente a ação, determinou que “o A., AA, seja reconhecido
como filho de FF para todos os legais efeitos, ordenando
consequentemente o necessário averbamento, no que respeita à
paternidade e avoenga paterna, ao registo de nascimento do A.”.
A Relação de …, por acórdão de 08.09.15 e na procedência, por maioria,
da apelação dos RR., absolveu estes do pedido, o que fundamentou na
procedência da deduzida exceção perentória de caducidade.

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Daí a presente revista interposta pelo A.-apelado, AA, visando a


revogação do acórdão recorrido, conforme alegações culminadas com a
formulação das seguintes conclusões:
/
1ª - A causa de pedir nas ações de investigação ou reconhecimento da
paternidade é o facto naturalista da procriação biológica, perspectivada
como facto natural dotado de relevância jurídica;
2ª - O douto acórdão recorrido confunde a causa de pedir - a filiação
biológica – com os factos instrumentais ou indiciários consubstanciados
na existência de alguma das presunções elencadas no artigo 1871º do
Código Civil, designadamente a posse de estado;
3ª - Uma vez alegada a filiação biológica a sua prova pode ser feita por
via direita científica (exame DNA) ou por via indireta (presunções);
4ª - Relegada para a sentença final a questão da tempestividade da ação e
tendo sido feita a prova direta da filiação biológica, fica prejudicada a
relevância de eventual presunção derivada da posse de estado;
5ª - Não foi proferida nos autos, em 1ª instância, qualquer decisão
jurisdicional que tenha apreciado e decidido da caducidade da presente
ação, designadamente no despacho saneador, como erradamente
considerou o douto acórdão recorrido;
6ª - O conhecimento da exceção da caducidade do direito de propor a
ação de investigação de paternidade foi relegado para a sentença final,
que conheceu efetivamente dessa exceção, julgando-a improcedente;
7ª - E essa decisão/sentença que julgou improcedente a exceção da
caducidade foi revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação de …
(acórdão recorrido) que, “aderindo à tese da não inconstitucionalidade”
julgou no sentido de que o NOVO PRAZO DE CADUCIDADE previsto
na Lei 14/2009 (de 10 anos) é aplicável à presente ação de investigação
de paternidade instaurada em 2002;
8ª - O direito à investigação da filiação é componente dos direitos
fundamentais à identidade pessoal, à constituição da família e ao livre
desenvolvimento da personalidade, previstos nos artigos 26º, nº1 e 36º,
nº1 da CRP;
9ª - O direito ao conhecimento da paternidade biológica, assim como o
direito ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico, cabem no âmbito
de proteção quer do direito fundamental à identidade pessoal, quer do
direito fundamental à constituição da família;
10ª - Hodiernamente, os motivos que outrora eram invocados para
justificar a restrição de tais direitos, liberdades e garantias – a segurança

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jurídica, a procura desenfreada de fortuna e a degradação e perecimento


de provas – carecem de sentido;
11ª - Assim, aquelas razões que militavam para a previsão de um prazo
limitativo de caducidade das acções de investigação de paternidade têm
necessariamente de ceder perante os direitos fundamentais,
constitucionalmente consagrados, que militam no sentido da
imprescritibilidade daquela tipologia de acções, nomeadamente o direito à
identidade pessoal e o direito de constituir família;
12ª - Ao estabelecer um prazo de caducidade de dez anos para as ações de
paternidade, o art. 1817º, nº1 do CC na sua atual redação restringe
(continua a restringir) desnecessária e desproporcionalmente importantes
direitos fundamentais do cidadão/investigante, violando, assim, o art. 18º,
nº2 da CRP, razão pela qual é materialmente inconstitucional;
13ª - Sendo certo que, contrariamente ao defendido no acórdão em crise,
não há que operar qualquer equilíbrio entre verdadeiros direitos
fundamentais – o direito à identidade pessoal e o direito à constituição da
família – e o mero interesse patrimonial e particular dos recorridos, que
não têm como por todos é reconhecido, o mesmo peso; razão pela qual o
art. 1817º, nº1 na sua atual redação conferida pela lei nº 14/2009, de 01 de
abril é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 18º, nº2 e
3, 26º, nº1 e 36º, nº1 da CRP;
14ª - Ainda que assim não se entenda, o que apenas por mero dever de
ofício se admite, na sequência da declaração de inconstitucionalidade do
art. 1817º, nº 1 do CC pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão de
23/2006, de 10 de janeiro, a propositura de ações de investigação da
paternidade deixou de estar dependente de prazos;
15ª - A Lei nº 14/2009, de 01 de Abril veio conferir uma nova redação ao
art. 1817º, nº1, o qual passou a determinar que as ações de investigação
da paternidade deveriam ser intentadas dentro do prazo de dez anos, sob
pena de caducidade;
16ª - O art. 1817º, nº1 do CC, na redação conferida pela Lei nº14/2009, de
01 de abril, é uma lei restritiva de direitos, liberdades e garantias, v.g., do
direito à identidade pessoal, do direito à constituição da família e do
direito ao livre desenvolvimento da personalidade;
17ª - O art. 3º da Lei nº 14/2009, de 01 de abril, ao estatuir que o prazo de
caducidade de dez anos se aplica a processos pendentes, determina que o
investigante tenha agora um prazo de 10 (dez) anos para propor a ação de
investigação da paternidade, quando à data da propositura da ação o podia
fazer sem dependência de qualquer prazo;
18ª - Assim, o art. 3º da Lei 14/2009, de 01 de abril determina que uma lei
restritiva de direitos, liberdades e garantias produza efeitos sobre
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situações pretéritas;
19ª - Ora, de acordo com o art. 18º, nº 3 da CRP, as leis restritivas de
direitos, liberdades e garantias não podem ter efeito retroativo, sem
necessidade de averiguar se houve uma efetiva lesão do princípio da
confiança, a qual é dada por assente pelo legislador constituinte;
20ª - Com o que o art. 3º da Lei 14/2009, 01 de abril é materialmente
inconstitucional porque viola o art. 18º, nº3 da CRP, como, aliás foi já
decidido pelo Tribunal Constitucional no acórdão 161/2011, de 24 de
março e no acórdão nº 24/2012 do Plenário do TC de 17 de Janeiro de
2012 que decidiram “julgar inconstitucional a norma constante do artigo
3.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na medida em que manda aplicar, aos
processos pendentes à data da sua entrada em vigor, o prazo previsto na
nova redação do artigo 1817º nº 1, do Código Civil, aplicável por força do
artigo 1873º do mesmo Código”;
21ª - A redação do art. 18º, nº3 da CRP é clara - o sujeito gramatical é a
lei restritiva de direitos, liberdades e garantias, não curando o legislador
de saber se a restrição apresenta ou não um carácter inovador e se é ou
não mais favorável;
22ª - Sem prescindir, a restrição dos direitos fundamentais operada pela
Lei nº14/2009, de 01 de abril é efetivamente nova ou, pelo menos, assim
tem de ser considerada pelo julgador;
23ª - Para todos os efeitos legais, o prazo de caducidade de 2 anos dentro
do qual teria a ação de investigação ser instaurada é como se nunca
tivesse existido, porque a lei que o estipulava foi banida do nosso
ordenamento jurídico desde a sua entrada em vigor, por efeito da
declaração da sua inconstitucionalidade com força obrigatória geral;
24ª - Donde, contrariamente ao que se defende no acórdão sob recurso, o
artigo 3º da Lei 14/2009, de 01 de abril é materialmente inconstitucional
por violação do artigo 18º, nº3 da CRP, não podendo pois considerar-se
que o prazo de caducidade de 10 anos é mais favorável que a inexistência
de qualquer prazo, já que o prazo de 2 anos, atento o disposto no artigo
282º, nº1 da CRP, nunca existiu no nosso ordenamento jurídico;
25ª - O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de …, ao considerar
que a ação de investigação da paternidade apenas seria tempestiva se
instaurada até maio de 1968, ignora por completo os efeitos decorrentes
da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do
artigo 1817º, nº1 do CC pelo acórdão do Tribunal Constitucional nº
23/2006, de 10 de janeiro;
26ª - Como se referiu, a previsão expressa de proibição da retroatividade
das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias dispensa o intérprete
de averiguar se houve uma efetiva violação das legítimas expectativas do
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investigante, pelo que não se compreende que se possa sustentar que a


declaração de inconstitucionalidade do art. 3º da Lei nº 14/2009, de 01 de
abril apenas significou a impossibilidade de se aplicar o prazo de
caducidade de 10 anos aos processos pendentes entre a publicitação do
acórdão do Tribunal Constitucional nº23/2006 e a entrada em vigor da lei
nº 14/2009, de 01 de Abril, na medida em que só nesse caso teria sido
lesada a confiança do investigante;
27ª - Ainda que houvesse de efetuar perscrutações ao nível da violação do
princípio da confiança, o que só por mera hipótese académica se admite, a
conclusão não poderia ser outra que não a da violação das legítimas
expectativas do investigante (art. 2º da CRP);
28ª - A doutrina e jurisprudência, ao tempo da propositura da presente
acção, já discutiam a questão da constitucionalidade do art. 1817º, nº1 do
CC, por estipular um prazo de caducidade de 2 (dois) anos, o qual já era à
data apontado como manifestamente exíguo;
29ª - Com a publicação do acórdão do Tribunal Constitucional nº
23/2006, de 10 de janeiro, (que julgou inconstitucional com força
obrigatória geral o art. 1817º, nº1 do CC que estatuía o prazo de
caducidade de 2 (dois) anos para as ações de investigação da
paternidade), aqueles que como o investigante instauraram aquelas ações,
obtiveram, com (maior) segurança, a confirmação de que a investigação
da filiação poderia ter lugar a todo o tempo e, assim, confiaram que as
ações ainda pendentes iriam ser julgadas procedentes;
30ª - Assim, não restam dúvidas que a aplicação do prazo de caducidade
de 10 anos à presente ação frustra as legítimas expectativas do
investigante recorrido que, na pendência da ação que propôs viu
declarada a inconstitucionalidade de uma norma cujo conteúdo sempre
considerou inadmissível;
31ª - O art. 3º da Lei nº 14/2009, de 01 de abril limita-se a determinar a
aplicação do prazo de caducidade de 10 (dez) anos aos processos
pendentes e os acórdãos do Tribunal Constitucional nº 164/2011 e
24/2012 (este do Plenário), ao declararem a sua inconstitucionalidade,
não fazem qualquer distinção entre aqueles que foram instaurados até
2006 e aqueles que foram instaurados posteriormente a essa data;
32ª - O Tribunal Constitucional não o fez, repete-se, porque, por um lado,
o prazo de 2 anos é como se nunca tivesse sido legalmente estabelecido;
33ª - E, por outro lado, porque a norma do nº 3 do artigo 3º da Lei
14/2009, enquanto norma restritiva de direitos, liberdades e garantias é
inconstitucional por violar os nºs 3 e 2 do artigo 18º da CRP. Uma lei
restritiva de direitos, liberdades e garantias retroativa é materialmente
inconstitucional, sem necessidade de apreciar a eventual lesão da
confiança do visado;
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34ª - Não pode agora o Tribunal vir proceder a essa arbitrária distinção,
como pretendem os apelantes, porque semelhante solução equivaleria a
desconsiderar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força
obrigatória geral;
35ª - Acresce que, não seria justo que a celeridade processual (ou a falta
dela) determinasse soluções jurídicas diversas quando a protecção da
confiança do investigante que instaurou a acção antes de 2006, também
veio a ser reforçada pelos efeitos do Ac. nº 23/2006 do Tribunal
Constitucional;
36ª - Essa distinção, à margem dos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade com força obrigatória geral do art. 1817º, nº1 e do
definido no Ac. do TC 164/2011, implicaria que o desfecho das acções
pendentes fosse ditado pela álea, o que é de todo inadmissível;
37ª - Se a presente acção, tivesse sido julgada em 2008, o Tribunal
determinaria a sua procedência em face do vazio legislativo; mas, sendo-o
em 2014, no entendimento dos apelantes, o Tribunal já terá de a julgar
improcedente, não obstante as partes estarem seguras de que nenhum
prazo de caducidade se aplicaria à sua situação e de onze anos constituir
um prazo que ultrapassa o razoável para que uma causa seja julgada nos
tribunais portugueses;
38ª - A presente ação foi e é tempestiva, como doutamente considerou a
douta sentença recorrida e considerou a Veneranda Desembargadora da
Relação no douto voto de vencido que exarou, improcedendo,
consequentemente, a invocada excepção de caducidade e tudo quanto a
esse propósito os apelantes ora alegam.
Termos em que, em face do exposto e do mais que por certo não deixará
de ser por VV. Exas. doutamente suprido, deve a presente revista ser
concedida, revogando-se o acórdão da Relação de Coimbra, mantendo-se
a douta sentença de 1ª instância, com o que uma vez mais este Venerando
Supremo Tribunal de Justiça fará JUSTIÇA.
Contra-alegando, defendem os recorridos a manutenção do julgado.
Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre
decidir.
/
2 - Com relevância para a apreciação e decisão do recurso, mostram-se
provados os seguintes factos:
/
1 - O A., AA, nasceu no dia 00 de ... de 1934;

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2 - Este nascimento foi registado na Conservatória do Registo Civil de …,


tendo sido registado como filho de EE, nascida, por seu turno, em
00.00.1900;
3 - O investigado, FF, nasceu em 00.00.913 e faleceu em 00.00.2002;
4 - A presente ação foi instaurada em 12 de dezembro de 2002.
*
3 - Perante o teor das conclusões formuladas pelo recorrente e não
havendo lugar a qualquer conhecimento oficioso, constata-se que a única
questão que, no âmbito da revista, demanda apreciação e decisão por
parte deste Tribunal de recurso consiste em tomar posição quanto à
procedência/improcedência da deduzida exceção perentória da
caducidade do direito a instaurar a presente ação.
Como decorre do relatório que antecede, na 1ª instância aquela exceção
foi julgada improcedente, perfilhando-se o entendimento contrário no
douto acórdão recorrido, em que, igualmente e sem que o, ora, recorrente
o pusesse em crise, foi afastada a presunção de paternidade do
investigado emergente da ocorrência de correspondente posse de estado.
Apreciando, não sem que se entenda dever deixar consignado que a
omitida (na 2ª instância) reapreciação da decisão proferida sobre a
matéria de facto na 1ª instância não releva para a apreciação do recurso, já
porque correspondente a uma pretensão dos, aí, recorrentes e, ora,
recorridos, já porque tal reapreciação não poderia ter o condão de bulir,
quer com o decidido no acórdão recorrido, quer com a factualidade a ter
em consideração para a apreciação e decisão da pretensão recursória do,
ora, recorrente:
*
4 - A questão que ficou enunciada como constituindo o objeto da presente
revista tem feito correr caudalosos rios de tinta, quer na doutrina, quer na
jurisprudência, como reflexo da sua assumida e enorme complexidade
jurídica, com correspondente impacto no tecido familiar, social e
económico da comunidade que a vivencia.
Em conformidade, no Ac. do Tribunal Constitucional nº 309/16, de 18.05,
foi feita a seguinte resenha da evolução da correspondente jurisprudência
constitucional:
“Da evolução da jurisprudência constitucional em matéria de prazos de
caducidade das ações de filiação, constata-se, desde logo, que o tribunal
não rejeitou em absoluto a admissibilidade, à luz da Constituição, de um
sistema de prazos de caducidade para a propositura deste tipo de ações
(…) De facto, após se ter pronunciado, no Ac. nº99/88, pela
conformidade constitucional da generalidade dos prazos de caducidade,
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quando o objeto do recurso se cingia às normas dos nº/s 3 e 4 do art.


1817º, no Ac. nº 486/2004 deixou «bem vincado» que, na averiguação da
conformidade c0onstitucional da solução limitativa do nº1 do mesmo art.,
o que estava em causa não era qualquer imposição constitucional de uma
ilimitada averiguação da verdade biológica da filiação, mas apenas o
concreto limite temporal previsto na norma desse preceito. Nesse aresto,
não se apurou se a imprescritibilidade da ação de investigação
correspondia à única solução constitucionalmente conforme, mas apenas
se censurou a consagração de limites temporais que dificultavam
seriamente a possibilidade do interessado averiguar o vínculo de filiação
natural, nomeadamente a circunstância do prazo de «dois anos posteriores
à maioridade ou emancipação» se esgotar num momento em que o
investigante não era ainda uma pessoa inteiramente madura e em que
podia não existir sequer qualquer justificação para a interposição da
investigação (…) Aliás, o Tribunal, nesse acórdão, admite que o regime
de imprescritibilidade não é a «única alternativa pensável» à norma do
nº1 do art. 1817º, porque o que diminui o alcance do conteúdo essencial
dos direitos fundamentais à identidade pessoal e à constituição de família,
que incluem o direito ao conhecimento da maternidade ou da paternidade,
é o facto do prazo de dois anos se contar a partir de um «dies a quo»
puramente objetivo, isto é, não dependente de quaisquer elementos
relativos à possibilidade concreta do exercício da ação. Ou seja, o
Tribunal rejeita, por violação do princípio da proporcionalidade, um
sistema de prazos «dies a quo» objetivo, mas aceita «possíveis
alternativas», como as que ligam o direito de investigar às reais e
concretas possibilidades investigatórias do pretenso filho, sem total
imprescritibilidade da ação, nomeadamente a previsão de um termo
inicial que não ignore o conhecimento ou a cognoscibilidade das
circunstâncias que fundamentam a ação (…) O mesmo se passou com os
juízos de inconstitucionalidade dos prazos especiais previstos nas normas
dos nº/s 3 e 4 do art. 1817º proferidos, respetivamente, nos Acs. nº/s
626/2009 e 65/2010 (…) Não deixou, porém, o tribunal de referir, no
primeiro desses acórdãos, que, por não se estar perante um prazo «cego»,
que começa a correr independentemente de poder haver qualquer
justificação para o exercício do direito à investigação da paternidade,
«pelo menos o direito à segurança jurídica, nomeadamente o direito do
pretenso progenitor em não ver indefinida ou excessivamente protelada
uma situação de incerteza quanto à sua paternidade, justifica que se
condicione o exercício do direito do filho à investigação da paternidade
através do estabelecimento de um prazo para acionar. Na verdade, tendo o
titular deste direito conhecimento dos factos que lhe permitam exercê-lo,
é legítimo que o legislador estabeleça um prazo para a propositura da
respetiva ação, após esse conhecimento, de modo a que o interesse da
segurança jurídica não possa ser posto em causa por uma atitude
desinteressada daquele. O estabelecimento de um prazo de caducidade
para o exercício do direito à investigação de paternidade nestes casos,
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revela-se, em abstrato, uma limitação adequada, necessária e proporcional


deste direito, para satisfação do interesse de segurança jurídica, como
elemento essencial do Estado de Direito (art. 2º da CRP) (…) De igual
modo, no segundo daqueles acórdãos, apenas se julgou a
inconstitucionalidade do prazo concretamente em questão,
independentemente de saber se a previsão de um prazo de caducidade está
ao serviço da tutela de direitos ou interesses constitucionalmente
relevantes ou de saber se é uma medida necessária à tutela dos interesses
que se contrapõem ao do investigante (…) De todas as decisões de
inconstitucionalidade podemos concluir que o Tribunal nunca assumiu
que a imprescritibilidade era o único regime constitucionalmente
conforme, tendo as mesmas sido sempre tomadas por razões atinentes à
exiguidade do prazo estabelecido e/ou ao caráter objetivo do termo
inicial”.
*
5 - É certo que, através do Ac. nº 23/06, de 10.01.06, publicado no DR I-
A, de 08.02, e de que foi relator o Ex. mo Cons. Paulo Mota Pinto, o
Plenário do Tribunal Constitucional decidiu declarar a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do
nº1 do art. 1817º do CC, aplicável por força da remissão do art. 1873º do
mesmo Cod., “na medida em que prevê, para a caducidade do direito de
investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade
do investigante, por violação das disposições conjugadas dos arts. 26º,
nº1, 36º, nº1 e 18º, nº2 da CRP”.
E, na decorrência de tal veredicto constitucional, foram proferidos, neste
Supremo, diversos arestos em que se consagrou o entendimento da
imprescritibilidade do direito à instauração da ação de investigação, a
qual poderia, pois, ser instaurada a todo o tempo, com a inerente
improcedência da correspondente e deduzida exceção perentória.
Posição que foi, maioritariamente, mantida, mesmo perante a nova
redacção dada àquele art. 1817º - aplicável aos casos de investigação da
paternidade por força da já mencionada remissão do citado art. 1873º -
pela Lei nº 14/2009, de 01.04, nos termos que se passa a transcrever:
“ 1 - A acção de investigação de maternidade só pode ser proposta
durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua
maioridade ou emancipação.
2 - Se não for possível estabelecer a maternidade em consequência do
disposto no art. 1815º, a acção pode ser proposta nos três anos seguintes à
rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo
inibitório.
3 - A acção pode ainda ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência
de algum dos seguintes factos:
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a) - Ter sido impugnada por terceiro, com sucesso, a maternidade do


investigante;
b) - Quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do
prazo previsto no nº1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a
investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pela
pretensa mãe;
c) - Em caso de inexistência de maternidade determinada, quando o
investigante tenha tido conhecimento superveniente de factos ou
circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação.
4 - No caso referido na al. b) do número anterior, incumbe ao réu a prova
da cessação voluntária do tratamento nos três anos anteriores à
propositura da acção”.
No entanto, o sobredito Plenário, através do Ac. nº 401/2011, de 22.09.11,
de que foi relator o Ex. mo Cons. Cura Mariano, decidiu, por maioria,
“Não julgar inconstitucional a norma do art. 1817º, nº1, do Código Civil,
na redacção da Lei nº 14/2009, de 01.04, na parte em que, aplicando-se
às acções de investigação de paternidade por força do art. 1873º do
mesmo Cod., prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção,
contado da maioridade ou emancipação do investigante”.
Vindo, depois, a ser perfilhada idêntica posição, designadamente, no Ac.
do Tribunal Constitucional nº 424/2016, de 06.07, de que foi relatora a
Ex. ma Cons. Maria Lúcia Amaral, a qual identificou mais 20 (vinte)
acórdãos em que foi decidido no mesmo sentido, com a inerente
determinação da reformulação dos respetivos arestos deste Supremo, em
conformidade com aquele juízo de não inconstitucionalidade.
Ou seja, e como expendido no Ac. deste Supremo, de 23.06.16, acessível
em www.dgsi.pt e de que foi relator o Ex. mo Cons. Abrantes Geraldes,
“…a referida jurisprudência deste Supremo” - que assentava na
inconstitucionalidade material do prazo de caducidade constante do art.
1817º, nº1 do CC, mesmo na redação introduzida pela Lei nº 14/09, de
01.04, por violação do direito à identidade pessoal do investigante - “teve
de se acomodar a tal solução” - de não inconstitucionalidade -
“assumindo-se agora, sem divergências” - até então -, “neste Supremo
Tribunal a aplicabilidade às acções de reconhecimento da paternidade do
regime de caducidade emergente do art. 1817º do CC”.
Porque resultaria demasiado fastidioso, não se procederá a uma
aprofundada fundamentação da evolução verificada na pertinente
jurisprudência do Tribunal Constitucional, antes se entendendo dever
remeter, com a devida vénia, para os já mencionados Acs. nº/s 23/06, de
10.01, 401/11, de 22.09, e 309/16, de 18.05, todos daquele Tribunal, onde
tal temática foi objeto de exaustiva e convincente fundamentação, mesmo
em termos de direito comparado, com incursões no Código da Família da
Catalunha, nos sistemas jurídicos italiano, holandês, brasileiro, espanhol,
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alemão, austríaco, cabo-verdiano, angolano, suíço e francês, Código Civil


de Macau e jurisprudência do TEDH (Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem).
Não obstante, pelo seu patente interesse, transcreve-se, de seguida e com
a devida vénia, as seguintes considerações constantes daquele Ac. nº
401/11:
“É…pacífica a previsão constitucional dos direitos ao conhecimento da
paternidade biológica e do estabelecimento do respectivo vínculo
jurídico, como direitos fundamentais (…) Isso não impede, contudo, que
o legislador possa modelar o exercício de tais direitos em função de
outros interesses ou valores constitucionalmente tutelados. Não estamos
perante direitos absolutos que não possam ser confrontados com valores
conflituantes, podendo estes exigir uma tarefa de harmonização dos
interesses em oposição, ou mesmo a sua restrição (…) É do interesse
público que se estabeleça o mais breve que seja possível a
correspondência entre a paternidade biológica e a paternidade jurídica,
fazendo funcionar o instituto jurídico da filiação com todos os seus
efeitos, duma forma estável e que acompanhe durante o maior tempo
possível a vida dos seus sujeitos (…) Este interesse também tem
projecção na dimensão subjectiva, como segurança para o investigado e
sua família. Não deixa de relevar que alguém a quem é imputada uma
possível paternidade - vínculo de efeitos não só pessoais, como também
patrimoniais - tem interesse em não ficar ilimitadamente sujeito à
«ameaça», que sobre ele pesa, de instauração da acção de investigação
(…) …a propositura da acção de investigação potencialmente instaurada
largos anos volvidos após a procriação é de molde a «apanhar de
surpresa” o investigado e a sua família, com as inerentes perturbações e
afectações sérias do direito à reserva da vida privada. Também deste
ponto de vista há razões para o legislador incentivar o exercício o mais
cedo possível desse direito (…) Ora, o meio, por excelência, para tutelar
estes interesses atendíveis públicos e privados ligados à segurança
jurídica, é precisamente a consagração de prazos de caducidade para o
exercício do direito em causa (…) … essa limitação não impede o titular
do direito de o exercer, impondo-lhe apenas o ónus de o exercer num
determinado prazo … não sendo injustificado nem excessivo fazer recair
sobre o titular do direito um ónus de diligência quanto à iniciativa
processual para apuramento definitivo da filiação, não fazendo prolongar,
através de um regime de imprescritibilidade, uma situação de incerteza
indesejável (…) Necessário é que esse prazo, pelas suas características,
não impossibilite ou dificulte excessivamente o exercício maduro e
ponderado do direito ao estabelecimento da paternidade biológica (…) …
os prazos de três anos referidos nos nº/s 2 e 3 do art. 1817º do CC
contam-se para além do prazo fixado no nº1 do mesmo art., não
caducando o direito de proposição da acção antes de esgotados todos eles
(…) Isto significa que o prazo de dez anos após a maioridade ou
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emancipação previsto no nº1 do art. 1817º do CC não funciona como um


prazo cego, cujo decurso determine inexoravelmente a perda do direito ao
estabelecimento da paternidade, mas sim como um marco terminal de um
período durante o qual não opera qualquer prazo de caducidade (…) Face
ao melindre, à profundidade e às implicações que a decisão de instaurar a
acção de investigação da paternidade reveste, entende-se que num período
inicial após se atingir a maioridade ou a emancipação, em regra, não
existe ainda um grau de maturidade, experiência de vida e autonomia que
permita uma opção ponderada e suficientemente consolidada (…) Apesar
de na actual conjuntura a cada vez mais tardia inserção estável no mundo
profissional poder acarretar falta de autonomia financeira, eventualmente
desincentivadora de uma iniciativa, por exclusiva opção própria, a
alegada falta de maturidade e experiência do investigante perde muito da
sua evidência quando se reporta aos vinte e oito anos de idade, ou um
pouco mais cedo nos casos de emancipação. Neste escalão etário, o
indivíduo já estruturou a sua personalidade, em termos suficientemente
firmes e já tem tipicamente uma experiência de vida que lhe permite
situar-se autonomamente, sem dependências externas, na esfera
relacional, mesmo quando se trata de tomar decisões, como esta, fora do
âmbito da gestão corrente de interesses (…) O prazo de 10 anos após a
maioridade ou emancipação, consagrado no art. 1817º, nº1 do CC, revela-
se, pois, como suficiente para assegurar que não opera qualquer prazo de
caducidade para a instauração pelo filho duma acção de investigação da
paternidade, durante a fase da vida deste em que ele poderá ainda não ter
a maturidade, a experiência de vida e a autonomia suficientes para sobre
esse assunto tomar uma decisão suficientemente consolidada”.
/
6 - Nos termos do disposto no art. 3º da Lei nº 14/09, de 01.04, a mesma
aplica-se aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
A presente ação foi instaurada em 12.12.02 e, como é óbvio, pendendo,
ainda, encontrava-se pendente em 02.04.09, data da entrada em vigor
daquela Lei (respetivo art. 2º).
Sustenta, porém, o recorrente que aquele art. 3º enferma de
inconstitucionalidade material, por violação do disposto no art. 18º, nº3
da CRP, uma vez que, acarretando o preceituado no respetivo art. 1º uma
restrição aos seus direitos à identidade pessoal e a constituir família,
consagrados nos arts. 18º, nº1 e 36º, nº1, respetivamente, da CRP, vedado
está, constitucionalmente, que lhe seja atribuída eficácia retroativa.
Efetivamente, assim foi decidido, por maioria qualificada (voto de
qualidade do Ex. mo Cons. Presidente do Tribunal), no Ac. nº 24/12, de
17.01 do Plenário do Tribunal Constitucional, de que foi relator o Ex. mo
Cons. Cunha Barbosa, o qual registou 6 votos a favor e igual número de
votos contra (vencido).
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Porém e sem quebra do respeito devido à opinião contrária, não se


tratando de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória
geral (art. 282º, nº1 da CRP), aderimos à posição vencida em tal aresto.
Em primeiro lugar e encurtando razões, porque, considerando quanto
ficou expendido, o preceito em causa não acarreta qualquer verdadeira
restrição aos invocados direitos, constitucionalmente garantidos, da
identidade pessoal e constituição de família.
Em segundo lugar, porque não ocorre, no caso, qualquer violação do
princípio da confiança do recorrente, tanto mais que a ação foi instaurada
em 2002, ou seja, muito antes do período compreendido entre 08.02.06
(data da publicitação do acórdão que, com força obrigatória geral,
declarou a inconstitucionalidade material do art. 1817º, nº1 do CC, na
redação anterior à introduzida pela Lei nº 14/09, de 01.04) e 01.04.09
(data da publicação daquela Lei), não se podendo, pois, sustentar que esta
Lei veio frustrar expectativas que o recorrente tinha (as que, então,
poderia ter até seriam menos favoráveis) quando se determinou a
instaurar a ação.
Em terceiro lugar, porque, no caso, nem se trataria de retroatividade
autêntica (em que ocorre afetação de posições jusfundamentais já
estabelecidas no passado ou, mesmo, esgotadas), mas de retrospetividade
ou retroatividade inautêntica e em que a questionada medida legislativa,
para além de não se revelar arbitrária, inesperada ou desproporcionada,
não afeta qualquer direito do recorrente de forma excessivamente gravosa
e imprópria (Cfr. “Constituição da República Portuguesa” Anotada,
dos Profs. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, 2007, Vol. I, pags.
393/394).
Finalmente, pelos fundamentos aduzidos nos sobreditos votos de vencido
e de que nos permitimos destacar:
--- Do Ex. mo Cons. Carlos Pamplona de Oliveira:
- “Decorre da ampla jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o
princípio da segurança jurídica que, para que a proteção da confiança seja
tutelada constitucionalmente, é necessário, em primeiro lugar, que o
legislador tenha promovido comportamentos capazes de gerar nos
cidadãos a expectativa de continuidade de um determinado modelo
jurídico. Ora…não se pode considerar ter existido um comportamento
legislativo idóneo a criar expectativas merecedoras de proteção”;
- “…A tese adotada no Ac. nº 23/2006 não se radicou…na ideia da
desconformidade constitucional da previsão de um qualquer prazo de
caducidade neste tipo de ações, sendo por isso irrazoável admitir que
tivesse gerado uma expectativa séria quanto à inconstitucionalidade da
existência de qualquer prazo. Aliás, o próprio Ac. sublinhou a

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possibilidade de o legislador criar novos prazos para a investigação da


maternidade e paternidade…”;
- “…se é certo que o princípio do Estado de Direito implica a proteção da
confiança relativamente a atos jurisdicionais, essa dimensão do
princípio…apenas tem sido entendida como dizendo respeito ao caso
julgado, i. e., em relação à estabilidade definitiva das decisões judiciais”,
porquanto, como refere J. J. Gomes Canotilho (“Direito Constitucional e
Teoria da Constituição”, pags. 256 e segs) “é diferente falar em
segurança jurídica quando se trata de caso julgado e em segurança
jurídica quando está em causa a uniformidade ou estabilidade da
jurisprudência. Sob o ponto de vista do cidadão, não existe um direito à
manutenção da jurisprudência dos tribunais”, sendo “uma dimensão
irredutível da função jurisdicional a obrigação de os juízes decidirem,
nos termos da lei, segundo a sua convicção e responsabilidade”;
--- Do Ex. mo Cons. Cura Mariano:
- “…o disposto no nº3 do art. 18º da Constituição apenas impede o efeito
retroactivo das normas que venham a introduzir novas restrições,
anteriormente não previstas, ou a proceder ao alargamento ou
agravamento de restrições já consagradas por lei prévias”;
- Ora “o julgamento de inconstitucionalidade” - do Ac. nº 23/06 - “não
recaiu sobre a existência de um prazo de caducidade para a propositura da
ação de investigação de paternidade, mas sim sobre a sua duração e,
sobretudo, sobre as suas características, uma vez que começava a correr
inexorável e ininterruptamente desde o nascimento do filho e se podia
esgotar integralmente sem que o mesmo tivesse qualquer justificação para
a instauração da ação de investigação de paternidade”;
- “ O facto de o STJ…, em resultado duma errada leitura do Ac…nº
23/06, ter entendido que o juízo de inconstitucionalidade abrangia
qualquer prazo de caducidade que se estabelecesse, pelo que as ações de
investigação de paternidade, durante este período, foram consideradas
imprescritíveis, não é suficiente para que se possa considerar que durante
o período que antecedeu a aprovação da Lei nº14/09, de 01.04, vigorou
um regime de absoluta imprescritibilidade do direito ao reconhecimento
judicial da paternidade. Estamos apenas perante pronúncias
jurisprudenciais, com efeitos limitados aos casos concretos onde foram
proferidas, cujo sentido é irrelevante para a caracterização da intervenção
do legislador em 01.04.09”;
- “…a lei civil portuguesa não adotou a regra da «imprescritibilidade» do
direito de investigação de paternidade e continuou a insistir na
necessidade de existência de limites temporais ao exercício desse direito,
tendo embora configurado esses limites com um novo figurino e
duração”;

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- “Se este novo figurino não permite que possamos qualificar a Lei
nº14/09, de 01.04, como uma lei interpretativa…, seguramente que ele
não veio introduzir novas restrições, anteriormente não previstas, nem
procedeu ao alargamento ou agravamento de restrições já consagradas por
lei prévia ao direito ao reconhecimento judicial da paternidade, mas, pelo
contrário, desagravou significativamente a severidade do sistema de
prazos de caducidade que vigorava anteriormente à sua aprovação”;
--- Do Ex. mo Cons. Sousa Ribeiro:
- “…Não era de afastar” - após a prolação do Ac. nº 23/06, do Tribunal
Constitucional - “a hipótese de o operador judiciário, perante um sistema
de regras de determinação da filiação onde continuaram em vigor prazos
de caducidade (inclusivamente no âmbito do mesmo art. 1817º, para as
ações de investigação) considerasse que estávamos perante um transitório
vácuo legislativo, a preencher dentro do «espírito do sistema». Nessa
medida, e no contexto muito particular desta concreta sucessão de leis no
tempo, não será líquido que tenha havido uma mutação desfavorável da
ordem jurídica, quando, pelo contrário, é certo que o legislador introduziu
um regime de prazos mais favorável do que o anteriormente fixado no art.
1817, e não apenas no que se refere ao prazo-regra do nº1”.
*
7 - Deflui de quanto ficou considerado que, face à não
inconstitucionalidade do preceituado no art. 3º da Lei nº 14/09, de 01.04 e
visto o disposto no art. 19º do DL nº 47344, de 25.11.1966 - que aprovou
o vigente CC -, tendo o A. nascido em 13.12.1934, só poderia, com
referência ao preceituado no art. 1817º, nº1, do CC, na redação
introduzida pelo art. 1º daquela Lei, ter instaurado a presente ação até
31.05.1968.
Assim, tendo a ação sido instaurada apenas em 12.12.02, procede a
deduzida exceção perentória da caducidade do direito ao visado
reconhecimento judicial da paternidade do A., com a inerente
improcedência da ação por si instaurada, sendo, pois, de manter, com a
aduzida fundamentação, o acórdão recorrido.
*
8 - Na decorrência do exposto, acorda-se em negar a revista.
/
Custas, aqui e nas instâncias, pelo recorrente.
Lx 08/11/2016
Fernandes do Vale – Relator

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Ana Paula Boularot - (Vencida nos termos da declaração de voto que


junto)
Pinto de Almeida
_____________________________
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencida, teria revogado o Aresto sob impugnação e julgado procedente a
acção de investigação de paternidade.
Prima facie, e sempre s.d.r.o.c., entendo que o «direito à identidade
pessoal» e o «direito à integridade pessoal» consagrados nos artigos 26º,
nº1 e 25º, nº1 da Lei Fundamental, encontram-se ao serviço do núcleo
essencial da pessoa humana e da sua vida, englobando o que se denomina
os direitos da personalidade, estando o seu conteúdo delimitado, além do
mais, pelo direito do individuo à sua historicidade pessoal, implicando
necessariamente o direito ao conhecimento da identidade dos seus
progenitores, aqui se fundando, logicamente, o direito à investigação da
paternidade, além do mais, o qual é, por essência, imprescritível.
Aliás, em termos de direito comparado podemos destacar que os artigos
270º do Código Civil Italiano e 210º do Código Civil Holandês
estabelecem a imprescritibilidade da acção para que o filho possa obter a
declaração judicial da paternidade ou da maternidade; solução simétrica
advém do disposto nos artigos 1606º do Código Civil Brasileiro, 133º do
Código Civil Espanhol e 104º do Código da Família da Catalunha, de
onde resulta que a acção de prova da filiação compete ao filho enquanto
for vivo; idêntica posição é postulada pelos Códigos Civis Alemão e
Austríaco, aí se não se encontrando expressamente previsto qualquer
prazo para a instauração das acções deste jaez; e mesmo entre os Códigos
que tiveram como modelo o Código Civil Português de 1966, alguns
deles, como o Código Civil de Cabo Verde (artigo 1802.º), o Código de
Família de Angola (artigo 184.º) e o Código Civil de Macau (artigo
1677.º), afastaram-se da nossa opção, tendo determinado que este tipo de
acções pode ser proposta “a todo o tempo”.
O estabelecimento de um prazo de caducidade pela Lei – artigo 1817º do
CCivil – está longe de constituir uma tema pacífico, em termos de direito
constituído, o que tem conduzido a diferentes entendimentos
jurisprudenciais neste Supremo Tribunal, maxime e inter alia no sentido
da inconstitucionalidade daquele prazo os Ac STJ de 21 de Setembro de
2009 (Relator Sebastião Póvoas), de 10 de Janeiro de 2012 (Relator
Moreira Alves), de 14 de Janeiro de 2014 (Relator Martins de Sousa), de
16 de Setembro de 2014 (Relator Hélder Roque), embora este último
numa situação paralela de impugnação de paternidade), in www.dgsi.pt.

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Subscreveria, pois, in totum, a posição expressa no voto de vencida da


Exª Sra Desembargadora Adjunta.
(Ana Paula Boularot)
_______________________________________________________
[1]Relator: Fernandes do Vale (48/15)
Ex. mos Adjuntos
Cons. Ana Paula Boularot
Cons. Pinto de Almeida.

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