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PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Registro: 2022.0000257716

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº


1002282-49.2020.8.26.0533, da Comarca de Santa Bárbara D Oeste, em que são
apelantes A. T. C. P. e M. M., é apelado O J..

ACORDAM, em sessão permanente e virtual da 6ª Câmara de Direito


Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: Deram
provimento ao recurso. V. U., de conformidade com o voto do relator, que integra
este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores COSTA NETTO


(Presidente sem voto), CHRISTIANO JORGE E ANA MARIA BALDY.

São Paulo, 7 de abril de 2022.

ANA ZOMER
Relatora
Assinatura Eletrônica
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Apelação de nº. 1002282-49.2020.8.26.0533

Apelantes: A. T. C. P. e M. M.

Apelado: O Juízo

Comarca: Santa Bárbara D'Oeste

Voto nº 257

APELAÇÃO. Averbação de dupla maternidade de filho


de mãe biológica, casada com a outra autora e que
planejaram juntas a gravidez por inseminação artificial
caseira. Sentença que extinguiu o feito, sem resolução do
mérito, com fulcro no artigo 485, inciso VI, do CPC.
Superveniente nascimento do menor. Entendimento do
C. STJ e STF pela inexistência de óbice quanto ao
reconhecimento por autorização judicial, sem natureza
contenciosa, de dupla maternidade no registro de
nascimento. Pareceres de nºs 336/2014-E e 355/2014-E,
da CGJ. Sentença reformada. Recurso provido.

Vistos.

Trata-se de apelação tirada da r. sentença de fls. 95, que


extinguiu o processo, sem resolução de mérito, com fulcro no artigo 485, inciso VI,
do CPC.
Irresignadas, apelam M. M. e A. T. C. P., afirmando terem
promovido a ação de origem a fim de verem expedido alvará para lavrarem registro
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de nascimento do filho comum, A. M. P., em nome de ambas as genitoras, perante o


Cartório de Registro Civil da Comarca onde a família reside. Alegam que ao
promoverem o registro civil do infante, nascido no curso do processo, aos
07/08/2020, requereram que o nome de ambas as genitoras constasse na certidão
daquele, o que teria sido negado pelo Oficial do Registro Civil, fundamentando-se na
indispensabilidade de apresentação de documento emitido por diretor técnico de
clínica, centro ou serviço de reprodução humana, consoante Provimento de nº 63, do
CNJ. Aduzem terem convivido em união estável desde o ano de 2009, até
28/11/2018, quando contraíram matrimonio (fls. 11/12). Da união, tiveram outro
filho, H. M. P., nascido aos 30/03/2017 (fls. 16), concebido por inseminação artificial
caseira, gestado pela apelante A. T. Asseveram que a recorrente M. M. igualmente
engravidou através de fecundação caseira, dando à luz a criança A. M. P., da qual ora
buscam o registro. Narram, ainda, ter sido deferido pedido de habilitação ao cadastro
de pretendentes à adoção (fls. 41/69), poiso desejam um terceiro filho, depois de
terem gestado, cada qual, a prole comum. Ressaltam que, a prática de inseminação
artificial caseira é costumeira e realizada por casais homoafetivos, que não possuem
recursos para a reprodução assistida, de valor elevado, o que não permitiria o custeio
pelas apelantes, que não dispõe de condições econômicas a tanto. Aduzem, por fim,
que a ausência de registro do infante A. M. P., o vem impedindo de ser detentor de
direitos, e de ter acesso a benefícios como plano de saúde da família, entre outros.
Diante de tais argumentos, pugnam pelo provimento do
presente apelo, para que seja declarada a maternidade socioafetiva, e determinada a
lavratura do assento de nascimento do menor A. M. P., como filho das recorrentes.
Recurso tempestivo e preparado.
Diante da natureza da ação, não há parte contrária para
apresentar contrarrazões.
Parecer da Procuradoria Geral de Justiça (fls. 127/129),
opinando pelo provimento do inconformismo.
Termo de Sucessão de Relatoria nas fls. 132.
É o relatório.
Fundamento e decido.
O recurso merece provimento.

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É sabido que a conexão por afetividade está normatizada no


artigo 1593, do Código Civil, que prevê duas hipóteses de parentesco: natural ou
civil, conforme resulte de consaguinidade ou outra origem.
O legislador civil, ao remeter a "outra origem" permite que
o estado de filho possa ser reconhecido com lastro em outras fontes que não apenas
a relação de sangue, ou seja: com fundamento no afeto, alçando a
paternidade/maternidade socioafetiva a uma forma de parentesco civil.
Não por outra razão o Enunciado de nº 256 da III Jornada de
Direito Civil do Conselho da Justiça Federal norteia: “A posse do estado de filho
(parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”.
Pois bem, para que se possa reconhecer a filiação
socioafetiva, é necessário que fiquem demonstradas duas circunstâncias bem
definidas:
(A) vontade clara e inequívoca do apontado pai ou mãe
socioafetivo de ser reconhecido, voluntária e juridicamente, como tal
(demonstração de carinho, afeto, amor); e
(B) configuração da denominada “posse de estado de
filho”, compreendida pela doutrina como a presença (não concomitante) de
tractatus (tratamento, de parte a parte, como pai/mãe e filho); nomen (a pessoa traz
consigo o nome do apontado pai/mãe); e fama (reconhecimento pela família e pela
comunidade de relação de filiação), que naturalmente deve apresentar-se de forma
sólida e duradoura.
Esta diretriz foi bem delineada no julgamento do REsp
1.328.380-MS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, pelo Colendo Superior Tribunal
de Justiça.
Nesta esteira, o Supremo Tribunal Federal ao julgar a tese da
multiparentalidade, em repercussão geral, decidiu que a paternidade/maternidade
socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do
vínculo concomitante, conferindo centralidade à dimensão afetiva dos
relacionamentos interpessoais.
Assim sendo, é possível a coexistência de duas paternidades
ou maternidades, a socioafetiva e a biológica, em condições de igualdade jurídica,

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vez que a ambas foi entregue o mesmo status, sem qualquer hierarquia apriorística
(em abstrato); o Eminente Ministro relator, ao julgar o caso concreto que balizou a
repercussão geral, não deixa dúvidas quanto a essa isonomia:

Se o conceito de família não pode ser reduzido a


modelos padronizados, nem é lícita a hierarquização
entre as diversas formas de filiação, afigura-se
necessário contemplar sob o âmbito jurídico todas as
formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar,
a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento
ou outras hipóteses legais (como a fecundação
artificial homóloga ou a inseminação artificial
heteróloga art. 1.597, III a V do Código Civil de
2002); (ii) pela descendência biológica; ou (iii) pela
afetividade”1.

Referida equiparação valoriza o princípio da igualdade entre


os filhos, insculpido no artigo 227, § 6º, da Constituição Federal, e reproduzido nos
artigos 1.596, do Código Civil e 20, do Estatuto da Criança e Adolescente,
mostrando-se adequada e merecedora de elogios.
A partir de tal julgado não mais há que se falar em
impossibilidade jurídica da relação de multiparentalidade; qualquer colocação nesta
esteira revela-se discriminatória e deve ser afastada.

Confira-se:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO


GERAL RECONHECIDA. DIREITO CIVIL E
CONSTITUCIONAL. CONFLITO ENTRE
PATERNIDADES SOCIOAFETIVA E BIOLÓGICA.
PARADIGMA DO CASAMENTO. SUPERAÇÃO PELA

1 Trecho do voto do Min. Relator Luiz Fux, ao julgar o RE 898060/SC, p. 14.


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CONSTITUIÇÃO DE 1988. EIXO CENTRAL DO


DIREITO DE FAMÍLIA: DESLOCAMENTO PARA O
PLANO CONSTITUCIONAL. SOBREPRINCÍPIO DA
DIGNIDADE HUMANA (ART. 1º, III, DA CRFB).
SUPERAÇÃO DE ÓBICES LEGAIS AO PLENO
DESENVOLVIMENTO DAS FAMÍLIAS. DIREITO À
BUSCA DA FELICIDADE. PRINCÍPIO
CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO. INDIVÍDUO COMO
CENTRO DO ORDENAMENTO JURÍDICO -
POLÍTICO. IMPOSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DAS
REALIDADES FAMILIARES A MODELOS PRÉ -
CONCEBIDOS. ATIPICIDADE CONSTITUCIONAL
DO CONCEITO DE ENTIDADES FAMILIARES.
UNIÃO ESTÁVEL (ART. 226, § 3 º, CRFB) E FAMÍLIA
MONOPARENTAL (ART. 226, § 4 º, CRFB).
VEDAÇÃO À DISCRIMINAÇÃO E
HIERARQUIZAÇÃO ENTRE ESPÉCIES DE
FILIAÇÃO (ART. 227, § 6 º, CRFB).
PARENTALIDADE PRESUNTIVA, BIOLÓGICA OU
AFETIVA. NECESSIDADE DE TUTELA JURÍDICA
AMPLA. MULTIPLICIDADE DE VÍNCULOS
PARENTAIS. RECONHECIMENTO
CONCOMITANTE. POSSIBILIDADE.
PLURIPARENTALIDADE. PRINCÍPIO DA
PATERNIDADE RESPONSÁVEL (ART. 226, § 7 º,
CRFB). RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
FIXAÇÃO DE TESE PARA APLICAÇÃO A CASOS
SEMELHANTES.
1. O prequestionamento revela-se autorizado quando
as instâncias inferiores abordam a matéria jurídica
invocada no Recurso Extraordinário na fundamentação
do julgado recorrido, tanto mais que a Súmula n. 279

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desta Egrégia Corte indica que o apelo extremo deve


ser apreciado à luz das assertivas fáticas estabelecidas
na origem.
2. A família, à luz dos preceitos constitucionais
introduzidos pela Carta de 1988, apartou-se
definitivamente da vetusta distinção entre filhos
legítimos, legitimados e ilegítimos que informava o
sistema do Código Civil de 1916, cujo paradigma em
matéria de filiação, por adotar presunção baseada na
centralidade do casamento, desconsiderava tanto o
critério biológico quanto o afetivo.
3. A família, objeto do deslocamento do eixo central de
seu regramento normativo para o plano constitucional,
reclama a reformulação do tratamento jurídico dos
vínculos parentais à luz do sobreprincípio da dignidade
humana (art. 1º, III, da CRFB) e da busca da
felicidade.
4. A dignidade humana compreende o ser humano
como um ser intelectual e moral, capaz de determinar-
se e desenvolver-se em liberdade, de modo que a
eleição individual dos próprios objetivos de vida tem
preferência absoluta em relação a eventuais
formulações legais definidoras de modelos
preconcebidos, destinados a resultados eleitos a priori
pelo legislador. Jurisprudência do Tribunal
Constitucional alemão (BVerfGE 45, 187).
5. A superação de óbices legais ao pleno
desenvolvimento das famílias construídas pelas
relações afetivas interpessoais dos próprios indivíduos
é corolário do sobreprincípio da dignidade humana.
6. O direito à busca da felicidade, implícito ao art. 1º,
III, da Constituição, ao tempo que eleva o indivíduo à

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centralidade do ordenamento jurídico-político,


reconhece as suas capacidades de autodeterminação,
autossuficiência e liberdade de escolha dos próprios
objetivos, proibindo que o governo se imiscua nos
meios eleitos pelos cidadãos para a persecução das
vontades particulares. Precedentes da Suprema Corte
dos Estados Unidos da América e deste Egrégio
Supremo Tribunal Federal: RE 477.554-AgR, Rel. Min.
Celso de Mello, DJe de 26/08/2011; ADPF 132, Rel.
Min. Ayres Britto, DJe de 14/10/2011.
7. O indivíduo jamais pode ser reduzido a mero
instrumento de consecução das vontades dos
governantes, por isso que o direito à busca da
felicidade protege o ser humano em face de tentativas
do Estado de enquadrar a sua realidade familiar em
modelos pré-concebidos pela lei.
8. A Constituição de 1988, em caráter meramente
exemplificativo, reconhece como legítimos modelos de
família independentes do casamento, como a união
estável (art. 226, § 3º) e a comunidade formada por
qualquer dos pais e seus descendentes, cognominada
“família monoparental” (art. 226, § 4º), além de
enfatizar que espécies de filiação dissociadas do
matrimônio entre os pais merecem equivalente tutela
diante da lei, sendo vedada discriminação e, portanto,
qualquer tipo de hierarquia entre elas (art. 227, § 6º).
9. As uniões estáveis homoafetivas, consideradas pela
jurisprudência desta Corte como entidade familiar,
conduziram à imperiosidade da interpretação não-
reducionista do conceito de família como instituição
que também se forma por vias distintas do casamento
civil (ADI nº. 4277, Relator(a): Min. AYRES BRITTO,

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Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011).


10. A compreensão jurídica cosmopolita das famílias
exige a ampliação da tutela normativa a todas as
formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar,
a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento
ou outras hipóteses legais, (ii) pela descendência
biológica ou (iii) pela afetividade.
11. A evolução científica responsável pela
popularização do exame de DNA conduziu ao reforço
de importância do critério biológico, tanto para fins de
filiação quanto para concretizar o direito fundamental
à busca da identidade genética, como natural
emanação do direito de personalidade de um ser.
12. A afetividade enquanto critério, por sua vez, gozava
de aplicação por doutrina e jurisprudência desde o
Código Civil de 1916 para evitar situações de extrema
injustiça, reconhecendo-se a posse do estado de filho, e
consequentemente o vínculo parental, em favor daquele
utilizasse o nome da família (nominatio), fosse tratado
como filho pelo pai (tractatio ) e gozasse do
reconhecimento da sua condição de descendente pela
comunidade (reputatio).
13. A paternidade responsável, enunciada
expressamente no art. 226, § 7º, da Constituição, na
perspectiva da dignidade humana e da busca pela
felicidade, impõe o acolhimento, no espectro legal,
tanto dos vínculos de filiação construídos pela relação
afetiva entre os envolvidos, quanto daqueles originados
da ascendência biológica, sem que seja necessário
decidir entre um ou outro vínculo quando o melhor
interesse do descendente for o reconhecimento jurídico
de ambos.

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14. A pluriparentalidade, no Direito Comparado, pode


ser exemplificada pelo conceito de “dupla
paternidade” (dual paternity), construído pela
Suprema Corte do Estado da Louisiana, EUA, desde a
década de 1980 para atender, ao mesmo tempo, ao
melhor interesse da criança e ao direito do genitor à
declaração da paternidade. Doutrina.
15. Os arranjos familiares alheios à regulação estatal,
por omissão, não podem restar ao desabrigo da
proteção a situações de pluriparentalidade, por isso
que merecem tutela jurídica concomitante, para todos
os fins de direito, os vínculos parentais de origem
afetiva e biológica, a fim de prover a mais completa e
adequada tutela aos sujeitos envolvidos, ante os
princípios constitucionais da dignidade da pessoa
humana (art. 1º, III) e da paternidade responsável (art.
226, § 7º).
16. Recurso Extraordinário a que se nega provimento,
fixando-se a seguinte tese jurídica para aplicação a
casos semelhantes: “A paternidade socioafetiva,
declarada ou não em registro público, não impede o
reconhecimento do vínculo de filiação concomitante
baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos
próprios” (STF, RE 698.060/SC, relator Ministro Luiz
Fux, j. 21.09.2016).

Nessa exegese, a possibilidade de reconhecimento voluntário


da maternidade perante o oficial de registro civil das pessoas naturais e, ante o
princípio da igualdade jurídica da filiação, de reconhecimento voluntário da
paternidade ou maternidade socioafetiva, garantem os mesmos direitos e
qualificações aos filhos, havidos ou não da relação de casamento ou por adoção,
proibida toda designação discriminatória relativa à filiação, ex vi do artigo 1.596, do

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Código Civil.
Outro entendimento não teria albergue frente à Constituição
Federal de 1988, que trouxe um conceito jurídico de família exemplificativo,
considerando as inúmeras alterações nas relações humanas que, via de consequência,
mereciam a ampliação do rol, como anteriormente sublinhado.
In casu, a negativa do oficial do Registro Civil das Pessoas
Naturais e de Interdições e Tutelas baseou-se no não preenchimento de requisitos
previstos no Provimento de nº 63, CNJ, e entendendo não ser possível a lavratura do
ato pretendido na esfera administrativa, sem que houvesse intervenção judicial (fls.
107/108). De fato, o artigo 17, do Provimento de nº 63, CNJ exige a declaração, com
firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução
humana em que foi realizada a reprodução assistida, indicando que a criança foi
gerada por reprodução assistida heteróloga, assim como o nome dos beneficiários.
Malgrado, no caso em comento, o que se busca é o reconhecimento ao registro da
maternidade socioafetiva do menor A. M. P., o que deve, sem quaisquer
questionamentos, se sobrepor ao aspecto burocrático das fórmulas acima pontuadas.
Da detida análise do todo, vislumbro que a mãe biológica M.
M., casou-se com A. T. C. P. em 28/11/2018, e antes do matrimônio conviveram em
união estável desde os idos anos de 2.009 (fls. 11/12). Do relacionamento vivenciado
nasceu outro filho, que já se encontra registrado em nome de ambas as genitoras.
Assim, não se pode privilegiar a discriminação da filiação, a permitir que A. M. P.,
filho das recorrentes, e irmão de H. M. P., não tenha, tal como esse, os nomes de suas
mães em seu registro civil. Deve, pois, ser permitido que o infante tenha registrado, o
nome, e sobrenome das duas mães em seu assento civil. Mas, não só. Imperioso que
se proceda ao reconhecimento de seus ascendentes, tais como avôs, avós, e assim por
diante, o dará à criança a fundamental e salutar certeza de pertencimento às famílias
estendidas que, desde sua concepção, como bem retratado nos autos, lhe
proporcionam troca de carinho, amor, amparo, segurança, afeto, sentimentos que, à
evidência, se suplantam questões burocráticas.
Como já observou o C. STJ: “Mister observar a
imprescindibilidade da prevalência dos interesses dos menores sobre quaisquer
outros, até porque está em jogo o próprio direito de filiação, do qual decorrem as

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mais diversas consequências que refletem por toda a vida de qualquer indivíduo”.
(REsp 889852 / RS, Recurso Especial nº 2006/0209137-4. Relator Ministro Luis
Felipe Salomão. Quarta Turma. Data do Julgamento: 27/04/2010. Data da
Publicação: 10/08/2010). E ainda: “Os conceitos legais de parentesco
e filiação exigem uma nova interpretação, atualizada à nova dinâmica social, para
atendimento do princípio fundamental de preservação do melhor interesse da
criança” (REsp 1608005 / SC, Recurso Especial nº 2016/0160766-4. Relator
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Terceira Turma. Data do Julgamento:
14/05/2019).
Perfilhada esta exegese, ressalte-se que a E. Corregedoria
Geral da Justiça, nos pareceres de nºs 336/2014-E e 355/2014-E, posicionou-se no
sentido de que, se o reconhecimento de filho por vínculo biológico não exige
qualquer comprovação por documentação, seria discriminatório reivindicar um
procedimento judicial para o reconhecimento de filho por socioafetividade. Por fim,
entendeu necessário prestigiar a boa-fé das partes interessadas, a igualdade de
filiação e os princípios da afetividade e dignidade da pessoa humana, privilegiando-
se assim, a efetiva lavratura do assento de nascimento de filhos de casais
homoafetivos, com a mínima intervenção estatal.
Nesta esteira, impedir o reconhecimento da filiação
socioafetiva na via administrativa, implicaria em inegável afronta à vedação da
discriminação da filiação em virtude da natureza prevista no § 6º, do art. 227, da CF;
se o filho biológico pode ser reconhecido voluntariamente, mediante simples
declaração - desacompanhada de qualquer prova - feita perante o oficial de registro
civil, o mesmo direito, nas mesmas condições, deve ser concedido ao filho
socioafetivo.
Como bem pontuado pelo Parecer proferido pela D.
Procuradoria Geral de Justiça (fls. 127/129): “(...) Pelo princípio do superior
interesse da criança e tendo em vista que as requerentes são casadas desde 2018 (fl.
11), antes mesmo de a criança ter sido concebida, depreende-se que elas possuem o
desejo de criar o filho, mostrando-se razoável garantir o registro de nascimento em
nome de ambas, a fim de refletir a realidade socioafetiva demonstrada (...).”
Destarte, DOU PROVIMENTO ao recurso, para determinar

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que o Oficial Registrador competente proceda o assento do registro civil do menor


ANTONIO MORETO PENTEADO, fazendo constar na sua filiação o nome de
ambas genitoras, quais sejam, MARINA MORETO e ANA TEREZA COUTINHO
PENTEADO.

ANA ZOMER
Relatora

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