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PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Registro: 2020.0000027413

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº


1013436-83.2019.8.26.0344, da Comarca de Marília, em que é apelante J. B., é apelado J.
DA C..

ACORDAM, em sessão permanente e virtual da 6ª Câmara de Direito Privado do


Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: Deram provimento ao
recurso. V. U., de conformidade com o voto do relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores PAULO ALCIDES


(Presidente) e COSTA NETTO.

São Paulo, 24 de janeiro de 2020.

VITO GUGLIELMI
Relator
Assinatura Eletrônica
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

VOTO Nº 46.115

APELAÇÃO CÍVEL Nº 1013436-83.2019.8.26.0344

RELATOR : DESEMBARGADOR VITO GUGLIELMI


APELANTE : JOSE BONANI
APELADO : JUÍZO DA COMARCA
COMARCA : MARÍLIA - 1ª VARA DE FAMÍLIA E SUCESSÕES

DECLARAÇÃO DE MATERNIDADE. PRETENDIDO O


RECONHECIMENTO JUDICIAL PARA FINS DE CIDADANIA
ITALIANA. VERIFICADA AUSÊNCIA DE INTERESSE
PROCESSUAL PELO JUÍZO ORIGINÁRIO. ADVENTO DE
SENTENÇA EXTINTIVA. INCONFORMISMO
MANIFESTADO. CABIMENTO. CERTIDÃO DOTADA DE FÉ
PÚBLICA. DECLARAÇÃO DE MATERNIDADE QUE JÁ
CONSTA DE SEU RESPECTIVO ASSENTO. HIPÓTESE,
TODAVIA, EM QUE OS GENITORES NÃO ERAM CASADOS.
DECLARANTE QUE FOI O PAI, MAS QUEM TRANSMITE A
CIDADANIA ITALIANA É A MÃE. DECLARAÇÃO DE
MATERNIDADE, MEDIANTE ESCRITURA PÚBLICA,
EXIGIDA PELO CONSULADO. GENITORA, TODAVIA, QUE
JÁ É FALECIDA. INTERESSE PROCESSUAL VERIFICADO.
SENTENÇA EXTINTIVA AFASTADA. ART. 1013, §§ 1º E 3º, I,
DO CPC. PROSSEGUIMENTO DO JULGAMENTO.
PRETENSÃO MERAMENTE DECLARATÓRIA.
MATERNIDADE QUE JÁ CONSTA DO REGISTRO DE
NASCIMENTO DO REQUERENTE. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO
A TERCEIROS, À SEGURANÇA JURÍDICA OU À ORDEM
PÚBLICA. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. RECURSO
PROVIDO.

1. Trata-se de apelo, tempestivo e bem processado, interposto


contra sentença que julgou extinta, sem resolução de mérito, ação declaratória de
maternidade para fins de cidadania italiana proposta por José Bononi.

Sustentou o autor ser filho de Euridece Alves e Helegna

Apelação Cível nº 1013436-83.2019.8.26.0344 -Voto nº 46.115 2


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Bononi Medeiros, de cuja descendência exsurge seu direito à cidadania italiana. Não
obstante, alegou que, tendo sido seu genitor o declarante da certidão, o consulado
italiano exige uma Escritura Pública Declaratória de reconhecimento de
paternidade/maternidade emitida em tabelionato pelo respectivo ascendente. Ocorre que
sua genitora é falecida, motivo pelo qual a via cartorária se mostrou inviável. À vista
disso, ingressou em juízo requerendo “o reconhecimento judicial da maternidade do
requerente pela genitora Helegna Bononi Medeiros, para fins de cidadania italiana”.

Quando da sentença (fls. 35/37), considerou o magistrado


prolator que “a parte autora é carecedora da ação pela ausência de interesse processual,
na forma necessidade”. Isso porque, no seu entender, “o que espelha o registro público
nacional já é uma certificação fiel e pública da relação maternal, não havendo
possibilidade de declaração judicial de maternidade que já consta em seu assento de
nascimento pela fé pública que possui o registro público”. Daí a extinção do processo,
com fundamento no art. 485, VI do CPC.

Inconformado, recorre o autor pugnando pela reversão do


julgado (fls. 43/49). Aduz, para tanto, que é evidente o interesse processual, pois
“perante a legislação italiana, o fato de a transmissora dos direitos de consanguinidade
não ser a responsável pelas declarações contidas na certidão é obstáculo intransponível
para que se transmitam tais direitos”. Argumenta que “o Ilustre Representante do MP
opinou favoravelmente pela declaração judicial de paternidade e maternidade para
esclarecer que o autor é filho conforme consta na fé pública do registro de nascimento”.
Conclui pela reforma, “a fim de decretar o reconhecimento da maternidade e paternidade
conforme fé pública arrolados com a exordial”.

Parecer do Ministério Público (fls. 56/57) a reiterar aquele


apresentado à fl. 34 pela parcial procedência do pedido, para “esclarecer às autoridades
estrangeiras, por meio de declaração judicial, que a paternidade e maternidade do autor
são as que constam na fé pública do registro de nascimento”.

A d. Procuradoria opinou pelo desprovimento do recurso (fl.


64/65).

É o relatório.

Cuida-se de ação declaratória de maternidade para fins de


cidadania italiana julgada extinta sem resolução de mérito pelo juízo originário.
Sobreveio, então, o recurso de apelação ora em apreço o qual, ressalvado o

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entendimento em sentido diverso, comporta mesmo acolhida.

Como cediço, o interesse processual, na acepção mais


técnica, se traduz na necessidade de o titular do direito não satisfeito pela via
extraprocessual recorrer ao Poder Judiciário para alcançar sua pretensão; desde que o
processo se afigure efetivamente útil para esse fim e; bem, que o faça mediante a via
procedimental adequada ao resultado almejado daí as expressões já consagradas:
interesse-necessidade, interesse-utilidade e interesse-adequação.

Nessa perspectiva, simplificadamente, a primeira delas


pode ser entendida pela situação em que não se vislumbra a obtenção de solução
extraprocessual; a segunda, pela efetivo possibilidade de se atribuir, a partir do
provimento judicial pleiteado, eficácia diversa daquela existente quando do ajuizamento
da demanda; a terceira, por fim, pela escolha da via processual condizente com a
natureza da pretensão.

Reputou o magistrado prolator ausente interesse


processual, na sua modalidade necessidade, posto que “o que espelha o registro público
nacional já é uma certificação fiel e pública da relação maternal, não havendo
possibilidade de declaração judicial de maternidade que já consta em seu assento de
nascimento pela fé pública que possui o registro público” (fl. 36). Sem embargo, tenho
que não é essa a interpretação que se deve dar ao caso.

Ora, conquanto não se desconheça que se trata de certidão


dotada de fé pública, de modo tal que a declaração de maternidade já consta de seu
respectivo assento; não se pode olvidar que a questão colocada pelo autor reside no fato
de que, quando de seu nascimento, seus genitores não eram casados sendo que quem
declarou o nascimento foi o pai, mas quem transmite a cidadania italiana é a mãe. Assim,
como não houve declaração da genitora reconhecendo este filho como seu, o que seria
presumido caso houvesse o casamento, entende o Consulado italiano que “é necessário
que o outro genitor não declarante faça em Tabelionato de Notas uma escritura pública
de declaração de paternidade/maternidade” (fl. 45). Ocorre, sem embargo, que a genitora
do requerente é falecida motivo de seu ingresso em juízo, com evidente interesse
processual, posto que a medida se afigura necessária ao reconhecimento de seu
propalado direito à cidadania italiana.

Reconhecido o interesse processual, deve a extinção sem


resolução de mérito ser mesmo afastada. Resta saber se deve o Tribunal prosseguir no

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julgamento ou devolver os autos à instância inferior, para que outra decisão seja
proferida.

E a resposta é no sentido da primeira afirmativa, sendo


tempo de enfrentar a questão suscitada, nos moldes do artigo 1013, §1º e, em especial,
de seu § 3º, I, do Código de Processo Civil, como decorre da interpretação dos referidos
textos.

Seja por força do princípio dispositivo, seja por efeito


translativo do recurso, cabe o conhecimento delas quer meramente processuais (de
ordem pública, sobre as quais não opera a preclusão, ou porque não decididas), quer de
mérito , pois a causa permite julgamento antecipado, na forma do artigo 330 do
mencionado Código. Lembre-se que é a interposição válida do recurso (v.g., a
admissibilidade do recurso) que devolve o conhecimento da matéria ao Tribunal,
abrandado o princípio até então vigente.

Sobre o tema, e colacionando J. C. BARBOSA MOREIRA,


anota JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI (Lineamentos da Nova Reforma do CPC, 2ª Ed.,
São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, p. 96):

“Assim, se porventura a sentença acolhe, em


julgamento liminar, a argüição de decadência ou de
prescrição, dúvida não pode haver no sentido de que,
ao proferi-la, o juiz não se encontra em condições de
solucionar qualquer outra questão de mérito, 'além
daquela concernente à decadência ou à prescrição, de
sorte que apenas esta se devolve ao conhecimento do
tribunal; se a apelação for provida, o feito terá de
prosseguir, na instância inferior, a sua marcha normal,
para exame oportuno dos demais aspectos do 'meritum
causae'. Extinto que seja o processo, por decadência ou
por prescrição, nos termos do art. 329, combinado com
o art. 269, n. IV, o tribunal só poderá passar a outras
questões de mérito nas hipóteses em que se teria
aberto ensejo ao julgamento antecipado da lei pelo juízo
'a quo', segundo o art. 330, ou, quando já realizada a
audiência de instrução e julgamento” (g.n.).

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Explica-se. Ainda que, por força do princípio dispositivo,


pareça só o tema da prescrição ou da decadência aqueles a serem apreciados, com as
novas regras indicadas, que visam economia processual, maior extensão no julgamento
ao tribunal se possibilitou. É o que igualmente anota o autor (op. cit., p. 98):

“Por paradoxal que possa parecer, argumentando


simplesmente que o princípio do duplo grau de
jurisdição não vem contemplado na Constituição
Federal, a nova lei altera a tradicional regra acima
exposta, ao autorizar que nas hipóteses de sentença
terminativa, o tribunal possa passar ao julgamento do
mérito, desde que se trate de questão exclusivamente
de direito e que não demande ulterior instrução
probatória”.

E prossegue:

“Devolvida a cognição da controvérsia ao tribunal 'ad


quem', a partir da vigência da lei agora promulgada,
independe a natureza da sentença recorrida
terminativa ou definitiva visto que a causa poderá ser
julgada pelo mérito em segundo grau. Bastará, para
tanto, que o 'thema decidendum' seja considerado
exclusivamente de direito ('quaestio iuris') e que na
dicção do texto legal 'esteja em condições de imediato
julgamento', isto é, não exija a produção de qualquer
prova. Anote-se que a locução empregada é mais
restrita do que a constante na redação do art. 330, II, do
CPC, visto que, em princípio, excluída a questão de fato
já provada nos autos. Explica a tal propósito Eduardo
Cambi que essa nova regra não autoriza ao tribunal de
segundo grau examinar o 'meritum causae' quando, por
exemplo, após a produção da prova, a sentença irrompe
terminativa, ou seja, a extinção do processo ocorre sem
julgamento da lide”.

Por isso é que (op.cit., p. 100) “... com a alteração

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introduzida, o recurso de apelação perde a sua função


substitutiva, tendo-se em vista que agora nem sempre o
novo julgamento se identificará com o objeto da
sentença recorrida”.

Patente, pois, que toda a questão não decidida deve ser


objeto de imediato julgamento.

Pois bem.

Como observado pelo juízo originário, o registro público é


uma certificação fiel e pública da relação maternal; de modo tal que a declaração de
maternidade já consta em seu assento de nascimento. Com isso, à luz do Direito
brasileiro, não se pode negar que o requerente, José Bonini, é filho de Helegna Bononi
Medeiros (fls. 09 e 10/11). Até porque, tratando-se de direito personalíssimo, enquanto
estava viva, não houve qualquer impugnação pela genitora quanto ao conteúdo do
registro.

Trata-se, com efeito, de pretensão meramente declaratória,


esclarecendo às autoridades estrangeiras que a maternidade é aquela que consta do
registro de nascimento do requerente. Além disso, não se colhe da pretendida
declaração qualquer prejuízo a terceiros, à segurança jurídica ou à ordem pública,
porquanto se trata de mera ratificação de ato anteriormente praticado, qual seja, o
reconhecimento da maternidade.

Daí a procedência do pedido, para declarar que, muito


embora tenha constado da Certida~ode Nascimento como declarante tão somente o Sr.
Euridece Alves, a Sra. Helegna Bononi Medeiros é genitora do Sr. José Bononi, nascido
aos 23/09/1966, em Marília-SP; achando-se o mesmo registrado à fl. 27, do Livro A nº 6,
sob o nº de ordem 4.724, no Cartório de Registro Civil de Marília-SP.

Nada mais é preciso dizer.

3. Nestes termos, dá-se provimento ao recurso.

Vito Guglielmi
Relator
Apelação Cível nº 1013436-83.2019.8.26.0344 -Voto nº 46.115 7

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