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ASPECTOS ÉTICOS E JURÍDICO-PENAIS DA RELAÇÃO MÉDICO PACIENTE

INTRODUÇÃO

A reinserção do paradigma espiritual à centralidade das preocupações humanas.

Em uma situação discursiva ideal, as relações potencialmente fraturantes do tecido social seriam
sempre refletidas e aturadas no plano ético, antes da procura de uma resposta especificamente jurídica.

Convicção da existência de um vazio, ainda existente, sobre a relação médico/paciente, o papel da


autonomia nesse contexto e a pretensão de resolução, através do direito, dos conflitos surgidos.

Para o Direito Penal, são mais intensas as consequências da interligação entre médico e paciente.

As demandas judiciais são incapazes de resolver plenamente as questões decorrentes da relação


médico-paciente, posto que dispõem, tão somente, de pena ou indenização pecuniária para restauração
da ofensa. Os desfechos que são oferecidos pelo Direito resumem-se à condenação ou absolvição, o
que contribui para a intensificação do estranhamento entre as partes.

O papel predominante da Ética.

Autonomia e vulnerabilidade dos enfermos – o desamparo do enfermo não se satisfaz só com as regras
do Direito.

JURIDIFICAÇÃO DA AUTONOMIA: A INTERMEDIAÇÃO COMO RECURSO NAS


SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS

Bauman compreende o atual ambiente social como sendo um estado de interregno que se seguiu à
modernidade idealista na qual a ciência e a razão libertariam o homem de suas indigências. Na pós-
modernidade, passa-se a conviver como a “fluidez do líquido, ocupando espaços, diluindo certezas,
crenças e práticas”.

Para Bauman, as instituições de ação coletiva, o sistema político, o sistema partidário, a forma de
organizar a própria vida, as relações com as outras pessoas, todas essas formas aprendidas de
sobrevivência no mundo não funcionam mais de forma adequada – a frustração dos ideais coletivos é
compensada na projeção da felicidade no aumento da individualização, consumo, prazer.
Lipovetsky – o homem das chamadas sociedades pós-modernas, agora hipermodernas, tem como
característica própria o impulso para realizar desejos aqui e agora sem se submeter às ideologias
políticas ou aos ídolos de qualquer natureza.

Sem as referências de uma ordem que se imponha como dotada de validez universal, a pessoa é
entregue à sua autonomia, mas também à sua insegurança e solidão. Nesse espaço, desenvolve-se um
novo tipo de individualismo diante do qual as formas tradicionais de solidariedade perdem significado.

O indivíduo pós-moderno tem como um de seus objetivos a busca do controle de sua trajetória, com
vistas à possibilidade de conferir à própria vida um sentido que lhe pareça o mais adequado – visa a
construir seu destino sem necessidade de atuar sobre scripts preelaborados, mas se valendo de roteiro
pessoal, que é legitimo exatamente porque decidido pela própria pessoa.

Rompimento com os ideais iluministas (distorção da liberdade e anulação da fraternidade): é natural


que as relações sejam mediatizadas e que os indivíduos tendam a ser mais apoiados por recursos
técnicos e jurídicos e menos pelas relações pessoais.

Não só as tecnologias facilitam a despersonalização das relações, em verdade, elas estão a serviço de
uma cultura na qual o individualismo e a urgência prescindem de laços. Esses recursos constituem
uma demanda específica que retroalimenta os valores sociais vigentes.

A relação médico/paciente também está submetida a intermediações, por via de entidades


profissionais, por empresas de saúde e por normas legais que estabelecem uma moldura dentro da qual
ela deve ser exercitada. A relação com o outro, como tal, não tem resultado em uma lógica de ação, de
respeito de uma subjetividade a outra e de renúncia ao eu como fundamento de toda ação.

Terapeuta e enfermo situam-se diante um do outro como seres dessa sociedade individualista, na qual
a relação pessoal cede espaço para a regulação formal que deve se orientar conforme os modelos
previamente estipulados.

Pode-se mesmo afirmar que, na área de saúde, o formato institucionalizado da medicina científica
facilita a impessoalidade do contato e fortalece a ideia de fluidez destituída do reconhecimento no
outro de atributos humanos.

A tendência da sociedade contemporânea em estabelecer relações, pela via do direito, convocando-o


excessivamente, muitas vezes, como modelo e referência – a juridificação como modo de experienciar
as relações pessoais: um olhar da vida pela matriz jurídica e seus reflexos nas relações sociais.
Habermas – a positivação de aspectos da vida social disciplinados anteriormente por normas informais
(expansão) e a decomposição, levada a cabo por juristas, “de hipóteses normativas jurídicas globais
em hipóteses normativas mais especificadas” (densificação).

David Paternotte realça que, na contemporaneidade, o direito desempenha um papel importante junto
aos movimentos sociais, conseguindo muitas vezes ajustar as reinvindicações dos grupos ao cardápio
de ofertas legais, concretizando-as.

Há, no entanto, reservas quanto aos efeitos da juridificação, entidade de duas faces que, se, de um
lado, organiza as relações sociais, de outro, pode engessá-las no binômio lícito/ilícito do direito,
impedindo que formas menos coercitivas e mais pacificadoras de comunicação sejam estabelecidas.

Silva Sánchez – a ingerência das leis: os problemas da juridificação das relações sociais. Excesso da
regulação jurídica na contemporaneidade; intromissão, intrusão, invasão – o papel cada vez maior da
esfera jurídica na regulação das relações sociais.

A normatividade social é integrada também por normas éticas, religiosas e de trato social, por
exemplo, que indicam os limites da conduta para os indivíduos. Todavia, a norma jurídica tem poder
coercitivo.

É à luz das necessidades sociais que o sistema jurídico se organiza, buscando, na medida do possível,
garantir a proteção de determinados interesses, reputados relevantes no contexto social em dado
momento histórico.

Enquanto a regra encerra em si mesma a expectativa de seu cumprimento pelos cidadãos e pelo
Estado, a juridificação, por seu turno, afeta os demais sistemas sociais, criando novos arquétipos e
exigências comportamentais com base numa realidade jurídica formalista e burocratizada. Há uma
reciprocidade entre os sistemas, ou seja, a esfera social influencia o sistema jurídico, através das
transformações políticas, econômicas e sociais, e este, por sua vez, no processo de comunicação entre
as diversas esferas, as afeta, criando os referidos arquétipos e exigências comportamentais.

A relação médico-paciente configura aspecto importante das sociedades humanas em que o fenômeno
da juridificação tem-se revelado cada vez mais abundante e minudenciado, não só no sentido da
criação de novas leis formais, mas também de normativas de cunho administrativo, assim como de
extensão de figuras jurídicas já existentes e não originariamente dirigidas a esse tipo de relação.
Afinal, impõe-se indagar: há ganhos ou perdas na regulação jurídica da relação terapeuta/paciente?
Constata-se, de logo, as inegáveis consequências positivas da regulação jurídica dessa relação na
medida em que a impessoalidade do comando jurídico e a força da sanção nele contida aumentam a
sensação de poder do sujeito para concretizar, materialmente, sua vontade.

Não se pode ignorar, porém, que a juridificação ou a excessiva submissão de aspectos da vida à
formalidade da lei apresenta também consequências negativas, na medida em que sujeita a intensa
diversidade da existência humana a um padrão único de solução, impedindo, portanto, soluções
criativas, não litigiosas, alcançadas por parcerias na vida.

A maior formalização dos direitos dos pacientes teria sido percebida como uma fragilização dos
poderes do terapeuta, uma vez que ampliava o rol de providências jurídicas passíveis de serem
adotadas contra esses em caso de transgressões. Contra essa perspectiva que se sedimenta, houve
quem dissesse que a fragilização da figura do terapeuta poderia comprometer até mesmo a obediência
do paciente às suas prescrições farmacológicas e outras orientações relativas ao processo terapêutico.

Essa ideia de asseguramento dos direitos do enfermo causa desconforto na relação médico-paciente,
porque a oferta de recursos jurídicos pressupõe a possibilidade de um conflito.

Silva Sánchez – a substituição de um vínculo de confiança do paciente com o médico por outro
marcado “pela desconfiança calculada”.

A formalização e o distanciamento teriam como resultado final um encontro que não se realiza, apesar
da existência de um objetivo comum entre as partes. Ao contrário, ocorre, muitas vezes, um
estranhamento entre os polos da relação, que buscam se proteger das ações recíprocas.

Jean-Philippe Pierron – o duplo perigo da regulação das atividades médicas: (i) que o médico substitua
sua solicitude pelo direito do paciente como forma de proteger sua responsabilidade e, com isso,
remeter o paciente de volta “à solidão de sua autonomia”; (ii) que o paciente julgue poder prescindir
da confiança que depositava no antigo médico “paternalista”, assimile rapidamente o papel de usuário
do sistema de saúde e consumidor de cuidados.

André Sicard – o risco de o doente vir a enxergar no médico um juiz moral e este, por sua vez,
entender que o paciente é alguém pretendendo reunir dados para acusá-lo quando for preciso e, por
isso, evita fornecer informações muito longas com receio de que possam vir a servir para posterior
imputação de responsabilidade, permanecendo o médico reticente diante de perguntas do enfermo.
O formato institucionalizado da medicina científica, se a um tempo promove o acesso de maior
número de pessoas aos recursos de saúde disponíveis, ao multiplicar seu uso com vistas a garantir a
todos o acesso ao sistema de atendimento, de outro, facilita a impessoalidade do contato, a impressão
de reificação de um sujeito perdido entre máquinas, equipamentos sofisticados e profissionais
apressados, desconhecidos, que se protegem por trás do papel social que lhes foi designado.

O Direito Penal contemporâneo aderiu a esse processo, no que diz respeito à relação médico-paciente,
criando figuras específicas de violação de direitos que podem ser praticadas pelo terapeuta. Dessas, há
que se destacar aquelas que penalizam o profissional quando intervém contra a decisão do enfermo,
mesmo que esta fuja à expectativa tradicional de cura.

Guilherme de Oliveira – assiste-se na contemporaneidade ao fato do médico ser punido porque curou
o paciente, ainda que contra sua vontade. Ocorre, em verdade, uma negação até do sentido etimológico
da expressão “terapia” do grego therapeia, que significa “o ato de curar” ou “ato de reestabelecer”.

É bem verdade que a proibição de intervenções em determinadas circunstâncias, entre essas, a


realizada com o dissenso do enfermo, confere maior poder diante do terapeuta, o qual já foi senhor
quase absoluto das escolhas e dos procedimentos adequados ao tratamento. Há que se considerar,
porém, que o ideal de proteção do indivíduo contra intervenções contra sua vontade, se de um lado
valorizou a liberdade pessoal, de outro, parece ter produzido resultados supraindividuais indesejáveis.

Wesley J. Smith – a eliminação do sofrimento através da eliminação do que sofre. Hoje, o que se
compreende como autonomia tem permitido, na agenda mundial, a inserção da morte como um
caminho aceitável para dar fim ao sofrimento humano.

Além de dispositivos penais, na década de 1980, ocorreu, em alguns países, uma farta regulamentação
sobre os direitos dos pacientes no sistema de saúde. Foi-lhes assegurado o acesso a seu prontuário e
fixado o consentimento como condição essencial para procedimentos. A disponibilização de recursos
legais, de fato, para o paciente tem o propósito de fortalecê-lo diante do sentimento de vulnerabilidade
que o acompanha nessas situações.

A relação entre o enfermo e seu cuidador nem sempre precisou de regulação jurídica, embora haja
referências a códigos deontológicos, sob outras formas, que existam desde a medicina Ayurveda há
cerca de sete mil anos e, posteriormente, com Hipócrates, conclamando os profissionais a agir segundo
as normas éticas por eles enunciada.
BREVE INCURSÃO NA HISTÓRIA

Hipócrates (460-382 a.C.) conduziu o desenvolvimento da arte médica a um novo patamar não apenas
no aspecto puramente terapêutico, recorrendo a abordagens empíricas, mas também no que diz
respeito à relação com o doente, compreendida como um dos elementos da arte de curar, da qual “o
médico é um servidor”.

Com o avanço do conhecimento médico durante a Renascença, passou-se a observar a


profissionalização do ensino e do exercício da medicina que começa a postular, então, o direito à
autorregulamentação com base em sua experiência e capacidade.

A importância da atividade já exigia regras e princípios próprios que orientassem o seu exercício
cotidiano, surgindo, então, códigos propriamente deontológicos que definiam os valores fundamentais
a serem observados pelos praticantes da medicina e pelos estudantes.

No início do século XIX, discutiu-se sobre a legitimidade da intervenção judicial no que diz respeito
às práticas médicas. Duas grandes indagações surgiram então: a primeira delas sobre o juízo de
conveniência de levar os profissionais de saúde à justiça; e a segunda contendo um questionamento
sobre a capacidade de julgamento de conteúdos altamente especializados na justiça comum.

Até o final do século XIX persistiu a força dos códigos de ética médica. Para Vannotti, esses estatutos
estimulavam práticas compatíveis com o conhecimento terapêutico e o afastamento das pessoas que
não possuíam habilitação para o exercício profissional.

Ainda para o autor, as providências dessa época teriam contribuído não apenas no aspecto normativo,
mas também no plano científico para dar à medicina o prestígio e o status sempre desejados. Não
obstante não foram capazes de impedir os horrores praticados na Segunda Grande Guerra com
prisioneiros, que revelaram a necessidade de se recorrer a outros mecanismos para prevenir que a
ciência pudesse, em seu próprio nome, manipular a vida.

Código de Nuremberg – conjunto de princípios éticos que deveriam orientar a pesquisa em humanos,
dos quais se destaca a imprescindibilidade de consentimento de pessoa livre e capaz de consentir.

Mais próximas das tecnologias e da biomedicina, a ciência e arte de tratar adquirem natureza técnico-
experimental, o que pode produzir como consequência a manipulação e objetivação do homem:
contexto de surgimento da Bioética.
A Bioética, com seus princípios, não tem a pretensão, como ocorre com o Direito, de estabelecer
imperativos para as ações. Não tendo força coercitiva para impedir certas condutas, ela questiona o
papel da tecnociência para o bem-estar da humanidade e o comportamento dos que dela se valem,
orientando-os para servir à vida. Propõe-se a funcionar como instância mediadora de conflitos morais
que as novas tecnologias podem vir a introduzir.

A necessidade de a pesquisa clínica apoiar-se em princípios morais – procura-se, enfim, proteger um


homem diante de outro que não o reconhece como um igual e o reduz a objeto de experiências.

É possível argumentar que as Declarações não têm poder coercitivo e, por isso, sua contribuição não
tem força suficiente para instalar a sociedade desejada já que se trata de soft laws, que comprometem
no âmbito moral, econômico e político os representantes de Estado, mas não criam obrigações de
direito positivo. Por seu turno, os dispositivos são vagos, permitindo interpretações distintas pelas
partes, tudo contribuindo para que as Convenções, os Tratados e os enunciados supranacionais e
respectivos planos de ação careçam de eficácia.

A pretensão de validade universal de uma expressão utilizada nos textos implica a ignorância em torno
da constatação de que “a humanidade apresenta na verdade, uma pluralidade de universos de
discursos”, sendo necessária, para sua validade, a eliminação de todos os outros conceitos
contraditórios. Para Panikkar, o Estado ou a cultura que formulou o conceito, tornar-se-á, nesse caso,
universal à custa da submissão das demais sociedades.

Bioética global – o conteúdo possível para guardar a propriedade universalista restringe-se à alteridade
e acolhimento.

Bioética e Códigos deontológicos ambientam-se facilmente na medida em que deduzem da moral e da


ética suas prescrições para fixar deveres e responsabilidades para profissionais de uma determinada
classe. Reconhece-se sua importância como instrumento de orientação na arte de curar ao longo dos
séculos, embora já tivessem sido imputados, entre os seus objetivos, o de preservar os profissionais da
medicina da legislação comum, conforme referido. É frequente, no entanto, o fato de uma determinada
categoria profissional buscar manter seu prestígio e de valer-se, para isso, de diversos recursos, entre
eles o da autoria da sua própria regulação.

Devem-se ressaltar dois aspectos importantes nos códigos de ética médica, o primeiro deles dizendo
respeito aos esforços, desde o Juramento de Hipócrates, para que a atividade médica reunisse, em sua
prática, a boa moral, o saber científico e a consideração pelo enfermo. O outro está relacionado com o
acolhimento entusiástico do consentimento do paciente prévio a qualquer intervenção.
Até meados do século XX, as relações médico/paciente eram regidas pelo princípio de beneficência,
que dispensava a ideia de anuência do enfermo porque o médico procederia sempre da melhor forma
em seu benefício. A partir da década de 1980, porém, os códigos deontológicos começaram a exigir o
consentimento esclarecido, a prestação de informação clara e precisa ao paciente e sua família, assim
como o respeito às suas crenças, valores e necessidades pessoais.

O consentimento tem a autonomia como fundamento moral, ocupando um destaque especial no âmbito
da relação médico-paciente. A anuência tem sido o ponto central das conquistas do enfermo, o que não
impede cuidadosa reflexão sobre seu alcance e legitimidade, na medida em que sua formalização
parece ter isentado os profissionais de saúde de outras tentativas de aproximação e responsabilização
com seu paciente.

O sentido de voluntariedade e de capacidade para consentir não são suficientemente claros para
admitir decisões, tomada por pessoas senis e deprimidas, até para morrer. Ademais, a capacidade para
escolher deve ser apreciada, tendo o cenário da pós-modernidade individualista, aqui desvelado, como
referência, ou seja, como uma tendência de desvinculação do coletivo e excessiva crença no viés
individualista da autonomia.

Os princípios da Bioética, as normas deontológicas emitidas pelos órgãos de classe e aquelas


pactuadas nas Declarações Internacionais, em razão de seu caráter genérico e plural, aparecem, à
primeira vista, como uma opção suficientemente adequada para a orientação das condutas que digam
respeito à vida e à saúde e ao uso das tecnologias modernas. Hooft ressalta que a Bioética tem uma
especificidade que se caracteriza pela interdisciplinaridade dialógica, por funcionar como um campo
de convergência e integração de saberes, características que uma excessiva juridificação pode destruir.

O modelo dos princípios soa como alternativa interessante em face da instabilidade das sociedades
contemporâneas e pelo reconhecimento do multiculturalismo como valor fundamental. De fato, eles
permitem certa ponderação e avaliação dos fatos sob o foco dos valores os quais exprimem, como diz
Canotilho, ao contrário das regras que obedecem à “lógica do tudo ou nada”. Na sua aplicação prática,
o nível de suficiência e operatividade dos princípios na solução de casos, no entanto, é questionável.

Desde a Comissão de Belmont, aliás, acreditava-se que os códigos de ética profissional, embora
tivessem um papel a desempenhar na resolução de conflitos éticos levantados pelas ciências
biomédicas, não tinham a eficácia desejada, porque suas normas não possuíam o desenho necessário
para resolver situações complexas apresentadas concretamente.
É certo que os princípios, enquanto valores, cumprem uma função importante, inspirando o legislador,
orientando o magistrado na aplicação da lei ao caso concreto, mas eles não têm apenas um sentido de
modo que, por sua fluidez, é possível recusá-los como único instrumento para assegurar a convivência
humana.

As razões do direito afirmaram-se ao longo da história não só pela insuficiência dos princípios da
Bioética, das Normas das Declarações Internacionais, mas também pelos recursos de que este dispõe
para repressão da conduta proibida e obtenção da conduta ordenada.

A seu favor, o sistema jurídico tem a possibilidade de dar ao paciente a sensação de que sua relação
com o médico pode ser simétríca conforme dispositivos legais e exigível diante do magistrado, o que
até pode não ser real.

Patrick Castel afirma que a assimetria é um fato inegável que se deve, de uma parte, ao saber
exclusivo do médico e, de outra, à ansiedade do paciente em razão da enfermidade, o que lhe daria o
sentimento de dependência do terapeuta – conhecimento é poder e o saber profissional confere
empoderamento ao médico.

O sentimento de desamparo do que sofre coloca-o como vulnerável, que necessita do acolhimento do
outro. A positivação das obrigações dos dois protagonistas visa, então, a evitar que haja abuso do mais
fraco pelo mais forte, em razão de sua situação de sujeição. Essa caminhada deve-se, sem dúvida, à
dessacralização da medicina que se torna mais técnica.

A regulação pelo direito substituiu um controle, mais espontâneo, informal, mas também menos
seguro, feito, em outras épocas, pelos bons costumes, pela religião, pela ética.

O ponto de virada da perspectiva tradicional ocorreu quando o médico passou a ser considerado como
fornecedor para um sujeito autônomo, que o contratava para prestação de serviço, conforme previsto
no artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor.

A responsabilidade civil médica, assim como ocorre com a responsabilidade civil em geral, decorre da
falta, do descumprimento de um dever, mas não segue um único regime, devendo-se examinar sua
fonte, se contratual ou extracontratual. No primeiro caso, existe “a presunção de culpa médica,
bastando à vítima demonstrar a existência do contrato, o dano e o nexo de causalidade com a conduta
do profissional”. No entanto, na hipótese de responsabilidade extracontratual, deve haver a
demonstração do dolo, negligência, imprudência ou imperícia do médico.
Em termos de responsabilidade civil, ainda não se chegou, ao que tudo indica, ao fim do caminho. A
jurisdicionalização dos erros médicos pode vir a ser vigorosamente fortalecida a partir da decisão do
Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial 1.254.141) que lançou, em relação ao tema, luzes no
Brasil sobre a figura francesa da perda de uma chance: “A oportunidade perdida é de um tratamento de
saúde que poderia interromper um processo danoso em curso, que levou a paciente à morte”.

A disciplina do exercício da medicina é basicamente efetuada pelo Conselho Federal de Medicina


através de múltiplas Resoluções, realçando-se aquela de número 2.217, de 27 de setembro de 2018,
que aprova o Código de Ética Médica. Como se constata, vem sendo criado farto elenco de normas
para viabilizar a concretização das reivindicações da sociedade contemporânea no plano da saúde, para
prevenir a prática das ações indesejadas ou, no caso de violação, para obter do Poder Judiciário a
satisfação devida pela não observação do comando legal.

Discute-se a razão pela qual o progresso da medicina tenha gerado tal corrida aos tribunais e se o fato
se deve a expectativas de cura não alcançadas. A frustração criada pela perspectiva de que a ciência
tudo pode, seria responsável para estimular, de fato, juízos de negligência, às vezes apressados, na
atuação do facultativo.

A mudança na forma da relação é flagrante apesar da variação dos dados e de algumas lacunas em
termos de informações. É possível também constatar que os dois membros da relação, médico e
paciente, mantêm-se reservados ou formalmente corteses ao longo dos últimos anos, ao que tudo
sugere, paralelamente ao desenvolvimento científico e às novas técnicas de intervenção.

A rede global de sistemas de computadores ajuntou, à formação de novos profissionais e diferentes


olhares, qualidade e quantidade de informações que proporcionaram ao paciente um conhecimento
atualizado sobre seus males. Tal fato, de acordo com Pierron, desestabilizou a autoridade do médico
que se presumia ancorada, de um lado, sobre os conhecimentos que ele detinha e, de outro, sobre a
ignorância do enfermo.

Dotado de conhecimentos suficientes, o paciente, segundo o mesmo autor, espera ser mais ouvido e
menos ser informado, com vistas a encontrar os cuidados necessários para sua saúde. O
desenvolvimento da medicina dá lugar a que sejam intensificadas as exigências sociais sobre o
desempenho do médico, esperando-se que sua intervenção possa proporcionar alívio.

Um novo salto no desenvolvimento dos processos, métodos e meios da atividade humana impõe uma
discussão sobre outra realocação da posição dos médicos em razão das plataformas de intermediação
que podem passar a orientar a relação, por meio da oferta de serviços por via da teleinformática.
Assim, os encontros serão rápidos, eficientes, menos dispendiosos e, certamente, ainda mais
impessoais, podendo tomar direções inusitadas.

O direito liderou ou acompanhou essa movimentação e abriu um espaço qualificado para o paciente,
não só como consumidor, usuário ou como titular de direitos em subsistemas jurídicos, inclusive o
penal.

A utilização de tal espaço pode ser feita por via não litigiosa, a exemplo do que ocorre com as câmaras
de composição extrajudiciais, integradas por médicos e cidadãos da comunidade, para
responsabilização por danos civis ou penais. Constituem um caminho para relações de proximidade,
como essa entre médicos e pacientes, os quais podem se satisfazer com outras opções acertadas que
aproximem os litigantes e permitam a reconstrução da relação. Trata-se, ademais, de tentativa de
reconstrução da relação de philia pensada por Hipócrates, necessária entre figuras interdependentes.

A ideia de que o sujeito autônomo não pode se submeter a intervenções indesejadas repercutiu no
âmbito da Bioética, das normas de Deontologia Médica e renasceu no Direito Penal de forma
significativa. Repercutiu, sobretudo, naquele que sofre a enfermidade, o paciente, o que padece, o
qual, não sendo acolhido como igual, quer um espaço, se não como proximus, ao menos como sujeito
de direito.

No âmbito do Direito Penal, a autonomia ganhou tamanho prestígio que, atualmente, o titular do bem
jurídico que, no exercício de sua capacidade de escolha, ainda que imprudentemente, colabore para o
resultado, pode forçar o recuo da norma proibitiva.

AUTONOMIA

O ganho mais evidenciado na trajetória da relação médico-paciente foi o consentimento que, uma vez
emitido ou negado, coloca o enfermo como sujeito responsável por sua vida e saúde. É possível ver,
em face da discordância do doente para a intervenção terapêutica, que o primeiro, aquele que jurou
solenemente curar, vire as costas ao que está morrendo, com o apoio de alguns sistemas jurídicos. De
outro lado, estende-se, para outras situações, a ideia de que aquele que consente, assim como aquele
que aceita, colocam-se em uma situação de perigo, renunciando aos bens que o Estado assumiu
proteger através do direito penal.

Na área médica, o assentimento do paciente implica que a intervenção será feita conforme a leges
artis, o que indica o dever de cuidado e o uso de meios compatíveis com a abordagem a ser realizada
para que se possa vir a falar em atipicidade do fato. A regra geral, no Direito Penal, é que a anuência
legitima a ação adequada do terceiro cuja conduta, numa perspectiva material, pode até causar lesão a
um bem jurídico, mas é legitimada pelo assentimento de seu titular.

Não se trata, como se verá, de hipótese de heterocolocação – que não se confunde com consentimento
– na qual uma pessoa adere à situação de perigo criada por outrem, o que, a depender de alguns
requisitos, em homenagem à autonomia daquele que livremente pôs-se nessa posição, afasta a
imputação penal. Esta última construção não é aplicada, porém, ao contexto médico no qual as
intervenções são consideradas úteis, do ponto de vista social, pois se trata de risco permitido
socialmente e validado pelo ordenamento jurídico desde que haja consentimento.

Pode-se falar no triunfo da autonomia sobre valores como solidariedade, ações pró-sociais
(comportamentos de ajuda), vida, saúde em diversas situações, ou seja, num triunfo que rompe com a
concepção de uma moralidade mínima que persiste através da história. O suicídio assistido e a
eutanásia legalizadas por alguns Estados e demandados por outros são exemplos máximos da
supremacia dessa ruptura.

As ideias de autonomia e de respeito à diversidade das sociedades plurais, nas quais convivem as
perspectivas das minorias morais, não afastam o compromisso pelo qual nos obrigamos, uns em
relação aos outros, e cada um de nós, em relação a todos, o que pode tornar difícil a compreensão de
um sentido dado à autonomia que estimule a indiferença diante do outro, sob pretextos, como, por
exemplo, que o sujeito tenha aderido voluntariamente à ação arriscada, como ocorre na
heterocolocação impunível.

O indivíduo que recruta uma pessoa para uma atividade que sabe perigosa viola o princípio de respeito
pela integridade de outrem, mitigado, talvez, pela ideia de que a própria vítima tenha voluntariamente
aderido à conduta. Essa hipótese poderia subsumir-se a uma das situações sobre as quais dispõe o
artigo 13, § 2º, do Código Penal, em face de condutas precedentes criadoras de risco de um resultado,
que impõem o dever de agir para evitar sua superveniência, não fora a valoração liberal da adesão do
portador do bem jurídico.

Há de se admitir que as normas que regem a moralidade do cotidiano convidam a pessoa a olhar para a
outra como ser livre, autônomo e capaz de decidir sobre seus atos. Os indivíduos se reconhecem como
seres capazes de decidir, dispensando a tutela permanente de outro indivíduo, o que cria uma linha
tênue, difícil, entre a prevenção de ações paternalistas e a mera passividade e a indiferença em face do
outro.
O Direito Penal rende-se a esse pensamento quando identifica os sujeitos como seres autônomos,
procedendo mesmo sua classificação como imputáveis e inimputáveis, para nestes reconhecer uma
capacidade reduzida de decisão livre e, consequentemente, de culpabilidade. O próprio fundamento da
culpabilidade aproxima-se daquele de autonomia, ao se entender aquela como consequência da
liberdade de vontade, ainda que o autogoverno possa ser traduzido, como uma intuição de liberdade
que resulta da interação e da comunicação social.

Não se deve, porém, pretender fazer uma hiperutilização do atributo para que possa ocupar lugares que
não lhe cabem, ou transformá-lo em “um curinga – em vez de considerá-lo um dos princípios morais
em um sistema de princípios – conferindo-se a ele um valor excessivo”.

Limitações ao exercício da autonomia - Levinas: a urgência do compromisso com o Outro, cujo


chamado é mais importante do que a preocupação consigo próprio.

Por certo, o Direito Penal mínimo não se incumbe do regramento ético da autonomia, mas apenas
estabelece hipóteses nas quais o seu exercício consista em agressão grave a bens jurídicos importantes.
Tampouco se encarrega de dar efetividade à ética da alteridade, exatamente porque, mesmo no âmbito
do direito, é subsidiário aos demais subsistemas jurídicos de controle e tem natureza fragmentária. O
perecimento do próximo somente lhe concerne nas situações previstas em lei por sua gravidade.

Algumas vezes, é bem verdade, a responsabilidade com o outro, o dever de assistir, que se imiscui na
liberdade do indivíduo, decorre da função social exercida, ou seja, resulta do rol objetivo de
expectativas e competências que orientam o comportamento de alguém na sociedade.

Os médicos não podem presumir que os pacientes que manifestam escolhas equivocadas na área de
saúde, estão agindo autonomamente e, portanto, que se devem calar diante dos mesmos.

O Direito Penal também atribui maior responsabilidade a certas pessoas em razão do rol de
expectativas em torno do papel que exercem socialmente. Assim, ocorre com a figura dos garantidores
disposta no artigo 13, § 2º, do Código Penal brasileiro, que impõe a responsabilidade pelo resultado
àqueles que não atuaram quando podiam e deviam fazê-lo – em razão da função que desempenham ou
cumprem. São pessoas que assumem, em nome de todas, o dever de preservação de outrem em razão
de sua posição diante do bem jurídico, seja ela determinada por lei (relação de parentesco, dever de
vigilância sobre subordinados), contrato (escrito ou verbal) ou semicontrato (assunção fática de
responsabilidade), ou pela ingerência (criação de risco pelo terceiro de ocorrência do resultado).
Pode-se, no entanto, entender, como Menelick de Carvalho, que a norma jurídica visa, assim como a
moral, a internalizar um comportamento ainda que sob coação: “Precisa-se do direito para impor ao
próximo da esquina o comportamento que a moral interiorizou, até que ele faça a moral pulsar em sua
mente tal como percebe o pulsar das estrelas no céu”.

Sob essa perspectiva, é possível até compreender o ideal da escola do positivismo criminológico,
quando buscou conceituar o crime como “a ofensa aos sentimentos fundamentais de piedade e
probidade, na medida média em que se encontram na humanidade civilizada, por meio de ações
nocivas à coletividade”. Tratou-se de uma tentativa de encontrar fundamento de validade universal –
nada garantista – no plano ético, ao exercício da autonomia, qual seja, a liberdade pessoal encontra
limite no respeito a bens de terceiros, em compasso com os sentimentos de piedade (atentados à vida e
à integridade física), e de probidade (atentados ao patrimônio) que orientam os ideais civilizatórios.

Na contemporaneidade, o princípio jurídico invocado para fixar a fronteira do livre exercício da


vontade no Direito Penal é o da alteridade, que impede que vítima e autor se identifiquem, o que
justifica, por exemplo, a impunidade do suicídio e do exercício da prostituição. Autores há, todavia, a
exemplo de Luzón Peña, que pretendem o alargamento do princípio para nele incluir a não imputação
do resultado em situações de colocação em perigo, tal como a participação em suicídio alheio, o que
exacerba a autodeterminação em desfavor da responsabilidade pelo Outro.

A responsabilidade pelo outro não significa, porém, paternalismo, sobretudo com a conotação
pejorativa que tal conceito assumiu na contemporaneidade, qual seja, a de dispensar a um adulto
normal o tratamento próprio de uma criança, ignorando seus desejos, com o fim de proteção a ela
mesma ou a terceiros, ou seja, a infantilização e a vulnerabilização de outrem com o fim de submetê-lo
à vontade daquele que se sente com mais condições de orientar e decidir.

Schunemann propõe a distinção entre paternalismo direto, aquele que pune a própria pessoa que se
lesiona ou tenta fazê-lo, e paternalismo indireto, que se refere à punição de terceiros que causam uma
lesão consentida a outrem. Em área cinzenta, o autor situa os casos de pedido de ajuda para suicídio
apelativo e solicitação de empréstimo a taxas exorbitantes (usura).

Feinberg refere-se ao paternalismo duro e ao suave que se apresenta quando o Estado visa a prevenir
condutas de pessoas ou que não atuam voluntariamente, ou sobre as quais há imprecisões sobre a
capacidade de agir. Assim ocorre quando A e B ajustam um negócio que é danoso para os interesses
de B, havendo fundadas suspeitas de que este não agiu livremente. Caso assim fosse, não haveria
razão para impedir seu comportamento de forma que este tipo de ação não seria propriamente
paternalista. Já o paternalismo duro teria em vista impedir, pela lei criminal, que B, mesmo no inteiro
uso de sua autodeterminação, fizesse algo que viesse a lhe causar prejuízos. Assim, o uso de drogas,
por exemplo - o paternalismo duro no Direito Penal é aquele que pune o próprio titular do bem nas
chamadas autolesões ou quando as lesões são por ele consentidas, como no auxílio ao suicídio.

Em um âmbito mais restrito, situa-se o paternalismo legal como sendo o comportamento do Estado
que limita a liberdade da pessoa ou de grupos de pessoas, fundado no que presume como sendo seu
próprio bem.

Os que defendem o uso de coerção legal para impedir atos que lesionem apenas a própria pessoa
justificam-se, arguindo que as ações de um indivíduo não são jamais confinadas a sua esfera
individual, o que torna problemático respeitar inteiramente suas escolhas. Há algumas repercussões
que ultrapassam seu círculo de competência, causando danos generalizados.

O novo Código de Ética Médica Nacional, Resolução CFM n. 2.217/201829, dispõe, no art. 34, que o
dever de informação ao paciente constitui regra geral, mas esclarece que é possível deixar de informar
ao enfermo o diagnóstico e seu prognóstico, “quando a comunicação direta possa lhe provocar dano”,
devendo-se, nesse caso, se fazer a comunicação a seu representante legal.

A decisão pela não atribuição do resultado àquele que pôs em marcha o perigo, que se realiza
imediatamente no resultado, exalta a autonomia do titular do bem, o qual tenha aderido livremente ao
fato. Se, ao contrário, resolve-se imputar o resultado ao criador do risco não permitido, ao qual a
vítima consciente limita-se a se submeter, tende-se a uma atitude possivelmente vista como
paternalista.

Há uma dupla necessidade, em face da posição do Direito Penal na intervenção da liberdade do


paciente vulnerável: i) decidir se orientará o conteúdo de seus comandos e proibições pela autonomia
ou pelo paternalismo; ii) interpretar a extensão do conteúdo do princípio eleito. Embora se reconheça
que, no conflito entre dois princípios, deverá prevalecer aquele que menos restrinja o outro e cuja
aplicação proporcione o maior ganho, essa tarefa também envolve um julgamento conforme os
próprios valores. Seja como for, considera-se que essa missão será conduzida, pelo valor que se deseja
ver triunfar.

Propõe-se que a interpretação da norma penal seja guiada pelo equilíbrio entre um e outro princípio,
qual seja, o do respeito à autonomia e o do dever de proteção como expressão de solidariedade, o que
pode contribuir para a coesão social e o sentimento de pertencimento. A vida exige mais que a
abstenção de violação da liberdade do outro, ela cobra também solidariedade e partilha.
A autonomia é pré-requisito para o exercício da vida moral e tem uma importância especial para o
tema deste trabalho, pois, afinal, é através da liberdade de escolha, da possibilidade de aceitar ou
rejeitar uma intervenção, que se procura viabilizar a simetria na relação médico-paciente e se
resguardar o paciente de intervenções não desejadas. A afronta à decisão livre do sujeito compromete
a licitude da intervenção terapêutica, constituindo crime em boa parte dos ordenamentos jurídicos
ocidentais.

Não se trata de entender que a autonomia seja um óbice à proteção e aos cuidados, o obstáculo não
está nesta qualidade, mas na sua intensificação e nos múltiplos significados que lhe têm sido
atribuídos.

Com base em Kant, a autonomia ganha uma formulação ética: a pessoa, porque é um ser racional,
pode descobrir a lei moral e impor esta lei a si mesmo. A lei exprime a moralidade e resulta da
intuição do Bem. Assim, o ser humano é autônomo porque a lei moral, que foi conhecida pela razão,
lhe é imposta por sua própria vontade e não através de terceiros.

Alexandre Rocha reporta-se à noção de autonomia (sem a qual “o indivíduo teria de ser considerado
um tipo de máquina sofisticada como, de certo modo, as pessoas escravizadas foram consideradas no
passado”), acompanhando a visão kantiana que a reconhece aos seres racionais, porque são dotados de
liberdade de escolha.

Decisões “livres” não desconhecem a repercussão que possam produzir no outro e não significam
tampouco fazer o que se quer de forma inconsequente. A responsabilidade integra a autonomia, em
sua compreensão, juntamente com a razão: a razão proporciona a visão do bem e a responsabilidade,
representando o compromisso do sujeito com sua própria condição humana – em face de si próprio e
dos outros – e garante o impulso para se ter a boa vontade, que Kant estatuiu como condição para que
o homem ideal exercite sua autonomia.

Com vistas a avaliar a coerência da decisão e também em respeito ao pluralismo moral, é possível
cotejar a opção feita com critérios de racionalidade do grupo a que pertence o indivíduo para avaliar se
este atua no sentido desta racionalidade e, ao decidir, se está no exercício da própria razão.

A aproximação da construção kantiana da autonomia, quando comparada com as concepções dos


bioeticistas revela certa incompatibilidade entre elas, conforme ressalta Flávia Siqueira, na medida em
que o filósofo alemão não admite decisões determinadas por terceiros, o que é comum e necessário na
relação médico-paciente.
Sucede que, nem escolher, ouvindo em quem confia (conforme julgou melhor fazer), nem o fato de a
opção não ter sido considerada a melhor destroem a ideia de autonomia posta por Kant no sentido de
atributo inato da pessoa. Aliás, ouvir terceiros é uma decisão, assim como o é a de aconselhar-se com
quem confia, atitude que integra o ideal de solidariedade. De fato, talvez, este seja o caminho
necessário para que o enfermo não seja abandonado à sua solidão quando precisa tomar decisões
difíceis em casos complexos. A confiança no profissional clínico ou cirurgião pode permitir uma
deliberação conjunta e fraterna, o que não a tornaria heterônoma.

A decisão autônoma não é aquela que se refugia na subjetividade pessoal, mas reclama a
responsabilidade interpessoal, evitando que esta seja pulverizada e aplaque a indignação diante das
iniqüidades.

Quando se trata especificamente de competência para tomar decisões na área de saúde, Becky
White refere-se a distintos, mas inseparáveis, elementos: capacidade para receber, reconhecer e
lembrar informações que são relevantes; relacioná-las à sua situação pessoal, raciocinar e as
alternativas disponíveis; tomar decisões, resignar-se a essas resoluções. Na prática médica, tais
capacidades ou elementos exigem uma perquirição, cujo ponto de partida é o respeito ao paciente, seus
valores, seu direito a questionar a intervenção e até a recusá-la.

Há que se admitir, enfim, que os conceitos não são unívocos e, algumas vezes, acumulam, ainda,
camadas de outros elementos que os integram com seus específicos sentidos. É imprescindível, por
isso mesmo, o estabelecimento de critérios (ainda que nem sempre totalmente convergentes) para
constatar a liberdade de decisão de uma pessoa sob o risco de arbitrariedade e insegurança. Dessa
forma, com vistas a avaliar a coerência da decisão e também em respeito ao pluralismo moral, é
possível cotejar a opção feita, com padrões de racionalidade da cultura do indivíduo, para avaliar a
possível coerência de vontade.

Ressalta-se a necessidade de cautela para realizar a suposta vontade do enfermo, merecendo sua
recusa, encontros para orientação sobre a intervenção e compreensão do contexto no qual ocorreu sua
negativa. Essas precauções são essenciais para uma deliberação responsável.

Ainda que se tome a autonomia como condição humana, a falta de capacidade para exercê-la ou de
condições para o mesmo exercício tem uma consequência semelhante, qual seja, a possibilidade que
haja decisões que podem significar impulsos momentâneos. Assim, escolhas que levam à morte não
devem ser tomadas, a priori, como definitivas, a menos que se trate de esforço desproporcional para
conservar uma vida que finda.
A autonomia é vulnerável como o homem, por isso mesmo, só pode ser possuída por seres
vulneráveis. Isso quer dizer que não se pode esquecer de que a fragilidade da espécie – a qual lhe é
inerente – pode afetar suas decisões. Dessa forma, quanto mais irreversível a decisão, mais prudente
deve ser a equipe de saúde.

Ignorância sobre questões de saúde – seriam racionais tais decisões? Se a racionalidade é própria da
espécie humana, considerar-se-ia que sim, ao menos no contexto do sujeito, por mais extravagantes
que fossem, apesar das lesões provocadas à saúde.

Não se trata de coagir o paciente, não se deve constranger alguém a submeter-se a intervenções
indesejadas, mas avaliar o nível de consciência, solidez e racionalidade da recusa para encorajar o
ânimo no sentido da abordagem médica.

Para Roxin, o poder de decidir não está adstrito a decisões sensatas. Todavia, entregar o vulnerável ao
seu próprio destino adverso em nome da autonomia constitui, sem dúvida, falta de responsabilidade
ética para com o outro.

No plano ético, a vulnerabilidade é um apelo a “uma responsabilidade com o outro de não ser
indiferente, de não o deixar morrer só, aberto às fraquezas e ofensas”.

Stratenwerth – não basta apurar se houve liberdade na tomada de decisão, mas é preciso também que o
consenciente possa visualizar, nesse processo, o desenrolar dos fatos aos quais assentiu. Com base
nessa proposição, é possível que se trate de causa para indenização do paciente se este não tem plena
ciência dos desdobramentos de seu assentimento.

No Brasil, reitere-se, o mero atendimento na área de saúde já constitui muitas vezes um privilégio que
não se ousa atingir com discussões sobre a livre decisão. Por isso mesmo, é preciso que, ao lado da
autonomia, coexista o empenho em ressaltar expressões como compreensão, alteridade, solidariedade
e respeito.

Maria do Céu Patrão Neves – vulnerabilidade universal: própria da condição humana; vulnerabilidade
secundária: econômica, por idade, enfermidades, e afetam o indivíduo por si próprias e também pela
forma como estas pessoas são tratadas por terceiros que, via de regra, as infantilizam para o exercício
de seu controle.

Os seres humanos, a não ser os que tenham um nível especial de consciência, são afetados pelo
ambiente em que se encontram e suas decisões são circunstanciais. Assim, como se tem destacado,
estas, raramente, são totalmente livres, já que, quase sempre, são o resultado de reações emocionais.
Assim ocorre com pessoas em estabelecimentos próprios para internação e tratamento de doentes.
Estudos demonstram efeitos da emoção sobre a cognição, revelando que o estresse causado pelas
enfermidades e pelo ambiente hospitalar produzem sobre pacientes, que nunca tiveram problemas
cognitivos, dificuldades na compreensão da informação que lhes é dada para obtenção do
consentimento.

Os humanos são capacitados a sentir, internalizar e a responder às circunstâncias dentro de um padrão,


segundo o qual podem ser considerados competentes. Tanto no âmbito cognitivo como no afetivo, os
indivíduos saudáveis exercitam essas funções com facilidade. No entanto, os enfermos quase sempre
vivenciam alterações em ambos os sistemas porque a enfermidade pode reduzir ou ampliar as
habilidades afetivas.

A vulnerabilidade é mais um argumento que impõe uma avaliação sobre o grau de liberdade da pessoa
– no caso o paciente – e do entendimento que ela tem sobre o fato, a capacidade de compreensão das
alternativas possíveis, entre outras. Há, todavia, pessoas diante das quais não se pode, facilmente,
aferir, validar a capacidade de uma decisão livre, o que obriga a equipe de saúde a dedicar mais tempo,
cuidado e perseverança para compreender o enfermo e realizar seu verdadeiro interesse.

A autonomia, quando operacionalizada, está sujeita à verificação e à validação por outras pessoas, e
isso ocorre quando se fala, conforme visto, em capacidade, competência ou virtudes que a integram.
Diante do fato concreto, tornar-se-ia indispensável aferir sua presença no sujeito real que consente,
embora esta seja uma tarefa difícil pela inexistência de instrumentos hábeis para tanto.

Entre os capazes e os incapazes legalmente reconhecidos, há uma área cinza (os vários graus a que se
refere Feinberg) na qual é possível existir capacidade para uma decisão especifica, a qual é ignorada.
O que se sugere são alternativas a recusas de cuidados motivadas por causas transitórias ou por razões
que não afetam a condição estrutural do sujeito.

Há pessoas autônomas que podem praticar atos não autônomos e, desse modo, fazem jus a uma
assistência não coercitiva, mas que favoreça o exercício da autonomia eventualmente afetada, como é
o caso de alguém sob o império de emoções fortes, medo, dor, passageiros, ou sob influência de
substâncias parcialmente incapacitantes, mas que obstam procedimentos salvadores.

Concluímos, então, em face do absurdo que seria reduzir a humanidade, em sua grande parte, à
categoria de incapazes, que é possível pensar em sujeitos autônomos e decisões autônomas como
categorias distintas. Pessoas autônomas podem tomar decisões pressionadas por circunstâncias
afetivas, por ignorância, engano ou transtornos ocasionais, sem que se deva aceitá-las de logo, em face
de sua incoerência, como sendo manifestação da vontade própria. Da mesma forma, indivíduos
julgados incapazes e até internados em instituições psiquiátricas podem agir como autônomos.

As considerações feitas não significam renúncia à proteção da autonomia do paciente em todos os


tratamentos, apenas, no plano ontológico, empírico ou como seja a compreensão das coisas no âmbito
do ser, procura-se dar-lhe um contorno mais realístico e compatível com a natureza humana.

Nos casos de decisões complexas, se o indivíduo hesita, teme ou decide de forma anacrônica, o
compartilhamento da resolução pode facilitar a superação das dúvidas. Nessas situações, ademais,
evita-se que, ao primeiro sinal de recusa de uma intervenção com boas possibilidades de êxito, deixem
de ser desenvolvidos esforços para esclarecer todos os aspectos referentes às possibilidades de
recuperação da saúde. Atitudes próprias do paternalismo suave podem ser adotadas, ao menos
temporariamente, para que se possa estabelecer se a atitude do paciente é voluntária ou não.

O OLHAR DO DIREITO PENAL: CULPABILIDADE E IMPUTABILIDADE

O livre-arbítrio e a responsabilidade são tomados pelo jurista como pressupostos de sua construção,
que se opõe à ideia de que o homem possa delinquir em face de condições pessoais ou circunstanciais
como pretenderam os deterministas.

O livre-arbítrio, vontade livre em Santo Agostinho, foi, no Direito Penal, responsável por sustentar que
o homem escolhe o crime, quando podia comportar-se conforme as exigências legais. A comprovação
do livre-arbítrio na situação específica, concreta, foi considerada, por muitos anos, necessária para
fundamentar a reprovação da conduta de agente. Seu repúdio retiraria do Direito Penal o principal
argumento para a pena retributiva destinada a restabelecer a ordem violada. Afinal, se o sujeito não é
livre para se abster da conduta que lesa o bem jurídico, não haveria uma justificação para o juízo de
censura da ordem jurídica sob forma de sanção.

Os autônomos devem ser capazes de escolhas racionais assim como os imputáveis devem ter
condições de compreender o conteúdo da norma para executar suas ações em conformidade ou não
com seu comando.

O conceito de inimputabilidade, embora se refira a autores e não a vítimas da conduta do agente, é


referido por sua centralidade na teoria do delito e para desvelar a solução jurídica dada aos casos nos
quais pode faltar autonomia.
O consentimento é o meio por meio do qual a pessoa autônoma, capaz, expressa sua concordância com
a ação a ser praticada por terceiro, concretizando, por seu intermédio, sua liberdade de escolha com
relação àquele ato específico. Na esfera penal, é o consentimento que confere licitude à intervenção
médico-cirúrgica. É pela anuência, portanto, que uma incisão no abdômen, por exemplo, feita pelo
cirurgião, é validada, embora, numa perspectiva objetiva, assemelhe-se a uma lesão corporal.

A doutrina mais moderna crê que o consentimento é o fundamento do recuo do Direito Penal apoiado
no direito de autodeterminação individual, assegurado constitucionalmente como direito fundamental
à liberdade.

Na Bioética, fala-se em consentimento informado, o que, muitas vezes, não passa de uma assinatura
em formulários impressos, cujo conteúdo, em sua complexidade, é o mesmo para todos. A
expressão informado, no entanto, já pressupõe que as questões apresentadas devam passar por um
processo de esclarecimento de seu conteúdo, compatível com a possibilidade de compreensão de cada
indivíduo porque, afinal, a autonomia não consegue exterminar as diferenças, nem as vulnerabilidades.

A figura do consentimento para a intervenção médica está ligada ao dever de informação por parte
desse profissional. Assim, esclarecimentos incompletos, dolosa ou culposamente falseados, implicam
responsabilidade médica.

A possibilidade de disposição do bem que é posto à disposição do terceiro e a capacidade do sujeito


para emitir a anuência são outros aspectos essenciais do consentimento.

A importância do consentimento dito informado na medicina é tão grande que, os informes


incompletos têm dado causa, nessa área, a recursos ao judiciário com fins indenizatórios porque se
presume que, se o paciente fosse informado dos perigos que envolviam o procedimento, poderia não
consentir na intervenção.

No que diz respeito ao consentimento para intervenção médica, de logo, deve-se lembrar de que
alguns doutrinadores contemporâneos dispensam o consentimento ou o acordo para conferir licitude à
atividade médica, assim como pensou Welzel. O autor considera que o tratamento médico ou cirúrgico
não pode constituir tipo penal porque se trata de atividade que se realiza no âmbito da ordem social,
sendo considerada socialmente útil.

Autores da envergadura de Noll, Jescheck, Hirsch e Jakobs fundamentam a discriminante pela


preponderância do consentimento como expressão de liberdade de disposição sobre a lesão ao bem
jurídico. Como se tem destacado, trata-se da aceitação da autonomia como valor que se sobrepõe à
quase totalidade dos bens jurídicos individuais.

Mais recentemente (segunda metade do século vinte), distinguem-se duas construções no âmbito da
dogmática penal que, embora semelhantes no que diz respeito à anuência do titular do bem, operam
consequências distintas: acordo e consentimento. As duas figuras abrigam-se sob a designação de
consentimento em sentido lato, ou aquiescência, porém são diferenciadas: ambas obrigam a tolerância
do Direito penal com relação à ação praticada, mas em níveis distintos: o acordo exclui o tipo,
enquanto o consentimento afasta a ilicitude do fato. São situações diante das quais, embora o Estado
tenha interesse na proteção do bem jurídico, tal interesse coincide com o privado que prepondera sobre
o interesse público.

Dá-se o acordo nos casos em que um dos elementos do tipo consista no dissenso do ofendido, a
exemplo da violação de domicílio, de correspondência, do crime de estupro, em que a anuência do
portador do bem torna o fato atípico e estranho ao Direito Penal. Isso ocorre porque a realização do
tipo exige a superação da vontade do ofendido uma vez que esse é o bem jurídico protegido.

Essa forma de aquiescência consiste, portanto, na concordância do interessado com a ação do agente,
excluindo o tipo, uma vez que sua construção se funda no desrespeito à vontade do ofendido. Bastaria,
aqui, a vontade naturalística para afastar o tipo objetivo. Dela não se exigiriam os requisitos do
consentimento em sentido estrito como se verá, inclusive aqueles relativos à idade ou à sanidade
mental ou existência de anuência.

O consentimento em sentido estrito requer, a seu turno, para produzir os efeitos legais, manifestação
da vontade do ofendido sobre bens dos quais é possível validamente dispor. Para que o ato gere os
efeitos legais, deve, ademais, ser expresso reunindo uma série de exigências, tais como: capacidade,
liberdade e autenticidade, ou seja, não contenha vícios de vontade e, mais ainda, que haja correção da
declaração e conhecimento da circunstância por parte do agente.

Esta condição – informação do ato e seus desdobramentos e consequências – é que impede a


equiparação do perigo gerado por um terceiro, ao qual adere o titular do bem (heterocolocação em
perigo), ao consentimento. Na heterocolocação em perigo, além de não anuir com o resultado, a vítima
apenas acede à ação perigosa, mas não às lesões que dela podem resultar.

Ensina Roxin que “[...] o consentimento não é um ato de colocação em perigo, mas sim um ato de
disposição sobre um bem jurídico sobre o qual se tem capacidade de disposição”. Dessa forma, não há
que se falar ali em renúncia a um bem (o que é elemento do consentimento), quando seu titular quer
preservá-lo e ignora a extensão do risco a que o submete, o que é mais propriamente ligado à
heterocolocação em perigo. Além disso, o consentimento pode ser revogado a qualquer momento,
devendo ser válido no momento da prática do ato.

Admite-se que pessoas poderiam até se expor a situações que impliquem risco para sua própria saúde,
ou mesmo a vida, mas não podem negar-se a ter cautelas, se um bem transindividual pode vir a ser
atingido.

Outros autores reduzem a uma só categoria as duas formas de manifestação da vontade, negando a
diferença entre acordo e consentimento, conferindo tanto a uma como a outra o efeito de exclusão do
tipo. Um forte argumento desses doutrinadores reside na liberdade que é assegurada
constitucionalmente a cada pessoa, o que impede que o fato de um bem ser posto à disposição por seu
titular constitua uma ilicitude.

A oposição de Roxin vai além da sua compreensão sobre a liberdade de disposição dos bens jurídicos.
A distinção entre as duas figuras gera, segundo o autor, importante assimetria em matéria de vícios da
vontade (fraude, coação e erro), causando soluções que considera díspares.

Como se sabe, o agente deve conhecer, nas causas de justificação, que devem concorrer, na sua ação,
tanto os elementos objetivos quanto os subjetivos; no caso do consentimento, especificamente, deve
estar presente o ânimo de realizar uma ação permitida pelo titular do bem. Faltando tal consciência, a
causa que exime a ilicitude estará incompleta e haverá crime. A solução proposta vem de uma postura
de política criminal que admite punição por tentativa porque o agente atua com dolo típico completo.

Assim, como refere Roxin, trata-se de punição na forma prevista para a tentativa de crime impossível e
não por crime consumado, já que o resultado indesejado não ocorreu, de fato, no mundo real. Todavia,
no Brasil, a conduta restaria impune.

Ao contrário, se o agente supõe consentimento que não existe, em face do nosso direito, será uma
hipótese de dirimente putativa (§ 1º do artigo 20 do Código Penal brasileiro). Mas, pela teoria dualista,
excluiria o tipo, permitindo apenas a punição por crime culposo, caso previsto em lei.

É indispensável, no acordo ou no consentimento, que o agente saiba que atua porque o titular do bem
assim permitiu. Assim, o valor do resultado desejado participa da legitimação da ação do “ofensor” e
do tratamento que lhe é dispensado.
Formou-se, posteriormente, um consenso entre doutrinadores sobre o fato de que a manifestação de
vontade pela anuência (acordo ou consentimento) só é eficaz quando as informações são concedidas.
É necessário, sim, que haja esclarecimento prévio e que o assentimento não derive de erro.

Assim, se o consentimento e o acordo também forem obtidos mediante fraude, não existirá a renúncia
à tutela do bem jurídico, e a conduta continuará sujeita a punição.

Flávia Siqueira alerta que, de acordo com a doutrina de Artz, quando o engano afeta o bem jurídico e a
sua “dimensão de disposição”, não é válida a concordância. Roxin, a seu turno, entende que certos
erros não referidos ao bem jurídico também podem afetar a autonomia quando, por exemplo, a
finalidade da intervenção é modificada para obter o consentimento do titular do bem. Assim, quando o
erro está relacionado ao bem jurídico, a pessoa que consente não está ciente do alcance de renúncia no
que diz respeito ao objeto da ação. Não consente livremente, portanto, da mesma forma que ocorre
quando é coagida ou se engana.

Importa advertir, então, que, para as intervenções médico-cirúrgicas, tema central deste trabalho, são
necessários, portanto, tanto à luz da posição de Costa Andrade quanto da de Roxin, os esclarecimentos
suficientes para “mediatizar a decisão responsável do paciente”, como o primeiro revela. Tal
informação deve versar sobre a necessidade e a natureza do tratamento, a identidade do médico, entre
outros fatos.

De acordo com o entendimento prevalente na jurisprudência e na doutrina, no que diz respeito à saúde,
o consentimento só é eficaz quando as informações médicas são concedidas sem erros, engano ou
coerção; se faltar esse requisito, o médico será punido conforme a legislação penal de seu país. A
ausência de esclarecimento pode gerar também responsabilidade civil para o médico, assim como a
falta de precisão das informações que levem à anuência baseada em erro.

No que diz respeito à coerção, é importante lembrar que nem sempre ela se apresenta de forma
explícita, haja vista que certas influências, em razão da autoridade de quem as faz e do estado em que
se encontra o paciente, podem afetar a voluntariedade da decisão.

Conforme realçado, para que consentimento signifique o exercício da autonomia pessoal, entre outros
requisitos, ele deve ser exercido sem erro ou engano. Dessa forma, é indispensável que a pessoa
disponha de informações suficientes sobre a intervenção médica, seus riscos, benefícios e prognose e
outras opções, incluindo a de não fazer qualquer tratamento.
No campo do Direito Penal, para que se possa afastar a ilicitude, é necessária também a ciência dos
recursos e das consequências do conjunto de meios a serem empregados no procedimento terapêutico.

Deve haver, ademais, entre o dever de informar, sua omissão e o dano sofrido uma relação causal com
a lesão produzida.

Em face de um resultado danoso, há de se perguntar sempre se o médico deve ser responsabilizado


pelo risco que se concretize no decorrer da intervenção, incluindo os remotos. É preciso, portanto,
traçar uma linha que demarque com a segurança possível quais os limites ente os riscos próprios a
todas as cirurgias de uma determinada espécie (que, ainda assim, devem ser informados) e aqueles que
são mais comuns em certa intervenção, tomando em consideração a condição do paciente concreto.

Por vezes, é a própria condição grave do enfermo que dá causa a um resultado de dano e não a
omissão de informação, mesmo numa perspectiva normativa, de forma que deve haver prudência
nessa função, em consideração ao princípio da ultima ratio, para não responsabilizar penalmente o
médico quando se tratar de omissões mais próximas das ilicitudes civis.

Nesse ponto, impõe-se uma observação feita por Silva Sánchez: o limite mínimo para caracterizar uma
imprudência no âmbito do Direito Penal é complexo e, para chegar a esse limite, é preciso que o
sujeito perceba ou deva perceber que infringiu o dever de cuidado. Para determinar esse nível de
perigo, é obviamente necessário atentar, em primeiro lugar, para a omissão que pode dar margem tanto
à probabilidade de danos quanto à sua magnitude.

De acordo com Silva Sánchez, é preciso que se faça uma valoração cultural, que pode variar no tempo
e no espaço, para afirmar se o sujeito se comporta descuidadamente e, com isso, pode vir a dar causa a
um provável perigo, que deveria ter sido percebido. Ocorre que, muitas vezes, os perigos são
avaliados ex post e não ex ante, como deveriam ser, e a valoração já é feita, então, em razão da
gravidade do resultado produzido, conforme observa Kuhlen.

Considera-se que a omissão do médico em informar todos os aspectos importantes da intervenção


pode afastar o consentimento válido que atua como causa de exclusão da ilicitude. Nem toda omissão
que gere uma ilicitude civil poderá configurar uma ilicitude penal, embora o inverso não seja
verdadeiro em razão do princípio da subsidiariedade. Para dar causa a um crime, comprometendo o
consentimento do titular do bem, é preciso que se trate de falta grave.

O dever de informar prestigia, sobretudo, a autonomia, e não a integridade física, porque, como foi
visto, a maior parte das lesões e mortes ocorridas em pacientes, em países como os Estados Unidos,
resultam de má prática e não de falta de informações. Não se pode identificar, à primeira vista, uma
forte conexão entre autonomia e integridade física ou êxito terapêutico, também não seria este o
objetivo da norma.

A importância da livre deliberação no modelo terapêutico está intimamente ligada à legitimidade da


intervenção a ser realizada, e não a danos à saúde, de forma que uma intervenção pode ser bem-
sucedida do ponto de vista da saúde e ao mesmo tempo criminosa, considerando-se a ausência de
concordância.

Diferentemente do consentimento expresso que, no paradigma monista, é causa de exclusão de


tipicidade quando presumida essa forma de anuência, o que se exclui aqui é a ilicitude do fato, posição
que é referendada pelo dualismo.

O consentimento presumido, em verdade, fundamenta-se num juízo sobre a provável vontade da


pessoa em admitir o sacrifício do bem autonomia em favor da vida e da saúde. Essa forma de anuência
pretende superar o conflito que surge entre beneficiar um ou outro bem jurídico, seja pelo estado de
inconsciência do paciente, seja porque não é possível localizar familiares, havendo urgência na
intervenção.

A situação que autoriza a presunção do consentimento supõe a probabilidade da concordância do


interessado, ou seja, caso esse tivesse conhecimento da situação, concordaria com a ação do terceiro.
Não se trata, portanto, de um juízo objetivo de ponderação dos interesses envolvidos no caso, como no
estado de necessidade.

Nélson Hungria referia-se às situações hoje compreendidas como consentimento presumido como
sendo tratamento médico arbitrário lícito, desde que justificado pela sua imperiosa necessidade, o que
inclui a impossibilidade de seu adiamento, convocando o § 3º, inciso l, do artigo 146 do CPB em seu
apoio. Em verdade, os requisitos apontados como necessários pelo Mestre brasileiro para a ocorrência
do estado de necessidade são: (i) que a intervenção se apresente como necessária, (ii) urgente,
(iii) inadiável para afastar a morte do paciente. Somam-se a esses pressupostos a certeza ou a
probabilidade, de acordo com os meios científicos existentes, de debelar-se o perigo de vida do
paciente.

No Brasil, entre outros autores, entende Francisco de Assis Toledo, pela rejeição da figura do
consentimento presumido, considerando-a desnecessária diante da possibilidade de ser invocado o
estado de necessidade. Outros doutrinadores, poucos, falam em favor do consentimento presumido
como o faz Juarez Tavares. Embora haja aproximação entre o consentimento/acordo presumido e o
estado de necessidade, não há identificação entre eles, constituindo, o primeiro, causa de justificação
autônoma.

A resposta à posição em favor do consentimento presumido ocorre porque se entende que essa
presunção pode suprir, de forma mais adequada, o consentimento real, uma vez que considera a
vontade suposta do enfermo como orientação para a decisão, enquanto o estado de necessidade ignora
essa mesma vontade, agindo a partir de uma perspectiva, objetiva e, portanto, heterônoma.

Deve-se ponderar com muita precaução entre a vida e presumidas vontades, na dúvida, prevalecendo a
primeira sobre sua eliminação, principalmente se não há grave sofrimento na sua preservação,
sobretudo em pessoas em situação de extrema vulnerabilidade.

As tentativas paternalistas de beneficência, como se constata, têm sido rechaçadas em favor do


respeito à liberdade de escolha, ao menos, no âmbito do Direito Penal, sobretudo em outros países.

No Brasil, conta-se com a manifestação de Juarez Cirino dos Santos, realçando a posição de Mezger
no sentido de que o consentimento presumido é geralmente utilizado quando se refere a interesse
alheio. Muitos autores, acrescenta, rejeitam o uso da construção quando se trata de interesse próprio
pelo risco envolvido, que se dá quando, por exemplo, uma pessoa entra no quintal de outra para colher
frutas que apodrecem durante as férias do proprietário.

No âmbito da Bioética, fala-se em modelos de decisão substituta, dividindo-se os tribunais americanos


entre o uso de duas alternativas, conforme Beauchamp e Childress: a dos melhores interesses e a do
julgamento substituto. Tais modelos têm em vista alcançar pessoas que estão em situação de
incapacidade porque sofrem de crises, embora conscientes.

Os mesmos autores afirmam que os tribunais passaram, porém, a entender que é importante recorrer a
esses critérios para pessoas que nunca foram saudáveis, com base no entendimento de que “uma
pessoa incapaz ainda é uma pessoa capaz de escolher”. No entanto, os percussores da Bioética
principialista alertam que se deve ter cuidado quando se recorre a esses modelos, sobretudo quando a
decisão envolver a supressão da vida, evitando transferir para os pacientes os próprios desejos.

No modelo do julgamento substituto, espera-se que o representante se ponha no lugar daquela pessoa
para quem a decisão está sendo tomada e não que aja como se estivesse deliberando para si próprio.
Não se trata, portanto, de processo semelhante àquele por meio do qual os médicos, por si mesmos,
resolvem os ampliar os rumos do tratamento em função dos melhores interesses do paciente.
É, ainda, apontado o modelo dos melhores interesses que, todavia, já se aparta da relação
autonomia/consentimento, na medida em que o substituto deve escolher, entre as providências
possíveis, aquela que mais proteja o bem-estar da pessoa. Por isso mesmo, não se pode basear apenas
em elementos subjetivos, embora se recorra, de certa forma, à autonomia, que oferece uma base para a
compreensão do que seria bem-estar para o paciente.

Além de todas essas vertentes, ainda se fala de consentimento hipotético em Direito Penal, cujo uso
esteve restrito, inicialmente, ao Direito Civil, no qual deve permanecer.

O consentimento hipotético é uma forma de legitimação da ação do médico que não prestou todos os
esclarecimentos devidos sobre o procedimento, mas admite-se que, se ele houvesse informado o
paciente, esse teria, supostamente, concordado e se fundamenta na ideia de pessoa racional e como ela
se determinaria na situação (prevalecendo a posição do intérprete).

Trata-se de uma anuência assentada em dupla suposição sobre um ato não praticado. Está mais
diretamente ligada ao dever de esclarecimento do médico que não cumpriu com a obrigação de
informar, limitando o que chama de hipertrofia do dever de informar e a judicialização desnecessária
das questões entre médico e paciente. Sua amplitude, todavia, não pode se estender àquelas situações
nas quais não houve nenhum consentimento ou esse foi insuficiente.

A aplicação da construção requer que o médico comprove, e apenas esse pode fazê-lo, a suposta
adesão do paciente à intervenção, não se podendo inverter o ônus da prova, ou seja, o profissional
deve demonstrar que o paciente teria consentido no procedimento, se o esclarecimento teria sido total,
envolvendo inclusive o risco, que foi a causa da lesão.

Não se trata de consentimento presumido, mas de conjectura feita pelo cirurgião sobre uma suposta
anuência do paciente, o qual faria a intervenção mesmo que conhecesse os possíveis danos nela
envolvidos. Esse pode, por sua vez, provar que, se houvesse sido informado, teria feito outra escolha, e
que sua recusa seria razoável, considerando-se sua situação específica.

O direito brasileiro reconhece o dever de informar no âmbito cível e vem admitindo ações
indenizatórias promovidas por pacientes contra profissionais médicos diante da falta de esclarecimento
ou de esclarecimento insuficiente, dos quais resultam danos físicos ou morais. No sistema penal, é
preciso que a falta de esclarecimento, como foi dito acima, assuma uma proporção de tal gravidade
que se possa considerar não cumprido o dever de informar.
O artigo 15 do Código Civil brasileiro, ao estabelecer que ninguém pode ser constrangido a submeter-
se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica, prescreve que o profissional
deve esclarecer sobre os perigos envolvidos na terapia quando esses alcancem o nível explicitado na
lei – perigo de vida. O Código de Defesa do Consumidor também exige a prestação de
esclarecimentos, destacando-se, entre os dispositivos nesse sentido, o artigo 14, o qual dispõe que o
fornecedor de serviços será responsabilizado se prestar informações insuficientes e inadequadas.

No Direito Penal, é difícil falar da hipótese de consentimento tático fora do âmbito do acordo, o qual,
por sua natureza, não exige formalização para sua admissão, conforme já visto, porque tem uma
natureza mais fática, conforme explica Roxin, um monista, no entanto. A teoria dualista
compreenderia, por exemplo, que há acordo no gesto de levantar a manga para receber uma vacina,
mas não consentimento tácito.

O consentimento por representação é utilizado quando o paciente, para realizar um procedimento


médico assistencial ou de pesquisa, está impossibilitado de fazê-lo ou não é habilitado legalmente para
consentir. Nesse caso, outra pessoa, na maioria das vezes um familiar, ou curador, ou tutor,
responsabiliza-se pela autorização desse procedimento. A representação é, portanto, uma modalidade
de intervenção de terceiro, no pleito, para proteger os interesses de quem está sob sua guarda ou
proteção.

Esse modelo de consentimento realça aspectos da ideia de responsabilidade em Lévinas, segundo a


qual, nossa obrigação de responder pelo próximo é urgente e prioritária, uma vez que este nos
antecede em certa medida ontologicamente e seu rosto nos convoca repetidamente para o
compromisso consigo. A responsabilidade pelo próximo exige que os ideais de humanidade se
concretizem nas decisões de cada qual, percebendo o outro razão de realização de seus próprios
interesses, o que extrapola as questões puramente formais.

O consentimento por representação (tutela e curatela) não pode ser considerado como manifestação de
autonomia, ao contrário, deve ser compreendido como uma ficção que busca sustentar o ideal de
autonomia. Trata-se de mera justificativa formal para restringir a discricionariedade do médico em
tempos nos quais é difícil discernir sobre a licitude de sua intervenção. Se a decisão da família ou do
representante legal se opuser ao melhor interesse do menor ou do representado, deve prevalecer esse
princípio orientador, no caso concreto, ainda que contra a vontade do representante.

Médicos, hospitais e clínicas brasileiros vêm exigindo a assinatura de documento, a que chamam de
Consentimento Informado, pelo qual o paciente manifesta sua anuência com a intervenção. Não fica,
porém, claro se esse Termo visa a prestigiar a autodeterminação do paciente ou a resguardar o
profissional de ações indenizatórias. Trata-se de documento com ampla cobertura, contendo as
informações que os cirurgiões e anestesistas julgam suficientes e que, muitas vezes, contém
expressões ininteligíveis para uma pessoa comum.

Ana Iltis, em estudo sobre consentimento, já alertava para a atenção insuficiente sobre a compreensão
das pessoas para entender e avaliar as informações que lhes são prestadas para que possam consentir
validamente, ainda que essas sejam fornecidas em linguagem simples e leiga. Há pouco cuidado e
parcas discussões sobre a matéria no Brasil, bastando, na maioria das vezes, a anuência formal.
Ademais, são previstas, nesses termos, todas as consequências mais graves, o que cria para o médico
um espaço muito amplo de permissões.

O dever de informar no Brasil, no âmbito criminal, não conta com jurisprudência, nem mesmo com
doutrina abundante, restringindo-se a maioria dos julgados aos âmbitos civil e consumerista.

O testamento vital pode ser considerado como uma forma de manifestação prévia que é registrada em
documento, feito por pessoa autônoma no uso da sua capacidade, mediante o qual manifesta seu
consentimento sobre as intervenções e abordagens às quais deseja ser submetido e àquelas que não
deseja quando se tornar incapaz de comunicar suas decisões.

As Disposições Antecipadas de Vontade (DAV), além de conterem orientações no mesmo sentido do


Testamento Vital, preveem a designação de pessoa para que tome decisões em lugar do signatário
quando esse não dispuser mais de capacidade para tanto.

Estudos preveem a possibilidade de usar as disposições prévias de vontade para recusar tratamento nas
seguintes situações: doença terminal, EVP e demências avançadas. Nesse rol, é difícil ignorar a
inclusão das demências como causa que autoriza a suspensão de tratamentos (ainda que dada pelo
próprio enfermo) na medida em que esse paciente não dispõe de capacidade de autodeterminação e
ainda pode usufruir de uma forma de vida.

Aceitar a decisão de pessoas nessas situações seria uma revivescência da política nazi de extermínio.
Uma vez iniciada a aprovação de uma cultura de dizimação, seu caminho é não só o alargamento, mas
também a interiorização do valor de descarte pelos membros da comunidade.

Aos idosos e doentes são facilitados os recursos para saírem dessa vida, já para os excluídos
socialmente não é necessária qualquer providência dessa natureza porque sua destruição é tolerada
diariamente.
Uma questão fundamental a ser apreciada com relação às diretivas diz respeito à atualidade do
consentimento, que é requisito para sua validade. Considera-se, todavia, que o Testamento Vital e as
Diretivas, não tendo sido revogados, são tidos como vigentes inobstante tenham-se passado, até
mesmo, muitos anos.

Quando se tratar de cuidados que podem configurar distanásia (prolongamento desnecessário e com
sofrimento da vida por meio de intervenção improfícua), a menos que o paciente tenha-se manifestado
nesse sentido, pode haver um acordo para preservação apenas de cuidados paliativos, nos quais se
incluem hidratação e alimentação.

Um cuidado que se deve ter sobre as diretivas diz respeito a que desejos podem ser prescritos. A
suspensão de hidratação e alimentação pode ser incluída? Acredita-se que não, assim como nenhum
outro meio que seja causa imediata de morte. Hermann e Fuhrman trazem informações de autores os
quais consideram que, mesmo sendo administradas por via artificial, esses meios expressam aspectos
de essencial solidariedade humana, de forma que não devem ser suprimidos.

O fato é que parece não haver conclusões definitivas sobre grande parte dos temas que são objeto das
decisões sobre vida e morte, apesar de todas as construções éticas e jurídicas e, afinal, são os valores
morais que orientam as decisões e a ameaça da coação penal.

A VISÃO LEGAL DA SUPERAÇÃO DA VONTADE: CRIMINALIZAÇÃO DA CONDUTA


MÉDICA CURATIVA PELA AUSIÊNCIA DE CONSENTIMENTO

Chega-se, enfim, a um momento na história da civilização no qual a falta de consentimento prévio do


paciente para a ação do médico é indício de realização de algumas figuras típicas, das quais se
destacam os crimes por coação, lesão corporal e homicídio.

Apenas o próprio paciente pode decidir sobre as condições que lhe proporcionam bem-estar, embora,
diante de escolhas heterodoxas, deva-se confrontá-las com aquelas feitas por outras pessoas nas
mesmas circunstâncias, sem ignorar a coerência com o contexto pessoal do enfermo. A superação do
conceito de saúde em sentido puramente objetivo – integridade física – pela ideia de bem-estar físico e
psíquico fortaleceu a autonomia no contexto médico manifestada pelo consentimento.

Artigo 146, Código Penal – violência, ameaça ou outro meio apto a reduzir a capacidade de
resistência. A fraude para obtenção de consentimento ou a informação incompleta do médico não
podem integrar o tipo que seria ampliado para além do que pode admitir a legalidade.
Para considerar que o dispositivo abrange a conduta médica não autorizada, é preciso realizar uma
tipificação às inversas: se o parágrafo exclui a ilicitude do caput, este conteria o tipo que se realiza
com a intromissão não autorizada. A hipótese, porém, não comportaria os casos de erro ou fraude no
consentimento que não se ajustem às alternativas previstas em lei: mediante violência ou grave
ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer meio, a capacidade de resistência.

A doutrina tradicional brasileira entende que, na hipótese, trata-se de caso específico de exclusão da
ilicitude pelo estado de necessidade. Luiz Regis Prado, nessa linha, acrescenta que a situação de perigo
de vida há que se revelar por meio de sintomas indiscutíveis e inequívocos de ameaça superveniente
de morte do paciente. Insiste que se trata de estado de necessidade justificante, sem referência à
autonomia ou ao consentimento para legitimar a abordagem, porque admite a licitude da intervenção
médica contra a vontade do paciente para salvar sua vida.

Pode-se afirmar, em resumo, que, no direito brasileiro, a tendência é compreender que (i) – se o
médico intervier sem o consentimento e não houver perigo de vida, haverá uma ilicitude; (ii) – se
houver perigo de vida, será estado de necessidade expressamente consagrado no artigo 146, § 3º, I;
(iii) – se a cirurgia salvadora for, por si própria, perigosa e não houver consentimento, a intervenção
será ilícita; (iv) – se a intervenção não trouxer perigo para a vida, o médico pode intervir contra a
vontade, desde que haja risco de morte se a ação não for praticada.

Se sobrevier lesão em cirurgias não autorizadas por quem tem capacidade e condições de fazê-lo, a
lesão deve absorver a coação, caso contrário, se for bem-sucedida, apenas haverá o constrangimento
ilegal, desde que é mais adequado o entendimento de que a melhoria do estado de saúde não pode ser
considerada como um dano à integridade física da pessoa.

Por fim, quer-se ressaltar que a análise da aplicação do tipo contido no artigo 146, em face das
intromissões desautorizadas, trata-se de uma forma de juridificação que seria mais bem resolvida com
a criação de tipo específico para tanto.

A criminalização poderia também ser realizada fazendo-se a subsunção à figura das lesões corporais,
na qual o dissenso fosse compreendido como elemento presumido do tipo. Haveria, no entanto,
dúvidas quanto aos ganhos, haja vista que o bem jurídico protegido, nesse caso, não é a autonomia.

Substituir, na figura penal, o interesse protegido com o fim de possibilitar a punição do fato, caminha
no sentido contrário àquele que recorre à função limitadora do bem jurídico para legitimar o Direito
Penal contemporâneo, reduzindo a possibilidade de intervenção estatal na esfera de liberdade da
pessoa.
Talvez a criminalização, através de tipo próprio, da conduta médica não seja o primeiro recurso a ser
buscado, podendo-se desejar formas mais adequadas e menos onerosas de intervenção que desvelem
possibilidades de participação do grupo médico como exemplo de iniciativa que concretize os ideais
de alteridade e solidariedade na assistência ao paciente e/ou a sua família.

A incerteza das interpretações tem conduzido a deliberadas abstenções de agir, mesmo diante de uma
situação de perigo para a vida porque o médico poderia, no caso específico, ser processado por
constrangimento ilegal ou, em outra direção, como autor de homicídio ou lesão por omissão, já que era
garantidor.

OMISSÃO IMPRÓPRIA, OMISSÃO DE SOCORRO, ORTOTANÁSIA, EUTANÁSIA PASSIVA

O artigo 13, § 2º, do Código Penal brasileiro baseia-se na teoria formal do dever jurídico de agir,
apontando que a fonte de tal dever compete a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou
vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu
comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

Esse conteúdo se apoia, legitimamente, na expectativa social, na confiança em torno do papel que
indivíduos exercem socialmente.

O vínculo legal ou de proximidade com uma pessoa gera uma expectativa de especial solidariedade
por parte de outras. Os chamados garantidores assumem, diante da sociedade e como esta espera, a
responsabilidade que lhes é confiada para asseverar a segurança de certas pessoas.

Ontologicamente, os crimes comissivos por omissão constituem-se em delitos omissivos dos quais
apresentam todas as características. Transformam-se em comissivos exatamente pelas condições
pessoais do sujeito que violou o comando para agir com vistas a impedir o evento. Não tendo evitado
o resultado, responde por este. Aqui, há a imposição da solidariedade de um grupo de pessoas em
razão da obrigação de agir para evitar o resultado ilícito, decorrente de laços reconhecidos pela norma
jurídica.

Nesse conjunto de pessoas, está situado o médico que tenha consentido em tratar o paciente, seja por
intermédio de contrato, seja por aceitação fática, ou ainda por estar em plantão hospitalar, o que
pressupõe sua disponibilidade para atender às demandas de saúde. A responsabilidade de impedir o
resultado decorre do estabelecimento dessa especial confiança na execução da ação esperada.
O imperativo, portanto, para que o sujeito aja na proteção de bem de terceiro baseia-se em um elenco
de expectativas criadas no âmbito das relações sociais que o direito procura assegurar, fortalecendo os
laços sociais.

Tal dever cria uma possível contradição: como respeitar a recusa do paciente à intervenção, se o
profissional tem o dever de agir para salvar o bem jurídico vida? Entende-se que, se o terceiro abdicar
da proteção, cessariam os deveres do garantidor, sem se considerar a expectativa comunitária sobre o
amparo que sua presença representa. Ocorreria, aqui, o que se chama de decaimento do dever de
socorro, ou melhor, a conduta de autoimolação da vítima romperia a relação de garantia.

A resposta não é simples no que diz respeito aos médicos, na medida em que a recusa do paciente
implica falta de consentimento para agir e porque o vínculo estabelecido não consiste em contrato
bilateral, mas resulta de uma valoração social, a qual, em tese, não se esgota no âmbito da vontade
daquele que renuncia. Há um substrato social material que alicerça a relação jurídica.

O médico torna-se responsável pelos cuidados devidos ao paciente em razão de contrato ou de


aceitação fática de dever correspondente ao pacto celebrado, para alguns. Não interessa, ao Direito
Penal, que o contrato seja formalmente perfeito, bastando a assunção dos deveres dele decorrentes, o
que gera a confiança no cumprimento das obrigações.

O fundamento material para alicerçar o dever de proteção consiste “no domínio sobre o desemparo ou
vulnerabilidade da vítima”, conforme Schunemann. O telefonema ou outro contato que prometa a
presença do médico, afinal não cumprida, impede, tão só, que sejam buscados recursos alternativos, o
que pode dar causa a um crime de omissão de socorro.

Diferentemente do crime omissivo próprio (omissão de socorro, por exemplo), para o qual não se
exige resultado naturalístico, no omissivo impróprio é necessário que ocorra uma lesão efetiva ao bem
jurídico. No primeiro, procura-se estimular o dever geral de solidariedade que, uma vez não cumprido,
pode pôr a vida ou a saúde de alguém em risco, bastando a omissão da conduta ordenada para sua
consumação.

A omissão do profissional médico pode também vir a constituir um crime de homicídio pela falta de
prestação de assistência médica devida e adequada em face da qual a vida vem a ser encurtada. Assim:
“Comete homicídio culposo e não omissão de socorro o médico plantonista que, negligenciando no
atendimento ao paciente, com o qual sequer manteve contato, limitando-se a receitar-lhe medicamento
por intermédio da enfermeira, contribui eficazmente para sua morte” (TACrSP, RT 521/432).
Nas condutas restritivas, conforme Villas-Boas, o que orienta a ação do médico não é o desejo de que
o paciente morra, mas o de abreviar o sofrimento. No entanto, há que se acrescentar a esse argumento
que, na eutanásia passiva, o paciente poderia sobreviver por mais tempo, submetido a
meios proporcionais e indicados para manter sua vida.

A eutanásia por omissão (passiva) aproxima-se da ortotanásia, permitindo que os julgadores e autores
mais liberais, com o fim de buscar a impunidade para o agente, interpretem certas ações que resultam
no encurtamento da vida como sendo forma legítima de proporcionar a morte a seu tempo.

Em ambos os casos, há uma inação, mas com repercussões diferentes sobre o valor vida: uma
reduzindo-a, quando era possível prolongá-la; e outra, uma abstenção de intervenção em respeito à
vida que termina. Destaque-se, porém, que em princípio há um dever de salvar a vida e que haverá
homicídio por omissão se o tratamento for interrompido contra a vontade do paciente ou a inatividade
for de parentes, médico ou outros garantidores.

No plano objetivo, reitere-se que os elementos que distinguem uma forma de morrer de outra
(eutanásia por omissão e ortotanásia) são: a) o encurtamento da vida que ainda poderia ser vivida no
primeiro caso e a permissão para que ela se extinga no segundo; b) o uso de esforços inúteis que não
podem melhorar a vida do paciente terminal, para o qual há critérios médicos na restrição de cuidados
que podem ser interrompidos.

Ainda na seara do comportamento positivo ou negativo do agente, Roxin traz a questão do pedido de
analgesia e sedação que não é atendido ou não o é satisfatoriamente, apesar da solicitação do paciente.
De acordo com o autor, o fato constitui lesões corporais por omissão na medida em que o médico,
como garante, tem o dever de evitar sofrimentos desnecessários. Questão delicada diz respeito à
participação por omissão do médico diante do suicídio do paciente, uma vez que o primeiro ocupa a
posição de garantidor com relação à vida e à saúde do segundo.

Há também a eutanásia chamada de duplo efeito quando praticada com o uso de medicação para dar
conforto, sem intenção de abreviar a vida. O duplo efeito é também conhecido como eutanásia indireta
que afasta o tipo (ação socialmente adequada ou consentimento que exclui o tipo) porque visa mitigar
a dor, embora se saiba que pode levar também à morte. Nesse ponto, o consentimento do paciente, ou
da família por ele, é essencial porque é possível que ele prefira ter uma vida com sofrimento, porém,
mais longa.
O conhecimento de uma técnica conforme legis artis que não é usada, voluntariamente, por
negligência, constitui outra forma de crime, que pode até mesmo ser doloso, dependendo das
circunstâncias. Nesses casos, o consentimento do paciente não afasta a tipicidade.

Todo o movimento pró-autonomia conduz inexoravelmente para o suicídio assistido e para a


eutanásia, consideradas formas piedosas de o profissional médico evitar uma morte com sofrimentos
prolongados, se assim desejar o paciente.

A autodeterminação do paciente tem, nesse espaço, precedência sobre qualquer outro valor moral,
produzindo, na sua relação com o médico, uma completa desconfiguração de objetivos e de
sustentação ética. O médico é convocado pelo enfermo, para o provocar ou para cooperar com uma
morte rápida e sem dores quando a vida é penosa para ser vivida.

A dissociação entre ética e direito permite que nem tudo que é licito seja também ético, o que não
significa, porém, que devam ser estimuladas contradições entre os dois conjuntos de preceitos, para
não enfraquecer a efetividade da lei, uma vez que seria difícil o respeito a uma norma legal que
contrariasse os valores do grupo.

No plano ético, o respeito pelos membros da comunidade que têm perspectivas diferentes de vida não
só é possível, mas também devido. No ambiente jurídico, porém, não há um campo suficientemente
amplo para acomodação dos padrões variados, o direito é binário, como se tem realçado, trabalhando
com o código lícito/ilícito. A prática da eutanásia e do suicídio assistido ou é considerada como crime,
ou como uma conduta permitida, ainda que se imponha, para tanto, a consideração de algumas
circunstâncias.

É comum imputar-se a eutanásia e o suicídio assistido ao desenvolvimento tecnológico e científico


contemporâneos que permitem o prolongamento de formas de existência sem qualidade. Não deve
prosperar, no entanto, o argumento de que se põe um fim à vida para pôr um fim ao sofrimento como
uma alternativa necessária para um fato novo. Entende-se que é justo desejar uma morte sem
sofrimento e almejar que a medicina, que procura combater a doença, saiba reconhecer quando é
chegado o momento de oferecer apenas alívio para que o fim da vida se faça de forma serena.

Pode-se considerar, no entanto, que a sociedade do hedonismo não tenha reservado um lugar para o
sofrimento de qualquer natureza. A relação com a dor e a tristeza é de negação, o que se faz também
pela via da exclusão do triste e do doente. A cultura individualista impôs aos seus membros um tal
dever de ser feliz que parece não haver espaço para doentes, deprimidos, enfermos ou idosos.
Vulneráveis, enfim.
A eutanásia, na perspectiva legal tradicional, é um homicídio, mas deve-se admitir que o direito é,
sobretudo, orientado por valores e finalidades, o que permite dar variados sentidos para a mesma
conduta. Uma ação é interpretada e tratada pelo Direito Penal conforme os juízos positivados
constitucionalmente, sob a forma de princípios ou regras. Estes devem estar de acordo com a ética do
grupo. Pergunta-se, porém, até quanto?

O pluralismo vem pressionando em favor da legalização da antecipação voluntária da morte para que
os diferentes interesses possam ser realizados, embora se deva apontar que já existia projeto, nesse
sentido, no século dezenove, arrazoado pelo fundamento da falta de perigo e de intranquilidade do fato
para a sociedade.

É como se houvesse uma incitação dissimulada para que se conclua a vida, evitando-se transformar a
si próprio em um transtorno para a família, imerso em solidão social, porém oneroso para o Estado.

Já se disse que o Estado tem o dever de garantir a vida, mas não tem direitos sobre ela, sobretudo nos
modelos políticos liberais. Se o interesse pela vida acaba, decairia o dever do Poder Público em
protegê-la. Essa conclusão, correta do ponto de vista lógico, padece, porém, de considerações quando
a morte não for dada pelo próprio titular do bem jurídico.

A dor e o sofrimento são apresentados como as causas mais nobres para a decisão sobre a morte. Sem
dúvida, são argumentos fortes na medida em que esses fenômenos são rejeitados pelo ser humano em
razão do desconforto que produzem numa estrutura corporal aparelhada para sua percepção, o que
ocorre até mesmo como mecanismo de sobrevivência.

São causas indicadas para esse novo caminho para a morte, o medo crescente de perder o controle dos
cuidados no final da vida, de se tornar dependente de máquinas, de ser um estorvo emocional e
financeiro para a família, de sofrimento devido ao tratamento inadequado da dor e de outros sintomas.

A ideia da morte com dignidade, restrita a algumas situações de dor e sofrimento intenso, tem sido
ampliada. Ocorre que, por maiores que sejam os cuidados com a permissão operada pelo Direito Penal
para impedir a ampliação da licitude para a antecipação da morte, esta tem seguido o argumento da
ladeira escorregadia.

Habermas afirma, a propósito do alcance cada vez maior das tecnologias sobre a natureza humana
(intervenções sobre o material genético), que as intervenções legislativas “são tentativas vãs de se opor
à tendência de liberdade que domina a modernidade social”.
Amplia-se o tempo de vida para uma existência que não satisfaz ao indivíduo e que, por isso, deve ser
encurtada, como benefício pessoal e familiar.

O médico, convocado para dar a morte a quem lhe pede, cria uma situação cuja compreensão é difícil,
uma vez que altera profundamente o sentido de sua relação com o paciente, afetando a confiança que
se procura preservar no vínculo e no papel que, desde Hipócrates, foi chamado a desempenhar.

Não se pode negligenciar o fato de que a tendência (inevitável?) da cultura da morte voluntária é de
criar modelos para aqueles que integram a categoria de homo sacer nos grupos com tendência a
antecipar a morte, muitos até já sem qualquer competência para escolher. A opção pela decisão sobre
o momento da morte contribui, no entanto, para influenciar outros para aderirem ao mesmo caminho,
para dar fim a uma existência dolorosa.

O direito não deve reforçar a crise ética da sociedade contemporânea, disciplinando hipóteses de
legitimação da antecipação da morte na suposição de estar estabelecendo limites seguros, porque estes
são, fácil e rapidamente, ultrapassáveis. Além disso, as decisões pessoais e a legalização da omissão
em curar e da ação para matar criam uma cultura de filtragem que ganha espaço na sociedade, não se
esgotando no próprio enfermo.

Uma das consequências indesejadas do descarte de enfermos e vulneráveis é a quebra que pode
produzir nas ideias de alteridade e de solidariedade entre as pessoas, na medida em que os liberais
divulgam a crença de que a morte de uma pessoa é uma questão que apenas a ela diz respeito. Este é
um pensamento que tem seus equívocos porque uma ruptura no tecido social sempre deixa um vazio.

Podemos e devemos, na sanha de dispor da natureza, dela nos apropriando progressivamente, como
disse Habermas, ser privados de alguma coisa por bons motivos morais. Um bom motivo pode ser o
respeito e o cuidado com a vida alheia.

CONCLUSÕES

É prudente, porém, retomarem-se, neste instante, algumas ponderações feitas ao longo deste trabalho,
reforçando, sem hesitações, aquelas feitas contra uma compreensão de autonomia que rompe com a
solidariedade e ignora a responsabilidade para com o outro. Na relação médico-paciente, essa
afirmação é ainda mais enfática porque não é dado ao profissional da saúde se curvar à vontade do
paciente, embora o constrangimento, por sua vez, constitua crime.
A juridificação da relação médico-paciente representa um avanço importante para a vida civilizada,
possibilitando a inserção deste último no vínculo como sujeito de direitos. Apesar dos ganhos trazidos
pela regulação jurídica, não se tem obtido do direito uma situação que satisfaça plenamente ambas as
partes, inibindo-se, muitas vezes, soluções espontâneas e mais adequadas a cada caso.

A autonomia, na contemporaneidade, não corresponde mais à construção idealista de Kant, distante


das reais potencialidades humanas. Hoje, ela se traduz em capacidade de gerir o próprio destino, o que
envolve compreensão dos fatos e poder de decisão do indivíduo. Há uma tendência a aferir, dentre
estas capacidades, o potencial para tomar decisões racionais, o que, em razão do pluralismo social e
moral, não resulta em padrão único.

A noção de autonomia aproxima-se daquelas mesmas que fundamentam a culpabilidade, como o livre-
arbítrio, o poder agir de outro modo, a motivabilidade as quais, resultam do fato de nos
compreendermos como autômatos, embora sujeitos a coações internas e externas.

Ainda que se postule a absoluta autonomia, ela não é tão intangível que permita ao médico contemplar
a morte do paciente sem intervir para não contrariar sua vontade. Não é, tampouco, de tal
insignificância que autorize a intromissão caprichosa do mesmo profissional para decidir sobre sua
vida ou sua morte.

Em casos nos quais a vontade do paciente, mental e emocionalmente saudável, não se harmonizar com
as diretivas cientificas, ele não pode ser tratado coercitivamente ainda que corra risco de vida e mesmo
que a intervenção tenha forte probabilidade de êxito. As pessoas têm o direito de morrer em paz.
Reitere-se que esta hipótese não suprime a necessidade de colaboração comprometida de terceiros na
tentativa de obtenção de uma posição conforme a racionalidade do homem médio.

Entende-se, porém, que há uma linha tênue, difícil de se transformar em norma jurídica, entre a
prevenção de ações paternalistas (que podem ser uma expressão de cuidado e respeito ou de afronta à
individualidade do sujeito) e a mera passividade e indiferença em face de decisões trágicas do outro.

O Direito Penal tutela a autonomia, incriminando ações que constranjam os indivíduos a fazer aquilo a
que não são obrigados. A intervenção do médico no paciente, ora se abriga em tipos já existentes, ora
pressiona o processo de juridificação das relações médico-paciente através de novas figuras penais.

O Brasil, durante longo tempo, nem sequer cogitou sobre a criminalização da intervenção não
consentida, uma vez que os autores tradicionais consideram tais atos como exercício regular de um
direito ou como estado necessitado. Atualmente, admite-se que a prática da conduta realiza o tipo do
artigo 146 do Código Penal, cuja única referência explícita consta do inciso I, § 3º, do artigo 146,
autorizando a ação do médico desde que haja iminente perigo de vida. O dispositivo não se refere à
oposição à vontade, mas à falta de consentimento, o que gera dissenso quanto a sua aplicação.

A validade da anuência depende não só da autonomia de quem consente, mas também do


conhecimento do agente que atua porque o titular do bem assim permitiu. Dessa forma, o valor do
resultado desejado participa da legitimação da ação do “ofensor” e do tratamento que lhe é
dispensado.

A ausência de esclarecimento pode gerar, além da responsabilidade civil para o médico, também
responsabilidade penal. Da mesma forma, ocorrerá se a comunicação contiver erros ou se o
consentimento for obtido por coação.

É desejável que se restabeleça um nível de confiança saudável entre médico e paciente, abrindo-se
algum espaço para a beneficência – numa perspectiva hipocrática – e uma possível tomada conjunta de
decisão. Tal procedimento não afeta a autonomia, mas a legitima, possibilitando maior conhecimento
das circunstâncias.

Pode-se dizer que se estabeleceu, entre paciente e médico, uma nova relação que ganha espaço na
cultura contemporânea e favorece a abstenção da conduta deste em razão da incerteza das
interpretações. Diante de uma situação de perigo para a vida, o médico pode ser processado por
constrangimento ilegal ou, ainda, como autor de homicídio ou lesão por omissão, já que se trata de
garantidor.

Será, quase sempre, arbitrária, a tentativa de estabelecer limites morais e legais rígidos para situações
nas quais se pode aceitar o fim da vida dada a outrem, a seu pedido. Haverá frequentemente motivos
ponderáveis a serem processados no sentido de aceitação ou de recusa peremptória da legitimação da
eutanásia e do suicídio assistido.

Propõe-se que a interpretação da norma penal seja guiada pelo equilíbrio entre o respeito à autonomia
e o dever de proteção como expressão de solidariedade, o que pode contribuir para a coesão social e o
sentimento de pertencimento. A vida exige mais que a abstenção de violação da liberdade do outro,
cobra também solidariedade e partilha.

O processo civilizacional não deve renunciar a padrões éticos que sustentem uma forma de viver
inclusiva, recorrendo, com a aprovação do Estado, aos profissionais de saúde para dar fim à vida.

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