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Ricos e pobres
Esta é a situação de fundo, a situação sempre presente no nosso planeta. Não faz
as *manchettes* dos jornais. Ontem morreram pessoas de subnutrição e doenças
associadas e outras vão morrer amanhã. As secas, os ciclones, os terramotos e
as cheias ocasionais que ceifam a vida de dezenas de milhares de pessoas num
determinado lugar e de uma só vez são mais susceptíveis de ser notícia.
Aumentam muito a quantidade total de sofrimento humano; mas é um erro
presumir que, quando não se noticiam grandes calamidades, tudo vai bem.
O problema não é que o mundo não possa produzir o suficiente para alimentar e
abrigar a sua população. As pessoas que vivem nos países pobres consomem,
em média, 180 quilos de cereais por ano, ao passo que os Norte-_Americanos
consomem :, 900 quilos. A diferença provém do facto de, nos países ricos, a
maioria dos cereais se destinar aos animais, transformando-se em carne, leite e
ovos. Como este processo é extremamente pouco eficiente, as pessoas dos
países ricos são responsáveis pelo consumo de muito mais alimentos do que as
dos países pobres, que comem poucos produtos de origem animal. Se dei-
xássemos de alimentar os animais à base de cereais e de soja, a quantidade de
alimentos que assim se poupava, se fosse distribuída pelos necessitados, seria
mais do que suficiente para pôr fim à fome no mundo.
Estes factos sobre a alimentação dos animais não significam que podemos
facilmente resolver o problema alimentar mundial reduzindo os produtos de origem
animal, mas mostram que se trata essencialmente de um problema de
distribuição, e não de produção. O mundo produz alimentos suficientes. Acresce
que os próprios países mais pobres podiam produzir muito mais se usassem
técnicas agrícolas melhores.
Então, por que razão há tanta gente a morrer de fome? Os pobres não têm meios
para comprar os cereais produzidos nos países ricos. Os agricultores pobres não
podem comprar melhores sementes nem fertilizantes ou maquinaria para abrir
poços e bombear água. Só transferindo alguma riqueza dos países ricos para os
países pobres se pode alterar a situação.
Não há dúvida de que esta riqueza existe. Poderíamos contrapor ao quadro de
absoluta pobreza que Mc_Namara traçou um quadro de "absoluta abundância".
Os que vivem na abundância absoluta não são necessariamente ricos em
comparação com os seus vizinhos, mas são ricos à luz de qualquer definição
razoável de necessidades humanas. Significa isto que têm mais rendimento do
que aquele de que necessitam para proverem adequadamente a todas as
necessidade básicas da vida. Depois de comprarem (quer directa quer
indirectamente, através dos impostos) comida, casa, vestuário, serviços de saúde
básicos e ensino, os ricos absolutos escolhem a sua alimentação pelos prazeres
do paladar, e não para matar a fome; compram roupas novas para terem bom
aspecto, e não para combater o frio; mudam de casa para terem um ambiente
melhor, e não para se abrigarem da chuva, e, depois de tudo isto, ainda sobra
dinheiro :, para gastar numa aparelhagem sonora, em câmaras de vídeo e em
férias no estrangeiro.
Nesta fase não estou a fazer juízos éticos sobre a riqueza absoluta, mas apenas a
assinalar que existe. A sua característica definidora é um volume significativo de
rendimento, necessário para satisfazer as necessidades humanas básicas para si
e para a família. Por este padrão, a maioria dos cidadãos da Europa ocidental, da
América do Norte, do Japão, da Austrália, da Nova Zelândia e dos estados do
Médio Oriente ricos em petróleo são ricos absolutos. Citemos mais uma vez
Mc_Namara:
Se tudo isto são factos, não podemos deixar de concluir que, ao não contribuírem
mais, os habitantes dos países ricos estão a permitir que quem vive nos países
pobres sofra de pobreza absoluta, com a consequente subnutrição, problemas de
saúde e :, morte. Esta conclusão não se aplica apenas a governos. Também diz
respeito a todos os indivíduos abastados, pois cada um de nó tem a oportunidade
de fazer alguma coisa para combater esta situação; por exemplo, colaborar com
tempo ou dinheiro para organizações voluntárias como a Oxfam, Care, War on
Want, Freedom from Hunger, Community Aid Abroad, etc. Se permitir que alguém
morra não é intrinsecamente diferente de matar alguém, nesse caso parece que
somos todos homicidas.
Será este veredicto demasiado severo? Há muito quem o rejeite como
evidentemente absurdo. Será mais fácil considerá-lo uma prova de que deixar
morrer não pode equivaler a matar do que uma prova de que viver numa situação
abastada sem contribuir para uma organização de ajuda internacional é
eticamente equivalente a ir à Etiópia matar alguns camponeses. E não há dúvida
de que, posto desta forma abrupta, o veredicto é demasiado severo.
Há várias diferenças significativas entre gastar dinheiro em luxos em vez de o usar
para salvar vidas e em matar deliberadamente pessoas.
Em primeiro lugar, a motivação será normalmente diferente. Quem dispara
deliberadamente sobre alguém age para matar; é de presumir que queira que as
suas vítimas morram, devido a maldade, sadismo ou algum motivo igualmente
desagradável. Uma pessoa que compra uma nova aparelhagem deseja, como é
de supor, aumentar o seu prazer musical, o que não é, em si, uma coisa terrível.
Na pior das hipóteses, gastar dinheiro em luxos em vez de o dar é sinal de
egoísmo e de indiferença para com o sofrimento alheio, características que podem
ser indesejáveis, mas que não são comparáveis com a maldade efectiva ou
motivos semelhantes.
Em segundo lugar, não é difícil para a maioria de nós agir de acordo com uma
regra que proíbe matar pessoas; mas, pelo contrário, é muito difícil obedecer a
uma regra que nos obrigue a salvar o maior número de vidas que pudermos. Para
ter uma vida confortável ou mesmo luxuosa não é preciso matar ninguém; mas é
necessário deixar que morra alguém que poderíamos salvar, pois o dinheiro de
que necessitamos para viver confortavelmente podia ser doado. Assim, cumprir
em pleno a :, obrigação de não matar é muito mais fácil que cumprir na íntegra a
obrigação de salvar. Salvar todas as vidas que pudéssemos implicaria reduzir o
nosso padrão de vida ao mínimo essencial para nos mantermos vivos (3).
A obrigação de ajudar
*_Cuidar dos nossos*. A todo aquele que tenha trabalhado para aumentar o valor
da ajuda internacional se deparou o argumento de que devemos cuidar dos que
nos estão mais próximos, das nossas famílias e depois dos pobres do nosso país,
antes de pensarmos na pobreza dos países distantes.
Não há dúvida que preferimos instintivamente ajudar aqueles que estão perto de
nós. Poucas pessoas seriam capazes de ficar a ver uma criança a afogar-se; mas
muitas conseguem ignorar a fome em _áfrica. Porém, a questão não é o que :,
costumamos fazer, mas o que devemos fazer; e é difícil encontrar uma justificação
moral sólida para a perspectiva de a distância ou a condição de membro de uma
comunidade introduzir uma diferença crucial nas nossas obrigações.
Consideremos, por exemplo, as afinidades raciais. Será que as pessoas de origem
europeia devem ajudar os europeus pobres antes de ajudarem os africanos
pobres? A maior parte das pessoas rejeitaria esta hipótese sem pestanejar e a
nossa discussão do princípio da igualdade na consideração de interesses, no
capítulo 2, mostrou por que razão o devemos fazer; as necessidades alimentares
das pessoas nada têm a ver com a sua raça e, se os Africanos precisam mais de
comida que os Europeus, seria uma violação do princípio da igualdade na
consideração de interesses dar preferência aos Europeus.
O mesmo se aplica à cidadania ou à nacionalidade. Todos os países ricos
possuem alguns cidadãos relativamente pobres, mas a pobreza absoluta limita-se
em grande parte aos países pobres Aqueles que vivem nas ruas de Calcutá ou na
região árida do Sael, em _áfrica, encontram-se num estado de pobreza desconhe-
cido no Ocidente. Nestas circunstâncias, seria um mal decidir que apenas aqueles
que têm a sorte de pertencer à nossa própria comunidade partilhariam da nossa
abundância.
Sentimos as obrigações de parentesco com mais intensidade do que as de
cidadania. Que pais dariam a outra pessoa a sua última tigela de arroz se os seus
filhos estivessem com fome? Fazê-lo pareceria pouco natural, contrário à nossa
natureza como seres biologicamente evoluídos -- embora a questão de saber se
seria um mal ou não seja uma outra questão. Em todo o caso, não estamos
perante uma tal situação, mas perante uma em que os nossos filhos estão bem
alimentados, bem vestidos, com um bom ensino e agora gostariam de ter novas
bicicletas, uma aparelhagem ou o seu próprio carro. Nestas circunstâncias,
qualquer obrigação especial que pudéssemos ter para com os nossos filhos já foi
satisfeita e as necessidades dos estranhos exercem mais força sobre nós.
O elemento de verdade na perspectiva de que devíamos em primeiro lugar tomar
conta dos nossos reside na vantagem de um reconhecido sistema de
responsabilidades. Quando as :, famílias e as comunidades tomam conta dos seus
membros mais pobres, os laços de afecto e a relação pessoal atingem fins que, de
outro modo, exigiriam uma enorme burocracia impessoal. Daí que seja absurdo
propor que daqui para a frente nos consideremos igualmente responsáveis pelo
bem-estar de toda a gente em todo o mundo; mas não é isso que propõe o
argumento em prol da obrigação de ajudar. Aplica-se apenas quando existem
pessoas a viver num estado de pobreza absoluta e outros podem ajudar sem
sacrificar seja o que for de importância moral comparável. Permitir que alguém da
nossa família se afundasse na pobreza absoluta seria sacrificar algo de
importância comparável; e, antes de se atingir esse ponto, a ruptura do sistema de
responsabilidade familiar e comunitária seria um factor que faria o prato da
balança pender em favor de um pequeno grau de preferência pela família e pela
comunidade. Este pequeno grau de preferência, porém, é decisivamente
ultrapassado pelas discrepâncias existentes em riqueza e nobreza.
9
Os refugiados
O abrigo