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1 Opção cultural

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JORNAL OPÇÃO 43 Anos
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5 Entrevista | Gustavo Mesquita

6 “Gilberto Freyre foi central no amplo pacto político feito para


7 modernizar o Brasil”
8 08/04/2017 09:59
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10 Por Redação
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13 Edição 2178
14 1)Ganhador do 6º Concurso de Ensaios sobre Gilberto Freyre, pesquisador fala sobre o papel de
15 um dos maiores intelectuais brasileiros no processo de apresentação de um País que, apesar de
16 plural, era moderno
17 Ademir Luiz
18 Especial para o Jornal Opção
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20 Gustavo Mesquita, mestre em história
21 pela Universidade Federal de Goiás, venceu o 6º Prêmio sobre Gilberto
22 Freyre | Foto: Divulgação.

23 Gustavo Mesquita é um dos mais promissores jovens pesquisadores


24 brasileiros em ciências humanas. Atualmente finalizando doutorado em
25 História na Universidade de São Paulo (USP), ele venceu o 6º Concurso
26 de Ensaios sobre Gilberto Freyre com sua dissertação de mestrado
27 apresentada na Universidade Federal de Goiás (UFG), com orientação
28 do professor Noé Freire Sandes. Com o título “Gilberto Freyre e o Estado
29 Novo: Região, Nação e Modernidade”, o trabalho será publicado pela
30 Editora Global. Nesta entrevista Gustavo Mesquita fala sobre a
31 importância do prêmio, a vida, a obra e algumas das polêmicas
32 envolvendo Gilberto Freyre, a recepção de suas ideias pelos movimentos negros e sua conturbada
33 relação com Florestan Fernandes, tema de sua tese. Pela visão privilegiada de Gustavo Mesquita,
34 pesquisador tanto de Freyre quanto de Florestan, poderemos esclarecer pontos de um dos maiores
35 “duelos de titãs” do cenário intelectual brasileiro.

36 2)Você venceu o 6º Concurso de Ensaios sobre Gilberto Freyre. O que significa esse prêmio de
37 repercussão nacional em sua trajetória intelectual?
38 Ainda não tenho uma noção clara o suficiente sobre o significado deste prêmio em minha trajetória.
39 Certo é que meu trabalho teve o reconhecimento da comissão julgadora. Foi reconhecido como o
40 melhor trabalho entre os inscritos no concurso. O que me dá mais orgulho é pensar que se trata de uma
41 dissertação de mestrado, desenvolvida no âmbito da Universidade Federal de Goiás instituição na qual
42 cursei a graduação e o mestrado em História. A meu ver, isso reforça a convicção de que a pós-
43 graduação, e a universidade pública como um todo, são fundamentais para o desenvolvimento social do
44 País, em termos do acesso democrático à educação, ciência e reflexão crítica. Aí está o significado mais
45 relevante que vejo sobre minha participação no 6º Concurso Nacional de Ensaios. Falo da imensa
46 importância que a universidade pública teve para minha formação intelectual, o que resultou na
47 conquista do prêmio. Sobre sua repercussão nacional, acho que a passagem do tempo me ajudará a
48 entendê-la melhor.
49 3)O ensaio premiado se intitula “Gilberto Freyre e o Estado Novo: região, nação e modernidade”,
50 que deve ser lançado pela Editora Global. O historiador Noé Freire Sandes, seu orientador
51 durante o mestrado, chama atenção para o fato de que seu trabalho aborda uma questão pouco
52 discutida entre os estudiosos da obra de Gilberto Freyre: a relação entre o sociólogo e o governo
53 Vargas. Em linhas gerais, quais seriam essas relações e como elas aparecem na obra de Freyre?
54 Depois que Vargas e seus correligionários deram o golpe de Estado, em 1930, Freyre acompanhou o
55 então presidente da província de Pernambuco, Estácio Coimbra, em seu exílio para a Europa. Eles
56 haviam estabelecido relações políticas cada vez mais estreitas na década anterior. Freyre era o chefe
57 de seu gabinete quando a revolução estourou. Astutamente, embarcou junto com Estácio em um navio
58 rumo ao autoexílio europeu. Desembarcou em Portugal, onde começou a pesquisa histórica,
59 antropológica, sociológica e geográfica que três anos depois resultaria no livro “Casa-grande & Senzala:
60 formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal”. Assim começam de modo intenso
61 as relações de Freyre com o regime instaurado por Vargas. Foram doze livros escritos entre 1933 e
62 1945, quando o regime finalmente caiu. Freyre apresentou uma interpretação da sociedade brasileira
63 diferente do que havia sido pensado por outros intérpretes. Afirmou a vantagem mundial da nossa
64 mestiçagem, ao contrário de representá-la por um viés negativo. Apontou para o futuro buscando
65 processos decisivos em nosso passado: a diversidade étnica, cultural e regional do País precisava ser
66 valorizada. O impacto dessas ideias sobre a elite dirigente do Estado Novo foi enorme. A maioria dos
67 ministros, dos secretários dos Ministérios, dos intelectuais e o próprio presidente da República
68 rapidamente reconheceu o projeto de Freyre e iniciou uma política cultural que valorizava o folclore e
69 outras tradições populares, aquelas mesmas que o sociólogo estudou em sua obra. Os usos de seu
70 pensamento não acabaram aí. Também a visão do Estado Novo diante da questão das disparidades
71 regionais foi influenciada por livros como “Nordeste” e “Região e tradição”, e uma nova divisão regional
72 foi realizada pelo recém-criado Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para solucionar
73 aquele problema.
74 Minha pesquisa sobre as relações de Freyre com o Estado Novo revelou um amplo pacto político para a
75 modernização do Brasil, sem que as tradições fossem apagadas de nossa memória. Bem ao contrário
76 desse possível esquecimento, juntos criaram uma identidade nacional poderosa até mesmo em termos
77 mundiais, pois, além de unir o povo à nação, permitia a apresentação do Brasil moderno ao mundo,
78 como um equilíbrio de antagonismos de raça, de classe e de região. Esse processo foi pensado por
79 Freyre em “Casa-grande & Senzala”, continuado em “Sobrados e Mocambos” e divulgado, sobretudo,
80 nos Estados Unidos, com suas conferências acadêmicas e textos em revistas internacionais a respeito
81 da originalidade da cultura brasileira. Acredito que sejam essas relações as que o professor Noé
82 apontou como questão ainda pouco discutida pelos historiadores.

83 4)Um dos focos de sua pesquisa são as relações de Gilberto Freyre com outros intelectuais
84 brasileiros, tais como Agamenon Magalhães, José Lins do Rego, Sérgio Buarque de Holanda,
85 José Olympio e Gustavo Capanema. Como Freyre se posicionava nesse cenário?
86 A amizade com certos intelectuais era essencial para que Freyre se inserisse com mais rapidez no
87 mercado de postos públicos, este espaço por onde os intelectuais foram cooptados pelo regime. O
88 sociólogo Sergio Miceli, em “Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil”, expôs de forma geral como se
89 deu a cooptação dos intelectuais pelo aparelho de Estado. Muitos assumiram cargos de confiança e de
90 direção nas instituições mais importantes do País e o prestígio veio como recompensa. Com Freyre não
91 foi diferente. Ele contou com o apoio de alguns de seus amigos para isso. O sociólogo não assumiu
92 cargos de direção no governo federal, como foi o caso de Carlos Drummond de Andrade e de outros
93 intelectuais, mas atuou diretamente na criação de instituições técnicas, dependentes da centralização
94 do poder, como o hoje conhecido Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e o
95 IBGE. Flagrei nos arquivos do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
96 Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas (FVG), onde fiz pesquisas para a dissertação,
97 negociações em torno do financiamento estatal das viagens de Freyre para o exterior (países da Améri-
98 ca Latina e da Europa). Eram viagens a serviço do governo brasileiro, negociadas em cartas
99 confidenciais entre o ministro da Educação, Gustavo Capanema, e o próprio sociólogo. Tamanha
100 evidência me mostrou um caminho pelo qual eu encontraria mais pistas sobre a colaboração de Freyre
101 com o Estado Novo. Sua atuação junto ao IPHAN e ao IBGE mostrou apenas a ponta do iceberg.
102 Depois de seguir adiante com a pesquisa nos arquivos do governo e de alguns intelectuais, descobri
103 que o sociólogo havia colaborado, de modo mais amplo, com a ideologia do nacionalismo, tão preciosa
104 para o regime quanto para ele próprio. Pude, então, investigar ainda mais sua rede de intelectuais no
105 Brasil, ou seja, aqueles com quem ele partilhava um projeto em comum. A colaboração com os
106 intelectuais vinculados ao Estado Novo se mostrou a nota mais característica nas relações de Freyre
107 com os outros intelectuais. O caso de Agamenon Magalhães foi uma exceção à regra: tratado como
108 comunista pelo governo de Pernambuco, Freyre passou por muitos atritos com Agamenon e terminou
109 preso por isso em 1942. O conflito entre eles não teve trégua nem mesmo quando o Estado Novo
110 chegou ao fim.
111 5)Você analisa a transição de Gilberto Freyre do antiliberalismo ao conservadorismo. Esse
112 processo possui um marco de ruptura, pessoal, político ou intelectual, ou foi um processo lento
113 e gradual?
114 A transição de Freyre para a ala conservadora começou quando a ditadura dava os primeiros sinais de
115 crise. Foi mesmo um processo gradual. O sociólogo deu várias conferências na Bahia em 1943 para um
116 público, digamos, diferente da elite intelectual vinculada ao regime, até então sua parceira
117 inquestionável. Escutaram suas palavras a favor da liberdade civil alguns estudantes universitários,
118 interventores do Nordeste (inimigos de Agamenon Magalhães) e militares de alta patente. A presença
119 de Nelson Werneck Sodré na conferência de Salvador foi marcante, pois resultou em muitos artigos na
120 imprensa de sua autoria a respeito da influência de Freyre sobre os baianos. A oposição do sociólogo à
121 ditadura crescia cada vez mais. Ele teve habilidade ao se afastar gradualmente de um presidente que
122 enfrentava dificuldades para se manter no poder. O clímax desta história se deu em 1945, na Praça da
123 Liberdade, Recife, lugar onde um grande protesto contra o regime estava acontecendo. Freyre era uma
124 das lideranças dos manifestantes. Acontece que a polícia pernambucana, atendendo às ordens de
125 Agamenon, cercou os manifestantes e tentou agredi-los com armas de fogo. Um manifestante caiu
126 morto ao lado de Freyre. Esse acontecimento marcou definitivamente a passagem do sociólogo para a
127 oposição ferrenha ao Estado Novo. O processo teve desfecho com sua eleição para deputado federal
128 pela UDN. Na Constituinte de 1946, surpreendentemente, Freyre assumiu um discurso mais reacionário
129 politicamente, defendeu posições mais conservadoras e atuou em prol da criação do Instituto Joaquim
130 Nabuco de Pesquisas Sociais, ainda hoje existente no Recife.
131 6)A primeira biografia de Gilberto Freyre foi lançada em 1944, escrita por seu primo Diogo de
132 Melo Meneses, com direito a prefácio apologético de Monteiro Lobato. Quem é o Gilberto Freyre
133 que emerge desse livro? Como essa figura se distingue do apresentado em trabalhos de
134 referência mais recentes, como “Gilberto Freyre, um vitoriano nos trópicos”, de Maria Lúcia
135 Garcia Pallares-Burke, de 2005?
136 A primeira biografia sobre Freyre o representou como principal cientista social do País, alguém que teria
137 as melhores ferramentas para conduzir a sociedade brasileira pelas águas turvas da modernidade. Ou
138 seja, Freyre, segundo seu primeiro biógrafo, seria herói nacional capaz de fazer nossa travessia do
139 passado, cheio de vícios, mas com virtudes preciosas, para o futuro pleno de brasilidade e originalidade.
140 O futuro teria sido projetado por Freyre para marcar a contribuição do Brasil para o mundo
141 contemporâneo. Daí Monteiro Lobato ter dito na biografia que o futuro seria o que Freyre dissesse.
142 Muito longe dessa heroicização absoluta e exagerada, o livro da historiadora Maria Lúcia Pallares-Burke
143 narrou momentos decisivos na trajetória do jovem Freyre, antes da década de 1930. Ela se preocupou
144 mais em narrar os trajetos intelectuais do sociólogo em suas viagens para Estados Unidos e Europa,
145 quando tinha apenas vinte e um anos de idade. Sem sombra de dúvida, os dois livros são muito
146 diferentes. O trabalho de Maria Lúcia nos mostra o quanto a História se desenvolveu de lá para cá.
147 Embora tenha um pecado de origem, por dizer que Freyre era um vitoriano – pois de vitoriano seu
148 pensamento nada tinha –, o livro de Maria Lúcia se mantém como uma boa fonte de estudos. Eu mesmo
149 conheci aspectos novos do movimento regionalista em Pernambuco nos anos 20 e 30 lendo o livro, sem
150 falar nas discussões sobre a passagem de Freyre pelas clássicas universidades inglesas, como Oxford
151 e Cambridge, quando a Inglaterra ressurgia depois da I Guerra Mundial. O livro é muito melhor que a
152 primeira biografia porque a pesquisa documental foi feita de forma séria, com análise crítica das fontes.

153 Outro estudo biográfico, entretanto, é visto atualmente pelos historiadores como mais esclarecedor do
154 que o de Maria Lúcia. Estou falando de “Gilberto Freyre: uma biografia cultural”, publicado em 2007
155 pelos uruguaios Enrique Rodríguez Larreta & Guillermo Giucci. O brilhante insight desses autores, ao
156 revelarem que os diálogos de Freyre com escritores e críticos literários norte-americanos, tanto da New
157 Poetry quanto dos imagistas, quando, jovem, estudava nos Estados Unidos, criou novas possibilidades
158 para entendermos os meios pelos quais Freyre desenvolveu uma prosa ao mesmo tempo literária e
159 científica, estética e conceitualmente original. O jornal “Folha de São Paulo” promoveu um interessante
160 debate entre os biógrafos no final de 2007. O choque hermenêutico ente as biografias foi o assunto da
161 polêmica. Esse choque diz respeito justamente às origens da linguagem de
162 Freyre. Ora, a ousadia de sua linguagem é um dos maiores segredos de sua
163 obra, e ainda está à espera de maior compreensão.

164
165 Gilberto Freyre foi, inquestionavelmente, um dos maiores intérpretes da história
166 do Brasil | Foto: Divulgação.
167 7)Gilberto Freyre tinha uma grande preocupação com o aspecto estético de sua escrita.
168 Construiu um estilo ensaístico muito característico, comumente chamado de “escrita sensorial”.
169 Em sua avaliação, qual a dimensão de Gilberto Freyre enquanto escritor? Ele tem lugar no
170 cânone literário brasileiro?
171 Há um antigo consenso de que o estilo de Freyre se aproxima mais da arte que da ciência; é mais
172 prosaico do que explicativo; mais romântico que realista. As biografias contemporâneas de Maria Lúcia
173 e Enrique & Guillermo enfocaram, cada um à sua maneira, a formação de Freyre como escritor, mais
174 que sociólogo, uma formação à altura da complexa composição de romances históricos. É bem
175 conhecida a crítica segundo a qual “Casa-grande & Senzala”, “Sobrados e Moucambos” e “Nordeste”,
176 para ficarmos com os livros mais conhecidos de sua lavra, pertencem à categoria de romance histórico.
177 Os livros então mais parecem romances sobre a vida privada na Colônia e no Império, devido à
178 transmissão de lembranças, imagens e sentimentos pelas figuras de linguagem usadas pelo autor.
179 A técnica de exposição livre, às vezes literária, outras vezes científica, característica do ensaio, foi
180 bastante utilizada por ele em outros livros, como “Guia prático, histórico e sentimental da cidade do
181 Recife”, de 1934, ou então “Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste
182 do Brasil”, de 1939, ou ainda “Assombrações do Recife velho: algumas notas históricas e outras tantas
183 folclóricas em torno do sobrenatural no passado recifense”, de 1955. Freyre surge nas obras citadas
184 como ensaísta que não abria mão de sua técnica, de sua linguagem. Houve o contrário disso. Polímata,
185 ele se lançou nas artes do desenho, da pintura, da fotografia, da poesia e do romance, combinando-as
186 com as Ciências Sociais. Seus livros trazem uma prosa que seduz o leitor, sugando-o para o encanto
187 estético de suas histórias. Com tamanho ecletismo podemos dizer que sua obra tem lugar no cânone
188 literário brasileiro. Basta pensarmos no marco do regionalismo, cujas obras mais marcantes foram
189 escritas nos anos 30 e 40, por escritores como José Lins do Rego, Jorge Amado e Raquel de Queiroz,
190 além de Freyre.

191 8)Gilberto Freyre é um dos intelectuais brasileiros mais respeitados internacionalmente. Apesar
192 disso, já houve campanhas, tanto em vida quanto após sua morte, para bani-lo de nosso cenário
193 intelectual. O que motivou essa reação tão belicosa?
194 É preciso esclarecer este ponto nebuloso. A emergência das universidades brasileiras nos anos 30 e a
195 posterior ascensão dos chamados sociólogos profissionais, capitaneados por Florestan Fernandes,
196 implicaram tentativas de superação dos intérpretes do Brasil, especialmente dos que não se inseriram
197 na universidade. O grupo de Florestan, aguerrido e enraizado na Universidade de São Paulo, criticou
198 tanto a forma quanto o conteúdo da obra freyriana em importantes livros e revistas das décadas de 50 e
199 60. Isso mesmo, a obra inteira foi atacada.
200 Freyre seria um aristocrata mais preocupado com a manutenção do status quo do que com a
201 democracia. Por trás da reação crítica estava a luta dos sociólogos paulistas por uma nova interpretação
202 das relações entre negros e brancos no Brasil, contrária à ideia de harmonia racial. Essa luta assumiu
203 uma rígida fórmula estrutural-funcional, em decorrência das tentativas de os sociólogos explicarem que
204 os negros, depois da Abolição, continuaram sendo uma minoria excluída da democracia. Começaram, a
205 partir desta luta, a constituir um projeto diferente para o País: o entendimento do racismo e os direitos
206 civis dos negros, tal qual acontecia nos Estados Unidos. Um forte choque entre projetos foi o que
207 aconteceu depois que os militares assumiram o poder em 1964. Tanto é que a obra-prima de Florestan,
208 “A Integração do Negro na Sociedade de Classes”, foi publicada no mesmo ano do golpe militar.
209 Florestan foi o primeiro a afirmar neste livro que Freyre seria o ideólogo da democracia racial brasileira.
210 O País viveu tempos de violência e repressão até meados dos anos 80, e Freyre foi associado pelos
211 sociólogos acadêmicos ao autoritarismo dos militares. Sua obra era pouco lida e discutida nas
212 universidades brasileiras, até que um movimento contrário começou a tomar forma no horizonte dos
213 intelectuais.

214 9)A despeito dessa má vontade, nos últimos anos tem havido um resgate sistemático da imagem
215 e do pensamento de Gilberto Freyre. Diversas pesquisas acadêmicas foram realizadas ou estão
216 em andamento. Livros, artigos e estudos biográficos de fôlego foram lançados. O que motivou
217 essa revitalização?
218 Como disse anteriormente, creio que essa discussão está assentada em diferentes tradições
219 intelectuais da História e das Ciências Sociais feitas no Brasil. O marco de referência para a
220 revitalização foi o espetacular ensaio de Ricardo Benzaquen de Araújo, “Guerra e Paz: Casa-grande &
221 Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30”, publicado em 1994. “Guerra e paz” renovou a leitura
222 que há décadas a maioria dos leitores universitários fazia da obra-prima de Freyre. Repensou não só o
223 lamarckismo e a hybris na visão do sociólogo sobre a sociedade colonial, como apontou de maneira
224 pioneira algumas consequências de “Casa-grande & Senzala” para a ideia que os homens de 1930
225 faziam sobre nossa mestiçagem. O país havia se livrado do flagelo da ditadura militar e encontrava-se
226 numa democracia em crescimento na primeira metade dos anos 90. O livro, nesse contexto, permitiu
227 uma grande mudança no eixo de reflexão dos pesquisadores e estimulou a renovação historiográfica.
228 As novas perguntas passaram a ser mais diversas, contemplando desde as origens do estilo original e
229 da forma ensaística do sociólogo, aos efeitos políticos de suas ideias para a construção nacional. Antes
230 mesmo dos anos 90, Elide Rugai Bastos fez em sua tese de doutorado uma leitura interna dos livros de
231 Freyre, lançando luz sobre suas principais ideias. Organizou e analisou em linguagem acadêmica um
232 conjunto de temas candentes, comuns à sequência composta por “Casa-grande & Senzala”, “Sobrados
233 e Mucambos” e “Nordeste”. A tese de Elide foi outra contribuição para os novos estudos freyrianos,
234 dando-lhes sentido político: a debilidade das famílias burguesas em ascensão nos anos 30. O problema
235 é que a tese foi publicada em livro só em 2006. Ambos os livros são simplesmente leitura obrigatória
236 para os especialistas na obra freyriana e recomendável para quem apenas tem interesse em saber mais
237 sobre o assunto. Eu mesmo tenho atuado mais na segunda corrente, mas admiro muito a linguagem de
238 “Guerra e paz”. Soube que Ricardo faleceu recentemente. É uma perda grande demais para o
239 pensamento brasileiro. A vida, contudo, tem de seguir. Inclusive é uma vontade minha investigar a
240 influência de “Casa-grande & Senzala” sobre a modernização de Goiás durante os anos de chumbo da
241 ditadura militar. Espero um dia poder realizar essa vontade.
242 10)Um dos mais importantes intelectuais brasileiros contemporâneos de Gilberto Freyre foi
243 Florestan Fernandes, seu atual objeto de pesquisa. As relações entre Freyre e Florestan são
244 objeto de muita especulação. Variam de declarações de respeito mútuo até suspeitas de boicote
245 deliberado. É possível esclarecer isso? A partir de seu ponto de vista privilegiado, como vê essa
246 questão?
247 Tenho uma leitura sobre essa polêmica que alguns podem discordar. Um baluarte do pensamento
248 brasileiro nos anos 50, Freyre precisava ser demonizado por Florestan e seus discípulos para que seu
249 modelo científico de Sociologia ganhasse força. Mas Florestan não era ingênuo e respeitava a obra
250 freyriana até certo ponto. No livro “O Imperador das Ideias: Gilberto Freyre em questão”, organizado por
251 Joaquim Falcão, foram reveladas cartas em que Florestan convidou Freyre para participar das bancas
252 de doutorado de Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Mas o sociólogo de Apipucos recusou
253 ambos os convites em tom respeitoso. Parece que não tinha interesse em responder às críticas dos
254 acadêmicos da USP.
255 Sinais de respeito mútuo como esses existiram além dos anos 60, muito embora a influência da obra
256 freyriana continuasse a diminuir nas universidades, então o lugar privilegiado da reflexão científica da
257 Sociologia. A perda da influência acontecia só nas universidades, é bom ressaltar, porque Freyre
258 aumentou seu poder político depois do golpe militar. Foi convidado para ministro da Educação, mas
259 recusou. Aceitou fazer parte do Conselho Federal de Educação e a partir das diretrizes do Conselho
260 continuou a exercer influência sobre a educação brasileira. Assim chegamos aos marcos de referência
261 mencionados anteriormente, ao longo das décadas de 80 e 90, quando a obra de Freyre recebeu outros
262 olhares.

263 11)Gilberto Freyre e Florestan Fernandes estudaram a cultura negra no Brasil. Grande parte do
264 movimento negro sempre teve grandes reservas ao pensamento de Freyre, destacadamente
265 quanto a sua noção de democracia racial. Florestan, por outro lado, costuma ser festejado. O que
266 distingue a visão de cada um sobre o tema? Há algum ponto de convergência ou são
267 absolutamente díspares?
268 Há um olhar interessante sobre essa questão no livro mais recente da historiadora Elizabeth Cancelli, “O
269 Brasil e os outros: o poder das ideias”. Ela estudou a formação dos pensamentos de Freyre e Florestan
270 ao mesmo tempo. Fez isso de maneira brilhante, por meio dos diálogos intelectuais de ambos os
271 pensadores com correntes de pensamento internacionais. Diálogos intelectuais são responsáveis pela
272 formação de qualquer pensador, pela forma final assumida em seu pensamento ao recriarem as ideias
273 nas quais acreditam. Com os cientistas sociais não é diferente. Diferentes redes intelectuais se
274 expandiam no mundo inteiro durante a II Guerra Mundial. Freyre se formou em diálogo com uma,
275 Florestan com outra. Ambas se desenvolveram, antes da guerra, mais nos Estados Unidos que na
276 Europa.
277 A rede de Florestan era estritamente científica, sociológica, composta pelos líderes da Escola de
278 Chicago, como Robert Park, Franklin Frazier, Herbert Blumer, entre outros. Florestan se formou lendo
279 as obras desta escola mais que qualquer outra coisa. Sua formação chegou ao ponto alto com a leitura
280 de “An American Dilemma: The Negro Problem and Modern Democracy”, publicado em Nova York, em
281 1944, por Gunnar Myrdal. Estas obras davam um sentido para a questão racial completamente diferente
282 do sentido que Freyre pensava e desejava para o Brasil. Que sentido é esse? Estou falando do
283 antirracismo, de uma agenda liberal e antirracista que buscava a integração do negro no mercado de
284 trabalho. Florestan selou um pacto com os desenvolvimentistas norte-americanos, os quais criaram a
285 agenda liberal, e a introduziu no Brasil. Freyre havia se formado a partir de diálogos intelectuais
286 diferentes dos de Florestan, muito mais artísticos e literários. O pensamento de um sobre o negro é
287 água, o do outro é óleo, diametralmente opostos. Não se misturam e não encontram pontos de
288 convergência. Aprofundo esse tema em minha tese de doutorado, sob o título de “Florestan Fernandes
289 e o antirracismo nos Estados Unidos e no Brasil, 1941-1964”.

290 12)Seria te colocar numa fogueira perguntar qual dos dois está certo?
291 Sua pergunta de fato me colocou na fogueira, pois não há qualquer margem para consenso em
292 nenhuma instância do País, nem entre nossos ativistas atuais, nem entre nossos governantes, muito
293 menos entre nossos intelectuais. O negro ainda sofre discriminação?
294 Acredito que sofra. Continua sofrendo de forma não explícita. Florestan estava parcialmente certo em
295 seu estudo do caso particular do Sudeste em termos de Brasil, visto que a região, sobretudo o estado
296 de São Paulo, foi a parte do país em que a industrialização se processou mais intensamente.
297 Vertiginosamente, diria eu. Penso que a maioria dos negros não tinha as mesmas condições que os
298 brancos para competir pelos melhores postos de trabalho depois da Abolição. Mas é preciso cuidado
299 para não vitimizarmos os negros, ou seja, vê-los apenas como oprimidos, uma minoria populacional
300 incapaz de participar da vida social e da cultura no Brasil.

301 Um dos erros de Florestan foi exagerar nesse aspecto, embora sua análise tenha certo grau de
302 verdade. Pois havia no fim do século 19 e no começo do 20 uma elite negra cujo surgimento se deu ao
303 longo do oitocentos. Sabemos muito pouco sobre o discurso e a ação dessa elite. Houve durante um
304 momento o apagamento de sua história. Um dos primeiros a criticar a interpretação de Florestan, Ianni e
305 Fernando Henrique Cardoso foi o historiador Sidney Chalhoub, em “Visões da liberdade”, de 1990. Ele
306 disse, em resumo, que a teoria do escravo-coisa, do escravo ceifado de discurso e de ação, é
307 insuficiente para entendermos a história negra no Brasil. Então é preciso reconhecermos os exageros
308 do grupo da USP, que foram inspirados em reflexões norte-americanas sobre o problema do negro em
309 terras estadunidenses. Freyre, por sua vez, continua atual. Excetuando sua ideia de que não há
310 discriminação racial entre nós, sua interpretação de nossa cultura híbrida, da formação da família
311 patriarcal e das tradições brasileiras, ainda explica muita coisa.

312 *Ademir Luiz é escritor, doutor em História e professor da Universidade Estadual de Goiás
313 (UEG)
314 https://www.jornalopcao.com.br/opcao-cultural/gilberto-freyre-foi-central-no-amplo-pacto-
315 politico-feito-para-modernizar-o-brasil-91433/

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