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DOI-Codi - O Porão da Ditadura Revisitado

Memorial, visitação monitorada e documentário reconfiguram imagem e espaço do antigo


órgão da repressão

Por Sérgio Barbo

“Você sabe onde está?”, foi a primeira pergunta feita ao então estudante de Geologia Adriano
Diogo ao chegar ao pátio da 36ª Delegacia de Polícia de São Paulo, em março de 1973. “Na
antessala do inferno”, foi a resposta dada ao jovem pelo Major Brilhante Ustra, o comandante
do DOI-Codi por quatro anos, herói de Bolsonaro e Mourão.

Alojado nos fundos da delegacia, em área cedida pelo governo estadual, o Destacamento de
Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna foi o principal órgão de
repressão da ditadura civil-militar.

“Casa da Vovó”, “Hotel Tutóia”, “Hospital” e “Açougue” eram outros codinomes usados pelos
agentes do Estado para definir o local. “Ali militares e policiais trabalharam lado a lado durante
os anos que muitos deles hoje consideram memoráveis. Oficiais transformavam-se em
‘doutores’ e delegados em ‘capitães’. Havia outros códigos naquele lugar: ‘clínica-geral’,
‘clientes’, ‘pacientes’, ‘paqueras’, ‘cachorros’ e, dependendo de que lado se estava do muro,
torturadores e terroristas”, descreve o livro A Casa da Vovó, de Marcelo Godoy.

A declaração do ex-deputado estadual Adriano Diogo foi dada durante uma visitação às antigas
dependências do destacamento, no bairro da Vila Mariana. Como medida de resgate da
memória do espaço, mensalmente ocorrem visitas mediadas pelo Núcleo de Preservação da
Memória Política, que contam com a participação e depoimentos de ex-presos políticos. Um
dos depoentes, por sinal, confessou ainda se abalar ao ver um cachorro sendo puxado pela
coleira: “recordo o que fizeram comigo”.

A depender da disposição de dois grupos de ativistas, relatos como esses não serão
esquecidos. Coordenado pela historiadora Deborah Neves, o Grupo de Trabalho Memorial
DOI-Codi, formado por representantes de ONGs, universidades e ex-presos políticos, prepara
terreno para a criação de um memorial no local. Enquanto a proposta não sai do papel, um
projeto da Associação Brasileira de Imprensa, organizado pelos jornalistas Ivan Seixas e Moacir
Oliveira, produz um memorial virtual a ser lançado em agosto. Ex-militante, Ivan conhece bem
as instalações: ele foi preso ali aos 16 anos.

Oportunamente, em momento de retomada de discussões e comissões voltadas à ditadura e


anistia, um documentário parcialmente filmado nas dependências do DOI e lançado em abril,
Memória Sufocada, projeta nova luz sobre o tema, reconstruindo o passado por meio de
imagens do período e o associando ao presente. Não à toa, o título do documentário faz
alusão ao livro A Verdade Sufocada, a controversa biografia de Brilhante Ustra.

Equiparado a marechal por Bolsonaro, Ustra foi o primeiro militar condenado pela Justiça pela
prática de tortura, em 2008. Em janeiro, três ex-delegados do DOI-Codi foram condenados a
pagar R$ 1 milhão, cada um, por crimes na ditadura – fato raro que indica ocasião propícia a
revisões e reparações históricas.
Passado, Presente e Futuro da “Casa da Vovó”

Fundado clandestinamente em julho de 1969 como Operação Bandeirante (Oban), financiado


por empresas nacionais e multinacionais, FIESP, bancos e pelo então prefeito Paulo Maluf –
que forneceu instalação elétrica e asfaltamento do pátio e ruas adjacentes –, o órgão foi
oficializado pelo II Exército como DOI-Codi no ano seguinte, mesmo período em que foram
criadas a Polícia Militar e ROTA.

Tecnicamente, funcionava como centro de inteligência, busca e captura de dissidentes


políticos. Mas, segundo relatório confidencial do Exército, hoje conservado pelo Arquivo
Nacional, até dezembro de 1974 morreram ali 50 pessoas. Nos anos 1970, abriu filiais em
outros estados, reduziu atividades gradativamente e fechou oficialmente em 1991, meses após
a abertura da vala clandestina do cemitério de Perus, destino de corpos de vítimas de ações do
DOI-Codi e do DOPS.

Como é possível notar nas visitas monitoradas pelo Núcleo Memória, as salas de interrogatório
(e tortura) estão relativamente conservadas, portanto, ainda lúgubres. Por outro lado, as celas
na delegacia, inclusive a solitária, transformaram-se em escritórios. A casa onde o “Doutor
Tibiriçá”, o Major Ustra, vivia com a família é agora um depósito de materiais.

“A filha dele andava por aqui e brincava com o pau-de-arara”, relembra Adriano Diogo,
referindo-se ao instrumento de flagelo. Outras crianças foram levadas ao órgão por Ustra,
como os filhos de Amélia Teles, que viram a mãe e o pai após sessões de tortura. Tanto para o
antigo diretor do Núcleo, Ivan Seixas, como para o fundador Maurice Politi, não havia porões
da ditadura. “As coisas aconteciam abertamente, na luz do dia”, relata Politi, ex-militante do
setor de logística da Aliança Libertadora Nacional (ALN).

Em 2014, o prédio foi tombado a pedido de Ivan, cujo pai foi executado numa sala de
interrogatório. Ex-militante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), ele tornou-se
ativista de Direitos Humanos e um dos proponentes do Memorial da Resistência, o primeiro
dedicado à ditadura, na antiga sede do DOPS-SP.

Agora é a vez de um novo museu, porém, on-line. “No pedido de tombamento havia a
recomendação de criação de um memorial. Devido à demora do espaço físico, produzimos o
Memorial Virtual em Homenagem às Vitimas da Tortura”, esclarece. “Todo o espaço foi
fotografado, então o visitante poderá fazer um passeio virtual pelo ambiente”, diz ele, que
promete lançar o site em agosto.

Coordenadora do GT Memorial DOI-Codi, Deborah Nunes foi a relatora do pedido de


tombamento do prédio. Desde 2018, com apoio do Núcleo Memória e outras entidades, ela se
dedica a elaborar um centro de memória. “A tendência é manter o espaço como ele está, com
mínima intervenção e com a ideia que houve violação de direitos e cometimento de crimes
contra a humanidade”, conta. “Falta uma sinalização positiva do governo do Estado para a
implantação do espaço, mas os trabalhos do grupo estão avançados e, no segundo semestre,
devemos iniciar uma pesquisa de arqueologia forense para a possível identificação de vestígios
genéticos no edifício”.
Revisão Histórica

Lançado em abril, o documentário Memória Sufocada revisita o DOI-Codi, a ditadura e o


governo Bolsonaro. “O desejo de fazer um filme que mostrasse quem é o Coronel Ustra surgiu
em 2018, quando o ex-presidente foi eleito e seguiu enaltecendo a ditadura”, explica o diretor
Gabriel Di Giacomo. “Notei uma crescente relativização dos danos causados pelo golpe militar
de 1964. As narrativas recentes têm muitas semelhanças com o discurso daquele período”.

Entre imagens de João Goulart e Jair Messias, do golpe de 1964 e do impeachment de Dilma
Rousseff, o documentário exibe cenas da Comissão Nacional da Verdade, nas quais surgem
Brilhante Ustra, o delegado Aparecido Calandra, Adriano Diogo (presidente da Comissão
Estadual), Amélia Teles, Ivan Seixas, entre outros.

Em janeiro, Aparecido Calandra e outros dois delegados aposentados, Dirceu Gravina e David
dos Santos Araújo, foram condenados a pagar indenizações por crimes na ditadura. O TRF-3
reconheceu que os ex-agentes causaram danos à sociedade ao participar da tortura e morte de
25 pessoas, entre elas o jornalista Vladimir Herzog e o operário Joaquim Alencar de Seixas.
Segundo uma ação civil do Ministério Público Federal, de 2010, David dos Santos foi
responsável pela morte do pai e do estupro da irmã de Ivan Seixas.

“É obrigação fundamental à democracia fazer a condenação à ditadura, aos torturadores e a


prática de tortura, que ainda hoje ocorre, justamente por não terem sido condenados os
torturadores do passado”, considera Seixas.

Obliterada por seis anos, a reparação histórica retoma aos poucos seu curso. No final de
março, o deputado federal Ivan Valente, preso na ditadura, teve seu pedido de reparação
aceito pela Comissão de Anistia, juntamente com outros processos similares. Em 2022, seu
pedido de anistia foi indeferido pela comissão, composta então por militares e negacionistas.

Após ser encarcerado por quatro anos e expatriado em 1975, Maurice Politi, egípcio de
nascimento, recebeu o título de Cidadão Paulistano na Câmara Municipal, em abril. Nada mais
justo para quem foi impedido de adquirir a cidadania brasileira em 1970, exatamente por ter
sido preso pelos agentes do DOI-Codi.

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