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“Você sabe onde está?”, foi a primeira pergunta feita ao então estudante de Geologia Adriano
Diogo ao chegar ao pátio da 36ª Delegacia de Polícia de São Paulo, em março de 1973. “Na
antessala do inferno”, foi a resposta dada ao jovem pelo Major Brilhante Ustra, o comandante
do DOI-Codi por quatro anos, herói de Bolsonaro e Mourão.
Alojado nos fundos da delegacia, em área cedida pelo governo estadual, o Destacamento de
Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna foi o principal órgão de
repressão da ditadura civil-militar.
“Casa da Vovó”, “Hotel Tutóia”, “Hospital” e “Açougue” eram outros codinomes usados pelos
agentes do Estado para definir o local. “Ali militares e policiais trabalharam lado a lado durante
os anos que muitos deles hoje consideram memoráveis. Oficiais transformavam-se em
‘doutores’ e delegados em ‘capitães’. Havia outros códigos naquele lugar: ‘clínica-geral’,
‘clientes’, ‘pacientes’, ‘paqueras’, ‘cachorros’ e, dependendo de que lado se estava do muro,
torturadores e terroristas”, descreve o livro A Casa da Vovó, de Marcelo Godoy.
A declaração do ex-deputado estadual Adriano Diogo foi dada durante uma visitação às antigas
dependências do destacamento, no bairro da Vila Mariana. Como medida de resgate da
memória do espaço, mensalmente ocorrem visitas mediadas pelo Núcleo de Preservação da
Memória Política, que contam com a participação e depoimentos de ex-presos políticos. Um
dos depoentes, por sinal, confessou ainda se abalar ao ver um cachorro sendo puxado pela
coleira: “recordo o que fizeram comigo”.
A depender da disposição de dois grupos de ativistas, relatos como esses não serão
esquecidos. Coordenado pela historiadora Deborah Neves, o Grupo de Trabalho Memorial
DOI-Codi, formado por representantes de ONGs, universidades e ex-presos políticos, prepara
terreno para a criação de um memorial no local. Enquanto a proposta não sai do papel, um
projeto da Associação Brasileira de Imprensa, organizado pelos jornalistas Ivan Seixas e Moacir
Oliveira, produz um memorial virtual a ser lançado em agosto. Ex-militante, Ivan conhece bem
as instalações: ele foi preso ali aos 16 anos.
Equiparado a marechal por Bolsonaro, Ustra foi o primeiro militar condenado pela Justiça pela
prática de tortura, em 2008. Em janeiro, três ex-delegados do DOI-Codi foram condenados a
pagar R$ 1 milhão, cada um, por crimes na ditadura – fato raro que indica ocasião propícia a
revisões e reparações históricas.
Passado, Presente e Futuro da “Casa da Vovó”
Como é possível notar nas visitas monitoradas pelo Núcleo Memória, as salas de interrogatório
(e tortura) estão relativamente conservadas, portanto, ainda lúgubres. Por outro lado, as celas
na delegacia, inclusive a solitária, transformaram-se em escritórios. A casa onde o “Doutor
Tibiriçá”, o Major Ustra, vivia com a família é agora um depósito de materiais.
“A filha dele andava por aqui e brincava com o pau-de-arara”, relembra Adriano Diogo,
referindo-se ao instrumento de flagelo. Outras crianças foram levadas ao órgão por Ustra,
como os filhos de Amélia Teles, que viram a mãe e o pai após sessões de tortura. Tanto para o
antigo diretor do Núcleo, Ivan Seixas, como para o fundador Maurice Politi, não havia porões
da ditadura. “As coisas aconteciam abertamente, na luz do dia”, relata Politi, ex-militante do
setor de logística da Aliança Libertadora Nacional (ALN).
Em 2014, o prédio foi tombado a pedido de Ivan, cujo pai foi executado numa sala de
interrogatório. Ex-militante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), ele tornou-se
ativista de Direitos Humanos e um dos proponentes do Memorial da Resistência, o primeiro
dedicado à ditadura, na antiga sede do DOPS-SP.
Agora é a vez de um novo museu, porém, on-line. “No pedido de tombamento havia a
recomendação de criação de um memorial. Devido à demora do espaço físico, produzimos o
Memorial Virtual em Homenagem às Vitimas da Tortura”, esclarece. “Todo o espaço foi
fotografado, então o visitante poderá fazer um passeio virtual pelo ambiente”, diz ele, que
promete lançar o site em agosto.
Entre imagens de João Goulart e Jair Messias, do golpe de 1964 e do impeachment de Dilma
Rousseff, o documentário exibe cenas da Comissão Nacional da Verdade, nas quais surgem
Brilhante Ustra, o delegado Aparecido Calandra, Adriano Diogo (presidente da Comissão
Estadual), Amélia Teles, Ivan Seixas, entre outros.
Em janeiro, Aparecido Calandra e outros dois delegados aposentados, Dirceu Gravina e David
dos Santos Araújo, foram condenados a pagar indenizações por crimes na ditadura. O TRF-3
reconheceu que os ex-agentes causaram danos à sociedade ao participar da tortura e morte de
25 pessoas, entre elas o jornalista Vladimir Herzog e o operário Joaquim Alencar de Seixas.
Segundo uma ação civil do Ministério Público Federal, de 2010, David dos Santos foi
responsável pela morte do pai e do estupro da irmã de Ivan Seixas.
Obliterada por seis anos, a reparação histórica retoma aos poucos seu curso. No final de
março, o deputado federal Ivan Valente, preso na ditadura, teve seu pedido de reparação
aceito pela Comissão de Anistia, juntamente com outros processos similares. Em 2022, seu
pedido de anistia foi indeferido pela comissão, composta então por militares e negacionistas.
Após ser encarcerado por quatro anos e expatriado em 1975, Maurice Politi, egípcio de
nascimento, recebeu o título de Cidadão Paulistano na Câmara Municipal, em abril. Nada mais
justo para quem foi impedido de adquirir a cidadania brasileira em 1970, exatamente por ter
sido preso pelos agentes do DOI-Codi.