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Janeiro 2011 Revista Adusp

“Comandante Toledo,
presente!
Agora e sempre!”
Vanessa Silva e Pedro Estevam da Rocha Pomar
Jornalistas
Arquivo de família

O jornalista Joaquim Câmara Ferreira na década de 1950

Decorridos 40 anos desde o assassinato de Joaquim Câmara Ferreira, o “Comandante


Toledo” da Ação Libertadora Nacional (ALN), por agentes da Ditadura Militar implantada
em 1964, o Estado brasileiro concede anistia póstuma a esse antigo militante, que também
se destacou como diretor do jornal Hoje, do PCB, nas décadas de 1940 e 1950. Em meio às
homenagens organizadas por companheiros de militância e amigos, foi lançada a biografia
de Câmara Ferreira, O Revolucionário da Convicção

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23 de outubro de 1970. O Brasil mais de 70 mil requerimentos. Um O advogado Raphael Martinelli,


vive um dos períodos mais violen-tos deles foi apresentado pelo filho de que no passado militou no PCB e na
e obscuros da sua história. A equipe Câmara Ferreira, Roberto Cardieri ALN, considera que, apesar de ain-da
do delegado Sérgio Para-nhos Ferreira, hoje com 64 anos. ser um debate restrito, o resgate
Fleury, do famigerado DOPS-SP, O ministro da Secretaria Especial histórico tem ganhado força. A trans-
órgão de repressão política, captura de Direitos Humanos da Presidên-cia formação do DOPS é para ele — que
Joaquim Câmara Ferreira, então o da República, Paulo Vanucchi, abre preside o Fórum Permanente de Ex-
principal nome do grupo clandestino oficialmente a 46ª Caravana da Presos e Perseguidos Políticos do
de esquerda Ação Li-bertadora Anistia promovida pelo Ministério da Estado de São Paulo — um processo
Nacional (ALN), expo-ente da luta Justiça, ocasião em que enfatiza a importante na luta pela memória.
armada antiditatorial. Horas depois, importância da criação da Comis-são “Antes, vinham 40, 50 pessoas. Hoje
o corpo de Câmara Ferreira, o Nacional de Verdade, instituição que passam cerca de 7 mil por mês e é
“Comandante Toledo”, chega ao poderá “promover o impulso que importante, porque com a reforma dá
prédio do Instituto Mé-dico-Legal ainda falta ao nosso País para que o para ter boa noção de como era a cela
(IML), para reconheci-mento da judiciário brasileiro e setores em que ficávamos”.
família. A contextualização do momento
23 de outubro de 2010. Barbas e histórico em que viveram os mili-
cabelos brancos compõem o cená-rio tantes que hoje reclamam a revisão
Por unanimidade de seus
do evento realizado no prédio do da Lei de Anistia de 1979 é uma
antigo DOPS-SP, hoje transfor-mado membros, a Comissão de preocupação recorrente. O próprio
em Memorial da Resistência. Anistia declarou “o ministro Vanucchi reconhece que,
Durante a Ditadura Militar, cente-nas apesar do esforço de setores da so-
de militantes comunistas e in- jornalista e combatente, ciedade civil neste sentido, muitos
tegrantes de movimentos armados herói do povo brasileiro, brasileiros ainda desconhecem o que
foram encarcerados e torturados foi a Ditadura Militar e por que pes-
neste espaço, não por acaso escolhi- Joaquim Câmara soas morreram lutando contra ela.
do para a realização da cerimônia de Ferreira”, anistiado Em consonância com essa preo-
homenagem e de concessão da cupação, o voto da relatora do pro-
anistia ao “Comandante Toledo”, político post mortem cesso de anistia, Rita Maria Sipahi,
que em décadas de militância, no consistiu em um amplo dossiê, base-
Partido Comunista (PCB) e depois ado no trabalho do historiador Luiz
na ALN, dedicou sua vida a um da mídia entendam a importância de Henrique de Castro Silva, autor do
único ideal: fazer a revolução socia- completar essa justiça de transição”. livro O Revolucionário da Convicção:
lista no Brasil. Sobre os heróis anistiados, Va- vida e obra de Câmara Ferreira, rico
Durante o governo do presiden-te nucchi pondera: “O que eles que-rem em depoimentos de companheiros da
Lula da Silva foram criadas as de nós é que em um momento como ALN e registros oficiais da vida do
“Caravanas da Anistia”, que per- esse planejemos os passos de um Comandante Toledo, também
correm os Estados brasileiros com o Brasil melhor, um Brasil onde a conhecido como “o Velho”.
objetivo de resgatar histórias de luta tortura não siga existindo, em que os Por unanimidade de seus mem-
de personagens em sua maioria es- esquadrões da morte não sigam bros, a Comissão de Anistia decla-
quecidos pela historiografia oficial, e existindo”. Em referência à decisão rou “o jornalista e combatente, herói
conceder-lhes o reconhecimento e o do STF de anistiar os torturadores do povo brasileiro, Joaquim Câma-ra
pedido de perdão formal do Es-tado (vide Revista Adusp 45, p. 61), o Ferreira”, anistiado político post
brasileiro. Desde 2002, foram ministro declara que “a impunidade mortem: à família, amigos e demais
analisados pela Comissão de Anistia contamina nossa época”. presentes, “o Estado Brasileiro pe-

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de desculpas pelas atrocidades, pela
barbárie, pelas torturas que o Estado Quando Marighella
Brasileiro infligiu a Joaquim Câma-
ra Ferreira quando da sua prisão”. A retorna de Cuba disposto
declaração foi recebida por uma a criar a ALN, Câmara
longa e emocionada ovação daqueles
que com ele militaram: “Comandan- é talvez a principal
te Toledo: presente! Comandante To- liderança do PCB a apoiá-
ledo: presente! Agora e sempre!”
Luiz Silva esclarece que enquan-to lo nesse projeto. Romper
levantava a história de presos po- com “seu” partido, pelo
líticos em Volta Redonda para sua
pesquisa de pós-graduação, não ra-ro
qual lutara tanto, foi,
encontrava referências a Câmara segundo José Luiz Del
Ferreira. Porém, ao procurar apro-
fundar-se no conhecimento do per-
Roio, a decisão mais difícil
sonagem, deparava-se com o vazio de toda a sua vida
bibliográfico. Foi então que, ao in-
gressar no mestrado na Universidade José Luiz Del Roio
Federal do Rio de Janeiro, decidiu homenageá-lo e dar continuidade à bro de 1945 e janeiro de 1947.
escrever a biografia do líder comunis- sua luta”. Em janeiro de 1948, a tentativa
ta, lançada durante o ato político rea- José Luiz Del Roio, ex-militante do DOPS e da Força Pública de
lizado no Memorial da Resistência. do PCB e da ALN e ex-senador da invadir a oficina do jornal e apre-
A trajetória de “Toledo” é indisso- Itália pelo Partido da Refundação ender uma edição especial do Ho-je,
ciável da história do Brasil e da pró- Comunista (2006-2008), destacou comemorativa do aniversário de Luiz
pria esquerda brasileira. Nascido em em discurso no Memorial o fato de Carlos Prestes, foi rechaçada por
1913, filho de uma tradicional família que Câmara foi um grande jorna- Câmara, que — acompanhado de
de Jaboticabal (São Paulo), tornou-se lista. Dirigiu o diário Hoje, “jornal Noé Gertel e do deputado esta-dual
estudante de engenharia na Escola do povo a serviço da democracia”, Estocel de Moraes — resistiu
Politécnica da USP, mudando-se dois órgão do antigo PCB sediado na ca- à bala. Horas depois, acabou preso,
anos depois para o curso de filosofia. pital paulista, fundado em outubro de ao lado de dezenas de jornalistas e
Sua militância política inicia-se aos 18 1945 com o apoio do historiador gráficos, e permaneceu encarcerado
anos, quando ingressa na Juventu-de Caio Prado Júnior e de outros inte- por dois meses. Não foi a primeira
Comunista. A partir de então, seu ideal lectuais ligados ao partido. vez: em 1940, fora preso e brutal-
o moveu até 1970, quando foi No Hoje, na companhia de jor- mente torturado pela polícia de Fi-
eliminado pela truculência da Dita- nalistas como Noé Gertel e Jorge linto Müller, no Rio de Janeiro.
dura, aos 57 anos. Amado, Câmara levou adiante várias Luiz Silva define Câmara como
“Meu pai morreu lutando, mas batalhas contra o violento governo um “homem do aparelho”, que não
seus ideais, apesar de muito tempo do general Eurico Gaspar Dutra, e assinava seus textos, era avesso a
ter se passado, se concretizaram”, registrou o forte movimento grevista fotos e cuja participação política se
pensa sua filha, Denise Fraenkel- do operariado brasileiro iniciado ao dava nos bastidores do partido:
Kose, que vive na Alemanha desde final da Segunda Guerra Mundial. “Nunca foi o homem das relações
1969. “A sua luta contribuiu para a Hoje foi um dos instrumentos das públicas, mas pelo contrário, sem-pre
democratização de nosso País. A excepcionais votações obtidas pelos atuou dentro da máquina parti-dária,
nós, cabe a responsabilidade de comunistas nas eleições de dezem- ou seja, na organização. Ho-

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Acervo Iconographia

Entre os principais feitos da ALN está o seqüestro


do embaixador dos EUA,
Charles Burke Elbrick, realizado em parceria com
o MR-8 e levado a cabo estrategicamente na
Semana da Pátria, em 1969, no Rio de Janeiro
Acervo Iconographia

mens como ele aparecem pouco, mas


não deixam de ser fundamen-tais
para o funcionamento da estru-tura
do Partido”, sintetiza.
Em meados da década de 1960,
com o recrudescimento da face ainda
mais facínora da Ditadura, Câmara
passa a divergir da linha política do
PCB. Quando o ex-de-putado federal
constituinte Carlos Marighella
retorna de Cuba dispos-to a criar a
ALN, Câmara é talvez a principal
liderança do PCB a apoiá-lo nesse
projeto. Romper com o “seu” partido,
pelo qual lutara tan-to, foi, segundo
Del Roio, a decisão
Acervo Iconographia mais difícil de toda a sua vida,
mas o fez pela convicção de que era pre-
ciso reagir à ofensiva militar e esta
reação não era compatível com a
postura “reformista” do partido.
A dissidência do PCB deu origem
ao Agrupamento Comunista de São
Paulo, que mais tarde tornar-se-ia a
ALN, a maior organização da esquer-
da armada do Brasil. Neste período,
Uma de suas prisões, em
1950, quando o jornal Hoje
incomodava o governo Dutra
(no alto). Na campanha
eleitoral de 1945, discursa
ao lado de Prestes (acima).
Autópsia no IML (ao lado).

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Quase um ano após a volta


de “Toledo”, Fleury
consegue plantar uma
armadilha para ele,
usando como “isca” um
militante da ALN que, para
não ser morto, entregou à
repressão o chefe
guerrilheiro
Homenagem na Câmara Municipal de São Paulo, em 14 de outubro: depoimentos e emoção

a clandestinidade em que Câmara vi- O embaixador foi utilizado como Os militares haviam sido humilhados
via se intensificou, tendo de se afastar moeda de troca pela libertação de 15 perante o mundo e caçariam impla-
completamente da família. Até então prisioneiros políticos. Os milita-res cavelmente as organizações envolvi-
ele sempre encontrava uma maneira de viram-se obrigados a permitir, das. Nesse contexto, é o próprio Ma-
visitar os seus. Tornava-se, porém, também, a leitura de um manifesto righella quem convence o jornalista a
muito perigoso realizar esses encon- dos guerrilheiros, em cadeia de rá- deixar o país, pois este “estava
tros, que colocavam em risco não so- dio e televisão. jurado de morte pelo regime militar”.
mente a sua própria segurança, mas A ação foi comandada por “To- O historiador Luiz Mir, citado por
também a de sua esposa e filhos. ledo”, sem que Marighela tivesse seu biógrafo, assim descreve o
Os fundadores da ALN nutriam o conhecimento dela. Por esse motivo, encontro de despedida dos vetera-nos
sonho de construir um país base-ado no primeiro encontro entre ambos líderes comunistas: “Marighella
na derrubada da Ditadura Mili-tar; na após o seqüestro de Elbrick houve repetia para um inconformado Câ-
formação de um governo re- uma dura discussão entre os dois mara que tinha que sair do país,
volucionário do povo, na expropria- líderes. Em seguida, em reunião da preservar-se. Se alguma coisa acon-
ção dos latifúndios; na melhoria das ALN realizada depois do episódio, tecesse com ele, haveria alguém pa-
condições de vida dos operários, dos “Marighella chegou com uma visão ra continuar comandando a luta.
camponeses e das classes médias; na crítica” da ação, contou Manoel Chorando, abraçaram-se fortemen-
derrubada da censura, na instituição Cyrillo, um dos guerrilheiros, ao bió- te”. Dias depois, Marighella tom-
da liberdade de imprensa, conforme grafo de Câmara; “o seqüestro havia baria, vítima de uma emboscada
o relato de Luiz Silva. exposto toda a organização”. armada pelo delegado Fleury.
Entre os principais feitos da Na visão de Luiz Silva, embora não Câmara estava em Paris, acom-
organização está o seqüestro do se possa “vincular exclusivamen-te ao panhado do militante Aloysio Nunes
embaixador dos Estados Unidos, seqüestro a ação repressiva na-quele Ferreira, preparando-se para uma
Charles Burke Elbrick, em parceria período”, ele “deu forças aos setores missão na Coréia do Norte, quan-do
com o Movimento Revolucionário 8 mais duros do regime, aca-bou soube, pela leitura do jornal Le
de Outubro (MR-8) e levado a ca-bo levando a quedas em cascata, das quais Figaro, que Marighela fora assassi-
estrategicamente na Semana da não ficariam imunes Ma-righella, nado. Passado o choque, decide ir a
Pátria, em 1969, no Rio de Janeiro. Câmara Ferreira e a ALN”. Cuba, para conversar com os jovens

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Denise com o diploma concedido ao pai, entre o irmão Roberto e familiares: reparação

brasileiros que lá estavam em treina- e continuou a luta”, relata Clara à repressão. Atraído a um encon-tro,
mento de guerrilha e para definir o Charf, companheira de Marighela. Câmara foi capturado. Resistiu,
futuro político da organização. “Toledo” retorna ao Brasil em de- lutou, atracou-se com os policiais do
Em Havana encontra-se breve- zembro de 1969. Dedica-se à tenta- DOPS. Espancado, já chegou ao sítio
mente com Fidel Castro. Vence al- tiva de reestruturar o grupo, “pre- em que Fleury torturava suas vítimas
gumas resistências ao seu nome, parar infraestrutura para receber o respirando com dificuldade: sofrera
existentes em um setor da ALN. contingente guerrilheiro que estava um ataque cardíaco.
Revê a filha Denise. Depois disso, em Cuba”, transferir as ações ar- As homenagens realizadas no
retorna ao país, disposto a dar con- madas para o campo (para fugir ao Memorial foram precedidas por ou-
tinuidade à luta armada contra a cerco da repressão nas cidades) e tra, em 14 de outubro, na Câmara
Ditadura, apesar dos riscos, adver- “montar, com outras organizações de Municipal de São Paulo, onde, por
tências e senões. Dentro do próprio esquerda, uma grande frente ampla iniciativa do vereador Ítalo Cardoso
grupo já havia quem discordasse do armada e implantar a guerri-lha (PT), foram concedidos in memo-
caminho adotado, que se afastara de rural”, segundo Luiz Silva. riam a Câmara, na presença de seus
qualquer trabalho de massa. Quase um ano após a volta de filhos Roberto e Denise, o “Diploma
“Muita gente ficou com medo de “Toledo”, Fleury consegue plantar de Gratidão” e a “Medalha Anchie-
que ele voltasse e fosse assassinado, uma armadilha para ele, usando co- ta”. No encerramento da cerimônia,
mas ele foi firme: ‘Vou de qualquer mo “isca” um militante da ALN, Jo- que contou com diversos oradores, os
jeito, porque a continuação desta luta sé da Silva Tavares, que, para não ser cerca de 150 participantes cantaram,
cabe a mim’. De fato ele veio morto, entregou o chefe guerrilheiro com emoção, A Internacional.

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